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Ilha - Salomao Rovedo - Iba Mendes
Ilha - Salomao Rovedo - Iba Mendes
Ilha - Salomao Rovedo - Iba Mendes
Ilha
Retratos encontrados num álbum esquecido...
Salomão Rovedo
(1942)
Livro 701
É isso!
Iba Mendes
iba@ibamendes.com
www.poeteiro.com
ÍNDICE
INTRÓITO ESFARRAPADO.............................................................................. 1
ATRACADO NA RELEMBRANÇA..................................................................... 3
DERRAPANDO NA CANTARIA......................................................................... 6
E VIVA A AMIZADE! ....................................................................................... 9
TRABALHO CONCEBIDO COM AMOR............................................................ 12
O SEGREDO DO CUXÁ.................................................................................... 14
O PESCADOR DE LOROTAS............................................................................. 15
PLENITUDE HUMANA.................................................................................... 20
NO RIO TURU, ENTRE O JUÇARAL................................................................. 22
ÓLEO SALADA F.C. ......................................................................................... 27
O BUICK NEGRO............................................................................................. 35
A REPÚBLICA DA MATRACA........................................................................... 39
OS VIOLÕES SILENCIOSOS.............................................................................. 43
O SACRISTÃO NO INFERNO............................................................................ 47
NOS DIAS DE HOJE EM DIA............................................................................ 49
MAIS UM DEDINHO DE PROSA... .................................................................. 54
ILHA
RETRATOS ENCONTRADOS NUM ÁLBUM ESQUECIDO...
INTRÓITO ESFARRAPADO
“A verdade é a verdade, nada mais que a verdade e o que não é verdade não é
verdade."
E mais: “Se uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.
Então, tudo que eu disse está dito e toda a nação de coisas que disse é
facilíssima de entender, porque o que é verdade à luz da lamparina, também é
verdade à luz do Sol. Faço minha a advertência que copiei do filósofo Platão:
"Depois das mentiras, o maior vício de uma obra histórica é estar repleta de
minuciosidade".
Nada posso jurar de pés juntos porque sei que a mentira é como bola de neve,
quanto mais rola mais aumenta. Estória é como boato: corre vadia de boca em
boca sem rumo. Ainda sigo o Vô João: “a verdade é muito importante para ser
dita pela metade." Sei que o caminho da verdade é tortuoso, mas mentira,
mentira mesmo, dessas cabeludas, cabeludas, não contei nenhuma,
nenhumazinha mesmo. Bem, talvez uma ou outra, pequeninha, que ninguém é
perfeito...
1
Temos que fingir acreditar na memória, porque dela não podemos ser
expurgados como Adão foi do Paraíso. Ninguém mente pela metade: quem
mente, mente tudo, mente toda a mentira. Como não existe a meia verdade,
não existe a meia mentira. A mentira tem pernas curtas.
A história destas notas começou quando voltei a São Luís, após ausência de
quase 30 anos. A morte de meu pai, o velho João (nem era tão velho assim), não
nos deixou escolha. A maioria dos familiares da matriarca dona Mizika morava
no Rio de Janeiro – e lá fomos nós, de mala e cuia.
Por isso, preparei a cabeça para a migração sem planos de voltar. Meti na ideia
que nos fixaríamos no Rio de Janeiro para tocar a vida: estudar, trabalhar,
sobreviver. E assim foi: casei, tive filhos – um garotão e duas meninas gêmeas,
plantei meu pé de milho, escrevi um livro.
Saí com 20 anos, voltei quarentão. Retornar foi como levar uma porrada. Pra
consertar o baque tive que tomar vários porres, fazer notas, juntar ideias,
vomitar este pequeno volume.
Alguns podem dizer que em vinte e tantos anos o lugar muda muito. Pra mim
São Luís não mudou: só vi o que quis ver. Meu prazer foi andar à toa, tomar
cachacinha e tiquira, comer porcaria nos becos e mercados, buscar o menino
que eu fui.
Foi divertido porque realmente esbarrei com aquele moleque a todo instante.
Escrever, distrair essa fase chata da vida, ter alegria, tristeza, emoção.
História ou estória? Verdade ou mentira? Essa sinuca deixo pra quem ler. Contei
minha lenda, agora passo a bola pra vocês.
2
ATRACADO NA RELEMBRANÇA
Então fica o dito por não dito. Declaro, para todos os fins e direitos que tudo
que vocês vão ler, se não for verdade é mentira. E aquilo que não for mentira é
verdade.
Começa com aquela maravilhosa vista aérea da Ilha, que tive ao chegar. Os
índios, habitantes primevos, certamente nunca tiveram essa visão. Vista do alto
a Ilha parece pequena em sua limitada geografia e bem diferente do que
aparece nos mapas. Os rios sinuosos, cintilantes ao sol, serpenteiam entre a
mata e vão se perder em alguma embocadura rumo ao mar.
O que é afinal uma ilha? Saloca não teve dificuldade para responder, usando o
velhíssimo jargão escolar: "É uma terra cercada de água por todos os lados."
Mas na geografia do que faz palpitar o coração, a Ilha não se define assim tão
simplesmente, é indescritível e tem tantos sentimentos quanto à mulher mais
apaixonada.
Tantos anos depois de ter saído daqui, o retrato parece o mesmo, a mesma
velha Ilha que um dia me viu crescer e, anos depois, abandoná-la em busca de
novos rumos. Com a preciosidade de guia turístico, ainda é Saloca quem me
relembra: “A cidade foi mandada erguer por Luís, Rei de França, que um dia quis
plantar aqui o seu Reino Equinocial. Mas onde ergueram paliçadas acharam
instalado o pacato reino dos índios Tupinambás.”
3
É claro que o pretenso guia turístico (com certeza o velho Vô João dele
irreverente diria: "Um guia turístico de merda!"), não cabe saber toda a verdade
e alguns detalhes importantes. Milagre mesmo foi a resistência dos ilhéus que,
ajudados pelos índios, derramaram seu sangue para expulsar os batavos. A
guerra foi cruenta e desastrosa: ao fim da batalha, a cidade estava
completamente destruída, em ruínas.
Os primeiros donatários das terras que incluíam a Ilha não conseguiram sequer
tomar posse, porque o primeiro grupo, formado pelo banqueiro João de Barros
(Feitor da Casa da Índia), associado ao capitão-mor Aires da Cunha e ao
tesoureiro-mor do Reino Fernão Álvares de Andrade, jamais chegou à Ilha: a
frota de 10 navios, com 900 homens e 113 cavalos naufragou na altura do Golfo
do México e dela jamais se teve notícia.
"A Ilha já foi centro cultural do país. Vários filhos ilustres fizeram fama na
Europa." Saloca estufa o peito para afirmar: "Era mais fácil na época, pela
proximidade e poder aquisitivo, o sanluisense ir estudar em Paris, Coimbra e
Londres, do que em São Paulo, Recife ou Rio de Janeiro." Ergue o braço direito
em tom declamatório, como a estátua de Castro Alves em Salvador: "Quando
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voltava à terra natal, era sucesso certo nas letras, nas artes, nas leis. São Luís
foi, por isso mesmo, cognominada Atenas Brasileira!"
Para gáudio dos historiadores, descobri que existem várias Ilhas-Gêmeas desta.
Ninguém sabe, mas existem. Os açorianos, no passado, esta Ilha habitaram, um
par de luas apenas, não conseguindo fixar raízes. Contudo, foram os fundadores
da Ilha-Gêmea de Vitória. Expulsos daqui, não se sabe por qual motivo,
tomaram a derrota do sul. Saloca dizque foi coisa de amor proibido, entre
parentes, primos irmãos. Enfim, empreenderam a fuga e meses depois,
fundeados numa baía, da mesma forma que Moisés viu a terra Prometida,
acordaram na Ilha-Irmã, daquela de onde saíram açodados.
Por entre a bruma matinal viram, como sonho espetacular, surgir a natureza
exuberante da nova terra. Espantados com o milagre, pois a terra era idêntica
em beleza e harmonia, alguns até pensaram que tinham navegados meses em
vão e que estavam na mesma Ilha! Constatada a realidade (era mesmo Ilha-
Gêmea), a todos invadiu o sentimento religioso de que ali deviam aportar e
plantar suas raízes. E assim foi.
Saloca mostra que conhece a história da Ilha mesmo fora dela: "Consideravam
os açorianos (e era a pura verdade), que ali certamente estariam a salvo dos
sansardoninhos que os expulsaram da Ilha sem dó nem piedade."
Foi ali que sentiram o chamamento para aportar e fundar a segunda Ilha-
Gêmea, batizada Santa Catarina...
Seja porque lembraram com saudade da Ilha do Pico, nos Açores (onde existe o
Cabo com o mesmo nome) ou porque adoravam a santa padroeira das donzelas,
martirizada em Alexandria no ano 307, seja, até, porque era novembro e chovia,
o fato é que, caídos de paixão pela terra que o destino lhes entregou, habitaram
a Ilha de Santa Catarina, com certeza Ilha-Gêmea univitelina desta Ilha que vos
falo e da outra, Vitória...
DERRAPANDO NA CANTARIA
Bem que eu quis reconhecer tudo sozinho, sem ajuda de ninguém, mas no
primeiro beco em que as casas se amontoavam espremidas e exalavam o olor
das vasas do mar, acabei me perdendo. Resvalei pelas ruas, escorreguei no lodo
das escadarias, como as águas das chuvas, rolei pelo meio-fio em busca dos
lugares que a infância tinha deixado incólumes. Nada reconhecia, nem mesmo
encontrei as fontes onde matava a sede depois das correrias da adolescência.
Não fosse Saloca aparecer por ali, como quem surge do nada, para me socorrer
e eu tomaria o rumo do aeroporto muito mais cedo.
Por mais de três vezes tive certeza de andar em círculo e voltar ao mesmo lugar.
E por mais de três vezes cumprimentei a estátua da Náiade, quieta e garbosa no
seu pedestal, cântaro no ombro, de onde algum dia jorrou água cristalina. Por
mais de três vezes sorri para ela, por mais de três vezes ela sorriu para mim o
sorriso de pedra que o tempo não consegue enrugar.
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Ao contrário da Náiade, que transmitia a sensação de perene alegria de viver,
eu não vestia a túnica de algodão que, cobrindo parte do corpo, parecia nela tão
confortável sob a canícula. A roupa moderna de tecido artificial me deixou
suado, cansado e um pouco irritado. Convidei-a, por fim, a tomar refresco de
pega-pinto com muitas pedras de gelo dentro do copo e uma rodela de limão. A
Náiade sorriu agradecida e não aceitou, mas Saloca não se fez de rogado e
pediu a coca-cola.
Segundo Saloca, certamente passei pela Praça da Alegria, mas não me dei
conta: "O Vô João dizque botaram esse nome na praça para que a população
esquecesse as atrocidades e injustiças que se cometeram ali, quando era local
de execução de condenados e se chamava Largo da Forca." Não sei se é o
mesmo local em que descansei meus pés doloridos no banco da praça,
arborizada com pés de fícus tão velhos, tão velhos, que a idade deles se perde
nos tempos. As árvores altas fecham as copas de tal modo que sombreava tudo,
dando ao ambiente um tom entardecido. Sanhaços, bem-te-vis, andorinhas e
tico-ticos trinavam e pipilavam com intensidade ensurdecedora.
Menos cansado, arrisquei dar uma caminhada em volta da praça. Era realmente
a praça musical: à esquerda, onde casas antigas e azulejadas se alinhavam lado
a lado, fui atraído pelo som de um exercício ao piano que vinha do casarão cor-
de-rosa, varava as frestas da janela fechada e ia fazer coro com o trino dos
passarinhos. Foi um caminhar sereno em que, como num adágio, as notas iam
diminuindo de intensidade ao mesmo tempo em que me distanciava.
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Do outro lado vinha da Igreja Protestante o som de vozes afinadíssimas: era o
coral, acompanhado de violinos e órgão, que ensaiava canções sacras. Deve ser
essa a razão dos passarinhos, acompanhados por pianos, violinos e corais,
cantarem com tanta disposição. Assim, descansados corpo e espírito, pude
retomar a caminhada. Como não poderia ser a Rua da Paz, que gostaria de ter
encontrado, certamente era a Praça da Alegria.
Recuperado o fôlego, mas sentindo sede e dor de veado, vim parar pelas bandas
da Praia Grande. E aqui estou finalmente, sentado na cadeira de vime do bar
que invade as calçadas e os paralelepípedos, repousando as pernas que me
perderam no labirinto das ruas.
A freguesia era pouca àquela hora e o garçom trouxe conversa. Nas cidades
existe a população que sabe de tudo. Encontre o engraxate e saberá o que o
povo pensa dos políticos; sente-se na cadeira da barbearia e conhecerá todos os
ladrões e a gama de traições políticas; entre num botequim ou restaurante e o
garçom discursará sobre religião e futebol; se tiver a sorte de encontrar a
manicura, aí então descobrirá com quem o Rei traía a Rainha e poderá,
fechando o círculo, amar todas as mulheres dali. Por fim, encontre o menino
metido a guia turístico e conhecerá o engraxate, o barbeiro, o garçom e a
manicura...
O sol já saía do pino do meio dia, mas atirava brilho e luz sobre os casarões
tombados pelo patrimônio, cuidadosamente pintados e reformados, mantendo
as características originais. Mais ao longe, quando o aclive das ladeiras
aumentava, os telhados em série imitavam os arrozais em vastidão até perder
de vista. Entre quarteirão e outro sobressaíam, apontadas para a imensidão do
céu, as torres das igrejas e conventos carregadas de sinos de bronze. Saloca
fitava o telhadeiral como quem conhece cada calha de azulejo, cada ninho, cada
erva que ali brota das sementes deixadas pelos passarinhos.
A lei dos trópicos – e dela também havia esquecido – falou mais alto. De
repente, sem aviso nem trovões, nuvens pesadas passaram sobre a Ilha
deixando o rastro de trinta minutos de chuva. A água banhou os telhados,
jorrou volumosamente para o chão. No meio-fio a correnteza se transformou
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num riacho que Saloca aproveitou (momento mágico de aventura), para fazer
navegar barquinhas de papel. Perseguia os piratas e afundava caravelas – a
batalha naval durou tanto quanto corria a água no rumo do ralo.
Depois da chuva, como nos filmes, o céu se tornou azul de novo, cinemascope
sem nuvens, o sol reapareceu mais forte que nunca. O chão, novamente
iluminado, aos poucos foi secando e das pedras do calçamento tresandava,
vindo em adelgaçados fiapos de vapor, o cheiro peculiar da vasa. Naquele
momento renasceu em mim a inexplicável herança de relembrados tempos.
A maré virava e logo seria preamar. Saloca levantou o braço direito em gancho,
movimentando-o com arte num vai-e-vem camerístico, imitando o balé dos
chama-marés. Milhares de caranguejos responderam do manguezal, as patas
vermelhas reluzindo ao sol, como se conclamassem os pescadores para a faina
diária, anunciando que a maré alta já vinha. Os pescadores de fato iniciavam a
corrida cotidiana rumo ao mar, de onde tentarão tirar o sustento.
"Antigamente (o Vô João é quem conta), era fácil chegar com o barco cheio de
pescado, à regalona! Traziam tanto, tanto, que dava pra vender, pra comer e
pra guardar um bocado salgado. Hoje em dia, não. Tem muito barco aí
motorizado e com equipamento que cata os peixes mais nobres. Pescador de
saveiro, além de arriscar a vida porque tem de ir pro alto mar naquela
casquinha de mandubi, tem que se contentar mesmo é com bagre, raia, algum
cação ou barracuda, a migalha que afinal sobrar..."
E VIVA A AMIZADE!
Atravessando a rua com a vista, mais duas pistas além, via-se o velho cais
abandonado. À maneira antiga, tinha a rampa em declive que caía para o mar. A
água verde reluzia de esmeraldas ao sol. Foi ali que encontrei Saloca, citado
antes, o salvador da pátria, sentado na parte mais baixa balançando as pernas,
chapinhando a água com os pés, com a ponta de linha atirada no mar, tentando
pescar alguma coisa.
Diminuí o ritmo das passadas. De fato, esses sapatos de sola de couro são tão
desajeitados que não têm condição de enfrentar algo que não seja rua asfaltada
e calçada de concreto. Chegando mais de perto é que se podia ver a cabeleira
de limo, perigosamente lisa e verde, que a maresia deixa nas pedras seculares.
Agradeci pelo aviso e aproveitei a deixa para puxar conversa...
– Nada, que nada, já pescamos muito aqui eu mais o Vô João, mas hoje qual o
quê, não dá nada... O velho, já no peso da idade, nem vem mais.– Mas quando a
maré enche deve dar muita tainha.
Fiquei sem saber o que dizer. Era turista ou não? Bom, de qualquer maneira,
atualmente era turista sim. Turista na minha própria Ilha, na Ilha que hoje me
acolhe entreabrindo as portas da desconfiança. Turista porque tinha sido
sumariamente rejeitado pelas fontes, pelas ruelas, pelos prédios – só não pela
gente. Nem pela Náiade que, na frieza do mármore, foi a única que me recebeu
com um sorriso.
– A ilha é pequena, a gente dá umas voltas, volta e meia e sai no mesmo ponto.
– Foi o que aconteceu. Andei dando umas voltinhas, mas acabo saindo no
mesmo lugar. Nem este cais eu reconheço e daqui pra frente só resta entrar no
mar. Acho que estou perdido.
– Coitada da minha terra, miudinha assim como é, Ilha com começo e fim,
ruazinhas estreitas e sebentas, vizinhança que se conhece, ninguém tem como
se perder por aí.
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– Este cais tem placa ali com nome de político, alguém que o tempo esqueceu,
mas todo mundo chama de Rampa do Desterro, o nome original.
– Meu Vô João – que é memorião da Ilha – disse que aqui embarcava para a
África a galé dos condenados. A África é muito longe e muitos não resistiam:
morriam de fraqueza, doença, desidratação, tuberculose e eram enterrados no
mar.
Era mesmo o temível e fatal desterro. Pior até que a pena de morte.
Ser desterrado significava não ter família, não ter nem passado nem futuro e
essa maldição na maioria dos casos atingia o negro. O branco só seria
condenado ao desterro quando cometia algum crime grave contra a autoridade
governamental ou contra as leis decretadas pela Coroa. Em último caso, por
vingança pessoal.
Mas pela acuidade de seus olhos negros, curiosos ao extremo, pelo permanente
questionar das coisas que desconhecia ou não compreendia, certamente ficaria
indignado ao saber dos trágicos momentos do passado da Ilha, que não foram
narrados em nenhum livro de História.
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TRABALHO CONCEBIDO COM AMOR
– Sabe moço, eu posso mostrar os lugares que quer ver. É perigoso jornadear
por aí sozinho. Vai ver que os lugares que quer ver são os mesmos lugares onde
passo todo dia. Sabe que pra chegar na minha casa tenho que atravessar a
cidade toda? Não se eu for direto, claro, mas gosto de passar primeiro pelo
Canal do Boqueirão, depois vou na Praia Grande, se der vou até a Ponta
D'Areia... Mesmo porque hoje aqui não vai dar nada mesmo!
Seguindo as indicações de onde estava para onde morava, pareceu-me que ele
andava em ziguezague. Se me lembro bem, quando saía da pesca, ao invés de ir
para casa - itinerário que poderia ser feito em 20 minutos - Saloca pegava o
bonde em sentido contrário. E, abusando da condição de gratuidade infantil,
percorria os mercados velhos, os portos aonde chegavam barcos do interior, as
feiras que vendiam tudo e por fim se deliciava ouvindo os cantadores narrar os
folhetos de cordel no mercado da Praia Grande.
– Vou aceitar a sua sugestão. Preciso mesmo de guia. Antes, porém, vamos
sentar ali - como se chama aquele restaurante? – Isso mesmo, no Bar do Basilio.
Vamos sentar, beber e comer alguma coisa. Você é convidado, afinal a pescaria
12
não deu nada mesmo, né? Já conhece o garçom? Quero que escolha alguma
comida daqui mesmo pra mim. Pescada frita com arroz de cuxá? Está bom, você
pede para mim e pode pedir o que quiser para você. Tudo, até mesmo coca-
cola.
Ah, as comidas da Ilha! Somente aquele sabor típico acenderia de novo em mim
todas as velas das lembranças. Antes de o prato principal ser servido, o garçom
ainda ousou trazer para mim - delícia das delícias - uma tigelinha de juçara com
meia dúzia de camarão seco boiando na imensidão daquela mini lagoa, que
sujava meus lábios de roxo a cada colherada.
Por fim, naquela mesa de aspecto simples (Saloca sentia-se tão bem que
imaginei que deviam ser assim as mesas nas casas tradicionais da Ilha), foram
servidos os pratos principais: duas pescadinhas de barriga amarela, fritas,
travessas fumegantes de arroz branco e outra com o cuxá, a cuia com farinha
d'água torrada com coco, o vidrinho com molho de pimenta-de-cheiro.
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O SEGREDO DO CUXÁ
Sinceramente, minha maior frustração é saber que me vou desta boa terra sem
descobrir o segredo do cuxá. E não é para menos: a sua origem é tanto mais
remota quanto sagrada. Para começar, dizem em tom de lenda que uma Rainha
Mina, forte, bonita e de boa feição, líder espiritual de seu povo, foi sequestrada
na África e vendida como escrava na Ilha. Era realmente a Rainha e jamais
perdeu a realeza. A preta tinha a dignidade tão respeitosa e natural que jamais
se transformou numa escrava, na acepção da palavra. Ademais, todos os
escravos da região sabedores da sua existência vinham ao seu encontro para
receber a bênção, pedir conselhos, ouvir a palavra sentenciosa e serena ou
mesmo trazer os filhos para receber dela o nome de batismo.
14
Não, jamais descobrirei o segredo do creme verde musgo, servido bem
quentinho com arroz branco, companhia de tantos pratos saborosos, capaz de
conquistar para sempre o paladar da mais néscia criatura, que nasceu há
séculos nas cozinhas minas e desaparece diariamente nas mesas da Ilha, depois
das últimas garfadas dadas com a avidez das escravas famintas. Saloca dizque
sabe (tanto que é dele os detalhes da receita de bobó acima, vindos da avó) e
dizque toda família tem que ter filha fêmea para aprender a receita e passá-la
para sua filha e assim por diante.
– Vendo o peixe do jeito que comprei por isso, se algum experto em culinária
ilhense vier me cobrar a veracidade do fato, tiro o corpo fora e jogo a culpa
nele!
De bobó mesmo (e diz que que tudo da mesa africana que resulta em pasta se
chama bobó), só entendo daquele que as baianas vendem nas barracas, feito
com feijão mulatinho, azeite de dendê, camarão-seco, secretos condimentos e
muita pimenta malagueta, menos por saber teórico e mais por apregoarem
pelos quatro cantos do mundo as suas virtudes afrodisíacas. Ou então aquele de
frutos do mar, principalmente cação, arraia-viola ou camarão, feito com massa
de macaxeira peneirada, amendoim, muito azente-de-dendê e outras iguarias
misteriosas, que também fazem parte da confraria de segredos vindos da mãe-
África, cujo fogo erótico é por todos conhecido.
O PESCADOR DE LOROTAS
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Enquanto passeávamos pelos largos muros de pedra da Avenida Beira Mar,
cruzamos com algum conhecido do meu acompanhante que, de passagem,
lançou o grito que deveria ser insulto grave:
– Qualira!
E fez a forma do ó com o polegar e o indicador virados para baixo, numa forma
oposta ao famoso OK norte-americano. Sem sequer considerar minha presença,
o xingamento foi prontamente respondido com o gesto manual, no qual o dedo
médio sobressaía entre o indicador e o anelar dobrados.
– Aquele é Palito, meu amigo e freguês. Ganho dele tudo: bolinhas de gude,
papagaio e no mergulho vou muito mais longe que ele.
16
Atravessamos as duas pistas que nos separavam do mar e ficamos olhando a
maré que já vinha crescendo, ocupando os espaços, invadindo o manguezal e
trazendo consigo o bocado de vida orgânica e marinha.
– Conseguiu chegar à Ilha, mas adernou antes de atracar. Deu pra salvar a
marujada, alguns morreram, e até hoje tá lá o mastro principal partido, a
cruzinha encima, último sinal dele.
Dizque lá é casa de cação, moréia e outros peixes brabos, mas, por outro lado,
lugar de salvação: nos porões sempre tem bolhas de ar que salvam a gente.
Eu e Palito conhecemos aquilo como a palma da mão. Sabemos até onde ir,
quando a maré tá perigosa, como evitar as correntes.
– Cação, por ali, num canal? É muito difícil. Tá pensando que sou besta?
– Mas é verdade. Na maré cheia, só quando tem boto é que eles não aparecem.
Quando a gente chega lá, o que nos deixa mais contentes é ver a beleza dos
botos quando, entre um mergulho e outro, a barbatana do costado aparece
reluzente na superfície da água. Enquanto estamos ali eles ficam brincando em
volta de nós. Eles já sabem que a gente tá ali e nos cercam com os
malabarismos, nos protegendo.
– O Vô João pede que a gente sempre fique perto dos botos, porque é o peixe
mais inteligente de todos. E se a gente estiver em dificuldade, se afogando, ele
usa o nariz para rolar nosso corpo sobre a água até salvar o afogado, atirando a
gente para a praia.
– Mas tem. Só que o bicho se acovarda para o boto, mas não pra gente.
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O Vô João conta que o Mané Perneta, mergulhador famoso na região, deu um
mergulho ali no lugar mais fundo e foi atacado. Saiu com vida, mas perdeu a
perna direita, que foi engolida de uma vez só pela bocarra do bichão.
– Não fosse ele sabido e – diz o Vô João – a próxima abocanhada comeria ele
até o pé do umbigo.
– Tá certo, o peixe está só protegendo o que é seu, defendo a sua morada, seu
território, não é?
Outra coisa que o Vô João pede pra ter cuidado é com a ferrugem. Por isso,
nada de comer o sururu que dá ali e se um dia a gente se ferir nos ferros
enferrujados, abre a pereba que só fecha quando cu de cotia assobiar. Então,
quando a gente chega faz logo uma bulha danada pra espantar o bicho. Aí ele
não aparece, respeita a gente e começa o torneio.
– Isso não sei, mas essa parte do campeonato a gente chama de "pesca de
troféus". Valendo tudo, tudo que pegar, coisas pequenas e grandes. Somando
tudo que podia ser somado, sem mentira, já trouxemos mais de 200 peças do
velho navio! Só eu tirei 120 e o Palito o resto.
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– Minha maior vitória foi quando trouxe a placa da porta do Comandante.
Depois que limpamos ficou bonita, toda dourada. A maior derrota foi quando
Palito chegou com uma caveira cheia de dentes. Eu vi lá, mas não tive coragem
de pegar não...
– Pérolas e diamantes? Não. Temos nossos segredos. Vou pedir sua palavra de
honra que o papo morreu aqui mesmo.
– Tem minha palavra. Minha boca é um túmulo: boca de siri. Daqui não sai
nada.
– O maior dos segredos é que o Palito quase se afogou lá. Fui eu que reparei na
demora dele voltar e mergulhei pra buscar. Só deu pra tirar ele e fazer vomitar
toda a água que tinha engolido. O coitado já tava ficando roxo, sem respirar.
– Ficou. Mas o qualira, mesmo com tudo isso, ainda foi o vencedor do dia. Lá
estava, apertado entre dedos roxos, o troféu que ele conseguiu: o retrato de
Hitler numa moldura impermeável de vidro.
– Esse assunto não se pode contar pra ninguém. Temos a palavra de honra
empenhada. Mas se quiser posso ir lá nesse instante, agorinha mesmo, dar o
mergulho só pra provar que não é mentira.
– Não precisa! De maneira nenhuma! Juro de dedos cruzados - juro que acredito
em tudo, tudinho mesmo...
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PLENITUDE HUMANA
"Minha alma está de olhos baixos. (...)
E por essa circunstância tornei-me uma torre."
João Mohana
Inexplicável.
Força do Destino.
A porta, encimada por uma bandeira em forma de lírios, não mais range ao
sabor dos ventos.
Um silêncio grande, enorme como a noite, insaciável como o buraco negro, hoje
me seguiu para conhecer o nada que agora habita o velho casarão vazio em que
morava o médico, padre e escritor João Mohana.
Conhecia de ver de longe, sem ter a intimidade nem o amigamento, mas sabia
que o povo o tratava como herói, sem se importar se ele vinha de progênie
tradicional. Herói que, mostrando-se aluno esplendente, teve a coragem de
abandonar a carreira de médico de criança, pediatra que se prenunciava
brilhante, para abraçar o sacerdócio e, com ele, o celibato.
Como médico, todo mundo sabia, atendia os pobres sem cobrar nada. Quando
calhava vivia de receber pagamento na moeda do sertão: pé de alface, galinha,
vinho de caju, carne de sol, bacorinho, cofo de farinha d'água.
Fui arrastado para ali por pés que não eram os meus. Olhava tudo com olhos
que não eram meus. Com palavras que não eram minhas, eu repetia sem cessar:
20
Rua Afonso Pena 119, Rua Afonso Pena 119... Saloca, sem entender nada, como
o cachorro azul, seguia no encalço. Trovejou e choveu. Subimos no casarão em
frente para nos proteger. Fiquei menino e menino não tem medo da chuva. Fui
para o mirante e lá fiquei estático.
Deus põe as crianças no mundo com a liberdade tão grande que Ele próprio, Ele
que é o dono dela, tem receio de tomar. Liberdade de olhar, liberdade de ouvir,
liberdade de falar, liberdade de ir e vir. Depois o menino cresce e perde tudo
que ganhou de Deus. Mas é com esse olhar livre de pirralho que a gente
reconhece o santo de longe. E apesar de jamais ter acordado uma só vez com
sorriso no rosto, nem uma só, nem mesmo quando Papai Noel deixava os
presentes no Natal, apesar disso eu sorria quando via o padre passar lá do outro
lado da calçada.
Sorria ao reconhecer o herói das consultas grátis, que, ainda por cima, dava o
dinheiro para o paciente comprar o remédio que ele mesmo receitava.
Sorria ao ver o herói polêmico que tinha a coragem de escrever sobre o sexo no
casamento sem nunca ter casado – e ainda ser respeitado por isso!
O quase herói sempre habitou a Ilha. E quando dela se afastou foi só para sentir
saudade e voltar de novo. Agora imagino o beato padre escritor habitando o seu
gabinete na Rua Afonso Pena 119, cercado de livros, em santificado silêncio, a
trabalhar em mais uma obra destinada a nos mostrar a luz para clarear os
caminhos mais obscuros da vida.
Nas missas, repetia as águas dos rios: rezava cada missa sempre diferente das
outras. Com essa tática enchia as igrejas como os estádios de futebol. Nos
sermões, habitados de palavras e exemplos de grande humanidade, era sempre
ouvido atentamente. Volta e meia, em defesa dos pobres, feria pudores da
sociedade e provocava polêmicas.
Como era próximo de Deus, era iluminado por Ele. Como ministro dos homens
escreveu tantas coisas importantes que seus trabalhos atravessaram fronteiras
21
e foram parar traduzidos na Europa, América Latina e USA, para ser para os
estrangeiros o mesmo Farol de São Marcos que é para os privilegiados da Ilha.
Saloca logo se anunciou gritando: "Sou eu Vô João!" Depois em voz mais baixa
para mim: "O Vô João enxerga muito pouco. Catarata. Tá quase cego." De novo
em voz alta: "Trago um amigo!" E como tinha de falar bem alto deduzi: além de
quase cego, quase surdo. O velho resmungou hum-hum: "Se achegue, a casa é
pobre mas é sua" - e se dirigindo a Saloca: "Pega a bilha, moleque, e traz água
fresca pra visita."
22
A água na verdade era para ele: "Calor danado, não acha?" Deu dois goles
grandes na caneca de alumínio. "São esses tempos. Estão mexendo muito na
velha terra. Ela não vai aguentar. Até no fim dos séculos tudo se acabará. Tá nas
profecias."
Chamou Saloca aos gritos: "Moleque, vê se tem café preto pra oferecer!" Vinha
lá de dentro bulha de gente mexendo em panelas, acendendo fogo. O cachorro
cheirava minhas pernas fazendo reconhecimento, gravando minhas
características. Agora, jamais me esqueceria.
Uma pontinha de orgulho engrossa a fala macia: "Ainda hoje tem prático que
vem me visitar pra saber as derrotas pesqueiras, mode num se perder nesse
mar de deus. Depois que vem, anota tudo direitinho, traz caderno, mapa
desenhado, bússola. Aprende e some, nunca mais a gente se vê. Mas sei que
todos eles criam fama divulgando o que aprenderam comigo."
Como bicho que vive procurando sentir o cheiro do mar à distância, o velho
bota o ressentimento pra fora: "O marzão, esse sim que me conhece – e bem!
Brigamos muito. A verdade é que o mar nunca me deu de-comer um prato de
pirão, que não fosse arrancado com muito suor e sangue. Levou todos os anos
da minha vida, nunca foi meu amigo."
23
Já vi esse barquinho de pouco mais de trinta metros de proa à popa parecer
casca de midubim boiando no mar. Na tempestade, quando a onda empina o
bico da proa, só falta a gente esbarrar no teto do céu. Depois a criatura faz um
vão assim de uns quinze metros e a gente fica lá no fundo - que se o inferno tem
fundo é mesminho naquele lugar - rezando pras ondas laterais não fecharem
em riba de nós."
Respira fundo e aproveita a chance que lhe dá o ouvinte atento: "Aí tem de
saber a hora certa de arriar os velames, botar a proa direito no rumo do vento e
manter o leme frouxo. O barco fica paradinho, paradinho, fingindo covardia, ao
sabor das ondas. Todo bom marinheiro sabe que não deve brigar com o mar
revolto. A onda bate, bate, vai abrindo brechas na calafetação, daqui a pouco tá
fazendo água. Quem vê assim não acredita que foi a água que quebrou o barco,
mas foi."
Não me movo, fico literalmente grudado na narração: "Por outro lado tem a
calmaria. Só porque o mar fica paradão, quieto e silencioso como a morte, não é
menos fácil de encarar do que a tempestade. Na calmaria muita gente já
naufragou. O mar te leva para onde não quer ir e depois a gente sente a
viraçãozinha, a água começa a pinicar na superfície, o barco treme uma vibração
e agora é hora de achar o rumo de novo ou ficar perdido pra sempre. É
desconcertante."
Saloca chega trazendo numa bandeja improvisada dois copos com café bem
preto e fumegante. Aceito. Tem gosto de café bem torrado, quase queimado,
mas cai bem. Passo a mão no focinho do cachorro. Ele diz que gosta lambendo
meus dedos.
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Servido o café, que o Vô João elogia dizendo que saiu a seu gosto, Saloca pisca
pra mim, cantando vitória: "Vô João, trouxe o moço aqui pra ele conhecer a
nascente do rio. Depois que contei pra ele como é não me deu sossego mais. É
gente de fé, não vai espalhar por aí onde está o seu paraíso." O Vô João
resmunga meditativo, enquanto saboreia, em goles pequeninos, o café preto:
"Hum-hum. É mesmo, esse menino. A nascente do rio. Sabe, aquele é o único
lugar onde a gente ainda pode beber água nas mãos.
Nenhuma sujeira. E água da boa, que cura maleita. O resto dos rios tá tudo sujo.
Diz-que é a tal de poluição."
Seu João respira fundo, recosta-se na cadeira de balanço, pra lá, pra cá, pra lá,
pra cá: "Moleque, leva os copos!" Passa a mão na cabeça do cachorro, que
responde ao agrado abanando o rabo: "No começo era a poeirada danada,
máquinas jogando barro nos riachos, aterrando tudo! E lá se foi nossa diversão,
nosso banho." O Vô sacode a cabeça desalmadamente, a tristeza escornada:
"Acabou a poeirada, fomos ver, não tinha mais rio nem nada. Fizeram a ponte
sobre o riacho seco e aterrado, agora que é toda hora carro, ônibus, caminhão
passando, uma barulheira danada."
Ele bota de novo na boca a masca de fumo, que tinha tirado pra tomar o café:
"Volta e meia o estribilho, umas pancadas e gente assim, estirada no asfalto,
estertorando toda esbagaçada. Vem a ambulância, mas não salva. No outro dia
dá no jornal quantos difuntos." Olha para trás, pros fundos da casa, como se
visse alguma coisa, mas não vê nada: "Moleque, que qui tá esperando? Vai logo
mostrar a nascente do rio pro moço, xente! Daqui a pouco escurece..."
Mais vinte minutos se passou e foi o tempo que demoramos em chegar. Só que,
para surpresa, a nascente não era dessas tradicionais, que se conhece dos livros
de geografia e que começam com o fio d'água, ia aumentando, aumentando,
até se transformar num rio. A nascente do rio era na verdade um enorme poço,
lagoinha com mais ou menos de cinquenta metros de circunferência irregular. A
mata fechara-se copada sobre a lagoa, transformando o lugar num santuário
escondido do mundo. O Rio Turu nascia entre as árvores e juçarais tantos, que
as raízes se entrecruzavam por baixo.
Saloca não esperou, tirou a camisa e caiu na água. E deve ter sido maravilhoso,
pois estávamos cansados da caminhada e encharcados de suor. Olhou para mim
como que esperando que eu mergulhasse também. Não decepcionei. Tirei a
roupa e mergulhei de cuecas mesmo. A nascente tinha águas escuras, mas
cristalinas. Seguindo o itinerário que Saloca me passava, mergulhei e nadei
evitando raízes e troncos. Saloca trepava nas árvores, improvisadas de
trampolim, para saltar de três metros de altura e sair geralmente num lugar que
só ele conhecia.
O local que mergulhamos mais parecia uma piscina encravada entre os troncos.
Ali tínhamos à disposição majestosos dois ou três metros para o banho farto e
mergulhos saborosos. A água estava fria, mas suportável, principalmente pelo
calor e pelo cansaço que passamos lá fora. À profundidade de dois ou três
metros, podia-se ver claramente todo o fundo. Mais uma vez Saloca me guiou e
pude entrever, extasiado, a água surgindo do fundo em grandes borbulhas,
formando pequenas nuvens de poeira na areia branca.
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Era realmente a nascente. Uma portentosa, veracíssima, maravilhosa nascente.
Como nunca tinha visto na vida! Paisagem de cinema, melhor, de cinemascope.
Os raios de sol que conseguiam atravessar a mataria rebolavam entre as
folhagens transformando-se em miríades de pérolas brancas.
Depois de alguns mergulhos, sentei num tronco à beira do lago para descansar.
Saloca não parou, com sua juventude incansável e insaciável, enchia o ambiente
com enormes gargalhadas. E, parecendo que nunca mais ia querer sair daquelas
águas, mergulhava e sumia, mergulhava e reaparecia, geralmente em lugares
inesperados.
A tarde caía. A luz do sol entrava pelas árvores em diagonal inundando tudo
com raios sacros. Quando começou a escurecer - e debaixo das pesadas copas
das árvores escurecia mais rapidamente - Saloca finalmente resolveu sair de
dentro d'água, o corpo todo tremendo de frio, os lábios já ficando duros de
roxos. Lembrei Saloca de levar a água pro velho e ele foi procurar o recanto
além de onde estávamos mergulhando. Ali bebemos água até matar a nossa
sede e enchemos não só a bilha do Vô João, mas outra que ele mesmo tomou a
iniciativa de trazer.
Arrumamos a tralha toda, exaustos, ainda todo molhados, a água dos cabelos
escorrendo sobre a camisa, abandonamos aquele santuário em religioso silêncio
e iniciamos a caminhada de retorno. Quem se importava com a chuva que
encharcava nossos corpos?
1 - O Estádio do Covão
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a) quanto à bola:
a bola de couro tinha preferência sobre a bola de borracha
a bola oficial tinha supremacia sobre as bolas de tamanho não oficial
a bola não remendada ou menos remendada, valia mais que as remendadas
a bola redonda era preferida às bolas que o tempo tinha tornado ovais
as bolas sem câmara ganharam a preferência sobre as com câmara
b) quanto ao jogador:
o dono da bola sempre escolhia o time
o craque tinha primazia sobre o perna-de-pau
o mais forte tinha supremacia sobre o mais fraco (inclusive fora de campo)
o mais rico mandava no mais pobre (exceto se fosse conhecido craque)
o culpado pela derrota era sumariamente execrado pelos demais
O ânimo era tanto que até as mulheres apareceram e não deixavam faltar nada
ao maquinista. Êta água fresquinha, almoço reforçado, a tiquira para abrir, a
galinha ao molho pardo, farinha d'água de Carema e o docinho de buriti na
sobremesa. Com essa notável infra-estrutura, não houve como o maquinista se
recusar a dar o capricho.
E assim foi. Além de ser profissional competente, fez o serviço com muito gosto.
Numa semana o campinho estava pronto, bem aplainado, com direito a
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acostamento em toda a volta que dava até para construir a mini arquibancada.
Na despedida o maquinista prometeu que viria para o churrasco de inauguração
- e veio. Fizemos a vaquinha entre os moradores para dar de presente de
agradecimento e nos despedimos com tapinhas nas costas e vigorosos abraços.
Os clubes nasceram com mania pelos erres: REAL, RENNER, RIVER, RADAR, mas
para quebrar a monotonia tinha também o glorioso FAC - Filipinho Atlético
Clube! Depois veio as dissidências e, como o Flamengo (que nasceu no Rio de
Janeiro de uma cizânia do Fluminense), o RADAR surgiu de briga interna do
REAL, este vindo de dissidência do RIVER.
O resto é matéria para historiador e não para contador de folclore como eu...
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"Existem derrotas mais triunfantes que as vitórias."
Montaigne
– Vai! Vaaiii!
– É minha!
A platéia fica atenta. Sabe que, apesar de todos os defeitos, de ser varapau,
aqueles lançamentos o artilheiro sempre pegou na veia. Ai do goleiro!
Um deles foi arremessado para o fundo das redes com bola e tudo, dada à
potência do chute. Envergonhado, nunca mais frequentou as três traves.
Mas a história tem o seu dia de traição e muda sem prévio aviso...
Depois desse dia e até hoje Saloca sonha o pesadelo com o lance: a bola vinha,
redonda, redondinha, pedindo para dormir no fundo da rede. Mas as pernas de
Saloca, num vexame supremo, não obedecem ao seu comando e
injustificadamente bambearam logo nas primeiras passadas. Lá vai a bola
caindo, caindo, quicando no chão e nada de Saloca chegar nela. Trocava as
pernas como o bêbado largado na noite. A platéia gemeu de dó ao ver o craque
perder o passo e tentar, num derradeiro e hercúleo esforço, aproveitar o
terceiro quique para finalmente arrematar - ainda dava tempo de fazer o
golaço.
Mas as canelas estavam mais moles que perna de mamulengo e foi ele que,
recebendo o tranco do beque, foi arremessado pela lateral afora e a bola,
protegida pelo zagueiro, saiu pela linha de fundo em tiro de meta.
– Disgrama!
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O banco de reserva reclamou, o técnico xingou, os colegas de campo chamaram
ele de uma porção de nomes feios, o beque riu debochado e o goleiro chamou
ele de perna-de-pau. Ante tanto dissabor junto, o ás lembrou de fingir que tinha
sentido a fisgada e levou a mão no posterior da coxa esquerda (ou direita, nem
lembrava). Caído na lateral chorou, não de dor, mas de vergonha, vergonha de
ter perdido o gol feito, vergonha de ter fingido o estiramento, vergonha por
saber que nenhum dos seus colegas do time, nem a torcida, iriam acreditar.
– Mascarado!
– Ai-ai, ui-ui!
– Chega, chega!
Amélia.
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E contou. Contou como de uns meses para cá o velho seu pai achou de
proteger, a pedidos, a filha do seu Mário, amigão do interior – e deu acolhida a
Amélia. Ela mesma, aquela de peitinhos empinados que todo dia de manhã vai
à padaria e deixa seu Manel e todos os fregueses arrepiados. Como eram muito
amigos, o velho e o Mário, tratou-a como a filha que não teve. Um quarto
sozinho para ela, carinhos, pouco trabalho.
– Desde aquele dia quedê sossego Sêu Mano? A menina tá nova, quer toda
hora...
Quando ela passa na rua, todo mundo fica entesado por aqueles cabelos negros
levemente ondulados, brilhantes, massageados com óleo de amêndoa doce. E
todos sabem que ela é mocinha - ainda não fez 16 anos - ainda tem muito para
crescer e incomodar a Deus e o mundo. Se for assim perturbador com todos os
mortais que passam por ela nas ruas, magina ele, que passou a viver ali, dentro
de casa, todos os dias juntinhos com aquele amor de pecado.
– Então, um dia ela viu que eu estava espiando ela tomar banho.
Anjo infernal, mais lânguida que a onda errante, boca de estrela, flor amorosa,
mais que divina, inocente almejo, poço de desejos, flor de formosura, não
reclamou, fingiu que não viu, até deixou. E Saloca foi se aconchegando,
chegando de mansinho, até descobrir que era gostado e estava gostando. E foi
tomando banho juntos que ele descobriu que ela não era mais mocinha, quer
dizer, era, mas não era muito. Aliás, diga-se a verdade, foi ela quem
confidenciou. Alguém fez mal a ela lá no interior, no centro.
Então o artilheiro não teve mais desconfiança que estava apaixonado. E paixão
daquelas grudentas, que agarra dia e noite com a gente e não larga nunca
jamais. Tinha, portanto, de aproveitar aquelas duas horas em que ficavam sós
em casa ele e Amélia: os manos, para escola, o velho ia para a praça jogar dama
até 6 horas da tarde. E como não tinha outro lugar adequado, nem naqueles
tempos tinha hotel nem motel, Saloca e Amélia se encontravam no banheiro,
pés descalços no piso úmido e frio, nas duas únicas horas que ficavam sós em
casa.
Essa paixão de começo não tem dia. Ou melhor, tem: é todo dia. E durante
muitos meses Saloca e Amélia se amaram diariamente, duas horas em pé! Em
pé! Trancado no banheiro, enfrentando o calor como quem frequenta a sauna.
Metia a cabeça entre os peitos de Amélia (era o lugar mais alto que o pirralho
conseguia alcançar) e ficava ali lambendo o suor que descia pelo pescoço dela.
Só largava quando ficava com o corpo febril tremendo, despejando suor por
todos os poros. Aí sentia as canelas bambas fraquejando desobedientes,
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manquejando como o passarinho ferido, ia dobrando os joelhos, as pernas
arriando, até achar repouso recostado, desfalecido, no azulejo frio do banheiro.
E quando terminava Saloca e Amélia ficavam se rindo um para o outro que nem
dois bobos. Mas tinha de ir pro treino. Amélia ia até a porta se despedir dele.
Era aquela moleza, vontade de nem não sair de casa. Olhando aquela morena
na porta, se rindo, batendo o adeusinho com todo o corpinho moreno, quem
disse que dava vontade de treinar? Ia pro campo com o corpo todo tremendo
de saudade. As pernas bambeavam como pernas de mamulengo e não tinha
massagista que desse jeito. No treino ainda dava pra mascarar, mas no jogo,
bem, no jogo foi aquele papelão que se viu.
Foi como soube por que Adão cagou e andou ao ser expulso do Paraíso. Foi
quando descobriu que a vida não é o mar de rosas, mas que vale a pena viver.
Foi como tomou conhecimento de que o amor é lindo e que é a virilha - e não o
cérebro - o centro da nossa vida. E nesse idílio consigo mesmo, distraído,
acabou pensando alto, quase gritando:
– Valeu a pena!
Com essas palavras, saltou e socou o ar como se tivesse feito o gol. Mal acabou
de pronunciar o pensamento em voz alta e tomou um cascudo na cabeça. E
assim é que o artilheiro Saloca foi solenemente expulso do time. Mas pelo
menos deu para sair na fotografia oficial da primeira formação do River Futebol
Clube. Não dá para notar, na foto, se as pernas estão bambas ou não.
3 - "Diabo Louro"
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"Se você não diz a verdade sobre si mesmo, não pode dizê-la sobre os outros."
Virgínia Woolf
Nas partidas que disputou jogando no gol (os técnicos aproveitavam sua alta
estatura para mantê-lo como goleiro reserva ou regra três), engoliu memoráveis
frangos. Por outro lado, quando estava inspirado em Pompéia – cognominado O
Águia Voador – salvava o time de algumas derrotas, defendendo até pênaltis
decisivamente importantes.
(Depois, muito tempo depois, foi ser vizinho do famoso arqueiro no baixo
Cachambi e chorou ao conhecer a casa em ruínas em que Pompéia morava.
Engoliu o medo de saber que a Águia Voadora vigiava o passado glorioso com
porres contínuos de cachaça e assim viu como ia ele acabar seus dias, tremendo
e atacado de alguma cirrose irreparável. Cadê os clubes pra apoiar o craque?
Cadê o glorioso América Futebol Clube? Cadê o Sindicato dos Jogadores?...)
Um dia o time se viu sem goleiro e lá foi Saloca ser titular debaixo dos três paus.
A equipe toda atuou bem e havia se preparado para o campeonato com
esmero. A essa altura o futebol do Filipinho estava bem cotado e foi fundada
até a Liga esportiva para representá-lo junto à Federação de Futebol.
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Outras equipes protestaram: o REAL F.C. estava profissionalizando o
campeonato, coisa que ninguém queria. É verdade que, aqui e ali, sempre corria
o dinheirinho, o favor, a chantagem, para aliciar os jogadores mais famosos.
Mas era diferente de profissionalizar. Veio o primeiro turno, o REAL F.C. venceu
e se classificou para a grande final. Mas aí o Diabo Louro, aguerrido como era,
foi entrar numa dividida, caiu mal por cima da clavícula e lá se foi o braço pra
tipóia.
Não podendo haver mais inscrição de jogadores, o jeito foi manter Saloca como
titular durante todo o segundo e decisivo turno. Os times reagiram,
aproveitaram as deficiências e fraquezas do goleiro e o REAL F.C. perdeu feio.
Jogando debaixo de muita pressão, veio a finalíssima e o REAL F.C. perdeu
também. O Diabo Louro foi defender outros clubes mais famosos e Saloca
encerrou prematuramente sua carreira de goleiro.
O BUICK NEGRO
– Sempre que passo por aqui, fico vendo os mais antigos, que estão lá no fundo.
Saloca apontava para o velho Cadilac Rabo de Peixe que um dia fora azul claro.
Junto dele repousavam os restos mortais de velhos Buick, Studbaker, Austin-
Halley.
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banho de mar. De fato, alguns segundos depois, lá vinha o Tio Zé metendo o pé
no acelerador, fazendo cantar pneus nas curvas, sabendo que a turma já estava
esperando de calção, caniço e samburá.
Era um carro amplo e confortável. Um carrão! Cabia todo mundo dentro e mais:
Tio Zé abria a porta da mala traseira e dali surgia, como por mágica, um banco
para mais dois passageiros.
Como num jogo sem regras, estabeleceram que quanto mais bonito fosse o
passarinho, mais a descoberta tinha importância. O bem-te-vi, apesar do preto
e amarelo, valia pouco, o sanhaço brilhava mais pelo azul claro das penas, o
sabiá era o campeão pela bravura que demonstrava, desde filhote. E as mães,
nem se fala: quando descobria os intrusos visitando o ninho atacavam-nos
violentamente, defendendo os filhotes. Era a natureza falando mais forte.
Não demorava muito e lá vinha a ordem do Tio Zé:
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almofadado como os bancos internos. Uma trepidação demorada podia custar
marcas doloridas na bunda e nas costas.
Era tempo de caju? Os troncos rugosos dos cajueiros viravam trampolins para
saltos travessos dos saguis que vinham colher frutas e voltar a seu habitat.
Quem encontrasse algum jenipapo espocado no chão, guardava pro Tio Zé. Esse
ele não dispensava de jeito nenhum. Ia direitinho para as famosas mãos da Loló
para curtir e fabricar o licorzinho.
– Aqui não estraga nada – ensinava Tio Zé – mesmo o que parece podre, a
natureza se encarrega de aproveitar. Aqui não estraga nada...
E com essa aula as crianças viravam passarinhos. Até ouvir de novo o grito de
chamada:
Mal saía do sítio, pegava o pouco de estrada de areia (o Buick Negro dançando
valsa prum lado e pro outro). Aquele pedaço era mal visto, porque era famoso -
negativamente famoso, aliás - nos tempos de chuva. O areal, cuja base era a
tabatinga, virava o lamaçal intransponível, que nem mesmo o Buick Negro, com
toda a sua potência vencia.
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Superado aquele pequeno deserto de areia fina, mais um quilômetro depois, a
mais rápida das paradas: o Rio Maioba. Nem mesmo era um rio, não passava de
riacho. Mas o Tio Zé conhecia o canto lá atrás que formava a lagoinha de água
doce e alva. Essa parada não dava muito ânimo nos garotos, porque o local
aonde ia o Tio Zé era fundo. Só dava pra brincar na margem. Mas ninguém
reclamava não. Aquela parada, afinal, não era deles. Era a paixão do Tio Zé.
Passasse por ali a qualquer hora do dia ou da noite, mesmo que não fosse a
passeio, havera de dar uma paradinha, saltar e ir dar o mergulho no seu
laguinho de água escura, mas límpida.
– Essa gente vem aqui tirar areia pra construção, barrilha pra vender e acaba
com o Rio. Dá dó de ver...
O Tio Zé, sofrido com a degradação do seu Paraíso, entrava no carro sem dar o
grito de guerra. O pessoal tentava animar o resto da viagem, mas o Tio Zé só
voltava a sorrir mesmo depois da última colina, quando lá embaixo já
despontava o areião da praia, a perder de vista e – por fim – o MAR! O glorioso
MAR!
Na ladeira que dava acesso à praia, o Tio Zé botava o Buick Negro em ponto
morto e ele descia sacolejando mais ainda, as molas rangendo, aço velho
reclamando dos solavancos provocados pelos buracos. Mal chegava lá embaixo,
puxava o freio de mão e já saía atirando num canto a camisa, os sapatos, as
calças. Abria os braços para os lados querendo abarcar o mundo, respirava
fundo a brisa do mar. As crianças há muito tinham iniciado a maratona pra ver
quem chegava primeiro na água morna.
Que nada, aquilo era mar de piscina. Qualquer criança podia brincar ali sem
perigo. Os outros já estavam arrumando vaga nos times, batendo a bola na
areia dura, dando bicicleta, fazendo defesas espetaculares. Quem não brincava
disso ia apanhar murici e depois descer a toda velocidade, rolando das alturas
das dunas.
Tio Zé descia lentamente toda a extensão da praia (até chegar à água era bem
mais de cem metros), molhava o pé de mansinho provando a temperatura da
água, apesar de saber que ali havia a constância de cerca de trinta graus.
Entrava, dava um, dois mergulhos, aproveitando a onda que vinha.
Como de hábito, após os mergulhos rituais, o Tio Zé voltava para a beira do mar,
aonde as ondas vinham morrer marulhando, transformadas em espuma.
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Sentava e ficava mirando o horizonte, lá longe, onde o céu se junta ao mar,
deixando a areia molhada escorrer pelos dedos.
– Tudo prooonto?
A REPÚBLICA DA MATRACA
Boizinho Barrica
O ensaio era mais para isso do que propriamente para decorar a representação,
já que a maioria dos brincantes – tirando um ou outro calouro – era de
veteranos que sabiam tudo de cor e salteado. A convocação servia também
para atualizar a prosa, tomar uma tiquira, arrumar e reparar os apreparos,
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renovar as miçangas e vidrilhos coloridos, consertar os pandeiros e as
ronqueiras, trocar as fitas descoloridas pelo tempo, tirar do baú os couros do
boi - mas o que justificava o ensaio era principalmente a alegria do reencontro,
o prazer de retornar ao divertimento preferido.
Quando chegava o tempo de São João, então nem se fala. Era loucura ter de
acompanhar todas aquelas representações. É claro que não dava, não havia
tempo físico nem resistência física, para resistir àquela maratona.
Mas era aproveitar que as festas eram curtas. Logo, logo, dava uma tristeza
imensa, malincolia, o nozinho grudento preso na goela – era o fim de tudo, era
o fim das festas. Todos eram bonitos sim. Os bois de Rosário e Axixá, pujantes
com aquela osquestraiada toda. Parecia um baile. Os bois de cabôcos, que não
traziam fitas, com muitos índios a caboquinhos, eram bonitos também, mais
principalmente, eram os mais sonoros. Ouvia-se de longe, de longe se via
aqueles pandeirões enormes sendo atirados pra cima no ritmo da pancada.
Era difícil, impossível mesmo, resistir àquela zoadeira toda, cheia de animação,
provocada pela ronqueira, pela zabumba, pelos pandeiros. Durante todo esse
tempo ele soube amar um boi mais que os outros, apesar de não saber como
tinha nascido essa paixão. Mas, se tinha um Boi que Saloca guardava no
coração, era o Boi da Madredeus. O Boi por excelência. O Boi da sua torcida e
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paixão. O Boi de couro mais bonito, o Boi do mais sonoro garnicê, das melhores
toadas e louvações, o Boi da mais bonita representação.
Como era louco pelo Moto Club e pertencia à nação rubronegra, na vitória e na
derrota - da mesma forma gostava do Boi da Madredeus. E ai de quem falasse
mal dele! Porque, para Saloca, ver a representação do Boi da Madredeus é
alguma coisa de inexprimível, inominável, indescritível, algo que não tem
explicação. Entre todos os rivais - tirando, claro, o veterano e tradicional Boi de
Cururupu - o Boi da Madredeus só respeitava o Boi de Laurentino, da Fé-em-
Deus, cuja zabumba ritmada tinha o som tão poderoso que cobria a batida de
qualquer outro Boi que por acaso enfrentasse cara a cara.
Errado. Pelo menos, foi o que Saloca me disse: "Numa reportagem que li, o
famoso explorador do Ártico Sir Roberts Elroy declarou que nada seria capaz de
exprimir, em palavras, sons, pincéis, imagens e cores, toda a beleza exuberante,
a magnificente beatitude (e mais outros superlativos, que não vem ao caso),
daquilo que chamamos Sol da Meia Noite."
Droga! Mas o que isso tem a ver com a Ilha? Simplesmente isso: é dessa
mesmíssima maneira que me sinto para descrever a roda de Bumba-meu-boi.
Não tem como explicar, nem mesmo pedindo ajuda à imaginação fértil e
trasbordante de Saloca: "É um ambiente de tal maneira mágico, que se
aproxima muito daqueles encontrados nos terreiros do Tambor-de-mina, o
ritmo é tão alucinante como o do Tambor-de-criola, o drama é tão mais bonito
que a ópera de Carlos Gomes e, quando o terreiro está cercado de muitas
fogueiras, o céu resplandece como o espetáculo boreal."
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Ou seja, de outra maneira e com outras palavras, só mesmo indo ver a
representação de Bumba-meu-boi para saber o que significa beleza dos cantos,
o ritmar dos tambores, o repenique das matracas, o desfecho sensacional do
drama. Cheirar a fumaça da lenha ardendo nas fogueiras, ouvir o foguetório que
precede a chegada do Boi e os balões que sobem colorindo o céu.
Ouvir o bombardeio constante dos foguetes, que sobem chiando para explodir
lá em cima, misturando-se aos riscos coloridos dos fogos de artifício. Ver a
alegria elétrica estampada nas faces daqueles que acolhem os participantes, ver
a maneira alucinante de como o povo entra e participa da festa, mas,
principalmente, ver o riso grande estampado na cara das crianças, correndo e
gritando em volta da Burrinha, do Caipora e do Cazumbá.
Mas nada se iguala em beleza cênica, quando o bailado se inicia e o Boi adentra
na roda atendendo aos chamados do cantador, girando, girando, girando. Ora o
Boi circula sobre si mesmo, rodando como o pião, ora o dançante deixa a
posição curvada e o Boi se levanta todo de uma só vez como se desse o salto no
espaço sideral, ora o Boi avança sobre a multidão deliciada como se fosse
tourear de verdade, provocando gritos e correrias.
E o couro do Boi? De primeiro ele entra vestindo o couro modesto, muitas vezes
de pano liso como um boi qualquer. Na segunda aparição já vem com o couro
de lona, mas pintado com algumas paisagens e referências de suas origens.
Depois mais outro e outro mais, cada qual mais bonito que o anterior. Quanto
mais famoso, mais couro o Boi possui. E, por fim, o Boi mostra toda a sua
pujante beleza quando veste o couro de veludo negro, todo ilustrado com
canutilhos, miçangas, paetês, avelórios e outras pedrarias, que transformam o
próprio Boi numa riquíssima obra de arte.
O contraste do veludo negro com o cintilar dos vidrilhos se acentua a cada giro
que o Boi dava dançando no meio da multidão. Honra e glória àquele dançarino
que faz o miolo e se mantém quase sempre anônimo durante toda a
representação dançando embaixo do Boi, mas que se transforma num ídolo, no
herói mais procurado por todos, assim que terminava a função. A glória do Boi
era a glória do dançante, a glória do miolo.
Mas não há bem que sempre dure nem mal que sempre ature. Depois da alegria
chega o dia da tristeza. Marcada a morte do Boi, guardam-se os apreparos, os
chapéus de fitas, as fantasias, tudo é recolhido dentro da cerimônia da morte.
Não obstante ser a continuação da festa, com direito a muita bebida, cantoria e
comida, não deixa de ser um ritual triste.
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Ainda se ouve o som das zabumbas, dos pandeiros e da roncadeira. Ainda se
ouve o canto choroso do reencontro com o Boi que, por estar muito doente, vai
ser sacrificado. Ainda se ouvem as toadas tristes.
O Boi vem vestido com todos os couros que usou durante os festejos de São
João e toda a solenidade do rito se reflete na dança, cujo ritmo acompanha o
gemido das cantorias dolentes. A cada passada o couro é retirado,
cuidadosamente dobrado e guardado. Por fim, tirado o último couro, o
esqueleto, mal coberto com uns trapos, é levado para o ritual da morte na
fogueira.
OS VIOLÕES SILENCIOSOS
Reclamei com o Velho João do silêncio enorme, amazônico, que fazia de noite
em todos os recantos da Ilha. Era o silêncio de tamanho maior que a escuridão.
Lembrei de Mário de Andrade relatando o nascimento de Macunaíma...
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Muito me estranhei, eu que moro numa cidade tão grande que nas noites se
ouve tudo quanto é ruído. E sempre tem uns tirozinhos ecoando nos morros
onde a bandidagem convive. Não se tem paz nem silêncio.
– A noite tem dono, o silêncio é dele. Mas antigamente o silêncio era maior,
muito maior. Comentou o velho sem estranhar minha admiração. Era um
caladão bem maior que não se era capaz de medir.
– Mas ainda é um grande silêncio esse daqui. Uma coisa calada, enorme, como
o fundo de mar ou as alturas do céu. Talvez mais ainda...
– Noutros tempos o silêncio era tão grande, mas tão grande que se ouvia nas
sextas-feiras o Tambor de Mina bater lá na casa do Mandingueiro do Turu. O
som do tambor vinha de longe, mágico, perseguindo quem não crê, quem não
tem fé...
– Quando tá assim, esse silêncio enorme que dá até pra escutar os suspiros da
morte, quer dizer que as almas estão conversando. É dia dos espíritos se
reunirem na fala deles, que não tem fim.
– Esse menino não sabe ainda o que é o amor... Ela tinha os olhos verdinhos, da
cor da alface.
– Entre os oitizeiros da Praça, foi quando vi pela primeira vez, ela saindo do
colégio vestida de rosa-e-branco.
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– Sobressaía das colegas pela beleza. Daí em diante não tem dedos que possam
contar todas as serestas que fiz pra ela.
– A paixão é assim que nem o raio, que cai e arrebenta a árvore no meio. Essa
nunca mais se ergue...
Depois pegou a masca entre os dedos, amassou com delicadeza e arrumou num
canto já conhecido da bochecha.
Daí a masca de fumo iria se dissolvendo e só seria cuspida pra fora após esgotar
o último sumo.
Parecia que os dedos macios da mocinha tocaram forte nas cordas do coração
calejado do pescador.
– Estava ciente que tanta finura não era coisa pra mim. Mas não custa nada a
gente gostar, né seu moço?
Saloca sabia em que dava tanta nostalgia e pegou lá dentro o violão encardido
pelo tempo. Um acorde ressoou na varanda.
"Eu sou capaz de confessar aos pés de Deus que eu nunca vi, em mundo algum,
uns olhos como os teus!"
Mal soaram os últimos acordes (e depois dos últimos suspiros) e Saloca entoou
sua esperada ladainha.
O velho, com seu jeito debochado, nem deixou ele completar e se riu:
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– Seresta, seresta porra nenhuma! Hoje em dia nem tem mais seresta. Não se
faz mais seresta. E isso que tu faz é arrumar dois ou três acordes, ajunta a
vozinha de gato miado e inda quer chamar aquilo de música, de seresta. Hoje
em dia nem tem mais...
– Foi para uma garota carioca - Saloca nem se importou com os comentários do
velho – ela era muito bonita, tinha a pele branca e pura como o leite, os cabelos
pretos compridos, brilhantes "como a asa da graúna"...
Passou os dedos nas cordas do violão, à toa, sem compor nenhum acorde.
– Tinha a boca tão vermelha que nem precisava de batom. E os lábios eram
arregaçados assim para os lados, como as areias da praia. Realmente era linda
demais.
– Mas foi seresta de um dia só. Logo depois acabaram as férias e ela teve de
voltar para o Rio de Janeiro e lá se foi. Muito tempo depois recebi o cartão
postal dela...
– Ele não conta que, quando fez a tal seresta (disse acentuando tom de
desprezo), a menina já tinha viajado. Foi simbora.
Saloca não escondeu que estava enfezado e aproveitou para sumir lá para
dentro, levando consigo o violão.
"Meu amor, eu não sei te dizer, com exatidão, como enfermei desta grande
paixão, que entrou no meu coração..."
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– Os moleques ficaram lá de dentro da casa escura, escondidos ouvindo a
seresta. Depois vieram em grupo numa gozaria danada, que o menino chegou a
chorar de dó.
– Vieram até ele em risadas só pra dizer que ele estava fazendo seresta para a
porta. A menina já tinha viajado pro Rio de Janeiro fazia tempo... Daí em diante
o moleque só pensava em ir partir pro Rio de Janeiro. E se não fosse tão longe e
tão caro, ele havera de achar jeito de ir mesmo.
Agora não se ria mais. Realmente penalizou de dó de recordar que caso igual
tinha acontecido com ele mesmo. Ele também foi repudiado tempos atrás. Mas
quem nesta vida não foi um dia rejeitado pela mulher amada?
O SACRISTÃO NO INFERNO
"Mas no silêncio
dominical
vive em suspense
o bem e o mal"
José Chagas
Seu Alfredo tinha uma jumenta velha e mansinha, servia pra tudo a coitada,
inclusive como companhia pro velho, até que um dia mercê de uma manobra
infeliz perdeu o olho em consequência duma chicotada num galho de goiabeira
e ficou, por isso mesmo, apelidada de "Caolha". Seu Alfredo, com muita razão,
vivia gabando as qualidades do animal que, uma vez dada à partida, era capaz
de levar a carga intacta até seu destinatário sem que ninguém a guiasse. Era
mesmo bicho danado pra guardar caminho de memória.
Portanto, com tantas qualidades e as muitas bondades a Caolha era muito bem
tratada por todos. Visto que era desses animais que jamais esquecem o
itinerário, a trilha, era largada à vontade ali pelas eiras do Covão, para pastar e
beber a água fresquinha do pocinho. Mas teve uns tempos que seu Alfredo teve
dificuldade de localizar a Caolha, que tinha o hábito de voltar sempre para trás
da igreja, assim que acabava de pastar livremente pelos capinzais da redondeza,
pois ali encontrava a sombra ideal para descansar.
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novo lugar que a jumenta achou para seu descanso. E, por motivos que
ninguém jamais desconfiou, a Caolha ficava sempre de traseira para a pedra de
meio metro de altura...
Mistério dos mistérios. Um dia seu Alfredo topou com certo sacristão trazendo
a Caolha pela rédea:
– Ôi seu Alfredo, vinha mesmo entregar a jumenta, que estava largada lá pras
bandas da Quinta.
Mas a Caolha não aparece aqui por causa desse inusitado raconto. Mais porque,
depois desses desaparecimentos, seu Alfredo resolveu deixar a Caolha pastando
num terreno baldio que tinha atrás da igreja, perto do açougue. Tinha fartura de
capim e a jumenta ficava bem à vontade, apesar de amarrada, porque a corda
se esticava por uns dez metros de diâmetro. Mas ficava também perigosamente
a poucos metros do sino da igreja.
Enquanto pastava era inevitável a Caolha ficar balançando o rabo para espantar
varejeiras e mosquitos. Bastou alguém ter a ideia de arranjar um rolo comprido
de barbante, amarrando a extremidade no rabo da Caolha e a outra na corda do
sino da Igreja! Durante toda a noite escura ficou o sino a badalar estranha e
irregularmente. Nenhum dos moradores próximos ousou ir ao local para
verificar a ocorrência: tinham medo mortal de fantasmas...
Hora magnífica para o diabo agir, ele que sabe aproveitar todos os momentos
de vagabundagem e é especialista em ficar futucando a cabeça dos ociosos,
instigando e mostrando as coisas que ele, certamente, seria capaz de fazer
numa sacristia.
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Mas não é que o Capeta tinha razão de sobra? O vinho era a delícia das delícias!
Buquê dos buquês! E a partir de então a hora do sermão deixou de ser aquela
angústia para ser ansiosamente aguardada...
E afinal, beber aquele vinho puro em jejum num daqueles dias quase o
denunciou num cochilo que deu quando o sermão do Frei Friedrich estava mais
pra reza fúnebre que pra sermão.
Um dia, porém, Frei Friedrich tirou merecidas férias e viajou para Alemanha, sua
terra natal. Deixou como substituto o recém-chegado que mal falava o
português e, por isso mesmo, pronunciava sermões curtos e engrolados.
Numa das missas, vendo que o sacristão, ignorando os pigarros com que ele,
conforme combinado, anunciava ter terminado o sermão, mantinha-se
encerrado lá atrás, o padre acabou rapidamente a missa, abençoou a todos com
um "Vão todos na paz do Senhor" e foi direto pra Sacristia. Foi vergonhoso
flagrar o sacristão tentando tirar meia dúzia de hóstias que, de tão fininhas e
macias, grudaram no céu da boca com firmeza de ostra agarrada na pedra.
Quando Frei Friedrich voltou das férias o sacristão foi denunciado e demitido
sumariamente, tendo que abdicar para sempre do hábito vermelho e branco
com o qual fez a primeira comunhão e que o qualificava na conquista perante as
donzelas pálidas que acompanhavam as mães na missa dominical.
Nem é preciso dizer que esse fato lamentável também colaborou para financiar
a passagem do dito cujo direto para os braços do Capiroto, que devia estar se
rolando no chão de tanta coisa boa que acontecia para o seu país...
1 - Mangue Seco
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"A noite me surpreende entre as imagens,
prisioneira no álbum de retratos."
Vito Pentagna
A vila de pescadores tinha esse nome não porque fosse tirado de algum
romance, mas porque as areias finas trazidas pelas ventanias constantes (que
penteavam as palmeiras todas numa só direção como que formando uma
cabeleira de estilo afro), avançavam decididamente sobre o manguezal,
sufocando e matando as raízes elevadas dos pés de mangue, que acabavam por
virar um amontoado de bichos pré-históricos que nem mesmo a imaginação
fértil de escultor poderia criar.
Ele inventava aquela correria de quem finge ter pressa, quem pensa que vai a
algum lugar, obrigando a picape saltitar como peixes nas corredeiras,
levantando da piçarra nua a poeira esbranquiçada que, emaranhada e
confundida com a vasa que vinha da praia, transformava-se numa essência que
rasgava o manguezal e se entranhava na noite, na pele, na roupa, nas almas,
nos cabelos, nas pessoas.
Ligou o rádio do carro esperando sufocar com a música aqueles sons que se
confundiam com os próprios ruídos corporais: era ele mesmo uma coisa
qualquer ambulante e inquieta, cheia de sensações, dores, gemidos. Derrick
Harriott com sua voz exultante reciclava "BE TRUE", reggae da década dos '60
tão antigo como a dor de deixar alguém.
Mangue-Seco
A vila dos pescadores
Mangue-Seco
não tinha esse nome não
Mangue-Seco
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foi o carinho arrancado
Mangue-Seco
debaixo de muita emoção
Mangue-Seco
se fosse o lugar de verdade
Mangue-Seco
feiticismo de uma localização
Mangue-Seco
seria a mansão de silêncios
Mangue-Seco
palco de faraônica paixão
2 - Cheiro de maresia
Depois de banhar na cacimba ao jorro que caía da cuia e à luz das estrelas, ela
enrolou o corpo numa canga de estilo rasta e seguiu pra casa. Um passo em
falso foi suficiente para o pé resvalar nos degraus do destino. E ocasionalmente
aparecer algum desconhecido para massagear o pé e ouvir histórias bem
sucedidas e felizes e em troca contar frases de efeito, ilusórias, das muitas que
guardou do ensinamento dos mestres orientais. O resto era teatro de camelô,
luz de boate, música de cantor de bolero, que finge apaixonamento repentino.
Depois que o frio da noite cruzou as roupas leves dela arrepiando todo o corpo,
ele teve o jeito muito feminino de acolher o pé debaixo da camisa de malha e
aquecê-lo junto ao peito. O pé criou vida, se mostrou agradecido, acariciou o
tórax, o mamilo direito, deixando os pelos do corpo e todas as coisas mais
eriçadas. Tudo então mudou, tudo então virou brincadeira, tudo então se
transformou numa irmandade cuja união alegre logo se travestiu num tempero
de amor com cheiro-de-peixe assado na brasa.
Na noite escura outra vez o farol girava continuamente a sua luz salva-vidas e
rasgava as latas de cervejas, brindava as taças de vinho, focava o grito
cadenciado e envolvente dos regueiros, amostrando com destaque o jeito
saliente dos passos, as cinturas, os seios, os quadris tirados do ritmo meio
chegados entre a dança-do-ventre e o tambor-de-crioula.
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Num átimo o cabelo dela voou na noite e ela sumiu como estrela cadente. Nem
ela estava mais ali sentada na cadeira ao lado nem o seu pé precisava mais do
calor do peito dele nem sua fala macia narrava suas necessidades nem precisava
ela mais de ouvir as histórias das mil e uma noites nem seu riso valente e
libertário ecoou numa gargalhada vistosa.
Ela não estava mais ali, ficou somente o cheiro do corpo, ardido como pimenta,
sufocante como o cheiro de amêndoa doce.
O corpo dela reluzia à noite entre os lençóis verdes das ondas do mar. O som
era o mar. O odor era a vasa. O ritmo de vai-e-vem eram as ondas que vinham
parir na areia. E enquanto as nuvens cinzentas sobrevoaram a praia, tudo era
morno e gris. E nenhum dos dois sentiu vontade de saber do sol aparecer para
tirá-los daquele calor.
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ternura e o contentamento. Antes de ser o agressor era o agredido, antes de ser
o senhor era o escravo, antes de ser o mestre era o aprendiz. E nessa contínua
guerra de carinhos sobreviviam as carícias espontâneas indicando ao
caminhante o caminho do gozo e do prazer. Sempre farol, nunca escuridão.
O cheiro de amêndoa doce tirava o apetite pelas coisas banais e frívolas como o
raro pôr-do-sol qualquer, mesmo que o sol fosse o sol dourado de Van Gogh
sobre o vale de girassóis. E a maré vinha e a maré voltava, surfistas flutuando
sobre as ondas em busca daquela melhor para lançar-se e com ela alcançar as
manobras radicais e o êxtase para o qual está preparado espiritualmente. O
supremo prazer aqui é trazido pelo cheiro de amêndoa doce mesclado ao suor
dos corpos laçados. Aí os corpos de ambos reluziam e tornavam a negrura do
quarto mais claro como se o repentino luar varasse as cortinas e banhasse com
sua luz difusa os surfistas que não precisavam de pranchas, não careciam de
água, não flutuavam sobre ondas verdes nem voavam no sonho de
campeonatos mundiais.
E no entanto, múltiplos, eram tudo isso por conta do cheiro de amêndoa doce
que impregnava todo o ambiente com a mesmíssima intensidade estonteante
de gozo e prazer das tendas de fumadores de haxixe. Quando o tempo se
esqueceu de tudo e se esqueceu até de passar, quando as radiolas de reggae
calaram seus decibéis, quando os tonéis e vidros de óleo de amêndoa doce
esgotaram seus mananciais, quando, até mesmo, as odaliscas deixaram de
colear a dança-do-ventre, ela pegou carona num anjo de aço e atravessou na
noite os cinco mil quilômetros que os separavam, em busca do manancial de
palavras, agora não tão ricas em saberes, já vazia de ilusões, sem nenhuns
poderes de persuasão.
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É neste exato momento que se inicia a nova história, a linda história de amor,
que por ninguém jamais será contada...
Péra lá, gente! Antes de dar ponto final na história devo dizer algo sobre o
bairro muito falado nos parágrafos anteriores: o Filipinho. Não vou encher mais
o saco de vocês com minha memória que já falha. Mas se chegamos até aqui, dá
para aturar mais um bocadinho. Apesar de quê esse negócio de lembrar é muito
relativo (obrigado Einstein!). Lendo o livro de memórias nada menos de Carl
Gustav Jung – o papa da psicanálise (depois de Freud, claro), fiquei surpreso
quando logo no início Jung registra a mais antiga lembrança da sua vida.
[Eis o texto: “Surge aqui uma lembrança, talvez a mais remota da minha vida e
que, por isso mesmo, não é senão uma vaga impressão: estou deitado num
carrinho de criança à sombra de uma árvore. É um belo dia de verão, céu azul. A
luz dourada do sol brinca através da folhagem verde. A capota do carrinho está
erguida. Acabo de acordar nesta radiante beleza e sinto um bem-estar
indescritível. Vejo o sol cintilante através das folhas e flores das árvores. Tudo é
colorido, esplêndido, magnífico.” C.G Jung “Memórias, sonhos, reflexões”- Nova
Fronteira (RJ)-1975?]
Bom, disse cá com meus botões, se Jung pode eu também posso. Foi em João
Pessoa, onde nasci e saí antes dos dois anos, que achei a minha lembrança mais
antiga: encontrava-me num terreno baldio, embaixo de uma mangueira
brincando. Via nas proximidades minha irmã e uma moça que tomava conta da
gente. Lembrei que fomos à praia de bonde e que houve um incidente: o meu
irmão se perdeu e foi encontrado com a sola dos pés esfolada queimada pela
areia quente. Essa é a única memória que tenho daqueles dias.
Depois, nunca mais voltei a João Pessoa, não conheço minha terra natal Mas
esse é outro prazer que estou guardando para gozar antes de ir desta para outra
melhor...
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Agora vou tentar fazer o mesmo com o bairro do Filipinho, na época um
conjunto residencial mandado construir pelo IAPC, com recursos obtidos da
contribuição dos associados, para os funcionários residirem com as famílias. Isso
sem onerar a Fazenda, os Bancos ou os BNHs da época. As casas tinham
varanda, três quartos, quintal, jardim e eram absolutamente iguais. Eram casas
sólidas, mas com pequeno defeito: eram cobertas com telha de amianto,
definitivamente imprópria, tanto pela matéria com que é feita, quanto por
acumular o calor amazônico que cobre São Luís. Fora isso, eram boas, amplas e
arejadas.
Além das casas absolutamente iguais, o Filipinho era servido também de prédio
administrativo, escola primária, lojas comerciais, Posto de Saúde e a Capela de
Santa Terezinha, gerida por capuchinhos alemães da Ordem de São Francisco.
Com essa estrutura, rapidamente o bairro criou vida: a escola recebeu
professores, diretoria, os primeiros alunos, nomearam administradores,
funcionários, vigias. As vagas eram geralmente ocupadas pela comunidade, o
centro comercial foi abastecido de Mercearia, Quitanda, Bar Restaurante e
Farmácia. A Capela tinha como padroeira Santa Terezinha, mas o altar de São
Judas Tadeu era o mais frequentado, vai ver porque é o santo dos aflitos e
desesperados. Judas Tadeu sempre foi santo de segunda ordem, porque o seu
nome era associado ao de Judas Iscariotes. Porém falava mais alto o privilégio
que Tadeu tinha em trazer socorro imediato, onde o socorro desapareceu por
completo. E o número de seus fiéis sempre foi grande e crescente.
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2) Fui injustamente acusado de ter derrubado mangas que provocaram a
quebra de telhas, mas inocentei-me provando que na hora do ocorrido estava
no centro com outro colega;
O bairro era fronteiriço, de um lado, com a Jordoa, do outro, com o Sítio do Leal,
nas proximidades da entrada do Sacavém. Tempos depois o Sítio do Leal
também viraria conjunto residencial. Nos fundos começava o manguezal,
bonito, verde, que atravessava o Bacanga e se estendia até as bandas do
Boqueirão e sempre visitado por garças, guarás e outras aves marinhas. O
mangue era farto também em caranguejo, siri e dava boa pescaria – desculpa
que a criançada tinha para mergulhar nas suas águas lamacentas, mas
saudáveis. Era o nosso Parque Natural. Essa riqueza era explorada por um
curtume, instalado às suas margens, que extraía os pés de mangue para curtir e
dar a cor avermelhada ao couro de boi ali industrializado.
Em princípio o Filipinho era isolado da Av. Getúlio Vargas, por uma cerca de
colunas de concreto e arame farpado, mas tinha três portões grandes, que
davam acesso direto as três ruas principais: Rua 1, Rua 2 e Rua 3. Essas três ruas
seguiam longitudinais até o fim do bairro (às margens do mangue) e eram
cortadas por várias outras ruas, formando grandes quarteirões. Os portões
eram fechados à noite e durante toda a madrugada se ouvia o apito estridente
dos vigias, que davam ronda em todo o bairro até de manhã. É interessante,
porque debaixo desse manto protetor – e também devido ao calor – a maioria
dos moradores moravam de portas e janelas abertas. Por outro lado, essa
facilidade deu margem a que ocorressem grandes aventuras amorosas, que
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corriam em surdina, de boca em boca, tornando a vida do lugarejo mais
emocionante...
Poderia (e deveria), abrir o espaço para falar também daqueles que dividiram o
bairro do Filipinho comigo, nossas vidas se cruzaram em várias ocasiões. Ainda
hoje alguns cabeça-duras insistem em promover reuniões para lembrar aqueles
tempos centrados nos anos 60. Vivi no Filipinho de 1950 ou 1951 (o bairro não
havia sido inaugurado oficialmente), até 1963 – ocasião da morte do velho João
Rovedo – quando fui, primeiro para o Paraná, depois para o Rio de Janeiro. Mas
por algum motivo que desconheço contei mais os fatos do que as personagens.
Ademais, são muitos os colegas e amigos que passaram, passaram...
E a maioria já não está em São Luís, nem nesta terra. Foram viver em outras
cidades, morreram, estão por aí. Alguns encontrei no Rio de Janeiro, geralmente
encontros tristes, rápidos, sem consistência. Todos estávamos lutando pela
sobrevivência, alguns com filhos e esposa para sustentar, outros com perdas
familiares, enfim, cada um com seu drama pessoal, intransferível.
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Temos a provinciana vergonha de tudo inata em nós. Por isso não dividimos
nossos problemas. Como diz o ditado: “Por fora, bela viola. Por dentro,
molambo só.” De quem herdamos essa praga?
Acompanhei Valdir durante a doença e morte do seu pai, João Pereira, Oficial da
Marinha, Capitão dos Portos de Cururupu, falecido no Hospital da Marinha na
Praça XV de Novembro. Sabia muito a História do Brasil.
Valdir veio para o Rio de Janeiro antes de mim. Sempre teve abertas as portas
da sua casa a qualquer maranhense que aqui chegasse. Quando cheguei não foi
diferente. Juntamos, as casas e as famílias, em comilanças memoráveis. Acresce
que tínhamos grandes amizades cariocas, turma do violão e da seresta, tire uma
ideia do que foi tudo isso. Esse Valdir é que me falava das pessoas. Enquanto
tenho enormes dificuldades em relembrá-las, o Valdir lembrava de todos e
atualizava as notícias, boas e más. Em matéria de gente e nome, Valdir era a
enciclopédia. Agora não o tenho mais para me lembrar das pessoas e ficou
difícil. Ademais, pela primeira vez na vida fiquei de mal com Valdir: o sacana se
foi de repente, sem prévio aviso, sem pedir licença. Foi antes do combinado.
Fiquei puto. Essa ele me paga!
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*THEEND*
www.poeteiro.com
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pela mesma licença 2.5 Brazil: http://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.5/br/ - Creative
Commons, 559 Nathan Abbott Way, Stanford, California 94305, USA. Observação: Após a
morte do autor, os direitos autorais retornam para seus herdeiros naturais.