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dom

tony bellotto

Dom
Copyright © 2020 by Tony Bellotto

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa
André Hellmeister

Ilustração de capa
Channarong Pherngjanda

Preparação
Ciça Caropreso

Revisão
Jane Pessoa
Valquíria Della Pozza

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção;


não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Bellotto, Tony
Dom / Tony Bellotto. — 1a ed. — São Pau­lo : Com­pa­nhia
das Letras, 2020.

isbn 978-85-359-3326-0

1. Ficção brasileira. i. Título.

20.33495 cdd-B869.3
Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura brasileira B869.3
Cibele Maria Dias — Bibliotecária — crb-8/9427

[2020]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz s.a.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 —São Paulo —sp
Telefone: (11) 3707-3500
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Sumário

Rio, 15 de setembro de 2005, 9

i. lourinho, 11
ii. boneco doido, 79
iii. pedro dom, 163
iv. ressurreição, 235

Rio, 15 de setembro de 2009, 337

Nota do autor, 339


Ah, não! Por mais exaltado, pecador e rebelde o coração
oculto no túmulo, as flores que crescem sobre ele olham
para nós serenas, com seus olhos inocentes: não nos falam
apenas de uma paz eterna, da grande paz da natureza “indi-
ferente”; falam também da reconciliação eterna e da vida
infinita…
Ivan Turguêniev, Pais e filhos
Rio, 15 de setembro de 2005

A Yamaha xt rompe o silêncio da madrugada. Sandrinho


Bombom olha para os lados da avenida vazia, na garupa Pedro
Dom mantém a visão fixa nas lâmpadas dos postes. Não se preo-
cupam com a viatura de polícia estacionada à entrada do túnel:
com os faróis apagados, os policiais dentro do carro parecem
dormir.
Enquanto Pedro Dom observa as lâmpadas consumirem-se
num fluxo leitoso, o celular vibra dentro da mochila, mas o ba-
rulho da moto, amplificado pelas paredes de pedra, não deixa
que o toque seja notado. Pedro Dom mal escuta o grunhido do
companheiro, abafado pela reverberação hipnótica: “Merda!”.
Um cerco da polícia fecha a saída do túnel Rebouças.
Sandrinho Bombom freia, os pneus guincham, homens blo-
queiam a via armados de escopetas e fuzis. Os dois olham para
trás: a viatura que parecia desatenta se aproxima com as sirenes
ligadas.
Percebem que caíram numa armadilha.
Depois de um instante de hesitação, Sandrinho Bombom

9
acelera, Pedro pega a granada na mochila, arremessa. Ouve-se a
explosão, os homens da polícia se agacham. Os dois avançam
pela fumaça e conseguem sair do túnel. Pedro leva um tiro no
pé e outro no ombro, Sandrinho é atingido no braço. A Yamaha
perde o equilíbrio depois que um pneu é perfurado por uma
bala. Os policiais se recompõem, entram nas viaturas, acionam
os motores.
“Vou dar linha”, diz Pedro numa curva próxima da lagoa
Rodrigo de Freitas. “Eles estão atrás de mim.”
Bombom diminui a velocidade, Pedro salta da moto, corre
mancando até a calçada e larga o capacete sobre uma moita de
coroas-de-cristo. Avalia as possibilidades. Na portaria do edifício
Bauhaus o porteiro dorme sentado com a cabeça apoiada na mesa.
Uma viatura se precipita, Sandrinho se desequilibra e cai, a
Yamaha desgovernada bate numa mureta de proteção no meio
da rua. Policiais imobilizam o rapaz no asfalto, arrancam seu
capacete, apontam as armas: “Cadê o Dom?”.
Os homens chegam à recepção do Bauhaus e notam no
chão o rastro de sangue que conduz até as escadas.
Pedro não sente mais a dor no pé, adormecido. O ombro em
brasa. Salta os degraus de dois em dois e no terceiro andar vê uma
lixeira no fundo do corredor. Os lugares fechados sempre o an-
gustiam, mas Pedro Dom sabe que não tem mais aonde ir. Es-
preme-se no escuro com a arma na mão, o coração pulsando. A
porta da lixeira é aberta com um estrondo e a luz invade o cubí-
culo com uma estranha sensação de alívio.

10
i
Lourinho
1. niterói, 1993

Ele gosta de atravessar a ponte de olhos fechados, a cabeça


para fora da janela do ônibus. Imerso no rugido do vento, o sol
desenha formas luminosas em suas retinas. Quando abre os
olhos, os passageiros parecem irreais como os zumbis dos filmes
da madrugada. No escuro um mundo de calor e vento salgado
soa seguro e confiável. Fica horas em frente ao muro desenhando
o rosto de um menino que expele labaredas pela boca escanca-
rada. Ele agita o spray de tinta com a sensação de uma vitória
secreta: “Terminei!”.
“Então tem que assinar”, afirma Verena. “Grafiteiro sempre
assina.”
“Pedro Machado. Ou Pedro Lomba. Pedro Neto?”
“Horrível.”
Um garoto trepado no muro observa a cena e sorri enquan-
to o vento balança seu cabelo sobre o crepúsculo incandescente.
“É o meu nome, quer que eu assine o quê?”

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“Você é bobo, Pedro? Grafiteiro tem que ter um pseudôni-
mo senão a polícia prende o cara”, diz a menina. “Sabia que é
proibido pichar muro?”
“Grafitar. Pseudo o quê?”
“Pseudônimo. Um apelido. Como nome de artista.”
“Verdade”, palpita o garoto no muro, se intrometendo na
conversa. “Grafiteiro tem que ter nome de artista”.
“Claro”, diz Pedro. “Grafiteiro é artista.”
“Dom Pedro é maneiro”, diz o garoto.
“Dom Pedro é nome de rei, não gosto.”
“É. Tu não tem cara de rei.”
“Tem cara de príncipe”, diz Verena. “Pedro Príncipe.”
“Tem cara de sapo”, palpita o garoto. “Pedro Sapo.”
“Sapo o cacete!” Pedro vira-se para Verena: “Príncipe tam-
bém não. Pedro Príncipe dá impressão de um cara delicado”.
“Pedro Dom”, diz Verena.
“Dom Pedro ao contrário?”
“Não. Pra mostrar que Pedro tem um dom, um talento es-
pecial.”
“Pedro Dom, Pedro Dom, Pedro Dom, Pedro Dom…”, ele
repete, como se cantasse um rap.
“Vamos subir?”, interrompe Verena. “É tarde. A mamãe não
gosta que a gente fique aqui depois que anoitece.”
“A mamãe não gosta que a gente fique aqui depois que anoi-
tece…” Pedro esganiça a voz sacaneando a irmã. “Vai você. Pre-
ciso acabar o meu grafite.”
Verena sai em direção ao prédio, o garoto desce do muro.
“Desculpa a brincadeira do sapo. Foi mal.”
“Você é que tem cara de sapo.”
“Nem todo mundo nasce pra príncipe. Maneira essa picha-
ção, um moleque soltando fogo pela boca…”

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“Não é pichação.”
“Eu sei, grafite.” O garoto tira um baseado do bolso, acende
e oferece para Pedro: “Fogo pela boca”.
“Quero não. Meu pai foi policial.”
“Opa. Sujou.”
“Foi, não é mais. Mas sempre diz que maconha não presta.
É coisa proibida.”
“Pichar muro também.”
“Grafitar.”
“Teu pai fala isso porque não conhece a realidade, é um
alienígena.”
“Meu pai não é alienígena.”
“Maconha não faz mal. Nos Estados Unidos tem gente que
usa como remédio. E na Jamaica é uma religião. Se liga em Bob
Marley? Maior maconheiro da história. O papa também fuma,
existem plantações nos subterrâneos do Vaticano. Na Disneylân-
dia eles cultivam em porões climatizados. Meu pai fuma e é
trabalhador. Eu fumo e todo mundo fuma. Até os canas fumam.
Vai ver teu pai fuma mas não te conta. Tu é moleque, não co-
nhece as coisas da vida. Tem quantos anos?”
“Doze.”
“Eu fumo desde os onze”, e oferece novamente a bagana.
“Depois vai se arrepender. O bagulho é do bom. Do Dom…”
Pedro resiste, mas acaba aceitando. A primeira tragada é
desajeitada e ele tosse. O garoto pega o baseado da mão de Pedro
e traga, mostrando como se faz. Na segunda tentativa Pedro se
sai melhor.
“Vai grafitar melhor doidão, vai por mim. Maconha inspira.
Quando quiser me dá um toque.” Aponta a favela: “Ali tem de
montão”.
Pedro agita o spray e assina Pedro Dom no grafite. Depois

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fita o morro iluminado em que o vento balança árvores e estufa
roupas nos varais.

Em 1971 Dan se deslocava lentamente debaixo d’água.


Munido de máscara de mergulho, tubo de oxigênio e nada-
deiras, movia-se em ritmo constante, impelindo o corpo para a
frente enquanto bolhas de ar escapavam de seu nariz até desapa-
recer em minúsculas explosões na superfície. Dan levava uma
câmera fotográfica submarina e se aproximava de caixas amarra-
das sob uma boia.
Ele as fotografava.
Quando voltava à tona, tirava a máscara e fazia sinal para o
barco ancorado a cem metros. Havia duas mulheres a bordo. Elas
estavam com binóculos e rádios de comunicação.
Tinha de tudo no serviço de informação. Ou núcleo de pes-
quisa, como também era conhecido. Todo tipo de agente. Quan-
do queriam prender um traficante idiota, desses que querem
comer todo mundo, punham uma mulher deslumbrante no ca-
minho dele. Quando queriam o contrário, que a agente passasse
despercebida, infiltravam uma mulher sem atrativos aparentes.
Dan era içado para dentro do barco. Entregava a câmera
fotográfica a uma das agentes, enquanto a outra fazia contato
com a polícia pelo rádio.
Ao amanhecer, um barco pesqueiro ancorava junto da boia.
Homens saltavam, desamarravam as caixas e as transportavam
para a embarcação. Logo que partiam percebiam a aproximação
de uma lancha da Polícia Federal. O barco pesqueiro tentava
fugir, mas era alcançado pela lancha da polícia, mais veloz. Po-
liciais armados rendiam os homens do pesqueiro e ordenavam
que eles abrissem as caixas que continham cocaína cuidadosa-

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