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Ciberpopulismo - Andrés Bruzzone

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Copyright © 2021 do Autor

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.)

Montagem de capa e diagramação


Gustavo S. Vilas Boas

Coordenação de textos
Luciana Pinsky

Preparação de textos
Lilian Aquino

Revisão
Bia Mendes

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bruzzone, Andrés
Ciberpopulismo : política e democracia no
mundo digital / Andrés Bruzzone. – São Paulo :
Contexto, 2021.
228 p.

Bibliografia
ISBN 978-65-5541-064-8

1. Comunicação 2. Ciência política 3. Populismo


4. Democracia 5. Mídias digitais I. Título

21-1406 CDD CDD 302.2


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Índice para catálogo sistemático:


1. Comunicação social

2021

EDITORA CONTEXTO
Diretor editorial: Jaime Pinsky

Rua Dr. José Elias, 520 – Alto da Lapa


05083-030 – São Paulo – SP
PABX: (11) 3832 5838

contexto@editoracontexto.com.br
www.editoracontexto.com.br
A Bernardo e Victoria. Porque são, porque estão. Devo a eles a força para
viver e escrever este livro.
Sumário

INTRODUÇÃO

HOMO COMMUNICANS
Ubuntu: sou porque somos
O tamanho do mundo
O novo ecossistema da mídia
Tiranossauro rex 2.0
Destinos em xeque
Usuário ou produto?
Uberizados
A fórmula Netflix

CIBERPOPULISMO, O NOVO NOME DA POLÍTICA


Populismo, uma definição
Populismo + digital = ciberpopulismo
Democracia ameaçada: EUA
Democracia e comunicação
Vício sem substância
Indignados.com
Novos atores, velhas tensões
Populismos de esquerda e de direita
Valores
Paradoxos da liberdade
Como será o amanhã
O Brasil partido

CONCLUSÃO – A LIBERDADE É PLURAL

O AUTOR

AGRADECIMENTOS
Introdução
“[...] e a alma não pode existir sem sua outra parte que se encontra sempre
em um ‘você’.”
C. G. Jung

Uma convicção pode ser a mais perversa das prisões. Quando o que sei
não pode ser questionado, escuto apenas aquilo que confirma o que
acredito. O que é diferente recuso. Quando tenho toda a razão e o outro,
nenhuma, não existe diálogo. Preso às minhas convicções, reduzo a
possibilidade de pensar. Não há como aprender sem estar disposto a mudar
de ideia, e para mudar de ideia é preciso aceitar que minha convicção pode
estar errada.
Polarização é quando duas convicções opostas ocupam todos os espaços
do debate político. Quando a política se transforma em mero embate entre
posições que se excluem, sem pontos de encontro nem terreno comum.
Quando não há adversário, mas inimigo. As alternativas, aquelas posições
que não se encaixam em nenhum dos dois lados, são postergadas ou
negadas. O debate se faz impossível. É como se as mensagens transitassem
por canais paralelos ou fossem ditas em línguas diferentes: eu falo em
aramaico, você responde em sumério. Pior: a língua é a mesma, as palavras
são iguais – mas significam coisas diferentes dependendo de quem diz.
Paramos de escutar, não interessam os argumentos. Deixa de importar
o que é dito, importa quem disse: se foi alguém que é da minha posição,
vou defender sem questionar. Mas, se for do outro lado, nego e rebato.
Trocam-se palavras de ordem e memes, há menosprezo pelo argumento.
Quem não está alinhado com uma das duas posições dominantes não tem
voz: o que disser será entendido como apoio ou crítica a um dos dois polos.
“Se você não concorda comigo está fazendo o jogo de X”. “Você diz isso
porque no fundo você é Y”. As ideias se impõem por relação de força – não
a força da razão, mas a razão da força. Quem grita mais leva. As posições
são sempre no branco ou preto, não existem nuances. É a morte das ideias,
o fim da inteligência.
O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: nunca
ninguém reclama de ter recebido pouco, disse o filósofo francês René
Descartes no início de seu Discurso do método. Com as ideologias ocorre
algo semelhante: nunca ninguém se queixa de ter o juízo distorcido pela
própria ideologia. O viés ideológico só afeta os outros. Jamais nos
questionamos: será que eu também não estou vendo a realidade? E se o que
para mim é tão óbvio for produto de uma ideologia que não me permite
ver diferente? É tão claro e tão evidente que não há espaço para dúvidas – e
isso é muito perigoso.
Pluralismo democrático exige confrontação e debate. Em toda
sociedade há necessidades contraditórias que precisam ser resolvidas, e a
democracia é o sistema de governo que permite encontrar soluções
negociadas aos conflitos. Como se distribui a carga de impostos, que
impacta na distribuição da renda; se é direito de uma mulher abortar ou se
cabe ao Estado a proteção de um feto; se haverá um pacote de ajuda ao
grupo mais prejudicado por uma crise ou se irá se apoiar um setor da
economia. É necessário estabelecer prioridades entre atividades essenciais:
fazer mais hospitais ou mais escolas, melhorar a infraestrutura logística para
exportações, promover a ciência, apoiar o desenvolvimento tecnológico...
Sociedades mais maduras têm acordos mais estáveis que aquelas onde as
tensões ainda precisam de muitos ajustes. Mas o sistema de regulação da
democracia é flexível e instável: as tensões nunca desaparecem e, por isso,
novas soluções são sempre necessárias. O debate pode ser acalorado e se
fazer visível em ruas ocupadas por manifestantes, em greves e em discussões
ou até mesmo brigas entre os representantes eleitos no congresso. Essa
fricção permanente, que pode parecer ruído e confusão, é a sustentação que
mantém vivas as sociedades democráticas. Onde não há debate, os conflitos
foram sepultados por uma força maior: a opressão de uma classe, um
modelo de controle político ou ambos os fatores combinados. Por isso,
democracias saudáveis são barulhentas e dinâmicas, nunca silenciosas ou
estáticas.
Em democracia, o debate ocorre entre adversários, nunca entre
inimigos. A diferença é sutil e importante. O inimigo não tem
legitimidade, é aquele que deve ser aniquilado para que não me aniquile: a
sua existência me ameaça, mas sobretudo ameaça o espaço comum e a
possibilidade mesma de debater. Já entre adversários há um acordo de
preservação daquilo que é compartilhado, do lugar em que o debate ocorre,
e há um reconhecimento recíproco que é anterior às diferenças e que
precisa ser mantido.
O debate morre quando é substituído por uma lógica de inimigos que
se opõem. A única forma de preservá-lo é não se rendendo a essa lógica
binária dos polos opostos, desmontando a armadilha, expondo seu
mecanismo e praticando a escuta honesta e a explicação paciente. Não é
fácil quando uma força política se define pela morte do diálogo. A
sociedade democrática se pergunta: qual o limite da escuta quando o outro
quer me calar a qualquer custo? Partidos fascistas usam os mecanismos
democráticos para ocupar espaços de poder e, então, minar a democracia
de dentro dela. Regimes autoritários nascem e se desenvolvem usufruindo
da liberdade de expressar seu ideário de ódio e crescem e se alimentam da
polarização. Isso coloca os democratas numa situação paradoxal: a força
que ameaça a democracia deve ser contida. O perigo, quando as
democracias impõem limites aos autoritários, é se converterem naquilo que
estes querem fazer delas.
Uma sociedade polarizada se torna mais burra, mais autoritária, menos
democrática. O Brasil é exemplo disso. Um país rachado onde a polarização
colocou no poder um governo fascista que hoje a promove e cultiva. O
bolsonarismo nasceu da substituição de um debate político plural por uma
lógica PT/Anti-PT. O PT era o inimigo que devia ser tirado do poder, sem
importar que o preço fosse violentar as instituições ou mesmo votar em um
defensor confesso de regimes autoritários. A política passou a se definir por
dois polos que atraem e afastam com intensidades semelhantes: PT/Anti-
PT ou Bolsonaro/Anti-Bolsonaro. A dinâmica dos uns contra os outros
domina. Ficaram para trás o mito do país cordial, a gentileza, a agenda
comum capaz de elevar o país ao patamar de uma das grandes nações do
planeta. Perderam espaço o diálogo e a concordância. As vozes do meio são
abafadas pelos gritos do extremo. Liberou-se uma torrente de ódio, de
violência e de intolerância que arrasa com os espaços comuns de
pensamento.
O fenômeno não é apenas brasileiro: o mundo foi tomado por posições
extremas, toscas e primárias. As explicações e teorias sobre o porquê disso
levam em conta vários fatores: a evolução do capitalismo após a queda do
muro de Berlim, a mudança nas relações de produção fruto da tecnologia e
a precarização dos trabalhadores e dos movimentos operários; o fracasso das
promessas de progresso permanente do que se chamou “o sonho
americano”; os grandes deslocamentos populacionais e as tensões sociais
por eles provocadas em países centrais; a globalização e a entrada em cena
de pautas identitárias que questionam modelos e valores tradicionais. Isso
tudo alimentando sentimentos de insegurança e frustração, de perda de
garantias e de incerteza sobre o futuro. Os fatores são muitos e diferentes
teorias abundam. Mas o elemento primordial que ninguém pode ignorar é
a comunicação.
A capacidade de pensar e agir coletivamente é um dos grandes
diferenciais da espécie. Somos seres comunicantes e nossa vida com os
outros está definida pela forma como nos comunicamos, por isso a matéria-
prima da política sempre foi a comunicação. Cada avanço nas tecnologias
de comunicação teve consequências fortes na forma de organizar as
sociedades. Por exemplo, os jornais impressos estão na origem da
democracia e o advento da propaganda política está associado ao
nascimento do rádio. Mas nunca o papel da comunicação foi tão
determinante como é hoje.
Para um cidadão do século XXI, boa parte da vida transcorre no
mundo virtual e está ligada às novas tecnologias. Acordamos com o alarme
do celular. Consultamos mensagens antes de tomar o café da manhã.
Lemos as notícias no tablet. Treinamos na academia com os fones de
ouvido, olhando para a tela da TV. Fazemos reuniões virtuais. Criamos
documentos e os encaminhamos para nossos colegas, clientes, chefes. De
carro ou patinete solicitados por aplicativos, chegamos ao restaurante, para
ocupar a reserva feita com o atendente virtual. Por uma rede social,
compartilhamos fotos de nossa comida enquanto curtimos as paisagens
publicadas por amigos e nos alegramos pelos momentos felizes da família.
Numa outra rede social, nos indignamos, opinamos, participamos da vida
política. Atualizamos nosso perfil profissional acrescentando o curso on-
line que acabamos de fazer. Antes de chegar em casa, conectamos os
sistemas de luz, som e aquecimento pelo assistente que nos fala e nos
escuta. Pedimos comida, transporte, flores de presente... apenas apertando
botões virtuais de uma tela tátil. Assistimos a um seriado ou filme. Fazemos
amor com música que nos chega por um serviço de streaming e dormimos
com o som relaxante de um aplicativo de meditação.
Se esse retrato reflete a vida de alguém bastante tecnológico e
privilegiado, o impacto das tecnologias de comunicação não é menor no
campo, no deserto, nas regiões mais afastadas – talvez seja até maior.
Pescadores artesanais têm sua navegação orientada por aplicativos, as
previsões meteorológicas por satélite auxiliam os camponeses do altiplano
peruano, os massais usam seus smartphones enquanto percorrem com suas
vacas as longas distâncias da savana africana. Mais próximos de nossa
realidade, entregadores de pizza, motoristas de Uber, professores de
ginástica, vendedores, prestadores de serviços domiciliares dependem hoje
de dispositivos de comunicação. Não existe atividade humana que não
tenha sido alterada pelas novas tecnologias e hoje é inconcebível alguém
não possuir um endereço de e-mail, um número de celular ou acesso à
rede.
As novas tecnologias da comunicação mudaram radicalmente também
a forma de nos relacionarmos com a política. Desde o modo como
acompanhamos as notícias – por sites e/ou aplicativos – até os meios
disponíveis para manifestar descontentamento ou fazer petições, o mundo
digital abriu novas formas de participação e mudou – e está mudando – as
regras do jogo de poder. Algumas mudanças foram positivas, outras não.
Entre as inovações que a comunicação digital em rede incorporou na
política está o ciberpopulismo. A combinação eficiente de técnicas de
propaganda do século XX com as possibilidades abertas pela tecnologia no
século XXI já mostrou sua capacidade de causar alterações estruturais nos
países e na geopolítica.
A base do ciberpopulismo é o populismo, que na essência é um
esquema narrativo a serviço da tomada e da manutenção do poder. O
modelo é simples: há um inimigo que deve ser derrotado, um povo que
deve ser salvo e um líder capaz de fazer isso. No relato populista, quem é o
inimigo pode mudar de acordo com a necessidade: podem ser os
imigrantes, os judeus, os esquerdistas; ou o império ianque, as oligarquias,
o establishment… Este relato é antigo e tem servido a muitos demagogos,
independentemente da ideologia: o populismo serve bem a governos de
direita e de esquerda. Mas ainda que não seja uma ideologia, é filho de uma
posição ideológica em que algumas formas da direita se encontram com
algumas formas da esquerda: a dos opostos que se excluem, uma visão
binária do mundo em que há somente amigos e inimigos. Quem tenta
pensar fora dos polos dificilmente será ouvido e certamente não terá espaço
nos grandes debates. Em um mundo em preto e branco, não há lugar para
o cinza – nem para o rosa, o verde, o azul…
O mantra de um populista é: nós temos toda a razão, eles não têm
nenhuma. Não apenas os populistas pensam assim – mas eles é que fazem
desse mantra o sustento de uma forma de fazer política. O contrário do
populismo é o pluralismo, a crença de que não há duas visões únicas do
mundo. Pluralista é quem entende que a verdade não se obtém derrotando
um inimigo, mas que é o resultado de um processo construído a muitas
vozes. Ser pluralista é aceitar que a verdade nunca é definitiva, que está
sempre em construção. Mentes simples exigem explicações simplistas em
que não cabe a complexidade de um mundo cheio de nuanças e em
mudança constante. Por isso, o mundo de um democrata é mais rico que o
de um populista.

***

Este livro se compõe de duas seções. Na primeira, a questão central é a


comunicação, como era e como é e de que maneira define nosso
comportamento e nosso lugar no mundo como indivíduos e como
sociedades. Na segunda, o foco está na construção de uma nova realidade
da política a partir do encontro de técnicas muito antigas de conquista do
poder com as mais modernas tecnologias da comunicação. Interessam
especialmente as consequências, na forma de polarização social e
crescimento das posições de extrema direita, e os riscos para a democracia.
Por fim, analiso as possíveis saídas para os impasses que nos preocupam:
menos democracia, mais intolerância, retrocessos na inteligência e na
sabedoria de algumas nações, entre elas o Brasil.
Começo, então, abordando a comunicação humana e sua função na
construção dos indivíduos e das sociedades. As teorias da comunicação do
século XX, que serviram para entender os meios de comunicação
analógicos, não servem para a realidade – dinâmica e muito mais sofisticada
– do século XXI. Por isso, recorro a novas ferramentas teóricas, capazes de
mostrar como o novo paradigma da comunicação mudou o que é ser
humano. Homo communicans é um conceito construído com base na
Filosofia da Comunicação, com apoio da Antropologia, da Psicologia e da
Sociologia.
Para compreender o lugar que ocupam os gigantes tecnológicos da
informação e até que ponto eles influenciam o curso do mundo, o livro
aborda o nascimento e a evolução do chamado sistema dos mass media e
sua relação com democracia e capitalismo, além da história da cultura e a
teoria dos meios. Analiso a questão também por um ponto de vista mais
prático: a experiência de mais de três décadas como jornalista, executivo,
consultor e empresário.
Toda a pesquisa sobre a comunicação e como ela define o ser humano,
combinada com uma visão estrutural dos meios, permitirá discorrer, em
seguida, sobre a democracia em tempos digitais, na segunda seção. Veremos
como a comunicação digital em rede se encontra com o antigo populismo
para dar lugar a uma ferramenta poderosíssima e perigosa: o
ciberpopulismo.
Este livro mostra, finalmente, como a extrema direita abusa das
liberdades que a democracia oferece, sempre com um olhar que leva em
consideração as consequências da evolução tecnológica.
Algumas questões funcionam como fio condutor e são respondidas ao
longo dos capítulos:

Como entender a comunicação, hoje, na era dos meios digitais?


De que maneira a nova comunicação influencia como as pessoas
se relacionam entre si, pensam e conduzem suas vidas?
Qual o impacto da comunicação atual nas democracias?
Qual é hoje o papel dos meios de comunicação (novos e antigos) e
dos partidos políticos?
O que é ciberpopulismo? Como funciona?
Quais são os novos atores políticos filhos do ciberpopulismo?
Em que mudou a maneira de votar e qual o papel dos valores
nessa mudança?
Por que o Brasil está polarizado e quais os riscos dessa polarização?
O ciberpopulismo resulta necessariamente em governos
intolerantes e autoritários ou é possível criar alternativas
democráticas a partir dele?
Como sair da armadilha da polarização?

Para chegar às respostas dessas perguntas é necessário mobilizar várias


disciplinas e saberes, dada a complexidade do assunto. Somente uma
abordagem multidisciplinar e um percurso abrangente permitem dar conta
de um fenômeno tão dinâmico e extenso quanto o da comunicação e suas
consequências políticas e sociais. O objetivo é que o leitor ou a leitora
tenham elementos para formar sua própria visão crítica. Poderá ou não
concordar com as conclusões, mas isso não é um problema. A verdade é
plural e pontos de vista diferentes enriquecem a nossa compreensão do
mundo.
Homo communicans
“E eu faço questão de ser no meu Que cabe tu, e é só teu.”
Anavitória

Subo em um Uber e algo chama a minha atenção: o motorista tem


apenas uma perna. Pergunto o que aconteceu e ele, sem se incomodar,
conta do acidente, com uma betoneira de cimento, quando era ainda
jovem. Relata que viu a perna sendo triturada e que os colegas o resgataram
e o levaram para o hospital. Eu explico, então, o motivo de meu interesse:
com um filho morto anos atrás, sempre achei que a minha situação era
parecida com a de quem perdera uma perna: aprende-se a andar e ainda
assim nunca será igual, a vida segue. Falamos sobre a justiça ou não de
aquilo ter acontecido com ele (“por que não?”, me diz sabiamente), sobre
ser diferente, mas ainda assim ser capaz de se casar (duas vezes) e ter filhos
(três). A viagem levou mais de uma hora e houve tempo para falarmos
sobre aceitação, sobre a escolha de lidar com os fatos mais difíceis sem
autocompaixão. Houve muitos pontos de concordância e eu aprendi com a
experiência daquele homem.
Costumo conversar com os motoristas, muitas vezes sobre o trânsito ou
o clima: é fácil concordar sobre fatos pontuais. A cada dia, eles
compartilham as mesmas considerações com passageiros, que são
intercambiáveis como as opiniões, que são as mesmas ou muito parecidas.
Mas se o assunto recai sobre política ou religião, aumenta a chance de a
conversa se tornar menos consensual: podemos estar de acordo que a
qualidade dos políticos brasileiros é ruim, mas ele pode defender uma
intervenção militar e eu ser a favor de mais democracia. Se a viagem for
longa e o espírito, adequado, podemos falar sobre liberdade e justiça – e
eventualmente chegarmos a um acordo. Dificilmente serei original: minhas
opiniões serão próximas das de outro passageiro, que veio antes ou virá
depois de mim. Mas o diálogo com o motorista de uma perna foi diferente.
Algo muito especial aconteceu naquele carro. Cada um foi único,
singular, com sua história e suas experiências: o que se chama de
comunicação entre existências e encaminha a explicação da primeira das
questões deste livro: Como compreender a comunicação na era digital?
Não se tratará ainda de tecnologias digitais ou de redes informáticas.
Antes de discutir os meios com os quais nos comunicamos, será necessário
entender o que é se comunicar. Como e por que a comunicação define
aspectos fundamentais da vida e o que é esse milagre pelo qual aquilo que
está na minha consciência pode não apenas atravessar as barreiras do tempo
e do espaço, mas também e sobretudo as da consciência individual. Para
isso a Filosofia da Comunicação desenvolveu definições e modelos que
relacionam comunicação com existência: o ser humano é um ser
comunicante, a sua existência depende disso.
Comunicação é, então, uma condição do ser humano: não é uma
habilidade, não é uma ferramenta, não é um mecanismo. Assim como a
liberdade e a história, ela é um dos elementos que fazem do homem,
homem. Para que um ser seja considerado humano são necessários alguns
elementos: não basta um corpo com certas características, é preciso que
tenha capacidade de sentir, pensar e aprender modelos de simbolização e
práticas grupais. Todas essas características dependem de uma condição
prévia que é a comunicação. É por isso que dizemos que é a comunicação
que faz de um homem, homem. Reduzir a comunicação a um modelo de
troca de mensagens ou à capacidade da linguagem nos impede de chegar
no mais profundo e rico do conceito; a era digital, que levou a
comunicação a graus nunca antes conseguidos, exige esse passo atrás para
que possamos dar conta da questão.
A comunicação acontece em vários níveis de profundidade. A
comunicação existencial, sobre a qual discorrei em breve, é o mais
elaborado e profundo dos níveis de comunicação; os outros dois, mais
simples, mas não menos necessários, são o empírico e o racional.1
A comunicação empírica não questiona os usos, os costumes e as
crenças: faço, penso e creio no que todos creem. A consciência individual se
confunde com a da sociedade. Já a comunicação racional busca acordos
sobre conceitos; é a razão que comanda, já não mais as crenças, os usos e os
costumes da sociedade. Trata-se de pensar com os outros por meio da
negociação, da argumentação e do diálogo na busca de universalidade:
aquilo sobre o que todos poderão estar de acordo, dos números da
matemática até as ideias de justiça, valor e dignidade. Há, contudo, sempre
espaço para a incerteza, para novos desenvolvimentos da razão e do saber. A
comunicação que alcança uma certeza não é verdadeira, porque fecha os
espaços que devem permanecer prontos para que a razão do outro, uma
outra razão de si, razões novas ou contrapostas, possam acontecer. Nesses
dois tipos de comunicação, as pessoas que se comunicam não são realmente
importantes: podem ser trocadas por outras. Posso ser eu ou pode ser
alguém diferente quem aceita e concorda que 2+2=4, qualquer um pode
entender que o livro está acima da mesa e não deve voar ou virar um bicho
de fogo. Assim como no banco do Uber os passageiros mudam, mas os
comentários são essencialmente os mesmos.
Na comunicação existencial é onde ocorre o verdadeiro encontro,
profundo e significativo, entre duas subjetividades. O mais íntimo de duas
pessoas, o que poderíamos chamar de alma, que se tocam, se apoiam,
contribuem mutuamente a ser. A mãe que ajuda a menina a dar os
primeiros passos, o professor guiando a mão do discípulo, os amantes
conversando por horas, o casal que chora abraçado ao túmulo do filho.
Não se trata de um “eu”: é um “tu” e um “nós dois”, uma doação de ser que
transcende limites e supera distâncias insuperáveis, valha o paradoxo. Não
estamos sós, porque há o próximo, aquele que é parte do que somos, aquele
que faz a vida conosco. É a comunicação do amor em muitas de suas
manifestações possíveis, que acontece em formas de comunicação que não
visam ao estado de coisas do mundo nem ao acordo racional sobre
conceitos, mas algo que está na matéria mesma do que somos, cada um de
nós, como indivíduos.
Sabemos o que comer, como fabricar ferramentas, roupas, remédios,
casas por causa da comunicação pragmática. A comunicação racional nos
oferece as instituições: governo, justiça, economia, teorias que evoluem e
permitem desenvolvimentos técnicos que depois se transformam em
comida, ferramentas, roupas, remédios, casas… A comunicação de
consciências nos torna pessoas responsáveis, cidadãs, nos permite construir
identidades políticas coletivas e conceitos que vão muito além do
indivíduo.
A comunicação faz nosso mundo e nos faz pessoas. Isso pode ser
compreendido melhor saindo das fronteiras do nosso pensamento
ocidental, aquele que conjuga Atenas com Jerusalém e do qual somos
herdeiros. Existem outras formas de se aproximar do humano e uma delas,
vinda da África, resulta muito pertinente para nossa discussão.

UBUNTU: SOU PORQUE SOMOS

Umuntu ngumuntu ngabantu (“Uma pessoa é uma pessoa por meio de


outras pessoas”). Em línguas xhosa e zulu, essa é a definição de ubuntu,
palavra de origem banto, o grupo de línguas faladas por 350 milhões de
pessoas na África ao sul do Equador. Ubuntu significa ser com e pelo outro,
polidez e cortesia, comunhão e compaixão, cuidado do outro sem
descuidar de si. Significa o plural que não exclui o singular e vice-versa.
Ubuntu é um “nós” elevado à condição de sustento de uma comunidade e
de cada um dos seus membros. A personalidade, a moralidade, o ser da
pessoa não são inatos: se conquistam pela prática do ubuntu, pelo respeito
do que é comum.
O ubuntu é a capacidade de expressar compaixão, reciprocidade,
dignidade e humanidade no interesse de construir e manter comunidades
com justiça e cuidado mútuo. A filosofia do ubuntu é integrada a todos os
aspectos da vida cotidiana, um conceito compartilhado por todas as tribos
da África Austral, Central, Ocidental e Oriental entre as pessoas de origem
banto. A solidariedade comunitária faz possível suportar o fardo de um
ambiente hostil, da fome, do isolamento, da privação e da pobreza. A visão
africana da personalidade rejeita a ideia de que uma pessoa possa ser
identificada pelas características físicas e psicológicas: exige a interconexão,
a humanidade comum e a responsabilidade dos indivíduos entre si.
Não se trata de “penso, logo existo”, mas de “sou humano porque
pertenço, participo, compartilho”. O ubuntu defende que as pessoas devem
tratar os outros como parte da família humana extensa. Envolve
sensibilidade às necessidades dos outros, caridade, simpatia, cuidado,
respeito, consideração e bondade. Uma visão da vida e do mundo com base
em uma “irmandade universal” sempre presente, ainda quando não seja
visível. Todas as facetas da vida são moldadas para abraçar o ubuntu, que
reflete herança, tradições, cultura, costumes, crenças, sistemas de valores e
estruturas familiares ampliadas da África.
Olhando a comunicação pelo prisma do ubuntu é fácil compreender
que é muito mais do que uma ferramenta: a comunicação nos faz
humanos. Por isso, mudanças na maneira de nos comunicarmos têm
consequências na política, na religião, na ciência e até mesmo no mais
profundo de nossa consciência.
Comunicação é a capacidade de construir saberes plurais e de
desenvolver nossa individualidade junto com os outros. Dito de outra
maneira: de fazer meu “eu” participar de um “nós”. Ou de vários “nós”. Sou
parte do coletivo dos homens brancos heterossexuais, dos velejadores e dos
pesquisadores em Filosofia, dos estudiosos da comunicação, dos brasileiros
nascidos fora, dos argentinos que migraram... Coletivos que atravessam as
nações e as épocas me aproximam de gente que não conheci nem
conhecerei, pois algumas morreram há séculos. Para cada leitor ou leitora é
igual: há coletivos que contêm a individualidade e a moldam de certa
maneira, mas nunca totalmente; não basta um coletivo para definir uma
pessoa.
Todo “eu” emerge de um “nós” ou de uma confluência de vários “nós”.
Nascido em um momento do mundo e em uma cultura, participo de
crenças que chegaram a mim sem que eu as escolhesse ou questionasse.
Com o passar do tempo e da experiência, devo fazer as minhas escolhas:
descartar algumas crenças e reforçar outras. Assim posso mudar o meu
ponto de vista sobre um aspecto da vida, ou decidir entre três, dois ou mais
pontos de vista contrapostos ou diferentes.
É fácil compreender esse processo no plano político: nasci em um lar
comunista, mas em algum momento da minha adolescência comecei a
questionar as crenças e as convicções de meu pai, até constituir as minhas
próprias… deixei de me definir, nesse plano, por um “nós” familiar e passei
a integrar o “nós” de um outro partido político e de uma outra geração. Ser
adulto é se fazer responsável pelas próprias ações, mas ser autônomo é se
responsabilizar pelas crenças e convicções. Não é tarefa fácil: nada mais
difícil que mudar de ideia; exige muita coragem e muita força. Só os
espíritos verdadeiramente livres conseguem, e nunca sem esforço. Exige dar
mais peso e mais valor ao próprio olhar que ao olhar dos outros. Mas
nunca se trata de um processo solitário: a individuação ocorre sempre no
encontro, na relação. Assim, paradoxalmente, para eu ser realmente
indivíduo, preciso dos outros.
Saber e crença são conceitos muito próximos, separados por uma
fronteira tênue. Um saber é uma crença compartilhada com outros, sem
lugar para questionamentos, uma crença estabelecida com valor de verdade
para além das dúvidas. Seu fundamento pode ser uma religião (e então se
chama fé), uma ciência ou uma tradição. Quando você questiona um saber
alheio e diz que é uma crença, costuma receber respostas duras. Se eu
colocar em dúvida a santidade do Profeta, corro o risco de ser morto; se
duvidar da virgindade de Maria, serei excomungado. Se questionar a
autoridade do juiz, serei preso; assim como se decidir sair pelado pelas ruas
ou queimar uma bandeira nacional.Dizer “Acho que te amo” não basta à
minha namorada: ela precisa saber.
Os saberes são tão enraizados que quem acredita neles não consegue
imaginar que possam ser questionados: têm valor absoluto. Quando
estamos dentro de um saber não nos é dado ver as suas fronteiras, os seus
limites. Um exemplo curioso é o do saber científico: quem o pratica muitas
vezes não percebe a contradição que há no fato de se acreditar cegamente
na ciência e na razão como as únicas possibilidades, inquestionáveis, de se
conhecer o real. Como ocorre com uma religião, se eu questionar a
infalibilidade de uma ciência, ou os limites da razão, serei taxado de
obscurantista. Mas essa mesma ciência pode ter dito o oposto do que
ensina hoje, apenas alguns anos atrás.
Antes da revolução copernicana, que deu origem à ciência moderna, era
certo crer que a Terra era plana: era um saber, não uma crença, e quem
achasse o contrário estava equivocado. A ciência antiga provava com
observações as suas teorias, criava modelos, fazia previsões corretas a partir
do saber da época; era ciência, havia dados empíricos – e afirmava que a
Terra era plana. Hoje surpreende que alguém possa acreditar que a Terra
não é esférica: sabemos que ela é. Mas existem os chamados terraplanistas:
gente que defende que vivemos em um mundo tão plano quanto a mesa
onde eu escrevo. Perante um caso individual de terraplanismo pensamos
estar diante de um louco ou um imbecil; mas são milhões (11 milhões
apenas no Brasil) as pessoas que compartilham essa crença, gente que tem
uma convicção absoluta de seu saber a respeito. Isso significa que há algo de
novo acontecendo e devemos prestar atenção. Em que momento os
terraplanistas terão direito a exigir que as suas teorias sejam ensinadas nas
escolas? Qual o argumento que não seja dogmático para refutar essa
exigência? E se eles virarem maioria?
A crença de uns poucos pode se transformar em saber de muitos e isso
se chama quebra de paradigma ou revolução. A Revolução Francesa, a
abolição da escravatura, a criação da Organização das Nações Unidas e a
educação universal são mudanças que nasceram da crença de alguns, levada
ao patamar de saber comum depois de muitos esforços, luta e resistência.
São casos que mostram a mudança ocorrendo a partir do indivíduo, ou de
alguns indivíduos, para o conjunto de uma sociedade ou de uma cultura.
Mudanças nas convicções pessoais também custam trabalho e esforço.
Dói deixar para trás uma convicção, pois nossas convicções nos definem e
nos estruturam, e quanto mais profundas e arraigadas, mais determinam
quem somos. É necessário que o coletivo mude de maneira muito firme
para demover algumas pessoas de certas convicções e crenças e muitas
vezes, quando isso não ocorre, é preciso haver uma mudança geracional
para que a humanidade possa deixar para trás conceitos que precisam ser
abandonados. A noção corriqueira de que os jovens querem mudar o
mundo e os velhos são conservadores deriva, justamente, dessa dinâmica:
uma pessoa mais jovem incorporou na sua formação um número
comparativamente maior de crenças renovadas; o estoque de convicções
antigas é menor. Mudamos individualmente com os outros, mesmo
quando não percebemos, e a nossa mudança pessoal alimenta mudanças
maiores, nos coletivos que nos contêm e que ajudamos a construir.
Por isso tudo, o conceito de comunicação é muito mais rico e mais
complexo do que o tradicionalmente ensinado nas escolas de jornalismo:
um emissor que envia uma mensagem, um receptor que a recebe e a
decodifica. Esse modelo simplifica demais um processo complexo, pois foi
criado para descrever o que ocorre em aparelhos elétricos, como o telefone,
o telégrafo, o rádio, e não para tratar da comunicação humana. O
engenheiro Claude Shannon, da companhia telefônica Bell, nos Estados
Unidos, descreveu esse modelo numa revista técnica2 no fim dos anos
1940, para dar conta do funcionamento de aparelhos de comunicação.
Há diferenças relevantes entre o ser humano e o telégrafo ou o rádio.
Uma delas é que aparelhos foram concebidos e fabricados com a única
finalidade de enviar e receber mensagens, o que não é o caso do ser
humano, que nem foi fabricado nem tem uma finalidade prática. O
engenheiro teria um problema se o telefone tivesse liberdade; e, diferente
de um homem, a história de um aparelho de comunicação se resume a um
plano de desenho e um processo de fabricação.
Ainda, quando pensamos a comunicação em termos de dois sujeitos
que trocam mensagens, estamos deixando de fora o fato de que é na
comunicação que se faz a consciência. Eu escrevo aqui, o leitor lê, a
mensagem passa por meio de um código comum... mas se o escritor e o
leitor estão aí, é porque antes houve comunicação num sentido bem mais
amplo e rico. Foi na comunicação que eles se fizeram, fazendo também este
mundo em que coabitam.Quando Descartes diz “Penso, logo existo”, já há
aí uma consciência, e essa consciência pensa em uma língua e com
estruturas que ela não criou e acontecem a partir dessa condição do ser
humano que se chama comunicação. A comunicação é anterior à
consciência e a produz – o que não é verdade para um telefone ou um
rádio, e por isso uma abordagem técnica do humano resulta insuficiente.
A comunicação é o que se chama de “traço existencial”: como dizemos,
é a comunicação que faz homens e mulheres. É por isso que o Homo sapiens
é, antes e sobretudo, um Homo communicans. E isso é cada vez mais
verdadeiro. O que já era um traço original da humanidade foi
sistematicamente aperfeiçoado e potencializado como uma habilidade, uma
competência diferenciadora que fazemos questão de aprimorar. Assim, ao
longo dos séculos, a evolução das técnicas de comunicação tem se acelerado
até desaguar neste século XXI, que talvez possa ser definido pelo grau de
conectividade alcançado por todos os habitantes do planeta. Não existe área
de nossa existência que não tenha sido e esteja sendo alterada pela nova
realidade da comunicação humana.
“Sentados nos ombros de gigantes”, falavam os homens do
Renascimento como reconhecimento da importância da cultura clássica,
cujos saberes lhes permitiam olhar mais longe. Eles entenderam que não
precisavam começar tudo desde o início, que teriam grandes vantagens em
incorporar aquilo que os clássicos tinham desenvolvido e partir daquele
ponto. O saber não somente se acumula, ele ganha na pluralidade: cada ser
humano contribui com sua parte, pequena ou grande, nessa gigantesca
construção multiforme que é a cultura. Quando eu vou escrever um livro
sobre comunicação, aqueles que pensaram antes de mim me fornecem uma
base a partir da qual posso seguir com a minha própria contribuição. Se o
que eu falo é de alguma maneira original ou relevante, então será
incorporado nesse saber coletivo para que outros possam, por sua vez, se
servir dele. Ter acesso ao saber dos outros é condição para poder contribuir
com o saber comum, por isso a circulação das ideias beneficia o
conhecimento. As bibliotecas e as universidades foram a materialização
desse saber plural: as bibliotecas reunindo o saber acumulado e fazendo
com que ele estivesse sempre ao alcance daqueles que necessitassem dele
para construir algo novo; as universidades colocando em contato as pessoas
para promover transmissão de saberes (mediante as aulas) e construções
coletivas (pela pesquisa). Mas não são os únicos casos nem exemplos,
apenas os que mais facilmente ilustram o conceito de saber coletivo
acumulado e em construção.
A Escola de Sagres transformou Portugal em potência marítima no
século XV. Os portugueses conquistaram boa parte do mundo e chegaram
ao território do que hoje é o Brasil. Em Sagres, reuniam-se cartógrafos,
astrônomos, construtores de navios, navegantes e outros especialistas nas
artes que permitiram aos marinhos atravessar oceanos, sair do limite
estreito da navegação à vista de costa. Mas a Escola de Sagres nunca existiu
como uma entidade formal, um prédio com salas de aula, professores e um
currículo. Chamou-se escola à concentração de todo esse saber em um só
lugar, a vila de Sagres, fundada pelo Infante D. Pedro no Algarve; ao
conjunto de conhecimentos sobre os astros, as representações da terra e dos
mares, as rotas possíveis e os perigos descobertos, exigências para que um
navio fosse capaz de encarar as rotas interoceânicas. Quem sabia disso eram
as pessoas que por ali circulavam, era um conhecimento que se difundia, se
enriquecia, se multiplicava nas trocas.
Vasco da Gama é lembrado como aquele que conseguiu abrir a rota das
especiarias, virando o Cabo da Boa Esperança para chegar à Índia. Mas o
relato de sua navegação histórica começa no mínimo 80 anos antes, com as
primeiras tentativas de se encontrar uma via navegável em direção ao leste.
Muitas pessoas morreram, muitos navios afundaram na construção
progressiva de um conhecimento sobre as costas africanas, seus ventos e
suas correntezas; esse conhecimento foi sistematicamente alimentando
novas cartas náuticas e novos manuais de navegação. Foi graças a essas
cartas e esses manuais que Vasco da Gama logrou a façanha que, por sua
vez, daria lugar à primeira volta ao mundo, iniciada sob o comando de
Fernão de Magalhães e finalizada pelo espanhol Sebastián Elcano. A
navegação é um exemplo muito claro de saberes que se sedimentam ao
longo dos séculos, desde os tempos dos vikings até a atualidade: de nós e
manobras a palavras como iate (de jacht, barco em língua viking), a cultura
náutica é fortemente alicerçada numa tradição milenar.
Todos os exemplos anteriores falam de comunicação: consciências que
se unem para aprender, saberes e ideias que se transmitem, atravessando as
fronteiras do individual. A comunicação também evolui pela construção
coletiva: condição do ser humano desenvolvida como capacidade, alimenta
sua própria dinâmica de crescimento. A técnica tem melhorado e ampliado
as possibilidades de nos comunicarmos. Ideogramas e pictogramas, sistemas
de transmissão de mensagens sonoras ou visuais à distância, línguas faladas
e escritas, processos de reprodução, de armazenamento e de distribuição…
A cada progresso das técnicas de suporte à comunicação humana ocorreram
mudanças na forma de nos relacionarmos com os outros e com nós
mesmos. A imprensa de Gutenberg e a digitalização em rede trouxeram
mudanças profundas em nossas vidas, comparáveis com as grandes
travessias que levaram a Europa à Ásia, África e América e com o avanço na
aviação.
Com cada um desses avanços, o mundo se reduz em distâncias e cresce
em riqueza e variedade. Nossa experiência individual se expande além dos
horizontes imediatos e nos permite, cada vez mais, ser cidadãos do mundo.
Para ser sapiens, os humanos necessitam ser communicans. O saber coletivo
ganha espaço e volume, permitindo a expansão do indivíduo muito além
do que era sequer imaginável um século atrás. Isso não necessariamente
reflete em cada pessoa: gente burra, tosca e insensível houve e haverá, mas o
ser coletivo da humanidade se beneficia diretamente da evolução das
possibilidades de comunicação.
A evolução humana se acelera à medida que os instrumentos de
cooperação se aperfeiçoam e se fazem acessíveis a mais gente. Uma Escola
de Sagres de escala global está instalada: ser communicans é cada vez mais o
que singulariza o Homo sapiens. O Homo communicans é, ao mesmo tempo,
a origem do sapiens e um sapiens melhorado, dotado de formas mais
eficientes de cooperação.
Herdamos um mundo dos que nos precedem e contribuímos na sua
construção em conjunto com aqueles que nos rodeiam. Não podemos fugir
desta corresponsabilidade pelo mundo: meu agir faz o mundo, ainda que eu
não queira ou finja que não sei. Para habitar esse mundo plural, que é de
cada um, mas que não é de ninguém de maneira exclusiva, precisamos
interpretar. Interpretar o mundo é a forma humana de habitá-lo. Como a
aranha tece uma teia para habitar o mundo, nós tecemos interpretações. As
interpretações não são apenas individuais: elas vêm com o leite materno,
com a cultura que cada um habita, com a língua própria e com os mitos
que nos precedem. É isso que nos permite estabelecer os consensos
necessários para habitar um mundo comum: a comunicação empírica, para
lidar com os aspectos objetivos da vida; a comunicação racional para
compreender, para explicar e poder fazer previsões. Já a comunicação
existencial busca sentido para as coisas do mundo e para nós mesmos.
Comunicação é isso tudo também.
Mas a comunicação tem ainda uma outra função: é a matéria da qual se
constrói cada identidade individual. Sou a história que conto a mim
mesmo e aos outros sobre mim, diz a Filosofia hermenêutica
contemporânea. A identidade é narrativa. Se alguém pergunta “Quem é
você?”, vou responder com um nome, um sobrenome. Posso mostrar o
documento: a foto e a impressão do meu dedo procuram registrar aquilo
que não muda. O meu DNA me identifica e há registros notariais com
meus dados e a minha assinatura. Mas isso tudo ainda não diz quem eu
sou: para isso devo contar uma história. Somente a narração consegue
juntar e dar sentido ao conjunto de memórias e vivências, de histórias
próprias e alheias que se entrelaçam para constituir esse ser único que posso
chamar de eu. Um ser complexo, contraditório, cheio de ambiguidades e
áreas obscuras que apenas o enredo da narrativa, do relato, consegue
amarrar.
Ninguém conta a própria história sozinho. Seres comunicantes desde o
nascimento, dependemos dos outros desde que chegamos ao mundo e
seguimos dependendo para estar nele. Não há individualismo que consiga
eliminar o que nos une ao resto da humanidade, um conjunto de laços que
inclui as histórias e as tradições, a religião, a língua, as escolas de
pensamento e as ciências que definem os contornos de nosso canto no
universo. Instituições e leis, sistemas de troca e de trabalho, objetos físicos e
simbólicos, conjuntos de aprendizados e modelos de justiça, produções
culturais e, claro, amizades, família, colegas, chefes, clientes. Os outros
estão em cada dimensão possível do meu ser e, mais uma vez, é por isso que
comunicação que nos faz humanos.
O eremita carrega o legado de crenças e perguntas que talvez busque
responder em seu retiro. O astronauta é levado até sua órbita planetária por
uma herança de técnicas e saberes e o velejador solitário é acompanhado
pelos milhares de marinheiros anônimos que somaram suas observações nas
cartas náuticas e nos livros que hoje o guiam. O tirano isolado na torre de
seu palácio, o verdugo que janta sozinho, o depredador das finanças que
sobrevoa o mundo num jato feito de suor alheio. O suicida, o autista, o
asceta, o iogue, o herói, o Cristo na cruz e o Buda ascendendo, o mártir e o
vilão, o sniper e o caçador... todos levam consigo um nós, um nós-outros
que nada e ninguém pode apagar.
Somos seres plurais e não temos menos necessidade de comunicação
que de água, alimentos e oxigênio. Mas vivemos como se isso não fosse
verdade. Nosso tempo está marcado pelo império do cogito cartesiano
(“penso, logo existo”) e do individualismo entendido como sinônimo de
liberdade. Uma ideia problemática que provoca sofrimento e solidão. Ao
eliminarmos a dimensão plural, retiramos um sustento essencial do ser.
Andamos mancos quando pretendemos sair ao mundo apoiados apenas no
“eu”, deixando o “nós” para um segundo plano, convertido em algo menor.
A religião, o amor e a amizade são manifestações da necessidade de sermos
junto com as outras pessoas. O herói solitário e autônomo é uma ficção
que sobrevive apenas num imaginário empobrecido e árido, esquecido do
caráter comunicante do ser humano.
Ansiedade, cansaço e insatisfação são marcas de nossa época, do que se
conhece como sujeito pós-moderno. A convicção religiosa e a Filosofia não
mais são suficientes para dar respostas aos interrogantes fundamentais sobre
o sentido da vida. O capitalismo, na fase atual do consumo exacerbado,
usufrui desta falta: nos entupimos de objetos e de grifes para vestir uma
imagem, uma máscara que levamos enquanto corremos sem saber muito
bem nem de onde saímos nem para onde vamos. Consumindo e
construindo uma identidade virtual nas redes sociais, criamos barulho
bastante para não ouvir as questões mais profundas que nos angustiam.
O sujeito de nosso tempo está quebrado e perdido. É o sujeito pós-
moderno: individualista, não reconhece nas relações interpessoais um lugar
seguro para se apoiar; prefere o “eu” ao “nós”. Mas ele, sozinho, também
não se basta e precisa do olhar dos outros, da aprovação de seus
contemporâneos. Egoísta demais para se preocupar com o próximo, ele
também não é autossuficiente, e aqueles que o rodeiam são meios para
justificar a própria existência.
São os outros que me dizem quem eu sou. É o negócio das redes
sociais, onde o olhar alheio e o aplauso ajudam a preencher o vazio da
minha alma. Nelas, eu consigo criar uma ilusão de conexão sem precisar
realmente me importar, me envolver. Como uma casca que me envolve e
me protege, a minha identidade virtual compensa aquilo que falta dentro.
Mas o remédio nunca é bastante e a dose precisa sempre aumentar. É o
consumismo levado ao terreno existencial mais íntimo.
A comunicação digital em rede potencializou as capacidades de
comunicação empírica e racional elevando-as a patamares inimagináveis.
Mas a comunicação existencial, a que diz respeito ao nosso ser profundo,
não ganha necessariamente com os avanços tecnológicos. Pelo contrário, ela
pode ser cerceada e limitada pelo excesso e pelo apresamento, pela
simulação de proximidade que as redes sociais fornecem. Vivemos, assim, o
paradoxo da des-comunicação existencial acontecendo em um mundo onde
as possibilidades de se comunicar (em termos pragmáticos e racionais) são
cada vez mais eficientes. Compreender a dinâmica da comunicação, o seu
sentido profundo para além da tecnologia, deve ajudar a sair dessa
contradição.

O TAMANHO DO MUNDO

Uma revolução nas comunicações tem o poder de mudar o tamanho do


mundo. A imprensa de Gutenberg é o melhor exemplo. Oficialmente
inventada em 1440, na cidade alemã de Mogúncia, por Gutenberg, ourives
de profissão e pai da ideia de se usarem tipos móveis, fundidos, para
imprimir livros. Apenas 40 anos mais tarde já havia tipografias
funcionando em mais de 110 cidades em toda a Europa Ocidental. Cerca
de 50 anos após o primeiro livro ser impresso, foram produzidas pelos
menos 35 mil edições, o que significa 15 milhões de exemplares, talvez até
20 milhões. Numa população europeia de menos de 90 milhões de pessoas,
o número é imponente. Entre os anos 1500 e 1600, foram 150 a 200
milhões de exemplares impressos, em 150 a 200 mil edições diferentes. A
Igreja logo viu uma oportunidade de ampliar o alcance de suas ideias,
tornando a Bíblia acessível a mais gente e não apenas em latim, mas em
línguas vernáculas. Mais da metade dos livros impressos no século XV eram
religiosos. Mas já no século seguinte eram menos de um terço.
Antes da prensa, os livros eram copiados à mão, por copistas,
normalmente em mosteiros. Cada livro tinha um valor (e um custo) muito
grande, pois eram escassos, e um pesquisador precisava se deslocar grandes
distâncias para ler um texto. Se hoje isso seria uma complicação, pense no
que ocorria à época. A maneira mais prática de atravessar o continente era a
cavalo, melhor mesmo do que de carroça ou outro veículo com rodas, por
causa do estado das estradas. Quem não tinha cavalo, caminhava.
Mosteiros, hospícios, pousadas e albergues recebiam os peregrinos, mas não
era incomum dormir ao ar livre. Havia assaltantes, então melhor viajar
acompanhado. Um pequeno grupo com bons cavalos poderia se mover até
50 km em um único dia, mas um grupo maior que incluía animais de
carga, um carrinho ou viajantes a pé poderia fazer no máximo metade dessa
distância.
Com a prensa e as grandes navegações, os limites dos europeus se
alargavam e o saber ficava mais próximo.
Pulemos agora ao século XX. Os transportes e a tecnologia da
comunicação também alteraram a nossa relação com o espaço. Primeiro,
pelos navios a motor, que fizeram com que uma viagem de navio entre
Porto e o Rio de Janeiro, que antes exigia de 45 a 60 dias, fosse realizada
em 20 dias ou até mesmo 15. Mas coube à aviação comercial encurtar as
distâncias e reduzir os tempos de deslocamento de maneira drástica. Em
1919 foi criada a primeira companhia de transporte aéreo do mundo, a
holandesa KLM; e no Brasil, em 1933, a Vasp (Viação Aérea São Paulo) fez
suas primeiras viagens ao interior, estabelecendo a rota entre Rio e São
Paulo em 1936.
A comunicação digital em rede também reduziu as distâncias e
encurtou os tempos. Aumentou o número de nossas interações com pares.
Nos aproximou de pessoas que já eram queridas, mas com as quais a
comunicação era esparsa. Grupos de WhatsApp mantêm cotidianamente
em contato irmãos que moram longe, filhos, amigos espalhados pelo
planeta. Ajudam pesquisadores a encontrar bibliografia, trocar ideias,
aprender melhor, pensar juntos. Organizam mobilizações, derrubam
políticos, condenam pedófilos, promovem mudanças sociais. No total, os
usuários de redes sociais somam 3,6 bilhões em 2021 e devem chegar a 4,4
bilhões até 2025. Aplicativos de mensagens estão se fazendo ubíquos. Os
números de WhatsApp são impressionantes: em 2020, a rede possuía 1,5
bilhão de usuários no mundo, com mais de 1 milhão somando-se a cada
dia; e o Brasil era o segundo país com o maior número de usuários: 120
milhões, só atrás dos 200 milhões da Índia. Messenger tinha 1,3 bilhão de
usuários no globo e Wechat 1,2 bilhão.
Para compreender a comunicação na era digital é necessário, como
vimos, deixar de lado os modelos usados no século XX, quando a
comunicação ainda era analógica. Nosso foco não é a tecnologia em si, e
sim o lugar que a comunicação ocupa na vida dos homens. Afinal, a
comunicação é um traço existencial do ser humano, algo que nos define
como espécie. Somente assim conseguimos compreender a relevância que
têm as mudanças tecnológicas nos meios de comunicação das últimas
décadas e por que alteraram e estão alterando todos os aspectos da nossa
vida.

O NOVO ECOSSISTEMA DA MÍDIA

Toda mídia opera sobre nós de uma forma total. Os meios têm
consequências pessoais, políticas, econômicas, estéticas,
psicológicas, morais, éticas e sociais tão intensas que não deixam
nenhuma parte nossa intocada, não afetada, inalterada. O meio é a
mensagem. É impossível qualquer compreensão sobre mudanças
sociais e culturais sem um conhecimento do modo como a mídia
funciona como contexto.3

Marshall McLuhan4 publicou O meio é a mensagem em 1967. À época,


muitos alertavam sobre o risco dos mass media, os meios de massa, que
estariam destruindo a essência do ser humano, dominando populações
inteiras e causando danos irreversíveis na capacidade de pensamento,
aprendizagem e de relacionamento. Seria o fim da família, que tinha
trocado o almoço à volta da mesa por um minipúblico abstraído, passivo e
silencioso diante da TV. O cérebro das crianças estaria sendo moldado com
ideologias ocultas por algo tão aparentemente inofensivo como os gibis do
Pato Donald.
Mas existia o outro lado, o dos entusiasmados por uma nova era da
humanidade, que iria expandir seus limites graças aos meios de
comunicação. A liberdade de expressão, nessa visão otimista, alimentaria as
democracias em boa parte do planeta enquanto as feridas da Segunda
Guerra saravam. O jornalismo independente e de qualidade funcionaria
como um eficiente contrapoder disposto a denunciar abusos do Estado.
Grandes negócios eram construídos em conglomerados de mídia, de
dimensão muitas vezes nacional, e sempre com missão civilizatória. TV,
rádio, jornais, revistas criavam consenso sobre os grandes temas nacionais,
levavam educação, entretenimento e informação em milhões de lares. Uma
visão idílica na qual mídia, progresso e democracia andavam de mãos dadas
sob os céus do mundo livre.
Foi Umberto Eco5 quem deu a definição perfeita de como se vivia o
momento no seu livro Apocalípticos e integrados, de 1964. Os apocalípticos
apresentam os mass media como os grandes vilões que ameaçam a
humanidade e que eles, alçando-se sobre a massa dos alienados como
super-homens, irão denunciar e combater. Já os integrados não criticam:
eles vivem sem questionar aquilo que se chamou de “indústria cultural”, o
conjunto de produções de arte e entretenimento sob o modelo de
consumo.
Muito daquilo que se vivia em meados do século XX continua vigente,
reforçado pelo avanço da tecnologia e a aceleração do consumo. A imagem
do Apocalipse é até mais forte agora, quando a ciência mostra como a
atividade humana pode acabar com a vida no planeta sem necessidade de
bombas atômicas. A cultura, a liberdade e a democracia são ameaçadas por
correntes obscurantistas e a técnica e a comunicação são elementos centrais
em qualquer distopia.Como na década de 1960, hoje há apocalípticos que
veem aqueles movimentos se repetindo. Antes era com a TV, hoje nos
inquietamos com a desconexão entre pessoas que jantam juntas olhando
para as telas dos respectivos celulares: vivemos isolados em um mundo
hiperconectado. E somos espionados pelas máquinas. Trocamos nossa
intimidade pelo conforto das novas tecnologias: comandos por voz, mapas
inteligentes, conversas instantâneas ao redor do planeta, serviços de
delivery. Estamos aceitando a perda da liberdade de maneira gradual e
constante.
O microfone nos escuta, as palavras são interpretadas por um algoritmo
capaz de detectar necessidades para fazer um anúncio pular na nossa frente,
oferecendo aquele produto sobre o qual acabamos de conversar em roda de
amigos. Isso é possível? A tecnologia está pronta. Que exista de maneira
maciça, depende da viabilidade econômica da operação. O Gmail sugere
respostas às mensagens que recebemos e oferece produtos e serviços
vinculados ao conteúdo de trocas pessoais. Alguém olha por cima de nosso
ombro, lê tudo o que escrevemos, escuta tudo o que falamos, nos enxerga
por uma câmera sem nossa autorização… e lidamos com isso de maneira
pacífica.
Os otimistas têm boas razões para acreditar que a revolução digital vem
para fazer nossa vida melhor. Quem pode discutir os benefícios da
educação a distância? Do compartilhamento de conhecimentos que o
acesso a bibliotecas e o trabalho de equipes remotas permite? O fenômeno
tem muitos pontos em comum com aquilo que acontecera com a imprensa
de Gutenberg, quando a produção e o armazenamento de informações
fizeram-se mais baratos.
A mudança vem de dois fatores que se complementam: de um lado, o
armazenamento e a produção em suporte digital; do outro, sua distribuição
em rede. Com isso, o volume de informações geradas dobra a cada dois
anos, e a estimativa é que já tenhamos produzido juntos, entre fotos de
celular, documentos digitalizados, e-mails, mensagens de texto, música,
filmes, mais de 44 zettabytes. Mais do que os 42 zettabytes onde cabem
todas as palavras faladas desde o início da fala humana, gravadas em
formato digital. Em um dia são enviados 500 milhões de tweets, postadas
52 milhões de fotos no Instagram, feitas quase 6 bilhões de buscas no
Google. Mais de 2,6 bilhões de pessoas (um terço da população mundial)
possuem contas ativas no Facebook. Trata-se de um novo dilúvio, diz o
pesquisador francês Pierre Lévy.

Durante uma entrevista nos anos 50, Albert Einstein declarou que
três grandes bombas haviam explodido durante o século XX: a
bomba demográfica, a bomba atômica e a bomba das
telecomunicações. Aquilo que Einstein chamou de bomba das
telecomunicações foi chamado por Roy Ascott (um dos pioneiros e
principais teóricos da arte em rede) de segundo dilúvio, o das
informações. As telecomunicações geram esse novo dilúvio por
conta da natureza exponencial, explosiva e caótica de seu
crescimento. A quantidade bruta de dados disponíveis se multiplica
e se acelera. A densidade dos links entre as informações aumenta
vertiginosamente nos bancos de dados, nos hipertextos e nas redes.
Os contatos transversais entre os indivíduos proliferam de forma
anárquica. É o transbordamento caótico das informações, a
inundação de dados, as águas tumultuosas e os turbilhões da
comunicação, a cacofonia e o psitacismo ensurdecedor das mídias, a
guerra das imagens, as propagandas e as contrapropagandas, a
confusão dos espíritos.6

Lévy é o criador de conceitos úteis para pensar na nova realidade da


comunicação. Ciberespaço, por exemplo: não é apenas a infraestrutura
material da comunicação digital, mas sobretudo o universo de informações
que nela transitam, assim como os seres humanos que navegam e
alimentam esse universo. Cibercultura: o conjunto de técnicas materiais e
intelectuais, práticas, atitudes, modos de pensamento e valores que se
desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço. Vivemos, diz
Lévy, um processo de universalização da cibercultura, pois estamos mais e
mais imersos nas novas relações de comunicação e produção de
conhecimento que ela nos oferece. É a virtualização, entendida não como
oposição ao real ou ao material, mas como uma nova forma de se conceber
o real, um real desterritorializado.
O ciberespaço cresce de maneira constante, orientado por três
princípios: a interconexão, a criação de comunidades virtuais e a
inteligência coletiva. Comunidades virtuais “são construídas sobre
afinidades de interesses e de conhecimentos, sobre projetos, em um
processo mútuo de cooperação e troca”.7 A inteligência coletiva surge da
colaboração de um grande número de indivíduos. “É uma inteligência
distribuída por toda parte, na qual todo o saber está na humanidade, já
que, ninguém sabe tudo, porém todos sabem alguma coisa”.8 Raciocínio,
memória e imaginação, funções cognitivas do ser humano, ampliam-se e
exteriorizam-se, e esse é o grande poder da nova realidade do saber
humano. Que esse poder seja usado para o bem ou para o mal já se trata de
outra discussão.
Do ponto de vista dos consumidores e dos usuários, a primeira
vantagem é uma maior facilidade de acesso a informações outrora distantes,
mesmo inatingíveis. Qualquer pesquisador com uma habilidade mínima é
capaz de reunir em umas poucas horas mais material sobre o assunto de seu
interesse do que seria possível depois de anos de árdua garimpagem no
século XX. Mas quantidade não é necessariamente qualidade e a
dificuldade é, hoje, separar o que presta do que não passa de lixo, ou
propaganda, ou copy-paste de trabalhos sérios.
Fake news não são privilégio do jornalismo. Existe um mundo lucrativo
de falsas publicações científicas. Journal of Economics and Finance é uma
revista de seriedade inquestionável onde é difícil ser publicado. Então,
alguém criou o Journal of Finance and Economics, que não passa de um
engodo; o objetivo é cobrar de pesquisadores que não são aceitos no
primeiro. Alguns aceitam pagar por estarem desavisados, outros porque
precisam, de qualquer jeito, aparecer em publicações científicas (ou
“científicas”). E o negócio rende: há mais cópias desse tipo do que
publicações científicas sérias. Pense no dano que ele pode fazer quando um
médico incauto usa um artigo feito por um pesquisador incompetente e
publicado em um periódico de aparência séria.
As falsas revistas científicas deturpam o modelo do movimento Open
Access, literalmente “acesso aberto”, que busca facilitar a disseminação e o
acesso a conteúdos científicos. Um dos objetivos do movimento é
desenvolver meios e formas para avaliar contribuições em acesso livre e
jornais on-line de forma a assegurar os padrões de qualidade e as boas
práticas científicas, para que as publicações em acesso livre sejam
reconhecidas para efeitos de avaliação e progressão acadêmica. Isso
claramente põe em xeque as editoras que vivem dos altos preços que
cobram pelas publicações acadêmicas.

TIRANOSSAURO REX 2.0

O caso das revistas científicas é exemplar da forma como a nova


tecnologia, somada à globalização, mudou o sistema dos meios de
comunicação de massa. O jornalismo mudou de cara e de local, de
velocidade e de função na construção de uma opinião pública e na sua
relação com a sociedade e com o poder. Publicações que eram referências
inquestionáveis sumiram ou sofrem para ainda ser ouvidas: são os
tiranossauros rex da mídia, que têm sua primazia questionada. Estamos
presenciando uma metamorfose em tempo real e, ainda que algumas
tendências sejam claras, seria ousado demais vaticinar a configuração final.
Meios, anunciantes, agências, veículos, distribuidores, consumidores e
outros formam o que se chama de sistema complexo. Um sistema
complexo é composto de partes que interagem e que nessa interação geram
novas qualidades no comportamento coletivo. São difíceis de estudar
porque seu comportamento não é previsível a partir do conhecimento das
partes: quando elas interagem, surge o novo, o inesperado. Mais e mais
cientistas estão aplicando a noção de sistemas complexos para o estudo de
áreas da sociedade, a economia, a consciência, as empresas.
Ecossistemas também são sistemas complexos, e podemos pensar o
conjunto dos meios de comunicação como um ecossistema. Nele cada
agente tem sua função, em equilíbrios dinâmicos e instáveis, mas que em
situação normal seguem certo padrão previsível. Há os grandes predadores
onívoros, os exploradores de nichos e os pequenos herbívoros, há uma
cadeia de energia que circula entre audiências e receitas publicitárias, em
construção de marcas e de hábitos de consumo de informação, educação e
entretenimento. Até que um dilúvio arrasa com tudo o que era normal e
instala algo novo, e cada uma das partes deve se reacomodar a novas
funções, entre outras coisas, pela interação com os outros agentes.
Uma publicação periódica sobre assuntos atuais, que aparece em
intervalos curtos o bastante para que os leitores se mantenham a par das
notícias: isso é um jornal. O primeiro foi o de Johann Carolus: Relation
aller Fürnemmen und Gedenckwürdigen Historien (Relação de Todas as
Notícias Distintas e Comemoráveis), publicado em Estrasburgo em 1605.
Carolus vivia até então de distribuir, entre cidadãos ricos, notícias copiadas
à mão em folhas de papel. Se a necessidade criou demanda e a inteligência
um serviço, a inovação técnica permitiu escalar o negócio e alcançar um
público bastante maior. Numa carta feita aos seus leitores, Carolus descreve
o processo de nascimento do jornal:
Visto que até agora distribuí os conselhos semanais de notícias
(boletins de notícias manuscritos) em troca de um valor, mas como
as cópias eram lentas e levavam necessariamente muito tempo e
visto que adquiri recentemente a um preço alto e dispendioso a
antiga oficina de impressão do falecido Thomas Jobin, e a coloquei
e instalei em minha casa, com não pouca despesa, para ganhar
tempo, e desde há várias semanas, e agora pela décima segunda
ocasião, estabeleci, imprimi e publiquei o referido conselho em
minha oficina de impressão, mas ainda não sem muito esforço, na
medida em que em todas as ocasiões tive que remover os tipos das
prensas [...].9

A inovação se espalhou rapidamente pela Europa. Em 1610, parece ter


havido um semanário impresso na cidade de Basileia e até 1620 já havia
jornais em Frankfurt, Viena, Hamburgo, Berlim, Amsterdã e Antuérpia. O
primeiro jornal semanal impresso na Inglaterra apareceu em 1621. A
França não produziu nenhum por conta própria até 1631, mas os editores
de Amsterdã já exportavam semanários em francês e inglês desde 1620. O
primeiro semanário impresso da Itália apareceu o mais tardar em 1639, e
na Espanha em 1641.
Com a Revolução Industrial e o aumento da atividade econômica nas
metrópoles, os jornais cresceram. O diário The Times, de Londres, vendia
mais de 10 mil exemplares em 1830, em uma cidade de 2 milhões de
habitantes; em 1855, a tiragem estava em quase 60 mil exemplares. Foi
então que o imposto sobre a impressão e o papel, considerado por seus
detratores uma barreira ao acesso ao saber, foi revogado, liberando a
proliferação de jornais menores. Em 1864, havia 96 diários de província na
Inglaterra, e Londres contava com 18. Edward Baines, proprietário do
liberal Leeds Mercury, proclamava orgulhoso que, de um total anual de 546
milhões de cópias de jornais, 340 milhões eram de órgãos da província.
Nos Estados Unidos, o The Sun nasceu em 1833 e cinco anos depois já
vendia 34 mil cópias, principalmente nas esquinas de Nova York. O New
York Herald foi lançado em 1835 por Gordon Bennet, que declarava que a
sua missão era fazer da imprensa escrita o grande órgão e pivô do governo,
sociedade, comércio, finanças, religião e de toda a civilização humana.
O Tribune, lançado em 1824, incluía artigos enviados da Europa por
Karl Marx e excluía algumas notícias nacionais, recusando-se a imprimir
detalhes sobre crimes, reportagens sobre julgamentos e peças de teatro.
Considerava-se o “grande órgão moral” e se acreditava autossuficiente no
suprimento de notícias. Nascia o jornalismo que iria se consagrar como
modelo da grande imprensa norte-americana. Um impulso grande nesse
sentido foi o surgimento, em 1851, do The New York Times, “um jornal
sensato e sensível”, fundado por Henry Raymond com a missão de
diferenciar claramente “notícias” de “pontos de vista”. “Nós não
acreditamos que cada coisa na sociedade seja completamente certa ou
errada; desejamos preservar e melhorar o que é bom; e exterminar e
reformar o que é ruim”, dizia seu fundador.
Nesse contexto, a imprensa já estava ciente da própria importância e se
colocava num lugar central em relação ao poder, um ponto de equilíbrio
entre poder econômico e poder político. Mostra disso é a postura do
acadêmico, jornalista e político inglês, o teórico do liberalismo Leonard
Trelawny Hobhouse, que exigia da imprensa cumprir sua missão de ser um
“órgão da democracia” e criticava o “monopólio de alguns homens ricos”
em que ela vinha se tornando.
Na Inglaterra, o Westminster Review, fundado em 1842, descreve os
jornais como: “os melhores e mais confiáveis civilizadores do país. Contêm
em si mesmos, além dos elementos do conhecimento, os incentivos para
aprender. É preciso ver um povo que não tenha sido atingido pelos jornais
para conhecer a quantidade de preconceitos que esses produtos dissipam
instantânea e necessariamente”.
O Times, dominante na imprensa em Londres, se considerava um
“quarto poder”. Não há consenso sobre a origem dessa expressão,
empregada para descrever a importância da mídia no jogo democrático e
para defender a independência do jornalismo. Foi usada por um
parlamentar, Edmund Burke, em um debate, em 1787. A expressão
“quarto Estado” (traduzida a outras línguas como quarto poder) serviu de
título de um livro sobre a imprensa britânica, publicado em 1850 pelo
jornalista Frederick Knight Hunt: The Fourth Estate: Contributions towards
a History of Newspapers and of the Liberty of the Press (O quarto Estado:
contribuições para uma História dos jornais e da liberdade de imprensa).
Independentemente da sua origem, a expressão reflete uma visão sobre
a imprensa que imperou ao longo de boa parte do século XX e ainda
guarda sentido. Oscar Wilde, em um libelo publicado em 1891 sob o título
The Soul of Man Under Socialism (A alma do homem sob o socialismo),
escreveu que o poder do jornalismo era excessivo. Hoje, autores como o
sociólogo francês Ignacio Ramonet defendem a necessidade de um quinto
poder, capaz de se contrapor ao “poder sem contrapoder” da mídia
excessivamente concentrada.
A relação entre os meios de comunicação e o poder foi assunto de
debate e preocupação em boa parte do século XX. As duas Grandes
Guerras e o advento primeiro do rádio e em sequência da TV despertaram
o interesse de alguns teóricos e críticos da Alemanha, que viram no
fenômeno que começou a ser chamado de media, ou de mass media, um
método de manutenção do status quo, de relações de dominação ideológica.
Nasceram os conceitos de opinião pública e de indústria cultural. Na
França, falava-se da “sociedade do espetáculo”: a multiplicação de imagens
e ícones pelos meios de comunicação de massa.
Mais otimista que seus pares europeus, o canadense Marshall McLuhan
cunhou a noção de “aldeia global”: o mundo tornava-se cada vez menor; a
comunicação entre os homens mais rápida e fácil; as fronteiras deixavam de
existir; e os regionalismos e culturas nacionais já não eram considerados
empecilhos para a comunicação. Seus escritos dos anos 1960 e 1970
parecem estar falando de nossa época. Ideias, padrões e valores
socioculturais e imaginários formariam um sistema comunicacional capaz
de moldar uma cultura de massa, de constituir um mercado de bens
culturais e universos de signos e símbolos, um conjunto de linguagens e
significados que povoam o modo pelo qual uns e outros se situam no
mundo, ou pensam, imaginam, sentem e agem.
Se o trabalho de McLuhan impressiona pela capacidade de antecipar
muito do que estamos vivendo, o que dizer do cientista e inventor Nikola
Tesla, norte-americano nascido na atual Croácia, que declarou em uma
entrevista em 1926:

Quando a tecnologia sem fio for aplicada perfeitamente, toda a


Terra será convertida em um cérebro enorme, o que de fato é, todas
as coisas sendo partículas de um todo real e rítmico. Poderão se
comunicar instantaneamente, independentemente da distância.
Não apenas isso, mas através da televisão e da telefonia veremos e
ouviremos perfeitamente como se estivéssemos cara a cara, apesar
das distâncias intermediárias de milhares de quilômetros; os
instrumentos através dos quais poderemos fazer isso serão
incrivelmente simples em comparação com o nosso telefone atual.
Um homem será capaz de carregar um no bolso do colete.10

DESTINOS EM XEQUE

O sistema dos meios de massa tem uma origem comum, em tempo e


espaço, com a democracia representativa e com o sistema capitalista. As
primeiras publicações periódicas nascem com o objetivo de facilitar a vida
de comerciantes, industriais e, de modo geral, agentes econômicos de uma
nova ordem. Os meios de comunicação ganharam espaço e cumpriram
uma função: ser o contrapoder do Estado, em mãos privadas. Olhar atento
e crítico, capaz de detectar desvios daquilo que a sociedade considerava
correto de seus governantes, em respeito às regras não escritas que
preservam a nação e a democracia. E até mesmo as regras escritas: vide as
denúncias do Washington Post que acabaram derrubando o então homem
mais poderoso do planeta, o presidente dos Estados Unidos Richard Nixon.
Num jogo de contrapesos, ao Estado cabia o papel de controlar a imprensa
nos limites permissíveis: por exemplo, evitando concentração excessiva ou
monopólio, por meio de leis antitruste. Os Estados nacionais são donos das
frequências que as TVs, muitas vezes críticas, usam para difundir seus
conteúdos: um governo autoritário poderia cair na tentação de ameaçar a
não renovação de uma licença de uso de frequência caso a imprensa o
incomode.
Foram vários os motivos que fizeram ruir o negócio dos meios
tradicionais: jornal, revista, rádio, TV aberta. Em primeiro lugar, a
mudança de hábito das pessoas, que passaram a ocupar mais tempo em
redes sociais e menos nas páginas de uma revista, ou começaram a ler as
notícias na internet ou no celular e deixaram de comprar o jornal ou de
ligar a TV para assistir ao noticiário. Quem tinha um Fusca nos anos 1970
podia ler a revista Quatro Rodas, e se ele fosse corintiano teria a revista
Placar; hoje, existem sites e blogs sobre cada modelo e marca de carro e um
número incalculável de publicações para os torcedores de futebol. Cada
interesse humano tem canais onde é possível encontrar informações e
opiniões. Acompanhando os usuários, a verba publicitária também deixou
os meios tradicionais, e os anunciantes descobriram que as redes sociais e os
mecanismos de busca são ferramentas poderosíssimas de venda.
Com a globalização, surgiram grupos empresariais multimídia que
produzem e distribuem informações e entretenimento global, interpretam
os fatos e distribuem uma visão única em escala planetária. No mesmo
meio físico (fios, cabos, ondas), transportam-se serviços que antes eram
separados. Já não apenas TV, rádio, imprensa, tudo acontece no digital:
tem teatro e concertos, cursos, encontros, congressos, namoros… Muitas
atividades que antes eram regionais e independentes foram engolidas pelo
novo modelo, outras reforçaram a sua especialização, e também surgiram
modalidades novas, sequer imagináveis antes.
Estamos perto demais da mudança, ela nos envolve de maneira que
custa compreendê-la em toda a sua dimensão e nas suas contradições. De
um lado, vemos maior liberdade do indivíduo, mas há também
mecanismos de vigilância e controle sem precedentes. Há um acesso mais
fácil à participação política, novas vozes podem ser ouvidas e surgem atores
novos na cena da democracia, mas por outro lado vemos uma polarização
instalada e crescente que apaga as sutilezas e as posições divergentes.
Qualquer pessoa, sem necessidade de talento, pode se expressar na rede,
construir seu meio de comunicação, produzir vídeos ou músicas e colocá-
los ao alcance de milhões. Assim, há espaço para uma variedade maior de
pontos de vista, mas o poder para determinar interpretações nunca foi tão
forte nem tão concentrado. Todos podemos montar um negócio sem
grande capital e ocupar um lugar no mercado, mas, na outra ponta, a
economia de algumas corporações midiáticas movimenta mais dinheiro do
que a maioria dos países.

USUÁRIO OU PRODUTO?

O inseto olha ao alto para a lupa gigantesca e se maravilha com a


amplitude de sua visão; ele não tem ciência daquele olho que o observa,
acha-se observador, não observado. Algo semelhante acontece conosco na
frente de uma tela. Quando assisto a um vídeo na rede, leio uma matéria
ou dou like em uma foto, estou deixando uma pegada digital que me
identifica e que, somada e conjugada com muitas outras, traça percursos e
uma silhueta, a minha silhueta, que será preenchida por novas interações
on-line e off-line.
Com técnicas simples e hoje baratas, é possível acompanhar as
atividades de cada pessoa na internet, conhecer no detalhe e com precisão o
tempo dedicado a cada texto, foto ou vídeo. Existem empresas que se
dedicam a colher e processar essas informações, classificar os
comportamentos e, com a ajuda de modelos estatísticos, fazer predições e
direcionar os anúncios para aquelas pessoas que têm mais propensão a se
interessar por um produto ou serviço, saber se o anúncio foi efetivamente
visto e até se gerou uma venda. O Facebook constrói esses modelos a partir
do muito que sabe sobre nossos gostos – o que descobre acompanhando
likes, os nossos posts, os amigos que temos. O Google faz algo semelhante
pelo histórico de busca, os e-mails que enviamos, os lugares que visitamos,
as compras que fazemos.
No universo complexo e caótico das empresas de marketing digital,
Google e Facebook são as mais visíveis, além de maiores e mais ricas. O
sucesso dessas operações baseia-se no “efeito de rede de dados”, uma espiral
onde o crescimento gera mais crescimento. Informações servem para atrair
usuários que por sua vez geram novos dados que permitem melhorar os
serviços e por consequência a atrair ainda mais usuários. Quanto mais as
pessoas escrevem comentários, dão like em postagens e se envolvem com a
rede social, mais as empresas aprendem sobre elas e mais direcionados se
tornam os anúncios. Da mesma forma, quanto mais pesquisas no Google,
melhores são os resultados. A consequência é que as empresas grandes
ficam maiores e tendem a acabar com a concorrência.
Há operações digitais de todos os tamanhos, algumas sérias e bem-
intencionadas, e outras cujos propósitos, métodos e donos permanecem
ocultos. Invisíveis para os usuários e muitas vezes conectadas com
operações legais, muitas vivem de um tráfego de informações onde tudo
vale. O cruzamento entre bases de dados legais com muitas obtidas
ilegalmente pode enriquecer as informações colhidas dentro dos termos que
a lei indica – e as leis andam sempre correndo atrás do prejuízo, porque a
tecnologia avança rápido demais e com ela os modelos de negócio que
precisam ser policiados.
A massa de dados acumulados e processados é descomunal e tem um
valor difícil de dimensionar. Há quem diga que os dados são o novo
petróleo. Talvez mais que petróleo, pois não se trata apenas de dinheiro: o
acesso a dados e o entendimento sobre o que fazer com eles é a nova forma
do poder. Existem iniciativas que buscam devolver aos usuários parte do
valor que eles mesmos geram nas redes on-line, com uma taxa que permita
um pagamento anual pelos dados fornecidos. Algo semelhante ao que
ocorre no Alasca com o petróleo, onde cada habitante recebe U$ 1.500 ao
ano pelo que lhe corresponde nas licenças de extração nas terras do Estado.
Alguns economistas calculam que o valor dos dados poderia superar os U$
6.600 anuais per capita.
O primeiro e principal uso dos dados é publicitário: vender bens e
serviços de maneira mais eficiente. Chegar na pessoa certa, no momento
certo e com a mensagem certa permite aumentar o retorno dos
investimentos. Essa é a base da segmentação, princípio básico da
publicidade, muito anterior à internet. Assim, por exemplo, uma
campanha orientada a vender um carro adequado aos jovens irá aparecer
em meios que atraem estes usuários. Mas, se conseguir detectar quais deles
têm dinheiro, vontade ou necessidade de comprar, então as mensagens
serão dirigidas a estes em particular, e não aos jovens em geral. Entre os
compradores potenciais haverá quem prefira carros mais luxuosos, outros
escolhem modelos com preocupação ambiental. São vários os critérios
possíveis para uma segmentação: podem ser demográficos – idade, tipo de
emprego, gênero, escolaridade –, geográficos e comportamentais –
preferência política, crença religiosa, práticas esportivas. A publicidade
digital oferece precisão inédita: a microssegmentação consegue ir além
desses critérios e segue de perto a jornada do internauta, detecta padrões de
comportamento, que então cruza com bancos de dados, vinculando os
perfis dos usuários com atividades que indicam predisposição à compra – e
é aí que ganha um poder extraordinário.
Os dados on-line ajudam a vender de maneira mais eficiente, e por isso
valem muito. GAFAM é o acrônimo para se referir às cinco empresas
digitais mais valiosas do mundo: Google (controlada pela Alphabet),
Amazon, Facebook, Apple e Microsoft. Essas organizações também são
conhecidas como as big five.
A Amazon fatura a metade de todos os dólares gastos on-line nos
Estados Unidos. Google e Facebook dominam a receita global de
publicidade. Em 2018, a Alphabet faturou US$ 136,8 bilhões, o Facebook,
quase 56 bilhões, a Microsoft US$ 110 bilhões e a Apple US$ 265
bilhões.Em um único ano, o faturamento das cinco empresas reunidas
cresceu mais de US$ 801,5 bilhões, e seus lucros bateram em US$ 140
bilhões. O valor de mercado das cinco somadas é maior que o PIB de todas
as economias do mundo, exceto três: EUA, China e Japão. Pelo
faturamento de um ano, seriam a vigésima economia do mundo.
As informações pessoais que essas empresas coletam, armazenam e
processam diariamente não estão apenas disponíveis para mensagens
publicitárias. Esses dados podem ser transformados em vários serviços de
inteligência artificial, capazes de gerar novos ingressos. Lembre-se: quando
um serviço on-line é grátis, você não é cliente, você é produto. Hoje, o foco
de cada uma dessas cinco empresas dominantes é diferente e tem a ver com
suas origens. Para três delas, nós somos principalmente clientes: Amazon,
Microsoft e Apple. Mas para o Google e, sobretudo, o Facebook, nós
somos o produto.
Há uma corrida por novas fontes de dados sobre o comportamento das
pessoas. Por exemplo, como compramos e lidamos com dinheiro. O
Google trabalha com o Citigroup num projeto chamado Cache, o qual
alimenta a inteligência da empresa com nomes e detalhes completos de
milhões de correntistas. Facebook teve de adiar, mas certamente não
abandonou, o projeto de ter a sua própria moeda digital, enquanto a Apple
lançou um cartão de crédito e a Amazon busca parcerias com bancos para
oferecer contas pessoais a seus clientes, com benefícios extras e custos mais
baixos.

UBERIZADOS

Se as empresas digitais podem reduzir os custos em relação aos bancos,


isso ocorre graças a um conceito fundamental para entender o que muda
no mundo dos negócios e na vida das pessoas com a economia digital: a
desintermediação. O termo significa a aproximação entre compradores e
produtores, entre quem consome e quem oferece um produto ou um
serviço,reduzindo ou eliminando intermediários. É o caso do produtor que
vende diretamente para seu público, sem passar por um distribuidor ou
uma loja.
O artista plástico argentino Felipe Gimenez recebe pedidos diretamente
de seus seguidores nas redes sociais, sem precisar de uma galeria de arte
para promover a sua obra. A startup coreana Tridge coloca em contato
produtores locais de comida em 190 países com compradores do mundo
inteiro, dando-lhes acesso a mercados internacionais para, ao cortar os
middlemen (intermediários de que normalmente precisariam), manter seus
preços competitivos. Em outra escala, Dell e Apple vendem diretamente
aos consumidores, em suas páginas na web.
Todos esses são casos reais de desintermediação. Mas muitas vezes, por
trás de uma aparente desintermediação, há a substituição de velhos por
novos intermediários, ou uma redução da cadeia de intermediação.
Negócios que se mantiveram por anos, décadas e até séculos criando elos
entre quem produz e quem compra são ou foram ameaçados; muitos
desapareceram e outros irão desaparecer. É o caso de comércios de bairro,
livrarias, lojas de CDs e locadoras de vídeo, mas também de grandes
atacadistas, de selos musicais e de editoras: o produtor pode negociar
diretamente com seus clientes ou pular uma etapa de intermediação. E
novos modelos nascem por causa dessa característica da nova economia.
Airbnb, Netflix, Spotify e Uber são exemplos de sucesso.
O Airbnb foi fundado em São Francisco (EUA), em 2008, com uma
proposta simples: facilitar o aluguel de quartos, casas e apartamentos
privados. As transações ocorrem na plataforma da empresa, o que de certa
maneira dá segurança a locador e locatário, mas a negociação de preços e
condições é livre entre quem oferece e quem contrata. Hoje a organização
já conta com mais de 6 milhões de ofertas em 81 mil cidades de 167 países
– eles se gabam de trabalhar em 62 línguas. Sem possuir um único quarto
próprio, o Airbnb é maior que a soma das cinco maiores empresas
hoteleiras do mundo. São em média 2 milhões de pessoas que a cada noite
dormem em propriedades alugadas pela plataforma; somam mais de meio
bilhão desde o início das operações em 2008 até 2020. O atrativo não é
apenas o preço, que pode ser mais em conta do que o de um hotel; muitos
preferem conhecer uma cidade vivendo como locais, em ambientes não
padronizados, mais autênticos.
Airbnb trouxe o benefício de ofertas mais variadas e causou uma
redução efetiva nas tarifas dos hotéis. Mas para algumas cidades, como
Paris e Madri, o impacto negativo também é considerável: os aluguéis
residenciais se tornam escassos, os preços sobem, expulsando os moradores
locais e mudando a fisionomia de bairros inteiros para fazê-los mais
atrativos para atender à nova população de turistas internacionais. Assim,
restaurantes de bairro são reconvertidos em locais gourmet, com muito
design – e preços mais altos. As pequenas lojas de vizinhança cedem espaço
para franquias globais e as cidades vão ficando cada vez mais parecidas
entre si e definitivamente alheias para os locais. Londres, onde em 2020
somavam mais de 77 mil quartos oferecidos pelo Airbnb, reconhece que os
visitantes injetam dinheiro extra na economia da cidade, mas trabalha em
um projeto para regular a atividade e se proteger de seus efeitos tóxicos.
O modelo da Uber para transporte de passageiros segue o mesmo
princípio: oferecer uma plataforma para negócios entre particulares,
garantindo segurança e cobrando pela mediação e a tecnologia. As crises
aceleraram a entrada do serviço: foi para muita gente um meio para
complementar a renda ou gerar uma se estiver desempregado; em países
com pobreza crônica, motorista de Uber virou profissão. A cidade de São
Paulo tem uma frota estimada de 40 mil táxis e não menos de 250 mil
carros cadastrados em aplicativos. No mundo, mais de 100 milhões de
pessoas usam Uber todo mês.
Os consumidores ganham porque têm mais oferta e porque os preços
caem. Quem perde é quem tinha investimentos em setores fortemente
regulados, como o de táxi. Uma licença para um yellow cab, os táxis
amarelos tão característicos de Nova York, chegou a valer em 2014 1
milhão de dólares; hoje pode-se comprar a mesma licença por US$
170.000, o que tem causado muitas falências e pode ser uma das
explicações para uma onda de suicídios entre motoristas.
As cidades sentem o impacto dessa revolução no modo pelo qual as
pessoas se deslocam. Algumas irão deixar o carro em casa, ou até mesmo
deixar de comprar um carro, para usar serviços de aplicativos, práticos e
econômicos. Menos carros na rua, menos congestionamento e menos
poluição. Mas em cidades onde o transporte público é evoluído, acessível e
eficiente, a troca foi danosa: muitas pessoas trocaram o trem e o metrô por
serviços de aplicativo, gerando mais tráfego e poluição.
Em muitos sentidos, o exemplo do que ocorre com a venda de
produtos, com o aluguel de quartos ou o transporte serve para entender a
dinâmica nas indústrias da comunicação, do entretenimento às notícias.
Alguns dos casos mais bem-sucedidos da nova economia vêm, justamente,
dessas indústrias.

A FÓRMULA NETFLIX

Airbnb e Uber facilitam as trocas entre pares, entre privados: nesse


sentido pode-se falar de desintermediação, ou de uma menor
intermediação. Criam-se novas oportunidades de negócio, usando a
tecnologia disponível para liberar valores que estavam em potência: os
apartamentos e os carros já existiam, mas para que tivessem uso comercial
eram necessários uma plataforma digital e um modelo de negócio. É
diferente quando se trata de serviços como Netflix e Spotify, que também
mudaram a dinâmica das indústrias onde entraram criando novos canais de
consumo de filmes e de músicas que complementaram ou substituíram os
canais anteriores.
Na sua origem, em 1997, a Netflix era um serviço de aluguel de filmes
em DVD. Em 1999, incorporou um modelo de assinatura mensal; os
filmes eram distribuídos pelo correio. Em 2000, houve uma oferta de
venda à Blockbuster, por US$ 50 milhões, mas o negócio não prosperou:
para o então gigante de aluguel de vídeos, com uma receita em aumento e
uma fórmula de sucesso, não fazia sentido. Em 2004, com 9 mil lojas
espalhadas pelo mundo e mais de 60 mil funcionários, a Blockbuster tinha
um valor de mercado de US$ 5 bilhões. Faliu apenas seis anos depois; tinha
320 lojas. Hoje há uma única loja da Blockbuster, no interior dos EUA,
local de culto onde se pode alugar um DVD, tirar uma foto embaixo do
cartaz azul e amarelo ou tomar um chope da cerveja artesanal Last
Blockbuster.
O que causou a queda da Blockbuster e o crescimento da Netflix foi a
conjunção do modelo de assinatura mensal (hoje a estrela dos negócios
digitais) e a tecnologia de streaming ou transmissão contínua, que dispensa
o download. Não se arquiva nada no computador pessoal. A tecnologia não
somente não ocupa lugar nos discos rígidos, como também permite a
reprodução de obras com direitos autorais. A Netflix focou seu negócio na
distribuição on-line em 2007 e então a sua base de usuários começou uma
curva ascendente que hoje a coloca como um dos serviços mais acessados
no mundo. São 200 milhões de pessoas usando Netflix, um terço delas nos
EUA, onde soma mais usuários que todas as empresas de TV a cabo juntas.
O faturamento anual em 2020 foi de US$ 20 bilhões e o valor de mercado
da empresa alcançou os US$ 200 bilhões – 40 vezes o valor que a
Blockbuster declinou pagar pela operação e mais do que a Disney valia no
mesmo ano.
Na música, a mudança começou no fim do século XX, com usuários
compartilhando arquivos digitais por meio de plataformas como Napster e
Kazaa e a indústria lutando por vias legais e tecnológicas para impedir o
inevitável. Foi como enfrentar um tsunami com sacos de areia. Em abril de
2003, a iTunes Store, da Apple, deu início ao que seria uma mudança
radical do negócio da música e do hábito de consumo. Além de uma
imensa fonte de receita para os criadores do iPod. Steve Jobs apostava que
os fãs queriam acesso fácil e a preços razoáveis aos arquivos de música. O
sucesso veio, mais uma vez, de uma combinação de tecnologia (a
plataforma, o reprodutor) com a opção revolucionária de baixar músicas
individuais por 99 centavos de dólar.Na sua primeira semana no mercado,
o iTunes vendeu 1 milhão de downloads e se tornou o maior varejista de
música dos Estados Unidos, transformando-se numa bênção e numa
maldição para a indústria da música. O setor parecia ter encontrado
finalmente um modelo de distribuição digital aceito pelos consumidores,
que acabou de matar o já enfraquecido negócio dos CDs.
Como ocorreu com os filmes, a música on-line ganhou com o streaming
e com o crescimento da banda de transmissão nas casas e nos celulares. O
modelo de assinatura inaugurado pela Netflix fez com que os hábitos de
consumo mudassem mais uma vez. A plataforma da Apple tem mais de 60
milhões de usuários, mas o campeão do segmento vem da Suécia, com uma
fórmula diferente que faz a venda de músicas avulsas parecer pueril. Criado
em 2008, o Spotify já superou os 250 milhões de usuários, dos quais
metade são pagantes.
Lojas de CDs deixaram de existir, fábricas tornaram-se inúteis,
aparelhos reprodutores juntam poeira. A cadeia de negócio como um todo
mudou e as grandes empresas fonográficas precisaram encontrar outras
formas de ganhar dinheiro. Foi necessário compreender a lógica de um
mundo novo, muito mais do que apenas de uma forma diferente de se
distribuir música.
O conceito de cauda longa, ou long tail,11 mostra como a soma de
muitos pequenos grupos faz um grande mercado. Levado ao limite,
significa que as grandes empresas irão atender cada usuário de maneira
única, ajustando o produto em função de seus gostos e de suas preferências.
Isso vale especialmente para operações como Spotify e Netflix.
Existem 200 milhões de versões diferentes da Netflix, uma para cada
usuário. Para conseguir isso, o volume e a complexidade dos dados que a
Netflix processa são impressionantes. Começa com as estrelas com que cada
usuário qualifica os filmes que assistiu, mas ganha força com o algoritmo
que registra todas as vezes em que alguém retrocede, avança e pausa um
filme, suas buscas, a localização geográfica, dia da semana e hora, tempo
dedicado a cada cena. Isso tudo é cruzado e enriquecido com o que se
chama de metadados: informações de empresas de pesquisa e redes sociais.
Predizer as escolhas de um ser dotado de livre-arbítrio é sempre um desafio,
mas empresas como a Netflix estão avançando rapidamente nesse sentido.
Condição do ser humano e diferencial competitivo, a comunicação
evolui acompanhando a evolução da humanidade desde seu nascimento.
Acompanhando ou conduzindo: melhoras na capacidade se comunicar são
causa e consequência de muitas das rupturas e das mudanças mais
marcantes da história. Não é diferente no século que nos toca.
Comprovamos em tempo real como o progresso da tecnologia e suas
consequências nas formas de produzir e trocar informações e conhecimento
mudam o mundo em que vivemos. As duas primeiras décadas do século
mostraram impactos em cada aspecto da vida: na economia, no trabalho,
na educação, na família, na saúde, nas artes, nas ciências. E na política,
claro. Foco de nossa próxima seção, a ruptura provocada pela capacidade de
trocar informações e construir saberes e identidades em rede.

Notas
1
Esta é a visão do filósofo e psiquiatra alemão Karl Jaspers.
2
A publicação, que ainda existe, é o Bell System Technical Journal, um órgão interno da empresa de
telefonia Bell.
3
Marshall McLuhan, The Medium is the Message: an Inventory of Effects, Harmondsworth, Penguin
Books, 1967, p. 26 [tradução minha].
4
Marshall McLuhan (1911-1980), filósofo canadense.
5
Umberto Eco (1932-2016), pensador e escritor italiano.
6
Pierre Lévy, Cibercultura, São Paulo, Editora 34, 2003, p. 13.
7
Pierre Lévy, Cibercultura, São Paulo, Editora 34, 2003, p. 128.
8
Idem, p. 142.
9
“Johan Carolus’s ‘Relation’, the First Printed European Newspaper”, em History of information,
2015. Disponível em <http://www.historyofinformation.com/detail.php?id=34>, acesso em 10
nov. 2019 [tradução minha].
10
Apud Chong Celena, “The inventor that inspired Elon Musk and Larry Page predicted
smartphones nearly 100 years ago”, em Business insider, 2015. Disponível em
<https://www.businessinsider.com/tesla-predicted-smartphones-in-1926-2015-7>, acesso em 20
nov. 2019 [tradução minha].
11
O conceito tem pai: Chris Anderson é autor de A cauda longa: a nova dinâmica de marketing e
vendas: como lucrar com a fragmentação dos mercados (Rio de Janeiro, Elsevier Brasil, 2006).
Ciberpopulismo, o novo nome da
política
“A ciberpolítica trata do que sempre trata a política, isto é, de como se
consegue, se preserva e se perde o poder, segundo o delineava Maquiavel;
ou do who, do what, do when e do how, do mais pragmático Lasswell; ou
de quem toma as decisões, de Schmitt; enfim, de quem manda. Mas o faz
com meios novos, capazes de mudar as regras do jogo.”
Ramón Cotarelo e José Antonio Olmeda, em La democracia del siglo
XXI

Covilhã fica no início da Serra da Estrela, em Portugal. Apesar da


distância do mar, a cidade ocupa um lugar de destaque na história dos
descobrimentos portugueses. Pêro de Covilhã é seu filho mais famoso; os
livros o registram como o primeiro português a pisar nas terras do que mais
tarde viria a ser Moçambique, nas costas do oceano Índico. O
desenvolvimento que os irmãos Francisco e Rui Faleiro, cosmógrafos
covilhanenses, fizeram das ciências náuticas foi fundamental para aqueles
navegantes que precisavam de referências para se situar em águas
desconhecidas. É de José Vizinho, também de Covilhã, o Almanach
Perpetuum, obra muito útil para a navegação, que serviu a Cristóvão
Colombo nas suas travessias.
Honrando esse passado ilustre, uma carta náutica de 1571 pende no
salão da Universidade da Beira Interior, no prédio onde antes funcionava
uma fábrica de lã fundada pelo Marquês de Pombal. Foi nesse entorno que
um grupo de pesquisadores, do qual fiz parte com cientistas políticos,
sociólogos e filósofos do Brasil, Portugal e Alemanha, discutimos questões
de comunicação e política. Um dos oradores postulou uma visão pós-
moderna de que a realidade é fruto de consenso: vivemos em um mundo
construído de maneira coletiva. Seus argumentos foram sólidos e muito
claros, o discurso fluiu e a plateia assentiu. Exceto uma moça, muito jovem,
com um cabelo loiro tingido de um verde raivoso.
– Vem cá! – disse, quase indignada. – Você está me dizendo que a
realidade não é a realidade, que o que estou vendo como realidade não é igual
ao que você está vendo como realidade. Como, então, vou fazer se eu não sei se
isso que está aqui é a realidade?
O expositor sorriu com uma mistura de embaraço e ternura e dedicou
um bom tempo a responder. A moça não se conformou. E nós, os
assistentes, presenciamos a cena, calados.
Soube depois que a moça de cabelo verde era filha dele. Com uma
pergunta aparentemente ingênua ela apontou para o coração do problema:
vivemos em realidades diferentes. Podemos lançar mão de todos os recursos
da Filosofia para justificar isso, para compreender as consequências práticas
e teóricas, mas o que ela disse é correto: como vamos atuar de maneira
coerente se estamos habitando universos paralelos?
A mentira na política tem como objetivo destruir o mundo comum
verdadeiro e substituí-lo por visões fragmentadas que atendem interesses de
quem opera a substituição.1 Até o final turbulento de seu mandato, o
presidente norte-americano Donald Trump tinha disseminado em público
ou em redes sociais não menos que 30.573 mentiras ou informações
erradas, segundo levantamento feito pelo jornal The Washington Post.2 As
inverdades contabilizadas pelo jornal são as que Trump disse durante o
mandato, mas o histórico é bem mais antigo e diz respeito a afirmações
falsas sobre questões como tamanho da própria fortuna e o quanto teria
herdado do pai; a companhia, dizia, tinha nascido de um empréstimo de 1
milhão de dólares, mas na verdade ele recebera algumas centenas de
milhões como herança. Na campanha presidencial de 2016, disse que
Barack Obama não tinha nascido nos EUA e não teria nacionalidade norte-
americana. Já eleito, inaugurou seu mandato inflacionando várias vezes o
número de manifestantes que assistiram à sua posse; coerente, na sua
despedida disse que tinha sido o presidente que mais cortes de impostos
fizera, assumindo um lugar que, na verdade, correspondeu ao também
republicano Ronald Reagan. No Brasil, Jair Bolsonaro fez da mentira uma
marca de sua passagem pelo comando do país. Como seu par e modelo
gringo, ajudou a aumentar os efeitos da pandemia de covid-19 pela
divulgação de informações falsas, e aqui suas mentiras abarcam os assuntos
mais diversos, de educação a economia, de meio-ambiente a cultura. O site
Aos Fatos3 faz um levantamento sistemático das inverdades do presidente e
até fevereiro de 2021 contabilizava mais de 2.700. As primeiras se referiam
a questões da eleição e da conformação do governo, supostamente
integrado por técnicos, sem recurso a pactos partidários nem escolhas
ideológicas, e ainda insistia em questões levantadas na campanha, como os
supostos riscos de uma virada ao comunismo caso ele não fosse eleito, ou
ainda disparates como a ideologia de gênero que ameaçaria as crianças e as
famílias brasileiras. Mas as mentiras mais perniciosas e repetidas foram as
que negaram a gravidade da pandemia que estourou em 2020,
desmentindo cientistas e técnicos e promovendo aglomerações,
incentivando a não usar máscara e não respeitar outras medidas
preventivas, defendendo tratamentos descartados pela comunidade
científica e, sobretudo, se apartando da responsabilidade no gerenciamento
da crise.
As ditaduras latino-americanas dos anos 1970 esconderam sua
brutalidade por trás de campanhas de propaganda que destacavam o
respeito aos direitos humanos, o valor da justiça e sentido de honra dos
comandantes. Grande parte dos ditadores africanos do século XX
desenvolveram programas de propaganda baseados na mentira, da mesma
maneira que Hitler e Mussolini. Convencer de que aquilo que se diz é
verdadeiro, mesmo quando isso se opõe ao que as pessoas veem é uma
necessidade que compartilham inimigos da democracia de todas as cores.
Isso não é privilégio do século XXI, desde sempre foi assim. Por isso, o
domínio das técnicas de comunicação é uma das bases que sustentam o
populismo.

POPULISMO, UMA DEFINIÇÃO

“Populismo” é uma das principais palavras da moda do século XXI.


O termo é utilizado para descrever presidentes da esquerda na
América Latina, partidos de oposição de direita na Europa e
candidatos presidenciais tanto de esquerda como de direita nos
Estados Unidos. Mas embora o termo exerça grande atração
igualmente sobre muitos jornalistas e muitos leitores, a sua
utilização generalizada cria também confusão e frustração.4

Assim começa Populismo: uma brevíssima introdução, de Cristóbal


Rovira Kaltwasser e Cas Mudde, dois especialistas em extrema direita e
populismo. Os autores buscam uma definição capaz de dar conta da
diversidade de manifestações do populismo ao longo da história. Afirmam
que se trata de uma ideologia de baixa densidade, o que pode ser entendido
como uma ideologia rasa, sem muito conteúdo. O populismo considera
que a sociedade está dividida em dois campos homogêneos e antagônicos –
“o povo puro” e “a elite corrupta” – e defende que a política deveria ser
uma expressão direta da vontade do povo.
O pensador argentino Ernesto Laclau é mais radical e diz que o
populismo não se refere a um conteúdo específico ou a uma ideologia.
“Não entendemos um tipo de movimento – identificável com uma base
social especial ou com uma determinada orientação ideológica –, mas uma
lógica política”.5 Essa lógica busca articular as demandas de uma parcela da
população não satisfeita com o establishment num determinado marco
institucional. Surge, assim, um “povo” que se opõe a um determinado
inimigo; é um “nós” versus um “eles”, e o “nós” é o “povo”, mas esse povo
pode significar muitas coisas, assim como seu inimigo. Podem ser
trabalhadores contra oligarcas, nacionais contra imigrantes, brancos contra
negros ou judeus, árabes ou nordestinos, progressistas contra reacionários,
feministas contra misóginos. Ou, mais simplesmente, “as pessoas comuns”,
“os brasileiros”, “os pobres”, “os trabalhadores”, “as pessoas de bem”. Esse é
“o povo”, uma parcela da população que tem demandas desatendidas e que
o populismo faz visível.
O populismo é um modelo de conquista e manutenção do poder, uma
técnica narrativa que existe pelo menos desde o século XIX e que nas
últimas décadas ganhou espaço inédito.6 Um discurso populista combina
três elementos: além do povo, há o inimigo e é indispensável a figura do
líder. Inimigo será o que mais convenha à escolha do povo selecionado:
Donald Trump criou sua plataforma política orientada ao norte-americano
médio, trabalhador, ou ao pequeno empresário, agricultor, excluído das
grandes capitais e invisível para a grande mídia. Seus inimigos foram o
establishment de Washington e de Wall Street e os meios de comunicação,
mas também os imigrantes latinos que “roubam” o trabalho dos norte-
americanos, algumas entidades globais como as Nações Unidas, voltadas a
enfraquecer o poderio dos EUA, e ainda países escolhidos a dedo, como
Irã, Coreia do Norte, Alemanha e, claro, a China. A lista é longa e variada.
E também é mutável: vai se atualizando de acordo com as necessidades
táticas, e isso é uma característica comum às várias formas de populismo.
O líder precisa de carisma, ser bom comunicador, intuitivo e ousado. A
história mostra que muitas vezes os líderes populistas estão tão imbuídos da
persona pública que acabam sendo vítimas de si próprios: eles caem do alto
da própria arrogância, acreditando na infalibilidade e na adesão irrestrita de
seus seguidores. Mas, enquanto surfam a onda, o egocentrismo e o jeito
peculiar e diferenciado, mesmo bizarro, ajudam. A fala direta diz o que as
pessoas querem ouvir ou dizer: é o sujeito que “fala sem papas na língua”,
sem se atentar para o politicamente correto, que confronta as convenções.
As ideias simples ou meramente simplistas são facilmente reproduzíveis, e
as mentiras deslavadas encontram crédulos quando ratificam o que se quer
ouvir. Frases de efeito, insultos, provocações são moeda corrente entre as
estrelas da política internacional, de Trump a Salvini, de Maduro a
Bolsonaro. O mundo está virando uma república bananeira por causa de
um conjunto de bufões fantasiados de políticos – ou o contrário. A figura
do líder estapafúrdio é central na construção populista.

Os defeitos e vícios dos líderes populistas se transformam, aos olhos


dos eleitores, em qualidades. Sua inexperiência é a prova de que eles
não pertencem ao círculo corrompido das elites. E sua
incompetência é vista como garantia de autenticidade. As tensões
que eles produzem em nível internacional ilustram sua
independência, e as fake news que balizam sua propaganda são a
marca de sua liberdade de espírito.7

O populismo funciona para decidir os destinos não apenas de


democracias jovens da América Latina, mas também daquelas que
inventaram a democracia moderna. Com Trump, governou os Estados
Unidos e está por trás da saída da Grã-Bretanha da União Europeia. Há ou
houve governos populistas de direita nas primeiras duas décadas do século
XXI na Itália, Polônia, Romênia, Turquia, Sérvia, Hungria e Áustria.
Partidos populistas, alguns deles decididamente de ultradireita, ocupam
espaços importantes na maioria dos países europeus, colocando em risco a
própria União Europeia. Alguns exemplos são Beppe Grillo e Salvini na
Itália, Marine Le Pen na França, Viktor Orbán na Hungria, os partidos Vox
na Espanha e Die Linke e AfD na Alemanha.
Apesar de a onda populista das últimas décadas ser em grande parte de
direita (mais ou menos extrema), não associamos populismo a ideologias de
direita ou esquerda, nem a um modelo econômico específico. A definição
de populismo que adotamos neste livro começa pela maneira como alguns
líderes conquistam e se mantêm no poder, usando a estrutura narrativa que
descrevemos antes; mas a nossa definição não para por aí. Populismo é,
além de uma forma de relato, um modo de abordar a política de matriz
essencialmente antidemocrática. Seus opostos são o republicanismo e o
pluralismo. O populismo apaga as diferenças para constituir um povo
homogêneo, enquanto o republicanismo preserva e promove as diferenças
dos atores políticos, alimentando-se da pluralidade e do debate. O
populismo se alça contra um inimigo que deve ser aniquilado ou
neutralizado, o pluralismo debate com adversários cuja legitimidade deve
preservar.
A grande questão é um paradoxo e uma pergunta: o que o pluralismo
faz com quem o ataca? Como o pluralismo republicano deve e pode
responder quando é visado como inimigo? Se o pluralismo age e responde a
quem ataca como um inimigo, não mais como adversário, então deixa de
ser pluralismo e se faz populismo. Mas se não age, corre o risco de ser
esmagado. Foi o dilema que enfrentaram os democratas alemães na época
da ascensão nazista, é a encruzilhada que assombra os pluralistas brasileiros.

POPULISMO + DIGITAL = CIBERPOPULISMO


O fantasma do populismo percorre o mundo. A polarização e o
esvaziamento do pluralismo e do republicanismo são realidade em boa
parte do planeta. A comunicação digital tem um papel central na origem
da onda populista que toma conta do globo e que ameaça e questiona a
democracia. Mas não bastam as redes sociais: o fenômeno aparece no
encontro entre uma construção retórica e discursiva com uma plataforma
de comunicação e distribuição de informações que acende a faísca e faz
explodir modelos até então hegemônicos. Meio e mensagem se encontram
e se encaixam de maneira perfeita. Por isso, o populismo que nos interessa
aqui não é o tradicional, histórico. É o populismo político renovado pela
nova comunicação digital em rede, capaz de servir ideologias de todo signo.
A convergência do populismo e das mídias digitais dá lugar a um
fenômeno novo, o neopopulismo digital. É o ciberpopulismo, capaz de gerar
adesões em identidades narrativas fortes, simples e seguras, usando
tecnologias de microssegmentação que somente são possíveis em grande
escala com recursos digitais. Sem tecnologia digital, esse populismo não
existiria em escala global. O casamento é perfeito. O digital cria a
ansiedade e oferece a cura, faz a desordem acontecer e fornece o refúgio
necessário. A informação fragmentada e incerta, excessiva, gera ansiedade e
medo; o populismo dá respostas simples que acalmam essa ansiedade e esse
medo. E, para garantir a solidez da mensagem e a adesão sem crítica,
bloqueia o diálogo e o debate. Quando não sabemos em quem acreditar,
uma voz firme e de comando pode nos dar segurança.
O saber e o compreender são meios que a evolução criou para nos
proteger, como presas, e para nos permitir caçar, como predadores. A
dúvida é uma ameaça para o animal humano, e por isso muitos preferem
permanecer no refúgio e no conforto das convicções, ao abrigo da
incerteza. Isso pode ser muito valioso em situações de emergência: num
incêndio, não se espera um debate com o bombeiro, mas instruções
precisas; num barco, o capitão manda, não delibera. Mas, para a
construção de uma democracia, é extremamente perigoso e empobrecedor:
delegamos o pensar por nós mesmos, entregamos nossa inteligência com fé
cega. É isso que incentiva o populismo, que encontra na comunicação
digital em rede seu complemento perfeito.
Diante do caos e da complexidade de um mundo em mudança
frenética e acelerada, o populismo digital garante o repouso em certezas
que não requerem provas. Soluções simples para problemas complexos: um
muro para resolver as questões sociais impedindo os mexicanos de entrar
no país, por exemplo. A volta a tradições ou crenças que nos deram
conforto: uma droga mágica para curar um mal invisível, um complô
internacional para explicar o surgimento de reivindicações de gênero. Mas
ainda mais simples é jogar todas as culpas e as responsabilidades de nossos
males em um outro, o inimigo. Ao mesmo tempo, e como condição
necessária para sobreviver, o populismo deve bloquear a possibilidade de
diálogo, fechar os espaços de comunicação e de pensamento, de escutar o
que pensa diferente de mim e que deve ser o culpado do que me acontece.
Isso é polarizar: comigo ou contra mim. Amigo ou inimigo. Numa
sociedade polarizada, o debate de modelos sociais e econômicos, de pautas
culturais, fica esmagado pela necessidade de as partes se refugiarem nas
trincheiras da convicção.
O filósofo alemão Arthur Schopenhauer usou uma metáfora para
ilustrar as dificuldades da convivência humana: porcos-espinhos que,
arriscando morrer congelados, resolveram se juntar em grupos para se
agasalhar e se proteger. Juntos preservavam melhor o calor, mas os espinhos
do vizinho machucavam o próximo, por isso se afastavam; e começaram de
novo a morrer pelo frio. Para não perecer, aprenderam então a conviver,
mantendo uma distância adequada, nem muito perto (para não se espetar),
nem muito distante (para não perder o calor). Aprenderam também a
suportar pequenas feridas que as pessoas próximas podem causar, para
preservar a possibilidade de receber calor. As demandas democráticas são,
em suas relações mútuas, como os porcos-espinhos de Schopenhauer e o
digital permite a multiplicação dos porcos-espinhos: a convivência fica
então difícil e eles se refugiam em ninhos separados.
Esse é o grande paradoxo democrático que provoca a comunicação
digital em rede. Por um lado, abre a democracia ao surgimento de novas
identidades coletivas. Mas pela mesma porteira aberta entram divisões e
enfrentamentos capazes de rasgar o tecido comunitário de uma sociedade e
de fazer recuar o pluralismo a níveis baixíssimos. Existe maior possibilidade
de participação, atores antes não representados hoje se fazem visíveis, mas
vem junto o risco de um retrocesso democrático. Mais comunicação é um
problema para a democracia?8

DEMOCRACIA AMEAÇADA: EUA

Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, pesquisadores de Harvard, têm se


tornado especialistas nas quebras da democracia. Historicamente
trabalharam no estudo sobre países da América Latina e de regiões do
mundo onde ditadores usurpam o poder por meio de golpes de Estado.
Mas, quando voltaram o olhar para dentro de casa, comprovaram que a
democracia, sob o signo do populismo de Donald Trump, corria sérios
riscos. O resultado é Por que as democracias morrem?, um livro interessante
para compreender as ameaças de nosso tempo, uma advertência forte aos
que alguma vez acharam que valia conviver com um presidente
antidemocrático como Jair Messias Bolsonaro em prol de um bem maior.
“Tratam os adversários como inimigos, intimidam a imprensa livre e
ameaçam impugnar os resultados eleitorais. Procuram enfraquecer as
defesas institucionais da democracia, incluídos os tribunais.” Com essa
descrição, eles iniciam uma análise rigorosa dos déspotas que não chegaram
ao poder por meio das armas, mas usando as ferramentas legais da
democracia. Os modelos exemplares são Adolf Hitler, Benito Mussolini e
Hugo Chávez. Nos três casos, figuras carismáticas, capazes de despertar
entusiasmo na população, vindas de fora da política e empossadas por
caciques tradicionais para, já no comando da nação, de maneira
progressiva, sufocar as barreiras que lhes impedem de se apropriar da
totalidade do poder.
A partir desses três modelos, chega-se a um comportamento padrão dos
governantes de vocação antidemocrática. Todos começam com a rejeição,
por meio de palavras ou de fatos, das regras do jogo democrático: ameaçam
uma suspensão do Parlamento ou do Poder Judiciário, restringem direitos
civis (como o habeas corpus), elogiam governos que adotaram medidas
restritivas contra a liberdade, propõem leis ou medidas que limitem as
críticas ao governo. Seguem com a negação dos oponentes políticos:
descritos como subversivos, ameaças para a segurança nacional,
delinquentes ou agentes alinhados com potências estrangeiras. Ainda, há a
vinculação com grupos paramilitares, milícias ou guerrilhas, o apoio ao
linchamento ou à agressão de adversários, a recusa a condenar e penalizar
atos violentos contra oponentes e o elogio de ações destacadas de violência
política.
Os pesquisadores percorrem o governo Trump e concluem que é a
polarização extrema que debilita a democracia, apagando as “regras não
escritas do jogo democrático”. É a polarização, afirmam, que acaba com as
democracias.
Há duas questões a serem observadas. Primeiro, a escolha de Chávez
junto a Hitler e Mussolini, que certamente será questionada pela esquerda;
haveria muitos outros nomes de ditadores que mereceriam esse lugar no
pódio antes do venezuelano, mas é incontestável que as condições listadas
coincidem com a ascensão do chavismo. E o mais relevante é a total
aderência do presidente Bolsonaro às condições que levaram Hitler,
Mussolini e Chávez a espaços de poder em detrimento da democracia.
Está traçado aí o caminho percorrido desde a eleição de Bolsonaro e o
de uma série de governantes pouco simpáticos às nuances da pluralidade,
contrários aos direitos das minorias ou de maiorias historicamente
submetidas, que praticam um discurso de restrição e enfraquecimento da
democracia. Testam os limites dos sistemas que os elegeram, defendem o
retorno a modelos menos inclusivos e associados a valores tradicionais,
muitas vezes religiosos. Já mencionamos alguns deles: Viktor Orbán na
Hungria, Donald Trump nos EUA, Matteo Salvini na Itália.
A maneira pela qual esses governantes chegaram ao poder tem muito a
ver com a forma em que ele se exerce e se mantém. Todos eles encontraram
nas redes sociais um diferencialnas campanhas e na comunicação com a
base de apoiadores. Todos eles desprezaram os canais instituídos e, como
Uber e Airbnb, apostaram na desintermediação: fora partidos, fora meios
de comunicação, o contato deve ser direto. Um paradoxo de difícil solução
para aqueles que, para evitar que o Brasil virasse uma Venezuela, deram seu
voto ao candidato mais próximo de Chávez.

DEMOCRACIA E COMUNICAÇÃO

Previsões de computador baseadas em uma pegada digital genérica


(curtidas no Facebook) são mais precisas (r = 0,56) do que aquelas
feitas por amigos dos participantes no Facebook usando um
questionário de personalidade (r = 0,49). Os julgamentos da
personalidade feitos pelo computador têm maior validade externa
ao prever os resultados da vida, tais como uso de substâncias,
atitudes políticas e saúde física; para alguns resultados, eles até
superam os índices de personalidade autoclassificados.9

A citação parece assustadora? Pois ela foi tirada de um artigo acadêmico


publicado em janeiro de 2015. Poucos meses depois ocorreu a maior
operação ilegal de uso de dados para influenciar eleições de que se tem
notícia até hoje. Não foi mera coincidência.
À época, estava em curso uma negociação entre executivos da empresa
de análise de dados on-line Cambridge Analytica e os responsáveis da
Leave.EU, organização britânica de extrema direita. No acordo, tratava-se
de usar informações de comportamento de usuários do Facebook para
sustentar o marketing digital do movimento separatista no Reino Unido. A
operação acabaria sendo determinante no voto pela saída da Grã-Bretanha
da União Europeia, o chamado Brexit, e também na eleição de Trump nos
EUA e, depois, na de Bolsonaro no Brasil.
O artigo que citamos continua: “Os computadores que superam os
humanos no julgamento da personalidade apresentam oportunidades e
desafios significativos nas áreas de avaliação psicológica, marketing e
privacidade”. Os autores contam com um futuro em que haverá máquinas
emocionalmente inteligentes e socialmente capacitadas. Essa possibilidade
já é próxima, não precisamos olhar para o futuro para nos surpreender. Um
código de computador necessita de apenas dez curtidas no Facebook para
prever meu comportamento melhor que um colega de trabalho. Assim
mesmo: dei like na foto de aniversário de uma sobrinha, na viagem de boda
de uma amiga, em alguns concertos e certas causas sociais – e com isso
alguém pode saber mais sobre como me comporto do que aquele rapaz que
trabalha no mesmo escritório que eu. No momento do estudo, um usuário
médio tinha dado 227 curtidas desde sua adesão à rede. Com apenas 70
curtidas, a máquina sabe projetar minhas ações melhor do que um amigo.
Para superar meus irmãos e meus pais lhe bastam 150 curtidas no
Facebook. Alguém com acesso a 300 likes do meu perfil sabe dizer melhor
que a minha mulher como irei votar, o que comprarei, quais serão minhas
escolhas. Os resultados superam até mesmo os índices de personalidade que
eu escolhi. Ou seja: o algoritmo me conhece melhor que eu mesmo.
Para avaliar sua precisão, os resultados on-line apresentados no estudo
foram comparados com estudos psicológicos anteriores, em bases que
cobriram décadas de pesquisas. Michal Kosinski, coautor do estudo e
pesquisador da universidade americana de Stanford, afirmou em entrevistas
posteriores que as máquinas têm algumas vantagens importantes que
tornam esses resultados possíveis: a capacidade de reter e acessar grandes
quantidades de informação, para analisá-las com algoritmos e técnicas de
big data, que é o conjunto de técnicas destinadas a organizar, analisar e
obter informações a partir de volumes de dados grandes demais para serem
analisados por sistemas tradicionais. “O big data e o aprendizado de
máquina fornecem a precisão que a mente humana tem dificuldade em
alcançar, pois os humanos tendem a dar muito peso a um ou dois exemplos
ou a seguir maneiras de pensar não racionais”, reforçou.Desde seu
doutorado, Kosinski estuda a possibilidade de efetivamente influenciar
decisões com base em informações coletadas digitalmente, o que ele chama
de pegada digital (digital footprint). Interessam ao autor o potencial de
ajuda na tomada de decisões das pessoas e os riscos de manipulação em que
essas técnicas nos colocam.
“A capacidade de julgar a personalidade é um componente essencial da
vida social – desde decisões diárias até planos de longo prazo, como com
quem se casar, em quem confiar, quem contratar ou eleger como
presidente”, disse David Stillwell, outro coautor do estudo de Cambridge.
“Os resultados dessa análise de dados podem ser muito úteis para ajudar as
pessoas na tomada de decisões.” Os pesquisadores sugeriram que essas
ferramentas, se disponibilizadas para os usuários, podem permitir um
maior autoconhecimento e que isso pode nos levar a escolher melhor uma
posição de emprego, uma carreira e até mesmo um par romântico.
Os psicólogos Michal Kosinski e David Stillwell desenvolveram o
estudo no Centro de Psicometria da Universidade de Cambridge, buscando
formas de quantificar tipos de personalidade a partir de dados obtidos nas
redes sociais. Para isso, ainda estudante, em 2007, Stillwell havia
desenvolvido vários aplicativos para o Facebook, um dos quais, um
questionário de personalidade chamado myPersonality, tornou-se viral. A
partir das respostas dadas, os usuários eram pontuados nos “cinco grandes”
traços de personalidade – Abertura, Consciência, Extroversão, Amabilidade
e Neuroticismo. Nos termos de uso do que era percebido apenas como um
joguinho, 40% dos usuários consentiram em dar a ele acesso aos seus perfis
do Facebook. Surgiu, assim, uma forma de medir os traços de
personalidade e de correlacionar as pontuações com as “curtidas” do
Facebook de milhões de pessoas.
A primeira publicação dos resultados do estudo apareceu em uma
revista acadêmica em 2013 e chegou às mãos de um jovem e brilhante
doutorando canadense, Christopher Wylie, possuidor de um visto de
trabalho reservado a talentos excepcionais e concedido pelo Reino Unido a
apenas 200 pessoas por ano. À época, ele procurava entender os padrões de
gosto orientados à moda para predizer tendências. Mas as preocupações de
Wylie não acabavam na moda: ele tinha se interessado por política e se
perguntava por que os liberais não conseguiam ganhar eleições na Grã-
Bretanha, a qual tinham comandado por décadas. Ele achava que o estudo
de Kosinski e Stillwell podia ajudar a reverter esse cenário, mas nenhum
dos dirigentes liberais britânicos que ele tentou convencer levou muito a
sério as suas ideias.
Frequentando o meio político, Wylie acabou sendo entrevistado para
uma vaga de uma empresa chamada Strategic Communication
Laboratories Group, cuja subsidiária SCL Elections iria criar mais tarde o
braço norte-americano Cambridge Analytica. Alexander Nix, então CEO
da SCL Elections, se encantou com o jovem e fez uma oferta irrecusável:
“Vamos dar-lhe liberdade total para testar e experimentar todas as suas
ideias malucas”. O cargo era diretor de pesquisa do grupo, com contratos
para operações de defesa e para questões eleitorais com o Ministério da
Defesa do Reino Unido e com o Departamento de Defesa dos Estados
Unidos, entre outros. Trabalharam, então, em operações psicológicas
chamadas de psyops, usadas por forças armadas para influenciar por meio do
“domínio informacional”. Psyops é um nome pretensioso para um conjunto
de técnicas que inclui boatos, desinformação e notícias falsas e integra o
cardápio de ações de uma força estrangeira de ocupação.
O Centro de Psicometria da Universidade de Cambridge se recusou a
trabalhar com a SCL Elections e Wylie acabou recorrendo ao acadêmico
russo-norte-americano Aleksandr Kogan, na época professor de Psicologia
na Universidade de Cambridge e conhecedor das técnicas de seus colegas.
Kogan criou seu próprio aplicativo (thisisyourdigitallife, fortemente
inspirado no dos seus colegas) e, em junho de 2014, começou a coletar
dados para a Cambridge Analytica. A empresa cobriu os mais de US$
800.000 de custo e o autorizou a manter uma cópia desses dados para sua
própria pesquisa. Ao Facebook, Kogan informou que estava coletando
informações para fins acadêmicos; os usuários aceitaram os termos de uso
do aplicativo, em letra pequena, autorizando o acesso a dados pessoais
próprios e de amigos ou contatos na rede social.
O projeto de Kogan e Wylie somou, assim, informações de mais de 87
milhões de pessoas. Com esses dados, os cientistas traçaram perfis
psicológicos bastante detalhados. Um perfil é um conjunto de informações
que permite prever as preferências e o comportamento de uma pessoa, vista
como consumidor ou como eleitor. Com perfis bem feitos, a efetividade
das ferramentas de persuasão aumenta muito, pois permite adaptar as
mensagens de campanha aos gostos e às preferências de públicos muito
segmentados e focar esforços naquelas pessoas e grupos suscetíveis a
mudanças de opinião. Essas informações servem também para tornar mais
eficientes gastos como compra de espaços publicitários em TV e até na
escolha dos locais que um candidato deve visitar ou qual deve ser o tom de
seu discurso.
A utilidade da personalização da propaganda está diretamente
vinculada à amplitude da base de dados. Na eleição de Donald Trump, em
2016, a base de dados e a metodologia foram usadas para criar perfis de
cada cidadão com direito ao voto: quase 250 milhões de perfis. Na
campanha que elegeu Barack Obama tinham sido utilizados 16 milhões de
perfis, o que já era uma revolução, mas que é pouco em relação ao que
aconteceu anos mais tarde. Em média, há 5 mil “pontos de dados” por cada
votante norte-americano. Chamam-se pontos de dados as informações que,
combinadas, servem para traçar o contorno de uma personalidade e
permitem criar centenas de milhares de versões de uma mesma mensagem,
adequadas às preferências de grupos cada vez menores de usuários. Qual a
banda de rock preferida, as fotos curtidas, os vídeos compartilhados, as
páginas que alguém segue são o valor que faz do Facebook uma ferramenta
poderosíssima de marketing, pela capacidade de microssegmentação e de
customização das mensagens.
Numa campanha política personalizada, a declaração de um candidato
que defende a posse de armas pela população será acompanhada por uma
foto de um ladrão invadindo uma casa – esse conteúdo vai aparecer na tela
do celular de alguém preocupado com a segurança da família. Mas a
imagem será a de um soldado em pose heroica se a mensagem for dirigida a
uma pessoa preocupada com a superioridade sobre outras nações. E assim a
estratégia se repete: mudando cores, elementos da imagem, linguagem… A
imagem se adapta, fazendo-se mais próxima, para que a mensagem seja
mais facilmente recebida e absorvida. Martin Hilbert, especialista alemão
em big data e seu uso na política, conta que num debate entre Donald
Trump e a candidata democrata Hillary Clinton, a campanha do candidato
postou em redes sociais uma das respostas dadas pelo republicano em 175
mil versões diferentes. Essa adaptação, que garante a eficácia da mensagem,
é feita por robôs que testam e medem a performance de cada título,
imagem, combinação de cores...
Outra prática é a seleção de assuntos que serão mostrados, de acordo
com o perfil. Assim, se um candidato tem um leque de 100 propostas e eu
sou contra 95 delas, a campanha irá mostrar apenas as cinco que apoio.
Com o uso desses dados, cria-se a possibilidade de se investir mais forte em
eleitores que têm mais chances de mudar de opinião; dessa forma, evita-se
o gasto financeiro desnecessário com aqueles que já estão convencidos ou
nunca irão mudar seu voto.
Toda esta maquinaria foi revelada no escândalo que teve como pivô a
subsidiária norte-americana do grupo SCL, a Cambridge Analytica. Entre
os principais acionistas da Cambridge Analytica encontrava-se o bilionário
norte-americano Robert Mercer. Cientista de dados e diretor-executivo de
um fundo de investimentos, Mercer foi considerado o homem com mais
poder no partido Republicano norte-americano, e não somente por ser um
grande doador de campanha. Seu poder não vem apenas do dinheiro: ele
usa a ciência de dados e a matemática, que lhe permitiram ganhar uma
fortuna no mercado financeiro, para influenciar eleições e aumentar as
chances de candidatos escolhidos por ele e sua filha, Rebekah.
Mercer foi financiador da campanha de Trump e do Brexit e é um dos
pilares da chamada direita alternativa (conhecida como alt-right) dos
Estados Unidos, que ajudou a levar o candidato republicano à Casa Branca.
É a direita extrema do Breitbart News, site de notícias e opinião do qual
Steve Bannon foi diretor-executivo até deixar o cargo para se dedicar à
campanha de Trump em 2016, contratado por indicação do Mercer.
Após o triunfo de Trump, Bannon foi contratado como diretor de
estratégias da Casa Branca, mas durou apenas alguns meses: seu perfil
midiático e suas críticas a colegas do governo desagradaram o presidente
eleito e levaram à sua saída da função pública pouco depois de assumir, em
agosto de 2017. Desde então, Bannon se dedica a apoiar causas de extrema
direita, com um ideário racista, misógino, homofóbico e nacionalista.
Bannon foi importante em várias eleições na Europa e se encontrou com
Eduardo Bolsonaro em agosto de 2018. O filho do então candidato à
presidência do Brasil declarou contar com a ajuda do norte-americano nas
eleições, mas não ficou clara qual foi sua participação na campanha.
Mas, afinal, como agiu a Cambridge Analytica na eleição de Trump?
Talvez até hoje não soubéssemos se o antigo diretor de tecnologia da
empresa, Christopher Wylie, não tivesse feito declarações bombásticas
envolvendo a eleição norte-americana e a campanha pelo Brexit – saída da
Grã-Bretanha da Comunidade Europeia. Segundo ele, por um problema de
consciência.
“Minha intenção original era expor o trabalho da empresa, em parte
porque ajudei a criá-la e tenho responsabilidade. Se não for para corrigir o
que já foi feito, pois há coisas que não podem ser desfeitas, pelo menos
para informar as autoridades e as pessoas”, declarou em entrevista para um
grupo de jornais internacionais em março de 2018, referindo-se à operação
clandestina de uso de dados indevidamente desviados do Facebook com
fins de persuasão política.
A legalidade da campanha foi questionada de diversos ângulos, a
começar pelo envolvimento de estrangeiros na eleição norte-americana, que
a lei proíbe, e depois por conta da coleta e do uso de informação privada e
pessoal sem consentimento – é este último o que nos importa aqui neste
livro. Ainda que desde sempre o objetivo da propaganda política seja
influenciar decisões, o grau de efetividade possível com as novas tecnologias
coloca os eleitores (e a democracia) numa situação de vulnerabilidade
extrema.
Segundo Wylie, o que foi feito com os perfis obtidos ilegalmente é
comparável ao doping em um atleta de alto rendimento, alguém que talvez
poderia ganhar, mas que compra uma garantia que lhe permite esse
rendimento extra. Isso é importante, porque define ao mesmo tempo os
limites e as potencialidades das ferramentas digitais para influenciar as
democracias. Assim como usar uma droga não irá fazer de um atleta médio
um campeão olímpico, não se inventa um político apenas com ciência de
dados. É preciso ter o que impulsionar, é indispensável haver uma
substância, algo concreto para que a propaganda hiperdirecionada
funcione. Assim, a internet e as redes sociais não substituem a política,
apenas dão a ela uma nova dinâmica e novos poderes. Mas, como Wylie
aponta, essa vantagem extra pode colocar em risco todo o edifício
democrático e constitucional.

Os dados são nossa nova eletricidade. São uma ferramenta. Se há


uma faca na mesa, você pode fazer uma comida com estrelas
Michelin ou usá-la como arma para um assassinato. Mas é o mesmo
objeto. Os dados em si não são o problema, há um incrível
potencial e coisas incríveis que podemos fazer com eles. Mas o que
a Cambridge Analytica expôs é o fracasso, não só de nossos
legisladores, mas de nós mesmos como sociedade, de impor os
limites a isso.10

O novo petróleo ou a nova eletricidade. A metáfora é interessante: a


eletricidade, como o petróleo, não tem valor intrínseco, positivo ou
negativo. Como os dados, podem fazer muito bem ou muito dano; e por
isso seu uso exige capacitação, regras, limites, proteções. Mas o petróleo e a
eletricidade também estão no fundamento de grandes avanços da
humanidade, e não somente avanços tecnológicos. As sociedades mudaram
em grande parte porque souberam controlar a potência do petróleo e da
eletricidade – ainda que agora a humanidade enfrente o desafio de superar
os efeitos negativos desse uso acumulado, na forma de degradação do meio
ambiente e impacto nos recursos naturais.
O papel do Estado será fundamental no futuro de nossa relação com as
empresas digitais e as consequências das novas tecnologias no
funcionamento social. As redes sociais estão em mãos de operadores
privados, empresas supranacionais e de dimensões globais que estão muito
pouco ou nada regulamentadas. A tomada do computador, o cabo de rede,
o fornecedor de banda, tudo precisa seguir normas estritas e sofre controles
e fiscalizações do Estado. Mas as redes sociais e os coletores de dados,
poucas ou nenhuma. O mercado de dados é um vale-tudo: a minha
identidade, a sua identidade são mercadorias à venda para gente que não
tem qualquer compromisso com leis, regras, valores outros que não o
próprio lucro. Ou um projeto de poder. Com dinheiro suficiente, a
tecnologia e os dados estão ao alcance da mão.
Wylie afirma que o desafio é colocar ordem nas águas do tsunami de
dados. Não parece fácil, mas não é impossível. Quem deve, quem quer,
quem pode fazer isso é o Estado, que deveria ser o anteparo necessário para
proteger os cidadãos dos novos poderes, mas quem conduz o Estado muitas
vezes tem interesses comuns com os novos poderosos. O que é mais do que
razoável quando o poder está, justamente, em colocar ou tirar alguém da
função pública. Então, quem deveria controlar essas empresas são aqueles
mesmos que precisam delas para se manter no poder. Isso se chama conflito
de interesses.
O cidadão comum não parece ter preocupação a respeito: aceitamos a
troca de nossa privacidade, do acesso aos dados que permitem traçar nossos
perfis comportamentais e influenciar nossas decisões, pelo conforto e a
conveniência de viver em um mundo conectado. Mas há um engano
embutido, uma falta de transparência: quando aceitamos os “termos de
uso” de uma rede, estamos dando autorização para que com as informações
colhidas se façam coisas que não entendemos bem. A transparência é
apenas formal e é desonesto que o Facebook se defenda dizendo que os
usuários aceitam as regras de uso, como fez quando questionado pela
responsabilidade no escândalo da Cambridge Analytica. Continua Wylie:

Não há um limite estrito entre público e privado, é um espectro. O


problema é que se você diz que só é privada a comunicação de um
com um outro, e tudo o mais é livre para todos, poderiam pôr
câmeras de vigilância na sala da sua casa. É o equivalente digital da
sua sala. As pessoas se relacionam no Facebook como se falassem
com amigos. Não estão publicando para que o mundo veja. O fato
de que você não vá comprovar as condições de privacidade não é
motivo para não respeitar essa expectativa razoável de que há certo
grau de privacidade no que você publica.11

Os Estados devem pôr limites, mas não querem e muitas vezes não
podem: quando se trata de empresas globais, há um desafio em fazer
cumprir as regras e as leis de uma nação. Os usuários talvez não queiram:
poderiam querer se soubessem das consequências, mas não é certo. Quem
disse que não queremos ser estudados, enganados, controlados? Talvez a
nossa privacidade tenha um preço e estejamos achando a troca justa:
entregamos nossa intimidade, recebemos ferramentas e serviços que nos
satisfazem.
No filme Matrix, de 1999, uma conspiração de máquinas inteligentes
subjugou a humanidade e usa seus corpos como fonte de calor e
eletricidade. Para isso, coloca as pessoas em cápsulas como úteros e as
mantém conectadas a sistemas que lhes fornecem a ilusão de uma vida feliz.
É a Matrix. O hacker Neo se depara com uma organização terrorista
encabeçada por Morpheus e Trinity, que o confrontam com a decisão de
desfazer a ilusão ou seguir vivendo nela. Quem assistiu provavelmente se
lembra da pílula azul e da pílula vermelha: eram a escolha entre querer
saber e se confrontar com uma realidade triste e sem esperança ou
continuar a viver no engano.
Muito se escreveu sobre o filme. Ele ilustra as teorias mais diversas, e
podemos aqui nos perguntar se não serve como metáfora do nosso estado
de aceitação passiva de um poder exercido sobre nós. Deveríamos nos
questionar se não estamos sendo vítimas de uma ilusão e ainda sendo
cúmplices de quem nos ilude. Se não estamos praticando essa forma radical
da escravidão que é a do escravo que aceita e aplaude a cessão de sua
liberdade. A pergunta é até que ponto somos e podemos ser
verdadeiramente livres frente a um poder invisível que atua nos alicerces
mesmos de nossas crenças.
Está aqui a chave para entender a força das fake news. Sabendo usar o
Facebook, existe a possibilidade de detectar quem é mais suscetível ao
engano: há um perfil de quem acredita mais facilmente em teorias
conspiratórias. É nessas pessoas que as usinas de fake news focam seus
esforços, sabendo que haverá uma predisposição maior em acreditar nelas.
Na entrevista, Wylie trata da questão:

Uma das coisas que fazíamos nos Estados Unidos era pesquisar essa
noção de deep state e a paranoia com o governo. Coisas como o que
acontece se chegarem e levarem as suas armas. Você pode traçar o
perfil de um grupo de pessoas muito receptivas a essas teorias
conspiratórias, do tipo de que Obama mandou tropas para o Texas
porque não está disposto a sair. Então você fabrica blogs ou sites
que parecem notícias e os mostra o tempo todo às pessoas mais
receptivas a esse pensamento conspiratório. Depois elas assistem à
CNN e lá não há nada do que eles veem o tempo todo na Internet,
e pensam que a CNN esconde alguma coisa.12

O que este antigo funcionário de uma empresa criada para nos enganar
de maneira sistemática revela é o mecanismo para nos iludir e como evitar
que possamos perceber a operação. Simplesmente não podemos querer
deixar de ser enganados porque não temos informações suficientes para
decidir: não enxergamos o truque. Aceitamos a troca porque, com a
informação insuficiente que temos, achamos justa, conveniente ou
confortável. Não temos como ter clareza do grau de enganação à que
estamos sendo submetidos. Como quando a indústria do tabaco vendia
cigarro argumentando que fumar fazia bem à saúde: o fumante não podia
decidir sobre o risco que corria. Ou, como ficou evidente há menos tempo,
como as indústrias do açúcar ou do amianto, que usaram todas as
ferramentas disponíveis para esconder o dano à saúde que seus produtos
causam. É então dever do Estado proteger os cidadãos, expor aqueles que
os estão iludindo e colocar limites legais.
Não é fácil, mas as empresas de tecnologia e dados são entidades
formais, com estatutos, e que devem seguir as leis dos países em que estão
sediadas e em que atuam. Têm poder real, na forma de dinheiro, lobby e
capacidade de influenciar as pessoas. Porém, dificilmente poderiam resistir
a uma decisão firme e coordenada de Estados dispostos a colocar limites,
criar regras e fazer com que elas sejam respeitadas. Sempre haverá entidades
invisíveis, operadores da escuridão, mas as próprias entidades oficiais legais,
donas das grandes marcas, poderiam fazer muito para combatê-la. Não há
uma ação decisiva nesse sentido, e os governos parecem contar com a boa
vontade dos empresários e as suas promessas de autorregulação enquanto
implantam medidas de controle de monopólio e de controle de acesso aos
dados dos indivíduos sempre atrasadas, sempre insuficientes.
Nesse sentido, se a União Europeia parece marcar a linha de frente em
matéria de legislação, desde o direito constitucional à privacidade dos
dados pessoais, o Brasil caminha, junto com o restante da América Latina,
muito atrasado na matéria. Não é um desafio pequeno quando limites
devem ser impostos a gigantes que funcionam em todos os países do
mundo, que têm rios de dinheiro e capacidade de adaptação enorme. Está
claro que se deve começar por restringir o tamanho das companhias, mas
também intervir na essência das operações e na maneira como elas agem
junto aos usuários.
Deixar nas mãos dos empresários a regulação do uso do próprio poder,
sem contrapoderes, soa voluntarista. Seria como pedir à indústria do tabaco
para reduzir os esforços por fazer seus produtos mais viciantes, a do açúcar
para evitar o consumo precoce e excessivo, aos bancos para ensinar seus
clientes a não gastarem mais do que ganham. No caso do tabaco e do
açúcar, o que está em risco é a vida das pessoas e o orçamento das nações,
que devem arcar com os custos médicos de populações doentes. No das
redes sociais, coloca-se em perigo a democracia. A comparação com tabaco
e açúcar não é gratuita e logo veremos por quê.

VÍCIO SEM SUBSTÂNCIA

“Engajamento” é um conceito fundamental para entender a dinâmica


das redes sociais. Trata-se do grau de envolvimento dos usuários em relação
a uma marca ou um site. É o Santo Graal, o que os marqueteiros buscam
como coroação de um trabalho bem feito. Em inglês, refere-se ao verbo to
engage, que poderia se traduzir por comprometer: como quando usado no
termo engagement ring (anel de noivado), que é simbolicamente forte e nos
faz pensar nas consequências do uso da expressão na política e nas redes
sociais. Os profissionais do marketing querem um compromisso com as
marcas que seja como um casamento, e para isso converge o trabalho de
técnicos, jornalistas, designers, engenheiros, neurocientistas. Disso que se
trata: de criar um vínculo tão forte que custe muito a ser rompido – como
um vício ou uma compulsão, mais do que como um compromisso. Com
efeito, uma relação amorosa que se assemelhasse à nossa relação com uma
rede social seria taxada de doentia. Um casal com nosso grau de
dependência do celular, que tivesse de se checar mutuamente 80 vezes ao
dia e ficasse ansioso na ausência, ainda que temporária, do outro, deveria se
preocupar com a saúde do vínculo. A nossa relação com o digital, com as
redes e com o celular tem características de vício.
Numa conferência para estudantes da Universidade Stanford, Chamath
Palihapitiya, ex-vice-presidente responsável pelo crescimento de usuários do
Facebook, disse sentir-se culpado pela eficácia de seu trabalho na rede
social. “Os ciclos de feedback de curto prazo, impulsionados pela
dopamina, estão destruindo o funcionamento da sociedade”, disse. Os
smartphones e as plataformas de mídia social estão nos transformando em
viciados. O truque está no algoritmo que influencia a liberação de
dopamina para criar o que se chama de adição sem substância. Os
brasileiros passaram mais de 3h40 por dia usando o celular em 2019. Esse
número vem crescendo ano a ano e está relacionado com o que a App
Annie, consultoria global especializada, chama de micromomentos
cumulativos: as muitas vezes que repetidamente checamos o celular. Em
2017, as vezes que tocávamos a tela do celular em um único dia eram mais
de 2.600. Na comparação com 2016, o tempo médio diário que as pessoas
gastaram usando smartphones cresceu 50%. Na divisão por tipos de
aplicativos, as redes sociais concentraram 50% das horas, seguidas pelos
apps de vídeo (15%) e de jogos (10%). Perda de concentração e uma piora
demonstrada no aprendizado são resultados do uso excessivo do celular,
especialmente das redes sociais.
A dopamina está por trás dessa frequência de uso. Essa molécula é
responsável pelo transporte de mensagens entre diferentes áreas do cérebro;
por isso chama-se neurotransmissor. Há transmissores para diferentes tipos
de informação e entre diferentes áreas do cérebro, e cabe à dopamina ser
um transmissor de notícias felizes; ela é vinculada ao desejo sexual e à
euforia. Da dopamina dependem a motivação, a compulsão e a
perseverança. Quanto maiores são os índices de dopamina, maior a
sociabilidade, maior a criatividade, mais entusiasmo. O aumento pode ser
produzido por atividades intelectuais e físicas: tirar prazer em se exercitar
vem justamente das doses extras de dopamina que são geradas nos
exercícios físicos. Se apaixonar, aprender algo novo, viajar... tudo isso
aumenta a presença de dopamina nos circuitos neuronais. Também
algumas drogas podem incrementar a quantidade de dopamina circulante
no corpo: o negócio do Pablo Escobar era, no fundo, a dopamina, ainda
que para isso ele precisasse exportar e distribuir ilegalmente toneladas de
cocaína.
Há um efeito na Psicologia chamado de erro de previsão de recompensa e
que resulta da diferença entre a expectativa e o prêmio. Por exemplo, eu
faço um teste qualquer ou passo em uma prova: sei que fui bem, espero
uma nota; se a nota for boa, ou se eu receber uma congratulação, meu
organismo irá liberar uma dose de dopamina que me fará sentir bem. Mas
se o prêmio for menor do que a minha expectativa, a tendência será
procurar me esforçar mais um pouco, na tentativa de atingir a dose de
dopamina esperada. Esse fenômeno é fundamental para qualquer processo
de aprendizado e é uma característica evolutiva benéfica.
No entanto, se respondi à prova mal e não espero uma nota alta, mas
ganho dez, a recompensa foi acima da expectativa e a minha produção de
dopamina dispara; fico feliz e relaxado. Quando o cérebro de humanos,
macacos e roedores recebe um sinal de maior recompensa do que era
esperado, a dopamina gerada aumenta, provocando acomodação. Já se a
recompensa estiver abaixo da expectativa (eu tinha estudado, me
perguntaram o que eu sabia, me esforcei e estou bastante seguro do
resultado, mas…), então os neurônios recebem doses menores. Neurônios
gostam de dopamina, então se põem em atividade para buscar aquilo que
lhes falta. Os níveis da dopamina aumentam de maneira não linear com o
valor da recompensa. Drogas de dependência geram, sequestram e
amplificam o sinal de recompensa, induzindo efeitos exagerados e
descontrolados no cérebro.
Receber uma curtida em um post, um comentário positivo ou um
compartilhamento de algo que publicamos no Facebook ou no Instagram
provoca um disparo de dopamina. Mais notificações positivas significam
mais dopamina. Facebook administra com seu algoritmo a função de
frustração controlada: fazer com que nos sintamos suficientemente
frustrados para buscar mais recompensas, quem sabe publicando mais,
revisitando a página, interagindo com os outros. Nunca a recompensa será
total: o cérebro sempre irá pedir mais, e lá se vai o nosso tempo nas redes
sociais… E, enquanto nos lamentamos ao perceber quanto tempo
perdemos na frente do computador ou do celular, as ações do Facebook
crescem e alguns executivos ganham bônus: o engajamento
aumentou.Nossa dependência da dopamina enriquece os acionistas da rede
social.
Mede-se o engajamento em número de interações: quantas vezes o
usuário faz alguma coisa com uma postagem, um texto, um vídeo. Pode ser
um simples clique no ícone de “curtir” (significa que gosto) ou do coração
(amo, gosto muito) ou (melhor) um comentário – ou (ainda melhor) o
compartilhamento com uma ou mais pessoas, ou na própria linha do
tempo. Significa que aquilo foi importante, mexeu com a pessoa. Fotos
fofas, coisas engraçadas, fatos esquisitos ou heroicos nos movimentam e
geram engajamento. Mas nada é tão forte quanto a raiva, a indignação, a
fúria: as taxas de interação de uma publicação que nos deixa furiosos são
maiores do que a média, por isso as redes sociais acabam sendo caixa de
ressonância privilegiada dos indignados. Então, da próxima vez que você
compartilhar, com justa indignação, um post na sua timeline, pergunte-se a
quem interessa a sua ira. Quem você está ajudando com esse gesto simples,
mas tremendamente poderoso?

INDIGNADOS.COM

Estão por isso à tua espreita as vingativas, terríveis Fúrias dos


infernos e dos deuses, para que sejas vítima dos mesmos males
Vê bem se é por ganância que digo estas coisas!
Num tempo não muito distante se ouvirão clamores de homens e
mulheres de teu lar.13

Não bastam milhares de anos de civilização para segurar as Fúrias.


Pessoas e sociedades aparentemente domesticadas reagem e mudam o curso
do mundo. As grandes revoluções e a queda das tiranias e dos regimes
ditatoriais estão muitas vezes relacionadas com o bramido de um povo.
Grandes líderes souberam dar vazão a esse poder coletivo e transformar seu
signo, da destruição para o nascimento de algo novo. Não é simples nem
seguro controlar essa ira, mas, quando alguém consegue, então tem nas
mãos uma arma e uma ferramenta poderosas.
Mestres em operar com essas paixões são os engenheiros do caos. A
expressão é do jornalista e escritor Giuliano da Empoli, ex-assessor do
primeiro-ministro italiano Matteo Renzi. Operadores do mundo digital,
esses ingenieri entenderam que nada mobiliza mais do que a indignação.
Um indignado on-line se manifesta: escreve o que pensa, compartilha
aquilo que ratifica o que sente, bloqueia e cancela aqueles que o ofendem.
Xingamentos, declarações iradas, convites para mobilizações virtuais ou no
mundo real… as reações nas redes sociais são intensas quando as pessoas
ficam bravas.
Transformar raiva em força política não é recente. Basta olhar para o
destino de reis e tiranos, para as revoltas que marcaram as grandes
mudanças da história. Os partidos da esquerda europeia nasceram como
representantes da categoria oprimida dos trabalhadores: por meio deles os
operários expressavam a cólera e reclamavam dos políticos atenção e
cuidado. Em casos de muita ira, os partidos nasceram violentos. Muitas
vezes a cólera tomou a forma de bombas e atentados, sequestros e violência
física. Mas, de modo geral, o sistema de partidos garantiu canais para
incluir os indignados na mudança dos contratos sociais, redistribuindo
deveres e direitos.
Na virada do milênio presenciamos uma mudança importante na
política da Europa. Partidos radicais de extrema direita, xenófobos e
racistas, ocupam espaços cada vez maiores, influenciando as pautas
daqueles de centro ou da direita moderada, que acabam se endurecendo,
no esforço por não perder relevância. Social-democratas, conservadores e
democrata-cristãos caem e, surpreendentemente, a esquerda comunista
recupera espaços. Comendo o eleitorado dos grandes partidos tradicionais,
outros partidos que nasceram como muito nichados também crescem:
verdes, regionalistas, agrários, regionais. Mas a grande mudança são os
movimentos antissistema que tomam conta dos partidos tradicionais, como
na Inglaterra, com Boris Johnson à frente do Partido Conservador, ou que
criam novos partidos, como Cinque Stelle, na Itália.
Essas mudanças começam nas redes sociais, e não por acaso. A política
sempre se faz onde as pessoas estão. Foi na praça pública e nos cafés; hoje as
redes sociais são a praça pública e, por isso, é lá que surge o novo na
política. Um dos primeiros a perceber foi o italiano especialista em
marketing Gianroberto Casaleggio, criador do Movimento Cinque Stelle:
um partido que tem a particularidade de ser uma empresa privada e
funcionar exclusivamente com base em dados de eleitores, não em qualquer
premissa ideológica. Outros são: o britânico Dominic Cummings,
responsável pela campanha do Brexit; Arthur Finkelstein, conselheiro do
ultraconservador húngaro Viktor Orbán; e o mais famoso da turma, Steve
Bannon, que trabalha na criação de um movimento global alinhado às
ideias que elegeram Trump, apoiando os partidos de extrema direita
europeus e em outros continentes – inclusive no Brasil. São esses os
engenheiros do caos, no levantamento que Giuliano da Empoli apresenta
para mostrar de que maneira a mudança das regras do jogo político não é
nem resultado do acaso nem de lei natural, mas da ação de alguns
operadores inteligentes, disruptivos e intencionados.
O que esses visionários (visionários do mal) descobriram foi o potencial
de subverter a ordem estabelecida aproveitando-se da tecnologia disponível.
Atiçar a raiva e se servir dela como energia foi o primeiro insight: uma
notícia que indigna tem muito mais chances de ganhar vida on-line. Ela é
comentada e compartilhada, acendendo ânimos a seu passo e crescendo na
medida em que há mais gente indignada. Como um furacão, que se
alimenta da energia do mar sobre o qual assopra, uma notícia que indigna
ganha força ao passar pelas pessoas. Assim, a missão dos engenheiros do caos
consiste em promover a indignação do maior número possível de pessoas,
com o objetivo de somá-las às próprias forças. E isso pode ser feito de
maneira mais eficiente pela possibilidade de encaminhar mensagens
diferentes para pessoas e públicos diferentes, sem qualquer preocupação
com a coerência. Isso foi muito bem usado na campanha do Brexit e nas
eleições europeias que colocaram partidos que trabalham pelo fim da União
Europeia em lugares de destaque. Para isso, bastou dar às pessoas as
mensagens capazes de convencê-las, independentemente da veracidade das
notícias. Dessa maneira, quem era pela proteção dos animais recebeu nas
suas redes sociais mensagens argumentando que a União Europeia não faz
o suficiente para evitar a caça. Aos caçadores, que em alguns países da
Europa são muitos, foram dirigidos anúncios destacando que é a União
Europeia que restringe os direitos de quem quer matar animais por esporte.
Não há problema na contradição: ninguém lê ambas as mensagens, são
públicos que vivem em planetas diferentes do sistema da internet.
Assim, constroem-se realidades paralelas que são coerentes com as
crenças profundas, os medos e as prioridades de grupos que se constituem
em ambientes virtuais. Como numa seita cujos acólitos somente
recebessem notícias do mundo exterior pelo filtro dos discursos do líder: ele
poderia escolher o que informar e o que não, qual o tom e qual a
explicação dos fatos, procurando sempre aquilo que reforça seu discurso.
Para um seguidor da seita, as notícias que desmintam o líder devem ser
falsas, motivadas por ódio ou medo daqueles que não foram iluminados
pela verdade. A comunicação digital faz algo bastante parecido: permite um
recorte das notícias que sustentam narrativas fechadas sobre si mesmas. Os
acólitos seriam aqueles usuários das redes sociais que o sistema detecta
como com maior tendência a acreditar em certo tipo de história,
vulneráveis à manipulação. As redes sociais fazem com que essas pessoas se
encontrem, ratificando as próprias crenças absurdas e reforçando o sistema
de valores que as sustentam. Uma pessoa com tendência a acreditar em
teorias conspiratórias e que pensa que os fracassos e dissabores da vida são
consequência da maldade de pessoas que operam no escuro para prejudicá-
la receberá notícias (as chamadas fake news) desenhadas para lhe dar razão;
as compartilhará com aqueles que acompanham as suas crenças e que, por
sua vez, irão lhe dar razão. Podem então conviver terraplanistas com os que
acreditamos que a Terra é uma esfera – podem nos chamar de esferopatas. Já
não se trata de diagnósticos diferentes sobre a mesma realidade, mas de
realidades diferentes, construídas para sustentar sistemas de crenças que são
incompatíveis entre si. O que cria uma dificuldade muito grande para a
democracia: se a realidade que eu vejo não é a realidade de todos, se o meu
real difere do de meu vizinho, como conseguir consenso, como sequer gerar
uma discussão que tenha minimamente sentido?

NOVOS ATORES, VELHAS TENSÕES

O que a ciberpolítica logrou foi atrair públicos que estavam lá,


invisíveis para a política tradicional. Fantasmas, não representados pelo
discurso instituído, ignorados pelos partidos políticos e pela grande mídia.
As redes sociais lhes deram ouvidos e fizeram aparecer medos e anseios,
raiva reprimida que de uma hora para a outra ganhou voz e braço. Assim,
eles se tornaram novos sujeitos políticos e se colocaram no centro de uma
cena que até então lhes era alheia.
Aquilo que não pode ser reconhecido pela consciência é o que a
Psicologia chama de sombra: o que reside no mais profundo de nossa
psique e que, se pudéssemos ver, iria nos envergonhar e deveríamos mudar
para nos tornarmos pessoas melhores. Todos temos um lado sombrio;
alguns deixam a vida ser tomada por essa sombra, mas é possível reduzir
seus espaços se estivermos dispostos a fazer o esforço. Numa sociedade, a
sombra está formada pelas emoções negativas ocultas pela censura social ou
pela lei. Quando não pode se ofender alguém pela cor da sua pele e quando
expressões públicas de violência são banidas, a sociedade está se protegendo
da própria sombra. O negativo não foi eliminado: ele está à espreita,
forçando para se fazer visível. Mas o que está oculto pode sair à superfície
na voz de um líder como Bolsonaro. Preconceito, ódio e ressentimento
ganham o espaço público, tornam-se aceitáveis e até desejáveis para uma
parte da população, marcas de identificação entre aqueles que já não estão
mais dispostos a fazer o jogo do que é bom para uma convivência
democrática – o que eles chamam, de maneira depreciativa, de
politicamente correto. Assim, ganha visibilidade gente que se vangloria da
capacidade de machucar e de ofender, que faz da grosseria e da violência
motivos de orgulho, sustentos da identidade.
A violência no Brasil é estrutural, está inscrita na sociedade e se
manifesta de maneiras diferentes; se fez visível, mas só estava oculta para
quem não quisesse olhar. Havia uma ilusão instalada onde a ditadura não
tinha sido tão mortífera quanto as da Argentina ou Chile. O racismo era
negado e tomado quase como ofensa se um estrangeiro fizesse notar que
numa grande empresa negros só trabalhavam (e ainda trabalham) limpando
banheiros ou servindo café. Não eram vistos como violência a empregada
negra com uniforme branco carregando a criança para a patroa, nem os
seguranças uniformizados e as cercas elétricas separando o aconchegante
mundo privado do barulho sujo das ruas paulistanas. Trabalho escravo,
desigualdade estrutural, gente morrendo de fome a poucas quadras de
mansões milionárias, apropriação da natureza em nome do lucro: nada
disso era nem é visto, protegido por uma cegueira seletiva a serviço da
preservação de uma ilusão. Tanta é a vontade de não enxergar a violência
que a informação de que o Brasil é o país que mais mata no mundo
indigna pouco; com menos de 3% da população mundial, os mais de 70
mil assassinados por ano são mais de 12% dos homicídios do mundo todo.
Essa violência toda, que ainda permanece em grande parte oculta para a
maioria, começou a se fazer mais visível na última década. A tensão entre
ricos e pobres, entre dominadores e dominados, se fez explícita no surgir
das Fúrias desencadeadas. De um lado, despertou a cólera de quem tinha se
deixado iludir por promessas no passado, de quem acreditou que era a vez
dos pobres, que os doutores e os ricos iriam, desta vez, sim, se preocupar
com os mais frágeis. Gente que espelhou seu futuro na novela das 8 e que
quando o país faliu foi a primeira a ser descartada do grande sonho
nacional. Essa é a base bolsonarista das periferias, gente que se viu traída
pelo PT e que entendeu que na corrupção de políticos gananciosos estava o
motivo de não ter melhorado de vida, como tinham lhe prometido.
A elite branca também estava brava. Pode parecer contradição, mas o
motivo era simétrico: o PT tinha ameaçado reduzir seu espaço de
privilégios. A esquerda no poder questionava a legitimidade de uma
situação que lhe é confortável – e nisso o Brasil é igual ao resto da América
Latina. A casa-grande não poderia tolerar uma revolta da senzala e passou a
valer tudo para impedi-la.
Essas paixões longamente reprimidas são o sustento do bolsonarismo,
que é uma forma de fazer política trazendo à superfície aquilo que a
sociedade mantinha oculto. O mérito do capitão reformado foi dar vazão,
criar um canal para fazer pública a raiva que estava falando aquilo que deve
ser calado por respeito aos outros. Pode parecer paradoxal, mas o
mecanismo funciona para ambos os lados do conflito, que se unem para
preservar aquele que faz visível a tensão. Quando os sentimentos
reprimidos se dizem em alta voz, quem fala torna-se aquele que “não tem
medo de dizer o que pensa” ou “que diz a verdade” e quem diz é visto como
um herói que enfrenta o “politicamente correto” ao libertar os seus iguais.
Bolsonaro foi o catalisador das tensões subterrâneas da sociedade brasileira,
por isso seu jogo foi sempre manter o país crispado, jamais acalmar; a sua
base mais fiel exigiu a confrontação permanente e qualquer gesto
pacificador foi tomado como traição.
Numa coluna-ensaio publicada no El País logo após a eleição do novo
presidente, a jornalista e escritora Eliane Brum tentou definir os contornos
do fenômeno pelo perfil de um eleitor que representaria os 58 milhões de
pessoas que votaram no capitão. Bolsonaro oferece, diz ela, a visão do
mundo de um tio que todos temos na família e que toleramos com certo
desconforto quando faz em voz alta seus comentários machistas, suas
piadinhas homofóbicas. O “politicamente correto” limitava os direitos
desse sujeito – o que ele entendia serem seus direitos.

É esse brasileiro “acorrentado” que votou para retomar seus


privilégios, incluindo o de ofender as minorias, como seu
representante fez durante toda a carreira política e também na
campanha eleitoral. Para muitos, o privilégio de voltar a ter assunto
na mesa de bar – ou o de não ser reprimido pela sobrinha
empoderada e feminista no almoço de domingo.14

Brum observa que esses brasileiros querem alguém igual a eles no


governo, não alguém melhor. Estão dispostos a abrir mão de liberdades em
troca de uma redenção, de uma volta à ordem que os deixa confortáveis e
seguros. Pessoas que não estão dispostas a conviver com aquilo que
questiona as suas certezas simples: são contra um mundo complexo e cheio
de matizes, contra mudanças que não chegam a compreender.
Indignação, medo, ressentimento são o combustível que mantém
funcionando o motor da extrema direita. Não é diferente em países como
os EUA, Inglaterra, França e Itália. A vitória de Donald Trump teve como
sustento o “povo” constituído a partir da outrora poderosa classe
trabalhadora do chamado “cinturão da ferrugem”, dos estados de Ohio,
Michigan, Wisconsin, Illinois e Indiana. A região já teve uma organização
sindical poderosa, nos tempos em que a produção industrial tinha um peso
relevante na economia norte-americana. Essa importância, porém, foi
erodindo por causa da globalização, dos tratados de livre comércio e do
crescimento de outros jogadores internacionais, especialmente a China. Isso
causou uma queda nos salários e no emprego dos trabalhadores e uma
crescente frustração. Havia raiva reprimida e uma sensação de abandono
por parte da classe política, e a campanha de Trump soube explorar isso
com maestria. Foi fácil construir um inimigo: os imigrantes, os
estrangeiros, a esquerda das grandes cidades, os ricos e poderosos de Wall
Street e de Washington, mais preocupados com o politicamente correto e
com os direitos de povos exóticos do que com o bem-estar dos norte-
americanos de raiz.
É revelador como Trump reagiu à pandemia da covid-19. E com ele,
seu imitador brasileiro, Bolsonaro. Jogar a culpa nos outros (na China, na
mídia, nos cientistas), polarizar apelando à base de eleitores, quebrar as
regras, mentir deslavadamente, mudar o discurso e fazer cálculos eleitorais
de curto prazo, sem se importar com o sofrimento ou a vida dos cidadãos.
Como teste para os governantes, a crise global foi um belo laboratório.
Como teste para os governados, também: massas de pessoas se expondo ao
contágio para seguir seu líder apesar das evidências do risco, desprezando as
regras e o consenso das autoridades de saúde. Tudo por causa da
necessidade de acreditar naquele que promete soluções simples, que sabe
mais que os especialistas e que fala uma suposta língua do povo. Como
numa seita, vale mais a palavra do líder do que as evidências da ciência, e a
crença é tão forte que muitos preferiram morrer antes que mudar de
opinião.
Na Grã-Bretanha, o movimento de extrema direita criado para
promover o voto pela saída da União Europeia em 2016, o UKIP, foi
chamado de “revolta dos deixados para trás”. O cientista político Theófilo
Machado Rodriguês destaca que esses eleitores são, em sua maioria,
habitantes de cidades pequenas que no passado viviam da mineração e da
indústria. Com a virada ultraliberal do governo de Margaret Thatcher, nos
anos 1980, essas cidades industriais tornaram-se fantasmas e suas
populações, que tradicionalmente votavam em candidatos trabalhistas,
sentiram-se deixadas para trás. O UKIP soube captar esses votos com um
discurso coerente com a experiência de vida desses eleitores: “O discurso de
que a culpa desses imigrantes tirarem empregos dos trabalhadores ingleses
era de dupla dimensão: no campo exterior, a responsabilidade era da União
Europeia; internamente, o inimigo era a elite financeira de Londres.”15
A França, fundadora da democracia moderna e dos direitos humanos,
sofre também o embate do populismo de direita. Os grandes partidos do
século XX desmancharam. E, se não governa hoje o partido de extrema
direita que Jean-Marie Le Pen fundou nos anos 1970 e que hoje comanda
sua filha Marine, é porque surgiu um animal político de instintos
suficientemente rápidos e bons reflexos como Emmanuel Macron. Mas o
embate final na eleição presidencial foi contra o partido anti-imigração,
que por sua vez ficou pouco acima do partido de esquerda de Jean-Luc
Mélenchon. Na primeira rodada, entre os mais pobres, 32% dos votos
foram para a extrema direita, frente a 25% para o partido de esquerda;
45% dos trabalhadores votaram em Le Pen e 21% em Mélenchon,
candidato da esquerda.
O professor e cientista político francês Pascal Perrineau é autor de dois
livros que buscam entender como e por que isso ocorreu. Perrineau afirma
que o fenômeno não é novo e que nos anos 1930 a ascensão do fascismo
foi alimentada por eleitores que antes foram de esquerda. Mas, diz, uma
espécie de pacto de intelectuais de esquerda sempre impediu que esse fato
saísse à luz para ser analisado, pensado e discutido.
Nem todos os eleitores de Le Pen são iguais: alguns acompanham o
movimento da extrema direita desde seu início, muitos estão desiludidos
com a direita tradicional, e há os que vieram das esquerdas, e que também
não são homogêneos.
Impressiona o quanto a descrição desses eleitores da extrema direita é
semelhante à dos EUA e da Grã-Bretanha. Empregados sob ameaça de
perder o salário, que já foi reduzido, desempregados, gente que faz bico...É
a base da pirâmide de renda na França, moradora das periferias e dos
antigos distritos industriais afetados pela crise. Nesse “eleitorado da crise”, a
extrema direita recruta seus novos apoiadores.
Há nesses eleitores uma ruptura com o passado, diz Perrineau, mas eles
não experimentam suas viradas políticas como traições: dizem que não
foram eles que mudaram, mas que foi a esquerda que mudou e os
abandonou. A evolução do Front National em direção a um conjunto de
medidas “sociais” (manutenção das 35 horas de trabalho semanais,
aposentadoria aos 60 anos, aumento de salários baixos) contribuiu muito
para lhe garantir esse eleitorado de esquerda.
Outro cientista político francês, Luc Rouban, usa o conceito de matéria
escura da política para designar as estruturas invisíveis, mas determinantes,
da relação das pessoas com a política. Em astronomia, matéria escura é a
massa invisível que estrutura o universo e condiciona a formação e a vida
das galáxias, daí a metáfora para explicar de que maneira o
enfraquecimento da confiança nas instituições determina o curso das
evoluções sociais. A matéria escura da democracia é precisamente o que o
movimento dos indignados na sua versão francesa dos coletes amarelos fez
aparecer nas ruas: “A sociedade marcada por expectativas e esperanças
decepcionadas, mobilidade social descendente, restrições financeiras,
rebaixamento diário para a insignificância”, diz.16
Não é a desigualdade, não é a pobreza, não é a corrupção o que explica
o surgimento dos populismos de direita: são as expectativas frustradas. É o
que defende o cientista político argentino Andrés Malamud, analisando os
protestos que em 2019 sacudiram boa parte da América Latina, do Chile à
Colômbia. O que parece ajudar a compreender a indignação das classes
populares brasileiras com o governo Dilma, na sequência de anos de
caminhar em direção ao sonho despertado por Lula. Quem foi pobre a vida
toda, e espera continuar pobre, é diferente de quem viu a possibilidade de
sair da pobreza, teve essa perspectiva alimentada e depois frustrada, diz
Malamud.
São necessárias novas categorias para designar esses atores que a
participação política não apenas revela, mas também constrói como
identidades até então não representadas no político. Na coluna do El País
que citamos, Brum aponta em direção ao brasileiro mediano, o homem
medíocre, e essa pode ser uma dessas categorias, mas não é a única – e tem
a desvantagem de ser claramente pejorativa. Dificilmente poderá servir para
alguém se autodefinir. É uma categoria externa, feita de cima para baixo,
que carrega um julgamento negativo e com isso afasta qualquer
possibilidade de compreensão verdadeira. Podemos pensar também na
categoria dos deixados para trás, dos esquecidos, dos descartados: aqueles
que o sistema considera prescindíveis. Pessoas como as que fizeram parte do
15-M, o movimento dos indignados que foram às ruas na Espanha em
2011. Talvez esse seja um bom termo para denominar essa categoria ainda
não claramente compreendida pelos teóricos: indignados.
Uma tendência das esquerdas é demonizar ou desprezar o eleitor de
uma proposta como a de Bolsonaro. Pode ser o maior erro na hora de
buscar entender o que fez que uma mulher jovem, antes eleitora do Lula,
tenha depositado seu voto no capitão reformado que publicamente
despreza mulheres, que as insulta e as agride. Para escutar as razões de um
gay declarado e culto que prefere eleger um homofóbico tosco antes que
votar num professor universitário, tolerante e educado – mas representando
um partido que lhe provoca rechaço e medo. Quem quiser recuperar os
eleitores perdidos para a extrema direita deverá escutá-los; não para
convencê-los, mas para compreendê-los. Deverá deixar de lado o
preconceito e o slogan e sair para ouvir esse cidadão que não se parece com
o que a cartilha mostra. Será necessário compreender quais necessidades a
proposta política encarnada por Jair Messias Bolsonaro veio atender.

POPULISMOS DE ESQUERDA E DE DIREITA

Em visita ao Brasil em 2019, o sociólogo e pesquisador das redes sociais


Manuel Castells, autor de 26 livros e doutor honoris causa por 18
universidades, fez um diagnóstico do momento do país:

Vocês estão vivendo um novo tipo de ditadura. As instituições estão


preservadas, mas se manipulam tanto por poderes econômicos,
quanto por poderes ideológicos. Isso se faz acusando de corrupção
qualquer tipo de oposição. Como a corrupção está em toda parte,
então persegue-se apenas a corrupção de políticos e personalidades
que se oponham ao regime. Esse tipo de ditadura só pode funcionar
com um povo cada vez menos educado e mais submetido à
manipulação ideológica. Nosso mundo da informação é um mundo
baseado nas redes sociais e nas redes sociais há de tudo. Elas
permitem a autonomia dos indivíduos, acreditávamos que era um
instrumento de liberdade e é, mas é uma liberdade que é usada
tanto pelos manipuladores como pelos jovens que tentam mudar o
mundo. Foram desenvolvidas técnicas muito poderosas de
desinformação e manipulação, que incluem a utilização massiva de
robôs manipulados por organizações e financiadas pela extrema
direita internacional, que estão preenchendo as redes sociais e
manipulando-as muito inteligentemente, de forma que a
construção coletiva do que ocorre na sociedade está totalmente
dominada por movimentos totalitários, que querem ir pouco a
pouco anulando a democracia. Por isso, é preciso atacar a educação,
atacar os professores, as universidades, as humanidades e as ciências
sociais, que são áreas que nos permitem pensar. Tudo o que
significa pensar é perigoso. Por isso, digo que é uma ditadura, ainda
que de novo tipo. É uma ditadura da era da informação.17

O Brasil não dormiu plural e acordou polarizado. A polarização que iria


derivar em um governo protofascista e autoritário, colocando em risco as
instituições da democracia, começou a se gestar de maneira progressiva e
intencionada. Nasceu na mídia tradicional, mas foi quando ocupou as
redes sociais que ganhou corpo e presença, se fazendo visível e tomando
conta da cena até se transformar em um problema maior, fator central na
política e na sociedade.
Polarização é um fenômeno de concentração de posições opostas e
excludentes. “Comigo ou contra mim”, defende o político que ocupa um
polo. Estratégia eleitoral, a polarização pode ser simples (um contra todos)
ou dupla (dois polos opostos). Neste caso, convém às duas partes, que a
alimentam para forçar a exclusão dos meios. É um desserviço que os
políticos fazem à democracia, mas normalmente eles se justificam na
necessidade de excluir o outro, muitas vezes odiado, temido, ou ambas as
coisas. Uma eleição polarizada obriga as pessoas a escolher o mal menor.
Boa parte dos eleitores brasileiros conhecem a sensação de votar em um
candidato ou partido no qual nunca imaginaram que poderiam votar,
apenas para impedir o outro de vencer. Polarização leva a democracias
tristes: vota-se contra os próprios princípios, vota-se com desgosto, levado
muito mais pelo rechaço a um candidato que pela adesão ao outro. Foi o
caso para os eleitores americanos quando tiveram de escolher entre o
misógino, grosseiro, xenófobo e mentiroso Donald Trump e Hillary
Clinton, vinculada às estruturas de poder encravadas em Washington,
responsáveis por uma forma de se fazer política antipopular, afastada das
pessoas. Polarização é feita da mesma matéria que o populismo. Estratégias
populistas buscam a polarização como forma de garantir apoio até mesmo
dos críticos.
Na América Latina, há novos movimentos populistas, que podem ou
não vencer eleições, mas são uma presença palpável. Tendem a crescer nos
espaços deixados pela retirada de políticos e partidos atingidos pela
corrupção e graças à aceleração da desigualdade econômica que, somada à
crise, erode as melhorias sociais alcançadas desde 2003.
Estimulados pelas elites e com todo o impulso que proporciona a mídia
digital, os populismos de direita baseiam seu sucesso em bandeiras que
ergueram os populismos de esquerda há uma década: a dicotomia entre
pessoas “boas” e “más” e com a oligarquia. E, se a demagogia e o populismo
estão longe de declínio na América Latina, vemos um aumento na presença
global, num contexto favorável (estagnação econômica), exemplos bem-
sucedidos a imitar (Donald Trump) e líderes carismáticos que aspiram a
aproveitar o novo impulso populista.
No fundo, algo bastante comum, aponta o cientista político Moisés
Naim:

A coisa mais interessante sobre Trump, como produto político, não


é o quão excepcional é, mas o quão comum é nestes tempos de
antipolítica. Os “terríveis simplificadores” proliferam quando a
incerteza e a ansiedade na sociedade crescem e é por isso que hoje
elas são uma tendência global. Eles estão por toda parte. Mas
Trump é a manifestação mais perigosa dessa tendência. E, nisso, é
excepcional.18

Existe polarização com apenas um partido ou um líder dividindo os


eleitores a favor ou contra. O Brasil já viveu isso nas eleições em que a
opção a favor ou contra o Partido dos Trabalhadores (PT) mandava sobre a
diversidade de outros candidatos. A polarização era PT/Anti-PT, e no
segundo grupo juntavam-se todas as cores da política, sem mais motivo de
estar juntos que o de impedir a chegada ao poder de um candidato petista.
Mas um polo de oposição pode se transformar em força política
organizada, e então a divisão cristaliza. Encruzilhada difícil para quem deve
votar: ou você está comigo, ou você está contra mim. E o que acontece
quando eu não estou de acordo com nenhum dos dois? Simples: eu
desapareço da cena política, sou esmagado e me torno invisível pelo jogo de
opções binárias, que não dá lugar a nuances.
No Brasil, Bolsonaro soube aproveitar a onda de antipetismo e foi
eleito com um discurso de ódio e de ressentimento apenas disfarçado por
trás de valores conservadores e uma agenda econômica ultraliberal. Mas
Bolsonaro era o mal menor para quem via no PT a maior maquinaria de
corrupção da história brasileira e um projeto de hegemonia no poder. Para
um grande número de eleitores, a escolha foi entre um partido de ladrões e
a antipolítica. A opção pelo voto útil, que justificou apoiar um candidato
misógino, apologista de torturadores e de inteligência limitada, daria lugar
mais tarde a muitos arrependidos; somá-los a um projeto de oposição
passou a ser o caminho para tirar a extrema direita do poder.
Para os democratas que vivem sob um governo populista, um segundo
polo pode ser a única forma de evitar uma tomada definitiva do poder pela
extrema direita. É uma alternativa de alto risco para a democracia e talvez
seja o maior trunfo dos populismos: querendo combatê-los, os democratas
acabam se transformando em seus complementos necessários.O dilema, de
difícil solução, fortalece posições extremas, limitando o debate e a
inteligência, reduzindo o espaço das opções minoritárias.
Em 2017, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair fez sua aposta:
“Se confrontar populismo de direita com populismo de esquerda, o
populismo de direita vencerá”. Até o momento isso vem se comprovando
na Europa e nos Estados Unidos: na Grã-Bretanha, Boris Johnson esmagou
James Corbin, na França foi a candidata da extrema direita Marine Le Pen
quem passou para o segundo turno, e não seu opositor de esquerda. Uma
retórica de esquerda seria capaz de atrair os votantes europeus mais do que
os discursos de Salvini, Le Pen, Vox? Ou a virada à direita na Europa, e
talvez no mundo, é irreversível? Até o argentino Mauricio Macri e o
brasileiro Bolsonaro, o populismo latino-americano tinha servido a projetos
de poder de esquerda: Evo Morales na Bolívia, Hugo Chávez na Venezuela,
Néstor Kirchner na Argentina... Mas a direita aprendeu, e isso é uma boa
notícia: não precisou das armas para se colocar no poder na Argentina. O
Brasil deu um passo além, pois gerou uma direita extrema e autoritária,
com conteúdos fascistas que o macrismo não teve.
Para romper a hegemonia dos grandes partidos, Bolsonaro usou uma
construção retórica segundo a qual o PT seria o caminho para o Brasil se
converter numa ditadura, “numa Venezuela”, que era o partido dos mais
corruptos, uma avançada do “marxismo cultural”, com uma mistura de
doutrinamento homossexual para crianças e obscuras confabulações
comunistas. Nas redes de WhatsApp circularam mensagens de aparência
tosca e simplista. Talvez isso não teria bastado se a principal figura da
oposição, o ex-presidente Lula, não estivesse na prisão. Ou se Bolsonaro
não tivesse recebido uma facada na barriga durante a campanha,
transformando-se em um sobrevivente, um escolhido – a imagem foi bem
trabalhada. O conjunto foi eficaz, suficiente para eleger um medíocre
deputado de carreira como o antissistema capaz de mudar o rumo do país e
acabar com os privilégios e a corrupção da classe política.
Não foi o PT quem mais perdeu com a polarização: a direita tradicional
foi varrida, junto com outras alternativas pluralistas. Mas a campanha de
Haddad apostou na força da TV e esteve muito longe do bolsonarismo em
qualidade de comunicação digital. Essa é uma autocrítica que a esquerda
não faz; é mais confortável se refugiar nas certezas, menosprezando a
estética popular e cultivando certa nostalgia filosófica que tem horror a
fenômenos autenticamente brasileiros como Anitta, Péricles (não o
grego…), Nego do Borel ou Wesley Safadão.
No mundo, até agora, o ciberpopulismo de direita está vencendo. É
possível que a mensagem de extrema direita caiba melhor num formato de
populismo digital que uma de esquerda ou de uma direita ética. A
simplificação das soluções para problemas complexos (muralha na
fronteira, armas para população, cloroquina), que caracteriza os populismos
de direita, pode ser adequada para formatos digitais, mas essa explicação
não basta: populismos de esquerda simplificam tanto quanto os de direita.
Talvez a chave esteja na noção de valor.

VALORES

Alguns pensadores chamam nossa era de pós-moderna. Esse conceito


tem história.
A modernidade, cuja origem remonta ao ano 1500, é um período da
história marcado pelo império da razão e o consequente abandono das
religiões. É a era do desenvolvimento vertiginoso das ciências empíricas e
dos grandes avanços tecnológicos.O otimismo é a marca fundamental da
Modernidade, um movimento que nasce na Europa e se espalha pelo
mundo com sua mensagem positiva. A fé no futuro da humanidade, a
confiança num porvir brilhante e as grandes utopias são próprias do
homem moderno, que tem na subjetividade o seu fundamento, mas no
coletivo a possibilidade de realização.
O objetivo da modernidade era liberar o homem, deixar as suas forças
deslancharem, e em muitos sentidos o conseguiu. Basta olhar para os
progressos nas ciências, proezas como ter saído da superfície planetária,
primeiro para voar na atmosfera e depois para alcançar outros objetos
celestes, a extensão da validade de nosso corpo, o domínio de forças
naturais. Mas o homem moderno viu as Grandes Guerras dizimarem as
nações ilustradas que lhes deram origem, o sistema capitalista colapsar e
muitas das promessas evaporarem. O projeto faliu e um dos preços que
pagamos foi a perda do coletivo pela entronização do indivíduo. Um
indivíduo que, porém, não anda pelo mundo sem dificuldades e que acaba
estilhaçado no século que nos precede.
No século XX, as relações interpessoais e sociais deixaram de
representar suportes seguros para a determinação da identidade. É então
que surge o sujeito pós-moderno, que é o do nosso tempo e cuja identidade
está fragmentada e dispersa, é descentrada e instável. Um sujeito que
precisa de ajuda para não desmanchar – lembrando a frase de Marx e
Engels: “Tudo que é sólido desmancha no ar.” A pessoa dilacerada,
arrastada por mudanças vertiginosas que geram medo e angústia, ansiedade
que necessita ser acalmada e contida.
Isso tem consequências profundas na definição das formas de
representação política. Até as últimas duas décadas do século XX era
comum conseguir prever a preferência eleitoral de alguém sabendo a que
classe ou grupo social ela pertencia: era o coletivo quem determinava as
escolhas eleitorais do indivíduo, em função de um sonho compartilhado
com os pares. Isso mudou e os valores individuais passaram a ter maior
peso na hora de escolher em quem votar. É um dos motivos pelos quais na
Europa operários que sempre votaram nos grandes partidos da esquerda
hoje apoiam a extrema direita e no Brasil um grande número de eleitores
do Lula migrou para Bolsonaro.
Para entender como houve essa mudança, precisamos nos deter sobre
valores. Valores são o conjunto de crenças que definem as escolhas pessoais
mais importantes. Com quem me relaciono, como reajo em uma situação-
limite, a minha ocupação, isso tudo é definido por essas certezas. Os valores
são o ponto zero da identidade pessoal que se constrói como uma narração.
Sou essa história que conto quando me perguntam quem sou. Essa história
está pautada pelos valores: nas escolhas que eu fiz, nos modos de agir, mas
também na forma de interpretar o que aconteceu comigo e o que eu
mesmo fiz. Os valores são a lente através da qual vejo e compreendo o
mundo e a mim mesmo.
Valores vêm com a língua e a religião, na época, na cultura em que
nascemos. Podemos contestar e mudar alguns, mas outros permanecem
inalterados ao longo da vida: são parte da identidade que não muda, os
traços de caráter. Estão na origem muitas vezes invisível de nossas
motivações profundas. Eles determinam nossas escolhas: não podemos fazer
aquilo que irá contrariá-los, e quando fazemos adoecemos ou fracassamos.
Quem morre por uma causa, morre por seus valores. E são os valores
comuns que reconhecemos no outro que nos aproximam de maneira
irresistível: fundam amizades, parcerias, sociedades. Clubes, partidos
políticos, ONGs são feitos de valores compartilhados. Um meio de
comunicação que diz aquilo com o que concordo, defende valores que eu
reconheço como meus.
O psicólogo social americano Shalom Schwartz é uma referência
indispensável nesse tema. Ele demonstrou como os valores pessoais se
organizam em uma estrutura universal, presente em todas as culturas. São
dez valores básicos que se complementam ou se contrapõem, com pesos
diferentes.19 Os valores na política são reflexo desses valores individuais,
como ficou demonstrado num estudo publicado em 2014, desenvolvido
por uma equipe de pesquisadores em 15 países, entre eles o Brasil.20 Os
valores políticos classificados para esse estudo foram:

Moralidade tradicional: necessidade de que uma sociedade proteja


seus valores morais, religiosos e familiares.
Patriotismo cego: apoio incondicional, sem questionamentos ao
próprio país.
Lei e ordem: aceitação de que o governo deve proibir atividades
disruptivas e forçar a obediência às leis.
Livre empresa: defesa da não interferência do governo na
economia.
Igualdade: crença de que a sociedade deve distribuir oportunidades
e recursos de maneira equilibrada.
Liberdades civis: crença de que todos deveriam ser livres para atuar
e pensar da forma que julgarem ser a melhor.
Intervenção militar estrangeira: apoio ao uso de recursos militares
para lidar com questões internacionais, se necessário.
Aceitação de imigrantes: defesa da ideia de que imigrantes
estrangeiros contribuem de maneira positiva com o próprio país.

Esses valores políticos se relacionam de maneira direta com os valores


pessoais básicos, organizados em quatro campos: abertura à mudança,
oposta ao conservadorismo, e autotranscendência, contraposta à exaltação
de si. Os valores se organizam numa estrutura circular em que os mais afins
ficam lado a lado e os que se opõem, em quadrantes opostos. Assim, valores
pessoais ligados ao individualismo, como poder e realização, são
contrapostos a valores como universalismo. Tendemos naturalmente a
apoiar posições políticas que são coerentes com nossos valores pessoais.
Os valores, tanto pessoais quantos políticos ou coletivos, têm mais
importância na medida em que conduzem a ação efetiva, mas servem para
julgar situações de todo tipo: comportamentos, fatos e pessoas. Por isso
compreender quais são os valores que estruturam uma identidade social ou
individual permite entender melhor as escolhas políticas. Mais e melhor do
que pertencer a um grupo social.
Um homem homossexual pode encontrar no discurso de um candidato
homofóbico valores que o levem a votar nele. Um pobre que vota naquele
candidato que convém aos mais ricos está agindo em defesa de valores
importantes, ainda que para um observador a escolha possa parecer uma
incoerência. Quais valores um candidato defende nem sempre é claro, e o
uso de técnicas de marketing digital para vestir a imagem dos candidatos de
acordo com as preferências individuais dificulta mais ainda essa percepção.
Dificilmente somos conscientes de que são nossos valores que definem o
voto.
O marketing político digital personaliza as mensagens para que elas
sejam mais eficazes, apelando aos valores individuais básicos. Essas
mensagens são enviadas de maneira direta, prescindindo da intermediação
do partido político, dos atos públicos de campanha e dos meios de
comunicação: é a grande vantagem para os candidatos não filiados à
política tradicional ou vindos de partidos muito pequenos. Assim, na
comunicação one to one (um para um) há uma eliminação de fato das
instâncias do coletivo, do plural.
A primeira consequência é abrir o espaço para pessoas que não iriam
normalmente ser militantes, se militar exigisse se filiar a um partido,
participar de assembleias ou manifestar nas ruas. Também não é preciso
qualquer elaboração teórica, nem uma adesão forte a uma causa: basta dar
um clique ou encaminhar um meme de casa para dar vazão a um
sentimento. A política se faz possível para pessoas que nunca imaginaram se
envolver com ela ou que, diretamente, a rejeitam. Gente que se limitava a
cumprir com a obrigação de ir votar a cada eleição ganhou a possibilidade
de se fazer ouvir nas redes, podendo até ajudar a eleger um candidato de
seu gosto.
Somar novas vozes e novos atores ao cenário político pode ser bom para
a democracia. O problema é quanto essa nova forma de participação
política desmancha o coletivo. As redes sociais, por trás da aparência de
comunidade, favorecem o individual – discursos individualistas encontram
nelas terreno fértil. O fato de o marketing político em redes chegar ao
indivíduo tem consequências no perfil do eleitor que ele consegue atrair.
Há um casamento virtuoso entre o meio e a mensagem, entre uma forma
de militância e de participação nas questões públicas e uma proposta de
olhar para o coletivo numa perspectiva individualista. Não caberia nas
redes uma mensagem como “Trabalhadores do mundo, uni-vos”. O apelo
que funciona é à pessoa, ao singular, nunca ao coletivo, e isso é próprio da
comunicação digital: vale para vender refrigerantes, carros ou presidentes.
Um partido político é a associação entre pessoas em torno de valores
compartilhados, encarnados em um corpo comum. Escolher uma
associação de pessoas como meio para defender os próprios valores é um
gesto político em si: diz que se acredita na capacidade do coletivo,
reconhece seu papel. Promover o abandono das instâncias coletivas de
representação tem consequências diretas naquilo que se compreende como
política. É isso que ocorre com a desintermediação própria da ciberpolítica,
que é intrinsecamente individualista. Substitui a rua barulhenta e caótica
pela assepsia clean de uma tela de celular. A ciberpolítica é uma política
descarnada, sem corpo e sem rua.
Tradicionalmente, líderes populistas querem representar de maneira
direta a vontade do povo – por exemplo, sem congresso, representação do
coletivo. O líder populista do século XX necessitava um partido para
governar; ele podia chamar de movimento, como o fascismo ou o
peronismo, e então estruturar não como representação de valores comuns,
mas como uma maquinaria de conquista e manutenção do poder. Um
partido fascista se faz por devoção ou submissão, não pela relação com os
pares. Apela a sujeitos que aceitam ser dominados em troca de seu poder de
dominar.
Na ciberpolítica, um partido pode ser substituído por uma empresa
privada, como na Itália, ou usado apenas como estepe a caminho do poder.
Essa redução dos partidos políticos vem junto com uma depreciação da
política em si e dos políticos em geral: é uma ação necessária para o projeto
do ciberpopulismo. O espaço deixado pela política e pelos partidos deve ser
preenchido, e é aqui que entram os engenheiros do caos.
Quando um cidadão comprova que aquele político em que votou não
cumpre com as promessas de campanha; quando o descobre envolvido em
escândalos de corrupção; quando uma vez ou outra a democracia o
desaponta, então a indignação aparece. A fé naquela pessoa e a crença
naquele partido podem ter acabado, mas os valores que levaram o
indivíduo a apoiá-lo ainda estão aí, esperando uma proposta que os atenda.
É esse espaço que ocupam as propostas simplificadoras do populismo
digital, com toda a força das técnicas de marketing para ajustar a
mensagem àquilo que o público quer ouvir. Há crime nas ruas: mais armas,
mais policiais, menos imigrantes – e não soluções mais complexas que
requerem uma compreensão da dinâmica de uma sociedade. A política é
transformada em algo sujo que deve ser substituído. Os outsiders se
apresentam como puros e eficientes: empresários como Sebastián Piñera no
Chile ou Mauricio Macri na Argentina, Donald Trump nos Estados
Unidos. Ou pessoas normais, o bom senso encarnado no cara que fala “a
língua do povo”, diz “as coisas como são”.
As demandas são justas, a indignação tem motivos claros e os valores
em jogo não podem ser ignorados. O desafio para a democracia é dar
espaço legítimo às reclamações da população que hoje alimentam projetos
antidemocráticos.
Na América Latina, como no resto do mundo, a política está
degradada; grandes escândalos de corrupção envolvendo os líderes e os
partidos populares, administrações muitas vezes caóticas e um bombardeio
midiático tenaz enfraquecem as posições da esquerda. Depois de quase duas
décadas de reduzir a desigualdade até níveis sem precedentes, o continente
vive uma regressão: a concentração de riquezas aumenta e a miséria volta a
crescer, impulsionada pelo cenário global. Os efeitos negativos da disputa
entre China e os EUA foram reforçados pela pandemia que estourou em
2020.
Nesse cenário, projetos de extrema direita aparecem como uma
possibilidade muito concreta. Usinas de fake news estão funcionando e as
técnicas testadas em outros mercados se aplicam aqui com eficácia. As
cibercampanhas recrutam trolls – pessoas que propositalmente incendeiam
as redes com comentários ofensivos ou provocações. Há interesses
econômicos e projetos de poder que têm muito a ganhar com governos
autoritários. A polarização está instalada e aparece como irrecusável: como
foi no Brasil contra o PT e depois contra Bolsonaro, em cada país da
região, pessoas bem-intencionadas explicam que é necessário polarizar para
evitar um mal maior.
Vivemos uma fase de diminuição do pluralismo democrático. A
democracia está ameaçada e o ciberpopulismo, que não é a única causa,
está no centro do problema. A desigualdade, a corrupção público-privada, a
frustração dos sonhos não bastariam para colocar no poder figuras como
Trump, Salvini ou Bolsonaro; é o ciberpopulismo que transforma esses
fatores em combustível dos projetos antidemocráticos e autoritários.
Nos aproximamos do final do percurso. Fecharemos discutindo a
polarização e os projetos de poder que se sustentam em abusos das
liberdades democráticas com recursos das novas tecnologias de
comunicação. Tendo compreendido qual é o novo paradigma da
comunicação e qual é o lugar dos meios digitais e da propaganda em rede,
havendo passado pelo ciberpopulismo e pela nova realidade da política,
podemos responder as questões, urgentes e indispensáveis, sobre
polarização e ciberpopulismo.

PARADOXOS DA LIBERDADE

Era o ano 2000 e o Grupo Abril estreava seu primeiro presidente


profissional, depois de décadas de comando da família Civita. Uma
novidade para a empresa de meios tradicionais. Éramos 25 executivos
reunidos num retiro estratégico no interior de São Paulo aguardando com
expectativas a palestra que ele iria apresentar: “O futuro da internet”, o
título estampado no programa. Ophir Toledo tinha passado pela alta
direção de empresas de tecnologia e era quem iria conduzir o grupo para o
novo mundo digital. Falando em um português rápido e cheio de
anglicismos, começou se desculpando pelo título da palestra, sobre o qual,
disse, não tinha sido sequer consultado. “Falar hoje sobre o futuro da
internet seria uma temeridade. Como fazer uma palestra sobre o futuro da
aviação logo após o voo de Santos Dumont: quem poderia imaginar os
aeroportos, o impacto na carga, nos negócios, nas relações humanas que a
aviação iria trazer? Com a internet é a mesma coisa; estamos vendo algo
surgir que sabemos que irá mudar tudo, mas ainda não sabemos de que
maneira.” A seguir, mostrou alguns slides com dinossauros e começou a
falar sobre a necessidade de se adaptar.
Mal sabíamos então o quanto estava certo. Abril era um dos
dinossauros que não sobreviveriam às mudanças, assim como muitos
daqueles executivos. Mas foi sobretudo acerca do incomensurável das
mudanças e da imprevisibilidade dos rumos que ele acertou. Não dava para
se fazerem previsões sobre o futuro da internet.
Como prever então que a Amazon, que acabara de ser criada e que era
apenas algo como uma grande livraria, iria se transformar em um monstro
global que fez de seu fundador o homem mais rico do planeta? Muito
menos que a Amazon iria criar um dilema para os liberais capitalistas que
pedem restrições ao livre mercado para permitir que o livre mercado
continue a existir.
É o que a especialista em leis antimonopólio da Universidade de
Colúmbia Lina Khan chama de “paradoxo antitruste”. Os defensores do
antimonopólio sempre disseram que, se o consumidor está satisfeito porque
considera os preços adequados e o serviço bom, então o mercado está
funcionando. Especialmente quando se trata de um market place, como é
chamado no mundo digital um ambiente virtual de compra e vendas, um
mercado mediado pela tecnologia digital em rede. A Amazon nasceu
vendendo livros em parceria com lojas físicas e foi incorporando produtos
diferentes e de diferentes fornecedores. Colocou no seu ambiente até
mesmo seus próprios concorrentes. O seu fundador, Jeff Bezos, defendia
que, se alguém fosse mais competitivo que a sua própria empresa, ele
preferia perder uma venda para ser obrigado a melhorar. Mas a Amazon
acumulou tanto poder que exerce influência excessiva sobre as variáveis
fundamentais da economia. Amazon fornece o contato com o cliente, o
meio de pagamento, a entrega e o serviço pós-venda. E mais: é dona da
infraestrutura onde estão armazenados os sites de seus parceiros e
concorrentes. Mas o mais importante é o acesso aos dados de todas as
transações e o que a inteligência artificial pode fazer com eles. Há uma
vantagem competitiva exagerada quando a Amazon decide entrar numa
indústria com produtos próprios: a possibilidade de definir preços e
condições conhecendo as ofertas dos concorrentes e parceiros que vendem
na própria Amazon permite ajustar o foco das ofertas. A máquina de
vendas fica mais eficiente, aprende com cada transação própria e alheia.
O capitalismo de mercado está ameaçado pela concentração de poder,
entendem especialistas e legisladores. Há um consenso crescente nesse
aspecto. “É necessário que os governos regulem, assim como ocorreu em
outras épocas com o setor ferroviário, as telecomunicações e a energia”, diz
o professor da Sloan School of Management do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT) Michael Cusumano. No marco atual, as empresas
tecnológicas crescem muito rapidamente e se transformam em líderes
indispensáveis numa área. “É por isso que temos um sistema operacional
dominante para computadores (Microsoft), outro para celulares (Android),
um grande buscador (Google), uma rede social (Facebook), um grande
mercado (Amazon) e uma grande loja digital (iTunes)”, explica
Cusumano.21 As regras atuais são antigas e não dão conta da mudança, mas
o problema é que a mudança é tão veloz e constante, que a criação de novas
regras já será insuficiente quando elas forem implementadas.
A União Europeia e os Estados Unidos estão tentando implementar
medidas para conter o apetite voraz das empresas de tecnologia. Não há
certeza de qual é o melhor caminho, mas todos concordam com a
necessidade de mudar as regras do mercado para proteger o capitalismo da
voracidade desmedida dos mais bem-sucedidos. Podemos supor que a
democracia exige cuidados semelhantes. As distorções que a Amazon
provoca no sistema de livre mercado podem ser semelhantes às que os
gigantes do digital causam nos sistemas eleitorais e de representação
política.

COMO SERÁ O AMANHÃ

Nossa visão ainda é curta demais para saber como será o mundo no
final do processo de mudanças. Projetamos o futuro a partir de nosso
presente, ampliado e distorcido pelos medos e pelas esperanças. Basta olhar
para o que nos anos 1960 e 1970 se vislumbrava sobre o que seria o ano
2000. É bom lembrar quando escutarmos os profetas do caos vaticinando a
morte da democracia. Ela já sobreviveu a catástrofes e desafios e continua,
imperfeita e muitas vezes mancando, sempre avante. Não significa que os
riscos não existam: existem e são sérios e muitos também são novos e por
isso não os conhecemos suficientemente. Quando tudo está sendo
redefinido pela comunicação digital, a democracia deve ser entendida,
pensada e aparelhada.
A democracia verdadeira só existe se está sempre encaminhada em
direção àquilo que deveria ser, afirma o filósofo alemão Jürgen Habermas.
Não basta ter eleições formais para que exista democracia: é preciso andar
em direção à justiça e à igualdade de direitos. Esse argumento é forte e
perigoso: pode justificar o abuso das instituições. O debate em relação à
Venezuela é exatamente esse: Chávez e Maduro disseram resgatar a essência
da democracia desmontando os mecanismos de equilíbrio e controle entre
poderes. A mesma coisa aconteceu na Bolívia: Evo Morales justificou na
vontade popular a sua reeleição em 2019, fora dos termos constitucionais;
de igual maneira, quem o destituiu disse agir na defesa da democracia. Em
nome da democracia invocam-se manobras e golpes mais ou menos legais
pelo mundo: Rússia, Turquia e Brasil são alguns exemplos de um
fenômeno mais extenso.
A indignação, já vimos, está na origem dos movimentos que revertem o
status quo, muitas vezes a partir das redes sociais. Esses protestos podem
resultar em mais democracia ou em menos democracia. Por exemplo, os
movimentos de junho de 2013, contra o aumento no preço do transporte e
outras causas. Ainda que possa haver disputas acerca das consequências
positivas ou negativas para a democracia, é inquestionável que esses
movimentos mudaram o mapa político, econômico e social do Brasil.
O poder da indignação, potencializado pela capilaridade das redes
sociais, está na capacidade de nos reunir em torno de uma causa. Já não sou
mais apenas “eu”: somos “nós”. E, juntos, podemos. Podemos exigir,
podemos mudar o rumo. Podemos até mudar o mundo. A força do “nós” é
espantosa. Especialmente forte quando se faz identidade coletiva: quando
olhamos ao redor e vemos que somos parte de algo maior.
Uma nação é uma identidade narrativa plural que age a partir de sua
história, de seu caráter encarnado nas suas instituições: na Constituição,
nas leis, nos seus representantes escolhidos pela vontade coletiva, nos seus
heróis. O nacionalismo é uma narrativa que apela a emoções positivas
(pertencimento, amor) e negativas (medo, ódio). São positivas e negativas
não em termos de julgamento moral, mas como signos: a pertença nos atrai
(aos semelhantes) e o medo nos afasta (dos diferentes).
Algumas formas de “nós” reduzem o “eu”: o preço de pertencer é
entregar o próprio ser ao grupo; não se pensa mais por si, não se age fora
do que o coletivo manda ou permite. Encontramos exemplos em alguns
movimentos políticos (de direita e de esquerda), que exigem uma adesão
acrítica ao líder: não se questiona a doutrina, quem pensa é quem está no
alto, as bases somente apoiam e obedecem. É como algumas religiões são
vividas e impostas a uma sociedade ou a um grupo: quem questiona a
autoridade é queimado, apedrejado, expulso da comunidade e do acesso à
salvação. Em instituições como as forças armadas, o indivíduo serve apenas
como peça numa estrutura maior. Em ambientes corporativos, onde a
sobrevivência exige não se destacar do conjunto e o terno é um uniforme.
Em toda identidade há um lugar para os outros, porque eu não me faço
sozinho nem estou sozinho no mundo. Quando se trata de uma identidade
individual, todos os que não são “eu” são o outro: os próximos, os amigos,
os familiares, os amados. Mas também estão os inimigos, os adversários, os
desconhecidos. Numa identidade coletiva, o outro é aquele que está fora do
limite marcado pelo que chamo de “nós”.
O outro como inimigo, como ameaça, é muito útil para unir e dar
força a uma identidade plural. Reforçar os laços para se defender: é o
diferencial do humano em relação a outros animais. Quando o que está em
jogo é a sobrevivência do grupo, o individual perde relevância e a
submissão ao coletivo parece uma necessidade evidente; até os mais
individualistas depõem as suas restrições para servir à causa comum. Está
na base do nacionalismo: vamos todos juntos contra o inimigo. Resulta
uma identidade plural de aspecto forte e sólido, sem fraturas nem dúvidas.
Uma família, um povo, uma nação sob ameaça juntam forças, se
aglutinam. Um sentimento de solidariedade, de estar e de ser juntos se
impõe sobre as diferenças menores ou mesmo as maiores: numa guerra, o
Estado deixa de atender aos interesses da classe dominante, nacionaliza as
empresas para produzir armas, põe no campo de batalha oficiais vindos das
elites, emprega artistas para produzir propaganda. As liberdades individuais
são postergadas quando o que manda é o interesse geral de uma identidade
coletiva maior. Numa guerra ou numa pandemia, como bem lembra o
filósofo francês Alain Badiou.
O inimigo externo serviu para sustentar a ditadura argentina das
décadas dos anos 1970 e 1980. As coisas não iam bem sob o governo dos
militares, então eles decidiram recuperar as ilhas Malvinas do ocupante
inglês. Multidões de argentinos bem-intencionados saíram às ruas para
manifestar seu apoio ao presidente, um general com fama de alcoólatra e
um discurso tosco, Leopoldo Fortunato Galtieri. O nacionalismo
desenfreado abafou e postergou as críticas e os questionamentos que
vinham ganhando a sociedade. Algo semelhante acontecera poucos anos
antes, quando sob o governo de um outro general, Jorge Rafael Videla, a
Argentina organizou e ganhou (quase certamente de maneira espúria) a
Copa do Mundo de futebol: políticos sequestrados ouviram do interior de
suas prisões clandestinas o bramar de uma nação que se dizia unida e feliz.
Os militares argentinos, porém, provaram-se mais eficazes para assassinar
estudantes e torturar mulheres grávidas do que para lutar no campo de
batalha: as forças armadas argentinas foram derrotadas rapidamente pela
Grã-Bretanha. A humilhação ocupou o lugar do triunfalismo e então veio a
ressaca que iria desaguar na volta da democracia. Como teria sido a história
se as Malvinas não tivessem voltado a ser Falkland? Se a premiê Margaret
Thatcher não tivesse visto ela mesma a oportunidade de unir o povo
britânico em torno de uma causa bélica e assim ganhar mais poder para
impor sua agenda ultraliberal? Quem não tem um inimigo externo o
inventa. Um presidente francês culto e defensor do republicanismo pode
servir como alvo para um sujeito que faz da própria tosquidade e do
desrespeito pelo diferente uma bandeira – seja ele presidente dos EUA ou
do Brasil. Uma hipótese de guerra ou uma guerra declarada, uma potência
hegemônica, cumprem a função de aglutinar um povo. A China ocupa
hoje o lugar que já foi da Rússia e a covid-19 rendeu um bom arsenal nesse
sentido.
Quando o inimigo externo não é suficiente, há sempre a possibilidade
de se construir um interno. Hitler fez isso bem, mas não foi o único. Para o
déspota, as vantagens do inimigo interno são incontáveis. Tensionar a
sociedade para controlá-la é o truque desse jogo.
Ditadores sabem desde sempre. Demagogos, também: o outro é a
ferramenta básica do populismo. Ter um bom inimigo a quem odiar é
fundamental para construir uma massa, um povo ao qual se deve conduzir.
Esse é o primeiro grande risco do populismo: quando não há uma guerra,
quando o inimigo externo não basta, ele procura ou constrói um inimigo
interno. É aí que nasce a polarização. O populismo leva necessariamente à
polarização e polarização é ruptura, é divisão.
O segundo risco do populismo é que ele exige uma diminuição do
indivíduo em prol da causa comum. Cada indivíduo sente sobre si a força
redutora: os que não estão comigo estão contra mim. Todo pensamento
crítico e todo matiz devem ser postergados se não servem para o objetivo
central, que é o de derrotar o adversário ou o inimigo. Populismo e
polarização matam o pensamento e a inteligência, acabam com o diálogo e
reduzem a democracia.
Dialogar é pensar a dois; sem diálogo pensa-se menos, pensa-se pior.
Democracia é o sistema concebido para dar lugar a interesses conflitantes
por meio de acordos, balanços, contrapesos. Uma democracia é feita de
conflitos sempre em resolução, e as soluções nunca são definitivas. Por isso,
a democracia é caótica, barulhenta e imperfeita: ela precisa se ajustar ao
constante jogo de forças entre demandas contrapostas. Quando um grupo
ganha excessiva força para impor as suas demandas, a democracia fica
reduzida; se são duas as forças poderosas que se opõem, então há um
equilíbrio, mas é um equilíbrio feito na base do abandono das terceiras,
quartas, quintas posições. Tudo é subordinado a esses polos, não há
diversidade nem nuanças possíveis.
Ser caótica e barulhenta é uma característica positiva da democracia,
não um defeito. Uma democracia saudável deve promover as identidades
coletivas que contêm e as identidades individuais que conformam ambas.
Dentro da democracia devemos encontrar espaço para ser mais e de
maneira mais verdadeira, e para isso o sistema deve permitir e regular o
conflito entre muitas diversidades, encontrar os mecanismos e os espaços de
acordo. Não se trata de eliminar os conflitos (muitos deles são estruturais),
mas de evitar que eles destruam o tecido comum, sem esmagar nesse
esforço aquilo que é diferente. Querer uma democracia ordenada é querer
menos democracia. Devemos suspeitar de uma democracia que não treme,
que não ruge: por trás da ordem existe, sempre, um caos escondido. E
quando o caos não se faz visível, quando os conflitos são negados, a
consequência é o sofrimento e a ruptura. A polarização se alimenta de
conflitos não resolvidos pela via de uma democracia autêntica.
Quando a identidade (coletiva, plural) de uma nação se fratura por
causa da polarização, todos perdem. O indivíduo, as identidades coletivas
que compõem a nação e a própria nação, que fica diminuída, enrijecida e
mais frágil. Basta olhar para o exemplo de grandes ditaduras de aparência
forte que caíram da noite para o dia. As trincas, ainda que invisíveis, vão
enfraquecendo a estrutura, que uma chacoalhada interna ou externa pode
fazer desabar.

O BRASIL PARTIDO

Já mostramos como uma estratégia calcada no modelo que elegeu


Trump fez possível a ascensão ao poder da extrema direita brasileira.
Dissemos também que o PT foi o ponto de apoio para eleger Bolsonaro, na
base de uma polarização acirrada. A polarização pode até trazer benefícios
para alguns atores de esquerda e de centro, mas a fratura da sociedade é o
jogo do bolsonarismo. Nasceu de uma primeira polarização criada para
impedir um governo do PT: o antipetismo ganhou a eleição de 2018. Uma
vez instalada, a fratura serviu para manter o governo apesar de tudo: havia
sempre a ameaça de nos tornarmos a Venezuela, do comunismo dos
baderneiros e dos corruptos. Quando essa narrativa não bastou, o polo ao
qual se opor mudou: foi “todos contra Bolsonaro”. Para muitos eleitores
inteligentes e honestos, valia tanto evitar a chegada ao governo do PT
quanto depois tirar o capitão reformado. Muitas pesquisas mostram algo
parecido a três terços: apoiadores duros do PT, bolsonaristas raiz e a parcela
da sociedade que vota contra: muitos que tinham sido anti-PT viraram
anti-Bolsonaro. Um uso inteligente do fenômeno do voto útil, alimentado
pelo discurso do medo e a construção de fantasias que permitiu levar a
polarização a um grau extremo.
Em 2011, o Peru encarou uma eleição em segundo turno na qual os
dois finalistas da corrida presidencial eram populistas de signos
aparentemente opostos: Ollanta Humala era associado a uma forma de
chavismo; Keiko Fujimori seguia a linha de seu pai, o ex-presidente preso
por escândalos de corrupção e de violência, merecedor de um mote
conhecido de muitos brasileiros: “rouba, mas faz”. O escritor e prêmio
Nobel Mario Vargas Llosa fez então uma comparação que escandalizou
muita gente: “É como escolher entre a aids e o câncer”. Em muitos sentidos
ele estava certo. Não há dúvidas: polarização é ruim. Pode até se justificar
em favor de uma causa maior – pode ser a única maneira de se tirar do
poder um canalha, mas isso não faz da polarização algo menos ruim. Para
muitos brasileiros, cada eleição é a perspectiva de uma escolha infeliz entre
o menos pior. Não parece haver motivos para esperar que isso mude no
curto prazo. Com a ciberpolítica ganhando espaços e uma polarização e
uma fratura instaladas, as chances de um discurso capaz de fazer voltar o
pluralismo, o consenso e o diálogo são escassas. A dinâmica do
ciberpopulismo deve continuar a alimentar os polos e a divisão.
Existem dois caminhos para o resgate da democracia ameaçada. O
primeiro é o surgimento de uma força capaz de reunir democratas de
direita e de esquerda contra qualquer forma de fascismo – que no Brasil
chama-se bolsonarismo, como alerta desde a eleição o filósofo Vladimir
Safatle.22 Que a agenda de Bolsonaro tem corte fascista é uma afirmação
baseada nas características do movimento que Mussolini liderara na Itália e
que no Brasil teve sua versão adaptada no integralismo de Plínio Salgado na
década de 1930.23 As características do fascismo, reconhecidas no
bolsonarismo, são o culto à violência, a exaltação do Estado-nação, a
insensibilidade perante a violência contra os mais fracos e uma recusa da
ordem institucional em prol da mão forte do líder.
O segundo, bastante incerto e sem exemplos à vista, é a construção de
um populismo de esquerda capaz de ganhar eleições e sem vocação
antidemocrática. França é um exemplo da primeira solução, onde direita e
esquerda têm se unido para barrar a chegada ao poder da extrema direita.
Argentina poderia ser um exemplo da segunda, com um populismo de
esquerda derrotando o populismo de direita.
Pode soar contraditório e talvez até o seja: dissemos antes que
polarização e populismo reduzem a democracia. Contudo, se existem
exemplos de populismos de esquerda que não derivaram em fascismo, não
há populismos de direita que não tenham vocação fascista. Um populismo
de esquerda que não seja incompatível com a democracia deve ver no
outro, no seu opoente, um adversário do povo, não um inimigo. Um
populismo de esquerda que não busque se perpetuar acabando com a
democracia deve legitimar aquele que o enfrenta e promover um espaço de
pluralismo e debate. Essa esquerda plural se define não a partir de uma
homogeneidade como era a do proletariado, mas atendendo às diversas
necessidades das classes e das categorias submetidas ou marginalizadas,
questões que vão da luta das mulheres ao futuro do planeta. Há uma
vontade coletiva que preserva vivas e ativas as identidades, não as apaga sob
o signo da homogeneidade.24 Soa utópico? É possível que uma esquerda
que não tenha vocação de realizar utopias já esteja morta. Somente o tempo
dirá se o Brasil consegue transitar em alguns desses caminhos e resgatar a
democracia de seus algozes.

Notas
1
A questão é muito bem trabalhada em As origens do totalitarismo, da filósofa Hannah Arendt
(1906-1975).
2
Glenn Kessler, “Trump made 30,573 false or misleading claims as president. Nearly half came in
his final year”, em The Washington Post, 23 de janeiro 2021. Disponível em
<https://www.washingtonpost.com/politics/how-fact-checker-tracked-trump-
claims/2021/01/23/ad04b69a-5c1d-11eb-a976-bad6431e03e2_story.html>, acesso em 24 jan.
2021.
3
No site Aos Fatos, contabilizavam-se mais de 2.000 mentiras nos dois primeiros anos de
Bolsonaro como presidente do Brasil. Disponível em <https://www.aosfatos.org/todas-as-
declara%C3%A7%C3%B5es-de-bolsonaro/>, acesso em 24 jan. 2021.
4
Cristóbal Rovira Kaltwasser e Cas Mudde, Populismo: uma brevíssima introdução, Lisboa, Gradiva,
2017.
5
Ernesto Laclau, A razão populista, São Paulo, Três Estrelas, 2013.
6
Explica isso muito bem Maria Esperanza Casullo, pesquisadora argentina, que escreveu ¿Por qué
funciona el populismo? El discurso que sabe construir explicaciones convincentes de un mundo en crisis,
Buenos Aires, Siglo XXI, 2018.
7
Giuliano da Empoli, Os engenheiros do caos, São Paulo, Vestígio, 2019.
8
É o título de uma coluna assinada pelo antropólogo Juliano Spyer, pelo professor da Universidade
de Kentucky David Nemer e por Mauricio Moura, fundador do IDEIA Big Data.
9
Wu Youyou, Michal Kosinski e David Stillwell, “Computer-based personality judgments are
more accurate than those made by humans”, em PNAS, 2015. Disponível em
<https://doi.org/10.1073/pnas.1418680112>, acesso em 29 nov. 2019 [tradução minha].
10
Christopher Wylie, apud Pablo Guimón, “O ‘Brexit’ não teria acontecido sem a Cambridge
Analytica”, em El País, 28 mar. 2028. Disponível em
<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/26/internacional/1522058765_703094.html>, acesso
em 25 out. 2020.
11
Christopher Wylie, apud Pablo Guimón, “O ‘Brexit’ não teria acontecido sem a Cambridge
Analytica”, em El País, 28 mar. 2018. Disponível em
<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/26/internacional/1522058765_703094.html>, acesso
em 25 out. 2020.
12
Christopher Wylie, apud Pablo Guimón, “O ‘Brexit’ não teria acontecido sem a Cambridge
Analytica”, em El País, 28 mar. 2018. Disponível em
<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/26/internacional/1522058765_703094.html>, acesso
em 25 out. 2020.
13
Sófocles, A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona, Rio de Janeiro, Zahar [e-
book].
14
Eliane Brum, “O homem mediano assume o poder: O que significa transformar o ordinário em
‘mito’ e dar a ele o Governo do país?”, em El País, fev. 2019. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/02/opinion/1546450311_448043.html>, acesso em 4
abr. 2020.
15
Theófilo Machado Rodriguês, “Populismo de esquerda versus Populismo de direita no início do
século XXI: o conflito político nos EUA, Inglaterra, França e Alemanha”, em Revista Estudos
Políticos: a publicação semestral do Laboratório de Estudos Hum(e)anos (UFF), Rio de Janeiro, v. 9,
n. 1, pp. 70-85, jul. 2018. Disponível em <http://revistaestudospoliticos.com/>, acesso em 13
dez. 2019.
16
Luc Rouban, La matière noire de la démocratie, Paris, Les Presses de SciencesPo, 2019 [e-book].
17
“‘Vocês estão vivendo um novo tipo de ditadura’, diz sociólogo Manuel Castells”, em O Globo,
17 jul. 2019. Disponível em <https://oglobo.globo.com/sociedade/voces-estao-vivendo-um-novo-
tipo-de-ditadura-diz-sociologo-manuel-castells-23812733>, acesso em 12 jul. 2020.
18
“O novo populismo de América Latina, um movimento mais vivo do que nunca”, em IdeasBr,
15 set. 2017. Disponível em <https://ideasbr.llorenteycuenca.com/2017/09/15/o-novo-
populismo-de-america-latina-um-movimento-mais-vivo-do-que-nunca/>, acesso em 12 jul. 2020.
19
Os dez valores que Schwartz detectou como presentes em todas as culturas são:
1. Poder: status social e prestígio, controle e domínio sobre pessoas e recursos;
2. Realização: sucesso pessoal pela demonstração de competência segundo os padrões sociais;
3. Hedonismo: prazer e gratificação sensual para si;
4. Estímulo: excitação, novidade e desafios;
5. Autodirecionamento: pensamento e ação independentes (escolher, criar, explorar);
6. Universalismo: compreensão, apreciação e tolerância em relação ao bem-estar de todos os
povos e da natureza;
7. Benevolência: preservação e incentivo do bem-estar das pessoas com as quais se está em contato
pessoal frequente;
8. Tradição: respeito, compromisso e aceitação dos costumes e das ideias da cultura e da religião;
9. Conformidade: limitação das ações, inclinações e impulsos que possam incomodar ou
machucar os outros e violar normas e expectativas sociais;
10. Segurança: harmonia, estabilidade da sociedade, das relações e de si.
20
Alemanha, Austrália, Brasil, Chile, Eslováquia, EUA, Finlândia, Grã-Bretanha, Grécia, Israel,
Itália, Polônia, Espanha, Turquia e Ucrânia. Michele Vecchione et al., Guido. (2014). Personal
Values and Political Activism: a Cross-national Study. British journal of psychology, London, 1953,
mar. 2014. Disponível em
<https://www.researchgate.net/publication/260608026_Personal_values_and_political_activism_
A_cross-national_study >, acesso em 27 jun. 2020.
21
“Plano de quebrar o oligopólio do Facebook e do Google ganha peso nos EUA”, em El País, 5
out. 2019. Disponível em
<https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/04/internacional/1570189971_000536.html>, acesso
em 13 jul. 2020.
22
Vladimir Safatle, “O que é fascismo?”, em Revista Cult, 22 out. 2018. Disponível em
<https://revistacult.uol.com.br/home/o-que-e-fascismo/>, acesso em nov. 2020.
23
André Singer et al., “Por que assistimos a uma volta do fascismo à brasileira?”, em Folha de
S.Paulo, 09/06/2020. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/06/por-
que-assistimos-a-uma-volta-do-fascismo-a-brasileira.shtml>, acesso em nov. 2020.
24
É a proposta da pesquisadora belga Chantal Mouffe no livro Por un populismo de izquierda
(Buenos Aires, Siglo Veintiuno Editores, 2018).
Conclusão – A liberdade é plural

O ciberpopulismo é uma ameaça real à democracia. Mata e destrói,


provoca sofrimento, empequenece as nações que o afetam – entre elas, e
muito fortemente, o Brasil. Este livro abordou o impacto da comunicação
digital em rede nas democracias e a polarização de uma ótica original, capaz
de orientar a análise e a articulação de antídotos. Esta será uma conclusão
diferente. Ao longo do texto, discuti as questões lançadas na Introdução.
Aqui retorno a elas e procuro respondê-las de forma sucinta.

Como compreender a comunicação, hoje, na era dos meios digitais?


A comunicação vai além da troca de mensagens entre um emissor e um
receptor: é traço existencial do ser humano. Segundo a Filosofia da
Comunicação, a humanidade e o indivíduo se constituem na comunicação.
A noção de identidade individual é relevante, considerada como a história
que cada um conta a si e aos outros, com os outros; há identidades
individuais e também identidades coletivas. Somos com os outros; ignorar a
dimensão plural do ser humano e focar apenas na identidade individual
causa sofrimento individual e coletivo. Assim, ao falarmos da comunicação
não nos referimos somente à tecnologia: não basta ter os meios para nos
comunicarmos com qualquer humano do planeta, é necessário o ubuntu.
Essa é uma forma de entender o mundo que não pode prescindir dos
outros seres que me rodeiam, me antecedem e irão me suceder.

De que maneira a nova comunicação influencia como as pessoas se


relacionam entre si, pensam e conduzem suas vidas?
Somos Homo communicans: a comunicação é nosso diferencial
evolutivo, aquilo que permitiu a sobrevivência da espécie e que está por trás
do desenvolvimento das capacidades humanas. Se a comunicação constitui
a humanidade e os indivíduos, então alterações nos modos de comunicar
mudam o jeito de ser humano. Os avanços na tecnologia das comunicações
nas últimas décadas têm impacto profundo na maneira como nos
relacionamos com nossos semelhantes, mas também na constituição de
nossas identidades individuais e coletivas. Para os humanos do século XXI,
grande parte da vida transcorre no mundo virtual e está ligada às novas
tecnologias. Desde que acordamos com o alarme do celular até a hora que
vamos dormir escutando música no Spotify, nossa vida transcorre nas telas:
consultamos mensagens e lemos as notícias no celular, trabalhamos com
colegas, clientes e chefes em plataformas virtuais, sabemos de amigos e
familiares pelas redes sociais, pedimos comida pronta e fazemos a compra
de supermercado por um aplicativo, assistimos a filmes e seriados por um
serviço de streaming... Nenhuma atividade humana deixou de ser alterada
pelas novas tecnologias e hoje é muito menor o número de pessoas no
mundo sem um endereço de e-mail, um número de celular ou acesso à
rede.
A comunicação, hoje, tem a possibilidade de estender os limites do
humano promovendo a liberdade, o saber, a elevação; ou de se transformar
em um instrumento de dominação capaz de estabelecer ditaduras
informativas como a que Castells menciona no parágrafo que reproduzimos
antes. Nunca a comunicação teve um papel tão claramente central e
determinante no presente e no futuro da humanidade. Temos ferramentas
suficientes para levar a comunicação a patamares nunca antes alcançados:
está a tecnologia, estão os recursos, mas é necessário proteger o pluralismo e
defender os espaços comuns de debate.

Qual o impacto da comunicação atual nas democracias?


Novamente, o conceito de identidade contribui para a resposta: uma
nação é uma identidade coletiva que se conta a partir de fatos fundadores
(guerras, revoluções etc.) e de heróis e figuras históricas. As instituições
sustentam essa identidade (as leis, a Constituição etc.), a língua e alguns
acordos comuns, sempre em revisão. A comunicação sustenta esses acordos
e os mantém atualizados. Conflitos e convergência de interesse resolvem-se
com base nos acordos comuns. A democracia é uma forma de regular os
conflitos no interior de uma sociedade com base nesses acordos, que
sempre têm formato de narração, pois se inserem na identidade coletiva da
nação.
Na luta pelo poder, a elaboração de narrativas é fator central; as
primeiras experiências com o ciberpopulismo mostram até que ponto a
tecnologia pode potencializar mecanismos de dominação que estavam aí há
muito tempo. A disputa pelos meios de formar opiniões e visões de mundo
remonta à origem das sociedades humanas. É o que se chama de poder
simbólico. Por séculos, a Igreja teve um quase monopólio desse poder, que
negociava com os governantes seculares: o mundo era entendido da
maneira que diziam as Escrituras, interpretadas e narradas pelos
representantes de Deus na Terra. Esse poder vinha do domínio dos canais
de comunicação que eram a reprodução manual de livros e os sermões nas
igrejas. A invenção da imprensa de tipos móveis alterou os fundamentos
desse poder e foi uma das razões do desenvolvimento acelerado das ciências
e dos modelos de organização do coletivo. O capitalismo e a democracia
nasceram junto com os meios de comunicação que viriam, mais tarde,
constituir o sistema chamado de mass media. Os meios de comunicação,
com sua capacidade de articular um relato, passaram a ocupar lugar central
no desenvolvimento das nações modernas, no século XX.
O que vivemos no século XXI é o surgimento de operações políticas
globais que fazem uso do poder das novas tecnologias da informação digital
em rede para conquistar o poder. A serviço de grupos poderosos, constroem
realidades paralelas na base do engano e da mentira, manipulam as paixões,
estimulando o medo e o ódio para impulsionar projetos de poder. Sem
pruridos, atacam as instituições da democracia que poderiam lhes colocar
freio. A digitalização das informações, a distribuição em rede, as técnicas de
microssegmentação e de construção de “bolhas” informativas servem essas
operações.

Qual é o hoje papel dos meios de comunicação (novos e antigos) e qual


o dos partidos políticos?
Tradicionalmente, o sistema dos mass media servia como mediador,
filtrando as mensagens e impedindo que vozes antidemocráticas ganhassem
visibilidade e relevância. Da mesma maneira, o sistema de partidos
políticos colocava para escanteio as vozes dos extremos, impedindo ou
tornando muito difícil a chegada de candidatos antissistema ao poder
efetivo. Mas a sociedade digital eliminou ou reduziu o papel dos
intermediários: meios de comunicação e partidos políticos perderam o
protagonismo que tiveram no século XX.
O que é ciberpopulismo? Como funciona?
Ciberpopulismo reúne o velho populismo com as tecnologias mais
modernas de comunicação. Permitiu, assim, a irrupção de um movimento
político de dimensões globais. O populismo é uma estrutura de relato que
põe em destaque um líder salvador, um povo que deve ser salvado e um
inimigo que ameaça esse povo e frente ao qual o líder se ergue. Qual o
inimigo e qual o povo são coisas que mudam de forma e de figura segundo
as necessidades do líder salvador, que é sempre o mesmo: aquele que quer
se apossar do poder.
A comunicação em rede e a ciência de dados permitem chegar de
maneira muito bem direcionada em cada pessoa, potencializando o efeito já
forte da narrativa populista em níveis antes inimagináveis.Mudando as
mensagens persuasivas para adequá-las às preferências de cada pessoa,
construindo mundos paralelos onde as informações (de modo geral,
mentirosas) estão ao serviço do discurso do líder, sustentando teorias
conspiratórias para reforçar o caráter maligno do inimigo e destacando os
valores do líder. Nessa construção retórica, tudo aquilo que a desmente é
vilipendiado: a ciência, a mídia tradicional, as grandes figuras da cultura.

Quais são os novos atores políticos filhos do ciberpopulismo?


A comunicação digital em rede abriu espaço para que pessoas
normalmente silenciosas ou silenciadas pudessem se manifestar: gente que
não militava nas ruas passou a reproduzir suas opiniões nas redes sociais.
Grupos subrepresentados pela política tradicional ganharam voz. Foi assim
que novos atores entraram no mundo da política pela via do
ciberpopulismo: as massas operárias pauperizadas das regiões industriais da
Europa e dos Estados Unidos, o “homem comum” brasileiro, o cidadão que
normalmente se manifestava apenas no voto, maioria silenciosa que olhava
com desconfiança os movimentos identitários, os avanços da globalização e
a modernização dos costumes. Mas a entrada desses novos atores, essa
expansão da representatividade, que em si mesmo é algo claramente bom
para a democracia, geraram um efeito pernicioso quando o que estava na
sombra ganhou visibilidade: o pior e o mais feio do Brasil ficou à vista e
pareceu tomar conta do debate.
Um aproveitamento intencional da força do ódio e da indignação fez
com que o ruim virasse combustível da política. Conflitos ancestrais se
atualizaram nas redes sociais, onde cancelar, provocar e insultar viraram
verbos aceitáveis para um grande número de cidadãos que na vida cotidiana
são pessoas amáveis e gentis. A homofobia saiu do armário, a ficção da
sociedade mista deu lugar ao racismo concreto. O espelho das primeiras
eleições sob a ciberpolítica mostrou um rosto assustadoramente feio. E,
quando se podia esperar que mais comunicação resultasse em mais
democracia, viu-se o oposto.
Essa virada foi possível graças aos novos recursos da comunicação, mas
não teria acontecido sem outras mudanças, mais profundas e por isso talvez
menos visíveis. Estamos falando aqui de valores.

Em que mudou a maneira de votar e qual o papel dos valores nessa


mudança?
Valores são crenças profundas que determinam juízos e preferência e
definem caminhos para a ação. Há os valores individuais que dão
prioridade a si mesmo, como poder e realização, e os que põem o outro em
primeiro lugar, procurando o bem-estar dos próximos e da sociedade de
modo geral. Existem também valores orientados à mudança, contrapostos
aos valores mais conformistas, conservadores, defensores da tradição e da
segurança. A tendência normal é votar em propostas políticas ou em
candidatos que promovam os próprios valores. No século XX, os partidos
políticos funcionavam como aglutinadores de certos valores organizados
com alguma forma de coerência.
Mas o sistema de partidos está ruindo no mundo todo e quem sofre são
os grandes partidos tradicionais, que viram os níveis de adesão (medida em
número de afiliados) e a influência efetiva (em representação nos
parlamentos) cair. Os engenheiros do caos, visionários do mal, souberam
detectar uma oportunidade na diminuição da fidelidade partidária e
passaram a oferecer propostas flexíveis, de acordo com os gostos e
preferências dos votantes. Valores que estavam nas plataformas de partidos
de direita ou de esquerda foram isolados e alçados como eixo central de
campanhas que pouco se importavam com a coerência do conjunto de
propostas, desde que o marketing servisse à conquista do poder. Nasceram,
assim, opções novas, de nicho, ou movimentos constituídos no universo
digital, como é o caso do Movimento Cinque Stelle, na Itália, uma empresa
privada que tem como missão a conquista de espaços de poder. Em
movimentos assim, não há problema em coexistirem propostas
contraditórias entre si, desde que sirvam para sustentar uma base de
eleitores.
Mais individualistas e imediatistas, os votantes passaram a escolher mais
pelo atrativo desta ou aquela proposta do que por um ideal construído ao
longo de décadas. Necessidades como segurança e proteção da família
ganharam maior relevância, junto com propostas mais generalistas, de
execução improvável e caráter claramente propagandístico. O voto contra
(contra o sistema político, contra o establishment, contra os políticos,
contra a burocracia, contra os impostos) ganhou um espaço grande nas
plataformas digitais.

Por que o Brasil está polarizado e quais os riscos dessa polarização?


O ciberpopulismo demanda e alimenta a fratura, não funciona sem ela.
Sem um inimigo, não há um salvador do povo e todo o edifício cai por
terra. Um candidato que se recusa a participar de um debate tem uma
mensagem muito clara: o diálogo o enfraquece, o interlocutor não pode
nem deve ser reconhecido. Uma vereadora negra e homossexual, defensora
das mulheres e dos favelados, que denunciava abusos e privilégios, ser
assassinada – essa é a outra cara da moeda de um movimento político que
não aceita debater.
Bolsonaro é emergente do ciberpopulismo. Transformar o adversário
em inimigo, promover uma fratura na sociedade e sustentar uma
polarização são indispensáveis para um projeto de poder que tem no
pluralismo seu oposto. O uso eficiente das redes sociais em um modelo
desenvolvido e testado em outras latitudes e uma leitura adequada das
necessidades de uma sociedade tensionada permitiram que o impensado
acontecesse: o Brasil caiu nas mãos de uma extrema direita vinculada a
milícias, uma ameaça real e concreta para a democracia e retrocesso das
artes, da cultura, da ciência, da educação. O que chegou a ser um dos
países mais admirados do mundo virou motivo de chacota e de
comiseração internacional.
Mas para que a operação do ciberpopulismo funcione é preciso que
exista uma sociedade pronta para ser fraturada ou uma fratura para ser
aumentada. O Brasil tem uma história de violência, com tensões visíveis e
outras subjacentes. Há debates postergados e feridas sem cicatrizar, como as
da ditadura. Nas favelas e nas periferias das grandes metrópoles, a
população sofre a tutela de milícias e traficantes. A venda de armas a
particulares aumentou de 24.633 em 2019 para 73.985 em 2020. O Brasil
convive com uma das maiores taxas de homicídios do mundo e é o país que
mais mata, em números absolutos; e, se esse número não bastasse, a
maioria dos mortos são negros. Negros não dirigem empresas, não moram
em bairros abastados e não frequentam escolas de elite. Mas os corpos dos
homens negros não são os únicos a sofrerem violência: a cada dia são
estupradas 144 mulheres; melhor dizendo, mulheres ou meninas, porque,
do total de vítimas, 53,8% têm menos de 13 anos.
Em 2019, o Brasil era o segundo país com maior concentração de
renda, perdendo apenas para o Catar: 28,3% da riqueza fica com 1% da
população. E a primeira década do século foi a melhor na história em
termos distributivos. A renda média das famílias havia crescido mais de
30% entre 2001 e 2011, enquanto o índice de Gini, que mede a
desigualdade, caíra mais de 10%; enquanto isso, as taxas de pobreza
extrema e de pobreza diminuíram respectivamente 4 e 12 pontos
percentuais. Mas o sonho durou pouco e a ressaca não acaba. Desde 2015
uma crise se instalou para a maior parte da população, fazendo retroceder
os ganhos dos anos anteriores; uma crise que acabou em 2016 para os mais
ricos e estendeu-se para os pobres até o final da década, como mostra o
excelente estudo “Desigualdade de renda no Brasil de 2012 a 2019”,
conduzido pelos pesquisadores Rogério Barbosa, Pedro Ferreira de Souza e
Sergei Soares e publicado em julho de 2020 pela revista de ciências sociais
Dados.
O já citado cientista político argentino Malamud diz: “Não é a
desigualdade, não é a pobreza, não é a corrupção o que explica o
surgimento dos populismos de direita: são as expectativas frustradas”. É o
movimento de perda o que causa a frustração. É a morte de um sonho o
que irrita e indigna, que desencadeia a fúria. As elites brasileiras (política,
econômica, judicial, midiática...) escolheram o caminho do impeachment e
embarcaram na aventura do capitão reformado Jair Messias Bolsonaro; e
para isso precisaram apostar na fratura do Brasil. E é por isso que o Brasil
está e continuará polarizado.
Sair da divisão, recuperar o diálogo e criar condições para que os
grandes debates ocorram e possibilitar a solução para as injustiças e as
tensões estruturais são coisas que levarão muito tempo e muito esforço para
voltar a acontecer.

É possível criar alternativas democráticas a partir do ciberpopulismo?


O populismo é uma estrutura narrativa sem ideologia, mas o que
comprovamos é que o mundo tem levado ao poder representantes da
extrema direita mais tosca, em muitos casos claramente fascistas. Alguns
teóricos, como a socióloga belga Chantal Mouffe, defendem que a única
forma de combater os populismos de direita é com populismos de
esquerda. Não está claro se isso é possível e ainda não há exemplos de
ciberpopulismo de esquerda. Mas, como já dissemos, o oposto da
polarização é o pluralismo, e um governo de esquerda que se alce ao poder
pela via do ciberpopulismo terá uma tendência naturalmente não plural. O
ciberpopulismo exige polarização, e a polarização é uma doença da
democracia.
Um populismo de esquerda ganhando o poder pelo uso inteligente das
ferramentas digitais pode, em teoria, se tornar republicano se for capaz de
dar lugar às vozes de uma sociedade plural, nada homogênea. Isso exigiria
deixar um espaço para um adversário raivoso que irá agir como inimigo,
disposto a tudo. Custa muito imaginar esse cenário que, como dizemos,
não é teoricamente impossível.
Ou seja: a resposta é pessimista, o ciberpopulismo produz
necessariamente diminuição da democracia, aumenta a intolerância e
diminui a inteligência e a liberdade de indivíduos e sociedades.

Como sair, então, da armadilha do ciberpopulismo?


Esta é a pergunta mais importante e de resposta mais incerta. Para
acabar com a fratura e reduzir o peso da polarização da política, seriam
necessárias mudanças que não parecem possíveis num horizonte próximo.
As redes sociais são uma realidade irrecusável para a política, e seu efeito
deformante ainda deve desafiar o espírito e a letra da democracia no Brasil
e no resto do mundo. O ciberpopulismo é indispensável para a extrema
direita e seguirá forte nas eleições. Se as democracias do mundo, entre elas
a brasileira, conseguirão criar um antídoto contra o autoritarismo
obscurantista promovido pelos mestres do caos é ainda uma incógnita.
Não há sinais de que encontraremos um consenso suficientemente
duradouro para resolver a profunda divisão que fez do Brasil um país
fraturado. Assim como o crime e a violência não se resolvem armando a
população e não há saídas fáceis para a injustiça, a pobreza e a falta de
educação, também a defesa da democracia exigirá o empenho de muitos
por muito tempo. Não basta culpar as redes sociais nem banir contas de
distribuição de fake news. E certamente o caminho não passa por
demonizar os eleitores da extrema direita.
Diálogo e pluralismo, praticar o pensamento crítico e aprender a
escutar. Aceitar o diverso e buscar as razões profundas da ira e da
indignação; cultivar o exercício de se colocar no lugar do outro. Sem isso
tudo, não há democracia que resista, muito menos há chances de uma
restauração da sociedade. Um compromisso dos cidadãos com a defesa das
instituições e um rechaço radical das soluções de via curta: não apoiar
caminhos espúrios de juízes supostamente iluminados e desconfiar dos
heróis personalistas é também indispensável. Mas do que mais precisa o
Brasil para sobreviver aos desafios que ele mesmo se colocou é praticar o
ubuntu: saber que não há quem possa viver sem os outros.
“A verdade não existe no singular”, diz Habermas. A liberdade também
não.
O autor

Brasileiro nascido na Argentina, Andrés Bruzzone é bacharel, mestre e


doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) com tese sobre
Filosofia da Comunicação. Foi jornalista e correspondente em Paris.
Fundou e dirigiu meios e empresas de comunicação. Como executivo ou
consultor, por mais de 15 anos ajudou empresas de mídia a fazer sua
migração para o mundo digital. É CEO e fundador da Pyxys Inteligência
Digital, que explora novas formas de comunicação. Velejador oceânico,
iniciou em 2018 uma volta ao mundo sozinho no seu veleiro, Endeavour.
Agradecimentos

Agradeço aos leitores e aos interlocutores que me acompanharam nesta


jornada, especialmente Wagner G. Barreira. E também Luciana Pinsky, Bia
Mendes, Mariana Laham, Carmine D’Amore, Felipe Giménez, Guillermo
Bengoa, Giovane Rodrigues, Félix Fassone e Pino Nicoletti. Ainda, uma
menção extra para os colegas do Práxis (Centro de Filosofia, Política e
Cultura), organizadores do II Simpósio Internacional de Filosofia e
Comunicação Luso-Brasileiro-Alemão, Lubral (2019), onde esta reflexão
começou a germinar.

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