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(Artigo) CHAGAS, Fábio André G. Das. Comunistas e Trabalhistas

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revista cantareira criada e mantida por alunos da área de História da UFF

Comunistas e trabalhistas no
cenário político brasileiro dos anos
1960:
notas sobre o trânsito entre culturas
políticas
Fábio André G. das Chagas

Resumo:
Apresentaremos neste artigo a possibilidade de trabalhar com categorias conceituais do âmbito cultural da
história para o seu respectivo domínio político. Embora as disputas em torno das comprovações acerca da
participação de atores sociais não comunistas no cenário político compreendido entre 1961 até meados dos
1970 não presidam nosso interesse - mas nem por isso deixemos de excursionar neste terreno - trabalharemos
aqui com vistas a lançar luz sobre o trânsito entre culturas políticas no campo das esquerdas, mais
especificamente entre trabalhistas e comunistas, no decurso de fins dos anos 1950 e ao longo da década de 60
no Brasil.

Palavras chave: cultura política; esquerdas; transmutação conceitual.

O período compreendido entre os anos 1961 e 1964 tem sido revisitado e espessamente debatido, talvez
principalmente, porque neste ano de 2004, a empreitada golpista civil-militar de 1º de abril de 1964 tenha
completado quatro décadas desde sua irrupção. À imaginação de alguns, o período em pauta estaria como que
em vias de se “repetir”, guardadas as devidas proporções, em face da ascensão de parte das esquerdas ao
Palácio do Planalto. Este, e certamente outros aspectos suscitaram uma retomada das atenções de
historiadores e cientistas sociais àqueles dramáticos anos em que amplos setores da sociedade brasileira se
1
politizaram e conseqüentemente ocuparam o centro da arena política.
A historiografia sobre o período acertadamente assinala que naquele período inicia-se um processo de
2
fragmentação das esquerdas que alcançaria seu clímax a partir de fins de 1967. Todavia, em face da
agudização das relações de força, que antagoniza campos políticos e suprime, ainda que temporariamente, as
crispações entre as mais diversas correntes das esquerdas e das direitas, os anos entre 1961 e 1964
comportaram, deste modo, um processo de aproximação entre setores das esquerdas, como fora o caso dos
comunistas e dos trabalhistas. Esta constatação estende-se à análise sobre as articulações das direitas no
3
mesmo período.
No leque das questões suscitadas a partir deste novo retorno a um passado recente, destaca-se a
reflexão em acerca dos limites do discurso sustentado pelas esquerdas de ontem e de hoje, concernentes à
atitude unilateralmente golpista de quem empalmou o poder em 1964. De outro modo, tem-se buscado criticar
objetivamente e à luz das comprovações factuais, a memória construída ao longo dos anos que situa as

1
Muito elucidativa é obra de Moniz Bandeira sobre a ascensão dos movimentos sociais à direita e à esquerda naquele
período. BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil, 1961-1964. 7ª ed. RJ: Ed. Revan:
Brasília: EdUNB, 2001.
2
Em 1961 forma-se o Organização Revolucionária Marxista Política Operária (ORM-POLOP); em 1962 constituem-se a
Ação Popular (AP) e o Partido Comunista do Brasil (PC do B). Além de pequenos agrupamentos como o dos trotskistas,
deve-se lembrar a ação das Ligas Camponesas e dos chamados de Grupos de Onze, ligados à Leonel Brizola. Citamos o
ano de 1967 em face da realização do VI Congresso do PCB a partido o qual ocorre um racha colossal que dará início à um
processo de fragmentação das esquerdas, sobretudo provenientes do PCB. Da POLOP também ocorrerá um racha em 1967
do qual surgirão as futuras organizações Comandos de Libertação Nacional (COLINA ) e a Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR) em São Paulo.
3
O volumoso trabalho de René Dreifuss apresenta evidências e provas suficientemente claras acerca da aproximação entre
distintos setores das direitas, mas também todo o movimento conspiratório em nível nacional para derrubar o governo João
Goulart. Cf. DREIFUSS, René. 1964: A Conquista do Estado: Ação Política, Poder e Golpe de Classe. Petrópolis: Vozes,
1981.

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direitas na trincheira do golpismo e as esquerdas no front de defesa da democracia. Na esteira dos temas
debatidos, merece destaque também a reflexão sobre um leque de possibilidades maior do que a alternativa
putschista à direita ou à esquerda. Neste caso, chamamos a atenção para o trabalho de Argelina de
5
Figueiredo.
O propósito que preside não constitui uma tentativa de diálogo direto com as questões acima
assinaladas, mas tão somente apresentar um ângulo de inteligibilidade para o processo de aproximação entre
as esquerdas, mais especificamente, entre trabalhistas e comunistas. Para tanto, no que segue, procederemos
à apropriação de categorias usualmente trabalhadas sob “jurisdição cultural” para refletir em torno de um
âmbito predominantemente político. De passagem, cumpre-nos observar que toda reflexão que se pretenda
original não está isenta dos riscos metodológicos, daí que, em se tratando do cruzamento de conceitos ou da
apropriação seletiva destes, os riscos se ampliam em uma progressão geométrica, podendo resultar dessa
aventura um ecletismo incoerente.
A análise que propomos talvez se opere satisfatoriamente no interior das fronteiras conceituais da
história política, de maneira que, para isso, permaneçamos sem indagar, afinal de contas, quais são as
fronteiras daquela história e quem as define. Ademais, estaríamos confirmando, ainda uma vez, a inelutável
força da fragmentação das ciências humanas de modo geral, e dos domínios da história, de modo particular.
Na pesquisa que atualmente desenvolvemos, temos sustentado hipoteticamente a incidência de um
matiz trabalhista de corte radical no movimento de luta armada dos anos de 1960 e 70 no estado do Rio
Grande do Sul o que, se comprovado, poderá conferir, juntamente com outros fatores, um caráter original e
6
particular à guerra revolucionária em terras gaúchas. Entretanto, acreditamos que comprovar tal hipótese
implica alçar para o trabalho explicações históricas, como, por exemplo, em torno do cruzamento entre culturas
7
políticas distintas - e concorrentes em algumas conjunturas – que possibilitou a militantes de diferentes
correntes ideológicas lutar lado a lado nas duas vagas revolucionárias dos anos de 1960 e 1970.8 Referimo-
nos ao fato de que entre 1961 e 1974, trabalhadores rurais reunidos sob as Ligas Camponesas, parte dos
trabalhistas em processo de radicalização em face do contexto, comunistas e ex-militares nacionalistas,
compartilharam um projeto de transformação social no Brasil pela via da ruptura, pela via armada ou, como
preferem alguns, pela via revolucionária.
Com vistas a explicar o trânsito entre culturas políticas no conturbado cenário político que marcou
indelevelmente o período compreendido entre fins dos anos 1950 até fins dos 60, propomos uma transmutação
conceitual, de sorte que possamos, como já foi mencionado, utilizar algumas noções trabalhadas pela história
cultural para explicar fenômenos de natureza política. Destarte, a primeira noção que içamos é a de identidade
comportando a significação de uma “interdependência entre condições objetivas de vida e experiências

4
Em um evento recente, dois historiadores, Daniel Aarão Reis Filho e Jorge Ferreira, embora comportando algumas
divergências, se posicionaram no sentido da desconstrução da memória democrática das esquerdas, apontando que estas
últimas, e a sociedade como um todo, não viam na democracia um horizonte de realização. Donde o golpe pelas esquerdas
também prefigurava nos anos 1961-64. Referimo-nos ao “SEMINÁRIO 40 ANOS DO GOLPE: 1964-2004” realizado
entre os dias 22 e 26 de março e promovido pelo Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), o Centro de
Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV), a Universidade Federal Fluminense (UFF)
e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
5
Aí se encontra o trabalho de Argelina Figueiredo que aponta para a existência de margens de negociações possíveis e não
golpistas naquele contexto ideologicamente acirrado.
6
O trabalho consiste numa pesquisa em nível de doutorado junto à Universidade Federal Fluminense sob a orientação do
professor Dr. Daniel Aarão Reis Filho. O trabalho versa sobre a guerra revolucionária no RS nos anos de 1960 e 1970.
7
Reivindicamos a noção de cultura política entendida como o “conjunto de atitudes, crenças e sentimentos que dão origem
e significação a um processo político, pondo em evidência as regras e pressupostos nos quais se baseia o comportamento de
seus atores”. Cf. KUSCHNIR, Carina & CARNEIRO, Leandro Piquet. “As dimensões subjetivas da política: cultura
política e antropologia” In: Revista Estudos Históricos. n° 24, Rio de Janeiro: 1999/2, p. 227.
8
Defendemos uma interpretação que pensa o assunto enquanto um movimento de luta armada dos anos de 1960 e 70 e não
apenas como um movimento de luta armada contra a ditadura militar. Sabidamente, o movimento guerrilheiro já vinha
sendo preparado em um período anterior a março de 1964, aspecto já ressaltado na historiografia do tema. Daí nosso
intento de cristalizar uma concepção que aponte para a existência de duas vagas revolucionárias encetadas e dirigidas por
culturas políticas diferentes. A primeira vaga, transcorrida entre 1961 e 1967 e dirigida por uma cultura política
nacionalista revolucionária, comportando atores políticos e locus de ação diversos e ainda em momentos não simultâneos.
Trata-se do empreendimento guerrilheiro das Ligas Camponesas entre 1961 e 1964 e das primeiras tentativas de luta
armada lideradas por Brizola, contra a ditadura militar. A segunda vaga revolucionária fora deflagrada e dirigida por uma
cultura política comunista a partir de 1968. Esta reflexão ainda está em curso e constituirá um dos pilares centrais de nossa
tese na medida em que intentamos construir uma nova inteligibilidade sobre o tema por meio de um ângulo de visão
distinto dos já existentes nos atuais modelos interpretativos.

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subjetivas, o compartilhamento de convenções e valores, de modos de pensar, de sentir e de agir mais ou


9
menos formalizados, que distinguem e produzem a integração de uma comunidade”.
Defendemos que o epicentro para o qual convergiram diversos fatores explicativos ao cruzamento ou
trânsito que mencionamos fora a constituição de uma identidade política que se forjou no período
compreendido entre 1945 até fins dos anos de 1960. Daí que algumas observações sobre o contexto em que
se forjou essa identidade ajudarão a construir mais seguramente uma explicação histórica para este fenômeno
político que suscitou a emergência de um campo gravitacional capaz de atrair espectros políticos distintos e,
por vezes, concorrentes.
Em termos internacionais o ano de 1945 assinala o fim da Segunda Guerra Mundial com a derrota da
máquina de guerra nazista e de seus aliados italianos e japoneses. A vitória aliada sobre governos de tipo
totalitário inaugurou um novo tempo, com tintas democratizantes, em quase todas as partes do mundo.
Entretanto, este mesmo novo tempo inaugurou também a disputa entre EUA e União Soviética pela direção
política mundial que se cristalizou naquilo que a historiografia consagrou como Guerra Fria. Observando
atentamente o correlato nacional a este contexto, Lucília Neves ressaltou que
“A conjuntura delimitada pelos anos 40 e início dos anos 60 foi
caracterizada pela crença de expressivos segmentos da sociedade civil
brasileira de que a modernidade só seria alcançada se apoiada em um
programa governamental sustentado pela industrialização, por políticas
sociais distributivistas e por efetiva defesa do patrimônio econômico e
cultural do país. Tal projeto não era unívoco nem homogêneo na sua
concepção. Era, na verdade, matizado por proposições específicas de
diferentes partidos políticos e organizações da sociedade civil”.10

Sobre a conjuntura em questão, podemos identificar a existência de fatores conjunturais que, por sua
força, promoveram no seio das esquerdas o compartilhamento de referências ou valores, sobre os quais, cada
cultura política em cena naquele período produziu sua respectiva significação. Para efeito de ilustração
destacamos a referência nacionalista que inegavelmente fora apropriada de maneira distinta e até divergente
por trabalhistas, comunistas e os mais diversos matizes nacionalistas, não obstante as entorses conservadoras
do nacionalismo promovidas por parte das direitas. No curso dessas observações, cumpre-nos acrescentar
outro fator explicativo a fim de lançar luz sobre o processo de constituição de uma identidade política entre as
esquerdas no contexto que temos trabalhado. Trata-se do projeto ou programa nacional-estatista.
De acordo com Daniel Aarão Reis Filho o projeto nacional-estatista esboçou-se no período do Estado
Novo e percorreu vários anos até o desfecho de 1964. Com poucas tintas, no centro deste projeto figurava a
defesa de um Estado forte e interventor, capaz de promover o desenvolvimento econômico autônomo e a
justiça social através da regulação do mercado e de um vigoroso planejamento. Ao fim de tudo, intentava-se
11
construir uma nação poderosa, próspera e sem grandes diferenças sociais.
Em contraposição ao projeto nacional-estatista, o mesmo autor observa a existência de um outro projeto,
correlato e antagonista, o qual denominou internacionalista-liberal.. Este, por sua vez, consistia num projeto ou
programa sobejamente excludente cuja concepção econômica ancorava-se no atrelamento da economia
brasileira à economia dos países capitalistas mais desenvolvidos, sobretudo à dos Estados Unidos. Sua índole
anticomunista e seu desdém para com as iniqüidades sociais do país eram marcantes. Por fim, honrando as
tradições das classes dominantes no Brasil, os defensores deste projeto nutriam um espesso horror a
possibilidade de participação popular junto ao processo decisório próprio do jogo político.
Daniel Reis vai ainda mais longe e observa que o projeto ou o programa nacional-estatista mobilizou
amplos setores da sociedade e atingiu igualmente parcelas das esquerdas brasileiras de maneira que hoje não
é possível recuperar o legado daquela experiência sem considerar a presença de duas fortes tradições, a
comunista e a trabalhista que “se impregnaram todo o período, ora competindo entre si, ora compondo
12
alianças”.
Tanto comunistas como trabalhistas e outros setores das esquerdas submergiram no programa nacional-
estatista, conquanto tenham mantido as especificidades das respectivas culturas políticas. Do lado dos
comunistas não é difícil explicar seu ingresso naquele projeto, pois sua filiação a certa definição estratégica em

9
AZEVEDO, Cecília. “Identidades Compartilhadas: a identidade nacional em questão” In: ABREU, Marta e SOIHET,
Rachel (orgs.) Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologias. RJ: casa da Palavra, 2003, p. 43.
10
NEVES, Lucília de Almeida. “Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil (1945-1964)”
In: FERREIRA, Jorge (Org.) O populismo e sua história. RJ: Ed. Civilização Brasileira, 2001, p. 172.
11
REIS FILHO, Daniel Aarão. “Entre reforma e revolução: a trajetória do Partido Comunista no Brasil entre 1934 e 1964
In: RIDENTI, Marcelo e REIS FILHO, Daniel Aarão (orgs) História do marxismo no Brasil: partidos e organizações dos
anos 20 aos 60. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002, v. 5, p. 93.
12
REIS FILHO, Daniel Aarão. “O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita” In:
FERREIRA, Jorge (Org.), op, cit., p. 374.

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nível internacional permitiu caracterizar o período como o da possibilidade de vivenciar a etapa democrático-
burguesa da revolução, conforme postulava o movimento comunista internacional àquele tempo.
Em busca de ampliações ao campo de visibilidade que aqui tentamos lavrar, elegemos um terceiro fator
explicativo ao processo de aproximação, disputa e compartilhamento de referências entre comunistas,
trabalhistas e outros nacionalistas. Referimo-nos a vitoriosa Revolução Cubana de 1959.
A experiência revolucionária de Cuba incitou tanto os comunistas quanto os trabalhistas, e a outros
nacionalistas, a modificaram suas posições em relação àquela revolução pelo fato dela ter percorrido o
caminho do nacionalismo para o socialismo em um intervalo de tempo demasiadamente curto. A trajetória da
revolução cubana, em seus primeiros anos, pareceu assim recuperar a idéia da revolução permanente
13
formulada por Leon Trotsky e igualmente figurar como a revolução nacional que avançou para o socialismo.
A rápida passagem do nacionalismo para o socialismo dissolveu a desconfiança dos comunistas quanto
aos destinos da revolução na ilha e chancelou a possibilidade uma revolução socialista iniciar-se por uma
revolução nacional. Por outro lado, abriu os corações e as mentes dos nacionalistas para a perspectiva do
socialismo como o ponto de chegada da revolução nacional. Neste sentido é que nos parece possível entender
como a Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (ORM-POLOP) se abriu para o nacionalismo
enquanto que Leonel Brizola evoluiu para uma postura mais claramente anticapitalista, radicalizando ainda
mais os trabalhistas e facilitando o trânsito daqueles para as organizações comunistas que levariam a cabo a
14
luta armada a partir do ano de 1968.
Marcelo Ridenti, estudioso das esquerdas brasileiras do período em questão agrega elementos para
pensar sobre o trânsito entre culturas políticas no período quando elege o romantismo revolucionário ao posto
de chave explicativa para a passagem do cristianismo social para o guevarismo e para o maoísmo. Não
obstante o mérito de Ridenti, partilhamos da idéia que o romantismo revolucionário parece constituir um
elemento comum a quase totalidade das organizações do período, aspecto que retira a particularidade da
organização Ação Popular.
Os exemplos acerca da manutenção das especificidades, mas também das idas e vindas da aliança
entre comunistas e trabalhistas abundam no universo bibliográfico que se dedica ao estudo sobre o período.
João Quartim de Moraes quando das suas observações acerca do processo de radicalização dos comunistas
brasileiros em face da ilegalidade a que foram empurrados em 1947 e do contexto internacional marcado por
vitórias socialistas de cunho militar afirma que
“Foi este o contexto em que se operou a guinada à esquerda do PCB,
programaticamente assumida no Manifesto de Janeiro de 1948 e levada
ao extremo no de agosto de 1950, ambos assinados por Prestes [...]
claro sintoma deste estado de espírito foi o tom agressivamente
extremista adotado então pelos porta vozes do PCB. Leandro Konder
registrou algumas das mais expressivas declarações e tomadas de
posição neste sentido. Em artigo publicado na revista Divulgação
Marxista de fevereiro de 1947, Prestes classificou o PTB como
‘organização política com que o sr. Getúlio Vargas pretende defender
[...] o predomínio dos grandes proprietários latifundiários” 15

Passados bem poucos anos, o Partido Comunista do Brasil (PCB) mudaria radicalmente sua posição em
relação aos trabalhistas, sobretudo em face da ofensiva direitista capitaneada pela União Democrática
Nacional (UDN) sob a bandeira do anti-getulismo. Já em 1953 o PCB adotara uma linha política sindical em
que se aproximava do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), e em 1954 o jornal Voz Operária, no dia dois de
outubro, veiculou um manifesto em que Prestes conclamava tanto comunistas quanto trabalhistas a lutarem
ombro a ombro contra o inimigo comum.

13
A teoria da revolução permanente, cuja origem remonta a 1906, mas se cristaliza no livro Balanço e Perspectivas, escrito
por Trotsky, esgrimia a perspectiva da revolução por etapas e a do socialismo num só país. Em poucas tintas aquela
propunha uma ruptura com o economicismo e com o materialismo vulgar, evocando a totalidade como horizonte da análise.
Postulava que a burguesia russa não seria como a francesa pelo medo ao movimento operário, o que a levou posições
conservadoras. Dois aspectos se exigiam permanentes: o governo sob hegemonia operária que avançaria no âmbito
anticapitalista e o poder operário na Rússia que se expandiria pela Europa. Por fim, do ponto de vista prático, o
cumprimento das tarefas democrático-nacionais deveria ocorrer sob hegemonia do operariado.
14
A Organização Revolucionária Marxista - Política Operária (ORM-POLOP), ainda em seu processo de formação recebeu
um afluxo de ex-militantes do PTB que se radicalizavam na conjuntura política de 1961-64. O estudo do perfil social e
profissional de organizações como a Vanguarda Popular revolucionária (VPR), os Comando de Libertação Nacional
(COLINA) e o Movimento Armado de Resistência (MAR) atesta a presença de ex-militares nacionalistas ligados a Brizola.
15
MORAES, João Quartim de. “Concepções comunistas do Brasil democrático: esperanças e crispações” In: MORAES,
João Quartim de. História do marxismo no Brasil: Teorias.Interpretações. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1998. v. 3, p.
179.

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O depoimento de João Batista Aveline - militante comunista e diretor sindical do jornal gaúcho Úlima
Hora à época da vitória de Brizola nas eleições de 1958 para o governo do estado do Rio Grande do Sul -
reitera o que temos observado acerca do distanciamento que culturas políticas mantinham, não obstante os
laços identitários que se constituíram. Atuante na epopéia da “Cadeia da Legalidade” em 1961 naquele estado,
afirma João Aveline:
“Leonel Brizola repudiou os nossos votos [...] Vencedor, recebeu várias
manifestações de felicitação e regozijo pela sua vitória. Entre tais
manifestações, estava o telegrama da direção do PCB, que o novo
governador devolveu solenemente. Na resposta ao repúdio, os
comunistas disseram que seus votos independiam da vontade de
Leonel Brizola, e que era do interesse do povo gaúcho a sua eleição,
isto porque ele, como político, estava situado dentro de um esquema e
forças que era o que mais convinha aos interesses do Estado [...]
Mesmo com o repúdio e a indelicadeza da devolução do telegrama de
felicitações, não houve nenhum motivo para arrependimento pelo voto
dado ao governador eleito, pelo contrário, o próprio Leonel Brizola tratou
de provar que o voto comunista tinha sido correto, pelo governo que
realizou e pelos seus resultados”.16

Conquanto os fatores explicativos apresentados até aqui consubstanciem nossas assertivas sobre o
trânsito entre culturas políticas no período, arriscaremos uma nova incursão à miríade de noções trabalhadas
no âmbito cultural da história, desta vez, evocando o antropólogo Fredrik Barth, pelo fato deste autor sustentar
que as identidades, coletivas ou individuais, não permanecem isoladas, mas em constantes trocas com outras
identidades e culturais. A fim de corroborar com tais assertivas, içamos as considerações de Cecília de
Azevedo que reitera esta concepção quando sustenta que
“A identidade de um grupo não está dada de uma vez por todas por
uma determinada posição que seus membros ocupam num grupo
social, profissional ou organização de qualquer outra natureza. Ela é
constituída em função de acontecimentos que a nutrem, de
circunstâncias que lhe conferem forma. Assim, um mesmo grupo pode
passar por diversas configurações de identidade nos diferentes
momentos de sua história, de acordo com os recursos que lhe são
oferecidos pelas situações concretas por que passam”.17

Na mesma direção, o historiador do tempo presente - vinculado ao movimento de renovação da história


política irradiado desde a França a partir dos anos de 1970 - Serge Bernstein observa que as culturas políticas,
longe de permanecerem imóveis, evoluem e se transformam à luz das relações com outras culturas políticas.
Segundo Bernstein
“A cultura política assim elaborada e difundida, à escala das gerações,
não é de forma alguma um fenômeno imóvel. É um corpo vivo que
continua a evoluir, que se alimenta, se enriquece com múltiplas
contribuições, as das outras culturas políticas quando elas parecem
trazer boas respostas aos problemas do momento, os da evolução da
conjuntura que inflecte as idéias e os temas, não podendo nenhuma
cultura política sobreviver a prazo a uma contradição demasiado forte
com as realidades”.18

A idéia que as identidades se constituem em função de outras de mesmo tipo, irrefreavelmente exige
que pensemos sobre o processo de demarcação de fronteiras culturais e identitárias.
Destarte, queremos defender que culturas políticas de esquerda, distintas e concorrentes, embora
tenham mantido suas especificidades e divergências, compartilharam referências e projetos gravitando em
torno de uma identidade política.. Donde se observa a possibilidade de os comunistas atuarem em movimentos
preparatórios de luta armada entre 1961 e 67 dirigidos por uma cultura política nacionalista revolucionária e

16
FELIZARDO, Joaquim et al. Legalidade - 25 anos. A resistência popular que levou Jango ao poder. Porto Alegre,
Redactor, 1986, pp. 101-102.
17
AZEVEDO, op. cit, p. 43.
18
BERNSTEIN, Serge. “A Cultura Política” In SIRINELLI, Jean-François &RIOUX, Jean-Pierre. Para uma história
cultural.. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 357.

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também a trabalhistas e outros nacionalistas a participarem da luta armada deflagrada e dirigida, a partir de
1968, por uma cultura política comunista.
Se nos vale a “heresia metodológica”, prosseguiremos neste caminho tentando evoluir para uma questão
que se desdobra a partir da reflexão que sugerimos acima. Como e porque o programa nacional-estatista e
outros valores foram filtrados diferentemente por culturas políticas, cujas mulheres e homens, feitos de carne e
osso, se despojaram da vida para lutar ombro a ombro até a vitória, ou à morte? Por intermédio da noção de
apropriação - atraída para o campo de gravitação da história a partir dos embates conceituais acerca da
definição de cultura popular e circularidade cultural – suscitamos uma chave explicativa.
O historiador italiano Carlo Ginzburg no decurso das suas pesquisas históricas promoveu reflexões em
torno do que poderia definir a cultura enquanto popular e erudita, ou mais propriamente, como se operavam as
influências e reciprocidades entre ambas. Ginzburg, procurando mostrar as relações de classe e o conflito
entre estas no plano cultural, recupera de Mikhail Bakhtin a noção de circularidade cultural.
De passagem, vale observar que Bakhtin em sua busca para compreender a presença de aspectos
culturais não eruditos na produção e no modo de ser de François Rabelais, um literato e médico francês,
encontrou na convivência de Rabelais com transeuntes das praças públicas a satisfação de sua curiosidade.
É deste modo, pois, que a circularidade para Ginzburg informa as trocas culturais entre os grupos
hegemônicos (cultura erudita) e os não hegemônicos (cultura popular), ora operando movimentos de cima para
baixo, ora em movimento inverso. Ressalte-se que as relações não se processam em estado puro, pois de
ambos os pólos processa-se uma filtragem consoante com as respectivas condições de vida e com seus
códigos de valores.
O debate acerca do conceito de cultura popular não preside nosso interesse sobre a noção de
circularidade cultural. Em verdade, para enriquecer nossa análise, evocamos no âmbito daquela noção o
conceito de apropriação sugerido por Roger Chartier. Para este, a cultura popular e a erudita constituem
fatores pouco discerníveis em face da concepção que sustenta sobre a fluidez das circulações e do
compartilhamento de certas práticas. Segundo o autor em questão, idéias e valores recebem empregos
populares sem que os sejam em sua origem, e o mesmo vale para o emprego erudito de práticas não
necessariamente oriundas dos grupos sociais eruditos. Donde o historiador da cultura guinda da teoria literária
o conceito de apropriação para apontar o processo de recolha e de usos diferenciados de certos valores e
referências em uma mesma sociedade dividida em classes. A nosso ver, a concepção sobre as práticas de
apropriação cultural sugeridas por Chartier prestam-se para elucidar as distintas significações que cada cultura
política em questão imputou a referenciais compartilhados no período que temos analisado.
Ainda uma vez, como se pode observar, procuramos proceder a uma transmutação conceitual, de uma
“jurisdição” cultural para uma “jurisdição” política. Alguns referenciais e algumas estratégias de ação política
uniram sob um mesmo espectro os trabalhistas radicais, os comunistas e outros nacionalistas. No entanto, tais
referenciais inegavelmente foram ressignificados porque, embora não se tratasse de grupos culturais ou de
classes populares e eruditas, tratava-se de culturas políticas distintas. De modo que o conceito de apropriação
enquanto forma diferenciada de interpretação e significação nos parece válido para pensar sobre o trânsito
entre culturas políticas das esquerdas nos anos de 1960 e 70 no Brasil.
Pelo que expusemos nas linhas acima, acreditamos ter alçado algumas contribuições para descortinar,
por um ângulo de visão ainda pouco explorado - e por isso arriscado e talvez incompleto, algumas questões
sobre a história daquele período. Ademais, sempre será tempo de abrir novas janelas históricas que ventilem
outras inteligibilidades acerca da história política do Brasil.
Identidade política, circularidade cultural, apropriação, nacional-estatismo e revolução cubana. Estes
foram alguns dos conceitos e/ou fatores que elegemos para tentar explicar como e porque culturas políticas
distintas e concorrentes lutaram lado a lado desde quando a correlação de forças no cenário político brasileiro
iniciou uma escalada em fins da década de 1950 - atingindo seu ápice entre os anos de 1961 a 64 - até
meados dos anos de 1970, quando a Guerrilha do Araguaia fora destroçada e junto com ela, o projeto
guerrilheiro daqueles anos.
Concordamos aqui com a afirmativa de que o golpe civil-militar de 1964 não constituíra apenas um
espasmo putchista das direitas em aliança com parte das Forças Armadas, pois parcelas significativas da
sociedade brasileira apoiaram aquele desfecho trágico de 1° de abril de 1964. Donde o desenvolvimento de
uma cultura da participação política no país precisou esperar ainda 21 anos para retomar seu ciclo de
amadurecimento.
Cumpre-nos apontar, em contrapartida, que não é menos verdadeiro que a escalada dos movimentos
sociais entre 1961 e 1964 não fora obra de uma trama insidiosa “comuno-subversiva”, jargão corrente das
direitas da época. É notória a participação de trabalhistas e nacionalistas de diversos matizes atuando no
cenário político em questão e também no período posterior ao golpe, conforme atestam episódios como a
cadeia da legalidade em 1961, as articulações para o desencadeamento da luta armada como a “Guerrilha de

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Uberlândia” e as experiências armadas de 1965 com Jeferson Cardim e da Guerrilha de Caparaó entre 1966
20
e 67.
Vale notar que os episódios elencados, sem exceção, foram levados a cabo por militantes que à época
gravitavam em torno da direção política do ex-governador gaúcho Leonel Brizola, sabidamente um político não-
comunista. Na pesquisa que temos desenvolvido pretendemos ir mais longe a fim de identificar a marca que o
trabalhismo radical impingira à luta armada no estado do Rio Grande do Sul com vistas à confirmação de sua
originalidade e/ou autonomia em relação a outros centros regionais como Rio de Janeiro e São Paulo. Estas
considerações, no entanto, ficarão para uma outra oportunidade, quando das conclusões da mencionada
pesquisa.

Referências bibliográficas

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SOIHET, Rachel (orgs.) Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologias. RJ: casa da Palavra, 2003.

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MORAES, João Quartim de. História do marxismo no Brasil: Teorias.Interpretações. Campinas, SP: Ed. da
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1964)” In: FERREIRA, Jorge (Org.) O populismo e sua história. RJ: Ed. Civilização Brasileira, 2001, p. 172.

19
O levante armado capitaneado por Jeferson Cardime figura como a primeira tentativa de luta contra a ditadura militar
instaurada em 1964. A partir da região Norte do RS, em março de 1965, o ex-sargento da Brigada Militar Alberi Vieira dos
Santos e o coronel do Exército Jefferson Cardim ocuparam a cidade de Três Passos. Com 23 quadros combatentes, os
revolucionários chegaram a Santa Catarina, entretanto, quatro dias depois foram derrotados em seu primeiro e único
combate. Cf. GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas: das Ilusões Perdidas à Luta Armada. 5ª ed., SP: Ática, 1987, p.
134-135.
20
A partir de Montevidéu, no Uruguai, por meio de uma articulação do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR),
fortemente influenciado por Brizola, o professor Bayard Boiteux,, antigo presidente do PSB, e o próprio Leonel Brizola,
buscou-se implantar um foco guerrilheiro no Brasil. Grupos de marinheiros e ex-sargentos no Rio e em São Paulo se
ligaram para irradiar o foco na Serra do Caparaó, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo, mas também no Maranhão
e no Mato Grosso. Em fins de 1966 o primeiro grupo se deslocou para a serra do Caparaó e, já no mês de abril do ano
seguinte, o projeto guerrilheiro de Caparaó se extinguia sem que um único tiro fosse dado. A este respeito ver REBELO,
Gilson. A Guerrilha de Caparaó. SP: Alfa Ômega, 1980.

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1964 In: RIDENTI, Marcelo e REIS FILHO, Daniel Aarão (orgs) História do marxismo no Brasil: partidos e
organizações dos anos 20 aos 60. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002, v. 5.

RIDENTI, Marcelo. “Ação Popular: cristianismo e marxismo” In RIDENTI, Marcelo e REIS FILHO, Daniel Aarão (orgs)
História do marxismo no Brasil: partidos e organizações dos anos 20 aos 60. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2002, v.
5.

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