Sociology">
Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Ensinar Historia - Politicas e Historia

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 151

Alessandra Bertasi Nascimento e André Bueno

ENSINAR HISTÓRIA:
POLÍTICAS EDUCACIONAIS E
HISTÓRIA DO ENSINO
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima
Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [História] em associação com as Edições
Especiais Sobre Ontens.

Edições Especiais Sobre Ontens


Comissão Editorial & Científica
Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Everton Crema [UNESPAR]
Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS]
Gustavo Durão [UFPI]
José Maria Neto [UPE]
Leandro Hecko [UFMS]
Luis Filipe Bantim [Universidade de Vassouras]
Maytê R. Vieira [UFPR]
Nathália Junqueira [UFMS]
Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Thiago Zardini [Saberes]

Rede
www.revistasobreontens.blogspot.com

Organização do Volume

Ficha Catalográfica

Bertasi, Alessandra; Bueno, André [orgs.]


Ensinar História: Políticas Educacionais e História do Ensino. 1ª Ed. Rio de
Janeiro: Proj. Ori./Ed. Esp. Sobre Ontens/UERJ, 2022.
ISBN: 978-65-00-52648-6 158p.

Ensino de História; Políticas Educacionais; História do Ensino

2
Sumário
APRESENTAÇÃO......................................................................................................................... 5
POLÍTICAS EDUCACIONAIS ....................................................................................................... 6
A SEMANA DO AUTISMO 2022 COMO PROCESSO DE LUTA POR VISIBILIDADE EM PROL DE
POLÍTICAS EDUCACIONAIS PARA PESSOAS AUTISTAS por Ana Carolina Tibúrcio e Alessandra
Bertasi Nascimento ................................................................................................................... 7
CURRÍCULO, ENSINO DE HISTÓRIA E LIVRO DIDÁTICO por Elizete Gomes Coelho dos Santos
................................................................................................................................................. 15
HISTÓRIA LOCAL NOS CONCURSOS PÚBLICOS: UMA ANÁLISE DAS LEGISLAÇÕES QUE
INSTITUEM O LOCALISMO COMO AVALIAÇÃO por Gabriel Costa de Souza ........................... 24
A ESCRITA DA HISTÓRIA ANTIGA ESCOLAR NA ‘ERA DA BASE’: DOS PCNS À BNCC: ESTUDOS
INTRODUTÓRIOS por José Petrúcio de Farias Júnior .............................................................. 33
O COMPONENTE CURRICULAR PROJETO DE VIDA E AS VIDAS EM PROJEÇÃO por Susanna
Fernandes Lima ....................................................................................................................... 41
ESCOLA PROFISSIONALIZANTE DE TEMPO INTEGRAL: QUE POLÍTICA EDUCACIONAL É ESSA?
por Vanderlene de Farias Lima................................................................................................ 49
HISTÓRIA DO ENSINO ............................................................................................................. 58
“A ESCOLA CATÓLICA”: A PEDAGOGIA RELIGIOSA COMO PILAR DO PODER ECLESIÁSTICO DA
PARAÍBA por Alexandro dos Santos e Ronyone de Araújo Jeronimo ..................................... 59
OS PRIMEIROS MOMENTOS DA EDUCAÇÃO PARA A INFÂNCIA NA REGIÃO NORTE DO
ESTADO DO PARANÁ POR MEIO DE FOTOGRAFIAS por Cláudia Sena Lioti ............................ 65
ESTUDOS AMAZÔNICOS: HISTÓRIA, MEMÓRIA E POLÍTICA EDUCACIONAL NO ESTADO DO
PARÁ por Davison Rocha-Alves ............................................................................................... 72
O ENSINO A SERVIÇO DA REPRODUÇÃO DOS VALORES CONSAGRADOS PELOS GRUPOS
SOCIAIS DOMINANTES: DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS MODELOS EDUCACIONAIS ADOTADOS
NO BRASIL E EM PERNAMBUCO ATÉ O SÉCULO XIX por Eduardo Augusto de Santana ......... 79
O MUNDO EM DEBATE: REFLEXÕES SOBRE A VIDA E HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA por
Eduardo Silveira Netto Nunes ................................................................................................. 89
A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO PERÍODO IMPERIAL ENTRE 1822 E 1889 por
Francielcio Silva da Costa ...................................................................................................... 101
O PAPEL DA IGREJA CATÓLICA NO PROJETO EDUCACIONAL DA COLÔMBIA DE LA
REGENERACIÓN (SÉCULO XIX) por Giovana Eloá Mantovani Mulza ..................................... 109
EDUCAÇÃO FEMININA NA COREIA DO SUL: BREVE HISTÓRICO por Leonardo Paiva Monte e
Lilian Bento de Souza Silva .................................................................................................... 117
“QUE EXPURGUE DOS DOMÍNIOS DA INCERTEZA FACTOS HISTÓRICOS”: ISABEL GONDIM E O
ENSINO DE HISTÓRIA DO BRASIL (1892-1909) por Ane Luíse Silva M. Santos e Magno F. de
Jesus Santos .......................................................................................................................... 123

3
A SUBALTERNIZAÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO NAS REFORMAS EDUCACIONAIS
(1960-70): DIÁLOGOS COM A MEMÓRIA por Sandra Regina Mendes e Lívia Diana Rocha
Magalhães ............................................................................................................................. 130
EDUCAÇÃO E TRABALHO: O SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM INDUSTRIAL (SENAI) E A
FORMAÇÃO DE UMA POLÍTICA EDUCACIONAL PARA O TRABALHADOR por Aruanã Antonio
dos Passos e Willian Roberto Vicentini ................................................................................. 136
“PROGRESSO COM ORDEM” – A HISTÓRIA ENSINADA NO ESTADO NOVO por Willian
Spengler................................................................................................................................. 144

4
APRESENTAÇÃO
A proposta de Ensinar História: Políticas Educacionais e História do Ensino
consiste em analisar e dialogar sobre as trajetórias políticas, culturais e teóricas
da História das práticas educacionais e das políticas públicas para Educação.
Os programas educacionais estiveram intimamente ligados aos projetos
políticos, reproduzindo ideias e agendas culturais e institucionais, e
constituindo um espaço de disputa social, envolvendo governos, intelectuais e
movimentos intelectuais.

Na oferta de espaço para a comunicação das reflexões de graduandos e


graduandas, professores e professoras da rede de educação básica e superior,
em suas experiências de extensão e pesquisa em processos do exercício
profissional e de formação continuada em cursos de Pós-Graduação Stricto
Sensu, o presente volume oportuniza nova abordagem de estudos e
discussões: “História da Educação e Políticas Educacionais”.

Por meio de diferentes recortes tais como: a escola profissionalizante de tempo


integral; o Programa Nacional do Livro Didático; análise de componentes
curriculares como o denominado Projeto de Vida, do livro de história e do livro
didático, da escrita da História Antiga no percurso dos Parâmetros Curriculares
Nacionais à Base Comum Curricular e da História Local em concursos
públicos, os debatedores e debatedoras puderam se posicionar com especial
atenção às mudanças nas políticas de currículo e de organização do ensino
médio, acrescendo ainda a experiências de introdução de políticas
educacionais da população para visibilidade e compreensão da pessoa autista.

Em tempos de desmonte das políticas educacionais por meio de reformismos


que retrocedem tanto nas conquistas de direitos quanto nos avanços na busca
de oferta de educação de qualidade, as discussões de políticas educacionais
no curso da história, locais e do tempo presente, denunciam a insatisfação com
o avanço de políticas de cunho neoliberal e ofertam tensionamento em prol de
mudanças.

No mesmo sentido, a História do Ensino revela as idealizações e tensões que


envolveram a definição de projetos, currículos e a formação do espaço escolar.
O desenvolvimento de teorias pedagógicas e métodos didáticos percorreu uma
longa trajetória, e ainda hoje se encontra profundamente conectada aos
programas políticos, refletindo visões de mundo que ressignificam
constantemente as concepções do real.

Nosso livro pretende, pois, trazer um panorama atualizado sobre várias dessas
questões: desejamos um bom estudo!

Alessandra Bertasi e André Bueno

5
POLÍTICAS EDUCACIONAIS

6
A SEMANA DO AUTISMO 2022 COMO PROCESSO DE
LUTA POR VISIBILIDADE EM PROL DE POLÍTICAS
EDUCACIONAIS PARA PESSOAS AUTISTAS
Ana Carolina Tibúrcio e Alessandra Bertasi Nascimento
Caracterizado por uma condição de desenvolvimento acentuadamente atípica
comparada a outras pessoas da mesma faixa etária e nível de experiências, o
autismo apresenta prejuízo nas interações sociais, modalidades de
comunicação e no comportamento (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION
[APA], 2013). Denomina-se espectro por se expressar de modos distintos nas
pessoas, inclusive em diferentes graus, utilizados para nortear a intensidade de
apoio em prol do desenvolvimento e qualidade de vida. Por isso, o autismo
apresenta expressões únicas nas diferentes pessoas.

O contato visual diminuído, a dificuldade em estabelecer novas relações


sociais, a comunicação verbal ausente ou comprometida, a alteração no
comportamento com repetição de gestos são sinais de autismo os quais podem
ser identificados precocemente, a partir dos seis meses de idade, quando se
percebe ausência de atenção compartilhada nos momentos de interação social
com familiares, ausência de sorriso social e contato pelo olhar, não
acompanhamento visual de objetos e pessoas, falta de resposta a sons
emitidos, emissão de linguagem não verbal como a vocalização. Identificar tais
sintomas favorece o diagnóstico, o qual seria ideal por volta de um ano de
idade, a fim de dar início a intervenções multiprofissionais, conforme o caso

A educação é uma garantia de direito assegurada a todos por meio da


Constituição Federal por meio do Art. 205, nos seguintes termos: “[...] direito de
todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” e
“atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência,
preferencialmente na rede regular de ensino”, III, Art. 208 (BRASIL, 1988).

Esse direito foi reiterado em legislações posteriores, visando a inclusão social e


educacional das pessoas com deficiência, inclusive as com Transtorno de
Especto Autista. Entre elas, destaca-se a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB) (BRASIL, 1996), a Política Nacional de Proteção dos Direitos
da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (BRASIL, 2012), conhecida
como Lei Berenice Piana, o Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL,
2014), a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência ou Estatuto da
Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015).

7
A LDB (BRASIL, 1996), reiterou e aperfeiçoou a modalidade de ensino
denominada Educação Especial, para atender alunos(as) com deficiência, altas
habilidades/superdotação e transtornos globais do desenvolvimento,
assegurando no Art. 59, entre outras especificidades, currículos, métodos,
técnicas, organização e terminalidade específicas, professores especializados
e capacitados.

A Lei Berenice Piana (BRASIL, 2012), estabeleceu diretrizes para a


consecução da Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com
Transtorno do Espectro Autista e para todos os efeitos legais, firmou a pessoa
com transtorno do espectro autista é como pessoa com deficiência, auxiliou no
processo de ensino e aprendizagem pelo incentivo à formação e a capacitação
de profissionais para a realização do atendimento especializado, de formação
acessível e com ensino profissionalizante, bem como o direito à um
acompanhamento especial em sala de aula, quando necessário. Esta
legislação recebeu este nome devido a mãe de pessoa autista e ativista, que
por muitos anos se engajou em movimentos de luta na elaboração de leis em
defesa dos autistas.

O PNE (BRASIL, 2014), com o intuito principal de melhorar a qualidade da


educação no Brasil, estabeleceu na meta 4, para as pessoas atendidas pela
Educação Especial, a universalização do acesso à educação básica e ao
atendimento educacional especializado, a ser realizado preferencialmente na
rede regular de ensino e com garantia de um sistema educacional inclusivo que
oferte salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços
especializados, público ou conveniado.

O Estatuto da Pessoa com Deficiência (BRASIL, 2015), com força de emenda


constitucional, priorizou a avaliação biopsicossocial da pessoa com deficiência,
por equipe multiprofissional e interdisciplinar, e reforçou a acessibilidade, o
desenho universal, o uso de tecnologia assistiva e a eliminação de barreiras
atitudinais, tecnológicas, urbanística, arquitetônica, nos transportes e nas
comunicações.

Apesar de todo o arcabouço legislativo que institui políticas públicas em defesa


de direitos, em diferentes áreas, para a pessoa com deficiência, em especial a
autista, ainda é necessário dar visibilidade à causa, haja vista que a própria
reiteração de garantia de direitos expressa a constante negação dos mesmos.
Foi a partir deste pensamento e da necessidade local que foi desenvolvida a
Semana do Autismo 2022 (NASCIMENTO, 2022), ocorrida na cidade de Nova
Andradina - MS.

A Semana do Autismo foi desenvolvida a partir da percepção de problemáticas


vivenciadas pelas famílias com filhos diagnosticados com o Transtorno do
Espectro Autista, as quais passaram a enfrentar obstáculos tanto para o
desenvolvimento da pessoa autista, quanto à inclusão em diferentes âmbitos e
o acolhimento dos familiares.

8
Os obstáculos enfrentados por familiares de pessoas autistas no município de
Nova Andradina - MS foram percebidos durante o desenvolvimento de um
projeto de extensão prévio, intitulado Pessoa Autista e familiares: eu apoio
(NASCIMENTO, 2020), efetivado por meio das rodas de conversa virtuais,
durante o período de isolamento social em decorrência da pandemia da
COVID-19. Participaram do projeto discentes do Curso de Licenciatura em
História da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e Matemática
da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), pais e familiares de
pessoas autistas. Entre os obstáculos relatados estavam as dificuldades no
acesso a escolas e práticas inclusivas, diagnóstico precoce do quadro,
atendimento multiprofissional e interdisciplinar, acesso a espaços de lazer
adaptados, discriminação, preconceito e comércio despreparado para atender
à clientela, respeitando seus direitos.

Entretanto, ações precedentes remetem ao ano de 2018 com uma estagiária,


Gisele da Silva Akutsu, hoje funcionária municipal na área da saúde. Ao ser
direcionada a trabalhar com um aluno autista na Escola Municipal Arco Íris,
começou a pesquisar e ler sobre o tema. Descobriu que o dia 2 de abril era um
dia específico, decretado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em
2007, como o Dia Mundial de Conscientização do Autismo. Apoiada por
Rafaele Aparecida Medeiros Vieira, mãe do aluno com o qual estagiava,
confeccionaram panfletos ainda em preto e branco e realizaram uma pequena
ação no sinaleiro da Praça do Museu, com apoio de algumas pessoas autistas
e alunos da APAE. Em 2019, sem poder falar em decorrência a um acidente do
qual se recuperava, junto do esposo, conseguiu patrocínio na Câmara
Municipal de Vereadores(as) para confecção de panfletos. Novamente com o
apoio de Rafaele, patrocinaram lacinhos azuis e realizaram a segunda
panfletagem. Em 2020 tornou a conseguir ajuda de alguns vereadores, mas a
pandemia impediu a ação, retomada em 2021 com o projeto Pessoas Autistas
e Familiares: eu apoio.

Neste sentido, após o acesso a esquema de vacinação e reabertura para


retorno aos espaços escolares, convívio social e aglomerações, foi proposto o
projeto de extensão Semana sobre Autismo (NASCIMENTO, 2022) com o
objetivo de dar visibilidade local sobre a pessoa diagnosticada com TEA, seus
direitos, conquistas e potencialidades; favorecer a inclusão familiar e social,
levar informações à comunidade local; ofertar espaço de acolhimento, escuta e
orientações aos familiares e profissionais interessados na causa da pessoa
com TEA, sobre os direitos e possibilidade de conquistas.

A organização das atividades da Semana sobre Autismo foi coordenada pela


proponente do projeto em parceria com uma mãe de pessoa autista e
participante de prévio projeto de extensão, anteriormente mencionado. Por ser

9
também empresária local, mobilizou a Associação Empresarial de Nova
Andradina (ACINA), a qual convocou a participação de segmentos da
sociedade local engajados na causa da pessoa com deficiência, tais como: o
Centro de Referência em Reabilitação (CRR) e Associação dos Pais e Amigos
dos Excepcionais (APAE), 8º Batalhão da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros
do município.

Tais segmentos organizaram atividades em seus locais de trabalho,


participaram das atividades abertas ao público geral e mobilizaram divulgação
da Semana sobre Autismo que adotou o material gratuito e de uso irrestrito
elaborado para a Campanha Nacional 2022 e Dia Mundial de Conscientização
do Autismo, criada pelo designer Alexandre Beraldo, com a colaboração do
Instituto Maurício de Sousa (CANAL AUTISMO, 2022a). O lema de 2022 foi
“Lugar de autista é em todo lugar”, frase da jornalista Fátima Kwant, mãe de
autista adulto, além de ativista internacional (CANAL AUTISMO, 2022b) .

A UFMS enviou ofício a diferentes Secretarias Municipais e Coordenadoria


Regional da Secretaria de Estado da Educação em Nova Andradina,
convidando a vestirem azul e estenderem o convite às escolas e unidades
básicas de saúde, bem como solicitando as autorizações necessárias à
efetivação de atividades.

A Câmara Municipal de Vereadores(as) de Nova Andradina também foi


acionada, por meio de três vereadoras, as quais propuseram legislação local,
acionaram órgãos públicos visando a iluminação azul do Obelisco dos
Andrades, localizado no cruzamento das duas principais avenidas da cidade,
solicitaram informações às Secretarias Municipais de Saúde e Educação, além
de participarem ativamente das atividades abertas ao público geral.

Dentre as atividades desenvolvidas na Semana, menciona-se: panfletagem;


distribuição de laços com fita quebra-cabeça (símbolo do autismo); preparação
de cards de divulgação em redes sociais; adesivagem de veículos com a
logomarca da Campanha Nacional; adesivagem de carros de familiares de
pessoas autistas com orientação a motoristas e socorristas; veiculação de
mensagem pela Rádio Massa FM; piquenique comunitário TEAcolhe para
familiares de autistas e profissionais com eles atuantes; rodas de conversa
presenciais com alunos(as) das escolas públicas Luiz Soares Andrade,
Marechal Rondon, Irman Ribeiro de Almeida e Silva; roda de conversa
presencial com professores de escola pública e UFMS; roda de conversa on-
line com a participação de um professor mestre, autista adulto e ativista da
causa, aberta a acadêmicos, pais, familiares de autistas e profissionais
atuantes junto às pessoas autistas em que abordou o autismo em pessoas
adultas; roda de conversa on-line com professores de apoio e especialistas
atuantes nas salas de recurso da rede estadual de educação sobre estratégias
e orientações de intervenções e organização do processo educacional para
pessoas autistas; roda de conversa on-line com familiares e professores(as) de
pessoas autistas da Escola Especial Denise Accorsi Tomio Colaço, em

10
Pimenta Bueno - RO, a partir de contato realizado pela escola ao se deparar
com a divulgação das ações no Facebook.

Embora as rodas de conversa tenham destacado as especificidades da pessoa


autista, a importância da cultura de conhecimento, informação, não violência e
não discriminação e a necessidade de visibilidade da pessoa autista, merece
destaque a roda de conversa que abordou o autismo na vida adulta. Essa visou
a inclusão nas universidades, a importância de políticas locais de inclusão que
favoreçam o desenvolvimento de potencialidades das essas autistas para
ultrapassarem a conclusão do ensino médio, receberem os apoios necessários
que se modificam no transcorrer das diferentes fases de desenvolvimento do
ser humano, e possam obter sucesso nos processos de ensino e
aprendizagem formais e informais, favorecendo a qualidade das práticas,
convívio e desempenho em diferentes ambientes, tais como: o social, de lazer,
esportes, comércio e profissional.

A panfletagem e adesivagem de carros, realizada no centro da cidade, permitiu


que diferentes pessoas adquirissem conhecimento sobre o autismo, a causa
ganhasse visibilidade de todos(as) aqueles(as) que estavam frequentando o
espaço, sejam moradores(as) locais ou pessoas de cidades circunvizinhas, já
que o município tem essa característica de atender demandas de municípios
menores da região em que se localiza. A ação contou com a participação de
pessoas autistas, familiares e estudantes do curso de História/UFMS e
Matemática/UEMS, profissionais atuantes na área, representantes do poder
legislativo e divulgação em som automotivo da Rádio Massa FM. A ação se
constituiu em um espaço educacional informal para a reflexão de que a pessoa
autista pode ocupar todos os espaços sociais, evidenciou a necessidade do
comércio local pensar estratégias de acolhimento da clientela, chamou a
atenção do poder público em investir em espaços de informação e
implementação de políticas públicas que ampliem a oportunidade de acesso e
participação da pessoa autista em locais que ainda enfrentam obstáculos de
diferentes naturezas e, portanto, ainda não estão acessíveis a ela, inclusive e
por consequência, a seus familiares, principalmente na primeira e segunda
infância, períodos prioritários de estimulação e aprendizagens.

Constatou-se que a movimentação pela organização e realização da Semana


sobre Autismo passou a agregar outras pessoas interessadas, inclusive
mobilizando e articulando munícipes, parentes diretos e/ou indiretos de
pessoas autistas em pontos estratégicos para desenvolvimento de atividades:
mãe de autista, blogueira, que acionou rede de influencers locais e marcou
entrevista de divulgação em jornal online local; avó de autista, artesã,
responsável por ações de cultura no município, que organizou no Centro de
Convenções Municipal “Sílvio Ubaldino de Sousa”, um Espaço Sensorial,
aberto para visitações públicas; autista adulto recém-diagnosticado atuante na
comunicação local; vereadores com filho autista ou em processo de
diagnóstico; aumento do número de familiares e profissionais participantes em
grupo de WhatsApp do município, formado para articulação e informação
dos(as) interessados(as).

11
As atividades também favoreceram a aproximação de munícipes em busca de
orientações para diagnóstico, encaminhamentos, dúvidas sobre caracterização
e formas de melhor lidar com comportamentos diários de pessoas autistas com
diagnóstico e/ou hipótese diagnóstica.

O piquenique comunitário TEAcolhe, foi realizado em local particular de


eventos com ampla área verde, cedido para esse fim, com intermédio da
ACINA. Os relatos dos familiares e profissionais participantes revelaram a
necessidade de áreas de lazer seguras à oportunidade de livre exploração e
expressão dos(as) filhos(as), sem variados estímulos sonoros, principalmente
sem altitude de som que estimulam a hipersensibilidade da pessoa autista,
além da importância de ofertar oportunidade para estreitamento de laços
sociais dos familiares, oportunidade de lazer e constatação da aceitação
dos(as) filhos(as) sem discriminação por seus comportamentos estereotipados
e repetitivos.

A Semana sobre Autismo também favoreceu a aprovação de novas políticas


públicas locais por intermédio da atuação da Câmara Municipal de
Vereadores(as). Conseguiu a aprovação de duas Leis: a de nº 1674, de 18 de
abril de 2022 que institui a Semana Municipal de Conscientização Sobre o
Autismo e dá outras providências (NOVA ANDRADINA, 2022a) e a de nº 1675,
de 18 de abril de 2022 que assegura às pessoas com Transtorno do Espectro
Autista (TEA) e a 1 (um) acompanhante o direito à meia-entrada em eventos
culturais e esportivos realizados no Município de Nova Andradina-MS (NOVA
ANDRADINA, 2022b).

Considerado pelas pessoas envolvidas e munícipes, a maior divulgação local


sobre a temática, entende-se que o projeto atendeu aos objetivos a que foi
proposto, mas não deve parar com a sua finalização. Como indicado no texto,
vários são os caminhos de intervenção que ainda podem ser desenvolvidos
com a comunidade com vista à efetivação da garantia de direitos,
especialmente no que tange a inclusão escolar em instituições de ensino da
educação básica à superior a fim de garantir a inclusão social. Afinal, as
políticas públicas em educação, saúde e assistência social, nem sempre estão
articuladas de modo a atender as necessidades que as pessoas autistas e
seus familiares apresentam, sem contar as barreiras existentes no comércio,
transporte, comunicação e tecnologia.

Referências biográficas
Dra. Alessandra Bertasi Nascimento, professora adjunta da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul.
Ana Carolina Alves Tibúrcio, acadêmica do curso de Licenciatura em História
da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

Referências bibliográficas
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION - DSM-5 Autism Spectrum Disorder
Fact Sheet. American Psychiatric Publishing, 2013. Disponível em:

12
http://www.dsm5.org/Documents/Autism%20Spectrum%20Disorder%20Fact%2
0Sheet.pdf.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil


de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2016 Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em:
15 jul. 2022.

BRASIL. Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015. Lei Brasileira de Inclusão da


Pessoa com Deficiência. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência. 2015. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm.
Acesso em: 16 jul. 2022.

BRASIL. Lei nº 12.764, de 27 de Dezembro de 2012. Institui a Política Nacional


de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista.
Brasília. 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12764.htm. Acesso em: 15 jul. 2022.

BRASIL. Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes


e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm#:~:text=L9394&text=Estabel
ece%20as%20diretrizes%20e%20bases%20da%20educa%C3%A7%C3%A3o
%20nacional.&text=Art.,civil%20e%20nas%20manifesta%C3%A7%C3%B5es%
20culturais. Acesso em: 15 jul. 2022.

BRASIL. Plano Nacional de Educação (PNE). Lei nº 13.005, de 25 de Junho de


2014. Aprova o Plano Nacional de Educação (PNE) e dá outras providências.
2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l13005.htm#:~:text=O%20Sistema%20Nacional%20de%20Avalia
%C3%A7%C3%A3o,p%C3%BAblicas%20desse%20n%C3%ADvel%20de%20
ensino. Acesso em: 16 jul. 2022.

CANAL AUTISMO. Campanha Nacional 2022 para o Dia Mundial de


Conscientização do Autismo. Canal Autismo, 2022a. Disponível em:
https://www.canalautismo.com.br/dia-mundial-
campanha/#:~:text=Lugar%20de%20autista%20%C3%A9%20em%20todo%20l
ugar!&text=Esta%20%C3%A9%20uma%20campanha%20para,conscientiza%
C3%A7%C3%A3o%20nacional%20muito%20mais%20efetiva. Acesso em: 15
jul. 2022.

CANAL AUTISMO. Lugar de Autista é em todo lugar. Canal Autismo. 2022b.


Disponível em: https://www.canalautismo.com.br/artigos/lugar-de-autista-e-em-

13
todo-lugar/#:~:text=%E2%80%9CLugar%20de%20autista%20%C3%A9%20
em,lutam%20pela%20causa%20do%20autismo. Acesso em: 15 jul. 2022.

CORREIA, Ana Paula et al. Políticas públicas educacionais para a inclusão da


criança autista: uma revisão de literatura. In: 8º Simpósio de Pesquisa e 14º
Seminário de Iniciação Científica 2020.. 2020. FAE. p.1-9. Disponível em:
https://sppaic.fae.emnuvens.com.br/sppaic/article/view/112. Acesso em: 16 jul.
2022.

NASCIMENTO, Alessandra Bertasi. Pessoa Autista e familiares: eu apoio,


2020.

NASCIMENTO, Alessandra Bertasi. Semana do Autismo 2022, I., 2022, Nova


Andradina.

NOVA ANDRADINA. Lei nº 1.674. Institui a Semana Municipal de


Conscientização sobre o Autismo e dá outras providências. 2022a. Disponível
em:
http://cdnlegislacao.pmna.ms.gov.br//uploads/legislation_archive/file/5192/Lei_1
674-2022-Conscientiza__o_sobre_o_Autismo.pdf. Acesso em: 17 jul. 2022.

NOVA ANDRADINA. Lei nº 1.675. Assegura Às Pessoas Com Transtorno Do


Espectro Autista (Tea) E A 1 (Um) Acompanhante O Direito À Meia-Entrada Em
Eventos Culturais E Esportivos Realizados No Município De Nova Andradina-
Ms. 2022b. Disponível em:
http://cdnlegislacao.pmna.ms.gov.br//uploads/legislation_archive/file/5193/Lei_1
675-2022-Transtorno_do_Espectro_Autista__TEA_.pdf. Acesso em: 17 jul.
2022.

14
CURRÍCULO, ENSINO DE HISTÓRIA E LIVRO DIDÁTICO
Elizete Gomes Coelho dos Santos

A dissertação que desenvolvi ao cursar o Mestrado Profissional em Ensino de


História (PROFHISTÓRIA/UFRJ) investiga processos de construção,
mobilização e operação de sentidos de tempo reconhecidos numa coleção
didática para o ensino médio do Programa Nacional de Livros Didáticos
(PNLD), edição 2015. O aporte teórico deste estudo foi fundamentado pelos
conceitos de espaço de experiência e horizonte de expectativa, regime de
historicidade, narrativa, marcas da tradição e sinais de alternativa, construídos
por Reinhart Koselleck, François Hartog, Paul Ricouer e Cinthia Monteiro de
Araujo. O recorte da obra selecionada foi inquirida através da abordagem
metodológica de análise de discurso apresentada por Norman Fairclough
(2001). Este estudo subsidiou a construção de atividades pedagógicas sobre
as reformas urbanas ocorridas no Rio de Janeiro no início do século XX.

Nesta comunicação, trago reflexões em torno de questões curriculares e


referentes a livro didático de História. A fim de enfatizar que currículo no tempo
presente não pode ser concebido como um meio neutro de transmissão de
conhecimentos ou informações (SILVA, 2013, p. 196), será exposta a
historicidade do campo curricular no Brasil. Em seguida, será refletido a
constituição da disciplina escolar História e a implementação de políticas
públicas no que concerne a obras didáticas no país, nesta pesquisa entendidas
como política curricular em âmbito do PNLD.

Currículo e Política de Currículo


Em entrevista concedida a Alice Lopes e Elizabeth Macedo, William Pinar
concebe Currículo como campo acadêmico de pesquisa que se empenha no
estudo dos sujeitos em suas relações, sendo as teorias curriculares esforços
intelectuais para compreendê-lo (LOPES; MACEDO, 2006, p. 26). Segundo
Pinar, estes estudos, além de proporcionarem a compreensão de elementos
que giram em torno de uma reforma educacional, auxiliam na construção de
estratégias de resistência docente mediante ao aumento da burocratização e
da regulamentação de sua conduta em sala de aula, contexto no qual nota-se
crescente associação entre o Estado e a lógica de mercado (LOPES;
MACEDO, 2006, p. 15).

Por volta da década de 1630, o termo currículo foi primeiramente utilizado,


porém sem se referir a um campo de estudos (LOPES; MACEDO, 2011, p. 20).
Remete aos anos 1920, as primeiras preocupações em torno do currículo no
Brasil, que desde esse momento até a década de 1980, recebeu influências

15
marcadamente de teorizações americanas e seguidamente, incorporou
influições de vertentes marxistas. Nos anos 1990, por conta do enfoque
sociológico, que permitiu compreendê-lo como espaço de relações de poder,
as discussões centrais passam a colocar foco na dimensão política das
relações entre currículo e conhecimento, permeadas por teorizações críticas e
pós-críticas (LOPES; MACEDO, 2010, p. 47).

Na segunda metade da década de 1990, o respectivo campo foi intensamente


caracterizado por este hibridismo e pela percepção de currículo como prática
social instituidora de sentidos por intermédio de uma ênfase analítica discursiva
proveniente de abordagens pós-estruturais, pós-modernas, pós-coloniais e
pós-fundacionais. Currículo passa a ser interpretado como arena na qual
ocorrem lutas pela significação, mobilizando disputas e negociações, que
constroem discursos provisórios e contingentes. Dentre as abordagens dessas
novas teorizações curriculares estão as relações entre conhecimento, poder
(SILVA, 2015, p. 16) e identidade social (SILVA, 2013, p. 188). A contar desta
abordagem investigativa, “o currículo não está envolvido num processo de
transmissão ou de revelação de certos conhecimentos, mas num processo de
constituição e de posicionamento” (SILVA, 2013, p. 189) em que discursos
corporificam narrativas sobre as formas de organização da sociedade e os
diferentes grupos sociais, estabelecendo assim, não apenas o conhecimento
considerado legítimo, como também, o denominado ilegítimo (SILVA, 2013, p.
190).

Tomaz Tadeu da Silva, ao expor currículo como construção resultante de


múltiplas narrativas, as examina pelo viés relações de poder, reconhecendo
aquelas que se colocam como favoritas e dominantes e como tal, podem ser
problematizadas e desconstruídas, artifício que assiste determinados grupos
sociais antes excluídos, podendo agora ser dotados de representação (SILVA,
2013, p. 199). O autor concebe a questão curricular, portanto, como “território
contestado” (SILVA, 2013, p. 195), já que os significados expressos nas
representações não são fixos e estáveis e sim, flutuantes e indeterminados.

As teorias pós-críticas, frutos de concepções temporais em que explodem


demandas particulares e lutas de diferenças, continuam a enfatizar que o
currículo não pode ser compreendido sem uma análise das relações de poder
nas quais ele está situado; nada obstante, o poder torna-se descentrado, isto é,
difundido por toda a rede social através de lutas de significação do mundo, que
envolvem esferas para além do Estado, já que este não é o único ator que
interfere em políticas curriculares (LOPES, 2011, p. 28). O pós-modernismo
assinalaria a divisa entre as perspectivas críticas e pós-críticas (SILVA, 2015,
p. 115), estas últimas atentam em questionar o sujeito imperial europeu na sua
posição atual de privilégio discursivo e neste sentido, o currículo é percebido
como documento de identidade (SILVA, 2015, p. 150).

Elizabeth Macedo e Alice Lopes, cujas análises se inserem em teorizações


pós-críticas, conceituam currículo como práticas de produção de sentidos
(LOPES; MACEDO, 2011, p. 42), que ultrapassam o espaço físico da sala de

16
aula (LOPES, 2006, p. 45). Ressaltado por Macedo como espaço-tempo de
fronteira cultural onde se articulam conhecimentos da prática pedagógica, da
disciplina ensinada e da sua referência acadêmica, o currículo se constitui por
intermédio de lutas políticas e culturais. Políticas de currículo, de acordo com
Lopes (2006, p. 39), reportam-se à elaboração de plurais contextos produzindo
constantemente originais sentidos e significados para as deliberações
curriculares nas escolas. E essas podem estar inseridas não apenas em textos
de livros didáticos, mas ainda em muitos contextos específicos. No âmbito do
ensino de História, segundo Ana Maria Monteiro (2015, p. 166), em diálogo
com produções de Yves Chevallard, Carmen Gabriel e Fernando Penna, o
conhecimento disciplinarizado é constituído em um “lugar de fronteira onde
acontecem as mediações didáticas e culturais” (MONTEIRO, 2015, p. 167), que
mobilizam saberes docentes e discentes.

Enfatizo que Currículo pode ser entendido como um campo intelectual produtor
de teorias, capaz de influenciar não apenas propostas curriculares oficiais, mas
também práticas pedagógicas nas escolas (LOPES; MACEDO, 2010, p.18),
como as que permeiam questões em torno de livros didáticos. Uma vez que
estes são problematizados sem se considerar questões próprias do currículo,
tende-se a leitura unívoca da busca pela obra didática ideal e a crença de que
apenas esta é capaz de sanar todos os problemas que a escola e os
professores enfrentam no cotidiano. A referida interpretação corrobora para
que as políticas de avaliação do livro didático sozinhas sejam vistas como
garantia mor da qualidade do que está sendo proposto, o que ausenta uma
análise multidimensional (LOPES, 2006, p. 48).

Livro Didático de História


Reflexões acerca da história do livro didático de História no Brasil implicam em
considerar a construção de sua disciplina escolar de referência, uma vez que
tais processos se entrelaçam (MONTEIRO, 2010). Interpretações são diversas
quanto ao surgimento da História enquanto disciplina, tais quais as
apresentadas por Annie Bruter e François Furet. Bruter sustenta que a História,
antes de ser lecionada em universidades, teria emergido como disciplina na
escola, que contou com uma “pedagogia” que já tinha sido formulada na
educação de príncipes na segunda metade do século XVII, isto é, práticas de
ensino foram elaboradas fora do âmbito propriamente escolar, constituindo a
História como matéria “ensinável” através de um processo de longa duração
(BRUTER, 2005, p. 19). Para Furet, autor que valoriza a esfera acadêmica para
se pensar a escola, a História primeiramente se constituiu como disciplina e
partir daí, tornou-se ensinável, configurando-se desta forma em fins do século
XIX, por conta de um método científico, uma determinada noção de evolução e
ainda, a seleção de um campo de estudos concomitantemente cronológico e
espacial (FURET, s/d, p. 134).

No Brasil, História transformou-se em disciplina escolar obrigatória em 1837,


quando passou a constar no plano de estudos do Colégio Pedro II, consistindo
o ano de 1895, o momento em que a disciplina História do Brasil alcançou
autonomia daquela relacionada a História da Civilização. O respectivo colégio,

17
junto ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, desempenhava papel de
legitimação do então Estado Nacional imperial, ambos influenciaram na
construção de uma determinada concepção de História (MAGALHÃES, 2003,
p. 169). A respectiva disciplina alterou-se no tempo, como constata Circe
Bittencourt (1993) ao estudar os programas desta instituição de 1837 a 1907,
indicando que em 1862, ocorreu a separação entre História e Geografia.

Desde sua implementação, a História escolar contou com a presença de


materiais didáticos, que no início eram tradução de obras francesas ou
compêndios, por exemplo, a tradução de Resumé de l’histoire du Brésil (1831)
e o Compêndio de História do Brasil (1843), cujos autores e tradutores não
tinham o magistério como ofício principal (GASPARELLO, s/d). Disputas
ocorreram em torno do estabelecimento das disciplinas História da Civilização
e da História do Brasil nos anos 1930 e 1940, protagonizadas por Delgado de
Carvalho e Jônathas Serrano, em um cenário no qual o escolanovismo e
diferentes perspectivas de temporalidade se fizeram presentes. A título de
exemplificação, a Reforma Francisco Campos de 1931, que deu início, de
forma rígida, a um currículo seriado para o ensino secundário com frequência
obrigatória, criou a cadeira de História da Civilização, extinguindo a divisão
preexistente entre História Universal e História do Brasil. Com a reforma de
1942, ocorrida sob o comando de Gustavo Capanema, esta última adquiriu
carga horária semanal na escola equivalente a outra (REZNIK, 1998, p. 89).

A política de materiais escolares, segundo Flávia Caimi e Helenice Rocha


(2014, p. 131), teve início no Brasil em 1929, com a criação do INL, contexto no
qual se estava estruturando a educação brasileira como um sistema (ROCHA,
2017, p. 14). Condições para a produção, a importação com o intuito de
tradução e o uso de didáticos no país foram implementadas pela CNLD por
meio do Decreto-Lei n° 1.006, de 30 de dezembro de 1938, que designava
dentre outras coisas, que o poder público não poderia impor a adoção de
determinada obra e que estava vetado aos integrantes desta comissão,
qualquer tipo de vinculação comercial com editoras nacionais e estrangeiras
(SILVA, 2017, p. 105).

Maria do Carmo Martins (2014, p. 42) aponta que os discentes, as instituições


relacionadas à educação, inclusivamente o dia a dia escolar receberam
atenção significativa do último governo ditatorial. Neste cenário, as disciplinas
Organização Social e Política do Brasil, Educação Moral e Cívica e Estudos
Sociais se tornaram obrigatórias, influenciando diretamente não apenas na
formação em nível superior e nas políticas relativas ao livro didático, bem como
ao que deveria ser lecionado nas escolas.

Em 1966, dispondo de financiamento originário do acordo MEC-United States


Agency for Internacional Developement, a Comissão do Livro Técnico e do
Livro Didático foi criada para assumir funções coordenativas à sua produção,
edição e distribuição (BEZERRA, 2017, p. 69). Cinco anos depois, em permuta
a esta comissão, o Instituto Nacional do Livro Didático assumiu a realização do
Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental. Neste mesmo ano de

18
1971, por conta da Lei 5.692, de 11 de agosto, o ensino fundamental passou
ser estruturado em oito anos de forma seriada e o 2° grau voltou-se para uma
formação marcadamente profissionalizante (MARTINS, 2014, p. 42). A
Fundação Nacional do Material Escolar, em 1976, assumiu a execução destes
programas e após sete anos, a Fundação de Assistência ao Estudante
incorporou o PLIDEF (BEZERRA, 2017, p. 69).

No contexto de redemocratização, o PNLD foi implantado pelo Decreto nº


91.542, de 19 de agosto de 1985, que preliminarmente ambicionava adquirir e
distribuir de forma universal e gratuita, livros didáticos para os alunos da rede
pública do ensino fundamental, contudo, nos primeiros anos, não atendeu a
todos estes discentes e nem mesmo possuía regularidade de funcionamento
(CASSIANO, 2017, p. 86). O Estado deixou de atuar na produção e edição
deste material, ainda que em coedição, e passou a ter como foco, a avaliação e
aquisição das obras a serem destinadas às instituições escolares (SILVA,
2017, p. 111).

PNLD
O PNLD, por incitar debates, críticas e pesquisas que evidenciam não só a
relevância econômica para um amplo setor relacionado à produção de livros,
que movimenta capitais interno e externo, bem como pela função que a
literatura escolar exerce na vida cultural e social (GASPARELLO, 2013, p. 21),
exprime-se tal e qual política curricular, uma vez que tem sido responsável
também pela seleção e formação de saberes e valores (MONTEIRO, 2013, p.
211).

A partir de 1993, o orçamento do MEC passou a prever recursos com a


finalidade de aquisição de didáticos para alunos de escolas públicas, mas
somente dois anos depois se deu início ao processo para a sua avaliação
sistemática (BEZERRA, 2017, p. 71). O documento “Definição de Critérios para
Avaliação dos Livros Didáticos”, publicado em 1994, norteou a avaliação das
primeiras obras no ano de 1996, que estavam inseridas nos guias de livros
didáticos do PNLD 1997 e destinavam-se a 1ª a 4ª séries do ensino
fundamental, no que concerne Português, Matemática, Ciências e Estudos
Sociais (CAIMI; ROCHA, 2014, p. 131).

Neste momento, as áreas de História e Geografia não eram tratadas de forma


distinta, fazendo com que a inscrição dos livros no programa para este
segmento da educação básica não ocorresse separadamente, quadro que foi
alterado a contar do PNLD 2004. Obras didáticas de História começaram a ser
examinadas em âmbito do PNLD 1999, que se referiu aos anos finais do ensino
fundamental. Nesta edição do programa, foram acrescentados os critérios
avaliatórios de pertinência e coerência metodológicas, tanto em relação ao
ensinoaprendizagem quanto à área de conhecimento específica.

Quanto às suas etapas de funcionamento, o PNLD é executado a partir de


etapas que abrangem desde a adesão das escolas que desejam ser
contempladas pelo programa até o recebimento dos livros pelas escolas. As

19
obras que não atendem aos critérios estabelecidos, estão excluídos do
programa, que atualmente é executado em ciclos trienais, de forma a alternar
segmentos da educação básica, incluindo a modalidade de educação de jovens
e adultos.

A distribuição para escolas públicas de obras didáticas pelo Governo Federal


através do PNLD não pode ser ignorada como forma de acesso a estas e até
mesmo como estímulo de investimentos no setor editorial brasileiro (LUCA;
MIRANDA, 2004, p. 131). Este mercado é caracterizado por Célia Cassiano
(2017, p. 88) pela concentração de domínio exercido por poucos grupos
editoriais, resultantes de fusões e da entrada de capital estrangeiro,
internacionalizando-os. Alguns municípios dispensam receber gratuitamente
livros didáticos pelo PNLD para desembolsar seus próprios recursos na
aquisição de sistemas de ensino (CASSIANO, 2017, p. 92), cujos materiais são
vendidos diretamente às prefeituras, sem licitação pública e também são
isentos de qualquer tipo de avaliação (CASSIANO, 2017, p. 84).

O Decreto n° 7.084, de 27 de janeiro de 2010, desde o seu estabelecimento até


um pouco mais da metade de julho de 2017, dispunha sobre os programas de
material didático. Dentre o que ora foi estabelecido, é assinalado a
necessidade de adesão formal das escolas interessadas, afirmando que as
escolhas didáticas deveriam ser livres e realizadas por meio do corpo docente
e dirigente de cada uma das escolas beneficiárias pelo PNLD, que para cada
componente curricular, por segmento, indicaria duas opções de obras para que
uma fosse adquirida pelo Estado, em ordem de preferência, e enviada para a
respectiva escola. Apesar destes critérios, existia a possibilidade de uma
terceira opção ser entregue: a mais escolhida em cada região.

O Decreto n° 9.099, de 18 de julho de 2017, que passa a dispor sobre o


Programa Nacional do Livro e do Material Didático, revogando o Decreto n°
7.084, alterou a significação da sigla PNLD e estabeleceu mudanças
significativas que já seriam visíveis no edital publicado em 31 de julho de 2017,
envolto na edição do programa para o ano letivo de 2019/2021. As equipes de
avaliação de materiais didáticos passam a ser formadas por docentes não só
atuantes nas redes públicas, bem como professores que lecionam em
instituições privadas de ensino superior e da educação básica e o FNDE, que
se compromete com a implementação da BNCC, usufruirá do apoio de
instituições contratadas ou conveniadas para a execução das etapas de
monitoramento e avaliação de didáticos.

Pela primeira vez, a educação infantil passou a ser incluída neste programa
nacional, apesar de não haver indicativo de acréscimo de investimento
financeiro. Além de escolas públicas, o novo decreto prevê o atendimento de
instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos,
conveniadas ao poder público e, a avaliação e disponibilização de obras
didáticas e literárias, de uso individual ou coletivo, acervos para bibliotecas,
obras pedagógicas, softwares e jogos educacionais, materiais de reforço, de
correção de fluxo, de formação e destinados à gestão escolar, entre outros de

20
apoio à prática educativa, adquiridos pelo Estado por meio de oito etapas, que
passam a funcionar em ciclos de quatro anos e não mais, de forma trienal:
inscrição, avaliação pedagógica, habilitação, escolha, negociação, aquisição,
distribuição e monitoramento e, avaliação. Acerca da escolha dos materiais
didáticos pelas instituições escolares, o responsável pela rede de ensino
poderá realizá-la, cuja adoção será única para cada escola ou para cada grupo
de escolas ou ainda, para todas as escolas de uma mesma rede.

A avaliação de livros didáticos para o último segmento da educação básica


teve início em 2004, no âmbito do então Programa Nacional do Livro Didático
para o Ensino Médio, que foi incorporado ao PNLD a datar de 2012. Até o
presente momento, quatro edições deste programa nacional contemplaram
obras de História para o ensino médio, são elas: PNLEM 2007, PNLD 2012,
PNLD 2015 e PNLD 2018. Editais, que são divulgados ao menos com dois
anos de antecedência e atualmente possuem uma periodicidade trianual,
anunciam não apenas o calendário de funcionamento do PNLD, mas ainda os
parâmetros avaliativos e os critérios que norteiam os processos de aquisição,
produção e entrega dos didáticos. Deste modo, destaco que estes editais
resultam de relações de poder entre partes com interesses distintos, que
contribuem para o reconhecimento de permanências e mudanças em aspectos
desta categoria de livro (ROCHA, 2017, p.16).

Referências biográficas
Elizete Gomes Coelho dos Santos, professora da Secretaria de Estado de
Educação do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ). Mestre em Ensino de História
(PROFHISTÓRIA/UFRJ).

Referências bibliográficas
BEZERRA, Holien Gonçalves. O PNLD de história: momentos iniciais”. In:
MAGALHÃES, Marcelo de Souza. REZNIK, Luis. ROCHA, Helenice (orgs.).
Livros didáticos de história: entre políticas e narrativas. Rio de Janeiro: FGV,
2017.

BRUTER, Annie. “Um exemplo de pesquisa sobre a história de uma disciplina


escolar: a História ensinada no século XVII”. História da Educação, ASPEH
FaE/UFPel, Pelotas, n. 18, p. 7-21, set. 2005.

CAIMI, Flávia Eloisa. ROCHA, Helenice Aparecida. “A(s) história(s) contada(s)


no livro didático hoje: entre o nacional e o mundial”. Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 34, n. 68, p. 125-147 – 2014.

CASSIANO, Célia Cristina de Figueiredo. “Política e economia do mercado do


livro didático no século XXI: globalização, tecnologia e capitalismo na educação
básica nacional”. In: MAGALHÃES, Marcelo de Souza. REZNIK, Luis. ROCHA,
Helenice (orgs.). Livros didáticos de história: entre políticas e narrativas. Rio de
Janeiro: FGV, 2017.

FURET, François. A oficina da História. Lisboa: Gradiva, s/d. 1 v.

21
GASPARELLO, Arlette Medeiros. “Livro didático e história do ensino de
história: caminhos de pesquisa”. In: GALZERANI, Maria Carolina Bovério.
BUENO, João Batista Gonçalves JÚNIOR, Arnaldo Pinto (orgs.). Paisagens da
Pesquisa Contemporânea sobre o Livro Didático de História. Jundiaí: Paco
Editorial; Campinas: Centro de Memória/Unicamp, 2013.

GASPARELLO, Arlette Medeiros. “A pedagogia da nação nos livros didáticos


de História do Brasil do Colégio Pedro II (1838-1920)”. Anais Sociedade
Brasileira de História da Educação. s/d.

LOPES, Alice Casimiro;. MACEDO, Elizabeth. “Pensamento e política curricular


– entrevista com William Pinar”. In: LOPES, Alice Casimiro. MACEDO,
Elizabeth (orgs.). Políticas de currículo em múltiplos contextos. São Paulo:
Cortez, 2006.

LOPES, Alice Casimiro;. MACEDO, Elizabeth. “O pensamento curricular no


Brasil”. In: LOPES, Alice Casimiro. MACEDO, Elizabeth (orgs.). Currículo:
debates contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2010.

LOPES, Alice Casimiro;. MACEDO, Elizabeth. Teorias de Currículo. São Paulo:


Cortez, 2011.

LUCA, Tânia Regina de. MIRANDA, Sonia Regina. “O livro didático de história
hoje: um panorama a partir do PNLD”. In: Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 24, n. º48, 2004. p. 123-144, 2004.

MAGALHÃES, Marcelo de Souza. “História e cidadania: por que ensinar


história hoje?” In: ABREU, Martha; SOIHET, Raquel (orgs.). Ensino de História:
conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.

MARTINS, Maria do Carmo. “Reflexos reformistas: o ensino das humanidades


na ditadura militar brasileira e as formas duvidosas de esquecer”. In: Educar
em Revista, Curitiba, Brasil, n. 51, p. 37-50, jan./mar. 2014. Editora UFPR.

MONTEIRO, Ana Maria. “Didática da História e Teoria da História: produção de


conhecimento na formação de professores”. In: XV ENDIPE – Encontro
Nacional de Didática e Prática de Ensino/UFMG, Simpósio A didática da
História na formação de professores: problemas e desafios. 2010. (Encontro).

MONTEIRO, Ana Maria. “Livros didáticos de História para o ensino médio e as


orientações oficiais: processos de recontextualização e didatização”. In:
GALZERANI, Maria Carolina Bovério. BUENO, João Batista Gonçalves
JÚNIOR, Arnaldo Pinto (orgs.). Paisagens da Pesquisa Contemporânea sobre
o Livro Didático de História. Jundiaí: Paco Editorial; Campinas: Centro de
Memória/Unicamp, 2013. p. 209-225.

22
MONTEIRO, Ana Maria. “Aulas de História: questões do/no tempo presente”.
In: Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 58, p. 165-182, out./dez. 2015.

REZNIK, Luís. “O lugar da História do Brasil”. In: MATTOS, Ilmar Rohloff de


(org.). Histórias do ensino de História no Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998.

ROCHA, Helenice. “Livro didático de história em análise: a força da tradição e


transformações possíveis”. In: MAGALHÃES, Marcelo de Souza. REZNIK, Luis.
ROCHA, Helenice (orgs.). Livros didáticos de história: entre políticas e
narrativas. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

SILVA, Marcelo Soares Pereira da. “O livro didático como política pública:
perspectivas históricas”. In: MAGALHÃES, Marcelo de Souza. REZNIK, Luis.
ROCHA, Helenice (orgs.). Livros didáticos de história: entre políticas e
narrativas. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

SILVA, Tomaz Tadeu da. “Currículo e Identidade Social: territórios


contestados”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.). Alienígenas na sala de aula:
uma introdução aos estudos culturais em educação. 11. ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 2013. 11. ed.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às


teorias do currículo. 3. ed. 6. reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. 3.
ed. 6. reimp.

23
HISTÓRIA LOCAL NOS CONCURSOS PÚBLICOS: UMA
ANÁLISE DAS LEGISLAÇÕES QUE INSTITUEM O
LOCALISMO COMO AVALIAÇÃO
Gabriel Costa de Souza

O enraizamento territorial é um movimento de conhecer, reconhecer e afirmar


os elementos que constituem significado a determinado conjunto social,
político, econômico e cultural. Esse movimento se dá por distintos mecanismos
que perpassam a ação comunitária até a organização institucional de políticas
de valorização local. O geógrafo Rogério Haesbaert evidencia os fundamentos
da relação entre o território e o sentimento de pertencimento:

“Diante da massa de despossuídos do planeta, em índices de desigualdade


social e de exclusão cada vez mais violentos, o ‘apegar-se à terra’, a
reterritorialização é um processo que vem ganhando força. Ele se torna
imprescindível não somente como fonte de recursos para a sobrevivência física
cotidiana, mas também para a recriação de seus mitos, de suas divindades ou
mesmo para manter viva a memória de seus mortos”. (HAESBAERT, 1999, p.
185).

Nessa relação, a educação desponta como o instrumento mais difundido na


reafirmação de regionalismos e localismos em que os currículos são
apropriados em sua dimensão sociopolítica. O empreendimento de legislar em
prol do ensino de História Local e Regional se relaciona com o movimento de
aproximação do estudante com seu ambiente escolar, bem como uma resposta
política aos aspectos que guardam a singularidade de determinado grupo.

Essas legislações, no entanto, apresentam aspectos metodológicos e


pedagógicos que podem influir em um processo inverso de desaproximarão ou
até mesmo mobilizarem uma lógica de História Local estanque, concreta e
artificial. Essa comunicação, um fragmento dos resultados da minha pesquisa
monográfica realizada com a orientação da Professora Doutora Maria Angélica
da Gama Cabral Coutinho, tem como objetivo refletir sobre as legislações dos
estados brasileiros que instituem a História Local como conteúdo de avaliação
em concursos públicos e processos seletivos com o intuito de compreender a
tipologia e a concepção de localismo mobilizada.

Ao realizar uma análise das legislações estaduais que tratam da História Local
em concursos públicos identificamos duas normativas, especificamente nos
estados de Rondônia e do Paraná, que se estruturam na obrigatoriedade do

24
localismo e do regionalismo nos processos seletivos e concursos públicos.
Essas determinações temáticas possuem padrões técnicos e metodológicos
que nos tensionam a refletir sobre a História Local como mecanismo de
avaliação, bem como possibilita uma análise sobre o processo de normatização
legislativa dessa temática. A legislação do estado de Rondônia sintetiza esse
modelo:

“As provas objetivas dos concursos públicos promovidas pelos Poderes


Executivo, Legislativo e Judiciário, deverão incluir também conhecimentos
gerais de História e Geografia de Rondônia. Art. 2º, O peso das questões
relativas aos conteúdos citados no artigo 1° desta Lei será de 10% (dez por
cento) da nota final do concurso público”. (RONDÔNIA, 2002, p.1).

A base objetiva da lei é equivocada por generalizar uma associação entre


Geografia e História e, consequentemente, produzir uma homogeneização
avaliativa. Essa organização de exigências conduz a História Local às
informações estanques, como datas, lugares e nomes, e instrumentaliza o
território como mero cenário para questionamentos sem qualquer relação com
as vivências comunitárias, além de determinar um:

“[...] espaço reservado ao estudo dos chamados aspectos políticos. Ressaltam-


se, por exemplo, “a origem e a evolução do município e do estado”, “os vultos
que contribuíram para o progresso da cidade, da região”. Nessa perspectiva, o
bairro, o município, o estado ou a região têm um destino linear, evolutivo,
pautado pela lógica dos vultos, dos heróis, figuras políticas, pertencentes às
elites locais ou regionais que fizeram o progresso da região”. (FONSECA,
1992, p. 46-47 Apud FONSECA, 2009, p. 154-155).

A cronologia dos grandes fatos – que tem o poder político como base –
produzida pelos memoráveis indivíduos – essencialmente homens – em prol de
determinado território – inerte e sem relações com outros territórios – não
apresenta caráter técnico, historiográfico e, sobretudo pedagógico.
Compreendendo essa relação, nenhuma legislação pode determinar a História
Local a partir de fundamentos generalizantes e meramente burocráticos,
ignorando a complexidade da temática na formação conceitual e em seu
processo de ensino e avaliação.

Outro aspecto desconsiderado pela legislação rondoniense está na relação


entre a função pretendida pelo participante do concurso e o território em que
sua atividade será realizada. Ao valorizar as demandas locais para uma
seleção de docente, um conhecimento específico de um servidor da área
ambiental ou um entendimento técnico de um profissional da área de
segurança a partir de necessidades locais se produziria um significativo
enraizamento com o território que meras exigências avaliativas não são
capazes de mobilizar. A professora-pesquisadora Circe Bittencourt destaca a
importância do nexo pedagógico que as temáticas na História exigem em sua
mediação e avaliação:

25
“Os conteúdos históricos escolares podem ser variados e não necessitam de
uma programação estabelecida externamente, mas é preciso ter critérios que
fundamentem sua escolha. A coerência de uma opção de conteúdos ocorre
pela concepção de história que, por sua vez, fundamenta os conceitos. Estes,
juntamente com as informações e narrativas, constituem o conteúdo histórico
escolar”. (BITTENCOURT, 2008, p.172).

A simples obrigatoriedade da História Local como mecanismo de avaliação não


tem significado histórico no ambiente educacional ou na valorização de
aspectos próprios de determinado território, mas figura como apenas um
conteúdo temático que o participante do concurso público deve memorizar. A
História Local, como já se destacou nesta pesquisa, é uma construção de
múltiplas dimensões que se destaca pela complexificação das particularidades
de determinando conjunto em meio às universalidades.

A legislação do Estado do Paraná dialoga com as determinações da normativa


rondoniense com a obrigatoriedade do localismo nos conteúdos avaliados e
com a equiparação entre a Geografia e a História como conjunto temático
uniforme. O fundamento dessa lei, no entanto, se concentra nos processos
seletivos estaduais de inserção ao ensino universitário. A legislação
paranaense determina:

“Art. 1º. Fica exigido dos candidatos, no processo seletivo para ingresso em
cursos de educação superior de instituições de ensino superior no Estado do
Paraná, conhecimento sobre história, geografia e atualidades do Estado do
Paraná, nas disciplinas de história e geografia. Parágrafo único. As questões
sobre história e geografia do Paraná deverão representar pelo menos 20%
(vinte por cento) em cada área de conhecimento especificado nesta lei”.
(PARANÁ, 2008, p.1).

A institucionalização da lei 15.918 determinou um espaço avaliativo da História


e Geografia Local no processo de seleção de novos estudantes do ensino
universitário no Estado do Paraná, bem como estabeleceu essa temática como
um significativo mecanismo de avaliação que passava a ocupar vinte por cento
da área de conhecimento. Com isso, distintas instituições acadêmicas
remodelaram a organização temática de suas seleções, incluíram o localismo
em seus eixos de avaliação e modificaram as estruturas das provas aplicadas
aos participantes dos vestibulares. Um profícuo exemplo é o vestibular de 2012
da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) que indaga o participante
sobre:

“35 – A Guerra do Contestado, movimento social ocorrido entre 1912 e 1916 na


região disputada, política e judicialmente, entre Paraná e Santa Catarina,
envolveu a população sertaneja que vivia no interior de ambos os estados, as
forças de segurança estaduais, o Exército brasileiro e os fazendeiros
detentores das terras na área em litígio. A respeito desse acontecimento,
assinale o que for correto.

26
01) A desapropriação de terras em favor da Brazil Railway Company, empresa
norte-americana responsável pela construção de uma ferrovia que cortava o sul
do país, na região em litígio ampliou o clima de tensão entre latifundiários,
camponeses e o governo republicano.
02) Um dos principais resultados sociais da Guerra foi o processo de divisão da
terra ocorrido ao final do conflito. Exceção no Brasil daquela época, a reforma
agrária foi fundamental para a pacificação definitiva da região do Contestado.
04) As serrarias, instaladas nas terras do conflito, tiveram um importante papel
na pacificação da região do Contestado. Além de ativar a economia, essas
unidades ofertavam emprego aos camponeses, contribuindo para a
estabilidade social.
08) Elementos próprios a uma religiosidade popular, como a presença de
monges e uma crença messiânica, fazem parte do contexto sociocultural no
qual se desenvolveu a Guerra do Contestado.
16) Do ponto de vista político, o Paraná foi o grande vencedor do conflito. A
maior parte das terras disputadas com Santa Catarina acabaram ficando
legalmente sob o domínio paranaense”. (UEPG, 2012, p.8).

A avaliação fundamentada na Guerra do Contestado, um fato histórico regional,


evidencia a presença da temática local no vestibular da UEPG. A tipologia de
História Local dessa prova constrói uma correlação entre escalas – o
questionamento relaciona o processo histórico aos territórios de Santa Catarina
e do Paraná, e correlaciona os aspectos transnacionais que podem ter ligação
com o objeto da pergunta – e destaca as dimensões que estruturam o fato
histórico – os elementos políticos, econômicos e jurídicos. A estrutura da
indagação dialoga com as ponderações teórico-metodológicas do professor-
pesquisador Luis Carlos Silva:

“Evidentemente, que a História Regional e Local não pode ser desvinculada de


um contexto mais amplo de região [...], mas isso não significa estabelecer
escalas de valores entre um tema e outro, o fundamental é perceber as
relações históricas entre as temáticas, atentando para suas especificidades”.
(SILVA, 2013, p. 7).

O localismo, como destaca o excerto da obra ‘A importância do estudo de


História Regional e Local na educação básica’, possui significado histórico a
partir das relações com o amplo ambiente histórico, ou seja, a História Local
correlaciona as especificidades com as universalidades dos fatos históricos.
Com isso, a temporalidade, o processo histórico e as relações entre os distintos
territórios recebem maior atenção avaliativa, afastando a prática de
memorização de informações que não possui fundamento histórico e
pedagógico no processo de aprendizado. A adequada avaliação da História
Local, entretanto, não é um fator comum dos vestibulares das Universidades
Estaduais do Paraná. A seleção de 2015 da Universidade Estadual do Paraná
(UNESPAR) estruturou um questionamento que meramente objetivava a busca
de uma informação correta sobre a História do Paraná:

27
“QUESTÃO 29
Sobre a História do Paraná, é INCORRETO afirmar que:
a) No século XIX o governo da Província do Paraná estimulou e promoveu o
processo de colonização, destacando-se diversas colônias criadas nas
proximidades de Curitiba;
b) Os caminhos que ligavam os centros criadores de gado do Rio Grande do
Sul ao mercado pecuário de São Paulo, nos séculos XVIII e XIX, contribuíram
para o surgimento de inúmeros núcleos populacionais no Paraná;
c) A modernização da agricultura, iniciada no Paraná na década de 1960,
solucionou o problema da emigração e do êxodo rural no Estado,
caracterizando-se, atualmente, como uma estrutura agrária
predominantemente de pequena propriedade;
d) A descoberta do ouro na região de Paranaguá contribuiu para a
intensificação do povoamento no litoral paranaense;
e) As terras do Norte do Paraná, com a introdução da cultura cafeeira, foram
efetivamente colonizadas a partir da iniciativa de empresas colonizadoras
privadas”. (UNESPAR, 2015, p.11).

Essa indagação não apresenta um objetivo histórico que constitua uma


avaliação integral dos conhecimentos e habilidades do participante do processo
seletivo. O aprendizado da História Local não se constitui na identificação de
um aglomerado de fatos políticos, econômicos ou sociais que não possuem
correlação e que estão deslocados temporalmente. Essa questão do vestibular
da UNESPAR simplesmente avalia se o participante sabe decorar “nomes e
fatos com suas datas, repetindo exatamente o que estava escrito no livro ou
copiado nos cadernos” (BITTENCOURT, 2008, p. 67).

Essa questão utiliza a História Local como um simples cenário de fatos


históricos que necessitam ser memorizados e que sequer possuem relações
histórico-temporais. Com isso, são lançadas informações desconectadas dos
processos históricos de temporalidades diferentes – um fato ocorreu no Século
XIX, o outro ocorreu no início do Século XX e o outro no findar – que estão
geograficamente distantes – um fato é ligado ao norte, o segundo ao Estado
por completo e, por fim, o último está associado ao território central do Paraná.

O padrão conceitual de memorização de fatos históricos geograficamente


localizados em determinado território, observado em algumas provas dos
vestibulares do Estado do Paraná, se repete nos concursos públicos do Estado
de Rondônia. O processo de seleção de professores do ano 2016,
especificamente a avaliação do cargo de Professor Classe C de História da
Secretaria Estadual de Educação, apresenta um conjunto temático denominado
História e Geografia de Rondônia que avalia os participantes com os seguintes
questionamentos: “Questão 11 – Entre os municípios de Rondônia a seguir,
assinale o que se localiza mais ao sul. A) Colorado do Oeste B) Ji-Paraná C)
Porto Velho D) Ariquemes E) Presidente Medici (sic)” (SEDUC – RO, 2016,
p. 4-5).

28
Ao observar esse fragmento da prova podemos entender o deslocamento
estrutural da História Local, fundamentada na multiterritorialidade e na
observação crítica dos fatos históricos, com o recorte geográfico local que
prioriza informações sem significado pedagógico e avaliativo. Essa avaliação
de Rondônia evidencia a instrumentalização do território como um mecanismo
de memorização de fatos isolados sem nenhum fundamento, ou seja, o objetivo
da questão é uma mera resposta gravada nas repetições de dados, sem
reflexão histórica e, sobretudo, sem a correlação com outros aspectos do
aprendizado do participante do concurso. Segundo o professor-pesquisador
Luis Carlos Silva, a História Local não deve:

“[...] ser concebida como uma vertente historiográfica estanque, ela necessita
como qualquer outra concepção de uma possibilidade interdisciplinar, a
exemplo da contribuição da Geografia, Sociologia e Antropologia, bem como,
não podemos abordar [...] temas relacionados ao local ou a região, sem
estabelecer relação com uma noção macro em que esses temas estão
inseridos, porém resguardando as suas devidas especificidades”. (SILVA,
2013, p. 9).

A correlação das múltiplas dimensões territoriais é o fundamento da mediação


e avaliação da História Local como uma ferramenta pedagógica que auxilia o
processo de formação do indivíduo ao correlacionar as particularidades locais
com os aspectos universais dos processos históricos. Entretanto, a História
Local, avaliada na memorização, se repete nos últimos três concursos públicos
para o cargo de professor de História no Estado de Rondônia que ocorreram
após a obrigatoriedade da História Local nas temáticas avaliadas nas seleções
realizadas no território estadual.

Os concursos de 2008, 2010 e 2013, responsáveis pela seleção e avaliação de


docentes de História, estruturaram indagações sobre o ano de criação de
Rondônia ou sobre a modalidade de transporte utilizada antes da implantação
de uma rodovia no estado ou sobre quais municípios rondonienses concentram
a produção de café. Essas temáticas podem, ou não, serem significativas no
âmbito local sobre o desenvolvimento da infraestrutura, a produção cafeeira e,
sobretudo, o reconhecimento institucional do território como uma unidade
federativa, mas na perspectiva histórico-pedagógica um questionamento exige
reflexão e correlação, abandonando a memorização estanque de números,
nomes e lugares.

As potencialidades desses questionamentos sobre a História Local de


Rondônia são desestruturadas no isolamento temático que indaga sobre
aspectos políticos, econômicos ou sociais como fenômenos isolados dos outros
territórios e dimensões. Um significativo exemplo está no questionamento
sobre a autonomização político-institucional com a definição do território
rondoniense como uma unidade federativa brasileira em que poderiam ter sido
realizadas múltiplas relações com a História Nacional, os agentes históricos
envolvidos, enfim, os aspectos que dialogassem com o processo histórico da
indagação.

29
É imprescindível, dessa maneira, discutir a efetividade da História Local como
mero mecanismo de avaliação em processos seletivos. A temática exige
tempo, debates conceituais e correlações histórico-geográficas que os
concursos públicos, sobretudo os estaduais, não possuem. Nesse ambiente, o
localismo se resume a perguntas relacionadas a temporalidade, espacialidade
e, sobretudo, generalidades para cumprir porcentagens mínimas sem valor
pedagógico e sem significado histórico. O artigo A História Regional: desafios
para o ensino e a aprendizagem destaca os efeitos desse modelo:

“A relativização e a fragmentação de acontecimentos e de saberes locais


produzidos é uma prática que pode velar os processos de mudança social, em
se considerando a dinâmica do desenvolvimento local. Tal prática pode impedir
uma visão crítica da sociedade, bem como colocar barreiras para a apreensão
de conjunto dos acontecimentos históricos locais/regionais, uma vez que
representam a base e o ponto de partida para a formação da consciência
crítica e histórica dos sujeitos enquanto indivíduos do mundo globalizado e da
cultura universal”. (ALVES; SCHALLENBERGER; BATISTA, 2005, p. 42).

As correlações das dimensões que envolvem a História Local e Regional são,


como evidencia o excerto do artigo, fatores essenciais na significação da
temática como metodologia de aprendizado e, por ventura, como ferramenta de
avaliação. A mediação do localismo, no entanto, é construída em um processo
dinâmico que envolve a comunidade, a formação do indivíduo e as distintas
relações do território, não cabendo em formulários padronizados que
questionam sobre generalidades sem significado.

A exigência da História Local em concursos públicos tem significado


pedagógico e histórico a partir de um sistema de educação integrado que
propicia uma formação territorialmente consciente de suas particularidades e
universalidades. Nesse sentido, a obrigatoriedade da temática em processos
seletivos deve guardar relação com o processo de aprendizagem dos
participantes em que se distancie de coletâneas de informações para centrar a
avaliação em percepções sobre o território e suas correlações no contexto
específico da função pretendida.

A sistematização avaliativa do localismo em processos seletivos requer um


compromisso teórico, metodológico, conceitual e textual que conecte a
historiografia com a ação pedagógica com significado histórico. A História Local
não é um instrumento de memorização de informações de determinado
território, mas uma ferramenta do letramento multiterritorial que propicia uma
reflexão dos processos a partir da temporalidade, da territorialidade e,
sobretudo, da multiplicidade dos fatos históricos.

Referências biográficas
Gabriel Costa de Souza, Mestrando em Educação (PPGEDUC/UFRRJ).
Licenciado em História (ICHS/UFRRJ).

30
Referências bibliográficas
BITTENCOURT, Circe M. F. Ensino de História: fundamentos e métodos. São
Paulo: Cortez, 2008.

FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática do ensino de História. São


Paulo: Papirus, 2009.

HAESBAERT, Rogério. Identidades territoriais. In: ROSENDAHL, Z.; CORRÊA,


R. L. (Org.) Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ,
1999. p. 169-190.

PARANÁ, Lei nº 15.918, de 12 de agosto de 2008. Exige dos candidatos, no


processo seletivo para ingresso em cursos de educação superior de
instituições de ensino superior no Estado do Paraná, conhecimento sobre
história, geografia e atualidades do Estado do Paraná, nas disciplinas de
história e geografia. Curitiba, 1990. Disponível em: <
https://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/listarAtosAno.do?action=exibirImpre
ssao&codAto=12609>. Acesso em: 31 de outubro de 2019.

RONDÔNIA, Lei nº 1.107, 06 de agosto de 2002. Dispõe sobre a inclusão de


questões sobre a História e Geografia de Rondônia nas provas objetivas dos
concursos públicos. Porto Velho, 2002. Disponível em: <
https://sapl.al.ro.leg.br/media/sapl/public/normajuridica/2002/3084/3084_texto_i
ntegral.pdf >. Acesso em: 31 de outubro de 2019.

SCHALLENBERGER. E. ‘Reflexões sobre o desenvolvimento regional’.


Cadernos – Cultura, Fronteira e Desenvolvimento Regional, Marechal Cândido
Rondon: UNIOESTE, 2003.

SECRETARIA DE ESTADO DE EDUCAÇÃO DE RONDÔNIA (SEDUC – RO).


Prova do Edital nº 237 de 22 de setembro 2016. Concurso público para
provimento do cargo de Professor Classe C de História. IBADE: Rondônia,
2016. Disponível em:
<https://www.ibade.org.br/Cms_Data/Contents/SistemaConcursoIBADE/Media/
SEDUCRO2016/Gabarito/Provas/P07-T-PROFESSOR-CLASSE-C-HIST-
RIA.PDF>. Acesso em: 15 de março de 2021.

SILVA, Luis Carlos Borges dos Santos. A importância do estudo de História


Regional e Local na educação básica. XXVII Simpósio Nacional de História,
Natal, 2013. Disponível em:
<http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1372277415_ARQUIVO_A
rtigo-HistoriaRegional_NATAL_.pdf >. Acesso em: 5 de dezembro de 2020.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA (UEPG). Prova do Edital nº


18/2012 – CPS - UEPG. Processo seletivo para o provimento de vagas de
ensino superior da Universidade Estadual de Ponta Grossa. UEPG: Paraná,
2012. Disponível em:

31
<https://cps.uepg.br/vestibular/provas/inverno_2012/provas.zip>. Acesso em:
28 de março de 2021.

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ (UNESPAR). Prova do Edital nº


01/2015 – CCCV – UNESPAR. Processo seletivo para o provimento de vagas
dos cursos de Administração, Ciências Contábeis, Ciências Econômicas,
Turismo e Secretariado Executivo Trilíngue. UNESPAR: Paraná, 2015.
Disponível em: <https://www.unespar.edu.br/Vestibular/vestibulares-
anteriores/copy_of_vestibular-2015-2016/copy_of_arquivos/provas/grupo-
i_geo-his-mat.pdf>. Acesso em 28 de março de 2021.

32
A ESCRITA DA HISTÓRIA ANTIGA ESCOLAR NA ‘ERA DA
BASE’: DOS PCNS À BNCC: ESTUDOS INTRODUTÓRIOS
José Petrúcio de Farias Júnior

Nas últimas décadas, o livro didático (LDs) tem sido objeto de estudo de muitos
pesquisadores da área das ciências humanas. Ao contrário do que muitos
pensam, as investigações que concebem o livro didático como fonte histórica
são tão complexas quanto qualquer outro gênero discursivo. Primeiro, porque a
narrativa histórica escolar presente nos LDs não resulta de um autor único,
trata-se de uma produção coletiva (BARNABÉ, 2014), na qual intervém editor,
diretor editorial, diretor de operações, diagramador, coordenador de produção e
de arte, equipe gráfica, equipes responsáveis pelo tratamento das imagens,
cartografia, ilustrações, entre outros, de tal forma que, muitas vezes, não é
possível identificar a ação de cada um no produto final.

Além disso, tal narrativa é interpelada não só pelas marcas de autoria,


predileções da editora e interferências do mercado, porquanto as editoras, em
geral, seguem as diretrizes dos LDs mais vendidos anteriormente, o que
sinaliza a simpatia de professores pela escolha de certas obras, mas também
pela opinião pública, o que contempla a aceitação de alunos, pais e da mídia.
Além disso, os LDs ajustam seus discursos às políticas públicas educacionais,
sobretudo as curriculares e avaliativas que, gradativamente, têm controlado,
por meio de editais emitidos pelo Programa Nacional do Livro e do Material
Didático (PNLD), os conteúdos e abordagens historiográficas em tais obras
didáticas.

Dada a extensão de nossas reflexões, ater-nos-emos à intervenção de políticas


públicas educacionais na seleção de conteúdos e abordagens historiográficas
dos LDs. Nesse sentido, sinalizamos que, desde 20.12.1996, por meio da
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), há
esforços pelo estabelecimento de uma base nacional comum para todas as
etapas da educação básica, tal como preconizado no art. 26. Essa orientação
redunda na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN/1996-
1999), das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica
(2010) e, por fim, da Base Nacional Comum Curricular (2017-2018).

O caráter centralizador de tais iniciativas governamentais se manifesta não só


na produção e divulgação de currículos nacionais (PCN, BNCC), mas também
nos esforços do Ministério da Educação (MEC) em executar as prescrições
curriculares de tais documentos oficiais por meio de avaliações escolares
externas de caráter nacional, tal como o Sistema de Avaliação da Educação

33
Básica (SAEB), e da elaboração de critérios para aprovação de livros
escolares, via Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD),
órgão que publica editais para avaliação de LDs em consonância com os
currículos oficiais/prescritos aprovados.

Nos últimos anos, assistimos a uma série de audiências públicas que


procuraram conferir certa celeridade as reformas educacionais previstas no
Plano Nacional de Educação (2014-2024), sobretudo para a construção de
uma ‘base comum’ à educação básica. As justificativas para aprovação em
tempo recorde de tais reformas foram sintetizadas por Silva:

“O IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) do ensino médio


está estagnado; é urgente e necessário melhorar o desempenho dos
estudantes brasileiros no PISA (Programa Internacional de Avaliação de
Estudantes); apenas 10% da matrícula do ensino médio é em educação
profissional, muito aquém dos países desenvolvidos”; apenas 16% dos
concluintes do ensino médio ingressam na educação superior, portanto, é
necessário profissionalizar antes; e, a reiterada argumentação de que “o Brasil
é o único país do mundo com uma mesma trajetória formativa e
sobrecarregada por 13 disciplinas”(SILVA, 2018, p. 03)

A despeito das polêmicas, manifestos de crítica e ocupações de escolas e


universidades, as reformas educacionais, sobretudo do chamado ‘novo ensino
médio’, tramitaram e se converteram na Lei 13.415/17, logo a normatização de
uma base nacional comum é respaldada por tal lei. Grande parte dos
estudiosos ressaltam a natureza prescritiva da BNCC, o que a reveste de um
caráter regulatório e restritivo que nos remete à ideia de uma formação sob
controle e vigilância por intermédio de instâncias como o MEC e suas políticas
de avaliação escolar e o próprio PNLD e sua intervenção na produção de LDs.

Tal perspectiva se fortalece quando notamos que, em inúmeros excertos do


Edital do PNLD 2020, exige-se que o LD seja avaliado em consonância com as
competências e habilidades prescritas na BNCC e que serão excluídas as
obras que não apresentarem uma abordagem capaz de contribuir para o
alcance dos objetos de conhecimento e respectivas habilidades dispostos na
BNCC (BRASIL, 2018, p. 39), ou seja, as obras são impelidas a contemplar
todos os objetos de conhecimento e habilidades constantes na BNCC (BRASIL,
2018, p. 43), trechos que sinalizam a estreita vinculação entre a BNCC e o
PNLD. Ao ajustar materiais didáticos e exames nacionais como Sistema de
Avaliação da Educação Básica (SAEB) e Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) aos descritores da BNCC, nota-se uma clara tentativa de imposição a
professores e alunos de uma formação educacional de caráter instrumental e
sujeita ao controle, ou seja, que está mais preocupada com um processo
formativo voltado à adaptação dos indivíduos a competências (materializadas
em prescrições curriculares, que objetivam a adequação dos sujeitos
aprendentes à lógica do mercado e à adaptação à sociedade capitalista e suas
instâncias de poder) do que com a autonomia e respeito às diferenças, ainda

34
que tais expressões estejam textualmente presentes no documento oficial, tal
como nos explica Mônica Ribeiro Silva:

“O projeto formativo proposto na BNCC e nos textos dos anos 1990 alude a
uma formação para a autonomia e ao respeito à diversidade cultural,
prescreve, porém, a adequação da formação humana a restritivos imperativos
de formação para a adaptação. Evidencia-se um tratamento formal das
“diferenças”, ao mesmo tempo em que se persegue a padronização e
integração [...] A prescrição de competências também visa ao controle – das
experiências dos indivíduos e das experiências das escolas – viabilizado pela
imposição do discurso e pelas estratégias de avaliação que buscam conhecer
mais o produto e menos o processo que o gerou” (SILVA, 2018, p. 11).

Como Silva destaca acima, há uma manifesta intenção de controle, no qual os


sujeitos aprendentes se convertem em alvo das prescrições curriculares. Trata-
se, ao fim e ao cabo, de uma formação educacional autoritária e guiada por
interesses externos aos agentes educacionais e sujeitos aprendentes,
porquanto é proposta do lado de fora da escola (SILVA, 2018, p. 13), além de
se subordinar a ambições definidas pela lógica mercantil. Diferentemente do
que propõe a BNCC, o conhecimento não se limita a dar respostas imediatas a
situações-problemas cotidianas. Resta-nos discutir os impactos de tais
desdobramentos políticos na escrita da história antiga escolar a fim de
diagnosticar possíveis avanços e retrocessos.

Isso posto, até meados da década de 80, os conteúdos de História Antiga,


presentes nos LDs de História tanto do ensino fundamental quanto do ensino
médio, organizam-se de maneira factual, descritiva, biográfica, etapista,
centrada em acontecimentos políticos e militares e distantes de questões
cotidianas dos estudantes; em geral a Antiguidade Clássica era estudada como
algo a ser emulado (os grandes homens e seus feitos) ou conectado às nossas
origens civilizacionais. Trata-se, diga-se de passagem, de uma concepção de
História que notadamente esteve presente nos manuais de ensino desde o
estabelecimento da disciplina, a partir de 1838, nas escolas secundárias, tal
como propunham os programas de ensino do Imperial Colégio Pedro II que se
tornaram referência aos demais liceus provinciais ao longo do séc. XIX
(FARIAS JUNIOR, 2020).

A partir da década de 1990, com a ampliação do acesso de diferentes


categorias sociais à rede pública de ensino, tanto na educação básica quanto
no ensino superior, com o fortalecimento de pesquisas em história antiga no
âmbito da graduação e da pós-graduação, o que permitiu que especialistas
estivessem à frente da disciplina no ensino superior e, consequentemente, no
processo de formação de professores e com a crescente preocupação do MEC
em relação à qualidade dos LDs, tendo em vista a presença constante de erros
conceituais, inadequações metodológicas, generalizações descabidas,
abordagens preconceituosas, falta de qualidade gráfica, entre outras questões,
a escrita da história antiga escolar torna-se objeto de crítica pela Academia,
momento em que diferentes aportes teórico-metodológicos (sobretudo a nova

35
história cultural e a história social) estão em curso e contribuíam para integrar
diferentes temas, fontes e linguagens à História Antiga ensinada.

Diante das impropriedades e fragilidades das narrativas escolares nos LDs, em


1996, foram instituídas comissões de avaliação de LDs por áreas de
conhecimento (Alfabetização, Língua Portuguesa, Matemática, História,
Geografia e Ciências), constituídas de professores especialistas cujo papel
consistia em formular critérios de avaliação e editais por meio dos quais as
editoras submeteriam suas coleções. Simões informa-nos que a primeira
avaliação dos LDs ocorreu em 1996 e os livros aprovados foram publicados no
ano seguinte pelo Guia do Livro Didático (2006, p. 81).

Desde então, as editoras submetem suas obras/coleções aos editais


elaborados por professores especialistas, colaboradores do PNLD e, de acordo
com Simões, com quem estamos em pleno acordo, a continuidade do processo
de aperfeiçoamento dos critérios e procedimentos de avaliação do LD, por
quase uma década, surtiu efeitos positivos na qualidade dos LDs brasileiros
(SIMÕES, 2006, p. 81). Todavia, apenas a partir de 2002, o PNLD contou com
a parceria massiva das universidades neste processo avaliativo, que passou a
avaliar coleções e não livros isolados, o que contribuía para assegurar uma
continuidade curricular.

Indubitavelmente tais políticas públicas fomentaram a renovação dos estudos


clássicos no Brasil e estimularam a crítica especializada sobre a História Antiga
escolar. Incomodados com a narrativa escolar sobre a Antiguidade, os
historiadores Pedro Paulo A. Funari (2004), Gilvan Ventura da Silva e Ana
Teresa Gonçalves (2001), Norberto Luis Guarinello (2003), Glaydson José da
Silva (2011), Luis Ernesto Barnabé (2014), Ana Lívia Bomfim Vieira (2019),
José Petrúcio de Farias Junior (2020) entre outros, manifestaram-se, em
diferentes periódicos, acerca das limitações, simplificações ou generalizações
dos livros didáticos.

Em geral, suas inquietações versam sobre a discrepância entre os estudos


históricos acadêmicos e a narrativa histórica escolar presente nos LDs de
História; a pretensão da narrativa histórica escolar em transmitir ‘verdades
históricas’ ou um passado pronto e acabado a ser consumido pelo aluno e
reproduzido em avaliações, como se o passado fosse um ‘objeto’ passível de
ser observado em sua totalidade. Adiciona-se, a esse quadro, a ausência de
especialistas da área de Antiga e Medieval nas coleções didáticas, o que
explica, pelo menos em parte, generalizações e reducionismos muito
frequentes, como: tratar as experiências político-culturais de Atenas e Esparta
como modelos à compreensão da Grécia Antiga ou conceber o Império
Romano como uma unidade político-administrativa homogênea e harmônica
cujo centro é Roma.

Nota-se também a persistência dos autores e editoras dos LDs em relação à


busca das ‘origens’ do mundo contemporâneo pelo estudo da Antiguidade, com
destaque à origem do homem, da cidade, das instituições políticas ou formas

36
de governo (democracia e república), das religiões monoteístas, como o
judaísmo e o cristianismo, entre outros. O estudo das ‘origens’ leva-nos a uma
discussão movediça, frágil, sujeita a equívocos de documentação e datação.
Convém que o estudo do passado seja motivado por inquietações e
indagações provenientes de nosso campo de experiências político-culturais,
por meio das quais construímos ‘problemas’ de investigação que nos instigam
a construir conhecimentos históricos, o que difere de um estudo pautado
meramente nas ‘origens’, em geral, utilizado para veicular curiosidades sobre a
Antiguidade ou justificar reminiscências do passado no mundo contemporâneo.

O estudo das ‘origens’ também nos conduz a uma abordagem histórica linear e
teleológica que nos posiciona como herdeiros do mundo antigo. Em outras
palavras, a História Antiga, concebida nestes termos, ocidentaliza-nos, isto é,
insere-nos numa linha do tempo que nos torna herdeiros da Grécia, de Roma e
da cultura judaico-cristã, de tal forma que passamos a nos ver como ocidentais;
assim Grécia e Roma parecem-nos mais próximos que as Histórias de outras
sociedades antigas, tais como China, Índia e sociedades nilóticas da África
Central e do Sul, por isso asseveramos que a construção da chamada
‘identidade cultural ocidental’ fora, em grande medida, forjada por um discurso
que nos vinculava à chamada “herança clássica” (FARIAS JUNIOR, 2020). A
despeito das críticas da Academia a esta historiografia, tais perspectivas
interpretativas ainda sobrevivem na história escolar.

Conquanto muitos LDs tenham atendido às recomendações do PNLD pelo uso


de diferentes linguagens e fontes históricas para o estudo do passado e
tenham instigado o protagonismo dos estudantes no processo de construção
de conhecimentos históricos, destaca-se ainda, em muitos manuais, a ausência
de atividades investigativas ou propostas de análise documental que
considerem as especificidades dos gêneros textuais e da cultura material:
leitura iconográfica, cartográfica, epistolar, estudos que relacionam a cultura
material com registros escritos bem como intencionalidades e objetivos
subjacentes a tais discursos.

Em grande parte das coleções didáticas, as fontes históricas ainda perfazem


um caráter ilustrativo ou legitimador da narrativa escolar. Nota-se, em muitos
manuais de História, o uso das fontes como uma espécie de “prova da
realidade” ou “passaporte para o passado”, o que desconsidera completamente
o cerne de uma aula de História: ensinar os estudantes a ‘pensar
historicamente’.

Tal perspectiva demandaria um ensino de História que conduzisse o aluno, no


limite, a indagar os discursos sobre o passado por meio de uma metodologia
que considerasse as marcas de autoria, possíveis destinatários, o ambiente
político-cultural, as circunstâncias históricas e as relações de poder nas quais
os sujeitos estão envolvidos e que motivaram a produção dos vestígios sobre o
passado. Os discursos sobre o passado são, em grande medida, intencionais,
manipuladores e sedutores. Descortinar junto aos estudantes os jogos de

37
poder que subjazem tais discursos é o caminho para a formação de um
cidadão crítico, autônomo e participativo no meio social em que vive.

A despeito dos esforços da equipe por trás da elaboração dos LDs de História
e da importante atuação de controle e avaliação da comissão de docentes
atuantes junto ao PNLD, muitos manuais ainda perpetuam uma metodologia de
ensino que pressupõe uma atitude meramente receptiva e passiva do
estudante frente ao conhecimento histórico. Percebe-se, por exemplo, o
predomínio de atividades ou exercícios propostos, em geral, no final dos
capítulos ou das unidades temáticas que visam à memorização ou à
reprodução da narrativa escolar por meio de questões que estimulam o aluno
apenas a localizar e transcrever informações históricas já mencionadas no
corpo do texto.

Nesse sentido, ainda nos questionamos em que medida passamos de uma


história narrativa ou explicativa para uma história-problema na educação
básica. Avaliamos que editoras, autores e demais membros da equipe estão se
esforçando para isso, mas encontramo-nos no meio do caminho com, ao
menos, duas concepções de educação (instrucional e emancipatória) e de
história (tradicional e história-problema), que, embora sejam
epistemologicamente divergentes, convivem paradoxalmente nos manuais.

Adicionado a isso, os títulos que constam na bibliografia dificilmente aparecem


integrados à narrativa escolar, o que representa uma clara evidência de apenas
mostrar ao leitor o diálogo com historiografias recentes, sem que conceitos e
aportes teórico-metodológicos tenham sido efetivamente trabalhados.

Além da manutenção de uma narrativa acontecimental, linear e progressiva


presentes nos LDs de História até hoje, Barnabé lembra-nos de que a política,
a sociedade, a economia, a cultura e a religião são abordadas, em geral, de
maneira dissociadas e não conectadas ou simultâneas. Nesse sentido, o
historiador nos adverte que:

“O conceito de simultaneidade entre os povos é suprimido em detrimento do


movimento de ascensão e queda, e quando se estuda os romanos não se fala
mais de babilônicos ou persas, egípcios ou hebreus, mesmo eles estando ali,
mas agora na condição de dominados” (BARNABÉ, 2014, p. 125).

Para além da supressão do caráter simultâneo, dialógico ou interativo com que


as sociedades antigas se desenvolveram e compartilharam experiências
militares e político-culturais, Barnabé já sinalizava para a manutenção de uma
concepção de história calcada na analogia com o ciclo da vida: nascimento,
crescimento, maturidade, velhice e morte das sociedades antigas. Isso explica,
pelo menos em parte, o motivo pelo qual muitos manuais as concebem
isoladamente, como se fossem organismos vivos. Nesse sentido, as
civilizações antigas passariam por ‘fases’ muito próximas ao ciclo biológico.

38
É muito comum, por exemplo, narrativas históricas escolares que veiculam às
audiências o nascimento de Roma com a monarquia, cerca de 750 a.C, seu
crescimento pelos séculos da República (509-31 a.C), a maturidade no
chamado Alto Império (31 a.C- 235 d.C), suas crises de meia idade, no que
muitos denominam de ‘crise do terceiro século’, ‘anarquia militar’ ou ainda
‘período dos imperadores-soldados’ (235-284) e, por fim, a velhice entre 235 e
476, momento em que o Império Romano teria sido morto ou assassinado
pelos ‘bárbaros’ e, após Roma, haveria um outro nascimento: o período
Medieval, no qual o ciclo se reiniciaria: Alta Idade Média (410/476 – 1000),
Idade Média Central (1000-1300) e Baixa Idade Média (1300-1453).

Para Carlan e Funari (2016, p. 24), essa concepção de História propaga a ideia
de ruptura - acontecimentos que atuam como ‘divisor de águas’ entre
momentos históricos, concebidos de forma teleológica e linear. Críticos da
história tradicional, reconhecem que as sociedades nunca morrem, apenas
estão em constante processo de transformação. Somos nós, seres vivos, que
nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos, o que não se aplica,
portanto, ao estudo das sociedades.

Dito de outro modo, as teorias sociais têm nos mostrado que cada presente
resulta de uma complexa rede de experiências interculturais caracterizadas por
mudanças e permanências. Assim como nós, no presente, os antigos também
conferiam, a partir de demandas sociais emergentes, novas roupagens a seus
constructos identitários, a seus mitos de origem ou ‘tradições’, nos termos em
que Hobsbawn e Ranger pensaram a ‘tradição inventada’ (1992, p. 01).

Esperamos que estas breves reflexões tenham sinalizado ranços e avanços na


construção da narrativa histórica escolar presente nos LDs de História e
tenham motivado pesquisadores a olhar criticamente para os materiais à
disposição pelas editoras, a partir de 2022, os quais já se encontram integrados
às diretrizes da BNCC. Enfim, que o texto tenha sido um convite à continuidade
das indagações acerca da escrita da história antiga escolar.

Referências biográficas
Prof. Dr. José Petrúcio de Farias Junior. Professor de História Antiga e
Medieval da Universidade Federal do Piauí, campus de Picos.

Referências bibliográficas
BARNABÉ, Luis Ernesto. De olho no presente: história antiga e livros didáticos
no século XXI. Opsis, Catalão-GO, v. 14, n.2, p. 114-132, jul/dez. 2014.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ensino Médio. Brasília: MEC.


Versão entregue ao CNE em 03 de abril de 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br. Acesso em: 02 jul. 2022.

CARLAN, Cláudio Umpierre; FUNARI, Pedro Paulo. Antiguidade Tardia e o fim


do Império Romano no Ocidente. SP: Fonte Editorial, 2016.

39
FARIAS JUNIOR, José Petrúcio. História Antiga: trajetórias, abordagens e
metodologias de ensino. Uberlândia: Navegando, 2020.

FUNARI, P. P. A importância de uma abordagem crítica da história antiga nos


livros escolares. Revista História Hoje, São Paulo, n. 4, 2004.

GUARINELLO, Norberto Luís. Uma morfologia da História: as formas da


História Antiga. Politeia, v. 3, n. 1, 2003, p. 41-61.

HOBSBAWN, E.; RANGER, T. O. The Invention of Tradition. Cambridge,


Cambridge University Press, 1992.

SILVA, Glaydson José. Os avanços da História Antiga no Brasil. In: Simpósio


Nacional de História –ANPUH, 26. Anais... São Paulo, julho 2011.

SILVA, Gilvan Ventura da.; GONÇALVES, Ana Teresa Marques. Algumas


reflexões sobre os conteúdos de História Antiga nos livros didáticos brasileiros.
História & Ensino, Londrina, v. 7, p. 123-141, out. 2001.

SILVA, Mônica Ribeiro. A BNCC da reforma do ensino médio: o resgate de um


empoeirado discurso. EDUR, Educação em Revista, 2018.

SIMÕES, P. M. U. Programa Nacional do Livro Didático: avanços e


dificuldades. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v. 22, n. 1, p. 79-91, 2006.

VIEIRA, Ana Livia B. O Ensino e Pesquisa de História Antiga no Brasil: um


panorama da área. In: Ana Livia Bomfim Vieira; Adriana Zierer; Marcus
Baccega. (Org.). História antiga e Medieval. Ensino, Sociedade e Cotidiano:
diálogos entre o passado e o presente. São Luís: UEMA, 2019, v. 7, p. 63-72.

40
O COMPONENTE CURRICULAR PROJETO DE VIDA E AS
VIDAS EM PROJEÇÃO
Susanna Fernandes Lima

As intenções desse texto se relacionam diretamente à investigação


empreendida enquanto temática de meu curso de Doutorado no PPGHS UERJ
FFP, que se objetiva investigar como o campo do Ensino de História pode
contribuir para a formação da subjetividade dos sujeitos que ocupam os bancos
escolares, tendo em vista a implementação obrigatória do componente
curricular Projeto de Vida na matriz do “Novo Ensino Médio”, que entrou em
vigor em 2022, em razão da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) por meio da lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017.
Para início de conversa, pretendo elaborar um trajeto de referências que
oriente o/a leitor/a quanto ao caminho que percorri para compreender, ainda de
forma lacunar, ressalto, os passos para a implementação e desenvolvimento do
Projeto de Vida enquanto componente do currículo que vem se estabelecendo
a partir da obrigatória implementação do Novo Ensino Médio, em 2022, no Rio
de Janeiro.

Importante destacar que sou professora de História em escolas públicas e


privadas no estado do Rio de Janeiro. E ainda que algumas escolas tenham
iniciado seus passos de implementação da BNCC a partir da publicação da Lei
13.415/17, no caso das escolas estaduais, o modelo do Novo Ensino Médio
tornou-se uma realidade aplicada na prática a partir do início do ano letivo de
2022.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de 14 de dezembro de 2018, em


consonância com o Plano Nacional de Educação (PNE), de 25 de junho de
2014, estabelece o Projeto de Vida como componente curricular obrigatório
para o Novo Ensino Médio, válido a partir da Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro
de 2017, que altera a Lei n º 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

Enquanto parte da política nacional da Educação Básica, a BNCC objetiva


“superar a fragmentação das políticas educacionais, [ensejar] o fortalecimento
do regime de colaboração entre as três esferas de governo e [ser] balizadora
da qualidade da educação” em território nacional (BNCC, 2018, p. 8. Grifos
nossos).

Logo em suas primeiras páginas, o texto de apresentação da BNCC informa


que, além de garantir a definição de um conjunto “orgânico e progressivo de

41
aprendizagens essenciais” (BNCC, 2018, p. 7) aos/às estudantes
brasileiros/as, o documento normativo estabelece 10 competências gerais, “que
consubstanciam, no âmbito pedagógico, os direitos de aprendizagem e
desenvolvimento” dos/das estudantes (BNCC, 2018, p. 8).

Cabe um esclarecimento, definido pelo próprio documento normativo, quanto


ao conceito de competência: “Na BNCC, competência é definida como a
mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades
(práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver
demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do
mundo do trabalho”. (BNCC, 2018, p. 8)

As competências gerais, portanto, pretendem corroborar com o


“desenvolvimento integral” do/da estudante, a fim de apoiar “as escolhas
necessárias para a concretização dos seus projetos de vida e a continuidade
dos estudos” (BNCC, 2018, p. 5). Desta forma, cada uma das dez
competências intenciona abordar um aspecto da vida do/a aluno/a, ao longo
das três etapas da Educação Básica, tendo em vista os âmbitos da vida
pessoal, do exercício da cidadania e da formação para o mundo do trabalho.
Destaco a competência 6, que trata diretamente do Projeto de Vida:

“Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais e apropriar-se de


conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as relações
próprias do mundo do trabalho e fazer escolhas alinhadas ao exercício da
cidadania e ao seu projeto de vida, com liberdade, autonomia, consciência
crítica e responsabilidade”. (BNCC, 2018, p. 9-10. Grifo nosso.)

A competência geral número 6 é a que me interessa mais de perto, posto que


aborda condições necessárias à elaboração do Projeto de Vida por parte do/a
estudante, conforme previsto na Lei do Novo Ensino Médio: “§ 7º Os currículos
do ensino médio deverão considerar a formação integral do aluno, de maneira
a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para
sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais” (Lei 13.415,
2017.).

No que concerne à “formação integral” do/a estudante, a BNCC informa que


está comprometida com uma “construção intencional de processos educativos
que promovam aprendizagens sintonizadas com as necessidades, as
possibilidades e os interesses dos [das] estudantes e, também, com os
desafios da sociedade contemporânea. Isso supõe considerar as diferentes
infâncias e juventudes, as diversas culturas juvenis e seu potencial de criar
novas formas de existir. (BNCC, 2018, p. 14. Grifo nosso.)

É importante ressaltar que, apesar da legislação informar que a construção do


Projeto de Vida deve se dar ao longo do Ensino Médio, a BNCC aponta esta
como sendo uma tarefa que deve ser iniciada no nível Fundamental, em seus
anos finais, a fim de “estabelecer uma articulação não somente com os anseios

42
[dos/as] jovens em relação ao seu futuro, como também com a continuidade
dos estudos no Ensino Médio” (BNCC, 2018, p. 62. Grifo nosso).

Outro ponto fundamental, que serve como base para este início de reflexões, é
entender como, na letra do documento normativo, o Projeto de Vida deve
funcionar. Antes, porém, de enunciar essa etapa, é importante compreender
como a Base entende o Ensino Médio. Um movimento essencial é o de
perceber que BNCC pretende operar com o conceito de “juventudes”, como
mencionado acima, por um lado “não [caracterizando] o público dessa etapa –
constituído predominantemente por adolescentes e jovens – como um grupo
homogêneo, nem conceber a “juventude” como mero rito de passagem da
infância à maturidade” (BNCC, 2018, p. 462. Grifo nosso.).

Por outro, assinala que “Adotar essa noção ampliada e plural de juventudes
significa, portanto, entender as culturas juvenis em sua singularidade. Significa
não apenas compreendê-las como diversas e dinâmicas, como também
reconhecer os jovens como participantes ativos das sociedades nas quais
estão inseridos, sociedades essas também tão dinâmicas e diversas. (BNCC,
2018, p. 463)

Dessa forma, o documento aponta para dois objetivos: primeiro, acolher as


diversidades a fim de alcançar a promoção do respeito à pessoa humana e aos
seus direitos, de forma intencional e permanente e, segundo, que a escola
garanta a alunos/as o protagonismo em sua escolarização, alçando-os/as à
posição de interlocutores no que diz respeito ao currículo e ao processo de
ensino e aprendizagem. Tudo isso com vistas à obtenção de “uma formação
que, em sintonia com seus percursos e histórias, permita-lhes definir seu
projeto de vida, tanto no que diz respeito ao estudo e ao trabalho como
também no que concerne às escolhas de estilos de vida saudáveis,
sustentáveis e éticos” (BNCC, 2018, p. 463).

Nesse sentido, uma escola que acolhe juventudes, segundo a BNCC, precisa
se comprometer com a educação integral de seus/suas estudantes, e com a
construção de seus Projetos de Vida. A partir daí, o encaminhamento do
documento é o de repensar o contexto do Ensino Médio no mundo
contemporâneo, propondo, numa releitura das finalidades desta etapa proposta
pelo artigo 35 da Lei de Diretrizes e Bases, de 20 de dezembro de 1996, novas
metas, que se organizam nos seguintes eixos:

- favorecer a preparação básica para o trabalho e a cidadania;


- promover o aprimoramento do/a estudante enquanto pessoa humana, tendo
em vista sua formação ética e o aprimoramento de sua autonomia intelectual e
pensamento crítico;
- garantir aos/às alunos/as o entendimento dos fundamentos científico-
tecnológicos dos processos produtivos, promovendo a relação entre teoria e
prática.

43
Mediante esses eixos, e suas metas recontextualizadas, além de “garantir a
consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no Ensino
Fundamental” (BNCC, 2018, p. 464), o documento afirma ser “[...] imperativo
repensar a organização curricular vigente para essa etapa da Educação Básica
[o Ensino Médio], que apresenta excesso de componentes curriculares e
abordagens pedagógicas distantes das culturas juvenis, do mundo do trabalho
e das dinâmicas e questões sociais contemporâneas (BNCC, 2018, p. 467-468.
Grifos nossos.).

Para dar conta desse objetivo – “repensar a organização curricular vigente” –, o


texto da Base informa que a Lei do Novo Ensino Médio substitui modelo único
de currículo do Ensino Médio por um que se quer “diversificado e flexível”.
Referenciando a Lei, temos:
Art. 4º O art. 36 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar
com as seguintes alterações: “Art. 36. O currículo do ensino médio será
composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos,
que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos
curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos
sistemas de ensino, a saber: I - linguagens e suas tecnologias; II - matemática
e suas tecnologias; III - ciências da natureza e suas tecnologias; IV - ciências
humanas e sociais aplicadas; V - formação técnica e profissional.” (Lei 13.415,
2017. Grifos nossos.)

É justamente no escopo dos Itinerários Formativos que, no texto da BNCC, vai


se encaixar o Projeto de Vida, que deverá ser elaborado utilizando-se de
pilares como protagonismo e autoria (estes pilares encontram-se previstos,
dentre muitas partes do texto, na 5ª competência geral da educação básica,
que se liga às tecnologias digitais de informação e comunicação), que teriam
sido estimulados ao longo do Ensino Fundamental. Mais do que isso, a BNCC
trata o Projeto de Vida como “eixo central em torno do qual a escola pode
organizar suas práticas” (BNCC, 2018, p. 472).

Assim como eu, você, leitor/a deste texto deve estar, há algum tempo,
aguardando uma definição sobre o que é o Projeto de Vida. De acordo com o
texto da Base, “Projeto de vida é o que [os/as] estudantes almejam, projetam e
redefinem para si ao longo de sua trajetória, uma construção que acompanha o
desenvolvimento da(s) identidade(s), em contextos atravessados por uma
cultura e por demandas sociais que se articulam, ora para promover, ora para
constranger seus desejos. Logo, é papel da escola auxiliar [os/as] estudantes a
aprender a se reconhecer como sujeitos, considerando suas potencialidades e
a relevância dos modos de participação e intervenção social na concretização
de seu projeto de vida. É, também, no ambiente escolar que [os/as] jovens
podem experimentar, de forma mediada e intencional, as interações com o
outro, com o mundo, e vislumbrar, na valorização da diversidade,
oportunidades de crescimento para seu presente e futuro (BNCC, 2018, p. 472-
473. Grifos nossos.).

44
Estamos, nós, educadores/as, trabalhando com projeção de futuro quando o
assunto é a elaboração do Projeto de Vida a partir do que está proposto no
texto da Base. Recupero aqui a intenção principal desta pesquisa, qual seja:
investigar como o campo do Ensino de História pode contribuir para a formação
da subjetividade dos sujeitos que ocupam os bancos escolares, tendo em vista
a implementação obrigatória do componente curricular Projeto de Vida na
matriz curricular do Novo Ensino Médio.
Em Língua Portuguesa, a expressão Projeto de Vida é composta por um nome
– “Projeto” – e por um complemento nominal – “de Vida”. Dar nome às coisas é
um dos estratos da identificação, que possibilita a outras pessoas saberem
daquilo de que pretendemos falar. Mas, esse reconhecimento superficial, esse
saber pelo nome, talvez não seja suficiente para viabilizar o conhecimento das
camadas que compõem aquilo que se pretende conhecer, bem como sua
profundidade, seus detalhes, aquilo que está oculto na aparência.

Leonor Arfuch (2016) empreende um movimento interessante ao afirmar que


questionar a linguagem é um movimento fundamental em toda investigação
narrativa. Ela diz: “A linguagem como objeto da filosofia, como construtora do
mundo, como configuradora da subjetividade, imprime uma peculiar virada na
reflexão, atenuando a fantasia de apreender o fato puro ou o desejo de
alcançar a plenitude do sentido. Quando pensamos que estamos falando de
fatos, advertiu-nos o linguista francês Oswald Ducrot (1981), na verdade
estamos sempre falando de palavras sobre fatos. E a palavra, além de sua
(forçada) pretensão de exatidão, é marcada pela duplicidade, pela falta, pelo
desvio, pelo delírio” (ARFUCH, 2016, p. 236. Grifo nosso. Tradução livre.).

Aproveitando o período destacado na citação acima, e retomando o


componente curricular que é objeto desta análise, conforme é possível verificar,
não apenas no texto da BNCC, como também no da Lei 13.415/17, os
currículos do Ensino Médio precisam se reorganizar a fim de que caiba neles
um trabalho voltado para a construção do Projeto de Vida do/a estudante
seguindo o viés do protagonismo desse sujeito da aprendizagem que está
inserido/a na categoria juventudes.

Me pergunto: o que é necessário para que um currículo escolar se reorganize?


A partir de quais procedimentos ocorre essa reorganização? É preciso levar em
conta que há muitas disputas em torno dos currículos, e que, em se tratando de
documentos normativos que funcionam em nível nacional, essa redação
aparentemente inofensiva aponta para subtrações cruéis sendo manifestadas
em ambos os textos. Currículos também não se constroem sozinhos.

Somado a isso, se recuperarmos pelo menos uma das propagandas veiculadas


sobre o Novo Ensino Médio ainda em 2017 (https://youtu.be/DFfRjP_hyzM)
encontraremos frases como: “com o novo Ensino Médio você tem mais
liberdade para escolher o que estudar”, ou “é a liberdade que você queria para
decidir o seu futuro” sendo ditas por jovens. Uma leitura superficial já permite
identificar outra manipulação acontecendo, afinal, trata-se de colocar nas mãos
dos/as jovens, desses seres ainda em desordem, ainda em processo de vir a

45
ser, de conscientização de quem são no mundo, esse imperativo poderoso que
é poder escolher o que estudar na escola.

Ainda na introdução, a BNCC atrela a ideia de protagonismo do/a estudante à


de “educação integral”: “Assim, a BNCC propõe a superação da fragmentação
radicalmente disciplinar do conhecimento, o estímulo à sua aplicação na vida
real, a importância do contexto para dar sentido ao que se aprende e o
protagonismo do estudante em sua aprendizagem e na construção de seu
projeto de vida”. (BNCC, 2018, p. 15)

Ora, apesar da rápida discussão que fiz na segunda seção desse texto,
aparentemente, o/a jovem tomado pela BNCC protagoniza sozinho a sua
aprendizagem e o desenvolvimento de seu Projeto de Vida. O que encontra
consonância com o texto proferido por jovens na peça midiática mencionada
acima que foi veiculada quando da reforma que transformou o Ensino Médio
em “novo”.

Não apenas no momento introdutório, mas, em vários outros, o texto da BNCC


aponta para um/a jovem que existe e se constrói sozinho, aparentemente sem
a agência de um/a docente para mediar essa sua formação. O alicerce desse
protagonismo aparece ligado diretamente aos interesses pessoais desse/a
estudante – como a jovem que afirma, no vídeo, que quer se tornar professora
porque é o que ela ama –, ou quando a própria Base afirma que uma escola
que acolhe juventudes deve ter o compromisso de “Assumir a firme convicção
de que todos [as] [os/as] estudantes podem aprender e alcançar seus
objetivos, independentemente de suas características pessoais, seus percursos
e suas histórias [se se] garantir o protagonismo dos estudantes em sua
aprendizagem e o desenvolvimento de suas capacidades de abstração,
reflexão, interpretação, proposição e ação, essenciais à sua autonomia
pessoal, profissional, intelectual e política. (BNCC, 2018, p. 465)

Confesso ver problemas nessa abordagem, afinal, de onde essa juventude


parte para definir objetivos de vida? De que relações? E como é possível
desprezar as diferenças de características pessoais, percursos e histórias no
processo de elaboração desse “eu que desejo me tornar”, se, ao fim, são esses
elementos que nos diferenciam no mundo, tanto na mão daquilo que em nós é
único, irrepetível, quanto no apontamento para certa condição de precariedade
e vulnerabilidade nas sociedades?

“Não haveria “uma” história do sujeito, tampouco uma posição essencial,


originária ou mais “verdadeira”. É a multiplicidade dos relatos, suscetíveis de
enunciação diferente, em diversos registros e co-autorias (a conversa, a
história de vida, a entrevista, a relação psicanalítica), que vai construindo uma
urdidura reconhecível como “própria”, mas definível só em termos relacionais:
eu sou tal aqui em relação a certos outros diferentes e exteriores a mim”.
(ARFUCH, 2010, p. 129. Grifos da autora.)

46
A ideia de um protagonismo juvenil que se constrói “independente” de muitas
coisas que são fundamentais no que diz respeito à formação do sujeito como
sujeito me parece equivocada. Especialmente por talvez fazer sumir o diálogo
fundamental entre estudante e professor/a, dado que estes dois são elementos
que substantivam a experiência escolar – sem desconsiderar todos os demais
componentes que fazem a roda da escola girar.

Se for verdade que uma prerrogativa essencial para a elaboração do Projeto de


Vida, tomando por base o protagonismo dessas juventudes, é auxiliar
estudantes em seu reconhecimento enquanto sujeitos, conforme já
mencionado acima, como a BNCC pretende ensaiar que a escola dê conta
disso? A partir de que ingredientes, posto que a dimensão da relação entre
professor/a e aluno/a perde seu posto para um/a jovem que se forma sozinho?
Fico com a impressão de que esse processo formativo do eu não encontra
caminho para se realizar – e, precipitadamente ou não, talvez seja este o
objetivo real.

Por hora, encerro este texto com uma questão que abre para a continuidade
deste que será um capítulo em minha tese de doutorado: “Como pensar a
questão do biográfico no campo da educação? [...] Por outro lado, e este é o
aspecto, penso eu, menos contemplado e sobre o qual gostaria de insistir, está
a questão da biografia em sala de aula, o que ela supõe em relação às
experiências dos sujeitos no processo educativo. Porque na tensão
uniformizadora da escola, em sua pretensão de universalidade, muitas vezes o
grupo prevalece sobre as individualidades e seus próprios traços se diluem em
categorizações de ordem geral”. (ARFUCH, 2016, p. 240. Tradução livre.)

Referências Biográficas
Susanna Fernandes Lima, professora de História na rede estadual de ensino
do Rio de Janeiro (SEEDUC). Estudante de Doutorado no Programa de Pós-
Graduação em História Social do Território da UERJ-FFP (2021), na linha de
pesquisa Ensino de História e Historiografia. Mestre em Ensino de História
(2021) pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino de História da UERJ -
Mestrado Profissional em Ensino de História/PROFHISTORIA. Participa do
Núcleo de Estudos sobre Biografia, História, Ensino e Subjetividades
(NUBHES) - grupo de pesquisa cadastrado no CNPq - na linha de pesquisa
Razão biográfica, escrita e ensino/aprendizagem da História.

Referências Bibliográficas
ARFUCH, Leonor. O Espaço Biográfico. Dilemas da Subjetividade
Contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
ARFUCH, Leonor. Subjetividad, memoria y narrativas: una reflexión teórica y
política en el campo de la educación. Magis, Revista Internacional de
Investigación en Educación,. v. 9, n.(18), p. 227-244, ano?.

47
BRASIL. LEI N° 13.005/2014, de 25 de Junho de 2014. Disponível em:
https://pne.mec.gov.br/18-planos-subnacionais-de-educacao/543-plano-
nacional-de-educacao-lei-n-13-005-2014

BRASIL. LEI Nº 13.415, de 16 de Fevereiro deDE 2017. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm

BRASIL. MEC. Base Nacional Comum Curricular. Ministério da Educação.


Secretaria de Educação Básica. Brasília: MEC, SEB, 2018. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/pesquisar?q=Humanas&t%5B%5D=39

48
ESCOLA PROFISSIONALIZANTE DE TEMPO INTEGRAL:
QUE POLÍTICA EDUCACIONAL É ESSA?
Vanderlene de Farias Lima

Neste texto, para compreender algumas características da Escola


Profissionalizante de tempo integral e o seu propósito enquanto política
educacional, inicialmente é apresentada ao leitor uma discussão teórica sobre
o conceito de “política pública”. A abordagem sobre o tema começa pela
apresentação da etimologia das palavras “política” e “pública”, e o conceito é
complementado pelos autores Souza (2003) e Azevedo (2003).
Inevitavelmente, a reflexão sobre política pública nos leva a pensar também
sobre as dificuldades de acesso à educação no Brasil devido às desigualdades
sociais que afetam a maior parte dos brasileiros. Para expor essa problemática,
trago a abordagem de Garcia e Hillesheim (2017), que lançam o olhar sobre os
Planos Nacionais de Educação (PNEs), de 2001-2010 e de 2014-2024, os
autores mostram como são apresentadas as propostas de combate às
desigualdades no campo educacional.

Na sequência, ressalto que a política educacional brasileira é marcada por


acordos internacionais, iniciados com a Conferência de Jomtien em 1990, que
impactam na maneira como são pensadas e executadas as políticas públicas
na área da educação no Brasil. Logo depois, fiz um recorte histórico sobre o
surgimento da educação profissional no país e no estado do Ceará e apresento
a política atual de Ensino Médio no Ceará.

Para entender o título deste texto é necessário revisar o que é uma política
pública e qual a sua finalidade no interior de uma sociedade. Para especificar
melhor o tema, o primeiro caminho é trabalhar a etimologia das palavras para
definir a ideia de “política pública”. Nesse sentido, Oliveira (2010) explica que
“política pública é uma expressão que visa definir uma situação específica da
política” (OLIVEIRA, 2010, p. 93). De acordo com o autor, separadamente,
“Política é uma palavra de origem grega, politikó, que exprime a condição de
participação da pessoa que é livre nas decisões sobre os rumos da cidade, a
pólis. Já a palavra pública é de origem latina, publica, e significa povo, do povo”
(OLIVEIRA, 2010, p. 93). Logo, compreendemos que política pública envolve a
participação do povo na tomada de decisões e, dentro do contexto
democrático, o Estado é uma instituição social importante na execução dessas
políticas públicas.

Souza (2003) faz um balanço sobre as definições mais conhecidas sobre a


política pública e elabora a seguinte explicação para o termo:

49
“Campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, ‘colocar o governo em
ação’ e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário,
propor mudanças no rumo ou curso dessas ações e ou entender por que o
como as ações tomaram certo rumo em lugar de outro (variável dependente).
Em outras palavras, o processo de formulação de política pública é aquele
através do qual os governos traduzem seus propósitos em programas e ações,
que produzirão resultados ou as mudanças desejadas no mundo real” (SOUZA,
2003, p. 13).

Azevedo (2003) acrescenta que “política pública é tudo o que um governo faz e
deixa de fazer, com todos os impactos de suas ações e de suas omissões.”
(AZEVEDO, 2003, p. 38). Entretanto, a política de educação no Brasil reflete as
desigualdades do sistema que se concretiza através da distinção entre
educação pública e privada. São constantes os debates e reflexões sobre a
falta de qualidade da educação pública, justamente porque a política
educacional brasileira reforça as desigualdades.

Garcia e Hillesheim (2017) afirmam que “as desigualdades educacionais [...]


estão relacionadas à estrutura socioeconômica do país, sendo a pobreza sua
expressão mais explícita.” (GARCIA e HILLESHEIM, 2017, p. 133). Os autores
fazem uma análise sobre a problemática nos Planos Nacionais de Educação
(PNEs), de 2001-2010 e 2014-2024, e como são apresentadas propostas para
combater as desigualdades no campo educacional.

Durante o PNE 2001-2010, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva


substituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e de Valorização do Magistério (FUNDEF) pelo Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da
Educação (FUNDEB), garantindo o aumento de recursos financeiros para os
municípios por critérios como a quantidade de matrículas e a permanência dos
alunos nas instituições escolares. Tais critérios, entretanto, geraram críticas
nos debates do PNE 2014-2024 porque beneficiariam as escolas com melhores
desempenhos e aprofundaria ainda mais a precarização das escolas com baixo
rendimento, ajudando a manter a desigualdade na educação (GARCIA;
HILLESHEIM, 2017, p. 138).

No Art. 2°, inciso III do PNE 2014-2024, é destacada a “superação das


desigualdades educacionais com ênfase na promoção da cidadania e na
erradicação de todas as formas de discriminação” (BRASIL, 2014, p. 32). De
acordo com Garcia e Hillesheim (2017), a participação das minorias sociais,
como índios, negros e quilombolas, no acesso à educação de qualidade
sofreria uma negação à política pública educacional com os critérios de
desempenhos das escolas, marcados por rankings e avaliações baseadas na
meritocracia.

Os acordos celebrados após a Conferência Educacional de Jomtien, na


Tailândia, em 1990, na qual é marcante a interferência do Banco Mundial e do

50
Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) na
educação, intervieram na formulação das orientações que balizam o ensino
para todos os cidadãos do mundo. A Conferência Educacional de Jomtien
contou com a participação de cento e cinquenta e cinco governos de países
distintos, financiada pelos seguintes organismos internacionais: a Organização
das Ações Unidas para a Educação (UNESCO); o Fundo das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF), Banco Mundial (BM) e o Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Mas, antes mesmo da Conferência de Jomtien, podemos citar a criação da


Comissão Econômica da América Latina e Caribe (CEPAL) em 1948 para
assessorar no crescimento dos países em desenvolvimento e no campo da
educação a Oficina Regional para a Educação na América Latina e no Caribe –
OREALC (FRIGOTTO; CIAVATTA, 2003, p. 96).

As chamadas taxas de retorno acontecem pelos resultados das avaliações


nacionais e internacionais criadas em 1990, como o Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Básica (Saeb), Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem), Exame Nacional de Cursos (Provão), Avaliação dos Cursos Superiores
e o Laboratório Latino-Americano de Avaliação da Qualidade de Educação e o
Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa). O planejamento e
a gestão da educação no Brasil levam em conta também o Censo Educacional,
realizado todos os anos pelo Ministério da Educação (MEC), em parceria com
as secretarias de educação dos estados e do Distrito Federal.

Sobre a atuação do BIRD no sistema educacional brasileiro, Miranda (1997)


afirma que o órgão internacional defende uma educação para o aumento da
produtividade do país, é uma visão para o desenvolvimento econômico. De
acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL),
os países da América Latina só conseguem participar da competição
internacional se tiverem um povo preparado e educado nos moldes técnicos
para avançar no sistema produtivo. Desse modo, é necessária uma educação
que prepare as pessoas para o consumo e a produção. Conforme diz Torres
(1998), o BIRD indica como prioridade a inserção dos pobres no Ensino Médio
e profissionalizante, enquanto o ensino superior deve ser privatizado, ou seja,
destinado a uma parcela da população (elite) que tem condições de pagar.
Percebemos o quanto ações e políticas em nível macroeconômico afetaram a
educação no Brasil, traçando um projeto que pretende se adequar ao
capitalismo e à globalização.

Atualmente, a educação profissional implantada no Ceará tem sido destacada


nacionalmente como uma política pública educacional com o propósito de
elevar os índices de ensino-aprendizagem. Sobre o contexto histórico da
educação profissional no Brasil e no Ceará, devemos entender que sua
trajetória está atrelada à noção de “trabalho”.

De acordo com Manfredi (2002), o trabalho é uma atividade que tem seus
sentidos modificados conforme o tempo histórico, a cultura dos sujeitos e as

51
relações de poder vigentes nas sociedades. A compreensão de trabalho, desse
modo, não pode ser dissociada da educação, uma vez que as técnicas
profissionais (como a fabricação de utensílios, fabricação de objetos de caça e
pesca) eram ensinadas de uma geração para outra garantindo a sobrevivência
dos povos.

A educação profissional nos moldes atuais teve início com um fato histórico
importante: a Revolução Industrial no século XVIII, que transformou o processo
produtivo trocando o modo de produção artesanal por máquinas potentes. Essa
mudança impactou significativamente nas relações de trabalho e na fabricação
dos produtos, pois era possível produzir em maior quantidade e em menos
tempo, facilitando também o escoamento da mercadoria e o transporte das
pessoas (VIEIRA; SOUZA JÚNIOR, 2016, p. 153). Tais transformações no
cenário da Inglaterra passaram a exigir uma educação que atendesse às
demandas de uma sociedade industrializada e preparasse os jovens
tecnicamente para assumir funções nas fábricas. “A mão-de-obra precisava ser
capaz de atender à demanda emergente, ou seja, de servir à maior produção
de bens para o consumo” (MANACORDA 1995, p. 287). Vieira e Souza Júnior
(2016, p. 154) citam que a partir dessa necessidade surgem as escolas de
artes e ofícios para qualificar o trabalhador lhe fornecendo um conhecimento
técnico.

A qualificação técnica para os trabalhadores no Brasil iniciou com a


colonização, utilizando os habitantes indígenas e os escravos africanos como
primeiros executores do trabalho manual. A elite da época se ocupava da vida
acadêmica e menosprezava as atividades braçais. No período Imperial, a
educação profissional é marcada pela criação das Casas de Educandos
Artífices. No contexto da República, o ensino técnico no Brasil tem início em
1909 com o Decreto n.º 7.566, de 23 de setembro de 1909.

Kuenzer (2009, p. 27) afirma que nesse período a educação tinha uma
“finalidade moral de repressão: educar pelo trabalho, os órfãos, pobres, e
desvalidos da sorte, retirando-os das ruas”. Nesse sentido, a educação era
vista como política pública capaz de moralizar a conduta dos sujeitos pelo
trabalho. Vieira e Souza Júnior (2016, p. 156) apontam que “em 1910, essas
Escolas passaram a ofertar cursos de tornearia, mecânica e eletricidade, além
das oficinas de carpintaria e artes decorativas”. Sales e Oliveira (2011 apud
Vieira e Souza Júnior, 2016, p. 156) registram que eram escassos o número de
professores qualificados para trabalhar nessas escolas, reduzindo a eficiência
do ensino na rede pública.

A década de 1930 marca o início da industrialização no Brasil e com isso as


escolas passam a ofertar novos cursos para atender à demanda da sociedade.
A Constituição de 1937 foi a primeira do país a tratar do ensino profissional.
Nesse mesmo ano é criado o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial -
SENAI; no ano seguinte, a Lei Orgânica da Educação Nacional do Ensino
Comercial e, em 1946; o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial -
SENAC, o Serviço Social do Comércio - SESC e o Serviço Social da Indústria -

52
SESI (VIEIRA; SOUZA JÚNIOR, 2016, p. 157). Ou seja, percebemos a forte
presença de instituições voltadas para o crescimento econômico e
desenvolvimento industrial, fazendo-se necessária uma educação que também
atendesse a essas demandas, com uma filosofia de trabalho voltada para a
qualificação dos jovens. Nesse sentido, podemos mencionar que durante o
governo de Juscelino Kubitschek é aprovada a primeira Lei de Diretrizes e
Bases da Educação brasileira (Lei n.º 4.024/1961).

Com a Ditadura Militar, instaurada em 1964, a Lei n.º 5.692/71 tratava o Ensino
Médio profissionalizante como uma imposição para os brasileiros da classe
trabalhadora. Com a Lei n.º 9.394/1996 (BRASIL, 1996), a educação
profissional passa a considerar a escola como meio de ingressar no ensino
superior, trabalhando a inclusão social e a certificação na qual o jovem pode
ingressar no mercado de trabalho.

A partir da Lei n.º 11.741/2008, nos artigos 39 e 42, o termo “Educação


Profissional” passa a ser chamado de “Educação Profissional e Tecnológica”. A
Lei n.º 12.513 de 2011 criou o Programa Nacional de Acesso ao Ensino
Técnico e Emprego – Pronatec (BRASIL, 2011), que amplia o acesso à
educação profissional e tecnológica.

Os eixos tecnológicos criados pelo Ministério da Educação dialogam com todo


o contexto histórico mencionado anteriormente, no qual é bem presente a
busca de uma qualificação para o mercado, e as escolas têm voltado sua
filosofia de ensino para atender também tais demandas. Nesse sentido,
mencionamos aqui o estado do Ceará, que tem se destacado no cenário
educacional do Brasil devido à política de Ensino Médio integrado à Educação
Profissional. Como exemplo disso, podemos citar o resultado de uma pesquisa
divulgada em setembro de 2019 que mostrou que das cem escolas de Ensino
Médio com melhor desempenho no Brasil, cinquenta e cinco estão no Ceará.
As escolas mais bem avaliadas são de tempo integral, com destaque para o
desempenho das escolas profissionais construídas pelo governo do Estado .

Essa pesquisa foi feita pelas instituições Interdisciplinaridade e Evidências no


Debate Educacional (Iede), Fundação Lemann, Instituto Unibanco e Itaú BBA,
tendo como base no rendimento do Enem, da Prova Brasil, a taxa de
aprovação de cada escola pesquisada e o nível socioeconômico, conforme a
classificação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira – Inep (CEARÁ, 2019). A jornada ampliada nas escolas integrais foi
considerada um ponto positivo nesta pesquisa, pois aumenta os vínculos entre
estudantes e docentes: os jovens se envolvem mais nas atividades escolares,
aumentando seu interesse pelos estudos e potencializando o ensino-
aprendizagem.

A política de Ensino Médio integral no Ceará até o ano de 2019 contava com
130 escolas de ensino regular em tempo integral e 122 escolas
profissionalizantes. Em dezembro de 2019, o governador Camilo Santana
anunciou que criaria mais 25 escolas de Ensino Médio regular em tempo

53
integral no ano de 2020, totalizando 277 escolas nessas duas categorias
(CEARÁ, 2019). O governador costuma ressaltar nas suas falas que a
educação de tempo integral oferece oportunidades aos jovens cearenses e é
uma forma de retirá-los da violência e da criminalidade, já que a juventude fica
mais tempo nas escolas.

No trabalho de André Haguette, Márcio Pessoa e Eloísa Vidal (2016) intitulado


“Dez escolas, dois padrões de qualidade. Uma pesquisa em dez escolas
públicas de Ensino Médio do Ceará”, os autores realizaram um estudo
comparando dez escolas públicas cearenses, no qual cinco se destacam pelo
bom desempenho e as outras cinco pelos piores rendimentos no Exame
Nacional do Ensino Médio, no ano de 2011. Na caracterização das escolas de
maior desempenho pedagógico, um dos pontos marcantes é o funcionamento
da instituição escolar em tempo integral, informação que corrobora com o
aumento do investimento do governo do Estado do Ceará na construção de
escolas de tempo integral, como as Profissionais, que tem apresentado bons
resultados. A maior parte das escolas com bom desempenho registradas nesta
pesquisa de 2011 funciona em tempo integral, o desejo de aprender dos alunos
é maior, existe uma autodisciplina coletiva, o tempo letivo é bem aproveitado,
existe o estágio remunerado e há uma infraestrutura adequada para o bom
funcionamento das atividades escolares.

Para compreender melhor a lógica de funcionamento das escolas profissionais,


pesquisei no site da Secretaria de Educação do Ceará - (Seduc) informações a
respeito da criação das Escolas profissionais, seu Projeto Político Pedagógico
(PPP), os cursos ofertados, indicadores educacionais e informações sobre os
Estágios.

De acordo com as informações do site da Seduc (CEARÁ, 2015), as Escolas


Estaduais de Educação Profissional (EEEP) começaram a ser implantadas em
2008, atendendo 20 (vinte) municípios com 04 (quatro) cursos profissionais de
nível técnico: Enfermagem, Informática, Segurança do Trabalho e Guia de
Turismo. A educação em tempo integral ofertada aos jovens cearenses tem
como propósito a qualificação para o mercado de trabalho e a preparação para
o ingresso nas universidades. Essa política educacional é fruto de uma parceria
do Governo Estadual com o Governo Federal por meio do Programa Brasil
Profissionalizado, e conta com financiamento do Tesouro Estadual para a
ampliação da educação profissional e tecnológica no estado. Também existem
outras parcerias na educação brasileira com empresas privadas. Podemos citar
empresas como a Fundação Itaú, Fundação Bradesco, Sesi, Fundação Banco
do Brasil, Instituto Unibanco, Instituto Airton Senna (IAS) e a Odebrecht.

Apenas descrever a política de educação profissional não é suficiente para a


nossa análise, pois é necessário também fazer um diagnóstico crítico sobre os
seus propósitos considerando o atual estágio de desenvolvimento do sistema
capitalista e o fenômeno da globalização. Desse modo, processos de âmbito
global e organismos internacionais influenciam na formulação de orientações
para um tipo específico de educação que deve ser implantada nos países em

54
desenvolvimento, como o Brasil. No Brasil, as influências dessa parceria com
organismos mundiais se fazem sentir nas metas que guiam desde então as
avaliações externas e internas (Sistema de Avaliação da Educação Básica –
Saeb, Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM, Programa Internacional de
Avaliação de Estudantes – Pisa, por exemplo) observando que a educação
profissional no Brasil é motivada por questões socioeconômicas e ideológicas.

Essa política pública educacional voltada para a juventude descrita pelos


autores, portanto, se relaciona com a flexibilização do trabalho e visa atender o
capitalismo, a modernização tecnológica, a globalização e o crescimento da
economia, e conta com o apoio de agências internacionais como o Banco
Mundial, dentre outras mencionadas neste trabalho. A educação profissional no
Ceará objetiva qualificar o público jovem para o ingresso no mercado de
trabalho e possibilita também a preparação para o ensino superior (CEARÁ,
2015). Sua coordenadoria tem também como objetivo fomentar o
protagonismo, o empreendedorismo e a capacidade de liderança (CEARÁ,
2015).

Podemos analisar um crescimento significativo da construção de escolas


profissionais no Ceará. O Governo do Estado tem investido bastante nessa
política, visto que tem trazido resultados positivos para a educação que se
tornou referência para o país. Mas, para além desse dado e observando a
história de formação das escolas profissionais no Brasil e no Ceará, podemos
notar também que o desenvolvimento do país demanda mão-de-obra
qualificada e isso faz com que haja um investimento nesse setor, e a escola
busca atender a esse interesse.

Referências Biográficas
Vanderlene de Farias Lima, professora da Escola Estadual de Educação
Profissional Deputado José Maria Melo.

Referências bibliográficas
AZEVEDO, Sérgio de. Políticas públicas: discutindo modelos e alguns
problemas de implementação. In: SANTOS JÚNIOR, Orlando A. dos et. al..
Políticas públicas e gestão local: programa interdisciplinar de capacitação de
conselheiros municipais. Rio de Janeiro: FASE, 2003.

BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de


Educação – PNE e dá outras providências. Brasília: Congresso Nacional, 2014.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l13005.htm. Acesso em: 11 abr. 2019.

BRASIL. Lei 12. 513, de 26 de outubro de 2011. Institui o Programa Nacional


de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec); altera as Leis nº 7.998,
de 11 de janeiro de 1990, que regula o Programa do Seguro-Desemprego, o
Abono Salarial e institui o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), nº 8.212, de
24 de julho de 1991, que dispõe sobre a organização da Seguridade Social e
institui Plano de Custeio, nº 10.260, de 12 de julho de 2001, que dispõe sobre o

55
Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior, e nº 11.129, de 30
de junho de 2005, que institui o Programa Nacional de Inclusão de Jovens
(ProJovem); e dá outras providências. 2011. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12513.htm.
Acesso em: 15 abr. 2019.

CEARÁ. Portal do Governo do Estado. Ceará tem 55 escolas de ensino médio


entre as 100 mais bem avaliadas do Brasil. Educação, 30 de setembro de
2019. Disponível em: https://www.ceara.gov.br/2019/ 09/30/ceara-tem-55-
escolas-de-ensino-medio-entre-as-100-mais-bem-avaliadas-do-brasil/. Acesso
em: 13 jan. 2020.

CEARÁ. Secretaria de Educação. Educação Profissional, 2015. Disponível em:


https://educacaoprofissional.seduc.ce.gov.br/index.php?option=com_content&vi
ew=article&id=12&Itemid=128. Acesso em: 28 abr. 2020.

FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria. Educação básica no Brasil na


década de 1990: Subordinação ativa e consentida à lógica do mercado. Educ.
Soc., Campinas, v. 24, n. 82, p. 93-130, abr. 2003. Disponível em:
http://www.cedes.unicamp.br. Acesso em: 15 abr. 2019.

GARCIA, A. V.; HILLESHEIM, J.. Pobreza e desigualdades educacionais: uma


análise com base nos Planos Nacionais de Educação e nos Planos Plurianuais
Federais. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, Edição Especial n. 2, p. 131-147,
set. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/er/nspe.2/0104-4060-er-02-
00131.pdf. Acesso em: 27 abril 2019.

HAGUETTE, André; PESSOA, Márcio Kléber Morais; VIDAL, Eloísa Maia. Dez
escolas, dois padrões de qualidade. Uma pesquisa em dez escolas públicas de
Ensino Médio do Estado do Ceará. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em
Educação, Rio de Janeiro, v. 24, n. 92, p. 609-636, jul./set. 2016.

KUENZER, A. Z. (org.). Ensino médio: construindo uma proposta para os que


vivem do trabalho. 6. ed.. São Paulo: Cortez, 2009.

MANACORDA, M. A. História da educação: da Antiguidade aos nossos dias. 4.


ed.. São Paulo: Cortez, 1995.

MANFREDI, S. M.. Educação profissional no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002.

MIRANDA, M. G.. Novo paradigma e políticas educacionais na América Latina.


Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 100, p. 49-46, mar. 1997.

OLIVEIRA, Adão Francisco de. Políticas públicas educacionais: conceito e


contextualização numa perspectiva didática. In: OLIVEIRA, A. F.; PIZZIO, A.;
FRANÇA, G.. Fronteiras da Educação: desigualdades, tecnologias e políticas.
Goiás: Editora da PUC, 2010. p. 93-99.

56
SOUZA, Celina. Políticas públicas: questões temáticas e de pesquisa. Caderno
CRH, Salvador, n. 39, jul./dez. 2003.

TORRES, R. M.. Melhorar a qualidade da educação básica? As estratégias do


Banco Mundial. In: TOMASSI, L ; WARDE, M. J.; HADDAD, S. (org.). O Banco
Mundial e as políticas educacionais. 2. ed.. São Paulo: Cortez, 1998.

VIEIRA, Alboni Marisa Dudeque Pianovski; SOUZA JÚNIOR, Antonio de. A


educação profissional no Brasil. Interacções, Lisboa, n. 40, p. 152-169, 2016.
Disponível em: https://revistas.rcaap.pt/interaccoes. Acesso em: 28 abr. 2019.

57
HISTÓRIA DO ENSINO

58
“A ESCOLA CATÓLICA”: A PEDAGOGIA RELIGIOSA COMO
PILAR DO PODER ECLESIÁSTICO DA PARAÍBA
Alexandro dos Santos e Ronyone de Araújo Jeronimo

O Colégio Diocesano Pio X é uma das instituições de ensino mais “tradicionais”


da Paraíba. A ser criado em 4 de março de 1894, pelo então primeiro bispo do
estado, Dom Adauto de Henrique Miranda, o Colégio fez parte do projeto de
“reconstrução social” da população paraibana, com o objetivo de educar os
jovens do sexo masculino em um modelo de pedagogia pautada no discurso
religioso. Nesse sentido, não poupou esforços no sentido de aproximar e
fortalecer os laços da Igreja Católica com o Estado e, ao mesmo tempo, tornar
a juventude educada e disciplinada em modelos educacionais considerados e
vistos como modernos.

No sentido de alcançar o presente objetivo, o Colégio Diocesano Pio X ofertou


“uma base sólida e estável” por meio de uma educação religiosa. Isso pode ser
percebido por meio da leitura do seguinte trecho, publicado em 17 de abril de
1916, pelo jornal católico A Imprensa: “A Escola católica - Num país católico
como o nosso parece um paradoxo que ainda haja quem ignore o que seja a
escola católica, a escola religiosa” (A IMPRENSA, 1916, s/p).

O jornal A Imprensa foi um dos veículos de comunicação em circulação na


Paraíba, que mais demonstrou interesses em defender a relevância da escola
católica no processo de formação intelectual e moral da juventude paraibana,
demonstrando a preocupação que tomou conta dos membros da Igreja Católica
após a sua separação do Estado. Problemática que passou a fazer parte das
discussões travadas na Igreja brasileira, no final do século XIX, com a
Proclamação da República. A ruptura das duas instituições tornou o ensino
leigo. Ou seja, a Igreja Católica, que até o momento tinha exercido um forte
controle sobre o ensino no país, perdeu essa hegemonia. Para Horta (2012, p.
81), “o Estado republicano rompe com o regime do Padroado e proclama-se
leigo. A separação entre a Igreja e o Estado é oficializada por decreto em
janeiro de 1890 e confirmada pela Constituição republicana de 1891”.

Ao estabelecer o Estado laico no Brasil, a Constituição republicana colocou em


xeque o antigo poder exercido pela Igreja Católica na esfera nacional,
perdendo, assim, sua posição de religião oficial e também parte de sua
influência perante a sociedade. De acordo com Cavalcante Neto,

“Assim, para fazer frente a essa situação política e garantir sua sobrevivência
institucional, a Igreja procurou intensificar o processo de romanização da

59
sociedade brasileira, com estratégias no campo interno (congressos, abertura e
reforma dos seminários, a vinda de religiosos da Europa e da unidade pastoral
dos bispos) e no externo (comunicações públicas por meio das cartas pastorais
e da imprensa, visitas pastorais, conferências e liturgias), que produziram a sua
reorganização no período de 1889 a 1930” (2014, p. 8-9).

A criação das escolas confessionais foi uma das soluções encontradas pela
Igreja Católica para lutar contra a instituição do Estado Laico. Esse modelo de
escola passou a ser considerado como “um templo da ciência, a oficina da
virtude, espaço onde a criança aprende, desde os albores de sua razão, a
amar a justiça e odiar a iniquidade” (A IMPRENSA, 1916, s/p). É um
“prolongamento do lar, onde se vive a mesma vida de família – uma vida
profundamente cristã, plena e perfeita, com seus hábitos de fé, obediência e
trabalho” (A IMPRENSA, 1916, s/p). É educativa ao se comprometer com a
formação da vontade e do caráter. Segundo o discurso do jornal A Imprensa, a
escola religiosa trabalhava no sentido de aperfeiçoar a inteligência e as
faculdades dos alunos, zelando pela formação de quase todas as qualidades
humanas: física, psíquica, religiosa e moral. A organização e zelo pela
educação passam a ser uma das principais virtudes do modelo de educação
defendido pela escola religiosa:

“Ao lado dos estudos há os brincos infantis; os passeios higiênicos alternam


com os passeios instrutivos. O canto, a música, as festas, os desportos, as
diversões de toda sorte são distribuídos de maneira que as horas de trabalho
se sucedem umas às outras, sem que o aluno se enfade e se canse jamais (A
IMPRENSA, 1916, s/p)”.

O discurso religioso se alinha com outros aparatos discursivos da época


(brincadeiras, higiene, canto, música, festas, esportes) para legitimar a
importância da escola religiosa. O religioso e o científico passaram a caminhar
juntos, de mãos dadas, lado a lado. A educação física, moral e intelectual
também ajudaram compor o projeto de romanização social. Os membros da
Igreja Católica utilizaram inúmeras estratégias discursivas para justificar a
relevância da instrução religiosa na formação do caráter dos alunos. Segundo
Michel Foucault, o discurso é resultado de: “Um conjunto de regras anônimas,
históricas sempre determinadas no tempo - espaço, que definiram em uma
dada época, e para uma área social, econômica, geográfica, ou linguística,
dada as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 1997, p.
43). O discurso é pensado e problematizado em função das múltiplas
condições de possibilidade proporcionadas e estabelecidas pelas instituições
sociais. É uma prática que relaciona a língua e seus usos a “outras práticas”
que fazem parte do campo social. As práticas discursivas assumem esse papel
de ser um elo que as une às práticas sociais.

Por esse motivo, os editores do jornal A Imprensa não economizaram tinta e


papel ao criticar o modelo de ensino proposto pelo projeto de construção da
escola leiga. “Não, não é a religião uma sobrecarga; sobrecarga é a moral
leiga, a moral independente, a moral científica, com seus equivalentes, sem

60
eficácia alguma, porque ela não exerce sua influência sobre o entendimento” (A
IMPRENSA, 1916, s/p). A escola leiga foi acusada de ser antipedagógica e
anti-educativa. De incentivar a desarmonia e “uniformidade de métodos entre
os próprios educadores”.

Foi com o objetivo em mente de ampliar a área de influência da educação


religiosa, na Paraíba, opondo-se ao ensino leigo, que Dom Adauto Aurélio de
Miranda Henriques dedicou parte de sua vida à construção de escolas
confessionais. “Na prática, os colégios religiosos passaram a dar atenção
especial a elite dominante, desejosos de educar seus filhos dentro dos padrões
europeus” (SOUSA JÚNIOR, 2015, p. 205). Na realidade, a criação dessas
instituições teve a intenção de manter viva na Paraíba a “hierarquia católica”, a
preservação da fé e o controle eclesiástico da sociedade. Essas ações indicam
que a preocupação da Igreja Católica estava voltada para a formação
intelectual e moral de jovens do sexo masculino e feminino.

Um dos caminhos encontrados pela cúpula da Igreja Católica para implantar


seu projeto de romanização durante os primeiros anos da República foi
buscando ampliar sua estrutura e influência diante da sociedade. Esta
instituição, durante o movimento de romanização social, criou a Diocese da
Paraíba, em 27 de abril de 1892. Dois anos depois, Dom Adauto recebeu a
incumbência de dirigir a diocese da Paraíba.

No período em que ficou à frente da direção da Igreja Católica local, Dom


Adauto dedicou parte de seu trabalho no sentido de ampliar o projeto de
romanização social, tentando reaproximar a Igreja do Estado. Nesse sentido,
questões religiosas, políticas, sociais, econômicas, culturais e ideológicas
passaram a ditar as regras do jogo político. Com isso, o bispo paraibano
“lançou mão das estratégias que já vinham sendo dinamizadas pelos demais
bispos reformadores brasileiros: consciência da comunhão da diocese com
Roma, integração com os demais bispos do Brasil, organização estrutural e
pastoral da Igreja” (CAVALCANTE NETO, 2014, p. 10), além do que ele
mesmo chamou de “erros da modernidade”: positivismo, racionalismo,
maçonaria, espiritismo, materialismo, anarquismo, protestantismo, socialismo,
comunismo.

No sentido de dar um maior destaque para a formação do clero do Estado, no


mesmo ano de sua posse, Dom Adauto criou o Seminário Episcopal Nossa
Senhora da Conceição. O bispo criou colégios religiosos nas principais sedes
da diocese, dedicados à formação intelectual e moral dos filhos de membros da
elite paraibana (Paraíba) e potiguar (Rio Grande do Norte). No Quadro 1,
encontram-se informações como o local, o ano e o público alvo dos colégios.

61
Quadro 1 – Colégios Católicos da Diocese da Parahyba do Norte (1894-
1909).

Fonte: Elaborado pelo autor Santos, a partir das informações colhidas em


Cavalcante Neto (2014, p. 10).

A maioria das escolas criadas por Dom Adauto atendia aos interesses das
elites da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Mesmo assim, querendo ampliar a
área de influência da Igreja Católica diante da sociedade, o bispo destinou
algumas das escolas à assistência de crianças carentes (pobres) dos dois
estados. O projeto de criação desses colégios pode indicar que Dom Adauto
direcionou sua atenção para os assuntos da “educação formal da diocese”. Ele
viu a educação como a melhor estratégia a ser utilizada para a formação de
uma dada elite intelectual e também para divulgação da cultura escolar
pretendida pela Igreja Católica, com o objetivo de ampliar e alinhar o
catolicismo junto aos interesses do Estado, garantindo, dessa forma, “a
continuidade dos princípios católicos na sociedade paraibana e na potiguar”
(CAVALCANTE NETO, 2014, p. 11).

Nos dois estados, a Igreja Católica “buscou recuperar territorialidades a partir


da proliferação das práticas instrucionais” (SILVA, 2014, p. 04). A criação
dessas instituições educativas foi uma das soluções possíveis para se manter a
hegemonia dos preceitos cristãos na sociedade, assim como para garantir a
sobrevivência da instituição romana no Brasil. Na Paraíba, o esforço
desempenhado por Dom Adauto para defender os interesses do catolicismo é
notável. Dentre as instituições confessionais por ele criadas, merece destaque
o Colégio Diocesano Pio X. A população paraibana reservou ao Colégio o título
de “um autêntico educandário cristão, desta forma, demasiado moralizador. Ao
começar pelos hábitos ao falar, ao vestir, ao se comportar, em suma, as
práticas e a disciplina cristã” (SILVA, 2014, p. 28).

62
Em 1932, Dom Adauto publicou nas páginas do jornal católico A Imprensa, a
Carta Pastoral: Das vantagens do ensino religioso. Na carta, o bispo não
economizou nos argumentos ao defender a importância da educação religiosa
para a família. Também abordou o tema da educação religiosa para os jovens
do Estado, pautada nos ensinamentos do catolicismo.

“Sim, Irmãos e filhos muito amados, o ensino religioso não nos faz ver somente
que é Deus [...] mas nos faz ver também quem é a pessoa Divina de Jesus
Cristo que, além da sua grande obra – a Igreja – quis, para perpetuar a sua
missão salvadora, fazer-se homem como nós para ser também em sua vida
mortal nosso modelo de humildade contra a soberba, origem primaria de todas
as misérias deste mundo; modelo de obediência, de virtude, prudência, de
justiça e fortaleza no bem [...]. Assim, caríssimos pais e mães de família si
realmente quereis ter mais tarde a doce consolação e gloria de ver neles filhos
obedientes, amigos dedicados e fieis, cidadãos prestimosos, sacerdotes
modelos (se para este estado Deus os chamar), pais de família exemplares,
instrui-os na sagrada e infalível doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, no
catecismo desde a sua infância com palavras e bons exemplos, os sentimentos
das virtudes cristãs e obediência aos mandamentos de Deus (HENRIQUES,
1932, p. 4-7)”.

A fala de Dom Adauto indica a preocupação que tomou conta da Igreja Católica
da Paraíba, no que diz respeito ao tema da educação dos jovens e o papel
desempenhado pela família nesse processo. “Para o Arcebispo, o ensino
religioso era a base fundamental para a formação da personalidade e do
comportamento do cidadão, pois este conhecimento religioso poderia torná-lo
um cidadão do bem e defensor dos princípios cristãos” (SOUSA JÚNIOR,
2015, p. 209). Foi com esse intuito, de propagar a fé católica através de
escolas confessionais, que Dom Adauto depositou parte de seus esforços no
projeto de edificação de colégios com viés religioso.

A atuação de Dom Adauto na educação formal da Paraíba foi bastante


expressiva. “Os Colégios na Paraíba eram, explicitamente, uma reação ao
parágrafo 6º do Artigo 72 da Constituição: Será leigo o ensino ministrado nos
estabelecimentos públicos” (SOUSA JÚNIOR, 2015, p. 211). Ele passou a ver
na educação uma estratégia possível para a estruturação da Igreja Católica da
Paraíba, já que parte dos jovens que estudavam nessas escolas futuramente
passaria a ingressarem nos quadros eclesiásticos da própria igreja, como
seminaristas, e participariam da formação de futuros intelectuais católicos que
seriam responsáveis diretos no processo de divulgação dos projetos da Igreja.

Referências biográficas
Dr. Alexandro dos Santos, professor da Escola Municipal de Ensino
Fundamental Nossa Senhora dos Milagres – São João do Cariri – Paraíba.

Ronyone de Araújo Jeronimo, estudante de doutorado do Programa de Pós-


graduação em Educação da Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, e
bolsista Capes. Mestre em História pela Universidade Federal de Campina

63
Grande-UFCG. E graduado pelo curso em licenciatura em História pela
Universidade Federal de Campina Grande-UFCG.

Referências bibliográficas
CARVALHO, Marta Maria de. A Escola e a República. São Paulo: Editora
Braziliense, 1989.

CAVALCANTE NETO, Faustino Teatino. A Igreja Católica na Paraíba


republicana: romanização e “males” a serem combatidos. Revista Paraibana de
História, ano I, n. 1, 2º semestre de 2014.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,


1997.

HORTA, José Silvério Baia. O hino, o sermão e a ordem do dia: regime


autoritário e a educação no Brasil (1930-1945). – 2.ed. ver. – Campinas, SP:
Autores Associados, 2012.

Jornal A Imprensa. Paraíba. 10. 01. 1916 a 21. 12. 1916. Arquivo Eclesiástico
da Paraíba, João Pessoa.

SILVA, José Eudes Ferreira da. Uma instituição confessional masculina: o


Diocesano Pio X e suas representações, práticas e cultura escolar dos anos
1894-1910. 2014. 33f. Monografia. (Graduação em História). Universidade
Estadual da Paraíba, Centro de Educação, Campina Grande – PB.

SOUSA JUNIOR, José Pereira. Estado laico, igreja romanizada na Paraíba


republicana: relações políticas e religiosas (1890–1930). 2015. 232f.
Doutorado. (Pós-Graduação em História). – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife – PE.

64
OS PRIMEIROS MOMENTOS DA EDUCAÇÃO PARA A
INFÂNCIA NA REGIÃO NORTE DO ESTADO DO PARANÁ
POR MEIO DE FOTOGRAFIAS
Cláudia Sena Lioti

A partir do instante em que nossas intenções permitem, outros objetos além de


ofícios, atas, legislações e relatos escritos podem se tornar testemunhas de um
fato passado. As fotografias, por exemplo, são também fontes históricas
poderosas para discorrer sobre aspectos da vida privada, sobre a história das
instituições, sobre o cotidiano, as relações pessoais, dentre outras ações.

Entretanto, espera-se que elas sejam interpretadas com sagacidade por quem
as observa, já que dessa maneira se pode desvendar características sociais,
obter pistas sobre outros tempos e ajudar a compreender comportamentos. Ao
analisar uma fotografia deve-se entrepor o seguinte desafio: Como apreender
as mensagens e informações que não foram primeiramente evidenciadas na
imagem? Como não analisar de modo perfunctório uma imagem fotográfica e
ultrapassar os limites da superficialidade para chegar a uma verificação
pormenorizada?

Portanto, o objetivo deste artigo é propor uma reflexão sobre a importância de


considerar todos os aspectos de uma fotografia. Na tentativa de desvelar a
conexão das imagens fotográficas com fatores econômicos, políticos e sociais.
Utiliza-se como instrumento os primeiros registros fotográficos localizados em
pesquisa documental sobre a história do Parque Infantil Décio Medeiros Pullin
de Mandaguari, uma instituição pioneira no atendimento à primeira da infância
da região norte do estado do Paraná.

A partir dessas fotografias, narra-se sobre os primeiros momentos da história


da educação pública ofertada para crianças pequenas nessa região, utilizando
por exemplo, o registro fotográfico das últimas etapas do processo de
edificação do prédio e do prédio já erguido e pronto para o primeiro dia de aula.

Adotou-se, como metodologia, a pesquisa documental. Buscou-se pelos


primeiros registros fotográficos que pudessem descrever alguns dos principais
momentos vivenciados nas primeiras décadas nos arquivos desse Jardim de
Infância que hoje tem uma denominação diferente daquela adotada em suas
primeiras décadas, Centro Municipal de Educação Infantil Tio Patinhas.
Apresenta-se, também, referências bibliográficas que destacam a relevância

65
dos documentos imagéticos (TAMANINI, 2020), e consideraram a realidade
empírica em cada registro fotográfico (GINZBURG, 2007).

Por meio da rápida discussão apresentada neste artigo, defende-se que, uma
análise mais cuidadosa das fotografias apresentadas aponta para a
materialidade das informações e apreensões que não são captadas numa
investigação superficial, num primeiro olhar e numa observação
despretensiosa.

Propõe-se evidenciar as demais estruturas que se articulam com a informação


inicial que a fotografia transmite, evidenciar a composição do aglomerado de
personagens que ajudaram na composição da história dessa instituição e
desvelar circunstâncias que poderiam passar imperceptíveis em um olhar mais
superficial de quem observa.

Compreende-se, contudo e conforme Bloch (1993) que essas interpretações


não passam de “pistas” daquilo que realmente aconteceu. Este grande
historiador afirmou também que não se pode compreender todo a concretude
de um fato que ficou para trás. O que temos são dados incompletos e
fragmentados (GINZBURG, 2007).

O que podemos por meio de rápidas reflexões como essa é aprender a


perceber as limitações de um olhar raso para uma fotografia enquanto
documento histórico.

As fotografias que contam uma parte da história de um Jardim de Infância


Conforme proclamou Bloch (1993), nenhum documento é capaz de falar por si
próprio, aquele que o investiga precisa saber interrogá-los. Caso o historiador
não o saiba fazer, mesmo um documento por mais corpulento que seja, dirá
sempre muito pouco e as argumentações daqueles que o faz, não passarão de
puramente instintivas.

Ao se observar uma fotografia, deve-se investigar sentimentos, valores, cultura


e as pistas que a imagem fornece sobre as características da comunidade, da
política, da economia e dos demais aspectos sociais. Deve-se ir além da
representação aparente desta imagem (CIAVATTA, 2002).

Naturalmente, é necessário ponderamento nos questionamentos que se faz ao


explorar um documento iconográfico, é necessárias perguntas flexíveis e
abertas, que possibilitem a infinidade de percursos e surpresas que as
respostas podem dar, compreendendo assim que as fotografias denunciam
aspectos de um processo social complexo, produzido historicamente.

“[...] O explorador sabe muito bem, previamente, que o itinerário que ele
estabelece, no começo, não será seguido ponto a ponto. Não ter um, no
entanto, implicaria o risco de errar eternamente ao acaso. A diversidade dos
testemunhos históricos é quase infinita. Tudo que o homem diz ou escreve,

66
tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve informar sobre ele” (BLOCK, 1993,
p. 45).

Para melhor compreendê-la, é preciso também que este sujeito tenha


entendimento da cultura histórica, dos processos sociais e da conjuntura que é
parte do cenário daquela fotografia (MAUAD, 2004, p.20).

A partir dessas argumentações, anuncia-se que o Parque Infantil Décio


Medeiros Pullin de Mandaguari-PR, hoje, Centro Municipal de Educação Infantil
Tio Patinhas, foi instituído em 21 de setembro de 1950, na gestão do prefeito
do Décio Medeiros Pullin (1950-1953), com o intuito de dar atendimento
educacional para à infância de Mandaguari e região, até então desassistida em
relação a educação infantil.

A Figura 1, em preto e branco, nos permite observar aspectos da construção


desse Jardim de Infância, além de algumas circunstâncias e personagens que
protagonizaram a fundação da instituição.

Figura 1- Parque Infantil Décio Medeiros Pullin em fase final de sua construção
Fonte: Acervo do Grupo Mandaguari Histórica (1950).

Ao observarmos a composição da fotografia conseguimos identificar dois


diferentes grupos de cidadãos. O primeiro é composto por autoridades e
pessoas da elite do município: o militar Capitão Nerino, com o seu traje oficial
de policial militar. Augusta Coelho Pullin, a esposa do prefeito Décio Medeiros
Pullin, vestida com saia preta e blusa xadrez, e o Dr. Ary da Cunha, o primeiro
prefeito municipal, vestindo um terno claro, bege (LIOTI, 2022).

O segundo grupo é composto por profissionais braçais, o proletariado, que não


foi possível identificar. A análise do registro fotográfico suscita reflexões: Qual a
importância dessas pessoas para a edificação deste jardim de infância? Na
imagem aparecem pessoas da elite do município e trabalhadores, além de uma
criança que pode fazer parte do quadro de obreiros, ou está acompanhando
um familiar que trabalhava na construção do edifício? Quais outras
interpretações são possíveis a partir da análise da figura?

67
Santaella (2012, p. 80) declara que analisar uma fotografia requer não apenas
uma observação para as imagens que a fotografia traz, mas também uma
verificação cautelosa para as demais mensagens que a imagem movimenta e
que lhes são intrínsecas. É preciso observar disposto a sentir, contemplar e
inteirar-se. Logo, a fotografia supracitada não mostra apenas os momentos
finais da construção do edifício que é parte da história da educação para a
infância do estado do Paraná, evidencia um fenômeno social, a discrepância
entre classes.

Culturalmente e infelizmente, valoriza-se somente a ação das pessoas da elite


na construção dos estabelecimentos escolares, concepções altamente
hierarquizadas, rígidas e exclusivas que dão às determinadas classes um
ponto específico, bronco e irrelevante de ocupação na construção da história.
Que distancia os trabalhadores de posições de destaques nos processos e
conjunturas do passado.

Lamenta-se que, num olhar superficial para a fotografia, enxerga-se apenas as


pessoas que estão ali para dar status à obra. Sendo essa uma visão cultural
que condiciona e orienta, e que ao mesmo tempo em que discrimina,
generaliza.

Neste artigo, mostram-se os profissionais que exerceram as funções pesadas


na edificação do Jardim de Infância e ousa-se dizer que todos os personagens
da fotografia são parte da história da escola e que a imagem supracitada
ratifica essa constatação pois, ela é uma memoração genuína e palpável de um
momento que ficou para trás. Ponderações semelhantes estão também nos
estudos de Santaella (2012, p. 87), quando afirma que “[...] aquilo que vemos
em uma foto não é uma imaginação, um sonho, uma recordação, mas a
realidade em seu estado de passado”.

A figura 2 mostra o Jardim de Infância em seu primeiro dia de funcionamento,


21 de setembro de 1950.

Figura 2- Parque Infantil Décio Medeiros Pullin em seu primeiro dia de


funcionamento
Fonte: Acervo do CMEI Tio Patinhas (1950).

O Jardim de Infância é, até os dias de hoje, uma memória viva do momento


em que a história da educação para a infância dessa região estava

68
principiando. Possui uma área territorial ampla quando se considera o fato de
estar localizada em uma cidade do interior de estado. Até os dias de hoje está
localizada na quadra 22 da Rua Manoel Antunes, no centro de Mandaguari.
Ocupou, de 1950 até 2008, todo o quarteirão, até que em 2008, teve sua área
partilhada com uma escola de ensino fundamental I.

O terreno é fruto de uma doação ao município da Companhia de Terras Norte


do Paraná (CTNP), empresa possuinte de lotes e principal responsável pela
colonização da região (LIOTI, 2022).

A construção se destaca em sua estrutura física, embora não fosse exatamente


um estabelecimento com as características da arquitetura dos grupos escolares
do início do século XX, era certamente “[...] um ponto de destaque na cena
urbana, de modo que se tornasse visível, enquanto signo de um ideal
republicano, uma gramática discursiva arquitetônica que enaltecia o regime
republicano” (BENCOSTTA, 2005, p. 97).

Respeitando as especificidades da pesquisa, na simplicidade da cidade que


experimentava a aurora de sua fundação, o pioneirismo da instituição, a grande
área externa escolar e o edifício com espaços amplos, bem arejados e
elegantes, era uma construção que contribuía no embelezamento e em novas
visitas para a cidade (MOREIRA, 2005).

Além disso, as escolas passaram a ser um espectro dos valores e das normas
sociais almejadas pelo governo republicano (MONARCHA, 1999). Entretanto,
nesse período da história da educação para a infância no Brasil, os Jardins de
Infância não eram em número suficiente para atender a demanda, tanto que no
município de Mandaguari, esta instituição foi a única a atender a infância por
mais de 20 anos.

Sendo assim, a imagem mostra em suas entrelinhas disputas silenciosas, mas,


ao mesmo, tempo densas. Já a administração que o institui, por meio de sua
estrutura imponente, tentou entregar para a comunidade mandaguariense uma
obra vanguardista e de grande valor para a educação para a infância da região.

Contrapõe-se a isto o fato de que uma pequena minoria das crianças da cidade
e região tinham a possibilidade de frequentar o espaço. A União pouco fez pelo
ensino para as massas, ação que tornou os Jardins de Infância, nesse período,
um local frequentado principalmente pela infância das classes com privilégios
sociais.

Considerações finais
Confirmou-se, neste artigo, que as fotografias como fontes documentais de
pesquisas de cunho social e histórico podem tornar mais fácil a compreensão
da história do objeto de pesquisa elencado. Elas são, portanto, “[...] o passado,
mas não está mais no passado quando interrogada. Isto posto, torna-se uma
ponte, uma testemunha, um lugar de verificação, um elemento capaz de
propiciar conhecimentos acertados sobre o passado” (RAGAZZINI, 2001, p.14)

69
Não se pode negar a quantidade de informações que uma fotografia pode
propagar, tão pouco a sua natureza documental e importância para a
compreensão da história de determinados locais. Contudo, compreendê-las de
forma aprofundada não é uma tarefa fácil. Decifrá-las é um trabalho árduo.

Apreende-se que, propor uma investigação mais apurada sobre as mensagens


que uma fotografia pode trazer revela diversas conexões e fatores, mas nem
assim, se pode ter a certeza de conhecer a fundo as determinações do
passado, pois nenhum elemento é capaz de oferecer uma compreensão da
totalidade de um momento histórico que ficou para trás, pois, o passado é um
conjunto infinito e inesgotável de possibilidades e determinações.

As fotografias aqui apresentadas trazem consigo não apenas as primeiras


informações que são captadas logo que são analisadas. Despertam também a
compreensão de um mundo de fatos e relações silenciosas, mas também
densas, que foram ligeiramente problematizadas para as discussões desse
estudo a partir do “[...] do olhar da pesquisadora para reconstruir um instante
pretérito (CIAVATTA, 2007). Buscou-se mostrar a importância de olhar para as
fotografias históricas não apenas como uma ação desintencionada, mas como
busca inesgotável de respostas para a realidade do tempo passado.

Referências biográficas
Cláudia Sena Lioti é doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de
Maringá. Mestre em Ensino: Formação Docente Interdisciplinar, pela
UNESPAR campus de Paranavaí. Graduada em Pedagogia e em Letras –
Vernáculas e Clássicas. Especialista em Atendimento Educacional
Especializado, Educação Especial; Alfabetização e Letramento e
Psicopedagogia Institucional, Hospitalar e clínica.

Referências
BENCOSTTA, Marcos Levi A. História da educação, arquitetura e espaço
escolar. São Paulo, SP: Cortez. 2005.

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro:


Zahar, 1993

CIAVATTA, Maria Franco. A Escola do Trabalho. História e imagens. (Tese de


Professor Titular - Trabalho e Educação). Niterói: UFF, 1993.

GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: Quatros ensaios de iconografia


política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 200 p. Tradução de Federico
Carotti, Júlio Castañon Guimarães e Joana Angélica d’Avila Melo.

LIOTI, Cláudia S. Educação, cultura e representações sociais nos setenta e um


anos do Centro Municipal de Educação Infantil Tio Patinhas em
Mandaguari/PR. 170 f. Dissertação (Mestrado em Ensino) Paranavaí. Unespar,
2021.

70
MONARCHA, Carlos. A Escola Normal da Praça – o lado noturno das luzes.
São Paulo: Editora da Moreira, A. Z. Um espaço pioneiro de modernidade
educacional (Dissertação de Mestrado em Arquitetura). Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, Natal. 2005.

RABELO, Elson de Assis. Medo, reverência, terror: Quatros ensaios de


iconografia política. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 55, Jan./ Abr.
2015.

RAGAZZINI, Dário. “Para quem e o que testemunham as fontes da história da


educação?”. In: Educar em revista, nº 18. Curitiba: Editora UFPR, 2001.

TAMANINI, Paulo A. Imagens ressecadas: a representação iconográfica do


nordeste nos livros didáticos de história. Pimenta Cultural, 2020.
Unicamp, 1999.

SANTAELLA, Lucia. Percepção: fenomenologia, ecologia, semiótica. São


Paulo: Cengage Learning, 2012. E-book. cap. 3, p. 75-88; 111-146.

71
ESTUDOS AMAZÔNICOS: HISTÓRIA, MEMÓRIA E
POLÍTICA EDUCACIONAL NO ESTADO DO PARÁ
Davison Rocha-Alves

A presente comunicação está inserida dentro do campo da história das


disciplinas escolares, queremos apresentar a história de uma disciplina regional
debatendo a historicidade desta disciplina no Estado do Pará. Nesse momento
contou-se a história da disciplina regional Estudos Amazônicos no Estado do
Pará por meio de seus materiais didáticos produzidos nos anos 1990, e através
da memória de professores de História e de Sociologia que produziram duas
coleções didáticas para essa disciplina no final do século XX. Um lugar social e
múltiplas Amazônia(s) dentro do espaço escolar ficou evidenciado no campo
das ciências humanas.

O objetivo geral é apresentar a História desta disciplina regional por meio da


memória construída no Estado do Pará em torno de seus livros didáticos
regionais e com entrevistas de professores que participaram da construção
desses materiais, onde no período de redemocratização construiu-se uma
política educacional que evidenciasse as diversas Amazônias dentro do espaço
escolar.

Será apresentado em três momentos, são eles: (1) A política educacional dos
anos 1990 no Brasil e a emergência do currículo centrado nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) e sua relação com os PCN-Temas Transversais
Meio Ambiente; (2) A disciplina Estudos Amazônicos no estado do Pará e o
papel do Conselho Estadual de Educação (CEE-PA) e da Secretaria de
Educação do Estado do Pará (SEDUC-PA) na urgência em debater a
Amazônia neste estado; (3) A experiência educacional da disciplina regional
pelas interpretações de historiadores e sociólogos no Pará.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) lançado pelo Ministério de


Educação em 20 de dezembro de 1996, através da lei n° 9394, nos evidenciou
em seu artigo 26 sobre os currículos “(...) o ensino fundamental e médio
deverão ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada
sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada,
exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da
economia e da clientela” (BRASIL, 1996, p. 8).

1990 foi considerado propício para a montagem do estado neoliberal em que a


educação foi vista como espaço a ser controlado pelas políticas internacionais,
especificamente através da interferência do Banco Mundial e de suas agências

72
regulamentando as políticas educacionais para a escola pública brasileira. Os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) voltados nesse contexto para o
ensino fundamental I desenvolvem uma política intervencionista por dentro das
chamadas agências de financiamento internacional (OLIVEIRA, 2010, p. 2).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) indicam como objetivos centrais


do ensino fundamental as seguintes competências: (a) conhecer e valorizar a
pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro, bem como de aspectos
socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer
discriminação social, crença, de sexo, de etnia ou outras características
individuais e sociais; (b) utilizar as diferentes linguagens (verbal, musical,
matemática, gráfica e corporal) como meio para produzir, expressar e
comunicar ideias, interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos
públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de
comunicações (PCN, 1997, p. 7).

Portanto, a disciplina Estudos Amazônicos está inserida dentro da política


educacional pensada pelo Estado brasileiro e implementada ao longo dos anos
90 através da LDB e dos PCN’s. Cabe-se ressaltar que os parâmetros
nacionais definidos pelo Ministério da Educação (MEC) estavam afinados com
a intenção de facilitar o trabalho da instituição, estamos referindo-se à
elaboração do chamado Projeto Político Pedagógico (PPP). Eram centradas
dentro das seis áreas de conhecimento, a saber: Língua Portuguesa,
Matemática, Ciências Naturais, História, Geografia, Arte e Educação Física.

Os temas transversais dentro da escola básica tiveram seu espaço privilegiado


dentro dos chamados PCN Temas Transversais, sendo também vinculadas às
seis áreas que são: Ética, Orientação Sexual, Meio Ambiente, Trabalho e
Consumo, Saúde e Pluralidade Cultural. Tanto as disciplinas da área de
conhecimento e os Temas Transversais estavam ligadas a
interdisciplinaridade, sendo uma perspectiva de não compartimentalizar as
disciplinas na educação básica, mas de trabalharem de forma conjunta o
conhecimento dentro e fora do espaço escolar.

Uma evidência ficava presente dentro da disciplina Estudos Amazônicos. Não


se pode falar de Amazônia sem falar de rios, floresta e sujeitos. É uma relação
imbricada dentro das perspectivas assumidas por essa disciplina regional, pois,
os professores da área de humanidades estavam querendo debater as
múltiplas Amazônias dentro do espaço político-administrativo do Estado do
Pará, e não somente, os acontecimentos políticos e econômicos que marcam a
trajetória humana e a historiografia da região amazônica.

Portanto, evidencia-se um olhar social para debater a disciplina Estudos


Amazônicos, pois os estudos temáticos substituíram a perspectiva
exclusivamente linear de uma história produzida de contínua e fatual
(FENELON, 1993, p. 76). Assim, surgiram diversos temas dentro da disciplina
Estudos Amazônicos usando novos sujeitos, novos objetos e novos problemas
dentro da realidade amazônica.

73
Reconhecemos que a disciplina Estudos Amazônicos se tornou uma lugar de
fronteira entre diálogos transdisciplinares ocorridos dentro do campo das
humanidades (História, Geografia e Ciências Sociais) no final do século XX.
Usando as contribuições do campo do Currículo e da Didática estamos
articulando as conexões desenvolvidas entre a Teoria da História e a Retórica
produzida pelos professores-pesquisadores no Estado do Pará, pois, a
pesquisa sobre o ensino de história regional na Amazônia paraense é um lugar
de fronteira, de pensamentos e contribuições mediadas a partir das trocas, dos
diálogos e dos reconhecimentos das diferenças (MONTEIRO; PENNA, 2011, p.
191) referente aos saberes amazônicos.

Após abordamos o contexto nacional, vamos evidenciar as perspectivas


regionais, especificamente no estado do Pará, quando ao final dos anos 1990,
o Conselho Estadual de Educação do Pará (CEE-PA) através da resolução n°
630 de 26 de novembro de 1997 definiu no seu artigo 5 a parte diversificada
dentro do currículo estadual (ALVES, 2020, p. 69), posteriormente foi publicada
a resolução n° 231 de 5 de maio de 1998 estabelecendo as normas que
disciplinam a parte diversificada do Currículo do ensino fundamental dentro do
Sistema de Ensino do Estado do Pará, nesse contexto foi normalizado a
inclusão da disciplina curricular Estudos Amazônicos, como componente
obrigatório na educação básica, a ser ministrada pelos professores portadores
de diploma de licenciatura em História, licenciatura em Geografia e de
Licenciatura em Ciências Sociais (ALVES, 2020, p. 69).

Portanto, no mesmo momento em que o Ministério da Educação (MEC) está


elaborando a LDB/96 e os PCN’s foi articulado uma disciplina regional que
dialogue com as duas perspectivas curriculares pensadas pelos documentos
oficiais implementados pelo MEC. A relação estabelecida entre a disciplina
regional Estudos Amazônicos, a LDB/96 e PCN’s não podem ser perdidas de
vistas. Por exemplo, a questão cultural e ambiental presentes nos diversos
documentos legais são centrais para pensar a sociedade amazônica que se
formou após os anos 60 do século XX.

A professora e socióloga da Universidade Federal do Pará Violeta Loureiro era


diretora de ensino da Secretaria Estadual de Educação do Pará (SEDUC-PA),
encaminhou para todos os estabelecimentos de ensino do Estado do Pará no
ano de 1999 um documento denominado Matrizes Curriculares para o Ensino
Fundamental e Médio, no referido ofício curricular houve a inclusão da
disciplina Estudos Amazônicos em substituição aos Estudos Paraenses com
duas aulas semanais na 5ª e 6ª séries e três aulas semanais na 7ª e 8ª séries
(ALVES, 2020, p. 70).

O documento da SEDUC evidenciava a seguinte justificativa para a inclusão da


discussão estudos regionais no currículo da educação básica, “pela imperiosa
necessidade de a escola contribuir com a formação de uma consciência dos
cidadãos sobre a Amazônia como uma questão nacional e ser a Amazônia o
maior e mais rico sistema natural do planeta terra” (PARÁ, 1999, p. 5).

74
Portanto, durante os anos 1990 os caminhos percorridos pelo ensino de
história da Amazônia construíram um currículo para ser ensinado no espaço
escolar, os professores das humanidades estavam reivindicando o lugar da
Amazônia dentro do currículo, para isso, faziam críticas a disciplina Estudos
Paraenses que evidenciava uma narrativa histórica pautada dentro dos eventos
políticos e administrativos do estado do Pará, e invisibiliza as diversas
Amazônias dentro do espaço escolar.

Os professores amazônidas queriam debater as recentes transformações pelo


qual passou a região amazônica, as interferências na floresta e nos diversos
sujeitos que vivem no campo e na cidade dentro desta região político-
administrativa, tornou-se o centro do debate escolar. Nesse sentido, centrou-se
então em uma história política de currículos normativos como concebida pelo
historiador Ivor Goodson (2001, p. 55) e visava entender o lugar político da
história da Amazônia a ser introduzida durante os anos 1990 nas escolas
paraenses.

Houve um espaço de tensão entre os diversos campos de saberes nos anos


1990 dentro do estado Pará, para que o debate sobre a história regional se
estabelecesse dentro do currículo da educação básica. A questão que
incomodava os professores das humanidades era a seguinte: o debate regional
era limitado a somente ver a Amazônia como região geoeconômica dentro da
disciplina de Geografia, ou se expressava dentro do livro didático de História ao
ver a importância da Amazônia no cenário nacional somente quando se debatia
o movimento da Cabanagem (1835-1840) ou o período da borracha (1870-
1912). Precisava-se alargar os horizontes de perspectivas sobre o regional. O
recado estava dado! A história da Amazônia não era somente no período de
1835 a 1912. Não somente esse recorte! Existe uma historicidade que
precisava ser contada, e caberia à SEDUC juntamente com o CEE-PA assumir
o papel de colocar as múltiplas Amazônias em evidência.

Os professores de História que trabalham na Secretaria Estadual de Educação


do Estado do Pará assumem o papel de professores-pesquisadores ao
produzirem um livro para contar a História do Pará de forma didática, pois, a
disciplina Estudos Paraenses não abrangia a região Amazônica e os processos
sociais ocorridos no interior dela. Fazia-se a necessidade de debater os
problemas amazônicos dentro e fora do espaço escolar. Houve uma
modificação no currículo acadêmico do curso de História da Universidade
Federal do Pará (UFPA). em 1992, com a introdução de 3 novas disciplinas
como História da Amazônia I, História da Amazônia II e História da Amazônia III
para colocar a região no centro do debate dentro do tripé ensino, pesquisa e
extensão.

A narrativa sobre a região amazônica põe em evidência novos sujeitos dentro


da prática pedagógica regional, conforme apresenta a coletânea do Mestrado
Profissional em Ensino de História do Amapá (ProfHistória), demonstrando a
multiplicidade de sujeitos e identidades culturais presentes no interior do

75
espaço escolar. Assim, durante a apresentação os autores do livro evidenciam
que “a escola põe em diálogo saberes diversos, muitos dos quais são oriundos
do mundo da vida de estudantes com diferentes redes de contato e percursos
formativos” (NASCIMENTO, 2020, p. 9)

Por outro lado, nossa pesquisa não ficou somente nas negociações
desenvolvidas pelos professores das humanidades para construir a identidade
regional da disciplina Estudos Amazônicos, como foi mencionado acima, foi
sendo construído um movimento regionalista no Estado do Pará para fazer a
defesa do regional dentro do espaço escolar.

Cabe-se destacar que o movimento regionalista de professores das


humanidades no Pará construíram dois materiais didáticos, a saber: (a) os
professores de História pensaram em dois volumes a História do Pará
(Contando a História do Pará: das primeiras populações à Cabanagem [volume
1]; Contando a História do Pará: do período da borracha aos dias atuais
[volume 2]), sobre a coordenação do pesquisador francês Gerard Prost; (b) a
socióloga Violeta Loureiro escreveu sua narrativa didática por outra ótica
também publicada em dois volumes (Amazônia: temas fundamentais sobre o
meio ambiente [volume 1]; História da Amazônia: do período da borracha aos
dias atuais [volume 2]).

Nesse aspecto realçado acima percebemos que a literatura didática regional


apresenta duas perspectivas interpretativas para a disciplina Estudos
Amazônicos, são elas: a relação passado-presente pela ótica dos professores
de História e a urgência do presente pela ótica dos professores de Sociologia.
Usando referenciais teórico-metodológicos os professores de História e de
Sociologia debatem os saberes necessários para debater dentro da disciplina
regional Estudos Amazônicos.

As narrativas em torno do que ensinar sobre a Amazônia no estado do Pará


possuem abordagens diversas, ao analisar as obras didáticas percebemos que
a formação do professor que ministra esta disciplina na rede estadual,
apresenta algumas questões que são por ele relacionadas como: aspectos,
históricos, políticos, econômicos, ambientais e geográficos. Esta multiplicidade
de narrativas sobre a Amazônia deve-se a formação heterogênea de
professores e o que eles liam sobre o Estado do Pará, sobre a região
amazônica e suas diversas identificações (Amazônia Legal, região
geoeconômica e suas diversas Amazônias, Região Norte), muito pautada por
uma narrativa memorialística e de exaltação por outro lado, por não serem
historiadores e terem uma formação em Sociologia ou Geografia, estes autores
de livros didáticos regionais lançam mão de uma narrativa cronológica e
adotam algumas questões recentes para referenciar seus estudos sobre a
região amazônica.

Os professores/autores que escrevem as narrativas didáticas do Estado do


Pará, apresentam uma nova perspectiva de história regional possível de ser
ensinada, assim percebemos que eles constroem a partir de suas evidências

76
um lugar de memória a ser sedimentado na escrita regional, fazendo emergir
nesta narrativa escolar a presença do ser amazônida, deixando explícito em
sua narrativa as relações sociais dos sujeitos que fazem parte da história
recente, como o posseiro, o grileiro, o quilombola, o ribeirinho, o caboclo e o
indígena, portanto, trazendo à tona aspectos e fatos que nos permitem
compreender a história recente da região amazônica no espaço escolar.

As propostas curriculares apresentadas pelo Ministério da Educação durante


os anos 1990 dialogam com a elaboração de uma disciplina regional no Pará,
haja vista, que diante das recentes transformações pelo qual passou a região
amazônica, não era interessante continuar reproduzindo no espaço escolar
uma narrativa que versasse somente sobre a História do Pará, mas que a
História do Pará fosse incluída dentro de um disciplina de amplitude regional,
ele ficou conhecida como “Estudos Amazônicos”.

Por isso, fica evidenciado no período compreendido entre 1997 e 2000 a


tentativa de implementar uma disciplina regional dentro do estado do Pará,
pois, a carência de discussões regionalizadas no espaço de sala de aula
provocou um debate entre os professores da área das humanidades a pensar
as diversas Amazônias neste espaço social, cultural e administrativo brasileiro.

Nesse sentido, cabe-se ressaltar que a disciplina Estudos Amazônicos possui


muitas facetas no Estado do Pará, pois, ela é considerada uma disciplina
interdisciplinar, tendo diversos olhares dentro das ciências Humanas. O olhar
dos professores de História para a disciplina regional é a relação passado-
presente mediada pelo usos de diversas fontes históricas, sendo restrita a
contar a História do Pará. A novidade da proposta didática está na metodologia
de fontes históricas dentro da história regional. No entanto, a perspectiva
narrativa evidenciada pela Sociologia evidencia a urgência do presente, pois, o
meio ambiente e as relações sociais destacados no interior do espaço
amazônicos desde o período da borracha até os recentes conflitos agrários na
Amazônia são destacado dentro deste olhar sociológico para disciplina
Estudos Amazônicos.

Por fim, cabe-se ressaltar que foi construído uma política educacional no
Estado do Pará que valorizasse a Amazônia e seus processos sociais dentro
do espaço escolar, o que ocorreu por meio da produção de materiais didática
regionais e da invenção de uma disciplina regional conhecida como Estudos
Amazônicos. Percebemos ainda em 2022 a importância desse debate, pois, os
diversos ataques a floresta amazônica, os povos indígenas, as comunidades
quilombolas, os povos tradicionais, os defensores da vida e das diversas
Amazônias torna-se urgente debater e repensar o ensino de história da
Amazônia na sala de aula e fora de também.

Referências biográficas
Professor. Dr. Davison Hugo Rocha Alves, doutor em História Social da
Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor da

77
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará da Faculdade de Ciências da
Educação (Unifesspa-Faced).

Referências bibliográficas
ALVES, Davison. A disciplina Estudos Amazônicos e seus livros didáticos
(1990-2000). Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020.

BRASIL. Lei n° 9394 Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Editora do


Brasil, 1996.

FENELON, Déa. Cultura e História Social: historiografia e pesquisa. Projeto


História, São Paulo, volume 10, dezembro, 1993.

GOODSON, Ivor. Currículo: teoria e história. São Paulo: Vozes, 2001.

LOUREIRO, Violeta. Amazônia: História e análise de problemas (do período da


borracha aos dias atuais). Belém: Distrobel, 2000.

LOUREIRO Violeta. Amazônia: meio ambiente. Belém: Distrobel, 2000.


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Parâmetros curriculares
Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.

MONTEIRO, Anna Maria; PENNA, Fernando. Ensino de História: saberes em


um lugar de fronteira. Educação & Realidade, Porto Alegre, vol. 36, n. 1, p.
191-211, jan./abr. 2011.

NASCIMENTO, Ângela. Vivendo na beira: teoria e prática pedagógica no


ensino de história do Amapá. Rio de Janeiro: Autografia, 2020.

OLIVEIRA, Ana Fernanda. Os parâmetros curriculares nacionais brasileiros no


contexto das políticas educacionais neoliberais dos anos 1990. VI Jornadas de
Sociología de la UNLP. Universidad Nacional de La Plata. Facultad de
Humanidades y Ciencias de la Educación. Departamento de Sociología, La
Plata, 2010.

PARÁ. Ofício circular n° 018/98-DEN, Belém, 10 de dezembro de 1998.

PROST, Gerard. História do Pará: das primeiras populações a Cabanagem.


Belém, 1998.

PROST, Gerard. História do Pará: do período da borracha aos dias atuais.


Belém, 1998.

78
O ENSINO A SERVIÇO DA REPRODUÇÃO DOS VALORES
CONSAGRADOS PELOS GRUPOS SOCIAIS DOMINANTES:
DISCUSSÃO E ANÁLISE DOS MODELOS EDUCACIONAIS
ADOTADOS NO BRASIL E EM PERNAMBUCO ATÉ O
SÉCULO XIX
Eduardo Augusto de Santana

Durante séculos fomos ensinados a acreditar que este território havia sido
“descoberto” pelos portugueses em 22 de abril de 1500. Não é verdade? Com
a nova historiografia, sobretudo após o advento da História Sociocultural
(PESAVENTO, 2014), passamos a ser confrontados com outros entendimentos
a respeito de nossa história. A releitura do passado demonstra que não se
pode falar em “descobrimento” em um território que já era habitado por
centenas de nações indígenas, em que cada um desses grupos tinha assuas
próprias práticas religiosas e culturais, línguas e costumes, além de habitar em
áreas específicas dentro deste imenso território supostamente “descoberto”.
Assim, não houve um “descobrimento”, mas a invasão e a imposição de uma
colonização por parte dos portugueses, que se utilizaram da sua própria cultura
religiosa enquanto estratégia de dominação. Essa ação, segundo Eduardo
Santana (SANTANA, 2021 p. 88-96), foi seguida por uma violenta imposição
cultural que acarretou a escravização e o genocídio de centenas de milhares
de seres humanos ao longo dos primeiros séculos de invasão e consolidação
da conquista. Assim, a atividade missionária desenvolvida pelos jesuítas foi
fundamental para que o plano de dominação do invasor obtivesse êxito.

Antes da chegada dos invasores, os povos nativos já detinham uma cultura


vasta: com seus próprios idiomas, tradições, festividades, práticas religiosas,
interações sociais, formas de morar e de obter o seu sustento do ambiente à
sua volta. Na cultura dos povos nativos, a educação se dava através da prática
e da observação. Ao contrário do que era transmitido, até bem pouco tempo
em nossas escolas, as suas sociedades eram organizadas, havendo a
transmissão dos conhecimentos, cuja responsabilidade era de toda a tribo ou,
muitas vezes, cabia aos mais velhos repassar o saber ancestral para as novas
gerações.

A proposta dos portugueses para o território “’recém-descoberto” era pautada


na exploração sistemática de sua gente e das riquezas ali encontradas. Não
havia interesse no desenvolvimento local ou em oferecer uma educação que
favorecesse a inclusão dos povos locais por meio de um modelo de

79
desenvolvimento econômico que favorecesse a inclusão daquelas pessoas no
modelo de sociedade que vislumbravam aqui implantar. Já a partir de 1549,
foram enviados padres Jesuítas com a missão de converter os nativos à fé do
invasor, facilitando a destruição da cultura e a organização social daqueles
povos. A religião crista fora utilizava com vistas a facilitar a imposição da
cultura e os valores presentes na cultura portuguesa.

Com este propósito, eles promoveram a criação das missões, onde


organizavam as populações indígenas em torno de um regime que combinava
trabalho e religiosidade “cristã”. Essa estratégia de dominação, ainda hoje,
pode ser notada nas diversas dimensões da sociedade brasileira. Explicando,
por exemplo, como um país com dimensões continentais, e que ainda convive
com dezenas de etnias indígenas remanescentes, tem na língua portuguesa a
única língua oficial e predominante em todo o seu território. O padre José de
Anchieta desponta entre os educadores jesuítas como um dos missionários
que mais contribuiu para destruir a cultura daqueles povos e fomentar o
sucesso da empresa colonial no território. Fundando diversos colégios,
missões e articulando acordos com as lideranças indígenas locais que
beneficiavam os colonos e à governança local. Além do mais, empregavam a
mão de obra “voluntária” dos nativos catequizados nas mais diversas
atividades laborais do seu próprio interesse econômico. Transformando-os em
verdadeiros servos, dando em troca a sua a “proteção” e a aprendizagem de
algum ofício que pudesse ser útil aos próprios religiosos. Segundo Souza
(2007, p. 34):

“A ordem, então, era domesticar, catequizar e “civilizar” os indígenas. Um dos


primeiros instrumentos considerados como eficazes para a obtenção desse
objetivo, foi o projeto de catequese, discutido e elaborado pela Santa Sé
durante o Concílio de Trento e adotado pela Companhia de Jesus e executado
dentro do projeto colonial dos lusitanos. Assim, as relações que foram
estabelecidas entre europeus e indígenas – quer no âmbito político ou religioso
– foram baseadas nas relações de dominação – sujeição”.

Ao instituírem as escolas, os jesuítas aplicaram o método conhecido como


RatioStudiorum, que era uma espécie de coletânea de ações e materiais para o
exercício da educação, que iam desde a organização escolar até a prática
cotidiana, tudo muito fundamentado na tradição católica. Os jesuítas criaram
uma organização rígida que era replicada em todas as escolas controladas por
eles.

O plano educacional elaborado pelo padre Manuel da Nóbrega atendia às


várias classes sociais, tendo suas especificidades conforme o seu público alvo.
Consistia em: aprendizado da língua portuguesa; doutrinação cristã; leitura e
escrita; canto orfeônico e música instrumental; aprendizado profissional;
práticas agrícolas; e, a depender do caso, gramática latina. Também foram
implantadas práticas educativas que concretizaram o ajuste entre as ideias
educacionais e a realidade específica da colônia brasileira. Era um modelo de

80
ensino voltado para a subalternidade e a alienação religiosa, aliada à política
de desconstrução das dimensões socioculturais da cultura dos povos nativos.

A esse respeito, Antonio Gramsci comenta que: “Não se aprendia latim e o


grego para falá-los (...). Aprendia-se para conhecer diretamente a civilização
dos dois povos, pressupostos necessários à civilização moderna” (MELO,
2021, p. 26, apud ORDINI, 2016, p. 126). Potencializa-se, assim, a implantação
da ideologia de dominação perpetrada pelos invasores no território.

“O realismo de Nóbrega o levou a estar atento à necessidade de prover as


condições materiais dos colégios jesuítas envolvendo: a posse de terra para a
construção dos colégios; a sua manutenção, o que implicava prover os víveres
que envolviam a criação de gado e o cultivo de alimentos como a mandioca, o
milho, o arroz, a produção de açúcar, de panos; e, para realizar regularmente
essas tarefas, a aquisição e manutenção de escravos. Sua filosofia
educacional era a concepção que em nossa sistematização classificamos como
tradicional religiosa na versão católica da contra reforma” (SAVIANI, 2005, p.6).

A educação jesuítica baseava-se em uma filosofia religiosa cujo foco era a


doutrinação das crianças. Aliás, traziam com eles crianças órfãs da Europa,
com a finalidade de facilitar o trabalho com as crianças locais. As crianças
portuguesas aprendiam as línguas nativas, os hábitos e os costumes indígenas
e também transmitiram elementos da cultura europeia para os nativos, que
começaram a aprender o idioma português.

Como é possível notar, as missões eram espaços em que os indígenas eram


“inseridos” no mundo europeu. Não como iguais, mas apenas para serem
melhor explorados. Eles eram sistematicamente compelidos a mudar a forma
de falar, de vestir, de pensar, de se comportar, de suas práticas sexuais, e
estimulados a abandonar as suas práticas religiosas, classificadas pelos
missionários como demoníacas. Tinha-se o propósito de extirpar as estruturas
socioculturais dos povos nativos. Por essa razão, a evangelização era voltada
para as suas crianças, impedindo, assim, que a sua cultura se reproduzisse
através das novas gerações.

Em 1759, os jesuítas são expulsos do Brasil pelo superministro português


Sebastião José de Carvalho, o Marquês de Pombal, que foi responsável por
várias reformas e modernização da sociedade colonial, inclusive no campo da
educação, pois a colônia continuava vivendo dentro dos moldes econômicos
medievais.

No campo educacional, Pombal estabeleceu um novo modelo e estrutura


educacional que se diferenciava do RatioStudiorum, conhecido como Aulas
Régias. Essas aulas eram isoladas e pretendiam continuar com os estudos
presentes nos seminários, mas não alcançaram bons resultados. Um dos
problemas consistia na formação dos professores, uma vez que, na Colônia,
não havia centros de ensino destinados a capacitar pessoas para atuar na
docência. Por outro lado, o modelo proposto pelo ministro português, na

81
prática, não se afastaria totalmente da educação realizada pelos religiosos,
mas abriu espaço para outras ordens religiosas ofertarem o ensino. As Aulas
Régias eram basicamente aulas avulsas de grego, latim, filosofia e retórica.

Com a proposta, os professores, que eram pagos, tinham a incumbência de


preparar os espaços onde seriam ministradas as suas aulas. Ainda em 1760,
foram realizados os primeiros concursos para professores no Recife e no Rio
de Janeiro. Contudo, mediante as dificuldades de efetivar as reformas, além da
escassez de recursos, a primeira nomeação ocorreu apenas em 1765.

Segundo Márcia Justino (SILVA, 2022, p. 112.), a Reforma Pombalina, no que


se refere à educação, dada a realidade da Colônia, foi melhor sucedida em
Portugal do que no Brasil.Tentou-se fazer uma mudança radical do sistema
estabelecido pelos jesuítas por mais de 200 anos. Vários colégios jesuítas
foram fechados, dificultando o acesso à educação formal na Colônia em um
contexto em que já eram raríssimas as instituições de ensino. Mesmo quando
havia a possibilidade de acesso a um ensino formal, ela estava circunscrita a
certas castas sociais.

Ainda nas primeiras décadas do século XIX, nota-se a influência das ideias de
Joseph Lancaster, que chega ao Brasil em 1827, através da lei para as escolas
de primeiras letras. O método Lancaster tinha um formato diferenciado para a
época, atendendo à necessidade de professores, mas ainda no formato
tradicional de ensino. Conforme nos traz Saviani:

“Após 1808 deu-se início à divulgação do método de ensino mútuo que se


tornou oficial com a aprovação da lei das escolas de primeiras letras, de 15 de
outubro de1827, ensaiando-se a sua generalização para todo o país. Proposto
e difundido pelos ingleses Andrew Bell, pastor da Igreja Anglicana, e Joseph
Lancaster, da seita dos Quakers, o método mútuo, também chamado de
monitorial ou lancasteriano (NEVES, 2003), se baseava no aproveitamento dos
alunos mais adiantados como auxiliares do professor no ensino de classes
numerosas” (SAVIANI, 2005, p.8).

Com a chegada da Família Real em 1808, a educação passou por mudanças


bastante significativas, com o abandono de uma política educacional exportada
em favor políticas educacionais internas voltadas aos interesses das elites
locais. Havendo investimentos pontuais no campo de ensino como:
implantação de cursos de Engenharia da Academia Real da Marinha (1808) e
da Academia Real Militar (1810), o Curso de Cirurgia da Bahia (1808), de
Cirurgia e Anatomia de Rio de Janeiro (1808), de Medicina (1809), também no
Rio de Janeiro, de Economia (1808), de Agricultura (1812), de Química
(química industrial, geologia e mineralogia), em 1817, e o Curso de Desenho
Técnico (1818) da Faculdade de Direito de Olinda, instalada nas dependências
do Mosteiro de São Bento em 1827, por meio de decreto do Imperador D.
Pedro I. Com as mudanças, os membros das elites não precisariam mais ir
para o exterior cursa o ensino superior.

82
Em 1824, com a Constituição outorgada por D. Pedro I, a Educação é
contemplada com a implantação das bases da organização político-institucional
do país recém-independente. Estabelecendo-se ainda, a gratuidade da
educação primaria e o rompimento com o modelo jesuítico educacional.

Imagem 1 – Ginásio Pernambucano fundado em 1825. Fonte:


http://www.ipatrimonio.org/recife-ginasio-pernambucano/#!/map=38329&loc=-
8.057902999999985,-34.87932399999999,17.

A imagem acima é do quase bicentenário Ginásio Pernambuco, fundado em 1º


de set de 1825, por meio de decreto do então presidente da província de
Pernambuco, José Carlos Mayrink, sob o nome de Liceu Provincial de
Pernambuco, numa das dependências do convento do Carmo. Contudo, foi só
em 1855, durante o governo do Imperador D. Pedro II, que em 14 de maio de
1855 por meio da Lei n. 369 que a instituição, que ele passou a se chamar
internato de educação pública e de instrução secundária com o nome de
Ginásio Pernambucano. A instituição é tida como o mais antigo colégio ainda
em funcionamento na América Latina. Fora concebido com a missão de
garantir uma educação sólida e voltada à preparação dos filhos das castas
dominantes. A esse respeito, Ricardo Bezerra (BEZERRA, 2012, p. 240)
comenta o seguinte:

“O Ginásio Pernambucano surgiu da necessidade que os filhos dos


comerciantes e donos de engenho e de usinas do estado tinham de dar
continuidade aos seus estudos sem precisar se deslocar para o Rio de Janeiro,
capital do Império, ou para a Europa. Portanto, o Ginásio Pernambucano
aparece no cenário educacional de Pernambuco com um papel definido:
oferecer ensino secundário de qualidade o suficiente para garantir às futuras
gerações da elite pernambucana continuidade do seu status social, político e
econômico. A escola, ao longo da sua história, sempre preocupou-se em
preparar para os cursos superiores existentes em Pernambuco e no país e
ainda preservar e perpetuar os valores aristocráticos e monopolistas da classe

83
dominante local diante do surgimento, fortalecimento e reivindicação de outras
camadas sociais”

A instituição do Ginásio Pernambucano caracterizou-se como uma resposta


institucional, em nível de ensino secundário, aos interesses e projetos dos
grupos dominantes de Pernambuco. E que, ao lado da Faculdade de Direito, do
Seminário de Olinda e da Escola Normal Pinto Junior, o Ginásio
Pernambucano ajudou a compor o quadro da educação de caráter aristocrática
e humanista de Pernambuco durante o Império e também durante a Primeira
República.

Por volta de 1879, houve a tentativa de aprovação pelo Legislativo da Reforma


Leôncio de Carvalho, que, entre outros avanços, propunha mudanças
importantes na educação do país, como: “liberdade de ensino; o exercício do
magistério e a liberdade de frequência”. No entanto, o projeto não foi aprovado
por não consta com o apoio da maior parte do legislativo. A proposta de lei não
foi vista com simpatia pelas elites da época e acabou sendo recusada.

Com a ingerência do governo imperial, verifica-se, a partir da segunda metade


do século XIX, um avanço das instituições privadas, oferecendo vagas para
aqueles que podiam pagar, iniciando a rede particular de ensino que temos
instalada até os dias de hoje.

Surge então, em Recife capital de Pernambuco, a Escola Normal Pinto Júnior


com o propósito institucional de garantir a formação dos quadros de
professores que iriam atuar no ensino primário.

Imagem 2: Fachada da antiga Escola Normal Pinto Junior, no Recife, fundada


em 1872. Fonte:
https://www.diariodepernambuco.com.br/noticia/opiniao/2020/11/colegios-do-
recife-que-desapareceram-deixando-os-alunos-com-saudade-2.html.

84
Sendo criada em 1872 pela Sociedade Propagadora da Instrução Pública, pelo
professor João José Pinto Júnior (1832-1896), o Pinto Júnior, se destaca por
ter sido a primeira escola recifense que não era pública, mas gratuita, sendo
mantida por intelectuais. A instituição tinha um ensino bastante rígido e o seu
acesso era exclusivo para estudantes do sexo feminino, chamadas
normalistas– em um método já extinto que preparava as adolescentes para se
tornarem professoras. Para se tornar uma aluna, era necessário fazer um
exame de admissão, como um vestibular.

Os sentidos socioculturais que levaram a sua naquela época estão descritos na


fala de Yan Santos (SANTOS, 2021, p. 166-167) que afirma o seguinte:

“a elite defendia veementemente a aplicabilidade das características maternas


das mulheres à instrução da nação. Segundo tais discursos, as mães estavam
presentes na primeira educação das crianças, orientando o desenvolvimento
moral de seus filhos. As mulheres-mães eram as responsáveis por essa
primeira educação da infância no lar e, por extensão, nas escolas primárias; e
dariam a primeira educação escolar aos 167 infantes, futuros cidadãos do país”

Contudo, o ensino secundário da província – com maior status (intelectual,


social e político-econômico), menor carga de trabalho e geograficamente
localizado na capital – foi majoritariamente regido por homens, relegando-se o
ensino primário às professoras. Apesar de o ensino primário ser exercido
majoritariamente por mulheres, muitas das quais advindas dos quadros da elite
local, os melhores salários ainda estavam concentrados nas mãos dos
professores que lecionavam no ensino secundário. Assim os professores que
atuavam no Ginásio Pernambucano tinham uma renda bem superior aos
proventos pagos as docentes que saíam da escola Normal Pinto Junior aptas a
atuar na educação primária.

Apesar disso, como se pode notar, a educação tinha a função de preparar os


filhos das elites da terra para a governança e liderança, garantir a manutenção
das instituições religiosas tradicionais e o modelo de sociedade cuja maior
característica era o fosso social entre livres e escravizados, negros e brancos,
os muitos ricos e os miseráveis. Além, é claro, capacitar uma parcela da
população, a depender de sua origem social, para exercer funções na
administração pública e em atividades econômicas que requeriam um saber
mais tecnicista.

Segundo a Márcia Justino (SILVA, 2022, p. 112), ainda no século XIX surge e
dissemina-se pelo mundo ocidental o método intuitivo, que foi traduzido por Rui
Barbosa em 1881 e publicado no Brasil em 1886. Essa abordagem pedagógica
generalizou-se na segunda metade do século XIX, nos países da Europa e das
Américas, tendo como principal elemento de renovação de ensino a formação
dos professores. Entenda-se que a Revolução Industrial trouxe novas
exigências no que se refere ao mercado de trabalho. Era necessário que as
escolas se adaptassem às novas demandas da sociedade, tendo em vista que

85
se considerava que os jovens não estavam sendo bem preparados. As novas
tecnologias advindas da Revolução Industrial possibilitaram a criação de
materiais didáticos que dessem suporte ao novo método de ensino. Estes
materiais consistiam em: “mobiliário escolar, quadros negros, caixas para
ensino de cores e formas, quadros do reino vegetal, mapas, diagramas,
diferentes objetos como pedras, metais, madeiras, louças, cerâmica, vidros,
dentre outros” (SAVIANI, 2005).

Assim, naquele período, o formato mais próximo da escola que se tem nos dias
atuais começou a ganhar forma e força a partir do século XIX, sendo
desenhado o modelo tradicional de educação. O foco consistia em transmitir
conhecimento, valores, hábitos e costumes. Sendo assim, o professor é visto
como o personagem central na escola. Ele é tido como o detentor do saber
acumulado ao longo dos anos pela humanidade e que precisa ser transmitido
para o estudante que não está pronto e precisa receber esse conhecimento. De
acordo com Saviani (2005, p.2):

“(...) Pautando-se pela centralidade da instrução (formação intelectual)


pensavam a escola como uma agência centrada no professor, cuja tarefa é
transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade segundo uma
gradação lógica, cabendo aos alunos assimilar os conteúdos que lhes são
transmitidos”.

O ensino estava a serviço da reprodução dos valores consagrados pelas elites


de sua época, ou seja, visava a perpetuação das desigualdades. No caso
brasileiro e, em especial da Província de Pernambuco, o ensino a ensino
preocupava-se em preparar os futuros quadros da governança local. Formando
as novas gerações das famílias oligarquias para a liderança e a defesa do
modelo de sociedade existente. Tendo como base de sustentação o modo de
produção escravista, o abismo social existente entre em brancos e negros, a
religiosidade católica, as tradições, as práticas e costumes herdados do
período colonial.

Referências biográficas
Doutorando em História – UFRPE. Possui mestrado e licenciatura em História
pela UFRPE. Especialista em Gestão e Tutoria em EaD pela FACIGMA.
Cursos de aperfeiçoamento em Estudos Africanos e Afro Brasileiros em
perspectiva: produção de conhecimento – UFMA; Tecnologias Digitais na
Educação – UFC; e em Educação, Pobreza e Desigualdade Social – UFPE.
Professor auxiliar do Curso de Licenciatura em História, Campus Mata Norte,
da Universidade de Pernambuco – UPE; Professor pesquisador I e tutor virtual
do Curso de Licenciatura Plena em História, modalidade EaD, da EaDTec da
UFRPE; professor formador e conteudista do curso técnico profissionalizante
de Secretaria Escola, na modalidade EaD, da Secretaria de Educação de
Pernambuco. É Pesquisador associado I do Instituto de Estudos da África IEAF
– UFPE. Atua como conselheiro do Corpo Editorial da Editora Mnemosine,
conselheiro do Corpo Editorial da Editora Típica. Parecerista ad doc da
PRACS– Revista Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da

86
UNIFAP; Parecerista ad doc da EmRede – Revista de Educação a Distância; e
avaliador ad hocdas ações de Extensão de Demanda Espontânea da
Universidade Federal Fronteira Sul – UFFS. Link do Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1097814777267022.

Referências bibliográficas
BELTRÃO, Monica Maria Albuquerque; MELO, Maria do Carmo Barbosa
(Orgs). Educação e equidade: a escola como espaço de tensões e
possibilidades. 1.ed. Campina Grande: Plural, 2021.

BEZERRA, Ricardo José Lima. A escolarização secundária e a ordem


oligárquica em Pernambuco nas primeiras décadas da República Brasileira
EccoS – Rev. Cient., São Paulo, n. 29, p. 237-249, set./dez. 2012.

PESAVENTO. Sandra Jatahy. História & História Cultural. 3. ed. Belo


Horizonte: Autentica Editora, 2014.

SANTANA, Eduardo Augusto de. História da Implantação e Desenvolvimento


da Freguesia de São Miguel do Ipojuca entre 1594 – 1780: contada a partir dos
seus engenhos açucareiros, 2014. 190 páginas. Dissertação – Programa de
Pós-Graduação em História Social da Cultura Regional da Universidade
Federal Rural de Pernambuco. Recife, 2014.
Disponível em: http://www.tede2.ufrpe.br:8080/tede2/handle/tede2/6179.
Acesso em: 16 jul. 2022.

_________ A colonização e o obscurantismo histórico que envolveu a história


dos povos nativos em Pernambuco após as campanhas de conquistas dos
seus territórios: a importância de se construir outras narrativas a respeito dos
povos originários e o papel do pesquisador e professor de história para a
escrita e ensino destas narrativas. In: CONDADO, R.A.R; SOUZA, F.S (org.)
Caminhos da Aprendizagem Histórica: Ensino de História Indígena e das
Américas. 1.ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UFMS, 2021.

SAVIANI, Demerval. As Concepções Pedagógicas na História da Educação


Brasileira. Texto elaborado no âmbito do projeto de pesquisa “O espaço
acadêmico da pedagogia no Brasil”, financiado pelo CNPq, para o “projeto 20
anos do Histedbr”. Campinas, 25 de agosto de 2005.

___________. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. Campinas-SP:


Autores Associados, 2010.

SILVA, Márcia Justino. História da Educação. Curso Técnico de Gestão


Escolar, Escola Técnica Estadual Professor Antonio Carlos Gomes da Costa –
ETEPAC. Educação a Distância. 2.ed. Recife, 2022.

SANTOS, Fabrício Lyrio. A expulsão dos jesuítas da Bahia: aspectos


econômicos. Rev. Bras. Hist. 28 (55) • Jun 2008. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S0102-01882008000100009. Acesso em: 10 jul. 2022.

87
SANTOS, Yan Soares. Associativismo e docência no Recife: estratégias de
atuação sociopolítica de trabalhadores docentes entre os anos de 1872-1915.
Recife, 2021. Disponível em:
https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/40183/1/TESE%20Yan%20Soar
es%20Santos.pdf. Acesso em: 23 jul. 2022.

SOUZA, Telma Mirian Moreira de. Entre a Cruz e o Trabalho: exploração da


mão de obra indígena no Sul da Bahia (1845-1875), 2007. 237 páginas.
Dissertação de Mestrado em História Social Para a obtenção do título de
Mestre em História Social Universidade Federal da Bahia Departamento de
História Programa de pós-graduação em História Social. SALVADOR, 2007.
Disponível em:
https://ppgh.ufba.br/sites/ppgh.ufba.br/files/15_entre_a_cruz_e_o_trabalho_a_e
xploracao_de_mao-de-obra_indigena_no_sul_da_bahia_1845-1875.pdf.
Acesso em: 12 jul. 2022.

88
O MUNDO EM DEBATE: REFLEXÕES SOBRE A VIDA E
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA
Eduardo Silveira Netto Nunes

Primeiras palavras
Em 2022, e no momento em que escrevemos este artigo, a pandemia do
SARS-CoV-2/COVID-19 atinge a cifra global de 576.907.920 de casos
confirmados e 6.399.742 de mortos. Os países com o maior número de
infectados são Estados Unidos, Índia, França e Brasil com 91.309.159,
44.019.811, 33.997.224 e 33.813.587 casos, respectivamente. Se olharmos
para os mortos, os Estados Unidos contabilizam 1.029.925 óbitos, seguido pelo
Brasil, com 678.486 falecimentos e a Índia, com 526.357 mortes.

Como lidarmos com este mundo em constante modificação e conflito? Qual o


papel da Universidade no debate público sobre os processos que afetam a
sociedade contemporânea? Como a sociedade pode estabelecer interlocução
construtiva com a Universidade? Como a Universidade pode a escutar a
sociedade civil organizada, grupos e sujeitos envolvidos com as temáticas
emergentes na realidade?

Perguntas como estas foram as principais desencadeadoras da organização e


realização do projeto “MUNDO EM DEBATE: CONVERSANDO SOBRE O
CONTEMPORÂNEO”, desenvolvido em 2019 no Programa Institucional de
Bolsas de Extensão – PIBEX do Centro Universitário Sant'Anna, e que é objeto
deste trabalho que busca apresentar a dinâmica dos trabalhos realizados.

Que mundo é este: provocações teóricas


Como sabemos, o mundo contemporâneo desenvolve-se com uma velocidade
avassaladora. Os processos sociais, econômicos, políticos e culturais ocorrem
e modificam-se intensamente em questão de dias, em flashes de segundos. O
Banco Central Norte Americano decide subir ou baixar os juros, e
imediatamente ondas de reação na economia global afetam todas as
economias e sociedades do planeta.

A barragem de Brumadinho, vinculada à Companhia Vale do Rio Doce, rompe


provocando uma tragédia criminosa; como reação, inúmeras medidas são
adotadas pelo Estado de Minas Gerais, entre elas a interrupção da produção
de minério de ferro em unidades com estrutura semelhante à Brumadinho, e
isso acabando por reduzir oferta global de minério de ferro, elevando o seu
preço internacional.

89
O primeiro ministro Britânico, David Cameron lança uma bravata aos britânicos
– a de que o Reino Unido sairia da União Europeia –, para indicar que era
crítico ao processo de integração desenvolvido desde os anos 1950 na região,
e a ideia acaba passando por um plebiscito no qual, por uma ínfima diferença,
saí vencedora a opção de SAIR DA UNIÃO EUROPEIA, o que acabou
produzindo uma “revolução” na história das relações internacionais pois
representava o enfraquecimento da antiga tônica do multilateralismo e o
fortalecimento de relações bilaterais, além de sacudir a própria zona Euro, com
impactos globais, pela importância do Grã-Bretanha e da União Europeia na
economia e na política internacional.

Os temas globais indicam como os processos estão inter-relacionados e são


complexos. No caso do Brasil, poderíamos citar o flerte com o autoritarismo
nas plataformas e ações governamentais do político presidente da República
do Brasil entre 2018 e 2022. Nas tensões envolvendo a Venezuela. Nas
reformas da previdência e trabalhista. Na emergência de pautas reacionárias,
negacionistas, algumas beirando o protofascismo. As questões ambientais e,
em especial, as queimadas e desmatamento.

Os exemplos de temas e acontecimentos são intermináveis, os quais pululam


no cotidiano brasileiro e mundial, e demandam uma necessária reflexão
enquanto os processos estão em curso, não encerrados, em outras palavras,
enquanto ainda estão “quentes”.

Em um mundo “confuso e confusamente percebido”, como diz Milton Santos


(2003, p, 9), é indispensável que intentemos fazer um esforço de “decifração” e
de compreensão da realidade facilitando a inteligibilidade de processos
complexos da atualidade, tarefa indispensável para nos posicionarmos
socialmente (BOFF, 2009).

A globalização do mundo “assinala a emergência da sociedade global, como


uma totalidade abrangente, complexa e contraditória; uma realidade desafiando
práticas e ideias, situações consolidadas e interpretações sedimentadas” sendo
indispensável para perceber e compreender essas mudanças, a necessidade
de mantermos “nossos olhos alertados […] para reconhecer essa nova
realidade”, sendo indispensável exercitar a compreensão desses fenômenos
(IANNI, 2004, p.7, 11).

O desafio da globalidade, diz Edgar Morin, “é também um desafio de


complexidade; existe complexidade, de fato, quando os componentes que
constituem um todo são inseparáveis e existe um tecido interdependente,
interativo e inter-retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes”
(MORIN, 2010, p. 14).

Frente a avalanche de informações e complexidades desenvolve-se por vezes


“uma inteligência incapaz de perceber o contexto e o complexo planetário”, em
tais condições “as mentes… perdem suas aptidões naturais para

90
contextualizar”, sendo que para Morin, o conhecimento progride “pela
capacidade de contextualizar e englobar” (MORIN, 2010, p. 15).

Como a Universidade pode contribuir para esse processo de compreensão e


consciência sobre a complexidade que afeta a realidade contemporânea?
Entendemos que o “Mundo em Debate” procurou exercitar respostas a essa
pergunta, demarcando um lugar teórico, político, intelectual e social de
fomentar a reflexão crítica e complexa sobre os processos que constituem a
nossa realidade como sujeitos: locais, globais; individuais e coletivos; filhos do
presente e do passado; comprometidos nesse destino que é viver socialmente.
Afirma Escobar: “Construir o lugar como um projeto, transformar o imaginário
baseado no lugar numa crítica do poder pelo lugar, exige-se aventurar-se por
outros terrenos” (ESCOBAR, 2005, p. 152).

Mundo em Debate na prática


Na realização do Mundo em Debate, buscamos criar espaços de debate,
reflexivo e de bate-papo, periódico, mediado por docentes e convidad@s, e de
livre participação de discentes, público externo, funcionários. Nesse ambiente,
foi possível problematizar a realidade contemporânea em suas múltiplas
facetas, tendo como ponto nodal diversas questões emergentes de cada agora!

Ao longo de nove encontros, conseguimos constituir um frutífero ambiente de


trocas, intercâmbios e reflexões sobre temas candentes. No quadro 1 temos a
descrição de cada um desses encontros e dos respectivos convidados.

QUADRO 1. Temas e convidados. Mundo em Debate, 2019

91
Carrossel de cartazes do Mundo em Debate, 2019

92
93
Os temas dos encontros eram decididos pela equipe do projeto juntamente
com discentes do curso de Licenciatura em História, a partir da mídia e
observação de temas com projeção pública. Decidido o tema, a equipe
buscava estabelecer contatos com organizações da sociedade civil e
acadêmicos para definir os e as convidadas. Definido @s participantes,
realizávamos a divulgação em redes socais, e-mails, materiais gráficos. A cada
evento organizávamos espécie de arena, semicircular, em espaço de
circulação pública, com livre-acesso e livre participação. A dinâmica
correspondia à exposição dos convidados seguida da abertura dos microfones
ao público.

O primeiro encontro “UNISANTANNA DEBATE AS POLÊMICAS DO


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO: PARA QUÊ FILOSOFIA, SOCIOLOGIA E
PAULO FREIRE?”, contou com Sidnei Ferreira Vares e Eduardo Silveira Netto
Nunes, que refletiram sobre as polêmicas geradas pelo Ministro da Educação e
movimentos conservadores na educação, como Escola Sem Partido, que
combatiam a escola democrática, o pensamento educacional freireano e áreas
como filosofia, sociologia e história, acusando-as de serem comunistas. A
reflexão questionou argumentos e fundamentos do negacionismo, do
pensamento anticientífico e a culpabilização de Paulo Freire pelos problemas
da educação brasileira.

O segundo encontro, UNISANTANNA DEBATE LGBTfobia E O DIREITO ÀS


DIFERENÇAS contou com a participação de Leonardo Arouca (Centro de
Memória do Museu da Diversidade Sexual do Estado de São Paulo), da Alleid
Machado e de Eduardo Nunes e Sidnei Vares, que dialogaram sobre: os
direitos e conquistas do movimento; as violências e violações de direitos das
pessoas da comunidade LGBTQI+; e, as ameaças que os direitos conquistados
estavam sofrendo diante das investidas conservadoras e heteronormativas. De
maneira especial, repercutiu-se o reconhecimento pelo Supremo Tribunal
Federal da viabilidade do casamento de pessoas do mesmo sexo como sendo
juridicamente válido. Falou-se da dificuldade das pessoas LGBTQI+ ter
reconhecimento e legitimidade de vivenciar os seus afetos sem preconceito e
discriminações, em especial, foi lembrado do papel político do Museu da

94
Diversidade Sexual de SP e a luta para tentar implantá-lo como representativo
e simbólico da luta e das conquistas do movimento. Entretanto, a implantação
do Museu em um local definitivo, sofreu reveses com a onda conservadora que
ganhou força política nos últimos anos.

O terceiro encontro, UNISANTANNA DEBATE AS VULNERABILIDADES NO


MUNDO CONECTADO, contou com Roberto Coutinho, Especialista em
Segurança da Informação, e Eduardo Nunes, que dialogaram sobre as
inúmeras potencialidades de uma sociedade conectada às novas redes de
comunicação e com intensa utilização das novas tecnologias da comunicação e
informação, bem como dos riscos envolvidos com esse mundo conectado.
Também se refletiu sobre a estrutura de poder relacionado ao mundo
conectado extremamente complexo e com a concentração de poder em
grandes conglomerados empresariais como Google, Microsoft, Facebook, entre
outros. Falou-se na existência de movimentos de resistência ao ímpeto
corporativo e financeirizado da rede, que defendem o direito de neutralidade da
rede, bem como os direitos humanos associados à nova realidade conectada,
como a necessidade de medidas de inclusão digital, educação digital e
cidadania virtual. Exemplificou-se as tensões políticas na rede com o caso do
Wikileaks (ASSANGE, 2013) , quando trouxe à público milhares de
documentos do governos Norte Americano sobre guerras e abusos cometidos
no Oriente Médio por tropas do país, bem como documentos diplomáticos com
temáticas sensíveis, que envolviam o grampeamento de líderes mundiais, o
monitoramento de comunicação de líderes políticos de grandes nações como
Alemanha e Brasil. Também foi dialogado sobre os efeitos danosos das
fakenews em eleições e na vida social, bem como, a respeito da privacidade
dos usuários da rede e uma verdadeira mercantilização da sua intimidade por
quem acessa esses dados.

A segurança nas redes coloca-se como uma variável indispensável de ser


levada em consideração em nossa atualidade seja pela quantidade de
conexões que estabelecemos através de meios digitais e da internet, seja pela
interminável quantidade de dados que fornecemos na web, sobre nossas vidas,
nossa intimidade, nossas finanças, nossas visões de mundo no mundo.

O quarto encontro, UNISANTANNA DEBATE A REFORMA OU DESTRUIÇÃO


DA PREVIDÊNCIA?, contou com Victor Gnecco Pagani (Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - Dieese); com Genésio
Denardi e Margarida Lopes de Araújo (Associação dos Auditores-Fiscais da
Receita Federal do Brasil); e Eduardo Nunes. Os debates refletiram sobre os
projetos de modificação do sistema de Previdência Social e de Seguridade
Social que estavam em pauta no Congresso Nacional, Reforma da Previdência
que acabou aprovada em 2019 através da Emenda Constitucional nº 103. As
discussões oportunizaram aos presentes a aproximação das características da
Reforma da Previdência que afetava diretamente os trabalhadores e as
trabalhadoras, em geral, e em especial @s de menor renda e qualificação e
@s precarizad@s. Foram ressaltadas as diversas consequências negativas,
para @s assalariad@s e @s precarizad@s: pelo aumento da idade mínima (62

95
para mulheres, 65 para homens); pela mudança na fórmula do cálculo da
aposentadoria (100 % dos salários de contribuição, ao longo do tempo); pela
aplicação do tempo de contribuição para o cálculo da aposentadoria (60% dos
salários, + 2% de contribuição por ano trabalhado acima de 20 anos); pensão
por morte (50 % do valor da aposentadoria + 10% por cada dependente).

Os debatedores externalizaram preocupações com as consequências da


reforma proposta para a sociedade brasileira tendo em vista outras mudanças
legais envolvendo o mundo do trabalho, da seguridade social e da previdência
social. Victor Pagani, do Diesse, e Eduardo Nunes, falaram da Reforma
Trabalhista, que entre outras coisas, criou o Contrato de Trabalho intermitente,
derrubando o paradigma da jornada de trabalho de 44 horas semanais,
estimulou a criação de “empreendedores individuais” (fora das regras da
Consolidação das Leis do Trabalho), fragilizou o poder de negociação de
categorias profissionais em relação às empresas. As “reformas” Trabalhista e
da Previdência geraram impactos direto e negativamente na renda do trabalho
e nas condições de vida de trabalhadoras/es. Essas medidas juntamente com a
crise econômica de 2018-2019, baixo crescimento, ações erráticas que
desestruturam o sistema produtivo nacional, a Emenda Constitucional 95, de
2016, versando sobre o teto dos gastos públicos impondo congelamento de
gastos em saúde, educação, serviços e políticas públicas, redundaram em um
ambiente de retração e perda de direitos e garantias para os setores menos
favorecidos no país.

O quinto encontro, UNISANTANNA DEBATE O MEIO AMBIENTE ENTRE


QUEIMADAS E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, contou com a
Gustavo Veronesi (SOS Mata Atlântica), Letícia Roberta Trombeta, Felipe
Almeida dos Santos e Eduardo Nunes. Diante das queimas históricas
observadas em 2019 na região da Amazônia brasileira, o Brasil e o mundo
expressaram, através de diferentes meios, organizações, movimentos e
pessoas, críticas e denúncias sobre a devastação ambiental com graves
consequências para a flora, a fauna e a sustentabilidade do planeta. De modo
especial, as queimadas na Amazônia estimularam um debate sobre quais os
modelos de desenvolvimento são realizados no Brasil, e os gravíssimos
problemas derivados da degradação do meio ambiente.

Contextualizando as questões gravíssimas afetando diferentes biomas do


Brasil, com destaque para a região amazônica e da mata atlântica, Veronesi
(SOS Mata Atlântica), indicou como o desenvolvimento insustentável tem
produzido mudanças climáticas, extinção de espécies, poluição e
contaminação ambiental (ar, água, terra e subsolo) em escala crescente,
afetando à toda a sociedade. Os Professores Felipe Santos e Eduardo Nunes,
pontuaram o desmonte de políticas públicas ambientais, com o
enfraquecimento de instituições como o Instituto Chico Mendes (ICMBio),
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA) e do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA); a dominância
dos interesses do agronegócio nas questões ambientais; e posturas
negacionistas, questionando a veracidade da degradação do meio ambiente.

96
Por fim, a Professora Letícia Trombeta apresentou o projeto de Monitoramento
da Qualidade da Água, da ONG SOS Mata Atlântica, com “Observação dos
Rios” que realiza coleta de água no rio Tietê e em outros locais para registrar a
poluição e degradação ambiental desse rio. Ela criticou as iniciativas tolerantes
da política ambiental atual com o desmatamento e as queimadas.

O sexto encontro, UNISANTANNA DEBATE A POLÍTICA NA AMÉRICA


LATINA: ELEIÇÕES NA ARGENTINA, BOLÍVIA E URUGUAI, contou com a
participação de Franco Alejandro López (jornalista, chileno), de Eduardo Nunes
e do Mateus Fiorentini. Frente às grandes questões e tensões políticas na
América Latina, ao longo da história, e em especial desde final da década de
1990 e ao longo dos primeiros 15 anos do século XX, quando tivemos uma
“onda” de governos progressistas em inúmeros países da região, com
destaque para o Brasil, o Uruguai, a Argentina, a Bolívia, a Venezuela e o Chile
(CASTRO, 2012), e de 2015 e início da década de 2020, quando tivemos
sucessivos governos neoliberais, de direita, centro-direita, emergindo em
contextos de crises políticas e golpes que redundaram na deposição de
governos como de Dilma (Brasil) e Evo Morales (Bolívia); tentativas de
derrubada do presidente Maduro (Venezuela), com Juan Guaidó; ou eleição de
presidentes de extrema direita (Brasil) e de direita (Argentina, Uruguai, Chile,
Colômbia, Paraguai). Alento para os setores progressistas foi a eleição em
2018 de Andrés Manuel López Obrador (México), e no final de 2019, de Alberto
Fernández (Argentina).

Os participantes repercutiram a processo político na América Latina como um


ambiente carregado de tensões e sinais, muito significativos, de tentativas de
enfraquecer governos e pautas populares, em favor de projetos associados ao
neoliberalismo e neocolonialismo, ao invés de alternativas altermundistas e
progressistas com associação às demandas dos setores menos favorecidos e
trabalhadores. Foi comentado as grandes mobilizações de rua pedindo uma
nova constituição, nova previdência social e nova política educacional no Chile,
todas elas tendentes a democratizar a sociedade chilena e as oportunidades às
famílias empobrecidas.

O sétimo encontro, UNISANTANNA DEBATE AS CRISES HUMANITÁRIAS


CONTEMPORÂNEAS E O MUNDO ATUAL, contou com o lançamento do livro
“Haiti 200 anos de História”, e teve a participação de Everaldo de Oliveira
Andrade (USP), de Alex André Vargem (Centro de Apoio e Pastoral do
Imigrante – CAMI) e de Eduardo Nunes. Diante dos grandes processos de
êxodo, migração e imigração intensificados na contemporaneidade por conflitos
de grande magnitude como a guerra na Síria, conflitos no norte da África, o
conflito armado na Colômbia, desastres naturais como o terremoto no Haiti, ou
crises econômicas como a de 2008 nos Estados Unidos, e a crise da dívida
pública em países da zona euro como Grécia, Portugal, Espanha e Irlanda,
situações que tiveram consequências globais, repercutindo em pressões sobre
as populações ao redor do mundo, com sensíveis expressões nas imigrações.

97
Em 2019, a Organização Internacional para Migrações (OIM), da Organização
das Nações Unidas (ONU), registrou 272 milhões migrantes internacionais, dos
quais ao redor de dois terços (2/3), ou 181 milhões, são migrantes por razões
econômicas, chamados de migrantes de mão-de-obra; 28 milhões eram
migrantes na condição de refugiados por motivos de perseguição política,
cultural, étnica, religiosa (OIM, 2019). Para analisar a questão das migrações e
suas repercussões no Brasil, Alex, do CAMI, refletiu sobre a realidade tensa e
conflituosa que envolve a condição de imigrantes, com a reemergência da
xenofobia e políticas de restrição ou perseguição a imigrantes em diversos
países. Problematizou as motivações que caracterizam os imigrantes ao Brasil
por razões humanitárias – Colômbia, Haiti, Congo, Síria; por razões
econômicas – Bolívia e Venezuela. Também explicitou as dificuldades
enfrentadas pelos imigrantes no Estado e na Cidade de São Paulo e as ações
restritivas do governo federal como a Regulamentação da Nova Lei de
Imigração, Lei nº 13.445, de 2017.

Criticando a saída do país do Pacto Global pela Imigração da ONU, em 2019,


pela renúncia do Brasil em partilhar de acordos e consensos internacionais de
modo a garantir os direitos humanos dos imigrantes no Brasil e nas nações
signatárias, a participação de Eduardo Nunes, explicitou a história da formação
do Brasil, ao longo dos séculos, marcada pelos deslocamentos populacionais,
desde épocas remotas de nossa história, com os primeiros hominídeos do
nosso território, até a transposição forçada de africanos submetidos à
escravidão, e contingentes de europeus (entre outras populações), em
especial, entre 1880 e 1930, chegando nas últimas décadas com as migrações
de latino-americanos desde os anos 1990, proveniente de regimes ditatoriais,
por conflitos armados (Colômbia), na busca por melhores oportunidades
(Bolívia, Venezuela, Colômbia, Peru, Cuba).

A fala de Everaldo Andrade destacou o processo histórico que envolveu o Haiti,


desde os conflitos políticos que redundaram no golpe de Estado em 2004,
gerando as condições para a intervenção da ONU, no país, através da Missão
das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), coordenada
pelo Brasil; passando pela grave crise humanitária provocada pelo terremoto
de 2010, que ocasionou a morte de mais de 200 mil pessoas; até a saída
dessa Missão em 2017. Apresentou um balanço da longa trajetória do Haiti,
desde o início do processo de conquista e colonização empreendido pelos
europeus desde o século XV; passando pela independência do país, em 1804,
e pela turbulenta realidade da formação da nação ao longo do século XIX e XX.
Enfatizou os processos de tutela e intervenção que o país sofreu ao longo de
todo o século XX e que dificultaram a construção de relações sociais e políticas
autônomas.

Palavras finais em um mundo em mudanças


A Universidade ocupa ou pode ocupar um lugar destacado do debate público,
pois, a princípio condensa pessoas que se dedicam sistematicamente ao
estudo, à observação dos processos e fenômenos sociais e podem assim,
sistematizar informações, conceitos, eventos e acontecimentos que, em um

98
primeiro momento parecem desconexos, mas possuem intrínseca conexão e
interdependência. Como compreender um mundo multifacetado, complexo e
dinâmico? Como a Universidade pode participar do debate sobre questões
relevantes das nossas sociedades?

O projeto Mundo em Debate proporcionou uma oportunidade para a


comunidade universitária e geral, um espaço para interlocução com diferentes
agentes e pensadores que refletiram sobre a experiência social, coletivamente
construída no presente e em processo dinâmico. Esses debates foram
desenvolvidos com a participação do público que acompanhou as atividades,
formulando questões, posicionando-se sobre as temáticas.

Referências biográficas
Eduardo Silveira Netto Nunes, Professor, Universidade Federal do Acre, Doutor
História Social. Contato: edunettonunes@gmail.com

Referências bibliográficas
The Johns Hopkins Coronavirus Resource Center (CRC) (Dados do SARS-
CoV-2/COVID-19). Disponível em: https://coronavirus.jhu.edu/map.html

ANDRADE, Everaldo de Oliveira. Haiti: dois séculos de história. São Paulo:


Alameda, 2019.

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para


os 99%: Um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

ASSANGE, Julian. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. São Paulo:


Boitempo, 2013.

BOFF, Leonardo. Opção Terra: a solução para a Terra não cai do céu. Rio de
Janeiro: Record, 2009.

CASTRO, Nils. As esquerdas latino-americanas em tempos de criar. São


Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2012.

ESCOBAR, Arturo. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou


pós-desenvolvimento. In: Lander, Edgardo (org.). A colonialidade do saber.
Eurocentrismo e ciências sociais, perspectivas latino-americanas. Buenos
Aires: Clacso, 2005. p. 133-168.

IANNI, Octavio. A era do globalismo. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2004.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o


pensamento. 18ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

99
OIM. Organização Internacional para Migrações/ONU. Número de migrantes
internacionais no mundo chega a 272 milhões. Nova York: OIM, 2019.
Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2019/11/1696031

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à


consciência universal. 10ª. Ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

100
A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO PERÍODO
IMPERIAL ENTRE 1822 E 1889
Francielcio Silva da Costa

Introdução
A educação brasileira no período Imperial se caracterizou por estar relacionada
a um embate de interesses que envolveram a elite nacional que centralizava o
ingresso da educação a uma parcela pequena da sociedade naquele período.
Além disso, o sistema educacional vigente na época possuía métodos
lancasteriano de ensino que se pautava em ensinar um maior número de
alunos se utilizando de poucos recursos, em limitado tempo e com qualidade.

Ou seja, a educação que era ministrada estava intimamente ligada ao sistema


social agrário, excludente e conservador.

Sobre a situação problema que este artigo se pautou, questionam-se quais


foram os motivos da educação brasileira, durante o século XIX ter sido
predominantemente elitista e excludente? Até porque neste contexto histórico,
a educação no Brasil, limitava-se a um pequeno grupo social do país e neste
aspecto, poucas pessoas freqüentavam escolas e tinha acesso à educação
formal.

Nesta pesquisa é relevante analisar o processo educacional brasileiro ao longo


do século XIX e no que se refere aos objetivos específicos, ressalta – se
abordar os aspectos positivos e negativos do sistema educacional daquele
período e entender a educação brasileira no contexto histórico social.

A constituição brasileira de 1824, outorgada por Dom Pedro I foi de crucial


importância para o desenvolvimento da educação no período imperial, tendo
em vista que assegurava a instrução pública da educação primária gratuita a
todos os cidadãos do país. Portanto, a realidade nas províncias não era a
mesma que a constituição assegurava, pois, de certa forma esse ensino
gratuito não se disseminava para todos.

Uma das medidas adotada pelo o imperador Dom Pedro I para o avanço da
educação no período imperial foi: a inserção do nível de ensino secundário em
todo país e a criação do colégio Pedro II em 1837 na capital da colônia Rio de
Janeiro com intuito de padronizar de forma concreta o ensino tonando – se
referência do Brasil.

101
Metodologicamente as etapas desta pesquisa compreenderam: Uma revisão
bibliográfica sobre o assunto e pesquisa de campo. Com a revisão bibliográfica
pretende-se aprofundar o conhecimento sobre a educação no século XIX e a
pesquisa de campo analisou o sistema educacional brasileiro aplicando
questionários onde os entrevistados foram escolhidos conforme o seu
conhecimento sobre o assunto, respeitando as conjunturas históricas.

O que é educação?
Em relação ao conceito de educação, deve-se entender que esta palavra é
complexa em razão da polissemia teórica que ela denota nos mais variados
sentidos e aspectos abordados nos campos de pesquisas. Além disso, o
processo educacional é universal, interdisciplinar e globalizante. Pois, diversas
disciplinas dialogam-se ao explicar a educação baseando-se em métodos e
técnicas analíticos de construção de conhecimentos. Para isso, afirma-se:

“Com a educação acontece o mesmo: trata-se de um processo que escraviza e


liberta simultaneamente, mas do qual ninguém consegue escapar, do
nascimento a morte. A educação é, em suma, um processo universal. E na
definição do processo educacional, não podemos fugir das influências que
sofremos na nossa própria formação. Assim é que, ao procurar definir o que
entendo por educação, não deixo de refletir, em parte, o processo educacional
ao qual fui submetido. E como esse processo teve uma presença marcante da
Filosofia, minha definição buscará ser globalizante, interdisciplinar, na tentativa
de compreender a perspectiva da qual as diversas disciplinas procuram
explicar a educação” (PILETTI, 2010, p.7).

De acordo com o entendimento de Nelson Piletti pode-se compreender que o


termo educação é amplo e complexo ao se relacionar com a produção cultural
da sociedade, pois, ela esta presente nos mais diferentes lugares povos,
culturas e mentalidades. Além do mais, a educação tem a finalidade de moldar
comportamentos, saberes, vivências, ideias e realidades sociais.

Didaticamente falando a educação é dividida em educação formal e informal;


devido às especificidades serem elementos diferenciados que caracterizam
esses dois modos educacionais. Onde se percebe que a educação formal
ocorre dentro do espaço escolar se caracterizando por possuir um objetivo
deliberado e sistemático que se concretiza em um currículo oficial e definido e
a informal se dá em locais variados como em casa e na rua sendo ela
responsável pela construção de hábitos, valores, experiências e habilidades.
Ou seja, realiza-se de maneira espontânea.

As particularidades do sistema educacional brasileiro no século XIX


A educação brasileira no século XIX foi marcada por algumas peculiaridades,
dentre elas o tipo de escola que existiu, era frequentado por um pequeno
número de estudantes, além disso, o tipo de ensino que era ministrado havia
uma separação entre os gêneros masculinos e femininos, A infraestrutura era
precária, a instrução era baseada na memorização de conteúdos e também, as
turmas eram numerosas e heterogêneas.

102
Deve-se entender que o tipo de escola do período imperial, está vinculado a
um processo de modernização que vem ganhando corpo no cenário social.
Neste aspecto, destaca-se que o século XIX foi denominado período da
educação escolar, tanto que:

“[...] somente no século XIX o Estado entrou a interferir, maciçamente, na


educação escolar. E, a princípio, apenas para criar uma escola diversa das
existentes, destinada a ministrar um “mínimo” de educação, considerado
necessário para a vida em comum, democrática e dinâmica, da emergente
civilização industrial. Tal escola, ou seja, a escola primária, que logo se faz
compulsória, não tem os objetivos da educação escolar tradicional, a que
sempre existira, antes de o Estado se fazer educador, e que visava manter o
“alto status” social do grupo dominante. A nova escola popular visa, tão-
somente, e nunca é demais repetir, a dar a todos aquele treino mínimo,
considerado indispensável para a vida comum do novo cidadão no Estado
democrático e industrial” (TEIXEIRA, 1976, p.12).

Na abordagem de Anísio Teixeira pode se compreender que o estado começa


a atuar nos moldes educacionais vigentes, possibilitando algumas mudanças
de ordem social, ligando-se ao aspecto democrático e dinâmico da sociedade
industrial. Mesmo que de forma inibida a atuação estatal no processo
educacional refletia o princípio de uma política pública, que vinha dando os
primeiros passos.

Debatendo acerca do quadro de professores que compunha o sistema


educacional brasileiro na época imperial, percebem-se algumas características
que revelam um cenário preocupante de falta de professores, poucos recursos
materiais nas salas de aula e baixa qualificação desses preceptores. Diante
disso, Alves (2009, p.46) enfatiza que “a falta de professores foi o grande vilão
desse fracasso ou marasmo da educação”. Logo, essa conjuntura histórica,
revela uma crise profunda na educação brasileira daquele momento.

Sobre o papel do colégio Dom Pedro II na educação brasileira na época


imperial pode-se afirmar que se protagonizou por meio do desenvolvimento
científico, artístico e cultural da nação brasileira. Além disso, foi mediante está
instituição que o ensino secundário foi inserido no Brasil abrindo novas
possibilidades educacionais ao ensino ampliando o acesso a escola e a um
público de uma faixa etária entre 10 a 18 anos, portanto, para ingressar-se os
candidatos passavam por um rigoroso exame de admissão, que levava em
consideração a idade, o mérito adquirido e habilidades inatas. Além disto,
deve-se destacar que a origem do colégio Dom Pedro II é contada através de
um embate historiográfico. Logo, pontua-se que:

A respeito da criação do Colégio, cumprem questionar a versão ainda


dominante na historiografia, que estabelece uma linha de continuidade entre as
duas instituições (o Seminário e o Colégio), reproduzindo a versão oficial
consagrada no texto legal. Sem sombra de dúvida, o Colégio Pedro II se
configura como uma nova instituição, com um programa institucional

103
radicalmente diferente da instituição que o antecedeu. O discurso oficial, bem
como os artifícios de garantir certo número de vagas para os órfãos do
Seminário, buscava, certamente, calar a oposição que apontava para o caráter
elitista da nova instituição.

Analisando o processo de surgimento, do colégio D. Pedro II deve-se conceber


que esta instituição se forma a partir, de um decreto assinado em 20 de
dezembro de 1837 como decorrência da reorganização do Seminário de São
Joaquim, que legitimou a instituição do ponto de vista jurídico. No entanto, há
um debate de que depois da criação deste colégio até onde as características
que pertenciam ao antigo seminário, influenciavam ainda nesta escola.

Em relação à influência que o ato adicional de 1834, exerceu na educação


brasileira deve-se mencionar que ele representou um fator determinante na
definição das políticas de instrução pública elementar, pois cada província, a
partir de então, tinha autonomia para se organizar ao seu modo. Até por que, a
instrução pública elementar do século XIX estava desorganizada, precarizada e
era anárquica. Discorrendo a cerca, dessa emenda constitucional na educação,
explana-se que:

“O ato adicional de 1834 conferiu às Províncias o direito de legislar sobre a


instrução pública e os estabelecimentos próprios e promovê-las. O ensino
secundário não prepara candidatos para o superior e os candidatos eram
examinados nos cursos. A maioria dos colégios secundários estava nas mãos
de particulares, o que acentuou o caráter classista e acadêmico do ensino, ou
seja, só para quem podia pagar” (CAMARGO, 2018, p. 7).

Elucidando e verificando as consequências que o ato adicional de 1834


enfatiza-se que ele deu autonomia as províncias da época, no que diz respeito
à legitimação do ensino que deveria ser ministrado. Entretanto, a situação
escolar da época era incoerente com os princípios desta lei, pois faziam
contradição com o fato da educação ser voltada para as elites reservada aos
seus próprios interesses. Com isso percebe-se que havia um ensino
privilegiado para familiares próximos, hierarquizando o acesso as escolas em
grupos pessoais.

No período imperial brasileiro o ensino era voltado à religião católica onde era
dominante. Além disso, a constituição de 1824 assegurava por lei o ensino
religioso ministrado no ensino das escolas, submetendo o sistema educacional
ao aparelho ideológico da igreja, onde a mesma possuía um vasto patrimônio
econômico e cultural e também, deve-se salientar que a igreja nesse contexto
tinha interesses de evangelizar pregando a doutrina católica romana.

Deve-se discutir que na época imperial no Brasil o ensino religioso era


predominante, enquanto isso no resto do mundo se observava uma nova
dinâmica. Com isso, debate-se que havia uma:

104
“Tendência de criar escolas religiosas no Brasil no século XIX era oposta á do
resto do mundo, cuja laicização se tornava cada vez mais frequente. Entre nós,
predominava ainda a ideologia, sobretudo a católica. No período de 1860 a
1890 a iniciativa particular organizou-se, criando importantes colégios, inclusive
de jesuítas, que retornaram oitenta anos após sua expulsão” (ARANHA, 2006,
p. 225).

Logo, se percebe que no século XIX o ensino laico, vinha ganhando espaço na
educação e nas sociedades européias. E já no Brasil, pode-se observar que as
políticas educacionais na época estavam voltadas a doutrina católica vigente,
influenciando fortemente o currículo primário, secundário e os cursos de
formação profissional em geral.

Acerca do ensino técnico existente no Brasil imperial, ele era desprezado e


desvalorizado pelas elites que possuíam uma mentalidade escravocrata. Dessa
forma discorre-se que neste período histórico:

“O ensino técnico no período do império era bastante incipiente. O governo se


desinteressava da educação popular e também da formação técnica,
privilegiando as profissionais as profissões liberais destinadas á minoria. Da
mesma forma, até pouco tempo a historiografia voltava às atenções para a
formação das elites políticas e intelectuais, e menos para esse segmento da
educação” (ARANHA, 2006, p. 228).

Baseando-se no que foi abordado compreende-se que alguns fatores ligados a


mentalidade social da época como humanismo, a retórica e o aspecto literário
distanciados da realidade concreta, não valorizava esse tipo de educação que
tinha o intuito de resolver problemas práticos de caráter econômico, que faziam
parte da conjuntura daquele período.

Resultados e Discussões
Com relação ao ensino superior no período imperial, enfatiza-se que possuía
uma vinculação com o sistema social da época. Para tal fim reflete-se que:

“O ensino no império foi estruturado em três níveis: primário, secundário e


superior. O primário era a “escola de ler e escrever”, que ganhou um incentivo
da Corte e aumentou suas disciplinas consideravelmente. O secundário se
manteve dentro do esquema das “aulas régias”, mas ganhou uma divisão em
disciplinas, principalmente nas cidades de Pernambuco, Minas Gerais e Rio de
Janeiro. D. Pedro I outorgou a nossa primeira Constituição, a de 1824. Essa
carta constitucional continha um tópico específico em relação à educação. Ela
inspirava a ideia de um sistema nacional de educação. Segundo ela, o Império
deveria possuir escolas primárias, ginásios e universidades. De um modo geral,
o ensino superior se destinava as elites, já que os cursos criados visavam
suprir aos próprios interesses dessas elites. Nossos primeiros cursos,
engenharias, direito e medicina se destinavam a formar quadros que
espelhassem as próprias elites” (OLIVEIRA, 2018).

105
Refletindo sobre a linha de pensamento do Me. Jordan Bruno Oliveira percebe-
se que a educação desta época era organizada em três categorias, onde cada
nível possuía uma finalidade especifica contextualizada com a figura do
imperador e as elites conectadas com a carta magna de 1824, que se pautava
na mentalidade conservadora deste período.

A educação imperial brasileira baseava-se no ensino dualista na divisão de


escolas públicas e particulares. Mediante isso, aborda-se o seguinte:

“Esse dualismo realmente permanece até hoje. Ele segue uma ideia de que o
ensino deve ser ofertado de acordo com os interesses de cada grupo social.
Assim, o Brasil nunca cumpriu o princípio republicano e liberal de uma escola
pública para todos. Na época, esse dualismo seguia a necessidade de formar
apenas os jovens das elites; quanto à população brasileira em geral, seria
necessário apenas saber ler e escrever. Esse pensamento se reproduz até
hoje, na ideia de que os alunos de escola pública não precisam de algo além
de um ensino profissionalizante” (OLIVEIRA, 2018).

Argumenta-se que no Brasil houve uma divisão de classe dentro do sistema


educacional, bastante evidente devido uma diferença de acesso a uma
instrução de qualidade, pois as elites frequentavam as melhores escolas
(particulares e privadas) e os de classe baixa (públicas) consolidadas no
momento do desembarque da corte visto que o ensino passava a ser fator de
distinção social.

Examinando a estrutura educacional no período imperial, observam-se


algumas consequências que ainda persiste nos dias atuais. Com isso, percebe-
se que:

“Influenciou em dois aspectos: quantitativo e qualitativo. Quantitativamente:


altos índices de reprovação, evasão, distorção, série/idade, analfabetismo,
número reduzido de concluintes no ensino médio. Baixo percentual de
ingressos no ensino superior. Qualitativamente: professores leigos, mal
remunerados, pouco incentivos, pouco investimento na educação de qualidade,
muda-se leis, decreto, mais não são efetivadas” (SOUSA, 2018).

Logo, se conclui que o sistema de educação na época imperial teve como


principal consequência o dualismo na educação, pautado no binômio de
escolas públicas e privado, ainda existente nos dias atuais e também, o fato de
haver uma precariedade na instrução pública que não se verifica nas escolas
de cunho privado.

Sobre os temas que eram abordados nas salas de aula da época imperial,
compreende-se que a diversidade não era trabalhada. Neste sentido,
menciona-se a seguinte citação:

“Penso que não era trabalhada. Até porque os negros menos favorecidas
continuavam frequentando as escolinhas improvisadas na fazenda do seu

106
senhor, onde a professora era a filha do fazendeiro. Não havia grade curricular,
estrutura, asseio, fiscalização. Uma educação mais voltada para números e
letras. Praticamente não eram trabalhados valores. E quando eram, mas com
único objetivo: submissão e subserviência” (SOUSA, 2018).

Em razão de uma sociedade e uma educação fortemente influenciada pelo


conservadorismo, machismo, patriarcalismo, escravismo e o elitismo. Nas salas
de aula brasileiras pouco era pensado e discutido temas e problemas que
faziam parte da realidade social, ou seja, não era o objetivo desse modelo de
educação tornar os discentes seres críticos e atuantes, para que não afetasse
os interesses da coroa.

Considerações Finais
Tendo em vista os argumentos apresentados pode-se concluir que o presente
artigo trabalhou a educação brasileira no período imperial, levando-se em
consideração os aspectos acima que caracterizaram o sistema educacional
brasileiro no século XIX. Além disso, percebemos que este modelo de
educação ainda possui influência que reflete nos dias atuais. Ao analisarmos a
educação vigente na época e compararmos com o perfil de instrução em voga
na atualidade, identificamos resquícios existentes dentro do ensino.

Nesta pesquisa realizamos entrevistas orais com intuito de ampliar e adquirir


visões diferenciadas com relação à educação brasileira no período Imperial, na
qual foram obtidos dados, relativos a este sistema educacional, contribuindo
para que haja uma vendagem em algumas lacunas e favorecendo o
enriquecimento do estudo. Diante disso pode – se constatar que os modelos
educacionais do período imperial, refletem mesmo que de forma indireta na
educação atual.

Ao ter analisado os dados das pesquisas, percebe-se que os objetivos foram


alcançados, pois ressaltou – se os aspectos positivos e negativos do sistema
educacional daquele período, bem como entendermos de maneira clara a
educação brasileira no contexto histórico social. Portanto espera – se que esta
pesquisa tenha contribuído para uma análise mais aprofundada da educação
brasileira no período imperial, dialogando entre as mudanças e as
permanências.

Referências Biográficas
Esp. Francielcio Silva da Costa, professor seletista da Secretaria de Estado da
Educação do PI (Seduc). Especialista em História e cultura afro brasileira pela
Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI).

Referências Bibliográficas
ALVES, Washington Lair Urbano. A história da educação no Brasil: da
descoberta à Lei de Diretrizes e Bases de 1996. 2009. 93 f. Monografia (Pós
Graduação Lato Sensu) - Centro Universitário Salesiano Auxilium, Lins, 2009.

107
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da educação e da pedagogia Geral e
Brasil. 3º ed. São Paulo: Moderna, 2006.

CAMARGO, Ailton. Educação no Brasil: da colônia ao início da República.


Revista Brasileira de Educação e Cultura Centro de ensino superior de São
Gotardo. N.XVIII, jan-jun 2018.

COSTA, Antonio Max Ferreira da. Um breve histórico do ensino religioso na


educação brasileira. Ciências da Religião-UERN; Psicopedagogia-UCB/RJ;
Mestrado Psicologia-UFRN.
MENDONÇA, Ana Waleska Pollo Campos. A criação do Colégio de Pedro II e
seu impacto na constituição do magistério público secundário no Brasil.
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.39, n.4, p.985-1000, out. /dez. 2013.

OLIVEIRA, Jordan Bruno Ferreira. Entrevista concedida por um professor. Em


Barras Piauí, em 2018.

PILETTI, Nelson. História da Educação no Brasil. 7º ed. São Paulo: Ática 2010.

SOUSA, Rosilda Sales Santiago de. Entrevista concedida por uma professora.
Em Barras Piauí, em 2018.

TEIXEIRA, Anísio. Valores proclamados e valores reais nas instituições


escolares brasileiras. Educação no Brasil. Textos selecionados, Brasília:
Ministério da Educação e Cultura, 1976.

108
O PAPEL DA IGREJA CATÓLICA NO PROJETO
EDUCACIONAL DA COLÔMBIA DE LA REGENERACIÓN
(SÉCULO XIX)
Giovana Eloá Mantovani Mulza

Introdução
O presente trabalho compreende um recorte das discussões promovidas em
nossa dissertação de mestrado dedicada ao estudo da Colômbia do século
XIX. A pesquisa integral comportou uma análise das relações institucionais
estabelecidas entre a Igreja Católica e o governo colombiano nas décadas
finais do século XIX – sob um período nomeado pelos historiadores como La
Regeneración (1880-1905). No rol do projeto civilizatório defendido pelos
presidentes regeneradores, a Igreja Católica foi encarregada de evangelizar os
povos indígenas e de educar os colombianos nos moldes da ética católica –
função que pudemos analisar através da retomada de documentos
institucionais e de jornais de instrução do período. Nesse trabalho,
apresentaremos o contexto internacional que culminou na aliança entre a Igreja
Católica e La Regeneración, assim como seus desmembramentos para a
história da educação da Colômbia.

Especialistas no tema da história colombiana, como o historiador Alfonso


Múnera (2005), têm argumentado que o alvorecer da emancipação da
Colômbia inaugurou a formulação de grandes relatos para reunir um país de
guerras e heróis, de governos federalistas e governos centralistas, de culturas
“superiores” e “inferiores”, de sociedades civilizadas e bárbaras. Tais relatos da
nação arquitetaram um cenário europeizado no qual não estavam
compreendidas as diferenciações e somente havia uma cultura superior em
detrimento das demais inferiores. Nessa meta de “inventar a nação”, o sistema
educacional mostrava-se como um campo frutífero para as autoridades do
século XIX.

As autoridades políticas desse momento imaginaram um Estado Nacional


baseado nas teorias do organicismo europeu, segundo as quais a sociedade
era análoga a um organismo vivo com capacidade de evolução. Caso os
colombianos se dedicassem veementemente a estudar e a difundir as ideias
científicas, a nação introduzir-se-ia na senda do progresso, da civilidade, do
desenvolvimento científico e tecnológico, da paz, da liberdade e da autonomia
e da ordem. A função das elites políticas não seria outra que não consistisse
em conduzir os demais para alcançar esse almejado progresso. Com base
nesta meta, o projeto educacional e civilizatório das autoridades regeneradoras

109
contava com a Igreja Católica, incumbida de conduzir o sistema escolar público
colombiano.

Desde já, cabe-nos afirmar que o documento da “Concordata celebrada entre a


Santa Sé e a República da Colômbia” (1887) – assinada pelo então presidente
Rafael Núñez e o Papa Leão XIII – será um ponto de partida para muitas das
observações que realizaremos sobre este tema. O documento atribuiu um
relevante papel ao catolicismo no campo da instrução e da civilidade dos
campesinos. As discussões, contudo, também se basearam no estudo de
outras fontes que remetem à atuação da Igreja Católica nos governos
regeneradores, tendo destaque os documentos jornalísticos disponíveis para
consulta virtual.

A Igreja Católica no sistema educacional colombiano: amparo moral e


administrativo
“Ninguém imagina que nosso cristão há de fazer milagres ou ser um herói,
nada disso; tudo se resume a ser simples e francamente o que significa o título
com que honra e tem aqui como:

1º Ao passar diante de uma Igreja se descobre respeitosamente, a fazer com


respeito o sinal da Cruz.
2º Quando se encontra com um eclesiástico o saúda, considerando que é um
ministro de Nosso Senhor Jesus Cristo.
3º Não se intimide de acompanha-lo publicamente, mas antes observe com
respeito o que ele aceita neste momento.
4º Durante uma viagem, no mesmo momento em que partir o trem ou a
carroça, faça o sinal da Cruz [...].
5º Antes e depois de comer, [...] faça o sinal da Cruz sem extravagância, mas
não furtivamente como quem se envergonha, mas com naturalidade e
facilidade.
6º Caso saiba que a um enfermo ninguém se atreve a lhe falar os sacramentos,
nosso cristão o visita, e com prudência e maneiras educadas que ditam a boa
educação e a caridade em Cristo, lhe fala de Deus que acalma, fortalece e
cura, e da Virgem nossa Mãe, consoladora dos que sofrem e saúdo dos
enfermos, lhe dispõe para que receba sem demora a visita de um sacerdote e
lhe fale com confiança; vá para ele e a ele acompanha, quantos infelizes
morreriam no beijo do Senhor, se estivessem com eles um cristão como os
nossos!
7º Não deixa passar sem correção ou protesto, qualquer palavra contra a
Religião, a Igreja e os sacerdotes.
8º Quando for viajar, se seus recursos o permitirem, forneça folhas e livretos de
propaganda católica, que esquece oportunamente, ou intencionalmente
esquece no vagão, no alojamento etc., são uma isca lançada que alguém
felizmente morderá.
9º Se abstém de leituras más ou perigosas [...].
10º Afirma sua fé diante de tudo e todos; em casa não omite as práticas
piedosas tradicionais, como a oração diária em família do Santo Rosário; não
permite a entrada de revistas ou escritos irreligiosos ou imorais; não aprovando

110
ornamentos, imagens, impressões ou outros objetos capazes de provocar
paixões. […] afirma sua fé na rua com seu continente grave e modesto, afirma-
se na Igreja com silêncio e recolhimento de votos; afirma na irmandade que é
membro, na associação católica ou de caridade da qual pertence, portando-se
sempre e em todos os locais como quem sabe que um cristão é feito
espetáculo do mundo, dos anjos e dos homens e que vive sob a vista de Deus.
11º Nosso cristão se veste conforme sua posição social e idade, mas
modestamente [...].
12º Nosso cristão, e sobretudo nossas cristãs, não se deixa dominar pela
tirania da moda, nem fica deslumbrado pelo fascínio do luxo. O primeiro é uma
frivolidade indigna de uma cristã, o segundo chega a ser a ruína de muitas
famílias e caso se trate de modas indecentes, não a adotam nem para sim,
nem para suas filhas, nem as permite em seus dependentes.
13º Nosso cristão sabe bem que não poderia sê-lo, sem a ajuda do alto, e que
isto só é obtido mediante a oração contínua e fervorosa. Ore, então, e
acompanhe suas orações de boas obras.” (LA UNIDADE CATÓLICA, 1901,
s/p; tradução nossa).

A conduta do cristão virtuoso idealizada pelo periódico La Unidad Católica em


1901 apresenta-nos os parâmetros comportamentais que eram esperados
deste católico colombiano: devoto às instituições e às autoridades e
protagonista de boas condutas que demonstrem sua devoção. O caráter
religioso das qualidades enumeradas pela fonte não nos impede de observar
sua aplicabilidade no mundo secular: esperava-se que o homem colombiano
também reproduzisse esta conduta catolicamente virtuosa no respeito às
instituições e às autoridades políticas, agindo em benefício da nação.
Publicações instrutivas vinculadas à Igreja Católica possuíam objetivos não
somente religiosos, mas compreendiam conteúdos que também se aplicavam
no projeto civilizador de La Regeneración. A passagem acaba por sintetizar o
modelo de homem civilizado almejado pela Colômbia regeneradora,
enumerando o padrão de polidez que seria religiosa e politicamente atraente
para ambas as instituições inscritas neste projeto – o Estado colombiano e a
Igreja Católica.

Através desse periódico, podemos observar que a herança católica espanhola


seria usufruída como a base moral da identidade nacional da Colômbia de fins
do século XIX, empregando-se o duradouro caráter devoto daquela população
em um projeto político que não cogitava importar modelos de conduta
estrangeiros. Assim, não é surpreendente que o presidente regenerador Miguel
Antonio Caro (1894-1898) tenha se dedicado a tratar filosoficamente do tema
da moral católica e a estudar a história da Espanha: seus esforços orientaram-
se para contribuir com o projeto civilizador. E nessa empreitada para a
construção de colombianos devotos às instituições, as escolas seriam
relevantes para cultivar o domínio da técnica e da moral que eram almejados
pela Colômbia finissecular. Afinal, como apresentou o nono volume do jornal La
Aspiración (1898): “[...] a base da cultura está na educação e a exemplifica, não
procurando as sociedades, mas o fim único e último da humanidade, que é
Deus. Ah Virtude: o dever mais bonito e mais grato da vida” (LA ASPIRACIÓN,

111
1898, p. 34; tradução nossa). A temática da instrução pública tornava-se cada
vez mais urgente para La Regeneración conforme as demandas por autonomia
e civilidade eram acentuadas.

A Concordata firmada pelo Papa León XIII e Rafael Núñez em 1887


apresentaria as preocupações do governo colombiano com a educação moral e
civilizadora, sistematizando as atribuições da Igreja Católica para o bom
funcionamento do sistema educacional. Conforme é definido nos artigos 11 e
12 do citado documento:

“ARTIGO 11. A Santa Sé prestará seu apoio e cooperação ao Governo para


que se estabeleçam na Colômbia institutos religiosos que se dediquem com
preferência ao exercício da caridade, às missões, à educação da juventude, ao
ensino em geral e a outras obras de utilidade e benefícios públicos.
ARTIGO 12. Nas universidades e nos colégios, nas escolas e nos demais
centros de ensino, a educação e instrução pública será organizada e dirigida
em conformidade com os dogmas e a moral da Religião Católica. O ensino
religioso será obrigatório em tais centros, e se observarão neles as práticas
piedosas da Religião Católica.” (COLOMBIA, 1887, p. 02; tradução nossa)

Para além do amparo administrativo-financeiro, a passagem reitera a


importância que a Igreja Católica desempenharia enquanto modeladora
daquele homem católico civilizado: o documento encarregou-a de recristianizar
a nação através do culto e da educação, outorgando-lhe o controle e o
monopólio do ensino primário e secundário. Na prática, o clero católico iria
adquirir autoridade legal para eleger os livros da religião e da moral cristã para
todos os níveis de ensino, assim como receberia a faculdade de suspender e
denunciar os instrutores e mestres que não respeitassem a doutrina católica. É
evidente que estas outorgas estiveram em sintonia com uma reforma educativa
promovida pelos presidentes de La Regeneración, a qual também visaria
expandir a educação mediante a massiva edificação de escolas municipais
submetidas aos governadores departamentais. Em cada município ou distrito,
as escolas eram monitoradas por um inspetor local – cargo que muitas das
vezes era ocupado por um sacerdote.

Alinhados ao texto da Concordata, nas últimas décadas do século XIX, seriam


publicados diversos manuais-revistas para instruir os metres do sistema
educacional: El Maestro de Escuela (1899), La Escuela Normal (1871-1872),
Repertorio Escolar (1889-1892) e Revista de Instrucción Pública de Colombia
(1893-1916). Estes manuais evidenciam a importância que a educação
passaria a ter para trazer autonomia e civilidade para a Colômbia. Eles visavam
orientar os professores e diretores – tanto das escolas normais ou
eclesiásticas, fossem elas urbanas ou rurais – acerca de como o sistema
educacional deveria promover o projeto civilizatório regenerador.

O papel regulamentador do clero católico afirmado na Concordata de 1887


reaparece no segundo volume do manual El Maestro de Escuela que circulou
em Cundinamarca em 1899, no qual o então Secretário de Instrução Pública –

112
o geógrafo Francisco Javier Vergara y Velasco – organizaria as Comisiones de
Vigilancia para las Escuelas dedicadas a inspecionar o conteúdo ministrado
nos centros de ensino. Este periódico estava subordinado ao governo
colombiano e representava a preocupação do Estado em zelar o papel dos
mestres enquanto exemplos de boa conduta moral e católica. As preocupações
com a conduta dos professores também apareceriam no próprio subtítulo da
revista Repertorio Escolar – Órgano Oficial de la Inspección General de
Instrucción Pública –, bem como nas instruções conferidas aos inspetores para
monitorar aqueles mestres que “cometam falta grave contra a moralidade ou a
decência pública, ou deem ensinamentos contrários à Religião Católica”
(REPERTORIO ESCOLAR, 1889, p. 04; tradução nossa). A função reguladora
da Igreja Católica tornava-se cada vez mais urgente para as escolas: ainda no
mencionado volume da revista Repertorio Escolar (1889), seriam listados os
requisitos para realizar a contratação dos docentes, dentre os quais estava a
obrigatoriedade do professor em “Ser católico, apostólico e romano, a
julgamento das autoridades eclesiásticas.” (REPERTORIO ESCOLAR, 1889, p.
03; tradução nossa).

Na Revista de Instrucción Pública de Colombia – que circularia entre 1893 e


1916 –, passariam a ser discutidos os programas educacionais a serem
abordados no ensino primário, secundário e profissional: discutem-se temas do
programa de direito, as fórmulas matemáticas para o estudo no Observatório
Astronômico Nacional, tratados de botânica, as metodologias pedagógicas e
alguns assuntos religiosos. O segundo volume deste impresso dedica-se a
falar, inclusive, dos Delitos contra la religión y el culto (REVISTA DE
INSTRUCCIÓN PÚBLICA DE COLOMBIA, 1893, p. 125), tema precisamente
orientados para a formação profissional nas Facultades de Derecho y Ciencias
Políticas. Essa harmonia do ensino moral com as demais modalidades de
ensino técnico também apareceria posteriormente em uma simples observação
das matérias ministradas nas escolas secundárias feita no segundo volume da
revista El Maestro de Escuela (1899):

“[...] as classes de Religião (Catequese, Moral e História Sagrada), Leitura,


Escrita e Aritmética serão diárias; em todas as Escolas se ensinarão
Urbanidade, [...] Canto, a Geografia do Município, Noções da História da Pátria,
Noções de Agricultura ou de Indústria, segundo seja a ocupação dominante do
Município.” (VERGARA Y VELASCO, 1899, p. 29; tradução nossa).

Muitos destes conteúdos já haviam sido apresentados no volume inicial do


supracitado impresso Repertorio Escolar (1889), no qual também seriam
listadas as disciplinas dedicadas a “[...] propagar conhecimentos úteis ao
progresso” (REPERTORIO ESCOLAR, 1889, p. 01; tradução nossa): o ensino
religioso, literário, matemático, natural – dentre os quais estavam localizadas
as disciplinas de física, química e zoologia – e pedagógico – nos quais se
inseriam história, lógica e psicologia. Para além da visível importância do
catolicismo como baliza moral para o sistema educacional colombiano,
podemos observar as funções atribuídas ao Estado e à Igreja enquanto
instituições: competiria ao Estado fornecer amparo material para o ensino – a

113
revista Repertorio Escolar (1889) passaria longas páginas de seu primeiro
volume listando o inventário das escolas masculinas e femininas localizadas
nas cidades e no campo – enquanto caberia aos clérigos fiscalizar os
conteúdos e fornecer referencial moral aos alunos. Este tema reapareceria no
segundo volume da revista El Maestro de Escuela (1899), na qual o então
Secretário de Instrução Pública – Francisco Javier Vergara y Velasco – definiria
que o Estado proporcionaria recursos financeiros para prover a alimentação, a
moradia dos alunos, o mobiliário e a remuneração dos professores.

Estas incumbências inseriram-se na meta de construir indivíduos virtuosos,


católicos e benevolentes às autoridades, inscrevendo-se no complexo
dispositivo educacional idealizado pelos políticos regeneradores. Os níveis de
desemprego e analfabetismo que compreendiam a Colômbia – cenário deveras
oriundo da citada instabilidade econômica internacional que afetava tanto a
população quanto os recursos do Estado – traçariam uma estratégia para
civilizar a população fundamentado no projeto pedagógico tutelado pela Igreja
Católica. William Malkún Castillejo e José Wilson Márquez Estrada (2015)
acabariam por categorizar o professor como um dos principais catalizadores
daquele projeto civilizador de La Regeneración. A educação – e, mais
especificamente, a educação moral católica – mostrava-se como uma
interessante ferramenta conivente com as longevas pautas da Colômbia e que
beneficiaria tanto o Estado colombiano quanto a Santa Sé. Esta mesma
educação católica também ia ao encontro da credibilidade do catolicismo entre
a população, convertendo-a na base da formação do homem colombiano
civilizado. Estava claro que a formação do homem colombiano dependia de
uma educação religiosa mediada por manuais escolares.

Ainda sobre a função administrativa clerical, a Concordata de 1887 também


havia assinalado o ingresso de ordens católicas estrangeiras – tal como as
congregações dos padres Eudistas, Maristas e Jesuítas –, as quais acabariam
por desempenhar um importante papel na educação moral condicionante da
autonomia e civilidade almejadas pela Colômbia de La Regeneración. Estas
congregações estrangeiras auxiliariam a implementar o sistema educativo
católico sob o pretexto de civilizar a população colombiana (MARTÍNEZ, 1996;
ANDRADE ÁLVAREZ, 2011). É evidente que a “importação” das ordens
eclesiásticas estava em consonância com as expectativas do poder político
com o poder da religião: a vinda de numerosas congregações capazes de
difundir o ensino católico tornava-se a melhor garantia de consolidar o princípio
da autoridade e do respeito às instituições na nação – tal como foi aludido na
mencionada passagem da revista La Unidad Católica (1901).

Conclusões
Conforme visamos abordar neste trabalho, o projeto educacional de La
Regeneración baseava-se em uma instrução cristã que ia ao encontro dos
interesses civilizatórios das autoridades políticas e do propósito missionário das
congregações religiosas em recristianizar aquele mundo em laicização através
de uma educação católica. São por estes interesses que a aliança Estado-
Igreja tinha coerência diante dos eventos que inscreviam aquele contexto:

114
ambas as instituições acordadas visavam formar uma sociedade civilizada
baseada nos princípios da religião e da nação. O catolicismo, assim, tornava-se
um importante elemento de coesão social e de unidade para aquele território
que tanto almejava ser “civilizado” e se emancipar das ingerências externas.
Afinal, pertencer ao rol das nações civilizadas significaria deter o domínio da
técnica, possuir ordem interna e se libertar das influências estrangeiras –
cenário que somente seria alcançado mediante uma educação que
representasse os interesses do Estado colombiano. A educação católica foi
uma das ferramentas usadas pelos governos regeneradores para lograr metas
que respingavam na política colombiana deste o alvorecer da república.

Referências biográficas
Giovana Eloá Mantovani Mulza, Mestre em História Política pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM).

Referências bibliográficas
ANDRADE ÁLVAREZ, Margot. Religión, política y educación en Colombia. La
presencia religiosa extranjera en la consolidación del régimen conservador
durante la Regeneración HiSTOReLo, Revista de Historia Regional y Local, v.
3, n. 6, julio-diciembre, 2011, p. 154-171.

COLOMBIA. Concordato celebrado entre la Santa Sede y la Republica de


Colombia 1887. Disponível no seguinte endereço eletrônico com livre acesso:
https://www.cec.org.co/sites/default/files/WEB_CEC/Documentos/Documentos-
Historicos/1973%20Concordato%201887.pdf Acesso: 15/12/2020.

LA ASPIRACIÓN. Educación es Instrucción. Periódicos Moral, Religioso,


Literario y Noticioso. Santana, Serie I, n. 09, octubre de 1898.

LA UNIDAD CATÓLICA. Un cristiano como ha de ser y que necesita.


Pamplona, n. 333, 16 nov. 1901.

MALKÚN CASTILLEJO, William, MÁRQUEZ ESTRADA, José Wilson. Educar y


Castigar. Dispositivos de control social en la estrategia de formación del
ciudadano en Cartagena (Colombia): 1880-1900. Memorias, Revista Digital de
Historia y Arqueología desde el Caribe Colombiano, año 11, n. 26, Barranquilla,
mayo-agosto 2015, p. 213-249.

MARTÍNEZ, Frédéric. En busca del Estado Importado: de los Radicales a la


Regeneración (1867-1889). Anuario Colombiano de Historia Social y de la
Cultura, n. 23, 1996, p. 115-142.

MÚNERA, Alfonso. Fronteras imaginadas. La construcción de las razas y de la


geografía en el siglo XIX colombiano. Bogotá: Planeta, 2005.

REPERTORIO ESCOLAR. Órgano Oficial de la Inspección General de


Instrucción Pública. Bogotá, año 01, n. 01, agosto 1889. Disponível no

115
endereço eletrônico do “Centro Virtual de Memoria en Educación y Pedagogía”
em:
http://www.idep.edu.co/wp_centrovirtual/wp-content/uploads/2015/12/1889%20-
%20Repertorio%20Escolar.%20A%C3%B1o%20I.%20N%C3%BAmero%201.p
df Acesso em: 14/07/2021.

REVISTA DE INSTRUCCIÓN PÚBLICA DE COLOMBIA. Tomo I. Bogotá,


Topografía de La Luz, año 1, n. 1, 1893. Disponível no endereço eletrônico do
“Centro Virtual de Memoria en Educación y Pedagogía” em:
http://www.idep.edu.co/wp_centrovirtual/wp-content/uploads/2015/12/1893%20-
%20Revista%20de%20la%20Instrucci%C3%B3n%20P%C3%BAblica%20de%
20Colombia.%20Tomo%20I.pdf Acesso em: 16/07/2021.

REVISTA DE INSTRUCCIÓN PÚBLICA DE COLOMBIA. Delitos contra la


religión y el culto. Tomo I. Bogotá, Topografía de La Luz, año 1, n. 2, 1893, p.
125-127. Disponível no endereço eletrônico do “Centro Virtual de Memoria en
Educación y Pedagogía” em:
http://www.idep.edu.co/wp_centrovirtual/wp-content/uploads/2015/12/1893%20-
%20Revista%20de%20la%20Instrucci%C3%B3n%20P%C3%BAblica%20de%
20Colombia.%20Tomo%20I.pdf Acesso em: 19/07/2021.

VERGARA Y VELASCO, Francisco Javier. Circular Urgente. El Maestre de


Escuela, n. 02, 1899, p. 28-30. Disponível em:
http://www.idep.edu.co/wp_centrovirtual/wp-content/uploads/2015/12/1889%20-
%20El%20Maestro%20de%20Escuela.pdf Acesso em: 15/07/2021.

VERGARA Y VELASCO, Francisco Javier. Resolución número 1º de 1899. El


Maestre de Escuela, n. 02, 1899, p. 25-28. Disponível em:
http://www.idep.edu.co/wp_centrovirtual/wp-content/uploads/2015/12/1889%20-
%20El%20Maestro%20de%20Escuela.pdf Acesso em: 15/07/2021.

VERGARA Y VELASCO, Francisco Javier. Resolución número 2º de 1899. El


Maestre de Escuela, n. 02, 1899, p. 28. Disponível em:
http://www.idep.edu.co/wp_centrovirtual/wp-content/uploads/2015/12/1889%20-
%20El%20Maestro%20de%20Escuela.pdf Acesso em: 15/07/2021.

116
EDUCAÇÃO FEMININA NA COREIA DO SUL:
BREVE HISTÓRICO
Leonardo Paiva Monte e Lilian Bento de Souza Silva

Introdução
Neste trabalho procuramos fazer uma breve revisão sobre a história da
educação para mulheres na Coreia do Sul. As mulheres coreanas enfrentam
várias dimensões de desigualdade social, cultural e econômica. A igualdade de
oportunidades educacionais e sociais para as mulheres em relação aos
homens foi legalmente garantida somente na década de 1950. Além disso, a
cultura tradicional costuma colocá-las em posições subordinadas e inferiores
aos homens, sendo boas esposas para seus maridos e mães cuidadosas para
seus filhos.

Para compreender as desigualdades de gênero na educação, é necessário


examinar os contextos culturais e históricos do país. Na Coreia do Sul, o
legado confucionista herdado da China, de natureza patriarcal, está enraizado
na mentalidade das pessoas. Essa cultura enfatiza a soberania masculina, a
divisão do trabalho por gênero e um sistema de valores que apoia as
diferenças entre homens e mulheres (CHUNG, 1994).

Confucionismo
Por séculos, as crenças confucionistas moldaram o pensamento e o
comportamento dos povos do Extremo Oriente. Diante dessa influência, a
Coreia se tornou o país mais confucionista de toda a Ásia Oriental. O
pensamento e os padrões sociais confucionistas têm forte atuação naquela
sociedade. Ele foi introduzido na Coreia durante o período dos Três Reinos (37
a.C. - 935 d.C.) (CHUNG, 1994).

Vale a pena notar que o Confucionismo não só serviu como uma filosofia, mas
também funcionou como uma ideologia política, particularmente durante a
Dinastia Choson, a última dinastia coreana. O confucionismo é uma realidade
para muitas pessoas na Coreia, fornecendo a base cultural para suas vidas
cotidianas (GARCIA, 2000; KIM, 2017).

O pensamento confucionista é marcado por relações sociais que produzem e


mantêm obrigações entre governante e governado, entre pais e filhos, esposo
e esposa, irmão mais velho e irmão mais novo e entre amigos. Suas ideias,
portanto, podem ser encontradas nas relações familiares, nas atitudes políticas,
no trabalho e nas relações de gênero. De acordo com a estrutura da
sociedade, as mulheres deveriam ocupar uma posição inferior à dos homens. A

117
maioria dos adeptos aceitava a obediência das mulheres aos homens como
natural (HAMPSON, 2000; GARCIA, 2000).

De acordo com as crenças confucionistas, a estratégia para a construção da


sociedade ideal é o desenvolvimento por meio da educação e da moralidade. O
homem se torna mais sábio com o aprendizado e na prática da virtude. Para
criar essa sociedade, todos devem aprender rituais morais. A educação seria
uma ferramenta para cultivar uma mente moral. Até mesmo se torna uma
questão de patriotismo, pois, se as pessoas forem bem educadas, amarão
verdadeiramente seu país (CHUNG, 1994).

Os homens são educados para desenvolverem a responsabilidade,


assertividade e independência para serem líderes da família. Por outro lado,
passividade, obediência, paciência e calma representam as características
esperadas na formação das mulheres.

Além disso, a cultura confucionista, particularmente a teoria yin-yang, indica as


disposições masculinas e femininas como símbolos do céu e da terra. Como
resultado dessas crenças, uma hierarquia sexual e diferentes valores foram
estabelecidos empregando distinções de gênero. Homens e mulheres são
vistos como tendo papéis e funções diferentes. No que diz respeito à educação
para as mulheres, era limitada às virtudes e às habilidades domésticas (WON,
1994).

O confucionismo coreano considera a família como uma unidade fundamental


da sociedade e enfatiza uma estrita ordem hierárquica das relações humanas
com base na idade, gênero e status social. Essas crenças estão mudando com
o desempenho educacional das mulheres, as concepções democráticas e a
competitividade da sociedade industrial (PARK; CHEAH, 2005).

O rápido crescimento da economia coreana nas últimas três décadas alterou a


estrutura familiar coreana de maneira significativa, no entanto, a adesão aos
valores familiares confucionistas permanece forte (HAMPSON, 2000).

As mulheres foram excluídas do sistema educacional formal porque


acreditavam que uma esposa intelectual prejudicaria sua família (e sociedade)
ao negligenciar os assuntos domésticos. Assim, embora as mulheres estejam
se inserindo em maior número na educação superior, essa educação é
percebida como um mecanismo para atrair um cônjuge de status mais elevado.
As mulheres ocupadas em empregos remunerados, entretanto, têm status mais
baixo do que as donas de casa porque sua necessidade de dinheiro é
percebida como uma indicação de pertencimento a uma classe mais baixa
(WON, 1994; HAMPSON, 2000).

Educação
A primeira escola coreana para mulheres, Ewha Haktang, foi fundada em 1886
por Mary F. Scranton, uma missionária norte-americana. Os objetivos da escola
eram fornecer uma educação cristã para as mulheres coreanas. Ensinava que

118
todos os seres humanos eram iguais perante Deus. A escola contribuiu para
melhorar a posição das mulheres coreanas por meio da educação. Muitas
escolas cristãs para meninas começaram a ser estabelecidas após o
estabelecimento de Ewha Haktang (WON, 1994).

Como os costumes confucionistas exigiam que as mulheres permanecessem


em casa, embora Scranton estivesse oferecendo alojamento e roupas,
juntamente com educação, inicialmente não havia interesse para a educação
feminina. Sua primeira aluna foi a amante de um oficial que gostaria que ela
aprendesse inglês, com a esperança de que pudesse algum dia se tornar
intérprete de mulheres nobres.

O início das atividades educacionais destaca como os coreanos encaravam a


nova educação como algo que poderia elevar sua posição social. Mesmo os
indivíduos pobres, as mulheres marginalizadas, poderiam esperar transformar
sua posição social e ultrapassar as limitações construídas pelo Confucionismo
por meio da educação (CAWLEY, 2021). Em algum tempo, a instrução
oferecida na escola passou a abarcar o seguinte:

● Para crianças: Coreano, Língua Chinesa, composição, Aritmética,


desenho, Geografia, ginástica elementar, Inglês;

● Início da adolescência: Estudos bíblicos, Chinês, moral, Geografia,


História coreana, Aritmética, Inglês, Fisiologia, Higiene, Zoologia,
Botânica, desenho, Culinária, Contabilidade, Ginástica;

● Adolescentes e adultos: Estudos bíblicos, língua chinesa, Álgebra,


Geometria, Trigonometria, Astronomia, Fisiologia, Psicologia, estudos
educacionais, Biologia, Química, Inglês, Geografia mundial, Fisiologia
avançada, Economia, História geral (Moderna, Medieval, Inglaterra,
América do Norte);

● Eletiva: música opcional.

Apesar do objetivo de evitar a ocidentalização das alunas, o currículo escolar


indica que a escola expôs as meninas a um idioma ocidental (Inglês), uma
história do mundo que incluía experiências inglesas e norte-americanas e um
novo código moral por meio da Bíblia (YOO, 2008).

O rápido crescimento no número de escolas cristãs estimulou o interesse no


estabelecimento de escolas privadas não ligadas a grupos religiosos para
meninas. Várias organizações de mulheres, como a Yoja kyoyuk-hoe
(Sociedade para a Educação das Mulheres) e a Chinmyong puin-hoe
(Sociedade de Mulheres Chinmyong), surgiram durante esse período. Essas
organizações de mulheres buscavam elevar o status das mulheres e organizar
instituições de ensino.

119
Apesar dos esforços de diferentes organizações de mulheres para pressionar o
Ministério da Educação coreano a organizar escolas para meninas, membros
conservadores do governo preferiram se concentrar em questões financeiras.
Uma dessas organizações ainda conseguiu fundar uma escola privada,
esperando apoio governamental. A escola, contudo, acabou indo à falência em
1901 (YOO, 2008).

No final da dinastia Choson, as mulheres coreanas queriam expandir os


objetivos educacionais que os missionários haviam estabelecido para elas.
Enquanto os missionários se concentravam em estabelecer escolas primárias,
as coreanas começaram a procurar meios de criar instituições de ensino
superior para que as mulheres pudessem continuar seus estudos (YOO, 2008).

As oportunidades educacionais para as mulheres começaram a se efetivar


durante a ocupação japonesa (1910-46). A política japonesa para a educação
das mulheres coreanas se fundamentava na ideologia da “boa esposa e mãe
sábia”, que é um pensamento confucionista, popular também no Japão naquele
período. O estado colonial começou a se concentrar na educação das
mulheres coreanas, consideradas como a base da família (YOO, 2008).

Após a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial e sua retirada da


península coreana, os movimentos para igualdade de oportunidades de
educação entre homens e mulheres começaram a se efetivar. Três anos
depois, quando os militares dos Estados Unidos ocuparam a área ao sul do
paralelo 38, a discriminação educacional contra as mulheres foi abolida. A
educação feminina foi endossada institucional e judicialmente em 1948, quando
foi declarada como parte da Constituição coreana. O artigo 31 da Constituição
especifica que todos os cidadãos devem ter igualdade no acesso à educação.
Promulgada em 31 de dezembro de 1949, a lei de educação estipulava que a
educação primária era obrigatória para todos os cidadãos; após a
promulgação, a educação obrigatória foi implementada em grande escala
(AHN, 2011).

O sistema educacional coreano se expandiu desde a Guerra da Coreia (1950-


1953) e o nível educacional para homens e mulheres aumentou nas últimas
décadas (HAMPSON, 2000). A ideologia da figura feminina ideal foi promovida
para as alunas. A educação escolar era uma extensão da prática para se tornar
uma dona de casa, servindo assim ao marido, educando os filhos e cuidando
dos assuntos domésticos (AHN, 2011).

Na década de 1950, o currículo escolar estimula o aprendizado de habilidades


em Economia Doméstica, como costura, tricô, datilografia, etc. entendidas
como aspectos importantes para a formação feminina (LEE, 2003).

A partir da década de 1980, quando a baixa proporção de mulheres


escolarizadas inseridas no mercado de trabalho passou a ser uma questão
social, a educação feminina passou a ser discutida como parte da política

120
educacional. Entre os anos 1980 e meados dos anos 1990, a participação
feminina no ensino fundamental e médio foi quase universal (AHN, 2011).

Na escola primária, a educação é obrigatória e financiada pelo governo, a


proporção homem x mulher é semelhante. Da mesma maneira, não existe
diferença significativa nas taxas de participação no ensino médio, em que o
ensino obrigatório gratuito está parcialmente em vigor. Conforme os custos
para as famílias se elevam, a taxa escolar de participação feminina diminui
(HAMPSON, 2000).

Como resultado das campanhas de alfabetização e da expansão da educação


primária, a taxa de alfabetização feminina aumentou. O aumento das taxas de
matrícula na educação primária e secundária produziu mudanças positivas na
educação feminina. A desigualdade de gênero diminuiu tanto no nível primário
quanto no secundário em termos de números de matrícula (CHUNG, 1994).

Em 1990, 24% das mulheres ( entre 18 e 21 anos) estavam matriculadas no


ensino superior e em 1997 este número subiu para 50,9%. No mesmo período,
a porcentagem de homens matriculados nessa faixa etária aumentou de 50%,
em 1990, para 85,7%, em 1997. No nível superior, as mulheres se concentram
nas áreas de Educação e nas Humanidades, enquanto os homens ocupam os
programas de Ciência e Tecnologia. Durante a década de 1990, os debates
sobre a igualdade de gênero na educação foram absorvidos pela discussão
sobre as políticas para estímulo do crescimento econômico nacional. A
diferenciação de gênero e a subutilização de mulheres com alto nível de
escolaridade tornaram-se um problema, resultando no início de esforços sérios
para corrigir essa situação (AHN, 2011).

Em janeiro de 2001, o Ministério da Igualdade de Gênero e o Escritório de


Políticas de Educação da Mulher no Ministério da Educação foram
estabelecidos. Além disso, foi iniciado o 1º Plano Diretor de Políticas para as
Mulheres (1998-2002), uma política que incluiu a expansão de diretoras, vice-
diretoras e professoras, a ampliação da conscientização sobre igualdade de
gênero entre os professores e o fortalecimento da orientação de carreira para
estudantes do sexo feminino que buscam diversas áreas.

Conclusão
A educação feminina na Coreia do Sul passou por diferentes períodos ao longo
da história, desde sua negação, interferências religiosas e governamentais, até
o quadro atual de expansão. Foram tentativas de moldar uma mentalidade nas
mulheres para controlar sua autonomia. O espaço ocupado por mulheres em
diferentes setores tem se expandido na Coreia do Sul, o que é resultado de
anos de reivindicações por igualdade de direitos e oportunidades.

Trata-se de uma temática vasta. Mais pesquisas podem ser produzidas sobre a
educação feminina e as desigualdades de gênero na Coreia do Sul. Pontos que
são, muitas vezes, eclipsados pela atenção apenas em produções midiáticas e
artísticas sul-coreanas.

121
Referências biográficas
Leonardo Paiva do Monte é licenciado em História (UEPB) e mestre em
História Social (USP).
Lilian Bento de Souza Silva é professora da rede municipal da cidade de João
Pessoa/PB e doutora em Ciências da Educação (UNIDA).

Referências bibliográficas
AHN, Jae-Hee. Analysis of Changes in Female Education in Korea from an
Education - Labor Market Perspective. Asian Women, 27(2), 113-139, 2011.

CAWLEY, Kevin. Christian pyrexia and education fever: female empowerment


in the late Chosŏn dynasty, History of Education, 2021.

CHUNG, Ji-Sun. Women’s Unequal Access to Education in South Korea,


Comparative Education Review, vol. 38 (4), 487-505, 1994.

GARCÍA, María Alejandra León. La mujer en la sociedad coreana. México y la


cuenca del Pacífico, n. 11, p. 58-63, 2000.

HAMPSON, Sasha. Rhetoric or reality?: contesting definitions of women in


Korea. In: EDWARDS, Louise; ROCES, Mina. Women in Asia: tradition,
modernity and globalisation. St Leonards, Austrália: Alien & Unwin, 2000. p.
170 - 187.

KIM, Heisook. Confucianism and feminism in Korean context. Diogenes, v. 62,


n. 2, p. 41-47, 2015.

LEE, I. H. 1950’s ‘Wise Mother, Good Wife’ Pedagogical Ideology and Gender
Discrimination. In: Journal of Korean Studies, v. 122, p. 293-327, 2003.

PARK, Seong-Yeon; CHEAH, Charissa. Korean mothers' proactive socialisation


beliefs regarding preschoolers' social skills. International Development, 29 (1),
24-34, 2005.

WON, Cho Kyung. Overcoming confucian barriers: Changing educational


opportunities for women in Korea. In: GELB, Joyce; PALLEY, Marian. (Orgs.),
Women of Japan and Korea: Continuity and change (pp. 206-222).
Philadelphia: Temple University Press, 1994.

YOO, Theodore Jun. The politics of gender in colonial Korea: Education, Labour
and Health, 1910–1945. Berkeley: University of California Press, 2008.

122
“QUE EXPURGUE DOS DOMÍNIOS DA INCERTEZA FACTOS
HISTÓRICOS”: ISABEL GONDIM E O ENSINO DE HISTÓRIA
DO BRASIL (1892-1909)
Ane Luíse Silva M. Santos e Magno F. de Jesus Santos

O emergir da Primeira República no Brasil foi marcada pela confluência de


novas demandas historiográficas, tanto no âmbito da investigação histórica,
quanto do ensino. A ebulição dessas novas ideias atinentes aos fazeres
historiográficos também repercutiu no emergir de novos sujeitos, que oriundos
de diferentes espaços institucionais do país, pensavam a escrita da história
para públicos totalmente diversos (SANTOS, 2013).

Neste sentido, a produção de narrativas históricas ao longo dos primeiros


decênios republicanos foi marcada por uma dimensão polimórfica e
polissêmica, na qual foram atribuídas diferentes funções para o conhecimento
histórico, como a legitimação do novo regime político a partir da elaboração de
biografias de heróis republicanos, a invenção de um passado perpassado por
experiências republicanas, a proliferação de narrativas históricas com
perspectivas federalistas e uma acentuada preocupação com a questão do
ensino de história. Como código disciplinar na cultura escolar, a História foi
pensada por um vasto grupo de intelectuais, que construíram propostas sobre
o papel da disciplina no processo de formação do cidadão republicano e
também sobre as estratégias de produção de narrativas escolares que
tornassem o passado da nação inteligível para crianças e jovens (SANTOS,
2017; SANTOS, 2018; SANTOS, 2019).

Nesse contexto marcado por questionamentos e renovação das práticas de


ensino da História, uma professora primária do Rio Grande do Norte
notabilizou-se como uma das mais profícuas escritoras de livros escolares do
período da Primeira República. Era a professora Isabel Urbana Carneiro de
Albuquerque Gondim. Nascida na vila de Papari, nos idos de 1833, a
professora Isabel Gondim atuou na docência nas escolas primárias de Natal ao
longo de grande parte da segunda metade do oitocentos, levando-se em
consideração que ela foi concursada para a cadeira de ensino primário em
1866 e aposentou-se apenas em 1891 (MORAIS, 2003).

Ainda como docente de primeiras letras na provinciana cidade do Natal, no


Império do Brasil, Isabel Gondim publicou o seu primeiro livro, “Reflexões às
minhas alunas”, nos idos de 1873. Trata-se de uma obra que pensava a

123
educação feminina em diálogo com importantes pensadores da educação do
último quartel do oitocentos. Isabel Gondim justificou essa escrita em
decorrência de suas demandas docentes, na qual “notando a falta de um livro
era lingua portuguesa, propriamente destinado à primeira educação da mulher,
resolvi aproveitar-me de alguns d’aquelles preciosos materiaes, e elaborar o
pequeno livro” (GONDIM, 1879, p. 7). Posteriormente, em 1885, ela publicou
“Elementos da educação escolar para uso nas escolas primárias de um e outro
sexo”.

Percebe-se, que na primeira fase de escrita, Isabel Gondim tinha como eixo
central de sua reflexão à prática de ensino e o papel do ensino primário na
sociedade brasileira. Essa dimensão de escrita mudou consideravelmente, no
período posterior a sua aposentadoria, constituindo a sua fase de maior
produção de textos e de uma maior inserção na escrita de textos de teor
histórico. Em tempos republicanos, a professora aposentada transmutaria em
uma importante pensadora da História, por meio da produção de livros voltados
para públicos mais amplos, utilizando-se linguagens pouco usuais na escrita na
história. Com isso, ela escreveu livros como “Sedição de 1817 na capitania ora
estado do Rio Grande do Norte”, escrito em 1892 e publicado em 1908. Em
1900 ela publicou a primeira edição de “Brasil, um poema histórico do país”.
Em 1909 publicou “O sacrifício do amor: drama em cinco atos”. Além disso,
deixou o manuscrito “Rio Grande do Norte: noções históricas” e “Resumo da
História do Brasil”.

Diante dessa produção historiográfica, esse texto tem como escopo a escrita
de livros escolares de História pela professora primária Isabel Urbana Carneiro
de Albuquerque Gondim (1839-1933). Trata-se de uma intelectual que se
notabilizou pelo exercício do magistério e produção bibliográfica, notadamente,
peças de teatro, livros de poesias e textos de história. Desse modo, objetiva-se
problematizar a construção da concepção de história gestada pela pensadora
da história, bem como a sua mobilização da narrativa para a produção de
leituras atinentes ao passado da nação de forma que se tornasse inteligível e
sensível para os alunos.

Foram elencados como fontes centrais para a análise a produção


historiográfica de Isabel Gondim, notadamente os livros “Sedição de 1817” e “O
sacrifício do amor”. São dois livros que mobilizam uma reconfiguração da
metodologia da história, na qual as memórias familiares são elencadas como
recurso para a construção da “verdade histórica”. De igual modo, são dois
textos que se utilizam de novas linguagens para a construção da trama
histórica, transitando entre uma história pública tingida pela esfera privada e a
história em uma trama teatral.

Os escritos da professora Isabel Gondim ao longo dos primeiros decênios


republicanos denotam para uma atuação da docente como uma pensadora da
História, ou seja, ela integrou um grupo de intelectuais que repensou a escrita
da história pátria em seu processo de escrita e de ensino. Neste sentido,
vasculhar a produção historiográfica da referida professora é um passo

124
relevante no processo de compreensão da historiografia brasileira e dos
fazeres historiográficos no contexto da virada republicana, pois elucida como
uma mulher, atuante no magistério primário de uma província do antigo norte
do país pensava a história na questão da escrita e da difusão das narrativas
históricas para públicos mais amplos (SANTOS, 2020).

Certamente, não se trata de uma mulher silenciada, sucumbida pela névoa do


tempo. Em diferentes temporalidades, Isabel Gondim foi lembrada. Em seu
tempo, dialogou com importantes nomes da intelligentzia nacional, participou
de algumas agremiações culturais e intelectuais, publicou livros e artigos em
jornais. No momento do falecimento, a sua memória foi fomentada pelos
governos estaduais, por meio de homenagens na nomeação de logradouros
públicos e de instituições de ensino. Nos fazeres historiográficos do tempo
presente, Isabel Gondim também continua como um nome consideravelmente
estudado, principalmente, no âmbito da História da Educação, com ênfase para
o seu pensamento educacional e da prática de ensino voltada para as meninas
(MORAIS, 2003).

Além disso, Isabel Gondim tem sido consideravelmente evocada como a voz
de mulher do final do século XIX que expressa de forma significativa a
visibilidade de mulheres intelectuais no Brasil do final do Império, em pesquisas
que vislumbram os diálogos com outras mulheres de seu tempo, como
Francisca Izidora (REVORÊDO, 2002) e Anna Ribeiro (MORAIS, 2008).

Desta forma, mesmo não estando no grupo de pesquisadores que


vasculhavam os acervos documentais oficiais do país e de sua não
participação efetiva nos círculos historiográficos, Isabel Gondim pode ser vista
como uma pensadora da história que propôs alguns caminhos para a
amplificação do processo de difusão do conhecimento histórico, como a
exposição das narrativas do passado em dramas a serem encenados. Os seus
escritos denotam uma preocupação em ver a história da esfera pública a partir
da proximidade e intimidade das memórias privadas, do seio familiar. O seu
enredo é enfeixado a partir dos bastidores familiares que testemunharam as
angustias dos protagonistas da história. Uma história pensada a partir da
intimidade, de porta adentro.

Por essa perspectiva intima e voraz, a narrativa histórica pensada por Isabel
Gondim era um caminho para evocar o sentimento patriótico e coadunava com
as prerrogativas cívico-patrióticas pensadas para o ensino de História nas
escolas primárias. A complexidade de um passado temporalmente distante
partira de uma realidade próxima, no espaço e no sujeito, respectivamente com
o cenário do Rio Grande do Norte e das memórias familiares da própria autora.
Se no âmbito da pedagogia moderna o ensino deveria partir do simples para o
complexo, do próximo para o distante e do concreto para o abstrato, Isabel
Gondim passava uma dimensão complementar desta prerrogativa, partindo do
emotivo para o racional, do familiar para o público.

125
Certamente, essa busca por uma reformulação da escrita da história pátria
mobilizada pela autora expressa uma visível preocupação com a aprendizagem
histórica. A escrita passava a ser revista com o propósito de buscar a
valorização de “factos históricos que provam, à evidencia, o amor que esta
pequena terra, em que vi a luz, sempre consagrou à independência da patria,
fecundando a arvore da liberdade com o sangue generoso de seus martyres”
(GONDIM, 1892, p. 2). Além disso, ela também expressa uma preocupação
com a aprendizagem histórica, na qual, a escrita coadunava-se com a
metodologia do ensino.

Além disso, os escritos de Isabel Gondim também possibilitam a compreensão


de seu esforço de mobilização de diferentes estruturas narrativas para a
configuração de sua trama histórica. O passado evocado pela emoção e
confirmado pelas memórias de entes familiares insuspeitos ou até mesmo pela
autora transmutada em testemunha ocular, revela uma perspectiva de escrita
da história muito destoante da premissa na qual o historiador deveria afastar-se
do seu objeto, temporal e emocionalmente. De acordo com Isabel Gondim,

“Procurarei restabelecer a verdade na parte d'esses factos, sobre a qual tem


apparecido divergência de opiniões, sem que a duvida tivesse ainda sido
elucidada, baseando-me, não só nas mencionadas tradições, como em
testemunhos insuspeitos de contemporâneos da epocha, a quem tive occasião
de ouvir em palestras familiares, (piando ainda na adolescência, d'entre estes
alguns que collaboraram na sedição e arrostaram-lhe as consequências, como
foi o capitão-mòr André d'Albuquerque Maranhão (de Estivas, nome de sua
propriedade rural), meu padrinho, varão, circunspecto, particular amigo de
minha familia, um dos poucos patriotas do Rio Grande do Norte que lograram
regressar da Bahia, em cujo cárcere estivera prisioneiro por alguns annos”
(GONDIM, 1892, p. 3).

Isabel Gondim trilhou um caminho oposto, ao apinhar-se nas veredas familiares


para entender a história de sua pátria, enveredando de seus próprios
testemunhos. Apesar de seguir caminho oposto da neutralidade, a pensadora
da História galgava o mesmo fim de outros profissionais da história de seu
tempo: chegar à verdade.

O ato historiográfico de chegar à verdade dos fatos por meio de uma escrita
que expressava sensibilidade, poesia e intimidade, expressa um recurso
operacional pouco operacionalizado por pensadores da história do período
entre o final do século XIX e o emergir do XX. Esse foi o caso de sua escrita
em cincos atos acerca da Guerra do Paraguai, no qual ela expressou os
elementos que permearam a escrita da história na perspectiva do teatro:

“Aproveitando algumas scenas que entre nós deram-se, por occasião de


empenhar-se o paiz na desastrosa guerra contra o Paraguay, quando a um
vexatorio recrutamento succedêra o alistamento de Voluntários da Patria,
esbocei o seguinte Drama, sem duvida imperfeito, cujo principal assumpto fôra
esse alistamento, e especialmente apresentar ao publico exemplos das

126
virtudes que mais convém moldar nas famílias, encarecer-lhes o valor, e por
ellas attrahir os corações. Apenas auxiliada por escassa-leitura de obras
secundarias n'este genero, e sem que tivesse ainda visto alguma
representação dramatica, arrojei-me a uma tal empreza, cujas difficuldades
eram-me desconhecidas” (GONDIM, 1909, p. 1).

Neste sentido, também é relevante pensar como as obras da professora foram


recebidas no meio intelectual. “O sacrifício do amor”, que tem como escopo a
história da Guerra do Paraguai, foi prefaciado pelo prestigiado intelectual
Afonso Celso, integrante da diretoria do IHGB e autor de um dos maiores
sucessos editoriais entre os livros escolares brasileiros: “Por que me ufano de
meu país”. O prestigiado autor do livro cívico ressalta as virtudes patrióticas na
escrita de Isabel Gondim, capazes de contribuir para a formação de um nobre
sentimento de amor à pátria. A autora também foi consideravelmente elogiada
por intelectuais pernambucanos e norte-riograndenses, na ocasião de seu
falecimento, nos idos de 1933.

Contudo, existem importante ressalvas à recepção de seus livros. A principal


crítica ocorreu também em relação ao livro “O sacrifício do amor”, com uma
áspera resenha publicada pelo também renomado intelectual, Osório Duque
Estrada, autor da letra do Hino Nacional Brasileiro. Em um texto mal-humorado,
o intelectual fluminense elenca os erros de concordância do livro e o descreve
como inútil. Contudo, o fato do livro ter sido alvo de uma resenha já expressa a
inserção da autora no círculo intelectual de seu tempo.

Outra questão que reverbera essa inserção é a participação de Isabel Gondim


como sócia correspondente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de
Pernambuco, desde o final do século XIX. Além disso, em várias ocasiões ela
viajou para Recife, onde chegou a realizar conferências no Instituto
Arqueológico sobre a Sedição de 1817, sendo bem recebida. É um forte indício
de seu diálogo no campo intelectual. Contudo, em terras potiguares, a sua
inserção foi muito mais lenta. Câmara Cascudo, proeminente historiador do
estado, afirmava que ela não dialogava. Já o IHGRN, fundado em 1902, no
mesmo contexto das publicações de Isabel Gondim, não a incluiu no seleto
grupo de seus sócios. Ela iria se tornar sócia da principal instituição intelectual
do Rio Grande do Norte somente nos idos de 1928, poucos anos antes do
falecimento. São indícios de uma intelectual ambivalente na escrita e no fazer a
história.

Referências Biográficas
Dra. Ane Luíse Silva Mecenas Santos, professora do Departamento de História
e do Programa de Pós-Graduação em História dos Sertões do Ceres/UFRN
Dr. Magno Francisco de Jesus Santos, professor do Departamento de História,
do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História e do Programa de Pós-
Graduação em História da UFRN.

127
Referências
GONDIM, Isabel. O sacrifício do amor: drama em cinco atos. Rio de Janeiro:
Typographia Commercial, 1909.

GONDIM, Isabel. Sedição de 1817 na província ora estado do Rio Grande do


Norte. Natal: Imprensa, 1908.

MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. Escritoras oitocentistas: Isabel Gondim e


Anna Ribeiro. Educação e Linguagens. Ano 11, nº 18, 2008, p. 84-106.

MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. Isabel Gondim: uma nobre figura de
mulher. Natal: Terceirize, 2003.

REVORÊDO, Jacqueline da Silva. Isabel Gondim x Francisca Izidora: duas


visões do amor no teatro no limiar no século XX. 2002, 193 f. Dissertação
(Mestrado em Letras) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002
[Orientadora: Profª Drª Luzilá Gonçalves Ferreira].

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Ecos da Modernidade: a arquitetura dos


grupos escolares de Sergipe (1911-1926). São Cristóvão-SE: EDUFS, 2013.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Aos pés da águia alada: os grupos


escolares e a infância sergipana nos tempos de Graccho Cardoso (1922-1926).
Interfaces Científicas: Educação. Vol. 2, nº 3, 2019, p. 59-70.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Ensino de História, espaços e cultura


política bandeirante: José Scarameli e a escrita de livros escolares para
crianças. Revista História, Histórias, v. 5, n. 9, p. 104-126, 2017.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “Scenas da História do Brasil”:


Esmeralda Masson de Azevedo e a escrita de livros escolares de História para
crianças. Revista História Hoje, v. 6, n. 12, p. 204-230, 2017.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “Simples, atrahente e comovente”: o


ensino de História nos programas dos grupos escolares sergipanos (1912-
1924). História & Ensino, v. 24, n. 1, 2018, p. 165-197.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “Um operoso e erudito estudioso da


história de nossa pátria”: Raphael Galanti e o ensino de história do Brasil
(1896-1917). Antiguos jesuíta en Iberoamérica. Buenos Aires, vol. 7, n° 2,
2019, p. 42-62.

SANTOS, Magno Francisco de Jesus. “Aos que tivessem avidez de saber das
cousas pátrias”: Américo Braziliense, a escrita da história escolar e a invenção
do espaço paulista (1873-1879). In: OLIVEIRA, João Paulo Gama; MANKE,
Lisiane; SANTOS; Magno Francisco de Jesus (Orgs). Histórias do Ensino de
História: projetos de nação, materiais didáticos e trajetórias docentes. Recife:
EDUPE, 2020, p. 45-72.

128
SOARES, Lênin Campos. Isabel Gondim, a historiadora. Natal das antigas.
Natal, 2019. Disponível em: https://www.nataldasantigas.com.br/blog/isabel-
gondim-historiadora. Consultado em: 02/05/2020.

129
A SUBALTERNIZAÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO
NAS REFORMAS EDUCACIONAIS (1960-70): DIÁLOGOS
COM A MEMÓRIA
Sandra Regina Mendes e Lívia Diana Rocha Magalhães

Introdução
Este ensaio tem por objetivo situar a discussão realizada nos Anais da
Associação Nacional de História (ANPUH) diante de reformas educacionais
que implementaram os Estudos Sociais nos currículos, nas décadas de 1960-
70, visando compreender o processo de desvalorização da História nos
currículos escolares no atual contexto de implementação da reforma do ensino
médio. Tudo indica que há uma memória constituída nessas reformas que
continua vigente em sua atualização, ancorada na concepção de que a
História dever assumir um lugar de subalternação no currículo.

Nessa perspectiva, poder-se-ia dizer, nos aproximando de estudos sobre


História e Memória da Educação, com base no campo da teoria da memória
social e coletiva (HALBWACHS, 2004; 2006), que a memória é uma das fontes
de expressão das relações construídas numa sociedade, de forma que “discutir
a memória da educação pode permitir a discutir a história dos grupos e da
sociedade que compõem o pensar e o fazer educacional [...]” (MAGALHÃES,
2016, p. 170).

Nesse sentido, tomando como referência as memórias coletivas oficiais,


instituídas por grupos que elaboram as reformas educacionais, identifica-se
uma memória de que a História poderia ser dissipada no currículo. Isso ocorreu
por meio dos Estudos Sociais na Lei 5.692/1971 e, atualmente vêm sendo feito
através da área de conhecimento e itinerários formativos na Lei 13.415/2017 e
na Base Nacional Curricular Comum (BNCC) do atual ensino médio. E para
discutir que esse não é uma tema pacífico e aceito pelos historiadores
estudiosos do ensino de História, recorrer-se-á aos Anais da ANPUH (1960-
1970) para demonstrar que na contramão dessa proposição há uma memória
coletiva, construída no interior da associação acadêmica e de classe dos
historiadores, que vem reagindo aos esfacelamentos dos conteúdos e
metodologias curriculares indicadas para o estudo da História. Como já foi
anunciado, a intenção aqui é explicitar que há uma contrarreforma educacional
em curso que está requerendo outra vez a retomada da discussão.

130
Da legislação à produção acadêmica dos historiadores debatendo os
estudos sociais
Na promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) nº. 4.024 de
1961, os Estudos Sociais apareceram “como disciplina optativa na listagem
relacionada pelo Conselho Federal de Educação das disciplinas a serem
escolhidas pelos estabelecimentos de ensino” (SANTOS, 2011, p. 10),
enquanto a História constava como componente obrigatório. Dessa flexibilidade
curricular permitida pela LDB surgiram as experiências de adoção dos Estudos
Sociais nos currículos, como observado em São Paulo nos Ginásios
Vocacionais e Pluricurriculares, em 1962, e na Escola de Aplicação da
Universidade de São Paulo. Também, no final da década de 1960, a Secretaria
da Educação do Estado de São Paulo inseriu os Estudos Sociais como
disciplina “nas duas primeiras séries do ciclo colegial secundário das escolas
da rede estadual” (Ato nº 24, de 28 de janeiro de 1969, Diário Oficial do Estado
de São Paulo, de 29 de janeiro de 1969).

Com a regulamentação da lei 5.692/1971, através da Resolução nº. 8/1971, a


matéria História passou a ser trabalhada como Estudos Sociais no 1º grau e foi
“dosada no 2º grau segundo as habilitações profissionais pretendidas pelos
alunos” (Resolução CFE nº. 8, Artigo 5º, II, de 1/12/1971) para atender a
profissionalização obrigatória deste nível de ensino. O projeto educacional da
ditadura adotou o controle e reconfiguração dos componentes do currículo-
dentre os quais a História- como foco para frear estudos teóricos fundamentais
na História crítica. Conter os avanços da História como componente do
processo formativo de estudantes era uma dos objetivos da reforma.

O Iº Simpósio Nacional de Professores de História do Ensino Superior


aconteceu em 1961. Os “temários” propostos estavam relacionados ao núcleo
das disciplinas específicas de História, mas no IV Simpósio, ocorrido em 1967,
portanto no processo de implementação da Lei 4.024 de 1961, começa a
comparecer uma preocupação com o ensino e a didática. Sem fazer
referências às legislações educacionais, o evento aprova uma moção
solicitando que os professores participantes dos simpósios fizessem um
levantamento da “situação do ensino de História, em nível médio, com a
finalidade de fornecer subsídios à Associação para solicitar a intervenção do
Conselho Federal de Educação (CFE) no sentido de dar maior ênfase ao
ensino da História” (ANAIS DO IV SIMPÓSIO, 1969, p. 766).

Em 1969, no Vº Simpósio, as questões referentes ao ensino começa a


comparecer por meio do artigo “A História e reforma do ensino médio em São
Paulo” de autoria de José Afonso de Moraes Bueno Passos (1971) onde é
analisado a reformulação do ensino de História nesse Estado por meio da Lei
n. 10.038, de 5 de fevereiro de 1968. Ao identificar na proposta curricular a
presença de termos como “área de Ciências Humanas”, “currículo comum para
todos os cursos”; “A geografia e a História poderão ser integradas em Estudos
Sociais”, o autor problematiza que a

131
“‘idéia de integração de estudos’, como hoje é intitulada, parece perfeitamente
exata e conforme ao ponto de progresso atingido pela cultura humana. Na sua
rápida carreira ascensional, a ciência teve de especializar-se necessariamente.
Mas, com isso, por vêzes se esqueceu de que um inteiro é alguma coisa a
mais que a simples soma das partes. Estas têm de ser exaustivamente
estudadas, cada uma em conformidade com seus métodos, meios e finalidades
próprios; mas, além da adição superposta dêsses conhecimentos, é o
entrosamento orgânico dêles que gera o conhecimento do todo” (PASSOS,
1971, p. 548).

As preocupações de Passos (1971) perpassam por diversos aspectos


impactados pela legislação: a relação da História escolar com a ciência de
referência, sua relevância no currículo escolar e também a questão da
formação e exercício profissional docente. Sua reflexão ainda dá ênfase ao
lugar da História no ensino médio considerando que este deve ter como
objetivo o saber científico, tecnológico e humanístico, a partir de uma
integração dos estudos em consonância com as condições reais, possibilitando
aos jovens adquirir uma base unificada de conhecimentos para “optar por um
de seus ramos e situar-se na comunidade humana” (PASSOS, 1971, p. 548).
Para tanto, defende a presença da História no currículo por ser capaz de
mediar o desenvolvimento da mentalidade científica no aluno ao trabalhar com
a categoria tempo, desnaturalizando a existência e a produção humana.
Reafirma que não se “pode admitir, a bem da ciência, é que se tire à História
seu objeto próprio, que é a reconstrução completa do fato histórico” (PASSOS,
1971, p. 563).

Na mesma sessão coordenada, no trabalho intitulado “Algumas considerações


sôbre o ensino da História no curso secundário”, José Ênio Casalecchi (1971)
chama atenção para necessidade de, tendo os professores do secundário uma
formação universitária, considerar a existência de uma visão científica da
História na escola. Aos professores desse nível de ensino, formados pela
universidade, caberia a responsabilidade de “mostrar a enorme dimensão
educativa da História’” (p. 571). Constatando uma desvalorização da História,
dentre as demais disciplinas do secundário, o autor afirma que “quase nada se
tem sido feito no sentido de buscar a sua valorização adequada ao processo
educativo” (p. 571).

Em 1971, com a Lei 5.692 a integração curricular ganhou novos contornos e


objetivos, institucionalizando-se e definindo um outro momento da trajetória da
História, que passa a ser prevista como Estudos Sociais, transformada agora
em área de estudo obrigatória no 1º grau e como disciplina no 2º grau.

Nos Anais dos Simpósios da ANPUH, observa-se o reflexo dessa situação


quando há um aumento considerável do número de publicações a respeito do
ensino de História. Em 1973 ocorre uma movimentação de resistência da
ANPUH à destituição da autonomia da disciplina História e seu esfacelamento
ou tratamento como área de Estudos Sociais no ensino de 1º Grau. À medida
que a reforma promovida pela Lei 5.692/1971 se consolidou e começou a ferir

132
diretamente o conteúdo de História no currículo escolar, começa assim a
desencadear um maior posicionamento da ANPUH

Quando o tema começa a ganhar mais visibilidade na associação, outros


historiadores passaram a questionar a Lei 5.692/1971, denunciando que os
Estudos Sociais entraram no currículo das escolas com o discurso de
“integração” das disciplinas, mas a fizeram sem articulação com as ciências de
referência, provocando um esvaziamento do saber histórico. Com isso,
aprofundaram a dicotomia entre ciência e ensino, bem como dificultaram o
acesso a uma formação que assegurasse o domínio dos conhecimentos
técnicos e intelectuais.

No IXº Simpósio Nacional de 1977, a questão ganhou espaço na programação


do evento com a mesa redonda “A História e o problema dos Estudos Sociais”.
Aprovou-se em assembleia tornar pública a posição assumida pela ANPUH
com “a divulgação ampla, através da imprensa, das comunicações
apresentadas na Mesa-Redonda sobre Estudos Sociais” (ANAIS DO IX
SIMPÓSIO NACIONAL DA ANPUH, 1979, p. 104). Foram ainda definidas
comissões para organizar ações de enfrentamento ao avanço dos cursos de
licenciatura curta em Estudos Sociais que eram integralizados com apenas
1.200 horas.

Os Anais da década de 1970 mostram um aumento no número de trabalhos


envolvendo a temática do ensino de História, embora ainda circunscritos a
experiências didáticas. Dentro de um processo dialético, o campo do ensino de
História, como componente curricular formativo, ganha força e se opõe às
reformas educacionais. A implementação dos Estudos Sociais nos currículos
nos anos de 1970 levou a um movimento de resistência a partir da articulação
de um grupo de intelectuais que passaram a colocar em evidência a pauta da
autonomia da História e as especificidades do conhecimento histórico no
currículo escolar.

Com o processo de redemocratização, a luta contra os Estudos Sociais irá


recrudescer e a produção intelectual em torno do debate sobre a importância
do conhecimento histórico na escola básica, ganhará novas pautas e novos
contornos, inclusive com a renovação historiográfica em andamento naquele
momento.

Desconsiderando o acúmulo histórico, produto de uma memória de debates e


lutas de historiadores filiados a sua associação acadêmica e de classe no
enfrentamento do esfacelamento do ensino de História no currículo escolar por
meio da Lei 5.692/1971, as reformas curriculares atuais, mais uma vez, retira
da formação histórica o seu caráter enquanto campo específico de saber,
diluindo-o em área de conhecimento. Nesse sentido, tomando como referência
a teoria da memória explicitada acima, conclui-se que o passado representado
pela área de Estudos Sociais se constitui como parâmetro para a distribuição
do conhecimento histórico no currículo escolar na atualidade.

133
Conclusões parciais
A produção acadêmica publicada nos Anais da ANPUH se constitui como uma
fonte privilegiada para acompanhar o debate acerca do ensino de História no
Brasil diante do avanço de políticas educacionais que colocaram em suspenso
o conhecimento histórico para formação de estudantes. Observa-se uma
recuperação oficial de uma memória que ratifica a relativização da importância
da História na formação educacional e uma supremacia da sua compreensão
como área de estudos, mais uma vez.

Referências biográficas
Ms. Sandra Regina Mendes, professora da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB/Campus XVIII); Doutoranda no Programa de Pós-graduação em
Memória: Linguagem e Sociedade (PPGMLS).
Drª. Lívia Diana Rocha Magalhães, professora da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (UESB), Programa de Pós-graduação em Memória:
Linguagem e Sociedade (PPGMLS)

Referências bibliográficas
HALBWACHS, Maurice. Los marcos sociales de la memoria. Rubí (Barcelona):
Anthropos Editorial; Concepción; Universidade de la Concepción: Caracas;
Universidade Central de Venezuela, 2004.

HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. São Paulo: Editora Centauro,


2006.

MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha. História, memória e a educação: relações


consensuais e contraditórias. Revista HISTEDBR On line, Campinas n. 67, p.
165-174, mar 2016.

NADAI, Elza. Estudos Sociais no Primeiro Grau. MEC, Revista Em Aberto,


Brasília, v. 7, n.32 37, 1988.

SANTOS, Beatriz Boclin Marques dos. A História e os Estudos Sociais: o


Colégio Pedro II e a reforma educacional da década de 1970. SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA, XXVI, 2011, São Paulo. Anais do XXVI Simpósio
Nacional de História – ANPUH 50 anos: Comemorações. São Paulo:
ANPUH/SP, 2011.

Fontes dos anais dos simpósios nacionais de história:

CASALECCI, José Ênio. Algumas considerações sobre o ensino de História no


curso secundário. Anais do Vº Simpósio Nacional dos Professores de História
“Porto, rotas e comércios”, Vol. I, São Paulo, 1971, p. 571-584. [evento ocorrido
em Campinas, São Paulo, de 01 a 07 de setembro de 1969].

PASSOS, Pe. José Afonso de Moraes Bueno. A História e reforma do ensino


médio em São Paulo. Anais do Vº Simpósio Nacional dos Professores de

134
História “Porto, rotas e comércios”, São Paulo, Vol. I, 1971, p. 547-570. [evento
ocorrido em Campinas, São Paulo, de 01 a 07 de setembro de 1969].

Documentos legais

BRASIL. Senado Federal. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: nº


4024/61.
Brasília: 1961.

BRASIL. Lei nº5692, de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o


ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. MEC. Ensino de 1º e 2º grau.

BRASIL. Lei n. 13.415, de 16 de fevereiro de 2017. Altera as Leis n. 9.394, de


20 de novembro de 1996. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,
Brasília, 2017.

BRASIL. Ministério da Educação/Conselho Nacional de Educação/Conselho


Pleno (CP). Resolução nº4, de 17 de dezembro de 2018. Institui a Base
Nacional Curricular na etapa do Ensino Médio (BNCC-EM), como etapa final da
Educação Básica, nos termos do artigo 35 da LDB, completando o conjunto
constituído pela BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, com
base na resolução CNE/CP nº2/2017, fundamentada no parecer CNE/CP nº
15/2017. Brasília, 2018.

Resolução nº 8, de 1º de Dezembro de 1971. Fixa o núcleo-comum para os


currículos do ensino de 1º e 2º graus, definindo-lhe objetivos e amplitude.
Disponível em:
https://www.scielo.br/j/reben/a/HGRfCn9wSk7XZckTQKFDYDg/?lang=pt
Acesso em: 14 de julho de 2021;

Ato nº 24, de 28 de janeiro de 1969, Diário Oficial de São Paulo de 29 de


janeiro de 1969. "Baixa instruções para aplicação das normas estabelecidas
pela Resolução C. E . E. nº 36/68 para as duas primeiras séries do ciclo
colegial secundário e normal".

135
EDUCAÇÃO E TRABALHO: O SERVIÇO NACIONAL DE
APRENDIZAGEM INDUSTRIAL (SENAI) E A FORMAÇÃO DE
UMA POLÍTICA EDUCACIONAL PARA O TRABALHADOR
Aruanã Antonio dos Passos e Willian Roberto Vicentini

O trabalho trata da Educação Profissional voltada para a formação de


trabalhadores, o qual se fez necessária como componente para o
desenvolvimento da indústria brasileira a partir da constituição do Estado Novo
no contexto da década de 1930, tendo como objeto de estudo o Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) no Brasil, e mais
especificamente, no Paraná e em Santa Catarina. Como recorte temporal para
este estudo, elegeu-se o período de 1942 a 1953, momento da implantação da
“Escola SENAI” nesses Estados, ao desmembramento da administração na
chamada 7ª Região (SENAI no Paraná e Santa Catarina), separação ocorrida
após a criação da FIESC (Federação das Indústrias de Santa Catarina), opção
resultante da alteração do parque industrial dos dois estados.

No processo de construção do problema fez-se necessária uma abordagem


histórico política que mostrasse os diversos aspectos sociais que influenciaram
na criação de políticas públicas de formação profissional e que culminaram na
implantação do SENAI. Tal formação buscava atender às crescentes
necessidades da indústria nacional. Tal contexto marcado pelo
desenvolvimento da indústria nacional carregado de mudanças são
demostradas em nossos estudos e reflexões, que estas buscam atender a
interesses de certo projeto de desenvolvimento, refletindo-se tanto nas
reformas educacionais quanto nas questões referentes ao trabalho, como o
processo de implantação e ampliação de indústrias, as imigrações de mão de
obra estrangeira, a criação de sindicatos e movimentos de trabalhadores, o
surgimento de uma burguesia industrial e de uma classe operária, processos
que afetaram diretamente as questões sociais da época.

Ainda se vê que no processo industrial, este passou a exigir trabalhadores


qualificados, nesse sentido observa Cunha (2000, p. 06), que, “com a
complexificação da maquinaria das manufaturas e das primeiras indústrias, os
operários qualificados foram buscados no exterior, solução que acarretava dois
tipos de inconvenientes. Primeiro, os operários contratados não formavam seus
substitutos locais, guardando para si o monopólio da operação das máquinas, o
que aumentava seu preço. Segundo, era comum eles trazerem para cá práticas
e ideias consideradas atentatórias à ordem estabelecida, como a paralisação
da produção para pressionar os patrões pela melhoria dos salários e das

136
condições de trabalho e até mesmo a organização sindical. Para evitar esses
inconvenientes, começou a surgir toda uma ideologia de valorização do
trabalho ‘do elemento nacional’, cuja propalada inaptidão e inconstância já não
era vista como natural, senão como resultado da falta de oportunidades. [...]
Para tanto, o ensino profissional teria de deixar de ser destinado aos
miseráveis, órfãos, abandonados e delinquentes”.

Assim, deve-se levar em consideração a historicidade desse processo


complexo de formação de uma instância de qualificação da classe trabalhadora
estritamente relacionada aos interesses das classes dominantes. No que
concerne a historiografia a respeito do objeto deste complexo processo,
considerando os conflitos que a delineiam como um conjunto integrado e único
em sua especificidade humana, permeando as instâncias do trabalho, da
educação e da sociedade, haja vista a futura formação do trabalhador
destinado para a indústria que se firmará nos anos que se seguem, pois qual
seria o modelo ideal de trabalhador que esta indústria absorveria nesta
passagem de um modelo econômico para outro. Vejamos.

Para Cunha (1980, p. 15), “o conceito de desenvolvimento, como numerosos


produtos da ciência, tem sofrido as vicissitudes da absorção pelos mais
diferentes discursos ideológicos. (...) Dá-se então, o nome de desenvolvimento
às transformações que um organismo sofre, fazendo-o passar de uma fase à
outra, o que acarreta em riscos enormes, embora não o impeça de todo. O
primeiro grande risco, a nosso ver, é a suposição de que as sociedades sejam,
todas, como organismos, diferenciadas internamente segundo o princípio da
unidade funcional, onde a contradição, se existe, é um acidente conjuntural
superável pelos próprios órgãos. O segundo grande risco e a postulação de
fases “naturais” pelas quais a sociedade tem, necessariamente que passar,
eliminando-se as forças das relações sociais como traçadora dos caminhos e
serem percorridos. O terceiro grande risco, decorrente do segundo, é a
suposição de que é possível separar sociedades ou, pelo menos, padrões
“normais” e “patológicos”.

Impossível, dessa maneira, negligenciar o debate sobre o trabalho e educação,


tratando do tema e do objeto desta pesquisa, ainda, da educação profissional e
especificamente da formação para o trabalho no espaço urbano, fator este que
se gerou a partir das decisões governamentais em fomentar o desenvolvimento
industrial no país pós 1930, pois, quem eram os trabalhadores da indústria no
período, que modelo de formação estes tinham e para quem esta formação era
dirigida, pois sabe-se que os trabalhadores nacionais tinham pouca formação,
ainda, dos muito que vieram da Europa, traziam consigo, vícios profissionais,
seus ideais e ideologias, não cabendo dentro do modelo de trabalhador que se
queria edificar.

Pode-se ainda citar, que referente a análise do objeto SENAI, este nos levou,
através de um processo reflexivo, a procurar compreendê-lo no movimento
real, o que nos permitiu pensar a problemática para este trabalho, pois
acredita-se que todo problema de pesquisa se volte a um questionamento, uma

137
inquietação a ser desvendada com a atividade efetiva do pesquisador. Então,
para buscar sanar as inquietações geradas pela intenção da pesquisa e de seu
tema, expõe-se o problema para esta tese, colocando a seguinte questão:
Como se deram as relações entre a política governamental de Vargas e a
atuação do SENAI na formação da força de trabalho para a indústria no Paraná
e em Santa Catarina dentro do recorte estabelecido na conjuntura histórica
nesses estados? Salienta-se que referente ao problema de pesquisa, sabe-se
que o recorte temporal desta pesquisae abrange os governos Vargas e Dutra,
mas para efeitos deste estudo específico, o governo Vargas terá mais atenção.

Colocado o problema, nosso caminhar na construção da Tese, apontam


elementos e questões que fomentam o desenvolvimento industrial no Brasil de
época, não apenas a formação do trabalhador, mas também as diversas
questões que se fazem presente neste contexto. Então, para buscar sanar as
inquietações geradas pela intenção da pesquisa e de seu tema, coloca-se o
objetivo geral do trabalho, qual seja, analisar como se estabeleceram as
relações entre o processo de industrialização, as políticas públicas
governamentais, os interesses empresariais e qual a contribuição da atuação
do SENAI para a formação da força de trabalho para a indústria, em particular,
nos estados Paraná e Santa Catarina no recorte histórico estabelecido.

Com a apresentação do objetivo geral, apontam-se os elementos inseridos no


processo de implantação e atuação do SENAI no Brasil, e mais
especificamente na 7ª Região (Paraná e Santa Catarina), como parte
integrante da gênese e consolidação do parque industrial desses estados. A
principal intenção é a de apontar as contradições no processo de implantação e
consolidação do Senai no Paraná e em Santa Catarina no que se refere a
qualificação da força de trabalho dentro das questões apresentadas neste
movimento social diverso e de interesses diversos, ainda, a relação entre a
implantação e a atividade-fim do SENAI, a formação de trabalhadores para a
indústria nacional, dentro dos elementos e interesses políticos e empresariais,
que cercaram tal implantação.

Salienta-se que, dentro do recorte temporal, procurou-se trabalhar em um


período maior para que se compreenda o processo singular (SENAI e a
formação do trabalhador), no geral (Política Pública e a formação para o
trabalho). Para tal, procura-se neste caminhar, estabelecer os elos deste
movimento histórico, elegendo-se inicialmente 1930 a 1954 [dos anos finais da
República Velha, englobando a Revolução de 1930 com o Governo Provisório,
o Constitucional, a eleição de Getúlio Vargas em 1951 e sua morte em 1954],
um recorte histórico que visa abranger o período de construção historiográfica
para esta Tese e que o objeto de pesquisa se insira dentro deste cenário.
Dentro deste contexto, o processo de implantação do Senai em 1942 com a 7ª
Delegacia Regional, até a separação desta em duas regionais em 1953,
período que se utiliza para as análises. Sabe-se que se insere neste processo
o governo Dutra, que foi eleito e governou entre 1946 até 1951, mas que para
nossas análises [dentro das fontes consultadas referentes ao SENAI], estas
não apresentaram diferença entre os governos.

138
Essas questões são verificadas dentro deste movimento do real, não só no
fomento através dos decretos-lei, mas também, em gerar condições para que
as partes envolvidas em uma “educação” voltada para o trabalho. Partindo
desses objetivos, procurou-se investigar a relação neste processo de
qualificação do trabalhador e a educação profissional no Brasil, que foi e é
objeto de diferentes discussões e debates. Nesta Tese nossa intenção foi
mostrar a educação profissional e as diferentes ações de políticas públicas do
governo para a educação profissional e a criação de escolas profissionais,
entre as quais pode-se destacar o Decreto-lei nº 4.073/1942 – Lei Orgânica do
Ensino Industrial; nº 4.048/19425 – Lei Orgânica de criação do SENAI; nº
4.244/1942 – Lei Orgânica do Ensino Secundário; e nº 6.141/1943 – Lei
Orgânica do Ensino Comercial. A série de leis fomentadas pelo governo visa a
uma mudança de parâmetro em relação à formação do quadro de
trabalhadores mais especializados no país.

Para tal, considera-se como método de pesquisa o materialismo histórico


dialético, em que se busca inserir o fenômeno investigado no interior de um
contexto mais geral, no interior do movimento real, das ações dos gestores
políticos, dos industriais e dos trabalhadores, envolvidos nestas questões
sociais, em que relaciona o Trabalho e a Educação, acreditando que a criação
do SENAI (com as ações do Governo Federal e dos Industriais), fez parte deste
movimento real, social, um fato que mudou a maneira de ser e agir de muitos e
buscou atingir a toda uma sociedade, em que nos apresentou um movimento,
que além de histórico com os fatos ocorridos, mostrou-se dialético na
apresentação das contradições entre os atores sociais envolvidos.

Referindo-se a este contexto, Oliveira (2001, p. 15) afirma que segundo os


estudos inspirados pela ótica marxista, regida pelo conceito de modo de
produção, cuja versão original remonta a 1864, a industrialização e a
urbanização podem ser entendidas como componentes de uma etapa no
processo de superação histórica do feudalismo para o capitalismo. Nessas
abordagens, tanto as transformações políticas quanto as econômicas são
entendidas, em boa medida, como parte do projeto social de uma certa classe
– a burguesia – que atua de forma consistente na construção de um
determinado tipo de sociedade – a capitalista.

Salienta-se que se baixou a Portaria n° 470 em 7 de agosto de 1946,


mostrando a relação de ofícios qualificados para os grupos industriais, o qual
serviram de base para a organização dos cursos, para o referido ensino de
ofícios, na modalidade de qualificação profissional. Bernartt e Signorini (In
memoriam), (2014, p. 23), citam que: “um primeiro aspecto a ser ponderado
para a compreensão do materialismo histórico enquanto método de
investigação implica entender que a dialética é um atributo da realidade e não
do pensamento.”

Têm-se a intenção de buscar neste contexto, analisar os acontecimentos como


componentes transformadores do processo histórico, no qual se utilize de sua
práxis e das relações que o fazem, para transformar a si e ao seu meio.

139
Frigotto (1989, p. 83) ao considerar o materialismo histórico dialético como um
método de análise, cita a importância em “indagar sobre o sentido histórico,
social, político e técnico de nossas pesquisas”, e na importância em aplicar o
método na verificação do objeto de pesquisa, em que se busca no estudo do
SENAI, apontar os elementos da instalação desta instituição dentro de uma
época de mudanças, de crise econômica e de guerra, não apenas no que se
refere à transição do modelo agroexportador para o urbano industrial, mas
também os elementos de uma sociedade capitalista contemporânea que se
organiza em meio as mudanças políticas, sociais e econômicas no processo de
produção das condições materiais de subsistência da classe trabalhadora.

Esta pesquisa se trata de uma pesquisa bibliográfica e de análise documental,


realizada em centros documentais, principalmente nas bibliotecas Pública do
Estado do Paraná em Curitiba, da Federação das Indústrias do Estado do
Paraná (FIEP) e da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina
(FIESC), em que se buscou nos Relatórios Anuais do SENAI, extraindo em
seus diversos conteúdos, dados e informações, que contribuíram para a
realização desta pesquisa. Ainda, os Relatórios anuais se constituem como a
base do processo de reflexão, pois além das informações e dados, apontam-se
nestes a visão e a ideologia formatadas para o modelo educacional a ser
implantado e colocado em prática pela instituição.

Em tempo, o contato com os profissionais das bibliotecas e do Centro de


Referência Documental do SENAI foi fundamental, pois foi neste a consulta de
fontes inéditas e diversas, que confirmaram a influente atuação da 7ª Regional
do SENAI, junto a indústria local. Buscou-se consultar uma bibliografia que,
além da criação, implantação e manutenção do SENAI, apontasse para a
relação ensino/trabalho industrial. Foram consultados também pesquisas
encontradas na base de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES), relacionados a especificidade do tema e
do objeto de pesquisa.

No que se refere a história e historiografia brasileira foram, entre outros


utilizados Boris Fausto (2002), na obra; História do Brasil, em que se traça um
panorama da historiografia brasileira em diversas épocas, ou como cita o
próprio autor na introdução, quando efetua uma observação sobre a sua obra e
das concepções dele como autor, em que cita que, a própria seleção de dados
tem muito a ver com as concepções do pesquisador. [...] Por isso mesmo, o
que o leitor tem em mãos não é a História do Brasil – mas uma História narrada
e interpretada sinteticamente, na óptica de quem a escreveu. Ainda; Trabalho
Urbano e Conflito Social (1997), que, parafraseando Fausto cita: por razões de
interesse e pesquisa, trata-se da classe operária de São Paulo e do Rio de
Janeiro em um limite regional, ainda.

Busca-se aqui ressaltar a importância efetiva dos Relatórios do SENAI na


realização da pesquisa. A importância deste material teve peso enorme, pois
os referidos relatórios são os meios pelos quais deu-se sustentação a
pesquisa, pois os mesmos trataram do cotidiano da instituição, ainda, a forma

140
de pensar e agir dos que dirigiam e dos que atuavam no processo de formação
dos estudantes. Apontavam a maneira de como os estudantes eram
conduzidos em sua maneira de pensar. Ainda, sua metodologia e apontava a
relação dos estudantes com todo o processo que envolvia a formação para o
trabalho. pesquisam-se os trabalhadores urbanos em outras regiões do país,
capitais no Norte e no Sul. Ainda, Richard Bourne (2012), com: Getúlio Vargas:
a esfinge dos pampas, em que traça uma relação entre o Brasil e a vida de
Vargas.

Para debater a questão econômica, Caio Prado Júnior (2000), nos apresenta a
obra: História Econômica do Brasil, um estudo que em seu desenvolvimento,
busca trazer uma compreensão que discorre em épocas dentro da economia
do Brasil, em que se indaga as circunstâncias em que este processo ocorreu.
Celso Furtado (1977), nos apresenta uma obra: Formação Econômica do
Brasil, um estudo a respeito do processo histórico de como se constituiu a
economia brasileira. Uma obra que é construída no calor das lutas sociais, que
indicava as raízes históricas de nosso subdesenvolvimento [...] e que tendia a
agravar as desigualdades regionais. José Paulo Netto e Marcelo Braz (2017),
com Economia Política: uma introdução crítica, nos mostra uma obra que
busca efetuar uma abordagem crítica da economia política, uma síntese de
leituras acumuladas em anos de pesquisa e magistério.

No caso do Paraná, Pedro Calil Padis (1981), nos apresenta uma obra
Formação de uma Economia Periférica: O caso do Paraná, que busca
contribuir para um melhor entendimento dos processos socioeconômicos
responsáveis pela atual conformação do Paraná. Em relação a Santa Catarina,
Alcides Goularti Filho (2016), com Formação Econômica de Santa Catarina,
que apresenta uma relação direta com ao tema e ao objeto de pesquisa deste
Trabalho, uma obra que traz séries históricas para entender a realidade
concreta, a construção das relações e as transformações estruturais, ainda cita
o autor, que este, recorre às esferas política, cultural e social [...], tendo como
eixo o processo de acumulação capitalista, de valorização do capital e de
construção das relações sociais e políticas, para explicar as mudanças
econômicas no Estado de Santa Catarina.

Para compreender a educação profissional e educacional, Luiz Antônio Cunha


(2005), como de grande importância para este trabalho, pois com O Ensino
Profissional na Irradiação do Industrialismo, uma obra que trata do ensino
profissional industrial, no contexto da industrialização no país, em que o autor
parte da ideia de que o ensino profissional industrial foi delineado pelo
corporativismo, entendido como expressão da articulação dos interesses
públicos e privados. Ainda do mesmo autor, O ensino de ofícios nos primórdios
da industrialização (2005a) nos apresenta o ensino de ofícios industriais e
manufatureiros em momentos diversos, que se inserem como um dos meios de
integração da classe proletária nesta nova sociedade moderna, as iniciativas
públicas e privadas no tocante a criação de Instituições de formação da força
de trabalho no Brasil de época. Maria Antonieta Martinez Antoniacci (1993)
com A Vitória da Razão: o Idort e a Sociedade Paulista, obra que é centrada na

141
compreensão de como se produz e ocorre a organização do trabalho. Ítalo
Bologna (1980), com Roberto Mange e sua obra, esta obra reúne uma
documentação expressiva das ideias e ações mais significativas de Roberto
Mange nos domínios de Formação e Seleção Profissional, da Organização do
Trabalho e de assuntos correlatos. e Celso Suckow da Fonseca (1986) com
História do Ensino Industrial no Brasil – v.2, que trata do Ensino Industrial no
país, de leis e personagens atrelados a este, também, Maria de Fátima
Rodrigues Pereira (2012), com Trabalho e Educação: Uma Perspectiva
Histórica, em que a autora cita: a obra concorre para superar visões estanques
da vida e do ensino. Reafirma, portanto, a vitória sobre o cientificismo que
coisifica e formata o ser humano.

Cabe salientar que as considerações apresentadas aqui, buscam além de


apresentar o tema, o objeto de pesquisa e as diversas questões que cercam
esta problemática, que este trabalho caminha dentro das condições e do
movimento real da sociedade brasileira, buscando refletir esses
acontecimentos em que se apresentaram por meio dos fatos históricos, em
outras palavras, a relação do capital com a dominação dos meios de formação
educacional. Cabe a partir desta perspectiva traçar os limites da ação deste
capital na conformação de uma educação que interessa aos processos de
aprofundamento da luta de classes ou seu escamoteamento.

Referências biográficas
Dr. Aruanã Antonio dos Passos. Professor do Departamento Acadêmico de
Ciências Humanas da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR),
Campus Pato Branco.
Dr. Willian Roberto Vicentini. Professor da Rede Estadual de Educação do
Estado do Paraná (SEED-PR) e da Faculdade de Colombo (FAEC).

Referências bibliográficas
BERNARTT, Maria de Lourdes; SIGNORINI, Noeli Tereza Pastro. (In
Memoriam). A pesquisa na formação do profissional da educação sob os
pressupostos do materialismo histórico-dialético. In BERNARTT, Maria de
Lourdes. (Org). PARFOR: reflexões, sentidos e significados no ser e no fazer
docente. UTFPR Câmpus Pato Branco, 2014.

CUNHA, Luiz Antonio. O ensino profissional na irradiação do industrialismo.


São Paulo: Editora da Unesp, 2000.

CUNHA, Luiz Antônio. Educação e Desenvolvimento social no Brasil. Rio de


Janeiro: F. Alves, 1980.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. 10ª. ed. – São Paulo: Edusp, 2002.
_____________. Trabalho Urbano e Conflito Social. Rio de Janeiro: Difel,
1977.

OLIVEIRA, Dennison de. Urbanização e industrialização no Paraná. –


Curitiba: SEED, 2001.

142
143
“PROGRESSO COM ORDEM” – A HISTÓRIA ENSINADA
NO ESTADO NOVO
Willian Spengler

O Estado Novo, instituído oficialmente em novembro de 1937, tendo à frente


Getúlio Vargas, marcou, sem dúvida alguma, a inserção de uma nova cultura
política no país, que agregou as bases para a formação do atual Estado
brasileiro. A criação de Ministérios e a consolidação de suas legislações,
direcionadas prioritariamente para as áreas educacionais e trabalhistas,
configuraram as principais atenções do Estado varguista, que instituiu sob
medida, a chamada “cidadania do trabalho”, como elemento definidor da
cultura política em voga, quando há a substituição do cidadão da doutrina
liberal pelo cidadão trabalhador.

À guisa de lembrança, mister ressaltar que Vargas chegou ao poder em 1930,


através de um golpe de Estado e, com o passar dos anos, revelou-se um
ditador. Em 1937, antes que se encerrasse seu mandato, instalou o chamado
Estado Novo através de outro golpe, que se estenderia até 1945. As fissuras
representadas pela Intentona Comunista, em 1935, e pelos Levantes
Integralistas, em 1938, catapultaram o país a uma experiência insólita de
governo: um líder absoluto que contava com a empatia da sociedade. Como
medidas iniciais, Vargas fechou o Congresso Nacional, destituiu alguns
comandos militares, criou a figura dos “interventores federais” em substituição
aos “governadores estaduais” e instituiu uma nova Constituição. Todos os
partidos políticos foram suprimidos. Tudo em prol do “bem estar da Nação”.

No elenco dos objetivos desse Estado autoritário, a educação inseria-se como


ferramenta de caráter político-ideológico, o que faria do processo educacional e
de seus instrumentos pedagógicos verdadeiros baluartes de propaganda do
regime. A construção das representações, entendidas como símbolos culturais
presentes na sociedade, pode refletir de maneira instigante a compreensão
político-cultural de uma época. Por sua vez, o ensino nas escolas consolida
“modelos de educação”, destinados a desencadear nos alunos novos valores e
novos modelos formadores. Estas construções buscam legitimidade através de
ideais forjadores de uma identidade coletiva. O ensino de História, visto por
muitos como esclarecedor de preceitos, é extremamente visado e alvo direto
em regimes autoritários. Nestes períodos, seus dispositivos didáticos guardam
a retórica do momento político-cultural e exprimem as “verdades” do país,
através das correntes de pensamentos predominantes, desenhando uma
sociedade harmônica e pacífica.

144
A ideologia do Estado Novo enfatizava principalmente a ideia de construção da
nação e da nacionalidade brasileira sob a tutela do Estado. Para ter o controle
dos meios de comunicação e formar uma opinião pública favorável ao governo,
foi criado em 1939 o Departamento de Imprensa e Propaganda – DIP. O DIP
fez a promoção das atividades do governo nas esferas cultural, social e
educacional, objetivando que não houvesse contestação por parte do público.
A meta era apresentar as transformações cumpridas na ação estatal.

O Departamento foi “criado pelo decreto presidencial de dezembro de 1939, [...]


sob a direção de Lourival Fontes, viria materializar toda a prática
propagandística do governo. A entidade abarcava os seguintes setores:
divulgação, radiofusão, teatro, cinema, turismo e imprensa. Estava incumbido
de coordenar, orientar e centralizar a propaganda interna e externa; fazer
censura ao teatro, cinema, funções esportivas e recreativas; organizar
manifestações cívicas, festas patrióticas, concertos e conferências; e dirigir e
organizar o programa de radiodifusão oficial do governo”. (VELLOSO, 2010,
p.158)

Por sua vez, Lenharo (1986, p. 39) assevera que “a propaganda varguista
projetava para a sociedade uma só imagem de si mesma, imersa num mundo
de ficção, a competir com o mundo da sua realidade. O peso dos erros do
passado fora afastado; a sociedade antes dividida e conflituosa, agora,
encontrava o caminho da paz e do equilíbrio; o trabalhador, por sua vez,
finalmente tinha a seu favor um Estado protetor e justo; a nação reencontrava-
se consigo mesma e abria-se confiante para o progresso econômico”.

A estratégia getulista para a educação foi centralizar as ações, com a criação


do Ministério da Educação e Saúde, ainda em 1930. A organização
educacional partiu do centro para a periferia, isto é, era uma estrutura
verticalizada, sem participação da sociedade, e doutrinária. O próprio Getúlio
Vargas enxergava na educação um pilar para sustentar sua imagem pública
(“pai dos pobres”) e, assim, ajudar a moldar a opinião coletiva. A função do
governo seria tutelar a população.

A “missão” de reformar o ensino coube a Gustavo Capanema, que, além de


regulamentar o Ensino Primário e o Ensino Secundário, determinou a criação
de órgãos fiscalizadores para os cursos de formação de professores. Docentes
estes que, a partir do Estado Novo, deveriam utilizar o material didático
elaborado pelo DIP, a fim de que o patriotismo e o civismo pudessem tocar os
corações de crianças, jovens e adultos, verdadeiros bastiões para a grandeza
do país.

Capelato (2010, p. 123) registra que “as imagens e os símbolos eram


difundidos nas escolas com o objetivo de formar a consciência do pequeno
cidadão. Nas representações do Estado Novo, a ênfase no novo era constante:
o novo regime prometia criar o homem novo, a sociedade nova e o país novo.
O contraste entre o antes e o depois era marcante: o antes era representado

145
pela negatividade total e o depois (Estado Novo) era a expressão do bem e do
bom”.

A visão governista da educação é também salientada por Amaral (2001, p.81):


“a atuação da educação no governo Vargas tinha como meta o nivelamento de
inteligência entre as classes, sempre voltada para o benefício do regime”.
Através da educação “a nação sairia das crises econômica e moral”. Em um
capítulo intitulado “O DIP e a educação”, a autora sustenta que “a interligação
entre DIP e Ministério da Educação e Saúde” fez “da educação e da
propaganda atividades paralelas, em que uma completava a função da outra”.

A política educacional do Estado Novo “não se limita à simples legislação e sua


implantação. Essa política visa, acima de tudo, transformar o sistema
educacional em um instrumento mais eficaz de manipulação das classes
subalternas. Outrora totalmente excluídas do acesso ao sistema educacional,
agora se lhes abre generosamente uma chance. São criadas as escolas
técnicas profissionalizantes (‘para as classes menos favorecidas’). [...] o
trabalho nos vários ramos da indústria exige maior qualificação e diversificação
da força de trabalho, e, portanto, um maior treinamento do que o trabalho na
produção açucareira ou do café”. (FREITAG, 1980, p. 52, apud HENN, 2013, p.
1045)

Reznik (1992, p. 100) propõe a compreensão do ensino de História como


elemento de desenho do perfil doutrinário do Estado no período getulista,
pontuando através dos livros didáticos e programas curriculares da época as
principais formulações do ensino de História, em particular da cadeira História
do Brasil. O autor acredita que aqueles que integravam o debate da época
esperavam estar influindo, a partir da educação escolar, na construção da
nação brasileira, ao formar um novo tempo, tecendo o amanhã. Estudar a
História Nacional era uma causa eminentemente cívica, formadora de uma
“consciência nacional”. Através do conhecimento do passado, os indivíduos
criariam e reafirmariam o seu apego à nacionalidade, à pátria.

Importante ressaltar a inserção dos livros didáticos no mercado editorial da


época. O Decreto-Lei 1006/1938, instituiu a Comissão Nacional do Livro
Didático. Essa comissão, agregada ao Ministério da Educação, tinha por norte
o controle da confecção dos livros destinados aos estudantes brasileiros.
Necessária e evidentemente, nenhum livro poderia ser publicado ou distribuído
às escolas se não passasse pelo crivo do Ministério. “Como o Estado Novo era
uma ditadura, entende-se a aprovação do governo ao material didático como
uma espécie de censura. As informações que chegavam às salas de aula
eram, portanto, controladas pelo governo, usando a educação como um
instrumento de poder”. (CAVAZZANI; CUNHA, 2017, apud MEDEIROS, 2020,
p. 850)

Ainda sob a ótica de Reznik (1992, p.154), pode-se apontar um conjunto de


fatores que contribuíram para afastar os compêndios tradicionalmente
utilizados em prol da circulação dos nacionais em todas as áreas de ensino. De

146
acordo com o autor, “a expansão do ensino secundário na década de 30 e a
sua rígida seriação cumprem um papel chave, pois impunham uma nova
dinâmica para a produção e utilização dos livros didáticos”.

Os livros didáticos de História, utilizados no Estado Novo, eram sustentados


pela factualidade dos “grandes episódios da nação”. Trabalhavam uma história
de herança positivista, que tem como principal elemento a linearidade dos
acontecimentos, caracterizando uma história determinista, enfatizando as
relações de causa e efeito. A história política tradicional, marco desta linha
metodológica, é marcada por narrações épicas, pelo culto aos grandes “heróis
da pátria”.

Nestes livros “patrióticos”, o povo brasileiro seria resultado de uma amálgama


de três diferentes povos, dos quais o europeu seria o grande condutor
civilizatório. “Os índios, por sua vez, eram retratados a partir das características
do Romantismo, sendo os índios nativos diferentes dos atuais, construindo a
raiz indígena brasileira a partir de um estereótipo heróico, de físico semelhante
ao dos europeus, índios nobres e bravos que supostamente não haviam
aceitado a escravidão, ocultando qualquer traço da opressão colonizadora. A
produção de artefatos indígenas era retratada como semelhante a dos povos
civilizados. Os negros, porém, eram pouco mencionados, sendo retratados
apenas como mercadorias. O Brasil era apresentado como uma democracia
racial que estava, aos poucos, ‘embranquecendo’ a sua população em virtude
do maior índice de imigração dos europeus e da sua maior ‘robustez física’,
além da proibição do tráfico de escravos. Nota-se, portanto, que a produção
didática ignora o componente negro na constituição étnica brasileira em virtude
dessa ser considerada uma raça inferior, ideia amplamente difundida por
algumas correntes científicas da época, pautadas no chamado Darwinismo
Social. A formação do povo brasileiro, portanto, era representada de forma a
satisfazer as elites dominantes, tendo o povo europeu como principal agente
civilizador do Brasil”. (MEDEIROS, 2020, p. 846)

Buscando exemplos de tal modus operandi, o estudo realizado por Vaz (2006,
p. 87) mostra-se esclarecedor. De acordo com a estudiosa , verifica-se que
ao tratar da Independência do Brasil, os livros didáticos utilizados durante o
Estado Novo exprimiam o reverenciamento ao seu principal herói: D. Pedro.
Ele era tratado como o “salvador da pátria”, personagem que resolveu todos os
problemas do Brasil após o retorno de D. João VI a Portugal. Palavras de
empenho e energia, inteligência e perspicácia, eram atribuídas a sua figura. D.
Pedro sempre estava pronto em defesa da causa pública e os seus principais
empecilhos apontavam os descontentamentos regionais nas províncias do
Norte, que inicialmente se recusaram a aceitá-lo. Atitude análoga ocorria ao se
falar de Vargas: o homem que enfrentava diversas dificuldades em nome dos
anseios do país. Sua “mística” de empreendedor entoava-se na descrição de
seu governo, colocando o presidente no mesmo patamar de D. Pedro I e outros
“grandes heróis do passado”, como o “condutor” do Brasil ao progresso. Getúlio
Vargas, apresentado como herói, transmutava-se no homem preparado e

147
capaz de defender os interesses do Brasil, como fizeram vários outros
governantes do passado.

Fonte:
https://bdm.ufmt.br/bitstream/1/1088/1/TCCP_2018_Reniane%20Silva%20de%
20Souza.pdf

Paralelamente aos livros didáticos, utilizavam-se também as cartilhas


escolares, que consistiam em publicações veiculadas em todo o território
nacional, contendo textos de fundo moral religioso, ufanista e patriótico,
destinadas à leitura das crianças em fase de alfabetização. Conforme se
depreende da figura acima, um Vargas “paternal” transmite uma mensagem de
amor e patriotismo aos infantes, ensinando o “caminho das pedras” para o
(seu?!) sucesso. Aliás, as histórias, poesias, poemas, traziam os pressupostos
inerentes ao regime então vigente: civismo, nacionalidade, culto à pátria e ao
chefe da nação, ordem, trabalhismo, exaltação às datas cívicas.

As manifestações patrióticas – especialmente as desenvolvidas na Semana da


Pátria – consistiam em elementos importantes na preservação da ordem e na
legitimação de uma unidade social. A pátria, merecedora de sacrifícios,
assemelhava-se a uma mãe e nela estariam todos em uma grande família.
Eram proibidos textos que continham pessimismo ou dúvida quanto ao futuro
da “raça brasileira”, e a educação dos jovens era associada à preocupação de
evitar “más” influências – especialmente o comunismo.

George (2008, p. 9) sustenta que era intenção do sistema educacional “passar


ideias não de criticidade ou idéias que despertassem as práxis reflexivas, mas
de uma sociedade vista como uma corporação onde cada um tinha uma função
determinada para o bem-estar do corpo. Era função idolatrar o ‘pai da nação’,
era função obedecer ao que foi determinado, era função tentar absorver os

148
conteúdos transmitidos na escola para no futuro ser um bom operário,
domesticação de consciências”.

Desta forma, conclui-se que o Estado Novo tinha como referência o


patriotismo, sendo a educação encarada como peça fundamental, sempre
presente nas apresentações de cunho disciplinador. O ensino da História, ou
melhor, a lembrança constante dos “grandes vultos” da História Nacional,
apresentava-se como mola-mestra deste sistema. A Semana da Pátria, ápice
das festividades nacionalistas, fez parte na formação das crianças e jovens
brasileiros, coexistindo seja nas salas de aula, seja nos desfiles
comemorativos, com o lema republicano e positivista da bandeira brasileira:
Ordem e Progresso (ou seria Progresso com Ordem?!). Estas comemorações
funcionavam como exposições pedagógicas da sociedade, despertando na
população uma imagem harmônica e bela, formadora de um novo amanhã...
Com o Estado Novo, a educação foi entendida e utilizada como meio
disseminador dos ideais nacionalistas de maneira nunca vista na história de
nosso país. Nos dizeres de Campos (1992, p. 151), “a escola foi a instituição
onde pareceu ser possível, naquele momento, atingir amplos segmentos da
população no sentido de normalizar, homogeneizar, disciplinar, ordenar,
higienizar hábitos e comportamentos”. Contra a anarquia da inteligência, um
saber “pasteurizado”, que se pautava na obediência e fidelidade ao Estado
(Novo).

Referências biográficas
Willian Spengler, professor/historiador vinculado à Secretaria de Estado da
Educação de Santa Catarina, pós-graduado pela UFRJ.

Referências bibliográficas
AMARAL, Karla Cristina de Castro. Getúlio Vargas: o criador de ilusões –
análise da propaganda política no período do Estado Novo. São Bernardo do
Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2001. (Dissertação de
Mestrado).

CAMPOS, Cynthia Machado. Controle e normatização de condutas em Santa


Catarina (1930 –1945). São Paulo: PUC, 1992. (Dissertação de Mestrado).

CAPELATO, Maria Helena Rolim. O Estado Novo: o que trouxe de novo? In:
FERREIA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida das Neves. O tempo do
nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

GEORGE, Michael. A Educação e o Estado Novo: a ratificação da ordem


dominante e a construção do imaginário político brasileiro. Revela – Periódico
de Divulgação Científica da Faculdade do Litoral Sul Paulista, n. 02, mar. 2008.
Disponível em:
http://www.fals.com.br/revela/revela028/edicoesanteriores/ed2/educacaoestado
novo.pdf

149
HENN, Leonardo Guedes. A educação escolar durante o período do Estado
Novo. Revista Latino-Americana de História, vol. 2, n. 6, ago. 2013. PPGH-
UNISINOS. Disponível em:
http://revistas.unisinos.br/rla/index.php/rla/article/view/254http://revistas.unisino
s.br/rla/index.php/rla/article/view/254.

LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986.

MEDEIROS, Gabriel Saldanha Lula de. Era Vargas: a Educação como


Instrumento Político. In: Id onLine – Revista Multidisciplinar e de Psicologia, vol.
14, n. 50, maio. 2020. Disponível em: http://idonline.emnuvens.com.br/id.

REZNIK, Luis. Tecendo o amanhã: a História do Brasil no ensino secundário –


programas e livros didáticos. 1931 a 1945. Niterói: UFF, 1992. (Dissertação de
Mestrado).

VAZ, Aline C. A escola em tempos de festa: poder cultura e práticas educativas


no Estado Novo (1937-1945). Belo Horizonte: UFMG, 2006. (Dissertação de
Mestrado).

VELLOSO, Monica Pimenta. Os intelectuais e a política do Estado Novo. In


FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O tempo do
nacional-estatismo do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo.
Rio de Janeiro: Civilização Brasiliense, 2010.

150
UM FUTURO MELHOR: É O QUE BUSCAMOS, É O QUE QUEREMOS!

151

Você também pode gostar