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Curso Online de Filosofia: Olavo de Carvalho Aula 169 25 de Agosto de 2012

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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho

Aula 169
25 de agosto de 2012

Espero que todos tenham o texto em inglês The Keys of gnosis de Robert Bolton e uma tradução.
Já expliquei essa questão: a pessoa humana é cognocível, mas não é pensável. Você não pode
pensar uma pessoa como um todo, mas só aspectos dela. No entanto, você a conhece como um
todo. É justamente esse todo que dá sentido aos vários aspectos ou pedaços. Temos, então, o
mistério de um conhecimento impensável. Algo que você pode conhecer, mas não pode
transformar em objeto de pensamento.
Você vê o disco. E acredita que, enquanto fechou os olhos, o disco continuou sendo aquilo que
ele é. Mas não existe prova sensorial da permanência do objeto que não está sendo percebido.
Mais outro exemplo que ele está dando da diferença entre a nossa percepção e a constituição
objetiva dos objetos tal como acreditamos nela.

A nossa visão do mundo se organiza em círculos concêntricos a partir do lugar em que nós
estamos. Mas, não é possível que o mundo seja objetivamente uma coleção de círculos
concêntricos –– cada um em torno de uma pessoa. A visão total que nós temos do mundo,
segundo Bolton, é apenas uma representação pessoal e não um traslado do mundo objetivo. Cada
um de nós vive dentro de um círculo de percepções; e segundo ele, esse círculo de percepções é
uma representação privada e pessoal; não é o mundo real.

Se nós percebessemos os objetos diretamente, as nossas percepções seriam infalíveis.

Se você tomar duas representações –– uma falsa e outra verdadeira –– e fizer abstração do objeto
a que elas se referem, não há nem como distinguir a verdadeira da falsa porque não vai haver
nenhuma diferença efetiva entre elas. As representações falsas e verdadeiras não se distinguem
entre si, mas se distinguem na sua relação com o objeto que, no caso da observação verdadeira,
está lá, e no caso da ilusória, não está.

''Lovejoy chama atenção para um campo especialmente decisivo em que o dualismo é inevitável:
a memória. Embora suas implicações sejam estranhamente negligênciadas pela maioria dos
filósofos, a distinção entre objeto e representação sobressai da maneira mais clara na memória do
que em qualquer outro lugar. Lembrar-se é estar consciente da diferença entre a imagem presente
e o acontecimento rememorado. Ninguém pode negar isso sem negar a existência da própria
memória. As dúvidas quanto à relevância do cogito ergo sum de Descartes poderiam ser sanadas,
como mostra Lovejoy, pelo fato de que a mera passagem do tempo transforma-o em memini ergo
fui. ''

Ou seja: lembro-me, portanto fui. Em vez de “penso, logo sou” ou “penso, logo existo”, ficaria
“lembro-me, portanto existi”.

''Algo muito menos exposto ao ataque cético. Qualquer que seja o caso, nossa capacidade de
relembrar o passado recente desempenha um papel crucial em nossa experiência do presente. ''
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''O entrelaçamento de passado e presente também se estende para o futuro, dado que nossa
capacidade de pensar construtivamente de maneira prática depende inteiramente da nossa
capacidade de pensar sobre acontecimentos futuros de modo efetivo. ''

Bolton quer dizer que cada pessoa tem uma alma que abarca não só aquilo que nós nessa vida
chamamos de mundo –– que é apenas o conjunto de círculos subjetivos de representação ––, mas
abarca também o mundo objetivo inteiro e muitas outras realidades além dele. Tudo isso é o que
ele chama de minha alma.

Terei que voltar um pouco atrás para esclarecer melhor os outros pontos antes de passar adiante.
A mesma questão que ele coloca da diferença entre a nossa representação e os objetos reais é o
que tem sido examinado na filosofia desde o tempo de, pelo menos, George Berkeley e David
Hume ou de toda crítica do conhecimento pelos sentidos, vagamente herdeira do antigo
ceticismo grego. Toda essa crítica forma o tecido mesmo de toda a epistemologia ou gnosiologia
moderna que é altamente subjetiva ou idealista justamente por ter percebido essas coisas que ele
está assinalando, ou seja, o abismo entre a nossa representação e a consistência objetiva dos
objetos conhecidos. Só que eu já observei a vocês e assinalei em outras aulas que toda essa
tradição de gnosiologia subjetivista só examina o problema do ponto de vista do sujeito e jamais
do objeto, nunca. Uma coisa é a afirmativa: de fato esse objeto, que eu sei que é circular, vejo-o
como elíptico. Mas podemos inverter a pergunta: Esse objeto, que é circular em si mesmo, tem a
capacidade de mostrar-se como circular em todas as direções ao mesmo tempo?
Independentemente da minha percepção dele. Porque, note bem, se esse objeto existe no espaço,
as características objetivas dele são características espaciais, geometricamente descritíveis. Além
das qualidades geométricas e físicas que ele contém em si, estará determinado, objetivamente,
pela posição que ele ocupa no espaço com relação a outros objetos.

Basta você fazer toda essa crítica da percepção: a nossa percepção não apreende os objetos
como tais. É muito fácil. Nenhum objeto se relaciona com nenhum outro como tal. Para um
objeto se relacionar inteiramente com um outro como tal e não só por alguns aspectos ele
precisaria se transformar no outro. Esta mesa está acima do chão e abaixo do teto, portanto, ela
ocupa duas posições diferentes. E a reação que ela tem com o chão é uma e a que ela tem com o
teto é outra. Você pode reduzir uma dessas relações à outra? Ou fundi-las? Não. Isso é a mesma
coisa que dizer que toda e qualquer relação de um objeto com os outros no espaço, é limitada
a posição, direção, ângulo, etc, e que as famosas limitações da nossa percepção não são nada
mais do que a consciência que nos temos dessas relações.
A tentativa de descrever uma relação levando em conta somente um dos sujeitos envolvidos, no
que ela deixa de ser, automaticamente, uma relação faz com que ela se torne uma fantasmagoria.
Esta crítica subjetivista do conhecimento foi justamente o prólogo idealista do moderno
materialismo. O raciocínio foi o seguinte: idealismo, positivismo, materialismo. Foi essa a
sequência. Se nada podemos conhecer do mundo objetivo, se conhecemos apenas as nossas
representações, ou fenômenos das aparências e nada podemos saber dos objetos em si mesmos
então, só o que nos resta, sob o nome de ciência, nos dedicarmos à descrição das aparências,
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descrição mais exata possível das aparências, sem nos pronunciarmos sobre a existência objetiva
deles ou não e sobre as suas propriedades objetivas ou não. Isso é positivismo. Ora, o passo
seguinte é este: de tudo que nos chega como fenômeno não há nada que não seja percepção
sensível, então, só existe para fins de ciência e de conhecimento o mundo sensível e o resto é
tudo fantasia ou imaginação, etc. Entenderam a sequência? (a) Crítica realista do
conhecimento, (b) afirmação positivista do primado absoluto da fenomenalidade e (c) como
conseqüência inevitável, como toda fenomenalidade é sensível à proclamação da prioridade
absoluta do sensível e a existência única do sensível, com a (d) conseqüente exclusão de
tudo o mais.
Mas, normalmente, vejo os outros seres humanos com seres conscientes e ativos e vemos assim
desde quando somos apenas bebês. Por que é a sua mãe que trás a mamadeira, não é você que a
manda buscá-la. Você descobre os outros como sujeitos ativos e autoconscientes, os outros como
centro de círculos concêntricos, mas antes de conhecer a si mesmo como tal. Portanto, para mim,
a existência dos outros como seres agentes e autoconscientes vem antes, até, da minha tomada de
consciência de que eu também sou do mesmo gênero. Porque você quando nasce, nos seus
primeiros meses de vida, não age, apenas padece, não tem capacidade de ação premeditada. Você
padece de sono, fome, frio, etc., e vem alguém e socorre você. Então, esse alguém é o centro da
ação e você é apenas o objeto passivo que recebe aquela ação. Isso significa que a visão que
temos do mundo não é egocêntrica, é multicêntrica desde o início e é necessariamente assim. A
existência da pluralidade dos “eus” conscientes é uma premissa da vida humana. E, se eu, para
combater com materialismo a visão egocêntrica e fechada que a cultura atual impõe às pessoas,
eu apelo para essa crítica idealista do conhecimento e subscrevo a teoria kantiana, ou até
schoppenhaueriana, da representação, estou pedindo para satanás me proteger de belzebu. Este é
o problema com essa proposta gnóstica.

Outra coisa, se a minha alma fosse maior que o universo, maior que as representações subjetivas,
maior que o mundo objetivo, transcenderia os dois; não poderia haver mais de uma alma. Porque
assim você teria dois infinitos. Esta perspectiva termina de certo modo, numa espécie de auto
divinização da alma individual humana. Esse é o problema com o gnosticismo.
[Intervalo]

Aluno: O senhor considerou que recorrer à epistemologia kantiana ou mesmo


schoppenhaueriana seria pedir auxílio a satanás para se proteger de belzebu. No caso,
especificamente de Schoppenhauer que aponta a coisa em si como uma vontade cega e obscura,
seria, de fato, considerar a essência do mundo como demoníaca?

Olavo: Sim. Sem sombra de dúvida. Schoppenhauer ficou profundamente impressiona com a
filosofia de Kant, aliás, como todo mundo ficou, porque os argumentos de Kant pareciam não ter
saída e de fato não tem. Se colocarmos as perguntas como ele colocou e como essa tradição de
crítica cética do conhecimento tinha colocado, de fato, você não tem saída, é obrigado a
concordar com ele. Nós não temos acesso à coisa em si. O problema não é a argumentação, o
problema é a estrutura inteira dessa abordagem que começa por tapar metade do problema, que é
a parte do objeto. Sobretudo, uma coisa que Kant nunca faz, é considerar a si mesmo como
objeto. Lendo Kant temos a impressão de que só ele enxerga as coisas, os outros não o
enxergam. Talvez porque ele fosse pequenino demais. Mas, depois que você coloca essas
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perguntas fundamentais, sobre o que um objeto precisa para ele ser um objeto — tanto para ser
objeto do meu conhecimento quanto para ser objeto de quaisquer relações com outros objetos —
você vê que toda esta abordagem é uma falsificação monstruosa da estrutura da realidade.
Mesmo porque, para você dizer "não temos acesso a coisa em si", coloca o seguinte
problema: nenhum objeto pode jamais ser uma coisa em si. Ser um objeto significa ser um
objeto no mundo: no tempo, no espaço e entre outros objetos — a não ser que a coisa-em-si seja
um objeto totalmente separado não só do conhecimento humano, mas de todos os outros objetos.
Então seria o gato-em-si. Seria um gato eterno que não nasceu de outro gato e de uma gata, que
apareceu por si mesmo. Bom, mas isso aí é precisamente o que não existe — não é cognoscível,
porque não existe e não pode existir. Então, mesma coisa, dizer que não conhecemos a coisa em
si é a mesma coisa que dizer: não conhecemos o nada. Porém, Ortega y Gasset definia a
filosofia do Kant como uma jaula, e ele diz que durante dez anos foi prisioneiro da jaula
kantiana. Mas isto acontece mesmo, é uma pegadinha, é um truque demoniaco para limitar
as suas possibilidades de conhecimento; e, portanto, determinar o curso da história cultural
numa certa direção que ele determinou mesmo, esse negócio kantiano tem uma influência
terrível ainda hoje, na cabeça de pessoas que jamais leram Kant.

Aluno: Tenho pensado nos argumentos contra a burra e maliciosa comparação entre as
asserções de Platão, no sentido de formar a alma da população, sobretudo nas Leis, e a
engenharia social do século XX. O senhor poderia dizer algo sobre isso?

Olavo: Posso. Primeiro lugar: como é que termina a República? Termina dizendo que vai dar
tudo errado! Termina dizendo que, se você fizer a sociedade mais perfeita, as leis cíclicas que
determinam o correr da história vão acabar com tudo aquilo. Então, a República não é uma
proposta de construir uma sociedade, é um estudo hipotético sobre como seria a sociedade
perfeita, e o que aconteceria com ela. E a conclusão é a seguinte: ou não dá para fazer, ou se
fizer vai acabar muito mal. A República não é uma utopia, a República é o estudo científico de
uma hipótese, analisada em todas as suas consequências. Então não tem absolutamente nada a
ver com engenharia social. O engenheiro social é o cara que leu a República acreditando que é
uma proposta, quando o próprio Platão está dizendo que vai dar errado. Platão não acredita na
sociedade ideal, mas o engenheiro social acredita e diz que foi Platão que ensinou.

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