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1.
obviamente que o apelo ao rei possa ser desligado do contexto que lhe
corresponde e, nesse domínio, pouco posso acrescentar às exegeses
anteriores; mas sou de opinião de que nele também pesam muito as
coordenadas estéticas. Em última análise, espero demonstrar que esse
apelo se projecta muito para além da conjuntura histórica que envolve
a feitura e a publicação do poema, inserindo-o de pleno direito na
complexa reconstrução camoniana dos valores do heroísmo.
2.
1
De entre os estudiosos que mais chamaram a atenção para a importância do
contraste, da sobreposição e da posterior síntese a nível da construção do poema, é
justo destacar Jorge de Sena, “A estrutura d’Os Lusíadas”, in A estrutura de Os
Lusíadas e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI. Lisboa,
Edições 70, 1980, António José Saraiva (“A fábrica d’Os Lusíadas”, in Estudos sobre
a arte d’Os Lusíadas. Lisboa, Gradiva, 1992), Jorge Borges de Macedo (“Os
Lusíadas, narrativa comentada”, in Os Lusíadas e a História. Lisboa, Editorial Verbo,
1979, p. 77-100) e Jacinto do Prado Coelho (Camões e Pessoa, poetas da utopia.
Lisboa, Europa/América, 1983). Muito recentemente, e na mesma linha, Hélio João
Alves recorre ao princípio marxista da “contradição resolutiva” na análise de alguns
episódios do poema (O sistema da poesia épica quinhentista: Camões, Corte-Real e
os contemporâneos, Dissertação de Doutoramento em Literatura Portuguesa
apresentada à Universidade de Évora, 1999 – policopiada).
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regresso da nau comandada por Nicolau Coelho (Cf. Ásia, de João de Barros — 1ª
Década, Livro quarto, cap. XI, p. 159 e ss — Edição de António Baião, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1932 e História do Descobrimento e Conquista da Índia
pelos Portugueses — Livro primeiro, caps XXIV-XXIX, p.64 e ss. — Introdução e
revisão de Manuel Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1979).
5
O locus amoenus representado pela ilha centra-se na água e na árvore, enquanto
elementos de assimilação, presentes na tradição das paisagens bem-aventuradas.
Favorecidos por Vénus (a mítica mãe da gens Iulia) desde o princípio (I, 33), numa
base de filiação declarada, os Lusitanos são objecto de um processo de consagração
faseada e ascendente que vai do encontro amoroso com as “estranhas ninfas” até à
contemplação da máquina do mundo, proporcionada pela titânide Tétis.
6
Contestando a aplicação do conceito de utopia (tal como Thomas Morus o cunhou
no princípio do século XVI) ao episódio camoniano da ilha angélica, Martim de
Albuquerque sublinha também que “A Ilha dos Amores conta e sublima de forma
alegórica a História que Os Lusíadas cantam. Não a repudia. Incita a ela.Como tal não
é fuga à realidade, mas exaltação do real desejável e possível.” (Cf. A expressão do
poder em Luís de Camões. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1988, p.306).
Por seu turno, Aguiar e Silva que, em 1972, tinha interpretado o episódio num registo
utópico ou evasivo (“Função e significado do episódio da Ilha dos Amores na
estrutura de Os Lusíadas”, in XLVIII Curso de Férias da Faculdade de Letras da
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Para que assim não seja, é necessário que a narrativa não termine com
o registo do presente, caracterizado pela ausência de matéria épica e
pelo desacompanhamento das Musas. E assim, depois de na Invocação
se ter aberto a dialéctica entre a História e o Mito e de, no fim desta
longa aventura da narração, se ter dado como assente que a primeira
vertente tinha corroído a segunda, assiste-se ainda, nas últimas onze
estâncias, ao seu resgate derradeiro.
3.
10
De facto, fundada sob a égide do mito áureo do Cristo aparecido em Ourique, a
nação portuguesa encontrava-se agora em estado de deperecimento, esquecido o telos
cruzadístico inerente ao seu aparecimento e continuidade.
Embora o mito de Ourique possa rastrear-se pelo menos desde a Segunda Crónica
Breve de Santa Cruz de Coimbra (1451), parece não haver muitas dúvidas sobre a
possibilidade de Camões o ter recolhido directamente na Crónica de D. Afonso
Henriques, de Duarte Galvão (1505).
Sobre o mito das origens e o seu tratamento historiográfico e literário veja-se a síntese
de Ana Isabel Buescu “Vínculos da memória: Ourique e a fundação do Reino”, in
Portugal: mitos revisitados. Coordenação de Yvette Centeno. Lisboa, Edições
Salamandra, 1993, p.9-50.
AS ESTÂNCIAS FINAIS D’OS LUSÍADAS OU O “NUNCA OUVIDO CANTO” DE CAMÕES 77
4.
11
Comentando justamente as intervenções do poeta em final de canto, Jorge de Sena
refere-se à ligação entre a Dedicatória e as últimas estâncias do poema desta forma
bem sugestiva: “É óbvio que a [estância] que conclui o canto X tem características
especiais de rounding-up do poema, em contrapartida da introdução do canto I.”(Cf.
ib., p. 124).
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Em 1570, os turcos tinham-se apoderado da ilha de Chipre. Organizada logo a
seguir, a “Santa Liga” reuniu, à volta de Filipe II e do papa Pio V, Veneza, Génova,
Sabóia e os cavaleiros de Malta. E foram essas forças conjugadas que, sob o comando
de D. João de Áustria, derrotaram os turcos na batalha de Lepanto, sustendo o seu
avanço no Mediterrâneo.
O eco destas circunstâncias em alguns passos do poema camoniano é incontestável e
aparece desde logo sustentado pela própria factualidade cronológica. Com efeito,
regressado a Lisboa em 1569 (ou mesmo 1570), Camões não tardara a entregar aos
prelos o manuscrito d’ Os Lusíadas, sendo razoável deduzir que o tenha feito em
finais de 1570 ou no início de 1571, quando ainda não era possível aferir todas as
implicações políticas e militares da batalha de Lepanto.
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As trovas de Gonçalo Anes Bandarra (escritas antes de 1541) falam já, em abstracto,
de um rei que traria a paz e a justiça ao mundo, vindo essa ideia a encontrar um
justificado acolhimento depois da fatal jornada africana de D. Sebastião.
Retomando uma pista de Sampaio Bruno, António Franco Alexandre situa a génese
da ideia do Encoberto no reino de Valência, aquando da tentativa de confirmação de
Carlos, neto de Maximiliano, como rei daquele reino, e do aparecimento de uma
figura, supostamente filha do príncipe João, herdeiro jurado dos Reis Católicos,
falecido poucos meses após o seu casamento com Margarida de Áustria, que ficou
grávida (Vida de D. Sebastião, Rei de Portugal. Lisboa, Europa/América, 1993, p.191
e ss).
Para uma análise das repercussões do mito do Encoberto na mentalidade e na cultura
do século XVII, vejam-se Diogo Ramada Curto (“Ó Bastião, Bastião”, in Portugal:
mitos revisitados, p.139-176), Lucete Valensi (Fábulas da memória. A gloriosa
batalha dos três reis, Lisboa, Asa, 1996 — sobretudo o cap. VI, intitulado “Fábulas
sobre a batalha, fantasmas sobre o Reino”, p.163-190 e Jacqueline Hermann (No
reino do Desejado. A construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI e XVII,
São Paulo, Companhia das Letras, 1998).
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A associação entre as virtudes de chefia do Rei e a excelência dos vassalos é
recorrentemente expressa n’ Os Lusíadas como requisito de pleno heroísmo, tanto
num registo afirmativo (veja-se, por exemplo, a exortação de D. Nuno Álvares Pereira
aos portugueses (IV, 14-19), como num registo negativo, ilustrado, por exemplo com
a figura de D. Fernando, o “fraco Rei que faz fraca a forte gente” (III, 138-143).
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E por eles, de tudo enfim senhores,
Serão dadas na Terra leis milhores.
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Para além de uma vasta representação na literatura grega e latina, a ideia da
sucessão cíclica das idades encontra-se ainda largamente ilustrada em múltiplos textos
da Antiguidade oriental (Cf. Hugo Francisco Bauzá, op. cit., p.19-55).
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Na senda de Faria e Sousa, António Sérgio compaginou a grande maioria dos
conselhos e das críticas dirigidas indirectamente ao Rei pelo poeta pelas que lhe
dirigiram alguns dos seus conselheiros mais experimentados, defendendo, com lógica,
a tese de que Camões se faz aqui eco de uma autorizada corrente de opinião (Cf.
“Camões panfletário — Camões e D. Sebastião”, in Ensaios, IV, Lisboa, Sá da Costa,
1972, p.93-128.
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Sobre a necessária complementaridade entre o herói sábio e o herói auroral vejam-
se Bowra, Heroic poetry. London, Macmillan, 1952, p.9 e Madélénat, op. cit., p.55.
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Rejeitando a interpretação da atitude do poeta num registo de humildade, Hélder de
Macedo lê estas estâncias como um sinal de emulação da figura rude do velho Sileno,
o deus da eloquência e da profecia (Cf “o Braço e a mente: o poeta como herói n’ Os
Lusíadas”, in Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XV, 1980, p.61-72).
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5.
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Já no decurso do consílio dos deuses marinhos, Proteu — o deus da profecia — se
dispusera a dizer “o que sentia”, quando foi interrompido por Tétis. Reveladas por
Júpiter em sonhos a Proteu, só agora, depois de consumada a aventura da viagem,
estas são colocadas na boca de uma ninfa, que as reteve na memória.
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Antes de Hélder de Macedo, que, em meu entender coloca o heroísmo do Camões-
poeta em níveis de algum exagero, já Jorge de Sena tinha interpretado o final d’ Os
Lusíadas no mesmo sentido, desvalorizando (também com excessiva radicalidade) a
importância da história e as implicações do próprio jogo enunciativo: “E o terminar
uma epopeia com promessas de outra não é das menores demonstrações de quanto o
poeta é central, do mesmo passo que é uma sublime ironia: as epopeias não se
prometem, fazem-se do que já é matéria delas. A menos que, como em todo o Camões
sucede, nada seja autorizado a existir senão nele, com ele, e por ele.” (Cf.”Aspectos
do pensamento de Camões através da estrutura linguística de Os Lusíadas”, in I
Reunião Internacional de Camonistas. Lisboa, 1973, p.51.
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Sobre a teoria do furor, tal como ela se apresenta em Platão e nos seus
comentadores renascentistas veja-se a excelente Introdução de Pedro Azara a Marsilio
Ficino, Sobre el furor divino y otros textos. Barcelona, Anthropos, 1993 (edição
bilingue).
Veja-se muito em particular a carta de Ficino a Pedro Divino (p.54-63).
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É, de facto, pela via da palavra profética, que Os Lusíadas se inserem na linha do
messianismo português (em que se integra o Quinto Império) pelo capital de
esperança que projectam num porvir, que tanto pode tomar a forma imediata e visível
das vastas planícies africanas como transformar-se no advento escatológico sonhado
por António Vieira.
Conjugando as fontes portuguesas com fontes árabes, Lucete Valensi estuda os efeitos
da batalha de Alcácer em Portugal e em Marrocos, logrando estabelecer, em níveis de
rara e convincente clareza, a genealogia histórico-factual do sebastianismo bem como
a sua projecção em Portugal e no Brasil.
Apesar de alguns contributos pontuais, porém, está ainda por fazer, com suficiente
desenvolvimento e profundidade, o levantamento sistemático da recepção messianista
d’ Os Lusíadas, desde o Barroco até aos nossos dias, na Literatura, na Cultura e na
Mentalidade portuguesas.
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