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A Felicidade Segundo Jesus - Russel Shedd

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RUSSELL P.

SHEDD

a
felicidade
segundo Jesus
Quem não deseja ser feliz? A busca
<la felici<lade. camas vezes confundida
com sucesso pessoal. prosperidade
material e oulrm simulacros desses
tempos pós-modernos, sempre foi
um dos remas mais discmidos
pda humanidade.

Ela cambém é o Lema discutido pelo


autor deste livro. No entanto, longe de
ser mais uma Jessas obras de auto-
ajuda que tamo empobrecem esse
tema tão rdevame, a presente obra
tem uma proposta toralmence
dili:rente. Em suas reflexões sobre as
bem-avemuranças, o autor procura
nos aprcsencar a felicidade segundo
uma outra perspectiva, e a bem da
verdade, a ünica realmente
consistente: a perspectiva de Jesus.
E é iusc;1menre e.ssa perspectiva,
embasada nos valores do Reino. que
po<lerá nos ajudar a compreender o
que significa a verdadeira felicidade.
a
felicidade
segundo Jesus
RUSSELL P. SHEDD

a
felicidade
segundo Jesus

REFLEXÕES SOBRE AS BEM-AVENTURANÇAS

TRADUÇÃO
GORDON CHOWN

0•
VIDA NOVA
© 1998 Edições Vida Nova

1." edição: 1999


Reimpressões: 2000, 2001, 2005, 2008 (capa nova), 2011

Todos os direitos reservados por


SOCIEDADE RELlGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA,
Caixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970
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meios (mecânicos, eletrônicos, xerográficos,
fotográficos, gravação, estocagem em banco de
dados, etc.), a não ser em citações breves
com indicação de fonte.

Printed in Brazil /Impresso no Brasil

Coordenação de produção • ROGER L. MALKOMES


Revisão • THEÓF1LO J. VIEIRA E
ROBINSON MALKOMES
Diagramação • ALEXANDRE Luís ANDRADE
Capa • Juuo CARVALHO
Coordenação editorial • ROBINSON MALKOMES

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Shedd, Russell P., 1929-


A felicidade segundo Jesus : reflexões sobre as
bem-aventuranças / Russell Philip Shedd ;
[tradução Gordon Chownl]. - São Paulo : Vida Nova, 1998.

Bibliografia.
ISBN 978-85-275-0261-0

1. Bem-aventuranças 2. Felicidade - Ensino Bíblico


3. Jesus Cristo - Ensinamentos 4. Sermão da Montanha
5. Vida cristã L Título.

98-4476 CDD-226.93

Índices para catálogo sistemático

1. Bem-aventuranças : Sermão da Montanha :


Evangelhos 226.93
Conteúdo
~

Prefácio dos Editores


7
Introdução
9
A Felicidade dos Humildes de Espírito
15
A Felicidade dos que Choram
29
A Gloriosa Felicidade dos Mansos
45
A Felicidade dos que Têm Fome e Sede de Justiça
61
A Felicidade dos Misericordiosos
75
A Felicidade dos Limpos de Coração
85
Felizes os Pacificadores
101
A Felicidade dos Perseguidos por Causa da Justiça
113
Conclusão
125
Prefácio dos Editores
~

Dentre as dezenas de contribuições que o Dr. Shedd já pres-


tou àteologia brasileira por meio da palavra escrita, apresentamos
agora A Felicidade segundo jesus, sua exposição da parte mais
conhecida do Sermão da Montanha. Os que já leram outras de
suas obras, como A Adoração Bíblica, Nos Passos de jesus, Andai
Nele, Tão Grande Salvação, Lei, Graça e Santificação, O Mundo, a
Carne e o Diabo, A Solidariedade da Raça, Alegrai-vos no Senhor,
A Justiça Social e a Interpretação da Bíblia, podem testemunhar
que seus escritos têm o dom de aliar profundidade de idéias e
simplicidade na comunicação. A Felicidade segundo Jesus não foge
a essa regra, conforme verificará quem se lançar à leitura das
' . a segmr.
pagmas
Pelo fato de conhecer bem a cultura brasileira e a alma do
nosso povo, os escritos do Dr. Shedd trazem embutido um sabor
todo verde e amarelo. É gratificante ler suas palavras tão bem
escolhidas como, por exemplo, quando se refere ao publicano com
a alma "ensopada de pecados". A Felicidade segundo jesus fala bem
de perto ao coração do brasileiro também pelos muitos exemplos
que trazem como cenário cidades e locais muito familiares como
a cidade de São Paulo (numa alusão que ele faz às chuvas torrenciais
do verão paulistano), a Praça da Sé (na capital do estado de São
Paulo, famosa pela presença de crianças abandonadas) e Cambu-
quira (em Minas Gerais, ao mencionar uma conferência bíblica
ali realizada). Esses detalhes fazem com que nos sintamos em casa
durante a leitura.
8 ._,.., A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

Edições Vida Nova deve sua própria existência ao trabalho


que durante anos o Dr. Russell Shedd desenvolveu como missio-
nário, primeiramente em Portugal, e agora há mais de 35 anos no
Brasil. Sua visão de colocar àdisposição dos falantes de português
uma literatura teológica sadia e de nível acadêmico está hoje mais
do que concretizada e solidificada pelo ministério da Vida·Nova.
Seus mais de 220 títulos já impressos conferem-lhe a posição de
liderança nacional como publicadora de obras acadêmicas de
teologia evangélica. Como o próprio Dr. Shedd sempre costuma
dizer, é somente a Deus que toda glória deve ser conferida. Mas
gostaríamos de acrescentar a isso que somos infinitamente gratos
a Deus e o glorificamos pelo fato de um dia ter chamado um
servo tão fiel, humilde e consagrado para trabalhar entre os
brasileiros. A Deus toda glória, e ao Dr. Shedd toda gratidão da
igreja brasileira! '

Robinson Malkomes, editor


Inverno de 1998
Introdução
~

As bem-aventuranças são a introdução ao Sermão da


Montanha, que cristãos e pagãos reconhecem igualmente como
uma das declarações mais importantes, em todos os tempos, do
caráter moral. O significado que Jesus pretendia transmitir abs
seus discípulos - e, por extensão, a n6s também - precisa de
interpretação e de aplicação séria ao nosso viver diário. Afinal de
contas, foram os discípulos que se aproximaram de Jesus quando
ele se assentou diante das multidões (Mt 5.1). A eles Jesus escolhera
para proclamarem a sua salvação e estabelecerem a sua igreja. Não
é aqui que se deve procurar um cristianismo popular, feito sob
medida para as vicissitudes populares, que se interessa em adquirir
benefícios materiais e bem-estar físico. O alvo do sermão é a
perfeição que reflete a santidade de Deus (Mt 5.48). As bem-
aventuranças resumem e destilam as qualidades que Deus conclama
seus filhos a porem em prática na vida na comunidade e no mundo.
Anteriormente, Jesus chamara quatro dos seus discípulos
para que deixassem seus barcos de pesca e para fazer deles
"pescadores de homens" (Mt 4.18, 19). Abandonaram seus meios
de obter o sustento material garantido, mas não conseguiram tão
facilmente deixar para trás o seu caráter. Jesus, ao convidá-los a
segui-lo, pretendia iniciá-los num período de transformação
interior necessária.
Da mesma forma que Moisés trouxe do monte Sinai os
mandamentos escritos pelo dedo de Deus, Jesus assentou-se, noutra
montanha, para ensinar os princípios fundamentais do Reino (Mt
10 ._,,,., A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

7.24-27). As bem-aventuranças sintetizam a lei de Cristo, da mesma


forma que os Dez Mandamentos epitomam a lei de Moisés.
Somente um compromisso sério com Jesus como Senhor e
Salvador faz desse sermão um código moral e espiritual sério.
Realmente, as exigências que Jesus apresenta são tão contundentes
e abrangentes que várias interpretações já foram postuladas para
esse sermão, com a intenção de abrandar ou anular essas exigências.
Alguns dispensacionalistas, no passado, relegavam-no ao milênio,
quando, então, os corações humanos seriam mais brandos e
dispostos a seguir os ensinos do Rei Jesus.
Leo Tolstoy, escritor russo de renome, procurou implantar
os ideais do sermão numa colônia, um tipo de encrave cristão
dentro do mundo caído. Seu sonho não se realizou. Já faz muito
tempo que os teólogos liberais apelam ao sermão para exemplificar
o ensino maravilhoso de Jesus. Supunha-se que semelhante idea-
lismo criaria o modelo para aqueles que quisessem implantar o
Reino de Deus na terra. Duas guerras mundiais desmascararam o
mal radical no coração humano e a futilidade dos esforços huma-
nos que visam eliminar o egoísmo, quer individual, quer coletivo.
Albert Schweitzer, teólogo alemão de renome e missionário
em Lambarene, na República do Gabão, achava que o sermão
refletia a ética interina de Jesus. Conforme a teoria de Schweitzer,
no começo do século xx, esse sermão tratava de atitudes e ações
a serem adotadas para o período de crise que Jesus previa como
um prelúdio para a vinda do Reino que ele buscava estabelecer.
Mas (segundo essa teoria) Jesus fracassou, pois o Reino não passou
a existir na realidade. A ética radical do Reino foi repudiada. Se
Schweitzer tivesse razão, os historiadores e os antiquários seriam
os que mais se interessariam pelo estudo desse sermão. 1
Todos aqueles, porém, que confiam na Bíblia para receberem
as instruções divinas para a sua vida, evitarão entrar em qualquer
um desses becos sem saída. Para tais pessoas, esse sermão representa
as exigências legítimas do Reino de Deus. É aqui, mais do que em
Introdução ~ 11

qualquer outro lugar, que procurarão conhecer os ideais que Jesus


Cristo ensinava. Talvez seja verdadeira a declaração de John Stott,
feita diante da Convenção de Keswick de 1972, de que esse sermão
é a parte mais conhecida, mas possivelmente a menos seguida,
dos ensinos de Jesus. Mesmo assim, ela descreve os verdadeiros
"filhos do reino", ou seja: aqueles que, pela graça, foram regene-
rados pelo Espírito Santo üo 3.6). É possível que nunca tenhamos
conhecido alguém que vivesse perfeitamente à altura dessas
exigências, mas nem por isso o sermão deixa de ser o padrão
divino para hoje e para todos os tempos. Esse sermão é o código
de santidade promulgado por Deus.
William L. Pettingill, um dos principais colaboradores da
primeira edição da Bíblia de Scofield, entendia que o Sermão da
Montanha tinha o propósito de descrever a vida durante a reino
milenar. Alegava que esse sermão não era o caminho de salvação
para os pecadores. "Nem é a regra de vida para os cristãos ... O
Sermão da Montanha é pura lei, e o cristão não está debaixo da
lei, mas da graça." 2 Depois de ter excluído tanto os Ímpios quanto
os fiéis, não lhe restou outra escolha senão relegar esse sermão ao
milênio futuro. 3
Pettingill estava errado, com toda a certeza. Mateus escreveu
para as igrejas dos seus próprios dias e tempos - para a era da
graça. Jesus não fez uma exposição da vontade de Deus para um
futuro distante, mas para a igreja, o povo da Nova Aliança. A
promessa segundo os profetas seria cumprida mediante a vinda
do Espírito. A lei de Deus seria escrita no coração dos crentes.
Assim como a lei corretamente entendida não podia ser observada
dependendo-se de esforço próprio, esse sermão envolve a graça e
o perdão. Jesus declarou que, para aqueles cuja justiça não exceder
a dos escribas e dos fariseus, a porta de entrada no Reino
permanecerá fechada (Mt 5.20). Com isso queria dizer que a justiça
aos próprios olhos não era a essência da lei, nem é ela o âmago
desse sermão. Jesus, mediante a sua morte e ressurreição, atribui a
12 .._.., A FELICIDADE SEGUNDO jESUS

sua justiça a todos quantos nele crerem (1Co 1.30). Deve haver,
no entanto, um reflexo da santidade interior que o Espírito Santo
implanta naqueles que o conhecem. Há mandamentos a serem
obedecidos por aqueles que declaram que Deus neles habita Go
14.23). C. R Hogg e J. B. Watson declaram: "Nada existe no sermão
que não se ache noutra forma nas epístolas; e, realmente,
pouquíssima coisa que não se ache implícita ou explicitamente
naquelas escritas pelo apóstolo enquanto era prisioneiro em
Roma". 4 As verdadeiras características dos "filhos do reino" são
demonstradas nas bem-aventuranças mais claramente do que em
qualquer outra parte do sermão. Nesse trecho, não há maneira de
deixar despercebida a contracultura do caráter do Rei vivendo a
sua vida nos seus discípulos e através deles. Aqui descobrimos a
"imagem" do Filho de Deus (cf. Rm 8.29) e a perfeição que o Pai
exige dos seus filhos (Mt 5.48). Devemos imitar essa viva descrição
de Cristo. Somente ele pôs em prática na carne humana a bem-
aventurança das bem-aventuranças, pois somente ele exemplificou
com perfeição todas elas. Nisso conseguimos captar melhor a
intenção de Paulo ao escrever: "Mas revesti-vos do Senhor Jesus
Cristo e nada disponhais para a carne ... " (Rm 13.14).
Antes de convidar o leitor a notar a riqueza de significado
em cada uma das bem-aventuranças, quero ressaltar algumas
considerações. Em se tratando da unidade das bem-aventuranças,
não há dúvida de que Stott tem razão. As oito bem-aventuranças
não descrevem cristãos diferentes que possuem uma ou outra dessas
características. Pelo contrário, visam caracterizar todos os segui-
dores genuínos de Cristo. As bem-aventuranças não são como
presentes dados aos misericordiosos, ou humildes, mas que, entre-
tanto, não são mansos. O cristão que possui uma das bem-aventu-
ranças deve possuir todas elas.
Cada uma das oito descrições é de uma qualidade espiritual
fundamental, mais do que uma representação de realidades físicas
ou políticas. Isso não significa, no entanto, que essas virtudes t~m
pouca ou nenhuma aplicabilidade ao mundo real e à nossa
Introdução ~ 13

existência de todos os dias. Pelo contrário, é exatamente por serem


espirituais que são de suprema importância em todos os
relacionamentos e atitudes humanos. Assim como o Verbo (Logos)
que se tornou carne a fim de tornar real, tangível e visível a glória
de Deus, as características espirituais do cristão "bem-aventurado"
devem ser reconhecíveis. Por certo, é justamente por isso que as
bem-aventuranças parecem contradizer o bom-senso. Nelas, a
cidadania celestial reveste-se, na terra, de expressões visíveis (cf.
Fp 1.27; 3.20; 1Pe 1.1, 17).
Devemos entender que as bem-aventuranças proclamadas
por Jesus são bênçãos verdadeiras. A palavra "bem-aventurado"
(makarios, em grego) significa "feliz", não por causa das circuns-
tâncias externas, mas por causa da fé mediante a qual o crente
recebe antecipadamente os benefícios que Deus lhe prometeu (Hb
11.1). Jesus promete aquela alegria espiritual que também conhece-
mos como fruto do Espírito Santo (Gl 5.22). As bênçãos, assinala-
das sempre na segunda parte de cada bem-aventurança, descrevem
os privilégios de pertencer ao reino de Deus e de gozar dele. Cada
uma das bem-aventuranças deve ser considerada parte essencial
de um todo. Quem, portanto, recebe uma das bênçãos aqui prome-
tidas deve desfrutar de todas elas.
Desejo, agora, explicar aos meus leitores o que penso ser o
significado de cada uma das bem-aventuranças e oferecer minha
tentativa de aplicá-las de modo relevante.

NOTAS
1 Veja John F. Genung: "Proverbs", International Standard Bible Encyclopaedia.

G. Rapids: Eerdmans, 1939, IV, p. 2470.


2
W L. Pettingill: The Gospel of the Kingdom. Findlay, Ohio, Fundamental
Truth Pubs., s.d., p. 57, 58.
3 Cf. Donald Burdick: "The Sermon on the Mount: Eschatological Ethic or

Present Ideal" na série de estudos para o Seminário Teológico Batista


Conservador de Denver (EUA), s.d., p. 2. .
4 On the Sermon on the Mount, Londres: Pickering and Inglis, 1947, p. 16, 107-

127, citado em D. Burdick, ibid., p. 8.


1

A Felicidade dos
Humildes de Espírito
~

Há mais de três séculos, Blaise Pascal, inventor da calcula-


dora, observou que os homens buscam continuamente a felicidade.
Podem até mesmo se sentir infelizes ao ponto de se suicidar, mas
nem por isso deixam de buscar mais felicidade. Jesus nos faz
lembrar que a felicidade não é algo que existe fora de nós mesmos.
Trata-se de uma qualidade ou atitude interior. O significado do
radical de "bem-aventurado" fica próximo das nossas palavras
comuns "feliz", "afortunado". Segundo parece, a busca insaciável
do homem por felicidade não pode deixar de passar pela humil-
dade de espírito. Por que Cristo colocou essa bem-aventurança
em posição de destaque? Thomas Watson respondeu assim a essa
pergunta: "... para demonstrar que a humildade de espírito é a
própria base e alicerce de todas as demais graças que se seguem.
Querer que frutos cresçam sem haver raiz não é diferente do que
desejar todas as demais graças sem esta da humildade". 1
Não é fácil definir a pobreza de espírito, porque é uma quali-
dade rara. A não ser que Deus focalize em nosso coração o seu
Raio X espiritual, nunca chegaremos à condição de verdadeira-
mente humildes de espírito. A palavra grega ptochos (literalmente,
pobre) significa mais do que a mera dependência do trabalho do
indivíduo para ganhar a soma mínima necessária para sustentar a
vida (gr. penes). Pelo contrário, refere-se à humilde condição (ou
indigência) que gera mendigos e crianças de rua. Os humildes
que Jesus tem em vista são os indigentes, em estado de absoluta
16 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

dependência da ajuda de pessoas compassivas. W Barclay parafra-


seia a primeira bem-aventurança de modo desafiador: "Bem-
aventurado o homem que reconhece sua própria debilidade
éxtrema e confia exclusivamente em Deus". 2
Ninguém tem dificuldade para entender o que significa ser
humilde em posses materiais. Esses humildes dependem dos
outros. Não possuem dinheiro nem coisa alguma de valor que
alguém deseje. Podemos citar como exemplo as crianças de rua
em São Paulo. Vivem debaixo das pontes e dos viadutos e nada
possuem que possam dar em troca de alimentos, de vestimentas
ou de moradia. Quando, num certo dia frio de inverno, minha
filha voltou às pressas da Praça da Sé para casa a fim de buscar
roupas para algumas crianças que viviam num "mocó" (abrigo
coletivo debaixo de uma ponte), tinha justos motivos para isso, A
polícia tinha invadido aquele "refúgio", tomado e empilhado todos
os seus pertences e incendiado tudo. Por que os policiais não
confiscaram aqueles pertences como despojos da batalha? Simples-
mente porque tudo aquilo não valia nada para os policiais. Esse
tipo de pobreza é uma condição em que sua vítima não tem nada
para oferecer em troca, porque ninguém deseja algo que seme-
lhante miserável porventura possua.
Semelhantemente, a humildade de espírito descreve a pessoa
humilde que não tem méritos nem obras que satisfaçam ao próprio
eu e que possam ser oferecidos em troca de benefícios que deseja
da parte de Deus. Mas não é possível fechar semelhante negócio
com Deus. Tudo quanto a pessoa possa considerar como crédito
está destituído de valor aos olhos de Deus. Os fariseus, achando-
se ricos de espírito, tinham bastante certeza de que suas boas obras
não somente eram aceitáveis diante de Deus, mas também que ele
lhes daria o seu "reino" em troca de tamanho serviço sacrificial.
Achavam que, de alguma forma, podiam transformar Deus em
devedor e eles mesmos em credores. Nós também, freqüentemente,
enganamo-nos com uma avaliação de nós mesmos como credores
diante de Deus.
A Felicidade dos Humildes de Espírito ~ 17

Na parábola do fariseu e o publicano, Jesus deixou meridia-


namente claro que o valor espiritual das boas ações do fariseu que
orava era intrinsecamente nulo diante de Deus. Visto que lhe
faltava "humildade de espírito", sentiu-se forçado a tentar oferecer
sua moralidade elevada, seus jejuns e suas orações como moeda
corrente no céu (Lc 18.9-11). Deus, porém, não queria aceitar
nada disso. Posto que os fariseus eram, em geral, honrados pela
sociedade religiosa ao redor, parecia natural que pensassem que o
próprio Deus também se agradaria deles Qo 5.44).
O publicano não era assim. Batia no peito, contrito, e nem
sequer ousava levantar os olhos ao céu, temendo provocar a ira
divina contra sua alma, ensopada de pecados. "Sê propício (ou
propiciado no tocante ao meu pecado) a mim, pecador!" (Lc 18.13). ·
Deus correspondeu, justificando-o, assim como fizera com Abraão,
tantos séculos antes (v. 14; Rm 4.3). Ele se deleita em perdoar ao
arrependido, ou seja, àqueles que não vêem dentro de si mesmos
nenhum mérito que Deus deseje. Reconhecem que seus delitos e
rebeldias são tantos que só Deus seria capaz de prover perdão
segundo as riquezas da sua graça (Ef 2.4). Sendo assim, Deus
permanece sendo o credor, e o pecador, o devedor, em completa
dependência de Deus para receber o suprimento contínuo da graça
que perdoa. Watson diz: "Antes de nos tornarmos humildes de
espírito, não temos a capacidade de receber a graça. Aquele que
está ensoberbecido com o conceito da sua própria excelência e
suficiência não está em condições de receber Cristo". 3
A humildade de espírito significa, também, que o cristão
aceita de modo realista o papel de "escravo" em seu relacionamento
com o Senhor. Posto que o credo mais antigo da igreja era a simples
declaração pública "Jesus é Senhor" (Rm 10.9), os primeiros
cristãos devem ter-se considerado escravos que "pertenciam" ao
seu Senhor, pois ele os comprara por um preço infinitamente alto
(lCo 6.19). Porque não pertencemos a nós mesmos, não temos
condições de fazer trocas com Deus. A obediência é um sinal
18 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

indispensável em todo .escravo grato de Jesus Cristo (Rm 1.1; Fp


1.1, grego).

A Humildade de Espírito no Antigo Testamento


É desta maneira que devemos considerar como Israel foi
redimido do Egito. Os Dez Mandamentos são apresentados assim:
"Eu sou o SENHOR, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa
da servidão. Não terás outros deuses diante de mim" (Êx 20. 2,3).
Os israelitas, por terem recebido esse livramento imerecido,
deviam temer ao SENHOR, andar em todos os seus caminhos,
amando e servindo "ao SENHOR[ ... ] Deus, de todo o[ ... ] coração
e de toda a [ ... ] alma" (Dt 10.12). Se Israel tivesse realmente
circuncidado o seu coração em vez de endurecer a sua cerviz,
Deu~ !eria continuado a abençoar o seu povo (v. 16). Um coração
incircunciso e uma cerviz endurecida importam em rejeição da
vontade de Deus. Semelhante indivíduo quer seguir seus próprios
caminhos. "Cada um se desviava pelo caminho" (Is 53.6) é o âmago
da iniqüidade que o Servo Sofredor aceitou carregar sobre si em
nosso lugar. Escolher nosso caminho em vez da vontade de Deus
mostra a "riqueza" de um espírito soberbo.
Deus falou com Salomão em resposta à oração proferida na
ocasião da consagração do templo por ele construído. "Se o meu
povo, que se chama pelo meu nome se humilhar, e orar, e me
buscar, e se converter dos seus maus caminhos, então, eu ouvirei
dos céus, perdoarei os seus pecados e sararei a sua terra" (2Cr
7 .14 .) Aqui, devemos notar de novo que humilhar-se é o primeiro
passo em direção à oração, à busca do Senhor e à conversão. Fal-
tando pobreza de espírito, fica impossível "buscar ao Deus único".
Menos ainda podem-se esperar respostas às orações.
Posto que a essência da rebelião é a soberba, não é de admirar
que Deus coloque a humildade de espírito como questão primor-
dial no culto a ele prestado. "Eis que o obedecer é melhor do que
o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros"
A Felicidade dos Humildes de Espírito ~ 19
(1Sm 15.22). Para Deus, a rebelião é como o pecado de feitiçaria,
e a obstinação, como a idolatria (v. 23). A humildade de espírito
não abre espaço para a rebelião. Conforme disse o pequeno Samuel
no templo, ao ouvir a voz de Deus pela primeira vez na vida:
"Fala, SENHOR, porque o teu servo ouve" (1Sm 3.9). A humildade
de espírito marca a atitude daqueles que eséutam a voz de Deus
com desejo ardente de obedecer a ele. Por outro lado, "Deus resiste
aos soberbos", ao passo que "dá graça aos humildes" (Tg 4.6).
Uzias sofreu as conseqüências de um coração exaltado.
Sentia-se forte e seguro, o que o levou a um pensamento indepen-
dente e rebelde. Essa atitude causou sua própria ruína. Entrou no
templo e insistiu em queimar incenso no altar, o que era proibido
pela lei de Deus a todos que não fossem descendentes de Arão.
Quando o sacerdote Azarias tentou impedir semelhante ação,
Uzias se indignou contra todos os sacerdotes, pois tinha rebeldia
no coração, e isso provocou a ira de Deus contra ele. O sinal que
lhe restou por ter desprezado a ordem de Deus foi a lepra, da qual
padeceu até à morte (vv. 20-21). Não tinha aprendido a lição básica
da vida, registrada no livro de Miquéias: "Ele te declarou, ó
homem, o que é bom e que é o que o SENHOR pede de ti: que
pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente
com o teu Deus" (6.8).

A Humildade de Espírito em Paulo


Deus não permitiu que o apóstolo Paulo se desviasse desse
princípio. A humildade de espírito não é mero aspecto opcional
da vida cristã. "E, para que não me ensoberbecesse com a grandeza
das revelações, foi-me posto um espinho na carne, mensageiro de
Satanás, para me esbofetear, a fim de que não me exalte" (2Co
12.7). Não sabemos até que ponto o apóstolo teria sido tentado a
gabar-se das muitas revelações vindas de Deus, nerri se seu
arrebatamento ao paraíso teria afetado as suas atitudes. O impor-
tante é saber que Deus não lhe deu a oportunidade de cair nessa
20 "Q.' A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

tentação. Podemos ter certeza de que Paulo rogava a Deus pela


retirada do seu espinho na carne, com a mesma confiança que
Pedro sentia antes de se confrontar com a tentação de negar a
Jesus (2Co 12.8; Jo 13.37, 38). Deus, porém, conhece melhor os
corações do que nós conhecemos a nós mesmos Gr 17.9). O
apóstolo aprendeu muito bem essa lição, conforme vemos na sua
epístola a Timóteo: "Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os
pecadores, dos quais eu sou o principal" (1Tm 1.15). Paulo sentia-
se totalmente carente em assuntos espirituais; todo o seu acervo
espiritual vinha do dom gratuito de Deus.

A Soberba é o Principal Obstáculo


à Humildade de Espírito
Muitos cristãos duvidam quando se lhes diz que os pecados
do espírito são um empecilho à vida espiritual muito maior do
que os pecados da carne. 4 Repetidas vezes, a Bíblia ressalta a lição
de que Deus se opõe aos soberbos (lPe 5.5). Foi a soberba que
provocou a queda de Satanás (cf. Ez 28.lSss. e Is 14.12ss.). Por
isso, a linha da batalha entre Deus e Satanás está delineada exata-
mente na altura da rebelião de Satanás. Se nenhuma soberba tivesse
surgido no seu coração, ele não teria caído - podemos ter total
certeza disso. Deve ficar claro para todos que um veio de soberba
percorre todo pecado e rebeldia contra Deus.
No centro da soberba está o egoísmo deliberado. Os cinco
verbos na primeira pessoa do singular, empregados no futuro do
presente do indicativo pela "estrela da manhã", revelam seu
egocentrismo. 5 É assim que a soberba produz a auto-sufici~ncia e
o desafio contra o Criador. Foi a mesma soberba no coração de
Adão e de Eva que os impediu de consultar a Deus a respeito das
mentiras que a serpente lhes contou (Gn 3.1-7). Se tão-somente
Eva tivesse achado dentro de si mesma a humildade de espírito
suficiente para esperar a comunhão com Deus que sempre manti-
nha no fim da tarde, ela teria resistido à tentação. Se Adão tivesse
A Felicidade dos Humildes de Espírito "Q...> 21
adiado sua escolha por tempo suficiente para consultar seu
verdadeiro Senhor, teria percebido quão tola seria a desobediência.
"A soberba é a estima demasiadamente alta em que a pessoa
tem a si mesma, por causa dos seus talentos, das suas realizações,
dos seus méritos ou da sua posição. O humilde de espírito tem
consciência de privilégios, talentos, realizações, méritos ou posição,
mas atribui todos eles a Deus e os submete ao propósito divino
para a sua vida e para a causa de Cristo." 6 Sendo assim, a soberba,
tanto quanto a incredulidade, está na raiz de todo pecado cons-
ciente. Enfrentar a oposição de Deus é apenas parte do problema.
Pense nos danos causados nas relações humanas quando os mais
simples delitos se transformam em muros de separação. Os filhos
de Deus humildes de espírito não ficam constrangidos pela
humilhação. Não esperam nenhum bem da natureza caída que
têm. Quando tal pessoa é galardoada de louvores, fica constrangida,
pois reconhece que não possui nenhuma qualidade nem capaci-
dade que não tenha recebido da parte de Deus (1Co 4.7). Não
pode facilmente imaginar que acumulará qualquer tipo de mérito.
Lembre-se de que Jesus disse aos seus seguidores que, a não
ser que se tornem como criancinhas, não entrarão no reino de
Deus (Me 10.15 e paralelos). Nem todas as características das
crianças são admiráveis, de modo que talvez seja proveitoso dedicar
algum tempo para pensar no que existe de recomendável na
natureza de uma criancinha: 1) As crianças se dispõem a reconhe-
cer publicamente que erraram. 7 As crianças estão bem dispostas
a se esquecer dos seus ressentimentos e receber pessoas que antes
eram inimigas. 2) O que deve nos impressionar é que as crianças
facilmente se deixam ensinar. Estão prontas a reconhecer que não
sabem alguma coisa e, portanto, têm muita capacidade para
aprender. 3) As crianças reconhecem que precisam de disciplina
quando fazem algo errado. 8 Não têm a mesma disposição dos
adultos de tentar justificar suas ações erradas, nem de procurar
contrabalançar suas más ações com ações boas.
22 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

A "síndrome do filho mais velho" na Parábola do Filho


Pródigo deixa claro esse aspecto, pois desmascara a corrupção do
coração endurecido pela soberba. Quando o filho mais velho
resistiu ao convite para participar da festa de boas-vindas ao seu
irmão "perdido", demonstrou a oposição que o orgulho ferido
faz surgir no coração. Ele se considerou maltratado pelo pai gracio-
so... não apenas se recusou a participar da festa do perdão, mas
também criticou amargamente seu pai. " ... todos esses anos tenho
trabalhado como um escravo para o senhor e nunca desobedeci às
suas ordens. Mas o senhor nunca me deu um cabrito para eu festejar
com os meus amigos" (Lc 16.29, NVI). Os pobres de espírito nunca
reagem à graça com orgulho ferido.

Ser Humilde de Espírito


Bonhoeffer entendia que os verdadeiramente humildes
reconhecem sua própria falência espiritual. Tendo contemplado
a bela santidade de Jesus, os humildes de espírito ficam impossibi-
litados de se considerar melhores do que os outros. "Se o meu
estado como pecador me parece de alguma forma menos mau ou
detestável quando comparado com o pecado dos outros, na verdade
ainda não reconheci que sou pecador[ ... ] O amor fraternal pensará
em inúmeros atenuantes para o pecado dos outros; somente para
o meu pecado é que não há nenhuma justificativa."9
John Owen, um dos grandes puritanos do século XVII, escreve
que "é muitíssimo aceitável diante de Deus que nos regozijemos
em comunhão com ele, no seu amor. Que ele seja acolhido em
nossa alma cheia de amor e de ternura. A carne e o sangue tendem
a ter pensamentos antipáticos contra ele. Nada é mais triste para
nosso Senhor e mais subserviente aos desígnios de Satanás do que
pensamentos como estes". Foi essa a mentalidade do terceiro servo,
que escondeu seu talento na terra. Revelou seu coração orgulhoso
mediante as seguintes palavras: "Senhor, sabendo que és homem
severo, que ceifas onde não semeaste e ajuntas onde não espalhas-
A Felicidade dos Humildes de Espírito ~ 23
te ... " (Mt 25.24). Fica claro que ele não confiava no seu Senhor,
nem considerava que valesse a pena obedecer aos desejos deste. A
humildade de espírito explica o serviço fiel e amoroso dos dois
primeiros servos que duplicaram o número de talentos a eles
confiados. Sustentavam um conceito bem diferente no tocante ao
Senhor deles. Ele era bom e generoso. Estava bem disposto para
compartilhar as suas riquezas com esses servos que nada possuíam
por conta própria. Esse senhor era tão generoso que lhes deu
gratuitamente os primeiros talentos bem como os que tinham
lucrado (Mt 25.21-23).
Ser humilde de espírito é a melhor maneira de descobrir a
felicidade que tão freqüentemente escapa daqueles que procuram
uma vida feliz. A frase empregada por Jesus descreve os que aco-
lheram dentro de si mesmos o espírito humilde de Jesus. Não se
trata de um mero ornamento do cristão. É a essência da vida cristã,
conforme afirmou há muito tempo Richard Baxter, o magnífico
pastor puritano. Jesus insistiu na necessidade de humildade para
receber o dom da salvação. O regenerado deve depender totalmente
da graça de Deus. Cristo no crente e o crente em Cristo, isso é o
que produz muitos frutos, conforme disse Jesus: "sem mim, nada
podeis fazer" Go 15.5). A humildade pode ser aprendida mediante
a comunhão com Jesus Cristo, que se oferece para ensinar aqueles
que aceitam com paciência o seu jugo e carregam seu fardo leve
(Mt 11.28-30). Matricular-se na melhor escola para aprender a
humildade de espírito importa em estar vinculado com o Senhor
em comunhão inseparável. Que melhor método didático se pode
ter do que o daquele que "a si mesmo não se glorificou" e que,
"embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que
sofreu" (Hb 5.5, 8)?
João registra um exemplo excelente da humildade do nosso
Senhor quando este colocou água numa bacia e lavou os pés dos
discípulos Go 13.2-11). Sabendo que, no dia seguinte, morreria
em terrível agonia e vergonha, deixou de lado a ansiedade natural
24 .~ A FELICIDADE SEGUNDO jESUS

no tocante à cruz, para desempenhar de modo prático o seu papel


de servo. Lavar os pés era dever do menor escravo. 10 Poucos dias
antes, procurara imprimir na mente dos discípulos esta verdade:
"Quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva"
(Mt 20.26-27). Só a bacia e a toalha nas mãos de Jesus transforma-
riam o egoísmo deles em humildade.
A cruz, de modo mais eficaz ainda, fixou indelevelmente
no coração deles a verdade de que não são os poderosos e fortes os
bem-aventurados da terra. Não os reis entronizados, mas os
humildes e desprezados sãó os que refletem o coração de Deus.
"Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais
vós também" CTo 13.15). Demonstramos nossa verdadeira natureza
mediante a humildade de espírito na nossa vida.
"Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar
os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar
as fortes. Ele escolheu as coisas insignificantes do mundo, as despre-
zadas e as que nada são, para reduzir a nada as que são, para que
ninguém se vanglorie diante dele" (lCo 1.27-29 NVI). Nunca
devemos esquecer-nos da razão disso: "Pela graça sois salvos,
mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de
obras, para que ninguém se glorie" (Ef 2.8, 9). Foi o mesmo Jesus
quem afirmou que "estreita é a porta, e apertado o caminho que
conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela" (Mt
7.14). Isso indica que a humildade necessária para receber a vida
eterna é um atributo raro.
O cristianismo ocidental atual pensa que o caminho é fácil,
e que o eu é passível de ser aperfeiçoado. É essa distorção da verdade
que David Wells debateu em profundidade no seu importante
livro No Place for Truth [Não há espaço para a verdade]. 11 Ouça
suas palavras ressoantes que visam combater a falsa autoconfiança:
"O evangelho bíblico assevera exatamente o inverso, a saber: que
o eu está pervertido e mal ajustado no seu relacionamento com
Deus e com o próximo, que está cheio de engano e de raciona-
lizações, que é contrário à lei, que está em rebelião, de modo que
A Felicidade dos Humildes de Espírito ~ 25

realmente a pessoa deve morrer para o eu a fim de viver". 12 Somen-


te pela dependência total e pela confiança absoluta na graça ofere-
cida na pessoa e na obra histórica de Jesus na cruz é possível
alcançar a salvação que Deus oferece.
A colisão entre o evangelho e o mundo fica em plena
evidência na rejeição cristã do "Übermensch" (homem domina-
dor) de F. Nietzsche, forte, egoísta, autoconfiante, superior e
ousaqo. Admitir seus próprios erros não passa pela cabeça desse
"machão", já que, aos seus olhos, ele jamais falhou. A altivez é
uma tentação peculiar dos que exercem a liderança. Os discípulos
não eram imunes a isso. Várias vezes discutiram entre si quem era
o maior e quem seria o mais exaltado no reino (cf. Me 9 .34; 10.40-
41). Mas Jesus frisou que quem quisesse ser o primeiro teria de
ser o último e servo de todos. Jesus exemplificou semelhante
espírito de abnegação ao esvaziar-se da glória celestial para viver
como o mais humilde carpinteiro e mestre ambulante. Nas suas
próprias palavras: "O próprio Filho do Homem não veio para
ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos"
(Me 10.45).
Foi a humildade de Jesus que Paulo ressaltou como modelo
para a vida cristã normal. "Tende em vós o mesmo sentimento
[atitude] que houve também em Cristo Jesus." Ele demonstrou
essa atitude das seguintes maneiras: 1) Não seguiu o caminho de
Adão, nem de Lúcifer, que tentou usurpar a posição suprema do
Pai, buscando igualdade com ele (Fp 2.6). 2) Esvaziou-se a si
mesmo, ou seja, despiu-se da glória divina, a fim de viver entre os
homens exatamente como qualquer um deles, porém sem pecado.
3) Sendo Deus, escolheu voluntariamente tornar-se homem,
mesmo com todas as desvantagens e desafios da vida humana. 4)
Humilhou-se até o ponto de levar sobre si o estigma de um escravo
(doulos, em grego). 5) Voluntariamente optou por obedecer à
vontade do Pai, morrendo na cruz. 6) A morte que sofreu foi a
mais humilhante que se pode imaginar, pois foi despido e cravado
26 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

numa cruz, forma de execução reservada aos piores elementos da


sociedade.
Os humildes de espírito são os que mais claramente vêem a
grandeza de Deus. Eles sentem de maneira tão forte e marcante a
sua própria indignidade que não reclamam das aflições. A sobera-
nia de Deus, assim como a sua misericórdia, sempre ordena o que
é melhor. Reconhecem que não podem acalentar ressentimentos,
porque percebem que o perdão que recebem da parte de Deus
não conhece limites. Deus não acalenta ressentimentos contra nós.
O, coração quebrantado não tem a capacidade de guardar na
memória a culpa dos outros, porque a sua própria culpa lança
uma sombra tão escura que não consegue enxergar nada mais negro
do que isso. Sem a humildade, é impossível alcançar qualquer
outra virtude. Os "mestres da espiritualidade testemunham que,
se não tomamos consciência da nossa condição real, jamais podere-
mos ver qualquer outra coisa em sua verdadeira luz. É da humil-
dade - o senso de contrição interior que fluem todas as outras
virtudes cristãs. 13

O Galardão que Receberão os Humildes de Espírito


Dos humildes de espírito é o reino, segundo nos ensina Jesus.
Isso significa que os ricos de espírito e os soberbos não têm acesso
à comunhão com Deus, nem agora, nem no futuro. O vocábulo
"reino" significa "domínio". São banidos da presença de Deus,
que oferece aos pecadores o privilégio de viverem sob o domínio
do amantíssimo Pai. Devemos entender que Nícodemos não
poderia entrar no reino de Deus sem nascer de novo, isto é, sem
tornar-se uma criança recém-nascida e aprender a viver na família
da qual Deus é Pai. "Pois todos os que são guiados pelo Espírito
de Deus são filhos de Deus" (Rm 8.14).
Da oração que Jesus ensinou aos seus discípulos, conhecida
como o "Pai Nosso", aprendemos que devemos pedir que o reino
venha (Mt 6.10). Nesse mesmo sermão, Jesus conclamou seus
A Felicidade dos Humildes de Espírito ~ 27

seguidores a buscarem o reino em primeiro lugar. Os humildes de


espírito já possuem o reino, mas ao mesmo tempo pedem a Deus
que ele nos mande o reino. Nesse sentido, deve tratar-se do reino
escatalógico que esperamos ser introduzido na hora da sua volta. ·
O reino, que pertence aos humildes crentes em Jesus, foi
inaugurado na primeira vinda de Jesus. Teve início na sua vida,
na sua morte redentora e na sua exaltação. Ele reina mais especifi-
camente sobre aqueles que nele confiam e se submetem ao seu
senhorio. São os humildes de espírito que, pela fé, aceitam o seu
reinado. Eles também percebem que falham. Não cumprem
perfeitamente as ordens do Rei. Buscam o reino pelo conheci-
mento da vontade de Deus revelada na Palavra e pelo auxílio do
Senhor para cumpri-la. É nesse sentido que é possível "buscar em
primeiro lugar o reino". Também aguardam a bendita esperança,
a "da manifestação gloriosa do nosso grande Deus e Salvador Cristo
Jesus" (Tt 2.13). A essa altura, o reino virá em toda sua glória e
paz. A implantação do reino criará alegria indizível e cheia de
glória (1Pe 1.8).

NOTAS
1 Thomas Watson: The Beatitudes. Edimburgo: The Banner of Truth Trust,
1660/1971, p. 42.
2 The Cospe! ofMatthew, Filadélfia: Westminster Press, 1975, p. 91.

3
Op. cit., p. 43.
4
J. Edwin Orr: My All His All. International Awakening Press, Wheaton, Ill.:
1989, p. 83.
5 Is 14.12-13, ibid., p. 84.
6
J. Edwin Orr, ibid., p. 84.
7 McDermott: O Deus Visível. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 177.

g Jbid., p. 178.
9 D. Bonhoeffer: Life Together, p. 74, citado por G. McDermott, p. 163.

10 John MacArthur: "Humility", Moody Monthly, vol. 96, nº 1, set. de 1995,

p. 21.
11 Grand Rapids: Eerdmans, 1993.

12
P. 179.
13 McDermott, p. 163.
2

A Felicidade do§
que Choram
~

Motivos para chorar não faltam nesse mundo caído. É só


ir para qualquer aeroporto internacional e ver como parentes e
entes queridos se despedem uns dos outros. As lágrimas fluem
com naturalidade. É só visitar qualquer velório de uma cidade
como São Paulo e observar como os vivos reagem na presença
dos seus mortos. Logo poderemos ver olhos vermelhos de choro.
Ninguém acha estranho que tais separações entre pessoas queridas
provoquem choro.
Vale a pena lembrar que Jesus chorou diante do túmulo
lacrado de Lázaro Go 11.35). Os circunstantes declararam: "Vejam
como ele o amava" (v. 36). A compaixão que Jesus sentia por
Maria e Marta já se nota nos versículos anteriores (v. 33). A tristeza
delas tornou-se tristeza dele, assim como ele agora se compadece
de nós em todas as nossas provações (Hb 4.15). A separação
provocada pela morte é apenas uma das muitas causas do choro
humano. Quem consegue ver bem-aventurança num ambiente
tão trágico?
Jesus também chorou por causa de Jerusalém (Lc 19.41).
Seu lamento brotou da profunda tristeza que sentia, porque essa
cidade rejeitara tantas oportunidades para se arrepender. "Ah! se
conheceras por ti mesma, ainda hoje, o que é devido à paz! Mas
isto está agora oculto aos teus olhos" (v. 42). Jesus previu o sofri-
mento indizível pelo qual Jerusalém, por ter rejeitado a sua paz,
passaria na geração seguinte. O nacionalismo judaico intensificou-
30 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

se durante os quarenta anos entre a ressurreição de Jesus e ades-


truição de Jerusalém pelos romanos. Se os judeus tivessem acolhido
no coração seu verdadeiro Messias e seguido o seu caminho, essa
tragédia teria sido evitada. Jesus chorou, mas que bem-aventurança
há nas suas lágrimas vertidas?
Jesus chorou ainda no jardim do Getsêmani. "Durante os
seus dias de vida na terra, ele ofereceu orações e súplicas, em alta
voz e com lágrimas, àquele que o podia salvar da morte, sendo
ouvido por causa da sua reverente submissão" (Hb 5.7 Nvr). Suas
lágrimas foram vertidas porque ele lev:ava sobre si o fardo dos
pecados da humanidade e porque previa a agonia da cruz. Real-
mente chorou por causa dos nossos pecados. Como aquele que
carregou totalmente os nossos pecados, também suportou uma
intensidade de tristeza além da nossa capacidade de imaginar. Suas
lágrimas revelam o alto preço da expiação que ele pagou por nossa
redenção (cf. Is 53.5, 6).
Onde está a bênção nas lágrimas de nosso Senhor? Isaías
diz: "Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará
satisfeito" (Is 53.11). O autor de Hebreus também menciona que
Jesus, tendo consciência da "alegria que lhe estava proposta,
suportou a cruz... " (Hb 12.2). Não devemos deixar despercebida
a verdade de que suas lágrimas não foram derramadas em vão.
A bem-aventurança dos que choram pode ser achada no
equilíbrio entre o pesar santo e a alegria do Espírito. John Arndt
expressa bem essa verdade: "Se alguém olha para si mesmo, vê
mais motivos para estar triste do que para alegrar-se. Se ele olha
de modo correto para a vida dos outros, encontra mais motivos
para chorar por eles do que para invejá-los. Por que o Senhor
chorou sobre Jerusalém, que o perseguiu e matou? O pecado que
você cometeu e a sua cegueira o fizeram chorar (Lc 19.42).
Portanto, o principal motivo para chorar deye ser nosso pecado e
a falta de arrependimento das outras pessoas". 1
O choro de Jesus oferece um modelo para o choro aben-
çoado. Chorou por causa do pecado, da tragédia que a desobe-
A Felicidade dos que Choram ~ 31

diência e as suas conseqüências infligem sobre os homens. Fica


claro que nem todo choro é abençoado com santo consolo. O
choro e ranger de dentes por causa do pecado sem perdão fornece
uma ilustração de como Paulo entende a tristeza para a morte que
o mundo sente (2Co 7.10). A tristeza segundo o mundo traz muitos
tipos de desgraça na sua esteira. O divórcio, a depressão, o suicídio
e a guerra - essa é uma breve lista das tristezas do mundo que não
trazem nenhum fruto de bem-aventurança. Quase todos os dias,
noticiários pela televisão nos impressionam com a tristeza do
mundo. O seqüestro de um marido ou pai, o assassinato de um
filho, tudo isso faz fluir um rio de lágrimas. A causa fundamental
de toda violência, de assaltos, da dependência de drogas, de crianças
abandonadas e de tudo quanto é desgraça pode ser explicada como
a ruptura do relacionamento entre o homem e Deus. Adão
desobedeceu ao mandamento claro de Deus. Os descendentes de
Adão ainda pensam que violar as leis de Deus é uma infração
secundária, com a qual nem sequer vale a pena se preocupar.
Mesmo assim, o pecado, seguido pela separação de Deus, provoca
a sua ira. Semelhante pecado é castigado com tristezas temporais
e eternas.

A Tristeza Segundo Deus


Existe, no entanto, uma tristeza segundo Deus. Nas palavras
de Paulo: "Vocês se entristeceram como Deus desejava" (2Co 7.9,
NVI). Essa é a tristeza do arrependimento que leva à salvação - da
qual ninguém se lastima (v. 10). Semelhante tristeza provém da
convicção pelo Espírito Santo Oo 16.8-11). Nenhuma tristeza do
tipo que Deus deseja pode ser produzida pelo homem por conta
própria. Somente a aplicação da Palavra de Deus ao coração
pecaminoso pode evitar a autojustificação que bloqueia o caminho
·para o arrependimento.
Considere o caso de Pedro. Sentindo total convicção da sua
lealdade a Cristo, declarou solenemente que nunca negaria o
32 'Q..' A FELICIDADE SEGUNDO jESUS

Senhor. "Estou pronto a ir contigo, tanto para a prisão como para


a morte" (Lc 22.33). Parece impossível que Pedro tenha amaldi-
çoado e jurado: "Não conheço esse homem ... " (Me 14.71). Nisso
não sentiu nenhuma tristeza, a não ser quando se lembrou da
palavra que o Senhor lhe tinha dito. Mas logo que a palavra de
Jesus lhe cortou o coração, seu arrependimento foi imediato e
profundo: "chorou amargamente" (Lc 22.62). Abriu a porta para
a restauração, para a conversão segundo a definição de Jesus, que
o preparou para fortalecer os seus irmãos (Lc 22.32).
Judas, por certo, também chorou amargamente por ter traído
seu Mestre. Confessou o seu pecado: "Pequei, pois traí sangue
inocente" (Mt 27.4), mas o fim não foi a restauração, mas a morte
por enforcamento, sinal claro do sentimento que Paulo chamou
de tristeza segundo o mundo. Ele não saboreou a bem-aventurança
do consolo que brota do solo preparado pelo Espírito Santo.
Paulo tinha o costume de chorar. Pelo menos parece que
durante os anos importantes do seu ministério em Éfeso, a tristeza
preciosa que provém de Deus inundava o seu coração como ondas
do mar. Disse ele aos presbíteros: "... por três anos, noite e dia,
não cessei de admoestar, com lágrimas, a cada um" (At 20.31). Se
lhe perguntássemos por que chorava, por certo teria respondido
que os sofrimentos dos irmãos, seus problemas não resolvidqs e
principalmente os pecados deles, contribuíam para partir o seu
coração.
Outra passagem bíblica nos ajuda a entender mais um pouco
a tristeza provocada pelo amor que o apóstolo guardava no coração
pelos seus filhos na fé. Paulo descreve os benefícios da tristeza
que Deus produziu no coração dos coríntios por intermédio da
"carta severa", que escreveu com "muitas lágrimas" (2Co 2.4). Ele
mesmo alista vários desses benefícios em 2 Coríntios 7.8-16.
Primeiro, Paulo diz que a tristeza produziu "dedicação" (gr.
spouden), isto é, um compromisso para solucionar o problema.
Segundo, ela produziu "defesa" (gr. apologian), no sentido de
"ansiedade para estarem isentos de culpa" (Nv1). Fizeram tudo
A Felicidade dos que Choram ._,,,., 33
quanto era necessário para sanar o problema e sair da situação
culposa. Terceiro, criou "indignação" (gr. aganaktesin), um sen-
timento profundo de culpa pela injustiça que cometeram. Quarto,
produziu "temor" (gr. phobon), por reconhecerem que Deus
poderia castigar severamente o pecado deles. Quinto, suscitou
"saudade" (gr. epipothesin), um sentimento de alienação que se
aliviaria ao voltarem à comunhão Íntima com o apóstolo, seu pai
na fé {1Co 4.14). Sexto, criou "zelo" (gr. zelon), transmitindo a
idéia de solicitude e forte desejo de reparar os estragos causados
pelo pecado. Sétimo, despertou nos coríntios "vindita" (gr.
ekdikesin), o desejo insaciável de ver a justiça feita.
Paulo escolheu todos os vocábulos acima para explicar o
que ele entendia pela frase "tristeza segundo Deus" e as conse-
qüências dessa tristeza. Elas são parte importante do arrepen-
dimento real que abre o caminho para a reconciliação. Inúmeros
divórcios e ressentimentos poderiam nunca ter acontecido se as
partes interessadas tivessem buscado a bem-aventurança do choro.
Devemos perceber o contraste radical que existe entre o
remorso e o arrependimento bíblico. Lágrimas de frustração por
causa das nossas ações erradas não têm nada que ver com o lamento
do coração quebrantado diante de Deus.
Encontramos no salmo 51 a passagem bíblica que mais per-
feitamente mostra a realidade da bem-aventurança do choro.
"Compadece-te de mim" (v. 1) revela que a ferida deixada pelo
pecado de Davi doeu muitÍssimo. Ele roga a Deus que lhe apague
as transgressões e lhe lave a iniqüidade (vv. 1-2). Não há nenhuma
indicação de que Davi estivesse tentando se defender ou desculpar-
se. Mesmo sendo rei e tendo agido como qualquer outro rei teria
feito sem lhe pesar na consciência, Davi diz: "... meu pecado está
sempre diante de mim" (v. 3). Por ter pecado contra Deus, e não
apenas contra um homem (v. 4), sabia que somente Deus podia
purificá-lo com sangue sacrificial (v. 7). Não pensa levianamente
que sacrifícios de animais, tão facilmente ofertados por um rei,
valeriam para restaurar a intimidade com Deus. Por isso Davi
34 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

escreve: "Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado;


coração compungido e contrito, não o desprezarás, ó Deus" (v.
17). Todas as características da tristeza segundo Deus encontram-
se nessa confissão.
Nessa lamentação de arrependimento, sobressaem também
a alegria e o júbilo. "Faze-me ouvir júbilo e alegria, para que exul-
tem os ossos que esmagaste" (v. 8). Quando Davi pede a restituição
da alegria da salvação da parte de Deus (v. 12), podemos ter certeza
de que Deus o atendeu. Davi afirma a bem-aventurança dos que
alcançam o perdão dos pecados (Sl 32.1). O homem a quem Deus
não atribui iniqüidade é feliz (v. 2).
Entendemos, portanto, que a alegria dos que choram por
causa dos seus pecados provém do consolo que receberão (Mt
5.4). A felicidade dos que se arrependem de modo sadio, bíblico e
profundo será realmente grande. João 13 também trata desse tema.
Nota-se a preocupação de Pedro ao ouvir as palavras do seu Senhor:
"Se eu não te lavar, não tens parte comigo" Qo 13.8). O que im-
portava mais para Pedro era justamente manter comunhão contí-
nua com Jesus. Por isso exclamou: "Senhor, não somente os pés,
mas também as mãos e a cabeça" (v. 9). Jesus, então, lança mais
luz sobre o simbolismo com que retratou o 'arrependimento cris-
tão. Uma vez banhado e unido espiritualmente, basta ao crente
lavar somente os pés (v. 10). Com essa figura de linguagem, Jesus
transmitia a necessidade do constante auto-exame e da confissão,
seguidos pela aplicação do sangue purificador. Então Jesus declarou
limpos todos os discípulos, menos Judas Iscariotes (v. 10). O dis-
cípulo recebe o consolo da comunhão com o Senhor depois de se
confessar a ele e de receber dele a lavagem dos pés (o perdão).
A igreja local também tem a incumbência de lavar espiritual-
mente os pés dos seus membros. Na celebração da comunhão
com Cristo na Ceia, todo irmão realmente arrependido deve ser
admitido. Quando o pão e o vinho são oferecidos ao pecador
arrependido, este é reintegrado à comunhão da família de Deus.
A Felicidade dos que Choram 'Q..' 35
Dessa maneira, a união vertical com Cristo e a horizontal entre
os irmãos serão conseguidas e mantidas.

Como Podemos Aumentar a Tristeza segundo Deus?


A falta de tristeza pelo pecado é a melhor explicação para
os olhos enxutos. O que devemos fazer então? Em seguida, ofere-
cemos algumas sugestões, todas bíblicas e de eficácia comprovada.
1) "Chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós outros" (Tg
4.8). É só aproximar-se de Deus e deixar que ele tire um Raio X
espiritual do seu coração, e você sentirá a sua alma comovida e
suas emoções sensibilizadas. É a presença de Deus que leva o
pecador a chorar, e é a enormidade dos seus pecados que derruba
suas desculpas mesquinhas. Se buscarmos a Deus com anseio,
conforme fez Davi numa terra exausta e árida (Sl 63.1), não faltará
uma grande tristeza quando percebermos a facilidade com que
nos afastamos da sua presença.
É gostoso aumentar nossa intimidade com o Pai celeste.
Muitas vezes, no entanto, isso requer uma confissão penosa de
que temos nos afastado dele a fim de buscarmos os valores do
mundo (1Jo 2.15). Confessar que nos curvamos diante de um ídolo
pelo qual nos apaixonamos é doloroso para nós. Voltar à casa do
Pai é emocionante para nós. Chorar é natural para um filho
pr6digo. O adúltero que realmente ama a sua esposa não confessa
sua queda sem ficar profundamente comovido.
Isaías aproximou-se de Deus no ano em que morreu o rei
Uzias. No templo teve uma visão do Senhor sentado sobre um
alto e sublime trono (Is 6.1). A visão simultânea, de Deus em toda
a sua santidade e de si mesmo em toda a sua pecaminosidade,
levou o jovem profeta à mais profunda lamentação. Suas palavras
"Ai de mim! Estou perdido!" (v. 5) demonstram a reação típica
que marca toda verdadeira busca pela presença do Deus vivo por
parte de um pecador consciente.
36 ~ A FELICIDADE SEGUNDO jESUS

2) Rogar a Deus insistentemente que ele mande um aviva-


mento. Relat6rios sobre os avivamentos famosos do passado
distante, bem como dos mais recentes, mostram que chorar e
lamentar são as características mais comuns. Quando Deus deseja
operar profundamente no coração dos seus filhos, ele desvenda a
corrupção existente lá no Íntimo.
No dia de Pentecostes, Pedro pregou uma mensagem bíblica
como muitos pregadores têm pregado através dos séculos. Naquela
ocasião, porém, os resultados foram surpreendentes. Não foi feito
nenhum apelo, mas 3 000 pessoas se entregaram a Jesus e foram
batizadas. A razão dessa extraordinária manifestação do poder de
Deus para transformar vidas acha-se nas dores agudas de consciên-
cia sofridas pela multidão. Lucas escreve: "Compungiu-se-lhes o
coração" (At 2.37), que significa que ficaram muito aflitos no
Íntimo. Nada era mais importante naquela hora do que encontrar
um meio espiritual de alívio.
David Brainerd descreve no seu diário o efeito de ter ouvido
a Palavra de Deus em Crossweeksun, em Nova Jersey, nos Estados
Unidos, no século XVIII. Os índios sentiam dores de consciência
tão fortes que ficavam rolando no chão durante horas seguidas,
pedindo a misericórdia de Deus. Quando receberam a certeza do
perdão, o alívio sentido por eles correspondia ao peso da aflição
que tinham sofrido pouco antes. O consolo da parte do Senhor
foi muito precioso. Esse efeito extraordinário ocorreu em resposta
às orações intensas e prolongadas de Brainerd em favor do aviva-
mento que Deus passou a enviar.
O impulso que leva pessoas respeitáveis, aparentemente
virtuosas, a confessar com lágrimas os segredos do coração é
normal nos despertamentos espirituais. O avivamento que sacudiu
o Wheaton College, uma famosa escola evangélica de ensino
superior nos Estados Unidos, numa quarta-feira, 7 de fevereiro
de 1950, não foi exceção. A reunião na capela durou 39 horas
seguidas, quase exclusivamente repleta de confissões públicas,
lágrimas e orações, buscando perdão e restauração. Alunos
A Felicidade dos que Choram . "Q.' 3 7

esperavam na fila até mesmo durante 8 horas, só para procurar,


mediante a confissão, o alívio de consciência. O Dr. Edman,
presidente da escola, amigo pessoal de Billy Graham, escreveu:
Se você tivesse estado junto conosco, teria sentido a presença e o
poder de Deus. Um jornalista de Chicago veio até nós "com o
cinismo da sua profissão", segundo ele mesmo declarou, mas
permaneceu conosco para maravilhar-se com a seriedade e a
sinceridade dos alunos. Quem teve um encontro verdadeiro com
o Senhor Jesus não considerava longa demais a espera de seis até
oito horas para dar o seu testemunho. Alguns alunos salvos,
mas não quebrantados, ficaram sentados na capela durante mais
de vinte e quatro horas antes de terem o coração quebrantado e
movido pelo Espírito de Deus. 2
Em 1995, Deus derramou novamente seu Espírito sobre
centenas de alunos do Wheaton, a partir de um domingo, 19 de
março. Cerca de mil jovens universitários puseram-se em pé para
confessar os seus pecados e receber oração e apoio. Em várias
noites seguidas, as reuniões duraram entre cinco e seis horas. Certo
aluno escreveu, um mês depois:
Uau! Quando Deus transforma corações, é a coisa mais espantosa
que se pode ver! Aqui no campus, ainda se vêem grandes
acontecimentos. Corações endurecidos estão sendo substituídos
por corações sensíveis. Louvado seja o Senhor! Trata-se de um
milagre certamente tão grandioso quanto abrir caminho pelo
mar Vermelho. O coração humano é, sem dúvida, uma das coisas
mais difíceis a serem transformadas, e isso normalmente leva
vários anos. Nós temos visto pessoas transformadas da noite
para o dia. Pessoas endurecidas, rebeldes e grosseiras passam a
ser pessoas meigas, sensíveis e que oram muito. É espantoso!
Não acredito que haja explicação para isso dentro da perspectiva
humana. Só posso agradecer a Deus aquilo que ele está fazendo. 3
Muitos dos que confessaram as suas transgressões, acompa-
nharam com lágrimas as suas confissões. Testemunharam que o
alívio e a alegria que se seguiram foram extraordinários. A presença
de Deus na vida dos indivíduos e na sociedade criou uma atmosfera
de grande alegria.
38 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

O avivamento entre os zulus em Mapumulo, na África do


Sul, mostra novamente como lágrimas marcam os avivamentos.
O missionário Erlo Stegen esforçou-se durante anos para levantar
uma igreja que demonstrasse o amor e a santidade de Deus, mas
ficou profundamente decepcionado. As palavras do pastor Stegen
revelam a condição morna dessa pequena igreja na África do Sul
em meados de 1965:
Quando me perguntavam por que o trabalho entre os negros
era tão difícil, eu respondia: "Você tem de compreender que é
difícil para um branco pregar o evangelho aos zulus, hoje em
dia. Eles não aceitam facilmente o evangelho, pois dizem ser
religião do homem branco. A maioria deles está com a cabeça
cheia de política dos tempos atuais, e muitos estão influenciados
pelo comunismo. Outra razão é que os homens zulus estão
sempre ocupados em beber; os jovens, preocupados com as coisas
deste mundo... Dá para entender por que as coisas estão desse
jeito, por que não pode haver um reavivamento e não há centenas
de conversões. Dá para entender, pois eles têm seus ídolos, seus
deuses, etc.". E, de repente, quando o Espírito Santo começou a
atuar, lidou primeiramente comigo. Deus colocou o dedo nos
pecados que havia na minha vida. 4
Certo sábado à tarde alguns irmãos da igreja reuniram-se
para orar pedindo um derramamento do Espírito Santo sobre a
igreja. Vários brancos estavam na quadra ao lado do local. O pastor
sentia-se envergonhado. Citando suas próprias palavras:
Pensei em levantar-me e fechar as janelas, de modo que os brancos
jogando tênis não escutassem o que estava acontecendo dentro
do prédio... Enquanto fechava a primeira janela, escutei algo.
Era como se alguém me dissesse: "Tudo bem, pode fechar a janela
e eu ficarei do lado de fora, e você, do lado de dentro, pois eu
não poderei entrar" .... Eu sabia que não era a janela que deixava
Deus do lado de fora, mas o meu orgulho. Pela primeira vez na
minha vida, percebi que o Espírito de Deus é santo. Nunca havia
tomado consciência disso... E tão fácil dizer: "Sou batizado com
o Espírito Santo, cheio do Espírito". As pessoas que nos escutam,
no entanto, olham para a nossa vida. Eu conhecia duas pessoas
que falavam em línguas e diziam ter a plenitude do Espírito
A Felicidade dos que Choram "Q..' 39
Santo. Uma delas tinha um vocabulário sujo... O outro vivia
namorando as mulheres dos outros e pecando com elas ...
Quando tomei consciência da santidade do Espírito de Deus,
ele me mostrou um lampejo de quão terrível aos seus olhos é o
orgulho. O orgulho é um pecado hediondo. Eu vi algumas
palavras escritas diante dos meus olhos. Eram as seguintes: "Deus
resiste ao soberbo". Então, disse: "O quê? Eu não sabia disso".
Sempre pensava que era o diabo quem tornava as coisas difíceis
para mim, e quem me oferecia resistência... A primeira coisa
que o Espírito Santo faz quando vem sobre a vida de uma pessoa
é convencê-la do pecado. Há quebrantamento, as pessoas choram
por causa dos seus pecados. Ficam angustiadas, e não alegres.
Deus desceu, e seu Espírito está atuando. As pessoas em quem
tal obra ocorre não estão cheias de riso, mas cheias de lágrimas;
elas estão chorando. 5
Logo Stegen orou:
"Ó Deus, perdoa-me; não estou certo diante de ti". Então ele
conta: As seguintes palavras vieram àminha mente: "Se agradasse
ainda a homens, não seria servo de Cristo" (Gl 1.10) ... Isto
realmente partiu meu coração. Pensei: "Por doze anos venho
dizendo aos zulus e aos outros pagãos que venho a eles como
um servo de Jesus Cristo, e tenho pregado a eles o evangelho.
Mas agora, testado e provado pela Palavra de Deus, tenho sido
desqualificado" ... Deus continuou, sem parar, revelando todos
os meus pecados um atrás do outro... Repentinamente, o
problema de explicar o fracasso do evangelho entre os negros
resolveu-se. Não eram os Ímpios pagãos que impediam que o
avivamento viesse. Não eram eles, era eu mesmo. 6
O resultado maravilhoso de todo esse pesar e sofrimento
interiores foi um avivamento.
Desta maneira silenciosa e profunda, Deus operou entre o povo.
Certo dia, quando nos reunimos para orar, Deus, de repente,
fendeu os céus e desceu. Nós não tínhamos pedido nem orado
por aquilo, nem sabíamos o que devíamos esperar. Mas, de
repente, veio um som como de um vento poderoso... O Espírito
de Deus desceu e ninguém precisou dizer a outra pessoa que
Deus estava no nosso meio. 7
40 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

As conseqüências dessa ação foram imediatas. Uma feiticeira


apareceu sem ninguém convidá-la. "Eu quero Jesus. Ele pode sal-
var-me?~ Stegen nem podia acreditar no que acontecia. Ninguém
tinha pregado para ela. Ela confessou seus pecados. "Ore por mim,
para que Jesus me liberte desses espíritos malignos." Vinham
feiticeiras e endemoninhados para serem libertados. Não sabiam
explicar, mas achavam que era Deus quem os forçava a vir. 8
Milhares de pessoas se converteram. Hoje, depois de trinta
anos, a igreja, com 10 000 assentos em Quasiza-bantu, ao norte
de Durban, na África do Sul, continua desfrutando das bênçãos
de um avivamento que começou com muitas lágrimas.
3) O auto-exame de um coração arrependido é o caminho
certo para alguém sentir pesar por causa do pecado. Tomás de
Kempis escreveu há séculos: "Quanto mais cuidadosamente (um
santo) examina a si mesmo, tanto mais triste fica. O motivo para
nossa justa aflição e remorso são nossas faltas e pecados" (Livro I,
cap. 22). Mas o auto-exame pode ser destrutivo se não for
equilibrado pela fé na promessa do perdão. A esperança e a bem-
aventurança do perdão nos animam a nos examinar de modo mais
profundo, e a consolação do Espírito Santo é a garantia do nosso
galardão. c. s. Lewis nos adverte, no entanto, de que é fácil olhar
para dentro sem ver nada de gravemente errado. Sua personagem
chamada Murcegão Qeia-se Satanás) escreve ao sobrinho Cupim,
que está a seu serviço, na qualidade de aprendiz:
Você poderá levá-lo à condição na qual se torna possível o auto-
exame durante uma hora sem que fiquem descobertos fatos a
respeito de si mesmo que parecem absolutamente claros aos que
tenham convivido com o paciente ou trabalhado com ele no
mesmo escritório. 9
4) Contemplar a glória do Senhor Jesus no "espelho" da
Palavra (2Co 3.18). O galardão dessa contemplação é a transfor-
mação de glória em glória (v. 18). A glória dessa visão transfor-
madora inclui a incomensurável profundidade do seu amor por
A Felicidade dos que Choram ~ 41

nós na crucificação. As palavras de Jesus, logo antes da sua morte:


" ... se Deus foi glorificado nele, também Deus o glorificará nele
mesmo; e glorificá-lo-á imediatamente" Go 13.32), confirmam a
observação de João de que a glória de Jesus brilhou em todo o seu
fulgor na cruz. Paulo encontrou a vitória na cruz: "Mas longe
esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus
Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim, e eu, para o
mundo" (Gl 6.14). Não devemos imaginar que oferecer nossa vida
para ser crucificada seja uma experiência prazerosa. Mesmo assim,
Paulo aceitou a cruz como parte integrante da sua experiência
cristã (Gl 2.20). Jesus disse que todo discípulo dele teria de carregar
sua cruz e segui-lo (Lc 9.33). É natural chorar ao percebermos,
juntamente com o jovem rico, que Deus nos aceita somente des-
pojados das nossas riquezas materiais e espirituais. Foi isso que
aconteceu com o jovem, que se retirou contristado (Me 10.22).
5) Buscar sinceramente, da parte do Senhor, compaixão mais
profunda diante dos sofrimentos provocados pelos pecados e pelas
atrocidades cometidas pelos homens. Jesus chorou ao contemplar
a cidade de Jerusalém, marcada para a destruição. Se Deus derramar
o seu amor em nosso coração (Rm 5.5), nosso comodismo chegará
ao fim. Penetraremos além da casca falsa da aparente felicidade da
cidade para vermos o sofrimento existente abaixo da superfície.
Mateus relata que Jesus, "vendo [ ... ] as multidões, compadeceu-se
delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não
têm pastor" (9.36).
Jeremias exteriorizou a sua tristeza ao contemplar a destrui-
ção de Jerusalém: "Chora e chora de noite, e as suas lágrimas lhe
correm pelas faces; não tem quem a console" (Lm 1.2). Muitos
séculos antes da vinda do Consolador, notamos o desespero do
profeta. Quem chora pela cidade hoje? A vinda do Espírito Santo,
daquele que soluciona os problemas mais graves, produz a
compaixão. Estimula a oração. Sendo ele a fonte da compaixão
por aqueles que sofrem, pode-se esperar que haja lágrimas onde
42 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

ele agir poderosamente. Se a igreja for cheia do Espírito Santo, ela


se levantará para derramar bálsamo nas feridas da população (cf.
Lc 10.25-37). Mas quem quer desempenhar o papel de Neemias?
Ao ficar sabendo da calamidade de Jerusalém, sentou-se para cho-
rar e lamentar por alguns dias (1.4). O que nos falta hoje é com-
paixão e empatia. O que nos falta é a plenitude do Espírito que
desenvolve amor nos filhos de Deus.

O Galardão dos que Choram


Bem-aventurados são aqueles que choram. São estes que se-
guem o modelo deixado por Jesus. O seu consolo será grande e
precioso. Choram pelos seus próprios pecados e pelos pecados
do próximo. Ficam aliviados ao depositarem os seus pesares aos
pés de Jesus. Choram por causa da perda da intimidade com Deus,
mas são restaurados ao receber o seu perdão e abraço de boas-
vindas. O filho pródigo alegrou-se na festa oferecida pelo seu pai.
Choram pela sociedade conturbada e passam a se envolver na
obra de resgatar alguns do lamaçal. Choram pelos perdidos,
principalmente pelos membros da sua própria família, mas con-
fiam que Deus atenderá as suas orações. Choram pelos desviados
e pecadores endurecidos, mas encontram o alento do soberano
Senhor da Igreja. Reconhecem que ele se preocupa muito mais
com o mal e com o sofrimento do que eles. Sentem-se consolados
na participação dos sofrimentos de Jesus Cristo (Cl 1.24).
Enfim, são os que choram que recebem o consolo e, pelo
menos em parte, já nesta vida. Também aguardam pacientemente
o cumprimento da promessa escatológica. Quando Cristo voltar,
"Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda
lágrima" (Ap 21.3, 4).

NOTAS
1
True Christianity, p. 106-7, citado em G. McDermott: O Deus Visível. São
Paulo: Vida Nova, 1998, p. 196-7.
A Felicidade dos que Choram 'Q.' 43
2
T. Beougher e L. Dorsett, eds.: Accounts of a Campus Reviva/. Wheaton:
Harold Shaw Publishers, 1995, p. 64.
3
Jbid., p. 135.
4 Erlo Stegen: Reavivamento na África do Sul, trad. Augustus Nicodemos Lopes,

Ananindeua, PA: Editora Clássicos Evangélicos, 1989.


5 Ibid., p. 43-47.
6 Jbid., p. 48, 49.
7
Ibid., p. 53.
8
Jbid., 56-57.
9 Cartas do Inferno, São Paulo: Vida Nova, p. 36.
3

A Gloriosa
Felicidade dos Mansos
~

Jesus extraiu do salmo 37 .11 essa bem-aventurança. Ali, ela


aponta mais na direção de uma atitude para com Deus do que de
uma disposição para com o próximo. 1 É fácil compreender
erroneamente a mansidão. Algumas pessoas acham que ela descreve
o homem que não possui convicções firmes, que não toma posição
em favor de nenhuma causa. Não tem fé muito firme em coisa
nenhuma e nem se importa com isso. Talvez o homem secular
considere que o manso não tem personalidade, vendo-o como
um covarde, mas, segundo a Bíblia, isso não é ser manso. Ser manso
não significa ser fraco, tímido ou medroso. A mansidão genuína
não pode existir sem a coragem.
Concordamos com Martin Lloyd-Jones que o cristianismo
não condena a coragem. O que pode ser esquecido é que a çoragem
e o heroísmo eram as virtudes supremas dos filósofos gregos
pagãos. Eram a essência do estoicismo. Mas a filosofia grega pagã
não possuía uma palavra que representasse a mansidão. "Coragem,
e força, e poder - nessas coisas os gregos acreditavam. É por isso
que Paulo nos diz - conforme você se lembra - que a pregação da
cruz era estultícia para os gregos. 2
Melhor é considerar a mansidão como a entrega da nossa
vontade a Deus. A mansidão também exige que nossa atitude
egoísta seja substituída pela submissão àquele que "faz todas as
coisas conforme o conselho da sua vontade" (Ef 1.11). Se entre-
garmos ao Senhor soberano o direito de controlar todas as circuns-
46 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

tâncias da nossa vida, será impossível manter um espírito de revolta


e ressentimento. Paulo declara que Deus realmente opera para o
bem em todos os acontecimentos na vida (Rm 8.28). Muitos
cristãos, talvez a maioria deles, alegam que acreditam nesse texto,
mas no meio da fornalha da aflição, quase todos nós somos
tentados a nos ressentir das circunstâncias ou das pessoas que
causam a provação.
A humildade descreve uma atitude no tocante a nós mesmos.
A maneira de avaliar a nós mesmos e a nossa auto-estima são
questões de humildade, mas a mansidão diz respeito às nossas
reações diante das circunstâncias e das pessoas que Deus coloca
em nosso caminho. O sermos afetados por aquelas circunstâncias
da vida que estão além do nosso controle pertence ao âmbito da
mansidão. É fácil detectar a mansidão em outras pessoas com quem
você precisa conviver no lar ou no serviço. Descobrir que tipo de
pessoa alguém é determina o que aquela pessoa mais ama e como
ela expressa esse amor. A mansidão, assim como o amor em 1
Coríntios 13.1-7, é abnegada. A maturidade espiritual exige grande
dose de mansidão.

Exemplos Bíblicos de Mansidão


Abraão exemplificou a mansidão quando Deus o testou,
ordenando-lhe que sacrificasse seu único filho, !saque (Gn 22).
Esse herói do Antigo Testamento não levantou objeções. Não
discutiu com Deus. Levantou-se cedo, selou o seu jumento, levou
dois servos além de !saque e foi sem hesitação ao monte Moriá,
onde construiu um altar. Colocou lenha no altar e amarrou !saque
em cima da lenha. No episódio inteiro, não há o menor indício
de simulação, nem de frustração ou ira. S0ren Kierkegaard viu na
atitude de Abraão uma confiança mais pura do que a resignação e
a apatia. A fé de Abraão foi a fonte secreta da sua pronta obediência.
Da mesma forma, a fé deve ser o apoio da nossa própria travessia
das águas profundas da provação. A virtude da mansidão pode
A Gloriosa Felicidade dos Mansos ~ 47

crescer no solo das provações, caso a fé em Deus permita pouco


ou nenhum ressentimento e autocomiseração.
José demonstrou mansidão de um modo muito singular. O
ódio e o desprezo dos seus irmãos não provocaram nele revolta
nem hostilidade. Encontrou-se no seu coração um espírito perdoa-
dor, mesmo tendo poder em suas mãos para vingar-se da inveja e
da maldade deles. Considere as palavras mansas de José após ouvir
o pedido dos seus irmãos, rogando misericórdia e perdão: "Não
temais; acaso, estou eu em lugar de Deus? V Ós, na verdade, inten-
tastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para
fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida"
(Gn 50.19, 20).
Quando José foi acusado falsamente de ter tentado estuprar
a mulher de Potifar, ele superou essa injustiça ao considerá-la uma
provação benéfica proveniente de Deus. Os anos que passou na
prisão foram para ele como um treinamento para desempenhar
um serviço maior. Apenas os verdadeiramente mansos são capazes
de passar por tão duras provações sem sentir mágoas, nem acalentar
um espírito de vingança.
Moisés, segundo dizem as Escrituras, era o homem mais
manso na terra (Nm 12.3). Em que consistia essa sua mansidão?
Existem pelo menos quatro ocasiões em que a mansidão de Moisés
refulge como a estrela da manhã.
1) Quando Moisés renunciou as riquezas, as honrarias e o
poder que lhe pertenciam legalmente como filho da filha do faraó
(cf. Hb 11.24), deu uma demonstração nobre da sua mansidão.
Vale a pena considerar a explicação que a Epístola aos Hebreus
oferece para essa atitude: "Preferindo ser maltratado junto com o
povo de Deus a usufruir prazeres transitórios do pecado; porquanto
considerou o opróbrio de Cristo por maiores riquezas do que os
tesouros do Egito, porque contemplava o galardão" (Hb 11.25,
26). O amor a Deus, ao seu povo e ao galardão futuro pesaram mais
na balança das suas ambições do que todos os privilégios que o
48 ._,,., A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

Egito podia oferecer. O manso verá além dos "prazeres transit6-


rios do pecado" e fará suas escolhas à luz dos fatos como um todo.
2) A mansidão de Moisés é percebida na sua relutância em
aceitar o prestÍgio e o poder que lhe seriam necessários para
conduzir os israelitas para fora do Egito. Segundo parece, a fama
que estava para conquistar pouco ou nada lhe significava. Ver a
gl6ria de Deus era mais importante do que receber a gl6ria deste
mundo (Êx 33.17-23; Jo 5.44). O que Tomás de Kempis escreveu
serve como descrição de Moisés: "Ele não se apaixona por
nenhuma alegria particular dele mesmo, ne~deseja se regozijar
em si mesmo; pelo contrário, deseja, acima de toda coisa boa, ser
feliz ao desfrutar de Deus (SI 17.15; 24.6)". 3
3) A intercessão de Moisés em favor do povo pecaminoso
de Israel retrata, mais uma vez, um homem cuja mansidão forma
o alicerce da sua vida. Deus, na sua fúria, ameaçara destruir os
israelitas rebeldes. Passou, então, a dizer a Moisés que faria dele
uma grande nação para substituir o Israel rebelde (Êx 32.10).
Moisés emprega todos os argumentos imagináveis para desviar a
ira de Deus do seu povo culpado (vv. 11-13). Fazendo assim, renun-
cia a oferta divina de ele mesmo ser pai de outra grandiosa nação.
4) No episódio em que Miriã e Arão falaram contra Moisés
por ter este se casado com uma mulher cusita (Nm 12.1), o texto
faz transparecer novamente a mansidão de Moisés. Não procurou
demonstrar que o seu procedimento tinha sido certo, nem
envergonhar os irmãos que, por inveja, desafiaram a sua liderança.
A lepra que consumia a carne de Miriã foi um castigo da parte de
Deus. Mas Moisés não hesitou em implorar a Deus pela cura da
sua irmã. Nenhum espírito de vinginça apoderou-se do seu
coração. Nesse contexto encontramos a declaração: "Era o varão
Moisés mui manso, mais do que todos os homens que havia sobre
a terra" (Nm 12.3).
A mansidão de Davi, homem segundo o coração de Deus,
também transparece nas páginas das Escrituras. Tinha coragem
A Gloriosa Felicidade dos Mansos ~ 49

extraordinária, até mesmo para atacar um urso e um leão (lSm


17.34-37) bem como o gigante Golias. Nenhum outro guerreiro
ousava enfrentar esse herói dos filisteus. Mas nem por isso Davi
pensava em subverter a autoridade de Saul, nem deu nenhum passo
para destituí-lo do trono. Sem se importar com todas as vezes que
Saul procurou matá-lo, Davi não permitiu que a inveja e o rancor
lhe invadissem o coração. Não permitiu que sua popularidade
viesse a prejudicar o reinado do seu rival.
Tiago faz menção da paciência de J ó, que sofreu grandes
provações, mas acabou vitorioso (Tg 5.11). É impressionante a
mansidão desse sofredor tão célebre. No meio de todas as suas
aflições, mesmo sem poder compreender o sentido das experiên-
cias pelas quais passava, não amaldiçoou a Deus. Confessou que
tinha falado daquilo que não entendia (42.3). Longe de se amar-
gurar diante de tamanho sofrimento, reconheceu que sua expe-
riência com Deus consistira só naquilo que ouvira dizer. Depois,
chegou a ver a Deus e finalmente disse: "Por isso, me abomino e
me arrependo no pó e na cinza" (42.6). Nessa atitude encontramos
a humildade e a mansidão bíblicas.
No Novo Testamento sobressai a mansidão de João Batista.
No auge da sua popularidade apareceu Jesus, o Messias.
Obviamente, havia homens leais a João, dispostos a promover a
sua candidatura à mais cobiçada posição em Israel Go 1.20). Mas
João Batista constantemente relembrava seu imenso auditório que
não era digno nem sequer de desatar as correias das sandálias de
Jesus. João, conforme ele mesmo dizia, batizava na água, mas o
seu sucessor batizaria com o Espírito Santo. Coragem não lhe
faltava, pois não hesitou em denunciar a imoralidade de Herodes
- denúncia que acabou lhe custando a cabeça. Jesus o elogiou
como o maior dos homens nascidos de mulher (Mt 11.11). Tam-
bém o comparou com um caniço no deserto, agitado pelo vento
(v. 8). Homem desprendido, abnegado e destituído de qualquer
desejo de lutar em benefício próprio, João Batista merece a fama
de ser uma das mais mansas figuras da história.
50 'Q..' A FELICIDADE SEGUNDO jESUS

Outro exemplo de mansidão aparece na vida de Timóteo.


Lucas põe em relevo a diferença entre João Marcos, que acom-
panhou Barnabé e Saulo na primeira viagem missionária, e
Timóteo, que o substituiu na segunda viagem. Marcos abandonou
os missionários por motivos não bem esclarecidos, mas suficientes
para Paulo vetar a sugestão de Barnabé de lhe dar uma segunda
chance (At 15.27-28). Em contraste com isso, vejamos o elogio
que Paulo escreveu a respeito de Timóteo: "A ninguém tenho de
igual sentimento que, sinceramente, cuide dos vossos interesses;
pois todos eles buscam o que é seu próprio, não o que é de Cristo
Jesus. E conheceis o seu caráter provado, pois serviu ao evangelho,
junto comigo, como filho ao pai" (Fp 2.20-22). Timóteo aprendeu
com Paulo a aceitar as duras circunstâncias da vida como
investimentos num futuro glorioso (cf. 2Co 4.17). Preocupava-se
mais com o bem-estar dos irmãos nas igrejas do que com as
vantagens que uma vida missionária lhe pudesse proporcionar
(cf. Me 10.29-30).

Jesus, o Grande Exemplo de Mansidão


Jesus era manso e humilde (Mt 11.29), e por isso devemos
considerar com cuidado quais eram as suas atitudes e como reagia
diante das circunstâncias que tinha de enfrentar.
Enquanto criança, Jesus obedeceu a seus pais (Lc 2.51),
embora tivesse o direito de lhes ditar ordens. Seu conhecimento
perfeito do certo e do errado não interferiu em sua submissão às
vontades humanas imperfeitas de José e Maria. Embora saibamos
bem pouco a respeito da vida de Jesus quando menino em casa,
não se vêem nele nenhum ressentimento nem expressões
arrogantes de superioridade.
Jesus se "esvaziou" quando deixou sua glória preexistente a
fim de assumir a forma de um servo. As circunstâncias da pobreza
e da servidão, porém, não provocaram hostilidade no seu coração.
A mansidão era o alicerce da sua atitude para com todas as circuns-
A Gloriosa Felicidade dos Mansos ~ 51

tâncias da vida. Ele não buscou a igualdade com Deus. (Fp 2.6),
ao contrário de Adão, que tentou usurpá-la.
O Espírito levou Jesus ao deserto para ser tentado pelo diabo.
Quarenta dias de jejum e de lutas contra o grande adversário não
produziram nenhum sinal de desgosto nem de autocomiseração
lamuriante. Sua mansidão venceu o inimigo, pois Satanás não
achou nele nenhum ponto fraco por onde pudesse influenciá-lo.
Sua extrema fraqueza física como homem, depois de jejuar durante
quase seis semanas, não o obrigou a nenhuma mudança na sua
atitude. Estava totalmente dentro de sua capacidade transformar
as pedras em pães para saciar a fome, mas pensaria em fazer isso
somente se seu Pai assim desejasse que fizesse. Jesus é o exemplo
de como um homem manso sempre deixa Deus determinar o
que é melhor em todas as circunstâncias.
Jesus bebeu o cálice que o Pai lhe deu, a despeito de ser um
cálice de extrema amargura, e isso sem o menor sinal de rancor
nem de hostilidade (Lc 22.41). Até mesmo a injustiça da cruz,
exigida pelos cruéis clamores da multidão amotinada e sedenta
de sangue, não abalou a mansidão que sempre fez parte da sua
pessoa: "Foi obediente até à morte, e morte de cruz" (Fp 2.8). Em
favor dos que o crucificavam, Jesus pediu que o Pai lhes perdoasse.
Gerald McDermott conta a história de Elizabeth Morris,
mãe de um filho único que, aos 18 anos de idade, foi atropelado e
morto por um motorista bêbado. Essa mãe sentiu-se acometida
por dor e mágoa indescritÍveis. Além disso, ela se encheu de ódio
venenoso contra Tommy Pigage, um balconista que, aos 24 anos
de idade, matara o filho dela. Esse ódio cheio de mágoa aumentou
quando o tribunal concedeu a Tommy liberdade condicional, em
vez de condená-lo a longos anos de cadeia. Tommy, porém, violou
os termos da condicional e acabou indo para a cadeia. Elizabeth
sentiu-se compelida a visitá-lo. Enquanto conversavam, Tommy
exclamou, de repente:
52 'Q.' A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

"Sra. Morris, [... ]eu lamento tanto. Por favor, me perdoe." Até
essa hora parecera impossível perdoar, mas pela primeira vez
Elisabeth viu Tommy não como o assassino do seu filho, mas
como alguém que precisava de amor e orientação. Ela perdoou
Tommy e pediu-lhe que a perdoasse por tê-lo odiado. Tommy
foi batizado na igrej:,i dos Morris pelo marido de Elisabeth,
Frank, e o casal pediu ao juiz que os deixasse buscá-lo todo
domingo para o culto. Em pouco tempo ele estava passando
todos os domingos na cust6dia deles, almoçando com eles depois
do culto e estudando a Bíblia com eles por quase toda a tarde,
até ser levado de volta à cadeia. A última notícia que tive é que
Tommy estava novamente em liberdade condicional e não bebera
mais desde que fora solto. 4
A mansidão é o elemento-chave dessa história, pois deu a
Elizabeth a possibilidade de perdoar um inimigo. Isso não lhe
trouxe o filho de volta da sepultura, mas certamente trouxe outra
pessoa da morte para a vida.
"Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo" (Rm 13.14). Com essas
palavras, Paulo apela aos leitores romanos para inculcarem no
coração a virtude da mansidão. A alguns dos cristãos em Corinto
faltava principalmente essa qualidade, de modo que Paulo apela a
eles:" ... pela mansidão e benignidade de Cristo" (2Co 10.1). Jesus
incluiu a mansidão entre as virtudes que seus discípulos apren-
deriam se aceitassem o seu jugo e se tornassem seus discípulos
(Mt 11.28-30).

A Mansidão na Prática
Em primeiro lugar, a mansidão nos ensina a sofrer sem
reclamações. Pedro aponta para Jesus como nosso exemplo: "Para
isto mesmo fostes chamados, pois que também Cristo sofreu em
vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos,
o qual não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua
boca, pois ele, quando ultrajado, não revidava com ultraje; quando
maltratado, não fazia ameaças, mas entregava-se àquele que julga
retamente" (1Pe 2.21-23).
A Gloriosa Felicidade dos Mansos ._...., 53

O silêncio de Jesus diante dos seus acusadores deixou Pedro


muito impressionado. Conhecia a Jesus tão bem que podia
compreender que seu silêncio não foi causado por medo nem por
timidez. Sua explicação inspirada indica especificamente que Jesus
entregou seus direitos ao Pai, ao Juiz soberano. Se aprendermos
de Jesus, levaremos muito a sério o conselho de Tiago: "Se alguém
não tropeça no falar, é perfeito varão" (Tg 3.2). Uma das muitas
maneiras de tropeçarmos freqüentemente com a língua é defender
a nós mesmos ou responder à crÍtica com acusações ríspidas.
Os primeiros cristãos foram acusados dos crimes mais
horrendos, tais como infanticídio e ateísmo. Escarnecedores
espalhavam boatos de que os cristãos, durante suas reuniões
fechadas, devoravam seus próprios filhos. Afinal de contas, diziam
na ceia do Senhor: "Este é o meu corpo... tomai e comei". Mas a
mansidão dos santos desmentia tais tentativas de arruinar a sua
reputação. Não era segredo que sustentavam viúvas e órfãos. Antes
do fim do século 1, a igreja em Roma estava sustentando 1 500
viúvas. Três mil órfãos e viúvas em Antioquia {na Síria) deviam
aos cristãos a sua sobrevivência.
Hoje em dia, nós, cristãos, tendemos a ser mais conhecidos
pelos nossos protestos do que pelo nosso amor prático. É fácil
criticar, mas o efeito pode ser negativo, principalmente no caso
da crítica hostil ou irada. Não é necessariamente errado confrontar
o mal, mas se o propósito final da correção for esquecido, vociferar
com língua venenosa ou escrever uma carta explosiva pode
provocar mais danos do que o bem. Nosso objetivo na vida é
demonstrar que Cristo é a resposta aos problemas de todos os
tipos, tanto pessoais quanto nacionais. Pedro, no entanto, garante-
nos que é melhor reagir com mansidão.
Em segundo lugar, a mansidão facilita a renúncia que Deus
requer dos seus filhos. Jesus disse: "Assim, pois, todo aquele que
dentre vós não renuncia a tudo quanto tem não pode ser meu
discípulo" (Lc 14.33). Fica claro que essa renúncia cristã não requer
54 "Q.' A FELICIDADE SEGUNDO jESUS

que abandonemos nosso lar e família, nosso emprego ou casa


para ir morar debaixo de uma ponte, mendigando. Renunciar a
tudo é uma questão de entregar nossos direitos egoístas e pessoais.
Envolve o novo relacionamento entre o cristão e o seu Senhor.
Quando declaramos que Jesus Cristo é o Senhor da nossa vida,
afirmamos que somos seus escravos. O escravo, por definição,
nada possui. A comida que come, a cama em que dorme, o dinhei-
ro que gasta, tudo pertence ao seu senhor. O escravo nunca pode
esquecer-se de que nada possui, porque ele mesmo e tudo quanto
tem pertencem ao senhor que o comprou.
Um jovem missionário, Jim Elliot, disse antes de oferecer
sua vida como mártir no esforço para evangelizar os índios
selvagens da floresta amazônica no Equador, em 1956: "Não é
tolo quem abre mão do que não pode reter para segurar firme
aquilo que não pode perder". Jesus declarou esse princípio para a
vida cristã: "Pois quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; quem
perder a vida por minha causa, esse a salvará" (Lc 9.24). Aí está o
coração da mansidão: perder os direitos à vida e a todos os valores
que a acompanham.
Barbara Youderian ficou viúva em virtude do mesmo
massacre dos cinco jovens no qual morreuJim Elliot. Ela escreveu
no seu diário:
Esta noite o Capitão nos informou sobre a descoberta de quatro
corpos no rio. Um deles vestia camiseta e jeans. Rogério era o
único que os vestia. Há dois dias, Deus me deu o seguinte
versículo, que se acha em Salmos 48.14: " ... este é Deus, o nosso
Deus para todo o sempre; ele será nosso guia até à morte". Ao
me confrontar com a notícia da morte de Rogério, meu coração
ficou transbordando de louvor. Ele foi digno da sua ida para o
lar celeste. Ajude-me, Senhor, a ser mãe e pai. 5
O louvor que encheu o coração de Barbara foi possível por-
que ela já se formara na escola da mansidão.
Em terceiro lugar, a mansidão nos instrui no santo proce-
dimento em nossos relacionamentos no lar. Milhares de mulheres
A Gloriosa Felicidade dos Mansos ~ 55

cristãs convivem com maridos incrédulos. Milhares de filhos


moram com pais não-cristãos. As circunstâncias de muitos desses
crentes os pressionam a resmungar, reagir e condenar as pessoas
que Deus colocou para aperfeiçoá-los.
Pedro escreveu às mulheres nas igrejas da Ásia Menor:
"Mulheres, sede vós, igualmente, submissas a vosso próprio
marido, para que, se ele ainda não obedece à palavra, seja ganho,
sem palavra alguma, por meio do procedimento de sua esposa ao
observarem o vosso honesto comportamento cheio de temor" (1Pe
3.1, 2). A atitude da esposa num lar misto deve demonstrar a
mansidão que se espera de um escravo. A palavra "igualmente",
do versículo 1, chama a atenção do leitor aos versículos anteriores.
Neles, Pedro exorta os escravos a serem submissos aos seus
senhores "com todo temor" (2.18). Ele argumenta que o sofrimento
injusto é grato a Deus, isto é, agrada a ele, porque reflete o caráter
do Senhor Jesus (v. 20).
Quando os crentes sofrem abusos e injustiças dentro do lar,
é possível que se criem ressentimentos profundos. Feridas pro-
vocadas pelas pessoas que devem nos amar e cuidar levam muitos
a concluir que os sofrimentos são ataques do diabo. Um espírito
manso ajudará as vÍtimas a decidir calmamente se ficar em casa
terá um fim positivo ou se estará meramente encorajando o mal.
Walter Hilton diz em seu livro 1he Ladder ofPerfection (A escada
da perfeição), do século xrv:
Quando falta essa virtude (a mansidão), a igreja fica infiltrada
pelo obscurecimento da imagem de Cristo. "Creio que a alma
que realmente reconheceu sua própria impureza obscurecida não
fica mais vulnerável à luz falsificada (os enganadores espirituais).
Isso quer dizer que quando uma pessoa resolve realmente, e sem
reservas, abandonar o amor ao mundo e é capacitada pela graça
a ter consciência espiritual e conhecimento de si mesma,
mantendo-se com mansidão nessa experiência, não será enganada
por erros, heresias ou fantasias". 6
56 ._...., A FELICIDADE SEGUNDO jESUS

Segundo Hilton, o primeiro degrau para subir na escada é a


mansidão. Sem ela, nenhuma das demais virtudes, tais como
brandura, paciência, retidão de coração, força espiritual,
temperança, pureza, paz, sobriedade, fé, esperança e amor, pode
ser alcançada. As pressões de um lar onde Deus é desonrado, onde
falta amor e onde abusar é a norma, podem ser o modo de Deus
ensinar mansidão ao seu filho. Exatamente naquelas situações nas
quais faltam as virtudes cristãs, podemos descobrir quão longe
estamos da mansidão. Nossa maneira de reagir aos pecadores em
casa e na igreja pode revelar essa falta. Diz Hilton:
Se você não se sentir indignado contra uma pessoa assim
(pecadora), irado, embora finja exteriormente estar alegre, e se
não acalentar 6dio secreto no coração, desprezando-a, julgando-a
ou considerando-a indigna; se você, quando ela intensificar o
modo vergonhoso e vil de tratar você, em palavras e ações,
demonstrar-lhe cada vez mais piedade e compaixão, quase como
você faria com uma pessoa emocional ou mentalmente
perturbada; e se você for tão impulsionado pelo amor que
realmente não consiga descobrir no seu coração nenhuma
tendência para odiá-la, mas se, pelo contrário, você orar por ela,
prestar-lhe socorro e desejar o melhor para ela (não da boca
para fora, como os hip6critas fazem, mas com o sentimento
genuíno de amor no seu coração), então você estará em perfeita
caridade para com seu irmão cristão. 7
Meios Eficazes para Aumentar a Mansidão
Primeiro, é recomendável fazer um ato de entrega dos seus
direitos a Deus. Deve-se confirmar no coração que as posses (que
os crentes carnais e mundanos declaram ser deles) não lhe
pertencem na realidade. Se Deus é reconhecidamente o dono de
tudo ql,lanto é "nosso", não podemos sentir grande tristeza se ele
tirar o que nos foi emprestado. Certa tarde, no Rio Grande do
Sul, a.conteceu o seguinte: irmãos evangélicos estavam ouvindo
os princípios da mansidão e da importância de abrir mão dos
direitos sobre todos os nossos pertences. De repente, certo irmão
teve uma crise de tosse. Saiu da reunião. Ficou chocado ao perceber
A Gloriosa Felicidade dos Mansos 'Q..' 57

que havia um espaço vago exatamente onde tinha deixado o seu


carro uma hora antes. Ficou indignado, disposto a matar o ladrão,
se descobrisse quem ele era. Mas acalmou-se ao relembrar o que
estava sendo ministrado na reunião. A raiva cedeu lugar à gratidão
e ao louvor. No dia seguinte, chegando ao trabalho, sua atitude
tão mudada foi o meio que Deus usou para penetrar no coração
de alguns colegas que havia muito precisavam de um testemunho
cristão verdadeiro.
Segundo, pensar seriamente sobre a soberania de Deus. Ele
é nosso Pai. \Não permitirá que nada aconteça que não seja para
nosso próprio bem. Assim ensinou Paulo na Epístola aos Roma-
nos: "Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles
que amam a Deus... " (8.28). Alguns dos melhores manuscritos
dizem: "Deus faz com que todas as coisas cooperem para o bem ... "
Somos tentados a pensar nos eventos da vida como os evo-
lucionistas que apostam no acaso. Não somos fatalistas como os
muçulmanos que defendem Alá, um deus quase impessoal, sem
'NM as nos
amor e sem compa1xao.
1
"sab " que nad a acontece
emos
fora do seu controle. O que muitas vezes não entendemos é o
porquê, nem reconhecemos os benefícios do "mal" que nos
acomete.
Não é suficiente entregar nossos direitos sobre coisas e
acontecimentos. Devemos, também, ceder os direitos sobre nossa
boa reputação. Quem é realmente manso não se sente lesado pelas
flechas acusatórias, traiçoeiramente lançadas contra sua pessoa.
Muitas vezes, somos alvo da inveja e dos ciúmes. Se reconhecermos
a corrupção profunda do nosso coração, com grande freqüência
descobriremos um elemento de verdade nas acusações lançadas
contra nós. Entre as marcas da carne pecaminosa estão as mágoas
e o desejo de nos vingar quando nosso bom nome é atingido. Por
outro lado, perdoar genuinamente reflete a santidade que o Espírito
Santo está gerando em nós.
Os mansos entregam os direitos sobre as pessoas. Quando
um acidente ou uma doença leva um ente querido, ou quando
58 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

perdemos a companhia de um marido, filho ou namorado,


podemos cair na tentação de culpar a Deus. Muitos guardam no
Íntimo uma atitude semelhante ao terceiro servo na parábola dos
talentos. "Senhor, sabendo que és homem severo, que ceifas onde
não semeaste e ajuntas onde não espalhaste, receoso, escondi na
terra o teu talento... " (Mt 25.24-25). Quem tem coração manso
aceita a supremacia de Deus. Reconhece que as agonias desta vida
são passageiras, produzindo um "peso de glória, acima de toda
comparação" (2Co 4.17).
Terceiro, devemos ler as Escrituras com o intuito de nos
examinar. "Verdadeiramente manso é aquele que conhece como é
de verdade e tem consciência disso." 8 Pelo espelho da Palavra,
podemos ver como somos carentes de mansidão (cf. Tg 1.24-27).
De importância secundária, mas ainda significativa, é a necessidade
de ajuda dos homens espirituais do passado. Quem lê as Confissões
de Agostinho e a Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, não
fica decepcionado. Muitos outros poderão nos estimular a
desenvolver a felicidade da mansidão.
Quarto, a oração fervorosa e constante nos dará grande
auxílio na busca de um espírito manso. Todo avanço em direção à
maturidade em Cristo vem em conseqüência da oração fiel e
confiante.

O Galardão dos Mansos


A promessa de Jesus garante aos mansos o privilégio de
herdar a terra. A referência não era a terras Hsicas que passariam
aos mansos nesta vida, no sentido literal. "Nós, porém, segundo
a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra" (2Pe 3.13).
Parece que Pedro não acalentava a esperança de possuir grandes
mansões antes de partir desta vida. Contemplava a nova realidade
que Deus trará no futuro, após o desfecho da história. Todo o
prazer que temos em possuir coisas nesta vida não passa de um
antegozo do santo prazer que teremos na nova terra que Deus nos
A Gloriosa Felicidade dos Mansos ~ 59

dará. Será algo semelhante à alegria que Adão e Eva teriam


desfrutado no jardim do Éden, se o pecado não lhes tivesse
subvertido o coração.
Este galardão foi anunciado por Jesus para nos incentivar a
buscar a mansidão. Quantos relacionamentos e alegrias evaporam
todos os dias por causa da autopromoção, da indignação, da
presunção, da vingança e falta de perdão, da intolerância, das
acusações e críticas que não podem coexistir com a mansidão.
Assim, Deus nos fala do caminho seguro para a felicidade. "Bem-
aventurados os mansos, porque herdarão a terra."

NOTAS
1 NIV Study Bible, Zondervan, 1985, nota sobre Mt 5.5.
2 "The Christian Message to the World" em Great Sermons o/the 20th Century,
ed. P. F. Gunther, Westchester, Crossway Books, 1986, p. 41.
3 A Imitação de Cristo. Chicago: Moody Monthly, s.d., p. 33.
4 McDermott, p. 183-4.

5 J. Piper: Let the Nations be Glad. G. Rapids, Baker Books, 1993, p. 92.
6 Citado por David Jeffrey em "Alive to God", do livro Ladder o/Perfection,

p. 117.
7
D. Jeffey, ibid., p. 157.
8 W. Hilton: The Ladder of Perfectíon, p. 88, citado por D. Jeffrey, op. cit.,

p. 156.
4

A Felicidade dos que


Têm Fome e Sede de Justiça
~

Essa maneira estranha de falar sobre o amor pela justiça


chama a nossa atenção. Fome, todos já experimentaram alguma
vez. Sede, também. Deus criou alimentos e líquidos para saciar
nossa fome e sede. Os efeitos da fome sobre· o corpo são
impressionantes. A fraqueza, a tremedeira, o sentir-se à beira do
desmaio, tudo mostra como nos afeta a falta de glicose no sangue.
A sede aguda ameaça a vida ainda mais rapidamente do que a
fome. Instintivamente, o corpo clama pelos elementos que
necessita para funcionar e sobreviver.
Não é assim que deve sentir nosso espírito quando faltam
nutrientes para o crescimento espiritual? Para alguns crentes, o.
desejo pela comunhão com Deus que sacia a fome pelo Senhor'~
por sua justiça ocorre raramente. Para muitos, nunca ocorre. E o
pior, nesses casos, é que aparentemente não existe nenhum anseio
pela presença de Deus. Não buscam seu suprimento de calorias
para vitalizar sua vida espiritual e afastar a apatia.
A falta de fome física é sinal de doença no corpo. Logo que
um vírus ataca com veemência ou uma infecção infiltra-se no
sistema digestivo, o centro de controle cerebral comunica: "você
não está com fome!" A mãe que percebe que o filho não tem
fome se preocupa. Sabe que isso não é natural. Se não tomar
providências, os efeitos serão desastrosos.
Na linguagem figurada de Jesus, a justiça é o alimento
espiritual que o cristão deseja. A mulher samaritana perdeu a
62 "Q...' A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

fome pela justiça ao buscar as intimidades e prazeres do sexo. Cinco


maridos não saciaram esse desejo natural que, embora implantado
por Deus, os seres humanos deturpam. "Para o perverso não há
paz, diz o SENHOR" (Is 48.22). Isso faz parte da tendência pecami-
nosa que todo homem herdou de Adão. Jesus abriu o entendi-
mento da mulher para que ela reconhecesse o que realmente lhe
traria satisfação. Jesus despertou-lhe a sede de si mesmo Go 4.29).
Quando ela aceitou Jesus pela fé, despertou-se nela o desejo de
santidade pessoal. Em seguida, ela foi o instrumento para despertar
a sede espiritual nos samaritanos de Sicar, que em seguida ela
levou a Jesus.

Que Tipo de Justiça Deve Suscitar


a Fome e a Sede do Cristão?
Dois tipos de justiça enchem as páginas da Bíblia. Há aquela
que Deus nos dá quando cremos em seu Filho. Jesus se torna
nossa justiça e santificação por um ato gracioso de Deus (lCo
1.30;Jr 23.6). Essa justiça segundo a fé é imputada, nunca merecida,
nem paga pelas boas obras que tenhamos realizado. "Abraão creu
em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça" (Rm 4.3; Gn 15.6).
"Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e
sim como dívida. Mas, ao que não trabalha, porém crê naquele
que justifica o Ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça" (Rm
4.4, 5). Para procurarmos essa justiça, é imprescindível ter fome e
sede dela. Como um pecador pode buscar o perdão e crer no
Senhor sem que primeiro Deus lhe conceda essa fome? Thomas
Watson declara: "Veja aqui quão baixo é o preço que Deus coloca
nas coisas celestiais. Trata-se apenas de ter fome e sede. 'Ah! Todos
vós, os que tendes sede, vinde às águas ... e comprai, sem dinheiro
e sem preço"'. 1
O segundo tipo de justiça é a implantada, o fruto do Espírito,
juntamente com todas as evidências do amor de Deus enraizadas
no coração do homem de Deus. Esta é a fome bendita que surge
A Felicidade dos que Têm Fome e Sede de Justiça ~ 63

automaticamente da presença de Deus em nós. "Desejai arden-


temente, como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual,
para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação" (1Pe
2.2). Mas Pedro entende que esse ardente desejo aparecerá somente
na criança com vida, que já experimentou aquele sabor que a leva
a ter gosto pelo Senhor (cf. SI 34.8; 1Pe 2.3).
Não devemos esquecer-nos de que Mateus escreveu sobre a
justiça num contexto judaico da Palestina do século 1. No sermão,
Jesus mostra que a justiça dos discípulos - se pretendem entrar
no reino dos céus - deve exceder em muito a dos escribas e fariseus
(Mt 5.20). Isso mostra que o Senhor não pensava apenas nas boas
ações que os judeus praticavam. Jesus menciona três práticas
"justas": dar esmolas aos pobres, orar e jejuar (Mt 6.1-18). Ele não
condena essas ações, mas contrasta a motivação que impulsionava
os judeus religiosos com a dos crentes sinceros. Os profetas faziam
o mesmo. Ouçamos Isaías: "Se abrires a tua alma ao faminto e far-
tares a alma aflita, então, a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuri-
dão será como o meio-dia" (58.10). A ajuda ao próximo que agrada
a Deus deve surgir de uma alma cheia de compaixão genuína.
A justiça cuida dos necessitados entre o povo de Deus. Tiago
nos lembra de que a religião pura e imaculada se identifica pelo
seu cuidado com as viúvas e órfãos, bem como pelo guardar-se da
contaminação do mundo (Tg 1.27). Um desejo genuíno de suprir
as carências dos pobres é uma maneira de saciar a fome pela justiça.
Mais importante ainda é a abordagem de Paulo. Nem a distribuição
de todos os bens entre os pobres tem proveito algum, a não ser
que seja feita com amor (1Co 13.3). A justiça sem amor, segundo
a Bíblia, não tem aceitação diante de Deus.
A justiça também inclui a oração, mas não as dos hipócritas
que procuram impressionar um público humano (Mt 6.5-8). O
amor profundo pelo Senhor, nosso Pai celeste, deve motivar o
louvor, as ações de graça e as súplicas que compõem a oração. A
oração pode ser enquadrada na justiça que Deus espera da nossa
64 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

parte, se orarmos colocando o SENHOR em primeiro lugar. "Santifi-


cado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade,
assim na terra como no céu" (Mt 6.9-10).Jesus propõe este modelo
para que não tenhamos o pensamento errado de que nossas neces-
sidades importam mais do que a sua glória e vontade. A justiça
desvinculada da glória de Deus é como a casca sem a semente.
A justiça engloba o jejum, mas não o tipo ostensivo que
desfigura o rosto para aparentar santidade (Mt 6.16-18). O jejum
tem de ter o seu incentivo no amor pelo Senhor e no forte desejo
de agradá-lo mediante a abstenção dos alimentos. O jejum de Jesus
no deserto de Judá durou quarenta dias. Foi um ato de coragem e
submissão ao Pai e ao Espírito que o conduziu para lá (Lc 4.1).
Paulo jejuava (2Co 6.5), sem porém explicar o motivo. A igreja
primitiva jejuava regularmente nas quartas e sextas-feiras. Pode
ser que os cristãos achassem que o jejum fortalecia suas orações.
Mateus inclui a justiça no relato do batismo de Jesus. Ele
veio da Galiléia para o Jordão a fim de que João o batizasse (3.13).
João tentou dissuadi-lo, dizendo que, pelo contrário, Jesus deveria
batizar a ele. Mas Jesus respondeu: "Deixa por enquanto, porque,
assim, nos convém cumprir toda a justiça ... " (v. 15). O significado
dessas palavras de Jesus desafia os comentaristas. Provavelmente,
devemos entender que o batismo do Filho de Deus, sem pecado
(v. 17), efetuaria a identificação dos pecados com os eleitos injustos.
O batismo de João era sinal de arrependimento. Mas como poderia
Jesus se arrepender? Segundo o simbolismo, tratar-se-ia de ele
tomar sobre si os pecados daqueles que, pela fé, se aproximariam
dele para receber a sua justiça. O batismo de Jesus teve, portanto,
um significado diferente do batismo dos pecadores, que é a
demonstração de arrependimento (cf. At 2.38).
Outras referências ao batismo de Jesus aponta~ para o
presente e o futuro. Jesus perguntou aos filhos de Zebedeu: "Podeis
vós beber o cálice que eu bebo ou receber o batismo com que eu
sou batizado?" (lit., "estou sendo batizado", Me 10.38). Nesse
contexto, o batismo de Jesus refere-se à sua morte, mediante a
A Felicidade dos que Têm Fome e Sede de Justiça ~ 65

qual, pela graça, a sua justiça vem a ser nossa. Em Lucas, Jesus
disse: "Tenho... um batismo com o qual hei de ser batizado; e
quanto me angustio até que o mesmo se realize" (Lc 12.50).
Novamente, Jesus fala do batismo na morte que outorgaria a justiça
divina a todos os que nele crêem.
Existe uma justiça, portanto, que não se produz por esforço
humano. Vejamos a mensagem de Jesus, após ter multiplicado os
pães para cinco mil homens, conforme João. Nessa ocasião, Jesus
se oferece aos seus ouvintes como o maná celeste, o "pão" que
desce do Pai para dar vida ao mundo. Tanto Mateus quanto João
apresentam Jesus como a justiça que ele trouxe e que oferece
gratuitamente a todos quantos crêem. No entanto, os pecadores
necessitam ter fome espiritual, para tirarem o devido proveito dessa
justiça graciosa da parte de Cristo. Disse Jesus, num contexto que
voltaremos a estudar mais adiante: "Trabalhai, não pela comida
que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna, a qual o
Filho do Homem vos dará; porque Deus, o Pai, o confirmou
com o seu selo" Go 6.27).

Razões Por Que Muitos Não Sentem Fome de Justiça


Watson apresenta sete sintomas dos que não sentem fome
nem sede de justiça. 2 Resumiremos, em seguida, alguns dos seus
pensamentos.
1. Não existe fome quando a alma justa aos seus próprios
olhos fica ensoberbecida com sua própria justiça imaginária (Rm
10.3). A soberba dos que pensam que são bons impede que sintam
o vazio da alma convicta dos seus próprios pecados. O fariseu
descrito por Jesus procurava impressionar, com suas próprias boas
ações, até Deus. Voltou para casa sem ser justificado, ou seja, não
ficou farto com a justiça verdadeira. O publicano, no entanto,
como mendigo faminto, implorou a misericórdia de Deus.
Conforme disse Jesus, foi esse publicano que voltou para casa
"justificado".
66 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

2. Não há fome de Deus e da sua perfeição quando o amor


ao mundo e aos seus deleites enchem o coração. "Se alguém amar
o mundo, o amor do Pai não está nele." 3 Os mundanos queixam-
se da falta de dinheiro, de saúde ou de liberdade, mas nunca
reclamam porque lhes falta retidão pessoal. Quanto àgraça, sentem
tanta falta dela quanto a falta que um cachorro sente de uma
biblioteca. Vendo-se obrigados a passar sem alguma refeição,
sentem-se tratados injustamente, mas qualquer desculpa serve para
não participar do banquete de Deus (Mt 22.3-5).
. 3. Outros estão demasiadamente sonolentos para comer. Vão
à igreja para tirar uma soneca, e não para saciar a alma com o
glorioso alimento da santidade. São como os discípulos no jardim,
que não conseguiram manter-se acordados por tempo suficiente
para cumprir uma única hora de vigília (Me 14.37). A sonolência
e a fome de justiça são mutuamente exclusivas.
4. MuitÍssimos cristãos ficam tão cansados com as atividades
mundanas que não têm mais fome do alimento espiritual. A justiça
não lhes apetece porque, de modo semelhante ao filho pródigo,
estavam demasiadamente ocupados alimentando porcos. As
alfarrobas que os porcos comem não são apetitosas, de modo que
muitos recusam o alimento imprestável que lhes é oferecido.
Muitos se ocupam tanto com as "revelações" que não sentem
nenhum desejo pelo substancial. Essa era a situação dos cristãos
hebreus incapazes de comer "alimento sólido" porque não tinham
posto devidamente em prática as verdades que já conheciam havia
muito tempo (Hb 5.12-14).
5. Existem cristãos que se preocupam mais com os enfeites
exteriores do que com a substância. Avaliam com cuidado a ora-
tória, a gramática, mas deixam totalmente despercebida a substân-
cia. Anos atrás contaram-me que, na Bélgica, as pessoas que
vinham escutar os missionários evangélicos não sentiam o menor
interesse pelo conteúdo da mensagem, mas ficavam profundamente
perturbadas com os erros élo francês dos estrangeiros.
A Felicidade dos que Têm Fome e Sede de Justiça ......., 67

6. É fácil explicar por que há quem sinta pouca fome pelas


coisas de Deus. Levam mais a sério suas diversões e jogos do que
a justiça. Na hora do jantar, as crianças ainda estão jogando futebol.
Os sinais são inconfundíveis. Para as crianças, brincar é mais
gostoso do que comer. Muitos adultos preferem as telenovelas e
os esportes via satélite à Palavra de Deus. Muitas igrejas de classe
média têm experimentado um declínio na fome de justiça em
proporção direta com a prosperidade dos seus membros. A praia
e a montanha têm mais atrativos para eles do que o banquete do
Senhor.
7. Esperaremos em vão a genuína fome e sede de santidade
se as discussões e controvérsias ocuparem o centro do palco.
"Roberto da Gália pensava ter visto em sonho um grandioso ban-
quete, mas alguns dos convidados mordiam pedras duras. Quando
os homens se alimentam somente de questões e controvérsias
duras" (1Tm 6.3-4), 4 é claro que o alimento espiritual nutritivo
será negligenciado. Vão roendo ossos, mas desprezam a carne que
os alimentaria.

Incentivos para a Fome e Sede Espirituais


Posto que a justiça provém da parte de Deus, sentir fome de
justiça é ansiar por Deus, fonte única da justiça. Davi ansiava por
Deus, porque sentia no coração, depois de rompida a comunhão,
um vazio do formato de Deus. "Ó Deus, tu és o meu Deus forte,
eu te busco ansiosamente; a minha alma tem sede de ti; meu corpo
te almeja" (SI 63.1). Logo descreve metaforicamente o que sentia
quando Deus enchia todo o seu ser: "Como de banha e de gordura
farta-se a minha alma" (v. 5).
"Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários ...
o meu cálice transborda" (SI 23.5) é um modo poético de dizer que
Deus convida seus filhos a sentar-se à mesa com ele e a comer até se
saciarem. "Oh! Provai e vede que o SENHOR é bom" (SI 34.8).
68 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

Já tocamos no ensino de Jesus a respeito do Pão que desceu


do céu para dar vida ao mundo Qo 6.33). Alimentar-se de Jesus
outorga a vida eterna (v. 50). O pão que Jesus oferece para os
famintos é a sua carne (v. 51). "Em verdade, em verdade vos digo:
se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o
seu sangue, não tendes vida em vós mesmos" (v. 53). Jesus usou
essa linguagem figurada para ensinar que se não crermos na
realidade histórica da morte de Jesus como sua obra salvífica, não
haverá vida eterna para nós. "O que vem a mim jamais terá fome;
e quem crê em mim jamais terá sede" (v. 35). Assim entendemos
que a vida eterna é oferecida aos que têm fome do Senhor, aos que
crêem que ele é o único alimento que confere vida abundante a
todos os que nele crêem Qo 10.10). Para adquirir esse pão é
necessário trabalhar, embora o Filho o ofereça gratuitamente a
quem o quer (v. 27). Os Ímpios trabalham pelo pão que perece.
Os prazeres e relacionamentos sem Deus murcham e desaparecem
nesta vida. Quem realmente buscar em primeiro lugar o reino de
Deus e a sua justiça receberá o que há de melhor nesse reino, ou
seja, o próprio Senhor.
Mark Twain, um dos mais conhecidos autores norte-
americanos de todos os tempos, definiu bem a tragédia de uma
vida sem fome pela justiça.
Miríades de homens nascem; labutam e suam e se debatem para
obter o seu pão; disputam e ralham e brigam; porfiam por obter
mesquinhas vantagenzinhas um sobre o outro. A velhice vai-se
acercando deles, e as enfermidades se seguem; as vergonhas e
humilhações vão derrubando seus orgulhos e vaidades. Os entes
queridos são tirados deles, e a alegria da vida é transformada em
angústia dorida. O fardo da dor, da preocupação e da desgraça
torna-se mais pesado, ano após ano. Finalmente, morreu a
ambição, morreu o orgulho, morreu a vaidade; no lugar deles,
surge o anseio pela soltura. E, finalmente, a morte chega a eles -
a única dádiva sem veneno que a terra sempre tinha reservada
para eles - e desaparecem de um mundo onde nada valiam, onde
nada realizaram, onde eram um erro e um fracasso e tolice, e
A Felicidade dos que Têm Fome e Sede de justiça "\i.\..' 69
onde não deixaram o mínimo sinal de terem existido - de um
mundo que os lamentará por um dia e os esquecerá para sempre.5
Agostinho mostrou a desgraça do homem que procura satis-
fação em outra fonte que não Jesus Cristo: "Ó Deus, tu nos fizeste
para ti mesmo, e nosso coração não acha repouso até que repouse
em ti". 6
Parece-nos importante reconhecer que referir-nos a Deus
como nosso Pão importa em frisar que ele precisa ser assimilado.
O corpo humano se mantém por um processo maravilhoso de
digestão. Os alimentos são ingeridos e transformados em vários
elementos que os glóbulos do sangue transferem para os bilhões
de células do corpo. Ali são transformados em energia para que
pensemos, andemos e mantenhamos todos os processos corporais
que necessitam de energia. A vida espiritual se mantém por um
processo análogo. O Dr. Paul Brande Philip Yancey descrevem o
triste caso de uma mulher na estação ferroviária em Madras, na
Índia. Os alimentos ingeridos por ela, em vez de fornecerem saúde
e energia, alimentavam um tumor que paulatinamente a matava.7
A própria religião pode criar esse efeito caso Jesus Cristo não seja
o centro, a fonte da vida.
Se bebermos da água viva pela fé no Senhor Q"o 7.37-39), o
Espírito Santo se tornará vida em nós e vivificará outros por nosso
meio. Recebemos energia para adorar e servir. Esse processo
depende da atuação específica do Espírito Santo. Jesus ensinou
claramente que a presença do Espírito nos discípulos Go 14.17)
traria este resultado definido: " .. vós em mim e eu em vós" (v.
20). Jesus recapitula essa verdade no v. 23: "Se alguém me ama,
guardará a minha palavra e meu Pai o amará; e viremos para ele e
faremos nele morada".
A fome e a sede de justiça podem ser saciadas pela Palavra
de Deus. Em suas páginas eternas, inspiradas, Deus guarda mel
(SI 19.10; 119.103) e leite genuíno (1Pe 2.2). Nas Escrituras encon-
tramos a segunda razão da fome abençoada.
70 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

O diabo tentou Jesus a satisfazer sua fome física transforman-


do em pães algumas pedras que abundavam na região. Jesus, porém,
repudiou essa investida, declarando: "Não só de pão viverá o
homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus" (Mt
4.4; Dt 8.3). Pode-se concluir, do paralelismo hebraico aqui envol-
vido, que, assim como o pão mantém a vida do corpo, a Palavra
de Deus mantém a vida espiritual. Quando a pessoa perde o gosto
pelas sagradas letras e faltam-lhe fome e sede por esse alimento
divino, as conseqüências são óbvias: crentes raquíticos, carentes
de vitalidade e energia para gastar no serviço do Rei Jesus. Paulo
declara enfaticamente a respeito dele e dos seus colegas: " ... não
desfalecemos ... não desanimamos" (2Co 4.1, 16). Eles evitavam
os efeitos naturais da subnutrição, alimentando-se bem da Palavra
(2Co 3.14).
"Achadas as tuas palavras, logo as comi; as tuas palavras me
foram gozo e alegria para o coração... " Qr 15.16). A alegria de
assimilar a Palavra de Deus provém da satisfação de saber que ele·
falou conosco e nos comunica a sua verdade. Para ter saúde
espiritual o cristão precisa ser obediente. Mas muitos têm dificul-
dade em obedecer, porque não conhecem a vontade do seu Senhor
(cf. Lc 12.48).
"A glória de um homem bom é o testemunho de uma boa
consciência", diz Tomás de Kempis. 8 Aqui descobrimos a terceira
razão que motiva o homem a buscar a justiça com o mesmo anseio
de um cachorro faminto que corre atrás de um coelho. A
consciência maculada é um fardo pesado para carregar. O ap6stolo
Paulo fez alusão a isso quando disse: " ... me esforço por ter sempre
consciência pura diante de Deus e dos homens" (At 24.16).
Acredito que seu esforço se explica não somente no desejo de
alcançar "justa preeminência e muita intrepidez na fé em Cristo
Jesus" (lTm 3.13), mas também porque uma má consciência
intranqüiliza e cria ansiedade. Paulo sentia no coração que tinha
a aprovação de Deus, o que vale muito mais do que a pessoa que
se auto-recomenda (2Co 10.18).
A Felicidade dos que Têm Fome e Sede de Justiça ._,,,,, 71

Sugestões para Aumentar a Fome e a Sede de Justiça


A fome e a sede representam o desejo do cristão consagrado.
Gaynor Banks disse:
O desejo é uma força poderosa, um dos atributos mais divinos
que você tem! "Tudo quanto em oração pedirdes, crede que
recebestes, e será assim convosco." Veja a qualidade divina do
desejo. Faz parte da energia atômica da alma. O reino do céu
dentro de você funciona por meio do desejo. Não o apague,
nem o esmague, nem o suprima. Pelo contrário, ofereça-o a mim.
Ofereça-me seus desejos mais elementares, seus anseios pela
felicidade, pelo amor, pelo bem-estar, pelo sucesso, pela alegria,
em qualquer nível do seu ser - ofereça-os livremente a mim e eu
os transmutarei de tal maneira que você conseguirá libertação,
realização e isenção total da frustração. 9
O desejo de comer - a "fome" - pressupõe saúde perfeita.
Qualquer ferimento ou infecção pode prejudicar a saúde e resultar
na diminuição da fome. Logo após a ressurreição da filha de Jairo,
Jesus mandou que os pais lhe dessem algo para comer. Seguramen-
te, ela não se havia alimentado nos dias que precederam sua morte.
Depois de recuperar a vida e a saúde, a menina sentia fome. Jesus
lembrou aos pais que ela precisaria comer. Toda mãe que já cuidou
de um bebê pode perceber a Íntima relação entre a saúde e a fome.
A fome e a sede aumentam com exercícios físicos. Queimar
calorias e transpirar provocam um clamor natural por comida e
bebida. Acontece o mesmo no serviço do Senhor. Os esforços
despendidos no exercício da justiça suscitam a fome espiritual. A
anemia, a falta de apetite e a má nutrição são sinais de apatia e de
falta de interesse pela busca do reino de Deus e da sua justiça. O
Médico Divino recomenda a tais pacientes: "Exercita-te, pessoal-
mente, na piedade. Pois o exercício físico para pouco é proveitoso,
mas a piedade para tudo é proveitosa porque tem a promessa da
vida que agora é e da que há .de ser" (1 Tm 4.7, 8).
72 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

O Galardão dos que Sentem Fome e Sede de Justiça


O galardão dos famintos por justiça é a fartura que Deus
lhes dará. Serão satisfeitos, assim como o Servo do SENHOR, que
"verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito"
(Is 53.11). Deus providenciará o banquete dos justos, que se
fartarão. Na festa das bodas do filho do rei (Mt 22.1-14), os
convidados não compareceram porque tinham outros interesses.
Eles com certeza não sentiram fome pelo banquete especial. Mas
para os que tomaram os seus assentos - os mendigos, os indigentes,
os famintos e os favelados - o banquete foi uma festa incomparável.
Por duas razões eles foram os mais bem-aventurados. Primeira,
porque é óbvio que receberam um privilégio imerecido, o qual
nem em sonhos poderiam imaginar. Segunda, porque estavam
realmente com fome. A alegria desfrutada pelos convidados de
um banquete deve ser proporcional à fome que sentem.
Os santos que estão esperando as Bodas do Cordeiro podem
antegozar com inestimável prazer o tomar assento à mesa com
Jesus Cristo em seu reino (Lc 14.15; Ap 19.9). A essa altura a
promessa da perfeição já terá sido concretizada. Já não haverá
mácula nas vestes dos redimidos que as lavaram no sangue do
Cordeiro. Finalmente, a justiça de Cristo, a nós imputada, será
transformada em justiça de Deus como realidade concreta. "Santos
e irrepreensíveis" (Ef 1.4) são termos que descrevem a perfeição
do cristão, que então passará a ser uma realidade inabalável.
Quando tocar a última trombeta, num abrir e fechar de olhos,
todo o esforço gasto na busca da justiça será coroado pela justiça
concreta, e essa bem-aventurança tornar-se-á uma realidade eterna.

NOTAS
1
Is 55.1, The Beatitudes, p. 123.
2 Veja p. 124-126.
3
lJo 2.1.5. Cf. R. Shedd: O Mundo, a Carne e o Diabo, São Paulo: Vida Nova,
1991, p. 37.
4
Watson, op. cit., p. 126.
A Felicidade dos que Têm Fome e Sede de Justiça "Q..' 73
5 Autobiography, vol. II, p. 37, citado em Albertus Pieters: Fundamentos da

Doutrina Cristã, trad. Gordon Chown, São Paulo: Vida Nova, 1979, p. 6.
6
Citado, ibid., p. 7.
7
As Maravilhas do Corpo, trad. Adiel Almeida de Oliveira, São Paulo: Vida
Nova, 1989:
8 Op. cit., p. 72.
9 Citado em Leane Payne: Listening Prayer. Gr. Rapids: Baker Books, 1994,

p. 29-30.
5

A Felicidade dos
Misericordiosos
~

Duas definições principais nos ajudarão a focalizar a nossa


atenção na bem-aventurança dos misericordiosos. Em primeiro
lugar, a misericórdia é uma qualidade divina pela qual a compaixão
nos afeta de modo suficientemente profundo para nos fazer
procurar aliviar o sofrimento do próximo. É compaixão ativa
por aqueles que sofrem. Assim como o bom samaritano, que achou
o judeu ferido na estrada de Jericó e lhe demonstrou bondade
inesperada, todos os misericordiosos agirão de modo semelhante.
"Misericordioso" também descreve a pessoa que perdoa ao
malfeitor que pratica o mal sofrido pelo inocente. E, portanto, a
disposição de oferecer perdão àqueles que podem ou não merecê-
lo. Novamente, é Deus quem oferece o melhor exemplo. Considere
o salmo 103.8: "O SENHOR é misericordioso e compassivo;
longânimo e assaz benigno". O refrão do salmo 136 repete-se 26
vezes: "Porque a sua misericórdia dura para sempre". Paulo explica
a maravilha da salvação em decorrência da rica misericórdia de
Deus: " ... por causa do grande amor com que nos amou" (Ef 2.4).
O amor se transforma em misericórdia no instante em que ele
cria compaixão e se traduz em ações que visam solucionar o
problema do necessitado. "O Senhor é cheio de terna misericórdia
e compassivo" (Tg 5.11).
Mas será a misericórdia idêntica à graça? Certo pastor quis
esclarecer essa questão ao seu filho. Este desobedecera ao pai, que
declarou que iria castigá-lo com dez cintadas na região criada por
76 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

Deus para exercitar as crianças em seus caminhos. Quando o pai


levou para o quarto o filho desobediente e lhe ordenou que se
ajoelha-se ao lado da cama, só lhe deu cinco cintadas. O filho
ficou perplexo: "Não fiquei de receber dez?" "Sim", disse o pai,
"mas quero que você compreenda o que é a misericórdia". Mais
tarde, convidou o filho para sair e tomar um sorvete. "Mas não
estou de castigo?" "Sim, é verdade, mas quero que você entenda o
que é a graça." Dessa maneira, o pai sábio ensinou uma lição que
o filho não poderia mais esquecer.
Porque Deus é um Deus misericordioso, exige que as suas
criaturas, criadas à sua imagem, também sejam misericordiosas.
"Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR
pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes
humildemente com o teu Deus" (Mq 6.8).
Essa qualidade da misericórdia é tão fundamental aos olhos
de Deus que, se um cristão não perdoar ao irmão, deve saber que
Deus aplicará contra ele, o incompassivo, o pleno rigor da lei.
"Porque, se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso
Pai celeste vos perdoará; se, porém, não perdoardes aos homens ...
tampouco vosso Pai vos perdoará" (Mt 6.14-15).
Certa ocasião, Pedro perguntou ao Senhor quantas vezes
seria necessário perdoar um cristão que pecasse contra seu irmão.
Pedro sugeriu sete vezes. Jesus, no entanto, respondeu que perdoar
somente sete vezes era demonstrar pouca misericórdia. Antes,
setenta vezes sete seria um númen;> razoável de delitos a serem
perdoados. O Mestre passou, então~ a deixar essa lição mais clara
ainda por meio de uma parábola. Certo rei resolveu "ajustar contas
com os seus servos" (Mt 18.23). Um deles devia a soma
astronômica de dez mil talentos, uma soma tão absurda que uma
vida inteira de trabalho obteria somente uma fração do dinheiro
necessário para pagar a dívida. Ordenou-se que o devedor e sua
família fossem vendidos a fim de saldar pelo menos parte da dívida.
O devedor rogou por misericórdia. O rei lhe perdoou a dívida. O
devedor, porém, lembrou-se de que outro servo lhe devia uma
A Felicidade dos Misericordiosos ~ 77

pequena soma de cem denários; agarrou-o e, quase estrangulan-


do-o, exigiu que lhe pagasse a dívida. O pobre homem caiu aos
seus pés, implorando paciência e garantindo que pagaria a dívida
integralmente. Quando o rei descobriu o que aquele servo devedor
fizera, mandou convocá-lo. Por que não tratara seu conservo com
o mesmo tipo de misericórdia que ele mesmo recebera? "E,
indignando-se, o seu senhor o entregou aos verdugos, até que lhe
pagasse toda a dívida" (v. 34). Essa é a reação que podemos esperar
da parte de Deus, "se do íntimo não perdoardes cada um a seu
irmão" (v. 35).
Fica amplamente clara a lição que Jesus quis ensinar. Os
incompassivos serão tratados sem misericórdia. Por outro lado,
os misericordiosos são os bem-aventurados que recebem a
misericórdia de Deus, agora e por toda a eternidade.

Razões para o Exercício da Misericórdia


A primeira razão para o exercício da misericórdia acha-se
no texto acima. Os misericordiosos têm motivo para esperar
misericórdia da parte de Deus. Essa quinta bem-aventurança, é
óbvio, não é um texto que ensina a salvação pelas boas obras ..
Toda pessoa que não confessou seus pecados e confiou no Salvador
misericordioso não tem a menor esperança de receber misericórdia
no dia do juízo, por mais misericórdia que ela tenha demonstrado.
Esse é um texto para os crentes, irmãos na família de Deus, salvos
pela graça (Ef 2.8, 9).
A segunda razão brota da própria misericórdia de Deus.
Nós, que levamos o seu nome, devemos evidenciar algumas das
características do Pai que nos deu vida. João escreve com muita
clareza: "Ora, aquele que possuir recursos deste mundo, e vir a
seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o seu coração, como
pode permanecer nele o amor de Deus?" (1Jo 3.17).
A terceira razão é o exemplo do Senhor Jesus, a quem temos
a obrigação de imitar. A sua compaixão pelos desafortunados era
78 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

bem conhecida. "Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas,


porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm
pastor" (Mt 9.36). A compaixão de Jesus estendia-se às multidões
de ovelhas sem pastor, ou seja: aqueles que não têm ninguém para
cuidar deles nem protegê-los.
O quarto incentivo para demonstrar misericórdia acha-se
nos galardões que, segundo as promessas na Bíblia, serão dados
copiosamente aos misericordiosos. Os cristãos que têm compaixão
dos desafortunados e piedade dos que sofrem têm a garantia da
felicidade eterna. A misericórdia de Deus lhes está prometida.
Paulo menciona o dpm (charisma) da misericórdia em
último lugar na lista dos dons, em Romanos 12.6-8. Mas não
devemos concluir que, por estar no fim da lista, seja de menos
. ~ .
importancia que os outros.
Foi a riqueza da misericórdia de Deus que o levou a sacrificar
o seu Filho por nós (Ef 2.4). Seu amor sem limites manifestou-se
em misericórdia logo que se viu confrontado com a desgraça dos
seus filhos. A compaixão que Deus sentiu pelos pecadores motivou
o plano de resgatar os que estavam "mortos em delitos e pecados"
(Ef 2.1). A realização histórica dessa compaixão divina encontra-
se na cruz. As agonias da morte voluntária de Jesus Cristo não
tinham outro motivo senão a sua misericórdia. Foi o mesmo
sentimento que arrancou do coração de Jesus, vitimado pela inveja
e pelo ódio dos homens, a seguinte petição: "Pai, perdoa-lhes,
porque não sabem o que fazem" (Lc 22.34).
O ap6stolo Paulo também revela sua alegria em poder sofrer
pelos colossenses e em preencher o que faltava dos sofrimentos
de Cristo em favor do seu Corpo (1.24). Nessa identificação com
a morte expiatória de Jesus, Paulo focaliza o papel dos servos de
Deus que escolhem voluntariamente pagar o preço de levar o evan-
gelho aos perdidos. Certamente isso não significa que Paulo achava
que suas agonias tinham algum valor ou mérito que pudesse
diminuir o castigo merecido por transgressores como os colossen-
A Felicidade dos Misericordiosos ~ 79

ses. Os sofrimentos de grandes heróis da fé e "santos" não têm


nenhum valor sub-rogatório, conforme alguns têm ensinado. Tão-
somente Jesus, o Cordeiro de Deus, pode absolver de pecados
mediante a sua morte expiatória (cf. Jo 1.29).
Em alguns casos, no entanto, o privilégio de semear as boas-
novas da salvação em Cristo custa o derramamento de sangue.
Vale a pena contar um exemplo empolgante. Trata-se da história
de um guerreiro masai da África, que assistiu à conferência para
evangelistas itinerantes em Amsterdã, na década de 1980.
Certo dia, José, que estava andando por uma daquelas estradas
de chão quentes e poeirentas da África, encontrou-se com alguém
que compartilhou com ele o evangelho de Jesus Cristo. Ali
mesmo, na hora, aceitou Jesus como seu Senhor e Salvador. O
poder do Espírito começou a transformar a sua vida; ficou
transbordando de tamanha emoção e alegria que a primeira coisa
que queria fazer era voltar à sua própria aldeia e compartilhar
aquelas mesmas boas-novas com os membros da sua tribo.
José começou a ir de porta em porta, contando a todos a respeito
da cruz de Jesus e da salvação oferecida por ela, esperando que
os rostos deles se iluminassem da mesma maneira que acontecera
consigo mesmo. Ficou atônito, porém, quando os aldeões, além
de nem se importarem com a salvação, ainda por cima ficaram
violentos. Os homens da aldeia agarraram-no e o mantiveram
preso no chão enquanto as mulheres lhe davam chicotadas com
fios de arame farpado. Foi arrastado para fora da aldeia e deixado
para morrer sozinho no matagal.
Com grande esforço, José conseguiu arrastar o seu corpo para
onde havia uma cacimba e ali, depois de passar dias alternando
entre os estados de consciência e de inconsciência, reuniu forças
para se colocar em pé. Não conseguia compreender a recepção
hostil da parte de pessoas que tinha conhecido durante toda a
sua vida. Chegou à conclusão de que talvez tivesse omitido algum
detalhe na história de Jesus ou a tivesse contado incorretamente.
Depois de repassar mentalmente a mensagem cristã que ouvira,
resolver voltar e, de novo, compartilhar a sua fé.
José entrou manquejando no círculo de palhoças da aldeia e
começou a proclamar Jesus. "Ele morreu por vocês, a fim de
que recebam o perdão e conheçam o Deus vivo", implorou. De
80 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

novo, os homens da aldeia agarraram-no, enquanto as mulheres


o surravam, reabrindo feridas que estavam começando a sarar.
Outra vez arrastaram-no inconsciente para fora da aldeia, onde
o deixaram para morrer.
Ter sobrevivido à primeira surra era realmente notável. S6 por
milagre acabou sobrevivendo à segunda. Mais uma vez, dias
depois, José acordou no matagal, com lesões e escoriações -
decidido a voltar.
Quando chegou de volta à aldeia, atacaram-no antes de sequer
ele abrir a boca. Enquanto o espancavam pela terceira e talvez a
última vez, falou-lhes novamente a respeito do Senhor Jesus
Cristo. Antes de perder a consciência, a última coisa que viu foi
que as mulheres que batiam nele começaram a chorar.
Dessa vez, acordou na sua própria cama. Aqueles que o tinham
espancado com tanta severidade estavam agora se esforçando para
salvar a sua vida e para lhe recuperar a saúde. A aldeia inteira
aceitara Cristo. 1
Todos os dias, em muitas partes do mundo, há cristãos
sofrendo pela sua fé. Esses sofrimentos poderiam ser evitados se
eles simplesmente mantivessem silêncio, deixando que o mundo
condenado em seu redor permanecesse debaixo da ira de Deus Go
3.36). Mas a compaixão e a misericórdia não lhes permitem guardar
silêncio.
Foi essa misericórdia persistente que motivou o capelão
Khoo, de Cingapura, a visitar o cárcere principal e procurar o
criminoso mais perigoso do país, que tinha sido preso havia pouco
tempo... Fora condenado à morte pelos seus muitos crimes, mas
o pastor Khoo não conseguia fugir à pressão que o levou a dizer:
"Jesus o ama, e eu também". O assassino cuspiu no seu rosto.
Lentamente, Khoo enxugou os Óculos e o rosto, e virou-se para
sair. Mas, no dia seguinte, estava de volta: "Jesus o ama, e eu tam-
bém". De novo, a saliva do criminoso foi como uma ducha no
rosto do pastor. Ainda no outro dia, contou ao preso as mesmas
boas novas e recebeu a mesma paga pelos seus esforços. Incrivel-
mente, Khoo voltou dia após dia durante um mês e recebeu o
mesmo tratamento. Mas, no trigésimo dia, o pastor recebeu um
A Felicidade dos Misericordiosos ~ 81

telefonema, dizendo que o criminoso estava pedindo a sua visita.


Já não estava violento, mas perguntava: "Quem é esse Jesus que,
segundo você me diz, me ama, e quem é você? Por que continuou
voltando, mesmo depois de ter sido ofendido repetidas vezes?".
Khoo explicou-lhe, com toda a singeleza, as boas novas de salvação
do amor de Deus, que perdoa os pecadores perdidos. O bandido
foi transformado mediante a fé em Jesus. A únicà explicação para
semelhante mudança é o dom da misericórdia produzida pelo amor
compassivo de Deus derramado no coração do crente (Rm 5.5).
Não precisamos, no entanto, viajar para fora do Brasil para
descobrir exemplos de compaixão motivada por um dom sobre-
natural de misericórdia. Semelhantes heróis gastam suas forças
para resgatar drogados, prostitutas, meninos de rua e para distribuir
sopa aos mendigos. Certo casal cuida de quatorze crianças
abandonadas numa casa de precárias condições de higiene e espaço.
Mas as crianças se sentem amadas e seguras, talvez ainda mais do
que muitos filhos na casa dos próprios pais, onde nasceram.
Certo jovem bem conhecido viaja horas de ônibus para
visitar os menores infratores na FEBEM em São Paulo. Poderia
procurar um bom emprego que lhe renderia um salário razoável,
mas é a misericórdia que orienta suas escolhas e valores.

O Galardão dos Misericordiosos


A Bíblia ensina que os misericordiosos receberão misericór-
dia da parte de Deus. Abraão Lincoln afirmou: "A maioria das
pessoas é aproximadamente tão feliz quanto deseja ser". 2 A felici-
dade é conseqüência de uma consciência limpa. A psiquiatria
demonstra que muitos pacientes tristes e deprimidos não conse-
guem afastar do coração a inveja e nem se ver livres de um forte
desejo de vingança. A depressão motivada pela hostilidade e pela
falta de disposição para perdoar é tão comum que os conselheiros
percebem claramente essa relação de causa e efeito.
82 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

Dizem Minirth e Meiers: "... A providência básica a ser


tomada para vencer a depressão é utilizar os recursos excelentes
que temos em Cristo" .3 Quando uma pessoa vai a Cristo pedindo
alívio, a exigência da parte dele é que ela se arrependa e renuncie
os seus pecados. É necessário, portanto, que essa pessoa que quer
ser crente confesse que não perdoou a quem a lesou - e somente
então conseguirá sentir o amor de Deus e o perdão da parte de
Cristo. Deus não impõe o "olho por olho, dente por dente" que
as pessoas geralmente pressupõem; pelo contrário, ele requer uma
resignação que vai além do bom senso (Mt 5.39-41). O fato é que
realmente devemos amar os nossos inimigos e orar pelos que nos
perseguem (vv. 43-44) "para que vos torneis filhos do vosso Pai
celeste" (v. 45). O paradoxo do Sermão da Montanha nunca fica
tão evidente como na exigência de que perdoemos aqueles que não
merecem nosso perdão e que em muitos casos nem sequer o aceitam.
Os benefícios são eternos: "Se perdoardes aos homens as
suas ofensas, também vosso Pai celeste vos perdoará" (Mt 6.14).
Quem realmente recebeu o perdão da parte de Deus sente-se livre,
maravilhosamen.te feliz. A exultação a que Pedro se refere na sua
epístola descreve a emoção libertadora daqueles que foram regene-
rados e têm certeza da esperança viva que os aguarda (lPe 1.6).
A verdadeira religião, pura e cristalina, segundo Tiago,
consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações (T g
1.27). Atribuir pureza às ações que beneficiam os necessitados
indica que se trata de ações que não receberão muito reconheci-
mento nesta vida. Não são ações que insuflam o orgulho mundano,
mas não passam despercebidas pelo Senhor. Ele não deixará de
galardoar qualquer filho seu que oferecer um copo de água fria a
um discípulo (Mt 10.42). Os valores do reino são distintos dos do
mundo. A alegria eterna dominará os que, por amor a Cristo,
servem humildemente os que não têm condições de cuidar de si
mesmos.
A Felicidade dos Misericordiosos ._...., 83
NOTAS
1
Citado em John Piper: Let the Nations be Glad. G. Rapids: Baker, 1993,
p. 95-96, de Michael Care: "Wounded in the House of F riends", Virtue, março/
abril 1991, p. 28-29, 69.
2
Citado em Happiness is a Choice, F. B. Minirth e P. D. Meiers, G. Rapids:
Bake~ 1978,p. 12.
3 Jbid., p. 133.
6

A Felicidade dos
Limpos de Coração
~

A lista que Jesus fez dos súditos de Deus realmente bem-


aventurados inclui todos os que têm o coração limpo. São os que
foram lavados no detergente espiritual que flui das feridas do Filho
do homem.
Talvez seja proveitoso fazer uma breve digressão a fim de
considerar o que Jesus queria dizer com a palavra "coração".
Ninguém pensaria hoje que ele se referia ao músculo do tamanho
de um punho cerrado, composto de ventrículos, válvulas que bom-
beiam sangue em nosso peito a fim de preservar a nossa vida físi-
ca. O coração bíblico refere-se ao verdadeiro eu, que pensa, conside-
ra, avalia, resolve, planeja e se regozija ou fica sobrecarregado com
tristezas. A partir dessa perspectiva, o "coração" refere-se ao verda-
deiro "ego", ao "eu" vital. É desse centro de controle e de auto-
consciência que fluem as questões fundamentais da vida.
Sabemos pela Bíblia que Deus testa o coração do homem e
julga a sua sinceridade (1Cr 29 .17). Nesse texto, Davi queria uma
confirmação da parte de Deus. Desejava ter certeza da sinceridade
do seu próprio coração, sem motivação interesseira ou forçada.
As ofertas oferecidas por Davi e pelos demais israelitas eram
voluntárias, espontâneas e motivadas pelo amor. Qualidades como
essa são caracterizadas como atitudes do coração.
Jeremias também declara que o Senhor vê e conhece o que
nenhum ser humano pode perscrutar. Diz esse profeta: "Mas tu,
ó SENHOR, me conheces, tu me vês e provas o que sente o meu
86 ._,.., A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

coração para contigo" Qr 12.3). A decepção e a revolta por causa


da prosperidade dos Ímpios que fazem o profeta sofrer são
sentimentos do coração~ Jeremias tem muita dificuldade em aceitar 1

que Deus dê seus bons cuidados aos que não os merecem, ao


passo que o fiel profeta sofre o abandono e a falta de cuidados.
Jeremias acha que merece um tratamento melhor. Conviver com
um Deus soberano que não manifesta sua justiça nesta vida cria
um problema para o coração.
Salomão observou que as decisões e ambições do homem
parecem retas aos seus próprios olhos, "mas o SENHOR sonda os
corações" (Pv 21.2). É comum avaliar os nossos "caminhos" de
modo positivo. Achamos que somos, na realidade, irrepreensíveis
(pelo menos aos nossos próprios olhos). Mas Deus penetra através
das camadas defensivas do coração a fim de sondar os motivos e
os interesses ali escondidos. Quando ele faz a sua luz penetrar em
nosso Íntimo, descobrimos como é enganoso o coração Qr 17.9).
Por ser "desesperadamente corrupto", a esperança de conhecê-lo
desvanece, se não houver a radiografia do Espírito. "Eu, o SENHOR,
esquadrinho o coração, eu provo os pensamentos" Qr 17.10).
Jeremias mostra que Deus age como o promotor público
no tribunal. Descortina os segredos que ocultamos até mesmo a
nós. Torna evidentes as nossas intenções e revela o egoísmo e o
orgulho escondidos atrás das boas intenções e da auto-estima. Ele
desarma as defesas, destrói fortalezas e anula sofismas para levar
"todo pensamento à obediência de Cristo" (2Co 10.4, 5).
Do ponto de vista bíblico, o coração é a fonte dos sentimen-
tos, da vontade e dos desejos. No judaísmo dos tempos de Jesus, a
contaminação resultava do contato com os "gentios impuros" e
com artigos constantes da lista de alimentos proibidos. Contatos
com objetos classificados como imundos contaminavam ceri-
monialmente (Me 7.15-23). Jesus ensinou o contrário. Não é por
ingerir um pedaço de carne proibida ou por tocar num cadáver
que o coração se torna imundo. O que contamina mesmo o ho-
A Felicidade dos Limpos de Coração ~ 87

mem é o que brota de um coração impenitente e sai da boca (v.


15). "Porque de dentro, do coração dos homens, é que procedem
os maus desígnios, a prostituição, os furtos, os homicídios, os
adultérios, a avareza, as malícias, o dolo, a lascívia, a inveja, a
blasfêmia, a soberba, a loucura" (Me 7.21, 22).
O coração deturpado pela queda de Adão e herdado pelos
seus descendentes é uma fábrica de maldade. Mesmo sem o
estímulo da tentação externa ou da ação satíinica, o coração gera,
por conta própria, atitudes pecaminosas. Após os hediondos
pecados de adultério e homicídio que Davi praticou, ele reconhe-
ceu que somente Deus podia mudar suas atitudes e disposições,
criando-lhe um coração puro e renovando-lhe o espírito (SI 51.10).
É notável que o rei-poeta tenha chegado à conclusão, já antes da
vinda de Cristo e da promessa do Espírito, que uma solução menos
radical não resolveria seu problema.

Como Devemos Purificar o Coração?


Precisamos indagar: que processo de transformação poderia
limpar o coração humano? Que infusão poderia impedir a produ-
ção da imundícia que, via de regra, essa "fábrica" produz? A senda
da felicidade se estenderá diante de todos quantos alcançarem a
pureza de coração segundo a Palavra de Deus.
Devemos observar algumas áreas específicas que exigem o
máximo da nossa atenção para experimentarmos a renovação da
mente ou coração (Rm 12.2).

1. A Pureza Sexual
Jesus ensinou nesse sermão que filtrar os pensamentos deve
ser uma prioridade para o homem de Deus. Olhar com intenção
impura para uma mulher equivale - aos olhos de Deus - ao ato
sexual cometido no coração (Mt 5.28). Comete-se, assim, o pecado
do adultério sem qualquer contato físico. É provável que nenhuma
comissão de disciplina eclesiástica recomende que um irmão seja
88 "\a.' A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

expulso da comunhão da igreja porque sua mente deleitou-se num


pensamento cobiçoso. Para Deus, que tem perfeição absoluta na
sua santidade, a gravidade do ato externo e do pensamento do
coração são iguais; são pecados que contaminam a pessoa.
A recomendação bíblica é: "Fazei, pois, morrer a vossa natu-
reza terrena: prostituição (a gratificação sexual por meio de uma
mulher que não seja a esposa), impureza (pensamentos sexuais
condenados pela Palavra de Deus), paixão lasciva (estímulo sexual
voltado para alguém que não é a legÍtima esposa)". Sufocar ou
filtrar todo e qualquer meio e fonte de estímulo ao sexo ilícito é
obrigatório para conseguir um coração puro.
Pode-se conseguir um coração puro somente através de uma
luta até à morte cóntra os desejos impuros da carne. Os estímulos
que alimentam os feitos malignos da carne devem ser substituídos
pelo Espírito Santo. O poder real de Deus, atuando no coração, é
o caminho da vitória, segundo o apóstolo Paulo: "Se, pelo Espírito
mortificardes os feitos do corpo, certamente vivereis" (Rm 8.13).
Esse poder do Espírito age na consciência, traspassando-a ou
compungindo-a (At 2.38), revelando, assim, como é nojento e
penoso o pecado.
Viver sob o domínio da carne importa desfrutar a satisfação
iníqua dos impulsos contaminados pela pornografia, por carícias
e toques eróticos, por estímulos visuais e tácteis impuros. Viver
no Espírito, por outro lado, implica entregar o coração ao
comando daquele que a tudo renova. Por isso, Paulo ora em favor
dos efésios para que Deus, "segundo a riqueza da sua glória, vos
conceda que sejais fortalecidos com poder, mediante o seu Espírito,
no homem interior; e assim habite Cristo nos vossos corações... "
(Ef 3.16, 17a). Mediante o poder (dunamis) do Espírito Santo
podemos dar a Jesus Cristo as chaves do nosso coração. Somente
ele pode barrar a entrada de pensamentos nocivos e purificar nossa
"casa" interior com o seu precioso sangue (1Jo 1.9).
A Felicidade dos Limpos de Coração ~ 89
2. A Pureza de Coração é o Primeiro Mandamento
(Dt 6.5; Mt 22.37-38; Me 12.30; Lc 10.25-27)
A contaminação fundamental do coração provém do egoís-
mo idólatra do amor-próprio. O primeiro mandamento, portanto,
requer que amemos a Deus de todo o coração. Se sinceramente
rendermos nosso coração a Jesus Cristo e desejarmos realmente o
seu senhorio sobre nossa vida, os ídolos começarão a cair como
Dagom, o deus esculpido pelos filisteus (1Sm 5.1-5). Veja como
Paulo destrona o seu próprio corpo, ao deixar em segundo plano
os cuidados com o seu bem-estar físico: "Em nada considero a
vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha
carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus ... " (At 20.24).
Todos normalmente atribuem o máximo valor à sua própria vida,
mas isso muda no momento em que o serviço por amor a Cristo
desloca o amor-próprio.
Se o Espírito realmente derramou o amor por Deus em
nosso coração (Rm 5.5), podemos esperar que esse amor infinito
vença os desejos da carne. "Andai no Espírito e jamais satisfareis
à concupiscência (desejos obsessivos) da carne" (Gl 5.16). Já que
o fruto do Espírito é o amor (Gl 5.22), a pureza de coração é
alcançada mediante a plenitude do Espírito (Ef 5.18). Quando o
Espírito Santo de Deus impulsiona fortemente e os cristãos o
seguem (Gl 5.18; Rm 8.14), e o fortalecimento pelo Espírito se
torna uma realidade no íntimo (Ef 3.16), Cristo vem habitar
intensa ou totalmente (katoikesai, no grego, está na forma intensiva)
em "vossos corações" (v. 17). Somente o Espírito tem poder para
formar a imagem de Cristo no Íntimo do cristão (cf. Gl 4.19).
Paulo discorre sobre esse mesmo tema ao contrastar as "obras
da carne" com o "fruto do Espírito" (Gl 5.22). A prostituição, a
impureza e a lascívia, obras naturais da carne (v. 19), são deslocadas
pela presença do Espírito, gerando seu fruto, o amor (agape). Em
contraste com a feitiçaria, com a macumbaria ou com os despa-
chos, o Espírito produz paz. Em vez da idolatria, que estimula as
90 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

mais baixas paixões, o Espírito produz domínio próprio e longani-


midade, enraizados na perseverança de esperar no Deus vivo. Em
lugar de inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões,
facções e invejas (v. 20), o Espírito gera benignidade, bondade,
fidelidade e mansidão (v. 22).
Não será possível conseguir um coração puro simplesmente
extirpando os maus pensamentos e excluindo certos desejos natu-
rais, porém pervertidos pelo pecado. Os monges da Idade Média
poderiam nos advertir que nosso Íntimo não tolera um vácuo. Se
desejamos sinceramente a felicidade prometida por Jesus, devemos
clamar a Deus por um transplante de coração. Deus prometeu
essa bênção da Nova Aliança inaugurada por Jesus, pela boca de
Ezequiel: "Aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados;
de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos
purificarei. Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito
novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de
carne. Porei dentro de vós o meu Espírito" (36.25-27). A pureza
no Íntimo é um presente de Deus oferecido aos que clamam, com
fé, pela fonte que jorra a água viva do Espírito Go 4.14).
Paulo lutou contra a impureza de coração. Podemos verificar
isso em Romanos 7.7-10. A cobiça, condenada pela lei nos Dez
Mandamentos, não foi vencida pelo poder da boa vontade.
Podemos também sentir o desespero de Paulo, posto que a lei
proíbe o desejo maligno, mas não oferece nenhuma escapatória.
Essa deve ser a razão que levou Paulo a afirmar que a lei o matou
(v. 9). Na inoc&ncia da sua infância, sentia-se bem. A consci&ncia
não o acusava. Mas, quando atingiu a idade de se tornar "filho da
lei" (bar mitzva}, descobriu que o pecado já reinava no seu Íntimo.
Esse fato despertou nele, além da revolta, o reconhecimento de
que não possuía em si mesmo meios de controlar os seus desejos,
nem forças para cortar pela raiz qualquer cobiça ou desejo proi-
bido. A lei não oferecia nenhuma esperança de ele conseguir
vencer, com um esforço especial, esse tipo de impureza "cardíaca"!
A Felicidade dos Limpos de Coração ~ 91

No fim, porém, Paulo descobriu que o caminho da vitória


passa mesmo através do vale do desespero. Notem-se as bem
conhecidas palavras do apóstolo: "Desventurado homem que sou!
Quem me livrará do corpo desta morte?" A solução vem logo a
seguir: "Graças a Deus por Jesus Cristo". É ele quem implanta a
"lei do Espírito da vida em Cristo" no coração e "nos livra da lei
do pecado" (Rm 8.2).
Agostinho também sabia da intensidade dessa luta para
conseguir um coração puro. Ele escreveu as seguintes linhas famo-
sas para mostrar sua total dependência do Senhor: "Não tenho a
mínima esperança, a não ser em tua grande misericórdia. Sem
dúvida, mediante a continência, somos reunidos e devolvidos à
unidade da qual nos desencaminhamos para a multiplicidade.
Tampouco te ama quem alguma coisa amar fora de ti, ou não
amar por amor de ti! Ó amor que nunca te extinguiste e sempre
ardeste! Ó caridade, meu Deus, inflama-me. Tu mandaste a
continência. Concede o que mandaste e manda o que te aprou-
ver". 1 Agostinho reconheceu, já cedo na sua vida cristã, que, sem
ajuda externa, nunca conseguiria vencer a tentação da cobiça.

Maneiras Bíblicas de Purificar o Coração


Já tocamos em alguns meios de vencer a impureza do
coração, segundo ordenam as Escrituras, mas desejamos mencionar
aqui mais algumas questões fundamentais.

1. A Obediência
"Tendo purificado a vossa alma pela vossa obediência à verda-
de ... " (1Pe 1.22) é um texto que centraliza o assunto da pureza da
alma (e do coração) em escutar e obedecer aos mandamentos do
Senhor. No texto citado, Pedro não se refere a um legalismo farisai-
co, mas à sujeição à verdade do evangelho. A lei dos mandamentos
foi cumprida por nosso Salvador na cruz, e suas penalidades foram
canceladas (Ef 2.15; Cl2.14), mas alei do Espírito (Rm 8.2) continua
92 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

em pleno vigor. Paulo escreveu aos gálatas que "nem a circuncisão,


nem a incircuncisão têm valor algum, mas a fé que atua pelo amor"
(Gl 5.6). "Vós corríeis bem; quem vos impediu de continuardes a
obedecer àverdade?", pergunta Paulo (Gl 5.7). A obediência resulta
de um desejo maior pela vontade de Deus do que pela nossa
própria vontade. Quando obedecemos ao nosso Pai, descobrimos,
como crianças obedientes, a satisfação extraordinária da comunhão
e da aceitação. Experimentamos a união alegre com ele.
"A obediência por fé" (Rm 1.5) refere-se à regeneração que
Deus opera naqueles que crêem. Crer implica sempre em
obediência, uma vez que nosso Salvador, o Cristo ressurreto, é o
Senhor e Rei exaltado (At 2.36). Se realmente cremos que ele é
nosso Senhor, não podemos deixar de conhecer a sua vontade
nem de fazê-la.
Nesta última metade do século xx surge uma teologia que
sustenta a posição de não se exigir nenhuma obediência. Argumen-
ta-se que Jesus morreu para nos salvar pela fé e não por obras (ou
seja, pela obediência). Segundo essa teoria, é possível optar por
um Cristo salvador, sem necessidade de aceitar o seu senhorio
sobre a vida. Essa experiência não é rara. Muitos testemunham
que experimentaram uma nova vida em Cristo sem ênfase alguma
na obediência.
Descrever a experiência da conversão em duas etapas,
optando pelo senhorio de Jesus Cristo somente depois de aceitá-
lo apenas como salvador não tem respaldo bíblico. Essa maneira
popular de descrever uma mudança na conversão, seguida por
uma nova experiência de submissão a Cristo como Senhor da
vida, parece ser uma acomodação à carnalidade. De modo comple-
tamente contrário à doutrina bíblica, há quem gostaria de receber
Jesus como simples amigo. Para semelhante candidato à vida
eterna, a pergunta fundamental seria: "Qual é o mínimo que tenho
de fazer para herdar o reino de Deus?". É a situação do jovem
A Felicidade dos Limpos de Coração 'Q..' 93

rico, que procurou Jesus para saber que mais lhe faltava para ser
salvo e herdar a glória eterna, e descobriu que o Senhor exige
muito mais do que o jovem estava disposto a sacrificar. A graça
salvadora realmente é gratuita, mas o preço é altíssimo, conforme
ilustrou Jesus quando contou a parábola do comerciante de pérolas,
que deveria vender tudo quanto tinha, pois de outra forma nunca
adquiriria a pérola de grande valor.
Não existe a possibilidade de alguém resolver tornar-se
cristão e, ao mesmo tempo, rejeitar os plenos direitos que Cristo
tem sobre a sua vida. Ainda que exista uma teologia que apresente
a "carnalidade" como opção para o cristão, a verdade é que para
se converter é necessário que a pessoa entregue ao Senhor os direi-
tos sobre a sua vida. Ouçamos as palavras do Dr. John Piper, na
conversa gue teve com um monge católico que se converteu, certa
noite na Africa do Sul, durante as orações vespertinas. Sabia que
passara da morte para a novidade de vida quando, na madrugada
seguinte, seu companheiro idoso ficou orando em voz alta. Antes,
sentia raiva por causa disso; agora, não! Com altos e baixos após a
saída do mosteiro, integrou-se num ministério. Aprendeu então a
descrever a sua conversão em duas etapas, de modo semelhante
aos colegas que afirmavam que Cristo era seu Salvador durante
certo período, mas que depois se tornou, também, Senhor da sua
vida. O Dr. Piper lhe disse:
Sabe... penso que Jesus era seu Senhor antes daquele ato posterior
de submissão. Acho que ele era seu Senhor na noite em que
você foi convertido, e que, a partir de então, a sua experiência
tem sido de submissão cada vez maior aos seus direitos soberanos
como Senhor sobre a sua vida. E não acho que você tem se
curvado constantemente desde o momento em que você "tomou-
º Senhor". Nem agora você está plenamente submisso, pois nesse
caso estaria sem pecado. Mas ele continua sendo seu SENHOR
agora. E, naqueles tempos, você não estava plenamente submisso,
mas assim mesmo, ele era o seu Senhor. 2
94 <'Q..' A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

A questão importante nessas considerações é lembrar-nos


de que Jesus é nosso Senhor mesmo quando desobedecemos a
ele. Se o Espírito regenerador estiver atuando em mim, tenho
certeza de que a desobediência deliberada ou consciente me será
um incômodo. Mais ainda: não devemos alegar ter salvação pessoal
se optarmos por continuar no pecado. O apóstolo João condena
essa atitude com estas palavras contundentes: "Todo aquele que
vive pecando não o viu, nem o conheceu" (lJo 3.6). Não adianta
declarar que temos uma união salvadora com Cristo e continuar
"no pecado" (ver Rm 6). Por outro lado, muitas vezes Paulo se
refere aos cristãos, membros de uma igreja, que chamam Jesus
Cristo de "nosso Senhor". Incluem-se igualmente os crentes mais
maduros bem como os mais novos na fé. Os mais santificados,
bem como os menos dedicados ao Senhor, fazem parte da mesma
igreja. Não existem no Novo Testamento duas categorias de
cristãos. Jesus é Senhor de todos, se eles realmente estão em Cristo.
Realmente, Paulo chegou a questionar a experiência regeneradora
dos gálatas (4.19) e incentiva os coríntios a se examinarem para
verificar se, de fato, estão na fé (2Co 13.5). Paulo disse aos coríntios:
"Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus
como Senhor" (2Co 4.5). A pessoa é salva por confessar Jesus
como Senhor e nada menos do que isso.
Existem muitos que têm experimentado uma entrega mais
profunda a Jesus, experiência esta que lhes mudou radicalmente a
vida, mas não seria certo declarar que, antes dessa "segunda
b&nção", Jesus ainda não era seu Senhor. Al~m disso, depois de
passarem por uma mudança radical (conforme muitos t~m pas-
sado), nem por isso deixaram totalmente de pecar, nem podem
dizer que nunca mais desobedeceram ao Senhor da glória.
Andar no Espírito (Gl 5.16) importa em obedecer à vontade
de Deus ministrada ao nosso coração pelo Espírito Santo. Primeiro,
devemos definir o que a Bíblia revela ser os mandamentos do
Senhor (cf. Jo 15.10) e reconhecer que sem ele nada podemos
A Felicidade dos Limpos de Coração .._..., 95

fazer Go 15.5). Segundo, devemos clamar ao Senhor, pedindo a


sua força e poder (Ef 1.19; 3.16). Terceiro, devemos crer que Deus
dá força aos que agem à altura, pondo-se em pé e resistindo ao
pecado. Quarto, devemos agradecer a provisão do seu poder para
vencermos. Esse plano simples mostra o caminho da obediência.

2. O Arrependimento
Ap6s a primeira pregação evangelística no poder do Espírito
Santo, no dia de Pentecostes, a multidão de ouvintes convictos
dos seus pecados perguntou aos ap6stolos: "Que faremos, irmãos?"
(At 2.37). O sofrimento interno (o texto diz: "compungiu-se-lhes
o coração") foi o peso da consciência. A única solução apresentada
foi esta: "Arrependei-vos, e cada um de v6s seja batizado em nome
de Jesus Cristo para remissão de vossos pecados" (v. 38).
A remissão, ou perdão, envolve remoção. Todo pecado man-
cha o coração. O arrependimento e a confissão pública (concreti-
zada na celebração da ordenança do batismo) purificam o Íntimo.
Jesus instituiu a Ceia com essa mesma finalidade, não mais para
os pecadores que estão abandonando o mundo e os seus valores,
mas para os filhos de Deus que abandonam seu pecado. Foi essa a
lição que Jesus transmitiu a Pedro quando este não queria permitir
quP lesus lhe lavasse os pés Go 13.8). Jesus convenceu-o de que,
sem essa lavagem, Pedro não teria mais comunhão com ele (v. 8).
Pedro, apavorado, rogou imediatamente que Jesus lhe lavasse o
corpo todo, mas Jesus respondeu que quem já tomou banho (no
batismo) não precisa de nada mais além de lavar os pés. Assim,
somos levados a reconhecer que Jesus usava linguagem simbólica
para ensinar a importância do arrependimento na Ceia. Nesses
momentos da participação na comunhão do corpo e do sangue
de Cristo, ele oferece a si mesmo para perdoar aos que sinceramente
se arrependem. João escreve: "Se confessarmos os nossos pecados,
ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de
toda injustiça" (1Jo 1.9).
96 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

O arrependimento significa, segundo o grego original,


"mudar de mente" (metanoia). Assim, podemos considerar a
renovação da mente uma espécie de purificação do coração (Rm
12.2). Por meio de Ezequiel, Deus ordenou aos israelitas: "Lançai
de vós todas as vossas transgressões com que transgredistes e criai
I "" 1• • /•
em vos coraçao novo e esp1nto novo; pois, por que morrene1s, oI
casa de Israel?" (Ez 18.31).
Por um lado, a pureza de coração é a conseqüência da atuação
de Deus convertendo e limpando as impurezas e a podridão do
centro de comando da vida humana. Quando Deus regenera al-
guém, ele também purifica e santifica essa vida. Por outro lado,
ele também exige que exerçamos a nossa responsabilidade pessoal.
Não podemos deixar de nos arrepender como o filho pródigo -
devemos afastar-nos da imundícia dos porcos, levantar-nos e voltar
à casa paterna. Nosso Pai amoroso está disposto a nos revestir do
"novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo
a imagem daquele que o criou" (Cl 3.10). Sabemos que é genuíno
o nosso arrependimento quando passamos a sentir nojo do pecado
com que antes nos deliciávamos. Um cristão pode cometer pecado,
mas não pode sentir-se bem com seu coração maculado e com sua
consciência ferida.
Um arrependimento menos radical pode ser mero remorso.
Se o pródigo voltasse para casa só por causa da fome, da solidão e
da miséria em que vivia na terra longínqua, poderia ter ficado
sem amor genuíno pelo pai. Não se sentiria bem em casa com o
pai e com os irmãos. Ficaria muito feliz se o pai lhe arrumasse
mais uma soma expressiva para voltar à vida que gozava antes de
se esgotar sua herança original. Se isso tivesse acontecido, segura-
mente saberíamos que esse jovem não se arrependera.
Pedro se arrependeu genuinamente por ter negado a Jesus.
Judas se suicidou, porque não se arrependera genuinamente. Pedro
mudou a su~ mente de forma radical e foi perdoado e purificado.
Passou a ser o mensageiro escolhido por Deus para pregar aos
A Felicidade dos Limpos de Coração .......,, 97

milhares que se converteram. Judas sentiu a tristeza do remorso,


mas o coração continuou imundo, firme no caminho da perdição.

3. A Eliminação do Estranho
A pureza de coração também caracteriza o cristão que
enxerga claramente um único alvo na vida: o sumo bem. Jesus
descreveu essa atitude em termos de um olho bom que permite
que somente a luz penetre no Íntimo. O coração dividido procura
agradar a dois senhores. O Senhor, porém, disse: "Ninguém pode
servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um e amar
ao outro, ou se devotará a um e desprezará o outro. Não podeis
servir a Deus e às riquezas" (Mt 6.24).
O primeiro e grande mandamento exige essa mesma singe-
leza de visão, esse único propósito na vida. Amar a Deus de todo
o coração, de toda a alma, de todo o entendimento e de toda a
força (Me 12.30 e paralelos) exclui o amor dominante a qualquer
outra pessoa ou coisa, já que o coração fica concentrado em um
só propósito - amar a Deus. A razão por que Deus nos criou foi
que lhe concedamos a supremacia em tudo quanto ambicionamos
e que a glória dele seja a prioridade em todas as nossas atividades
e esforços.
Mas, se formos honestos, descobriremos que não estamos
buscando em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça (Mt
6.33). Outros alvos e interesses nossos deslocam o Senhor do trono
de nossa vida, pelo menos temporariamente. Assim como Acã,
vemos entre os despojos "uma capa babilônica, e duzentos sidos
de prata, e uma barra de ouro" Os 7.21) que nos seduzem,
contaminando o coração. Paulo afirma que "o amor do dinheiro
é raiz de todos os males" (1Tm 6.10), não porque o dinheiro seja
algo pecaminoso em si mesmo, mas porque ele tem uma facilidade
impressionante de se tornar nosso deus e de dominar toda a nossa
atenção. Não é só dinheiro que pode contaminar o coração, pois
98 .._., A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

qualquer outro desejo ou motivo tem a capacidade de nos enredar


nas suas tramas.
Hoje, não é fácil encontrar um cristão como Timóteo, nem
nos dias dele, nos meados do primeiro século na cidade de Roma.
Disse o apóstolo Paulo: "Porque a ninguém tenho de igual
sentimento que, sinceramente, cuide dos vossos interesses; pois
todos eles buscam o que é seu próprio, não o que é de Cristo
Jesus" (Fp 20.21). Timóteo percebeu a importância de eliminar
da sua vida tudo quanto não estava sujeito a Jesus Cristo. Volun-
tariamente, tornou-se cativo do propósito que Deus Pai teve em
enviar seu Filho para morrer e ser exaltado em seguida (Fp 2.9-
11). Esse propósito foi e é "para em todas as coisas ter a primazia"
{Cl 1.18).
Em vários trechos das suas epístolas, Paulo revela a pureza
do seu coração ao eliminar seus interesses próprios. Escolhemos
dois textos apenas, para demonstrar sua singeleza de coração. "Uma
coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás estão, e
avançando para as que diante de mim ficam, prossigo para o alvo,
para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus" (Fp
3.13-14). Para poder concentrar-se no alvo da suprema vocação,
tinha de esquecer-se das metas ultrapassadas e, com singeleza, fitar
os seus olhos em Deus e no seu propósito. "Em nada considero a
minha vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a
minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus ... " (At
20.24.) A pureza de coração transparece em tais afirmações porque
evidenciam o fato de que Deus e seu reino eram mais importantes
para ele do que a própria vida.

O Galardão dos Limpos de Coração


Jesus prometeu que os limpos de coração verão a Deus. Os
santos podem antegozar a alegria da visão de Deus. Paulo disse:
"Agora, vemos como em espelho, obscuramente; então, veremos
face a face. Agora, conheço em parte; então, conhecerei como
A Felicidade dos Limpos de Coração ~ 99
também sou conhecido" (1 Co 13.12). Os pecadores serão condena-
dos e excluídos da presença de Deus no juízo final, mas os que
têm o coração imaculado contemplarão a sua face. Certamente,
nenhuma recompensa poderá ser maior do que essa. Ser conduzido
à sua presença gloriosa, sem ser um pecador culpado e aterrorizado,
sem precisar evitar seu olhar santo, essa será a grande recompensa
do santo.
Davi, so.b inspiração divina, respondeu às seguintes pergun-
tas: "Quem subirá ao monte do SENHOR? Quem há de permanecer
no seu santo lugar?" Esta é a resposta: "O que é limpo de mãos e
puro de coração, que não entrega a sua alma à falsidade ... Este
obterá do SENHOR a bênção... " (Sl 24.3-5). Davi prenuncia o que
Jesus ensinou. Os limpos de coração terão o privilégio de
permanecer na presença de Deus. Terão acesso ao seu trono.
Receberão respostas às suas orações nesta vida e Íntima comunhão
com o Senhor na vida do porvir.
Por outro lado, o salmista declara: "Se eu no coração contem-
plara a vaidade, o Senhor não me teria ouvido" (Sl 66.18). Con-
cluímos que a pureza de coração influi diretamente na comunhão
com Deus nesta vida e marca o destino de todos na vida futura.
A pureza de coração será coroada pela gratidão transbordante
daqueles que, no futuro glorioso, reconhecerão o quanto nosso
Senhor sofreu para tornar disponível o seu sangue purificador.
Nossa atual percepção de quão grande foi o preço da nossa
redenção fica obscurecida pelas trevas na nossa alma pecaminosa.
No entanto, é certo que no futuro glorioso ficará claro a todos
nós quão alto foi o preço pago. Jesus indicou essa realidade quando
contrastou o amor evidenciado pela mulher pecadora com a
amizade superficial de Simão, o fariseu. A declaração de Jesus
"aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama" (Lc 7.47) não revela
que Simão precisava de pouco perdão, mas mostra o quanto ele
não percebia essa necessidade. Durante esta vida, captamos uma
idéia somente muito vaga da profundidade da nossa necessidade
100 ._...., A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

de perdão. Só na consumação futura é que saberemos, com clareza


cristalina, quão errôneo foi o nosso comportamento e por que
preço foi retirada a nossa culpa. O resultado será alegria inefável,
permanente e cheia de glória (lPe 1.8).

NOTAS
1
Agostinho, Confissões, X. 40, citado em H. Bettenson, Documentos da Igreja
Cristã, São Paulo: ASTE, 1967, p. 89.
2
John Piper: The Pleasures of God. Portland, Multnomah Press, 1991,
p. 281.
7

Felizes os Pacificadores
~

Üs pacificadores são todos aqueles que fazem e promovem


a paz.
Como devemos entender a natureza da paz apresentada na
Bíblia? Existem, no mínimo, três tipos. Em primeiro lugar, men-
cionaríamos a paz que os homens podem desfrutar com Deus.
Em segundo lugar, existe a paz que une os homens nos seus relacio-
namentos. Finalmente, a paz que transborda do coração humano
que está em paz com Deus. Procuraremos sempre ter em mente
esses três tipos de paz bíblica e dela reconhecer a bem-aventurança
e a recompensa.
A paz com Deus tem, forçosamente, a primazia. Há mútua
inimizade entre Deus e o homem, porque o pecado do homem
pôs-se entre os dois. A revolta do homem contra Deus, seu Cria-
dor, produziu inimizade com ele. "Inimizade" é o termo que Paulo
escolheu para descrever o relacionamento entre Deus e o homem,
o rebelde (Rm 5.10). A ira de Deus revela-se do céu contra toda
impiedade e perversão dos homens (Rm 1.18). A paz do Éden foi
desfeita pela desobediência deliberada de Adão. As conseqüências
ficaram imediatamente visíveis quando o primeiro casal tentou
esconder-se do seu Criador e foi expulso do jardim. Caim, ao
assassinar Abel, oferece ainda outro exemplo da atitude hostil do
homem contra Deus e contra a sua justiça. A guerra do homem
contra Deus e contra a sua lei continua até hoje.
A ausência gritante de shalom (palavra hebraica que significa
paz, harmonia e bem-estar) entre Deus e as suas criaturas é indicada
102 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

por Paulo em Romanos: "Não há quem busque a Deus; todos se


extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem,
não há nem um sequer" (Rm 3.11-12). A desconfiança e a inimi-
zade do homem contra Deus demonstram-se de duas maneiras
mais específicas:
1. Indiferença para com Deus. Isso significa simplesmente
que o homem não se interessa em buscar um relacionamento vital
com Deus. Vira as costas ao seu Criador e deliberadamente se faz
de surdo quando ele chama. O homem, mediante a sua indiferença,
espera escapar da realidade ameaçadora que Agostinho expressou
assim: "Tu nos criaste para ti mesmo. O coração do homem
inquieta-se até achar repouso em ti".
Essa inquietude desconfortável revela o propósito original
de Deus de cumprir o significado real de Emanuel, "Deus
conosco". O pec~do nos tem separado de Deus, conforme declara
Paulo ao descrever o mundo pagão como atheios ("ateu", Ef 2.12).
A ira de Deus é contra o ateísmo, juntamente com outras evidên-
cias do pecado humano. 1
2. A segunda maneira de o homem expressar sua inimizade
inata contra Deus é mediante a idolatria. Em vez de adorar o
Criador, faz seus próprios deuses e lhes presta as honrarias e a
devoção devidas somente ao próprio Deus. Quando, portanto,
um ídolo é adorado, há clara ausência da paz que o pacificador se
deleita em promover.
Existem eruditos que protestam contra um affectus (senti-
mento emocional) juntamente com um effectus em Deus. Mas o
fato é que Deus realmente se ira contra os pecadores. 2 A Bíblia
não abre mão dessa atitude de Deus contra a injustiça. Escute as
palavras do profeta Naum: "O SENHOR é Deus zeloso e vingador,
e cheio de ira, o SENHOR toma vingança contra os seus adversários
e reserva indignação para os seus inimigos" (Na 1.2). É impossível
negar a ira do reto juiz do universo contra a iniqüidade dos
homens.
Felizes os Pacificadores ._...., 103

Jonathan Edwards, renomado pastor do avivamento do


século xvm, tinha razão ao pregar o sermão tão contundente
quanto famoso "Pecadores nas Mãos de um Deus Irado". Quem
desejar eliminar esse elemento da natureza divina terá de jogar a
Bíblia no lixo. G. C. Berkouwer afirmou: " ... na cruz de Cristo, a
justiça e o amor de Deus são revelados simultaneamente". 3 Se
Deus não fosse infinitamente santo, não se iraria contra os peca-
dores.
Por trás da adoração cerimonial requintada de Israel no
Antigo Testamento há evidências da ira de Deus. Se o pecado não
provocava a imediata condenação divina da iniqüidade do homem,
era porque o sangue sacrificial dos animais cobria simbolicamente
o pecado. Os holocaustos e as ofertas pelo pecado "propiciavam"
temporariamente a ira de Deus. Hebreus declara que o mero sangue
de animais irracionais não podia aplacar a ira divina de modo
definitivo (9.12). O sacrifício dos animais não produzia paz perma-
nente com Deus. A reconciliação segundo o Antigo Testamento
não somente era temporária, como também incompleta. Na reali-
dade, somente o sacrifício perfeito do corpo de Cristo na cruz
elimina a ira divina contra os pecados de criaturas responsáveis
(Hb 10.10).
Paulo concorda com o autor de Hebreus, quando afirma
que Deus propôs o sangue sacrificial de Jesus como propiciação
"... para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância,
deixado impunes os pecados anteriormente cometidos" (Rm 3.25).
A propiciação transmite a idéia de desviar a ira de Deus. Tendo
manifestado sua justa ira contra o Filho, Deus não mais se ira
contra o pecador arrependido. Os animais sacrificiais prenuncia-
vam o papel pacificador do Messias, do Servo Sofredor que um
dia realmente faria a paz entre Deus e o homem (cf. Is 53.5-12).
"Se não houvesse um Deus santo, a expiação não apresentaria
problema algum. É a santidade do amor de Deus que torna
necessária a cruz expiadora." 4
104 "'Q..' A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

Jesus é o pacificador exemplar, visto que ofereceu volunta-


riamente seu sangue vicário na cruz. Uma vez pago o preço do
pecado do homem, já não há motivo para a justa ira de Deus
contra os pecadores que aceitam seu convite para se reconciliar
com ele (2Co 5.20-21). É por isso que Paulo escreve: "Mas, agora,
em Cristo Jesus, vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados
pelo sangue de Cristo. Porque ele é nossa paz, o qual de ambos
fez um ... e reconciliasse ambos Gudeus e gentios) em um só corpo
com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimi-
zade" (Ef 2.14-16).
Em Colossenses, Paulo toca no mesmo assunto, vendo-o de
outro prisma: "E a vós outros também que, outrora, éreis estranhos
e inimigos no entendimento pelas vossas obras malignas, agora,
porém, vos reconciliou no corpo da sua carne, mediante a sua
morte, para apresentar-vos perante ele santos, inculpáveis e
irrepreensíveis... " (Cl 1.21-22). A missão pacificadora de Jesus
Cristo cancelou a culpa do pecado e, conseqüentemente, pacificou
a ira, mudou a atitude dos pecadores no tocante a Deus e criou a
paz entre o Pai e seus filhos adotivos.
Entendemos, portanto, que Jesus Cristo, o único mediador
entre Deus e os homens (lTm 2.5), cumpriu seu papel pacificador
por meio do sacrifício de sua vida. Feita a propiciação da justa ira
de Deus, não há mais motivo para a ira de Deus contra os remidos.
Podemos levar totalmente a sério que Deus não pode se irar contra
nós se ele já aceitou o pagamento dos nossos pecados na cruz. Os
fiéis, igualmente transformados pelo Espírito regenerador,
reconhecem que são filhos amados com o direito de chamá-lo
"Aba, Pai!" (Rm 8.15).
Jesus é o pacificador sem igual. Nenhuma outra reconcilia-
ção entre os homens encerra uma inimizade tão intransponível.
E nenhuma inimizade entre nações chegou a um desfecho tão
abençoado. Devemos render toda glória àquele que fez a paz entre
pessoas tão distantes, tão ofendidas mutuamente e em oposição
tão profunda entre si.
Felizes os Pacificadores """"' 105

Essa sétima bem-aventurança oferece o galardão de os


pacificadores serem chamados "filhos de Deus" (Mt 5.9). Mas,
lembremo-nos de que este é o título que descreve perfeitamente a
pessoa de nosso Salvador. Sendo Filho de Deus e Filho do homem,
tinha a possibilidade Ímpar de revelar a nós o coração de Deus e
também de interceder por nós (Hb 7.25). Paulo tinha convicção
da importância do papel de Jesus como intercessor: "Quem os
condenará (os eleitos de Deus)? É Cristo Jesus quem morreu ou
antes, quem ressuscitou, o qual está à direita de Deus, e também
intercede por nós" (Rm 8.34). Devemos compreender que o
ministério incessante de Jesus perante o Pai é sacerdotal, uma
contínua representação do povo pelo qual morreu. O perfeitÍssimo
relacionamento entre Jesus Cristo e o Pai eterno é confirmado
pelo seu direito integral de pleitear a nossa causa, Ele é nosso
irmão, sendo também descendente de Adão. Ele se identifica
completamente conosco (Rm 8.29; Hb 2.10). Neste papel, Jesus
Cristo cumpre o que ninguém mais pode realizar. Ele é o pacifi-
cador que continuamente mantém afastada de nós a ira de Deus,
mesmo quando o que mais merecemos é castigo e condenação.

Os Evangelistas São Pacificadores


Pacificadores são também todos aqueles que anunciam as
boas-novas da paz em Jesus. Assim escreveu Isaías: "Que formosos
são sobre os montes os pés do que anuncia as boas-novas, que faz
ouvir a paz, que anuncia coisas boas, que faz ouvir a salvação" (Is
52.7; Rm 10.15). Tanto o evangelista quanto o missionário, junta-
mente com todos aqueles que dão testemunho da sua fé, estão
incluídos entre os que promovem a paz entre inimigos e, principal-
mente, entre Deus e os homens.

Pacificadores Entre os Homens


Julgando pela ênfase que a Bíblia atribui à unidade, podemos
ter certeza de que Jesus também incluía nessa bem-aventurança
106 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

os pacificadores entre os homens. Mas não devemos confundir


pacificar os homens com apaziguá-los. A experiência pessoal e da
política internacional demonstra que apaziguar promove mais
atritos do que soluções. É possível adiar conflitos cedendo às
pressões agressivas de um déspota como Adolfo Hitler ou como
Saddam Hussein, mas o resultado decepciona. O Pastor Martin
Lloyd-Jones afirma: "Não se estabelece a paz meramente evitando
o conflito armado, pois isso não dá solução real ao problema". 5
Para reinar a paz entre os homens, seria necessário que Deus
operasse um milagre de purificação do coração daqueles que provo-
cam a briga e a guerra. Tiago reconhecia a impossibilidade de
criar a paz sem transformações mais profundas no coração: "De
onde procedem guerras e contendas que há entre vós? De onde,
senão dos prazeres que militam na vossa carne? Cobiçais e nada
tendes, matais, e invejais, e nada podeis obter; viveis a lutar e a
fazer guerras ... " (4.1-2).
Devemos perceber com clareza cristalina que a ausência da
paz entre pessoas e povos se explica pelo pecado que irrompe no
meio dos relacionamentos humanos. Pecados tais como a inveja,
o egoísmo e o ódio são armas satânicas eficientes para provocar
desentendimentos e lutas. O espírito de vingança corrói os relacio-
namentos. Como poderíamos mesmo esperar paz numa sociedade
na qual o amor a Deus não tem lugar nos corações (Rm 5.5)? A
lista das obras da carne destaca com mais exatidão as atitudes
humanas consideradas normais, que aniquilam a paz: " ... inimi-
zades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções, inve-
jas... " (Gl 5.20-21). Os gálatas corriam o perigo de se destruir
mutuamente, mordendo e devorando uns aos outros (Gl 5.15).
Faltavam pacificadores preparados por Deus para solucionarem
os problemas com o amor misericordioso que perdoa.
Paulo também culpa a "carne" pelos "ciúmes e contendas"
que infectavam os coríntios (1Co 3.13), que haviam abraçado o
evangelho da paz, mas cuja transformação não fora suficientemente
profunda para anular o egoísmo e o partidarismo que prevaleciam
Felizes os Pacificadores .._...., 107

entre os membros da igreja. Os dons (carismas) acabaram sendo


usados ao ponto de promover a vaidade e a vanglória em vez de
produzir o amor e a harmonia.
Na realidade, a paz sempre precisa de uma obra pacificadora
do Espírito Santo. Paulo afirma: "... o pendor da carne dá para a
morte, mas o do Espírito, para a vida e paz" (Rm 8.6). Na lista do
fruto do Espírito, em Gálatas 5, a paz aparece em segundo lugar,
imediatamente após o amor (v. 22). Tiago cita um trecho das
Escrituras que não encontramos noutro lugar em nossas Bíblias,
mas somente aqui: "É com ciúme que por nós anseia o Espírito,
que ele fez habitar em nós" (Tg 4.5). Segundo parece, Tiago refere-
se ao forte desejo que o Espírito tem pela paz entre os filhos de
Deus. Devemos pedir a ele, com confiança, que pacifique a
agressividade da nossa carne, a fim de reproduzir a paz que ele ,
anseia por estabelecer em nossas comunidades, igrejas e famílias.
Jesus Cristo recebeu o título "Príncipe da Paz" (Is 9.6), bem
antes de nascer neste mundo. O Espírito Santo, enviado pelo Pai
para glorificar seu Filho Go 16.14), é quem promove a paz.
Concluímos que, onde a paz não reina, o Espírito está sendo apa-
gado (1 Ts 5.19), ou entristecido (Ef 4.30). Se a unidade fosse auto-
maticamente concedida pelo Espírito, não precisaríamos da
seguinte ordem bíblica: "... esforçando-vos diligentemente por pre-
servar a unidade do Espírito no vínculo da paz" (Ef 4.3). Se
tomarmos o cuidado de examinar o contexto, notaremos que
quando falta a paz, faltam a humildade, a mansidão, a longanimi-
dade e o amor que nos levam à aceitação de pessoas diferentes e
estranhas. Toleram-se suas idéias e pensamentos distintivos
enquanto não forem contrários aos bons costumes e às doutrinas
centrais da Bíblia (Ef 4.2-3). Assim, manter a paz requer nosso
esforço deliberado, em dependência do Espírito. Hebreus emprega
a frase "segui (diokete, em grego) a paz com todos" (12.14). Sugere
que precisamos concentrar energia e planejamento na busca da
paz, da mesma maneira que fazem os atletas que correm para
108 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

alcançar uma coroa ou medalha olímpica. Sem esforço dedicado,


não é provável que se consiga manter a paz.
E o que poderíamos dizer a respeito da falta de paz em
muitos lares cristãos? Nossos dias se caracterizam pelo divórcio,
pelas separações e por atritos entre cônjuges e familiares. Segundo
a Bíblia, Deus criou o homem e a mulher para demonstrarem o
amor e o auxílio mútuos que caracterizam a união da própria
Trindade. Não seria nesse sentido que o casal foi criado "à imagem
e semelhança de Deus"? Quando duas pessoas se casam, tornam-
se "uma só carne" (Gn 2.24). Jesus explicou que uma só carne
significa que " ... não são mais dois, porém uma só carne. Portanto,
o que Deus ajuntou não o separe o homem" (Mt 19.6). Paulo
observa que os maridos devem amar as suas respectivas mulheres
assim como amam "ao próprio corpo. Quem ama a sua esposa a
si mesmo se ama" (Ef 5.28). É uma anormalidade o fato de alguém
decepar membros do próprio corpo, a não ser no caso de uma
cirurgia obrigatória. Da mesma maneira, separar marido e mulher
por divórcio é contrário à própria criação de Deus.
O fracasso da paz internacional ou entre grupos étnicos
como na antiga Iugoslávia, na luta contra os curdos no Iraque ou
entre os hutus e os tutsis em Ruanda, deve-se às mesmas causas
que provocam as lutas dentro do lar. O egoísmo, a inveja e a falta
de perdão se intrometem e transformam o amor quase celestial
em hostilidade quase infernal. Faltando recursos além dos huma-
nos, não são de admirar as estatísticas vergonhosas no que diz
respeito ao divórcio. Se não conseguirmos vencer o pecado no
íntimo, ele não demorará para aparecer na forma de rupturas nas
famílias desestruturadas. A paz desaparece do lar assim como a
neblina se dissipa diante do sol da manhã.

Qualificações dos Pacificadores


Quem tem a missão de promover a paz é uma pessoa
constrangida pelo amor de Deus (2Co 5.14-15). Jesus veio ao
Felizes os Pacificadores ~ 109

mundo para mediar a paz entre Deus e os homens. Assim, o pacifi-


cador cristão é inserido na sociedade para promover a reconciliação
e manter a união. Após sua conversão e recepção da plenitude do
Espírito Santo (At 9.17), Paulo passou a amar intensamente os
gentios, mas sem deixar de amar os judeus (Rm 9.1-3). Sua
preocupação com estes era tão grande que o motivou a levantar
uma oferta c;!ntre os gentios para suprir as necessidades dos cristãos
pobres da Judéia (ver 2Co 8 e 9, bem como Rm 15.25-27). O
apóstolo anelava por ver gentios e judeus se amando e se aceitando.
Sonhava com a participação mútua de judeus e gentios no mesmo
Corpo de Cristo. Não se contentava só com a doutrina da unidade
da igreja, mas também zelava por vê-la posta em prática.
Podemos entender um pouco mais a respeito dessa preocu-
pação que Paulo tinha pela paz entre judeus e gentios quando nos
lembramos do que aconteceu em Antioquia. Quando alguns repre-
sentantes da igreja em Jerusalém foram visitar a igreja em Antio-
quia da Síria, Pedro e Barnabé, bem como mais alguns desses
visitantes, separaram-se dos gentios. Não havia entre eles confra-
ternização à mesa. O motivo desse distanciamento da parte dos ir-
mãos judeus foi o receio sentido por aqueles que tinham subido de
Jerusalém, vindos da parte de Tiago (Gl 2.11-14). Paulo resistiu a
Pedro "face a face" e reprendeu-o na presença de todos, "porque não
procediam corretamente segundo a verdade do evangelho" (v. 13).
Paulo, com a perceptividade que Deus lhe dera, reconhecia
que manter uma divisão teológica entre crentes que observavam a
lei, inclusive as cerimônias judaicas, e os que confiavam somente
em Jesus, pela fé, destruiria a unidade do evangelho. Por fim,
acabaria com o próprio evangelho. Paulo declarou que ele mesmo
morrera para a lei a fim de viver para Deus. Sendo corajosa essa
tomada de posição, ele a compara com uma crucificação com
Cristo (Gl 2.19-20). Somente assim seria possível manter a unidade
entre aqueles que antes eram inimigos e levá-los a ser um só corpo
em Cristo. Para Paulo, essa concórdia entre gentios e judeus não
110 ~ A FELICIDADE SEGUNDO jESUS

era mera teoria, mas uma realidade essencial que exigia ação e
dedicação total.
É impossível calcular os danos que a igreja teria sofrido se
Paulo não tivesse assumido esse compromisso pacificador. De mo-
do bem ativo, perseguia a paz e a promovia. 6 Paulo, tendo esse
alvo em vista, defendia seu próprio modo de adaptar-se ao mundo
gentio e judeu dentro das circunstâncias que surgiam (lCo 9.19-
27). Estando, em Cristo, independente de todos, fez-se "escravo
de todos, a fim de ganhar o maior número possível" (lCo 9.19).
Entendia, mais claramente do que seus colegas, que ser revestido
de Cristo implica na eliminação das divisões entre judeus e gentios,
entre escravos e livres, entre homens e mulheres, e afirmou
categoricamente: "Todos sois um em Cristo Jesus" (Gl 3.28).
O pacificador se preocupa, em última análise, com o alvo
de todos os homens, que é alcançar a paz com Deus. "Aí está o
retrato essencial do pacificador... alguém que não provoca conflitos,
mas que tudo faz a fim de estabelecer a paz." 7 O pacificador investe
suas energias em solucionar as contendas e em eliminar as
hostilidades entre os homens.

O Galardão dos Pacificadores


Jesus afirma que os pacificadores serão chamados "filhos de
· Deus". Mateus se refere a esse relacionamento privilegiado cada
vez que fala em "vosso Pai" como o Pai dos fiéis. O título "filho"
reside no fato de Deus chamá-los filhos, mas também no fato de
serem reconhecidos pelos homens como "nascidos de Deus" (l]o
3. 9; 5.4). O pacificador, da mesma maneira que os apóstolos diante
do Sinédrio (At 4.13), demonstra o que aprendeu com Jesus e
recebe forças e direção do seu Espírito. O Filho unigênito de Deus
repassou a seus "irmãos" uma qualidade essencial do seu próprio
caráter (cf. Hb 2.10-12). No futuro, depois da morte e ressurreição
finais dos cristãos, a sua filiação divina brilhará com fulgor ainda
maior.
Felizes os Pacificadores ~ 111

O propósito da predestinação, o que Deus planejou antes


da fundação do mundo, era aumentar o número de seus "filhos".
Paulo afirma claramente essa verdade em Romanos: "Porquanto
aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primo-
gênito entre muitos irmãos" (Rm 8.29). Jesus sofreu as agonias da
cruz a fim de tornar em realidade a filiação dos pecadores. Seu
sacrifício pacificador tornou possível a adoção dos filhos de Adão.
Dessa maneira, os pecadores, uma vez reconciliados com Deus,
ganham o direito legítimo de serem chamados filhos de Deus.
Ser "filho" implica em várias responsabilidades. 1) Aceitar
o nome do Pai. O nome de Deus é pronunciado sobre a pessoa na
hora do batismo "em nome do Pai, d.o Filho e do Espírito Santo"
(Mt 28.19; Tg 2.7). Deve ser inconcebível que um "filho" legítimo
tenha vergonha do Pai ou hesite em confessar seu nome (cf. Hb
13 .15). 2) Demonstrar na aparência e no caráter alguma semelhan-
ça com o Pai. Esse foi o objetivo original da criação do homem
(Gn 1.26-27). Nossas ações e atitudes são indicadores da nossa
filiação. 3) Ser um filho de Deus implica em amor pelo Pai.
Significa que haverá prazer em se comunicar com ele e receber
mensagens dele. Não há como entender a atitude de "crentes"
que não buscam a presença de Deus diariamente numa "hora de
meditação", nem querem desfrutar da comunhão com outros
membros da família de Deus na igreja (cf. Hb 10.25).

NOTAS
1
Veja R.V.G. Tasker: Imortalidade, Russell Shedd e Alan Pieratt, eds., São
Paulo: Vida Nova, 1992, p. 65.
2
Ibid., p. 69.
3 Citado em J. R. W Stott: A Cruz de Cristo, São Paulo: Editora Vida, 1991,

p. 118.
4
P. T. Forsyth: WtJrk of Christ, p. 80, citado por J. Stott, ibid., p. 119.
5 Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Editora Fiel, 1984, p. 113.
6
Jbid., op. cít., p. 113.
7
Jbid., op. cít., p. 113.
8

A Felicidade dos Perseguidos


por Causa da Justiça
«'Q..'

A última das bem-aventuranças nos adverte de que a


dedicação total à justiça poderá nos acarretar sofrimentos físicos
e mentais. Mas Jesus reitera a declaração da bem-aventurança dos
perseguidos por causa do Senhor: "Bem-aventurados sois quando,
por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo,
disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é
grande o vosso galardão nos céus; pois assim perseguiram aos
profetas que viveram antes de vós" (Mt 5.11-12).
Vivemos num mundo caído. Satanás, o deus desta era, é um
arquidemônio cruel e agressivo. Não está disposto a deixar cristãos
inocentes terem uma vida pacífica neste mundo - se depender
dele! Jesus teve de enfrentar a hostilidade irracional dos homens e
de Satanás nos seus dias e por isso disse: "Tenho-vos mostrado
muitas obras boas da parte do Pai; por qual delas me apedrejais?"
Go 10.32). Foi por causa do ódio de um mundo dominado pela
inveja que Jesus foi hostilizado. Quem estiver destituído do conhe-
cimento de Deus poderá chegar ao absurdo de matar um cristão e
julgar com isso "tributar culto a Deus" Qo 16.2). Jesus disse: "Se me
perseguiram a mim, também perseguirão a vós outros" Qo 15.20).
Exemplos de perseguição na Bíblia não parecem, porém,
ser motivos de regozijo. Elias provocou contra si mesmo a ira da
rainhaJezabel, porque ele amava a justiça (lRs 19.2). Sabe-se bem
como ele ficou desanimado com essa perseguição. Jeremias é
conhecido como o profeta chorão, não necessariamente por ter
114 <'Q..' A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

alguma tendência natural à depressão. e à autocomiseração, mas


porque foi vítima da perseguição da parte de uma geração Ímpia e
de um rei incrédulo. A tradição (sem comprovação histórica) nos
informa que Isaías foi serrado ao meio por Manassés, o filho iníquo
de Ezequias (ver Hb 11.37). Não precisamos pesquisar muito para
concluir que a perseguição dos profetas era uma das maneiras predi-
letas de os reis e líderes de Israel demonstrarem sua revolta contra
as palavras e ações disciplinares de Deus.
No Novo Testamento, os escribas, os fariseus, os saduceus e
os herodianos, igualmente, viam em Jesus uma ameaça contra seu
poder e autoridade sobre as pessoas. Perseguições e conspirações
para matar o Senhor eram o resultado natural dessa situação. Os
três capítulos que conservam os ensinos de Jesus sobre o futuro
enfatizam que os seguidores de Jesus seriam odiados por todas as
nações (Mt 24.9). Marcos é mais específico:" ... vos entregarão aos
tribunais e às sinagogas; sereis açoitados, e vos farão comparecer à
presença de governadores e reis por minha causa, para lhes servir
de testemunho" (Me 13.9). A perseguição furiosa contra os cristãos
será perpetrada até mesmo por membros da própria família deles.
"E sereis entregues até por vossos pais, irmãos, parentes e amigos;
e matarão alguns dentre vós. De todos sereis odiados por causa
do meu nome" (Lc 21.16, 17). Os evangelhos não nos iludem:
atos odiosos de violência contra os 'seguidores de Jesus serão uma
.extensão do ódio que o mundo sente pelo Filho de Deus.
O relato de Lucas a respeito da história da igreja primitiva
inclui grandes trechos sobre as perseguições que surgiram para
afligir os líderes. As autoridades judaicas, para começar, prenderam
os apóstolos porque anunciam a ressurreição de Jesus (At 4.2). A
oligarquia religiosa experimentou o uso de ameaças (4.21) e pensou
em aplicar a pena de morte (5.33). Açoites e proibições de falar
no nome de Jesus (5.40) não foram capazes de apagar o ardor com
que os apóstolos encorajavam seus ouvintes a crer no Senhor Jesus.
Estêvão foi martirizado por causa da sua corajosa defesa da fé
(7.1-60).
A Felicidade dos Perseguidos por Causa da justiça ~ 115

Em seguida, Herodes Agripa 1 resolveu decapitar o apóstolo


Tiago, agradando assim aos judeus. Planejou também matar Pedro,
mas o plano foi frustrado pela intervenção divina (At 12).
Ao longo do livro de Atos dos Apóstolos, a perseguição é
tão comum como raios e trovões no verão em São Paulo. A conver-
são de Paulo aconteceu enquanto viajava a fim de levar a efeito
uma missão, autorizada pelo Sinédrio, visando prender e torturar
os cristãos em Damasco, na Síria. O próprio Paulo não demoraria
muito, depois da sua conversão, para sentir a fúria do ódio desper-
tado pela pregação das boas-novas. Mas isso dificilmente foi uma
surpresa para ele, posto que Jesus dissera a Ananias: "... eu lhe
mostrarei quanto lhe importa sofrer pelo meu nome" (At 9.16).
Quando Paulo foi à sinagoga a fim de pregar aos judeus as reivin-
dicações de Cristo, a reação.deles foi quase automática: denúncias,
hostilidade e até mesmo apedrejamento (At 14.19-27). Em Éfeso,
o foco da animosidade surgiu entre os fabricantes de imagens de
prata. A aceitação generalizada do evangelho tinha diminuído as
vendas das imagens tão drasticamente que Demétrio incitou um
motim na cidade inteira para dali expulsar Paulo e seu cristianismo
(At 19.23-41). Paulo disse aos coríntios que lutara contra animais
selvagens em Éfeso (lCo 15.32) e que chegara tão próximo do
martírio que podia descrever o acontecimento como se "a sentença
de morte" tivesse sido pronunciada contra ele (2Co 1.9). Outras
descrições das suas perseguições podem ser lidas em 2 Coríntios
11.23-25. Não somente o ódio contra Paulo chegou ao ponto de
ebulição no átrio do templo, quando o apóstolo cumpria um voto
ali, corno também quarenta homens juraram solenemente que
não comeriam enquanto não o matassem (At 21.27-40; 23.12-22).
Esse episódio marcou o início de quatro anos de prisão. Ele acabou
sendo decapitado em Roma, aproximadamente em 67 d.C. Poucos
homens na história passaram por sofrimentos mais severos ou
mais freqüentes pela sua dedicação à causa de Jesus Cristo.
Pedro escreveu aos novos cristãos na Ásia Menor que não
deviam ficar surpresos com o "fogo ardente que surge no meio de
116 "Q..' A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

vós, destinado a provar-vos, como se alguma coisa extraordinária


vos estivesse acontecendo" (lPe 4.12). Explicou que chegara a oca-
sião do início do juízo na casa de Deus (v. 17). Tais sofrimentos,
causados pela perseguição, estão de conformidade com a vontade
de Deus (v. 19). A leve perseguição que os cristãos brasileiros preci-
sam enfrentar não deve ser considerada normal. E essa exceção à
norma bíblica não deve nos levar a esperar que essa perseguição
continuará sendo leve durante muito tempo. A fúria do inimigo
poderá derramar o seu ódio contra o povo de Deus em qualquer
momento que o diabo considerar conveniente para a causa dele.
O livro de Apocalipse foi escrito especificamente para
encorajar os cristãos a resistirem com firmeza ao adversário que
anda em derredor e ruge, procurando alguém para devorar (1Pe
5.8). Em Apocalipse, esse mesmo leão é descrito como um dragão,
como uma fera consumida pela sua ira contra os cristãos (Ap
12.12). Ele luta contra os santos e lhe é concedido vencê-los (13.7),
no sentido de matá-los. Nesse último livro da Bíblia, a perseguição
é tão intensa e generalizada que se chega a duvidar de que haverá
algum sobrevivente.
É importante lembrar que a batalha espiritual, de confor-
midade com o Novo Testamento, é basicamente defensiva. Deve-
mos vestir-nos de toda a armadura de Deus, para que possamos
resistir no dia mau e, depois de termos vencido tudo, permanecer
inabaláveis (Ef 6.13). A perseguição sempre tem sido uma ameaça;
e ela crescerá, àmedida que os dias do fim nos levarem ao término
da história que conhecemos.
A perseguição e o martírio não se limitam aos tempos
bíblicos e à Era das Trevas. A perseguição nunca esteve ausente na
história da igreja verdadeira. Os imperadores romanos perseguiam
os seguidores de Cristo por muitas razões. Nero (58-68) queria
escapar das suspeitas de ter sido ele quem incendiou Roma, de
modo que lançou a culpa sobre os cristãos. Domiciano (81-96)
perseguia os crentes porque temia possíveis rivais. Aurélio (161-
180) odiava os cristãos porque ele mesmo favorecia o estoicismo.
A Felicidade dos Perseguidos por Causa da justiça "Q..-' 117

Décio (249-251) considerava o cristianismo uma ameaça contra a


sua política e o seu poder. Diocleciano (284-305) perseguia a igreja
porque via nela uma lealdade mais forte a Cristo do que a si
mesmo. 1 A igreja que tanto sofrera nas mãos dos imperadores
não hesitou, cerca de mil anos depois, em empregar a mesma
arma contra pessoas consideradas hereges. Em 1231, o papa
Gregório IX instituiu a Inquisição, que alcançou seu apogeu no
fim do mesmo século. A partir de 1400 ela foi retomada na Espanha
e, posteriormente, na Contra-reforma. 2 "Os hereges que se retra-
tavam recebiam a alternativa de passar o restante dos seus dias na
cadeia, como penitência, mas os que persistiam na sua heresia
eram executados. "3 Milhares de pessoas entregaram a vida por
amor à fé nos dois primeiros séculos da Reforma.
Mais recentemente, o sofrimento pela fé cristã tem ocorrido
nos Estados totalitários que não permitiam nenhuma lealdade
rival. Os nazistas perseguiam os judeus e os cristãos. Os gover-
nantes comunistas têm contra eles um histórico infame de pren-
der e martirizar os fiéis. Certo pastor chinês chamado Josué deu
uma preleção na Conferência Bíblica da Maturidade, em Cambu-
quira-MG, há cerca de 5 anos. Tinha sofrido especificamente pela
sua fé cristã. Depois do martírio do seu pai - fuzilado por ser
pastor -, Josué passou por vinte e um anos de trabalhos forçados
em condições desumanas. Milhares de outros têm sofrido de modo
semelhante por não querer negar o seu Senhor e abraçar os dogmas
marxistas.
O poeta cubano Armando Valadares escreveu na revista
Seleções (1987) o testemunho brilhante de um pastor a quem conhe-
ceu no seu longo período na prisão. Essa descrição nos oferecerá
pelo menos uma idéia da bem-aventurança dos que sofrem por
amor a Cristo.
Todas as tardes, pouco antes do anoitecer, a voz trovejante do
Irmão da Fé, conforme chamávamos o pregador protestante
Gerardo, ecoava pelos corredores conclamando os homens à
oração e aos cânticos dos hinos. Para impedir as reuniões
118 ~ A FELICIDADE SEGUNDO jESUS

religiosas, os guardas entravam nas celas e nos espancavam, mas


tão logo partiam, começávamos a orar e a cantar de novo. A voz
do Irmão da Fé entoava, mais alto do que o tumulto: "Glória,
glória, aleluia!".
O Irmão da Fé tinha estado em La Cabana e na Isla de Pinos.
Ele mesmo era seu sermão mais comovente. Sempre nos animava,
convidava-nos para as reuniões de oração, lavava as roupas dos
enfermos - e ajudava muitos homens a enfrentar a morte com
coragem e serenidade. Acima de tudo, ele nos ensinava a não
odiar; todos os seus sermões continham essa mensagem.
Quando os guardas lhe davam uma surra, os olhos do Irmão da
Fé pareciam arder; seus braços se abriam diante dos céus, como
se fossem trazer dali o perdão para os seus algozes, e ouvíamos
como ele clamava: "Perdoa-lhes, Senhor, porque não sabem o
que fazem!" Conseguiu dar um jeito de transmitir sua fé a nós,
mesmo nas circunstâncias mais desesperadoras, mesmo quando
foi trucidado em Boniato em 1975, continuando a perdoar aos
seus algozes, enquanto os projéteis de metralhadora rasgavam o
seu peito. 4
Em 1981, o missionário Chet Bitterman, da Associação
Wycliffe de Tradutores da Bíblia, foi seqüestrado pelo grupo
guerrilheiro M-19 na Colômbia. Ficou preso durante sete semanas,
enquanto sua esposa Brenda e duas filhinhas o aguardavam em
Bogotá. O preço do resgate seria a retirada da Wycliffe da
Colômbia. O Dr. J. Piper conta o que aconteceu:
Fuzilaram-no pouco antes da aurora - com um único tiro no
peito. A polícia achou seu cadáver no ônibus onde morreu, num
estacionamento ao sul da cidade. Estava limpo, com a barba
feita, sem tensão no rosto. Uma bandeira da guerrilha envolvia-
lhe os restos mortais. Não havia sinais de tortura. 5
O motivo do martÍrio desse servo do Senhor foi político: o
conflito entre os ideais do evangelho e os de Marx.
O dia 29 de setembro de 1996 foi o dia da convocação de
cristãos evangélicos da América do Norte para que orassem em
favor dos cristãos perseguidos ao redor do mundo e para que
pensassem em que se podia fazer por eles. Os participantes ainda
A Felicidade dos Perseguidos por Causa da Justiça ~ 119

procuram meios de aliviar a perseguição que somente neste ano


provocará a morte de centenas de crentes. 6 Fica evidente que pouco
interessa às autoridades governamentais levantar a questão da
perseguição de cristãos evangélicos. Tendo estes pouca expressão
política, por serem uma minoria, os governos não recebem pressão
suficiente para agir em favor deles.
A perseguição religiosa também faz parte da teologia
deturpada do islamismo.
Roberto Hussein Qambar, cristão recém-convertido, em 29 de
maio, num julgamento que durou menos de um minuto, foi
declarado oficialmente um apóstata da fé islâmica {apesar de a
Constituição do país assegurar absoluta liberdade de religião).
Sua casa foi invadida, saqueada, e aquilo que não puderam roubar
foi depredado. Sua atitude é impressionante: "Eu era um
empresário rico. Tinha lindos carros, viajava para a Europa, os
Estados Unidos e a África... Estou totalmente excluído da minha
empresa, da minha casa, do meu status, dos meus bens, da minha
esposa, dos meus filhos. Mas, acreditem, eu sinto alegria. Todas
as vezes em que penso nele, meu Senhor, recebo uma tremenda
alegria ... Membros do Parlamento, jornais, pregações nas
mesquitas, todos estão pedindo por minha morte. O que está
em questão é se eu tenho ou não direito de viver como cristão
em meu país.7
Razões para a Alegria no Meio da Perseguição
De modo distinto das demais bem-aventuranças, esta última
repete a palavra grega makarios (vv. 10-11) como para dizer que a
felicidade dos perseguidos é dobrada. Em seguida, acrescenta duas
palavras: "regozijai-vos e exultai" (v. 12). Todo sofrimento é
desagradável; portanto, devemos tentar entender os motivos
bíblicos que nos convencerão a ter alegria nas perseguições.
Primeiro, Jesus afirma a bem-aventurança de receber injúrias
e perseguição por causa da justiça, porque os que assim sofrem
maltrates têm direito ao reino dos céus (Mt 5.10). A partir dessa
declaração de Jesus, pode-se deduzir que a perseguição do crente
parece sinal certo de que dele é o reino de Deus, tão almejado
120 ~ A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

pelos santos. Enquanto a perdição dos perseguidores está assegura-


da, para os inocentes, vítimas da sua hostilidade, isso é evidência
da salvação (Fp 1.28).
Segundo, os filhos de Deus não devem esperar ficar isentos
da disciplina. Provas enviadas por Deus são sinais da sua
paternidade amorosa. No momento do sofrimento, este "não
parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto,
produz fruto pacífico... de justiça" (Hb 12.11). No contexto de
Hebreus, "disciplina" refere-se à perseguição, não aos sofrimentos
comuns da vida terrena.
Se Deus afasta o sofrimento de nossas vidas, parece que
somos filhos ilegítimos. Nesse caso, não teríamos motivo para
pensar que realmente nascemos de novo. Deus não é pai dos que
nunca tiveram de enfrentar o inimigo cruel ou o sofrimento imere-
cido. "O Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem
recebe. É para disciplina que perseverais (Deus vos trata como
filhos); pois, que filho há que o pai não corrige? Mas, se estais
sem correção, de que todos se têm tornado participantes, logo,
sois bastardos e não filhos" (Hb 12.6-8).
Terceiro, Jesus não somente acolhe como membros do seu
reino os perseguidos por causa do evangelho, mas também promete
um grande galardão na vida vindoura àqueles que, por causa do
Senhor e do evangelho, sofrem a hostilidade do mundo (Mt 5.12).
Uma recompensa além da herança da vida eterna desafia a nossa
imaginação. Paulo também escreveu a respeito do tamanho do
galardão que Deus oferecerá aos perseguidos. Escutemos as suas
palavras: "Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz
para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação" (2Co
4.17). Para o apóstolo, o valor do galardão é mais do que suficiente
para compensar qualquer tribulação que os inimigos do evangelho
possam provocar. Além disso, é incalculável o contraste entre a
quantidade de aflição sofrida pelo crente, por causa da fé, e o seu
galardão futuro. Sofrer perseguição não parece agradável nem leve
A Felicidade dos Perseguidos por Causa da justiça ~ 121

no momento do sofrimento, mas, em comparação com o galardão


(o "peso de glória"), pesa menos na balança da experiência do que
uma pen~ de passarinho. Além disso, a tribulação tem pouca
"' E" momentanea
duraçao. " ", ao passo que o peso de gl'. ona e' eterno.
Os sofrimentos desta vida, quaisquer que sejam a sua intensidade
e a sua natureza, não perduram. Não podem durar mais do que a
nossa vida neste mundo. Depois, vem a bonança.
Quarto, Paulo acrescenta outro motivo para a alegria na
perseguição, declarando: "Agora, me regozijo nos meus
sofrimentos por vós" (Cl 1.24), referindo-se às tribulações que
experimentava por amor aos colossenses. Seguramente, não
devemos interpretar essa afirmação de modo vicário. 8 Os sofri-
mentos dos santos não produzem um acervo de méritos a serem
aproveitados pelos menos consagrados. Não há sustento bíblico
para semelhante ensino. Cristo é o único que carregou sobre si os
pecados do mundo. Somente ele foi castigado pelas nossas trans-
gressões, levando sobre si a nossa culpa.
Os extraordinários sofrimentos que Paulo enfrentou por
causa do evangelho foram de grande proveito para os colossenses.
Quando o amor pelo SENHOR vem de encontro à barreira do peca-
do levantada pelo diabo e seus aliados, é de esperar que isso redunde
em sofrimento. A proclamação de Cristo nas regiões pagãs suscitou
intensa oposição a Paulo, mas, como resultado, os colossenses
foram alcançados com o evangelho. Qualquer missionário que
aceita o desafio de evangelizar os povos não alcançados pode ter a
certeza de que será atacado pelo inimigo, com investidas diabólicas
contra os embaixadores do Rei.
Paulo acrescenta que ele preenche "o que resta das aflições
de Cristo" (Cl 1.24). Pode ser que os sofrimentos do Corpo de
Cristo sejam sentidos pela Cabeça, que é Cristo. Essa verdade
transparece na pergunta de Jesus ao· infame perseguidor na estrada
de Damasco: "Saulo, Saulo, por que me persegues?" (At 9 .4). Quem
persegue a igreja atinge o Cristo ressurreto. A morte vicária de
122 <'Q.' A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

Jesus oferece perdão com base na substituição. Ele oferece o seu


corpo no altar para expiar os pecados do mundo Go 1.29; 1 Jo
2.2). Mas há uma "sobra" de tribulações pelas quais os voluntários,
guerreiros de Deus, devem passar por amor ao evangelho, a fim
de fazer que a mensagem penetre nos territórios controlados pelo
demônio. Paulo sente muita satisfação em divulgar a fé, mesmo
com sofrimentos. Ele disse aos irmãos na Ásia Menor: "Peço que
não desfaleçais nas minhas tribulações por vós, pois nisso está a
vossa glória" (Ef 3.13). Aos crentes em Filipos ele escreve: " ...
mesmo que seja eu oferecido por libação sobre o sacrifício e serviço
da vossa fé, alegro-me e, com todos vós, me congratulo" (Fp 2.17).
O martírio de Paulo não devia ser motivo de tristeza para os
cristãos da Macedônia, uma vez que o sangue vertido pelo apóstolo
poderia trazer maiores benefícios para a igreja do que o ministério
ativo realizado por ele em vida.
Sabe-se que a perseguição pode provocar de duas reações
uma. Em alguns cristãos temerosos, provoca silêncio. Jesus advertiu
contra a timidez, representada pela candeia escondida debaixo do
alqueire (Mt 5.15). Na sua Parábola do Semeador (ou dos quatro
tipos de solo), refere-se assim ao solo sem profundidade, por ter
pedras logo abaixo: "A que caiu sobre a pedra são os que, ouvindo
a palavra, a recebem com alegria; estes não têm raiz, crêem apenas
por algum tempo e, na hora de provação, se desviam" (Lc 8.13 e
paralelos). As ameaças feitas pelo mundo podem levar alguém a
negar o Senhor diante dos homens (Mt 10.32). Quem negar o
Senhor nesta vida, será repudiado por Cristo na vida futura (v.
33). A timidez não é desculpa adequada diante de Deus. São esses
tímidos que negam Cristo que João tem em mente quando cita os
covardes entre os candidatos para o lago que arde com fogo e
enxofre, a saber: a segunda morte (Ap 21.8). Os "covardes" são os
que, na hora de dura persegu~ção, se distanciam do Senhor que
deu sua vida por eles. Procuram se livrar do "embaraço" do
cristianismo na hora do perigo. Serão deserdados no dia final.
A Felicidade dos Perseguidos por Causa da Justiça ~ 123

A perseguição, porém, também tem um efeito positivo. Ela,


inevitavelmente, fortalece a igreja. Afasta os membros acomodados
e sem co~versão real e acrescenta ferro ao sangue de pessoas como
Lutero que, em Worms, na Alemanha (1521), disse na hora da
maior pressão contra sua doutrina evangélica: "Aqui firmo os
pés! Não posso tomar outra atitude. Deus me ajude". Toda a força
da Igreja Católica daqueles tempos, juntamente com o poderio
do Santo Império no reinado de Carlos V, foram insuficientes
para convencê-lo a recuar.
A morte de Policarpo em Esmirna, em cerca de 155 d.C., é
mais um exemplo em que os sofrimentos de um homem de repu-
tação santa trouxe;.lm um grande impulso ao evangelho. Quem
poderia ter deixado de ouvir da ocasião em que o venerável pastor
da igreja f9i queimado na estaca aos 86 anos de idade? Quem teria
desconhecido o motivo desse ato brutal dos romanos? Policarpo
não quis escapar da fogueira, por causa da sua lealdade a Jesus. O
pastor veterano lembrou-se de que Jesus também poderia ter
evitado a cruz, mas escolheu essa morte vergonhosa por amor a
todos nós. Não é sem razão que os historiadores falam do sangue
dos mártires como a semente de onde brotam muito mais crentes.
De conformidade com Apocalipse, os cristãos venceram o
dragão (Satanás), "por causa da palavra do testemunho que deram
e, mesmo em face da morte, não amaram a própria vida. Por isso,
festejai, ó céus, e vós, os que neles habitais ... " (12.11, 12). A bem-
aventurança dos perseguidos tem algo que ver com o testemunho
que deram. Seus sofrimentos produziram frutos evangelísticos.
Ainda há outro motivo para a alegria: "os decapitados por causa
do testemunho de Jesus, bem como por causa da palavra de
Deus ... " são os mesmos que se sentarão em tronos para reinar
com Cristo após a ressurreição (Ap 20.4).

NOTAS
1 David Wells: "Persecution", Dictionary of the Christian Church, ed. J. D.
Douglas, G. Rapids: Z.Ondervan, 1974, 1978, p. 766.
124 'Q..-' A FELICIDADE SEGUNDO jESUS

2
Ibid.
3
Ibid.
4
P. 203-4.
5 J. Piper: Let the Nations be Glad. G. Rapids: Baker, 1993, p. 93.
6 Joel Belz: "Blood-stilling Silence" em World, 6-13 de julho de 1996.
7
Vttmos Orar, publicação da Missão Portas Abertas, São Paulo: setembro de
1996, p. 1, 5.
8 Cf. R. Shedd: Andai Nele, São Paulo: Vida Nova, 1979, p. 39.
Conclusão
~

Não é necessário repetir o que fica claro em todas as bem-


aventuranças. Elas descrevem a felicidade que pertence aos que
vivem com consciência limpa. O caráter do cristão maduro,
ressaltado pelas bem-aventuranças, é aquele que os regenerados
sempre almejaram. Por que não seria automática semelhante
transformação progressiva do coração dos filhos de Deus? Em
Gálatas, Paulo faz uma lista de qualidades semelhantes àquelas
citadas nas bem-aventuranças, classificando-as como "fruto do
Espírito" (Gl 5.22, 23). Seria fácil concluir que esse fruto crescerá
de modo natural, independentemente de qualquer iniciativa nossa.
Mas, é claro, o caráter cristão não surge tão facilmente como um
cacho de uvas numa videira bem irrigada e fertilizada.
Não devemos permitir que a ênfase sobre os dons caris-
máticos sobrenaturais do Espírito Santo obscureça a importância
do fruto do Espírito para o caráter cristão. Se atentarmos para o
que agrada a Deus, sempre daremos prioridade a ter o caráter de
Cristo. Entre os mais graves obstáculos que impedem a unidade
do grupo e a formação de uma equipe ministerial estão os proble-
mas provocados pela imaturidade..O próprio Jesus teve de lidar
com falhas no caráter dos seus discípulôs. É fácil perceber neles a
falta de espiritualidade e de prontidão para servir e pG>uco desejo
e disposição para a santificação (Me 10.35-45). Todos os membros
das igrejas, principalmente os que participam da equipe pastoral,
devem examinar a si mesmos quanto à sua maturidade na fé. Jesus
126 ...,.,, A FELICIDADE SEGUNDO JESUS

exige que cada um descubra e retire a trave do seu próprio olho


antes de tentar tirar o argueiro do olho do seu colega. 1
Paulo sentia na pele o amor de Cristo que nos constrange:
"julgando nó~ isto: um morreu por todos, logo todos morreram.
E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais
para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou"
(2Co 5.14-15). Glorificar a Deus na vida é demonstrar claramente
a presença de Cristo em nós (2Co 3.18; Rm 8.29) mais do que
operar milagres e prodígios. É importante levantar igrejas nas quais
Cristo seja formado (Gl 4.19). Certamente, Paulo queria ensinar
com isso que o caráter de Cristo deve se manifestar nos membros
do seu Corpo, a igreja.
Devemos sempre nos lembrar de que a obra de Cristo na
cruz e o novo nascimento devem produzir o amor fraternal (1Pe
1.22). A igreja cristã formada pelo Espírito Santo deve manter a
prioridade do amor a Deus e ao próximo (Lc 10.26-28).
A felicidade deve ser o alvo de todos os que servem ao Deus
único e bendito (1Tm 1.11). A infelicidade que predomina em
muitos corações, talvez na maioria dos que se dizem filhos de
Deus, tem só uma explicação: eles ainda não cultivaram as virtudes
dos bem-aventurados súditos do reino de Jesus. Assim como uma
doença física apresenta sintomas como dores, fraquezas, tonturas
e náuseas, a vida "carnal" produz relacionamentos difíceis e
infelizes. Não fossem as dores físicas, certamente o homem se
destruiria rapidamente em acidentes, descuidos e exageros de todos
os tipos. Deus nos fala graciosamente a respeito da vida realmente
feliz. Essa bem-aventurança envolve todo o caráter cristão que
glorifica a Deus e cria bons relacionamentos com o próximo.
Deus nos ajude a ser mais zelosos na busca dessa perfeição que ele
concede aos seus filhos que, sincera e persistentemente, a almejam
(Hb 12.14). Busquemos todos os meios de concretizar as bem-
aventuranças em nossas igrejas e famílias. Acima de tudo, valorize-
Conclusão ~ 12 7

mos as virtudes do caráter cristão para nossa própria felicidade,


nesta vida e na vida do porvir.

NOTAS
1
Mt 7.3-5. Cf. Rick Love: Four Stages o/Team Development. Evangelical Missions
Quarterly, vol. 32, nº 3, julho de 1996, p. 313.
Impressão e Acabamento
na Gráfica Imprensa da Fé

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