Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Mundo em Disputa - Marcia Tiburi

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 148

dLivros

{ Baixe Livros de forma Rápida e Gratuita }

Converted by convertEPub
Copyright © Marcia Tiburi, 2024

Todos os direitos reservados. É proibido reproduzir, armazenar ou transmitir partes deste livro,

através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

Texto revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

Direitos desta edição adquiridos pela

editora civilização brasileira

Um selo da

editora josé olympio ltda.

Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380

Tel.: (21) 2585-2000.

Seja um leitor preferencial Record.

Cadastre-se no site www.record.com.br e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas

promoções.

Atendimento e venda direta ao leitor:

sac@record.com.br

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

T431m

Tiburi, Marcia, 1970-

Mundo em disputa [recurso eletrônico]: design de mundo e distopia naturalizada /

Marcia Tiburi. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2024.

recurso digital

Formato: epub

Requisitos do sistema: adobe digital editions

Modo de acesso: world wide web

ISBN 978-65-5802-137-7 (recurso eletrônico)

1. Ciência política – Filosofia. 2. Livros eletrônicos. I. Título.

24-88426 CDD: 320

CDU: 32:1

Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439

Produzido no Brasil

2024
À memória de Adriana Dias, feminista anticapacitista que,

por décadas, mapeou grupos neonazistas no Brasil. Adriana

estará presente para sempre em todas as nossas lutas.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO AO PROBLEMA

A disputa sobre a ideia de mundo

A naturalização da experiência da distopia

Uma guerrilha conceitual contra a destruição naturalizada

A artilharia ideológica na produção de uma estrutura desestruturante

O realismo patrirracialcapacitalista como indústria terrorista da distopia

naturalizada

PARTE 1. CÓDIGOS DISTÓPICOS

Carceri: no espelho das prisões distópicas

O patrirracialcapacitalismo a ser superado

Mundo como ideia matriz onde ser é estar situado

O mundo como alteridade indedutível no horizonte da complexidade e

da compreensibilidade

A função codificadora da distopia

O mundo codificado como mercadoria

A circulação da informação e a repetição do código

O princípio do obscurantismo e a geometria variável do ódio num

mundo criptografado

O mundo codificado é calculado e administrado

Grafopoder, conceitografia ou o design como pré-fabricação do mundo

Globalização: da cacotopia cuja meta é a catástrofe à hipnose cuja meta

é o esvaziamento subjetivo

Parque-tematização como mercado da mimetização


Ventriloquacidade, próteses cognitivas e produção de subjetividade

Uma conclusão provisória: o paradoxo administrado e sua superação

PARTE 2. CÓDIGOS UTÓPICOS

O sucesso do fim da utopia ou o poder de uma narrativa

O sequestro da ideia de mundo seguido do sequestro da utopia

Um outro mundo possível ou como o prcc será superado por alternativas

criativas

A libertação da imaginação como caminho para a democracia radical

Uma poético-política contra prisões digitais

A contracodificação utópica na desconfiguração do prcc

Criações narrativas e projeção política

A imaginação tecnoantropófaga

Pensar criticamente é um ato utópico

Um outro mundo possível

Referências bibliográficas
INTRODUÇÃO AO PROBLEMA
A DISPUTA SOBRE A IDEIA DE MUNDO

De Platão a Whitehead, dos pré-socráticos a Isabelle Stengers, de

Descartes a Wittgenstein, de Parmênides a Husserl, de Giordano Bruno

a Silvia Cusicanqui, a ideia de mundo sempre esteve em disputa. Em

certas épocas, ela levou à prisão, como aconteceu com Galileu Galilei,

condenado pela Inquisição em 1633 por defender o heliocentrismo. Ou à

morte na fogueira, como aconteceu com Giordano Bruno em 1600, que,

além de defender o heliocentrismo, afirmou que o universo era infinito e

composto de múltiplos mundos. Séculos depois, quando os Estados

Unidos e a União Soviética, duas potências nucleares, concorriam pelo

domínio imperial sobre o planeta, criou-se a definição de “terceiro

mundo”, hoje em desuso. A disputa sobre o mundo permanece expressa

no conflito entre a retórica da colonização que fala em “descoberta da

América” e a crítica anticolonial que fala em “invasão”. É parte desse


1
embate a substituição do próprio termo “América” por “Abya Yala”,

como fazem os povos andinos desde os anos 90 do século xx. Hoje,

permanece ainda a crença chamada de “terraplanismo”, que avançou

com o fascismo em vigor, e que não é apenas mais um delírio de massa,

é também a caricatura da disputa sobre o conceito de mundo.

Mundo é um assunto decisivo nas perspectivas territorial, teológico-

metafísica ou econômica. Certamente, também é sempre um tema

político. Com a dominação da política, como fundamento da condição

humana, pela ideologia do economicismo capitalista, mundo foi

reduzido a mercado, e suas partes, a mercadoria, dentro de um cálculo

utilitário. O utilitarismo continua sendo a base de grande parte das

“visões de mundo”. Se o mundo é objeto ou fonte de conhecimento, não

se pode esquecer que ele é espaço habitado e condição de toda

experiência, inclusive da própria “experiência de mundo”. O mero olhar

humano, assim como todas as teorias criadas sobre o mundo, mais

projeta do que revela algo sobre ele. Efetivamente, algo como “o mundo”

só pode ser concebido dentro dos limites do pensamento, como em


Kant, ou dos limites da linguagem, como sustentava Wittgenstein. Isso

significa que há muito mais do que se pode conceber e, paradoxalmente,

o mundo que concebemos está cada vez menor, tendo em vista a

quantidade de habitantes e o volume crescente de relações e de seus

potenciais mediadores. Quando levamos em conta a internet como “novo

mundo”, percebemos que o mundo se estabelece entre a entropia e a

neguentropia, que ele está, ao mesmo tempo, cada vez maior e cada vez

menor em decorrência dos processos de organização e desorganização

que lhe são constitutivos.


2
A ideia de que os limites do mundo são “limites da linguagem”

pode ser visualizada, em chave política, na relação entre linguagem e


3
política como uma banda de Möbius. Isso quer dizer que, assim como

na famosa fita do matemático do século xix, uma coisa passa pela outra,

um lado entra em torção e se transforma no outro. Os limites da

linguagem não são apenas os limites daquilo que é representável e

compõe o mundo como espaço linguisticamente concebido. O mundo é

o que se cria na linguagem, e a linguagem define o limite do mundo,

sendo que o que chamamos de mundo vem a definir o que podemos em

termos de linguagem. Mundo e linguagem se confundem em função de

limites que são, na verdade, contornos. Contudo, é a própria definição

do limite que se esgarça quando a linguagem é manipulada, e esse é um

problema que turva a nossa visão de mundo.

Podemos criar teorias e fantasias sobre o mundo, mas jamais

envolvê-lo ou “tomá-lo” senão pelas representações que temos dele, por

conceitos, noções e imagens mentais que nos são dadas ou que nós

mesmos criamos, definimos ou posicionamos mental e linguisticamente.

A ideia de mundo é “uma” ideia em disputa enquanto é “a ideia” que

permite o jogo da dominação entre ideias. Por ser uma ideia geral, ela

comporta todas as outras. Mundo é uma ideia matriz que define as

condições de possibilidade de outras ideias sobre o mundo, e até mesmo

de “mundos” no plural. Mundo é um arquétipo, um arque-tipo, uma

imagem anterior a todas as outras, continente, abrangente, uma

figuração ou configuração, um princípio “conceitográfico”, uma espécie

de “tipografia” geral a partir da qual se organizam códigos.

Cada mundo é o conjunto dos fatos que podemos reconhecer, ou

seja, das coisas que acontecem e que podem ser reconhecidas como
acontecimentos. Determinar o que acontece implica gerir um mundo. O

contexto simbólico-existencial é o locus onde acontecem as coisas que

podem ser reconhecidas, na medida em que os acontecimentos ou fatos

linguísticos, como tais, dependem da cognição para serem lidos. Se não

se pode conhecer a coisa em si, como levamos em conta desde Kant e

Schopenhauer, uma coisa pode ser compreendida por meio de sua

representação. Mundo é uma representação de um conjunto de

representações. A compreensibilidade, por sua vez, fazendo parte do

mundo, é uma potência do sujeito do conhecimento. O controle da

representação das coisas, ou seja, o controle das ideias, dos conceitos,

das palavras e das imagens, é parte fundamental dos jogos de poder que

agem linguisticamente.

Desse modo, ao conjunto de acontecimentos dentro de um contexto

compreensível chamamos de mundo. O próprio pensamento é um

acontecimento, ou seja, um fato que pode ser objeto de compreensão e

que, fazendo parte do mundo, ao mesmo tempo, nos permite chegar a

ele. O mundo é um conjunto de fatos que não pedem para ser

compreendidos, mas que o podem ser dentro dos limites de quem

compreende. Isso quer dizer que, do mundo, temos uma compreensão

sempre precária, realizada com base na nossa experiência, ou seja, nos

dados que nos são fornecidos para que possamos compreender. É essa

experiência de mundo que é manipulada econômica, teológica, estética e

politicamente.

Dizer que o mundo está em disputa implica afirmar que há jogos de

poder sobre a ideia matriz de representação do universal que não podem

ser negados de um ponto de vista ecológico. Ao longo da história,

teóricos se fixaram na questão da natureza humana e depois da espécie

humana. Hoje, se trata de pensar em termos da vida do planeta no qual a

espécie humana vive de maneira predatória ao lado de outras.

Estratégias linguísticas e discursivas, na forma de narrativas, são

produzidas para evitar que as pessoas compreendam o mundo e sua

situação no mundo. No extremo, o controle da ideia de mundo visa ao

controle do mundo como campo de experiência, o que só é possível pelo

controle da linguagem, que seria capaz de analisar, conceber, questionar.

Em suma, de montar e desmontar algo como um “mundo” com base em

uma ideia e na forma de narrar essa ideia.


Ao lado da linguagem verbal, a linguagem visual é dominante nas
4
sociedades que compõem a civilização atual. Portanto, devemos

compreender “narrativa” como algo que cria um mundo organizado em

palavras e imagens. Esse mundo implica uma verdade verbovisual,

discursivo-visual ou literário-visual coesa. O sistema simbólico atual

instaura narrativas verbovisuais dominantes para definir todas as demais

narrativas de maneira programática. Nesse sentido, se fôssemos

trabalhar com hipóteses filosóficas, como a caverna de Platão, o Leviatã

de Hobbes ou a horda assassina do pai de Freud, diríamos que a

primeira grande narrativa foi instaurada pelo macho dominante (que não

deixa de ser um leviatã formado de todos os corpos de todos os homens

a serviço do poder) como uma ameaça a todas (todes e todos) que não

servissem aos seus privilégios. O pater potestas [pai de família] é um

arcaísmo que continua em vigência como uma forma de terror

tanatopolítico sobre os corpos ameaçados dentro do sistema atual, no

qual a distopia foi naturalizada. Mais que isso, a tendência dominante do

senso comum é o império da teologia econômico-política neoliberal em

que a distopia se tornou capital. O neoliberalismo é, ele mesmo, uma

distopia a ser superada. Contra a distopia naturalizada de uma estação

espacial neoliberal para 1% da população humana viver, proponho a

utopia de mudar o destino do mundo habitado por diversas espécies.

Dividi este livro em três segmentos: uma introdução e duas partes

que dispõem conceitos e questões que funcionam como “células-tronco”

de pensamento, pois visam a curar corpos mentais adoecidos. Esta

introdução – que é, como as partes, também subdividida e que alguns

podem considerar um pouco longa – visa a apresentar o problema da

catástrofe naturalizada que é explicitada em “Código distópico”. Trata-

se da descrição do mundo codificado fundamentada na catástrofe na

qual vivemos. Nela, constrói-se a crítica do pesadelo e da alucinação

patrirracialcapacitalista em torno da ideia de mundo. A segunda parte

trata do que chamei de “Códigos utópicos”. Nela, busquei falar de utopia

apontando para o seu caráter de abertura ao outro, como um contraponto

natural da ideologia vigente e como capacidade de criar mundos

possíveis para além da destruição naturalizada que dá a tudo um ar de

distopia.
Trabalhei cada um dos tópicos como atos de pensamento dispostos

em sequência. A imagem das “cartas na mesa” ajuda a entender o

método de composição do livro. Espero que os argumentos apresentados

possam desenhar uma imagem compreensível da distopia vivida como

verdadeira realidade e como “melhor dos mundos possíveis” e que,

sobretudo, estimulem a pensar. No ato de pensar criticamente está a

promessa de atravessar a neblina provocada pelas bombas do gás

ideológico que nos mantêm presos no abismo do sistema e programados

para obedecer.

Ver a luz no meio da neblina, catapultar o pensamento para além do

sufocamento vigente, é o objetivo do processo, que se parece com um

jogo. Para jogar, é preciso mover a pedra fundamental do desejo contra

gigantes devoradores, com suas presas afiadas devorando a vida como

um todo. Acredito que o livro, como objeto utópico, é uma boa pedra

para lançar contra a boca aberta dos gigantes e, assim, desequilibrar a

engrenagem que nos mastiga sem piedade.

A imagem perturbadora de mundo sobre a qual falo neste livro pede

socorro à imaginação, que promete refazer o campo do sentido como

uma ferida que se cura de dentro para fora. Se a ideia de mundo é uma

imagem manipulada na sociedade da administração visual, na qual a

imagem é o próprio capital, libertar essa imagem é como abrir as portas

e as janelas de uma prisão.

Descrever a experiência do que se entende por “mundo” hoje obriga

a avançar na direção de uma fenomenologia política capaz de enfrentar a

distopia real enquanto aponta para fora dela. Outra iconologia política

deverá surgir no meio dessa fenomenologia voltada à compreensão do

patrirracialcapacitalismo. Uma poético-política acompanha essa

fenomenologia. Ela é necessariamente feminista, no sentido de projetar

um mundo de cuidado e comunhão entre seres humanos e natureza. Ao

mesmo tempo, é comunista, no sentido de agenciar a consciência do

comum, e é teórico-crítica, no sentido de buscar um diálogo que reforce

o lugar da reflexão ativa e transformadora do mundo. Na base, é a

consciência do possível como impulso da teoria o que constrói uma

tática de guerrilha conceitual e o novo desenho do mundo que

buscamos.
Ao reler o meu próprio trabalho, percebo que se inscreve

perfeitamente na perspectiva dos movimentos “altermundialistas”, que

se guiam pelo enunciado revolucionário “outro mundo possível”. Em

certo sentido, as bases dessa modesta contribuição surgiram há décadas

no começo da minha experiência com a filosofia, quando, bem cedo, me


a
deparei com a “11 Tese sobre Feuerbach”, de Marx: “os filósofos

apenas interpretaram o mundo de diferentes formas, o que importa é


5
transformá-lo”. Me alegro em me ver às voltas com as promessas da

juventude, mais uma vez.

Às leitoras e aos leitores, desejo uma boa viagem pelas páginas que

seguem, esperando que este livro seja também um veículo que,

trafegando sobre o vazio, nos permita vislumbrar, para além do abismo,

outro mundo possível.


Notas

1 Na língua do povo Kuna, que habitava entre o Panamá e a Colômbia antes da invasão do

território heterodenominado “América”, Abya Yala significa “terra que floresce”, “terra

madura”, “terra em seu total esplendor”. Organizações e instituições de povos andinos usam o

termo para se referir ao continente americano. Ver “Os povos indígenas na América Latina:

avanços na última década e desafios pendentes para a garantia de seus direitos”, publicado em

2015 pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).

2 Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 1968, p. 111.

3 A banda de Möbius é uma figura da geometria projetiva. Trata-se de uma imagem útil pela

qual se visualiza o entrelaçamento de linguagem e política como duas faces de uma mesma fita,

em que exterior e interior são o mesmo devido a uma torção das superfícies. Recuando no

tempo, vemos que, em Aristóteles, as definições do zoon logikon [animal racional] e do zoon

politikon [animal político] se assemelham a essa estrutura. A banda de Möbius pode ser também

um esboço útil da relação entre teoria e prática, entre discurso e ação. Enquanto ela nos permite

visualizar a torção, o momento em que uma coisa se torna outra, ou seja, o ponto de encontro

entre dois lados opostos implicados entre si, nos serve também para visualizar o caráter de

projetividade, ou seja, a condução de um lado ao outro. Nesse sentido, a imagem expõe uma

topologia não estática, com a qual podemos pensar questões políticas, sobretudo aquela que nos

toca desde a “11a Tese sobre Feuerbach”: como superar a simples interpretação do mundo e

transformá-lo.

4 Civilização aqui tem um sentido substantivo, didático e retórico, por ser uma palavra

conhecida, e não um sentido qualitativo.

5 “Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kommt aber darauf an, sie

zu verändern.” Karl Marx, Thesen über Feuerbach. [Nach dem mit dem Marxschen Manuskript

von 1845 verglichenen Text der Ausgabe von 1888], 1955.


A NATURALIZAÇÃO DA EXPERIÊNCIA DA
DISTOPIA

Vivemos uma distopia coletiva aceita e permitida. A destruição foi

naturalizada, ou, em termos mais explícitos, a destruição universal foi

naturalizada. A tese não é nova e é fácil acusá-la de catastrofismo,

conspiracionismo, culto apocalíptico ou até mesmo delírio. Contudo, se

há um grão de verdade em todo delírio, como diria Freud, nesse caso,

ele está no potencial de contraposição dessa tese à retórica do otimismo

que faz parte da modernidade capitalista e que chega até nossa época

totalmente naturalizada e, não por acaso, universalizada.

A proposição pessimista universal é uma provocação. Ela oferece um

parâmetro de comparação com o abstrato otimismo reinante, que,

paradoxalmente, tem atrapalhado o nascimento da utopia como

promessa e como projeto ao se oferecer como utopia realizada. O

otimismo prático é a virtude daqueles que Frantz Fanon chamou de “os


6
condenados da Terra” — os que buscam impulsos para seguir lutando

pela vida —, mas que, invertido, na retórica do sistema, serve também

como autofetichização do capitalismo. Minha esperança é que dessa

equação que contrapõe pessimismo e otimismo resulte uma percepção

mais aguçada da realidade atual do mundo, o que não podemos supor

antes da análise.

A destruição foi naturalizada para se tornar palatável. A destruição

aceitável, ou seja, que pode ser desfrutada pelo gosto, não é dirigida aos

donos do poder econômico, que terão sempre garantido todo o prazer

que o dinheiro pode comprar e que o sadismo pode promover. A

destruição resulta em uma imagem em que miséria, pobreza, fome,

doença, sofrimento e guerra mostram seu poder sobre corpos lançados à

própria sorte nas ruas das grandes cidades. A destruição naturalizada é

também uma metodologia e uma tecnologia política oferecida às classes

exploradas, aos pobres que não têm direito ao “bom gosto”, mas que

sempre podem desejar ter o que não poderão no processo de alienação


econômica que se vale de manipulações estéticas. A alienação é também

estética: o “melhor” não estará ao alcance das massas aduladas com lixo

cultural. Assim, a exclusão é econômica, mas é também estética, como

mostrava Pierre Bourdieu em seu clássico livro sobre o senso estético


7
como senso da distinção, que é, ao mesmo tempo, uma tecnologia

política.

No contexto da destruição naturalizada, a estética burguesa vem

camuflar o horror, que deve parecer “belo”. O “belo” é administrado em

sua função de acobertar, o que só é possível no apagamento total da

diferença, ou seja, na produção da semelhança geral. Corpos, casas,

cidades inteiras, tudo obedece ao princípio decorativo imposto pelo

design capitalista. O “belo” não é mais do que uma máscara para o

horror e pede concordância dos indivíduos e assentimento das massas. O

conservadorismo é estético, e é desse modo que ele transmite e assegura

a conservação. A naturalização da destruição nada mais é do que a

repetição a qualquer custo, o que impõe a norma visual, mas livra do

cuidado com o mundo. O conservadorismo é o contrário técnico da

utopia e é, ao mesmo tempo, mitomaníaco, ou seja, criador de narrativas

que modulam a verdade que ele precisa transmitir.

O que sobra dessa equação é a verdade da destrutibilidade, categoria

que precisamos enfrentar no contexto da análise do sistema que nos

programa. Nesse caso, a destrutibilidade, como potencial e como valor,

está expressa na experiência de distopia vivida em um sistema

simbólico, econômico e político camuflado de “melhor dos mundos


8
possíveis”, como dizia o personagem Cândido no irônico conto

filosófico publicado por Voltaire no final do século xviii. Aqui,

chamaremos esse sistema de “patrirracialcapacitalismo” – amálgama de

patriarcal, racial, capitalista e capacitista –, abreviado por prcc. A

intenção desse nome feio, abreviado com essa sigla chamativa, é expor a

unidade de opressões que incidem sobre todos os seres da Terra, da qual

os indivíduos humanos – e seu genérico coletivo “ser humano” –, em

suas dimensões corporal e psicopolítica, são os principais agentes e

também as vítimas junto a outros seres não humanos, sobre os quais

nossa espécie destrutiva sabe muito pouco.

O patrirracialcapacitalismo não visa apenas a abusar dos corpos que

usa para se manter, ou violentar o ecossistema do qual depende


enquanto sustenta a fantasia de sua infinitude, mas visa a destruir o

mundo, o que implica destruir a si mesmo. O projeto de destruição é

explícito, e cada vez mais pessoas percebem isso. O clima de otimismo

que ofusca a realidade está cada vez mais abalado. A despeito da

ingenuidade dos seres humanos, sobretudo quando se lançam na

“massa”, vicejam a desconfiança e a dúvida quanto ao sentido da vida

sob o sistema, o que fica explícito no recrudescimento de religiões que

oferecem paz a espíritos atormentados. Para as pessoas concretas, é

difícil perceber que os tormentos experimentados não vêm “de dentro”,

da “alma” ou da “subjetividade”. Nem mesmo dos desígnios de Deus,

tampouco são produto do “espírito” que não encontrou equilíbrio. Eles

são frutos do sistema que projeta e calcula sobre o sofrimento de cada

corpo. O cálculo sobre o que pensamos e sentimos, incluso o

sofrimento, implica o psicopoder, ou seja, faz parte do arranjo do prcc.

Que super-ricos projetem estações espaciais para habitar longe do

planeta Terra é um sinal de múltiplos significados: a desvalorização do

planeta, seu descarte como lixo, seu abandono irresponsável, o

desrespeito pelas espécies que nele habitam e pela vida de um modo

geral, além de uma brutal falta de amor-próprio. A prepotência

patrirracialcapacitalista esconde não só a falta de amor aos outros, mas

também a falta de amor a si mesmo. A falta de erotismo, no sentido

genérico de disposição para a vida, revela o gozo com a morte em sua

fase viciada. A aniquilação de tudo e a autoaniquilação entregam-se ao


9
abismo. A vida vem sendo danificada e já não basta acionar o aviso de

incêndio, como diria o filósofo alemão Walter Benjamin. É preciso saber

que psicopatas rondam a nossa casa munidos de todas as armas que

podem ser usadas numa guerra híbrida infinita. Super-ricos estão no

topo de uma cadeia em cuja base estão os miseráveis devorados pela

fome e pela necessidade, os que têm menos chance de se proteger nos

espaços da cadeia aprisionante do sistema.

No cerne das questões e dos problemas que obrigam a discutir sobre

utopias e distopias, desponta neste livro um tema filosófico, tão

epistemológico quanto político: o tema do mundo em disputa. O

neoliberalismo, como teologia econômico-política, organiza-se como

um procedimento de dominação do mundo que passa pelo controle das

ideias que flutuam na esfera da linguagem como substâncias que valem


muito dinheiro. As ideias são a quintessência do capital. Indivíduos e

grupos que desejam controlar o mundo precisam capturar e controlar as

ideias, principalmente a “ideia” de mundo. A ideia de Deus já foi usada

para isso. Todo controle precisa ser administrado, ou seja, dirigido e

governado economicamente, o que se faz a partir de cálculos em

diversos níveis, inclusive sobre o que se pensa e se acredita, sobre o que

se sente e o que se deseja, que é o cálculo sobre a percepção, o chamado

psicopoder.

A ideia de mundo é a principal ideia a ser dominada, tanto quanto se

faz com as ideias de Deus e tantas outras, mas, para isso, precisa ser

administrada. O que chamo de “ideia de mundo” é a representação do

mundo que deve ser apresentada para formar o espelho das crenças e

manter a estrutura da dominação.

Em política, sempre podemos falar de codificações utópicas e

distópicas e das guerras contra o povo, bem como das lutas por

hegemonia que tais codificações provocam. A disputa entre codificações

gera atritos e antagonismos que são naturais em uma democracia. A


10
própria democracia é um sistema de codificação de caráter agonístico,

em que o caos e o desentendimento são regras de um jogo que,

paradoxalmente, pode gerar a única justiça possível. De qualquer modo,

para entender o que a política faz conosco e o que podemos fazer com

ela, é preciso tomar ciência de como esses códigos são acionados, como

eles estruturam o nível ontológico, ou seja, o ser que somos, mas

também o nível ético-político, o que fazemos a partir do que o sistema

faz conosco. O jogo político, como jogo de linguagem, é um processo

que envolve nossa existência reduzida a peças de uma engrenagem.


Notas

6 Frantz Fanon, Os condenados da Terra, 2022.

7 Pierre Bourdieu, A distinção: crítica social do julgamento, 2007.

8 Voltaire, Cândido, ou o Otimismo, 2012.

9 O subtítulo de Minima moralia, de Theodor Adorno, é Reflexionen aus dem beschãdigten

Leben [Reflexões sobre a vida danificada], que também poderia ser o subtítulo deste livro.

10 Chantal Mouffe, Agonistics: Thinking the Word Politically, 2013.


UMA GUERRILHA CONCEITUAL CONTRA A
DESTRUIÇÃO NATURALIZADA

Diante da guerra de destruição promovida pelo sistema econômico e

simbólico em curso, proponho uma guerrilha conceitual que nos permita

pensar, ao mesmo tempo, utópica e pragmaticamente sobre um mundo

que vem sendo destruído e cuja destruição foi naturalizada e oferecida,

ela mesma, como mercadoria. Tendo sido proposta como o melhor dos

mundos para sujeitos reduzidos a espantalhos do sistema, a destruição

naturalizada implica a contínua produção da destruição de um mundo

moldado como distopia como se fosse o seu contrário, a utopia. Isso é

possível porque a mercadoria foi elevada à forma cognitiva do mundo e

interiorizada nos esquemas de pensamento.

A guerrilha conceitual é a defesa da reflexão e do impulso utópico

inerente ao pensamento crítico. Com isso, quero falar da utopia

pragmática, ou seja, da reflexão com senso de consequência quanto ao

destino do mundo. Ela se dá em nome de uma democracia concreta e

radical, que inclui a participação de todos os corpos, de todos os grupos

que, até o momento, estiveram submetidos ao monopólio da violência

patrirracialcapacitalista. A democracia radical é parte da proposta de um


11
outro mundo possível, liberto da distopia da destruição naturalizada.

A destruição vem sendo naturalizada como alternativa, o que

constitui um paradoxo. Contra ela, a guerrilha conceitual, reflexiva e

teórica impulsiona à práxis, para a qual o trabalho do pensamento é uma

base concreta de apoio. O objetivo deste livro é, portanto, servir de

fundamento, de chão e de instrumento de reflexão. Ele busca entrelaçar-

se à luta prática, pois nasce dela e sabe da importância de estimular as

consciências.

Che Guevara definiu “guerrilha” como a ação da vanguarda

combatente que se defende do opressor cujo poder de ataque é

imensamente maior do que a ação dos guerrilheiros. Aqui, opressor é o

sistema simbólico e econômico que opera entre as violências simbólica


e física, entre a humilhação e a adulação, entre a enganação e a

desinformação, contra corpos e mentes que ele precisa capturar, moldar

e fazer funcionar conforme seus interesses até o descarte, quando esses

corpos – vítimas da avareza, do ódio, da usura e do abuso – são lançados

ao abandono numa espécie de pena de morte por descaso. A culpa e a

responsabilidade ficam por conta da própria vítima proscrita do jogo a

cujo serviço ela foi submetida. Precisamos nos defender desse sistema

que nos aliena se quisermos resistir para mudar o estado de coisas

injustas que ele produz e reproduz.

A guerrilha conceitual é um movimento que visa ao

desencadeamento de uma estratégia de superação do prcc, cujo princípio

tóxico precisa ser vencido objetivamente, mas também subjetivamente,

ou seja, dentro de nós. Afinal, não haveria machismo, racismo,

capacitismo e capitalismo se não houvesse interiorização de seus

funcionamentos por meio de mecanismos de subjetivação que envolvem

corpos, desejos, pensamentos, sentimentos, afetos e crenças.

A opressão objetiva escraviza e dociliza corpos simulando seu

acordo e consentimento, pois eles raramente conseguem se contrapor ao

sistema. O corpo seduzido reage com idolatria ao sistema que o captura.

O corpo revoltado reage revolucionariamente contra toda tentativa de

opressão.

A guerrilha conceitual se constitui no questionamento e na liberação

de conceitos para uso comum visando à construção de outro mundo

comum. É preciso liberar o pensamento para que ele se torne reflexivo e,

desse modo, possa favorecer a experiência humana em suas dimensões

existencial, material, corporal, cultural e linguística, para o

desenvolvimento de uma vivência de felicidade. Felicidade é um

conceito político utópico que foi devorado pelo sistema, cujo potencial

transformador deveria ser devolvido às pessoas. A guerrilha conceitual

não descansará enquanto não alcançar o seu objetivo de libertar nossos

corpos.

De fato, a artilharia capitalista totalitária, imperialista, misógina,

racista e capacitista promovida pelos donos dos meios de produção da

linguagem é gigantesca e desproporcional diante de instrumentos de luta

que, com muita dificuldade, poderíamos chamar de “armas”. A guerrilha

em questão é contra uma guerra sistemática. Ela visa a superar o sistema


da violência e do ódio genérico contra a vida e contra os corpos

insurgentes que resistem como portadores da vida capturada no sistema

antivida em nome do ódio sistematizado.

Espero que as palavras deste livro possam ir além das armas. Que

elas possam ser instrumentos mágicos da guerrilha conceitual na luta

ritual do pensamento reflexivo contra o sistema da opressão ultra-

armado, em plena artilharia contra os corpos que anseiam e lutam por

democracia radical, uma democracia qualitativamente diferente da

teatral democracia burguesa que acoberta o prcc e seu projeto de

extermínio dos vulneráveis.

O sistema de dominação e opressão que precisamos compreender é

perverso. Ele calcula sobre a dificuldade que temos em acreditar no que

está acontecendo. Despertar do pesadelo exige esforços aos quais não

estamos acostumados. A consciência da qual dependem todos os

movimentos transformadores está cada vez mais rara. Ela tem sido

aniquilada pelo poder em jogos psicopolíticos.

Do resgate do pensamento crítico emerge a salvação da ideia de

mundo da qual dependem as transformações capazes de nos livrar do

prcc, em que o neoliberalismo narcísico e o narcisismo neoliberal-

fascista, em mais uma expressão escatológica atual, seguem dominando

corpos e produzindo subjetividades perversas que garantam a

sustentação de um sistema perverso. Uma guerrilha conceitual pode

despertar do sono dogmático do momento. Este trabalho deriva da

consciência utopista de que os rumos políticos e sociais que podemos

seguir, como espécie ou comunidade humana, dependem da retomada de

formas de pensar que produzam libertação subjetiva e objetiva, que

devolvam a imaginação às pessoas e garantam o respeito à existência do

diferente, inclusive de outras espécies além da humana, considerando o

planeta como um lugar onde o especismo humano precisa ser superado.

Essa luta é pela defesa do que é “não idêntico” no contexto do sistema

prcc.
Nota

11 A frase “um outro mundo possível” pode ter sido inspirada numa frase citada do poeta Paul

Éluard. “Il y a assurément un autre monde, mais il est dans celui-ci et, pour atteindre à sa pleine

perfection, il faut qu'il soit bien reconnu et qu'on en fasse profession. L’homme doit chercher son

état à venir dans le présent, et le ciel, non point au-dessus de la terre, mais en soi” [“Existe

certamente um outro mundo, mas ele está neste, e para atingir a sua perfeição total, é preciso que

ele seja bem reconhecido e professado. O homem deve procurar o seu estado futuro no presente,

e o céu, não acima da terra, mas dentro de si”]. Paul Éluard, Oeuvres complètes, 1968, p. 986.
A ARTILHARIA IDEOLÓGICA NA PRODUÇÃO DE
UMA ESTRUTURA DESESTRUTURANTE

Uma guerra cultural é perpetrada pelos donos dos meios de produção do

mundo, que dependem do monopólio da ideia de mundo para produzi-

lo. Não seria por menos que os neoliberais estocariam ideias e capital

em vez de alimentos, algo que eles sabem que nunca vai lhes faltar, pelo

menos até o fim do mundo, que faz parte do seu projeto tanatopolítico –

mesmo que, antes do fim, o mundo inteiro esteja faminto.

A guerra em curso é ideológica e econômica, psicológica e moral,

estética e teológica. Ela é travada contra os corpos humanos e contra os

corpos de outras espécies existentes. Essa guerra é linguística e física e

visa a imprimir códigos ao pensamento, à sensibilidade e à conduta

humana. É uma guerra de controle que incide sobre a percepção de

indivíduos, mas afeta populações inteiras. Ela opera numa direção

antiutópica para atacar crenças e desejos, o ser e o dever-ser.

Transformar o povo em massa e garantir que cada indivíduo seja incapaz

de revoltar-se contra a dominação é fundamental ao andamento dessa

guerra. É contra ela que propomos uma defensiva guerrilha conceitual.

O termo guerra pode soar exagerado para os mais apegados à

literalidade, mas ele aponta para a tática de bombardeios publicitários,

midiáticos, imagéticos, discursivos e narrativos aos quais as pessoas se

acostumam de tal forma que se tornam incapazes de vê-los, não

podendo, desse modo, imaginar como seria possível fugir deles. É uma
12
economia psicopolítica do choque, que administra a vida cotidiana e

imprime um algoritmo ao seu metabolismo. A artilharia ideológica é

sempre vencedora e transforma a todos em seres assustados, estressados

e/ou conformados. Proteger-se dessa artilharia e preservar a vida implica

saber agir nas trincheiras, evitando ser capturado pelos inimigos

publicitários e midiáticos que confinam e canibalizam corpos para seu

uso e sustento. O objetivo é retirar de cada corpo existente a dimensão


da possibilidade, relançando-o numa servidão, em uma espécie de ritual

diário monótono e repetitivo.

Hoje, a velha e perigosa expressão “pegar em armas” se tornou a

prática da extrema-direita e dos fascismos que avançam com a

exacerbação da guerra ideológica. Apesar disso, é preciso lembrar que

as armas mais poderosas são sempre as linguísticas, alicerces do sistema

simbólico onde se estabelece e se mantém a dominação. O nível

simbólico e o linguístico se entrelaçam como urdidura e trama. Assim

como armas físicas funcionam como símbolos, símbolos são armas

linguísticas que, na contramão da dominação simbólica, podem ser

usadas para reverter a dominação, inclusive a dominação fascista em

voga em nossa época. Portanto, as armas linguísticas têm o potencial de

afetar o sistema simbólico, que, tomado pelo fascismo, é também

destruído por ele. Destruir, no fascismo, é verbo intransitivo. O fascismo

destrói – e tanto e indistintamente que destrói o outro e a si próprio. Por

isso, seus críticos têm a impressão de irracionalidade, quando, na

verdade, se trata de uma pura lógica em funcionamento e sem limites

contra a linguagem.

A lógica interna do fascismo pode ser denominada de “estrutura

desestruturante”. Pierre Bourdieu usou as expressões “estrutura


13
estruturante” e “estrutura estruturada” para se referir aos sistemas

simbólicos que organizam a sociedade. O fascismo é, pois, um

dispositivo de corrosão do sistema que pretende se instaurar como

sistema. Ele funciona na exploração de um paradoxo: a guerra contra a

cultura é, ela mesma, cultural. A impressão de que o fascismo age contra

o sistema deriva de seu ataque à linguagem. Seu paradoxo está em

produzir um mundo destruído.

O neoliberalismo, que visa à destruição do Estado democrático e de

bem-estar para a sustentação de um Estado rígido a serviço dos donos

do poder, de produzir a morte pela guerra, pela fome e pelo desespero,

tem no fascismo a sua forma estética e política. O Estado mínimo se

torna um Estado máximo produzido pelos donos do capital e das classes

exploradoras no neoliberalismo. A ideia do Estado mínimo é a

quintessência do capitalismo. Ela serve como princípio articulador de

mundo. Sendo a forma condensada e absoluta do Estado, o


neoliberalismo é o fascismo em si mesmo, ou a coisa-em-si do fascismo,

ele mesmo o mundo da morte organizado como ideologia.

A maldição antialteridade do sistema é contra a linguagem, que é

berço da alteridade, mas que deve eliminar sua própria alteridade

interna, presente pelo processo da imaginação. A imaginação é a

abertura da linguagem. O extermínio do outro é antecipado na

linguagem fechada e, portanto, morta em sua função ontológica mais

simples. O extermínio do outro é, portanto, o extermínio do próprio

sentido do qual derivam todos os outros sentidos e da própria

possibilidade de produzir sentido, o que só se alcança na experiência da

alteridade. A desestruturação deve funcionar como tecnologia

antissimbólica, ou seja, como algo diabólico que ninguém está

autorizado pelo sistema a ver como tal.


Notas

12 Sobre o choque como estratégia, remeto ao livro: Christoph Türcke, Sociedade excitada:

filosofia da sensação, 2010.

13 Pierre Bourdieu, “Sur le pouvoir symbolique”, 1977, pp. 405-411.


O REALISMO PATRIRRACIALCAPACITALISTA
COMO INDÚSTRIA TERRORISTA DA DISTOPIA
NATURALIZADA

14
Mark Fisher utilizou a expressão “realismo capitalista” sinalizando

para a ausência total de esperança em relação à superação do

capitalismo. Em sua definição, o realismo capitalista é a sensação

generalizada de que não apenas o capitalismo é o único sistema político

e econômico viável, mas que se tornou impossível imaginar uma


15
alternativa coerente com ele. A famosa sentença de Margaret
16
Thatcher acerca da inexistência de alternativa ao sistema tornou-se o

slogan do realismo capitalista de Fisher. Fisher partilha essa posição

pessimista com teóricos como Slavoj Žižek e Fredric Jameson. A

posição pessimista desses autores deve ser levada muito a sério, embora

seja necessário também dizer que não se deve confundir pessimismo

com ética. Uma estética do pessimismo precisa ser substituída por uma

ética da imaginação política. O pessimismo é a verdade que pede

socorro à imaginação, e falaremos disso na segunda parte deste livro.


17
Analisando o filme Filhos da esperança, Fisher percebe uma

mudança na apresentação da distopia que o faz compreender o

funcionamento do realismo capitalista. Segundo ele, antigamente, filmes

e romances distópicos eram exercícios de imaginação. Os desastres

serviam de pretexto narrativo para a emergência de outras formas de

vida. Em Filhos da esperança, Fisher vê uma narrativa que parece

projetar um horror conhecido. O autor se vê angustiado com a

extrapolação ou exacerbação do mundo conhecido, no lugar de uma

alternativa a esse mundo. A correspondência entre o “mundo

cinematográfico” e o “mundo real” é motivo de perplexidade por

representar uma mudança de paradigma sobre a percepção humana.

No filme, a continuidade entre os elementos próprios ao “ultra-

autoritarismo” e ao “capital” se mostrou compatível. Fisher percebe a


18
coexistência de “campos de concentração e cafés de franquia”, o que
faz lembrar das pessoas que hoje posam em fotos – às vezes sensuais –

diante dos portões de Auschwitz para colocar nas redes. Em Filhos da

esperança, o espaço público é destruído e invadido pela natureza

selvagem como em muitos outros filmes distópicos, mas Fisher comenta

que ali tudo acontece em clima de convivência.

O autor vê nos neoliberais os realistas capitalistas por excelência. Na

fajuta retórica do Estado mínimo, o sequestro do Estado para fins

privados é evidente. No filme em questão, a naturalização do horror faz

parte disso. Como diz Fisher, a catástrofe não está à espera, nem já

aconteceu, mas, ao contrário, ela está sendo vivida e experimentada

como se fizesse parte do cotidiano. Não há um momento específico em

que ocorre o desastre, ele se torna contínuo e imemorial. O mundo vai se

desfazendo gradualmente, e um estranho conformismo toma conta de

tudo.

Se, por um lado, o cinema mostra a realidade permitindo a crítica,

por outro, na ausência de pensamento reflexivo capaz de levar a cabo a

crítica, a realidade como horror é normalizada. Fisher tem razão em

suas observações. Ele sabe que o sistema caracterizado pela estético-

política do realismo capitalista deseja que ninguém, inclusive seus

críticos, incomode. Que todos trabalhem para a manutenção do sistema

sem perturbar a ordem. Os insatisfeitos podem continuar gritando, pois

irão se conformar na prática e, por fim, morrer como todo mundo.

No que chamamos de realismo patrirracialcapacitalista, a catástrofe

é fomentada, e a estética da violência define a realidade. Ao mesmo

tempo, a indústria audiovisual surge como populismo estético, no qual

os estilos que escapam da dominação da indústria cultural são tratados

como inimigos, enquanto o “povo” – ou seja, espectadores que

compõem massas sem reflexão – é adulado com entretenimento e

produtos mentais e cognitivos fáceis e excitantes, pois todo desafio

intelectual deve ser eliminado. O populismo estético vem aniquilando a

capacidade de pensar e de sentir das populações, mas também a

capacidade de perceber. As empresas de cinema e audiovisual vendem

narrativas distópicas como nonsense estetizado para o consumo de

massas anestesiadas que conseguem ver no horror espelhado nada mais

do que mero entretenimento. O sistema oferece a idolatria, cujos ídolos

são igualmente instrumentalizados, enquanto adula o adorador, a quem é


permitido adorar um ídolo. Forma-se um círculo vicioso em que não se

permite outra forma de vida fora da obediência à indústria cultural.

O que o realismo capitalista vende é a ideia de que a crítica não

passa de amolação, pois a “realidade” não pode ser modificada, que a

luta não passa de barulho, pois ela é inútil. Diante do pressuposto de que

não há alternativa, não deve haver luta capaz de produzir saídas que

desestruturem o sistema da desestruturação estruturante. Construir

alternativas a um mundo em demolição permanente não é permitido. O

sistema lucra porque, segundo o programa de pensamento pronto que ele

é, não havendo luta, certamente não haverá alternativa. A alternativa

deve ser extirpada do desejo pessoal e coletivo junto a toda esperança.

A manutenção do realismo capitalista depende da falta de

contraponto e da ausência da diferença, da falta de teorias alternativas,

de gestos, ações e movimentos contestadores. A sustentação do

conformismo e do desespero, efeitos naturais do sistema, são essenciais.

Eles devem ser garantidos para a reprodução do sistema no seu eterno

convite ao gozo perverso, ou seja, à satisfação de se viver num mundo

sem sentido e sem responsabilidade com esse mesmo mundo e com toda

a alteridade nele existente. A atmosfera psiconarrativa do mundo cria

distopias. Todas revelam a economia-estética da catástrofe no âmbito da

normalização e da naturalização.

A catástrofe é a meta que o capitalismo impõe e da qual se alimenta,

como quem produzisse um mundo morto – um mundo coisificado – para

poder se aproveitar de seu cadáver para sempre. É nesse sentido que o

capitalismo é necropolítico. Tudo o que se pensa, se sente ou se faz deve

visar à destruição de um mundo alternativo. Deve aspirar à substituição

ou construção do mundo a ser codificado pelo capital. O que podemos

chamar de código distópico implica uma estética e uma ética, uma

materialidade e uma metafísica. Ele entra em ação na forma de um

looping, de um circuito infinito e repetitivo a ser garantido por cada

corpo humano, seja ele opressor ou oprimido. O que Adorno chamou de

“vida danificada” não é um efeito fortuito de uma sociedade que perdeu

seu rumo por acaso, mas um projeto racional. Trata-se de uma forma

elaborada linguisticamente com contornos de mundo, ou seja, traços

estruturantes de um sistema organizado na linguagem – e que precisa ser


contestado na prática linguística – que afetam toda a produção do que

somos e do que fazemos.

Longe de ser uma gratuidade retórica ou um acaso formal na

produção do mundo, a catástrofe difundida tem dois lados: de um, ela

expõe a energia psíquica em voga; de outro, é a forma estética da

ideologia política do capitalismo em sua configuração neoliberal. A

catástrofe está inscrita no projeto da mundialização capitalista. Ela deve

parecer ficção para sugerir que a realidade é outra. O efeito de

espelhamento é negativo, e assim deve continuar.

A indústria cultural dos filmes de terror cria o pânico recreativo

como forma-mercadoria do pânico real e vende tantos ingressos de

cinema e assinaturas de televisão quanto antidepressivos. A catástrofe se

contrapõe à utopia e, assim como esta, é uma categoria “efeitual” ou

performativa, no sentido de causar efeitos concretos na mentalidade e na

ação das pessoas.

O fascismo acoplado ao neoliberalismo depende da catástrofe e se

apresenta como distopia realizada. Isso explica o investimento fascista

no âmbito estético – procedimento que o fascismo, em seu momento

inicial e imaturo, puramente capitalista, já exercia com maestria para

controle de sua forma e seu enrijecimento. O fundamento místico da

autoridade, no neoliberalismo e no fascismo, sempre foi estético. Ele

corresponde à “catastrofização” ou à “flagelização” do mundo ocultadas

sob a mística da globalização, assim como a estética do extermínio é a

estética da frieza que serve de pano de fundo para a matança.

O terrorismo do prcc é estético, e a estética do prcc é terrorista. A

economia-política da catástrofe corresponde à estética da catástrofe. Ela

é o revestimento do mundo no qual o princípio decorativo está em

vigência. A configuração distópica precisa causar medo e estressar o

aparelho sensorial tornando o organismo insensível. A função da tortura

é abalar sem matar. Quem sobrevive não se torna mais forte, quando

muito, mais duro e rígido. Vitimados pelo terrorismo estético, ninguém

mais sente a dor do outro. Nem a própria. Esvaziada, a subjetividade dá

lugar a um corpo material que perambula pelos shoppings como um

espectro.

As violências econômica e estética vêm a ser o principal input da

reprodutibilidade e da repetição da lógica do sistema. O horror é


administrado em doses, como choques em uma tortura. Entre o horror

catastrófico e horrores aparentemente mais amenos, entre o horror

cinematográfico e o televisivo, entre a ficção e a realidade, há uma

continuidade. Se pensarmos em termos de violência simbólica, podemos

dizer que ela é gradualmente aplicada de modo a “equilibrar” os níveis

em escalas suportáveis, como acontece na tortura.

A estética da violência também se apresenta como violência estética,

uma violência que age sobre nosso aparelho sensorial, sobre nossos

corpos. A esfera estética da vida assume uma forma assediadora e

aterrorizante à qual todos devem se adequar: corpos artificiais, roupas,

maquiagens para transformar cada indivíduo em um boneco de plástico,

em uma marionete que deverá repetir as falas de seu manipulador, em

um processo de ventriloquacidade generalizada.

A mercadoria-mundo e o mundo das mercadorias implicam a

destruição de todas as coisas e dos mundos possíveis, inclusive da ideia

de um mundo natural, que deve ser completamente substituído pela pura

e simples artificialidade. Ao mesmo tempo, se cria uma indústria em que


19
o “mundo natural” é a mercadoria, assim como o corpo e seus órgãos.

Das roupas ao sexo, da alimentação ao turismo, da meditação à política,

tudo recebe os revestimentos estéticos do capitalismo. Ele opera como

ordem do cotidiano em termos biopolíticos (o cálculo que o poder faz

sobre a vida), anatomopolíticos (o cálculo que o poder faz sobre os


20
corpos) e psicopolíticos (o cálculo que o poder faz sobre o que se

pensa e o que se sente). Podemos também considerar que se trata de um

cálculo do poder sobre a própria linguagem. A vida de cada um já está

programada pelo código distópico anatomopolítico. O potencial da

utopia como esfera do sonho é descartado no contexto da discursividade

pré-programada. A utopia é a forma linguística que deveria fazer frente


21
ao atual estado em que a linguagem também é objeto de consumismo.

Mas, no momento em que ela mesma é transformada em mercadoria, o

que se pode fazer senão tentar resgatá-la do seu aprisionamento?

A destruição nas mais diversas escalas transforma-se em um método,

mas também em produto na forma da cena exposta. Como método, a

destruição (provocada ou natural) visa a dar espaço a novas mercadorias.

Tudo o que é destruído pode ser substituído por mercadorias novas que

venham compensar as perdas. A destruição – método e produto – é um


grande negócio. Uma nova forma de realização é o que aparece com o

surgimento da mercadoria compensatória. Esse circuito provoca um

novo gozo das coisas prontas, das imediatidades, que recompensam um

corpo e um psiquismo cansado de esforçar-se pela sobrevivência. O gozo

das ideias prontas é dado às massas que, aduladas por líderes

publicitários e políticos na aliança que configura a indústria cultural da

política, atacam a reflexão e o pensamento crítico.


Notas

14 O movimento do realismo capitalista surgiu em Berlim nos anos 1960 e teve Sigmar Polke

como um dos seus principais expoentes. O movimento satirizava o realismo socialista soviético e

a pop art estadunidense, cujo intuito era a produção massificada da arte para o consumo.

15 Mark Fisher, Capitalist Realism: Is There No Alternative?, 2009.

16 Na lógica do sistema, a ideia de que é possível um mundo melhor do que o conhecido deve

ser impedida de avançar. Por isso mesmo, a velha frase de Margaret Thatcher – “There is no

alternative” [Não há alternativa] – foi celebrada no cenário da globalização como um texto

oficial. Ela foi o slogan do capitalismo neoliberal a deixar claro que não há espaço para mais

nada e que não adianta pensar em alternativas. O sistema sacrificial não admite questionamento.

O fato de Thatcher ser uma mulher apenas aciona a distopia sobre a qual o patriarcapitalismo

renova sua lógica falaciosa.

17 Alfonso Cuarón, Filhos da esperança, 2006.

18 Mark Fisher, op. cit., p. 2.

19 Paul B. Preciado, “Multitudes queer: Notes pour une politiques des ‘anormaux’”, 2003, pp.

17-25.

20 Michel Foucault, Microfísica do poder, 2021.

21 Em Como conversar com um fascista (2015), Ridículo político: uma investigação sobre o

risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto (2017), Delírio do poder:

psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação (2019) e Como derrotar o

turbotecnomachonazifascismo ou seja lá o nome que se queira dar ao mal que devemos superar

(2020), utilizei o conceito de “consumismo da linguagem” para expressar o estado de

mercantilização e monetização da linguagem em nossa época. A linguagem é uma arma de

manipulação, ao mesmo tempo, ela é a própria forma-mercadoria ao alcance de todos nas redes

sociais. Esse “bem” nunca esteve tão disponível e a preço tão baixo para o gozo das gentes.
PARTE 1

CÓDIGOS DISTÓPICOS
CARCERI: NO ESPELHO DAS PRISÕES
DISTÓPICAS

Le Carceri d’invenzione é um conjunto de dezesseis pranchas gravadas

por Giovanni Battista Piranesi entre 1750 e 1780. As gravuras mostram

imagens inquietantes que desafiam a perspectiva tradicional, à qual o

olho humano se acostumou ao longo dos séculos. Na confusão trevosa,

paredes e abóbadas sufocantes enquadram escadarias e corredores que

levam a lugar nenhum. Escadas espiraladas entre pontes rompidas,

escombros e ruínas escondem corpos torturados para os quais não há

qualquer saída.
1
Marguerite Yourcenar percebeu nelas o espírito de um tempo

atormentado, apresentado pela habilidade do artista em panoramas

esmagadores que não deixam nenhuma linha de esperança para seus

personagens espectrais ou para quem, na condição de espectador,

observa abismado de baixo para cima. Grilhões e forcas abandonadas

entre focos de luz e sombras desencontradas promovem a sensação de

confusão mental. Quem entrasse nesse inferno nunca sairia dali.

Olhar para essas prisões imaginárias causa espanto ainda hoje. Se

elas são um mundo à parte ou um retrato do mundo comum, é difícil

afirmar. Seja a construção da destruição, a arquitetura da ruína, o

caminho que leva a lugar nenhum ou a perspectiva sem ponto de fuga, o

que vemos são alegorias do paradoxo que nos fazem saber que já não se

pode confiar na ordem. A razoabilidade vem sendo dilacerada pelo

assombro.

Embora sejam espelhos da alma e do mundo do final do século xviii,

as imagens dos Carceri dialogam com o clima cultural e existencial do

nosso mundo. Vivemos hoje a mesma experiência afetiva e sentimental

daqueles tempos de obscurantismo, opressão e desespero. As condições

históricas mudaram, mudaram as tecnologias de produção e distribuição

da linguagem; a própria arte superou a representação da realidade, mas o


conteúdo mental e afetivo que preside a história como um miasma

continua o mesmo.

Nossa época é habitada por criações audiovisuais carregadas de


2
pesadelos. As imagens sobrevivem, como diria Aby Warburg, porque

conteúdos psíquicos recalcados as fazem eclodir. Imagens são sintomas.

Isso quer dizer que sentimentos assumem formas ou que formas

carregam sentimentos que, não podendo ser imediatamente traduzidos

conceitual e discursivamente, se transformam em imagens. Os Carceri

falam de tortura condensando a imagem de um mundo torturante.

Theodor Adorno chamou de “vida danificada” a vida que já não pode

ser vivida, tal como parece ser a proposta do mundo atormentador dos

Carceri.

Estamos aprisionados no mundo das imagens. A época “imagofílica”

tornou-se também “iconodêmica”, ou seja, uma época contaminada por

uma profusão incontável de imagens que tomam o mundo sem que

possam ser digeridas. As imagens sufocam. Não digerimos as imagens,

como também não digerimos as emoções e os afetos que as provocam. O

mal-estar é efeito da era iconodêmica. As imagens se oferecem como

espelhos e, ao mesmo tempo, configurações do mundo. Elas vêm a

constituir um mundo e, administradas, podem fazer parecer que não há

outros mundos possíveis. Na era do que Guy Debord chamou de


3
“sociedade do espetáculo”, as imagens não são produzidas para serem

compreendidas. Ao contrário, elas estão aí para impactar e, assim,

dominar a percepção. Nossa sociedade está embriagada por imagens que

se impõem constrangendo a percepção, definindo o campo da cognição

possível.

Nesse sentido, certamente Wittgenstein tem razão ao dizer que os

limites do meu mundo são os limites da linguagem, mas é preciso repetir

que a linguagem é também feita de imagens. Tendemos a naturalizar as

imagens como se elas fossem o real e tratar a linguagem verbal como

linguagem propriamente dita, quando palavras e imagens vêm da mesma

fonte e se dirigem para o mesmo lugar: a nossa percepção. Os limites do

meu mundo são, portanto, limites das imagens sempre controladas por

esquemas prévios. Se o espetáculo tenta dominá-las e transformá-las em

mercadorias, as artes tentam expandir o mundo ampliando a nossa


relação com as imagens e seus contextos, eles mesmos desenhados na

forma de imagens que vêm a constituir o design do mundo.

O páthos das imagens atinge a percepção de cada pessoa, criando

um universo de corpos perplexos sob um miasma espectral, imagético e

visual-viral, constantemente desprovido de qualquer função que não seja

reproduzir a contaminação virótico-visual. A indústria cultural

audiovisual e digital produz lixo iconográfico e discursivo que deve

intoxicar e viciar corpos-mentes. Trata-se de uma cultura com alta

concentração de toxicidade que afeta a subjetividade

anatomopoliticamente, ou seja, no corpo de cada um. É a “teofisiologia”

de nossas vidas – saber que somos um corpo que crê no que percebe –

que é alvo de um jogo de poder no qual os corpos são meras peças

permutáveis.

Os estados angustiados e depressivos de nossa época não são uma

abstração, nem simplesmente um sintoma particular ou coletivo, mas

indicam o design da subjetividade previamente programado e codificado

nesse jogo de poder sobre corpos individuais adulados e oprimidos

conforme as necessidades do sistema. Isso quer dizer que somos corpos

moldados o tempo todo por um mundo de imagens e palavras que

obedecem ao mesmo estatuto.

A profusão de imagens por si só propicia a perplexidade como um

estado coletivo, mas a profusão de imagens de violência gera estupor

nos indivíduos. A perplexidade tem um alcance curto, mas o estupor

pode durar uma vida inteira. O estupor, no qual o sistema aprisiona os

corpos programando-os para funcionarem conforme as regras da

distopia capitalista, causa a morte da imaginação. A sensação de

pesadelo é compartilhada pelos corpos-mentes esvaziados.

É urgente debelar o estupor, o que acontecerá se desmontarmos as

condições que nos levaram a tais lugares mentais e materiais

aprisionantes. Em nossa época digital, essas condições são também

informacionais.

A imaginação é a única força capaz de nos fazer avançar, apesar do

espelho do medo a nos seduzir dirigindo nossos corpos num jogo em

que a autoimagem e a imagem do mundo estão distorcidas.

O amálgama entre patriarcado, racismo, capitalismo e capacitismo,

que recebe o nome de patrirracialcapacitalismo, é uma prisão imaginária


que devora a forma de imaginação capaz de propor caminhos

libertadores. A tortura mental ou física, em gradações diversas, é o

método de convencimento imposto dentro da grande bolha que se

convencionou tratar como realidade.


Notas

1 Marguerite Yourcenar, Le Cerveau noir de Piranèse: les prisons imaginaires, 2016.

2 Aby Warburg, Histórias de fantasma para gente grande. Escritos, esboços e conferências,

2015.

3 Guy Debord, A sociedade do espetáculo, 2004.


O PATRIRRACIALCAPACITALISMO A SER
SUPERADO

A expressão “patrirracialcapacitalismo” pode ser abreviada com a sigla

prcc para marcar o caráter de facção criminosa que constitui essa frente

de opressão articulada e naturalizada. Falar em prcc é falar nas


4
estruturas elementares da violência e, necessariamente, de fabricação

do crime, considerando que as leis e normas que regem esse sistema são

o próprio crime organizado numa estrutura oligárquica em que se

calcula o extermínio dos diferentes. O jogo do sistema implica o

extermínio dos que não se encaixam em seus parâmetros de

funcionamento, dos que desejam mudanças. E, no extremo, a morte de

muitos, até mesmo da maioria, é o objetivo no processo de extinção

programada pelo sistema. Por isso, a matabilidade e a ameaçabilidade

são ideias e práticas comuns. Se quisermos sobreviver diante do projeto

de matança, devemos mudar o sistema, ou seja, as condições sob as

quais se programa a nossa própria morte.

prcc poderia ser também nome de veneno, de agrotóxico, de uma

substância nociva qualquer apresentada como se fosse remédio. Assim

como foi feito com o cigarro por publicitários que inventaram um


5
astucioso friendly agreement em relação ao que não se deseja ter ou

fazer, criando o que Noam Chomsky e Edward Herman chamaram de


6
fabricação do consentimento, o prcc se impõe como forma do mundo

no qual a destruição foi naturalizada e vista como única forma de vida

possível, ou seja, uma não vida. Não se trata mais de lutar contra uma

mera ideologia. A mentira, a enganação e a violência servem ao poder

de classes sociais que transformaram em privilégio seu gênero, sua raça,

sua concepção de mundo ou o que estamos definindo como design de

mundo. Trata-se de lutar contra um projeto de assassinato e extermínio

que se disfarça como projeto democrático e econômico único ao imperar

uma divisão entre poderosos e sem poder que transforma todos em

algozes ou vítimas. Aquilo que Hegel chamou de “dialética do senhor e


do escravo” no século xix transformou-se num jogo sadomasoquista

entre algozes e vítimas.

O cruzamento do horror das vítimas e do regozijo dos algozes define

o sadomasoquismo do sistema. A adulação é o mecanismo que

escamoteia a verdadeira intenção dos algozes. Eles buscam

consentimento enquanto praticam a violência contra corpos e territórios

para garantir a submissão sem a qual o sistema já teria deixado de

existir. Adulados, ou seja, acreditando que foram contemplados em suas

necessidades e prazeres, os indivíduos se entregam ao jogo

anatomopolítico do prcc, no qual cada corpo é calculado, usado ou

descartado conforme o programa.

Para a manutenção do sistema, os indivíduos devem ser

classificados, ou seja, calculados segundo tipos. A classificação serve

para criar a norma “científica” e “moral” que garantirá que ninguém saia

do lugar que ocupa. Cada um deve “ficar no seu lugar”, ou “ficar no seu

quadrado”. Sair do lugar previamente designado altera o jogo. O sistema

não resiste sem a ordem que impôs aos corpos num procedimento

anatomopolítico, em que o corpo vivo é tratado como plástico e

moldável.

A classificação é, por si só, uma marcação. Assim, o pobre deve

introjetar sua pobreza e ater-se a ela em sua forma de ser, assim como

mulheres, negros e todos os que são marcados no sistema devem se ater

aos marcadores que estipulam o que devem ser. Esses marcadores são

sempre estéticos. Isso quer dizer que não basta ser classificado, é preciso

introjetar e servir mental e afetivamente à classificação. É preciso ter fé

no sistema e ajudar a conservá-lo, mas também “performar” segundo as

regras do teatro geral. Ou seja, o sistema capitalista é um sistema de

crenças como qualquer sistema simbólico. Um sistema simbólico se

torna sistema de crenças ao calcular obsessiva e ritualmente sobre cada

corpo e cada gesto, tornando-se, ele mesmo, um sistema ritual.

Estamos falando de “chaves” num campo programado a que,

ingenuamente, chamamos de vida. O prcc é um sistema simbólico e

material, mas ele só funciona se implanta as chaves psicotecnológicas

nos corpos por meio da percepção, campo a ser colonizado pela oferta
7
de sensações e da administração do sentimento de gosto. O sistema se

implanta como um pen drive nos corpos disponíveis. É um verdadeiro


chip linguístico cujo aparelho, ou dispositivo, são as telas – sejam de

televisões, sejam de computadores ou de celulares –, que se tornam


8
próteses de conhecimento, ou seja, órgãos exteriores ao corpo humano

que, no devir ciborgue da sociedade humana, fazem a função de um

novo órgão.

Mercadorias, que funcionam como substâncias estupefacientes,

agem como se injetassem dados cognitivos artificialmente de fora para


9
dentro de nossos corpos, atacando diretamente a percepção. São os

corpos que o sistema visa a controlar oferecendo mercadorias e diversão,

trabalho e sofrimento, para mantê-los funcionando conforme as

necessidades do seu mecanismo.

A doutrinação religiosa e ideológica que caracteriza o prcc visa à

sustentação do nonsense como se ele fosse o sentido, assim como da

destruição como se ela fosse construção. Daí o valor da catástrofe e da

distopia apresentadas como “o melhor mundo possível”, e o ódio à

reflexão crítica tratada como loucura no contexto de um eterno elogio da

desqualificação. A inversão do sentido dá o tom de um mundo de cabeça

para baixo. É todo um sistema de simulação a ser vivida como realidade,

de mentira a ser aceita como verdade, no qual a vida real deve ser vivida

como uma ficção em que se imita um roteiro previamente estabelecido.

Movido por seus agentes sacerdotais, o sistema delirante que é o

prcc encarcera corpos para seus próprios fins. Contudo, não é possível

sustentar o aprisionamento desses corpos a serviço do sistema sem que

se encerrem também as ideias, privando o espírito de alcançá-las ou de

lidar livremente com elas. É isso que tem sido feito com a ideia de

mundo que este livro busca ajudar a liberar, o que só acontecerá se

liberarmos a imaginação e o impulso à utopia que dela faz parte.

Enfrentar a guerra linguística em curso contra a imaginação política

e, assim, contra o mundo e a subjetividade humana é uma das mais

importantes tarefas intelectuais a que uma guerrilha conceitual deve se

dedicar em nossa época. A superação do projeto catastrófico e antivida

que constitui o sistema prcc beneficia-se desse enfrentamento.

Desde seu surgimento, entre os séculos xv e xvi, o capitalismo vem

demonstrando ser a especialização do arcaico sistema patriarcal. O


10
conceito de “patriarcapitalismo” organiza a combinação que divide o

mundo do trabalho privilegiando homens em detrimento das mulheres.


Contudo, não se trata apenas de trabalho no sistema do capital rentista.

Se patriarcado e capitalismo são codificações que, associadas,

organizam o metabolismo da destruição e da autodestruição do sistema,

as ideologias racistas e capacitistas vêm fazer parte disso na era

anatomopolítica. Elas emergem como elementos constitutivos da

matabilidade e da ameaçabilidade próprias ao sistema capitalista, ele

mesmo uma reação patriarcal às lutas camponesas da chamada Idade


11
Média. Por isso, é preciso acrescentar esses aspectos à palavra criando

a formação teratológica “patrirracialcapacitalismo”. Corpos dissidentes,

apesar de toda a insubmissão e resistência que eles possam produzir, são

capturados no processo celular que visa ao todo e que precisaria ser

interrompido com urgência para salvar vidas que minuto a minuto são

aniquiladas. O fascismo atual é a hiperespecialização desse enlace e o

que chamo de prcc resume o seu jogo.

O prcc é o sistema como contexto simbolicamente organizado contra

a vida. Utopia é o seu contraponto como desejo de libertação, como


12
“consciência do possível”. Do mesmo modo, a teoria sobre a libertação

do sistema já é a utopia que se antecipa.

É preciso projetar a transformação do mundo para além da criação


13
de zonas autônomas temporárias, das utopias transgressivas distópicas

que surgem há décadas na literatura feminista para criticar o machismo


14
ou dos espaços heterotópicos que permitem respirar dentro do sistema.

O que ainda podemos chamar de “transformação do mundo” deve ser

orientado em uma direção cosmopoliticamente saudável, habitável por

todas as espécies, na qual o próprio corpo do planeta seja protegido do


15
inimigo planetário que é o prcc. No caminho para chegar a uma

perspectiva transformadora, é preciso compreender a interiorização

subjetiva naturalizada para desmontar o seu funcionamento.


Notas

4 Rita Laura Segato, Las estructuras elementares de la violencia: ensayos sobre género entre la

antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos, 2003.

5 É o caso do famoso sobrinho de Freud, Edward Bernays, autor do livro Propaganda: comment

manipuler l’opinion en démocratie.

6 Edward Herman, Noam Chomsky, Manufacturing Consent: The Political Economy of The

Mass Media, 1988.

7 Christoph Türcke, Sociedade excitada: filosofia da sensação, 2010.

8 Marcia Tiburi, Olho de vidro: a televisão e o estado de exceção da imagem, 2011.

9 Marcia Tiburi, Andréa Costa Dias, Sociedade fissurada: para pensar as drogas e a banalidade

do vício, 2012.

10 Pauline Grosjean escreveu um livro intitulado Patriarcapitalisme: En finir avec les inégalités

femmes-hommes. Numa abordagem cultural-econômica, a autora define o patriarcapitalismo

como um sistema no qual as normas culturais são o produto, a matriz e a justificação das

desigualdades econômicas entre mulheres e homens.

11 Silvia Federici, Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva, 2021.

12 Theodor Adorno, Dialética negativa, 2009, p. 56.

13 Dunja M. Mohr, “Transgressive Utopian Dystopias: The Postmodern Reappearance of Utopia

in the Disguise of Dystopia”, 2007, pp. 5-24.

14 Michel Foucault, “Des espaces autres, Hétérotopies”, 1984, pp. 46-49.

15 Michael Löwy, “Negatividad y utopía del movimiento altermundista”, 2007, pp. 43-47.
MUNDO COMO IDEIA MATRIZ ONDE SER É
ESTAR SITUADO

Entre todas as ideias lançadas em cela solitária nos cativeiros

camuflados do sistema, onde inexiste qualquer abertura, há uma ideia

matriz, fundamental para a organização de todas as demais e do campo

inteiro da linguagem humana (organizada como pensamento e gesto,

linguagem e ação, teoria e prática). Trata-se da ideia de “mundo”,

significante que visa a representar o universal promovendo a

compreensão da experiência de mundo. Como significante, “mundo” foi

capturado na rede retórica do poder. A posse do significante mundo é

fundamental para a sustentação do sistema prcc, que usa a máquina de

produção linguística nesse processo. Os agentes do prcc, sob a


16
camuflagem do selo “neoliberal”, sempre souberam disso.

Quem domina a ideia de mundo, quem diz o que é “o mundo”,

torna-se seu senhor. Descartes sabia disso quando deixou de publicar a

obra O mundo ou tratado da luz em 1633, evitando ser perseguido pela

Igreja como tinha acontecido com Galileu. O filósofo francês falava de


17
uma “fábula do mundo” para explicar a diferença entre um mundo seu,

ou seja, um particularizado, e um mundo além de si, “em comum”,

partilhado por todos como universal. Descartes usou a “fábula” como

estratégia de ocultamento de suas ideias reais sobre o mecanicismo que

não seria aceito pela Igreja da época, assim como, mais tarde, ocorreu

com o conceito de darwinismo. A estratégia de Descartes nasce no

contexto do ceticismo, do barroco e de toda uma especulação sobre a

dúvida e a enganação na era do trompe-l’oeil [ilusão de ótica], da

teatralidade, do desprezo e do culto à aparência. Ora, o que o sistema

prcc faz também tem algo de barroco, e, não por acaso, Descartes está
18
nos seus fundamentos teóricos. Nele, uma fabulação particular (o

capital e o mercado) é transformada em algo universal, assim como a

Igreja fez um dia com a ideia de um mundo criado por Deus,

condenando aqueles que ousavam ir na contramão. A enganação, a


dissimulação, a teatralidade são partes essenciais desse sistema

codificado.

A ideia de mundo, experimentada por muita gente como a vaga

noção de que habitamos algum lugar, é uma ideia matriz. Uma ideia

matriz não somente permite situar outras ideias, objetos e fatos, mas

também situar a subjetividade como universo linguístico em aberto e até

o sujeito do conhecimento e da sensibilidade – ou sujeito da cognição –,

capaz de perceber um mundo. Isso quer dizer que mundo não é apenas

uma ideia, mas o conjunto dos acontecimentos, fatos e coisas – sujeitos

e objetos – que estão sob o nome do significante mundo dentro do qual

nós mesmos somos colocados nas operações simbólicas, que são

operações linguísticas.

A ideia de mundo é psicopoliticamente estratégica. Todas as pessoas

estão concernidas a ela. Não há como viver no mundo sem uma

determinada ideia de mundo, o que, no senso comum, muitas vezes é

definida como “visão de mundo”. Tal ideia é fabricada no sistema de

produção da linguagem para ser introjetada por cada indivíduo. Max

Weber falava de uma seleção econômica que gerava os sujeitos

econômicos, empresários e operários, de que o sistema capitalista


19
necessitava. De fato, no contexto da mesma seleção econômica, surge a

seleção sexual e de gênero, bem como a seleção racial ou relativa ao

cálculo das capacidades físicas, que gerou a face capacitista do sistema.

Além disso, o prcc gera os sujeitos e os corpos de que precisa para

sobreviver enquanto extermina os excedentes e inúteis, mas para isso

precisa gerar uma ideia de mundo.

Ideia, ou significante matriz, de mundo é aquilo que tem a qualidade

do universal capaz de organizar o campo dos significantes em geral.

Falar em mundo é falar não somente em cosmos, em ordem, em

universo, em contorno e limite, em continente e ambiente, mas também

na multiplicidade de mundos. Enquanto “cosmos”, mundo existe por

oposição ao “caos”, à confusão e à desordem. Mundos são construídos e

destruídos, mas o dispositivo do mundo permanece por oposição à

inexistência, ao nada. O sistema prcc administra a ordem com o objetivo

de sustentar o poder e o desenho do mundo com o qual o próprio

sistema se confunde.
A compreensibilidade como fator de reconhecimento do mundo é o

princípio que articula o mundo instaurado, o mundo dado, o mundo que

pode ser reconhecido como algo que pode ser representado. A própria

ideia de mundo – o que Husserl entendia por Lebenswelt ou “mundo da

vida” – se confunde com os limites da linguagem, como em


20
Wittgenstein. A decisão é sobre o poder de representar um mundo, de

dizer o que ele é ou de inventá-lo, tendo em vista que, ao nascer, já


21
habitamos um mundo. A ideia de mundo se confunde com sua

compreensibilidade e com o reconhecimento daquilo que pressupõe ser

tal ideia. Em termos muitos simples: não há mundo sem uma

pressuposta ideia de mundo. Schopenhauer construiu uma noção de


22
mundo como vontade e como representação. O primeiro refere-se a um

mundo vivo, da natureza, do qual o conceito de “vontade” seria o

operador; o outro, a um mundo da linguagem como representação. Este,

na sua condição de representabilidade, seria o único que poderíamos de

fato conhecer. Na esteira de Kant, para quem só se pode conhecer os

fenômenos ou conhecer o próprio conhecimento, e embora não tivesse

preocupações políticas, Schopenhauer ajuda a compreender que a

representação do mundo é o único acesso que se pode ter ao mundo. A

representação do mundo faz parte das representações em geral, e, como

nenhuma representação está desligada de jogos de poder, o mundo


23
também participa desse jogo como objeto na ordem do discurso.

A qualidade englobante da ideia do mundo é o que permite acreditar

em algo como um mundo existente. Não fossem as ideias – e os

conceitos e categorias que organizam o mundo –, viveríamos afundados

no imediato ou, quem sabe, numa alucinação. O sistema de opressão se

vale do princípio do caos, que dá a tudo um ar de alucinação, para

simular uma ordem. A opressão é sempre sobre os corpos – individuais

e coletivos – que participam dessa ordem que é simulada, mas precisa

esconder sua simulação. A opressão sobre os corpos é também o

princípio da organização simulada que estabelece o que chamamos de

mundo. O jogo da simulação não é apenas parte do mundo virtual, da

internet, mas já acontece no mundo que consideraríamos “real”. Mundos

são simulações. Seja mundo no singular, como horizonte de

compreensão, ou mundos diversos, no plural, trata-se de ideias ou

representações que situam experiências possíveis e, desse modo, corpos


e vidas. O círculo hermenêutico se arma dentro de limites que

correspondem a uma linha de contorno estável, mas, ao mesmo tempo,

de possível intersecção com outros mundos.

No jogo de dominação do mundo, imagens, discursos e conceitos são

usados num processo de configuração. Se pensamos no mundo como

mercado, vemos que o próprio mundo foi transformado em mercadoria.

A ideia de mundo nunca foi livre e não o será no mercado – este um

sistema não livre. Se o mundo foi reduzido a mercado (e a

submercados), onde mercadorias são criadas e expostas ao infinito,

também o mundo é uma mercadoria no âmbito da mercadoria que se

torna mundo. O próprio mundo é rebaixado a mercadoria, porque a

mercadoria é o fator que o organiza. Essa configuração sempre se

estabelece como jogo de linguagem que seduz e alicia participantes. O

mercado precisa dos corpos e de uma ideia fabulosa à qual esses corpos

estejam submetidos, assim como o patriarcado precisa de mulheres e a

escravidão precisa de corpos para escravizar. Do mesmo modo, uma

ideia precisa de reconhecimento, assim como uma forma precisa de uma

percepção que a sustente. Garantida a posse da ideia de mundo, pode-se

controlar o sistema simbólico e, desse modo, controlar os corpos (como

carne e linguagem engajada na esfera da produção do sentido).

Somos organismos “teofisiológicos”, somos carne-linguagem, somos

entes perceptivos contidos dentro de uma ideia geral baseada em espaço

e tempo, geografia e história. Somos entes situados somática, geográfica

e historicamente. As antigas imagens alquímicas do ser humano como

“microcosmo” contido dentro de um “macrocosmo” estabelecem o nexo

entre o particular e o geral, um corpo e a situação na qual se encontra.

Tal é a função da ideia de mundo, no qual ser é estar situado. Todo ser

precisa de situação, e a dominação incide sobre esse lugar que um ser

ocupa como corpo no mundo. O que chamo de “situação” é um fato que

pode ser compreendido em sentido teológico e metafísico, em termos

geográficos e geopolíticos. Não existe sujeito do pensamento ou da ação

fora da situação em que ele se encontra. Logo, a estratégia do prcc é

“de-situar” os indivíduos de si mesmos e “re-situar” seus corpos num

tabuleiro previamente programado para que cada peça consiga funcionar

conforme regras estipuladas, sem que se permita olhar para fora dele.

Esse tabuleiro é justamente o que se pode chamar de “mundo”.


Mundo é uma ideia celular, uma espécie de dispositivo ontológico e

existencial que produz a noção do todo na qual os corpos estão contidos.

Essa ideia deverá ser interiorizada pelas subjetividades na produção

simbólica de um corpo individual apto a servir ao sistema. É nesse

sentido que podemos compreender a relação do microcosmo engajado

no macrocosmo. A linguagem é organizada como um jogo em que

ideias, conceitos, linhas, traços, pontos, planos, tudo se confunde,

articulando um cenário mental e transcendental chamado mundo. Nesse

sentido, mundo é o contorno do caos que dá a impressão de uma ordem

articulada.

As teorias da linguagem tentam criar códigos de interpretação do

mundo enquanto funcionam dentro do mundo. Elas atuam sempre

pressupondo uma ideia de mundo, uma certa noção de limite onde tudo

está contido, onde se dá a experiência possível. Se de um lado a ideia de

mundo funciona como chip ou token aplicado aos corpos convocados

para fazer parte das massas, de outro, mundo é o próprio horizonte a

partir do qual todas as ideias e conceitos surgem e são colocados em

perspectiva. Uma complexa e rígida criptografia, cujas chaves são

desconhecidas pelas massas, organiza a transmissão dessa informação

que permite sustentar sistemas que se colocam como mundo, tal como é

o prcc.
Notas

16 As palavras de Milton Friedman são explícitas nesse caso: “Quando a crise acontece, as ações

que são tomadas dependem das ideias que estão à disposição. Esta, eu acredito, é a nossa função

primordial: desenvolver alternativas às políticas existentes, mantê-las em evidência e acessíveis

até que o politicamente impossível se torne o politicamente inevitável.” Milton Friedman apud

Naomi Klein, A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre, 2008, p. 16.

17 Jean-Pierre Cavaillé, Descartes: a fábula do mundo, 1991.

18 Carolyn Merchant, The Death of Nature: Women, Ecology, and the Scientific Revolution,

2019.

19 Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo, 2004, p. 48.

20 Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus, 1994.

21 No campo da hermenêutica filosófica e da fenomenologia (Dilthey, Husserl, Gadamer,

Heidegger e outros), os pensadores pressupõem o mundo como uma experiência de mundo,

como fundamento e contorno de toda experiência possível. Ver Hans-Georg Gadamer, Verdade e

método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, 1999.

22 Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, 2007.

23 Michel Foucault, A ordem do discurso, 1999.


O MUNDO COMO ALTERIDADE INDEDUTÍVEL
NO HORIZONTE DA COMPLEXIDADE E DA
COMPREENSIBILIDADE

Um mundo é uma combinação lógica de fatores materiais e simbólicos.

De fato, mundo é algo que se experimenta como sistema de referência,

ou seja, tendo a cognoscibilidade como critério. Contudo, quem começa

a pensar no mundo, saindo da imediatidade da aceitação e investindo no

questionamento, terá a impressão do desconhecido dentro do conhecido.

Em um sentido socrático, quanto mais conhecemos, menos conhecemos.

Essa impressão que lança o investigador no paradoxo do conhecimento é

reforçada pelo fato de que a lógica do mundo é estética, ou seja, ela

implica âmbitos da existência que não podem simplesmente ser

calculados, medidos ou explicados. O que Freud chamava de

Unheimlich – o sinistro, o inquietante, o estranho – faz parte da

experiência do mundo que a literatura soube expressar em contos de

terror. Ora, o sistema de opressão administra o terror e calcula sobre a

percepção humana para interceptar a compreensão e impedir a dúvida

quanto à necessidade de acreditar nele.

O mundo ao qual nos referimos como mundo genérico é feito de

mundos particulares, mas, sobretudo, é feito do que, dentro de um

mesmo sistema referencial, é o conhecido e o desconhecido, aquilo com

o que entramos em jogos ou interações. Não compreender “o mundo” é

fazer a experiência dos limites da compreensão que apontam para a

complexidade do mundo como equação entre conhecido e desconhecido.

A complexidade de uma coisa, fato ou acontecimento, é justamente o

que não se pode compreender senão a partir de muitos esforços

intelectuais, de pesquisa, de arte e ciência. A divisão rígida entre

ciências humanas e ciências duras ou da natureza desfavorece a

compreensão da complexidade do próprio mundo como algo que pode

ser compreendido. Ela promove dissociações perigosas ao descartar o


caráter integral – e integrador – da própria ideia de compreensão e da

ideia de mundo como algo que implica compreensibilidade.

A complexidade do mundo continua em perspectiva para os agentes

do pensamento crítico e democrático, embora os sequestradores da ideia

de mundo e do seu acontecimento concreto precisem simplificá-lo,

retirando dele o mistério e a poesia, com os quais aprendemos a viver a

experiência da alteridade que é consubstancial ao mundo. No sistema

prcc, a alteridade é substituída pela mercadoria.

Se de um ponto de vista teórico-estético uma obra de arte é um

mundo produzido e portador de experiência sensível, para economicistas

utilitaristas o mundo é o que se pode usar e explorar, algo que se pode

vender em partes, mesmo que se pressuponha uma noção abstrata de um

todo. De fato, a noção de todo ou universal pode ser abstrata, mas não

quando ela é tratada como alteridade na qual estamos contidos como

forma de vida. Apagar a noção de um todo complexo e aberto implica

apagar o que é “comum” e constitutivo da experiência de mundo,

inclusive a complexidade da natureza que se confunde com o mundo –

sendo ela a imagem da alteridade que não se pode separar do mundo.

Para impedir a experiência com a complexidade do mundo, a

natureza em si uma experiência de libertação, é preciso usar métodos de

ocupação e colonização de territórios físicos, mas também mentais.

Assim como Giordano Bruno e Galileu foram perseguidos por suas

teorias sobre o mundo, todos aqueles que refletem sobre o estado do

mundo – bem como aqueles que agem de maneira crítica em relação à

injustiça, muitas vezes construindo seus próprios mundos – serão

perseguidos por quem se posiciona como “dono do mundo” e que, por

definição, descarta o campo do possível.


24
O mundo não é apropriável. Contudo, a prática de apropriação do

mundo por parte das classes exploradoras não teria êxito apenas por

meios físicos. Para dar um exemplo “moderno”, já no começo da

colonização europeia na América, a violência bruta que submetia os

indivíduos e os grupos heterodenominados indígenas foi sendo

modulada com as violências simbólica, religiosa e econômica, que

dependiam principalmente da catequese e da humilhação. O

convencimento dos corpos explorados e escravizados nunca foi apenas

físico. Dar exemplos e eliminar indesejáveis eram estratégias comuns,


mas era preciso manter parte da população viva para o trabalho. Os

vivos deveriam ser convencidos à servidão e à submissão geral, evitando

insurgências. Práticas de violência verbal e epistemológica, essas formas

da violência simbólica deveriam acompanhar a violência física,

reforçando-a. Os violentados deveriam assumir os hábitos dos

violentadores, desde sua religião até seu modelo econômico, numa

adesão completa ao seu sistema de crenças. Ou seja, deveriam aceitar e

aderir a um mundo que não era o seu, e a forma pela qual poderiam

aderir era a imitação. Ora, a experiência de mundo implica sempre a

aceitabilidade. Não se pode participar de um mundo sem aderir a ele. A

sensação de aprisionamento ao mundo tem a ver com a impossibilidade

de aderir.

Para garantir essa amarração é preciso apresentar uma costura entre

o exterior e o interior, entre a objetividade e a subjetividade, que seja

convincente para o sistema de crenças ao qual se acordou chamar de

realidade. Essa costura é garantida pelas ideias ou noções organizadas,

administradas e desenhadas na intenção de configurá-lo. O que funciona

de um ponto de vista da cognoscibilidade lógica funciona também na

ação exigida no mundo da vida. Todos seguem vetores previamente

programados.

Vilém Flusser ajuda a entender o que está em jogo nesse caso

quando diz que “não é possível estabelecer uma ponte realmente

adequada entre o mundo descrito (como o de Hegel) e o mundo


25
calculado (o de Planck)”. Segundo ele, desde que aplicamos

metodicamente o cálculo ao mundo (ou seja, pelo menos desde a

geometria analítica de Descartes), sua estrutura modificou-se a ponto de

tornar-se irreconhecível. Isso significa que a ideia mesma de mundo se

transformou, e a mente deve acompanhar o que está sendo produzido em

termos de mundo para adequar-se aos novos padrões.

Lendo em chave política o que Flusser diz, percebe-se em que

sentido o mundo se torna um problema. Se mundo é uma determinada

codificação, a codificação se tornou irreconhecível. A

incognoscibilidade deverá ser uma característica desse mundo que

precisa manter as regras do seu funcionamento inacessíveis para que não

sejam perturbadas. É a incognoscibilidade que garante a inacessibilidade

e, desse modo, a naturalização. A natureza do sistema é a garantia de sua


falsidade mascarada de verdade e aceita como tal. Em termos simples,

isso quer dizer que o mundo codificado depende de se manter

indecifrável para não ser abalado. O que estamos chamando de prcc

depende de sua estrutura se manter secreta, intocada pelo pensamento

crítico e pela compreensão do ser humano, que é reduzido a ignorante

sobre os jogos de poder lançados sobre seu corpo e sua vida.

O sistema da dominação econômica e simbólica é uma máquina de

calcular sobre o que tem ou pode vir a ter valor, ou seja, o que pode ou

não ser transformado em mercadoria. Isso quer dizer que a ideia de

mundo tem um imenso valor nesse sistema, pois ela define a própria

possibilidade de sustentação do sistema.

A ideia de mundo constitui uma espécie de imagem transcendental e

universal, que deve ser válida para todos. Ela articula o conjunto do

sentido sem o qual nada se organiza e ninguém vive. Disputar o mundo é

buscar poder sobre o mundo. Mas, se o poder exercido depende do

sentido, há um nível de disputa mais sutil que implica a construção do

mundo que se quer controlar, como determinada ordem de sentido

organizada pela linguagem. Assim, o mundo é construído como um jogo

em que os fatos são desenhados por quem detém o poder, mas apenas

possui e mantém o poder quem tem o poder de instaurar a ordem de

sentido de linguagem desse mundo.


Notas

24 Ver Gar Alperovitz, Lew Daly, Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa

herança comum, 2010; Ladislau Dowbor, A era do capital improdutivo: por que oito famílias

têm mais riqueza do que a metade da população do mundo?, 2017.

25 Vilém Flusser, O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação, 2007, p.

83.
A FUNÇÃO CODIFICADORA DA DISTOPIA

Código é uma representação que tem como função oferecer sinais

referenciais a um organismo receptor, seja ele vivo ou não. O código é

basicamente uma escritura ou um registro que exige um leitor vivo ou

artificial e que coloca em jogo uma percepção viva ou artificial

implicada na disposição de um corpo igualmente vivo ou não vivo.

Qualquer linguagem implica códigos e decodificações, pois toda

linguagem é escritura. Há códigos dos mais diversos níveis, mais simples

e mais complexos. O código é uma funcionalidade da linguagem que

permite perceber, mas também não perceber. Há codificações que

ocultam seu caráter de código, são aquelas que se apresentam como

naturais. O que chamamos de “naturalização” implica o cancelamento

de uma decodificação. O poder trabalha para orientar codificações em

direções determinadas e impedir decodificações.

Código tem também os sentidos de marca, de chave operacional, de

ativador de compreensão e de comunicação. Um código permite tanto

organizar quanto difundir e replicar, indicar e instruir a própria

repetição. Um código implica input e output, ou seja, tanto uma energia

guardada quanto uma energia que ele pode liberar. Nesse sentido, chamo

de código distópico à estrutura semiótica, informacional e

comunicacional que visa a carregar e liberar uma determinada

informação, ou um determinado produto.

A noção de código distópico como operador ideológico permite

compreender o entrelaçamento lógico e orgânico de pensamentos,

afetos, condutas, ou seja, da mentalidade, da sensibilidade e da atividade

dos indivíduos e grupos humanos. Esse entrelaçamento produz um

funcionamento naturalizado dos seres atingidos pelo código. O código

distópico tem como objetivo gerar um comportamento sob sua lei à

sombra metafísica da ideologia que se apresenta em subcódigos

concretos, tais como o machismo, o racismo e o capacitismo. A

dificuldade de superação de sistemas como os fascistas e autoritários em


geral, bem como dos subsistemas de preconceitos, se deve também à

dificuldade de decifração e compreensão do funcionamento do código

distópico.

Criamos mundos a partir de códigos que podem ou não se entrelaçar.

Criar um código é criar uma escritura. Uma escritura pode dar lugar a

um mundo. Nela, há sempre um traço. Todo traço implica uma direção,

ou seja, uma projeção para além de um ponto. O que chamamos de

design é a organização programada da possibilidade de traçar. O mundo

codificado implica um design de mundo.

O capitalismo aspira à existência de um único código, o que venho

chamando de código distópico, cujo mundo construído e informado é

unidimensional. Mundo é o tema metafísico do qual a noção linguística

de código permite que nos aproximemos. Se mundo vem sendo tratado

como questão puramente econômica no universo da mundialização

neoliberal e vem sendo transformado em “mundo-mercado” e

“mercadoria-mundo”, essa é uma codificação específica a ser analisada.

Nesse mundo – onde, não é demais repetir, tudo o que existe é rebaixado

a mercadoria –, alcança-se o fechamento de um circuito lógico e

tautológico, um verdadeiro cerco que impede questionamentos e

reflexões. Tal é a função do código distópico: servir de sistema fechado e

indecifrável que possa impedir a dúvida quanto à sua verdade.

A operação de produção e reprodução do código distópico, a um

tempo mítico, metafísico, estético, político e totalmente programático, é

rígida. Enquanto sistema simbólico, o código funciona como um

espelhamento entre objetividade e subjetividade, entre o mundo exterior

e o interior. O aparato mental-linguístico é programado para

compreender esse mundo ao redor do qual ele funciona cognitiva e

pragmaticamente. O código distópico, feito de imagens e ideias prontas,

paramenta os corpos afetiva, sensível e psiquicamente para a aceitação

do que o sistema tem a oferecer como experiência. O sofrimento físico e

mental é parte fundamental dessa oferta, pois desde Spinoza sabemos

que o poder funciona prostrando os corpos, entristecendo-os e


26
impedindo o avanço de suas potências. O código distópico visa a

garantir a coesão do mundo que ele cria e, por isso, não admite a

presença do estranho em nível macro e microestrutural. Conteúdos que

possam romper com o sentido do programa e o design predefinido desse


código serão negados e rechaçados. A função do código é manter a

repetição da informação que o sustenta, impedindo a interrupção ou a

quebra do sistema. Nesse sentido, o código funciona também como

algoritmo.

Em termos políticos, a dúvida e a reflexão que dela resultam devem

ser evitadas a todo custo, pois ela quebraria a continuidade do código em

si mesmo dogmático. A hipótese de um “outro mundo possível”, ou de

“outros mundos possíveis”, deve ser evitada a todo custo, pois

enunciados como esses implodem a ideia do código em sua forma de lei

preestabelecida com base em um ato originário, ou seja, sempre

repetido. O código é um sistema simbólico e semiótico com poder

operacional que pode se combinar ou não com outro código.

Enquanto codificação, a distopia envolve uma estética do horror que

se disfarça de alegria e beleza, uma ética do sofrimento pela qual cada

um será adoecido física, mental e emocionalmente, uma política do

sacrifício pela qual todos entrarão no paradigma da oposição rico-pobre

(em que pobres deverão ser submetidos aos privilégios dos ricos) e uma

lógica da destruição pela qual a avareza, a competição e a inveja se

tornam energias de propulsão do sistema.

O código é o sistema linguístico que aciona a destruição dos corpos

que o introjetam. Ele funciona como um programa de autocerceamento,

de blindagem cognitiva, em que o inorgânico é um valor. O sentido não

precisa ser construído, pois já está dado. O código é impresso no corpo,

como aconteceu com o condenado do conto “Na colônia penal”, de


27
Kafka, impedido de conhecer uma sentença ilegível e provavelmente

inexistente, porque a conheceria escrita no próprio corpo. O código

distópico é essa informação promovida pelo sistema convertido em

macrocósmica máquina de tortura, ao mesmo tempo psíquica e corporal,

que funciona por meio de engrenagens institucionais e dispositivos dos

quais é praticamente impossível escapar quando se é um mero corpo

humano.

A função do código distópico é sequestrar a imaginação e o

pensamento reflexivo e impedir que haja relação com a alteridade, seja

ela cognitiva, ética, cultural ou política. Escapar da máquina de

perseguir e devorar corpos destruindo o sistema no qual esses corpos

vivem, sem precisar sair do planeta, implica debelar e desconfigurar o


sistema, o que não é simples nem fácil, mas precisa ser possível.

Contudo, o código distópico atua justamente para evitar o surgimento do

possível que chamamos utopia.


Notas

26 Benedito Spinoza, Tratado teológico-político, 2004.

27 Franz Kafka, “Na colônia penal”, 2011, pp. 59-100.


O MUNDO CODIFICADO COMO MERCADORIA

O prcc é um mundo codificado, ou seja, um mundo construído com base


28
em símbolos ordenados, no qual se represam informações. Segundo

Flusser, “o objetivo do mundo codificado que nos circunda” é nos fazer

esquecer que “ele consiste num tecido artificial que esconde uma
29
natureza sem significado, sem sentido, por ele representada”. Flusser

lida com os conceitos de primeira e segunda natureza, típicos da história

da metafísica desde Aristóteles, mas descobrirá um terceiro “mundo”

que surge na relação entre natureza e cultura, passando pela mão

humana.

Na concepção flusseriana de mundo codificado, “os códigos (e os

símbolos que os constituem) tornam-se uma espécie de segunda

natureza, e o mundo codificado e cheio de significados em que vivemos


30
[…] nos faz esquecer o mundo da ‘primeira natureza’”. Apenas o

mundo da segunda natureza seria codificado. Um terceiro mundo, o do


31
lixo, surgiria como aquele que exige atenção e inspira o surgimento de

ciências que possam explicá-lo. Podemos deduzir que este é um mundo

dos códigos que perderam sua validade. Entrelaçados, todos esses

mundos colocam questões morais e teológicas, além de estéticas. O

mundo codificado é perpassado pelo design, que compreende formas

projetadas e programadas que definem relações entre os seres humanos e

o mundo.

O conceito flusseriano de “mundo codificado” tem relação com o de


32
“configuração”, de Norbert Elias, e o de “habitus”, de Pierre
33
Bourdieu. Tais conceitos permitem pensar a assimilação e a

transferência analógica de esquemas pelos indivíduos, por meio de

matrizes de percepção. O conceito de “domínio cognitivo”, de


34
Humberto Maturana, pelo qual se contempla o critério de

aceitabilidade – que se pode reconhecer um mundo e aceitar que se trata

de algo comum e partilhável –, permite entender a participação do


35
sujeito no processo do conhecimento e de sustentação do sistema. O
36
conceito de “mundo administrado”, de Adorno e Horkheimer, serve de

pano de fundo para essas abordagens, colocando em cena o elemento

teleológico do sistema, ou seja, o fim a que se destina mesmo quando

parece não ter sentido algum.

O conceito de mundo codificado implica a uniformidade e o

reconhecimento pelos indivíduos pertencentes, que são os herdeiros das

informações que codificam o mundo. Esse conjunto de informações

organizadas num jogo (a linguagem lógica em um espaço lógico), ou

seja, em uma codificação que produz ação, será repetido por cada

indivíduo, e a função individual dentro do jogo é mediar uma

informação. A informação é mais importante que os corpos que a

transmitem, pois ela é o próprio sistema, uma engrenagem sem vida que

ocupa o espaço da vida para reproduzir sua estrutura e sua lógica. A

informação transmitida pelo prcc é uma só: os machos brancos aptos


37
têm um valor do qual derivam todos os demais, e não existe outro

mundo possível fora do sistema.

Partindo do princípio de que se deve compreender uma codificação

para interagir com ela ou ultrapassá-la, para ficar dentro de um mundo

ou ir além dele, entende-se que o mundo patrirracialcapacitalista

funciona como codificação. Ele se sustenta na medida em que é

interiorizado, aceito e validado pelos corpos que usa para se manter. O

realismo patrirracialcapacitalista propõe que o único jogo a ser jogado é

o da aceitação de sua norma reguladora da vida. Talvez a infelicidade

desse mundo, expressa na onda do que vem sendo chamado de

depressão e na sensação de perda de sentido, derive da impossibilidade

de sair desse circuito.


Notas

28 Vilém Flusser, op. cit., p. 96.

29 Ibidem.

30 Ibidem, p. 90.

31 “A mão imprime formas (informiert) nas coisas que pega. E assim surgem dois mundos ao

redor do homem: o mundo da ‘natureza’ das coisas existentes (vorhanden) e a serem agarradas, e

o mundo da ‘cultura’, das coisas disponíveis (zuhanden), informadas. De fato, tem se tornado

cada vez mais evidente que a mão não deixa em paz as coisas informadas, e sim continua

agitando-as até que se esgote a informação que contêm. A mão consome a cultura e a transforma

em lixo. Portanto, não são dois mundos que circundam o homem, mas sim três: o da natureza, o

da cultura e o do lixo. Esse lixo tem se tornado cada vez mais interessante: diversas áreas do

conhecimento, como por exemplo a ecologia, a arqueologia, a etimologia e a psicanálise, têm se

dedicado a estudá-lo. O que se constata é que o lixo retorna para a natureza. A história humana,

portanto, não é uma linha reta traçada da natureza à cultura. Trata-se de um círculo, que gira da

natureza à cultura, da cultura ao lixo, do lixo à natureza, e assim por diante.” Ibidem, pp. 60-61.

32 Norbert Elias, A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da

aristocracia de corte, 1969.

33 Maria da Graça Jacintho Setton, “A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura

contemporânea”, 2002, pp. 60-70.

34 Maturana diz que há tantos “domínios cognitivos quantos forem os domínios de ações –

distinções, operações, comportamentos, pensamentos ou reflexões – adequadas que os

observadores aceitarem, e cada um deles é operacionalmente constituído e operacionalmente

definido no domínio experiencial do observador pelo critério que ele ou ela usa para aceitar

como ações – distinções, operações, comportamentos, pensamentos ou reflexões – adequadas as

ações que ele ou ela aceita como próprias deste domínio”. Humberto Maturana, Cognição,

ciência e vida cotidiana, 2001, p. 128.

35 Meu objetivo neste trabalho não é resenhar cada um desses autores, mas apontar para

categorias afins em contextos ideológicos e epistemológicos múltiplos.

36 Theodor Adorno, Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento, 1984.

37 O tema do “macho como valor” escapa ao objetivo deste trabalho e estará tratado em um

futuro livro meu que se encontra em desenvolvimento. Remeto à leitura de: Roswitha Scholz, “O

valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos”, 2016, pp. 15-

36.
A CIRCULAÇÃO DA INFORMAÇÃO E A
REPETIÇÃO DO CÓDIGO

O mundo codificado depende, então, da circulação da informação que o


38
estrutura. Em sua base está o “fundamento místico da autoridade”, que

é a posição de mando e de manutenção da ordem, ou o poder de ser o

“designer” geral até mesmo de um mundo concebido como totalidade,

como se pretende o capitalista. No mundo codificado, todos agem como

replicantes de informações, senhores e escravos, algozes e vítimas.

O fundamento místico da autoridade se expressa como puro abuso e

usura de cada corpo, usando armas linguísticas – frases, gestos,

discursos, textos, notícias, documentos etc. Ora, a implantação e

manutenção do capitalismo é, ela mesma, mística – depende da adesão

individual ao nível da crença. Como governo antivida, o prcc coloca a

morte como autoridade encarnada no corpo dos seus sacerdotes fardados

com uniformes militares ou empresariais. O figurino do operador da

bolsa é o mesmo do dono da funerária. Os instrumentos do cálculo


39
biopolítico feito sobre a vida das populações são os mesmos do cálculo

psicopolítico feito sobre seus pensamentos e sua linguagem. Todos

devem usar as lentes da lógica que calcula sobre corpos e linguagem,

sobre os meios de subsistência e os aspectos imateriais da vida. Esse

cálculo implica a impressão do conceito na matéria, da ideia na

concretude da vida, da informação codificada na forma de pensar, sentir,

crer e agir.

A impressão do código é a produção de cicatrizes. Assim como há

marcas de nascença, há marcas de cultura nos corpos. Aqueles que são

marcados pela codificação funcionam e interagem com outros, o que

nada mais é do que um jogo de repetibilidade. No mundo codificado, a

relação entre emissor e receptor dá lugar ao reconhecimento mútuo entre

classes de seres pré-marcados. Todos performam. As marcas são físicas,

como gestos e plasticidades relacionadas a múltiplos aspectos: o

trabalho, o gênero, a raça e tudo o que possa servir como elemento


configurador de um corpo. Marcadores são ainda roupas, adereços,

adornos. Desde objetos pequenos até carros e casas funcionam como

fatores de distinção. Funcionar na codificação demanda a cognição

como forma de ser dentro de um ambiente no qual corpos performam

com base em informações, informando e sendo informados. Nesse caso,

é o ser e o dever-ser, ou seja, os níveis ontológico e político da existência

que se articulam com base no código. Indivíduos de uma mesma

“classe” – tomada em sentido genérico, mas também como classe social

– se reconhecem e atuam entre si compondo um jogo de cena, uma

teatralidade naturalizada por meio de um acordo tácito sobre o que seja

a realidade.

Em um mundo codificado, a política é a arte de determinar a

codificação, ou seja, ela é um arranjo construído com uma intenção.

Toda codificação torna necessário um programa. Codificação e

decodificação exigem a descrição do mundo produzido por uma

máquina marcadora ou codificadora, a máquina linguística do poder,

programada por inputs soberanos. Uma fenomenologia capaz de

descrever a intencionalidade geradora do sistema seria ontopolítica,

falaria dos elementos e dos movimentos repetitivos que sustentam a

ordem. O reconhecimento do papel da percepção na construção do

corpo-sujeito será o seu resultado mais esperado depois da descrição das

formas impressas, das marcas e dos aparelhos e instrumentos

marcadores que moldam corpos e vidas.


Notas

38 Jacques Derrida, Força de lei: o fundamento místico da alteridade, 2018.

39 Michel Foucault, O nascimento da biopolítica, 2010.


O PRINCÍPIO DO OBSCURANTISMO E A
GEOMETRIA VARIÁVEL DO ÓDIO NUM MUNDO
CRIPTOGRAFADO

O termo “código” é usado para significar um método de criptografia ou

ocultação de significado. Todo o sistema de opressão é codificado e

depende da ocultação de seu código. O prcc é um sistema de

encriptação, ou seja, de transformação em ininteligível daquilo que é

passível de compreensão. É próprio dos sistemas de opressão se

apresentar como normativos e oferecer a noção de “natureza” das coisas

para sua validação, como se a compreensão fosse compulsória e todos

estivessem entendendo o que se passa. Na verdade, aquilo que está

explícito e que poderia ser considerado já conhecido precisa ser

constantemente escondido. É preciso “edulcorar” a realidade. É preciso

revestir a realidade decorativamente para torná-la suportável. Nesse

sentido, se de um ponto de vista da ideologia pode-se falar de contexto

de obnubilação e cegueira, do ponto de vista da teoria da informação,

pode-se falar de dois tipos de desinformação: uma essencial ao sistema,

que define a ontologia do mundo da mentira; e outra comum ou banal,

que está ligada a cada fato produzido como mercadoria no grande

mercado da enganação.

É certo, então, que cifrar ou ocultar a informação é essencial para o

funcionamento do sistema. Contudo, para sua permanência, a

informação ocultada deve ser transmitida entre pares e interessados. Em

computação, uma cifra corresponde ao ato ou efeito de alterar a

mensagem original. Muda-se a ordem ou a aparência de um elemento

em uma palavra ou frase para proteger a mensagem. Se na computação

isso é um mecanismo de controle, em política não é diferente. O poder

funciona como psicopoder quando a violência bruta e direta é

substituída por subterfúgios indiretos que submetem o organismo sem

que seja preciso usar a força direta.


Em termos políticos mais profundos, isso quer dizer que o sistema

depende do obscurantismo. Se a ininteligibilidade é parte do jogo da

informação para garantir a segurança, ou seja, garantir que não haverá

abalo do continuum, o que se chama desinformação hoje nada mais é do

que a produção da ininteligibilidade total. Esse é um fator do

obscurantismo que é potencializado ao extremo em nossa era. A

produção de desatenção faz parte disso. As novas tecnologias, sobretudo

as digitais, que informatizaram táticas já usadas em velhos jogos de

poder, tornam explícito que, mais do que nunca, a racionalidade técnica


40
é a racionalidade da dominação. Nessa perspectiva, o prcc sempre foi,

sobretudo, um sistema que conta com a ininteligibilidade, baseado na

desinformação. Agentes de luta, ou seja, dissidentes que permanecem no

sistema em um estado de exceção (as feministas, os antirracistas etc.),

são seus “interceptadores”. As feministas são tratadas como mulheres

antinaturais e “loucas”, como foram um dia as “bruxas”, são vistas

como inimigas do sistema, o que de fato são. Os socialistas, os

comunistas e os anarquistas, os ativistas rurais e urbanos que lutam por

terra e moradia, as pessoas identificadas como LGBTQIAP+, os

militantes de movimentos negros, estão todos na mira do extermínio.

Para isso, vale-se de todo tipo de guerra, convencional ou híbrida, com

táticas de difamação, violência de gênero, racismo, perseguições,

ameaças e até assassinatos.

O ódio produzido e repetido no sistema por sujeitos engajados contra

seus críticos, os ativistas teóricos e práticos, se deve aos processos de

decriptação das opressões. Ele ocorre quando se passa do texto cifrado,

que deve ser ininteligível para os subjugados, ao texto compreensível, o

que dá às vítimas o poder da consciência. Se não garante a libertação,

esse poder ameaça o sistema com a potencialidade dela. Desse modo, o

antídoto contra o feminismo é a misoginia, contra a libertação dos

negros é o racismo e contra outras minorias políticas são os preconceitos


41
e a humilhação transformada em tecnologia política.

O prcc é uma operação detalhada. O ato de cifrar é organizado por

um algoritmo em que machismo, racismo e outros ódios e fobias são

oferecidos conforme interesses numa geometria variável. A parte que

permite a transmissão da informação é uma chave, um segredo

conhecido apenas pelos interessados do sistema comunicante, ou seja,


por aqueles que ocupam a posição de privilégio e que transmitem o

próprio privilégio como uma informação a ser repetida entre corpos

emissores-receptores. Os demais corpos são apenas combustível do

sistema. É importante que as chaves sejam variáveis. Assim, confundi-

las é estratégico.

A variabilidade das chaves é produzida pelo próprio sistema, que a

altera constantemente enviando informações distorcidas. Por exemplo,

se é preciso sustentar corpos submissos sem matá-los, pode ser benéfico

estimular que pessoas pobres acreditem que são ricas, ou que mulheres

tenham orgulho de estar a serviço da família ou da sexualidade

predadora patriarcal, ou que pessoas racializadas não percebam a

presença da categoria “raça”. Em todos esses casos, um contingente

populacional organizado em coletivos políticos e movimentos percebe a

codificação como marcação e começa a atuar contra ela. O ódio às

mulheres que passam a falar em feminismo, ou ao movimento negro,

que passa a usar a raça como chave de libertação, deriva disso. Do

mesmo modo, quando o termo “gênero” é usado como categoria de

análise, ele desperta os controladores do código patriarcal, que se

sentem lesados no seu “direito natural” de imprimir gênero como

pensamento e ação sobre os corpos, sem que os corpos visados saibam

disso.

A variação das chaves dificulta o conhecimento das cifras e promove

a sustentação do programa e do funcionamento do sistema. O termo

“ideologia de gênero”, por exemplo, serve como chave que visa a ocultar

a generificação ou a produção de gênero. Como senha, ideologia de

gênero serve para acionar o ataque àquelas pessoas e grupos que ousam

compreender a criptografia do patriarcapitalismo e, assim, ameaçam

desmontar o código, que é a informação básica que sustenta o sistema. A

violência é o núcleo de uma programação a ser repetida, coordenada e

reproduzida no prcc.

A ciência dos segredos do sistema de opressão é, ela mesma, uma

criptoanálise. Nela, mundo é uma palavra-código por meio da qual se

pode criptografar e descriptografar a vida. Nesse sentido, a teoria

feminista e as análises sobre raça e classe são “criptoanálises”, ou seja,

ciência ou estudo dos segredos do sistema de opressão. O nome

patriarcapitalismo serve como exposição de algo que ainda é segredo


para muitos: o que une codificações amalgamadas como patriarcado,

racismo, capitalismo e capacitismo, as “codificações mestras”. Seu jogo

é o da violência, que se faz poder constituído e constituinte e que define

as regras e leis para sua autossustentação.


Notas

40 Theodor Adorno, Max Horkheimer, op. cit., 1984.

41 Marcia Tiburi, Complexo de vira-lata: análise da humilhação colonial, 2021.


O MUNDO CODIFICADO É CALCULADO E
ADMINISTRADO

Do ábaco à calculadora digital, nada escapa à lógica da medida, à

fragmentação, ao esquartejamento, à binarização. Ao mesmo tempo, a

análise que pode ir além do cálculo é controlada, pois, enquanto

compreender e interpretar estiver ligado ao princípio dialético de eros, o

trabalho do princípio da morte, que espera a liquidação de todas as


42
coisas, não cessará. O cálculo é a regra com base na qual se constrói

uma ideia de mundo em que se deseja controlar milimetricamente os

atos, os fatos, os corpos. Da física à economia, da medicina ao tamanho

das postagens nas redes sociais, nada escapa à lógica da medida,

organizadora do mundo industrializado e, hoje, digitalizado e

virtualizado, medido em bits. A imaginação que pode ir além de tudo

isso deve ser controlada.

Reis, imperadores, padres e pastores, bem como capitalistas e seus

economistas ideológicos, com a ajuda de filósofos e cientistas,

constroem a “visão de mundo” baseada no cálculo e a vendem ao

mundo entre outras mercadorias – uma visão de mundo vale muito no

mercado que se sustenta a partir dela. O cálculo é regra da visão que

fragmenta tudo. Da anatomia à probabilidade, ele é a medida

epistemológica geral que define o que pode ser conhecido. O mundo se

torna também uma questão de cálculo, do que vale mais e do que vale

menos.

O cálculo pressupõe que o que é inteiro pode ser tomado por partes,

ou é algo que pode ser reproduzido. O que pode ser tomado por partes

pode ser reduzido a quantidade e está sujeito a limites. O cálculo que

vale para as coisas e corpos submetidos aos valores estéticos – que são

ao mesmo tempo esquifes estéticos – de cada época vale também para

palavras que são utilizadas em um texto, para os discursos com tempos

medidos. Não há tempo para todos quando o tempo também obedece à

lógica da mercadoria, ao princípio do capital. Ora, também as ideias são


calculadas como parte de um todo. Assim, a religião usa a ideia de Deus

como parte do cálculo de poder, já o patriarcado usa a ideia de homem,

mulher e família. O capitalismo usa a ideia da propriedade privada, do

lucro, do mérito, da concorrência, da livre-iniciativa. A função das

ideias é traçar o projeto, estabelecer o design do mundo dentro do qual

serão estabelecidos uma forma de vida e um modo de ser que serão

repetidos.

A proposta de pensar o mundo como linguagem e a linguagem como


43
o que pode ser compreendido corresponde à busca por alterar a

valência do ser calculado do mundo, resgatando-o da concepção fechada


44
que fez história na filosofia em nome do combate aos mitos. A própria

filosofia – pelo menos a filosofia como pensamento reflexivo – foi

exterminada pela ideologia do cálculo, que descarta o pensamento

crítico como inútil. A metodologia do cálculo se eleva à visão de mundo

hegemônica e dominante. Ou seja, é a confusão entre linguagem como

cálculo e linguagem como meio universal que é preciso revisitar.

O cálculo foi o paradigma da ciência moderna que permitiu “a


45
regressão do esclarecimento à ideologia”, como demonstraram Adorno

e Horkheimer na Dialética do esclarecimento. Os meios de

comunicação de massa são a expressão dessa transformação da ciência

em mistificação e da “verdade” em mera “notícia”. Que a mentira tenha

ocupado o lugar da verdade, gerando o novo ambiente linguístico no

qual circula a livre desinformação, é sinal de uma perigosa alteração no

campo simbólico. O cálculo não se faz mais sobre a verdade, mas sobre

a mentira.

A própria ideia, ou o ser da verdade, já não importa. O que importa é

a eficácia da técnica de produção e de difusão da notícia, a saber, da

mentira-mercadoria, que ocupa o lugar da verdade, recriando o

metabolismo da vida cotidiana. Assim, produção e difusão de notícias

falsas geram um novo mundo falso. A forma lógica das coisas continua

em pé, mas rumo à desorganização, ou seja, rumo a um não mundo que

se apresenta como o melhor dos possíveis. Se o mundo composto de

formas lógicas depende da produção de uma lógica do sentido, a lógica

do nonsense tende a produzir estruturas distópicas que serão

administradas para o bom funcionamento do sistema. A administração é


um princípio que faz funcionar o caos como se ele fosse ordem, tal

como vemos no fascismo.

Foucault percebeu que o poder implica cálculo. Ao criar o termo

biopoder, o filósofo francês tratou do cálculo do poder sobre a vida


46
percebendo o papel do sexo e da sexualidade como dispositivos.

Foucault acreditou que o funcionamento desse cálculo não poderia ser,

ele mesmo, calculado. Na fórmula foucaultiana do biopoder, como

cálculo que o poder faz sobre a vida, a noção de cálculo implica o

procedimento cuja lógica não pode ser capturada. O poder é, justamente,

um aprisionamento. O que Foucault chamou de dispositivo é justamente

essa máquina de ininteligibilidade, ela mesma tornada ininteligível.

A máquina calculadora do poder funciona com base em um

mecanismo que não pode ser conhecido, pois está espalhado e atuando

por toda parte. O dispositivo se refere a um “arranjo”, a uma espécie de

engenhosidade sem sujeito, mas plena de racionalidade, que faz lembrar

novamente a máquina de tortura de “Na colônia penal”, de Kafka. De

modo aproximado, o personagem Odradek de “A preocupação do pai de


47
família” é, ele mesmo, uma engrenagem que sobrevive às gerações.

A inacessibilidade do cálculo sobre o mundo causa sua

incompreensibilidade. Contudo, o cálculo já não é o elemento que

permite compreender o mundo, a não ser como forma da manipulação

epistemológica na era da desinformação, ela mesma um arranjo de

teorias selvagens infinitas.


Notas

42 Sobre o “desejo mórbido de liquidez”, ver Bernard Maris, Gilles Dostaler, Capitalisme et

pulsion de mort: Freud et Keynes, 2009, pp. 8-9. Segundo os autores, “Ce qu’enseignent Freud

et Keynes, […] c’est que ce désir d’équilibre qui appartient au capitalisme, toujours présent,

mais toujours repoussé dans la croissance, n’est autre qu'une pulsion de mort. Détruire, puis se

détruire et mourir constituent aussi l'esprit du capitalisme” [“o que Freud e Keynes nos ensinam

[…] é que o desejo de equilíbrio que pertence ao capitalismo, sempre presente, mas sempre

empurrado para o crescimento, não é outra coisa senão uma pulsão de morte. Destruir, depois

destruir a si próprio e morrer é também o espírito do capitalismo”].

43 Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, 1997, p.

44 “Na crença de que ficaria excessivamente susceptível à charlatanice e à superstição, se não se

restringisse à constatação de factos e ao cálculo de probabilidades, o espírito conhecedor prepara

um chão suficientemente ressequido para acolher com avidez a charlatanice e a superstição.

Assim como a proibição sempre abriu as portas para um produto mais tóxico ainda, assim

também o cerceamento da imaginação teórica preparou o caminho para o desvario político. E,

mesmo quando as pessoas ainda não sucumbiram a ele, elas veem-se privadas dos meios de

resistência pelos mecanismos de censura, tanto os externos quanto os implantados dentro delas

próprias.” Theodor Adorno, Max Horkheimer, op. cit., 1984, p. 2.

45 Ibidem, p. 16.

46 Michel Foucault, Histoire de la sexualité: La volonté de savoir, 1994.

47 Franz Kafka, “A preocupação do pai de família”, 1994, pp. 41-42.


GRAFOPODER, CONCEITOGRAFIA OU O
DESIGN COMO PRÉ-FABRICAÇÃO DO MUNDO

O design é o cálculo que se expressa em imagens. Em sua base, está o

gesto que projeta do ponto para o traço, ou seja, que instaura um

movimento ínfimo que acaba por forjar um mundo e tomar o mundo

como um todo. A unidade mais básica da compreensão é imagética. Ela

é esse traço que pode ser visto nos gestos e no design que os contém em
48
sua base.

Do shopping à casa pré-fabricada, do carro popular (Volkswagen) à

bicicleta dobrável, do relógio de pulso ao aparelho de televisão, do fogão

a lenha ao fogão de indução, do pote de barro ao prato de vidro, tudo

passa pelo design, ou seja, pelo desenho de uma ideia que obedece antes

ao gesto que produz um traço. O design é, ele mesmo, o código que se

apresenta como “in-pré-pensado”, feito de movimentos mínimos, que

são a ação do corpo vivo que pode ser vista. Ele é a informação que

produz uma forma de vida e que ensina a viver conforme o gesto

original que, ao desenhar, se estabelece como código básico de

representação da realidade, mas também de ideias. A geometria mais

básica depende de formas desenhadas.

Se os limites do mundo são os limites da linguagem, a dominação

incide justamente sobre o sentido do limite. Um objeto pode ser definido

pelo seu limite, pela sua forma e por seu conteúdo interno, do qual a
49
forma surgiu. O conceito de limite remonta à noção de contorno, que

está na origem da ideia de representação – ela mesma design de uma

ideia, o que podemos chamar de design de pensamento. Mundo é o

limite dentro do qual estamos, e limite é um elemento central da ideia de

mundo.

A noção de contorno permite entender como se constitui um

símbolo. O limite é o que pode ser contornado, portanto, o lugar onde

ocorre a representação, para além da qual a linguagem, perdida do

contorno que a define, torna-se um grande borrão. Símbolo é, portanto,


a unidade de conteúdo e forma que pode ser representada. Mundo é,

desse modo, aquilo que se pode arranjar como conjunto de elementos

que se apresentam como simbolizados.

Os limites do mundo são dados nos vetores do design que o

desenham: de desenhos a carvão no fundo de uma caverna a formas

arquitetônicas variadas ao longo de milênios, chegando ao computador –

e à binarização do mundo pela internet. Os habitus da vida cotidiana,

que envolvem formas de habitar, de comer e de vestir, fazem parte disso.

Nesse sentido, os limites do mundo são traços dados por um gesto

“vetorizador” que muda conforme a necessidade, se organizando como

programa criador de ontologia, ou seja, de formas capazes de definir o

comportamento da espécie humana. Isso quer dizer que a estética

programa a ética e a política. O tema da estética não se refere apenas a

acobertamentos, mas a produções de mundo e de formas de ser no

mundo. Design não é apenas uma projeção ou uma manipulação do

mundo, tampouco um modo de fazer mundos. É o seu ser mesmo, que,

na era digital, se torna explícito em função do ser do digital, como forma

de notar o mundo.

Em Wittgenstein, o sujeito não pertence ao mundo por ser o seu

limite, pois o design não é o sujeito, mas aquilo que, desenhando o lugar

do sujeito (das condições onde ele se instaura), se coloca como uma

espécie de metassujeito. O sujeito não é uma mente ou um corpo, mas o


50
que está sob a régua da qual fala Peter Haidu. Ora, a régua é limite e é,

ao mesmo tempo, instrumento de medida. A subjetividade como

categoria do sujeito vem a ser o efeito de um design em que

ventriloquacidade (os discursos prontos ou o discurso como capital) e

espetáculo (as imagens prontas ou imagens como capital) se misturam

compondo dioramas habitáveis para determinados corpos. Como forma

de poder, o objetivo do design é definir o todo da vida, em escalas micro

e macroscópicas.

Por analogia, como design do mundo, o prcc funciona como um

processo incessante de vetorização e projeção de sua lógica. A

reprodução da ordem é literal. No caso do patriarcado, é uma

reprodução “cunicular”, na qual o estupro se tornou “lógico” e


51
randômico, e a inseminação, um projeto anterior a qualquer raciocínio.

Ocupar o espaço e cada reentrância do planeta é o gesto inerente ao


design patriarcal reproduzido pelo capital em seu anseio
52
falogocêntrico. Do mesmo modo, o racismo, como teoria e como

prática, não deve deixar espaço vazio e corpos vivos desde que sejam

marcados como “negros”. O mesmo ocorre com os corpos dissidentes

da normatividade plástica ditada pelo capacitismo. Mais uma vez, temos

na banda de Möbius a imagem perfeita para esta relação: a dominação

funciona de um lado com a teoria, de outro com a prática; de um lado há

a narrativa, de outro, a ação. A dominação é um jogo de ilusões e

aparências e, sobretudo, de vetores que nos permitem entender que no

caminho da fita de Möbius, nossos olhos, assim como nosso pensamento

(portanto, nossa percepção e nossa cognição como um todo), percorre

um traço, um movimento, e não sai do lugar mesmo quando parece estar

em outro.

O mundo concreto corresponde à ideia previamente desenhada pelos

donos dos meios de produção dos instrumentos linguísticos – os agentes

do design, que são agentes do poder. Podemos, nesse sentido, falar de

um “grafopoder”, o poder de traçar, de criar escrituras ou mundos

articulados. Pode-se criar uma igreja ou um parque de diversões, um

museu ou uma escola, um condomínio ou uma prisão, um hospital ou

uma cave de sadomasoquismo sexual, assim como um sistema que

transcende locais materiais clássicos. A internet é exemplo disso.

Sistemas, quaisquer que sejam, sempre são codificações e, desse modo,

mundos. Os mundos são organizados dentro de limites e carregam

conteúdos que orientam a sua reprodução: as ações sempre são

linguísticas e levam a fatos, obedecendo ao vetor, ou seja, ao traço

gerador prévio, autônomo e soberano sustentado no fundamento místico

da autoridade.

Hoje, a arte contemporânea está sobrecarregada pelo peso do design.

As obras que fazem mais sucesso no campo da crítica e do espetáculo

atualmente são aquelas que permitem combinar a pintura na parede com

o sofá e com os corpos humanos que são os donos do sofá, assim como

da parede. Todos devem estar vestidos com roupas adequadas ao gosto,

sejam homens, mulheres ou de outras identidades de gênero. Todos

devem estar fechados dentro do circuito decorativo que esconde alianças

políticas, conservadoras mesmo quando apresentadas como as mais

democráticas possíveis.
No império do design, o mundo é uma questão e uma produção
53
“conceitográfica”, baseada em fórmulas aplicadas e replicadas à

exaustão, como em um jogo de reprodução que não admite quebra. A


54
ideia de reprodutibilidade técnica, tal como vemos em Benjamin, não é

apenas a reprodução das obras de arte dos museus em fotografias que

serão espalhadas pelo mundo analógico ou digital, mas a

reprodutibilidade da própria técnica. Ela é vertiginosa e não pode parar,

como um texto que precisasse se espalhar. Sendo o texto um jogo de

articulações de sentido, ele mesmo é um determinado arranjo ou design

que projeta e organiza o mundo.

Junto a essas ideias flusserianas, tomo emprestado o conceito de

“conceitografia” de Frege para falar da forma como uma teoria se

transforma em design. Meu interesse é apontar para uma “conceitografia

política” que informa um mundo e, assim, o produz. A disputa do

mundo é, a meu ver, uma disputa por essa “conceitografia” exposta na

forma de um design que age sobre espaço, tempo, corpos e também


55
sobre a subjetividade.
Notas

48 Vilém Flusser, Gestos, 2014.

49 Victor Stoichita, A Short History of the Shadow, 2013.

50 Peter Haidu, Sujeito medieval/moderno: texto e governo na Idade Média, 2003.

51 Françoise d’Eaubonne, Le Féminisme ou la mort, 2020.

52 Neologismo cunhado por Jacques Derrida a fim de combinar as palavras “falocentrismo” e

“logocentrismo”. Ver Jacques Derrida, “Le Facteur de la Verité”, 1975.

53 Gottlob Frege, Conceitografia: uma linguagem formular do pensamento puro decalcada

sobre a aritmética, 2019.

54 Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, 2018.

55 Marcia Tiburi, op. cit., 2021.


GLOBALIZAÇÃO: DA CACOTOPIA CUJA META É
A CATÁSTROFE À HIPNOSE CUJA META É O
ESVAZIAMENTO SUBJETIVO

A palavra mundo inspiraria intuições libertárias se não tivesse sido

previamente aprisionada na retórica intimidatória da globalização, que é

parte da guerra insidiosa e colonizadora contra a imaginação de um

outro mundo possível. A ideia do “global” serve para esconder a

metafísica em torno do termo “mundo” e sua ambiguidade própria entre

a distopia e a utopia.

A distopia toma conta do mundo como se pudesse adequar o design


56
mental ao da destruição. Se por um lado as distopias literárias e

cinematográficas fazem o papel de espelho do mundo, denunciando o

delírio que constituem os sistemas econômico, jurídico, político, afetivo

e cognitivo, e, assim, ajudando a descortinar ilusões, por outro, o real

afunda no paradigma distópico. Imagens de um mundo mau, doente,


57
apocalíptico e infernal, de um mundo “cacotópico”, fazem parte de um

imaginário do horror em que psiconarrativas contundentes servem como

armas do psicopoder. O termo cacotopia (do grego kakós, que significa

“mau”) foi cunhado em 1818 por Jeremy Bentham e, depois, usado por

Stuart Mill para criticar o governo de sua época. Anthony Burgess, autor

de Laranja mecânica e de 1985, preferia usar o termo para falar de algo

pior do que uma distopia. A noção de globalização como

universalização da catástrofe é uma espécie de cacotopia naturalizada –

que pretende a totalidade e a aceitação como inevitável.

Trata-se de uma guerra contra a subjetividade promovida pela

indústria cultural, ela mesma o aparelho produtor e reprodutor da

mentalidade capitalista. A distopia é o conceito da vez, a ser vivido

diariamente como forma do mundo que avança para a cacotopia

universal. A própria globalização vem a ser um chavão usado como

artefato hipnótico, ou seja, como arma psicopolítica cuja função é


substituir questionamentos e reflexões que possam interferir na vontade

das pessoas e, portanto, na totalidade da vida.

A globalização é a mundialização econômico-política, mas é

também uma narrativa acobertadora. A filósofa boliviana Silvia


58
Cusicanqui alertou para a função muito peculiar que o colonialismo dá

às palavras: elas deixam de designar e passam a encobrir. A ideia de

colonização do imaginário faz referência ao uso das palavras a serviço

do sistema de violência e opressão. É assim que inimigos imaginários

são produzidos por palavras manipuladas em textos para garantir certos

contextos – os contextos criam palavras e textos, mas as palavras e os

textos também criam os contextos.

A mundialização capitalista transforma o mundo em mercadoria

enquanto tenta manter o problema mundial afastado de questionamentos

e reflexões que poderiam alertar para o perigo que o mundo corre, e,

assim, contê-lo (mesmo que já em fase de realização). Dessa forma, a

mundialização capitalista produz o mundo como objeto de consumo e,

portanto, de descarte.

Globalização e mundialização são termos relacionados ao controle

da ideia de mundo hoje. Definições como sistema-mundo (economia-

mundo e império-mundo) nasceram da percepção de que a acumulação

do capital gerou uma necessidade de mudanças tecnológicas e de

expansão das fronteiras geográficas, psicológicas, intelectuais e

científicas. A noção de sistema-mundo tinha o objetivo de explicar o

funcionamento do capitalismo e do imperialismo dentro do que

Wallerstein definiu como um “protesto fundamental contra os modos de


59
conhecer o mundo”. Ela não se referia ao mundo inteiro, mas a “um

mundo”, ou seja, “uma zona espaço-temporal que atravessa múltiplas

unidades políticas e culturais, uma que representa uma zona integrada


60
de atividade e instituições que obedecem a certas regras sistêmicas”.

A ideia de uma “mercadoria-mundo” leva à destruição da ideia de

mundo em geral, banalizada na retórica da globalização. A forma

mercadoria é oferecida à população, de maneira sistemática e


61
programática, como um verdadeiro esquema de pensamento, com base

no qual todos são coagidos pelo assédio epistemológico que considera

todas as coisas – inclusive a própria universalidade – negativas. A

hegemonia retórica que conquista os discursos neoliberais e a mídia


conivente faz valer a universalidade do mercado global enquanto

esconde sua conspurcação. A própria crise do conceito de universalidade

tem relação direta com a redução do mundo (da sociedade, da natureza,

do “todo”) a uma questão de mercado.

A globalização se apresenta como “fabulação” que pretende


62
consagrar um “discurso único”. Segundo Milton Santos, os

fundamentos desse discurso “são a informação e o seu império, que

encontram alicerce na produção de imagens e do imaginário, e se põem

ao serviço do império do dinheiro, fundado este na economização e na


63
monetarização da vida social e da vida pessoal”.

A retórica e a prática que tomam a forma mercadoria como verdade

também assumem a forma mercadoria. O discurso pronto da razão

publicitária (ela mesma uma forma de religião) vende-se e vende a

globalização. A destruição do próprio sentido de mundo como forma

simbólica marcada pela potencialidade e pela alteridade – elas mesmas

formas abertas que não cabem na ideia de globalização – visa a fechar

fronteiras em um narcisismo autocomplacente que é ofertado a cada um

como parte de um projeto de adulação das massas. O sujeito é reduzido

a mercadoria e consome a si mesmo nas redes sociais, onde é colocado

na forma da embalagem adequada. A mercadoria-sujeito corresponde ao

sujeito-mercadoria no contexto da mercadoria-mundo e do mundo das

mercadorias.

A forma mercadoria acarreta a destruição das coisas concretas por

meio de sua fetichização. Em outras palavras, essa destruição se

estabelece na clivagem entre a ideia e a realidade, aspectos que se

entrelaçam em um novo nível de fetichização do próprio discurso que

invade todos os espaços. A expansão da forma mercadoria é ela mesma a

forma da ideologia que não sobrevive sem um discurso acobertador.

A mundialização é uma narrativa, mas acoberta esse fato como se

ela fosse uma condição natural, existindo independentemente de um

texto. O objetivo é justamente monopolizar a ideia de mundo e impedir

outras propostas, o que se faz com a circulação de textos que criam a

atmosfera de unicidade do mundo atual, cuja distopia foi naturalizada.

O projeto de mundialização capitalista e patriarcal não deixa nada de


64
fora. A mundialização econômica é uma forma de fundamentalismo

organizada como sistema simbólico, linguístico e narrativo. Na lógica do


sistema, a ideia de que é possível um mundo melhor do que o mundo

capitalista e patriarcal deve ser impedida de avançar. As massas

deixariam de ser massas se fossem libertas da hipnose global.

Mundo pode ser definido como tudo o que existe. Contudo, esse

conjunto abstrato se torna mais inteligível com o uso de termos

hermenêuticos, quando nos lembramos da ideia de mundo como

linguagem e a codificação do mundo como narrativa. Ou seja, quando se


65
percebe que mundo é o que pode ser compreendido. Nessa perspectiva,

a dominação do mundo é a dominação da linguagem. A violência e o

poder garantem a dominação como uma questão epistemológica,

gnosiológica e metodológica. O que está em jogo é a orientação do

espírito no sentido weberiano desse termo, ou seja, de um sistema de

valores que orienta a ação.

Repetida sem maiores explicações, a palavra globalização se tornou

um termo hipnótico na ordem do discurso capitalista, essencial aos jogos

do psicopoder (do cálculo que o poder faz sobre o que as pessoas

sentem, pensam, acreditam, desejam e fazem). Ao mesmo tempo, os

discursos sobre alternativas ao capitalismo como sistema ideológico,

simbólico e econômico foram sendo tratados como insanidade, absurdo,

nonsense, loucura, delírio, sempre para combater ideias consideradas

perigosas.

A globalização, então, de um ponto de vista crítico, aponta para uma

hipnose global pelo patriarcapitalismo. De fato, o prcc é, ele mesmo, um

sistema hipnótico que utiliza jogos retóricos para sustentar o transe dos

corpos dos quais ele depende para se manter. Trata-se, nesse caso, de

uma teologia-economia, cujo timbre é fundamentalista. Não é por acaso

que as igrejas que estão em busca de lucro crescem como seitas no prcc,

pois ele mesmo é um regime simbólica, linguística e narrativamente

preparado, que funciona como um sistema de reprodução de delírio e

mania, ideias fixas e fanatismo em um arranjo programático.

Na prática discursiva diária, a mundialização avança colocando-se

como metanarrativa, cujo objetivo é apagar seu caráter inventado e,

assim, garantir-se no lugar estratégico do poder, o lugar ocupado pela

“ideia de verdade”. Ora, o objetivo da ideia de mundialização é

justamente monopolizar a ideia de mundo e impedir outras propostas. É


preciso compreender o jogo narrativo do poder se pretendemos ir além

dele.

A globalização é, ela mesma, um elemento fundamental do código

distópico. Ela é uma das palavras-chave, uma das palavras-código que

permitem acionar a adesão subjetiva aos processos objetivos na

produção de mundo como programa predefinido. A globalização seria a

forma universal de uma prototipificação que se pode controlar. Seria a

efetivação em escala macroestrutural de um protótipo previamente

criado. Esse protótipo “global” é como uma peça de design que deve ser

universalizada.
Notas

56 Recomendo o excelente trabalho de Eduardo Marks de Marques sobre o tema: “From Utopian

Hope to Dystopian Despair: Late Capitalism, Transhumanism and the Immanence of Marxist

Thought in Contemporary Dystopian Novels”, 2014, pp. 257-285.

57 Gregory Claeys, Dystopia: a Natural History – A Study of Modern Despotism, Its

Antecedents, and Its Literary Diffractions, 2017.

58 Silvia Rivera Cusicanqui, Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos

descolonizadores, 2010.

59 Immanuel Wallerstein, Análisis de sistemas-mundo: una introducción, 2005, p. 11.

60 Ibidem, p. 32.

61 “[...] a verdadeira natureza do esquematismo, que consiste em harmonizar exteriormente o

universal e o particular, o conceito e a instância singular, acaba por se revelar na ciência atual

como o interesse da sociedade industrial. O ser é intuído sob o aspecto da manipulação e da

administração. Tudo, inclusive o indivíduo humano, para não falar do animal, se converte num

processo reiterável e substituível, mero exemplo para os modelos conceituais do sistema. O

conflito entre a ciência que serve para administrar e reificar, entre o espírito público e a

experiência do indivíduo, é evitado pelas circunstâncias. Os sentidos já estão condicionados pelo

aparelho conceptual antes que a percepção ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matéria

com a qual ele o produz para si próprio”. Theodor Adorno, Max Horkheimer, op. cit., 1984, p.

41.

62 Milton Santos, Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal,

2001, p. 18.

63 Ibidem, p. 17-18.

64 Eduardo Grüner, “La Tragedia, o el fundamento perdido de lo político”, 2002, pp. 13-50.

Segundo Grüner, a mundialização pode ser dos mercados financeiros, da circulação de

mercadorias, da informação e dos meios de comunicação de massas, até mesmo das lógicas

produtivas, mas não há mundialização da força de trabalho. O capitalismo mundial, quase que

por definição, precisa manter cotas diferentes de extração de mais-valia e de “intercâmbio

desigual” de custos laborais e suas diferentes regiões. Ver também Samir Amin, Capitalismo,

imperialismo, mundialización, 2008.

65 Hans-Georg Gadamer, op. cit.


PARQUE-TEMATIZAÇÃO COMO MERCADO DA
MIMETIZAÇÃO

A parque-tematização do mundo é um fato na administração do sistema.

Sem ela, o mercado não pode se vender a si mesmo. Ela age para que o

mercado seja vivido como uma realidade fantástica, de forma que as

pessoas consigam se mimetizar no ambiente e, assim, sentir-se

aconchegadas. Os gestores do mundo devem administrar justamente a

sensação de conforto físico e mental que se confunde com a sensação de

sentido. Seja no shopping ou no restaurante da moda, tudo parecerá

bem.

Adorno e Horkheimer já tinham percebido a função da mimese e sua

diferença da projeção. Na primeira, o corpo quer se aconchegar ao

mundo ambiente, o interior se ajusta ao exterior, enquanto na segunda, o

interior se lança de maneira hostil sobre o exterior. A projeção torna o

mundo ambiente semelhante a ela. Nas palavras dos autores: “Os

impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe
66
pertencem são atribuídos ao objecto: a vítima em potencial.” No fundo,

o sistema confia nos algozes que ele mesmo cria para manter-se em pé.

A projeção é a base de uma postura paranoica. Para o paranoico usual,

dizem os autores, sua escolha não é livre, mas obedece às leis de sua

doença. O sistema funciona como uma doença. O clima de alucinação e

a distopia que lhe concerne fazem parte disso. Adorno e Horkheimer

ainda dizem que “no fascismo, esse comportamento [o paranoico] é

adotado pela política, o objeto da doença é determinado realisticamente;

o sistema alucinatório torna-se a norma racional no mundo, e o desvio, a


67
neurose”. O sistema se sustenta ofertando uma espécie de paranoia

confortável para todos, pois ela se tornou o paradigma, o fator central

idealizador, conceitográfico e grafopolítico com base no qual tudo se

desenha. O fascismo – que implica a morte de muitos, de todos os

inadequados e indesejáveis – se instala em cores pastel sob o páthos da

diversão.
O indivíduo humano, essa unidade de corpo e espírito, busca evitar

tudo o que lhe pareça incognoscível – evita, portanto, tudo o que possa

parecer alucinação mesmo quando não se trata de outra coisa. Somente

uma análise estético-política que leva em conta modos de agir dentro de

alucinações codificadas permite perceber esse fenômeno.

A mercadoria-mundo ou mundo-mercadoria surge nesse contexto na

forma do parque temático, cujo estereótipo é a Disneylândia. Ela é o

modelo paradigmático da “mercadoria-mundo”, replicada e reproduzida

pelo mundo afora como forma genérica e, por assim dizer, metonímica

do parque temático da Disney. Disneylândia é um molde genérico para

outros mundos forjados artificialmente como “maravilhas” que

permitem êxtase, alucinação, sonho, deslumbramento, fascínio. É o

mundo em sua forma fetichizada que pode ser vendido. É o protótipo do

mundo-mercadoria que organiza o mercado como mundo.

A Disneylândia é a forma da mercadoria-mundo, um mercado-

mundo, o protótipo do shopping center, apresentada como totalidade e

ofertada com um subconjunto de mercadorias na forma de um éthos a

ser seguido. Éthos é uma palavra que podemos traduzir por moral, por

hábito ou costume, mas que também significa “casa”, um modo de ser e

de se comportar, um modo de sentir e de pensar na convivência com

outros. Mundos são, nesse sentido, construções dentro de uma prévia

codificação ofertada como protótipo por um sistema que reduz o mundo

a mercadoria e que oferece “mundos” como protótipos reprodutíveis. Se

pensarmos nos termos de Bourdieu, diremos que o habitus se tornou

capital e foi embalado para viagem.

A Disneylândia é uma fabulação que se oferece como mundo

codificado. O parque temático é o cenário da fábula onde cada um pode

ter a chance de viver como “consumidor” de uma experiência lúdica. O

mesmo vale para o mundo das “marcas”, da Coca-Cola à Apple, da

Chanel à Ferrari, todas oferecem produtos com alto potencial de impacto

estético e de experiência fantástica. O desejo de viver algo fantástico em

termos de afetos e experiências faz parte do modo de vida humano há

muito tempo, e o mercado tem trabalhado em cima dessa função

“desejante” do ser humano. Essas marcas e seus objetos são mundos

desenhados – são designs que criam comportamentos. O jogo de poder


agora se insere no cenário da performance programada com o jogo do

programa do qual o fascínio pelo design é parte.

A codificação capturou o “mundo” e as potencialidades humanas

para dentro de uma jaula discursiva e imagética. A fábrica de protótipos

é uma fábrica de mundos que podem ser replicados. Mundos que

porventura possam existir para além do protótipo fabuloso da

Disneylândia, de suas imitações ou de suas novas roupagens, serão

sufocados. Diante da Disneylândia, um “outro mundo possível”, não

mercadológico nem mercantilizado, será anatematizado como heresia. A

codificação capitalista implica a dominação estética e não deixa espaço

para mais nada.

É a própria ideia de mundo em geral que se torna estreita e até

sufocante, enquanto a experiência da Disneylândia se oferece como

libertária. Os mundos “disneylândicos” ou “disneyfílicos”, sejam

cidades turísticas ou parques de diversões, shoppings centers ou lojas de

departamentos, cinemas, teatros ou até mesmo livrarias, são

apresentados em formas estupefacientes como universos mitomaníacos

que ocultam problemas. Esses mundos tentam disfarçar contradições

com uma estética do plástico e da mágica das bugigangas, playgrounds,

restaurantes e serviços que vendem harmonias para esconder dor,

sofrimento, abusos, assédios e injustiças trabalhistas.

O efeito de mágica é oferecido às crianças e aos adultos

infantilizados. A infância, ela mesma considerada em uma única

dimensão, é seduzida, “entretida”, e os próprios adultos entram no

processo ilusionista de uma fabulação infantil vendida como redenção,

para eles e para seus filhos. A Disneylândia é a forma cínica de um

“outro mundo possível” com o qual se pode sonhar (mas apenas nas

férias, por uns dias). O devir disneylândia do mundo é o seu destino no

capitalismo, assim como o Muro das Lamentações e a Kaaba em outras

religiões monoteístas. Assim é que a ideia de um mundo se torna

decisiva em um nível concreto e metafísico, técnico e mágico, estético e

comportamental ao mesmo tempo, até a totalização, quando todos os

rituais imagéticos se tornarão realizados sob o signo de uma realidade

homogênea e plastificada.

Talvez tenha sido isso o que Adorno e Horkheimer queriam dizer

com o ar de semelhança que a indústria cultural confere a todas as


coisas. A indústria cultural se tornou matemática, espalhou-se por todos

os lados, e a “indústria cultural do mundo” assumiu a forma de parque

temático, sendo a Disneylândia o protótipo do mundo em si mesmo na

era do capitalismo.
Notas

66 Theodor Adorno, Max Horkheimer, op. cit., 1984, p. 174.

67 Ibidem.
VENTRILOQUACIDADE, PRÓTESES
COGNITIVAS E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE

À reprodutibilidade discursiva a ser interiorizada e repetida por corpos

reduzidos a aparelhos de reprodução, podemos chamar de

“ventriloquacidade”. No prcc, o ser humano é igualado aos aparelhos de

difusão de discursos prévios construídos para atingir a percepção. Todos

os corpos são fornidos de próteses cognitivas – televisões, computadores

e celulares – e estão previamente pautados no avanço sobre a percepção.

As próteses cognitivas estabelecem processos corporais-mentais e criam

rituais cotidianos.

A ventriloquacidade não é só o conjunto da confusão linguística

reprodutível, mas também o caos discursivo que visa a produzir

esvaziamento subjetivo, cognitivo, afetivo, criando um ambiente

linguístico e, por conseguinte, político. O prcc investe na

ventriloquacidade, organizando os meios de produção da linguagem para

que ela funcione na reprodução e na colonização de mentes e corpos.

A colonização por aparelhos é corporal, mas também é mental e

linguística. As narrativas funcionam como programas inseridos em

próteses cognitivas. Narrativas não são apenas histórias que se contam

como contos de fadas, romances, novelas ou, até mesmo, mitomanias

particulares. O que está em questão é a produção da narrativa

dominante, justamente porque, no cenário do prcc, a dominação pela

narrativa é uma tecnologia política essencial. A ventriloquacidade é a

narrativa dominante que se repete performativamente de maneira

falogocêntrica, ininterrupta e sem limites.

Um sistema mental-afetivo sustenta a reprodutibilidade discursiva do

sistema. O conteúdo transmitido é mitomaníaco, no sentido de ser

reinvenção do mito capitalista do mundo perfeito. É a mitomania

teologicamente sustentada como um sistema de crenças acerca de um

mundo ideal, sem falhas e que caminha na direção do progresso. Esse

sistema mental-afetivo é produzido pela indústria do entretenimento.


“Entreter”, que vem do francês entretenir e do latim tenere, significa

manter junto, trazer junto, unir; “distrair” e “divertir” são suas

significações tardias. A etimologia revela um sentido oculto no

entretenimento: o da atenção aprisionada.

Entretenimento é algo que implica uma captura do corpo por meio

da experiência e da percepção. Seu jogo já havia sido percebido na

teoria da indústria cultural, e sua função de produção de subjetividade se

mantém até hoje. As fabulações mercadológicas têm a função de

produzir adesão por meio de uma ilusão de aconchego. Se “toda


68
diversão, todo abandono [de si mesmo], tem algo de mimetismo”, isso

quer dizer que o objetivo é a adequação ao todo. A indústria do lazer

promove a preguiça como mercadoria: com o conteúdo pronto ofertado

o tempo todo na atmosfera da ventriloquacidade geral, ela faz pensar que

não há trabalho para o corpo e a mente. O papel do entretenimento

sempre foi conservador, a emancipação ou a libertação nunca fizeram

parte disso.

No entretenimento, a reprodução do conformismo é a regra. Assim,

o filme mais distópico é capaz de apresentar contradições sociais e

econômicas, sem, contudo, promover análise e crítica. Nada que leve à

transformação social será um direito do indivíduo. Ao contrário, a

tendência é que os conteúdos apresentados nas telas, sem mediações

conceituais, simplesmente paralisem os espectadores. Os produtos do

entretenimento lançados pela indústria cultural produzem o

conformismo adequado à manutenção do sistema.

A narratividade ininterrupta é moldada conforme necessidades e

transmitida pelo mundo do entretenimento, o novo ópio do povo,

encarregado de naturalizar a vida, enquanto, ao mesmo tempo, se

posiciona no lugar da arte e do lazer. A metáfora do livro da natureza ou


69
do livro do mundo pode ser reeditada aqui. Sendo que o livro do

mundo hoje se assemelha mais ao livro de areia de Jorge Luis Borges,

no qual o conteúdo escapa. Ou seja, no sistema cacotópico, as

informações se perdem na reprodutibilidade infinita e já não dizem

nada. O consumismo linguístico é a regra. A imagem de um pântano

desinformativo no qual estamos presos em meio ao delírio e às mentiras

generalizadas, consentidas e até mesmo aplaudidas é adequada para

explicar o nosso tempo.


Procuramos grãos de verdade, enquanto agentes do prcc se colocam

na posição de únicos editores do livro do mundo. A guerra pelo

monopólio da narrativa faz parte da sociedade letrada ou meramente

alfabetizada na era do espetáculo. Enquanto os senhores produzem

textos, os escravos os repetem. É a dialética digital dos senhores das

grandes corporações que administram a internet e de seus escravos

voluntários que foram sequestrados e traídos quando se posicionaram

como meros usuários.

A alfabetização digital e o domínio das comunidades espectrais nas

redes sociais conduzem a sociedade humana a uma nova forma de

textualidade que é acompanhada de uma glossolalia cansativa para quem

busca sentido, mas confortável para os ouvidos que se acostumam à

regressão auditiva e mental, linguística e estética. Essa nova forma é

decorativa e vazia de conteúdo. Os fios da sua trama são os clichês. O


70
que Kojève entendeu como sendo o esnobismo dos rituais japoneses

que vieram a explicar o funcionamento do mundo, caracterizados pela

repetição vazia de gestos, tornou-se um esnobismo linguístico.

Discursos vazios de conteúdo – e mesmo assim falados

repetitivamente e sem cessar – caracterizam a ventriloquacidade do

mundo feita de clichês e modas controladas por uma polícia do texto que

busca evitar aprofundamento a qualquer custo. É sempre o pensamento

crítico e reflexivo, que depende da linguagem nas suas mais variadas

formas e modalidades, o que precisa ser impedido para garantir a

dominação dos indivíduos e das populações. A entropia subjetiva é ao

que se visa mantendo os corpos entretidos diante das telas.

Se a produção da subjetividade, que é fundamental em todo o

sistema de produção do capitalismo, implica a dessubjetivação pelo

esvaziamento do pensamento, do sentimento, da crença e da ação, surge

uma paradoxal “subjetivação pela dessubjetivação”. O desejável é não

pensar, quando na verdade o desejo de não pensar é a interrupção de

todo o desejo. A servidão deve impedir o surgimento do desejo como

movimento rumo ao outro, à alteridade, que se torna temida e objeto de

desejos de aniquilação interiorizados por indivíduos em razão de sua

potencial ameaça ao sistema.

O indivíduo humano transformado em espantalho reproduz a

ventriloquacidade do sistema como se estivesse livre para não ser livre.


O paradoxo da servidão voluntária é construído a cada dia num

movimento anamórfico em que formar uma imagem verdadeira é


71
impossível. A confusão e o caos são interiorizados como regras,

assumidos como naturais e, por isso, soam como organizados. É a


72
naturalização da crise. Ela faz parte do caos discursivo no qual

desinformação e hiperinformatividade (infodemia) tomaram o lugar de

qualquer coisa que um dia pudesse ter sido chamada de “verdade”.

A instância discursiva, composta de ideias e conceitos previamente

administrados a serviço do sistema, define a forma do controle que deve

ser difundido e distribuído de maneira ventríloqua, numa espécie de

ressonância generalizada de ideias prontas que inviabilizam a

imaginação. Palavras de ordem, clichês e frases feitas devem ser

repetidos à exaustão para a sustentação do sistema. Para serem repetidos

devem ser interiorizados por indivíduos capazes de os repetir.

Para que uma pessoa se torne um “replicante” do sistema, é preciso

interromper o seu processo de pensamento, algo que se alcança com a

dominação mental, por meio de esvaziamento e substituição de

esquematismos mentais, ou seja, da administração das categorias que

fazem parte da linguagem, e do pensamento, e dos objetos e fatos da

realidade. A colonização do imaginário é um fato, e a destruição da

esfera simbólica é outro.

A ideia de mundo é oferecida como conteúdo e forma que preenche

o vazio produzido pelos meios de produção da subjetividade. O vazio

produzido pelo prcc deve ser liberado de seu conteúdo e parecer um

lugar completo. Esvazia-se o sujeito do pensamento e da reflexão.

Transformado em espantalho do sistema, ele é situado no sistema como

uma peça, um ator num programa prévio com a programação afetiva

garantida. O sujeito não precisa saber “onde” está, mas deve ter a

impressão de que habita o melhor dos mundos possíveis.

Os conceitos de otimismo e pessimismo precisam ser analisados,

pois também esse binômio continua sendo manipulado no jogo retórico

do prcc. Como boneco, o espantalho é a figura que repete a

ventriloquacidade do mundo. No devir espantalho do mundo, a

decoração é o maior valor, assim corpos e espaços são decorados, e as

falas, sejam ideias, sejam mandamentos morais e políticos, devem ser

repetidas como padrões.


“Palha linguística” é o nome que se pode dar aos restolhos de

linguagem usados para “forrar” e preencher a subjetividade. Trata-se da

linguagem que deve ser consumida, cuja função é preencher, fartar e

sustentar o estado de êxtase em que cada um se encontra – e sem o qual

não é possível se jogar de corpo e alma na massa fagocitante configurada

pelo sistema.

No jargão das redes sociais, fala-se em “viralização”. A validade

social da metáfora biológica se refere à propagação de peças ou artefatos

de comunicação digital portadores de ideias resumidas e condensadas

para instaurar uma verdade, mesmo que seu conteúdo não seja

verdadeiro. O reino das manchetes, slogans e frases feitas amplia seus

limites a cada dia. Nesse contexto, a ventriloquacidade é o enlace entre

oralidade e escritura que alimenta o sistema e mantém a todos em uma

órbita como insetos girando em torno de uma luz que nada quer dizer.
Notas

68 Theodor Adorno e Max Horkheimer, op. cit., 1984, p. 169.

69 Ernst Robert Curtius, Literatura europeia e Idade Média latina, 1996, p. 332.

70 Alexandre Kojève, Introdução à filosofia de Hegel, 2002.

71 Jurgis Baltrusaitis, Anamorphoses – Les perspectives dépravées, 1996.

72 Mark Fisher, Capitalist Realism: Is There No Alternative?, 2009.


UMA CONCLUSÃO PROVISÓRIA: O PARADOXO
ADMINISTRADO E SUA SUPERAÇÃO

O prcc, como sistema de produção da destruição, opera na

administração e no aprofundamento de seu paradoxo (a produção da

destruição significa também destruição como produção), destruindo,

antes de mais nada, a imaginação como caminho para solucionar

problemas e imaginar alternativas. O sequestro da imaginação promove

e garante o terror e, assim, evita que ela, como faculdade de construir

mundos, realize o seu impulso emancipatório. O sistema administra o

sofrimento, sequestra a imaginação e destrói a materialidade – seja o

meio ambiente, sejam os corpos pelo trabalho e pela violência –,

atuando também pela sedução e pela adulação para conflagrar os

aspectos que permitem que ele se instaure como um mundo no qual

habitar.

O mundo capitalista oculta seu caráter panglossiano, colocando-se

no lugar do melhor dos mundos. Isso só é possível em função do arranjo

alucinatório que coloniza o território mental e afetivo onde a imaginação

deveria fazer seus movimentos e transforma cada um em um Cândido, o

ingênuo personagem de Voltaire, sujeito a adorar ideias estapafúrdias

apenas porque é preciso repetir o que diz o guru, mesmo que ele seja um

líder intelectual, religioso ou político fascista. O Cândido voltairiano era

uma imagem da ignorância dócil e de boa-fé que deu lugar ao fascista

em potencial que vive para gozar de um ódio compartilhado

massivamente no mundo totalitário que ele acredita ser o melhor.

Se o capitalismo é uma guerra contra a utopia que nos leva à

distopia, ele é, ao mesmo tempo, uma “mitomania”, ou seja, uma

narrativa fantástica e maravilhosa sobre algo que, na realidade, é um

sistema de terror material e psicológico que sobrecarrega os corpos de

sofrimento, estejam ou não esses corpos docilizados e a seu serviço. As

distopias cinematográficas e literárias que o denunciam, na verdade,

podem fazer que ele pareça mais natural.


O sistema de sofrimento que o mundo capitalista é deve convencer a

todos que é o melhor dos mundos possíveis, mesmo que as violências

econômica, simbólica e física sejam o seu método de sustentação. Como

vimos, a codificação distópica é o arranjo subjetivo e objetivo, simbólico

e material imposto como verdade absoluta. Ela envolve uma estética,

uma moral, uma economia e uma política da desigualdade social que

coloca uns na posição de ricos e outros na posição de pobres – e, no

limite, super-ricos contra miseráveis e famintos. Do mesmo modo, essa

codificação estabelece que mulheres são secundárias em relação a

homens, que negros são inferiores a brancos, que pessoas com

deficiência são inferiores às sem deficiência, assim como estrangeiros

em relação a cidadãos nacionais, desde que estes sejam brancos e ricos.

A estética da branquitude domina a cena, como a estética cisgênera e a

estética do plástico. A vigência dessa codificação precisa ser superada.

E se trata de uma cena: o mundo do prcc é todo uma cena teatral,

uma performance, em que todos são convocados à figuração, em que

super-ricos gozam perversamente com a distinção social cujas provas

estão no mundo da aparência, no âmbito estético. Esse mundo

patrirracialcapacitalista visa ao monopólio da ideia de mundo que só

pode ser enfrentado pela visão democrática da imaginação criadora de

mundos. Se a codificação patriarcapitalista, construída com intenções

hegemônicas, alcançou uma posição hegemônica e naturalizante, muitos

outros mundos devem poder ser construídos para além de toda

naturalização.

Se vivemos uma encenação, há, certamente, um cenário. E este

cenário é o do parque temático. A estética do capitalismo dita as regras

do poder, a prova disso é que começa a ser imitada como forma de vida

e parâmetro da felicidade. Esse código distópico que se resume numa

espécie de “disneylandização”, ou “disneyficação”, do mundo aciona e

mantém um regime de pensamento e de (in)sensibilidade envolvendo

aquele mesmo imaginário em que o plástico, o silicone, o vidro, o metal

e produtos sintéticos em geral criam a estética da tecnologia e da

ausência da natureza como uma forma de capitalismo decorativo. A

natureza desaparece e é retomada como plástico. Sejam os lábios

carnudos das mulheres, sejam as folhagens de plástico nas salas de estar

dos lares burgueses e dos shopping centers, tudo está a serviço do


preenchimento, da decoração e da falsificação. Tudo isso faz parte do

código distópico que aciona o horror e, ao mesmo tempo, o conserva. O

horror é o próprio plástico.

O arranjo patriarcal-racista-capitalista-capacitista (prcc) que toma

conta do mundo é uma rede de alianças nefastas, é uma frente de batalha

contra a vida humana e de outras espécies – em resumo, contra o planeta

como sistema-símbolo da vida.

Tal arranjo visa ao monopólio de violência replicante e incessante,

em seu esforço de atingir todos os espaços e definir o metabolismo

social, institucional, subjetivo, corporal e mental de todos. Ele é, de fato,

um sistema natural-cultural e, ao mesmo tempo, uma forma de governo

“falocrática”, mas também “falológica” e/ou “falogológica”, ou

falocêntrica e falogocêntrica. Trata-se de uma espécie de regência

epistemológica que se pretende total, pela qual se estabelece que a

verdade do mundo – a informação que rege o movimento do sistema –

está toda contida no psicopoder e no psicoativismo patriarcal, ele

mesmo um programa administrado pelos sujeitos dos privilégios.

Ao afirmar que o prcc é um programa, quero dizer que ele vai muito

além do sistema simbólico, intelectual e prático que, sem dúvida, é. O

prcc é um fundamentalismo, um terrorismo e um totalitarismo cujas leis

são interiorizadas pelos corpos que ele precisa oprimir para se manter. O

prcc é programado por imagens, ou seja, por superfícies que são telas

para o suporte de informação. Uma informatividade mutuamente gerada

entre opressões permite entender a junção teratológica que ele é.

Esse programa se sustenta na criação de textualidades, em fazer da

própria linguagem uma arma da violência na qual as palavras e o

pensamento são instrumentalizados a serviço da manutenção do sistema.

Esse sistema, por sua vez, é entrópico, ou seja, ele busca sempre voltar

ao seu grau zero, o que só é possível se a informação que ele lança sobre

corpos garantir que eles não desconfigurem a força lançada pela

informação original. Nesse sentido, o patriarcado é um programa

autogerador da própria informação. E é essa informação que precisa ser

desmontada.
PARTE 2

CÓDIGOS UTÓPICOS
O SUCESSO DO FIM DA UTOPIA OU O PODER
DE UMA NARRATIVA

O pessimismo em relação à superação do capitalismo se tornou

convencional. De fato, o pessimismo é lógico quando se constata que

não haverá justiça para os que foram injustiçados pelo prcc. Quando

Walter Benjamin falava que não haveria justiça para os mortos, ele já

estava antecipando o caráter necrófilo do capitalismo. Ao mesmo tempo,

o pessimismo demanda uma ética, ou seja, um comportamento com base

em um princípio, o valor do impossível que ampara o niilismo como


1
código, como nova gramática da cultura. O pessimismo moral se torna

um tom e, nesse sentido, uma estética. O pessimismo estético precisa ser

substituído por uma ética da imaginação política que não deve, por sua

vez, ser confundida com otimismo. O pessimismo é a verdade que pede

socorro à imaginação e, nesse ponto, é preciso falar de utopia.

Compreender por que o conceito de utopia vem sendo

desconsiderado e desvalorizado há tanto tempo, como e por que o seu


2
fim vem sendo há muito proclamado, tendo em vista o seu potencial

transformador, é um objetivo mais que legítimo. Ele se torna urgente

quando se trata de refletir para melhorar as condições da vida humana e

não humana no planeta ameaçado pelo que Rita Segato definiu como
3
sendo uma frente colonial-estatal-empresarial-midiática-cristã, resumo

do arranjo teratológico entre técnica e metafísica, violência e poder que

caracteriza o prcc.

O enfraquecimento da utopia como fator da economia psicopolítica

do prcc, ela mesma uma economia linguística que afeta o sistema como

um todo, visa à aniquilação do pensamento crítico e reflexivo que

necessariamente questiona a produção do mundo unidimensional do

mercado e o sequestro da ideia do mundo para esse fim. Acabar com a

utopia significa acabar com a imaginação política e afundar a sociedade

no conservadorismo, ou seja, na mera reprodução do já conhecido que


deve ser aceito de maneira inquestionada para favorecer os interesses das

classes exploradoras no sistema do sofrimento acumulado como capital.

O enfraquecimento da utopia tem fins retóricos e, por isso, a palavra

é afastada do vocabulário vernacular por uma retórica que a modula

negativamente. Andityas Matos fala de uma “dicionarização da


4
política”, e podemos dizer que, nessa compilação do que é aceito, a

utopia não apenas ocupa um lugar negativo, como segue rumo ao

apagamento.

O objetivo desse apagamento é favorecer a manutenção do sistema

prcc em seu projeto de autoescamoteamento. A extinção da espécie

humana avança, e a prova disso é a luta pela sobrevivência na qual estão

lançadas as massas. Vê-se a ascensão da extrema-direita na direção dos

Estados, mas também na do mundo da vida, com o familismo, a

heterossexualidade homofóbica e transfóbica, o racismo crescente, a

aporofobia – o ódio aos pobres – e a xenofobia – o ódio aos estrangeiros

e povos não brancos. O fim da utopia não favorece a prática

revolucionária; ao contrário, é o conservadorismo, totalmente

antiutópico, o que avança. Cacotópico, o conservadorismo produz a cada

dia um mundo mais e mais danificado e destruído. Ele é

antipreservacionista, ou seja, antiecológico em relação à sociedade e ao

meio ambiente, duas instâncias que não deveriam ser separadas.


5
A noção de “fim das grandes narrativas”, ou metanarrativas, que

estabeleceriam o sentido de todas as outras, trouxe clareza sobre a

disputa do conhecimento como poder e dos narradores como agentes do

poder nos processos de contar histórias, propor interpretações,

diagnósticos e prognósticos. Foucault foi quem percebeu os jogos de

poder na ordem do discurso, mas foi Jean-François Lyotard quem

sugeriu o fim da época “moderna” e o advento do pós-modernismo, que

de modo algum resultou consensual. Isso ficou evidente depois que


6
Bruno Latour sugeriu que “jamais fomos modernos”, ou seja, que os

parâmetros do que se convencionou chamar de modernidade jamais

puderam ser realizados, porque vivemos mais num emaranhado confuso

dentro de redes, sedentos por explicação, do que numa passagem de

tempo contínua que nos trouxe da antiguidade à modernidade ou ao seu

fim, a pós-modernidade.
Assim como aconteceu com o fim da história e o fim da arte, da

religião, do Estado, do amor romântico ou do mundo nas crenças

milenaristas, o fim da utopia nunca foi um fim definitivo. Fim quer dizer

ponto de não retorno. Sua relativização leva a pensar numa espécie de

moda teórica que vale tanto pelo excesso de brilho espetaculoso quanto

pela falta de consistência. Assim como aconteceu com o fim da arte


7
bela, do qual falava Hegel, e com o fim da história, do qual falava
8
Kojève, o fim da utopia fez sucesso em função de seu poder narrativo.

Ele foi moda pós-moderna, mas principalmente entre os críticos do

socialismo soviético, cujo fim foi celebrado erroneamente como o fim da

filosofia de Marx, por quem antipatizou ou cuja hermenêutica


9
simplesmente não entendeu. Fredric Jameson comentava que a utopia

era uma questão política e que esse era um destino inusual para uma

forma literária. De fato, Thomas Morus, ao criar a narrativa sobre um


10
lugar que não existe, ajudou a liberar a imaginação numa direção

indesejada pelos donos do poder que calculam sobre a vida, sobre a

morte e também sobre o que se pensa, o que se sente, o que se acredita e

o que se imagina.

Mesmo teóricos bem pessimistas se perguntaram se era possível

viver sem utopias e deixaram uma porta aberta para que ela voltasse,

inseguros de seus vaticínios sobre o mundo, que foram se tornando

meros slogans publicitários estampados na capa de livros da indústria

cultural.

De fato, a utopia volta como um espectro, mas seu nome já não é

“comunismo”, como alguns acreditaram no passado, embora os

discursos da extrema-direita mundial ainda tentem reeditá-lo como

palavra apavorante no plano retórico do psicopoder, ampliando o termo

para todas as frentes de resistência ao autoritarismo. Essas seriam todos

os movimentos em defesa da democracia, do feminismo ao ecologismo,

do antirracismo à luta das pessoas com deficiência, ou das pessoas sem

papéis, sem terra ou sem teto. Todos são representações das forças e

movimentos que, confrontando o prcc, despertam a sua ira e seu desejo

de matar.

Incorporando as demandas das políticas do “comum”, a práxis que

devemos construir desmonta de maneira interseccional e revolucionária


o prcc. Para isso, é preciso limpar o terreno do terrorismo distópico que

ocupa o espaço mental e afetivo e liberar a imaginação política.


Notas

1 Franca D’Agostini, Lógica do niilismo: dialética, diferença, recursividade, 2002.

2 Russell Jacoby, O fim da utopia: política e cultura na era da apatia, 2001.

3 Rita Laura Segato, “Patriarcado: del borde al centro. Disciplinamiento, territorialidad y

crueldad en la fase apocalíptica del capital”, 2016.

4 Andityas S. de Moura Costa Matos, A an-arquia que vem: fragmentos de um dicionário de

política radical, 2022.

5 Jean-François Lyotard, A condição pós-moderna, 2009.

6 Bruno Latour, Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica, 1994.

7 George Wilhelm Friedrich Hegel, Vorlesungen über die Ästhetik. Erster und zweiter Teil, 2008.

8 Alexandre Kojève, Introdução à filosofia de Hegel, 2002.

9 Fredric Jameson, Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science

Fictions, 2005.

10 Thomas Morus, Utopia, 2022 [1516].


O SEQUESTRO DA IDEIA DE MUNDO SEGUIDO
DO SEQUESTRO DA UTOPIA

A utopia é um conceito histórico que conecta passado, presente e futuro


11
idealizados. Ao mesmo tempo, é tanto criação simbólica quanto

operador político. Se as narrativas utópicas nascem de uma necessidade


12
política de mudança social, sua extinção significa silenciar o desejo de

uma vida melhor.

O capitalismo sequestra a utopia e se oferece como sua realização. A

utopia não teria sido sequestrada se não tivesse importância na produção

da subjetividade (do pensamento e da ação de cada indivíduo), cujo

controle é necessário para a manutenção do sistema. O desejo de “um

outro mundo possível” vem sendo anatematizado porque ele atrapalha o

funcionamento do capitalismo totalitário, que se coloca no lugar da

metafísica ideia de mundo.

A domesticação e a capitalização da utopia correspondem à sua

“disneyficação”. Transformada em fábula, ela é apagada e invisibilizada

no seu potencial revolucionário. Se o enriquecimento é o novo wishful

thinking de trabalhadores precarizados, a alienação evoluiu para outro

nível à medida que a adulação produziu uma consciência falsa.

A utopia foi sequestrada, assim como a ideia de mundo foi

enclausurada na retórica da globalização que tomou conta da esfera

pública. Desde os anos 90 do século xx se fala em globalização com

tanta naturalidade quanto se demoniza a palavra utopia. Sobrecarregada

de preconceitos em um processo de desqualificação histórico, a utopia

que surgiu na literatura e logo migrou para a política, em decorrência do

impulso emancipatório que lhe é inerente, desapareceu da esfera pública

e do campo do imaginário, dando lugar às distopias que hoje dominam o

cenário ficcional e político.

O desaparecimento da utopia é concomitante ao avanço atual da

distopia. Ele serve justamente para naturalizar a distopia concreta


experimentada coletivamente desde o avanço do capitalismo e da

mística do consumismo que lhe é consubstancial.

A distopia representa hoje o que um dia foram “tempos sombrios”

ou “anos de chumbo”, com a tensão social e política que se estendeu por

diversos países no século xx. Mas ela assumiu cada vez mais a feição do

mundo destruído. Em pleno século xxi, a sensação de que estamos

vivendo em um mundo invertido, em um pesadelo, se torna a cada dia

mais comum. A impressão de que não há escapatória, de que não há

alternativa ao sofrimento atual, também se torna algo regular. A

produção do mundo atual como um pesadelo visa à dominação

psicopolítica que já fazia parte da colonização.


13
O que Silvia Cusicanqui definiu como sendo o mundo al revés o

estupor vivido pelos povos indígenas quando ocorreu a invasão do

território onde viviam – heterodenominado “América” pelos europeus e

hoje chamado pelos povos andinos de Abya Yala –, faz parte dessa

história afetiva e sentimental em que o pesadelo impera. Abya Yala é

uma resposta à distopia naturalizada que foi a colonização, cuja herança

partilhamos até hoje. Todo o esforço de uma pensadora ativista como

Cusicanqui foi reconstruir sua comunidade destruída de indígenas

aimarás e outros povos andinos na Bolívia do começo deste século, a

partir das histórias do passado, dos exemplos de heróis e revoltas vividas

pelos povos. O que Cusicanqui nos ensina é que a construção de um

mundo depois da catástrofe depende da capacidade de pensar e elaborar

o que foi vivido, criando unidade de luta com base em uma identidade

recuperada. O papel da memória nesse processo é fundamental.


Notas

11 Gregory Claeys, Utopia: a história de uma ideia, 2013.

12 Eduardo Marks de Marques, “From Utopian Hope to Dystopian Despair: Late Capitalism,

Transhumanism and the Immanence of Marxist Thought in Contemporary Dystopian Novels”,

2014, p. 258.

13 Silvia Rivera Cusicanqui, Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos

descolonizadores, 2010.
UM OUTRO MUNDO POSSÍVEL OU COMO O
PRCC SERÁ SUPERADO POR ALTERNATIVAS
CRIATIVAS

Mundo é uma ideia e, ao mesmo tempo, a imagem da totalidade na qual

foram subsumidas individualidades e particularidades humanas e não

humanas. O velho paradigma da busca pessoal por um lugar no mundo

para viver a experiência humana com bases existenciais foi lançado por

terra, mas se pode sempre comprar esse lugar. O passe à classe social,

assim como o passe ao clube ou o ingresso ao parque temático, explica a

redução da ideia de mundo e, assim, a miséria da experiência de mundo

em nossos dias.

Com uma longa história no pensamento metafísico, cuja função

sempre foi estabelecer a ideologia dominante que culmina no prcc, a

ideia de mundo como imagem da totalidade foi criada para garantir o

poder. A partir da noção de mundo, ciências foram criadas, artes foram

inventadas, religiões, políticas, éticas e estéticas foram estabelecidas

como confirmações do mundo criado.

No capitalismo, a mercadoria-mundo veio a ser ofertada como um

estilo de vida, o que sempre foi oferecido pelos reis e príncipes, pelas

classes dominantes e pela Igreja Católica. O capitalismo se tornou a


14
nova religião, com uma teologia própria, que jamais admitiu a

diferença. Seu projeto, portanto, sempre teve a intenção de imprimir sua

marca no mundo, dando uma identidade ao sistema, sem nunca se

nomear identidade, pois, desde o começo, precisava escamotear o

próprio jogo e inviabilizar alternativas.

Na expressão “um outro mundo possível” entram em cena dois

aspectos que vêm prejudicar a ideia prévia de mundo como totalidade e

a ideia de globalização ou mundialização. Tais aspectos são a ideia de

alteridade, presente na partícula “outro mundo”, e a ideia de

“possibilidade”, que implica a esfera do sonho e da imaginação e remete


à complexa e problemática forma narrativa da utopia, que é esvaziada de

sentido ou neutralizada pela ideologia do prcc.

“Um outro mundo possível” é, portanto, uma frase provocativa em

relação à noção de unidimensionalidade do mundo no prcc. Alteridade e

possibilidade soam como afrontas em um contexto de neoliberalismo

feroz. Considerando que a possibilidade envolve a potencialidade, o

perigo se faz maior. A imaginação como faculdade proibida e

demonizada pelo sistema prcc é convocada a agir. Ao sugerir uma outra

“possibilidade”, um “outro mundo possível” entra em choque com a

ideia de um mundo como totalidade. O mundo da moda e seus

equivalentes (da culinária, do vinho, do perfume, dos carros, do turismo

etc.), como “mundos” do mercado-mundo, estão todos integrados à sua

totalidade, à globalização. Trata-se, na verdade, de “submundos” que

não estão em disputa, ao contrário, são mundos que a ideia de

“globalização” reúne sistematicamente no seu imenso cenário distópico.

O capitalismo somente poderá ser superado por alternativas

criativas, e não por uma quimérica autodestruição que aconteceria,

quiçá, posteriormente à destruição do planeta inteiro. Marxistas, como


15
Istvan Mészáros, tentaram colocar a questão acerca da desmontagem

do capitalismo, mas sempre esbarraram na sua incorrigibilidade e

incontestabilidade como regulador do metabolismo social e produtivo.

Esses autores, no entanto, não perceberam que o capitalismo participa

de um jogo complexo com outras frentes de opressão. Tampouco

perceberam o caráter linguístico ou simbólico do sistema econômico

codificado. Portanto, desmontar a lógica do capitalismo não seria

possível, pois é preciso enfrentá-lo como sistema organizado de

informação. Desse modo, é inútil buscar desmontar a lógica do

capitalismo. Antes, é preciso decodificar o prcc, compreender seu

processo de impressão em nossos corpos. O processo de submissão é


16
levado a cabo por meio de um programa de humilhação que passa pelo

massacre emocional diário e por uma política de choque linguístico e

sensorial torturante.

Antonio Negri percebe que “os elementos que determinam o

desequilíbrio do comando capitalista são a insubordinação, a sabotagem,

a jacquerie industrial, as exigências de renda básica, a libertação e


17
organização do trabalho intelectual da multidão” e lança a questão da
“singularidade” para além da identidade, que, segundo ele, é o “veículo
18
primordial de luta dentro da república da propriedade e contra ela”.

Com isso, busca uma saída da falsa polêmica do identitarismo, tendo em

vista o que já foi percebido por muita gente: que a identidade

hegemônica ocultou as desigualdades e opressões de grupos que

assumiram “identidades” como emblema de luta. Essa identidade

hegemônica precisa ser superada em nome de uma democracia radical.

Todas as atitudes que se encaminham para a democracia radical

restringem o espaço do prcc e sofrem sua reação.

A presença e a ação dos dissidentes da economia estético-política no

processo decisório de construção da sociedade colocam em movimento

a produção de outro mundo possível. Portanto, a utopia sobre a qual

devemos refletir hoje pouco tem a ver com as imagens de um mundo

idealizado ou ficcionalizado, mas com o encontro com a real potência

dos corpos, com a vida concreta livre da violência. Trata-se de ter a

imaginação em aberto, contra as imagens estanques de um mundo

ordenado no qual se viver.


Notas

14 Walter Benjamin, O capitalismo como religião, 2015.

15 Istvan Mészáros, Para além do capital, 2002.

16 Marcia Tiburi, Complexo de vira-lata: análise da humilhação colonial, 2021.

17 Antonio Negri, Michael Hardt, Bem-estar comum, 2016, pp. 350-351.

18 Ibidem, p. 356.
A LIBERTAÇÃO DA IMAGINAÇÃO COMO
CAMINHO PARA A DEMOCRACIA RADICAL

Se a naturalização da distopia acompanha a destruição da utopia, não é

por simples mudança de perspectiva, nem apenas porque se substitui

algo como um otimismo utópico por um pessimismo distópico. Por trás

desse movimento, há uma metamorfose na cultura em geral e na cultura

política em particular. Trata-se da destruição da imaginação, que é


19
concomitante à destruição da política, algo típico de tempos fascistas.

O jogo de linguagem do fascismo é a guerra perpetrada pelo

capitalismo – como guerra cultural e, bem antes, como guerra da


20
indústria cultural em aliança com uma determinada ordem do
21
discurso, contra a imaginação e a política e, sobretudo, contra a

imaginação política à qual a utopia é consubstancial. A imaginação

política sempre foi utópica, e podemos dizer que, em um sentido pleno,

a utopia é, ela mesma, imaginação política. Portanto, a demonização da

utopia se dá com objetivos pragmáticos de manutenção de um

pensamento único e hegemônico que em tudo é antirreflexivo e favorável

à sustentação do capitalismo, experimentado diariamente como terror.

A imaginação política é a força estético-política que possibilita a


22
utopia de uma democracia radical, evolução de uma “democracia
23
socialista”, construída por aqueles que o poder tenta destruir, inclusive

os que fazem o coro “democratofóbico”, o coro do ódio à democracia


24
tão bem descrito por Jacques Rancière.

O jogo de poder é sempre um jogo de linguagem. Hoje, podemos

falar do jogo envolvendo indústria cultural e ordem do discurso

resumido sob a expressão “imaginação colonizada”. Nesse cenário, uma

filosofia da libertação poderia ser a da libertação da imaginação e da

capacidade de construir utopias, ou seja, de construir mundos possíveis

que levem a sério o desejo de democracia, que em tudo é antiautoritário.

A consciência de que a imaginação é política e de que a política é


25
uma questão de imaginação é crucial para a sobrevivência da espécie
que, num ato de imaginação, inventou o conhecimento no planeta Terra.

A mesma espécie, inclusive, que vem acabando com a vida de muitas

outras e com as condições da vida em geral, inclusive a própria, nesse

mesmo planeta. Domesticando a imaginação como um todo e,

especificamente, a imaginação política, acaba-se com a chance de

construir o imaginário de uma vida melhor e mais digna. A barbárie

tornou-se o imaginário desfigurado desse tempo marcado pelo

consumismo, pelo conservadorismo, pelo hedonismo e pelo narcisismo

– como se fossem uma alegria pura que deve ser vivida por todos.

Poucos percebem que se trata de ofertas aduladoras do capitalismo, que

as utiliza como promessa de felicidade, ou seja, como utopia.

Libertar a imaginação é ousar, promover transformação. Algo que só

é possível com questionamento – ato a um só tempo sensível e racional.

A subjetividade autônoma do indivíduo capaz de responder por suas

ações e seu desejo desaparece com o fim da imaginação como processo

de linguagem. Em seu lugar, surge um espantalho cognitivo, moral e

estético obsedando o corpo orgânico. O velho sujeito que as filosofias

pós-modernas e, algumas vezes, também pós-filosóficas lançaram no


26
exílio é apagado por seu duplo como na famosa falácia do espantalho.

E, no contexto de uma ventriloquacidade infinita, passa a repetir

discursos prontos, forrado com palha linguística, os restos de

pensamento e conhecimento que o sistema usa para emular uma

subjetividade. A palha linguística forra o chão duro para dar conforto

aos excluídos cognitivos no grande campo de concentração e extermínio

da inteligência que são as redes sociais dominadas pelo fascismo digital.

Se uma vida melhor precisa ser imaginada, infelizmente a

imaginação e o sujeito autônomo de que ela necessita vêm sendo

sequestrados. É nesse sentido que falo em imaginação política, como

imaginação emancipada dos grilhões impostos pelo sistema da opressão,

que visa a dominar cada corpo e, ao mesmo tempo, o conjunto humano,

pela redução do que poderia ser multidão ou povo com consciência de

classe a uma massa de espantalhos.

Não é fácil viver sob o cerco da “espantalhificação” geral quando

fazer parte dele parece ser a única possibilidade. Por isso, pensar em

fugir do cerco é legítimo e, mais ainda, é legítimo pensar e projetar o

seu desmantelamento. O enunciado de um outro mundo possível se


instaura como uma chave para a saída. Certamente, o resgate de uma

ideia como essa será tratado por muita gente com o desdém que faz

parte da guerra às ideias utópicas. No entanto, é na sua dimensão

inusitada e na sua irreverência contra a ordem reinante que surge a sua

potência como potência dos corpos insubmissos.


Notas

19 Como tentei mostrar, nos últimos anos, em diversos trabalhos que partiram de uma filosofia

da cultura brasileira, de uma etnologia do fascismo e dos processos de subjetivação e de

psicopoder que instauraram o jogo de linguagem do fascismo atual, guerra explícita contra o

mundo.

20 Theodor Adorno, Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento, 1984.

21 Michel Foucault, A ordem do discurso, 1999.

22 Chantal Mouffe, The Democratic Paradox, 2000; Ernesto Laclau, A razão populista, 2013;

Ernesto Laclau, Chantal Mouffe. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política

democrática radical, 2015.

23 Michael Löwy, “Negatividad y utopía del movimiento altermundista”, 2007, p. 47.

24 Jacques Rancière, O ódio à democracia, 2014.

25 Em uma entrevista, Rancière resume um aspecto importante referente ao tópico da

“imaginação no poder”, lema de maio de 68 que apareceu pichado nas ruas de Paris. “A

imaginação é o poder de criar formas, e a política é um assunto de imaginação. A maneira como

se ocupa uma rua, uma universidade, uma fábrica, cada vez é um novo desafio, e não só

invenções ou fantasias. A imaginação entra em ação para construir, delimitar, organizar um

espaço, dar outro ritmo ao tempo. É uma faculdade estética, o que não quer dizer que só cria

poemas ou imagens, ao contrário, é necessária para encontrar novas organizações políticas.”

Jacques Rancière em entrevista a Melina Balcázar Moreno, publicada originalmente no site

Milenio e traduzida para o português pelo Instituto Humanitas Unisinos.

26 Fazer o outro dizer o que não disse, criar um personagem em cima de uma pessoa real e agir

como se esse ente imaginário estivesse presente, é disso que se trata na falácia do espantalho.

Baseada na criação de um duplo, é esse personagem ficcional que deve ser atacado no lugar da

pessoa real. É essa pessoa, cujo corpo e cuja presença são descartados, que é transformada em

um boneco num jogo de argumentos. O ônus por ter sido transformada em espantalho é

totalmente da vítima. O arguidor torna-se um embusteiro no momento em que refuta a posição

do duplo, ou seja, atacando uma posição que não é defendida pela pessoa real. A falácia não é

simplesmente o argumento, mas toda a situação do argumento como vemos acontecer com as

fake news pelas quais entramos no devir espantalho na era da desinformação planificada. Assim

como se coloca palha dentro de uma roupa para simular a presença de um ser humano, a falácia

do espantalho surge quando palavras são colocadas na boca de alguém. Esse alguém continua ali,

mas uma presença espectral vem à tona.


UMA POÉTICO-POLÍTICA CONTRA PRISÕES
DIGITAIS

Armas linguísticas podem ser usadas para escapar das prisões

imaginárias que foram construídas com elas. Essas prisões, hoje, são

também digitais. Nelas, os clichês e os slogans funcionam como

grilhões.

Contra a linguagem do agrilhoamento, pode-se propor uma

linguagem poético-política em si mesma revolucionária. A própria

retórica, que fez parte da economia política em todos os tempos, sempre

foi cálculo, e por isso o espaço para a poesia foi sendo encurtado com o

avanço do prcc. Palavras como utopia, revolução, solidariedade,

antifascismo, anticapitalismo e democracia radical – além de tantas

outras que se deslocam dos sentidos autoritariamente impostos rumo a

sentidos transfiguradores do lugar-comum – compõem o que poderíamos

chamar “literopolítica”, a produção política do texto em contraposição

ao que chamei de ventriloquacidade. O enlace entre mundo e texto

define o lugar da faculdade da imaginação, entendida como

possibilidade de criar perspectivas de mundo. Mais do que produção de


27
imagens, trata-se de “maneiras de fazer mundo”. Essas maneiras de

fazer mundo, tendo em vista suas formas política, comunitária e

dialógica, podemos denominar de produção poético-política do mundo.

A sua potência está em sua contraprogramaticidade. A poesia não

obedece à ordem, não se faz com fórmulas. Ela implica uma outra forma

de olhar para a realidade a ser transfigurada.

Odiada pelo pensamento autoritário, que se beneficia do apagamento

do elo consubstancial entre linguagem e política, a poético-política

amalgama sentidos. Podemos falar de prisões reais e prisões

imaginárias, todas são concretas, ou seja, são vividas no nível da

experiência, e dependem de prévios aprisionamentos linguísticos. As

paredes dessas prisões são construídas pelo sistema simbólico-político

para impedir que se desenvolvam relações com o que está fora dos seus
muros e da rigidez discursiva que alimenta moralismos sexuais,

religiosos, políticos e econômicos. Todos eles, esses regramentos e

ordenações, obedecem a um projeto que se sustenta esteticamente, na

ordem do aparecer que esconde a poesia da própria vida.

A prisão, o edifício sem saída, é metáfora para a subjetividade em

nossa época. A saída da prisão da subjetividade confinada seria

justamente o movimento para a alteridade, ou seja, a “abertura ao


28
outro”, que em tudo tem o ar da utopia. Acontece que uma prisão é,

por definição, sem aberturas. Não há janelas para ver mais longe, nem

portas para sair de seu espaço. Quando há aberturas, como na famosa

imagem do “sol que nasce quadrado”, elas permanecem impotentes, não

se pode fazer uso delas.

As aberturas impotentes na prisão do capital mostram a liberdade à

qual não se tem direito. Hoje, diante das quadradas telas de

computadores, todos vemos o sol nascer quadrado. Interiorizamos o

gesto do aprisionamento ao qual nos condena o sistema como

autoaprisionamento. Diante das vitrines nas cidades transformadas em

shoppings centers, ou diante das vitrines virtuais, assim como diante das

vitrines que são as redes sociais, cada um é convidado à prisão no

espelho em que não há mais rostos, apenas máscaras.

Cada um prende e se mantém preso nas regras do consumismo

virtual atual. Uma poético-política teria a chance de devolver a

subjetividade às pessoas, considerando que ela pode ser um processo

autopoiético, ou autocriativo, e não um processo pré-programado pelo

sistema econômico-político de gênero, raça e classe, tal como é o prcc.

Como espectros a funcionar conforme as regras do dispositivo da

internet e das redes sociais, busca-se a identidade plastificada nas roupas

de marca e em outros hábitos de consumo que possam dar contornos a

um vazio subjetivo produzido pelo esvaziamento do pensamento, da

sensibilidade, da crença e da ação. O sistema que oferece produtos é o

mesmo que produz a lixiviação subjetiva que só pode ser enfrentada por

uma tomada de posse sobre si mesmo. A palavra de ordem, por assim

dizer, para a reconstituição da subjetividade é a mesma que os povos

heterodenominados indígenas usam na luta por suas terras usurpadas.

Enquanto os povos agem pela retomada de seus territórios, sujeitos de

suas lutas e de sua defesa, é preciso lutar pela retomada de si.


Deixar de ser espectro demanda retomar o ser ético-político, um ser

ecológico, em interação com o ambiente, a alteridade imediata e

invisível devido ao seu silêncio constitutivo. Retomar o ser ético-político

em relação ao outro individual é uma questão igualmente importante. A

política sempre foi uma questão de alteridade humana, até que ela se

apartou da ética e, com isso, passou a ser puro e simples jogo de poder.

É preciso voltar à ética, como relação com o outro, humano e não

humano, com o outro individual e com o espaço comum. A política

precisa recuperar a relação perdida com a alteridade e, assim, realizar

seu sentido originário, que era o sentido da ética: o cuidado de si como


29
caminho para o governo dos outros.

A libertação da imaginação deve levar a uma política de abertura, à

alteridade individual, coletiva, ambiental e cultural. Criar essa

possibilidade é uma tarefa ética a ser realizada por cada um e por todos.

A imaginação e o pensamento reflexivo podem resgatar dos muros do

confinamento cultural massas inteiras que ali foram lançadas sem acesso

à reflexão transformadora. O dever ético de projetar a saída dessa prisão

revela que é o futuro como alteridade radical e desconhecida que deve

ser acolhido como objeto de reflexão, pois ele nos espera desarmado.

Para além de toda violência produzida no tempo presente, é preciso

sustentar o futuro como categoria ética e política. Essa possibilidade é

completamente poética, não calculista e impossível de matematizar.

Resgatar o futuro para a mentalidade que não reflete sobre a morte e a

finitude é um desafio certamente utópico que vale a pena encetar.


Notas

27 Nelson Goodman, Ways of Worldmaking, 1978.

28 Em Tristes trópicos, o antropólogo Claude Lévi-Strauss fala dessa característica dos povos

indígenas que ele encontrou no Brasil. Eles teriam essa “abertura ao outro”.

29 Michel Foucault, A hermenêutica do sujeito, 2010, e O governo de si e dos outros, 2011.


A CONTRACODIFICAÇÃO UTÓPICA NA
DESCONFIGURAÇÃO DO PRCC

Às codificações conservadoras e autoritárias podem ser contrapostas

contracodificações não autoritárias. Os códigos utópicos são

contracodificações, ou seja, são abertos em relação às codificações

distópicas. Elas não são apenas o oposto daquelas que visam a

desmontar. São tanto analíticas quanto projetivas e devem implicar a

reconstrução da vida no planeta Terra arrasado pelo capitalismo. Não há

um desenho exato da utopia, mas uma inspiração e um princípio, o de

que a vida pode ser melhor.

Vimos que o sistema prcc funciona com base em “codificações

mestras” às quais todos os corpos estão submetidos. Para além da

ideologia que elas de fato são, é preciso buscar o modo como elas

funcionam. Nesse sentido, o operador “como” precisa ser apropriado na

direção da mudança, movendo para além da perplexidade hipnotizante

do sistema.

A metáfora “derrubar o capitalismo” caiu em desuso desde que

alguns acreditaram que seria impossível enfrentá-lo e propor alternativas

a ele. Contudo, a imagem de um monumento que se derruba, de um

totem que vem ao chão, faz ainda mais sentido quando vemos uma

antena de transmissão de sinais. Essa antena é o monumento de barbárie

e o totem religioso do qual emana a unidade do sistema.

Hoje, fala-se em dados. A expressão “hackear”, ou “raquear”, que

supõe uma invasão no sistema de informação, é muito mais apropriada e

vem sendo usada para o bem e para o mal. A expressão “desprogramar”

pode ser usada no lugar de “derrubar”, porque exige a consciência do

programa e de suas codificações. Em vez de derrubar o capitalismo,

precisamos convocar a inteligência que a chamada “racionalidade

ocidental” tentou destruir substituindo um mundo de imaginação e

reflexão por meras astúcias de sobrevivência. Essa inteligência é luta


anticapitalista como guerrilha conceitual, anti-ideológica e

autorreflexiva.

A crítica é necessariamente criptoanálise, porque os conceitos se

metamorfosearam em códigos cuja decodificação é urgente. Se o

programa implica o cálculo, o algoritmo que movimenta os corpos

humanos rumo à sua devoração, e define seus gestos e ações no contexto

de uma precária ciberdemocracia, é preciso agir na contramão. Contra o

patriarcado, o racismo, o capacitismo, o capitalismo, rumo a um modelo

de vida feminista, social e ecologista.

Esse mundo material dividido em urbano e rural, centro e periferia,

real e virtual depende de oposições costuradas pelos fios ideológicos de

um totalitarismo que se oculta na retórica naturalizada. Termos como

“correria”, frases como “não ter tempo para nada” e o sonho abstrato do

enriquecimento a qualquer custo seduzem pessoas condenadas a não

pensar sobre os jogos de poder lançados sobre seus corpos enquanto seu

egoísmo e narcisismo são alimentados. Raramente percebemos que

nossas queixas e falas lamuriosas são sintomas de um sistema de

opressão que atua mirando os nossos corpos. Do mesmo modo, o

otimismo vazio segue livre como se não houvesse crítica possível nem

um otimismo consistente diante da desigualdade e das injustiças

produzidas.

Que a maior parte da riqueza do mundo esteja nas mãos de 1% da

população enquanto a imensa maioria se esforça para sobreviver – sendo

que a maior parte não tem a menor chance nessa tentativa – deve-se à

lógica da morte inerente ao jogo do sistema prcc. É nesse programa que

se deve focar para desconfigurar o funcionamento do sistema da

desigualdade que parece impossível de ser mudado.

Podemos dizer que alterar a lógica e reconfigurar o sentido da

codificação desse sistema é o que se pode buscar. Desconfigurar a

codificação é algo possível, e o primeiro passo é a análise e a crítica.

Aqueles que estabeleceram aliança com o sistema são capazes de

considerá-lo pejorativamente utópico, outros, que não encontram sentido

na devoção ao sistema, certamente serão capazes de ver na utopia mais

do que uma mera crença. As codificações utópicas precisam ser

fomentadas e todas têm relação direta com a inversão da lógica atual.


CRIAÇÕES NARRATIVAS E PROJEÇÃO POLÍTICA

As criações narrativas tornam necessária uma relação fundacional com a

subjetividade. Isso quer dizer que a textualidade vai muito além da

relação entre leitor e texto literário. Somos feitos de textos. Textos

escritos e não escritos, falados e não falados assumem validade

transcendental. Nós nos mimetizamos com eles como letras perdidas em

um livro infinito. O texto é um programa. A dimensão política não pode

ser separada desse mundo de produtividade textual escrita e oral no qual

vivemos. Há uma dimensão narrativa e uma ideológica, mas há também


30
uma dimensão comunitária da utopia. Ela cria sentido político para

grupos por meio de partilha de palavras, discursos, diálogos, em textos

que, na condição literal de escritura, têm o poder de programar o

mundo. Se o projeto do prcc é a criação de uma utopia ao contrário, de

uma distopia para o mundo que é antecipada como ideal em cada gesto,

o projeto utópico requer desmontar os códigos distópicos e pensar o

contrário das distopias. Não há um modelo de mundo a oferecer, mas há

que se pensar na realidade produzida com base em antecipações

contrafáticas de ações que melhoram o mundo. Nesse contexto, as

próprias tecnologias já não seriam inimigas, mas poderiam ser usadas

para reconciliar o ser humano e a natureza da qual ele se apartou em

função da técnica. Isso implica inverter o sentido da técnica, não por um

ato fantasioso, mas pela imaginação da felicidade possível com o que

herdamos até o presente momento.

Vivemos com as narrativas uma relação psíquica direta. Textos são

escritos e publicados na forma de livros, jornais e revistas, ou surgem

lidos e ditos nos palanques, nos púlpitos, nas telas de televisão, bem

como nas plataformas disponíveis na internet e nas redes sociais.

Vivemos em um mundo que cria narrativas e é criado por elas.

Distopia e utopia são textualidades que funcionam como pano de

fundo do pensar e do fazer político, o pano de fundo ao qual toda ação

retorna e se entrelaça. Nesse sentido, podemos dizer que utopia e


distopia são fundamentos teóricos/imagéticos da ação política ou, em

outras palavras, são patamares com base nos quais pensamos, sentimos e

agimos. Somos orientados e induzidos a agir, de um modo ou de outro,

sempre a partir de ordens narrativas. A ordem é um texto e um design do

mundo.

A história política é uma infinita banda de Möbius na qual tragédia e


31
comédia, ou tragédia e farsa, para voltar aos termos de Marx, não

cessam de se repetir. Na qual progresso e decadência, o belo e o horror

intercalam-se. O mesmo acontece com distopia e utopia que, sendo

formas narrativas, derivam de energias psicopolíticas que, de tempos em

tempos vêm à tona por meio de processos de manipulação discursiva.

Podemos dizer que a utopia está para a tragédia assim como a distopia

para a farsa. A utopia implica uma energia fundante da política enquanto

ela é abertura para a alteridade, à medida que faz parte de um universo

semântico ligado à ideia do trágico como fundamento da política. O

elemento utópico é ainda elemento de desejo que constitui o


32
pensamento, ou seja, é a energia de eros contra o páthos da morte no

capitalismo. Nesse caso, a utopia é um sistema simbólico projetivo e

performativo que demanda uma compreensão e uma produção de mundo

que leva em conta o lugar do outro e o lugar-outro que, em certas

ficções, foi objetificado e caricaturizado.

O elemento do desejo inerente ao pensamento crítico visa à utopia.

Theodor Adorno apontou para a restauração da honra da palavra utopia.


33
O livro O espírito da utopia de Bloch se tornou uma espécie de

referência da filosofia adorniana. Para o autor, a utopia é uma promessa

de heresia contra o conformismo positivista do pensamento aos padrões

convencionais. Em sua visão, utopia não é idealismo, é antecipação

contrafática de um mundo melhor. Nas palavras de Adorno,

uma consciência que inserisse entre ela e aquilo que ela pensa um

terceiro elemento, as imagens, reproduziria sem perceber o

idealismo; um corpo de representações substituiria o objeto do

conhecimento, e o arbítrio de tais representações é o arbítrio


34
daqueles que mandam.
Ou seja, seria uma contradição dizer qual a forma da utopia

concreta, pois a utopia só se realiza respeitando o lugar de cada um na


35
produção de si mesma.

Utopias transformadas em visões de mundo prontas e fechadas são

ficções literárias, não aberturas políticas ao desejo contra a distopia

generalizada. As utopias políticas são marcadas pelo impulso ao outro

que é constitutivo do ato de pensar como ato do desejo do qual nascem

teorias e práticas transformadoras. Em sua base, está o impulso à vida

como impulso político por um mundo melhor.


Notas

30 Lyman Tower Sargent, “The Three Faces of Utopianism Revisited”, 1994, pp. 1-37.

31 Karl Marx, O 18 de brumário de Luís Bonaparte, 2011.

32 Theodor Adorno, Minima moralia, 1992.

33 Sugiro a leitura da obra da filósofa brasileira Suzana Albornoz, que escreveu belos livros em

diálogo com pensadores da utopia como Ernst Bloch. Em Ética e utopia: ensaio sobre Ernst

Bloch, ela apresenta diversos questionamentos sobre o abandono do tema da utopia e apresenta

um resumo analítico e crítico do pensamento do referido filósofo alemão.

34 Theodor Adorno, op. cit., p. 176.

35 “A nostalgia materialista de conceber o objeto quer o contrário: só sem imagens seria possível

pensar o objeto plenamente. Uma tal ausência de imagens converge com a interdição teológica às

imagens. O materialismo a seculariza na medida em que não permite que se pinte a utopia

positivamente; esse é o teor de sua negatividade. Ele está de acordo com a teologia lá onde é

maximamente materialista. Sua nostalgia seria a ressurreição da carne; para o idealismo, para o

reino do espírito absoluto, essa nostalgia é totalmente estranha. O ponto de fuga do materialismo

histórico seria a sua própria suspensão, a liberação do espírito do primado das necessidades

materiais no estado de sua realização. É somente com o ímpeto corporal apaziguado que o

espírito se reconciliaria e se tornaria aquilo que há muito ele não faz senão prometer, uma vez

que sob o encanto das condições materiais ele recusa a satisfação das necessidades materiais.”

Ibidem.
A IMAGINAÇÃO TECNOANTROPÓFAGA

O coro anticapitalista, antipatriarcal, antirracista e anticapacitista é um

coro anticolonial importante na hora de derrubar o sistema. Quando um

corpo manifesta o desejo do fim da opressão, ele contagia outros corpos.

O mesmo acontece com o autoritarismo, pois somos seres miméticos em

eterna interação linguística. Nasce um novo sujeito, o sujeito coletivo, do

grupo que se manifesta por transformação do mesmo modo que outros

grupos se conformam e silenciam. A reação do sistema ao ser

enfrentado é agir com mais opressão, perseguição e morte. Depois da

traumática experiência da invasão – uma experiência de violência e

maldade devoradora, análoga ao estupro e assassinato de mulheres e

pessoas em geral –, precisamos concentrar esforços em reflexões e

filosofias reparadoras. Se foi a antropofagia que nos constituiu como

seres autênticos, ainda que marcados pela devoração do inimigo

indigesto, evoluímos para uma imaginação que se liberta das amarras e

se reconcilia com as tecnologias, usando-as como instrumentos de

produção da vida. Uma utopia que seja atual não é aquela vazia, que

odeia a técnica fantasiando sua extinção em um mundo melhor. É uma

utopia crítica da tecnologia que resgata seus usos e a coloca no patamar

que preserva a vida e as formas de viver para além dela.

A construção de um mundo em comum com a natureza ou de

negação da natureza depende da construção de visões e narrativas sobre

esse mundo (lembrando que theorein, em grego antigo, significa tanto

visão quanto teoria), cabe-nos compreender seu jogo e apresentá-lo no

contexto de uma gramatologia política em que texto e política se

fundem. Cosmopolítica foi a expressão da filósofa da ciência Isabelle


36
Stengers para definir a similaridade entre natureza e cultura com a

intenção de refazer o campo da ciência, bem como a relação dos seres

humanos com ela. De fato, o termo ajuda na reflexão e nos fazeres sobre

a ciência, mas obriga a pensar e avaliar a presença humana na Terra

junto a outros seres.


Avançamos em produções teóricas que buscam criar comunidades

capazes de ir além do texto na direção de diálogos emancipatórios. A

imaginação tecnoantropófaga serve-se do virtual e de seu potencial

comunicacional tanto quanto do diálogo a ser pensado como um ato

antropófago, em que comemos ideias, teorias e epistemologias e as

mastigamos com vontade para nossa própria nutrição. Tudo isso pode

acontecer na forma de um ritual, pois, como dizia Oswald de Andrade

há quase cem anos, só a antropofagia nos une. Socialmente.


37
Economicamente. Filosoficamente.

A antropofagia foi um caminho de decodificação da colonização. Na

contramão da mera destruição do sistema, passa-se a devorá-lo. Devorar

o capitalismo devorador não acontecerá na base de sua negação, mas por

meio de sua devoração, ruminação e digestão. Mentalidades mais

positivistas esperariam um plano econômico nessa hora, quando, na

verdade, trata-se de romper com a interiorização. É isso o que vem

sendo feito no sistema político invadido e ocupado por mulheres,

pessoas negras, indígenas, vítimas do capacitismo e todos os demais

enjeitados e odiados pelo sistema econômico e político de opressão

moral e estética que é o prcc.

A tarefa da filosofia nesse processo histórico é promover uma cultura

de diálogo entre corpos e presenças, entre culturas e tecnologias, entre

instituições e pessoas vivas que sofrem quando apenas desejam viver

felizes com seus desejos. O capitalismo tornou o desejo impossível. O

diálogo é, portanto, um ritual a ser levado a termo como fundamento

social e da ética. A urgência na desmontagem do capitalismo começa

com esse ritual contrário ao habitual, da repetição do discurso pronto,

em que a servidão, o endividamento, a culpabilização e a

inexpiabilidade, já denunciados por Walter Benjamin em O capitalismo

como religião, são causa e consequência de uma lógica perversa e

aprisionante.
Notas

36 Isabelle Stengers, “La proposition cosmopolitique”, 2007, pp. 45-68.

37 Oswald de Andrade, Manifesto antropófago e outros textos, 2017.


PENSAR CRITICAMENTE É UM ATO UTÓPICO

A frase “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do

capitalismo”, dita e repetida por alguns teóricos, está carregada de

impotência e melancolia. Como contraponto, é possível uma mais

potente e alegre: “outros mundos são possíveis”. Essa contraposição não

nos obriga a uma escolha por uma delas, mas possibilita uma reflexão

sobre a dificuldade de pensar dialeticamente. Se a primeira nos lança na

distopia, a segunda nos leva à utopia. Não à utopia como esperança ou

esperançar abstratos, mas como prática da ação transformadora que

nasce da reflexão crítica. Isso quer dizer que ninguém pode alcançar a

utopia sem uma reflexão conectada ao senso de limite da transformação,

tendo em vista um mundo destruído. Por isso, o sentido da utopia é ético

e político e se relaciona a um compromisso com a vida que precisa

superar a catástrofe naturalizada. Trata-se de luta em que não se visa a

uma vitória abstrata que abandona o que foi vivido. A vitória implica a

reconstrução a partir de escombros. Revestimentos que acobertem a

história não fazem parte disso. Um dia construiremos um museu do

capitalismo no qual objetos, imagens e narrativas darão conta da distopia

e da exposição da codificação delirante do jogo imposto pelo prcc aos

corpos e à vida.

Otimismo e pessimismo não são simplesmente opostos, eles são

opostos dialéticos. Eles se amalgamam no pensamento crítico e na ação

transformadora. O pensamento crítico que não produz ação cai no

ornamento melancólico burguês adorado pelos sacerdotes da

impotência: acreditar que a produção da utopia é mero otimismo ou que

todo otimismo é necessariamente ruim. Não há um único otimismo.

Entre o ingênuo e o crítico, há um abismo. O primeiro constitui um

processo repetitivo do qual surgem os insatisfeitos decorativos e os

críticos ornamentais, que abominam utopias porque elas parecem fora

de moda, mas se esquecem de que o próprio pensar é um ato utópico e,

por isso, caem em contradição, embora deem vitória ao pessimismo.


Também esses críticos impotentes, na sua eterna autocontradição,

preferem modas políticas com o objetivo de se integrarem melhor ao

todo. A impotência gera coletivos satisfeitos consigo mesmos. Surge a

interpassividade, que pode dar mais prazer constituindo uma

comunidade de pessoas satisfeitas com sua insatisfação. Até mesmo seus

críticos pessimistas talvez estejam contentes na própria


38
interpassividade da crítica anticapitalista para consumo próprio,

enquanto seguem com suas vidas burguesas e consumistas ou na vida

não burguesa e não consumista, mas desengajada da luta que vai além

das telas de computadores com todo o miasma digital e virtual

ultradepressivo de nossa época. O pessimismo teórico não pode dar

lugar ao pessimismo prático.

O argumento que apela à impossibilidade da transformação e à

fraqueza da utopia é muito fraco para ter peso sobre a luta dos coletivos

que se organizam como dispositivos de transformação social. Nesse

caso, é preferível atrapalhar a ideologia da falta de alternativa de

Margaret Thatcher – à qual aderem os pessimistas práticos – do que

atrapalhar nossos próprios sonhos de um mundo melhor.

No caminho da utopia prática há pessimistas, e eles devem ser

levados a sério. Contudo, é bom levar em conta que o pensamento que

não produz utopia cancela sua função social e psicossocial. Nesse


39
sentido, a teoria crítica que, desde Horkheimer, promete melhorar as

condições de vida das pessoas é permeada pela utopia que vem a

constituir uma espécie de impulso ético da teoria.

É preciso compreender a função tática do que podemos chamar de

“pessimismo prático”, a serviço da manutenção do sistema, por

oposição ao famoso “otimismo da vontade” assumido por vários


40
marxistas desde Gramsci. O “pessimismo da inteligência” como

princípio de luta tem, na obra do pensador italiano, uma função prática,

a saber, a de garantir a lucidez da ação, sem a qual ela fracassa, afogada

na prepotência. O pessimismo ajuda a combater a prepotência. O

pessimismo é um atributo da inteligência, mas não da vontade, que em

Gramsci relaciona-se a uma virtude prática, ou sabedoria prática. A


41
utopia seria a inspiração ética do Estado e da sociedade que leva à

ação.
O “pessimismo prático” anda junto com o otimismo do vazio do

pensamento. Eles são um efeito da dominação epistemológica, que

distorce o sentido da utopia zombando dela para enfraquecê-la. No

extremo do ódio à utopia está o ódio ao “comunismo”, esse espectro que

ronda não mais a Europa, mas o mundo todo na forma de um bicho-

papão usado para assustar pessoas que perderam a capacidade de pensar

analiticamente. Pessoas concretas submetidas a essa retórica se tornam

incapazes de sair das suas teias. Nesse sentido, é a antiga imagem da

caverna de Platão que nunca perdeu a vigência. A subjugação à

ignorância, a percepção das ilusões como se fossem verdades,

permanece sendo administrada sistematicamente.

A utopia é parte essencial do otimismo da vontade contra o

pessimismo conservador mesmo quando usa teorias de esquerda ou

críticas. A utopia é, portanto, uma ideia-prática, ou seja, um operador

cognitivo e afetivo capaz de orientar a ação. Justamente por isso,

conservadores do sistema econômico e político a sequestram, a

distorcem em anamorfoses que se perdem no infinito e, depois,

monopolizam o seu sentido construindo programas estéticos, morais e

políticos caracterizados pelo nonsense das distopias naturalizadas. A

depressão subjetiva e psíquica mundial relaciona-se não à perda do

sentido, pois o sistema econômico e político se oferece como um novo

sentido na forma da religião capitalista, mas à perda da possibilidade de

criar sentido com base na imaginação como faculdade que conecta o ser

humano ao mundo de um ponto de vista sensível.

Isso quer dizer que a própria vida como ela é vivida se transformou

em ideologia, e as pessoas já não sabem distinguir ilusão e realidade,

verdade e mentira. Talvez não saibam distinguir utopias e distopias.

Tornam-se, assim, presas fáceis e agem conforme regras criadas por

quem sabe manipular narrativas nas quais a noção de mundo é central.

Hoje, a mundialização econômica se transformou em mundialização

do fascismo. O que as guerras representam para a indústria de armas no

atacado o fascismo representa no varejo quando garante o crescimento

microfísico da violência na esfera da economia tecnológica. A produção

tecnológica acarreta o avanço concomitante das armas e dos meios de

comunicação e visam aos corpos-sujeitos.


Notas

38 Mark Fisher, Capitalist Realism: Is There No Alternative?, 2009, p. 12.

39 Max Horkheimer, “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, 1975, pp. 125-169.

40 A palavra de ordem “‘pessimismo da inteligência, otimismo da vontade’ deve ser a palavra de

ordem de cada comunista consciente dos esforços e dos sacrifícios que são pedidos a quem

voluntariamente escolheu um lugar de militante nas fileiras da classe operária”. Antonio

Gramsci, Escritos políticos, 1977, p. 171.

41 Em “A ‘utopia’ do Estado Ético em Gramsci e nos movimentos populares” (2011), Giovanni

Semeraro faz a reconstituição das aparições da palavra utopia nos textos de Gramsci conectando-

o ao tema de uma ético-política de Estado.


UM OUTRO MUNDO POSSÍVEL

Outros atores presentes definem outras condições de luta política, e um

outro mundo possível já parece estar sendo forjado. Os movimentos

feministas, antirracistas, indígenas e antifascistas vêm à cena, mas

sofrem com a ameaça de massacre. Lutas emergentes vão sendo

massacradas sob formas explícitas ou veladas de autoritarismos. O

terrorismo dos Estados capitalistas não tem freio. De fato, a reação dos

algozes pode ser medida nos índices crescentes de feminicídio e

extermínio de jovens negros. Genocídios são praticados sem

manifestações dos Estados. A compaixão não é uma característica das

massas. Mesmo assim, as lutas por Direitos Humanos e por Direitos

Humanos Emergentes seguem. As lutas pelo direito à renda básica e à

morte digna, pelo direito à mobilidade universal, pelo direito a ter uma

família diversa reconhecida e ao matrimônio de pessoas independente da

identidade de gênero e/ou do sexo, pelo direito à inclusão escolar e


42
outros surgem acompanhando os novos tempos de lutas que usam os

meios digitais para avançar. Na prática, a luta segue, apesar de todos os

limites econômicos e políticos impostos por grupos autoritários e

violentos que fazem guerra contra as populações, sempre amparados nas

táticas de sedução capitalista.

O capitalismo não é só um sistema econômico e ideológico, mas

uma guerra contra os povos da Terra por ele condenados. Suas armas

atingem os corpos e a vida psíquica visando, ao mesmo tempo, a cada

um e a populações inteiras. O capitalismo produz um cerco corporal-

espiritual que não deixa brechas para pensar em alternativas. Justamente

por isso, pensar reflexivamente e propor alternativas se torna cada vez

mais revolucionário. Agir na direção de alternativas pertence à coerência

ética de quem pensa. As alternativas estão dadas: a mudança de modelo

econômico rumo a uma economia solidária, capaz de oferecer alimento

e vida digna a todos os seres e de proteger as espécies e o próprio

planeta Terra é a base de tudo.


Interromper a interiorização do capitalismo é obrigatório. Isso só

será possível com a inversão dos processos de subjetivação, de forma

que seja possível resgatar subjetividades devoradas pelo sistema prcc.

“Desemburguesar” a ética e a política, a teoria e a prática, a estética e o

mundo da vida, rumo a um convívio com a natureza e à comunhão com

a vida em geral; desacorrentar os corpos-espíritos humanos dos grilhões

da ignorância, sustentados por seduções que impõem mal-estar vendido


43
como conforto; cessar a mentira fascista; defender o cosmopolitismo e

a concidadania; despertar para a democracia radical e para o prazer do

cuidado de si e do convívio amoroso são desafios que valem a pena ser

vividos. A ideia de um projeto de cidadania cosmopolita ou

transnacional (e de uma intercidadania latino-americana, se pensamos

em integrar o Brasil ao espaço de Abya Yala) precisa estar em

perspectiva para além da ideia das comunidades de mercado.

A própria economia precisa ser resgatada do neoliberalismo que vem

destruindo o mundo. Esses resgates precisam acontecer mais

rapidamente, porque o fascismo surge justamente para acelerar os

processos do código distópico patrirracialcapacitalista que visa à

destruição do mundo enquanto o transforma em mercado da catástrofe.

A mundialização capitalista depende do mercado como parte do

criptocódigo da destruição do mundo. Devemos contrapor a ela um

outro mundo possível.

Para que esse mundo seja construído, o fascismo precisa ser

encarado internacionalmente como questão do direito em geral e de

direitos humanos, pois, na prática, ele avança pela manutenção da

vigência de seu princípio filosófico: a negação completa da alteridade

até a sua total aniquilação.

Promover a construção de uma subjetividade amparada justamente

na linguagem, capaz de reconhecimento do outro e de uma

expressividade não programada e automatizada, é a tarefa histórica de

intelectuais, professores e cidadãos responsáveis em geral.

Uma cultura de diálogo entre pessoas e instituições que desmonte o

código distópico administrado pelo fascismo é urgente. A adesão das

subjetividades esvaziadas a um discurso de ódio que aglutina a maioria

das pessoas na forma de massas ignaras precisa ter fim. Contra isso,
precisamos fomentar a reflexão crítica e a superação de nossas fronteiras

nacionais, que incubam o ódio e promovem destruição.


Notas

42 David Bondia Garcia. “La revolución de los Derechos Humanos emergentes: el inicio del

quinto gran proceso histórico”, 2015, pp. 139-190.

43 Por meio do “direito cosmopolita” de Kant, alguém poderia reivindicar cidadania para além

dos Estados e, dessa forma, garantir proteção em nível internacional para indivíduos perseguidos

por Estados. Absolutamente decisiva no campo do Direito, a noção de mundo está na base de

uma teoria democrática propriamente cosmopolita que seja capaz de unir direito e cidadania

como “práxis das associações transfronteiriças de indivíduos”. Soraya Nour Sckell, “O

cosmopolitismo de Kant: direito, política e natureza”, 2017, pp. 199-213.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor. Dialética negativa. Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de Janeiro: Zahar,

2009.

_______. Minima moralia. Trad. Luiz Eduardo Bica. São Paulo: Ática, 1992.

_______; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Trad. Guido Antonio de

Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

ALBORNOZ, Suzana. Ética e utopia: ensaio sobre Ernst Bloch [1985]. Porto Alegre:

Movimento, 2006.

ALPEROVITZ, Gar; DALY, Lew. Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa

herança comum. Trad. Renata Lucia Bottini. São Paulo: Senac, 2010.

ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropófago e outros textos. São Paulo: Penguin e

Companhia das Letras, 2017.

BALTRUSAITIS, Jurgis. Anamorphoses: Les perspectives dépravées. Paris, Flammarion, 1996.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Trad. Gabriel

Valladão Silva. São Paulo: L&PM, 2018.

_______. O capitalismo como religião. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2015.

BERNAYS, Edward. Propaganda: Comment manipuler l’opinion en démocratie. Paris: Zones,

2007.

BOURDIEU, Pierre. “Sur le pouvoir symbolique”. In: Annales. Economies, sociétés,

civilisations, 32, n. 3, 1977, pp. 405-411.

_______. A distinção: crítica social do julgamento. Trad. Daniela Kern e Guilherme. J. F.

Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007.

CAVAILLÉ, Jean-Pierre. Descartes: a fábula do mundo. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:

Instituto Piaget, 1991.

CEPAL, Comissão Econômica para a América Latina e Caribe. “Os povos indígenas na América

Latina: avanços na última década e desafios pendentes para a garantia de seus direitos”, fev.

2015. Disponível em: <www.repositorio.cepal.org/server/api/core/bitstreams/674dfaa2-fe61

-484a-a61f-390330e9174a/content>. Consultado em 12 dez. 2023.

FILHOS da esperança. Dir. Alfonso Cuarón. Prod. Beacon Communications. Estados Unidos:

Universal Pictures, 2006.

CLAEYS, Gregory. Dystopia: a Natural History – A Study of Modern Despotism, Its

Antecedents, and Its Literary Diffractions. Oxford University Press, 2017.

CLAEYS, Gregory. Utopia: a história de uma ideia. Trad. Pedro Barros. São Paulo: Sesc

edições, 2013.

CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e Idade Média latina. Trad. Paulo Rónai e

Teodoro Cabral. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1996.

CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos

descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.

D’AGOSTINI, Franca. Lógica do niilismo: dialética, diferença, recursividade. Trad. Marcelo

Perine. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2002.

D’EAUBONNE, Françoise. Le Féminisme ou la mort. Paris: Le Passager Clandestin, 2020.


DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Trad.

Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

DERRIDA, Jacques. “La facteur de la Verité”. In: Poétique: Revue de théorie et d’analyse

littéraires. Vol. 21, 1975, pp. 96-147.

_______. Força de lei: o fundamento místico da alteridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São

Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.

DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: por que oito famílias têm mais riqueza do

que a metade da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da

aristocracia de corte. Trad. Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1969.

ÉLUARD, Paul. Oeuvres complètes. Tomo: 1, 1931-1945. Paris: Gallimard, 1968.

FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Trad. Ligia Fonseca Ferreira; Regina Salgado

Campos. Zahar: Rio de Janeiro, 2022.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Trad. Coletivo

Sycorax. São Paulo: Elefante, 2021.

FISHER, Mark. Capitalist Realism: Is There No Alternative?. Zero Books, 2009.

FLUSSER, Vilém. Gestos. São Paulo: Annablume, 2014.

_______. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. Trad. Raquel

Abi-Sâmara. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.

FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins

Fontes, 2011.

_______. “Des espaces autres (1967), Hétérotopies.” (Conferência no Cercle d’Études

Architecturales, 14 mar. 1967). In: Architecture, mouvement, continuitè, n. 5, out. 1984, pp.

46-49.

_______. A hermenêutica do sujeito. Trad. Márcio Alves Fonseca e Salma Tannus Muchail. São

Paulo: Martins Fontes, 2010.

_______. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida. São Paulo: Loyola, 1999.

_______. Histoire de la sexualité: La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1994.

_______. Microfísica do poder. Org. e rev. téc. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Paz & Terra,

2021.

_______. O nascimento da biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,

2010.

FREGE, Gottlob. Conceitografia: uma linguagem formular do pensamento puro decalcada

sobre a aritmética. Trad. Paulo Alcoforado, Alessandro Duarte e Guilherme Wyllie.

Seropédica: PPGFIL-UFRRJ, 2018.

GADAMER, Hans-George. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica

filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1999.

GARCIA, David Bondia. “La revolución de los Derechos Humanos emergentes: el inicio del

quinto gran proceso histórico.” In: SANCHEZ, Miguel Revenga; GÓMEZ, Patrícia Cuenca

(orgs.). El tiempo de los derechos humanos en el siglo XXI. Barcelona: Dykinson, 2015, pp.

139-190.

GOODMAN, Nelson. Ways of Worldmaking. Reino Unido: The Harvester Press, 1978.

GRAMSCI, Antonio. Escritos políticos. Vol. II. Trad. Manuel Simões. Lisboa: Seara Nova,

1977.

GROSJEAN, Pauline. Patriarcapitalisme: En finir avec les inégalités femmes-hommes. Paris: Le

Seuil, 2021.

GRÜNER, Eduardo. “La Tragedia, o el fundamento perdido de lo político”. In: BORON, Atilio

A., VITA, Álvaro de (orgs.). Teoría y filosofía política: la recuperación de los clásicos en el
debate latino-americano. Buenos Aires: Clacso, 2002, pp. 13-50.

HAIDU, Peter. Sujeito medieval/moderno: texto e governo na Idade Média. Trad. André Vieira,

Cecília Prada e Marcelo Rounet. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003.

HEGEL, G.W.F. Vorlesungen über die Ästhetik. Erster und zweiter Teil [1835]. Ditzingen:

Reclam, 2008.

HERMAN, Edward; CHOMSKY, Noam. Manufacturing Consent: The Political Economy of the

Mass Media. Nova York: Pantheon Books, 1988.

HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica.” In: BENJAMIN, Walter et al.

Textos escolhidos. Trad. José Lino Grünnewald et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp.

125-169. (Coleção Os Pensadores)

JACOBY, Russell. O fim da utopia, política e cultura na era da apatia. Trad. Clóvis Marques.

Rio de Janeiro: Record, 2001.

JAMESON, Fredric. Archaeologies of the Future: The Desire Called Utopia and Other Science

Fictions. London, Nova York: Verso, 2005.

KAFKA, Franz. Essencial. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Penguin-Companhia, 2011.

_______. Um médico rural. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Trad. Vania

Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

KOJÈVE, Alexandre. Introdução à filosofia de Hegel. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de

Janeiro: Ed. Uerj, Contraponto, 2002.

LACLAU, Ernesto. A razão populista. Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo:

Três Estrelas, 2013.

_______; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática

radical. Trad. Joanildo A. Burity, Josias de Paula Jr. e Aécio Amaral. São Paulo:

Intermeios, 2015.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Trad. Carlos

Irineu da Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. Trad. Rosa Freire Aguiar. São Paulo: Companhia das

Letras, 1996.

LÖWY, Michael. “Negatividad y utopía del movimiento altermundista”. In: Laberinto, n. 23, 1o

quadrimestre, 2007, pp. 43-47.

LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Trad. Ricardo Corrêa Barbosa. Rio de

Janeiro: José Olympio, 2009.

MARIS, Bernard; DOSTALER, Gilles. Capitalisme et pulsion de mort: Freud et Keynes. Paris:

Albin Michel, 2009.

MARQUES, Eduardo Marks de. “From Utopian Hope to Dystopian Despair: Late Capitalism,

Transhumanism and the Immanence of Marxist Thought in Contemporary Dystopian

Novels”. In: Transculturalidade e de(s)colonialidade nos estudos em inglês no Brasil.

Maceió: EdUFAL, 2014, pp. 257-285.

MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Trad. Nélio Schneider. São Paulo:

Boitempo, 2011.

_______. Thesen über Feuerbach. [Nach dem mit dem Marxschen Manuskript von 1845

verglichenen Text der Ausgabe von 1888]. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.

Ausgewählte Schriften in zwei Bänden. Vol. 2, Berlim, 1955.

MATOS, Andityas S. de Moura Costa. A An-arquia que vem: fragmentos de um dicionário de

política radical. São Paulo: Sobinfluencia, 2022.

MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Trad. Cristina Magro; Victor

Paredes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.


MERCHANT, Carolyn. The Death of Nature: Women, Ecology, and the Scientific Revolution.

São Francisco: HarperOne, 2019.

MÉSZÁROS, Istvan. Para além do capital. Trad. Sérgio Lessa e Paulo Cezar Castanheira. São

Paulo: Boitempo, 2002.

MOHR, Dunja M. “Transgressive Utopian Dystopias: The Postmodern Reappearance of Utopia

in the Disguise of Dystopia”. In: ZAA, 55(1), 2007, pp. 5-24.

MORUS, Thomas. Utopia. Trad. Luís de Andrade. São Paulo: Edipro, 2022 [1516].

MOUFFE, Chantal. Agonistics: Thinking the World Politically. Londres: Verso, 2013.

_______. The Democratic Paradox. Londres: Verso, 2000.

NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Bem-estar comum. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro:

Record, 2016.

PRECIADO, Paul B. “Multitudes queer: notes pour une politiques des ‘anormaux’”. In:

Multitudes Vol. 12, n. 2, 2003, pp. 17-25.

RANCIÈRE, Jacques. “‘A política é imaginação’. Entrevista com Jacques Rancière”. Entrevista

concedida a Melica Balcázar Moreno. Trad. Cepat. Instituto Humanitas Unisinos, 27 jul.

2018. Disponível em: <www.ihu.unisinos.br/581209-a-politica-e-imaginacao-entrevista-%2

0com-jacques-ranciere>.

_______. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.

Rio de Janeiro: Record, 2021.

SARGENT, Lyman Tower. “The three faces of utopianism revisited”. In: Utopian Studies. Vol.

5, n. 1, 1994, pp. 1-37. Disponível em: <www.chrome-

extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://badspaceusao.files.wordpress.com/20

18/12/Sargent-Three-Faces-of-Utopianism-Reconsidered.pdf >.

SCHOLZ, Roswitha. “O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre

os sexos”, jun. 2017 [1992]. Trad. José Marcos Macedo. Disponível em <www.obeco-onlin

e.org/rst1.htm>.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Trad. M.F. Sá Correia.

Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.

SCKELL, Soraya Nour. “O cosmopolitismo de Kant: direito, política e natureza.” In: Estudos

Kantianos [EK]. Vol. 5, n. 1, 2017, pp. 199-213. Disponível em: <www.doi.org/10.36311/2

318-0501.2017.v5n1.14.p199>.

SEGATO, Rita Laura. Las estructuras elementares de la violencia: ensayos sobre género entre

la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Bernal: Universidade Nacional de

Quilmes, 2003.

_______. La guerra contra las mujeres. Madrid: Traficante de Sueños, 2016.

SEMERARO, Giovanni. “A ‘utopia’ do Estado Ético em Gramsci e nos movimentos populares.”

In: R. Educ. Públ. Cuiabá. Vol. 20, n. 44, set-dez 2011, pp. 465-480. Disponível em: <www.

periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/educacaopublica/article/download/318/286/308

>.

SEOANE, José; TADDEI, Emilio (orgs.). Resistencias mundiales: de Seattle a Porto Alegre.

Buenos Aires: Clacso, 2001

SETTON, Maria da Graça Jacintho. “A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura

contemporânea”. In: Revista Brasileira de Educação (20), ago. 2002, p. 60-70. Disponível:

<www.doi.org/10.1590/S1413-24782002000200005>.

SPINOZA, Benedito. Tratado teológico-político. Trad. Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa

Nacional Casa da Moeda, 2004.


STENGERS, Isabelle. “La proposition cosmopolitique.” In: LOLIVE, Jacques; SOUBEYRAN,

Olivier (orgs.). L’émergence des cosmopolitiques. Paris: La Découverte, 2007.

STOICHITA, Victor. A Short History of the Shadow. Kindle Edition, 2013.

TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. Rio de Janeiro: Record, 2015.

_______. Como derrotar o turbotecnomachonazifascismo, ou seja lá o nome que se queira dar

ao mal que devemos superar. Rio de Janeiro: Record, 2020.

_______. Complexo de vira-lata: análise da humilhação colonial. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 2021.

_______. Delírio do poder: psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação. Rio de

Janeiro: Record, 2019.

_______. Olho de vidro: a televisão e o estado de exceção da imagem. Rio de Janeiro: Record,

2011.

_______. Ridículo político: uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o

esteticamente correto. Rio de Janeiro: Record, 2017.

_______; DIAS, Andréa C. Sociedade fissurada: para pensar as drogas e a banalidade do vício.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Trad. Antonio A.S. Zuin et al.

Campinas: Editora Unicamp, 2010.

VOLTAIRE. Cândido, ou o Otimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

WALLERSTEIN, Immanuel. Análisis de sistemas-mundo: una introducción. Trad. esp. Carlos

Daniel Schroeder. México: Siglo Veintiuno, 2005.

WARBURG, Aby. Histórias de fantasma para gente grande. Escritos, esboços e conferências.

Trad. Lenin Bicudo Bárbar. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de

Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Trad. Luiz Henrique Lopes dos

Santos. São Paulo: Edusp, 1994.

YOURCENAR, Marguerite. Le Cerveau noir de Piranèse: les prisons imaginaires. Paris:

Gallimard, 1991.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de

Imprensa S.A.
Mundo em disputa

Site oficial da autora:


https://marciatiburi.com/

Instagram da autora:
https://www.instagram.com/marciatiburi/

Página da autora no Facebook:


https://www.facebook.com/marciatiburioficial

Canal da autora no YouTube:


https://www.youtube.com/@MarciaTiburiFilosofiaEmComum

Página da autora no Skoob:


https://www.skoob.com.br/autor/3266-marcia-tiburi

Página da autora no Goodreads:


https://www.goodreads.com/author/show/3414079.Marcia_Tiburi

Você também pode gostar