Rembrandt - DuPRAT
Rembrandt - DuPRAT
Rembrandt - DuPRAT
Resumo
O estudo da relação entre a forma e o conteúdo, segue sendo fundamental para o desenvolvi-
mento do pensamento visual nas artes. Os conceitos de ideia plástica e conteúdo formal, de-
rivados deste estudo, têm um significado bastante preciso para os artistas, mas permanecem
obscuros para a grande maioria dos observadores, que normalmente associam o conteúdo de
uma obra somente ao tema e a representação.
A análise que desenvolveremos da gravura de Rembrandt, intitulada “As três Cruzes”, ofere-
ce um excelente estudo desta relação, pois através dela podemos indicar com clareza e obje-
tividade como o conteúdo plástico e abstrato das obras de arte, ou seja, os conteúdos que
emanam da própria forma, dialogam com os conteúdos semânticos ou narrativos, estes sim
ligados ao tema da obras e a seus significados.
Abstract
The study of the relationship between form and content remains fundamental for the deve-
lopment of visual thinking in the arts. The concepts of plastic idea and formal content, deri-
ved from this study, have a very precise meaning for artists, but they remain obscure for the
great most of the observers, who usually associate the content of a work only with the theme
and the representation.
The analysis of Rembrandt's engraving entitled "The Three Crosses" offers an excellent stu-
dy of this relation, for through it we can clearly and objectively indicate how the plastic and
abstract content of works of art, that is, the contents that emanate in their own way, dialogue
with the semantic or narrative contents, these linked to the theme of works and their mea-
nings.
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AS TRÊS CRUZES
A FORMA, O CONTEÚDO PLÁSTICO E O SEMÂNTICO.
pelas trevas, e que o único local por onde a luz pode fluir, é justamente a parte superior da
gravura.
A clareza explícita do triângulo, entretanto, é quebrada por dois acontecimentos que
lhe emprestam mais naturalidade. Em primeiro lugar, os cantos da base são quebrados pelos
pretos. Em seguida o ápice é quebrado pela luz, que forma um triângulo invertido,
aproveitando as direções compositivas dos braços de Cristo.
Ao retirarmos da letra sua função de significação, ela continua nos transmitindo de-
terminada sensação. É justamente este poder expressivo da configuração em si mesma que o
abstracionismo tentava evidenciar. Ao retirar da forma-letra seu significado, a abstração evi-
ta enfraquecer a forma com uma finalidade prática. Mas o que é uma “finalidade prática”?
Na letra vimos que é o “designar de determinado som”. No caso de uma gravura, pintura ou
desenho, esta finalidade é usualmente designada como sendo a representação (designação)
de um objeto ou ícone, que funciona como agente de uma narrativa – isto é, utilizar a dinâ-
mica abstrata das linhas, tons e cores, não por si ou em si, mas para uma representação deter-
minada.
Em sua reflexão, entretanto, Kandinsky não rejeita a representação do objeto, como
seria de se esperar. Pelo contrário, ele adverte que a possibilidade de desdobramento da ima-
gem em conteúdos distintos, o formal e o iconográfico, por um lado liberta a forma abstrata
de qualquer função estranha a própria formulação estética (ele a chama “artística”), mas, por
outro lado, liberta também a representação do objeto de qualquer preocupação formal. A re-
presentação do objeto, que muitas vezes servia de mero pretexto para a criação formal, ga-
nha assim uma nova autonomia. Isto está indicado no mesmo texto anteriormente citado. O
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trecho é um pouco longo, mas devido a sua importância visionária em relação a muitos dos
movimentos que viriam depois, vale a pena transcrevê-lo.
O realismo máximo, que por enquanto só faz despontar, porfia em eliminar do quadro
o elemento estético exterior afim de expressar o conteúdo da obra pela simples
(inestética) reprodução do objeto em sua singeleza e nudez. O invólucro exterior do
objeto - assim concebido e fixado no quadro - assim como a concomitante eliminação
da importuna beleza convencional, liberam mais seguramente a ressonância interior
das coisas. Quando o elemento ‘estético’ se vê reduzido ao mínimo, é precisamente
por intermédio deste invólucro que a alma do objeto se manifesta com mais vigor;
então, a beleza externa e lisonjeira já não vem desviar dele o espírito.
É isso só é possível pois somos cada vez mais capazes de entender o mundo como ele
é, portanto sem acrescentar-lhe qualquer interpretação embelezadora. O elemento es-
tético reduzido ao mínimo deve ser reconhecido como o mais poderoso elemento abs-
trato.
A este realismo opõe-se a abstração máxima, que porfia em eliminar de uma maneira
aparentemente total o elemento objetivo (real) e procura reduzir o conteúdo da obra
em formas ‘imateriais’. Assim concebida e fixada num quadro, a vida abstrata das
formas objetivas reduzidas ao mínimo, com a predominância evidente das formas
abstratas, revela o mais seguramente possível a ressonância interior da obra. Assim
como o realismo reforça a ressonância interior pela eliminação do abstrato, a abstra-
ção reforça essa ressonância pela eliminação do real. (Idem, P.124)
[...]a marcha para a forma, cujo itinerário deve ser ditado por alguma necessidade in-
terior ou exterior, prevalece sobre o fim terminal, sobre o final do trajeto. A orienta-
ção determina o caráter da obra consumada. A formação determina a forma e é, em
consequência, predominante. Nunca, em nenhuma parte, a forma é resultado adquiri-
do, acabamento, remate, fim conclusão. Há que concebê-la como gênese, como mo-
vimento, seu ser é o devir, e a forma como aparência não é mais do que uma maligna
aparição, um fantasma perigoso. Boa é, portanto, a forma como movimento, como
fazer; boa é a forma em ação. Má́ é a forma como inércia fechada, como detenção
terminal. Má́ é a forma da qual alguém se sente satisfeito como de um dever cumpri-
do. A forma é fim morte. A formação é vida. (Klee, Paul. Theorie de l’art moderne.
p.60).
Klee pensa o fazer como uma gênese, um acontecimento, em meio ao qual a sensibi-
lidade do artista se desdobra e elabora. Conceber a forma como gênese, implica em negar a
idéia como algo pronto e acabado na mente do pintor, negar que a forma seja imaginada pre-
viamente antes do artista desencadear o processo de formação. Tal indicação esclarece que a
composição das relações plásticas, forma-se durante o caminhar do pintor.
Pelas observações anteriores, percebemos que não se trata nem de imaginar que o
artista meramente realiza uma imagem previamente formada em sua mente, nem, por outro
lado, de supor que, em seu fazer, não há nenhum pensamento. O artista inicia seu trabalho
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com uma idéia que lhe serve de ponto de partida, mas durante a gênese da imagem ele conti-
nua atento, escutando as relações plásticas de cada elemento acrescentado. O essencial não é
estabelecer uma composição harmônica e bem equilibrada, como imaginam muitas vezes os
iniciantes, mas perceber como estas relações, que compõe o corpo da obra, a animam com
determinado sentido. A palavra "sentido", deve ser compreendida aqui, em seu significado
preciso. É um intento, orientação, direção, rumo. Nesta acepção, se fundamenta precisamen-
te naquilo que ela não é, ou seja, no que almeja, procura. Trata-se, portanto, de uma atitude,
que procura pela expressão e sentido da obra a cada momento de sua formação.
O conceito de ritmo é, neste ponto, a pedra de toque para se compreender o pensa-
mento desencadeado durante o fazer. Toda arte é a instauração de um ritmo de elementos
concretos, reais, racionalizáveis, que, em si, não têm expressividade alguma. A literatura e a
poesia utilizam palavras cujos significados estão empilhados nos dicionários. Mas, somente
ao engendrá-las no ritmo da narrativa ou no ritmo poético, elas podem ultrapassar seu signi-
ficado estrito. A música utiliza notas musicais, a arquitetura volumes e espaços, a dança os
gestos, a escultura volumes, a pintura e o desenho os elementos formais, linha, tom e cor.
Nenhum destes elementos tem em si mesmo um valor artístico. É somente a partir da instau-
ração de um ritmo que estes elementos concretos se animam para nós com algo que os ultra-
passa. O ritmo é uma correnteza que nos envolve, nos conduz e mantém em suspenso, na
expectativa do que ainda está por vir. Nem totalmente casuais, nem tampouco racionais, os
ritmos são como as pulsações vivas de cada linguagem.
A estrutura plástica, é uma articulação de ritmos que expressam um sentido na maio-
ria das vezes só traduzível visualmente. A imagem na arte não é um mero sinal de um deter-
minado conteúdo. Ela é um símbolo, ou seja, algo cujo significado não é unívoco. A rigor a
idéia plástica não vem antes do ritmo, nem este precede aquela. Ambos são uma e a mesma
coisa.
Nosso objetivo foi, portanto, desenvolver uma leitura do processo de criação das
obras a fim de resgatar a sua abertura, e não no sentido de tentar obter algum método de con-
trole técnico do fazer, da expressão ou da leitura. Trata-se simplesmente de perceber as rela-
ções articuladas, e, com isso, resgatar a mesma atitude de escuta atenta, própria do criador
diante do processo de formação de sua obra.
Com esta ressalva podemos voltar à gravura de Rembrandt, e verificar como esta
obra ultrapassa uma estrutura previamente imaginada ao instaurar um complexo de ritmos, e
logo de sentidos, que, na falta de melhor conceito, podemos caracterizar como transcenden-
te. Levando mais a fundo a nossa análise, percebemos que nada nesta gravura é casual. Bus-
cando estabelecer relações rítmicas, Rembrandt dá sentido a cada elemento acrescentado.
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próprio Jesus, que é representado integralmente como uma figura clara sobre um fundo
escuro, enfatizando o caráter ao mesmo tempo luminoso, destacado, e dramático, desta
personagem.
Vejamos agora, as direções que
convergem para a personagem ajoelhada.
Há um forte ritmo de pretos, fluindo para
dentro desta personagem. A perna do
cavalo, enfatizada devido ao contraste que
estabelece, rompe este fluxo tonal, de
claro escuro, ligando-se a personagem do
primeiro plano.
Este movimento de entrada dos
pretos, na forma de uma cunha,
gradativamente se amplia pelo campo
compositivo. Estas formas são incisivas,
como dentes, como setas. Nos empurram
de um canto para o outro, de uma forma
para a outra, em uma agitação que traduz
plasticamente a angústia do momento.
Animam o todo da gravura e quebram a
simetria geral, estável, para a qual tenderia
a ideia inicial.
O leitor que acompanhou esta
análise até aqui, começa a perceber que as
dinâmicas e ritmos articulados, assim
como seus sentidos, parecem não ter fim.
Realmente, podemos indicar certas idéias
plásticas regentes, mas uma obra como esta, uma obra de arte, alcança a estatura de uma
verdadeira matriz de ritmos plásticos, que parecem se perpetuar ao infinito. Poderíamos
indagar: qual o sentido da personagem deitada de bruços sobre o chão iluminado? ou do
cachorro a seu lado? O que dizer das sombras com forma flamejante na ponte? Que
segredos se escondem no ziguezague das sombras do lado esquerdo da gravura?
Muitos dos ritmos que foram analisados, devem, de fato, ter sido deliberadamente
construídos por Rembrandt. É certo que outros surgiram espontaneamente da própria gênese
da imagem, sem nenhuma premeditação, casualmente gerados pela própria lógica interna da
obra. Mas o fundamental, é percebermos que racional ou intuitivamente, estas relações estão
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concretamente instauradas na forma da obra, e isto não se deve a algum mérito nosso, como
bons intérpretes, mas sim da própria obra. Só as obras de arte conquistam esta abertura.
Se nos aproximamos um pouco do local onde lastimavelmente a lógica da análise se
esvai, se chegamos perto de um delírio da razão, onde a palavra não dá mais conta do
sentido plástico, então, alcançamos nosso objetivo! Podemos mesmo concordar com o pintor
Eugene Delacroix quando este afirma:
Ticiano, se calhar, não sabia como iria acabar os seus quadros. Com Rembrandt devia
suceder muitas vezes o mesmo. Os seus entusiasmos excessivos, resultam menos da
determinação da vontade, do que dos seus constantes tateamentos. [...] (Eugène Dela-
croix, Diário p.97)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.