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Projeto Pós Doc 2023 - Rita Lima

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

CENTRO DE ARTES HUMANIDADES E LETRAS


CURSO DE CINEMA E AUDIOVISUAL

Processos de criação fotográfica: diálogos entre fotografia, representações visuais e


relatos de viagem da Expedição de Viagem de Carl Friedrich Von Martius e Johann
Baptist von Spix pela Bahia (1817-1820)_ período do Brasil Colônia.

Projeto de Pós-Doutoramento da Profa. Dra. Rita de Cássia Gomes Barbosa Lima, do Curso
de Cinema e Audiovisual da UFRB, apresentado ao Programa de Pós Graduação da Escola de
Belas Artes da UFBa., com supervisão do Prof. Dr. Edgard Mesquita de Oliva Junior, a
começar em Julho de 2023.

Maio de 2023
1

RESUMO

A partir de 1810, com a transferência da Corte portuguesa para o Brasil. D. João VI abre o comércio marítimo
com as nações amigas, que tem como consequência, além do incremento no comércio entre as nações, a vinda
de muitas delegações de artistas, cronistas, cientistas e viajantes europeus para cá. O objetivo além da troca
comercial era também a construção de representações e imagens do Brasil, pelo olhar do "outro" europeu, e,
também, como passamos a nos ver pelo olhar deles. A expedição dos naturalistas Spix e Martius chega ao Brasil
em 1817, acompanhando a comitiva da Arquiduquesa Leopoldina, futura esposa do Príncipe herdeiro Pedro II.
A expedição se insere no que Sérgio Buarque de Holanda chamou de "Novo descobrimento do Brasil"1 que
incluía um projeto civilizatório mais científico e com as nossas paisagens descritas pelo olhar estrangeiro como
"quadros da natureza", unindo arte, filosofia e ciência. Spix e Martius entre 1817 e 1820 percorreram mais de
10000km por todo o Brasil, e este projeto vai se concentrar na viagem deles pela Bahia, através de pesquisa e
análise da iconografia registrada em imagens na passagem pela região, bem como os diários e textos produzidos
nesse período. Esse material será uma das bases para o processo de criação fotográfica.

Este processo é também analisado por historiadores e pesquisadores como um período de conflito entre a
memória do passado brasileiro e os discursos de exaltação da natureza para a construção de imagens da nação
brasileira. A historiadora Lilia Schwarcz destaca as relações entre história e memória como conflitivas e
fundamentais para a construção de narrativas políticas, e destaca as obras de Luiz Zerbini na reelaboração do
quadro "A Primeira Missa" de Victor Meirelles (1832-1903) realizada na exposição "Histórias Mestiças", no
Instituto Tomie Ohtake2, com o trabalho "Primeira Missa - 2014", reinventando a imagem e a própria narrativa
dos primeiros dias do encontro entre invasores e indígenas no início do processo colonial brasileiro. Esse
processo, segundo a autora, é uma tendência atual de releitura do período colonial por vários artistas visuais,
também na literatura, etc.

Outro artista, dessa vez o fotógrafo Cássio Vasconcellos, foi também um dos motivadores para inventar e colar
as peças do quebra cabeça deste trabalho. O fotógrafo fez a exposição "Viagem Pitoresca ao Brasil"3,na
exposição Nous Les Arbres, em Paris, 20204 série inspirada nos pintores europeus que vieram retratar o Brasil
no início do século XIX, entre eles Johann Moritz Rugendas, Jean-Baptiste Debret, Hercules Florence, Conde de
Clarac, Aimé-Adrien Taunay, Carl von Martius, entre outros. Também esses trabalhos através do suporte
fotográfico, fazem um diálogo com o tema do período aqui pesquisado e os suportes entre pintura e fotografia.

1
Buarque de Hollanda, Sérgio, A Herança colonial e sua desagregação, In: Buarque de Hollanda, Sérgio (org).
História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo; Difel, 1976
2
Histórias Mestiças. https://www.institutotomieohtake.org.br/exposicoes/interna/historias-mesticas (acesso em
17/05/2023)
3
Vasconcellos, Cássio. https://www.cassiovasconcellos.com.br/galeria/viagem-pitoresca-pelo-brasil/
4
Nous les Arbres . https://www.fondationcartier.com/en/exhibitions/nous-les-arbres
2

Ambos os artistas serão referência para meu trabalho de criação das imagens fotográficas. Quero pesquisar
também outros artistas e seus processos criativos, como Ayrson Heráclito, Rosângela Rennó, Adriana Varejão e
Rosana Paulino.

A proposta metodológica vai se dar no processo de pesquisa e análise das fontes, como também com a entrevista
dos processos criativos dos artistas já mencionados. Após esse trabalho e em diálogo com a supervisão do Edgar
Oliva, vamos trabalhar na criação de um dispositivo fotográfico que pode incluir viagens no percurso feito pelos
naturalistas na Bahia, recuperação de imagens pictóricas e/ou fotográficas do período, etc. Após a produção
desse material faremos a pós produção final das imagens, e por fim o relatório da pesquisa realizada.

Fontes dos Acervos : MS, Itaú Cultural, Instituto Martius/ Staden, IHGB, etc
3

INTRODUÇÃO

Sou fotógrafa amadora há mais de 40 anos. Já tive fotografias na Galeria de Arte Fabio Penacal e também na
Sala de Arte, sempre incentivada pelo querido Marcelo Sá. Mas por vários motivos nunca me profissionalizei
como fotógrafa, apesar de ter essa prática presente em quase toda minha vida, principalmente nas viagens
muitas vezes programadas para fotografar. Neste momento resolvi unir este projeto de pesquisa, que faz parte da
minha vida acadêmica, com o tema da Expedição pela Bahia no Brasil Colônia de Von Martius e Spix, em
diálogo com o processo de criação fotográfica.

Dito isto, vamos entender um pouco mais sobre a expedição. A partir de 1810, com a transferência da Corte
portuguesa para o Brasil. D. João VI abre o comércio marítimo com as nações amigas, que tem como
consequência, além do incremento no comércio entre as nações, a vinda de muitas delegações de artistas,
cronistas, cientistas e viajantes europeus para cá. O objetivo além da troca comercial era também a construção
de representações e imagens do Brasil, pelo olhar do "outro" europeu, e, também, como passamos a nos ver pelo
olhar deles. A questão dos pontos de vista permanecem atuais, na medida em que o lá e o aqui, os discursos
sobre o centro e as margens perduram nas trocas interculturais5. Ana Maria Belluzzo, no texto "A Propósito do
Brasil dos Viajantes", já aponta para imagens das Américas que circulam desde o Séc. XVI, e nascem do
imaginário visual que têm como origem a transcrição dos textos para o mundo das figuras. As visões do paraíso
das terras brasileiras, principalmente a natureza exuberante, são também tratadas como "motivos edênicos" para
o descobrimento e colonização do Brasil. 6

A expedição dos naturalistas Spix e Martius se insere em um contexto um pouco diferente do que apontado
acima, já que eles chegam ao Brasil em 1817, acompanhando a comitiva da Arquiduquesa Leopoldina, que vem
se casar com o Príncipe herdeiro Pedro II. Os naturalistas viajam às expensas do Rei Maximilian Joseph I da
Baviera, sogro do Imperador da Áustria Francisco I, pai da futura princesa do Brasil. A "carona" dos naturalistas
se deveu a esse parentesco entre os dois monarcas. A vinda deles e dos demais cientistas e artistas da época,
estão inseridas no que foi chamado de "Novo descobrimento do Brasil"7 que incluía um projeto civilizatório
mais científico e com as nossas paisagens descritas pelo olhar estrangeiro como "quadros da natureza", unindo
arte, filosofia e ciência Esse projeto de abertura dos portos é responsável também pela chegada de imigrantes de
todos os pontos da Europa e América, ampliando o leque de profissões e marcando a miscigenação como um
ponto central da nossa identidade enquanto povo.

O imaginário ligado às maravilhas da natureza, encarnados nas imagens das lendas da Atlântida, estão nas
mentes dos viajantes que chegam nas Américas. Em julho de 1817 a comitiva chega ao Rio de Janeiro e, Spix e
Martius passam 06 meses na capital da época preparando a expedição pelo interior do Brasil. Outros naturalistas

5
Brasil do Viajantes - https://www.revistas.usp.br/revusp/issue/view/1882 (acesso em 17/05/2023)
6
Buarque de Hollanda, Sérgio. Visão do Paraíso. Brasiliense, SP. 1992
7
Buarque de Hollanda, Sérgio, A Herança colonial e sua desagregação, In: Buarque de Hollanda, Sérgio (org).
História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo; Difel, 1976
4

e artistas estavam na mesma na capital da Colônia, como John Mawe, G. Freyreiss, Príncipe Wied Von Neuwied
(Alemães e Austríacos) e August Saint Hilaire, Debret e Nicolas Antoine Taunay (Missão Francesa 1816). A
chegada de Spix e Martius ao Rio de Janeiro traz reações conflitantes sobre a paisagem carioca, experimentada
como cosmopolita e com uma natureza exuberante. Von Martius, mais tarde, acusa em seus escritos a presença
dos negros operários e escravizados como uma "turba variegada de negros e mulatos"8, vivido como um choque
de realidades entre o Brasil e a Europa. Esses contrastes de percepções entre a natureza e os nativos, indios e
negros, estão documentadas na maior parte dos escritos dos seus comentadores e dos próprios naturalistas. Este
é um ponto importante a ser pesquisado no material iconográfico e textual para diálogo com as imagens a serem
produzidas. Também a relação de escala entre os humanos e a paisagem, descreve sempre uma paisagem muito
grande em tamanho e forma e os humanos (nativos) sempre diminutos. Tratarei mais adiante os trabalhos de
Zerbini e de Vasconcellos, como uma forma de retomar a história pelo avesso nas imagens documentadas em
alguns dos seus trabalhos e que tomo como referência.

A expedição, considerada por muitos como "Vôo de Ícaro" pela sua extensão e magnitude, começa 9em
dezembro de 1817, de forma independente pelos dois naturalistas bávaros. Sob chuvas, insetos, calor, noites mal
dormidas, eles percorrem 10000 km do território brasileiro, no lombo de burros, acompanhados de tropeiros e
nativos. Passaram por São Paulo, Minas Gerais, Vila Rica e Distrito Diamantino, seguindo ao norte pelo Rio São
Francisco alcançando o Vão do Paraná até Goiás. Voltando pela Bahia visitaram em novembro de 1818 as
cidades de Salvador, Cachoeira, Recôncavo Baiano, Ilhéus, continuando pelo Sertão baiano até alcançar as
províncias de Pernambuco, Piauí e Maranhão. Assolados por febres, em Julho de 1819 navegaram até Belém e
de lá se embrenharam pela extensa Bacia Amazônica. Durante oito meses investigaram separadamente as bacias
dos rios Amazonas, Solimões, Negro e Japurá. Retornaram a Belém em abril de 1820 e de lá para a Alemanha
em dezembro do mesmo ano. No livro Viagens ao Brasil, editado em Munique de 1823 a 1831, em três volumes,
lemos no prefácio da Edição brasileira escrito por Theodoro Sampaio em 191610, o seguinte: "Von Martius
viajou pelos sertões da Bahia, e essa parte das suas relações de viagem, que tanto nos interessa, jamais se
verteu para o português, ou para língua mais acessível ao nosso meio latino. Poucos entre nós a conhecem. " E
se pergunta: "O que era o sertão da Bahia no séc. XIX?". Neste volume 2 da Viagem ao Brasil encontramos
todas as informações publicadas nesse "Através da Bahia", com descrições detalhadas da passagem dos
naturalistas pela Bahia. Noto aqui a ausência de trabalhos de pesquisa e ou análise, ao menos com os autores e
comentadores da Expedição de Spix e Martius pela Bahia, com os quais venho trabalhando, principalmente com
as imagens e relatos produzidos nesta região, o que me dá mais vontade de realizar esse projeto. Os livros
Viagens ao Brasil (1, II, III) estão todos publicados pela Biblioteca do Senado, com acesso online para
download11. Somente o primeiro volume foi escrito a quatro mãos por ambos os viajantes. Spix faleceu 06 anos

8
Guimarães, Manoel Luiz Salgado, https://www.scielo.br/j/hcsm/a/wqzPMLQbtcRS5XmjKYvtdbC/?lang=pt
(acesso em 1/05/2023)
9
Macknow Lisboa, Karen. A nova Atlântida de Spix & Martius: Natureza e Civilização na Viagem pelo Brasil
(1817-1820), 1ª ed. São Paulo: Editora FAPESP, 1997
10
Von Spix e Von Martius. Através da Bahia (acesso em 17/05/2023)
https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/200/1/118%20PDF%20-%20OCR%20-%20RED.pdf
11
Spix e Von Martius. Viagem pelo Brasil (Tomos I, II, III) https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/573991
(acesso 17/05/2023)
5

após sua chegada à Alemanha, tendo escrito somente o primeiro volume e os dois primeiros capítulos do
segundo. A obra é de autoria de ambos, apesar das circunstâncias.

Martius, botânico, com 23 e Spix, zoólogo, com 36 anos, passaram quatro anos de suas vidas nessa expedição,
sinteticamente descrita acima, e produziram uma obra extensa e importante de conteúdo etnográfico, histórico,
artístico e científico sobre o Brasil. Eles, como botânicos e zoólogos, utilizavam o desenho e a pintura para
registrar as espécies e paisagens, mas, também foram auxiliados no registro da expedição pelo pintor Thomas
Ender e o fotógrafo George Leuzinger, que faziam parte da Missão austríaca. Esses acervos iconográficos e
fotográficos encontram-se em grande parte reunidos no Instituto Moreira Salles, no Instituto Martius-Staden,
bem como no Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, encontram-se mapas e referências sobre as viagens da
expedição. Em 1844 Von Martius ganhou o concurso do IHGB com o texto "Como se deve escrever a História
do Brasil"12, publicado pelo mesmo IHGB em 1845. Portanto, a formação de ambos era ampla e humanista,
apontando, principalmente em Martius, o desejo de abarcar vários aspectos da sociedade brasileira. Além dos
textos já mencionados, segue uma relação da produção de ambos nesse período.

Von Spix empenhou-se em destacar o conjunto de saberes sobre a vida animal (em especial dos pássaros) no
Brasil e todas as formas animais reunidas em uma revista, Spixiana, por ele criada. Vide a pintura sobre As
Formas Animais da América Tropical, mas também “A Coleção Zoológica” que a expedição reuniu com 85
espécies de mamíferos, 350 pássaros, 130 anfíbios, 116 peixes, 2.700 insetos, 80 aranhas e 80 crustáceos. Ao
morrer, em 1826, von Spix já havia publicado, em 5 volumes ilustrados, a coleção dos animais vertebrados.
Estes continham um total de 488 espécies, das quais 35 eram primatas, 17 morcegos, 289 pássaros, 42 lagartos,
44 cobras,18 tartarugas e 53 rãs13.

Von Martius levou para Munique aproximadamente 20.000 amostras contendo 6.500 espécies de plantas. Mais
de 70 gêneros e 400 espécies foram aqui descritos pela primeira vez. Seu legado está reunido em duas obras
referência para o mapeamento botânico dos biomas brasileiros: A Flora Brasiliensis14 e a História Naturalis
Palmarum15. Ele ficou conhecido como patrono dos cinco biomas brasileiros, porque os definiu antes que o
conceito de bioma fosse conhecido ou inventado: Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado, Amazônia e Pampa. Ele os
denominou com nomes das ninfas gregas pelas suas características aquosas, de floresta, úmidas, secas, etc.

Em geral, o que a maior parte dos pesquisadores e comentadores da expedição dos naturalistas destaca, é a
compreensão do registro da natureza fazendo parte de uma experiência sublime e espiritualizada ao mesmo

12
Von Martius. Como se deve escrever a História do Brasil.
https://umhistoriador.files.wordpress.com/2012/03/martius-carl-friedrich_como-se-deve-escrever-a-histc3b3ria-
do-brasil.pdf (cópia acesso em 17/05/2023)
13
Diener, Pablo & Costa, Maria de Fátima (coordenadores. Karl Friedrich Philipp von Martius, 1ª ed. Rio de
Janeiro: Fundação Miguel Cervantes, 2012
14
Von Martius. Flora Brasiliensis. http://florabrasiliensis.cria.org.br/ (disponivel digitalmente para pesquisa _
acesso 17/05/2023)
15
Von Martius. Historia Naturalis Palmarum. (acesso digital em 17/05/2023)
https://www.biodiversitylibrary.org/item/9916#page/11/mode/1up
https://www.biodiversitylibrary.org/item/9917#page/9/mode/1up
6

tempo que seguiam a máxima de Lineu de que "toda natureza pode entrar em uma taxonomia"16. Contrastando
com o rigor classificatório sob influência de Lineu, os viajantes naturalistas sofreram a influência de Alexander
Von Humboldt, Goethe e Schiller, que entendiam a experiência com a natureza como um todo orgânico e
espiritualizado, um ser vivo que jamais pode ser compreendido de forma matemática. Daí os "quadros da
natureza" que procuravam captar em textos e imagens as sensações da experiência com a natureza. O trabalho
da escrita era compreendido como uma descrição literária, para ser visualizada com todas as sensações vividas
pelo testemunho de quem as experimentou. A estetização do mundo natural é construída pelo olhar do
explorador, a partir de um diálogo entre ciência e poesia, inclusive nos registros iconográficos. As relações entre
imagem e escrita podem ser observadas como fontes complementares dos relatos visuais e literários dessa
expedição. E serão uma importante fonte de recriação das imagens fotográficas. Essas descrições atravessadas
pelas sensações do olhar do observador estão presentes nos textos de Viagem pelo Brasil.

Um outro ponto importante são as considerações pelos pesquisadores, sobre os brasileiros, notadamente indios e
negros. Para a historiadora Karen Macknow Lisboa, no cap. V, tópico “Negros e Índios no Brasil: um obscuro
enigma?”, da sua tese de mestrado já citada, a autora denuncia o eurocentrismo preconceituoso dos dois
viajantes bávaros. A forma de se referir aos negros e indios eram em geral como "desleixados", "primitivos",
etc. Também no livro de Von Martius sobre "Como escrever a história do Brasil" o autor defende a miscigenação
das raças branca, indigena e negra, mas dá o primeiro lugar nessa hierarquia aos brancos e depois aos indios e
negros. Ele esboçou um projeto historiográfico capaz de produzir uma identidade específica da nação em
construção. Três raças humanas colocadas lado a lado no Brasil é um acontecimento singular até então
desconhecido na história antiga, segundo Martius.

Em outro texto da mesma autora17 ela contextualiza no tempo a relação de Von Martius com indios e negros,
contando um sonho que Martius teve com Lineu no qual sobrevoava o Brasil passando pelo mercado de
escravos em Salvador. Na conversa entre os dois ele comenta da mágoa pela escravidão e falta de dignidade que
sofrem os negros. Em outro momento, Martius escreve um romance indianista "Frei Apolônio : um romance do
Brasil". em que reconhece e se identifica com os índios, como "carne da minha carne e espírito do meu espirito".
Também reconhece que o processo civilizatório leva à destruição da natureza e do meio ambiente. Fatos
presentes e recorrentes na história brasileira, que apontam para relações entre história, esquecimento e
trauma18como constituintes da nossa identidade enquanto povo e nação.

História, Arte e Memória

O crítico literário e escritor Márcio Seligmann, pesquisador e professor da Unicamp, na apresentação do seu
mais recente livro (2022), cita um trecho da Genealogia da Moral do filósofo alemão Friedrich Nietzsche
(1844-1900) para explorar as relações entre esquecimento e memória:

16
Foucault, Michel. As palavras e as Coisas. Martins Fontes, São Paulo, 1985.
17
Lisboa, Karen Macknow. O Brasil dos naturalistas Spix e Martius. - Jul 2015 (acesso em 17/05/2023)
https://revista.an.gov.br/index.php/revistaacervo/article/view/108
18
Seligmann-Silva, Márcio. A virada testemunhal e decolonial do saber histórico. Editora Unicamp.
Campinas, 2022
7

"Como fazer no bicho-homem uma memória? Como gravar algo indelével nessa inteligência voltada para o
instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnação do esquecimento? [...] Grava-se algo a fogo, para que
fique na memória: apenas o que não cessa de causar dor fica na memória. "

Algumas décadas mais tarde Freud teorizou essa dor como trauma, “uma experiência que traz à mente, em um
curto período de tempo, um aumento de estímulo grande demais para ser absorvido”. (Caruth: 1995; 91-112). A
experiência do trauma, individual ou coletiva, tem como marca a impossibilidade de simbolização da
experiência vivida, já que as marcas do trauma permanecem como fragmentos de memórias resistentes a revelar
a história desse trauma. As memórias traumáticas, sejam de eventos históricos, de guerra, ou aparentemente
individuais, pelo seu caráter de repetição inconsciente, contaminam e resvalam por gerações. Os exemplos de
apartheid na Alemanha Ocidental e Oriental atuais, apesar da queda do muro de Berlim há trinta anos atrás, são
exemplos de como persiste na ruptura traumática, a repetição de eventos que permanecem na mente coletiva e
também dos indivíduos por gerações. Veremos mais adiante como olhar a história a contrapelo, a nossa história
colonial, tem sido uma estratégia da arte para construir uma simbolização da história vivida nesse período, que
registre a imagem, a voz e os saberes dos povos e da natureza também como protagonistas. É o que propõe o
saber histórico na perspectiva decolonial. Para o autor, o papel da fotografia é um poderoso meio de inscrição
desse apagamento traumático. É dele ainda a citação;

"Maria Eugenia Cabaleda: “Realmente creio que as fotografias são a única forma pela qual podemos
visualizar a desaparição forçada na Colômbia e especialmente em Antioquia, onde temos mais desaparecidos”.
Museo Casa de la Memoria, Medellín, Antioquia, Colombia.

Ana González: “Não ter foto da família é como não ser parte da história da humanidade”. La ciudad de los
fotógrafos, documentário, Sebastián Moreno, 2006" (Seligmann-Silva :2022; 11)

Também a historiadora Lilia Schwarcz destaca as relações entre história e memória como conflitivas e
fundamentais para a construção de narrativas políticas, escritas ou visuais - testemunhos e ou processos
artísticos19. Nesse contexto destaca a pintura histórica como gênero que nos Sécs. 18 e 19, foram importantes no
classicismo, associado a uma arte a serviço do Estado, citando explicitamente o período da Revolução Francesa
(1789-1799). Esse contexto se estende para a arte neoclássica, que tem a antiguidade como modelo a ser
seguido, e busca na paisagem e na natureza a representação de uma imagem da nação. O mesmo aconteceu no
Brasil no período em que nossos naturalistas viajantes, artistas e cientistas estiveram por aqui.

A partir dos anos 2000 vários artistas brasileiros, pertencentes a diversas gerações, têm dialogado com a história,
se referindo ou incluindo documentos do passado, para compor suas obras. É o que a historiadora chama de um
dispositivo de trabalho com a história como contramemória.

19
Schwarcz. Lilia Moritz. Luiz Zerbini - A história nunca é a mesma, in "História como gatilho". MASP, São
Paulo, 2022
8

Em 2014, o artista plástico Luiz Zerbini, participou da coletiva "Histórias Mestiças", com curadoria de Adriano
Pedrosa e Lilia Schwarcz, no Instituto Tomie Ohtake20, com o trabalho "Primeira Missa - 2014". Nessa obra,
Zerbini questiona o imaginário produzido pela célebre pintura Primeira missa no Brasil (1861), de Victor
Meirelles (1832-1903), reinventando a imagem e a própria narrativa dos primeiros dias do famigerado encontro
entre invasores e indígenas no início do processo colonial brasileira. A obra de Meirelles, uma pintura histórica
que marca uma representação da fundação da nação brasileira, tem como inspiração a Carta de Pero Vaz de
Caminha quando do descobrimento, que narra a celebração da primeira missa no Brasil. A tela segundo os
curadores Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz, foi também inspirada na tela Premiere Messe en Kabylie (1854),
de Horace Vernet, apresentada no Salão Parisiense de 1855 para simbolizar o modo exemplar da colonização
francesa no continente africano. Segue abaixo a imagem;

Da mesma forma, a imagem de Meirelles exalta a convivência pacífica e harmoniosa da dominação portuguesa e
da igreja católica sobre os indígenas, tendo no horizonte a exuberante e pujante natureza da nova nação. Segue
abaixo a imagem;

20
Histórias Mestiças. https://www.institutotomieohtake.org.br/exposicoes/interna/historias-mesticas (acesso em
17/05/2023)
9

Já na tradução de Zerbini da Primeira Missa, temos uma cena com uma índia com o rosto e seios pintados de
vermelho guerra no primeiro plano, abocanhada por um grande peixe que se faz de pele, apontando para um
devir animal, peixe-mulher. Toda a cena se compõe de elementos da floresta, canoas, restos de cascas de
madeira, e ao fundo um barco que significa a presença dos portugueses de maneira menos engrandecida e
pomposa. No primeiro plano, divide a cena com a índia peixe um fidalgo portugues, sentado em uma cadeira de
palhinha com as mãos amarradas. A imagem da nação muda de figura, colocando muito mais ruído na leitura
plácida da tela original de Meirelles.

O artista plástico Zerbini me interessa muito pela forma como vem trabalhando a história brasileira no período
colonial, mas também pelas colagens e misturas de técnicas e imagens nas suas telas. Quando estive em Inhotim
conheci um dos seus trabalhos que mais gosto. É da Exposição "Amor" de 201221. A tela de Zerbini abaixo, tem
uma composição quase fotográfica, fazendo uma montagem de elementos e texturas, com natureza, ladrilhos,

21
Exposição Amor - Luiz Zerbini. https://automatica.art.br/livros/catalogo_zerbini.pdf
10

elementos dispersos, madeira, que gosto muito e pretendo realizar entrevistas com o artista sobre seu processo
de criação. Quando o conheci, no ano passado, pude visitar seu ateliê na Gávea, RJ. Conversamos sobre seu
processo de colecionador de restos da natureza no Jardim Botânico e como se identificava com os naturalistas
viajantes. Uma coincidência sincrônica e afetuosa.

Mar do Japão, 2011 acrílica sobre tela 300 x 400 cm

Outro artista, dessa vez o fotógrafo Cássio Vasconcellos, foi também um dos motivadores para inventar e colar
as peças do quebra cabeça deste trabalho. Através de Zerbini, conheci seu trabalho, pela participação de ambos
na exposição Nous Les Arbres, em Paris, 202022. O Cássio Vasconcellos fez a exposição "Viagem Pitoresca ao
Brasil"23, série inspirada nos pintores europeus que vieram retratar o Brasil no início do século XIX, entre eles
Johann Moritz Rugendas, Jean-Baptiste Debret, Hercules Florence, Conde de Clarac, Aimé-Adrien Taunay, Carl
von Martius, entre outros. Fiquei muito impactada com as fotos da exposição, pela beleza das imagens, pela
força da natureza representada nelas e pelo trabalho com o suporte fotográfico que parecia fazer uma referência
às imagens pictóricas que foram a referência para as fotos, mas que não perdiam seu "caráter" fotográfico. Não
sei bem conceituar esse "caráter" fotográfico que me intrigou nas imagens do Cássio. Sei que as imagens foram
feitas no suporte digital, e em entrevista breve com o artista ele confirmou não ter havido manipulação digital,
mas uma técnica por ele desenvolvida que expande o contraste da imagem, entre outras técnicas. Pretendo
também entrevistar o artista conversando sobre os processos de criação e estratégias de viagem e pesquisa para
captar as imagens. Cássio comentou que não fez o mesmo trajeto dos pintores, mas que procurou semelhanças

22
Nous les Arbres . https://www.fondationcartier.com/en/exhibitions/nous-les-arbres
23
Vasconcellos, Cássio. https://www.cassiovasconcellos.com.br/galeria/viagem-pitoresca-pelo-brasil/
11

com as imagens da natureza nas pinturas e a natureza ainda hoje encontrada nas reservas e parques nacionais
com visitação restrita. Seguem algumas imagens abaixo;

Ambos os artistas serão referência para meu trabalho de criação das imagens fotográficas. Quero pesquisar
também outros artistas e seus processos criativos, como Rosângela Rennó, Adriana Varejão e Rosana Paulino.
12

PROPOSTA METODOLÓGICA

A metodologia que pretendo seguir será processual, sendo definida a partir do caminho trilhado e do encontro
com o que as fontes iconográficas e textos sobre a viagem dos naturalistas e outros textos teóricos sobre o
período colonial no Brasil forem apontando. Também a pesquisa e análise das imagens e processos de criação
artística, bem como entrevistas com os artistas. Segue abaixo um cronograma com relação das atividades a
serem desenvolvidas;

Pós Doc Pesq. Pesq. Entrevistas Definição Viagens Criação Relatório


2023 Bibliográfica Iconográfica com Artistas de para Fotográfica/
dispositivo fotografar Pós
de criação Produção
fotográfica

Jul

Ago

Set

Out

Nov

Dez

Jan

Fev

Mar

Abr

Mai

Jun

Jul

Fontes dos Acervos : MS, Itaú Cultural, Instituto Martius/ Staden, IHGB, etc
13

Bibliografia:

Adriano Pedrosa e Lilia Schwarcz (curadores). A história nunca é a mesma. MASP, São Paulo, 2022
Buarque de Hollanda, Sérgio. Visão do Paraíso. Brasiliense, SP. 1992
_________________, Sérgio. A Herança colonial e sua desagregação, In: Buarque de Hollanda, Sérgio
(org). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo; Difel, 1976
Caruth, Cathy. Unclaimed Experience _ Trauma, Narrative and History. Baltimore, Johns Hopkins
University Press, 1995
Diener, Pablo & Costa, Maria de Fátima (coordenadores. Karl Friedrich Philipp von Martius, 1ª ed. Rio de
Janeiro: Fundação Miguel Cervantes, 2012
Foucault, Michel. As palavras e as Coisas. Martins Fontes, São Paulo, 1985.
Guimarães, Manoel Luiz Salgado, https://www.scielo.br/j/hcsm/a/wqzPMLQbtcRS5XmjKYvtdbC/?lang=pt
(acesso em 1/05/2023)
Macknow Lisboa, Karen. A nova Atlântida de Spix & Martius: Natureza e Civilização na Viagem pelo
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Seligmann-Silva, Márcio. A virada testemunhal e decolonial do saber histórico. Editora Unicamp. Campinas,
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