A Presença Egípcia No Mediterrâneo Antigo Deuses e Símbolos
A Presença Egípcia No Mediterrâneo Antigo Deuses e Símbolos
A Presença Egípcia No Mediterrâneo Antigo Deuses e Símbolos
deuses e símbolos
Dra. Margaret M. Bakos1 2
pastores, ou de uma fase primitiva para uma fase cultural avançada, através de um
processo de desenvolvimento autônomo. (DONADONI, 1990, p. 171).
Em consonância com Gordon Childe, Braudel inicia seu livro O espaço e a
história no Mediterrâneo com a proposta de colocar esse mar na categoria de uma
encruzilhada muito antiga e, assim, um caminho para se
... encontrar o mundo romano no Líbano, a pré-história na
Sardenha, as cidades gregas na Sicília, a presença árabe na
Espanha, o Islã turco na Iugoslávia. É mergulhar nas
profundezas dos séculos, até as construções megalíticas de
Malta ou até as pirâmides do Egito (1985, p.2).
Ainda, para Braudel, o Mediterrâneo é ‘uma boa ocasião para apresentar uma
‘outra’ maneira de abordar a história. Pois o mar, tal como podemos vê-lo e amá-lo, é,
acerca de seu passado mais surpreendente, o mais claro de todos os testemunhos’
(1985, p. 4).
A partir dessas premissas braudelianas, buscaram-se conhecimentos sobre o grau
de precocidade dos interesses que levaram os primeiros homens a enfrentar os desafio
da navegação no Mediterâneo, antes mesmo das cantorias dos aedos, fundadores da
mitologia helênica, cujos primeiros indícios estão registrados nas estórias fabulosas de
criação do poder divino do Faraó. A mais antiga narrativa de navegação no Mar
Mediterrâneo aparece descrita no mito de Heliópolis. De cunho etiológico, cosmológico
e político, esse relato conta a viagem, nos inícios do IV milênio a. C., do esquife, com o
corpo do deus do bem, Osíris, morto pelo irmão malvado, Seth, subindo o rio Nilo e
navegando até chegar ao porto de Biblos.
No fundamento econômico desse mito, encontramos o imaginário dos escribas
egípcios ao exteriorizarem a necessidade de grandes quantidades de cedro para túmulos,
barcos e móveis, como criteriosamente discrimina Childe (CHILDE, 1978, p. 168). Foi
no tronco de uma dessas árvores que o sarcófago de Osíris se aninhou ao chegar às
costas da Fenícia. Ele dali foi cortado e transportado para formar a coluna do palácio do
rei de Biblos, sendo apenas dali arrancado e doado pelo rei de Biblos a Ísis, para que o
levasse de volta ao Egito, graças às práticas mágicas da esposa divina.
As desgraças da enéade, ou seja dos nove personagens da família do mito de
Heliópolis, precedem, assim, às primeiras epopéias homéricas no mar Mediterrâneo: os
membros reais egípcios foram cultuados em muitos territórios à margem do mar
Mediterrâneo, por tanto tempo que se tornaram também famosos na Roma antiga. Os
três ícones mais importantes do Egito antigo, fundantes desse mito são: os raios do deus
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sol principal, Rá; os obeliscos e as esfinges, imagens que protegiam os faraós mortos; e,
finalmente, as pirâmides, patrimônio da humanidade, também significando raios solares,
guardando os túmulos dos faraós. Essas últimas são as únicas maravilhas da antiguidade
ainda existentes.
Esses três ícones foram copiados e multiplicados à exaustão, com uma
frequência apenas comparável a de um outro símbolo: o olho de Hórus. Esta figura, que
significa o olho do deus Hórus, o filho concebido por Ísis de seu marido morto e
mumificado, restaurado por ela após ser ferido pelo tio Seth em um dos episódios da
luta pela sucessão no trono do Egito que durou quarenta anos, foi revestido de uma
força estética, imagética e simbólica tão fenomenal que, até hoje, sua imagem possui
poderes apotropaicos reconhecidos nos quatro cantos do mundo. As imagens desse olho
de Horus foram encontradas desde a alvorada dos tempos, na expressão de Braudel, em
Chipre, Creta, Sicília, Córsega, Malta, em diferentes formatos e materiais. Junto com o
olho viajou a figura do ankh, a chave da vida, e um deus simpático, protetor das
mulheres e das crianças, anão, conhecido como Bês, que alguns egiptólogos dizem mais
parecer um gênio que uma divindade.
Ciro ilustra o seu texto com diversas correspondências encontradas nos arquivos
de Tell el Amarna e cita duas vindas do rei de Chipre que servem de comprovação das
trocas entre o Egito e este reino:
Esses homens são meus mercadores. Meu irmão,
deixá-los ir em segurança e prontamente. Ninguém deve,
exigindo algo em teu nome, aproximar-se de meus mercadores
ou de meu barco (CARDOSO, 2000, p. 7).
Ciro alerta para a pertinência da tese desenvolvida por Mario Liverani sobre a
tendência a uma complementaridade entre diferentes áreas do Oriente Próximo no que
concerne às trocas, devido à concentração regional exclusiva ou muito majoritária de
certas produções mais importantes.Assim, segundo esse autor:
... a Síria-Palestina se especializava em azeite de oliva, madeira
e tecidos tingidos de púrpura; o cobre tinha duas zonas
referenciais de maior peso: a ilha Chipre a oeste, e, a leste, a
região do Golfo Pérsico (Omã-Magan); o caso do estanho é
menos claro, mas pareceria que o Irã em certos períodos era a
zona de referência; o Egito controlava as rotas de ouro, bem
como as do incenso e da mirra no país de Punt (nesta época
provavelmente a Somália e talvez o sul da Arábia) por sua
navegação no mar Vermelho; por fim, o lápis-lazúli vinha do
atual Afeganistão. Um dos circuitos comerciais, dentro do que
já vimos acerca da fragmentação dos contatos a longa
distância, é representado pelas rotas (fluviais e marítimas)
controladas pelo Egito no tocante ao comércio de ouro e
incenso (CARDOSO, 2000, p. 7).
Imagem (4) Taweret como gênio minoano porque porta o jarro apenas
Após estudos exaustivos, Judith Weingartner conclui que o gênio minóico - selo
de knossos, mamas pendentes, abdômen e umbigo proeminentes, apêndice dorsal, patas
leoninas, semelhantes à Taweret – tinha realmente origem na deusa egípcia e que o jarro
de alça única e mão na base constituíam-se minoanização da imagem.
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Ela sintetiza suas conclusões com a seguintes palavras; “É acordo geral que a
forma do Gênio Minóico derivou da deusa Egípcia Taweret, muito embora ela pareça
ter sido transformada de uma deusa para um “gênio” protetor pelas mãos dos
Sírios...”.
Fundamenta essa conclusão nas seguintes contestações:
• Com exceção do jarro, de uma alça só e a forma de pegar, os proto-gênios
minóicos possuem paralelismos com o aspecto da Taweret de cerca 1800 a 1700
a.C;
• Os minóicos importaram ambas as formas egípcias da Taweret, com cabeça de
hipopótamo ou de leão;
• Na prática, os minóicos sabiam que o demônio com cabeça de hipopótamo era o
mesmo que aquele com cabeça de leão. Eles podiam carregar o jarro ou um
animal para sacrifício e ambos poderiam servir divindades ou heróis;
• O jarro era, provavelmente, o atributo original do gênio minóico.
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Imagem (5) Vinheta do Livro dos Mortos de Userhetmos com deusa Tawret no centro, com o cetro was
na mão direita, e o de proteção na esquerda (XIX Dinastia, +- 1300 a.C)
Palavras de conclusão
As duas mais importantes divindades adoradas pelos operários de Deir el
Medina, cujas origens muito provavelmente estão na Núbia, Bês e Taweret
,
ultrapassaram os limites da pequena vila, fundada no início da XVIII dinastia para
abrigar os trabalhadores que iriam construir as tumbas dos faraós, suas rainhas e nobres,
no Vale dos Reis, e sua adoração se espalhou pelo mundo mediterrânico
contemporâneo3.
Deir el Medina era uma pequena vila situada no Alto Egito, em um estreito vale,
à margem esquerda do Nilo, em frente a Tebas, cidade desenvolvida à margem direita
do rio. Ocupava a área compreendida entre dois santuários, Karnak, ao norte, e Luxor,
ao sul, distantes um do outro aproximadamente 4 km, havendo permanecido com essa
configuração cerca de 450 anos, o que abarca o período da XIX e da XX dinastia. A vila
viveu sua fase de maior prosperidade no decorrer da XIX dinastia.
A história da vila explica-se pela importância conferida aos enterramentos na
cosmovisão dos antigos egípcios. Eles acreditavam em uma vida após a morte, obtida
pela construção de tumbas e pela execução por parte dos vivos dos rituais funerários.
Daí por que, durante o antigo e o médio império, era costume enterrarem-se os faraós e
pessoas representativas do Baixo Egito em pirâmides, como as de Gizah - Queops,
Quefrem e Miquerinos - hoje, ícones do antigo Egito.
Com a invasão do Egito pelos hicsos, por volta de 1640 a.C., os egípcios
perceberam que a região do Delta era vulnerável aos ataques estrangeiros. Os hicsos da
XV e XVI dinastias reinaram em paralelo com dinastias egípcias: a XIII dinastia egípcia
foi vencida pelos hicsos; daí por que a mais importante foi a XVII, pois, durante o
período por ela subsumido, Kamoses venceu os hicsos e destruiu a cidade de Avaris, a
capital dos chamados reis pastores. Na sequência, os príncipes vitoriosos de Tebas
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Em primeiro lugar é preciso situar Dei el Medina. Em árabe, esse nome significa O mosteiro da vila; foi
o local em que viveram os trabalhadores encarregados da decoração dos templos e tumbas dos faraós, de
seus familiares e da nobreza egípcia em geral, a partir da XVIII dinastia (1550-1307 a.C.) e, ao longo das
XIX e XX dinastias, até o início do chamado 3º período intermediário. A morte de Ramsés III determinou
o final da XX dinastia, fase conhecida como Renascença. Nesse período, a área tebana tornou-se palco de
disputas de poder entre os vizinhos do Egito, os líbios e os núbios que, posteriormente, iriam fundar as
XXII e a XXVI dinastias, respectivamente. A tensão dos embates levou os egípcios ao abandono de
Tebas e ao retorno da corte para o Baixo Egito, com a criação da XXI dinastia (1070 a.C.). Nesse período,
a vila de Dei el Medina foi desocupada pelos trabalhadores que se refugiaram, até o final da XX dinastia,
no monumental templo funerário de Ramsés III, Medinet Habu.
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fundaram a XVIII dinastia, que se mudou para a área tebana, passando a enterrar os seus
mortos no sopé das montanhas; adotaram na construção dessas tumbas a forma
piramidal existente na área, onde se desenvolveu o vale dos reis e se encontram até hoje
as tumbas dos reis, rainhas e nobres.
Muitos deuses foram cultuados na região de Tebas. Hathor - a dama do Ocidente
- foi, sem dúvida, a primeira a ser ali adorada. Ela pode apresentar o aspecto do seu
animal sagrado, a vaca; de um instrumento musical, o sistrum; e/ou o de um pássaro, o
íbis negro. O segundo era Amon, companheiro de Hathor (sob a forma de carneiro);
Amenófis e a rainha Ahmés Néfertari, fundadores da vila, eram também adorados, bem
como todos os soberanos do Novo Império, que foram ali enterrados, tais como Tutmés
III. Eles possuíam capela e recebiam devoções regulares, juntamente com Ptah, o senhor
do vale das rainhas. Há, ainda, a deusa Mertseguer, que divide com Ptah o santuário do
vale das rainhas: trata-se de uma divindade possivelmente originária das entidades
funerárias, evocadas nos muros das tumbas do vale dos reis. Identificada notadamente
com a cúpula tebana, ela se tornou, por essência, a protetora de Deir el Medina, a quem
os habitantes recorriam, em busca de ajuda, homenageando-a com um incrível número
de monumentos edificados, e, privadamente, no seio mesmo de seus lares. Ela foi a
única divindade a quem as oferendas em trigo foram sistematicamente reservadas sobre
o montante global de rações distribuídas no reino de Ramsés IX. Seus avatares são
múltiplos: vaca, leão, esfinge, mas principalmente serpente. (VALBELLE, 1985, p.
315).
Um grande número de outras divindades gozavam ainda diferentemente do favor
popular, notadamente aquelas reputadas como benéficas para os lares e os nascimentos,
mas também para fenômenos próprios a ambiente composto por homens advindos de
horizontes diferentes. No período raméssido, viram-se se difundir crenças ainda mais
exóticas, como a prática de cultos nas províncias afastadas, muitos deles com origens
estrangeiras. (VALBELLE, 1985, p. 316).
Renenutet, seguidamente assimilada à Merteseguer, em razão da aparência
ofidiana que partilhavam, era especializada em questões domésticas e na puericultura.
Seus talentos lhe valeram provas de fervor, nas festividades mais importantes. Ela era
adorada na parte externa dos lares.
Entre todas, não obstante, a mais popular entre os trabalhadores era Tawret, que
simbolizava a fecundidade e, juntamente com o deus Bês, era não apenas objeto de
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devoções individuais inumeráveis, mas também das festividades mais importantes. Seu
animal sagrado, o hipopótamo, habitava o Nilo. A presença da deusa nas ilhas do
Mediterrâneo exemplifica com maestria o trânsito e a transculturação de divindades do
Egito antigo para além mar, como se acredita ter evidenciado. Negar empréstimos
culturais tomados do Egito antigo e transformados para uso das populações
contemporâneas é tão sério quanto ignorar que um obelisco localizado em qualquer
cidade brasileira, ou mesmo aqueles monumentais como o de Buenos Aires, e/ou de
Washington, foram construídos a partir dos sentidos que os obeliscos possuíam em seu
local de origem: o Egito antigo. Eles representam, portanto, uma forma de africanidade
no cotidiano do novo mundo. Pela atenção, muito obrigada!
Dra. Margaret Marchiori Bakos
Prof. Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Pós doutorado em Egiptologia – University College London
e-mail – mmbakos@portoweb.com.br
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