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Conflit Os Massacres Me Mori As

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2022

ficha técnica
CONFLITOS, MASSACRES E MEMÓRIA DAS Índice
LUTADORAS E LUTADORES DO CERRADO 2022
Comissão Pastoral da Terra – Articulação das CPTs do Cerrado
Rua 19, nº 35, 1º andar – Edifício Dom Abel, Centro – Goiânia/GO

COORDENAÇÃO DA PUBLICAÇÃO
4 Apresentação

Amanda Costa
Valéria Pereira Santos
8 Cerrados brasileiros:
territorialidades em conflito
COLABORADORES
Antonia Laudeci Oliveira Moraes, Antônio Gomes de
Moraes, Altamiram Ribeiro, Etelvina Moreira de Arruda,
Edilene Alves da Silva, Leila Lemes de Moraes, Lucimone
Maria de Oliveira, Leuziene Lopes, Fátima Beatriz 22 Geografia dos conflitos
agrários como instrumento de luta:
Stringhi, Isolete Wichinieski, Maria das Mercês Alves de
Cerrado e Zonas de Transição,
Sousa, Mariana Verardi Bringhenti, Roberto Carlos de
Oliveira, Samuel Brito das Chagas.
Brasil 2003–2019

REVISÃO E EDIÇÃO DOS TEXTOS REALIZAÇÃO


Ruben Siqueira
Mariana Muniz Nazima
52 A vida ameaçada e as lutas pela vida:
violência e conflitos nos Cerrados
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO brasileiros (2020–2021)
Letícia Luppi - Estúdio Massa

ILUSTRAÇÃO
Mauro Maroto - Estúdio Massa APOIO 78 Povos e comunidades do Cerrado:
o direito à memória, à verdade e à terra
IMPRESSÃO
TOP - Gráfica & Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


102 Violência no campo e
impunidade no contexto do Cerrado:
Bibliotecária responsável: Amanda Cavalcante Perillo CRB1: 2870 desafios político-metodológicos para
investigação de massacres na região do
C748 Conflitos, massacres e memórias : das lutadoras e lutadores
do Cerrado / Coordenação, Amanda Costa e Valéria Pereira Médio Araguaia, Tocantins
Santos. – Goiânia : CPT, 2022.
160 p., il.

120
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-994503-1-0
Homenagem às lutadoras
1. Conflito social - Brasil. 2. Trabalhadores rurais - Brasil.
e aos lutadores do Cerrado
3. Memoriais. 4. Cerrados - Brasil. 5. Violência - Brasil. I. Costa,
Amanda. II. Santos, Valéria Pereira.
CDD: 333.31

2
O primeiro artigo, do professor Car- geral dos conflitos em nível nacional,
los Walter Porto-Gonçalves – “Cerrados cujo eixo central é a terra – e a irreso-
brasileiros: territorialidades em confli- luta questão agrária –, detém-se sobre
to” – traz o percurso histórico-geográfi- a periodização, a natureza e a locali-
co e teórico sobre a questão até o qua- dade das ocorrências de conflitos, no
dro atual e oferece um referencial para período. A partir daí, se debruça sobre
os textos seguintes. Estabelece que os a particularidade desses conflitos nos
conflitos são mais do que de terra, são Cerrados e em suas Zonas de Transição

Apresentação também, sobretudo, “de territorialida-


des, de modos de usar e significar ma-
com outros sistemas biogeográficos,
sendo nestas últimas mais ocorrentes e
terial e simbolicamente as condições intensos. Assumidamente, o texto quer
O livro que o leitor ou a leitora tem veis consequências, sobretudo para as necessárias à produção/reprodução do servir como ferramenta de luta dos mo-
em mãos é bem mais que um simples li- pessoas mais pobres, sem solução sufi- metabolismo da vida”, que são sempre vimentos e comunidades dos Cerrados,
vro. Para ler e para ver – dizia um meni- ciente à vista – um potencial fim, mais relações sociais e de poder. De um lado mais do que tirar conclusões sobre eles.
no de sete anos que “a gente não precisa ou menos próximo, de tudo e todos, a a “expansão/invasão do capital” foca-
ler, se sabe ver” –, é um livro memória, depender do que fazemos / não faze- da na renda da terra, a partir dos anos O terceiro artigo – “A Vida Amea-
análise, luta, luto, homenagem, libelo, mos. Sendo o Cerrado o bioma ou sis- 1960; de outro, o “metabolismo social de çada e as Lutas pela Vida: violência
desafio, convite... Se nem sempre se vê tema biogeográfico mais antigo e dos reprodução dos povos e comunidades e conflitos nos Cerrados brasileiros
o que se lê – este vai ser difícil não ver. mais ameaçados, é ele, por excelência, que ali habitam há mais de 10 mil anos”, (2020-2021)” –, de Pedro C. da R. Leão,
Apesar ou mesmo porque seu tema é lugar de enfrentamento, resistência e em grande diversidade, como diversa é a Vinícius M. da Silva e Karoline San-
violência, aquela historicamente invi- pistas de real solução. ecologia dos Cerrados. Aí “a chave para toro, contextualiza numa perspectiva
sibilizada e contemporaneamente co- a compreensão do ecocídio dos Cerra- geográfica o sobe e desce dos dados
metida contra pessoas, povos e comu- Que outra situação tem mais a capa- dos e do genocídio contra seus povos e que comprovam a continuidade des-
nidades do Cerrado, mas enfrentada cidade de nos afrontar e convocar que a comunidades”, os até aqui silenciados tes conflitos violentos, sob os impactos
e resistida por eles, como atestam os violência, superado o medo? É disto que e que têm “a sabedoria de convivência da pandemia da Covid-19, conforme a
dados de conflitos no campo aqui trazi- trata este livro. São trazidos os dados de com a complexidade da vida”, de suma natureza das ações em conflito, e suas
dos e interpretados. Este engajamento conflitos no campo computados pelo relevância para os tempos que vivemos. implicações econômicas, políticas e
de quem lê e vê é o propósito dos mui- Centro de Documentação Dom Tomás sociais, num processo de recoloniza-
tos autores e autoras desta publicação, Balduino, da Comissão Pastoral da Ter- O artigo seguinte, de Julia N. Ladei- ção do país, feita, entre outras, pela
inclusive de quem produziu os dados, ra – CEDOC/CPT, relativos aos Cerrados, ra – “A Geografia dos Conflitos Agrá- expansão/invasão das fronteiras do
mais além dos e das que têm nele seus no período de 1985 a 2021, com destaque rios no Cerrado e Zonas de Transição agronegócio, patrocinadas pelo poder
nomes. Afinal, este livro é parte de uma para as diferentes naturezas e formas de - Brasil 2003-2019” –, rico em mapas, público. Ao contrário de retrocederem,
grande e múltipla campanha em defesa violência registradas. E analisados por gráficos e tabelas, toma o conflito como tornaram-se mais intensos os conflitos,
do Cerrado ainda vivo. acadêmicos que são também militantes fenômeno geográfico e social, de com- ao prevalecer das dificuldades maiores
destas causas, tanto mais profissionais posição histórica, em que as diversas das comunidades vitimadas nos Cerra-
Experimentamos cada vez mais que competentes quanto mais a militância resistências e lutas dos povos e comu- dos, as mesmas que desempenham ne-
estes são tempos graves e angustiantes, exige. É privilegiado o olhar geográfico, nidades subalternizadas também cons- les função ecológica, ainda mais crucial
tanto mais quanto vai ficando evidente que cruza no espaço-tempo uma com- tituíram fator relevante no confronto neste momento de colapso ambiental,
– pelos extremos climáticos, também preensão mais precisa da realidade e de com as diversas violências dos grupos/ recolocando, mais uma vez, a questão
pelas guerras reincidentes, e suas terrí- suas implicações e perspectivas. classes dominantes. Em um panorama agrária e da Reforma Agrária.

4 5
Camponeses do Assentamento de Re-
forma Agrária Roseli Nunes, em Mirassol
D’Oeste (MT), lutam para manter a sua
produção e comercialização agroecoló-
gica em um contexto de destruição das
políticas de reforma agrária e de incentivo
à comercialização camponesa, enquan-
to enfrentam a ameaça de expropriação
por projetos minerários de fosfato e ferro
ligada aos interesses de políticos e do
agronegócio do estado.

Feito a oito mãos, o quinto e derra-


deiro artigo - “Violência no campo e
Em seguida, o quarto artigo, de Re- impunidade no contexto do Cerrado: Crédito: Rosilene Miliotti
gina C. F. Saraiva – “Povos e comunida- investigação de massacres na região do
des do Cerrado pelo direito à memória, Médio Araguaia, Tocantins” – foca a
à verdade e a terra” – trata da (re)cons- manifestação mais violenta dos confli- mental “Grande Sertão: Veredas”, que
tins. Além da contribuição para a pes-
trução de memórias de camponeses e tos no campo – os massacres. Resulta- é também sobre Cerrados e violências,
quisa, o artigo busca elementos para
camponesas vítimas de violência na do parcial de uma pesquisa em curso, mais uma vez nos inspire à superação
responsabilização dos promotores pri-
luta pela terra e pela Reforma Agrária realizada pelo Instituto de Pesquisa, da violência do ecocídio e do genocídio
vados e públicos da violência de classe
no Cerrado. Para tanto recorre ao que Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) dos povos dos Cerrados: “Tudo o que já
institucionalizada e para visibilização
e como foi resgatado pela Comissão em parceria com a Comissão Pastoral foi, é o começo do que vai vir, toda a hora
das vítimas e fortalecimento de seus
Nacional da Verdade e pela Comissão da Terra (CPT), com base nos dados do a gente está num cômpito”. Se conhece-
movimentos, resistências e lutas.
Camponesa da Verdade, criadas pelo CEDOC, mas com recorte específico, o mos e nos interpelamos pelo que já foi,
governo federal em 2011 e 2012, res- artigo analisa o contexto dos conflitos No desfecho deste percurso analíti- passa da hora de decidir sobre o Cerra-
pectivamente, para examinar e escla- que resultaram nos 51 massacres re- co provocador e convocador, são feitas do que ainda resta e tanto importa, no
recer violações de direitos humanos no gistrados no Brasil, entre 1985 e 2019, homenagens a lutadoras e lutadores dos que a nós cabe, por outros rumos e ca-
período 1946-1988. Visando a especifi- sobretudo nas regiões de “fronteira”, Cerrados, com relatos de suas contri- minhos, os do Bem Viver – das pessoas,
cidade camponesa e do Cerrado neste onde se intensificaram os embates en- buições para que esta história não fosse povos e todas as formas de vida. Como?
resgate e suas razões, questões e desa- tre as formas do capital expansionista apenas de sangue, dor e abandono, mas Vamos? É o desafio após a leitura/visão
fios, recorre a casos emblemáticos para e as formas camponesas tradicionais também e sobretudo de resistência, re- deste livro!
melhor evidenciá-los. Por fim, pergun- de ocupação da terra/territórios. Dos siliência e re-existência dos que man-
ta-se pelo papel que tem aí o proces- ocorridos no Cerrado, investiga deta- tém os Cerrados e neles a vida pulsante. Ruben Siqueira
so em curso do Tribunal Permanente lhadamente um caso emblemático, o Agente da CPT Bahia
dos Povos em Defesa dos Territórios do Massacre de Colmeia, em 1986, na re- Lembrado em várias passagens des-
Cerrado (TPP). gião do Araguaia, hoje estado do Tocan- te livro, Guimarães Rosa, no seu monu-

6 7
Cerrados Brasileiros: Territorialidades em Conflito

Entre os anos de 2011 e 2020, os Cer- Trata-se de uma intensa conflitivi-


rados brasileiros registraram a ocor- dade derivada da tensão de territo-
rência de 4.785 conflitos pelo controle rialidades que vem sendo provocada
das condições metabólicas de repro- pela expansão/invasão3 do capital na
dução da vida, sobretudo por terra região. Tal expansão/invasão ganhou
(solo e subsolo/minério) e água, envol- contornos de um novo padrão de con-
vendo 1.715 localidades2. Uma média flitividade, sobretudo nos últimos 60
de ocorrências de 13 conflitos por dia anos, quando a capital federal do Brasil
envolvendo cerca de cinco localidades foi transferida do Rio de Janeiro para
em conflito diariamente. a cidade de Brasília, no Planalto Cen-

“CONDIÇÕES METABÓLICAS DE REPRODUÇÃO DA VIDA” dizem respeito a todo o complexo de


relações que implica a produção/reprodução da vida, ou seja, a terra, a água e a fotossíntese
em suas relações. A terra vem sendo considerada no debate clássico da luta pela reforma
agrária sobretudo pela sua dimensão medida em área e pela denúncia de sua concentração,
daí a crítica ao latifúndio que, ao concentrar terra, concentra poder político. Considerar a
terra em suas dimensões metabólicas não exclui essa tradição de luta teórico-política contra
o latifúndio. Acrescenta que a terra enquanto metabolismo de produção/reprodução da vida
implica a água e a fotossíntese e, assim, a concentração de terra implica também a concen-
tração de energia solar que incide sobre determinada extensão de terra – muitos ficam sem

CERRADOS BRASILEIROS:
um lugar ao Sol, assim como ninguém planta sem água. Muitos dos conflitos por terra hoje
vêm se dando em função do impedimento do acesso à água, seja por seu envenenamento/
poluição, seja pela alagação de áreas ribeirinhas de posseiros e outras comunidades em fun-

TERRITORIALIDADES ção de barragens públicas ou privadas, ou ainda em função da apropriação desigual da água
sobretudo por iniciativa de grupos/classes poderosas.

EM CONFLITO
Carlos Walter Porto-Gonçalves1 TERRITORIALIDADE diz respeito à dimensão cultural através da qual determinado grupo social
dá sentido à sua relação com o espaço onde produz/reproduz a vida. Na verdade, trata-se
de uma dimensão indissociável do conceito de território e acompanha a aventura humana
por meio da qual os diversos grupos sociais se territorializam. Assim, há uma tríade concei-
tual indissociável entre território-territorialidade-territorialização: não há território que não
comporte determinada territorialidade que não tenha sido conformada por um processo de
territorialização com/contra outras territorialidades.

1. Professor do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina e


Coordenador do Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO).
2. Conforme o Centro de Documentação Dom Tomás Balduino da Comissão Pastoral da Terra (CEDOC).
3. Usamos expansão/invasão para dar conta dos dois lados aí implicados, porque falar somente de ex-
pansão é assumir a perspectiva do capital que se reproduz ampliadamente ignorando que os territórios
invadidos estavam longe de ser terras de ninguém.

8 9
DESENVOLVIMENTISMO diz respeito a todo um conjunto de ideias (teorias e ideologias) que
praticamente dominou o debate político acerca das relações internacionais a partir dos anos
1950. Segundo Arturo Escobar (1998), a expressão “desenvolvimento” começou a ganhar sen-
tido a partir de uma afirmação do presidente estadunidense H. Truman, em 1949, que definiu
como subdesenvolvido aquele país em que se vive com menos de 2 dólares per capita diários.
Na verdade, o debate em torno do desenvolvimento-subdesenvolvimento, que conforma o
que denominamos desenvolvimentismo, após a 2ª Guerra Mundial passou a ocupar o debate
que até antes da guerra girava em torno da ideia de civilização com que os europeus justifi-
cavam suas ações colonizadoras fora da Europa. O fim da 2ª Guerra expôs os limites do colo-
nialismo com a denúncia da desigualdade entre as nações, que, todavia, passou a ser lida por
uma chave ainda colonizadora como a ideia de desenvolvimento-subdesenvolvimento, como
se houvesse um caminho único através do qual todos os povos estivessem condenados a
seguir. É como se a colonialidade sobrevivesse ao fim do colonialismo que teria terminado
com as independências dos países. A ideia de uma mesma trajetória de desenvolvimento que
haveria de ser seguida por todos os povos e nacionalidades continuou a dominar o debate
no qual a superioridade da civilização europeia continuaria a dominar corações e mentes,
desqualificando outras civilizações e culturas que se afirmaram a partir de outros lugares e
continentes. O capitalismo, o racismo e o patriarcado continuaram a dominar o debate apesar Crédito: Nilmar Lage
dos esforços de diferentes correntes políticas e filosóficas em combatê-los, como as socia-
listas, comunistas e anarquistas.

ritórios do Planalto Central tinha base lado o caráter colonial dessa expressão
na ideia que vinha do período colonial “descoberta do Brasil”, aproveitando-
tral brasileiro, em 1960. Era o auge do do Planalto Central, iniciando um pro- de que se tratava de “vazios demográfi- -nos do fato de que Josué de Castro a
desenvolvimentismo brasileiro com cesso de valorização das terras dessa cos”, terras de ninguém, terra nullius5. usa exatamente num sentido aberta-
seu lema de “50 anos em 5” animado imensa região. O geógrafo Aziz Ab’ Sa- mente anti-colonial. Talvez em toda a
pela ideia de superação do subdesen- ber calculou em torno de 190 milhões O Brasil vivia naquela época um ten- história do Brasil as classes dominantes
volvimento visto como “solo fértil para de hectares4 com seus “chapadões re- so e intenso debate sobre seus destinos, jamais tivessem se visto tão ameaçadas,
a disseminação de ideologias espú- cobertos por cerrados e penetrados por num momento em que era grande a sobretudo diante da mobilização popu-
rias”, conforme as palavras do então florestas-galerias” (AB’SABER, 1973). mobilização nacional e popular, que já lar de alcance nacional.
Presidente JK (LIMOEIRO, 1978). vivera momentos dramáticos em 1954
O Brasil passava, então, a deixar de com a morte de Getúlio Vargas. O gran- O cenário internacional se esquen-
Brasília passaria, então, a ser uma ser só litoral e se interiorizava confor- de geógrafo e médico Josué de Castro tava com a “Guerra Fria”6 ganhando o
verdadeira cabeça de ponte de onde me o projeto geopolítico acalentado pe- chamara a atenção, em seu livro Sete continente americano com a Revolução
viriam conexões que interligariam as los militares desde finais do século XIX palmos de terra e um caixão, publicado Cubana. O imperialismo estadunidense
capitais dos estados à nova capital fe- (VESENTINI, 1987). Para as classes do- em 1965, que estávamos diante da “se- soube tirar proveito do “grande medo”
deral. Com isso, toda uma logística de minantes brasileiras, incutidas de co- gunda descoberta do Brasil”, quando o (LEFEBVRE, 1979) das oligarquias lati-
transportes passou a cortar os Cerrados lonialidade, a conquista daqueles ter- povo brasileiro, agora sim, havia desco- no-americanas, ameaçadas por baixo
berto o Brasil com o grande movimen- e de dentro, e encontrou no exterior
4. Uma área equivalente a todos os países da Europa Ocidental desde o Mediterrâneo até a Escandinávia. to das Ligas Camponesas. Deixemos de aliados, inaugurando, então, uma nova
5. A diplomacia brasileira historicamente lança mão do princípio jurídico do uti possidetis de facto - segun-
do o qual têm direito sobre um território os que de fato o possuem -, para reivindicar o domínio territorial
e assim demarcar suas fronteiras externas. Interessante que, ao mesmo tempo, o estado brasileiro negue 6. Guerra Fria é uma expressão consagrada após os anos 1950 que diz respeito à tensão geopolítica que se
esse mesmo princípio aos seus povos e comunidades que tradicionalmente estão em posse de terras e instaurou entre o capitalismo e o socialismo, com a polarização entre os EEUU e a URSS. Era como se vivês-
demais condições necessárias à reprodução metabólica da vida com suas territorialidades próprias. semos sob a ameaça de uma guerra que poderia se tornar quente a qualquer momento.

10 11
Cerrados Brasileiros: Territorialidades em Conflito

Na região do Vale das Cancelas, no


Norte de Minas Gerais, os geraizeiros
Crédito: Nilmar Lage
enfrentam desde a década de 1970 a
ameaça da monocultura de eucalipto
e, mais recentemente, resistem contra
o megaprojeto de mineração de ferro,
Bloco 8, da mineradora chinesa Sul
Americana de Metais S.A.

Desde então, um certo malthusianis-


mo7 começou a fazer escola, inclusive
A ditadura imposta ao povo brasi-
lançando mão de expressões literal-
leiro encontraria amplo apoio junto às
mente bombásticas, terroristas, como
corporações multinacionais e gover-
“explosão demográfica” e “explosão
nos dos países centrais, apoio que lhes
populacional” (“population boom”). Foi
permitiu se sustentar no poder durante
nesse contexto que o presidente JK fa-
21 anos (1964–1985). Forjava-se, assim,
Crédito: Nilmar Lage lou de “ideologias espúrias” que teriam
um poderoso bloco dominante entre as
no subdesenvolvimento seu solo fértil.
oligarquias fundiárias brasileiras, o ca-
O caráter antipopular do golpe em- pital nacional e o grande capital inter-
presarial-militar de 1964 se mostraria nacional de origem vária (Japão, EEUU
sobretudo nos Cerrados com o desen- e Europa). Assim, internalizava-se esse
fase do “desenvolvimento do subdesen- por uma ditadura empresarial-militar volvimento de “uma agricultura sem bloco mediado pelo Estado que have-
volvimento” (FRANK, 1966). Mais tarde ao se tornarem alvo do que então foi agricultores” (Miguel Teubal) com base ria de garantir, com violência, o acesso
essa ideia seria consagrada com o “de- considerado o grande fenômeno agrá- num amplo uso da ciência e da tecnolo- à terra a esses grandes grupos, o apoio
senvolvimento associado” (Fernando rio-agrícola do século XX, a saber, a gia que, mais tarde, seria batizado como técnico (EMBRAPA) e os grandes inves-
Henrique Cardoso e José Serra), que incorporação ao mercado mundial de agribusiness (agronegócio). Ou seja, essa timentos públicos em infraestrutura
abdicava de qualquer veleidade de um aproximadamente 190 milhões de hec- agricultura “sem agricultores” é a ex- em transportes, em energia (ELETRO-
projeto político soberano nacional-po- tares entregues à agricultura empre- pressão de uma revolução nas relações BRAS) e em comunicação (EMBRATEL).
pular, fechando em 1964 um ciclo polí- sarial que se chamaria de “Revolução sociais e de poder por meio da tecno- A adaptação da soja aos trópicos feita
tico que tivera seu auge em 1954 com a Verde”, assim colorindo-se ideologi- logia (“verde”) que, assim, consagrava pela EMBRAPA abriu o caminho para
crise que levou Getúlio ao suicídio. camente. Esse grande fenômeno agrí- a derrota imposta desde 1964 às Ligas a expansão/invasão dos Cerrados. Esta-
cola-agrário, conforme o caracterizou Camponesas que assinalavam, com sua vam dadas as bases políticas para o ver-
Os Cerrados brasileiros e seus povos o grande capital, deve ser entendido luta pela Reforma Agrária, a centralida- dadeiro ecocídio que se abateria contra
experimentariam dramaticamente os como parte de uma conjuntura que, no de da questão da terra na conformação os Cerrados e um verdadeiro genocídio
efeitos desse contraditório novo modo outro lado, tinha no horizonte a Gran- do bloco de poder dominante na for- contra seus povos e comunidades.
de acumulação de capital. Afinal, de Marcha de camponeses famintos na mação social do capitalismo no Brasil.
os Cerrados foram o palco geográfico China em 1949, com sua “Revolução
privilegiado dessa aliança política na- Vermelha”, assim também se colorin-
cional-internacionalizada capitaneada do ideologicamente. 7. T. R. Malthus (1766–1834), em seu Ensaio sobre o princípio da população, afirmou que o crescimento
demográfico tenderia a ser maior que o crescimento da produção de alimentos. Essa seria a fonte de inspi-
ração do que, mais tarde, passaria a ser conhecido como malthusianismo, uma visão que atribui ao cresci-
mento demográfico a principal causa da pobreza da população.

12 13
Crédito: Andressa Zumpano

A renda da terra e a
tensão de territorialidades
Para que entendamos a enorme con- sas áreas planas (calculadas em cerca de
flitividade que, desde então, se estabe- 190 milhões de hectares), onde o mundo
lece nas regiões dos Cerrados, é preciso “carece de fechos”, ou seja, onde não há
que levemos em conta uma dimensão cercas, pois as terras são de uso comum Crédito: Nilmar Lage
geográfica decisiva no metabolismo so- pelos povos e comunidades tradicionais
cial de reprodução da vida dos povos e que ali habitam. Muitas comunidades se
comunidades que ali habitam há mais autodenominam como geraizeiras, pois
de 10 mil anos. Foi nos Cerrados de Mi- usam as “terras gerais” cujo nome deri-
nas Gerais que foi encontrada Luzia, o va justamente de serem terras de uso co-
fóssil humano mais antigo do Brasil, da- mum, sem cercas, enfim, onde ninguém
tado de 11.500 anos. Enfim, o Brasil nem fica privado de acesso à terra: são gerais.
sonhava em ser Brasil e já havia gente Ali, naquela unidade da paisagem, nos Nos estados do Cerrado, comunidades
habitando os Cerrados. Povos indígenas Gerais, “a água não empoça, sorveta”, se inteiras resistem contra toda tentativa
de variados troncos linguísticos já os infiltrando “feito azeitim entrador”, dizia de desestruturação do modo de vida
habitavam há milênios e, depois da in- Guimarães Rosa. Ali se coletam frutos, tradicional e a biodiversidade que
vasão portuguesa em 1500, os Cerrados resinas, raízes para remédios e tantas garante a existência dos povos e a ma-
se viram ocupados por negros que fu- outras coisas que alimentam o estôma- nutenção da vida em seus territórios,
giam da escravidão para criar territórios go e a fantasia. Cria-se ali também gado. considerados sagrados.
Crédito: João Zinclar
de liberdade (quilombos), assim como Na outra grande unidade da paisagem,
por brancos pobres que conformaram as veredas (nos baixões, nos pântanos,
diversas formas de serem camponeses. nos brejos), abundantes em água, se faz
Muitas dessas formas se apresentam, um roçado, criam-se pequenos animais, além de regular as duas maiores áreas Esse padrão de organização do espa-
hoje, como povos e comunidades tradi- se faz a casa. continentais alagadas do planeta, a sa- ço forjou múltiplas territorialidades até
cionais: geraizeiros, veredeiros, vazan- ber, a do Pantanal e a do Araguaia. que, nos anos 1970, chegaram os “pi-
teiros, retireiros, quebradeiras de coco Observe-se que a ausência de práti- vôs da discórdia”, como lhes batizaram
babaçu, comunidades de fundo e fecho cas propriamente agrícolas nas chapa- As duas unidades da paisagem – as os camponeses do Riachão, em Minas
de pasto, e um largo et cetera. das se deve sobretudo ao fato de a água chapadas e as veredas – são usadas em Gerais (Porto-Gonçalves, 1997 [2001]).
“sorvetar”, o que foi notado pela enorme complementariedade, em reciprocida- Os pivôs centrais foram os principais
O mais interessante desse encontro/ sensibilidade de Guimarães Rosa na de, e com isso, depois de milênios e sé- meios de acesso àquela água que antes
desencontro conflitivo é o fato de que escuta dos geraizeiros. Ou seja, a água culos de ocupação, os Cerrados chega- “sorvetava”, se infiltrava feito “azeitim
essas múltiplas territorialidades tradi- não estava disponível na superfície das ram até muito recentemente, nos anos entrador”, e que, agora irriga enormes
cionais se forjaram durante milênios/sé- chapadas, pois infiltrava-se rapidamen- 1970, ricos em água e em biodiversida- latifúndios monocultores de soja, euca-
culos com base no uso das duas grandes te. Considere-se que essa qualidade do de, e com uma enorme diversidade cul- lipto, algodão, milho, entre outras plan-
unidades da paisagem com que apren- metabolismo dos Cerrados se configu- tural com suas múltiplas territorialida- tações. Com os pivôs centrais, a água
deram a lidar: as chapadas e as veredas. ra como área de recarga hídrica que des. E essa diversidade cultural que se passa a ser captada cada vez em profun-
Nas palavras do grande escritor Guima- alimenta a maior parte das grandes ba- forjou, como seu fator determinante, didades maiores em função do rebaixa-
rães Rosa, na sua obra máxima Grande cias hidrográficas brasileiras, como a com base no uso complementar/recí- mento dos lençóis freáticos. Aliás, cada
Sertão: Veredas (ROSA, 2001), os “grandes do Amazonas, a do Tocantins, a do São proco de chapadas e veredas. vez mais se fala de aquíferos e menos de
sertões” são as enormes chapadas, imen- Francisco, a do Paraná e muitas outras,
14 15
lençol freático, o que dá conta da pro- dentada para preparar a terra e colher a
fundidade com que se busca a água e a produção, maior seria o gasto de ener-
da profundidade da crise hídrica social- gia e menor a renda da terra.
mente produzida. Rios, veredas, lagos e
brejos passam a secar. A água, de fonte Assim, por essa conformação do re-
da vida, torna-se fonte de conflitos. levo e pela enorme disponibilidade de
água, o controle dessas terras das cha-
Além disso, as máquinas ceifadeiras, padas se tornou uma verdadeira obses-
colheitadeiras e outras consomem mui- são para o grande capital. E o Estado
ta energia em seus motores, e o fato de cumpriu um papel decisivo ao garan-
as chapadas serem planas e em enor- tir aos grandes proprietários de terras
mes extensões proporciona uma renda nacionais e internacionais o acesso a
diferencial da terra por fertilidade deri- essas terras e águas, onde é comum a
vada dessa topografia, pois permite me- prática da grilagem com as fraudulen-
Crédito: Andressa Zumpano
nor investimento de capital em energia, tas validações de propriedades por um
o que não é qualquer coisa num modo sistema judicial viciado pelo controle
de produção agrícola altamente depen- das oligarquias8. Não bastassem esses
isenta de cobrança de impostos de ex- dos Cerrados (desmatamento, expro-
dente de consumo de energia. Tives- mecanismos de controle das terras, fo-
portação as commodities agrícolas e mi- priação e contaminação das águas) e o
sem essas máquinas que subir e descer ram também criadas legislações espe-
nerais, aumentando assim a apropria- genocídio cultural de seus povos, que,
numa topografia ondulada ou mais aci- cíficas, como a Lei Kandir, de 1998, que
ção de renda pelo complexo de poder sem seus territórios, não podem mais
do agribusiness. exercer suas territorialidades.

RENDA DA TERRA é um conceito atribuído a David Ricardo (1772–1823) e retrabalhado na tra- Desse modo, as chapadas e os chapa- Enfim, trata-se não só de um conflito
dição marxista que diz respeito à renda diferencial proporcionada pela fertilidade da terra dões deixam de ser de todos, de serem por terra, embora de algum modo o seja,
ou pela posição geográfica diante da mesma quantidade de trabalho. Em outras palavras, um gerais, de ser terras de uso comum, con- mas também de conflitos de territoria-
mesmo esforço de trabalho implica maior ou menor renda a depender da qualidade das con- forme as territorialidades indígenas, lidades, de modos de usar e significar
dições metabólicas da terra, como a fertilidade que pode derivar da qualidade de nutrientes quilombolas e camponesas, e se veem material e simbolicamente as condições
do solo, da disponibilidade de água ou mesmo da topografia do terreno, como se destaca privatizadas. Desde então, as águas necessárias à produção/reprodução do
nos Cerrados por suas chapadas e chapadões. A renda diferencial também deriva da maior
já não minam, posto que os Gerais fo- metabolismo da vida. Considerar ape-
ou menor proximidade dos mercados pelos custos dos transportes, como destacado por J-H
ram privatizados (PORTO-GONÇALVES, nas o conflito por terra é assumir um
von Thünen (1783–1850). Pela destinação aos mercados mundiais dos grandes volumes de
1997 [2001]). Com isso, quebrou-se o dos lados em conflito, o daquele que vê
produção e por sua localização interiorizada no território brasileiro, o agribusiness que vem
se impondo nos Cerrados contra seus povos e comunidades depende de uma complexa lo-
uso complementar e recíproco daque- as condições de produção/reprodução
gística para que possa se apropriar da renda diferencial por localização, diminuindo o tempo las duas unidades da paisagem numa da vida medidas em área, por hectare,
de circulação. Esclareça-se que a renda diferencial, sob o capitalismo, é apropriada a partir espécie de “cercamento dos campos” o que implica uma tradição de direito
da renda absoluta, que é o tributo que a sociedade paga ao proprietário privado. Afinal, a (enclosure) tropical. Com essa ruptura, própria, a do direito liberal, que funda a
condição da propriedade privada permite ao proprietário cobrar um tributo pelo fato de ser os povos e comunidades tradicionais apropriação como propriedade privada.
proprietário, por ter o monopólio da terra, enfim, de algo que, no caso, não é fruto do trabalho. ficam cada vez mais encurralados, isso Para esses, a complexidade das condi-
Viver de renda, conforme a expressão popular. quando não são simplesmente expulsos ções de produção/reprodução da vida se
de suas terras, de seus territórios forja- reduz à terra como extensão, pois a ter-
dos com o uso das chapadas e veredas ra mesma, como metabolismo de repro-
8. O jurista baiano Nestor Duarte faz uma fina caracterização desse processo de controle político a partir de modo indivisível. Com isso desen- dução da vida, eles creem poder corrigir
da “ordem privada” em seu livro cujo título sintetiza bem esse processo: Ordem privada e organização polí- cadeia-se, a um só tempo, o ecocídio com o uso de fertilizantes e agrotóxicos.
tica nacional (DUARTE, 1966). Devo ao professor Milton Santos a indicação desse livro.

16 17
Territorialidades
Cerrados Brasileiros: Territorialidades em Conflito

do Cerrado

Domínio Cerrado
e Transições:

Dezenas de povos resistem Legenda


e re-existem diante do avanço ao Cerrado Contínuo
avanço do agronegócio e do capital Pantanal - Transição Cerrado
internacional. Em uma região com Transição Cerrado-Amazônia
aproximadamente 190 milhões de Transição Cerrado-Caatinga
hectares, equivalente a todos os Transição Cerrado-Mata Atlântica
países da Europa Ocidental. Transição Cerrado-Amazônia-
Caatinga (Zona dos Cocais)

18 19
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mentar das duas unidades da paisa- como nos anos 1970 ele foi considera- ra: a territorialização da racionalidade São Paulo: Ed. Ática, 1987.
gem por essas territorialidades, ances- do, pelo capital, como o fenômeno agrí- ambiental. Petrópolis: Editora Vozes,
tralmente constituídas, consagra essa cola de maior relevância do século XX. 2009.
sabedoria de convivência com a com- Agora estamos diante dessas vozes que LIMOEIRO, Miriam. A ideologia do desen-
plexidade da vida. Por isso, podemos foram até aqui silenciadas e que nos volvimento: Brasil JK-JQ. Rio de Janeiro:
afirmar que o conflito de territorialida- oferecem outros horizontes de sentido Ed. Paz e Terra, 1978.
des é a chave para a compreensão do para a vida em que natureza e cultura
ecocídio dos Cerrados e do genocídio sejam consideradas em suas múltiplas
contra seus povos e comunidades. territorialidades.

20 21
Crédito: Andressa Zumpano

O conflito como fenômeno geográfico e social

Os conflitos têm por característica to ganhar sentido, especialmente nos


primordial a manifestação concreta últimos anos, diversas lutas de grupos
de disputas entre duas ou mais formas sociais por “terra e território”.

GEOGRAFIA DOS
de estar no mundo. Quando se fala em
conflitos por terra, é possível encon- A formação territorial do Brasil vem
sendo, desde a colonização, baseada na
CONFLITOS AGRÁRIOS COMO
trar manifestações ao longo de toda a
história do Brasil. E, como explica Por- concentração de terras e consequente
concentração de poder. Terras essas,
INSTRUMENTO DE LUTA: to-Gonçalves (2006, p. 12), a formação
dos territórios não é algo externo ou usurpadas dos mais diversos donos da

CERRADO E ZONAS DE desassociado da sociedade que neles terra por meio de violência desde a
existem. Pelo contrário, “o território é chegada dos colonizadores. Atualmen-

TRANSIÇÃO, BRASIL constituído pela sociedade no próprio te, no campo brasileiro, o avanço do
processo em que tece o conjunto das processo de apropriação da terra pau-

2003–20191 relações sociais e de poder”. Sendo as- tado no modelo capitalista moderno
sim, não é coincidência que temos vis- colonial (PORTO-GONÇALVES, 2006)

Julia Nascimento Ladeira2 1. Agradeço o importantíssimo trabalho realizado pela equipe responsável pelo CEDOC Dom Tomás Balduíno,
que, com o rigor científico e a sensibilidade no acompanhamento e acolhimento de denúncias das comuni-
dades, permitem que as vozes daquelas e daqueles implicados na luta por seus territórios sejam potencia-
lizadas. Agradeço também ao Prof. Dr. Carlos Walter Porto-Gonçalves, coordenador do LEMTO-UFF (Labora-
tório de Estudos em Movimentos Sociais e Territorialidades) e aos demais companheiros pesquisadores do
LEMTO, uma vez que o presente trabalho é uma síntese de anos de acúmulo coletivo. E ainda, à Articulação
das CPTs do Cerrado, pela rica parceria e por trabalhar para que essa e outras pesquisas cheguem nas
mãos dos que estão na ponta da lança e possa ser utilizada como instrumento de luta.
2. Geógrafa, pesquisadora do Eixo de Conflitos Agrários do LEMTO-UFF e militante do MTST (Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto).

22 23
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

vem deixando marcas de privações, so- documentam, mas sim de lutas identidades coletivas, motiva- abraçamos é aquela que se forja a par-
bretudo para um leque amplo de povos, pela afirmação de modos de ções e interesses compartilha- tir do olhar dos grupos/classes sociais
comunidades e grupos étnicos e sociais existência haja vista que estão dos, estratégias de luta, assim que vêm de baixo, daqueles e daquelas
com diferentes culturas que lutam con- em posse real de uso de seus como formas de organização e que já estão na terra e cuja existência
tra essa lógica violenta da concentra- territórios. Nesses casos, esses manifestação (PORTO-GONÇAL- se contrapõe às formas hegemônicas
ção de terra e de poder. modos de ser próprios lutam pela VES, 2006, p. 2). de produção, assim como daqueles e
dignidade de seus modos de vida
daquelas que lutam para ter acesso à
A disputa pela terra deve, então, ser e, em geral, para eles, a terra é
terra. Esses grupos/classes sociais, com
entendida como disputa pelas condi- condição da vida em reprodução Assim sendo, há grupos sociais
o avanço violento do capital no campo
ções metabólicas de reprodução da cultural e metabólica, simbiotica- que veem a terra como recurso para
mente (PORTO-GONÇALVES et al., brasileiro, apesar de se encontrarem
vida (PORTO-GONÇALVES et al., 2018) acumular capital e renda, enquanto
2019, p. 114. em posição relativa de subalternização
que incluem não somente a terra pro- há outros, muito diferenciados entre
frente às classes de grandes empresá-
priamente dita, mas também a água e si, que querem a terra para produzir/
rios, fazendeiros etc., não são compos-
a vida (solo-fauna-flora). Assim, a con- reproduzir a vida com seus modos pró-
Por isso, as relações das populações tos de sujeitos que se calam. Ao contrá-
centração da terra implica concentra- prios de ser.
tradicionais com seus territórios são rio, a história da disputa pela terra no
ção de condições de vida e, por isso, centrais nos conflitos. Brasil está conformada por ações de
Assumimos, em nosso trabalho, a
a luta pela terra transcende a luta por resistência, luta por direitos e retoma-
perspectiva dos grupos sociais cuja
um “pedaço de chão”. A terra, com suas A partir desse entendimento, os con-
afirmação depende, objetivamente, da de terras protagonizadas por esses
conotações materiais e simbólicas, é o flitos agrários constituem-se em uma
do acesso à terra para produzir/repro- grupos diversos.
que permite que culturas e modos de forma de manifestação concreta das
duzir a vida com seus modos próprios
vida os mais diversos se reproduzam, contradições e das disputas que vêm
de ser e de viver. A objetividade que
como vêm fazendo diferentes povos, al- se dando há séculos no Brasil. O olhar
guns há milhares de anos, como os in- dos conflitos agrários aqui adotado está
dígenas, e outros há centenas de anos, longe de ser um olhar neutro, embora
como os quilombolas e outras denomi- reivindiquemos a objetividade. Pois a
nações camponesas. Assim, a simples apropriação da terra, assim como de
existência dessa diversidade de comu- tudo que nela está implicado, tem um
significado essencial na constituição
nidades, povos e culturas torna-se um
ato de r-existência, fazendo frente ao das relações sociais e de poder. Em Panorama geral de conflitos no Brasil
avanço de um modo de vida e produção torno do seu controle, há um tenso e
que privatiza, individualiza, viola, vio- intenso processo ao qual grupos sociais
lenta e tem como objetivo primordial a se conformam através da territorializa- A centralidade da terra e a Henrique Cardoso -1995/2002 (FHC), e
a perspectiva de vitória para o cargo de
obtenção do lucro. ção-desterritorialização-reterritoriali- questão agrária
zações. O conflito agrário constitui-se, presidente da República de um ex-ope-
Dizemos r-existência para res- portanto, como O início do século XXI correspon- rário metalúrgico e líder sindical, que
saltar que não se trata somente deu no Brasil a um período de grandes construiu sua trajetória política a partir
de resistir à ação do capital, [...] manifestação concreta dos mobilizações de movimentos sociais de lutas sociais, influenciaram as mo-
quase sempre em conivência antagonismos de grupos e clas- bilizações. Isso se reflete nos números
rurais de luta por terra e em defesa da
com os governos/agentes (que ses e por meio dele se evidencia de ocorrências de mobilizações no pri-
reforma agrária. As investidas de cri-
deveriam ser) públicos, conforme a experiência concreta de cons- meiro ano de governo do presidente
minalização de movimentos sociais
os históricos dos conflitos re- trução de sujeitos sociais, onde Lula em 2003.
se configura a construção de pelo governo anterior, de Fernando
gistrados pela CPT amplamente

24 25
O recorte temporal que analisamos Essa faceta da política econômica
tem início no ano de 2003 e segue até internacional pautada no consenso das
20193, ano mais recente com dados de commodities (SVAMPA, 2012) manifes-
conflitos consolidados pelo Centro de ta-se no princípio do século, especial-
Documentação Dom Tomás Balduino, mente no que diz respeito à América
da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Latina e aos demais países emergentes.
no momento de conclusão da análise . A China passa a se sobressair como uma
O início do recorte em 2003 adota a pe- nova potência mundial e assume o pa-
riodização realizada por Alentejano e pel antes desempenhado pelos Estados
Porto-Gonçalves (2010), que analisaram Unidos da América na prevalência das
as tendências dos conflitos por terra de relações comerciais com o Brasil (SILVA,
1985 até 2009. Segundo os autores, o pe- 2019), em particular na compra de com-
ríodo entre 2003 e 2009 é o “de maior modities. Diversos governos progressis-
conflitividade em toda a série histórica tas da América Latina voltam-se para o
de 25 anos. É o período recordista na fortalecimento das atividades extrativas
média anual de conflitos e o segundo de grande escala para a exportação de
na média anual de famílias envolvidas bens primários, sustentados pelo boom
Crédito: Andressa Zumpano
nesses conflitos [...]” (ALENTEJANO; nos preços internacionais das commodi-
PORTO-GONÇALVES, 2010, p. 110). ties e acarretando o processo de repri-
marização das economias de exporta-
O período caracterizado por essa al- ção latino-americanas (SVAMPA, 2012). a mudança abrupta no cenário político Assim como o foco no investimen-
tíssima conflitividade, marcou o início pós impedimento da presidenta Dilma. to em infraestrutura, outros compro-
dos governos progressistas do Partido No Brasil, a centralidade dos proje- missos representam continuidades ao
Muitos dos projetos prioritários longo dos diferentes governos, como
dos Trabalhadores no Brasil, com Lula tos de infraestrutura e apoio ao agrone-
no programa do governo golpista
(2003–2010) e Dilma Roussef (2011– gócio vem de antes dos governos pro- por exemplo o apoio ao agronegócio
[Michel Temer] (PPI – Programa
2016), a dinâmica da relação desses go- gressistas de Lula e Dilma, perpassou a (SILVA, 2019). Entre as estratégias de
de Parceria de Investimento) e
vernos com movimentos sociais está estes e se manteve após eles. Projetos políticas territoriais de aprofunda-
no homônimo programa do atual
associada ao aprofundamento da repri- como a IIRSA (Integração da Infraestru- governo [Jair Bolsonaro] são os mento desse apoio destaca-se o Plano
marização da pauta exportadora, de- tura Regional Sul-Americana), iniciada mesmos do PAC [Programa de Nacional de Desenvolvimento Regio-
corrente do consenso das commodities4 em 2000 no governo FHC, foram apro- Aceleração de Crescimento] e do nal (PNDR), em vigor a partir de 2003.
(SVAMPA, 2012), que influenciou o avan- fundados pelos governos posteriores, PIL [Programa de Investimento Além de estar presente nos objetivos
ço da fronteira do capital no campo e, e outros programas iniciados nos go- em Logística] dos ex-presiden- gerais do programa, o fomento às ativi-
consequentemente, as dinâmicas de dis- vernos petistas seguiram mesmo após tes Lula e Dilma Rousseff, tais dades de produção de commodities en-
puta pela terra nos Cerrados e no Brasil. como a pavimentação da BR-163, contra-se, segundo Silva (2019, p. 283),
a Ferrogrão e a FIOL [Ferrovia de nos direcionamentos dos fundos de
Integração Oeste-Leste]. Poucos desenvolvimento que contam com pro-
3. O presente artigo é fruto da pesquisa que realizada pelo LEMTO-UFF em parceria com a CPT (Comissão
Pastoral da Terra) e resultou no Trabalho de Conclusão do Curso de Bacharelado em Geografia, apresentado interesses capitalistas são tão jetos estratégicos, tais como: “1. Fundo
à banca em 2020. Foram analisados dados da série de 2003 a 2019, uma vez que eram os mais atualiza- imunes a mudanças de governo e de Financiamento do Centro-Oeste:
dos até o momento de finalização do trabalho, que era para ser publicado em 2020. Porém, por conta da
pandemia, houve um atraso na publicação e não foi possível atualizá-los para este momento. As análises tão plasmados na agenda públi-
agronegócio; 2. Fundo de Investimento
geográficas aqui realizadas, embora tenham defasagem de dois anos em relação aos dados mais atuais, ca quanto os logísticos (AGUIAR,
propõem um novo olhar sobre os conflitos nos Cerrados brasileiros e seguem abertas para produções pos- da Amazônia: Polo siderúrgico do Pará,
teriores de atualização/seguimento da pesquisa. 2019, p. 179).
usina hidrelétrica de Lajeado, Tocan-
4. No contexto de mudanças no modelo de produção e acumulação do final do século XX, especialmente
na América Latina, os projetos de extração e exportação de bens sem maior valor agregado intensificaram-
tins, polo de beneficiamento de alumí-
-se. Esses bens, como minério, petróleo, soja, milho etc., constituem as chamadas commodities. nio no Maranhão etc.”.

26 27
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

1970, que justificava que os Cerrados Adotando o olhar a partir dos Cerra-
fossem destinados aos grandes latifún- dos, e não “sobre o Cerrado”, percebe-
O olhar dos Cerrados dios empresariais com suas monocul- mos que a amplitude dessa formação
turas em nome da preservação da Ama- vai muito além da área comumente
zônia. Hoje sabemos que nenhum dos compreendida e aceita como “Cerra-
Durante a ditadura empresarial-mi- dois foi poupado dos processos violen- do”. O Cerrado, bioma brasileiro que
Domínios dos Cerrados e
litar, destacaram-se alguns programas tos de espoliação do capital, pautados faz contato com todos os outros biomas
suas particularidades inseridos nas políticas territoriais dos em intensa colonialidade, conforme do país à exceção do Pampa, encontra-
O bioma Cerrado, segundo o Mi- Planos Nacionais de Desenvolvimento assinala o agrônomo-geógrafo Mazzet- -se numa posição geográfica que pro-
nistério do Meio Ambiente (BRASIL, (PNDs) I, II e III, voltados diretamente to (2006), cuja a pesquisa de doutorado porciona um vasto leque de riquezas,
2020), ocupa uma área de 22% do ter- para a inserção do Cerrado no comple- realizou em profunda relação com os saberes e sabores nascidos e desenvol-
ritório nacional. É reconhecido pelo xo agroindustrial brasileiro. povos e comunidades do Cerrado: vidos a partir das particularidades de
órgão como o segundo maior bioma cada uma, que podemos chamar de
O Polocentro (Programa de De- A linha de pensamento que dirigiu zonas de tensão ecológica com outros
brasileiro, que detém grande número senvolvimento dos Cerrados) e o este processo no Cerrado tem
de espécies endêmicas e larga biodi- biomas. Não há um limite abrupto ou
Prodecer (Programa de Coopera- um forte viés depreciativo deste
versidade, e é berço das três maiores uma divisão repentina entre Cerrado
ção Nipo-Brasileira para o Desen- ecossistema em si mesmo e en-
bacias hidrográficas da América do Sul e Amazônia, por exemplo; há uma re-
volvimento dos Cerrados), cria- xerga esta região como um “vazio”
(Amazônia/Tocantins, São Francisco aparentemente econômico e po- gião de contato entre duas formações
dos no governo Geisel, visavam
e Prata). Porém, essa noção a respeito instrumentalizar o Cerrado em pulacional. É como se a natureza e ecossistêmicas, formando uma área
do Cerrado e de sua riqueza é relativa- infraestrutura logística de arma- as populações locais, espalhadas de transição gradual cujas particulari-
mente recente, já que, principalmente zenamento, estradas, pesquisas e pelos Gerais até aquele momento dades e riqueza de biodiversidade são
a partir dos anos 1960, o bioma passou financiamento à pecuária e lavou- [anos 1970], não tivessem nenhum únicas. A natureza ali é mais complexa,
a ser um dos focos principais de avanço ra de grãos, que atingiram frações significado, nenhuma riqueza cul- como muito bem descreveu o indíge-
de Goiás, Mato Grosso e Triângulo tural e ecológica, nem modos de na Anísio (apud PORTO-GONÇALVES,
da fronteira do modelo agrário/agríco-
Mineiro. O Prodecer ainda atua- vida e de produção próprios, nem 2019, p. 25), do povo Guató do Pantanal
la de produção baseado nos latifúndios
va em áreas do atual Tocantins, conhecimentos, expectativas, de- mato-grossense: “a natureza quando se
monocultores de caráter empresarial.
oeste baiano e sul do Maranhão e sejos e necessidades (MAZZETO, encontra não subtrai, não se divide. Ela
Piauí, sobretudo a partir de 1985 2006, p. 69). se multiplica. Ali a vida é mais”.
Ao longo das décadas de 1960 e 1970,
principalmente, os esforços de “inte- (SILVA, 2019, p. 195).
gração econômica” entre as regiões do Portanto, os Cerrados, mais que
A compreensão dos Cerrados em sua
país da ditadura empresarial-militar e qualquer outro ecossistema no Brasil,
Com o fomento desses interesses e o pluralidade e os conhecimentos cons-
a construção de Brasília, associados à englobam vastas áreas de tensão eco-
avanço da tecnologia – a tropicalização truídos na própria região, compostos
pressão das elites agrárias, articulada lógica que possuem profunda comple-
da soja e a irrigação por pivôs centrais por enorme diversidade de culturas,
até mesmo com a permissividade do xidade. E é justamente para trazer vi-
–, os Cerrados, com suas chapadas e são provenientes dos povos e dos sabe-
discurso acadêmico, levaram à consoli- sibilidade a essas particularidades dos
chapadões, imensas áreas planas com res que estes vêm elaborando com sua
dação do imaginário do Cerrado como Cerrados que trabalhamos aqui com
abundância de água subterrânea, pas- convivência com as particularidades
vazio demográfico e ausência de rique- esse bioma em sua totalidade e envol-
saram a ser o foco das investidas do de cada subárea há milhares de anos.
za natural. Isso serviu de pano de fundo vendo toda sua complexidade. Isto é,
agronegócio. Isso foi legitimado, inclu- A complexidade destas áreas torna
para legitimar o avanço sobre o bioma ao fazer referência ao Cerrado neste
sive, por argumentos como o apresen- altamente relevante o conhecimento
e contra seus povos, levando-o a uma trabalho, falamos de uma área que cor-
tado por Mário Guimarães Ferri (1977), de quem vive nelas há centenas ou mi-
gradativa destruição. responde a 36% do território brasileiro,
uma das maiores autoridades acadêmi- lhares de anos pelo detalhado conheci-
cas em estudos sobre a região nos anos mento que acumularam.

28 29
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

o Cerrado Ampliado, que engloba a core convivendo com essa complexidade há Domínios do Cerrado e as Zonas de Transição
area do Cerrado, ou Cerrado Contínuo, milhares de anos. A regionalização do Sistema Savânico Brasileiro
e seus ecótonos e encraves ou Zonas Cerrado proposta foi construída junto
de Transição. Falamos em regiões de com e a partir do olhar de grupos/clas- ÁREA TOTAL CERRADO CONTÍNUO
ecologia complexa e de uma diversida- ses sociais em situação de subalterni- 192,14 milhões de hectares
de de comunidades e povos que vêm zação, os povos dos Cerrados.
ÁREA TOTAL ZONAS DE TRANSIÇÃO
122,04 milhões de hectares

A regionalização dos Cerrados e das Zonas de Transição elaborada a partir


dos estudos realizados pelos pesquisadores do Laboratório de Estudos de
Movimentos Sociais e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense
(LEMTO-UFF), entre eles Carlos Eduardo Mazzetto Silva, contou com grande
participação dos povos dos Cerrados, uma vez que essa caracterização foi
elaborada acompanhando a construção da Aliança dos Povos do Cerrado,
em contato com as mais diversas comunidades e povos dos diferentes
Cerrados do país. Tal mapeamento do Cerrado e das Zonas de Transição LEGENDA

está registrado em pesquisas como a tese de doutorado de Carlos Eduardo Brasil


Mazzetto Silva, supervisionada por Carlos Walter Porto-Gonçalves, Coorde-
Domínio Cerrado e Transições: Outros Domínios:
nador do LEMTO, que culminou em denúncia científica com o apoio desses
Cerrado Contínuo Amazônia
povos e comunidades que traz à tona a importância de seus conhecimen-
Pantanal - Transição Cerrado Caatinga
tos – conhecimento de detalhe – na conservação das áreas de tensão
Transição Cerrado-Amazônia Mata Atlântica
ecológica, dada sua tamanha complexidade.
Transição Cerrado-Caatinga Pampa
Transição Cerrado-Mata Atlântica
Transição Cerrado-Amazônia-Caatinga
Há que se considerar ainda que os sição são baseadas em elementos mor- (Zona dos Cocais)

dados de localização dos conflitos agrá- foclimáticos, como o relevo, o clima,


rios são atrelados sempre ao seu res- solo, hidrologia e formas de vegetação. Fonte: Campanha em Defesa do Cerrado; Instituto Federal da Bahia.
pectivo município, sendo essa a menor Desse modo, o intuito da metodologia5
escala geográfica disponível para sua empregada é fazer com que as classifi-
espacialização. Persiste, portanto, cer- cações dos municípios fiquem o mais O presente estudo baseou-se em dois Assim, para a elaboração do mapa dos
to grau de discrepância, uma vez que próximo possível do mapeamento dos diferentes estudos sobre as particulari- Cerrados e das Zonas de Transição fo-
municípios contam com uma delimita- Cerrados e das Zonas de Transição. dades dos Cerrados: o primeiro deles, ram utilizadas as bases de ecorregiões
ção política enquanto as Zonas de Tran- que prevaleceu nos caminhos escolhi- do Brasil disponibilizadas pelo Ministé-
dos, foi a tese de doutorado de Mazzetto rio do Meio Ambiente (MMA), e buscou-
(2006), mapeamento que infelizmente -se aproximar ao máximo da proposta
não se encontra mais disponível em for- inicial de Mazzetto. Ressaltamos que as
mato digital georreferenciado. O segun- bases de ecorregiões disponibilizadas
do é o estudo de Moacir Bueno Arruda pelo MMA foram elaboradas pela ONG
5. Foram considerados municípios pertencentes a determinado bioma ou zona de transição aqueles que
têm 49,5% ou mais de seu território dentro desse bioma ou zona de transição, uma vez que, principalmente (2005) publicado pelo IBAMA em 2003, World Wide Fund for Nature (WWF) e
nas regiões Norte e Centro-Oeste, os municípios são mais extensos. As exceções são municípios que se en- cujo mapa também não se encontra dis-
contram na divisa de três diferentes biomas ou zonas de transição, casos em que foi considerado o bioma não fazem distinção entre as ecorregi-
onde o município tem a maior parte de seu território inserido. ponível em versão georreferenciada. ões internas do Cerrado e da Caatinga.

30 31
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

Dinâmica de conflitos no medida em que é um pico pontual, e De modo geral, as tendências em brasileiro se resumia à resposta do Es-
logo após, em 2011, a tendência passa a curso no Cerrado Ampliado não desto- tado e das classes proprietárias às ações
Cerrado Ampliado
ser ascendente. Nota-se também um sal- am das tendências gerais do Brasil. Nos dos movimentos sociais de luta pela ter-
Iniciamos, então, a análise das di- to no número de ocorrências em 2019, dois recortes, as ações de ataques a di- ra não se sustenta. O que percebemos é
nâmicas geográficas e temporais numa destoando do resto do período inteiro. reitos/violência crescem em proporção justamente o contrário: como se a cer-
comparação dos conflitos agrários do e em números absolutos de maneira teza da impunidade e a diminuição das
O gráfico traz uma comparação di- vertiginosa ao longo do período inteiro, ações dos movimentos gerassem certa
Brasil com os limites do Cerrado Am-
reta das tendências do Brasil, em parti- somando maior número de ocorrências tranquilidade para as violências provo-
pliado, isto é, os Cerrados em sua tota-
cular do Cerrado Ampliado, no que diz que as ações de conquista/retomada cadas pelas classes dominantes e hege-
lidade, englobando o Cerrado Contínuo
respeito à natureza das ações de dispu- de terra em todos os anos. No caso do mônicas aumentarem, fechando o cer-
e suas Zonas de Transição.
ta pela terra. O panorama nacional de Cerrado Ampliado, o ano de 2010 pode co contra os movimentos.
As ocorrências de conflitos no Cer- composição das ações mostra a perda ser tomado como um marco das ocor-
rado Ampliado podem ser divididas em de espaço proporcional das ações de rências de conflitos: de 2003 a 2009 as É evidente que, conforme o quadro
dois subperíodos, sendo o primeiro de- conquista e retomada de terras, prota- ocorrências, de modo geral, estão em político do país muda, reduzindo a de-
les descendente, de 2003 a 2009. O ano gonizadas pelos movimentos e organi- descenso e de 2011 em diante a tendên- mocracia, os ataques violentos aos mo-
de 2010 é como o marco divisório, na zações nos conflitos agrários. cia do número de ocorrências passa a vimentos, povos e comunidades tradi-
ser de ascensão até o registro recorde cionais aumentam vertiginosamente.
em 2019. Uma hipótese nos permite co- Ressaltemos, ainda, que as ocorrências
nectar essa dinâmica dos conflitos com de conquista/retomada de terra são
Composição das ações de disputa pela terra no Brasil e Cerrado Ampliado os efeitos da crise global do capitalismo ações diretas dos movimentos sociais
Gráfico 1 de 2008, que tiveram sérias repercus- na luta pela terra. Isto é, são ocupa-
sões nos preços das commodities e pos- ções, retomadas de terra ou acampa-
sivelmente implicaram a expansão do mentos feitos em beira de estrada nos
agronegócio sobre as terras dos Cerra- quais esses grupos/classes em situação
dos no intuito de aumentar a produção de subalternização reivindicam a posse
para compensar a redução do preço, in- da terra.
crementando também a ocorrência de
Com os dados especializados de con-
conflitos protagonizados por esse setor
flitos, o que pudemos constatar até aqui
social ávido por mais terras e lucros.
em relação ao Cerrado e a suas Zonas
O aumento dessa diferença entre as de Transição foi o aumento, ao longo
ações de naturezas distintas mostra que, dos últimos quatro anos, dos ataques
ao longo do período, não somente acir- aos direitos daqueles que se encontram
rou-se a disputa pela terra com a amplia- na terra, chegando a um salto de 34%
ção do número total de conflitos, como de ocorrências entre 2018 e 2019.
também essa disputa veio se tornando
mais violenta, com atentados contínuos
à permanência de camponeses e outras
comunidades do campo em seus terri-
tórios, especialmente no Cerrado Am-
Fonte: CPT com elaboração do LEMTO-UFF, 2020. pliado. Mais uma vez, a falaciosa argu-
mentação de que a violência no campo

32 33
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

Análise comparativa do O Gráfico 2 também evidencia a ção de localidades em conflito, uma Contínuo ocupa 23% do território bra-
Zona dos Cocais, que chama a atenção vez que levam em conta a proporção da sileiro e concentra 14% das localidades
Cerrado Contínuo e das
pelos altos números absolutos de lo- área de cada bioma e a proporção de lo- em conflito. Isso representa um índice
Zonas de Transição calidades em conflito, especialmente calidades em que se registraram ações de densidade de conflitos de 0,6, consi-
a partir de 2009, início do intervalo de de violência. Por exemplo, o Cerrado derado baixo.
O Cerrado Contínuo é a região com
tendência crescente, quando a região
maior número absoluto de conflitos
saltou para uma posição de protagonis-
números absolutos de conflitos e os ní-
mo no ranking de conflitos. Os índices aqui apresentados são elaborados levando em consideração
veis de conflitos nessa região se manti-
veram altos ao longo dos anos quando a proporção do evento considerado (no caso, localidades em conflito) do
Consideremos os índices de densi-
comparados aos números de conflitos bioma em questão em relação ao total do país (em porcentagem), dividido
dade de conflitos, que permitem maior
nas outras Zonas de Transição. pela proporção da área do mesmo bioma no total do país. Assim, se um bio-
rigor na análise espacial da distribui-
ma teve 10% das localidades em conflito do país e tem 10% da área do país,
seu Índice de Densidade de Conflitos será de 1 (10 dividido por 10). No caso
Localidades em conflito no Cerrado e em Zonas de Transição do Índice de Conflitividade, a mesma lógica é aplicada, porém com consi-
Gráfico 2 derando a proporção de população rural presente no bioma em questão
em relação à população rural do país. Desse modo, sempre que um índice é
superior a 1 esse bioma está com uma densidade daquele evento maior que
a proporção de sua área ou de população rural. Para facilitar, propomos a
seguinte classificação da intensidade desses índices: de 0 a 0,9 – índice
baixo; de 1 a 2,0 – índice alto; de 2,1 a 4 – índice muito alto; de 4,1 a 8 – índi-
ce altíssimo; acima de 8 – excepcionalmente alto.

Índice de densidade de conflitos no Cerrado e em Zonas de Transição


Tabela 1

Índice de Densidade de Conflitos em Relação ao Brasil (2003-2019)

Percentual Percentual Índice de densidade


Biomas Índice
de área de localidades de conflitos

Cerrado Contínuo 23% 14% 0,6 Baixo

Transição
Cerrado-Amazônia 6% 4% 0,8 Baixo

Transição
Cerrado-Mata Atlântica 3% 5% 1,5 Alto

Transição
Cerrado-Caatinga 2% 2% 1,4 Alto

Transição
Zona dos Cocais 2% 11% 6,8 Altíssimo

Pantanal -
Transição Cerrado 2% 0% 0,3 Baixo

Fonte: CPT/ Elaboração:


Fonte: CPT, Elaboração: LEMTO-UFF, 2020.
LEMTO-UFF, 2020.

34 35
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

Já a extensão da Zona dos Cocais Outras duas Zonas de Transição com tos, chegando, em 2019, a um total de um total correspondente a 30% do total
ocupa apenas 2% da área do país, en- índices altos de densidade de conflitos 212.481 famílias. No Cerrado Ampliado, do país nesse último ano. Entretanto,
quanto concentra 11% dos conflitos no são as Transições Cerrado–Mata Atlân- em 2003, 65.722 famílias foram envolvi- enquanto o número total de famílias
período. Com isso, seu índice atinge tica e Cerrado–Caatinga. A Transição das em conflitos agrários, o que corres- envolvidas em conflitos agrário no Bra-
preocupantes 6,8, um índice altíssimo Cerrado–Mata Atlântica inicia o perío- pondeu a 55% do total de famílias en- sil aumentou consideravelmente, o de
de densidade de conflitos! A Zona dos do com números absolutos mais altos, volvidas em todo o país. Esse número famílias no Cerrado Ampliado está hoje
Cocais configura uma transição de trí- atingindo o pico em 2004. Passada a total também sofreu oscilações ao lon- num patamar muito próximo do que
plice fronteira, sendo a região de tran- tendência geral de decréscimo no nú- go do período, chegando a 64.553 famí- estava no início do período. O Gráfico 3
sição entre os biomas Cerrado, Caatin- mero de conflitos, essa região volta a lias em 2019. Houve uma queda de 2% ilustra essa diversidade nos comporta-
ga e Amazônia. Essa é também uma crescer em 2012, mantendo-se em um em relação ao início do período (2003) e mentos das colunas.
região onde se encontram babaçuais, patamar mais baixo que o do início do
buritizais e carnaubais e, por conta dis- período. Por sua vez, a Transição Cerra-
so, há a presença de diversas comuni- do–Caatinga passa a contar com maio- Famílias envolvidas em conflitos agrários no Cerrado e em Zonas de Transição
dades tradicionais extrativistas que vi- res números de conflitos a partir da Gráfico 3
vem da relação com esse ecossistema. segunda metade do período, a partir de
2010 e especialmente a partir de 2017,
quando claramente muda de patamar.

Geografia dos sujeitos: afinal,


quem está envolvido nos conflitos?
Até este ponto, foi analisada a dimen- mento desses sujeitos, que vêm sendo
são geográfica dos conflitos e sua mani- implicados nos conflitos durante os 16
festação ao longo dos anos. Porém essa anos analisados.
leitura, se findasse aqui, seria incom-
pleta. Uma vez que “sociedade e espaço Famílias envolvidas
não são dimensões que se excluem ou
que se precedem lógica ou ontologica- No Brasil, o crescimento do núme-
mente” (PORTO-GONÇALVES, 2006, p. ro de famílias envolvidas em conflitos
13), para compreender a constituição agrários6 entre 2003 e 2019 foi de 78%.
territorial dos Cerrados como espaços Ao longo do período houve oscilações
geográficos se faz necessário explicitar variadas, a depender do bioma obser-
também os sujeitos envolvidos na sua vado. Mas, na comparação do primeiro
construção. Assim, adotemos a partir com o último ano, mais 93.088 famílias
de agora o recorte social de reconheci- passaram a ser envolvidas em confli-

6. O número total de famílias envolvidas em conflitos no Brasil durante o período inteiro foi de 895.595.
Importante ressaltar que os números de famílias de um ano não podem ser somados com os de outro ano Fonte: CPT, Elaboração:
para chegar ao total do período, uma vez que as famílias de um local que se manteve em conflito se repeti- LEMTO-UFF, 2020.
riam. É preciso, portanto, recorrer ao total de localidades em conflito no período abordado e atribuir a cada
uma delas seu respectivo número de famílias uma vez apenas.

36 37
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

As tendências de decréscimo e au- país, tendo em vista que esse número constatado com a Tabela 1. Porém, por ações colocam na mira (muitas vezes li-
mento no número de famílias do Cer- no país inteiro aumentou drasticamen- conta da alta densidade populacional teralmente) grupos/classes em situação
rado Contínuo tornam-se ainda mais te, chegando a 212.426 famílias em no campo, a Zona dos Cocais contou de subalternização. A manifestação de
evidentes. O Cerrado Contínuo, onde 2019. Esse aumento vertiginoso no res- com um índice de conflitividade de conflitos envolvendo esses sujeitos não
o campo é o mais populoso do Cerrado to do país fez com que, mesmo com o 0,78 em 2019, considerado baixo. En- apenas evidencia a disputa de modos
Ampliado, com 10,9% da população ru- alto número de famílias envolvidas em quanto isso, a Zona de Transição Cerra- de reprodução da vida na terra, mas
ral do país, atingiu no início do período conflitos na região, o índice de confliti- do–Amazônia, que soma apenas 1,5% também cumpre o papel de reconheci-
(2003) o índice de conflitividade de 2,2, vidade do Cerrado Contínuo caísse para da população rural do país, concentrou mento de sua existência na região.
considerado muito alto. 1,09 em 2019, ainda assim considerado durante o período inteiro 5% das famí-
alto. As regiões de transição também lias em conflito, chegando ao índice de Os conflitos agrários envolvem um
Durante o último subperíodo, esse chamam a atenção pelos altos números 3,1, considerado muito alto. Quando leque muito amplo de culturas, povos
número voltou a subir a níveis eleva- absolutos de famílias envolvidas ao lon- calculamos apenas o ano de 2019, essa e comunidades diferentes. Cada um
dos, em especial em 2019, ano em que go de todo o período. zona de transição teve 8% das famílias conta com suas particularidades e in-
25.224 famílias foram envolvidas em envolvidas em conflitos no ano, fazen- dividualidades, e respeitamos isso en-
conflitos no Cerrado Contínuo. Porém, A região da Zona dos Cocais conta do com que seu índice de conflitividade quanto pesquisadores. Há, porém, um
apesar de o número total de famílias ter com 6,4% da população rural do país, chegasse a 5,3, que é altíssimo. Já o caso desafio metodológico na forma de tra-
chegado a um patamar muito próximo sendo a zona de transição com maior do Pantanal é o oposto do que ocorre na duzir essa diversidade cultural em ma-
ao atingido em 2003, esse número re- população rural, e tem uma densida- Zona dos Cocais. O Pantanal conta com teriais de análise que cumpram o papel
presenta apenas 12% do total de famí- de muito alta de conflitos, conforme números absolutos de conflitos muito de demonstrar visualmente a luta diá-
lias envolvidas em conflitos em todo o baixos e teve seu índice de densidade ria desses povos, fazendo jus ao peso
de conflitos em 0,3, um índice baixo. do papel político e social que cada uma
Porém, ao levar em conta os dados de delas tem na luta por outros horizontes
Índice de conflitividade no Cerrado e em Zonas de Transição população, apesar de os números abso- de projetos territoriais.
Tabela 2 lutos de famílias envolvidas em confli-
Na forma de registro original das
tos serem baixos, como seu percentual
Índice de conflitividade em relação ao Brasil (2003-2019) chamadas “categorias sociais que so-
de população rural também é, a pro-
freram a ação” (ou seja, as comunida-
porção dos dois leva essa região para o
Percentual de
Percentual de
Índice de des que são alvo das ações de violên-
Biomas Famílias envolvidas Índice índice de 4,5, considerado altíssimo.
População Rural
em Conflitos
Conflitividade cia/ataques a direitos), o número total
é de 45 categorias sociais. Propomos
Cerrado Contínuo 10,9% 17% 1,5 Alto
que as categorias denominadas pela
Transição Grupos/classes sociais en- CPT como “categorias sociais que so-
1,5% 5% 3,1 Muito Alto
Cerrado-Amazônia volvidas nos conflitos freram a ação” neste trabalho sejam
Transição
Cerrado-Mata Atlântica 4,6% 8% 1,6 Alto
As localidades em conflito estam-
identificadas como “grupos/classes
em situação de subalternização”. Para
Transição padas nos mapas a seguir correspon-
Cerrado-Caatinga 1,7% 2% 1,1 Alto além disso, utilizamos formas de agru-
dem àquelas anteriormente referidas
pamento dos povos e comunidades
Transição como ações de ataques a direitos/ações
Zona dos Cocais 6,4% 6% 0,9 Baixo tradicionais para que seu peso político
de violência. Consistem nas ações uti-
Pantanal - se torne visível nas representações es-
0,2% 1% 4,5 Altíssimo lizadas pelos grupos/classes sociais
Transição Cerrado pacializadas dos conflitos.
em situação de dominação para abrir
Fonte: CPT, Elaboração: LEMTO-UFF, 2020. caminho à espoliação da terra. Essas

38 39
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

GRUPOS/CLASSES EM SITUAÇÃO DE SUBALTERNIZAÇÃO


Cerrado e nas Zonas de Transição

LOCALIDADES EM CONFLITOS AGRÁRIOS


Cerrados e Zonas de Transição
MAPA 2
Subperíodo 1
(2003–2008)

Legenda:

Assentados SUBPERÍODO 1 (2003–2008)


Pequenos proprie- Populações
Biomas Assentados tários, arrendata- Sem Terra
rios e parceleiros Tradicionais

Pequenos
Proprietários,
Cerrado Contínuo 41% 60% 46% 33%
Arrendatários
e Paceleiros Transição Pantanal 6% 0% 1% 1%
LEGENDA

Transição
Brasil
Cerrado-Amazônia
31% 10% 11% 7%
Sem Domínio Cerrado e Transições: Transição
Terras 1% 10% 4% 4%
Cerrado Contínuo Cerrado-Caatinga
Pantanal - Transição Cerrado Transição
Transição Cerrado-Amazônia Cerrado- Mata Atlântica
9% 10% 33% 10%
Povos e
Transição Cerrado-Caatinga Pantanal -
Comunidades 13% 10% 5% 47%
Transição Cerrado-Mata Atlântica Zona dos Cocais
Tradicionais
Transição Cerrado-Amazônia- Fonte: LEMTO-UFF, 2020.
Caatinga (Zona dos Cocais)

40 41
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

GRUPOS/CLASSES EM SITUAÇÃO DE SUBALTERNIZAÇÃO


Cerrado e nas Zonas de Transição

LOCALIDADES EM CONFLITOS AGRÁRIOS


Cerrados e Zonas de Transição
MAPA 3
Subperíodo 2
(2009–2019)

Legenda:

Assentados SUBPERÍODO 2 (2009–2019)


Pequenos proprie- Populações
Biomas Assentados tários, arrendata- Sem Terra
rios e parceleiros Tradicionais

Pequenos
Proprietários,
Cerrado Contínuo 33% 56% 48% 34%
Arrendatários
e Paceleiros Transição Pantanal 1% 2% 0% 2%
LEGENDA

Transição
Brasil
Cerrado-Amazônia
16% 5% 19% 4%
Sem Domínio Cerrado e Transições: Transição
Terras 8% 20% 3% 8%
Cerrado Contínuo Cerrado-Caatinga
Pantanal - Transição Cerrado Transição
Transição Cerrado-Amazônia Cerrado- Mata Atlântica
4% 9% 24% 8%
Povos e
Transição Cerrado-Caatinga Pantanal -
Comunidades 38% 8% 4% 43%
Transição Cerrado-Mata Atlântica Zona dos Cocais
Tradicionais
Transição Cerrado-Amazônia- Fonte: LEMTO-UFF, 2020.
Caatinga (Zona dos Cocais)

42 43
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

De início, percebem-se no Mapa 3 Comparando a evolução dos conflitos grupos que lutam para recuperar a terra ritorialização, como os sem-terra,
duas “manchas” principais e distintas de do primeiro para o segundo subperío- que já foi perdida no processo de espo- cujo “Sem” indica uma perda e
conflito. A primeira ocorre na Transição do, percebe-se que a mancha da con- liação. A região do Pontal do Paranapa- o “Terra” indica um horizonte de
Cerrado–Mata Atlântica, com grande centração de sem-terras na Transição nema, por exemplo, local de forte atu- sentido para a vida com aquilo
concentração de sem-terras implicados Cerrado–Mata Atlântica diminui, assim ação do MST, encontra-se nessa área. A que perderam (PORTO-GONÇAL-
em conflitos, e a segunda na Transição como os conflitos envolvendo sem-ter- organização de movimentos sociais de VES et al., 2016, p. 89).
Cerrado - Zona dos Cocais, com grande ras distribuídos pelo Cerrado Contínuo. luta por terra mostra, simultaneamen-
concentração de populações tradicio- Por outro lado, os conflitos envolvendo te, a movimentação da fronteira eco- Na evolução entre os dois subperío-
nais implicadas em conflitos. populações tradicionais se alastram e nômica e um processo de organização dos, no que tange aos diversos grupos
passam a permear a fronteira leste do social democrático em contraposição. de camponeses e povos do campo, o
De 2003 a 2008, quase metade (46%) Cerrado Contínuo nas regiões do Ma- Esse processo de disputa é muito dife- que se constata em linhas gerais é a mu-
do total das 570 ocorrências de confli- topiba e do oeste da Bahia, além de rente do processo em curso envolven- dança da predominância de conflitos
tos envolvendo sem-terras se deu no ocuparem parte da Transição Cerrado– do as populações tradicionais na Zona gerados por disputas pela conquista/
Cerrado Ampliado. Um terço dos con- Caatinga e da Transição Cerrado–Mata dos Cocais, por exemplo, haja vista que retomada da terra para os conflitos de
flitos envolvendo sem-terras se encon- Atlântica no sul do Mato Grosso do Sul. essas comunidades já se encontram na resistência contra a expulsão da terra.
tra de fato na “mancha” da Transição terra, em posição que podemos cha- Ao retomarmos o Gráfico 1, da nature-
Cerrado–Mata Atlântica, enquanto a Recordemos que o número total de mar de “posse real de uso”, indepen- za dos conflitos, vemos que o processo
maior parte deles se encontra distri- conflitos aumentou vertiginosamente dentemente de escrituras e afins. Os de diminuição das ações de conquis-
buída no Cerrado Contínuo. As popu- durante o segundo subperíodo, o que conflitos envolvendo essas populações ta/retomada de terras no subperíodo
lações tradicionais já se viam, nesse traz à tona um processo importante em demonstram o avanço das fronteiras é seguido de um aumento das ações
período, implicadas em 33% do total vigor no campo brasileiro. Há, nesse do capital para novas terras que não de resistência contra as investidas dos
de ocorrências de conflitos do perío- subperíodo, uma queda nos números se encontravam inseridas no mercado. grupos em situação de dominação, que
do, sendo 47% delas na Transição Zona absolutos de assentados implicados Podemos destacar, então, dois grupos seguem no movimento predatório em
dos Cocais e 33% nas porções de Cer- em conflitos, um leve aumento dos pe- que marcam a diferença nas identida- busca de novas terras. Porém, essas
rado Contínuo do sul do Maranhão quenos proprietários e uma estagnação des implicadas em conflitos: resistências não aparecem estampa-
atualmente reconhecidas como parte nos números de conflitos envolvendo
das nas diferentes naturezas das ações,
da região Matopiba7. E os conflitos en- sem-terras. Enquanto isso, os números 1º Grupo – reúne aqueles/as que
uma vez que não são registradas como
volvendo assentados têm um terço de absolutos dos conflitos envolvendo po- remetem a algum uso tradicional
da terra, em sentido amplo de “protagonizadas” pelas comunidades
sua totalidade ocorrendo na Transição pulações tradicionais cresceram 254%
natureza (o que implica a água, a tradicionais e, portanto, não entram
Cerrado–Amazônia, região do chama- de um período para o outro, sendo a
vida – floresta, campo, mangue nos registros de “anúncios” feitos pe-
do “Arco do Desmatamento” no Brasil. maioria deles ainda concentrada na
etc.); los movimentos que realizam as ações
Há ainda, também, o envolvimento de Zona dos Cocais.
de conquista/retomada de terra. Essas
assentados em 16% do total de conflitos 2º Grupo – reúne aqueles/as cuja
A concentração de sem-terras na ações aparecem na forma de resposta/
no primeiro subperíodo, concentrados identidade se define de algum
Transição Cerrado–Mata Atlântica tem modo por algum agente externo defesa às ações de violência/ataques a
principalmente no Cerrado Contínuo e
relação com a ocupação/invasão do ca- da violência que sofre. São atin- direitos, então as populações tradicio-
na Transição Cerrado–Amazônia.
pital, que teve seu início nessa área há gidos por barragens, pela mine- nais e seu protagonismo atual na resis-
No segundo subperíodo, o panorama décadas, o que faz com que hoje os en- ração, pelos trilhos, pelos linhões tência pela permanência na terra e luta
geográfico muda consideravelmente. volvidos em conflitos na região sejam de transmissão de energia. Ou, pelo território vão aparecer na forma
ainda, grupos que se definem de “denúncia” das ações de violência/
nas circunstâncias de proces- ataques a direitos e serão reconhecidas
7. Região que abrange o estado do Tocantins, sul e nordeste do Maranhão, sudoeste do Piauí e oeste da sos de desterritorialização e que nos mapeamentos dos sujeitos envolvi-
Bahia. Caracteriza uma região de foco da expansão da fronteira do capital e, portanto, concentra conflitos
à medida em que os territórios são expropriados com violência.
sinalizam um horizonte de reter- dos nos conflitos.

44 45
Geografia dos conflitos agrários como instrumento de luta: Cerrado e Zonas deTransição, Brasil 2003–2019

Outra faceta dos sujeitos envolvidos resse privado de grandes latifundiários A centralidade da terra se reafirma Chamam a atenção também as ações
nos conflitos é o que temos denomina- ou empresários, seja por representan- de forma gritante na medida em que de governos/agentes públicos e de fa-
do aqui como classes/grupos em situa- tes do poder (que deveria ser) público, 57% do total de localidades em conflito zendeiros, que têm seu segundo maior
ção de dominação. Esses sujeitos apa- utilizando-se do aparato do Estado para têm suas ações protagonizadas por fa- foco na Transição Cerrado–Amazônia,
recem como a maioria esmagadora das assegurar os interesses de poucos. Veja- zendeiros. Além disso, a utilização do e dos empresários, com ações concen-
causas das ações de ataques a direitos/ mos, a seguir, em linhas gerais, a forma aparato do Estado para esse fim tam- tradas na Zona dos Cocais. Diferente-
violência. São esses grupos e classes como tais classes vêm se comportando bém se desenha com peso, sendo as mente dos sujeitos que se encontram
que representam os interesses capita- ao longo do período. instâncias do governo/agentes públicos em posse real de uso da terra, cujas
listas, expressos seja pelo próprio inte- protagonistas de 23% do total de confli- ações em defesa de territórios concen-
tos no período. tram-se em áreas onde essas comuni-
dades já estão, aqui percebemos um es-
Principais classes/grupos em situação de dominação causadores das ações Percebemos que nesse subperío- palhamento da atuação desses sujeitos
de violência/ataques a direitos – Subperíodo 1 (2003–2008) do as ações protagonizadas por todos de forma mais equilibrada nas diferen-
os sujeitos concentram-se no Cerrado tes regiões.
Gráfico 4
Contínuo mais que em qualquer outra
zona de transição de forma individual; Comparemos essa distribuição com
apenas as mineradoras têm a totalidade o segundo período no Gráfico 5 e na
de suas ações protagonizadas no Cerra- Tabela 4.
do Contínuo.

Principais classes/grupos em situação de dominação causadores das ações


de violência/ataques a direitos – Subperíodo 2 (2009–2019)
Gráfico 5

Grupos/classes em situação de dominação causadores dos conflitos – Subperíodo 1


Tabela 3

Governo/ Agen-
Biomas Empresário Fazendeiro Grileiro Mineradora
tes Públicos

Cerrado Contínuo 49% 40% 40% 42% 100%

Transição Pantanal 0% 1% 4% 2% 0%

Transição Cerrado-Amazônia 5% 10% 20% 19% 0%

Transição Cerrado-Caatinga 5% 5% 2% 2% 0%

Transição Cerrado- Mata Atlântica 15% 23% 26% 0% 0%

Transição - Zona dos Cocais 26% 21% 8% 36% 0%

Fontes: CPT, Elaboração: LEMTO-UFF, 2020.

46 47
Grupos/classes em situação de dominação causadores dos conflitos – Subperíodo 2
Tabela 4

Governo/ Agen-
Biomas Empresário Fazendeiro Grileiro Mineradora
tes Públicos

Cerrado Contínuo 35% 41% 51% 33% 28%

Transição Pantanal 0% 3% 1% 0% 1%

Transição Cerrado-Amazônia 5% 11% 12% 12% 7%

Transição Cerrado-Caatinga 4% 7% 9% 5% 17%

Transição Cerrado- Mata Atlântica 13% 18% 12% 2% 4%

Transição - Zona dos Cocais 42% 21% 15% 48% 43%

Fontes: CPT, Elaboração: LEMTO-UFF, 2020.

Nesse subperíodo é interessante e grileiros passam a chamar a atenção


perceber o aumento expressivo de por sua concentração na Transição
ações protagonizadas por minerado- Zona dos Cocais. Essa região, como vi-
ras, que passaram de um total de duas mos nos gráficos e tabelas referentes Crédito: Thomas Bauer
para 116 (5.700% de crescimento!). às categorias implicadas em conflitos,
Além disso, as ações de grileiros tam- tem grande presença de comunidades
bém cresceram consideravelmente e povos tradicionais. Essa característi- Conclusões
(225%) de um período para o outro. ca deixa como hipótese que a Zona dos
As ações de empresários e fazendeiros Cocais seja uma recente fronteira de
também tiveram seus números abso- expansão das atividades capitalistas e As conclusões aqui traçadas são ne- violentas das elites agrárias, que tive-
lutos mais altos, porém é importante dos processos de apropriação de terras. cessariamente conclusões parciais. A ram seu início já no período colonial.
lembrar que o número total de loca- estratégia que vem sendo adotada por Por outro lado, a inflexão dos sujeitos
lidades em conflito nesse período é um amplo espectro ideológico de gover- envolvidos entre o primeiro subperío-
maior que no primeiro. nos tem se mostrado confluente no que do (2003–2008) e o segundo (2009–2019)
diz respeito à questão agrária. A matriz remete a um processo atual que ainda
Durante o segundo período, além de
econômica do país baseada em latifún- vai se desdobrar em processos futuros.
a concentração das ações no geral ter
dios vem não só mantendo, como tam-
se mantido alta no Cerrado Contínuo, O objetivo desta análise foi propor-
bém fortalecendo bases predatórias e
as ações de empresários, fazendeiros cionar análises que fossem ferramentas
para a luta dos próprios movimentos e
comunidades de cada região, mais que
tirar conclusões sobre cada um deles.

48 49
Referências
são pontos que alteram a dinâmica das
classes capitalistas e que, por vezes, tor- AGUIAR, Diana. Nas rotas dos conflitos. Con- PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; ALENTE-
nam uma determinada região mais alvo flitos no Campo Brasil, v. 1, p. 174-180, 2019 JANO, Paulo Roberto Raposo. A violência do
do avanço da fronteira capitalista. Esse latifúndio moderno-colonial e do agronegó-
ARRUDA, Moacir Bueno. Representativida-
avanço, portanto, não necessariamente cio nos últimos 25 anos. Conflitos no Campo
de ecológica com base na biogeografia de
é definido por particularidades de cada Brasil, v. 1, p. 109-117, 2010.
biomas e ecorregiões continentais do Brasil:
zona de transição nem tem relação di- o caso do bioma Cerrado. 2005. 194 p. Tese PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; CUIN, Dani-
reta com elas. Isso se mostra concreto (Doutorado) – Universidade de Brasília; IBA- lo Pereira; SILVA, Marlon Nunes; LEAL, Leandro
no relativo espalhamento dos diferen- MA, Brasília, 2005. Teixeira. Bye bye Brasil, aqui estamos: a rein-
venção da questão agrária no Brasil. Confli-
tes sujeitos protagonistas de ações de BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regio-
tos no Campo Brasil, v. 1, p. 86-98, 2016.
violência/ataques a direitos em todas as nal. Os 4 objetivos prioritários do PNDR. Bra-
regiões dos Cerrados. sília: MDR, 2019. Disponível em: https://www. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter; CUIN,
mdr.gov.br/images/stories/ArquivosSDRU/ Danilo Pereira; LADEIRA, Julia Nascimento;
No entanto, para as comunidades, ArquivosPDF/Os-4-Objetivos-Prioritarios-da- SILVA, Marlon Nunes; LEÃO, Pedro Catanzaro
-PNDR_V3.pdf. Acesso em: 23 jul. 2020. da Rocha. Terra em Transe: a geografia da
Por fim, colocamos uma reflexão as prioridades se invertem. Elas, que
expropriação e da r-existência no campo
para continuar ecoando: o avanço da vivem nesses ambientes e têm suas cul- BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. O bio-
brasileiro 2018. Conflitos no Campo Brasil, v. 1,
turas e conhecimentos profundamen- ma Cerrado. Biomas. Disponível em: https://
fronteira do capital, especialmente p. 91-119, 2019
mma.gov.br/biomas/cerrado. Acesso em: 21
do agronegócio, não faz distinção das te pautados na história de convivência
jul. 2020. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter (Org.). Os
particularidades dos ecossistemas pre- com as particularidades dos ecossis- Cerrados vistos por seus povos: O agroextra-
CORREIA, Maurício. Fronteiras desmedidas: o
sentes em cada zona de transição. Pelo temas e na relação direta e simbiótica tivismo no Cerrado. Goiânia: Centro de Desen-
Cerrado e a propriedade da terra no Brasil.
contrário, avança sobre eles como se com as respectivas zonas de transição, volvimento Agroecológico do Cerrado, 2008.
Revista Cerrados, Goiânia, v. 1, p. 8-15, dez.
todos fossem parte do mesmo grande têm como prioridade a manutenção 2018. PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A geogra-
“vazio demográfico” e ecológico em de sua relação com um território espe- ficidade do social: uma contribuição para o
INSTITUTO SOCIEDADE, POPULAÇÃO E NATURE-
que as únicas características que têm cífico. Assim, os conflitos podem não ZA. Cerrado, berço das águas. Biomas. Dispo-
debate metodológico para os estudos de
valor são o terreno plano das chapadas ser específicos das particularidades de conflitos e movimentos sociais na América
nível em: https://ispn.org.br/biomas/cerrado/
cada zona de transição, por exemplo, Latina. Revista Eletrônica da Associação dos
e chapadões e a abundância de água, berco-das-aguas/. Acesso em: 19 ago. 2020.
Geógrafos Brasileiros, Três Lagoas, v. 1, n. 3, p.
principalmente na grande quantidade mas o registro analítico dos grupos/ LADEIRA, Julia. A Geografia dos Conflitos 5-26, maio 2006.
de aquíferos como o Urucuia, o Bam- classes que se encontram em situa- Agrários no Cerrado e suas Zonas de Transi-
ção de subalternização nesse contexto PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. Dos Cerra-
buí e o Guarani, que, segundo o Insti- ção – Brasil 2003-2019. Trabalho de Conclu-
dos e de suas riquezas. Conflitos no Campo
tuto Sociedade, População e Natureza de avanço do capital e que vêm sendo são de Curso – Universidade Federal Flumi-
Brasil, v. 30, p. 88-95, 2015.
(2020), têm a maior parte de suas exten- implicados nos conflitos nos permite nense, Niterói.
identificar sua r-existência e contribuir PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globali-
sões dentro do Cerrado. MARQUES, José. Folha é a maior fake news
zação da natureza e a natureza da globaliza-
para sua consolidação como sujeitos do Brasil, diz Bolsonaro a manifestantes.
ção. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
Ainda assim, os agentes causadores políticos. A partir da manifestação da Folha de São Paulo, 12 out. 2018. Disponível
ra, 2006.
dos conflitos nas variadas regiões são disputa pelo território evidencia-se a em https://www1.folha.uol.com.br/amp/po-
influenciados por diversos outros fato- der/2018/10/folha-e-a-maior-fake-news-do- SILVA, Carlos Alberto Franco da. A moderniza-
diversidade de comunidades em pro- ção distópica do território brasileiro. Rio de
-brasil-diz-bolsonaro-a-manifestantes.shtml.
res: as principais atividades econômi- cesso de luta por seus territórios tão Acesso em: 23 jul. 2020. Janeiro: Consequência, 2019.
cas da região, a área de terras devolutas particulares, a intensidade e os senti-
presentes e a especulação, entre outros, MAZZETTO, Carlos Eduardo Silva. Os Cerrados SVAMPA, Maristella. Consenso de los com-
dos dessa luta. e a sustentabilidade: territorialidades em modities, giro ecoterritorial y pensamiento
tensão. 2006. 272 p. Tese (Doutorado) – Uni- crítico en América Latina. Revista Observató-
versidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. rio de America Latina, Buenos Aires, v. XIII, n.
32, p. 15-38, out. 2012.

50 51
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

Os anos de 2020 e 2021 foram atra- lizando quase dois trilhões de reais. Ao
vessados pela pandemia da Covid-19, mesmo tempo, a velocidade no avanço
cujas consequências se fizeram sentir da fome foi não menos que assustadora
em escala global e de forma absoluta- – um salto de 10,3 milhões de pessoas
mente assimétrica a partir das relações em situação de insuficiência alimentar
sociais e de poder que nos conformam grave em 2018 para 19,1 milhões em
enquanto sociedade. Os grupos/classes 2020 (MALUF, 2021), ou seja, quase o
sociais situados no “andar de cima” pu- dobro num intervalo de dois anos. Está
deram isolar-se e cumprir quarentena. aí implícita uma aparente contradição,
Mas aos grupos/classes sociais situados considerando que a autodenominada
no andar de baixo foi imposta uma mo- “indústria-riqueza do Brasil” reivindica
bilidade precária no meio urbano e, no para si levar alimento à mesa da popula-
mundo rural, houve inúmeras invasões ção, no entanto é justamente o bloco de
sobre terras/territórios de comunida- poder do agro – leia-se, a associação en-
des camponesas e povos tradicionais, tre os capitais agroindustrial, financeiro
situação que a contrapelo deu origem e bancário com patrocínio irrestrito do
ao fenômeno das barreiras sanitárias. Estado e da mídia corporativa – o gran-
de responsável pelo cenário de fome e
Os tempos de pandemia não repre- carestia em curso no país. Enfim, um
sentaram uma inflexão, contudo, no
A VIDA AMEAÇADA E
quadro que demonstra serem “perver-
que diz respeito ao modo de des-envol- sas”, em seu sentido clínico e patológi-
vimento dominante no Brasil, cada vez
AS LUTAS PELA VIDA:
co, as classes dominantes brasileiras.
mais protagonizado pelo agronegócio
e por outros negócios primário-expor- Nas cifras-recorde do agro só são
VIOLÊNCIA E CONFLITOS tadores. O predomínio dos produtos possíveis a dinâmica de expansão/in-

NOS CERRADOS BRASILEIROS


básicos na pauta de exportação brasi- vasão territorial do latifúndio e suas
leira, que se verifica desde 2009 em ter- monoculturas sobre terras/territórios

(2020–2021)1
mos percentuais (BRASIL, 2022), teve outros. Segundo Porto-Gonçalves e
seu aprofundamento nos últimos anos, Leão (2021), entre 1988 e 2018 houve
de modo que o produto interno bruto um aumento de 118% na área plantada
(PIB) do agronegócio avançou 24,31% das três principais commodities agríco-
Pedro Catanzaro da Rocha Leão2 em 2020 frente a 2019 (CNA, 2021), tota- las brasileiras (soja, cana de açúcar e

Vinícius Martins da Silva3


Karoline Santoro4 1. Este trabalho não seria possível sem a orientação e a participação ativa do Prof. Dr. Carlos Walter Porto-
-Gonçalves, Coordenador do Laboratório de Estudos em Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO-U-
FF). Quaisquer deficiências, é claro, são de nossa inteira responsabilidade.
2. Geógrafo e membro do Laboratório de Estudos em Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO-UFF).
3. Graduando em Geografia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Laboratório de Estudos
em Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO-UFF).
4. Mestranda em Geografia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e membra do Laboratório de Estudos
em Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO-UFF).

52 53
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

A PAUTA PRIMÁRIO-EXPORTADORA E O APROFUNDAMENTO DA DEPENDÊNCIA BRASILEIRA


São chamados de commodities produtos básicos não industrializados ou com baixíssima in-
dustrialização cuja produção ocorre em larga escala e destina-se à exportação, como a soja,
o minério de ferro, o milho e o açúcar. O preço das commodities é medido em dólar, e varia
em função dos mercados internacionais. Atualmente, as commodities são os principais pro-
dutos exportados pelo Brasil, de modo que a soja, o petróleo, o minério de ferro e o milho,
somados, responderam por quase 35% do valor total das exportações brasileiras em 2019. Ou
seja, enquanto exportamos produtos básicos de baixo valor agregado, importamos produtos
industrializados de maior valor agregado, como partes de automóveis e equipamentos de
telecomunicações. Além disso, este modo de desenvolvimento implica na fragilidade da eco-
nomia brasileira frente às oscilações do dólar e do mercado internacional, já que o preço dos
produtos que exportamos é definido por agentes externos. Tal situação conforma a inserção
periférica e dependente do Brasil na economia mundial. Em suma, trata-se de um modo de
desenvolvimento cujas consequências são baixíssima geração de emprego e renda, fome e
Créditos: Thomas Bauer insegurança alimentar, instabilidade econômica, violência e devastação ambiental.

ral para Brasília em 1960. Sob o signo da Tal qualidade se faz presente na es-
chamada Revolução Verde e com todo colha em abordar os Cerrados consi-
apoio da ditadura empresarial-militar a derando suas Zonas de Transição, de
partir de 1964, avançou sobre os Cerra- modo a compreendê-los para além da
dos, liderado pelo bloco de poder deno- regionalização adotada pelo Instituto
minado agronegócio, o projeto de uma Brasileiro de Geografia e Estatística
“agricultura sem agricultores”, como (IBGE), que adota como Cerrado uma
formulou o economista Miguel Teubal área de cerca de 2.040.000 km² corres-
(2002). A chamada expansão das fron- pondente a 22% do território brasilei-
teiras do agro não ocorre, todavia, sobre ro. As chamadas Zonas de Transição,
um “vazio demográfico”, como preten- também conhecidas como ecótonos,
samente anunciou o discurso oficial, correspondem a aproximadamente
mas a partir da invasão dos territórios 14% do território nacional e destacam-
milho), enquanto a área cultivada de em suas áreas de expansão/invasão. Aí de povos e comunidades que lá habitam. -se por sua altíssima complexidade
três dos principais produtos presentes está explícita a colonialidade que cami- Desse modo, mais do que conflitos por ecológica, o que torna altamente re-
na alimentação básica da população nha de mãos dadas com a modernida- terra, estamos diante de conflitos entre levante o conhecimento peculiar acu-
brasileira – arroz, feijão e mandioca – de em nossa formação territorial e que territorialidades distintas, em que o que mulado por quem habita essas áreas
caiu de 24,7% para 7,7% em relação à nos constitui enquanto sociedade, as- está em jogo são diferentes modos de há centenas ou milhares de anos (LA-
área total cultivada no país nesse mes- sim, capitalista moderno-colonial. uso e significação da terra e do conjunto DEIRA, 2020). Desse modo, a ênfase
mo período. Trata-se, portanto, de um das condições metabólicas da vida (ter- nas Zonas de Transição enquanto par-
processo de reconfiguração das fron- Os Cerrados brasileiros tornaram- ra-água-ar-fotossíntese), o que implica te constituinte dos Cerrados e de sua
teiras da (re)produção de capital que, -se o palco prioritário desse processo a a qualidade ecológica e cultural desses dinâmica metabólica procura incorpo-
enquanto tal, produz verdadeiros fronts partir da transferência da capital fede- conflitos ao mesmo tempo fundiários. rar um olhar a partir dos Cerrados, e

54 55
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

prazo7. Além disso, a vegetação dos Cer- freáticos e rios que alimentam as ba-
POR QUE CERRADOS? rados apresenta, em média, dois terços cias hidrográficas do Amazonas, do São
de sua biomassa sob o solo na forma de Francisco, do Tocantins e do Paraná,
“Chamamos essa formação geobotânica no plural: Cerrados e não Cerrado. Há muitas
razões para isso. Ignorar que os Cerrados brasileiros reúnem a maior diversidade bio-
raízes, e é justamente esse complexo entre outras8. Como se pode ver, os Cer-
lógica entre todos os ecossistemas brasileiros é um verdadeiro absurdo, sobretudo de raízes profundas e esponjosas, jun- rados detêm enorme importância na
numa época em que a diversidade biológica, e todo o conhecimento sobre ela, ga- to a suas chapadas e chapadões, que manutenção das condições metabólicas
nham valor estratégico” (PORTO-GONÇALVES, 2014, p. 89). permitem que a água “sorvete”, como da vida no Brasil, na América Latina e
escreveu Guimarães Rosa no Grande ser- para toda a humanidade.
tão: veredas, e gere os aquíferos, lençóis

não sobre os Cerrados, com base nos hidrosféricos, litosféricos e biosféricos


estudos realizados pelos geógrafos nos Cerrados e que fazem deles uma es- SISTEMA TERRA - PALEOCENO
Carlos Eduardo Mazzeto Silva e Carlos pécie de tipo ideal da noção de sistema O planeta terra foi se modificando ao longo do tempo e uma medida para pensarmos suas
Walter Porto-Gonçalves junto à Alian- biogeográfico, isto é, de um conjunto de transformações é através das eras geológicas. As eras geológicas são uma forma de medir o
ça dos Povos do Cerrado5. elementos bióticos e abióticos intima- tempo de acordo com a história evolutiva da Terra. Os Cerrados brasileiros datam do período
mente ligados em que a alteração em do Paleoceno, iniciado há aproximadamente 65 milhões de anos atrás. O Paleoceno é con-
Quanto à qualidade ecológica atri-
uma das partes altera o sistema como siderado o primeiro período da Era Cenozoica e é marcado por intensa atividade geológica,
buída aos Cerrados e seus povos, é pre-
um todo. Desse modo, pode-se afirmar extensão em massa dos dinossauros e desenvolvimento dos mamíferos.
ciso considerar alguns fatores funda-
que os Cerrados já atingiram seu clímax • Litosfera corresponde a camada sólida do planeta Terra, abrangendo diferentes tipos de
mentais que colaboram para responder
evolutivo enquanto sistema, o que im- solo e rocha.
à pergunta “que horas são?”6 em relação
plica que, uma vez degradado, o sistema • Atmosfera é a camada de ar que envolve o planeta Terra e é composta por diversos gases,
ao que alguns têm chamado de fratu-
não recupera em plenitude sua biodiver- como Nitrogênio (N2), Oxigênio (O2) e o Dióxido de Carbono (CO2)
ra ou ruptura metabólica (ALTVATER,
sidade (BARBOSA, 2015).
1994; FOSTER, 2005) e outros (MAR- • Hidrosfera é a camada que corresponde a toda água do planeta, seja nos rios e lagos, seja
QUES, 2015) de colapso ambiental. O Sendo assim, há que se reconsiderar nos oceanos e aguas subterrâneas.
sistema biogeográfico dos Cerrados é a gravidade dos índices de aproxima- • Biosfera corresponde ao conjunto dos organismos vivos na Terra, ou seja, uma rede de co-
amplamente considerado o mais antigo damente 46% desmatada a área ofi- nexões entre os seres vivos e o meio físico. Ela integra, em parte, a Litosfera, a Atmosfera e a
ambiente da história evolutiva recen- cialmente reconhecida como Cerrado Hidrosfera. Por exemplo, as plantas (seres vivos) absorvem nutrientes do solo (litosfera), re-
te do planeta Terra, tendo iniciado sua (REDE CERRADO, 2022), já que nos Cer- tiram dióxido de carbono da atmosfera e necessitam de água (hidrosfera) para sobreviver.
formação há nada menos que 60 mi- rados, ao contrário de outros sistemas • Fatores Bióticos dizem respeito aos seres vivos as interações estabelecidas entre eles e
lhões de anos, no Paleoceno (BARBOSA, biogeográficos, o chamado refloresta- com o ecossistema.
2016). Com isso podemos ter uma di- mento não é capaz de recuperar áreas • Fatores Abióticos dizem respeito àquilo que não é ser vivo, ou seja, os elementos físicos e
mensão da complexidade que conforma degradadas em sua integridade nem químicos da natureza com os quais os organismos vivos se relacionam.
a interação entre fatores atmosféricos, mesmo naquilo que se considera longo

7. Consideremos algumas espécies dos Cerrados. Por exemplo, segundo o antropólogo Altair Barbosa, o
5. Muitos foram os pesquisadores a propor anteriormente uma regionalização alternativa ao paradigma
capim-barba-de-bode, cujas raízes são fundamentais na formação de aquíferos, só atinge sua maturidade
dos biomas, cuja caracterização baseia-se numa compreensão do quadro ambiental desde um pretenso
reprodutiva aos mil anos de idade. Já o araticum, árvore frutífera, só obtém a quebra de dormência de suas
clímax vegetacional. Dentre eles, destaque-se o geógrafo Aziz Ab’Saber, com a denominação de domínios
sementes após passar pelo sistema digestivo de um canídeo nativo do Cerrado como o lobo-guará, espé-
morfoclimáticos e fitogeográficos, e o antropólogo Altair Sales Barbosa, que trabalha com o conceito de
cie-símbolo dos riscos de extinção. Não há, portanto, tecnologia capaz de viabilizar o cultivo de boa parte
matrizes ambientais (BARBOSA, 2016).
das espécies dos Cerrados em cativeiro (INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS, 2017).
6. A pergunta “que horas são?” faz alusão ao chamado Doomsday Clock, relógio simbólico criado por
8. Lembremos que as bacias hidrográficas dos rios Amazonas e São Francisco situam-se, em sua maior par-
cientistas atômicos norte-americanos em 1947 quando despontava a corrida armamentista nos primórdios
te, sobre solos cratônicos, ou seja, sobre rochas graníticas que, por sua baixíssima porosidade, dificultam a
da Guerra Fria, como forma de publicizar os riscos de um conflito nuclear. Em tese, quanto maior o risco
infiltração da água em profundidade, de forma a praticamente impedir a formação de aquíferos e reservas
nuclear, mais próximo o ponteiro está da meia-noite, uma metáfora para o colapso nuclear. Utilizamos aqui
d’água em alta profundidade. Isso quer dizer que, em suma, a recarga hídrica desses rios e de seus afluen-
essa metáfora em analogia ao risco representado pela chamada fratura metabólica e/ou colapso ambiental.
tes está intimamente relacionada aos Cerrados e a sua dinâmica metabólica.

56 57
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

Crédito: Leandro Taques


rio da Agricultura, Pecuária e Abaste-
cimento, tem uma expansão de até 3,6
milhões de hectares prevista para os
próximos dez anos (PAES, 2021). Como
se vê, o conflito entre territorialidades
encontra-se no centro do desafio am-
biental contemporâneo.
O que nos ensinou Chico Mendes
Em suma, é de ecocídio contra os
ao afirmar que não há defesa da flo-
Cerrados e de genocídio contra seus
resta sem os povos da floresta se aplica
povos que se trata a dinâmica de ex-
também aos Cerrados e seus povos. O
pansão/invasão das fronteiras do agro Crédito: Andressa Zumpano
ano de 2021 registrou, segundo o Ins-
e de outros negócios primário-expor-
tituto Nacional de Pesquisas Espaciais
tadores levada a cabo pelas classes do-
(INPE), uma área de 8.531 km² desma-
minantes e pelo poder público. Suas
tados nos limites oficiais do Cerrado –
implicações sobre as condições me-
um aumento de quase 8% em relação
tabólicas da vida não respeitam fron-
ao mesmo período de 2020 e o maior
teiras nacionais, e estão intimamente
número desde 2015. Ao mesmo tempo,
ligadas ao processo de ruptura meta-
recrudesce a violência contra os po-
bólica ou colapso ambiental, ao qual,
vos dos Cerrados, em especial contra
diga-se de passagem, está relacionada
os povos e comunidades tradicionais,
e atingiu-se, em 2020, o mais alto pa-
também a atual pandemia de coronaví- O que se passa em escala nacional?
tamar de conflitividade dos últimos
rus (WALLACE, 2020). Eis a dimensão Conflitos no campo brasileiro (2020–2021)
ecológica implícita no conflito de terri-
20 anos. Tem destaque, em ambos os
torialidades nos Cerrados que se acir-
aspectos, a área do assim chamado
rou nos últimos anos, como se pode Uma análise dos conflitos no espa- cas de produção e reprodução da vida
complexo Matopiba9, verdadeiro front
constatar na altíssima conflitividade ço agrário dos Cerrados brasileiros de- (terra-água-fotossíntese) e, por conse-
de expansão/invasão do agro que hoje
registrada desde o período de ruptu- manda, antes, uma explanação acerca guinte, demarcou ainda mais a centra-
ocupa uma área de pouco mais de 8 mi-
ra política iniciado em 2015 (PORTO- do contexto nacional, em particular lidade da terra na geografia da socieda-
lhões de hectares e, segundo o Ministé-
-GONÇALVES et. al., 2018), e em es- na conjuntura específica que se apre- de brasileira.
pecial nos anos de 2020 e 2021, como sentou no período em tela (2020–2021).
veremos a seguir. Como vimos, a pandemia alterou a di- Em números, conforme a CPT
nâmica societária que estava em curso, (2022): as ocorrências de conflitos to-
acentuando suas características mais tais no campo brasileiro10 registraram
perversas. No campo, ela evidenciou a uma queda de 14% entre 2020 (2.054
centralidade das condições metabóli- ocorrências) e 2021 (1.768 ocorrências).

9. Matopiba é um acrônimo que se refere a uma área que engloba parte dos estados do Maranhão, do
Tocantins, do Piauí e da Bahia. A denominação é produto do projeto de des-envolvimento regional voltado 10. Por conflitos no campo entende-se a soma de ocorrências de conflitos por terra, conflitos por terra
para essa área, formalizado pela criação da Agência de Desenvolvimento do Matopiba em 2016. envolvendo água, conflitos trabalhistas, ações de ocupação e retomada e acampamentos.

58 59
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

Da mesma forma, houve uma redução que há uma continuidade em seu cres-
ternização, e, de outro lado, ataques a
de 7% da extensão de terras implica- cimento nos últimos anos, o que refor-
direitos e ações de violência, geralmen-
da em conflitos entre 2020 (76.230.144 ça a tese de que os anos de pandemia
te protagonizadas por grupos/classes
hectares) e 2021 (71.2424.729 hectares). intensificaram as características mais
sociais em situação de dominação. As-
Em relação aos conflitos por terra es- perversas do mundo agrário brasileiro.
sim, as ocorrências de ações de ataques
pecificamente, 2021 registra uma di- Ao passo que o período de 2011 a 2019
a direitos/ações de violência são conta-
minuição de aproximadamente 21% no tem média anual de 132 ocorrências de
bilizadas através de registros de expul-
número de ocorrências de conflitos no conflitos por água, o período de 2020 a
sões, despejos, ameaças de expulsão,
Brasil em relação a 2020. Constata-se 2021 registrou média anual de 327 ocor-
ameaças de despejo, invasões, grila- O que nos mostram os dados de con-
uma diminuição, de modo geral, nos rências. É mais que o dobro.
gem e outros, enquanto as ocorrências flitos por terra no país em 2020 e 2021 é
conflitos no campo de um ano para o
Podemos identificar empiricamente de ações de conquista ou retomada de a continuidade do violento processo ex-
outro. Uma análise mais atenta, toda-
nos conflitos no campo, apoiados em terras estão registradas nas ocupações, propriatório em curso no espaço agrá-
via, nos faz perceber que o período em
José de Souza Martins (1980), pelo me- retomadas de terra e acampamentos. rio brasileiro, que se intensificou com a
tela insere-se no contexto da elevada
nos dois lados: enquanto uns buscam a ruptura política que se viu agravar ain-
tensão conflitiva que vem caracterizan- Para uma análise mais aprofundada
terra para trabalho (grupos/classes so- da mais no atual governo. Sendo assim,
do o campo brasileiro, que se acentuou da natureza das ações na atual quadra
ciais em situação de subalternização), a despeito da queda no número geral de
desde a ruptura política (2015–2021) e histórica, recuperemos os registros dos
onde possam garantir suas condições ocorrências de conflito em 2021, é se-
se agravou ainda mais na atualidade11. Cadernos de Conflitos no Campo da CPT
de produção/reprodução da vida, ou- guro afirmar que vivemos um período
anteriores a 2011. O quadro geral do pe- de aguda violência e intensa conflitivi-
Enquanto o período de 2011 a 2019 tros querem a terra para negócio (gru-
ríodo de 2003 a 2019 apresenta uma ver- dade no campo.
(CPT, 2021) possui uma média anual de pos/classes sociais em situação de do-
tiginosa queda nas ações de conquista e
944 ocorrências, o de 2020 a 2021 regis- minação), com o fim de acumulação e
retomada de terra, que representaram É importante ressaltar, ainda, que o
tra uma média anual de 1.409 ocorrên- reprodução de capital. Um olhar mais
49% das ocorrências de conflito em atual governo ampliou o compromisso
cias. Semelhante dinâmica conflitiva atento às categorias sociais causadoras
2003, enquanto em 2019 responderam irrestrito do Estado brasileiro com o
também pode ser observada quanto e àquelas que sofrem violências nas
por apenas 3% delas. No mesmo recor- agro e outros negócios de exportação,
às localidades onde ocorreram esses disputas por terra nos indica o que cha-
te, observa-se o aumento gradual, in- posicionando-se desde a campanha
conflitos: enquanto o período de 2011 mamos de natureza das ações, isto é, o
tensificado nos últimos anos, das ações eleitoral explicitamente contrário a
a 2019 possui uma média anual de 770 conflito a partir dos grupos/classes so-
de ataques a direitos/ações de violên- quaisquer direitos dos povos e comu-
localidades em conflito, o período de ciais nele envolvidos.
cia, que tinham participação em 51% nidades tradicionais e atuando ativa-
2020 a 2021 alcançou uma média anual mente no processo de fragilização de
O Centro de Documentação Dom To- das ocorrências em 2003 e chegaram a
de 979 localidades. Registre-se que, em várias instituições criadas para afirmar
mas Balduino (CEDOC), da Comissão impressionantes 97% das ocorrências
2021, os conflitos por terra correspon- seus direitos instituídos na Constitui-
Pastoral da Terra (CPT) registra esses em 2019. Já em 2020, as ações protago-
deram a 70% dos conflitos no campo no ção de 1988, como a Fundação Nacional
conflitos, identificando a natureza das nizadas pelos grupos/classes sociais em
Brasil (CPT, 2022). do Índio (FUNAI), a Fundação Cultural
ações que geram conflitos no campo. situação de subalternização responde-
São registradas, de um lado, ações de ram por 2% do total e subiram para 4% Palmares (FCP) e o Instituto Brasileiro
Quando olhamos os dados de con-
conquista e retomada de terras, qua- em 2021. Isso significa que, em 2021, do Meio Ambiente e dos Recursos Na-
flitos envolvendo água, as conclusões
se sempre protagonizadas por grupos/ 96% dos conflitos por terra no Brasil se turais Renováveis (IBAMA). Ademais,
são as mesmas. Uma recuperação dos
classes sociais em situação de subal- deram por ações de ataques a direitos/ ampliou a política de paralisia da refor-
dados desse tipo de conflito nos mostra
ações de violência protagonizadas pe-
los grupos/classes sociais em situação
11. Ver: PORTO-GONÇALVES, C. CUIN, D. LADEIRA, J. SILVA, M. LEÃO, P. A ruptura política e a questão agrária no de dominação.
Brasil (2015-2017): da política de terra arrasada à luta pela dignidade. Revista OKARA: Geografia em debate,
v. 12, n. 2, p. 708-730, 2018.

60 61
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

ma agrária no país iniciada no gover- 2020). É seguro dizer, a esse respeito, produtos do agro e do aumento dos por essa condição topográfica propor-
no Michel Temer, com o empenho, em que não é o modo de des-envolvimen- conflitos no campo brasileiro apontam cionam menor gasto em energia do que
2020, do menor orçamento para aqui- to em curso – vendido sob o slogan “o é que a terra tem ganhado centralida- um relevo ondulado ou mesmo suave-
sição de terras desde 1995 (GOVERNO agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo” de na exata medida em que aumentam mente ondulado, o que não é de pouca
FEDERAL, 2021) de acordo com o Ins- – que apresenta alternativas, afinal é consideravelmente as disputas sobre relevância para um modo de produção/
tituto Nacional de Colonização e Refor- ele próprio a força motriz da moderni- ela (PORTO-GONÇALVES et al., 2017). reprodução de grande custo operacional
ma Agrária (INCRA). zação conservadora do território bra- em energia para movimentar suas má-
sileiro e do aprofundamento de nossa Os Cerrados têm registrado boa par- quinas pesadas; (b) a enorme disponibi-
Evidentemente, tal cenário de terra condição periférico-dependente no sis- te do avanço das lavouras do agronegó- lidade de água12; e (c) a estrutura agrá-
arrasada escancarado nos últimos anos tema-mundo. cio no país. Por exemplo, a macrorre- ria tradicional, de caráter latifundiário,
não surgiu do dia para a noite, cons- gião Centro-Oeste – ocupada quase em que facilita enormemente a aquisição
tituindo-se nas últimas décadas pelo Na esteira dessa dinâmica, atuali- sua totalidade pelos Cerrados – apre- de muita terra com poucas operações
agravamento de nossa condição peri- zam-se práticas coloniais no espaço sentou, entre 1988 e 2018, um espeta- de transferência de propriedade. Essa
férico-dependente através da ênfase agrário brasileiro, com o avanço das cular aumento de 380,4% na área plan- herança facilitou a reprodução moder-
na pauta primário-exportadora. Enfim, áreas plantadas das monoculturas de tada com as lavouras de soja, milho e nizada do latifúndio tradicional.
por trás das cifras-recorde das commodi- commodities, o incremento da concen- cana de açúcar, que passaram a repre-
ties há uma dinâmica de conflitividades tração fundiária, e o aumento dos con- sentar nada menos que 92,1% da área Entretanto, que as regiões dos Cer-
que intensifica a questão (da reforma) flitos por terra e da violência contra os total cultivada na região. Ou seja, é evi- rados tinham uma tradição de manejo
agrária, na medida em que aumentam grupos/classes sociais em situação de dente o avanço da expansão territorial das suas paisagens, que ficaram consa-
as disputas em torno do controle e do subalternização no campo. É o desen- do agro nos Cerrados. gradas na obra-prima do grande escri-
acesso à terra (Porto-Gonçalves et. al., volvimento do subdesenvolvimento tor brasileiro Guimarães Rosa: Grande
(MARINI, 1973), em suma. A partir dos anos 1970 os capitais Sertão: Veredas. Esse livro recria litera-
bancários-empresariais-agropecuá- riamente o mundo de vida camponês:
rios se aventuraram pelos Cerrados, os grandes sertões são as chapadas onde o
quando essas regiões passaram a ser mundo “carece de fechos”, pois não têm
a área mais dinâmica da produção de cercas, e são usados como terra comum
Um olhar mais atento à geografia dos commodities para exportação com base para a pastagem do gado e para o extra-
conflitos nos Cerrados (2020–2021) em latifúndios de produção intensiva,
encontraram determinadas condições
tivismo de centenas de produtos; e as
veredas são os fundos dos vales onde os
sociogeográficas que não só os favore- camponeses habitam, fazem agricultura
Dado o contexto de conflitos no cam- biogeográfico que traz em sua dinâmi- ceram, como também são a razão de e criam pequenos animais. Os campone-
po brasileiro nos anos de 2020 e 2021, ca territorial um quadro privilegiado fundo da enorme conflitividade que ses faziam o uso complementar dessas
olhemos mais atentamente o que tem sobre a relevância da terra e do conjun- desde então se estabeleceu. duas unidades da paisagem, enfim, do
se passado no Cerrado brasileiro e em to das condições metabólicas da vida binômio chapada-vereda. Era comum,
Entre essas condições destaquemos:
suas Zonas de Transição, ou nos Cer- na atualidade. ainda, que grandes fazendeiros tradi-
(a) as enormes extensões de terras pla-
rados, como os chamaremos daqui em cionais estabelecessem relações com os
Na contramão do que têm defendi- nas – as chapadas e chapadões –, que
diante. Como vimos, a questão agrária camponeses permitindo que eles fizes-
tem estado em evidência, atestada pelo do os ideólogos do agronegócio – que a
aumento dos conflitos por terra nos úl- terra tem cada vez menos importância
dada diminuição de sua participação 12. Os Cerrados são a caixa d’água do Brasil. Não só por sua extensa rede hidrográfica, como também pelos
timos anos, o que evidencia também ricos aquíferos da região (Guarani, Urucuia e Bambuí). Nas chapadas, onde a água se infiltra rapidamente, a
sua centralidade teórico-política. Os no valor geral de produção –, o que os atividade agrícola ficava limitada, pois o precioso líquido havia de ser buscado no subsolo, sobretudo nos
aquíferos.
Cerrados brasileiros são um sistema dados de avanço de área plantada dos
13. Pelo sistema de quarta, a cada quatro crias, o camponês tem direito a uma para si.

62 63
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

por terra e envolvendo água no espaço do. Esses dados começam a nos mos-
agrário brasileiro ocorreram nos Cer- trar como os Cerrados têm sido palco
rados e suas Zonas de Transição com avançado das disputas pelo controle e o
Amazônia, Zona dos Cocais, Caatinga, acesso à terra e ao conjunto das condi-
Mata Atlântica e Pantanal nesse perío- ções metabólicas da vida no país.

Ocorrências de conflitos14 no Cerrado e Zonas de Transição (2020-2021)


Tabela 1

Cerrado e Zonas de Transição 2020 2021

Cerrado Contínuo 305 259


Transição Cerrado- Mata Atlântica 120 81
Transição Cerrado-Amazônia 92 89
Transição Cerrado-Caatinga 29 67
Crédito: Amanda Costa Transição Cerrado- Zona dos Cocais 83 78
Pantanal Transição Cerrado 24 18
sem uso das chapadas para extrativismo Não percamos de vista que os Cerra- Cerrado Ampliado 653 592
ou mesmo que criassem suas cabeças de dos são o único sistema biogeográfico Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022.
gado, geralmente ganhas com o sistema presente em todas as macrorregiões
de quarta13. Assim, garantiam mão de brasileiras. Nesse sentido, faz-se ne-
obra quando das necessidades da fazen- cessária uma análise comparativa da Na Tabela 1, das 653 ocorrências re- e fundos e fechos de pastos. O avanço
da. Com a chegada dos novos capitais la- geograficidade do padrão conflitivo em gistradas no Cerrado Ampliado, 9% são de fazendeiros, grileiros e empresários
tifundiários com sua produção de com- curso no Cerrado em relação ao resto relacionadas a conflitos envolvendo nessa região indica a alta conflitividade
modities, as chapadas foram cercadas e do país no período entre 2020 e2021. água, ou seja, trata-se em sua maioria, no chamado polígono Matopiba e a di-
se quebrou aquela unidade tradicional Aqui, o ponto de partida é uma compa- 91%, de conflitos por terra15. Foi consi- nâmica de expansão/invasão do modo
da paisagem, além de o agronegócio ração entre os conflitos em todo o Brasil derável o aumento dessas ocorrências de produção/reprodução do capital na
não permitir mais o uso camponês das e os registrados no Cerrado Ampliado, na Zona de Transição Cerrado–Caatin- região. Entre as diferentes porções de
chapadas. Além disso, os novos capitais isto é, os Cerrados em sua totalidade, ga, bem como a queda desses regis- Cerrado registradas, a Transição Cerra-
latifundiários com seus pivôs centrais englobando o que chamamos de Cerra- tros nas áreas de Cerrado Contínuo e do–Caatinga foi a única que apresentou
foram buscar água nas profundezas e, do Contínuo e suas Zonas de Transição na transição com a Mata Atlântica. Tal crescimento nas ocorrências de confli-
com isso, passaram não só a irrigar suas com outros domínios morfoclimáticos. aumento na Transição Cerrado–Caatin- to entre 2020 e 2021.
plantações, como também a provocar ga ocorreu sobretudo no oeste baiano
escassez de água nas veredas. Não sem De acordo com o Centro de Docu- Ainda que, em números absolutos,
em conflitos que envolveram, em sua
sentido, os camponeses em várias re- mentação Dom Tomás Balduino (CPT), tenha ocorrido uma queda de ocorrên-
maioria, povos e comunidades tradicio-
giões passaram a designar esses pivôs cerca de 33% dos conflitos por terra cias de conflito nos Cerrados em 2021,
nais, como os quilombolas, ribeirinhos
centrais de “pivôs da discórdia”. Vamos e envolvendo água no país em 2020
aos conflitos, portanto. ocorreram nos Cerrados, enquanto
em 2021 esse mesmo número atingiu 14. Aqui, são consideradas as somas das ocorrências de conflitos por terra, conflitos envolvendo água e
ações dos movimentos de ocupações, acampamentos e/ou retomadas.
37%. Ou seja, mais de 1/3 dos conflitos
15. Dessas ocorrências, 98,9% correspondem a ações de ataques a direitos/ações de violência.

64 65
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

os anos de 2020 e 2021 são dois dos mica observada no panorama nacional A exceção foi a diminuição de qua- direitos/ações de violência na Transi-
mais conflitivos na história recente dos se confirmou na região. Ou seja, nesse se 50% nesse tipo de ação na Zona de ção Cerrado–Caatinga, atesta que o au-
Cerrados. Desde 2003 até 2019, aliás, período houve uma queda considerável Transição Cerrado–Mata Atlântica (Ta- mento das ocorrências de conflito to-
não haviam sido registradas mais de das ações de conquista e retomada de bela 2), área onde, por sinal, houve tal nessa área se deveu à violência dos
300 ocorrências de conflitos na região. terra acompanhada do brutal aumento um aumento nas ações de ocupação grupos/classes sociais em situação de
Em 2019 esse número saltou para mais das ações de ataques a direitos/ações e retomada de terra (Tabela 3) prota- dominação (empresários; fazendeiros;
de 500 ocorrências. Já 2020, com um de violência, tanto em proporção como gonizadas pelos sem-terra. O aumento agentes públicos/governos; grileiros;
registro de 653 ocorrências, foi o ano em números absolutos. Ainda segundo de quase 50% das ações de ataques a mineradoras e outros).
com mais conflitos no Cerrado Amplia- Ladeira (2020), no caso do Cerrado Am-
do, pelo menos desde 2003, segundo o pliado, o ano de 2010 pode ser tomado
CEDOC Dom Tomás Balduino/CPT. A como um marco das ocorrências de Natureza das ações de disputa por terra/território no Cerrado e em Zonas
ligeira queda observada em 2021 (592) conflitos: de 2003 a 2009 as ocorrências de Transição – ações de ocupações e conquista e/ou retomada de terras
não impede que esse tenha sido o se- apresentam uma tendência de descen- (2020–2021) Tabela 3
gundo ano com mais ocorrências de so e de 2011 em diante a tendência do
conflito nos Cerrados, atrás somente número de ocorrências passa a ser de Cerrado e Zonas de Transição 2020 2021
de 2020. Enfim, se há expansão/invasão ascensão até o registro recorde em 2020.
Cerrado Contínuo 6 2
das fronteiras, os Cerrados são o front,
como se vê. Quase todas as áreas do Cerrado Transição Cerrado- Mata Atlântica - 12
registraram menos ações de ataques Transição Cerrado-Amazônia 1 2
No que diz respeito à natureza das a direitos/ações de violência em 2021
ações no Cerrado Ampliado, podemos do que em 2020, com exceção da Tran- Transição Cerrado-Caatinga - 2
afirmar, de acordo com Ladeira (2020), sição Cerrado–Caatinga. Entretanto, Transição Cerrado- Zona dos Cocais - -
que entre 2003 e 2019 a mesma dinâ- no quadro geral, a queda foi pouca. Pantanal Transição Cerrado - -
Cerrado Ampliado 7 18
Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022.
Natureza das ações de disputa por terra/território no Cerrado e em Zonas
de Transição – ações de ataques a direitos/ações de violência (2020–2021)
Tabela 2
Entre 2020 e 2021, evidencia-se que aumento de zero para 12 ocorrências
a participação dos movimentos sociais de ações de ocupações e conquista e/ou
Cerrado e Zonas de Transição 2020 2021
e comunidades rurais nas disputas pela retomada de terras na Zona de Transi-
Cerrado Contínuo 299 257 terra nos Cerrados segue tendo uma ção Cerrado–Mata Atlântica, área onde
relevância mínima se comparada com houve uma diminuição das ações dos
Transição Cerrado- Mata Atlântica 120 69
a altíssima violência dos grupos/clas- grupos/classes em situação de domina-
Transição Cerrado-Amazônia 91 87 ses sociais em situação de dominação. ção. Embora tenha havido um aumen-
Transição Cerrado-Caatinga 29 65 Em 2020, 1% das ocorrências de con- to nas ações dos movimentos em 2021,
Transição Cerrado- Zona dos Cocais 83 78 flitos por terra ou envolvendo água se se comparadas com o total da nature-
deveram a ações de ocupações, acam- za das ações dos conflitos no campo,
Pantanal Transição Cerrado 24 18 pamentos e/ou retomadas, enquanto seguem com representação pequena
Cerrado Ampliado 646 574 o restante foi violência dos de cima frente às ações de ataques a direitos/
Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022. contra os de baixo. Em 2021, essa ten- ações de violência.
dência se repetiu. Chama a atenção o

66 67
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

Olhemos agora para o quadro geral 2019 esse número alcançou 64.533 fa-
A geograficidade das categorias
das famílias envolvidas em conflitos mílias. Isto é, o número de famílias en-
nos Cerrados e em suas Zonas de Tran- volvidas em conflitos nos Cerrados não sociais envolvidas em conflitos no
sição. De acordo com o CEDOC Dom acompanhou o recrudescimento das Cerrado (2020–2021)
Tomas Balduino/CPT, o crescimento no ocorrências de conflito. Já em 2020,
número de famílias envolvidas em con- temos um salto para 73.056 famílias
flitos no Brasil entre 2003 e 2019 foi de envolvidas em conflitos, enquanto em Tanta terra, tanto conflito, tanta beirinhos, geraizeiros, faxinalenses,
78%. No Cerrado Ampliado, entretan- 2021 foram 80.891 famílias (Tabela 4). gente em conflito. Mas quem é essa sem-terra e mais uma ampla diversida-
to, estes números de famílias mostram Ou seja, tivemos um aumento em nú- gente? Como se autoidentifica? Uma de de identidades sociopolíticas) apare-
uma ligeira queda e estão hoje num pa- meros absolutos de famílias envolvi- análise das categorias sociais envol- cem envolvidos na maioria dos confli-
tamar muito próximo de onde estavam das, apesar da queda no número de vidas em conflitos mostra como se tos por sua resistência às muitas ações
no início do período (LADEIRA, 2020). ocorrências. Este aumento do número movimentam, no espaço-tempo, as de tentativa de expulsão, expulsão,
de famílias se deu nas Transições Cer- contradições entre os agentes e seus tentativas de despejo, despejo, invasão,
Em números absolutos, 2003 re- rado–Amazônia e Cerrado–Caatinga, e interesses, e quem são os grupos em grilagem e outras, protagonizadas pe-
gistrou 65.722 famílias envolvidas em no Cerrado Contínuo. luta pela permanência, pelo acesso los grupos/classes sociais em situação
conflitos nos Cerrados, enquanto em ou pela retomada de terras. Isso por- de dominação. Predominam entre os
que uma sociedade não existe fora do grupos/classes sociais em situação de
espaço e, portanto, entender sua dis- subalternização as categorias que estão
Famílias envolvidas em conflitos no campo no Cerrado e em Zonas de tribuição, sua dinâmica territorial e em posse real de uso da terra, ou seja, do
Transição (2020–2021) quem são os agentes dessa dinâmica conjunto das condições de produção
Tabela 4 torna-se fundamental para a leitura da e reprodução da vida. Algumas desde
questão (da reforma) agrária no Brasil. tempos imemoriais, como os povos in-
Cerrado e Zonas de Transição 2020 2021 Ademais, muitas das vezes, o conflito dígenas, e outras há séculos, como as
entre dois ou mais modos de usar e sig- diferentes campesinidades que confor-
Cerrado Contínuo 26.425 29.757 nificar, material e simbolicamente, o mam o a sociedade brasileira em sua
espaço desencadeia um cenário de ter- dimensão agrária.
Transição Cerrado- Mata Atlântica 13.342 11.581
ritorialidades em conflito. Os conflitos
Transição Cerrado-Amazônia 17.897 22.483 As análises que aqui desenvolvemos
são aqui registrados conceitualmente
estão fundamentadas nos dados refe-
Transição Cerrado-Caatinga 2.833 9.992 segundo a iniciativa das diferentes ca-
rentes às categorias sociais envolvidas
tegorias sociais que agem segundo sua
Transição Cerrado- Zona dos Cocais 10.467 6.604 nos conflitos no campo nos Cerrados.
posição nas relações sociais e de poder,
De um lado, temos as categorias sociais
Pantanal Transição Cerrado 2.092 474 por isso diferenciamos os chamados
que causam as ações de ataques a di-
grupos/classes sociais em situação de
Cerrado Ampliado 73.056 80.891 reitos/ações de violência (empresários;
subalternização daqueles grupos/clas-
fazendeiros; governo/agentes públicos;
Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022. ses sociais em situação de dominação.
grileiros; mineradoras; e outros) e, do
Nesse sentido, os grupos/classes so- outro, temos as categoriais sociais que
ciais em situação de subalternização sofrem essas ações de violência (assen-
(posseiros, indígenas, quilombolas, ri-

68 69
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

tados, pequenos proprietários, arren- nização com maior envolvimento em alguma incidência nas Zona de Tran- No Mapa 1, podemos visualizar a dis-
datários e parceleiros; sem-terra; povos conflitos no campo entre 2020 e 2021 sição Cerrado–Mata Atlântica e Cer- tribuição espacial dos conflitos de acor-
e comunidades tradicionais; e outros). (Gráfico 1). O aumento vertiginoso das rado–Amazônia. Em relação aos pe- do com os grupos/classes sociais em si-
ações de violência protagonizadas pe- quenos proprietários, arrendatários e tuação de subalternização envolvidos.
A chamada reconfiguração da ques- los grupos/classes sociais em situação parceleiros, destaca-se sua presença no
tão agrária (PORTO-GONÇALVES, 2018) de dominação contra os territórios de Cerrado Contínuo.
se atualiza nos Cerrados, onde os fronts vida de povos e comunidades tradicio-
das disputas pela terra são principal- nais indica como o espaço agrário bra-
mente áreas tradicionalmente ocupa- sileiro tem sido palco do avanço/inva- Localidades em conflito no Cerrado e em Zonas de Transição segundo os
das por povos e comunidades tradicio- são do capital, cuja territorialização se grupos/classes sociais em situação de subalternização
nais que, em posse real de uso de suas faz em áreas ocupadas com uso tradi- Mapa 1
terras/territórios, foram os grupos/ cional da terra como terra de trabalho
classes sociais em situação de subalter- e vida, desterritorializando-as.

Grupos/classes em situação de subalternização em conflitos (2020–2021)


Gráfico 1

Pequenos proprie- Povos e


Biomas Assentados tários, arrendatários Sem Terra Comunidades Outros
e Parceleiros Tradicionais

Cerrado Contínuo 10 18 47 300 33

Transição Cerrado-Amazônia 16 4 15 64 0

Transição Cerrado-Caatinga 12 6 6 59 0

Transição Cerrado- Mata Atlântica 2 2 22 143 0

Transição - Zona dos Cocais 1 1 1 109 1

Transição Pantanal 1 2 1 35 0
LEGENDA
Cerrado Ampliado 42 33 92 710 34
Brasil
Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022.

Domínio Cerrado e Transições:


Cerrado Contínuo Categorias em situação
de subalternização:
Pantanal - Transição Cerrado
No Cerrado Contínuo ou somen- sição Cerrado–Zona dos Cocais (96%). Assentados
Transição Cerrado-Amazônia
te nas Zonas de Transição, os povos e Ao mesmo tempo, os assentados estive- Pequenos Proprietários
comunidades tradicionais correspon- ram envolvidos em conflitos com maior Transição Cerrado-Caatinga
Povos e Comunidades
dem à categoria social mais envolvida intensidade na Zona de Transição Cer- Transição Cerrado-Mata Atlântica Tradicionais

em conflitos (Gráfico 1). Destacam-se rado–Amazônia, no Cerrado Contínuo Transição Cerrado-Amazônia-Caatinga Sem Terras
(Zona dos Cocais) Outros
os altos números no Cerrado Contínuo e na Zona de Transição Cerrado–Caa-
(73%), na Zona de Transição Cerrado– tinga. Já os sem-terra tiveram destaque
Mata Atlântica (84%) e na Zona de Tran- principalmente no Cerrado Contínuo e
Fonte: IBGE; Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022.

70 71
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

Uma análise da geografia dos confli- as denúncias sobre o tratamento dis- zônia, ao longo da BR-173 (Cuiabá–
tos segundo os grupos/classes sociais pensado pelo do poder público aos Santarém) e da BR-364 (Cuiabá–Porto
em situação de dominação indica um trabalhadores e às trabalhadoras da Velho), a violência tem sido especial-
cenário complexo, com uma distribui- terra durante a pandemia. O modo de mente marcante.
ção em especial de acordo com cada produção-reprodução em des-envolvi-
área do Cerrado Ampliado. mento não parou e, com ele, continua- Localidades em conflito no Cerrado e em Zonas de Transição
ram as ameaças de despejo, situações segundo os grupos/classes sociais em situação de dominação
Na Transição Pantanal–Cerrado, de omissão/conivência, impedimentos Mapa 2
os fazendeiros foram o grupo/classe de ir e vir e demais ações do poder pú-
social em situação de dominação que blico nesse período.
mais causou conflitos. O mesmo ocor-
reu no Cerrado Contínuo e na Zona Já na Zona de Transição Cerrado–
de Transição Cerrado–Caatinga. Já Amazônia, 29% dos conflitos foram
na Zona de Transição Cerrado–Mata causados por ações de empresários e
Atlântica, 52% das ações de ataques a 29% por fazendeiros. Juntos, respon-
direitos/ações de violência foram pro- deram por 68% das ações de ataques a
tagonizadas pelo governo/por agentes direitos/ações de violência nessa área.
públicos (Gráfico 2). Aqui, muitas são Na transição dos Cerrados com a Ama-

Grupos/ Classes em situação de dominação nos conflitos (2020–2021)


Gráfico 2

Governo/
Biomas Empresário Fazendeiro Agentes Grileiro Mineradora Outros
públicos

Cerrado Contínuo 80 133 110 24 22 32


LEGENDA
Transição Cerrado-
28 28 24 7 5 4
-Amazônia
Brasil
Transição Cerrado-
22 38 8 2 10 1
-Caatinga Domínio Cerrado e Transições:
Transição Cerrado- Cerrado Contínuo Categorias em situação
38 22 83 6 5 5 de dominação:
Mata Atlântica
Pantanal - Transição Cerrado
Transição - Empresário
38 33 25 11 3 3 Transição Cerrado-Amazônia
Zona dos Cocais Fazendeiro
Transição Cerrado-Caatinga
Transição Pantanal 1 23 8 0 0 7 Governo/ Agentes Públicos
Transição Cerrado-Mata Atlântica Grileiro
Cerrado Ampliado 207 277 258 50 45 52
Transição Cerrado-Amazônia-Caatinga Mineradora
Fonte: Centro de Documentação Dom Tomás Balduino/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022. (Zona dos Cocais)
Outros

Fonte: IBGE; Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno/CPT. Elaborado por: LEMTO-UFF, 2022.

72 73
A vida ameaçada e as lutas pela vida: violência e conflitos nos Cerrados brasileiros

Produção de alimentos no assentamento


Roseli Nunes, em Planaltina (DF), como
parte da mobilização #600ContraFome,
em maio de 2021. A mobilização de movi-
mentos sociais cobrou o auxílio emergen-
cial de 600 reais, denunciou o aumento da
fome e da carestia, e exigiu vacina a toda
população do país.

agentes públicos/governos, reafirman-


do uma tendência que se iniciou no
período de ruptura política; entre 2015
e 2019, foram 129 ocorrências de con-
flito nos Cerrados envolvendo esses Enfim, aproximar-se da questão
atores. Em 2020 e 2021, contudo, tal (da reforma) agrária e de sua dinâmi-
Crédito: Matheus Alves
tendência radicalizou-se, de modo que ca conflitiva nos Cerrados nos faz ver
chamam a atenção as 258 ocorrências que o que está em jogo nos Cerrados
envolvendo os agentes públicos/gover- vai além das soluções técnicas tão pro-
paladas tanto pelos agentes (que de-
Conclusão nos em somente dois anos.
veriam ser) públicos como pela mídia
Por outro lado, entre os grupos/ corporativa e seus congêneres. A esse
que impera na região e no campo bra- classes sociais em situação de subal- respeito, retornemos ao dia 19 de abril
Como se pôde ver, os anos de 2020 e
sileiro em geral, o que provoca um re- ternização, prevaleceram os povos de 2021, quando diversos povos indí-
2021 foram, tanto em escala nacional
baixamento no horizonte de conquista e comunidades tradicionais, que es- genas organizados na Articulação dos
como no recorte dos Cerrados, carac-
dos movimentos sociais e, ao que pa- tiveram envolvidos num total de 710 Povos Indígenas do Brasil (APIB) rea-
terizados pelo acirramento da violên-
rece, reorienta o conjunto dos grupos/ ocorrências nos Cerrados, ou seja, na lizaram uma ação na Esplanada dos
cia e dos conflitos nas disputas pela
classes sociais em situação de subal- maioria absoluta delas. Em termos Ministérios, em Brasília. Naquele dia,
terra e pelo conjunto das condições
ternização muito mais no sentido da proporcionais, destaque-se também a projetou-se, no concreto que molda as
metabólicas da vida. Tal qual em esca-
luta por permanência em suas terras/ participação dessa categoria social nos estruturas do Congresso, os seguintes
la Brasil, predominaram na dinâmica
territórios do que no das ações de con- conflitos na Zona de Transição Cerra- dizeres: “A luta pela terra é a mãe de
conflitiva nos Cerrados as ações de ata-
quista e retomada de terra. do–Zona dos Cocais; num total de 113 todas as lutas”. Tomemos esses dize-
ques a direitos/ações de violência, pro-
ocorrências, 109 envolveram os povos res para lembrar-nos da ordem ética,
tagonizadas por grupos/classes sociais
Nos grupos/classes sociais em situa- e comunidades tradicionais. Esta zona política e epistêmica impregnada nos
em situação de dominação, tendência
ção de dominação que protagonizaram está compreendida quase em sua tota- desafios que, nos Cerrados em espe-
observada claramente desde a ruptura
ações de ataque a direitos/ações de lidade na região do Matopiba, o que in- cial, colocam-nos frente a frente com
política e agravada no atual governo.
violência, predominaram fazendeiros, dica a ferocidade da expansão/invasão a vida ameaçada e as lutas pela vida e
Com efeito, isso indica o crescente seguindo a mesma tendência dos anos territorial do capital e o acirrado con- suas condições metabólicas de produ-
grau de violência física e institucional anteriores. Em seguida, estiveram os flito entre territorialidades na região. ção/reprodução, reunidas na terra.

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76 77
Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra

Povos e Comunidades do e no Cerrado

Povos e comunidades do Cerrado que ruralizadas, com modos tradicionais


ocupam as vastas porções centrais do de viver. Hoje, são reconhecidos como
Brasil foram se formando em diferen- populações tradicionais do Sertão-Cer-
tes momentos históricos. Cada um se rado (SARAIVA, 2004).
encontrou com o Cerrado do seu modo
e do seu jeito, extraindo desse bioma o Os excluídos da terra também se
sustento para a vida. Terras em Goiás, achegaram às terras do Cerrado. Mui-
Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso tos, motivados pelos projetos de colo-
do Sul, Minas Gerais, Bahia, Maranhão, nização das décadas de 1930/40, foram
Piauí, Rondônia, Paraná, São Paulo e se adaptando às terras onde o Cerrado
Distrito Federal, além de encraves no prevalece como natureza (FREITAS;
Amapá, em Roraima e no Amazonas2, MELLO, 2014). Muitos outros, questio-
têm a presença de cerratenses (gente nando a ocupação moderna conserva-
do Cerrado), que se formaram a partir dora e excludente da década de 1970,
da íntima e intensa relação com a natu- os sem-terra, ocuparam latifúndios
reza (BERTRAN, 2000). improdutivos para a garantia da repro-
dução da vida a partir dos anos 2000

POVOS E COMUNIDADES Os indígenas, povos originários, es-


tão presentes no Cerrado há mais de
(ROSA, 2012). São camponeses e cam-
ponesas que foram se estabelecendo
DO CERRADO: O DIREITO 10 mil anos (ELEUTÉRIO, 2013). No sé-
culo XVIII, tempo da colonização das
no chão do Cerrado, como famílias pri-
meiro acampadas, depois assentadas;
À MEMÓRIA, À VERDADE terras interiores em função do ouro,
negros e negras escravizados foram
agricultores e agricultoras que passa-
ram a viver da terra.
E À TERRA trazidos para o interior do país. Com
o fim da exploração mineradora, e em Indígenas e camponeses (quilombo-
nome da liberdade, criaram quilombos las, comunidades tradicionais, famílias
e ocuparam territórios no vasto Cerra- acampadas e/ou assentadas e agricul-
Regina Coelly Fernandes Saraiva1 do. Outros grupos, brancos e mestiços, tores familiares) têm em comum a luta
especialmente ao longo do século XIX, pelo território e por terras no Cerrado.
foram se reunindo em comunidades São populações que resistiram à opres-

1. Doutora em Desenvolvimento Sustentável (CDS/UnB), professora da Faculdade UnB Planaltina/Universi-


dade de Brasília (FUP/UnB) e do Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural
(PPG/Mader/FUP/UnB); membro do Centro de Estudos do Cerrado da Chapada dos Veadeiros (Centro UnB
Cerrado) e apoiadora do Tribunal dos Povos em Defesa dos Territórios do Cerrado.
2. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. O Bioma Cerrado. Biomas. Disponível em: https://antigo.mma.gov.br/
biomas/cerrado.html. Acesso em: 22 mar. 2022.

78 79
Romaria da Terra
e das Águas Padre
Josimo, no Bico
do Papagaio,
Tocantins.

Crédito: João Ripper Fonte: CEDOC-CPT

são e à violência como marca dessa Na (re)construção da memória cam- que atingiram inclusive muitos povos de? Em seguida são apresentados casos
luta. Os indígenas foram vítimas de ponesa, o movimento de Trombas e For- cerratenses. Violações praticadas pelo emblemáticos de camponeses e cam-
genocídios de grupos e etnias com o moso (1949–1964), em Goiás, território Estado e seus agentes que não podem ponesas cerratenses cuja memória foi
processo de ocupação das terras inte- originalmente cerratense, é um exem- (e não devem) ser esquecidas para que registrada pela CCV. Por fim, são apon-
riores (ELEUTÉRIO, 2013). A busca por plo de como os/as camponeses/as foram não aconteçam mais. tados desafios que se apresentam para
liberdade levou povos negros a viver reprimidos/as por abraçar a luta pelo dar continuidade ao direito à memória
em lugares recônditos, isolados e sem direito à terra e o modo de vida campo- Este texto vai tratar especificamente e à verdade camponesas, tentando res-
acesso a direitos por séculos, criando nês. A reforma agrária, pauta política da (re)construção de memórias de cam- ponder perguntas como:
quilombos em terras livres da opres- desse movimento e de tantos outros, foi poneses e camponesas violentados em
são. A negação do direito à terra ao brutalmente interrompida pela ditadura seus direitos por lutar pela terra, por
camponês gerou milhares de conflitos reforma agrária em terras do Cerrado. Qual tratamento deve ser
civil-militar (1964–1985), cujos governos
Inicialmente, aborda-se como o direito dado à memória de povos
com latifundiários, mineradores e em- optaram por um projeto de desenvolvi-
à memória e à verdade camponesas foi e comunidades do Cerrado
presários que negaram (e ainda negam) mento do campo conservador, exclu-
demandado pelos movimentos sociais violentados em seu direito à
esse direito. dente e violento (MARTINS, 1985). terra?
como parte da reparação de dores e
Muitas histórias e memórias de lu- Os anos da ditadura deixaram uma perdas e como essa pauta foi contem-
tas e resistências podem ser contadas marca permanente nas histórias de plada pela Comissão Nacional da Ver- Qual o papel do Tribunal dos
para (re)construir a trajetória histórica vida de muitos camponeses e muitas dade (CNV) e, posteriormente, pela Co- Povos em Defesa dos Terri-
de povos e comunidades do Cerrado na missão Camponesa da Verdade (CCV). tórios do Cerrado na luta por
camponesas. Nesse período, o direito à
luta pelo território indígena e pela terra As perguntas que nortearam essa pri- memória e verdade diante
terra e ao território foi duramente re-
camponesa. Essas lutas guardam mui- meira parte do texto foram: quais são
da permanência da violência
primido, gerando dores cujas narrati- contra povos e comunidades
tas marcas de dor e perdas. vas passam por torturas, assassinatos, as especificidades da (re)construção da
do Cerrado?
expulsão das terras, perseguições polí- memória camponesa? Por que contem-
ticas, mais genocídio indígena, desapa- plar a memória camponesa como parte
recimentos forçados e outras práticas das discussões sobre memória e verda-

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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra

Movimentos e povos indígenas cria- das pelo Estado e seus agentes contra
Comissão Camponesa da Verdade e o ram, em agosto de 2013, uma Comissão camponeses de 1946 a 1988 (período de
abrangência da CNV), e a necessida-
Indígena da Verdade e Justiça (CIVJ),
direito à memória e à verdade camponesas com apoiadores, intelectuais e pesqui- de premente de reparação (SARAIVA;
sadores de diferentes entidades, para SAUER, 2014).
subsidiar a CNV e elaborar seu próprio
relatório sobre violações de direitos Entre os objetivos da Comissão
Indígenas, sem-terra, famílias as- de 2012), do Grupo de Trabalho sobre
indígenas de 1946 a 1988 (SAUER; SA- Camponesa estavam: a) construir uma
sentadas, quilombolas, agricultores “violações de direitos humanos relacio-
RAIVA, 2015). Marcelo Zelic, do Grupo agenda de trabalho, tanto para propor
familiares, populações tradicionais, nadas à luta pela terra e contra popu-
Tortura Nunca Mais de São Paulo, ela- casos e estudos à Comissão Nacional
extrativistas, reunidos no Encontro lações indígenas, por motivações polí-
borou um documento de apoio à CNV da Verdade (CNV) como para mobili-
Nacional Unitário dos Trabalhadores, ticas” (CNV, 2015). O objetivo desse GT
intitulado “Povos Indígenas e Ditadura zar as organizações no resgate da me-
Trabalhadoras e Povos do Campo, das foi “identificar e tornar públicas estru-
Militar: subsídios à CNV” (TELÓ, 2019). mória camponesa; b) reunir trabalhos
Águas e das Florestas, em Brasília, 2012, turas, locais, instituições, circunstân-
e pesquisas em uma investigação pró-
comemoraram os 51 anos do Congres- cias e autorias de violação de direitos
Um aspecto comum no trabalho reali- pria (violações e casos emblemáticos,4
so Camponês de Belo Horizonte, ocor- humanos no campo brasileiro, entre
zado pela CCV e no da CIVJ foi o entendi- organização de documentos e pesqui-
rido em 1961, e reforçaram a unidade 1946 e 1988” (KEHL, 2014, p. 1).
mento alargado sobre o conceito de vio- sas etc.); c) elaborar um relatório dos
das organizações e movimentos sociais
lações de direitos humanos para além movimentos e entidades, resgatando
do campo em torno de lutas comuns
da definição adotada pela CNV (TELÓ, a memória camponesa, dando maior
pelo território, pela terra e por reforma Segundo a Lei nº 12.528, de 18
2019), como veremos em seguida. visibilidade aos sujeitos do campo, du-
agrária. Cerca de sete mil participan- de novembro de 2011, a CNV
ramente vitimados pelo Estado entre
tes, entre eles povos e comunidades do foi criada pela Presidência da A CCV foi formada por mais de 40
República com a “finalidade de
1946 e 1988 (SAUER et al., 2015).
Cerrado, mobilizaram-se contra a vio- professores/as – pesquisadores/as de
lência histórica (permanente e estru- examinar e esclarecer as graves
várias áreas do conhecimento de insti- A Comissão Camponesa realizou
tural) do direito ao território indígena violações de direitos humanos
tuições públicas de ensino superior de vários encontros nacionais e articulou
e à terra camponesa como espaços de praticadas no período fixado no
art. 8º do Ato das Disposições diferentes regiões do país –, lideranças equipes estaduais de pesquisa para
vida, de produção e de identidade. de movimentos sociais e entidades do reunir e sistematizar estudos e levanta-
Constitucionais Transitórias
[1946–1988], a fim de efetivar o campo e apoiadores/as. Entre 2012 e mentos e agregar contribuições para o
Entre os compromissos assumidos
direito à memória e à verdade 2015, buscou efetivar o direito à me- relatório da CNV (2015). Algumas per-
no Encontro Unitário encontra-se a dis-
histórica e promover a reconci- mória e à verdade e dar visibilidade guntas mobilizaram o debate: qual a
posição de buscar o direito à memória e
liação nacional” (Art. 1) (SARAI- (oficial) à necessidade de investigar as importância de (re)construir memórias
à verdade camponesas como mecanis-
VA; SAUER, 2014). violações praticadas no campo. A CCV de camponeses e camponesas que so-
mo de reparação pelas violações sofri-
Para mais detalhes sobre a CNV, teve como objetivo dar suporte e inci- freram violações de direitos? Há espe-
das nos períodos de repressão política.
ver o site http://www.cnv.gov.br. dir na Comissão Nacional, no sentido cificidades – e, se houver, quais seriam
Esse compromisso, assumido publi- de registrar (indicar ou sugerir investi- – de uma memória camponesa? Por
camente em 2012, levou a mobilização gações) situações de violências cometi- que é preciso contemplar a memória
dos movimentos camponeses a atuar O direito à memória e à verdade cam-
sobre os trabalhos da CNV – criada ponesas e indígenas ganhou, por parte
pela Lei nº 12.528, de 18 de novembro dos movimentos sociais, ações específi- 3. “Casos emblemáticos”: situações, eventos e episódios que exemplificam a violência, a violação de
de 2011. O trabalho articulado desses cas visando a incidir sobre os trabalhos direitos e as diversas formas de repressão no campo. Como episódios ou situações importantes (histori-
camente circunscritas ou um processo temporal mais longo) envolvendo pessoas, grupos de pessoas até
grupos resultou na criação, pela CNV da CNV, resultando desse movimento a comunidades inteiras, são exemplos (casos particulares, histórica e geograficamente delimitados) que, ao
(Resolução nº 5, de 05 de novembro criação da CCV. serem resgatados e recontados, podem ser universalizados, pois explicitam ações, violações e responsabi-
lidades do Estado (CCV, 2015).

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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra

camponesa como parte das discussões branças e construindo identidade social nismo na luta contra a ditadura como A CCV, ao trazer à discussão as es-
públicas sobre a Verdade? Qual trata- e cultural para que essas dores e perdas nos processos de reparação (VIANA, pecificidades da questão camponesa,
mento deve ser dado a essa memória não voltem a acontecer, não sejam es- 2014). Essa invisibilização serve como reconheceu a necessidade de conside-
(SARAIVA; SAUER, 2014)? quecidas e sejam parte da construção um mecanismo político de não reco- rar não apenas casos e ações em que
da memória coletiva (MENESES, 1984), nhecimento e, consequentemente, não agentes do Estado agiram como ator
Esses questionamentos direciona- incluindo nessa memória o protagonis- justiça (há poucos casos de reparação), direto. Esses seriam os casos ou situa-
ram o trabalho realizado pela CCV e as mo de movimentos sociais e entidades sendo fundamental o trabalho de (re) ções em que estiveram presentes agen-
discussões teórico-conceituais foram do campo. Segundo Meneses (1984, p. construção da memória da CCV (SA- tes públicos – funcionários públicos e
fundamentais para a compreensão da 33), essa memória coletiva dá suporte à RAIVA; SAUER, 2014) no âmbito da CNV instituições do Estado de qualquer ní-
(re)construção da memória camponesa construção de identidade, identidade de (SAUER et al., 2015). vel ou instância – e/ou “pessoas a seu
para além da perspectiva apontada pela grupos sociais, pois se constitui no “[...] serviço”. Mas de considerar também
CNV. Foram elas: a presentificação do mecanismo de retenção de informação, situações de omissão, conluio, acober-
passado; a ampliação da responsabili- conhecimento, experiência individual Levantamentos na Comissão de tamento ou mesmo a “privatização da
dade do Estado como sujeito de viola- ou social, constituindo-se em um eixo Anistia e na Comissão Especial ação do Estado” pelo latifúndio duran-
ções de direitos e a concepção de gra- de atribuições que articula, categoriza sobre Mortos e Desaparecidos te a ditadura civil-militar (SAUER et al.,
ves violações. os aspectos multiformes de realidade, Políticos revelaram um baixo 2015, p. 27; SARAIVA; SAUER, 2014).
dando-lhes lógica e inteligibilidade”. acesso de camponeses aos
A (re)construção da memória cam- direitos da Justiça de Transi- Welch e Sauer (2015) observam que,
ponesa foi entendida como fundamen- Nas discussões realizadas pela CCV, ção. Segundo Viana (2104, p. no campo pós-1964, o latifúndio agiu
tal para dar visibilidade pública às vio- foi reconhecido que há um processo 2), foram identificados “[...] 663 como braço privado do regime ditato-
lações cometidas contra camponeses. político e social de invisibilização no camponeses dentre os 14.481 rial, sustentado por um conjunto de
Para (re)construir a memória não so- que se refere tanto à luta e à resistên- atingidos classificados pelo políticas públicas, com especial desta-
mente como parte de um processo de cia camponesas (retirada ou esqueci- BNM [acervo do Brasil Nunca que para projetos privados de coloniza-
contar, relatar ou rememorizar o passa- Mais] nas categorias de denun- ção em áreas de fronteira agrícola, cré-
mento de protagonistas) quanto aos
ciados, indiciados, testemunhas
do, mas de (re)construção na busca por processos de reparação em curso no ditos subsidiados e incentivos fiscais e
e declarantes”, sendo que essa
reparação e justiça. Estado brasileiro (SAUER et al., 2015). apoio a empresas que violaram direitos
lista não compreende a tota-
Por isso, presentificar a memória cam- lidade de camponesas e cam-
etc. Isso era parte expressiva da alian-
A memória camponesa foi pensada ponesa diz respeito à reparação de de- ça entre militares e o latifúndio, cons-
poneses perseguidos e vítimas
numa perspectiva inspirada em Wal- sejos, anseios e intenções em relação de violências e violações (CCV, tituindo, portanto, uma ditadura ci-
ter Benjamin, em que o passado é (re) ao direito à terra e à dignidade huma- 2015; VIANA, 2014). vil-militar (SAUER et al., 2015; SAUER;
construído para que dores e perdas não na de homens e mulheres brutalmen- SARAIVA, 2015).
sejam silenciadas e esquecidas; a me- te “retirados” da história, como se não
mória é trazida como presentificação tivessem importância ou não devessem Os levantamentos da CCV procura-
do passado a ser reparado e para garan- existir; essa presentificação tem como Em relação à responsabilidade do ram considerar também investimentos
tir justiça aos camponeses silenciados. finalidade que a resistência e o protago- Estado como sujeito de violações de di- econômicos e políticos que levaram
Essa perspectiva significa concretizar e nismo histórico da população do cam- reitos, a Resolução nº 2, de 2012, da CNV à modernização – “mais dolorosa que
ampliar as possibilidades de que repa- po (sujeitos políticos), na luta contra a estabeleceu “examinar e esclarecer as conservadora” (WELCH; SAUER, 2015)
rações de violações aconteçam e o pas- ditadura civil-militar, não se percam na graves violações de direitos humanos – e os seus impactos, tais como o apro-
sado seja redimido (GAGNEBIN, 1993). história nacional. praticadas no período fixado no art. 8º fundamento do problema fundiário
do Ato das Disposições Constitucionais (concentração da propriedade da terra)
Presentificar memórias é tornar Uma das motivações para criar a Transitórias, por agentes públicos, pes- e o financiamento da destruição am-
presentes realidades de dores e perdas CCV foi a invisibilização dos campone- soas a seu serviço, com apoio ou no in- biental, especialmente na Amazônia e
vividas no passado, socializando lem- ses, tanto em relação ao seu protago- teresse do Estado” (Art. 1º) (CNV, 2015). no Cerrado (SAUER et al., 2015).

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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra

da como ameaças, perseguições, expul- os efeitos e as situações de conflitos


são da terra (despejos e deslocamentos permanecem até nossos dias (SAUER;
forçados), prisões arbitrárias e outras MASO, 2014).
ações contra pessoas e grupos no cam-
po (SAUER et al., 2015). Atendendo à agenda política com
camponeses e indígenas, a CNV ela-
Nas pesquisas, estudos, resgates e borou Relatórios (Textos Temáticos)
investigações, foi fundamental consi- sobre as violações de seus direitos hu-
derar casos e situações em que a viola- manos, contemplando discussões e
ção de direitos foi mais sutil e implicou contribuições advindas da CCV, mas
o exercício e uso de força disfarçada, sem aprofundar a perspectiva crítica e
como por exemplo internamentos com- ampliação de casos tal como foi discu-
pulsórios, ações de intimidação, priva- tido pela Comissão Camponesa (ver em
ções de ir e vir, entre outras violências. http://www.cnv.gov.br). Nesse sentido,
Crédito: Amanda Costa
As ações e responsabilidades do Estado as possibilidades de narrar, e portanto
atingiram a dignidade e a liberdade de (re)construir a memória visando a ou-
pessoas e grupos no meio rural (SAUER tro futuro, nos termos de Walter Benja-
et al., 2015), portanto essas violações min, ficaram bastante prejudicadas. A
Nos debates e definições sobre a res- pela posse, pelo acesso e pelo controle não podem ser esquecidas e/ou excluí- diferença do número de casos indica-
ponsabilidade do Estado, a Comissão da terra (SAUER; SARAIVA, 2015). Essas das da memória nacional apenas por- dos pela CNV para o de casos indicados
Camponesa entendeu ser fundamental políticas, associadas à omissão e ao des- que não são classificadas como “graves” pela CCV dá conta das diferenças de
considerar ainda os seguintes aspectos caso do Estado (como uma participação (SAUER; SARAIVA, 2015). abordagens e perspectivas em relação
(SAUER et al., 2015, p. 53-54): as políticas indireta), favoreceram também a impu- à memória camponesa e às reparações.
governamentais de incentivo à expan- nidade (realidade presente), inclusive Na construção da agenda de trabalho
são das fronteiras agrícolas (projetos de pela morosidade, omissão e conluio do junto à CNV, a CCV encontrou desafios Apesar da imensidade de material le-
colonização), e a privatização de terras Poder Judiciário (SAUER et al., 2015; SA- e limitações. Entre eles, como contem- vantado nas investigações e pesquisas,
públicas e recursos públicos (apropria- RAIVA; SAUER, 2014). plar no período investigado pela CNV os relatórios da CNV (2015) não fazem
ção ilegal de terras públicas)4 foram (1946 até 1988) a quantidade de graves jus à quantidade de casos e à gravidade
responsáveis pela violência (assassina- Outra questão que ocupou os debates violações contra povos e comunidades das violações no campo brasileiro. Esse
tos, tentativas de assassinatos, persegui- na CCV foi a concepção de graves viola- do campo praticadas pelo Estado e seus fato, associado justamente à quantida-
ções, ameaças, prisões arbitrárias etc.) ções. A Resolução da CNV estabeleceu agentes. O período de trabalho da CNV de de material coletado, exige a conti-
contra trabalhadores/as rurais e popula- algumas situações como graves viola- era exíguo (somente dois anos) e a CCV nuidade das investigações e reflexões,
ções do campo, e fazem parte das viola- ções: torturas, mortes/assassinatos, de- teve uma participação limitada de pes- mas exige particularmente passos con-
ções de direitos de populações locais ou saparecimentos forçados, ocultação de quisadores para se debruçar nos levan- cretos no sentido de reparação das vio-
que foram direcionadas para essas fron- cadáveres. A CCV, em suas discussões, tamentos dos casos emblemáticos. lações cometidas (SAUER et al., 2015).
teiras. São, portanto, responsabilidade considerou fundamental abrir o escopo
do Estado, inclusive a violência que en- previsto na Resolução nº 2, incluindo a Além disso, houve o entendimento Entendendo que o trabalho realiza-
volve – e continua envolvendo – a luta violência contra camponeses entendi- da necessidade de incorporar a exten- do pela CCV tinha uma dimensão políti-
são das violações pós-1988, entendidas ca e compromisso com os movimentos
como herança direta do modelo de de- sociais do campo e a sociedade como
senvolvimento agropecuário adotado um todo, a CCV elaborou seu próprio
4. Segundo a CCV (2015, p. 54), o atual regime cartorial é um tipo de violência, pois houve uma privatização da ditadura civil-militar (SAUER; SA- Relatório Final “Violações de direitos
do poder e da autoridade de decidir e registrar (portanto, legalizar) se uma terra é particular ou pública e
quem é o dono dela.
RAIVA, 2015), especialmente porque no campo – 1946 a 1988”, resultante de

86 87
Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra

discussão, mobilização e sistematiza-


ção de investigações realizadas ao lon-
Ação de despejo da Polícia Militar
go de dois anos para atender à agenda
de Minas Gerais contra as famí-
com a CNV. lias do Quilombo Campo Grande,
situado em Campo do Meio (MG).
As recomendações do relatório da
A operação, realizada durante a
CCV são mais de trinta (SAUER et al., pandemia, durou 56 horas e ficou
2015, p. 570-577), buscando enfatizar a para a história como a mais longa
necessidade de reconstruir para reco- do século XXI no Brasil.
nhecer (o protagonismo) e reparar as
injustiças. De acordo com a CCV (SAUER
et al., 2015, p. 573), é fundamental que:
Além dessas medidas, muitas outras
devem ser tomadas pelo Estado brasi-
o Estado brasileiro garanta o
leiro para promover políticas públicas
acesso a documentos e provas
que permitam comprovar as destinadas à preservação da memória
violações de direitos humanos camponesa, através de fomento a pes-
contra camponeses e campo- quisas e investigações voltadas à recu- Crédito: Agatha Azevedo

nesas, bem como envide todos peração, análise, registro e divulgação


os esforços para a abertura
dos arquivos dos órgãos de
(publicação) de documentos e acer-
vos. A (re)construção da memória e
Graves violações de direitos
repressão; da verdade sobre violações de direitos humanos de camponeses do Cerrado
humanos ocorridas no campo, e sua di-
vulgação – inclusive a inclusão de tais
e a Comissão Camponesa da Verdade
o Estado brasileiro promova a
alteração da Lei nº 9.140/95 de temáticas no currículo da educação
forma a permitir a imediata in- básica (SAUER et al., 2015, p. 273) – são
Como apontado anteriormente, a CCV
clusão de todos os camponeses imprescindíveis para que os casos rela- O registro dos casos pela CCV obe-
incorporou como metodologia casos em-
mortos e desaparecidos políti- tados (e os inúmeros casos não relata- deceu à divisão territorial por regiões.
blemáticos de graves violações de direitos
cos afetados pela repressão po- dos), tanto na CCV como na CNV, não se Para este texto, além de casos em lo-
humanos praticados contra camponeses
lítica entre 02 de setembro de repitam no Brasil. calidades onde predomina o Cerrado
e camponesas. Apesar das limitações de
1961 e 05 de outubro de 1988; – no Mato Grosso, no Mato Grosso do
Nesse sentido, a CCV, além da contri- tempo, dificuldades na mobilização de
pesquisadores e investigações, casos de Sul, em Goiás e no Distrito Federal –,
buição específica voltada para a CNV – e
o Estado brasileiro, através da violações a povos e comunidades do Cer- foram sistematizados casos de violação
não restrita ao período até 1988, pois a
Comissão de Anistia, assegure rado foram identificados e registrados a povos e comunidades em porções do
violência e as violações de direitos con-
agilidade e acesso aos direi- com a intenção de (re)construir memó- Cerrado no Piauí, em Minas Gerais, no
tinuaram pós-promulgação da Consti-
tos da Justiça de Transição, rias de camponeses e camponesas vio- Tocantins e na Bahia.5
garantindo anistia e indeniza- tuição –, propôs a criação de uma rede
de pesquisadores que vem articulando lentados por lutar pela terra e pelo terri-
ção aos camponeses vítimas
iniciativas individuais e de grupos exis- tório, por reforma agrária.
da repressão política entre
1946 e 1988, incluindo-os nos tentes nas diversas universidades brasi-
benefícios previstos na Lei nº leiras, nas diversas regiões, e de movi- 5. Os casos de camponeses sistematizados nesta parte podem apresentar registros de atuações em
regiões de transição do Cerrado para a Caatinga, ou outras áreas de transição. A CCV (2015) fez registro
10.559/2002. mentos sociais no sentido de fortalecer de violações relativas ao direito e acesso à terra, sem se preocupar diretamente com as especificidades
a memória camponesa. socioambientais onde essas lutas e resistências ocorreram. Portanto, a sistematização aqui apresentada
foi realizada pela autora para atender aos objetivos do texto.

88 89
Violações de direitos humanos de camponeses 1977
do Cerrado durante a Ditadura Civil Militar 1985
Tromba e Formoso (GO)
Casos emblemáticos apresentados pela CCV Cerrado Chapada Diamantina (BA)
Lideranças sindicais, lideranças comunitárias
região de transição Cerrado e Caatinga Outros casos
João José Rodrigues
e religiosos foram perseguidas e ocorreram 1966 (Juca Caburé), foi preso, Vários posseiros foram per-
em Goiás
muitas prisões e torturas de camponeses. torturado e morto; seguidos e lideranças como Nativo da Natividade
Santa Terezinha (MT) José Zacarias dos Santos Oliveira, presidente do
região de transição Cerrado e Amazônia Outras lideranças foram foi morto, por organizar e resis- Sindicato dos Trabalha-
vítimas de torturas e tir na luta pela terra; dores Rurais de Carmo
Foram registradas situações de persegui-
espancamentos: do Rio Verde, Goiás.
ção, prisões, ameaças, destruição de roças
Bartolomeu Gomes da Sila,
e casas de posseiros que viviam nas terras.
Carmina Castro Marnio,
As violências foram protagonizadas pela
Companhia de Desenvolvimento do Araguaia
Dirce Machado da Silva 1986
e tantas outros foram
(CODEARA) e ganhou contornos políticos, com Bico do Papagaio (TO)
vítimas de torturas,
o envolvimento dos órgãos militares da dita- região de transição Cerrado e Amazônia Jauru (MT)
1968 > 1972 dura e do Serviço Nacional e Informação (SNI),
espancamentos, e outras
atrocidades praticadas por
acusando trabalhadores e padres da região Foi assassinado Pe. Josimo O líder Chapeú de Couro,
Norte de agentes do Estado e seus
de “agitadores comunistas”. Moraes Tavares que coordenava 60 anos, foi executado,
Minas Gerais apoiadores civis. a Comissão Pastoral da Ter- de forma cruel e “exem-
Cerrado
1970 ra, regional Araguia-Tocantins. plar”; à sua morte soma-
Foi registrado casos de
perseguições de posseiros e Tromba e Formoso (GO) 1982 Josimo foi baleado pelas costas
por defender camponeses contra
ram-se outras mortes
de posseiros, caracte-
militantes da Ação Popular em Cerrado Jauru (MT) atos de expulsão de terras por rizando-se esse caso
Varzelândia e Montes Claros. Os Cassimiro Luiz Freitas, lavrador fazendeiros da região. como uma chacina.
Perseguições, prisões,
conflitos levaram à expulsão dos e sindicalista, foi morto. espancamentos, maus tratos,
trabalhadores da terra.
ofensas, incêndio de roças e
casas, despejos, sequestros e
assassinatos de posseiros e
suas famílias no município
de Jauru, pela Agropecuá-
1973 ria Mirassol. A violência e
atrocidades foram prati-
cadas por jagunços, fazen-
deiros, polícia militar e pela
1985 > 2020
polícia federal. No Brasil entre os anos
Tromba e de 1985 a 2020, ocorreram
Formoso (GO) 55 massacres no campo em
Santa Terezinha (MT) Cerrado 1984 onze estados brasileiros, além de
região de transição Cerrado e Amazônia milhares de assassinatos e outras
José Porfírio de Souza, OUTROS CASOS EM GOIÁS
Pe. Jentel depois de sequestrado, desaparecido político e seu filho, Durvalino violações de direitos humanos
Sebastião Rosa da Paz, presidente
preso e julgado, foi expulso do Brasil, Porfírio de Souza, com 17 anos, foi tortura- ocorridas em conflitos por terra.
do Sindicato dos Trabalhadores
pelo governo militar de Geisel; do e desapareceu no mesmo ano
Rurais de Uruaçu, Goiás.
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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra

Fonte: CEDOC-CPT
Os casos emblemáticos apresenta- em 1984 (SAUER et al., 2015, p. 133), e
dos pela CCV apontaram para o desejo de Nativo da Natividade Oliveira, presi-
de reparação às situações de violação, dente do Sindicato dos Trabalhadores
demarcando dessa forma o direito à Rurais de Carmo do Rio Verde, em 1985
memória e à verdade como parte do (SAUER et al., 2015, p. 128).
processo reparativo. A intenção foi que
a luta pela terra e as histórias de campo- Em Mato Grosso, foram registrados,
neses e lideranças como José Firmino e em 1982, perseguições, prisões, espan-
José Porfírio de Souza, que participaram camentos, maus tratos, ofensas, incên-
do movimento de Trombas e Formoso dio de roças e casas, despejos, seques-
(1949–1964), fossem presentificadas, tros e assassinatos de posseiros e suas
para não ser esquecidas, e reparadas. famílias no município de Jauru pela
Agropecuária Mirassol. A violência e
Esse movimento camponês envolveu as atrocidades foram praticadas por
vários posseiros em conflitos agrários jagunços, fazendeiros, polícia militar
com fazendeiros e grileiros na região e polícia federal (SAUER et al., 2015, p. Os trabalhadores rurais e
norte e nordeste de Goiás, resultando 137). O líder Chapéu de Couro, 60 anos, sindicalistas Nativo da Nativi-
dade Oliveira e Sebastião Rosa
num quadro de muita violência e re- foi executado em 1986 de forma cruel
da Paz foram assassinados em
pressão. Com a instalação da ditadura e “exemplar”; à sua morte somaram-se
Goiás em 1985 e 1984, respec-
civil-militar, os títulos de posse da terra outras mortes de posseiros, caracteri- tivamente, crime cujos autores
anteriormente concedidos aos traba- zando-se esse caso como um massacre. nunca foram punidos.
lhadores rurais foram revogados. Lide-
ranças foram perseguidas e ocorreram Em Santa Teresinha (MT), área de
muitas prisões e torturas de campone- transição Cerrado/Amazônia, também sinha. A situação de conflito foi identi- noticiar o caso (SAUER et al., 2015, p.
ses. Cassimiro Luiz Freitas, lavrador e foram registradas situações de perse- ficada pelos órgãos da repressão como 143-155).
sindicalista, foi morto em 1970; José guição, prisões, ameaças, destruição “levante comunista”. Pe. Jentel e mui-
Porfírio de Souza é desaparecido polí- de roças e casas de posseiros. Com a tos camponeses foram presos diversas Depois do caso da CODEARA e de
tico desde 1973; Durvalino Porfírio de instalação da Cia. de Desenvolvimen- vezes. O Padre permaneceu sendo vi- outros na região do Baixo Araguaia, pa-
Souza, filho de José Porfírio, foi tortu- to do Araguaia (CODEARA), em 1966, giado. A CODEARA, sob o comando de dres, professores e agentes da Prelazia
rado e desapareceu em 1973, com ape- os camponeses passaram a sofrer todo seus dirigentes, destruiu casas e roças de São Félix do Araguaia foram presos,
nas 17 anos; João José Rodrigues (Juca tipo de violência por parte dos direto- em nome do projeto de planejamen- interrogados e sofreram torturas por
Caburé) foi preso, torturado e morto res e gerentes da Cia., que não aceita- to agrário e urbano que representa- agentes do Estado. O bispo-prelado Pe-
em 1977; Bartolomeu Gomes da Silva, vam qualquer tipo de negociação. A va. Mulheres, jovens e crianças foram dro Casaldáliga chegou a ser ameaçado
Carmina Castro Marnio, Dirce Macha- situação ganhou contornos políticos, ameaçados e sofreram torturas. Muitos de morte e a prelazia, indicada como
do da Silva e tantos outros foram víti- envolvendo órgãos militares da ditadu- camponeses se mantiveram em resis- foco de subversão e guerrilha. Os casos
mas de torturas, espancamentos e ou- ra como o Serviço Nacional de Infor- tência na mata, sendo posteriormente da prelazia registram grupos econômi-
tras atrocidades praticadas por agentes mação (SNI) e acusando-se posseiros e presos e punidos. Pe. Jentel, depois de cos envolvidos nas violações, como o
do Estado e seus apoiadores civis. padres da Prelazia de São Félix do Ara- sequestrado, preso e julgado, foi expul- Frigorífico Bordon e a Agropasa Agro-
guaia de “agitadores comunistas”. Tal so do Brasil, em 1973, pelo governo do pecuária (SAUER et al., 2015, p. 155-165).
Outros casos em Goiás trazem à foi o caso do Padre François Jentel, que general-presidente Geisel. O caso da
memória os assassinatos de Sebastião lutou para a permanência dos cam- CODEARA teve repercussão nacional A ditadura civil-militar foi impla-
Rosa da Paz, presidente do Sindicato poneses na terra e dos moradores no e internacional, mas a imprensa bra- cável e promoveu perseguições, pri-
dos Trabalhadores Rurais de Uruaçu, pequeno distrito urbano de Santa Tere- sileira foi impedida pela ditadura de sões, torturas e mortes em terras do

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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra

Padre Josimo Tavares, da Em 1986, no Tocantins, em terras Todas essas situações têm a marca da
Comissão Pastoral da Terra de transição com a Amazônia, foi as- violência estrutural que atravessa a his-
(CPT) Araguaia-Tocantins, sassinado o Pe. Josimo Moraes Tava- tória do campo no Brasil (MITIDIERO
assassinado com dois tiros res, que coordenava os trabalhos da JR.; FELICIANO, 2018). Com a ditadura,
nas costas em 10 de maio de Comissão Pastoral da Terra na região essa violência se institucionalizou, seja
1986, pelo pistoleiro Geraldo do Araguaia-Tocantins. A defesa in- por meio do aparato repressivo de ór-
Rodrigues, em Imperatriz (MA).
transigente dos camponeses contra gãos e entidades mobilizados para essa
A partir de sua religiosidade,
a expulsão de suas terras por fazen- tarefa (BRASIL NUNCA MAIS, 2014), seja
dedicou a vida em defesa
deiros levou à morte do Pe. Josimo, por meio da atuação de latifundiários e
do povo excluído.
baleado pelas costas, ao subir as esca- empresários que estavam envolvidos na
das do escritório da CPT em Impera- maior parte dos casos, mas ficaram im-
Créditos: João Ripper
triz (MA), depois de já ter escapado de punes pelos atos criminosos praticados.
um atentado em que foi metralhado o Martins (1985) caracteriza a repressão
carro em que viajava. no campo a partir da ditadura como
parte da militarização da questão agrá-
Nem todos os casos de camponeses ria. Pessoas ligadas a órgãos e entidades
atingidos pela ditadura foram listados públicas que participaram de projetos
como casos emblemáticos. As dificul- governamentais também fomentaram
dades de mobilização de pesquisado- ações repressivas, violentas e autoritá-
res em todas as regiões brasileiras e rias e não foram punidas pelas atrocida-
o tempo curto dos trabalhos motiva- des cometidas contra os camponeses.
ram a limitação dos registros. Sabe-se
que as situações de graves violações A CCV (SAUER et al., 2015), ao tratar
de direitos humanos ocorreram em da memória camponesa, reconheceu
todo o Brasil. Muitos mortos e desa- que a memória é parte da construção
parecidos foram listados pela CCV. No da verdade e da justiça. Sem trazer à
registro realizado constam 1.196 cam- tona memórias daqueles que foram
poneses e camponesas e apoiadores duramente atingidos em períodos re-
Oeste Baiano e da Chapada Diamanti- No norte mineiro, em terras tipica-
mortos ou desaparecidos de 1961 a pressivos, a verdade, o acesso à justiça
na (Bahia). Nessa região de Cerrado e mente de Cerrado, a CCV registrou os
1988, entre eles muita gente do Cerra- e a reparação são limitados. Memória e
Caatinga6 vários posseiros foram per- casos de perseguições de posseiros e
do. Nem todos os casos identificados verdade são elementos fundamentais
seguidos e lideranças, mortas. Zaca- militantes da Ação Popular em Varze-
pela CCV foram contemplados pela para a reparação das graves violações
rias José dos Santos foi assassinado, lândia e Montes Claros entre os anos
Comissão Nacional da Verdade (CCV, ao direito humano de camponeses atin-
em 1985, por organizar e resistir na de 1968–1972, motivados por confli-
p. 122). A lista produzida pela CNV gidos pela ditadura civil-militar, mas
luta pela terra no município de Mar- tos por terra. Os conflitos levaram à
contemplou os casos de camponeses também uma condição para a supera-
cionílio Souza (CARNEIRO; CIOCCA- expulsão dos trabalhadores da terra
mortos e desaparecidos. A lista com- ção do passado ditatorial e o estabeleci-
RI, 2011). (SAUER et al., 2015, p. 401).
pleta dos camponeses e camponesas mento de um regime democrático ple-
identificados pela CCV consta no Ane- no (SARAIVA; SAUER, 2014).
6. No Nordeste, a fisionomia típica do Cerrado é encontrada especialmente no oeste da Bahia, uma con- xo I do Relatório da Comissão Campo-
tinuação dos Cerrados de Goiás, do Tocantins e do sul do Piauí. Porém, podem ser encontradas áreas dis- nesa da Verdade (SAUER et al., 2015). Ainda há muito a ser investigado – a
juntas em praticamente todos os estados nordestinos. Tais áreas apresentam características em comum
com o bioma de Cerrado, seja pela fisionomia, seja pela presença de algumas espécies típicas e de ampla Esses números demonstram como a ser presentificado –, reconhecido como
distribuição. Na Bahia, essas áreas podem ser encontradas associadas às encostas das serras da Chapada
repressão política no campo durante parte da história oficial do país e repa-
Diamantina, geralmente entre 800–1.000 m de altitude, nas proximidades das restingas do litoral norte e
nas áreas de contato com as Caatingas do sudoeste e oeste do estado (JUNCÁ et al., 2005). a ditadura foi desumana e violenta. rado (SAUER; SARAIVA, 2015), inclusi-

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Povos e comunidades do Cerrado: o direito à memória, à verdade e à terra

Crédito: Nilmar Lage

ve porque, “[...] embora os camponeses


tenham sido perseguidos, torturados, Em 2020, mais de duzentos
Crédito: Adélio Pinto Barbosa
ameaçados e mortos por motivos polí- pedidos de anistia foram inde-
ticos [...], a maior parte deles não teve feridos pela Comissão de Anis-
acesso aos direitos da Justiça de Transi- tia, órgão vinculado ao Ministé-
rio da Mulher, da Família e dos
ção” (SAUER et al., 2015, p. 570), refor-
Direitos Humanos, e anuladas
çando desse modo a necessidade de um
mais de 2.643 anistias anterior-
trabalho sistemático para a (re)constru-
mente concedidas. Não foi reali-
ção das memórias de luta e resistência zado detalhamento dos indefe-
dos camponeses. rimentos para identificar se há
casos de camponeses atingidos
Para piorar esse quadro, na atual con- por essas medidas do gover-
juntura, o governo Jair Bolsonaro tem to- no. A Comissão Especial Sobre
mado medidas no sentido de desmontar Mortos e Desaparecidos Polí-
políticas públicas de reparação às viola- ticos também foi atingida pela
ções de direitos humanos, promovendo edição do Decreto 9.759/2019, Crédito: Ingrid Barros
em outras medidas a revogação e/ou o que extinguiu conselhos e co-
Crédito: Thomas Bauer
indeferimento de atos anistiados, espe- missões, entre eles o Grupo de
cialmente daqueles relacionados às re- Trabalho Araguaia, responsável
parações indenizatórias, alegando que pela busca e identificação dos
procedimentos antes tomados tinham restos mortais da guerrilha do
base política e não técnica, gerando gas- Araguaia. Ver site https://www.
tos ao erário público. gov.br/mdh/pt-br.

As violações no campo pós-1988 e o


papel do Tribunal dos Povos em Defesa Crédito: Thomas Bauer

dos Territórios do Cerrado

Os casos apresentados anteriormen- permaneceram e ainda permanecem.


Comunidades em Mato Grosso do
te revelam a morbidez e a violência Entre os anos de 1985 e 2021, ocorre-
Sul, Bahia, Minas Gerais e Maranhão
praticadas pelos governos militares ram 57 massacres no campo em onze compõem os casos do Tribunal Per-
e apoiadores civis da ditadura. Infe- estados brasileiros, além de milhares manente dos Povos no Brasil (TPP),
lizmente, o quadro de violência e de de assassinatos e outras violações de di- uma Sessão Especial que irá julgar o
graves violações ao direito à liberdade reitos humanos ocorridas em conflitos crime de ecocídio contra o Cerrado e
camponesa de viver na terra não ces- por terra, registrados pela Comissão genocídio cultural de seus povos.
sou pós-ditadura. Os casos de graves Pastoral da Terra.
violações de direitos dos camponeses

96 97
Em terras de Cerrado no Matopi- (econômicos, sociais, culturais, políti-
ba, por exemplo, as ações de violência cos e jurídicos) a fim de retirar da vida
contra povos e comunidades estão asso- social a possibilidade de que as expe-
ciadas ao capital especulativo de terras riências autoritárias se mantenham.
com o agronegócio da soja, desmata-
mentos, compras de terra e produção A busca por reparação e justiça de
de commodities para atender grandes reparação de todos os casos de viola- Dona Raimunda,
empresas em áreas consideradas como ções (SAUER et al., 2015), de ontem e de liderança das quebradeiras
novas fronteiras produtivas.7 Essas hoje, é o maior desafio que enfrenta- de coco babaçu do Bico
mos. Para os povos e comunidades do do Papagaio (TO), falecida
ações contam com o apoio do Estado
campo e do Cerrado, a reforma agrária, em novembro de 2018, fala
brasileiro, penalizando camponeses tra-
demanda histórica dos movimentos sobre assassinato de Pe.
dicionais, quilombolas e indígenas que
sociais do campo, seria o mecanismo Josimo. Dona Raimunda foi
vivem e resistem nesses territórios de seguidora fiel do legado
Cerrado. A violência praticada é marca- reparativo de ordem política, econô-
de Josimo.
da por ameaças, derrubadas de cercas e mica e cultural com efeitos capazes de
Crédito: João Ripper
roças, desterritorializações, ameaças de minimizar e/ou acabar com (em longo
morte, intimidações, impedimento do prazo) o quadro de violência no cam-
acesso à água, pistolagem, ameaças de po. Além disso, as reparações jurídicas
e institucionais são imprescindíveis de direitos humanos conseguiram ser é uma compreensão fundamental a ser
grileiros, entre outras violações8, numa
para a construção de uma vida demo- sistematizados pela CCV. A (re)cons- internalizada, principalmente entre a
clara demonstração das fragilidades do
crática mais sólida, garantindo justiça trução de memórias camponesas pode juventude camponesa do Cerrado.
período dito democrático, ainda muito
para as ações violentas praticadas no presentificar, situar a relação entre pas-
marcado pela violência no campo. O Tribunal dos Povos, apesar de sua
passado e no presente. sado e presente nas situações de vio-
lência, ampliar a discussão política da autonomia do sistema de justiça esta-
O trabalho de (re)construção da
Os processos reparativos são parte violência no campo e registrar graves tal, tem papel determinante na busca
memória camponesa realizado pela
dos momentos de transição de perío- violações que estão associadas à degra- por justiça e reparação, promovendo
CCV e pela CNV se constituiu em uma
dos autoritários para a consolidação dação ambiental que atinge o território denúncias e ações políticas que causem
oportunidade histórica à memória e à
democrática. Nesse sentido, o Tribunal de Cerrado: supressão da vegetação na- impacto na cultura jurídica da impuni-
verdade. O trabalho realizado foi fun-
dos Povos em Defesa dos Territórios do tiva, erosão da biodiversidade, perda de dade e dando visibilidade internacional
damental para dar visibilidade às gra-
Cerrado tem um papel fundamental. bens hídricos etc. para as graves violações de direitos hu-
ves violações que marcaram vidas de
Primeiro, contribuindo com o direito manos que atingiram e atingem cam-
camponeses e camponesas durante a
à memória e à verdade de povos e co- Segundo, contribuindo para interna- poneses e camponesas do Cerrado.
ditadura civil-militar. Além da não re-
munidades do Cerrado, pois nem todos lizar a importância da memória campo-
petição dos fatos, as recomendações Por fim, o Tribunal dos Povos em
os fatos e situações de graves violações nesa nos movimentos e organizações
sinalizaram para processos reparativos Defesa dos Territórios do Cerrado, ao
do campo, como parte do seu empo-
deramento na luta pela terra. A busca assumir o compromisso com o fortale-
da justiça e da reparação tem sido ain- cimento dos modos de vida e produção
da pontual nas ações e reivindicações de camponeses e camponesas, assume
7. O Matopiba é a região considerada como a grande fronteira agrícola nacional da atualidade. Compreende atuais dos movimentos e entidades do também o importante papel de contri-
o bioma Cerrado dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, envolvendo 337 municípios, 73 milhões
de hectares (área) e 5,9 milhões de pessoas, entre elas povos e comunidades tradicionais, quilombolas, campo (SAUER; SARAIVA, 2015). O re- buir com a emancipação cultural e po-
indígenas e assentados rurais (GREENPEACE, 2018). conhecimento de que a luta pela terra é lítica desses povos e comunidades do
8. FREITAS, Bernadete Maria Coêlho; SARAIVA, Regina Coelly Fernandes; RIBEIRO, Sônia Maria; PEREIRA, Kelci histórica e que a violência e a repressão e no Cerrado, em seus territórios com
Anne; ROCHA, Francisco José Sousa (Relatores). Relatório preliminar Tribunal dos Povos: Territórios de Chupé
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100 101
Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins

Fugindo ao usual, sobretudo em um do fenômeno social da impunidade


contexto acadêmico repleto de certe- de mandantes e executores desses cri-
zas, objetividades e convicções, este mes, a partir de uma análise focada na
artigo propõe um narrar de incógnitas. etnografia documental e na teoria fun-
Não por vontade ou disposição de seus damentada em dados (CAPPI, 2017). A
autores e autoras, mas pelas próprias pesquisa nacional em andamento vem
condições em que ele se inscreve. investigando a singularidade de cada
conflito no campo que ensejou a ocor-
Esse caminho nebuloso decorre não rência de massacres, bem como a atua-
só do fato de aqui se cristalizar o resul- ção dos agentes do sistema de justiça
tado parcial de uma pesquisa ainda em criminal na identificação da autoria e
curso, mas também da materialização da materialidade de tais condutas, e as
de desafios inescondíveis da realização possíveis razões que concorrem para a
de pesquisas que, ante seus particula- produção do fenômeno social da impu-
res objetos – e objetivos políticos –, en- nidade de mandantes e executores des-
VIOLÊNCIA NO CAMPO E contram entraves e percalços dos mais
diversos para sua consecução.
ses crimes no campo.

IMPUNIDADE NO CONTEXTO Tais linhas, ademais, são parte de


A CPT entende por massacres os con-
flitos que resultam em três ou mais
DO CERRADO: DESAFIOS um projeto mais amplo, que envolve
não só as signatárias e os signatários
mortes de trabalhadores e trabalha-
doras rurais na mesma ocasião. Entre
POLÍTICO-METODOLÓGICOS deste texto, mas também uma equipe
nacional de quase cinquenta pessoas.
os 51 casos de massacres que estamos
analisando (pensando que há mas-
PARA INVESTIGAÇÃO DE Articulada pelo Instituto de Pesquisa,
Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS)
sacres que não foram identificados,
massacres não incorporados por não
MASSACRES NA REGIÃO DO em conjunto com a Comissão Pasto-
ral da Terra (CPT), o projeto tem por
se encaixarem na metodologia, iden-
tidades rurais e de povos e comunida-
MÉDIO ARAGUAIA, TOCANTINS objetivo geral analisar o contexto dos des tradicionais não acompanhadas
conflitos sociais que resultaram em pela CPT – i.e. povos indígenas), um foi
massacres no campo entre 1985 e 2019 identificado na região de Cerrado do
Carla Benitez Martins1 no Brasil, identificando as possíveis ra- Médio Araguaia, à época Goiás, atual
zões que concorrem para a produção Tocantins. Trata-se do conhecido Mas-
Carol Matias Brasileiro2
Débora Lima3 1. Professora Adjunta do Campus dos Malês/UNILAB, coordenadora do GT Gênero e Sexualidade do IPDMS e

Euzamara de Carvalho4
integrante da coordenação da pesquisa “Massacres no campo na Nova República: crime e impunidade”
2. Mestranda em Direito do Trabalho pelo PPGD - UFMG e esquisadora do IPDMS. Advogada.

Gustavo Seferian5 3. Doutora em Geografia pela UNICAMP e pesquisadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
4. Mestra em Direitos Humanos pelo PPGIDH/UFG, assessora da CPT e menbra da coordenação da pesquisa

Marcelle Stephanie Ferreira Conegundes6 massacres no Campo na Nova República-CPT/IPDMS e da Secretaria de Assuntos Acadêmicos da ABJD.
5. Professor na UFMG, diretor do ANDES-SN e membro da secretaria nacional do IPDMS

Nayara Gallieta Borges7 6. Graduanda em Ciências do Estado pela UFMG.


7. Professora assistente do curso de Graduação em Relações Internacionais da UFT.
Sara Macêdo de Paula8 8. Mestra em Direito Agrário pelo PPGDA/UFG, assessora jurídica popular, membra do Coletivo Ciganagens e
ativista calón.
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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins

sacre de Colmeia, acontecido em 1986, acadêmicos e de organizações políticas


um entre tantos casos sobre os quais a do campo referentes ao crime. Definição de massacre e sua ocorrência
subequipe da pesquisa que assina este
texto se debruçou. Além desta introdução, o texto com- no período da Nova República
preende três partes mais as considera-
Ocorre que, no curso das investiga- ções finais. A primeira define a cate-
O Massacre de Colmeia é um dos 51 nais, assalariados rurais, indíge-
ções, uma série de fatos – que ainda não goria massacre, contextualizando-a no
massacres, que no total vitimaram 283 nas, pescadores e pescadoras
se sabe por completo serem conexos ao período da Nova República. A segunda
pessoas, registrados pela Comissão Pas- artesanais que vivem em espa-
caso já documentado pela CPT – des- parte faz uma exposição histórica dos
toral da Terra no período da Nova Repú- ços rurais e têm no uso da terra e
pontou, sinalizando outras profundas conflitos agrários na região da Fazenda da água seu sistema de sobrevi-
blica, ocorridos entre 1985 e 2019 – pe-
situações de violência e assassinatos Vale do Juari, no Médio Araguaia, atual vência e dignidade humana (CPT,
ríodo definido no recorte da pesquisa
na região. Esses fatos também serão Tocantins, onde se deu o Massacre de 2021, p. 11).
que enseja este texto. De acordo com a
indicados neste primeiro desenho, tra- Colmeia. Apontaremos outros fatos le-
metodologia de registro de conflitos do
çando possíveis paralelos de situações vantados pela pesquisa que revelam
CEDOC-CPT, consideram-se massacres Ou seja, são vítimas desses conflitos
a serem posteriormente desenvolvidos a natureza e a magnitude do conflito
“os casos nos quais um número igual ou parcelas sociais oprimidas, que variam
na pesquisa. agrário na região, e podem estar co-
superior a três pessoas são mortas na de acordo com a dinâmica cultural e fun-
nectados ao Massacre de Colmeia. A
Para além da revisão bibliográfica, mesma data e em uma mesma localida- diária local. Segundo o antropólogo Al-
terceira parte aponta desafios para a
o trabalho assume por metodologia a de, portanto, numa mesma ocorrência fredo Wagner Berno de Almeida (1997),
continuidade da pesquisa: a não res-
análise dos dados qualitativos produzi- de conflitos pela terra” (CANUTO; SIL- na incorporação das terras do Cerrado e
ponsabilização dos agentes públicos e
dos pelo Centro de Documentação Dom VA LUZ; ANDRADE, 2016). da Amazônia e sua conversão em mer-
privados que promovem a violência no
Tomás Balduíno (CEDOC-CPT) e de- Cerrado, a invisibilização das vítimas, a cadoria pela produção agroindustrial de
Por conflito no campo a CPT entende carnes, grãos e minério, a violência con-
mais levantamentos disponibilizados inoperância protetiva do Estado na sal-
pela CPT aos pesquisadores e pesquisa- vaguarda de direitos sociais e a intensi- ações de resistência e enfren- tra camponeses e indígenas é a forma
doras do IPDMS, e de outros materiais dade da violência de classe. tamento que acontecem em privilegiada de controle e coerção utili-
diferentes contextos sociais no zada pelas estruturas de poder.
âmbito rural, envolvendo a luta
pela terra, água, direitos e pelos Nesse contexto, o uso da força e
meios de trabalho ou produção. do constrangimento é sancionado
Esses conflitos acontecem entre pelo poder estatal, de maneira mais
classes sociais, entre os traba- ou menos implícita, seja pela própria
lhadores ou por causa da ausên- participação policial nos massacres,
cia ou má gestão de políticas seja pela permanente impunidade, ou
públicas (CPT, 2021, p. 12). até mesmo pela ausência de políticas
públicas que evitem os conflitos e
protejam as vítimas. Chacinas no cam-
Os perfis e os significantes sociais das
po ou massacres – como preferimos
vítimas catalogados pela CPT perpassam
nos referir a esses casos em adesão à
o que se convencionou nomear classificação da CPT – são um “rito de
de trabalhadores e trabalhado- passagem para o genocídio”, pois têm o
ras da terra, termo que engloba sentido de extermínio de determinados
diversas categorias camponesas, modos de vida e etnias durante a conti-
entre elas comunidades tradicio- nuidade do processo de colonização do
Fonte: CEDOC-CPT

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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins

território brasileiro (ALMEIDA, 1997). razão pela qual eram necessárias medi-
diferentes formas de personificação do ponesa ou tradicional um movimento
das mais duras do poder público para
No período da Nova República no capital (madeireiro, pecuário, agrícola, articulado com os próprios agentes do
sua contenção.
Brasil, percebemos uma também minerário etc.). Estado, entre eles os do sistema de jus-
“nova” movimentação territorial em No período que abrange a realização tiça criminal?
A concentração da maior parte dos
torno de ocupações de terra. O movi- desta pesquisa, os graus de violência
casos de massacres no campo nas re- Para responder a essa questão cru-
mento social que se dinamiza no pe- dos conflitos são variáveis conforme
giões de “fronteira” leva à impressão cial, a pesquisa nacional em andamen-
ríodo ditatorial, desde os fins dos anos as regiões. Entre 1985 e 2014, 40% dos
de que tais territórios representariam to vem investigando a singularidade de
1970, e que adentra a década subse- assassinatos no campo no Brasil ocor-
uma espécie de “terra sem lei” e que, cada conflito no campo que ensejou a
quente reacende, mais uma vez, a ques- reram na região Norte do país e 25%,
portanto, o fenômeno da impunidade ocorrência de massacres, bem como a
tão agrária e a urgência de uma refor- na região Nordeste. Os modos como
decorreria do fato de o sistema de jus- atuação dos agentes do sistema de justi-
ma agrária no país (MARTINS, 1984). esses crimes são perpetuados também
tiça criminal não estar devidamente es- ça criminal na identificação da autoria
Não se tratava de um debate novo, pois são distintos conforme cada região, vis-
truturado nesses locais. Mas seria essa e da materialidade de tais condutas. É o
os setores camponeses traziam essa ne- to que, de 51 massacres ocorridos en-
interpretação correta? Ou seria esse que pretendemos aqui iniciar tratando
cessidade de décadas anteriores ao pe- tre 1985–2019, somente dois ocorreram
processo de expansão do capital sobre do Massacre de Colmeia.
ríodo ditatorial militar. Mas, na região Nordeste, enquanto 39 ocor-
terras e territórios de ocupação cam-
reram na região Norte (sobretudo nos
Organizados como classe, gran- estados do Pará e de Rondônia) (CPT,
des proprietários de terra e
2020). Essas informações são significa-
empresários rurais, em especial
tivas para as reflexões que se pretende
das regiões modernizadas do Sul
e do Sudeste, reagiram contra
produzir no projeto de pesquisa na- Contextualização histórica dos
cional em andamento, visto que, além
qualquer tentativa de democra-
tização da propriedade da terra, da violência física, há uma evidente conflitos agrários no Médio Araguaia:
fazendo ruir as possíveis alterna- violência simbólica perpetuada pelos Fazenda Juarina e Fazenda Vale do Juari
tivas abertas com a transição e massacres no campo, pois a partir de-
a mobilização dos trabalhadores les se veicula entre seus destinatários
rurais por uma reforma agrária uma verdadeira “pedagogia do terror”. Como ressaltado, neste artigo bus- do em conta o Cerrado adjacente, nas
(BRUNO, 2003). caremos compreender os conflitos zonas de transição para a Floresta Ama-
Dos 51 massacres no campo registra- agrários e as violências deles derivadas zônica, uma região especialmente assi-
dos pela CPT de 1985 a 2019, 29 ocor- – particularmente as circunstâncias de milada como “terra de oportunidades”.
Com auxílio dos instrumentos da reram no estado do Pará e sete ocorre- massacre – na região noroeste do esta- O asfalto, que representava essa mu-
mídia e imprensa, esses setores que ram no estado de Rondônia (CPT, 2020). do do Tocantins, conhecida como região dança paulatina, também acompanha-
representam os interesses da tradição Apenas esse dado nos mostra a especi- do Médio Araguaia, no limito com o sul va esse movimento (PEREIRA, 2013),
do monopólio da terra a qualquer custo ficidade regional que marca o tema dos do Pará. Dentro dessa região, observa- como veremos adiante.
assumem vias não pacíficas para a ma- massacres no campo na Nova Repúbli- remos com mais detalhamento o cha-
nutenção da estrutura agrária no país ca, ocorridos em regiões que José de mado Vale do Juari. O Médio Araguaia Já tratando do caso específico que
(BRUNO, 2003). Os massacres no con- Souza Martins (1997) identificou como não é exceção ao contexto de “fronteira” aqui destacamos, podemos dizer que
texto da Nova República representam a “frentes pioneiras” ou como “frentes relatado. Sendo paulatinamente ocupa- o Vale do Juari é mais do que um local
construção de um consenso da violên- de expansão”. Ambas estão dialetica- do por pessoas advindas do Nordeste, específico; é uma região. A Fazenda
cia no campo. Para as classes proprie- mente ligadas e constituem o cenário Centro-Oeste e Sul do Brasil (PEREIRA, Juarina tinha tem “30.200 hectares às
tárias, a movimentação pela democra- da “fronteira”, região de contato entre 2013), partilha traços estruturais com margens dos rios Araguaia e Juari, nos
tização da terra tinha como objetivo a formas camponesas e tradicionais de outros contextos em que massacres se municípios de Colmeia e Couto Maga-
desestabilização da Nova República, ocupação da terra ou do território e as deram de forma intensa, sobretudo ten- lhães” (LIMA, SOUZA, 2020, p. 82), lo-

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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins

cal de muitos dos conflitos existentes são da fazenda pecuarista em grandes


– fez parte do Vale do Juari, tornou-se latifúndios e o forjar de propriedades Mesmo após despe-
uma agrovila com 660 famílias e hoje é de terra via processos típicos de grila- jos de famílias e
um município de Juarina. E a Fazenda gem, acompanhados de expropriações assassinatos, o
Vale do Juari também compõe a região massivas dos posseiros que nessas ter- fazendeiro Luís
Espíndola seguia
e ficava, à época dos conflitos, entre os ras reproduziam suas existências fami-
ameaçando traba-
municípios Couto Magalhães e Pequi- liares e comunitárias.
lhadores(as).
zeiro, hoje Colmeia e Bernardo Sayão
respectivamente. Tais processos de expropriação não
se davam de outro modo que não pela
Essa distinção entre as duas fazendas violência, direta ou indireta, oficial/
é importante, pois parte significativa estatal ou privatizada – quase sempre
deste artigo versa sobre o cruzamento combinada.
entre possíveis situações semelhantes
de massacre em cada uma delas. Por Os conflitos resultantes dessa trans-
isso contextualizamos, em seguida, os formação concentraram-se entre os
conflitos na região do Vale do Juari e anos 1983–1989 e resultaram na con-
trazemos elementos específicos das vio- quista de três assentamentos rurais
Fonte: CEDOC-CPT
lências nas duas fazendas em questão. – Juarina, Juari e Nossa Senhora Apa-
recida. O Assentamento Juarina foi o
A ocupação da região, segundo do- primeiro, em 1986, com a segunda par- diferentes estratégias-táticas
Meinberg, proprietário da Agroindus-
cumentos históricos, data da década de te da fazenda desapropriada em 1988. de guerrilha, organização política
criando associação para repre- trial Meinberg SA (Agrimsa), fazendei-
1930, quando começou a receber os pri-
Este assentamento foi conse- sentá-los, mobilização dos meios ro de Barretos-SP (LIMA, 2015, p. 126).
meiros camponeses-garimpeiros-pos-
quência da luta pela reapropria- de comunicação e de políticos
seiros, oriundos do Nordeste do país, Os conflitos eram violentos e foram
ção de terras, ocorrida entre os para sensibilizá-los para sua
atraídos pela mineração de cristal e pe- recrudescidos depois do assassinato
anos de 1983–1988, por um gru- causa. Conviveram com a negli-
las terras férteis na busca de autonomia de um posseiro de nome Simão, cuja
po de 45 camponeses, ex-pos- gência e leniência das estruturas
e liberdade de produção (SOUZA, 2017). seiros que residiam no Munícipio causa da morte não é certa, pois havia
jurídicas, do Estado a favor dos
Essas migrações intensificaram-se na de Conceição do Araguaia e que desconfiança de que poderia ter sido
fazendeiros e com a violência
década de 1950 (CPT, 2017) e depois em tinham sido expulsos por grilei- dos pistoleiros, mas enfrentaram encomendado pelo fazendeiro. As con-
1960, com a abertura da Rodovia Belém- ros no final dos anos sessenta. essas adversidades para retomar dições de resistência eram desiguais:
-Brasília (BR-153) (LIMA, 2015, p. 13). a terra que era sua por direito,
No início dos anos oitenta, os
criando o maior assentamento A violência e ameaças do lati-
Com a abertura da BR-153, que co- camponeses se organizaram e
rural nessa região (SOUZA, 2016, fúndio, munidos de pistoleiros e
reocupam as terras – na época,
necta o Sul-Sudeste ao Norte, a região p. 18-19). repressão policial, os despachos
Fazenda Juarina –, apoiados pela
sofreu intensa transformação, pois lá dos juízes ratificando os docu-
Comissão Pastoral da Terra-CPT
se promoveu uma expansão de inte- mentos falsos dos latifundiários,
Araguaia-Tocantins, assessora-
resses de diferentes setores do capital, Na região conhecida por Fazenda os departamentos estatais como
dos pelo Padre Ricardo Resende
patrocinados pelo Estado, especial- Juarina, aproximadamente 82 famílias GETAT - Grupo Executivo de Ter-
e Aninha, agente pastoral, que
mente no período da Ditadura Empre- que a ocupavam desde o início do sécu- ras do Araguaia Tocantins, criado
deu apoio na criação e organiza-
sarial-Militar e da propaganda intensa lo XX foram expulsas de forma violen- para regularizar a questão agrá-
ção da associação de campone-
ta pela atuação de pistoleiros, com um ria em conflito na região. (LIMA;
pela ocupação do “Novo Eldorado” na ses na luta pela terra. Por cinco
assassinato após a chegada de Carlito SOUZA, 2020, p. 84).
Amazônia. Disso decorreram a expan- anos, camponeses engendraram

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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins

Apesar disso, as lutas dos posseiros da 75 km da fazenda, espaço social foi responsável por muitos as- presa e estranhamento, pois ainda não
região foram múltiplas e ousadas, e re- em que ambos os agentes con- sassinatos na fazenda Juarina, teriam sido catalogadas como um caso
sultaram na desapropriação da fazenda. viviam, aumentando a tensão em inclusive de uma família que ele de massacre nesses exatos termos, po-
torno da terra. A disputa em tor- executou, com outro pistoleiro, rém o caso se aproximava muito do
Para forçar o GETAT a se posicio- no da terra durou quatro anos, Domingão, quando ela ia colher massacre conhecido como Massacre
nar sobre o conflito, os trabalha- neste tempo, tiveram três des- roça de arroz. O primeiro atirou de Colmeia, ocorrido no mesmo ano e
dores ocuparam a sede do órgão pejos, prisões de camponeses, no posseiro; a mulher, ao ver o
com a mesma caracterização das víti-
na cidade de Marabá no Estado conflito armado, com mortes de marido assassinado, reagiu, mas
mas na Fazenda Vale do Juari, sob man-
do Pará, também a sede do Ins- ambos os lados, tanto de pisto- foi alvejada pelo segundo, que
tituto Nacional de Colonização e
do do fazendeiro Luiz Espíndola, como
leiro quanto de camponeses. A executou também as crianças,
Reforma Agrária-INCRA, acampa- fazenda Juari foi desapropriada cujos restos mortais foram en- contextualizado em seguida.
ram ainda em frente aos órgãos em 1988, assentando 84 famílias contrados enterrados com uma
Os conflitos agrários na Fazenda Vale
do governo em várias cidades na em uma área de 4.800 hectares boneca nas dependências da
região, inclusive ocupando a Es- do Juari remontam à década de 1950,
(SOUZA, 2016, p. 19). sede da fazenda (FIG. 14). A roça
planada dos Ministérios, fazendo da família foi colhida pelos pisto- quando da ocupação de terras devolutas
uma greve de fome que resultou leiros e levada (LIMA, 2014, p. 151). da União por lavradores e posseiros, e se
na desapropriação de uma parte Em sua dissertação de mestrado, Eo- intensificam nos anos 1970. A presença
da fazenda Juarina (LIMA; SOUZA, nilson Lima desenvolveu uma pesquisa de oligarquias e ações organizadas de
2020, p. 84-85). qualitativa com pessoas moradoras e Tais informações são reforçadas por pistolagem pode indicar a reação des-
lutadoras de Juarina, utilizando arqui- uma notícia do Jornal do Tocantins, de ses grupos ao processo de término da
vos da Comissão Pastoral da Terra. Ele 21 a 24 de maio de 1993, sobre a des- Ditadura Empresarial-Militar e início da
Em decorrência da repercussão coberta da existência de um cemitério
constata que a violência dos pistoleiros abertura do processo democrático, jun-
em Brasília da greve de fome, o presi- clandestino na região. A reportagem,
de Carlito Meinberg era constante e di- tamente com a atuação contundente de
dente da República à época, José Sar- confirmada por notícia no jornal Folha
minuiu com a morte, em 16 de setem- movimentos sociais, em todo o Brasil,
ney, determinou a desapropriação de de São Paulo de 18 de maio de 1993 –
bro de 1984, do pistoleiro conhecido nesse novo momento político.
11.672,24 hectares da fazenda, menos ambas anexadas à dissertação citada –,
como Zé Lindomar, “um dos mais te-
de 50% da sua área, uma parte que não descreve que o promotor de justiça de Segundo informações do CEDOC/
midos da região” (LIMA, 2015, p. 150).
permitia acesso a quaisquer das cida- Colinas (TO) localizou em Juarina, en- CPT, o conflito nessa região se ini-
As razões de sua morte são duvidosas,
des da região, o que significou a perma- tre os dias 13 e 14 de maio, duas valas ciou em meados de 1971, quando um
passando por versões referentes a vin-
nência da luta até que a desapropriação a 50 metros da prefeitura municipal, empresário goianiense chamado José
gança, tocaia ou algum “erro de cálcu-
atendesse às reais necessidades das e na antiga sede da fazenda de Carlito Fleury Curado se afirmou proprietário
lo” do pistoleiro em uma de suas ações
dos trabalhadores. Meinberg, onde estavam enterradas, da região, e se estendeu até 1988, quan-
homicidas.
ilegalmente, duas crianças. O promo- do finalmente a Fazenda Vale do Juari
Conforme Adelma Souza desenvolve,
Na descrição do papel de Zé Lindo- tor atendeu a denúncias de moradores foi transferida para a União para fins
as lutas na Fazenda Juarina tornaram-
mar nas violências na região, Eonilson da região ao Conselho Nacional de De- de reforma agrária, ainda que a indeni-
-se exemplo na região, servindo como
Lima revela elementos de um massa- fesa dos Direitos Humanos (CNDH) e a zação tenha sido três vezes superior ao
motivação para outras lutas, como as
cre envolvendo dois adultos e crianças, hipótese levantada era de que as ossa- preço de mercado da fazenda. Mesmo
que desencadearam a ocupação da Fa-
conforme passagem abaixo: das das crianças poderiam estar rela- com inúmeras denúncias da Comissão
zenda Juari em seguida.
cionadas ao massacre da família acima Pastoral da Terra e dos movimentos so-
A morte de Zé Lindomar repre-
A ocupação da Fazenda Juari descrito, executado por Zé Lindomar e ciais sobre a violência ocorrida na re-
sentou um sossego para a co-
teve uma grande repercussão na Domingão em 1986. gião e as disputas judiciais, o processo
munidade segundo os trabalha-
região, uma vez que o fazendeiro de desapropriação da área para fins de
dores entrevistados. Temido na Tais informações soaram com sur-
morava na cidade de Colinas a região pelo sadismo, o pistoleiro reforma agrária só se iniciou em 1986.

110 111
Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins

Em 1979, o sr. Fleury vendeu a área tadura Empresarial-Militar, envolvidas à ação dos posseiros, o que foi denun- bro de 1986, entendendo que, em razão
da Fazenda Vale do Juari a Luiz Espín- em situações de tortura, assassinatos ciado por Dom Ivo Lorscheider, então de já haver um processo de desapro-
dola Cardoso, que teria em tese conse- e desaparecimentos naquele período, presidente da Conferência Nacional dos priação da área, a discussão do despejo
guido títulos de propriedade do INCRA. e continuou sendo pivô de violações de Bispos do Brasil (CNBB), ao presidente caberia à Justiça Federal.
Em 1985, o sr. Cardoso ingressou com Direitos Humanos após a redemocrati- José Sarney. Posteriormente, a Polícia
uma ação de reintegração de posse na zação, o que perdura até os dias atuais. Militar negaria que Iracílio Cícero Batis- Entre fevereiro e março de 1987,
comarca de Guaraí contra dezoito pes- ta de Farias fazia parte de seus quadros. o cumprimento da ordem judicial foi
soas, conseguindo, com uma medida Os jornalistas (BARROS; BARCELOS, executado por um oficial de justiça,
liminar alcançada rapidamente, o des- 2017) narram que Irineu da Silva Mattos, À época, a morte de Iracílio foi acompanhado de aproximadamente 50
tenente-coronel do Exército e ex-secretá- atribuída aos posseiros, mas policiais militares, que despejaram cer-
pejo de 86 famílias com emprego de
rio de segurança pública de Goiás (1975– um documento do SNI [Serviço ca de 86 famílias, segundo os relatos.
violência, queima das casas e espanca-
1979) e um dos fundadores do Movimen- Nacional de Informações] diz que Os posseiros perderam sua produção
mentos. Na execução da medida limi-
to de Defesa do Direito de Propriedade, ele morreu após uma discussão agrícola e os soldados da Polícia Militar
nar, estiveram presentes o sr. Cardoso, com outro ex-policial contratado
policiais militares e pistoleiros. No re- que posteriormente se tornaria a União ocuparam a sede da fazenda vizinha, a
para prestar serviços à Solução.
gistro do processo consta a retirada de Democrática Ruralista (UDR), tornou-se Fazenda Caramuru, a fim de impedir
A morte ocorrera antes mesmo
apenas cinquenta famílias. sócio majoritário da empresa. que os posseiros voltassem. Em junho
do despejo, para o qual ambos
haviam sido contratados pelo do mesmo ano, duas pessoas foram
No ano seguinte, deu-se início ao A Solução oferecia treinamento para sequestradas e mantidas em cárcere
tenente-coronel reformado José
processo de desapropriação da Fazen- os “funcionários” das fazendas, mas, privado na fazenda, com a presença de
Fernandes Mourão, segundo um
da Vale do Juari e outro despejo ocor- segundo as investigações dos jornalis- cerca de 40 policiais militares. Em julho
informe do SNI. Os documentos
reu no dia 7 de março de 1986, ainda tas, seus quadros eram compostos basi- mostram que, além de chefe de de 1987, segundo relatos dos posseiros,
mais violento, agora contra 36 famílias, camente por ex-policiais militares goia- segurança nas mineradoras lo- os filhos de Luiz Espíndola e pistoleiros
com torturas, incêndio de 86 casas e a nos, alguns expulsos da corporação. cais, Mourão era o grande alicia- jogaram cinco bombas e atiraram nos
morte de uma família, incluindo uma Um dos principais conflitos históricos dor de policiais para os quadros posseiros por várias horas.
criança – por nós chamado, a partir dos envolvendo a empresa foi justamente o da Solução. A versão do SNI foi
arquivos da CPT, de Massacre de Col- resultante no Massacre de Colmeia. confirmada pela ex-companheira Ainda em julho de 1987, duas pes-
meia. Porém, dessa vez não há registro de Iracílio, Marineide de Abreu soas foram assassinadas na Fazenda
Voltando à descrição do conflito, os Passos, e por outras testemu- Vale do Juari: Vilmone Campos da Silva
nos documentos da pesquisa de que o
corpos das vítimas foram deixados na nhas. A Solução sempre negou e seu irmão, Ione Valadares Campos da
despejo tenha ocorrido por força de de-
estrada. As informações sobre os mor- que contratasse policiais para Silva. O irmão dos mortos, Cícero, enca-
cisão judicial. Os pistoleiros presentes
tos foram denunciadas à CPT de Guru- seus quadros. Em outro docu- minhou denúncia ao promotor de justi-
no despejo, segundo os documentos mento, a empresa admitiu ter
pi por uma passageira de ônibus em 21 ça, ao procurador-geral de justiça e ao
do CEDOC/CPT, eram também funcio- adquirido armas irregularmente
de março de 1986. Não há registro dos secretário de segurança pública, além
nários da empresa denominada A So- (BARROS; BARCELOS, 2017).
nomes dos ocupantes da fazenda mor- de o Frei Henrique Des Roziers, da CPT,
lução – Empreendimentos e Serviços
tos. A CPT fez denúncias às autoridades também realizar denúncia ao delegado.
em Imóveis Ltda., fundada em 1983 na
continuamente sobre as violências co- Durante todo o período do proces- Em dezembro do mesmo ano, foi expe-
cidade de Goiânia.
metidas aos posseiros. so de desapropriação da área, outras dida ordem de prisão preventiva ao sr.
Segundo reportagem de Ciro Barros violências contra os posseiros conti- Luiz Espíndola.
Durante o despejo violento, um su-
e Iuri Barcelos (2017), da agência de nuaram a ocorrer a partir de uma nova
posto ex-soldado da Polícia Militar, que Muitas das informações apresenta-
jornalismo investigativo Pública, a em- ordem de cumprimento da decisão li-
prestava serviço para a empresa de se- das acima foram extraídas dos registros
presa de segurança privada A Solução é minar de 1985 para despejo dos possei-
gurança privada A Solução, foi morto e do CEDOC/CPT.
uma daquelas criadas como negócio pe- ros, ainda que o próprio juiz já tivesse
essa morte foi atribuída levianamente
los agentes de segurança durante a Di- se declarado incompetente em novem-
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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins

e o sistema de justiça criminal. Descor- tas dessas instituições. É, sim, uma ca-
tina-se nessas investigações, apoiadas racterística inerente a esse sistema, que
em tantas outras, o quanto a relação leva à endêmica não responsabilização
entre latifúndio e sistema de justiça pelas práticas de violência no campo.
não é meramente conjuntural, mas
constitui um fenômeno estrutural na Para perceber essa imbricada rela-
História do Brasil. ção e buscar responder à pergunta de
pesquisa quanto às razões da impunida-
Segundo dados da CPT, das 1.938 de, como já ressaltado, adotamos a pes-
pessoas executadas em conflitos por quisa empírica, de caráter qualitativo,
terra, água e trabalho no Brasil entre que tem como fonte primária de estudo
1985 e 2018, em 1.790 casos (92%) não a base de dados do CEDOC/CPT, além
houve qualquer responsável julgado ou de documentos extraídos de órgãos do
preso (CPT, 2020, p. 209). No caso dos sistema de justiça criminal a partir da
massacres no campo, por serem cri- atuação direta de seus agentes, incluin-
Viómenes Campos mes que atraem maior atenção da opi- do advogados/as, e/ou de organizações
da Silva, 28 anos, foi
nião pública, os índices de impunidade parceiras. Também são considerados
morto por pistolei-
são relativamente menores, mas, dos os relatos e reportagens produzidos
ro e Luís Spíndola
poucos casos que ensejaram prisões pela imprensa local e nacional sobre
enquanto comemo-
e condenações criminais, raros foram conflitos e violência no campo desde a
rava reintegração de
posse das terras do aqueles que implicaram executores e década de 1960, com especial ênfase ao
Vale do Juari. seus mandantes. período analisado.
Fonte: CEDOC-CPT
Uma das possíveis chaves interpreta- Desde esta contextualização do mas-
tivas que vêm sendo avaliadas ao longo sacre – ou dos massacres – no Médio
da pesquisa nacional remete à ideia de Araguaia, a sensação é de estarmos es-
que a impunidade nos crimes de mas- cavando a história em busca de míni-
sacres não é mero produto da precarie- mas pistas sobre os conflitos na região,
Desafios à pesquisa ante o turvar dade das ferramentas de investigação em toda sua gravidade e profundidade,
de informações dos conflitos no Cerrado criminal, mas resulta dos vínculos pro- tradutores que são de muitos dos senti-
fundos entre agentes do Estado e agentes dos do que foi a expansão do capital nas
do latifúndio implicados nessas mortes. regiões de “fronteira”.
Trabalhadores e trabalhadoras ru- é executada não apenas por pistoleiros,
rais e os povos tradicionais são as mas também por policiais militares a Assim, a hipótese sustentada nesta Como pudemos perceber na descri-
maiorias no campo brasileiro, domi- mando de fazendeiros, grileiros, em- pesquisa é que a ideia de impunidade ção feita acima, a expulsão dos posseiros
nadas, oprimidas e reprimidas, cotidia- presários e até autoridades públicas. dos massacres no campo brasileiro não das terras da região entre os anos 1960 e
namente, por agentes do latifúndio, do mais seja entendida como defeito ou 1980 se deu sob forte violência privada,
agronegócio e do próprio Estado. Essa A presente pesquisa nacional vem não consecução dos objetivos do siste- apoiada pelas instituições oficiais. Uma
repressão assume a forma de assassi- buscando compreender a dialética ma criminal (cujas funções declaradas violência tão legitimada e naturalizada
natos e massacres em contextos marca- dos conflitos agrários que ensejaram estariam ligadas à responsabilização que execuções de trabalhadores(as), in-
dos pelo acirramento das lutas de clas- massacres no campo para, assim, com- criminal de mandantes e executores), clusive de crianças, davam-se de manei-
ses em torno da terra e do território, e preender as relações entre o latifúndio evitando-se o risco de legitimar discur- ra sub-reptícia, propositalmente ocultas
sos encobridores das funções reais ocul- dos rastros da história.

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Violência no campo e impunidade no contexto do Cerrado: desafios político-metodológicos
para investigação de massacres na região do Médio Araguaia, Tocantins

Desses diálogos e leituras fomos en- Era final do século XX nesse Brasil
tendendo mais sobre os conflitos na profundo e a dominação daqueles que
região do Vale do Juari e “tropeçamos” por gerações detêm poder e privilégios
em registros de um outro massacre no políticos e econômicos continuava sen-
mesmo ano, na Fazenda Juarina, de do tamanha que a despossessão, a pro-
um homem, uma mulher e uma crian- vocação de fome e miséria e até mesmo
ça, composição de vítimas correlata ao a eliminação da vida eram naturalizadas.
caso já sistematizado pela CPT, ainda
que sem pormenores do fato em si. A Nesse Brasil profundo, que nessas
trajetória até então percorrida levantou últimas quatro décadas não vivenciou
mais incógnitas sobre os massacres na qualquer ruptura de sentido, a ideia de
região e não revelou qualquer indício vidas precárias se materializa. O apa-
de existência de investigação criminal gamento histórico e a invisibilidade
ou processo criminal sobre o caso re- das situações aqui analisadas revelam
Quem eram as pessoas executadas? os condenados de nossa terra, cumpriu gistrado pela CPT e muito menos sobre a profunda desumanização dessas vi-
Como famílias podem “desaparecer” um papel democrático imprescindível o suposto outro caso detectado. das por parte do Estado brasileiro, em
sem que haja qualquer registro por par- e único de registrar os conflitos em uma simbiose autoritária com aqueles
te das instituições do Estado? Como o cada rincão do Brasil. Já é notório a quem nos acompa- que almejam perpetuar o abismo so-
massacre – ou massacres – de um ho- nha na leitura até aqui o quanto este cial por meio do latifúndio e da acumu-
Foi pelo arquivo produzido pelos(as)
mem, uma mulher e crianças em seus trabalho se mostra como um diário de lação de capital.
agentes da CPT e organizado pelo CE-
domicílios pode não suscitar qualquer pesquisa – coletivo e agora ainda mais
DOC que tivemos as primeiras informa-
tipo de ocorrência policial, investigação coletivizado com a comunidade leitora.
ções sobre o massacre de um homem,
criminal ou processo para apurar res- É relevante nem tanto pelas conclusões
uma mulher e uma criança no dia 7 de
ponsabilidades, mesmo sabendo dos de seus achados, mais pelas inquieta-
março de 1986, quando de um despejo
nomes das vítimas? Como a descoberta ções metodológicas e políticas que a
de 36 famílias na Fazenda Vale do Jua-
de um cemitério clandestino na região, esta investigação tem gerado.
ri, orquestrado pelo fazendeiro Luiz
nos anos 1990, continua sendo página
Espíndola Cardoso, acompanhado de
apagada em nossa história? Como, em
seus filhos, de pistoleiros e de policiais
2022, uma equipe de pesquisa se depa-
militares. Nesse material, pudemos
ra com a aparente impossibilidade de
tomar contato com muitos elementos
saber se existiu algum registro oficial
do caso? Se foi um massacre ou foram
explicativos dos conflitos prévios nes- Considerações finais
sa fazenda, mas nenhuma outra in-
dois com as mesmas características?
formação além dessa descrição geral
O chamado “Caso Colmeia” é um dos sobre o massacre em si. Foi então que Ainda que em processo de desenvol- ríodo da Nova República, mas também
51 casos ocorridos entre 1985 e 2019 que iniciamos uma busca por outras fon- vimento, a pesquisa nacional aqui em para o próprio processo de organização
estão sendo decifrados nesta pesquisa. tes, especialmente de militantes dos parte apresentada tem o potencial de de materiais e acesso a diferentes fon-
Se temos uma bússola que oriente essa movimentos sociais e pesquisadores e colaborar não só para o estudo mais di- tes de pesquisa. Deve contribuir tam-
escavação, isso se deve à atuação da pesquisadoras da região, sempre com a retamente relacionado ao papel do sis- bém para o exercício coletivo e trans-
CPT, que por mais de quatro décadas, colaboração da CPT. tema de justiça criminal nos massacres geracional de recontar a história do
para além de estar lado a lado com as e ocorridos no campo brasileiro no pe- Brasil do ponto de vista dos oprimidos

116 117
Bibliografia
Nesse processo, que aqui denomina-
e oprimidas, explorados e exploradas, mos como de “escavação da história” dos
colaborando, de alguma maneira, para conflitos na região, nos deparamos com
os processos de construção de memó- ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Rituais LIMA, Eonilson Antonio de. A luta pela terra
a possível existência de mais um caso de de Passagem entre a chacina e o genocídio: na região Norte de Goiás: assentamento Ju-
ria e reparação históricas daquelas e massacre ainda não catalogado pela Co- conflitos sociais na Amazônia. In: ANDRADE, arina (1968-1988). 2015. Dissertação (Mes-
daqueles lutadores sociais desumaniza- missão Pastoral da Terra. Até o presen- Maristela de Paula. Chacinas e massacres no trado em História) – Universidade Federal de
dos no anonimato e no esquecimento. te momento, tais constatações são em- campo. v. 4. São Luís: UFMA, 1997, p. 19-48. Goiás, Goiânia, 2015.
Esse é o caso das descobertas em curso brionárias e cumprem um papel muito BARROS, Ciro; BARCELOS, Iuri. “Seguran- LIMA, Eonilson Antonio de; SOUZA, Adelma
referentes ao Massacre de Colmeia, no maior de socialização de achados, a ser ça” privada, herdeira da ditadura. Com- Ferreira de. Expansão do capital mono-
atual estado do Tocantins. desenvolvida, bem como de comparti- bate Racismo Ambiental, 3 abr. 2017. Dis- polista no campo e aliança com militares:
lhamento dos desafios metodológicos ponível em: https://racismoambiental.n resistência camponesa à grilagem de terras
Neste texto, buscamos contextualizar et.br/2017/04/03/seguranca-privada-her- em Juarina, região do Médio Araguaia. In:
de realizar pesquisas dessa natureza.
os conflitos agrários no Médio Araguaia, deira-da-ditadura. Acesso em: 9 jan. 2022. MACIEL, David; PINTO, João Alberto da Costa
mais precisamente na região do Vale do De um lado, muito provavelmente, (Orgs.). Brasil 1964, Portugal 1974: Ditaduras,
BRUNO, Regina Angela Landim. Nova Repú-
Juari. Os principais acontecimentos em lutas sociais e revolução. Goiânia: Edições
nossa equipe de pesquisa poderá che- blica: a violência patronal rural como prá-
duas fazendas, a Juarina e a Vale do Jua- Gárgula; Editora Kelps, 2020. p. 66-93.
gar ao final deste processo de investi- tica de classe. Sociologias [online]. 2003,
ri, foram analisados em sua conflitivida- gação sem respostas quanto à análise n. 10, p. 284-310. Disponível em: https://doi. MARTINS, José de Souza. A militarização da
de, evidenciando a forma do exercício org/10.1590/S1517-45222003000200010. questão agrária no Brasil. Petrópolis: Vozes,
de processos judiciais relacionados ao Acesso em: 9 jan. 2022. 1984.
da violência por parte dos latifundiários Massacre de Colmeia, objetivo inicial
e suas relações com o Estado. almejado. De outro lado, foi possível CANUTO, Antônio; SILVA LUZ, Cássia Regina; MARTINS, José de Souza. O tempo da fron-
ANDRADE, Thiago Valentim Pinto (Coord.). teira. Retorno à controvérsia sobre o tempo
elaborar sobre o apagamento histórico, Conflitos no campo: Brasil 2016. Goiânia: histórico da frente de expansão e da frente
a negligência institucional e o descaso CPT, 2016. pioneira. Tempo Social. São Paulo, v. 8, n. 1, p.
público aí evidenciados. A omissão do 25-70, 1996.
CAPPI, Riccardo. A “teorização fundamen-
Estado revela sua conexão com o poder tada nos dados”: um método possível na PEREIRA, Airton dos Reis. A luta pela terra no
econômico e político determinante na pesquisa empírica em Direito. In: MACHADO, sul e sudeste do Pará: migrações, conflitos
história aqui contada. Maíra Rocha (Org.). Pesquisar empiricamente e violência no campo. 2013. Tese (Doutora-
o Direito. São Paulo: Rede de Estudos Empíri- do em História) – Universidade Federal de
Desse modo, ao final deste escrito, cos em Direito, 2017. Pernambuco, Recife, 2013.
reafirmamos nosso convencimento, COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Mas- SOUZA, Adelma Ferreira de. De geração em
por fidelidade de classe, quanto à ne- sacres no Campo: Tocantins, Colmeia, 1986. geração: famílias na luta por um pedaço de
cessidade obstinada de revolver indí- CPT Nacional, 2017. Disponível em: https:// chão – estratégias de reprodução social
cios e impulsionar o contar de nossa www.cptnacional.org.br/noticias/acervo/ camponesa no Vale do Juari, TO. 2017. Tese
história na contracorrente da versão e massacres-no-campo/113-tocantins/ (Doutorado em Ciências Sociais) – Universi-
3948-colmeia-1986. Acesso em: 2 jan. 2022. dade Estadual de Campinas, Campinas, 2017.
do esquecimento oficiais, almejando
que esse conhecimento possa ser apro- COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Confli- SOUZA, Adelma Ferreira de. Recamponei-
priado positivamente pelas resistências tos no campo: Brasil 2020. Centro de Docu- zação do Vale do Juari: estratégias gera-
mentação Dom Tomás Balduíno. Goiânia: CPT cionais de reprodução social camponesa.
vindouras do povo que luta por terra,
Nacional, 2021. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 40., 2016,
pão, alegria e dignidade no Brasil. Caxambu. Anais [...]. Caxambu: Anpocs, 2016.
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA (CPT). Mas-
sacres no campo. CPT Nacional. Disponível
em: https://www.cptnacional.org.br/massa-
cresnocampo. Acesso em: 2 jan. 2022.

118 119
Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

Querid@s leitores e leitoras, depois sio Ângelo Lazzaris, religioso e ex-pre-


de apresentá-los os conflitos e os mas- sidente da CPT Nacional; Irmã Lucinda
sacres ocorridos no Cerrado e em suas Moretti, religiosa e agente de pastoral
zonas de transição, queremos oferecer da CPT Mato Grosso do Sul; Vilmar de
a vocês um afago - um momento para Castro, agente de pastoral da CPT Goi-
fortalecer o esperançar. Aqui, nesta se- ás; e Alvimar Ribeiro, professor e agen-
ção, homenageamos os lutadores e lu- te de pastoral da CPT Minas Gerais.
tadoras do Cerrado, homens e mulhe-
res que dedicaram e ou dedicam suas As raízes dos aqui homenageados e
vidas para a defesa de um Cerrado com homenageadas, assim como as das ár-
gentes - os Cerrados dos povos indíge- vores do Cerrado, são profundas, cons-
nas, comunidades tradicionais e cam- tituindo a força necessária para con-
ponesas. Gentes essas de olhos atentos, tinuarmos a caminhada em busca de
bocas rebeldes e corpos subversivos. justiça e paz na Terra. Juntos, nos tor-
namos natureza e resistimos!
Em nome de todos os lutadores e lu-
tadoras em defesa do Cerrado, em vida “Eu (re)existo porque
queremos agradecer e louvar a existên- alguém antes de mim
cia e resistência de Dona Adelina Xa- (re)existiu”
vier, geraizeira do Vale das Cancelas;
Adilson Machado, pequeno agricultor Eu existo, por que alguém antes

HOMENAGEM e agente de pastoral da CPT Rondônia;


Irmã Eci Maria dos Santos, religiosa e
de mim, existiu, por que alguém
antes de mim, resistiu, por que

ÀS LUTADORAS
agente de pastoral da CPT Bahia; Balta- alguém antes de mim, foi lá,
zar Ferreira de Melo, camponês e agen- plantar, a, a.
te de pastoral da CPT Mato Grosso; Irmã Por que alguém antes de mim

E AOS LUTADORES
Vera Maria Lobo, religiosa e agente de foi lá, plantar a, a.
pastoral da CPT Mato Grosso; Antônio
Canuto, agente de pastoral da CPT Na- Eu existo, por que alguém escre-

DO CERRADO
veu a minha dor, por que alguém
cional; e Padre John Antunes Myers, re-
seguiu a minha cor, por que al-
ligioso e parceiro da CPT Piauí.
guém ensinou-me a caminhar.
Aos que partiram, mas que continu- E pra sempre viverei, nasceu o
am fazendo parte de nossas vidas e nos que plantei, e pra sempre viverei,
atravessando, seja pela saudade ou pe- nasceu o que plantei
los testemunhos, reafirmamos o legado
E pra sempre viverei, nasceu o
de luta e resistência que nos inspiram a
que plantei
seguir nesse caminho que já foi trilha-
do por muitos outros irmãos e irmãs de Letra e melodia, Rosalva Silva
caminhada. Queremos relembrar com Gomes, quebradeira de coco
carinho e gratidão de Maria Trindade babaçu do Cerrado
Gomes Ferreira, agente de pastoral da
CPT Araguaia-Tocantins; Dom Enemé- Boa leitura!

120 121
Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Nacional

A difícil tarefa de conciliar o


discurso com a prática militante

Mesmo para quem escolhe o coerente à sua escolha. Canuto


caminho da militância como práti- sempre teve no horizonte os ensi-
ca de vida, conciliar o que se prega namentos de Pedro e a ele seguia,
com o que se faz é sempre um admirava e refletia em suas ações
desafio. Em nossas trajetórias te- tudo o que aprendeu.
mos a oportunidade de conhecer
poucas pessoas que obtêm êxito Temos outros exemplos, assim
nessa tarefa. Canuto com certeza como Dom Pedro, Canuto. Trago a
é uma delas. memória da irmã Alberta, de Dom
Tomás Balduino, do fotógrafo João
Convivi diariamente com Antônio Zinclar e a lembrança de Marlu-
Canuto entre 2005 e 2016. A lida na ce Melo, da CPT Nordeste II. É um
Comissão Pastoral da Terra (CPT) é privilégio ter tido a possibilidade
intensa e nem sempre é fácil. São de conviver com essas pessoas.
vários os desafios e as violências Beber na fonte os ensinamentos
com as quais lidamos no dia a dia. de anos de militância e enfrenta-
Muitas vezes corremos contra o mento às agruras do sistema que
tempo, contra as distâncias, con- oprime e marginaliza os povos
tra o sistema, para tentar fazer pobres que habitam o mundo.
algo pelo povo do campo, massa-
crado pela violência do capital e Canuto chegou ao Araguaia,
da ganância. Pude testemunhar e região do Mato Grosso, em 1971,
aprender, na prática cotidiana, a como padre incorporado à equi-
importância da escolha de seguir o pe pastoral da Prelazia de São
Evangelho de Cristo na sua con- Félix, coordenada então por Ca-
cepção mais pura da opção pelos saldáliga. Eram tempos severos e
pobres da Terra. Vi isso acontecer sangrentos de repressão da dita-
acompanhando o Canuto, seguin- dura militar. Logo em 1972, Canu-
do seus ensinamentos, muitos to substituiu o padre Francisco
adquiridos durante os tempos de Jentel em Santa Terezinha (MT).
trabalho na Prelazia de São Félix Jentel foi procurado, processado
do Araguaia (MT), com Dom Pedro e condenado por crime contra a
Casaldáliga, que, até o fim de sua Segurança Nacional. Foi condena-
vida, até ser plantado na terra, foi do a 10 anos de prisão. Ao cumprir

122 123
Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

destinado às pessoas e entidades Durante anos convivi mais com


que mais se destacaram no ano ele do que com minha própria
na eterna batalha para fazer um família. Os dias de trabalho, as
Brasil mais justo, contra a violên- atividades nos fins de semana, e
um ano de condenação, foi de- Manteve-se firme. Mantém-se
cia, o racismo, o trabalho infantil, o fato dele ser quase meu vizinho,
clarado inocente por um tribunal firme. E que sorte a nossa ser
entre outras lutas. Canuto, como nos colocavam em contato diaria-
superior, mas foi obrigado a deixar assim. Aqui compartilho um pouco
membro fundador da CPT, foi o mente. E por muitas vezes ainda
o país. Foi acusado de ser o res- da nossa convivência. Que sorte a
agraciado naquele ano. vinham os telefonemas, tarde da
ponsável pela reação dos possei- minha ter vivido essa experiência.
noite, diante de alguma ideia de
ros diante da violência da grande A CPT foi criada em junho de À juventude que chega na luta,
material de comunicação ou de
empresa Codeara, do grupo BCN – 1975 num encontro na cidade de que nunca se esqueça dos gran-
alguma denúncia que acabara de
Banco de Crédito Nacional. Morreu Goiânia (GO), no Centro de Forma- des exemplos, que olhem para trás
receber. A vividez continua pre-
em 1979 na França, seu país de ção Dom Fernando, com bispos e conheçam a história, e que se
sente no seu processo produtivo
origem. Em 1997, Canuto se mudou e prelados da Amazônia que se voltem para a frente e escrevam
de retratar a história. Após a apo-
para Goiânia (GO) para contribuir reuniram para discutir os crimes, as lutas do futuro, sempre tendo
sentadoria, não se colocou em
com a Secretaria Nacional da CPT. principalmente assassinatos, con- no horizonte a opção pelos mais
descanso. Tinha o desejo e ânsia
Atuou como coordenador nacio- tra posseiros da região. Ouvi mui- pobres e pelos excluídos. Canuto
de falar da Prelazia de São Félix,
nal, secretário da Coordenação tas histórias deste dia. Uma delas oxalá estará atento, sempre, ven-
de compartilhar essa nova forma
Nacional e no Setor de Comuni- foi a de que Canuto foi um dos do a continuidade da luta. E eu
de ser igreja com o mundo. Escre-
cação, onde nos conhecemos que auxiliou na escrita da Ata de estarei, sempre, acompanhando
veu 365 páginas e lançou o livro.
e trabalhamos juntos até a sua criação da CPT, à sombra de uma os seus ensinamentos. Por ele, por
Percorreu diversas cidades com o
aposentadoria. mangueira, junto a outros compa- todos que se foram, e pelos que
lançamento. Testemunhou, tam-
nheiros. Ainda hoje frequentamos virão, seguimos firmes na luta, até
Em 2015, Canuto recebeu no bém, o momento doloroso que to-
o Centro de Formação. E todas que a justiça social seja realidade
Rio de Janeiro, em solenidade no dos sabíamos que se aproximava,
as vezes ainda vejo tais árvores em nossa sociedade!
Centro Cultural Banco do Brasil a morte de Dom Pedro Casaldáliga.
frutíferas no espaço e imagino em
(CCBB), o prêmio João Canuto, Mas ciente da importância do mo-
qual delas se deu esse momento. Cristiane Passos
oferecido pela ONG Movimento mento e de poder ver a fidelidade
Conviver com o Canuto sempre foi Jornalista e mestre em Antropo-
Humanos Direitos (MHuD). A ONG é de Pedro até o fim da vida, sendo
passear pela história da luta por logia Social, é coordenadora do
formada por diversos artistas, en- enterrado no cemitério onde os
um país mais justo. Eram tantas Setor de Comunicação da Secre-
tre eles Dira Paes e Camila Pitan- posseiros, os pobres do Araguaia,
narrativas de momentos históri- taria Nacional da CPT.
ga, e também pelo padre Ricardo as prostitutas eram enterrados e
cos e de figuras essenciais para
Rezende Figueira, professor da onde sempre foi o desejo de Pedro
a luta. Era como escrever uma
Universidade Federal do Rio de de estar depois de morto, Canuto
grande enciclopédia da política
Janeiro (UFRJ) e militante histó- esteve presente. Trouxe o relato
nacional, mentalmente, enquanto
rico da CPT nas décadas de 1970 profundo do momento. Sempre
tomávamos café e ríamos das pia-
e 1980. O Prêmio João Canuto é compartilhando conosco o signifi-
das que ele nunca perde a opor-
cado do que via e do que vivia.
tunidade de soltar.

124 125
Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Minas Gerais

Nos Gerais, Dona Adelina


se faz resistência

Adelina Xavier, 83 anos, é um tório geraizeiro é um lugar ancestral


exemplo de luta, resistência e se- repleto de significados. Diz ela: “Fui
renidade no território geraizeiro do nascida e criada aqui, vivo atribula-
Vale das Cancelas, em Grão Mogol, da com a mineradora. Eu não quero
norte de Minas Gerais. sair do meu lugar. Criei meus filhos
trabalhando na roça. Peço ao povo
Dona Adelina nasceu e reside
do mundo todo pra me ajudar”.
até hoje na comunidade tradicional
geraizeira do Lamarão. Viúva, criou “Eu a conheço há pouco mais de
seus filhos com muita dignidade no seis anos. Tempo suficiente para
árduo trabalho na roça. Na década saber o que ela significa para a
de 1970, viu as chapadas do seu Comunidade Lamarão, para o dis-
território serem invadidas pelas trito do Vale das Cancelas e para a
empresas produtoras de eucalip- cidade de Grão Mogol. Dona Adeli-
to. Depois, a partir dos anos 2000, na é um exemplo vivo de mulher
presenciou a chegada de mais uma guerreira, corajosa, animada, jo-
grande ameaça, o projeto de explo- vial e alegre. Mulher que não tem
ração de minério de ferro, que ainda medo de enfrentar qualquer tipo de
tenta avançar através de empresas ameaça para defender sua cria, seu
estrangeiras, como a subsidiária pedaço de chão, seu território. Eu
chinesa Sul Americana de Metais tenho muita admiração por dona
S.A (SAM). Adelina, vejo nela uma mulher cam-
ponesa, geraizeira e uma verdadeira
Dona Adelina, assim como todos
liderança em defesa da vida.”
os seus companheiros e compa-
(Irmã Etelvina Moreira Arruda)
nheiras geraizeiros e geraizeiras,
sabe que essa é uma ameaça que
coloca em risco o modo de vida tra-
dicional, consolidado há décadas.
Juntos, constroem cotidianamente
a resistência e afirmam que o terri-

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Maranhão

É uma mulher analfabeta, mas


que não tem medo da luta, não
tem medo de enfrentar os grandes
mulher sábia, íntegra e justa. De
projetos para permanecer no lu-
uma mulher que expressa nos seus
gar onde nasceu, cresceu, casou e
olhos a ternura do Deus dos pobres,
criou seus filhos. Segundo ela: “aqui
do Deus encarnado no meio daque-
nasci, cresci, casei, tive meus filhos,
le povo sofrido, mas que apesar de
criei meus filhos. Aqui casaram, aqui
tudo continua na luta, muitas vezes
permanecem. Por isso daqui não
ouvindo os conselhos da matriarca
saio, daqui ninguém me tira”.
da Comunidade Lamarão”
“Homenagear dona Adelina é um (Irmã Etelvina Moreira Arruda)
presente de Deus. Homenagear
dona Adelina é acreditar que, as- “Falar de dona Adelina é um mo-
sim como ela, todas nós mulheres tivo de muito orgulho, porque ela
podemos também ser homenagea- é uma mulher de fibra, que carrega
das em sua pessoa, principalmente no rosto e na alma o traço do povo
nós do Norte de Minas Gerais. Tenho geraizeiro. Uma pessoa batalhadora,
orgulho de ser conterrânea de uma lutadora e de muita coragem. O que
nos admira em dona Adelina é sua
coragem, que vem dando a nós es-
perança e força para lutar. Sempre
que paramos para ouvi-la, sentimos
vontade de defender o território, de
lutar pelo território e de defender a
cultura e modo de vida geraizeiro.
Dona Adelina é como uma mãe que
cuida e dá exemplo para os seus
filhos. É muito bom ter uma amiga,
uma pessoa no nosso território
como dona Adelina, que é uma gran-
de lutadora, uma grande mulher.”
(Adair Pereira de Almeida)

128 129
Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

Uma vida dedicada aos


pobres da terra

Dom Enemésio Ângelo Lazzaris, Divina Providência quando então foi De fala clara, simples e ao mes- florestas, procurou seguir a prática
nasceu em Siderópolis, Santa Ca- eleito Superior da Província Norte mo tempo firme e profética, Dom de Jesus Cristo, buscando envolver
tarina, em 19 de dezembro de 1948. do Brasil dos orionitas, de 1998 a Enemésio foi uma presença ilumi- toda a comunidade e a sociedade
Filho de Mário Lazzaris e Maria Pat- 2004. De volta a Roma, foi nomeado nadora. Entre as diversas frentes na luta pela terra e produção na
tel Lazzaris, é o segundo dos dez Vigário Geral da Congregação, entre de atuação, passou dez anos como construção do Bem Viver”.
filhos do casal. Ainda adolescente, 2004 e 2007. bispo referencial da Pastoral do (Antônio Moraes, CPT/MA)
aos 12 anos, ingressou na congre- Menor, no Regional Nordeste V da
Em 2007, Dom Enemésio foi no- “Dom Enemésio, ao chegar em
gação da Pequena Obra da Divina CNBB, que corresponde ao estado
meado bispo da Diocese de Balsas, Balsas, sentou primeiro com as
Providência, dos padres orionitas. do Maranhão, onde assumiu com
no Maranhão, onde permaneceu no lideranças para compreender a vida
Estudou filosofia no Ipiranga, em muita dedicação a missão de pro-
episcopado até sua morte. Tendo das comunidades na diocese. E a
São Paulo, e teologia na Pontifícia mover e defender a vida das crian-
como lema episcopal “In Spe Salvi” partir daí fez uma opção de estar
Universidade Católica de Minas ças e adolescentes empobrecidos
(Salvos na esperança), Dom Enemé- sempre com as comunidades mais
Gerais, em Belo Horizonte. Enemé- em situação de risco, desrespeita-
sio marcou a história da Igreja de carentes. Passou a nos acompa-
sio terminou o noviciado em 1965, dos em seus direitos fundamentais.
Balsas, empenhado na promoção da nhar (equipe CPT em Balsas) em
licenciou-se em teologia e fez os
vida dos mais necessitados, dei- Outra missão assumida por Dom diversas visitas às comunidades
votos perpétuos em 1974 e, no ano
xando um legado de amor e leal- Enemésio foi o apoio à luta de po- em conflitos; fomos juntos à co-
seguinte, foi ordenado sacerdote.
dade à igreja para uma sociedade vos e comunidades tradicionais do munidade Bacuri, no Potozi e em
Dom Enemésio teve uma vida fraterna e solidária. Maranhão. Foi o bispo referencial diversas outras comunidades onde
migrante, sempre dedicado aos es- que acompanhou a CPT do Mara- estavam ocorrendo conflitos. Na
Dom Enemésio não se contentava
tudos e às causas dos mais pobres: nhão por dez anos, contribuindo comunidade Potozi, por exemplo, no
em ficar apenas dentro dos muros
foi formador e promotor vocacional; com muito amor e determinação despejo na Vivenda do Potozi, Dom
da igreja, buscava ir além para ga-
especializou-se em espiritualidade nas lutas pela terra, água e forta- Enemézio saiu de casa levando um
rantir a auto-sustentação das paró-
no Teresianum, em Roma, Itália; de- lecimento do regional. “Testemu- buquê de flores na mão, e quando
quias e ações pastorais e evange-
pois assumiu a direção do Lar dos nhamos a sua luta junto aos povos chegou na comunidade que avistou
lizadoras, integrando organizações
Meninos e do Seminário Dom Car- da terra e das águas na busca e o operador se dirigindo para der-
de luta pelo direito a terra e a uma
los Sterpi, em Belo Horizonte. Anos conquista dos seus direitos. Ele foi rubar a primeira casa, ele tomou a
vida digna. Assim, atuou como bispo
mais tarde, foi viver em Araguaína, sempre um companheiro dos sem frente da máquina, subiu no trator
referencial da Cáritas no Maranhão,
Tocantins, onde assumiu a Paró- voz e sem vez, ameaçados neste e entregou as flores em sinal de
participando de suas ações em nível
quia Sagrado Coração de Jesus. De Maranhão, sendo junto a eles e a paz. Ali foi um momento forte e de
estadual e nacional, no que se des-
volta ao sudeste, na cidade do Rio elas resistência, ânimo e coragem. muita emoção: o operador desceu
tacou pelo compromisso e evidente
de Janeiro, foi diretor da comuni- Fiel ao Deus dos pobres, à terra de da máquina chorando e foi embora,
posicionamento sobre o papel da
dade do Instituto de Artes e Ofícios Deus e aos pobres da terra, ouvin- abandonou a derrubada das casas.
instituição no apoio aos pobres.
do o clamor que vem dos campos e Dom Enemésio não media esforços

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Bahia

para acompanhar as comunidades, de Balsas e aprender muito com


ele ia conosco, sentava e ouvia as ele. Desde os seus primeiros passos
pessoas, e sempre tomou posição nessa terra, Dom Enemésio priorizou
de apoio às comunidades carentes. a causa dos pobres na sua agenda.
E na missão de defesa das comuni- Ele defendia as comunidades, e por
dades, ele acompanhou uma comis- isso, ainda nos primeiros anos de
são ao INCRA, em Brasília, para falar presença na Diocese, em reconhe-
em defesa dos acampados da BR cimento ao seu compromisso, foi
230. E com seus argumentos forta- eleito vice-presidente nacional da
leceu a reivindicação das famílias Comissão Pastoral da Terra e, com a
que lutavam pela terra, que poucos morte do presidente, Dom Ladislau,
anos depois conquistaram os as- assumiu a presidência, sendo ree-
sentamentos”. leito no mandato seguinte.
(Antônio Moraes, CPT/MA) (Urubatan Pinheiro, agente da
CPT e da Diocese de Balsas/MA).
A questão ambiental, seja na de-
fesa do Cerrado ou da Amazônia, foi “Dom Enemésio tornou-se tam-
uma das suas grandes bandeiras de bém um amazônida de coração,
luta e, coerente, demonstrava seu embarcou na defesa da nossa Casa
compromisso através de pequenos Comum através da Rede de Notícias
gestos no dia-a-dia, como fazer da Amazônia ajudando a interligar
a coleta seletiva do lixo, realizar a os povos lutadores por meio da
limpeza do quintal da Diocese, com- Rádio Boa Notícia de Balsas, onde
bater os descartáveis e os agrotó- defendeu os menos favorecidos
xicos. Assim, deixou testemunhos nas entrevistas, editoriais e por
práticos do seu profundo amor e onde andou”.
cuidado com a vida das pessoas e (Pe. Edilberto Sena, Presidente
da natureza, nossa Casa Comum. da Rede de Notícias da Amazônia –
RNA).
“Na Diocese de Balsas, tivemos
a alegria de contar com a presen-
ça, trabalho e principalmente com
o testemunho de Dom Enemésio,
que se deslocava até as comunida-
des para defender trabalhadores e
trabalhadoras rurais. Ele foi também
um grande defensor do meio am-
biente, das águas, rios e florestas.
Nós tivemos a alegria de caminhar
com esse grande bispo na diocese

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

Homenagem à lutadora do povo


munidades de Fundo de Pasto, em Areia Evangelho e a realidade atual. Na luta
Grande, município de Casa Nova, Ir. Eci constante pela terra, pelo território,
Irmã Eci: vida e missão na Comissão marcou presença junto aos trabalhadores
e trabalhadoras, tanto na área de conflito
quando vamos a campo, ela sempre usa
uma frase: “A terra é uma criação divina.
Pastoral da Terra na Bahia como também na ponte das intervenções Quando Deus criou a Terra, Ele não che-
junto aos órgãos, apoios e parcerias. Sua gou e disse para um ‘Tome, essa é sua
presença solidária e atuação foi muito parte’ e ‘Essa é a parte do outro’. Deus
Irmã Eci Maria dos Santos nasceu importante para aquela luta. entregou a terra em comum, para que as
pela CPT para trabalhar com os assa-
em 1939 e foi criada pelos pais no pessoas pudessem zelar e cuidar da ter-
lariados e assalariadas das empresas Ao final do período de Juazeiro, sentiu
município de Primavera, estado de ra”. E ela ainda reforça dizendo que Deus
de irrigação agrícola, os posseiros e que era hora de fechar um ciclo. E em
Pernambuco, até certo período da não inventou a cerca, Deus criou a terra
os pequenos produtores. Sua con- 2010 retornou para Vitória da Conquista.
juventude. Depois mudou-se para Bo- e disse ao homem “Toma e cuida!”.
tribuição foi marcante e ela passou Sua congregação insistia para que fosse
nito (PE), onde começou a participar a ser querida por todos. Desde que para a África, mas ela optou em permane- Para a CPT, para a equipe Sul-Sudoes-
da igreja e dos grupos ali existentes: chegou nunca se negou a ser presen- cer no Nordeste: “Se aqui existem situa- te, o retorno de Eci tem sido essencial
apostolado de oração, catequese, ça solidária junto aos camponeses. ções terríveis a serem tratadas, por que justamente para fazer - conforme os
juventude do meio rural… Aí conheceu Saía de madrugada para se encontrar eu teria que ir pra lá? Todo mundo vai pra ensinamentos bíblicos - o diálogo e a
e ajudou missionárias em uma missão, com os trabalhadores e trabalha- lá.” Eci continua até hoje no Nordeste, ligação entre a fé e a vida, a diferença
momento em que descobriu o que doras nos pontos de embarque nos dedicando-se à atuação de sempre com entre o que é a terra como obra divina
queria: fazer parte de uma organiza- caminhões das empresas. Algumas as comunidades, através da CPT. para todos e todas e aquilo que a huma-
ção como a daquelas missionárias. conquistas vieram, como a criação do nidade levou para o individualismo, que
pioneiro Sindicato dos Trabalhadores Com Eci foi possível iniciar um traba-
Em 1963 entrou para a congrega- provocou esse quadro sofrido do campo.
Assalariados Rurais (SINTAGRO) dos lho com as paróquias das comunidades
ção das Missionárias de Jesus Cruci-
municípios da região. Quando deixou, de Piripá, Condeúba e Cordeiro, região Irmã Eci fez uma opção de morar só
ficado. O padre José de Sales Tiné a
passou a atuar junto aos campone- do Cerrado no sudoeste do estado. e, mesmo com seus 83 anos, se dedicar
levou até Recife e depois ela seguiu
ses e camponesas das comunidades Com sua experiência em Comunidades a um trabalho pé-no-chão, de fé e vida
para Fortaleza, onde fez o primeiro
de Fundo de Pasto. Eclesiais de Base (CEBs) e com seu jeito coerentes, como sempre defendeu nas
ano de noviciado. Lá realizou os seus
de atuar, muito contribui para a organi- comunidades. Para ela, trabalhar na CPT
votos e foi encaminhada para o Rio Eci é extrovertida, e também direta. zação e a formação nas comunidades. é poder ir exatamente onde estão os
Grande do Norte, onde por quatro Sempre se preocupa que as coisas Sempre quando chega, todos já come- pés do povo. Por isso, até o fim, e para
anos deu continuidade aos estudos. sejam corretas, sérias, exatas. Uma çam a perguntar dela pelos cantos... este fim, vai até onde as pernas per-
Ao mesmo tempo, desenvolveu traba- mulher firme. Quando quer falar algu- mitirem, comprometida com as lutas e
lho com a juventude e na catequese ma coisa, não importa com quem está Eci tem um jeito briguento [risos], e
causas, de Jesus e do povo.
da paróquia em Mossoró. Em 1972 foi falando, não tem preocupação com até hoje perguntam se ela ainda está
transferida para Vitória da Conquis- hierarquias. O que tem a dizer, fala “braba”. A resposta é que está do mes-
Depoimentos de Irmã Conceição, Marina
ta, sudoeste da Bahia, onde adquiriu para todos. Até para os trabalhado- mo jeito, não mudou nada. Sua atuação
(CPT Juazeiro), Zacarias (Casa Nova),
vasta experiência no trabalho com res e trabalhadoras isso é importan- marca a vida da Diocese, não só no
Santana (ex-agente CPT SSO), Gilmar
comunidades rurais, junto ao Centro te, para entenderem que em certos religioso, mas também com o social, por
(CPT SSO)
de Estudos e Ação Social (CEAS). momentos é preciso ser duro sem meio da CPT, nas CEBs.
perder a ternura.
No início dos anos 1990, Ir. Eci foi O essencial do trabalho da Ir. Eci na
para a diocese de Juazeiro, no norte Em 2008 e 2009, em um grande con- CPT Sul-Sudoeste da Bahia é exata-
da Bahia. Ao chegar, foi convidada flito de terra envolvendo várias co- mente esta relação entre o que diz o

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Goiás

Plantou esperança,
espalhou sonhos
Não foi de repente. Foi planeja- generosa, era um exemplo de ale-
do pelos poderosos que pensam e gria, de coerência e de doação.
agem como donos do mundo. A vida
não poderia ser ceifada antes do A determinação era seu foco.
seu tempo, mas infelizmente muitos Amava organizar o povo. Possui-
acreditam que podem decidir quem dor de uma fala mansa, tranquila e
vive e quem morre. No dia 23 de cativante, sempre esteve junto ao
outubro de 1986, em Caçu, Goiás, o povo em suas lutas. Tinha um amor
chão se abriu para acolher o san- especial aos pequenos agricultores,
gue derramado de Vilmar José de cercados pelas grandes proprieda-
Castro. Foi no amanhecer cinzen- des. Em sua trajetória, Vilmar contri-
to sem sol como testemunha que buiu com a organização da Associa-
Vilmar teve sua vida interrompida. ção das Lavadeiras, que passaram a
Não esqueceremos o seu sangue ser reconhecidas pelo seu trabalho,
derramado na terra vermelha. Ficou e reorganizou a luta sindical cam-
ali por semanas, apesar das chu- ponesa, junto com as Irmãs de São
vas, como lembrança de uma vida José Rochester.
sacrificada antes do tempo pela
Trabalhou a formação do povo,
ganância daqueles que se acham
foi ousado em seu tempo. Priorizava
os donos da terra.
as visitas às famílias de pequenos
Vilmar era catequista, animador agricultores, sendo presença efeti-
das Comunidades Eclesiais de Base va. Sabia ouvir as queixas e pensar
(CEBs), professor rural, membro da estratégias de resistência, era o
Coordenação Ampliada da CPT Re- próprio dono da utopia, iluminava
gional Goiás, integrante da Escola com a palavra de Deus onde a vida
Bíblica do Centro de Estudos Bíbli- estava rachada, repartida. Juntava
cos - CEBI GO. Em plena juventude os pedaços da manhã, da tarde e

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Mato Grosso do Sul

da noite com alegria, apresentando de Vilmar é a firmeza, a coragem e


sempre a possibilidade do fazer e a alegria. Também a lembrança do
do refazer. olhar vivo e meigo de quem se doou
por inteiro na luta pelos oprimidos.
Então apareceu a UDR (União
A morte de Vilmar é um chamado
Democrática Ruralista), poderosa
forte para assumirmos seu sonho,
organização dos latifundiários, anti-
seu projeto e seu compromisso com
-Reforma Agrária, e Vilmar sentiu-
o Evangelho.”
-se ameaçado. Mas não desistiu.
E virou semente, seu sonho brota “Eu vi nos olhos de sua mãe a dor
nas fendas, nos becos, na perife- da despedida antes do tempo, foi
ria, na pobreza, na vida mudada, na de forma trágica esta interrupção
criança escolarizada, na saúde para da vida, ela chegou e ficou em um
todos sem desigualdade, na terra canto da capela, suspirava como se
partilhada, no pão dividido. Deixou estivesse acalmando suas lágrimas.
para nós lembranças cordiais, como Mesmo depois de tantos anos, senti
testamento e bandeira. que para a mãe e a comunidade de
Vilmar, a dor e o vazio eram como
Foi assassinado aos 27 anos, no
se tudo tivesse ocorrido ontem.
dia 23 de outubro de 1986, de ma-
Ainda sinto flagelo no coração des-
nhã, quando ia para a escola onde
ta mãe, será que esta dor não é por
lecionava. A impunidade do crime
falta de justiça? Vilmar de Castro,
continua até hoje. Como alguém
jovem lutador, compromissado com
escreveu na ocosião, “o testamento
as causas dos empobrecidos. Com
sua luta aprendemos que o sonho
não acabou, continua na peleja da
nossa vida, missão de todo dia”.

(Lucimone Oliveira, na celebração


dos 25 anos do martírio de Vilmar,
outubro de 2011)

Aqui saudamos as mulheres


da vida de Vilmar, na mesma dor e
esperança: Dona Olivina, sua mãe,
e Nilda, sua irmã.

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

Uma mulher-semente
Irmã Lucinda Moretti foi uma reli- Falar da irmã Lucinda é falar de
giosa católica da congregação São uma mulher que trabalhou em prol
José de Chambéry no Brasil, falecida dos camponeses assentados e in-
em agosto de 2013. Em vida, tra- dígenas de Juti, como organizadora
balhou na CPT Mato Grosso do Sul, da feira de sementes crioulas, e de
onde foi coordenadora, e precursora Dourados, especialmente na aldeia volta e multiplicar seu legado. Foi
na organização das feiras de semen- Te’yikue Caarapó, onde desenvolveu uma mulher de muita paciência, que
tes do estado. O seu engajamento um projeto formidável de recupera- sabia escutar e levar as coisas ao
junto a outras irmãs e agentes de ção de matas e de alimentação sau- seu tempo, sem pressa.
pastoral proporcionou a “revoada de dável. Em suas andanças, também “Conheci a irmã Lucinda há uns
sementes”. Das feiras de sementes atuou na CPT Rondônia. E além do 20 anos, no início do assentamento o que colher, não precisará comprar
de Juti, hoje já na 17ª edição, mul- trabalho com as sementes e agro- Guanabara. E quando a conheci me sementes, não precisará colocar ve-
tiplicou-se a celebração de outras ecologia, acompanhou mulheres encantei pelo fato dela vir todas neno, que assim é possível produzir
destas feiras em diversos rincões indígenas e assentadas no proces- as semanas no ônibus da escola, com qualidade. Foi isso que nos fez
do estado. Atualmente, na mística so de empoderamento delas. trazendo sementes na sua sacola. encantar por ela. Em seu cuidado
da troca de sementes entre indí- Ela prestava atenção em tudo que com as sementes, percebemos que
“Nós temos uma resposta para o
genas e camponeses, há a memória as pessoas precisavam. Se alguém ela fazia de coração, que de fato
futuro... o futuro com uma semente
de Lucinda, que se fez, em vida e na dizia: ‘irmã, quero plantar tal coisa’, amava a semente, a terra, a água.
livre. Com as festas das sementes
morte, semente do amanhã. ela ia atrás e conseguia as semen- Isso fazia a diferença. Também o
estamos lutando por uma agricul-
Lucinda defendia que a semente tura familiar que não precisa mais tes. E ainda ensinava as pessoas a fato de ela sempre fortalecer as
crioula é tradicional, passa de pai comprar para produzir. Usar a se- cuidarem da terra e não colocarem pessoas, incentivar o empodera-
para filho, portanto é patrimônio da mente que quiser, e não o que o veneno, para ter uma qualidade de mento das mulheres. Através das
humanidade. Ela mesmo guardava outro quer que você plante.” vida melhor. Fazia isso com muita sementes, conseguia se aproximar
as sementes, herança de sua fa- simplicidade, amor e carinho, e se mais das pessoas, e as feiras surgi-
(Lucinda, 2012)
mília, recebida de sua avó materna preocupava com a proteção das ram através disso, para fortalecer
que as trouxe da Itália. “A semente Caminhando sempre devagarinho, sementes. Em cada reunião ela as trocas e possibilitar o encontro
faz parte da vida, porque se ela veio sem muito corre-corre, colocando levava uma sacola de sementes, e entre as pessoas. Irmã Lucinda foi
da Itália, ela trabalhou, se integrou, tudo ao seu tempo, esteve presen- dava para as pessoas. Ninguém saia uma pessoa iluminada, fará falta o
cresceu e, se ela ainda faz parte da te com o seu depoimento e com a sem sementes. Tinha muita preocu- resto de nossas vidas.
nossa família, é porque é algo que preocupação de levar as sementes pação com a qualidade de vida das (depoimentos de Vanilto
faz parte da nossa vida. É funda- para as aldeias. Assim, ela deixou pessoas, estava atenta se as pes- Camacho da Costa e Leila Cristine
mental que cada um cuide de sua suas marcas para nós, seja na defe- soas tinham o que comer.” Selini Dorce)
semente, isso seria uma benção”, sa das matas, na defesa do Cerrado
Além de distribuir sementes, Lu-
afirmava Lucinda pouco antes de e das nascentes. Lucinda tinha a
cinda ensinava que se plantar, terá
sua morte. capacidade de juntar pessoas à sua

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Araguaia-Tocantins

Firme como uma árvore


frondosa, leve como a luz

Maria Trindade Gomes Ferreira, ou “Convivi com Trindade por dez


carinhosamente conhecida apenas anos trabalhando na mesma sala,
por Trindade, era uma mulher ne- uma relação de respeito mútuo, ad-
gra, forte, acolhedora e sorridente, miração e aprendizados. A sua luta
sempre disposta a abraçar novas em defesa dos direitos dos povos
causas, desde que fossem as dos da terra e das águas sempre foi a
pobres e da terra. Trindade dedicou sua missão. Mas gostaria mesmo
metade de sua existência à CPT: de destacar o seu amor pela CPT, a
exatos 25 anos! Entre sul e norte do preocupação em criar espaços para
Tocantins, e uma incursão de qua- outras pessoas se apaixonarem
tro anos na Prelazia de São Félix do pelas causas da Pastoral da Terra,
Araguaia, Mato Grosso. incluindo principalmente as mu-
lheres e os/as jovens, sempre bus-
Foi uma ‘cpteana’ migrante e ca-
cando ser justa. Sou muito grata ao
minhante. Em suas andanças junto
universo pelo encontro, pelas lutas
aos desfavorecidos, partilhou com
que empreendemos juntas, pela
eles o seu gosto de ler e celebrar
amizade e pelos sonhos partilha-
a bíblia numa perspectiva liberta-
dos. Faz muita falta!”.
dora. Aprendeu, como advogada, a
(Maria Dos Anjos Sousa)
defender seus direitos a uma terra
e a uma vida digna, enfrentou os
Com pouca interrupção, desde
dragões da grilagem e dos grandes
1987, Trindade fez parte do Conse-
projetos que expulsam, concentram
lho Regional da CPT Araguaia-To-
e tiram a vida dos pobres. Também
cantins, quando ainda era também
se dedicou contra as armadilhas
tesoureira. Assumiu a coordenação
do trabalho escravo, tendo sido
do regional por três mandatos,
uma das primeiras a atuar em seu
entre 1999 e 2002, participando da
combate, no Tocantins. Por último,
coordenação colegiada tanto antes
assumiu a luta de Davi contra os
(1997-1998) como depois (2003-04
Golias: as empreiteiras da barragem
e 2006). Atuou no acompanhamen-
de Estreito e da Ferrovia Norte-Sul.
to direto de trabalhadores vítimas
Comprometeu-se, até seus últimos
de trabalho escravo no período de
dias de vida, na defesa dos rios e
1995 até 1998, já na Prelazia de São
dos povos do Cerrado.
Félix do Araguaia.

142 143
Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

carinhosa, Trindade, com certeza, amor, onde a paz é fruto da justiça”


as ações promovidas pela CPT e continua zelando pela árvore fron- (Edmundo Rodrigues)
pelo Centro de Direitos Humanos de dosa que plantou nesta terra, ani-
Como parte de suas ações na Araguaína, um centro que ela aju- mando nossa esperança de um país Trindade continua viva em nossas
Prelazia, apoiou a realização das dou a fundar nos anos 2000, pouco sem males, de uma terra partilhada e memórias, como uma pessoa bata-
primeiras ações da Campanha Na- depois de ter-se empenhado na de uma justiça que respeite o direito lhadora que lutou pelos pequenos
cional de Prevenção e Combate ao implantação da CPT em Araguaína. e se pauta na primazia da vida. da terra e nunca se deixou intimi-
Trabalho Escravo “De olho aberto dar, sempre buscando por justiça.
Trindade era muito querida e con- “Trindade era mulher, agente de
para não virar escravo”. Temos certeza que intercede por
tinua caminhando conosco... pastoral e advogada popular de nós e por todos aqueles pelos quais
“Trindade foi quem me acolheu na olhar sereno, mas de uma atuação sempre lutou.
“Conheci a Trindade nos anos 1980
CPT de Gurupi quando, a partir de firme e forte. Teu exemplo de vida,
quando era agente de pastoral da
1985, comecei a conhecer a CPT e, Trindade, nos faz esperançar para Continue caminhando conosco,
CPT em Gurupi, no Tocantins. Depois
a partir de 1989, me juntei à equipe continuar lutando por um mundo de Trindade!
tive a alegria de poder acompanhar
então formada por Henri, Sávio, Adi-
toda a sua trajetória: seus estudos
lar, Maria-Luiza e Trindade. Nos fa-
de Direito, sua formação como advo-
zem falta a teimosia e o sorriso, os
gada, sua defesa das comunidades
medos e a fé, às vezes a rispidez da
camponesas, seu trabalho na RENAP
Trindade, mulher de peito e também LEVEZA Como a aranha metalúrgica
[Rede Nacional de Advogados Popu- Firmando nas alturas da casa
de compaixão. Eu lembro como se Para Trindade
lares] de cuja fundação, acredito, ela Sua reluzente avenida de teias
fosse ontem suas palavras que tan-
participara. Trindade era uma pes- E replicantes mistérios
to me assustavam no início quando Do nada, a notícia, de que aí,
soa alegre, mas, por trás de seu ar no coração do mundo, No longínquo recanto da pobreza.
eu mal entendia sua fala impaciente
descontraído, era uma mulher cora- Você ficou leve sobre o corpo
e procurava entender até a língua: Você ficou leve como a luz
josa e uma advogada competente e Flutuando à sombra nos pequis
“Esqueça, Xavier! Esqueça!”. Tanto Que ondula sobre os leitos
obstinada. Eu conheci de perto seus E a água no veludo das auroras
que não vou esquecê-la.” Consagrada na solidão
familiares: Trindade era para eles um E o orvalho ainda Aqui, sem você, só um passar e um perder
(Xavier Plassat) apoio fundamental, particularmente Na arquitetura dos musgos. Um ir e um consumar.
Por um tempo, Trindade esteve para seus irmãos e sobrinhos, no seu
Você ficou leve, disseram, como o peixe Todo o povo toca o teu silêncio.
presente na colaboração com a tempo de adolescência. Acometida
Gasto de simplicidade Colhe a flor e oferece o sacramento.
promoção e execução de atividades por um câncer, ela demonstrou ao
Nas ancas verdes do rio Depois de você, Trindade,
de formação para trabalhadoras e longo da doença uma grande discri- que continuou, indiferente, Todo poema será capaz de fomentar
trabalhadores rurais sobre temas ção e uma imensa coragem. Era uma penteando os silêncios da relva. O sexo das árvores.
jurídicos envolvendo os aspectos grande amiga. Seus amigos advoga-
dos falavam dela como da “vitrina” Leve e clara como o regaço A sua leveza frequenta todos
da terra, da água, do trabalho as- e aquele seu sorriso imenso
de seu time: pois era muito bonita...” os destinos.
salariado e do trabalho no campo. consolando
Atuou também com o direito das (Frei Henri) o açoite de um lágrima
mulheres e das crianças, integrou o Noite adentro. Jelson Oliveira
Honrando as virtudes que recebeu
Movimento em Defesa dos Rios Ara-
de uma família também lutadora e
guaia e Tocantins e contribuiu com

144 145
Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Rondônia
Trajetória que inspira
Adilson Alves Machado, 50 anos, é da Reforma Agrária e do Cerrado. Sua
filho de Maria dos Santos Machado e trajetória como agente da CPT na região
de Benedito Machado Filho. O pequeno do Cone Sul/Rondônia começa em 2008,
agricultor veio do Paraná para Rondônia quando torna-se um dos conselheiros
acompanhando seus pais, como muitas regionais e membro da coordenação por
famílias na década de 1970, migrantes dois anos seguidos, e continua atuando
amazônicos, em busca de um pedaço de como agente em situações de conflito
chão para viverem. Desde criança viveu agrário. Em sua trajetória de militância
em assentamentos e sua família enfren- guerreira, Adilson foi também presidente
tou uma longa jornada até chegar nas da Associação dos Pequenos Produto-
áreas de transição entre os domínios da res Rurais de Águas Claras (APRAC) e fez
floresta amazônica e do cerrado rondo- parte do Conselho de Desenvolvimento
niense. Adilson morou na cidade com a Rural de Vilhena.
família, onde trabalhou como emprega-
Com pulso forte, ao longo do tem-
do até conseguir sua própria terra.
po se firmou como uma das principais
Para isto, em 2003, com sua esposa lideranças de sua região. Hoje, é um dos
Sueli e filhos, passou a morar em um maiores lutadores pelo direito dos po-
acampamento sem-terra até consegui- bres à terra e se coloca em defesa da
rem a terra e se tornarem assentados. agroecologia como modelo de produ-
Ele e sua família permanecem até os dias ção camponesa, contra o desmatamen-
de hoje no Assentamento Águas Claras, to do Cerrado e da Amazônia. Em uma
em Vilhena, onde resistem cotidiana- árdua mas constante atuação, está
mente às ameaças do agronegócio, que sempre de pé para o enfrentamento
gera conflitos e condena a vegetação, a das agressões do agronegócio contra o
água, os roçados e as pessoas. Ampara- Cerrado e seus povos.
do na fé e na esperança, Adilson se man-
Diz ele: “O agronegócio está desma-
tém firme cultivando a terra e tecendo
tando, acabando, destruindo, abrin-
contra-narrativas ao agronegócio.
do valas, drenando as margens do rio
“A situação é complicada, há o con- Guaporé, na fronteira com a Bolívia, nos
flito de terras alarmante, despejo em municípios de Pimenteiras, Cabixi, Cere-
plena pandemia, mortes e chacinas. É jeiras, Corumbiara, em áreas de reservas
difícil ser agricultor nessa região e ter das regiões do Cerrado. As APPs [Áreas
que conviver com agrotóxicos, contami- de Proteção Permanente] estão sendo
nação das águas, doenças e persegui- drenadas para a expansão de soja. A
ção”, conta ele. conscientização e educação social é
uma ferramenta muito importante em
Em 2004 conheceu a Comissão Pasto-
defesa dos povos e do Cerrado.”
ral da Terra (CPT) e desde então, atra-
vés dela, se dedica a ações em defesa

146 147
Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Mato Grosso

Agente de pastoral e defensor


das águas do Cerrado
Baltazar Ferreira de Melo, tam- o pé no chão. Um grande mestre,
bém conhecido como Balta, nas- exemplo a ser seguido com seus
ceu em 27 de dezembro de 1950, conhecimentos adquiridos ao longo
em Jacuí, Minas Gerais. É filho dos da vida. Balta tem um ensinamen-
camponeses Alfredo Ferreira de to que sempre marca por onde ele
Melo e Francisca Cândida da Silva. passa, em sua fala ele sempre diz,
Balta iniciou sua militância sendo “plantar árvore para colher água” .
presidente do bairro Vila Itamara- (Edmar, CPT/MT)
ty, em Rondonópolis, Mato Grosso, Em sua trajetória de vida, Balta se
bairro que ajudou a fundar através tornou especialista na recuperação
de mutirões para a construção das de nascentes de córregos e rios
casas. Ali mesmo fundou o Partido mato-grossenses. Ele acredita que
dos Trabalhadores (PT). esse é um trabalho de formigui-
Na década de 1980, Baltazar nhas, mas de grande valor, que tem
iniciou seu trabalho na CPT. Foi um sido encabeçada pela CPT no esta-
dos agentes fundadores do regio- do e realizada por diversas entida-
nal Mato Grosso, onde permanece des e grupos de apoio em parceria
até os dias de hoje assumindo o com as comunidades. “Recuperar
trabalho de apoio às comunidades nascentes devolve à natureza a
tradicionais e a luta pela reforma possibilidade dos rios, que cortam
agrária. Em 1983, quando assesso- comunidades e abastecem as cida-
rava as famílias do Assentamento des, voltarem a correr água limpa
Gleba Rio Vermelho, foi ameaçado para saciar a sede dos humanos e
de morte e precisou sair de Rondo- animais”, prega ele.
nópolis com a família para morar em Para Baltazar, “cada nascente
Cuiabá. é diferente uma da outra, como a
gente. Algumas, a gente percebe
“Louvado sejas, meu “Eu conheci Balta em 2016, e des-
de então, só tive grandes aprendi- que só precisam de proteção, outras

Senhor, pela irmã água, zados, no trabalho, mas, principal-


mente de vida. Ele é uma pessoa
de reflorestar e fazer a contenção
para não entrar em enxurrada, por
que é tão útil e humilde, com grandes conhecimentos e exemplo, ou para conter erosões.
Mas, no geral, o cercamento ajuda
muito centrado na pessoa que é,
preciosa e casta” em suas ações e falas, sempre com muito”. Ele acredita que, para garan-

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Mato Grosso

tir a conservação das nascentes, é também no município de Rondo-


preciso combater o modelo de pro- nópolis, onde são refletidas estas
dução que capta água de forma irre- experiências.
gular para irrigar monocultivos dos
“A história de vida de Baltazar
latifúndios, degradando as fontes
inspirou a minha vida e inspirou as
de água, seja por conta das planta-
comunidades em que a CPT Mato
ções em larga escala, do gado ou do
Grosso trabalha. Eu conheci Balta
desmatamento desenfreado.
há nove anos, já no trabalho da CPT.
Entre os trabalhos desenvolvidos E desde então, ouço ele falar das
por Balta está o mapeamento das nascentes do Cerrado, da produ-
nascentes do município de Rondo- ção agroecológica e da Romaria
nópolis, onde foram identificadas do Cerrado. Ele respira a defesa do
aproximadamente mil nascentes que Cerrado, respira uma produção de
precisam de algum tipo de proteção. forma agroecológica. Ele prega e
“Essa ideia de cuidar das nascen- vive na prática o que defende, e
tes já vem de muito tempo. Depois acredita veementemente no que
que começamos a discutir sobre faz. Nós o chamamos de Balta e
agroecologia, percebemos que esse Baltinha, porque é um ser de muita
modelo de produção agroecológica luz e muita sabedoria. O trabalho de
está ligado a tudo. E eu observava a recuperação de nascente que Balta
situação das nascentes, que cada faz, especialmente na região sul do
vez mais estão diminuindo”, diz ele. estado, garante água para muitas
famílias. Balta é uma pessoa muito
Baltazar já animou muitas ações
simples na forma como age e como
de recuperação de nascentes no
fala, e tudo que ele traz na fala e na
município, como nas comunidades
ação é muito verdadeiro, muito sin-
Olga Benário, Bananal e 17 de março,
cero. Defender o Cerrado é literal-
onde já foram recuperadas mais de
mente sua bandeira de luta, porque
80 olhos d’água. Todo esse trabalho
ele faz extrativismo dos frutos, cui-
é desenvolvido em mutirão, envol-
da das plantas medicinais e através
vendo todo um processo de forma-
delas cuida dele e dos outros”.
ção coletiva e muita disposição dos
trabalhadores e trabalhadoras rurais. (Aline Mialho, CPT/MT)
A partir de seu trabalho, a recupera- Baltazar é luz e inspiração.
ção de nascentes do Cerrado tem se
espalhado para outros municípios e Texto editado com a colaboração
estados brasileiros. de Fátima Aparecida de Melo, filha
Outra importante contribuição é de Baltazar
a animação da Romaria do Cerrado,

150 151
Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

comunidades rurais. Foi quando ela


Solidariedade é começou a conhecer a realidade
camponesa, uma realidade que era

o que representa Vera distante do que vivia em seu coti-


diano. Vera se apaixonou pelo tra-
jas, na criação do grupo de jovens,
balho e trouxe em sua fala, durante
e também ajudavam as mulheres
anos, o quanto aprendeu em sua
parturientes sem acesso à cidade, já
caminhada na CPT. Começou a olhar,
que muitas vezes não havia parteira
Inspirada nas vidas de São Vicen- Durante dez anos, morou no Co- principalmente, para as mulheres
nas proximidades.
te de Paula e Santa Luzia, a carioca légio Santa Isabel, onde a formação camponesas, ouvindo-as, sentindo
Vera Maria Lobo abandonou o con- adquirida fez reforçar o ideário de o chão em que pisavam, a partir das
Vera sempre esteve envolvida em
forto da sua família de classe média trabalhar pelo próximo. Acometida falas, sempre acolhendo e viven-
todos os espaços nas comunida-
para ganhar o Brasil, em defesa dos por um câncer linfático – Doença ciando isso no trabalho da Pastoral.
des. Sua chegada na CPT trouxe
mais pobres. de Hodgkin – viu-se obrigada a vol-
Vera teve a oportunidade de uma grande representatividade,
tar para casa e se recuperar.
Renasceu por duas vezes: a contribuir com o movimento das pois foi a primeira mulher a assumir
primeira, na favela, e a segunda, Vera formou-se professora e Comunidades Eclesiais de Base no a coordenação, a única mulher em
no meio rural, onde viveu o sonho achou que nunca seria outra coisa estado do Mato Grosso, atuando um grupo de três homens. Sempre
de construir um mundo cada vez na vida. Entretanto, ficava inquie- principalmente nos municípios de nos ensinou e ensina muito, a todo
melhor para as pessoas. Descen- ta sempre que espichava os olhos Jangada, Acorizal e Nossa Senhora momento, nas comunidades ou por
dente de orientais, Vera nasceu em para os morros da cidade se lem- do Livramento. Ela, Irmã Dagmar e onde passa. Deixou a sua sementi-
meio ao frescor das montanhas de brava de tanta pobreza. Veio, então, Irmã Angela, juntas, fizeram morada nha plantada, para crescer e ger-
Petrópolis, no Rio de Janeiro, em 26 o Concílio Vaticano II, no início dos em Acorizal. Na época as famílias minar no caminho da sabedoria, da
de abril de 1941. A mãe era filha de anos 60, trazendo a mensagem de viviam em uma situação comple- luta e pela fé.
libaneses. O pai, sírio, veio para o aproximação entre a Igreja e os tamente insalubre, não havia sa-
Brasil durante a guerra de 1914. fiéis. Foi o ponto de virada em sua neamento básico ou banheiro em
vida. Vera acredita que o concí- suas casas. Aos poucos, através
Ainda bem nova, envolveu-se com
lio estimulou que a vida religiosa de mutirões e utilizando o salário
a vida religiosa. Conheceu a pobre-
voltasse às origens, com um gran- que recebiam da congregação,
za dos morros de Petrópolis e pôde
de foco na dedicação aos pobres. foram construindo casas e banhei-
constatar o sofrimento do povo.
Começava, assim, o movimento para ros para as famílias que viviam em
Em meio às atividades religiosas
a formação das Comunidades Ecle- situações de extrema vulnerabili-
conheceu a vida de São Vicente e
siais de Base no Brasil. (Dez mulhe- dade social no município.
Santa Luiza e sentiu necessidade
res, muitas vidas - Scheilla Gumes e
de se dedicar aos mais pobres. En- O desbravamento de Irmã Vera,
Andenor Gondim).
trou para a Companhia das Filhas da contando com a fé e a espiritualida-
Caridade, no Rio de Janeiro. Já em Acorizal, no interior de Mato de do povo, contribuiu muito com o
Grosso, Irmã Vera foi procurada pela trabalho das Irmãs. Elas ajudavam na
CPT para começar a trabalhar com catequese, na construção de igre-

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Piauí

Um guerreiro junto ao povo

Padre John Antunes Myers, co- “Pela era de 89, apareceu esse
nhecido por Padre João, é irlandês e padre aqui, não era brasileiro, ele
nos anos 1950, com apenas 29 anos é da Irlanda. A minha comunidade,
de idade, emigrou para o Brasil para Barra do Correntin, foi fundada
desenvolver ações missionárias dos por ele na década de 1990. Para as
padres redentoristas. Pe. João vem comunidades daqui ele foi um pai,
dedicando grande parte de sua uma mãe, um prefeito e um gover-
vida aos povos do Cerrado. Em ter- nador. A fazenda Aroeira, da Tangi-
ras brasileiras, sua primeira missão ca, foi vendida com o pessoal todo
foi em Goiânia, Goiás; na sequência, dentro, o fazendeiro Braga tirou
passou atuar no interior do estado, todos nós de dentro e queimou
na cidade de Pedro Afonso, hoje as 17 casas. Nesse tempo a justiça
estado de Tocantins; mais tarde era dos ricos, não dos pobres. E Pe.
mudou-se para a Diocese de Jua- João foi até ameaçado de morte
zeiro, na Bahia, para atuar em Pilão por conta disso. Com apoio de Pe.
Arcado; e em 1978, mudou-se para João conseguimos fundar a co-
Santa Filomena, na Diocese de Bom munidade Barra do Corretin, onde
Jesus do Gurguéia, no Piauí. moramos até hoje”. (Antônio James,
da comunidade Barra do Correntin)
Nos Cerrados piauienses, Pe. João
é considerado um grande homem, Além de celebrar os sacramentos
generoso, pai e defensor implacá- e animar as Santas Missões e as
vel dos pequenos e pobres. Através devoções populares, Pe. João abriu
das “desobrigas, ministrou os sa- trilhas nas chapadas para levar seu
cramentos em diversas comunida- apoio às comunidades tradicionais,
des rurais nos municípios de Uruçuí, contribuiu para a erradicação do
Ribeiro Gonçalves, Baixa Grande analfabetismo nas comunidades
do Ribeiro, parte de Gilbués, Monte rurais e lutou pela construção de
Alegre, Currais, Bom Jesus e ainda estradas vicinais, pontes, pequenos
em Tasso Fragoso, no Maranhão, açudes, poços artesianos, e pela
tornando-se padrinho de muitas comercialização dos produtos das
crianças da região. comunidades rurais. Ele sentia a dor

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

CPT Minas Gerais

dos pobres e agia para amenizar o “Nós agradecemos muito pelo


sofrimento, ao mesmo tempo em que que Pe. João fez por nós. Nós
mobilizava apoios emergenciais para aprendemos ler quando ele trazia
as famílias carentes por meio de en- os professores nos meses de ja-
trega de alimentos, remédios, roupas neiro e julho, nos meses de férias
e condução de pessoas doentes os professores ensinavam. Aqui
para postos de atendimento médico. era sofrido, não tinha venda, aí Pe.
João construiu estradas, e trazia
“Se seu sei lê hoje é graças a Pe. as coisas e montava vendinha com
João, que trazia no seu Jipe profes- as coisas mais baratas para nós.
sores do Ceará. Mesmo com tempos Hoje nós sentimos muita falta dele,
de chuvas, ele trazia os profes- temos saudades, e sentimos muito
sores. Nós, os adultos e crianças por não termos a capacidade de
temos muito a agradecer o trabalho trazer a juventude para ele”.
dele. Foi um guerreiro, lutou demais
(Zuleide Alves da Silva, Assenta-
pelos povos da Barra do Correntin.
mento Rio Preto)
Agradecemos a Deus e Pe. João por
todo apoio. Pois mesmo nos tempos Recentemente, apesar dos seus
de guerra, quando colocaram fogo 100 anos de idade, Pe. João viveu
nas casas, Pe. João não nos aban- uma vida modesta na comunidade
donou, sempre esteve junto, lutan- rural de Santa Fé, no município de
do por nós”. Santa Filomena, onde se dedicou ao
(Manoel Salvador Alves da Silva, trabalho pastoral junto às comuni-
da comunidade Araças) dades vizinhas.

Atualmente, vive em plena cons-


ciência mental em Fortaleza, Ceará,
aos cuidados de uma família amiga.

Texto editado a partir da


colaboração de Mercês Alves,
Jeones dos Santos, Almezir da Silva
e Pe. Izaias Pereira

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Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

Alvimar Ribeiro, Pai Mestre,


8 13 18
A previsão de um profeta O Pequi com Luiz Chaves Mas lhe faltava uma coisa

Professor e Profeta
Do matuto inovador Kojac, Tatá e Maguila A qual desejava ter
Salve verde e as águas Sônia, Carlúcia e outros Era trazer para perto
Do homem devastador Pessoal que não se grila Lá do MST
E preservem a natureza Era toda boa gente Um grupo de cabras fortes
Fez do ato o seu clamor. Que só na luta burila. Para a luta promover.
Literatura de Cordel 4
Autor: MESTRE Carlos De filhos tiveram quatros 9 14 19
Azevedo Frutos dessa união A história desse bravo Foi nos idos de oitenta E tinha o Júlio Miranda
Dos quarenta e um anos Descrevo nesse cordel Que ao CPT se juntou Com questão a levantar
ALVIMAR RIBEIRO Em perfeita comunhão No sertão norte mineiro Pois a luta pela terra A mando de fazendeiros
Que depois deixou saudades Fez fama de tabaréu Aos grandesses assentou Tentando se suplantar
1 No fundo do coração. Avilmar era prendado Em um norte de conflitos Para impedir a reforma
Nascido nesse sertão Debateu com bacharel. Mesmo assim ele intentou. De no Norte se implantar.
Cidade de Bocaiúva 5
Mudou para Montes Claros E gostava de comida 10 15 20
Que o aderiu igual luva Rapadura e farinha No seu labor de pedreiro Januária era cenário O corpo tira da cova
E venceu dificuldades E de andu com torresmo Construiu um edifício De muita briga e de morte Pra fazer exumação
Amansando “Taituva”. E de fritar uma carninha O nome é Montes Claros Pensar em posse de terra Peritos e logo ali
Jurubeba e catuaba Com suor e sacrifício É mexer com o mais forte Alvimar de prontidão
2 Amargoza da caninha. Junto com quinhentos Pistolas e bacamartes A perícia se completa
O seu pai foi Joaquim homens Eram quem ditavam a sorte. É história do sertão.
Sua mãe a dona Augusta 6 Fez honra no seu ofício.
Um povo trabalhador Do esteio do cerrado 16 21
De família boa e justa De uma boa feijoada 11 Alvimar muito empenhado Lá em Buriti de Minas
Que buscava o sustento Mocotó e pururuca E nas lutas sindicais Inicia a caminhada Chegam Paulo e Alvimar
Vivendo da própria custa. Também a vaca atolada Pelo povo trovejou Andando por essa terra Depois tiveram a ideia
Queijo, café com beiju Na CUT foi testemunha Ao longo dessa jornada E buscaram praticar
3 E uma boa garapada. Quando a coisa arrojou Conversando com o povo Convenceram os de Brasília
Conheceu a moça Lúcia Com cautela e simpatia Deixando a turma animada. A descer para somar.
Por ela se apaixonou 7 Um a um encorajou.
Lúcia era meiga e bela Para o meio ambiente 17
E um olhar acionou Que fez uma romaria 12 Profeta mestre e bom pai
Foi paixão pra toda vida Às margens do São Francisco E nas empresas Malvinas E professor competente
Que o casório selou. Prevenindo o que viria Encarou bem muito mais Conheceu o chão batido
Salve as matas ciliares Sindicato e CPT Encarou o tiro quente
Se não o Chico morria. Enfrentando os carrascais Na demanda do sertão
Pelo campo e na cidade Avilmar se fez presente.
Combatendo os chacais.

158 159
Homenagem às lutadoras e aos lutadores do Cerrado

22 25 29
O local é Senharó Sua luta pela vida A CPT sente a falta
De luta de companheiro Devido a um mal repentino Do profeta e professor
Para garantir a posse Buscou vencer a doença Alvimar que tinha calma
Contra o maldito dinheiro Com a fé de um menino Trabalhando com amor
O povo é quem ganha Segurando firme em Deus Mesmo se pegasse fogo
a luta E cumprindo o seu destino. Ele agia com esplendor.
Quem perde é o fazendeiro.
26 30
23 O povo então se comove Homenagens foram várias
Esse assentamento firme Na lida de um obreiro Que Avilmar obtivera
Enfrentou até a morte Se põe à disposição Rosas lindas e com rigor
Por aqui no meu sertão Romaria tem romeiro Do frio que lhes espera
Ousadia é passaporte A Malhada comovida Ah quem me dera revê-lo
Vou falar o nome dele Por Alvimar seu guerreiro. Utopia ou quimera.
Foi o Estrela do Norte.
27 31
24 O sonho do diaconato Os colegas que atestam
Estudou teologia Foi ficando para trás A história relatada
Para ter conhecimento A doença o maltratando No verso desse cordel
Ligado à religião Feito peçonha voraz De forma elaborada
Sendo bom ou mau Que a vitória é de Deus De um grande professor
momento Derrota é de satanás. Que fez jus sua alvorada.
Aspirou a ser diácono
Sua fé foi seu sustento. 28 32
Avilmar aqui deixou Pois a luta continua
Seu legado e fez passagem Pelo Norte e Noroeste
Foi para junto do pai Resistência é um lema
Lá para outra paragem Desafio à fome e à peste
Hoje está junto de Deus Na caatinga e no cerrado
Numa nova hospedagem. E no campo do agreste

33
Viva sempre Alvimar
Que foi um cabra decente
Encarou a besta fera
Sendo ágil e coerente
Sua partida lastima
Mas deixou sua semente.

160
Os artigos que compõem este livro têm como
proposta apresentar aos leitores e às leitoras um
Cerrado-Povo-territórios de vidas forjados nas vastas
chapadas de gramíneas, de pequenas árvores tortas
e nos cursos de águas cristalinas. Um ecossistema
que vem sendo devastado pela expansão/invasão do
capital nacional e internacional, materializado nesses
sertões por meio do agronegócio e seus projetos
de morte.
As análises destacam a natureza e as formas de
violência presentes nos conflitos no campo desde
do período da Ditadura Civil-Militar e, de forma mais
sistemática, apresentam no tempo e no espaço, as
singularidades do Cerrado nos conflitos de 1985 a
2021. Trata-se de uma publicação que é denúncia,
mas também memória de lutas por justiça e anúncio
de existências e resistências de diversos povos
embrenhados nos chãos dos Cerrados.

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