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Vinculo Sombrio - Kim Richardson

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Este livro é uma obra de ficção.

Quaisquer referências a eventos históricos, pessoas reais ou locais


reais são usadas de forma fictícia. Os demais nomes, personagens, lugares e incidentes são produtos
da imaginação da autora. Qualquer semelhança com eventos reais, locais ou pessoas, vivas ou
mortas, é mera coincidência.

Vínculo Sombrio, Sombra e Luz, Livro Dois


Copyright © 2022 por Kim Richardson
Traduzido por Luciana Aflitos

Todos os direitos reservados, incluindo o direito de reprodução, seja em


todo ou em qualquer forma.
Contents

Title page

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30

Mais Livros De Kim Richardson


Sobre A Autora
Capítulo 1

AVISO DE PENHORA DE BENS

D roga. Segurei a carta com dedos trêmulos. Não importava quantas vezes
eu lesse aquele aviso, ele sempre dizia a mesma coisa: o banco estava
ameaçando tomar a casa da minha avó.
Meu estômago revirou e uma sensação de mal-estar tomou conta de
mim. Sentei-me no meu lugar habitual da mesa de madeira antiga da minha
avó. Senti um frio repentino e olhei pela janela da cozinha para a chuva que
caía, forçando-me a respirar. O vento frio do outono entrava pela janela
aberta. Apertei o papel para não hiperventilar.
Isso não pode estar acontecendo.
– Rowyn, deixe a carta de lado antes que você tenha um ataque cardíaco
– comentou o Padre Thomas, sentado à minha frente, com sua bela voz
ressonante e rica em tons. – As palavras não vão mudar, não importa
quantas vezes você as leia.
Deixei a carta cair sobre a mesa e olhei para o padre. Ele visitava minha
avó regularmente. Quando apareci esta manhã para ver como ela estava, eu
o encontrei.
O Padre Thomas era um dos padres de Thornville, mas era também um
Cavaleiro Templário moderno. Eles se autodenominavam Cavaleiros
Celestiais, uma equipe especialmente designada pela igreja para investigar
todos os “crimes incomuns” que aconteciam na cidade e seus arredores,
especialmente na cidade de Nova York. Eles travavam uma guerra secreta
contra os inimigos da igreja: os demônios, híbridos, fantasmas e outros
vilões sobrenaturais que representavam uma ameaça para a igreja.
Ele vestia seu costumeiro traje escuro de calças pretas e camisa preta.
Seu colarinho clerical branco contrastava com os tons profundos. Ele tinha
uns trinta e poucos anos e era alguns centímetros mais alto do que eu, com
um físico atlético de tirar o fôlego, adquirido por horas na academia. Suas
feições bonitas e bem definidas complementavam seus olhos escuros e
inteligentes. Os cabelos negros que emolduravam sua pele morena
entregavam sua óbvia descendência espanhola.
Isso mesmo, alto, moreno e bonito. El padre tinha o pacote completo.
Eu não sabia se podia dizer ou mesmo pensar que um padre era gostoso.
Será que Deus acabaria comigo e me mandaria para o Submundo por pensar
que o Padre Thomas era um pouquinho bonito?
O Padre Thomas é gostoso.
O Padre Thomas é gostoso.
O Padre Thomas é gostoso. Tá bom, eu ainda estou aqui. Acho que é
permitido.
– O Padre Thomas está certo – disse Tyrius, sentando-se na mesa.
Desviei os olhos do clérigo. – Nós memorizamos o que está escrito. Agora,
precisamos descobrir o que vamos fazer sobre isso.
O elegante gato siamês parecia fazer parte da realeza com suas feições
cuidadosamente refinadas, sua sofisticada máscara preta e patas com luvas
pretas. A preocupação em sua voz refletia a minha. Tyrius amava
profundamente minha avó e o aviso tinha nos deixado preocupados.
Olhei para minha avó, ela estava de pé de costas para o forno. A placa
acima dos armários da cozinha dizia A VIDA É CURTA DEMAIS.
LAMBE A TIGELA.
Ela usava um vestido de suéter na altura da panturrilha com o cabelo
branco amarrado frouxamente em uma longa trança. Seu rosto estava mais
pálido do que o normal e seus olhos estavam um pouco fundos, sem o
brilho travesso de sempre. As linhas de expressão em seu rosto, que uma
vez achei tão reconfortantes, estavam mais profundas, fazendo-a parecer
cansada e mais velha. A tristeza em seus olhos me deu um nó na garganta.
– O banco pode realmente fazer isso? – perguntou Tyrius, seus
profundos olhos azuis brilhavam. – Eles podem realmente pegar a casa
dela?
– Sim – o Padre Thomas se remexeu na cadeira. – O contrato de
empréstimo foi assinado com o consentimento do cliente. O banco pode
tomar todas as medidas necessárias caso o cliente deixe de pagar. – Percebi
a frustração em sua voz. – E isso significa que eles têm todo o direito de
pegar a casa se os pagamentos não forem feitos.
– Quando o banco vai fazer isso? – perguntou Tyrius, sua voz carregava
uma nova preocupação.
– Se não dermos vinte mil – eu disse, com meus dedos tamborilando na
mesa –, em sete dias a partir de hoje.
Um silêncio sombrio caiu sobre nós. Eu me inclinei com os cotovelos
sobre a mesa, deixando minha cabeça cair sobre minhas mãos. Estava tão
envolvida com meus próprios problemas com a morte do arcanjo, as mortes
dos Não Marcados e com meus sentimentos confusos sobre Jax, que eu não
notei a tensão na casa da minha avó. Fui uma tola. Uma tola egoísta.
Agora, meus pensamentos estavam confusos. O pânico dificultava a
minha respiração. Eu precisava me concentrar. Precisava resolver isso.
Eu precisava de vinte mil dólares.
Como eu não tinha derrotado o demônio Superior Degamon, não tive
direito de receber os dez mil que o conselho havia oferecido no início.
Contudo, como resolvemos os assassinatos, o conselho me permitira ficar
com os cinco mil que eles haviam me dado antecipadamente. Jax explicara
ao conselho o envolvimento de Degamon nas mortes, usando uma mentira
na qual concordamos. Ele dissera a eles que o demônio Superior estava
caçando os Não Marcados porque suas almas eram mais poderosas e
detinham mais força vital do que as dos mortais normais ou as dos
nascidos-anjo.
Não sei se eles tinham acreditado na nossa história, mas os assassinatos
haviam parado, assim como a atenção que o conselho estava me dando.
Muito bem, era isso que eu queria: ser deixada em paz.
A maior parte desses cinco mil tinha sido usada para pagar três meses
de aluguel, contas atrasadas e roupas novas, algo que eu precisava
desesperadamente. Coloquei os quinhentos dólares restantes em uma conta
poupança, na esperança de economizar para comprar um carro. Odiava ter
que pegar ônibus e metrô para me locomover. Eu era uma Caçadora. Andar
de ônibus sujava minha imagem.
Dane-se minha imagem. Eu tinha quinhentos dólares para pagar a dívida
da minha avó. Agora, tinha que descobrir uma maneira de conseguir
dezenove mil e quinhentos em menos de sete dias. Droga. Como diabos eu
iria fazer isso?
– Sugiro roubarmos um banco – disse Tyrius. Para minha surpresa, o
Padre Thomas riu. – O que foi? – perguntou o gato. – Você acha que estou
brincando? Sabe como é fácil para mim invadir um banco e transferir o
dinheiro para a conta de Cecile?
– Ninguém vai roubar um banco – resmunguei, embora tivesse ficado
tentada por meio segundo.
Porém, com a firmeza de caráter da minha avó, eu sabia que ela nunca
concordaria com isso.
Minha cabeça latejava, a dor era gigantesca. Cerrei os dentes e olhei
para a mais velha. Meu coração se partiu com a dor que vi.
– Por que você não me contou?
A dívida de vinte mil indicava que ela não pagava sua hipoteca e os
juros a mais de um ano.
Minha avó enxugou as lágrimas e eu me esforcei para segurar as
minhas.
– Você já tinha tanta coisa para resolver, teve o seu retorno e depois
aquele demônio Superior Degamon fazendo uma matança e aquele conselho
insuportável se intrometendo em nossos assuntos novamente. Eu não queria
que você se preocupasse.
– Tarde demais, estou preocupada agora.
Embora eu tenha sido aberta e honesta sobre o meu confronto com
Degamon e o porquê de ele estar atrás de mim, a lembrança ainda fazia meu
coração bater mais forte.
Deslizei para a beirada da cadeira, perguntando-me como eu poderia ter
deixado isso passar.
– Vovó, eu pensei que você e o vovô tinham dinheiro guardado – eu
disse. – Talvez uma pensão e algumas economias?
– Economias? – A mais velha me deu um sorriso forçado. – Eu
precisava de um telhado novo. Houve um vazamento. A água passava pelas
rachaduras da fundação, então, tive que consertar isso. Não vou nem falar
do encanamento. – Ela suspirou profundamente. – É uma casa velha. Casas
velhas sempre precisam de reparos, assim como este velho corpo. Se não é
uma substituição de quadril, é uma substituição de janela. Segurei a
pequena pensão até onde pude, mas ela simplesmente não foi suficiente.
Senti um aperto no peito de preocupação. Eu não podia deixar minha
avó perder a casa. Eu tinha que fazer alguma coisa.
– Sinto muito, Cecile – disse o Padre Thomas enquanto se recostava na
cadeira. – Vou me informar sobre um possível empréstimo na igreja. Tem
que haver algo que possamos fazer para ajudar.
– Não – disse ela, endireitando as costas. Sua expressão era dura.
Reconheci aquele orgulho teimoso, o mesmo que acho que herdei dela. –
Parem de se preocupar comigo – A mais velha colocou sua xícara de café
no balcão. – É apenas uma casa com teto e paredes, só isso. Se aquele
maldito banco a quer tanto, podem ficar com ela. Eu não me importo mais.
O clérigo ficou assustado com o xingamento vindo de uma senhora que
parecia tão inocente. Sorri, imaginando que ela devia ter sido uma nascida-
anjo muito fodona quando era mais jovem.
Claro que ela se importava. Eu me importava.
– Não é apenas uma casa, vovó. Você derramou seu suor neste lugar. É
a casa que você comprou com o vovô. É a casa onde mamãe cresceu. É o
lugar onde posso me transportar para as lembranças dela, do papai e do
vovô. As lembranças são tudo o que me resta dela… de todos eles. – Cerrei
meus dentes até minha mandíbula doer. – O banco não vai ficar com essas
memórias – acrescentei, piscando para afastar as lágrimas.
– Então, qual é o grande plano? – questionou Tyrius enquanto andava
em cima da mesa.
– Vou arrumar um emprego – anunciei, surpreendendo a mim mesma. –
Um trabalho comum, como os humanos.
Meu Deus, isso soou ridículo em voz alta. A ideia de um trabalho
comum era estranha, perturbadora e até um pouco assustadora. Eu poderia
mesmo conseguir um?
A gargalhada de Tyrius me pegou desprevenida. Fiz uma careta quando
ele pigarreou e disse:
– Você? Em um trabalho comum? Isso é tão hilário quanto um arco-íris
saindo da minha bunda.
Meu corpo enrijeceu na cadeira.
– O quê? Você acha que eu não consigo?
Um calor subiu em meu rosto. Uma parte de mim queria derrubá-lo da
mesa.
– Nunca disse que você não conseguiria – O sorriso do gato foi breve,
mas sincero. – É só que… bem… que habilidades você tem? Além de matar
demônios e aquele arcanjo idiota… o que mais pode fazer?
Meus olhos se voltaram para minha avó enquanto ela olhava para a
mesa sem piscar, sua expressão estava distante. Eu quase perdi o controle.
– Eu posso muito bem conseguir um emprego normal – protestei, quase
gritando. – Minhas habilidades pessoais estão um pouco enferrujadas, mas
o quão difícil pode ser? Eu sou leal, confiável e gentil.
– Isso é ótimo – comentou Tyrius. – Agora, tudo o que você precisa
fazer é aprender a pegar um frisbee com a boca e estará pronta para
trabalhar como um golden retriever.
O Padre Thomas riu e eu fiz uma careta para o gato.
– Você tem uma ideia melhor?
O sorriso de Tyrius me fez querer arrancar seus bigodes.
– Poderíamos pegar dinheiro emprestado do banco. Eles nem
perceberiam. Mole-mole.
– Não.
– Seria tão, tão fácil.
– Tyrius, não vamos roubar um banco – eu disse, vendo o Padre Thomas
sorrir para o gato porque achava que ele estava brincando. Só que ele não
estava. Eu sabia que se dissesse sim, Tyrius provavelmente transferiria
pequenos valores de várias contas diferentes para não chamar a atenção e,
depois, colocaria na conta da minha avó. O problema era que ela não iria
aceitar isso e nem eu.
O gato fez uma careta.
– Tá bom. Faça do seu jeito, então. Porém, para mim, a ideia de ver
você atrás de uma mesa é tão surreal quanto um gato nadando. É errado.
Você não duraria um dia.
Pressionei minhas têmporas.
– Duraria sim. – Eu nem sabia por onde começar. – Vou conseguir um
emprego normal se é isso que preciso fazer para salvar esta casa. Eu vou
conseguir.
– Você tem um currículo? – O Padre Thomas franziu a boca e tocou o
queixo bem barbeado com as costas da mão.
Se ele não fosse tão bonito, eu teria dado um soco nele.
– Não.
Meu rosto corou. Os Caçadores não tinham currículos. Conseguimos
nossos trabalhos pela reputação. Não que isso importasse agora.
– Rowyn, seja sensata – Minha avó inclinou a cabeça e sua feição
exibiu brevemente um olhar de dor. – Tyrius está certo. Você é uma
nascida-anjo, uma Caçadora. Um local de trabalho normal não é lugar para
minha neta. Você não vai se encaixar.
Não me encaixo em lugar nenhum, pensei amargamente. Isso não é
nenhuma surpresa.
Minha avó exalou, exibindo um olhar de preocupação.
– Sinto muito por estarmos prestes a perder este lugar, Rowyn, mas não
há mais nada que possamos fazer.
Agora, eu me sentia culpada.
– Tem sim. – Empurrei minha cadeira para trás e me levantei. – Não vou
desistir, não mesmo. – Olhei para minha avó e jurei ver uma ponta de
esperança em seus olhos. – Eu vou encontrar uma solução – disse com um
nó na garganta. – Só não faça nada precipitado até eu falar com você, tá
bom?
– Aonde você vai? – perguntou a mais velha enquanto eu deixava a
cozinha e corria pelo corredor.
– Arrumar o dinheiro – sussurrei para mim mesma.
Minha cabeça latejava quando abri a porta da frente e saí na chuva da
manhã em direção a Maple Drive. Sim, minha vida era um desastre, mas a
da minha avó não precisava ser. Ela era a única família que eu tinha, sem
contar Tyrius. E eu com certeza não ia ficar sentada sem fazer nada.
Eu arrumaria o dinheiro. Mesmo que tivesse que machucar algumas
pessoas para fazer isso.
Capítulo 2

S egui pela movimentada West 42nd Street em Nova York, xingando as


cotoveladas que os humanos me davam enquanto seguia o demônio
metamorfo. Mesmo sendo uma noite de segunda-feira, a rua estava animada
e barulhenta com turistas posando para fotos e nova-iorquinos correndo de
lá pra cá, indo de seus trabalhos para os restaurantes. As telas gigantes e os
outdoors brilhavam como a luz das estrelas. Carros e táxis buzinavam, a
fumaça de seus escapamentos me deixava tonta, mas meus sentidos
aguçados de anjo podiam sentir o fedor do demônio em qualquer lugar,
mesmo em meio à multidão de humanos.
Sorri, lembrando da minha primeira experiência como Caçadora. Matei
meu primeiro demônio em uma noite fria como essa. Na época, eu tinha
quinze anos e não fazia ideia de que o demônio havia me seguido até em
casa depois de sair do cinema. Nunca esquecerei a surpresa em seu rosto
quando cortei seu pescoço com um golpe da minha lâmina e o matei.
Aquela noite foi a primeira vez que me senti viva, normal, com um senso de
propósito. E eu era boa pra caramba nisso.
Porém, no final das contas, descobri que minha habilidade de caçar e
rastrear demônios tão facilmente vinha da minha herança demoníaca. Meus
sentidos eram turbinados porque eu tinha essência demoníaca fluindo em
minhas veias.
Eu sempre soube que era diferente dos outros nascidos-anjo. Afinal,
destacava-me como uma zebra no meio de cavalos sem o selo dos arcanjos,
com o qual todos os Sensitivos nasciam. Minha raça era diferente.
Tá, então eu tinha essência de anjo e de demônio fluindo em minhas
veias. E daí? Isso não me tornava uma pessoa ruim… ou será que tornava?
Parando para pensar, tudo fazia sentido. Era por isso que eu podia me
curar de uma mordida de vampiro, bem como o motivo pelo qual a lâmina
da morte não fazia nada comigo ao passo que apenas o toque do metal preto
poderia matar um anjo e um nascido-anjo. Tudo se dava porque eu era
metade demônio. Era a escuridão sobre a qual Tyrius estava curioso quando
nos cruzamos pela primeira vez e a razão pela qual ele me seguira até
minha casa quando eu era criança. O gato também a sentira.
Desde que o arcanjo Vedriel contara sobre a minha verdadeira herança,
Tyrius tinha ficado igual um gato sobre efeito de catnip, saltando nas
paredes e rolando sobre os papéis no chão. Parecia uma bola de pelos
vigorosa e frenética. Ele estava em êxtase. Vai entender. Talvez fosse
porque, agora, ele sentia que éramos ainda mais parecidos do que antes.
Embora eu não pudesse me transformar em uma pantera negra gigante
quando o perigo surgia, ainda tinha habilidades demoníacas.
Não conseguia deixar de pensar se meus pais haviam descoberto.
Vedriel os matara porque eles estavam chegando muito perto de descobrir a
verdade. Contudo, e se eles já tivessem descoberto? E se eles soubessem
que sua única filha era uma aberração?
Eu era um anjo e um demônio, um presente ou uma maldição da Legião
dos Anjos. De acordo com o arcanjo Vedriel e seus aliados, eu e os outros
Não Marcados éramos um experimento, uma nova raça de soldados da
Horizon. E, por algum motivo, eles queriam nos exterminar.
Eles quase tinham conseguido, mas eu ainda estava viva.
Ainda assim, minha sobrevivência teve um preço alto – a morte do
arcanjo Vedriel.
Sim, nós matamos um arcanjo. Eu estremecia sempre que pensava
nisso. A sensação de desamparo, de estar encurralada e ser forçada a matar
ou morrer, tomara conta de mim. Eu odiava o fato dele ter me transformado
em uma assassina de anjos.
Os arcanjos abençoados, sagrados e perfeitos deveriam ser justos e
proteger a nós, meros mortais, do mal. Porém, era como Tyrius havia dito:
nem todos os arcanjos e anjos eram bons. E Vedriel era muito, muito ruim.
Ele acabou morrendo por sua maldade.
Ninguém mais sabia que tínhamos matado o arcanjo. Apenas eu, Tyrius,
Jax, Danto e o demônio Superior Degamon. Naquela manhã, fizemos um
pacto e concordamos em não contar a ninguém sobre o que tínhamos feito.
Precisávamos manter isso em sigilo. O conselho dos nascidos-anjo nunca
entenderia e só complicaria as coisas.
Eu duvidava que Degamon contasse ao conselho, mas ainda não
sabíamos todos os detalhes dos planos de Vedriel para eliminar os Não
Marcados. Quem mais estava envolvido? Ele havia dito que outros arcanjos
faziam parte do arranjo. Talvez Vedriel fosse apenas o mensageiro e o
verdadeiro mandante ainda estivesse por aí.
Mais cedo ou mais tarde, a Legião descobriria o que acontecera com o
arcanjo e, então, viriam atrás de nós… atrás de mim.
Nos meses que se seguiram após o ocorrido, dormi muito mal. Estava
no limite, pensando que uma legião de anjos estava prestes a acabar
comigo. E, ainda assim eu estava aqui, de volta ao meu antigo trabalho,
caçando a escória demoníaca.
O Padre Thomas me dera o novo alvo após uma série de mortes
inexplicáveis acontecerem em um escritório de advocacia de Nova York. Os
relatos de testemunhas oculares sobre estranhas partículas de substâncias
parecidas com restos de pele nas cenas do crime chamaram a atenção do
clérigo. Elas eram gosma de demônio. Um metamorfo sempre troca sua
pele depois de matar sua vítima e tomar sua forma.
Para um Caçador, esse era um sinal de alerta e uma idiotice, mas a
maioria dos demônios era idiota, né?
Suspirei e desviei de um casal asiático sorridente. Não podia recusar
nenhum trabalho. Eu tinha mais cinco dias para pagar a dívida da minha
avó ou o banco ficaria com a casa dela. Estava trabalhando sem parar, dia e
noite, por dois dias desde que eu descobrira sobre a ameaça do banco.
Desde então, tinha pegado todos os trabalhos que o padre arrumara para
mim e alguns do meu site pessoal – dois casos de monstros do armário (sim,
os monstros do armário eram reais) e um gremlin que estava aterrorizando
um casal de idosos esmagando os encanamentos e fazendo seu porão
inundar.
Eu até havia elaborado um currículo com a ajuda de Tyrius e me
candidatara a cinquenta empregos de humanos diferentes online, desde
vagas como recepcionista a faxineira. Contudo, não tinha recebido nenhum
retorno ainda. Os humanos não estavam interessados, sem falar que eu não
tinha experiência nem formação para me ajudar. Droga, eu não os culpava.
Nem eu me contrataria.
A caça era minha única opção. Eu aceitaria todos os malditos trabalhos
que surgissem no meu caminho e mais alguns. Faria o que fosse preciso.
Infelizmente, ainda assim, não era o suficiente.
Eu mal tinha ganhado setecentos dólares. Juntando-os com meus
quinhentos no banco, eu ainda precisava de mais de dezoito mil dólares.
Droga. No ritmo que o padre estava me pagando, eu precisaria caçar
mais cinquenta demônios metamorfos. Maldição.
O demônio metamorfo virou à esquerda na 8th Avenue. Depois de
deslizar minha mão sobre o cabo da minha lâmina da alma, atravessei a rua
atrás dele. Hora do show.
A entidade assumiu a forma de uma bela jovem negra, de Claire
Beaumont para ser mais exata. O corpo da advogada havia sido encontrado
na manhã de ontem em seu apartamento, próximo aos pedaços de pele. O
demônio metamorfo manteria a forma da jovem advogada até que se
cansasse e precisasse reabastecer sua energia demoníaca com sua próxima
vítima.
O demônio-Claire seguiu em direção a uma pizzaria. Os homens se
viraram ao vê-la passar, seus olhos estavam vidrados na bela mulher. Minha
pele se arrepiou quando a entidade passou seus olhos negros pela multidão
que a encarava. Droga.
O demônio sorriu sedutoramente enquanto se aproximava de um
homem moreno alto e bonito, vestindo um terno que exibia seus músculos.
Ele sorriu de volta e se levantou, distanciando-se dos outros e ficando muito
perto do beco escuro atrás do restaurante.
Meu coração batia forte. Andei mais rápido.
O demônio acariciou o braço do homem moreno e se inclinou para
sussurrar algo em seu ouvido. Eu não precisava ouvir o que ele dizia. Vi o
desejo brilhar no rosto do homem e soube exatamente o que a entidade
havia dito. O metamorfo sorriu enquanto empurrava o homem mortal cada
vez mais para o beco, para a escuridão.
– Claire! Aí está você! – Agarrei seu braço esquerdo enquanto
pressionava minha lâmina da alma contra seu quadril. – Estive procurando
você por toda parte – eu disse, empurrando minha lâmina um pouco mais
forte. Vendo a ira no rosto do homem, acrescentei – Desculpe, minha amiga
bebeu um pouco mais do que devia. Tchau.
Arrastei o demônio para o beco. Eu mal tinha dado cinco passos antes
dele fingir um tropeço, pegando-me de surpresa.
– Anjo cadela! – O demônio me deu uma cotovelada nas costelas e
saltou para longe, correndo como um atleta olímpico.
– Ah, não – Minhas botas batiam no asfalto enquanto eu corria atrás
dele no beco escuro. – Volte aqui! – gritei, surpresa que o metamorfo
pudesse correr tão rápido com um salto alto de dez centímetros. Isso exigia
uma habilidade impressionante.
Ele virou à direita e desapareceu atrás de uma lata de lixo de metal. A
adrenalina tomou conta de mim enquanto eu corria mais rápido. De jeito
nenhum eu ia deixar meu alvo escapar, especialmente agora que ele tinha
visto meu rosto. A entidade poderia assumir minha forma só para me irritar.
Eu não arriscaria.
O fedor de carne estragada e frutas podres me acertou como um tapa na
cara enquanto eu passava correndo pela lixeira.
Uma perna surgiu debaixo do contêiner. Ele me acertou na canela e eu
caí para frente no pavimento duro, raspando meus joelhos e a lateral do meu
rosto. Ai.
O demônio-Claire veio para cima de mim antes que eu caísse no chão.
Senti um golpe repentino em minhas costas assim que dentes humanos
afundaram em meu pescoço. Antes que eu pudesse recuperar o fôlego, o
maldito agarrou um punhado do meu cabelo e bateu minha cabeça contra o
chão. Pontos pretos apareceram em minha visão enquanto eu gritava de dor.
Isso não estava indo nada bem.
Com um movimento fluido e poderoso, eu o driblei rapidamente e senti
ele soltar meu cabelo. Sem parar, rolei e o chutei com força. Minha bota
acertou o peito do demônio e ele cambaleou para trás.
Levantei-me, colocando a mão na testa.
– Ótimo. Agora vai ficar um hematoma. Você sabe como é difícil
esconder um hematoma com maquiagem sem fazer ela craquelar? MUITO
DIFÍCIL.
O demônio metamorfo cuspiu, seus olhos negros selvagens estavam
consumidos pelo ódio.
– Eu não vou voltar. Prefiro morrer a voltar para o Submundo.
– Essa é a questão – Empurrei minha jaqueta para trás, exibindo minhas
lâminas adicionais. –Sabe a parte de você morrer? Então, é por isso que
estou aqui, demônio. – Sorri quando vi os olhos do metamorfo vidrados na
lâmina da morte no meu cinto de espadas.
O que posso dizer? Eu me empolgava sempre que um demônio via a
lâmina no meu quadril. Ver a confusão estampada em suas feições
monstruosas fazia meu corpo ferver e vibrar. Era quase tão emocionante
quanto a sensação de uma caça. Quase.
Dei meu melhor sorriso ao demônio.
– Sim. Isso é uma lâmina da morte. E antes que você pergunte, não, eu
não sou um demônio, sou outra coisa. Como estou me sentindo
supergenerosa esta noite, vou lhe dar uma escolha. – Inclinei meu quadril. –
Lâmina da alma ou lâmina da morte? Qual delas você quer que eu use?
Hummm? O que vai ser, demônio?
O metamorfo rosnou e temporariamente mudou seu disfarce, parecendo
mais animal do que humano. Ele estava parado com os punhos nos quadris,
olhando para mim.
– Eu não vou voltar. Nunca mais!
– Então, deveria ter pensado nisso antes de começar a matar inocentes.
Você fez isso consigo mesmo, metamorfo. Eu vou mandá-lo de volta.
A entidade rosnou e, com seus olhos negros selvagens, avançou.
O demônio veio em minha direção como um rodamoinho de pernas,
braços, cabelos e saliva, mas eu estava pronta, com meu corpo a postos.
O ar da noite soprou quando dei um poderoso golpe com minha lâmina.
Sem parar, o metamorfo girou, evitando o golpe mortal da minha lâmina.
Porém, quando ele deu a volta, aproximando-se para desferir seu próprio
ataque, puxei minha lâmina para trás, cortando seu pescoço.
Com um uivo, o demônio cambaleou para trás. Sangue preto escorreu
do seu pescoço e do seu peito.
Eu sorri ao ver o medo estampado em seus olhos.
– Viu? Eu disse que ia matá-lo. Agora, pare de reclamar e deixe-me
terminar isso. Vai ser rápido, prometo.
– Socorro! – gritou o demônio, imitando perfeitamente a voz de uma
mulher assustada. Ele olhou para mim e sorriu antes de gritar novamente. –
Ajude-me! Por favor! Alguém me ajude!
– Cala a boca. – Olhei para a rua por cima do meu ombro e meu
estômago se revirou.
A silhueta de um homem parou ao som dos gritos do metamorfo e ele
voltou sua atenção para nós. Merda. Era o mesmo cara com quem a
entidade estava conversando antes? Ele o estava procurando? Não havia
como eu matar o demônio agora, não com o humano olhando. Havia regras
para esse tipo de coisa. Não que eu me importasse com elas, é claro. Ainda
assim, eu sabia que não poderia matar o metamorfo com um humano
assistindo. Se ele chamasse a polícia, eu seria pega. Teria que ir embora,
sem meu alvo ou meu dinheiro.
– Socorro! Ela está tentando me matar! – choramingou o demônio. As
lágrimas agora escorriam em seu rosto, aumentando o efeito dramático.
– Maldito demônio. – Olhei para trás por cima do ombro e uma mistura
de surpresa e de alívio tomou conta de mim quando percebi que o homem
tinha ido embora. – A-há! Não funcionou. Fica pra próxima.
O sorriso do metamorfo desapareceu. Ele avançou em minha direção em
um rompante de raiva. A entidade se movia mais rápido do que eu pensava
ser possível e, antes que eu pudesse levantar minha lâmina, chocou-se
contra mim. Nós dois caímos no chão. Eu ainda segurava a arma enquanto
rolávamos pelo chão, cada um tentando ganhar vantagem.
– Eu não vou voltar! Nunca mais!
O metamorfo começou a me morder com seus dentes humanos. Senti
minha bile no fundo da garganta e fiquei surpresa com a onda de dor que
me atingiu. Com sua força sobre-humana, ele tentou pressionar meu
estômago. Eu estremeci com o hálito fétido no meu rosto. Lutei para
conseguir levantar minha lâmina, mas o demônio acabou arranhando meu
rosto e meus olhos. Era como lutar com um gato enlouquecido, o
metamorfo rosnava e cuspia enquanto me mordia e me arranhava em um
ataque desvairado.
A entidade demoníaca estava realmente começando a me irritar. A fúria
me invadiu e, com uma onda de adrenalina, eu empurrei o demônio para
trás e cambaleei para ficar de pé.
– Isso acaba agora. – Erguendo a lâmina da alma na altura do peito da
criatura, eu avancei, inclinando-a para dar o golpe mortal…
De repente, uma flecha atravessou o peito do demônio, seus ossos
estalaram e seus músculos se romperam. Um olhar de surpresa distorceu
suas feições. Eu parei, encarando o estrago que não tinha feito.
– Não vou voltar – disse o demônio enquanto segurava a ponta da flecha
com as mãos. – Não vou…
O resto de suas palavras morreu com o impacto de outra flechada
atravessando sua boca até a parte de trás do seu crânio. O metamorfo
cambaleou. Com seus olhos negros fixos em mim, ele explodiu.
Aquelas cinzas não eram fáceis de limpar com uma simples escova,
assim como os outros demônios. Era uma chuva de pedaços úmidos e
pútridos de pele e de líquido amarelo.
Engasguei quando a gosma atingiu meu rosto, meu pescoço e meu peito.
Estremeci ao sentir o gosto de carniça em minha boca. Estava coberta com
a chuva de gosma demoníaca. Cuspi e continuei cuspindo até achar que
tinha tirado tudo – eu realmente esperava ter me livrado de tudo. Isso foi
muito nojento. Quase vomitei quando vi a meleca na minha jaqueta
fumegando com o ar frio.
Assim que ouvi um barulho de passos, alguém saiu das sombras, com
um arco na mão. Não, não era alguém. Era uma fada.
Capítulo 3

S ibilei baixinho. Droga, não senti ele se aproximando. Eu estava


perdendo o jeito ou as entranhas do metamorfo estavam afetando meus
sentidos demoníacos. Quem sabe, eu estivesse apenas tendo uma noite
muito ruim.
Toda vez que eu via uma fada, imagens de Tyrius em um espeto,
assando na churrasqueira, surgiam em minha mente, e eu os odiava ainda
mais. Não podia evitar. Qualquer criatura que comesse um gato ou um
cachorro era meu inimigo. Ponto final.
Sentia sempre algo mais perverso e sinistro – uma maldade que não
conseguia explicar – quando estava na presença de uma fada. Elas tinham
uma energia selvagem e demoníaca, diferente de qualquer outro híbrido, e
sempre faziam meu pulso acelerar e meu medidor de esquisitice subir nas
alturas.
Este homem-fada era alto, muito alto. Minha estatura de um metro e
setenta parecia baixa ao lado daquele bastardo desengonçado. As fadas e os
vampiros eram primos distantes no mundo híbrido, tendo uma herança
demoníaca semelhante. Porém, ao passo que os vampiros eram dotados de
uma boa aparência, um charme e uma sexualidade elegante, as fadas eram
frias e possuíam uma aparência esquelética, como viciados em heroína
mortos de fome.
O recém-chegado prendeu seu arco à aljava amarrada em suas costas.
Ele se movia como um homem de negócios enquanto se aproximava de
mim deliberadamente, seus passos eram tão silenciosos quanto o de um
gato. Que irônico. Eu sempre odiei o jeito que as fadas podiam se
aproximar das pessoas sem serem ouvidas.
O cheiro de pirulitos e ovos podres inundou meu nariz. Seu cabelo loiro
estava preso, revelando suas orelhas pontudas, e as maçãs do seu rosto se
destacavam em contraste com sua pele pálida. Talvez ele tivesse uns trinta
anos. Ele usava um casaco longo e preto com camisa e calça combinando e
carregava duas adagas curvas embainhadas em seu cinturão. Elas eram
longas e mortais como a garra de uma fera. Uma série de tatuagens era
visível saindo da gola de sua camisa e ao redor de seu pescoço – os
símbolos das fadas. Seus olhos eram castanhos escuros e perigosos,
surpreendentemente escuros para uma fada com pele tão pálida e cabelos
louros. Havia uma espécie de dignidade pomposa em sua postura.
Eu o odiei no momento em que o vi.
Ele dirigiu seu olhar para a lâmina da morte em meu quadril. Eu teria
sorrido para sua expressão de indagação, mas, no momento, estava muito
irritada. Quando seus olhos encontraram os meus, eles traziam um brilho
que insinuava que eu deveria agradecê-lo. De jeito nenhum.
Endireitei meus ombros, agarrei minha lâmina da alma e me coloquei na
ponta dos pés, tentando parecer mais alta.
– Você acabou de roubar meu alvo e arruinou minhas roupas novas.
Quem vai pagar por isso? Você?
– Eu lhe fiz um favor , Caçadora – entoou a fada, sua voz era áspera e
irritantemente aguda para um homem. – Parece que o metamorfo teria
acabado com você se eu não tivesse intervindo. Eu a salvei.
Irritada, eu quase rosnei.
– Você não tinha nada que intervir, fada. – Seus olhos se estreitaram
com o meu tom. – Pelo que me lembro, fadas não fazem favores para não-
fadas. E elas também não se intrometem nos negócios dos Caçadores.
Expandi meus sentidos, procurando qualquer energia familiar, fria e
demoníaca. Minha pele se arrepiou com a mudança no ar. Parecia pequenas
correntes elétricas. Mais fadas. Aposto que havia mais quatro ou cinco
escondidas no beco, sem dúvida apontando suas flechas para mim. Elas
sempre andavam em bandos, como os lobisomens. Já mencionei o quanto
eu as odiava?
A chuva fria caía sobre mim, leve, mas constante. Meu pulso acelerou.
– Pare de olhar para mim como se estivesse prestes a pedir meu
telefone, porque isso nunca vai acontecer. – Cerrei os dentes. – O que você
quer?
Os olhos escuros da fada estavam começando a me assustar. Eu só
queria que ele fosse embora para que eu pudesse ir para casa tomar um
banho antes que a gosma do demônio penetrasse na minha pele como um
creme. Caso contrário, eu nunca conseguiria me livrar do cheiro.
A expressão pomposa da fada não mudou.
– Estou aqui em nome da Rainha Isobel. Ela quer ter uma audiência
com você, Rowyn Sinclair.
– Ha ha. – Eu ri, embora estremecesse por dentro. Não estava gostando
do fato de que ele sabia meu nome. Mudei minha perna de posição e olhei
fixamente para o sujeito. Isso estava ficando interessante. – O que a rainha
da Corte das Trevas quer comigo?
Nunca tinha conhecido ou visto a rainha das fadas, mas já ouvira
rumores, assim como todo mundo. Ela havia subido ao trono após remover
o rei das fadas das trevas e tomar seu lugar. Segundo os boatos, Isobel o
comera. Eca.
A história da rainha da Corte das Trevas era uma lenda e um conto de
terror para nossa espécie. Ela era a fada mais perigosa deste lado do
continente norte. Além de ser poderosa, a criatura tinha mais magia do que
a maioria das fadas e a usava para massacrar humanos e qualquer híbrido
que ousasse desafiá-la.
Eu sabia que Isobel tinha montado seu covil no Bairro Místico, uma
legião de fadas cruéis. O loiro aqui devia ser uma delas. Também tinha
ouvido falar que ela gostava de manter homens humanos como escravos
sexuais, já que suas mentes eram muito fracas e corruptas para saber a
diferença entre o glamour e o mundo real.
Contudo, quinhentos anos atrás, o Conselho das Sombras tinha posto
um fim ao seu massacre de humanos. Após séculos de conflito, uma trégua
fora estabelecida entre os híbridos e os nascidos-anjo e o Conselho das
Sombras foi criado. Ele consistia em um membro de cada uma das cortes
híbridas – vampiros, fadas, lobisomens e bruxas – e também incluía os
líderes dos nascidos-anjo.
Todos os híbridos tinham permissão para viver no mundo mortal e
governar a si mesmos se seguissem uma regra estrita: nunca machucar um
humano. Eles haviam estabelecido seus próprios conselhos e seus próprios
tribunais. Ainda assim, a trégua era uma coisa delicada, pois alguns
ansiavam pelo retorno dos velhos hábitos, dos dias sombrios antes dos anjos
interferirem e criarem os nascidos-anjo para manter a paz e vigiar o mundo
mortal.
E quando qualquer um desses híbridos saía da linha, era meu trabalho
caçá-los.
– A rainha requer seus serviços, Caçadora – disse a fada. Seu rosto se
contorceu em algo que parecia um sorriso e uma careta.
Levantei minhas sobrancelhas.
– Sério? Um trabalho? Bobagem.
A fada riu.
– Eu não estaria aqui perdendo meu tempo conversando com uma
Caçadora se não fosse verdade – disse ele firmemente. – Acredite em mim,
eu preferia estar em qualquer outro lugar, menos aqui. – Sua voz estava
cheia de indignação por ter que lidar comigo.
Meu pulso acelerou. Eu não gostava de ser encurralada e surpreendida
por híbridos, muito menos por fadas. E o pior: eu fedia a lata de lixo de uma
semana deixada ao sol quente.
Se o cara quisesse me matar, ele e seus capangas já teriam tentado atirar
algumas flechas no meu peito. Talvez ele realmente estivesse aqui a serviço
da rainha. Curiosa, dei-lhe outra olhada. O sujeito parecia me desprezar
tanto quanto eu o desprezava, mas eu queria saber por que a rainha das
fadas estava me procurando.
– Que tipo de trabalho? – perguntei, afastando minha jaqueta para trás
para exibir minhas lâminas, apenas no caso dele querer admirá-las
novamente.
O homem-fada permaneceu calado. Pela sua expressão severa, pude
dizer que ele não me contaria. O cara ficou parado lá, encarando-me como
se eu fosse saborosa o bastante para ser engolida. Que ótimo.
– Escuta aqui – eu disse, afastando uma mecha de cabelo dos meus
olhos. – Não estou interessada se não for um trabalho remunerado. Como
você pode ver – levantei meus braços para mostrar os restos do demônio –,
estou bastante ocupada no momento. Eu não trabalho de graça. Você pode
dizer à sua senhorita fada para esquecer…
– Isobel é a rainha desta terra. – O homem-fada não fez nada para
esconder a ira em sua voz. Senti meu estômago revirar. – Ela é a Rainha das
Trevas de Nova York. – Ele suspirou com os olhos arregalados de
admiração e, possivelmente, um pouco de medo.
– Certo, bem, ela não é minha rainha – eu disse alto o suficiente para as
outras fadas ouvirem. –O que ela quer?
Estava começando a me arrepender de não aceitar a ajuda de Tyrius.
Tirando aquela vez com Jax, nunca trabalhei com um parceiro, mas estava
me perguntando se deveria começar a repensar isso seriamente. O alter ego
de pantera negra dele poderia ter sido útil agora.
A fada me observou por um momento.
– Talvez um dia ela seja sua rainha e, então, você mostrará algum
respeito.
Eu fiz uma careta. Não estava gostando do rumo dessa conversa.
– Escuta aqui, sua fada magrela, não tenho tempo para isso. Ou você me
diz o que ela quer… ou dá o fora do meu caminho.
O sujeito ergueu as sobrancelhas em um lampejo de raiva.
– Eu a mataria agora mesmo se minha rainha não tivesse me ordenado
para não a machucar. É uma pena. Poderia ter adicionado “Caçadora” à
minha lista de mortes.
Abri minha boca, dividida entre a raiva e o choque. Meu rosto ficou
frio.
– Sabe – eu disse, sentindo um pedaço dos restos do metamorfo deslizar
pela minha testa antes de eu retirá-lo com a mão. – Estou muito ocupada no
momento, minha agenda deste mês está lotada. Desculpe, mas você terá que
dizer não à Sua Alteza.
De jeito nenhum eu trabalharia para uma fada. Não queria saber se ela
era uma rainha ou uma princesa. Isso não significava bulhufas para mim.
– A rainha está preparada para lhe oferecer vinte mil dólares. – A fada
franziu o rosto como se estivesse prestando muita atenção nas minhas
próximas palavras.
Vinte mil? Meu coração saltou enquanto eu lutava para manter uma
expressão calma.
– Parece que o assunto é sério. Você não vai me dizer o que é?
Isso era mais do que um ano inteiro de salário, mesmo como freelancer.
Um calafrio subiu pelo meu corpo. Na caça, normalmente, quanto maior
o preço do alvo, mais perigoso ele era. Podia ser qualquer coisa, desde um
demônio Superior até um monte de demônios menores. Porém, com esse
dinheiro, minha avó poderia manter a casa.
Meu coração disparou.
– Por que eu? – perguntei, balançando minha lâmina. – Por que sua
própria espécie não lida com os assuntos da rainha? Por que me procurar?
– Isobel precisa de alguém com suas… habilidades únicas – respondeu
o homem-fada, soando entediado e irritado ao mesmo tempo.
Havia um ar de descrença e de divertimento em seus olhos quando ele
analisou meu jeans casual e a jaqueta de couro. Era óbvio que ele não
estava confortável com a ideia da sua rainha pedir para eu fazer o serviço.
Talvez o sujeito estivesse com ciúmes. Ou, quem sabe, essa fosse apenas
sua cara normal. Isso me deixou inquieta.
Ainda assim, eu nunca tinha ouvido falar de nenhuma fada – quer fosse
rainha ou fada comum – pedir ajuda. Talvez isso fosse uma armadilha e eles
quisessem me atrair com a promessa de muito dinheiro… para me matar…
e, então, me comer.
O homem-fada devia ter lido minha mente, pois seu rosto se abriu em
um sorriso e meu sangue esfriou. Seus dentes amarelos tinham pontas
afiadas, como os dentes de um peixe.
Droga, talvez ele quisesse me comer.
A fada se mexeu e enfiou a mão dentro da sua jaqueta. Fiquei tensa e
me agachei, mas o híbrido apenas me jogou uma moeda. Uma moeda de
ouro.
Eu a peguei facilmente e a virei. Sim, era de ouro. Esfreguei meu
polegar sobre o retrato do rosto de um homem com um grande nariz de
falcão. A moeda era da Espanha. Não consegui ler a inscrição nas bordas,
mas consegui distinguir o ano de 1822 gravado na parte inferior. Quem
paga alguma coisa com ouro hoje em dia? Os fedorentos, podres de rico,
isso sim.
– Por favor, aceite este presente como um símbolo de boa-fé da minha
rainha. – Os olhos escuros do sujeito analisaram meu rosto.
Com meus dedos, circulei a moeda na minha mão. Droga, o ouro tinha
uma boa textura.
– Eu nem sei qual é o trabalho. Como posso dizer sim para algo que não
sei?
A fada ergueu uma sobrancelha, aparentemente sabendo que eu diria
isso.
– Não cabe a mim dizer. Os detalhes serão explicados na reunião. Você
aceita uma audiência com a rainha ou não? Um simples sim ou não serve. –
O homem-fada suspirou, visivelmente reprimindo seu aborrecimento.
Senti-me um pouco melhor sabendo que o estava irritando. Apertando a
moeda de ouro na minha mão, respondi:
– Tudo bem.
Fiquei surpresa comigo mesma por embolsar a moeda de ouro antes que
o híbrido a pedisse de volta. Tyrius ia ficar muito surpreso quando lhe
contasse sobre esse encontro e, possivelmente, vomitar uma bola de pelos
ao saber o que eu havia concordado em fazer. Meus lábios tremiam só de
pensar em sua birra.
– Vou me encontrar com sua rainha – eu disse à fada –, mas não
prometo nada. Quero ouvir o que ela tem a oferecer primeiro, antes de
tomar minha decisão final. Vou me encontrar com a mulher… mas isso não
significa que vou aceitar o trabalho. Entendeu?
As feições rígidas do cara exibiram um breve lampejo de surpresa.
– Sim. Tudo bem.
– Tá, então – falei, sentindo a tensão em meus ombros. – Quando e
onde?
A fada encontrou meu olhar, não havia expressão em seu rosto.
– A rainha deseja vê-la amanhã à meia-noite, na Torre Sylph – ele me
encarou e, de repente, seus olhos brilharam de diversão. – Você precisa de
instruções para chegar lá?
– Acho que consigo me virar – retruquei, sentindo um arrepio pelo
corpo.
A Torre Sylph ficava no Bairro Místico.
Uma pontada de medo se instalou pesadamente sobre mim quando um
sorriso malicioso e maquiavélico foi estampado no rosto esculpido da fada.
– Não se atrase – disse ele. – Minha rainha não tolera atrasos.
Com isso, o sujeito se virou e saltou para a rua.
Eu abri minha boca para dizer a ele para enfiar aquela atitude na bunda
dele, mas perdi a respiração com a mudança repentina no ar.
Minha pele se arrepiou enquanto meu coração batia contra o peito. Das
sombras do beco, pude ouvir um som baixo e sibilante e senti uma onda
mais forte de energia demoníaca perversa e fria. Quatro homens-fadas da
Corte das Trevas surgiram no beco parecendo sombras. Todos eles se
juntaram para formar uma linha atrás do homem-fada loiro. A escuridão
cobria seus rostos, mas todos eram altos e desengonçados, além de usarem
roupas pretas semelhantes com aljavas cheias de flechas combinando, as
mesmas flechas que estavam apontadas para mim o tempo todo.
Fiquei em silêncio, observando as fadas desaparecerem na noite até seu
cheiro fétido se dissipar. Tudo o que restou foi o fedor das entranhas do
demônio metamorfo em mim.
Enfiei a mão no bolso e tirei a moeda de ouro. Que trabalho era esse? E
por que a rainha das fadas da Corte das Trevas queria me contratar?
Senti um desconforto apertando meu peito enquanto esfregava meu
polegar no rosto do espanhol. Nada de bom viria de aceitar um trabalho
vindo de uma fada. E as coisas sempre podem piorar.
No que fui me meter?
Capítulo 4

– V ocê não pode simplesmente devolver a moeda de ouro à maldita


fada e cancelar toda essa estupidez? – argumentou Tyrius enquanto
caminhávamos pela calçada. Seu rabo se contorcia nervosamente atrás dele.
A luz da lua lançava um brilho prateado sobre seu corpo marrom-
amarelado, fazendo-o brilhar. – Quero dizer… você ainda não fez nenhum
acordo com a rainha, então, não há mal nenhum em não ir. Pare com isso,
Rowyn. Você não pode confiar na fada. Eu não confio no que sai da boca
delas. A maioria delas é malandra. Nada de bom pode vir desta reunião.
Confie em mim. As fadas são todas podres. Está no DNA delas. Eu não
gosto disso.
– Eu não gosto da ideia de trabalhar para uma fada – falei –, mas não
posso recusar vinte mil. Não quando estou desesperada para salvar a casa da
minha avó. Não até eu saber o que ela quer.
– Comer você?
Revirei os olhos.
– Isobel não quer me comer.
Espero.
– Como você sabe? – perguntou Tyrius, incrédulo. – Nunca a viu.
– Nem você.
– Sim, mas sou o responsável por saber das coisas. E sei que a rainha é
um monstro no corpo de um humano.
– Ela é uma fada, não uma mortal.
– Ela come GATOS!
Suspirei profundamente e meu corpo se contraiu de ansiedade. Não
queria discutir com Tyrius quando estava a caminho de conhecer Isobel.
Seu profundo ódio pelas fadas era totalmente compreensível, visto que ele
era um dos pratos preferidos delas. As fadas eram inimigas dos baals, o que
as tornava minhas inimigas. Além disso, eu tinha a sensação de que ele
estava certo. A rainha era um monstro.
A tensão contraiu meus ombros. A ideia de encontrar Isobel em seu
covil, cercada por Deus sabe quantas fadas de orelhas pontudas comedoras
de gatos, me deixou tensa. O medo acelerou meu coração. Por precaução,
estava levando o dobro das minhas armas, adicionando todas as adagas e
lâminas que cabiam no meu cinto. Só para garantir.
Fiquei feliz quando Tyrius se ofereceu para vir comigo, mas o fato dele
ser um demônio baal – um gato siamês – era um problema. A fada o veria
como uma refeição ao invés de apoio. Talvez isso fosse uma coisa boa,
talvez não. Cerrei os dentes enquanto o suor escorria pela minha pele,
deixando-me com frio. Mataria todas elas antes que colocassem um dedo
em seu bigode. As malditas não tocariam no meu Tyrius.
As fadas da Corte das Trevas eram notoriamente perversas, más e sem
um pingo de remorso. Como eu nunca havia conhecido uma fada da Corte
da Luz, não tinha ideia se elas eram mais perversas do que as primeiras.
Ainda assim, apenas uma tola se associaria voluntariamente a elas. E,
aparentemente, essa tola era eu.
– Você não precisa ir, sabe disso – eu disse, minhas botas faziam um
barulho alto quando batiam na calçada irregular. Era um som abafado no ar
pesado da noite chuvosa. – Não vou ficar brava nem nada se quiser ir
embora. Eu posso fazer isso sozinha.
– Não enquanto você viver. – A cauda de Tyrius se eriçou. – Eu vou
com você. Além disso, quero ver essa rainha feiticeira com meus próprios
olhos. Quero ver se ela é tão má quanto os rumores dizem que é.
– Se Isobel gosta de comer fadas-reis – comentei –, diria que é, no
mínimo, muito louca.
Tyrius me deu um breve sorriso, quer dizer, o melhor tipo de sorriso que
um gato poderia dar.
– Certo. Você está mais para nascida-anjo ou nascida-demônio agora? –
Suas orelhas viraram para trás. – Eu nunca lhe perguntei isso, mas… você
se sente mais um anjo ou um demônio?
Mordi meu lábio inferior. Eu vinha me fazendo essa pergunta há meses.
Será que me identificava como nascida-anjo ou nascida-demônio?
– Neste exato momento… nenhum dos dois – respondi. – Sinto-me
como eu. Então, ambos, acho? Eu não sei o que é se sentir mais anjo ou
demônio. Só sei como é me sentir como eu mesma.
– Hum. Talvez você seja o equilíbrio perfeito dos dois – comentou o
gato, com o rabo levantado enquanto caminhava ao meu lado. – O yin e
yang de anjo e de demônio. As duas metades que se completam.
O comentário colocou um sorriso no meu rosto, mas ele desapareceu
quando peguei meu celular e olhei para a tela. 23h45. Tinha tempo
suficiente para chegar no horário ao meu encontro com Sua Alteza à meia-
noite. Coloquei meu celular para vibrar e o deixei cair no meu bolso.
O Bairro Místico parecia tão extravagante e estranho quanto da última
vez que eu estivera aqui, há alguns meses; só que, agora, eu não tinha o
Selo de Adão para me puxar para baixo. Nesse distrito secreto, os
paranormais viviam e se misturavam livremente – era o único lugar onde os
goblins vendiam joias na feira da madrugada, lojas de bruxas lotavam as
ruas, lobisomens tentavam brigar com matilhas adversárias e vampiros
passeavam exibindo sua beleza hipnótica e fria.
O fedor de enxofre inundou minhas narinas, ele era forte e podre como
o espesso odor de magia demoníaca. Era possível senti-lo em toda parte.
Senti também o gosto de podridão na boca.
Ao passarmos por mais um quarteirão, vislumbrei uma linda garota-fada
passando a mão pelo peito musculoso e tatuado de um homem-fada.
Desviei meu olhar quando ele dirigiu seus olhos escuros para mim.
Nós nos movíamos rapidamente pelas ruas. Eu estava ciente dos olhares
das fadas. Pude ver grupos de vampiros reunidos nas muitas varandas e
janelas dos elegantes prédios de pedra marrom e ouvi o tilintar de seus
copos e as conversas baixas quando passamos por eles. Pelos olhares
calculistas em seus rostos, parecia que eles estavam esperando nos ver.
Um vento frio fez eu levantar minha cabeça. A noite estava agitada e
úmida e o barulho dos humanos estava longe e distante, alheio ao bairro
animado e cheio de paranormais. A lua tentava romper a leve névoa,
lançando um brilho prateado sobre tudo.
E eu estava indo me encontrar com a rainha das fadas da Corte das
Trevas.
Tyrius olhou para mim. Seus olhos azuis contrastavam com sua máscara
negra.
– Você parece horrível.
Olhei para ele com os lábios franzidos.
– Sempre tão galante, não é?
O gato siamês trotava graciosamente ao meu lado com o rabo erguido.
– Estou apenas afirmando o óbvio. Você está dormindo bem? Tá com a
cabeça cheia? Tem alguém em particular em sua mente?
Meu sangue borbulhou.
– Cala a boca.
Eu odiava o fato do pequeno demônio baal ser tão perceptivo e o quão
facilmente eu corava ao pensar em Jax. Não conseguia tirar seu beijo da
minha mente desde o acontecido. Meu coração disparava apenas com a
memória de seus lábios tocando os meus. Senti meu corpo estremecer
quando me lembrei de como eles eram macios e da avidez sem vergonha
que vira em seus olhos.
– Hum. – Ouvi a voz do gato, tirando-me do meu devaneio. – Ainda
sem notícias dele, né?
Sacudi minha cabeça.
– Tudo bem. Não há razão para ele ligar. Não é como se tivéssemos
algo, porque não temos. Jax tem sua própria vida. – Dei de ombros. –
Somos apenas amigos.
– Apenas amigos? – resmungou Tyrius. – Eu duvido seriamente disso.
Jax e eu somos apenas amigos. O carteiro e eu somos apenas amigos. Mas
vocês dois não são apenas amigos e você sabe disso.
Senti um aperto no peito e engoli em seco. Ultimamente, a ausência de
Jax começara a mexer com meu humor. Não podia negar que doía um
pouco sua falta de comunicação. Só um pouco. A última vez que o vira fora
na manhã da morte de Vedriel, há mais de seis meses.
Talvez ele estivesse muito ocupado com Amber, a voluptuosa nascida-
anjo ruiva, para lembrar de mim. Jax era bonito demais para ser solteiro,
além disso, ele não me devia nada. Tínhamos nos conhecido através de um
trabalho para o conselho e depois nos separamos. Talvez fosse melhor
assim. Amor, sentimentos e relacionamentos complicavam as coisas. Minha
vida já era complicada o bastante, muito obrigada.
– E aquele beijo? – disse Tyrius.
– Aquilo não foi nada – respondi com uma voz seca. – Foi só um beijo.
– Eu vi o jeito que vocês dois se olhavam – disse o gato. Ouvi a
reprovação em sua voz. – Se não estivéssemos prestes a chutar a bunda de
uns demônios, vocês teriam arrancado as roupas um do outro e consumado
o fato ali mesmo.
– Tyrius! – sibilei e meus olhos se arregalaram em choque.
O gato levantou uma sobrancelha.
– Você sabe muito bem que isso é verdade, assim como eu.
– Eu não sei de nada.
– Admita – disse o gato lentamente. – Aquilo não foi apenas um beijo.
Meu rosto ardeu como se estivesse pegando fogo. Saber que Tyrius
havia testemunhado o beijo tornava tudo pior.
– Eu não tenho tempo para romance – argumentei, consciente que uma
dezena de fadas nos observava na esquina da rua. Um homem com cabelo
vermelho brilhante lambeu os lábios enquanto sorria para Tyrius, revelando
seus dentes pontudos. – Eu também não sou uma pessoa romântica – falei,
andando mais rápido. – E definitivamente não tenho vocação para ser a
namorada de alguém. Preciso colocar minha vida em ordem primeiro.
Então… quem sabe.
Tyrius ficou em silêncio por um momento. Seu trote gracioso se
transformou em um andar cauteloso, como se ele sentisse que algo estava
prestes a pular nele.
– Sou só eu, ou todas as fadas do Bairro Místico decidiram nos agraciar
com sua presença esta noite?
Feliz pela mudança de assunto, minha pele se arrepiou quando mais e
mais fadas saíram das sombras e foram banhadas pela luz da lua. Seus olhos
famintos estavam vidrados em nós.
– Elas devem saber que vamos nos encontrar com sua rainha. Talvez
estejam apenas curiosas – eu disse, pressionando a palma da mão no cabo
da minha lâmina da alma.
– Sim. Ou, talvez, elas estejam apenas com fome. – Os pelos de Tyrius
estavam para cima, dando a impressão de que ele era maior. – Por que é
mesmo que vamos nos encontrar com a princesa das fadas?
– Tenho vinte mil razões. – Olhei para o gato siamês enquanto
caminhávamos. – Você passou o dia todo de mau humor. Por que toda essa
irritação?
– Eu quebrei uma unha.
Tyrius sibilou para uma fada com tranças quando ela se afastou de seu
grupo e tentou se aproximar. A jovem fez uma careta diante da reação do
gato, o que fez com que suas belas feições se deformassem e se
transformassem em algo grotesco e animalesco. Era estranho como sua
beleza tinha desaparecido tão rápido. Isso me fez pensar se era apenas um
glamour.
– É isso o que essas fadas fazem – disse o demônio baal. Seus olhos se
estreitaram. – Eu odeio esses malditos híbridos de orelhas pontudas.
Ele olhou para a garota-fada, seus olhos eram como pequenas luas na
semiescuridão.
Abri a boca para comentar que ele também tinha orelhas pontudas, mas
pensei que isso só o deixaria mais irritado. Estava feliz por Tyrius estar
aqui. Não queria que ele ficasse chateado comigo também.
Então, em vez disso, eu disse:
– Prepare-se para ver mais malditos híbridos de orelhas pontudas. – Fiz
um gesto com a cabeça em direção a um edifício preto alto e brilhante. –
Ali está a Torre Sylph.
À nossa frente, havia um prédio de três andares, um lugar hipnótico que
dava arrepios. Era um edifício peculiar. Segundo os rumores, ele havia sido
construído pelas próprias fadas conforme os gostos dos seus antepassados
demoníacos.
A construção consistia em um prédio pintado e estriado em uma
estrutura cilíndrica de cimento com um aspecto enferrujado nas paredes
externas, de modo que gotas laranjas escorriam pelas paredes como listras
similares a sangue. Tiras de gesso se projetavam, moldadas em pontas como
grandes tufos de pelo molhado. Parecia uma torre vestindo um casaco de
pele preto.
Fiz uma careta. Era o prédio mais feio que eu já tinha visto. E olha que
eu já vira minha cota de prédios feios.
– Graças a Deus não é muito óbvio nem nada – eu murmurei.
Com meu pulso acelerado, atravessei a rua, apertando os olhos para a
estrutura enquanto me dirigia até lá.
Eu já tinha visto a Torre Sylph, mas nunca estivera lá dentro.
Agora, eu não tinha certeza se queria entrar.
Capítulo 5

– Q uanto mais feio e espalhafatoso for, mais as fadas vão gostar – disse
Tyrius, caminhando ao meu lado. – Aposto vinte dólares que é ainda
mais brega por dentro.
Uma figura negra emergiu das sombras de um poste de luz. Senti uma
pontada de medo quando ela se dirigiu para nós. Com o coração batendo
forte, eu puxei minha lâmina da alma do meu cinto de espadas.
– Ah, ótimo – disse Tyrius, parecendo um pouco entediado. – É o
vampiro melancólico.
De fato, Danto emergiu das sombras. Ele era o chefe da Corte dos
Vampiros de Nova York. Sim, o sujeito era um vampiro melancólico, mas
ainda era lindo.
Embainhei minha lâmina enquanto o observava. Ele estava descalço,
como sempre, e vestindo calças pretas. Conforme o vampiro andava, sua
camisa preta desabotoada balançava atrás dele como uma capa, revelando
seu peito nu musculoso e sua pele de porcelana. Ele se movia com uma
graça predatória, mas também tinha os traços de elegância suave da
linhagem nobre. Ele era ambicioso, inteligente, bonito, ousado – e letal.
O híbrido inclinou a cabeça. Seu longo cabelo preto, que brilhava como
óleo, balançou com o movimento. Os fios contrastavam com sua pele
pálida. Aqueles olhos cinzas brilharam ao luar enquanto me encaravam,
fazendo meu pulso acelerar. Eu não pude evitar. O vampiro era muito
bonito.
Danto me deu um sorriso forçado, nada parecido com o jeito brincalhão
que ele havia sorrido para mim antes, com sua boca carnuda e muito
sensual. A dor de perder Cindy ainda era visível nas linhas ao redor de seus
olhos e nos seus lábios cerrados. Seu rosto esculpido parecia mais velho. A
morte dela claramente ainda o assombrava.
Senti um aperto no peito quando pensei em Cindy e em como ela tinha
morrido. Culpa e arrependimento ainda apertavam meu peito por não
termos conseguido salvá-la. Contudo, isso não era nada comparado à dor e
ao sofrimento visíveis no rosto do vampiro.
Ainda assim, senti uma pontada de decepção. Ele não era Jax. Havia
enviado uma mensagem de texto para ele na noite passada, contando sobre
meu encontro com a rainha das fadas da Corte das Trevas, mas não obtive
resposta. Na verdade, Jax não havia retornado a única ligação que eu fizera,
uma semana após a morte de Vedriel. Eu não ia ser o tipo de garota que
ficava no pé de um cara. Já tinha ligado e deixado uma mensagem. Bem, se
ele não ligara de volta, eu podia adivinhar o motivo: Jax conseguira o que
queria de mim, ou seja, resolver os assassinatos dos nascidos-anjo. Tratava-
se de um evento isolado. Agora, ele desaparecera da minha vida. Talvez,
para sempre. Eu tinha que começar a me acostumar com a ideia.
Quanto mais pensava a respeito, mais eu me sentia estúpida por ter
mandado uma mensagem para ele. Excelente.
Observei o vampiro se aproximar, pensando em como ele sabia que
estaríamos aqui.
Os olhos cinzas de Danto encontraram os meus.
– Ouvi dizer que você estava vindo ao Bairro Místico para se encontrar
com a rainha das fadas da Corte das Trevas – o sujeito disse como se lesse
minha mente. Sinistro.
Pensei no grupo de vampiros que tinha acabado de nos ver.
– Nada passa por você, hein?
Será que seus vampiros estavam me seguindo?
Danto balançou a cabeça e um breve sorriso apareceu em seus lábios
perfeitos.
– Não no Bairro Místico. Tenho olhos e ouvidos em todos os lugares. –
Seu olhar ficou intenso. – Eu vou com você.
– Obrigada, mas não há necessidade – respondi, sentindo o calor da
gratidão se espalhar pelo meu peito. – Eu tenho Tyrius como reforço.
– É isso mesmo – disse o gato, parecendo presunçoso.
Danto manteve os olhos em mim, deixando-me um pouco
desconfortável.
– Não. – Sua voz era firme. – Eu vou com você. – Ele levantou a mão e
meu protesto ficou preso na minha garganta. – Você será a primeira nascida-
anjo a pisar naquele… naquele lugar. Qualquer trabalho que ela lhe ofereça
não será apenas um trabalho. Nunca é. Você não pode confiar nela. Não
pode acreditar em nada do que a mulher diz.
Olhei para o vampiro, perguntando-me como ele sabia sobre a oferta de
trabalho.
– Eu pensei que as fadas não pudessem mentir.
– Isso é uma grande bobagem. – Riu Tyrius. – Na real, elas não
conseguem dizer a verdade.
– Eu a conheço – continuou o vampiro. – Ela tem um jeito de distorcer
as palavras que é capaz de fazer você realizar coisas que nunca imaginou,
que nunca pensou que pudesse fazer. Isobel é má, muito má.
Franzi o cenho, achando estranho que esse velho vampiro chamasse
outro híbrido de mau. Quer dizer, ele bebe sangue, pelo amor de Deus!
Além disso, tinha ouvido e visto algumas das coisas perversas que Danto
havia feito no passado. Se ele achava que ela era má…
– Isobel gosta de jogar seus próprios jogos – disse Danto. – Ela fica
bastante entediada em sua torre. A mulher gosta de ser entretida.
Fiz uma careta.
– Bem, eu não estou aqui para entretê-la.
Meus pensamentos sobre a rainha se transformaram em uma raiva
mortal.
– Ela tem algo a ganhar. Sempre tem. – Os olhos cinzas de Danto
escureceram como se estivessem escondendo uma lembrança distante e
horrível. Perguntei-me se ela o havia irritado de alguma forma. – Não
pense, nem por um minuto, que isso é apenas mais um alvo, outra caçada,
pois não é. – Os punhos do vampiro estavam fechados. – Saiba que tem
mais coisa aí.
Era estranho sentir tanta simpatia e carinho por um vampiro, sabendo
que meu sangue podia ser sua refeição. E, sem dúvida, era estranho eu
sentir qualquer afeição, lealdade e amizade, porque isso me assustava.
Após termos matado o arcanjo Vedriel, tínhamos nos unido – nós
quatro. Era inevitável após compartilhar uma experiência como essa. Não
podíamos simplesmente matar um tenente do exército da Horizon e, depois,
voltar para casa para tomar um chá da tarde. Algo havia despertado em nós.
Eu sabia que, naquele momento, tínhamos mudado para sempre –
estávamos marcados pelo sangue de um arcanjo em nossas mãos.
Mechas do cabelo do vampiro se moveram com uma brisa repentina e
seu rosto ficou coberto pela sombra, mas uma preocupação real brilhava em
seus olhos.
Droga. Eu estava começando a gostar desse vampiro bonito – de uma
forma platônica, é claro.
Dei de ombros.
– Mas por quê? Você não me deve nada. Não precisa vir.
O vampiro desviou o olhar.
– Você é a coisa mais próxima que eu tenho de Cindy.
Bizarro.
Ele ficou em silêncio por um momento, então, voltou sua atenção para
mim.
– Nós somos amigos. Por mais estranho que pareça, nós somos. A Torre
Sylph não é segura. Vocês dois precisam de mim. – Ele olhou para Tyrius.
O gato se virou para mim com os olhos azuis brilhando.
– Eu concordo com o vampiro. Três indo conhecer a bunda gorda da
Fada Real é muito melhor do que apenas dois. Danto disse que a conhece e
isso pode ser útil… se ela tentar nos enganar.
– Tá, então – concordei. – Vamos lá.
A tensão percorreu minha espinha enquanto nós três caminhávamos em
direção à torre negra. De repente, a expressão de Danto pareceu satisfeita.
Fiquei um pouco irritada com o fato de ele pensar que eu não conseguiria
lidar com Sua Alteza sozinha. Isso é o que íamos ver.
Tyrius fez um som estranho com sua garganta, chamando nossa atenção
enquanto caminhava entre nós
– Vampiro, o que há com você e o fato de não usar sapatos? Acho que
nunca o vi com algo nos pés.
Abafei uma risada com a expressão de choque que cruzou o rosto de
Danto. Ele olhou para os pés enquanto caminhava.
– Não gosto de ter meus pés confinados. Prefiro sentir a terra sob eles. –
Ele ergueu uma sobrancelha. – Vejo que você também não usa sapatos.
A boca de Tyrius se abriu.
– Eu sou um gato.
– Você é um demônio.
O gato deu de ombros.
– É a mesma coisa.
Afastei meu nervosismo e meu desconforto e os substituí por uma
aparência calma quando chegamos diante da pesada porta de madeira.
Símbolos de prata e de ouro estavam gravados na porta, emoldurando-a
como uma obra de arte na linguagem das fadas.
Olhei para Danto.
– Como entramos? Não há maçaneta.
– Os não-fadas não podem entrar sem permissão – disse o vampiro. Um
músculo de sua mandíbula se contraiu como se ele estivesse lutando com
algum sentimento. – A porta está enfeitiçada. Só quem foi convidado pode
entrar. Você bate e, então, espera.
– Fadas – resmungou Tyrius enquanto se recostava e enrolava o rabo em
volta das patas. – Sempre sentem a necessidade de tornar as coisas
excessivamente complicadas.
Suspirei baixo e lentamente.
– Estou começando a me arrepender de ter vindo aqui.
Ao levantar meu punho, notei estar tremendo levemente. Bati na porta,
mais forte do que pretendia.
Não tivemos que esperar muito. Menos de vinte segundos depois, a
porta se abriu, revelando um homem-fada tão alto quanto Danto com braços
e pernas desengonçados, orelhas pontudas e longos cabelos negros. A pele
verde estava encoberta pelas suas tatuagens de fada. Eu podia sentir o
cheiro podre e doce exalando dele, fazendo meu estômago revirar. Seus
olhos cruéis, negros como breu e sem vida encontraram os meus. Ele me
encarou.
Um arco e flecha curvado estava apontado para o meu rosto e isso
realmente me irritou. Se ele pensou que estava me intimidando com aquela
coisa, estava errado.
Dei-lhe um sorriso que deixaria Amber orgulhosa.
– Tire esse arco e flecha da minha cara antes que eu faça você engoli-lo
– O rosto do homem-fada estava inexpressivo enquanto ele permanecia
imóvel, olhando para mim como uma pedra, então, continuei – Abaixe essa
maldita coisa. Estou aqui para ver Isobel, sua rainha. Sou Rowyn Sinclair.
Ela está me esperando. – Olhei por cima do ombro dele, mas tudo o que vi
foi um corredor que terminava em sombras.
O homem-fada verde passou seus olhos em Tyrius e em Danto.
– Só você – o cara falou com uma voz profunda e seca enquanto
abaixava seu arco e flecha.
Tyrius se levantou em um salto e rosnou.
– Ei, espere um minutinho aí! Rowyn não vai entrar neste covil de fadas
sem nós. Você pode simplesmente esquecer.
– Isso mesmo. – Fiz um gesto em direção ao gato siamês enquanto
cruzava os braços e inclinava a cabeça. – Você que escolhe. Ou meus
amigos vêm comigo… ou pode dizer à sua rainhazinha que você não me
deixou entrar. Não acho que Isobel iria gostar disso já que foi ela quem me
convidou.
O homem-fada sorriu para mim, revelando dentes levemente
pontiagudos.
– Nascida-anjo – ele murmurou, correndo os olhos sobre mim. – Nunca
vimos ninguém da sua espécie na Torre Sylph antes.
Eu sorri.
– Sorte a minha. – Tyrius riu quando eu descruzei meus braços e
coloquei as mãos nos quadris. – Eu não tenho a noite toda. Vamos entrar ou
não?
Sem dizer nada, a fada acenou com a cabeça e fez sinal para que o
seguíssemos.
Bati nos cabos das minhas lâminas com os dedos. Eu poderia estar
caminhando rumo à minha morte, mas não chegaria desarmada.
Assim que cruzei a soleira, senti a energia fria e demoníaca das fadas
percorrendo a sala e toda a torre. Eu podia sentir a intensidade de sua
presença muito mais forte do que quando caminhava pelas ruas do Bairro
Místico. Era como se a energia estivesse concentrada ali de alguma forma,
enchendo o ar, o chão e até as paredes que nos cercavam.
Senti como se estivesse andando por uma caverna apertada com o teto
baixo. Até o ar frio tinha um leve cheiro de mofo. Castiçais acesos com
fogo verde demoníaco cobriam as paredes, lançando tons de verde por todo
o corredor. A passagem estava mortalmente silenciosa, exceto pelos passos
suaves de nossas botas, pés e patas, e as batidas implacáveis do meu
coração em meus ouvidos. Andamos silenciosamente por um corredor de
paredes lisas gravado com mais palavras ornamentadas na linguagem das
fadas e gravuras que retratavam fadas e demônios em várias cenas de
batalha. A mesma mulher-fada era retratada repetidamente, lutando contra
um demônio alado gigante, cortando a cabeça do que parecia ser um goblin
de pernas curtas e de rosto achatado e se deitando na cama com muitos
homens humanos. Era Rainha Isobel, sem dúvida, mas não consegui dar
uma boa olhada no rosto dela com aquela luz.
Tive a sensação de que estávamos andando em um círculo, um círculo
muito grande. O chão era de terra batida. Achei estranho que não fosse
mármore ou alguma outra pedra sofisticada polida que brilhasse como joias.
Fadas adoravam se exibir.
O homem-fada não olhou para trás enquanto nos conduzia pelo labirinto
em forma de caverna. Ele tinha a mesma postura superior que o outro
homem-fada que roubara meu alvo, o demônio metamorfo.
Será que ele ficaria bravo se eu tropeçasse nele?
– Cheira a vômito aqui – disse Tyrius. – Ou talvez seja carne enlatada?
– Não, acho que é apenas o cheiro de vômito das fadas. – Sorri ao ver os
ombros do homem-fada ficarem tensos, mas ele não olhou para trás.
Depois de um minuto, uma fenda de luz verde mais brilhante inundou a
semiescuridão. Duas portas enormes de pedra se erguiam diante de nós.
Elas eram antigas e gravadas com a mesma linguagem de fadas prateada e
dourada que estava pintada na porta da frente. Um barulho de vozes veio do
outro lado das portas.
Meu pulso acelerou. Eu estava começando a me arrepender da decisão
de me encontrar com a fada rainha. Atravessamos as portas e entramos em
uma vasta câmara circular de pedra calcária esculpida e sustentada por
quatro pilares cujos topos desapareciam na escuridão acima.
Trepadeiras verde-escuras com rosas brancas, vermelhas e rosadas se
enroscavam nos pilares. O homem-fada nos levou por um caminho ladeado
por macieiras em plena floração. Margaridas, equinácea purpúrea, lavanda e
inúmeras rosas se intercalavam com as árvores. A sala estava coberta pela
luz verde. Senti como se tivesse acabado de entrar em um jardim
exuberante, não em uma torre cilíndrica e feia.
Através das árvores, avistei uma multidão de fadas. Algumas delas
dançavam ao som de uma batida baixa de tambores, outras conversavam e
algumas estavam esparramadas pelo chão – todavia, todas tinham seus
olhos em mim, em nós. Devia ter pelo menos uma centena de fadas ali.
Senti minha pressão subir enquanto me forçava a manter meu ritmo
uniforme. De jeito nenhum eu mostraria a o efeito que elas tinham em mim.
Era tudo um borrão de olhos negros, dentes pontudos e roupas finas.
Seus rostos eram adoráveis, porém, selvagens e magros, sempre muito
magros.
Uma plataforma elevada estava diante de nós. Descansando em um sofá
vermelho cercado por homens e mulheres-fadas magricelas, estava uma
mulher. Não, uma mulher não. A rainha das fadas.
– Minha rainha – disse nossa escolta, curvando-se. – Eu trouxe a
Caçadora e seus… companheiros.
Nossa escolta pareceu recuar como se ele não fosse digno de estar na
presença de sua rainha. Contudo, a mulher nem sequer olhou para ele. Seus
olhos estavam em mim.
Lentamente, Isobel se levantou. Ambos os lados de sua cabeça não
tinham cabelo, porém, do meio, caíam mechas de cabelos negros até a
cintura, como um moicano. Ela não era nada como eu tinha imaginado. Era
muito, muito pior.
Embora partes de seu rosto pudessem ser consideradas adoráveis, sua
pele branca como a neve era puxada e muito esticada sobre suas feições
definidas, tornando-a mais petrificante do que bonita. Talvez fosse esse o
estilo que ela estava buscando – a rainha dos mortos-vivos.
Seu pescoço era um pouco longo demais – assim como seus braços,
pernas e dedos – para ela se passar por um humano. A mulher parecia quase
como um inseto. Isobel usava um vestido preto que balançava e esvoaçava
com seus movimentos, mas não pude ver nenhuma joia. Uma coroa
esbranquiçada estava entrelaçada em seu cabelo, acima da cabeça. Quanto
mais eu olhava, mais a coroa se parecia com dentes. Dentes humanos de
verdade. Caramba, ela era louca.
Seus olhos de ébano brilhavam com uma frieza calculada e ainda
estavam fixos em mim.
O medo percorreu meu corpo, mas eu o afastei devido a rigidez de sua
expressão. Se ela visse, cheirasse, ou apenas sentisse meu medo, eu era um
caso perdido.
Senti uma brisa atrás de mim quando senti o ombro de Danto encostar
no meu. Exalei lentamente. Nunca estive tão feliz por ter um vampiro
sugador de sangue tão perto da minha jugular antes.
Os olhos da rainha caíram sobre Danto e, por um momento, seus lábios
vermelhos e salientes esboçaram um sorriso de escárnio que era realmente
aterrorizante. Seus olhos escuros brilharam com um ódio de alguma história
do passado antes que sua atenção voltasse para mim. Então, com a mesma
rapidez, ela suavizou suas feições e voltou para sua atitude impetuosa e
aristocrática.
– Rowyn Sinclair – sussurrou a rainha das fadas. Sua voz era sedosa e
venenosa como a de uma cobra. – Que bom que você veio.
Capítulo 6

F iquei ali, em silêncio por um momento, sustentando o olhar da rainha.


Eu não ia desviar o olhar primeiro de jeito nenhum. Afinal, sabia jogar
esse jogo.
Os cantos de sua boca se torceram diante da minha rebeldia. Então, seus
olhos se deslocaram para as fadas reunidas que faziam barulho de botas
batendo no chão de terra. Dirigi minha atenção para a minha esquerda
quando seis homens-fadas saíram da multidão e pararam diante da
plataforma elevada, com arcos em suas mãos.
Reconheci o homem-fada alto e pálido que matara meu demônio
metamorfo. Desgraçado. Ele estava com o arco nas mãos, sem dúvida
esperando por um sinal de sua amada rainha para atirar uma flecha no meu
peito. Tentei chamar sua atenção, mas ele não olhou na minha direção.
A rainha me pegou encarando e seus lábios de rubi se esticaram em um
sorriso aterrorizante.
Isso me irritou. Senti um aperto no peito e um sinal de alerta se acendeu
em minha mente quando ouvi o grunhido profundo de Tyrius.
Levantei uma sobrancelha para a rainha.
– Pensei que era uma convidada aqui – eu disse, feliz por minha voz ter
saído firme e forte, mesmo que meu estômago estivesse embrulhado. – É
assim – gesticulei para os homens-fadas armados – que você trata seus
convidados? Se é, pode dizer adeus à minha ajuda.
Peguei minha moeda de ouro e, depois de inspecionar meu espanhol
uma última vez, joguei-a no ar. Ela fez um barulho alto quando caiu aos pés
de Isobel. Eu tinha boa pontaria, uma das muitas vantagens de ter essência
sobrenatural.
– Boa jogada – sussurrou Tyrius enquanto os homens-fadas que
cercavam a mulher sibilavam de indignação com o que eu tinha acabado de
fazer.
Mordi minha língua para não rir, porque isso me levaria a uma séria e
grande confusão.
A cara de indignação no rosto pálido de Isobel quase me fez sorrir.
Inferno. Era bom irritar uma rainha. Eu deveria ter feito isso antes.
Ela se virou para os homens armados e disse algo em um idioma que
soava um tanto gutural quanto musical. Cinco dos seis homens se
separaram e desapareceram entre a multidão de fadas. Apenas meu amigo
loiro ficou.
– Daegal é o comandante dos Flechas Negras, meu guarda pessoal e
conselheiro de confiança. Ele vai ficar – disse a rainha. Seus lábios se
curvaram, exibindo dentes brancos e pontudos. – Melhor?
Melhor? Estávamos em desvantagem, eram cinquenta contra um e ela
sabia que não podíamos fazer nada. Ainda assim, não ter todos aqueles
arcos me encarando diminuiu um pouco da minha tensão.
Eu dei à rainha um sorriso seco.
– Melhor.
Que diabos estou fazendo aqui?
Os olhos da mulher se voltaram para o meu quadril e se arregalaram.
– Uma lâmina da morte. Então, os rumores são verdadeiros – ela disse
com uma mistura de irritação. – Você é metade demônio. Que interessante.
Interessante?
– É o que parece. – Correspondi ao seu sorriso, não gostando de como
ela estava olhando para mim, como se estivesse imaginando qual seria o
gosto da minha carne em sua boca.
Tyrius pressionou seu corpo contra minha perna e sussurrou:
– Você viu aquela coroa na cabeça de Sua Majestade?
– Sim. – Ocultei um calafrio quando tirei meus olhos da assustadora
coroa de dentes humanos e olhei diretamente para a rainha. – Por que estou
aqui? Seu guarda, Daegal, disse que você tinha um trabalho para mim. O
que é?
Isobel pareceu um pouco surpresa por eu falar com ela tão diretamente
em vez de usar formalmente seu título de rainha. A mulher podia ser a
rainha das fadas, mas não era minha rainha. Eu não estava disposta a me
submeter à corte dela ou me curvar a qualquer um que usasse uma coroa de
dentes humanos.
– Sim – disse a mulher-fada. – Tenho uma oferta de emprego.
Aparentemente, uma que paga bem o suficiente, ou você não teria se
incomodado em vir. – Ela sorriu deliberadamente para mim, como se
soubesse que eu estava dura.
Eu estava desesperada, mas não era idiota. Como alguém poderia
confiar em uma palavra que saía daqueles lábios de salsicha?
Quando a rainha inclinou a cabeça graciosamente, a luz do fogo
demoníaco atravessou as árvores e acendeu a coroa de dentes humanos em
sua cabeça.
– Eu preciso que você encontre uma fada para mim – disse ela.
Minha boca se abriu em choque. Eu não estava esperando por isso.
Tyrius praguejou.
– Uma fada? Ela está de brincadeira? – Uma fileira de pelo em suas
costas se eriçou. – Nós viemos a este festival fedorento de fadas pra
procurar uma maldita fada?
Com seus olhos em Tyrius, Isobel se inclinou para frente em seu sofá.
– E quem é você mesmo? O jantar? – Seus olhos brilharam. – Ah, você
parece delicioso. A carne de um demônio de raça pura é sempre mais
macia.
Dito isso, todos os cortesãos da rainha riram, seus olhos estavam em
Tyrius e suas bocas abertas, salivando como se já imaginassem ele como
um prato de filés de baal.
O gato deu um meio sorriso e disse com uma voz clara:
– Sou sua fada madrinha. Espere um segundo enquanto eu tiro minha
varinha mágica da minha bunda.
– Tyrius! – retruquei baixinho, vendo Daegal puxar seu arco. Essa
maldita fada era rápida.
– O quê? – Os olhos azuis do gato brilharam ao olhar para mim. – A
Fada do Dente acabou de me ameaçar, Rowyn. Eu não vou simplesmente
me curvar e engolir.
Um calor subiu para o meu rosto quando senti um pico de adrenalina.
Eu odiava fadas. Contudo, odiava ainda mais essa rainha.
Isobel apertou os lábios vermelho-rubi em uma linha fina. Seu rosto
brilhou com uma beleza repentina e terrível. Ela se endireitou com seus
olhos escuros mortais em nós. A energia na sala ficou gelada. A tensão
continuou a aumentar, assim como os suspiros fervilhantes das fadas.
Merda. Meu coração batia forte e minha respiração ficou mais rápida.
– Tyrius, pare de falar. Nem mais uma única palavra. Você vai acabar
nos matando.
Meus dedos envolveram o cabo da minha lâmina. Se Daegal colocasse
uma flecha no arco, minha lâmina da alma encontraria seu pescoço
primeiro.
– Rowyn está certa – disse Danto. Ele estava perto o suficiente para eu
sentir o cheiro de sangue velho exalando dele como uma colônia, o aroma
fez meu estômago revirar. A tensão o fez cerrar os dentes. – Esta não é uma
luta que podemos vencer.
– Que nada. – Tyrius não parou de zombar da rainha. – Ela não vai nos
matar, pois precisa de nós. Se está desesperada o suficiente para recorrer
aos serviços de uma Caçadora, não fará tal coisa.
Suspirando, olhei para cima e encontrei o olhar da rainha, esperando
que Tyrius estivesse certo.
– Vou precisar de mais detalhes antes de tomar minha decisão – falei.
Isobel deu um olhar irritado para Tyrius antes de voltar os olhos para
mim.
– O nome da fada é Ugul. – Ela pronunciou o nome dele como se
tivesse um gosto amargo na boca. – E ele matou meu filho.
Agora eu estava realmente curiosa.
A rainha enrijeceu em seu trono. Ela olhou para mim por um segundo.
Havia raiva e dor em seu rosto. Então, elas desapareceram e a mulher
sorriu.
– Eu quero que você o encontre e o traga para mim. Vivo.
Estudei o rosto da rainha. Ela realmente devia estar querendo encontrar
esta fada se tinha buscado a minha ajuda. Contudo, havia algo de errado na
maneira que Isobel falava comigo, pronunciando cada palavra
cuidadosamente como se fosse ensaiada. Mesmo quando seus lábios se
moviam, seus olhos falavam outra coisa.
– Você tem alguma ideia de onde ele está?
O rosto da rainha estava inexpressivo quando disse:
– Elysium.
Meus olhos se arregalaram. Na mitologia grega, Elysium é o conceito
de vida após a morte, mas, para nós, paranormais, ele também é um mundo
subterrâneo que fica na cidade de Nova York, sob Manhattan.
A verdade era que os lendários habitantes dos túneis e mendigos da
cidade de Nova York eram híbridos vivendo sob os túneis, cavernas e
antigos sistemas de metrô abandonados de Manhattan. A maioria deles fora
rejeitada por seus clãs ou estava doente e enferma, mas alguns
simplesmente preferiam viver como mendigos. Elysium era gigantesco,
com milhares de lugares para se esconder. Não é à toa que as fadas não
tinham conseguido encontrar esse tal de Ugul.
O rosto da rainha estava esperançoso, contudo, seus olhos estavam
duros, deixando-me com a sensação de que havia algo mais que ela não
estava me dizendo.
– É isso? – perguntei. – Você não tem mais nada para me contar?
A mulher me encarou.
– Isso é tudo que você precisa saber.
Olhei para Tyrius e ergui as sobrancelhas.
– Não consigo sentir mentira em suas palavras – disse o gato, lendo a
pergunta em minha mente.
Danto inclinou a cabeça. Eu tentei não estremecer quando senti seu
cabelo roçar no meu pescoço.
– Mas isso não significa que ela está nos contando tudo.
O vampiro se inclinou para trás e se endireitou. Seus olhos estavam
fixos na rainha.
– Por que você convocou Rowyn? Por que não pedir a um de seus
Flechas Negras para procurar essa fada? – Sua voz agora estava clara, mas
cheia de ódio profundo, como se fosse um grande esforço apenas falar com
ela. – As fadas nunca procuram a ajuda de estranhos porque ninguém
jamais confiaria em você.
A rainha Isobel zombou. Suas feições puxadas para trás a faziam
parecer um felino.
– Por que você está aqui, vampiro?
Os dentes levemente cerrados de Danto eram o único sinal de seu
ressentimento.
– Estou aqui para garantir que não sacaneie Rowyn com esse pedido. Eu
conheço você. Eu sei o que você fez… do que é capaz. Eu não deixarei que
a machuque.
Um calor subiu no meu rosto e rezei para que ninguém tivesse notado.
Meus nervos estavam à flor da pele.
O rosto da rainha se contorceu em um sorriso perverso.
– E eu conheço você, Danto de Luca. – Danto ficou imóvel. – Você não
é um líder. Não merece o título de líder dos vampiros, ele nunca lhe
pertenceu.
Respirei fundo e olhei para Tyrius, que encolheu os ombros como se
dissesse “eu não sei de nada”. Que diabos foi isso? Quando olhei para
Danto, seu rosto estava rígido de frustração, mas ele não olhava para mim.
O sorriso de Isobel se alargou com o desconforto dele.
– O título só foi concedido a você porque você era o vampiro mais
velho, o favorito de Oros. Todos sabemos o que aquele velho tolo fez.
Sabemos que Oros mudou os votos a seu favor. – Isobel estalou a língua. –
Os vampiros não o apoiam. Eles sentem que seus votos não foram levados
em consideração. – Ela mostrou os dentes. – Stefan é o verdadeiro vampiro
Chefe da Corte de Nova York, não você. Ele tinha o apoio. Você roubou os
votos dele e, por isso, nunca terá o apoio das outras Cortes de Vampiros.
Droga. Senti como se tivesse acabado de entrar em uma novela
vampiresca. Achei que conhecia Danto por trabalhar como Caçadora. Nos
cruzamos muitas vezes ao longo dos anos. Acontece que eu realmente não o
conhecia.
– Queria ter trazido pipoca – disse Tyrius, contorcendo a boca. – Isso é
um assunto bem pesado.
Eu não estava a fim de ser arrastada para o drama fadas-vampiros, mas
não podia simplesmente me virar e ir embora. Eu não tinha decidido se
queria aceitar o trabalho. Querendo ou não, a conversa poderia fornecer
algumas informações valiosas sobre o caráter do vampiro e da rainha.
– Stefan é um dos seus, não é? Um dos seus peões? – acusou Danto,
inclinando-se ligeiramente para a frente com os dedos dos pés espalmados
no chão de terra. – Quantas Cortes de Vampiros você tem subornado ao
longo dos anos? Corrompendo e manipulando suas mentes com suas
mentiras? Dez? Cem? Seus esforços para matar e contaminar vidas sempre
foram para adquirir mais poder para si mesma. – A mandíbula de Danto se
contraiu com força. Seus punhos estavam fechados. – Você queria afundar
suas garras nas Cortes dos Vampiros. Queria controlá-las. Oros sabia disso.
Ele sabia o que estava tentando fazer. É por isso que ele mudou os votos e
me tornou o líder dos vampiros.
– Você não é o líder de nada – sibilou a rainha. – Nem você e nem
aquela vadia nascida-anjo que você exibia por aí. Você é uma vergonha para
sua raça. Traz vergonha ao Tribunal de Nova York.
As feições de Danto enrijeceram e, sem aviso, seus olhos escureceram.
Merda. Ele estava colocando o lado vampiresco dele para fora. Meu sangue
pulsava em minhas veias. Se o cara fizesse alguma coisa, se atacasse,
estávamos todos mortos.
– Danto – pressionei, e acrescentei calmamente, – não faça nada
estúpido. Não é por isso que estamos aqui, não é para isso que você veio.
Lembra? Você veio por mim. Danto?
Isobel riu.
– Dê-me um bom motivo para não o destruir agora mesmo, vampiro.
Ninguém vai se importar se eu acabar com sua vida. Estarei fazendo um
favor às Cortes de Vampiros.
Seus dentes pontiagudos brilharam quando ela deu a ele seu sorriso de
cobra.
– Ah, Rowyn. – O pânico na voz de Tyrius chamou minha atenção. – O
vampiro está prestes a explodir.
Com certeza. As presas e as garras de Danto estavam para fora. Eu não
podia confiar que ele conseguiria manter a calma nessa situação. Se eu não
fizesse nada, nós acabaríamos sendo um bolo de carne para as fadas.
Respirei fundo e olhei para cima para me dirigir à rainha.
– Isso tudo é muito informativo, mas eu não vim aqui para ouvir sobre o
seu drama. – Minha voz ecoou de forma tão clara por toda a câmara que
parecia que eu estava gritando. – Eu tenho que concordar com meu amigo,
o vampiro – falei, olhando para Danto.
Seus olhos ainda estavam negros, mas, felizmente, eu vi unhas, não
garras, nas pontas de suas mãos. Agora, seu corpo parecia mais relaxado.
– Você é uma fada – eu disse enquanto voltava meus olhos para a
rainha. – Por que suas fadas não cuidam disso? Por que eu?
A mulher se recostou no sofá e cruzou as pernas lentamente,
esquecendo seu confronto com o vampiro enquanto sua atenção total estava
voltada para mim.
– Porque elas falharam. – A rainha lançou um olhar sombrio na direção
de Daegal. – É por isso que você está aqui, Rowyn Sinclair. Porque preciso
de você. Você é minha última esperança de encontrar o assassino do meu
filho. E então, Caçadora – seu lábio se curvou para trás, revelando caninos
muito afiados, o que me deu arrepios enquanto eu olhava em seus olhos
negros –, nós temos um acordo? Vai me ajudar a encontrar o assassino do
meu filho?
Senti como se algo apertasse meu peito enquanto analisava suas
palavras, procurando por armadilhas e brechas em sua fala. Porém, tudo
parecia certo.
– O que você quer fazer, Rowyn? – perguntou Tyrius. Sua expressão
preocupada apertou meu peito. – Quer fazer isso ou não? Você não precisa
dizer sim. Encontraremos outra maneira de conseguir esses vinte mil. Todos
nós podemos sair agora e esquecer que já conhecemos a Fada dos Dentes –
ele acrescentou alto o suficiente para Sua Majestade ouvir. Eu amava aquele
gato idiota.
Não, eu não precisava dizer sim, mas com a data do pagamento se
aproximando, sabia que este trabalho era minha melhor chance de salvar a
casa da minha avó. Procurar uma única fada não parecia tão ruim. Inferno,
parecia até fácil demais.
– E o pagamento?
Eu não ia caçar uma fada para Sua Majestade sem algum tipo de
pagamento. Eu não era idiota.
A rainha levantou a mão e gesticulou para seu comandante dos Flechas
Negras.
– Dê a Daegal os detalhes da sua conta bancária. Nós lhe enviaremos
dez mil esta noite. Manterei a outra parte como garantia. Você a receberá
quando me trouxer Ugul.
– E se eu não conseguir encontrar sua fada… você enviará os Flechas
Negras atrás de mim? – perguntei, lembrando das histórias que minha avó
me contara sobre os nascidos-anjo que iam para Elysium e nunca mais eram
vistos. Também ouvi dizer que o lugar era cheio de Rifts, portais
demoníacos que se abriam e sugavam você para o Submundo.
A rainha suspirou, visivelmente reprimindo seu aborrecimento.
– Eu nunca faria isso, sua boba – ela ronronou, o que fez eu me arrepiar.
– E antes que você pergunte, poderá ficar com os dez mil pelo seu trabalho.
– Nunca é tão fácil assim – retruquei.
Já tinha sofrido minha cota de clientes insatisfeitos quando as coisas não
saíam do jeito que queriam. Geralmente, eles pediam seu dinheiro de volta.
– É sim – disse a rainha. – Você tem minha palavra.
Certo. Como se isso significasse alguma coisa para mim. Como eu
poderia confiar em uma fada com uma coroa de dentes humanos na cabeça?
Não podia. Contudo, eu confiava minha vida a Tyrius. Quando ele deu um
leve aceno de cabeça, eu soube que a mulher estava sendo sincera – ou,
pelo menos, ela achava que estava.
– Você receberá seu dinheiro – disse a rainha. – Eu vou confiar em você
para cumprir sua parte do acordo, Caçadora. Você é altamente recomendada
na comunidade.
Desviei meus olhos para Daegal e me encolhi quando percebi que ele
estava me encarando o tempo todo. Seu pequeno sorriso fez meu rosto
queimar. O bastardo estava me desafiando a dizer sim, como se ele pensasse
que eu estava com medo de aceitar o trabalho. De jeito nenhum. Eu não
tinha medo de fada alguma.
– Então? – a rainha Isobel questionou enquanto cutucava as unhas.
Diante da visão, um sinal de alerta ressoou em minha mente. – Você aceita?
Vai me trazer Ugul?
Meu pulso acelerou com a ideia do que eu estava prestes a fazer. Eu?
Caçando uma fada? Eu odiava fadas.
Olhei para Tyrius uma última vez antes de dizer:
– Temos um acordo. Vou encontrar sua maldita fada.
Capítulo 7

T yrius estava deitado de costas na minha cama, com as patas abertas para
cima, expondo sua barriga. Tínhamos passado a maior parte da noite e o
início da manhã examinando o metrô de Manhattan e os mapas da ferrovia
Amtrak, procurando alguns pontos de entrada que nós sabíamos que
existiam, especialmente um no viaduto da Riverside Drive. Elysium era
uma enorme rede de corredores, motivo pelo qual nós dois estávamos
cansados e mal-humorados quando o sol nasceu e lançou seus raios
amarelos pela janela da minha cozinha, banhando a caixa de pizza vazia.
De repente, Tyrius começou a resmungar.
– O que é agora? – perguntei, tirando meus olhos dos mapas na tela do
meu laptop e piscando para aliviar a queimação nos olhos que sempre sentia
quando olhava por muito tempo e muito perto de uma tela. – Bola de pelo?
A cabeça do gato siamês pendeu para o lado.
– Eu me sinto gordo.
Soltei um suspiro exasperado e sacudi a cabeça.
– Você deveria ter pensado nisso antes de comer quatro fatias de pizza.
Afinal… para onde tudo isso vai… nesse corpo minúsculo?
O gato se levantou com um salto e o rabo esticado.
– Realmente quer que eu diga?
– Um pé no saco, é isso o que você é – resmunguei, enxugando os olhos
e sentindo uma dor na nuca. – Por onde quer começar a procurar? Esse
Ugul pode estar em qualquer lugar.
Depois de deixar a Torre Sylph e Sua Fada Real, Tyrius me fizera
prometer levá-lo comigo em minha caçada. Porém, quando me virara com
expectativa para Danto, ele parecera apenas querer distância de nós. O
vampiro foi embora sem se despedir. Sem dúvida, ele estava envergonhado
por termos ouvido as palavras da rainha, que pintaram um quadro muito
diferente do meu amigo vampiro, um mais misterioso.
Um desconforto brotou em meu peito enquanto eu observava o sujeito
desaparecer na noite. Era estranho como as coisas haviam mudado. Eu
realmente me preocupava com o vampiro sugador de sangue. Quem diria
que eu era tão sensível? Talvez eu estivesse perdendo a cabeça. Ou talvez
minha percepção tivesse mudado agora que sabia que Danto e eu tínhamos
algo em comum: nós dois tínhamos essência demoníaca correndo em nossas
veias. Além disso, algo na forma como seus olhos haviam brilhado de dor e
de traição me deixou preocupada.
Eu sabia sobre as Cortes de Vampiros e como elas eram governadas,
mas nunca ouvira falar do vampiro Oros. Acho que foi antes do meu tempo.
Se alguém podia ficar mais entediado que tudo com a política dos nascidos-
anjo ou híbridos, esse alguém era eu. Porém, se o que a rainha dissera era
verdade, Danto era excluído de sua própria espécie, assim como eu.
Os vampiros não aceitariam isso por muito tempo, especialmente se
acreditassem que ele os enganara. Mais cedo ou mais tarde, Danto seria
caçado e morto.
– O que você sabe sobre esse vampiro Stefan? – perguntei enquanto me
recostava na cadeira.
Tyrius parou de se limpar e me encarou com os olhos se estreitando.
– Que ele é um sem vergonha de primeira. O cara se diverte bebendo o
sangue de virgens antes de quebrar seus pescoços.
– Legal – eu disse, afastando um arrepio.
– E se ele está indo pra a cama com a doce rainha das fadas da Corte das
Trevas, é ainda pior. Somente o verdadeiro mal tomaria o partido daquela
cadela híbrida louca. – O rabo do gato se levantou. – Se eu fosse chutar,
diria que ela tentou e falhou em conseguir os votos para Stefan. Isobel
provavelmente está planejando substituir Danto por Stefan neste exato
momento. É uma pena, mas os dias do vampiro melancólico estão contados.
– Por quê? – perguntei, acordando subitamente. – O que ela ganha com
isso?
Tyrius deu de ombros.
– Coisa boa não é. As fadas e os vampiros sempre foram inimigos
jurados. Eu nunca ouvi falar de nenhum grupo ou clã das diferentes raças
trabalhando juntos. Acho que estamos deixando algo passar.
– Concordo, mas não temos tempo para entrar em detalhes agora. –
Afundei na cadeira, pensando no café e em como seria gostoso senti-lo
descer goela abaixo. – Não há mapas de Elysium? – perguntei, bocejando. –
Talvez Bemus e Mani possam ter um? – Empurrei a cadeira para trás e fui
em busca de café na minha cozinha.
– Não existem mapas de Elysium – miou Tyrius. Sua língua rosa se
movia enquanto ele limpava sua pata dianteira direita.
– Por que não? – Virei-me com uma colher de pó de café na mão. – Isso
parece um pouco estranho… até mesmo para nós.
– Particularmente, acho que é porque ninguém nunca se preocupou em
fazer um – disse o gato. – Contudo, pode ter algo a ver com o fato de o
lugar estar sempre mudando. Novos túneis continuam surgindo. Passagens
aparecem e desaparecem, é um lugar amaldiçoado. É como um labirinto
com vida própria.
– Que ótimo. Por que tenho a sensação que me ferrei?
Seus olhos se arregalaram.
– Você está fazendo café? – Com um único salto, Tyrius pulou no
balcão da cozinha e caminhou até mim. Ele levantou uma sobrancelha
enquanto se sentava ao lado da máquina de café. – É orgânico? Você sabe o
que os pesticidas fazem com meu pelo.
Assenti.
– Sim, quero dizer, não, Tyrius. Você sabe o que acontece quando toma
café. Você se transforma. Já vi gatos sob o efeito de catnip, mas você depois
de tomar café… é como uma centena de gatos sob o efeito de catnip.
Lembra o que aconteceu da última vez? O Padre Thomas teve que jogar
água da mangueira em você para evitar que arruinasse o jardim dele.
– Como posso esquecer? – murmurou Tyrius. – O padre me pregou na
parede com a força da água de sua mangueira. Espera, isso soou meio
obsceno. Ah, qual é. Apenas um gole. Pela minha honra de baal, prometo
que não vou enlouquecer. – Ele colocou a pata direita na testa. – Além
disso, eu preciso de um pequeno estímulo. Nós passamos a noite toda nisso.
Eu mereço um pouco de café.
– Você é um falastrão, mas um bonitinho – eu ri enquanto despejava a
água na máquina e adicionava o café. Em seguida, apertei o botão de ligar.
O cheiro era inebriante, ele me despertou apenas com seu aroma.
– Dizem que Elysium é a porta mais próxima do Submundo – continuou
o gato enquanto olhava o café pingar na caneca de vidro. Juro que pude ver
baba se formando nos cantos de sua boca. – E quando digo mais próxima,
quero dizer ao lado dele, onde os planos dos dois mundos se encontram. É
por isso que se você abrir uma porta, ela pode muito bem ser sua última, já
que os demônios do Submundo podem estar esperando do outro lado para
puxá-la para dentro.
Credo. E eu estava indo lá.
Eu não era claustrofóbica, mas a ideia de estar no subsolo em um
espaço apertado, sem saber para onde estávamos indo no labirinto
amaldiçoado, com demônios e híbridos espreitando nas sombras, fez minha
pressão subir.
Depois de servir uma pequena quantidade de café em uma pequena
xícara, coloquei-a na frente de Tyrius. Meus pensamentos se voltaram para
Jax quando olhei para o meu celular no balcão e senti uma pontada em meu
coração. Um fio de calor subiu do pescoço para o meu rosto quando me
lembrei de seu beijo, de sua mandíbula quadrada, de seu peito musculoso
quase sem pelos, daqueles malditos lábios novamente…
Estava sendo uma idiota, fiquei com raiva de mim mesma por me
permitir pensar nele.
– Para de ficar emburrada. Isso não combina com você.
Tirei os olhos do meu celular para encontrar Tyrius olhando para mim.
Seus bigodes brancos estavam manchados de marrom.
– Eu não estou.
Mentirosa. Mentirosa. Mentirosa.
Tyrius fez um som com sua garganta. Seus olhos exibiam uma
descrença divertida enquanto ele lambia os lábios.
– Certo. Você só está brava porque gosta dele e ele não ligou de volta.
– Eu não gosto dele.
Eu queria me socar. Não ter notícias dele deixou um vazio doloroso em
minha alma que nunca esteve lá antes. Eu nunca me apegava aos caras,
nunca baixava a guarda, nunca me deixava apegar, porque, quando me
apegava, as coisas ficavam complicadas. E eu odiava coisas complicadas.
Eu não tinha tempo para complicação. Minha vida já era difícil o suficiente.
Não há necessidade de adicionar mais drama. Então, o que estava
acontecendo comigo?
– Você gosta dele – repetiu Tyrius. – E eu nem preciso ser um demônio
baal para saber que está mentindo. Eu sei só de olhar para o seu rosto, está
todo vermelho.
Mordi o lábio enquanto mais ondas de calor se espalhavam por todo o
meu rosto, sabendo que eu provavelmente parecia um maldito tomate.
– Esquece isso, Tyrius. Estou muito cansada.
– E ele beijou você. Isso deve estar mexendo com essa sua cabeça. – Os
olhos de Tyrius brilharam. – Estou começando a sentir os efeitos do café.
Eu sacudi a cabeça.
– Pensei apenas que ele fosse meu amigo. Só isso, agora, eu não tenho
tanta certeza.
Ouvi uma batida na porta da frente.
Estremeci. Com o coração batendo forte, girei para olhar a porta
enquanto me afastava lentamente do balcão.
– Você está esperando companhia? O Padre Thomas, talvez? –
sussurrou Tyrius.
Quando olhei para o gato, ele estava começando a tremer com os efeitos
do café, parecia que estava prestes a se transformar no Hulk. Ótimo. Isso é
tudo que eu preciso agora, um baal gigante dopado com cafeína.
– Não – murmurei, puxando minha lâmina da alma. Fui até a porta na
ponta dos pés.
As dobradiças da porta balançavam enquanto alguém batia várias vezes.
Eu duvidava que fosse um demônio ou um híbrido. Eles nunca batiam.
Ficou claro, pelas batidas estrondosas, que quem quer que fosse, estava
impaciente.
Envolvendo minha mão ao redor da maçaneta, abri a porta e apontei
minha lâmina da alma para um par de óculos cor de rosa cravejados de uma
mulher gorda de vinte e poucos anos. Seus olhos azuis e redondos estavam
cheios de medo.
Baixei minha lâmina.
– Pam? O que você está fazendo aqui?
Dei um passo para o lado para deixá-la entrar e fechei a porta atrás de
mim. Eu não tinha ideia de que os nascidos-anjo sabiam onde eu morava.
Pam tinha uma marca de nascença em forma de R em seu antebraço, ela era
da Casa Raphael, a casa de nascidos-anjo que formavam curandeiros e
médicos. A mulher era tão inteligente quanto eles.
– Eu sei. Eu sei. Lamento aparecer tão cedo na sua porta assim – disse
Pam, um pouco sem fôlego ao entrar na minha sala. – Eu só… não sabia
mais o que fazer.
Franzi a testa ao ver seu rosto corado e a preocupação em seu tom. Seu
cabelo ruivo estava puxado para trás em um coque bagunçado, exibindo
suas bochechas rosadas. Ela vestia um jaleco branco em torno de sua
cintura grossa, o que me fez pensar se ela tinha saído com pressa ou se
jalecos eram sua roupa habitual.
– Pam! – Tyrius saltou do balcão e correu até ela, seu rabo estava
levantado enquanto ele esfregava o rosto nas pernas dela repetidamente. –
Ah… o cheiro de formol.
A mulher exibiu uma expressão de preocupação.
– Qual é o problema dele? – Ela se ajoelhou e começou a examinar a
cabeça e os olhos do gato, até mesmo abrindo sua boca e verificando seus
dentes.
Embainhei minha lâmina.
– Café.
Pam apenas olhou para mim, mas não disse nada quando Tyrius tombou
e expôs a barriga. Ele começou a ronronar alto assim que os dedos dela
roçaram no seu pelo. O rosto da nascida-anjo abriu um sorriso. Eu não tinha
certeza de quem estava se divertindo mais: Pam ou o baal.
Soltei um suspiro exasperado.
– Pam? O que está acontecendo?
– É Jax – disse ela, seus dedos acariciando gentilmente o pelo de Tyrius
como se ele fosse o último gato na terra. – Não tenho notícias dele há mais
de três semanas. Sempre mantemos contato. Nós fizemos uma promessa
quando éramos pequenos que cuidaríamos sempre um do outro, não importa
o que aconteça.
– O que lhe dá a impressão de que algo está errado? – perguntei,
ouvindo um tom de medo na minha voz que esperava que ela não
percebesse.
Com um esforço, Pam se endireitou, deixando Tyrius de patas abertas
aos seus pés, parecendo um gato morto. Ela empurrou os óculos no nariz
oleoso com um dedo trêmulo.
– Porque – a mulher disse, com seu rosto confuso – ele não retornou
nenhuma das minhas ligações ou mensagens de texto. Isso nunca aconteceu
antes.
Uma tensão recaiu sobre mim ao saber que Jax não estava apenas me
ignorando. Contudo, ela foi imediatamente substituída por um aperto no
peito gerado pelo medo e pela preocupação inconstantes no rosto de Pam.
Quando passei meus olhos sobre suas roupas e seu cabelo, tive a impressão
de que ela tinha dormido com elas nos últimos dias ou não tinha dormido
nada.
O olhar de Pam ficou intenso.
– Algo está errado. Posso sentir isso em meus ossos.
– Então, o que você quer que eu faça? – perguntei, sem entender
completamente o que ela esperava de mim. – Eu também não tenho notícias
dele. Sem falar que você é uma das amigas mais próximas de Jax.
Um lampejo de esperança brilhou em seus grandes olhos redondos e,
naquele momento, eu soube o que ela queria de mim. Fui para a cozinha e
encostei no balcão.
– Você quer que eu o procure, não é?
Um suspiro alto de alívio relaxou os ombros de Pam.
– Você faria isso, Rowyn? – Seus olhos estavam brilhantes e cintilantes.
Ela piscou rapidamente. – Isso significaria muito para mim.
Como eu poderia dizer não depois disso?
– Claro. – Olhei para Tyrius, que me ignorava completamente. Toda sua
atenção estava voltada para Pam.
Ia ficar corrido. Eu não poderia sacrificar mais do que algumas horas
para encontrar Jax. O prazo do banco terminava em cinco dias, então,
postergar as coisas, mesmo que por apenas um dia, seria problemático.
Ainda assim, eu também queria descobrir o que estava acontecendo com
Jax e, agora, eu tinha uma desculpa. Não estava fazendo isso por mim,
estava fazendo pela Pam. Tá bom.
– Bem, já que você o conhece melhor do que todos nós – eu comecei –,
onde acha que eu devo começar a procurar?
Eu era uma Caçadora, um demônio e uma Caçadora híbrida, mas não
uma investigadora particular. Meu trabalho era matar entidades demoníacas.
Todavia, havia realmente uma diferença entre rastrear uma fada e rastrear
um nascido-anjo?
– Tente a casa dos pais dele. – Os ombros de Pam ficaram tensos e seu
alívio repentino foi substituído por uma expressão mal-humorada. – Eu
mesmo iria, mas…
Isso chamou minha atenção.
– Mas o quê?
O rosto dela ficou pálido quando desviou o olhar e olhou para o chão.
– A mãe dele me odeia. Na última vez que fui ver Jax, ela fechou a
porta na minha cara.
Observei a dor e o constrangimento no rosto de Pam e senti minha raiva
aumentar. Eu não conseguia imaginar alguém sendo tão desagradável com a
nascida-anjo. Ela tinha uma alma doce, boa e gentil. Como alguém poderia
tratá-la dessa maneira? Agora eu realmente queria conhecer essa mulher.
– Parece que ela é uma vadia – miou Tyrius, que parecia ter se
recuperado de seu coma induzido por cafeína enquanto se sentava.
– Jax mora com seus pais?
Achei estranho que um homem de sua idade, embora jovem, ainda
morasse na casa dos pais, mas os nascidos-anjo não eram como os humanos
normais. Tinha ouvido falar de famílias que compartilhavam suas casas
com seus filhos e seus netos – já que eram grandes o suficiente para caber
todos.
Sacudindo a cabeça, Pam mordeu os lábios e disse:
– Não. Ele tem sua própria casa em Parks Hollow, mas eu já verifiquei
lá. O porteiro disse que não o vê há semanas.
– Talvez ele esteja de férias na Europa – sugeri. – Jax não tem família
em algum lugar da França?
Os óculos da nascida-anjo escorregaram do nariz enquanto ela sacudia a
cabeça.
– Ele sempre atende minhas ligações, mesmo quando está no exterior ou
fora da cidade. Isso é diferente. – Ela tirou os óculos e esfregou os olhos. –
Às vezes, quando ele pensa na irmã – ela acrescentou, colocando os óculos
de volta –, quando ele não está bem, vai para a casa dos pais.
De repente, o rosto da mulher ficou dois tons mais escuros.
– Eu sinto muito. Você deve pensar que eu sou uma idiota. Eu sei. Eu
sei. Estou pensando demais nisso. Jax é um guerreiro habilidoso. Tenho
certeza de que ele está bem, mas… é que… estou preocupada com ele. Isso
é tudo. – Ela encontrou meus olhos. – Algo está errado, Rowyn. Sei disso.
Estendi o braço, agarrei a mão dela e a apertei, surpreendendo a mim
mesma com o gesto.
– Não se preocupe – falei, sentindo os olhos de Tyrius em mim
enquanto soltava sua mão. – Vou achá-lo. E tenho certeza de que não
aconteceu nada. Talvez ele só precisasse de algum tempo para esfriar a
cabeça depois de tudo o que aconteceu.
– A morte de Cindy provavelmente trouxe algumas memórias sombrias
e dolorosas de sua irmã – disse Tyrius. – Isso afetaria qualquer um.
Pam assentiu. Seus olhos ficaram sem vida e seu rosto empalideceu.
– É isso que me preocupa. – Ela engoliu em seco como se estivesse se
preparando para o que estava prestes a dizer. – A última vez em que
conversamos, Jax disse que sabia… quem matou Gillian. – Seus olhos
estavam fixos nos meus e seus lábios tremiam. – Isso é verdade?
Droga. Eu podia ver que a nascida-anjo desejava que não fosse. Eu
tinha visto o quão desesperado Jax estava para encontrar o assassino de sua
irmã e, agora com o nome do demônio, eu sabia que ele poderia fazer algo
estúpido. Algo muito, muito estúpido. Como ir atrás dele. Sozinho.
Tyrius se mexeu nervosamente. Sua cauda se contorcia atrás dele e eu
sabia que ele estava pensando a mesma coisa.
Jax foi atrás do demônio rakshasa. Droga.
– Sim, é verdade – eu disse suavemente, esforçando-me para continuar
olhando para ela quando vi o pânico em seus olhos. – O demônio Degamon
nos deu seu nome. Strax. Ele é um demônio rakshasa, exatamente como eu
pensava.
O rosto de Pam empalideceu. Ela assentiu solenemente.
– Eu me lembro. Eles são os demônios que se transformam, alimentam-
se das almas dos jovens e oferecem o coração de suas vítimas como
sacrifício ao seu mestre.
– Esses mesmos – disse Tyrius.
A nascida-anjo ficou quieta, muito quieta. A dor e o medo brilhavam
em seus olhos azuis. Suas pernas tremeram e, por um momento horrível,
pensei que ela estava prestes a desmaiar.
Pam jogou as mãos para o alto, fazendo Tyrius pular.
– Ele foi atrás do demônio! O idiota foi atrás dele! – Ela saltou para
frente e agarrou meus ombros mais rápido do que eu pensava ser possível
para alguém do tamanho dela. – Rowyn! – A mulher me sacudiu. – Você
tem que encontrá-lo.
Seus olhos estavam marejados e eu via que ela estava tentando controlar
suas emoções. Contudo, seu medo era visível.
– Ele não está pensando com clareza. Temo por ele. Eu sei do que Jax é
capaz quando está assim. Tenho medo do que ele possa fazer.
O medo embrulhou meu estômago quando me lembrei de como Jax
estava enlouquecido no V-Lounge, o clube de vampiros. Eu sabia com que
facilidade ele podia perder o controle quando se tratava de demônios e de
híbridos; como o cara poderia se perder naquela fome de vingança pela
morte de sua irmã.
Os demônios rakshasa eram cretinos traiçoeiros muito mortais. Eu
nunca tinha matado um, mas sabia que eles eram raros e extremamente
difíceis de rastrear e de matar.
Um calafrio percorreu minha espinha. Fazia meses desde que eu tinha
visto Jax pela última vez. Porém, não foi apenas o demônio rakshasa que
apertou meu peito, fazendo até mesmo eu esquecer de respirar.
Havia também o domínio do demônio Superior Degamon sobre o nome
de Jax. Meu sangue gelou. Com o nome do nascido-anjo, o demônio teria
total controle sobre ele. Sem os feitiços, amuletos e pingentes de proteção
adequados, Jax era uma marionete. Eu tinha lido como fazer isso no
grimório da bruxa das trevas, mas nunca tive a chance de dizer ao homem
como se proteger, já que ele não retornara minha ligação.
E se Jax não fosse mais Jax?
Jax… o que diabos você fez?
Respirei, exalando longa e lentamente, e senti os olhos de Tyrius em
mim. Ele provavelmente sabia o que eu estava prestes a dizer antes mesmo
que eu dissesse. Na minha profissão, ser mole significava a morte. Quando
comecei o negócio de caça, fiz uma promessa a mim mesma de nunca
misturar assuntos pessoais com o trabalho e nunca me envolver
pessoalmente com ninguém no trabalho. As mortes eram comuns na minha
profissão e eu não conseguiria lidar com a perda de alguém importante sem
me comprometer emocionalmente. Não depois de perder meus pais. Eu não
ia passar por isso de novo. Nunca mais.
O problema era que eu podia não estar envolvida, mas estava apegada.
Droga. Eu me importava com o idiota. A rainha das fadas teria que
esperar. Eu não ia abandonar Jax para um futuro incerto como animal de
estimação de um demônio – ou pior.
O pânico começou a tomar conta da minha mente e eu me forcei a
respirar.
– Não se preocupe, Pam – falei, vendo seus ombros relaxarem
brevemente. – Vou encontrá-lo. Eu prometo.
Só espero que não seja tarde demais.
Capítulo 8

E u tinha certeza de que os ricos nunca pegavam o ônibus.


Tyrius e eu tivemos que fazer uma longa caminhada pela Maplehurst
Road, já que a parada mais próxima da casa dos pais de Jax ficava a três
quilômetros de distância. Quer dizer, eu caminhei enquanto Tyrius
cavalgava em meus ombros, comentando sobre as plantas, os jardins
floridos, as calçadas pavimentadas e os gramados bem cuidados.
– Ah, meu Deus. Olha, uma cerca-viva de rosas trepadeiras! Deve ter
custado uma fortuna. Elas não têm um cheiro divino? – exclamou Tyrius,
seus bigodes fazendo cócegas na minha bochecha.
– Na verdade, não.
Eu gostava de rosas, realmente gostava. Só não estava no clima de falar
de jardinagem com um demônio baal. Eu estava cansada, quebrada. Meu
coração não parara de martelar no meu peito desde que Pam saíra do meu
apartamento, duas horas atrás. Minha mente era uma batalha constante.
Havia tanta dor, desespero, culpa e medo. Mordi meu lábio inferior,
pesando os riscos do que estava prestes a fazer por me envolver tanto e
esperando sentir qualquer grão de medo ou de emoção.
Tentei dormir um pouco após a partida da nascida-anjo, mas estava tão
ligada com os pensamentos em Jax e no demônio Degamon que o sono não
veio.
Era culpa minha que Degamon tinha o nome de Jax. Invoquei o
demônio pensando ser mais esperta do que ele, acreditando ter vantagem
com o nome do seu invocador. Acontece que eu estava errada. A bruxa das
trevas Evanora Crow não tinha invocado o demônio. O arcanjo Vedriel
tinha. Eu não esperava por isso, e por causa da minha tolice, provavelmente
arruinei a vida de Jax. Eu tinha praticamente assinado sua sentença de
morte e o matado. Que ótimo.
Cerrando os dentes, subi a rua mais rápido. Minhas coxas pulsavam
com uma energia alimentada pelo medo e pela culpa. O medo era a arma
mais poderosa de todas… e eu o odiava. Eu tinha que consertar as coisas.
O temor me alimentou com uma onda de adrenalina, facilitando a minha
subida, era como se eu estivesse pulando. Meu rosto queimava. Amaldiçoei
Jax por ele atravessar meus escudos mentais com o beijo que me dera.
Reforcei os escudos enquanto subia a rua.
– Você está bem? – Senti o hálito quente de Tyrius na lateral do meu
pescoço. – Está quieta. Quando está chateada com alguma coisa, você
desliga. No que está pensando, Rowyn? Olhos verdes… ombros fortes…
lábios carnudos?
– Estou bem – menti. – Eu só quero acabar com isso para que eu possa
me concentrar em encontrar a fada. Você sabe, o trabalho remunerado.
Aquele que vai salvar a casa da vovó?
– Certo. E eu sou um cupido peludo.
Fiz uma careta, tentando apagar aquela imagem da minha mente.
Tyrius transferiu o peso em meus ombros.
– O que faremos se ele não estiver lá?
Minhas botas batiam na calçada de cimento que brilhava como se fosse
feita de granito.
– Acho que vamos ter que procurar o demônio rakshasa. É a única pista
que temos. A menos, é claro, que os pais dele saibam de alguma coisa.
– E isso se eles estiverem dispostos a compartilhar – disse o gato. –
Você ouviu o que aconteceu com Pam.
O sol da tarde estava alto no céu, brilhando enquanto subíamos. O vento
frio de setembro soprou meus cabelos e refrescou meu rosto quente. Assim
que chegamos ao topo da rua, havia menos casas. Elas ficavam maiores,
com longas calçadas que serpenteavam em torno de grandes lotes. Não
eram casas normais, eram mansões.
Tyrius praguejou.
– Caramba. Vale a pena ser parte anjo, não é? Quanto a Legião paga
para vocês? Apenas os chefes do Submundo têm propriedades como esta e
só se eles puderem ficar no topo do negócio das almas.
– Negócio das almas?
– Almas mortais são como dinheiro no Submundo – disse o gato. –
Quanto mais você tem, mais poderoso é.
Fiz uma careta, incapaz de colocar as palavras na minha boca. Meus
olhos pousaram em uma casa de tijolos vermelhos com altos pilares
romanos na entrada. Fiquei imaginando como devia ter sido crescer em um
bairro como esse. Provavelmente incrível.
– Qual é a casa de Jax? – perguntou Tyrius depois de um momento.
Olhei a propriedade à nossa frente, rodeada por campos verdes. Era uma
mansão Tudor de dois andares estabelecida em torno de um pátio central. O
terreno era emoldurado por bosques com vista para um grande lago
alimentado por uma nascente, ocupado por gansos canadenses e uma grande
garça-azul.
Apontei para a casa Tudor.
– Aquela.
Minha admiração poderia ter substituído meu medo se eu tivesse algum
espaço para essa emoção, mas eu não tinha.
– Você tem certeza de que é aqui que os pais de Jax moram? –
perguntou Tyrius. Sua voz tinha um tom de espanto e de choque.
Olhei meu celular, verificando a mensagem de Pam.
– Esse é o endereço que Pam me deu. – Sorri. – Fecha a boca antes de
engolir uma mosca.
Tyrius bufou e saltou dos meus ombros, aterrissando graciosa e
silenciosamente no chão.
– Não há nada de errado em engolir um lanchinho de proteína.
Meu pulso acelerou enquanto atravessávamos a rua e nos dirigíamos
para a elegante casa Tudor. Minhas botas estralavam no acesso de cascalho
que separava um jardim de roseiras, de lírios e de árvores de bordo altas
antes de levar para as portas principais da casa.
Nenhum carro estava estacionado na garagem quando me aproximei das
enormes portas duplas. Tyrius estava próximo aos meus calcanhares.
Apertei a campainha em formato de uma cabeça de leão. Em outra ocasião,
eu teria levado alguns minutos para admirar os jardins e a arquitetura da
casa, mas, no momento, a tensão se manifestava em meu corpo na forma de
uma dor de cabeça latejante.
– Pare de se mexer, isso faz você parecer nervosa – disse Tyrius, soando
como minha avó.
Olhei para ele.
– Não estou nervosa.
– Hum, Rowyn?
– Eu não estou me mexendo! – sibilei.
O gato arqueou uma sobrancelha enquanto olhava para meus quadris.
– Você acha que é sábio trazer uma lâmina da morte, a espada que mata
anjos, para uma casa de nascidos-anjo?
Empalideci.
– Merda.
Revirei-me sentindo um pânico enquanto tirava minha lâmina da morte
do cinto de espadas. Senti um aperto no peito enquanto me virava e
desesperadamente lançava um olhar ao redor para encontrar um lugar onde
eu pudesse escondê-la. Ali. Pulei na direção do grande vaso de cerâmica
verde em que impatiens brancas e gerânios vermelhos transbordavam e
enfiei minha lâmina da morte no solo até que ela estivesse coberta.
– Pronto, isso deve ajudar – falei, dando um passo para trás e colocando
minhas mãos em meus quadris assim que as portas da frente se abriram.
Um homem apareceu na soleira e eu fiquei paralisada. Esperava ver a
mãe de Jax. Eu tinha preparado mentalmente uma frase inteligente caso ela
tentasse bater a porta na minha cara. Contudo, era um homem. Ao ver seus
cabelos e olhos escuros, bem como sua aparência dura, algo me disse que
ele não era o pai de Jax.
O sujeito era muito alto. Eu precisava arquear minha cabeça para trás
para vê-lo por inteiro. Cabelos brancos eram visíveis em suas têmporas,
marcando seu cabelo preto opaco, que era curto, mas sem estilo. Ele exibia
confiança. Seu rosto levemente enrugado possuía um longo nariz de falcão
e uma cara fechada. O homem usava uma calça cinza com uma camisa
preta social, que servia perfeitamente nele. Através da gola de sua camisa,
avistei uma marca de nascença em forma de P. O selo do Arcanjo Miguel.
Ele era da Casa Miguel, assim como Jax.
– Sim? – indagou o desconhecido com uma voz ligeiramente
zombeteira.
Tyrius riu.
– É impressão minha ou acabamos de entrar em um episódio de
Downtown Abbey? Ele é um pouco carrancudo para um mordomo, mas
quem sou eu para julgar?
O cigarro e o isqueiro em sua mão me diziam o contrário. O homem
abaixou as sobrancelhas em aborrecimento. Talvez ele fosse um membro da
família ou um amigo? O sujeito passou os olhos sobre mim muito
lentamente, suas sobrancelhas subindo centímetro por centímetro.
– Quem é você?
– Ela é a Mãe dos Dragões – entoou Tyrius – e eu…
– Meu nome é Rowyn, Rowyn Sinclair – falei rapidamente, antes que o
gato o fizesse bater a porta na nossa cara.
Uma leve mexida em suas sobrancelhas me disse que ele ouvira falar de
mim.
– Estou procurando Jax. Ele está aqui? – Levantei a cabeça tentando ver
além dos ombros largos do homem, mas tudo o que vi foram painéis de
madeira.
O olhar do nascido-anjo era frio e intenso. Seus olhos eram castanhos
escuros, quase pretos e, quanto mais eu olhava, mais percebia que ele não
estava piscando. Isso era assustador.
Odiei o sorriso que ele deu com seus lábios finos, dizendo:
– Rowyn Sinclair. A Caçadora. Ouvi muito sobre você. E não foram
coisas boas. Muitas coisas loucas são ditas ao seu respeito.
– Bem, sou especialista em loucura. – Encontrei o olhar frio do homem
enquanto Tyrius bufava. – Jax está aqui? Sim ou não?
Ele se inclinou contra a soleira e gesticulou com a mão.
– Ele está aqui. Você pode esperar na sala enquanto eu o chamo.
Soltei a respiração que não percebi estar prendendo.
– Ele está aqui? Aqui… nesta casa?
Meu coração martelava em meu peito. Jax está vivo!
– Sim, foi o que eu disse – respondeu o homem, pronunciando cada
palavra como se estivesse falando com uma criança pequena.
O alívio fez meus joelhos tremerem. Eu lutei para não exibir minhas
emoções. Jax estava aqui. Ele estava vivo e seguro. Porém, por que ele não
ligara? Por que não entrara em contato com Pam?
Sorri para Tyrius e segui adiante.
O sujeito esticou o pé, bloqueando a entrada.
– O demônio baal não. A Sra. Spencer é alérgica. Ela não vai querer vê-
lo em casa. Só você.
Explodi de raiva e fiquei tentada a chutar seu pé para tirá-lo do nosso
caminho.
– Somos uma equipe. Ele vai aonde eu vou.
O homem enrijeceu de repugnância.
– Aqui não. Como eu disse, nada de animais.
Tyrius mostrou ao homem alto seus pequenos dentes pontiagudos.
– Prometo que não vou soltar pelos.
O nascido-anjo o ignorou.
– Você pode esperar do lado de fora ou entrar sem o demônio. A escolha
é sua.
Resolvi esperar do lado de fora, mas Tyrius roçou na minha perna,
interrompendo minha resposta.
– Tudo bem – disse o gato secamente, então, olhou para mim. –
Esperarei por você aqui. Acho que vocês precisam conversar em particular
de qualquer maneira. – Ele me deu uma piscadela e se sentou no degrau. –
Porém, se precisar de mim, é só dar um grito que eu vou ouvir… – Ele
encarou o homem. – Este animal aqui tem uma audição muito boa.
Mordi o interior da minha bochecha para esconder a risada que
ameaçava explodir e segui o estranho.
Fiquei boquiaberta. O exterior era notável, mas o interior era
impressionante. Quilômetros de painéis de madeira trabalhados se
estendiam em todas as direções, todos polidos e brilhantes. Uma grande
escadaria com dois lados dividia a casa ao meio. Sorri, imaginando Jax
deslizando pelo corrimão quando criança.
As paredes estavam decoradas com pinturas e lambris. Todo o
mobiliário parecia um design do século XIX. Era elegante, com muitos
detalhes em madeira.
Seguindo o homem, entrei em uma sala à esquerda da escada. Ela tinha
um ar bem masculino, com muitos sofás e cadeiras de couro marrom e
madeira escura polida, que se destacava lindamente contra as paredes
brancas. Um tapete persa antigo em tons profundos de vinho, de azul e de
dourado se destacava contra o piso escuro de madeira.
No fundo da sala, havia uma enorme lareira de calcário, que estava
vazia no momento, mas que poderia ser ideal para assar um veado. A luz se
derramava pelas janelas altas, banhando o cômodo com um brilho dourado.
Sobre a lareira, havia um enorme retrato de uma beldade de cabelos
claros em um vestido azul. Sra. Spencer? Não. Seu rosto era redondo e
jovem. Era uma menina, por volta dos onze ou dos doze anos. Ela tinha os
mesmos olhos de Jax…
– Espere aqui – disse o homem, trazendo minha atenção de volta para
ele. – E não toque em nada. – Ele girou nos calcanhares e desapareceu pelo
corredor.
E não toque em nada. Certo, porque todos os Caçadores eram ladrões.
Agora, é claro que eu tinha que tocar em tudo.
Sorrindo, atravessei a sala em direção a estante e corri meus dedos pelas
bordas. Suspirando, peguei uma pequena escultura que parecia um homem
com uma espada. Espera. Não era um homem, era um anjo. Eu a coloquei
de volta e corri meus dedos pelas lombadas dos livros, imaginando como
devia ser possuir uma biblioteca tão incrível.
Minha mente se voltou para Jax. Eu não tinha certeza se deveria socá-lo
ou chutá-lo quando o visse.
Meus olhos se fixaram em um porta-retrato. Lá estava Jax, talvez com
dez anos. Ao lado dele, havia uma garota aproximadamente da mesma
idade com o rosto igual ao dele. Gillian, sua irmã gêmea. Ela era idêntica ao
nascido-anjo, só que com feições femininas. Eles eram tão fofos juntos,
rindo livremente como todas as crianças fazem. Senti uma pontada no peito.
A jovem morrera pouco tempo depois que a foto fora tirada.
Meus olhos dispararam para as paredes onde mais fotos de Gillian me
encaravam. Devia ter uns cinquenta porta-retratos. A maioria era dela. A
menina estava em todos os lugares. Havia fotos de quando ela era bebê, dos
gêmeos juntos quando criança, de aniversários e de viagens, mas a maioria
era dela.
– Isto é um santuário – sussurrei. Os cabelos da minha nuca se
arrepiaram.
Senti-me mal apenas por estar na sala, era como se eu tivesse entrado na
memória particular de alguém.
– Rowyn Sinclair, que surpresa. – Ouvi uma voz feminina, melancólica
e firme.
Virei-me. Uma bela mulher com cabelos sedosos cor de mel amarrados
em um coque pesado e baixo estava na porta. Ela usava calças pretas justas
com uma blusa combinando. Era austera e fria. Seu corpo era esbelto, do
tipo de alguém que malhava por anos na academia. Ela era mais baixa do
que eu, mesmo com os saltos que lhe davam cinco centímetros a mais de
altura. Linhas finas marcavam sua testa e ao redor de seus grandes olhos
verdes. Havia uma taça de vinho em sua mão. Seus dedos eram adornados
com todas as pedras preciosas possíveis. Seus olhos estavam fixos em mim.
Os olhos de Jax. O rosto parecia mais velho, mas era o mesmo do retrato
acima da lareira.
Sim. Eu estava olhando para a mãe de Jax e sua expressão era de puro
desgosto.
Capítulo 9

N ão tinha certeza se gostava da forma que ela me olhava, como se eu


fosse um rato em cima do seu tapete persa caro.
– Sra. Spencer – eu a cumprimentei, minha língua parecendo gorda e
inútil na minha boca seca.
A Sra. Spencer tomou um gole de seu vinho. Seus olhos não se
desviaram do meu rosto enquanto me encarava como se eu fosse uma
sujeira em sua linda casa.
– Então, você é a Caçadora?
Ela atravessou a sala e se sentou na poltrona de couro mais próxima de
mim, sem dúvida em uma tentativa de me intimidar. A mulher estava tão
perto que eu podia sentir seu perfume e o vinho em seu hálito.
Ela não batera a porta na minha cara, mas poderia muito bem ter feito.
– Sim.
Jax, onde diabos você está?
Percebi seu olhar furioso e senti o cheiro de algo que lembrava cigarro.
– Conheci seus pais uma vez – disse a Sra. Spencer. Eu enrijeci quando
ela deu uma risadinha. – Receio não haver muito o que dizer. Seu pai era
sem graça e sua mãe não tinha muito para se admirar. Eles não tinham
muito a oferecer à sua Casa ou à Legião. Não que isso importe agora. – Ela
sorriu com seus dentes brilhantemente brancos e perfeitos.
Mas que diabos é isso?
– Ela era alta, assim como você, mas comum e simples – Ainda
sorrindo, a mãe de Jax tomou um gole de vinho e manchas vermelhas
marcaram seus lábios. – Você se parece com ela.
Eu queria dar um tapa nessa mulher. Enfrentei toda a força de seu olhar
e rebati com o meu. A mulher personificava a elegância aterrorizante que
parecia fazer parte das famílias pioneiras ricas.
Eu não ia deixá-la me intimidar. Não me importava quanto dinheiro ela
tivesse. Isso não significava nada para mim.
A Sra. Spencer me examinou da cabeça aos pés. Sua boca perfeitamente
formada se contraiu e pude ver através de seus olhos que ela não gostou do
que viu. Comparada com sua elegância e sua personalidade perpetuamente
serena, eu provavelmente parecia um macaco com roupas humanas.
Seus olhos se demoraram em meus dedos. Então, um sorriso malicioso
se formou em seu rosto.
O vaso de flores. Corei e enfiei as mãos nos bolsos. Tinha esquecido de
limpar a terra depois de enfiar minha lâmina da morte no vaso. Droga. Que
ótima primeira impressão.
Os lábios perfeitos da mulher se abriram em um sorriso com o
constrangimento repentino que ela viu em meu rosto. A mãe de Jax se
inclinou para frente e seu sorriso desapareceu quando seus olhos se
estreitaram.
– Eu sei o que você é, Caçadora.
Engoli em seco.
– Que legal.
O olhar intenso da mulher era inquietante. Eu podia ver ódio real ali,
ódio por mim. Eu também não tinha certeza se gostava da forma que ela
dizia “Caçadora”, como se a palavra, em si, fosse uma desonra.
– Há sangue de demônio em você, Caçadora – falou a Sra. Spencer,
fazendo-me sentir um aperto no estômago.
– Eu não sei do que está falando – eu disse rapidamente, fervendo por
dentro.
Seu sorriso se alargou com meu desconforto repentino. O prazer
brilhava em seus olhos.
– Sim, há. Você sabe exatamente o que quero dizer. – Ela se recostou de
uma forma graciosa e confiante, como se tivesse acabado de vencer alguma
batalha. – Toda a comunidade já sabe. As notícias correm rápido em nosso
mundo. Você deveria saber disso, Caçadora. Os segredos são sempre
revelados.
Minha bravura desceu por água abaixo. No silêncio repentino, eu podia
ouvir meu coração batendo enlouquecidamente em meu peito. Jax tinha
contado aos seus pais?
Ficou claro que a mulher me odiava. Sim, eu era metade demônio ou
algo muito próximo disso, mas também era metade anjo. Jax não tinha o
direito de contar meu segredo. Senti um ressentimento crescer em mim.
Tinha pensado em maneiras de contar ao conselho, de dizer o que o
arcanjo havia feito comigo e com os outros, mas ainda não tinha resolvido
isso. Parece que agora não precisava mais.
O segredo fora revelado e, pela expressão hostil estampada no rosto
dessa mulher, ele não fora recebido muito bem.
Durante toda a minha vida, fui rejeitada pelo conselho e pelos outros
nascidos-anjo. Tudo porque eu era diferente. Porque não era Marcada.
Contudo, isso era pior. Muito pior. Eu fazia parte das criaturas que eles
haviam jurado matar, seus inimigos jurados. A essência demoníaca pulsava
em minhas veias.
Agora que meu segredo tinha sido revelado, o conselho me caçaria?
Olhei para ela e mordi meu lábio. Lágrimas de frustração brotaram, mas
eu as afastei. Com raiva, eu me recompus e me endireitei. Não teria
vergonha do que eu era.
Eu iria me aceitar do jeito que era.
Olhando diretamente para a Sra. Spencer, sorri desafiadoramente.
– Então, você sabe. – Não fazia sentido negar agora. – Grande merda.
As belas feições da mulher se contorceram.
– Por que você está aqui? – A pergunta parecia uma acusação. – Louis
me disse que você está procurando meu filho. Seu contrato com o conselho
foi cumprido. Não há razão para você vir na minha casa. Então, o que quer
com ele?
Enrijeci enquanto a mamãe querida me observava silenciosamente,
avaliando-me. Minha cabeça doía. Respirando devagar, olhei para cima.
Abri minha boca para dizer para ela enfiar sua atitude em sua bunda rica e
de classe alta… mas Jax entrou na sala, seguido pelo homem que presumi
ser Louis.
Ele olhou para mim e, por um momento, esqueci onde estava. Droga, o
nascido-anjo era bonito, muito bonito.
Ele entrou na sala com sua elegância costumeira, mas havia um tom
apressado em seus movimentos, como se estivesse desconfortável, nervoso.
Jax estava tão bonito e hipnotizante como sempre, embora seu rosto
perfeito exibisse preocupação. Ele usava um jeans casual e uma camiseta
justa que exibia seu peito e braços musculosos com perfeição. Com a
claridade da sala, eu podia ver olheiras em seus olhos. Elas contrastavam
com seus olhos verdes vibrantes. Havia uma escuridão em seu olhar que eu
nunca tinha visto antes e isso o fez parecer mais velho. Havia uma dor e
exaustão lá.
O nascido-anjo passou a mão sobre seu cabelo castanho escuro
despenteado. Ele parecia mais magro do que eu me lembrava. Havia
cansaço em seus olhos e em seu rosto, como se Jax não dormisse há dias.
Nossos olhos se encontraram e meu coração saltou em um galope.
Todos os meus pensamentos se dissolveram como orvalho sob o sol da
manhã. Droga, ele é lindo. Não havia vergonha nenhuma em pensar isso.
Jax correu seus olhos sobre mim de uma forma que fez minhas orelhas
queimarem.
– Rowyn? – indagou ele enquanto se aproximava. Inalei seu cheiro
almiscarado. Era tão bom que devia ser ilegal. – O que está fazendo aqui?
Meu rosto ardeu e eu levantei uma sobrancelha. Não tinha certeza se
gostava do seu tom.
– Conversando sobre antiguidades com sua mãe – rebati. – O que você
acha?
– Eu gostaria de saber por que uma Caçadora está em minha casa –
disse a Sra. Spencer, com seus olhos brilhantes fixos nos meus. –
Especialmente esta. Ela é rude, suja e repulsiva. Terei que limpar os tapetes
quando ela sair.
Essa doeu. Cerrei meus dentes enquanto ódio pela mulher atravessava
meu corpo.
Jax desatou a falar no que parecia ser um francês muito rápido. Ele
manteve a voz baixa, mas não havia como disfarçar a raiva contida nela.
– Sim, sim – disse a Sra. Spencer, impacientemente acenando com a
mão para o filho. – Então, ela salvou sua vida? Todos nós já ouvimos a
história, querido – falou enquanto compartilhava um sorriso secreto com
Louis. – Porém, não se esqueça que era o trabalho dela mantê-lo vivo. Se
você morresse, ela não receberia o pagamento. Os Caçadores só pensam em
dinheiro, é sempre assim com eles.
Minha pressão subiu quando Jax lançou um olhar nervoso para sua mãe
e, então, virou-se para mim.
– Você não deveria estar aqui.
Soltei um rosnado baixo, não tendo certeza se era dirigido à Sra.
Spencer ou a Jax, talvez ambos.
– Vim porque eu… Pam estava preocupada. – Meu temperamento
explodiu como gasolina jogada em uma fogueira. – Você tem razão. Não
deveria ter vindo aqui. Falha minha.
Odiava ter uma plateia quando me sentia e parecia uma tola.
– Dane-se. – Eu fervilhava. Tirei minhas mãos dos bolsos. – Agora que
vejo que você está vivo, vou embora.
A ira brilhou nos olhos de Jax. Quando fiz menção de me mover, ele
agarrou meu braço e disse:
– Rowyn, você não entende.
Soltei-me e coloquei minhas mãos sujas nos quadris, não me
importando que todos vissem a sujeira nelas.
– Comece a explicar, então. O que está acontecendo?
– Louis – ordenou a Sra. Spencer, acenando com o copo vazio para o
homem que abrira porta como se fosse seu criado. Obedecendo, Louis
pegou a taça dela, foi até a pequena área onde ficava o bar e lhe serviu outra
taça cheia de vinho tinto.
Olhei para Jax enquanto o nascido-anjo entregava o vinho à sua patroa.
– Por que você não ligou para Pam? – perguntei com a voz baixa para
ela não tremer. – Ela está surtando, sabia? Pam veio ao meu apartamento.
Esta é a razão pela qual eu vim aqui. – Suspirei esperando que ele
respondesse. – Então?
Jax abriu a boca, depois, fechou-a, claramente lutando para encontrar
uma maneira de me dizer alguma coisa.
Olhei em seus olhos.
– O que foi?
Ele balançou a cabeça e exalou ruidosamente.
– Não posso falar sobre isso agora.
Passei meus olhos em seu rosto.
– Você parece cansado. O que tem feito, Jax? – Pelo receio em seu
rosto, eu sabia que estava certa. – Você não deveria estar fazendo isso
sozinho.
– Eu sei o que estou fazendo.
Estreitei meus olhos, irritada.
– Viemos de tão longe para ver se você está bem. O mínimo que poderia
fazer é ligar para Pam e dizer a ela que está bem…
– Nós? – Jax inclinou a cabeça.
– Eu e Tyrius.
O nascido-anjo olhou para trás como se esperasse ver o gato.
– Onde está Tyrius?
– Do lado de fora, onde eu o deixei – eu disse, sentindo uma pontada de
culpa enquanto lançava um olhar para Louis. – Aparentemente, animais são
proibidos neste precioso estabelecimento.
Seu rosto assumiu uma expressão severa. Ele se inclinou para frente,
perto o suficiente para que eu pudesse ver a barba por fazer em seu queixo.
– Rowyn, eu…
– O que eu quero saber é porque você convidou essa… essa coisa para
dentro da minha casa! – Cuspe voou da boca da Sra. Spencer e o vinho se
derramou no chão enquanto ela segurava a taça com a mão trêmula. A
bebida corria em seu pulso como sangue.
Foi a minha vez de deixar meu queixo cair.
– Eu não sou uma coisa – protestei, chocada. Bem, talvez eu fosse?
Qualquer respeito que eu nutrira por ela ao passar por aquelas portas
desapareceu. Eu tinha sido chamada de muitos nomes desagradáveis ao
longo dos anos, mas coisa? Isso era completamente injusto. Ainda assim,
não fiquei tão ofendida quanto a Sra. Spencer achava que eu ficaria.
Surpreendendo até a mim mesma, não senti nada. Eu teria dito a ela para ir
se ferrar, mas não queria chatear Jax. A mulher cruel ainda era sua mãe. No
entanto, não sabia porque me importava com o que ele pensava.
Encontrei o olhar da mais velha, indiferente às suas palavras. Isso só a
irritou ainda mais. Touché.
– Essa coisa não deveria existir. Ela não deveria ter permissão para
viver. – A Sra. Spencer desviou o olhar do filho e o pousou em mim,
dizendo – Isso deveria morrer.
Legal. Está ficando cada vez melhor.
– Você está parecendo uma louca – disse Jax, dirigindo-se à sua mãe. Eu
podia ver a tensão em seu rosto. – Você está envergonhando a si mesma e
me envergonhando.
– Uma coisa dessas matou sua irmã!
Jax suspirou.
– Pare com isso, mãe.
– Há fedor de demônio por toda parte! – A Sra. Spencer se enfureceu. –
Está no ar, nas minhas paredes, nas minhas fotos! A própria presença dela é
um insulto à sua irmã. Como você pôde fazer isso com ela? Como pôde
fazer isso com Gillian?! O que você estava pensando?!
A mulher estava realmente começando a me irritar.
– Eu acho que sua mãe não tomou os remédios.
A Sra. Spencer se virou para mim. A fúria arqueou suas sobrancelhas
perfeitas. Seu corpo tremeu quando ela levantou sua taça de vinho. Por um
segundo, eu pensei que ela estava prestes a jogar a bebida no meu rosto.
– Cuide da sua vida, mãe – disse Jax, dando um passo e entrando na
frente do copo de sua mãe, claramente pensando a mesma coisa. – Isso não
tem nada a ver com Rowyn.
– Tem tudo a ver com ela! – A Sra. Spencer estava praticamente
gritando. Seus olhos estavam esbugalhados.
Droga. Adoraria que Tyrius estivesse aqui. Ele adoraria ver isso.
– Isso é drama o suficiente por hoje, mãe – disse Jax, seu rosto ficando
vermelho de raiva. – Rowyn não tem nada a ver com a morte de Gillian. Na
verdade, ela me ajudou a encontrar o nome do demônio. – Ele fez uma
pausa, recompondo-se. – Ela é minha… amiga. Como ousa tratá-la dessa
maneira?
Amiga? Senti um aperto no coração. Nós éramos apenas amigos, não é?
Pude ver que minha reação de surpresa agradou a mulher. Seus olhos
brilhavam, triunfantes.
Louis deu um passo à frente.
– Não fale assim com sua mãe, garoto.
A ira sacudiu os ombros de Jax quando ele se virou para Louis. Um
estranho sorriso se formou em sua boca. Ele parecia perigoso e prestes a
atacar.
– Garoto? Eu vou lhe mostrar o garoto…
– Pare com isso! Vocês dois – A Sra. Spencer se levantou, pingando
mais vinho no tapete.
Não sei por que ela estava reclamando que eu era suja quando estava
estragando seu tapete caro sem a ajuda de ninguém. O vinho é mais difícil
de sair do que o sangue. Confie em mim, eu sei.
Louis se virou para a Sra. Spencer. O olhar que ele a deu estava cheio de
admiração e de algo mais. A cena me fez pensar onde estava o pai de Jax.
– Celeste, venha dar uma volta no jardim comigo – disse ele, enquanto
pegava a mão dela. – Isto é culpa minha. Não deveria tê-la deixado entrar.
Se soubesse que você ficaria tão chateada, eu a teria mandado embora. Eu a
teria deixado do lado de fora com seu parente demônio.
Parente demônio?
– Você não precisa mais estar na presença dela – continuou Louis. – Jax
vai mostrar a saída à garota.
Celeste deu um tapa na mão dele e apontou um dedo com esmalte
vermelho para mim.
– Vejo o jeito que essa coisa está olhando para você. – Ela tirou seus
olhos de mim, fitando Jax. – Diga-me que não, Jax. Não com isso.
Senti mais uma onda de calor subindo para o meu rosto. Ah, inferno,
agora estava ficando constrangedor. Infelizmente, senti-me pior quando vi o
rosto de Jax assumir um tom profundo de vermelho.
Celeste olhou para o filho e arqueou uma sobrancelha delicada.
– O que Ellie pensa sobre isso? Ela sabe que você andou brincando com
um demônio?
Ellie? Sentindo-me entorpecida, virei-me e olhei para Jax, mas ele não
me olhou. Senti um aperto na garganta. Por que ele não estava olhando na
minha direção?
Antes que eu pudesse me controlar, soltei:
– Quem é Ellie?
Jax passou a mão pelo cabelo, entregando seu nervosismo.
– Para, mãe. Isso não está ajudando.
Celeste me deu um sorriso vitorioso que me fez lembrar vagamente do
sorriso de Amber. Ela afastou uma delicada mecha de cabelo de seus olhos.
Seu rosto oval exibia uma diversão maliciosa.
– A noiva dele.
Senti um aperto no estômago. Senti como se tivesse sido esfaqueada
com uma lâmina, uma lâmina ardente, entrando direto no meu coração,
cortando-o em pedacinhos.
Acalmei minhas emoções e senti a sala começar a girar. Quando o
encarei, seus olhos verdes pareciam tão implacáveis quanto o mar revolto,
mas ele não negou.
Jax tinha uma noiva. Eu era a maior idiota do século.
– Saia da minha casa… demônio. – Celeste tinha uma expressão de
divertimento em seu rosto.
A palavra foi um tapa na minha cara, assim como ela pretendia que
fosse. Mal ouvi a indignação de Jax com as batidas altas do meu coração
em meus ouvidos. Encontrei o olhar de sua mãe e a encarei.
Meu coração disparou e meu rosto ficou frio.
– Com prazer.
Com isso, saí da sala e fui direto para a porta da frente.
Capítulo 10

E u nãoSequei
vou chorar. Eu não vou chorar. Ah, inferno. Eu estava chorando.
minhas lágrimas antes que Tyrius as visse. Os Caçadores não
choravam. Os Caçadores nunca choravam. Os Caçadores faziam as pessoas
chorarem.
Eu nunca tinha sido tão humilhada na minha vida. E sim, eu tinha
passado pela minha cota de situações desastrosas. Porém, por um minuto
horrível, a mãe de Jax quase, quase me fizera sentir vergonha de quem ou o
que eu era.
Dane-se.
Eu não precisava dela. Eu não precisava de Jax. Eu não precisava de
ninguém. Bem, exceto, talvez, de Tyrius.
Meu humor piorou e a única maneira de remediar isso era matando
alguma coisa. Preferencialmente demônios, embora o rosto de Celeste
continuasse piscando diante dos meus olhos. Droga, aquela mulher fazia
meu sangue ferver.
Depois de ligar para Pam e dizer que Jax estava vivo e razoavelmente
bem na casa de seus pais – porque eu não confiava que o nascido-anjo se
lembraria de ligar para ela –, fui para casa e peguei tanto sal quanto podia
carregar, junto com outros suprimentos, e os coloquei em minha grande
bolsa de couro. Depois de reunir tudo o que precisava para a viagem, comer
um pouco e verificar se meu cinto de armas estava carregado, Tyrius e eu
fomos procurar meu alvo.
Caminhamos pelo Riverside Park. O cascalho estalava sob minhas
botas. Os caminhões estrondosos e os rugidos dos carros ecoavam ao nosso
redor enquanto nos aproximávamos dos arcos de pedra do viaduto da
Riverside Drive – uma das entradas de Elysium.
Quando chegamos, o céu estava de um tom de laranja profundo,
refletindo no rio Hudson como sangue. Era um presságio sombrio ou um
aviso para não entrar? Na boca do túnel largo, que engolia a luz e deixava
apenas a escuridão, estava a entrada para Elysium.
Abafei um arrepio. Não era sábio ir atrás de um híbrido à noite em um
lugar que eu nunca havia estado antes. Um lugar como Elysium abrigava
muitos demônios e Rifts, esperando para levá-los ao Submundo.
Senti meu estômago revirar.
– Devemos nos apressar. Vai escurecer em breve.
Os demônios saíam à noite para se alimentarem da escuridão e das
sombras, isso os dava força.
– Não importa – disse Tyrius enquanto cheirava um muro coberto de
grafite. – Dentro de Elysium é sempre noite. É por isso que a maioria dos
demônios escolhem esse lugar. A falta de luz a torna uma passagem
relativamente fácil para este mundo.
De onde estava, podia ver partes de uma ferrovia em ruínas entrando
profundamente na boca oca do túnel, em um convite silencioso.
– Você está bem?
Olhei para baixo e vi os olhos azuis de Tyrius brilhando de
preocupação. Meu coração se apertou levemente.
– Estou bem. Não se preocupe – eu disse com um sorriso rápido. – Nada
que uma pequena matança de demônios não resolva.
O gato deu um pequeno suspiro.
– Que saco. Eu meio que gostava de Jax, sabe? Ele não era mente
fechada. Não tinha aquela atitude complexa de deus que a maioria dos
nascidos-anjo compartilha. Ele gostava de cerveja e de armas. O cara era
legal.
– Eu sei.
Senti um nó na garganta e suspirei. Eu tinha que matar algo rápido ou
iria perder a cabeça.
– Agora, ele é apenas um idiota de primeira.
– Acho que ele puxou à mãe. – Eu dei um sorriso para Tyrius e levantei
minha bolsa em meu ombro para ela não se mexer enquanto eu puxava
minha lâmina da alma do cinto. Todo cuidado é pouco. – Vamos lá.
Não adiantava ficar parada ali. Quanto mais cedo eu encontrasse Ugul,
mais cedo poderíamos sair de lá.
Eu nunca tinha rastreado uma fada antes e, no meio de todo aquele
fedor repugnante de demônio e dejetos humanos, não seria fácil. Avancei.
Minhas botas batiam ruidosamente no cascalho, então, congelei.
A sensação de estar sendo observada se apoderou de mim como dedos
gelados em volta do meu pescoço. Com o coração batendo e a lâmina da
alma posicionada na minha frente, eu me virei.
Conectando-me com meus sentidos de nascido-anjo e de demônio,
procurei a sensação familiar gelada dos demônios, mas tudo o que senti foi
a onda quente e familiar dos humanos. Nada de entidades sobrenaturais ou
demônios. Nada.
Os humanos passeavam no parque sem sequer olhar para nós enquanto
seguiam seu caminho, ao longo da passarela que margeava o rio. Não pude
sentir demônios ou híbridos, mas eu tinha sentido algo. Tinha certeza disso.
Tyrius estava ao meu lado em um piscar de olhos.
– O que é, Rowyn? Você viu algo? Está tendo aquela sua vibe Jedi?
– Pensei que sim, mas, agora, não tenho tanta certeza.
Não pude deixar de me perguntar se o demônio Superior Degamon
ainda queria um pedaço de mim. Eu tinha matado alguns de seus minions,
mas eles atacaram primeiro. A sensação tinha sido tão rápida que eu não
sabia dizer se era demoníaca ou angelical. Os aliados de Vedriel
eventualmente viriam atrás de mim. Era apenas uma questão de tempo até
que os anjos bundões me encontrassem.
Olhei ao redor do parque, procurando pela sensação de ser observada
novamente, mas ela se fora.
– Não é nada – falei, dando de ombros. – Vamos.
– Se você diz – murmurou o gato enquanto caminhava ao meu lado.
Uma onda de animação misturada com apreensão subiu pelo meu corpo
quando entramos na boca do túnel. Era minha costumeira adrenalina da
caçada. Cheirava a mofo e a poeira, mas o ar também trazia o aroma de
ovos azedos e de podridão. O cheiro se intensificou quando entramos no
túnel – o fedor de híbridos e de demônios. Mais além, senti o lampejo de
algo frio, escuro e poderoso. Um ponto de escuridão apareceu dentro do
túnel e puxou meu peito enquanto um calafrio me percorria. Rifts. Era a
única explicação para uma energia sobrenatural tão forte – as portas para o
Submundo.
Caramba. Eu não queria pensar no que aconteceria se eu acidentalmente
passasse por um desses portais. Já enviara muitos demônios de volta ao
Submundo. Eu duvidava que eles fariam uma festa de boas-vindas.
Escolhi um caminho ao longo dos trilhos. Meus olhos lentamente se
ajustaram à escuridão ao nosso redor. A entrada era grande e escura, mas
com meus sentidos de anjo e de demônio aprimorados, minha visão clareou
como se eu estivesse vendo o mundo através dos olhos de Tyrius. Ele podia
ver no escuro como qualquer gato.
Em pouco tempo, eu parei de ouvir o tráfego barulhento atrás de nós.
Havia apenas o som das minhas botas ecoando ao meu redor. As patas
macias de Tyrius eram silenciosas como de costume.
Depois de uma caminhada de dois minutos pelos trilhos, notei uma
fresta na parede do túnel do lado direito, grande o suficiente para caber um
SUV. Os destroços de concreto estavam jogados abaixo da abertura como se
uma criatura gigante tivesse atravessado do Submundo para o mundo
mortal.
Uma brisa fria e úmida vazou pela fresta, trazendo o cheiro de enxofre,
de carne podre e o odor pegajoso e metálico de sangue.
A energia das trevas era mais forte aqui. Eu quase podia vê-la vazando
pelo buraco da parede como uma névoa negra. Esta era a verdadeira entrada
para Elysium, não o viaduto. Perguntei-me quantos humanos idiotas haviam
vagado pela passagem e nunca mais sido vistos.
– É isso – disse Tyrius. – Não há como voltar atrás após cruzarmos esse
limite. Tem certeza de que quer fazer isso? Não há vergonha nenhuma em
recusar o contrato. – Ele mostrou a língua. – Estamos falando de fadas. Nós
as ODIAMOS, lembra? Podemos conseguir mais trabalho com o Padre
Thomas. Tem muitos demônios do armário nesta época do ano.
– Não – eu disse. – Vou fazer isto.
Eu preciso fazer isso. Precisava trabalhar. Isso me mantinha focada. Se
não o fizesse, estaria rindo de autopiedade, pensando em como fui estúpida
e enganada pelo rosto bonito de Jax. Só de pensar nele, eu sentia uma
pontada aguda de dor no meu peito. Eu sou uma idiota. Ele tem uma
maldita noiva. Ela provavelmente era linda de morrer, uma nascida-anjo
pura de uma família antiga e estupidamente rica, assim como ele.
Enquanto eu era uma mancha no tapete caro de sua mãe.
Meus olhos ardiam. Eu queria me socar. Mandou bem, Rowyn.
Jurei que, quando terminasse essa caçada, encontraria um humano legal
e faria sexo por raiva.
Olhei para baixo e minhas bochechas arderam. Tyrius olhava para mim
com uma expressão de quem sabia o que eu estava pensando. Sempre me
perguntei se os baals podiam ler mentes.
– Quão difícil isso pode ser? É apenas uma fada fedorenta – eu disse,
tentando me concentrar no trabalho e não querendo que Tyrius lesse muito
as minhas emoções. Além disso, meu instinto me dizia que não seria tão
fácil, pois nem os Flechas Negras haviam conseguido localizar sua fada
trapaceira.
– Tem certeza de que não está fazendo isso pelos motivos errados? –
questionou meu amigo peludo.
– Como o quê? Receber vinte mil por uma fada desprezível? – Ajeitei
meu quadril. – Se eu não receber o resto desse dinheiro, minha avó perde a
casa. De jeito nenhum vou deixar isso acontecer. Esse dinheiro, esse
maldito dinheiro das fadas, vai me ajudar a manter a casa dela. É chato,
muito chato, mas é a única maneira de ajudá-la. – Frustrada, cerrei os
dentes. – Eu odeio esses bastardos de orelhas pontudas, mas sou uma
profissional. Eu sei o que estou fazendo.
– Uh-huh – disse Tyrius com uma expressão cética. – Tudo bem. Então,
eu vou primeiro. Me dê cobertura.
Endireitando meus ombros, olhei para frente e afastei todos os
pensamentos de Jax da minha mente enquanto seguia o gato siamês pela
brecha. Meus ouvidos estalaram e fui imediatamente atingida pela sensação
de uma mudança de pressão, que lembrava a aterrissagem de um avião.
Uma vez no limiar, encontrei-me em outro túnel. Ao contrário do metrô
de Nova York ou de um túnel da empresa ferroviária Amtrak, que tinham
paredes de pedra lisa, essas paredes eram rústicas e desordenadas, como se
esculpidas à mão. Elas tinham cheiro de mofo e de terra.
Uma brisa soprou das profundezas da escuridão, espalhando mechas do
meu cabelo pelo meu rosto. Um arrepio percorreu minha espinha. Uma
mistura de teias de aranha e de raízes de árvores brotavam das paredes do
túnel. A umidade era espessa. Senti uma fina camada grudando no meu
rosto e pescoço assim que cruzamos a entrada. O túnel estava silencioso,
exceto pelo suave gotejar de água vindo de algum lugar.
De repente, o chão tremeu e ouvi um estrondo atrás de mim. Quando me
virei, perdi a respiração. A parede do túnel estava completamente lisa, a
superfície rochosa plana e intacta. A entrada para Elysium havia
desaparecido.
– Tyrius – eu disse alarmada.
– Não se preocupe. A entrada está enfeitiçada, mas ainda podemos sair
– falou o gato enquanto se esgueirava ao meu lado, ficando perto da parede.
Ele mordeu a pata. Sangue preto escorreu de sua ferida, então, Tyrius a
pressionou contra a parede. Quando tirou a pata, ficou uma pegada perfeita.
Ele saltou através da parede onde a entrada estava e desapareceu,
reaparecendo no segundo seguinte.
– Viu? Ela quer que você passe, mas também quer mantê-la aqui dentro.
Agora, sabemos qual é a saída.
Gato esperto.
– Estou feliz que você esteja aqui comigo, Tyrius – eu disse, sorrindo.
Tyrius sorriu.
– Fique perto de mim, garota, e sua vida será uma moleza.
Rindo, segui o gato pela passagem. O chão estava coberto de poeira e de
sujeira, sem dúvida do monte de demônios e de híbridos que vagavam por
ali, além de um ou outro humano idiota.
Depois de meia hora caminhando, o ar ficou quente e rarefeito, sendo
substituído pelo fedor de enxofre. O suor escorria pelas minhas costas e
minhas têmporas à medida que ficava mais difícil respirar. Era como se o ar
fosse tóxico e cada respiração fosse forçada. É assim que deve ser o ar no
Submundo.
Mergulhamos em um vazio, em uma escuridão brutal, que sufocava
todo os sentidos de tempo e de percepção espacial. Tyrius continuou
parando e cheirando as paredes com suas orelhas baixas e o rosto contraído
como se estivesse sentindo algo ruim. Seu nervosismo me deixou
preocupada e meu pulso acelerou, deixando-me tonta.
Eu preciso de ar. Ar fresco.
Em meio ao ar quente e fedorento, senti a escuridão fria e o leve fedor
de morte e de podridão.
– Malditos híbridos – eu disse, tentando continuar respirando pela boca.
– Eles sempre escolhem os lugares mais charmosos para ficar. Como podem
viver aqui embaixo? Quero dizer, eu entendo porque os demônios vivem
aqui, eles são demônios, mas os híbridos são parte humanos. Eles não
precisam de um pouco de ar fresco? Eu enlouqueceria se tivesse que ficar
aqui.
– Eles provavelmente não têm escolha – disse o gato. – É isso ou a
morte.
Pingos de suor brotaram na minha testa.
– Eu não sei você, mas meu radar demoníaco está enlouquecido. É
difícil identificar um híbrido em particular. Todos os lugares parecem…
parecem um fluxo de energias demoníacas aleatórias.
– Os Rifts estão fazendo isso – disse Tyrius, sem olhar para cima. – É a
energia demoníaca pura que pulsa dentro deles ferrando com nosso olfato
demoníaco.
Caminhei ao redor de uma pilha de pedras e de escombros.
– Isso vai tornar muito mais difícil encontrar Ugul. Ele pode estar em
qualquer lugar aqui embaixo.
Tyrius olhou por cima do ombro e disse:
– Apenas siga o fedor. Há sempre uma fada no final da bosta.
Eu ri, deixando-me relaxar um pouco. O som do riso ricocheteou nas
paredes do túnel de forma estranha, como se o som, em si, não fosse
permitido.
Tínhamos nos movido mais trinta metros quando Tyrius parou diante de
três túneis igualmente escuros e imponentes que se ramificavam do túnel
principal.
O demônio baal se virou e olhou para mim com seus olhos arregalados.
– Acho que devemos seguir em frente.
Examinei os outros dois túneis.
– O que há de errado com esses dois?
Tyrius deu de ombros.
– Há um veterinário com uma agulha gigante me esperando. – O siamês
estremeceu. – Tá, talvez não, mas há algo maligno lá, especialmente no da
direita.
Limpei o suor dos meus olhos.
– Tá – concordei, sentindo-me inútil.
Minhas habilidades de caça não eram tão eficazes aqui como eu
imaginei que seriam. Sempre que usava meus sentidos, eu recebia de volta a
mesma energia fria e demoníaca, como se ela estivesse vindo da parede.
Podia apostar que os Rifts estavam afetando meus sentidos de demônio e de
anjo.
Droga. Isso não era bom.
Depois de duas horas caminhando, comecei a notar uma crescente
sensação de pânico à medida que nos movíamos. Senti-me muito cansada,
como se minha energia estivesse sendo drenada por este lugar. Uma
sensação nauseante apertou meu peito. Parecia que os túneis estavam nos
encurralando.
Meu coração disparou enquanto eu tentava afastar o pânico dos meus
pensamentos, mas ele voltou dez vezes mais forte.
– Maldito lugar – xingou Tyrius, parando.
Caminhei em direção a ele.
– O que foi?
– Nossas próprias pegadas. Andamos em círculos!
– O quê?
Ajoelhei-me para olhar a terra batida e reconheci as pegadas femininas
tamanho trinta e oito, bem como as patas. Nossas pegadas. Merda.
Senti um aperto na garganta. Estávamos ferrados. Se Tyrius não
percebera que tínhamos andado em círculos até chegar aqui, como iríamos
encontrar o caminho para sair deste inferno?
Levantei-me lentamente com o coração na boca.
– Estamos perdidos.
– E você está invadindo um local privado – disse uma voz vinda das
sombras.
Os cabelos da minha nuca se arrepiaram. Os olhos do gato se
arregalaram com o choque súbito.
Eu não os senti se aproximarem, mas reconheceria o fedor deles em
qualquer lugar: uma mistura de cerveja velha, de frutas podres e de uma
pitada de gambá.
Duendes.
Capítulo 11

Q uatro duendes saíram das sombras e nos encararam, bloqueando nosso


caminho.
Ao contrário da crença popular, eles não eram homens barbudos de dez
centímetros de altura, usando cartolas e roupas verdes; nem ficavam nas
pontas do arco-íris, contando seus potes de ouro. Não. Estes tinham mais de
um metro e oitenta de altura e eram cheios de músculos. Eles pareciam
aqueles homens que passavam tempo demais na academia. Eles eram
grandes. Realmente grandes. Eram mais altos do que eu e duas vezes mais
largos.
Os duendes vestiam apenas jeans e botas de motoqueiro pretas. Seus
peitorais peludos eram cobertos por uma variedade de tatuagens colorida de
caveiras, águias e tribais. Contudo, foi a variedade de armas que me
impressionou muito mais – facas, punhais de caça, espadas curtas, foices,
machados e até martelos estavam amarrados em seus corpos.
O problema dos duendes é que eles realmente não respeitavam as regras
dos híbridos, nem tinham um tribunal ou qualquer senso de lealdade com o
Conselho das Sombras. Isso provavelmente se dava porque, como eram um
produto da relação entre vampiros e fadas, eles eram evitados pelos outros
híbridos.
Não havia uma lei escrita que proibisse os híbridos de se misturarem ou
de terem relações com outros híbridos, mas isso ainda era um tabu e
desaprovado pela maioria das raças.
Outra coisa peculiar com os duendes é que eles eram todos homens – e
estéreis, assim como as mulas. Eles eram uma raça híbrida rara muito má e
raivosa. Totalmente compreensível.
Por serem tanto vampiros quanto fadas, os duendes tinham a força física
dos sugadores de sangue e alguma magia das fadas, contudo, não eram
abençoados com boa aparência ou graça. Não. Eles pareciam mais como
trolls. A melhor forma de descrevê-los era os comparando com membros de
gangues paranormais. Eles eram a máfia híbrida, a quadrilha dos híbridos
fortões.
– Bem, bem, bem – zombou Tyrius. – Se não são os do-endes –
acrescentou, rindo amargamente de sua própria piada. – Saiam do nosso
caminho, leprosos. Não temos tempo para nenhuma de suas baboseiras.
Temos trabalho a fazer.
Eu nunca tinha entendido o profundo ódio do gato por eles e Tyrius
nunca quisera falar a respeito.
Um único duende ruivo se aproximou. Ele usava o cabelo mais
comprido na parte de trás e curto em cima. Acreditei ser o líder.
– Este é o nosso túnel, demônio-bruxo – disse ele, com sua voz seca e
profunda. O duende tinha um sotaque carregado que eu não conseguia
identificar. Ele tinha cabelos e barba branca, linhas de expressão no rosto e
era mais velho. Seus olhos verdes e selvagens ardiam de animação.
– Sério mesmo? – Tyrius se sentou com a cabeça erguida, parecendo
majestoso naquela caverna suja. – Na última vez que verifiquei, Elysium
não pertencia a ninguém; especialmente a vocês, do-endes.
O ruivo rosnou. Fiquei chocada com o quanto o som se parecia com o
rosnado de um lobisomem. Seus dedos sujos se contraíram ao se
aproximarem da espada em sua cintura.
Merda. Empurrei Tyrius para trás com minha perna e embainhei minha
lâmina.
– Nós não queremos nenhum problema – eu disse, embora inclinasse
meu quadril para mostrar a eles que eu estava disposta a causar um pouco
de problema se fosse o caso. – Isso é assunto de Caçador – falei, feliz que
minha voz estava equilibrada. – Não há razão para as coisas se
complicarem. Apenas deixe-nos passar.
O duende sorriu, revelando uma boca cheia de dentes podres.
– Não posso fazer isso, querida. Tá vendo isso aqui? – ele disse quando
estendeu a mão para trás e puxou um machado. Não pude deixar de notar
que a lâmina estava manchada de preto. – Este é o nosso túnel. Nosso túnel.
Nossas regras. Você tem que pagar o pedágio. – Ele passou seus olhos
verdes em minha bolsa e eles brilharam com ganância.
Agarrei a alça protetoramente e dei uma risada azeda.
– Não vou lhe dar merda nenhuma. Esquece.
– Então, você pode se virar e voltar, querida – disse o ruivo, zombando
da cara feia que fiz. – Isso se conseguir encontrar o caminho de volta. – Ele
riu e os outros três trocaram sorrisos confiantes.
– Vamos acabar com eles, Rowyn – disse Tyrius em voz alta enquanto
se levantava em um salto. Ele cravou as garras na terra. – A pessoa que
ainda usa mullet merece morrer. Você pega esses três, deixa o cabeça de
cenoura comigo.
Mexi-me nervosamente. Eu não mataria um duende a sangue frio a
menos que fosse em legítima defesa e não era uma dama indefesa. Inferno,
eu provavelmente poderia acabar com todos os quatro. Porém, o túnel, o
cheiro e a falta de ar me fizeram parar. Quanto mais tempo eu passava ali,
mais minha energia era drenada. Algo simplesmente não parecia certo neste
lugar. E eu não estava disposta a arriscar minha vida ou a de Tyrius.
– Estou cumprindo um contrato para encontrar um híbrido – falei, feliz
por ter toda a atenção do líder. – Eu sou uma Caçadora. É meu trabalho
rastrear desgraçados do mal. Se você tentar me impedir, vou considerar isso
como um ataque à minha pessoa. Não terei escolha a não ser me defender.
Eu poderia até matar você.
O sorriso do duende se tornou malévolo.
– Caçadora ou não, todo mundo paga. Sem exceções.
– Vamos matá-los, Ramis – disse o maior dos duendes, com cabelo
preto curto e uma pele que parecia casca de árvore. – Depois, nós dividimos
o que está na bolsa – ele acrescentou e apontou uma faca para minha bolsa.
– Podemos conseguir um bom preço pelo demônio-bruxo.
Tyrius assobiou e escarrou.
– Vem me pegar, duendinho.
Agora eu estava irritada.
– Vem tentar pegar minha bolsa, garotão. Eu o desafio – eu disse,
sorrindo. Minha mão alcançou o cabo da minha lâmina da alma.
– Como quiser – disse Ramis com uma expressão dura.
Suando, assisti o ruivo afastar a tensão visível de seu rosto até assumir a
postura de chefe de gangue casual e confiante. A pressão do ar mudou e, de
repente, os duendes se agacharam, prontos para atacar.
– Atacar! – uivou Tyrius e eu juro que vi um sorriso em seu rosto.
Os duendes saltaram para a frente.
Meu pulso disparou e eu me abaixei. Minha lâmina da alma estava
apontada para seus rostos antes que um deles conseguisse tirar o machado
de seu cinto.
Girei a lâmina e cortei o ar enquanto eles avançavam, rosnando e
uivando como bestas. Cara, eles eram feios.
Parecia um mar de pele bronzeada, áspera e jeans vindo em nossa
direção como ondas. O cheiro de fruta podre queimava meus olhos. O idiota
grandão se lançou em minha direção. Seus olhos estavam na minha bolsa.
– Espere! – guinchou Ramis.
O duende parou à minha frente, minha lâmina estava apontada para seu
pescoço. Ele recuou com um espanto estampado em seu rosto ao perceber o
quão rápido eu teria acabado com sua vida.
Voltei minha atenção para Ramis. Seus olhos estavam vidrados na
lâmina da morte no meu quadril. Ele a encarou por um bom tempo. Os
outros duendes congelaram.
– Eu ouvi falar de você – disse o ruivo com seus dentes amarelos à
mostra. – Você é a Caçadora, a nascida-anjo com sangue de demônio. – Ele
tomou meu silêncio como confirmação. – Você é mais esquisita do que nós.
– O duende riu e os outros se juntaram a ele. Contudo, foi o líder quem riu
mais.
– Ah, eu tenho que discordar – disse Tyrius sarcasticamente. – Acho que
não há nada mais bizarro do que um bando de do-endes, todos do sexo
masculino, seminus e com mullet.
Um ódio profundo brilhou no rosto de Ramis, mas ele se virou para
mim e disse:
– Tenho uma fraqueza por aberrações. Quem você está procurando?
Impedi meu rosto de exibir minha surpresa e apertei meus lábios,
ponderando o quanto eu deveria dizer ao cara.
– Uma fada que atende pelo nome de Ugul. A rainha das fadas da Corte
das Trevas me enviou – admiti, observando os dedos gordos do duende se
flexionarem em torno de seu machado. – É por isso que estamos aqui… em
seus túneis.
Se esses duendes diziam que os túneis lhe pertenciam, significava que
eles conheciam Elysium. Nosso azarado encontro poderia acabar sendo
muito benéfico. Isso seria útil.
Ramis coçou a barba ruiva.
– O quanto essa fada significa para você?
Não gostei do sorriso no rosto dele. A subsistência da minha avó
dependia de eu encontrar Ugul, mas eu não estava disposta a compartilhar
isso com o duende.
– A fada não significa nada para mim, mas eu tenho uma reputação a
manter. Eu disse que faria o trabalho e farei tudo o que estiver ao meu
alcance para manter minha palavra.
Ramis cruzou os braços sobre seu machado.
– Eu conheço essa fada.
Meu coração saltou.
– Você conhece?
– Onde ele está? – ordenou Tyrius. – Diga-nos.
O sorriso de Ramis não vacilou quando disse:
– Posso dizer onde encontrá-lo, mas você ainda precisa pagar o pedágio.
Vai lhe custar o dobro.
– O dobro! Seus bastardos traidores – vociferou Tyrius. – Vamos acabar
com esses imbecis e encontrá-lo sem a ajuda deles.
Encontrei o olhar de Ramis. Sua sobrancelha se ergueu com a hesitação
em minhas feições.
– Quanto?
Tyrius se virou para mim.
– Rowyn, não! Esses pilantras são como as fadas, só que mais feios.
Você não pode confiar neles. Não pode acreditar em nada que sai da boca
de um duende.
– Não é como se tivéssemos escolha, Tyrius – eu disse. – Não quero
ficar neste lugar fedorento por mais tempo do que o necessário. Eles
disseram que sabem onde ele está. Então, vamos descobrir.
Esperei que os duendes parassem de sussurrar entre si.
– Quanto? – repeti quando Ramis olhou para mim.
O ruivo ainda estava sorrindo quando disse:
– Quinhentos.
Cerrei os dentes, sentindo minha pressão subir e minha cabeça girar.
– O quê? – gritou Tyrius. – Você enlouqueceu. Não temos como pagar
tudo isso. Diga a eles, Rowyn.
Ramis continuou falando como se o gato não estivesse lá.
– Duzentos e cinquenta para o pedágio e outros duzentos e cinquenta
para levá-los até a fada. Sem a gente, nunca irá encontrá-lo. Você sabe que
estou certo, posso ver isso em seus olhos. Você ficará perdida em Elysium
para sempre.
Porcaria. Ele estava certo. Ele sabia disso e eu também.
– Tudo bem. – Peguei minha carteira na bolsa, sentindo o olhar raivoso
de Tyrius em mim. Vasculhei minha carteira. – Eu não carrego tanto
dinheiro comigo – falei, tirando todas as notas enquanto caminhava em sua
direção. – Eu só tenho cento e vinte.
Ramis arrancou o dinheiro das minhas mãos. Ele contou, aparentemente
satisfeito por eu não estar mentindo, então, enfiou o dinheiro no bolso da
frente da sua calça jeans.
– Isso serve.
Franzi a testa, irritada, pois sabia que ele teria aceitado muito menos.
– Por aqui – disse o líder da gangue com um sorriso largo.
– Espere! – exclamei. – E o caminho de volta? Quando pegarmos a
fada, como saberemos qual é o caminho certo?
– Isso mesmo – concordou Tyrius, parecendo furioso por eu os ter dado
todo o nosso dinheiro.
Ramis enfiou a mão no bolso e me jogou uma moeda.
– Ouro de duende – ele disse quando peguei e virei o objeto na minha
mão.
Era do tamanho de uma moeda e parecia mais cobre do que ouro. Eu já
tinha ouvido falar de ouro de duende antes, mas sempre acreditei que fosse
um mito. Assim como as bruxas usavam amuletos e talismãs como
condutores para a magia, eles diziam que os duendes usavam moedas. Cada
uma tinha sua própria habilidade mágica. E essa era o nosso ingresso para
sair deste lugar. Rolando meus dedos sobre ela, pude sentir entalhes, mas
estava escuro demais para distingui-los. Também pude sentir um buraco
bem no centro.
– A moeda ficará mais quente quanto mais perto você estiver da saída.
Mais frio, mais longe.
– Certo. – Embolsei o objeto, esperando que ele não estivesse mentindo
e não tivesse me enganado com uma moeda qualquer.
Com Ramis liderando o caminho, voltamos e o seguimos pelo túnel. Os
outros três duendes seguiram atrás de nós, o grande de cabelo preto ainda
olhando minha bolsa sempre que eu me virava para olhar atrás de mim.
Tyrius reclamava e xingava a cada passo, mas estava seguindo. Não
tínhamos muita escolha.
Então, para minha surpresa, Ramis começou a assobiar e os outros
duendes se juntaram a ele. Minha pele se arrepiou. O som era lindo e
hipnotizante, fazia-me lembrar de prados esvoaçando com flores silvestres.
A melodia era muito diferente e parecia estranha nos túneis escuros. Eu não
tinha ideia de que os duendes eram tão talentosos musicalmente.
– O que diabos é isso? – murmurou Tyrius. – A Branca de Neve e seus
quatro do-endes?
Ramis e os outros não pararam de assobiar suas músicas enquanto nos
levavam de volta pelo caminho de onde tínhamos vindo. Quando chegamos
ao local onde os túneis se dividiam em três, ele nos levou pelo túnel da
direita, aquele no qual Tyrius disse ter percebido uma energia muito ruim.
Chegamos à beira de uma vasta câmara que se erguia quinze metros
acima de nossas cabeças. O chão diante de nós não tinha aquela mesma
terra batida e poeira dos outros. Possuía água fria e imóvel como uma
pedra. No centro da água, havia uma pequena ilha com uma montanha de
rocha com um buraco. Era uma caverna dentro de uma caverna, notei. Uma
luz dourada e suave vinha dela e eu podia sentir o cheiro da fumaça fraca.
A água era um problema.
Assim como gatos reais, os demônios baal a odiavam. Era mais um
medo do que um ódio, na verdade. Eu nunca tinha perguntado a Tyrius o
por quê. Apenas presumi que ele não gostava de banhos. Quando olhei para
o gato, senti um aperto no peito. Tyrius estava parado com os olhos fixos
nas águas negras. O medo brilhava em seus olhos azuis.
– Tem certeza de que este é o lugar? – Olhei para Ramis, esperando que
ele estivesse errado.
– Ele está lá – respondeu o duende, apontando para a ilha de pedra. –
Ugul mora aqui há oitenta anos. É a única fada que vive aqui. Nunca me
preocupei em perguntar o porquê. Ele é reservado.
Exalei lentamente.
– Como eu vou saber se você não está mentindo?
Ramis arqueou sua sobrancelha espessa e vermelha.
– Você não vai. – Ele me observou por um momento. – A fada está lá.
Olhei para a água. Ela estava estranhamente parada. Era como um
espelho preto.
– Qual é a profundidade?
Ramis deu de ombros.
– Não sei. Ugul usa um barco para chegar à costa.
Claro. Quando olhei novamente, vi um pequeno barco a remo amarrado
a um pequeno píer. Minha frustração dobrou quando percebi o que isso
significava – a água era muito profunda para andar sobre ela.
Droga. Eu teria que nadar.
– Parece que você vai precisar nadar. – Riu o duende de cabelos
grisalhos e cavanhaque, lendo minha mente. – Espero que ele valha a pena.
– É bom ele valer a pena – resmungou Tyrius, mas ele ainda não tinha se
mexido.
Olhando através da água misteriosa, perguntei-me quantas fadas tinham
tentado atravessar e haviam falhado. Talvez elas nunca tivessem chegado
tão longe. Talvez tenham pegado o túnel errado e sido engolidas por um
Rift. Ah, bem.
– Não fique muito tempo na água – alertou Ramis.
Virei-me, lutando com meu medo crescente.
– Por que não?
O duende a observava com apreensão nos olhos.
– Eu me apressaria se fosse você – disse ele, mostrando seus dentes
podres. – Boa sorte, querida. Você vai precisar.
Antes que eu pudesse perguntar mais, Ramis e seus companheiros
duendes se viraram e desapareceram no túnel, deixando apenas um baixo
assobio como uma lembrança de que eles realmente tinham estado aqui.
Não consegui mais ouvi-los.
Soltei um longo suspiro e me ajoelhei ao lado de Tyrius.
– Você quer me esperar aqui? Eu entendo se não quiser vir.
– De jeito nenhum! – Tyrius girou e me encarou. – Você tá louca? De
jeito nenhum vou deixar você até a ilha sozinha. Eu só… vou precisar de
uma carona, obrigado.
Ele pulou em meus ombros e se enrolou na minha nuca como um
cachecol peludo. O calor do seu pelo aqueceu meu corpo. Era um conforto
bem-vindo na caverna fria e mofada.
– Espere aí – eu disse, levantando e caminhando até a beira da água. Fiz
uma careta. – A água fede. Fede a carniça e a morte.
– E você está prestes a tomar um banho nela – comentou o gato. –
Legal.
– Continue assim, gatinho, e posso escorregar e cair – falei – com você.
Tyrius fechou a boca e cutucou meu pescoço com seu nariz frio.
– Eu acho que ela vai até à cintura – disse ele. Sua respiração fazia
cócegas na minha bochecha. – Tente entrar o mais silenciosamente que
puder. Não queremos perturbar o que está lá dentro.
– Não – exalei. – Não queremos.
Nunca gostei de nadar onde não pudesse ver o fundo. Sempre imaginei
haver um grande tubarão-branco esperando para me cortar em pedacinhos.
Nota mental: parar de assistir Tubarão.
Fui até a beira da água e olhei para baixo. Ela parecia estranha, sinistra
e viscosa como óleo, viscosa demais para ser considerada normal.
Afastei meus medos. Eu tinha que fazer isso. Não havia outra maneira.
Tinha que fazer isso pela minha avó. E nem mesmo a água que parecia ter
vindo do inferno iria me impedir.
Agarrei minha lâmina da alma com a mão direita, puxei minha lâmina
da morte com a esquerda e me aproximei lentamente da água preta e gelada.
Capítulo 12

– C aramba, está fria! – sibilei enquanto me abaixava mais na água fria e


fedorenta.
Pior era a sensação dela se infiltrando nas minhas roupas, na minha
pele, como uma sopa fria. Eca. Eu ia feder a esgoto depois disso.
Tyrius riu.
– Isso não é um spa, querida.
– Continue assim, bola de pelos, e você será o próximo.
Fiz uma careta ao pensar em todos os bichos nojentos que gostavam de
água salobra e fechei a boca. De jeito nenhum aquela água ia entrar na
minha boca. Ela estava fria, mas não insuportável. Levantei minha bolsa
nos ombros para não molhar. Apesar dos meus movimentos lentos, ondas
prateadas se formavam diante de mim. Minha bota ficou presa em uma
pedra e eu tropecei, respingando um pouco de água.
Prendi a respiração por alguns segundos, mas nada aconteceu, então,
continuei. Eu me movia lentamente com os braços bem acima da água.
Tyrius estava certo. Ela não passava da minha cintura. Eu não tinha ideia de
como ele sabia disso. Devia ser uma coisa de baal. Ou talvez fosse uma
coisa de gato?
O progresso foi lento, mas senti a tensão diminuir quando a água
começou a abaixar até chegar à altura do joelho. Quando minhas botas
alcançaram a margem, eu sorri.
Levantei-me e alonguei meus músculos tensos.
– Bem, isso não foi tão difícil. – Olhei para o que parecia ser algas
marinhas grudadas no meu jeans, embora soubesse que não era. – Vou
precisar de um banho, mas não foi tão ruim quanto eu pensava.
– Isso porque a água não era o problema. Eles são.
Atrás de mim, senti uma presença repentina de algo repugnante.
Demônios. E um monte deles.
– Eu sabia que era bom demais para ser verdade.
Girei os ombros quando Tyrius saltou para o chão. Ele estava limpo e
cheirava ao perfume da minha avó. Ao contrário dele, eu cheirava a bosta.
Literalmente.
Testando o movimento das minhas lâminas, eu as girei, trazendo-as de
volta com a velocidade da luz. Por um instante, vi um monte de presas,
olhos vermelhos e pele molhada e escorregadia com escamas. Eles
pareciam peixes. Credo. Seus corpos eram longos e finos. Lembravam um
cruzamento entre um cachorro e um peixe, disformes como se ainda não
tivessem terminado de se formar. Demônios menores que escaparam do
Submundo. Seus olhos vermelhos brilharam com fome pela minha alma.
Nem pensar.
– Cães veth – disse Tyrius. Seus olhos brilhavam com sua magia
demoníaca. – Nunca vi tantos no mesmo lugar assim. – Uma luz reluzia
dentro do demônio baal e expandia até ficar mais fraca nas extremidades do
corpo. Eu sabia que ele estava prestes a se transformar em seu alter ego:
uma pantera negra espetacular. – Esses feiosos foram criados apenas para
dois propósitos: proteger e matar.
– Ma-ra-vi-lha.
Quando lancei um olhar ao redor da câmara, as paredes pareciam estar
se movendo. Então, percebi com horror que não eram elas que estavam se
movendo; eram os cães veth. Havia centenas deles. Agora, eu sabia por que
as fadas nunca tinham recuperado sua presa. Elas nunca tinham conseguido
passar por eles. Excelente.
Uma horda deles surgiu entre nós e a caverna. Se não estivesse
enganada, eu diria que estavam nos impedindo de entrar ou guardando a
fada dentro da caverna.
– E parece que eles não comem há algum tempo – disse Tyrius.
– Precisamos passar por eles e entrar naquela caverna – eu disse,
agachando-me. Meus olhos estavam fixos na luz dourada brilhante que
reluzia na pequena entrada.
– Sim, e depois? – perguntou Tyrius enquanto sua luz interna crescia
cada vez mais. – Se chegarmos à caverna, eles ainda estarão aqui quando
voltarmos.
– Certo.
Merda. Isso era verdade. Droga. Por que as coisas eram sempre tão
complicadas? Parecia que eu nunca tinha sorte.
Ouvi o som de garras batendo nas pedras. Eu girei e tive um vislumbre
de um olhar malicioso antes da minha lâmina fazer contato com algo sólido.
O que quer que eu tivesse atingido se desintegrou em uma nuvem de cinzas.
Tyrius acenou com a cabeça, olhando para a pilha de cinzas.
– E é isso que acontece quando os demônios são eliminados da ilha.
O resto das palavras do demônio baal foram abafadas quando uma
explosão de luz, impossível de olhar, tomou conta dele. Em poucos
segundos, não havia mais um gato siamês, mas, sim, uma pantera negra de
130 quilos. Droga. Queria poder fazer isso.
Menos de um segundo depois, uma onda de cães veth atacou com força
e crueldade.
Uivos cortaram o silêncio da caverna.
Um flash de escamas tomou conta da minha visão. Eles eram
incrivelmente rápidos. Com uma velocidade sobrenatural, um cão acertou
meu peito. Perdi o ar quando fui arremessada para trás. Minhas costas
bateram no chão duro e rochoso e eu bati a parte de trás da minha cabeça.
Pontos pretos flutuaram na minha visão, mas eu estava de pé antes que eles
sumissem. Impulsionada pelo instinto, virei minhas lâminas enquanto
rodava, cortando o cão no peito. Senti seu hálito quente e pútrido quando o
demônio explodiu em cinzas.
A parte de trás da minha cabeça latejava e uma náusea me inundou.
Contudo, eu não podia parar. Parar significava a morte e eu precisava muito
pegar essa fada. Precisava receber o dinheiro.
Um movimento chamou minha atenção. Virei-me, desembainhando
minha espada enquanto mais cães se espalhavam pela ilha rochosa. O ar
fedia a peixe podre, fazendo-me engasgar, mas, ainda assim, eles
continuaram vindo para cima de mim. Os cães se aproximavam, batendo os
dentes e pulando as pedras em um ataque violento.
O sangue jorrava quando eu acabei com a primeira leva e recuei,
subindo na rocha enquanto mais cães vinham. Eu chutei com força,
derrubando um demônio, em seguida, outro saltou sobre a rocha e voou em
minha direção.
Abaixei-me. Girando, levantei as lâminas e o acertei enquanto ele subia,
tentando pegar a minha garganta.
Depois, veio mais.
Brandi minhas lâminas e golpeei os cães veth enquanto eles avançavam,
rosnando e uivando. Era como um mar de escamas e presas vindo em minha
direção em ondas.
Este era um alvo impossível. A rainha me enviara em uma missão
suicida. Maldita. Malditas sejam todas as fadas.
Sucumbi à minha raiva, lutando com fúria enquanto avançava em suas
fileiras. Eu não poderia falhar com minha avó, não agora.
Eu só conseguia enxergar dentes amarelos, todos vindo para cima de
mim. O sangue daqueles que eu matei estava por toda parte. O lugar ficou
coberto com sangue preto.
Freneticamente, eu os golpeava e apunhalava, tentando recuar ao
mesmo tempo. E ainda vinha mais. Para cada um que eu derrubava, outros
dez o substituíam.
Um rugido alto e arrepiante sacudiu a caverna. Subi outra pedra,
vislumbrando Tyrius, a pantera negra. Seus olhos amarelos brilhavam com
ódio profundo quando ele atacou um cão veth. O corpo magro do demônio
menor não era páreo para os trezentos quilos de músculo predatório. Sua
mandíbula enorme envolveu o pescoço do cão. Houve um estalo terrível e a
cabeça do cão caiu aos pés de Tyrius.
Alguns veth pararam, seus olhos vermelhos observavam a pantera negra
com confusão e medo, mas Tyrius não parou. Ele atingiu outra onda de cães
com a força de um trem batendo contra uma parede. Membros eram
arrancados e sangue voava. Os cães veth uivaram de fúria e pânico
enquanto tentavam fugir do grande felino.
Mais uivos soaram em meus ouvidos quando outra horda respondeu ao
chamado de seus parentes e correu para encontrar a pantera negra. Eles
saiam pelas frestas como formigas gigantes.
Todos atacaram a pantera negra ao mesmo tempo com um golpe tão
forte que a cabeça de Tyrius bateu na pedra. Quando o grande felino se
levantou, uma leva de cães saltou em suas costas, debatendo-se
descontroladamente com suas garras e presas. Tyrius rugiu de dor.
Os demônios menores atacavam de forma impiedosa e mortal. Senti um
aperto no peito ao ver a recusa de Tyrius em parar, apesar de mancar, dos
cortes e do sangue.
Os cães veth cambaleavam para trás, mas logo se lançavam novamente
com as mandíbulas estalando. Tyrius se debateu loucamente, tentando se
libertar das entidades que o perseguia. Infelizmente, ele não conseguiu
escapar das presas agarradas em suas costas e em seu pescoço.
Tyrius se debateu várias vezes no chão, mas, ainda assim, não conseguiu
se libertar.
Tufos de pelo preto e pele voaram no ar, a pele da pantera. Enquanto
eles enterravam seus dentes em sua pele como carrapatos gigantes, meu
coração parou. O gemido de Tyrius era de dor agonizante e dilacerante, do
tipo que eu nunca tinha ouvido.
Eles eram simplesmente muitos.
– Tyrius! – eu gritei. Uma fúria enorme tomou conta de mim.
Maldita Isobel. Eu nunca deveria ter aceitado o trabalho.
Deixando minha raiva me ancorar, marchei com o intuito de matar
qualquer coisa que não fosse deste mundo. Lutei contra os demônios
menores, matando qualquer um que chegasse perto o suficiente e deixando
um rastro de cães mortos. Era um esforço inútil, eu sabia. Havia muito mais
do que Tyrius e eu conseguiríamos matar. Se quiséssemos sobreviver,
tínhamos que chegar àquela pequena caverna.
Eu gritei e chutei. Minhas pernas latejavam de dor. Eu tinha que salvá-
lo.
Sabia que era idiotice. Não havia como eu derrotar todos eles, mas eu
não iria deixá-los matar meu amigo. Nunca.
Algo me atingiu na lateral da cabeça, então, senti uma dor excruciante
nas minhas costas. A dor atingiu minhas costas com tanta força que caí no
chão e minhas lâminas voaram das minhas mãos. Ela subiu pelos tendões
do meu pescoço quando senti uma respiração quente e dentes afiados
afundarem na minha carne, ao redor do pescoço, pernas e braços.
Tentei falar, mas não tinha fôlego. Não consegui me mexer. Lágrimas
embaçaram minha visão. Eu não conseguia ver Tyrius.
De repente, uma luz brilhou. Ela não veio de mim ou da pantera, mas,
sim, da caverna. A luz era tão brilhante que iluminou toda a caverna como
se fosse a luz do dia. Os demônios veth uivaram e silvaram. Através da
minha visão embaçada, eu os vi recuar para as frestas e buracos, fugindo da
luz.
O que diabos aconteceu?
Uma pequena bola de pelo marrom-amarelado e preto estava no chão, a
seis metros de mim. Era Tyrius, ele havia voltado para sua forma siamesa. E
não se movia.
– Tyrius!
Meu sangue congelou quando o medo tomou conta de mim. Gemendo,
apoiei-me nos cotovelos e pisquei para a fonte da luz.
De pé no meio da ilha, com as mãos levantadas sobre a cabeça, estava
um homem pequeno. Sua forma era uma silhueta nítida contra a luz. Ele
baixou as mãos e a luz diminuiu até que tudo o que restou foi o mesmo
brilho amarelo e sinistro da caverna.
Eu podia vê-lo claramente agora. O rosto que olhava para mim não era
de um homem, mas, sim, de um goblin.
Capítulo 13

E ncarei a criatura, o goblin. Eu só tinha ouvido falar deles, nunca tinha


visto um com meus próprios olhos, mas eu sabia que era um goblin. Eu
tinha certeza disso.
Ele não tinha mais de um metro e meio de altura. Sua pele era marrom e
rachada como couro envelhecido. Mechas de cabelo branco se sobressaiam
em sua cabeça quase careca e uma barba branca caía abaixo de um nariz
muito grande e bulboso. A barra de uma das pernas de sua calça estava
rasgada enquanto a outra estava enfiada em uma bota alta e gasta pelo
tempo. Ele usava uma camisa de linho bege que eu tinha certeza de que já
fora branca. Pelo desgaste de suas roupas, o sujeito não fazia compras desde
a virada do século XX.
Por que ele nos salvou? Naquele momento, eu não me importei. Estava
irritada, não tinha tempo para fazer amizade com goblins.
Esqueci minha dor quando a raiva brotou em mim. Não havia nenhuma
fada aqui. Os duendes tinham nos enganado. Desgraçados. Tudo tinha sido
em vão.
Ignorando o híbrido, lutei para ficar de pé e peguei minhas lâminas do
chão, prendendo-as ao meu cinturão. Eu não tinha ideia se o goblin era um
amigo ou um inimigo, mas não confiava nele. Mesmo que tivesse nos
salvado, eu não sabia se ele tinha algum motivo oculto. Talvez o cara
tivesse nos salvado apenas para servir nossa carne em uma bandeja mais
tarde.
Eu não arriscaria, não com Tyrius deitado ali. Ele ainda não havia se
movido. Cambaleando como uma bêbada, eu desabei ao lado dele.
– Tyrius? – Coloquei minhas mãos trêmulas cuidadosamente sobre seu
corpo e soltei um grito de alívio quando minhas palmas sentiram calor
emanar dele. Seu peito subia e descia. – Tyrius? – eu disse novamente, mas
o gato não abriu os olhos. Quando tirei minhas mãos, elas estavam cobertas
de sangue preto. Seu sangue. – Ah, não. Sinto muito, Tyrius. – Meus lábios
tremeram. Minhas palavras saíram como um soluço e eu pisquei para
afastar as lágrimas dos meus olhos. – Não deveríamos ter vindo aqui. Isso é
tudo culpa minha.
A culpa era como uma adaga quente entrando em meu estômago. Eu
achara que tinha feito a coisa certa ao vir aqui para salvar a casa da minha
avó. Olhando para Tyrius agora, já não tinha mais tanta certeza.
Sou uma idiota. Vou perder meu único amigo verdadeiro.
– Sim, você está certa. Você não deveria ter vindo – latiu uma voz atrás
de mim, sem dúvida do goblin. Sua voz grossa parecia ecoar nas paredes de
pedra. Ouvi um suspiro alto. – Por que você veio aqui? O que quer? – A
última parte foi mais uma intimação.
Explodi de raiva e não me contive. As botas derrubaram as pedras duras
atrás de mim.
– Você me ouviu? Ou os nascidos-anjo são deficientes auditivos? Estou
falando com você!
Eu quase rosnei quando virei minha cabeça, não me importando que as
lágrimas escorressem pelo meu rosto. Quando falei, senti o gosto do sal na
boca.
– Afaste-se dele ou, então, Deus que me ajude. Vou cortar suas bolas e
fazê-lo as engolir.
O goblin abriu a boca em choque e, depois, fechou-a. Seus grandes
olhos castanhos me estudaram por um momento. Eu não tinha ideia do que
ele estava pensando e isso só me deixou mais irritada.
– Seu amigo precisa de ajuda – disse o sujeito, surpreendendo-me com o
uso da palavra amigo e não demônio. – Leve-o para dentro – ele ordenou
novamente, gesticulando para a pequena caverna com a mão. – Eu posso
ajudar.
Inclinei-me sobre Tyrius protetoramente e o goblin ergueu uma
sobrancelha.
– Você quer que ele sobreviva?
Puxei minha lâmina da alma.
– Você quer viver?
Um aborrecimento cruzou os olhos do híbrido quando ele pressionou as
mãos nos quadris.
– Mesmo que você saísse de Elysium, ele não sobreviveria à jornada. Se
quer que ele viva, deve levá-lo para dentro. Caso contrário, ele morrerá.
Não seja uma tola. Venha.
Tola? Sim, talvez ele estivesse certo. Observei o goblin enquanto ele
caminhava em direção à pequena entrada da caverna, imaginando como o
cara havia feito aquela luz brilhante. Ele não estava carregando nada que eu
pudesse ver. Então, decidida, guardei minha lâmina e peguei Tyrius,
tentando não chorar e desmoronar.
Eu não sabia o que faria se o gato morresse. O pensamento dele
morrendo fez meu coração se partir em pedaços.
Meu corpo doeu quando me levantei, mas não era nada comparado aos
golpes que Tyrius havia sofrido. Envolvendo-o suavemente em meu peito,
segui o goblin para dentro da caverna.
Minha primeira impressão foi que cheirava a repolho cozido. Ela era
apertada, menor que meu apartamento, mas aconchegante e
surpreendentemente quente. A fonte do calor vinha de uma pequena
fogueira no meio da câmara com uma grelha e uma panela em cima. A
fumaça do fogo subia e desaparecia em uma pequena abertura no teto da
caverna, que eu suspeitava que o goblin havia criado. Havia uma cama
pequena em um canto, uma cadeira de frente para o fogo e uma mesa de
madeira com duas cadeiras.
– Coloque-o na mesa e deite-o do lado esquerdo, com o lado da ferida
para cima. – O goblin colocou uma bolsa de couro preta que parecia de
médico na mesa ao lado de uma toalha. Então, ele arregaçou as mangas.
Obedientemente, baixei Tyrius sobre a mesinha, mas fiquei perto o
suficiente dele, caso o sujeito tentasse fazer algo idiota. Certifiquei-me de
que ele visse minha mão no cabo da minha lâmina. O goblin bufou de
irritação com o meu gesto, mas eu não me importei. Um movimento errado,
e sua cabeça rolaria.
– Se isso for um truque – eu disse, torcendo minha mão no cabo da
lâmina –, se você estiver pensando em comê-lo, eu vou…
– Sim, sim, eu ouvi da primeira vez. – O goblin acenou com a mão para
mim. – Você vai cortar meu saco, não é mesmo? – Ele soltou uma risada. –
Bem, eu sou vegetariano. Tá bom? Agora, cale a boca para que eu possa
salvar seu amigo.
Ergui a sobrancelha. Nunca tinha ouvido falar de goblins vegetarianos,
mas, eu não sabia muito sobre eles. Talvez ele estivesse mentindo? Talvez
não.
O híbrido pegou outra toalha e a jogou em mim.
– Você está sangrando na nuca – disse ele, com os olhos em Tyrius.
Pressionei a toalha contra o meu pescoço, mantendo um olhar atento
enquanto ele passava a outra toalha em Tyrius. A toalha saiu manchada de
sangue. Da bolsa, o goblin puxou uma agulha e uma linha.
– O que você vai fazer com isso? – eu perguntei, de repente assustada.
– Vou dar pontos nele – disse o goblin enquanto colocava a linha na
agulha. – Os baals são muito parecidos com felinos normais quando estão
deste lado do mundo. Quando assumem esta forma, eles são como um gato
comum com órgãos internos e coisas assim. Por isso, preciso parar o
sangramento. Se eu puder fazer isso, ele terá chance de sobreviver.
Meus olhos ardiam. Como não confiava em mim mesma para falar,
simplesmente assenti.
O goblin cortou um pedaço de pelo molhado, que percebi ser sangue,
até que o ferimento ficou livre de pelo e só tinha pele ao redor. Eu quase
vomitei com o que vi. A pele de Tyrius estava mutilada. Eu podia ver
marcas de dentes onde eles haviam puxado para rasgá-la.
O goblin não pareceu notar meu pânico quando estendeu sua mão firme,
beliscou a pele do gato e começou a dar pontos. Para alguém com dedos tão
grossos e curtos, ele era surpreendentemente gentil e hábil.
Incapaz de fazer qualquer outra coisa, eu me levantei e observei
enquanto as mãos experientes do sujeito costuravam meu amigo peludo.
Uma mão invisível parecia envolver minha garganta e apertar cada vez que
o goblin puxava um ponto.
Aguenta firme, Tyrius. Por favor, aguenta firme.
Após vinte minutos intensos, o goblin amarrou e cortou o último ponto.
– Isso deve servir. Coloque-o ao lado do fogo. O calor vai ajudá-lo a se
curar mais rápido.
– Então, ele vai ficar bem? – perguntei, piscando rápido.
Senti uma pontada de esperança em meu peito enquanto olhava para a
longa fileira de pontos no meu gato, em seu lindo pelo. Eu sabia que,
quando Tyrius acordasse, ele iria odiá-la.
O goblin assentiu.
– Ele ainda não está fora de perigo, mas acho que chegamos a tempo de
impedir que perdesse muito sangue.
Deslizei minhas mãos sob Tyrius e o levantei. O gato ainda não tinha
aberto os olhos, mas o sangramento havia parado. Isso deveria ter me
confortado, porém, só me senti mal.
– Você é algum tipo de curandeiro? – perguntei enquanto caminhava em
direção ao fogo e gentilmente o colocava, inconsciente, no chão.
Meus pensamentos se voltaram para Pam, tinha certeza de que a mulher
teria um ataque ao ver Tyrius. Tive a sensação de que não era a única que o
amava muito. Tyrius tinha esse efeito nas pessoas, especialmente nas
mulheres.
O goblin lavou as mãos em uma bacia de água e, depois, secou-as em
suas calças.
– Não, mas eu sou um alfaiate muito bom.
Suspirei. Eu não estava com disposição para o sarcasmo dele.
Acomodei-me ao lado de Tyrius, de costas para a parede, para ter uma visão
clara do goblin.
– Por que nos salvou? Você nem sabe quem somos. Poderia ter deixado
os cães veth nos matarem.
O goblin arqueou placidamente as sobrancelhas.
– Parecia a coisa certa a fazer.
– Ninguém mais faz a coisa certa – eu disse, mudando para uma posição
mais confortável. – E ninguém faz nada de graça também. Você quer
receber por isso?
O goblin jogou a toalha ensanguentada na bacia de água, seu rosto
franzido de raiva.
– Pagamento? Pareço um duende para você? Se eu não tivesse saído,
você estaria morta. Vocês dois.
Isso era verdade. Ainda assim, eu não estava comprando o ato de bom
samaritano.
– Por que você mora aqui nesta caverna com aqueles cães lá fora? Não
tem medo de que, um dia, eles possam matá-lo?
– Não. – O híbrido se sentou na cadeira ao lado do fogo. Seus ossos
estalaram com o esforço. – Eles estavam aqui quando me mudei. Não
consegui fazê-los sair, então, escolhi viver entre eles.
Surpresa, eu olhei para ele, cerrando os olhos à luz do fogo.
– Por quê? Você é suicida?
Suas rugas se aprofundaram.
– Os cães não me incomodam. Não com minha luz. Eles têm medo dela.
Veja bem, eu não os incomodo e, em troca, eles não me incomodam.
Observei o pequeno goblin.
– Aquela não era uma luz comum e você sabe disso. – Inclinei-me para
trás e cruzei os braços sobre o peito. – Se tivesse que adivinhar, diria ser
alguma luz de bruxaria ou algo mágico parecido. Estou certa?
A luz laranja do fogo cintilou nos grandes olhos do goblin. Ele ficou em
silêncio, absorto em seus pensamentos. Com uma profunda preocupação em
seu olhar, o híbrido olhou para Tyrius, mas ainda não disse nada.
Eu podia ver a solidão em seus olhos ou, possivelmente, algo que o
estava incomodando.
– Há quanto tempo você mora aqui?
Pela primeira vez, o sujeito pareceu tenso.
– Muito tempo.
Meu rosto se contorceu.
– Por que não vai embora? Tenho certeza de que você pode encontrar
um lar melhor do que este lugar assustador. Sem ofensa.
O goblin continuou a olhar para o fogo, mas não respondeu. Deslizei
meus dedos nos pelos de Tyrius, observando suas pálpebras piscarem. O
híbrido dissera que ele ficaria bem, então, por que o gato ainda não
acordara? Quanto tempo os baals precisavam para se recuperar? Eu tinha
visto Tyrius ferido antes, mas nunca a esse ponto. Nunca assim tão grave.
Será que ele acordaria?
O medo fez meu sangue latejar tanto em meus ouvidos que pensei que
meus tímpanos iriam estourar, mas a raiva afastou o medo. Era tudo culpa
minha. Se Tyrius morresse, seria por minha causa. Eu poderia muito bem
tê-lo matado com minhas próprias mãos.
Malditos duendes. Eles tinham nos mandado aqui para morrer. Eu nunca
deveria ter confiado neles. Devido à minha estupidez, tinha, possivelmente,
matado meu melhor amigo e minha avó perderia sua casa.
Minha mente estava um turbilhão, deixando-me com a sensação de que
eu estava caindo em um buraco negro sem fim de autopiedade. Primeiro foi
Jax e, agora, Tyrius…
Senti o suor escorrendo pelas minhas costas. Eu não podia ter uma crise
agora, droga. Não quando minha vida parecia finalmente organizada e eu
estava bem resolvida.
Não havia outra escolha. Eu tinha que encontrar Ugul.
Onde estava aquela fada idiota? Como eu poderia encontrá-lo agora que
Tyrius estava desmaiado?
Voltei meus olhos para o goblin, que ainda estava olhando para o fogo.
Que criatura pequena lamentável. Um pensamento me ocorreu. Se ele
estava vivendo neste inferno há tanto tempo, provavelmente sabia alguma
coisa sobre a fada que eu estava caçando.
Observei-o cuidadosamente.
– Já cruzou com uma fada chamada Ugul? – perguntei, rezando para
que as almas me dessem um desconto.
O goblin se virou e me encarou com suas narinas grandes e dilatadas.
– Por quê?
Minha raiva voltou.
– Porque eu quero discutir taxas de hipoteca com ele. – Olhei para o
híbrido, sentindo-me no limite da minha paciência. – Você sabe onde posso
encontrá-lo ou não? É uma pergunta simples. – Estava ficando sem
paciência e ver Tyrius deitado ao meu lado, parecendo sem vida, estava me
enlouquecendo.
– Eu sei onde pode encontrá-lo – disse o goblin, depois de um
momento.
– Você sabe? – Sentei-me ereta e prendi a respiração. – Onde? Onde ele
está?
O goblin bufou.
– Bem aqui. Você o encontrou. Eu sou ele.
Minha língua parecia pesada em minha boca enquanto estreitava meus
olhos, pensando que isso era outro truque.
– Você é Ugul? – Inclinei-me para trás, sacudindo a cabeça. – Não, você
não é ele. Não pode ser.
– Você é surda, nascida-anjo? Acabei de dizer que eu sou ele. A menos
que você esteja procurando por outra fada chamada Ugul, tipo meu bisavô.
Só que ele morreu há trezentos anos. O único Ugul no mundo mortal sou
eu.
Senti o início de uma dor de cabeça.
– Mas Ugul é uma fada. Você é um goblin.
Os olhos castanhos dele me encararam com seriedade antes de dizer:
– Goblins são fadas. Fadas da Corte da Luz.
Capítulo 14

E u não– Você
sabia o que fazer, então, comecei a rir.
está me sacaneando, não é, goblin?
O híbrido resmungou para mim.
– O que você esperava? Um homem-fada alto e bonito com peito
musculoso, nariz pequeno e olhos sonhadores?
Comprimi meus lábios.
– Algo parecido.
– Não. – Ele sacudiu a mão para mim. – Você assiste a muita televisão.
– Não consegui ouvi o resto do que dizia pois ele virou a cabeça e
murmurou para si mesmo enquanto olhava para o fogo.
– Mas…
Eu nunca tinha visto nenhum livro ou registro que dizia que os goblins
eram fadas. Se tivesse, acho que me lembraria. Isso era loucura.
Exalei lentamente. Minha mente girava. Não havia como saber se
aquele goblin estava falando a verdade. Todavia, eu nunca tivera o prazer de
conhecer uma fada da Corte da Luz. Só havia cruzado com aquelas fadas
sujas da Corte das Trevas. Talvez… essa fada-goblin estivesse dizendo a
verdade. Talvez ele fosse Ugul.
Isso explicaria porque estava morando aqui, porque ele tinha um
exército de cães de caça cercando sua casa e porque as fadas da Corte das
Trevas nunca poderiam alcançá-lo.
Meus olhos observaram sua cabeça um pouco grande demais, seu rosto
deformado, as orelhas que caíam quase até os ombros, o couro cabeludo
escamoso e a pele morena com rugas profundas enquanto ele pensava sobre
algo. O híbrido assustaria qualquer criança humana.
Emoções conflitantes me atingiram como uma injeção de adrenalina. Se
ele realmente era Ugul, então, meu trabalho estava feito. Com uma simples
entrega para a fada rainha das trevas, eu pagaria a dívida da minha avó e
consertaria as coisas novamente.
O pensamento me fez sorrir. Ainda assim, o sujeito tinha nos salvado.
Merda. Eu estava tão ferrada.
– Isso não faz sentido – eu soltei em voz alta antes de perceber o que
tinha feito.
– O que não faz sentido?
Estremeci com a voz familiar. Tyrius estava sentado. Seus olhos azuis
estavam arregalados e pareciam saudáveis. Seus pontos haviam
desaparecido e tufos de pelos brancos cobriam sua barriga enquanto seu
pelo começava a crescer.
– O que eu perdi? – disse o gato.
Meus olhos ardiam enquanto eu lutava para manter minhas lágrimas sob
controle. Estendi a mão e segurei seu rosto, sabendo que ele odiava isso,
mas não me importando.
– Graças a Deus. Como você está se sentindo?
Tyrius puxou a cabeça das minhas mãos e olhou para seu corpo.
– Como se eu tivesse passado por um moedor de carne. O que
aconteceu? Não me lembro. Devo ter apagado. Você me curou?
– Não – eu disse, sentindo os olhos do goblin em mim quando me virei
e disse – Ele o curou.
Tyrius olhou para o híbrido.
– Obrigado, gentil senhor – disse o gato. – Estou em dívida com você.
Eu sou Tyrius.
– Ugul – disse o goblin.
Observei Tyrius em busca de um sinal de que o goblin estava mentindo.
Senti um nó na garganta quando ele não reagiu do jeito que reagia com
mentiras. O gato teria me dado um olhar. O demônio baal voltou seu olhar
para mim e arqueou uma sobrancelha, dizendo-me com os olhos que o
goblin era, de fato, a fada que fomos enviados para encontrar. Ele cheirou o
ar.
– Você tem alguma comida nesta espelunca? Eu mataria por uma pizza
ou um cheeseburger.
O goblin nos olhava estranhamente. Ele tinha percebido nossa troca de
olhares silenciosa. Cerrando os dentes, seus dedos agarraram os braços de
sua cadeira quando disse:
– Não. Não tem carne. Apenas vegetais e algumas frutas secas.
Tyrius bufou.
– Vocês, fadas da luz, não sabem o que estão perdendo.
Fadas. Então, era verdade. Meu pulso acelerou e eu respirei rápido.
– Aqui – eu disse enquanto pegava uma tira de carne seca da minha
bolsa e dava para Tyrius. – Você sabia que os goblins eram fadas?
– Hã, sim. – O gato mastigou com fome. – Os goblins são fadas da
Corte da Luz. Eu pensei que você soubesse disso – ele adicionou entre as
mastigadas.
Voltei meu olhar para o goblin.
– Eu não sabia. – Meu coração estava acelerado.
– Contudo, as fadas da luz e das trevas nunca se deram bem. Não é? –
perguntou Tyrius enquanto se aproximava de Ugul, ainda mastigando sua
carne. – Devido a algum tipo de conflito entre os tribunais, certo?
Ugul estreitou os olhos para o gato, mas não disse nada.
A tensão aumentou no silêncio repentino. Eu pude ver que o homem-
fada estava se arrependendo de sua decisão de nos salvar. Mudei de posição
no caso de ter que me mover rápido. Senti algo gelado passando pelo meu
jeans enquanto a moeda do duende pulsava e me lembrei que ainda havia
uma saída.
Eu realmente vou fazer isso?
Um ar frio e úmido soprou. Olhei através da entrada escura da caverna
para a escuridão que se estendia. Eu estava em conflito. Isso nunca tinha
acontecido comigo antes em uma caçada. Livrar-me da escória demoníaca
era minha especialidade. Inferno, eu era ótima nisso. Era a única coisa na
vida que me trazia um senso de propósito. Contudo, este goblin-fada me
fazia hesitar. Ele não era o lixo demoníaco com a qual estava tão
acostumada a lidar. O que quer que ele tivesse feito não tinha nada a ver
comigo. Não era problema meu. Ugul era realmente mau? Ele nos salvara,
mas também matara o filho da rainha das fadas.
– Por que você está aqui? – Os olhos de Ugul se arregalaram. – Quem a
mandou?
– Quem disse que alguém nos enviou? – perguntou o gato enquanto
olhava para mim com encorajamento. Seus olhos diziam “faça”.
Droga. Meu coração batia tão alto que eu tinha certeza que Ugul podia
ouvir.
– Ela mandou você, não foi? – pressionou o goblin enquanto empurrava
a cadeira para trás e se levantava. Sua voz forte me fez vibrar, embora ele
estivesse a três metros de distância. – Esperta, ela sabia que eu não iria feri-
la por causa do que você é. Eu deveria ter deixado os cães veth a matarem.
– Ele deu um passo para trás.
Ouvi Tyrius sorrir.
– Awwww, ele é tão doce que eu poderia até peidar bolas de pelo.
Cerrei meus dentes e minhas mãos se fecharam.
– Eu não sei do que você está falando.
A sensação de antecipação apertava meu estômago. Isso não era bom.
Quanto mais eu esperasse, mais difícil seria. Além disso, eu tinha visto um
pouco da magia dele. Não tinha ideia o que mais o homem-fada poderia
tirar de sua bunda ou o quão poderoso ele era.
– Sim, você sabe – o goblin disse suavemente. Seus olhos escuros e
expressivos olhavam para mim e para Tyrius. – Você veio aqui procurando
por mim, mas nunca deveria ter vindo. Eu odeio matar os nascidos-anjo,
contudo, você não está me dando escolha. Devo me proteger. Devo proteger
a todos nós.
Tyrius riu.
– O que ele andou fumando?
– Saiba que isso não me agrada, nem um pouco. Porém, devo matá-la –
disse Ugul e um arrepio percorreu-me quando me agachei. – Ela vai acabar
com tudo e eu não posso permitir isso.
Uma expressão dura marcou o rosto dele, fazendo-me lembrar de quem
ele era e do que era capaz. Afinal, o sujeito havia matado o filho da rainha.
Um sorriso cruel curvou os cantos de sua boca. O goblin ergueu a mão e
seus lábios proferiram um feitiço silencioso enquanto uma bola de luz
branca se formava em suas mãos, a mesma luz branca que eu o vira usar
nos cães veth.
Com um movimento rápido e ofuscante, ele a atirou em mim.
Contudo, o goblin não tinha ideia de com quem estava lidando.
Esquivei-me para o lado, mas não rápido o suficiente. Gritei quando a
bola atingiu meu braço direito. Eu caí no chão quando a esfera explodiu,
soltando centelhas brancas. A dor tomou conta do meu corpo e a tensão
contraiu meus músculos um a um enquanto um formigamento quente
começou a subir dos meus dedos dos pés até o meu pescoço. Um mau
cheiro de metal fez cócegas em meu nariz, então, senti um cheiro de cabelo
queimado.
– Rowyn! – gritou Tyrius sobre o zumbido em meus ouvidos.
Tremendo, empurrei com os joelhos involuntariamente e me forcei para
ficar de pé. Quando a onda de náusea parou, olhei para o rosto atordoado de
Ugul.
O goblin olhou para mim, franzindo a testa com uma frustração
estampada em seu rosto.
– Maldição. Isso doeu – eu gritei, olhando para o resto de sua magia de
luz que parecia pequenas correntes elétricas enroladas no meu corpo.
Doeu pra caramba, mas eu não estava morta. Pelo olhar de choque no
rosto de Ugul, eu sabia que ele planejava me matar com aquela bola de luz.
Ainda assim, não funcionara.
De alguma forma, sua magia de fada não tivera o que ele pretendia.
Minha metade anjo e metade demônio salvaram minha pele.
Um sorriso curvou meus lábios e eu apontei para o goblin de repente
inseguro.
– Você não deveria ter feito isso, querido Ugul.
O rosto do híbrido estava mortalmente furioso. Claramente afetado, o
goblin caminhou até Tyrius e começou a falar em uma língua estranha.
– Quiso ru setodies ipsos antgu? – ele disse irado. Centelhas de energia
branca entrelaçaram seus dedos e eu quase enlouqueci.
Gritando de raiva, voei em direção à fada.
Ele virou a cabeça quando me aproximei. Seus braços estavam erguidos
para me acertar de novo com aquela porcaria de luz. Usando meu embalo e
com a mão aberta, bati em sua têmpora esquerda o mais forte que pude.
Ugul abriu a boca para dizer algo, mas, então, parou. Seus olhos rolaram e
ele caiu no chão, inconsciente.
Tyrius saltou ao meu lado.
– Rowyn, você conseguiu! Não que eu tivesse qualquer dúvida. Sabe o
que isto significa? Que podemos salvar a casa da vovó!
Olhei para o goblin-fada inconsciente aos meus pés com meu estômago
embrulhado.
– Então, por que me sinto uma imbecil?
Capítulo 15

– E le é Eu
muito mais pesado do que parece.
ofegava, enquanto arrastava os pés o goblin-fada pelos túneis.
Usamos seu pequeno barco a remo para voltar pela água e, para minha
surpresa e alívio, os cães não apareceram. Ele fedia a repolho e a lenha.
Depois que caíra inconsciente, amarrei seu pulso com algemas de ferro – o
ferro era um repelente mágico natural – para impedi-lo de conjurar qualquer
uma de suas magias de fadas e prendi seus pés com grandes algemas. Para
não arriscar, amordacei o goblin com um cachecol velho que encontrei em
sua caverna. Eu tinha certeza que, dada a oportunidade, ele tentaria conjurar
sua magia.
A moeda do duende estava pressionada contra a minha mão direita,
enviando ondas de calor que pulsavam nela. Estávamos bem adiantados,
usando a moeda como guia.
– Tem certeza que este é o caminho certo? – questionou Tyrius enquanto
caminhava à minha frente. O pelo do baal já havia crescido e eu não
conseguia nem dizer onde ele havia levado pontos. – Podemos estar
perdidos, você sabe, né? Essa moeda ainda pode ser um truque.
– Por que seria? – perguntei, ouvindo minha voz rouca. Meu coração
batia forte e suor escorria por todo o meu corpo. – Os duendes nos disseram
onde encontrar Ugul e eles estavam certos. Por que mentiriam sobre esta
moeda se nos contaram a verdade sobre a fada?
– Porque eles querem nos confundir? Eu não gosto disso – resmungou o
gato.
– Eu sei. Você já me disse uma centena de vezes. Pense assim, talvez
esta moeda nos traga sorte. Deus sabe que merecemos um pouco.
Tyrius murmurou alguma coisa, mas eu não consegui entender. Minhas
roupas estavam secas e o que quer que estivesse na água tinha grudado em
meu jeans como tiras finas verde escuro. Meu humor piorou com o esforço
de arrastar a fada, mas eu suspeitava que a culpa do que eu estava prestes a
fazer seria mais pesada do que ele.
Meus ombros ardiam de dor. Exalei ruidosamente e puxei a fada sobre
uma grande pedra.
– Jesus, espero que estejamos chegando ao fim do túnel em breve. – A
moeda pulsava com o calor, dizendo-me que ainda estávamos no caminho
certo. – Estou cansada de carregar o traseiro dele.
– Estamos quase lá – respondeu o gato. – Eu posso sentir o cheiro da
sujeira do rio Hudson. Não deve estar muito longe.
Levantei minhas sobrancelhas, sentindo um fio de suor escorrer entre
meus seios.
– Impressionante.
Tyrius se virou e olhou para mim.
– Você já pensou em como vamos levá-lo ao Bairro Místico sem os
humanos ligarem para a polícia nos acusando de sequestro?
– Você quer dizer sequestro de fadas? – eu disse, arrastando o goblin
pelos pés. – Vou chamar um táxi assim que chegarmos ao parque. Ele é meu
pai e está bêbado, vamos levá-lo para casa. Simples assim.
– Tsc tsc tsc. Um táxi para o Bairro Místico? Tem certeza que isso é
sábio? – perguntou Tyrius.
Irritada, eu olhei para o gato.
– Ou mais perto que o taxista estiver disposto a nos levar. Eu mesma o
arrastarei para a maldita torre se for preciso.
Tyrius se encolheu com meu humor azedo, mas não disse nada enquanto
continuava andando, um pouco mais rápido agora.
Quando finalmente chegamos à grande fenda na parede, a entrada de
Elysium, quase desmaiei de alívio. Sorri ao ver a pegada de Tyrius na
parede e arrastei a fada inconsciente pela abertura. Nós conseguimos.
Agradeci silenciosamente à moeda do duende quando finalmente
chegamos à boca do túnel. Achei que Tyrius não iria gostar se eu beijasse o
objeto. Embolsando minha moeda da sorte, coloquei Ugul gentilmente no
chão e saí. Fechando os olhos, inalei o ar fresco da manhã. Em seguida,
colidi com algo duro e, ao mesmo tempo, macio.
Era um corpo. Reconheci seu cheiro almiscarado que fez meu coração
disparar.
Meus olhos se abriram.
– Jax? – eu gritei, quase tropeçando em Ugul. – O que diabos você está
fazendo aqui?
Jax olhou para mim e, quando nossos olhos se encontraram, senti meu
peito contrair. Droga. Por que ele tinha esse efeito sob mim? Eu deveria
estar puta da vida, não com borboletas na barriga como uma colegial
apaixonada.
Então, seus olhos se voltaram para Tyrius e, finalmente, pararam em
Ugul. Ele fez uma cara feia.
– O Padre Thomas me disse onde encontrá-la. Procurei em todas as
entradas sem saber quando você apareceria. Quem é esse?
– Não é da sua conta – rebati, lembrando que eu tinha contado ao padre
sobre meu trabalho com a rainha das fadas antes de sair, caso eu nunca mais
voltasse.
De repente, percebi o quão perto ele estava e quão horrível eu devia
estar fedendo. Um calor percorreu o meu rosto. Exalei nervosamente e
evitei olhar para Jax quando senti seus olhos deslizarem sobre mim. Eu não
ficaria hipnotizada por sua beleza física, não importa o quão gostoso eu
achasse que o nascido-anjo era. Droga, ele era gostoso. Gostoso. Gostoso.
Gostoso.
Não seja idiota, Rowyn. O cara tem uma noiva, eu lembrei a mim
mesma.
– Por que você está aqui, Jax? – repeti.
Quando eu olhei para ele, foi sua vez de evitar meus olhos.
O homem coçou a nuca.
– Eu queria me desculpar pelo comportamento da minha mãe.
– E pelo seu também, imagino – repreendeu Tyrius, olhando para Jax
como se estivesse pronto para mordê-lo. – Rowyn e eu não temos segredos.
Somos melhores amigos. Eu sei tudo sobre a história da noiva. Isso não foi
legal, Jax.
Outra onda de calor percorreu minhas bochechas.
– Agora não, Tyrius – avisei.
Eu não queria falar sobre isso agora. Além disso, de forma alguma
queria que o nascido-anjo soubesse como eu realmente me sentia. Isso
passaria, assim como todas as mágoas passavam. Tinha sido apenas um
beijo. Tinha sido apenas um beijo, né?
Jax abriu a boca, mas, depois, a fechou. Ele claramente não estava
pronto ou disposto a compartilhar o que estava em sua mente. O homem
tinha marcas roxas em seu rosto, o que só me confundia ainda mais.
– O Padre Thomas deveria ter ficado de boca fechada – eu disse,
pegando meu celular e percorrendo meus contatos. Onde estava aquele
número idiota do táxi? – Ele não tinha nada que dizer meu paradeiro,
principalmente quando estou no trabalho. Como você pode ver, estamos
ocupados aqui. Não tenho tempo pra conversa fiada.
– Vim porque estava preocupado. – Jax correu os olhos sobre mim.
Mesmo na escuridão, eu podia ver aqueles cílios grossos delineando
seus olhos verdes. Meus olhos se moveram para encontrar seus lábios. Senti
uma sensação de calor no estômago.
Eu bufei.
– Por favor.
– O que deu em você para entrar naqueles túneis sozinha? – O tom dele
era duro, claramente irritado. Suas feições estavam tensas e marcadas. –
Você entrou em Elysium? Todos os nascidos-anjo sabem que essas
passagens subterrâneas são traiçoeiras e mortais. É por isso que nunca
entramos lá. Por que não me ligou?
Irritada por ele achar que eu precisava de sua ajuda, eu disse:
– Você não retorna as ligações. Além disso, eu não estava sozinha.
Estava com Tyrius.
– É isso aí, gostosão – disse o gato.
Jax exalou lentamente.
– Eu queria ligar para você – disse ele e eu quase revirei os olhos. – As
coisas estão difíceis ultimamente.
– Por quê? Andou conjurando algum demônio inferior ultimamente? –
Eu estava mostrando muita emoção de novo. – Você não me deve nada –
expressei com meus sentimentos abalados. – Nós trabalhamos juntos. Isso
não nos torna casados.
Jax suspirou e eu quase sorri com o quão irritado ele parecia.
– Minha mãe precisava que eu ficasse com ela em casa enquanto meu
pai estava no exterior a negócios do conselho – disse ele. – Ela pode ser
bem agressiva quando está de mau humor.
– Não me diga – fala de forma agradável e Tyrius riu.
Não me importava que ela fosse a mãe dele. Já tinha perdido todo o
respeito pela mulher.
– Eu sei o que você deve pensar dela – Jax continuou. – Minha mãe
disse algumas coisas bem desagradáveis.
– Ela é uma mulher horrível.
Um músculo se contraiu na mandíbula do nascido-anjo.
– Ela nem sempre foi assim – ele hesitou. – As coisas em casa têm sido
muito diferentes desde a morte de Gillian. Minha mãe não consegue superar
isso.
– Eu nunca disse que ela deveria – falei. Conhecia aquela dor profunda
e excruciante devido a morte de meus próprios pais. – Não consigo
imaginar a dor de perder um filho, mas a mulher não precisava me tratar
como uma merda qualquer. Eu não deveria ter ido à sua casa. Foi um erro
que não vou repetir.
Um belo sorriso tomou conta das feições bem barbeadas dele.
– Você estava preocupada comigo. – Ele me deu um sorriso bobo, do
tipo que os homens davam quando achavam que a garota estava apaixonada
por eles. O nascido-anjo se aproximou e sussurrou – Eu sabia que você
gostava de mim.
Maldito Jax. Droga.
– Você deveria ir embora. – Rolei a tela do meu celular novamente, os
nomes pareciam borrões devido à velocidade. A última coisa que eu
precisava era estar perto do cara. – Como você pode ver, estamos bem.
Ugul soltou um gemido e eu prendi minha respiração. Porcaria.
Tyrius saltou ao lado da fada.
– Devemos nos apressar com o táxi. Ele está acordando. A menos que
você queira bater nele de novo?
– Não.
Eu não iria bater nele novamente. Não era meu estilo. Não iria
nocauteá-lo sempre que o goblin acordasse. Não era sádica.
– Quem é ele? – Jax se ajoelhou ao lado de Ugul. – Um goblin, pela
aparência. Ele é um filho da mãe feio, né? – O nascido-anjo riu. – O cara é
perigoso? Foi por isso que o amarrou? Por que ele cheira a repolho?
– Não é da sua conta quem ele é.
Vá embora, Jax.
O homem me deu um sorriso irônico.
– Eu amo uma mulher brava. Isso apenas mostra como ela gosta de estar
no controle.
Meu coração bateu contra o meu peito e fiz uma careta para ele. O que
havia de errado comigo?
– Estou levando-o para a rainha das fadas da Corte das Trevas. Depois
disso, ele não é mais problema meu.
– Eu levo você – ofereceu Jax, enquanto se levantava em um salto. –
Meu carro está ali na rua.
– Não.
De jeito nenhum eu entraria no carro dele. Eu queria que ele fosse
embora para que eu pudesse ouvir meus pensamentos.
– Obrigado. Vamos aceitar a carona – disse Tyrius e meu queixo caiu.
Olhei para o gato.
– Não, obrigada. Estou chamando um táxi.
– Não seja idiota, Rowyn – miou o felino. – Aceite a oferta de Jax. Um
táxi só vai atrair atenção no Bairro Místico, sem mencionar que o motorista
pode nem querer nos levar com seu pai bêbado.
Tyrius tinha razão, mas eu era teimosa. E, neste momento, eu não me
importava com o quão ofendido Jax parecia. Ele tinha uma maldita noiva.
– Vou me arriscar com o táxi – falei com uma voz seca. – Aqui, achei o
número. Estou ligando.
– Rowyn, deixe-me levá-la – começou Jax. – Você vai precisar de ajuda
para arrastá-lo até a rainha. Ele parece pesado.
– Eu me viro – rebati.
Tyrius olhava para mim como se eu estivesse sendo uma idiota. Tá,
então talvez eu estivesse. Eu até poderia aceitar isso. O que eu não podia
aceitar era estar perto de Jax. Eu não gostava do jeito que ele me fazia
sentir, como se eu estivesse perdendo o controle. Não era uma sensação
boa.
Naquele momento, minha moeda mágica emitiu uma energia fria,
fazendo a pele sob o bolso do meu jeans formigar. Talvez ela estivesse me
avisando para ficar longe do nascido-anjo. Moeda esperta.
Ouvi uma voz do outro lado da linha.
– Oi – eu disse e observei enquanto Jax se virava, parecendo chateado. –
Eu gostaria de solicitar um táxi na esquina da Riverside Drive com a…
Senti um espasmo na mão e deixei cair o celular. Ele atingiu o
pavimento fazendo um estalo. Ouvi o barulho do plástico quebrando.
– Rowyn? O que há de errado? – perguntou Tyrius com os olhos
arregalados de terror.
Minha boca estava seca e senti que não tinha ar suficiente em meus
pulmões.
– Não sei. Sinto-me estranha. – Senti um aperto no estômago e não
consegui falar. Eu pisquei. Estava ficando tonta. Talvez a magia de Ugul
finalmente estivesse fazendo efeito.
Uma mão firme me agarrou. Jax.
– Você provavelmente está desidratada. Tenho água no carro. Quando
foi a última vez que comeu alguma coisa?
– Não é desidratação – disse o gato. – Alguma coisa não está certa.
Posso sentir isso também. Há trevas no ar, sinto o cheiro de morte e de
corrupção.
Meus olhos caíram sobre Tyrius. Pisquei novamente, tentando me
concentrar.
– Acho que parou agora…
Uma dor quente me atingiu do nada e gritei, cambaleando. Meu coração
pulou e eu me engasguei. O fogo queimava minha pele. Meu grito seco
rasgou o ar. Caí de joelhos, tremendo. Meus órgãos estavam em chamas. Eu
estava queimando de dentro para fora. Não conseguia respirar. Doía muito.
Ouvi vozes gritarem. Era Jax e Tyrius. Contudo, eu não podia
compreender o que diziam sobre meus batimentos disparando loucamente.
Cada batida empurrava o fogo pelos meus poros. Consegui respirar com
dificuldade, então, eu a vi.
Uma velha com longas mechas de cabelo branco e grisalho estava na
minha frente. Seus pequenos olhos estavam perdidos entre as rugas
profundas, mas eu podia distinguir um olho branco leitoso me encarando.
Eu teria reconhecido aquele rosto em qualquer lugar. Era a bruxa das trevas
de quem eu roubara o grimório.
Evanora Crow sorriu como o diabo, então, uma escuridão pesada
finalmente me engoliu.
Capítulo 16

H avia um leve cheiro de cinza e vela misturado com o fedor de mofo.


Ouvi o murmúrio distante de um encantamento. Mais perto, os sons de
vozes falando em latim ativaram minha memória, serpenteando
gradualmente pelo meu cérebro até encontrarem um pensamento
consciente.
Levantei-me com os olhos arregalados e a adrenalina pulsando através
do meu corpo enquanto o medo me tirava do efeito dopado.
Eu estava em um porão. Painéis de pinho falso decoravam as paredes. O
teto era baixo e um piso de compensado sujo percorria toda a extensão da
sala. Na outra extremidade, sob as janelas altas do porão, uma plataforma
ocupava todo o espaço.
Eu estava no meio do cômodo, sentada no centro de um pentagrama
dentro de um grande círculo. Velas estavam posicionadas nos cantos, abaixo
de símbolos demoníacos que eu não reconhecia. Um horror tomou conta de
mim quando percebi que alguém usara sangue para desenhar o círculo, não
sal.
Droga. Isso era magia negra pura.
Senti olhos em mim e olhei para cima. Através das mechas úmidas da
minha franja, distingui um grupo de figuras vestidas de preto do lado de
fora do círculo. O cheiro de terra e de vinagre era quase um tapa. Bruxas
das trevas.
Eu sabia que me daria mal por roubar o grimório da mulher.
Aparentemente, a hora chegara.
A mesma sensação fria no meu bolso fez minha pele formigar. A moeda
mágica não tinha me avisado sobre Jax. Ela tentara me avisar sobre as
bruxas das trevas.
– Rowyn?
Em pânico, me virei para o som da voz de Jax. Ele estava sentado de
costas contra a parede. As mãos e os pés estavam amarrados com cordas.
Seu rosto perfeito estava tenso e revoltado, mas também havia um pouco de
medo – medo por mim. O sangue escorria por seus lábios e eu vi um
hematoma feio em sua testa. Ao lado dele, havia um amontoado marrom,
que eu sabia ser Ugul, com olhos fechados, aparentemente ainda apagado.
Merda.
Já tive minha cota de infortúnios, mas sempre estivera sozinha. Agora,
eu tinha envolvido Jax na minha bagunça. Ele deveria ter ficado em casa
com a Mamãe Querida. Eu não queria ser responsável por sua morte.
A culpa bateu forte. Eu tinha matado todos nós.
O medo tomou conta do meu corpo.
– Onde está Tyrius?
Talvez o gato esperto tivesse escapado e ido buscar ajuda. Contudo,
minha gota de esperança evaporou quando segui os olhos de Jax para uma
gaiola ao lado dele. Eu pude ver o pelo castanho amarelado e preto. Tyrius.
Ele estava em uma maldita gaiola!
– Tyrius! Tyrius! – Uma raiva explodiu dentro de mim enquanto eu
lutava para ficar de pé, ainda tonta pela magia negra.
Os olhos do gato encontraram os meus e a tristeza neles partiu meu
coração.
– Ela colocou uma coleira em mim, Rowyn. Uma maldita coleira.
– Sim, bem, nós não queremos que você use sua magia, não é? –
Evanora Crow se afastou do grupo de bruxas.
Seu vestido de linho verde-floresta sem forma se arrastava atrás dela
enquanto ela se aproximava com as costas arqueadas devido a idade. Seus
dedos eram retorcidos pela artrite severa. A mulher era ainda mais feia de
perto. Seu único olho branco leitoso pareceu rolar em sua órbita até focar
em mim.
Eu ia matar aquela bruxa vadia. Ninguém coloca meu Tyrius em uma
gaiola.
Firmando-me, endireitei-me e, então, avancei. Quando cheguei à beira
do pentagrama, bati minha cabeça no que parecia ser uma parede invisível –
uma parede que queimava e doía pra caramba.
Eu caí de bunda. O escudo invisível sibilou e queimou. Eu coloquei
minha cabeça entre minhas mãos enquanto a dor só aumentava minha
sensação de fúria e de desespero.
– Deixe-me sair! – gritei.
Ao virar-me, procurei meu cinto de lâminas. Minhas lâminas tinham
desaparecido. Eu estava presa dentro do círculo sem nada para me defender.
O sorriso no rosto da bruxa só confirmou isso.
Ela havia me prendido em seu círculo sangrento.
– Deixe-me sair agora mesmo! Ou, então, eu vou acabar com você! Eu
vou matá-la! – eu disse novamente, batendo no escudo com as mãos.
O rosto do demônio Superior Degamon cruzou minha mente. Eu podia
entender totalmente agora por que ele estava tão irritado por estar preso em
um círculo ligado ao invocador. Isso explicava porque os demônios queriam
matar aqueles que os invocavam. Era uma violação.
Porém, eu não tinha sido invocada. Fui enfeitiçada. Estava presa, presa
ao círculo como se ele me prendesse com correntes invisíveis. Eu era uma
prisioneira da bruxa das trevas. Meus olhos dispararam para o curativo
manchado de sangue enrolado na mão esquerda de Evanora. Ela usara seu
próprio sangue para fazer o círculo. Que ótimo.
Meus olhos encontraram os de Tyrius. Ele estava em pânico.
– Não se preocupe, Tyrius. Eu vou tirar você daí. Eu prometo.
– Evanora Crow agradece por seu novo familiar – disse a velha bruxa. –
Ela não teve o prazer de ter um tão poderoso – disse Evanora enquanto
enfiava um dedo na gaiola. Tyrius sibilou e a atacou. Ela se inclinou para
trás com um sorriso cruel brincando em seus lábios finos. – Sim. Ele vai se
sair bem. Evanora está feliz com este presente.
Cerrando os dentes, olhei para a bruxa.
– Você percebe como é assustador se referir a si mesma na terceira
pessoa? Sua doente.
Eu estava impotente. Apesar de todas as minhas habilidades de nascido-
anjo e de demônio, eu estava completamente impotente.
Olhei para o grupo de bruxas. Havia dois homens que pareciam estar na
casa dos quarenta e tantos anos e uma jovem loira que parecia uma beldade.
O rosto de outro estava escondido nas sombras de seu capuz. Eu sabia que
ele era do sexo masculino pelo simples formato dos seus ombros. Também
havia uma pequena bruxa com aparência de rato. Ela tinha olhos grandes e
uma boca pequena.
– O que você quer? – Estreitei meus olhos para a velha bruxa. – Vai me
amaldiçoar ou algo assim? Vá em frente. Faça o seu melhor.
Eu sabia que algumas maldições não funcionariam, graças ao meu super
sangue de demônio. Contudo, ela me prendera aqui. Talvez eu estivesse sem
magia demoníaca.
Evanora deu um passo para frente e parou na borda do círculo de
sangue.
– O que você esperava? Que poderia roubar de Evanora Crow e não
sofrer as consequências? Que não haveria repercussões pelo que fez?
– Talvez. – Levantei meu queixo. – Você tinha tantos outros livros…
Achei que não sentiria falta.
– Onde ele está? – Evanora inclinou a cabeça de uma forma que fez seu
olho branco ser o dominante.
– Eu perdi. Desculpe. – Dei a ela meu sorriso mais inocente.
A mulher se inclinou para frente. Ela estava tão perto que o cheiro de
vinagre fez meus olhos lacrimejarem. Havia também o fedor inconfundível
de um corpo que não via água há muito tempo. Nojento.
– Você está mentindo. Você o pegou e, agora, Evanora o quer de volta.
Ele não pertence a você. Onde. Ele. Está?
– Como eu disse, o livro se foi. – Dei de ombros e acrescentei – Mesmo
se eu soubesse onde ele está, não diria a você. – Eu sorri. – Além disso,
você não disse a palavrinha mágica. – Eu sabia que no momento em que
dissesse a ela onde ele estava, estávamos todos fritos.
O rosto da bruxa ficou furioso. Seus lábios se moviam rápido enquanto
ela proferia algum feitiço que eu sabia que estava por vir. Eu era muito
resistente à dor e à doença, sem falar que me curava incrivelmente rápido,
mas não era imortal.
O feitiço de Evanora me atingiu forte no estômago, logo abaixo do meu
coração, como se alguém tivesse enfiado uma lâmina em mim. Caí com
força no piso e uma dor lancinante atravessou meu quadril direito. A dor
estava piorando à medida que os calafrios penetravam. Comecei a tremer.
Eu precisava de tempo para pensar em um plano de fuga. Minha mente
disparou e eu lutei para montar um plano, mas era difícil pensar em
qualquer coisa enquanto meu cérebro parecia estar derretendo e vazando
pelos meus ouvidos.
– Diga a Evanora onde está o grimório – disse a bruxa – e ela pode fazer
a dor parar.
Sim, claro. Como se eu fosse acreditar nisso. Sem chance, eu não diria
nada.
Quando o pior do feitiço passou, eu me levantei. Minha mente
permaneceu confusa com os efeitos do feitiço, mas pude pensar com clareza
novamente. Eu lera aquele maldito grimório mais vezes do que conseguia
me lembrar. Havia um capítulo sobre como quebrar um círculo mágico?
Tinha que haver uma saída. Eu sabia que, às vezes, os demônios escapavam
do círculo dos invocadores apenas para matar o invocador. Então, havia um
jeito. Eu só tinha que mantê-la falando até descobrir.
A dor estava forte ao redor da minha garganta e isso dificultou a minha
fala.
– Você fede – eu disse, minha voz soando velha e cansada. – Talvez
devesse dar um mergulho no seu caldeirão.
Evanora franziu a testa e as outras bruxas sibilaram em indignação.
Contudo, a jovem loira riu. Não era uma risada inocente de uma líder de
torcida, era a risada de uma mulher doida. Credo.
O olho bom de Evanora era de um cinza muito pálido e, agora, estava
bem aberto e calculista. Eu queria tirá-la do sério para que ela cometesse
um erro ou que ficasse com raiva o suficiente para passar por cima do
círculo e quebrar a conexão. Então, a cadela seria minha.
Levantei uma sobrancelha diante de sua hesitação.
– Não? Você não gosta de sabonete, né? Gosta de cheirar seu próprio
fedor? – A velha bruxa estava me observando, mas eu ainda não a tinha
irritado. Arrastei-me até o meio do pentagrama. – O que aconteceu com seu
olho? Como o perdeu?
– Rowyn, o que você está fazendo? – Ouvi a voz de Jax.
O rosto de Evanora se contorceu em uma fúria repentina, seu monte de
rugas estava quase engolindo seus olhos.
– Você não tem magia o suficiente, então, teve que pedir emprestado,
não é? – Eu sorri diante da sua raiva visível. – Entregou seu olho a um
demônio em troca de um empréstimo de poder? Evanora Crow se interessou
um pouco demais pela magia negra e acabou não conseguindo lidar com
isso?
O rosto da bruxa ficou lentamente vermelho escarlate. O rubor subiu
pela sua pele branca, da garganta até o queixo e das bochechas e até o couro
cabeludo.
– Ah… – zombei com os olhos arregalados. – O demônio o tirou de
você. Você não queria, mas foi o preço que teve que pagar por seus poderes.
Estou certa, não estou? Suas bruxas das trevas idiotas. Nunca sabem quando
desistir. Nunca sabem quando parar. Você não tem poder, por isso, tem que
pegar emprestado dos demônios.
Evanora rosnou e, com um golpe de sua mão, algo agarrou minha
garganta e me sufocou. Fiquei sem respiração.
– Vocês. São. Fracas – consegui dizer.
Seu rosto escureceu quando ela deu um passo mais perto para acabar
comigo. Contorci-me sob seu feitiço, lutando para respirar enquanto as
estrelas dançavam na frente dos meus olhos.
Quando minha visão clareou por alguns segundos, pude ver as pontas de
seus sapatos contornando o círculo. Só mais um passo. Vamos, sua bruxa
velha, só mais um passo.
Evanora observou meu rosto, então, olhou para seus pés. Sua expressão
dura mudou e vi que ela compreendeu o que eu estava tentando fazer.
Merda.
Foi a vez da mulher sorrir para mim.
– Boa tentativa. – Evanora recuou. O ar entrou em meus pulmões
quando eu caí no pentagrama.
– Rowyn, apenas diga a ela onde está o maldito livro – gritou Jax. – Ele
não vale a sua vida.
Evanora desviou seu olho branco leitoso para Jax. Soltei um pequeno
gemido, mas eu sabia que era tarde demais.
– Se você machucar algum dos meus amigos – eu gritei, debatendo-me
loucamente –, o Conselho das Sombras vai caçar cada um dos membros do
seu clã idiota. Eles vão queimá-la viva. Está me escutando!? E eu vou
dançar ao redor do fogo. Nua. – Eu me jogava no escudo invisível sem
parar, mas não adiantava. Não conseguia quebrá-lo.
Olhei para o nascido-anjo. Seu rosto estava pálido e seus olhos estavam
arregalados. Ele estava se preparando para a dor que estava por vir. Jax não.
Por favor, ele não.
A bruxa disse uma palavra ou duas e, então, levantou a palma da mão
aberta. Centelhas de faíscas de energia negra saíram de seus dedos.
Uma esfera negra foi arremessada e atingiu o ombro esquerdo de Jax,
explodindo em fragmentos negros. Ele soltou um grunhido curto e áspero
de dor e afundou no chão, tremendo enquanto os efeitos da magia negra o
percorriam.
A bruxa loira bateu palmas e pulou no ar. Seus olhos estavam
arregalados de diversão.
– Faz de novo, Evanora! Corte sua bela carne. Ah, tão bonito, bonito,
bonito. Onde estão seus anjos poderosos agora, hein nascido-anjo? –
provocou a bruxa, parecendo uma louca com seus olhos grandes e cabelo
emaranhado. Era como se ela nunca tivesse o escovado uma vez na vida. A
mulher caminhou lentamente ao redor de Jax e parou à sua direita. Um
prazer dançava em seus olhos ao ver sua dor.
Estremeci ao ver Jax com tanta dor. Eu sabia como ele se sentia. Gritei
enquanto meus olhos se encheram de lágrimas. Vi sangue escorrer de suas
orelhas.
Soltei um grunhido gutural, profundo e feroz. Não sabia de onde vinha
aquele som – talvez fosse minha besta interior. Talvez fosse da minha
herança demoníaca ou talvez fosse meu sangue de anjo, mas o fato é que eu
estava puta. Eu queria matar essa bruxa. Sem dúvida, a mulher sabia que,
assim que eu estivesse livre, eu acabaria com ela.
– Se eu lhe disser onde ele está – falei, engolindo em seco –, você
promete deixar eu e meus amigos irmos? – Foi um tiro no escuro. A bruxa
me tinha na palma das mãos, mas valia a pena tentar. Quem sabe, ela
pudesse manter sua palavra. – Eles não têm nada a ver com isso. Eu roubei
seu maldito livro, não eles.
Ouvi seus ossos estalando quando Evanora voltou sua atenção para
mim.
– Diga a Evanora onde está o livro ou ele morre.
A bruxa loira riu e eu a encarei. Você é a próxima, eu disse a ela com
meu olhar, mas mulher apenas sorriu para mim.
O problema era que eu tinha escondido o grimório na casa da minha avó
por segurança, pois Degamon o tinha visto. Eu não podia arriscar deixá-lo
no meu apartamento. Porém, de jeito nenhum eu daria o endereço da minha
avó para essas bruxas das trevas. Elas a matariam. Iriam torturá-la e, depois,
matá-la. Eu nunca deixaria isso acontecer.
– Está na igreja de São José – eu menti, esperando que o Padre Thomas
pudesse lidar com algumas bruxas. – Escondido nos arquivos no porão. É
solo sagrado, você não pode entrar – menti novamente, sabendo muito bem
que, como eram metade humanas, as bruxas das trevas podiam facilmente
acessar a igreja. Pelo sorriso de Evanora, ela também sabia.
A velha bruxa era, ao mesmo tempo, aterrorizante e revoltante.
– Evanora vai pegar seu livro de volta.
– Tá – eu disse, tremendo por dentro. – Trato é trato. Você sabe onde
está seu maldito livro, agora, deixe-nos ir embora. – Eu duvidava que ela
fosse deixar Tyrius ir sem lutar. Eu com certeza arrancaria aquele olho
branco da cabeça dela para trazê-lo comigo. Levantei meus punhos. –
Deixe-me sair.
Evanora mancou para o fundo da sala, em direção à longa mesa.
Quando se virou, ela tinha uma taça de ouro na mão esquerda e uma adaga
na direita.
– Evanora vai drenar seu sangue – disse a bruxa enquanto mancava na
minha direção –, drenar seu sangue até a última gota.
De repente, o grupo de bruxas foi para a mesa e, quando se afastaram,
todos tinham copos semelhantes nas mãos.
Uma pontada de medo percorreu minha espinha.
– Eu lhe dei o livro – eu disse com uma voz trêmula. Não pude evitar. –
Nós tínhamos um acordo. – Olhei para Jax e ele lentamente empurrou seu
corpo contra a parede. Traços de dor marcavam seu rosto.
A velha bruxa atravessou a sala até ficar ao lado do círculo.
– Evanora não cumprirá mais essas condições. Você é a exceção a todas
as regras, a todas as leis. – Seus lábios se estreitaram devido a uma mágoa
passada. Ela apontou a adaga para mim. – Evanora queria seu livro de volta,
mas ela também queria você. Seu sangue. Ele é um presente para o clã. Ele
detém mais poder do que você imagina. Isso tornará Evanora mais poderosa
do que qualquer bruxa das trevas ou da luz. Sombra e luz correm em suas
veias e Evanora quer isso. Tudo isso.
A bile subiu do fundo da minha garganta.
– Você é doente. É uma vadia seriamente doente.
A velha bruxa pensava que, se bebesse meu sangue, isso lhe daria poder.
Era mesmo possível? A fonte do meu poder estava no meu sangue?
Evanora parecia pensar assim. Talvez ela estivesse certa.
Meu coração acelerou com a ganância e desejo de poder em seus olhos
pequenos. O sorriso triunfante e cheio de dentes de Evanora fez meu sangue
congelar.
Seja lá o que eu fosse, as outras bruxas me encaravam com olhos
famintos e febris. Era como se eu fosse um bife suculento.
Contudo, elas não iam me comer. Iam me beber até a morte.
Capítulo 17

– M eu sangue é venenoso – eu disse, odiando a fome em seu sorriso. –


É tóxico. O arcanjo me contou pouco antes de eu matá-lo. – Merda,
eu não deveria ter dito isso. – Apenas uma gota é o suficiente para matá-la.
Você terá uma morte muito dolorosa e lenta.
Evanora riu. Com seus lábios se movendo, ela levantou a mão com a
adaga e eu fui jogada de costas, com meus braços e pernas abertos, quando
senti um peso me segurar. Eu estava paralisada. O medo tomou conta de
mim, mas não consegui me mexer.
Sempre odiei bruxas das trevas. E, agora, acho que as odiava ainda mais
do que fadas.
– Rowyn!
Desta vez, a voz assustada de Tyrius partiu meu coração. Eu havia
falhado com ele. Nunca deveria ter roubado aquele livro estúpido. Olha o
que isso me trouxe. Ele seria o escravo dela agora. A mulher o usaria e o
drenaria. Talvez até o mataria.
Eu nem consegui vê-lo. Quando tentei mover minha cabeça, senti como
se estivesse cimentada no chão.
Ouvi o som de metal chacoalhando, misturado com um grunhido de
pesar. Eu sabia que Tyrius estava batendo em sua jaula. Ele estava tentando
sair. Estava tentando me salvar.
Lágrimas quentes rolaram dos cantos dos meus olhos para os meus
cabelos. Meus lábios tremeram e eu não consegui impedir enquanto uma
dor latejou em meu peito até minha garganta. Não era assim que eu
imaginava minha morte. Sempre pensei que morreria em batalha, de pé e
com dignidade. Como uma fodona. Não deitada e indefesa como uma
galinha pronta para ser abatida.
– Evanora Crow será a bruxa mais poderosa que já existiu – disse a
velha enquanto se ajoelhava ao lado do meu pulso direito. – Com um poder
eterno. – Seu olho branco leitoso girava. – Imortal.
– Vai se ferrar – rosnei, incapaz de cuspir em seu rosto, porque eu teria
cuspido se pudesse mover minha cabeça. – Eu vou voltar como um
fantasma e assombrar sua bunda gorda, bruxa.
Evanora riu, então cortou, meu pulso com a lâmina.
Assobiei com a dor inicial, mas isso não foi nada comparado ao nojo
que senti quando ela pegou meu sangue com seu copo, lambendo os lábios
e tomando cuidado para não danificar o círculo.
A bile subiu no fundo da minha garganta novamente. Foi preciso um
esforço para empurrá-la para baixo. Se eu vomitasse agora, poderia
engasgar. Seria uma maneira escrota de morrer.
Os pelos dos meus braços se arrepiaram ao som de uma entoação alta e
repentina. A entoação assumiu um tom de satisfação feroz e malévolo e
continuou a aumentar até soar quase como um grito.
Para meu horror, o bruxo encapuzado tirou o capuz e se ajoelhou à
minha esquerda. Eu só podia ver metade do seu rosto devido à minha
paralisia. A luz das velas refletia em sua careca escura. Sua pele era quase
tão escura quanto suas vestes negras.
Então, algo duro cortou meu pulso esquerdo e eu senti o metal frio de
outra xícara sendo pressionado contra minha pele.
– Malditos! – eu gritei o mais alto que pude sobre o cântico estrondoso,
piscando com minha visão turva. – Você vai pagar por isso! Eu juro pelas
almas. Eu vou matar você! Vou matar todos vocês! – A última parte saiu
mais como um soluço quando minha garganta se fechou.
Isso está realmente acontecendo. Eu realmente vou morrer desta vez.
Houve um estrondo alto, seguido pelo som de passos descendo para o
porão.
– Você! – ouvi Evanora gritar, parecendo surpresa e indignada. Fazendo
uma careta e segurando o copo com um pouco do meu sangue
protetoramente contra seu peito, ela se endireitou. – Como ousa interromper
Evanora! – Seu choque se transformou em raiva em um piscar de olhos e
cuspe voou de sua boca.
Do canto do meu olho, eu vi o bruxo negro avançar. Esferas de energia
negra saiam de suas mãos enquanto ele gritava as palavras de algum
encantamento.
O que diabos estava acontecendo? Vultos escuros corriam ao redor da
minha linha de visão, mas eu não conseguia distinguir nada. Meus olhos
idiotas estavam virados para o teto. Gritos e encantamentos soaram ao meu
redor, seguidos pelo som horrível de carne sendo rasgada e o barulho rápido
de socos batendo em carne macia, sem parar.
As bruxas estavam lutando, mas contra quem?
Minha pele formigava. Senti uma liberação, como se a corda apertada
que prendia meu corpo no chão tivesse sido cortada.
Eu estava livre. Conseguia me mover novamente.
Rolei para o meu lado e meus olhos o encontraram. Sem camisa e
descalço, o vampiro gótico-rockstar-melancólico-gostosão-lindo-de-morrer
quebrou o pescoço do bruxo negro e o jogou facilmente no chão.
Danto.
Que deleite para os olhos ele era. Mesmo sendo um vampiro, eu poderia
facilmente beijá-lo. E o cara trouxera mais dois com ele: uma vampira com
tranças pretas com pontas roxas, usando óculos escuros, e um vampiro
magro e esguio com cabelo e pele claros. Eu quase sorri.
Um vulto escuro correu em direção a Danto com uma adaga na mão. Da
sombra da parede, a bruxa saltou sobre o vampiro. Com uma velocidade
incrível, Danto se arqueou para o lado e afundou os dentes no pescoço da
bruxa. Os olhos dela se arregalaram. Eu vi o horror neles.
– A vingança é um prato que se come frio – eu rosnei, vendo Danto
morder com tanta força que o osso fez um estalo, então, a bruxa desabou no
chão.
Ajoelhei-me e inspecionei meus pulsos. Droga. Eles estavam em um
péssimo estado. Os cortes eram profundos e meu sangue escorria pelo meu
braço. As feridas iriam cicatrizar, mas eu precisava parar o sangramento
rápido. Rasgando a borda da minha camisa, fiz duas bandagens
improvisadas e as enrolei firmemente em volta dos meus pulsos. Então,
reunindo a energia que me restava, levantei-me. Com a cabeça girando,
ignorei a náusea repentina e me endireitei. Jax estava sentado no chão,
serrando suas amarras com algo afiado. Ele olhou para cima e nossos olhos
se encontraram. Seu queixo caiu ao ver algo atrás de mim e seus olhos se
arregalaram com um medo repentino.
– Rowyn! Atrás de você!
Eu girei e encarei a bruxa loira. Ela tinha uma adaga preta em sua mão.
Uma névoa negra envolvia seu pulso. Minha lâmina da morte.
– Isso é meu – eu disse. – Seus pais não lhe ensinaram que não é legal
pegar os brinquedos dos outros?
A bruxa riu e limpou o nariz sangrento.
– Não importa. Eu vou matá-la com ela. E vou beber seu sangue.
A mulher avançou e eu recuei. Minhas costas bateram em algo sólido.
Eu guinchei quando o escudo invisível do círculo queimou minha pele.
Droga. Eu ainda estava presa no estúpido círculo das bruxas.
– Por que Evanora deveria ser mais poderosa que as outras? – disse a
bruxa. – Ela é velha, o tempo dela acabou. Eu que deveria ser. Eu deveria
ter o poder. – A loira tinha o olhar desvairado que todas as pessoas têm
antes de fazerem alguma loucura. Ela passou por cima do contorno de
sangue e entrou no meu círculo. – É a minha vez. Me dê! – gritou e saltou.
Uma grande xícara acertou a parte de trás de sua cabeça. Com um
pequeno grito, a bruxa caiu no chão, em cima do pentagrama. O sangue
escorria de um grande corte em sua cabeça. Foi fatal.
Ugul estava de pé onde a bruxa loira estava, suas mãos amarradas ainda
segurando a xícara com a qual ele acertara a cabeça dela. Havia sangue
nele. Eu não entendi a expressão em seu rosto quando ele deixou o objeto
cair. O goblin mancou para frente e passou o pé na borda do círculo de
sangue, deixando um espaço de cinco centímetros. O círculo foi quebrado.
Ele tinha salvado minha vida duas vezes e, em ambas, não parecera feliz
com isso.
E eu era a idiota que o trouxera aqui.
Não tinha tempo para remoer minha culpa. Livre, entrei em ação,
peguei minha lâmina da morte e me lancei em direção à jaula de Tyrius.
Usando o cabo da minha espada, esmaguei a fechadura. Ela caiu no chão,
fazendo um barulho alto. Abri a porta da gaiola.
Estendi a mão e puxei meu gato, meu amigo, meu Tyrius.
Um delicado colar de prata estava enrolado em seu pescoço.
– Eu sabia que você me salvaria – disse ele com as pálpebras pesadas.
Sua voz era baixa e fraca, como se aquela maldita coleira estivesse
drenando sua energia.
Eu tinha apenas uma coisa a fazer. Deslizando minhas mãos ao redor do
seu pescoço, agarrei aquela maldita coleira e coloquei toda a minha raiva
nela, quebrando-a no meio.
Tyrius deu um pulo e se espreguiçou, bocejando.
– Obrigado, Rowyn.
Eu sorri e joguei a coleira longe.
– De nada.
O pelo dele estava opaco. O felino cambaleava como se estivesse
bêbado. Não querendo correr mais riscos com ele, eu o peguei e o coloquei
em volta dos meus ombros, seu lugar favorito. Sabendo que ele estava
seguro e protegido, eu me virei com a adaga na mão. Ia matar aquela velha
bruxa pelo que ela tinha feito com Tyrius e pelo que tinha planejado fazer
com ele.
Eu corri de volta para a luta, passando meus olhos ao redor do porão,
procurando por Evanora. Só então percebi que os sons de luta haviam
parado. Havia apenas o som do meu sangue martelando descontroladamente
em meus ouvidos. A luta acabara.
Cinco bruxas estavam mortas no porão, algumas com o pescoço rasgado
e ensanguentado. Contudo, não havia sinal da velha bruxa.
Danto atravessou a sala em minha direção com uma graça predatória
que só ele poderia ter descalço. Ele limpou o sangue do canto da boca.
– Você está bem, Rowyn? Tyrius?
– Estamos bem. – Embainhei minha lâmina da morte e notei que meus
pulsos pararam de sangrar. Senti minha pele formigar e repuxar enquanto já
estava começando a cicatrizar. Onde estava minha lâmina da alma? – Não
sei como nos encontrou, mas devemos muito a você. – Suspirei alto, eu nem
sabia para onde Evanora havia nos trazido.
Na última vez que vira o vampiro, ele estava muito chateado. O cara era
a última pessoa ou híbrido que eu esperaria ver em uma missão de resgate,
mas aqui estava ele. Interessante.
Eu sorri para o vampiro.
– Obrigada. – Uma sensação de náusea surgiu ao pensar nas bruxas
bebendo meu sangue.
A expressão de Danto era ilegível, mas seus olhos estavam duros.
– Você ao menos sabe onde está?
– Não – eu disse, olhando ao redor. – Eu deveria? Não reconheço este
lugar.
Soltei um suspiro frustrado e meu olhar caiu sobre Jax. Ele estava nas
sombras do porão, esfregando os pulsos. Havia uma expressão estranha em
seu rosto enquanto mantinha distância dos vampiros. Desviei o olhar antes
que ele me pegasse olhando.
Ugul estava sentado ao lado do círculo de sangue, com as mãos e os pés
ainda amarrados. Ele me deu um olhar duro. Eu lidaria com o goblin-fada
mais tarde.
– Você está no Bairro Místico – disse Danto. Eu vi seus dois amigos
vampiros trocando algumas palavras. – Meus amigos viram as bruxas
arrastarem três corpos para esta loja. Quando ouvi que eles poderiam ser
nascidos-anjo, tive a sensação de que poderia ser você. Você tem talento
para atrair problemas.
– Obrigada. – Meu rosto corou. – Esta é uma loja de bruxas?
Acredito que é onde elas se reúnem e fazem sua porcaria de magia
negra.
– O Caldeirão Enferrujado – disse Danto. – Acho que a dona é a jovem
bruxa com o crânio rachado.
Meu olhar percorreu o local. O cheiro metálico de sangue se misturava
com o cheiro de velas e de incenso. Tudo não passara de legítima defesa,
mas, ainda assim, eu não sabia como iríamos explicar a morte de cinco
bruxas. As marcas de mordida definitivamente alarmariam as Cortes das
Bruxas. Elas considerariam isso como um ataque de vampiro. Como eu
poderia explicar que as bruxas estavam prestes a me sacrificar por conta do
meu sangue e que os vampiros tinham vindo me resgatar? Pelo que eu tinha
ouvido Isobel dizer sobre Danto, ele não era bem visto nos tribunais. Eu não
queria lhe causar mais problemas por salvar minha pele.
Eu também tinha que pensar em Ugul. O Conselho das Sombras o
levaria sob custódia e o entregaria para Isobel. Eu perderia meu dinheiro.
– Vejo que você encontrou sua fada – disse Danto, seguindo meu olhar.
Suas sobrancelhas se franziram em uma carranca. – O nome dele soa
familiar. Pensei nisso a primeira vez que ouvi Isobel mencioná-lo. Vou ter
que pesquisar mais um pouco, mas – ele disse, voltando seus olhos cinzas
para mim –, você tem certeza de que quer levá-lo para a rainha das fadas?
Há algo que ela não está nos contando sobre ele.
Eu sabia que Danto e a rainha compartilhavam uma história, mas não ia
desistir da minha chance de salvar a casa da minha avó só porque o vampiro
odiava a rainha das fadas. Inferno, eu a odiava também, mas eu precisava
fazer isso. Não tinha escolha.
– Como vamos nos livrar dos corpos? – perguntei, querendo mudar de
assunto.
Um sorriso malicioso se curvou em seus lábios enquanto seus olhos se
fixavam em mim.
– Cuidaremos deles.
– Cara legal, hã, vampiro – murmurou Tyrius, com sua voz pesada de
sono. Eu o senti ronronando contra meu pescoço.
Eu não podia acreditar na nossa sorte, porém, algo me dizia que eu não
tinha terminado com a velha bruxa. Uma sensação de desconforto
pressionou meu peito com força.
Evanora Crow desaparecera. E ela tinha uma xícara com meu sangue.
Capítulo 18

S entei-me no chão sujo, com minhas costas contra a parede enquanto


observava os vampiros carregarem os corpos pelas escadas do porão.
Fiquei maravilhada com a força deles. Mesmo a vampira, cujo nome era
Vicky, era forte como um boi, e ela era mais baixa e delicada do que eu.
Mas isso era apenas uma fachada, ela provavelmente poderia acabar
comigo.
Gostei especialmente de ver como os músculos do peito de Danto se
contraíam enquanto ele arrastava a bruxa das trevas morta. Ele parecia ter
encontrado um propósito, isso tornava suas feições ainda mais agradáveis
de admirar. O que eu poderia dizer? Não havia nenhuma lei que dissesse
que eu não podia olhar. Eu era solteira, e a regra era que garotas solteiras
podiam olhar. Além disso, eu quase morri, então poderia muito bem
apreciar a vista.
Não perguntei e não me importei com o que eles fizeram com os corpos.
Eu só não queria ver ou pensar sobre elas, ou como elas queriam drenar
meu sangue até eu secar e depois bebê-lo. Aquelas bruxas quase me
mataram.
Tyrius havia saído cerca de quarenta minutos atrás para explorar as ruas
do Bairro Místico em busca de mais bruxas das trevas ou qualquer outra
coisa que parecesse suspeita e fora de lugar, o que realmente, poderia ser
qualquer coisa neste bairro. Mas ele estava tão inflexível em ir, que eu
deixei, sabendo que ele se sentia culpado pelo que quase aconteceu comigo,
conosco. Contudo, isso não foi, de forma alguma, culpa dele. A culpa foi
minha. Toda minha.
Danto achou melhor acampar aqui pelo resto do dia e descansar um
pouco antes de mostrarmos nossas caras no Bairro Místico. As fadas
dormiam durante o dia, e a rainha das fadas das trevas não abria a torre até
o pôr do sol. Quando o sol se pôr, traríamos Ugul para a rainha das fadas.
Ficar mais um pouco no porão parecia uma ideia inteligente. Eu
também esperava pegar Evanora Crow. Tinha a sensação de que a velha
bruxa voltaria. Mas depois de uma hora de espera, percebi que ela
provavelmente não voltaria. Nunca mais.
Ugul estava sentado ao lado da escada do porão à minha frente,
parecendo sujo e zangado por ainda estar amarrado e amordaçado. Tentei
não olhar muito para ele. Caso contrário, minha culpa me impulsionaria a
fazer algo estúpido.
Olhei para cima ao ouvir o som de passos de botas com solado duro no
chão de madeira e vi Jax se abaixando ao meu lado.
– Aqui – disse ele e me entregou uma adaga, que eu reconheci ser
minha lâmina da alma, e minha bolsa de couro. – Encontrei com o resto de
nossas coisas.
– Obrigada – eu disse, sentindo-me quente com sua proximidade.
Sua coxa roçou a minha quando ele se acomodou ao meu lado, e senti o
leve cheiro de sabonete e almíscar ao meu redor. O cheiro era agradável,
muito agradável. Por que ele tem que sentar tão perto?
– Eu queria falar com você – disse Jax enquanto cruzava as mãos no
colo.
Merda, lá vem. Meu coração disparou e depois voltou ao seu ritmo
normal. Eu não estava pronta para uma conversa. Senti um arrepio pelo
corpo, e pisquei quando seus olhos se fixaram em mim por baixo de sua
sobrancelha abaixada. Que maravilha.
Suspirei focando minha atenção em Keith, o vampiro pálido, enquanto
ele examinava os dedos da jovem bruxa loira. Então, com um movimento
rápido de sua mão, ele arrancou uma das unhas da bruxa morta e a guardou
no bolso. Bizarro.
– Por favor, não – eu inalei. – Eu sei o que você está prestes a dizer e,
francamente, eu não me importo – minha voz saiu dura, e eu estava de boa
com isso. Ele não tinha nada que me beijar quando tinha uma pobre mulher
esperando por ele em algum lugar. Eu nunca tomaria o homem de outra
mulher. Nunca.
Jax descansou a cabeça contra os painéis de madeira falsa, nossos
ombros se tocavam, mas eu não me afastei. Em vez disso, me senti relaxada
perto dele. Mudei de posição. Que diabos estou fazendo?
– Quando eu a conheci – ele começou, com uma voz agradável –, fiquei
impressionado com seus talentos, suas habilidades, com a forma como você
se movia como uma sombra mortal. Achei você a coisa mais sexy de duas
pernas.
Eu fiz uma careta para o sorriso em seu rosto.
– Não venha com essa – eu rosnei. – Estou cansada demais para essa
conversa mole.
– Ouvi muitas coisas sobre Rowyn Sinclair, a Caçadora – continuou
Jax, ignorando minha explosão, com o mesmo sorriso malicioso no rosto. –
Imagine minha surpresa quando todas elas se confirmaram. Você é
destemida e bonita e assustadora, às vezes.
– Sou mesmo – murmurei, satisfeita. Ele acabou de me chamar de
bonita?
– Você é durona e tem mais bolas do que a maioria dos caras que eu
conheço. – Ele riu, mostrando seus dentes brancos perolados. – E você pode
aguentar uma boa surra.
– Onde você quer chegar, Jax? – encontrei seus olhos verdes, meu
coração batendo loucamente no meu peito.
Ele baixou os olhos.
– Eu a beijei, e não deveria ter feito isso.
Isso era um pedido de desculpas? Não parecia.
Danto se virou, e meu rosto corou quando ele encontrou meus olhos,
uma expressão curiosa brincava em suas feições. Maldita audição de
vampiro. Eu não podia nem ter uma conversa particular. Sem dúvida, Vicky
e Keith também estavam ouvindo. Que ótimo.
– Foi só um beijo. Eu vou sobreviver – eu disse, certificando-me de que
minha voz não me trairia. Se tivéssemos dormido juntos, eu teria chutado
sua linda bunda. Tá, talvez eu tivesse dado umas palmadas de brincadeira
algumas vezes, e então eu a teria chutado!
– Foi apenas uma coisa do momento. Não precisamos mais falar sobre
isso. Tá? Estamos bem?
Jax não disse nada por um tempo, e o silêncio desconfortável estava
acelerando meu coração.
– A questão é que – disse ele – não foi. Não para mim.
Droga. Meu pulso batia forte, e eu odiava como ele fazia eu me sentir.
Como o simples fato dele estar sentado aqui do meu lado me transformava
em uma idiota completa. Pesquei meus sentimentos antes deles me
entregarem.
– Eu me importo com Ellie – disse ele em um tom muito profissional,
como se estivesse comentando sobre o tempo. – Ela é gentil, engraçada,
inteligente. Você iria gostar dela. Ela é uma boa pessoa. Ela não é tão
durona quanto você, mas pode se defender em uma luta.
Bufei.
– Eu não me importo.
Mentirosa. Mentirosa. Mentirosa.
– Namoramos por um tempo – disse Jax. – E quando trouxe Ellie para
conhecer meus pais – ele respirou com dificuldade –, vi uma mudança em
minha mãe, uma felicidade que não via desde que Gillian estava viva. – Ele
pausou por um instante. – Na época, achei que estava fazendo a coisa certa.
Eu sabia que se me casasse com Ellie, minha mãe ficaria feliz.
Perdi a respiração e ergui minhas sobrancelhas.
– Você se casaria com alguém apenas por causa de sua mãe? – Eu não
me importei com o quão áspera minha voz soou. Eu odiava a mulher. Ela
era cruel, uma bêbada e excessivamente medicada. – Esta não é a Europa do
século XVII. Você tem escolhas – Não que eu me importasse…
O rosto de Jax tinha traços de uma profunda tristeza, algo que eu
reconhecia em mim.
– Desde a morte da minha irmã, minha mãe nunca mais foi a mesma –
disse ele, com uma voz melancólica. – Ela está em uma depressão perpétua,
em seu próprio inferno. Eu mal vejo meu próprio pai por causa disso. Ele
não a suporta quando ela está assim.
– Sei como é – murmurei.
Aquela mulher poderia tirar qualquer um do sério.
– É por isso que tenho sido tão persistente em tentar encontrar o
assassino da minha irmã – disse Jax, sua voz estava baixa e controlada. –
Pensei que se eu o encontrasse, ela mudaria de alguma forma. Sabendo que
eu o matei e sabendo que ele nunca machucaria outra criança.
Minha cabeça chacoalhou.
– Você encontrou o demônio?
A voz de Jax estava tensa.
– Não, mas estou perto. Eu o acompanhei nos últimos seis meses. Há
um padrão na maneira como ele escolhe suas vítimas. Eu finalmente
percebi isso, e é assim que eu vou matá-lo.
– Jax, um demônio rakshasa é mortal. Você não deveria estar caçando-o
sozinho. É muito perigoso – me encolhi quando percebi que quase me
ofereci para caçar com ele. A última coisa que eu precisava era ficar
grudada com Jax sozinha, horas a fio, em motéis nojentos procurando por
um demônio. Seria muito fácil ter problemas com ele, com a forma que ele
me olhava, do jeito que seus olhos verdes se iluminavam quando ele olhava
para mim…
– Certo. – Ele deu um sorriso sem graça. – E o que você tem feito é
diferente? Seja sincera. Nós dois somos cabeças-duras e faremos o que for
preciso para matar demônios.
– Talvez. – Girei minha lâmina da alma com meus dedos. Eu tinha que
admitir que ele estava certo sobre isso.
Jax soltou um longo suspiro.
– Eu amo minha mãe. Me mata ver o quanto ela está sofrendo. É tão
errado um filho querer que sua mãe seja feliz novamente?
Não, acho que não.
E no silêncio que se seguiu, eu podia facilmente visualizar Jax e uma
misteriosa loira maravilhosa no altar com sua mãe enxugando lágrimas
falsas ao lado do eco de seu pai.
– Tudo estava indo bem – disse Jax – até que conheci você. – O calor
repentino em sua voz me pegou desprevenida. – Agora, as coisas estão…
complicadas.
– Complicadas? – levantei minha sobrancelha para ele, não gostei da
forma como ele disse a palavra, como se eu tivesse de alguma forma
estragado sua vidinha perfeita. Que de alguma forma isso, essa coisa, o que
quer que fosse, era minha culpa. Inferno, eu nunca pedi isso.
Ele pressionou sua mão contra a minha, e sua pele quente enviou uma
chama pelo meu corpo.
– Você vai em frente com isso? – perguntei, minha voz estava baixa,
fiquei surpresa pela pergunta. O suor escorria pelas minhas costas, e meu
pulso acelerava como se eu tivesse acabado de correr uma maratona.
Jax cerrou os dentes.
– Eu preciso. Você não entende.
Minha respiração vacilou enquanto eu exalava. Puxei minha mão.
– Que seja, a vida é sua. Apenas me deixe fora disso – Percebi um
lampejo de movimento e então vi Tyrius descendo os degraus.
– Rowyn, me desculpe. Eu não queria machucar…
– O quê? Meus sentimentos? – eu ri, mas meu rosto queimou. – Por
favor, eu mal o conheço. E não presuma que você me conhece também
porque você não me conhece. Você não sabe nada sobre mim – Agora eu
estava irritada.
Jax passou os dedos pelo cabelo.
– Eu ainda quero que sejamos amigos.
– Claro – eu disse, com um entusiasmo falso. Senti náuseas, eu ia
vomitar. Meu estômago doeu, e eu levantei em um pulo. Me virei para
encará-lo, mantendo meu rosto vazio de emoção.
– Deixe-me dar uma dica, Jax, só para você saber. Homens com noivas
não saem por aí beijando outras mulheres. A culpa é sua. Você deveria se
lembrar disso – eu me virei antes que ele pudesse ver meus olhos
lacrimejando.
Dane-se ele. Por que ele tinha que me contar tudo isso? Ele achava que
ajudaria, ou seu plano era apenas me confundir ainda mais?
Ele estava sendo nobre, um cavaleiro, esperando curar a dor de sua mãe,
e eu estava sendo uma idiota egoísta.
Eu deveria ter mantido minhas emoções sob controle. Jax e eu, nunca
ficaríamos juntos. Era fato.
Eu precisava ficar longe de Jax e ele precisava ficar bem longe de mim.
Capítulo 19

Q uando saímos do porão do Caldeirão Enferrujado, eu estava tão mal-


humorada a ponto de realmente sentir a raiva saindo dos meus poros,
como um suor fedorento. Eu estava muito irritada.
As ruas do Bairro Místico estavam incrivelmente vazias para esta hora
da noite, a escuridão se aproximava rapidamente para preencher os espaços
deixados pelos postes quebrados como uma névoa negra. Eu vi alguns
vampiros nos observando de suas varandas e janelas, mas as duas fadas que
estavam sentadas silenciosamente no parque do bairro correram na direção
oposta assim que ouviram nossa chegada.
Uma tensão e adrenalina percorreram meu corpo. Algo não estava certo.
E pelas conversas interrompidas dos outros, eu sabia que eles sentiam isso
também. Juntando tudo, tive a sensação de uma tempestade se formando, e
nós éramos ela.
Eu estava cansada e com fome. Minhas emoções estavam fora de
controle, e estava com raiva de mim mesma por deixá-las chegar tão longe.
Eu precisava me concentrar. Precisava parar de pensar em mim e focar no
problema real. Minha avó estava prestes a perder tudo. Ela era a única
família que me restava. Ajudá-la era mais importante do que meu desejo
egoísta de ter um relacionamento, de beijar Jax de novo, e talvez algo mais.
Eu não era fraca, e não precisava desesperadamente de afeto. Não
precisava de um homem para me sentir completa, para dar valor à minha
vida ou para sobreviver. E eu não era uma daquelas mulheres que
esperariam na esperança de que seu homem eventualmente aparecesse, de
jeito nenhum. A vida era muito curta para esperar por algo que poderia
nunca acontecer.
As almas gêmeas existiam? Eu não fazia ideia. Ainda assim, nunca fui
de acreditar no “felizes para sempre”. As coisas simplesmente não eram
assim. Você tinha que se dedicar nos relacionamentos. Você tinha que fazer
o seu próprio, felizes para sempre, seu próprio destino. Era nisso que eu
acreditava.
Se eu conhecesse um cara legal, bem, seria maravilhoso. Caso contrário,
se isso nunca acontecesse comigo, não sentiria pena de mim mesmo. Eu
seguiria minha vida.
Fui abençoada, ou amaldiçoada, por ser especial. Com o melhor dos
dois mundos – de sombra e de luz. E eu iria usar isso.
Eu poderia não ter sorte quando se tratava de relacionamentos, mas a
situação de Jax era pior. Esse era um pesadelo do qual eu não tinha vontade
de fazer parte. Conhecendo a mim mesmo, a melhor maneira de lidar com
essa situação era colocar a maior distância que pudesse entre nós. Eu
acabaria esquecendo seu traseiro sexy.
Contudo, o idiota decidiu vir. Eu não queria fazer uma cena, então
mantive minha boca fechada. Não queria que Jax soubesse o quanto sua
conversa tinha me deixado pior. Muito pior.
Mas iria passar, sempre passava.
– Hã, Rowyn, você está bem? – Tyrius caminhava ao meu lado. A
preocupação em sua voz atraiu meus olhos para ele.
– Eu estou bem – menti. – Vamos acabar com isso. E com isso, quero
dizer ele – eu disse e puxei Ugul com força para perto de mim. Danto e
Vicky estavam à nossa frente enquanto Keith vigiava a parte de trás com
Jax.
– Você sabe por que ele está vindo, não é?
Mantive meus olhos na rua.
– Para ser um pé no saco? – eu disse finalmente.
Tyrius bufou.
– O babaca gosta de você.
– Ele está noivo.
– Noivados são quebrados o tempo todo – disse o gato, com uma voz
leve e fresca.
– Sim, bem, eu não acho que este vai. A mãe dele acha que eu sou um
demônio – eu disse.
Talvez eu seja.
– Nada de errado com isso – miou o gato. – Sério, demônios são
incríveis. Mentimos, trapaceamos, roubamos e bebemos como as pessoas
comuns. Os anjos têm um taco celestial enfiado em suas bundas. Eles são
chatos.
– Não temos futuro – dei uma rápida olhada para trás. Jax voltou para
buscar seu carro, o que explicava a espingarda de cano duplo de aparência
perigosa pendurada em seu ombro. Ele tinha uma arrogância em seu passo
como se estivesse ansioso para matar alguma coisa.
Minhas pernas ficavam mais pesadas a cada passo. Senti-me esgotada,
como se precisasse dormir por uma semana.
Tyrius inclinou a cabeça enquanto caminhava, tentando dar uma olhada
em Ugul.
– Sua fada parece um pouco estranha.
– Ele é um goblin velho – rebati. – Claro que ele parece estranho.
– Não, quero dizer, ele parece doente. – A voz de Tyrius ficou séria. –
Rowyn, acho que ele está passando mal ou algo assim.
Lembrando como o goblin tentou me matar com sua magia, uma raiva
brotou dentro do meu peito, e eu o arrastei com mais força.
– Ele está apenas tentando nos enganar para que pensemos isso. Estou
surpresa que você tenha caído na dele.
– Rowyn, pare! – gritou Tyrius, e eu me virei. – Olhe para ele. Ele não
consegue respirar. Tira isso!
Franzindo a testa, olhei para o goblin e me encolhi. Seu rosto estava
roxo, quase preto, e ele estava suando tanto que parecia ter acabado de sair
do banho. Isso não parecia uma encenação. Se fosse, ele merecia um Oscar.
Esta não era eu. Eu não era tão cruel. Sabia que se continuasse tratando-
o assim, ele acabaria morrendo antes mesmo de chegarmos à torre.
Com um aperto no peito, passei meu braço sob o goblin e o abaixei para
que ele pudesse sentar na calçada. Ugul soltou um suspiro pelo nariz, as
pálpebras estremecendo como se ele estivesse prestes a desmaiar por falta
de ar.
Decidida, removi a mordaça improvisada de sua boca. Ele respirou
fundo, várias vezes, soando ofegante. Cara. Eu estava sendo cruel. O que há
de errado comigo?
Tirei uma garrafa de água da minha bolsa e coloquei em seus lábios. O
goblin bebeu longa e intensamente, terminando a garrafa inteira em quatro
goles grandes. Ele fechou os olhos, parecendo aproveitar o momento.
Quando me deixei cair ao lado do goblin, um pequeno movimento à
esquerda chamou minha atenção. Avistei híbridos saindo das sombras. Seus
rostos estavam cobertos pela escuridão, mas eu ainda podia ler as
expressões curiosas. Duas bruxas ao lado de um poste de luz nos
observaram como fantasmas silenciosos, e um grupo de fadas saiu de uma
loja vizinha. O grito repentino de Tyrius chamou a atenção, e agora todos
saíram. Sem dúvida, em poucos minutos, todo o bairro saberia que
estávamos aqui. A rainha Isobel também saberia.
Jax, Danto e os outros dois vampiros se reuniram ao nosso redor,
aparentemente para fazer um círculo protetor.
Tyrius pulou no meu colo.
– Você fez bem, Rowyn. Eu não achei que ele fosse passar do próximo
quarteirão.
A vergonha me atingiu com força quando olhei para o goblin sentado
ali, curvado, com sua respiração tensa e parecendo doente. Eu queria que as
coisas fossem diferentes. Como Caçadora, eu matava demônios. Mas não
sabia como me sentir em trazer um pobre goblin velho para uma rainha que
eu odiava. Eu não deveria sentir culpa, deveria receber o pagamento e
seguir em frente. Mas isso era péssimo.
Ugul, com os olhos ainda fechados, disse:
– Obrigado.
Voltei meus olhos para seus pulsos. As algemas com as quais o amarrei
estavam manchadas de sangue.
– Por que você salvou minha vida lá no porão? Poderia ter deixado a
bruxa me matar. Então, estaria livre.
Os olhos de Ugul se abriram e ele olhou para mim.
– Você ainda vai me levar para a rainha das fadas da Corte das Trevas?
Engoli em seco.
– Eu preciso…
– Então, não importa agora, não é? – Ugul deixou a cabeça cair no
peito, e eu ainda podia sentir o cheiro do repolho saindo dele.
Tyrius olhou para mim com olhos tristes, o que só me fez sentir ainda
pior. Excelente. Agora Tyrius pensava que eu era cruel.
– É verdade o que ela disse que você fez? – perguntei, olhando para a
calçada e ouvindo a culpa na minha voz. – Você matou o filho dela?
Com a voz fria, Ugul enunciou claramente:
– Se eu lhe dissesse que ele tentou me matar primeiro, e que eu estava
apenas tentando me proteger, você acreditaria em mim? Você me deixaria
ir?
– Não sei. – Meu tom era hostil porque estava com medo e confusa.
Minha garganta fechou, e eu suspirei. Odiava me sentir assim, não estava
acostumada com isso. Um momento de clareza seria bem-vindo diante de
toda essa confusão, e constrangimento, e tormento. Almas me ajudem, o que
eu faço?
– Seu baal sabe que falo a verdade.
Um breve olhar de dor cruzou as feições de Tyrius.
– É verdade. Não há mentiras em suas palavras.
Meus olhos se arregalaram.
– Então por que ela iria tão longe a ponto de me contratar para encontrá-
lo se você é inocente? Não faz sentido.
– Ela quer algo de mim – disse Ugul, sua estava voz tensa. – Eu tenho
algo que ela quer, mas que ela não pode ter. Ela nunca pode tê-lo.
– Como o quê? – Passei os olhos sobre as roupas do goblin. – Nós
vasculhamos todos os seus bolsos. Não há nada em você.
– Talvez esteja na caverna dele? – disse Tyrius, olhando para o goblin. –
Está na caverna?
O lento aceno de cabeça de Ugul fez meu coração afundar.
– Você não pode me levar para ela – disse ele, com seu rosto se
contorcendo de medo. – Por favor. Ela trará apenas escuridão a este mundo,
uma escuridão poderosa que consumirá e corromperá tudo. Por favor
acredite em mim. Você não deve me levar até ela. Você deve me deixar ir.
Estávamos quase lá. Eu podia ver a silhueta da Torre Sylph em toda a
sua feiura através de uma clareira de prédios.
Olhei para seus grandes olhos castanhos, lendo um triste entendimento
lá.
– Rowyn? – ouvi a voz de Tyrius, seus olhos estavam preocupados e
desafiadores. – O que você quer fazer?
Eu podia dizer que ele queria que eu deixasse o goblin ir. Tyrius
acreditava nele e eu também. Talvez sempre acreditei.
Decidida, puxei uma chave da minha bolsa e destranquei as algemas de
ferro do pulso de Ugul. Antes que as algemas caíssem em seus pés, eu havia
cortado as cordas dos seus tornozelos com minha lâmina da alma.
Ugul olhou para mim. A surpresa brilhava em seus grandes olhos
redondos.
– Eu não posso fazer isso – eu disse, minha garganta estava seca e se
fechando. – Está errado. Eu não vou fazer isso. – Respirei fundo por causa
da ira que eu sabia que viria da minha decisão. – Você está livre para ir,
Ugul.
Tyrius saltou para o chão enquanto eu me levantava e puxava Ugul
comigo. Agarrei seus cotovelos e o estabilizei até que ele parou de
cambalear.
Os olhos de Ugul se encheram de lágrimas e eu o soltei. Virei a cabeça e
desviei o olhar, piscando rápido. Quem diria que um goblin velho quase me
fez chorar como um bebê.
– Você tem uma alma bondosa, Rowyn – disse ele. – Não deixe
ninguém lhe dizer o contrário.
– Sim, bem, eu não sou perfeita.
Virei-me para ver o goblin esfregando os pulsos. A pele ao redor deles
estava em carne viva e sangrava.
– A perfeição é tediosa – disse o goblin, fazendo-me rir.
Uma movimentação na rua fez eu tirar os olhos do goblin e olhar para
cima. Vi de relance as fadas correndo para longe e deixando a rua deserta.
Jax olhava para mim como se eu tivesse enlouquecido, mas Danto estava
sorrindo, um sorriso lindo e deslumbrante, ele estava claramente satisfeito
que no final, eu não ia trazer o goblin.
– Você sabe o que isso significa, não sabe? – disse Tyrius, com um
brilho nos olhos. – Cheesecake e cerveja.
Dei uma longa gargalhada, quebrando o silêncio sombrio do Bairro
Místico.
– Você é um gato louco. Sabia disso?
Tyrius sentou-se e enrolou o rabo nas patas.
– Não se esqueça de charmoso. Você nunca viu um felino mais
charmoso do que este, meu bem.
Parei de sorrir quando olhei de volta para o rosto do goblin. O cansaço e
a preocupação pesavam em seus ombros, e ele parecia mais velho como se
esses eventos o tivessem envelhecido cinquenta anos.
– Para onde você irá? – perguntei suavemente. – De volta a Elysium?
– Não – disse Ugul. – Está na hora de arrumar uma nova casa – Seus
lábios finos se curvaram em um sorriso. – Talvez, algum lugar quente.
– Ouvi dizer que o México é ótimo nesta época do ano – disse Tyrius. –
Tem muitas cavernas perto da costa do Pacífico.
A imagem de uma bela praia com areia dourada e água cristalina surgiu
em minha mente. Umas férias pareciam uma ótima ideia. Porém, sem
dinheiro…
Eu sabia que soltar Ugul seria um golpe devastador para minha avó.
Fiquei gelada em pensar no olhar em seu rosto quando eu disser a ela.
Quando eu disser a ela, que eu falhei.
Algo áspero roçou minha pele, e eu olhei para cima, assustada que Ugul
estava segurando minha mão na dele. Sua pele era áspera e calejada como
uma pedra arranhando minha pele.
Ugul olhou para mim, com um rosto iluminado.
– Você sabe o que você é, né?
Mexi meus pés, constrangida com sua proximidade e por ele ainda estar
segurando minha mão.
– Que eu sou tanto demônio quanto anjo? Sim, recebi o memorando
cerca de seis meses atrás.
– Eu não tinha certeza no começo – disse o goblin, com um sorriso
fraco em seu rosto enrugado. Seus olhos estavam cansados e fadigados. –
Sim – disse ele, enquanto colocava mais pressão na minha mão. – Eu posso
sentir isso. Não há engano.
– O quê? Há algo mais que eu deveria saber? – Inclinei-me para frente,
sem ter ideia do que ele estava falando. Na minha linha de visão, vi Tyrius
se aproximando até que ele cutucou minha perna.
Ugul piscou e depois sorriu.
– Sombra e luz são duas coisas opostas e isoladas. E ainda assim você
pode manter os dois dentro de você. É notável, realmente. É isso que a torna
tão especial.
Meus olhos dispararam para Tyrius, que olhou para mim e deu de
ombros. Afastei meus olhos do gato e observei o sorriso desaparecer no
rosto do goblin.
– Por que tenho a sensação de que você está prestes a me dizer algo
ruim?
A expressão de Ugul ficou séria.
– Eles já procuraram você?
Eu fiz uma careta.
– Você quer dizer a Legião? Sim – eu disse, pensando que ele se referia
ao arcanjo Vedriel, embora eu não soubesse como ele sabia disso, já que
estava preso em uma caverna e escondido do resto do mundo paranormal. –
Sim, eles me procuraram e tentaram me matar.
O goblin estreitou os olhos.
– Não. A Legião não – disse ele. A preocupação em seus olhos
castanhos me acertou em cheio.
Senti uma pontada de medo.
– Quem então?
O goblin soltou minha mão.
– Rowyn, há algo que você deveria saber.
Ugul foi jogado para frente e bateu contra mim. Suas pernas
fraquejaram enquanto ele lutava para se levantar. Agarrando seus ombros,
eu o puxei para cima enquanto ele engasgava, sangue saia de sua boca.
E então eu vi a ponta ensanguentada de uma flecha saindo de seu peito.
Tyrius praguejou quando senti a escuridão misturada com o cheiro de
doces e ovos podres. Fadas.
A raiva me invadiu quando me virei, lentamente, ainda segurando Ugul
enquanto ele cuspia mais sangue. Droga, a flecha atingiu um pulmão.
Do outro lado da rua, vi olhos escuros determinados e cheios de ódio.
Era um bando de Flechas Negras.
Capítulo 20

O scamisas
guerreiros das fadas usavam os mesmos casacos longos pretos,
e calças combinando junto com uma variedade de adagas
curvas embainhadas ao longo de seus cintos. Símbolos de fadas foram
tatuados na maior parte do seu corpo, fazendo com que eles parecessem ter
uma aparência mais sombria e mais perigosa.
Tyrius rosnou baixo e feroz.
– Onde está um sabre de luz quando você precisa de um?
Deslocando-me para o lado, abaixei Ugul o mais suavemente que pude
no chão atrás de uma BMW sedã cinza estacionada, sem desviar o olhar dos
Flechas Negras.
– Tente não se mover – eu disse ao goblin. – Isso só vai piorar. Apenas
fique parado até eu voltar.
Me endireitei e me afastei do carro, vendo Jax se aproximar e ficar ao
meu lado. Seu rosto ficou sombrio quando ele apontou sua espingarda para
os Flechas Negras, parecendo um guerreiro. Danto, Vicky e Keith
avançaram, formando uma linha protetora.
– O que você quer fazer? – Jax virou a cabeça e olhou para mim, a
tensão estava estampada em suas feições, mas algo em seu rosto me disse
que ele estava procurando uma briga.
– Eu não vou entregar Ugul para a rainha – eu disse, minha voz
tremendo de raiva.
– Então lutaremos? – perguntou Jax, com um brilho nos olhos.
– Nós lutaremos.
Examinei os rostos dos Flechas Negras enquanto eles olhavam de
soslaio. Eles eram selvagens, arrogantes e estavam à procura de sangue.
Nosso sangue. E todos eles tinham flechas apontadas para nossos rostos.
Daegal se afastou dos guerreiros fadas, seu arco estava em seu quadril, e
seus olhos escuros fixos em mim.
– Meus olhos estão me enganando – disse o comandante dos Flechas
Negras – ou você estava prestes a libertar a fada que você foi paga para
trazer? Deixar a fada ir não fazia parte do contrato. Esse não foi o acordo.
Minha rainha ficará muito decepcionada com você, Rowyn Sinclair.
Eu sorri para ele.
– Decepcionar uma fada é como ter um orgasmo. É uma sensação tão
boa.
Jax soltou uma risada alta e deu um tapa na coxa para adicionar um
efeito dramático. Funcionou.
– Você acha que isso é uma piada? – Daegal rosnou, as palavras soaram
quase guturais. Seu rosto pontiagudo estava torcido em uma careta, dando-
lhe mais a aparência de um animal. Ele era o único que não apontava uma
flecha para nós, mas isso não significava que ele era menos perigoso.
– Nos dê a fada – ele rosnou –, e talvez nós deixemos você viver.
Mostrei meus dentes em um sorriso Colgate.
– Que tal eu lhe dar o dedo do meio – eu disse e fiz o gesto com meus
dedos – e, então, talvez eu deixe você viver.
– Boa, Rowyn. – Riu Tyrius.
Sorrindo para o baal, eu puxei ambas as lâminas e então me virei para as
fadas.
Os olhos escuros de Daegal encararam os meus por um breve momento.
– Eu não vou falar de novo. Este é o último aviso, Caçadora. Entregue
ele para nós, ou a última coisa que você verá é minha flecha cravada em seu
peito.
Irritada, troquei o peso da perna e me abaixei.
– Pensei que tinha mandado você ir se ferrar.
– Como quiser. – Com um movimento incrivelmente rápido, Daegal
estendeu a mão para trás, puxou seu arco e encaixou uma flecha. – Ouvi
dizer que o Submundo está cheio de demônios morrendo por um pedaço de
sua alma. Eles vão me agradecer por ter mandado você mais cedo.
Eu fiz uma careta. Ele acha que quando eu morrer eu vou para o
Submundo?
Meus pensamentos se dissiparam quando ouvi o som de cordas se
esticando e flechas sendo encaixadas.
– Protejam-se! – eu gritei.
Com o coração na boca, eu entrei em ação.
Flechas, negras e rápidas dispararam em minha direção, e eu me abaixei
e me afastei. Mas elas continuaram chegando. As flechas assobiavam
passando por mim, raspando meu rosto como um vento gelado, e eu me
joguei para o lado para evitar uma flechada no rosto. Elas atravessaram meu
cabelo como as garras brutais de uma fera. Merda. Eu viraria um kebab de
Rowyn se não encontrasse cobertura logo.
A adrenalina percorreu meu corpo quando me joguei para frente e rolei
no chão ao lado de um sedã Infiniti preto e reluzente. As flechas atingindo o
teto e a lateral do carro soaram como uma metralhadora. Ele era um carro
muito bonito.
As flechas dispararam pelo ar como granizo negro, granizo negro e
mortal. Eu nunca vi nada parecido. A única maneira de parar a saraivada de
flechas era matar os Flechas Negras. Eu tinha que chegar até eles, de
alguma forma.
Ofegante, me inclinei para frente. Sentindo a adrenalina, me abaixei
atrás do porta-malas do carro. Arrisquei uma olhada e vi alguém correndo.
Jax.
Assisti com horror quando ele se lançou para frente, bombeando e
atirando no bando de Flechas Negras como uma prática de tiro ao alvo.
A espingarda de Jax disparava, mais alto que um trovão. As balas
lançadas estouravam formando uma explosão de sangue e ossos no ar. O
homem-fada deu um passo para trás, sendo jogado de costas pela força das
balas que o atingiu. Ele não teve tempo de sacudir-se, muito menos gritar.
Ele simplesmente caiu como uma pedra. Havia uma mistura de sangue e
carne onde o tiro havia rasgado o peito da fada.
O cheiro súbito de pólvora queimada me disse que desta vez Jax tinha
colocado balas de verdade e não as de sal.
Nossos olhos se encontraram e ele sorriu. Então seu sorriso desapareceu
com a chuva repentina de flechas que voaram em sua direção. Jax xingou e
saltou para atrás de um poste de luz.
– Seu idiota! Você está tentando se matar! – eu gritei.
Ele contornou o poste para me dar um sinal de positivo e então abaixou
a espingarda e começou a atirar novamente. Eu balancei minha cabeça.
Filho da mãe xarope.
Mais rápido que o vento e mais rápido que a morte, Danto disparou para
frente, acertando o punho no rosto de um homem-fada, e levando a cabeça
dele para trás. Houve um barulho horrível e o híbrido desabou. Ele voou
para outro homem-fada, derrubando o arco de sua mão, e com uma rápida
sucessão, ele abriu um buraco no pescoço do homem-fada do tamanho de
seu punho. O sangue da ferida jorrou no rosto de Danto. Flechas voaram na
direção do vampiro, mas usando o corpo da fada morta como um escudo,
ele girou e caminhou através da chuva de flechas.
Vicky era um borrão, ela se movia rápido demais. Ela agarrou o pulso
de um homem-fada e houve um estalo, o estalo de osso era claro no ar da
noite. O grito do homem-fada ficou preso em sua garganta quando ela
cortou sua jugular com um golpe de suas garras. Keith seguiu com um
chute selvagem em um dos joelhos do homem-fada. Os olhos da fada se
arregalaram, mas ele não teve tempo para mais nada. Antes que a fada
desmoronasse, Keith havia quebrado seu pescoço e se esgueirado para
perseguir o Flecha Negra mais próximo.
Impressionante. Era preciso um domínio sério do combate corpo a
corpo para saber onde acertar, e eles faziam parecer tão fácil quanto
respirar. Quero dizer, fale o que quiser sobre os vampiros, mas eles
matavam com um sério estilo.
Eu sempre invejei a velocidade sobrenatural dos vampiros. Eles se
moviam como o The Flash. Eles eram fodas, e eu estava feliz que desta vez
eles estavam do meu lado.
Ouvi um grito estridente, e me virei para ver um gato arrancando os
olhos de um dos Flechas Negras. O rosto do homem-fada estava coberto de
sangue enquanto ele se debatia, tentando afastar o gato, mas Tyrius não o
soltou. Eu sabia que Tyrius ainda estava se recuperando, então ele não podia
se transformar no Hulk. Mas sua forma minúscula era uma estratégia. Ele
era perfeitamente capaz de arrancar os olhos de seu oponente com suas
garras afiadas. Ele também tinha uma mordida cruel, seus dentes
minúsculos eram como agulhas abocanhando a carne macia e cortando as
artérias. Ele era incrível.
– Isso aí, Tyrius – murmurei, meu peito inchando de orgulho. Desviei
meus olhos e vi Daegal. Bingo.
Sorrindo, saltei ao redor do carro e fui na direção do homem-fada
magro. Sua atenção estava focada em Jax, ele estava tentando acertá-lo com
suas flechas enquanto circulava ao redor do poste de luz. Senti o gosto da
raiva na minha garganta. Ele não tinha me visto.
Ele era meu. Eu ia pegá-lo.
Segurando minha lâmina da alma pela ponta afiada, eu a lancei. A prata
da lâmina brilhou à luz da lua enquanto voava, girando em linha reta
enquanto ganhava velocidade. E justamente quando a lâmina ia atingir seu
alvo, Daegal desviou seu arco no último segundo e encontrou minha lâmina
com uma flecha. Houve um tinido de metal, e minha lâmina atingiu o chão
junto com a flecha.
Meu queixo caiu. E meu sorriso desapareceu. Droga, como ele fez isso?
O maldito zombou de mim, mas antes que ele pudesse armar outra
flecha, eu corri novamente, com a lâmina da morte na mão, eu ia acabar
com o maldito de uma vez por todas.
Algo fino e preto veio na minha direção, e era rápido demais. Mergulhei
na calçada, mas não rápido o suficiente. Bati com força no chão, e a dor
irrompeu na minha coxa esquerda.
Merda. fui atingida.
Me debatendo, eu cerrei os dentes quando uma onda de dor me atingiu.
Uma flecha atravessou minha coxa e saiu do outro lado. Que ótimo. A
flecha atravessou minha pele, e minha perna era como um espetinho de
carne. Não tinha como eu lutar com aquela coisa em mim, muito menos
tentar fugir. Ela havia atravessado o músculo, mas não minha artéria
femoral, pelo que pude ver. Xingando, me abaixei para puxar a flecha
Gritei quando outra flecha atravessou minha mão, prendendo-a na
minha coxa bem ao lado da outra flecha.
Eu estava muito, muito irritada.
Uma sombra se moveu na minha linha de visão. Não precisei olhar para
cima para saber que era Daegal. Claro, ele viria para se regozijar e saborear
a minha dor.
– Tsc, tsc, tsc, Caçadora. Você deveria ter desistido da fada quando teve
a chance. Agora, vou acabar com você com minhas flechadas. Então
estriparei você como um porco angelical que você é.
Senti uma dor pequena, aguda e latejante na coxa e na mão. Olhei para
baixo e vi um líquido amarelado saindo das feridas. Uma lenta sensação de
queimação começou a se espalhar pelas feridas da minha coxa e da minha
mão. Senti calor e frio ao mesmo tempo, e um calafrio desceu pela minha
espinha. Então, a sensação de queimação aumentou a cada batida do meu
coração.
As pontas das flechas foram envenenadas.
A boca da fada se abriu em um sorriso largo e presunçoso.
– Faebane. Nosso veneno mais mortal.
O medo apertou minha garganta quando pensei em Jax. Se ele fosse
atingido por uma daquelas flechas, ele não sobreviveria. Eu conhecia o
Faebane. Era a versão das fadas do veneno de uma lâmina da morte. Ele era
especialmente mortal para não fadas, outros híbridos e nós nascidos-anjo.
Contudo, eu era diferente.
O suor escorria pelos meus olhos, queimando-os. Minha lâmina da
morte era um peso bem-vindo na minha mão, isso significava que eu não
estava indefesa.
Piscando, eu rosnei para ele.
– Vem me pegar, seu maldito de orelhas pontudas.
Daegal ergueu as sobrancelhas e disse com uma voz sensual:
– Em outra vida, talvez.
Eca.
– Não tenho interesse em fadas – eu disse, ouvindo a repulsa na minha
voz. – O pó das fadas sempre acaba entrando em lugares onde não deveria.
O Flecha Negra riu enquanto encaixava outra flecha.
– Você deveria ter aceitado o acordo, Caçadora. Agora sua avó vai
perder a casa dela.
– O quê? – exclamei, sentindo meus músculos rasgando enquanto eu
puxava as flechas. – Como você sabe disso? Responde!
Daegal me deu um sorriso malicioso.
– A vida da fada realmente valeu o fim da sua avó? Você é uma nascida-
anjo pirralha e muito egoísta. Agora, sua avó será reduzida à pobreza por
sua causa. O que ela vai pensar de sua única neta quando descobrir que
você poderia ter salvado sua casa, mas decidiu que ela não valia a pena?
Senti meu corpo enrijecer.
– Você sabia – eu disse, meu rosto ficando frio. – Agora, faz sentido.
Foi por isso que ela o mandou naquela noite. O dinheiro que você ofereceu
era a quantia exata que eu precisava. Inteligente, vou admitir. Eu nunca
imaginei isso, ela sabia que eu não podia dizer não. Ela me enganou
direitinho.
Droga. Danto estava certo. A rainha armou uma armadilha e me pegou.
Eu era uma maldita idiota.
Havia uma movimentação dos Flechas Negras em meio a gritos e
lamentos. Meu sangue pulsava em meus ouvidos.
– Ela vai matá-lo, não é? – Mexi-me e uivei enquanto as flechas
cortavam minha pele. Eu precisava tirá-las.
Daegal riu, brincando com a ponta de sua flecha.
– Claro que ela vai. Ele matou seu único filho. Nenhuma mãe deveria
passar pela dor de perder seu único filho.
– Em legítima defesa – eu disse. – Isso não foi uma caçada, foi uma
desculpa para matá-lo. Ela mentiu para mim, me enganou. Isso não é
justiça, é um assassinato. – Tremi de raiva. Fui enganada, traída e cegada
pela minha própria necessidade desesperada de arrumar dinheiro.
– Sim, correto. – Daegal deu um sorriso ardiloso. – E você era o peão
perfeito. Você caiu direitinho no jogo dela. A rainha viveu por mais de
setecentos anos. Você não é páreo para ela.
– Talvez não – apertei meus lábios. – Porém, ela ainda é uma cadela.
Os olhos do homem-fada escureceram. Daegal puxou a corda do arco
para trás e atirou no mesmo instante em que libertei minha mão, que estava
presa na flecha da minha coxa e me esquivei.
Ai, essa doeu.
Girando, me mantive perto de Daegal, sabendo que quanto mais perto
eu estivesse dele, mais difícil seria para ele sacar seu arco e atirar. Apreciei
os grunhidos de raiva que ele deu. Matar-me nunca seria tão fácil.
Daegal abriu a boca em um sorriso largo e louco.
– O veneno vai a matar, mesmo que a flecha não mate.
Eu já podia sentir os efeitos do veneno diminuindo.
– Eu acho que não.
Chutando, eu o acertei logo abaixo do joelho. Seu osso quebrou sob
meu pé. Ele gritou, e eu peguei um vislumbre de seu rosnado. Rodopiei
para longe do seu alcance, minha coxa esquerda estava rígida, tornando
meus movimentos irregulares e falhos. Meu progresso era lento com a
flecha ainda saindo da minha coxa. Tentei me mover sem tocá-la, mas era
impossível.
Toda vez que eu roçava as flechas com meus movimentos, a dor
aumentava como se minha perna estivesse sendo cortada por dentro. Eu não
estava em condições de continuar lutando assim.
Havia apenas uma coisa a fazer.
Assim que Daegal virou seu arco para mim e errou, eu me abaixei e
fugi. Apertando minha mandíbula, envolvi minha mão ferida ao redor da
primeira flecha e a quebrei. Fiz o mesmo com a outra. Não havia tempo
para tentar retirá-las sem machucar ainda mais minha coxa. As flechas
enterradas teriam que ficar, por enquanto.
Soltei uma risada ao ver o olhar surpreso no rosto de Daegal. Não pude
evitar.
– Acho que seu precioso faebane não funciona em mim, hein?
Girei minha lâmina rapidamente quando a fada disparou em minha
direção. Ele veio se movendo de um lado para o outro, com uma adaga
curvada na mão direita. Rodopiando, deixei minha raiva aumentar e me
guiar. A ponta da minha lâmina fez um corte em sua barriga rosada. Daegal
cambaleou para trás, atordoado. Eu assisti, sem saber os efeitos que o
veneno de uma lâmina da morte teria em um híbrido. Talvez nenhum.
– Vou matá-la por isso, sua vadia angelical – ele praguejou.
Eu sorri.
– Pode vim, Sininho.
Ele disparou na minha direção. Driblei para a esquerda, mas quando fui
para a direita, ele se moveu tão rápido que, apesar das minhas habilidades e
anos de treinamento, bati em um carro estacionado. O barulho do meu
corpo colidindo com o metal ecoou pela rua silenciosa quando caí de cara
no capô do carro, meu queixo deslizou.
– Como eu disse – Daegal zombou enquanto eu me virava e deslizava
para baixo do carro. – Eu vou matá-la, sua vadia angelical.
Meus lábios já estavam doendo e inchados, e senti o gosto de sangue na
minha boca.
– Vou quebrar todos esses dentinhos pontudos nessa sua boca podre.
Mais rápido do que eu pude perceber, e mais rápido do que meu corpo
fraco poderia reagir, ele se aproximou de mim, e seu punho acertou meu
rosto. Esquivei-me o suficiente para evitar que meu nariz se quebrasse, mas
levei o golpe na mandíbula. Girando, eu caí no chão e senti gosto de
sangue, mais uma vez. Desgraçado.
Ele recuou para atacar novamente. Com rapidez, eu segurei seu segundo
golpe antes que ele fraturasse minha mandíbula e rosnei bem perto de seu
rosto.
Minha respiração ficou irregular enquanto eu rosnava baixo e feroz:
– Isso é tudo que você tem?
Seus olhos carregados de ódio me fitaram enquanto o homem-fada veio
na minha direção novamente, só dava para ver punhos e flechas. Me virei,
levantando um punho para bater em seu rosto, mas acertei apenas o ar.
Então seu pé enganchou atrás do meu em uma manobra que me fez perder o
equilíbrio.
Tentei desviar, mas não fui rápida o suficiente. Daegal bateu seu arco na
minha cabeça e vi estrelas. Antes que eu pudesse me recuperar, ele chutou
meu estômago e eu cai no asfalto, perdendo a respiração. Bati no asfalto
com força, mas rolei e fiquei de pé. Me virei, com minha adaga na mão,
pronta para me jogar sobre ele, mas Daegal se fora.
Olhei ao redor da rua, e senti um alívio no meu peito ao ver Tyrius
agachado em cima do corpo de um Flecha Negra, parecendo presunçoso e
contente.
Danto e Vicky andavam em círculo ao redor dos corpos dos Flechas
Negras, esperando que algum deles se mexessem para que pudessem acabar
com eles. Avistei Keith agachado ao lado do corpo de um homem-fada
morto, pegando seus pertences valiosos e colocando-os nos bolsos.
Aquele vampiro era estranho.
Com a espingarda em seu ombro, Jax caminhou em minha direção, ele
franziu o rosto quando viu o sangue na minha coxa.
– Jesus, Rowyn, essas flechas estão atravessadas na sua coxa?
– Pedaços de flechas. Não é nada demais. – Puxei minha camisa para
baixo, mas isso não fez nada para esconder o líquido amarelo e rosa que
saia das duas feridas. – Vou pedir para Pam removê-las assim que
colocarmos Ugul em segurança.
– Hã, Rowyn, onde está Ugul? – disse Jax.
O medo tomou conta de mim com a preocupação em sua voz. Virei-me,
disparando o olhar para o local onde deixei o goblin.
Ugul se foi.
Capítulo 21

C orri rua abaixo, minha coxa ferida queimava enquanto eu a forçava cada
vez mais. Os pedaços das flechas ainda estavam atravessados na minha
perna e rasgavam a carne como as presas de uma grande fera. Minha perna
esquerda estava encharcada, encharcada com meu próprio sangue.
E ainda assim, eu corri.
Não parei, não consegui parar. A rainha mataria Ugul se eu não
chegasse a tempo. Um inocente ia morrer por minha causa. Eu não podia
deixar isso acontecer. Não se eu puder evitar.
– Rowyn! Vai devagar! – ouvi a voz de Jax. – Você não pode
simplesmente invadir.
– É exatamente isso que pretendo fazer.
Mantive meus olhos na Torre Sylph, usei meu ódio para me impulsionar
até que senti que meus pés mal tocavam o chão enquanto eu disparava pela
rua. Eu estava voando como a maldita Mulher Maravilha.
– Você é louca! – ouvi a voz de Tyrius atrás de mim.
– Sim. – Eu não ia deixar Ugul morrer nas mãos da rainha. Eu precisava
saber o que ele ia me dizer.
– Rowyn – gritou Tyrius –, você tem duas flechas atravessadas na
perna! Pense nisso. Está ferida. Além disso, não conseguirei me transformar
no Hulk. Não conseguirei protegê-la. Vamos sentar um minuto e pensar
sobre isso.
– Ugul não tem um minuto. – Eu ofegava, minhas coxas queimando
enquanto eu forçava ainda mais. Ele já havia sofrido uma flechada no peito.
Quanto tempo ele poderia sobreviver sem ajuda médica?
– Você sabe quantas fadas têm lá? – gritou o gato. – Imagine centenas,
talvez milhares. Sinto muito, Rowyn, mas você fez o seu melhor. Você o
libertou, isso já é alguma coisa. Agora pare com essa loucura!
– Eu o libertei? – Eu ri. – Eu não o libertei. Eu o matei, não vou deixá-
lo morrer. Não vou. – Com o coração acelerado, eu podia ver o contorno da
porta. Estava quase lá.
Ouvi Tyrius gritar alguma coisa quando me joguei contra a porta. Ela
nem se mexeu.
– Droga! – Usando meu peso, arremessei meu ombro direito contra a
porta, várias vezes. E, ainda assim, a porta não abriu nem um centímetro.
Algo agarrou meu ombro e eu vacilei. Danto me virou colocando-me de
frente para ele.
– Rowyn, o baal está certo. Acho que todo o clã de fadas da Corte das
Trevas está lá. Não podemos lutar contra tantos.
Meu coração palpitou na garganta.
– Preciso tentar. Eu preciso.
– Se arrombarmos esta porta – disse o vampiro, com uma voz
surpreendentemente fria –, eles vão ver isso como um ataque.
– Eles nos atacaram primeiro – eu rosnei.
O cabelo do vampiro balançou quando ele sacudiu a cabeça.
– Não importa. – Um brilho de angústia franziu os cantos de seus olhos.
– Entramos lá exigindo que a rainha devolva a fada, e ela vai arrancar a
nossa pele – Seus olhos cinzentos traçaram meu rosto enquanto ele
acrescentava suavemente – Nós nunca o teremos de volta. Você precisa
entender isso, acabou. Sinto muito, Rowyn, mas esta é uma luta que não
podemos vencer.
– É claro que podemos – eu me desvencilhei de suas mãos e bati minha
lâmina contra a porta.
– Vou arrombá-la se for preciso, mas vou passar por essa maldita porta.
– Meu pulso estava acelerado, e o medo e a aflição tensionavam meus
músculos. – Quanto mais esperarmos, mais difícil será salvá-lo.
– Rowyn, apenas ouça por um segundo – Tyrius estava ao lado da porta.
– Ele é inocente – eu gritei. – Inocente. Ele matou o filho da rainha em
legítima defesa e ela quer vingança. Sempre se tratou de sua vingança. E eu
sou a idiota que o trouxe para ela. Isto tudo é minha culpa. Não conseguirei
viver comigo sabendo que tive um papel na morte dele. Você não entende?
– Parei de bater na porta e olhei para Tyrius. – Se ele morrer… – engoli em
seco, sentindo as lágrimas, mas não consegui dizer o resto das palavras.
– Tá, então como vamos fazer isso? – perguntou o gato. – Você tem um
plano pelo menos?
– Sim – eu menti. – Entramos e pegamos Ugul. Possivelmente matamos
algumas fadas no caminho. – Os planos mais simples eram os melhores.
Mas esta era uma missão suicida. Eu sabia disso. Tyrius sabia disso. Todos
eles sabiam.
– Tudo bem, Sherlock – disse Tyrius, claramente irritado por eu não
deixar isso passar. – Como você planeja entrar? A porta da torre não se
abrirá para não fadas, a menos que tenhamos um convite. – Ele fez uma
careta. – Você tem um convite? Oh não, você não tem.
– Eu tenho um convite. Rowyn, sai da frente – ordenou Jax de repente.
– Esse aqui.
Virando, vi Jax de pé, com as pernas abertas e com a espingarda
apontada para mim, bem, para a porta.
– Certo. – Assentindo, me abaixei e agarrei Tyrius antes que ele pudesse
argumentar e saí do caminho.
Uma expressão diabólica se formou no rosto de Jax, o deixando muito
sexy. Ele bombeou a espingarda e atirou.
Uma, duas vezes, e o último tiro abriu um buraco na porta grande o
suficiente para caber uma pessoa.
– Entrar sorrateiramente para quê? – miou Tyrius. – Acabamos de soar o
alarme.
Sem esperar que os outros tentassem me convencer da loucura que isso
era, larguei Tyrius e abri caminho pela abertura.
Tyrius estava certo. O barulho que Jax fez para abrir um buraco na porta
chamaria a atenção das fadas.
Ignorando o latejar na minha coxa esquerda ferida, eu corri pelo
corredor em forma de caverna o mais rápido que minhas pernas podiam. Os
mesmos castiçais com fogo verde jade demoníaco iluminavam os espaços
apertados com tons de verde. O som da minha respiração era alto em meus
ouvidos, e minhas botas batiam na terra batida parecendo um galope. Os
Flechas Negras deveriam estar nos atacando a essa altura, e uma sensação
inquietante apertou meu peito pelo fato deles não estarem. Isso não era
bom, mas era tarde demais para recuar.
Eu podia ouvir o murmúrio distante de vozes e o som inconfundível de
risos.
Uma fúria tomou conta da minha mente como uma febre. Alcancei as
duas portas enormes de pedras antigas em segundos e, usando meu ímpeto,
joguei meu ombro contra elas.
As portas se abriram com um estrondo. Esperei pelos protestos e gritos,
esperei para ver uma horda de fadas nos atacar, mas as fadas apenas me
encararam, com seus rostos especialmente atentos.
As vozes pararam. Pisquei com a luz repentina mais forte e diminuí o
ritmo ao entrar na vasta câmara circular e passar pelos pilares em forma de
trepadeiras, as macieiras e as flores silvestres, onde aceitei o trabalho para
começar este pesadelo.
Ao contrário da primeira vez que estive na torre, não havia batidas de
tambores, música, conversas alegres, apenas os sons de nossa respiração
pesada e nossos passos.
Parei e praguejei assim que passei pelas árvores. Não havia centenas
fadas reunidas no salão. Eu acho que estava olhando para cerca de mil.
Droga. Claro que todos se viraram ao som de nossa entrada explosiva, havia
um mar de roupas elegantes sobre corpos esqueléticos. Seus rostos finos
expressavam divertimento e exibiam dentes pontudos, seus olhos negros
estavam cheios de expectativa.
As fadas me observaram por mais um minuto, e então todas voltaram
sua atenção para a plataforma. Com o coração acelerado, segui seus olhares
e meus joelhos fraquejaram.
Ugul estava de joelhos, a flecha em seu peito ainda era claramente
visível. Sua cabeça estava puxada para trás, e atrás dele Daegal tinha uma
faca em sua garganta. O goblin não olhou para cima.
Cerca de cinquenta Flechas Negras estavam em formação diante da
plataforma, os arcos já estavam com as flechas prontas.
A rainha das fadas da corte das trevas estava na plataforma elevada. Sua
única mecha de cabelo negro se derramava sobre um vestido branco
esvoaçante que se acumulava no chão e em torno de seus pés. O vestido
branco combinava com sua pele branca como a neve, fazendo parecer que o
vestido não tinha começo nem fim. Ela era ainda mais aterrorizante do que
eu me lembrava – a noiva do diabo perfeita.
Os olhos negros e sem fundo de Isobel se fixaram em mim, e seu rosto
se contorceu em um sorriso, expondo suas feições bem definidas e dando-
lhe a beleza fria e antinatural das fadas.
A rainha inclinou a cabeça como se quisesse mostrar sua coroa de
dentes humanos e transmitir o quão má ela realmente era.
– Que prazer vê-la novamente, Caçadora – sussurrou a rainha das fadas
da Corte das Trevas. – Você chegou a tempo de testemunhar o início do
meu reinado.
Agora, por que isso parecia muito, muito ruim?
Capítulo 22

A svencido
fadas riram. Havia algo aterrorizante nisso, como se já tivessem
uma batalha secreta e tivéssemos chegado atrasados para a
festa.
Tyrius bateu na minha perna.
– Rowyn, não faça nada estúpido – ele sussurrou.
Mantive meus olhos na rainha.
– Quem disse que eu vou?
Tá, então meu plano de invasão parecia um pouco estúpido agora.
– Eu disse. – Tyrius suspirou alto. – Isso não parece nada bom, nada
bom. Vamos nos virar e ir embora.
Cerrei os dentes.
– Não vou embora sem Ugul.
Jax, Vicky e Keith se juntaram a mim. Olhei para Danto quando ouvi
seu rosnado. Ele tinha se transformado em vampiro. Um sangue preto
escorria entre seus dedos descendo pelos seus punhos trêmulos, e seus olhos
negros estavam fixos em algo à nossa frente. Eu segui seu olhar. Na parte
de baixo da plataforma elevada havia um grupo de doze homens e
mulheres, isolados da multidão principal. Notando seus rostos frios e
bonitos, e o ar de superioridade, eu sabia que eles eram vampiros.
Uma sensação de preocupação arruinou minha adrenalina com uma
velocidade inquietante. Um deles deu um passo à frente. Ele era enorme.
Seus ombros pareciam tão largos quanto eu, e ele exibia seu físico em um
elegante terno de três peças. Seus olhos eram perspicazes, e revelavam uma
inteligência astuta, e ele se movia com a elegância sexy que todos os
vampiros compartilhavam. E o pior é que todos eles tinham aquela
arrogância e autoconfiança dos vampiros.
Ficou claro que eles foram convidados para assistir à execução de Ugul.
Porém, por quê? As fadas raramente se misturavam com vampiros. O que
os vampiros ganhariam assistindo a morte de uma fada?
Fixei meus olhos em Danto, e a menos que aquele grande vampiro não
explodisse com o olhar de Danto, isso só poderia significar que eu estava
olhando para Stefan. O escolhido da rainha das fadas para comandar a Corte
dos Vampiros de Nova York.
Como se ouvisse meus pensamentos, os olhos de Stefan encontraram os
meus, seu rosto era impassível, se não um pouco entediado. Então, seus
olhos se voltaram para Danto, e ele sorriu para mostrar os dentes.
O pelo de Tyrius roçou meu pescoço quando ele saltou em meus
ombros.
– Eu gostaria de saber porque os vampiros estão aqui – disse ele,
enquanto se acomodava.
– Estava pensando a mesma coisa – eu disse. – Por que eles querem
fazer parte disso? Não faz sentido.
Tyrius virou-se para me encarar.
– Aposto o pelo do meu rabo que eles querem ganham algo com isso,
certeza.
Uma brisa soprou ao meu lado, e senti a respiração de Jax do outro lado
da minha bochecha.
– Você sabe que eu amo uma briga, especialmente com esses
desgraçados magricelas, mas estou ficando sem munição. Alguma ideia
brilhante sobre como vamos recuperá-lo?
– Pedindo gentilmente?
Tyrius bufou enquanto eu exalava longa e lentamente. Afastei meus
olhos dos vampiros e encontrei o olhar desafiador da rainha. Percebi com
um calafrio que ela não desviou o olhar de mim.
Meu sangue pulsava em minhas veias, mas mantive meu queixo erguido
enquanto dizia:
– Deixe-o ir – estremeci, ouvindo o leve tremor na minha voz.
A rainha lambeu os lábios, e um deleite brilhou em seus olhos.
– Ou o quê? – ela provocou.
Endireitei meus ombros.
– Ou eu vou matar você.
Tá, isso soou muito patético.
Antes mesmo que eu terminasse minha frase, todos os cinquenta
Flechas Negras se viraram e avançaram como uma parede de soldados. As
outras fadas abriram caminho, dando aos Flechas Negras uma linha de
visão limpa. Que ótimo. Os guerreiros pararam a seis metros de nós e
puxaram as cordas de seus arcos.
Merda. Não havia como fugir disso.
Não sei porque, mas desviei meu olhar para o grupo de vampiros, e
minha pressão subiu com a risada deles. Stefan me pegou olhando e me
mandou um beijo. Desgraçado.
– Parem! – Isobel ordenou, e todos os Flechas Negras abaixaram seus
arcos ao mesmo tempo. – Ainda não. Eu quero que eles assistam. – Ela
acenou a mão com desdém. – Vocês podem matá-los depois. Eu
honestamente não me importo – Seus olhos encontraram Danto e sua
alegria se intensificou. – Danto. Estou muito feliz em vê-lo aqui.
– Eu não estou – rosnou o vampiro, e o sorriso de Isobel se alargou
quando ela viu que ele encarava Stefan.
– Ah, não fique tão arrasado, Danto – disse a rainha, dando a ele um
breve sorriso horripilante. – Confie em mim. Você vai gostar disso.
Ela levantou a voz e falou para a multidão.
– Esta noite eu lhe darei um presente digno da minha corte – ela
continuou. – Desta noite em diante, tudo mudará. Meus filhos, a mudança
chegou, para todos os híbridos, como prometido, nossa hora chegou.
– Sou o único perdido aqui? – disse Tyrius, com uma voz baixa. – Por
favor, levante a mão se você está entendendo alguma coisa.
Isobel exibiu uma expressão reveladora. Daegal sorriu maliciosamente e
deu um puxão forte no cabelo de Ugul, fazendo sua cabeça virar para trás.
– Não. Por favor – o goblin gemeu, com seus olhos fechados, e eu
comecei a tremer.
Cerrei os dentes e respirei ofegante.
– Se você matá-lo – eu disse, minha voz ecoando pelo salão –, o
Conselho das Sombras vai cair em cima de você. Eu prometo. Ele é
inocente. Ele matou seu filho em legítima defesa. Se você matá-lo agora,
será assassinato. Você estará arruinada. Perderá sua coroa de dentes e não
será mais nada.
A rainha não parava de sorrir como se eu estivesse lhe elogiando.
– Ah, não. Acho que não.
– Você não quer ouvir o que ele tem a dizer? Você não quer saber a
verdade?
Claro que ela não queria, e eu sabia que estava abusando da sorte.
Contudo, esperava que ela se importasse se eu colocasse dúvidas na cabeça
das outras fadas.
E quando passei os olhos pelas fadas, não pude evitar a inquietação que
senti na boca do estômago. Elas nem estavam prestando atenção em mim.
Seus olhos estavam fixos em Ugul. Mas não se tratava apenas da forma que
elas olhavam para ele, era a forma como estavam vidradas nele, parecia
uma fome desesperada e febril. Todas as fadas no salão queriam que ele
morresse, elas estavam ansiosas para que ele morresse. Mas por quê? Não
poderia ser apenas por causa da morte do filho da rainha. Algo mais estava
acontecendo aqui.
Senti minha coxa latejar, e desloquei meu peso para a outra perna.
– Isso está errado – continuei, sentindo um fio de suor escorrendo entre
meus seios. – Matá-lo não trará seu filho de volta.
– Você quebrou nosso contrato. – A rainha sacudiu a cabeça. Ela parecia
mais alta do que eu me lembrava, agora que estava de pé na plataforma,
mais alta e muito mais magra do que eu. – E isso vai lhe custar.
– O quê? – eu disse desafiadoramente. – Você vai me matar também?
– O pensamento passou pela minha cabeça. – A rainha suspirou
enquanto rodeava a plataforma, movendo-se de forma rápida e precisa.
– Eu gostaria de ver você tentar. Que tal uma boa e velha briga mano a
mano? – eu instiguei. – Só você. O vencedor leva Ugul. O que você me diz?
A rainha jogou a cabeça para trás e uivou, o som aterrorizante parecia o
grito de uma alma penada. Houve um silêncio no salão. Isso foi assustador.
Isobel fechou os olhos e respirou fundo como se estivesse tentando
inalar minha energia e medo como uma droga.
– Eu gosto de você, Rowyn. Eu realmente gosto. É uma pena quando
alguém com tanto talento morra tão jovem. Eu poderia ter usado alguém
como você na minha corte. – A rainha mostrou os dentes. – Porém, você
não é páreo para mim, querida. É apenas uma criança – ela riu como se eu
fosse uma tola. – Não é nem uma mulher ainda. Eu acabaria com sua vida
em um estalar de dedos – ela adicionou com um aceno de sua mão.
– Talvez – eu disse e me mexi de raiva. – Ou talvez eu faça você engolir
essa sua coroa horrorosa, fazendo você cagar dentes pelo resto da sua vida.
– Rowyn – avisou Tyrius –, eu gosto de onde você quer chegar com
isso, mas, ênfase no mas, isso é inútil. Ela nunca vai desistir dele, olha para
ela. Ela está enlouquecendo.
Eu sacudi a cabeça.
– Eu não duvido disso – eu sussurrei. – É por isso que não podemos
abandonar Ugul.
O rosto da rainha se contraiu.
– Ele matou meu único filho. Você sabe o que é passar por isso? – Seus
olhos negros rolaram sobre mim enquanto ela se movia em direção à beira
da plataforma, e eu senti minha pele formigar, era como se ela estivesse
tentando ver além da minha pele, minha alma. Suas sobrancelhas se
ergueram. – Não. Você nunca foi mãe. Eu posso ver isso. Você não entende
o que é perder um filho, você ainda é apenas uma criança.
– Sinto muito por você ter perdido seu filho – Não, eu não sinto –, mas
Ugul não teve outra escolha a não ser usar sua força para se defender do seu
filho. Por quê? Por que seu filho estava lá? Por que ele estava tentando
matá-lo? – Senti um nó na garganta com a dor que vi no rosto do goblin.
Toda a frente da sua camiseta estava encharcada de sangue.
– Você enviou seu filho atrás de Ugul, não foi? – acrescentei, lembrando
que o goblin havia me dito que a rainha queria algo dele. – Porque ele tem
algo que você quer, não é?
A rainha me olhou fixamente e disse:
– Sim, eu mandei meu filho atrás dele, mas nunca ordenei que ele o
matasse. Isso foi um erro.
– Claro que foi.
O rosto de Isobel se contorceu em um sorriso selvagem.
– Meu filho morreu tentando conseguir algo que eu queria. Mas devo
lhe agradecer, Rowyn. Ele falhou, mas você conseguiu. – Ela colocou as
mãos nos quadris. – Sabe, estou de olho em você há um bom tempo.
Dei-lhe um sorriso amargo.
– Você não faz meu tipo.
As sobrancelhas da rainha se ergueram divertidamente, e ela sorriu.
– Quando soube do infortúnio de sua avó, sabia que você seria
persuadida a fazer qualquer coisa para ajudá-la. E, assim como a boa neta
que é, você fez. Você me trouxe a fada. Você tornou tudo isso possível,
Rowyn Sinclair. A morte dele é seu presente para mim.
Meu rosto queimou, ameacei dar um passo, mas Jax me impediu.
– Não – ele sussurrou. Seus dedos agarraram meu cotovelo com tanta
força que doeu. – Ela só está tentando irritar você.
– Está funcionando. – Eu fervilhava. Soltei meu cotovelo, mas fiquei
onde estava.
– Não seja estúpida, Rowyn – disse Jax e eu senti minha raiva aumentar.
Uma culpa me invadiu, fazendo meu coração bater mais forte e minha
cabeça latejar. Ela estava certa sobre uma coisa. Isso foi tudo culpa minha.
– Eu nunca o entreguei a você. Você o pegou – eu contestei. – Ele
estava livre para ir. Eu não ia entregá-lo. Eu nunca iria entregá-lo a você.
Olhei para Ugul e perdi a respiração ao ver a cor pálida de sua pele.
Droga. Se eu não o tirasse agora, ele não sobreviveria.
Isobel me encarou, mas quando voltou seu olhar para Ugul, ela deu um
sorriso largo e doce.
– Gostaria de dizer algo antes de morrer? – A rainha se aproximou para
ficar diante do goblin.
– Se você fizer isto! – gritei, ciente de que os Flechas Negras haviam
encaixado suas flechas e estavam todas apontadas para minha cabeça. – Se
fizer isso – eu repeti, com meu pulso acelerado –, você pagará caro. Você
me ouviu, rainha! Eu vou matar você!
Os olhos negros da rainha encontraram os meus por um momento, e ela
sorriu.
– Não, você não vai.
– Ugul! – meu grito ecoou pelo teto alto. – Ugul!
Os olhos do goblin ainda estavam fechados, mas seu rosto estava
contorcido de dor.
Sinto muito.
Contorci-me enquanto a agonia tomava conta do meu corpo. Cada
terminação nervosa pulsava e queimava. Soltei um som gutural de dor e
determinação. O medo caiu sobre mim como uma onda gigante de frio. Se
eu me mexesse, morreria. Meus amigos morreriam. Não podia fazer nada.
Tudo o que eu podia fazer era assistir enquanto uma fada inocente era
assassinada, por minha causa.
Isobel se inclinou e aproximou seu rosto a centímetros do rosto de Ugul,
observando-o com uma sensação distorcida de prazer. Sob sua
impassibilidade havia uma excitação crescente.
Daegal empurrou Ugul endireitando-o, e o sangue escorria da faca sob
sua garganta.
– Não! – eu gritei, esperando ver o comandante dos Flechas Negras
cortar a garganta de Ugul.
Porém, Daegal não se moveu.
Em um piscar de olhos, a rainha encravou suas unhas no peito do
goblin, estripando-o como se ela tivesse usado uma espada. Senti náusea
quando o gemido de dor dele foi o único som no salão.
– Que diabos? – gritou Tyrius, claramente chocado e horrorizado.
A bile subiu do fundo da minha garganta quando a rainha mergulhou a
mão dentro do peito do goblin até que sua mão estivesse completamente
submersa nas entranhas do goblin. Depois de um momento, a rainha puxou
algo, parecendo triunfante e um pouco fora de sua si.
E, em sua mão, estava uma pedra branca brilhante.
Capítulo 23

U ma nova energia inundou o salão, ela era fria e rápida, além de zumbir e
estalar como uma tempestade elétrica. Meu corpo formigava, do topo
da cabeça até a ponta dos dedos. Eu nunca tinha sentido nada parecido
antes. Isso me assustou pra caramba.
O rosto da rainha brilhou como uma luz branca reluzente, sua pele
cintilava e suas feições se amplificaram até ela parecer uma rainha do gelo.
Fiquei sem ar. Eu já tinha visto aquela luz antes. Era a mesma luz que
Ugul usara nos cães veth e em mim. Droga.
Tyrius praguejou.
– Rowyn. Precisamos ir embora, tipo agora.
Fiquei paralisada quando o sorriso vitorioso de Isobel iluminou seu
rosto. Ela se virou para a multidão reunida e ergueu o punho.
Daegal descartou o corpo de Ugul como se estivesse jogando fora algo
nojento que havia sujado seus dedos. O goblin atingiu a plataforma com um
baque ecoando no salão, seus olhos sem vida olhando diretamente para
mim, acusando-me por seu destino. É tudo culpa minha.
Eu assisti, incapaz de me mover quando Daegal bateu palmas uma vez.
Uma porta se abriu à esquerda da plataforma, e dois homens fadas surgiram,
arrastando uma mulher humana entre eles. Mechas do seu cabelo castanho
estavam grudadas em seu rosto molhado, e seus olhos estavam vermelhos e
arregalados. Ela parecia mais ou menos da minha idade, vinte e poucos
anos, porém mais baixa. E o terror em seu rosto fez meu coração parar.
O medo me atingiu como uma onda fria enquanto meus joelhos
tremiam. Minha boca abriu e fechou.
– O que está acontecendo? – Minhas palavras eram quase inaudíveis
devido ao ranger dos meus dentes.
– Coisa boa não é. – Ouvi Tyrius dizer quando ele saltou dos meus
ombros e pousou ao meu lado no chão.
Os homens fadas empurraram a mulher de joelhos na plataforma de
frente para a rainha.
Olhei para a multidão de fada.
– Eles não podem simplesmente matá-la. Eles conhecem as regras. Se
tocarem em um fio de cabelo dela, eles pagarão caro por isso.
– Parece que eles não dão a mínima – disse Jax, tirei os olhos dele e
olhei para a plataforma.
– Isso não está certo. Não podemos deixá-los matar outra pessoa
inocente. Temos que fazer alguma coisa.
Dei um passo para frente, mas Jax pegou meu braço e me puxou de
volta com força contra seu peito.
– Não faça isso. – Seu hálito quente no meu pescoço e na lateral do meu
rosto enviou um calor pelo meu corpo. – É o que ela quer. A rainha quer
que você estrague tudo para que ela possa destruí-la. Eu não deixarei isso
acontecer.
Deixei que ele me puxasse para mais perto e senti o calor do seu peito
penetrar minhas roupas.
– Ela vai matá-la – eu fervilhava, mas não me mexi.
A sensação reconfortante de outro corpo contra o meu me deixou
imóvel – ou o desgraçado tinha me enfeitiçado. Esse era um lembrete do
quão solitária eu era. Respirei o cheiro de sabonete, loção pós-barba e seu
almíscar natural. Meu Deus, ele é cheiroso.
– Talvez não – disse Jax, com seus lábios macios e quentes roçando meu
rosto – Talvez ela só queira assustá-la. Não sei, apenas espere. – Senti sua
outra mão deslizar em volta da minha cintura, enviando pequenos arrepios
de prazer pelo meu corpo, de forma selvagem e ardente.
Meu mundo inteiro se reduziu ao toque de suas mãos. Meu pulso
acelerou, e eu mal conseguia respirar.
Deus me ajude.
– E se ela a matar? – perguntei, ciente de que estava ofegante. Meu
rosto ardeu quando minha bochecha roçou contra a dele.
– Então, somos testemunhas do assassinato – disse Jax. Sua voz intensa
me fez estremecer. – dela e de Ugul. Isso é o suficiente para alertar o
Conselho das Sombras. Ela vai pagar por isso. Confie em mim.
Eu gostaria de acreditar nele, mas havia algo absolutamente perturbador
na quietude da sala e na expressão de loucura no rosto da rainha.
– Sua nova vida espera por você – Isobel falou lentamente, gesticulando
para a mulher ajoelhada. – Claro, se você me perguntar, eu diria que é um
tremendo progresso. Apesar do histórico dos humanos de assassinar a nossa
espécie, acredito que estou lhe oferecendo um presente. Você deveria se
considerar… muito sortuda.
– Por favor, não me mate – gritou a mulher. – Eu não quero morrer. Por
favor. Por favor, não me mate – ela soluçou.
Enrijeci e Jax apertou seu braço ao meu redor. E eu o deixei me abraçar
assim, tão perto, tão forte.
Isobel deu um sorriso ardiloso.
– Matar você? – ela riu, e os dois homens fada riram ainda mais. A
rainha estalou a língua. – Eu não vou matá-la, humana boba.
Inclinei minha cabeça e compartilhei um olhar com Jax.
– Estou lhe oferecendo um presente – continuou a rainha. – Um
presente tão especial, tão precioso, que nenhum outro humano jamais teve.
– Ela olhou para a mulher. – Você, pequena humana, será a primeira. A
primeira de muitos.
A mulher tremeu.
– Eu-eu não quero o seu presente – ela gaguejou. – Eu só quero ir para
casa. Por favor, deixe-me ir para casa.
A rainha continuou a sorrir.
– Esta é a sua nova casa agora. Acostume-se. – Ela ergueu a mão, e a
pedra branca brilhou como mil lanternas em uma. A multidão de fadas e os
vampiros esperaram, e eu ouvi a respiração coletiva quando a rainha
estendeu sua mão livre para a mulher.
– Não – implorou a mulher. – Por favor, não!
Alguém na multidão chorou. Contudo, não era uma lamentação triste
que se ouviria antes de uma execução. Este era um choro de contentamento,
um choro doentio e feliz. Eles choraram de alegria.
A rainha sorria com uma alegria selvagem e triunfante enquanto tocava
suavemente a bochecha da mulher.
No começo, nada aconteceu, e eu quase suspirei de alívio. Porém,
quando a rainha retirou a mão, a mulher gritou e caiu no chão. Seus gritos
ecoaram pelo salão enquanto ela se debatia violentamente no chão, os olhos
das fadas estavam fixos nela.
Isso era doentio. Eu ia vomitar.
A rainha respirou fundo, seu rosto estava enrugado pelo aparente
esforço e sua tez manchada, mas ela se recuperou rapidamente e endireitou-
se enquanto observava a mulher se contorcendo com uma expressão de
contentamento e vitoriosa.
Tinha sido rápido, mas eu tinha visto.
A mulher parou de se debater e ficou imóvel. Por um horrível segundo
eu pensei que ela tinha morrido. Meu pulso acelerou enquanto eu observava
a mulher puxar os joelhos em direção ao peito. Então ela se levantou
lentamente, ficando de pé com as pernas trêmulas. Agora ela estava de pé e
era tão alta quanto a rainha.
Meus lábios se entreabriram.
– Que diabos?
A mulher parecia ter me ouvido. Ela se virou e encontrou meu olhar e
eu praguejei. Os olhos que me observavam não eram nada como os olhos
arregalados e aterrorizados da mulher de um minuto atrás, eles eram
escuros e ávidos. Suas feições estavam mais pronunciadas, mais
acentuadas, seu queixo fino estava erguido e seus olhos brilhavam. Sua
postura era dominadora e predatória. Ela colocou uma mecha de cabelo
atrás de suas orelhas pontudas com seus dedos longos e finos.
A mulher não era mais humana. Ela era uma fada.
– Mas que merda é essa?
Senti uma dor de barriga com o olhar de confusão no rosto da nova fada
enquanto ela olhava para seu novo corpo. Mas ela não estava mais
assustada. Caraca, ela parecia feliz.
Jax praguejou baixinho
– Que tipo de magia negra é essa?
Daegal se moveu para ficar ao lado de sua rainha, com seu rosto se
contorcendo, e com prazer ele gritou:
– Salve Isobel, a rainha da Corte das Trevas. Pois ela nos deu este
presente. A escuridão não é mais escuridão, pois a noite é clara como o dia.
Ajoelhe-se diante de sua rainha! – ele gritou.
O barulho repentino de mil corpos se curvando soou como uma
explosão após o silêncio assustador. Todas as fadas do salão se ajoelharam
ao mesmo tempo, para minha surpresa, até mesmo os vampiros e os Flechas
Negras, sua atenção estava fixa na rainha com admiração.
Meu coração batia como se estivesse tentando encontrar uma maneira
de sair do meu peito, mas meus músculos estavam relaxados. Eu estava
tendo um ataque de pânico.
– Que raio foi aquilo? – peguei-me dizendo, nem mesmo percebendo
que eu havia falado as palavras em voz alta enquanto me contorcia para sair
do abraço de Jax.
– O sinal que estávamos esperando para dar o fora daqui – comentou
Tyrius.
– Eu sei o que é isso.
Virei-me para o som de preocupação na voz de Danto. Vicky e Keith
exibiam a mesma expressão aterrorizada, seus rostos estavam pálidos.
O vampiro olhou para mim.
– Chama-se Dádiva Branca.
– Já ouvi falar da Dádiva Branca – disse Tyrius, entre mim e Danto. – É
uma pedra mágica e muito poderosa.
Mantive meus olhos no vampiro enquanto Jax se aproximou de mim.
– É por isso que o nome Ugul soou tão familiar – o vampiro disse
rapidamente, inclinando seu corpo em direção à saída, preparando-se para
correr. – Eu ouvi Isobel mencionar o nome dele uma vez quando ela não
sabia que eu estava ouvindo. Agora, eu sei porquê. Ela deve ter descoberto
que ele era seu protetor.
Senti-me entorpecida.
– Nunca ouvi falar disso – eu disse, com meus olhos na pedra branca
cuidadosamente envolvida pela mão da rainha. Como poderia estar no peito
de Ugul? Ele tinha a engolido?
– Ela sumiu há milhares de anos – apressou-se Danto. – Ela é poderosa.
Você acabou de ver o que ela pode fazer.
Olhei novamente para a rainha.
– Mas por que a rainha quer transformar humanos em fadas?
– Não nasce uma criança híbrida de qualquer tipo há mais de um
milênio. Procriar é quase impossível. Nossos números diminuíram muito ao
longo dos anos. Mas com ela, com a Dádiva Branca…
– Puta merda – eu disse enquanto tudo se encaixava. Eu nunca tinha
visto uma criança híbrida, e fiquei chocada por nunca ter pensado muito
nisso. – Não é à toa que ele estava escondido naquela caverna. Ele estava
protegendo-a… e eu entreguei a ela. – A última parte saiu como um
sussurro desesperado. Eu fui uma tola.
Olhei nos olhos de Danto esperando ver o olhar de eu-te-disse, mas
havia apenas sofrimento e medo. Não havia culpa na expressão do vampiro.
– E agora a Fada dos Dentes maluca está com ela – disse Tyrius. – Você
sabe o que isso significa?
O rosto de Danto se contraiu.
– Isobel pode criar seu próprio exército, milhares de novas fadas apenas
com essa pedra. E ela vai usar humanos.
Voltei meu olhar para a plataforma. A rainha das fadas ainda segurava a
pedra em sua mão. Com suas feições banhadas pela luz da Dádiva Branca,
por um momento ela quase pareceu linda. Mas seu olhar era firme e duro
enquanto ela o lançava sobre as fadas e vampiros curvados.
– Se houvesse um momento melhor para dar o fora daqui – insistiu
Tyrius, – esse momento é agora, enquanto o show de horror das fadas ainda
está acontecendo.
Minha mão tremia enquanto eu segurava minha lâmina da morte.
– Isso não acabou.
Eu ia pegar aquela pedra de volta.
– Tudo bem – disse Jax. – Contudo, agora precisamos ir! – Ele agarrou
meu braço com força novamente como se quisesse me tirar do meu
sofrimento. – Ele se foi, vamos. Vamos dar o fora daqui antes que acabemos
como ele!
Jax me puxou com ele enquanto corria. Danto, Vicky e Keith passaram
por nós com sua velocidade de vampiro e se lançaram em direção à saída.
Minhas pernas estavam dormentes e rígidas enquanto eu corria pelo salão,
passando pelas portas duplas e descendo pelo corredor, Tyrius galopava
como um guepardo em miniatura ao meu lado. Minha visão estava
embaçada com as lágrimas, os vampiros eram apenas um borrão em
movimento à nossa frente.
Juntos, deslizamos pelo buraco na porta e corremos para a noite.
Capítulo 24

T yrius– estava sentado na beirada da cama. Seus olhos azuis brilhavam.


Isso vai deixar uma cicatriz.
Estremeci e tentei não xingar enquanto Pam habilmente cortava a ponta
da segunda flecha da minha coxa e cuidadosamente a jogava em uma jarra
de vidro.
– As cicatrizes são apenas lembretes do que eu faço. Sou uma Caçadora.
Gosto de cicatrizes. Isso só me deixa mais durona.
– Ou você é uma péssima Caçadora. – Tyrius piscou e riu de sua própria
piada.
Ele parecia muito melhor com Pam por perto, com suas mãos
experientes me examinando cuidadosamente e acariciando ele ao mesmo
tempo. Ela tinha parado de brincar com ele momentos atrás para olhar
minha perna.
Não que eu me importasse, mas Pam ficou muito preocupada quando
contamos a ela sobre o ataque que Tyrius sofreu na caverna. Ela ficou
particularmente preocupada quando ele mencionou que não tinha
conseguido usar sua magia demoníaca – especificamente que ele não tinha
conseguido se transformar no Hulk desde o ataque, o que também me
preocupou. Mas quando ela colocou uma fatia fresca de pizza fumegante
em um prato para Tyrius, ele estava no céu e mal disse uma palavra por
quinze minutos. Isso era um recorde para um baal.
Pam teve que cortar meu jeans, no alto da minha coxa para chegar às
flechas. Jax não parecia desconfortável ao olhar minha carne exposta
enquanto eu me sentava na beirada da cama. Depois de nossa fuga rápida da
Torre Sylph, ele nos levou até Parks Hollow, para a clínica REPARO DE
ALMAS de Pam, uma clínica para nascidos-anjo que precisavam de
cuidados médicos. Eu no caso, e estava grata por isso. Então eu mantive
minha boca fechada.
Combinamos de nos encontrar com Danto mais tarde, por volta das dez
horas da noite, na igreja do Padre Thomas. E sim, vampiros, metade
humanos, podiam entrar em uma igreja sem explodir em chamas, embora
ainda não fosse um lugar que eles gostassem de frequentar.
Eu precisava falar com o padre sobre o que eu descobri e entender como
iríamos abordar os assuntos sobre a Fada dos Dentes e a Dádiva Branca
com o Conselho das Sombras.
Danto falaria com seu clã de vampiros, e eu esperava que ele nos
trouxesse boas notícias, talvez uma maneira de matar a rainha antes que ela
tivesse a chance de fazer algo estúpido.
Apenas os líderes dos tribunais ou chefes de casas podiam se dirigir ao
Conselho das Sombras, então ter Danto como parte disso era crucial. A
reputação do Padre Thomas também era apreciada no Conselho das
Sombras. Isso era bom o suficiente para mim.
Jax se mexeu parecendo nervoso com os braços cruzados sobre o peito
ao lado de Pam. Tentei não pensar em como ele era bonito quando estava
nervoso. Era quase como se ele se importasse comigo. Não sei porque…
Ele deveria estar pensando em sua noiva.
Pam arrastou sua cadeira de rodinhas até uma mesa lateral de metal e
pegou o que parecia ser um alicate antes de se posicionar ao meu lado.
Embora estivesse frio dentro da clínica, gotas de suor se formaram em sua
testa.
Acordamos Pam às 5 da manhã com Jax batendo na porta. O olhar
surpreso em seu rosto ao ver Jax se transformou em uma cara feia e
ameaçadora, isso foi impagável. Ela estava dando um gelo em Jax desde
que entramos, e era incrível.
– Por que você está sorrindo? – perguntou Tyrius, com suas
sobrancelhas franzidas enquanto ele olhava para mim. – Perdi alguma
coisa? Arrancar flechas da perna não dói? Pam… você deu a ela algum
sedativo? Ela tomou algum antidepressivo?
– Não – respondi por Pam, abrandando minha expressão. – Não tomei
sedativo. Não gosto do jeito que eles me deixam, toda esquisita.
– Você pode mudar de ideia depois disso – Os grandes olhos azuis de
Pam encontraram os meus e seu rosto ficou sério. – Desculpe, Rowyn. Isto
vai doer, muito – ela disse enquanto inclinava o instrumento parecido com
um alicate em direção à minha coxa.
Enrijeci, não gostava da ideia de ter Jax testemunhando isso.
– Vá em frente – Pam se inclinou para frente e pinçou a ponta quebrada
da flecha. Estremeci com a pressão repentina na minha ferida.
– Espere – interrompeu Jax, seus olhos se estreitaram enquanto olhava
para Pam. – Você tem certeza que sabe o que está fazendo?
As sobrancelhas levantadas de Pam foram a única indicação de que ela
ouviu o que ele disse. Então, com um poderoso puxão, ela arrancou a
primeira flecha da minha coxa.
Puta meda. Por tudo que é sagrado. Essa doeu.
Mordi a língua para não gritar e senti gosto de sangue.
– Merda – eu respirei fundo, sentindo os espasmos de adrenalina me
atingirem. Fiquei horrorizada que Jax estava testemunhando tudo isso. –
Isso foi pior do que eu pensei. Minha coxa ainda está inteira?
Um pus amarelo e sangue escorriam de um buraco na minha coxa. Era
nojento. E o cheiro era horrível. Porém, agora eu sabia que sem as flechas
meu corpo poderia se curar. Só falta mais uma…
Tyrius inclinou-se para a frente, cheirou e depois recuou.
– Bem, isso definitivamente não cheira mel e rosas, fede a carne de
hambúrguer estragada e leite azedo. Você tem cheiro de cadáver, Rowyn.
– Caramba, obrigado, Tyrius – rebati, minha pulsação latejada na minha
coxa. – Quer saber… eu ainda tenho a coleira de Evanora no meu bolso.
Prata é a sua cor favorita, certo?
Os olhos de Tyrius se arregalaram com minha falsa ameaça.
– Vou fingir que é a febre falando – Ele se virou e torceu o nariz. – Que
tipo de veneno é esse que estou sentindo? Nightshade?
Sacudi minha cabeça quando a dor diminuiu um pouco e consegui
respirar.
– Não. A fada a chamou de faebane.
– Faebane? – Tyrius olhou para cima, mexendo seus bigodes. – Nunca
ouvi falar. Deve ser novo no Mercado Negro. Mas é letal, o veneno
pretendia matar aqueles que fossem infectados.
– Ele pode… – Jax descruzou os braços, parecendo pálido e perturbado.
A preocupação tomou conta dos seus olhos enquanto ele olhava para mim
para Tyrius e para Pam. – Será que…
– Ele vai me matar? – respondi por ele e vi um medo real em seus olhos,
medo por mim. – Acho que não – acrescentei, virando-me antes que minhas
emoções me traíssem. – Eu estaria morta agora se o veneno tivesse algum
efeito em mim. Eu sei que Daegal esperava que sim. Acho que sou imune a
isso também.
– Assim como aquela mordida de vampiro – disse Pam, assentindo com
a cabeça como se ela tivesse respondido sua própria pergunta. – Você
provavelmente é imune a muitos outros venenos e vírus demoníacos.
Com minhas mãos estendidas de cada lado, eu agarrei a roupa de cama.
– Certo.
Pam largou a haste da flecha em uma mesa de aço semelhante à de um
médico e secou a ferida com um pano limpo.
– Aqui. Segure isso. Falta mais uma. Depois disso, são apenas alguns
pontos e você ficará nova em folha.
Minha mão tremia, mas fiz o que ela ordenou e apertei o pano,
pressionando-o sobre o meu ferimento.
– Então – disse Pam enquanto se aproximava da flecha presa na minha
coxa e levantava os óculos no nariz com uma luva de látex branca –, conte-
me mais sobre esta pedra, a Dádiva Branca – ela acrescentou, e não pude
deixar de pensar que ela estava tentando me distrair enquanto arrancava a
última flecha da minha coxa. – Como uma pedra pode transformar uma
pessoa em uma fada?
– Ela está enfeitiçada. – Tyrius estava deitado ao lado do meu quadril
esquerdo confortavelmente, o calor de seu corpo era muito reconfortante
como uma bolsa térmica. – O poder da pedra pode remover a essência de
um humano para substituí-la pela essência demoníaca, transformando-os em
híbridos.
Pam se endireitou, seu rosto tinha uma expressão confusa.
– Qualquer um? Jovem ou velho? Doente ou saudável?
Tyrius assentiu.
– Qualquer um.
Os olhos de Pam se arregalaram.
– Mas e se você não quiser ser transformado? Ela ainda pode
transformá-lo em uma fada?
– Sim – disse o gato solenemente, e estremeci quando me lembrei da
luta e dos gritos daquela pobre jovem. Mesmo com meus olhos fechados, eu
ainda podia vê-la e ouvi-la.
– A pessoa que possui a pedra tem o poder de transformar qualquer
humano em híbrido – disse Tyrius, sua voz estava carregada com um ódio
mortal que ele provavelmente guardou para si mesmo desde que Isobel
transformou o humano em uma fada.
– Que as almas nos ajudem. – Pam respirou fundo, seu rosto corado
empalideceu. E então ela olhou para mim, com uma expressão séria e
assustada. – Você precisa pegar essa pedra de volta.
– Nem me fale – eu disse, a vergonha me atingiu com força.
Eu não queria me enfiar em um buraco e morrer. Eu queria me vingar.
Queria vingança, queria pegar a pedra de volta e dar uma bofetada naquela
rainha das fadas.
E então um pensamento aterrorizante me ocorreu.
– Ela provavelmente vai roubar um bebê humano primeiro – eu disse,
lembrando da expressão de dor em seus olhos negros odiosos quando ela
falou sobre perder um filho. – Ela vai pegar um novo filho.
– Ou uma dúzia de bebês – disse Tyrius, sua voz estava carregada de
ódio e rancor. – Por que parar em um? Se vai fazer, faz direito, não é?
Tenho pena daqueles pais humanos quando descobrirem seus berços vazios.
Isso não está certo.
Senti uma onda forte de náusea e me esforcei para afastá-la.
– Ela pode transformar um híbrido em outro tipo de híbrido? –
perguntou Jax, mudando de um pé para outro enquanto passava a mão pelo
queixo.
Minha boca se abriu ligeiramente com sua pergunta.
– Essa ideia me assusta muito. – Olhei para Tyrius, um medo percorreu
minha espinha, e ele não tinha nada a ver com os dedos trêmulos de Pam e
sua óbvia ânsia de puxar a última flecha. – Ela pode? – perguntei ao gato.
A ideia de que a rainha das fadas da Corte das Trevas pudesse
transformar vampiros em fadas ou vice-versa me fez passar mal. Não só ela
agora tinha o poder de transformar milhares ou mesmo milhões de humanos
em híbridos, como ela talvez pudesse transformar um exército de
lobisomens ou vampiros em fadas.
As fadas dominariam todos os outros híbridos. Um arrepio de medo
percorreu meu corpo, me deixando paralisada.
Tyrius deu de ombros.
– Sinceramente eu não sei. Nunca vi isso acontecer antes, e tudo que sei
são rumores que foram passados de bruxas e demônios, que não são as
fontes mais confiáveis. Quem sabe o que é fato ou ficção.
De repente eu fiquei muito mais nervosa. Suspirei pelo nariz, olhando
para o alicate que estava a três centímetros de distância da última flecha.
– É por isso que quero falar com o Padre Thomas. Quero saber se a
igreja já ouviu falar dessa pedra. O padre tem uma incrível coleção
particular de livros sobre demonologia. Há coisas em sua biblioteca que
fariam o conselho salivar. Talvez possamos encontrar algo lá.
– E todo esse tempo ela estava escondida na barriga de um goblin. – As
sobrancelhas de Pam estavam levantadas e ela tinha um olhar delirante,
como se tivesse adorado abrir o goblin só para ver como ele poderia
carregar uma pedra mágica em sua barriga.
– Era um bom lugar para escondê-la – eu disse, com uma voz baixa, e
não pude evitar a mágoa que saiu com minhas palavras.
– Até que a rainha o abriu no meio como se ele fosse um saco de arroz e
a arrancou – salientou Tyrius.
Uma onda de vergonha me atingiu novamente, e meu estômago se
contraiu. Eu estava com raiva de mim mesma por deixar Ugul na mão, por
deixá-lo morrer assim, como um número em um show. Eu odiava aquela
rainha das fadas. Eu queria vê-la morta.
– Ele deve ter sofrido para engolir aquela coisa. – Tyrius mudou de
posição. – Ela deve ter sido enfeitiçada para ficar lá, e não, você sabe… sair
pela bunda dele.
Jax riu. Isso só deu mais corda a Tyrius, e ele pareceu presunçoso.
Irritada que esses dois estavam achando isso engraçado, elevei minha
voz quando disse:
– O que eu gostaria de saber é quem criou esta pedra e por quê? Por que
criar algo tão perigoso e depois escondê-lo?
Tyrius recuou um pouco com meu tom.
– Não sei.
– Algo deve ter acontecido – argumentei. – Ugul se voluntariou, ou ele
foi forçado a escondê-la… Jesus Cristo! Isso dói!
– Desculpe. – Pam se afastou com a última flecha firmemente presa no
alicate em sua mão. – Pronto.
Eu fiz uma careta.
– Por que eu tenho a sensação de que você gostou disso?
Pam não respondeu, mas juro que vi um sorriso em seu rosto antes que
ela se virasse. Não demorou muito para que ela voltasse com uma agulha e
linha. Pam olhou para cima e disse:
– A pior parte já passou. Isso não vai demorar muito, eu prometo.
Eu cerrei os dentes quando a agulha perfurou minha pele. Pam puxou a
linha e fez a primeira sutura minúscula.
Senti uma mão roçar a minha e me virei para encontrar Jax inclinado ao
meu lado com sua mão em volta da minha. Como isso aconteceu? Ele
estava tão perto que sua respiração soprou meu cabelo. Seu toque era
reconfortante e enviou uma pontada de desejo direto para o meu estômago.
Antes que eu soubesse o que estava fazendo, entrelacei meus dedos ao redor
dos dele, encontrando conforto em seu toque.
Com o coração batendo forte, eu olhei para cima e nossos olhos se
encontraram. O rosto de Jax estava franzido, suas feições elegantes estavam
marcadas pela tristeza. Seus sentimentos estavam vulneráveis e expostos. O
carinho que ele sentia por mim, deixava seu rosto, de alguma forma, mais
bonito. Mas seu rosto bonito e carinhoso não me pertencia. Pertencia a
outra…
Confusa, eu puxei minha mão rapidamente, irritada por ele pensar que
eu precisava de alguém para segurar minha mão enquanto eu levava ponto.
Jax respirou fundo para dizer algo, mas então parou, ele mudou de
posição enquanto mudava de ideia.
Seguiu-se um silêncio constrangedor. Pude ver que o rosto de Pam ficou
vermelho, e Tyrius continuou se mexendo ao meu lado como se não
conseguisse encontrar uma posição confortável. Tá, eu puxei minha mão
um pouco forte demais e com muita emoção. Me processem. Eu não queria
que Jax tocasse qualquer parte de mim, não quando seu toque enviava
aquele maldito formigamento por toda a minha pele e fazia meu coração
disparar no peito.
Além disso, eu não precisava de ajuda. Umas flechas atravessadas na
minha perna não eram nada comparadas ao que aconteceu com Ugul.
– Ele deve ter sido muito solitário – murmurei, pensando em todos os
seus anos naquela caverna escura sem ninguém para compartilhar sua vida,
além dos cães veth. – Sabendo os desastres que se seguiriam se ele perdesse
a Dádiva Branca, não me admira que ele vivesse naquele inferno de
caverna. Pobre Ugul. Ele não merecia o que aconteceu com ele.
– Não, ele não merecia – disse Tyrius. – E pare de se culpar pelo que
aconteceu. Eu sei que você está fazendo isso. Eu posso sentir isso em sua
aura. Você não o forçou a guardar aquela pedra. Não é culpa sua, Rowyn.
– A culpa é minha – eu disse categoricamente. – Eu arrastei o traseiro
dele para a porta dela. Bem, quase.
– Você não sabia da Dádiva Branca – disse Jax, mas eu me recusei a
olhar em seus olhos. – Você o deixou ir, lembra? Você não pode se culpar.
Se você quer culpar alguém, culpe aquela rainha das fadas.
Cerrei os dentes.
– Eu a culpo. Como ela descobriu onde a pedra estava, afinal? Se o
trabalho de Ugul era escondê-la, alguém o traiu e o matou.
– Meu palpite seria outro goblin – disse Tyrius. – Se as fadas da Corte
da Luz estavam escondendo isso, então uma delas o traiu. Talvez um que
esteja indo para a cama com nossa querida rainha.
Fiz uma careta para ele.
– Por quê?
– Pelos simples motivos pelos quais as pessoas se voltam umas contra
as outras – respondeu o gato enquanto se mexia ao meu lado. – Poder.
Ambição. Estupidez.
Frustrada, esfreguei minhas têmporas.
– Isso é loucura. Eu não posso acreditar que isso está acontecendo – eu
disse. – Especialmente que há uma pedra mágica por aí que possa
transformar humanos em híbridos ou híbridos em diferentes híbridos –
engoli em seco. – Uma rainha precisa de um exército, certo? É isso que ela
vai fazer. E ela não vai pedir com jeitinho. Eu não acho que muitos
humanos ficarão felizes em serem transformados em fadas, as criaturas que
eles achavam ter apenas nos contos de fadas. Ela vai reuni-los como gado e
transformá-los.
E eu não ia impedir isso sentada aqui reclamando. Eu tinha que agir. Eu
tinha que agir rápido.
Tremendo por dentro, eu me endireitei.
– Tyrius, você estava certo.
O gato sorriu.
– Como se eu errasse.
Mostrei-lhe meus dentes.
– Meu cheiro é pior que um cadáver. Preciso de um banho, roupas
limpas e comida. Muita e muita comida.
– É isso aí! – Tyrius saltou para o chão e olhou para cima.
– Podemos pedir frango tandoori e pão indiano? Meus Deus, eu amo
pão indiano.
– Claro. – Virei-me para Pam enquanto ela dava o último ponto. –
Obrigada, Pam. Eu devo muito a você por isso. Se houver algo que eu possa
fazer para retribuir, é só me avisar, tá? Qualquer coisa.
Pam se levantou da cadeira, e deu um meio sorriso.
– De nada, Rowyn. Eu não quero nada. Fiquei feliz em ajudar. – Seus
olhos ficaram preocupados e marejados. – Tenha cuidado, tá?
Senti um aperto no peito com a preocupação em seu tom.
– Prometo. – Desviei o olhar rapidamente e escorreguei da beirada da
cama. Pam tinha feito um trabalho incrível com as suturas e eu sabia que a
cicatriz seria mínima.
– Toma aqui – O rosto de Pam ficou vermelho quando ela me entregou
uma calça de yoga rosa coberta de brilhos. – Ela provavelmente é dez
tamanhos maiores, mas está limpa e é confortável. Você pode se trocar no
banheiro no final do corredor.
– Obrigada. – Sorri para ela. Eu não tinha nada cor de rosa desde os
cinco anos. – Eu vou trazê-la de volta.
– Não há necessidade. – Os olhos de Pam se voltaram para Tyrius. – E
você? Tem certeza que está bem?
Tyrius sorriu como só um gato conseguia.
– Estou melhor do que bom. Estou ótimo.
– Hmmm – Pam não parecia convencida. – Eu tenho um suéter pequeno
que pertence ao meu sobrinho, acho que poderia servir em você. Eu posso
fazer uns buracos extras para suas patas.
– Baals não usam roupa! – gritou Tyrius, claramente ofendido. – Quem
você acha que eu sou? O Gato de Botas?
Pam apenas sorriu para o gato.
– Foi apenas uma sugestão.
Tyrius levantou as orelhas e a cauda, e disse:
– Prefiro ir pelado, muito obrigado.
Revirei os olhos e tentei não rir. Se não fosse por Tyrius, minha vida
seria seriamente deprimente.
– Eu vou levá-la para casa – ofereceu Jax, e eu enrijeci.
Com minhas emoções em alta de vergonha e medo, eu temia que deixar
Jax me levar pudesse acabar com ele na minha cama.
Essa era uma péssima ideia.
Eu não olhei em seus olhos.
– Obrigada, mas Tyrius e eu vamos ficar bem pegando o ônibus. – Por
que ele tem que ser tão legal? Por que ele não pode ser um idiota como a
maioria dos homens da sua idade? – Não é tão longe de qualquer forma.
Além disso – eu disse, exalando alto e pegando minha bolsa. – eu preciso
ver minha avó primeiro.
– E dar a ela as más notícias – insinuou Tyrius.
E dar-lhe as más notícias. Encolhendo-me por dentro, acrescentei:
– E você disse que queria falar com Pam. Agora é sua chance – Ele não
tinha dito isso, mas não iria se safar por não ter ligado para ela. A mulher
quase teve um ataque, ela não merecia isso.
Quando finalmente encontrei os olhos de Jax, eu sorri quando vi o
desconforto e a culpa em suas feições tão bonitas.
Troquei um olhar com Pam e vi a diversão em seus olhos quando passei
por ela e saí pela porta, pouco antes de vê-la pegar o alicate.
– Jax vai conseguir pegar, né? – sussurrou Tyrius enquanto seguíamos
pelo corredor.
Um sorriso curvou o canto dos meus lábios.
– Sim – eu disse, radiante. – Ele vai sim.
Capítulo 25

D epois de um banho quente, muita comida indiana e uma soneca de duas


horas, Tyrius e eu fomos até a casa da minha avó e eu finalmente a
convenci a ir ao banco comigo para discutir o caso dela. É claro que Tyrius
não pôde perder o passeio e se escondeu na grande bolsa vintage dos anos
60 da minha avó, deixando a cabeça para fora. Não foi nenhuma surpresa
quando todos os funcionários do banco ficaram maravilhados com o lindo e
exótico gato siamês e como a bolsa de couro bege realçava seus olhos. Por
favor.
Obviamente, Tyrius teve que dar um show musical para seus paparazzi.
Afinal, ele tinha uma reputação a zelar.
Embora eu desprezasse os bancos por minhas próprias razões
(principalmente por causa das taxas de serviço caríssimas e pelo fato de eles
não me emprestarem dinheiro para comprar um carro devido ao fato de eu
ser freelancer), eu me comportei muito bem e dei meu melhor sorriso falso
pela minha avó. Faria qualquer coisa por ela.
Quando chegamos e nos encontramos com o gerente de crédito, ele não
pareceu muito otimista com nossa oferta de pagar dez mil agora e nos dar
algum tempo para conseguir o resto. Ele abriu a ficha da minha avó em sua
tela e seu rosto se contraiu como se ele estivesse prestes a nos dar a má
notícia. Porém, de repente, as luzes piscaram e a tela do seu monitor
apagou. Um leve cheiro de enxofre pairou no ar na sala apertada. Suspeitei
que o computador do homem tivesse sofrido um pouco de baal hocus-
pocus.
O gerente de crédito franziu a testa e apertou as teclas. Então, ele nos
informou, com o mesmo olhar perplexo, que o banco aceitaria nossa oferta
de pagar dez mil e nos daria mais seis meses para pagar a dívida restante.
Bem, o que posso dizer?
Antes de sairmos, minha avó chorou. Eu pisquei para o funcionário do
banco, fazendo-o corar, e Tyrius vomitou uma bola de pelos do tamanho de
uma maçã bem na mesa limpa do homem.
Se ao menos o resto da minha vida pudesse entrar nos eixos com um
pequeno truque demoníaco. Tá bom.
Eram quase dez da noite quando chegamos à igreja de São José, a igreja
paroquial do Padre Thomas. Ela era o espaço católico mais antigo de
Thornville, datado do século XVII, e era uma coisa linda.
As pedras argamassadas de cantos afiados se erguiam tão alto quanto,
talvez, um prédio de oito andares, parecendo maciças e permanentes em
comparação com as lojas baixas que a cercavam. A igreja ficava próxima à
calçada e pegava os dois lados, sombreando a rua. Havia carvalhos altos no
terreno e a luz dourada se derramava de grandes vitrais que se alinhavam na
frente e nas laterais do prédio. Pisquei através da luz do poste, absorvendo
tudo. Empoleiradas no alto das torres, havia estátuas de pedra ornamentais,
monstros míticos estóicos e bestas híbridas de pedra espiando a paisagem
de Thornville. Gárgulas.
Algumas tinham feições horríveis esculpidas em um tédio perpétuo,
enquanto outras pareciam cuspir ou fazer caretas. O que elas diriam se
pudessem falar?
Meus olhos se voltaram para o estacionamento e avistei um reluzente
Audi A5 preto. Meu coração saltou. Jax já estava lá dentro. Lá se foi o meu
plano de manter distância dele. Parecia que estaríamos presos um ao outro
novamente, pelo menos por mais algum tempo.
Com minhas botas batendo na calçada pavimentada, dei um passo para
a direita e fui para a entrada lateral, sob uma porta de carvalho em arco
emoldurada por lilases. Então, parei.
Suspirei e enfiei a mão dentro da minha jaqueta para tirar o amuleto que
fizera para Tyrius seis meses atrás. Deparara-me com o feitiço enquanto lia
o grimório da bruxa das trevas, que agora estava comigo dentro da minha
bolsa. O livro me trouxera muita dor e quase me custara a vida, mas
também tivera seus usos.
– Tá, Tyrius, você já conhece o procedimento – eu disse e balancei um
pequeno cristal amarrado a uma fita rosa. – Solo sagrado e tudo mais.
Invoquei o feitiço das trevas no cristal, era um feitiço de ocultação que
disfarçava a energia demoníaca de Tyrius na igreja, fazendo-o parecer um
gato normal. Era como um encanto de certa forma. Escondia sua verdadeira
forma.
O gato baixou as orelhas.
– Eu odeio essa parte – resmungou ele. – É um pé no saco.
– Eu sei que você odeia – eu disse enquanto deslizava o amuleto sobre
sua cabeça. – É chato e tudo mais, mas você não pode entrar na igreja sem
isso. – Eu me endireitei. – Não me olhe assim, não é uma coleira. É um
pingente mágico. – Coloquei as mãos em meus quadris. – Não quer? Então,
pode ficar aqui com as gárgulas.
Tyrius se sentou e enrolou o rabo em volta dos pés.
– Eu acho que não. – O gato siamês fez uma careta. – Por que, pelo
amor dos demônios, você teve que fazer cor de rosa? Eu não sou uma
garota baal. Eu sou um garoto. Garotos gostam de azul, de carros e de
cerveja.
Eu levantei uma sobrancelha.
– Nem todos os meninos gostam dessas coisas. Sinto muito, Tyrius.
Tive que improvisar, era tudo que eu tinha na hora. Não seja infantil. Rosa
fica bem em você.
– Não seja infantil – zombou Tele, com suas orelhas ainda abaixadas. O
felino abaixou o queixo até o chão como se o amuleto fosse uma corrente
de metal pesada.
– Você sabe que eu o amo, Tyrius, mas às vezes você pode ser um pé no
saco gigante.
Esperei que sua birra passasse e, então, segui em direção à entrada
lateral, levantando minha mão.
– Alguma ideia de a quem o goblin se referia quando disse “eles já a
procuraram?” – perguntou Tyrius.
Merda. Eu parei, minha pulsação martelou em meus ouvidos.
– Não sei. Não tenho certeza se entendi completamente o que ele quis
dizer. Quero dizer, ninguém mais tentou me matar além do arcanjo Vedriel.
Quem mais poderia ser?
– Mas ele disse que não era a Legião. Isso é outra coisa – disse o gato.
Seus olhos azuis brilhavam com a luz suave que se derramava dentro das
janelas da igreja.
De repente, senti-me um pouco mal, como se o frango tandoori quisesse
voltar pelo meu nariz.
– O que você quer dizer?
Tyrius olhou para a porta.
– Eu não quero assustá-la, Rowyn.
– Tarde demais. O quê é?
O baal suspirou.
– Eu acho... Posso estar errado isso, é apenas uma teoria em que estou
trabalhando.
– Fala logo, Tyrius! – Gritei e baixei a voz quando percebi que estava
gritando. – Conta logo, tá? Você está me enlouquecendo.
– A chave está nas palavras que ele usou – disse o gato. – Ele disse:
“Eles já a procuraram”. Não se tentaram matá-la, mas se procuraram você.
Como se houvesse algo que quisessem discutir com ou talvez até tirar de
você. Não tenho certeza.
Esfreguei minhas têmporas.
– Devo estar muito cansada porque você não está fazendo nenhum
sentido agora.
Duas horas de sono não foram suficientes. Eu podia dizer que meu
corpo e minha mente estavam começando a sentir os efeitos.
– Ugul disse: “há algo que você deveria saber” pouco antes de morrer.
Tive a sensação de que ele estava falando sobre suas essências. Seu sangue.
A única razão pela qual a Legião está atrás de você é porque é diferente.
Faz sentido supor que haverá outros.
– Outros? – eu disse, sentindo-me entorpecida.
– Sim, outros – disse Tyrius. Ele esperou que a informação fosse
absorvida. – A Legião tentou manter em sigilo o que fizeram com você e
com os outros Não Marcados.
Dei de ombros e disse:
– Sim, tentando me matar.
– Exatamente – disse o gato. – Porém, você está viva. E o segredo deles
foi exposto. Você.
– Fantástico.
– Outros vão se interessar pelo que você é por causa do que está dentro
de você. – Tyrius olhou para minha expressão vazia e acrescentou – E eu
não acho que seja uma coisa boa.
Um calafrio percorreu minha espinha, fazendo-me tremer. Eu não gostei
disso.
– O quê? – eu perguntei. – Que sou metade anjo e metade demônio?
– Não, que há outros interessados em você. Não sabemos que tipos de
interesses eles podem ter.
– Não é como se eu pudesse me esconder agora – eu disse com meu
estômago revirando. – Todo mundo sabe o que eu sou.
– Como eu disse, é apenas uma teoria em que estou trabalhando. –
Tyrius franziu a testa por um momento. – Acho que estou certo, mas não se
preocupe, nós vamos descobrir isso.
Deslizei uma mão pelo meu rosto.
– Evanora sabia. É por isso que ela queria me matar e beber meu
sangue. – A lembrança de estar presa naquele círculo de sangue ainda me
fazia estremecer.
– Ela provavelmente ouviu sobre você ter sangue de demônio e de anjo
– respondeu o baal. – Isso, em si, é incomum. E poderoso para uma bruxa
que se interessa pela magia de sangue como ela.
– Que ótimo. – Levantei meus pulsos e olhei para as finas cicatrizes
brancas que cruzavam os dois. Agora, elas eram apenas uma lembrança do
que havia acontecido. – E ela tem uma xícara com meu sangue.
– Graças a Deus não é um litro – comentou o gato. – Não se preocupe.
Isso não é nada. Já vi minha cota de magia com sangue. A velha precisava
de muito mais sangue para fazer qualquer feitiço maligno que estava
planejando.
Eu puxei a alça da minha bolsa no meu ombro. O peso do grimório da
bruxa das trevas parecia ter dobrado naqueles poucos minutos ali.
Eu sabia que as bruxas das trevas se interessavam por magia negra e
magia de sangue. Tive a sensação de que Evanora Crow sabia exatamente o
que estava fazendo comigo. Com meu sangue.
Essa era a palavra-chave aqui. Se meu sangue, minhas duas essências
misturadas, era um produto valioso, então, eu queria saber mais sobre ele. E
tinha a sensação de que o grimório me contaria. Se houvesse um livro por aí
que fosse malévolo o suficiente, cheio de feitiços e de maldições malignas
que falasse da magia de sangue, o grimório da bruxa das trevas era ele.
Talvez, meu sangue fosse a resposta. E, talvez, fosse exatamente o que
eu precisava para chutar a bunda da rainha das fadas.
Com um elevado senso de determinação, eu levantei meu punho e bati.
Capítulo 26

O uvi os sons abafados de vozes, seguidos pelo som de uma fechadura


sendo aberta antes da porta abrir. O Padre Thomas abriu a porta e eu
pisquei com a luz repentina. Ele usava sua melhor roupa preta. O quadrado
branco de seu colarinho clerical se destacava em volta do seu pescoço como
uma gargantilha.
– Rowyn. – O Padre Thomas me deu um sorriso tenso.
Pelo olhar preocupado em seus olhos, eu soube que Jax já tinha lhe
contado todos os detalhes.
– Oi, padre – eu disse. – Você parece exatamente como eu me sinto.
– Entre – disse o clérigo enquanto segurava a porta aberta para nós. –
Jax e Danto já estão no meu escritório. Eles tiveram muito a dizer nos
últimos dez minutos. Algumas coisas muito perturbadoras.
Passei pelo padre e entrei em um pequeno saguão com painéis de
madeira e tapetes antigos.
– Aposto que sim.
O Padre Thomas olhou para Tyrius.
– Eu vejo que você está usando sua coleira.
O gato franziu o rosto.
– E eu vejo que você está usando a sua.
Ah, droga. Lá vamos nós.
– Vamos lá, Tyrius – eu disse, conduzindo-o para dentro. – Esta vai ser
uma longa noite.
Seguimos o Padre Thomas por um longo corredor. O ar cheirava a
madeira, a tapetes mofados e a pecados. Murmúrios distantes de vozes se
espalhavam. O aumento repentino do tom de vozes me dissera que era uma
discussão acalorada, mas eu não conseguia entender o que elas diziam. O
padre nos levou mais para o fundo da igreja e subiu um lance de escadas até
um quarto, seu escritório particular. Uma longa escrivaninha de madeira
esculpida estava embaixo de uma janela emoldurada com pesadas cortinas
cor de vinho. Uma variedade de espadas e de adagas estava pendurada na
parede acima de um pequeno bar. Eu sorri. Sempre admirei suas espadas.
Não eram lâminas de alma – as lâminas que nos foram dadas pelos arcanjos
–, mas elas eram todas feitas de prata e bem afiadas, perfeitas para estripar
qualquer velho demônio.
Um laptop descansava em cima da mesa, parecendo moderno e
deslocado em meio aos móveis com estilo do século XVIII. Um par de
abajures de mesa iluminava a sala, dando-lhe um tom de ouro suave. As
estantes de livros, encostadas em cada parede, estavam cheias e bem
alinhadas. As lombadas mostravam uma variedade estonteante de idiomas.
Jax e Danto estavam sentados nas poltronas de couro, de frente para a
mesa. Os dois pareciam irritados quando nos ouviram entrar, como se
tivéssemos acabado de interromper uma discussão. O rosto de Jax estava
corado e os olhos cinzas de Danto estavam mais escuros que o normal.
Curioso. O que será que eles estavam conversando?
Havia uma cadeira extra ao lado do nascido-anjo. Tive a sensação de
que ele a havia colocado lá.
– Posso lhe oferecer uma bebida? Café? – O Padre Thomas foi até o
pequeno bar e se serviu de uma bebida.
– Não, obrigada. Estamos bem – respondi, olhando para Tyrius antes
que ele abrisse a boca. Agora não era hora de ter um baal sobre o efeito de
café.
Sentei-me na cadeira vazia, ciente dos olhos de Jax em mim. Um calor
subiu pelo meu pescoço até meu rosto. Eu queria me socar por não ter
melhor controle sobre minhas emoções. Uma vez que Tyrius havia se
acomodado em meu colo, eu acalmei minha expressão e encontrei o olhar
de Jax.
– O que eu perdi? – Eu esperava saber o motivo do argumento. Olhei
para Danto, mas o vampiro estava ocupado mexendo o líquido dourado de
sua bebida.
– Não muito. – Jax se recostou em sua cadeira. Ele segurava um copo
vazio em suas mãos. – Chegamos aqui há poucos minutos. Estávamos
contando ao padre tudo sobre a Dádiva Branca e a rainha das fadas.
O Padre Thomas pegou sua bebida e se sentou em sua cadeira, de frente
para nós quatro. Um grande livro de couro estava aberto sobre a mesa. Eu
não tinha notado ele antes. O cheiro de mofo indicava o quão velho a obra
era, provavelmente da coleção reservada da igreja. As páginas eram feitas
de papel grosso e amarelado pelo tempo. As bordas estavam gastas e
rasgadas. Interessante.
O clérigo envolveu seus dedos em volta do copo.
– Se o que eles me disseram é verdade, então, Deus nos ajude.
– Amém – miou o gato –, porque é a pura verdade, padre.
Inclinei-me para frente em minha cadeira para dar uma olhada melhor
no livro.
– Você já ouviu falar dela? Da Dádiva Branca?
O Padre Thomas franziu a testa profundamente.
– Não até eu ler aqui. – Ele estendeu a mão e virou o livro para que eu
pudesse lê-lo.
Uma tatuagem preta espreitava da manga direita de sua camisa, o
símbolo de uma espada dentro de um círculo. Muito interessante. Eu fiz
uma nota mental para perguntar a ele sobre isso mais tarde.
– Este é o diário do Padre Albertus Magnus – disse o clérigo. – Ele foi
um grande pensador e estudioso na Idade Média, além de um Cavaleiro
Celestial até morrer em 1280. Neste registro, ele menciona um livro que
veio para a posse da igreja; um livro escrito pelo demônio Superior
Astaroth. – Eu estava realmente curiosa agora. – Com seus estudos das
línguas demoníacas – continuou ele –, o Padre Albertus foi capaz de
decifrar partes dele. Ele diz que o livro fala de exércitos de demônios e de
suas guerras. Contudo, perto do final da página, ele escreve sobre uma
pedra branca com imenso poder. Uma pedra que foi criada pela raça dos
primeiros demônios. Ele os chamou de Os Sem Rosto. Isso é tudo que se
sabe. Não consigo encontrar nenhum registro da pedra ter o poder de
transformar humanos em híbridos.
– Você não precisa achar – eu disse e puxei o livro para mais perto de
mim. – Vimos com nossos próprios olhos.
O padre respirou fundo e, então, assentiu.
– Foi o que eles me disseram. Você acha que é a mesma pedra?
– Parece que sim.
– Bem – disse Tyrius enquanto cruzava as patas dianteiras. –
Considerando que eu vim daquele lado, posso dizer que você não tem essa
informação em seu precioso livro porque os demônios não queriam que a
descobrisse. Eles manteriam algo tão poderoso em segredo e escondido.
Isso é certo.
Meus olhos percorreram rapidamente os textos em latim.
– Então, não temos nada. – Afastei o livro. Não quis esconder minha
decepção. Achei que encontraríamos algo sobre a Dádiva Branca na coleção
particular do Padre Thomas. – E quanto a Hallow Hall? – Olhei para Jax. –
Talvez possamos verificar os arquivos. Deve haver algo sobre a Dádiva
Branca lá.
– Eu já verifiquei – disse Jax. – Mandei Daniel fazer uma busca
minuciosa em todos os textos antigos e até no Deus Septem, os livros que
nos foram dados pelos arcanjos. Não há nenhuma menção de uma pedra
branca com super poder. Nada. – Olhando para as estantes, ele bateu os
dedos contra o copo. – Estava esperando encontrar algo que nos ajudasse a
destruí-la.
O Padre Thomas abriu a boca para falar, mas Danto o interrompeu.
– Mas deveríamos? Deveríamos destruir algo que podemos usar? Que
pode nos ajudar?
Incrédula, eu encarei o vampiro.
– Você tá brincando né?
– Isso não lhe parece monumentalmente idiota? – comentou Tyrius. –
Eu pensei que os vampiros fossem abençoados com alta inteligência, não
amaldiçoados com estupidez.
– Há uma razão pela qual Ugul a escondeu em sua maldita barriga – eu
disse ao vampiro. – Ele sabia o quão perigosa a pedra era e como ela
poderia ser usada para fazer o mal. Ele estava protegendo o objeto, mas
também estava protegendo todos nós dele. Você não entende?
– Contudo, ela também tem o poder de fazer o bem – pressionou Danto.
Seus olhos brilhavam com uma intensidade febril. – Pense nisso.
– Eu não preciso pensar – eu disse. – Essa pedra é maligna, simples
assim. Eu não me importo se ela é branca e se tem um nome muito fofo.
Sem chance.
Jax cerrou os dentes.
– Essa coisa precisa ser destruída. Ela é sobrenatural. Se não fosse a
rainha das fadas da Corte das Trevas que tivesse a encontrado, teria sido
outra pessoa. Talvez alguém pior.
– Que as almas nos ajudem. – Eu respirei, tendo dificuldade em pensar
em uma bruxa pior do que Isobel.
– Como eu falei antes – disse Jax, com uma raiva estampada em seu
rosto. – Se os híbridos não podem ter mais filhos, é a vida. Você precisa
aceitar. Talvez seja assim que sua espécie vai entrar em extinção. Porém,
você não pode sair por aí criando mais de você com essa coisa.
Eu levantei minhas sobrancelhas. Então, a briga era por causa disso.
Os olhos de Danto ficaram pretos. Merda. Ele estava se transformando
em vampiro.
– Minha espécie não é a única que está entrando em extinção, nascido-
anjo. Da última vez que verifiquei, vocês tinham apenas alguns milhares
restantes em todo o mundo. Os arcanjos não farão mais de você e, com o
passar do tempo, suas fêmeas vão ficar cada vez mais estéreis. Você pode
cruzar com humanos, mas sua essência de anjo diminuirá até que não haja
mais nada de anjo em você. Vocês se tornarão humanos. – Danto ergueu o
queixo. – E se ela puder criar mais nascidos-anjo? Um exército de nascidos-
anjo que pode derrotar mais demônios?
Os nós dos dedos de Jax estavam brancos, mas eu podia dizer que ele
estava pensando sobre isso. Droga, até eu estava.
– Se alguma espécie vai entrar em extinção – disse Jax, depois de um
momento –, a sua será a primeira.
– Chega com essa competição idiota, rapazes – eu disse. Minha
paciência estava chegando no limite com a estupidez deles. – Isso não está
ajudando. Estamos todos em perigo, todos nós. Nascidos-anjo, híbridos e
humanos. Precisamos trabalhar juntos.
– Tyrius – disse o Padre Thomas de repente. Ele estava assistindo à
discussão silenciosamente. – Você está aqui há muito mais tempo do que a
maioria de nós. – Ele desviou seu olhar para Danto. – No tempo em que
passou com as bruxas, você deve ter encontrado outras pedras mágicas. O
que acha desta? O que você pode nos dizer sobre elas?
Tyrius se endireitou com orgulho. Sua cauda balançava atrás dele.
– Posso dizer que a maioria das pedras mágicas tem uma fraqueza. Nada
tem poder infinito, nenhuma mágica, nada. O poder da pedra acabará
eventualmente, mas pode levar anos, talvez até séculos, antes de vermos a
diferença.
– A menos que a rainha a use de uma vez. – Lembrei-me do
esgotamento nas feições da mulher. A pedra a havia drenado um pouco
dela. Bom. Isso foi um começo.
– É uma possibilidade – respondeu o gato siamês. – Porém, eu já vi
algumas bruxas enlouquecerem com pedras mágicas. Uma vez que elas
experimentam esse poder, é quase impossível deixá-lo ir, parar de usá-lo.
Também conheci uma que morreu, mas não antes de se transformar em uma
aparição. Ela esqueceu de comer e de dormir. Eventualmente, seu corpo
mortal veio a óbito. Pedras mágicas são perigosas. Eu não sei como Ugul
resistiu àquela pedra dentro de seu peito, mas ele deve ter sido um filho da
mãe bem forte.
Senti um aperto no estômago de culpa enquanto tentava tirar da minha
mente os olhos sem vida de Ugul virados para mim.
– Você a conhece melhor do que qualquer um de nós, Danto – eu disse.
– Acha que ela vai criar um exército gigante imediatamente?
Danto ficou em silêncio por um tempo, sua bebida ainda estava
intocada.
– Ela criará um exército grande o suficiente para pressionar os outros
clãs híbridos. Um que não alertará a polícia humana imediatamente. Ela
usará os pobres, os sem-teto, as prostitutas, aqueles que não farão falta. – O
vampiro hesitou. – Então, quando estiver pronta, ela destruirá todos os
outros híbridos que não jurarem fidelidade a ela. A mulher quer governar a
todos. Isobel sempre quis ser a única rainha dos híbridos, fadas ou não.
– Tenho que admitir – eu disse –, ela é assustadoramente ambiciosa.
Louca, mas ferozmente determinada.
Danto se inclinou para frente. Seus olhos negros me encararam e eu
estremeci. Ele tinha uma boca absolutamente perfeita e sua pele era
impecável.
– O que vai acontecer é que os outros líderes dos clãs híbridos se
juntarão a ela – continuou o vampiro. – Ou por medo ou porque eles
querem estar do lado vitorioso.
– Lado vitorioso? – Fiz uma careta. – Você fala como se ela já tivesse
vencido.
– Ela vai se não a impedirmos.
Eu resisti em desviar o olhar de seus olhos penetrantes.
– E como nós fazemos isso? Se, como você diz, ela já criou o quê? Mil
novas fadas? Como paramos um exército desse tamanho?
Franzindo a testa, o vampiro me estudou por um longo momento
enquanto eu ouvia meu coração bater no meu peito. Senti o suor brotar na
minha testa.
– A única maneira será unir forças – respondeu o vampiro, com uma
voz tensa. – Não podemos vencer a rainha das fadas sozinhos. Vamos
precisar de ajuda, muita ajuda. Precisamos levar isso ao Conselho das
Sombras, aos híbridos e aos nascidos-anjo, pelo menos os híbridos que não
se juntaram a ela até então.
Mexi-me na cadeira, minha frustração mudando para medo. Rezei às
almas para que já não estivéssemos muito atrasados.
Danto olhou para mim por um segundo e, então, disse:
– E depois que ela convencer ou destruir todos os híbridos, vai atacar os
humanos.
Encolhi-me.
– Ah, claro que ela vai. Há ainda mais para governar.
Danto balançou a cabeça, sem expressão.
– Para ela, os humanos são fracos, eles estão na base da cadeia
alimentar. Ela não quer governar os humanos…
– Ela quer comê-los – disse Tyrius. Eu o encarei com os olhos
arregalados. – Tchau, filé de Tyrius. Olá, Homo sapiens mignon.
Caramba. Eu tinha visto a coroa de dentes humanos em sua cabeça. Não
tinha dúvidas de que ela afundaria seus dentes em carne humana.
Danto olhou para o padre.
– Eu não acredito que ela queira transformar o mundo inteiro em
híbridos. Acredito que quer transformar apenas o suficiente para tirar o
poder do mundo dos humanos. O ódio dela pelos humanos é de muito antes
de eu existir. Ela foi torturada por humanos, estuprada e profanada. A
mulher sofreu atrocidades, tudo em nome de um deus ou de outro. Isso a
mudou.
Eu praguejei.
– Ela é louca.
– Você acha? – disse Tyrius.
– A pedra pode dar a ela tanto poder? – O pensamento me aterrorizou e
não pude deixar de me sentir responsável. – Se eu não tivesse aceitado
aquele maldito emprego, nada disso estaria acontecendo.
– Eu duvido seriamente disso. – Tyrius se virou e me encarou. – Se não
fosse você, teria sido outra pessoa. Eventualmente, a rainha vadia teria
colocado as mãos naquela pedra. Não é sua culpa que ela seja psicótica. Ela
simplesmente é.
– Porém, devo adverti-los. – A calma fria de Danto vacilou quando ele
respirou. Foi sutil, mas estava lá. – Haverá aqueles que vão querer se juntar
a ela – disse o vampiro – e aqueles que vão querer a pedra para si mesmos.
Jax praguejou.
– Isso não vai acabar bem. – Ele se levantou e foi se servir de outra
bebida.
Empurrei a cadeira e assobiei quando Tyrius cravou as unhas na minha
pele em seu esforço para se segurar.
– Você quer dizer outros híbridos?
– E possivelmente aqueles que fazem parte do Conselho das Sombras. –
O rosto de Danto estava sombrio. – Assim que falarmos com o Conselho
das Sombras – continuou o vampiro –, eu prometo a você que alguns
membros do conselho e até mesmo outros híbridos vão querer a pedra.
Porque aquele que segura a pedra detém o poder. A Dádiva Branca será o
objeto mais cobiçado em nosso mundo. Todos os híbridos ao redor do
mundo vão querê-la.
– Incluindo os nascidos-anjo – me peguei dizendo.
Eu tinha certeza de que os chefes das Casas ou mesmo o conselho dos
Sensitivos iria querer colocar as mãos naquele poder. Que ótimo.
– Isso não é bom, Rowyn – disse Tyrius.
Encontrei seus olhos azuis e soube que ele pensava o mesmo que eu.
Precisávamos destruir a pedra.
Recostei-me na cadeira, minha pressão estava subindo.
– Então, você não acha que devemos ir ao Conselho das Sombras?
– Como Chefe dos Vampiros de Nova York – disse o vampiro –, eu sou
obrigado a relatar a eles sobre os assuntos que podem afetar nossa
sobrevivência. Eu tenho que dizer a eles, mas sei que não virá sem
consequências.
– Então, basicamente, estamos ferrados. Que fantástico. – Entorpecida,
olhei para as garrafas de gin, rum e uísque ao lado de Jax no bar. Talvez eu
devesse beber alguma coisa, algo bem forte.
Danto se inclinou e colocou sua bebida intocada na mesa do padre.
– Vou tomar providências para falar com o Conselho das Sombras –
disse ele. – Depois que eles ouvirem o que eu tenho a dizer, vão querer
ouvir de todos nós em breve, então, não faça nenhum plano até que eu entre
em contato com vocês.
– Sou exilada – eu disse, dando de ombros. – De jeito nenhum eles vão
querer falar comigo.
– Talvez não – disse o Padre Thomas. Seus olhos escuros pareciam
preocupados. – Contudo, vocês dois podem ser chamados como
testemunhas.
Uma onda de gratidão me invadiu quando o Padre Thomas incluiu
Tyrius como um de nós. O gato, claramente satisfeito, ronronou, e eu
estendi a mão e acariciei seu queixo.
– Eles vão acreditar em mim – disse o clérigo. – Porém, primeiro,
preciso falar com o bispo. A Igreja vai querer saber sobre isso. Se houver
uma chance de milhares de novos híbridos serem criados da noite para o
dia, precisaremos da ajuda dela.
Meus ouvidos estalaram quando reprimi o bocejo que ameaçava expor o
quão cansada eu estava. Eu precisava dormir. Não queria que nenhum deles
pensassem ou vissem o quão exausta eu realmente estava. E eu ainda estava
com fome.
– Tudo bem, então – eu disse enquanto me levantava, pensando na
minha cama. Tyrius pousou elegantemente no chão ao meu lado. – Acho
que vou para casa e espero sua ligação. – Eu duvidava que conseguiria
dormir com a minha pressão alta, mas talvez pudesse relaxar por uma ou
duas horas.
Dei ao padre um sorriso tenso.
– Obrigada, Padre Thomas. Vejo você mais tarde – acrescentei
rapidamente, não querendo que Jax nos oferecesse outra carona para casa.
Meu pulso acelerou quando vi Jax vindo em minha direção, aqueles
malditos olhos verdes estavam tentando me hipnotizar novamente. Desviei
meus olhos para sua boca carnuda e beijável, corando.
– Eu sei o que você vai dizer – disse Jax, levantando as mãos em sinal
de rendição –, mas eu ainda quero levá-la para casa. Está tarde e estamos
todos cansados.
– Não precisa, estou a dez minutos caminhando daqui. Eu quero andar e
esfriar a cabeça.
O som de um alarme de carro ecoou pelas paredes da igreja.
Jax franziu o cenho enquanto virava a cabeça para a porta.
– Esse é o alarme do meu carro. – Ele colocou sua bebida na mesa e
saiu pela porta antes que eu terminasse o resto do meu protesto.
Quando me virei, Danto estava debruçado sobre o velho diário,
folheando as páginas com uma expressão levemente interessada no rosto.
O Padre Thomas se levantou e deu a volta para ficar ao meu lado.
– Fiquei muito feliz em saber que sua avó pode ficar com a casa – disse
ele, sorrindo. – Você tem um grande coração, Rowyn. Foi muito gentil da
sua parte.
Envergonhada, olhei para minhas botas.
– Sim, bem, não foi nada. Estou feliz que ela esteja feliz – respondi e,
em seguida, senti um estalo em minha mente.
Um fio de apreensão se estendeu quando respirei fundo e senti a
vibração das trevas, as energias demoníacas. Ah, porcaria.
As rugas nos cantos dos olhos do padre se aprofundaram.
– O que foi, Rowyn? Parece que você quer dizer alguma coisa.
– Demônios – grunhiu Tyrius. – Lá fora. E pelo fedor de podridão que
está atacando meu nariz delicado, eu diria que são muitos.
Meus olhos se arregalaram.
– Jax.
O padre disparou para o fundo da sala e pegou uma de suas espadas da
parede, brandindo-a habilmente, como um guerreiro experiente.
– Jax! – gritei.
Meu cabelo bateu em meu rosto quando um borrão de roupas pretas
passou por mim. Danto havia saído pela porta antes mesmo que eu piscasse.
Eu disparei para a porta atrás dele e saltei pelo corredor.
Merda. Merda. Merda.
– Jax! Espere! – eu gritei assim que cheguei na entrada lateral. Minhas
pernas latejavam com a adrenalina, minha mão estava envolvida na minha
lâmina da alma enquanto eu corria pela porta e saía para o ar da noite.
Minhas botas atingiram o pavimento assim que as duas luzes do poste do
estacionamento explodiram e se apagaram.
Eu parei, quase colidindo com Danto.
O vampiro estava parado, com seu corpo ligeiramente agachado com
suas garras estendidas. Seus olhos negros estavam fixos em algo diante
dele.
Segui seu olhar até o estacionamento.
Minha respiração ficou presa na garganta.
Um demônio humanoide magro com mais de dois metros e meio de
altura, uma pele vermelha como sangue em decomposição que parecia
derreter e pelos irregulares ao longo de suas costas, braços e pernas, estava
no estacionamento da igreja.
E, preso em seus braços pelo pescoço, estava Jax.
Capítulo 27

O ssorriu,
olhos negros do demônio Superior Degamon focaram em mim e ele
revelando uma boca excessivamente grande com um número
excessivo de dentes afiados e amarelos.
O estacionamento era lentamente tomado por uma névoa preta que
avançava, mergulhando-o na escuridão, enquanto espectros – criaturas
cobertas de escamas, peles e músculos – saíam das sombras. Suas caudas de
rato se agitavam atrás deles e seus olhos negros brilhavam em seus crânios
achatados. Suas narinas se dilataram, absorvendo nosso cheiro, e uma baba
pingava de suas bocas alongadas.
Demônios igura. Eram demônios menores. Estúpidos, mas mortais.
Contei cerca de vinte, mas apenas metade deles carregava lâminas da morte.
Bom.
– Olá, pirralha angelical – zombou o Demônio Superior. Sua voz baixa
me fez estremecer. – Estou aqui para cobrar minha parte do nosso acordo. O
pequeno Jaxie Spencie.
Os olhos de Jax encontraram os meus, e o branco de seus olhos brilhou
na luz da lua. Seu rosto estava ficando com um tom roxo perturbador. O
demônio vermelho o agarrou pelo pescoço, seus pés balançavam quatro
centímetros acima do chão.
– Não fique tão surpresa – gargalhou o demônio. – Trato é trato. Eu dei
o que você queria e, agora, estou aqui para cobrar o que me é devido. Ele.
Seis meses atrás, eu assisti Jax dar seu nome ao demônio Superior em
troca do nome do demônio responsável pela morte de sua irmã. Eu sabia o
que aquilo significava. Pelo que li e aprendi ao longo dos anos, a Lei dos
Nomes, como é descrita em muitos livros de demonologia, permite que
alguém em posse do nome verdadeiro de uma pessoa ou ser tenha poder
sobre ela. Neste caso, com magia demoníaca.
Com o verdadeiro nome de Jax, que ele havia dado livremente ao
demônio, Jax estava preso a ele. Para sempre, talvez. Essa parte eu não
tinha certeza. Mas eu sabia que isso dava ao demônio poder sobre Jax. O
demônio poderia controlar sua mente e corpo, talvez até possuí-lo.
Degamon poderia usá-lo contra nós, e Jax não teria escolha a não ser fazer o
que lhe fosse ordenado.
Em nossa pressa para encontrar o assassino dos Não Marcados, não
especificamos os detalhes. Não fomos a fundo nas entrelinhas do contrato.
As brechas estão nas letras miúdas de qualquer contrato. Grande erro. O
poder de Degamon sobre Jax terminaria, muito provavelmente, quando Jax
estivesse morto.
Tremi de raiva da minha própria estupidez. Eu deveria ter feito alguma
coisa. Encontrado um amuleto ou feitiço para combater o poder do demônio
sobre Jax, se é que existe tal coisa. Eu não fazia ideia.
Minha cabeça latejava. Eu senti como se meus olhos estivessem prestes
a sair das órbitas.
Maldito Vedriel.
Então, no momento em que os olhos de Jax encontraram os meus, não
vi medo neles, mas, sim, fúria. Uma fúria do tipo quando um plano não sai
do jeito que você queria. E foi quando entendi o que Jax vinha fazendo nos
últimos seis meses, o porquê de ele parecer mais magro e cansado. Ele
estava procurando uma maneira de quebrar seu acordo.
Claro, Jax estava procurando pelo assassino de sua irmã, mas também
estava procurando uma maneira de quebrar seu acordo com Degamon.
– Degamon, sabia que era você. – A voz de Tyrius ecoou alto no ar da
noite quando ele parou aos meus pés. – Eu reconheceria esse fedor
demoníaco de quinta categoria em qualquer lugar. – O cheiro de loção pós-
barba me disse que o Padre Thomas estava atrás de mim, à minha direita.
Danto olhou para mim, com os dentes cerrados.
– O que você quer fazer? – Seus olhos negros estavam tensos, e ele
assim como eu sabia que qualquer movimento brusco, faria Degamon
quebrar o pescoço de Jax.
O medo golpeou meu estômago como uma pedra caindo em um riacho.
– Troco a vida dele pela minha – eu disse apressadamente. – Sou mais
valiosa do que um nascido-anjo comum. Você sabe disso, e eu sei disso –
Dei um passo à frente e desviei meus olhos dos iguras para Degamon. –
Vamos negociar.
Degamon levantou a cabeça, aparentemente interessado.
– Rowyn, não – disse Jax com dificuldade. – Não… seja… estúpida. –
Suas últimas palavras falharam enquanto ele tremia, e eu estava seriamente
me perguntando quanto tempo mais ele poderia aguentar sem ar em seus
pulmões.
– É, Rowyn, o que diabos você está fazendo? – sibilou Tyrius. Então ele
acrescentou rapidamente ao ver a sobrancelha erguida do clérigo – Sem
ofensa, Padre.
Os olhos do Padre Thomas brilharam com um profundo ódio por
Degamon.
– Sem problemas, baal. – O padre parecia durão com sua longa espada
brilhando ao luar. Compartilhávamos os mesmos gostos por espadas,
aparentemente, devido ao nosso ódio por demônios.
Voltei meus olhos para Degamon e baixei minha voz para o gato.
– Estou tentando salvar a vida dele. – Minhas coxas estavam rígidas e
latejavam por me abster de atacar Degamon.
Seus olhos brilharam com diversão. Ele estava gostando de ver que
estávamos nos segurando, com medo de nos mexer. Eu vou matar aquele
filho da mãe.
Tyrius mexeu suas patas nervosamente.
– Sacrificando a sua? Jax não iria querer isso.
– Talvez – eu disse, sentindo a palma da minha mão molhada com meu
próprio sangue enquanto o cabo da minha lâmina cortava minha pele por
segurar com muita força. – Mas você quer deixá-lo morrer nas mãos
daquele demônio?
– Eu também não quero isso – disse o gato. – Porém, o que você está
fazendo é suicídio. Não seja idiota. Pense!
Jax ia morrer se eu não fizesse alguma coisa.
– Estou sem opções. Idiotice é a única coisa que me resta.
Um turbilhão de fúria gigante e inflexível tomou conta de mim. Um
grunhido gutural saiu da minha garganta ao ver as lágrimas de Jax rolando
em seu rosto. A raiva que fervilhava em mim era tão grande que eu
precisava de um grande esforço para não atacar Degamon com minha
lâmina da alma. Mas mesmo antes que eu pudesse alcançá-los, o demônio
mataria Jax.
– Rowyn, Rowyn, Rowyn – zombou o demônio. – Sim. Eu sei quem
você é. Mas não se preocupe, eu não vim aqui pegar você. Este pequeno
fracote é meu – disse Degamon. Uma névoa preta e vermelha envolvia seu
corpo. – Ele é meu a partir do segundo em que abriu a boca e selou o
acordo – o demônio rosnou, e aproximou Jax do seu rosto. – As coisas que
vamos fazer juntos me dá um friozinho na barriga.
O rosto de Jax se contorceu, e então ele cuspiu no rosto do demônio.
Degamon afastou Jax e estreitou seus olhos negros.
– Um ano no Submundo vai lhe ensinar boas maneiras.
– Não! – Uma onda fria e quente subiu pelo meu corpo. Eu ia vomitar. –
Não – minha voz saiu como um sussurro. – Não, você não pode fazer isso.
– A raiva fervilhava dentro de mim. Isso não pode estar acontecendo. Não
agora.
Degamon riu e o som enviou ondas de medo pelo meu corpo.
– Claro que posso. Este jovem – Degamon sacudiu Jax – me deu seu
nome. Ele é meu até eu decidir o contrário… ou quando ele estiver morto.
– Seu desgraçado! – eu gritei quando ouvi Jax fazer um som de asfixia.
– Você não pode fazer isso! Se você o machucar eu vou matá-lo. Eu vou
matar você!
– Estou honrado – disse Degamon, com uma tensão em sua voz. – Jaxie
Spencie é meu. Você não pode tocá-lo. – O demônio riu. – Como se você
tivesse uma palavra a dizer sobre o assunto.
Eu tenho. Inclinei meu corpo para frente. Eu ia arrancar sua cabeça. O
ar soprou ao meu lado, e pelos cantos dos meus olhos vi Danto e o Padre
Thomas fazerem o mesmo.
Uma sombra de dor e horror brilhou nos olhos de Jax. Eu não conseguia
tirar os olhos dele, e meu pulso disparou. Ele era um pé no saco, ele tinha
uma maldita noiva, mas eu ainda me importava com o idiota. Importava-me
muito, aparentemente.
– Vamos, Degamon – sibilei. – Eu sou muito melhor. Eu vou fazer valer
a pena. Você é um homem de negócios, demônio de negócios, tanto faz.
Você sabe o que eu quero dizer. Eu valho dez vezes mais que ele.
Por um momento, Degamon me observou. Sua expressão era ilegível,
mas a pressão no pescoço de Jax pareceu diminuir.
– Você sacrificaria sua vida por ele? – Degamon perguntou, movendo
seus dedos com garras ao redor da garganta de Jax. – Por quê? Por que faria
isso?
– Porque ele é meu amigo. E é isso que os amigos fazem.
– Só um amigo? – perguntou o demônio, passando seus olhos sobre Jax
e, depois, voltando para mim. Ele jogou a cabeça para trás e riu. – Ah… eu
acho que não. Ele é bonito demais para ser algo platônico. Olha esses
lábios. Os humanos pagam muito dinheiro para ter lábios como esses.
Meu rosto ardeu e eu transferi o peso da minha perna.
– Então, temos um acordo? Eu vou no lugar dele? – Meu pulso acelerou
com seu súbito interesse. Talvez isso fosse o suficiente para pagar
completamente a dívida de Jax. – Interessado? – eu provoquei. – Limpe a
dívida dele com você e, em troca, você pode me levar. Combinado?
– Rowyn, não seja idiota! – retrucou Tyrius. – Ele vai matá-la.
Encontraremos uma solução. Tem que haver outra maneira.
– Concordo com Tyrius – disse o Padre Thomas de repente. – Talvez a
Legião possa ajudar. Eles poderiam encontrar uma maneira de recuperá-lo.
– Dane-se a Legião – eu rosnei, pensando em Vedriel e no que eles
fizeram comigo. – Eles são piores que demônios.
Ouvi a inspiração do padre para o meu desdém com Legião. Tá, então
eu fui um pouco longe demais com essa última observação. Mas eu estava
chateada, com medo, fora de mim e preocupada com Jax. Eu não podia
deixar isso acontecer com ele, eu não podia. E não deixaria.
Eu sacudi minha cabeça, apertando minha mandíbula.
– Não há outro caminho. Tenho que fazer isso – eu disse, com uma voz
baixa. – Se não o pararmos agora, ele levará Jax para o Submundo. Você
sabe como é lá. Você acha que Jax vai sobreviver?
Tyrius praguejou.
– Mesmo que o ar tóxico não o mate imediatamente, nunca mais o
veremos.
– Tenho sangue de demônio – eu sussurrei, com meu estômago se
contraindo. – Se alguém pode sobreviver no Submundo, esse alguém sou
eu. Posso encontrar o caminho de volta – Espero…
– Não é tão simples assim. – Baixei os olhos ao ouvir a tensão na voz de
Tyrius. – O Submundo não é como este mundo. Você não pode
simplesmente pegar um avião e ir para outro país. Os Rifts que permitem
que você passe são raros e perigosos, e você será uma prisioneira. Não é
como se você pudesse vagar livremente – disse ele. – Não se esqueça que o
Submundo é uma prisão para todos os demônios. Eles vão odiá-la pelo que
você é. Eles vão torturá-la e fazer outras coisas para seus próprios prazeres
doentios. Você poderá nunca encontrar uma saída. Você pode morrer
sozinha lá, Rowyn.
– Eu não me importo – menti, sentindo como se isso não fosse uma boa
ideia. Minha bravura se foi com o rosnado de prazer vindo do demônio
Superior.
Contudo, era tarde demais. Eu já tinha dado minha palavra.
– Então? – minha voz ecoou no ar e nos meus ouvidos. Meu coração
bateu forte. – O que vai ser?
Degamon estava nos observando com um leve interesse.
– Estou tentado. Você me traria uma soma muito grande. No entanto,
não vou quebrar meu acordo com Jaxie Spencie – disse Degamon. – Já
tenho alguns compradores interessados nele, que estão dispostos a pagar
uma grande quantia para brincar com ele – O demônio estendeu a outra mão
e agarrou a virilha de Jax sugestivamente. Seus olhos negros focaram em
mim. – Mas eu voltarei para você mais tarde.
– Desgraçado!
Me atirei para frente e corri enquanto uma onda de adrenalina crescia
em mim. Senti um vento e ele se misturou com uma névoa negra, e então
um monte de demônios igura correram na minha direção.
Droga.
Danto já estava correndo em direção aos iguras próximos que saltaram
ao mesmo tempo.
Puxando minha lâmina da morte com a outra mão, eu girei e golpeei,
cortando a garganta do demônio igura mais próximo. Virei e empurrei o
demônio morto para cima do demônio mais próximo enquanto mergulhava
minha outra lâmina profundamente no intestino de um terceiro.
Na minha linha de visão, eu peguei um vislumbre do padre puxando sua
espada da barriga de um demônio que gemia e girando para cortar a cabeça
de outro. Impressionante.
Eu não conseguia ver Tyrius, mas sabia que ele não estava muito atrás
de mim.
Me acalmando, eu me movi por instinto, e deixei meu treinamento e
habilidades sobrenaturais fluir por mim e me guiar. O ar circulava com o
cheiro de podridão. Um demônio igura cortou o ar com sua própria lâmina
da morte, mirando direto no meu peito. Amaldiçoando, eu parei o golpe
com uma adaga, e a cravei em seu peito exposto. Um sangue preto, quente e
fedorento espirrou na minha mão enquanto eu enfiava minha lâmina da
morte em seu olho. Uma nuvem de sujeira me atingiu no rosto quando o
igura explodiu em pó.
Buscando o ar para respirar, eu me virei, e me distanciando, eu bati com
a parte achatada do cabo na cabeça de outro igura.
Ouvi uma risada. Degamon. Meu ódio pelo demônio acendeu uma
chama que percorreu meu corpo, como um veneno quente em minhas veias.
Eu ia estripar aquele filho da mãe.
Minha respiração era ofegante, e eu parei quando um igura pulou em
Danto, com as garras estendidas e emitindo um som horrível.
Por um segundo, eu assisti, chocada, enquanto os dois lutavam, ambos
se movendo incrivelmente rápido. Danto era como um borrão, fazendo
parecer que o igura estava tentando pegar uma sombra em movimento.
– Cuidado! – gritei quando outro igura o agarrou pelas costas, mas o
vampiro se contorceu com uma velocidade desumana para cravar os dentes
no pescoço do demônio. O demônio gritou e perdeu a força, e antes que
caísse, Danto girou e quebrou o pescoço de outro demônio. Nossos olhos se
encontraram, suas presas brilhavam com o sangue negro.
Eu estava em movimento novamente. Disparei em direção ao demônio
vermelho, em direção a Jax. Se eu pudesse matá-lo, tudo isso estaria
acabado.
Um desespero me atingiu enquanto eu forçava meu corpo cada vez
mais, girando, rolando, me abaixando. Atravessei a multidão de iguras, não
tirei os olhos das feições de sofrimento de Jax.
Estou chegando.
Não foi a coragem que me deu forças, foi a fúria e o medo.
– Rowyn! – gritou Tyrius. – Atrás de você!
Pulei e girei no ar, vendo dois iguras vindo em minha direção com uma
velocidade assustadora. A fome estampava seus rostos. Eles queriam me
matar, mas eu queria matá-los mais ainda.
Com os olhos arregalados, eu encolhi meu corpo quando caí fazendo
contato com o chão. Joguei-me na direção deles, rolando e me mantendo
abaixada até que estava bem debaixo dos dois iguras que ainda tentavam
me pegar. Eles gritaram quando estripei os dois com dois golpes.
Eu levantei. Danto estava esmagando a cabeça de outro demônio com as
mãos, dada sua força sobrenatural. Ele rosnou, seus dentes ainda pingavam
sangue de demônio. Estremeci quando o vampiro estendeu a mão e cravou
suas garras afiadas nos olhos do demônio. Gritando, o demônio se jogou
para trás, mas o vampiro estava atrás dele. Com dois golpes rápidos, a
cabeça do demônio foi decepada do seu pescoço e caiu no chão com uma
explosão de cinzas.
Tyrius pulou na cara de um igura. Ele era um borrão de garras e dentes
enquanto atacava sem piedade, ele cortava a carne macia do demônio com
uma vontade selvagem. Um sangue preto voou por toda parte, molhando o
pelo claro do gato.
Ouvi um rosnado perto de mim, e virei, meu coração acelerou quando vi
um igura atacar o Padre Thomas, que tinha sua espada enfiada
profundamente nas entranhas de outro.
– Padre! Abaixe-se! – gritei antes de lançar minha lâmina da alma no
rosto da criatura que se aproximava.
O clérigo mal tinha se mexido para evitar o golpe. O sangue do
demônio espirrou em sua camisa.
Quando o Padre Thomas puxou sua espada do igura morto, olhei para
cima e vi uma abertura.
Um caminho limpo direto para Degamon.
Metade do seu exército de igura estava morto, e o resto estava ocupado
lutando com um padre, um gato e um vampiro.
– Peguei você – sussurrei e pulei.
Eu estava quase lá, podia estender a mão e tocar Jax. Seus olhos
estavam fechados, ele estava inconsciente.
Com um uivo selvagem, eu me joguei contra o demônio vermelho,
minha lâmina da morte estava a centímetros do seu rosto repulsivo e cheio
de bolhas.
Mas meus ouvidos estalaram com a mudança repentina de pressão, e
então caí de cara no chão.
Levantei-me do chão e me virei.
Degamon e Jax se foram.
Capítulo 28

– R owyn, isso não vai funcionar – argumentou Tyrius enquanto se


sentava ao meu lado no chão do meu apartamento. – Tiro o chapéu
para a sua criatividade, mas acho que você perdeu sua cabeça angelical de
vez!
– Tem que funcionar.
Que Deus me ajude, tem que funcionar. Estendi a mão e virei a próxima
página do grimório da bruxa das trevas, tomando cuidado para não rasgar as
páginas do livro grosso. O cheiro de poeira e couro fez cócegas no meu
nariz enquanto eu lia as próximas instruções.
Limpei o suor da minha testa com o braço, e pisquei para enxergar a
página. Fiz alguns rituais de invocação antes, mas não estava confiante o
suficiente em minhas habilidades de conjurar, não queria tentar e fazer
correndo. Além disso, esse ritual de invocação era particularmente difícil e
um pouco diferente das outras vezes que eu fiz.
Tyrius respirou fundo e murmurou:
– É realmente surpreendente que, por um lado você seja tão inteligente e
por outro… tão idiota!
– Tyrius.
O rosto de Tyrius estava incrédulo.
– Você não se lembra do que aconteceu na última vez que invocamos
um demônio? Deu merda. Literalmente.
Suspirei fundo, tentando controlar minha paciência. Eu sabia que Tyrius
estava apenas tentando me proteger – de mim mesma e da minha própria
estupidez, mas eu estava confiante que isso ia dar certo. Tinha que
funcionar. Eu estava ficando sem ideias brilhantes, ou neste caso, estúpidas.
– Não vamos invocar um demônio desta vez – eu disse. – Vamos
invocar Jax.
Tyrius praguejou.
– E se você o machucar? Você já pensou nisso? E se você não puder
invocá-lo? Ele é um maldito humano!
– Ele não é – rebati. – Ele é um nascido-anjo. E Degamon deve ter
alterado a essência de Jax com alguma coisa para ele sobreviver no
Submundo. Caso contrário, ele não teria conseguido levá-lo com ele. Ou
vendê-lo, no caso. Ele precisa que Jax consiga ficar de pé e agir normal no
Submundo.
Eu sabia que isso era verdade. Se Degamon tinha compradores para Jax,
isso significava que ele o havia transformado de alguma forma, alterado sua
essência, ou talvez até acrescentado algo a ela, espero que não seja a última
opção.
Degamon tinha feito algo com Jax, e era minha responsabilidade trazê-
lo de volta.
Exalei um longo suspiro e então inspirei calmante. Era crucial que eu
lesse o feitiço direito. Se eu cometesse um erro, poderia realmente
machucar Jax, mas também poderia matá-lo.
– Você acha que é sábio brincar com a vida do homem? – Tyrius
simplesmente não estava deixando isso passar. – Ele é um idiota com muito
bom gosto para carros, mas ele não merece morrer!
Eu me virei.
– Você acha que é sábio deixá-lo no Submundo? – Quando o gato não
disse nada, acrescentei – Ele não vai sobreviver. Ele não é um demônio,
Tyrius. Demônios vivem no Submundo, não nascidos-anjo. O que você
acha que vai acontecer com ele se ele ficar lá? Vai se transformar em uma
borboleta?
Tyrius fez uma careta.
– Se ele não morrer, ou eles não o matarem, então a única coisa que
resta é… ele se tornará um demônio.
– Certo – eu disse. Tinha escutado histórias sobre coisa assim que
aconteciam com anjos que ficaram presos no Submundo. – Não posso
deixar isso acontecer. Não com Jax. Ele não merecia isso. Ele só queria
encontrar o assassino de sua irmã. Não era justo o que estava
acontecendo… Não com ele.
Eu me virei e puxei minha lâmina da alma antes que Tyrius visse meus
olhos marejados. Meu colar escorregou para minha camiseta, a moeda
pendurada no cordão de couro preto saltou antes de parar no meu peito.
– Ela continua fazendo isso – eu disse quando estendi a mão e peguei a
moeda dos duendes, sentindo sua superfície áspera na minha pele. Ela
estava quente, e eu tomei isso como um bom sinal quando o coloquei de
volta na frente da minha camiseta. – Ela parece que não quer ficar parada.
– Não sei porque você quer ficar com ela – disse Tyrius. – Ela foi
enfeitiçada apenas para nos mostrar a saída de Elysium. Agora, não serve
para mais nada, a menos que você queira voltar para lá.
– Não, obrigada.
De jeito nenhum eu ia voltar para Elysium, mas não queria me livrar da
moeda. Ela era um lembrete da sujeira que eu tinha feito e que eu ainda
tinha que limpar.
– Você ao menos sabe qual feitiço de invocação fazer? – Tyrius
avançou, seus olhos se moviam ao longo das escrituras em latim nas
páginas. – Existe um para convocar humanos? Eu nunca vi uma bruxa
invocar um humano antes. Quero dizer, qual é a vantagem, né? Elas
invocam demônios pelo seu poder. Invocar humanos provavelmente lhes
custaria mais. Perdi as contas de quantas vezes vi bruxas amaldiçoarem
humanos, principalmente outras mulheres por causa de um homem, mas
nunca as vi invocar um humano em seus círculos.
Meu estômago se contraiu.
– Bem – eu respirei, tentando controlar meu estômago agitado para que
Tyrius não visse o quão nervosa eu estava. – Eu também não encontrei
nenhum. Não exatamente.
Tyrius olhou para mim, alarmado.
– Então, o que você está fazendo?
Fiz uma careta.
– Improvisando?
Tyrius ficou de pé com um salto, seus olhos estavam arregalados.
– Você perdeu a cabeça, mulher! Eu gostaria que você nunca tivesse
roubado esse maldito livro!
– Esse maldito livro pode ser a única coisa que pode salvar Jax.
– Como? – Tyrius estava praticamente gritando. – Você acabou de dizer
que está improvisando? Como isso vai salvá-lo se ele aparecer no seu
círculo deformado com as bolas na cabeça!
– Vai funcionar – repeti como se estivesse tentando me convencer.
Tem que funcionar.
Com a lâmina da alma na mão direita, levantei a palma da mão
esquerda. Usando a pequena linha branca do meu corte de invocação
anterior como guia, fiz um corte na carne macia.
O sangue escorria do corte profundo, e eu pressionei minha palma
contra o chão enquanto deslizava minha mão fazendo um círculo, usando
meu sangue como se fosse tinta. Então, ainda usando meu sangue, desenhei
um triângulo fechado dentro do círculo – O Selo de Salomão.
E, desta vez, em vez de desenhar três símbolos demoníacos, eu me
inclinei e desenhei o selo do Arcanjo Miguel três vezes – a marca do
arcanjo de Jax – um dentro de cada ponta do triângulo.
Usando o mesmo espelho oval do meu banheiro que usei para invocar
Degamon, coloquei-o no meio do triângulo. Por fim, fiz uma pequena poça
de sangue no meio e escrevi o nome Jaxon Spencer.
Tyrius fez um barulho com a garganta.
– Isso é magia de sangue. Você desenhou o círculo com seu sangue,
assim como a bruxa das trevas. Se eu não a conhecesse, iria pensar que está
tentando amaldiçoá-lo, não salvá-lo.
Inclinei-me para trás.
– O feitiço requer sangue como pagamento. Tive que usar sangue
porque Jax está vivo e o Selo de Salomão porque ele está no Submundo e
provavelmente está sob alguma maldição demoníaca.
Tyrius olhou para mim.
– Isso é improvisar para você?
Eu sabia que mergulhar na magia de sangue era perigoso. Inferno,
invocar demônios era perigoso. Eu ouvi histórias que as almas das bruxas
eram lentamente devoradas para pagar a magia do sangue com a qual elas
brincaram. Na maioria das vezes, a magia de sangue e a necromancia se
misturavam. Eu conhecia os perigos. Mas eu não estava usando isso para
ganhar poder ou ter poder sobre alguém, ou algo.
Eu estava tentando salvar uma vida.
Agora, olhando para o meu círculo, limpei minha mão ensanguentada
no meu jeans e estendi a mão para pegar as três velas. Eu as coloquei em
cima dos três selos do arcanjo antes de acendê-las.
– Talvez o Padre Thomas estivesse certo – disse Tyrius, o tom em sua
voz era alto de tensão. – Talvez a Legião possa ajudar. Não faria mal
perguntar.
– Eles poderiam – eu disse. – Porém, eles não vão. Você sabe que não
posso confiar neles. Eles me modificaram, lembra? Me transformaram
em… sei lá o quê. Eu tenho que fazer isso sozinha. – Suspirei. – Eu tenho
que tentar. Apenas deixe-me tentar, tá? Só desta vez, e se não funcionar,
vamos descobrir outra coisa. Mas não posso ficar parada sem fazer nada.
– Eu sei. – Tyrius cutucou meu quadril. – É uma merda, só isso.
– É um pé no saco – acrescentei e dei-lhe um sorriso. Tyrius riu, e o som
encheu meu coração de alegria. Apenas por um momento.
– Terminou? – perguntou o gato enquanto olhava para o círculo.
– Quase – eu disse quando enfiei a mão no bolso do meu jeans. – Só
preciso acrescentar uma coisa.
E rezar para as almas para que funcione.
Peguei um molho de chaves, balançando-as enquanto as colocava no
espelho.
– Onde você encontrou isso?
– São as chaves do carro de Jax. Eu as peguei depois que o Padre
Thomas e Danto foram embora. Foi a única coisa que consegui encontrar
em seu maldito carro, ele é tão limpinho. Tentei encontrar um fio de cabelo
ou qualquer outra coisa, mas isso foi tudo o que consegui.
– E as chaves simbolizam Jax? não estou entendendo.
Respirando profundamente, eu exalei ruidosamente.
– Para que o feitiço funcione, eu preciso de um testemunho, que é
basicamente um pedaço dessa pessoa, ou algo com o qual ela tenha um
vínculo emocional ou físico, que possa ser usado como um alvo para o
feitiço. O grimório diz que os testemunhos geralmente são o sangue, o
cabelo, os dentes, a pele ou as unhas da pessoa, mas isso é tudo que eu
tenho.
– O DNA de Jax – Tyrius exclamou suavemente.
– De certa forma, sim. – Minha respiração estava lenta e controlada. –
Só espero que haja algo nessas chaves.
Estendi a mão e puxei o grimório para mais perto. Meu coração batia
contra meu peito e dentro da minha cabeça. Senti tonturas e náuseas. Por
favor. Faça isso funcionar.
Tyrius se mexeu nervosamente ao meu lado, seus lábios se mexiam em
uma oração ou maldição silenciosa.
Acalmando minha respiração, deixei as palavras fluírem dos meus
lábios.
– Jaxon Spencer invocabo. Qui nos venimus ad te veniat nosque hic
habitare. Et sanguis sanguinem meum et vocavi te. Et sanguis sanguinem:
revertere ad me. Jaxon Spencer antrorsum intra te voco. – E novamente
com cuidado em inglês – Invoco Jaxon Spencer. Venha até nós, que o
invocamos. Venha até nós e manifeste-se. O meu sangue eu oferto. O meu
sangue eu ofereço. Jaxon Spencer, eu o invoco urgente.
Prendi a respiração e olhei para as chaves sem piscar. Eu podia sentir
meu sangue pulsando e ouvir meu coração acelerado. Depois de um minuto,
meu rosto ficou frio.
Infelizmente, nada aconteceu.
– Droga! – Bati meu punho no chão de madeira, ouvindo algo estalar.
Merda, eu tinha quebrado meu próprio dedo.
Afastei minha mão, tentando lutar contra um sentimento de tristeza.
Meus olhos se arregalaram.
– São as chaves. As chaves não funcionaram – eu disse, soltando um
suspiro frustrado.
Tyrius se aconchegou ao meu lado e colocou a cabeça no meu braço,
piscando seus grandes olhos azuis para mim.
– Desculpe, Rowyn. Você fez o que podia. Anime-se. Encontraremos
outro caminho, eu prometo.
Lágrimas de frustração escorreram pelos meus olhos quando balancei a
cabeça.
– Isso ainda não acabou. Preciso de algo melhor. Preciso de…
De repente, a energia no apartamento mudou, seguida por um estalo
alto.
– Você ouviu isso? – disse Tyrius.
Meu coração batia forte quando o suor brotou em meus braços. Eu me
virei em direção ao barulho. De pé na minha cozinha não estava Jax, mas,
sim, um anjo.
Capítulo 29

L ádeestava ela, brilhando, como os anjos sempre brilhavam. Sua pele cor
café era um contraste gritante com seu terninho branco moderno, e eu
me perguntei se ela tinha se vestido toda de branco apenas para um efeito
angelical extra. Provavelmente. Ela tinha cabelos negros curto e parecia
estar na casa dos trinta e tantos anos.
Eu podia ser péssima em invocar demônios, mas tinha certeza que não
tinha invocado um anjo. Não dessa vez.
Seus olhos se moviam com uma precisão fria de se familiarizar com
tudo a sua volta, como uma predadora.
Seus olhos encontraram os meus, seus olhos escuros ardiam com um
desprezo mal contido. E ela sorriu, não era um sorriso amável de “prazer
em lhe conhecer”, mas o sorriso que um predador dá antes de matar sua
presa. Seu braço direito se moveu e uma longa lâmina de prata escorregou
para sua mão direita.
– Rowyn, ela está com uma lâmina na mão – sussurrou Tyrius, seus
olhos azuis brilhavam. – Por que ela tem uma lâmina na mão?
Os olhos do anjo se fixaram em Tyrius e seu sorriso se alargou de uma
forma absolutamente assustadora, revelando seus dentes brancos e
brilhantes.
Eu me levantei e os pelos do meu pescoço se arrepiaram. O que diabos
um anjo estava fazendo no meu apartamento? Quando os anjos apareciam,
era porque eles queriam alguma coisa. E ainda assim eu não conseguia me
livrar do profundo sentimento de pavor que contraiu meu estômago. Não
havia nada de sagrado nos olhares que ela me lançava, ou naquela longa
adaga em sua mão.
– O que você quer? – perguntei com uma voz dura. De forma alguma eu
ia deixar o anjo perceber meu medo.
Ainda sorrindo, o anjo atravessou meu apartamento e se aproximou de
mim, falando em voz alta:
– Rowyn Sinclair. A Caçadora. – Ela desviou seus olhos para o círculo
de sangue no chão. – Invocando demônios, pelo que vejo. Que
irresponsável de sua parte. Invocar demônios é considerado blasfêmia. A
magia demoníaca viola as leis angelicais.
Cerrei os dentes.
– Eu não dou a mínima para suas leis. – Levantei minhas sobrancelhas e
sorri. – Eu não sou um anjo.
O anjo inclinou a cabeça enquanto me observava, ela passou os olhos
sobre a lâmina da morte no meu quadril.
– Não. Você não é nenhum anjo, mas já foi uma nascida-anjo. De
qualquer forma, isso não importa agora.
Fiz uma careta.
– O que você quer dizer com isso?
O que diabos está acontecendo?
– Ou você nos diz porque sua bunda angelical veio até aqui – rosnou
Tyrius, com sua cauda levantada. – Ou dê o fora. Esta é uma casa particular.
Você não pode simplesmente se transportar sem ser convidada. Existem
regras.
– Não preciso de convite – respondeu o anjo.
Meu corpo gelou.
– Que diabos você está falando? – perguntei, minha boca estava seca.
O anjo riu alto e profundamente.
– Você é acusada do assassinato do arcanjo Vedriel. – Ela ergueu a
adaga e rolou um dedo sobre a ponta afiada. – Uma acusação punível com
pena de morte.
Fiquei de boquiaberta enquanto Tyrius praguejava.
– O quê? – Merda. Merda. Merda. – Espere um minuto, isto é um erro.
Eu não matei ninguém.
Sim, eu matei o arcanjo com a ajuda de meus amigos, mas era ele ou
nós. E escolhemos ele. Senti um tremor nas pernas com a mistura nauseante
de pavor e nervosismo, e prendi a respiração para tentar me acalmar.
– Nenhuma violação das leis angelicais será tolerada. – O anjo baixou
sua lâmina. Seus olhos escuros dançavam de excitação, o que me deu
arrepios. Ela queria me matar. – A sentença por cometer assassinato, ainda
por cima de um arcanjo, é a morte pela lâmina, a ser executada
imediatamente.
Tyrius baixou as orelhas.
– O desgraçado sabia o que estava por vir. Você ao menos sabe o que ele
fez? O que ele fez com Rowyn e os outros? Não, você não sabe, e é punível
com a morte? Rowyn apenas tentou se salvar do Dr. Frankenstein.
O anjo lhe deu um olhar arrepiante.
Cutuquei o gato com meu pé.
– Tyrius. Para, não está ajudando.
Levantei meu queixo para o anjo com determinação e levei minha mão
para a cintura.
– Isso é um erro – protestei. – O arcanjo estava tentando me matar. Ele
matou outros como eu. Eu não queria que isso acontecesse – Aham, tá bom
–, mas ele não me deu escolha. Era ele ou eu. Foi legítima defesa. Ele ia me
matar. Não tenho direito a um julgamento ou algo assim?
O anjo riu.
– Há provas suficientes para apoiar a alegação de assassinato. Seu saco
de carne aspirante a anjo miserável. Você assassinou um arcanjo. De forma
alguma você tem direito a um julgamento. É simples assim, você vai
morrer. Está decidido.
Lambi meus lábios.
– Que provas? – perguntei com uma voz baixa para ela não tremer.
O sorriso do anjo não vacilou.
– Houve testemunhas. Isso é o suficiente para colocar uma recompensa
pela sua cabeça.
Uma recompensa pela minha cabeça?
Enrijeci quando uma saraivada de palavrões saiu da minha boca.
– Vá para o inferno, você e sua Legião. – Agora eu estava irritada,
muito, muito irritada. – Deixa eu adivinhar… você vai receber algo em
troca da minha vida. Não vai? Não é dinheiro, deve ser outra coisa. O que
vocês anjos querem?
– Uma promoção – ela respondeu, seus olhos brilhavam. – Mérito.
Status. Poder. Posso ter tudo, uma vez que eu levar sua alma.
– Malditos anjos – murmurou Tyrius. – Matar mortais para subir na
maldita hierarquia angelical. Brilhante.
Uma raiva me invadiu, alimentada pela memória de Vedriel tentando me
matar, pelas mortes dos meus pais, pelas mortes dos Não Marcados.
O anjo continuou a me encarar. O prazer e a excitação em seus olhos
eram perturbadores.
Encontrei seus olhos e puxei minha lâmina da morte.
– Sai daqui. Ou então que Deus e todos os deuses que me ajude, vou
acabar com você.
O anjo sorriu.
– Você deve morrer, Rowyn Sinclair. Você deve pagar por tirar a vida de
um arcanjo.
Ela disparou para frente parecendo um borrão preto e branco. Sua
lâmina estava apontada para frente e balançava, um grito de guerra soou de
seus lábios enquanto ela se lançava contra mim de forma rápida e mortal.
Contudo, eu estava pronta para ela.
Empurrei Tyrius para fora do caminho com o pé e corri para trás,
desviando de cada golpe daquela lâmina afiada e letal. Malditos anjos.
Porque eles não me dão um tempo.
Eu pulei para trás quando ela me rodeou.
– Você pode ir agora, e eu esquecerei tudo isso. Combinado?
O anjo se lançou para frente e desferiu um golpe com sua longa adaga.
Eu me afastei, mas logo em seguida senti o gume de sua adaga ao longo do
meu pescoço. Abaixei-me e girei, mas a lâmina roçou minha pele. O sangue
aqueceu meu pescoço e ombros.
Cadela. Ela vai pagar por isso.
O anjo sorriu ao ver o sangue no meu pescoço. Ela era rápida pra
caramba. E uma lutadora boa para cacete. Mas eu também. E isso era uma
luta, lute ou morra tentando.
E eu não ia morrer hoje.
– Acho que você realmente quer essa promoção, hein? – provoquei,
sorrindo quando o sorriso dela desapareceu. – Me fala, o que acontece se eu
não morrer? E se eu ganhar? O que acontece com sua promoção?
– Você não vai – o anjo rosnou enquanto ela fintava para a esquerda e
golpeava para a direita.
Ela veio para cima de mim, girando com uma elegância impiedosa e
atacando com sua lâmina reluzente. Eu me abaixei e rolei para o lado,
batendo no balcão da cozinha, quebrando pratos e louças. O balcão de
azulejos estremeceu quando a lâmina do anjo penetrou fundo no azulejo.
O anjo puxou sua espada, xingando.
– Você errou – eu sorri ao ver sua frustração. Eu também poderia jogar
este jogo.
O anjo sibilou e me atacou, mas eu me abaixei e girei, enfiando minha
adaga em seu quadril.
Merda. Eu tinha acabado de esfaquear um anjo com minha lâmina da
morte. Mas ela me obrigou fazer isso.
O anjo gritou quando puxei minha adaga e pulei para trás, a ponta
estava coberta por um líquido branco, a essência do anjo.
Ela se virou, seu rosto estava sombrio e lívido.
– É preciso muito mais do que sua lâmina da morte para me matar. Só
preciso de uma visita a Horizon para voltar novinha em folha.
– Você ainda tem a chance de ir embora – eu disse, olhando por cima do
ombro dela, e vendo Tyrius agachado nas costas do meu sofá, pronto para
atacar se eu precisasse de ajuda. – Ninguém precisa morrer.
– Eu só vou embora quando você estiver morta.
A lâmina do anjo brilhou à luz das velas quando ela a ergueu sobre a
cabeça. Com uma força selvagem, ela se jogou em minha direção. Eu
abaixei, e a lâmina enterrou na porta do armário. O anjo a puxou de volta
enquanto saltava em minha direção.
Girei e gritei quando seu joelho atingiu meu estômago. Perdi o ar,
tossindo, eu mantive a mão na minha adaga.
Sem ar, não consegui gritar quando ela me chutou novamente no
estômago. Eu caí no chão com o golpe poderoso, o espelho do meu círculo
caiu do meu lado. Lá se vai sete anos de azar.
Ouvi um estalo quando a parte de trás da minha cabeça atingiu o chão
de madeira dura, um medo me invadiu.
– Rowyn! – gritou Tyrius.
– Fique aí! – eu gritei. Eu não queria que ele se machucasse. Ele ainda
não estava totalmente recuperado e eu não sabia do que o anjo era capaz.
Falando do diabo, ela pairou sobre mim. Seu sorriso era mais
aterrorizante visto de baixo.
– Vou arrancar sua alma, pequena mortal. Não é pessoal, é que eu
realmente quero essa promoção.
– Você é uma cadela doente. Sabia disso? – rosnei, cuspindo sangue da
minha boca e lutando contra uma onda de náusea enquanto tentava parar a
sala de girar. Senti como se a parte de trás da minha cabeça tivesse
explodido como um melão.
– Já fui chamada de coisa muito pior – comentou o anjo, seu rosto
sombrio estava contorcido em um sorriso de escárnio.
Meus lábios se curvaram.
– Aposto que sim.
Com um grito de fúria, o anjo levantou sua lâmina, a ponta assobiava
quando vinha na direção do meu rosto. Rolei e com um pulo me levantei.
Grunhindo com esforço e raiva, eu me abaixei e desviei do seu ataque.
Ela era magra e forte, mas não era nada comparada à força e velocidade
aterrorizantes do arcanjo Vedriel.
Ela tinha habilidades, mas não era uma Caçadora treinada como eu. Ela
era muito arrogante, muito impetuosa. Logo ela cometeria um erro, e eu
estaria esperando por isso.
– Você se move como uma maldita contadora – zombei, acenando com
minha lâmina. – É isso que você faz em Horizon? Eles colocaram você
atrás de uma mesa para fazer contas? É por isso que você está toda animada
assim, não é? Enquanto seus amigos estão no mundo salvando almas
mortais, você está sentada em uma mesa fazendo contas. Se eu sou um
ingresso para sua promoção, você realmente deve ser um péssimo anjo da
guarda.
Eu sabia que tinha atingido um ponto fraco quando seus olhos se
estreitaram. Seu sorriso diminuiu quando ela olhou para Tyrius.
– Acho que vou matar seu gato como bônus adicional – ela sorriu,
voltando sua atenção para mim, mas no fundo dos seus olhos pude ver pela
primeira vez seu desespero, sua angústia por uma maldita promoção.
Minha raiva aumentou junto com a dor na parte de trás da minha
cabeça.
– Porque você teve que falar isso.
Ela ergueu as sobrancelhas quase imperceptíveis.
– Odeio gatos. Os gatos nunca deveriam ser considerados animais de
estimação. Eles sempre têm aquele olhar superior, como se fossem os donos
e nós fôssemos seus animais de estimação.
– Nada de errado com isso – miou Tyrius.
– Além disso – ela acrescentou –, sou alérgica. – Após dizer isso, ela se
lançou para frente tão rápido que mal pude acompanhar. A mulher parecia
uma névoa branca enquanto mergulhava sua longa lâmina. O anjo foi muito
rápido. Rápido demais para eu conseguir bloqueá-la.
Abaixei-me e rolei, mas o anjo já estava lá. E ela desferiu seu golpe
mortal direto em meu coração.
Naquele momento, tudo o que vi foi seu rosto ansioso e retorcido.
Mas em vez de sentir o corte suave na carne, ouvi um tintilar fraco e
senti uma ardência reverberando no meu peito quando sua adaga atingiu
algo duro e inflexível.
Minha moeda de duende.
Sua mão tremeu com a força do golpe. O anjo gritou e cambaleou para
trás, com os olhos arregalados. Ela ficou boquiaberta, mas não disse nada.
Seus olhos, cheios de choque e ódio, estavam fixos no meu peito.
Mas eu já estava de saco cheio dessa porcaria.
Joguei-me para frente tão rápido quanto a flecha de uma fada. Os olhos
do anjo se arregalaram quando enterrei a ponta da minha lâmina da morte
em seu queixo e a empurrei até seu cérebro.
Pulei para longe quando ela tombou para trás, seus suspiros chocantes e
terríveis foram abafados pela dificuldade em respirar. O anjo largou sua
espada, seus olhos ainda estavam arregalados e sua boca aberta em um grito
silencioso. Uma luz branca se derramou sobre seus olhos, nariz, boca e
ouvidos, até que todo o seu corpo foi envolvido por um brilho de luz.
E então ela explodiu em um milhão de partículas brilhantes.
O barulho da minha lâmina da morte foi alto quando atingiu o chão. O
anjo desapareceu como uma névoa antes do sol nascer, não restou mais
nada dela, exceto o latejado na parte de trás da minha cabeça.
– E lá se vai mais um – disse Tyrius enquanto se aproximava de mim. –
Droga, Rowyn. Quando pensei que as coisas não poderiam piorar, matamos
outro anjo.
Minhas pernas e braços tremeram com os últimos efeitos da adrenalina.
– Você quer dizer, eu matei. Foi eu que fiz, não você.
Ah, inferno. Malditos anjos. Eu não precisava dessa porcaria agora com
todo o resto acontecendo.
Tyrius suspirou alto.
– Você sabe o que isso significa, não sabe?
Eu bufei.
– Que minha vida é uma merda?
– Que você foi oficialmente acusada de assassinato. – A voz de Tyrius
estava distante enquanto ele olhava para o chão e o que restou do meu
círculo de sangue. – A Legião virá atrás de você por ter matado o arcanjo.
– Foi legítima defesa – rebati. Uma onda de raiva cresceu em mim, mas
eu rapidamente a reprimi, não querendo direcionar minha raiva para Tyrius.
– Não conforme as testemunhas deles.
– Danem-se suas testemunhas. Nós fomos as testemunhas.
Lembrava daquela noite como se fosse ontem. Além de Degamon e seus
minions, não havia mais ninguém na Boca do Diabo, uma das atrações
abandonadas no parque de diversões de Fox Island, onde matamos o
arcanjo Vedriel.
– Eles estão mentindo – eu disse, sacudindo a cabeça. Isso não estava
cheirando bem, fedia podridão. Eu tinha que encontrar uma maneira de
provar a eles que eu era inocente, ou estava praticamente morta. – Passei
minha vida adulta inteira com o conselho tentando me acusar de coisas que
eu não fiz, e agora vem a Legião de anjos tentando armar pra cima de mim
e me prender quando eu estava apenas tentando me defender.
– É uma merda, eu sei – disse Tyrius. – Contudo, não podemos parar
agora. Precisamos seguir em frente.
– Isso é tudo que tenho feito – eu disse. – Siga em frente. Continue,
Rowyn. Você consegue. Infelizmente, parece que tem forças que continuam
me empurrando para trás. Como se eu estivesse fadada ao fracasso.
– Você não está fadada ao fracasso.
– Parece que sim.
Vi-me cerrando os punhos, estava ficando extremamente mal-humorada.
– Eu sei disso – disse o gato calmamente. – Encontraremos uma
maneira de remover essas acusações infundadas, mas até que possamos
provar sua inocência, você não pode mais ficar aqui. Não é seguro.
Um arrepio subiu pelo meu corpo. Afundei no chão, zangada e
deprimida.
– Que ótimo – eu disse, olhando para o nada. Eu sabia que Tyrius estava
certo. A qualquer minuto poderia haver outro anjo seguido de outro anjo,
faminto por uma maldita promoção.
Meu peito se contraiu enquanto eu lutava contra as lágrimas. Jax ainda
era prisioneiro de Degamon. Eu tinha que trazê-lo de volta. Assim como
Tyrius disse, o ar do Submundo era tóxico para não-demônios, então Jax
não tinha muito tempo.
– Você sabe que haverá mais. – O medo estava estampado em seus
olhos, o canto dos seus olhos brilhava enquanto ele se aconchegava ao meu
lado. – E eles não vão parar até que você esteja morta.
– Eu sei.
A Legião dos anjos pensava que eu era uma assassina e queria me
matar. O que poderia ser pior?
Meus olhos dispararam para o círculo, para o molho de chaves em cima
do espelho quebrado. A invocação não funcionou. Mas eu não tinha falhado
com Jax, pelo menos não ainda. A esperança que me invadiu, era quase
dolorosa.
Ainda havia uma chance de salvá-lo e eu sabia exatamente o que fazer.
Capítulo 30

– R owyn, você sabe que eu a amo, mas isso é muita idiotice! –


exclamou Tyrius. O estresse em sua voz só intensificou as batidas do
meu coração. – Você esqueceu o que aconteceu da última vez?
– Claro que não. Eu estava lá – Meu coração batia forte no peito como
se eu tivesse acabado de terminar uma corrida de cem metros, e não era de
empolgação.
– Merda, estou suando como um maldito porco – sibilei. – E agora eu
provavelmente estou fedendo.
– É verdade – concordou o gato. – Suor de estresse.
– Suor de estresse.
– Então tente relaxar antes de ter um ataque cardíaco – disse o demônio
baal.
– Não consigo relaxar, Tyrius. Você estava lá. Você viu o que aconteceu
com Jax. Tenho de fazer alguma coisa. O plano A não funcionou.
– Então, vamos para o Plano B.
– Sim.
– Ainda podemos dar a volta e descobrir outra maneira de salvar Jax. –
O hálito quente de Tyrius fez cócegas na minha bochecha. – Nós nem
consultamos o padre ou o vampiro. Tenho certeza de que, se juntarmos
nossas cabeças, poderíamos pensar em algo muito menos suicida.
O corpo de Tyrius balançava em meus ombros enquanto eu caminhava
pela rua em ritmo acelerado.
– Eu já passei por muita coisa – eu disse, admirando a capacidade do
gato de se segurar sem me perfurar com suas garras afiadas. – Essa é a
única maneira. Neste momento, uma dúzia ou mais de demônios estão
torturando-o. Fazendo coisas que eu não consigo nem dizer em voz alta.
Tyrius se encolheu.
– Eu sei.
– Olhe nos meus olhos – eu disse a ele – e me diga que você acha que
devemos deixá-lo sofrer quando temos os meios para salvá-lo.
Os bigodes de Tyrius roçaram meu pescoço enquanto ele sacudia a
cabeça.
– Degamon nunca aceitaria a troca, você sabe disso – disse ele
calmamente. – Provavelmente porque ele quer voltar e pegar você também.
– Eu gostaria de vê-lo tentar – eu disse. – E se isso acontecer, eu estarei
pronta.
– Rowyn – disse Tyrius gentilmente –, estamos correndo um risco
terrível.
– Eu sei – respirei fundo, sentindo um nó no estômago –, mas Jax vale o
risco.
Tyrius mudou de posição em meus ombros.
– Só quero ter certeza de que você sabe o que está fazendo – murmurou
ele baixinho.
– Eu sempre sei o que estou fazendo. Acontece que as coisas nem
sempre saem do jeito que eu quero.
Tyrius estava certo. O que eu havia planejado era suicida, mas não havia
outro jeito. Eu tinha que agir rápido. Cada minuto desperdiçado era mais
um minuto que Jax tinha que suportar as torturas do Submundo.
As lágrimas não derramadas deixaram minha visão embaçada, mas eu
não ia chorar, droga. Agora não. Não com o que eu estava prestes a fazer.
Com o ritmo acelerado, minhas botas batiam na calçada enquanto eu
caminhava sob os fracos raios de sol que atravessava as folhas coloridas
ainda agarradas aos galhos das árvores. A névoa fresca da manhã estava
úmida e agradável, e eu inalei o cheiro de folhas caídas, terra e grama
recém-cortada.
– Essa moeda dos do-endes é curiosa, não é? – disse Tyrius, com uma
voz cuidadosa e um pouco incerta.
Virei a cabeça para olhá-lo.
– O que você quer dizer?
Tyrius ficou em silêncio por um momento.
– Estranho como as coisas aconteceram, né? Repassei os
acontecimentos repetidamente na minha cabeça, tentando montar o quebra-
cabeça.
– Fala logo, Tyrius. Não consigo ler mentes.
– Bem, eu sei que você se odeia por aceitar o trabalho da Fada dos
Dentes – ele disse, e eu o senti se aproximando um pouco mais – e como
você vai se culpar pelo que aconteceu, para sempre.
– Sim, e…
– Contudo, se você não tivesse aceitado o trabalho – ele acrescentou,
com uma voz pensativa –, nunca teria entrado em Elysium.
– Onde você quer chegar? – resmunguei, diminuindo um pouco meu
ritmo.
– E se você não tivesse entrado em Elysium, não teríamos nos perdido e
não teríamos encontrado os do-endes, que ainda são uns pilantras para mim.
Enfim, se não tivéssemos conhecido eles, você nunca teria conseguido essa
moeda. Ele respirou fundo e disse – Sem essa moeda mágica…
– Eu estaria morta. – Um calafrio cortante como um vento de inverno
percorreu meu corpo.
– Exatamente – disse Tyrius alegremente. – Agora, tente pensar sobre
isso.
Droga. Não tinha pensado nisso. Quero dizer, tinha passado pela minha
cabeça algumas vezes. Quanto mais eu pensava a respeito, mais assustada
eu ficava.
Ficamos em silêncio enquanto eu continuava caminhando pela rua. O ar
frio entrava e saía facilmente dos meus pulmões enquanto eu andava,
mantendo um ritmo constante. Meu coração disparou dentro do meu peito e
senti como se estivesse à beira de um penhasco.
Estávamos quase lá.
– Eu não posso acreditar que a Legião ofereceu uma recompensa pela
sua cabeça – comentou o gato após um momento de silêncio. – Isso é
loucura. Significa que, a qualquer minuto, dia ou noite, dormindo ou não,
um anjo pode aparecer em qualquer lugar e pegá-la.
– Ou me matar. – Estremeci com o pensamento.
– Porém, isso não faz sentido – disse o gato. – Não deveria haver um
julgamento ou algo assim? Como é possível que todos em Horizon a
queiram morta?
– Você ouviu o que aquele anjo disse – argumentei. – Talvez aqueles
outros arcanjos dos quais Vedriel nos falou tenham mentido para a Legião.
Pelo que sabemos, eles disseram que eu era uma cria de demônio e queria
matar todos os arcanjos. Ele queria que eu morresse e os outros também.
Eles vão inventar qualquer desculpa para me matar.
– Não é justo – sibilou o gato. – Quando é que vamos ter descanso?
Estamos tentando fazer o bem aqui, pessoal. Dá um tempo.
Eu ri.
– Você é tão fofo quando está com raiva.
Tyrius estufou o peito.
– Querida, eu nasci bonito.
Meu sorriso desapareceu quando minhas botas atingiram a passarela de
cascalho. Minha pressão subiu perigosamente. Droga. Meu rosto
provavelmente estava vermelho tomate, mas não havia mais nada que eu
pudesse fazer.
Com o pulso latejando em meus ouvidos, eu me aproximei da porta e
toquei a campainha. Senti um roçar de pelos em minha bochecha quando
Tyrius saltou dos meus ombros.
– O que você está fazendo?
– Preciso de espaço para me mexer se houver uma briga – disse o gato
enquanto se agachava.
Minha resposta ficou presa na minha garganta quando as portas da
frente se abriram.
Uma linda mulher com cabelos cor de mel apareceu na soleira. Ela
usava um vestido preto justo e tinha uma expressão de surpresa no rosto.
Seus grandes olhos verdes me fitaram por um momento. Eles eram frios e
continham uma profunda repulsa. Então, ela inclinou sua taça de vinho tinto
com cuidado e se encostou na porta.
– Ora, mas que surpresa – disse a Sra. Spencer enquanto cruzava as
pernas. – Você é a última pessoa que eu esperaria ver na minha porta,
especialmente depois do seu péssimo comportamento, demônio. – A mulher
disse a última parte com um sorriso, como se isso lhe desse um imenso
prazer.
Engoli em seco, ignorando o insulto.
– Não tão surpresa quanto eu, acredite. – Eu me segurei, esperando não
ter cometido um erro ao vir aqui. – Posso entrar? Preciso falar com você
sobre Jax.
Por um momento, ela apenas me observou. Um leve vinco se formou
em seu rosto perfeito quando a mulher percebeu a preocupação em minha
voz. Então, em um tom de compreensão, ela perguntou:
– Aconteceu algo com ele?
Apesar da minha transpiração, senti um frio na barriga.
– Sim. Algo ruim. Algo muito ruim.
A mãe de Jax se afastou da porta.
– Então, é melhor você entrar – disse ela. Seus olhos desceram para
Tyrius e seus lábios se abriram.
– Não se preocupe – disse o gato. – Eu já sei, vou esperar aqui fora com
os vasos de flores.
A Sra. Spencer ergueu sua sobrancelha bem cuidada, mas não disse
mais nada enquanto girava nos calcanhares.
Segurando minha respiração, eu a segui até seu covil.
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REINOS DIVIDIDOS
Donzela de Aço
Rainha das Bruxas
Magia de Sangue
Sobre A Autora

KIM RICHARDSON é uma autora best-seller do USA Today de fantasia urbana, fantasia e livros
para jovens adultos. Ela mora no leste do Canadá com o marido, dois cachorros e um gato velhinho.
Os livros de Kim estão disponíveis em edições impressas e as traduções estão disponíveis em mais de
sete idiomas.

Para saber mais sobre a autora, acesse:

www.kimrichardsonbooks.com

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