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A Presença Egípcia No Mediterrâneo Antigo Deuses e Símbolos

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A presença egípcia no Mediterrâneo antigo:

deuses e símbolos
Dra. Margaret M. Bakos1​ 2​

Os objetivos desta apresentação são de três ordens. A primeira diz respeito à


presença evidente e a influência, desde priscas eras, dos antigos egípcios nas expressões
culturais do mundo mediterrânico, bem como à prática dos seus contemporâneos de
apropriação dos seus símbolos e deuses. A segunda concerne à necessidade de discussão
da egiptomania, através de um estudo de caso referente à adoção e transformação de
uma divindade egípcia - Tawret – em um gênio minoiano, reforçando a idéia de que
essa prática de transculturação é a mais antiga e longeva da humanidade. Finalmente, a
terceira refere-se ao reconhecimento das origens egípcias do gênio minoiano, já
identificadas, como um uso com modificações de uma divindade egípcia pelo Sir Arthur
Evans (1851-1941), descoberta que sofreu restrições de parte de muitos sábios até que
pesquisas recentes impuseram no meio acadêmico, segundo Judith Weingarten, a
aceitação da posição do descobridor do mundo minóico.
É evidente, como ensina Braudel (1902-1985), que:
... antes de se tornar um elo, o mar Mediterrâneo foi por muito
tempo, um obstáculo. Uma navegação digna desse nome só
começou depois da segunda metade do terceiro milênio, com as
navegações egípcias em direção a Biblos, ou melhor, com o
desenvolvimento, no segundo milênio, dos veleiros das
Cíclades, (...) com quilhas, para enraizá-los de alguma forma
na água do mar (1985, p. 36).

Para esse autor, a compreensão do Mediterrâneo como um espaço-movimento


permite destacar a presença de elementos egípcios no universo cultural mediterrâneo.
Em 1936, Victor Gordon Childe (1892-1957), com a publicação do clássico
intitulado ​O homem makes himself​, demoliu o mito da existência de uma ​nova raça​,
responsável pela civilização. Após uma análise rigorosa dos achados, ele demonstrou
que as populações orientais progrediram de caçadores e coletores para agricultores e
1
À Maria Regina Cândido meus efusivos parabéns pelo seu trabalho, pela sua equipe, pela organização
primorosa deste I Encontro Internacional e II Nacional de Estudos sobre o Mediterrâneo Antigo e os meus
agradecimentos pelo honroso convite para proferir a conferência de abertura. Essa foi a oportunidade de
me dedicar ao tema da egiptomania na antiguiade, que há tempo me interessa muito, e me levou a buscar
o texto de Weingarten aqui analisado!
2
Professora do curso de História e do PPGH de História da PUC/RS. Bolsista Produtividade do CNPq.
2

pastores, ou de uma fase ​primitiva para uma fase cultural ​avançada​, através de um
processo de desenvolvimento autônomo. (DONADONI, 1990, p. 171).
Em consonância com Gordon Childe, Braudel inicia seu livro ​O espaço e a
história no Mediterrâneo com a proposta de colocar esse mar na categoria de uma
encruzilhada muito antiga e, assim, um caminho para se
... encontrar o mundo romano no Líbano, a pré-história na
Sardenha, as cidades gregas na Sicília, a presença árabe na
Espanha, o Islã turco na Iugoslávia. É mergulhar nas
profundezas dos séculos, até as construções megalíticas de
Malta ou até as pirâmides do Egito (1985, p.2).
Ainda, para Braudel, o Mediterrâneo é ​‘uma boa ocasião para apresentar uma
‘outra’ maneira de abordar a história. Pois o mar, tal como podemos vê-lo e amá-lo, é,
acerca de seu passado mais surpreendente, o mais claro de todos os testemunhos’
(1985, p. 4).
A partir dessas premissas braudelianas, buscaram-se conhecimentos sobre o grau
de precocidade dos interesses que levaram os primeiros homens a enfrentar os desafio
da navegação no Mediterâneo, antes mesmo das cantorias dos aedos, fundadores da
mitologia helênica, cujos primeiros indícios estão registrados nas estórias fabulosas de
criação do poder divino do Faraó. ​A mais antiga narrativa de navegação no Mar
Mediterrâneo aparece descrita no mito de Heliópolis. De cunho etiológico, cosmológico
e político, esse relato conta a viagem, nos inícios do IV milênio a. C., do esquife, com o
corpo do deus do bem, Osíris, morto pelo irmão malvado, Seth, subindo o rio Nilo e
navegando até chegar ao porto de Biblos.
No fundamento econômico desse mito, encontramos o imaginário dos escribas
egípcios ao exteriorizarem a necessidade de grandes quantidades de cedro para túmulos,
barcos e móveis, como criteriosamente discrimina Childe (CHILDE, 1978, p. 168). Foi
no tronco de uma dessas árvores que o sarcófago de Osíris se aninhou ao chegar às
costas da Fenícia. Ele dali foi cortado e transportado para formar a coluna do palácio do
rei de Biblos, sendo apenas dali arrancado e doado pelo rei de Biblos a Ísis, para que o
levasse de volta ao Egito, graças às práticas mágicas da esposa divina.
As desgraças da enéade, ou seja dos nove personagens da família do mito de
Heliópolis, precedem, assim, às primeiras epopéias homéricas no mar Mediterrâneo: os
membros reais egípcios foram cultuados em muitos territórios à margem do mar
Mediterrâneo, por tanto tempo que se tornaram também famosos na Roma antiga. Os
três ícones mais importantes do Egito antigo, fundantes desse mito são: os raios do deus
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sol principal, Rá; os obeliscos e as esfinges, imagens que protegiam os faraós mortos; e,
finalmente, as pirâmides, patrimônio da humanidade, também significando raios solares,
guardando os túmulos dos faraós. Essas últimas são as únicas maravilhas da antiguidade
ainda existentes.
Esses três ícones foram copiados e multiplicados à exaustão, com uma
frequência apenas comparável a de um outro símbolo: o olho de Hórus. Esta figura, que
significa o olho do deus Hórus, o filho concebido por Ísis de seu marido morto e
mumificado, restaurado por ela após ser ferido pelo tio Seth em um dos episódios da
luta pela sucessão no trono do Egito que durou quarenta anos, foi revestido de uma
força estética, imagética e simbólica tão fenomenal que, até hoje, sua imagem possui
poderes apotropaicos reconhecidos nos quatro cantos do mundo. As imagens desse olho
de Horus foram encontradas desde a alvorada dos tempos, na expressão de Braudel, em
Chipre, Creta, Sicília, Córsega, Malta, em diferentes formatos e materiais. Junto com o
olho viajou a figura do ankh, a chave da vida, e um deus simpático, protetor das
mulheres e das crianças, anão, conhecido como Bês, que alguns egiptólogos dizem mais
parecer um gênio que uma divindade.

Imagem (1) – Olho de Horus

Para o Norte, as relações entre Egito e Creta e Egeu, de natureza cultural e


comercial, tornaram-se particularmente intensas durante o Novo Reino (1570-1070).
Elas aparecem ilustradas em duas antologias, uma de John Pendlebury (1904-1941), um
pesquisador Inglês especializado em antiguidades cretenses, e outra, de um egiptólogo,
Jean Vercoutter, publicadas respectivamente em 1930 e 1956. (CURTO, 1990, p. 221).
Ciro Flamarion Cardoso, em seu texto intitulado ​O Egito e o antigo Oriente Próximo na
segunda metade do segundo milênio a.C​, com base na análise de fontes do séc. XIV, os
documentos de Amarna, diz o seguinte:
As rotas marítimas na época tardia do Bronze no
Oriente Próximo achavam-se fragmentadas, bem como a
navegação em si. Havia uma frota egípcia, frotas das cidades
costeiras da Síria –Palestina, outras do Chipre (Alashia), de
Ura (na Cilícia) e de diversas cidades micênicas. A presença
dos grandes sistemas palaciais limitava – em conjunto com
características da tecnologia naval da época – a possibilidade
de uma navegação realmente de longo curso (CARDOSO,
2000, p. 5).
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Ciro ilustra o seu texto com diversas correspondências encontradas nos arquivos
de Tell el Amarna e cita duas vindas do rei de Chipre que servem de comprovação das
trocas entre o Egito e este reino:
Esses homens são meus mercadores. Meu irmão,
deixá-los ir em segurança e prontamente. Ninguém deve,
exigindo algo em teu nome, aproximar-se de meus mercadores
ou de meu barco (CARDOSO, 2000, p. 7).

Ciro alerta para a pertinência da tese desenvolvida por Mario Liverani sobre a
tendência a uma complementaridade entre diferentes áreas do Oriente Próximo no que
concerne às trocas, devido à concentração regional exclusiva ou muito majoritária de
certas produções mais importantes.Assim, segundo esse autor:
... a Síria-Palestina se especializava em azeite de oliva, madeira
e tecidos tingidos de púrpura; o cobre tinha duas zonas
referenciais de maior peso: a ilha Chipre a oeste, e, a leste, a
região do Golfo Pérsico (Omã-Magan); o caso do estanho é
menos claro, mas pareceria que o Irã em certos períodos era a
zona de referência; o Egito controlava as rotas de ouro, bem
como as do incenso e da mirra no país de Punt (nesta época
provavelmente a Somália e talvez o sul da Arábia) por sua
navegação no mar Vermelho; por fim, o lápis-lazúli vinha do
atual Afeganistão. Um dos circuitos comerciais, dentro do que
já vimos acerca da fragmentação dos contatos a longa
distância, é representado pelas rotas (fluviais e marítimas)
controladas pelo Egito no tocante ao comércio de ouro e
incenso (CARDOSO, 2000, p. 7).

Então, se, por um lado, o Mediterrâneo, no mapa-múndi aparece como um


simples corte na crosta terrestre, um fuso estreito que se alonga de Gibraltar ao istmo de
Suez e ao mar Vermelho, com abismos intermináveis e uma fossa aquática de 4600
metros, por outro, ele se constitui, desde os princípios dos tempos históricos, em uma
via de comunicação de extrema importância entre os continentes europeu, africano e
asiático. E, posteriormente, o ​lago e berço da civilização greco-romana. Nessas águas,
entretanto, encontram-se, em primeiro lugar, os egípcios antigos, erroneamente, citados,
inúmeras vezes, como seres privilegiados e fechados de si mesmos, isolados em um
espaço protegido por desertos, curtindo as benesses do Nilo que os tornava o celeiro da
antiguidade pelas suas pródigas enchentes anuais.

Imagem (2) Mapa-múndi : África/Europa - com ênfase na relação com o mar


Mediterrâneo

O foco desta palestra, em consonância com Donadoni (1990), consiste na


demonstração da existência de uma circulação intensa de deuses, símbolos e dos
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próprios egípcios no mundo mediterrânico; mais ainda, no mapeamemto dos vestígios


de sua arte, que encerra sua visão de mundo, espalhados pelos portos enriquecidos com
os investimentos em metais preciosos, produtos manufaturados, sangue e suor de
escravos pirateados. Afinal, foi nessa época que a servidão humana se iniciou
primeiramente com os prisioneiros de guerra; mas logo se percebeu que essa seria a
forma de se obter mão de obra abundante para acender os fornos que fundiam metais e
queimavam a cerâmica, produtos que enriqueciam os magnatas da ​idade do ferro pela
crescente economia de trocas que geraram, a partir do domínio da navegação no mar
Mediterrâneo!
Logo se desenvolveram três rotas básicas de circulação no mar Mediterrâneo: a
primeira era colada aos litorais do norte, seguindo da Grécia à península itálica; a
segunda era meridional, indo pelas costas da África à Ásia Menor; e, finalmente, a
terceira, era pelo meio do mar, parando de ilha em ilha, do norte da África ao sul do
continente europeu. Guiados pelas estrelas, mas de preferência, viajando de dia, os
navegadores deixaram raros pontos da costa mediterrânica livres de abordagens
pacíficas e de achaques de barcos em missão de comércio e/ou de pirataria, muitas
vezes se utilizando de ambas as práticas.
É assim que começam as viagens entre o Egito e as cidades da costa
sírio-libanesa, quase na alvorada da história egípcia, provavelmente, no começo, com
expedições lançadas pelos faraós. Não obstante, já em meados do terceiro milênio, uma
verdadeira frota mercante liga Biblos aos portos do delta. Os barcos são do tipo egípcio,
sem dúvida financiados pelo Egito; talvez já sejam construídos e, sobretudo montados,
pelos cananeus (é o nome que se dava aos sírios-libaneses) (BRAUDEL, 1978, p.60).
Esses ancestrais dos fenícios já eram um povo de marinheiros. Os egípcios, ao
contrário, sempre tenderam a ficar em casa; sua riqueza, aliás, permitia-lhes, como se
disse mais tarde, um comércio passivo, na direção do Mediterrâneo. Em todo caso, mil
anos depois, não há mais dúvidas: uma pintura de Tebas, do séc. XV a.C, mostra barcos
montados por cananeus que, em seus trajes típicos, descarregam, no Egito, mercadorias
de seu país. É possível que esses traficantes ali chegados tomassem contato com o
mundo operário de Deir el Medina pela presença, na vila, de artesões altamente
qualificados que possuíam poder de câmbio para adquirir os produtos por eles trazidos
para comerciar. Daí a divulgação dos cultos e rituais egípcios, levados a outros lugares
de além mar. Essa é uma possibilidade a ser considerada.
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Já no segundo milênio a.C., emergem dois setores marítimos, nos quais se


fabricavam navios e treinavam marinheiros: a costa libanesa e as ilhas do Egeu. Já
existiam então proto-fenícios e proto-gregos. É Braudel quem sintetiza com maestria a
circulação no Mediterrâneo (BRAUDEL,,1978, p.60-1).
Segundo esse autor, cria-se um fenômeno extraordinariamente novo, responsável
pelo estabelecimento de uma cultura cosmopolita, na qual as contribuições das diversas
civilizações construídas à margem ou no meio do mar podem ser reconhecidas. Dessas
civilizações, umas permanecem nos domínios dos impérios como o Egito, a
Mesopotâmia, a Ásia Menor dos hititas, a costa sírio-libanesa, Creta e, mais tarde,
Micenas. O fundamental, nota Braudele, é que todas elas se comunicam entre si a partir
de então. Segundo ele, todas, até o Egito, ​normalmente tão fechado​, voltam-se para fora
com uma curiosidade apaixonada.
É a época das viagens, das trocas de presentes, das
correspondências diplomáticas e das princesas que são dadas
aos reis estrangeiros como caução dessas novas relações
‘internacionais’. Época em que se vê surgir nos afrescos dos
túmulos egípcios, em seus trajes originais, minuciosamente
reproduzidos, todos os povos do Oriente Próximo e do Egeu:
cretenses, micênicos, palestinos, núbios, cananeus; (...) em que
as porcelanas azuis do Egito, exportadas para todos os cantos e
copiadas sem escrúpulos em Ugarit, acompanham os mortos
nos túmulos micênicos; em que o culto das divindades
cananéias, sem dúvida, introduzido pelos comerciantes,
espalha-se pelo delta, enquanto as esfinges aladas ou os deuses
do Egito florescem na Síria ou na região hitita; em que a
fantasia da pintura cretense nas paredes dos túmulos de Tebas
abala a austera tradição egípcia; enquanto as flores de lótus e
os pássaros aquáticos do Nilo longínquo inspiram os ceramistas
cretenses ou micênicos, que retomam por conta própria – e
com que força na disposição e no tratamento das formas – seu
universo ambíguo e marinho, recusando, além do mais,ao
contrário do Egito, as referências espaciais e os horizontes
figurados; em que a moda egípcia, até então devotada ao linho
branco, apaixona-se pelos bordados sírios e pelos tecidos de
várias cores dos cretenses (BRAUDEL, 1988, p. 62).
O trabalho do historiador, como ensina o mestre Certeau, começa quando ele
segmenta, seleciona e, finalmente, agrega coisas até então separadas. Atualmente, em
seu ofício, esse profissional deve valorizar, a magia do conhecimento que se constitui
quando ele faz tudo isso, e, ainda, busca pontuar essas relações. Como ensina Homi
Bhabha, trata-se da instância do entrelugar, ou, em outras palavras, daquele espaço no
qual o historiador detecta um processo difuso, complexo, quase intangível: o da
formação das diferenças culturais. Como explica Bhabha, está-se frente ao processo de
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significação através do qual uma cultura se afirma sobre a outra, diferenciando-se,


discriminando e autorizando a produção de campos de força, referência e aplicabilidade.
Sim, porque a repetição pura e simples inexiste! Sempre que há o contato de
uma cultura com outra ocorre um processo de transculturação, o que implica mudanças
contínuas, não hierarquizadas de elementos culturais díspares, responsáveis pela
proposição de novas montagens.
Assim, a chave para o entendimento da cultura visual formal do Egito – expressa
em sua arquitetura e arte – reside em sua remarcável homogeneidade através de 3.000
anos, centrada no conceito de arte ideal e relacionada, principalmente, aos deuses e
símbolos da enéade e suas representações imagéticas remarcáveis (KEMP, 1989, p.83).
Os egípcios também primaram pelas criações de deuses, tais como o já mencionado Bês
e Tawret, a seguir examinada. O que deve ter acontecido quando elas começaram a
circular pelo mar Mediterrâneo?
Incontáveis são essas histórias de transculturações feitas por indivíduos e/ou
coletividades. Pretende-se, não obstante, neste fórum, longe de tecer generalizações,
apenas relatar um caso que gerou muita polêmica entre sábios arqueólogos e que, por tal
razão, merece ser lembrado. Trata-se da recepção de um gênio minoiano feito em Creta,
cuja origem foi diagnosticada pelo arqueólogo Arthur Evans, como egípcia. Contestado,
à época, Evans sustentou sua teoria com novas evidências e achados. Entretanto,
recentemente, essa transculturação foi novamente questionada, recebendo, dessa feita,
uma tréplica por parte da arqueóloga Judith Weingartner da Escola Britânica de Atenas.
Essa pesquisadora diz que a contestação sobre a origem egípcia do gênio minoiano é
fruto do ​insuficiente entendimento das evidências contemporâneas egípcias​. E afirma:
Evidências do Médio Reino mostram que a
deusa-hipopótamo ainda não tinha desenvolvido algumas das
características iconográficas que estão associadas à Taweret
mesmo tão cedo quanto no começo do Novo Reino. Estudiosos
Egeus habitualmente publicam imagens do Reino Médio, junto
com aquelas do (digamos) Período Tardio como se elas fossem
paralelas, como se o Egito Antigo fosse – sozinho entre todas
as outras civilizações – um ​monolito imutável​. É um ato de fé
presumir que a deusa da Média Idade do Bronze (caso ela fosse
deusa à época) tivesse muito em comum com sua irmã, mais
tardia, melhor documentada. É metodologicamente inadequado
projetar a deusa mais nova sobre a mais antiga, e ainda mais
dúbio tentar interpretar o Gênio Minóico à luz das
manifestações posteriores de Taweret. (o grifo é meu)
(WEINGARTNER, 1969, p.3)​.
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Para sustentar sua postura, Weingartner apresenta um estudo sistemático de 12


representações da deusa egípcia Taweret em facas mágicas, (​Faca mágica no
Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque). Entre as figuras apotropaicas das facas,
Taweret é a mais popular, pois sua imagem comparece em 45 das 58 facas estudadas.
A partir dessas imagens, Judith sistematiza quatro tipos iconográficos de
demônio-hipopótamo, cada um equivalente a um estágio cronológico da evolução da
imagem (cerca de 2000 a 1650 a.C., como se pode ver a seguir, configurando a deusa da
fertilidade e protetora das embarcações, esposa de Apep, um monstro em forma de
serpente que travava uma batalha diária com o deus sol, Rá). Há inúmeras alterações na
forma como a deusa é representada.
É preciso explicar que as facas mágicas eram lâminas criadas para proteção da
mulher no momento do nascimento; sua decoração se restringe a retratar demônios que
poderiam tornar-se agressivos a quem ousasse ameaçar a mãe no seu trabalho de parto
e/ou a criança quando chegasse ao mundo. Assim, embora a faca fosse um instrumento
agressivo, em geral feita de material precioso e raro – o marfim –, tratava-se de um
instrumento de defesa do amor familiar, que aparece decorada da mesma maneira, dos
dois lados, com vários demônios e deuses: uma serpente, um crocodilo, um braseiro, um
hipopótamo, um animal, Seth – Guerreiro – outro hipopótamo, uma faca, uma deusa rã
Hequet e um grifo alado. Elas conferem, como já se enfatizou, o destaque a Tawret, a
mais popular entre todas as deusas.
Toëris, a forma greicizada da Grande, era uma das pequenas divindades egípcias
menores: uma deusa doméstica, representada como um hipopótamo prenhe, figurado
ereto nas patas de trás, apoiado, geralmente, no sinal hieroglifo de ​proteção,​ o que
sugere que as estatuetas votivas de Toëris dariam proteção para as mães no parto e para
as crianças.
Essas facas, analisadas por Judith Weingarten, para analisar e, assim, entender as
transformações que a imagem da deusa Tawret foi sofrendo se encontram, agora,
disponíveis nas coleções de museus, mas eram na verdade, objetos de uso domestic e
cotidiano.

Imagem (3) --stela de Metternich


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Taweret e o deus Bês comparecem também em textos mágicos


recitados para curar aflições e proteger contra os malefíciios das mordidas de
animais. As vinhetas desta estela mostram inúmeros deuses: cobras crocodilos
e escorpiões. Acima ,o deus sol é adorado por 8 babuinos e um Pharao-
Nectanebo, fundador da 30 dinastia (380 a.C) – ajoelhado. Há assim uma uma
comunhão de forças de deuses adorados pelos operários com os deuses
permanentes dos mitos fundadores e oficiais do poder da realeza egípcia, em
períodos mais recebtes da sua história.

Imagem (4) Taweret como gênio minoano porque porta o jarro apenas

Após estudos exaustivos, Judith Weingartner conclui que o gênio minóico - ​selo
de knossos​, mamas pendentes, abdômen e umbigo proeminentes, apêndice dorsal, patas
leoninas, semelhantes à Taweret – tinha realmente origem na deusa egípcia e que o jarro
de alça única e mão na base constituíam-se ​minoanização​ da imagem.
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Ela sintetiza suas conclusões com a seguintes palavras; ​“É acordo geral que a
forma do Gênio Minóico derivou da deusa Egípcia Taweret, muito embora ela pareça
ter sido transformada de uma deusa para um “gênio” protetor pelas mãos dos
Sírios...”​.
Fundamenta essa conclusão nas seguintes contestações:
• Com exceção do jarro, de uma alça só e a forma de pegar, os proto-gênios
minóicos possuem paralelismos com o aspecto da Taweret de cerca 1800 a 1700
a.C;
• Os minóicos importaram ambas as formas egípcias da Taweret, com cabeça de
hipopótamo ou de leão;
• Na prática, os minóicos sabiam que o demônio com cabeça de hipopótamo era o
mesmo que aquele com cabeça de leão. Eles podiam carregar o jarro ou um
animal para sacrifício e ambos poderiam servir divindades ou heróis;
• O jarro era, provavelmente, o atributo original do gênio minóico.
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Imagem (5) Vinheta do Livro dos Mortos de Userhetmos com deusa Tawret no centro, com o cetro was
na mão direita, e o de proteção na esquerda (XIX Dinastia, +- 1300 a.C)

Palavras de conclusão
As duas mais importantes divindades adoradas pelos operários de Deir el
Medina, cujas origens muito provavelmente estão na Núbia, ​Bês e ​Taweret​
,
ultrapassaram os limites da pequena vila, fundada no início da XVIII dinastia para
abrigar os trabalhadores que iriam construir as tumbas dos faraós, suas rainhas e nobres,
no Vale dos Reis, e sua adoração se espalhou pelo mundo mediterrânico
contemporâneo​3​.
Deir el Medina era uma pequena vila situada no Alto Egito, em um estreito vale,
à margem esquerda do Nilo, em frente a Tebas, cidade desenvolvida à margem direita
do rio. Ocupava a área compreendida entre dois santuários, Karnak, ao norte, e Luxor,
ao sul, distantes um do outro aproximadamente 4 km, havendo permanecido com essa
configuração cerca de 450 anos, o que abarca o período da XIX e da XX dinastia. A vila
viveu sua fase de maior prosperidade no decorrer da XIX dinastia.
A história da vila explica-se pela importância conferida aos enterramentos na
cosmovisão dos antigos egípcios. Eles acreditavam em uma vida após a morte, obtida
pela construção de tumbas e pela execução por parte dos vivos dos rituais funerários.
Daí por que, durante o antigo e o médio império, era costume enterrarem-se os faraós e
pessoas representativas do Baixo Egito em pirâmides, como as de Gizah - Queops,
Quefrem e Miquerinos - hoje, ícones do antigo Egito.
Com a invasão do Egito pelos hicsos, por volta de 1640 a.C., os egípcios
perceberam que a região do Delta era vulnerável aos ataques estrangeiros. Os hicsos da
XV e XVI dinastias reinaram em paralelo com dinastias egípcias: a XIII dinastia egípcia
foi vencida pelos hicsos; daí por que a mais importante foi a XVII, pois, durante o
período por ela subsumido, Kamoses venceu os hicsos e destruiu a cidade de Avaris, a
capital dos chamados reis pastores. Na sequência, os príncipes vitoriosos de Tebas
3
Em primeiro lugar é preciso situar Dei el Medina. Em árabe, esse nome significa O mosteiro da vila; foi
o local em que viveram os trabalhadores encarregados da decoração dos templos e tumbas dos faraós, de
seus familiares e da nobreza egípcia em geral, a partir da XVIII dinastia (1550-1307 a.C.) e, ao longo das
XIX e XX dinastias, até o início do chamado 3º período intermediário. A morte de Ramsés III determinou
o final da XX dinastia, fase conhecida como Renascença. Nesse período, a área tebana tornou-se palco de
disputas de poder entre os vizinhos do Egito, os líbios e os núbios que, posteriormente, iriam fundar as
XXII e a XXVI dinastias, respectivamente. A tensão dos embates levou os egípcios ao abandono de
Tebas e ao retorno da corte para o Baixo Egito, com a criação da XXI dinastia (1070 a.C.). Nesse período,
a vila de Dei el Medina foi desocupada pelos trabalhadores que se refugiaram, até o final da XX dinastia,
no monumental templo funerário de Ramsés III, Medinet Habu.
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fundaram a XVIII dinastia, que se mudou para a área tebana, passando a enterrar os seus
mortos no sopé das montanhas; adotaram na construção dessas tumbas a forma
piramidal existente na área, onde se desenvolveu o vale dos reis e se encontram até hoje
as tumbas dos reis, rainhas e nobres.
Muitos deuses foram cultuados na região de Tebas. Hathor - a dama do Ocidente
- foi, sem dúvida, a primeira a ser ali adorada. Ela pode apresentar o aspecto do seu
animal sagrado, a vaca; de um instrumento musical, o sistrum; e/ou o de um pássaro, o
íbis negro. O segundo era Amon, companheiro de Hathor (sob a forma de carneiro);
Amenófis e a rainha Ahmés Néfertari, fundadores da vila, eram também adorados, bem
como todos os soberanos do Novo Império, que foram ali enterrados, tais como Tutmés
III. Eles possuíam capela e recebiam devoções regulares, juntamente com Ptah, o senhor
do vale das rainhas. Há, ainda, a deusa Mertseguer, que divide com Ptah o santuário do
vale das rainhas: trata-se de uma divindade possivelmente originária das entidades
funerárias, evocadas nos muros das tumbas do vale dos reis. Identificada notadamente
com a cúpula tebana, ela se tornou, por essência, a protetora de Deir el Medina, a quem
os habitantes recorriam, em busca de ajuda, homenageando-a com um incrível número
de monumentos edificados, e, privadamente, no seio mesmo de seus lares. Ela foi a
única divindade a quem as oferendas em trigo foram sistematicamente reservadas sobre
o montante global de rações distribuídas no reino de Ramsés IX. Seus avatares são
múltiplos: vaca, leão, esfinge, mas principalmente serpente. (VALBELLE, 1985, p.
315).
Um grande número de outras divindades gozavam ainda diferentemente do favor
popular, notadamente aquelas reputadas como benéficas para os lares e os nascimentos,
mas também para fenômenos próprios a ambiente composto por homens advindos de
horizontes diferentes. No período raméssido, viram-se se difundir crenças ainda mais
exóticas, como a prática de cultos nas províncias afastadas, muitos deles com origens
estrangeiras. (VALBELLE, 1985, p. 316).
Renenutet, seguidamente assimilada à Merteseguer, em razão da aparência
ofidiana que partilhavam, era especializada em questões domésticas e na puericultura.
Seus talentos lhe valeram provas de fervor, nas festividades mais importantes. Ela era
adorada na parte externa dos lares.
Entre todas, não obstante, a mais popular entre os trabalhadores era Tawret, que
simbolizava a fecundidade e, juntamente com o deus Bês, era não apenas objeto de
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devoções individuais inumeráveis, mas também das festividades mais importantes. Seu
animal sagrado, o hipopótamo, habitava o Nilo. A presença da deusa nas ilhas do
Mediterrâneo exemplifica com maestria o trânsito e a transculturação de divindades do
Egito antigo para além mar, como se acredita ter evidenciado. Negar empréstimos
culturais tomados do Egito antigo e transformados para uso das populações
contemporâneas é tão sério quanto ignorar que um obelisco localizado em qualquer
cidade brasileira, ou mesmo aqueles monumentais como o de Buenos Aires, e/ou de
Washington, foram construídos a partir dos sentidos que os obeliscos possuíam em seu
local de origem: o Egito antigo. Eles representam, portanto, uma forma de africanidade
no cotidiano do novo mundo. Pela atenção, muito obrigada!
Dra. Margaret Marchiori Bakos
Prof. Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Pós doutorado em Egiptologia – University College London
e-mail – mmbakos@portoweb.com.br

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Palavras chaves: Deir el Medina, divindades e elementos egípcios, mar Mediterrâneo.

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