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Beatriz Nascimento - Caminhos de Uma Intelectual Quilombola. Artigo Marina Santos

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III Seminário Nacional de Sociologia - Distopias dos Extremos: Sociologias Necessárias

08 a 16 de Outubro de 2020 - Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe

Beatriz Nascimento: Caminhos De Uma Intelectual Quilombola1

Marina Lícia dos SANTOS2


Universidade Federal de Sergipe, Sergipe, SE

Resumo
Este trabalho tem por objetivo analisar traços da vida e da obra da historiadora
sergipana Beatriz Nascimento. Nele, seguiremos dois grandes eixos em torno dos
quais seus trabalhos foram estruturados: a conceituação de quilombo e as
subjetividades negras. É, pois, necessário apresentar sua trajetória acadêmica,
intelectual, política e artística, a partir da análise dos trabalhos publicados por ela em
jornais e revistas entre as décadas de 1970 e 1990, bem como outros escritos
publicados postumamente. Sua obra engloba gêneros diversos como poesia,
aforismos, relatórios, crítica historiográfica, projetos de pesquisa, roteiro
cinematográfico, entre outros. Muitos desses textos foram reunidos e publicados em
três livros: Eu sou atlântica (2006) – com Alex Ratts, Todas as distâncias: poemas,
aforismos e ensaios (2015) e Beatriz Nascimento: quilombola e intelectual (2018).
Tendo sua vida interrompida precocemente, Beatriz Nascimento nos facilita a
compreensão de suas inquietações por meio de uma escrita autoetnográfica, onde as
narrativas de si e os seus processos subjetivos eram sempre relacionados ao campo
epistemológico historiográfico mostrando como as questões referentes ao
entendimento do negro nas esferas política e acadêmica se refletem no inconsciente
coletivo brasileiro, gerando racismo e desigualdade social. Nesse viés, a autora
denuncia o apagamento das memórias sobre os povos negros no Brasil e propõe a
ideia de um “continuum histórico” entre a África e o Brasil por meio do conceito de
“quilombo”, apontado como um território físico, existencial e psíquico por meio do qual
seria possível preservar os ideais e modos de vida trazidos ao Brasil pelos africanos
escravizados.
Palavras-chave: Beatriz Nascimento; quilombo; intelectual negra.

Introdução
Iniciarei esse texto, fazendo minhas as palavras de Anin Urasse, que no
prefácio ao livro Beatriz Nascimento: quilombola e intelectual, publicado pela editora
Filhos da África em 2018 disse: Meu quilombismo, minha quilombagem, Mameto, é ler
você.
Ler Beatriz Nascimento, é encontrar um lugar de refúgio, é um encontro com o
meu eu negro. Beatriz traz em seus escritos a denúncia ao etnocentrismo e ao

1 Trabalho apresentado no GT 03 – Processos de identificação e desigualdades nas relações étnico-raciais,


intergeracionais e de gênero do III Seminário Nacional de Sociologia, realizado de forma remota de 08 a 16 de
outubro de 2020. Agradeço aos membros do Grupo de Estudos e Pesquisa de História da África e da Diáspora
Africana (GEPHADA).
2
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação da UFS, E-mail: marinalicia@academico.ufs.br
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privilégio macho e branco na escrita da história, nas políticas sociais, nas relações
acadêmicas, nas práticas da vida cotidiana.
Foi uma mulher negra intelectual de esperteza, sensibilidade e criatividade. Ela era
uma mulher negra, forte e poética.
O quilombo pra Beatriz Nascimento é pensado enquanto um espaço físico que
atravessou diversas ressignificações ao longo do tempo dentro do contexto afro-
diaspórico. Para ela o quilombo além de ser um espaço físico de refúgio, preservação
de memórias, valores e costumes dos povos africanos, era pensado enquanto
possibilidade de afirmação da vida, culminando com a ideia de um território psíquico
de auto cuidado, criação e ressignificação estética da vida dentro de um sistema de
opressão e subjugação dos povos negros.
Esse trabalho foi feito a partir da análise dos textos publicados por Beatriz
Nascimento entre em jornais e revistas entre as décadas de 1970 e 1990, bem como
outros escritos publicados postumamente. Seus textos foram reunidos e publicados
em três livros: Eu sou atlântica (2006) – com Alex Ratts, Todas as distâncias: poemas,
aforismos e ensaios (2015) e Beatriz Nascimento: quilombola e intelectual (2018).
Além desses, Beatriz escreveu também um roteiro para um documentário intitulado
Orí (1989).
Seguindo o método de análise do discurso de Foucault, tem-se por objetivo
analisar traços da vida e da obra da historiadora sergipana Beatriz Nascimento.
Apresentaremos sua trajetória acadêmica, intelectual, política e artística, a partir da
análise dos trabalhos publicados por ela, cartografando assim suas subjetividades e
inquietações. Seguiremos assim dois eixos principais de sua obra: a conceituação de
quilombo e as subjetividades negras.
Sua obra engloba gêneros diversos como poesia, aforismos, relatórios, crítica
historiográfica, projetos de pesquisa, roteiro cinematográfico, entre outros. Beatriz
Nascimento partia sempre do ponto de vista do povo negro, elencando principalmente
suas próprias vivências, o que nos ajuda na compreensão de suas subjetividades.
As narrativas de si e os processos subjetivos da historiadora eram sempre
relacionados ao campo epistemológico historiográfico mostrando como as questões
referentes ao entendimento do negro nas esferas política e acadêmica se refletem no
inconsciente coletivo brasileiro, gerando racismo e desigualdade social.
Beatriz Nascimento denuncia o apagamento das memórias sobre os negros no
Brasil apontando a necessidade de se reescrever a história com base na ideia de um
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“continuum histórico” entre a África e o Brasil onde o “quilombo”, representa um


território físico, existencial e psíquico onde seria possível preservar os ideais e modos
de vida trazidos ao Brasil pelos africanos escravizados.

A trajetória de uma intelectual quilombola


Maria Beatriz dos Santos Nascimento nasceu em 1942 em Aracaju, filha de um
pedreiro e de uma dona de casa. Morreu em 1995 no Rio de Janeiro, ao tentar salvar
uma amiga da agressão do marido.
Beatriz se muda com sua família para o Rio Janeiro em 1950, onde passou o
resto da infância no bairro Cordovil. Durante a infância, ajudava sua família no cultivo
de alface, maxixe, jiló, banana e outros gêneros alimentícios que eram cultivados no
quintal de casa e vendidos para o sustento da família.
Beatriz fala em seus escritos sobre várias situações de racismo que sofreu
durante sua vida, entre essas situações, ela elenca um caso de abuso que sofreu
ainda na infância. Trauma que marcou sua vida, fazendo com que desde de cedo ela
sentisse em sua pele a barreira social que separa pessoas por ponta de sua cor e de
sua classe social.
Ela então ingressa no curso de História na Universidade Federal do Rio de
Janeiro em 1968 onde se formou em 1971. Participou ativamente do movimento negro
durante a década de 1970, que era perseguido e fiscalizado pelos órgãos repressores
da ditadura militar. Em 1974 participou da criação do Grupo de Trabalho André
Rebouças na Universidade Federal Fluminense, grupo do qual foi coordenadora.
Participou ainda da criação do Centro de Estudos Afro-Asiáticos entre outros,
fundando o movimento negro contemporâneo em um período onde discutir racismo
era considerado subversão social, ferindo a Lei de Segurança Nacional.
Viajou por países da África e vários estados brasileiros com financiamento de órgãos
públicos e privados, afim de pesquisar as raízes históricas dos negros do Brasil, da
ancestralidade transatlântica que nos relaciona e constituem nossas memórias. Essa
busca pela reconstrução identidade do povo preto atravessava a existência de
Nascimento, era uma busca por seu próprio Eu.
Segundo ela, “A ausência de uma historicidade escrita e uma historicidade
dispersa requereu um esforço da memória histórica recalcada” (NASCIMENTO, 2018,
p. 361). Para ela, a negação da história do negro é parte do plano pernicioso de um
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estado brasileiro militarizado e violento, que se vale do silenciamento como estratégia


para manter-se no domínio.
Nascimento escreveu muitos poemas, aforismo, textos jornalísticos, roteiro de
filme, críticas cinematográficas, ganhou bolsas de pesquisa, foi pesquisadora do
Arquivo Nacional e da FGV. Em 1999, 4 anos após sua morte, seu acervo é doado
por sua família ao Arquivo Nacional. Em 2016 seu nome é eleito num concurso feito
nas mídias sociais para nomear Biblioteca o Arquivo Nacional

Métodos e influências
Sempre muito antenada, Beatriz Nascimento lia de tudo que tinha de mais
atual. Leitora crítica de autores “clássicos” dos estudos raciais e étnicos, a exemplo
de Nina Rodrigues, Gilberto Freyre, Artur Ramos, Edson Carneiro e Florestan
Fernandes, entre outros. Ao mesmo tempo que dialogava com autores como Clovis
Moura e Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e Neuza Santos Souza.
Quanto ao seu método de pesquisa e escrita estes demonstram um rigor
historiográfico, ainda que para isso ela precise se valer de outros métodos, afim de
serem alcançados os objetivos de suas pesquisas. Sendo assim, ao longo de seu
trabalho, Nascimento desenvolve demonstra proficuidade no trato com
documentações arquivística, mas não limita-se aos documentos: recorre à história oral
e ao método antropológico sempre que faltam fontes escritas, rompendo com a dureza
do campo historiográfico.
Já desde os seus primeiros estudos, Nascimento adota uma metodologia
híbrida de pesquisa, com o uso de outo-etnografia e da história oral para além da
pesquisa documental. Sabemos que esses métodos são alvo de crítica por parte de
uma corrente mais tradicional do campo historiográfico, sendo assim, pode-se
considerar que a escrita de Beatriz Nascimento representa uma quebra de
paradigmas, em nome do que ela mesmo chamou de “movimento da história”, afim de
trazer à tona questões sobre as quais os documentos calam.
Nesse entendimento, podemos apontar seu envolvimento com o seu objeto de
análise como uma inovação ao campo da escrita da história nos anos 1970. Beatriz
partia de uma análise de sua própria condição de mulher, negra e periférica, que teve
uma infância marcada por abuso e pela discriminação. Esses aspectos de sua
trajetória são relacionados por ela à herança da escravidão e da subsequente
condição de inferioridade a que o negro foi submetido no Brasil.
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Ela então traça um pensamento inovador que passou por diversas modulações
à medida que incorporava novas influências teóricas ao seu pensamento. Dentro do
movimento negro, ela opta por um pensamento independente, se afastando de um
pensamento romanizado acerca das trajetórias negras tanto na África quanto no
Brasil. Sempre levantando a bandeira do quilombismo e do povo negro, numa luta que
guerreou muitas vezes sozinha, pois dentro da academia foi discriminada chegando a
ser vista como desequilibrada mental.
Preocupou-se pois com a condição da mulher negra na sociedade brasileira,
partindo sempre de questões que a perpassavam, como o lugar e o corpo da mulher
negra. Em diversos textos, tanto acadêmicos quanto poéticos, ela expressa seu
mulherismo, trazendo a ideia do corpo da mulher enquanto lugar sagrado pela dom
da reprodução e enquanto símbolo de força e resistência.
Critica a escola marxista, em seus estudos referente ao negro, desde a década
de 1970 Nascimento reivindica a necessidade de que sejam considerados os aspetos
particulares das experiências negras, por entender que os estudos sobre a sociedade
de classes não dá conta de abarcar as questões individuais dos sujeitos negros, que
extrapolam os processos sócio econômicos.
Nos anos 1980 sua escrita passa a apresentar influências do pensamento
psicanalítico. Ela publica o texto intitulado The ''Negro" Inside, no Vilage Voice, de
Nova Iorque, em março de 1982. Esse texto começa a apresentar, possui fortes
influências das ideias decoloniais do pensamento psicanalítico de Frantz Fanon. No
livro Peles Pretas Máscaras Brancas (2008), Fanon analisa diversas situações de
racismo, assim como obras teóricas e literárias.
A partir dessas análises, ele aponta as dificuldades que os sujeitos negros
enfrentam em constituírem-se enquanto agentes de sua própria história. Nesse
processo de silenciamento de suas origens e de negação de seu corpo e sua cultura,
o negro sofre um processo de alienação social. Numa sociedade em que a regra de
humanidade é branca, o indivíduo que não se comportar como branco, não passa pelo
crivo imposto pela sociedade, logo, toda vez que o negro tenta imitar o branco para
ser aceito como humano, irá deparar-se com a barreira da cor. Comportar-se como
branco é portanto uma estratégia de sobrevivência. As máscaras são nesse caso, os
mecanismos usados pelos indivíduos em busca de aceitação social, para livrar-se do
peso que a negritude representa em uma sociedade racista.
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Ao mesmo tempo o autor salienta que sua luta não é contra o homem europeu,
nem contra a cultura europeia, mas contra os mecanismos políticos e ideológicos do
colonialismo que hierarquizam os seres humanos e as diferentes culturas. Ao
estabelecer o branco como padrão estético de belo e bom, a ideologia ocidental
introjeta na cabeça dos que não se enquadram nesse padrão o sentimento de
inferioridade. Segundo Fanon esse é um processo de via dupla: “inicialmente
econômico; em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa
inferioridade”.
Beatriz Nascimento narra diversos casos vivenciados por ela em lugares
públicos, em brincadeiras de infância trazendo questionamentos como a questão da
perda de si, a introjeção do branqueamento e a ideia das máscaras.
Nos anos 1990 Nascimento se aproxima de autores pós modernos da chamada
filosofia da diferença, introduzindo em sua escrita conceitos como devir, diferença,
multiplicidade, territorialidade existencial, desterritorialização, minorias, entre outros.
Influenciada por autores como Nietzsche, Deleuze, Guattari e Foucault, ela apresenta
a ideia do que chamamos hoje de lugar de fala, ao dizer que parte de um lugar que é
o lugar de sua etnia, sua subjetividade e sua herança social.
Influenciada por essa vertente ela passa a defender um olhar acentrado sobre o
negro, passando a usar o conceito de subjetividades para tratar de suas
especificidades: “Sinto-me sempre escrevendo de mim, mas esse mim contém muitos
outros, então escrevo de um coletivo sobre e para essa coletivização” (NASCIMENTO,
2018, p. 420). Nascimento coloca-se como objeto de sua própria análise, ressaltando
a necessidade de serem analisados os conceitos utilizados na relação com o negro.
Ela critica a falta de profundidade com que as relações raciais no Brasil são
analisadas, sendo posta em comparação com outros países ou analisadas
simplesmente do ponto de vista sócio econômico, e de sermos ainda analisados
sempre a partir do ponto de vista da classe dominante, com posicionamentos
impregnados de sua cultura e seus padrões de pureza, beleza e de sua própria
linguagem e aspirações, imputando-nos uma consciência e uma moral que é deles, a
respeito do que ela elucida:

(...) queríamos mostrar na prática como a ideologia de dominação representa


nela mesma, através da linguagem, o preconceito evidencia uma situação de
fato, isto é, o racismo, a discriminação. A “aceitação”, a “integração”, a
“igualdade” são pontos de vista do dominador. (RATTS, 2006, p. 43)
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Ponto de partida nos estudos sobre os quilombos


Nas primeiras pesquisas apresentadas por Beatriz em seus estudos sobre
quilombo ela apresenta o documento do Conselho Ultramarino datado de 1740,
referente à primeira legislação que regulamentava a questão do quilombo. Esse
documento definia como quilombo toda habitação de negros fugidos que passassem
de cinco ainda que não tenham pilões nem ranchos levantados (ainda que, segundo
Beatriz, o primeiro relato sobre quilombo que ela encontrou data de 1559, a primeira
lei que tratava dessa questão é do século XVIII).
Os questionamentos levantados por ela tratam da grande disparidade que essa
lei representa, já que os quilombos chegavam a ajuntar grandes contingentes de
pessoas longe do domínio senhorial, chegando a atingir mais de 20 mil habitantes. Ou
seja, uma mesma legislação servia para classificar quilombos de 5 ou de 20 mil
pessoas. Ela usa essa disparidade a favor do quilombo, refletindo que nós também,
enquanto negros, que vivemos marginalizados diante do sistema que oprime e rejeita
os corpos, podemos nos aquilombar, seja num contexto que abranja muita gente, ou
dentro de nosso próprio corpo.
Além desse documento ela cita o Dicionário da Língua Portuguesa de autoria
de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira que trazia no verbete Quilombo os seguintes
significados: do quimbundo, capital, povoação, união; S.M. brasileiro: valhacouto de
escravos fugidos. A partir desses significados, ela vai até a África em busca de mais
informações sobre o sentido de quilombo nas regiões do Congo e Angola. Ela busca
também refletir sobre o sentido que essa palavra passou a ter no Brasil, reivindicando
a mudança de uma noção preconceituosa que se tem de quilombo, como casa de
prostituição e lugar de confusão, conotações impressas no imaginário social por conta
do pensamento eugênico da nossa cultura.
Em seguida ela apresenta uma pesquisa feita em livros didáticos, com a qual
se indigna por conta da abordagem que eles traziam sobre os quilombos,
apresentando-os como uma instituição fracassada, além do heroísmo conferido à
Domingos Velho, à princesa Isabel, entre outros, reforçando o caráter paternalista e
etnocêntrico na libertação conquistada pelos negros no Brasil.
Ela parte então à crítica aos escritos clássicos a respeito dos quilombos,
visitando autores como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edson Cordeiro, Gilberto
Freyre, entre outros. Neles, ela se opõe à visão paternalista que dociliza as relações
entre senhores e escravos, a visão de que os quilombos foram instituições
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fracassadas e a ideia de que eles simbolizavam uma fuga da luta contra o sistema e
não uma forma de resistência, e portanto teriam pouca importância. Para Beatriz, os
quilombos não são instituições fracassadas, ao contrário, eles sobreviviam bastante
tempo, eram organizados, planejados estrategicamente para poder sobreviver
paralelamente ao regime colonial, e chegavam a acolher milhares de pessoas.

Os significados de quilombo em diferentes épocas e contextos


Beatriz Nascimento criticava as generalizações nos estudos feitos sobre
quilombos e contrapunha-se a conceitos usados pela historiografia tradicional que
definia o quilombo como uma instituição fracassada, ou ainda como sinônimo de
banditismo. Segundo ela, essa versão foi propagada nos currículos escolares, sendo
arraigada na memória do estudante, consequentemente foram internalizadas no
inconsciente coletivo de toda a sociedade brasileira, gerando sentimento de rejeição
e inferioridade ao povo negro.
Ela visitou diversos quilombos no Brasil e em Angola, a partir de onde
vislumbrou suas semelhanças e diferenças. A partir da análise das especificidades de
cada quilombo, que iam se resinificando no decorrer do tempo e da região onde se
encontravam, ela defendeu a necessidade de um revisionismo historiográfico afim de
serem corrigidos os preconceitos, generalizações e as visões estereotipadas sobre os
quilombos.
Uma das principais fontes bibliográficas utilizada por Nascimento foi o etnólogo
Edson Carneiro. Fonte de suma importância em seus estudos, ela discorda da
hierarquização feita por ele sobre as reações do negro contra a escravidão. Carneiro
define as rebeliões negras em três graus: em primeiro grau de importância na luta de
resistência estariam as revoltas, como por exemplo do levante dos malês na Bahia;
em segundo lugar o caso da balaiada no Maranhão; e em terceiro, estavam as fugas
para os quilombos como o caso de Palmares.
Nascimento concorda quando Carneiro diz que o quilombo é um embrião de
uma mudança social, discorda porém, quando ele caracteriza o quilombo como uma
reação negativa de fuga. Para ela, os quilombos apresentavam estruturas variadas,
que se diferenciavam de acordo com o lugar e com o período histórico no qual eram
constituídos. Ela então julga necessário reformular a historiografia, reparando o corte
que esta faz no que diz respeito aos quilombos.
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Um ponto fundamental das análises de Nascimento é a ideia de que seria


absurdo que os quilombos tenham existido durante os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX,
e tenham simplesmente deixado de existir, no século XX. Ela então afirma que houve
uma ressignificação do sentido de quilombo na atualidade, em locais que resguardam
a cultura e os modos de vida vindos da África.
Sabe-se que em terreiros, nas favelas, nas escolas de samba, nas periferias,
nas comunidades rurais, e em outros locais onde há a predominância de negros,
observa-se a herança quilombola através dos cultos sagrados, da música, das
técnicas de trabalho, entre outros aspectos culturais. Em sua pesquisa de campo,
valendo-se do método da etnografia e da história oral, Beatriz descobre a presença
de vários quilombos como lugar de origem a diversos folguedos ligados aos negros.
Um dos indícios observados era a presença do culto à santos como São Benedito,
Santa Efigência e Nossa Senhora do Rosário.
Beatriz discorre ainda sobre uma continuidade geográfica entre as favelas e os
quilombos, observando uma possível lógica dos trajetos migratórios entre os
quilombos mais antigos e os mais recentes até das atuais favelas, ao longo do tempo.
Pequenos quilombos eram prestadores de serviço aos moradores da vizinhança,
faziam escambo, praticavam agricultura de subsistência e a confecção de artesanato.
Segundo ela, um dos principais motivos pelos quais os quilombos foram tão atacados
é o fato de que eles eram a prova de que era possível viver numa sociedade diferente
da estabelecida pelo regime colonial, baseada na escravidão, monocultura e
mineração. Sendo sociedades alternativas ao regime dominante, eram atacados
sobretudo em momentos de crise econômica porque eram capazes de competir
mercadologicamente.
Outro ponto interessante discutido pela autora é a questão da democracia
racial. Ela joga com esse conceito, dizendo que essa expressão pode ser usada para
refletir a relação entre índio e negro, mas não quando se fala do branco, que até hoje
olha o preto o índio e o mestiço como inferior, menosprezando suas culturas, embora
faça uso de vários de seus elementos. Os quilombos eram instituições abertas aos
estrangeiros, a brancos e índios. A mistura de diferentes etnias não provocava conflito.
Então para ela, ao passo que a sociedade brasileira não pode ser pensada em termos
de democracia racial, o quilombo, enquanto espaço de acolhimento e diversidade,
permite o uso desse conceito.
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O desconhecimento a respeito das especificidades dos quilombos eram vistos


como um problema pela historiadora sergipana, pois, parafraseando suas palavras,
quando se homogeneíza o outro é muito mais fácil de desumanizá-lo.
Ela critica a história tradicional, formulada a partir dos documentos oficiais da
repressão do estado militar brasileiro que trata o quilombo enquanto uma organização
vencida, fracassada que deixou de existir depois a abolição. História essa que sempre
elegeu seus heróis brancos como Domingos Jorge Velho, a princesa Isabel entre
outros, demonstrando seu posicionamento ideológico etnocêntrico. Para Nascimento,
o caráter do negro derrotado, fugitivo, vencido que ficou impresso na literatura é
pernicioso pensando em termos de psicologia social. Segundo Nascimento, isso levou
a propagação de um conhecimento limitado sobre o quilombo, privilegiando a visão
do colono opressor.
O quilombo é uma possibilidade de organização econômica social e cultural.
Nascimento aponta o quilombo como motivo para a destruição, cobiça e disputa pelo
território, já que o quilombo representa uma forma alternativa à vida uma possibilidade
além de regime colonial. Para Nascimento, os quilombos eram um problema à
sociedade escravista pois ocupavam boas terras para agricultura e mineração, por
esse motivo os portugueses saqueavam e invadiam, caso contrário, podiam conviver
por mais tempo, sendo no entanto atacado com diversas justificativas amparadas pela
lei.
Em 1985 Nascimento começa a apresentar estudos mais sistemáticos sobre os
quilombos na África, nos quais usa como referência o historiador africanista David
Birmingham (1973), considerado o que se tinha de mais avançado nos estudos sobre
a história de Angola. A partir dessa leitura e de suas visitas ao continente africano,
Nascimento conclui que os quilombos, enquanto modo de vida, são expressões
herdadas dos jagas e dos imbangalas, povos que habitavam a região do Congo-
angola.
Ao contrário do que ficou expresso pela literatura clássica sobre os quilombos,
eles chegaram a ser instituições duradouras, a exemplo do Quilombo de Palmares.
Segundo Nascimento, isso foi propiciado por conta de fragilidades dentro do próprio
regime colonial nos séculos XVI e XVII. Já nos séculos XVIII e XIX, segundo
Nascimento, os quilombos não apresentam a mesma força. Nesse período surge a
primeira lei que regulamenta o castigo dado aos quilombos, no dia 2 de dezembro de
1740. Pelo código penal de 1835, os quilombos foram igualados à insurreição,
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designando-os com o termo de valhacouto de bandido. Enquadrados como o perigo


negro, seus integrantes eram condenados ao degolamento (NASCIMENTO, 2018, p.
284).
Nascimento denuncia a política eurocêntrica militarizada que oprimia o corpo
negro nas lavouras, nos trabalhos precários, que usa a força de seu trabalho ao
mesmo tempo que o rejeita e o descarta. Que são pautadas por práticas de um regime
eugenista e paternalista, que se afirma enquanto dominador, relegando o negro a uma
posição de subserviência. Que retrata os negros com uma ideia de bestialidade e
ignorância, relegando-os a manterem-se sob seu domínio com a desculpa de
educarem-se para a vida em sociedade.
Em um texto intitulado “Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades do
processo da abolição brasileira” (2007), a historiadora Lilia Schwarcz analisa o
contexto e a mentalidade dos agentes envolvidos no processo da abolição da
escravatura. Ela explica como foram gerados os discursos oficiais e dos diversos
setores da sociedade, reproduzindo a ideia de que a abolição foi concedida graças à
generosidade da princesa Isabel, então representante do estado, assim como dos
senhores proprietários de terra, que vieram a ser os chamados “homens bons” da
República Velha, justamente pela relação de clientelismo gerada com os negros
libertos. Destes, era esperado o sentimento de gratidão ao seu ex senhor pela
bondosa dádiva da liberdade e a aceitação de permanência no lugar de subserviência,
aquele que contrariasse essa ordem era visto como desordeiro, vagabundo. Os
negros insurretos e conscientes não deviam existir. Ao branco caberia portanto o papel
de conduzir os negros à vida civilizada, já que esses eram considerados moral e
intelectualmente despreparados. Os negros deveriam manter-se nos domínios feudais
de seus senhores e agradecer a graça da alforria concedida pela bondade de sua
majestade. Essa questão foi muito debatida pela Beatriz Nascimento.

A abolição surge como um processo de uma só mão, conduzido por brancos


“benfeitores”, cujo papel é trazer os negros para a civilização, com ordem e
muita tutela: era preciso “preparar a libertação”. (SCHWARCZ, 2007)

A linha que segrega brancos e negros remonta a mentalidade desses


discursos, cuja visão foi endossada no campo científico. No livro “A diversidade moral
e intelectual das raças” (1856), o Conde de Gabineau dizia ser possível dividir as
“raças” humanas de acordo com o intelecto, as propensões animais e as
manifestações morais. Segundo essa divisão, os brancos estariam sempre no topo e
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os negros sempre no último grau da escala evolutiva. Para Gabieneau, o problema


não estava na existência de “raças” diferentes, mas nas misturas delas, o que
representava um entrave ao projeto de nação brasileira (DAMATTA, 1986). Essas
ideias foram fundamentadas a partir de uma interpretação equivoca da obra de
Darwin, unidas posteriormente com as chamadas leis de Mendel, formando a base da
ideia de eugenia, por meio da qual seria possível identificar características raciais de
grupos sociais que estariam predispostos a uma vida parasitária. A difusão dessas
ideias gerou amplas discussões relativas à construção do processo civilizatório do
país, definindo-o como “inferior” em relação aos países europeus por conta da
miscigenação.
Por outro lado, a miscigenação era defendida por diversos intelectuais como
uma medida necessária ao “melhoramento da raça brasileira” por meio da injeção de
sangue branco, único meio de superarmos o atraso no nosso projeto de nação. Ao
tempo que a miscigenação era associada ao atraso e à degradação, ela era também
apresentada como solução ao “problema” da grande população de negros e mulatos
existente no Brasil. Essas questões são discutidas por Schwarcz no livro O espetáculo
das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930 (1993), onde,
por meio da análise dos discursos dos magistrados de meados do século XIX, ela
demonstra como a preocupação do estado girava em torno do “melhoramento” da
aparência física da população brasileira, mas não tocavam na construção de medidas
que buscassem integrar os negros à nova configuração social.
Uma das grandes inquietações de Beatriz Nascimento é com relação ao
desaparecimento dos quilombos no século XX na historiografia oficial. Para ela, esse
apagamento é mais um retrato da mentalidade colonialista, que ao hierarquizar as
culturas, exerce seu domínio por meio da negação das memórias de culturas que se
diferenciam do padrão europeu. No século XX o quilombo adquire então um papel
ideológico. Como antes tinha servido de manifestação de resistência ao colonialismo,
no século XX o quilombo volta-se como código de reação ao colonialismo cultural,
reafirmando a herança africana e buscando um modelo brasileiro capaz de reforçar a
identidade negra. A reescrita histórica sobre os quilombos reivindicada por
Nascimento impulsionaria um movimento que tem como finalidade a revisão de
conceitos históricos estereotipados que marcaram os saberes e as práticas sociais,
afim de devolver aos negros o seu território físico e existencial.
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Quilombo Como Território Existencial


A herança da visão distorcida sobre o quilombo sendo associado à banditismo,
casa de prostituição, bagunça e uma sério de significados pejorativos intensificam o
racismo, o preconceito a auto negação, a rejeição aos corpos negros. Para superar os
estigmas gerados pela opressão do estado, e a imposição de uma vida marginalizada,
o quilombo assume então, para além de um território físico, uma categoria ideológica,
psicossocial de auto afirmação da população negra. Para Beatriz Nascimento o
quilombo existiu e ainda existe enquanto lugar de resistência negra.

o quilombo pode ser uma atitude dos negros de se conservarem no sentido


histórico e de sobrevivência grupal que ele se apresenta enquanto
assentamento social e organização que cria uma nova ordem interna e
estrutural (NASCIMENTO, 2018, p. 69).

Quilombo deixa de ser considerado apenas enquanto um espaço físico que


atravessou os séculos, passou por diversas mudanças territoriais, administrativa e
estratégica, sendo elevado à uma categoria de atitude política e existencial do corpo
negro. Uma atitude política e estética de resistência e auto cuidado, uma postura de
afirmativa sobre a vida. Um lugar de reencontro e com o nosso eu negro, mencionado
pela Nascimento em um artigo publicado pela Nascimento intitulado My Negro Inside.
Então ela reivindica que o negro tem o direito do acesso a sua origem as suas
memórias, direito que passa pela reescrita de uma história acentrada, que valoriza a
diferença. Assim sendo, essas ideias poderão ser desenvolvidas no campo da
educação do povo, fazendo-se proliferar a ideia de uma sociedade múltipla. O
pensamento de Nascimento se pauta então pela importância de retorno a si, como
forma de enfrentamento e auto afirmação do negro na sociedade, afim se que sejam
superados os discursos de negação e inferioridade racial.
Beatriz celebra a importância de diversos movimentos como por exemplo o
Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento em 1944 no Rio de
Janeiro, cuja proposta era a valorização do corpo negro e sua ancestralidade a partir
de uma estética própria. A estética do quilombo pode ser associada a esses espaços
onde as vivências negras são privilegiadas. O termo Quilombo era amplamente usado
pelos movimentos negros, desde o Teatro Experimental do Negro, cujo jornal
chamava-se Quilombo.

Então, fundamentalmente o que eu quero procurar no meu trabalho é trazer


à luz essa capacidade do negro de empreender uma organização social, de
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empreender uma vida própria deles, com cultura própria, com relações
próprias, e mostrar que hoje em dia talvez eles ainda tenham esse tipo de
organização própria, de relações próprias, e um dos grandes trabalhos que
ele tem que fazer seja realmente de se conscientizar dessa sua posição
diante do mundo e tentar botar para fora essa organização que ainda persiste
ao nível das relações entre si e dos grupos negros. (NASCIMENTO, 2018, p.
130)

A ideia do aquilombamento perpassa então esses lugares de vivência, criação


e auto afirmação da cultura e da identidade do povo negro, seja na música, no terreiro,
no teatro, no cinema, nos movimentos sociais e acima de tudo, nas nossas próprias
cabeças.

Continuum Histórico entre África e Brasil


O quilombo foi uma forma de afirmar a vida, de auto preservação dentro de um
sistema que oprime, que mata, desumaniza, foi a forma de preservar as memórias e
os costumes da África em nós. Para Beatriz Nascimento, a ideia do continuum
histórico do quilombo representa um elo de ligação entre a África e o Brasil,
possibilitando o direito e o acesso às memórias dos povos que foram escravizados,
cujas raízes foram silenciadas propositalmente, sendo uma faceta da violência
exercida pelo sistema colonial.

Todo historiador é um conversador e um sonhador em busca deste


continuum, digamos mesmo ser esta a nossa meta enquanto estudiosos do
processo do homem no planeta. (...) A continuidade seria a vida do homem -
e dos homens – continuando aparentemente sem clivagens, embora
achatada pelos vários processos e formas de dominação, subordinação,
dominância e subserviência. Processo que aconteceu, ao longo desses anos,
com aqueles que, em nossas abstrações, se englobam na categoria de
negros. (NASCIMENTO, 2018, p. 254)

O quilombo foi e é um ato de resistência, de auto preservação, um espaço de


afirmação da identidade negra, onde os negros podiam viver e transmitir seus
conhecimentos, sua cultura sua ancestralidade, por isso mesmo é um lugar de
preservação da cultura e da história africana. Nesse sentido Beatriz defende que o
quilombo é um elo de ligação dos negros e as memórias dos nossos antepassados,
que haviam sido negadas pela historiografia por conta do seu caráter etnocêntrico.
Os espaços acadêmicos estão tradicionalmente imersos em uma estrutura de
poder que silencia vozes dissonantes do seu projeto unificador do conhecimento.
Produz um conhecimento incompleto, dirigido à uma parcela reduzida de pessoas,
perpetuando um ciclo fechado do saber colonizador, que monopoliza a linguagem, a
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cultura e que inferioriza a experiência do Outro, ao tempo que se diz imparcial. Quando
esse saber engessado em si mesmo lança seu olhar sobre o que considera subalterno,
distorce a imagem produzindo um discurso de dominação que só serve aos seus
próprios interesses.
No documentário Orí (1989), Nascimento se diz chocada com o eterno estudo
da escravidão dentro da academia, como se o homem negro, em toda a história do
Brasil, tivesse participado apenas como mão de obra escrava nas fazendas e
minerações. Essa visão produzida nas pesquisas acadêmicas, se refletiu no que tem
sido escrito nos livros didáticos, ensinado nas escolas, reproduzindo a negação
cultural da matriz africana, apagando a marca da religião, das revoltas escravas e do
pensamento, que influenciaram a formação do Brasil.
Nascimento propõe que se busque uma metodologia diferente para estudar a
História do Negro no Brasil, com outros conceitos, que renunciam os universalizados
pela voz dominante. Uma análise que busque identificar em nós mesmos, negros
brasileiros, os elementos de auto enunciação, afim de que nos afastemos de
mentalidades da cultura dominante que nos foram incutidos e que muitas vezes
passam despercebidos, afim de que nos inteiremos de uma consciência histórica
como sujeitos ativos, emancipados do ponto de vista teórico interpretativo, enquanto
participantes e não como vítimas ou como sujeitos dependentes das definições
propostas pelo olhar dominante.
O silenciamento imposto pela cultura europeia pode ser considerado com um
dos dispositivos do colonialismo, de manter culturas subalternizadas, relegando-as ao
esquecimento. O silêncio gera o desconhecimento, este por sua vez alimenta o
preconceito que se reproduz em todas as esferas do fazer social, seja nas artes, na
ciências, na vida quotidiana, na academia de homens letrados, na escrita da história.
Nascimento defende então, enquanto metodologia de análise sobre os
quilombos, um estudo que estabeleça uma relação de continuidade com o sentido de
desfazer o hiato histórico que provocou uma ruptura do negro com o seu passado.
Nessa perspectiva, o quilombo representa a união com a nossa ancestralidade, que
foi ofuscada pelo lapso temporal e espacial promovida pelos fluxos diaspóricos.
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Considerações finais
Como vimos, o quilombo pra Beatriz Nascimento representa uma multiplicidade
de significados que foram variando ao longo do tempo dentro do contexto afro-
diaspórico. Além de ser considerado um espaço físico onde os negros se refugiavam,
e desenvolviam suas práticas sociais, preservando as memórias, valores e costumes
dos povos africanos, Nascimento o pensava também enquanto território psíquico que
possibilita de afirmação da vida, criação e ressignificação estética dentro de um
sistema que oprime os povos negros.
Por meio da trajetória e da análise dos trabalhos publicados por Nascimento,
foi possível traçar um mapa de suas subjetividades e inquietações enquanto mulher,
preta e acadêmica. Pudemos compreender como ela ligava as suas questões
subjetivas com o contexto histórico geral do negro nas esferas social, política,
econômica e acadêmica e como essas questões são refletidas no inconsciente
coletivo brasileiro, gerando racismo e desigualdade.
Beatriz Nascimento fez de sua vida uma trajetória de luta contra o racismo que
foi responsável pelo apagamento das memórias sobre os negros no Brasil. Ela
defendia a importância de se reescrever a história do ponto de vista do quilombo, onde
este era apontado como um espaço físico e existencial que se ressignificou ao longo
do tempo. Esses diversos significados foram ligados pela autora com base na ideia de
um continuum histórico que liga a África ao Brasil, possibilitando a preservação da
cultura africana em nosso país.

REFERÊNCIAS

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FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008

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pronunciada em 2 de dezembro de 1970 . 12. ed. São Paulo, SP: Loyola, 2005.

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Editora Antígona, 2014.

NASCIMENTO, Maria Beatriz. Orí. Documentário, Direção: Raquel Gerber,1989.

____________. Todas as distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento.


Organizadores: Ratts, Alex. Gomes, Bethania. Editora Ogum’s Toques Negros, 2015.

RATTS, Alex J. P. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São
Paulo: Instituto Kuanza; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.
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SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial
no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

__________. Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades do processo da abolição


brasileira, in: Olívia Maria Gomes da Cunha; Flávio dos Santos Gomes (orgs.), Quase-
cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil, Rio de Janeiro: Editora FGV,
2007.

UNIÃO DOS COLETIVOS PAN-AFRICANISTAS. Beatriz Nascimento, quilombola e


intelectual: Possibilidade nos dias da destruição. Coletânea·organizada e editada pela
UCPA. Editora Filhos da África, 2018.

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