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Ilha - Salomao Rovedo - Iba Mendes

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Salomão Rovedo

Ilha
Retratos encontrados num álbum esquecido...

Da Edição de 2000 do autor, a quem pertence os Direitos Autorais.

Salomão Rovedo
(1942)

“Projeto Livro Livre”

Livro 701

Poeteiro Editor Digital


São Paulo - 2015
www.poeteiro.com
PROJETO LIVRO LIVRE

Oh! Bendito o que semeia


Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe — que faz a palma,
É chuva — que faz o mar.
Castro Alves

O “Projeto Livro Livre” é uma iniciativa que propõe o compartilhamento, de


forma livre e gratuita, de obras literárias já em domínio público ou que tenham
a sua divulgação devidamente autorizada, especialmente o livro em seu formato
Digital.
No Brasil, segundo a Lei nº 9.610, no seu artigo 41, os direitos patrimoniais do
autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente
ao de seu falecimento. O mesmo se observa em Portugal. Segundo o Código dos
Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, em seu capítulo IV e artigo 31º, o
direito de autor caduca, na falta de disposição especial, 70 anos após a morte
do criador intelectual, mesmo que a obra só tenha sido publicada ou divulgada
postumamente.
O nosso Projeto, que tem por único e exclusivo objetivo colaborar em prol da
divulgação do bom conhecimento na Internet, busca assim não violar nenhum
direito autoral. Todavia, caso seja encontrado algum livro que, por alguma
razão, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentileza que nos informe,
a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo.
Esperamos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam
repensadas e reformuladas, tornando a proteção da propriedade intelectual
uma ferramenta para promover o conhecimento, em vez de um temível inibidor
ao livre acesso aos bens culturais. Assim esperamos!
Até lá, daremos nossa pequena contribuição para o desenvolvimento da
educação e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obras
em domínio público, como esta, do escritor brasileiro Salomão Rovedo: “Ilha:
retratos encontrados num álbum esquecido...”.

É isso!
Iba Mendes
iba@ibamendes.com
www.poeteiro.com
ÍNDICE

INTRÓITO ESFARRAPADO.............................................................................. 1
ATRACADO NA RELEMBRANÇA..................................................................... 3
DERRAPANDO NA CANTARIA......................................................................... 6
E VIVA A AMIZADE! ....................................................................................... 9
TRABALHO CONCEBIDO COM AMOR............................................................ 12
O SEGREDO DO CUXÁ.................................................................................... 14
O PESCADOR DE LOROTAS............................................................................. 15
PLENITUDE HUMANA.................................................................................... 20
NO RIO TURU, ENTRE O JUÇARAL................................................................. 22
ÓLEO SALADA F.C. ......................................................................................... 27
O BUICK NEGRO............................................................................................. 35
A REPÚBLICA DA MATRACA........................................................................... 39
OS VIOLÕES SILENCIOSOS.............................................................................. 43
O SACRISTÃO NO INFERNO............................................................................ 47
NOS DIAS DE HOJE EM DIA............................................................................ 49
MAIS UM DEDINHO DE PROSA... .................................................................. 54
ILHA
RETRATOS ENCONTRADOS NUM ÁLBUM ESQUECIDO...

INTRÓITO ESFARRAPADO

"Honni soit qui mal y pense."


(Vergonha quem disto pensar mal.)

Para se livrar da pecha de mentiroso o autor me pediu para escrever este


prefácio, querendo me fazer avalista das estórias que ele pespegou na alvura do
papel virgem. Primeiro tentou difamar meus relatos maldizendo: “Informante é
uma praga, um desalmado. Isso mesmo: desalmado, sem alma: diz, conta e fala,
mas não garante. Pois fique sabendo que vou publicar tudo aquilo que me
contou – e assinar embaixo. Só espero que seja a pura expressão da verdade.”

Não tem problema. Meu Vô João resmunga com toda razão:

“A verdade é a verdade, nada mais que a verdade e o que não é verdade não é
verdade."

E mais: “Se uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

Esta estória está, pois, defecando verdades e vomitando mentiras. Quem


acreditar que creia!

Então, tudo que eu disse está dito e toda a nação de coisas que disse é
facilíssima de entender, porque o que é verdade à luz da lamparina, também é
verdade à luz do Sol. Faço minha a advertência que copiei do filósofo Platão:
"Depois das mentiras, o maior vício de uma obra histórica é estar repleta de
minuciosidade".

Nada posso jurar de pés juntos porque sei que a mentira é como bola de neve,
quanto mais rola mais aumenta. Estória é como boato: corre vadia de boca em
boca sem rumo. Ainda sigo o Vô João: “a verdade é muito importante para ser
dita pela metade." Sei que o caminho da verdade é tortuoso, mas mentira,
mentira mesmo, dessas cabeludas, cabeludas, não contei nenhuma,
nenhumazinha mesmo. Bem, talvez uma ou outra, pequeninha, que ninguém é
perfeito...

1
Temos que fingir acreditar na memória, porque dela não podemos ser
expurgados como Adão foi do Paraíso. Ninguém mente pela metade: quem
mente, mente tudo, mente toda a mentira. Como não existe a meia verdade,
não existe a meia mentira. A mentira tem pernas curtas.

Impossível, lógico, assumir sozinho toda a responsabilidade. Se a verdade é filha


de Deus, a mentira é filha do Diabo e sendo católico praticante acredito nas
capetices do Malino. A própria Bíblia, o livro dos livros, ensina: "Todo homem é
mentiroso." (Salmos, 115-11). Como o autor é o pai do livro que escreve, o
mentiroso é o pai da mentira que conta. Não pode ser diferente. Quem pariu
Mateus que o embale...

Faço minhas as palavras do sábio: “o historiador é um pateta que olha para


trás...” e me calo.

“Hei de fazer com que te lembres sempre


deste lugar, deste dia e de mim.”
Terêncio

A história destas notas começou quando voltei a São Luís, após ausência de
quase 30 anos. A morte de meu pai, o velho João (nem era tão velho assim), não
nos deixou escolha. A maioria dos familiares da matriarca dona Mizika morava
no Rio de Janeiro – e lá fomos nós, de mala e cuia.

Por isso, preparei a cabeça para a migração sem planos de voltar. Meti na ideia
que nos fixaríamos no Rio de Janeiro para tocar a vida: estudar, trabalhar,
sobreviver. E assim foi: casei, tive filhos – um garotão e duas meninas gêmeas,
plantei meu pé de milho, escrevi um livro.

Saí com 20 anos, voltei quarentão. Retornar foi como levar uma porrada. Pra
consertar o baque tive que tomar vários porres, fazer notas, juntar ideias,
vomitar este pequeno volume.

Alguns podem dizer que em vinte e tantos anos o lugar muda muito. Pra mim
São Luís não mudou: só vi o que quis ver. Meu prazer foi andar à toa, tomar
cachacinha e tiquira, comer porcaria nos becos e mercados, buscar o menino
que eu fui.

Foi divertido porque realmente esbarrei com aquele moleque a todo instante.
Escrever, distrair essa fase chata da vida, ter alegria, tristeza, emoção.

História ou estória? Verdade ou mentira? Essa sinuca deixo pra quem ler. Contei
minha lenda, agora passo a bola pra vocês.

2
ATRACADO NA RELEMBRANÇA

"A ilha é aonde náufrago chego".


José Chagas

E assim chegamos ao começo do fim, ou ao fim do começo, ou ao começo do


começo, sei lá, talvez tenhamos chegado mesmo é ao fim do fim...

Então fica o dito por não dito. Declaro, para todos os fins e direitos que tudo
que vocês vão ler, se não for verdade é mentira. E aquilo que não for mentira é
verdade.

Começa com aquela maravilhosa vista aérea da Ilha, que tive ao chegar. Os
índios, habitantes primevos, certamente nunca tiveram essa visão. Vista do alto
a Ilha parece pequena em sua limitada geografia e bem diferente do que
aparece nos mapas. Os rios sinuosos, cintilantes ao sol, serpenteiam entre a
mata e vão se perder em alguma embocadura rumo ao mar.

O que é afinal uma ilha? Saloca não teve dificuldade para responder, usando o
velhíssimo jargão escolar: "É uma terra cercada de água por todos os lados."
Mas na geografia do que faz palpitar o coração, a Ilha não se define assim tão
simplesmente, é indescritível e tem tantos sentimentos quanto à mulher mais
apaixonada.

Tantos anos depois de ter saído daqui, o retrato parece o mesmo, a mesma
velha Ilha que um dia me viu crescer e, anos depois, abandoná-la em busca de
novos rumos. Com a preciosidade de guia turístico, ainda é Saloca quem me
relembra: “A cidade foi mandada erguer por Luís, Rei de França, que um dia quis
plantar aqui o seu Reino Equinocial. Mas onde ergueram paliçadas acharam
instalado o pacato reino dos índios Tupinambás.”

Depois a Ilha virou cobiça de outros – estrangeiros e brasileiros em busca de


quais riquezas? – e por longo período não teve paz. Holandesa, portuguesa,
inglesa, outra vez brasileira com vários sotaques, depois grã-paraense, foi nação
Mina. Já foi até jamaicana – tantas outras nações, ritmos e falas aqui aportaram
que é impossível listar todas!

Mas todos, sem exceção, foram expulsos pelos valorosos soldados


maranhenses: "No dia em que era inevitável a derrota, Nossa Senhora
transformou areia em pólvora lá no Outeiro da Cruz." Saloca conta o milagre
com tantas minúcias, como quem dá aula de história, ignorando que aquelas
batalhas eram, na verdade, tristes carnificinas.

3
É claro que o pretenso guia turístico (com certeza o velho Vô João dele
irreverente diria: "Um guia turístico de merda!"), não cabe saber toda a verdade
e alguns detalhes importantes. Milagre mesmo foi a resistência dos ilhéus que,
ajudados pelos índios, derramaram seu sangue para expulsar os batavos. A
guerra foi cruenta e desastrosa: ao fim da batalha, a cidade estava
completamente destruída, em ruínas.

Os primeiros donatários das terras que incluíam a Ilha não conseguiram sequer
tomar posse, porque o primeiro grupo, formado pelo banqueiro João de Barros
(Feitor da Casa da Índia), associado ao capitão-mor Aires da Cunha e ao
tesoureiro-mor do Reino Fernão Álvares de Andrade, jamais chegou à Ilha: a
frota de 10 navios, com 900 homens e 113 cavalos naufragou na altura do Golfo
do México e dela jamais se teve notícia.

A Capitania do Maranhão passou, então, para a posse de Luís de Melo e Silva,


cuja frota que teve a ajuda do Rei acrescentando-lhe mais três navios e duas
caravelas, também naufragou. De forma que, o primeiro explorador a
realmente atracar na Ilha e fazer contato com os nativos foi o francês Jacques
Riffault, em 1594 e aqui deixou o Cavaleiro Charles de Vaux, que se estabeleceu
acompanhado de grande tropa. Animado com as informações, o Rei Henrique IV
da França determinou a exploração da região, que tinha terra fértil, dadivosa e
prometia muitas riquezas.

Então entrou em cena Daniel de La Touche, Senhor de La Ravardière, nomeado


para desempenhar, juntamente com Charles de Vaux, a incumbência régia.
Quando voltaram à França, após seis meses de permanência na Ilha, tiveram
triste notícia: o Rei Henrique IV tinha sido assassinado, apunhalado por um
fanático. Sucede-o Luís XIII seu filho e como ainda era menor foi nomeado
Regente sua mãe Maria de Médici, que não tinha tanto ânimo pela aventura.

A expedição, que iria consolidar a tentativa de estabelecer a colônia francesa


além da linha equinocial, somente chegou à Ilha em 6 de agosto de 1612,
encontrando a vila próspera e foi em homenagem ao jovem regente Luís XIII
que a cidade recebeu esse nome. Muito tempo depois, quando a Ilha se tornou
totalmente brasileira, sabe-se que é mesmo, com todas as singularidades e
cores, uma república particularmente sui generis, independente de todas as
conhecidas no Brasil: a República Sanluisense.

"A Ilha já foi centro cultural do país. Vários filhos ilustres fizeram fama na
Europa." Saloca estufa o peito para afirmar: "Era mais fácil na época, pela
proximidade e poder aquisitivo, o sanluisense ir estudar em Paris, Coimbra e
Londres, do que em São Paulo, Recife ou Rio de Janeiro." Ergue o braço direito
em tom declamatório, como a estátua de Castro Alves em Salvador: "Quando

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voltava à terra natal, era sucesso certo nas letras, nas artes, nas leis. São Luís
foi, por isso mesmo, cognominada Atenas Brasileira!"

Para gáudio dos historiadores, descobri que existem várias Ilhas-Gêmeas desta.
Ninguém sabe, mas existem. Os açorianos, no passado, esta Ilha habitaram, um
par de luas apenas, não conseguindo fixar raízes. Contudo, foram os fundadores
da Ilha-Gêmea de Vitória. Expulsos daqui, não se sabe por qual motivo,
tomaram a derrota do sul. Saloca dizque foi coisa de amor proibido, entre
parentes, primos irmãos. Enfim, empreenderam a fuga e meses depois,
fundeados numa baía, da mesma forma que Moisés viu a terra Prometida,
acordaram na Ilha-Irmã, daquela de onde saíram açodados.

Por entre a bruma matinal viram, como sonho espetacular, surgir a natureza
exuberante da nova terra. Espantados com o milagre, pois a terra era idêntica
em beleza e harmonia, alguns até pensaram que tinham navegados meses em
vão e que estavam na mesma Ilha! Constatada a realidade (era mesmo Ilha-
Gêmea), a todos invadiu o sentimento religioso de que ali deviam aportar e
plantar suas raízes. E assim foi.

Alguns ficaram ali, na primeira Ilha-Gêmea de Vitória do Espírito Santo, outros


seguiram mar adiante. E novo milagre se repetiu: apesar de estarem realmente
próximos do extremo sul, toda a fartura das matas, rios e morrotes, tudo ali era
idêntico ao paraíso que deixaram atrás. Praias, coqueiros, areia alva e lá por
detrás, subindo os montes, muita mata, fartura de frutas vistas à distância. E
descendo sobre as pedras que se via ao sopé dos montes escorriam abundantes
veios de água mineral cristalina. A terra dava sinais que já havia sido habitada e
abandonada.

Saloca mostra que conhece a história da Ilha mesmo fora dela: "Consideravam
os açorianos (e era a pura verdade), que ali certamente estariam a salvo dos
sansardoninhos que os expulsaram da Ilha sem dó nem piedade."

Foi ali que sentiram o chamamento para aportar e fundar a segunda Ilha-
Gêmea, batizada Santa Catarina...

Seja porque lembraram com saudade da Ilha do Pico, nos Açores (onde existe o
Cabo com o mesmo nome) ou porque adoravam a santa padroeira das donzelas,
martirizada em Alexandria no ano 307, seja, até, porque era novembro e chovia,
o fato é que, caídos de paixão pela terra que o destino lhes entregou, habitaram
a Ilha de Santa Catarina, com certeza Ilha-Gêmea univitelina desta Ilha que vos
falo e da outra, Vitória...

E como que para corroborar a força do Destino, séculos depois, pelo


mesmíssimo motivo de amores proibidos, a outra família, os Abul Boeyd (que
5
abrasileiraram para Boabaid e Boabeyd), se dividiram e fizeram a viagem no
sentido inverso. E esse é o motivo para ter Boabaid tanto na Ilha-Gêmea de
Santa Catarina, quanto na Ilha-Gêmea de São Luís, quiçá na Ilha-Gêmea de
Vitória. Está plantado, pois, sem mais nem menos, pé-de-conversa para
historiador de fé investigar mais fundo.

E foi assim, ouvindo de alma gêmea a narrativa da proto-história da Ilha de São


Luís, que aterrissei, muitos anos depois de ter partido, nas fermosas praias,
pontas e pontais que cercam toda a Ilha, com o sentimento e a sensação de ser
conterrâneo sem ser, de ser ilhéu cultivado sem direitos e deveres, turista com
acesso a todos os segredos e a todas as sem-cerimônias comuns aos nativos.

Como mesmo Saloca se resignou: "Visto assim de repente, depois de cortar os


cabelos e se vestir como nós, tu nem parece turista. Parece daqui mesmo."
Recebi as boas vindas das nuvens alvas que mantêm a brisa constante e a
temperatura média de 30ºC. Fui saudado pelo sabor exótico-erótico das frutas
que nos deixam sempre com tesão. Fui abraçado pelo calor das praias, cujo jeito
desleixado deixam-nas com aparência e ar de sempre desertas, aquele espírito
de terra sem dono.

Mas principalmente fui maravilhosamente recebido pelo sorriso da mulher


morena, de cabelos negros, escorridos, corpo recendendo a perfume, maciez e
brilho do óleo de pau-rosa...

DERRAPANDO NA CANTARIA

"E porque tudo tem dois, três e mais nomes..."


Joaquim Itapary

Bem que eu quis reconhecer tudo sozinho, sem ajuda de ninguém, mas no
primeiro beco em que as casas se amontoavam espremidas e exalavam o olor
das vasas do mar, acabei me perdendo. Resvalei pelas ruas, escorreguei no lodo
das escadarias, como as águas das chuvas, rolei pelo meio-fio em busca dos
lugares que a infância tinha deixado incólumes. Nada reconhecia, nem mesmo
encontrei as fontes onde matava a sede depois das correrias da adolescência.
Não fosse Saloca aparecer por ali, como quem surge do nada, para me socorrer
e eu tomaria o rumo do aeroporto muito mais cedo.

Por mais de três vezes tive certeza de andar em círculo e voltar ao mesmo lugar.
E por mais de três vezes cumprimentei a estátua da Náiade, quieta e garbosa no
seu pedestal, cântaro no ombro, de onde algum dia jorrou água cristalina. Por
mais de três vezes sorri para ela, por mais de três vezes ela sorriu para mim o
sorriso de pedra que o tempo não consegue enrugar.
6
Ao contrário da Náiade, que transmitia a sensação de perene alegria de viver,
eu não vestia a túnica de algodão que, cobrindo parte do corpo, parecia nela tão
confortável sob a canícula. A roupa moderna de tecido artificial me deixou
suado, cansado e um pouco irritado. Convidei-a, por fim, a tomar refresco de
pega-pinto com muitas pedras de gelo dentro do copo e uma rodela de limão. A
Náiade sorriu agradecida e não aceitou, mas Saloca não se fez de rogado e
pediu a coca-cola.

Muito aprendi com o cronista Joaquim Itapary, do qual me vali em citação


capitular, que alerta aqueles que vêm à Ilha sem conhecê-la profundamente:
"Pobre do visitante que, por azar, não encontrar alguém conhecedor dos
descaminhos da cidade e que esteja com humor e disposição para prestar-lhe a
informação precisa." Como toda cidade que se preza, a Ilha tem sua Câmara de
Edis que, na falta de melhor fazer e por qualquer pretexto menor, muito se
presta a viver trocando nomes de logradouros, querendo homenagear os
cupinchas, naturalmente à custa de sacrificar a história local e despendendo
erário público, só para complicar a vida dos turistas e visitantes. O cronista não
gostou, eu não gostei, ninguém gostou.

Ainda bem que me apareceu Saloca. Melhor que nada...

Não consegui mapear detalhadamente a caminhada de desvios, mas


certamente andei cruzando a Rua Grande, o Largo dos Amores, a Rua do Norte.
Visitei duas vezes, sem querer, claro, a Praça do Panteão, onde vingam entre
capinzais as ermas de filhos ilustres da Ilha, tendo como fundo o prédio branco
de colunas romanas da Biblioteca Municipal.

Segundo Saloca, certamente passei pela Praça da Alegria, mas não me dei
conta: "O Vô João dizque botaram esse nome na praça para que a população
esquecesse as atrocidades e injustiças que se cometeram ali, quando era local
de execução de condenados e se chamava Largo da Forca." Não sei se é o
mesmo local em que descansei meus pés doloridos no banco da praça,
arborizada com pés de fícus tão velhos, tão velhos, que a idade deles se perde
nos tempos. As árvores altas fecham as copas de tal modo que sombreava tudo,
dando ao ambiente um tom entardecido. Sanhaços, bem-te-vis, andorinhas e
tico-ticos trinavam e pipilavam com intensidade ensurdecedora.

Menos cansado, arrisquei dar uma caminhada em volta da praça. Era realmente
a praça musical: à esquerda, onde casas antigas e azulejadas se alinhavam lado
a lado, fui atraído pelo som de um exercício ao piano que vinha do casarão cor-
de-rosa, varava as frestas da janela fechada e ia fazer coro com o trino dos
passarinhos. Foi um caminhar sereno em que, como num adágio, as notas iam
diminuindo de intensidade ao mesmo tempo em que me distanciava.
7
Do outro lado vinha da Igreja Protestante o som de vozes afinadíssimas: era o
coral, acompanhado de violinos e órgão, que ensaiava canções sacras. Deve ser
essa a razão dos passarinhos, acompanhados por pianos, violinos e corais,
cantarem com tanta disposição. Assim, descansados corpo e espírito, pude
retomar a caminhada. Como não poderia ser a Rua da Paz, que gostaria de ter
encontrado, certamente era a Praça da Alegria.

Recuperado o fôlego, mas sentindo sede e dor de veado, vim parar pelas bandas
da Praia Grande. E aqui estou finalmente, sentado na cadeira de vime do bar
que invade as calçadas e os paralelepípedos, repousando as pernas que me
perderam no labirinto das ruas.

Daqui de longe, admirando os seios redondos, meio escondidos, meio expostos,


brindei com esta maravilhosa bebida, o refresco de pega-pinto, ao sorriso
enigmático da Náiade. Era, certamente, a guardiã eterna da Fonte Maravilhosa,
que nos fornece aquele néctar feito com água mineral e raízes, de uma das suas
nascentes. Embora Saloca não houvesse oferecido (ou talvez por isso mesmo),
pareceu-me que a Náiade não trocaria o refresco de pega-pinto por nenhuma
coca-cola qualquer.

A freguesia era pouca àquela hora e o garçom trouxe conversa. Nas cidades
existe a população que sabe de tudo. Encontre o engraxate e saberá o que o
povo pensa dos políticos; sente-se na cadeira da barbearia e conhecerá todos os
ladrões e a gama de traições políticas; entre num botequim ou restaurante e o
garçom discursará sobre religião e futebol; se tiver a sorte de encontrar a
manicura, aí então descobrirá com quem o Rei traía a Rainha e poderá,
fechando o círculo, amar todas as mulheres dali. Por fim, encontre o menino
metido a guia turístico e conhecerá o engraxate, o barbeiro, o garçom e a
manicura...

O sol já saía do pino do meio dia, mas atirava brilho e luz sobre os casarões
tombados pelo patrimônio, cuidadosamente pintados e reformados, mantendo
as características originais. Mais ao longe, quando o aclive das ladeiras
aumentava, os telhados em série imitavam os arrozais em vastidão até perder
de vista. Entre quarteirão e outro sobressaíam, apontadas para a imensidão do
céu, as torres das igrejas e conventos carregadas de sinos de bronze. Saloca
fitava o telhadeiral como quem conhece cada calha de azulejo, cada ninho, cada
erva que ali brota das sementes deixadas pelos passarinhos.

A lei dos trópicos – e dela também havia esquecido – falou mais alto. De
repente, sem aviso nem trovões, nuvens pesadas passaram sobre a Ilha
deixando o rastro de trinta minutos de chuva. A água banhou os telhados,
jorrou volumosamente para o chão. No meio-fio a correnteza se transformou
8
num riacho que Saloca aproveitou (momento mágico de aventura), para fazer
navegar barquinhas de papel. Perseguia os piratas e afundava caravelas – a
batalha naval durou tanto quanto corria a água no rumo do ralo.

Depois da chuva, como nos filmes, o céu se tornou azul de novo, cinemascope
sem nuvens, o sol reapareceu mais forte que nunca. O chão, novamente
iluminado, aos poucos foi secando e das pedras do calçamento tresandava,
vindo em adelgaçados fiapos de vapor, o cheiro peculiar da vasa. Naquele
momento renasceu em mim a inexplicável herança de relembrados tempos.

A maré virava e logo seria preamar. Saloca levantou o braço direito em gancho,
movimentando-o com arte num vai-e-vem camerístico, imitando o balé dos
chama-marés. Milhares de caranguejos responderam do manguezal, as patas
vermelhas reluzindo ao sol, como se conclamassem os pescadores para a faina
diária, anunciando que a maré alta já vinha. Os pescadores de fato iniciavam a
corrida cotidiana rumo ao mar, de onde tentarão tirar o sustento.

"Antigamente (o Vô João é quem conta), era fácil chegar com o barco cheio de
pescado, à regalona! Traziam tanto, tanto, que dava pra vender, pra comer e
pra guardar um bocado salgado. Hoje em dia, não. Tem muito barco aí
motorizado e com equipamento que cata os peixes mais nobres. Pescador de
saveiro, além de arriscar a vida porque tem de ir pro alto mar naquela
casquinha de mandubi, tem que se contentar mesmo é com bagre, raia, algum
cação ou barracuda, a migalha que afinal sobrar..."

E VIVA A AMIZADE!

"Pode a palavra renomear tudo,


tudo voltar para a primeira vez?"
Nauro Machado

Atravessando a rua com a vista, mais duas pistas além, via-se o velho cais
abandonado. À maneira antiga, tinha a rampa em declive que caía para o mar. A
água verde reluzia de esmeraldas ao sol. Foi ali que encontrei Saloca, citado
antes, o salvador da pátria, sentado na parte mais baixa balançando as pernas,
chapinhando a água com os pés, com a ponta de linha atirada no mar, tentando
pescar alguma coisa.

O choque entre o calor e a água do mar provocava refrações distorcendo a


vista. Sentia-me recuperado: o miraculoso refresco aplacou-me a sede, mas eu
continuava perdido na Ilha. Mais além, do outro lado do canal, dava para ver as
garças cobrindo de alvura o manguezal. De vez em quando revoavam.
Enxugando o suor com o lenço atravessei as duas pistas até chegar ao cais
9
lodoso. Baratas marinhas corriam a meus pés e Saloca logo que me viu gritou
um alerta:

– Cuidado que aí escorrega!

Diminuí o ritmo das passadas. De fato, esses sapatos de sola de couro são tão
desajeitados que não têm condição de enfrentar algo que não seja rua asfaltada
e calçada de concreto. Chegando mais de perto é que se podia ver a cabeleira
de limo, perigosamente lisa e verde, que a maresia deixa nas pedras seculares.
Agradeci pelo aviso e aproveitei a deixa para puxar conversa...

– E aí, tá dando para pescar alguma coisa?

– Nada, que nada, já pescamos muito aqui eu mais o Vô João, mas hoje qual o
quê, não dá nada... O velho, já no peso da idade, nem vem mais.– Mas quando a
maré enche deve dar muita tainha.

– Qual nada, perdi a esperança. O senhor é turista?

Fiquei sem saber o que dizer. Era turista ou não? Bom, de qualquer maneira,
atualmente era turista sim. Turista na minha própria Ilha, na Ilha que hoje me
acolhe entreabrindo as portas da desconfiança. Turista porque tinha sido
sumariamente rejeitado pelas fontes, pelas ruelas, pelos prédios – só não pela
gente. Nem pela Náiade que, na frieza do mármore, foi a única que me recebeu
com um sorriso.

– Mais ou menos. Estou querendo ver uns pontos e não encontro.

– A ilha é pequena, a gente dá umas voltas, volta e meia e sai no mesmo ponto.

– Foi o que aconteceu. Andei dando umas voltinhas, mas acabo saindo no
mesmo lugar. Nem este cais eu reconheço e daqui pra frente só resta entrar no
mar. Acho que estou perdido.

Disse a frase propositadamente em tom de lamúria, de quem pede ajuda. O


peixe mordeu a isca.

– Coitada da minha terra, miudinha assim como é, Ilha com começo e fim,
ruazinhas estreitas e sebentas, vizinhança que se conhece, ninguém tem como
se perder por aí.

– Agora mesmo nem sei onde estou.

10
– Este cais tem placa ali com nome de político, alguém que o tempo esqueceu,
mas todo mundo chama de Rampa do Desterro, o nome original.

– Meu Vô João – que é memorião da Ilha – disse que aqui embarcava para a
África a galé dos condenados. A África é muito longe e muitos não resistiam:
morriam de fraqueza, doença, desidratação, tuberculose e eram enterrados no
mar.

– Morria muita gente?

– Os que conseguiam vencer a travessia chegavam às últimas, bem mal,


morrendo pouco depois. Só os mais fortes sobreviviam, mas numa prisão
chamada Ilha do Inferno, sob trabalho forçado, acabavam os seus dias de
sofrimento.

Era mesmo o temível e fatal desterro. Pior até que a pena de morte.

Muitos escravos para fugir da condenação fugiam para o interior mais


longínquo e iam viver com índios ou nos arraiais e mocambos com os negros
rebeldes.

Ser desterrado significava não ter família, não ter nem passado nem futuro e
essa maldição na maioria dos casos atingia o negro. O branco só seria
condenado ao desterro quando cometia algum crime grave contra a autoridade
governamental ou contra as leis decretadas pela Coroa. Em último caso, por
vingança pessoal.

Além da história conhecida, a Rampa do Desterro escondia os restos do


pelourinho. A coluna de granito cercada de ganchos servia para manter os
prisioneiros detidos até que o navio da morte atracasse. As ruínas estavam ali à
vista de todos, mas ninguém sabia o significado nem Saloca, em sua
adolescência, conseguia perceber.

Mas pela acuidade de seus olhos negros, curiosos ao extremo, pelo permanente
questionar das coisas que desconhecia ou não compreendia, certamente ficaria
indignado ao saber dos trágicos momentos do passado da Ilha, que não foram
narrados em nenhum livro de História.

Somente as pedras seculares poderiam contar tudo, isso se as pedras falassem...

11
TRABALHO CONCEBIDO COM AMOR

"conservo na memória o cheiro bom


de pão, pamonha quente e manga em flor,
enxurrada, ladeira, praia rasa".
Odylo Costa, filho

De bermuda e camiseta regata, Saloca me trazia lembranças. A pele morena


queimada pelo sol, o cabelo liso arrepiado sempre esvoaçando ao vento, os pés
calçando chinelos, o olhar vivo e inquieto, os vincos na boca marcando o sorriso
permanente.

Até mesmo os velhos pescadores que frequentavam a Praia Grande traziam a


recordação da casa pobre que existiu no Pontal de São José, onde as águas da
maré alta embalavam o sono e vinham de madrugada beijar o quintal, as ruas,
as calçadas. Era a casa de um pescador.

– Sabe moço, eu posso mostrar os lugares que quer ver. É perigoso jornadear
por aí sozinho. Vai ver que os lugares que quer ver são os mesmos lugares onde
passo todo dia. Sabe que pra chegar na minha casa tenho que atravessar a
cidade toda? Não se eu for direto, claro, mas gosto de passar primeiro pelo
Canal do Boqueirão, depois vou na Praia Grande, se der vou até a Ponta
D'Areia... Mesmo porque hoje aqui não vai dar nada mesmo!

E com essa oferta generosa, enquanto eu refazia na memória aquele estranho


itinerário, o menino começou a recolher a linha enrolando numa lata. A maré
continuava batendo nas pedras velhas em contínuo vai-e-vem.

Garrafas de plástico e papéis velhos se misturavam às graxas e porções oleosas


desconhecidas. O menino continuava naquele ritual: ao mesmo tempo em que
puxava a linha apertava as pontas dos dedos para escorrer a água e tirar a
sujeira. Na ponta do anzol nem isca tinha!

Seguindo as indicações de onde estava para onde morava, pareceu-me que ele
andava em ziguezague. Se me lembro bem, quando saía da pesca, ao invés de ir
para casa - itinerário que poderia ser feito em 20 minutos - Saloca pegava o
bonde em sentido contrário. E, abusando da condição de gratuidade infantil,
percorria os mercados velhos, os portos aonde chegavam barcos do interior, as
feiras que vendiam tudo e por fim se deliciava ouvindo os cantadores narrar os
folhetos de cordel no mercado da Praia Grande.

– Vou aceitar a sua sugestão. Preciso mesmo de guia. Antes, porém, vamos
sentar ali - como se chama aquele restaurante? – Isso mesmo, no Bar do Basilio.
Vamos sentar, beber e comer alguma coisa. Você é convidado, afinal a pescaria
12
não deu nada mesmo, né? Já conhece o garçom? Quero que escolha alguma
comida daqui mesmo pra mim. Pescada frita com arroz de cuxá? Está bom, você
pede para mim e pode pedir o que quiser para você. Tudo, até mesmo coca-
cola.

Precisavam ver o orgulho de Saloca entronado na cadeira de vime. O garçom


certamente o conhecia e ficou admirado com a intimidade com que falávamos e
da sua presença na mesa. Nem por isso deixou de nos atender com toda
presteza. Diante da toalha que imitava a alvura do linho, com bordas rendadas,
Saloca leu (ou fingiu ler) cuidadosamente o cardápio. Estava predisposto a
saborear a pescada frita que Saloca sugeriu, com arroz de cuxá, mas não resisti
à entrada de casquinha de siri, devidamente condimentada com molho de
pimenta-de-cheiro.

Ah, as comidas da Ilha! Somente aquele sabor típico acenderia de novo em mim
todas as velas das lembranças. Antes de o prato principal ser servido, o garçom
ainda ousou trazer para mim - delícia das delícias - uma tigelinha de juçara com
meia dúzia de camarão seco boiando na imensidão daquela mini lagoa, que
sujava meus lábios de roxo a cada colherada.

Meus olhos deviam estar brilhando demais, encharcados de emoção, porque


Saloca - que comeu a casquinha de siri, mas recusou a juçara - se mostrou
espantado com minha avidez, com a gana com que avançara para comer a
guloseima para ele tão comum, como juçara com camarão seco.

Por fim, naquela mesa de aspecto simples (Saloca sentia-se tão bem que
imaginei que deviam ser assim as mesas nas casas tradicionais da Ilha), foram
servidos os pratos principais: duas pescadinhas de barriga amarela, fritas,
travessas fumegantes de arroz branco e outra com o cuxá, a cuia com farinha
d'água torrada com coco, o vidrinho com molho de pimenta-de-cheiro.

Resistir quem pode?

A pedida de Saloca veio também com a terrina de feijão-do-rio com charque. O


garçom me disse que o feijão-do-rio com charque é prato de sustança nas
mesas da Ilha... Só ele comeu: não ousei conspurcar aquela mesa para mim
clássica com tão popular iguaria.

No entanto, não resisti à tentação e cometi o pecado de verter goela adentro,


para abrir o apetite, uma tiquira azulada com casca de tangerina que me foi
gentilmente ofertada pelo próprio Basilio, não sem antes formalmente
desprezar a teoria de que a preciosa aguardente não se dá bem com a juçara...

13
O SEGREDO DO CUXÁ

"Todas as coisas de que falo


estão na cidade entre o céu e a terra."
Ferreira Gullar

Sinceramente, minha maior frustração é saber que me vou desta boa terra sem
descobrir o segredo do cuxá. E não é para menos: a sua origem é tanto mais
remota quanto sagrada. Para começar, dizem em tom de lenda que uma Rainha
Mina, forte, bonita e de boa feição, líder espiritual de seu povo, foi sequestrada
na África e vendida como escrava na Ilha. Era realmente a Rainha e jamais
perdeu a realeza. A preta tinha a dignidade tão respeitosa e natural que jamais
se transformou numa escrava, na acepção da palavra. Ademais, todos os
escravos da região sabedores da sua existência vinham ao seu encontro para
receber a bênção, pedir conselhos, ouvir a palavra sentenciosa e serena ou
mesmo trazer os filhos para receber dela o nome de batismo.

Além da liderança espiritual, trouxe com ela a receita original do cuxá. O


fazendeiro que a comprou, na primeira vez que provou a iguaria, por ela se
apaixonou e com aquele prato e delicioso afrodisíaco costumava matar de
inveja os vizinhos que convidava para o almoço. A receita foi preservada no
decorrer dos séculos e assim chegou até nós. Jamais ousarei invadir com minha
pobre sabedoria, de espaços terrestres limitados, o terreno misterioso que
envolve o sabor único e álacre da vinagreira, base alquímica da culinária para
transformar chumbo em ouro.

Bendita aquela que sabe remoçar o segredo que movimenta as harmoniosas


mãos, benditas as cozinheiras que combinam – com o mesmíssimo talento com
que Mozart compõe – as ervas e o tempero para chegar ao resultado final que
tanto liberta o paladar. Benditas as mãos da Rainha Mina que trouxe das colinas
do interior africano a gloriosa receita, transmitida de avós para netas em
tempos imemoriais. Diz a lenda que de ventre em ventre, a mulher dará um dia
outra bela criatura com vagina e será a geração seguinte que vai legar os
mesmíssimos segredos para manter viva a cultura de adoração do cuxá.

Se for verdade que Deus dá a comida e o Diabo o tempero (e é verdade!), benza


a Deus o dia em que o Capiroto, sorrateiro e tinhoso como só ele sabe ser, se
instalou na cozinha para mexer as mãos da preta que pela primeira vez fez essa
mistura milagrosa. Bendita a cabeça da escrava ou rainha que um dia na África
ousou combinar farinha seca peneirada, gergelim torrado e camarão seco, tudo
bem socadinho no pilão para, finalmente, acrescentar a essa pasta homogênea,
as folhas azedinhas da vinagreira e do jongôme, cosidas, batidas, esmagadas e
temperadas.

14
Não, jamais descobrirei o segredo do creme verde musgo, servido bem
quentinho com arroz branco, companhia de tantos pratos saborosos, capaz de
conquistar para sempre o paladar da mais néscia criatura, que nasceu há
séculos nas cozinhas minas e desaparece diariamente nas mesas da Ilha, depois
das últimas garfadas dadas com a avidez das escravas famintas. Saloca dizque
sabe (tanto que é dele os detalhes da receita de bobó acima, vindos da avó) e
dizque toda família tem que ter filha fêmea para aprender a receita e passá-la
para sua filha e assim por diante.

– Vendo o peixe do jeito que comprei por isso, se algum experto em culinária
ilhense vier me cobrar a veracidade do fato, tiro o corpo fora e jogo a culpa
nele!

De bobó mesmo (e diz que que tudo da mesa africana que resulta em pasta se
chama bobó), só entendo daquele que as baianas vendem nas barracas, feito
com feijão mulatinho, azeite de dendê, camarão-seco, secretos condimentos e
muita pimenta malagueta, menos por saber teórico e mais por apregoarem
pelos quatro cantos do mundo as suas virtudes afrodisíacas. Ou então aquele de
frutos do mar, principalmente cação, arraia-viola ou camarão, feito com massa
de macaxeira peneirada, amendoim, muito azente-de-dendê e outras iguarias
misteriosas, que também fazem parte da confraria de segredos vindos da mãe-
África, cujo fogo erótico é por todos conhecido.

Estávamos ainda ruminando o sabor das últimas garfadas, antes mesmo da


mesa ser tirada - e Saloca já estava programando para o dia seguinte outro
banquete:

“Conheço um lugar (invariavelmente começava a falar assim), que tem carne-


de-sol com arroz-de-pequi, daqui ó”! Dá um puxãozinho na ponta da orelha,
gesto incomum para quem não é da Ilha e determina: "É lá que nós vamos
almoçar amanhã." Após essa breve dissertação sobre o pecado da gula, que a
todos nós leva forçosamente a uma estada no Purgatório, encerramos a sessão
de comilança com o belo sorvete de murici que repousou gostosamente bem no
estômago, amenizando a temperatura elevada que àquelas horas acomete toda
a Ilha, prenunciando, segundo Saloca, a segunda chuvarada naqueles dias de
inverno (?)...

O PESCADOR DE LOROTAS

"Para pintar tudo, é indispensável tudo sentir."


Afonso de Lamartine

15
Enquanto passeávamos pelos largos muros de pedra da Avenida Beira Mar,
cruzamos com algum conhecido do meu acompanhante que, de passagem,
lançou o grito que deveria ser insulto grave:

– Qualira!

E fez a forma do ó com o polegar e o indicador virados para baixo, numa forma
oposta ao famoso OK norte-americano. Sem sequer considerar minha presença,
o xingamento foi prontamente respondido com o gesto manual, no qual o dedo
médio sobressaía entre o indicador e o anelar dobrados.

Por fim os dois se aproximaram, trocaram algumas palavras e dando gostosas


gargalhadas se despediram. Para admiração de Saloca, não me importei e ri
gostosamente diante daquele gesto internacional. Também não me admirou
aquele contraste de gestos: o xingamento aparentemente violento, seguido de
efusivas demonstrações de apreço. Quando existe amizade não existe ofensa.

– Pensei que o senhor não conhecia.

– Todo mundo conhece. É um gesto universal.

– Aquele é Palito, meu amigo e freguês. Ganho dele tudo: bolinhas de gude,
papagaio e no mergulho vou muito mais longe que ele.

– É mesmo? Então me conta essa estória do mergulho.

– Todos os dias quando eu e o Palito saímos da escola passamos no

Boqueirão. É naquele ponto onde o rio deságua e se junta com o mar.

– A gente chama também de foz ou embocadura, falei mostrando sapiência...

– É lugar perigoso, muita gente já morreu lá. Tem muita correnteza e


redemoinho, principalmente dia de lua cheia. Se ouve de longe o rumor das
pequenas pororocas. É quando a maré chega e, num desembesto, esparrama
tudo que encontra pela frente.

– Mas se é perigoso, pra que arriscar a vida?

– Tudo começou com a brincadeira, com o tempo acabou virando desafio. Eu e


Palito vamos até o Boqueirão onde está o esqueleto do navio que foi atingido
por submarinos alemães.

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Atravessamos as duas pistas que nos separavam do mar e ficamos olhando a
maré que já vinha crescendo, ocupando os espaços, invadindo o manguezal e
trazendo consigo o bocado de vida orgânica e marinha.

– Conseguiu chegar à Ilha, mas adernou antes de atracar. Deu pra salvar a
marujada, alguns morreram, e até hoje tá lá o mastro principal partido, a
cruzinha encima, último sinal dele.

– Realmente, o navio afundado é perigoso porque o mergulhador pode se


perder nos corredores e nunca mais achar a saída.

– Vô João sempre me alertou que só precisa ter cuidado com os porões.

Dizque lá é casa de cação, moréia e outros peixes brabos, mas, por outro lado,

lugar de salvação: nos porões sempre tem bolhas de ar que salvam a gente.

Eu e Palito conhecemos aquilo como a palma da mão. Sabemos até onde ir,
quando a maré tá perigosa, como evitar as correntes.

– Cação, por ali, num canal? É muito difícil. Tá pensando que sou besta?

Pode ter boto, bagre...

– Mas é verdade. Na maré cheia, só quando tem boto é que eles não aparecem.
Quando a gente chega lá, o que nos deixa mais contentes é ver a beleza dos
botos quando, entre um mergulho e outro, a barbatana do costado aparece
reluzente na superfície da água. Enquanto estamos ali eles ficam brincando em
volta de nós. Eles já sabem que a gente tá ali e nos cercam com os
malabarismos, nos protegendo.

– O golfinho realmente enfrenta até tubarões, atacando-os violentamente com


o poderoso focinho que tem. Dá pancada como boxeador do tipo Muhammad
Ali ou Mike Tyson.

– O Vô João pede que a gente sempre fique perto dos botos, porque é o peixe
mais inteligente de todos. E se a gente estiver em dificuldade, se afogando, ele
usa o nariz para rolar nosso corpo sobre a água até salvar o afogado, atirando a
gente para a praia.

– Então não deveria ter cação ali.

– Mas tem. Só que o bicho se acovarda para o boto, mas não pra gente.

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O Vô João conta que o Mané Perneta, mergulhador famoso na região, deu um
mergulho ali no lugar mais fundo e foi atacado. Saiu com vida, mas perdeu a
perna direita, que foi engolida de uma vez só pela bocarra do bichão.

– Não fosse ele sabido e – diz o Vô João – a próxima abocanhada comeria ele
até o pé do umbigo.

– Tá certo, o peixe está só protegendo o que é seu, defendo a sua morada, seu
território, não é?

Outra coisa que o Vô João pede pra ter cuidado é com a ferrugem. Por isso,
nada de comer o sururu que dá ali e se um dia a gente se ferir nos ferros
enferrujados, abre a pereba que só fecha quando cu de cotia assobiar. Então,
quando a gente chega faz logo uma bulha danada pra espantar o bicho. Aí ele
não aparece, respeita a gente e começa o torneio.

– É verdade: se cortar na ferrugem e não tomar cuidado a ferida infecciona. Daí


só milagre do bom Deus pode salvar... E o tal torneio, como é?

– É de mergulho. A gente escolhe um dos pontos do velho navio. Ainda existem


alguns inexplorados, que são os mais difíceis. Nesses a gente só mergulha
quando as águas do mar estão transparentes.

– Aí então vê quem consegue mergulhar mais fundo, ficar lá embaixo mais


tempo e trazer as peças mais bonitas ou mais valorosas do navio.

– Taí, quero ver quanto está o placar...

– No mergulho Palito nunca me ganhou. Já fiquei lá embaixo mais ou menos


cinco minutos! Enquanto que ele só aguenta no máximo três, quatro minutos.
Mas a gente só sai de dentro d'água quando os beiços começam a ficar roxos e
as mãos enrugadas de tanto frio.

– Puxa, realmente é impressionante. Mas é verdade que nesses navios


afundados fica sempre no porão, num lugar qualquer, uma reserva de oxigênio,
que dá pra ficar algum tempo lá dentro sem morrer...

– Isso não sei, mas essa parte do campeonato a gente chama de "pesca de
troféus". Valendo tudo, tudo que pegar, coisas pequenas e grandes. Somando
tudo que podia ser somado, sem mentira, já trouxemos mais de 200 peças do
velho navio! Só eu tirei 120 e o Palito o resto.

– E quais são esses objetos, muita coisa bonita?

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– Minha maior vitória foi quando trouxe a placa da porta do Comandante.

Depois que limpamos ficou bonita, toda dourada. A maior derrota foi quando
Palito chegou com uma caveira cheia de dentes. Eu vi lá, mas não tive coragem
de pegar não...

– E que diabo fizeram com tanta tralha?

– A miudeza a gente devolve pro fundo. Parafuso, dobradiça, chave, essas


coisas. O Palito trouxe a bala de canhão. Vô João disse que podia ser perigoso e
que, mesmo afundada durante anos, a bala de canhão ainda podia explodir.
Jogamos fora.

– E ouro, dinheiro, prata, jóias – nada disso apareceu?

– Pérolas e diamantes? Não. Temos nossos segredos. Vou pedir sua palavra de
honra que o papo morreu aqui mesmo.

– Tem minha palavra. Minha boca é um túmulo: boca de siri. Daqui não sai
nada.

– O maior dos segredos é que o Palito quase se afogou lá. Fui eu que reparei na
demora dele voltar e mergulhei pra buscar. Só deu pra tirar ele e fazer vomitar
toda a água que tinha engolido. O coitado já tava ficando roxo, sem respirar.

– Mas o que aconteceu? Ele ficou preso?

– Ficou. Mas o qualira, mesmo com tudo isso, ainda foi o vencedor do dia. Lá
estava, apertado entre dedos roxos, o troféu que ele conseguiu: o retrato de
Hitler numa moldura impermeável de vidro.

– Puta que pariu! – Não pude conter a expressão...

– Esse assunto não se pode contar pra ninguém. Temos a palavra de honra
empenhada. Mas se quiser posso ir lá nesse instante, agorinha mesmo, dar o
mergulho só pra provar que não é mentira.

– Não precisa! De maneira nenhuma! Juro de dedos cruzados - juro que acredito
em tudo, tudinho mesmo...

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PLENITUDE HUMANA
"Minha alma está de olhos baixos. (...)
E por essa circunstância tornei-me uma torre."
João Mohana

Rua Afonso Pena 119.

Inexplicável.

Força do Destino.

Todas as janelas estão fechadas.

A porta, encimada por uma bandeira em forma de lírios, não mais range ao
sabor dos ventos.

Um silêncio grande, enorme como a noite, insaciável como o buraco negro, hoje
me seguiu para conhecer o nada que agora habita o velho casarão vazio em que
morava o médico, padre e escritor João Mohana.

Algumas vezes, saindo de casa de manhã cedo, um rapaz, a caminho do


trabalho na Casa Inglesa, tinha a suprema ventura de andar lado a lado com
essa figura histórica da Ilha e em segredo lia suas obras e em silêncio o
admirava como escritor.

Conhecia de ver de longe, sem ter a intimidade nem o amigamento, mas sabia
que o povo o tratava como herói, sem se importar se ele vinha de progênie
tradicional. Herói que, mostrando-se aluno esplendente, teve a coragem de
abandonar a carreira de médico de criança, pediatra que se prenunciava
brilhante, para abraçar o sacerdócio e, com ele, o celibato.

Lá ia ele com os cabelos castanhos claros levemente caídos em desalinho pela


testa, os óculos de aro de tartaruga e lentes grossas como fundo de garrafa. O
andar macio, como se flutuasse. Semblante sereno, como se uma aura lhe
coroasse a cabeça permanentemente.

Como médico, todo mundo sabia, atendia os pobres sem cobrar nada. Quando
calhava vivia de receber pagamento na moeda do sertão: pé de alface, galinha,
vinho de caju, carne de sol, bacorinho, cofo de farinha d'água.

Verdade ou folclore não importa: morre o homem, fica a fama.

Fui arrastado para ali por pés que não eram os meus. Olhava tudo com olhos
que não eram meus. Com palavras que não eram minhas, eu repetia sem cessar:
20
Rua Afonso Pena 119, Rua Afonso Pena 119... Saloca, sem entender nada, como
o cachorro azul, seguia no encalço. Trovejou e choveu. Subimos no casarão em
frente para nos proteger. Fiquei menino e menino não tem medo da chuva. Fui
para o mirante e lá fiquei estático.

A ventania entrava pela janela num turbilhão. A chuva vinha de banda e


molhava por todos os lados. Lembrei-me das palavras que contavam a história
de "Maria da Tempestade". Lá longe, o mar cinzento, quase escuro como a
cortina de água caindo sobre a terra, alagando tudo, tudo dominando. Nem
mesmo uma nervura de luz. Os raios cortavam o céu em repentinas fulgurações,
metiam medo em meu coração e desapareciam.

Deus põe as crianças no mundo com a liberdade tão grande que Ele próprio, Ele
que é o dono dela, tem receio de tomar. Liberdade de olhar, liberdade de ouvir,
liberdade de falar, liberdade de ir e vir. Depois o menino cresce e perde tudo
que ganhou de Deus. Mas é com esse olhar livre de pirralho que a gente
reconhece o santo de longe. E apesar de jamais ter acordado uma só vez com
sorriso no rosto, nem uma só, nem mesmo quando Papai Noel deixava os
presentes no Natal, apesar disso eu sorria quando via o padre passar lá do outro
lado da calçada.

Sorria ao reconhecer o herói das consultas grátis, que, ainda por cima, dava o
dinheiro para o paciente comprar o remédio que ele mesmo receitava.

Sorria ao ver o herói polêmico que tinha a coragem de escrever sobre o sexo no
casamento sem nunca ter casado – e ainda ser respeitado por isso!

O quase herói sempre habitou a Ilha. E quando dela se afastou foi só para sentir
saudade e voltar de novo. Agora imagino o beato padre escritor habitando o seu
gabinete na Rua Afonso Pena 119, cercado de livros, em santificado silêncio, a
trabalhar em mais uma obra destinada a nos mostrar a luz para clarear os
caminhos mais obscuros da vida.

Era ministro de Deus e ministro dos homens.

Nas missas, repetia as águas dos rios: rezava cada missa sempre diferente das
outras. Com essa tática enchia as igrejas como os estádios de futebol. Nos
sermões, habitados de palavras e exemplos de grande humanidade, era sempre
ouvido atentamente. Volta e meia, em defesa dos pobres, feria pudores da
sociedade e provocava polêmicas.

Como era próximo de Deus, era iluminado por Ele. Como ministro dos homens
escreveu tantas coisas importantes que seus trabalhos atravessaram fronteiras

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e foram parar traduzidos na Europa, América Latina e USA, para ser para os
estrangeiros o mesmo Farol de São Marcos que é para os privilegiados da Ilha.

Assim chegou agosto, mês de desgosto.


Mês de desgraças e infelicidades.
Não se lava a cabeça em agosto porque chama a morte.
Desgraça de velho é três "c": catarro, caganeira e câncer.
A primeira segunda-feira de agosto é o dia aziago o ano inteiro.
Em agosto desgraça pouca é bobagem.
As guerras começam em agosto, porque desgraça só quer desculpa pra
principiar.
A casa do santo letrado ficou de luto em agosto.

NO RIO TURU, ENTRE O JUÇARAL

... tudo enfim nesta noite que não termina nunca,


enseada escura onde a memória é âncora e luz..."
Carlos Heitor Cony

As colinas da Ilha apontavam lá longe, no fundo da paisagem. Algumas estavam


cobertas de casas luxuosas. Aonde a mata silvestre começava, hoje existe muita
rua nova, muita casa popular, bairros novos, supermercados. Os riachos que
transbordavam durante o inverno foram aterrados e sobre eles construíram
modernas pontes e largas avenidas asfaltadas. Quantidade igual de novas
estradas nasce na faixa litorânea e vai acompanhando a praia até se perder de
vista.

Os muitos prédios de apartamentos, de arquitetura moderna duvidosa, enfeiam


a orla marítima, numa imitação de Miami Beach, Copacabana, Cancun,
Guarujá... Saloca concorda: "É agora está tudo moderno. Mas não era assim. Se
quisesse sentar frente a frente com o Vô João e tivesse tempo de ouvir as
estórias que ele conta."

O velho estava no alpendre, sentado numa cadeira de pano, balançando pra lá e


pra cá. Escutou a dobradiça enferrujada do portão ranger como o alarma:
"Quem vem lá?" O cachorro latiu nos fundos.

Saloca logo se anunciou gritando: "Sou eu Vô João!" Depois em voz mais baixa
para mim: "O Vô João enxerga muito pouco. Catarata. Tá quase cego." De novo
em voz alta: "Trago um amigo!" E como tinha de falar bem alto deduzi: além de
quase cego, quase surdo. O velho resmungou hum-hum: "Se achegue, a casa é
pobre mas é sua" - e se dirigindo a Saloca: "Pega a bilha, moleque, e traz água
fresca pra visita."
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A água na verdade era para ele: "Calor danado, não acha?" Deu dois goles
grandes na caneca de alumínio. "São esses tempos. Estão mexendo muito na
velha terra. Ela não vai aguentar. Até no fim dos séculos tudo se acabará. Tá nas
profecias."

Chamou Saloca aos gritos: "Moleque, vê se tem café preto pra oferecer!" Vinha
lá de dentro bulha de gente mexendo em panelas, acendendo fogo. O cachorro
cheirava minhas pernas fazendo reconhecimento, gravando minhas
características. Agora, jamais me esqueceria.

O Vô João tinha o semblante tranquilo, apesar da idade e da aparente agitação


que a surdez e quase cegueira traziam. A pele bem morena, quase preta, estava
inundada por uma vastidão de rugas, que se iam encolhendo, amiudando,
quando chegavam perto dos olhos, mais parecia o mapa traçando rios e
afluentes.

Não perdera de todo os cabelos. Entelhando a cabeça, contrastando com a pele


roxa, os cabelos guardavam a alvura do algodão. Tinha o olhar miudinho e fixo.
Mirar de gente que foi habituada a pegar muita luz, muito sol no rosto e ficar
com o olho vidrado, duro, no infinito. Tudo isso e mais as mãos calejadas,
denunciavam a antiga profissão: pescador.

Os olhos se abrem um poucachinho mais, pulsando lembranças: "Sim sinhô,


pescadô. Pescadô a vida toda, de menino até a vista não garantir mais. Pescadô
e marinheiro. Todo mundo da vida do mar me conhece como bom marinheiro.
Sei levar o barco onde o cardume deve estar e passar a noite toda pescando até
encher o porão. E nunca me perdi!"

Uma pontinha de orgulho engrossa a fala macia: "Ainda hoje tem prático que
vem me visitar pra saber as derrotas pesqueiras, mode num se perder nesse
mar de deus. Depois que vem, anota tudo direitinho, traz caderno, mapa
desenhado, bússola. Aprende e some, nunca mais a gente se vê. Mas sei que
todos eles criam fama divulgando o que aprenderam comigo."

Como bicho que vive procurando sentir o cheiro do mar à distância, o velho
bota o ressentimento pra fora: "O marzão, esse sim que me conhece – e bem!
Brigamos muito. A verdade é que o mar nunca me deu de-comer um prato de
pirão, que não fosse arrancado com muito suor e sangue. Levou todos os anos
da minha vida, nunca foi meu amigo."

Agora a estória ganha a cor da raiva: "Enfrentei, sim, muita tempestade.

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Já vi esse barquinho de pouco mais de trinta metros de proa à popa parecer
casca de midubim boiando no mar. Na tempestade, quando a onda empina o
bico da proa, só falta a gente esbarrar no teto do céu. Depois a criatura faz um
vão assim de uns quinze metros e a gente fica lá no fundo - que se o inferno tem
fundo é mesminho naquele lugar - rezando pras ondas laterais não fecharem
em riba de nós."

Respira fundo e aproveita a chance que lhe dá o ouvinte atento: "Aí tem de
saber a hora certa de arriar os velames, botar a proa direito no rumo do vento e
manter o leme frouxo. O barco fica paradinho, paradinho, fingindo covardia, ao
sabor das ondas. Todo bom marinheiro sabe que não deve brigar com o mar
revolto. A onda bate, bate, vai abrindo brechas na calafetação, daqui a pouco tá
fazendo água. Quem vê assim não acredita que foi a água que quebrou o barco,
mas foi."

Não me movo, fico literalmente grudado na narração: "Por outro lado tem a
calmaria. Só porque o mar fica paradão, quieto e silencioso como a morte, não é
menos fácil de encarar do que a tempestade. Na calmaria muita gente já
naufragou. O mar te leva para onde não quer ir e depois a gente sente a
viraçãozinha, a água começa a pinicar na superfície, o barco treme uma vibração
e agora é hora de achar o rumo de novo ou ficar perdido pra sempre. É
desconcertante."

A vista do velho se fecha novamente, ensombrecida por uma raiva visível e


inexplicável. Alguém pode ter ódio do mar? "Esbarrei em tantas dificuldades
que, não fosse eu filho de Deus, havéra de ter desistido da profissão. Por isso eu
e o mar somos inimigos de sangue a fogo, jurados de pés juntos. Ganhamos e
perdemos do outro por mais de cinquenta anos. Hoje estou aqui vivinho e ele tá
lá, caçando povo pra engolir."

Tira do bolso o naco de fumo-de-rolo, oferece, agradeço. Fica amassando a bola


entre os dedos calosos e depois atira na boca: "Estou aqui, vivo, e ele tá lá, não
sei como. Deve ainda estar devorando homens e barcos, com aquela fome
esconjurada." O Vô João pausava a fala com mastigações e cuspidelas pretas da
masca de fumo: "Saí vivo. Sobrevivi. E agora não darei o gosto de receber minha
alma. Se a polícia não pegar meu difunto corpo, pedi pro moleque me enterrar
mais acolá, entre o juçaral."

Saloca chega trazendo numa bandeja improvisada dois copos com café bem
preto e fumegante. Aceito. Tem gosto de café bem torrado, quase queimado,
mas cai bem. Passo a mão no focinho do cachorro. Ele diz que gosta lambendo
meus dedos.

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Servido o café, que o Vô João elogia dizendo que saiu a seu gosto, Saloca pisca
pra mim, cantando vitória: "Vô João, trouxe o moço aqui pra ele conhecer a
nascente do rio. Depois que contei pra ele como é não me deu sossego mais. É
gente de fé, não vai espalhar por aí onde está o seu paraíso." O Vô João
resmunga meditativo, enquanto saboreia, em goles pequeninos, o café preto:
"Hum-hum. É mesmo, esse menino. A nascente do rio. Sabe, aquele é o único
lugar onde a gente ainda pode beber água nas mãos.

Nenhuma sujeira. E água da boa, que cura maleita. O resto dos rios tá tudo sujo.
Diz-que é a tal de poluição."

O velho acaba de bebericar o café com prazer, dá um estalo na língua: "Da


Encruzilhada pra cá fizeram a tal de rodovia asfaltada, comprida, cheia de tanta
volta que não se sabe onde começa e onde termina. Diz-que vai acabar lá pelas
bandas do sul."

Seu João respira fundo, recosta-se na cadeira de balanço, pra lá, pra cá, pra lá,
pra cá: "Moleque, leva os copos!" Passa a mão na cabeça do cachorro, que
responde ao agrado abanando o rabo: "No começo era a poeirada danada,
máquinas jogando barro nos riachos, aterrando tudo! E lá se foi nossa diversão,
nosso banho." O Vô sacode a cabeça desalmadamente, a tristeza escornada:
"Acabou a poeirada, fomos ver, não tinha mais rio nem nada. Fizeram a ponte
sobre o riacho seco e aterrado, agora que é toda hora carro, ônibus, caminhão
passando, uma barulheira danada."

Ele bota de novo na boca a masca de fumo, que tinha tirado pra tomar o café:
"Volta e meia o estribilho, umas pancadas e gente assim, estirada no asfalto,
estertorando toda esbagaçada. Vem a ambulância, mas não salva. No outro dia
dá no jornal quantos difuntos." Olha para trás, pros fundos da casa, como se
visse alguma coisa, mas não vê nada: "Moleque, que qui tá esperando? Vai logo
mostrar a nascente do rio pro moço, xente! Daqui a pouco escurece..."

Saloca veio lá de dentro correndo, todo contente, trazendo a mochila, duas


canecas e o facão embainhado nas mãos: "É pra cortar alguns cipós." Pensei nos
sapatos novos, de cidade com pena. Minhas pernas resmungaram: Já tinham
caminhado além da conta. Meus pés também reclamaram: "É longe?"
perguntei, na esperança de cancelar o passeio. O Vô João ouviu: "Qui nada!
Moleque, leva ele pelo atalho! Dez minutos chega lá. E me traz essa moringa
cheia d'água!" Com essa recomendação e com a bilha pendurada numa sacola,
partimos.

Saímos da casa pelo quintal e emburacamos imediatamente numa trilha de um


só pé. Saloca ia na frente e eu seguindo-lhe os passos. Volta e meia o facão
voava, tinindo na pancada, para cortar cipó do caminho, galho de tiririca, que
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acaso pudesse nos machucar. A mata se tornou verde-escuro, uliginosa e a
atmosfera bastante úmida. Logo compreendi que dez minutos ali não era
menos de meia hora. Porque depois de caminhar dez minutos realmente
alcançamos o riacho, mas não a nascente.

Fomos acompanhando o regato e a trilha se tornou mais aberta de mata, mas


continuava estreita nos pés, o que nos obrigava a andar em fila indiana.

Uma orquestra de passarinhos, sapos e grilos nos acompanhava com ritmo. O


burburinho do regato descendo pelas pedras também era música, que nos
empurrava para frente e diminuía o cansaço e dava coragem para prosseguir
sem esmorecer.

Era realmente um pedaço de mata virgem e Saloca confirmou minhas suspeitas


de que há muito tempo ninguém passava ali: "Ninguém conhece essa trilha,
nem onde leva. Quem se arriscou entrar aqui para caçar, acabou se perdendo. E
teve gente que sumiu, nunca mais voltou."

Mais vinte minutos se passou e foi o tempo que demoramos em chegar. Só que,
para surpresa, a nascente não era dessas tradicionais, que se conhece dos livros
de geografia e que começam com o fio d'água, ia aumentando, aumentando,
até se transformar num rio. A nascente do rio era na verdade um enorme poço,
lagoinha com mais ou menos de cinquenta metros de circunferência irregular. A
mata fechara-se copada sobre a lagoa, transformando o lugar num santuário
escondido do mundo. O Rio Turu nascia entre as árvores e juçarais tantos, que
as raízes se entrecruzavam por baixo.

Saloca não esperou, tirou a camisa e caiu na água. E deve ter sido maravilhoso,
pois estávamos cansados da caminhada e encharcados de suor. Olhou para mim
como que esperando que eu mergulhasse também. Não decepcionei. Tirei a
roupa e mergulhei de cuecas mesmo. A nascente tinha águas escuras, mas
cristalinas. Seguindo o itinerário que Saloca me passava, mergulhei e nadei
evitando raízes e troncos. Saloca trepava nas árvores, improvisadas de
trampolim, para saltar de três metros de altura e sair geralmente num lugar que
só ele conhecia.

O local que mergulhamos mais parecia uma piscina encravada entre os troncos.
Ali tínhamos à disposição majestosos dois ou três metros para o banho farto e
mergulhos saborosos. A água estava fria, mas suportável, principalmente pelo
calor e pelo cansaço que passamos lá fora. À profundidade de dois ou três
metros, podia-se ver claramente todo o fundo. Mais uma vez Saloca me guiou e
pude entrever, extasiado, a água surgindo do fundo em grandes borbulhas,
formando pequenas nuvens de poeira na areia branca.

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Era realmente a nascente. Uma portentosa, veracíssima, maravilhosa nascente.
Como nunca tinha visto na vida! Paisagem de cinema, melhor, de cinemascope.
Os raios de sol que conseguiam atravessar a mataria rebolavam entre as
folhagens transformando-se em miríades de pérolas brancas.

Depois de alguns mergulhos, sentei num tronco à beira do lago para descansar.
Saloca não parou, com sua juventude incansável e insaciável, enchia o ambiente
com enormes gargalhadas. E, parecendo que nunca mais ia querer sair daquelas
águas, mergulhava e sumia, mergulhava e reaparecia, geralmente em lugares
inesperados.

A tarde caía. A luz do sol entrava pelas árvores em diagonal inundando tudo
com raios sacros. Quando começou a escurecer - e debaixo das pesadas copas
das árvores escurecia mais rapidamente - Saloca finalmente resolveu sair de
dentro d'água, o corpo todo tremendo de frio, os lábios já ficando duros de
roxos. Lembrei Saloca de levar a água pro velho e ele foi procurar o recanto
além de onde estávamos mergulhando. Ali bebemos água até matar a nossa
sede e enchemos não só a bilha do Vô João, mas outra que ele mesmo tomou a
iniciativa de trazer.

Arrumamos a tralha toda, exaustos, ainda todo molhados, a água dos cabelos
escorrendo sobre a camisa, abandonamos aquele santuário em religioso silêncio
e iniciamos a caminhada de retorno. Quem se importava com a chuva que
encharcava nossos corpos?

ÓLEO SALADA F.C.

1 - O Estádio do Covão

"O destino do homem não está no futuro e sim no passado."


Havelock-Ellis

A turma batia bola em qualquer cantinho que achasse - na frente da igreja, no


terreno baldio da Rua 12 ou em qualquer esquina. Com o tempo, porém, foram
chegando muitas mudanças e novos vizinhos aumentaram em muito a
população do novíssimo bairro do Filipinho. Daqui a pouco, de tanto craque que
tinha querendo bater bola, não dava mais para dividir. Tirando o dono da bola
mais nova, que tinha sua vaga garantida, sempre sobrava mais gente do que
tempo para jogar, mesmo que o jogo fosse com tempo marcado.

Com o passar do tempo viu-se que era impressionante o modo como


discriminavam, não só os donos das velhas bolas carcomidas pela piçarra, pelos
paralelepípedos das ruas, pelo concreto das calçadas – surradas, afinal, pelo
muito serviço prestado aos peladeiros – desprezando-o sempre que alguém
chegava com a bola nova. Havia também a hierarquia de discriminação, mais ou
menos assim:

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a) quanto à bola:
a bola de couro tinha preferência sobre a bola de borracha
a bola oficial tinha supremacia sobre as bolas de tamanho não oficial
a bola não remendada ou menos remendada, valia mais que as remendadas
a bola redonda era preferida às bolas que o tempo tinha tornado ovais
as bolas sem câmara ganharam a preferência sobre as com câmara

b) quanto ao jogador:
o dono da bola sempre escolhia o time
o craque tinha primazia sobre o perna-de-pau
o mais forte tinha supremacia sobre o mais fraco (inclusive fora de campo)
o mais rico mandava no mais pobre (exceto se fosse conhecido craque)
o culpado pela derrota era sumariamente execrado pelos demais

Descobriu-se que descendo o Covão e chegando lá embaixo, antes do juçaral e


do olho d'água, dava a descaída meio plana. Então as cabeças da turma
começaram a plantar ideias. Primeiro armaram todos com enxadas, foices,
facões e começaram a desmatar e destocar aquele pedacinho plano. A vontade
era muita, mas o trabalho era maior. E, afinal, o terreno não era tão plano assim
como se pensava. Depois de pronto só dava para fazer a área e brincar de linha
de passe.

Uma ideia puxa outra. Passasse a máquina ali e se conseguiria o campinho


quase do tamanho oficial. Quase. Era só aproveitar que as eleições estavam se
aproximando e conseguir arrancar o favor de algum candidato.

O primeiro que apareceu no palanque, fazendo discurso e lançando o slogan


"Dê sua ripada na onça", foi escolhido para Cristo. O grupo mais influente do
bairro, aproveitando-se do ritual da despedida do comício, chamou o candidato
num canto e entre a cachacinha e o prato de mocotó arrancou-se a promessa.
Aliás, promessa não: dívida.

Um par de semanas depois, com direito a platéia e tudo, a patrol estava


roncando seu potente motor Catterpillar lá no Covão, a pá gigantesca
arrancando com a maior facilidade as árvores mais resistentes, os tocos mais
vigorosos, causadores de muitas unhas do dedão do pé arrancadas, muito couro
da sola do pé esfolados, muito geme geme, muito ai-ai, ui-ui.

O ânimo era tanto que até as mulheres apareceram e não deixavam faltar nada
ao maquinista. Êta água fresquinha, almoço reforçado, a tiquira para abrir, a
galinha ao molho pardo, farinha d'água de Carema e o docinho de buriti na
sobremesa. Com essa notável infra-estrutura, não houve como o maquinista se
recusar a dar o capricho.

E assim foi. Além de ser profissional competente, fez o serviço com muito gosto.
Numa semana o campinho estava pronto, bem aplainado, com direito a

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acostamento em toda a volta que dava até para construir a mini arquibancada.
Na despedida o maquinista prometeu que viria para o churrasco de inauguração
- e veio. Fizemos a vaquinha entre os moradores para dar de presente de
agradecimento e nos despedimos com tapinhas nas costas e vigorosos abraços.

E agora ao trabalho. Encomendar, comprar, colocar e pintar as traves.

Fazer a marcação do campo à cal. Comprar as redes.

No entrementes os clubes floresciam, entre assembléias e reuniões que


varavam as noites. Entre um cafezinho e outro - habilmente fornecido pelas
esposas - logo estavam registradas nas atas as certidões de nascimento: todos
os capítulos dos estatutos.

Comprava-se jogo de camisa, bola oficial, tornozeleira, arrumava-se o


quintalzinho para a sede, elegia-se a diretoria, arregimentavam-se os melhores
craques locais. Os pernas-de-pau corriam desesperadamente atrás da vaga,
nem que fosse na reserva.

Entre a tentativa de conquistar um craque e outro, ocorreu mesmo princípio de


mercantilização. Corria favorecimento nos bastidores: o emprego aqui, o
dinheirinho ali, o namorico e até casamento!

Os clubes nasceram com mania pelos erres: REAL, RENNER, RIVER, RADAR, mas
para quebrar a monotonia tinha também o glorioso FAC - Filipinho Atlético
Clube! Depois veio as dissidências e, como o Flamengo (que nasceu no Rio de
Janeiro de uma cizânia do Fluminense), o RADAR surgiu de briga interna do
REAL, este vindo de dissidência do RIVER.

E assim inauguramos o Estádio do Filipinho, mais popularmente conhecido por


Estádio do Covão. Não com todos aqueles times (de começo eram apenas dois
clubes), entre foguetório, notícia de jornal, churrasco depois da partida,
abraços, bebemorações.

Como não poderia deixar de ser, estava presente (e foi efusivamente


cumprimentado por todos), o herói daqueles dias: o maquinista com toda sua
família, esposa, filhos, cachorro, papagaio.

Para dizer que não cumprimos a promessa, elegemos o Deputado: o Filipinho


em peso deu sua "ripada na onça". Outra coisa importante: naqueles idos dos
anos 1950/1960, quando ninguém ainda pensava nisso (nem mesmo nós),
acabava de ser inventado o futebol soçaite.

O resto é matéria para historiador e não para contador de folclore como eu...

2 - O artilheiro de perna bamba

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"Existem derrotas mais triunfantes que as vitórias."
Montaigne

– Vai! Vaaiii!

Saloca se deslocou. A bola, estabelecendo a trajetória em forma de arco, foi


lançada no ponto futuro. Quantas vezes aquele lance se repetiu, com pequenas
variações. O passe saído da perna esquerda de Careca era tão perfeito que dava
a chance de finalizar de duas formas:

se o beque estivesse longe, tinha espaço para matar a pelota no peito,


preparando para arrematar com o pé direito ou de trivela.

se tivesse sendo pressionado pela marcação, apoiando-se na perna esquerda,


encostaria-se ao marcador e, usando o ombro como alavanca, dispararia antes
da bola cair no chão.

Saloca escolheu a segunda opção e preparou-se para correr para área de


arremate, como havia calculado.

– É minha!

A platéia fica atenta. Sabe que, apesar de todos os defeitos, de ser varapau,
aqueles lançamentos o artilheiro sempre pegou na veia. Ai do goleiro!

Um deles foi arremessado para o fundo das redes com bola e tudo, dada à
potência do chute. Envergonhado, nunca mais frequentou as três traves.

Mas a história tem o seu dia de traição e muda sem prévio aviso...

Depois desse dia e até hoje Saloca sonha o pesadelo com o lance: a bola vinha,
redonda, redondinha, pedindo para dormir no fundo da rede. Mas as pernas de
Saloca, num vexame supremo, não obedecem ao seu comando e
injustificadamente bambearam logo nas primeiras passadas. Lá vai a bola
caindo, caindo, quicando no chão e nada de Saloca chegar nela. Trocava as
pernas como o bêbado largado na noite. A platéia gemeu de dó ao ver o craque
perder o passo e tentar, num derradeiro e hercúleo esforço, aproveitar o
terceiro quique para finalmente arrematar - ainda dava tempo de fazer o
golaço.

Mas as canelas estavam mais moles que perna de mamulengo e foi ele que,
recebendo o tranco do beque, foi arremessado pela lateral afora e a bola,
protegida pelo zagueiro, saiu pela linha de fundo em tiro de meta.

– Disgrama!

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O banco de reserva reclamou, o técnico xingou, os colegas de campo chamaram
ele de uma porção de nomes feios, o beque riu debochado e o goleiro chamou
ele de perna-de-pau. Ante tanto dissabor junto, o ás lembrou de fingir que tinha
sentido a fisgada e levou a mão no posterior da coxa esquerda (ou direita, nem
lembrava). Caído na lateral chorou, não de dor, mas de vergonha, vergonha de
ter perdido o gol feito, vergonha de ter fingido o estiramento, vergonha por
saber que nenhum dos seus colegas do time, nem a torcida, iriam acreditar.

– Mascarado!

Chamou o massagista pedindo o linimento pel'amor de Deus. Tudo doía. Para


ele não dava mais. O técnico já tinha providenciado a substituição. Não dava
mais para ele. Ia perder tantos gols quantas bolas lhes passassem, mesmo se
ficasse cara a cara com o goleiro. Não dava mais. Gemeu como o bebê
abandonado, mas continuou só e abandonado na lateral do campo, ninguém o
socorreu. Alguns mais atrevidos, bancando valente, se chegaram perto, só para
dar esporro. Quase foi agredido...

– Ai-ai, ui-ui!

Finalmente, depois de fazer o aquecimento, dar as instruções e fazer a


substituição, só depois de deixar o mascarado sofrer um bocado, o técnico
autorizou o massagista a atendê-lo. O negão jogou éter por sobre a coxa
esquerda, massageou, massageou e aquelas mãos enormes, que mais pareciam
manoplas, castigaram tanto a coxa machucada que acabou por trazer mais
sofrimento que alívio. Tinha sido justiçado por perder o gol.

– Chega, chega!

Aquilo só tinha uma explicação: Amélia. Lembrou de Amélia e sentiu saudade.


Será que era a saudade que deixava ele tão desligado, sem reflexos para se
deslocar, para exibir o maravilhoso controle de bola que sempre foi o seu forte?
Ou será que era o amor, que o deixava sem coordenação, a ponto de acorrentar
suas pernas no chão como foram presas a mãos de Cristo na cruz?

– Um garoto de 13 anos, promessa do futebol, ficar com as pernas assim em


frangalhos! Saloca entrou em pânico e chamando o técnico resmungão de lado
confessou tudo.

– Não entendo! Não, não dá pra entender...

– Disculpa Sêu Mano. E baixinho no ouvido: A culpada só pode ser

Amélia.

– Culpada o cacete! Amélia? Como pode ser culpada, aquela coitadinha?

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E contou. Contou como de uns meses para cá o velho seu pai achou de
proteger, a pedidos, a filha do seu Mário, amigão do interior – e deu acolhida a
Amélia. Ela mesma, aquela de peitinhos empinados que todo dia de manhã vai
à padaria e deixa seu Manel e todos os fregueses arrepiados. Como eram muito
amigos, o velho e o Mário, tratou-a como a filha que não teve. Um quarto
sozinho para ela, carinhos, pouco trabalho.

– Desde aquele dia quedê sossego Sêu Mano? A menina tá nova, quer toda
hora...

Quando ela passa na rua, todo mundo fica entesado por aqueles cabelos negros
levemente ondulados, brilhantes, massageados com óleo de amêndoa doce. E
todos sabem que ela é mocinha - ainda não fez 16 anos - ainda tem muito para
crescer e incomodar a Deus e o mundo. Se for assim perturbador com todos os
mortais que passam por ela nas ruas, magina ele, que passou a viver ali, dentro
de casa, todos os dias juntinhos com aquele amor de pecado.

– Então, um dia ela viu que eu estava espiando ela tomar banho.

Anjo infernal, mais lânguida que a onda errante, boca de estrela, flor amorosa,
mais que divina, inocente almejo, poço de desejos, flor de formosura, não
reclamou, fingiu que não viu, até deixou. E Saloca foi se aconchegando,
chegando de mansinho, até descobrir que era gostado e estava gostando. E foi
tomando banho juntos que ele descobriu que ela não era mais mocinha, quer
dizer, era, mas não era muito. Aliás, diga-se a verdade, foi ela quem
confidenciou. Alguém fez mal a ela lá no interior, no centro.

– Por isso que papai me mandou pra cá...

Então o artilheiro não teve mais desconfiança que estava apaixonado. E paixão
daquelas grudentas, que agarra dia e noite com a gente e não larga nunca
jamais. Tinha, portanto, de aproveitar aquelas duas horas em que ficavam sós
em casa ele e Amélia: os manos, para escola, o velho ia para a praça jogar dama
até 6 horas da tarde. E como não tinha outro lugar adequado, nem naqueles
tempos tinha hotel nem motel, Saloca e Amélia se encontravam no banheiro,
pés descalços no piso úmido e frio, nas duas únicas horas que ficavam sós em
casa.

– Larguei até de ir à pracinha bater prosa com a turma.

Essa paixão de começo não tem dia. Ou melhor, tem: é todo dia. E durante
muitos meses Saloca e Amélia se amaram diariamente, duas horas em pé! Em
pé! Trancado no banheiro, enfrentando o calor como quem frequenta a sauna.
Metia a cabeça entre os peitos de Amélia (era o lugar mais alto que o pirralho
conseguia alcançar) e ficava ali lambendo o suor que descia pelo pescoço dela.
Só largava quando ficava com o corpo febril tremendo, despejando suor por
todos os poros. Aí sentia as canelas bambas fraquejando desobedientes,

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manquejando como o passarinho ferido, ia dobrando os joelhos, as pernas
arriando, até achar repouso recostado, desfalecido, no azulejo frio do banheiro.

– Em pé? Duas horas? Mentiroso filho da puta!

E quando terminava Saloca e Amélia ficavam se rindo um para o outro que nem
dois bobos. Mas tinha de ir pro treino. Amélia ia até a porta se despedir dele.
Era aquela moleza, vontade de nem não sair de casa. Olhando aquela morena
na porta, se rindo, batendo o adeusinho com todo o corpinho moreno, quem
disse que dava vontade de treinar? Ia pro campo com o corpo todo tremendo
de saudade. As pernas bambeavam como pernas de mamulengo e não tinha
massagista que desse jeito. No treino ainda dava pra mascarar, mas no jogo,
bem, no jogo foi aquele papelão que se viu.

– E por causa de um Casanova de merda, tomamos uma pitomba daquele time


de qualiras!

Saloca aturou a esculhambação cabisbaixo, mas se rindo de amor por dentro.


Valeu a pena. Estava feliz. Valeria a pena perder dez partidas iguais aquela.
Porque uma coisa ele não contou, guardou para si o segredo para toda a
eternidade: foi a primeira vez. Sim, foi com Amélia a primeira vez, a primeira de
milhares de vezes seguintes que viriam – com as graças de Deus!

Foi como soube por que Adão cagou e andou ao ser expulso do Paraíso. Foi
quando descobriu que a vida não é o mar de rosas, mas que vale a pena viver.
Foi como tomou conhecimento de que o amor é lindo e que é a virilha - e não o
cérebro - o centro da nossa vida. E nesse idílio consigo mesmo, distraído,
acabou pensando alto, quase gritando:

– Valeu a pena!

Com essas palavras, saltou e socou o ar como se tivesse feito o gol. Mal acabou
de pronunciar o pensamento em voz alta e tomou um cascudo na cabeça. E
assim é que o artilheiro Saloca foi solenemente expulso do time. Mas pelo
menos deu para sair na fotografia oficial da primeira formação do River Futebol
Clube. Não dá para notar, na foto, se as pernas estão bambas ou não.

Só que, naquela aparição inaugural com a equipagem de listas finas verticais, de


cor amarelo-ouro e preto – igualzinho à lata de óleo da moda – o time ganhou
da galera a alcunha de Óleo Salada F.C. e dessa pecha jamais se livrou, mesmo
depois de inaugurar o novo e completo jogo de camisas. Óleo Salada F.C. como
consolo, para sempre:

– Quem quer jogar num time chamado Óleo Salada?...

3 - "Diabo Louro"

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"Se você não diz a verdade sobre si mesmo, não pode dizê-la sobre os outros."
Virgínia Woolf

Antes de encerrar sua gloriosa carreira no futebol filipinense, acelerada por


grave derrame de menisco, Saloca ainda teve uma alegria. Quer dizer, teve
muitas alegrias. Foi convidado para treinar no Maranhão Atlético Clube e de
fato participou uma semana de treinamento entre os reservas. Mas levou muita
porrada de veterano e largou os treinos. Ademais, fora disso, ganhou muitos
títulos e vários torneios, muito torneio início.

Nas partidas que disputou jogando no gol (os técnicos aproveitavam sua alta
estatura para mantê-lo como goleiro reserva ou regra três), engoliu memoráveis
frangos. Por outro lado, quando estava inspirado em Pompéia – cognominado O
Águia Voador – salvava o time de algumas derrotas, defendendo até pênaltis
decisivamente importantes.

(Depois, muito tempo depois, foi ser vizinho do famoso arqueiro no baixo
Cachambi e chorou ao conhecer a casa em ruínas em que Pompéia morava.

Engoliu o medo de saber que a Águia Voadora vigiava o passado glorioso com
porres contínuos de cachaça e assim viu como ia ele acabar seus dias, tremendo
e atacado de alguma cirrose irreparável. Cadê os clubes pra apoiar o craque?
Cadê o glorioso América Futebol Clube? Cadê o Sindicato dos Jogadores?...)

Um dia o time se viu sem goleiro e lá foi Saloca ser titular debaixo dos três paus.
A equipe toda atuou bem e havia se preparado para o campeonato com
esmero. A essa altura o futebol do Filipinho estava bem cotado e foi fundada
até a Liga esportiva para representá-lo junto à Federação de Futebol.

Clubes de outros bairros, vendo o sucesso que alcançaram, pediram – e foram


aceitos – para participar do campeonato. Agora tinha o FLAMENGUINHO, o
RABREU, o RIANIL. O REAL F.C. ganhou o titulo do Torneio Início com o pênalti
defendido por ele. Mas uma coisa ficou clara para toda a direção: não dava para
disputar todo o campeonato com um só goleiro, ainda mais improvisado. Foi
assim que chegou ao Filipinho para jogar no REAL F.C. o famoso goleiro de
futebol-de-salão, campeão estadual da temporada, o famoso Diabo Louro.

Ganhou a alcunha porque portava a vasta cabeleira, loura, naturalmente, tinha


os olhos azuis – e defendia mais que o próprio Capeta. Goleiro de estilo, logo
nos primeiros treinos demonstrou porque era ambicionado até por times do
Sul. Era alto e elegante como a garça e voava defendendo as bolas mais
impossíveis. Com ele ninguém comemorava gol por antecipação, pelo alto era
impenetrável. No chão era bom também: era impressionante como caía com
rapidez, mesmo se a bola era chutada com violência, rasteirinha, a seus pés.
Saloca ficava ali, quieto, atrás do gol vendo o Diabo Louro voar, querendo ser
igual a ele.

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Outras equipes protestaram: o REAL F.C. estava profissionalizando o
campeonato, coisa que ninguém queria. É verdade que, aqui e ali, sempre corria
o dinheirinho, o favor, a chantagem, para aliciar os jogadores mais famosos.
Mas era diferente de profissionalizar. Veio o primeiro turno, o REAL F.C. venceu
e se classificou para a grande final. Mas aí o Diabo Louro, aguerrido como era,
foi entrar numa dividida, caiu mal por cima da clavícula e lá se foi o braço pra
tipóia.

Não podendo haver mais inscrição de jogadores, o jeito foi manter Saloca como
titular durante todo o segundo e decisivo turno. Os times reagiram,
aproveitaram as deficiências e fraquezas do goleiro e o REAL F.C. perdeu feio.
Jogando debaixo de muita pressão, veio a finalíssima e o REAL F.C. perdeu
também. O Diabo Louro foi defender outros clubes mais famosos e Saloca
encerrou prematuramente sua carreira de goleiro.

Agora, nem pra quebrar galho...

O BUICK NEGRO

"Espuma, espuma e estas nuvens, dunas


sobre o lago do céu boiando vagas"
Bandeira Tribuzi

Numa dessas caminhadas passamos, Saloca e eu, por um cemitério de


automóveis. Dava pena ver tanto carro que ainda poderia ser usado ali, largado
ao relento, sendo carcomido pela ferrugem provocada pela alta salinidade que
vinha do mar, invencível e mortal adversário do ferro.

– Sempre que passo por aqui, fico vendo os mais antigos, que estão lá no fundo.

Seguimos a pé até onde ele indicava. Realmente, ali se encontravam os carros


mais antigos, alguns já depenados, sem pneus, arriados no chão, nem sequer
podiam mostrar resquícios da beleza que já tiveram.

– Gosto mais daquele ali.

Saloca apontava para o velho Cadilac Rabo de Peixe que um dia fora azul claro.
Junto dele repousavam os restos mortais de velhos Buick, Studbaker, Austin-
Halley.

– O Vô João só conhece o Buick, nunca ouviu falar de outra marca. Dizque


costumava ir à praia num Buick negro, com assentos de couro, teto solar e rádio
pra ouvir.

A imaginação trouxe de volta a buzina do Buick se ouvia de longe, potente,


agitando todo mundo porque anunciava o passeio, o piquenique e, ao fim, o

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banho de mar. De fato, alguns segundos depois, lá vinha o Tio Zé metendo o pé
no acelerador, fazendo cantar pneus nas curvas, sabendo que a turma já estava
esperando de calção, caniço e samburá.

Era um carro amplo e confortável. Um carrão! Cabia todo mundo dentro e mais:
Tio Zé abria a porta da mala traseira e dali surgia, como por mágica, um banco
para mais dois passageiros.

– Todos deeentro? A meninada respondia em coro: – Siiimmm!...

– Tudo prooonto? De novo em uníssono: – Táááá!

Tio Zé passava a primeira, a Segunda marcha e arrancava derrapando os pneus


na piçarra, sumindo na primeira curva, escondido no meio da poeirada amarela.
Era gritaria agitando a viagem toda. Os do bando de trás faziam caretas através
do vidro para os dois que viajavam no banco externo. Estes nem ligavam
sorrindo alegres, os cabelos revoltos pelo vento, os olhinhos fechados para
evitar a agressão da poeira.

A primeira parada era no Tirirical. Se tivessem sorte, poderiam ver o avião


americano pousar ou decolar da base aérea que ficava bem ali. Mas o que
contava mesmo era a correria pelo capinzal, evitando, naturalmente, os
espinhos de tiririca, que deixavam lanhos profundos e dolorosos na pele.

Os mais sabidos adentravam no mato, numa caçada silenciosa, na esperança de


achar algum ninho que tivesse ovos ou filhotes. A descoberta era anunciada
como se fosse vitória. Todos iam ver os filhotes que, ao primeiro ruído
chilreavam loucamente, escancarando as goelas. Naturalmente, pensavam que
era a mãe que chegava trazendo alimento.

Como num jogo sem regras, estabeleceram que quanto mais bonito fosse o
passarinho, mais a descoberta tinha importância. O bem-te-vi, apesar do preto
e amarelo, valia pouco, o sanhaço brilhava mais pelo azul claro das penas, o
sabiá era o campeão pela bravura que demonstrava, desde filhote. E as mães,
nem se fala: quando descobria os intrusos visitando o ninho atacavam-nos
violentamente, defendendo os filhotes. Era a natureza falando mais forte.
Não demorava muito e lá vinha a ordem do Tio Zé:

– Todos deeentro? E o coro afinadíssimo: – Siiimmm!...

– Tudo prooonto? E em uníssono reforçado: – Taaáááá!

E lá iam todos estrada afora, o Buick Negro enfrentando valentemente a estrada


de piçarra, levantando areia, deixando o rasto de poeira para trás. Quando o
carro encarava a trepidação mais forte, a gritaria aumentava na mesma
proporção dos sacolejos. Pior para os lá de fora, cujo assento não era

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almofadado como os bancos internos. Uma trepidação demorada podia custar
marcas doloridas na bunda e nas costas.

Antes mesmo que se sentissem cansados, porém, a estrada mudava de feição,


entrando num túnel natural, formado por árvores frutíferas. O ambiente
tornava-se sombreado e refrescante. Num lugar, os cajueiros, mangueiras,
pequizeiros e cajazeiros, perfumavam a estrada com as flores e frutos. Mais
adiante era a vez dos jenipapeiros, pitombeiras, as ramas de maracujazeiros
floridas e dos pés de ata enfeitar toda a alameda.

Aí o Tio Zé fazia a segunda parada. Encostava o Buick na beira da estrada e lá


íamos todos nós, cada qual com o saco vazio na mão, catar frutas no chão de
fartura. Era tempo de manga? O chão ficava coalhado de manga-comum,
manga-espada e manga-rosa, madurinhas, derribadas pelo vento. Era tempo de
cajazinho? O colchão de folhas secas cintilava, tingido pelo amarelo-ouro das
frutas bicadas pelos passarinhos.

Era tempo de caju? Os troncos rugosos dos cajueiros viravam trampolins para
saltos travessos dos saguis que vinham colher frutas e voltar a seu habitat.
Quem encontrasse algum jenipapo espocado no chão, guardava pro Tio Zé. Esse
ele não dispensava de jeito nenhum. Ia direitinho para as famosas mãos da Loló
para curtir e fabricar o licorzinho.

Não obstante aquela fartura, Tio Zé sempre ensinou a só pegar o de comer e


algum para levar.

– Mas tio, vai estragar! – alguém contestava.

– Aqui não estraga nada – ensinava Tio Zé – mesmo o que parece podre, a
natureza se encarrega de aproveitar. Aqui não estraga nada...

E com essa aula as crianças viravam passarinhos. Até ouvir de novo o grito de
chamada:

– Todos deeentro? O coral ainda estava animado: – Siiimmm!...

– Tudo prooonto? Nem sinal de esmorecimento: – Taaáááá!

E lá ia a cambada na cantoria enfrentar a última etapa da viagem.

Mal saía do sítio, pegava o pouco de estrada de areia (o Buick Negro dançando
valsa prum lado e pro outro). Aquele pedaço era mal visto, porque era famoso -
negativamente famoso, aliás - nos tempos de chuva. O areal, cuja base era a
tabatinga, virava o lamaçal intransponível, que nem mesmo o Buick Negro, com
toda a sua potência vencia.

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Superado aquele pequeno deserto de areia fina, mais um quilômetro depois, a
mais rápida das paradas: o Rio Maioba. Nem mesmo era um rio, não passava de
riacho. Mas o Tio Zé conhecia o canto lá atrás que formava a lagoinha de água
doce e alva. Essa parada não dava muito ânimo nos garotos, porque o local
aonde ia o Tio Zé era fundo. Só dava pra brincar na margem. Mas ninguém
reclamava não. Aquela parada, afinal, não era deles. Era a paixão do Tio Zé.
Passasse por ali a qualquer hora do dia ou da noite, mesmo que não fosse a
passeio, havera de dar uma paradinha, saltar e ir dar o mergulho no seu
laguinho de água escura, mas límpida.

– O rio tá que dá pena. Todo areado! – Era assim que lamentava o


assoreamento do Rio Maioba.

– Essa gente vem aqui tirar areia pra construção, barrilha pra vender e acaba
com o Rio. Dá dó de ver...

O Tio Zé, sofrido com a degradação do seu Paraíso, entrava no carro sem dar o
grito de guerra. O pessoal tentava animar o resto da viagem, mas o Tio Zé só
voltava a sorrir mesmo depois da última colina, quando lá embaixo já
despontava o areião da praia, a perder de vista e – por fim – o MAR! O glorioso
MAR!

Na ladeira que dava acesso à praia, o Tio Zé botava o Buick Negro em ponto
morto e ele descia sacolejando mais ainda, as molas rangendo, aço velho
reclamando dos solavancos provocados pelos buracos. Mal chegava lá embaixo,
puxava o freio de mão e já saía atirando num canto a camisa, os sapatos, as
calças. Abria os braços para os lados querendo abarcar o mundo, respirava
fundo a brisa do mar. As crianças há muito tinham iniciado a maratona pra ver
quem chegava primeiro na água morna.

– Cuidado com a correnteza!

Que nada, aquilo era mar de piscina. Qualquer criança podia brincar ali sem
perigo. Os outros já estavam arrumando vaga nos times, batendo a bola na
areia dura, dando bicicleta, fazendo defesas espetaculares. Quem não brincava
disso ia apanhar murici e depois descer a toda velocidade, rolando das alturas
das dunas.

Tio Zé descia lentamente toda a extensão da praia (até chegar à água era bem
mais de cem metros), molhava o pé de mansinho provando a temperatura da
água, apesar de saber que ali havia a constância de cerca de trinta graus.
Entrava, dava um, dois mergulhos, aproveitando a onda que vinha.

Como de hábito, após os mergulhos rituais, o Tio Zé voltava para a beira do mar,
aonde as ondas vinham morrer marulhando, transformadas em espuma.

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Sentava e ficava mirando o horizonte, lá longe, onde o céu se junta ao mar,
deixando a areia molhada escorrer pelos dedos.

Volta e meia alguém trazia a cervejinha, o sanduíche, a fruta, porque sabiam


que ele dali não sairia mais, até quando, no fim da tarde, daria o último grito de
guerra para chamar os garotos, pegar o carro e fazer a viagem de volta.

– Todo mundo deeentro? O desânimo refletiu no sonolento coro: – Siiimmm!...

– Tudo prooonto? Respondiam lá de trás agora só umas poucas vozes,


mirradinhas, mais que mortas, desmaiadas, cansadas: – Taaáááá!

O Buick Negro, também se mostrava cansado, mas ronronava tranquilo, como


se soubesse que agora a sua carga era mais valiosa ainda, porque, esfalfados de
tanta farra a garotada dormia. Jogados à vontade nos bancos, encostavam-se
uns nos outros, refletindo nos lábios cerrados a marca dos milhares de sorrisos
de felicidade que gastaram num só dia farto de coisas boas. Sonhavam, desde
agora, com o novo Domingo, a nova aventura proporcionada por um homem
doce, mas que tinha prazer de se anunciar como o relâmpago, tocando a buzina
estridente do Buick Negro, fazendo os pneus derraparem nas curvas, gritando o
mesmo chamamento, proclamando aos quatro ventos a alegria de viver...

– Tudo prooonto?

A REPÚBLICA DA MATRACA

"A menina que tá na janela


Foi quem me jogou uma flô
Joguei uma toada pra ela
Ela me jurou de amô."

Boizinho Barrica

Mal terminava abril e os pandeirões do bumba-meu-boi começavam a fazer


concorrência aos tambores de mina. Era marcado o começo dos ensaios do
bumba-meu-boi, que as festas de São João já vinham se aproximando. Mas na
verdade não era ensaio coisa nenhuma. Era apenas a convocação que o amo
fazia, em obediência à sua própria condição, pois tinha o poder e a obrigação de
agregar de novo o grupo do Boi e dar a motivação necessária para que todos
chegassem, na época de São João, afinadinhos na dança e no ritmo, ajuntados
em amizade e união.

O ensaio era mais para isso do que propriamente para decorar a representação,
já que a maioria dos brincantes – tirando um ou outro calouro – era de
veteranos que sabiam tudo de cor e salteado. A convocação servia também
para atualizar a prosa, tomar uma tiquira, arrumar e reparar os apreparos,

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renovar as miçangas e vidrilhos coloridos, consertar os pandeiros e as
ronqueiras, trocar as fitas descoloridas pelo tempo, tirar do baú os couros do
boi - mas o que justificava o ensaio era principalmente a alegria do reencontro,
o prazer de retornar ao divertimento preferido.

A reunião trazia ideias, anunciava os primeiros contratos e, confirmadas as


representações, dava ânimo para arrumar a brincadeira com vontade. Entre
uma tiquira e outra, alguém lembrava de compor letras novas para as velhas
cantorias. Aí ia surgindo o enredo, na verdade só o meio de modernizar e tornar
mais ágil o auto e deixar o boi bem pesado.

Para animar a alegria, contavam quantos novos brincantes se acusavam entre a


rapaziada. Enfim, era o jeito de passar o bastão adiante, que os velhos já
estavam com as pernas arriadas de tanto caminhar. Contavam também quem se
foi. Um Mestre perdido, na conta geral, valia tanto quanto o zabumbeiro, o
brincante, o cabôco ou o cantor. Era sempre uma constante lastimar e recordar
das coisas boas de que o finado participou. Dos representantes do bumba-meu-
boi esperava-se que acontecesse o impossível milagre que todos os anos
acometia os bois: após o drama – a morte, após a morte – a ressurreição!

Mal eram esquecidos os ritmos alucinantes dos frevos no Carnaval, os ouvidos


de Saloca começavam a aguçar buscando o som das matracas. E principiava a
peregrinação pelos bairros em busca dos terreiros de ensaios. Daí em diante,
era toda ansiedade para chegar logo o dia do batizado, véspera de São João. Em
todos os ensaios, arrumava jeito de fazer amizade com os brincantes, pedia a
matraca emprestada e lá ia ele, com o par de matracas tão grandes que quase
não aguentava o peso, rodando, rodando, acompanhando, sem perder o ritmo,
o coro das matracas, até a matraca ser pedida de volta. No fim da noite voltava
para casa cansado, suado e feliz.

Quando chegava o tempo de São João, então nem se fala. Era loucura ter de
acompanhar todas aquelas representações. É claro que não dava, não havia
tempo físico nem resistência física, para resistir àquela maratona.

Mas era aproveitar que as festas eram curtas. Logo, logo, dava uma tristeza
imensa, malincolia, o nozinho grudento preso na goela – era o fim de tudo, era
o fim das festas. Todos eram bonitos sim. Os bois de Rosário e Axixá, pujantes
com aquela osquestraiada toda. Parecia um baile. Os bois de cabôcos, que não
traziam fitas, com muitos índios a caboquinhos, eram bonitos também, mais
principalmente, eram os mais sonoros. Ouvia-se de longe, de longe se via
aqueles pandeirões enormes sendo atirados pra cima no ritmo da pancada.

Era difícil, impossível mesmo, resistir àquela zoadeira toda, cheia de animação,
provocada pela ronqueira, pela zabumba, pelos pandeiros. Durante todo esse
tempo ele soube amar um boi mais que os outros, apesar de não saber como
tinha nascido essa paixão. Mas, se tinha um Boi que Saloca guardava no
coração, era o Boi da Madredeus. O Boi por excelência. O Boi da sua torcida e

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paixão. O Boi de couro mais bonito, o Boi do mais sonoro garnicê, das melhores
toadas e louvações, o Boi da mais bonita representação.

Como era louco pelo Moto Club e pertencia à nação rubronegra, na vitória e na
derrota - da mesma forma gostava do Boi da Madredeus. E ai de quem falasse
mal dele! Porque, para Saloca, ver a representação do Boi da Madredeus é
alguma coisa de inexprimível, inominável, indescritível, algo que não tem
explicação. Entre todos os rivais - tirando, claro, o veterano e tradicional Boi de
Cururupu - o Boi da Madredeus só respeitava o Boi de Laurentino, da Fé-em-
Deus, cuja zabumba ritmada tinha o som tão poderoso que cobria a batida de
qualquer outro Boi que por acaso enfrentasse cara a cara.

Meus amigos, alguém de vocês já presenciou, in loco, a Sol da Meia Noite?


Ninguém? Eu também não. Talvez um, talvez nenhum. Mais certo nenhum.
Porém, a imaginação da gente advinha como deve ser belo em sua magnitude.
Aliás, hoje em dia, o cinema, aliado à TV e esta por sua vez aliada à antena
parabólica bem que já deve ter mostrado o Sol da Meia-Noite, em Eastmancolor
e Cinemascope, Todd-AO e efeitos sonoros Surround Dolby-Stereo, para boa
parte do mundo. E com essa parafernália toda deveria ser igualzinho ao original,
como se estivéssemos vendo todo o arco-íris em que se transforma a abóbada
celeste ao vivo, certo?

Errado. Pelo menos, foi o que Saloca me disse: "Numa reportagem que li, o
famoso explorador do Ártico Sir Roberts Elroy declarou que nada seria capaz de
exprimir, em palavras, sons, pincéis, imagens e cores, toda a beleza exuberante,
a magnificente beatitude (e mais outros superlativos, que não vem ao caso),
daquilo que chamamos Sol da Meia Noite."

"Principalmente (dizia ele, Roberts), porque ninguém seria jamais capaz de


exprimir todo o grau de excitação que percorre a alma humana diante daquele
espetáculo da natureza, que transforma toda aquela imensa região gélida num
ambiente de tal maneira religioso e santificado, que o espectador se sente
extasiado, como se tivesse incrustado dentro de uma essencialíssima igreja, cujo
único frequentador fosse o próprio Deus!”

Droga! Mas o que isso tem a ver com a Ilha? Simplesmente isso: é dessa
mesmíssima maneira que me sinto para descrever a roda de Bumba-meu-boi.
Não tem como explicar, nem mesmo pedindo ajuda à imaginação fértil e
trasbordante de Saloca: "É um ambiente de tal maneira mágico, que se
aproxima muito daqueles encontrados nos terreiros do Tambor-de-mina, o
ritmo é tão alucinante como o do Tambor-de-criola, o drama é tão mais bonito
que a ópera de Carlos Gomes e, quando o terreiro está cercado de muitas
fogueiras, o céu resplandece como o espetáculo boreal."

– Nem mesmo eu seria capaz de descrever melhor!

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Ou seja, de outra maneira e com outras palavras, só mesmo indo ver a
representação de Bumba-meu-boi para saber o que significa beleza dos cantos,
o ritmar dos tambores, o repenique das matracas, o desfecho sensacional do
drama. Cheirar a fumaça da lenha ardendo nas fogueiras, ouvir o foguetório que
precede a chegada do Boi e os balões que sobem colorindo o céu.

Ouvir o bombardeio constante dos foguetes, que sobem chiando para explodir
lá em cima, misturando-se aos riscos coloridos dos fogos de artifício. Ver a
alegria elétrica estampada nas faces daqueles que acolhem os participantes, ver
a maneira alucinante de como o povo entra e participa da festa, mas,
principalmente, ver o riso grande estampado na cara das crianças, correndo e
gritando em volta da Burrinha, do Caipora e do Cazumbá.

Depois de aquecer o couro dos instrumentos é quando começa a vadiação. É


hora de brincar. O povo se agita excitado. Os moleques procuram os melhores
lugares. É claro que o urro roncado do onça, a batida cheia dos pandeiros, o
repique da zabumba e o repenicar das matracas mexem tanto com o corpo da
gente quanto qualquer banda de rock'n'roll. Impossível ficar parado.

Mas nada se iguala em beleza cênica, quando o bailado se inicia e o Boi adentra
na roda atendendo aos chamados do cantador, girando, girando, girando. Ora o
Boi circula sobre si mesmo, rodando como o pião, ora o dançante deixa a
posição curvada e o Boi se levanta todo de uma só vez como se desse o salto no
espaço sideral, ora o Boi avança sobre a multidão deliciada como se fosse
tourear de verdade, provocando gritos e correrias.

E o couro do Boi? De primeiro ele entra vestindo o couro modesto, muitas vezes
de pano liso como um boi qualquer. Na segunda aparição já vem com o couro
de lona, mas pintado com algumas paisagens e referências de suas origens.
Depois mais outro e outro mais, cada qual mais bonito que o anterior. Quanto
mais famoso, mais couro o Boi possui. E, por fim, o Boi mostra toda a sua
pujante beleza quando veste o couro de veludo negro, todo ilustrado com
canutilhos, miçangas, paetês, avelórios e outras pedrarias, que transformam o
próprio Boi numa riquíssima obra de arte.

O contraste do veludo negro com o cintilar dos vidrilhos se acentua a cada giro
que o Boi dava dançando no meio da multidão. Honra e glória àquele dançarino
que faz o miolo e se mantém quase sempre anônimo durante toda a
representação dançando embaixo do Boi, mas que se transforma num ídolo, no
herói mais procurado por todos, assim que terminava a função. A glória do Boi
era a glória do dançante, a glória do miolo.

Mas não há bem que sempre dure nem mal que sempre ature. Depois da alegria
chega o dia da tristeza. Marcada a morte do Boi, guardam-se os apreparos, os
chapéus de fitas, as fantasias, tudo é recolhido dentro da cerimônia da morte.
Não obstante ser a continuação da festa, com direito a muita bebida, cantoria e
comida, não deixa de ser um ritual triste.

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Ainda se ouve o som das zabumbas, dos pandeiros e da roncadeira. Ainda se
ouve o canto choroso do reencontro com o Boi que, por estar muito doente, vai
ser sacrificado. Ainda se ouvem as toadas tristes.

O Boi vem vestido com todos os couros que usou durante os festejos de São
João e toda a solenidade do rito se reflete na dança, cujo ritmo acompanha o
gemido das cantorias dolentes. A cada passada o couro é retirado,
cuidadosamente dobrado e guardado. Por fim, tirado o último couro, o
esqueleto, mal coberto com uns trapos, é levado para o ritual da morte na
fogueira.

Quando as chamas consomem os últimos pedaços do esqueleto do Boi, os


assistentes vão se retirando aos poucos no rumo de casa, se despedindo dos
amigos, o derradeiro abraço, o último aperto de mão.

Os brincantes deixam o terreiro cabisbaixos. Levando os apreparos na mão, se


perdem na escuridão da madrugada entre a fumaça das fogueiras.

A brisa da madrugada lança as últimas faíscas no rumo do céu, a brasa vai se


transformando num monte de cinzas. O esqueleto do Boi sumiu de todo.

A madrugada se transforma numa ossada de silêncio.

Saloca, deitado na cama, permanece com os olhos arregalados de excitação que


não deixa o sono se aproximar. Mas quando o sono vence, ainda sonha que está
ouvindo, ecoando na cabeça, o som gutural e triste da voz que entoou a última
ladainha.

OS VIOLÕES SILENCIOSOS

“Meus álgidos suspiros,


nos cemitérios d’alma,
sufragam tua imagem
sobre o lis do amor.”
Catullo da Paixão Cearense

Reclamei com o Velho João do silêncio enorme, amazônico, que fazia de noite
em todos os recantos da Ilha. Era o silêncio de tamanho maior que a escuridão.
Lembrei de Mário de Andrade relatando o nascimento de Macunaíma...

– Durante a noite toda só se ouve o mar quebrando, incansável, as ondas na


areia. Além da cantiga do mar só se ouve o murmúrio, o canto de sereia que não
tem fim. Quase que me tira o sono de tanto silêncio.

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Muito me estranhei, eu que moro numa cidade tão grande que nas noites se
ouve tudo quanto é ruído. E sempre tem uns tirozinhos ecoando nos morros
onde a bandidagem convive. Não se tem paz nem silêncio.

– A noite tem dono, o silêncio é dele. Mas antigamente o silêncio era maior,
muito maior. Comentou o velho sem estranhar minha admiração. Era um
caladão bem maior que não se era capaz de medir.

– Mas ainda é um grande silêncio esse daqui. Uma coisa calada, enorme, como
o fundo de mar ou as alturas do céu. Talvez mais ainda...

– Noutros tempos o silêncio era tão grande, mas tão grande que se ouvia nas
sextas-feiras o Tambor de Mina bater lá na casa do Mandingueiro do Turu. O
som do tambor vinha de longe, mágico, perseguindo quem não crê, quem não
tem fé...

Jurando que eu já era de casa, deu uns gritos lá para dentro:

– Moleque, quéde o café? Cuida, que o moço já chegou!

E continuou a prosear, como se não houvesse interrompido:

– Quando tá assim, esse silêncio enorme que dá até pra escutar os suspiros da
morte, quer dizer que as almas estão conversando. É dia dos espíritos se
reunirem na fala deles, que não tem fim.

Lá de dentro vinha o rebuliço de xícaras e o cheiro do café torrado recendia em


toda a casa, aromático, sensual, amigo.

– Antigamente o silêncio era tamanho que se ouviam as serestas que se faziam


lá pras bandas do Sacavém, o tambor-de-crioula da Maioba, os ensaios do boi
de Ribamar!...

A despeito do exagero, que preferi deixar passar sem comentários, tomou o


café e se aprumou, arrumando as recordações.

– Esse menino não sabe ainda o que é o amor... Ela tinha os olhos verdinhos, da
cor da alface.

Pegou a tora de fumo-de-rolo, pretinho, molhado, escorrendo uma gosma


cheirosa que parecia mel.

– Entre os oitizeiros da Praça, foi quando vi pela primeira vez, ela saindo do
colégio vestida de rosa-e-branco.

Agarrou o canivete com jeito e começou a tratar a masca de fumo-de-rolo.

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– Sobressaía das colegas pela beleza. Daí em diante não tem dedos que possam
contar todas as serestas que fiz pra ela.

Cortou cuidadosamente o rolete de fumo e guardou o resto.

– Hoje reconheço que foi paixão, dessas fulminantes.

Amaciava carinhosamente o naco de fumo nas pontas dos dedos.

– A paixão é assim que nem o raio, que cai e arrebenta a árvore no meio. Essa
nunca mais se ergue...

Depois pegou a masca entre os dedos, amassou com delicadeza e arrumou num
canto já conhecido da bochecha.

– É como o raio, a paixão atura a vida do raio, só um segundo, mas traz


destruição e morte. Destrambelhou meu coração.

Daí a masca de fumo iria se dissolvendo e só seria cuspida pra fora após esgotar
o último sumo.

– As canções preferidas eram as de Catullo da Paixão Cearense - que na


realidade foram poeta e compositor maranhense.

Parecia que os dedos macios da mocinha tocaram forte nas cordas do coração
calejado do pescador.

– Estava ciente que tanta finura não era coisa pra mim. Mas não custa nada a
gente gostar, né seu moço?

Saloca sabia em que dava tanta nostalgia e pegou lá dentro o violão encardido
pelo tempo. Um acorde ressoou na varanda.

"Eu sou capaz de confessar aos pés de Deus que eu nunca vi, em mundo algum,
uns olhos como os teus!"

Entremeando os versos esquecidos e relembrados, mas com a memória da


garota bem fresca na cabeça e no coração, a canção foi levada até o fim.

"Que os olhos teus são os de Maria, a Mãe do Redentor!"

Mal soaram os últimos acordes (e depois dos últimos suspiros) e Saloca entoou
sua esperada ladainha.

– Também aprendi um pouco de violão. E já fiz uma seresta.

O velho, com seu jeito debochado, nem deixou ele completar e se riu:

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– Seresta, seresta porra nenhuma! Hoje em dia nem tem mais seresta. Não se
faz mais seresta. E isso que tu faz é arrumar dois ou três acordes, ajunta a
vozinha de gato miado e inda quer chamar aquilo de música, de seresta. Hoje
em dia nem tem mais...

A despeito da grande diferença de idade entre avô e neto, eles não se


importavam e ficavam que nem dois adolescentes discutindo sobre namoradas,
se debatendo para contar quem levou mais vantagem perante o outro.

– Foi para uma garota carioca - Saloca nem se importou com os comentários do
velho – ela era muito bonita, tinha a pele branca e pura como o leite, os cabelos
pretos compridos, brilhantes "como a asa da graúna"...

Passou os dedos nas cordas do violão, à toa, sem compor nenhum acorde.

– Tinha a boca tão vermelha que nem precisava de batom. E os lábios eram
arregaçados assim para os lados, como as areias da praia. Realmente era linda
demais.

Suspira o suspiro adolescente, como quem conta os segredos da primeira


paixão, sem se incomodar com os risinhos que o velho João soltava de vez em
quando, risos de sonoridade safada e perdida...

– Mas foi seresta de um dia só. Logo depois acabaram as férias e ela teve de
voltar para o Rio de Janeiro e lá se foi. Muito tempo depois recebi o cartão
postal dela...

O velho João não se conteve e começou a soltar a língua, desvendando o que


havia de secreto naquele amor impossível.

– Ele não conta que, quando fez a tal seresta (disse acentuando tom de
desprezo), a menina já tinha viajado. Foi simbora.

Saloca não escondeu que estava enfezado e aproveitou para sumir lá para
dentro, levando consigo o violão.

– E lá ficou o bestalhão na porta da igreja, que ficava bem em frente à casa da


menina, repetindo:

"Meu amor, eu não sei te dizer, com exatidão, como enfermei desta grande
paixão, que entrou no meu coração..."

O velho se ria relembrando, com maldade, do sofrimento e do penar de Saloca.

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– Os moleques ficaram lá de dentro da casa escura, escondidos ouvindo a
seresta. Depois vieram em grupo numa gozaria danada, que o menino chegou a
chorar de dó.

– Vieram até ele em risadas só pra dizer que ele estava fazendo seresta para a
porta. A menina já tinha viajado pro Rio de Janeiro fazia tempo... Daí em diante
o moleque só pensava em ir partir pro Rio de Janeiro. E se não fosse tão longe e
tão caro, ele havera de achar jeito de ir mesmo.

Agora não se ria mais. Realmente penalizou de dó de recordar que caso igual
tinha acontecido com ele mesmo. Ele também foi repudiado tempos atrás. Mas
quem nesta vida não foi um dia rejeitado pela mulher amada?

Vindo de lá de dentro, do último quarto, dava para ouvir acordes abafados do


velho e desafinado violão. Quem sabe o que é o amor?

O SACRISTÃO NO INFERNO

1 - A jumenta, o fantasma e o sino

"Mas no silêncio
dominical
vive em suspense
o bem e o mal"
José Chagas

Seu Alfredo tinha uma jumenta velha e mansinha, servia pra tudo a coitada,
inclusive como companhia pro velho, até que um dia mercê de uma manobra
infeliz perdeu o olho em consequência duma chicotada num galho de goiabeira
e ficou, por isso mesmo, apelidada de "Caolha". Seu Alfredo, com muita razão,
vivia gabando as qualidades do animal que, uma vez dada à partida, era capaz
de levar a carga intacta até seu destinatário sem que ninguém a guiasse. Era
mesmo bicho danado pra guardar caminho de memória.

Portanto, com tantas qualidades e as muitas bondades a Caolha era muito bem
tratada por todos. Visto que era desses animais que jamais esquecem o
itinerário, a trilha, era largada à vontade ali pelas eiras do Covão, para pastar e
beber a água fresquinha do pocinho. Mas teve uns tempos que seu Alfredo teve
dificuldade de localizar a Caolha, que tinha o hábito de voltar sempre para trás
da igreja, assim que acabava de pastar livremente pelos capinzais da redondeza,
pois ali encontrava a sombra ideal para descansar.

Por fim, o seu Alfredo localizou a bicha comodamente estacionada pra lá do


Covão, já quase nas terras da Quinta do Quincas, num lugar onde não só o
capim era verdinho, como também tinha água fresca do pocinho. Assim foi em
todas as vezes que a Caolha sumia, lá ia seu Alfredo pacientemente para aquele

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novo lugar que a jumenta achou para seu descanso. E, por motivos que
ninguém jamais desconfiou, a Caolha ficava sempre de traseira para a pedra de
meio metro de altura...

Mistério dos mistérios. Um dia seu Alfredo topou com certo sacristão trazendo
a Caolha pela rédea:

– Ôi seu Alfredo, vinha mesmo entregar a jumenta, que estava largada lá pras
bandas da Quinta.

Mas a Caolha não aparece aqui por causa desse inusitado raconto. Mais porque,
depois desses desaparecimentos, seu Alfredo resolveu deixar a Caolha pastando
num terreno baldio que tinha atrás da igreja, perto do açougue. Tinha fartura de
capim e a jumenta ficava bem à vontade, apesar de amarrada, porque a corda
se esticava por uns dez metros de diâmetro. Mas ficava também perigosamente
a poucos metros do sino da igreja.

Enquanto pastava era inevitável a Caolha ficar balançando o rabo para espantar
varejeiras e mosquitos. Bastou alguém ter a ideia de arranjar um rolo comprido
de barbante, amarrando a extremidade no rabo da Caolha e a outra na corda do
sino da Igreja! Durante toda a noite escura ficou o sino a badalar estranha e
irregularmente. Nenhum dos moradores próximos ousou ir ao local para
verificar a ocorrência: tinham medo mortal de fantasmas...

2 - Hóstia e vinho de missa

"O diabo, quando tem fome, come mosca."


Ditado Popular

Sem dúvida o momento mais angustiante para o sacristão é quando a missa é


interrompida para o clássico sermão. Se o padre for daqueles loquazes então,
nem se fala! O coitado fica lá atrás, na sacristia, contando nos dedos os minutos
que não passam, sem saber o que fazer.

Hora magnífica para o diabo agir, ele que sabe aproveitar todos os momentos
de vagabundagem e é especialista em ficar futucando a cabeça dos ociosos,
instigando e mostrando as coisas que ele, certamente, seria capaz de fazer
numa sacristia.

Futucando os armários para passar o tempo, primeiro o sacristão descobriu o


depósito do vinho de missa. Sempre ouviu falar que aquele vinho era feito
especialmente para o padre rezar a missa, e que era bento! O sacristão ouviu a
voz do mal anunciar todas as boas qualidades daquele santo néctar. O sacristão
relutou a princípio (as garrafas eram todas lacradas com lacre de cera vermelha
derretida), mas o diabo cheio de razão e tentação venceu e ele, descobrindo a
garrafa aberta, deu a primeira bicadinha.

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Mas não é que o Capeta tinha razão de sobra? O vinho era a delícia das delícias!
Buquê dos buquês! E a partir de então a hora do sermão deixou de ser aquela
angústia para ser ansiosamente aguardada...

No segundo passo o Capeta achou de mostrar onde ficava o pote de hóstias, o


corpo abençoado e bendito de Cristo. E teve o cuidado de dizer no ouvido do
sacristão que não era pecado comer hóstia. Pelo contrário, quem comesse
haveria de ficar sabendo todas as coisas boas e más, como aquela velhíssima
estória da maçã. Ainda mais se fosse aquelas que ainda não tinham sido bentas
e, portanto, ainda não era de verdade o corpo de Cristo.

E afinal, beber aquele vinho puro em jejum num daqueles dias quase o
denunciou num cochilo que deu quando o sermão do Frei Friedrich estava mais
pra reza fúnebre que pra sermão.

Um dia, porém, Frei Friedrich tirou merecidas férias e viajou para Alemanha, sua
terra natal. Deixou como substituto o recém-chegado que mal falava o
português e, por isso mesmo, pronunciava sermões curtos e engrolados.

Numa das missas, vendo que o sacristão, ignorando os pigarros com que ele,
conforme combinado, anunciava ter terminado o sermão, mantinha-se
encerrado lá atrás, o padre acabou rapidamente a missa, abençoou a todos com
um "Vão todos na paz do Senhor" e foi direto pra Sacristia. Foi vergonhoso
flagrar o sacristão tentando tirar meia dúzia de hóstias que, de tão fininhas e
macias, grudaram no céu da boca com firmeza de ostra agarrada na pedra.

O Demo se borrou todo de tanto se rir ao ver o sacristão engasgado com a


paçoca de hóstia incrustada no céu da boca discutindo com o frei alemão num
palavrório que ninguém entendia. O sacristão com a boca cheia de hóstias se
engrolava todo tentando justificar para o frade o que se passava e o frei
tentando desdobrar a língua alemã para transformar num português castiço
aprendido com professores lisboetas e dar o esporro no sacristão.

Quando Frei Friedrich voltou das férias o sacristão foi denunciado e demitido
sumariamente, tendo que abdicar para sempre do hábito vermelho e branco
com o qual fez a primeira comunhão e que o qualificava na conquista perante as
donzelas pálidas que acompanhavam as mães na missa dominical.

Nem é preciso dizer que esse fato lamentável também colaborou para financiar
a passagem do dito cujo direto para os braços do Capiroto, que devia estar se
rolando no chão de tanta coisa boa que acontecia para o seu país...

NOS DIAS DE HOJE EM DIA

1 - Mangue Seco

49
"A noite me surpreende entre as imagens,
prisioneira no álbum de retratos."
Vito Pentagna

A vila de pescadores tinha esse nome não porque fosse tirado de algum
romance, mas porque as areias finas trazidas pelas ventanias constantes (que
penteavam as palmeiras todas numa só direção como que formando uma
cabeleira de estilo afro), avançavam decididamente sobre o manguezal,
sufocando e matando as raízes elevadas dos pés de mangue, que acabavam por
virar um amontoado de bichos pré-históricos que nem mesmo a imaginação
fértil de escultor poderia criar.

A picape resmungou avançando célere pelas ruas desertas da vila. O carburador


soluçava, o cano de descarga tossia, o motor gemia, todo o veículo palpitava a
cadência diferente como se fosse o velho e meigo coração se despedindo
emocionado da paisagem. O sol anoitecia, a viração transformava o que restava
do fulgor numa leve ardência de sangue que se fundia com o horizonte sabe-se
lá em quais lonjuras.

Ele inventava aquela correria de quem finge ter pressa, quem pensa que vai a
algum lugar, obrigando a picape saltitar como peixes nas corredeiras,
levantando da piçarra nua a poeira esbranquiçada que, emaranhada e
confundida com a vasa que vinha da praia, transformava-se numa essência que
rasgava o manguezal e se entranhava na noite, na pele, na roupa, nas almas,
nos cabelos, nas pessoas.

Ligou o rádio do carro esperando sufocar com a música aqueles sons que se
confundiam com os próprios ruídos corporais: era ele mesmo uma coisa
qualquer ambulante e inquieta, cheia de sensações, dores, gemidos. Derrick
Harriott com sua voz exultante reciclava "BE TRUE", reggae da década dos '60
tão antigo como a dor de deixar alguém.

A nuca doeu a dor funda, o braço esquerdo acusou o adormecimento repentino,


o peito espremeu o coração como um tirador de sucos, aflorando as mais
estranhas memórias de enfartos, taquicardias, palpitações, morte, que nem
mesmo toda a medicação prescrita e seguida à risca o poderia salvar.

As luzes do Aeroporto surgiram enfim salvadoras, capazes de evitar o colapso,


como estrelas salvadoras na escuridão do mar dos pescadores e puderam afinal
alavancar com seu farol as asas brilhantes do avião que engoliriam tudo quanto
fosse comoção.

Mangue-Seco
A vila dos pescadores
Mangue-Seco
não tinha esse nome não
Mangue-Seco

50
foi o carinho arrancado
Mangue-Seco
debaixo de muita emoção
Mangue-Seco
se fosse o lugar de verdade
Mangue-Seco
feiticismo de uma localização
Mangue-Seco
seria a mansão de silêncios
Mangue-Seco
palco de faraônica paixão

2 - Cheiro de maresia

"A noite me surpreende entre as imagens, prisioneira no álbum de retratos."


Vito Pentagna

Depois de banhar na cacimba ao jorro que caía da cuia e à luz das estrelas, ela
enrolou o corpo numa canga de estilo rasta e seguiu pra casa. Um passo em
falso foi suficiente para o pé resvalar nos degraus do destino. E ocasionalmente
aparecer algum desconhecido para massagear o pé e ouvir histórias bem
sucedidas e felizes e em troca contar frases de efeito, ilusórias, das muitas que
guardou do ensinamento dos mestres orientais. O resto era teatro de camelô,
luz de boate, música de cantor de bolero, que finge apaixonamento repentino.

Frases que serpenteavam pelo pensamento caminhando pra buscar respostas,


como o farol guia na noite os pescadores. Frases que só tinham alguma valência
para quem precisava, para aquele que, para ouvi-las, silenciava tudo, calava
mesmo os ruídos exteriores, o coral formado pelo som da gritaria, para poder
gravá-las nalgum canto do coração, até da mente. Só assim funcionavam como
frases, senão se transformavam em galhofa de mago.

Depois que o frio da noite cruzou as roupas leves dela arrepiando todo o corpo,
ele teve o jeito muito feminino de acolher o pé debaixo da camisa de malha e
aquecê-lo junto ao peito. O pé criou vida, se mostrou agradecido, acariciou o
tórax, o mamilo direito, deixando os pelos do corpo e todas as coisas mais
eriçadas. Tudo então mudou, tudo então virou brincadeira, tudo então se
transformou numa irmandade cuja união alegre logo se travestiu num tempero
de amor com cheiro-de-peixe assado na brasa.

Na noite escura outra vez o farol girava continuamente a sua luz salva-vidas e
rasgava as latas de cervejas, brindava as taças de vinho, focava o grito
cadenciado e envolvente dos regueiros, amostrando com destaque o jeito
saliente dos passos, as cinturas, os seios, os quadris tirados do ritmo meio
chegados entre a dança-do-ventre e o tambor-de-crioula.

51
Num átimo o cabelo dela voou na noite e ela sumiu como estrela cadente. Nem
ela estava mais ali sentada na cadeira ao lado nem o seu pé precisava mais do
calor do peito dele nem sua fala macia narrava suas necessidades nem precisava
ela mais de ouvir as histórias das mil e uma noites nem seu riso valente e
libertário ecoou numa gargalhada vistosa.

Ela não estava mais ali, ficou somente o cheiro do corpo, ardido como pimenta,
sufocante como o cheiro de amêndoa doce.

Em tudo, em tudo, em tudo


exala o seu peculiar cheiro:
Mesmo num altar sagrado,
na quebrada das ondas,
na areia da praia,
mesmo na distância, mesmo no mar
persiste o sentido perene daquele odor.
Aroma, perfume, fragrância,
essência, olor, cabelos, lábios,
olhos, nariz, seios, umbigo,
em tudo, no ambiente, em tudo,
em tudo exala o cheiro dela.
Na distância, na dormência,
na constância, mesmo nas coxas,
no sexo, mesmo nas nádegas,
sobrevive a percepção eterna do frescor.
A luz insistente do cheiro de maresia
finge demonstrar ao navegante que é
regaço tranqüilo a baía formada
pelas ondas traiçoeiras mas acolhedoras
do delta das tuas coxas.

3 - Óleo de amêndoa doce


"É beijo tudo o que de lábios seja
quanto de lábios lábios se deseja."
Jorge de Sena

O corpo dela reluzia à noite entre os lençóis verdes das ondas do mar. O som
era o mar. O odor era a vasa. O ritmo de vai-e-vem eram as ondas que vinham
parir na areia. E enquanto as nuvens cinzentas sobrevoaram a praia, tudo era
morno e gris. E nenhum dos dois sentiu vontade de saber do sol aparecer para
tirá-los daquele calor.

O cheiro de amêndoa doce guiava o caminhante para a presa favorita. E qual


animal noturno farejava os poros doces e dali tirava sustento para mais um dia.
Nada de pressa, nada de prisão, nada de dominação, a não ser aquela que
liberta e dá asas para voar, como as águias de caça, que vão e vêm ensinadas
por seus mestres-caçadores. O cheiro de amêndoa doce traduzia ao amante a

52
ternura e o contentamento. Antes de ser o agressor era o agredido, antes de ser
o senhor era o escravo, antes de ser o mestre era o aprendiz. E nessa contínua
guerra de carinhos sobreviviam as carícias espontâneas indicando ao
caminhante o caminho do gozo e do prazer. Sempre farol, nunca escuridão.

O cheiro de amêndoa doce tirava o apetite pelas coisas banais e frívolas como o
raro pôr-do-sol qualquer, mesmo que o sol fosse o sol dourado de Van Gogh
sobre o vale de girassóis. E a maré vinha e a maré voltava, surfistas flutuando
sobre as ondas em busca daquela melhor para lançar-se e com ela alcançar as
manobras radicais e o êxtase para o qual está preparado espiritualmente. O
supremo prazer aqui é trazido pelo cheiro de amêndoa doce mesclado ao suor
dos corpos laçados. Aí os corpos de ambos reluziam e tornavam a negrura do
quarto mais claro como se o repentino luar varasse as cortinas e banhasse com
sua luz difusa os surfistas que não precisavam de pranchas, não careciam de
água, não flutuavam sobre ondas verdes nem voavam no sonho de
campeonatos mundiais.

E no entanto, múltiplos, eram tudo isso por conta do cheiro de amêndoa doce
que impregnava todo o ambiente com a mesmíssima intensidade estonteante
de gozo e prazer das tendas de fumadores de haxixe. Quando o tempo se
esqueceu de tudo e se esqueceu até de passar, quando as radiolas de reggae
calaram seus decibéis, quando os tonéis e vidros de óleo de amêndoa doce
esgotaram seus mananciais, quando, até mesmo, as odaliscas deixaram de
colear a dança-do-ventre, ela pegou carona num anjo de aço e atravessou na
noite os cinco mil quilômetros que os separavam, em busca do manancial de
palavras, agora não tão ricas em saberes, já vazia de ilusões, sem nenhuns
poderes de persuasão.

E retornou aos braços de seu verdadeiro amante.

Nada havia mudado o encanto: seus olhos e seus lábios ainda se


compreendiam, mesmo sem palavras e quando seus corpos de novo se uniram
o que estava em jogo não era nada irreal, mas o líquido finíssimo e perfumado
do óleo de amêndoa doce. E de novo buscaram a vila de pescadores para, na
solidão da noite e ao ruído sinfônico das ondas do mar se lascando na areia da
praia, buscar a poesia dos sons emitidos em surdina, dos gemidos que ninguém
entendia, dos violentos arranhões, dos intermináveis beijos que premiavam
roxos medalhões, dos desfalecimentos temerosos que deixavam a nuca doendo
à dor profunda, o braço direito gemendo a dormência demorada, o peito mais
tenso que o rolo de aço comprimido, o pobre coração como britadeira, fazendo
acordar as mais trágicas histórias de taquicardias e palpitações, seguidas de
colapsos fatais que nem mesmo toda a maquinaria cheia de monitores, tubos,
unidades hipermodernas da UTI, poderia prolongar ou salvar esta estranha e
comovida existência, acomodada e pré-programada a viver apenas cinquenta e
sete anos de vida cigana e atribulada.

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É neste exato momento que se inicia a nova história, a linda história de amor,
que por ninguém jamais será contada...

MAIS UM DEDINHO DE PROSA...

“A memória é o único Paraíso do qual não podemos ser expulsos.”


Johann Paul Richter

Péra lá, gente! Antes de dar ponto final na história devo dizer algo sobre o
bairro muito falado nos parágrafos anteriores: o Filipinho. Não vou encher mais
o saco de vocês com minha memória que já falha. Mas se chegamos até aqui, dá
para aturar mais um bocadinho. Apesar de quê esse negócio de lembrar é muito
relativo (obrigado Einstein!). Lendo o livro de memórias nada menos de Carl
Gustav Jung – o papa da psicanálise (depois de Freud, claro), fiquei surpreso
quando logo no início Jung registra a mais antiga lembrança da sua vida.

Num exercício de regressão, Jung conseguiu recuperar – e descrever – a cena


ocorrida num parque arborizado, onde a luz do sol varava a folhagem
incomodando o bebê que estava deitado num carrinho. Era o próprio! Não
obstante ser especialista em análise e psicanálise – ou por isso mesmo – Jung
mostrou que também é escritor e poeta: deixa-se trair com dados e expressões
como “É um belo dia de verão” ou “A capota do carrinho está erguida”,
elementos que a própria idade não permitiria registrar. Mas, enfim, é a
memória – não o cérebro nem a alma – o mistério do homem.

[Eis o texto: “Surge aqui uma lembrança, talvez a mais remota da minha vida e
que, por isso mesmo, não é senão uma vaga impressão: estou deitado num
carrinho de criança à sombra de uma árvore. É um belo dia de verão, céu azul. A
luz dourada do sol brinca através da folhagem verde. A capota do carrinho está
erguida. Acabo de acordar nesta radiante beleza e sinto um bem-estar
indescritível. Vejo o sol cintilante através das folhas e flores das árvores. Tudo é
colorido, esplêndido, magnífico.” C.G Jung “Memórias, sonhos, reflexões”- Nova
Fronteira (RJ)-1975?]

Bom, disse cá com meus botões, se Jung pode eu também posso. Foi em João
Pessoa, onde nasci e saí antes dos dois anos, que achei a minha lembrança mais
antiga: encontrava-me num terreno baldio, embaixo de uma mangueira
brincando. Via nas proximidades minha irmã e uma moça que tomava conta da
gente. Lembrei que fomos à praia de bonde e que houve um incidente: o meu
irmão se perdeu e foi encontrado com a sola dos pés esfolada queimada pela
areia quente. Essa é a única memória que tenho daqueles dias.

Depois, nunca mais voltei a João Pessoa, não conheço minha terra natal Mas
esse é outro prazer que estou guardando para gozar antes de ir desta para outra
melhor...

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Agora vou tentar fazer o mesmo com o bairro do Filipinho, na época um
conjunto residencial mandado construir pelo IAPC, com recursos obtidos da
contribuição dos associados, para os funcionários residirem com as famílias. Isso
sem onerar a Fazenda, os Bancos ou os BNHs da época. As casas tinham
varanda, três quartos, quintal, jardim e eram absolutamente iguais. Eram casas
sólidas, mas com pequeno defeito: eram cobertas com telha de amianto,
definitivamente imprópria, tanto pela matéria com que é feita, quanto por
acumular o calor amazônico que cobre São Luís. Fora isso, eram boas, amplas e
arejadas.

Ocorreu de haver casas sobrando e as demais categorias de funcionalismo


foram contempladas para morar ali. (Lembro, de passagem, que naquele tempo
não havia o famigerado INPS [sucessores e sucedâneos], que, gerido por gente
sem escrúpulo, prejudicou mais de uma geração de brasileiros. Aproveito para
rogar praga: Que todos eles, desde aqueles tempos até o presente – incluindo
FHC e sucessores – ganhem a caldeira mais quente dos infernos!) Mas foi assim
que nasceu o bairro Filipinho. Não me perguntem o porquê do nome. O que
consta – entre as estórias a respeito – é que ali havia a quinta, conhecida como
“Sítio do seu Felipe”, que era chamado carinhosamente de Felipinho pela
vizinhança. Daí...

Além das casas absolutamente iguais, o Filipinho era servido também de prédio
administrativo, escola primária, lojas comerciais, Posto de Saúde e a Capela de
Santa Terezinha, gerida por capuchinhos alemães da Ordem de São Francisco.
Com essa estrutura, rapidamente o bairro criou vida: a escola recebeu
professores, diretoria, os primeiros alunos, nomearam administradores,
funcionários, vigias. As vagas eram geralmente ocupadas pela comunidade, o
centro comercial foi abastecido de Mercearia, Quitanda, Bar Restaurante e
Farmácia. A Capela tinha como padroeira Santa Terezinha, mas o altar de São
Judas Tadeu era o mais frequentado, vai ver porque é o santo dos aflitos e
desesperados. Judas Tadeu sempre foi santo de segunda ordem, porque o seu
nome era associado ao de Judas Iscariotes. Porém falava mais alto o privilégio
que Tadeu tinha em trazer socorro imediato, onde o socorro desapareceu por
completo. E o número de seus fiéis sempre foi grande e crescente.

A Escola e a Administração eram separados fundo a fundo por um terreno que


tinha enormes mangueiras. No tempo da fruta era comum chegar à sala de
manhã e encontrar mangas entre as carteiras. Pelo tipo da fruta, era a manga
que se chama hoje coração de boi... O vento as derrubava e eram tão grandes
que varavam o telhado de amianto e caíam dentro das salas. Outras lembranças
que tenho da Escola:

1) Junto com as coleguinhas iniciei-me na brincadeira de médico-e-paciente e


enfermeira-e-paciente, que até hoje, guardadas as proporções, não deixei
(graças a Deus!);

55
2) Fui injustamente acusado de ter derrubado mangas que provocaram a
quebra de telhas, mas inocentei-me provando que na hora do ocorrido estava
no centro com outro colega;

3) Um dia fui eleito o mais bonito (não sei de quê);

4) Fui o único da turma a passar no Exame de Admissão do Colégio Marista,


graças a uma redação nota 9 ou 9,5 – não lembro (o vírus de escrever já estava
latente);

5) No dia em que o Presidente Getúlio Vargas se suicidou estávamos em aula. A


Diretora entrou, fez o comunicado em lágrimas e dispensou a classe. Fosse por
outro motivo a folga seria recebida com alegria. Mas estavam todos tristes, nas
casas, nas ruas, o País estava triste. Dei a notícia em casa, em primeira mão.
Fora isso, lembro que levei muita porrada de alunos mais fortes. Covardes!
Tentem hoje!

No terreno ao lado da Administração (Rua 1), criou-se um centro recreativo,


com aparelhos de ginástica, a quadra de areia para voleibol e outros esportes
menos votados. Faltava, claro, o campo de futebol, estória que vai contada em
capítulo especial desta emocionante novela. Em resumo, o Filipinho nasceu com
tudo que a comunidade precisa para iniciar a vida, uma convivência. E agora
digam: por que temos inveja dos norte-americanos, de sua organização? O
Brasil é o país do passado, onde tudo dava certo? Mas é o passado que está tão
próximo, que dá vergonha ver como hoje as coisas são feitas.

O bairro era fronteiriço, de um lado, com a Jordoa, do outro, com o Sítio do Leal,
nas proximidades da entrada do Sacavém. Tempos depois o Sítio do Leal
também viraria conjunto residencial. Nos fundos começava o manguezal,
bonito, verde, que atravessava o Bacanga e se estendia até as bandas do
Boqueirão e sempre visitado por garças, guarás e outras aves marinhas. O
mangue era farto também em caranguejo, siri e dava boa pescaria – desculpa
que a criançada tinha para mergulhar nas suas águas lamacentas, mas
saudáveis. Era o nosso Parque Natural. Essa riqueza era explorada por um
curtume, instalado às suas margens, que extraía os pés de mangue para curtir e
dar a cor avermelhada ao couro de boi ali industrializado.

Em princípio o Filipinho era isolado da Av. Getúlio Vargas, por uma cerca de
colunas de concreto e arame farpado, mas tinha três portões grandes, que
davam acesso direto as três ruas principais: Rua 1, Rua 2 e Rua 3. Essas três ruas
seguiam longitudinais até o fim do bairro (às margens do mangue) e eram
cortadas por várias outras ruas, formando grandes quarteirões. Os portões
eram fechados à noite e durante toda a madrugada se ouvia o apito estridente
dos vigias, que davam ronda em todo o bairro até de manhã. É interessante,
porque debaixo desse manto protetor – e também devido ao calor – a maioria
dos moradores moravam de portas e janelas abertas. Por outro lado, essa
facilidade deu margem a que ocorressem grandes aventuras amorosas, que

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corriam em surdina, de boca em boca, tornando a vida do lugarejo mais
emocionante...

Mas o grande parque natural do Filipinho era o terreno baldio, de formação


irregular, do qual se destacava o enorme grotão, logo apelidado de Covão. Era
de boa extensão, bem arborizado e também ia desaguar nos costados do
manguezal. Ali havia vegetação nativa, com muitas frutas silvestres: goiaba,
manga, pitomba, juçara, araticum, pupunha, cajazinho, abiu, pupunha. Mas a
mais saborosa de todas era a ingazeira, enorme árvore, copada, dava sombra
vastíssima, de cuja raiz brotava a nascente de águas limpíssimas. Desculpem
todos os superlativos, mas era assim mesmo. Sentado ali, nas tardes quentes,
comia bagos e mais bagos de ingá, me deliciando com a polpa branca, macia,
cremosa, de sabor agridoce, que me era presenteada, dádiva primorosa da
natureza.

A estória do Covão também está ilustrada em capítulo especial. Notem que é o


registro do aproveitamento harmonioso de um templo natural, que não
destruiu a beleza em volta. À exceção do campinho de futebol, o grotão ficou
perfeito em sua natureza. Só não conto que tempos depois os sem-teto – dizem
que açodados pelos padres – invadiram o Covão e construíram ali uma favela
que deram o nome de Redenção. A história trágica das favelas se conhece pelo
noticiário vasto produzido nas cidades grandes: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte. Vendo as casas construídas nas áreas nobres de São Luís (pensei que
fosse clube ou hotel, de tão grandes), compreende-se a razão das favelas. Num
terreno daqueles dá para construir vários conjuntos residenciais. Cada casa
construída em terreno do tamanho de campo de futebol, é mais um tijolinho
para erguer barraco nas favelas. Não é só no Brasil: na Venezuela, Chile,
Argentina, só para falar na nossa latinoamerica, a favela é uma praga mandada
por Deus para castigar os super-ricos, os capitalistas, os poderosos. Igual às sete
pragas do Egito, à peste bubônica, à gripe espanhola, etc. E novas pragas virão...

Poderia (e deveria), abrir o espaço para falar também daqueles que dividiram o
bairro do Filipinho comigo, nossas vidas se cruzaram em várias ocasiões. Ainda
hoje alguns cabeça-duras insistem em promover reuniões para lembrar aqueles
tempos centrados nos anos 60. Vivi no Filipinho de 1950 ou 1951 (o bairro não
havia sido inaugurado oficialmente), até 1963 – ocasião da morte do velho João
Rovedo – quando fui, primeiro para o Paraná, depois para o Rio de Janeiro. Mas
por algum motivo que desconheço contei mais os fatos do que as personagens.
Ademais, são muitos os colegas e amigos que passaram, passaram...

E a maioria já não está em São Luís, nem nesta terra. Foram viver em outras
cidades, morreram, estão por aí. Alguns encontrei no Rio de Janeiro, geralmente
encontros tristes, rápidos, sem consistência. Todos estávamos lutando pela
sobrevivência, alguns com filhos e esposa para sustentar, outros com perdas
familiares, enfim, cada um com seu drama pessoal, intransferível.

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Temos a provinciana vergonha de tudo inata em nós. Por isso não dividimos
nossos problemas. Como diz o ditado: “Por fora, bela viola. Por dentro,
molambo só.” De quem herdamos essa praga?

Sinceramente prefiro ir encontrando-os aqui e além, esbarrando nas ruas, tendo


notícia por um e outro que ainda está vivo. O referencial que eu tinha das
pessoas do Filipinho – mortas e vivas – era Valdir Pereira, mais conhecido como
Ivon Curi, pela semelhança física. Valdir foi o primeiro amigo do Filipinho. Uma
amizade que o tempo se encarregou de consolidar e por fim me trouxe muito
orgulho. Éramos simplesmente mais que irmãos. Muito mais: era caso de amor,
enfim, coisa assim que não tem explicação. Acompanhei-o em todos os dramas:
amorosos, familiares, de consciência. Testemunhei também sua alegria,
felicidade, companheirismo. Por seu lado, ele também me ajudou a me manter
vivo, para contar esta estória. Nunca faltamos ao outro.

Nos tempos de dureza, dávamos memoráveis facadas no outro.

Acompanhei Valdir durante a doença e morte do seu pai, João Pereira, Oficial da
Marinha, Capitão dos Portos de Cururupu, falecido no Hospital da Marinha na
Praça XV de Novembro. Sabia muito a História do Brasil.

Ficávamos – eu e João Pereira – horas conversando, tomando uísque na varanda


da casa da Rua 13, ocasião que conheci o esquerdismo, acabando por me
subverter ao janguismo. Vivi as doenças e enfartes de Valdir, que ao fim tiraram
a vida dele. Por fim vi o drama de Dona Maria, a mãe, que sobreviveu ao marido
e ao filho Valdir, mas adoeceu no Rio e faleceu em Santa Inês, por graça da
sobrinha Dora, que a queria muito. Para não deixar este parágrafo mais triste,
lembro que depois da morte do pai, ao providenciar os papéis para regularizar a
pensão da viúva, Valdir descobriu que não era filho único: o velho João Pereira
tinha mais três filhas morenas e bonitas em São Luís. Valdir, é claro, ficou
contentíssimo em ganhar tantas irmãs de supetão.

Não era mais filho único, um dos tormentos da existência dele.

Valdir veio para o Rio de Janeiro antes de mim. Sempre teve abertas as portas
da sua casa a qualquer maranhense que aqui chegasse. Quando cheguei não foi
diferente. Juntamos, as casas e as famílias, em comilanças memoráveis. Acresce
que tínhamos grandes amizades cariocas, turma do violão e da seresta, tire uma
ideia do que foi tudo isso. Esse Valdir é que me falava das pessoas. Enquanto
tenho enormes dificuldades em relembrá-las, o Valdir lembrava de todos e
atualizava as notícias, boas e más. Em matéria de gente e nome, Valdir era a
enciclopédia. Agora não o tenho mais para me lembrar das pessoas e ficou
difícil. Ademais, pela primeira vez na vida fiquei de mal com Valdir: o sacana se
foi de repente, sem prévio aviso, sem pedir licença. Foi antes do combinado.
Fiquei puto. Essa ele me paga!

E como nos filmes de Hollywood, chegamos ao

58
*THEEND*

“Entrou pelo cu do pinto,


saiu pelo cu do pato,
quem quiser que conte outra,
que já contei mais de quatro!”

www.poeteiro.com
59
DADOS BIOGRÁFICOS

Nascido no ano de 1942, o escritor e poeta


Salomão Rovedo tem sua formação cultural em
São Luis (MA). Reside atualmente no Rio de
Janeiro.

Participou de movimentos poéticos e políticos


nas décadas 60 a 80, tempos do mimeógrafo, das
bancas na Cinelândia, das manifestações em
teatros, bares, praias e espaços públicos.

Textos publicados: Abertura Poética (Antologia),


Walmir Ayala/César de Araújo (1975); Tributo (Poesia), edição do Autor (1980);
12 Poetas Alternativos (Antologia), Leila Míccolis/Tanussi Cardoso (1981); Chuva
Fina (Antologia), Leila Míccolis/Tanussi Cardoso-Trotte (1982); Folguedos, com
Xilogravuras de Marcelo Soares (1983); Erótica, com Xilogravuras de Marcelo
Soares (1984); 7 Canções (1987).

E-books do escritor: A Ilha, Chiara, Gardênia (Novelas); A apaixonada de


Beethoven, A estrela ambulante , Arte de criar periquitos, O breve reinado das
donzelas , O sonhador, Sonja Sonrisal (Contos); 3 x Gullar, Leituras & escrituras,
O cometa e os cantadores / Orígenes Lessa personagem de cordel, Poesia de
cordel: o poeta é sua essência, Quilombo, um auto de sangue, Viagem em torno
de Cervantes (Ensaios); 20 Poemas pornos, 4 Quartetos para a amada cidade de
São Luis, 6 Rocks matutos, 7 Canções, Amaricanto, Amor a São Luís e Ódio, Anjo
pornô, Bluesia, Caderno elementar, Erótica (com xilogravuras de Marcelo
Soares), Espelho de Vênus, Glosas Escabrosas (com xilogravuras de Marcelo
Soares), Mel, Pobres cantares, Porca elegia, Sentimental, Suíte Picassso (Poesia);
Cervantes, Quixote e outras e-crônicas do nosso tempo, Diários do Facebook,
Escritos mofados (Crônicas); Cancioneiro de Upsala (Tradução e notas), Meu
caderno de Sylvia Plath (Cortes e recortes), Os sonetos de Abgar Renault
(Antologia e ensaios), Stefan Zweig - Pensamentos e perfis (Seleção e ensaios);
Inéditos: Geleia de rosas para Hitler (Novela), Stefan Zweig - A vida repartida
(Ensaio).

E-books de “Sá de João Pessoa” (Pseudônimo): Antologia de Cordel 1, Antologia


de Cordel 2, Antologia de Cordel 3, Antologia de Cordel 4, Macunaíma em
cordel, Por onde andou o cordel? Folhetos de cordel; jornalzinho de poesia
Poe/r/ta.

Colaboração esparsa: Poema Convidado (USA), La Bicicleta (Chile), Poética


(Uruguai), Alén (Espanha), Jaque (Espanha), Ajedrez 2000 (Espanha), O Imparcial
(MA), Jornal do Dia (MA), Jornal do Povo (MA), Jornal Pequeno (MA), A Toca do
(Meu) Poeta (PB), Jornal de Debates (RJ), Opinião (RJ), O Galo (RN), Jornal do
País (RJ), Leitura (SP), Diário de Corumbá (MS) – e outras ovelhas desgarradas.

E-books disponíveis em: www.dominiopublico.gov.br - www.projetolivrolivre.com


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