Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Cassol e Niederle (2016)

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 14

Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias

Introdução às teorias
do desenvolvimento
Paulo André Niederle
Guilherme Francisco W. Radomsky
(orgs.)
Copyright dos autores 1ª edição: 2016
Direitos da edição: Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Capa: Ely Petry
Revisão: Ignacio Antonio Neis, Jaques Ximendes Beck e Sabrina Pereira de Abreu

Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias


Coordenação: Lovois de Andrade Miguel, Gabriela Trindade Perry e Marcello Ferreira

Curso de Graduação Bacharelado em Desenvolvimento Rural (PLAGEDER)


Coordenação Pedagógica: Marcelo Antonio Conterato
Coordenação de Tutoria: Laura Wunsch
Coordenação Núcleo EAD: Tânia Rodrigues da Cruz
Secretário: Jorge Luis Aguiar Silveira
Projeto gráfico: Evangraf

I61 Introdução às teorias do desenvolvimento / organizadores Paulo André Nieder-


le [e] Guilherme Francisco Waterloo Radomsky ; coordenado pelo SEAD/
UFRGS. – Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2016.
118 p. : il. ; 17,5x25cm
(Série Ensino, Aprendizagem e Tecnologias)
Inclui referências.
1. Economia. 2. Teorias do desenvolvimento. 3. Rostow – Estágios – De-
senvolvimento. 4. Schumpeter – Teoria do desenvolvimento econômico. 5.
Celso Furtado – Economia política – Desenvolvimento latino-americano. 6.
Hirschman – Economia do desenvolvimento 7. Sen – Desenvolvimento – Li-
berdade. 8. Desenvolvimento – Teoria evolucionária – Mudança institucional.
9. Estado – Desenvolvimentismo – Neodesenvolvimentismo. 10. Pós-desen-
volvimento. 11. Desenvolvimento sustentável. 12. Desenvolvimento rural. I.
Niederle, Paulo André. II. Radomsky, Guilherme Francisco Waterloo. III.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Secretaria de Educação a Dis-
tância. IV. Série.
CDU 330.34
CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.
(Jaqueline Trombin– Bibliotecária responsável CRB10/979)
ISBN 978-85-386-0326-9
Paulo André Niederle
Guilherme Francisco Waterloo Radomsky
(Organizadores)

INTRODUÇÃO ÀS TEORIAS DO
DESENVOLVIMENTO
28
...... Capítulo 3
EAD

CELSO FURTADO E A ECONOMIA POLÍTICA


DO DESENVOLVIMENTO LATINO-
AMERICANO

Abel Cassol
Paulo André Niederle

INTRODUÇÃO

O ponto de partida para se analisar a contribuição de Celso Furtado e de seu corpo


teórico, que poderia ser definido como “a economia política do desenvolvimento latino-
-americano”, passa necessariamente pela identificação dos fatores que o distinguem das
demais teorias constituídas no pós-guerra, quando o “desenvolvimento” ganha significa-
ção e adentra o debate político-institucional. Nesse sentido, é fundamental perceber os
pontos de inflexão da formulação latino-americana vis-à-vis a perspectiva predominante
na economia do desenvolvimento que se ergueu sobre as bases teóricas da ortodoxia eco-
nômica, notadamente a dos teóricos da modernização, como Rostow (vide supra, cap. 1).
As diferenças e divergências em relação à vertente dominante que permeou o de-
bate político-institucional do desenvolvimento têm como ponto inicial a recusa do que
Hirschman (1996) chama de monoeconomics, isto é, a pretensão universalista da existên-
cia de um único modelo explicativo capaz de abarcar a diversidade das situações histó-
ricas (vide infra, cap. 4). Como afirma Celso Furtado (1992, p. 5), era necessária uma
nova formulação capaz de “descer ao estudo de situações concretas” e reconhecer que
“os processos de desenvolvimento não se davam fora da história”, no caso, o contexto
peculiar do desenvolvimento periférico latino-americano.
Desta forma, Celso Furtado e outros intelectuais vinculados à Comissão Econô-
mica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) passaram a destacar a necessidade de
construção de um corpo teórico distinto para a interpretação e a análise dos processos
econômicos dos países não centrais (periféricos), que levasse em consideração as pe- 29
......

EAD
culiaridades históricas de formação social dessas economias. Para tanto, esses autores
apropriam-se de modo original de distintas matrizes teóricas – marxismo, keynesia-
nismo, estruturalismo – para constituir um método – estruturalismo histórico – e um
conjunto de conceitos e categorias analíticas – relações centro-periferia, subdesenvol-
vimento, heterogeneidade estrutural, padrões de desenvolvimento desigual – que sir-
vam de base a uma consistente construção analítica. Esse conjunto permite analisar as
economias periféricas a partir de suas diferenças e de suas distintas formas de inserção
no sistema capitalista global.
O objetivo do presente capítulo é revisitar alguns dos principais elementos teó-
rico-metodológicos desta proposição peculiar do desenvolvimento latino-americano e
destacar a importância central dos estudos de Celso Furtado na interpretação do caso
brasileiro e nas análises do subdesenvolvimento. Na sequência, serão apontadas algumas
fragilidades da matriz teórica cepalina e as críticas que lhe foram endereçadas por auto-
res reunidos em torno das chamadas “teorias da dependência”.

VIDA E OBRA DE CELSO FURTADO

Celso Furtado nasceu em 1920, na cidade de Pombal, no sertão da Paraíba. De


família aristocrática, é filho de pai advogado, mais tarde juiz e desembargador, e de mãe
de família tradicional proprietária de terras. Em 1940, então com 20 anos, transfere-
-se para o Rio de Janeiro, onde vai cursar a Faculdade Nacional de Direito. Em 1945,
embarca para a Itália como aspirante a oficial da Força Expedicionária Brasileira. Ao
retornar, decide não seguir a carreira de advogado, mas tornar-se economista. Viaja para
Paris em 1946 a fim de cursar doutorado na Faculdade de Direito e Ciências Econômi-
cas na Sorbonne, onde também irá atuar posteriormente como docente, na condição de
exilado, no período da ditadura militar.
Já formado doutor em Economia, e de volta ao Brasil, é integrado na recém-criada
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), sendo nomeado Dire-
tor da Divisão de Desenvolvimento e encarregado de missões no Equador, na Argentina,
na Venezuela, no Peru e na Costa Rica. Em 1954, publica seu primeiro livro, A economia
brasileira. Em 1957, realiza estudos de pós-graduação no King’s College, na Inglaterra,
período durante o qual vai escrever sua mais difundida e conhecida obra, Formação eco-
nômica do Brasil.
Um ano depois, desliga-se da CEPAL e assume a diretoria do Banco Nacional de
Desenvolvimento (BNDES), iniciando uma notável vida pública na política. É nomeado
pelo Presidente Juscelino Kubitschek interventor no Grupo de Trabalho do Desenvol-
30
...... vimento do Nordeste, que mais tarde dará origem à Superintendência de Desenvolvi-
mento do Nordeste (SUDENE), órgão responsável pelo desenvolvimento de políticas
EAD

públicas de combate à seca e à fome naquela região e do qual Furtado se torna superin-
tendente. Em 1961, viaja para os Estados Unidos, a fim de se reunir com o Presidente
John Kennedy; depois, encontra-se com Ernesto Che Guevara em evento da Aliança
para o Progresso, em Punta del Este, no Uruguai. No mesmo ano, publica Desenvol-
vimento e subdesenvolvimento. Em 1962, durante o governo de João Goulart, torna-se o
primeiro titular do Ministério do Planejamento, sendo o responsável pela elaboração do
Plano Trienal.
Em 1963, deixa o Ministério e retorna à SUDENE, da qual é forçado a sair por
ocasião do Golpe Militar de 1964, que cassa seus direitos políticos por dez anos. Trans-
fere-se então para os Estados Unidos e ingressa como pesquisador no Centro de Estudos
do Desenvolvimento da Universidade de Yale, onde redige Dialética do desenvolvimento.
Em 1965, assume a cátedra de Professor de Desenvolvimento Econômico na Fa-
culdade de Direito e Economia da Sorbonne, sendo o primeiro estrangeiro nomeado
para uma universidade francesa. Furtado manterá sua atividade de professor por vinte
anos, concentrando, nesse período, suas pesquisas em três temas: o fenômeno da ex-
pansão da economia capitalista, o estudo teórico das estruturas subdesenvolvidas e as
análises da economia latino-americana. O que frutificou duas obras: Subdesenvolvimento e
estagnação na América Latina e Teoria e política do desenvolvimento econômico.
Entre os anos de 1968 e de 1978, Celso Furtado concilia suas atividades docentes
com missões das Nações Unidas em inúmeros países. No mesmo período, atua como
Professor visitante em diversas universidades dos Estados Unidos e da Inglaterra. Em
1974, publica O mito do desenvolvimento econômico e, em 1976, lança seu livro mais difun-
dido no exterior, A economia latino-americana.
Em 1979, após o processo de anistia, retorna ao Brasil e reinsere-se na vida po-
lítica. Em 1984, integra a Comissão de Notáveis que elabora um Plano de Ação para o
futuro governo de Tancredo Neves, que veio a falecer na véspera de sua posse. É nomea-
do Embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Europeia. Em 1986, torna-se
Ministro da Cultura do governo José Sarney e passa a ser o responsável pela elaboração
da primeira legislação brasileira de incentivo à cultura.
Em 1993, é nomeado membro da Comissão Mundial para a Cultura e o Desen-
volvimento da ONU/UNESCO. Em 1997, é eleito para a Academia Brasileira de Letras;
e, dois anos depois, publica aquela que é considerada sua última grande obra, O longo
amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil. Faleceu em sua residência no Rio de
Janeiro, em 2004, aos 84 anos de idade.
O PAPEL DO ESTADO E A INDUSTRIALIZAÇÃO COMO 31
......
DESENVOLVIMENTO

EAD
Assim como para os demais intelectuais ligados à CEPAL, também para Celso Fur-
tado as formulações teóricas acerca do subdesenvolvimento são indissociáveis de uma
preocupação com a própria superação do fenômeno, de onde emerge simultaneamente
a industrialização como paradigma de desenvolvimento e a ação estatal como o modo
mais efetivo para se levar adiante esse processo, segundo uma perspectiva ainda próxima
à dos teóricos da modernização. Como alude Bielschowsky (2000, p. 35), “a ação estatal
em apoio ao processo de desenvolvimento aparece no pensamento cepalino como coro-
lário natural do diagnóstico de problemas estruturais de produção, emprego e distribui-
ção de renda nas condições específicas da periferia subdesenvolvida”. Esta centralidade
do Estado funda-se em razões sociais e históricas estreitamente vinculadas à própria
ascensão da teoria do desenvolvimento.
A crise de 1929 e o estrangulamento externo, responsáveis por reduzir drastica-
mente as possibilidades de importação, serviram como propulsores do desenvolvimento
da indústria interna1. Por outro lado, tanto a intervenção desenvolvimentista para a
reconstrução europeia no pós-guerra através do Plano Marshall quanto a proeminência
do regime planificado soviético constituíram um terreno ideológico que legitimava a
intervenção estatal, ainda que com diferenças essenciais quanto ao seu formato.
No caso das proposições cepalinas, a influência decisiva proveio das ideias keyne-
sianas em ascensão no mundo anglo-saxão, as quais não presumiam estatização tal qual
a matriz soviética, mas uma participação ativa do Estado não somente no aumento da
demanda, como também no investimento direto naqueles segmentos indispensáveis ao
desenvolvimento – bens intermediários – que não interessavam a iniciativa privada ou
não poderiam ser atendidos por ela. O capital privado, por sua vez, se concentraria em
atividades mais eficientes em termos de progresso técnico, sobretudo na produção de
bens de consumo duráveis, controlando assim o setor mais dinâmico da economia e
concentrando a riqueza, que, com frequência, era enviada para fora do país (FURTADO,
1981).
No caso do Brasil, essa modalidade de intervenção em favor da industrialização
deu-se, majoritariamente, via “substituição de importações” e do apoio à produção
nacional. Esse processo iniciou-se pelas indústrias mais simples, pouco exigentes em
tecnologia e capital, para, em seguida, alcançar as indústrias de bens de capital e de
matérias-primas intermediárias. Na formulação cepalina, todavia, esse processo tende-

1
Contudo, o desenvolvimento posterior dessa indústria ficou basicamente condicionado ao tamanho do mercado interno, no que
sobressaíram países como o Brasil, a Argentina e o Chile.
32
...... ria à estagnação, uma vez que, quanto mais ele evoluía para bens exigentes em tecnologia
e capital, mais difícil se tornava sustentá-lo. Obter os recursos necessários para manter
EAD

o ritmo de industrialização foi possível mediante o endividamento externo e o aumento


da pressão inflacionária, problemas que explodiram na recessão econômica dos anos 80.
Ademais, a industrialização recriou uma estrutura produtiva pouco diversificada
e pouco heterogênea, que acentuava o subdesenvolvimento e a dependência. Ao con-
firmar a tendência à concentração de renda e ao subemprego, o efeito indisfarçável da
industrialização foi aumentar o dualismo social, conforme constata Furtado (1992, p.
10): “Daí que a industrialização nas condições de subdesenvolvimento, mesmo ali onde
ela permitiu um forte e prolongado aumento de produtividade, nada ou quase nada
haja contribuído para reduzir a heterogeneidade social”. A “heterogeneidade estrutural”
demonstrou-se ainda mais evidente, revelando que o sistema produtivo das economias
subdesenvolvidas apresentava “segmentos que operavam com níveis tecnológicos dife-
rentes, como se nela coexistissem épocas distintas” (p. 19)2.
Com base nestas constatações acerca da ineficiência do processo de industrializa-
ção via substituição de importações – levado a cabo pelo Estado para promover as mu-
danças sociais esperadas –, Furtado propõe o aprimoramento das análises cepalinas por
meio da construção de uma “teoria do subdesenvolvimento”. Ao se dar conta de que
o subdesenvolvimento era parte indissociável do processo de desenvolvimento, o autor
passou a problematizar a questão a fim de entender por que os países latino-americanos,
e especialmente o Brasil, eram subdesenvolvidos e qual era a dinâmica desse processo.
Para tanto, porém, era necessário engendrar uma nova abordagem, que interpretasse o
(não) desenvolvimento de forma distinta daquela que propunham as teorias da moder-
nização, em especial a ideia de “etapas” concebida por Rostow (vide supra, cap. 1).

UMA TEORIA DO SUBDESENVOLVIMENTO

Contrariando a teoria-padrão que embasou a economia do desenvolvimento – a


qual advogava a existência de benefícios mútuos para países envolvidos em relações co-
merciais conjuntas –, o constructo econômico-político formulado na década de 1940
pelo então diretor da CEPAL, Raúl Prebisch, acerca das relações centro-periferia marca
o princípio de uma teoria original para explicar o subdesenvolvimento latino-americano.
Prebisch (1982) demonstra a inconsistência da formulação ortodoxa, atacando um
dos preceitos fundamentais da economia clássica, a “lei das vantagens comparativas”,
de David Ricardo, a qual buscava dar sustentação teórica à argumentação em favor da
2
Associada a esta, emergiu nas décadas de 1960 e 1970 outra discussão que marcou a economia política do desenvolvimento
latino-americano no tocante aos diferentes “estilos” ou padrões de desenvolvimento, resultando no reconhecimento das diferentes
modalidades de crescimento possíveis, embora nem sempre desejáveis.
liberalização comercial. Essa formulação, segundo Prebisch, desconsiderava o fenômeno 33
......
da “deterioração dos termos de intercâmbio” que alicerçava as relações desiguais entre

EAD
países centrais e periféricos, desigualdade essa proveniente da natureza dos bens que
compunham a pauta de importações e exportações. Os países periféricos haviam-se
tornado produtores de bens primários – produtos agrícolas e minerais –, que detinham
demanda internacional pouco dinâmica, e importadores de bens manufaturados, com
demanda doméstica em rápida expansão. A consequência disso era um desequilíbrio
estrutural na balança de pagamentos (“a diferença entre o total de dinheiro que entra e
que sai de um país”). A saída dessa condição passava necessariamente pela capacidade de
industrialização dos países periféricos, invertendo a pauta de importações e exportações
(BIELSCHOWSKY, 2000; 2008). Assim, na formulação cepalina original, a industriali-
zação nasce como sinônimo de desenvolvimento.
Com essa formulação, Prebisch deu o primeiro passo na proposta de uma reflexão
acerca da experiência latino-americana, a qual, como ele defenderá, exigia uma teori-
zação própria. Não obstante, o avanço mais significativo nesse sentido irá acontecer a
partir da formulação da “teoria do subdesenvolvimento”, notadamente com a contribui-
ção de Celso Furtado. Além de apontar elementos que complicam a análise da condição
periférica, destacando fatores socioculturais internos que sustentam o modo de inser-
ção dependente no comércio internacional, Furtado acrescenta ao estruturalismo uma
perspectiva histórica de longo prazo e um viés metodológico mais indutivo. Além disso,
Furtado adiciona em suas análises a dimensão do “poder” enquanto elemento central
para explicar a reprodução estrutural do subdesenvolvimento.
Diferentemente de Rostow (1961), que aponta a existência de diferentes “etapas
de desenvolvimento”, Furtado caracteriza o subdesenvolvimento como uma variante do
processo de desenvolvimento decorrente da trajetória desigual entre os países. Trata-se,
portanto, de “um processo autônomo, e não [de] uma etapa pela qual tenham, necessa-
riamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento”
(FURTADO, 1961, p. 180). É um processo histórico peculiar em que a difusão do pro-
gresso técnico – a inovação – não conduz à homogeneização social, mas à concentração
de renda e ao aumento da desigualdade social.
Ou seja, de acordo com Furtado, o subdesenvolvimento é uma condição estrutural
dos países pouco industrializados (os latino-americanos), pelo fato de que, nesses países,
as inovações nos padrões de consumo – e a adoção de um estilo de vida nos moldes dos
países centrais – não suscitaram, como contrapartida, a adoção de métodos produtivos
eficazes. Em suma, o processo de modernização não pode ser completado nos países
periféricos, na medida em que há um descompasso entre os padrões de consumo e os
métodos produtivos. É esse descompasso o responsável pela manutenção da heteroge-
neidade social, já que a dinamização da demanda – o consumo – esteve em contradição
34
...... com o relativo imobilismo social gerado pelo lento desenvolvimento das forças produti-
vas, processo que resultou no subdesenvolvimento.
EAD

Assim, “como fenômeno específico que é, o subdesenvolvimento requer um esfor-


ço de teorização autônomo”, pondera Furtado (1961, p. 193). O autor sustenta, porém,
que é o próprio processo capitalista que cria o subdesenvolvimento, na medida em que
ele – o capitalismo – não necessita integrar todos os indivíduos na divisão social do tra-
balho. E conclui que o fenômeno do subdesenvolvimento é estruturalmente funcional
para o próprio desenvolvimento.
Parte da explicação para a reprodução do subdesenvolvimento pode ser encon-
trada nas relações desiguais entre o centro e a periferia. Cabe notar, todavia, que as
estruturas sociais híbridas que se reproduziram internamente também desemprenham
papel determinante nessas relações. A noção de “dualismo estrutural” (ou “economia
dual”) ajuda a compreender essa associação. Foi baseado nela que Furtado resumiu uma
contradição marcada pela coexistência entre setores modernos e atrasados. Em Formação
econômica do Brasil (1991 [1959]), o autor demonstra que, ao longo da história de diver-
sos ciclos econômicos, o Brasil se caracterizou pela formação de um modo de produção
capaz de ser competitivo nos mercados internacionais – agricultura comercial –, anco-
rado em uma estrutura social interna “arcaica” (modelo de economia de subsistência),
cujas principais características eram a precariedade das relações de trabalho, a excessiva
concentração da propriedade da terra e da riqueza e o atraso das condições tecnológicas.
Em outras palavras, constituiu-se no País um tipo de capitalismo que se reproduzia asso-
ciado a relações sociais que não poderiam ser qualificadas como tipicamente capitalistas.
Em O mito do desenvolvimento econômico (1981 [1974]), Furtado demonstra que,
se, por um lado, a apropriação desigual da riqueza que estava na base do subdesenvol-
vimento era diretamente associada ao modo de produção estabelecido, por outro, a
natureza dessa condição era igualmente resultante do destino conferido ao excedente
produzido (modo de circulação). Enquanto nos países desenvolvidos o excedente era,
em sua maior parte, utilizado para financiar o investimento produtivo, nos países subde-
senvolvidos ele serviu para manter um nível de consumo supérfluo e um estilo de vida de
uma pequena elite econômica similares aos encontrados nos países desenvolvidos. Dessa
forma, o autor demonstra que, na base das estruturas sociais que mantinham o subde-
senvolvimento, se encontrava uma “dependência cultural” que condicionava a utilização
do excedente para consumo improdutivo.
Assim sendo, percebe-se em Furtado mais um componente diferencial na inter-
pretação do (sub)desenvolvimento: a dimensão cultural. Embora reconheça a necessida-
de de crescimento econômico para gerar desenvolvimento, o autor atribui importância
central à dimensão cultural como fator decisivo na mudança social, ou seja, no processo
de desenvolvimento. Dessa forma, crescimento econômico, por si só, não é capaz de
gerar desenvolvimento, se este não vier acompanhado de uma mudança no âmbito dos 35
......
valores e da cultura.

EAD
Outra mudança de monta deve-se ao fato de que, com a industrialização, a depen-
dência assumiu uma conotação diferente – notadamente tecnológica e financeira – e
maior complexidade, o que tornou remota a possibilidade de explicá-la exclusivamente
com base na deterioração dos termos de troca. A busca por explicações mais abrangentes
para o novo momento histórico trouxe como consequência a proliferação de distintas
vertentes da chamada “teoria da dependência”. De modo geral, as formulações daí oriun-
das caminharam para um entendimento sobre a necessidade de se integrarem os fatores
econômicos, sociais e políticos, reconhecendo a debilidade das formulações excessiva-
mente centradas nas estruturas produtivas, na dimensão econômica e nos processos tec-
nológicos (a inovação). Este é o caso da teorização proposta por Fernando Henrique
Cardoso e Enzo Faletto (1981), que discutem como a disputa entre diferentes grupos
sociais, envolvendo interesses e poderes heterogêneos, foi um dos condicionantes básicos
da situação de subdesenvolvimento, especialmente ao focarem as alianças políticas e o
modo como as elites dos países subdesenvolvidos voltam seus interesses para o exterior.
Ao mesmo tempo, reconheceu-se que não apenas o padrão de desenvolvimento
periférico reproduzia a desigualdade, como a própria ação do Estado atuava nesse sen-
tido. O fato de o Estado se apropriar de interesses privados evidenciava que a saída da
dependência implicaria uma contenda política acerca das prioridades de investimento
estatal. O essencial aqui foi a proposta de uma teorização sobre o Estado, algo remoto
nas teses cepalinas, onde este era visto por um viés quase instrumental, como regente
das mudanças, externo e sobranceiro à sociedade.
Segundo Bielschowsky (2008), a teorização dependentista demonstrou que “a in-
dustrialização não eliminava a heterogeneidade tecnológica e a dependência, apenas alte-
rava a forma como essas características passam a se expressar”. Na perspectiva do autor, o
subdesenvolvimento revela-se um processo de crescimento com estruturas heterogêneas,
onde os segmentos modernos são comandados por capitais externos e por seus associa-
dos internos. Formam-se, então, conglomerados multinacionais que passam a ser atores-
-líderes de uma nova modalidade de dependência, a qual questiona as fronteiras dos
Estados Nacionais e, gradativamente, se torna muito mais financeira do que industrial.
Cabe lembrar também que foi neste contexto – nos anos 60 e 70 – que emergiu
uma agenda de reformas sociais cuja execução era considerada imprescindível para se
enfrentarem os obstáculos estruturais do desenvolvimento (BIELSCHOWSKY, 2000).
Temas como desigualdade, distribuição de renda e reforma agrária vieram à tona com
relativa força e passaram a demandar um novo padrão de desenvolvimento, uma vez que
aquele até então perseguido apenas tornava mais crítica a já assombrosa heterogeneida-
de social.
36
...... CONSIDERAÇÕES FINAIS
EAD

A década de 1980 marca o declínio da economia política do desenvolvimento


latino-americano, acompanhando o próprio arrefecimento da discussão sobre desen-
volvimento. Um período de instabilidade mundial e de perda de força do Estado desen-
volvimentista pôs em xeque o paradigma keynesiano e abriu caminho para a expansão
da ortodoxia neoliberal. A palavra de ordem passou a ser desenvolvimento via “ajuste
com crescimento”, mediante o qual se visava a enfrentar basicamente os problemas do
endividamento externo e da crise inflacionária, heranças do modelo de substituição de
importações.
Pelo mesmo caminho vão os anos 90, quando cabe ao “neoestruturalismo cepa-
lino” a defesa de temas como equidade social e democracia pluralista como condições
básicas e necessárias do desenvolvimento (BIELSCHOWSKY, 2006), demonstrando a
importância do pensamento de Celso Furtado e de seu legado para interpretações con-
temporâneas acerca dos processos de desenvolvimento (vide infra, cap. 8).
Na era atual, a crescente preocupação com a desregulamentação dos mercados – e
todas as consequências nefastas que semelhante opção engendra – submetem à prova a
vitalidade do paradigma neoliberal. Tem-se aberto, assim, a possibilidade de retorno e
atualização de muitos dos elementos que foram rápida e parcialmente analisados neste
capítulo e que estiveram na base da formulação da economia política do desenvolvimen-
to latino-americano.

REFERÊNCIAS
BIELSCHOWSKY, Ricardo. Cinquenta anos de pensamento na CEPAL: uma resenha. In: ______ (Org.).
Cinquenta anos de pensamento na CEPAL. Rio de Janeiro: Record, 2000. p. 13-68.

______. Vigencia de los aportes de Celso Furtado al estructuralismo. Revista de la CEPAL, Santiago de
Chile, n. 88, p. 7-15, abr. 2006.

______. Celso Furtado, o estruturalismo latino-americano e o desenvolvimento brasileiro. Texto apre-


sentado na Apresentação no Ciclo de Conferências “O pensamento de Celso Furtado”. Rio de Janeiro,
abr. 2008.

CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio
de interpretação sociológica. 6. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

FURTADO, Celso. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.

______. O mito do desenvolvimento econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

______. Formação econômica do Brasil. 24. ed. São Paulo: Nacional, 1991.

______. O subdesenvolvimento revisitado. Economia e Sociedade, UNICAMP, v. 1, n. 1, p. 5-19, ago. 1992.


HIRSCHMAN, Albert Otto. Grandeza e decadência da economia do desenvolvimento. In: ______. A 37
......
economia como ciência moral e política. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 49-80.

EAD
PREBISCH, Raúl. El desarrollo económico de la América Latina y algunos de sus principales problemas
[1949]. In: GURRIERI, Adolfo (Org.). La obra de Prebisch en la CEPAL. México: Fondo de Cultura Econó-
mica, 1982. v. 1.

ROSTOW, Walt Whitman. Etapas do desenvolvimento econômico: um manifesto não comunista. Rio de Janei-
ro: Zahar, 1961.

Você também pode gostar