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Beatriz Nascimento - Caminhos de Uma Intelectual Quilombola. Artigo Marina Santos
Beatriz Nascimento - Caminhos de Uma Intelectual Quilombola. Artigo Marina Santos
Beatriz Nascimento - Caminhos de Uma Intelectual Quilombola. Artigo Marina Santos
Resumo
Este trabalho tem por objetivo analisar traços da vida e da obra da historiadora
sergipana Beatriz Nascimento. Nele, seguiremos dois grandes eixos em torno dos
quais seus trabalhos foram estruturados: a conceituação de quilombo e as
subjetividades negras. É, pois, necessário apresentar sua trajetória acadêmica,
intelectual, política e artística, a partir da análise dos trabalhos publicados por ela em
jornais e revistas entre as décadas de 1970 e 1990, bem como outros escritos
publicados postumamente. Sua obra engloba gêneros diversos como poesia,
aforismos, relatórios, crítica historiográfica, projetos de pesquisa, roteiro
cinematográfico, entre outros. Muitos desses textos foram reunidos e publicados em
três livros: Eu sou atlântica (2006) – com Alex Ratts, Todas as distâncias: poemas,
aforismos e ensaios (2015) e Beatriz Nascimento: quilombola e intelectual (2018).
Tendo sua vida interrompida precocemente, Beatriz Nascimento nos facilita a
compreensão de suas inquietações por meio de uma escrita autoetnográfica, onde as
narrativas de si e os seus processos subjetivos eram sempre relacionados ao campo
epistemológico historiográfico mostrando como as questões referentes ao
entendimento do negro nas esferas política e acadêmica se refletem no inconsciente
coletivo brasileiro, gerando racismo e desigualdade social. Nesse viés, a autora
denuncia o apagamento das memórias sobre os povos negros no Brasil e propõe a
ideia de um “continuum histórico” entre a África e o Brasil por meio do conceito de
“quilombo”, apontado como um território físico, existencial e psíquico por meio do qual
seria possível preservar os ideais e modos de vida trazidos ao Brasil pelos africanos
escravizados.
Palavras-chave: Beatriz Nascimento; quilombo; intelectual negra.
Introdução
Iniciarei esse texto, fazendo minhas as palavras de Anin Urasse, que no
prefácio ao livro Beatriz Nascimento: quilombola e intelectual, publicado pela editora
Filhos da África em 2018 disse: Meu quilombismo, minha quilombagem, Mameto, é ler
você.
Ler Beatriz Nascimento, é encontrar um lugar de refúgio, é um encontro com o
meu eu negro. Beatriz traz em seus escritos a denúncia ao etnocentrismo e ao
privilégio macho e branco na escrita da história, nas políticas sociais, nas relações
acadêmicas, nas práticas da vida cotidiana.
Foi uma mulher negra intelectual de esperteza, sensibilidade e criatividade. Ela era
uma mulher negra, forte e poética.
O quilombo pra Beatriz Nascimento é pensado enquanto um espaço físico que
atravessou diversas ressignificações ao longo do tempo dentro do contexto afro-
diaspórico. Para ela o quilombo além de ser um espaço físico de refúgio, preservação
de memórias, valores e costumes dos povos africanos, era pensado enquanto
possibilidade de afirmação da vida, culminando com a ideia de um território psíquico
de auto cuidado, criação e ressignificação estética da vida dentro de um sistema de
opressão e subjugação dos povos negros.
Esse trabalho foi feito a partir da análise dos textos publicados por Beatriz
Nascimento entre em jornais e revistas entre as décadas de 1970 e 1990, bem como
outros escritos publicados postumamente. Seus textos foram reunidos e publicados
em três livros: Eu sou atlântica (2006) – com Alex Ratts, Todas as distâncias: poemas,
aforismos e ensaios (2015) e Beatriz Nascimento: quilombola e intelectual (2018).
Além desses, Beatriz escreveu também um roteiro para um documentário intitulado
Orí (1989).
Seguindo o método de análise do discurso de Foucault, tem-se por objetivo
analisar traços da vida e da obra da historiadora sergipana Beatriz Nascimento.
Apresentaremos sua trajetória acadêmica, intelectual, política e artística, a partir da
análise dos trabalhos publicados por ela, cartografando assim suas subjetividades e
inquietações. Seguiremos assim dois eixos principais de sua obra: a conceituação de
quilombo e as subjetividades negras.
Sua obra engloba gêneros diversos como poesia, aforismos, relatórios, crítica
historiográfica, projetos de pesquisa, roteiro cinematográfico, entre outros. Beatriz
Nascimento partia sempre do ponto de vista do povo negro, elencando principalmente
suas próprias vivências, o que nos ajuda na compreensão de suas subjetividades.
As narrativas de si e os processos subjetivos da historiadora eram sempre
relacionados ao campo epistemológico historiográfico mostrando como as questões
referentes ao entendimento do negro nas esferas política e acadêmica se refletem no
inconsciente coletivo brasileiro, gerando racismo e desigualdade social.
Beatriz Nascimento denuncia o apagamento das memórias sobre os negros no
Brasil apontando a necessidade de se reescrever a história com base na ideia de um
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Métodos e influências
Sempre muito antenada, Beatriz Nascimento lia de tudo que tinha de mais
atual. Leitora crítica de autores “clássicos” dos estudos raciais e étnicos, a exemplo
de Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Artur Ramos, Edson Carneiro e Florestan
Fernandes, entre outros. Ao mesmo tempo que dialogava com autores como Clovis
Moura e Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e Neuza Santos Souza.
Quanto ao seu método de pesquisa e escrita estes demonstram um rigor
historiográfico, ainda que para isso ela precise se valer de outros métodos, afim de
serem alcançados os objetivos de suas pesquisas. Sendo assim, ao longo de seu
trabalho, Nascimento desenvolve demonstra proficuidade no trato com
documentações arquivística, mas não limita-se aos documentos: recorre à história oral
e ao método antropológico sempre que faltam fontes escritas, rompendo com a dureza
do campo historiográfico.
Já desde os seus primeiros estudos, Nascimento adota uma metodologia
híbrida de pesquisa, com o uso de outo-etnografia e da história oral para além da
pesquisa documental. Sabemos que esses métodos são alvo de crítica por parte de
uma corrente mais tradicional do campo historiográfico, sendo assim, pode-se
considerar que a escrita de Beatriz Nascimento representa uma quebra de
paradigmas, em nome do que ela mesmo chamou de “movimento da história”, afim de
trazer à tona questões sobre as quais os documentos calam.
Nesse entendimento, podemos apontar seu envolvimento com o seu objeto de
análise como uma inovação ao campo da escrita da história nos anos 1970. Beatriz
partia de uma análise de sua própria condição de mulher, negra e periférica, que teve
uma infância marcada por abuso e pela discriminação. Esses aspectos de sua
trajetória são relacionados por ela à herança da escravidão e da subsequente
condição de inferioridade a que o negro foi submetido no Brasil.
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Ela então traça um pensamento inovador que passou por diversas modulações
à medida que incorporava novas influências teóricas ao seu pensamento. Dentro do
movimento negro, ela opta por um pensamento independente, se afastando de um
pensamento romanizado acerca das trajetórias negras tanto na África quanto no
Brasil. Sempre levantando a bandeira do quilombismo e do povo negro, numa luta que
guerreou muitas vezes sozinha, pois dentro da academia foi discriminada chegando a
ser vista como desequilibrada mental.
Preocupou-se pois com a condição da mulher negra na sociedade brasileira,
partindo sempre de questões que a perpassavam, como o lugar e o corpo da mulher
negra. Em diversos textos, tanto acadêmicos quanto poéticos, ela expressa seu
mulherismo, trazendo a ideia do corpo da mulher enquanto lugar sagrado pela dom
da reprodução e enquanto símbolo de força e resistência.
Critica a escola marxista, em seus estudos referente ao negro, desde a década
de 1970 Nascimento reivindica a necessidade de que sejam considerados os aspetos
particulares das experiências negras, por entender que os estudos sobre a sociedade
de classes não dá conta de abarcar as questões individuais dos sujeitos negros, que
extrapolam os processos sócio econômicos.
Nos anos 1980 sua escrita passa a apresentar influências do pensamento
psicanalítico. Ela publica o texto intitulado The ''Negro" Inside, no Vilage Voice, de
Nova Iorque, em março de 1982. Esse texto começa a apresentar, possui fortes
influências das ideias decoloniais do pensamento psicanalítico de Frantz Fanon. No
livro Peles Pretas Máscaras Brancas (2008), Fanon analisa diversas situações de
racismo, assim como obras teóricas e literárias.
A partir dessas análises, ele aponta as dificuldades que os sujeitos negros
enfrentam em constituírem-se enquanto agentes de sua própria história. Nesse
processo de silenciamento de suas origens e de negação de seu corpo e sua cultura,
o negro sofre um processo de alienação social. Numa sociedade em que a regra de
humanidade é branca, o indivíduo que não se comportar como branco, não passa pelo
crivo imposto pela sociedade, logo, toda vez que o negro tenta imitar o branco para
ser aceito como humano, irá deparar-se com a barreira da cor. Comportar-se como
branco é portanto uma estratégia de sobrevivência. As máscaras são nesse caso, os
mecanismos usados pelos indivíduos em busca de aceitação social, para livrar-se do
peso que a negritude representa em uma sociedade racista.
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Ao mesmo tempo o autor salienta que sua luta não é contra o homem europeu,
nem contra a cultura europeia, mas contra os mecanismos políticos e ideológicos do
colonialismo que hierarquizam os seres humanos e as diferentes culturas. Ao
estabelecer o branco como padrão estético de belo e bom, a ideologia ocidental
introjeta na cabeça dos que não se enquadram nesse padrão o sentimento de
inferioridade. Segundo Fanon esse é um processo de via dupla: “inicialmente
econômico; em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa
inferioridade”.
Beatriz Nascimento narra diversos casos vivenciados por ela em lugares
públicos, em brincadeiras de infância trazendo questionamentos como a questão da
perda de si, a introjeção do branqueamento e a ideia das máscaras.
Nos anos 1990 Nascimento se aproxima de autores pós modernos da chamada
filosofia da diferença, introduzindo em sua escrita conceitos como devir, diferença,
multiplicidade, territorialidade existencial, desterritorialização, minorias, entre outros.
Influenciada por autores como Nietzsche, Deleuze, Guattari e Foucault, ela apresenta
a ideia do que chamamos hoje de lugar de fala, ao dizer que parte de um lugar que é
o lugar de sua etnia, sua subjetividade e sua herança social.
Influenciada por essa vertente ela passa a defender um olhar acentrado sobre o
negro, passando a usar o conceito de subjetividades para tratar de suas
especificidades: “Sinto-me sempre escrevendo de mim, mas esse mim contém muitos
outros, então escrevo de um coletivo sobre e para essa coletivização” (NASCIMENTO,
2018, p. 420). Nascimento coloca-se como objeto de sua própria análise, ressaltando
a necessidade de serem analisados os conceitos utilizados na relação com o negro.
Ela critica a falta de profundidade com que as relações raciais no Brasil são
analisadas, sendo posta em comparação com outros países ou analisadas
simplesmente do ponto de vista sócio econômico, e de sermos ainda analisados
sempre a partir do ponto de vista da classe dominante, com posicionamentos
impregnados de sua cultura e seus padrões de pureza, beleza e de sua própria
linguagem e aspirações, imputando-nos uma consciência e uma moral que é deles, a
respeito do que ela elucida:
fracassadas e a ideia de que eles simbolizavam uma fuga da luta contra o sistema e
não uma forma de resistência, e portanto teriam pouca importância. Para Beatriz, os
quilombos não são instituições fracassadas, ao contrário, eles sobreviviam bastante
tempo, eram organizados, planejados estrategicamente para poder sobreviver
paralelamente ao regime colonial, e chegavam a acolher milhares de pessoas.
empreender uma vida própria deles, com cultura própria, com relações
próprias, e mostrar que hoje em dia talvez eles ainda tenham esse tipo de
organização própria, de relações próprias, e um dos grandes trabalhos que
ele tem que fazer seja realmente de se conscientizar dessa sua posição
diante do mundo e tentar botar para fora essa organização que ainda persiste
ao nível das relações entre si e dos grupos negros. (NASCIMENTO, 2018, p.
130)
cultura e que inferioriza a experiência do Outro, ao tempo que se diz imparcial. Quando
esse saber engessado em si mesmo lança seu olhar sobre o que considera subalterno,
distorce a imagem produzindo um discurso de dominação que só serve aos seus
próprios interesses.
No documentário Orí (1989), Nascimento se diz chocada com o eterno estudo
da escravidão dentro da academia, como se o homem negro, em toda a história do
Brasil, tivesse participado apenas como mão de obra escrava nas fazendas e
minerações. Essa visão produzida nas pesquisas acadêmicas, se refletiu no que tem
sido escrito nos livros didáticos, ensinado nas escolas, reproduzindo a negação
cultural da matriz africana, apagando a marca da religião, das revoltas escravas e do
pensamento, que influenciaram a formação do Brasil.
Nascimento propõe que se busque uma metodologia diferente para estudar a
História do Negro no Brasil, com outros conceitos, que renunciam os universalizados
pela voz dominante. Uma análise que busque identificar em nós mesmos, negros
brasileiros, os elementos de auto enunciação, afim de que nos afastemos de
mentalidades da cultura dominante que nos foram incutidos e que muitas vezes
passam despercebidos, afim de que nos inteiremos de uma consciência histórica
como sujeitos ativos, emancipados do ponto de vista teórico interpretativo, enquanto
participantes e não como vítimas ou como sujeitos dependentes das definições
propostas pelo olhar dominante.
O silenciamento imposto pela cultura europeia pode ser considerado com um
dos dispositivos do colonialismo, de manter culturas subalternizadas, relegando-as ao
esquecimento. O silêncio gera o desconhecimento, este por sua vez alimenta o
preconceito que se reproduz em todas as esferas do fazer social, seja nas artes, na
ciências, na vida quotidiana, na academia de homens letrados, na escrita da história.
Nascimento defende então, enquanto metodologia de análise sobre os
quilombos, um estudo que estabeleça uma relação de continuidade com o sentido de
desfazer o hiato histórico que provocou uma ruptura do negro com o seu passado.
Nessa perspectiva, o quilombo representa a união com a nossa ancestralidade, que
foi ofuscada pelo lapso temporal e espacial promovida pelos fluxos diaspóricos.
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Considerações finais
Como vimos, o quilombo pra Beatriz Nascimento representa uma multiplicidade
de significados que foram variando ao longo do tempo dentro do contexto afro-
diaspórico. Além de ser considerado um espaço físico onde os negros se refugiavam,
e desenvolviam suas práticas sociais, preservando as memórias, valores e costumes
dos povos africanos, Nascimento o pensava também enquanto território psíquico que
possibilita de afirmação da vida, criação e ressignificação estética dentro de um
sistema que oprime os povos negros.
Por meio da trajetória e da análise dos trabalhos publicados por Nascimento,
foi possível traçar um mapa de suas subjetividades e inquietações enquanto mulher,
preta e acadêmica. Pudemos compreender como ela ligava as suas questões
subjetivas com o contexto histórico geral do negro nas esferas social, política,
econômica e acadêmica e como essas questões são refletidas no inconsciente
coletivo brasileiro, gerando racismo e desigualdade.
Beatriz Nascimento fez de sua vida uma trajetória de luta contra o racismo que
foi responsável pelo apagamento das memórias sobre os negros no Brasil. Ela
defendia a importância de se reescrever a história do ponto de vista do quilombo, onde
este era apontado como um espaço físico e existencial que se ressignificou ao longo
do tempo. Esses diversos significados foram ligados pela autora com base na ideia de
um continuum histórico que liga a África ao Brasil, possibilitando a preservação da
cultura africana em nosso país.
REFERÊNCIAS
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008
RATTS, Alex J. P. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São
Paulo: Instituto Kuanza; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
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SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial
no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.