Science">
Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Rene Lourau Analista Institucional em Tempo Integral Altoe Org PDF 2

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 143

r'

R.E .N E LOURAU
Coletânea de artigos de René AN A.LI STA l N ST l TUC 10 N A'L
Lourau, um dos criadores daAná- EM 'TEM PO l NTEG RAL
lise Institucional (AI) francesa, a-
brangendo diferentes momentos
de sua obra. Os textos se esten-
dem de produções datadas dos
anos 1960, quando surge o movi-
mento da AI, até as características
da década de 1990, momento em
que a análise das implicações, em suas relações com o modo
de escritura da pesquisa, recebem especial destaque. Um
artigo introdutório de Remi Hess e uma apresentaçãoda
organizadora oferecem uma contextualização em diferentes
escritos, na França e no Brasil.
SBN 85-271-0617-5
1.1 SONIA ALIOE
r'
91 788527 1 01
O RGAN lZADO RA
EDITO RA HUCITEC EDITO RA HUCITEC
PARA VOCÊ LER E RELER
Data de 1989nossa preocupaçãocom a
Análise Institucional(AI), quando publi-
camos o texto "Apresentação do Movimen- SONDA ALTOS
to Institucionahsta", de Gregorio F. Banm- ORGANIZADORA
blitt, no primeiro número de Saúdes.oucura.
No entanto, esteé o primeiro livro de René
Lourau, um dos criadores da AI que incor-
poramos à nossa coleção.
Com essa iniciativa contribuímos para
diminuir um déficit, pois, embora a pro-
dução bibliográfica a respeito da AI seja
vasta, poucos são os títulos disponíveis em
língua portuguesa. ./
A seleção dos textos de Rmé Lozzrazz,,4rzaZís-
ta Institucional em TempoIntegral toi feita
RENE LOURAU
por Soda Altoé, uma rigorosa discípula
do Autor. Os conceitos fundamentais da
analista institucional em tempo integral
AI são aqui tratados, ora de maneira clara,
quase introdutória, ora com sua mais rica
complexidade
O leitor crítico poderá navegar neste livro
pelas águas agitadas de um oceano ainda
inexplorado.
ANTONIO LANCETTI
Capa: Mana Amélia F Ribeiro
Foto: LúciaMaia
EDITORA HucrTEC
São Paulo, 2004
© Direitos autorais da organização, 2003, de Sõnia Altoé
© Direitos de publicação reservados por
Aderaldo & Rothschild Editores Lida
Rua João Moura, 433 (]5412-001 São Paulo, Brasil.
Telefone/Fac-símile:(55"11) 3083-7419
Atendimento ao Leitor: (55"11) 3060-9273
lerereler@hucitec.com.br
www.hucitec.com.br
APRESENTAÇÃO
Depósitos Legais efetuados
.A ioÉiA OA PUBLICAÇÃO de urna coletânea de artigos
de René Lourau expressando o conjunto de sua obra surgiu após
sua morte repentina ocorrida entre Rambouillet e Paris, em ja-
neiro de 2000,no trem que o conduzia à Universidade de Paras
VIII. onde trabalhava.
O amadurecimento do projeto deu-se durante o planejamen-
to e a organização do evento "0 Legado de René Lourau", ocor-
rido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uer)) em maio
de 2001,tendo como objetivo prestar homenagem ao sociólogo e
Altoé, Sõnia (org.) analista institucional francês e expor o que em nós marca a sua
René Lourau: Analista Institucional em Tempo coordenador
Integral. - São Paulo: HUCITEC, 2004. presença. Este evento contou com apoio.do então
do Mestrado em Psicologia Social da UERJ. prof. Ronald Arendt,
1. Instituições Políticas 2. Sociologia Educacional
3. Psicologia Social 1. Altoé, Sânia(org-) 11.Título e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janei-
ro (Faperl). Procuramos entãoreuúr um grande número de pro-
ISBN 8$271-0671-5 CDD 301.4 fessoresbrasileiros e de outras nacionalidades, que falaram da
Psicologia Social 301.1 influência do pensamento de René Lourau em suas pesquisas e
Sociologia Educacional 37.047 ensino.'
Instituições Políticas 301.4
Estrutura Social 301.1
René Lourau nasceu na França em 1933.Como atuante ana-
lista institucional, teórico e pesquisador, sua carreira está ligada
ao mesmo tempo ao movimento da pedagogia institucional e ao
movimento da análise institucional, do qual foi grande teorizador,
l
Este é o prometodo livro htituJado Rmé Louras no Brasíl: implicaçõese transduções
na mesma editora.
8 SÓCIA ALTOS APRESENTAÇÃO 9
ao lado de Georges Lapassade e Félix Guattari. Muito atuante na fica, organizado por Georges Lapassade, ao lado do psicanalista
França, foi convidado a trabalhar diversas vezes na Espalha, na Chaim Katz, do professorCelio Garcia (UFMG) e do teóricoda
ltália, no México, na Argentina e no Brasil, onde várias gerações comunicação Marco Aurélio Luz. Na mesma década (1975), a Vo-
de profissionais do campo social sofreram sua influência, no- zes lança Á Áná/íseJrzstífucíonaZ,de René Lourau, tese de douto-
tadamente os que amuamno campo da pesquisa e da ação social. rado de Estado defendida na Universidade de Nanterre em 1969.
Da psicossociologia à antropologia, da ciência política à inter- A partir de então, em nosso país, o paradigma institucionalista
venção institucional, da pedagogia aos movimentos de autoges- se firma entre significativa porção da população universitária e/
tão, da psicanálise à epistemologia, da produção intelectual à ou ligada ao trabalho social e aos estabelecimentospúblicos, es-
produção política, sua interferência fecunda sempre foi vasta e pecialmente quando seus campos de intervenção são a saúde, a
generosa. Vários temas marcam sua carreira e a prática de di- saúde mental e a educação. Alguns professores dirigem-se ao
versas geraçõesde pesquisadores, como por exemplo: implica- Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Pa-
ção, institucionalização, transdução, autogestão, escritura, diá- uis Vlll, onde se concentram os analistas institucionais, com vis-
rio de pesquisa, gêneseteórica, í?zfe//jgentsfa,
lapsos dos intelec- tas a estudos de pós-graduação. O movimento editorial brasilei-
tuais, autodissolução das vanguardas, centro e periferia, Estado, ro na área, embora não seja interrompido, prossegue de forma
coletivização e restituição do trabalho de pesquisa. irregular: a Martins Fontes edita Grupos, Organizaçõese /tzsfífuí-
O conjunto de seus trabalhos expressa uma das tendências ções,de Georges Lapassade (1977), e, nos anos 1980,a Zahar lan-
francesas mais importantes da análise institucional, que tem re- ça Pesquisa-.4ção na /?zst/tuíçãbEd catíua, de René Barbier, integran-
presentado, desde a década de 1970,uma alternativa teórica, te do que se pode apelidar "segunda geração de socioanalistas
metodológicae orientadora da prática para uma série de estu- Diante da dificuldade de obter material atualizado, professores
diosos brasileiros desejosos de ultrapassar fronteiras disciplina- e estudantes com pouco acesso a livros e revistas importados da
res rígidas. França têm de se contentar com a edição de simpósios dos quais
Embora a gênesedo paradigma da análise institucional seja participam os institucionalistas (O /zzco?zscienfeInst/tucíotzaZ, que
sociológica e/ou microssociológica, no Brasil foi predominante- inclui a contribuição de René Lourau em sua primeira visita ao
mente entre os psicólogos que se difundiu e se armou, tanto aca- Brasil em 1982,é editado pela Vozes em 1984)e com as coletâ-
dêmica quanto institucionalmente. Já em 1972o Setor de Psico- neas de artigos editados na Espanha (Eds. Campo Abierto e
logia Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Gedisa) ou no México(Eds. Nueva Imagene Folias). De Portu-
pioneiro na formação de psicólogos voltados para uma aborda- .gal nos chega Sociólogo em tempo /nfe/ro, de René Lourau, em
gem institucional de questões ligadas ao trabalho, à saúde e à 1980(Ed. Estampa).
saúde mental -- recebia a visita de Georges Lapassade que, ao A partir do final dos anos 1980, são os esforços dos departa-
lado de Rena Lourau, é considerado o criador da análise institu- mentos das universidades que promovem, por meio de convi-
cional qualificada de socioanalítica.Data do mesmo ano a pu- tes, a vinda dos analistas institucionais ao Brasil e a conseqüente
blicação de C/zaues da Sociologia (Lourau & Lapassade, Ed. Zahar), renovação bibliográfica: René Lourau é convidado pelo Mestrado
seguindo-se,em 1973,a edição do número 4, vol. LXVll, da Re- em Psicologia Comunitária da Universidade Federal do Rio de
oisfa de Cu/fzzra vozes, intitulado Aná/fse /nsfífzzcíona/:Zeoría e Prrí- Janeiro (UFRJ) em 1989e, com regularidade, pelo Departamento
1 0 SÕ N IA AI.TOÉ APRESENTAÇÃO ll
e Mestrado em Psicologia Social da Uerj (1993, 1994e 1997). Des- tência, tornou o texto mais fluente na língua portuguesa e nos
sas visitas resultam publicações e intercâmbios extremamente ajudou a resolver problemas pendentes. Foi uma experiência rica
fecundos. O curso ministrado por Lourau em 1993,assistido por e interessante de trabalho em equipe, permitindo superar mo-
mais de cem alunos, dá origem ao livro .A?záZise
Itzsfifzzciona/
e Prá- mentos estafantes de voltar a rever, voltar a digitar e também de
fícas de Pesquisa, editado pelo Nape/Uerj e rapidamente esgota- verificara dois a traduçãotextoa texto(francês/português),co-
do. Artigos do socioanalistasão publicados em livros e revistas mo também se a revisão digitada não tinha mais erros. Conside-
organizados por professores universitários: "A educação libertá- ramos que fizemosum bom trabalhoe esperamosque o leitor
ria" (em Psicologia Social: Abordagens Sócio-Históricas e Desa$os nos desculpe por algum deslize que porventura ainda encontrar.
Co?zfemporáneos, de Mancebo & Jacó-Vilela, Eduerj, 1999)e "A crí- Para permitir que o leitor se situe e possa entender a seleção
tica do simbólico em Femand Deligny" (Trarzsgressões -- periódi- de artigos aqui feita denh'o da história e contexto de produção
co de pesquisa do Programa de Pós-Graduação de Serviço So- da obra de René Lourau, incluímos à guisa de introdução a con-
cial/UFRJ, 1999). Algum tempo antes, a Vozes relançara Á Áná ferência pronunciada pelo prof. Remi Hess que, como convida-
Ifse/nsfífucíona/(1995), em edição revista, num indício da procu- do especial no evento realizado na Uerj, nos falou do "movimento
ra permanente pelo antigo livro, há muito esgotado. da obra de René Lourau". Remi Hess é um dos primeiros alu-
A presente coletânea busca divulgar os trabalhos do socioana- nos-discípulos de René Lourau e Georges Lapassade. Professor
lista René Lourau a fim de cobrir uma grande lacuna bibliográ- de Paris Vlll, é autor de muitos livros, dos quais certo número
fica de que os estudiosos brasileiros se ressentem. A seleção de se inscreve diretamente no prolongamento da obra de René
textosprocura expressar o conjunto de sua obra, desde os anos Lourau. Ele é um dos mais reconhecidose atuantesdivulgadores
1970,visando o interesseque possa despertar nos estudantes, do movimento de análise institucional na França.
)ovens profissionais, como também nos pesquisadores experien- A realização deste trabalho tem para mim forte motivação pro-
tes das ciências sociais e humanas. fissional e afetiva. Conheci René, como gostava de ser chamado
A maior parte da tradução foi feita num tempo bastante curto (apesar de ser conhecido entre nós simplesmentepor Lourau),
e de trabalho intenso por Paulo Schneider, que também foi alu- em 1977,na Universidade de Vmcennes, hoje Saint-Denis, tam-
no de Lourau, e estava de partida para a França. Outros textos bém denominada IJniversidade de Paris Vlll, quando lá fui fa-
foram traduzidos por Ana Paula Jesus de Meio, Heliana Conde zer o mestrado e mais tarde o doutorado, tendo-o então como
e Patrícia Jacques Femandes. O pagamento da tradução foi em orientador. Desde esta época, e particularmente em sua primei-
grande parte realizado com a verba que me coube no FAP-Uerj/ ra vinda ao Rio, em 1982,a convite do psicanalista Gregório
2001,complementado com verba do Curso de Especialização em Baremblitt, fortalecemos nossos laços afetivos e de troca intelec-
Psicologia Jurídica. O trabalho de revisão foi feito por mim, ten- tual. Aos poucos René tomou-se um mestre para mim, o que sig-
do a importante colaboração dos estudantes de Letras-Ueri e nificava, sobretudo, aquele que acolhe (e aceita alunos das mais
estagiáriosdo Curso de Especializaçãoem PsicologiaJurídica da variadas nacionalidades), aquele que, sendo uma fonte de saber,
mesma universidade, Thaís Oliveira e José Luis de Souza, já ex- estimula a reflexão, e que fala dos tantos livros que lê, sem cons-
perientes em trabalho de revisão para publicação. Uma última tranger o outro com seu conhecimento. Era muito sensível e, por
revisão foi feita pela prof.' Heliana Conde que, com sua compe' isso, nem sempre de fácil convívio. Mas sua generosidade apro-
1 2 SÓciA ALTOÉ
ximava, implicava e cativava os alunos. Objetivamente, pode-
mos encontrar isto na sua prática de convidar os alunos a conti-
nuar a discussão de sala de aula ou da orientaçãoem encontros
regularescom ele, nos cafés, restaurantes,em sua casa (sempre
cheia de livros e papéis espalhados, expressandoseu trabalho
constante) ou numa caminhada na floresta de Rambouillet. O
que ele transmitia de mais importante era o sentido da liberda- SUMÁRIO
de de pensar, mesmo que defendesse arduamente sua teoria e
visão de mundo e a crença no sujeito como capaz de buscar suas
próprias respostas e caminhos.
PAG.
SC)NIA ALTOÉ 7
Apresentação
SÕNIA ALTOÉ
O movimento da obra de René Lourau (1933-2000) 15
REMI HESS
O instituinte contra o instituído 47
Objeto e método da Análise Institucional 66
Estudos históricos sobre a contrapedagogia 87
Pequeno manual de Análise Institucional 122
Uma apresentação da Análise Institucional 128
O Estado na Análise Institucional 140
A Análise Institucionalno Estado 154
Grupos e instituição 176
Implicação e sobreimplicação 186
Processamento de texto 199
Implicação-transdução 212
O campo socioanalítico 224
Implicação: um novo paradigma? 246
Uma técnica de análise das implicações: B. Malinowski, 259
Diário de ettzógrctáo(1914-1918)
Lista de siglas 285
O MOVIMENTODA OBRA DE
RENA LOURAU (1933-2000)*
REMA HESS#
RtNÉ LouRAU nasceu no vilarejo de Gelos, perto de Pau,
em 1933,e faleceuentre Rambouillete Paris, numa terça-feira,
11de janeiro de 2000, no trem que o conduzia à Universidade de
Paras Vlll, onde se encontraria com seus alunos de doutorado.
Recentementeaposentado, era professor emérito de sociologia e
de ciências da educação.
Quer como praticante quer como pesquisador, sua carreira está
ligada ao movimento da Pedagogia Institucional --fundou o Gru-
po de Pedagogia Institucional, em 1964,com Raymond Fonvieille,
Michel Lobrot. . . e à Análise Institucional (AI), da qual foi o
grande teórico, ao lado, principalmente, de Georges Lapassade
e Félix Guattari.
Tendo completado a escolanormal de Cachan, toma-se pro-
fessor de francês. Inspirado nas idéias vindas da lugoslávia nos
anos 1960,instaura a autogestão em suas turmas de .4íre-sur-
,4dour. Em 1966, Hlenri Lefebvre o convida a ser seu assistente na
cadeira de sociologia da Universidade de Nanterre e Lourau se
toma um dos animadores do departamento de sociologia. Daniel
Cohn-Bendit é seu aluno. Em 1969,defende tese de doutorado
Le mouvement de I'oeuvre de René Lourau (1933-2000)".Tradução: Paulo
Schneider.
Rema Hess é professor na Universidade de Paras VIII. Autor de 35 livros, dos
quais boa parte se inscreve diretamenteno prolongamento da obra de René
Lourau. É um dos animadores da corrente de análise institucional na França.
5
1 6 REGI HESS O MOVIMENTO0A OBRA OE RENÉ 1.0URAU 17
de Estado em Nanterre Z.'ana/yseínstífzztfonne//e (.4 aníí/íse lugar ambíguo: simultaneamente vilarejo habitado por gente do
ínsf/t cíozaZ),editada pela Minuit. Assume o cargo de professor mundo rural (ainda existemlá duas fazendas onde se pode bus-
de sociologia em Poitiers em 1972. Pouco tempo depois, contu- car leite fresco) e zona de moradia próxima à cidade (Pau). Ge-
do, havendo organizado uma creche para os filhos dos estudan- los era, por conseguinte, uma forma social mista entre a aldeia e
tes no departamento, é considerado "não conforme",* notada- a periferia urbana. Os pais de Lourau eram camponeses,que aí
mente por causa do sistema adotado na avaliação de alunos, e é chegaram por não mais haverem encontrado trabalho nas ativi-
suspenso de suas funções. Mesmo vencendo a batalha de Poitiers dades agrícolas, em plena reestruturação decorrente da chegada
(o tribunal Ihe dá ganho de causa), é transferido, em 1975,para a da modemização. O pai tornou-se entregador-motorista em uma
Universidade de Vincennes, onde lecionará até setembro de 1999. empresa comercial. Embora tivesse consciência de viver em cer-
No período compreendido entre 1968e 1980,elabora um méto- ta precariedade económica, a família dedicou-se à aventura de
do de análise institucional em situação de intervenção: a socio- construir uma casa individual durante os anos 1=930.Foi a gran-
análise. de aventura familiar daquela geração.
Pedagogo não diretivo, toma-se grande orientador de teses. Lourau e seu amigo Gérard Althabe eram dois solitários. Não
Acolhe estudantesdo mundo inteiro e, por outro lado, é convi- pertenciam aos bandos de jovens criados nos dois ou três quar-
dado a fazer estadas em vários países latinos (ltália, Espanha, teirões da aldeia, pois compartilhavam o desejo de manter dis-
Portugal, Argentina, México, Brasil. . .), onde são traduzidos vá- tância em relação a ela. René lia muitíssimo. A partir de seus doze,
rios livros de sua autoria. Muitos de seus antigos alunos são hoje treze anos, ia a Pau para comprar livros nos sebes. Era uma ma-
professores universitários atuantes em diversos países, seja em neira própria de sair de Gelos. Por que acalentavaesse desejo?
sociologia, seja em ciências políticas, seja, especialmente, em ciên- Gelos era um lugar onde muitos homens eram alcoólatras.
cias da educação. havia violência. René Lourau não se sentia bem nessa dimensão
René Lourau foi enterrado em Rambouillet, terça-feira, 18 de da vida local. O desejo de partir era muito forte. Por meio da
janeiro, às 14 horas. Teve dois filhos: Julien, saxofonistade jazz, leitura, ensaiava ir para longe, fugir da aldeia e de sua dimen-
e Julie, literata, interessada por teatro. são violenta.
Em Lourau, a fidelidade às origens está na raiz da marginali-
A infância,matriz de uma relação com o mundo dade que sempre foi a sua marca, principalmente em relação ao
mundo das celebridades e dos hierarcas, e que o levou a ter uma
E num vilarejo da regiãode Béam que nasceo sociólogofran- convivência difícil com alguns acadêmicos que, eles sim, eram
cês René Lourau, a alguns quilómetros das aldeias onde nasce- os "herdeiros".* Existe uma linha condutora muito forte, da in-
ram dois de seus "mestres": Henri Lefebvre e Georges Lapassade. fância até a morte, sempre bastante coerente, na vida de Lourau.
Como dirá Gérard Althabe, amigo de infância,Gelos foi, para Algumas semanas antes de seu falecimento, dois estudantes que
Lourau, a matriz da relaçãocom o mundo. ele aprovara para o DEA' tiveram suas inscrições em tese recu-
Nos anos 1930,época do nascimento de Lourau, Gelos era um
Referência ao título e ao tema da obra de Pierre Bourdieu e Henri Passeron. Les
Termo administrativo usado para estigmatizar como nefasto o comportamento hérítíers (N. do T.).
de um funcionário público em um relatório ou em uma deliberação executiva Diploma de Estudos Aprofundados, pré-requisitode entrada em doutorado na
(N. do T). França (N. do T.).
1 8 REGI HESS O MOVIMENTO DA OBRA DE RENE LOURAU 19
fadas. Este fato aparececomo algo totalmentecoerentecom seu pias revolucionárias.Vou sonha-laem tomo dos problemas
posicionamento ante a hierarquia, que ele herdou da situação do estado neocolonial etc. Nos dois casos, está presente a
particular vivida em Gelos. idéia de que a produção do saber só tem sentido como ins-
trumento de questionamento, de desconstrução. E, ao mes-
Uma experiência instituinte da escola mo tempo é preciso dizê-lo --, nos dois casos há fracasso.
Quanto a mim, o que pude fazer não teve nenhum efeito so-
René Lourau passou pela escola normal de Lescar, perto de cial real para barrar a evolução das relaçõesde força. . . e, no
Pau, mas só sai realmentede Béam quando parte para Cachan que tange à análise institucional, ocorre algo parecido. Os
(próximo a Paras), aprovado no concurso de acesso à Escola Nor- efeitos sonhados nos anos 1970não existiram. Estas perspec-
mal Superior do Ensino Técnico, para se formar como professor tivas, de uma pesquisa que transforma as realidades, que as
de Letras. Seguiu um caminho coerente: entrou na pedagogia. auxilia a evoluir, só podem ser marginais. No que tange a
Foi a escola que o tirou de Gelos. Ele se manteve fiel a esta esco- Lourau e a mim, a compreensãode nosso trabalhosociológi-
la e à pedagogia, que Ihe permitiram tornar-se diferente do que co passa por uma análise da infância e dessa posição periféri-
seria caso houvesse continuadono vilarejo. Até o fim, permane- ca, de exterioridade,na qual vivemos e que reforçou nossa
ceu um grande pedagogo. Saiu de Gelos através da pedagogia, relação mútua. Análise institucional e implicação foram os dois
que o conduziu a Paras. . . Mas, em Paria, foi fiel a essa pedago- grandes canteirosde René Lourau. Haveria todo um traba-
gia que Ihe permitiu sair de si, tornar-se outro. lho a ser feito para estabelecer as ligações entre esses cantei-
Para seu amigo, o antropólogo Gérard Althabe, ros, sua infânciae sua adolescência.
A infância permanece uma experiência insuperável, quais- Como sublinhaGérard Althabe, René vivia entreos livros.
quer que sejam os esforços que façamos para dela sair. Cria-se Desde muito cedo, vivia nesses livros que lia avidamente. Por
uma matriz de percepção que permite selecionar o que se vê e um lado, eles o tiravam de Gelos. Mas, ainda em função dos li-
dá sentido ao que é assim selecionado. Não é apenas percep- vros, pede construir um itinerário social. Para Lourau, os livros
ção, também é uma relação de simpatia, de conivência. Nas construíram uma ligaçãoentre sua infância e seu devir social.
aldeias africanas, quantas vezes encontrei o olhar de minha Naturalmente, fizeram-no entrar na pedagogia, que permane-
mãe no olhar das mulheres com quem cruzava? E isto, a im- ceu seu campo de reflexão constante.
plícaçãol Quando participávamos de bancas de tese de orientandos de
René Lourau, ficávamos surpreendidos com a extraordinária ca-
Neste sentido, é importante compreender Gelos para compre- pacidade de escuta que ele possuía. Como testemunhas exter-
ender René Lourau. E Althabe prossegue: nas, nos era impossível deixar de ver o enorme trabalho de troca
mediante o qual o parto da tese se realizara, coisa pouco comum
Incontestavelmente,há um fundo comum entre mim e no meio universitário. Além do mais, a força das relações que
Lourau no nível da obra. Â partida temos uma matriz co- nutria com os estudantes em fase de doutorado expressou-se no
mum, que se desdobra, decerto, diferentemente. Mas há em seu funeral, quando se pôde ver muita gente profundamente
nós a desconstruçãoda instituição. Ele a leva a cabo pela abalada.
socioanálise. Quanto a mim, vou sonha-la através das uto-
20 REGI HESS O MOVIMENTODA OBRA DE RENE LOURAU 21
já era responsável,desde 1973,por cursos no departamentode
A entrada na sociologia ciências da educação. O caso de Poitiers marca profundamente
René Lourau, a quem os figurões provinciais reprovavam o fato
Muito cedo, Lourau apaixona-sepelo surrealismoe planeja de viver "como em Nanterre"
elaborar uma tese sobre a literatura surrealista. Com tal objeti-
vo, entra em contatocom Henri Lefebvre(1962),que o aconselha Construir uma obra teórica
a se aproximar de Paria. Ele deixa, então, seu liceu de Abre-sur-
Adour e "sobe" para Paria. Ocorre então outro encontro deter- Caso se queira penetrar na obra de René Lourau, várias en-
minante, com Georges Lapassade, que irá desviar seu interesse tradas são possíveis. Para o filósofo ou o jurista, L'ana/yse í?zsfítz/
da literatura para o estudo das instituições (1963).A partir desse fione/Je (Á atzáZíse ínsfítzzcío zaZ); para o sociólogo, CZés tour /a so-
momento, começa a publicar artigos que podem ser reagrupados ciologie (Ctmues da sociologia), Le gai sauoir des sociologues ou So-
em torno de alguns temas: análise institucional, intervenção pe- cio/ogzze à pZeílz temos (Sociólogo em fer/zpo inteiro); para o pedagogo,
dagógica e sociológica, teoria dos analisadores e teoria da impli- L' illusiott pédagogique ou Anatyse institutionette et pédagogie. Reto-
cação. Em 1966, torna-se assistente de Henri Lefebvre em Paria memos, uma por uma, essas três dimensõesque caracterizam
X-Nanterre, universidade onde vive o maio de 1968,no departa- sua postura intelectual.
mento de sociologia, local em que têm início os "eventos". Cohn- Não se pode dizer que Lourau seja o inventor da análise
Bendit é um de seus alunos. René Lourau defende sua tese de institucional. De fato, desde 1962,quando de um colóquio em
Estado sobre a aFzáZíseíFzsfífucíotza/
em 1969, sendo o texto publi- Royaumont, um ano antes de seu encontro com Lapassade, este
cado no ano seguinte. último lançara a maior parte dos conceitosque iriam permitir a
Propõem-lhe então um cargo de professor na Universidade emergência da análise institucional (analisador, autogestão, de-
de Poitiers. Ele parte para essa cidade em 1972,aí permanecen- manda, encomenda). Porém decerto se pode dizer, sem risco de
do até 1974 data de um conflito muito violento que o opõe, equívoco, que Lourau foi o fundador da análise institucional. Foi
quando diretor do departamento de sociologia, ao reitor da uni- ele quem lançou as bases teóricas da postura original que
versidade, que Ihe reprova "administrar as provas de todos Lapassade proclamara, mas permanecia algo a instituir, a institu-
os estudantes sem controle de colas". O caso assume dimensões cionalizar. Se Lapassade formulou a profecia, Lourau estabele-
nacionais. Processos jurídicos. O ministério suspende Lourau das ceu os fundamentos do movimento.
funções de professor e dissolve o departamento de sociologia de O grande livro de Lourau, Á aná/fse ínsfifzzclo?za/, inscreve-se
Poitiers. Mais processos. Lourau ganha. Mas o ministério não efetivamentecomo fundamento de uma reflexão nova, de um
permite a reabertura do departamento. Ele procura, então, uma pensamento acerca das instituições situado no cruzamento de
universidade que o aceite. Toulouse-le-Mirail, onde gostaria de várias correntes: a filosofia do direito, o marxismo, a sociologia,
ensinar, opõe-se à sua vinda. Finalmente, instala-se no departa- a psicaná[ise e a psicossocio]ogia. E um livro difíci]. E]e reintroduz
mento de ciências políticas da Universidade de Paria Vlll, onde a leitura de Hegel: a contribuição de René Lourau a uma filoso-
fia das instituiçõesfoi ter retomadoa dialéticahegelianae tê-la
Subir para Paria" é uma expressãocomum na Fiança. designandoa mudança feito funcionar no nível da instituição.
para a capital, independentemente de vir a pessoa do sul ou do norte do país(N Ao final do século XIX, a primeira escola institucionalista ten-
do 'l.)
dia a perceber a instituição como alguma coisa fixa e estável,
22 REMI HESS O MOVIMENTODA OBRA DE RENE LOURAU 23
como uma norma estabelecidade uma vez por todas ou como o fato de intervirem em tal ou qual instituição, respondendo à
uma organização. .A a?zá/iseinsfifzzc/onaJ
vai reconciliar a institui- demanda, em nome do conjunto das instituições e de sua garan-
ção com o pensamento dialético. Em 1964-65,Castoriadis em- tia política, o Estado. Acerca de um terceiro que entra no meio
prega os termos í7zsfífui?zfe
e ftzsfífuMo.O confronto desses dois
de uma contestação,diz-se que intervém. Para arbitrar? A fun-
momentos do conceito é superado em um terceiro momento, que ção do sociólogo ou do pedagogo não é, entretanto, a de um juiz
Lourau denomina í?zsfífzzcíona/ízação. Em l.'ínstffuanf confie /'íns ou a de um professor de código social. Para apoiar, com todo o
fífué, oferece as seguintes definições: seu saber e todo o seu poder, uma das partes em causa? O psicó-
logo, o terapeuta etc. não são exatamente policiais. Então. . .?
Por "instituinte" entenderemos, ao mesmo tempo, a con- O que Lourau propõe em Á a?zá/ise itzsfífucío?za/
é um método
testação, a capacidade de inovação e, em geral, a prática polí- de intervenção em situação que consiste em analisar as relações
tica como "significante" da prática social. No "instituído" co-
que as múltiplas partes presentesno jogo social mantêm com o
locaremos não só a ordem estabelecida, os valores, modos de
sistema manifesto e oculto das instituições. Outra originalidade
representaçãoe de organização considerados normais, como do método reside no fato de o analista não mais se situar no ex-
igualmente os procedimentos habituais de previsão (econó- terior dos grupos, coletividades ou organizações que Ihe deman-
mica, social e política). dam a intervenção, mas como alguém implicado na rede de ins-
tituições que Ihe dá a palavra.
E simples, portanto, a articulação do conceito de instituição O método de intervenção da análise institucional é justamen-
que Lourau propõe, apoiando-se na lógica dialética de Hegel: o te a socioanálise, que Lourau forjou em suas intervenções, reali-
instituinte é o negativo, o que vem negar o instituído (univer- zadas frequentemente em companhia de Georges Lapassade, em
sal). O terceiro momento, o da singularidade hegeliana --por meio 1968ou logo depois. Podemos apreender o caráter deste traba-
do qual a contradição é superada --, é a institucionalização. lho de campo em Les atzalysezzrs de i'ég/íse(1972),livro que faz o
Castoriadis falava da "auto-alteração perpétua da sociedade" co- balanço de uma prática realizada em meio cristão. Lourau fez
mo constituindoseu próprio ser. Lourau fala de instituciona- escola. Toda uma corrente sociológica, na França e no exterior,
lização. Há identidade de definição no nível da lógica diabética. se diz socioanalítica. Em 1972tem lugar, em Paris, um encontro
,4 alz(í/íseínsfítzzcíozza/,
que também comporta uma leitura crí- intemacional de socioanalistas. O relatório final foi publicado em
tica de Rousseau, mostra que a instituição não pode viver como Les Zemps Mover?zes (n' 317, dezembro de 1972, p. 1.025-76). A
entidade curvada sobre si mesma. Ela só pode sobreviver ali-
partir de 1973, um grupo de discípulos de Lourau se estabele-
mentando-se do sangue novo que Ihe vem do exterior. Além do ceu no departamento de ciências da educação da Universidade
mais, a obra é o fundamento de uma teoria da intervenção de Paria Vlll, dentre os quais Antoine Savoye -- autor de uma
institucional.
tese intitulada La socíologíed'ínferuetzffo?z
-- e Patrice Ville -- cuja
Diz-nos Lourau que o sociólogo, o psicossociólogo, o terapeuta,
tese aprecia l.a méf/fodesaciaria/yfíque.Estes dois sociólogos ani-
o educador, parecem ter funções precisas: revelar a ação social, mam, nos anos 1970,um Grupo de Análise Institucional em Pa-
ajudar os grupos a funcionar, tratar os doentes, formar os jovens. ris (GAI de Paras), criado por Lourau em 1966.O Centro de Pes-
Mas podemos considerar estes diferentes ofícios sociais sob um quisa Institucional (CRI), criado em 1976,também pratica a
ângulo radicalmente novo: o daquilo que os especialistas têm socioanálise em bases similares às formalizadas por Lapassade
em comum como profissionais inscritos na divisão do trabalho, e Lourau em Cbízaes da socio/ogía(1971). Dentre os intelectuais
24 REMA HESS O MOVIMENTO0A OBRA OE RENÉ 1.0URAU 25
próximos de Lourau, vale ainda citar Jacques Galgou (autor de uivo que os intelectuais desempenham na institucionalização de
numerosas obras de análise institucional), René Barbier (autor uma ordem social infame, porém tolerada? Eis os lapsos dos in-
de La rec/zero;ze-acfíon
dons Z'instifufíon éducatíue, 1977) e Daniel telectuais.
Prieto (filósofo). O livro de René Lourau faz a história do movimento intelec-
A partir de 1980, a prática da socioanálise não mais parece ser tual que começa com o caso Dreyfus, mostrando como a ílzteZ-
o eixo central das pesquisas de Lourau, que demonstra caminhar /fgenfslase institucionaliza em função de um fio condutor: as
mais sistematicamentepara uma teorizaçãodo conceitode im- implicaçõesdos intelectuaisna sociedade, sua recusaou incapa-
plicação. cidade de analisa-las e de extrair as conseqüências de tal ato.
Vimos que tal conceito já tem lugar importante em .4 a/zá/fse Neste sentido, aprecia a corrente católica(Chateaubriand, Lamen-
ínstftzzcio?za/.
Lourau não deixou de se dedicar a esta pesquisa. nais), os transcendentalistas americanos, os fabianos ingleses, os
principalmentea partir do caso de Poitiers.Ampliou sua refle- populistas russos, os primeiros socialistas europeus etc. e, igual-
xão sobre as implicações concretas da sociologia em Socio/ogueà mente, os primeiros intelectuais comprometidos ou orgânicos
plein temos (1976) e Le gai sauoir des sociologues. Em L'Etat incons- (Zola, Blum, Herr, Barbusse, De Man). Não surpreende que tam-
cielzt(1978), busca uma análise implicacional da corrente da bém analise o surrealismo e o existencialismo, antes de se debru-
análise institucional: o quadro de referência e os limites da aná- çar sobre o contexto do período atual. Lourau mostra que embo-
lise institucional como crítica ativa dos outros métodos das ciên-
ra a cena intelectual tenha sofrido profundas modificações após
cias sociais estão no centro deste trabalho. l,'aufodísso/uffo?z
des os desaparecimentos de R. Barthes, F. Basaglia, J. Lacan, J.-P Sartre
aoíz?zf-gízrdes(1980)também pode ser lido como uma progressão e os suicídios de N. Poulantzas e Bor» sem falar do desmorona-
da análise das implicações. Por que viver e se pensar como van- mento de L. Althusser, tal contexto,em que a "confusão dos in-
guarda? Não haveria nisso uma contradição com os projetosde telectuais"é um tema na moda, exibe grande continuidade em
inúmeros grupos ou movimentos? Lourau apreende a forma so- relaçãoao momentofundador,o do caso Dreyfus. A partir de
cial da autodissolução como um meio de sair socialmente de tal quatro casos (o jansenismo, a itzfellíge?ztsía mexicana, Maiakovski
contradição. Finalmente, a obra central acerca da questão da e, sobretudo, Basaglia),esboça a nova figura do que denomina,
implicação é l.es /apslls des í7zfe//ecfue/s (1981). por oposição ao intelectual orgânico de Gramsci ou o intelectual
Lourau se interroga, neste livro, sobre os "capitalistas do sa- comprometido de Sartre, intelectual ímp/ícado--definido como o
ber" --os intelectuais. Demonstra que embora a ílzte//{ge?zfsíapor que recusa o "mandato social". Por conseguinte, Z.esJapsusdes
vezes tenha chegado a obter meios de analisar suas implicações ínfe/lecfue/s inscreve-se no prolongamento de Les crímízze/s de raiz,
na realidade social, a maior parte dela, em nossa época mais do dç Basaglia (lançado em 1973,em Turim, e com o qual Lourau
que nunca, prossegue num jogo de esconde-esconde, evadindo- havia colaborado).
se de interrogar, denunciar e declarar sua consciência infeliz. No Percebe-seclaramente,em l.es Zapsusdesinfe/JectzzeZs,que um
entanto, confom\e observa Lourau, do lado da psicanálise, da dos eixos do pensamento de Lourau é a definição da lógica da
etnologia e até mesmo da sociologia começam a ser feitos fundação institucional, a institucionalização, que determina, a
questionamentos que retomam a pergunta fundamental da ím- seguir,a sobrevivênciada instituição.Como em Freud, encon-
p/ícação,há muitos anos formulada pela análise institucional: tra-seem Lourau a idéia de que o momento fundador é sempre
como compreender a "reprodução" e a "sobrevivência do siste- reativado.
ma" se, ao mesmo tempo, esquecemos de analisar o papel deci- Para concluir, resta assinalar que René Lourau, em sua obra
26 REGI HESS
o MOVIMENTO DA OBRA OE RENA l.DURAM 27
de teórico e autor, tenta produzir uma ligação com sua cotidia-
a passo, na singularidade de uma situação (de pesquisa, de inter-
nidade como homem. A análise da implicação, para ele, passa
venção, mas igualmente existencial, cotidiana). Tãs idéias são de-
pelo desvendamento do momento de produção e de tudo que o
senvolvidas primordialmente em .rmp/lcaffo?z/frarzsdzzctíolz(1997).
atravessa. Os livros fortementemarcados por esta atitude são:
Em 1974,a teoria da implicação já era, para os institucionalis-
Á?za/7se ínstífz4tione/Je ef pédagogíe -- em que analisa uma expe'
tas, uma linha divisória quanto à ciência instituída. Desde en-
riência pedagógica conduzida quando era professor de liceu --,
tão, Lourau trabalha para aprofundar a noção de implicação, que,
SocioZogue
à pZeínfertzps no qual abordasuas implicaçõesde
rapidamente, se transformara numa palavra-valise, portadora de
socioanalista--, Le gaí saPofrdessocio/OXues
e. mais uma vez, l.es
múltiplos sentidos. Com efeito, nos anos 1970, ímp/fiar-sehavia-
Zapszzsdes ítzfe//ectueZs.A pesquisa está em aberto. A sociologia
se tornado uma palavra de ordem no trabalho social, na vida
implicada é verdadeiramente possível? Não se trataria de um
cotidiana e em psicossociologia, sob a pressão de movimentos
"projeto impossível"? A pergunta é feita por Louis Janover num
"implicacionistas" como o do "potencial humano". René Lourau
artigo que discute as teses de Lourau (em Áufogesfio?zs,
n' 7, 1981).
recusou-se a reduzir o conceito de implicação ao simples fato de
O certo é que o tipo de questionamento desenvolvido por Lou-
alguém se implicar em seu trabalho, em seu compromisso po-
rau desde 1962dirige-se não só às ciências humanas, mas a toda
líticoetc: A seu ver, a implicação é um conceito difícil, polis-
prática teórica(incluída a filosófica),uma vez que o problema
sêmico. E necessário trabalha-lo, explicita-lo. René combateu o
de uma nova epistemologiadelineia-seatravés do projetodo in-
implicacionismo criticando a sobreimplicação que o primeiro.
telectual implicado. O discurso somente teria legitimidade caso implicavam
levasse em conta a análise das condições que permitem sua pró-
/mpiícatfoFZ/Ira?zsdzzction
é uma etapa importante na construção
pria emergência.Mesmo que este projeto pareça impossível no
da teoria da implicação. Por que uma etapa? Porque não é um
plano do absoluto, deve funcionar como ideal ou exigência de
resultado, um fim. Permanecemos no work írz prog7pess. A leitura
qualquer pensamento.
do livro revela a presença de duas partes distintas. Avançando
no exame da obra, descobrimos que o autor imaginava ainda uma
Um questionamento sobre a escritura e a lógicatransdutiva
terceira parte, que deixa para mais tarde, e que consistiria em
uma retomada, mais elaborada, do material reunido nas duas
Em Le tour za/ de rec/zero;ze
(Méridiens Klincksieck, 1988), René realmentepublicadas, muito diferentes uma da outra: dez va-
Lourau mostra a importânciado extratexto(;zors-fexte)
nas ciên-
cias humanas, tema retomado em .4cfes manqués de/a rec/za'c/ze
riações rápidas sobre a transdução e o diário, no qual se comple-
(PUF, 1994). De fato, trabalha permanentemente a questão da im- xifica a elaboração do vínculo teórico estabelecido entre impli-
cação e transdução.
plicação: relação que o pesquisador mantém com seu objeto,o
Antes de entrar nos detalhes do trabalho de perlaboração con-
prático com seu campo, o homem com sua vida. A análise de tal
ceitual, todavia, convém situar esta etapa no caminho já percor-
relação encontra obstáculos e impossibilidades ao se apoiar na rido. Jmp/ícízffo?z/Irarzsdz/ctioninscreve-se em um movimento da
lógica instituída (a da indução e dedução), feita justamente para
obra de René que não devemos esquecer caso queiramos medir
manter à distância o mundo em que estamos implicados.
a contribuiçãoespecíficado livro. Mencionemosalguns outros
Nos últimos anos de vida, Lourau tenta reavaliar a trajetórfa livros que marcam tal caminho.
fransdutíua,que busca superar essa contradição ao levar em con-
De início, temos SocíoZogzze
à pZei7z
temos(Epi, 1976),que reto-
ta todos os elementos e acontecimentos que se propagam, passo ma, em parte, textos utilizados em uma obra anterior. Mediante
28 REGI HESS O mOVimENTODA OBRA DE RENÉ LOURAU 29
o título do trabalho, Lourau aspirava a mostrar que não se faz plo, é revelada em 1978;nós a reencontramos em uma das varia-
ções propostas em Implícafíon/fz'íz?zsducf/Olz).
sociologia das oito horas ao meio-dia, e das quatorze às dezoito
horas. O objeto do sociólogo o atravessa: ele é parte de seu obje- A problemática da implicação está presente, uma vez mais,
to, tanto de dia como à noite. Por definição, a escolha do ofício em Z.'azlfodíssolufíon des auant-tardes (Galilée, 1980) e em l.e Zapszís
implica "tempo integral". Através de sua própria forma, JmpZí- des iate/Jecfue/s(Privat, 1981). Este último livro marca uma revi-
cafíon/Iratzsductíonconstitui nova ilustração desta idéia. Na par- ravolta: René Lourau nos oferece uma parte do diário mantido
te diarística, René Lourau nos mostra como se forma, no dia-a- durante sua pesquisa. Em Imp/ícatíon/transducffotz, isto adquire
dia, a idéia, o conceito, a reflexão, a colocação em perspectiva, a importância considerável. Quando o diário termina, perguntamo-
transdução. "Não tomemos muita distância quanto a nossa obra" nos por quê. O diário nos ajuda a seguir a produção do pensa-
diz ele, por exemplo, contando uma anedota sobre o acidente mento. Esta construção teórica no dia-a-dia tem, decerto, um per-
mortal sofrido por um artista, atropelado por um ânibus ao re- fume de inacabado. Indagamos por que Lourau prossegue in-
cuar alguns passos para ver a obra que acabara de pintar num cessantementena mesma problemática.Os últimos dias, relata-
muro próximos Em Lourau, a vida cotidiana não se dissocia do dos no fim do diário, são, entretanto,particularmente ricos em
trabalho de campo nem do trabalho de elaboração teórica. Daí o informações novas. . . Mas é necessário que o texto seja suspenso
lugar ocupado pelo sonho, que ele restitui sempre que possa ter para chegar à publicação.
relação com a pesquisa em curso. Pessoalmente, considero esta "caça" -- a palavra está no diá-
A transdução é exatamenteeste trabalho, esta passagem, esta rio --, ou esta pesca, como algo apaixonante. Vê-se o pesquisador
transposição, difícil de explicar,de um registro a outro. . . e que, à espreita de qualquer informação nova, de qualquer encontro
apesar de tudo, faz sentido. Lourau relembra que Piaget vê um que possa ajuda-lo a rever seu ponto de vista sobre o objeto. /m
estádio infantil nesta forma de elaboração. Em Lourau, ao con- p/ícafiolz/Irarzsductíoz nos auxilia, assim, a ver o pensamento em
trário, existe a vontade de pensar esta forma primeira de relação movimento, a apreender como se estrutura um pensamento, gra-
ao mundo como algo que está na origem da invenção, da cria- ças à permanência de um dispositivo: o diário. A energiae a ob-
ção, da conceptualização. sessão são imprescindíveis para mantê-lo. E preciso estar impli-
Outro livro importante da primeira época é Le gaí saooír des cado em sua problemáticas
socíoZoXzzes
(CollectionlO/18, 1977).Uma vez mais, René subli- A transdução é confrontada à transubstanciação, à institucio-
nha as manifestações inconscientes dos sociólogos. Na maioria nalização, à transformação da mística em política (Péguy). A par-
das vezes, estes nos falam no momento em que acreditam ter es- tir daí, não seria muito difícil elaborar um livro. Seria suficiente
capado ao contexto de enunciação do discurso sociológico. Esta indexar todos os temas recolhidos, depois classifica-los, ordená-
observação tem prosseguimento em Imp/ícatí07z/halzsdlzctíon,onde los, articula-los. Haveria apenas transições à escritura. Mas ha-
Lourau restitui os propósitos, os extratextos de diversos autores veria igualmente fixação do pensamento, cristalização. E René
(Augusto Comte, Proudhon, Fourier etc.).
Lourau desconfiadisso: trata-sede uma forma de institucio-
Neste movimento, destaca-se ainda L'État íncotzscímt(Minuit, nalização artificial, diz ele. O diário aparece como uma espécie
1978),no qual Lourau exibe o que passa despercebidono traba- de suporte do pensamento que se forma e se agencia, que se cons-
lho dos sociólogos ou, de forma mais abrangente, dos homens trói e se desconstrói. E talvez seja exatamente este movimento
de ciência: sua dependência da encomenda do Estado, que pode que constitua o trabalho acerca do nexo entre implicação e trans-
leva-los ao pior (a lógica organizacional dos nazistas, por exem- dução.
30 REGI HESS O MOVIMENTO 0A OBRA DE RENÉ LOURAU 31
Em Le.fourna/de recberc/ze,a parte do "diário do autor" foi re- que foram datilografadas por Hélêne? Por outro lado, ao ser seu
duzida, pois as dimensõesda obra assim o exigiam.Tratava-se próprio secretáriona segunda parte, ele aproveitapara acrescen-
do diário de escritura do livro (como em LeJozírtzaJd'un Jfz;re,de tar ou para suprimira
Morin). Em Jmplícafíon/transductíotz, se vai mais longe. O autor Porém o interesse da obra não é apenas formal. Quanto a con-
integra ao diário a leitura renovada que faz da primeira parte teúdo, o livro é profundamente novo. A transdução --nós o sen-
do livro, das dez variaçõesque se tomam, assim, uma espécie timos, à medida que lemos --é uma perspectiva apaixonante que
de pretexto, de ponto de partida para o aprofundamento do pen- vem iluminar nossa vida cotidiana,suas alegriase, por vezes,
samento. O diário não é mais um acompanhamento do livro, seus enfados. Não importa qual seja o nosso cotidiano, vivemos
como nos trabalhos anteriores do autor; é excrescência prolífica a dissociação. Esta dissociação, que freqüentemente se manifes-
que complexificae enriquece sem parar o textoe, sobretudo, o ta sob forma transdutiva, é vista eventualmentecomo doentia
pensamento. A releitura das variações apóia-se nas novas leitu- (Piaget a diz infantil).
ras de René Lourau, em seu trabalho de intervenção (seguimos O livro de Lourau tem o grande mérito de nos reconciliar com
o dia-a-dia de suas atividades no Norte, em Tressin. . .), em um a dissociação, de nos mostrar que ela é um recurso, um meio de
trabalho de escritura conexo (artigos a entregar, outros livros em construir, no dia-a-dia, sua individuação mediante um trabalho
elaboração). de escoramento, de ligação entre campos diferentes. Como o pes-
Há neste livro, portanto, uma meditação sobre a escritura. O quisador, o homem está em busca de seu canzpode coerência.O
que é escrever? O que é pesquisar? O que é um livro? Tais ques- conceito de calrzpo de coerê?zelapoderia encontrar lugar em uma
tões fascinam pessoascomo eu, fortementeimplicados no livro, perspectiva interacionista. Lourau insiste sobre o papel de cada
seja como leitores, seja como autores, seja como editores. Neste um na construção do mundo. Citando Proust: "A criação do mun-
sentido, /mpZícatiotz/Iratzsdzzctíon poderia fascinar os escritores. do não teve lugar no começo, tem lugar todos os dias" (.4/berfíne
Lourau nos propõe uma leitura de Margueritte Duras, relativa díspízrue).Introduzindo a questão da passagem permanente de
ao livro e a sua relação com o autor. . . Sentimos o livro sendo uma cultura a outra (a lógicaformal, o cotidiano, a vida univer-
elaborado. Escrita inicialmenteà mão, a primeira parte é entre- sitária, as relações com as crianças, com os outros adultos etc.), o
gue para datilografia. A segunda, também escrita à mão a prin- livro de René Lourau nos mostra o esforço permanentedespen-
cípio, é datilografada pelo próprio autor que, durante o traba- dido por cada um de nós, bem como pelo próprio autor, para
lho, acrescenta observações novas. As diferentes fases técnicas construir sua identidade, sua individuação, juntando e tentan-
que a elaboração da obra supõe intervêm como dispositivo trans- do ordenar pedaços de sociabilidade, de literatura, de vivido, a
dutivo. A transcodificaçãonão é simples transferência de uma partir da construção de momentos. Na quarta-feira, 23 de março
forma a outra; ela acrescentaalgo ao texto inicial. René Lourau é de 1994,René contenta-seem enunciar: "Algo em mim vem da
um autor entre duas épocas. Como poderia fazer Henri Lefebvre, Andaluzia". Em outro momento cita Hegel ao afirmar que Kart
elenão entregaseus manuscritos para seremdatilografados por é prisioneiro do pensamento alemão. . . Estas fórmulas lacânicas
um terceiro. Ele não digita diretamente em um processador de levam a interculturalidade ao abismal. Mas há questões que to-
texto, como eu faço. Ele dá a si próprio técnicasintermediárias dos nós levantamos,independentementedo pertencimentoa
de trabalho, que se tomam abismais no diário. Sua maneira de uma cultura, e que são trabalhadas no livro: o tempo que passa,
produzir nos permite observar um «Lourau leitor de Lourau». o lugar e o tempo de onde se fala (um tempo entre nosso nasci-
Por que ele não retrabalha diretamente suas variações? Será por- mento e nossa morte), a questão da transmissão, a do encontro
32 REGI HESS O MOVIMENTO0A OBRA OE RENÉ LOURAU 33
com o outro, a da dificuldade de viver simplesmentetocando o é convocado por René a nos falar sobre o vinho de Bordéus, ou
barco, seguindo seu caminho. . . O conceito de transdução apa- das enviadas do Rio. . . O Brasil nos proporciona um ar estivall
rece, então, como uma forma lógica de mediação que faculta jun- No texto, finalmente, há uma reflexão sobre o inacabamento
tar os galhos que se consomem no fogo de nossa vida. Não quei- (o livro tem algo de inacabado; Lourau explica que detesta con-
mamos qualquer coisa no fogo de nosso tomo interior. clusões. . .). Trata da dissociação. . . São dois temas que igual-
O trabalho de Lourau me parece, portanto, uma ferramenta mente preocupam Georges Lapassade há mais de trinta anos, de
metodológicapara aceitara interculturalidadeque nos consti- L'Entrée dons ta uie, assai sur t'inachêuement de I'homme (A entrada
tui, que seja ao menos pela tensão entre nosso eu desperto e o na vicia, ensaio sobre o inacabamento do homem) a La décotloertede la
mundo dos sonhos. Jmplícaffozz/transe cfíon é uma obra-matriz, dlssociafíon(1998). Embora trabalhem com temas muito distin-
uma reflexão sobre a construção da identidade individual e co- tos, Lourau e Lapassade nos falam dos mesmos objetos. Impli-
letiva. O diário é a ferramenta que nos permite seguir o movi- cações, transduções queridas.
mento da obra, bem como o movimento do sujeito. Em /como
academíczzs, Bourdieu lamentou não ter escrito um diário de pes- La c/é des champô: uma reavaliação da análise institucional?
quisa "que, melhor que qualquer discurso, possibilitaria apre-
ender o papel do trabalho empírico na progressiva efetuação da Com o passar do tempo, la c/édesc/zamps(1997),o último li-
ruptura com a experiênciaprimeira" (p. 11,citado por R. Lourau). vro publicado de Lourau, hoje me parece uma espéciede testa-
Não se poderá repreender Lourau quanto a isso. mento do autor, uma reavaliação de seu trabalho. Conquanto te-
Em Imp/lcaffon/transductfolz,muitos pesquisadores acharão pis- nha aspecto de um livreto de vulgarização, constitui uma nova
tas para ir mais longe. No que me concerne, percebo relações a contribuição para pâr em perspectiva o conjunto do movimento
estabelecer entre a transdução e a teoria dos momentos, sobre a da análise institucional. Vejamos rapidamente as principais con-
qual trabalho com base em uma leitura de Henri Lefebvre (é ele tribuições da obra.
quem diz "a criança é um momento do adultos"), partilhada com O primeiro capítulo apresenta, quase arbitrariamente, uma das
René. Projetávamos escrever este livro juntos, mas seu desapa- origens possíveis do movimento da análise institucional: a "re-
recimento me obriga a assumi-lo sozinho. volução psicossociológica", a entrada em cena do microssocial,
/mp/ícafíon/Iransdzzctíon,
ademais, não pode ser reduzido a um cuja observação direta, até então, estava reservada à antropolo-
diário de pesquisa: é também,estritamente,um diário -- um pe- gia de campo. René Lourau procura repor o grupalismo lewi-
daço de vida de um intelectual francês. Neste fragmento de vida, niano em seu contexto francês de aparição. Do ponto de vista
certos personagens têm lugar importante (os filhos do autor, seu político e dos equívocos da /?zfe//ígmfsiaengajada no marxismo
médico, os autores que ele lê e que sonha encontrar, como Rava- - que iniciava, no princípio dos anos 1960,sua "retirada da Rús-
tin), outros apenas atravessamo campo rapidamente. Mas a ra- sia" --, este contexto é exemplificado pelos últimos volumes da
pidez de sua passagem no espaço do diário nos lembra que eles revista .Arrume?zts, nos quais despontaaquele que, na mesma
estão lá. René Lourau descreve, assim, sua transversalidade. Há, época, iria inventar a AI no sentido que mais tarde a entendería-
portanto, uma dimensão autobiográficana obra. O diário recor- mos: Georges Lapassade. Destas breves referências,René Con-
ta uma oração de vida. Se a autobiografia insiste, primordialmen- serva uma idéia importante para a compreensãodo projeto,do
te, sobre a reconstrução, o diário se cola ao cotidiano. E uma so- paradigma e do programa da Al: ela nasce no início de um pro-
ciologia do cotidiano. . . Gosto muito das páginas em que Hegel cesso, ainda ativo hoje em dia, de crítica ao instituído (no que
34 REGI HESS
O MOVIMENTODA OBRA DE RENE LOURAU 35
diz respeito às formas políticas de ação). E esta crítica é uma auto-
crítica que porta, em germe, a noção de implicação do observa- ção negada, a teorização do "mandato social" e seus desenvolvi-
dor naquilo que observa. mentos pragmatistas (no verdadeiro sentido da palavra) na Lei
No segundo capítulo, exibe-se a força do romance familiar da 180 (que marca a decadência da instituição asilar) fazem da cor-
AI por meio do exame de uma de suas origens mais ou menos rente basagliana, fortemente impregnada de marxismo à ífa/fa-
míticas: a psicoterapia institucional. Novamente aqui, como res- ma,um movimento politicamentemuito mais consistenteque o
salta Lourau, é o imaginário francês que fala. René mostra que, da psicoterapia institucional francesa, cuja institucionalização, à
para os argentinos, o romance familiar invocada o encontro e as mesma época, é cimentada pela hegemonia do psicanalismo.
interferências entre a corrente grupalista de Pichon-Riviêre os De qualquer forma, no que tange à França, o romance fami-
gruposoperafíoos --, por um lado, e uma politizaçãoreferidaaos liar da AI repousa em parte sobre outro romance familiar bem
escritos de Politzer e de Althusser. por outro. O contexto político estranho, o da psicoterapia institucional. Percebe-se -- e isto deve
do fim dos anos 1960e do começo dos anos 1970deve ser leva- ser frisado a fim de compreendera gêneseteórica e social de
do em consideração. Infelizmente, este período de intensa ativi- nossa corrente que a plataforma politzeriana do neodesalie-
dade crítica e criadora é interrompido de modo brutal, em 1976, nismo, excluindo-se a tendência de Lucien Bonnafé, foi jogada
pela ditadura militar. Uma conseqüência"feliz" do novo con- no lixo sem rodeios, em benefício de uma psicologização parale-
texto, que produz uma diáspora de intelectuaisargentinos, é per- la à despolitização da teoria institucional.
mi.tir a difusão, em grande parte da América Latina, das pesqui- Para Lourau, se o ato falho da correntepsiquiátrica repercute
sas da escola argentina de AI, bem como da escola francesa. em nosso romance familiar-institucional, pode-se dizer o mes-
René Lourau detém-se em outro caso de diversificação dos mo da referência à autogestão no que tange a nossa pesquisa-
romances familiares da Al: a ltália. O contexto político, na "es- ação pedagógica. No contextomodemista dos anos 1960,a au-
teira do maio", deve ser considerado, em primeiro lugar. Dentre togestão podia, equivocadamente, negligenciar as diferenças
outros aspectos, veríamos a importância da especificidade do fundamentais entre as coletivizações de 1936-37na Espanha re-
partido comunista italiano, a riqueza dos seus esquerdismos, bem publicana e o sistema implantado por 'lato, na lugoslávia, no dia
como a dos pequenos grupos anarquistas (qual na Argentina ou seguinte à ruptura com Stálin.
no Uruguai). A crítica radical ao instituído das formas políticas Não resta dúvida que uma das chaves do campo da AI esteja
transforma-se em crítica atava, virulenta, chegando por vezes à neste rateio experimental de um molho de chaves políticas. Na
luta armada. Basculam a garantia e a legitimação de qualquer perspectiva de 1996,alguns podem pensar que a autogestão era
instituição. Lourau fala da superinstituição estatal - da qual uma falsa chave; ou que fizemos muito barulho em torno das ra-
muitos italianos diziam, rindo, não possuir na ltália a mesma ríssimas experiências em que se tentou fundir a não-diretividade,
penetração que na França, por exemplo --, desnudada pelos o grupalismo lewiniano e a crítica da instituição escolar ao pro'
analisadoreshistóricos. Retirando a folha de parreira que tenta feto macrossocialista da autogestão. Fusão ou confusão esta,
dissimularsua nudez, percebe-seque o Estado-terrorista
está aliás, que muito desagradou à correnteparalela (e rival) da pe-
munido do aparelho transexual da malta. Além do mais, na ltá- dagogia institucional, também ela confundida com o psicana-
lismo
lia, o romance familiar da AI levaria amplamente em conta a crí-
tica atava da instituição psiquiátrica, graças à corrente animada Embora as contribuições à pesquisa vindas da autogestão pe-
por Franco Basaglia desde os anos 1960.A estratégia da í/zsfifui- dagógica não devam ser menosprezadas, talvez as indagações
mais heurísticas tenham vindo de um outro campo, o da inter-
36 REGI HESS O MOVIMENTO0A OBRA OE RENÉ LOURAU 37
venção socioanalítica.Não podemos esquecer que se no plano programa da AI, o grau de coletivização e restituição, ou seja, de
teórico foi Henri Lefebvre quem nos ensinou a ver na presença/ socialização de um procedimento verdadeiramente científico?
ausênciado Estado a chave da instituição, no plano prático foi Mesmo sem contar com o fax ou a internet, os dois ou três físicos
por meio da mudança de rumo da intervenção psicossociológica que, depois de obterem, enfim, o consentimento de Einstein, de-
que Lapassade teve a intuição da AI. Os principais conceitos so- positaram no escritório do presidente Roosevelt a idéia do pro-
cioanalíticos tornaram-se centrais e continuam alimentando a jeto Manhattan --mãe obscenaportadora de Hiroshima e Naga-
imaginação socioanalítica. O campo da intervenção desempe- sáqui --, poderiam ter realizado uma consulta muito mais ampla
nhou papel comparável ao do trabalho de transformação ins- da cidade científica.Lourau assinalaque as implicaçõesmate-
titucional no asilo ou em outros tipos de estabelecimentode saú- riais (derrotar a Alemanha) deveriam ter sido percebidas,por
de mental.
esses físicos, sob o signo das relações de incerteza de Heisenberg,
René Lourau mostra que as profundas modificações do con- e que a decisão deles se teria enriquecido caso situada na lógica
texto político, a partir do fim dos anos 1970,trouxeram à luz não ambivalente de Schrõdinger, de Broglie e da mecânica ondulató-
apenas as contradições práticas entre profissionalização e mili- ria. Parece que se contentaramcom a lógica da dedução e da
tantismo (crítica radical, em ato, do instituído, pela coletivização indução, já superadas, também, pelas implicações formais de suas
da análise), como também as contradições teóricas entre nosso pesquisas.
paradigma e os paradigmas instituídos nas ciências do homem. Implicação, transdução e institucionalização são conceitos que
A lógica da implicação, quando se desdobra para além de algu- lutam contra a rejeição selvagem da temporalidade, da história
mas restituições psicologistas ou sociologistas, põe em questão e de seus horrores. Na última parte de sua nova introdução à AI,
a lógica hipotético-dedutiva, binária, antidialética, dos neopositi- René Lourau procura levar-nosa perceber,para além das defini-
vismos. As condições da intervenção se tomam urra-sensíveis. ções que diluem o devir, a sua importância heurística.
A sensibilidade às condições iniciais, trazida à luz pelas teorias l.íz c/édes c/zampsé, portanto, um livro forte, em que a dimen-
do caos, desempenha papel de primeiro plano. Para a AI em si- são política da vida é ressaltada sem cessar.
tuação de intervenção, a análise da encomenda e das deman-
das, das implicações dos socioanalistas nesta análise, aparece co- Conclusão
mo uma chave de manejo muito delicado. A ideologia capitalis-
ta neoliberal aproveitou-se de nossa distração para trocar todas A obra de René Lourau permanece aberta. Ela comporta mui-
as fechaduras. A chave dos campos corre o risco, assim, de ser tos textos inéditos. O importante, hoje, é sublinhar sua força. Pe-
vista como um convite a "ver se estou na esquina", ao lado de riférico por origem social, Lourau quis pensar a relação centro/
procedimentos "qualitativos" que embaralham, mais do que fa- periferia mostrando que o sujeito está no coração do jogo social
zem avançar, o problema do reinado da quantidade ou o proble- e político. Qualquer que seja a posição social que ele ocupe, pode
ma que levanta, mais do que nunca, uma teoria do(s) campo(s). tentar compreender os processos metapolíticos que o atravessam.
Quem fala de quem? Quem observa quem (e nunca "o quê", Como professor, René Lourau encorajou seus alunos a esse tra-
nas ciências do homem)? A partir destas perguntas que a ciência balho de análise das implicaçõesdo praticantee do pesquisa-
esquecede fazer, reunindo, à sua revelia, o senso comum, seus dor. Tendo sido um de seus primeiros estudantes, considero sua
boatos e mexericos, Lourau aborda o problema de um campo de influência determinante em mi.nha pesquisa. A morte prematu-
pesquisa. Onde foi parar, junto com o paradigma, o prqeto e o ra de René, num contexto relativamente violento - apesar de apo-
38 REGI HESS O MOVIMENTODA OBRA DE RENE LOURAU 39
1988, Le jourrlal de recherche.Matériaul d'une théoriede !'implication,Paria.
sentado, era objeto de ataques de uma correnteque se reclama Méridiens Klincksieck.
da "qualidade da ciência", não dando muito espaço ao homem 1993 Rena Lou rau rln UERJ Análise Institticionlal e PI'éticas de Pesquisa, }qa pe-
ou à educação --,nos atribui uma grande responsabilidade:a de SR3-UERJ, Rio de Janeiro.
1994 Áctes nzanqués de /a rec/zerche, Paris, PUF.
prolongar sua reflexão e sua ação em direção às pessoas, grupos 1994 bs pédagogfesílzsfí utíanne//es,Paria, PUF(en collaboration aves Jacques
e países mais periféricos. A socioanálise deverá ser reinterpretada Ardoino) (.4s pedagogias ínsfffucfo/zízis, São Cardos, Rima, 2003).
a partir deste tipo de relação. Pois não é o socioanalista alguém 1996 /rzferoetzflolTS socfíznaZyfíques, Paras, Anthropos.
que ajuda os mais periféricos de um estabelecimentoa dar for- 1997. Implícatforz, transducfíolz, Paras, Anthropos.
ma a seu discurso sobre a instituição? No percurso de Lourau, 1997. Le prílzcfpede subsfdfarífécorzfre/'Europe, Paras, PUF.
1997, La clé des chatnps. Une introduction a t'analise institutionelle.Paras, An-
como no de Althabe, há sempre esta recusa da exterioridade, re- thropos
cusa enraizada na infância e no contexto social em que esta se
desenrolou. A serem lançados
Le rêoer
A obra de Lourau L'assemblée générale
(Bibliografia em vias de elaboração) Artigos
Bibliografia a ser completada por todos aqueles que localizarem esque- 1964, Le ponte devant ]es institutions, l.a treízíêrrze reufetzt, La tour dejezz, n'
cimentos, erros ou desconhecimento.
82 (juiz), p. 123 a 129.
Agradeço a todos os que puderem colaborar coletivamentepara com- 1964. Trois poêmes, l.a frefzfême reufenf, Z.# foizr releu, n' 82(juin), p. 102 a
pletar esta Bibliografia. 104
Email: remihess@noos.fr 1964 L'autogestion a I'école, L'éd ícaflon naffona/e,n' 31, p. 18 a 19
1964 L'autogestion instituée repris, L'aufogestlon pédagogfqzze de G. l.apassade
Obras
(Gauthier-Villars), p. 99 a 103
1965 Au togestion d'une classe de français, L'éducatíorz?zatfonízle
n' 33, p. 16
1969 L'ínsfífuarzt confie J'írzstffué, Paris, Anthropos. a 18
1969 L'f//uslonpédagoXfque, Pauis, L Epi.
1970 L'a?zalyseífzsfífuffoneJ/e,Paras, Editions de Minuit(.4 alzálíse insfÍtucio/zal,
1965. Une expérience de pédagogie institutionnelle, Cabferspédagogíques
n'
26, p. 26 a 26.
Petrópolis, Vozes, 1975). 1966 Comment parler du surréalisme?,Recberc/ze,
n' 2, p. 21 a 32.
1971 Analise institutionetle et pédagogie, l)ans. L' tpi
1966 Une dimension de I'institution pédagogique: la demande sociale,
1971. C/és tour /a socfologfe,Paras, Seghers(en collaboration avec Georges Recherches,n' 1, p. 53 a 73. [Article signé Lourau, suivi de la mention:
Lapassade) (Cüaoesda socfologfa, Rio de Janeiro, Civilização Brasilei- Groupe de Pédagogie [nstitutionnelle], (janvier).
ra, 1972) 1966, Célestin Freinet et I'autogestion pédagogique, .4ufogestíon,n' l(dé-
1972 Lzs analyseurs de t'égtise. Anatyse institutioneile et! milieu chrétien, Paria,
cembre), p. 94 a 99.
Anthropos. 1967 (avril), L'autogestion et les managers, .4utogestíolz,n' 2, p. 65 a 78.
1974 L'atzaiyseürLíp, Paras,UGE, collection lO/18.
1968 (avril-juin), Table ronde, Débat: Pourquoi les étudiants?, L'/zomzme
ef Za
1976 Socfologue ã p/eípzfemps, Paria, L'Epi(Socíó/ogo em tempo frzfeíro, Lisboa, socféfé,n' 8, p. 3 a 48.
Estampa, 1979). 1968. Gestion directe, action directe, Ázzto8estíon,n' 8 (décembre), p. 133 a
1977. Le 8aí sauofr des socíologues, Paria, UGE, collection lO/ 18. 142
1978. L'Etaf-ílzco?zscfe?zt,
Paria. Ediüons de Minuít. 1968 Autogestion et sociologie de la connaissance, .4ufoXesflopz.
n' 5-6(mars-
1980 .4ufodlsso/ufion des auaPzt-tardes, Pauis, Galilée.
1981 Les !apsus des fntellecfüe/s, Toujouse, Privat. juin), p. 79a 94.
40 REGI HESS O MOVIMENTO DA OBRA DE RENE LOURAU 41
1968 . Le syndicalisme: de I'institution a la bu reaucratie, L'bonznze
ef /asocfété. re). R. L. est I'auteur de "Référencesthéoriquesde I'analyse institu-
n' lO (octobre-décembre), p. 173 a 190. tionelle", p. 41 a 53; et "L'anui-pédagogie, la centre pédagogie", p. 96
1969 Prague, la até impossible, L'hommeet /a socléfé,n' 13 (juillet-septembre),
a 102. Les autres auteurs sont : Pierre Evrard, Remi Hess, Georges
P
1969 Lapassade, Antoine Savoye, Patrice Ville. Coordination: Jacques Gui-
Marxisme et institutions, L'/zommeef /a socfété, n' 14, p. 139 a 156. gou
1969 Deux tendancesde pédagogieinstitutionnelle,Parffsans,n' 50, p. 39a
1973, Pour une théoriedes analyseurs(fragments)", Corzrzexfons, n' 6, 1973,
47 (novembre-décembre).
1969. Sciencesde I'éducation et analyse politique (Le bensdu renouveau
p- 115a 142. [Article suivi d'une note de I'auteur, p. 142, qui explicite
[e mot fragment porté dana ]e tigre.]
pédagogique), Parffsalzs,n' 50, p. 102 a 113 (novembre-décembre) 1973 Pour une théoriedes analyseurs (fragmenta),Co?ztzexlons, n' 6, p. 115
1969 La société institutrice, Les femps modernos,
25e, p. 1.648 a 1.664.
1970 Pour une sociologie des contres-institutions, l.'bor?znre a 142. [Article suivi d'une note de I'auteur, p. 142, qui explicite le mot
et la sorzéfé,n' fragment porté dans [e titre.]
17 (juillet-septembre), p. 281 a 296. 1974. La bataille de Poitiers, Irs femps modernas,29e,p. 259 a 269.
1970
A quoi será la notion d'autogestion?, AutoXesffolz, n" 13-14 (septembre 1975 Analyse institutionelle de I'évaluation, Pour, n' 56 (septembre-octobre)
décembre), p. 3 a 12. p. 51 a 57.
1970 Formation ou néo-colonisation, Áiífogesfiolz, n" 13-14 (septembre
1977, E] análisesinstitucional en el estado, E/ 4nálísís Jlzsfítzzcíonal,
n' 1, p.
décembre), p. 153 a 166. 94 a 116.
1970
Que recouvre la notion d'autogestion..4ufogesffolz, n" 13-14 (septembre- 1977, EI estado en el análises institucional, E/ 4ná/lsls //zstífucíorzal,n' 1, p.
décembre), p. 99 a 110. 82 a 93.
1970
Le complot institutionnel, Orfenfatfolzs,n' 34, p. 109 a 120. 1977. Introduccion: Pequena historia de los institucionalistas, EI Apta/fsfs
1970 OÜ en est la dynamique des groupes?, l,es femps moderrzes,26e, p. 2.084
a 2.097 Irzstft cíotzaJ, n' 1, p. l a 4.
1971
1977, Objeto y método del aná lisis institucional, E/ Álzá/ísfs/nstífucforza/,n'
La commune: un laboratoire historique, .4zlfogesflon,n' 15 (mars), p. 1, p. 23 a 41.
a
1977. Referencias teóricas del análises institucional, E1 .4nálfsís ltzsfífzlciona/,
1971 La bureaucratie comme classe dominante, L';zommeet /a sociéfé,n' 21
n' 1, p. 42 a 51
(juillet-septembre), p. 259 a 278. 1977 Waterloo 1971, EI Aria/írislízsfítz ciolzal,n' 1, p. 257 a 264..
1971
Die institutionelle Gegenübertragung und der Analysator. Gruppefz- 1978, L'autogestion comme condition du dépérissement de I'Etat, .4ufoges-
d7n mfk, n' 2, p. 400 a 408 fíotz, n' 41-42 (juin-septembre), p. 145 a 165.
1971 Deux sociologies opposées: Crozier et Bourdet, L'Honzme ef ZaSocíéfé,
1978 Quelles nationalisations? (ou la courbure de la politique instituée),
n' 19, p. 169a 173. [A la fin de I'artic]e on ]it ]a mention Sorbonne-- Áufogesl iotz,n' 40 (mars), p. 27 a 36.
Nanterre, (janvier/mars).] 1978 L'Analyse insütutionelle en 1978, Pour, n' 62-63 (novembre-décem-
1972 Situation de I'analyse institutionelle en 1972,1.esfempsmoderlzes,29e,
p 303 a 311.
bre), p. 29a 35.
1978 Les nouveaux champs magnétiques, tour, n' 62-63(novembre-décem-
1972
Les analyseurs arrivent, Lesfemps modernos,29e année(décembre), p. bre), p. 105a 113.
1.051 a 1.061.
1978 Une AI du numéro sur I'AI, roer, n' 62-63(novembre-décembre),p.
1972 (octobre-décembre), Sociologie de I'avant-gardisme, L'bompze ef la 129
socíété, n' 26. p. 45 a 68. 1979 Autogestion et institution, Interrogatforzs
st/rJ'autogestíon,Lyon, Atelier
1973 (juillet-décembre), Analyse institutionelle et question politique,
de créationlibertaire,(septembre).
l.'Aom/ríe ef/a soczéfé,n' 29-30, p. 21 a 34. 1980 Autogestion, instituüon, dissolution, Áutogestforzs,n' 1, p. 23 a 32.
1973, Ouillet-décembre),Monographie d'une intervention socianalytique -- 1980 Bruits: Drâles d'emploi et Bête et méchant: "l'autogestion c'est impos-
Déplacements a Louvam, L'honimeefla socféfé,n' 29-30,p. 219a 236. sible", .4utogestíotzs, n' 1, p. 123 a 124.
1973. L'Analyse institutionelle et la formation pemlanente, Le mouvement 1983. Quelques approches de I'implication. Genêse du concept d'impl icatíon,
institutionnaliste (en collaboratíon), Pour, n' 32, 112 p. vol. 1 -- Le Pour, n' 88 (maré-avril), p. 12 a 18.
mouvement institutionnaliste.Dans ce numéro, les articles ne sono 1984 Histoire du séminaire d'Analyse institutionelle (premiêre partie), Líz
pas signés (le nom des contributeurs apparaít sur la ler de couvertu- Saílzte Fa/níJZe, n' l, (mars), p. 5 a 9.
42 Real HESS O MOWMENT0 0A OBRA OE RENÉ LOURAU 43
1984 Histoire du Séminaire d'AI(suite), I'insaisissable équipe, La Safnfe
1997. Janusz Korczak aujourd'hui? Éditorial du Bu/letínde Lfaíso/z
de /'Ásso-
FamíJJe, n' 2, (juin), p. 12 a 17.
clafloFZFrarzçaíse/anusz Karczak, n' 10, mars 1997 (850 signes)
1985 1997. L'éducation libertaire, L'Homme et ZaSocléfé,n' 123-124(janvier-février)
Réponses a Adnane Jazouli, a Fatima Memissi("travail de recherche
par correspondance"),l.a SaflzteFama/le,
n' 4, (avril), p. 20a 21. (A educação libertária, em Psicologia social. Abordagens sócio-histó-
1985 Programme, paradigme, prolet,[,a Saípzfe
Farnf/]e,n' 4, (avri]), p. 31 a ricas e desafioscontemporâneos,sob a direçãode Ana Mana Jacó-
39 Vilela et Deite Mancebo. Rio de Janeiro, Universidade do Estado do
1985 Note manuscrite présentant "Cari Punx. Firmado:i sociologi", La Saírzte Rio de Janeiro, 1999).
1997 Coopération d'un laboratoire et d'une association, dans les Acres de
FaKzílZe, n' 5, (juin), p. 6.
1986 Le cas de la thêse de Carlos Castafieda. "Joumal de terrain, joumal de la tournée Paulo Freire-Janusz Korczak, 13 décembre 1997,dana Les
recherche, account", Pratíques de Formatlon-ÁnaZyses, n" 11-12(octobre). Cahfers de I'/mplícatlolz, Hors série, n' 1, 1998, pp. 55-56.
1988 Implication et surimplicaüon, l.a Rmue du M.4USS, n' lO.
1997 -98,L'écriture phéniste, l.es Ca;zfersde /'/mplícatíolz,n' 1, p. 123 a 138.
1988 Le sociologue dana le mouvement social, seus le titre Un'analisis in 1997 98,Le Bar du Monde, l/s Cahfersde/'/mp/fcaffolz,n' 1, p. 9 a 16.
stituzionale, Melão, Vúlonfà, n' 3. 1998 J. Korczak toujours vivant. Entre recherche et militantisme, éditorial
(}u Bulletin de Liaison de !'Association Française Janusz Korczak, n' ll,
1988. Le terrain de I'implication: quel paradigme?, Z.aSafrzreFama//e,n' lO, octobre 1998.
(juin), p. 13 a 18. 1998 99, L'écriture automatique, Les Cahfers de I'/rnp/fcaffon,n' 2, p. 35 a 38.
1988 Pente réponse a Mohamed, l,a SaílzfeFama//e, n' lO, (juin), p. 33.
1988 Actualités, l.a Saílzte Fama/Ze, n' lO,(juin), p. 48. 1998 99. Malaise dana la soutenance. l.es Cablers de /'lmp/lcatforz,n' 2, p. 9 a
1989 Note pour une recherchemonographiquesur I'université, l.a Saílzfe ]2
1999 Mot de Lourau, Z.es Dossiers Pédagogfques, n' 6(octobre-décembre), p.
Fa/rií/le, n' 12, (juin), p. l a 7.
1989 L'implication du chercheur en sciences sociales: le terrain, l.a Saitzte 7
1999 2000, Dispositif et champs d'intervention, l.es Ca/zfers de J'/mp/fcatfolz,
Família, n' 12, (juin), p. 8 a lO.
1991 Nomes de recherche sur I'implication, La Sai zfe Fama/Je, n' 15,(mars), n' 3, p. 129 a 142.
1999 2000, La socianalyse dana I'Analyse institutionelle, I'Analyse institutio-
p. 97 a 122.
1991 nelle dans la socianalyse, Z.es Ca&fers de J'/nip/fcatfotz, n' 3, p. 161 a 166.
La discussionautour de I'implication, La SaílzfeFama/le,n' 16, (juin), 2000 Rue de ]a Louviêre. entretien avec Ahmed Lamihi. l.es DossiersPéda-
p. 10 a 13.
1993 Ecriture et institution, communication, colloque de I'INRB Paras. gogfques, n' 8 (septembre), p. 5 a 9.
1993 Multiréférentialité 2000, Etudes historiques sur la contre pédagogie, Prafíques de Forrrzatfolz-
et implicaüon, Prafiques de Formafíorz-AnaZyses, n"
25-26 4tzaZyses,
n' 40(novembre), p. 71 a 96
1994 Traitement de texte, Communications, EHESS, n' 58. 2000. Une présentation de I'analyse institutionelle, Pratíques de Forniaflorz
1994 Errements, errances, erreurs, communicaüon colloque Montréal. ÁtzaZyses,
n' 40(novembre), p. 97 a 104.
1994 Entretien avec Ahmed Lamihi, Prafíques de Formaffon-.4naZyses, n' 28 2000 Peüt manuel d'analyse institutionelle, Praffques de Formafíolz-Analyses,
(octobre). n' 40 (novembre), p. 105 a lll
1995 La peau des couilles. Transexualité, dimorphisme sexuel et implication, 2000 Autour du film deA. Wajda (1989),Korczak, Raymond Fonvieilles'en
Qi/e/ coros? n- 47-48-49.
entretient avec Lourau, Entretien du 14 février 1991,rapporté par
1995 Chercheur surimpliqué, L'Homme ef /a Socféfé, n' 115 (janvier-mars), p.
Raymond Fonvieilledana l.es [)ossfersPédagogíques,Ahmed Lamihi,
3y a 46. Tétouan, supplément au n' 9, pp. 32-33et sur le site Internet de I'APJK,
1995 Témoignage, Pratfques de Formatlorz-.Apta/uses,n' 29-30(mai), p. 145 a octobre
157
1996 Profondeur de champ dana la socianalyse, Praffques de For rzafíolz-.4na Artigos de leitura de outros autores
lyses, n' 32(octobre), p. 19 a 24.
1997 Interférences et interdisciplinarité, 1967,Démocratieet conseilsouvriers, Max Adler, .4iztogesflorz,
n' 2, p. 145a
Praffq11esde Formaffotz-.4tzaZyses,n' 147
33 (septembre).
1997 Le pur et I'impur, avec Jacques Ardoino, Pratiqzzesde Formaffon-Afza- 1967,Les maítres de vérité dons la Grêce antique, Marcel Deüenne (Maspe-
lyses, n' 33 (septembre). ro, 1967),L'/zomme
ef /asocfété,n' 6, p. 193a 194.
44 REMA HESS O MOVIMENTODA OBRA DE RENE LOURAU 45
1967 . Les nouveaux intellectuels, E Bon et M.A. Bumier (Cujas, 1966),L'Ho/?r
México, Nuevo Mar (O flzsconscíenfe flzsf/tzlcíonal. Petrópol is: Vozes,
meet /a Socféfé, n' 3, p. 208 a 209. 1984)
9
1967 , Position contre les technocrates, Henri Lefebvre (Gonthier), L'Ho/}zmt'
1988 Groupes et instituüon, in: Perspectfuesde J'analise ínsfítufíorze/le,seus
efla Socíété,n' 4, p. 251. la direcüon de R. Hess et A. Savoye, Paris, Méridiens Klincksieck, p.
1968 . L'institution et I'événement, Jean-Louis Leuba, Áizfogesffolz,n' 7, p.
167 a 176.
176 1988 Beitrãge zu einer Theorie der Institutionalisierung (Pour une théorie
1969 . Procês de I'université, Georges Lapassade (Belfond, 1969)
de I'institutionnalisation), in: Insfítz/fforzne//e
.4naZyse.seus la direction
1970. Détruire['université,André Gorz (].esbempsÀ4odernes, avri] 1970)Nan- de RemaHess, Gabriele Weigang et Geram Prein, Frankfurt, Athenaüm,
terre: ici, maintenant, Jean-François Lyotard (Les ZertrpsModernos,avril p. 24 a 33.
1970)
7
1990 Technologies et symboliques de la communication, sous la direction
1970 La reproduction, Bourdieu et Passeron (Minuit, 1970),
1970 L'Honime et /a Socféfé, n' 16, p. 363 a 364. de Lucien Soez, Grenoble, PUF. 1993, 1)fctío z zaíre critique de /a com
nzunícaffon,sous la directionde Lucien Soez,Paras,PUF.
1970 La fin de I'histoire, Henri Lefebvre(Minuit, 1970),L'Hommeet/a Socféfé, 1991 1992,E/ espacíoí/zsfítucíorza/,
seus la direction de Mana José Acevedo
n' 18, p. 309 a 312. et Juan Carlos Volnovich. BuenosAires: Lugar Editorial, 2 vol.
1970. Managerialrevoluüon, James Bumham, .4llfogesffo?z, n" 13-14,p. 267 1995, Prafíques írzsfífufíonneZlesef fhéoríe des psychoses,sous la direction de
a 268
1971 Eléments d'une critique de la bureaucratie,
Patrick Martin, Paria,L'Harmattan.
Claude Lefort, .4ufogesffopz, 1995 La logique de I'a utogestion, in: l.es pédagogles aufogesfiorzr7afres, sous la
n" 16-17,p. 215 a 217 direcüon de Patrick Boumard et Ahmed Lamihi, Yvan Dava éditeur,
1985 (avril), Un journalde terrain: I'Afrique fantâme,de MichelLeiris p. 213 a 222.
(Gallimard, 1934), Prafíqz/es de Forra/aflolz-.4na/uses, n' 9. 1996. Résistanceet ouverture a une théorie de I'implication, in: Ef/ligue,í#fsfé-
1997, Lorsque I'enfant paraít (chronique), Praffques de Formaffo/z-.4rzalyses, nzo/ogfeefscfelzcesdeI'/zona/rze,
sous la direction de Jacqueline Feldman,
n' 33, p. 125 a 126.
1997 La critique du symbolique chez Fernand Deligny La lettredu Grappe,
Jean-Claude Filloux, Bemard Lécuyer, Paris, L'Harmattan
1997. Notes sur Célestin Freinet et la culture technique, in: Freflzefet J'Eco/e
L'EnÚn?ztet /es Saz;oírs, n' 27, maré, p. 132 a 140 (A crítica do simbólico moderno,sous la direction de Ahmed Lamihi, Vauchrétien, lvan Davy
em Femand Deligny Transe;ersões periódicos de pesquisa da ESMO/ éditeur, p. 71 a 73
UFRJ, vol. 1, n' 1, 1999). 1999. Derem;zos Hu?manos elz el.P/za/ deJ zí/enfo, sob a d ireção de Jorre Golini.
1999 2000,La marca de Lewin en grupos e instituciones,Guijlermo Dela Buenos Abres, Ed. Instituyente, Fundación Viver y Crecer. p- 81-90.
hanty (México, Universidad Autónoma Metropolitana, 1997),1.es
Cahfersde/'/mplícatíotz,
n' 3, p. 183. Introduções, apresentações,prefácios, posfácios
1999 -2000,Psicologia social. Abordagens sócio-históricas e desafios contem-
porâneos, sob a direção de Ana Mana Jacó-Vilela et Deite Mancebo 1968 Aves Georges Lapassade, 4utogesffon,
n' 7 (décembre),p. 3 a 5.
(Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999), Les 1984 Editorial, La Saí zteFamílle, n' l (maré), p. 23.
Ca/zfersde Z'Jrtzp/ícatlolz,n' 3, p. 183 a 184. 1985 Editorial, La Sal zfeFaníílZe,n' 2(juin), p. l
1985 Editorial, La SafnfeFaKzíl/e.n' 4 (avril), p. l.
Contribuições a obras coletivas 1988 Editorial, La SaírzfeFa/rrí//e,n' lO (juin), p. l
1989 Lefebvre, "parrain" de la maH:ia "Analyse institutionelle", présentation
1973,Crímfnedf Face,seus la direction de Franco et Franca Basaglia, Milano de la 3' éd. De /a sonzmeef le restede H. Lefebvre. Paras, Méridiens
Mondadori; traducüon française, l.es crímflzelsderaiz, Paris, PUF, 1976
Klincksieck, coll. "Analyse Institutionelle'
1976,PsícaFzálíse,Jntores
sócio-políticos,
Porto, Ed. Rés(avec Althusser, Lacan, 1990 Prefácioa lllPrzcías perdidas,
Altoé, Soda, Rio de Janeiro,XenonEd.
Reich, Gantheret, Caruso). 1991 Editorial, l,a Saírzfe Fanrflle, n' 15 (mais), p. l a 2
1980, Bilan de I'intervenhon socianalytique, in: l,'ílzfe e/ztíon ílzsfíttlfíorz/ze//e, 1991 Editorial, l,a Saílzfe Fama/Je,n' 16 (juin), p. 2.
seus la direction de Gérard Mendel(avec les contributions de Ardoino, 1992 Préface a Elémenfsde ryfhma/zalyse,
de Henri Lefebvre, Paras, Syllepse.
Dubost-Lévy, Guattari, Lapassade), Paris, Payot, p.199 a 234. 1994 Avec Antoine Savoye, "Analyse institutionelle et éducation ", tour, n'
1983,E/ flzconcfenfe
ínsfíf cfonal,sob a direção de Gregorio Baremblitt, 144, p. 8 a 9.
46 REMI HESS
1.994, Posttace a De Freinet a la pédagogie institutionne!!e ou I'Ecole de Genne-
zJí//íers,
d'Ahmed Lamihi,Vauchrétien,lvan Davy éditeur, p. 137a 140.
1997,Introduction(avec Ahmed Lamihi) a Pédagogfe ef JmpZícatlon,sous la
directionde Lourau et Ahmed Lamihi, Les Cahiers de L'E.N.S., n' 8.
publication de I'Ecole Normale Supérieure de Tétouan(Maroc).
1998,Prolongements, postface a la seconde édition de À4ai68, L'frrupfzolzg
de H. Leáebore,Paras, Syllepse.
1999,Comment cela a-t-il été possible?, Préface de La corzsclezce mystÜée, de
Nobert Gutterman et Henri Lefebvre, Paras,Syllepse. O INSTITUINTE CONTRA
2000,Préface de Pyrélzées,de Henri Lefebvre, Pau, Caim.
O INSTITUIDO+
Artigos sobre Lourau
Tudo o que rompe a unidade social não
Althabe G., Gelos, en Béam, matrice du rapport au monde de Lourau, in: vale nada: todas as instituições que co-
Lourau: Analyse institutionelle et éducation", Prafíqzíes de Formaffotz- locam o homem em contradição consi-
ÁnaZyses,n' 40, 2000. go mesmonão valem nada.
Delory-Monberger, Une polétique de la recherche, in: "Lourau: Analyse - RoussuAU , O cotztrato sacia/, livro
institutionelle et éducation", Prafiques de Formafíon-Á?za/uses, n' 40, VI, capítuloVlll
2000
Hess R., "Lourau", Díctlo znaíredesphi/osophes,Paris, Presses Universitaires Pool-sK FALAR OE CRISE SOCiAl. a propositodos "acon-
de France, sous la direction de Denis Huisman, 1984.
tecimentos" de maio/junho de 1968porque aí o íFzsfitufnfesur-
Hess R., L'institutionnalisation,in: "Lourau: Analyse institutionelleet édu- giu, violentamente e de maneira irracional, em oposição ao f?zsfí-
cation", Prafíques de Formafíon-AlzaZyses, n' 40, 2000.
Jabin B. et De Miras R, Le droit au respect: une idée essentielle.Lourau, in:
Bulletin de Liaison de i'Association Française }anusz Korczak, n' 13, dé- Por "instituinte" entenderemos, ao mesmo tempo, a contesta-
cembre 2000.
ção, a capacidade de inovação e, em geral, a prática política como
Lamihi Ahmed, Autogestion et implication. in: Les pédagogies aufogesfíorz-
lzaíres,Yvan Davy éditeur. p. 15 a 28, 1995. "significante" da prática social. No "instituído" colocaremos não
Lamihi Ahmed, Pédagogie institutionnelle et autogestion pédagogique: I'ap- só a ordem estabelecida, os valores, modos de representação e
port de Lourau, in: LesDossierspédagogíques,
n' 7, Tétouan (Maroc), p. de orgarüzação considerados normais, como igualmente os proce-
13 a 19(en vente au LlZAI, Paria 8), 2000. dimentos habituais de previsão (económica, social e política).
Lamihi Ahmed, Le joumal impliqué, ou comment en savoir plus sur soi-
O estudo que se segue tem por objetivo especificar o conteú-
même et sur les autres, in: /mp/ícations(Joumal de la Non-Directivité
Intervenante), n' 2, Paris, p. 12-15,1997. do destasduas instânciase mostrar que a oposição entreelas
Lapassade G., René Lourau, pédagogue. in: "Lourau: Analyse insütutionelle mascara sua articulação no conceito de instituição. Hlavendo as
et éducation", Prafíques de Formafiorz-.4tzaZyses,
n' 40, 2000. contradições irrompido na sociedade francesa, o ínstituinte se
LRAI, Texte, in: "Lourau: Analyse institutionelle et éducation", Praffquesde defrontou de maneira maniqueísta com o instituído. De um mes-
Formízfíon-A zaZyses,n' 40, 2000.
mo golpe, cada uma das instâncias trouxe à luz a violência hipo-
Textos diversos critamente camuflada da instância complementar.
O instituintefoi percebidocomo pura negatividade:a "sub-
La psychiatrie, ça se soigne, ronéo, Pauis 8. versão". O instituído, por seu turno, foi igualmente percebido
Socianalyse en Val de Loire.
L'instituant contre I'institué", primeiro capítulo do livro de mesmo nome
Paria: Anthropos, 1969. Tradução: Paulo Schneider.
47
48 RENÉ LOURAU O INSTITUINTECONTRAO INSTITUÍDO 49
como pura negatividade: a "repressão". Tentaremos compreen- lissemia do conceito de instituição, tanto no direito quanto na
der a prática social nascida ou ressurgida na primavera de 1968 sociologia ou na história, permeia seu uso em domínios forte-
em termos menos reducionistas, evitando traduzir o aconteci- mente marcados pela prática jurídica. Para retomar o exemplo
mento, a dinâmica social, por um jogo de elementos ou de estru- do Estado, dir-se-á, com Hegel, que "as instituições formam a
turas já conhecidos. Constituição [. . .] e são, por conseguinte, a base sólida do Esta-
do". A Constituição, ou lei fundamental, ou conjunto de leis di-
O que é uma instituição? tas fundamentais, pertence ao domínio político na medida em
que f-ondaum regime, e ao domínio jurídico na medida em que
O sentido estrito, jurídico, tradicional do conceito de institui- sua aplicação está sujeita a diversas interpretações de seus prin-
ção designa diversas categorias de corpos constituídos e de orga- cipais usuários (o poder), bem como da instância encarregada
nismos oficiais que servem para a regulação da vida política, para de controlar sua aplicação (Corte Suprema).
a administração da sociedade. O Estado, por exemplo, é um con- Desse modo, o sentido estrito do conceito de instituição é posto
junto de corpos constituídos e de instâncias (coletivas ou indivi- em questão, pois já recobre inúmeros níveis de realidade. Em
duais) que denominamosinstituições:Presidênciada Repúbli- particular:
ca, Congresso Nacional, Senado, Conselho Económico e Social, a) Instâncias individuais ou coletivas com organização diferen-
Corte Suprema, Conselho de Estado, Tribunal de Contas, Corte ciada;
de Cessação, Chancelaria da Legião de Honra, Ministérios. b) Códigos escritos ou não escritos, mais, ou menos acompa-
Essas instituições do Estado não surgiram simultaneamente, nhados de um aparelhojurídico ou organizacional.
não possuem idêntica importância nem funções políticas equi-
valentes. Diferenciam-se, no nível de sua organização, em secre- Os três momentos do conceito de instituição
tariados, direções, administrações,comissariados gerais, servi-
ços etc. A sociologia empírica e teórica, assim como a linguagem A universalidade das instituições é ressaltada pela filosofia do
comum, freqüentemente confundem - de maneira totalmente direito herdada de Hegel,: para quem as instituições "são o que
equivocada -- o nível organizacional com o nível institucional. há de virtualmente universal nos interesses particulares". Porém
Outra confusão, ligada à precedente, procede sobretudo da a lógica hegeliana distingue, na análise de qualquer conceito, três
burocracia e da prática jurídica corrente: ela mistura instituição rrzomentos que, articulando-se, definem a díalética: momentos da
e Direito. O ato de promulgar uma lei ou um regulamento é, sem universalidade, da singularidade e da particularidade. A dialética
dúvida, um ato instituinte; mas a lei, o regulamento, não são mais obriga a que não nos contentemos com a oposição dualista entre
que o aparelho jurídico da instituição, a organização singular do interesses particulares e interesse geral. A z/zíuersa/idadeda insti-
campo de aplicação e da previsão próprios a qualquer prática tuição, pela mediação de cada caso parfícu/ar, encarna-se nas for-
jurídico-social. A confusão, no entanto, é quase inevitável, na mas sínglz/arese diferenciadas, das quais vimos pelo menos dois
medida em que a acumulação de textosjurídicos e de jurispru- graus no que tange às instituições políticas (separação dos po-
dência acaba por fazer esquecer a instituição em si, as condições deres em uma dezena de instâncias ou órgãos constituídos e di-
materiais e sociais de seu funcionamento, suas finalidades e sua visão destesúltimos em vários tipos de organizações).
história (por exemplo, no caso da instituição da herança, ou no
da instituiçãodos examese dos concursos). Além do mais, a po- Hegel Princípios da.Floso$a do direito, 1821
50 RENÉ LOURAU
Muitas formas singulares da instituição escapam, de resto, ao
jurídico ou ao organizacional:são as formas ideológicas,profun-
.Í O INSTITUINTECONTRA O INSTITUÍDO 51
Por outro lado, as instâncias imediatamente inferiores são
sempre diferenciadas em corpos constituídos, eles mesmos dife-
damente inscritas nas mentalidades, na prática social, e que a renciados pela organização e, sobretudo, pelo modo de recruta-
ideologia dominante se empenha em fazer passar por univer- mento: com efeito, a divisão do trabalho apresenta grandes ana-
sais, logo racionais, normais, obrigatórias, intocáveis. Por exem- logias quando observamos o funcionamentode um ministério,
plo, a seleção social efetuada pela escola ou a estrutura mercan- de um sindicato,de uma empresa;um ministro,porém, não é
til das trocas. designado para o cargo da mesma maneira que um alto funcio-
Já os particulares, que quase nunca estão em contadodireto, nário. Um professor do ensino médio, na França, é diretamente
não medrado, com o universal da instituição (mesmo no caso da nomeado pelo ministro, ao passo que um professor do ensino
instituição fundamental, transjurídica e em parte transistórica da superior é cooptado. Uma mesma pessoa por exemplo, um
exogamia, os indivíduos vivem formas singulares de proibição do técnico superior -- obterá um posto em uma empresa com ba-
incesto, em tal comunidade e em tal época), como membros das se no exame de seus títulos e antecedentes; na mesma empresa,
instâncias instituídas, como usuários e mantenedores das institui- ocupará um alto posto sindical por ter sido apresentado pelos
ções e, enfim, como agentes de transformação institucional, con- camaradas à comissão administrativa da CGT e eleito, pelos de-
ferem sentido muito mais amplo ao conceito de instituição. legados, para o secretariado nacional. O princípio de centraliza-
Especificaremos as três funções dos particulares (três exem-
ção do poder, agindo no seio das mais diversas organizações,
cria isomorfismos e entrecruzamentos entre hierarquias verticais
plos não exaustivos, preferencialmente),que dão um conteúdo
ao momentoda particularidadedo conceitode instituição.As- e horizontais; o princípio da democracia direta, aplicado em inú-
sim compreenderemosmelhor a distinção e a articulação entre meros casos, é de fato "corrigido", para não dizer anulado, pela
os três momentos do conceito. justaposição de variados modos de recrutamento. Mas se o prin-
cípio da democracia direta é combatido pelo princípio de cen-
O momento da particularidade tralização, este último, por sua vez, é corrigido ou combatido
pelo sistema assim criado: a fríztzsoersaZídade
dos pertencimentos,
\ . Os particulares como membros de instâncias instituídas das hierarquias e dos poderes. Os pertencimentos políticos, por
exemplo, mantêm grupos de pressão em uma instância oficial
Estas instâncias são instituições-pessoas ou instituições-gru- aparentementehomogênea; ou então a "tecnoestrutura" de di-
retores e tecnocratas altera a estrutura autocrática da empresa.
pos (para retomar a terminologia de M. Hauriou,: que denomi-
na instituição-coisa um conjunto de normas que não se personi- Por outro lado, compensações ou ponderações eventualmente
reinstalam a idéia de democracia direta e de participação dos
fica em estatutos ou papéis particulares). As instâncias podem
ser personificadas em um só indivíduo (presidente da Repúbli- particulares no poder: eleição do presidente da República pelo
ca). Afora os raros casos de direção colegiada, a pirâmide do sufrágio universal, referendo. Contudo, salvo em exemplos es-
poder é geralmente coroada por uma instância solitária, freqüen- pecíficos como a democracia ao estilo suíço ou o projeto de
temente simbólica, por vezes decisória (o rei, o chefe de Estado, autogestão, a democracia direta e a participação jamais articu-
o patrão).
lam uma série de instâncias que permitiriam umleedbackdos re-
presentados aos representantes.Os conselhosmunicipais, os con-
z Hauriou, Maurice. Tbéorfe de /'i/zsfíf tfon ef de falo/zdation. Sirey, 1925.
selhos de pais de alunos, as aséembléias-geraisde sindicaliza-
52 RENÉ LOURAU O INSTiTUINTECONTRA O INSTiTUÍOO 53
dos ou pensionistas contribuem, principalmente, para preservar mesmo, às vezes, em um único indivíduo). Dito de outra manei-
o "ritual" e o "cerimonial" que Galbraith descreve zombeteira- ra: se a integração segundo valores comunitários é efetivamente
mente, usando o exemplo dos Conselhos de Administração e das um dos elementos que compõem a sociedade, não deve ser con-
Assembléias-Gerais de acionistas em grandes empresas ameri- fundida sob pena de tomar a ideologia dominante pelo obje-
canas. O modo de representação de interesses particulares não é to "sociedade" que ela mascara -- com a própria estrutura so-
concebido para produzir, pela justaposição e pela fusão, uma ins- cial. A distribuição dos valores dominantes se dá à maneira da
tância globalque seria o interesse geral; este é apenas o "modo distribuição dos benefícios: não podemos participar de todos os
de representação" que a sociedade tem de si própria e transmite valores que comentama comunidade ou, pelo menos, não o pode-
às jovens geraçõesa ideologia dominante. Na realidade, cons- mos fazer com a mesma intensidade de todos os outros mem-
tatamossobretudo,por um lado, a existênciae o poderio de bros, já que nunca pertencemos a todas as formas singulares e
uma instânciaestatalque se atribui, a priori, o monopólio do segmentáriasde organização social nem a todas as formas seg-
interesse geral e do modo de representação dos interesses par- mentárias universais constituídas a partir das categorias univer-
ticulares;por outro lado, a presençade múltiplos interesses sais da idade ou do sexo (por exemplo, nem todas as crianças,
particulares que tendem (ao menos alguns dentre eles, os que na França, recebemo mesmo tipo de instrução ou de educação
estão em melhor posição na corrida pelo poder ou pela autori- escolares, sem falar das múltiplas diferenças de educação fami-
dade) a "servir" ao povo, isto é, a fazer parte de instâncias ins- liar; e se os homens, de modo geral, têm melhor remuneração
tituídas como representativas do interesse geral. O sucesso so- pelo trabalho do que as mulheres, tal institucionalizaçãoda de-
cial é sempre acompanhado (quando não se confunde com ele) sigualdade sexual é combatida por toda parte, e o pertencimento
por um acesso às instâncias de regulação, de controle e de coa- a um ou outro sexo não determina de modo absoluto a escala
ção social, também quando se trata simplesmente da entrada de vencimentos). Embora o inventário de nossos pertencimentos
em um pequeno grupo de pressão.; socialmente constituídos seja finito, o inventário de nossas re-
ferênciasé muito mais aberto. Para definir nossa posição na
2. Os particulares colho usuários e mantenedoresde instituições sociedade, precisamos nos referir a inúmeras organizações e
instituições às quais não estamos diretamente ligados. Em últi-
Como a sociologia-- de Durkheim a Parsons não deixa de ma instância, uma análise exaustiva de pertencimentos e refe-
sublinhar, o grau de integração ou coesão de uma comunidade é rências deve esgotar todas as formas universais e singulares de
medido pelo grau de interiorização das normas instituídas, inte- socializaçãoobserváveis em uma sociedadeem dado momento.
riorização observável no maior número possível de indivíduos Neste sentido, por exemplo,aderindo ou não a uma organiza-
componentes. A dificuldade, que pouco tem sido explorada pela ção sindical, só posso situar-me e compreender o conjunto dos
sociologia. é determinar a distância que separa os conceitos de problemas económicos e sociais de que o sindicalismo se ocupa
comunidade e de sociedade, na qualidade de agregado feito de por referênciaà ideologiae à ação das principaisorganizações
pertencimentos segmentários, em luta uns contra os outros (até sindicais existentes no país (com suas eventuais implicações de
caráter internacional). Na mesma linha, seja eu rico, seja pobre,
3 Por trás dessas considerações, aparecem facilmente as noções de l7ztqgraçãoe de assalariado ou acionista, a instituição bancária e os organismos
partfcípação, às quais acrescentamos as de implicação ínslífucfo/za/e de dísfá/leia
ílzsfífKcionaJ.Para uma visão mais precisa dessas noções, permitimo-nos indicar a ela aparentadosme concemem:tenho relaçõescom o banco
nossa tese, a ser lançada, Á ztzálíseílzsfíflícíorza/. mesmo se não tenho conta bancária nem poupança nem aplica-
54 RENÉ LOURAS
O INSTITUINTECONTRA O INSTITUÍDO 55
ções, porque o banco é a forma instituída da regulação no que o executivo, o engenheiro, o diretor e até o acionista, com ga-
diz respeitoà circulaçãoe acumulaçãodo capital. nhos e estatutos diferentes, são "usuários" da instituição "empre-
Como "usuário" ( um termo aproximado) das instituiçõesexis-
sa" que, extraindo de sua posição hierárquica vantagens maio-
tentes, eu me ajusta, pelo menos publicamente, ao sistema de
res que as dos OS, OP e trabalhadoresbraçais, têm em princípio
referência das normas que elas simbolizam e encarnam. da proi- 'todo o interesse" em manter intacta a instituição da qual de-
bição do incesto à interdição de passar cheques sem fundos. Em
pendem, bem como as outras instituições (bancos etc.) que, com
função de meus pertencimentos, estarei a par e poderei até mes-
a empresa, compõem um sistema. O simples fato de aceder a
mo me beneficiar de formas singulares de ordenamento destas
um certo grau da hierarquia (formal ou informal) permite per-
normas universais: grau de parentesco em que cessa a proibição ceber o começo de um processode ítzfegraçzio, mesmo se a par'
do incesto ou limite de utilização do cartão do banco. Em fun-
ticipação nos objetivos e nos valores da organização que nos
ção de variáveis cuja origem social é das mais evidentes, in-
hierarquiza estiver longe de ser incondicional.
teriorizo as interdições, considero o campo de possibilidades e A escala salarial ou a escala de estatutos (que não se confun-
as fronteiras traçadas (juridicamente ou não) por tal instituição dem) não revelam automaticamente uma escala de interiorização
como mais ou menos racionais. Sublimo com maior ou menor
das normas instituídas. Já que uma escala de saberes remaneja a
facilidade, com maior ou menor freqüência meus desejos, den- escala de estatutose desloca o papel da escala salarial (trata-se
tro do respeitosobre-repressivoao que "se faz" e ao que "não da famosa "revolução dos managers" de Burnham), e que forças
se faz
transversais trabalham as hierarquias estabelecidas, no sentido
Como "mantenedores" (novamenteum termo aproximado) de uma "participação" mais difusa nas decisões (refiro-me à fa-
das instituições,os particulares podem ser classificados, muito
mosa "tecnoestrutura" de Galbraith), é preciso renunciar a uma
esquematicamente, em dois grandes conjuntos: visão demasiado determinista e "materialista" da interiorização
a) Em primeiro lugar, todos os usuários ou cooperantesque dos valores, da institucionalização das normas e da produção
não põem perigosamente em questão as instituições. Excetuan-
de superestruturas ideológicas e jurídicas. Um contramestre, um
do-se as crises sociais bruscas ou os picos de anomia em certos
C)P ou um OS poderão, em certos casos, identificar-se mais
setoresda práticasocial(setorda livre expressão,da vida sexual
fortementecom "sua" empresa do que um engenheiroou um
e das relações financeiras), pode-se considerar, grossomoda,qual acionista; estes últimos, entretanto, obtêm "parcelas" mais subs-
os sociólogos da integração e da sociedade instituída, que as ins- tanciais que os salários das três primeiras categorias citadas. Fe-
tituições repousam sobre o consenso, praticamente constante, dos
nómenos de compensação, de idealização, de sublimação das
membros da comunidade. O simples fato de parfícíparpouco ou coações e de sobre-repressão alimentam o funcionamento infor-
muito (por exemplo, inscrevendo-sena divisão do trabalhointe- mal das instituições mais burocraüzadas (forças armadas, uni-
lectual para "ganhar a vida", como fazem tantos inimigos da or- versidade, administração pública). Não só o motorista do Senhor
dem social) do sistema de prestações colocado sob o signo da Marquês diz orgulhosamente "nós", referindo-se ao Senhor Mar-
instituição do salário contribui, a todo momento, para a manu-
tenção da ordem estabelecida; quêsl Quantos indivíduos ventríloquos não falam senão porque
as instituições falam por intermédio deles, porque a têm, literal-
b) Em segundo lugar, os mantenedores podem ser percebidos
mente, "sob a pele"l Porém, do mesmo modo, quantos se recu-
como constituindo uma ou mais categorias privilegiadas, a títu-
sam a aderir às instituições, a despeito de sua vida cotidiana ser
lo variado, em relação à massa de particulares. O contramestre,
totalmente composta de um tecido institucional que implica um
56 RENÉ LOURAU O INSTITUINTECONTRA O INSTITUÍDO 57
certo grau de consentimento, de adesão, de engajamento e de Por outro lado, a disfá7zcía ízzstítzzci07za/
será avaliada como a
participação(senão de integração).' soma dos não-pertencimentos (subjetivos e objetivos) e das não-
A fim de tomar mais claras as funções de usuário e de mante- referências nas quais o indivíduo (grupo, organização. . .) se ins-
nedor das instituições, utilizaremos, desviando-os um pouco, creve. Visto que a teoria do grupo de referência,elaborada, em
os conceitos de "surrealismo" e de "sub-realismo" elaborados
particular, por Merton, não engloba o conceito de não-referên-
por J. Gabel. Dois grandes tipos de relação com as instituições -- cia, vale especificar que o termo designa, aqui, tanto o não-saber
tipos extremos, "tipos ideais" podem ser identificados: por "sociológico" do indivíduo quanto o caráter forçosamente limi-
um lado, o "sub-realista" se identifica totalmenteàs normas, às tado, porque segmentário, de sua "consciência de classe" (mes-
hierarquias e às pessoas que as encarnam. No domínio da pato- mo que seja excelentesociólogos). Por exemplo, se eu sou de raça
logia da linguagem estudada por Gabel, a postura sub-realista branca e vivo numa comunidadeonde as outras etniasjamais
caracteriza-se, entre outras coisas, pela "compulsão de identifi- estão, por assim dizer, presentes ou presentificadas em minha
cação", o "racionalismo mórbido" e a "apreensão insuficiente- vida cotidiana, a referência aos pertencimentosétnicos terá boa
mente estruturada do real".s
possibilidade de estar ausente ou muito tenuamente representa-
O "surrealista", por outro lado, é caracterizado por uma "fal- da em meu sistema de referência habitual; já se eu habito um
ta de identificação"; está afetado de "realismo mórbido", de uma prédio, um bairro, uma cidade, uma região ou um país com múl-
apreensão excessivamente estruturada do real". . . A dicotomia tiplos pertencimentos étnicos; ou se recebi uma educação ou
entre sub-realismo e surrealismo não deve ser considerada como influências racistas; ou ainda se fui militar nas colónias etc., a
diferençaentre dois tipos de "caráter" ou dois tipos de doença, noção de raça não terá mais o vago conteúdo escolar que em ge-
mas como um esboço de semiologia. Além do mais, não deve- ral Ihe confere o universalismo universitário e humanista.
mos confundi-la com a clássica antítese conformismo/não-con- Qualquer que seja o interesse evidentemente heurístico - dos
formismo; e ela oferece, a nosso ver, maior riqueza dialética do dois conceitosacima apresentados,restam muitas dificuldades
que os esquemas sociológicos e psicossociológicos tais como inte- para toma-los operatórios em nosso campo(sua coloração freudo-
gração/desvio, típico/atípico, institucional/anémico,intrade- marxista evoca simultaneamente utilidade e dificuldade). Quan-
terminado e extradeterminado etc.
do, na distância institucional, vemos em ação diferenças de cons-
A riqueza dialética que atribuímos aos conceitos de Gabel re- ciência de classe. o exemplo oferecido(lugar do referencial "raça")
side na possibilidade de analisar as correlações entre dois mo- é deliberadamente escolhido para permitir entender que tal
dos de avaliação de um mesmo objeto: este objeto é o grau de "consciência" não é determinada apenas pela posição do indiví-
integração (integração que também engloba a modalidade mais duo no processo de produção. Em graus diversos, o não-saber
fraca" da participação)de um indivíduo, grupo ou organiza- sociológico intervém, entre outros favores, para sobredeterminar
ção ao conjunto social considerado. Os dois modos de avaliação a influência que nosso lugar no processo de trabalho e na divisão
são os seguintes: de um lado se avaliará a ímp/ícaçãoílzsfífucíona/ técnica e social do trabalho tem sobre nosso espírito. Ilustrações
do indivíduo (grupo, organização. . .) como a soma de pertenci- banais confirmam facilmente nossa dúvida quanto à eficácia
mentos (subjetivos e objetivos) e referências na qual se inscreve. da visão determinista: muitos intelectuais, em geral de origem
burguesa, são na verdade os pedagogos e diretores de consciên-
4 Croizier, Michel. Le p/zétzomêzze
bzíreaucraffqzle.Seuil, 1963. cia da. . . consciência de classe, embora sua situação nas rela-
5 Gabel, Joseph. Lajausse conscíence.Minuit. 1962. ções de produção não seja a dos manuais; no que concerneà
58 RENÉ LOURAU O INSTITUINTECONTRA O INSTITUÍDO 59
sobredeterminação racial, é suficiente lembrar, a título quase
que rejeitam, objetiva ou subjetivamente, qualquer pertencimen-
anedótico, a histeria racista que grassou nos meios comunistas, to, referência, participação, cooperação, integração etc., ao siste-
durante a crise de maio de 1968,contra os revolucionários es- ma institucional existente.
trangeiros, apátridas ou simplesmente internacionalistas (adqui- Tal hipótese, como se vê, é mais ideológica que sociológica.
rindo facilmente o nacionalismo "de esquerda" um tom racista As coisas em nada mudariam se, abandonando o domínio da
por razões simultaneamente teóricas e sociais, fáceis de compre' "estática social" --que tem sido o nosso até o momento -, abor-
ender: solução mágica do conflito entre internacionalismo e pa- dássemos o da "dinâmica social": seríamos levados a confun-
triotismo, por um lado; recrutamentopequeno-burguêsdo Par- dir, de um lado, conservadores e sub-realistas; de outro, revolu-
tido Comunista, por outro). cionários e surrealistas. Porém com isso chegamos ao terceiro
Do mesmo modo, quando tentamos utilizar o esquema, pro- componente do momento da particularidade do conceito de ins-
posto por Gabel, de dois tipos de relação com as instituições (sub- Hhlirãn
realismo e surrealismo), de forma alguma afirmamos, a priori,
que o primeiro tipo-ideal signifique pertencimentoà classeex- 3. Os particulares como agentes de transformação institucional
ploradora e o segundo, à classe explorada. Aqui, uma vez mais,
o conceito de segmelzfarídade - utilizado em sociologia e em
Por transformação institucional se deve entender um nível de
etnologia -- é de grande utilidade, desde que o articulemos ao análise das transformações sociais que, como outros modelos
conceito, menos utilizado, de fransoersalídade (como resultado da
sociológicos (a análise em termos de sistema de ação, por exem-
composição segmentária da maioria das comunidades conheci- plo), sociopolíticosou económicos,não cobre o conjuntodo pro-
das). Sejam eles singulares --ligados à diferenciação do processo cesso real de transformação social. O modelo institucional tanto
de trabalho, às formas de organização produzidas pela divisão fala através de seus limites e necessárias articulações com outros
técnica e social do trabalho --, como a maioria, ou universais
campos quanto através da pertinência de seu campo próprio.
pertencimento a um sexo, a uma faixa etária, a uma raça, a uma Na qualidade de agente de transformação, e mesmo que se
nacionalidade, eventualmente a uma religião --, os pertencimen- leve em conta o papel desempenhado por personalidades deter-
tos segmentários vêm romper sem cessar o esquema dicotõmico minantes, é sempre como coletivo que o particular se manifesta.
excessivamente belo que situaria, de um lado, os exploradores Que não se veja nisso um paradoxo ou um lapso: o momento da
cooperantes a uma obra comum a serviço do capital -- e, de ou- particularidade é o dos indivíduos como pessoas indivisas, mas
tro, os explorados -- cooperantes, também eles, a uma obra co- igualmente como agregado de pessoas cuja particularidade das
mum, desta vez em nome da destruição do capital e do desapa- determinações --por pouco que "cruzemos" efetivamente as res-
recimento da classe exploradora.
postas que dão a uma erzquête-- se resolve na singularidade de
Se este esquema tivesse algum caráter operatório (sem negar uma situaçãocomum. Não se imagina uma instituição fundada
que nele esteja depositada uma "verdade"!), teríamos, sob a ru- para o uso de indivíduos isolados, tampouco indivíduos isola-
brica "sub-realismo", os indivíduos e os grupos sociais que, ob- dos que fundariam "sua" instituição pessoal. Stimer e, na mes-
jetiva ou subjetivamente,se identificam totalmentecom o sis- ma via, um certo anarquismo projetaram em vão essa fantasia
tema institucional; e sob a rubrica "surrealismo" encontraríamos, maternal sobre a organização social e sobre o projeto revolucio-
além do grupo de escritorese artistas que, desde 1924,reivindi- nário: se temos apenas uma mãe biológica com a qual o sexo nos
ca ou recebe esta designação, os indivíduos e os grupos sociais é interdito, a soma dos interditos e dos possheís- também no do-
60 RENÉ LOURAU O INSTITUINTECONTRAO INSTITUÍDO 61
mínio das relaçõessexuais ultrapassa em muito a situação do de realização mais extrovertido será tolerado e mesmo encoraja-
incesto "jurídico". Os cacos de vidro que coroam os altos muros do (às vezes, recompensado).
da "vida privada" estãovoltadostantopara o interiorquanto b) O espírito de iniciativa não mais acantonado no ef/zoscoo-
para o exterior:a intimidade e a familiaridadecom freqüência perativo, porém suspeito de "espírito mau" e freqüentemente
acreditam suprimir as influências e coações institucionais, fun- associado a "problemas de caráter" (insatisfação, agitação, inte-
dando a instituição da vida privada unicamente sobre a afetivi- resses sórdidos etc.). Tal é a maneira como é percebida a ação
dade; na verdade, qualquer que seja o tratamento recebido pelo instituinte ao nível de indivíduos ou de grupos "irresponsáveis"
laço social que se pretende puro laço libidinal, ele não é insti- (evocando pudicamente esteúltimo termo o fato de o indivíduo
tuição individual, embora o momento da particularidade por- ou o grupo em questão não ocuparem posição elevada na escala
tador da "negatividade" -- seja indispensável para assegurar, de poder, ou de não se querer reconhecer seu poder). Decompo-
através da mediação da "unidade negativa" (constituída pelo remos, a seguir, as características da atífzzde instituinte sem
momento da singularidade), a frágil universalidade da "unida- prejulgar características sociológicas originais de um movimen-
de positiva", imaginária, de toda instituição.' to social considerado como instituinte, quaisquer que sejam as
finalidades ou táticas de seus amores:
Portanto, excetuando-se o acfíng-out do alienado ou do des-
viante (logo considerado como alienado); os atos do âmbito da capacidade, do açor malgrado a alienaçãode qualquer sa-
jurisdição penal ou que põem violentamenteem questão o con- ber fragmentário --, de analisar a posição que ocupa na estrutura
senso estabelecido; as manifestações individuais de criatividade social;
ou de espetáculo, tanto reprimidas quanto desencorajadas pela -- orientação de tais ferramentas de análise para a prática so-
ordem existente, observa-se que toda ação particular que escapa cial, tendo em vista assegurar uma crítica permanente da impli-
aos domínios l e 2 estudados nos parágrafos anteriores depende cação institucional e da distância institucional do ator, bem como
de um tipo de participação social dinâmica, na qual não é fácil dos outros atores presentes ou presentificados em seu campo de
distinguir o espírito cooperativo do espírito de contestação.Com
efeito,qualquer ação corre o risco de ser percebida como atavismo estilode vida e ("mistério" da articulaçãoentrevida priva-
inoportuno e perigoso, pois perturba o sistema de açãoanterior, da e prática social) estado de disponibilidade para as ações cole-
que tendianormalmentepara a entropia. Procuremos, no entan- tivas de transformação institucional.
to, distinguirdois graus na açãodos agentesde transformação Essas características bastante empíricas não têm por função
institucional: resolver, tampouco colocarcorretamentede uma vez por todas
a) O espíritode iniciativa acantonadono "bom espírito" de a questão fundamental das relações entre sistema de referência
cooperação, na disciplina "livremente consentida", na participa- sociológico e sistema de referência psicológico: muitos freudo-
ção integradora, define o dinamismo quanto a "caráter", a "per-
marxistas, marxistas e freudianos revisionistas, sem falar de ten-
sonalidade", a ''qualidades sociais". Se as manifestaçõesde tal tativas mais isoladas, mostraram, quiçá involuntariamente, que
espírito não desbordam os quadros estabelecidosda "consciên- esta questão permanecia o mundo desconhecido das ciências
cia profissional", do "civismo" e dos "bons costumes", o desejo humanas. Não decidiremos se acabamos de traçar grosseiramente
o retrato do revolucionário "autêntico" ou o do inadaptado aco-
Quanto às relações entre instituição e imaginário, ver os estudos de Cardan nos metido de realismo mórbido (ataque de surrealismo). Observe-
últimos números(39-40) da revista Socfalísmeou Barbárie. mos apenas que se as três características empíricas citadas não
62 RENÉ LOURAU o iNSTITuINTE
CONTRA
o iNSriTUÍOO 63
estiverem reunidas ou se uma dentre elas esmagar as outras, a tendem e ensinam, implícita ou explicitamente. A universalidade
é o momento da ideologia; ela legitima como eterna a "ordem"
força instituintedos indivíduos que compõem uma coletividade
estabelecida, nas suas formas mais transitórias e artificiais; a ela
estará bastantecomprometida.
As características do bom cidadão cooperativo, participante está reservada a função de garantir a distância institucional que
ativo mas não contestatário (ainda que a tipologia eventual da separaqualquer indivíduo das decisões concementes a sua vida
participação ofereça uma difícil distinção entre variáveis como cotidiana. A ideologia, ademais, não é somente a do poder esta-
belecido; também é a que procura exercer o poder. A sociedade
integração, incondicionalídade, conflito, contestaçãoetc.), em
suma, os traços do reformista sensato, conforme pincelados no instituinte ameaça a sociedade instituída; porém a sociedade ins-
item a), supõem, para poder exprimir-se, um equilíbrio social tituída precisa da sociedade instituinte para progredir, ao passo
antigo e universalmente aceito dito de outra forma, uma socie- que a sociedade instituinte necessita da sociedade instituída para
dade sem antagonismos de classe. O papel instituinte dos parti- erguer seu prometode transformação permanente.
culares numa sociedade como a nossa implica que toda mudan- Cabe ao momento da singularidade --momento da integração
ça comece pelos desviantes, os oufsíders,os atípicos, antes de se em formas singulares de organização, de gestão, de administra-
institucionalizar em equilíbrios provisórios: ção, de funcionamento --assegurar a implicação institucional de
cada indivíduo que constitui a sociedade. Neste sentido, a uni-
Quando as transformações sociais se põem em movimen- dade negativa das formas sociais, sempre em equilíbrio instá-
to, criam-se os equilíbrios para desacelerar o movimento; eles vel, faz da singularidade o momento da regulação:o prometode
se agenciam espontaneamente, utilizando simplesmente as re- uma autogestão das atividades sociais, que os adversários fre-
sistências que qualquer movimento suscita em tomo de si no qüentementeconfundem com o momento da universalidade, e
meio em que se desenvolve: os equilíbrios são, simplesmente, que os defensores por vezes isolam, irrefletidamente,no momen-
resistências equilibradas -- declara Hauriou.' to individualista da particularidade, inscreve-se no momento da
singularidade. De fato, se o pruJeto autogestionário consiste não
E prossegue, ainda falando de equilíbrios: em tomar o indivíduo independentedos poderes, mas, ao con-
trário, em fazê-lo mestre dos poderes, ou seja, em socializar cada
vez mais o Estado, a economia, a técnica e outras instâncias que
Mas se eles exageram, o movimento, por seu fumo, se de-
tém. A sociedade. . . corre risco de cair num torpor próximo até hoje funcionavam como destino exterior e inexorável, a auto-
ao dos começos. Com a seguinte diferença: a imobilidade dos gestão aparece como a encamação da ideologia democrática nas
começos era uma espécie de infância plena de promessas e formas sociais reais, graças à ação instituinte dos indivíduos e
de virtualidades, ao passo que a imobilidade do fim é uma não apenas da ação reguladora do direito. Instaurar a autogestão
velhice. nada mais é do que desencadear um processo de democratiza-
ção permanente e generalizada.
O caráter transformável e a caducidade das instituições -- sua Quanto a isso, o momento da particularidade revela o papel
obsolescência, para certas formas singulares -- minam a ideolo- extremamente "positivo" da negatividade em ato em toda práti-
gia universalista que essas próprias instituições encarnam, de- ca social. O que é um ator social? IJm indivíduo que recebedo
céu jurídico um destino antecipadamentetraçado, como as li-
7 Hauriou, Maurice. Le poítzf de urzede /'ordre e de /'éq í/abre. Privat, 1909. nhas da palma da mão, ou um indivíduo que se forma na e pela
64 RENA LOURAS
O INSTITUINTECONTRAO INSTITUÍDO 65
negação de todas as falsas evidências da universalidade, na e Após várias décadas, os revisionismos proclamam a plenos
pela síntese de todas as coaçõesarbitrárias ou racionais da sin- pulmões que o grande deus Pã - o proletariado está morto;
gularidade? Sua "participação" no sistema institucional não é que o proletariado, com todos os conteúdos que comporta este
simples ratificação ou delegação: o fato de que ela seja condi- conceito cego, não é mais o significante da história, o instituinte
de uma nova sociedade. As ditas ciências sociais e/ou humanas
cional, conflitual, contestatária, mais próxima da solidariedade
orgânica que da solidariedade mecânica, não deve despertar dú- - encabeçadas pela sociologia -- foram engolidas pela brecha que
vidas. Os imperativos da produtividade, da eficácia, do rendi- o movimento operário, com seus teóricos e seus estrategistas,
mento etc., são formas ideológicas, universalistas, negadas não deixou aberta. A idéia de revolução envelheceu, o instituinte se
só pelos imperativos singulares da organização como lugar de esfuma em favor do instituído que naturalmente se toma o "ob-
socialização,como pelas exigênciaspróprias de cada indivíduo jeto" (fantasmático,transicional) das ciências sociais. Até que o
instituinte novamente faça ouvir seus gritos desordenados.
particular.Como podemos já adivinhar pela generalizaçãodo
não", clamado por determinadas camadas da população, o Na diabéticado instituinte e do instituído, as ciências sociais e
enfrentamento entre a ilusão universalista da sociedade neo- a teoria política começam, enfim, a encontrar um objeto de co-
nhecimento.
capitalista (rendimento, produção desmedida, concorrência ve-
lada mas exacerbada,consumodirigido) e a reivindicaçãoins-
tituintedas massas tomará, cada vez mais, o ar de impiedosa
guerra religiosa.
Sociedade instituinte, sociedade instituída: mais que de for-
mações sociais morfologicamente isoláveis e observáveis (clas-
ses ou estratos), trata-se, mais profundamente, de instâncias, de
forças em complementaridade e em luta confusamente --, fora
dos critérios demasiado cómodos de pertencimentoobjetivo a
um dos dois "campos" que constituiriam a sociedade. A luta so-
cial, o drama social não devem evocar uma batalha de Fontenoy
usada para decorar o prato de sobremesa. Evocam, sobretudo,
uma sombria guerrilha, cheia de emboscadas, fugas e camufla-
gens imprevistas, uma guerrilha onírica da qual estão excluídos
o princípio de identidade e outras garantias aristotélicas, tornan-
do definitivamente irrisórias as antigas estratégias em termos de
programas, de disputas eleitorais ou de "unidade de ação"
Seria "bom demais" se o instituído se confundisse sempre com
o aparelho de coação,com o poder estabelecidodas classes do-
minantes. Seria bom demais se o instituinte se confundisse com
a capacidade de aná]ise e de contestaçãopotencial atribuída a
cada indivíduo ou a uma categoria social de contomos precisos,
carismaticamente encarregada de fazer a história.
OBJETO E METIDO DA ANALISE INSTITUCIONAL 67
A análise
Análise Institucional: trata-se, em princípio, de definir cada
um dos termos e de estabelecer em que se modificou seu con-
teúdo.
onJETO E METODO DA Antes de mais nada, que significa o termo aná/íse?Começare-
ANALISE INSTITUCIONAL* mos pela definição de Yves Barel.
Em que consiste o método analítico? Baseia-se, essencial-
mente, na hipótese de que é possível explicar e compreender
Um novo espírito científico uma realidade complexa decompondo-a em elementos sim-
ples, analisando cada elemento e somando, ou pondo uma
FÉLlx GuATTARI ESCREVIA RECENTEMENTE,apresentan(io unl depois da outra, essas análises. O método analítico não rechaça
número de Rec/zero/zes (revista do movimento institucionalista): as relações nem a interação entre os elementos. Mas se baseia
na idéia de que tais relaçõessão mais bem explicadas pela ação
A análise institucional implica um descentramento radical dos elementos, pois aquelas não explicam esta ação. Sejamos
da enunciação científica. Mas, para consegui-lo, não basta dar um pouco mais precisos: para estudar o papel de um elemen-
a palavra aos sujeitos envolvidos às vezes uma questão to no conjunto, o passo clássico do método analítico consiste
formal, inclusive jesuítica. Além disso, é necessáriocriar as em fazer variar, experimental ou idealmente,este elemento,
condições de um exercício total, paroxístico mesmo, desta permanecendo constantes os demais; ou então em manter
enunciação. A ciência nada tem a ver com medidas justas e constanteeste elemento enquanto os demais variam. Dessa
compromissos de bom-tom. Romper, de fato, as barreiras do forma, procedendo elemento por elemento ou relação por re-
saber vigente, do poder dominante, não é fácil. . . E todo «um lação, podemos chegar a uma compreensão do conjunto.:
novo espírito científico» que precisa ser refeito.'
Eis a definição"clássica"de análise.Ao falar de aná/ísenas
Este texto, sob a forma de um manifesto,indica o que está ciências humanas (psicanálise, análise institucional, socioanálise)
por construir e o que se precisa realizar: "um descentramento tambémse tem por alvo a decomposiçãode um todo em seus
radical". Trataremos de apontar neste artigo como se efetuará
tal descentramento e quais são os "centros" deslocados pelo mo- aves Band. 4 análisedosslsfelnzas;
proble7nzas
e possfbllf(lides,
mimeo, 1973.Do
vimento. mesmo autor "A reprodução social: sistemas viventes, invariância e mudan-
ça", Paris: Anüuopos, 1973. Y Batel acrescenta: "Nenhuma investigação cien-
'Objeto y método del análisesinstitucional", in: E/ Ánlí/ísfs Itzsfífzzcfotz(z/.
Madre: tífica, incluindo a abordagem sistêmica,pode prescindir do método analítico.
Campo Abierto, 1977 versão a partir da qual foi efetuada a presente tradu- Tudo o que dizem os grandes teóricos do sistema é que o método analítico,
ção. Publicado anteriormente em francês(Poür, n' 32, 1973).Tradução: Patrí- perfeitamente adaptado ao estudo dos sistemas simples(na prática, alguns
cia Jacques Femandes e Heliana de Barcos Conde Rodrigues. sistemas físicos), toma-se inadequado para o estudo dos sistemas mais com-
Líminaíre de Rec/zero;zes,março, 1973. plicados'
68 RENÉ LOURAU OBJETO E MÉTOO0 0A ANÁLISE INSTITUCIONAL 69
elementos. A isto se acrescenta a idéia de interpretação: interpre- Marx, pondo em evidência a luta de classescomo significado
tar um sonho ou uma fala de grupo é passar do desconhecido ao do movimentoda história e a instituiçãoda mais-valiacapita-
conhecido; é uma operação de deciframento. Freud compara o lista (mascarada pela instituição do salário); Freud, descobrin-
descobrimento do inconsciente ao deciframento de hieróglifos. do o inconsciente, oculto sob uma ordem institucionalcriadora
Aqui, a análise transforma-se em hermenêutica.s Procede-se tra- de racionalizações.Tanto um como outro nos convidam a uma
zendo à luz o que está escondido e só se revela pela operação investigação acerca do ocu/fomediante um questionamento das
que consiste em estabelecer relações entre elementos aparente- instituições ocultantes, sejam elas da ordem da racionalização,
mente disjuntos. Trata-se de reconstruir uma totalidade que se sejam da ideologia. Esta investigação é uma hermenêutica que
havia rompido. implica o desvelamento da repressão do sentido por meio da aná-
Marx utiliza muitas vezes o mesmo termo - a análise - em O lise dos fatores de desconhecimento. Este ocultamento se com-
Capita/. Especifica ser ela necessária somente quando as relações pleta através de mediações institucionais que permeiam toda a
sociais não são imediatamente visíveis e, sobretudo, na relação sociedade.
de exploração. Com efeito, a exploração é visível no sistema feu- Assim, as leis, as regras, os preconceitos que limitam a sexua-
dal. O discurso analíticonão é necessário,no caso. Porém a ex- lidade a sua "função" de procriação ocultaram a verdade sobre
ploração se acha dissimulada no sistema capitalista e, para que o desejo sexual. A luta instituinte contra essas regras instituídas
venha à luz, para que se revele, uma análise toma-se então ne- manifestou-se em comportamentos ou obras artísticas conde-
cessária.
nados: destruiu-seUrbano Grandier, como se fez posteriormen-
te com as obras de Diderot ou Sade.
O escondido, o inconsciente, o inibido Estas manifestações de não-conformidade com o instituído são,
elas mesmas, reveladoras da natureza do instituído. São o ..4N,4
As instituições formam a trama social que une e atravessa os Z./S,ODOR.Do mesmo modo, a Comuna de Paras foi o revelador
indivíduos, os quais, por meio de sua praxis, mantêm ditas ins- do Estado de classe e de sua verdade; assim, Marx descobre atra-
tituições e criam outras novas (instituintes). vés da Comuna o que é realmenteo Estado.
As instituições não são somente os objetos ou as regras visí- Marx e Freud elaboraramsuas teoriasgraças ao que revela-
veis na superfície das relações sociais. Têm uma face escondida. vam os dispositivos analisadores:a práfíca revolucionária, o ce-
Esta face, que a análise institucional se propõe a descobrir, reve- rimonial da czzra psicanalítica.
la-se no nãó dífo. O ocultamento é produto de uma repressão. Po-
deríamos falar, aqui, de uma repressão social que produz o in- Os analisadores
consciente social. Aquilo que se censura é a palavra social, a ex-
pressão da alienação e a vontade de mudança. Do mesmo modo O "novo espírito científico" encontrou sua origem na mudan-
que há um retorno do reprimido durante os sonhos ou nos aros ça profunda a partir da qual é o ízna/ísador qzze rea/íza a aná/fse.
falhos, há um "retomo do reprimido social" nas crises sociais. Encontraremos um exemplo desta mudança no número de Re-
Descobrir o não dito, o censurado, foi a obra de Marx e Freud, c/zero/zes
anteriormente citado. A análise institucional já não signi-
os dois grandes desmascaradores. fica, hoje em dia, o que era em sua primeira fase psicoterapêutica
(Saint-Alban, Cour-Cheverny), ou seja, a técnica que consiste em
3 Hlermenêutica: ciência da interpretação do que está oculto. manipular as "instituições" de cura para tratar os enfermos. Já
70 RENÉ LOURAU
OBJETO E MÉTODO 0A ANAL.iSE iNSTiTUCiONAl- 71
não significaum uso das instituiçõespara produzir o material Mais adianteveremos como a contra-sociologiautiliza o mes-
da análise. A análise institucional é, anualmente, a irrupção na mo termo. Mas antes é necessáriodizer algumas palavras acerca
cena política dos antigos "clientes" dos analistas. E a transfor- das instituições.
mação de uma palavra terapêutica, até agora escravizada pelos
analistas, em uma palavra política, liberada e liberadora, dos As instituições
analisadores. E o ataque conduzido sobre o próprio terreno onde
até então se mantinha a dominação analítica. Passa-se, portanto, A existência de obras4 dedicadas a examinar as diferentes
da noção de análise à de analisador. acepções do termo í?zsfífuíção,a destruir e reconstruir o conceito,
Também nesta noção voltamos a encontrar a idéia essencial nos permitirá recordar aqui apenas o essencial.
da decomposição de uma totalidade nos elementos que a com- Primeiro, as instituições são normas. Mas elas incluem tam-
põem. O analisador químico é aquele que decompõe um corpo bém a maneira como os indivíduos concordam, ou não, em par-
em seus elementos,produzindo, em certamedida,uma análise. ticipar dessas mesmas normas. As relações sociais reais, bem
Neste caso, encontramo-nos nas ciências físicas. Não se trata de como as normas sociais, fazem parte do conceito de instituição.
í/zferprefar
nesteprimeiro nível, mas de decomporum corpo Não Seu conteúdo é formado pela articulação entre a ação histórica
se trata de construir um discurso explicativo, mas de trazer à de indivíduos, grupos, coletividades, por um lado, e as normas
luz os elementos que compõem o conjunto. sociais já existentes, por outro.
Quando Pavlov chama de "analisadores" o córtex, os órgãos Segundo, a instituiçãonão é um nível da organizaçãosocial
dos sentidos, quer sublinhar o fato de o aparelho neurológico (regras,leis) que atua a partir do exterior para regular a vida
produzir uma primeira "análise" do mundo exterior.A partir dos grupos ou as condutas dos indivíduos; atravessa todos os
desta primeira análise, construíram-se as teorias. Mas o sistema níveis dos conjuntos humanos e faz parte da estrutura simbólica
nervoso realiza, antes, uma ordenação: efetua-se,assim, uma pri- do grupo, do indivíduo.
meira interpretação da realidade. Ao retomar o conceito de ana Logo, pertencea todos os níveis da análise: no nível indivi-
lísador nos trabalhos de psicoterapia institucional, Torrubia e dual, no da organização(hospital, escola,sindicato), no grupo
Guattari se inspiram, sem fazer referênciaexplícitaa isso, nesta informal bem como no formal, encontramos a dimensão da ins-
definição de analisador. Com efeito, chama-seana/ísador,em uma tituição.
instituição de cura, aos lugares onde se exerce a palavra, bem
como a certos dispositivos que provocam a revelação do que es- IJm sistema de regras
tava escondido.
A introdução do termo neste contexto marca, por conseguin- As instituições aparecem em primeiro lugar e têm sido defini-
te, uma evolução da prática institucionalista. das como sistemasde regras que determinam a vida dos indiví-
-- em um primeiro momento, as "instituições" eram concebi- duos, dos grupos sociais e das formas sociais organizadas. Com
das como instrumentos terapêuticos. frequência, estas últimas fábrica, hospital, escola, sindicato.
- em um segundo período, sem eliminar totalmentea primei-
ra orientação, estas instituições (a "grade" ou emprego do tem-
po, as reuniões, etc. . .) aparecemcomo reveladoras, catalisadoras R. Lourau. l.'arzalyse ílzstítutlontzeZle,1969(A aná/ise instítzlcfanal, Vozes, 1975).
Georges Lapassade. Grozlps, organisafío?zs, ínstitzztfons. Gauü\er Villars, 1967
do sentido: realizam, elas mesmas, a análise. (Grupos, organizações e ílzsfifuições, Francisco Alves, 1977).
72 RENÉ LOURAU
OBJETO E mÉrooo OA ANÁLISE INSTITUCIONAL- 73
- são chamadas de ízzsfífufções.Não se trata de confusão entre
duas acepções diferentes do termo, visto que podemos conside- Todas estas concepções consideram as instituições essencial-
mente sob o aspecto do instífuído, incluindo as exigências da so-
rar certas formas sociais singulares como sistemas de regras uni-
ciedade para seu funcionamento.
dos a outros sistemas de regras, formando, em conjunto, o teci- Em todas estas teorias, de Durkheim a Parsons, escotomiza-
do institucional da sociedade. Falar da escola como instituição é
se uma dimensão importante da instituição, que é o ínsfítuilzfe,ou
simplesmentefalar de um sistema de regras organizado segun-
seja, o fato de que a instituição, embora se apresente como um
do uma estrutura espacial imediatamente expressiva, mais clara
fato exterior ao homem, necessitou de seu poder instituinte. Além
que a instituição do matrimonio ou do salário, que definem, to-
disso, se o homem sofre as instituições, também as cria e as man-
davia, o verdadeiro "nível" da instituição.
Assim, um "estabelecimento"seria uma instituição,da mes- tém por meio de um consenso que não é somente passividade
ma forma que uma lei estabelecida. diante do instituído, mas igualmente atividade instituinte, a qual,
além disso, pode servir para pâr em questão as instituições. O fato
O termo ínsfífuíçãopode referir-se também às constituições
de que uma instituição seja contestada também faz parte dela.
políticas, às leis, aos aparelhos encarregadosda execuçãoe do
controle dessas leis, bem como aos preconceitos, às modas, às Em uma postura contrária a essessistemas objetivos, exterio-
superstições etc. res ao homem, que não estudam a instituição senão como regras
de funcionamento social, alguns autores elaboraram uma con-
Todas essas regras, normas, costumes, tradições etc., que o in-
divíduo encontra na sociedade, são o que está í?zsfífzzz'do
e que o cepçãoa partir da psicologia.Para Monnerot, por exemplo,as
sociólogo pode estudar de maneira objetiva. Esta ordem do ins- instituições são objetos imaginários. São sistemas de defesa con-
tra a angústia que se projetam no exterior. A compreensão das
tituído foi privilegiada tanto por aqueles que têm uma concep-
ção objetiva do direito quanto pela sociologia positivista. instituições passa pela compreensão do plano individual. E por
Nesse sentido, para Durkheim, a instituição é assimilada ao empatia com uma pessoa que se poderá compreender o papel
das instituições.Aqui, voltamo-nospara a questão da implica-
instituído. Acompanhando Saint-Simon, Augusto Comte e Spen-
cer Durkheim considera as instituições como pura coação exte- ção. A ela retomaremos posteriormente.
rior, imposta pela sociedade como uma necessidade de regulação O instituinte contra o instituído
social. Admite que as instituições podem deixar de desempenhar
seu papel e que é necessáriomodifica-las,mas a iniciativa de
Desde suas origens, a corrente institucionalista p6s ênfase na
uma mudança é devolvida ao próprio instituído, aos organiza-
relaçãoantagonistaentreo ilzsfífzzílzfe
e o insfífuüo e nos proces'
dores a serviço do Estado. Esta é uma concepção ao mesmo tem-
sos ativos da ílzsfftucíorzaZízação.
A alienaçãosocial significa a
po positivista (a instituição é uma "coisa", um "fato social" que
autonomização institucional,a dominação do instituído funda-
coage o homem a partir do exterior) e funcionalista (seguindo
da no esquecimento de suas origens, na naturalização das insti-
um modelo biológico: as instituições se encarregam da regulação
da sociedadepara prevenir a anomia, ou seja,o aniquilamento tuições. Produzidas pela história, elas acabam por aparecer como
da coesãosocial). fixas e eternas, como algo dado, condição necessária e trans-his-
tórica da vida das sociedades.
Esta concepção funcionalista corresponde à dos antropólogos
como Mãlinowski, aos culturalistas americanos, a Parsons (es- Este esquecimento ("efeito beber": a ignorância institucional
trutura-funcionalismo). e instituída), este não dito que fundamenta os discursos analíti-
cos sobre o si]êncio em lugar de fazê-lo sobre o que os institui,
74 RENÉ LOURAU OBJETO E mÉTOO0 0A ANÁUSE INSTITUCIONAL 75
eis o que a análise institucionalfaz aparecer,interrogando o ato De fato, e isto tem uma importância metodológica essencial, a
de ínsfífuír que definiu a instituição. ínsfftuiçãoatravessa todos os níveis de uma formação social de-
Os processoshistóricos de crise, de mudança e de revolução terminada.
são o laboratório da sociedade instituinte. Mas a aproximação A tradição marxista situa as instituições na "superestrutura
ao instituinte também pode passar pelo estudo de momentos de da sociedade.
"efervescência" (Durkheim) passíveis de serem observados, em Estas instituições políticas, objeto de uma "ciência" específica
certas sociedades, nas festas e nos transes coletivos. As cerimó- - a "ciência política" no sentido clássico do termo --, são as insti-
nias ditas de possessão ritualizam a evocação do instituinte ori- tuições do governo --o aparelho de Estado --, bem como as ins-
ginal. Mas nestes ritos, em razão de serem rifas, só encontramos tituições supranacionais e internacionais. Definem um campo es'
o instituinte arrefecido, re-produzido, ainda mantido no esque- pecífico, por oposição outros setores da sociedade. Implicam,
cimento das condutas sociais de origem. portanto, uma sepízração das instâncias da formação social, ao
A cultura dos oprimidos (especialmente dos ritos dionisíacos) mesmo tempo que uma certa autonomia do po/ítíco.Marx, a par'
reproduz e repete a recordação deformada e atrofiada de um pro- tir de Hegel, em sua crítica da filosofia hegeliana do Estado e
jeto originário de liberação e de institucionalização coletiva: na do Direito, localiza as írzsfifzzíções (em geral) na superestrutu-
parte mais secreta, mais codificada e simbolizada, os ritos de pos- ra, junto com as ídeo/ogías.Não utiliza explicitamente o conceito
sessão e de transe "contam" um passado de luta contra a opres- de instituição a não ser quando analisa a base económica da
são, falam da "magia negra" da revolta e do entusiasmo coleti- sociedade.
vos; em suma, mediante um discurso indimto, indicam tudo aquilo Ora, a base económica da sociedade se define por meio das
que forma o núcleo de qualquer experiência revolucionária. relações de produção que estão institucionalizadas: a venda da
Assim, na revolução, as novas instituições (contra-instituições) força de trabalho, por exemplo, se articula em um sistema institu-
aparecem e se desenvolvem, para depois regredir e desaparecer cional.s Não se trata de descrever as instituições económicas (o
com a subida do novo poder, para passar a um inconsciente co- crédito, o banco, o mercado) como faz anualmentea ciência eco-
letivo que é o f?zconscíenfepo/ífícodas sociedades. nómica clássica.' Tampouco de analisar a "institucionalização da
vida económica".7
Níveis e instâncias
Finalmente, as ideologias não existem em um céu de idéias,
independentementede suportes materiais (materialidade dos
Em certas obras de orientação insütucionalista, como Cbaz?es meios) e de determinações económicas (as instituições da indús-
dízSocio/agia,por exemplo, a instituição é apresentada como um tria cultural, da edição e, de modo geral, da produção de mensa-
nível de análise, posterior aos níveis do grupo e da organização. gens são cada vez mais as instituições ecotzõmícasda indústria
Tal descrição deve ser modificada. Com efeito, se admitimos cultural: atualmente existem supermercados da cultura, trustes
que a instituição é, fundamentalmente, aquilo que mantém a exis-
tência dos indivíduos, grupos e organizações ("a instituição faz Cf. Paul Cardan. "Marxismo y teoria revolucionária". Sacia/ísme
oz/Barbárie,
o homem", escrevia Rousseau) e que os atravessa (por exemplo, n' 39, marzo-abril, 1965, n' 40, judo-agosto, 1965(retomado em "A institui-
é a divisão ínsfífuüa do trabalhoque determinaa organização ção imaginária da sociedade", Paz e Terra, 1986).
CÍ. La economia{nstituciotiat.
da empresa), é necessárioapresentara ínsfífuíçãoe a análise. TalcottParsons. "La institucíonalizaciónde los valores y las motivaciones de
institucional em outros termos. la actividad económica", in: Psyc/zoZogíe
soclale.Paria: Lévy-Dunod, 1965
76 RENÉ LOURAU OBJETO E MÉTODO DA ANÁLISE INSTITUCIONAL 77
de editores). Os aparelhos ideológicos são atravessados pelo "eco-
nómico" e pelo "político' NÍVEIS MÉTODOS OE APROXIMAÇÃO
Hoje em dia já não é possível conceber as instituições como
um estrato, uma instância ou um nível de uma formação social Organismo Biologia
determinada. Pelo contrário, é necessário definir a instituição Psicologia
como um "cruzamento de instâncias" (económica, política e ideo- INSTITUIÇÃO Psicanálise
lógica) e afirmar, além do mais, empregando a linguagem da Psicosociologia
análise institucional: se é certo que toda instituição é afraoessada Organização Sociologia das Organizações
por todos os "níveis" de uma formação social, a instituição deve
ser definida necessariamente pela fra?zsoersalfdade.8 ANÁLISE I NSTITUCIONAL
Sendo assim, não podemos considerar a instituição como um
nível, porque se encontra presente também em todos os outros.
Trata-sede uma dimensão fundamental que atravessa e funde A instituição é o inconsciente político
todos os níveis da estrutura social.
Podemos apontar o lugar específico do conceito de institui- Insistimos muitas vezes no não dito, no oculto, na ignorância
ção nos níveis de análisepor meio de um gráfico. Ele indica es- institucional (Max Weber). A partir daí, sugerimos que a análise
sencialmenteque a instituiçãonão é um "nível" ou uma "ins- poderia ser concebida como uma hermenêutica.
tância" da realidade e da análise. É uma instância que atravessa Mas ainda é necessário explicar a origem do desconhecimen-
as outras instâncias: a da organização, a do grupo, a da relação. to, do esquecimento institucional. Devemos indicar o motivo de
8
Esta revisão do conceito de instituição tem conseqiiências práticas, especial- sermos ignorantes e, também, cegos ante nossas instituições, bem
mente na prática social, na mudança social. Um só exemplo é suficiente para como a que razão se deve que tal ignorância geralmente não seja
demonstra-lo: trata-se do problema clássico, no movimento operário, das re- levada em conta nas ciências sociais.
lações entre os partidos e os sindicatos, e das relações destes dois tipos de A hipótese fundamental é que o Estado de classe é o lugar
instituições com a mudança social. Se admitimos, de fato, que as instituições
são "atravessadas tanto pelo económico como pelo político e o ideológico originário da repressão. A ilusão institucional e o desconhecimen-
põr em práhca este princípio tem consequências imediatas na teoria da or- to são necessários para que o sistema social se mantenha, para a
ganização revolucionária e do processo revolucionário (em ouh'a linguagem, estabilidade das relações sociais dominantes, produzida e re-pro-
que será especificada em seguida, em uma teoria da mudança social). Esta
posição teórica conduziria a duas conseqüências: a) Renunciamos a separar duzida pelas instituições.
a luta económica (que seria função das instituições sindicais) e a luta políti- O Estado centralizado tanto funciona tanto como fonte de re-
ca (reservada aos partidos). Mas os partidos e os sindicatos inspirados no pressões quanto, além disso, mediante todos os seus mecanis-
marxismo não param de oscilar entre o economicismo(que define as insti-
tuições como puros reflexos) e a orientação anarco-sindicalista que privile- mos e aparelhos ideológicos, como produtor permanente do des-
1'
gia, ao contrário, a contestaçãodas instituições e uma certa problemática
conhecimento institucional.
institucional. b) Com base nas considerações anteriores e em função do que Daremos um exemplo. Nas anuais lutas das minorias nacio-
acabamos de enunciar, seria necessário acabar com a separação atual entre a
luta institucional(definida por outros, como veremos, como uma "luta de nais, o programa consiste em destruir a hegemonia instituída das
civilização" e até mesmo como "revolução cultural") e a luta definida como linguagens dominantes, sua tirania. Estas lutas são os anali-
diretamentepolítica(aboliçãoda propriedade privada dos meios de produ- sadores da dominação do Estado centralizado, as fontes dire-
ção e, sobretudo, tomada do poder de Estado). tas de sua destruição. As minorias etnolingüísticas põem em
)
78 RENÉ LOURAU onJETO E mÉTooo OA ANÁLISE INSrlTUCIONAL 79
suspenso o estatismo. Lançam-se contra o centralismo cultural, Lamentea impressão de ter uma finalidade experimentalista.
contra a colonização e a repressão das línguas e das culturas do- Conquanto não se trate de ratos e macacos, decerto o aspecto ex-
minadas.
periencial ou experimental está sempre presente na intervenção
Eis como funcionam esta dominação e esta repressão: em nome socioanalítica. Quando os alunos submetidos à pedagogia insti-
das línguas dominantes, os idiomas invalidados são taxadas de tucional se recusam a ser cobaias de seu professor; quando os
bárbaros, da mesma maneira que as religiões decaídas são re- enfermos de um hospital psiquiátrico afirmam que se os médi-
baixadas à categoria de bruxaria e de magia. cos aparecem como os "capitalistas", eles, os enfermos, são os
As instituições desqualificadas transformam-se sempre em ins- 'proletários"; quando, após haverem lido os resumos das inter-
tituições malditas, diabólicas, reprimidas e, finalmente, destruí- venções socioanalíticas," os católicos dizem que nada têm que
das. Em razão da mesma dinâmica histórica, a religião vencida ver com as amostras de população de Lévi-Strauss, fica claro que
transforma-se em magia negra e a linguagem inferiorizada toma- a relação de dominação geralmente existentena experimenta-
te dialeto (patoá) e depois dialeto regional, até que desaparece. ção é trazida à luz, independentemente do que pensem dela o
Os berberes da Africa do Norte tiveram um alfabeto, mas hoje pedagogo, o psiquiatra, o socioanalista.
os signos dispersos dele só são encontrados nos motivos decora- Nos seminários autogestionados, a autogestão aparece como
tivos dos tapetesberberes. um dispositivo artificial e sem eficácia direta sobre a mudança
Estes signos foram dispersados, esquecidos e reprimidos, a social. A autogestão de um seminário de curta duração ou de
base material da língua foi destruída; o cultural reprimido só uma intervençãosocioanalíüca,que dura alguns dias somente,
aparece em fragmentos disjuntos --signos materiais agora sepa- não é a autogestãode uma turma ou de um estabelecimentoes-
rados de seu sentido.
colar. No caso de um estabelecimento,pomos em marcha um
As culturas reprimidas sobrevivem, contudo, no inconsciente verdadeiro prometo social de transformação.
das sociedades. Mas seus farrapos se dissimulam, se deformam Todas as situações de análise e de intervenção estão baseadas
e se reduzem ao estado de signos disjuntor, como podemos ob- no manejo de analisadores construídos e artificiais (a cura psica-
servar em alguns ritos de possessão.9Em tais ritos, o retomo do nalítica, o T Grotzp,etc. . .), atualizados com o objetivo de fazer
reprimido se traduz pelo uso de "tacos", de perjúrios, de inver- emergir, como disse Freud, um material analisável. O "cerimo-
sões de sentido, de jogos de palavras em que se expressa, de for- nial da cura analítica" é, de fato, um dispositivo quase experi-
ma dissimulada e indireta, a contestação da linguagem dos gru- mental de conhecimento. Os analisadores construídos definem
pos dominantes, ao mesmo tempo que a recordação das lutas o "laboratório social": para as ciências sociais, constituem o equi-
dos oprimidos. valente do laboratório.
O cientificismo, em sentido estrito, é a reprodução do labora-
A experimentação tório no campo das ciências sociais e psicológicas. Não é o que
l propomos com a teoria dos afia/ísadores naturais e artificiais. Tra-
C) objetivo da análise institucional em situação de interven- ta-se, aqui, de equivalência, e não de reprodução ou de imita-
ção é z;lz/ídar
o conceito de analisador. Esta proposição dá imedia- ção. O conceitode analisador é, pelo contrário, o único meio de
ultrapassar a oposição e o antagonismo que de fato existem,
9
Vale assinalar que os processos de possessão da Idade Média eram também /
os processos da Occitânia. 10 CÍ. Les anatyseurs de I'égtise
80 RENÉ LOURAU OBJETO E mÉTOO0 0A ANÁLISE iNSTiTUCiONAl. 81
anualmente,entre as ciências humanas experimentais e as ciên- clubes ou massas jacobinas. Existe um movimento jacobino,
cias humanas clínicas. analisador das contradições da revolução burguesa, que acaba
por negar seus dirigentes teóricos e derruba-los.
A funçãodo intelectualanalista Entre Lênin (e outros dirigentes teóricos bolcheviques)de
um lado e o movimento revolucionário russo de outro, entre a
O projeto da análise institucional, acompanhando o ponto de gênese teórica e a gênese social de 1917-1921,as relações são
vista da tendência - insistir mais na luta antiinstitucional do que tão estreitas que, sem este "encontro", o anónimo jogador de
na construção de um novo sistema filosófico --, é menos acres- xadrez acostumado às tabernas de exilados não teria escrito O
centar algo à sociologiacrítica (anta-sociologia)do que propor Estado e a Rez;oZzzcãbnem .4 Elláerlnídade lílláantí/ nem a plêiade de
uma altemativa aos modelosde análisee de intervençãosocial. textos e de discursos que, de 1917 até sua morte, constituem o
Aqui, "propor" deve ser entendido da seguinte maneira: em diário de bordo sociológico de um dos fatos mais importantes
tempo "normal" (ou seja, durante um período "frio"), a teoria da história humana, que poderíamos denominar "o fracasso da
da análise social, produto de práticas sociais de intervenção, é profecia racional
somente uma atividade de intelectual. Este último tem a tarefa, A primazia do analisador sobre o analista, ainda que este últi-
portanto, de enunciar proposições (e não ditar dogmas científi- mo seja simultaneamente um analisador extraordinário como
cos) extraídosdas relaçõesque estabeleceentreas práticas so- é o caso dos grandes dirigentes acima mencionados --, não vale
ciais e sua própria prática social, sempre menos rica que a das apenas para as relações entre massas e dirigentes. Aplica-se igual-
categorias ou dos grupos confrontados diretamente (originaria- mente às relações entre dirigentes opostos, mesmo se, na maior
mente) à exploração. Fica claro, assim, que tais proposições não parte dos casos, a história não canoniza os verdadeiros rivais dos
são produtos de seu espírito mais, ou menos, brilhante, tampou- heróis: o analisadosde Lutero também é Münster, dirigente da
co puros "reflexos" de lutas levadas a cabo pelos outros. Mais guerra dos camponeses, da "primeira revolução social alemã"
precisamente, trata-se do resultante teórico, ou debilmente prá- (Engels). Calvino tem seu Miguel Servet, Robespierre tem seus
tico-teórico, dos efeitos da prática social dos outros sobre a do contrários, Lênin tem Makhno e Stálin tem Trotski. E negando e
intelectual, a qual compreende principalmente, e às vezes uni- sendo negados por esses opositores ou desviantes radicais que
camente, a prática da escritura e da fala. O intelectual não é o os dirigentes triunfantes se constituem positivamente, criam seu
analisador e sim o analista, com possibilidade de tomar consciên- campo teórico e o campo de ação de seu poder. Neste sentido, o
cia dos efeitos dos analisadores que desencadeiam sua interven- que existe para nós na qualidade de proposições do protestan-
ção (analista tanto no sentido mais amplo do termo quanto no tismo, do jacobismo e do bolchevismo é a produção de gêneses
sentido técnico da palavra em certas ciências sociais). Não tem sociais dramáticas e trágicas, e não uma série de etapas mais ou
apenas de reconhecer e legitimar ou mesmo exaltar a existên- menos capitais ou medíocres de uma gênese teórica integrável
cia dos analisadores; deve compreender que somente os ana- em uma história das idéias religiosas e políticas. Melhor ainda
lisadores o constituem como analista. Lutero ou Calvino não exis- que nos casos de Lutero, de Robespierre ou de Lênin, através de
tem como dirigente teóricos de um movimento protestante, mas Calvino se percebe como oínfe árias de /umas compuseram, aumen-
sim como produtos intelectuaisdo movimento, que acaba por taram desmesuradamente,transformaram e orientaram defini-
nega-los como efeitos. Não há de um lado Robespierre como di- tivamente uma obra teórica..4 1nsfif irão Crísfã obra muito mais
rigente teóricodo movimentojacobinoe, de outro, as seções, analisadora das contradições calvinistas que o livro teórico do
82 RENÉ LOURAU OBJETO E MÉT000 0A ANÁLISE INSTITUCIONAL 83
analista Calvino -- é atravessada, de um extremo a outro, pelas geral, de um cientificismo ultrapassado, esquecido de que, para o
correntes e alvoroços sociais: cada página está teoricamente de- "novo espírito científico", o observador já está implicado no cam-
terminada pela necessidadede manter ou de reafirmar as dé- po da observação, de que sua intervenção modifica o objeto de
beis relações de força estabelecidas entre o ditador de Genebra e estudo, transforma-o. Mesmo quando o esquece, o analiscaé sem-
seu clique. Trata-se de uma obra contrateológica e contra-socio- pre, pelo simples fato de sua presença, um elemento do campo.
lógica, pulsando no mesmo ritmo que a contra-instituição ge- A questão da implicação fora há muito levantada por alguns
nebrina, e não de uma obra de crítica teológica,como poderia críticos do objetivismo.
ser a de Erasmo, na mesma época. Erasmo, Adorno ou Marcuse, Segundo a corrente fenomenológica, é fazendo-se psicólogo
aquando sobre a elite intelectual mas não chegando a ser, eles que o sociólogo pode compreender esses "estados vividos" de
mesmos, influenciados pelas massas, diferem de Lutero, de sociedade que são as formas sociais chamadas grupo, organiza-
Calvino e de tantos outros dirigentes locais da reforma. ção, instituição, sociedade.
A introdução da instituição como //zferíorfdade
é fundamental,
Implicação metódica mas parcial:
Fundamenta/, já que introduz a dialética na observação, per-
O conceitode implicação,
que tendea tomaro lugar do de mitindo evitar a confusão dos positivistas entre o objeto real e o
contratransferência institucional", opõe-se radicalmente às pre- objeto de conhecimento. Segundo Merleau-PontJÇ o sociólogo
tensões de objetividade fixadas pelos pesquisadores em ciências acede ao conhecimento não só pela observação de um objeto ex-
sociais. Assim, por exemplo, no n' 28 da revista tour, dedicado à terior, mas igualmente canalizando sua própria implicação no
'análisesociológicadas organizações" e compilado por um mem- momento da observação. Assim, por exemplo, não se pode reco-
bro do centro de sociologiadas organizações(E. Friedberg), vá- nhecer a especificidade do sistema de parentesco "enquanto não
rias notas insistem na neutralidade do sociólogo. Vejamos: "0 tenhamos conseguido ínsfa/ar-/zosna instituição circunscrita des-
sociólogo é exterior ao campo que investiga, não participa. . . O ta forma"
sociólogo, como o etólogo, na medida do possível, deve fazer Fareja/, na medida em que se detém em uma simples com-
faliu/arasa de suas experiênciasanteriores, de seus valores, de preensão, sem explicação possível dos fenómenos sociais.
suas opiniões ou preconceitos. Sua pessoa deve apagar-se ante a Apesar disso, Merleau-Ponty vai mais longedo que os que se
realidade empírica sob seus olhos. . . E obvio que o êxito dessas detêmna "compreensão" das instituiçõespor meio de uma aná-
reuniões depende de duas condições: é preciso que o sociólogo lise do vivido. Para ele, estudar o social "é saber como este pode
apareça, aos olhos dos indivíduos a entrevistar, como interlocutor ser simultaneamenteuma coisa a conhecere uma significação",
neutro e independente em relação à estrutura de poder da organi- como pode ser em sí e para nós.
zação estudada. Daí a importância de seu estatuto de «observa Mostra a necessidade de enlaçar a análise e a implicação, pro-
dor exterior»" etc. . . Portanto, a análiseorganizacionaldefine a pondo um passo que consisteno "vai-e-vem do homem em si-
posição do sociólogo-especialistaem termos que significam dis- tuação ao objeto, e do objeto ao homem em situação".
tanciamento em relação ao objeto. A análise institucional, ao con- Desse modo, superando a contradição entre a concepção da
trário, contrapõe a implicação do analista a tal distanciamento. instituição que dela faz uma coisa exterior ao homem (sociolo-
A implicação deseja pâr fim às ilusões e imposturas da "neu- gia positivista) e a que faz dela um puro objeto interior imaginá-
tralidade" analítica, herdadas da psicanálise e, de modo mais rio (fenomenologia social), orientamo-nos em direção a uma con-
84 RENÉ LOURAU OBJETO E MÉTODO DA ANAL.ISE INSTITUCIONAL. 85
cepção da instituição que sintetiza as instâncias objetiva e ima- quanto às teorias ideológicas, sistemas de moral em que tais
ginaria. conceitos desempenham papel importante ou secundário. Ê exa-
O exemplo mais claro de uma instituição simultaneamente ex- tamente neste sentido que se pode falar acerca das relações que
terior e interior ao indivíduo é a linguagem, a qual consiste em o experimentador (e pesquisador) estabelece com seu objeto,
um sistema de regras que o indivíduo encontra já dado, exterior quaisquer que sejam as pretensões de neutralidade relativa que
a ele, e que os lingüistas podem estudar objetivamente; ao mes- ainda encontremos hoje na pena de certos pesquisadores em
mo tempo, a língua é uma instância interior ao sujeito, que é ciências sociais. A distinção entre objeto real e objeto de conhe-
instituinte pela fala. Esta diabéticaentre o exterior e o interior cimento, embora possa ser útil em certas fases do estudo, deve
funda os sistemas simbólicos. ser criticadae negada como uma recaída no idealismocientifi-
Às vezes se diz que a desmistificação da "neutralidade" reali- cista, avatar do idealismo religioso. Aquilo que habitualmente
zada, em ato, pela análise institucional, bem como o acento que se considera escória da ciência -- os inconvenientes e limites ao
pomos sobre nossas implicações se traduzem em "narcisismo' ponto de vista neutralista deve ser. pelo contrário, colocado
por meio da irrupção do desejo não controlado dos analistas na no centro da investigação.O importantepara o investigador
intervenção. Esta crítica desconhece profundamente a teoria dos não é, essencialmente,o objeto que "ele mesmo se dá" (segun-
analisadores construídos: quando dizemos que o analisador deve do a fórmula do idealismo matemático),mas sim tudo o que Ihe
substituir o analista --de qualquer modo, na realidade é sempre é dado por sua posição nas relações sociais, na rede institucional.
o analisador que dirige a análise --, queremos indicar, como re- A partir dessa perspectiva, fica evidente que a maior parte dos
gra fundamental, que o analista não deve procurar subtrair-se artigos que aparecem nas revistas acadêmicas de sociologia
aos efeitosanalisadores do dispositivo de intervenção. ou de psicologia, por exemplo -- são quase tão "sérios" como as
A importância que a corrente institucionalista outorga à im- seções de horóscopo dos jomais.
plicação do analista implica uma comoção na noção de ciência
social. Trata-se, principalmente, de acabar com o falso problema Imaturidade da teoria
por excelência: a oposição entre corzscíêncfa
imediata ou ingênua,
de um lado, e consciência re@exíaa, a teoria, a ciência etc., por Quando a análise institucional em situação de intervenção
outro. . . Aqui volta a intervir a teoria dos analisadores como me- (Socioanálise) for conhecida e reconhecida como prática social,
diação entre a experiência e qualquer conhecimento "verdadei- ao menos em certos setores do sistema social; quando ela tiver
ro", tanto no nível de nosso corpo como no das construções inte- definido com maior precisão seus objetos, suas estratégias e suas
lectuais mais abstratas, passando pelo nível da consciência social formas específicas de atuação, certamente se poderá ir mais lon-
e do saber social. A ideologia da análise, seu sistema conceitual, ge. Anualmente, a situação paradoxal consiste na necessidade
bem como seu corpo e seu sexo são elementos do dispositivo de construir a teoria, a prática e a intervençãoa partir de cortes
analisados. de situações incompletas, de pequenos fragmentos de interven-
Quando o psicó]ogo social experimentalistaprocura validar ção realizados rapidamente, com poucos especialistaspráticos
uma hipótese baseada em conceitos como influência ou agres- bem formados e com poucas ocasiões para forma-los. Entretan-
sividade relativa, é evidente que uma grande parte (não quanti- to, para poder intervir de forma mais profunda, mais ampla, ou
ficável?) de seu "material experimental" está constituída pela seja, não somente durante quatro dias de sessões e sim durante
adesão mais ou menos racional e consciente que ele manifesta meses e anos, seria necessário dispor dessa teoria geral, que só
86 RENÉ LOURAU
progredirá efetivamentequando forem reunidas condições de
trabalho demorado. Nesse momento, a pesquisa-açáo terá dado
um passo decisivo. Porém não estamos nesse momento. A si-
tuação anual da intervenção institucional nos parece ser a seguin-
te: as intervenções curtas e limitadas, realizadas em um setor
igualmente limitado de instituições culturais e religiosas, não
permitem ir muito além de um nível descritivo dos funciona-
ESTUDOS HISTÓRICOS
mentos, sob a forma em que aparecem quase imediatamente, SOBRE A CONTRAPEDAGOGIA*
após poucas horas de consulta, e/ou desde o momento da análi-
se da encomenda. Seriam necessáriasintervençõesmuito mais
extensas para começar a explorar e a reconstruir o conjunto de
Prelúdio
uma formação social na medida em que esta se simboliza ou se
resume em uma forma social determinada (escola,fábrica, hos-
pital etc.). A teoria psicanalítica e a prática terapêutica não te- .A. SÉRIE DE PEQUENAS INFORMAÇÕESque aqui apresento so-
riam avançado muito se o número de sessõesjamais houvesse bre a pedagogialibertáriae a pedagogiasocialistanão tem in-
ultrapassadocinco ou dez. Hoje em dia, para alguém que tome tenção de ser uma verdadeira pesquisa histórica. É principalmen-
a obra de Freud apenas no nível de seu discurso articulado, me- te uma aproximação, um sobrevoo do problema do conflito entre
diante uma abordagem filosófica e contemplativa, o resultado duas correntes do movimento revolucionário no campo da edu-
aparece, em sua totalidade, acabado, sem mostrar a base de pes- cação, até hoje pouco ou nada abordado.
quisa-ação e as condições de busca que permitiram a construção A vitória dos marxistas na Primeira e na Segunda Internacio-
de tal discurso. Deve-se frisar que os problemas ditos técnicos nais desencadeiaduas reaçõesentreos discípulos de Bakunin: a
estão muito menos explorados.:' violênciada propagandapor meio da ação e a via pacífica da
propaganda pelo discurso e pela educação. Nascem assim as ex-
Lesanalyselírsde Z'i&líse.A obra contém monografias de intervenções realiza- periências pedagógicas na trança, na Espanha, na Suíça (país
das em sessõesde curta duração (quatro ou cinco dias em média). Inclui
também uma teoria da intervenção socioanalítica, bem como uma análise onde os anarquistas são poderosos) e em outros países.
da relaçãodas intervençõescom o sistemade instituiçõesreligiosas(o apa- A falência da Segunda Internacional e as reviravoltas que se
relho ideológicoda religião,a igreja e "instituições" com a missa, a reza, o sucedem à Primeira Guerra Mundial provocam, na Rússia e na
batismo etc.). Alemanha, movimentos pedagógicosque se confrontam: socia-
listas e libertários. A reincidência desse enfrentamento fará nas-
cer, mais tarde, a "educação nova", em ligação com as inovações
em ciências humanas -- sociologia, psicanálise, psicossociologia,
psicologia infantil.
Etudes historiques sur la contre-pédagogie". Pratfquesde Forrnatíon- Ána-
!uses,"René Lourau: analyse hstitutionnelle et éducation", Université de Paris
Vlll, Paras, 2000. (Texto datado de 1973, sem maiores referências.) Tradução:
Paulo Schneider.
87
88 RENÉ LOURAU ESTUOOS HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEOAGOCIA 89
O movimento pedagógico da asco/a À4oder za (Freinet) resulta A partir dessa constatação, a sociologia tradicional (e também
dessas diversas tentativas. Ele reatualiza, igualmente, o conflito a mais moderna tecnicamente)conclui ser necessáriauma en-
quêfe destinada a substituir a "consciência ingênua dos amores
entre a pedagogia socialista, autoritária, e a pedagogia libertária,
não autoritária. sociais" pelo saber científico. Fazendo isso, ela reforça o efeito
A insuficiência ou dificuldade de acesso aos documentos ex- beber, objetivando o movimento, pondo-o em sistemas ou esto-
plica parcialmenteas lacunase os eventuaiserros nos estudos cando-o em "bancos de dados" em material separado, de qual-
apresentados a seguir. Com efeito, no que tange ao anarquismo quer modo, do saber social.
francês, o vanguardismo pedagógico não se resume às experiên- A análise institucional, ao contrário, tenta encontrar a gênese
cias citadas. Podemos dizer o mesmo em relação à Espanha, à social que explica o efeito beber. Para tanto, lança-se ao estudo
Alemanha e à Rússia, sem falar nos países que nem sequer são sócio-histórico dos movimentos sociais, de sua institucionalização
levados em consideração. Ademais, as lacunas forçosamentepro- decorrente do fracasso do projeto inicial. Temos aqui o e$effo
vocam uma dificuldadena apreciaçãoda importânciarelativa J\,{üb/ma/zn,definido pela função de recalque, de instituciona-
das experiênciasmencionadas,ou no estabelecimentode rela- lização, que preenche o fracasso da "profecia" inicial. No que
ções, filiações e influências. Creio ter apresentado um esboço de conceme à pedagogia, é o movimento revolucionário, com suas
análise sociológica suficientementecorreta apenas a propósito tendências e lutas internas, suas vitórias, suas interrupções e fra-
de Ferrer e de Makarenko. cassos, que# se expõe por trás da plácida "história das ciências da
Futuros pesquisadores poderão utilizar essesesboços para que educação
a pedagogia libertária, muito menos estudada hoje que a socia- A institucionalização é um processo permanente e significa o
lista, ganhe seu devido lugar. Compreenderemos melhor, então, contrário de uma fixação, de um estado de paralisia. O movi-
vários aspectos da pedagogia nova. As relações entre o contexto mento agita sem cessar as tentativas de institucionalização, mes-
político, de um lado, e o contexto político-ideológico,do outro, mo nos períodos de ordem rígida e de repressão. Trata-se do é;óbito
serão elucidadas.Evitaremos,assim,reduzir a gênesedas ciên- ana/ísador,que indica como os acontecimentosaparentemente
cias da educação às "influências" respectivas da psicanálise, da secundários, as crises, revelam as forças sociais não "representa-
sociologia, da psicossociologia e da psicologia infantil. A gênese das" ou que não se reconhecem na representação que as institui-
teórica das ciências da educação será não só completada, mas ções produzem e garantem.
revirada pela acentuação da relevância de sua gênese social. Eis Os efeitos analisadores também têm por conseqüência a reve-
aí uma importante aplicação da análise institucional. lação das relações entre gênese teórica e gênese social; em outras
A quase total ausência de informações sobre a pedagogia palavras, lembram os limites e os pontos cegos da ciência. Os
libertária, até mesmo nas obras que tratam da pedagogia socia- analisadores desafiam os analistas ao assinalar que a ciência, à
lista, é uma das razões do presente estudo. Não por acaso tal medida que progride, tem tendênciaa "esquecer" as condições
informação nos falta ou está completamentedeformada. Essa de seu aparecimento, de seu desenvolvimento, por trás dos im-
falta e essa deformação são produtos sociais, e não disfunções perativos do "objeto" e do "método". É o í;ÓeífoLukzícs- produ-
da sociedade. Trata-se do que denominamos e$e/fobeber --perda ção do não-saber pela codificação particular de alguma discipli-
progressiva de informação, de saber social, à medida que tal ou na, pela colocaçãonum sistema,pelo recortede um "campo" e
qual setor da sociedade (a educação, por exemplo) se racionali- rejeição de tudo o que existe antes e em tomo desse campo. Co-
za e se torna cada vez mais importante. nhecemosbem o exemplo dos físicos que "descobrem" o senti-
90 RENA LOURAU ESTUDOS HISTORICOS SOBRE A CONTRAPEDAGOGIA 9E
do político-militarde suas pesquisas, dos psicólogosou sociólo- ra me refugiar na construção de um método de análise sócio-
gos que se "descobrem" agentes da ordem estabelecida. histórica?
O efeito Lukács conduz, enfim, à necessidade, tão malco- Implicitamente,opto assim pela luta ideológica que sempre
nhecida até agora, de analisar as implicações do pesquisador, do desprezei porque ela coincide, em parte, com o modode anão
observador ou do interventor (todo pesquisador, de fato, "inter- ítzsfífucíona/por meio da escritura,do livro, do discurso. Por
vém", assim como todo observador, independentementedo quão mais que continue a coloca-la acima de tudo, tomo distância da
neutro e desimplicado seja em imaginação). Trata-se do eáeífo açãoantiinstitucional, quer se trate do modode açãonão institucional
HeísenberXque, no presente estudo, se coloca nos seguintester- (violência atava ou por deserção) ou do modo de anão co/zfra-í/zs
mos: por que escrever sobre este tema?; com que objetivo (para tífzzcíona/
(do qual, por sinal, a pedagogia libertária comece de-
quem?; a que canal de transmissão estas páginas chegarão para monstração bastante nítida).
serem lidas?; serão fotocopiadas por meus estudantes de socio-
logia em Poitiers e em Vincennes?; haverá apenas algumas có- Meios livres e escola libertária na França
pias para mostrar aos amigos?; virarão um artigo de revista?;
farão parte de um dos livros que escrevo ou reescrevo no mo- É sobretudo após o período de propaganda sob a forma de
mento?; transformar-se-ão em uma brochura? etc.)?; como tive a atentados que se desenvolve na França, nos anos 1895,a peda-
idéia de começar a escrever sobre este assunto?; por onde e por gogia libertária. Os partidários da propaganda peia ação educa-
que comecei?; o fato de eu ter sido membro fundador do GPI tiva raramente são os mesmos que os adeptos da violência e da
(Grupo de Pedagogia Institucional) -- junto com Fonvieille e repríseau fase (assalto, desvio, roubo, podendo chegar ao assas-
Bessiêres (dissidentes do movimento Freinet), Florence Ribon sinato). Entre os fundadores ou animadores de experiências pe-
(que se suicidou em 1973)e aves Janin, ambos estudantesna dagógicas libertárias encontramos nomes conhecidos como os
Sorbonne, além de Lobrot e Lapassade -- explica suficientemen- de SébastienFaure, Paul Robin, Louise Michel e Jean Grave, bem
te meu pequeno estudo sobre Freinet e seus prolongamentos? como nomes menos conhecidos. Um ponto comum a todos es-
Minhas referências, cada vez mais claramente libertárias em ter- ses pedagogos, teóricos e práticos, é ver na ação contrapedagógica
mos de sociologia política e de sociologia da educação, justifi- um prolongamento da propaganda através de jomais, brochu-
cam minha curiosidade, sem dúvida muito intelectualizada, pelo ras, livros e incessantesconferênciaspor todo o país.
período 1870-1914 e pelo anarquismo espanhol? Meu sfandí?zg Os anarquistas não se propõem a destruir a escola pela vio-
de "sociólogo" mais ou menos marginal (na ízzfeJJígenfsía,
senão lência ou pela deserção generalizada. Criticam e rejeitam a ins-
na universidade) exige que prossiga com pesquisas no domínio tituição escolar oficial e querem substituí-la por uma contra-
da educação, embora me sinta solicitadopor outras curiosida- instituição, uma "escola paralela" aoalzt /a Zetfre, suscetível de
des ou pelas exigências ligadas à minha prática, à minha vida co- experimentare validar os princípios anarquistas em um dos ra-
tidiana, aos problemas insolúveis com os quais me defronta ou ros setores da sociedade (além da família) onde se dispõe de re-
dos quais fujo em minha dissimulação social e em meu corpo? lativa liberdade de ação.
Efeito Weber, efeito Mühlmann, efeito analisados, efeito
Lukács, efeito Heisenberg. . . O que me força, há algum tempo, Rqlríse azzfas: expressão sem correspondente em português. Uma tradução
a pâr em segundo plano o aprofundamentoda teoria da in- aproximada seria: "servir-se na casa dos ricos" ou "apanhar o que quiser na
tervenção socioanalítica (análise institucional em campo) pa- casa dos ricos" (N. do T.)
92 RENÉ LOURAU ESTUDOS HISTORICOS SOBRE A CONTRAPEDAGOGIA 93
A noção de meio Jíz7re, que freqüentemente substitui a noção
Universidades Populares em 1896e 1897.E também neste con-
de escola, indica a orientação contra-institucional da pedagogia texto que se situa a criação da asco/a Jíberfáría.
A Escola libertária é fundada em 1897por Dégalvês, um pro-
libertária. Meio livre de Vaux (1902-1906),fundado por Butaud,
fessor destituído do cargo, Ardouin, Janvion e Jean Grave, dire-
que animará mais tarde outra experiência em Saint-Maur (1913).
Meio livre de Saint-Germain-em-Laye,do qual um dos anima- tor da revista anarquista Les Zemps Nouoeaux, ex-l.a Réoo/fe, ex-Le
dores é Lorulot, futuro fundador do jornal anticlericall.a Ca/offe, RéooZté (denominação da época em que os líderes anarquistas
e o outro é Emest Giraud, que será preso antes do fim da expe- Kropótkin e Elysée Reclus a fundaram na Suíça).
'Todo mundo reclamado ensino oficial" declaraJean Grave
riência (1906-1907)por causa de suas atividades na propaganda
libertária. em suas Memórias (Quaranteazzsdepropagazdeanarc/zísfe, Flam-
Se o meio livre sugere um projeto que ultrapassa a noção de marion, 1973). E prossegue: "Ele só faz papagaios, mata o espíri-
escola,podemos dizer o mesmo da noção de co/õnía,que reen- to crítico dos indivíduos em vezde suscita-lo. Por que não tentar
contramos na pedagogia socialista (em Makarenko, por exem- uma escola em que o ensino seja oferecido em bases racionais?
plo) e será generalizada pela educação nova nas cojõnias de fé- "Foi empreendida uma campanha para recolher dinheiro
rias. Tal como o meio livre, a colónia supõe um território, um Porém um dos animadores encarregadode coletar recursos re-
ambiente completo, "ilhota" ou "isolado cultural" que se tenta solve ocupar-se simultaneamente de duas operações. Assim, do
controlar para manter ao abrigo de influências perversas. O ir- dinheiro recolhido, só uma parte vai para a Escola libertária. Em
mão do conhecido anarquista Emile Henry-Fortuné funda uma 1898, 1.800francos estão à disposição dos contrapedagogos. Desta
colónia em Aiglemont: esta ação, qual a dos fundadores de meios soma, 500 francos dados por escritores anarquistas ou simpati-
livres, inscreve-senuma existênciaconsagradaao jomalismo e zantes da causa, como Zona, Mirbeau, Ajalbert, e mesmo Léon
às viagens de conferências. Apesar de reduzidas e geralmente Daudet e Barras (em seus períodos de grandes vôos e "injúria
de pouca duração, todas essas experiências se desejam exempla- na ponta da língua"). De fato, a soma recolhidaé insuficiente
res. Fazem menos barulho que as bombas de Vaillant ou de para criar uma verdadeira escola.Os contrapedagogosconten-
Ravachol. tam-se, então, em lançar as "férias libertárias". Algumas deze-
Louise Michel, heroína da Comuna de Paras, recusa-se a retor- nas de crianças serão levadas à praia.
nar imediatamente à França após a remissão de pena de que se Quanto à prática pedagógica nessa colónia de férias, Jean Gra-
ve se limita a relatar um incidente menor, embora bastante re-
beneficiou na prisão-exílio de Numéia. Prefere continuar pro-
fessora dos Canaques. Regressando à Europa, gerencia uma es- velador. Certo dia, Dégalvês (o antigo professor destituído) dá
cola fundada por um grupo libertário de língua francesa em Lon- um "ligeiro tapa" numa criança. E eis um novo "caso", em esca-
dres (1890-1895).Posteriormente se lançará, ou será lançada, em la microscópicasO astuto Janvion (o que se utilizou, com certa
incessantes conferências por toda a França. Em uma dessas via- liberdade, dos fundos recolhidos) volta-se contra Dégalvês, que
gens, doente e esgotada, encontra a morte. Morte aparentemen- abandona a experiência.
te pouco heróica, mas, de qualquer fomta, a serviço da Idéia. T)epois da tentativa da escola de férias, na falta de algo me-
Outra experiência tem, como contexto político novo, o caso lhor, organizamos cursos notumos; a criação de uma verdadeira
Dreyfus. A agitação de idéias e as alianças produzidas pelo caso escola permanece em estado de sonho" --conclui Jean Grave.
favorecem trocas entre instituições culturais paralelas: o Colégio A iniciativa de criar as Universidades Populares (para adul-
Livre de Ciências Sociais, por exemplo, comece conferencistasàs tos) e a Escola libertária inspira-se nas idéias e experiênciasdo
94 RENÉ LOURAU ESTUDOS HISTORICOS SOBRE A CONTRAPEDAGOGIA 95
pedagogo anarquista Paul Robin (Ferrer, que manterá relações Faure, tenta aplicar as idéias de Robin em sua escolade La Ruche,
regularescom Jean Grave, só dará início a sua experiênciaal- situada na floresta de Rambouillet (talvez visando a criar um
guns anos mais tarde). Robin fora professor de liceu, mas se 'meio livre"?). A co-educação de meninos e meninas, a supres-
demitira. Após a deserção (1865), entra para a Primeira Intema- são das recompensas e punições, a livre discussão entre profes-
cional na corrente anarquista proudhoniana, que fornecerá os sores e alunos e o ensino racional são os princípios postos em
quadros dirigentes da Comuna. Rapidamente se une à corrente prática.
de Bakunin. Em Genebra, foi secretário da Aliança Bakuniniana, Antigo socialista guesdista, Faure tornara-se anarquista e, por
contra-instituição da Internacional destinada a lutar contra o causa disso, fora implicado nos processos de 1894ao lado de Jean
poder do Conselho-Geral da Internacional, conquistado por Grave, entreoutros. Em 1895,fundou l.eLíberfízíre
que, juntamen-
Marx e a correnteautoritária.
te com o jornal de Grave, foi um dos primeirosórgãos de pro-
Depois da Comuna, são confiadas a Robin grandes responsa- paganda anarquista. A Faure também se deve o projeto de uma
bilidades no Conselho-Geral, onde se senta ao lado de Marx. Mas Erz(yc/opédíe anarcbísfe. Em 1936, vai apoiar os camaradas anar-
ele não consegue evitar a liquidação geral dos anarquistas no quistas na guerra da Espanha. Morre em 1942.
congresso de Haja (1872). Engaja-se, então, na corrente favorá- Conferencista incansável, propagandista da nova pedagogia
vel ao neomalthusianismo, muito forte no meio anarquista. --as conferências Ihe permitem até financiar sua escola, ao passo
Em 1879,Ferdinand Buisson, também antigo anarquista baku- que Grave, quase incapaz de falar em público, não pôde fazer o
niniano, que se tomara diretor de ensino primário (futuro autor mesmo no tempo da Escola libertária! --, Sébastien Faure é, com
do Dícfíonafre de Pédagog/e, para o qual colaborará Durkheim, e Robin, o exemplo típico da contrapedagogia libertária. Algumas
primeiro titular da cadeira de pedagogia da Sorbonne, em que de suas experiências,como o conselhode classe semanal, a in-
será sucedido pelo mesmo Durkheim), nomeia Robin inspetor sistência no valor da observação, o trabalho manual etc. fazem
primário em Blois. Lá, este faz escândalo ao instituir o ensino dessas contrapedagogias (nas quais é preciso incluir ainda a de
misto em sua circunscrição. E é no orfanato-colónia de férias de Ferrer) os precursores de Freinet.
Cempuis (Ouse)que, durante quatorze anos (1880-1894),desen-
volve sua experiência. Ferrer, mártir contra a vontade?
Edouard Drumont, fundador de l,a l.abreParoZe,jomal violen-
tamente anta-semita, qualifica o estabelecimento de "pocilga mu- No começo do séculoXX, um anarquistacatalãomuito bem
nicipal". Nele se pratica uma pedagogia principalmente naturista, relacionado, membro de sociedades maçónicas, adepto do racio-
libertária em certos aspectos (co-educação de meninos e meni- nalismo mais militante, abre uma escola em Barcelona. Seus mé-
nas), fazendo Robin merecer "furiosos ataques do meio clerical". todos Ihe proporcionam certo sucesso e reputação internacional.
Em 1894,depois da onda de atentados anarquistas, Robin é Em 1909,é fuzilado pelos soldados do govemo na não menos
destituído e volta à propaganda neomalthusiana. James Guil- célebre prisão de Barcelona. Depois dos distúrbios da Reforma,
laume, um dos líderes bakuninianos e também pedagogo, afir- em Genebra, raramente se viu, na Europa, um pedagogo ser exe-
ma que ele "parecia ir à frente dos conflitos e gostar disso". cutado por suas idéias e por sua prática (ou pela idéia que se
Em 1912,Robinse suicida. fazia de sua prática). O que aconteceu?
Em 1904,logo após o começo da experiência de Ferrer em Bar- Nada se compreenderá acerca de Ferver se não o situarmos no
celona, outro propagandista bem conhecido da época, Sébastien contexto político da Espanta no fim do século XIX e começo do
96 RENÉ LOURAU ESTUDOS HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEDAGOGIA 97
XX. O movimento operário ibérico (espanhol ou português) é explorado pelos grandes latifundiários e da classe operária que
conhecido principalmente pelo grandioso episódio recente da crescesob o porrete, o fuzil e o aspersório.
República espanhola e da guerra civil (1936-1939).Mas bem an- Em 1901é fundada a EscolízÀ4oderna,que se define por um
tes do nascimento da Federação Anarquista Ibérica (FAI) o anar- espírito anta-religioso.Na Espanha, ainda mais do que na Fran-
quismo encontrou na península terreno privilegiado. Finalizada ça, a pedagogia revolucionária passa forçosamente pela luta con-
a Comuna e depois que o congresso de Haia (o último da Segun- tra a Igreja. O livre desenvolvimento da criança tem por base a
da Internacional, em 1872)excluiu os bakuninianos -- a começar ciência: é a maior provocação que a pedagogia catalã poderia
pelos militantes espanhóis -, vai desenvolver-se a luta de influên- lançar no rosto das instituições. Apoiado por autoridades cientí-
cias entre o marxismo e o anarquismo. Enquanto o genro de Maré, ficas ou políticas (dentre as quais Lorenzo, membro da Terceira
Lafargue, encarregado da propaganda das idéias do sogro na Internacional, e Elisée Reclus, sábio e anarquista de renome),
Espanha (país onde se refugia depois da Comuna), só consegue Ferrer prolonga sua prática pedagógica por meio de uma prá-
resultados mínimos, o enviado de Bakunin é recebido como um
tica de agitador. A publicação de livros, escolares ou não, asse-
novo Messias pelos agricultores andaluzes e pelos operários ca- gura a difusão das idéias de escritores anarquistas de diferentes
talães. Ao lado da França, do Jura franco-suíço, da Ucrânia e da países e permite, ao mesmo tempo, divulgar a experiência no
ltália, a Espanha constitui um dos lugares fortes do anarquismo. estrangeiro. Uma revista, l,'Éco/eRénouoée,é publicada simulta-
Como veremos a propósito do contra-exemplode Makarenko, neamente em francês e espanhol, em Bruxelas e em Barcelona.
não por acaso os anarquistas da Ucrânia, nos anos 1920, se refe- Em seguida, Ferrer cria organizações internacionais, enquanto
rirão a Ferrer em suas tentativas de revolução pedagógica. seus discípulos fundam "escolas modernas" na Espalha, na Eu-
País "atrasado", politicamentedistante das grandes modifi- ropa, na América.
cações que o resto da Europa conhecera depois de 1789(embora Primeira crise: 1906.Mateo Morral, antigo colaborador de Fer-
a influência francesa, depois da curta ocupação napoleónica, ti- rer, joga uma bomba no cortejo do rei, em Madri. Numerosos
vesse alimentado uma forte corrente de "pró-franceses"), econo- mortos e feridos. A reação contra Ferrer usa os antigos vínculos
micamente muito mais nas mãos da aristocracia fundiária do que com Morral como pretexto."Tais crimes continuarãoa ser co-
sob a dominação do capitalismo industrial, muito marcado pela metidos enquanto os espanhóis apoiarem a liberdade de ler, de
Igreja, pela religião e pelo espírito religioso em geral, não tendo ensinar e de pensar, de onde nascem todos esses monstros anti-
conhecido verdadeiramente a Reforma e sim inspirado a Con- sociais" -- declara Le Coeur de ,Íesus, jornal de Bilbao. Ferrer é pre-
tra-Reforma, em particular graças à ordem dos jesuítas, no fim so durante treze meses. O processo termina com sua liberação,
do século XIX a Espanha está em plena crise nacional. em 13 de junho de 1907. Processo com repercussão intemacio-
O ano de 1898fez soar o clarim fúnebre da "grandeza" espa- nal: desta vez, o governo espanhol se vê obrigado a recuar.
nhola, ou do que dela restava, com a guerra contra os E.U.A. e a Depois do episódio, Francisco Ferrer dedica-se à sua editora,
derrota que redundou na perda de Cubo. A "geração de 1898", à "Liga" Intemacional que fundara e à sua revista. A Liga Inter-
que dominará o pensamento filosófico e a literatura no primeiro nacional pela Educação Racional da Infância tem entre os fun-
terço do século XX, da qual o filósofo "existencialista cristão' dadores, além de alguns liberais ou socialistas como Maeterlinch
Miguel de Unamuno é o representante mais conhecido na Fran- e Sembal, os pedagogos anarquistas Paul Robin e Sébastien Faure.
ça, é produto desse traumatismo histórico. Traumatismo que. em As experiências francesas estão muito próximas das que Ferrer
grande medida, permite camuflar a tragédia do campesinato desenvolve em Barcelona. Em Ferrer, o elemento anarquista re-
98 RENÉ LOURAU
ESTuoos HISTÓRICOS SOBRE A coNrRAPEOAGOCIA 99
lide na vontade de dar a palavra aos revoltados,aos explora- de suas idéias e realizações(revolucionárias para a Espanha da
dos. O elemento racionalista está no projeto de dotar os revolta-
época, é verdade) que Ferrer tem grande papel na história da
dos e explorados de uma ciência e de uma consciência que lhes
contrapedagogia libertária. Seu naturalismo, higienismo um tan-
permita a realização. A educação é a ferramenta revolucionária
to obsessivo, cientificismo igualmente, o tomam bastante dife-
essencial.Eis o que a Espanha clerical não perdoará a Ferrer, ao rente não só da pedagogia libertária anual como da pedagogia
passo que a França, mais aberta ao "livre pensar", sancionará das escolasde Hamburgo sob a República de Vü:imar (ver adian-
com menor dureza as pesquisas pedagógicas.
te). Réplica de Michel Servet em pleno século XX, mártir a ser
Junho de 1909:explode a revolta em Barcelona.Tem por ori-
festejado nas lojas maçónicas, polarizou o medo e o ódio das ins-
gem a rebelião dos soldados reservistas, convocados a ir domi-
tituições mais repressivas da Europa moderna. Constitui um
nar o Marrocos. As igrejas incendiadas dão ao partido clerical e analisadosdas relaçõesque se estabeleciam,por um lado, no
ao governo a oportunidade de atacar Ferrer, apóstolo da peda- movimento revolucionáriomoderno; por outro, na revolução
gogia não religiosa. Apesar de não ter participado, de perto ou
pedagógica. À maneira de Reich para as instituições psicanalíti-
de longe, dos combates de rua, tampouco de qualquer prepara- cas, marxistas e estatais, Ferrer designa o lugar do escândalo, da
ção da revolta, o pedagogo pacifista é preso, julgado, condena- transgressão ideológica às vésperas da Primeira Guerra Mundial.
do à morte e fuzilado em 13 de outubro de 1909,em meio aos
Ao mesmo tempo indica, ruidosamente, a impotência ou a ce-
protestos internacionais. Não somente a ínfe//fgentsfa,mas igual- gueira da Segunda Internacional (incapaz de defendê-lo e mes-
mente as massas se mobilizam por meio de meefíngs,greves, ma- mo de compreendê-lo)às vésperas de sua derrocada, em 1914.
nifestações e petições. Inutilmente. Como vinte anos depois, na Este mártir da pedagogia não parou de criar problemas aos "po'
época do caso Sacco e Vanzetü, os carrascos mantiveram-se fir-
líricos", sempre prontos a sorrir quando se fala da educação como
mes. O papa os abençoou. Ferrer tinha exatos cinqüenta anos.
um dos lugares da luta revolucionária.
Formado nos vinte anos que se sucederam à Comuna de Pa-
ras, Francisco Ferrer é, sem dúvida, uma das vítimas retardatá-
Pedagogia libertária em Hamburgo
rias da repressão pós-Comuna, em escala internacional. Mártir
contra a vontade, pois seu pacifismo acabara por repudiar o ati- A experiênciadas comunidades escolaresde Hamburgo, en-
vismo da juventude libertária, substituída pelo otimismo sereno tre 1919e 1933, é uma das que foram mais longe na prática con-
da revolução pedagógica. Mas mártir, mesmo assim. Dizer que trapedagógica. Os mestres de Hamburgo não se contentaram em
Ferrer nada tinha que ver com a insurreição de Barcelona não
criticar a escola, em negar o valor da pedagogia. Operaram uma
seria negar a força da ideologia e o papel da luta ideológica por reviravolta cujas implicações teóricas ainda não nos parecem cla-
meio da educação? Não seria, igualmente, dar pouca atenção à ras e da qual as ciênciasda educaçãonão se deram conta até
função de bode expiatório que as instituições estabelecidas o fi-
hoje. No contexto de algumas escolas experimentais - um dos
zeram exercer num momento em que, sob o choque do desastre limites objetivos do projeto --, empreenderam a construção de
de 1898,o governo espanhol não tolerada ver uma nova derrota
co?zfra-í?zstítuíções
que permitiram a produção, na prática, do es-
colonial (no Marrocos) inscrever-se em seu passivo? E este não boço de uma teoria inteiramentenova da educação.:
seria o caso se o motim dos reservistas de Barcelonase alastras-
se, levando a uma crise política sem dúvida fatal para o regime?
2 Le rnaífre-camarada,
ou /a pédagogfelíberfaíre,de Schmidt, reedição Maspéro
Portanto, não é somente, ou principalmente, pelo conteúdo pref de Bons Frankel.
1 00 RE N É LOURAU ESTUDOS HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEDAGOGIA IOI
A novidade em questão tem, é claro, origens históricas. Mas mentor da juventude, partidária do self-goz;erlzmetzf
dos jovens.
se considerarmos que determinadas teses de Rousseau - preci- Com o nazismo (e também com os partidos revolucionários de
samente as utilizadas pelos mestres de Hamburgo como hipóte- massa), a ideologia da juventude se inspirará muito mais nos
ses iniciais -- sempre foram deixadas de lado pelos teóricos da movimentos de juventude de estilo escoteiro,diretivo, submis-
educação ou somente foram aceitas com reservas e no quadro so aos adultos. Mas o juvenilismo comercialou político "recupe-
de compromissos diversos, somos obrigados a falar em novida- ra" bem as correntes de oposição.
de. Em que consisteela? Por outro lado, o microssocialismodas experiênciasde Ham-
O procedimento dos mestresde Hamburgo consisteem negar burgo (ou de Berlim, tanto na mesma época quanto nos anos
qzzea esmo/acepa preparar para a ondaadi//fa. A escola não é, para 1960-1970)'cai muito facilmente sob críticas a que hoje estamos
eles, instrumento a serviço dos valores da maturidade, da pro- habituados. Mudar a escola sem antes mudar o Estado, o siste-
dutividade, da aprendizagem das condutas e das tarefas profis- ma económico, sem dúvida é um projeto carregado de utopia.
sionais dos adultos; a escola é o meio em que vivem as crianças. Os contrapedagogosda França e da Espanha tinham revelado,
Politicamente, isso significa que a escola não é garantia para e a já pe[os idos de 1900, a problemática libertária reatua]izada pe-
serviço dasinstituições (o Estado, as igrejas, os partidos etc.); tem los mestres de Hamburgo vinte anos mais tarde, ou por profes-
seu fim nela mesma, como lugar de socialização da infância. Não sores isolados, como Jures Clelma, sessenta anos depois.4
de socialização do futuro adulto, do adulto em miniatura, do ser Em Hamburgo a objeção toma-se ainda mais pertinente, pois
ainda incapaz de ser adulto: tal ser é uma abstração, definida as escolas libertárias eram estabelecimentos oficiais, que conquis-
pelo "menos", pela inferioridade; logo, por re/ardo de siíbmíssão. taram um estatuto experimental na fase revolucionária de 1919,
Antes de ir ao âmago da contradição que os mestres de Ham- para entrar parcialmente na ordem em 1925,antes de se desinte-
burgo viveram até o ponto de a sentirem como insuportável, é grarem nos anos 1930(parece que o regime nazista só teve de
necessário destacar a orientação ideológica de sua posição. Um fechar uma -- a última -- dessas escolas).
dos mestres de Hamburgo declara: Contra-instituições que aprofundavam, na prática, a negação
da pedagogia e da escola oficiais, mas estavam diretamente im-
O que nos impede, hoje em dia, de admitir que a infância é plicadas na rede institucional que pretendiam negar, não foram
o ápice da existência,e de considerar a idade madura como capazes de criar uma teoria capaz de analisar e superar a contra-
uma decadência,um decréscimoda vida? E talvez chegue- dição. Por outra lado, a experiência de Hamburgo faculta o avan-
mos a uma época em que se assistiráa uma reviravoltana ço da teoria das lutas antiinstitucionais anuais. Os fracassos ou
apreciação das idades da vida: enquanto até o momento nos: os semi-sucessos são o laboratório social do futuro.
sa maneira de ser, nossa vida pública, têm estado sob a influên- Os sucessos, quando existem, são integrados e, por definição,
cia intelectual da idade madura, elas serão, no futuro, influen- aceitoucomo equipa/etzfes a outras inovaçõespermitidas e dese-
ciadas pelo espírito da juventude. Talvez, aguardemos! jadas pelo sistema. Eles indicam ao historiador o que havia de
'positivo", de recuperável, em prática aparentemente "radical"
Conforme sabemos, essa concepção tomou-se realidade algu-
mas décadas depois -- com algumas ambigüidades, como sabe- 3 Lesbozífíquesd'e/!áa?zfs
deBer]ítz,de Kátia Soudon, Va]érie S(]unidt et Eberhard
Schuktz, tr. fr. Maspéro, 1972.Kommurze2, tr. fr. Chamo Libre, 1971.
mos igualmente. A inspiração para a pedagogia libertária foi ' Jourlzai d'zin Educastreur, de Jules Calma, Champô Livre, 1971(Diário de zzm
pinçada, pelos mestres de Hamburgo, da ideologia dos Movi- Edz casfrador, Summus, 1979).
1 02 RE N É LOURAU ESTUOOS HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEOAGOGiA 103
Inversamente, o fracasso ou a interrupção brutal de uma ex- de um outro ganha-pão igualmente problemático do ponto de
periência põem em destaque as resistências e a violência das rea- vista político, ou pela deserção pura e simples (drop-out)?
ções desproporcionais contra a experiência. O fracasso toma-se M. Snyders, o teórico do PCF, anualmenteprofessor de ciên-
então exemplar, porque ultrapassa o que até mesmo as intenções cias da educação na velha Sorbonne, em seu artigo de 1950ti-
ou as realizações mais audaciosas poderiam esperar ou temer. nha claramente tomado distância em relação ao que era então o
Pudemos constata-lono caso Ferrer. 'método Freinet". Em 1950, a guerra fria estava no auge e a luta
Já a questão levantada pelas ortodoxias desta ou daquela "pa- ideológica, na ordem do dia. Na mesma época, o PCF ataca fron-
nelinha" política,de criticar o caráter libertário das experiências talmente a "sociologia americana", a psicologia social e a psica-
de Hamburgo sob pretextode não se terem inspirado nem te- nálise. Não sem acertar em cheio, muitas vezes.
rem sido guiadas pela ideologia de algum pensador anarquista Diante da reação de grande número de professores comunis-
claramente homologado, não nos deterá por muito tempo. A in- tas, partidários ou detratores da pedagogia Freinet, La Nozzoe/Je
fluência do clima político da época na Alemanha revolucionária Cr/fiqueabre suas páginas à polêmica. Não podemos deixar de
e pós-revolucionária é, sem dúvida alguma, mais significativa admirar seu liberalismo, ou sua habilidade, numa épocaprofun-
para a sociologiada educaçãodo que a influênciade um pensa- damente stalinista. Os "prós" e os "contras" se enfrentam. O par-
dor ou de um sistema intelectual. Gabrielle Russier+ é menos tido fornece seus teóricos-pedagogos,Garaudy e Cogniot. Qual
exemplar sob o pretexto de não ter invocado Reich para dormir a grande objeção a Freinet? E um "formalista", negligencia o
com seu aluno? Jules Celma tem menos credibilidade por haver "conteúdo" da educação, quer dizer, a ação ideológica direta via
praticado a não-diretividade radical sem ter lido Rogers? um ensino "progressista" (nas disciplinas em que a crítica ideo-
lógica é imediatamente possível, como a história, a geografia, o
O movimentoFreinet estudo do meio etc.).
- crises e prolongamentos É esta distinção entre uma forma e um conteúdo de educação
que leva a impasses como o assinalado pela professora acima
'Teremosde voltar à pedagogia das aulas magistrais?" per- citada. Se qualquer ação no plano da "forma" é suspeita de
guntava com angustia uma professora comunista, membro do formalismo e se o formalismo é um erro reacionário, o que fazer
movimento Freinet, ao teórico de La Nouoe/JeCrífíque, revista do senão reproduzir as relações de dominação do ensino burguês?
Partido Comunista Francês (PCF) que, em 1950,condenara com A autonomizaçãode um "conteúdo" no interior do qual seria
violência a pedagogia Freinet.s viável transmitir uma mensagem revolucionária é, de fato, re-
Qual é a alternativa para o formador que, por uma razão ou produção, uma vez mais, da separação em "matérias" ou "disci-
outra, não pretende optar pelo abandono de seu ofício em favor plinas", elemento essencial da estrutura pedagógica burguesa.
Em 1950,nem os comunistas nem os discípulos de Freinet
+
Em 1969,a professora francesa Gabrielle Russier viveu uma história de amor (tampouco o próprio Freinet) poderiam efetuar uma tal análise
com um de seus alunos, Christian, então com dezesseteanos. Foi persegui- institucional da prática educativa. O aspecto das técnicas Freinet
da, presa, ameaçada de condenação por corrupção de menor. Em conse- mais exposto à crítica marxista é o sistema de dossiês documen-
quência, suicidou-se(N. do T.).
S tais, redigidos pelos professores do movimento, destinados a
A polêmica começa com o artigo de Snyders no n' 15(abril de 1950),para se
encerrar definitivamente no n' 38(julho-agosto de 1952), com a terceira parte substituir os clássicos manuais de ensino. Garaudy tem razão
de um artigo-balanço de Cogniot. em ressaltar a insuficiência de muitas dessas brochuras, sua sub-
1 04 RE N É LOURAU ESTUDOS HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEDAGOGIA 105
missão involuntária à ideologia dominante (ao colonialismo, por Aparentemente, a contrapedagogia de Freinet se restabeleceu
exemplo). Temos aí "conteúdo", e ao criticar justificadamente as facilmente desse ataque vindo do PCF. E verdade que desde suas
armadilhas ideológicas desses contramanuais, o PCF está longe origens, por volta de 1925,Freinet e seus discípulos tiveram de
de pensar que a crítica poderia facilmente voltar-se contra ele responder a investidas vindas "de todos os ângulos" (conforme
próprio. No "país da mentira desconcertante" (para reutilizar o ocorreu com MeraSchmidt na Rússia ou Reich na Alemanha). As
título de Ciliga acerca do totalitarismo stalinista na Rússia), a cren- críticas externas põem à prova e reforçam a solidez de um movi-
ça em uma "verdade" dogmática casa-semuito bem com o elo- mento duplicado por uma organizaçãocada vez mais comple-
gio à dialétical O caráter dogmático de tal verdade está tão bem xa, como é o caso do movimento Freinet. Mas como se comporta
estabelecido que se apóia em um recalcamento: tanto do movi- tal movimento diante dos assaltos vindos do interior. diante das
mento revolucionário quanto da existênciade um movimento crises que, a partir de 1960,levarão a exclusõese dissidências
de educação extremamente potente e audacioso na União Sovié- cada vez mais numerosas e qualitativamente graves?
tica durante os primeiros anos do regime. O fato de que o siste- Em 1961, temos a criação do Grupo de Técnicas Educativas
ma de notas, a disciplina autoritária, a divisão em matérias e em (GTE) e o lançamento da revista do mesmo nome. O grupo é
'níveis" (classes por idade) tenham sido deixados de lado logo composto por Femand Ouro, Fonvieille e vários outros ex-mem-
ao início da revoluçãoe, pouco a pouco, tenhamsido retoma- bros do movimento Freinet que passam à dissidência. Oury e
dos, com outras instituiçõesburguesas (restabelecimentodas Fonvieille eram líderes conhecidos do movimento. Sobre que base
patentes militares, reconstituição da família, fim da liberdade de ocorreu a cisão? Segundo Fonvieille, "a elucidação das implica-
aborto, instauração de meios materiais e morais de "estímulo ao ções teóricas da transformação do meio escolar mediante a utili-
trabalho" etc.), eis o que está perfeitamente escondido na cons- zação das técnicas Freinet". Dez anos após a polêmica com o PCF,
ciência dos teóricos comunistas dos anos 1950. O debate sobre
é ainda a teoria que é posta em questão, mais do que a prática
os métodos Freinet tem lugar num deserto ideológico de tal mon- em seu aspectotécnico (a cooperativa escolar, o diário, a corres-
ta que de ambos os lados os argumentos só podem ser viciados. pondência, a imprensa etc.). Mas se Oury e Fonvieille estão de
No entanto, parte não negligenciável da problemática anun- acordo em achar insuportável o trabalho no interior do movi-
ciada por Snyders, Cogniot, Garaudy etc. continua, em 1973,no mento, rapidamente as divergências. . . teóricas irão separa-los.
centro das preocupações e discussões. Refiro-me à tese segundo Oury vai inscrever-se cada vez mais na poderosa corrente da psi-
a qual é ilusório querer mudar qualquer coisa em educação en- canálise lacaniana, da psicoterapia institucional, dos psiquiatras
quanto continuarmos no quadro do regime capitalista. Marxis- da clínica de La Borde (cujo médico-chefeera, e ainda é, seu ir-
tas, ortodoxos ou não, e esquerdistas de todas as obediências es- mão, o doutor Jean Oury, e da qual Guattari era, e ainda é, sem
tão hoje de acordo quanto a isso. Quando, em 1952,vemos dúvida, o ]íder ideológico). Já as preocupações de Fonvieille vol-
Cogniot evocar, a propósito da ação de Freinet, as recuperações tam-se preferencialmente para o lado político: o da autogestão,
da Sr.' Montessori pelo fascismo italiano, temos direito de dizer acima de tudo.
que o stalinismo dos anos 1950era bem moderno, ou que a an- Em 1964,uma intervençãode Lapassade e seu grupo de
tipedagogia moderna permanece bem stalinista. psicossociólogos (o Caip) numa reunião geral do GTE cristaliza
Conquanto a crítica ao reformismo utópico seja teoricamente as tensõesexistentes:Oury cria no interior do GTE, ou melhor,
impecável no papel, "teremos de voltar à pedagogia das aulas
nas suas franjas, um GET (Grupo de Educação Terapêutica) que
magistrais?". Trata-sede altemativa verdadeira ou falsa? institucionaliza a obediência psicanalítica, então dominante em
1 06 REN É LOURAU ESTUDOS HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEDAGOGIA 107
ciências da educação. O jogo de palavras através do deslocamen- Freinet em termos de oposição cidade-campo. Neste breve his-
to de letras na sigla evidencia um entrismo e um desejo de po- tórico, contentamo-nos em levantar a seguinte hipótese: enquanto
der cujo resultado será a demissão de Fonvieille da presidência o núcleo do movimento, com Elisée e Célestin Freinet, a escola
e do Conselho de Administração do GTE (1966).É verdade que de Cannes (espécie de "Summerhill" do Mlestre,em circuito fe-
Fonvieille, em paralelo, também sente necessidade de orientar chado) e as organizações pedagógicas e económicas do mo-
mais fortemente sua ação e reflexão no sentido de um questio- vimento Instituto Cooperativo da Escola Moderna (ICEM) e
namento pedagógico e político, o que dará origem ao GPI, do Cooperativa do Ensino Laico (CEL) --, é simultaneamente centra-
qual será membro fundador. lizador e provincial, o IPEM é simultaneamente urbano (parisien-
Com efeito, quando do retomo às aulas de 1964,pouco tempo se, ligado à centralização intelectual da capital) e "regional" (de-
depois da crise aberta no GTE, Fonvieille e Bessiêres (outro dis- pendente, caso comparado a Cannes). A oposição cidade-campo
sidente do movimento Freinet) recebem em suas classes de tran- já estava fortemente atualizada nas polêmicas que Freinet e seu
sição de Genneviljiers dois estudantes temporários de Lapassade movimento há muito mantinham com os "professores de Paras",
(então pesquisador do CNRS) como observadores das experiên- com as ciênciassociais,com as novas tendênciaspedagógicas,
cias pedagógicas. Os problemas nascidos da observação psicos- principalmente a nã(»diretividade rogeriana (Lapassade e Lobrot
sociológica, mas, sobretudo, das implicações políticas tanto dos assistiram a alguns congressosdo movimento). Para os profes-
observadores (os dois estudantes, Yves Janin e Florence Ribon, sores de Paras e da região parisiense, a aplicação das técnicas
são militantes da FGEL, origem de muitos dos ativistas do mo- Freinet e, conseqüentemente, a utilização do material fabricado
vimento estudantil de 1968)como dos observados fazem que os e vendido pela CEL despertam questões. O modo de vida urba-
dois estudantes e os dois professores, de comum acordo, deman- no não se presta muito ao naturalismo dos métodos Freinet. Para
dem a duas outras pessoas - a Michel Lobrot e a mim mesmo -- uma classe parisiense (ou de qualquer grande cidade), onde está
que a eles se juntem em reuniões que podemos chamar de "su- a "natureza", cujo lugar é tão importante nos métodos de apren-
pervisão". Nasce, com isso, o Grupo de Pedagogia Institucional dizagem do movimento? As distâncias, os tipos de relações, de
(GPI). Em seguida, vários professores dos três graus, estudantes transportes, de trocas, não são os mesmos na cidade e no cam-
de filosofia, de sociologia, de psicologia, psicólogos e psicossoció- po. Além do mais, Paras induz nos professores uma forte neces-
logos, bem como "desviantes" do grupo Socía/ísmeou Bzzrbaríe se sidade de discutir e aplicar métodos recentes,vindos da psico-
agregam ao GPI. logia e da psicossociologia. A relação professor-aluno, o problema
Em 1966, uma das adesões mais significativas é a de Michel da transferência, a extensão da cooperativa às questões políticas
Faligand e seus amigos do Instituto Parisiense da Escola Moder- da autogestão generalizada da educação começam a preocupar
na (lpem); melhor dizendo, da seção "lle-de-France" do movi- não só os dissidentes(em torno de Oury e Fonvieille)como
mento Freinet. A crise entre o grupo Faligand-Bonbonnelle e muitos outros professores que permanecem no movimento Frei-
Freinet estava em gestação desde 1964. Em 1966ela eclode cla- net. A instalação de novos cursos (classes de transição, de aper-
ramente, entre um Freinet desejoso de cerrar fileiras em tomo feiçoamento, "práticas", CES, estabelecimentos de "ensino es-
de sua pessoa e suas posições e os professores, às voltas com di- pecial" etc.) põe os pedagogos diante de problemas novos. Em
ficuldades que Freinet não saberia resolver por eles. Afinal, do suma, as profundas perturbações sociais da educação, assim como
que se trata? as novidades pedagógicas, impõem perguntas aos partidários
Seria interessanteanalisar essa crise decisiva do movimento das técnicas Freinet.
I 08 RE N É LOURAS ESTUOOS HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEDACOGiA 109
A ruptura entre "lle-de-France" e o movimento tem igualmente constatava sem concessões: "Hoje, no plano intelectual, as uni-
causas organizacionais: a personalidade de Freinet (que morre versidades populares não são mais que empreendimentos de con-
no outono de 1966)e a burocratização do movimento contribuem servação social e de dissimulada colaboração de classe".' O que
para o mal-estar puramente ideológico ou teórico. A brochura pensam os apóstolos anuaisda formação de adultos? Ontem como
escrita por Faligand, Bonbonnelle e Gilbert em 1966, intitulada hoje, o problema é saber de que modo a educação permanente,
Confríbt/íção à Hísfórfa do À'foz7íme/zfo
Freínet, aborda estes temas fora da escola, pode negar as formas institucionais da educação
com grande riqueza de detalhes. escolar e inventar formas novas. Independentemente do que pen-
A partir de 1966,desenvolvem-seexperiênciasde autogestão sem os teóricos do "conteúdo progressista da educação", a ques-
no quadrodo movimento.'A situaçãosedesbloqueia.A crise tão é claramente de "forma", como eles mesmos dizem de ma-
generalizada da educação abala tanto os "freinéticos" como to- neira desajeitada: problema de reprodução ou não-reprodução
dos os demais formadores. No congresso de Aix-en-Provence, das relaçõessociais dominantespor intermédioda transmissão
em abril de 1973,uma das questõesna ordem do dia é a que do saber.
envolve (com que ambigüidadesl) a fórmula pedízgogíaínsf/fucío Em segundo lugar, constata-seque as experiênciasmais di-
rza/.Devemos ver nisso não uma simples querela de "técnicas versas, em circuito fechado ou em grande escala, jamais são ana-
educativas", mas o equivalente da pergunta que Francisco Ferrer lisáveis em termos de pedagogia pura, devendo ser recolocados
dirigira às instituições de sua época, a saber: como educar sem na análise mais geral dos movimentos sociais que as tornam pos-
fazer o jogo das instituições no poder? E, no limite, como indica- síveis, lhes fixam os limites e as possibilidades de superação.
ram Rogers e lllich, cada qual à sua maneira: ainda podemos Existem contrapedagogias contemporâneas da Primeira, da Se-
"educar"?
gunda e da Terceira Intemacionais, bem como do período que
começa com a dissolução da Terceira Internacional, ou seja, a
Interlúdio nossa época. Ferrer, Robin e outros pedagogos anarquistas são
inseparáveis do movimento anarquista e do importantíssimo
A guisa de conclusão provisória, gostaria de sublinhar três papel político que teve tal movimento, tanto em relação às insti-
pontos que, para além da pedagogia anarquista, tocam no pro- tuições dominantes quanto em relação à corrente dominante nas
blema da formação em geral e da formação permanente em par- Intemacionais, o marxismo. Makarenko, Freinet e os pedagogos
ticular, bem como na questão das relações entre movimentos pe- de Hamburgo inscrevem-senos períodos quentes ou no rastro
dagógicos e movimento revolucionário- de acontecimentosrevolucionários durante os quais tudo pare-
É preciso lembrar, de início, que a educação permanente tam- ce possível.
bém tem passado mais ou menos heróico: as universidades po- A ação contra-institucionale todas as formas de luta anti-
pulares, mediante as quais os intelectuaisprogressistas (socia- institucional são fenómenos a analisar por referência à história
lizantes ou anarquizantes) da primeira metade do século XX dos movimentos revolucionários, e não somente em relaçãoao
acreditavam poder levar a boa palavra ao proletariado -- expe- enquadre mais ou menos fixo das ciências da educação.
riência selada por um fracasso que os partidos e sindicatos ain- Ora -- eis minha terceira e última observação --, no seio do
da não superaram. Entre as duas grandes guerras, um militante movimento revolucionário, o conflito entre "autoritários" e "anti-
6 Uers /'aufogesfiofz, n' 7 da coleção Doczlments de /'/cem, Cannes, 1971 7 Cu/tzlreproíéfarienne,de Marcel Martinet, Librairie du Travail, 1935
11 0 RENÉ LOURAU
ESTUDOS HISTORICOS SOBRE A CONTRAPEDAGOGIA 111
autoritários" está no cerne do problema da gênese dos movimen- tudo" de bandos de crianças e jovens lançados, pelos aconteci-
tos pedagógicos. Para compreender esta gênese, não é suficiente mentos, longe de suas famílias, misturados aos enfrentamentos
analisar as relações entre pedagogia e sociologia. pedagogia e
entre vermelhos e brancos, entre vermelhos e negros. Com a Nova
psicanálise, pedagogia e psicossociologia, pedagogia e psicolo-
Política Económica, impõem-se a Nova Política Estética (golpe
gia genética, pedagogia e informática etc. A gênese social e a gê-
final na revolução cultural) e a Nova Política, simplesmente. Des-
nese teóricados movimentos pedagógicosde "vanguarda" per- ta faz parte a Nova Política Pedagógica, da qual Makarenko será
mitem trazer à luz, por exemplo, a oposição (que não exclui as um dos representantes. Seu combate "bolchevista" contra as for-
convergências) enh'e a pedagogia socialista, centrada na "edu- ças libertárias momentaneamente triunfantes e ainda relativa-
cação pelo trabalho", e a pedagogia libertária, centrada na libe- mente potentes na educação - irá conferir toda a significação
ração da criança (e do adulto). política aos oito anos (1920-1928)de sua experiência.
Neste contexto, é interessanteconsiderar mais de perto um
Com efeito, no domínio da educação, os primeiros anos da
dos praticantes e teóricos mais conhecidos da pedagogia socia-
revolução russa vêem nascer experiências libertárias, esquerdis-
lista: Makarenko. Outros representantes da pedagogia socialis- tas e freudo-marxistas,que muito nos dizem acerca da relação
ta, bem como seus inspiradores Marx e Engels (e Gramsci. . .),
entre a gênese social e a gênese teórica dos conceitos pedagógi-
foram estudados,em particular,no livro de Theo Dietrich, La
cos (e de todos os outros conceitos, por sinal). Enquanto a tradi-
pédagogíe socfa/fsfe (trad. francesa, Maspéro, 1973). Conforme ten-.
ção pedagógica, na maioria das vezes, enfatiza as experiências
faremos demonstrar pela leitura sociopolítica dos textos de americanas do século XIX e do século XX, sem falar das experiên-
Makarenko, este é, para Dietrich, um pedagogo definido, antes
cias suíças ou à moda suíça, ou mesmo inglesas, percebe-se,à
de tudo, pela época stalinista: quer "transformar a pessoa em
luz do conhecimentodo movimento revolucionário, que o van-
funcionário". E o "acordo de Makarenko com a ideologia leni-
guardismo pedagógico sempre esteve ligado, em parte, aos mo-
nista-stalinista é ainda ressalvado, em especial, por seu confron- vimentos revolucionários.
to com a pedagogia soviética do período pós-revolucionário" -- A mesma constatação também é válida, é claro, para os países
pedagogia esta caracterizada pela forte influência dos princípios que não viveram uma situação revolucionária, mas cujos movi-
libertários sobre uma parte do pessoal responsável pela educa-
mentos sociais, frequentemente muito antigos (de origem reli-
ção na URSS. Estudar Makarenko é estudar um dos capítulos giosa, política ou filosófica), tinham a idéia de uma renovação
pouco conhecidos da stalinização e um dos aspectos ainda bem-
vivos do stalinismo. da sociedade por meio da educação. Seria falso, portanto, sepa-
rar esquematicamente as tentativas efetuadas em países capita-
Makarenko contra Makhno listas e em países socialistas. Um mesmo movimento --aqui, fra-
co ou diluído no tempo; lá, violento e efêmero determinacertos
(pedagogia bolchevista contra pedagogia libertária)
efeitos em todos os domínios, incluindo o da pedagogia. Às ve-
zes, como no caso de Ferrer e da pedagogia libertária catalã, o
Em 1920,o triunfo dos bolchevistas na Rússia está praticamen-
ponto mais quente da experiência pode ser atingido bem antes
te assegurado. A revolução de Lênin liquida os exércitosbran-
cos e os exércitos negros de Makhno na Ucrânia. Emerge, no en-
da tomada do poder. Nas devidas proporções,pode-sedizer o
mesmo do movimento Freinet que, na França, nasceu também
tanto, um fenómeno social imprevisto, ameaçador para o novo do declínio da revolução comunista (e de seu fracasso, na maior
regime: o intenso crescimento da delinqüência juvenil, o "largar
parte dos países) e se desenvolveu num período muito pouco
11 2 RENÉ LOURAU ESTuoos HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEOACOCIA 113
propício, enfrentando a hostilidade tanto dos poderes públicos Conquanto não saibamos com precisão como foram formados
como do próprio partido comunista. MeraSchmidt e seus poucos colegas psicanalistas,podemos ter
Na Rússia, uma das experiências de pedagogia libertária nas- uma idéia a respeito por meio de algumas observações pinçadas
cidas nos primeiros anos da revolução é a da creche-escola ma- do balanço da experiência, publicado em 1924.Os problemas da
ternal (jardim de infância) animada pela psicanalista Verá sexualidade infantil (erotismo oral, erotismo anal, erotismo
Schmidt. Entre nós, a experiência é conhecida mediante raros tex- uretral, da pele e dos músculos, onanismo, interesse pelos ór-
tos e comentários, sendo o primeiro, ao que eu saiba, o de Reich gãos genitais) são expostos abertamente.Tendo visitado o jar-
em .A rez;o/raçãosexuízJ. dim de infância, Reich faz um relatório entusiasmado, embora
Na segunda parte desta obra, Reich passa em revista algumas não isento de reservas. Com efeito, a ênfase posta, com grande
experiências de "comunas" na Rússia e na Alemanha. A de Mera insistência, sobre o asseio, sobre a distinção entre um "bom" ou
Schmidt é, de longe, a que mais desperta a atenção e o interesse 'mau" onanismo, bem como outros detalhes,provam que Mera
de Reich. Nessa experiência, a liberação libidinal da primeira in- Schmidt não rejeita totalmente a filosofia psicanalítica proposta
fância confirma plenamente a contribuição revolucionária da por Freud depois das primeiras descobertas-- filosofia esta em
psicanálise em sua fase de movimento.' Em 1921,um pequeno que Reich via uma negaçãodo freudismo revolucionário da pri-
círculo interessado em psicanálise tem a idéia de fundar um jar- meira época. A renúncia e a sublimação parecem substituir o
dim da infância "que deveria oferecer além de uma oportunida;- recalcamento,para a maior glória da civilização.Avaliemos:
de para observações científicas, a possibilidade de buscar novas
vias de educação baseadas no conhecimento psicanalítica" (Mera Nossa compreensão nova das manifestações sexuais infan-
Schmidt, "Education psychanalytique en Union Soviétique", Par- tis deveria permitir que facilitássemosprogressivamenteo
flsatzs,n' 46, 1969). De início, a experiência é garantida e apoiada sucesso das sublimações, graças a um comportamento peda-
pelas instituições soviéticas Comissariado do Povo para a Ins- gógico apropriado. . . Devemos nos esforçar em fazer que a
trução Pública, Instituto de Neuropsicologia de Moscou, Asso- criança compreenda que se trata de renunciar a um ganho de
ciação Psicanalítica Russa (muito pouco desenvolvida, mas cujo prazer. mas, simultaneamente,devemos dar-lhe a possibili-
presidente, Ermakoff, dirige o jardim de infância). Pertencentes dade de substituir o prazer abandonado por outros prazeres
às camadas sociais mais diversas, as crianças são divididas em sociais e culturais superiores e valorizados.
três grupos:
Seis crianças de um ano a um ano e meio; Abandonada pouco a pouco pelas instituições que a garan-
Nove crianças de dois a três anos; tiam, a experiência é sustentada, nos seus últimos tempos, pelos
- Quinze crianças de três a cinco anos. sindicatos alemães de mineiros, antes de sucumbir definitivamen-
te. No mesmo momento, através de métodos completamente
'0 trabalho de MeraSchmidt foi a primeira tentativa, na história da pedago- opostos, Makarenko obtém "brilhantes" resultados com os anti-
gia, de dar um conteúdoprático à teoria da sexualidadeinfantil. Por isso, gos "malandros" makhnovistasl
reveste-sede uma importância históricacomparável, embora sob outra es- O que impressiona no relato feito pelo pedagogo soviético sete
cala, à Comuna de Paras." Reich, mestre no assunto, sublinha que as únicas
instituições que apoiaram MeraSchmidt ao fím de sua experiência foram os anos depois do fim de sua experiência (em 1935) é a obstinação
sindicatos de mineiros alemães e russos. A Associação Psicanalítica Interna- do combate levado a cabo contra as seqüelas da pedagogia li-
cional nada fez para salvar a experiência. bertária presentes nos meios pedagógicos oficiais da Rússia. Em
1 14 RENÉ LOURAU ESTUDOS HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEDAGOGIA 1 15
Poema pedagógico,esses teóricos ao estilo Ferrer, esses profetas de anarquista é lembrado, a fim de ser mais bem liquidado, sob a
um homem comunista livre da submissão e do militarismo her- forma de jogos de papéis, de sociodramas "espontâneos". Na
dados do período czarista não têm um belo papel. Para Makaren- descendência direta do leninismo-stalinismo, o movimento re-
ko, tudo o que cheira a rousseauísmo é pura ilusão desses se- volucionário anarquista da Ucrânia --do qual só agora começa-
nhores da cidade (pensa-se aqui, inevitavelmente, na hostilidade mos a ter alguma noção, após quarenta anos de recalcamento e
que Freinet sempre manifestou por teorias pedagógicas diferen- de falsa informação, sabiamente mantidos -- é considerado, por
tes da sua, pelas ciências humanas e, em geral, por tudo o que Makarenko, um triste episódio de "delinqüência" política. Os
tivesse a marca da cidade: a oposição cidade-campo também deve editores, em Moscou, das edições em língua francesa se conten-
ser levada em conta na compreensão da experiência Makarenko). tam em assinalar,numa nota de pé de página: "Makhno, chefe
Uma ideologia bolchevista baseada em apelos militares -- as de um bando contra-revolucionário que operava na Ucrânia du-
proezas dos exércitos vermelhos --completa a teoria pedagógica rante a guerra civil". Eis o amálgama entre anarquistas e contra-
de Makarenko. Procuraremos em vão, em seu longo relato en- revolucionários estabelecido em poucas palavras! Os "negros" e
trecortado de reflexões ásperas, alusões precisas ao clima políti- os "brancos", o movimento revolucionário anarquista e a reação
co que serviu de contextoa sua experiênciade oito anos. Até o tzarista são postos no mesmo saco.
fina], permanece como referência única o período de luta políti- As relações entre anarquismo e delinqüência -- várias vezes
ca e militar do novo poder contra seus inimigos intemos. Duran- ressalvadaspelo próprio Bakunin e dolorosamente assumidas por
te oito anos, Makarenko manteve a lembrança desse "período teóricos como Jean Grave à época dos atentados-- são mais es-
heróico", ignorando, ou fingindo ignorar, o refluxo da revolu- treitas que entre delinqüência e marxismo. Uma das divergên-
ção em 1919-20,os cortes nas experiências mais audaciosas cias teóricas entre os dois grandes rivais da Segunda Internacio-
como a de Verá Schmidt --, a reviravolta da NEl:} as consequên- nal reside na apreciaçãodo papel do subproletariado.'' Mais
cias do afastamentoe da posterior morte de Lênin, as lutas da recentemente, vimos uma reatualização desse debate a propó-
oposição operária, os grandes conflitos e debates políticos nos sito do papel dos prooos,dos bZozzsolzs rzoírs,dos enragés*nas re-
congressos do partido ou dos sindicatos, a lenta mas segura as- voltas da juventude durante os anos 1960.Uma das conseqüên-
censão de Stálin, o conflito Stálin-Trotski, a derrota do último e cias teóricas desse problema social é o interesse que a pedagogia
da oposição de esquerda no momento em que ele próprio, Maka- institucional tem pelos desviantes, na medida em que provocam
renko, é forçado a se demitir (1928),no momento em que os "teó- efeitos analisadores quando de experiências pedagógicas ou in-
ricos" da pedagogia apresentam, nas /ornadas /?zfernacíorzais de tervenções de campo.
PedagogiaPro/efáríade Leipzig, tesesmuito similares às suas(edu- Em 1920,o Ministério da Instrução Pública confia a Makarenko
cação pelo trabalho, recusa do /aíssez-cafre,educação centrada me- a direção de um centro de delinqüentes: a colónia Górki, na
nos na criança do que nos objetivos das "massas" etc.).9Do "pe- Ucrânia. De início, o jovem pedagogo se atribui a missão de do
ríodo heróico", Makarenko evoca sobretudo o episódio do mzzros adolescentes. Estes estão marcados pelos anos da guerra
makhnovismo, já que a "colónia Górki", da qual é encarregado,
situa-se na Ucrânia: dentre seus primeiros delinqüentes, muitos :' O problema foi bem exposto pelo velho libertário Malatesta em sua polêmi-
ca com Monatte, durante um dos primeiros congressosda CGT. Cf. Jean
vêm dos bandos de Makhno e, durante um certo tempo, o clima Maitron. Raoac/zoJ
et /esatzarchísfes.
Coll. Archives. Julliard, p. 152
+ Os tem\os foram propositalmente mantidos no idioma original por se referi-
9 Lindenberg. L'írzfernafíonale commutzísfe ef I'école de c/asse. Maspéro, 1972.
rem a denominações típicas do maio de 68francês(N. do T.).
116 RENÉ LOURAS ESTU00S HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEDACOGIA 117
civil. Alguns combateram ao lado dos exércitosanarquistas de receba o nome de "pedagogia dos condecorados" (vale lem-
Makhno. Makarenko impõe sua autoridade por todos os meios, brar que, à época, Stálin ainda não tinha restabelecido as paten-
incluída a agressão física. tes nas forças armadas). Nos antípodas do seiFgouernl/ze?zt expe-
Rapidamente sua pedagogia, baseada na disciplina "bolche- rimentado, no mesmo momento, nas comunidades escolares de
vista" e no trabalho, derrota os rebeldes. Graças ao trabalho da Hamburgo e em outros países, o método utilizado repousava
fazenda, à exploração da floresta e à introdução de oficinas, a sobre o poder absoluto do diretor da colónia. Mais tarde, quan-
colónia vive quase como uma autarquia. A organização mate- do os comandantespassarama ser eleitosem lugar de direta-
rial, em princípio atribuída a um ecânomo,é de fato uma das mente nomeados por Makarenko, isto não representou "um pro-
principais atribuições do pedagogo Para Makarenko, a base ma- gresso" , segundo este último.
terial da instituição é uma ferramenta pedagógica privilegia- Em 1926,é confiada a Makarenko a direção de uma outra
da. Como ela determina, nesse período de escassez, toda a vida colónia de delinqüentes, então entregue a grave crise. Apela-se
social da Rússia, é normal que determine também a vida social a alguém que já provara seu valor e saberá domar os rebeldes.
da colónia Górki. Os delinqüentes são divididos em "destaca- Makarenko transfere toda a colónia de Górki para a colónia de
mentos" ou equipes fixas, comandadas por chefes, cuja reunião Kouriage. O conjunto formado pelos colonos e seu mestre cons-
forma o conselho dos comandantes órgão de co-gestãoda titui o sfllfda intervenção. Os primeiros tempos são ainda mais
colónia. Para responder às exigências irregulares do trabalho duros que os de Górki. O pedagogo acaba por se impor, ao fazer
agrícola, são também organizados destacamentos não fixos, com que os colonos de Górki desfilem militarmente, à maneira de um
rodízio dos comandantes. Sendo assim, em certos momentos, exército disciplinado, diante das hordas andrajosas e hostis de
comandantes de destacamento podem ser comandados por ca- Kouriage. Segundo confessa o próprio Makarenko, essa demons-
maradas que, em geral, estão sob suas ordens. Esta é a primeira tração de força é a única técnica de persuasão de que dispõe (no
instituição" (Makarenko dixit) da pedagogia de Makarenko. A início da colónia Górki ele acrescentava, às agressões físicas, a
segunda será a incorporação moral e material dos delinqüentes ameaça de um revólver dentro do bolso). Depois de várias bri-
trabalhadores:quem não trabalhaé submetido a um rude regi- gas entre colonos "integrados" de Górki e desviantes em revolta
me de represálias; a "honra" da colónia, o senso de "dever' de Kouriage, os primeiros conseguiram impor a ordem e a disci-
comunista, o salário, enfim, constituem os fatores de incorpora- plina que haviam interiorizado. Parece que no plano do traba-
ção e de participação. Temos aí um princípio que se verá cada lho logo, da terapia e da pedagogia propriamente ditas o su-
vez mais aplicado, no curso dos anos que se seguem à revolu- cesso foi menos nítido. Voltaremos a isso pouco mais adiante.
ção, na maior parte dos setoresda indústria. A emulação, a com- Em seguida, Makarenko ainda se ocupa de uma terceira coló-
petição, a concorrência entre grupos de trabalho e entre traba- nia, situada sob o tacão da polícia política. Aqui, só há ordem e
lhadores, na mesma época em que se desenvolve, na América, a beleza. cabeças raspadas e entusiasmo pelo trabalho, pois se tra-
psicossociologia industrial, constitui um elemento essencial na ta da colónia Dzeijínski, assim batfzada e n /homenagemao ch(:Óeda
"construção do socialismo".': GPU, liquidado em 1926. . . Makarenko não esconde que seu ideal
O método de Makarenko não é aceito facilmente pelas autori- pedagógico, seu prometo de "homem comunista" está perfeita-
dades pedagógicas. A militarização da vida cotidiana faz que mente encarnado nesses supereducadores que são os membros
da polícia política, encarregados da salvaguarda do regime, da
': Laptine. Les prf jipes /énínísfesde sfír7i Jafion ati fraoafJ. Editions de Moscou. caça às bruxas.
E1 8 RENÉ LOURAU
ESTU00S HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEOACOCIA 119
Entretanto, as inspeções pedagógicas se sucedem, todas des- Como não podemos, na ausência de documentos seguros e
favoráveis a Makarenko. É repreendido pela militarização do tra-
numerosos, levar adiante a hipótese de um conflito puramente
balho, pela disciplina exagerada, pela violência das relações pe- político entre Makarenko e os últimos representantes oficiais da
dagógicas. As informações que temos sobre a política educativa
pedagogia libertária, contentemo-nosem utilizar os dados for-
do Partido Comunista russo da época nos permitem levantar a
necidos por Poemapedagógico.Gostaria de chamar a atençãopara
seguinte hipótese: enquanto a oposição de esquerda não foi li-
dois pontos essenciais: a questão sexual e a das "resistências" ao
quidada (até 1927-1928,anos do fim da experiência de Makaren-
trabalho de reeducação por parte dos delinqüentes.
ko), uma oração de teóricos liberais, quando não libertários,
No segundo volume de Poemapedagógico, Makarenko trata
detém o poder no Instífuto pe/a Pedagogia ,hfarxisfa-l,etzín/sfa de
particularmenteda grave ameaça que pesa sobre seu método:
Moscou. Em 1928, o pedagogo Choulguine analisa o "declínio
da escola" como instrumento da classe dominante. Entre 1925e "Cupido" --em outras palavras, a sexualidade dos delinqüentes
(também a dele próprio, se nos basearmos na maneira pela qual
1932,o debatepareceestar bem vivo. A partir de 1931,contudo,
rechaça os avanços de uma jovem que, além de ser uma mulher,
outro pedagogo, Búdnov. condena as teorias da "morte da esco:
possui o defeito de "ter maus costumes"). O pedagogo se vê com-
la" e privilegia os mesmos argumentos pelos quais Makarenko
pletamente desarmado quando seus colonos, bem barbeados e
pareceter sido condenado. Podemos citar também o calendário banhados, usando shorfs, rostos e membros bronzeados, a alma
da "normalização" da escola soviética, estabelecido por Linden-
pura e obediente,começama fazer sucessocom as meninasda
berg em seu livro, rico em documentos mas, infelizmente, pou-
aldeia. Aqui, mais uma vez, todos os meios Ihe parecem bons para
co sensível à existência de movimentos e experiências excêntri-
cos aos textos oficiais da Terceira Internacional: fazer renunciar não mais à indisciplina, mas ao desejo. Intimi-
- 1931:Restabelecimento das "classes" como estratos de ida- dação, discursos morais, apelos à moral "bolchevista" e a todos
os valores "viris", nada surte efeito. Makarenko reconhece que a
de e lugares separados;
1932: Restabelecimento das matérias (fim dos "complexos", pedagogia (tal qual a entende) não tem adversário maior que.
o amor. O pedagogo robusto se transforma em dama de compa-
que permitiam associar a aprendizagem de várias ciências me-
nhia e em z?oyezzr virtuoso. Proíbe as uniões, separa os casais, re-
diante uma pesquisa ou exploração do meio); cusa-se a deixar que uma jovem faça um aborto, impele um ado-
- 1936: Restabelecimento das notas (abolidas em novembro lescenteao suicídio. Sua boa consciência "comunista" nada sofre
de 1917)etc.::
com isso. Seu ciúme, do qual se dá conta em diversas situações,
é tratado como uma vil fraqueza. E o amor que faz baixar o
12
[)urante os anos revo]ucionários na Rússia, algumas das bases da instituição
escolar foram abolidas: com efeito, a divisão em classes de nível(idade) e
do a qual Q próprio conteúdo de um movimento revolucionáriomoderno
em matérias é um dos fundamentos da pedagogia modema, inicialmente reside na rejeiçãopura e simples de estruturas institucionais não exatamen-
protestante, depois recuperada pelos jesuítas. A atomização em grupos de te "capitalistas", mas herdadas de épocas feudais e anteriores ao feudalis
nível e em fragmentos de saber é um dos elementos políticos mais camufla-
mo. Sobre este assunto, ver igualmente o conteúdo da normalização na Rússia
dos, menos evidentes,da instituiçãoescolar.Não é um acasoque, numa si-
tuação revolucionária, a destruição comece espontaneamentepor esses ele- stalinista, por exemplo: este conteúdo revela que a luta de classes passa me
mentos. O mesmo acontece com o sistema de controle (notas) e com a nos pelo estabelecimentode um plano qüinqüenal e pela racionalização da
produção "socialista"(medidas próprias à economia capitalista, sob formas
disciplina. Se fizéssemos um estudo comparativo de vários fenómenos re-
volucionários modemos(Reforma, revolução francesa, Comuna de Paria, re- e em graus diversos) do que, sobretudo, pela restauraçãodas instituições
abolidas ou fortemente contestadasno período revolucionário - família, es-
volução russa, revolução chinesa etc.), poderíamos testar a hipótese segun
cola, psiquiatria, cultura, forças armadas, partido etc.
1 20 REN É LOURAU ESTU00S HISTÓRICOS SOBRE A CONTRAPEOACOCIA 121
rendimento: deve ser absolutamenterejeitado,junto com todos roubos permanentes, a ponto de os quarenta educadores de
os "romances" rousseauístasl Kouriage terem feito instalar em seus quartos um sistema de pro-
O desejo perturba a colónia-modelo de Górki. Pode-se imagi- teçãodigno de uma prisão ou de um bancosHá "deserção" do
nar que, em Kouriage, as coisas sejam ainda mais complicadas. destacamento de trabalho (p. 285): seja pela resistência passiva
Lá, as moças são incessantementeagredidas pelos rapazes e, so- ou pelo roubo, o sistema de ergoterapia é atacado. Contra tais
bretudo, à revoltado desejose mistura a reivindicaçãodo não- formas de luta antiinstitucional,o pedagogo fornece "esponta-
trabalho. Eis o segundo ponto que eu gostaria de examinar. neamente" os "bons" elementos, trazidos de Górki. O hízrkísmo+
Em Kouriage, Makarenko choca-secom "essa indiferençaque (entendo por isso o conluio de uma oraçãodos oprimidos com
é a única atitude defensiva de toda criança abandonada contra os opressores)dos delinquentesdomados se exerce,por exem-
os jogos de paciência pedagógicos. . ." (p. 108). O novo obstácu- plo, no momento das refeições, sob a forma de pequenas humi-
lo leva nosso pedagogo a considerações psicossociológicas que lhações e de privação de comida. Uma vez mais, a pedagogia se
um pedagogo modernista dos países capitalistas não desapro' exibeaqui em sua nudez: assim como nos primeiros contatos com
varia, pouco versado que fosse em psicanálise e psicologia infan- Kouriage, Makarenko se impusera dispondo as tropas de Górki
til (cf., na obra sobre a pedagogia libertária de Hamburgo, as in- em ordem unida (sentidos), ele combate (com que grau de su-
vocaçõesao "Sr. Freud" e ao "Sr. Piaget"). Não contenteem cesso?) a resistênciaao trabalho através de seus comandos vir-
estabelecer uma tipologia do desvio para justificar a profunda hos- tuosos de colonos submissos. . . Foram também os operários do
tilidade às crianças abandonadas que se tomaram delinqüentes, norte que vieram dominar os camponeses anarquistasda Ucrânia,
Makarenko oferece contribuição às teorias soviéticas de incor- alguns anos antes.
poração material e moral dos trabalhadores. Para tanto, analisa Militarista, puritana(com forte tendência homossexual incons-
as "resistências" à educação, surpreendendo-se com a ausência ciente), totalmente exterocentrada (sobre o futuro "homem co-
de uma "tecnologia" de educação análoga à que preside à trans- munista", adulto ideal), a pedagogiade Makarenko apresenta
formação da matéria. Não nos espantaremos em encontrar, en- muito mais semelhanças com a pedagogia totalitária, sob todas
tão (p. 276-85,tomo 111),um cântico de admiração à polícia polí- as suas formas religiosas e fascistas, do que com a pedagogia
tica: "A quem faltam luzes para resolver qualquer problema de libertária de MeraSchmidt e dos mestres de }:lamburgo.:' Com-
educação?" --pergunta, com seu habitual senso de ironia. E pros- preende-sepor que razão, após ter sido invalidado e sanciona-
segue, adiante: "Entretanto, um professor de pedagogia, especia- do, o pedagogo bolchevista gozou de uma glória posterior e pós-
lista em questões de educação, escreve ao GPU ou NKVD: "Mi- tuma. Stalinista antes de Stálin, esse mártir da pedagogia tem
nha criança me roubou várias vezes, ela dorme fora de casa, eu tudo para servir de antídoto à pedagogia libertária.
lhes dirijo a mais fervorosa prece. . .". Conclui, então: "Pergun-
O terxnoderiva de ;zarkf,denominação depreciativa pela qual são conheci-
+
tamo-nos por que os tchekistas devem ser, em pedagogia, técni- dos os argelinos aliados do colonialismo francês, que lutaram contra seus
cos superiores a um professor de pedagogia" (p. 279-80). Pouco 13
compatriotas durante a guerra de independência do país.
mais tarde, na colónia Dzerjír\ki, a resposta será dada, como in- Um estudo mais completo deveria conter uma comparação entre o método
dicamos: o ideal do pedagogo comunista é a polícia secreta. de Makannko e o de Deligny, na trança, bem como uma comparação entre
Poemapedagó@co
e o livro ainda mais abertamentestalinistade Makarenko,
Há "recusa ao trabalho" (p. 281), mas, felizmente, raros são os Les drapeaux sur !es touro.
casos de "recusa ao trabalho demonstrativo", quer dizer, públi-
co e exemplar. Essa recusa, bem entendido, é acompanhada de
PEQUENO MANUAL DE ANALISE INSTITUCIONAL 123
111
PEQUENO MANUAL SE VOCÊ ZOMBA DA IDÉIA DE "FAZER A ANÁLISE INS-
DE ANALISE INSTITUCIONAL* TITUCIONAL NA CAMA", É PORQUE CONFUNDE ANÁLI-
SE COM ]lANACEIA DE ESPECIALISTA,ANÁLISE COM DIS-
CURSO INTELEC'l'UAL E ANALISE COM DISCURSO SOBRE
h. NÇÉ'.O.
A análise não é o oposto da ação. A ação é a análise. Ou me-
lhor, para não confundir sob um mesmo nome coisas tão dife-
(1)UANOO SURGE UMA CRISE na família ou no grupo em que rentes como a análise feita por um especialista dotado de jar-
você vive, no prédio, bairro ou cidade onde mora, no local em rões e a análiseno sentidoque propomos aqui, digamos que a
que trabalhaou ao qual vai para se divertir ou fazer esporte, ação é alzaiisador,inclusive da análise instituída como atividade
onde pratica atividades religiosas ou políticas, no estabelecimento de especialista.
em que é professor ou aluno, na associaçãoda qual é membro l;AZER AMOR TENDO, OU NAO, PRAZER; NÂO l;AZER
etc., pode-se dizer que estão reunidas as condições para uma AMOR; A] TEMOS AROS LUMINOSAMENTE, OU SOMBR]A-
análise institucional. MEN'lE, ANALISAM)ORES DE TODAS AS NOSSAS OUTRAS
ATIVIDADES OU INATIVIDADES. É B.ANAL DEMA6 AFIR-
MAR ISSO? T.ANÃO IAZ.
11
Vejam, minha mulher chegou com legumes para fazer a sopa.
As batatas, as cenouras e o repolho estão ao lado da folha de
A política não é assimilável ao jogo tragicâmico dos profissio-
papel em que escrevo. Esta aproximação não é tão carregada de
nais. A políticacomeça com a briga de casal, os desentendimen-
significados políticos quanto um quadro de Dali, ou QUAN-
tos entre pais e filhos, a querela amorosa.
TO UMA]UASSEATA DE 100.000MANIFEST:AN'ITS, OU QUAN-
Não é suficienteafirmar que a política está tzavida cotidiana. TO UM DECjIETO SOBlZEO AUMENTO DO PREÇO DO LEI-
É mais exato afirmar que ela é a oiça cotidíazza. TE?
É a política que tece as relações sociais banais, insignificantes,
públicas ou privadas, de dia e de noite. lv
AQUELES QUE DISSEREMQUE O QUE ESTOUESCRE-
Petiz manuel d'analyse institutionelle. Pratiquei de Formation-Analyses VENDO NO MOMENTO NÂO É SOCIOLOGIA SÃO LASU-
René Lourau: analyse institutionnelleet éducation", IJniversité de Paria Vlll MAVEIS.
Paras, 2000(publicado originalmente em l,e Gaí Saz;oírn' 2, setembro de 1974)
Tradução: Paulo Schneider. Bem, já é tempo de falar dos operários e dos camponeses. Um
pouco de seriedade, enfiml
1 24 RENÉ LOU RAU PEQUENO MANUAL DE ANÁLISE INSTITUCIONAL. 125
couêre u mour de hamil" --na língua de Béam.* Saem os campo-
V neses.
A SOCIOLOGIA DEVE SER FEITA POR TODOS, NAO APE- Vll
NAS POR UM. É ISSO, A DIALETOQUEI*
Julien, meu filho (quatro anos), acaba de escutar seu disco "can- E o que tem a ver a análise institucionalcom tudo isso? Volte
ções de um marginal". Pergunta se pode usar minha máquina ao primeiro parágrafo. Destaque a palavra CRISE.
de escrever. Permito, bufando. No momento, excepcionalmente, Bom. Mas, em caso de crise, o que fazemos?
escrevo com uma caneta Bíc. Lutamos sozinhos, a dois, a três, a dez, a vinte, para que fadas
as pessoas envolvidas na situação se encontrem, falem entre si,
VI reconheçam juntas os analisadores da situação, decidam coleti-
vamente.
MAS ISSO E TER]UVELMENTE CRISTÃO!
Descasquei as batatas e as cenouras. Pego minha Bíc para fa-
lar de camponeses e operários. Efetivamente. Então, corte o precedente, menos a palavra LU-
TAMOS.
Mas pra quê? Um intelectual falar de operários e camponeses
para outros intelectuais, você vê grande interesse nisso? UMA LUTA ]JARA LEVAR AS UlTiMAS CONSEQUENCIAS
OS OPERÁRIOS. Meu pai é um velho operário.Trintaanos (INCLUSIVE QUANTO A SI MESMO) A CASE, EIS A ANALI-
no mesmo emprego. Ao seu primeiro patrão, ele chamava URSO. SE INSTITUCIONALEM SITUAÇÃO, E NAO NO 1JAPEL- O
PRESENTE TEXTO E APENASlJAPEL.
Quando o URSO se aposentou, o subdiretor o sucedeu. Meu
pai o chamava de TIGRE.
Vlll
O TIGj:E se aposentou. Um rapaz que meu pai conheceu quan-
do ainda era bem menino foi nomeado diretor. Era liberal, com-
preensivo e tudo o mais. Foi destituído pelos "grandes pa- PEQUENO SUPLEMENTO AO MANUAL
trões" de Toulousee de Leão.
AÍ têm, quanto aos operários. Mas, se não existe CRISE, como fazer uma análise institu-
cional?
E AGORA OS CAMPONESES. Quando eu era criança, ajuda-
Então, dê um jeito para que ela ectoda.
va a juntar as vacas com os camponeses,vagamenteamigos de
meu pai. Ele os ajudava na colheitado feno, do milho e das Para isso, em nossa prateleira de "instrumentos conceituais",
uvas. . . Para conseguir leite, ovos etc. Ainda era a época das res- dispomos de alguns produtos em liquidação com defeitosde fun-
cionamento.
trições do pós-guerra.
Um dia, me aproximo dos camponeses para apanhar leite. Meu Nós recomendamos, sob certas reservas (/zocízsode vocêestar
pai, que almoça com eles entre dois turnos de trabalho, escuta numa posição de interventor alterno):
a camponesa dizer, ao ouvir o barulho de minha bicicleta: "En- A ANALISE DA ENCOMENDA: quem me chamou, por quê?
-- AANALISE DA DEMANDA: o que desejam aqueles que não
No original,'dialectoc" (como contraponto irónico a "dialectique") (N. do
'Mais um morto de fome!" seria uma tradução aproximada(N. do T.)
+
1 26 RENÉ LOURAU PEQUENO MANUAL. OE ANAL.ise INSTITUCIONAL 127
-- O número especial 29-30 da revista l.'Ho//z/ne ef /a socíété, 1974,
me pediram para vir? Quais são suas relaçõescom os que me
chamaram? Et(l. Editions Anthropos, Pauis;
- A AUTOGESTÃO DO CONJUNTO DA SESSÃO DE ANA- --Os números especiais 6 e 7 da revista Con?zexfotzs,
1973, édi-
tions de I'Epi, Paria;
LISE: e se alguns não querem se misturar com os outros, apres'
se-se em delatá-los a estes outros. A autogestão do emprego do -- Os números especiais 32 e 33 da revista tour, 1973,GRE13
13-15, rue des Pentes-Ecuries, 75010, Paria.
tempo (divisão em sessões) e do eventual pagamento são assun-
tos a considerar também.
XI
-- A ELUCIDAÇÃO DOS ANALISADORES que, na situação,
provocam o conjunto a falar, as pessoas a se colocarem umas con-
tra as outras etc. Fora isso, somos um certo número de pessoas vendendo a aná-
- A ANÁLISE PERMANENTE DE SUAS PRÓPRIAS IMPLI- [ise instituciona[na universidade e em outros lugares de for-
CAÇÕES em relação ao sfít#-cliente,ao grupo-cliente, à ideolo- mação: Vincennes, Nantes, Angers, Grenoble, Perpignan, Estras-
gia do meio, ao problema levantado etc. burgo, Reims, Nancy, Bruxelas, Liêge, Lovaina, Argélia, Rio de
Janeiro, Belo Horizonte(Brasil).
lx Outros vendem a análise institucionalem associaçõespriva-
das: Cera, Arip, Cerep, Cepreg, Apsi, Andsha etc. Outros ainda
BIBLIOGRAFIA tentam introduzi-la no setor de "formação" das empresas: Ber-
nard Krief Consultant (Paris), IBM trança e IBM Bélgicaetc.
O SIGNATÁRIO DESTE MANUAL É MESTRE DE CONFE-
AS MELHORES OBRAS para se informar sobre a análise ins-
titucional não são necessariamenteas que falam sempre de aná- RÊNCIAS DE SOCIOLOGIA E DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO.
lise institucional (como as minhas, as de Lapassade etc.). LECIONA NA UNIVERSIDADE DE POITIERS(SOCIOLOGIA)
E NA UNIVERSIDADE DE VINCENNES (CIÊNCIAS DA EDU-
Para uma iniciação sociológica à perspectiva da análise insti-
tucional, aconselharia (arbitrariamente) três livros: CAÇÃO). ])ARA MAIORES ESCLA RECIMENTOS, ESCREVA A:
-- A análise extremamente profunda da ímp/ícaçãb: Gerard Al- RENE LOURAU, LA RONDELLE DU ROCHEREAU, 86170
thabe. Oppressíon ef/íbá'afiotz (ützs J'fmagílzízlre. Paris: Maspéro, 1969.
NEUVILLE, FRANCE.
O transe como anlz/ísadorda cidade em crise: Michel de Cer-
teau. La possessiotz
de Loz/dun.Julliard, Col. Archives, 1972(?).
-- Os dois modos de ação opostos e complementares: fagare/í-
a e deserção
(ou a crítica da teoria dos analisadores):Albert O.
Hirschman. Exít, ooíceand ZoyaZfy.1970, EUA. Trad. francesa, Face
azzdécZí?z
des entnepriseset des ilzstifutíons.Editions Ouvriêres, 1972.
X
Se você quiser ter um bocado de outras idéias sobre análise
institucional, pode ler:
UMA APRESENTAÇÃO 0A ANÁLISE INSTITUCIONAL 129
como em críticas externas feitas por teóricos da sociologia
critica.
As técnicas de enqzzête (questionários, entrevistas diretivas,
semidiretivas ou não-diretivas, codificação, tratamento matemá-
tico de dados, computação etc.) não esperaram pela análise insti-
tucional para sofrer críticas consistentes. A maior parte dos so-
UMA APRESENTAÇÃO DA ciólogos cujo estatuto de iniciantes, trabalhadores temporários
ANALISE INSTITUCIONAL* em laboratórios ou estudantes em início de pesquisa (para mo-
nografia de mestrado, tese de terceirociclo) pusera em contato
direto com a sociologia empírica foram os primeiros seja a des-
cobrir quão bem fundamentadas eram essas críticas seja a redes-
Uma tendência cobri-las através de leituras da sociologia crítica. Por sua parte,
as sondagens - aspecto mais espetacular e. portanto, mais mani-
SOCIÓLOGOS OE UM Novo Tipo às vezes se auto-intitulam pulável e suspeito -- não param de ser objeto de denúncias dos
ou são denominados "contra-sociólogos" -- se reúnem, há alguns técnicos dos próprios institutos especializados. Resta a e/zquêfe
anos, em torno da análise institucional e da socioanálise. estatística, assim como a enquêfesócio-histórica baseada em do-
Constituem uma tendênciano interior de uma correntemais cumentos: quando é o caso, a análise institucional sabe utilizá-
vasta de análise institucional e se voltam, sobretudo, para os pro- las em proveito próprio, embora centrada em uma metodologia
blemas de educação e de terapia. Embora conserve um cantata radicalmente diferente.
com tais práticas (minimamente, pelo ofício de professor ou de Conquanto a análise institucional seja herdeira do projeto ana-
educador especializado, muito freqüentes), a tendência de que lítico (cada vez mais psicanalítico, por sinal) voltado para a des-
falo aqui se apega intransigentemente
a uma outra disciplina, coberta da instituição na prática cotidiana e trabalhe também sob
constituída e oficializada há muito tempo: a sociologia. a forma de sociologia de intervenção pontual e sob encomenda
(a socioanálise), utilizando-se de conceitos frequentemente ela-
Sociologia de intervenção borados pela psicoterapia institucional e pela pedagogia insti-
tucional, ela também recobre, em parte, um outro domínio: o da
Não se trata, entretanto, de uma sociologia qualquer, mas sim psicossociologia, da intervenção em pequenos grupos.
da sociologia de intervenção no campo Ela se utiliza de um mé-
todo que pode ser comparado a certas experiênciasde inter- Psicossociologia
venção sociológica tradicional, porém se baseia tanto em uma
crítica intema -- efetuada por sociólogos habituados ao campo Com efeito, produziu-se historicamente, por um lado, um en-
contro entre as pesquisas institucionalistas de psiquiatras e peda-
Une présentation de I'analyse institutionelle. Pratiques de Formation-Analy gogos e, por outro, a superação da psicossociologia dos grupos,
ses". "René Lourau: analyse institutionnelleet éducation", Université de Pa introduzida na Fiança nos anos 1960.
ris VHI, Paria, 2000 (originalmente texto intemo inédito, Universidade de Pa
ris Xll, Val-de-Made, Serviço de FormaçãoContínua, 1977).Tradução: Pau Talvez porque a novidade fosse mais estimulante do que a so-
lo Schneider. ciologia existente à época; talvez também porque a pesquisa de
l
l
1 30 REN É LOURAS UnA APRESENTAÇÃO0A ANÁLISE INSTITUCIONAL 131
campo, na França, depois de um período brilhante, anterior e titucional está estreitamente determinada pelas origens de nos-
externo à escola francesa de sociologia (em particular, com os sa tendência.
trabalhos monográficos de Le Play sobre grupos familiares e pro-
fissionais, bem como de seus discípulos e de dissidentes, como Autogestão
Maroussem), houvesse praticamente desaparecido, subsistindo
apenas, por exemplo, na sociologia das organizações de Crozier No plano mais manifestamente político, o conceito de auto-
(mistura de enquêtes baseadas em questionários ou entrevistas gestão da intervenção (incluindo a autogestão do pagamento) --
com palzlzelsou sessões de grupo para entrevista coletiva); talvez originado, em parte, da autogestão pedagógica praticada pelos
ainda porque o debate político fosse mais viável entre os psicos- defensores da pedagogia institucional --deve muito à descober-
sociólogos--mais jovens, mais entusiastas, menos marcados, na- ta (ou redescoberta) desta noção política através da experiência
quele momento, pela instituição universitária, menos reconheci- iugoslava e, posteriormente, da experiência argelina. Não é por
dos pelas instituições científicas de pesquisa --; talvez, enfim, acaso que a análise institucional se refere, ou é referida, às cor-
porque a crise das ideologias institucionalizadas marxismo e rentes históricas do anarquismo e da urra-esquerda e, por ve-
cristianismo nos meios estudantis, de professores e de clérigos zes, também a certas tendências trotskistas. Os critérios de vali-
parisiensesou da província --oferecesseum campo relativamen- dação das intervenções socioanalíticas não são fabricados ad hoc
te aberto a uma nova teoria e a um novo método de análise e de pelos socioanalistas: existem nos movimentos sociais, nas crises
intervenção sobre as relações sociais naquele final da guerra da e em outras situações de ruptura, das quais a história está reple-
Argélia e começo da crise generalizada de todas as organizações ta de exemplos após a Comuna parisiense de 1871, para nos ater-
da juventude (Unem,UEC, jovens protestantese jovens católicos mos à época modema.
etc.), a análise institucional, no sentido de intervenção sociológi-
ca externa ou de instrumento de análise sociológica nos lugares Encomenda e demanda
da prática, tenha emergido, em grande parte, do que mais per-
turbava as normas intelectuaisdominantes: a psicossociologia, Os conceitos de análise da encomenda e da demanda de aná-
com suas técnicasmanipulatórias porém fascinantes,com seus lise manifestada, ou não, pelo conjunto do grupo-cliente (e não
mitos ainda frescos e bem dispostos. O que restou dela? O dis- somente, à diferença da encomenda, pelo sfa#dos responsáveis
positivo das sessões de grupo, transformado em assembléia-ge- ou de outras pessoas portadoras de tal solicitação) são igualmen-
ral permanente, e a problemática da intervenção, com as técni- te, e primordialmente, políticos. Surgiram por referência a uma
cas da negociação, da restituição "imediata" do que se passa na análise mais global de todo o contexto da intervenção: todo o
caixa-preta. Em contrapartida, foram deixados inteiramente de antes, o exterior e o depois da intervenção estão no campo de
lado os princípios psicossociológicos da alegada "neutralidade" análise, incomparavelmentemais vasto que o campo de inter-
do analista e, sobretudo, a dupla redução seguinte: venção, limitado a um estabelecimento,a uma associaçãoetc.
1. do campo de análise ao interindividual e ao afetivo;
2. do campo de intervenção ao grupo centrado em si mesmo, Analisados
fora do tempo e do espaço-
Embora tenha evoluído, sob a pressão da experiência, duran- O conceito de analisador foi elaborado pela psicoterapia insti
te uma dezena de anos ou mais, a metodologia da análise ins- tucional, que o tomara por empréstimo da medicina, da biolo
132 REN É LOU RAU
UmA APRESENTAÇÃODA AMANSE INSTITUCIONAL- 133
gia, da física e, singularmente, de Pavlov. Pouco a pouco, o con- cidade por Bany e Johnson (Dynamíque de grozípe ef édíicafíon.
ceito ganhou importância e significação tais que, atualmente, está trad. francesa, Dunod, 1969):
ameaçado de mitificação, tendendo a tomar-se um pequeno "tru-
que" profissional. E necessáriolembrar, portanto, que os anali- Uma descrição geral de um grupo não depende das razões
sadores - acontecimentos ou fenómenos reveladores e ao mes-
pelas quais o grupo nasceu nem do caráter voluntário ou
mo tempo catalisadores; produtos de uma situação que agem involuntário da associação entre seus membros. Ela não leva
sobre ela --não deveriam ser abusivamenteconfundidos com as
em conta, além do mais, que os membros possam ser retira-
intuições individuais de uma ou outra pessoa implicada na si- dos (excluídos) ou, ao contrário, colocados (integrados) no
tuação, mesmo que tal pessoa seja um socioanalista. grupo por um agenteexterior.
Transversalidade
Estas proposições são a antítese exala das regras sobre as quais
repousa a análise institucional. A descoberta da transversalidade
O conceito de transversalidade sofreu em parte a mesma des- é descoberta de conflitos, de lutas sociais: ela própria é uma fon-
ventura, a mesma inflação. Oriundo das pesquisas psicoterápicas te de conflitos, porque lugar das resistênciasdo não dito.
e psicanalíticasde Guattari, este conceitofoi ampliado por nos- O poder vive e se nutre de escondido, de não dito: portanto,
sa tendência. Designa o que aparece parcialmente na pré-inter- na maior parte das vezes, é muito difícil revelar, ou deixar que
venção ou pré-enq êfeque antecede a intervenção e, sobretudo, outros revelem, essa familiaridade, essa vinculação com o po-
no próprio decurso da intervenção, a saber: o entrecruzamento der. E aqui que aparece a implicação.
de pertencimentos e referências (sociais, económicas, ideológi-
cas, políticas) do coletivo constituído pelo grupo-cliente e pelo(s) Implicação
socioanalista(s),podendo uma parte mais, ou menos grande do
grupo-cliente estar ausente do campo de intervenção, mas nun- O conceito de implicação também deve muito às pesquisas da
ca do campo de análise. Se há entrecruzamentoe transversali- tendência psicanalítica. Ele requer a análise do saber consciente-
dade, não é apenas porque os pertencimentose referênciassão mente dissimulado e do não-saber inconsciente próprio de nossas
múltiplos,mas igualmenteporque a colaboraçãoou a coabita- relações com a instituição. O fato de que este problema tenha sido
ção que definem a existência do grupo-cliente (um estabeleci- inicialmente abordado pelos psicanalistas e psiquiatras, que lida-
mento escolar, por exemplo) criam um consenso de fato, uma vam com doentes mentais definidos pelo relaxamento ou pela rup-
horizontalidade, um grupismo de "grande família", que vem tura dos vínculos com as instituições, é bastantecaracterístico.Sob
atravessar a verticalidade dos pertencimentos e referências inte- a forma da transferência e da contratransferência institucionais,
riores e exteriores,do mesmo modo que a horizontalidade, por inicialmente a implicação obrigou o terapeuta a se situar em rela-
seu turno, é atravessada pela verticalidade. Este efeito de gru- ção a todas as determinações da instituição, entendida como o
po, analisado pela psicossociologiano sentido da coesão e do hospital psiquiátrico. Em seguida, a implicação veio a designar
consenso a qualquer preço (em particular mediante os conceitos também todas as determinações transversais ao estabelecimento
de interação e de sintalidade), comporta uma crítica direta da onde tem lugar a análise institucional --determinações em grande
ideologia conservadora da psicossociologia americana, tal como parte exteriores,estabelecidaspara além do campo de interven-
se exprime, por exemplo, na seguinte caracterização da sinta- ção, mas nunca exteriores à instituição, no novo sentido do termo.
1 34 REN É LOURAU UmA APRESENTAÇÃO DA ANAL.iSE INSTITUCIONAL 135
de acontecimentose de imaginário, se acumula na história da
Romance institucional instituição questão que a socioanálise, sem dúvida, muitas ve-
zes subestimou, confiando em demasia, de maneira espontaneísta
Se longe de confundir-se com tal ou qual tipo de estabeleci- e mágica, no poder de revelação dos analisadores.
mento ou de grupamento (como é o caso, infelizmente, na psi-
coterapia institucional e na tendência de análise institucional nela Autodissolução
inspirada), a instituição é vista como a forma (nunca dada, sem-
pre a descobrir, a reconstruir) que tomam as forças sociais, a aná- A anualcrise do conceito de analisador na análise institucional
lise institucional funda-se na possibilidade de uma anamnese co- se deve, principalmente, ao fato de tal conceito se ter transfor-
letiva mediante a qual o grupo-clientee o sfa#'socioanalíticose mado em um instrumento, em uma ferramenta direcionada para
projetam na gênesedo que é instituído ali, na situação: tanto a o exterior, para a objeüvação dos problemas dos outros, perden-
gênese da intervenção que fez que os consultores ou interventores do assim sua virulência autodissolvente na auto-análise dos pro-
viessem quanto a gênese da instituição-mãe do grupo-cliente, blemas postos aos próprios socioanalistas. Daí o perigo, para os
cuja história, em grande parte, está escondida da maioria dos últimos, de neutralizar tais problemas, de só falar deles com
membros do grupo-cliente. muita dificuldade, como se os analisadores não devessem dis-
Como vimos, a possibilidade desta anamnese coletiva se apoia solver, sem cessar, tudo o que há de rígido e de institucionalizado
simultaneamente na informação colhida na fase preparatória e na própria socioanálise; como se as contradições que os anali-
em toda a transversalidade que os analisadores, a análise da im- sadores revelam nos outros não atravessassem igualmente os
plicação e a análise da encomenda e da demanda fazem surgir. socioanalistas.
Esse saber social que nasce na e pela prática, embora even- A teoria dos analisadoresimplica uma teoria da autodissolução
tualmente seja facilitado por informações e documentos indire- das formas sociais (inclusive as que institucionalizam a teoria
tos, na maioria escritos, comporta boa parte de imaginário con- dos analisadores). Todas as formas de resistência às diversas for-
forme sugeri ao dizer que o grupo-cliente e os socioanalistas "se mas de análise invocaram o caráter "dissolvente" desta última.
proletam" na gênese institucional. Também o conceito de romance E é verdade. E verdade quando a teologiafaz tal objeção à filo-
familiar, oriundo da psicanálise, pode ser transposto para desig- sofia natural, depois às ciências naturais e físicas. E verdade quan-
nar a maneira peia qual esse saber social é construído e desfeito, do as doutrinas reacionárias, nascidas em parte da teologia e da
sob o efeito de lutas permanentes. Trata-se de algo análogo à psi- teocracia, fazem a mesma objeção ao romance de análise, ao ro-
canálise que, voltada ao indivíduo, define o romance familiar mantismo, à psicanálise e à sociologia. E verdade, pelo menos, a
como "as fantasias pelas quais o sujeito modifica imaginariamen- cada vez que essasnovas maneiras de põr o saber instituído em
te seus laços com os pais (imaginando, por exemplo, que é uma crise ou em forma estão em sua fase militante e, de repente, de-
criança abandonada)" (Vocabu/árío da Psicanálise, de Laplanche sarrumam verdadeiramente os valores estabelecidos.Não é mais
& Pontalis).
verdade quando elas estão vencidas, integradas e estabilizadas
O conceito de romance familiar, convertido em conceito de em um novo "quadro" dos conhecimento, ou seja, na ordem exis-
romance institucional, completa, portanto -- sempre sob o signo tente
da análise da implicação --, a contribuição da transversalidade, Dissolver o saber instituído (efeito de "revelador") e modifi-
ressaltandoo peso da gênese, de tudo aquilo que, sob a forma car as relações de força constitutivas das formas da representa-
1 36 RE N É LOURAU UmA APRESENTAÇÃO OA ANÁLISE INSTITUCIONAL- 137
ção instituída (efeito de "catalisador"), tal é o trabalho dos ana- Não se descobre imediatamente a panacéia com a coletivização
lisadores. Duplo trabalho, ambivalente, muitas vezes ambíguo; da análise. Tornar a palavra comum a todos é um processo, uma
daí a tendência à recuperação eventualmente observada, quan- luta, cujo suporte e desafio residem não na reivindicação formal
do a primeira face de seu trabalho "revelador" é autonomizada de direitos, mas no ato de partilhar uma prática, a busca de uma
e objetivada, tomando a frente da segunda face, política. troca isonõmica ("simbólica"? --cf. Baudrillard) e de uma comu-
A primeiríssima autonomização,a primeiríssima objetivação nidade de trabalho e de vida: aquilo que Reich, em textos dos
dos analisadores consiste em teoriza-los e em fazer deles o centro anos 1937-42,chamava "A democracia do trabalho" --o trabalho
da análise institucional. Paradoxo meramente surpreendente em como componente da líbido, a líbido como componentedo tra-
qualquer busca de conhecimento, mas que, na análise institucional, balho --, e que foi esboçado nas experiências mais extremas dos
é favorde dinamismo, de questionamento, de auto-superação. movimentos revolucionários, tanto no milenarismo alemão do
Pretender objetivar os analisadores é negar a análise institu- século XV quanto na autogestão agrícola em Aragon de 1936-37.
cional. Designar, nomear, fixar os analisadores, proclamar urbeef Nessas condições, a coletivização e a permanência da análise
orbe"aqui temos um analisador, abaixem a cabeças", é debochar não mais aparecemcomo uma descontinuidade obsessiva e in-
da análise institucional, porque é negar o analisador no momen- viável, a negar abstratamente os imperativos contínuos da vida
to mesmo em que se proclamam suas virtudes. e da sobrevivência (cuidar das crianças, sair para o trabalho em
hora predeterminadaetc.), mas como uma praxis, uma nova
Coletivização maneira de viver e de trabalhar. Vêem-se superadas, então, as
utopias réfro do "não-trabalho", antivalor autonomizado que aca-
A análise coletiva e permanente é capaz, por si só, de destacar ba por reproduzir, até a paródia. as conseqüênciaséticas do tra-
os analisadores de uma situação, sem a necessidade de recorrer balho explorado e todo o caráter sagrado da lei do valor.
aos passes magnéticos de um ou mais peritos em analisadores,
deliciosamente imbuídos do próprio poder. Isto coloca, imedia- Perito facilitados
tamente, questões difíceis à análise institucional em geral e à in-
tervenção socioanalítica em particular. Um outro tipo de questão se coloca à análise institucional pela
A análise permanente, no sentido de uma crítica ou de uma negação do papel de perito, implicada pela coletivização e per-
interrogação-introspecção de todos os instantes, remete ao que manência da análise
assimilei, em outro trabalho, ao gidismo, ao existencialismo e ao Em uma intervenção pontual e encomendada, o socioanalista
psicanalismo como "estilo de vida" -- estilo de relações maso- não está exatamentena mesma situação de um perito que vende
quistas ou sadomasoquistas. "Analisa-se" sem cessar e não se seu diagnóstico. Tampouco é identificável a um puro facilitador
pára de repreendero próximo quanto a seu comportamentoe que ajuda a edificar um diagnóstico coletivo, por mais que para
linguagem, escotomizando todos os terceiros mediadores possí- uma parte do grupo-cliente,com a qual faz alianças,a relação
veis: as crianças, a quem nos oferecemoscomo espetáculo;os de ajuda não esteja ausente, conforme constato uma vez mais
amigos viajantes, em cenas de casal disfarçadas de mini-socio- neste momento (início de 1977), com as reiteradas demandas de
análises; os parentes mais distantes e os vizinhos, dos quais es- um "acompanhamento" periódico, após uma intervenção efetua-
condemos cuidadosamente esse gênero de exporte etc. Tal é a da com trabalhadores sociais em Lille. Após ter insistido muito
triste origem do "socioanalismo". para que o grupo de análise, constituído após minha interven-
1 38 REN É LOURAU UMA APRESENTAÇÃO OA ANÁLISE iNSTlrUCIONAl- 139
ção, fosse autónomo evitando novos apelos a interventores ex- socioanalista, mantêm-se seu estatuto e seu poder para vergar
temos (de qualquer forma, não a mim) --, tive de ceder, aceitan- as relações sociais no sentido da forma política dominante, das
do voltar para imprimir meu peso à luta travada pelo grupo de forças políticas portadoras da ordem existente. Problema árduo
análise institucional, ainda "frágil". No que tange à fragilidade, para as forças dissolventes da análise, cuja virtude, dialetica-
vejo-me na mesma posição que meus filhos às vezes me impõem: mente, não pode se esgotar senão numa reviravolta em autodis-
sou obrigado a ajuda-los num trabalho ou num jogo que desa- solução: autodissolução da instituição da análise que, em para-
provo, pois o considero entedianteou perigoso. E grito, ritual- lelo e à maneira da autodissolução das vanguardas culturais
mente: "Vocês me obrigam, de novo, a ajuda-los a fazer uma bes- (artísticas, políticas, artístico-políticas etc.), experimenta e "pro-
teiral". Mas quem me obriga a tal cumplicidade? fetiza" a autodissolução generalizada das formas do velho mun-
Facilitaçãoe especialismo não se opõem de modo absoluto. do pelas forças do novo.
Mas a facilitaçãodesigna um tipo de consulta menos "pesada",
menos intervencionista e menos positivista, fundada sobre uma
"verdade" a transmitir. A distinção é um tanto subjetiva: concerne
às intenções,mais ou menos racionalizadas, do interventor, do
consultor. A imagem que este produz por sua metodologia, seu
estatuto, seu prestígio, seu lugar na instituição científica e no
mercado da consulta etc., sempre se delineia sobre um fundo de
saber operacional, queiramo-lo ou não. Nem sempre reconhece-
remos tal saber em um intelectual de prestígio, em um especia-
lista (pelos livros publicados) de um domínio qualquer; por ou-
tro lado, em decorrência das redes de boatos que, pouco a pouco,
produzem uma clientela, o atribuiremos carismaticamente a um
psicossociólogo desconhecido na universidade ou nos meios de
pesquisa, mas guru dos estágiosintensivospara jovens executi-
vos descerebrados pelo gerenciamento ou pela inatividade eco-
nomiza.
Declínio
Nos antípodas do guru, nos antípodas dos estágios de fim de
semana, a coletivização e a permanência da análise tendem a fa-
zer declinar o papel do especialista extemo e pontual; entretan-
to. . ., num "tempo normal", que outro acontecimento,além da
vinda do socioanalista, é capaz de instituir o ato ou, pelo menos,
o projeto socioanalítico?
Qualquer que seja o enfraquecimentosofrido pelo papel de
O ESTADONA ANALISE INSTITUCIONAL 141
dissolução do Estado ou na derrota do ocupante estrangeiro etc.
etc. etc., é provável que na franja das ciências sociais, no entre-
cruzamento de várias destas ciências e da herança histórica dos
movimentos revolucionários do mundo inteiro, jamais tivésse-
mos visto aparecer ou se desenvolver a aná/íseítzstítzzcíonaZ como
O ESTADO NA teoria crítica das formas sociais.
ANALISE INSTITUCIONAL* 2. Se a estratégia das organizações ditas marxistas tivesse es-
tado orientada não só em direção à tomada do poder do Estado,
como também, e simultaneamente, em direção à dissolução do
Estado através de todas as formas sociais de que ele se nutre e
Gênese deste texto: 1) Encomenda de Rema Hess para uma anto-
que ele alimenta. Se os conceitos de socialismo e de comunismo
logia sociológica alemã (primeira versão, comunicada também a não houvessem sido burocratizados até fazer o marxismo retro-
Henri Lefebvre); 2) Conferência organizada pela U.E.R. "Técnicas ceder a um dogmatismo de Estado, debijitando simultaneamente
de readaptação"da Universidade Lille ll (segunda versão, com- a teoria do. . . debilitamento do Estado antes que esta tivesse che-
pletada com considerações sobre o trabalho social, depois suprimi-
das); 3) Numerosos retoques, remendos, "rewriting" para a anual gado a ser testada na prática uma vez sequer, a análiseinstitu-
versão, cujo destino ignoro: artigo para uma revista de aparição cional em situação de intervençãopontual e sob encomenda, a
próxima?; capítulo de um livro em gestação? (outubro, 1976). Socioanálise,' não teria tido razão para aparecer.
3. A primeira série de condicionantes imperfeitos (S 1) se refe-
1. Se a classe operária européia não tivesse conhecido seu fra- re à gênese social da análise institucional; a segunda (S 2), à sua
casso histórico em 1914(falência da Segunda Intemacional). Ou gênese teórica.2 Tanto em sua gênese social como em sua gênese
se, em junho de 1917,os regimentos concentrados em Soisson teórica, o marxismo apresenta lacunas nas quais são devoradas
tivessem levado a cabo, com êxito, sua marcha sobre Paras. Ou muitas práticas e muitas teorias: libertárias, por um lado; nacio-
se os conselhos operários alemães, em 1918, não houvessem sido nal-bolchevistas, nacional-socialistas, socioimperialistas, por ou-
tão facilmente sabotados, a partir de dentro, pelos militares e os tro. Não há somente lacunas, contudo; também há aberturas, ex-
social-democratas.Ou se, em 1921,Cronstadt não tivesse sido periências e convulsões exemplares. Exemplares na medida em
liquidado por Trotski e Lênin. Ou se, em 1937,o movimento que nelas a dialética dos conceitos agonísticos de luta de c/esses,
libertário espanhol não houvesse sido esmagado pelo fascismo,
o stalinismo e a burocracia anarquista. Ou se, em 1944,o partido A análise institucional recobre diversas tendências(a mais psicanalítica, re-
comunista francês, teledirigido pelo imperialismo russo, se ti- presentada pelo Cera; a mais sociológica, representada pelo grupo de análi-
vesse recusado a entregar as armas da Resistência.Ou se, em se institucional de Paris etc.). Aplica-se, em geral, a práticas como a psico-
1968, em Paris e em Praga, a revolta houvesse desembocado na terapia, a educação, a intervenção. A Socioanálise,por sua parte, visa a rom-
per aqui e agora, em situação, com a separação entre teoria e prática.
Gênese social: os movimentos sociais e sua "profecia". Gênese teórica: a his-
EI Estado en el análisesinstitucional". Publicado na coletânea E/ .Aria/isis
tória das idéias, das teorias, dos conceitos que aparecem com a finalidade de
rnstítzíclolza/,
Madre: Ed. Campo Abierto, 1977, versão a partir da qual foi aniquilar os movimentos sociais. As relaçõesentre as duas gêneses, sabia-
efetuada a presente tradução. Retomado, com pequenos acréscimos, na qua- mente ocultadas pela teoria, constituem o ro}cancela?tzf/lar de uma corrente
lidade de quinto capítulo de L'Efaf /rzconscfe/zf.
Paria: Minuit, 1978. Tradu histórica, expressão preferível a genealogia por sublinhar a parte do imagi-
ção: PatríciaJacques Femandes e Heliana de Barras Conde Rodrigues. nário e do libidinal.
142 REN É LOU RAU o ESTAOONA ANAL.lsEiNsriTUcioNAI. 143
ditadura do proletariado, destruição do Estado, prioridade metodológica (Henri Lefebvre, l)e /'Éfat, tomo 1, Paria: UGE, 1976). Conceitos
da base rlaferíízZ etc. não está completamente embotada no san- vinculados à ideologia da comunicação: informação, relações
gue seco de Cronstadt, dos massacres e deportações, dos expur- humanas, integração, negociação, animação, formação. . . Ideo-
gou, de Berlim (1953), Poznan (1956), Budapeste (1956), Praga logia dos bloqueios: "resistência à mudança" - conceitoprodu-
(1968), Gdansk (1970) etc. zido pelos sociólogospara uso do sistema de exploraçãoe do-
E neste contexto sócio-histórico que se podem desenvolver a minação. [)e fato, as famosas "resistências à mudança" são re-
análise í?zsfífucfo/zaJ,a Socíoaná/!see o projeto de análise generali- sistências ao instituído, às relações de força e às formas sociais
zada das instituições, a Socíoarzá/fse gera/ -- projeto de subverter instituídas.
todas as formas sociais. O fracasso do movimento revolucioná- 5. A economiae a sociologia,em funçãode seus objetosde
rio, por um lado, e a tensãoentrepensamentocríticoe dogma- estudo; a psicossociojogia, a psicanálise, a psicologia experimen-
tismo, por outro, são as duas tetasdas ciências sociaisno fim do tal, devido a suas técnicasde intervençãoparticulares,por ve-
século XIX e início do XX. Aquilo que a História não realizou, as zes rivais e exclusivistas, outras vezes complementares e sincré-
ciências sociais tratam de preencher, fazendo esquecer, ao mes- ticas, há muito propuseram panacéias muito pouco universais,
mo tempo, a profecia histórica do movimento revolucionário. mas relativamente exportáveis de um país a outro em uma mes-
Também são fomecedoras de "consciência ingênua dos atores", ma área económica e política, ou de uma área a outra, como ocor-
de não-ciência,de saber social não reconhecidopelo Estado. re com a generalização das ciências à americana em um e outro
4. Qual é o lugar da análise institucional entre as ciências so- lado da cortina de ferro ideológico-militar. Tal cortina de ferro é
ciais, nascidas por causado e para o fracasso do movimento revo- permeável a tudo que se refira à ciênciada comi/zaçzío. A ciência
lucionário, e em decorrência da orientação estatal dogmática do militar, de longe a mais séria, impõe de fato a fragmentação em
marxismo instituído? Um dos principais produtos não o único uma multidão de ciências particulares, dado que somente ela
-- da situação histórica anual é a ideologia da corrzunícaçãó. constitui "a forma concentrada" daquelas (Peng Teh Huai, 1956);
Em múltiplos níveis e por meio de inúmeras disciplinas --di- por outro lado, o reconhecimento nacional-intemacional-sério é
reito, economia, sociologia, psicologia, psicanálise, antropologia conferido pelo Estado enquanto forma política universal, em pro'
--,em um estilhaçamentodisfarçado de pluridisciplinaridade de cesso de mundialização total e sem rival, com a ajuda de ecume-
bom-tom, o saber social institucionalizado universitariamente nismos já perfeitos, como o esporte.
no crisol da legitimaçãodo Estado ou de monopólios supe- 6. Outras ciências sociais ou humanas,; aparentemente neu-
restatais(reconhecimentode diplomas, subvençõespúblicas ou tras e impecavelmente rigorosas como a geografia humana, ur-
privadas à pesquisa) tende a concentrar-seno problemados b/a- bana e também física, ou a lingüística, participam da vergonho-
quelasà boa comunicação entre classes, categorias sociais, gru- sa herança do fracasso da revolução mundial ao se orientarem
pos, indivíduos, mercadorias, idéias etc. "Nada de conflitos es- estritamente, de modo consciente ou não, pelo Estado. Já a his-
senciais; portanto, nada de contradição (nada de diabética),e sim
bloqueios, cortes nos fluxos de informações ascendentes ou des- A noção de "ciência humana" é idealista, pois suprime não só a mediação
cendentes. Que alívio para os responsáveisl Reduzir os conflitos social constituída pelas forças materiais, como também a mediação histori-
a bloqueios, plano de competência de uma técnica particular de camente capital representada pela domesticação e demais modos de relação
com a animalidade.Uma ciênciana qual não há lugar para a castraçãodo
intervenção, de uma espéciede medicina social especializada: touro ou para a "domesticação" (bonita metáforas) da energia nuclear não
esta representaçãonão poderia senão agradar às altas esferas' pode pretender ter como objeto as relações entre os homens.
1 44 RENÉ LOURAU O ESTADO NA ANALISE INSTITUCIONAL 145
féria --"a mais solene das mentiras" ocupa lugar bastante curio- demanda, autogestão, institucionalização não são varridos pela
so. Enquanto discurso sobre a ausência, presta-se a manipu- ideologia fusional desses métodos?
lações quase oníricas, permanentemente controladas por vias em 8. A herança comunicacional da análise institucional é percep-
geral indiretas. Com toda a certeza, o superego que opera a tível não só nas orientações pedagógicas e terapêuticas que en-
censura é o Estado, gerenteda ausência, e que vive justamente globa, como na própria Socioanálise. E isto é normal: nascida de
da ausência ou ausências da consciência revolucionária. A aná- uma tentativa de superar os métodos de grupo, ela conserva, em
lise institucional está cada vez mais interessada pela história ampla medida, o dispositivo do chamado "tudo dizer", utopia
como conjunto de técnicasde rechaço, de ocultamento, de mis- cristã-tecnocrática para "pequenos grupos" há muito denuncia-
tificação -- condições de nascimento e de sobrevivência das ins- da pelos marxistas (cf. o artigo de R. Francês em La Pensée,n' 50,
tituições. As "ciências políticas", por sua vez, seja de orientação 1953)e que se trata de superar, agora e sempre, analisando as
reacionária seja progressista, encontram um ponto comum na resistênciaspo/ífícasao "tudo dizer" sobre o sexo, o dinheiro, o
equivalência conferida pela instituição do saber em um lugar poder o que exige o desaparecimentodos níveis individual,
e em um momento dados: saber de gabinete, separado de toda interindividual e grupal na análise de tais problemas. A análise
prática e que constrói incessantementeesta separação para a institucional também alertacom a idéia reformista e liberal se-
maior glória da política como profissão elitista, ministério sa- gundo a qual o fato de levar em conta uma dimensão suplemen-
grado. tar e até então desconhecida, o institucional, permitiria ir mais
7. Nascida na confluência de técnicas de comunicação aplica- longe que o método das relaçõeshumanas, eliminando os "blo-
das à terapia e à pedagogia (psicoterapia e pedagogia institu- queios" mais profundos. Suas promessas podem, portanto, anun-
cionais), a análise institucional recorta seu campo movediço atra- ciar uma melhoriadas técnicasgrupais, e não a sua superação
vés da sociologia, da psicossociologia, da psicanálise. Trata não na direção do conflito, da proliferação das contratradições, das
tanto de operar uma recomposição do campo teórico, mas, pre- implicaçõesde cada um de nós na instituição.
ferencialmente, de efetuar um desmembramento de tal campo. Apenas pouco a pouco, sobretudo graças às crises e à amplia-
E inevitável que contenha numerosos preconceitos comunicacio- ção do sistema de referência teórico que o acontecimento e as
nais. E que no período de estagnaçãoexperimentadoa partir do crises facultam, a significação da análise institucional se destaca
desmoronamento do movimento de maio de 68, do qual sugara das técnicascomunicacionais.Esta significaçãoé a seguinte:a
a medula, ainda se deixe eventualmente capturar pela viscosi- partir de sua própria generalização nas crises sociais, bem como
dade comunicacional, sob forma neo-reichiana e californiana: das intervenções socioanalíticas, superação incessante com vis-
potencial humano, bioenergia, gesfízZtterapia, grupos de encon- tas a uma futura socfoanáZise gera/.'
tro e outras técnicas corporais ou "totais", cujo sincretismo che- 9. Dado histórico, a generalização da análise institucional não
ga a mesclaro tantrismoindiano, a lógicade Lupasco e Reich.
Nas manifestações revolucionárias na Alemanha ou na Austria, O imaginário social e o imaginário radical, segundo Castoriadis, permitem
sonhar com as seguintes fases: 1) análise institucional generalizada nos pe-
que, na qualidade de açor ou testemunha, Reich descreve em ríodos revolucionários já conhecidos por nós; 2) intervenções socioanalíticas
People ín Urozzb/e, foi por acaso devido à falta de boa comunica- pontuais, análogas a um tilintar, em função da descontinuidade do movi-
ção que o sangue correu? Freud e Moreno teriam podido evitar mento revolucionário; 3) Socioanálise geral ou "intervenção intima"(e não
feita por alguém que intervém desde fora), a parta de uma reviravolta futu-
que sucedesse o pior? Quantos conceitosdiretamentepolíticos ra, anunciada aqui e ali, dos modos de ação controlados pelas instituições-
da análise institucional -- analisador, implicação, encomenda e cadáver do movimento operário(sindicatos, partidos)
1 46 RENÉ LOU RAU 4
O ESTADONA ANALISE INSTITUCIONAL 147
se confunde com um horizonte mais ou menos futurista, e a So- se (elaboração das noções de transferência e contratransferên-
cioanálise geral é uma extensão dos momentos de análise ins- cia institucionais pela equipe de La Verriêre, nos anos 1960-65).
titucional generalizada, acompanhada, conseqüentemente,de O obstáculo constituído pela interferência do objeto observa-
uma negação da Socioanálise como atividade externa, pontual e do e do observadorjá deu lugar a muitíssimasglosas:hoje em
especializada.Há, nisso, uma base política irredutível. Quando dia, constitui o objeto da análise, e não uma pequena anedo-
a análise institucional situa a si própria, por refração e redução, ta marginal ou um vício redibitório das ciências sociais com re-
nas experiênciasrevolucionárias mais avançadas do milenarismo lação às ciências da Natureza.5 Toda uma nova concepção do
(guerra dos camponesesna Alemanha -- "a primeira revolução papel do intelectualdecorre da ênfase posta na análise da im-
alemã", segundo Engels) ou do movimento revolucionário mo- plicação.
derno (Comuna de Paris), não apela a um décorréfro;aponta, isso 12. Se o intelectual "comprometido" (Sartre) se define por sua
sim, a uma série de saltos qualitativos da História, que teoriza ligação voluntária com uma causa, uma tese, uma doutrina; e se
como a?za/ísadores /zísfórícos,contrapondo-os a uma concepção li- o intelectual"orgânico" (Gramsci) se define objetivamentepor
near e continuísta da História como entropia, queda cíclica no sua adesão pública a uma organização política que Ihe possibili-
erro, na opressão, na burocracia --dito globalmente, à visão cha- ta, real ou imaginariamente,participar de um empreendimento
mada maquiavélica. Por analisadores históricos entendemos os histórico cuja concepção ultrapassa seu intelecto individual, o
acontecimentos que revelam as contradições de uma época e pro' intelectual "implicado" se define pela vontade subjetiva de ana-
duzem uma análise em ato da qual o saber instituído (como ne- lisar até o limite as implicações de seus pertencimentos e re-
gação do saber social) é efetivamente incapaz. ferências institucionais, bem como pelo reconhecimento do ca-
10. Aquilo que os analisadores históricos revelam em sua ver- ráter objetivo deste conjunto de determinações. Com efeito, as
dadeira grandeza, a análise institucional em situação de inter- implicações subjetivamentevividas como tais, ou como tais re-
venção (a Socioanálise) trata de revelar em escala modesta, pon- primidas, não se desvelam a não ser pela análise coletiva, por
do-se à escuta dos analisadores }zafzzraís(contradições surgidas à efeito dos analisadores, pelo critério da prática (todas elas opera-
volta dela, ou mesmo contra ela) ou dos analisadores construídos ções de objetivação). Não há confusão possível com as intenções
(por ela, na qualidade de dispositivos que põem a descoberto as puras do intelectualcomprometidonem com a submissãofor-
contradições). A referência à instituição é a face oculta da políti- mal do intelectual orgânico a um aparelho político que significa-
ca instituída, a ação do Estado invertida sob a forma de funcio- ria, magicamente, transferência a uma posição de classe "justa"
nalidade, de serviços, dos chamados contratos, de relações "na- 13.A análise da implicação não é um privilégio; constitui, pelo
turalmente" desiguais, de opressão fatal e racional etc. Revelar contrário, uma dura coação,produzida pelo lugar que o intelec-
esta face oculta é também desmascarar, mediante a análise cole- tual ocupa na divisão do trabalho, da qual ele é um legitimador
tiva, tudo o que se dissimula no estatuto de sociólogo,de teóri- mais, ou menos consciente.Estar implicado (realizar ou aceitar
co, de praticante da análise institucional. N a análise de minhas próprias implicações) é, ao fim e ao cabo,
l
11. Juntamente com a análise da encomenda e da demanda 5
sociais, a análise da implicação do pesquisador está no centro A implicação do investigador significa que existeidentidade, semelhança ou
da análise institucional, o que constitui uma superação quer da reciprocidade (segundo o caso) entre ele e seu objeto. Cf. Castoriadis.
L'f?zstífutíatz ímapnízíre de la socíefé, Seuil, 1975. Cf., igualmente, Michel Autier.
sociologia positivista quer da branda crítica fenomenológica, as- 'Le concept d'analyseur: un analyseur de la situation théorique" e outros
sim como um reconhecimentoda dívida para com a psicanáli- textos inéditos do mesmo autor.
E 48 REN É LOURAU O ESTA00 NA ANÁLISE INSTITUCIONAL. 149
admitir que sou oQetíuadopor aquilo qzzeFrete?zdo oyefíoar: fenó- do" ou "organização política" está naturalizada, neutralizada
menos, acontecimentos, grupos, idéias, etc. O trabalho manual e enquanto pura instrumentalidade, impermeabilizada quanto à
os diversos estratos do trabalho não manual e não intelectual (a transversalidade das relações sociais, ao jogo das forças e das
crescente massa do setor terciário, privado de poder e de saber formas, exatamentedo mesmo modo que os patrões neutralizam
instituído), graças à relação imediata com a produção ou a re- e naturalizam a forma social "empresa industrial ou comercial"
produção, contêm uma dura escola de análise social, um enfren- como templo do rendimento. Assim, vingam-se do próprio mal-
tamento direto com as forças e a ciência da dominação. Do mes- estar assimilando os institucionalistas ao anticomunismo, ao
mo modo que o saber das mulheres, das crianças e dos loucos, o antimarxismo. Segundo eles, é reacionário denunciar a partici-
saber social dessas categorias é anulado, desqualificado e cada pação de partidos e sindicatos alegadamenteesquerdistas no tris-
vez mais reprimido como culpável ou inferior. O intelectual,por te jogo da política instituída pela classe dominante. Mas a mor-
seu fumo, em função da posse da linguagem erudita, pelo ma- fogênese das organizações políticas não pode receber, da análise
nejo ou consumo ostentatório do discurso instituído e pelo jogo institucional, sacralização e respeito maiores do que os devota-
das interpretaçõesmúltiplas, dos "pontos de vista" e dos "ní- dos aos demais fenómenos de institucionalização. Na qualidade
veis de análise" -- que se reproduzem como coelhos--, esquiva- de institucionalização de um movimento social, o partido é a
se por trás da cortina de mediações interposta entre a realidade negação "organizada" de tal movimento. Trata-se do efeito
política e ele mesmo. O intelectual proclama a separação entre Mühlmann, cujas resistências ao efeito analisador assumem as
teoria e prática: é para me//zor te cor/zer, nzín/za./í//za. E para discor- dimensões apocalípticas de um fenómeno geológico qual a in-
rer melhor, e infinitamente, acerca da indispensável fusão entre vasão das geleiras no quartenário, mas que, na realidade, consti-
os dois lados rompidos dessa nova túnica de Cristo. Mas o inte- tui o núcleo do problema político. Para institucionalizar-se,um
lectual esquece que ele é o único a postular tal separação, tal rup- poder tem necessidade de se equipar. Conforme já assinalava
tura. A teoria kautskista-leninista da consciência revolucionária Engels, institucionalizar-se é adquirir uma forma material. Quan-
importada, levada pelos intelectuais ao proletariado, é um efei- do se vê até que ponto a inversão qualitativa preside ao assassi-
to de reforço dessa situação. nato das forças sociais por formas institucionalizadas, compre-
14. Intelectuais comprometidos (na corrente da liberação se- ende-se que os especialistas da diabéticatenham deixado que esta
xual, por exemplo) e intelectuaisorgânicos (do Partido Comu- última apodrecesse no celeiro das farsas e dos enganos: dema-
nista Francês ou trotskistas, por exemplo) são, muitas vezes, ad- siado perigosa para manipularl E nós não somos mais valentes
versáriosda análiseinstitucionale do novo tipo de intelectual do que esses liquidadores.
que ela exige, o intelectual implicado. Aprisionados em suas cons- 15. Plágio, palimpsesto, pastiche, paródia, paráfrase eis o
truções ideológicas, científicas ou "críticas", os primeiros, como discurso dos intelectuaisa serviço de um patrão, de um progra-
bons estetas,não vêem senão folclore na obstinação dos "insti- ma, de um partido, da pátria. Mas se o intelectualcomprometi-
tucionalistas" em levar qualquer discurso a considerar suas im- do se pretende menos sujo do que o intelectual orgânico, e se o
plicações materiais. Os últimos tingem seu menosprezo de cóle- intelectualorgânico se julga mais eficaz do que o comprometi-
ra maldissimulada: submeter à análise os partidos, sindicatos e do, não podemos aspirar a que nos nasçam asas nas omoplatas
outros aparelhos que reproduzem os modelos hierárquicos sob o pretextode que procuramos analisar nossas próprias im-
insbtucionalizados pela burguesia, eis o que lhes resulta insu- plicações. Estamos todos atravessados pelo estatal, pelas impli-
portável. Para os intelectuais orgânicos, a forma social "parti- cações desta forma social hegemónica e universal que a história
1 50 RENÉ LOURAU O ESTADONA ANÁLISE INSTITUCIONAL 151
acaboude parir na época em que o acasonos fez nascer.' Um e a polêmica Freud-Malinowski em pouco tempo resultará mui-
novo Estado nasceu esta manhã (junho de 76): as Seychelles. to mais folclórica do que a querela dos universais na Idade Mé-
Como se deu o parto? Mediante um ato de reconhecimento da dia. A humanidade tende à unificação dos sonhos à medida que
ONU, que nada tem de um super-Estado, mas que representao o superego planetário tende a unificar-se na forma "Estado"
amável papel de um clube de reconhecimentomútuo. E quem Quanto a isso, a mídia, a televisão etc. não são mais que um ins-
saudou, em primeiro lugar, este novo aborto do Espírito Abso- trumento, à maneira dos sacramentos e outros ritos no tempo da
luto? A China Popular. . . o maior de todos os Estados. A impli- aliança exclusiva entre o Estado e a religião. Processo banal, in-
cação mais geral --logo a mais invisível e mais forte, que sobre- visível, que praticamente manda para o cemitério as visões do
detennina todas as demais, subsumindo não só as analogiascomo controle totalitário ao estilo orwelliano. Por que razão o Grande
as oposições políticas anuais é a implicação maciçamente in- Irmão poria os sinistros Fantasmas atrás de seus micros clandes-
consciente na forma estatal, deusa-mãe de todas as nossas re- tinos, de seus espelhos unidirecíonais e de seu olho hipnótico
presentações, das mais delirantes às mais "críticas". instalado na sala de estar, visto que, como quase conseguiu defi-
16. A política instituída, o Estado enquanto novo terreno sa- nitivamente a Igreja romana, pode obrigar os homens a sonhar
grado, é a forma mais temível que tomam as resistências à análi- de certa maneira, a ver o diabo na ausência eventualdo Estado,
se institucional. A medida que se mundializa (cf. Lefebvre, an- a não pensar senão no Estado quando crêem ignora-lo?
tes citado), o Estado dá forma - a sua - não apenas às institui- 17. Esta visão do Estado como mestre das representações e dos
ções, ideologias e comportamentosem grande parte herdados sonhos não tem a pretensão de horrorizar nem se deseja irre-
do período anterior à hegemoniaestatal, como igualmente aos dutível. Seria absurdo que caíssemos em um neopositivismo
desejosque, de modo incruento, vêm a seu encontrono cami- depois de acreditar que tínhamos nos livrado para sempre (me-
nho e se dobram às suas ordens, contribuindoassim para cz/roer diante a análise institucional) de qualquer forma social atraves-
o espaço político no sentido de um reforço e de uma supere- sada pelas forças estatais. A mundialização, a unificação do "pen-
vidência crescentedo próprio Estado. samento planetário" (Axelos) e da forma planetária do Estado
Até mesmo o conteúdo do inconscientetende a se mundializar, seguem os caminhos que podem seguir. Nossos mortos amados
acreditaram trabalhar bem e modelaram nosso inconsciente. Te-
6
A forma estatalainda está sob o reino da universalidade abstrata,em mar- mos de nos haver com essa herança, sabendo que a marcha para
cha para a sua perfeição,a universalidadeconcreta.Isto significaque a a totalidade, inclusive em seus episódios totalitários- aqueles
mundializaçãoanual do Estado se dá por fusão e multiplicaçãode novos
Estados, mais de uma centena:há Estado pela Terra inteira, mas ainda não de bom grado horríveis --, é uma marcha para o cemitério: ce-
há, nem de longe,um único Estado. A passagemda universalidade abstrata mitério dos impérios, das classes, das doutrinas que acredita-
à universalidade concreta, da hegemonia da forma estatal à sua unidade, no vam atingir a dominação universal. A negatividade, cujo desen-
entanto, está anunciada e preparada por universalizações concretas, unifica-
ções totais que ultrapassam a mera aplicação do princípio de equivalência volvimento ante as grandiosas totalidades positivas tem algo
das fom\as instituídas, testemunho da universalidade abstrata: é o caso do de exponencial,manifesta-sehá bom tempoe cada vez mais,
esporte, cujo ecumenismo só é limitado pelas rivalidades dos blocos de Es enquanto o processo de mundialização do Estado --sua univer-
lado. A consolidação desses blocos é, sem dúvida, uma mediação obrigató salização abstrata e contraditória em unidades e blocos rivais --
ria entre a universalidade abstrata e a universalidade concreta, cuja banali-
dade e cujo caráter fatal somente a ficção científica pode antecipar. Tema de está apenas em vias de aperfeiçoamentojurídico. Realizando-se
tese: que relações dialéticas existem entre o Estado mundial e a revolução na urnversalidade abstrata, a forma estatal nega a si própria como
mundial? prometoassintótico de um Estado mundial, mühlmanização "ab-
1 52 REN É LOURAU O ESTADO NA ANALISE INSTITUCIONAL 153
voluta" cuja contradição essencial só poderia ser alimentada pela Ahl Se o marxismo não se houvesse convertido em uma filo-
revolução mundial, o rechaço mundial oposto ao monstro pla- sofia de Estados Se, entre o naufrágio do "Titanic" e o torpedea-
netário, não apenas através da consolidação dos blocos imperia' mento do "Lusitania", a Segunda Intemacional não tivesse ido a
listas (negação simples), como também pelo movimento revolu- pique, com seus corpos e bens, em 19141Se, de repente, o inter-
cionário voltado à destruição do Estado (negação absoluta). nacionalismo ativo houvesse rompido a hegemonia da forma
18. Nem que seja pelo mero prazer da teoria em delinear de estatal e, conseqüentemente, de todas as formas sociais instituí-
antemão as condições mais gerais, menos sujeitas a modificação das, a análise institucional teria ficado no limbo de uma tempora-
como consequênciade tal ou qual conjuntura económicamun- lidade paralela porque estaria "realizada" na temporalidade real.
dial, do desenvolvimento da revolução nos anos ou decênios vin- Mas, de fato, desde agosto de 1914(ou qualquer outra data que
douros, vemo-nos obrigados a pâr em primeiro plano o fenó- lhes agrade), não somos nós que estamos vivendo em uma
meno de universalização do Estado. Os pequenos e grandes temporalidadeparalela, em um universo abortado, curvado so-
mistérios da dialética fazem sua aparição uma vez que se te- bre si próprio, se comparado à História maiúscula prometida ou
nham assentado tais premissas. Coloca-se então a seguinte hi- prevista pelas profecias cristã ou marxista?
pótese: o movimento revolucionário mais uma vez em sua
generalidade, sem levar em conta seu nível atual em cada cir-
cunstância local (nacional ou continental) -- terá uma relação cada
vez mais significativacom o dado objetivoacima destacado.
Dito de outro modo dialéticos, a seus postosl -, é a luta entre
a universalização abstrata (e logo concreta) do Estado, por um
lado, e o enfraquecimento e desaparecimento do Estado, por
outro, aquilo que se anuncia central ou "principal". Uma hipó-
tese complementar se levanta, então: o conceito de instituição
acabará "curvado" por esta determinação maciça.
19. Em face dessas considerações excessivamente geopolíticas,
o que "representa" a análise institucional? Um método de inter-
venção social protegido por um manto excessivamentelargo e
suntuoso? Uma praxis exigente,imersa no cotidiano, interessa-
da pelas relações sociais, pelas forças e formas sociais tanto na
cozinha e no dormitório como na escola, no hospital, na fábrica?
Uma nova capelinha psicossociológica à qual se censura a inser-
ção na Universidade e no trabalho social, estando condenada a
neles encontrar seus campos privilegiados de aplicação? Um
militantismo de modo algum científico, que mete medo aos pa'
trões e que em vão procura clientes para fazer da Socioanálise
uma atividade profissional? Tudo isso e algo mais: representa-
ções e sonhos, projetos, discursos e silêncios têm livre curso
A ANÁLISE INSTITUCIONAL NO ESTADO 155
ciologia da intervenção sociológica é um estágio pelo qual deve
passar obrigatoriamente qualquer exposição sobre a intervenção
que não queira ser uma camuflagem ideológica em nome de um
tecnicismo, um filosofismo ou um cientificismo separados das
suas condições sociais de existência.
A ANALISE INSTITUCIONAL Dito de outra maneira: o que justifica, em nome de que valor se
autoriza esse transtorno pontual, provisório e ritual da divisão
NO ESTADOS instituída do trabalho, para o qual se apela à autoridade externa
de um "especialista", suscetível de introduzir seu saber e seu
saber-fazer em lugar do ?fomosenfraquecido do grupo-cliente?
Se este enfoque da questão faz da intervenção sociológica uma
questão política, é porque uma relação de poder aparece como
1. PESSOAS QUE TÊM o estatuto de sociólogos, psicólo- original na encomenda efetuada por um subgrupo (o sfít#=-clien-
gos, psicossociólogos, socioanalistas, especialistas em qualquer te) que se sente legitimado para tomar a iniciativa de tal enco-
método de intervenção social a Análise Institucional, por exem- menda; é também porque este poder está sobrelegitimado, ao
plo --recebemencomendasde intervençõesque duram um ou menos provisoriamente, pela aceitação por parte do interventor;
mais dias, em um estabelecimento ou outro lugar da prática so- e é, finalmente, porque a própria intervenção ou reforça o pro-
cial escola,hospital, empresa, escritório, associaçãoetc. Mas, cesso ou o modifica sob a pressão do grupo-cliente e das alian-
afinal, o que define seu estatuto de interventor extemo, que vem ças anteriores entre o interventor e o grupo-cliente(ou parte dele),
meter-se no que não Ihe diz respeito, nessa parcela de pessoas -- isolando o sfl#-cliente (ou uma parte dele).
em geral minoritária, por mais que "representativa" ou "respon- Resumida assim, a problemática sociopolítica da intervenção
sável" --junto às quais intervirá, que vieram busca-lo e esperam sociológicaé uma experiênciaadquirida pela maior parte das
que desempenhe certo papel? tendências e escolas de intervenção, privilegiem elas quer o es-
Estatuto e papel na divisão do trabalho são questionados pela tágio quer outras formas de consulta, quer a intervenção psicos-
intervenção em qualquer conjunto social. A intervenção que, seja sociológica quer a socioanalítica. E o que se pode constatar na
qual for sua forma, metodologiaou estratégia,se chamaráde América do Norte, nos Estados Unidos, talvez ainda mais clara-
pleno direito socio/ógíca--para ser diferenciada das intervenções mente no Canadá, na Europa Ocidental e, à medida que as con-
féc?liras no nível de um aparato técnico de produção, de distri- dições políticas permitam certa franqueza na auto-análisedos
buição, ou de um aparato técnico a serviço de atividades varia- especialistas,na América do Sul ou na Àfrica.
das (educação, lazer etc.) interroga imediatamente a Jorna em 2. São as condições políticas de possibilidade da intervenção
que se materializam as forças sociais, ou seja, a instituição. A so- sociológica que constituem o verdadeiro contexto epistemológico
da metodologia de intervenção. Se o psicossociólogo brasileiro
L'analyse institutionelle dans I'État", capítulo VI de L'Étaf lzzscorzscfent,
Pa-
não diz a mesma coisa sobre seu trabalho que o psicossociólogo
ras,Minuit, 1978 versão a partir da qual foi efetuadaa tradução. Anterior-
mente publicado na coletânea EI Álzá/ísís rrzsfifzzcforza/,
Madre, Ed. Campo
francês ou canadense, não é de divergências entre escolas que se
Abierto, 1977.Tradução: Heliana de Barras Conde Rodrigues e Patrícia deve falar (estas divergências existem, e só se podem desenvol-
Jacques Femandes. ver em países de regime "liberal"), mas de determinações políti-
1 56 RE N É LOURAU A ANÁUSC iNsriTUCiONAI. NO ESTAOO 157
cas gerais diferentes, de implicações políticas diferentes, de gran- quer dizer, no trabalhoconscienteou inconscientede um ho-
des variações nas condições de possibilidade da intervenção. mem em proveito de outro" (La f/zéoríedu matéria/ísmehísforíque).
As condições de possibilidade da análise institucional em ge- Tome-se por sabido que a situação fictícia de transparência
ral e da intervenção socioanalítica em particular acrescentam, à total das relações sociais é um paradoxo, uma contradição em
problemática das diferenças metodológicas e teóricas -- entre a termos. As múltiplas situações surgidas a partir da encomenda
sociologia acadêmica do tipo e zquêtee a Socioanálise, por exem- de intervenção caracterizam-se pelas lutas e, nos casos mais es-
plo --, a problemática comum, menos submetida ao favor subjeti- tabilizados, pelas resistências mais ou menos informais e implí-
vo e ao compromissopolíticoindividual, daquilo qtíeo Estado citas, por um "trabalho consciente ou inconsciente", geológico,
permiteou desdeem tal ou qual formaçãonacional. das relações o que justifica teoricamentea intervenção, nova
Tal postulado será verificado mais facilmente se não esque- força que entra na cena das relações de força existentes. Porém o
cermos de insistir nos matizes que o favor subjetivo veicula no que completa o sistema das relações de força mais globais, mais
que tange à avaliação que um especialista faz da situação objeti- determinantes, e ao mesmo tempo acrescenta a força própria da
va e do risco que corre, ou acredita correr, como conseqüência legitimação suprema, é a forma estatal nacional e internacional
de sua avaliação. De fato, trata-se aqui menos de matizes que (feita de relações de força entre Estados): as condições de possi-
venham a atenuar a força do postulado que de componentes do bilidade de um modo de intervençãoestão todo o tempo sobre-
próprio postulado. Como qualquer politólogoamador ou pro- determinadas pelo grau de fluidez ou rigidez que emana de uma
forma estataldada.
fissional, o especialista em intervenção sociológica não dispõe
de um saber absoluto e a priori sobre as condições de possibili- 3. A análise institucional, que põe no centro de suas diligên-
dade de sua prática. As variáveis de sua percepção nessa maté- cias a instituição-- entendidacomo forma produzida e repro-
ria podem ser individuais (sobretudo no que diz respeito à ca- duzida por forças políticas --, seria muito mais criticável que
pacidade de análise política) e coletivas (especialmenteno que todos os outros modos de intervenção se não se apoiasse na aná-
conceme à avaliação dos resultados da intervenção e, mais sim- lise política de suas próprias condições de possibilidade. O soció-
plesmente, do que pode fazer ou não para agir sobre o grupo- logo tradicional e o psicossociólogo dos pequenos grupos estão
cliente em função das avaliações que os membros do grupo- livres para negar magicamente, através do pó de pirilimpimpim
cliente efetuam sobre as possibilidades de mudar de modo epistemológico (cada um recorta seu campo como Ihe apraz), não
duradouro suas próprias relaçõessociais). exatamente a existência fora, em algum lugar - desse impera-
Mesmo imaginando um contexto político de transparência to- tivo, mas pelo menosa transversalidadedo políticoquanto ao
tal, absolutamente livre e favorável a toda sorte de intervenções, campo de análise estabelecido e, ao mesmo tempo, a sobrede-
pode-se dizer que estas últimas não constituem um puro artefa- terminação política de todos os conceitos que compõem o cam-
to ou um simples placebo: toda intervenção reproduz, certamen- po de análise. A análise institucional não se pode dar a esse luxo.
te, as relaçõesdominantes; mas ao mesmo tempo produz, ainda O Estado está no campo de análise apesar de, ou porque, dis-
que momentaneamente, parcialmente, novas relações. Isto por- simulado ou dificilmente manifestável, sobretudo no campo de
que, conscientemente ou não, se efetua um "trabalho". Trata-se intervenção limitado e pontual de nossas práticas pedagógicas
do que enfatizava Bukhárin: "este laço essencial (o laço social) é ou sociológicas. Por isso, não é fácil determinar o papel do Esta-
o do trabalho, que se exprime antes de tudo no trabalho social, do. Os politólogos, manejando a noção abstrata de Estado jun-
1 58 RE NÉ LOURAU A ANÁLISE INSTITUCIONAL NO ESTADO 159
to com outras noções abstratas que são, para a chave do proble- referências teóricas, as experiências pessoais ou as grandes ex-
ma, como a permissãodo porteiro ou do vigilantenotumo, fi- periênciashistóricas para pâr o Estado a nu, tudo isso, e muitas
cam com a parte bonita. Como eles adoram, para suas demons- outras coisas ainda. determina, determinando-se e sobredetermi-
trações, os instrumentos que servem para tudo, não se privam nando-se mutuamente, as avaliações que faço na margem de li-
de analisar sem complexos os grandes fenómenos nacionais, berdade que nos deixa o fexfoestatal, inscrito em nosso corpo
internacionais, planetários. Na maior parte dos casos, simples- com tinta invisível.
mente esquecem que a força do Estado está em se dissimular, 4. Atualmente, com mais de quarenta anos, casado, pai de duas
em inverter sua força sob formas espetaculares.Crêem possuir, crianças pequenas (sete e dois anos) - enquanto a maior parte das
com o conceitode Estado, um excelenteanalisador de todos os
pessoas de minha idade que são pais têm filhos mais velhos e ca-
problemas;todavia, para ser revelado, o Estado necessita,na pazes de "se arrumar" por si mesmos --,com meu cargo de mízífre
realidade, de analisadores. Eis por que a ciência política utiliza de collÓerencede sociologia (7 mil francos ao mês), o que estou
os mesmos métodos que a astrologia e não obtém resultados disposto a arriscar? É uma maneira de levantar o problema.
muito mais sérios que esta ciência das influências astrais. Sem pertencer a organizações políticas, demasiado crítico
E preciso nuançar, portanto, a fórmula que utilizei acima: "o quanto ao jogo da política instituída para me deixar tentar, mes-
que o Estado deseja ou permite". Com efeito, esta personalização mo que provisoriamente, pelas danças do ventre de um partido
porta um perigo: o de objetivar imaginariamente a maior força de esquerda, não tenho à minha disposição a perspectiva histó-
de objetivação que a humanidade inventou. Se há uma ilusão rica de um intelectual orgânico -- o que não deixa de apresentar
em que se embalam os politólogos e outros especialistas das ciên- inconvenientes num momento em que toda crítica dirigida à es-
cias sociais, é a que consiste em agir como se o Estado não lhes querda é assimilada a uma posição de direita e o não-reconheci-
concedesse a palavra ou não os conduzisse pela mão no momento mento do caráter sagrado das eleiçõessoa a blasfêmia.
em que pretendem analisa-lo com a maior lucidez possível. Minhas referências ideológicas são mais difíceis de autodefinir.
Para avançar na análise das condições de possibilidade da Novamente, como objetivar uma coisa cujo funcionamento está
análise institucional, é necessário, portanto, não esquecer jamais na base da objetivação? Como pretender situar-se quando for-
que os critérios serão descobertos graças ao que me sussurra ao ças incomensuravelmentemaioresque as de um indivíduo es-
ouvido o próprio Estado- o Estado do país em que vivo, no mo- tão organizadas a fim de objetivar o indivíduo em uma série de
mento em que vivo e em que tento escrever sobre a impressão imagens dualistas (eu e as instituições, eu e o Estado, eu e a polí-
fornecida pelo peso que ele faz pesar sobre minha cabeça. Dito tica, eu e a sexualidade etc.)?
de outra maneira: se a necessidade ou desejo de me comunicar Com todos os limites e desvios que tal estado de coisas impõe
acerca destes problemas com o maior número de pessoas possí- às menores de nossas reflexões, digamos que me situo sentimen-
vel me obriga a empregar o discurso escrito, não é menos certo talmente, visceralmente (como diziam os velhos "rad-soc"), na
que a ação mais modesta, desde que suscetível de revelar a força urra-esquerda e, parcialmente, na corrente libertária, quer di-
e as modalidades de exercícioda força do Estado, produz um zer, em uma corrente que emergiu em 1968,mas existia muito
conhecimento muito mais claro e científico do que tudo o que se antes que esse acontecimento a impusesse ao leque ideológico
possa expor no papel. do grande público.
O ponto de vista em que me situo, minha situação social anual,
r
os instrumentos de análise que acredito poder manejar, minhas * Radicais socialistas(N. do T-)
1 60 REN É LOURAU A ANALISE INSTITUCIONALNO ESTADO 161
Da urra-esquerda, nascida das primeiras contradições e das a existência da experimentação em psícoferapía,já antiga mas pou-
primeiras rupturas do movimento revolucionário, sobretudo na co conhecida,e das mais recentesem pedagogia.
Os estágiosde
Rússia e na Alemanha, adoto a crítica da burocracia, a interpre- formação mais, ou menos, modificados (Rayaumont, Lys-Chan-
tação maximalista do marxismo no que tange ao desaparecimento tilly, Melun etc.; cf. Georges Lapassade, L'ana/yseur et /'aFzaiyste,
do valor e do Estado, a experimentação (mas não a sacralização) Gauthier Villars, 1971) servem de suporte à superação dos mé-
da forma "conselho", oposta tanto à forma "partido" como às todos grupistas em direção à análise da instituição. São mais ra-
formas sociais e económicasinstituídas do capitalismo. O trots- ras as í?zferzPetzções
propriamenteditas, emboraa do CALE com
kismo, amiúde amalgamado à urra-esquerda ou ao gang/zfsmo Lapassade, tenha desempenhado seu papel na cisão entre a ten-
pelos mass-media,inspira igualmente essa crítica da burocracia dência Oury e a tendência Fonvieille do Grupo de Técnicas
e, particularmente, da forma autocrática de socialismo imposta Educativas, ele mesmo dissidente do movimento Freinet.
pelo stalinismo. Nessa época, é considerável o peso do prestígio dos psiquia-
Do anarquismo, me custa diferenciar o que em mim é puro tras e psicanalistasda correnteda psicoterapiainstitucionalso-
romantismo revolucionário ou esteticismo, da soma de experiên- bre os primeiros experimentadores (como Lapassade, Gantheret,
cias muitas vezes confusas, mas apaixonantes, bem como das Roman Denis, Michel Lobrot etc.). E igualmentemuito forte o
magras contribuições teóricas acerca de pontos essenciais como peso das referências teóricas dominantes: marxismo de um lado,
o desaparecimento do Estado e a luta para criar contra-institui- estruturalismo de outro. Uma síntese, a da psicanálise lacaniana,
ções: esta luta, substituindo a construção do partido "verdadei- e outra síntese, a do marxismo althusseriano, completam o prin-
ramente revolucionário" --que continua sendo o sonho do trots- cípio de autoridade representado por Foucault, Barthes e Lévi-
kismo e de boa parte da urra-esquerda --,não oferece um mo- Strauss(os quais, logo após 1968,entram maciçamente no Collêge
delo ideal, e sim um termo aceitável por aqueles que, como eu, de Francel). O suicídio de Lucien Sebag, jovem marxista próxi-
são antipartidários ou apartidários. mo a Lacan e autor de um livro que trata das relaçõesentre o
Finalmente, é recolhendo no antigo e novo gazzchísmotudo o estruturalismo e o marxismo, é visto como bastante simbólico
que diz respeito à crítica da política instituída (incluindo a "es- da situação. Não obstante a Internacional Situacionista veja sua
querda" no prometodo capital) e à análise institucional, à análise audiência crescer pouco a pouco, desaparecem Árgzzme/zts e, de-
coletiva. a quente, na prática (oposta à análise política efetuada pois, Socialismo oiz Barbárie.
a partir de cima pelos especialistas) que percebo minha referên- Conquanto Chaban-Delmas precise esperar o pós-gaullismo
cia às correntes indicadas -- correntes a que tive acesso não atra- para aceder ao posto de primeiro-ministro,o mover?cismo já é in-
vés de funestas experiências de militantismo, mas graças às ten- fluente. Quando os planificadores declaram que no futuro as ins-
dências marginais das ciências sociais, da prática pedagógica, da tituições deverão inspirar-se no grande edifício de vidro de Orly,
prática socio]ógica, do vanguardismo cu]tura], surrea]ismo,])ada, a palavra de ordem quanto à transparência nas relaçõeshuma-
Socialismo ou Barbárie", "Internacional Situacionista" etc. nas se encarna nas técnicas de manipulação grupal, comunica-
5. Através dessas determinações (e de tantas outras, que ne- cional, em meio às quais os militantes da análise institucional,
gligencio ou esqueço), o que imagino possível para a análise que sublinham o peso e a opacidade do poder, não podem dei-
institucional? xar de passar por uma nova espéciede serventes-- especialistas
Antes de 1968,na fase de experimentação, militante, as con- em chãos um pouco mais sujos, um pouco mais resistentesà
dições de possibilidade da análise institucional repousam sobre transparência.
162 REN É LOURAU
A ANAL.iSEiNSTiTUCiONAl.NO ESTA00 163
Isto significa que as resistências à análise institucional são
percebidas sobretudo como resistências intemas, devidas à ideo- xiliado materialmente, a posição seja engajada seja ao menos
favorável dos membros ou futuros membros de nossa tendên-
logia grupista, para a qual a instituição é um fantasma de
cia com respeito ao movimento contribuirá para reforçar um
racionalistas mórbidos ou então qualquer coisa totalmentena-
prometo até então balbuciante
tural, situada em algum lugar lá em cima, sem influência direta
Nanterre -- mais exatamente, a UER de sociologia de Paras X-
e sem interesse para quem sabe verdadeiramente se comportar
Nanterre -- serviu de incubadora à segunda geração - socioana-
em grupo. Tal é a impressão que deixam (em Lapassade e em
mim) as intervençõesentre os estudantes, padres e seminaris-
lítica da análiseinstitucional.Em relaçãoao Estadoe às insti-
tuições, o que trouxe a nova ideologia?
tas da Paróquia Estudantil de Tours, em 1967, ou entre os pro-
Além de uma crítica circunstancialdo conceitoe da prática
fessorescatólicos reunidos em Hendaye no verão do mesmo
de vanguarda, o movimento 22 de À4arçoapresenta, pela primei-
ano. Apesar disso, através da dissimulação da questão do di-
ra vez, uma sínteseda urra-esquerda e do anarquismo. Estes
nheiro ("o bordel das finanças do clero") e, mais diretamente,
diversos aspectos são dificilmente dissociáveis. O importante,
pela contestaçãodo ritual fusional ("A missa da condessa"), a
aqui, é trazer à luz o que o movimento 22 de março e o conjunto
instituição eclesiástica começa a emergir das brumas grupistas,
do movimento social de maio-junho de 68 sustentam em relação
fusionistas e confusionistas mantidas pela ideologia da própria às questões do Estado e das instituições.
instituição(estas duas monografiasfiguram em meu livro Les A contribuição capital do movimento é ter abordado frontal-
ana/ysezzrs de /'l@/fse,Anthropos, 1972).
mente o problema da instituição. Não sem as complacências e
Franja minúscula da tendência ainda pouco desenvolvida da durezas herdadas do marxismo imobilizado, bem como das ideo-
psicossociologia de grupos a análise institucional pode conten-
logias cristãs-modemistas do período precedente: o tema das ins-
tar-se, nessa fase, com a reputaçãode "bordel" nos planos ra-
tituições "repressivas", inspirado, ou ao menos validado, pelas
cionais do modernismo em ciências sociais. Sem as primeiras obras pouco conhecidas de Marcuse, permanece um tema clássi-
críticas marxistas - particularmente trotskistas-lambertistas --,
co da política instituída e impede uma verdadeira análise ins-
teríamos podido acreditar que estávamos instalados sobre os tri-
titucional, nem maniqueísta nem angelical. No entanto, nos se-
lhos da revolução microssocial, cupim roendo as superestrutu- tores mais diversos, o movimento traz à luz o que até então se
ras carcomidas do velho mundo durante o adiado despertar, in- ocultava sob funcionalidade e naturalidade - o que a "arma do
terminável, da velha toupeira.
proletariado", isto é, o marxismo, ajudava a dissimular quando
6. 1968:a velha toupeirafinalmenteacorda com o ruído das
prqetava sua crítica no nível mais global e mais abstrato. O que
manifestações estudantis e das greves operárias. O psicosso-
aparece como essencial durante aquelas poucas semanas de tran-
ciologismo do Caip e o pedagogismo do GPI (ambos desapare- se histórico é a necessidade de analisar coletivamente as situa-
cidos antes de 1968)tinham carecido de perspectivas políticas ções, imperativo carregado de conseqüências quanto ao destino
globais. Por um instante, a revolução falida de maio-junho vai das ferramentas mágicas, mas inoperantes, até então utilizadas
fornecer as suas à corrente da análise institucional.
nas A.G. ou na vida cotidiana (de fato, a vida cotidiana era dei-
Embora a tendência psicanalítica, com sua base material (clí- xada de lado pelos militantes, pois seus instrumentos de análise
nica de La Borde, lugaresparisiensescomo o da Rua Buffon, não Ihe tinham previsto a existência e o caráter político).
associações,revistas) tenha-seaproveitado muito mais que a Quanto ao problemado Estado, o resultadodo movimento
nossa dos rastros do movimento que, por outro lado, havia au- mostra (e não mostra) se foi bem-colocado.E pretensioso, a
164 REN É LOU RAU A ANALISE INSTITUCIONALNO ESTADO 165
posferforí,reprovar aos meiaoitistassua incoerênciaou incons- b) O acento posto pelo movimento de maio sobre a análise
ciência na matéria: livres da preocupação apocalíptica de traba- coletiva da instituição e sobre a necessidade de pâr em cena ana-
lhar pelo porvir, colhidos pelo ritmo das tarefas e pelo prazer de [isadores da força escondida do Estado reforça e ]egitima o pro-
perturbar a ordem estabelecida,não puderam, em algumas se- jeto da socíoaná/íse,
mas contribui para sua mitificação na medi-
manas de subversão das ideologias revolucionárias estabelecidas da em que, por um lado, a inspiração obtida em um fenómeno
(bem como das ideologias reacionárias estabelecidas), repensar de generalizaçãosocial desemboca em uma redução a uma ati-
aquilo que Marx e toda a teoria política não tinham conseguido vidade de especialista,podendochegarà inversão;por outro
realmente teorizar antes deles.
[ado, o apoio teóricoe po]ítico do movimento social revelado
Contudo, das ações exemplares,bem como da nova prática em 68 diminui ano a ano, em benefício de uma normalização
das A.G. e da teorização da ação antiinstitucional emerge um das relaçõessociais e das mentalidades,como fazia prever o
esboço de teoria do Estado que não carece de interesse. Este es- reasseguramento do Estado gaullista a partir de julho de 68.
boço (larguei minha máquina de escrever para lavar a louça, pre- c) Não obstante, dessas ilusões e contradições começa surgir a
texto para desenferrujar penas e braços) procura preencher o necessidade teórica de uma generalização sistemática em tem-
vazio entre o grandioso prometorevolucionário e a vida coüdiana, po "normal", sem esperar o próximo momento histórico --, de
entre a grande noite e as pequenas manhãs pálidas, entre centro uma Socíoaná/fsegera/.A intervenção socioanalítica, a Socioanálise
e periferia. As ações militantes são aquelas que reueianía presen- geral pede emprestado o dispositivo exemplar da análise cole-
ça do poder, do Estado sob suas múltiplas formas e roupagens, tiva em situação, a quente; e da análise institucional geral dos
por trás dos fenómenos ou acontecimentosaparentementemais períodos de crise ela toma, voluntarizando-o, o projeto de gene-
insignificantes. Compreende-se que a teoria dos analisadores te- ralização que vem negar o caráter pontual e redutor da inter-
nha recebido um apoio de peso com esse tipo de análise. venção socioanalítica efetuada e justificada por especialistas.
Três planos muitas vezes confundidos ou tornados confusos Naturalmente, as condições de efetuação de uma Socioanálise
pela própria análise institucionalpodem ser especificados,me- geral levantam o problema das condições de possibilidade da
nos para compreender 68 do que para traçar suas perspectivas atividade dos institucionalistas anuais,consideravelmente agra-
futuras:
vado pelo fato de não mais se tratar apenas da continuação de
a) Como qualquer período revolucionário, maio de 68 lembra uma atividade caseira, mas de um salto quantitativo e qualitati-
que a venera/ízaçãoda análiseínsfítllc/onaJé uma força social habi- vo de ares utópicos. Porém as coisas são relativamente simples
tualmente recalcada. Os prolongamentos de certos tipos de ação se as determinamos claramente, concretamente, a partir de prá-
durante os anos posteriores a 68, a ampliação e um começo de ticas menos evanescentes,que são as nossas, anualmente- seja
teorizaçãodas ações antiinstitucionaisprova que 68 não é um nas raras intervençõessocioanalíticas(entre vinte e trinta, em
mero acontecimentopontual e sem amanhã, e que a nostalgia uma dúzia de anos) ou nas práticas profissionaisou cotidianas
pós-68 privilegia um pouco demais o "fatos ideológico": o que de nossa corrente. Remeto aqui às diversas publicações dos
os primeiros psicólogos e sociólogos chamavam simplesmente "institucionalistas"
"contágio" (Le Bon) ou "imitação" (Tarde). O fator ideológico é 7. Quando consideramos encerrado o período colocado sob o
sobretudo subjetivo: não se desenvolve na ausência do fatos ob- signo de 68 - sem que isto signifique um lacre de interdição e
jetivo debilitamento do Estado, autodissolução das formas so- gritos imperiosos de "Fechado! Fechados", como em um museu
ciais instituídas.
ao anoitecer --, é com a finalidade de ressaltar a originalidade da
1 66 REN É LOURAS A ANALISE INSTITUCIONALNO ESTADO 167
fase aludi, que apenas se inicia e que vê a AI tomar consciência Perspectivas sombrias? Mas em primeiro lugar como, e em
de seus limites práticos e de sua estagnação teórica. nome de que saber, se podem traçar perspectivas políticas se-
A espécie de facilidade onírica que presidia às análises e às pers- não a curto prazo ou a prazo excessivamente longo?
pectivas de 68 e dos anos seguintes está fora de época: o Estado, Tomemos um exemplo recente de perspectivas propostas por
com suas contradições, suas crises económicas (que o fazem par- militantes trotskistas da Liga Comunista Revolucionária. Os três
ticipar dos jogos e apostas mundiais), suas disputas eleitorais e autores de um livro, l.a Ci?zquíême Repub/íque à bouf de soz{/77e(Ga-
a partida permanente que organiza entre a "esquerda" e a "di- lilée 1977), "quiseram elucidar a anual crise francesa, na convic-
reita", aprende a se reforçar graças às debilidades reveladas tanto ção de que é preciso encontrar um caminho sem se deixar fasci-
pelas lutas antiinstitucionais como pelas crises vindas do exterior. nar pelas evoluções a curto prazo, pelos prazos eleitorais mais
O modernismo dos períodos precedentesestá ultrapassado, in- próximos, que chamam mais atenção porém nos distraem da luta
tegrado sem dano excessivo: a maioria reacionária de um presi- de classes real. Não se trata, evidentemente,de negligenciaras
dente da República de direita vota algumas medidas que o pro- lutas presentes, mas de aborda-las a partir de uma ótica diferen-
grama comum da esquerda anunciava timidamente e, em caso te, a da «ultrapassagem»do existentee do fato político consu-
de necessidade, sabe girar a esquerda à esquerda (não é difícil, mado". Jean-Made Vincent, um dos autores, acrescenta: "Que
de acordos).Graças ao processocada vez mais refinado de recu- não se imaginem por trás dessa palavra visões apocalípticas, uma
peração aliado a um dispositivo cada vez mais forte de repres- espécie de surgimento imprevisível e torrencial da inovação re-
são; graças, sobretudo, à enorme caução fornecida pelo peso elei- volucionária. O que os autores têm em vista é a criação progres-
toral da esquerda dentro das regras do jogo político manejadas siva de novas possibilidades de intervençãoe de expressão,fa-
pela direita depois de 1958(sobretudo, nada de rupturas signi- zendo balançaras práticas e as instituiçõespolíticas e abrindo
ficativas com a ordem existentes),a forma social hegemónica, o caminho, assim, a um futuro que não se pareça com o presente"
Estado, consolida-se ideologicamente e injeta novo cimento nas Esta postura acentua o que pode despertar o interesse políti-
fendas da tessitura institucional, vagamente entrevistas em 68. co da análise institucional, indo além dos ates, cerimoniais e
Para a Socioanálise isso se traduz, por um lado, no espanca- modelos de análise da política instituída. Vejamos agora outra
mento das encomendas e no fato de que venham sempre dos análise, também saída da extrema esquerda, desta vez do PSU.
mesmos setores: educação, trabalho social, formação permanen- Quando do congresso desta formação política - articulação en-
te, franjas das Igrejas. . . Quanto à análise institucional em geral, tre os gauchísflzse os partidos de esquerda --,em fevereiro de 1977,
constata-se um recuo ou uma regressão das práticas em setores um dos dirigentes, Michel Mousel, fala da contradição "entre o
outrora propícios à inovação: pedagogia, terapia. A pedagogia rechaço de normas e valores da sociedade atual e a dificuldade
institucional e a psicoterapia institucional são, por vezes, curio- de concretizar este rechaço em uma forma de organização revo-
sidades intelectuais para estágios de reciclagem: raramente têm [ucionária e, portanto, em um projeto po]ítico [. . .]. Os traba]ha-
preservado um potencial de ruptura. As experiências de antipsi- dorés já não aceitam ver suas aspirações apresentadas em ver-
quiatria levadas até a deserção da instituição (Laing, Basaglia
f'
são legendada por organizações que pretendem expressar, em
etc.), bem como as experiências de antipedagogia que põem em seu lugar, o que eles pensam". E o papel de articulação se expri-
questão qualquer possibilidade de fazer algo que não seja em me, em seguida, da seguinte forma: "Construir um poder popu-
benefício daquilo que se pretende criticar ou destruir produzi- lar supõe a realização de duas vontades. A primeira é respeitar a
ram uma superação inteiramente natural desses métodos. autonomia deste poder, a segunda é realizar a união popular.
168 RE N É LOU RAU
A ANÁLISE INSTITUCIONAL NO ESTA00 169
Estas tomadas de posição, que emanam da tendência anual-
rém limitados, do trabalho social ou da formação. Dificilmente
mente dominante nas duas formações políticas, convergem para mensurável, a influência que nossas intervenções podem ter não
uma crítica moderada, "responsável", da vida política tradicio- se manifesta senão no nível do mito, ante o qual sorrimos e em
nal, da política instituída. Tendências mais gane/zísfasno interior
que cremos pela metade: quando tal ou qual mudança profunda
das duas formações acentuam essa crítica, a ponto de pâr em
sobrevém em um estabelecimento ou associação em que inter-
dúvida (no PSU) ou rejeitarcategoricamente(na LCR) as possi-
vimos, ojhamo-nos de um jeito maroto, com um ar falsamente
bilidades de uma "união popular", quer dizer, as possibilidades
maquiavélico. E quando antigos clientes nos vêm sussurrar aos
anuaisde integrar os projetos da urra-esquerda em um progra-
ouvidos que nossa intervençãodesencadeou isto ou aquilo, as-
ma comum da esquerda. A crise da representação está sublinha-
sumimos um ar hipocritamentemodesto,seguido do comentá-
da no dirigente do PSU, enquanto o representante da LCR frisa
rio regulamentar: "A crise que constatamos e apenas ajudamos
o aspecto ativo e dinâmico de tal crise ao falar em "ultrapassa-
a brotar fazia prever esse resultado, mesmo que não tivéssemos
gem" entre aspas, é verdade.
estado lá". Entretanto, a ênfase posta sobre a necessidade de cons-
Eram essas as perspectivas expressas por militantes da ultra-
truir, quando de nossas intervenções, um grupo portador do pro-
esquerda francesa no início de 1977.A análise das forças existen-
jeto da análise institucional nos lugares que abandonamos ao fim
tes que sustenta essas perspectivas mais ou menos antielei- de poucosdias dá testemunhode nossapreocupaçãopolítica:
toralistas é aceitável, desde que se Ihe acrescente um corretivo:
cada vez menos suportamos saber que as coisas que deixamos
para a tendência socioanalítica da análise institucional, a luta
para trás voltam ao seu curso normal, como ocorre depois da
antipartido é essencial, ao passo que não o pode ser para a ultra-
passagemde um circo ambulante.Quererá isso dizer que nos
esquerda, que se volta somente contra os "maus" partidos de
tornamos responsáveis?
esquerda e de direita, sonhando sem cessar com a construção de Se, em decorrência,deve ser construída uma alternativa, não
uma organizaçãofinalmentelivre de seu lastro burocrático,
a vejo senão no prometode uma socioanálise geral.
idealmente suspensa acima das implicações institucionais de O interesse deste prometo,quiçá de aparência extravagante para
qualquer força social - mais uma vez, o paraíso cristãos
alguns, é o de nos compelir a testar a capacidade e as formas de
8. Sem querer entrar no interminável debateacerca da neces-
resísfêrzcfíz do "sistema" à análise institucional: de nos prover de
sidade de uma organização revolucionária --com as mil nuanças um instrumento de conhecimento das forças reais que mantêm
e divergências que se exprimem quanto à natureza desta organi-
a ordem existente,enquanto nossos analisadores pontuais e pro-
zação em toda a extensãodo leque da urra-esquerda e das cor-
tegidos pelo cerimonial da intervenção externa, encomendados
rentes libertárias --, enfatizemos outra vez que nossa recusa a
e (eventualmente) pagos, correm sem cessar o risco de patinar e
qualquer forma de organização política que lembre, de perto ou
de se desprestigiar. O prometode uma Socioanálise geral, sobretu-
de longe, as anuaisorganizações de esquerda ou de urra-esquer-
do se quer ter nem que seja um começo de realização suscetível
da supõe que propomos uma alternativa. Ela não pode resumis- de fornecer uma avaliação acerca das condições de possibilida-
1'
se à evocação de futuros períodos de análise institucional gene-
de do projeto, nos compele a passar a uma velocidade superior
ralizada: isto seria dar mostras de quietismo e otimismo beatos.
quanto à capacidade e aos modos de difusão de nossa tendên-
Tampouco pode residir no que oferecemos anualmenteatravés
cia, com o que isto supõe de alarido ideológico, de propaganda
de nossas práticas e, em particular, de nossas socioanálises dis- clássica ou inédita.
persas (e, geralmente, sem amanhã) em setoresimportantes, po-
Se o método não produz resultados, nada restará a alguns fa-
1 70 RENÉ LOURAU A ANÁLISE INSTITUCIONAL NO ESTADO 171
náticos a não ser criar uma espéciede reserva e de refúgio, um tucional: textos foram traduzidos, "especialistas" foram chama-
Instituto de Socioanálise Geral, cujos muros, di ferentementedos dos. A seguirácom o pós-franquismo e o despertar de formações
muros do Instituto de SemânticaGeral que Van Vogt imagina político-sindicais como a Confederação Nacional do Trabalho -
em "I.es Joueurs dzr No1z-Á", sem dúvida não estarão forrados de enorme força libertária na época da República, abatida em 1936
ouro. . . Além do mais, este instituto, ou qualquer outra forma por Franco --, é a análise institucional como teoria crítica e méto-
criada por nós, terá a vantagem de preencher uma lacuna em do de intervenção que interessa aos jovens militantes anarquis-
nossa prática: a fundação, a gestão, a responsabilidade de uma tas. Um deles me escreve (fim de janeiro de 1977): "Parece-me [a
base material. análise institucional] um movimento interessante, em plena for-
9. Tudo o que aqui foi dito quanto às diversas espécies de im- mação e que poderia ser uma alternativa psicossociológica e so-
plicações positivas e negativas, pessoais e coletivas, ideológicas, ciológica prática, muito válida com relação ao mundo univer-
sociais, materiais, daquele que escreve e da tendência da qual faz sitário [. . .]. Também sinto que toda a Análise pode integrar-se
parte sem dúvida substitui com vantagem os longos desenvol- no movimento libertário e anarquista em que me situo e possui
vimentos teóricos, racionalizações e projeções no céu das idéias uma longa tradição na Espanha. Pertenço à CNT, embora as con-
que, sem o concluir jamais, fazem seu concurso de dança diante tradições do anarco-sindicalismo sejam igualmente notáveis
do espelho. A análise institucional nasce, se desenvolve, se ma- Quando este tipo de movimento social e político está ausente
nifesta e marca passo no Estado, nas condições de possibili- em um país, é claro que a análise institucional não pode senão se
dade configuradas pelas implicações, desejadas ou não, bem ou institucionalizar mais ou menos calmamente como nova disci-
mal aceitas, das quais tratamos até o momento. plina universitária. Foi em parte por causa disso que recusei, em
Na Fiança, anualmente, e sob as perspectivas predominante- 1972,o convite da universidade brasileira de Belo Horizonte: no
mente traçadas pela estratégia da urra-esquerda e pelo projeto país dos generais e coronéis, bem se vê o que a missão de um
libertário, a análise institucional tem uma existência precária: intelectual francês poderia ajudar a fazer funcionar, mesmo ima-
demasiado recuperável quando se deixa deslizar pela pendente ginando as possibilidades de transbordamento e o potencial de
modernista de uma fusão e de uma confusão com outros méto- agitaçãode uma nova disciplina, em particular se veiculada por
dos de intervenção das ciências humanas: demasiado aleatória um Georges Lapassade(cf. l,escbeoax du díabZe,Ediüons Uni-
quando opta pela pendente militante, na qual os métodos de in- versitaires, 1973).
tervenção homologados pelas organizações políticas que se que- Uma prova do que presumo, talvez imprudentemente, quan-
rem ou se dizem revolucionárias representam forte concorrência. to ao Brasil se oferece próximo a nós, na Bélgica. Embora não
A incerteza que parece reinar quanto ao jogo da política insti- seja adequado equiparar o regime político dos dois países, per'
tuída na França permite reservar. nos anos vindouros, uma opor- cebe-seque a análise institucional na Bélgica se institucionalizou
tunidade para a análise institucional. Talvez esta oportunidade facilmente na universidade e que ali se oferece uma formação
seja maior em outros países, onde o método apenas começa a ser socioanalítica muito menos tímida que na França. E isso por mais
conhecido. Desse ponto de vista, o exemplo da Espanha é ex- que um projeto de "maquete" de segundo ciclo ou, dito de outra
pressivo quanto a um possível desbloqueio unido a uma rápida maneira, de licenciatura em "Análise institucional e intervenção
mudança política. Nos tempos do franquismo, os meios intelec- sociológica" esteja sendo implantado em Vincennes no momen-
tuais espanhóis se interessavam sobretudo pelas possibilidades to em que escrevo --depois que a universidade de Paris Vlll e o
modemistasda pedagogiainstitucionale da psicoterapiainsti- ministério recusaram sucessivamente um prometode primeiro ci-
172 REN É LOU RAU A ANÁLISE INSTITUCIONAL NO ESTADO 173
clo e um prometode DEA (diploma de estudos aprofundados, pri- L'Épi, 1976). O aluno iniciante ou desprevenido tem a impres-
meiro ano de doutorado de terceiro ciclo) sobre o mesmo tema. são, portanto, de que nada Ihe é ensinado, desencorajando-se ra-
10. Para concluir, gostaria de evocar as relaçõesque o grupo pidamente nesta pedagogia oscilante.Por sua vez, o estudante
de Vincennes mantém com a instituição universitária, a fim de mais avançado, que leu nossos livros e faz uma idéia grandiosa
especificar uma vez mais a natureza objetivo das determinações da análise institucional, se decepciona pelo caráter rústico desta
da análise institucional. didática e pelas reações dos principiantes: acha que deveríamos
Passarei em revista as UV (unidades de valor),* o funciona- aprofundar conceitos, fazer teoria mais amiúde, e julga que per-
mento geral da universidade (coletivos departamentais, comis- de tempo com essa superfície porosa de palavras sem encadea-
sões, relações interdepartamentais, administração, conselho uni- mento, entre as quais o professor pesca uma ostra de tempos em
versitário, instâncias sindicais e políticas, AG etc.), o Conselho tempos, gastando, para fazê-lo, apenas um pouco menos de ener-
Consultivo da Universidade (CCU), o secretariado de Estado para gia do que o pescador de pérolas da Melanésia.
as universidades, os outros ministérios. Ensinar a análise institucional utilizando todas as técnicas pe-
Reconhecendoser a relaçãode funcionárioscom o Estado a dagógicas de transmissão e controle seria enterrar nosso projeto
implicação profissional mais importante do grupo de Vincennes, no cemitério dos conhecimentos reconhecidos pela instituição
as relaçõesentre a análise institucionale o Estado não podem universitária; logo, pelo Estado. Por outro lado, recusar-se com-
deixar de ser submetidas a este critério da prática. pletamente a falar dela na Universidade é inimaginável para pes'
Na medida em que o professor que se situa (ou é situado) na soamcujo estatuto --o de professor - implica, de um modo ou de
análise institucional é titular de uma UV -- qualquer que seja o outro, a vontade ou a obrigação de ensinar, de vender uma mer-
título desta UV --, dois tipos de reações estudantis são reveladoras cadoria mais ou menos homologada. Cruel dilemas Ainda mais
da contradiçãono seio da qual o fato de ensinar a análiseins- quando a esquerda supõe que, se nos recusamos a participar da
titucional nos mergulha. Por um lado, os estudantes que não ordem universitária, fazemos o jogo do Estado, do capital, da
conhecem nossa teoria e não têm uma imagem prévia do que direita etc.
somos ficam surpresos, e mesmo chocados, com o caráter abso- A participação é uma das palavras de ordem herdadas de maio
luto de nossa não-diretividade: pelo termo ízbso/ufonão se deve de 68. Em Vincennes, no entanto, o antiparticipacionismo desen-
entender que somos mais não-diretivos ou que dominamos me- freado coabita com um grau de participação muito mais forte
lhor do que os outros as técnicasda não-diretividade, mas sim que nas universidades mais participacionistas. Compreenda
que o ponto de aplicação de nossa não-diretividade é menos o quem puder. . . O grupo de análise institucional de Vincennes
nível enter-relacionalque o vínculo com o próprio saber --carac- participa, pois, dos coletivos de gestãodos departamentos,por
terística que se traduz por um acesso prudente, progressivo, a mais que a participação nos organismos oficiais, que são os con-
este saber, oscilando o clima de sessões entre o curso didático, a selhos de UER e o conselho universitário, seja considerada uma
AG e a sessão socioanalítica (cf. as três instâncias do grupo-clas- horrível baixeza. Os coletivos informais reúnem todos os pro-
se - grupo de trabalho, grupo de ação, grupo de base -- que es- fessores, o pessoal administrativo e os estudantes interessados.
pecifiquei, há alguns anos, a partir da análise do seminário de Os conselhos eleitos reúnem os representantes que participam
análise institucional de Nanterre, em Socfologuea p/eítztemos, do jogo eleitoral nas três categorias citadas. Ao lado do conselho
universitário, as instâncias informais (chamadas comissões) de-
* Análogas aos crédífosem nossas universidades(N. do T)
sempenham papel equivalente aos coletivos departamentais: en-
1 74 REN É LOURAS A ANÁLISE INSTITUCIONAL NO ESTA00 175
carregam-se da regulação interdepartamental e da relação com ministérios, visto que não trabalhamos sob contratos de inves-
a presidência. Também nelas, particularmente na comissão pe- tigaçãodo Cordes ou da Datar. Mas, se não temos relaçãocom
dagógica, os institucionalistasdão sua colaboração.Igualmente o ministério do abastecimento, há laços com o secretariado da
nas AG, se bem que em geral sem entusiasmo.
juventude, pois alguns de nós trabalham para a Ofaj, animando
Dentre os institucionalistas, aqueles que têm os títulos neces- estágios na França e na Alemanha.
sários participam de bancas de teses, orientam dissertações de
Em síntese, assim pode ser descrita a prática do núcleo da aná-
mestrado, dissertações de DEA e teses, da mesma forma que seus lise institucional de Vincennes, implantado há alguns anos.
colegas não-institucionalistas (evidentemente, alguns têm a re-
A AI no Estado é essa débil força de Vincennes, mais algumas
putação de não manifestar grande respeito por estas ocupações dezenas de pessoas na França e no estrangeiro, cuja problemáti-
medievais, o que não os impede de consagrar tanto tempo quanto ca não é forçosamente a mesma de Vincennes.
seus colegas a tal gênero de atividade). Outro exemplo de parti-
E preciso concluir? Por quê? Para quê? Enquanto uma situa-
cipação e colaboração: como assinalei anteriormente, os proje-
ção politicamente nova não sirva de analisador à questão das
tos, os novos diplomas, têm sido postos a funcionar, individual
condições de possibilidade da AI, esl:as condições permanece-
ou coletivamente, pelo grupo dos institucionalistas. A contradi- rão, em grande parte, fantasmáticas. O que o Estado permite ou
ção entre o projeto desconstrutor da análise institucional e sua
proíbe em função de um conjunto de determinaçõesobjetivas
realidade positiva é, uma vez mais, patente.
mais ou menos favoráveis (bahl) ou desfavoráveis (que boml) já
Com as instâncias superiores, ministeriais, as relações nem
é legível em palimpsesto na gênese política da AI.
sempre são tão boas como no interior da universidade. Muitos
A AI está no Estado porque o Estado está na Al: enquanto o
de nós têm sofrido o ostracismodo CCU (organismoparitário Estado existir (e não só como vaca leiteira para os "mandarins
que decide quanto à inscrição, com base em uma escala de apti- de Mmcennes),a AI não poderá negar sua natureza de subproduto
dões). Para o CCU, a análiseinstitucional,entre algumas outras
da gênese estatal no século XX. Triste ou alegre, esta constatação
tendências das ciências sociais, não é séria. Sem fazer jogo du- nos diz ao menos de onde se há de partir para assegurar a even-
plo, podemos lutar para que o oposto seja reconhecido?
tual sobrevivência de nosso projeto.
O secretariado de Estado para as universidades (SEU) teve a
ocasião de intervir diretamente quando estivemos na direção de
um departamento universitário -- o de sociologia, em Poitiers.
Usando como pretexto uma violação do regulamentonacional
de procedimentos de validação, o secretário de Estado, atenden-
do à denúncia do conselho de universidade e do reitor, suspen-
deu-me por um ano. Comparecidiante das instânciasdiscipli-
nares (de Poitiers e nacionais) para ser, finalmente, transferido
para Vincennes. As intervenções do reitor e do presidente da uni-
versidade foram julgadas ilegais pelo tribunal administrativo,
mas era tarde: o departamentode sociologiajá fora dissolvido
(cf. "La batailje de Poitiers", Zemps À4oderlzes, dezembro 1974).
Nosso módulo militante quase não tem relações com outros
GRUPOS E iNSTiTUiÇÃO 177
Foi então que a noção de contra-llzsfítuíçz7o
veio juntar, diale-
ticamente,a noção de grupo à de instituição. Assim o expressa
Armando Bau[eo:' "o grupo pode [. . .] reco]ocar o prob]ema das
instituições (e das normas) sociais que estão em jogo em todo
grupo, seja do exteriorou no próprio interior do grupo" (Con-
GRUPOS E INSTITUIÇAO* tra-fnsfífzzcíón y grzzpos. Madri: Fundamentos, 1977).
Ressalto o trecho "pode recolocar o problema", pois isto não é
evidente.
No fim dos anos 1960e início dos 1970,esta noção de contra-
instituição era utilizada pela contracultura, significando uma al-
ternativa positiva, e não apenas uma crítica ideológica ao insti-
C'OMO QUALQUER OBJETO,os grupos são suscetíveis de tuído. Era uma crítica atava,instituinte,que supunha escolhas
vários níveis de análise. A análise institucional (AI) nasceu de políticas, organizacionais, materiais: recusa a colaborar com o
uma crítica aos métodos de grupo centradosno grupo. Quando Estado e com o Capital; transformação da célula familiar; traba-
abordado com fronteiras estreitamente fixadas pelo modelo de lho comunitário ligado ao mi]itantismo de novo tipo. A esquizo-
análise do tipo grupo de dfaglzóstíco,o grupo levou ao que deno- frenia dos militantes tradicionais entre vida pública e vida pri-
mino grupisnzo.A análise institucional, contudo, herdou algo do vada (vida pública, por sua vez, clivada entre vida profissional
campo de intervenção microssocial da psicossociologia. No co- e atividade militante noturna) era concretamentecombatida pela
meço, tínhamos dificuldades para ver os grupos somentena trans- tentativa de põr em prática a teoria.
versalidade institucional. Chegávamos a dizer, a propósito de A evolução económica e social no decorrer dos anos 1970le-
tal ou qual fenómeno: "Isso é dinâmica de grupo" E oscilávamos vou a um retraimento e desaparecimento dessas experiências.
entre dois níveis de análise, um parecendo o parasita do outro. As escolhas políticas se transformaram em vagas referências ideo-
Tínhamos de lutar contra a ideologia grupista, muito forte lógicas, em alguns casos com ressonâncias místicas. As transfor-
nas populações que encomendavam intervenções socioanalíticas: mações efetuadas nas relações de casal e na educação das crian-
grupos marginais das igrejas católica e protestante; associações ças foram institucionalizadas pela moda cultural e, às vezes, pela
de educação popular, igualmente marcadas pelo militantismo legislação. Já os ensaios de trabalho comunitário e de autogestão
religioso de esquerda; trabalhadoressociais confrontados com dificilmente resistiram às angústias provocadas pela crise, ao
seu ofício impossível etc. Esse grupismo de origem afetivista, desemprego e ao individualismo acentuado por essa situação.
fusional, viu-se curiosamente reforçado ou substituído, em 1968, Privada de sua base social e de seu movimento,tambéma
pelo grupismo grupuscular de tendênciapolítica antiinstitucio- noção de contra-instituiçãoencolheu-sea ponto de nada mais
nal. O modelo da assembléia-geral (AG) foi transposto, assim, significar senão uma virtualidade dos grupos: virtualidade de
para o dispositivo socioanalítico:um grande grupo constituído vida, trabalho ou ação em comum. Nessa situação regressiva
de todos os grupos envolvidos na situação de intervenção. vieram a se engolfar as técnicas grupistas de tipo corporal, gru-
'Groupes et institution". In: Perspecfioes de /'ana/yse ítzstítzlfíonne/le. Pauis: Méri- A. Bauleo anima, na Europa, o Centro Internacional de Pesquisas em Psico
diens Klincksieck, 1988.Tradução: Paulo Schneider. logra Grupal e Social (CIR).
176
1 78 RENÉ LOURAU GRUPOS E INSTITUIÇÃO 179
po de enconh'o, bioenergia, gestalt etc. Retorno do recalcado, Refletimos sobre esta intervenção: trocamos textos com a as-
da potencialidade do grupo de base, fusional, contra as instân- sociação-cliente durante vários meses após nosso retorno à Fran-
cias do grupo de trabalho e do grupo de ação. Mais uma vez a ça. Questionei-me novamente quanto ao problema das condições
AI carecia de uma teoria dos grupos. A AG era cada vez menos de possibilidadeda Al; quanto a seus vínculos, muito fortes ou
evidente no dispositivo socioanalítico. As intervenções aconte- muito fracos, com a coisagrupo/. Com o risco de ser absorvida
ciam sem seu suporte que, na qualidade de extensão e de ruptu- pelo grupismo ou o risco, inverso, de carecer de suporte na au-
ra do grupo de diagnóstico lewiniano, nos parecia até então sência do campo grupal.
perfeitamente natural. Na ausência do dispositivo grupal (AG), Após ter criticado e rejeitado o modelo lewiniano, alguns den-
as intervenções são esgotantes e dramáticas: o socioanalista pro- tre nós foram tentados por um enxertogrupal de novo gênero.
cura aí um lugar. Alguns chegam a pensar, em momentos de Acreditaram que o suporte grupal da AI poderia ser a variante
angústia, que não têm mais nenhum papel a desempenhar, como califomiana do neo-reichianismo, os grzzpos de bíoener8za. Após
se a socioanálise consisüsse em agir sobre um grupo. um dispositivo de livre expressão verbal, um dispositivo de li-
Após duas intervençõesdeste tipo (em um centro cultural e vre expressão corporal. Lapassade e os que o seguiram nessa ex-
em um institutode formaçãoem profissõessociais), jurei que periência estão anualmente menos convencidos do sucesso de tal
não praticaria mais a socioanálise.2 enxerto. O neogrupismo corporal é ainda mais fusional que os
Naturalmente, traí minha promessa. Por exemplo, quando acei- grupos de base afetivistas de certos lewinianos. O fusional ten-
tei intervir em uma associação de terapeutas, a Ampag, no Mé- de a rejeitar o conflitual e, junto com ele, qualquer projeto de Al:
xico (1981). Lá, lidamos com excelentes especialistas formados em 'Estamos numa boa! A instituição, que se danes"
psicanálise e em análise institucional, peritos em terapias de gru- Tais razões, somadas à nova ofensiva do grupismo no merca-
po, de família, de casal. O grupismo sofisücadíssimo destes clien- do terapêutico e educativo, pareciam mostrar que a questão da
tes limitou em muito o impacto da análise institucional. instituição tinha-se tomado uma velha idéia dos anos 1960. En-
Tudo começou pela integração (não prevista) de minha mu- tretanto, várias experiências profissionais ou intelectuais leva-
lher como socioanalista,quando ela esperava, se muito, o papel ram-me a me interrogar acerca dessa fraqueza crónica da AI em
de observadora. A transformação involuntária do "casal Lourau' matéria de teoria dos grupos. Estas experiências pessoais, den-
em equipe de analistas permitiu polarizar muitas das contradi- tre as quais algumas, embora não todas, tinham algo a ver com a
çõesda Ampag sob o signo do poder dos casais na associação. socioanálise, obrigaram-me a considerar minhas implicações em
Vimos se impor o tema obsedante das "parejas de poder" e o do face dos grupos reais com os quais tivera ou ainda tinha contado.
mito fundador: "la pareja sospechosa". Este deslizamento em di- Enumero brevemente este corri/s de "pesquisa implicada"
reção a um nível de análise muito rico, mas muito profissional - minhas relações com o grupo surrealista, entre 1965 e 1967;
(a Ampag faz terapias de casal e vive o problema da renovação -- a tentativa de análise interna da universidade de Nanterre,
dos casais de terapeutas), permitiu ocultar, em parte, outros onde ensinei sociologia no início de 1968, às vésperas do movi-
analisadores. Antes de tudo, o mais importante: o analisador di- mento de maio;
nheiro. Poderoso cada//ero.
- o seminário de AI de Nanterre nos anos que se seguiram a
1968;;
2 Ver minha participação no livro coletivo L'ínferoenfíonfnstífzlfíorzne//e.
Paris
1980; México, 1981
3 Cf. capítulo em Socíologue à pleírz fe/lzps. Pauis: EPI, 1976
1 80 RE N É LOURAS GRUPOS E INSTITUIÇÃO 181
as intervenções socianalíticas como a de Poitiers (1974, ano í/zfe//fgentsía
é, ela própria, uma oração dinâmica da classe média
em que fui suspenso do cargo de professor por decisão ministe- ascendente, a "nova classe" (cf. Gouldner).
rial) ou a do México (que aconteceu pouco antes que minha mu- Os problemas pessoais não são puros reflexos dos problemas
lher e eu nos separássemos); coletivos,mas são o lugar onde os desafios coletivosse enrai-
- a crise no grupo de análise institucional da Universidade de zam, retratando-se nas angústias do destino individual. Os con-
Paris VJI l e sua cisão provisória em 1978;' flitos, às vezes dramáticos, vividos por mim (e por outros) no
-- o conflito no grupo de redação da revista .Aufogesfíolzs,do decurso das experiênciasdas quais citei alguns exemplos, têm
qual fiz parte desde a fundação, em 1966 conflito que chegou os grupos reais como palco. Não poderiam ser verdadeiramente
ao fim em 1983 com a exclusão ou a saída dos "institucionalistas". compreendidos, interpretados de maneira satisfatória, caso se-
entre eles Remi Hess, Antoine Savoye e eu mesmo; guíssemos os modelos de análise de grupo, inclusive o modelo
o seminário de AI para o doutorado de terceirociclo, pelo da análise institucional, em perpétuo questionamento.
qual sou responsávelna Universidade de ParasVIII.s Tenho pesquisado lentamente, às vezes inconscientemente,em
Esse procedimento de análisede }zossasímp/ícaçõesnão é bem duas direções que indicam, talvez, uma via para uma nova teo-
aceito nas ciências sociais, tampouco em psicologia social e em ria dos grupos na AI.
psicanálise. Uma exceçãoé a etnologia, onde as implicações po- A primeira direção concerne aos grupos de ilzfell/brência. Eles
líticas, coloniais, do pesquisador são maciças. têm por característica estar no entrecruzamento e no devir de
Após ter utilizado o conceito de contratransferência institucio- numerosos outros grupos, passados, presentese a surgir. Recu-
nal, oriundo da psicoterapia institucional, faz alguns anos que sam as fronteiras e são rebeldes aos modelos de análise cujo dis-
nossa prática e nossa pesquisa vão na seguinte direção: positivo é o grupal fechado sobre si mesmo. Funcionam em uma
-- análise da implicação na encomenda socfa/ (encomenda de for- permanente diabéticainterior/exterior, e esta dialética, dificilmen-
mação, de terapia, de intervenção. . . de pesquisa livre ou sob te observável, dificilmente perceptível pelos participantes, é mui-
contrato etc.); to mais interessante que os problemas de regulação, de coesão,
-- análise da implicação nas demandassociais,diversas e con- de /eadershlp etc.
traditórias: os dirigentes, "responsáveis" ou "representativos" Com efeito, as interferências não são interseções geométricas
(eles representam sempre a ausência), traduzem/traem tais de- (morfologicamente traçáveis) de linhas-fronteiras. São as ações,
mandas em termos tecnocráticos,em função de seus interesses os acontecimentos, as forças que criam, modificam e desfazem
de classe, e não das necessidades da população; as formas, à procura de uma transversalidade, de um equilíbrio
-- análise da implicação no processo de ínsfífucioFnz/ízação:
ins- que não é o equilíbrio homeostático da teoria dos sistemas, mas
titucionalizaçãodos especialistasem relaçõeshumanas, em re- o de uma capacidade de autonomia (sempre posta em questão).
gulação, em "saúde" mental, em formação etc. Estes especialis- Os grupos de interferência combatem a concepção grupista que
tas, entre os quais nos incluímos, adquirem um lugar cada vez faz do grupo uma entidade, um ajuntamentobem observávele
maior na ílzfeJ/fgenfsiaem mobilidade social ascendente. Esta recortado, antecipadamente, pelas necessidades da teoria. Para
a AI, eles são um material privilegiado, pois, tanto quanto o efei-
4 Cf. número especialda revista tour -- "L'analyse institutionelleen crise'
1978 to dos analisadores, permitem medir o graz{de ídente#cação ã
5 Cf. La SízílzfeFama/le.boletim do seminário de Análise Instituciona! de Paris instituição.Interferindo entre eles, interferem diferencialmente
Vl11, 198+1988. com ela.
1 82 RE N É LOURAS GRUPOS E iNsrlTuiÇÃo 183
Eu já havia explorado anteriormente a segunda direção de de pessoas formadas em psicologia. Em outro prédio, entediados,
pesquisa.ignorando que convergiriapara uma eventualteoria estavam os alunos-professores.Percebendo que havia uma luz
dos grupos em AI. Graças a meu interessepelos movimentos e acesa, foram ver o que estava acontecendo e pediram permissão
grupúsculos artísticos, políticos, culturais, de vanguarda, tinha para participar da reunião dos formadores. Estes últimos fica-
começado uma enquêfesobre a autodissolução das vanguardas.' ram escandalizadoscom tal demanda, que lhes soava como se
Publiquei em torno de vinte manifestos de autodissolução, de colegiais exigissem umjeedbacksobre tudo o que sobre eles é dito,
origens bem diversas. O último era fresco como um peixe re- às escondidas, na sala dos professores. Felizmente, Lewin está
cém-pescado:a carta pela qual a Escola Freudiana de Paria foi presente e compreende de imediato o interesse deste procedi-
autodissolvida, não pelo coletivo da Escola, mas por Lacan so- mento instituinte. Os alunos-professores são acentos.Participam
zinhos Como a maioria dos textos de autodissolução, este era da conversa sobre o ocorrido, durante o dia, entre os participan-
tão belo que o juntei ao material coletado para publicação antes tes dos grupos e entre os participantes e seus monitores. Nasce
mesmo de receber a autorização de Lacan para reproduzi-lo. assim a dinâmica de grupo: o dispositivo do grupo centrado so-
A psicossociologia, com seus diversos dispositivos (seftíngs, bre o grupo, sobre a tarefa do grupo, exigia que fosse suprimida
enquízdres),recorta os grupos como partimos um salaminho em a separação "normal", "natural", "lógica", entre formadores e
rodelas. De fato, a nat:ureza do dispositivo é maciçamente deter- formandos.
minada pela instituição, e determina, por seu turno, o que a ins- A AI, por sua vez, foi "inventada" por Lapassade durante um
tituição deseja. estágio de militantes, estudantes da MINEF (Mutuelle Nationale
Não é por acaso que tanto o ato fundador da análise institucio- des Etudiants de France), quando os participantes demandaram
nal quanto o ato fundador do grupo de diagnóstico lewiniano que o conjunto do dispositivo do estágio fosse autogerido, em
estão estreitamente ligados a acidentes ou mesmo a catástrofes vez de continuar como propriedade privada do sfa6 No roman-
do dispositivo. A palavra catástr(záe não deve gerar inquietação, ce familiar da AI, recorda-seque o monitor que compreendeu
pois, como veremos adiante, reenvia à atividade altamente melhor esta demanda, Georges Lapassade, ao fim do estágiofoi
instituinte da autodissolução, tão "positiva" e "criativa" quanto simbolicamentejogado em um canal (pouco profundo). Feliz-
a atividade de institucionalização. mente, os estudantes instituintes realmente não jogaram fora o
Recordemos muito rapidamente os dois momentos fundado- bebê junto com a água do banho.
res, que mostram a importância das perturbações do dispositivo Esses grandes momentos de criatividade grupal são muito ne-
em qualquer pesquisa. gligenciados pela psicossocíologia tradicional. A produção grupal
Segundo os discípulos de Kurt Lewin, o dispositivo conheci- maximizada (produção de análise coletiva pelos analisadores;
do pelo nome de "dinâmica de grupo", "grupo de base", "gru- logo, ação decisiva) é o que caracteriza o processo de autodis-
po de diagnóstico" etc. nasceu em circunstâncias estranhas. soluÇão.
Lewin e sua equipe de formadores estavam reunidos em uma Momentos analisadores: a análise coletiva é induzida pela ta-
sala, à noite, por ocasião de um estágio de formação de alunos- refa, que consiste em explicar a interrupção da existência do gru-
professores,para discutir o que tinham feito durante o dia com po. O processode autodissoluçãopode durar anos ou apenas
seus grupos de formação -- regulação quase banal para um stítf alguns dias. O fato de conhecer a origem exata do processo só
tem interesse em comparação com o trabalho de desconhecimen-
6 Á fodíssoizztíon des az;anf-tardes. Paria: Galilée, 1981
to, de ocultação, efetuado no curso da institucionalização: é útil
1 84 RE N É LOURAU CRU POS E INSTITUIÇÃO 185
recordar a emergência de tal crise do passado na medida em que dor que estava em forte interferênciacom ele. Outro subgrupo
ela logo produziu anticorpos institucionais para colmatar a bre- se institui como novo grupo, ou como antigo grupo em "nova
cha no inconsciente social do grupo, relegando às trevas exterio- fórmula". Os indivíduos se dispersam em vários grupos de in-
res os "emergentes", no sentido que estes possuem na teoria dos terferênciaou repudiam qualquer novo pertencimento,existin-
grzlpos operafíuos de Pichon-Riviêre.7 do a possibilidade (freqüente) de negociar, de rentabilizar (sim-
No processo de autodissolução, as contradições acumuladas, bólica ou realmente) seu antigo pertencimento: o antigo grupo
as origens freqüentemente misteriosas perdidas nas lendas e em de pertencimento se toma grupo de referência etc.
outras versões contraditórias do romance familiar, as velhas ten- Estas observações oferecemuma idéia do que poderia ser a
sões libidinais, os problemas de dinheiro enterrados há muito relaçãogrupo/instituição do ponto de vista da AI. Ao dar a si
tempo sob a erva daninha da boa consciência, os não ditos sobre própria uma teoria mais dinâmica, mais dialética, menos depen-
as relações com o exterior, com a vida cotidiana, com outros gru- dente de tal ou qual modelo da psicologia social, a AI pode ten-
pos de pertencimentoou de referênciacomplementaresou ri- tar escapar,por algum tempo, tanto às armadilhas do grupismo
vais, com a instituição, com o Estado etc., tudo isso de repente quanto às de uma ausência de suporte teórico grupal, indispen-
se extravasa na situação. Trata-se de algo como uma anamnese sável a qualquer empreendimento coletivo.
que acompanharia, precederia e sucederia uma grandiosa pas'
sagem ao ato. Quanto mais o grupo acumulou de não-saber,de
inconsciente coletivo, de burocracia "natural" em sua fase de
institucionalização e na estase mais ou menos longa do instituí-
do, mais, na autodissolução, descarrega saber sobre si mesmo e
sobre seu antigo processo de institucionalização.
A partir das duas orientações de pesquisa que acabo de esbo-
çar, refulge a necessidade de observar o devir dos grupos na sua
relação mutante com a identificação institucional, em suas múl-
tiplas interferências, em sua ligação íntima com a negaffaídade
que os mina desde a criação. Esta negatividade, quando se reali-
za na autodissolução, não é sinónimo de morte ou de aniquila-
mento. Na verdade, é u m novo começo, conforme mostram quase
todos os casosque pude estudar.Na maior parte das vezes, o
momento da reinstitucionalização, sob diversas formas, não tar-
da a sucedero momentoda autodissolução.As vezes até mes-
mo o precede, o que não deixa de produzir uma outra interfe-
rência entre o antigo e o novo, ou seja, entre a velha equipe líder
e uma jovem equipe líder. As interferências, que haviam enlou-
quecido, se estabilizam.Tal subgrupo se junta a um grupo exte-
7 Pichon-Riviêre. E/ procedogripal. Buenos Abres, 1971
ÍMPUCAÇÃ0 E SOBREiMPUCAÇÃ0 187
comunicação, hoje, se resume a um "implicar-se" na utilização
de uma máquina "interativa". Em última análise, muitos não se
comunicam mais, bem ou mal, como vocês e eu: ímp/ícanz-se.
A origem deste uso voluntarista, produtivista, utilitarista, su-
postamente pragmático, do termo ímp/ícaçãoencontra-se, talvez,
numa mescla de influências cristãs, existencialistas, fenomenoló-
IMPLICAÇAO E gicas, psicologistas. "Eu me implico", "ele não se implica o suficien-
SOBREIMPLICAÇAO* te" são fórmulas que equivalem a versões novas de outras, ve-
lhas: "eu me comprometo"; "ele não se compromete realmente
Tais fórmulas constituem juízos de valor sobre nós mesmos e
sobre os demais, destinados a medir o grau de atavismo,de iden-
OS USOS EPISTEMOLÓGICOS, SOCIOLÓGICOS, PSICOLÓGICOS tificaçãocom uma tarefa ou instituição,a quantidadede tem-
da noção de implicação podem ser rastreados, por exemplo, em po/dinheiro que Ihe dedicamos (estando lá, estando presentes),
Bastide (1950), Piaget (1950;1977), Devereux (1967;1980),Lourau bem como a carga afetiva investida na cooperação. E uma espé-
(1969; 1981;1987;1988), Bohm (1980; 1987), Morin (1982; 1986). cie de virtude teologal: a "presença no mundo". Depois do pro-
Ao mesmo tempo, porém, o termo ímpllcaçãó,proveniente dos testantismo, o catolicismo social a tem preconizado a fim de re-
campos do direito e da matemática, é frequentemente emprega- duzir a distância hierárquica entre o clero e o podo de Deus, entre
do fora de qualquer contexto teórico. Há alguns anos, tem com- os patrões e os operários, entre os grandes proprietários e os
partilhado uma nebulosa ideológica com palavras como compro- trabalhadores agrícolas. Tal é o substrato teológico desta ideolo-
misso, participação, inoestimento clfetiuo,motivação etc. gia. Porém, não nos surpreendemos que a este se mesclem tam-
O presente texto não pretende sintetizar as contribuições dos bém, tanto no Ocidente quanto no Oriente, elementos não dire-
autores acima citados, nem explana as teses de quaisquer ou- tamente religiosos: o sincretismo é um fator de êxito para o
tros, ainda que pesquisadores em sociologia de campo, antropo- implicacionismo.
logia ou análise institucional. Limita-se a tentar explicar uma A inflação do implicacionismo toma cada vez mais difícil o
deriva "utilitarista" da noção de implicação. uso da noção de implicação no quadro teórico que, para certo
"implicação" produz suas metástasesnão apenas nos âmbi- número de investigadores, permanece sendo o da análise ins-
tos da formaçãoe da saúde, ou mesmo do trabalhosocial, nos titucional. Foi neste quadro que nasceu o conceito de implica-
quais, invertendo uma fórmula aplicada aos países do Leste eu- ção, sob a influência da co?zfríztransáerê teia ínsfifzzcíona/ em psi-
ropeu, por vasto tempo sob domínio comunista, se pode dizer quiatria e sob o efeito da ílzfeme/zção
socloa?zalífíca.
Muitos outros
que a ideologia foi substituída pela psicologia. Muitos outros investigadores utilizam implicaçãocomo uma noção errática, sem
campos socioprofissionais são afetados. O termo ímp/ícação se nexos com uma teoria englobante.Também os que se referem
insinua nos jarrões midiáticos, políticos, empresariais. A própria eventualmente a Devereux, ou a certa variante da fenomenologia
moderna, nem sempre escapam à deriva solitária do conceito.
Imphcation et surimplication". Recue du À4azlss(MouvementAnti-UtHitaríste
Caso se tratasse somente de uma discussão semântica, não fa-
dons les Sciences Sociales), n' 10, 4' trimestn, 1990. Tradução: Ana Pauta laríamos mais do tema. Talvez até buscássemos outra palavra,
Jesus de Meio. outro representante da coisa, outro significante (segundo a lin-
18
188 RENA LOU RAU iMPUCAÇÃ0 E SOBREiMPUCAÇÃ0 189
güística saussuriana), ou outro represenfanzen(consoante a semió- Expondo brevemente a instabilidade ideológica do implica-
tica de Peirce). Mas se sigruficantes e represerzfízmelz
geralmente cionismo, indiquei o tom. Toda uma investigação, de resto apaixo-
admitem manuseios sem grandes protestos ("democracia", "or- nante, deverá ser levada a cabo para descrever a gênese social e,
dem", "progresso", "liberalismo", "socialismo", "revolução" etc.), concomitantemente, corrigir, e mesmo invalidar, aquilo que sur-
exigem do investigador um tratamento menos brutal. Se o inves- ja como excessivamente esquemático no esboço que ora apresen-
tigador leva a sério não os seus resultados mais, ou menos insóli- to. A gênesesocial do conceito de implicação obriga a sociolo-
tos, mas sua neurose explicativa e, mais ainda, sua neurose de co- gia, se esta não quiser permanecerum discurso semifilosófico
municação, não se pode permitir impor um sentido às palavras acerca do social, a receberem pleno rosto as contradições mais
da tribo a fim de gemer quando ela continua a usar tais palavras desagradáveis e nos obriga a moderar nosso otimismo proféti-
conforme os pesos e as estratégiasdos intercâmbioscotidianos co. Da mesma forma pensa Jacques Guigou (1987):
teleguiados pela Bolsa de Tóquio ou de Nova York. A deriva de
sentido é parte do trabalho do conceito, já que o conceito, como A crescente velocidade com que se institucionaliza a inves-
a madeira de construção, "trabalha". O sentido que tratamos de tigação exige uma espécie de censura burocrática a tudo aquilo
estabelecer, para além das exortações mágicas dos sociólogos que, pertinente à vida cotidiana dos investigadores, constitui-
neopositivistas, não é "puro", contrariamente ao que sustentava se em parasita segundo a lógica dita "científica
Mallarmé --"dar um sentido mais puro às palavras da tribo" em
seu famoso ZoasfFz/tzêbre.O sentido que tratamos de estabeleceré Assinalando que a "síndrome da implicação afeta a tal ponto
diverso. Está ajustado a uma estratégia. Encontrar outra palavra os investigadores das ciências sociais e seus mestres, que a mais
ou, em último caso, um signo abstrato, um sinal, como o signo completa confusão se tem difundido a propósito deste concei-
matemático da implicação -- e, por que não, o da inclusão --, cons- to", Guigou põe em evidência o seguinte paradoxo: enquanto o
titui um deslocamentoda questão, não uma melhor resposta. implicacionismo e o modismo da implicação fazem furor, a inves-
A carga semântica da palavra é a presença ativa, chamativa e tigação se burocratiza, fechando-secada vez mais em segredos.
obscena,de seu devir, de sua relaçãocom o jogo de forças e for- Logo, se o sistema fala de implicações, é para impedir que sejam
mas sociais (institucionalização).E quase impossível analisar o desvejadas. "Implique-se, reimplíque-se, porém não analise suas
devir sem tentar descrever em que ele nos analisa -- ele, o implicações", faz dizer Guigou ao sistema. De fato, a forma pro-
analisador de todas as coisas, o porteiro da contradição perma- nominal, reflexiva, do verbo ímp/ícardesigna não somente aque-
nente, que integra tanto os fazedores de anjos e as técnicas con- la virtude teologal a que antes nos referimos, mas principalmen-
traceptivas quanto a nova tecnologia da procriação artificial e os te o sobretrabalho exigido pela produção de uma mais-valia, de
novos Prometeusde aventalbranco. Semelhantetrivialidade, uma rentabilidade suplementar. Por sobretrabalho compreende-
bem teorizada por filósofos árabes na Europa medieval, parece mos algo diverso daquilo que seria simplesmente o dever do ci-
ser ignorada pelos modernos partidários do cientificismo, hoje dadão perante o Estado, o qual consiste, para os cristãos, no exer-
na crista da onda. cício correto de um ofício, a fim de provar que não estão fora
A gênese teórica do conceito de implicação, aquilo que Ihe deste mundo. Reportamo-nos, então, ao que Jures Celma (1971)
permite surgir atualizado como elemento de uma teoria das ciên- chama "exploração da subjetividade", que sucede a exploração
cias sociais, não oferece dificuldades insuperáveis. O mesmo não da objetividade do homem no trabalho alienado -- forma de so-
ocorre, todavia, com a gênese social do conceito. bre-exploração e sobre-repressão, no sentido marcusiano.
1 90 RENÉ LOU RAU iMPUCAÇÃ0 E SOBREimPl-iCAÇÃ0 191
Autorizamo-nos a propor o termo sobre/mp/ícação para desig- provas da profundidade da desafetação e da necessidade de uma
nar esta deriva do conceito de implicação, relacionada à subjeti- constantepropaganda em favor da sobreimplicação.
vidade-mercadoria. Assim, a oposição entre o aspecto ativo (ativista) da sobreim-
A implicação é um nó de relações; não é "boa" (uso volun- plicação e o aspecto passivo da implicação (sempre já existente)
tarista) nem "má" (uso jurídico-policialesco). A sobreimplicação, é mera aparência que convém superar. A sobreimplicaçãoe o
por sua vez, é a ideologianormativa do sobretrabalho,gestora atavismo, uma vez analisados, apresentam aspectos extremamen-
da necessidade do "implicar-se' te passivos: submissão a ordens explícitas ou a consignas implí-
O útil ou necessário para a ética, a pesquisa e a ética da pes- citas da nova ordem económica e social, ávida por preencher as
quisa não é a implicação -- sempre presente em nossas adesões e grandes brechas produzidas tanto pela desafetação quanto pela
rechaços, referências e não referências, participações e não-par- institucionalização, maior ou menor, do desemprego. A implica-
ticipações, sobremotivações e desmotivações, investimentos e ção, por sua vez, deve ser analisada individual e coletivamente,
desinvestimentos libidinais. . . --, mas a análise dessa implicação. o que supõe atividade intensa e, muitas vezes, penosa. Apesar
Um cidadão que participa de quinze associações e vota regu- de nada haver nela de essencialmente passivo, uma dificuldade
larmente não está mais "implicado" nem "se implica" mais do quanto a sua análise, conforme assinala Guigou, é que a impli-
que o que somente faz parte de duas associaçõese jamais vai cação se encontra camuflada pela sobreimplicação, mantida à
depositar seu voto nas urnas. A respeito do primeiro, podemos sombra da última.
dizer que é mais participativo, mais comprometido. Contudo, Sem dúvida, a sobreimplicação também interfere na análise
as implicações do não-participacionista não são menos fortes do da implicação quando isolamos um dos campos de análise,
que as do participacionista.Ambas devem ser analisadas. O psicologizando-o, por exemplo. Ainda que de modo confuso e
absenteísmo e o abstencionismo não revelam ausência de impli- sem grandes teorizações, Devereux teve consciência disso ao fa-
cação: configuram aros, comportamentos, assunções de postu- lar em "situação de observação". Quando a relação com o objeto
ras éticas, políticas. A deserção e a detecção são tão significati- ocupa todo o espaço e esvazia os outros campos de imp/ícação
vas -- conforme assinala Hirshmann -- quanto o ato de tomar a (Manero, 1987) existentes -- como a encomenda, a instituição, a
palavra participativamente,nele incluída a contestaçãoparti- relação com a teoria, a relação com a escritura --, psicologiza-se e
cipativa ou a participação contestatária. Se a participação e o se sobreímpZícíz u/fz campo. A autonomização de outro campo o
compromisso com certos setores da vida social (não necessaria- da análise da encomenda social, por exemplo -- leva-nos a su-
mente com todos) podem simbolizar adesão, integração ou iden- bestimar os demais, desta vez por um efeito de sociologização.
tificação, a deserção e a detecção podem, por sua vez, simboli- Desse modo, pode-se chegar a negar a existênciade um ou ou-
zar uma desafetação - força altamente instituinte, como temos tro campo; por exemp]o, o ]ibidinal, o da relaçãocom o objeto,
podido observar, há um ano, nos países do Leste europeu. Em ou mesmo aquele, igualmente obscuro e determinante, da rela-
um antigo estudo (1969), tratei de mostrar como a ideologia rãn rnnl n pqrri tllrn
participacionista, bastante ativa imediatamente após os movi- O nível ou campo de análise mais imediatamenteobjetivo -
mentos de 1968, orientava-se no sentido de retomadadas rédeas pertencer a determinada classe, estatuto, etnia etc. - não deve
depois da grave crise de desafetaçãoque atingira grande parte ser hipostasiado sob pena de deixar escapar outros níveis ou cam-
do sistema institucional. Durante as duas décadas transcorrídas pos de análise da implicação. Tampouco convém lançar mão da
desde então, a obsessãocom o "retomo aos valores seguros" dá explicação multiuso através do imaginário, ainda que o imagi-
1 92 REN É LOURAU imPUCAÇÃO E SOBREIMPl-ilAÇÃO 193
nário não estejaausente, em absoluto, quer da implicação quer peração repousada minimamente, ainda e sobretudo, na resis-
dos ítzsigfhs sobreimplicacionaís. tência. E a autogestão ou a co-gestão da alienação.
No velho vocabulário marxista-militante.a fim de exorcizar
A situação de desafetação silenciosa (no sentido em que
seu vergonhoso pertencimento ao "outro lado da Fenda" (como
Bemanos falava de "apostaria silenciosa", a propósito de seus
diria Jack London), os intelectuais inventaram o conceito tipica- correligionários cristãos), embora vise ao instituído, é também
mente teológico de "posição de classe", mágico resultado de seu diretamenteproduzida pelo instituído. Quem, afinal, fabricaa
compromisso". Estaposíçãó ímagínárfa - genitora delalsa cotzsciên-
soropositividade do desemprego gigantesco senão o sistema po-
ciíz,no sentido de Mannheim ou de Gabel evitava enfrentar a
lítico-económico e sua filosofia "liberal", que transcende a ques-
análisedas implicaçõesreais. Isto foi denunciado com veemên- tão da felicidade, denegando-a com uma força e uma violência
cia por uma célebre terrorista, Ulrike Meinhof, às vésperas de equivalentes às que exercia a dominação teocrática? Eis o que se
sua morte (1976-1977).Como o marxismo institucional,ou mes- deve dissimular e ocultar a todo custo, através da nova "explo-
mo terrorista, já não pode decentemente recorrer à noção de "po- ração de subjetividade". Não tão nova assim, aliás, se pensar-
sição de classe", as novas roupagens do implicacionismo estão mos nas Cruzadas, nas guerras modernas baseadas no recruta-
dispostas a rejuvenescer as velhas extravagâncias "progressis- mento obrigatório e na obrigação de patriotismo, nos velhos to-
tas". Da perspectiva de uma sociologia da ínfeJ/Üenfsfatemos o talitarismos vampirizadores da subjetividade como são os do
direito, como tratei de o fazer (Lourau, 1981),de definir o inte- séculoXX: "Por trás da sobrepolitizaçãonazi ou estalinistase
lectual por seu rechaço a analisar suas implicações rechaço dis- produz e reproduz o recalcamento sistemático da política", assi-
simulado, mais uma vez, sob a retórica da sobreimplicação,da nala J. M. Vincent (1987). A sobreimplicação não é uma ferramenta
participação na universalidade do "progressismo". de sobrepolitizaçãototal, mas pode transformar-senisso. Já não
A sobreimplicação
é o p/zzs,o ponto suplementarque o do- é a psicologia (o psicanalismo) que devém ideologia, é o inver-
cente atribui ao trabalho do aluno se encontra esmero em seus
so: "A ideologia tomou-se a psicologia de dezenas de milhões
cadernos (foi assim que minha filha trouxe para casa, triunfal- de trabalhadores, kolkhozenos, agrónomos, docentes, médicos e
mente, um 21 sobre 20 em matemática, matéria em que ela já dirigentes". Nesta enumeração ao estilo Prévert, Leonid Abal-
brilhava). A sobreimplicação é composta igualmente de virtu- kine, alto burocrata da pesquisa na URSS, desastradamentees-
des exigidas dos empregados, hierarquizadas em grades de ava- quece. . . os pesquisadores (Le Adonde,tradução de um trecho de
liação. O comitê da empresa TFI, cadeia de televisão privatizada, KomsomoZskaiaPnzuda, fevereiro, 1989).
sob o comando do rei do concretoFrancis Bouygues, promoveu Esta OllA* da ideologiasobreo psiquismomanifesta-seem
um sistema sobreimplicacionista de qualificação que compre- muitos setores. "Impregnados de harmonia evangélica e contes-
endia, além de "Coragem-tenacidade-vontadede êxito", a ru- tatária, os dominicanos do Cervo mostram sorridente desapreço
brica "Implicação-estado de ânimo" (l,/bératíon,5 de fevereiro de pe[o que tacham de jurfdfsmo ou .Pr7?zaZísmo [. . .]. A única coisa
1988, P. 7). que importa é participar, com recíproca confiança, da equipe fra-
O projeto de grade de avaliação de Bouygues mostra bem que ternal dos religiosos e laicos que anima a Casa". E assim que
se trata de exigir um suplemento de espírito, garantia de um Michel Carrouges, especialista em "máquinas celibatárias", des-
sobretrabalho diretamente produtor de identificação com a ins-
tituição e indiretamente produtor de mais-valia em favor do
O#te Pub/íqued'Acbaf, que reporta ao momento em que uma empresa quer
empregador --e não em favor do trabalhador coletivo, cuja coo- comprar as ações de outra para obter seu controle(N. do T.).
1 94 REN É LOURAU iMPUCAÇÃ0 E SOBREiMPl-lCAÇÃ0 195
creve, divertindo-se, o bem conhecido convento-editora-centro engenheiroda IBM, antesde se suicidar,fala de "mutaçãoda
cultural (1974).
personalidade". A seleção dos futuros executivos "de alto po-
Partido, Igreja. . . e a empresa? "Na fábrica, o nós é utilizado tencial" induz à criação de um "organograma bís" para os indi-
em um sentido que, bizarramente, é quase o oposto do que se víduos que sabem rentabilizar seu estresse e possuem um "âni-
encontra no dicionário: esta pequena palavra, que habitualmen- mo" forte.
te remetea uma idéia de comunidade, adquire um valor de ad- [)o ponto de vista da aná]ise instituciona], a sobreimp]icação
vertência na boca de um dirigente e marca a diferença que o deve não só produz sobretrabalho, estresse rentável, doença, morte e
distinguir dos outros", observa o húngaro Harastzi(1970). mais-valia, como também caso-gow- benefício absolutamente
Os outros, os operários, dizem "eles" para designar os super- nítido consagrado ao reinvestimento e, portanto, ao crescimento
visores, empregados de escritório e dirigentes, dentro ou fora da indefinido da empresa'ínsfífuíção. As relações sociais produtivas
fábrica. O "nós" está carregado de uma encomenda de sobre- são cas;z.#owfzadas.A lealdade à empresa, que Hirshmann com-
implicação. Apela à submissão dos operários através da ficção para à lealdade que os Estados Unidos esperam de seus cida-
de uma comunidade não mais evangélica, mas. . . comunista. dãos, não é também uma forma de casa-#ow?E o que sugere Eric
Abandonemos a Hungria dos anos 1970.Voltemos a Paras, anos Burmann: "Antes, o cidadão devia servir fielmenteao Estado,
1980. Peter Halbherr desenvolve uma enqtêfena sede francesa fiador da ordem social capitalista; agora, deve estender tal civis-
de uma famosa multinacional dedicada a técnicas de comunica-
mo à sua atividade no seio da empresa, em seu trabalho. Os di-
ção. Um de seus informantes,há muito "gerente"da empresa, reitos do homem nunca foram outra coisa senão o direito que
descreve sua carreira, à primeira vista aberrante, mas, na reali- garante os privilégios sociais. O dever das massas dominadas
dade, absolutamentetípica do modo como a empresa manipula era respeitar passivamente esses privilégios, erigidos, de modo
a sobreimplicação de seus executivos. "Em cada período ele avan- falacioso, em direitos naturais. Hoje elas devem promovê-los"
çava rapidamente, com Irmã mobí/ízação rzáxímade seu potencial de (texto datilografado, transmitido pelo autor, 1987).
fraga//zo (sublinhado por mim, René Lourau), para ser imediata- O implicacionismo da sobreimplicação é a pep:áormance er-
mente recolocado em um novo ponto de partida, mais modesto, gológica ou desportiva (ou mesmo artística), o neo-stakhano-
que permitia um novo avanço rápido". O "ritual de avaliação" é vismo que, no Japão, resulta não somentenos círculos de quali-
repetitivo e estressante. "A implicação do empregado nesse jogo dade como forma de recuperaçãodo sobretrabalhointelectual
é total e, neste sentido, trágica". Para Peter Halbherr, trata-se de e físico da base, como igualmente, na recente legislação japone-
loucura institucional" (1987). Em estudo anterior sobre a mes- sa, na instituição do Xzzroshi reconhecimento de morte por ex-
ma empresa, realizado pela equipe de Pagos (1979), pode-se ler: cesso de trabalho.
As políticas de TLTX vão muito além de «tratar bem o pes- A morte por trabalho não deveria espantar os pesquisadores
soal», que continua sendo a regra da empresa clássica; tais polí- sobreimplicados no trabalho do conceito de implicaçãol
ticas apoiam-se em uma filosofia da qual se pretendem afastar:
não se contentam em dar para desculpar a exploração, elas exi-
gem". Casos recentes,muitas vezes trágicos, de dissidência de Eu estava trabalhando em Mloísése o morzotebmo, de Freud,
executivos licenciados são analisados, pelos amoresou por teste- quando determinada manhã, ao despertar, peguei no ar esta pa-
munhas, em termos de vampirização. O contexto é descrito por lavra, sobreímp/ícízçãb.
Ela estava a ponto de se desvanecer, como
Rank Xerox como de "euforia e mobilizaçãopermanentes". Um já se desvaneciam as linhas memorizáveis de meu sonho. So-
1 96 REN É LOURAU IMPUCAÇÃ0 E SOBREIMPUCAÇÃ0 197
mente mais tarde novas associações substituiriam as que ainda lecer, quiçá retorcida qual o anel de Moebius. Com interlocutores
flutuavam ao despertar. diversos, na França e no exterior, experimentei a pezláorma?zce
re-
Na véspera da noite do sonho, eu receberaa fotocópiade um lativa do conceito de sobreimplicação, o qual ajuda a deixar para
manuscrito de Fernand Deligny, Zenfafíuesd'ízpproche du facíte,cuja trás a velha/nova problemática "subjetivismo/objetivismo" em
leitura me emocionara tanto quanto a releiturade À4oísés.Im- que se refugiamas variedadesde fenomenologismoou de su-
pressionara-me particularmente a insistênciade Deligny em evo- posto "antipositivismo
car o "on"* como um enzbreador "indefinido" de tudo o que é tá- Com a sobreimplicação, apreende-se o vínculo entre subje-
cito, ou tacitamenteóbvio, na comunicação instituída. Não sei tivismo e instrumentalismo.Nesse sentido, o implicacionismo
se eu conhecia, à época, o Diário c/írzfcode Ferenczi; em todo caso, do sobretrabalho é paradigmático. No que concerne à pesquisa
pouco tempo depois, a "intropressão" do adulto sobre a criança ou ao "trabalho intelectual" em geral, somente fornecebreves in-
se harmonizada, para mim, com a idéia de enorme carga de o?z dicações, que é preciso retomar, sistematicamente, para averiguar
pesando sobre as crianças autistas, bem como sobre todos nós, de que modo o rechaço puro e simples da análise da implicação
animais infantis desnaturalizados.
(que define o "intelectual") se liga ao suposto pragmatismo do
Tal é o contexto de descoberta se o termo não parecer ambi- implicacionismo.
cioso em demasia -- da noção de sobreimplicaçãoe também a
1987-1990
origem do desdobramento do implicacionismoem dois conteú-
dos contraditóriose dialeticamentevinculados. A sobreimpli-
cação do velho Freud em seu laborioso e caótico ensaio sobre as Referências bibliográficas
fontes do monoteísmo e o caráter sumamente problemático de
Basüde. Roger. Socfologie ef psychanalyse. Paras: PUF, 1950.
um pai da religião judaica produziram em mim, desde as pri- Bohm, David. WhoZefzessand/ze implícafe ordem.Londres, Nova York, 1980
meiras leituras, uma verdadeira irradiação de angústia, de an- (La p/énítudede I'uníoers. Mânaco: Ed. Du Rocher, 1987.Tradução fran
gústia de morte. O velho pai --e meu próprio pai, falecido em 24 cesa.)
S
de dezembro de 1986-- atormentado por seus melhores filhos, Carrouges, Michel. Urz pafronaf de draft aluiu. Paria: Anthropos, 1974.
Celma, Jules. /ournaZd'urzéducasfrelír.Paria: Champ Lebre, 1971
Jung, Adler, Rank, Reich e, também,Ferenczi;em seguida, preo' Devereux, Georges. De /'an&olsseà /íz/néfbode.Paras: Flammarion, 1980(edi
cupado com a ascensãodo nazismo; logo perseguido, exilado e ção inglesa, 1967).
morrendo longe de sua Viena; ele (e nenhum outro) podia, na Guigou, Jacques. La cítédesego.Grenoble, Ed. De L'Implique, 1987.
velhice, descer à arena e afrontar,até a morte, o Nome do Pai. Halbherr. Peter. JBM, myfbeet réa/ífé.Lausanne: Favre, 1987.
Haraszti. SaZafreazzxpfêces. Paras: Seuil, 1976(tradução francesa).
Ferenczi, o filho querido e insuportável, acabara de morrer. Po-
Lourau, René. "Critique du conceptde participation". Ufopíe,n' 2, 1969.
rém de Freud a Ferenczi, de Ferenczi a Balint, de Balint a Deve- Zlzs Zapsus des í zfeJZect els. Toulouse: Privat. 1981
reux, a cadeia austro-húngara, a cadeia boemiana se prendia. para 'L'implication:un nouveau paradigme?" Socíus,n' 4/5, 1987.
mim, ao elo Deligny. Le journa! de recherche. Matériaux d' arie théorie de !' implication. Méri-
diens-Klincksieck. 1988.
Da clínica sfricto serzsuà clínica social, e da clílüca social à aná-
Meinhof, Ulrike. Mufi?zerfesat ízutresfêtes.Paris: Seuil, 1977(tradução fran-
lise institucional da pesquisa, uma continuidade tenta se estabe- cesa)
Manero, Roberto. l.'ílzsfítucfo/za/fsafíolz. /tzfroducfíolz tour urze hlsforle de Z'arza-
lyse ílzsfífufíonne//e.Tese. Paria VIII.
Olzequivale ao se, partícula indeterminadora do Sujeitoem português: fala-
$e, canta-se, deixa-se. . .(N. do T.). Morin, Edgar. Scíetzcíe auec cotzscle?zce.Paria: Fayard, 1982.
La méfhode, 3. La corzrzaíssance de/a catzrzaíssance. Pauis: Seuil, 1986
1 98 RE N É LOURAU
Pares, Max ef a//í. L'enlprfse de /'or8anisaffolz. 1979.
Piaget, mean. Jntroducfíorz õ I'epfsfénzo/ogle gélzefíqlíe. Paras: PUF, 1950.
mean. Eplsfémologie des sele ices de i'/zomzme.Paria: Gallimard, 1977.
Mmcent, Jea n-Made. Críffql/e du traoafJ. Paria: Anth ropos, 1987.
PROCESSAMENTO DE TEXTOS
INOEPENOENrKMENTE DA FORMA como seja analisada a
questão da escritura nas ciências do homem, não se pode esca-
par ao sistema de referência institucional.
As tentativas de explicação ou as interrogações mais ou me-
nos escolásticas situadas em outros sistemas de referência pro-
põem respostas ou hipóteses interessantíssimas, mas que neu-
tralizam a instituição, supostamente inquestionável. As mais ra-
dicais análises das implicações da produção escrita -- quer se trate
de sociologia do conhecimento, de sociologia da sociologia ou
de psicanálise esquecem ingenuamente que o ato de pesquisa
não se completa senão na e pela epifania escritural codificada
pelas expectativas, prescrições e tolerâncias da instituição cultu-
ral-científica-editorial. A divisão do trabalho impõe às equipes,
laboratórios ou centros de pesquisa, uma distinção entre "negros
informantes" e redatores, entre cabeças duras agráficas e reda-
tores, entre "negros informantes" e "negros redatores" etc. Se
estas condições da pesquisa constituem lugares do processo dei-
xados de lado pela análise das implicações, é porque só o resul-
tado conta. Ora, o resultado é um accourzt,um acerto de contas
(relatório), que varia do simples "acerto" ao polêmico "ajuste"
de contas: um texto institucional(TI), comportando eventualmen-
te escritura serial -- não à maneira jubilatória de Rabelais ou de
'Traitement de texte". Commzllzícafíorzs.
"L'écritwe des sciences de I'homme
n' 58. Ed. Seuil, 1994.Tradução: Paulo
199
Schneider.
200 R E N É LOU RAU PROCESSAM ENTE OE TEXTO 201
Charles Fourier, mas sob a forma de tabelas estatísticas, gráficos aristotélica, baseada em arranjos de frases, parágrafos, capítu-
ou mesmo fórmulas matemáticas,bem como qualquer outro com- los, articulados por embreadores do tipo "se/então", mais ou
plemento permitido pela institucíonalidade do texto. Recorde- menos sofisticados. Não há melhor. . . prova disso do que o
mos, a respeito,que De Zadiofsíondzzfzaoaí/social,de Durkheim, agendamento das linhas que vocês estão lendol
não contém tabela numérica alguma, ao passo que, mais de oi- O IT jurídico se atualiza de várias outras maneiras: uso do
tenta anos depois, um trabalho similar relativo à divisão do tra- estilo polêmico como substituto e reforço da prova, ou como
balho social --l,a dístí?zctío?z,
de Pierre Bourdieu --oferece quaren- técnica pedagógica destinada a reforçar a convicção; papel dos
ta tabelasestatísticas,vinte e um gráficos e várias dezenas de dados estatísticos ou clínicos, geralmente colocados em anexo
"referências fotográficas". O TI instituído não é somente um in- para não romper a continuidade do arrazoado ou do requisitó-
tangível já-dado: ele se mexe, sendo graças a Deus - suscetível rio (são "peças do processo"); teatralizaçãograduada dos efei-
de acolher iniciativas instituintes. tos oratórios segundo esquemas diversos, do simp]es tribunal
à Alta Corte de Justiça; inserção do intertexto metodológico
Intertexto (espécie de apelo ao regulamento, aos artigos do Código concer-
nentes ao debate); expulsão do extratexto diarístico na qualida-
Qual as ciências da matéria e as disciplinas lógico-matemáti- de de testemunha inconveniente; antecipação, por vezes osten-
cas, as ciênciasdo homem surgiram da matriz do textofilosófi- tatória, dos agradecimentos às testemunhas de moralidade (de
co, em processo de emancipação quanto ao texto teológico. Evo- cientificidade), que são as pessoas eminentes, os laboratórios, as
quemos a longa dedicatória/justificativa que Descarnescoloca fundações.
no início de suas Mlédífafío?zs
métap/zysfqtzes:
"Aos senhores Deca- É nas ciências do homem que fazem, parcial ou principalmen-
nos e Doutores da Sagrada Faculdade de Teologia de Paria". Um te, apelo à "clínica", à observação direta, com ou sem instrumen-
século depois, bastará um edito de Luís X'% proibindo qualquer tos, mas sempre apoiada em dispositivo material tão delibera-
discussão acerca do conceito de graça nas teses de doutorado damente banalizado quanto a questão da escritura, que se mani-
interdiçãoque leva dejota a uma decadênciada faculdade de festa o IT médico, muito influenciado, a partir de Janet e Freud,
teologia --, para que a filosofia comece a respirar mais livremen- pelo léxico da psicopatologia.As análisesde conteúdo das gra-
te. E bem no final do século XVlll, em Le conWífdeslacu/fés,Kant vações de entrevistas, os protocolos de sessões e outros estudos
terá de batalhar para explicar ao rei da Prússia que sua faculda- de caso não são os únicos empréstimos tomados ao IT médico.
de não deve estar sob o controle da faculdade de teologia. Sem falar da presença do jargão jurídico, por vezes habilmente
De forma mais manifestae duradoura que a teologia,outros mesclado ao terrorismo verbal de procurador ou moralista, será
modos de discurso ensinados nas faculdades européias tinham possível perceber que a maior parte das técnicas -- designadas
fomecido intertextos (IT) ao TI das ciências do homem: texto ju- freqüentemente,de forma abusiva, por termos como métodoou
rídico, médico, literário. Na verdade, esta impregnação, pouco método/agia -- utilizadas, por exemplo,em sociologia, são oriun-
perceptível nos grandes ancestrais que são, antes de tudo, gran- das menos das proposições de fundadores como Comte (que era,
des escritores (Pascal, Montesquieu, Rousseau. . .), se faz sentir por sinal, matemático) ou Durkheim (muito favorável à estatís-
fortemente, em compensação, em muitos autores modernos, tan- tica, em Le suícíde)que da psicologia experimental. Assim se dá
to nas ciências do homem quanto na filosofia. A administração no caso dos questionários, itens e tratamento de dados. As ou-
da prova se opera por uma demonstraçãosilogísticabastante tras técnicas,qual a estatística,são tomadas de empréstimo à eco-
202 RE N É LOURAU
PROCESSAmENro OE TEXTO 203
nomia política ou à geografia humana, como as técnicas da
em acréscimo, que o fio do relato linear das ciências do homem,
morfologia social, da sociologia urbana e rural.
diretamente transposto dos textos institucionalizados pelas di-
Mais visível que seus co-irmãos --faculdades de teologia,di-
reito ou medicina --, a faculdade de artes não só lecionou letras versas faculdades, tende a ser rompido por intermédio de todas
as espécies de elementos serfaís integráveis ao TI, na medida em
como promoveu a filosofia natural, esperando que ela suplan-
que estes partem informação não traduzível em linguagem na-
tasse ou expulsasse a faculdade de teologia: aqui é produzido o tural ou que, caso traduzível, desempenhe uma função de ilu-
IT das "humanidades", que englobam a produção tanto do tex- minura, como nos velhos alfarrábios de teologia: "0 socio logo,
to reflexivo quanto do texto da ficção. A frequente indecidi-
declara Jean-Claude Passeron,' corre sempre um risco enuncia-
bilidade (tantas vezes sublinhada pelos etnólogos)quanto à fron-
tivo, pois a mais simples tabelade variáveis cruzadas nada mais
teira entre escritura etnológica e romanesca talvez venha daíl
diz, afinal, do que aquilo que poderia ser dito em linguagem
Tanto que a literatura, sobretudo a partir da hegemonia do gê- natural
nero romanesco, no século XIX, manifesta pretensões a ser "ciên-
Existe o risco, por outro lado, de que outras técnicas seriais
cia social", como dizia Balzac. No momento em que passa a do-
rompam definitivamente a linearidade do Tl: é o caso da escri-
minar a tese de uma literatura clínico-experimental, inspirada tura extratextual (ET).*
nas teorias médicas de Claude Bernard, é possível perceber, atra-
vés da leitura dos diários de pesquisa de Flaubertou Zola, que Extratexto
as humanidades, longe de virarem as costas à nascente ciência
do homem, apóiam-se nas práticas de observação direta contro-
Na qualidade de relatório da prática social de pesquisa, ge-
lada e de colegade dados em documentos. Poucos sociólogos ou ralmente o ET é deixado de lado, mesmo e sobretudo se fun-
etnólogos de campo manifestam tal preocupação em coletar e cionou como fase transitória da própria redução. Raramente pu-
classificar dados empíricos. Enquanto Flaubert bem cedo teve blicado, o ET permanece um não-TI. Tentei: descrever alguns
consciência da relativa presunção da escola realista (da qual era dispositivos TI/ET através do estudo de diários de pesquisa: os
tido como líder!) e do lugar principal ocupado pela imaginação de Malinowski, Margaret Mead, Jeanne Favret-Saada, Condo-
sociológica, Zola parece antecipar-se aos accozztzfsminuciosos da
minas, Ferenczi e Wittgenstein, entre outros, são bastante instru-
etnometodologia. Somente o feiticeiro mítico de Castafíeda leva tivos
ainda mais longe a vertigem da indexicalidade nos exercícios A escritura diarística como "canteiro" da pesquisa reintroduz
espirituais das "descrições" impostas a seu aluno. a dimensão escondida desta última: a temporalidade. Todas as
No TI das ciências humanas, os intertextosancestrais (para não racionalizações das dissertações mais científicas visam a fabri-
falar dos mais recentes) manifestam a remanência da instituição
universitária européia. Os grandes debates são, de bom grado, Claude Grignon & Jean-Claude Passeron, Zr Saualztet /ePop /aireÀffser#bilísme
querelas intertextuais. Durkheim lutou exaustivamente para ex- ef Populísmeen socíologe et etzJíttératzlre.Paras: Hautes Etudes-Gallimard-Le
cluir do novo paradigma os ITs jurídico, psicológico,geográfico Seuil, 1989.Ver também, dentro da mesma perspectiva, Jean-Claude Passeron.
Le Raísonnemenf soclologíque. Paras: Nathan, 1991.
etc. O estruturalismo tentou eliminar o intertexto histórico. Ten-
As expressões francesas originais bonstexfe,/zorstexfue/Ze
etc. foram traduzidas
dências ainda dominantes na sociologia anualtentam expulsar o como extratexto, extratextual e assim por diante. Sendo assim, a sigla HT que
intertexto filosófico, pagando, não obstante, um pesado tributo 2
Lourau usa para designa-lastransfom\ou-se, para nós, em ET(N. do T.).
René Lourau. l.e .Íoarzza/de recherc/ze.
Matériaux pour une théorie de I'im-
ao léxico filosófico. Sem desenvolver a observação, ressaltemos,
plication. Paras: Méridiens-Klincksieck, 1988.
204 RENÉ LOU RAU PROCESSAUENT0 DE TEXTO 205
car o simulacrode um "campode coerência"sentrea açãodo ciamento do real, sob a forma de uma representação nominalista
cientista (o ato de pesquisa) e uma realidade mais verdadeira que representação cuja coerência, cada vez mais auto-referencial,
as outras formas da experiência humana (cf., mais adiante, "Con- está distanciada e se distancia sem cessar da realidade sócio-his-
texto"). Isto consiste em negar a contradição que salta aos olhos, tórica, que é quinhão de milhares de sub-homens, amoresvolun-
com a ajuda de um desvio acompanhado da fórmula "vá ver se tários ou involuntários dos múltiplos agenciamentos,bastante
estou na esquina!". A realidade está na recusa "científica" de ana- complexos, do "senso comum". Einstein não estava gagá quan-
lisar a situação da pesquisa como tal, seja ela de tipo "quantita- do criticouseus amigosda escolade Copenhaguepor se enter-
tivo" ou "qualitativo" - distinção que, com o apoio de Passeron, rarem numa pseudo-realidade puramente "estatística" e nomi-
podemos facilmente jogar no lixo da pseudo-epistemologia. nalista (ele dizia "positivista", referindo-se a uma religião dos
Como enfatizava Bachelard, o ato de pesquisa ocorre num pla- "fatos" que se esquecia do paradigma "realista", no sentido filo-
no irreal. Perturba tudo aquilo que, sendo parte da realidade sófico do termo).
como campo de coerência acientífico da sobrevivência, clama Quase não se encontram traços diarísticos das controvérsias
pelos direitos do desejo, da arte de viver (de passagem, deixe- no seio da microfísica; as obras teóricas, as autobiografias, a cor-
mos seu direito ao prazer aos cientistas,bem como a todos os respondência e os artigos de divulgação dão algumas indicações.
perversos de altos vãos, muito excepcionalmente ameaçados de No que conceme às ciências do homem, o canteiro da pesquisa
processos de Nuremberg por crimes de paz crímine dí Face,se- está um pouco menos fechado ao público. Mas parece que outro
gundo a fórmula de Basaglia). aspectodo ET diarísticolimita e condicionaa difusão dos diá-
O desejo e a arte de viver (com seus desejos) desenrolam-se rios: o questionamentoda pouca realidade do TI, caso confron-
sobre um plano que nada tem a ver com a atemporalidadedo tado ao ET.
processo de produção científica. Mediante um processamento de Na amostra abordada em meu estudo anteriormente mencio-
texto totalmente submisso à instituição, tal processo se entrega nado, as condiçõesde publicaçãodo ET são muito significati-
alegremente a uma espécie de "momento utópico"' do agen- vas. Permito-me retoma-las rapidamente.
3
Ravatin, Jacques. T/zéoríe des c/zamps de m;zérepice. Nomes: Lacour Éditeur, 1992. Somente o diário de campo de Georges Condominas foi pu-
4
Gerara Gautler. Dornination, Institution et Identité, Le mouuement Taiping et [a blicado antes do TI. Os de Malinowski, Margaret Mead, Jeanne
C;fine du X/X''síêc/e.Doutorado, IJniversidade de Paris Xl11,1992. Analisan- Favret-Saada, Edgar Morin, Ferenczi e Wittgenstein foram pu-
do seu trabalho de pesquisa em ciências do homem, Gerard Gautier enge-
nheiro de informática - nota analogia entre o "momento utópico" do movi-
blicados depois,alguns deles várias décadas mais tarde. O recor-
mento revolucionário que estuda o momento da "profecia inicial", segun- de absoluto é o de Wittgenstein: seus "diários secretos" não fo-
do Mühlmann, inspirando-se em Max Weber -- e a prática do processamento ram oficialmente publicados e só são acessíveis em edições pira-
de texto (do texto de sua tese) no computador. Segundo Gerard Gautier, a tas, em catalãoe em italiano, com a versão original exibida ao
facilidade de modificar incessantementeao nível local do parágrafo produz
uma espécie de liquefação do texto, à custa da preocupação de shtese. É lado (pelo menos na edição em catalão). Lembro que estas pági-
interessantenotar que, para Jacques Ravatin, o campo de coerência "lógico nas de esquerdado diário filosófico,esta "escritura da mão es-
habitual é sobretudo "local". Criticando a utilização da eletrõnica na música, querda" -- como diria Groddeck -- datam de 1914e 1915,mo-
Roland Moreno, inventor do cartão bancário com memória de chip embuti-
da, observa que um dos "sucessos" desse tipo de música é a produção de um mento em que o jovem filósofo servia como voluntário a bordo
efeito de "fragmentação branda", o que não deixa de ter parentesco com os de um canhoneiro austríaco no Vístula.
efeitos gráficos do computador assinalados por Gautier (Roland Moreno. Dentre os ET a posteriori,três são póstumos: Malinowski,
Théorle dz borda/ alnblíznf. Paras: Belfond. 1990).
Wittgensteine Ferenczi. Enfim, coisa rara, dois foram publica-
206 RE N É LOURAU PROCESSAM UNTO OE TEXTO 207
dos ao mesmo tempo que o Tl: o de Jean-Paul Goux e o das mu-
lheres do CEliFI. A estes audaciosos autores de TI/ET simultâ- Contexto
neos, podemos adicionar Georges Lapassade e mean-MadeGibbal
(bem como o autor do presenteartigo). Aos póstumos é possível Aquilo que a temporalidade restituída pelo ET mesmo que
ainda acrescentar, entre os franceses célebres, Lucien Lévy-Bruhl fragmentado e autocensurado --revela, ameaçando, talvez mais
e Alfred Métraux (assim como o romeno Mircea Eliade, por seu que qualquer outra coisa, profanar o TI, é o contexto (CT) da pes-
diário de juventude). Estas indicações não se pretendem exaus- quisa, incluindo o contexto de elaboração final do texto.
uvas Além do IT e do ET, é preciso ressaltar,na sociogênesedo TI,
Há um problema com a temporalidade da eventual difusão do no processamento institucional do texto, o lugar - quase sempre
ET. A freqüente defasagem (primeiro TI, depois ET) indica que a vazio - do contexto. Contudo, processo e resultado se acham es-
temporalidade material da pesquisa à qual podemos ter acesso é treitamente ligados: contrariamente a uma tendência freqüente
expu[sa para um a]hures, em gera] tardio, se possível tempos de- nos que, oportunisticamente, se interessam pela questão da es-
pois da morte do pesquisador. O processamento do texto pela ins- critura nas ciênciashumanas, a análiseda instânciacontextual
tituição editorial e científica com freqüência se apóia na institui- nos lembra que é impossível separar o problema do acesso à es-
ção familiar ou no que a substitui: detentores dos direitos edito- critura do problema do acesso ao campo de pesquisa (ou ao ob-
riais, executorestestamentários. . . A escritura da mão esquerda jeto), cuja existênciavirtual só se atualiza mediante a transmu-
não deve interferir no TI, ou deve fazê-lo o mais tarde possível. tação em escritura.
Será a informalidade dessa escritura ET que coloca problemas Com efeito, se tudo se dá antes da escritura -- inclusive a esco-
em relação à escritura erudita e aos imperativos da instituição lha do modo de escritura --, vale lembrar que a própria coleta de
editorial? Realmente não. Os pesquisadores que mantêm um diá- dados está condicionada pela presença retroativa do TI. Trata-se
rio dominam sua escritura, uma escritura freqüentementemais do que denominei "efeito Goody", por referência ao trabalho
livre que seus discursos domingueiros. E os editoresde diários deste pesquisador acerca da "razão gráfica" ou, mais exatamen-
póstumos não se privam de "embecar" tudo aquilo que lhes pa- te, da "domesticação do pensamento selvagem
rece "impróprio' Tomar notas freneticamente,gravar obsessivamente e acumu-
A instituição se inquieta, primordialmente, com as revelações lar, de maneira ciumenta, inúmeras fitas cassete("Meu cassete!
dos pequenos segredos do pesquisador (em Métraux, por exem- Meu querido cassetes" grita o Avarento de Moliêre quando re-
plo, a fobia ao campo de pesquisa) ou da pessoa(em Wittgenstein, para que foi roubado) justapõem-seà estúpida aposta de um
o misticismo, a homossexualidadee a masturbação). Estas con- accountassintótico à realidade. . . da situação de pesquisa. Esta,
fissões tão "inúteis", eventualmente "exibicionistas", nada têm enquanto configuração social, contexto global do ato de pesqui-
a ver, oficialmente, com a construção do objeto científico. Porém. sa, sobretudo não deve ser questionada, porque é o estatuto de
não possuem elas uma relação (desrespeitosa) com o sagrado do pesquisador que habilita uma situação a ser "de pesquisa". Con-
relatório erudito, com a castração, o angelismo assexuado do Tl? texto global significa contexto espacio-temporal, sócio-histórico:
Mais uma vez, a temporalidade existencialdo pesquisador deve espaço natural (social, libidinal, ideológico, económico) de in-
ser exc]uída: e]a é o ]ugar do pecado. Qual o Deus de Santo Agos- tervençãodo pesquisador,mas igualmente,como vimos, tem-
tinho, a Ciência está privada do conhecimento do Tempo. Desta poralidade das operaçõesque conduzem, se tudo corre bem, à
deficiência, ela tira sua força. assunção de um TI. Reunir fundos, uma equipe, elaborar um pro-
208 REN É LOU RAU PROCESSAM UNTO OE TEXTO 209
jeto, um cronograma, negociar adiantamentos orçamentários e A propósito do IT, vimos como são construídas a forma do
detalhes de fim de contrato, explorar as possibilidades de divul- discurso e a lógica das avaliações em um campo de coerência
gação, de publicação etc. são ates inscritos em um espaço real de que antecipadamente exclui não necessariamente a existência de
senso comum, em uma temporalidade que, com ou sem "prazos outros campos de coerência (o senso comum, o libidinal, o ideo-
inadiáveis", autoriza a alquimia da transformaçãode um proje- lógico, o económico, o poético. . .), mas a idéia de uma í?zferáe-
to em um TI. rê/leiapermanente entre campos e, conseqüentemente, a idéia de
Excluindo o caso TI/ET simultâneos, o que acontecenessa tra- que isolar um campo constitui um empreendimento irracional.
jetória essencial raramente, e muito parcimoniosamente, é clari- Tudo se passa como se, por obra e graça do Espírito Santo, só
ficado pela ciência: trata-se do novo obscurantismo, assemelhável existisse adequação perfeita, ou ao menos tropismo de adequa-
ao antigo e que dissimula naturalmente, sob o selo do segredo, ção, entre o simbolismo gráfico e o que está aí, diante de mim,
as operações alquímicas do poder, do sexo e do dinheiro. A colo- na situação existencial de pesquisa. Não estamos muito longe
cação entre parênteses do CT chama a atenção para uma grande de um efeito pictórico de renderização (renda),* ou mesmo de
dificuldade, sublinhada por John Deweys De um lado há as frompe-Z'oeíJ,*
acentuando, segundo diversas técnicas, os contor-
inferências que, como qualquer um embora com instrumentos nos, as sombras e as luzes. No TI das ciências humanas, isto se
mais aperfeiçoados --, o pesquisador tira das situaçõesexisten- dá tanto através do trolnpe-/'oeí/ estatístico como pelo frompe-Z'oeí/
ciais ou "experienciais" de pesquisa. Segundo Dewelç temos aqui de restituição do vivido (dos outros).
o modo da "implicação material" (ínz;olhe/?zent).
De outro lado, a A construção da verdade cinematográfica também ofereceria
elaboração --com o auxílio de símbolos, raciocínios, e julgamen- uma analogia com o resultado textual do ato de pesquisa nas
tos -- visa ao estabelecimento da prova: trata-se do segundo modo ciências do homem. Mescla de realidade e simulacro, truques
de implicação, a "implicação formal" (f7np/ícatio?z). cênicos no enquadramento e na montagem, temos o lote de se-
Entre estas duas modalidades complementares, embora anta- qüências pondo em cena as relações físicas, eróticas ou agonís-
gonistas, do ato da pesquisa, o que se passa? Que ninguém se ticas. TraaeJ/íngs,enquadramentos e ângulos de tomada devem
retirei Ou melhor ao contrário, que saiam todos, que não fique criar a ilusão de uma inferência normal, do tipo "Percebo tal coi-
ninguém para testemunhar este ordálio --o julgamento da insti- sa". Por que os filmes ditos "eróticos" põem em cena tão facil-
tuição tomando o lugar do julgamento de Deus. mente relaçõeshomossexuais entre mulheres? Porque assim é
AÍ se situa todo o problema da escritura. O TI está fundado suspensa a interdição de mostrar um órgão sexual masculino em
em uma espéciede infalibilidade simbólica como tessitura do ereção. Mais do que outras, esta transgressão assinala que se ul-
discurso erudito, em uma segurança aprendida, melhor que nun- trapassou a fronteira, derivando para o filme pornográfico, cujo
ca. nos cursos prestigiosos da burguesia, repousando a validade modo de escritura é classificado como "X". Nas cenas de luta ou
dos julgamentos sobre o domínio dos jogos de sintaxe e de léxi- de violência, também se exerce a trucagem através dos dublês: o
co. Na vida cotidiana, de maneira idêntica, a ideologia burguesa realismo assim obtido é um realismo de segundo grau, um rea-
garante a seriedade ética e lógica do segredo nas operações fi- lismo descontextualizado, uma "verdade" da qual o cinema não
nanceiras, libidinais e políticas.
* Técnicas pictóricas que promovem a ilusão do tridimensional(N. do T.).
' Dewey, John. l,agir; The Tbeor' of Jnqzlíz7. Nova York, 1938; trad. francesa, # Pintura que cria ilusão de realidade. Em sentido figurado, aparência engano
Logiqae; ía f/zéorfe de / 'enquêfe. Paris: PUF, 1967 e 1993. sa (N. do T.).
21 0 REN É LOURAU p Roc ESSAM ENTE o E Texto 211
teme mostrar a fabricação através de seus makíngOZfvendido em
{
homossexual judeu, acerca de possível analogia entre o vivido
cassetes. Estas exposições de "como é feito o filme" se limitam, dos judeus e o dos homossexuais.Seria necessárioempreender
prudentemente,aos aspectos técnicos,e não evocam, a não ser uma longa busca para encontrar, na mesma época, uma equiva-
de maneira muito alusiva, as condições financeiras, políticas e lência, pequena que fosse, quanto a tal riqueza textual nos discí-
libidinais do trabalho de preparação Hnmico,do processamento pulos de Durk-heim. A trindade diabólica do sexo, do dinheiro
de textocinematográfico. e do poder sob a Terceira República permanecerá enclausurada
A analogia entre o processamento de texto gráfico e o proces- na cidade proibida à ciência. O processamento de texto institu-
samento de texto cinematográfico mereceria análise menos su- cional impõe sacrifícios como este. . . A análise das implicações
cinta (supremo duas páginas por temer "cortes" na montageml). materiais e formais (Dewey) não deve ser considerada senão à
Expulso da ciência,o contextodas relaçõessociais implicadasna maneira de gentis ou penosas digressões. Hoje em dia, nas ci-
situação de pesquisa produz um processamento do TI que, por ências do homem, não é maior do que a existentena época de
sua vez, legitima tal expulsão. Mantém-se a idéia de que após a Proust e do pós-durkheimísmo a tolerância da obra canónica à
i[usão teatral (l.'í//usíon coltríque,de Cornei]]e), a i]usão pictórica formulação das condições da pesquisa -- este bons-d'oez/ure.
e a ilusão cinematográfica, a ilusão gráfica nas ciências humanas
é mais verdadeira que o verdadeiro, mais real que nosso parco
quinhão de realidade cotidiana. Conquanto o método de análi-
se textualde Geràrd Genette (que ainda propõe outras instân-
cias, como o parafexto)também possa ser aplicado nas ciências
do homem, isto não ocorre sem nuanças quanto aos lugares res-
pectivos das instâncias IT, ET e CT. Questionar-se-ámais a au-
sência do ET como relatório do processo de pesquisa em um TI
das ciências humanas do que na produção romanesca ou tea-
tral. Entretanto,as cadernetasde trabalhode Musil ou de
Virginia IAãoolfenriquecem a leitura das obras destes romancis-
tas. A correspondência de Proust com a mãe, amigos íntimos ou
editores leva a que não mais consideremos como ;zors-d'oezzare*
inúteis ou penosas digressões as inúmeras passagens CT de .4 /a
rec/zero/ze dz{ temos perda (particularmente em sua z{/uma z,erga,
Sodoltzeef Gomorr;ze)a propósito do caso [)reyfus, das condições
sociais que presidiam às "conversões", num sentido ou no ou-
tro, quanto à culpabilidade de Dreyfus; as inúmeras passagens
do IT libidinal, eventualmente no limite do ET, sobre a homos-
sexualidade; ou as observações extremamente "livres", de um
Em culinária, antepasto.Na tradução, perde-se em parte o paralelo entre Aors
+
fexfee horad'oeaore,habilmente manejado por Lourau(N. do T.).
IMPLICAÇÃO-TRANsouÇÃo 213
+
É o devir propriamente dito. O devir potencializaexistências
anuaise atualiza existências potenciais pelo menos, é esta a con-
tribuição da lógica antagonista de Lupasco à diabética. Para
Lupasco, sujeito e objeto só são imagináveis em uma metaes-
tabilidade, com um potencializando o outro ao se atualizar, e re-
IMPLICAÇÃO-TRANSDUÇAO* ciprocamente. Não há dupla estável sujeito/objeto. A dinâmica
contraditória de Lupasco não dá a menor chanceàs substâncias,
subjetiva ou objetiva. A partir desta mesma hipótese de equilí-
brio metaestávele de seu interessepela "assunçãode forma" e
pelo fenómeno -- anterior a qualquer assunção de forma que é
a individuação, Simondon procura pensar a relaçãosujeito/ob-
Primeira variação jeto com a ajuda do conceitode transdução. Como no espectro
das cores, os dois pólos extremos são periféricos -- são finais, li-
(12UANOOchega a ser incorporada ao paradigma habitual das mites. E a partir do centro (o verde-amarelo) que se sucedem as
ciências humanas, a fmp/ícaçãose toma um conceito secundário, várias cores localizáveis e designáveis, fundando-se umas nas
edulcorado, suplemento subjetivista de um conjunto cuja coe- outras. Este movimento, resultado de potencializações e atuali-
rência permanece objetivista. Já a tentação hipersubjeüvista, se zações, é a transdução.
recorre à implicação, o faz por um movimento reativo que man- O conceito de campode coerênciade Ravatin se apóia em outro
tém e reforça a falsa dualidade sujeito/objeto. Os "empregos ple- tipo de relação: não mais a filosófica e desgastada relação sujei-
nos da subjetividade" (Morin) e outras "produções de subjetivi- to/objeto, mas a relação global/local, intenso foco de transdu-
dade" (Guattari) conduzemao falso caminhode uma visão de ções. O global, homogêneo, é perda de referências, deslocalização.
mundo na qual as forças de dominação e de exploração conti- O local, heterogêneo, é constituído de referências em fuga: loca-
nuam a nos objetivar,alegrando-sepor encontrar uma ajuda ines- lizações, relocalizações e sobrelocalizações se atualizam, mas são
perada do subjetivismo. Assim se põe em ação um novo modo potencializáveis no global. Ravatin utiliza o exemplo da paleon-
de exploração, mediante a exploração da subjetividade do ho- tologia: ela se institui como ciência a partir do momento em que
mem, e não apenas a de suas forças físicas objetivas, analisada esqueletos ou restos de esqueletos são localizados numa histó-
por Marx. ria, quando, até então, estavam deslocalizados num global ho-
Qual é a natureza da relação sujeito/objeto? Pois é de relação mogêneo do desaparecimento e da morte universais. Todo
que se trata aqui, e não de uma díade qualquer, do tipo caneta/ novo conhecimento, do social de Durkheim ao inconsciente de
joelho ou nuvem/porco. O terceiro elemento de uma relação dia- Freud, é localização. Mas a dinâmica contraditória sobre a qual
lética fazendo referência a uma lógica da contradição --; se- Lupasco insisteé, sem dúvida. essencial,tomando arcaico o de-
gundo Hegel, é a singularidade daquilo que se organiza no devir. bate tradicional em termos da lógica não contraditória, como no
caso da relação sujeito/objeto. Para ressaltar esta dinâmica con-
traditória, tomarei como exemplo a novela Le chl#-d'oeuoreínconnu
'lmplication-transduction". Préfe/zfatílzne, numéro double Deux/Trois. Institui
de RecherchesSociologiques et Anthropologiques (Irsa), Paras, 1994.Tradu- (.A obra-primízdesço?z;zec/da),
de Balzac, na qual um pintor passa a
ção: Paulo Schneider.
212
vida pintando um quadro que representa uma mulher nua, e
214 REN É LOURAU lmPUCAÇÃ0-TRANSOUÇÃ0 215
percebe, no fim. que de alguma forma sabotou sua própria obra. Flaubert e de seu editor. A deslocalização da cena erótica pro-
Com efeito, no esforçopara terminar o quadro, acumulando ca- duz no espírito do magistrado um efeito similar ao que produ-
mada sobre camada, retoque sobre retoque, produziu um magma ziria a sobrelocalização
das operaçõeseróticaspor jade, em La
sublime de cores do qual emerge apenas um magnífico pé da phitosophiedons le bottdoire Les instituteurs immoraux, por exem-
mulher, insuficientemente "trabalhado". O verdadeiro objeto da plo. Fjaubert inventa o cinema, com o refinamento que talvez
busca era a beleza ou a luz, ou a luz da beleza, como global. falte aos famosos tnzoe//ílzgs
nas ruas de Tóquio, sugerindo o coi-
O corpo da bela intrigantes foi, pouco a pouco, deslocalizado to dos amantes, em mitos;zíma mofa a/}zozzr.E necessário compre-
(exceto um pé) e toda a referência anatómica, pouco a pouco, se ender. neste caso, que a fuga de referênciasvai mais longe e é
fundiu no global de um novo arranjo do espectrodas cores, de mais bem trabalhada na seqüência de Flaubert que na de Alain
ínfimas nuanças transdutivas. O pintor realizou o inverso do que Resnais. A dinâmica contraditória entre o local e o global é mais
julgava querer fazer, e este percurso inconscienteem direção à sensível, talvez, com o objeto estético do que com o objeto técni-
homogeneização potencializou o corpo feminino. Diga-se de pas- co. As pesquisasem tomo do objetosurrealista,herdeiras das
sagem que ele inventa as futuras técnicas do impressionismo, pesquisas de Duchamp sobre o objeto dadaísta ready made,ofe-
quiçá da arte abstrata. A crise da representação é sempre perda recem evidências quanto ao que Breton chamou "uma crise fun-
de referências,fracasso do simbolismo, o qual nunca é um con- damental do objeto" em geral. Como enfatiza Simondon, as re-
junto de referências estáveis, nunca é óbvio. Freud o demons- ferências do objeto são suas funcionalidades, nas quais o homem,
trou a propósito do simbolismo do Pai em sua última obra, A4ofsés refém de uma visão escravagista e cáustica, se aliena. A relação
e o monoteíbnzo,que é uma espécie de réplica da novela de Balzac. extremamentecriativa do homem com a natureza física, teste-
Da mesma maneira, outra novela de Balzac, l,a peru de c/zagrf/z (Á munhada pela tecnologia antiga ou moderna, manifesta-seno
pelede onagro)-- que Freud lê, ou relê, nas últimas semanas de vazio (é o caso de afirma-lol) nesta perfeição do objeto surrealista
vida, momento em que o Mofsésé finalmente publicado --, signi- que é l,e pa/aís ídéa/(O pa/ácfofará/) do carteiro Cheval. Breton
fica a perda de referênciaspelo exercício da or\ipotênciae pro- nos lembra "que eje não previu um ângulo habitável a não ser
cessode deslocalizaçãodo proprietário do famoso talismã. Seus para a carroça que Ihe servira para transportar seus materiais
desejos provocaram o encolhimento contínuo da pele; a morte o Este minúsculo abrigo na massa homogênea, inabitável, do Pa/afs
espera na manifestação de seu último desejo. Outro exemplo, ídéa/,é como o pé intacto em l.e che#-d'oeuore í?zconrzzz:
o traço, o
mais sutil que o de Balzac, de perda de referências instaurando umbigo, o omp;miascomo última referência, provando ter havido
uma crise da representação literária é aquele, célebre, do passeio transdução do local ao global, operação de deslocalização ope-
de caleçade Madame Bovary, em companhia do amante. Nada ração técnica com objetivo estético e "surrealista". O pequeno
é dito, nem a mais ínfima alusão é feita ao que se passa entre os loca] para a carroça do Pa/alsídéa/é o signo de que um homem
dois amantes encerrados no veículo de cortinas baixadas, cor- atravessou a fronteira entre um' campo de coerência instituído,
rendo absurdamente pelas ruas de Ruão, segundo a fantasia do 'racional", e outro campo de .coerência no qual dedução e
cocheiro. Porém foi esta cena, cujo poderoso erotismo não esca- indução cedem lugar à transdução aureolar, não planificada (mas
pou ao procurador Pinard, que quase levou à condenaçãode fortementesonhada), de um monte de pedras e outros peque-
nos objetos neste Pa/aís ídéa/, outra obra-prima desconhecida.
Referênciaao filme l,a Be/leNofseuse,de Jacques Rivette(1991), livremente O outro campo de coerência não é assim tão. . . referenciável
inspirado na novela de Balzac(N. do T.). ao modo da lógica antagonistade Lupasco, ou da teoria da
21 6 REN É LOURAS IMPUCAÇÃ0-TRANSOUÇÃ0 217
individuação de Simondon. Menos ainda ao modo do sistema Mesmo sem fazer referências apressadas aos paradigmas
lupasquiano conforme exposto por Beigbeder. E uma espécie de orientalistas, cuja tradução para o Ocidente é muito problemáti-
movimento perpétuo, fora do campo de coerência habitual dos ca, hipotetizamos ser a implicação incompreensível no C de C
"RET" estigmatizados por Ravatin (Racionalistas Estúpidos e herdado; na melhor das hipóteses --ou na pior? --, isso dá lugar a
Tacanhosl).Ele se apóia em noçõesda matemáticae da física. mal-entendidos ou a pálidas recuperações neopositivistas (a "so-
Não tem pretensõesao "suprarracionalismo"de Bachelard,o ciologia da sociologia", velha serpente do mar rebatizada de
qual, malgrado toda a sua criatividade, acreditava permanecer "socioanálise" por Bourdieu). Consoante sugeri no início desta
(um pouco como Devereux em etnopsicanálise) no campo de variação, a implicação é integrada, por outros, como instrumen-
coerênciaherdado. Os conceitosproduzidos, com grande in- to de produção de conhecimento, revestimentodo "RET", sem
ventividade, por Ravatin são demasiado numerosos e eferves- colocarem questãonossas condiçõesde sobrevivência,quer di-
centespara serem sistematizados.O de Obs (diferentedo obser- zer. a instituição científica enquanto realidade social que o ob-
vador, na física), por si só, é uma fonte inesgotável: o Obs "lan- servador não "lança" (segundo a fórmula de Ravatin), mas her-
ça" um C de C (campo de coerência) e se coloca no interior deste da cegamente, privando-se assim da posição de Obs, que é a do
C de C. Tal concepção da implicação no ato de conhecer engloba outro C de C --o do enunciado da implicação como postura nova,
a problemática da implicação do pesquisador. A coloração não obscurantista, do pesquisador.
nominalista, ou mesmo idealista, ao modo de Berkeley, não nos
deve deter: na linha de Dewey, Ravatin não é propenso a conside- Segunda variação
rar a epistemologiacomo uma disciplina à parte. Bastantepróxi-
'Há questões que não demandam respostas. À primei-
mo, nesse sentido, do pragmatismo não desfigurado --o de Peirce
ra vista parecem inocentes, mas quando são pronuncia
e de Dewey --, parece pensar que a reflexão epistemológica é tão das de uma certa maneira, ligeiramente escandidas, com
simplesmente um componente do ato de pesquisa, e não uma mina um ritmo sobre cuja natureza não podemos nos enganar,
produz-se um fenómeno cativante que nos enamoracomo
de ouro para reflexõesexteriores, posteriores ou póstumas. A no- se fosse um jogo. Elas fazem nascer um duplo. As pala-
ção de campo de coerência esvazia a questão epistemológica, en- vras tomam-se carregadas de um outro sentido ou, mais
precisamente, deixam transparecer um outro valor, indo
globando-a, conforme acontece com a noção de sifzzízçãb na lógica pendente delas, inexprimível diretamente por meio des-
de Dewey. Porém o ato de expor. no C de C tradicional, uma se quebra-cabeças que é a linguagem. O questionador,
pesquisa efetuada em outro C de C coloca problemas. Niels Bohr então, deixa transparecer um outro questionador que, por
ser invisível, toma-se o mais real; finalmente, apenas os
defrontou-se com eles a propósito do novo paradigma -- comple- duplos contam.
mentarista-- da física. Afirmava que a coisa era possível. Cas- -- PAUL CouN. [/s jezzl sauoages. Paras; Ga]]imard,
1950
toriadis se vê obrigado a expor a dimensão poiética na velha ]ó-
gica conjuntista-identitária.É verdade que escrever dentro de
e sobre um outro C de C institui um verdadeiro problema de es- Por que "campo de coerência"? Por que não sistema de refe-
critura. . . transdutival Como atualizar tudo o que a instituição rência? Ou paradigma? Ou, ainda, "outra lógica" etc.? A noção
nos obriga a potencializar para sobreviver sem muita turbulên- de campo, bem como suas transposições da física para as ciên-
cias humanas, é relativamente familiar (Kurt Lewin, Pierre
cia, como potencializar sem pejo a realidade do ato de pesquisa?
Bourdieu. . .). Na socioanáhse, a pertinência da distinção entre
+ No original, RBB" (Rationalistes, Dêleset Bonés) (N. do T.). campode í?zteroe?zçãoe cízmpode a zálisefoi testada inúmeras ve-
218 REN É LOURAU IUPUCAÇÃ0-TRANSOUÇÃ0 219
zes: permanece essencial, embora muito trabalho aguarde a empática nem as representações que pouco a pouco fazemos da
socioanálise em se tratando de abordar as interferências entre situação, levando-a a entrar no "molde" de nossos conceitos,
os dois campos ("interferência", assim como "campo", é um des- são tão operatórias quanto o humilde material colhido na nego-
ses conceitos metafóricos tomados de empréstimo). O campo ciação permanente, e com freqüência muito terra-a-terra, entre
de intervençãocompreende todo o espaço-tempoacessível aos interventores e clientes (incluindo as negociações entre os mem-
interventoresem função da encomendainicial e das modifica- bros do sfzlf-interventor e entre sfí#-cliente e grupo-cliente, sem
ções em extensão eventualmente produzidas pela análise da en- falar das caixas-pretas dos stzl8setc.). O que se diz, o que se faz
comenda e das demandas no decorrer da intervenção. Compre- na "cozinha" da intervenção não é redutível a um diálogo entre
ende implicitamente,portanto, toda a população direta ou parceiros nem à aplicação de uma teoria social a uma realidade
indiretamente concemida pela encomenda. As fronteiras do es- microssocial. Os conceitos de encomenda, demanda, implicação,
paço-tempo e da população são metaestáveis. As referências do dispositivo, autogestão, assembléia-geral, analisador, desarran-
campo são apreendidas na dinâmica que elas instauram. Nós jo, restituição, traversalidade e transversalidade etc. funcionam,
estamos no local, e este local -- determinado pelas referências -- em um campo de análise, como referênciascintilantes. Trata-se
está submetido à indeterminação da situação, do dispositivo que daquilo que se chama, em matemática, cálculo em diagonal "ou
se tenta instaurar, da análise coletiva mais ou menos ampliada «per ge/osííz»,pela persiana, pois o desenho adorado se asseme-
das implicações de cada um (dos próprios interventores, antes lha a uma janela veneziana" (Jean-Michel Kantor. l,e Mlorzde,30
de tudo). A análise do dispositivo material à medida que é de junho de 1993,a propósitoda resoluçãodo problemade
construído tem alguma coisa a ver com o aparecimentode um Fermat, sob o título La reinedes mat/zématíques).
Ravatin formali-
novo campo de coerência. Sabe-se que este é um "tempo crítico' za este dispositivo sob o nome de stoue?z(cortina veneziana).
(Guinou) provisório, mas que pode deixar traços. O dispositivo Citemo-lo:
é um conjunto de referências para os socioanalistas e se toma,
de maneira "aureolar" (e não de forma puramente "racional", 0 0bs lança o C de C e se põe dentro dele; tudo isso vai
como na análise organizacional),nova referência para os clien- ainda mais longe: o Obs elabora o mundo -- ponto de vista
tes. O acesso à situação de pesquisa-ação se efetua a partir da freqüentemente evocado no pensamento oriental -, mas, ao
análise do que Dewey denomina implicação material (indo/- mesmo tempo em que o elabora, também se põe dentro dele e
geme?zt) . o observa. E neste segundo estágio que dizemos que o Obs só
O campo de análiseé o sistema de referênciateórico, na me- tem acesso ao eco do C de C; a observação necessária cria um
dida em que este se toma operatório em uma situação de pes- ato que, coerentemente,põe em evidência uma representação.
quisa-ação antes de tudo, uma situação social. Nesta situação, Este ato se chama sfooelz.A representação é o eco possível do
o distanciamentonão é uma postura ideal apoiada em técnicas C de C que o sfouelzpâs em cena. E possível que neste estágio
lentas de consolidação e verificação de dados, residindo, ao con- encontremos incoerência, como se o sfouelznão estivesse per-
trário, na análise das implicações que se atualizam coletivamen- feitamente regulado.
te. Boa parte do sistema de referência ou quadro teórico é po-
tencializada, pois todo praticante de intervenção - não importa Em uma nota de pé de página, Ravatin especifica ser o sfoue?z
qual seja seu paradigma -- sabe que nem as técnicasmais eho- constituído a partir da cortina veneziana. "A imagem de uma
metodológicas de observação nem a atitude de escuta mais cortina veneziana permite, ou não, descrever um exterior. Mas
220 RE N É LOURAU lnPUCAÇÁ0-TRANSOUÇÁ0 221
certos ângulos de abertura fazem pensar em outros reais." É Não é impossível que as revoluções científicas conducentes a
necessário lembrar que persianas deste tipo de cortina são mó- mudanças de paradigma (Kuhn) tenham algo a ver com a noção
veis e que os ângulos de abertura podem ser modificados, seja de campo de coerência.Mas vale especificarque, nestecaso,
com as mãos seja por cordões, variando da abertura completa geralmente permanecemos nos debates entre escolas, no inte-
(série de tiras horizontais de luz) ao fechamento completo. rior da lógica não contraditória, mesmo se aqui ou acolá des-
Pode-se hipotetizar que, na situação de intervenção, aquilo pontam deslizamentos em direção à lógica dialética, como mos-
que se passa concretamente entre interventores e clientes é o traram Bachelarde Lupasco. Ê preciso enfatizar,todavia, que
que abre, fecha, modifica o ângulo de abertura das lâminas da Ravatin, mais do que outros, constrói conceitospara dar conta
cortina "campo de análise". Ou, recorrendo ao pragmatismo de de tudo o que escapa, de perto ou de longe, à lógica clássica;
Dewe» diremos que as implicações simbólicas ou formais (de que ele não procura um novo paradigma ou um outro sistema
um campo de análise) são secundárias em relação às implica- de referência, mas um outro relato do que se passa quando os
ções materiais ou existenciais. A fim de diferenciar estes dois paradigmas instituídos pretendem pâr ordem no caos. No fun-
momentos do conceito de implicação e antecipando-se à metá- do, Ravatin observa as teorias do C de C habitual, em vias de se
fora da janela veneziana, no decurso da vedação de Inlgíqlle: f/zéoríe fazer e se desfazer,mais do que uma "outra realidade" (Watz-
de /'enquêfe Dewey havia designado o segundo tipo por í/zaoZ- lawick) ou uma "dimensão escondida" (Hall). A idéia segundo
oemenf,reservandoao primeiro o termo /mp/ícatíon
(cf. René a qual não existe verdade demonstrável a não ser no local não é
Lourau. LesArtes manqzlés
de ia 7'echerc/ze,
cap. 2. Paras:PUF, 1994). recusada: ela é superada na dialética do local e do global,
A noção de "coerência", acoplada à de "campo", começa, tal- dialética concreta por suas operações observáveis de localiza-
vez, a ser clarificada por uma luz sfooen1"0 que se mantém reci- ção, deslocalização etc.; por levar em conta as referências, cuja
procamente junto" eis a definição que o Littré oferece de cam- fixação metaestável e cuja fuga restituem ao simbolismo exis-
po, "termo físico". Imediatamente vem à mente que estamos às tência muito mais real, embora (ou porque) sempre ameaçada.
voltas com uma noção de medida. "As moléculas do ferro são A "falibilidade do simbolismo", na qual insistia Whitehead,
muito mais coerentesque as do chumbo" - enfatiza o Littré. Ve- adquire aqui toda a sua amplitude. Contrariamente às crenças
jamos as coisas mais de perto. A frase de Rousseau em l.a ?zozzoe/le difundidas nas ciências sociais e na psicanálise, os símbolos não
Hé/bibe(4 pzoz;a
He/oíba),também citada pelo Littré, é de acesso são dados, prontos para serem apropriados ou reapropriados.
mais fácil: "Nossas almas são tocadas por todos os pontos e sen- Eles são instaurados no que Simondon chama individuação por
timos por toda a parte a mesma coerência". Um princípio de au- transdução, e não por dedução ou indução. Há "perda de conhe-
toridade subjetiva (no caso de Rousseau) ou coletiva (no caso do cimento" (Lupasco) no ato de conhecimento,porque referên-
ferro e do chumbo) assegura que um encadeamento (concatena- cias fogem para dar lugar a outras, porque toda atualizaçãosu-
ção) é coerente graças a uma ligação, um elo, um cimento, pro- põe, de forma antagonista,uma potencialização,quando não
duzindo um efeitode campo. Naturalmente,é menosem fun- uma virtualização. O mundo é um rébusnão só de palavras como
ção dos usos da palavra campo nas ciências físico-matemáticas igualmente dejormas. Ravatin, que propõe esta noção, acrescen-
que em função de seus usos nas ciências humanas e, mais parti- ta à série dos objetos (técnicos e estéticos, na teoria de Simondon)
cularmente, em análise institucional, que tentamos aqui nos apro- a categoria dos objetos/e/listas(do pássaro mítico Fênix). En-
ximar da idéia de coerência e de campo de coerência no contex- quanto o objeto técnico tem funcionalidades localizadas e o ob-
to de uma teoria da implicação. jeto estético é percebido através da ausência de funcionalida-
222 RE N É LOURAU IMPl-iCAÇÃ0-TRANSOUÇÃ0 223
des, o objeto tenista teria suas funcionalidadesparcial ou total- Les trofs mafíêres. Paria: UGE, lO/18, 1960.
mente deslocalizadas. E o caso do homem pré-histórico que, L'érzerXfe ef la mafíàre pIDe/lte. Paris: Julliard, 1962.
como vimos (cf. Primeira variação), surgiu numa época recente L'unloers psychíque. Paria: Denoê1, 1979
com as localizações parciais que permitiram a constituição de
B Ravatin, Jacques. T/zéorle des charrips de cohérelTce. Nomes: Lacour Editeur.
uma nova ciência, também ela parcial, das origens da humani- 1992
dade. Talvez o elétron --não localizável, ou localizável na con-
L'émergence de /'ene/ Oli I'ímlriergencede rêperes. Quatro volumes dati-
dição da perda de conhecimento de seu movimento -- seja um lografados de 1985 a 1991(sob o pseudónimo de Vladimir Rosgnilk).
outro exemplo. Poderíamos igualmente citar o objeto de amor,
cuja imensa dificuldade de localização foi ressaltada por Lacan B Simondon, GiJbert. Di{ maded'exísfencedesoyefs tec;zlz;quem.
Paria: Aubier
no comentário acerca do Banqz/ete de Platão. Para Ravatin, o Montaigne, 1958
L'índfufduef /agerzêsf'p/zysíco-bfologfque.
Paras:PUF, 1964
amor faz parte do outro C de C. E por que não o objetode L'flzdíoídua/fzaffon psychíqlíe ef co/lecffue.Paras: Aubier, 1989.
pesquisa?
Bibliografia
PS.: Estes textossão o resultado de uma experiência de varia-
ção na ue/oc/dado da escritura. Permaneço longe da velocidade L'arzalyse flzstftutfonlze//e.Paria: Minuit, 1970.
máxima experimentada na escrita automática, mais próximo da Le gaí sauoír des socfologues. Pauis: Plon, 1976.
L'Étaf í/zconscíetzf.Paria: Minuit, 1978.
velocidade mais lenta de certas passagens dos C/za//zps magnétí- Lejourna/ de recherclze.
Paria: Mérid tens-Klincksieck, 1988
ques, de Breton e Soupault (1919). ,Acres nzanques de ia recherche. Paras: PUF, 1994.
Por outro lado, o intertextode base indicadopode ser com-
pletado, por exemplo, com Henri Lefebvre (l.OXlquelor/7ze/Je,iogí-
q e día/ectfque.Pauis: Anthropos, 1969) ou Gilles Deleuze e Félix
Guattari(À4í/Je plafeaux. Paria: Minuit, 1980). Estas duas obras
abordam o conceito de transdução em uma perspectiva pouco
afastada da de Simondon; logo, nitidamente não psicologista,
diferentemente do uso feito por Piaget em suas pesquisas sobre
os "estádios" da inteligência infantil.
Intertexto de base
Beigbedeç Marc. Corzfradíctfo z et }zouueJ ente zdemelzf. Paras: Bordas, 1972
Dewey, John. l.ogiqíle;Ja fhéoriede I'erzquête.Nova York, 1938, Paras: PUF.
1993
» Lupasco, Stéphane. l,e duallsme alztagonfsfe et/ês ex gentes /zlsforíques de
r'esprít. Paria: Vrin, 1935.
Essas d'une noz/pelletbéaríe de la conlzaisance. Pauis: VHn, 1935.
O CAMPO SOC10ANALÍTiC0 225
função da unidade do campo de intervenção -- organizações lai-
cas, ligadas de perto ou de longe à Igreja romana, contando com
a presença de membros do clero, sobretudo no caso das três pri-
meiras.
Desclerificação
O CAMPO SOCIOANALÍTICO*
Do início dos anos 1970-- momento de redação destas mono-
grafias -- até meados dos anos 1990,a situação da Igreja católica
mudou. Sendo assim, resolvemos não editar os capítulos que,
na primeira edição, tratavam direta ou indiretamente da crise
pela qual passava esta instituição multinacional.* A época, ela
lutava contra o crescente movimento esquerdista, também, como
veremos, anterior a 1968. Hoje, a luta seria contra as correntes
e no exterior, o que a AI entende por "intervenção" é pouco visí- tradicionalistas, quando não integristas. Um dado essencial, en-
vel para estudantes, pesquisadoms, praticantes, consultores e "in- tretanto, está sempre presentee continua sendo importante: o
terventores" de todos os tipos. fenómeno da desaáefação generalizada que se seguiu aos débeis
efeitosdo Concílio Vaticano ll (1962-1965)e, mais particularmen-
te, o processo de desc/er@cação - ambos intensamente vividos no
decorrer de nossas intervenções junto aos estudantes, professo-
ção, intervenção. A.justo título, o quarto "i" poderia tomar em- res, seminaristas e animadores católicos.
prestados a Alexandre Dumas a espada, o grande chapéu de plu- Em 1967, ano das três primeiras intervenções, vivíamos o ama-
mas e o ardor imaginativo gascão de d'Artagnan. Empalidecendo nhã do concílio, encerrado em dezembro de 1965. O aggiornamerzfo
diante da bagunça do bando dos quatro, os outros três "i", tal- desejado pelo papa Jogo XXlll foi tão bem recebido pelos laicos,
vez por um efeito de contraste,se revestem do ar terno das no- que nada parecia capaz de moderar a desafetaçãoe a deserção
ções um pouco abstrusas demais.
da juventude católica em relação ao engajamento sacerdotal. Pa-
As quatro monografias aqui apresentadas* foram reunidas em radoxalmente, ao invés de calamidade social, a desclerificação
poderia tomar-se uma oportunidade histórica para o desenvol-
vimento do apostolado dos laicos, almejado desde os papas Leão
X[[[ e Pio X] e reafirmado pe]o Vaticano ]]. De forma mais geral,
em vistas de uma democratização da instituição eclesiástica por
laicização, o negativo da deserção (fechamento dos seminários)
poderia, dialeticamente, e para além da questão do casamento
René Lourau se refere aos capítulos 1, 11e 111e XI de Les allalyseurs deI'í&líse
(N. do T.).
224
226 RENÉ LOURAU O CAMPO SOC10ANAI.éTiCO 227
dos padres, transformar-se em positivo, desde que os clérigos e, dos bispos de cada país pode gerir, conforme o princípio de
principalmente, a hierarquia dos bispos aceitassem ceder poder subsidiariedade, todos os assuntos de seu território, o centro
aos laicos. Nesta mutação dramática, a própria Igreja via cintilar (romano) não intervindo mais que de maneira supletiva (en-
a possibilidade de não precisar abandonar suas populações mais contramos o mesmo princípio na abertura do tratado de Maas-
dinâmicas na reserva indígena do "social", castrado do político. tricht, que institui a União Européia). Foi precisamenteo que a
Se hoje as contradições tendem a se tomar eufemísticas, neu- conferência dos bispos franceses não quis fazer em relação ao
tralizadas em um jargão so@e "comunicacional", muitos dos ca- caso Gaillot, deixando à alta burocracia do Vaticano a tarefa de
tólicos que foram nossos clientesem 1967-1969
ainda sabiam sancionar o bispo de Evreux.
exprimir em termos políticos as contradições nas quais se deba- Se o princípio de subsidiariedade como forma de delegação
tiam naquele período-dobradiça situado entre 1965(término do de poder "aos grupamentos de ordem inferior" funciona tão pou-
Vaticano 11)e maio de 1968. Daí o encontro possível entre os co, ou tão mal, na administração clerical em 1995como em 1967,
analisadores da Igreja e a socioanálise. por que se espantar com o fato de que tal procedimento, apenas
moderadamente democrático, não funcione melhor nas relações
Apostolado dos laicos entre o clero e a massa dos laicos? As diversas situações dramá-
ticas descritas nas quatro monografias estão totalmente ímplfcadas
Quer a denominemos responsabilidadecoletiva, socializa- no problema político global da crise da instituição romana. Esta
ção dos problemas do grupo, participação aviva em um projeto está dilacerada entre o projeto, mais oportunista que sincero, do
comum ou mesmo autogestão, a idéia que resulta das quatro apostolado dos laicos formulado por Leão Xlll, o "papa dos ope-
monografias é justamente a de uma atualização (aggiornamenfo) rários" (Rerum Nouarum, 1891), e a tentação de restauração auto-
democrática na Igreja romana; a idéia, portanto, de uma trans- crática, persistente desde o Sy//abrasde 1864e o Concílio Vaticano
formação do papel da hierarquia, ao mesmo tempo feudal e ge- 1,de 1870,que proclama a infalibilidade papal em certas maté-
rencial, na divisão do trabalho pastoral, litúrgico e até teológico. rias (em 1995,a congregação vaticana da doutrina para a propa'
Enquanto no seio do clero, particularmente o de alta hierar- cação da fé, ex-Santo-Ofício,proclama que a interdição a que
quia, o Vaticano ll e seus prolongamentos no direito eclesiástico mulheres se tomem sacerdotisas é uma decisão pertencente ao
deixavam aparecer timidamente a possibilidade de aplicar à ins- domínio da infalibilidade. . .).
tituição romana o prínc@íodesubsfdíaríedade afirmado por Pio XI,
em 1931,na encíclica Quad7'agesímo Á?ztzo,o papa Paulo VI, em- Demanda afetiva
bora querendo-se herdeiro de João XXJll (a quem sucedeu em
pleno concílio), não deixava de relembrar que "a igreja não é uma Por seu projeto teórico e político de referência democrática e
democracia". Esta fórmula arrogante foi retomada no outono de libertária (campo de análise) e por seu dispositivo de análise co-
1995,na conferência nacional dos bispos, em Lurdes, pelo arce- letiva em situação(campo de intervenção), a socioanálise micros-
bispo de Bordéus, para justificar a suspensão de um bispo con- social e autogestionária tinha alguma chíztzce de corresponder a
testador,Monsenhor Gaillot. Ora, o Vaticano ll tinha proclama- certas demandas de nossas populações clientes. Tais demandas
do a importância do apostolado dos laicos e da co/agia/idade eram freqüentemente confusas e contraditórias, estendendo-se
decisão coletiva ou, pelo menos, participação coletiva na prepa- da busca de um clima grupista, afetivista, não muito distante de
ração das decisões. Oficialmente, a partir de 1965, a conferência uma atmosfera de devoção convivial um pouco desleixada, ao
228 R E N É LOURAU O CAMPO SOC10ANAt.éTiCO 229
questionamento radical da instituição, passando por vários ní- anualmente trabalho). Um ancestral geralmente esquecido de toda
veis de mal-estar e crítica. Tratando-se com freqüência de homens a corrente é o filósofo americano John Dewe)ç com sua teoria da
e mulheres jovens, a demanda afetiva, emocional, não deve ser dupla implicação: material ou existencial, de um lado; lógica e for-
considerada simples produto da maternagem eclesiástica ou da mal, de outro. Pesquisas originais em psicologia infantil, nas quais
influência de capelães que cultivam as figuras do Pai ou do Gran- Piaget, não sem desconfiança, esteve interessado, confirmam a tese
de-Irmão não diretivos. Nota-se o crescente sucesso das seitas e
de uma individuação transdutiva, acumulando as formas mais
de suas OPAS nos desertos do amor, incluindo-se aí o movimen-
afetivas, menos racionais, da primeira infância, o que se opõe à
to dito carismático, incorporado pela instituição. Estaria a AI visão canónica de uma evolução por eliminação de estágios su-
equipada, em 1967-1969, e estará mais equipada, hoje, para res- cessivos. A construção de nosso pensamento não é mais sinóni-
tituir à emoção e à afetividade (como realidades físicas, biológi- mo de demolição de tudo que não é racional.Curiosamente, no
cas, psíquicas, sociais, escapando à razão classificatória das ciên- fim da vida, o etnólogoe filósofo Lucien Lévy-Bruhl chegou às
cias do homem) seu lugar na palavra social em geral e, mais par- mesmas conclusões, reconhecendo a persistência em nós, ditos
ticularmente, na situação socioanalítica? Pode-se duvidar. Em "civilizados", de um pensamento "primitivo" ou "pré-lógico"
nossa corrente de pesquisa, as tentativasde experimentar e de O estatuto ontológico da afetividade é afirmado por teóricos
pensar as técnicas da bioenergia, do potencial humano, dos gru- tão distantes uns dos outros quanto Lupasco e Lacar. A lógica
pos de encontro, da expressão total etc., redundaram em que os hipotético-dedutiva, as operaçõespsicologicamentepouco cla-
e as que se fizeram os promotores de tais práticas (Françoise Ga- ras da dedução e da indução, são colocadas em seu devido lu-
varini, Philippe Grauer, Marc Guiraud, Georges Lapassade. Mi- gar --real, porém limitado --, conforme fora estabelecido por John
chel Lobrot. . .) se afastassemda AI. Este fenómeno de afasta- Dewey ao analisaro que se passa antesda apresentaçãodas hi-
mento, por vezes devido também a outras causas, é analisador pótesese depoisdas operaçõesde generalizaçãoou dedução: o
da dificuldade que a análise institucional experimenta em abra- pragmatismo original, de Peirce e de Dewey, consiste efetivamen-
çar, na totalidade, a relação que mantemos com a instituição. te em analisar as conseqüências existenciais e lógicas as impli-
Anualmente, a abordagem multirreferencial, defendida por Jac- cações - de nosso pensamento.
ques Ardoino, tende a superar tanto as rivalidades entre "capeli- O esquecimento teve tempo para fazer seu trabalho e, infeliz-
nhas" quanto a tentação megalomaníaca de um método sintético, mente, impede a retomada da análise do material fornecido pe-
açambarcador. Isto não invalida o desejo, muito forte em alguns las quatro monografias com vistas a restituir a nossos clientes de
de nós (nos quais me incluo), de construir uma nova lógica, me- 1967-1969a infinita riqueza de criatividade afetiva oferecida por
nos aristotélica,mais transdutiva, suscetível de rejeitar em me- suas palavras, seus silêncios e seus gestospúblicos ou íntimos.
nor grau o fundamento afetivo de nossas vidas. Esta lógicaestá Eu me arriscaremsomente, e com muitas precauções, no que con-
em elaboraçãoa partir dos trabalhos de Henri Lefebvre, que se cerne às relações no interior do sfa6 composto por Georges La-
inspiraram no virtual em matemática; dos ensaios de Deleuze e
passade e por mim mesmo.
Guattari, que utilizam o conceito de transcodificação em ligação
com o de transdução, do psicólogo Gilbert Simondon; dos estu- Retrovisor conceptual
dos de Stéphane Lupasco que, de certa forma, influenciou Ed-
gar Morin e, sobretudo,Marc Beigbeder;das tentativasde um Para a compreensão adequada da coletânea de monografias e
ex-alunode Simondon, o matemáticoJacques Ravatin (com quem dos comentários metodológicos subseqüentes, é preciso evocar
230 RENÉLOURAU O CAMPO SOC10ANALÍTIC0 231
o clima ideológico de sua produção. A natureza das referências da linguagem,paradigmáticoe sintagmática;a de Lévi-Strauss
e influências da época não surpreenderá mais o leitor do que sur- - sistema simbólico de parentesco; a de Sartre gênese ideal da
preendeu o autor ao observa-las no retrovisor. instituição a partir da série e do grupo; e, sobretudo, a de Henri
Os dados sociográficos apresentados, às vezes na forma de Lefebvre -- tanto no que tange à aplicação, na abordagem socio-
quadros, são testemunhosdiretos de minha implicação institu- analítica, da diabéticahegeliana dos três momentos do conceito
cional. De certo modo, as monografias desempenham papel de como no conteúdo do conceito de implicação.
tese complementar" em relação a minha tese de Estado em so- Muito presente nas intervenções em meio católico, a idéia de
ciologia, defendida em jur\ho de 1969,em Nanterre. Ademais, autogestão,junto com as de não-diretividade e análise coletiva,
um volume anexo à tese efetivamente comportava as duas pri- estava no centro de nossas preocupações no seminário de AI de
meiras -- Le priêre sons les étoites(A precesob as estrelas)e Le bordel Nanterre, como igualmenteestivera no GPI, em ligação com a
des .Hnances de la calotte (O bordel das Pnanças do clero) --, a hm de experiência de Raymond Fonvieille na escola de Gennevilliers.
ilustrar empiricamenteo trabalho teórico de l.'anaZyseinstífutío- Encontramos um de nossos principais reforços teóricos nas dis-
ne//e(.Aaná/íseilzstífuciona/,publicado parcialmente em 1970pela cussões e publicações do grupo Sacia/ísmeou Barbárie, animado,
Minuit). A partir de 1966,fui professor assistenteno departamen- nesse período que precedeu sua autodissolução, por Comeille
to de sociologiada futura Universidade de Paris X. A banca de Castoriadis. No mesmo momento, eu entrava para '4zzfogesffons,
minha defesa de tese foi composta por três sociólogos (Henri nova revista das ediçõesAnthropos.
Lefebvre, diretor de pesquisa, Alain Touraine e Jean Duvignaud) Da corrente de psicoterapia institucional de obediência psica-
e dois "pais" (Juliette Favez-Boutonier,psicanalistacom quem nalítica (Clínica de La Borde), tomei o conceito de transversalida-
trabalhei no doutorado de terceiro ciclo, e Georges Daumézon, de, elaborado por Guattari, bem como o de analisador, oriundo
psiquiatra, autor do artigo ?7rlncepsde nossa corrente, "A psico- das pesquisas biológicas de Pavlov. O título anterior do presente
terapia institucional francesa contemporânea", em 1952). \ivro -- Les analyseurs de I'église (Os anatisadores da igreja) -- sugere
Na segunda metade dos anos 1960,eu tinha freqüentes conta- que a indução a partir dos dados colhidosera mais ou menos
tos, na forma de debates e de trabalho, com os psicossociólogos, determinada por uma hipótese, ela própria determinada por um
sobretudo da ARl13dos quais nosso Grupo de Pedagogia Institu- certo olhar, uma certa posição em relação à crise dos movimen-
cional (GPI) sofria influência. Na mesma época, fiz uma forma- tos de ação católica. Ê o que sugere a tese de Dewey quanto à
ção no Cen tro de Socioanálise de Jacques e Made van Bockstaele, const-ruçãode hipóteses. Um olhar mais estritamente sociológi-
cujas contribuições são bastante visíveis em minhas monografias co teria privilegiado a hipótese da desc/er@caçãb. Uma posição
de intervenção. O termo socíoarzá/íse, que tomo de empréstimo, de crítica militante, fosse eu católico praticante, talvez se tivesse
já diz bastante sobre a atividade dos grzzposde í?ztei$erêFzcla,
cuja apoiado na temática da apostasía sf/etzclosa, cara a Georges Ber-
história ainda está por ser feita, e que concerne, no decorrer dos nanos, ou na da morteda crísfízndade,enunciada por Emmanuel
anos 1960, tanto ao campo da intervenção quanto ao da forma- Mounier. Então, por que os ana//dadores?
ção, e ainda ao da pesquisa microssociológica.
Na leitura das páginas que seguem, entre outras influências Analisadores e autogestão
se perceberá a de Lacan, de cujo seminário na Rua d'Ulm fui um
freqüentadorirregular -- tríade do imaginário, do real e do sim- Conforme assinalado pelos pesquisadores que se interessam
bólico; a de Roman Jakobson - modelo lingüístico dos dois eixos pela periodização dos movimentos sociais em nossa corrente,
232 RENALOURAU O CAmPO SOCiOANALÍTIC0 233
Jacques Guinou --,podemos distinguir sumariamente, no desen- teoria dos analisadores); no ano seguinte publico, na Coleção
volvimento da AI, um deslizamento do paradigma da autogestão lO/ 18, L'analy-seusLip (O ana/ísadorLfp), livro acerca da experiên-
(década de 1960)em direção ao do analisador (década de 1970) cia autogestionáriamais espetacularque a Fiança conheceuno
e ao da implicação (década de 1980). Quanto aos anos 1990,ouso meio industrial.
acreditar que o deslizamento se opera em direção ao problema,
Fica claro que o realcedado ao conceitode analisadorem
altamente implicacional, da institucionalização. É certo que nas 1972-- quando, após intervalo de cinco ou de três anos, relato
quatro monografias aqui apresentadas se trata da autogestão, mas
intervenções socioanalíticas em meio cristão --se deve à defasa-
ela continuará presente nos anos 1970,momento em que a CFDT,
gem temporal entre o trabalho de campo e a difusão editorial.
seguindo a correntepolítica do PSU de Michel Rocard, introduz
Se eu tivesse publicado as monografias alguns meses depois da
esta noção como ponto central de seu programa. Há igualmente última intervenção-- a de Marly, com Eugêne Enriquez --,é pos-
interferência, processo transdutivo (superação da razão classifi-
sível que meu livro tivesse recebidoo título L'autogestíorz
dons
catória presente na periodização) no decorrer do período dos /'Ég/íse (Á alzfogestão }za /grua). Depois de 1968, relatando inter-
analisadores, tão requisitados na década que assiste à transição
venções "selvagens" em locais de culto católicos, protestantes e
entre o pleno emprego e a institucionalização do desemprego. ortodoxos, Robert Davezies publica um livro chamado La rue
De fato, é a partir do fim dos anos 1960que o conceitode anali-
dons t'Église (A rua nn Igreja).
sador se impõe à AI, pondo em destaque a.unção provocadorade
aná/isecoletíoade indivíduos e pequenos grupos desviantes ou Contratransíerência institucional
marginais. A esquizolatria de Guattari faz parte de tal movimento
intelectual, orquestrado em ampla medida por Lapassade e ins-
Outro conceito, o de implicação, está presente de maneira
trumenta[izado pe[a psico[ogia social (Serie Moscovici, por exem- difusa no trabalho realizado com os católicos. Mais tarde, diver-
plo), pela sociopsicanálise (Gérard Mendel) e mesmo pela(s)
sociologia(s) da(s) periferia(s). sas pesquisas permitiram que se evitasse a justaposição que efe-
tuo entre o conceito de implicação e o de contratransferência
E suficiente lembrar de modo bastante sucinto a contribuição
institucional (CTI). A tentativa de teorização da CTI pela equipe
dos pesquisadores de AI na virada dos anos 1960-70.Rema Hess
da clínica psiquiátrica da MlufzzeJ/e Gé?zénz/e de /'Éducaffo z Nafío-
defende uma tese e publica seu trabalho sobre l.es maoibfes./}ançízls ?laje, em La Verriêre (Yvelines), no início dos anos 1960, ficou
(Os nzaoÊtas./}arzceses),
em que a teoria dos analisadores é aplica-
aquém do esperado. Os psiquiatras e psicanalistas que produzi-
da pela primeira vez, com grande mestria, ao estudo de um ram o conceito de CTI não deram continuidade efetiva a esta
movimento político. Georges Lapassade produz l.'arzíz/ysezzr ef criação original.
Z'ana/fsfe (O arfa/isador e o a?zaZísta)e Jacques Guigou, l.es aFzíz/yseurs
Um elemento explicativo desse curioso aborto teórico remete
=ielajormation permanente (Os analisadores deformação permünertte).
à seguinte contradição:
De minha parte, além de publicar l,es anaZyseurs de /'ég/ise (Os 1. Por um lado, a introdução de uma noção da clínica freudiana
ana/fsadores da ]grda), intitula "Les analyseurs arrivent" (Che- - a contratransferência (CT) --, ela mesma bastante tardia e mui-
gam os analisadores. ZempsModerpzes,n' 317), em 1972, o relató-
to negligenciada, não se integrava no discurso fundador da cor-
rio coletivo do primeiro encontro internacional de análise institu-
rente de psicoterapia institucional o famoso texto de Daumézon,
cional; encaminho à revista Con/zex/ons,da Arip (n' 6, 1973),um acima mencionado. Texto bastante citado mas pouco lido, por
artigo chamado "Pour une théorie des analyseurs" (Por uma
sinal, no qual o companheiro de estrada de Balvet, Tosquelles,
234 RENÉ LOURAU O CAMPO SOC10ANALÍTiC0 235
Bonnafé etc. punha ênfase na abordagem sociológicado asilo e mantida pelos Habsburgos, membros esparsos de famílias bur-
na organização cotidiana das atividades de socialização median- guesas, frequentementejudeus, vinham deitar-se no divã de
te uma intervenção na rede de relações sociais do estabeleci- Freud para verbalizar a irredutível perda de suas referências, até
mento, vendo com muita desconfiança a possibilidade de utili- que a tardia anexação forçada da Bósnia (1908) e o atentado de
zação da clínica psicanalíticadual com os psicóticos. Sendo as- Sarajevo (1914) fizessem soar o toque de finados de toda a cons-
sim, naquilo que Daumézon chamava de psicoterapiacoletiva, trução imaginária. Empreendimento cientemente judeu -- a crer
as ferramentas da transferência e da contratransferência de ma-
na correspondência entre Freud e seus primeiros discípulos --, a
neira alguma estavam em primeiro plano. psicanálise não podia, por outro lado, em seu esboço de análise
2. Alguns anos depois do aparecimentodo manifestode Dau- institucional da família, farejar o papel esmagador da Igreja ca-
mézon, quando a psicanálise lacaniana começa a influenciar os tólica na Austria. Somenteno fim de sua vida, com a chegada
psicólogos e psiquiatras da segunda geração da psicoterapia dos nazistas a Viena, Freud enfim analisou superestimando-a
institucional, constata-se que Lacan, segundo ele próprio con- --a importância da Igreja católica, nela vendo, com sua candura
fessa, não se interessa pela instituição seja esta concebida no política, uma proteção última contra a perseguição aos judeus.
sentido sociológico de modo de produção e reprodução das re- Não seria mediante a talk cure de sua clientela que o genial psi-
[ações sociais seja no sentido redutor e ]oca] de estabelecimento, canalista poderia escutar o rugir da transversalidade institucional
que Daumézon, infelizmente, impôs no título de seu mítico arti- católica na estruturação e desestruturação do núcleo familiar.
go. O conceito de instituição está ausente da teoria psicanalítica. Apesar de tudo, esta socioanálise fracassada da instituição fa-
Se a psicanálise experimenta, a justo título, a necessidade de miliar permanece uma contribuição preciosa por levar em conta
utiliza-lo, é indispensável que ela indique quais são, afinal, suas dimensões imaginárias e simbólicas que asseguram a reprodu-
referências sociológicas, jurídicas ou teológicas. Esta é a atitude ção desta forma social tão real e tão espantosamentedurável.
exigida por uma abordagem multirreferencial não obscurantis- Mas isto não nos deve levar a esquecer, nos termos da vigorosa
ta. Mas, em geral, isso não acontece.As incursõesde Freud e de fórmula do sociopsicanalistaGerard Mendel, que "a sociedade
alguns de seus sucessores à psicologia social das massas ou dos não é uma família" e que embora o freudismo tenha recolhido
grupos não questionam o paradigma da atomização individual. um material suscetívelde levar a compreendera instituição fa-
A descoberta freudiana remete ao papel da instituição familiar; miliar austríaca (e húngara, polonesa, eslovena, croata, tcheca
no entanto, esta descoberta foi imediatamente reduzida às in- etc. do mosaico imperial), não teve acesso, ipso.@cfo,ao global
terações entre o psiquismo dos indivíduos que compõem tal ins- do sistemainstitucionallegitimadopelo Estado e seu conceito
tituição, abandonando à beira do caminho a família como forma metafísico de soberania.
produzida por relações e produtora de relações. Na época, esta Por razões que seria preciso estudar, Lacan e os lacanianos se
forma social situada e datada estava implicada, se inscrevia, na desinteressam da questão central da instituição. Neste sentido,
destruidora mistura de feudalismo e capitalismo do império aus- devem-se considerar muito meritórios os esforços da equipe da
tro-húngaro, em vias de se autodissolver em um federalismo clínica de La Verriêre. Através da CTI, Chanoit, Gantheret, Ra-
puramente imaginário. Somente a aristocracia e a burguesia fabert, Sanquer,Sivadon e uma parte do pessoal médico e de
vienenses, embaladaspelo turbilhão da valsa, ainda faziam de enfermagem queriam fazer a tão esperada articulação entre a clí-
conta que acreditavam na perenidade do império de Cardos V nica dual de consultórioe a clínica social. Trata-sede um movi-
Nessa estrutura política altamente ficcional, autoritariamente mento de origem oposta àquele que, na América Latina, vê a
236 RE N É LOU RAU O CAMPO SOC10ANALÍTICO 237
medicina social tentar projetar o macrossocial político sobre o tomei emprestado à sociologia (sic) social experimental o con-
microssocial, o global sobre o local, analisando e, de passagem, ceito de dissonância cognitiva, a fim de apurar a noção de ana-
criando um mal-estar na instituição médica implicada no proje- lisados. Isto não significa que eu procure articular o campo de
to "sanitarista". Em La Verriêre, parte-se do local e do paradigma análisede Festingere o meu. Respeito muito o dele para imagi-
mais individual, psicológico,procurando abranger o conjunto das nar que poderia absorvê-lograças a uma engrenagemde alta
relaçõesque se constroem entre os doentes, com suas histórias precisão. A noção de articulação se refere a uma metafísica
de vida, e o estabelecimentohospitalar (e mesmo a sociedade mecanicista,ao passo que a abordagem transduüva, aqui efeti-
que institui este tipo de estabelecimento). Assim operando, faz- vamente em questão, privilegiada a metáfora da superposição
se uma bela tentativa de superação do psicologismo e de seu derivante das placas tectónicas, na fecunda teoria da deriva dos
derrisório imperialismo. A contratransferência concebida como continentesde Alfred Lothar Wegener,em 1915.Forçosamente
"resposta à transferênciado doente" tomava-se então uma res- há contatos, aproximações tangenciais, curvas tangentes a inú-
posta muito ampliada, socializada, a uma transferência igual- meras curvas: em todas as ciências do homem há empréstimos.
mente muito ampliada, colocada em uma totalidade ou, como Há interferência entre os campos, especialmente entre os que re-
diria Politzer (grande inspirador do movimento sanitarista lati- cortam suas fronteiras em um mesmo domínio da realidade, le-
no-americano), situada em seu drama social. Esta perspectiva, vando-se em conta que o próprio domínio está delimitado mais
desta vez em termos resolutamente políticos, será, na ltália, a do ou menos culturalmente ou naturalmente. A sociologia da edu-
movimento da psiquiatria democrática promovendo o fecha- cação, por exemplo, interfere em psicologia infantil, lingüística,
mento dos asilos e, na França, a de uma certa setorização, vi- história da família, filosofia da educação, tecnologia da comuni-
sando tambémao declíniodo asilo e a uma socioterapia(mais cação, economia familiar e nacional, geografia humana e física,
que a uma psicoterapia). ciências políticas etc. As interferências tomam a forma de abor-
dagens multirreferenciais, necessariamentemodestas; ou de em-
Campos de interferência préstimos feitos à caixa de ferramentasdos conceitose técnicas
do vizinho; ou ainda de confrontaçõesdos dados selecionados,
Em 1967, logo após a publicação da comunicação sobre a CTI dos dados excluídos e dos resultados da pesquisa. Se desejo com-
e momento no qual eu trabalhava em Nanterre com um de seus preender a série de "tiradas de batina" (abandono do sacerdó-
autores (François Gantheret), tentei aplicar a contratransferência cio) ocorrida com os párocos das sessões socioanalíticasde Tours
institucional não só em minhas experiências de formador (peda- e de Hendaye (monografias 1, 11e Tlt), a sociologia das religiões,
gogia institucional, autogestão pedagógica) como na interven- incluindo a estatística, será um bom modo de ver. Por outro lado,
ção socioanalítica. Para nossa corrente, em busca de si própria, a se me interrogo sobre o suicídio do monge teólogo da sessão de
questão se coloca em termos de articulação (noção oriunda do Hendaye, um psicanalista será mais útil que um politólogo ou
estruturalismo então reinante) entre campos teóricos. Falso pro- um socioanalista. E se me sinto obsedado pelo impacto emocio-
blema. Um pedreiro toma emprestado, a um carpinteiro, um nal do tema dos ocz/paFztes fnz;ísheísna intervenção de Marl» não
martelo para fazer uma armação: este gesto não significa que há é apenas por referência ao híc ef rzutzcde uma sessão dramática,
articulação" entre as duas técnicas, entre as duas práticas, na mas igualmente por referência à história, ao que conheço das fe-
divisão do trabalhode construção de uma casa. Existe somente ridas incuráveis inscritas na mentalidade francesa pelo episódio
- o que já é muito --um prometocomum. Em uma das monografias, da ocupação alemã e do regime de Vichy.
238 R E N É LOU RAU O CAmPO SOCiOANAI.ÍTICO 239
Com a distância temporal, a utilização da CTI nas monografias um poder". A contratransferência traz à plena luz uma fronteira
me parece bastante discutível. A própria contratransferência, a muito bem guardada do campo psicanalítico, constituída pela
partir de sua invenção (que podemos acompanhar seguindo as l própria instituição psicanalítica. A contratransferência e, alorfíorf,
pistas presentes na correspondência entre Freud e Ferenczi em a contratransferência institucional apenas fazem que fique mais
1910, logo após a anexação da Bósnia pelo império austríaco), é sensível, até chegar ao insuportável, a existência dessa fronteira
uma noção das mais problemáticas. As raras pesquisas teóricas rígida qual uma muralha da China que, na ausência do livre
acerca deste modo de auto-análise permanente do analista são jogo das interferências entre campos, produz um ponto cego no
pouco convincentes, como lembra Lacan em seu belo seminário próprio campo da cínica. No que tange à socioanálise,evoquei
sobre a transferência, apoiado no estudo do Balzqzzefe
de Platão. um fenómeno similar, ao qual voltarei, relativo ao problema do
Notando que a psicanálisequase nada tem a dizer sobreo amor descaso quanto à afetividade, à emoção.
e que há simetria entre analista e analisante quanto ao desejo, Lacan
].
declara: "É um efeito legítimo da transferência. Não é necessário Implicação
fazer intervir a contratransferência, como se se tratasse de algu-
ma coisa que seria a parte própria ou, ainda mais, a parte falha Desde a época de meu trabalho sobre as quatro intervenções
do analista". Mais adiante, opta pela noção de implicação: em meio católico, parece-me --como a Lacan que o conceito de
implicação, já presente naquele momento, deveria englobar o que
Entendo por contratransferência a implicação necessária do eu ainda atribuía à contratransferência em geral e à contratrans-
analista na situação de transferência e é precisamente isto que ferência institucional (CTI) em particular. Pois não é a implica-
faz com que devamos desconfiar deste termo impróprio. Tra- ção, cada vez mais claramente,o objeto de análisedas relações
ta-se na verdade, pura e simplesmente, das conseqüências ne- que temos com a fnstffuíçãoe, antes de tudo, com nossa institui-
cessárias do próprio fenómeno da transferência, caso correta- ção de pertencimento mais próxima, aquela que possibilita nos-
mente analisado. sa inserção nas situações sociais de intervenção, de formação e
de pesquisa? A partir deste ponto de apoio ou de dominação, a
Em 1960-1961já fora operada a superação do conceito de análise apreende outras relações: com nosso campode anã/ísee
contratransferência pelo de implicação. Lacan se pergunta sobre nosso cízmpode ílzterz;ençãó;com a etzcome7zdae as demandasde tal
"nossa participação na transferência" e sobre a natureza ontoló- ou qual população; com nosso paradigma,pouco ou muito afir-
gica de tal participação ou implicação: "A necessidadeque te- mado; com os modos de difusão dos resultados, de restítzzíção do
mos de responder à transferência interessa a nosso ser ou se tra- ato de pesquisa.
ta simplesmente de definir uma conduta a manter [. . .]?". "Isto Conquantoa teoriada implicaçãotenha sido cada vez mais
de que se trata em nossa implicação na transferência é da ordem trabalhada, nos últimos anos, em ligação com a da instituciona-
do que acabo de designar dizendo que interessa a nosso ser.' lização, por pesquisadores franceses ou latino-americanos, não
No seminário acerca da direção da cura, com meias palavras, creio que represente uma aquisição definitiva. O campo socioa-
Lacan sugeria estar o peso da instituição psicanalítica fora do nalítico, percorrido por interferências com o global de uma socie-
campo da análise: "Tentamos mostrar em que medida a impo- dade instável, é, ele próprio, metaestávellA teoria da implica-
tência para sustentar autenticamente uma praxis se rebate, como ção conserva aspectos negativos, agressivos, z;oyeuristas (ztzexe na
acontecena história dos homens comuns, sobre o exercício de merda!) ou exibicionistas (accounts htimos, ou muito íntimos, na
240 REN É LOU RAU O CAmPO SOCiOANAI.ÍTiCO 241
técnicadiarística, trate-sedo diário de campo, do diário de pes- dres (eu tenho um lado jansenista e Georges adora coman-
quisa ou do diário institucional). Existe também um risco de dará)
delação. Enunciar não é denunciar. salvo quando nos desimplica- Em 1967,Georges tinha 43 anos e eu, 34. Nossas vidas afetivas
mos, quando nos abstraímas da situação, assumindo uma pos- nada tinham de brilhante. A dimensão "máquina celibatária" do
tura objetivista clássica. Os limites da enunciação coleüva são militante não explica tudo. Atingindo quarenta anos, Georges ha-
conhecidos. O segredo existe como condição --imaginária ou real via tentado, em vão, sair da "quarentena" do celibato e, à espera
- de sobrevivência. E há igualmente o tácito, exaltadopor Fer- da improvável liberação do pós-68, vivia mal sua homossexuali-
nand Deligny,tão mais rico em informaçõesdo que a transpa- dade. Por minha vez, depois de várias tentativas tardias, de
rência, o falatório, a verbalização e outras reformulações desti- resto -- de encontrar uma mulher, eu era vítima consentida de
nadas a estágios de desempregados por longo tempo. A análise bloqueios psíquicos e físicos. O avesso de minha vida não era al-
da implicação nunca deixará de se chocar com a contradição en- go bonito de ver e eu não podia falar a esse respeito com ninguém
tre a produção coletivade um sujeito do enunciado e a existên- só muito mais tarde, após o fracasso do casamento, iniciei uma
cia singular, insubstituível, de sujeitos da enunciação -- pessoas, psicanálise. Na época, entraria facilmenteem sintonia com as li-
seres como você e eu, cativos de liberdade, obsedados pelo que nhas que Ferenczi escreveu a Freud em 5 de abril de 1910:
imaginam que sejam as condições incontomáveis de sua sobre-
vivência e/ou de seu gozo. Antes mesmo que você tivesse instaurado a exigência de
Esta contradição radical que a ideologia comunista não con- "reprimir a contratransferência", todos nós já o havíamos fei-
seguiu contornar explica em parte, sem dúvida, o funciona- to instintivamente, e esta repressão permanente deve ser paga
mento do sf(!f de intervenção (ou analítico) nas três primeiras por uma perturbação quando, depois de dez a doze horas de
intervenções aqui relatadas e concerne às individualidades dos trabalho, a gente se encontra, como eu, tão absolutamente so-
dois interventores.
litário e desprovido de objeto de amor. De fato, é à noite, so-
Quem éramos, então, Georges Lapassade e eu? Dois "soltei- bretudo, que me ressinto dolorosamente dessa solidão.
ros bearneses", tipo social e regional que Pierre Bourdieu des-
creveu em importante artigo. Estávamos, entretanto, um pouco Sandor Ferenczi tinha, então, a mesma idade que eu em 1967.
fora, ou em interferência,com o campo de Bourdieu, pois faze- Estas indicações bastante sucintas, mas longas para certos lei-
mos parte da massa de bearneses, gascões, occitanos, que fugi- tores, destinam-se a contextualizar algumas das implicações (li-
ram do país natal e preferiram (?) o exílio no norte (em Paras,no bidinais) dos dois membros do sfa#no decurso de duas das in-
caso). Nenhum estudo sociológico deste antigo fenómeno de mas- tervenções. Dois episódios aparentementedíspares ilustram a
sa teve a repercussão de Os trêsnzosquefe/ros, história de três (ou, questão, pouco estudada. do funcionamento interno do síllf
como vimos, quatro) "cadetes da Gasconha' interventor, seja em psicologia e psicoterapia de grupo seja em
Nossas origens sociais influíram igualmente sobre nossas socioanálise. Jacques e Mana van Bockstaeleestão entre os pou-
carreiras. O filho de pequeno camponês (Georges Lapassade) e cos autores que refletiram sobre o problema. Quando de minha
o filho de operário-motorista
(RenéLourau) tinham um único formação socioanalítica no Centro que animavam, tive a oportu-
horizonte de ascensão social: a Escola Normal de professores. nidade de experimentara instrução, dada aos participantes, de
Em outras épocas, a alternativa stendhaliana, o verme//zo eo que verbalizassemsuas projeçõesacercadas relaçõesentre os
Negro, teria podido fazer de nós militares de carreira ou pa- membros do grupo (casal) de socioanalistas. Ignorava então que
242 RENÉLOURAU O CAmPO SOC10ANALÍTICO 243
dois anos mais tarde me seria dado viver - não projetivamente, da intervençãode Zolfrsl e do lugar de Claude, Georges opõe
mas de fato - este tipo de relações. seu estatuto de homossexual a meu estatuto de heterossexual.
Não sei o que acontececomigo. O tom do debatese acirra, mi-
Star analítico nha cólera toma-se incontrolável e abandono o local do encon-
tro. De fato, a situação tinha algo a ver, talvez, com o episódio
O primeiro acontecimentoocorreu na primeira intervenção, que se segue, também datado de 1967.
"Zours / La príêre seus /es éfoí/es". Em nossas caixas-pretas,* tro- O episódio diz respeito à terceira intervenção, a de Hendaye
camos idéias sobre a operação de sedução empreendida pelo jo- - Z.a messe de /a confesse -, na qual relato como encontrei, no gru-
vem Claude, não apenas com as mulheres e os homens do gru- po-cliente, a que viria a se tornar minha mulher. Se em Hen-
po, mas igualmente conosco, os interventores. A transcrição da daye meu flerte com Françoise ficou cada vez mais visível e foi
sessão mostra que é Claude quem propõe o tema "ir às últimas comentado em caixa-preta, algum tempo depois da intervenção
conseqüências". Meu comentário o gratifica com o papel de Georges revelou que estivéramos na posição de rivais, até mes-
"amante potencialdo grupo" e "líder do grupo de base". Digo mo nos sentimentos de Françoise. Confesso que, na época, mi-
também que "os analistas [. . .] em suas imp]icações ]ibidinais nha estupefaçãofoi enorme.
não superadas (a homossexualidadeentre nós, entre eles e
Claude), sem dúvida deixaram de lado um material indispensá- O analisados revisitado
vel à análise institucional". As coisas parecem claras, mas é pro-
vável que, em seu papel de homossexual, Georges não tenha per- Do ponto de vista socioanalítico que está longe de ser a úni-
cebido aquilo que, em meu papel de heterossexual, eu sentia da ca referência na matéria --, os dois incidentes, decerto não ós
parte de Claude. A teoria da bissexualidade, tão banal nos ro- únicos nas relaçõesentre Georges e mim, indicam os limites da
mances, no teatro, na poesia e nos diários íntimos, mas empalha- análise das implicações dos interventores e também um modo
da pela psicanálise, da qual é uma das descobertas mais notá- de produção de analisadores. O analisador Claude e o analisador
veis (em ligação com a teoria, também recalcada, da sedução), Françoise são construídos pelas relações tanto entre eles e os
não era então, no psicanalismo ambiente, uma peça-mestre de interventores quanto entre eles e o resto do grupo. A nossa
nossa caixa de ferramentas.
revelia, são analisadores construídos (por nosso desejo) e não
Quase vinte anos depois, em 1986,quando do terceiroencon- meros analisadores naturais de uma situação qualificada unica-
tro internacionalde análiseinstitucional organizado em Paras mente pelos pertencimentos e referências visíveis e enunciáveis
pelo Grupo de Análise Institucional (GAI), composto por Domi- dos clientes. O campo socioanalítico compreende o conjunto das
nique Jai llon, Laurence Gavarini, Antoine Savoye, Alain de Schie- relações que se estabelecem entre quaisquer elementos da po-
tere e Patrice Ville --, um incidente violento me opõe a Georges pulação constituída pelo grupo-cliente e os interventores. E um
Lapassade. O pretexto é a lembrança do caso Claude, em um campo de interferência com desejos, angústias, projetos sexuais
dos grupos de trabalho em que nos encontramos. A propósito dos interventores e também com implicações recíprocas dos
interventores, os quais, quando em sessão, tentam desespera-
Reunião do sfíláganalítico, à parte ou em horários diferentes dos encontros
com o grupo-cliente, geralmentecom o objetivo de analisar as relaçõesdos damente oferecer a imagem quase monolítica de um sfílfperito
interventores com tal grupo. Por extensão,pode designar também qualquer em análise. Na realidade, os interventores estão totalmente im
reunião privada do sfa#;-cliente(N.do T.). p/iradosna elaboraçãodos analisadores da situação.
244 REN É LO U RAU
O CAmPO SOC10ANAI.ÍTICO 245
Dentre as intervenções que relato em Socio/ogl/eà p/eín femps Em 1967-1969, antes do fim dos Trinta Gloriosos, alguns anos
(1976) a de Nancy (1971), a de Lovaina (1972, com Antoine antesdo início da Crise, tivemos a oportunidadede encontrar
Savoye), a do Grep (1973)e a de Poitiers (1974,com Françoise o mercado dos católicos desejoso de analisar sua instituição.
como co-interventora)-, é sobretudo a última que permite per- Este mercado não existe mais. Foi substituído pelo mercado,
ceber os progressos realizados na apreensão do modo de produ- em crise endêmica, dos "socioclérigos" trabalhadores sociais
ção dos analisadores. Através de várias projeções que deixariam cuja missão, não mais divina mas estatal (ainda que freqüen-
felizes Jacques e Mana van Bockstaele, o "casal Lourau" partici- tementemarcados pela influência cristã), consisteem remontar
pa da construção de analisadores aparentemente naturais, no caso o rochedo de Sísifo da reinserção e da luta contra a exclusão.
um pequeno grupo de trabalhadores sociais em formação. Este No mercado da reinserção, muitos socioanalistasda terceira
pequeno grupo, em especial pela mediação de um de seus mem- geração, bem como outios estudantes-pesquisadores-praticantes,
bros, intervém diretamente em nossa vida de casal, no nosso vivem a dificuldade crescente de praticar a intervenção socioa-
domicílio. A monografia se intitula l.esana/yseurssolzfarroz;és
(Cbe- nalítica, ou esta não seria mais que uma pedagogia socioanalíti-
gízranl os a?za/fsadores), respondendo assim a l.es ana/yseurs arríoerzt ca na formação, na terapia, na animação ou na atividade de con-
(Chegam os arfa/lsadores),que encabeçava os relatórios editados sulta
em Les fe/7/psmoderrzes
em 1972(ver acima). Em outro texto, que
faz parte da obra coletiva Z.'ínferoenfíon ínsfítzzfíolzne//e (com Ar- Atualização bibliográfica
doino, Dubost, Lévy, Guattari, Lapassade e Mendel), observei a
respeito dessa socioanálise em Poitiers: "Esta intervenção me J. Ardoino & R. Lourau. Les pédagoglesílzsfffutfarine//es.Paras: PUF, 1994.
«marcou» a tal ponto, intelectual e afetivamente, que jurei que P Boumard
1995
& A. Lamihi(dir.). Les pédagogíes autogestíolzlzaíres. lvan Dava,
seria a última. Naturalmente, não cumpri minha palavra".
R. Hess & A. Savoye. L'anaZysefnstítiztfonlze//e.Paras: PUF, Col. "Que Sais-
A intervenção no Grep organismo de educação popular, no je?" 1993.
Centro Protestante do Oeste -, entre outras coisas, trouxe ao pri- Pour,revista do Grep, n' 144,1994,coordenadapor R. Lourau &A. Savoye,
meiro plano uma dificuldade relativamente nova: a do desempre- 'Analyse institutionnelle et éducation", quarta parte " Socianalyses
go e das ameaças de demissão suscetíveis de serem provocadas
pela socioanálise. com seu gosto pela análise das contradições.
O tema do desemprego aparecera de maneira tênue na quarta
intervenção relatada no presente livro, a de Maré» l.es ocuppanfs
ínz;fsíb/es (Os ocupantes írzz;ísíoeis). Não é de hoje que se pode di-
zer que um espectro assombra o método socioanalítico: o espec-
tro da perda do emprego, tanto no que concerne aos interventores
quanto a seus clientes. A Crise --quer dizer, o governo do medo,
o novo Terror branco -- questiona o método e a teoria, o núcleo
duro da análise institucional, o dispositivo da autogestão, a aná-
lise coletiva das implicações, o ato extremamente implicado,
como vimos -- de levar em conta os analisadores. Os novos ana-
lisadores chegaram.
IMPUCAÇÃ0: Um NOVO PARA01CmA? 247
de teologal.A "presençano mundo", que o catolicismosocial,
logo após o protestantismo,quis exaltar para reduzir a distância
social entrea hierarquia e o "povo de Deus" -- eis o substrato
teológico dessa ideologia. Nada tem de surpreendente que ele-
mentos não religiosos (vagos avatares existenciais, psicanalismo,
fenomenologismo etc.) também a componham.
IMPLICAÇÃO: Quando o conceitode implicação foi oficialmente introduzi-
UM NO\fO PARADIGMA?* do na análiseinstitucional como um dos elementosindispensá-
veis de um projeto teórico (Lourau, 1969-70),a ideologia que hoje
podemos denominar "implicacionista" (Guinou, 1987) decerto
já existiahá algum tempo; mas a palavra ímp/ícaçãonela ocupa'
Queremos encontrar a resposta para uma questão?
E necessárioconhecero ascendente. va um lugar quase nulo. Portanto, eram mínimos os riscos de
seja de quem demanda seja de sua questão. confusão.A própria palavra ímp/ícízçãofora escolhidamais por
--l BN KnAtOÜN. .4/-/Wugaddí??ra.
Trad. francesa. Paria:
suas ressonâncias abstratas, matemáticas, do que por suas conota-
Sindbad, tomo3, p. 1.145.
ções jurídicas. Tratava-se de incorporar os conceitos freudianos
'0 questionador é também a resposta à questão. de transferência e de contratransferência às situações coletivas,
(sobre o Edipo)
JEAN-PiEKRE VERNANT. À4yt/ze et tragédia eíz Grêce
aumentando sua abrangência. Neste sentido, uma equipe de psi-
ancienne. canalistase psiquiatrasoperaraum primeiro avanço,ao propor
as conceitos de transferência e contratransJ:erência institucionais
(Chanoit et al., 1966).
Nos MElos DA formação profissional, da terapia, do tra- Retomemosbrevemente,mais uma vez, à comunicaçãoda
balho social (e mesmo no jomalismo ou na linguagem política),
equipe da c]ínica psiquiátrica de La Verriêre (]\4ufzle//e gélzéra/e
a palavra ímp/ícaçãotende, há alguns anos, a fazer concorrência
r'éducatíonnafío?za/e).Com a distância temporal, a definição pode
a outras palavras da mesma nebulosa ideológica, tais como com-
parecer esquemática e tímida, desajeitada até; mas não deixa de
promisso, participação, investimento e motivação. testemunhar uma verdadeira descoberta clínica:
A origem deste uso voluntarista, ético, da implicação reside
numa mistura de influências cristãs, existencialistas e psicolo-
[. . .] não apenas a transferência do analista, não apenas a res-
gistas: "Eu me implico, ele se implica, ele não se implica o bas-
posta à transferência do doente, mas igualmente a resposta a
tante" etc. Tais formulações pronominais constituem julgamen-
todas as realidades (sexo, idade, posição socioeconómica) do
tos de valor acerca de si mesmo ou dos demais, destinados a
analisando, do analista e das significações socioculturais e eco-
medir o nível de ativismo, o grau de identificaçãoa uma tarefa
nómicas da instituição psicanalítica. Os signos que permitem
ou a uma instituição, a quantidade de orçamento-tempo que lhes a descoberta da contratransferência são da ordem da preocu-
é consagrada (estar lá, estar presente), bem como a carga afetiva
pação ou do ma]-estar [. . .].
investida na cooperação. Trata-se de uma espécie de nova virtu-
Implication: un nouveau paradigme?" Socízls,n' 4/5 -- Bulletin de I'Associa- Embora os autores subestimem o papel pioneiro de Ferenczi,
tion Rencontres en Sciences Sociales, Pauis, 1997.Tradução: Paulo Sdineider.
246
ou de seu discípulo Balint, na exploraçãoda rica dialéticada
248 RE N É LOU RAU iMPUCAÇÃ0: UM NOVO PARA01GMA? 249
contratransferência, redescobrem a dimensão de sofrimento que As conotações apesar de tudo jurídicas da palavra fmp/ilação,
Ferenczi opunha à serenidade pedagógica de seu mestre Freud. já atenuadaspor um uso metafóricomais geral (as implicações
Tal dimensão é redescoberta, por sua vez, pela teoria da impli- de uma situação, de um projeto. . .), mostravam-se talvez susce-
cação: "A passagem à dimensão institucional parece particular- tíveis de combater o que a teoria da CTI ainda tinha de psi-
mente difícil, até mesmo dolorosa' cologista. Mas esta é uma explicação insuficiente. Na verdade, a
Esta evocação afetivista, fenomenológica e de ressonâncias escolha da implicação destinava-se a favorecer a articulação en-
heideggerianas (a "preocupação") é acompanhada de referên- tre os dados subjet:ivos e os dados objetivos, sociológicos, em uma
cias tomadas a Sartre, a Mauss e a Lévi-Strauss. Embora tímida perspectiva não mais sociologista(o que consistiria em substi-
e sujeitaa arrependimentos,como provará a história, a desco- tuir um inconveniente por outro), e sim na da sociologia aberta
berta da contratransferência institucional se abre sobre domí- - aquela que, à época, Henri Lefebvre propunha em Nanterre
nios de pesquisa diferentes da terapia: as ciências humanas e com seu programa de descrição e análise de todos os aspectos
se-dais se vêem questionadas.
da vida cotidiana.
De fato, simultaneamente ou pouco após as pesquisas de psi- Sociólogo marxista-crítico, Henri Lefebvre nos ajudava tam-
canalistas e psiquiatras, formadores (pedagogia institucional), bém a compreender o papel da base material no conceito de ins-
psicossociólogose sociólogos abordavam o mesmo problema. Na tituição. Mostrava a importância do jogo dos momentos diabéticos
mesma época, Van Bockstaele e sua equipe se questionavam so- não em abstrato, mas no vivido. Sua teorização do Estado como
bre a existênciade uma "transferênciasociológica"ou "socioa- força e forma mundial ou em via de mundialização, sobretudo,
nalítica"(Van Bockstaele,1968). dava-nos a verdadeira chave do processode institucionalização
Já os primeiros institucionalistasa praticar a intervençãoso- e contribuía para reforçar o paradigma da análise institucionali
cioanalítica (termo tomado de empréstimo a Van Bockstaele) es- na análise em situação ou, caso se prefira, na situação de análise,
tavam interessados nas perturbações muito fortes entre o inter- a elucidação da instituição presente/ausente comporta a elu-
ventor-pesquisador e o grupo-cliente. E o que mostram a análise cidação da transversalidade estatal. Repentinamente, as impli-
da enco//zetzda e das deníandízsdiversas e contraditórias (Herbert, caçõesultrapassavam amplamenteo domínio do psicoafetivo e
o uso das ferramentas da clínica freudiana.
1966);as interferências dos pertencimentos e referências no pro-
cessode elucidação da fralzsz;ersalfdade (Guattari, 1966,1973);os Seja como for, a escolha da palavra ímp/ilaçãopermanece um
efeitos dos analísadoresnaturais ou construídos sobre a situação, tanto arbitrária e, levando-se em conta as distorções que sobre-
isto é, tanto sobre os interventores quanto sobre os clientes (Tos- vêm, exige, sem dúvida, reformulação. O que aconteceuem se-
quelles, Guattari, Torrubia, 1966); as conseqüências metodoló- guida demonstrou que, qual outras noções(como instituição, ana-
gicas e materiais da azlfogesfão da sessão de intervenção, incluin- lisador, demanda, intervenção), a implicação não estava a salvo
do a autogestãodo eventualpagamento dos interventores. da contaminação ideológica e da recuperação por parte de pes-
Portanto, a pergunta era: como ampliar, generalizar a CTI soas que jamais poderíamos imaginar, mesmo em sonho, que Ihe
produto de práticas terapêuticas coletivas --, com o auxílio do dariam a menor atenção. Mas se outro termo deve ser encontra-
rico material que nós --sociólogos, psicossociólogos --descobría- do, fica claro que isto ocorrerá por ocasião de uma análise crítica
mos na prática pedagógica e na intervenção, depois que Lapassa do paradigma da análise institucional, e não como efeito de uma
de deu seu famoso chute no formigueiro dos novos métodos sessão de bnzílzstormíng para descobrir o melhor logotipo de uma
grupais e grupistas? firma, ou o melhor sloganpublicitário para um perfume.
250 RE N É LOU RAU IMPUCAÇÃ0: UM NOVO PARA01CnA? 251
Como estão as coisas em 1987?Datar a interrogação é, impli- A análise da implicação do pesquisador-praticante cresce em
citamente,fazer referênciaa uma periodização,a uma gênese importância à medida que a forte restrição do mercado e da
social, contribuindo para a autocrítica. Ora, é amplamente reco- militância externos reduzem tal pesquisador-praticantea seus
nhecido que o conceito de implicação, surgido na passagem en- caros estudos; na maior parte dos casos, à prática de formação
tre os anos 1960e 1970,na fase mais instituinte da autogestão (dentre nós, raríssimossão os pesquisadores "puros"). Tudo isso
depois dos analisadores naturais e históricos, teve de esperar orienta a reflexão relativa à implicação para a problemática das
pelos anos 1980para que se manifestassem suas ligações orgâni- ciências da educação (tour, "Sciences anthroposociales, sciences
cas com o paradigma "institucionalista": análise institucional, de I'éducation", 1983,Ophélia Avron).
pensamento coletivo crítico do instituído, decerto; mas qua/ é o Por seu lado, lá pelo fim dos anos 1970e começo dos 1980, a
lugar da análise-crítica,quais são as suas reais relaçõescom a gênese teórica da implicação recebe reforços, nem sempre desin-
instituição? teressados e eventualmente embaraçantes, das correntes existen-
Essa espera deve-se, em grande parte, a uma modificação do ciais, psicológico-expressionistas,vitalistas etc., cuja vantagem
mercado de intervenção socioanalítica (lembro que havíamos consiste em balançar o velho coqueiro positivista e cujo incon-
descoberto" a importância da implicação do pesquisador-inter- veniente é o de construir, sob a capa do subjetivismo, uma ficção
ventor na prática de intervenção e que, de repente, as pesquisas tão pouco digna de crédito quanto o objetivismo de papai.
dos psicanalistas-psiquiatras sobre a CTI me apareceram como Felizmente há também contribuições originais, por vezes sob
dádiva inesperada). A retração das encomendasde intervenção a forma de reediçõesou redescobertas, outras vezes por meio de
acompanha as dificuldades económicas. A crise, o desemprego novas pesquisas. O etnopsicanalista complementarista G. Deve-
e a realço/fffksocialista depois da euforia de 1981-1982tendem reux (Devereux, 1980)propõe, graças à observação questionadorà
mais para uma institucionalizaçãoburocrática do que para a e autobiográfica, um procedimento de análise das implicações
autogestão (não por acaso, meus amigos "institucionalistas" e do qual outros antropoautobiógrafos já tinham sugerido a utili-
eu mesmo fomos excluídos da revista Áufogestíonsna segunda dade. O lançamentoou a reedição de diários de campo traz ao
fase do govemo socialista, dita "do rigor"). primeiro plano uma questão e, melhor dizendo, a problema-
Apesar de alguns belos restos no.Õ'o?zfda intervenção -- noção tologia (M. Meyer, 1979) da implicação: o estatuto de extratexfo
que já sofrera uma modificação da qual a maioria de nós está (ET) da escritura diarística, com ou sem forte coloração intimista,
consciente --, constata-se uma tendência à introversão na pesqui- será irremediavelmente subordinado, inferior, acessório, supér-
sa. Parece que a palavra ímp/ícação,por oposição a exp/icaçãb,su- fluo mesmo? O ato de pesquisa necessita ou não desses golpes
gere esta idéia de introversão, inclusive de recolhimento em si de refletor sobre a distância, sobre o corte (outrora dito "epis-
mesmo (Ardoino dixit). Recolhimento,recuo elástico aos locais temológico") que separa o observador dos observados (M. Lei-
de trabalho: na universidade, aos novos projetos de formação, à ras, Condominas, Favret-Saada,Malinowski, Gibbal, 1981etc.)?
análise interna. A vida privada, dizem os filósofos e outros ob- Problematologia que se eruiquece e se complexifica -- como diria
servadores da ascensão do "auto-referencial" (Barel) ou do "não- Edgar Morin -- se pensarmos que o diarismo não é o único su-
pertencimento" (Mendel). Recuo às pesquisas mais pessoais, porte ET da análisedas implicaçõesdo pesquisadorou do pes-
eventualmente menos diretamente ligadas ao paradigma ou, em quisador-praticante, pois, além da autobiografia, são exploradas
todo caso, menos engajadas no programa implícito da análise outras formas de reflexividade.
institucional. O empreendimentoé de peso: trata-sede transformar o ver-
252 REN É LOURAU lmPl-iCAÇÃ0: UM NOVO PARAOiCMA? 253
gonhoso ET em procedimento de trabalho, de transporta-lo para ligadas ou deduzidas, produz um desarranjo através das pergu?T-
longe dos recônditos da introdução, das notas de pé de página rásincessantes que supõe. Rejeitando tanto a tese logicista - que
ou de fim de capítulo, dos anexos e partes documentais etc. até ou bem nega a importância do processo ou bem o toma automa-
atingir a página plena do texto o que denomino, depois das ticamente lógico - quanto a tese psicologista - que exclui a lógi-
pesquisas de Marc Guiraud e de meu estudo sobre os diários ca totalmente do processo -, Meyer faz do confexfo da descoberfEZ
secretos de Wittgenstein, escrífura s/nísfra. mistura de lógico e de psicológico que porta o risco de conta-
Outras correntesde pesquisa vêm alimentar a problemática minar o contexto de jusfÜcação a morada da problematologia.
da implicação. A questão do extratexto, à qual fizemos alusão, Com efeito, se o questionamento, essência da problematologia,
remete à teoria do texto, à narratologia, tal como é desenvolvida geralmente só é efetuado a posteriorino que conceme ao contex-
na França (G. Genette). Os jogos do texto, do extratexto, do con- to de descoberta-- ocupado que está o pesquisador em "justifi-
texto, sem esquecer o intertexto e o paratexto (e o hipertextol) car" seus resultados, em fazer funcionar a instituição científica
fornecem hipóteses estimulantes para uma análise institucional não é difícil perceberque tal estatutoda pesquisa é o que tão
da escritura, de modo que esta última tenha por "interpretante frequentemente a toma cega quanto a suas implicações mais de-
final", como diria Peirce,a instituiçãoliteráriaou a instituição terminantes para a saúde e a sobrevivência da espécie humana.
científica. A narratologia localiza a distinção entre autor e narra- Teremos de esperar que o implícito salte aos olhos para, enfim,
dor, interrogando-se, eventualmente, sobre a terceira instância, ousar compreender que sua elucidação faz parte da pesquisa?
o "terceiro homem": o ízufor ímp/fcado.A implicação é concebida Será preciso rejeitar desdenhosamente a análise das implicações,
em ligação com o ímplüifo do texto, o que não designa necessaria- a fim de continuar a negar as implicações da análise?
mente o inconsciente ou o escondido, mas sobretudo, segundo Parece-me que, com Meyer, a epistemologia, a história e a fi-
meu ponto de vista, os níveis ou modos de escritura recomenda- losofia das ciências convergem em um ponto capital: o acesso a
dos, autorizados ou proibidos pela instituição. O implícito é, por uma teoria da implicação. O mesmo pode ser dito com relação a
exemplo, o intertexto ronronante das relações da pesquisa socio- outros teóricos, de Holton a Kuhn, de Lakatos a Feyerabend, de
lógica sob contrato, esse jarrão, essa citação infinita, esse siste- Habermas a Gadamer etc. A discussão geral acercado empirismo
ma de referência fechado como uma ostra; em suma, um certo lógico não é uma pequena querela de escola. É tão importante
tom, uma certa maneira de dar o nó na gravata da escritura, uma quanto a Querela dos Universais, no que comporta de desafios
musiquinha sem palavras. . . Analisar tal intertextojá é compre- científicos, culturais, ideológicos e políticos. Por exemplo, o con-
ender o implícito das relaçõescom o objeto, com a encomenda ceito de fe/na, em Holton - enriquecendo e complexificando o
social, com a instituição. conceito de paradígnza, de Kuhn -, vai no mesmo sentido da
Outra aproximação à teoria da implicação remete ao conceito problematologia, do questionamento das implicações epistemo-
de problemafo/ogza proposto por M. Meyer (anteriormente cita- lógicas, atravessadas pela líbido. A fenomenologia, quando não
do). Meyer mostra que o resultado final da pesquisa não existe se contenta em apenas pensar e repensar o Ser, interessando-se
sem o processo e que, apamntemente, há contradição entre o mo- também pela construção do real, contribui para a crítica do po-
do de conhecimentoposto em ação em uma e em outra fase do sitivismo. A etnometodologia - um de seus ramos, um tanto
ato de pesquisa. Se o resultado é "apocrítico" - organizado se- barroco -- aproveita para levantar dúvidas sobre a distinção en-
gundo as regras da lógica --, o processo, por sua vez, é proble- tre objeto real e objeto de conhecimento, considerando que o sa-
mático: em vez de se organizar em tomo de resposfízslogicamente ber científico, como todos os outros saberes, se encontra preso a
254 RE N É LOURAU
iMPl-iCAÇÃ0: UU NOVO PARA01CmA? 255
uma cadeia infinita de ande.rica/idade
que não deixa de lembrar a Em 1969-70,parti da noção de "distância prática", construída
cadeia dos interpretantes de Peirce. Em suma, as ciências que em referência a Max beber. para distinguir, tão pragmaticamen-
Morin chama antropossociaissofrem, queiramos ou não, um efei-
te quanto possível, vários níveis de análise da implicação. Nessa
to de espelho, uma verdadeira co/oraçãoellzperspecfíz;a
ao íxÜtzífo.
tipologia, inspirava-me num um modelo construído por H. Le-
Apesar das resistências,inclusive as camufladas em atitudes
febvre em sociolingüística:
"abertas", o saber é inexoravelmente impelido em direção a ou-
tra postura. Ele será obrigado a se conhecer.Aproximamo-nos,
[. imp]icação instituciona]: "[. . .] conjunto de relaçõesexis-
talvez, do dia em que na casa do ferreiro (Moscovici, 1974)não tentes, conscientementeou não, entre o atar e o sistema insti-
haverá apenas espetode pau. tucional";
Nesta apreciação muito breve e muito incompleta, preciso to-
2. implicação prática: "[. . .] indica as relações reais que e]e
mar um atalho,percorrercom um rápido frade//ing
vinte anos (o ator) tem com aquilo que chamamos [. . .] a base materia[
de pesquisas, hesitações,divergências e convergências. Deixo de das instituições";
lado, assim, contribuiçõesmuito significativas de diversos pes- 3. imp]icação sintagmática: "t. . .] implicação imediata pró-
quisadores em análise institucional, como René Barbier, Remi
pria à pratica dos grupos, «ao agendamento dos dados dis-
Hess, aves Etienne,FrançoiseGavarini-Lourau, Laurence Gava-
poníveis da ação»(Lefebvre)";
rini, Peter Halbheer (Suíça); Ferrando González, Roberto Manero
4. imp]icação paradigmática: "[. . .] implicação mediatizada
e Lucía lbáfíez (México); Armando Bauleo (Argentina-ltália);
pelo saber e pelo não-sabersobre o que é possível e sobre o
Paulo Schneider (Brasil); lata Kahenga (Zaire); Perpetuo de que não é possível fazer,pensar";
Andrade (Argola); Josep Bofill e Juan-José Navascuês (Espalha); 5. imp]icação simbó]ica: "[. . .] lugar onde todos os mate-
Alain de Schietere (trança); Ahmet Suerdem (Turquia) e outros riais graças aos quais se articula a sociabilidade revelam, ao
integrantes do seminário de terceiro ciclo de "Análise Institu-
mesmo tempo, sua função e outra coisa: a própria sociabili-
cional" da Universidade de ParasVlll, pelo qual Antoine Savoye dade, o laço social, o fato de vivermos juntos, de nos compre-
e eu somos responsáveis, mas que também deve bastante a Geor- endermos e de nos confrontarmos.'
ges Lapassade, JacquesArdoino, RemaHess, Ruth C. Kohn, René
Barbier, Patrice Ville, Alain de Schietere,Dominique Jaillon, Além desses cinco níveis, dos quais jamais deixei de reconhe-
Laurence Gavarini, Michel Lobrot, Alain Coulon etc. (peço des- cer a arbitrariedade, acrescentei um desenvolvimento sobre a
culpas se esqueci alguém. . .).
"transferência institucional" e um subcapítulo sobre "a contra-
Contento-me (é exatamentea palavra que convém!), portan- transferência institucional do analista
to, em apresentarao leitor dois momentosde minha pesquisa Em 1983,em um artigo (Lourau, 1983),propus o esquema que
pessoal: o que expus acerca da teoria da implicação em minha
se segue, cujo caráter esquemático me desagrada, mas que não
tese de doutorado de Estado em 1969(publicada parcialmente cessou de se enriquecer, como se fosse verdadeiramente heu-
em 1970) e o esquema que procuro enriquecer desde 1983em rístico:
pequenas publicações didáticas e de pesquisa que versam, ao
mesmo tempo, sobre a existência literária (relações de escritura
"Implicações primárias
e de edição), sobre o que chamo imaginação socioanalítica e so-
"I. implicações do pesquisador-praticante com seu objeto de
bre os diários de campo ou de pesquisa.
pesquisa/intervenção;
256 RE N É LO U RAU IMPUCAÇÃ0: UM NOVO PARA01CMA? 257
2. implicação na instituição de pesquisa ou outra instituição cos: digamos o que fazemos e o que não fazemos. Implicação:
de pertencimento e, antes de tudo, na equipe de pesquisa/inter- análise coletiva das condições da pesquisa.
venção;
"3. implicação na encomenda social e nas demandas sociais. Referências bibliográficas
Implicações secundárias Muitas das pesquisas citadas são coletivas,o que implica um
'4. implicações sociais, históricas, dos modelos utilizados (im- problema de nomenclatura que não pude (ou não quis) resolver,
plicações epistemológicas); em função dos padrões editoriais.
"5. implicações na escritura
/
ou qualquer outro meio que sirva Acrescento que se nomes citados no texto não se encontram
à exposição da pesquisa. nesta bibliografia, ela, em compensação, comporta nomes não
citados no texto.
No mesmo ano, em uma contribuição a um colóquio (citado
nas referências), acentuei sobretudo as relações entre a análise Áccés ait terrain e/zpaus éfranger ef oufre-mer(L), sob a direção de M. Gast &
da implicação e a crítica da ciência. Nos dois casos, sublinho que M. Panoff.Paras:L'Harmattan,1986
a questão da implicação tem sido examinada por inúmeros pes- Chanoit, F. Gantheret. Ph. Refabert, E. Sanker & P Sivadon. "Le contre-
transfer institutionnel", revue Psychof/zérapfe
/nsfftufío?zne//e,
n' l
quisadores (os nomes igualmente se encontram nas referências), Devereux, Georges. De t'angoisse à !a méthodedons les sciertcesdu comportement.
alguns dos quais já mencionados aqui. Isso permite não esque- Paras: Flammarion, 1980.
cer a dimensão coletiva da pesquisa, tanto na corrente da análi- Duelos, Denis et al. l,es sclences socfa/es daizs ie c/zangenienf socio-po/íffqzíe. Pa-
ris: Economica, 1985
se institucional quanto fora de nossa "sagrada família".
Guigou, Jacques. La cafédesego.Grenoble: éd de I'lmpliqué, 1987.
A guisa de conclusão bastante provisória, apresento um ques- Lorau, René. L'arzalyseilzsfíft/ffonne//e.
Paras: Minuit, 1970).
tionamento acerca dos desafios do que talvez seja o nascimento Les arza]yseurs de ]'Eg]fse. Paras: Anthropos, ] 972
de um novo paradigma: Socio/ogue à ple terlzps. Paria: L'Epi, 1977.
-- E a implicação um suplemento de alma do conhecimento L'Efaf-ítzcolzsclelzf. Pauis: Minuit, 1978
Le l.apsus des ínfe//ecfue/s. Toulouse: Privat, 1978.
científico instituído? Uma mais-valia de saber para melhor tole-
Veja também Potfr e Scíences ant/zroposocfa/es.
rar o vazio ou os excessosdo positivismo? Meyer, Michel. Découz;erre et .Ízzsf@catfo?z erz scfence. Paris: Klincksiek, 1979.
- E a implicação uma variante da sociologia do conhecimen- Moscovici, Serge. "Le jour de fête du cordonnier", in: Pourquoí /a mafbé-
to, facilmenteintegrável, a termo, como novo setor especializa- matíque.Paras: UGE, Coll. lO/18, 1974.
do da sociologia? Pour, número especial L'analise des implicatiottsdatasles pratiquei sociales
coordenaçãode Remi Hess, com Remi Hess, Jacques Ardoino, René
--E a implicação uma simples negação do conhecimento cien- Lourau, René Barbier, Michel Bataille, Simone Aubrun, Gérar Dahan et
tífico, um idealismo, um misticismo, um subjetivismo, uma nova Jean-RéneLmoubat, DaniêleZaJÇ Dominique Hocquart, Claude Brette,
manipulação obscurantista? Françoise Caudron, Françoise Gavarjni-Lourau, Nicole Versini-Lankester,
- Anuncia a implicação um novo modo de conhecimento, uma Georges Lapassade, Jacques Guinou, Colette Laterrasse, Pierre Van-
craeye-nest, Pascal Dibie.
nova forma de investigação científica, mesmo se a palavra ciên- 'Recherche clinique, clinique de la recherche.La rigueur, le contre-transfert
cia precisa ser depreciada ou esvaziada? du chercheur", Bu/letíz de psycbologíe,
1985-1986,
n" 16-18.Coordenado
por C. Revault d'Allonnes et Max Pagos, com Odile Bourguignon, Fethi
O leitor adivinha minha própria resposta,naturalmente con- Ben flana, Ophélia Avron, Jacqueline Barus-Michel, Pierre Ansart,
tida em uma das perguntas. Acabemos com os debates acadêmi- Claudine Samalin-Ambroise, Ruth C. Koln etc
258 REN É LOURAU
Scfenas a/zfhroposocíales, scfelzces de I'édifcaffon. Acres d u colloque nacional,
1983,editados pela associação dos professores e pesquisadores em ciên
cia da educação, coorden'adopor Jacques Ardoino, com René Barbier,
Francine Best, M. Bonetti, Patrick Boumard, Jean Cahors, Jacques Guigou,
RemaHess, Alise Jouy Chelim, Ruth C. Kohn, Michel Lobrot, René Lou
rau, G. Pineau, G. Turcotte. O textocompleto das comunicações se encon-
tra no volume anexo.
Sujemà I'oqet rl)u): ímp/lcaflons. Sob a direção de Jacqueline Feldman & Fran UMATECNICA DE ANALISE DE
çoise Laborie. Paria: éd du CNRS.
Van Bockstaele,Jacques e Mana, Colette Barrot, Jacques Malbos & Pierrette IMPLICAÇOES: B. MALINOWSKI,
Schein. "Nouvelles observaüon sur la définition de la socianalyse", L'atz-
née socfa/ogíque, vo1 . 19, 1968.
Diário de etnógrafo ( 19 14- 19 18)''
Condições adequadas à pesquisa etnográfica [. . .]; o
pesquisador deve, antes de mais nada, procurar afastar-
se da companhia de outros homens brancos, mantendo
se assim em contadomais íntimo possível com os nativos.
Isso realmente só se pode conseguir acampando dentro
das próprias aldeias. [. . .] E muito bom quando se
pode manter uma base na residência de um homem
branco, para guardar os suprimentos e saber que lá se
pode obter proteção e refúgio em casos de doença ou no
caso de estafa da vida nativa. [. . .] Os nativos, é verda-
de, não são os companheirosnaturais do homem civili-
zado
Por outro lado, nesse tipo de pesquisa, recomenda-
se ao etnógrafoque de vez em quando deixe de lado
máquina fotográfica, lápis e cademo, e participe pessoal-
mente do que está acontecendo[. . .]. Esses mergu]hos na
vida nativa - que pratiquei freqüentemente,não apenas
por amor à minha profissão,mas também porque preci-
sava, como homem, da companhia de seres humanos
- MAUNowsKI, Les '4.rgotzaz/fes, 1922
Na aldeia sentei-me por um momento no pílapabflee
acariciei uma garota bonita no Zauríü.
MA u NowsKI, Diário, quinta-feira, 19de abril de 1918
O Dfííríode Malinowski compõe-sede duas partes:
setembrode 1914a agosto de 1915,e outubro de 1917a julho de
1918
Une techniqued'analyse des implications: B. Malinowski, Joumal d'eblogra
phe". Socíus, n' 4/5 -- Bulletin de I'Association Rencontres Sciences Sociales.
Paras, 1987. Tradução: Paulo Schneider.2S9
260 RENALOURAU UMA TÉCNICA DE ANÁLISE DE IMPLICAÇÕES 261
Quando chega ao campo as ilhas ao largo da Nova Guiné -- Deste corpus, destaco uma amostra que compreende os tex-
em 1914,Malinowski tem trinta anos. Estudou engenharia na tos mais conhecidos, pelo menos em língua francesa:
Alemanha e, a seguir, partiu para estudar etnologiana Inglater- - 1922, Les argonaufes du Pacúque occídenfa/, trad. francesa
ra. Diplomado, é enviado por seu professor (Seligman) ao Pací- Gallimard. Coll. L'espace humaine, dirigida por Michel Leiris
fico, onde é surpreendido pela declaração de guerra. (.ArgonaufasdoPacz@co ocídenta/.Coleção Os Pensadores. São Pau-
O l)faria é mantido em segredo, tendo sido descoberto qual' lo: Abril Cultural, 1978);
do da morte de Malinowski, em 1942.Sua segunda esposa o pre- - 1927, La sexualité et sa répression darás les sociétés prol?titiues,
serva trancado à chave até 1960. Em seguida, encomenda uma trad. francesa Payot (Sexo e repressão na sociedade se/vagem.
tradução ao polonês-franco-americano Norbert Guterman, ami- Petrópolis: Vozes, 2000, 2' edição);
go e colaborador de Henri Lefebvre,' que há muito residia nos - 1929, La oie sextletle des sauoages du N.W. de la Mélanésie, traí.
E.U.A francesa Payot (Á z;ída sexual dos se/z;agens. Rio de Janeiro: Fran-
O D/ária aparece em 1967sob o título Á díary ín thesfrícf senso cisco Alves, 1983);
oÍ f;zefer/}z(Um diário rzoserztídoesfríto do termo, Rio de Janeiro: /\4oeurs ef cozífzzmes des À4élanésíetzs (coletânea de artigos) e Zroís
Record, 1997).Em 1985,é traduzido para o francês. essafs szzr /a aíe sacia/e des primítgb, trad. francesa Payot;
Relembremos as seguintes datas: -- 1935, 1.es/ardíns de coral/, trad. francesa Maspéro, 1974;
1914-1915 e 1917-1918: redação do Dfár/o. -- 1944, L/ ze f/zéoríesele?zfüque de /ízcu/ftlre, trad. francesa Mas-
- 1918-1942:o Diário é mantido em segredo pelo autor. péro, 1968 (Uma feoría cíenfz@cada cu/f /ra. Rio de Janeiro: Za-
-- 1942-1960:o Diário é mantido em segredo pela segunda mu- har, 1970)
lher de Malinowski. de forma alguma implicada nas reflexões Para muitos amadores, ou mesmo especialistas, o texto M. se
sentimentais e sexuais nele presentes; casara-se com Malinowski basta. Bom ou mau, monumento bem-conservado ou campo de
em 1935; a primeira esposa falecera em 1929. ruínas, referência obrigatória ou vaga reverência ao "inventor"
- 1960-1967:tradução por Guterman. do Kula* (instituição menos ?7zass-midiatizada que o Potlacht),
- 1967-1985:período que antecede a tradução francesa, publi-
O aula, elaborado sistema de trocas entre membros de tribos do leste da Nova
cada dezoito anos após a inglesa, 43 anos depois da morte do
Guiné e arquipélagos vizinhos, tornou-se o tema da obra Árgolzaufasdo Pacé-
autor e 67 anos após o término da vedação. /ico OciderztaZ,
também de autoria de Malinowski(1922). O Kula em si era
Denominaremos texto malinowskiano, Malinowski ou texto uma troca complexa e altamente regulada de presentes entre parceiros reco-
M., o conjunto de obras de etnologia ou de teoria sociológica nhecidos em aldeias diferentes. Os presentes principais eram de duas espé-
cies: braceletes (mzua/f)feitos de conchas de moluscos e usados por homens
publicadas sob este nome de autor - conjunto em relação ao qual na parte superiordo braço,e os colares(souZaz;a)
para mulheres,feitosde
o DÍ(ZW funciona como extratexto (ET). conchas espondilosas. Em geral esses artigos não tinham valor para além de
seu significadono Kula, mas possuir um bonito mwa/íou sozzZaoa,
cada um
Ao final dos anos 1920,Guterman faz parte, ao lado de Henri Lefebvre, com um nome e história próprios, além de associaçõestradicionais, realçava
Georges Politzer. Georges Freedman etc., do grupo P/zilosophles,
próximo dos o prestígio do proprietário e de sua aldeia. Os objetos não eram guardados
surrealistase do Grama/ez{.Nos anos 1930traduz, junto com Lefebvre, tre- permanentemente,porém, mais cedo ou mais tarde, eram trocados por obje-
chos escolhidos de Hegel e de Marx. Publicam, em co-autoria, La cotzscfence tos de importância comparável. As expedições do Kzz/aeram feitas de ma-
r71ysfzÜée.
Refugiado nos EUA, Guterman participa, durante a guerra, das pes- neira mais ou menos regular entre comunidades especíHcas(Sinaketae Dobu,
quisas da Escola de Frankfurt, também ali instalada [Propbefsof deceíf,em por exemplo) por frotas de canoas(u'afãs) que freqüentementecobriam gran-
colaboração com os Lowenthal(1949), 4 volumes de Sftzdiesonpre/udfce,obra des distâncias. Havia também alguns Kzzlasno interior das ilhas. Membros
sobre os preconceitos anui-semitas]. de uma expedição visitante faziam trocas apenas com seus próprios parcei-
262 RE N É LO U RAU UnA TÉCNICA OE ANAL.iSEOE lmPl-lCAÇÕES263
Malinowski permanece, entre alguns outros antepassados de- restam vários traços no texto M. sob a forma de considerações
corativos, aquele que, segundo a fórmula de Claval, gerou "a metodológicas, de autocríticas, de receitas bem concretas, bem
grande virada".z pedagógicas. Se não levarmos em conta o Diário, ao menos nos
Que virada? A importância primordial do campo? O método dois monumentos que são Os ar8onaufase Os jardíFzs,o texto M.
de observação-participante?A teoria funcionalista da cultura? pulula de referências muito pessoais ao problema "Como se faz
O que mais? - é o que mais nos interessa, por sinal. . . Tudo isso a pesquisa?", para usar os termos de Gilli. Antes de Malinowski,
é apaixonante; porém, em 1986, decerto não proporcionaria or- aquando na mesma área geográfica por ele estudada, outros ha-
gasmos epistemológicos garantidos a um pesquisador conscien- viam permanecidode forma mais, ou menos duradoura entre
te de suas implicações na pesquisa e naquilo que nega a pesqui- os indígenas, sobretudo os "amadores" --missionários, adminis-
sa a vida. tradores --,cujo trabalho seria erróneo decretar infracientífico sob
Alguns lembretes rápidos relativos às três medalhas prega- o pretexto de não ter vínculos com instituições acadêmicasou
das no peito desse polonês com físico de oficial prussiano. de pesquisa. Afinal de contas, muitos dos notórios antropólogos
O "campo" Falemos dele. Se esse sujeito do Império Austro- de nossa época têm atrás de si um passado de administrador co-
Húngaro passou tanto tempo entre seus "selvagens" graças à Pri- lonial, quer o admitam quer não.
meira Guerra Mundial, pode-se imaginar que, caso ela houves- Malinowski, que não ignora a existência dos predecessores,
se durado dez anos, teria obrigado Malinowski a uma atividade tem plena consciência, no entanto, de estar realizando um "furo
ainda mais longa no quadro de "estudos ao ar livre". A não ser editorial". Sabe que de sua estada forçada em campo sairão gran-
que ele tivessejogado tudo para o alto - suas cadernetas, suas des obras, textos de referência e uma grande carreira; talvez por-
fichas, seu aparelho fotográfico e imitado o sociólogo imagina- que, com sua cultura e seu espírito atormentado à Dostoiewski,
do por Jack London em .Au sud de /alenfe: a integração na popu-
seja o primeiro, ou um dos primeiros, a refletir sobre o campo
lação estudada. propriamente dito, sobreo que significa "trabalhar em campo"
Há atração-repulsão por esse procedimento iniciático, do qual .4 obserz;anão parfícfpalzfe. Nos estudos de campo ou "ao ar li-
vre", o observador trabalha em tempo integral. Fascinante ou
ros reconhecidos na aldeia hospedeira, e seguiam-se "rotas comerciais" re- entediante, o espetáculo que se Ihe oferece seria incompreensí-
conhecidas.Por exemplo, um homem de Omarakana talvez obtivesseum vel caso o desenraizamento não fosse atenuado por informações
par de braceletesem uma expediçãoà ilha de Kitava(a leste de Kiriwina) e
aí, quando um Ku/a interno vinha de Sinaketa para Omarakana, ele os dava anteriores, um bom intérprete, informantes dóceis e, por vezes,
para seu parceiro de Sinaketa em troca de um colar. Este, por sua vez, troca- uma base lingüísticamínima.
va os braceletes quando o Ktz/ade Dobu chegava a Sinaketa. Contudo, não No contexto de uma enquêfeetnográfica, o que é observar?
havia troca direta entre os homens de Omarakana e os dobuanos. A vida das
Paradoxalmente e, no limite, de modo impossível, é construir
tribos dessa área era estreitamente ligada à instituição do KuZa, o qual influen-
ciava. até certo ponto, quase todas as atividades das comunidades partici- uma distância quanto a um objeto que, no caso, já é muito lon-
pantes. A descrição que Malinowski faz do KuZae suas ramificações tomou- gínquo, estrangeiro.
se um dos marcos importantes da etnografia. Aparentemente, ele não estava E então que intervém um procedimento destinado a virar pelo
ciente de sua importância no início da expedição, embora tivesse passado a
se interessar por esse fenómeno durante sua pem\anência de 1915-1916nas avesso a metodologia tradicionalmente ensinada e sua epistemo-
Trobriand(Nota do tradutor Norbert Guterman, incluída na edição brasilei- logia constituída, implícita ou proclamada. A fim de atingir o
ra. D. 149).
distanciamento desejado, quer dizer, o máximo de objetividade
Paul Claval. Les myt/zeslondateizrs des scfe71cessociales. Paras: P(Jl;, 1980.
no sentido de uma produção de dados e interpretaçõestrans-
264 REN É LO U RAU
UnA TÉCNICA OE ANÁLISE OE lmPUCAÇÕES 265
missíveis, ao menos no contextodos que o irão julgar, determi-
Enquanto o procedimento positivo valoriza a construção de
nando sua carreira --, o pesquisador também deve efetuar o ca-
uma metáfora "erudita" da experiência real, a enquêfeetnográfica
minho inverso ao do distanciamento: um passo adiante, um passo
--dando crédito, forçosamente, à contigüidade como sendo o cri-
atrás. Deve obter o máximo de familiaridade com o campo de
estudo. Que horrorl Era Pasteur íntimo da raiva? Não, somente tério da observação mais refinada opta por uma visão não me-
de sua cura. Durkheim tinha familiaridadecom sua mulhere tafórica. mas metonímica, do conhecimento em seu primeiro e
seu filho, não com o suicídio. (?) indispensável estágio. Bem entendido, o etnógrafo tem uma única
Familiaridade tanto significa percepção passiva quanto cons- pressa: transformar-se em etnólogo, em antropólogo eminente,
trução atavade relaçõesde contigüidade entre o pesquisador e em senhor ou senhoraque irá pilhar o próprio diário, as pró-
as coisas, as pessoas. Ele, o "erudito", tem tudo a aprender com prias fichas ou as publicações de outrem no intuito de produzir
uma bela metáfora da realidade na qual terá talvez estado, por
indivíduos de costumes ainda mais bizarros do que os perten-
algum tempo, imerso. Os fatos não existem. E necessário cons-
centes às populações de baixa renda, que jamais freqüentaria em
truí-los. Para Malinowski, por exemplo, é preciso construir a "lei
seu próprio país (bem mais tarde, recolhidosa seus territórios
de instituições sem escrita, instituições estas que no fim das con-
nacionais, os etnólogos aí descobrirão novos "indígenas").
tas, segundo a triste observação de Seignobos, são efetivamente
Não me estenderemsobre essa noção de contigüidade que, par-
tindo da semiótica de Peirce, chegou à etnometodologia (a indexi- invisíveis, mesmo quando se exprimem por meio de toneladas
de escritos jurídicos.
calidade). Por enquanto, sublinhemos e isso é suficientepara
A posição metonímica do pesquisador de campo, em suas im-
entender a famosa observação participante, cuja patemidade se
plicações físicas e psicológicas, está bem descrita nas seguintes
atribui a Malinowski --que é de grande monta a perturbação por
ela introduzida no discurso oficial da ciência. em seu "contexto proposições de dois etnólogos:
de justificação". E isto mesmo à época, quando o policiamento
da estrada científica estava a cargo de "eruditos" que quase nunca Que o etnólogo não se possa furtar à situação criada pela
saíam de seus escritórios, salvo para consultar documentos nas e?zquêfe,
que cada um de seus movimentos determine varia-
ções no comportamento do interlocutor e, indiretamente, na
bibliotecas ou nos arquivos da polícia.
A perturbação é a seguinte: a ciência positiva visa idealmente qualidade de seu trabalho, faz da aprendizagem etnográfi-
ca uma verdadeira educação. Parece difícil trapacear no cam-
à construção de objetos de conhecimento perfeitamente distin-
po- Com efeito, a experiênciaetnográficasolicita do etnólo-
tos de objetos reais, tais como as circunstâncias do suicídio, o
ha/zdícapescolar dos filhos de operários, as condutas dos traba- go coisa distinta de um simples dever: ele compareceem
carne e osso, e o veredicto deste tribunal recairá tanto sobre
lhadores, a experiência que cada um tem do amor, da doença
suas qualidades morais, afetivas ou sensoriais, quanto sobre
etc. Os objetos de conhecimento são representações, ficções, si-
conhecimentos puramente acadêmicos (Michel e Françoise
mulacros, metáforas de objetos reais. Estes últimos só servem
Panoff. L'ef/znoiogue ef se/z ombro. Paris: Payot, 1968).
para enganar o erudito. Não discutiremos aqui a questãode se-
rem, ou não, as metáforas"científicas" mais "verdadeiras" ou
reais" que os objetos reais, promovidos à condição de sombras O sentido da participação exigida pela observação não deve
ser confundido com o que toma no contextodemocrata-cristão
enganadoras. Afinal, nosso colega Abelardo perdeu os colhões
num debatesimilar. de educadores e reformadores fusionais, no qual é aparentado a
termos como compronz/sso e ímp/ícação.Existem, é claro, diversos
266 REN É LOURAS UMATÉCNICA OE ANÁLISE DE IMPLICAÇÕES 267
graus de "participação" no sentido de comprometimento em
dados, cuja manifestação global é postulada como explicativa,
uma situação. Com a tenda que ergue ou faz erguer perto das por si só, de tal ou qual dado já colhido ou a colher.
aldeias, Malinowski sublinha topograficamente seu grau de par- Postular que todo dado deve ser "cruzado" com outros, que
ticipação e dedistanciamento. A parte de voluntarismo é bem qualquer informação solicita uma série quase infinita de contra-
perceptível nas situações-limite, que fogem, de fato, à enquêfe informações ("contra" no sentido de "contraprova"), que somente
etnográfica: seja afastamento, repulsão total ao campo; seja o conhecimento global de uma sociedade permite, por recorrên-
imersão total, incluindo a renúncia a qualquer objetivação em cia, dar conta de suas partes mais ínfimas, eis o que se pode cha-
uma representação "erudita", ou até "literária" à Victor Segalem. mar de um método de conhecimento. Se este método, que con-
A participação é um problema objetivo antes de ser. even- siste em desmontar e remontar o motor social, tem aspecto mais
tualmente, um fenómeno voluntarista e subjetivo. É o que ex- abstrato que a caderneta, a câmara, os olhos, as orelhas, o nariz,
prime, por exemplo, a passagem anteriormente citada: "ele com- a pele e a boca do observador,nem por isso deixa de ser uma
parece em carne e osso". O observador, antes de "implicar-se' peça do aparelho de observação, porque o pesquisador, além de
(no sentido de se comprometer mais, ou menos), estáimplicado seu corpo e de seus instrumentos, não se pode furtar a utilizar
no campo Enquanto objeto de análise, é esta última implicação também tudo o que Ihe passa pela cabeça.
que torna indispensável a presença de um dispositivo de obser- A segunda extrapolaçãofunciona de outra forma. No momento
vação. Pois a análise a que nos referimos aqui seria pensável na em que, armado --como vimos --de seu "aparelho", Malinowski
ausência de um diário ou outro dispositivo equivalente? exclama, à sua maneira, "E é isto que percebol", ele sonha tal-
O /método ./üncfona/esta.
Corremos o risco, neste ponto, de nos vez, obscuramente, com a magnífica carreira acadêmica que pre-
afastar, ao menos aparentemente, da questão do diarismo. Teó- para para si próprio (Malinowski não deixa de estar atravessa-
rico, e teórico debatido, tem Malinowski alguma coisa a ver do pela fantasia da tomada de poder na instituição científica),
com o homem angustiado, obcecado por sexo, às voltas com o mas não se pode afirmar que estejaa nos impor, ou mesmo a
aparelho dentário e sua hérnia, que comparece em carne e osso impor a seus "objetos", uma teoriageral da cultura, da econo
diante dos trobriandeses?
mia, da sociedade.Outro momentode sua prática é requerido
E o texto M. a negaçãoabsoluta do l)fárfo, que ficaria assim quando ele tenta fazer que compartilhemos sua visão "fundo
reduzido à mais modesta e efêmera instrumentalidade de extra- nalista" do mundo.
texto --algo como o chapéu colonial e a caixa de medicamentos? Então, o que era, metodologicamente,uma hipótesea se ofe-
Para compreender, mesmo esquematicamente, o que está em recer cada vez mais maciçamenteao observador,ao coletorde
Jogo na batalha teórica que Malinowski empreende sob a ban- dados ávido por delícias de globalidades ainda virtuais, toma-
deira do "funcionalismo", é preciso perceber as duas extrapola- se algo completamente diferente. Ao confundir seu aparelho de
ções sucessivas que ele efetua a partir da contigüidade, base da observação com o objeto destacado, o fio condutor de sua des-
observação participante. coberta com a exposição do resultado, o contexto de descoberta
A primeira extrapolação permanece no domínio do instrumen- com o contexto de justificação, a ordem da pesquisa com a or-
tal. Consiste em transpor a contigüidade para o domihio da clas- dem da exposição, Malinowski projeta sobre a realidade social,
sificação dos fatos observados ou a observar: todo dado não ape- que sabemoscontraditória e irracional, o procedimentoglobali-
nas clama por outros para ser compreendido e interpretado como zante, estruturante, que tão bem Ihe servira para deslindar a ins-
produz, hipoteticamente, o aparecimento de um conjunto de tituiçãomitológicado Kula, a potênciasimbólicada economia
268 REN É LOURAU UMA TÉcNIcA OE ANÁLISE OE OMPI.ilAÇÕeS 269
agrícola ou mesmo a sexualidade "não edipiana" de seus queri- tudo é que o textoM. questiona o Diário de campo e é por este
dos e detestados "selvagens". questionado. A partir da primeira edição, o Dfárío torna "ilegí-
Sabe-secomo é forjada, em nossa mitologia habitual, a oposi- vel" o texto M., caso separado de seu extratexto, violento e
ção entre o universo "funcional" e o universo "poético". Apoian- poético: não é notável que Malinowski, em campo, estivesse qua-
do-nos na lingüística de Jakobson, o trabalho mental de Mali- se tão obcecado por suas atividades de fotógrafo quanto pelas
nowski poderia ser caracterizado como um movimento inverso de diarista, pois procurava garantir belas fotos? E não é igual-
ao que o primeiro descreve ao definir a função poética. Se consi- mente notável que longas passagens do Dlíírio sejam consagra-
derarmos os dois eixos de linguagem -- eixo de contiguidade ou das a descrições de paisagens, de crepúsculos, de efeitos de
sintagmático, em abscissa, e eixo de similaridade ou paradig- cores, como no diário do pintor Delacroix?
mático, em ordenada --, a função poética (pois se trata ainda de Como veremos em detalhe, o universo interior de Malinowski
um modelo mais ou menos funcionalistas) consiste em projetar é muito mais romântico do que "funcional". Ora, é este indiví-
o eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático. Dito de outro duo, e não o professor Malinowski -- edificador. mais tarde, do
modo, os elementosde linguagemassociadospor contigüidade, imponentee frágil textoM. - que, em pleno contextode desco-
que formam os fenómenos (os sintagmas), são contaminados pelo berta, nos diz: "E é isto que percebol"
elemento de seleção,de similaridade, paradigmático. As relações
entre as palavras, as frases, os vazios gráficos etc., tomam-se por- O extratexto (ET)
tadores de significação. Os sons, os ritmos, são o equivalente de
proposições lógicas na linguagem habitual. Tudo entra em cor- Extratexto, no sentido técnico do termo, são fotos, desenhos,
respondência, seguindo o princípio de recorrência: uma corres- mapas ou glossários que ilustram o texto M., principalmente nos
pondência que não tem por objetivo descrever o real, mas, ao grandes momentos de Os algo lautas e Os jardítzs. Enquanto
contrário, nega-lo, subvertê-lo a todo momento. extratextodo texto M., o Diário é virgem (ao menos na tradução
Inversamente, caso se projete o eixo de contigüidade sobre o francesa) de "ilustração", da qual Van Gennep destacou o valor,
eixo de similaridade (a abscissa sobre a ordenada), a prosa do em [igação com o traba]ho de campo: "[. . .] uma estada pro]on-
mundo nos aparecerá tão bem lubrificada quanto um tratado de gada, uma equipe de observadores dividindo o trabalho e su-
lógica formal. O sintagma contamina o paradigma, a associação pervisionando uns aos outros, enfim, uma boa técnica de regis-
invade a seleção, a contigüidade devora a similaridade. Tudo ex-
tro [. . .]. E preciso dizer que a fotografia, o cinema e os apare-
plica tudo: a menor escolha e a menor decisão entram em conti- lhos de registro sonoro modificaram inteiramente tal técnica
güidade com outras escolhas,outras decisões. Não há mais es- [. . .]" (resenha de dois livros de Griaule sobre os Dogons, À4ercz/re
colha, não há mais decisão: há uma estrutura que emite suas de France, n' 894, 15 de junho de 1939).
radiações, um sistema que funciona. Temos o universo "funcio- "Diário de etnógrafo": esta indicação paratextual é tão encap-
nal" onde tudo está em seu lugar, pois não há lugar para qual- sulante quanto o título da edição americana, "Um diário no sen-
quer coisa além desse universo (incluindo seus componentes ima- tido estrito do termo"
ginários, harmoniosa e pragmaticamenteligados às praticas No primeiro caso, o editor (o grupo-editor, incluindo os pa-
económicas etc.).
rentes) não deseja que seu produto corra o risco de ser classifica-
Enquanto mensagem "funcionalista", o texto M. se vê questio- do, por algum livreiro ou bibliotecáriodistraído (ou pouco in-
nado pela comunidade científica. Mas o que me interessa sobre- formado), em uma prateleira qualquer --na dos diários íntimos,
270 RE N É LOU RAU
UMA TÉCNICA DE ANAL-iSE OE IMPLICAÇÕES 271
por exemplo O paratexto "diário de etnógrafo" reduz o máxi- do "demasiado íntimo" é paradoxal para um diário "no sentido
mo possível a distância entre o texto (T) e o extratexto (ET): tra- estrito do termo". Resta esperar que as passagens suprimidas
ta-se, efetivamente, de um trabalho do Sr. Malinowski, que vocês cheguem a ganhar uma futura edição à parte, como ocorreu com
conhecem bem, validado pelo texto M. posterior (no processo os "diários secretos" de Wittgenstein ou os "diários particula-
real), mas anterior (no processo editorial). Na capa da edição fran- res" de Léautaud. . . (cf. mais adiante).
cesa, a ausência do paratexto temporal (datas indicando os anos Localizei censuras, indicadas por quatro pontos suspensivos,
longínquos de redação do Diário) contribui para ocultar a origi- em umas cinco dezenas de páginas. Visto que em geral se en-
nalidade do ET. contram duas ou três indicações de censura por página, estimo
No segundo caso, ao contrário, a essênciado diário de etnó- que haja em tomo de setenta passagens censuradas no l)faria.
grafo é abandonada em proveito de outra essência, a de Diário, o Um estudo estai'suco preciso, no gênero dos recenseamentos de
que pode levar a uma leitura mais aberta, menos especializada, Alain Girard sobre os diários íntimos, nos levaria longe: para cada
fazendo aceitar melhor a coabitação do "diário íntimo" e do "diá- sequência ausente, exigiria hipóteses hitchcockianas a partir do
rio de etnógrafo". Mas o que seria um verdadeiro diário, um diá- contexto imediato (seqüência precedente, seqüência seguinte). E
rio "no sentido estrito do termo"? ainda é preciso ficar agradecido ao grupo editor-censorpor ter
Os dois títulos paratextos subentendem igualmente, cada um à revelado "honestamente" a existência do "demasiado íntimo
sua maneira, a existência de dois Malinowskis, sempre contínuos Da mesma forma, uma nota no começo da segunda parte do li-
e coerentes:por um lado Uot/rna/d'éfnograp/ze),
um Malinowski vro (1917)assinalaque "foi omitida" a maior parte das passa-
etnógrafo e nada mais que etnógrafo toda a vida, conquanto a gens do diário retrospectivo (setembro-outubrode 1917),com-
formação inicial não fosse etnográfica e nunca mais tenha reali- posto sobretudo "de anotações sobre teoria sociológica e esboços
zado trabalho de campo prolongado depois dessa longa estada de possíveis artigos". Após a intimidade, eis agora a teoria pos-
em campo na Oceania; por outro lado (.4 d/ary on f/ze sfrfct serzse ta de lado: demasiado teórica, talvez. Mas, quanto a isto, os diá-
of fbe terírz),um Malinowski modelo de diarista, incluindo o rios de Wittgenstein, quando não são "secretos
intimista e o especialista. Mas, no caso, por que foi descartado o Já o contextogeral do Diário sugere que a maioria, se não a
primeiro diário, polonês, sob pretextode ser datado de período quase totalidade das seqüências censuradas remete quer a fan-
anterior à carreira de etnógrafo? Estranha contradição. tasias eróticas de toda sorte quer a notas sobre as masturbações
Contradição que se aprofunda e subitamente se esclarececaso atividade narcísica, autista, que tem talvez relaçãocom a prá-
avaliemos em negativo a importância do paratexto: refiro-me à tica "autoscópica" do diarista, contudo também, decerto, com de-
censura operada pelo grupo-editor. terminado lugar e determinadas implicações do observador em
Trata-se de passagens cuja importância, seja quantitativa (uma situação colonial, como se verá em Leiris. Pois o verdadeiro con-
palavra?; dez linhas?) seja qualitativa (relação entre tal anotação texto, aqui, não é a intervenção de um intelectual junto aos "Ne-
erótica e o contexto restrito do parágrafo, da página, ou o con- gros"?; Um Branco que escreve, em suas cadernetas, coisas acer-
texto geral dos grandes temas do diário), o leitor não tem como
avaliar. 3 O Websfer's Nem Interr7atíorza/Díctíonary, segunda edição, inclui a seguinte
Chamaremos essa censura de paratexto do "demasiado" --do acepçãodo termo rzígger,traduzido em francêspor nêgre:"Usado de modo
impróprio ou informal, pessoade qualquer raça de pele escura, como um
demasiado íntimo. Por que não do demasiado político, do de- nativo das Índias Orientais, das Filipinas, do Egito" (nota do tradutor Norbert
masiado apolítico, do demasiado racista etc.? No caso, a censura Guterman, incluída na edição brasileira, p. 183)
272 RE N É LO U RAU UMA TÉcNicA DE ANÁLISE OE ompi-ilAÇÕES 273
ca de si próprio e acerca deles, coisas de branco visando a criar 3 . O az#forrea/,Marcel Proust, cujo nome jamais é mencio-
um Nome de Branco ]á, nos antípodas, no coração do Império nado em La rec/zerche, conquanto o "pintor" estejapermanen-
que se apropriou dessas terras ditas virgens, dessas terras-espe- temente"dentro do quadro" (por exemplo,no último volume
lho graças às quais foi construído o mito europeu da "civiliza- -- Le fempsretrozíz;é --, não serão os cabelos do narrador, que
ção" em face do mito-contraste dos "selvagens". Malinowski é permanecem negros, os do Sr. Marcel Proust, da mesma ma-
um desses a quem se paga (uma bolsa de duzentos e cinqüenta neira que os do pintor, no quadro Ás }nenírzas,são os do segnor
libras por ano) para que, ao lado dos missionários que detesta, Velázquez?).
dos comerciantes e administradores cuja presença raramente
aprecia, ofereça aos senhores bem-vestidos de Londres o espe- No que conceme ao Díárfode Malinowski, embora decerto haja
lho em questão. interferências entre as três instâncias, poderíamos propor o se-
Por que é necessário que Malinowski misture, no espelho má- guinte esquema:
gico, às tão esperadas imagens de exotismo e selvageria, sua ima-
gem de homem selvagemente estrangeiro aos demais e a si mes- 1. 0 nízrrador:o etnógrafo, escrevendo um diário de campo;
mo? Toma-se ele por Velázquez e outros artistas barrocos, que 2. O Rufar íz?zp/ícado,
expondo, em seu diário de pesquisa,
introduziram o pintor no interior do quadro? preocupações de etnólogo, de filósofo, de escritor;
A contradição entre o ET esperado -- o diário de etnógrafo --e 3. O autor "rea/", o do diário Último.
o ET inesperado -- o diário íntimo -- obriga a indagar sobre esse
efeito intertextual no interior do ET. Qual dos dois diários ima- \voltemosao intertexto.A leitura do Dürfo não revela a exis-
ginários, o diário de etnógrafo ou o diário íntimo, é o intertexto tência de dois textos em interação. E claro que seria possível
do outro? Qual o verdadeiro ET do T. Malinówski? Ou ainda: Os reconstituir, com tesoura e cola, um diário predominantemente
(zrgofzaufas, Os arda?zs, Sexta/idade e represszio etc. têm relação com etnográfico e um diário sobretudo íntimo. Isto ocorreria, contu-
o diário de etnógrafo,com o diário íntimo ou com os dois ao do, ao preço da negação do diário enquanto texto inscrito no
mesmo tempo? E, finalmente:há apenas dois intertextosno ET devir. E mesmo essa tentativa, por sinal, estaria fadada ao fra-
diarístico? casso, pois a parte íntima apareceria separada de qualquer con-
Aqui, a narratologia nos convidaria a levantar o problema das texto, completamente inútil, enquanto a parte etnográfica preci-
instâncias reais imaginárias que estão na origem de um texto. saria ser amputada de tudo o que descrevesse o ato da pesquisa,
Se, acompanhando Gerard Genette, tomarmos o exemplo de os projetos, as hesitações, os procedimentos do observador, o
Marcel Proust (embora Genette recuse parcialmentea segunda problema de seus cantatas com os informantes etc. --de todas as
instância), teremos: coisas, em suma, que são tanto profissionais quanto íntimas.
Não é possível traçar verdadeiramentea linha de demarca-
1. 0 narrador: o personagem mundano, doente, escritor ção entre os dois tipos de diário. Não há um dentro e um fora do
veleidoso, que relata suas lembranças sob o título .4 /a rec/zero/ze relato etnográfico.Não existeum dentro e um fora da ciência,
du tempo perda; salvo em função de uma linha de demarcação imaginária, que
2. C) autor íl?zp/ícado:
o narrador-escritor, às voltas com sua jamais é dada, mas pode ser eventualmenteconstruída pelo
criação, contando ao leitor suas dificuldades e suas teorias li- autor, pelo leitor ou pelo grupo-editor implicado na instituição
terárias; científica (foi justamente o que permitiu inúmeras censuras: a
274 RE N É LOURAS UmA TÉCNICA OE ANÁUSC OE IMPLICAÇÕES 275
linha passava entre o "não demasiado íntimo" e o "demasiado Quanto às mulheres indígenas, a discrição é a norma, pelo
íntimo") menos com base no que nos oferece o diário autocensurado e
Além das anotações censuradas, das quais nada sabemos e que posteriormente censurado pelo grupo-editor. Admiração pela
nos levam a imaginar que remeteriamà sexualidade (mas por beleza de corpos nus, tentações, alguma "trampolinagem" ou
que não ao racismo etc.?), os relatos de sonhos podem ser 'bolinação" de tempos em tempos. Tudo isso vai se perder nas
indexados à intimidade. São cerca de quinze e, em geral, não so- dezenas de "brancos" da censura.
freram censura do grupo-editor. Autocensura? Certamente, vis- De forma mais geral, há as relações sociais, as entrevistas, os
to que tais relatos, na maioria, são bastantecurtos. Além disso, deslocamentos devidos a atividades agrícolas, artesanais e ritua-
os relatos de sonhos têm direito a uma tolerância maior do cen lísticas. Os neggersnão são fáceis. Por vezes, Malinowski se enco-
sor porque o diarista é menos "responsável" por suas derivas leriza: chega a bater num boy. Também há momentos de intenso
inconscientesdo que por suas fantasiasdiurnas ou suas passa- prazer profissional com determinados informantes. Prazer,
gens ao ato. inquietude, angústia, cólera, desencorajamento, tédio, desampa-
Mesmo quando Malinowski não menciona "sonho obsceno' ro, entusiasmo,nada é poupado ao "homem de ciência", para
ou "sonho freudiano", quase sempre está em pauta, no conteú- quem o desespero observa Musil em seu diário --é o compa-
do manifesto, a sexualidade: sonho homossexual (20 de setem- nheiro habitual. Mil anotações pessoais, repetitivas, irritantes
bro de 1914),no qual cobiça seu próprio duplo; as mulheres de quando tendem a nos oferecer um quadro clínico um pouco com-
sua vida dormindo juntas (19de janeiro de 1914);a mulher que placente demais. Mas sabemos que o corpo do etnógrafo é seu
não é possível alcançar (novembro de 1917);trapaças das garço aparelho de registro por excelência: que esteja em boa ou não
neles do bar (fevereiro de 1918) etc. tão boa saúde não é o principal problema, a menos que conside-
Muitas páginas do Diário estão banhadas de um clima de ob- remos que um jogador de futebol, no ápice da forma física, seria
sessão sexual, em ligação tanto com ã solidão quanto com a an- um perfeito observador de campos Se a revelação de ta] traço
gústia do trabalho de campo. Entre dois "ataques de monogamia", obsessivo em um diarista não é, talvez, o que o leitor (qual lei-
em 20 de janeiro de 1915,Malinowski lastima não ter violentado tor?) busca prioritariamente;se a introspecção,a autoscopia,a
uma mulher. Luta violentamentecontra as fantasias e fica muito auto-análise ainda parecem supérfluas aos especialistas das ciên-
feliz quando, momentaneamente, consegue afasta-las. "Será, per- cias sociais; se as qualidades literárias do relatório de pesquisa
gunta-se, por causa da solidão e uma verdadeira purificação da raramente são levadas em conta, nem por isso um diário como o
alma, ou apenas loucura tropical?" (mesma data). Muito preocu- de Malinowski deixa de nos apresentar, fragmentariamente que
pado com a higiene, não pára de tomar "medicamentos" que vão seja, as condições de trabalho reais da coleta de dados, o verda-
da cocaína à morfina e ao arsênico. Faz ginástica três vezes por deiro contexto de descoberta.
dia (quando não se esquecem). Além da "poligamia" de suas fan- Existe também,no [)faria de Ma]inowski, um outro tipo de
tasias e sonhos, inquieta-o a "homossexualidade residual" des- narrativa. Não obstante haja uma enormidade de trabalho de
pertada pela visão de um jovem extremamente belo. Malinowski campo e de intimidade, o leitor-conhecedorda obra canónica --
talvez não tenha completa consciência de outros "resíduos" ho- embalado pela teoria da observação participante, pelo Kula, pe-
mossexuais, presentes, por exemplo, durante o período em que los avatares do funcionalismo -- ficará fascinado por um efeito
se encontra amiúde com um jovem francês de passagem, Raffael, de retroação: o texto M., projetado para trás, não só é iluminado
cujo charme chega a fazê-lo esquecer de manter o l)/ária. por aquilo que no Diário o prepara, o anuncia, qual um rascu-
276 REN É LO U RAU
UmA TÉCNICA DE ANÁLISE OE IMPLICAÇÕES 277
nho ou um caderno de ateliêdos pintores; produz uma violenta eis o que faz este obcecado por "metodologia" com suas interro-
iluminação dos labirintos do "como se faz a pesquisa' gações -- essenciais, discutíveis, "falsificáveis" no sentido de
Como sugerira acima o esquema de três instâncias produto- Popper sobre as condições da observação participante e sobre
ras de um texto, o terceiro diário dentro do Diário é o que de- a análise funcional, na dupla acepção que mencionei anterior-
nominei diário de pesquisa. Isso não esgota a "situação abismal" mente.
do diarista, caso sonhemos, ainda, com a reflexividade deste úl- O leitor do Diário pode acompanhar, ou mesmo adivinhar, a
timo sobre sua atividade de diarista -- o "diário do diário", nos descoberta do "furo editorial" sobre o Kula. [)escoberta hesitan-
termos de Leiras. te, desprovidada aura mítica, poética,indexadaao títulodo li-
Freqüentemente em interferência com os outros tipos de nar- vro maior, que revelará essa instituição itinerante ao perplexo
rativa, o diário de pesquisa é narrativa desse personagemao mundo científico. A instituição do Kula reproduz uma busca cujo
mesmo tempo anterior (Malinowski já publicara outros traba- objeto é análogo ao da busca do etnólogo: a recuperação do
lhos), presente (publica artigos durante o longo período no cam- Velocino de Ouro por casão, chefe dos Argonautas, nada tem de
po) e futuro: o professor de etnologia, na pele do qual ele se vê gratuito ou de ]údico. A busca do etnólogo, como as errâncias
com prazer e que efetivamente se tomará mais tarde, excetuan- do Kula (sob pretexto de braçadeiras e colares), mais do que uma
do-se o fato de se imaginar eminente "erudito" na Polõnia natal, busca é uma conquista. Sobre o quê? Sobre o tempo e a insondá-
ao passo que, como seu compatriotaConrad, irá fazer carreira vel desolação que ele instala quando os homens negligenciam a
na Grã-Bretanha. tarefa de apazigua-lo com a ajuda de ritmos, de deslocamentos
Bem mais do que nos casos de Leiras, Margaret Mead, Condo- e de rituais; em suma, de organização do espaço, pois todo Milê
minas ou Jeanne Favret -- os quais, antes ou depois da publica- nio, toda Parusia, é o sonho da transformaçãodo tempo em es-
ção de seus diários, produziram um textoetnológico -, o texto paço (cf. René Guénon).
M. (passado, presentee, sobretudo,a surgir) profetasua som- Março de 1915.Sem que se dê conta (é uma nota do editor do
bra sobre as observações e as anotações "implicadas". Quanto a ])iário que o assinala), Malinowski testemunha um acontecimen-
isso, a supressão de muitas passagens na segunda parte do l)íá- to ligado ao Kula: o dom de um colar especial (baga).Cheio de
r/o, da qual já falei, é absolutamente estúpida. "desejo amoroso", ele dedica uma parte de seu tempo a ocupar-
A produção de uma escritura erudita, sobretudo a que deve se de uma Miss Craig e de uma Madame Newitt, que encontrara
seduzir e revolucionar a cidade científica, não é tarefa fácil. Ten- no barco no decorrer de seu pequeno Kula etnográfico nas ilhas,
tações da solidão: embriagar-se com a leitura de romances, es- ou entre as ilhas e a Austrália.
pécie de droga pesada; deixar-se levar pelo prazer de contem- Somente durante a segunda estada, em 1917-1918,revela-se
plar e descrever paisagens exóticas; reticência a ler os livros pouco a pouco a instituição do Kula e a cena percebida dois anos
sérios de etnologia; desejo de escrever um romance, poemas; antes entra "funcionalmente" em uma visão global. Informações
ostentar reflexõesfilosóficas sobre a vida e a morte; manter o fragmentárias chegam a Malinowski, em geral de modo indire-
diário com maior regularidade possível. to (um amigo branco de passagem, ou o boy de um branco etc.).
Enredado nos problemas de campo, Malinowski felizmente Trata-sede informações "divergentes", mas "perfeitamente úteis"
compreende que o objeto do conhecimento privilegiado é preci- (23 de novembro de 1917).Malinowski está exultante: "Procurei
samente este: o campo. Da angústia ao método. . . como dirá me lembrar de que trabalhava com vistas à imortalidade". Re-
Devereux. A projeção e os esboços de análise de suas angústias, pentinamente, pára de escrever à noiva (com quem se casará em
278 RE N É LOURAU
1919) e redige longamente seu Diário, "no lugar e situação"
especifica ele, com gulodice.
-
!. UMA TÉCNICA OE ANÁLISE OE IMPLICAÇÕES 279
No dia 13, Malinowski desembarcanuma ilha do arquipélago
de Amphlett, importante local de expedições Kula. "Seja em ra-
Início de dezembro: "rapta" Ogiva, informante que vai Ihe zão da discrição ou da superstição, eles sempre escondem suas
prestar enormes serviços e irrita-lo prodigiosamente. Mais tar- partidas de mim (Mailu, Omarakana, aqui).
de: "os trópicos tinham perdido inteiramente seu caráter extra- O objeto se esquivar "Eles mentiram, esconderam dados e me
ordinário para mim. . . Pensei na minha posição anualcom rela- irritaram. Aqui estou sempre cercado de mentiras."
ção ao trabalho etnográficoe aos nativos. Meu desapreçopor Uma vez mais, o pesquisador-teorizador precisa se distanciar
eles, minha saudade da civilização". do observador puro Se o segundo não se contenta em "consta-
A rotina pesa cada vez mais. Tentaçãode divagar, de ler ro- tar", mas igualmente "verifica", o primeiro, como diria Devereux,
mances para escapar, por exemplo, à maçada do censo genealó- analisa sua contratransferência: "Considero a discrição deles, a
gico "nada engraçado". Idéias Ihe ocorrem, mas logo se vão. relutância deles em definir seus planos (Mailu, Boyava, aqui).
"Idéias que tinham uma relação com o «molho» teórico geral que Percebo que estou fazendo isso e procuro atingir uma <«isenção»"
deve adornar «minhas observações concretas»." Porque "eu cer- A resistênciado objeto faz Malinowski se encher de ódio pe-
tamente serei um <<eminenteestudioso polonês». Essa será mi- los nz89ers.Tem vontade de abandonar tudo. Não satisfeitos
nha última aventura etnológica". em Ihe interditar a observação participante da instituição Kula,
Nesse tempo de espera, tem de se forçar a escutar coisas ma- não é que o obrigam a se instalar em uma outra ilha, a fim de
ravilhosas da boca do detestável informante. "A principal difi- que, durante a expedição, não seja tentado por suas mulheres?
culdade etnográfica é superar isto". Por vezes, é necessárioten- (29 de março de 1918). Frustração: deixam-no contemplar as
tar não dormir durante uma entrevista muito longa, mesmo canoas da expedição vinda de Dobu e. . . discutir acerca do Kula
tratando-se do Kulal Ou "reprimir ocasionais desejos de ir ter com um guardam
com as putas' Início de abril de 1918,nova "dissimulação": "De manhã, sem
No começode 1918,Malinowski observa uma série de trocas meu conhecimento, os barcos dos dobuanos partiram. Trabalhei
Kula. A despeito de intensiva, a observação não proíbe, muito ao em casa com alguns rapazes sobre a questão do ku/a". É a época
contrário, que se entregue a especulações. O diário de pesquisa do encontro e da forte amizade com o jovem francês Raffael. Tam-
faz séria concorrência ao diário de campo. Afinal de contas, não é bém época em que Malinowski dá "um ou dois socos na mandí-
a construção teórica, para ele, a arma secreta do método empírico? bula" de seu boy. Momento igualmente em que, fascinado pela
Afinal de contas, o mLmdo (o objeto observado) jamais se ofere- belezados corpos femininos e masculinos, sofre de remorsos após
ce espontaneamente:caso contrário, a paquera às duas mulhe- ter acariciado uma garota bonita, que se torna, por projeção de
res no barco não o teria impedido de descobrir o Kula dois ou sua culpabilidade, uma "prostituta Kiriwina"
três anos antesl Malinowski anota um novo "ponto teórico' "Irritado pelos boys, atormentado pelos mosquitos", fascina-
1. Definição de uma dada cerimónia, espontaneamentefor- do por Raffael("não devo fazer dele meu principal assunto"),
mulada pelos negros; Malinowski confessa: "Os problemas etnográficos não me preo-
2. Chegaram a essa definição depois de terem sido "bombar- cupam em absoluto" (29 de abril de 1918).
deados" com pergzlnfas arie/zfadas; Enfim, início de maio: "Um dia durante o qual tornei a fazer
3. Definição à qual se chegou por meio da interpretaçãode um pouco de tuba//zode campo".Acerca do ritual dos jardins.
dados concretos" (6 de março de 1918). Em junho, quando fervilha de idéias sobrea "metodologiado
280 REN É LOU RAU UnA TÉCNICA OE ANAL-iSEOE IMPLICAÇÕES 281
fraga/ho de campo", Malinowski recebe a notícia da morte da mãe. Porém, ao longo de suas cademetas, Malinowski não deixa
Desespero- de se dedicar a um esboçode "diário do diário": novo intertexto
Julho: "ir me encontrar com mamãe, juntar-me a ela no seu dentro do extratexto.
nada". Ê o fim do Dííírío e da estada em campo. Quase no fim da A preocupação em manter o diário manifesta-se seguidamen-
Primeira Guerra Mundial. Sobre a descoberta e o trabalho de te: mediante os esforços do "diário retrospectivo" destinado a
informação sobre este Kula que viria a tornar-se o tema central preencher as lacunas de vários dias ou semanas --, através de pro-
e musical dos Árgoníli/tízs, produzindo o mito malinowskiano, messas, remorsos, reprimendas e ainda pelo registro de uma in-
através do diário só saberemos, finalmente, poucas coisas. A terrupção.
coleta de dados é nele descrita muito fragmentariamente, indi- Em primeiro de agostode 1915,Malinowski sublinha uma in-
retamente, e nunca quanto ao conteúdo. Mas é a ausência de terrupção de cinco meses. Quando se decide, nesse dia, a uma
observação direta e "participante" que obriga o etnólogo a re- 'entrada" tão curta, não é para fazer um rápido balanço do tra-
fletir sobre o lugar que ocupa diante da instituição sempre au- balho durante o período, e sim para falar da decisão de se casar,
sente;a imaginar bem melhor,por isso, o lugar que os indíge- assim como da forte impressão que Ihe causaram os romances
nas ocupam em relação ao etnólogo e, especialmente, o lugar de Conrad. "A começar por amanhã --não, hoje vou iniciar ou-
que o Kula ocupa na "psicologia social" e na vida dos indígenas. tro diário"; e acrescenta, sem rir: "devo preencher as páginas em
branco destes últimos cinco meses
A resistência do objeto itinerante é o que alimenta a pesquisa. A
não-resistência,ou a menor resistência de um outro objeto,não Dupla promessa. O novo diário é iniciado dois anos mais tar-
itinerante e mais visível os Jardins --, permite alimentar uma de, em 28 de outubro de 1917,e o diário retrospectivo que abre
pesquisa mais clássica. Quando opta por orquestrar primeira- esta segunda parte evidentemente só trata das semanas que pre-
mente o tema Kula, deixando para muito mais tarde a publica- cedem a abertura mencionada.
ção do livro sobre os /ardfns, Malinowski não se equívoca: des- A preliminar da segunda parte é tocante: "um diário no senti-
crever o que Ihe havia escapado era muito mais fascinante do do estrito do termo". Este título entre aspas é de Malinowski?
que descrever os jardins que tinha sempre diante dos olhos. Seguem-se promessas solenes: "Dia após dia, sem exceção, re-
Tendo em mente intertextos célebres (ÁrgoFzaufasetc.), o leitor gistrarei os eventos de minha vida em ordem cronológica. A cada
do DfáHo fica frustrado quando chega ao fim. Embora tal fim dia, um relato do dia anterior. . ." Em seguida, a orientação ínti-
nada tenhaa ver com uma conclusãopremeditada,mesmo as- ma, moral, do diário é nitidamente assinalada. A assiduidade ao
sim gostaríamosde contar com algumas consideraçõesteóricas trabalho é posta no mesmo plano que a fidelidade à noiva. Aqui,
ou com a evocação detalhada de uma das últimas jornadas de o diário é personificado. Passamos a esperar por apóstrofesdo
campo nesse mês de julho de 1918.Temos de nos contentar com gênero "meu querido diário, juro que. . .", como encontramos
a oração fúnebrepela Mãe, ou melhor com uma meditaçãobas- em inúmeros diários íntimos de mocinhas, estilo Eugénie de
Guérin.
tante lúgubre sobre a morte, o nada de todas as coisas. Teríamos
apreciado uma reflexão do diarista sobre si mesmo enquanto dia- Em 18 de novembro de 1917, o interesse do diário retrospecti-
rista, acrescentada, se necessário, dez ou vinte anos mais tarde. vo é analisado: "Resolução: calmamente, sem trincar os dentes,
uma teoria do Dfárío em suas "funções" complexas em síntese, escreva o diário retrospectivo,como trabalho preliminar. A es-
uma autoscopia que poupasse o leitor que sou da pesada disse- sência dele é rever o passado, uma concepção mais profunda da
vida'
cação aqui levada a cabo.
282 REN É LO U RAU UMA TÉcNIcA DE ANÁLISE oe IMPLICAÇÕES 283
A idéia de recapitulação também está presentenas leituras e diário de pesquisa, uma instrumentalidade bem diferente da que
releituras do diário feitas pelo próprio diarista. Ele verifica, as- se esperada cadernetade campo: a observaçãode si mesmo,
sim, o ritmo de suas "entradas", a amplitude das lacunas. Serve- possibilitadape[a observaçãode um mundo estrangeiro.E ta]
se de informaçõesque permitem restabeleceruma certa conti- mundo simplesmente um álibi, um suporte qualquer, uma espé
nuidade em seu trabalho, senão em sua vida. Tem consciência cie de "manda" arbitrária? Novamente, aqui, pensamos em Leiris
do "valor histórico deste diário" (31 de dezembro de 1917). e nos perguntamos se ele não teria escrito igualmente bem seu
da "corrente mais profunda da vida" (5 de janeiro de 1918).Tra- diário (da Àfrica) permanecendo em Paris.
ta-se de uma espécie de complemento da ginástica tri-cotidiana: René Guénon nos tranqüiliza ao afirmar que, na busca da ini-
uma catarse, inclusive em relação a seus "apetites sexuais", a sua ciação, não há suporte mais nobre que outro: se vamos ao limite
"lascívia" (16 de janeiro de 1918). de nós mesmos, até o mais humilde ou o mais bizarro se torna
Alguns meses mais tarde, relendo-se, Malinowski reflete so- um precioso instrumento espiritual. A seguir. podemos nos de-
bre a manutenção do diário "como problema de análise psicoló- sembaraçar dele, como fez Malinowski, por exemplo, esquecen-
gica: pâr em evidência os elementos essenciais, classifica-los (de do-o durante mais de vinte anos no fundo de uma velha valise.
que ponto de vista?) e, descrevendo-os,indicar mais ou menos
claramentesua importância relativa aof/ momento dado, sua pro-
porção, minhas reações subjetivas etc.
Em junho de 1918,perto do fim do diário, ele evoca as rela-
ções entre sua ambição e o gosto pela introspecção. Contraria-
mente à idéia difundida segundo a qual a auto-observação con-
duz à mação ou para ela forja um álibi, Malinowski fala da
ambição que provém de ver constantemente a si mesmo --o ro-
malzceda própriaufda; olhos voltados para a própria forma" Nes-
te sentido, a autoscopia seria simplesmente o primeiro passo de
uma "observação participante", sustentando a "ambição criati-
va" e tendo por ferramenta o diário na qualidade de ginástica
ou exercícioespiritual.
A teoria malinowskiana do diário faz efetivamente parte da
pesquisa da qual as cadernetas de campo nos dão os traços, os
passos filosóficos, éticos, místicos até. Pode-se preferir a teoria
de Leiris, mais psicanalítica e, afinal, mais orientada para uma
perspectiva epistemológica. Neste caso, as condições subjetivas
da objetividade são postas no mesmo plano das condições obje-
tivas da subjetividade.
Em Malinowski, todavia, o diário de campo -- possivelmente
invadido pelo "quarto de quinquilharias" do diário intimo e do
diário de pesquisa reencontra, na ligação entre diário íntimo e
PRINCIPAIS SIGLAS
AG Assembleia-Geral
A[ Análise Institucional
Ampag Associação Mexicana de Psicoterapia Analítica de
Grupo
Andsha Association Nationale pour le Développement des
Sciences Humaines Appliquées(Associação
Nacional para o Desenvolvimento das Ciências
Humanas Aplicadas)(Jacques Ardoino)
Apsi (Associação Privada de Análise Institucional)
Aüp Association pour la Recherche et I'lntervention
Psychosociologique (Associação de Pesquisa e
Intervenção Psicossociológica)
Conselho de Administração
Chip Centro de Análise Institucional e Psicológica (grupo
de Lapassade que existiu até 1968)
c(:u Comitê Consultivo das Universidades
CEL Cooperativa de Ensino Laico
Cepreg (Associação Privada de Análise Institucional)
Cerep (Associação Privada de Análise Institucional)
Cera Centre d'Etude, Rechercheet Formation
Institutionelles (Centro de Estudo, Pesquisa e
Formação Institucionais)
CES Colégio de Ensino Secundário
CFDT Confederação Francesa Democrática do Trabalho
CGT Confederação Geral do Trabalho
CNRS Centre National de Recherches Scientifiques (Centro
Nacional de Pesquisas
285
Científicas)
286 P RI NC l PAI S SI G LAS PRI NC l PAIS SIGLAS 287
CNT Confederação Nacional do Trabalho (sindicato PCF Partido Comunista Francês
anarquista da Espalha) PCI Partido Comunista Italiano
Cordel Comité d'Organisation des Recherches Appliquées PCus Partido Comunista da União Soviética
sur le Développement Economique et Social (Comitê PSU Partido SocialistaUnificado
de Organização de Pesquisas Aplicadas ao SEU Secretariadode Estado para a Universidade
Desenvolvimento Económico e Social) TFI Televisão francesa (primeiro canal da televisão
CRI Centre de Recherche Institutionelle (Centro de privatizada na França)
Pesquisa Institucional) TIIX sigla-pseudónimo usada por Max Pagos para falar
Contratransferência institucional sobre a IBM
Datar Délégation à I'Aménagement du Territoire et à UEC União dos Estudantes Comun:stas
I'Action Régionale (Delegação para a Ordenação do UER Unité d'Enseignement et Reco.erche (Unidade de
Território e para a Ação Regional) Ensino e Pesquisa). Hoje em d ] denomina-se Unité
DEA [)iploma de Estudos Aprofundados de Formaüon et Recherche (UF.') . ou seja, Unidade
Federação Anarquista Ibérica de Formação e Pesquisa.
Fgel Federação Geral de Estudantes de Letras UeÜ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Fgeri Fédération des Groupes d'Etudes et de Recherches UGE União Geral das Editoras
Institutionelles (Federação dos Grupos de Estudos e Unem União Nacional dos Estudantes Franceses
Pesquisas Institucionais) Unidade de Valor (análoga a nossos créditos
GET Grupo de Educação Terapêutica universitários)
GPI Grupo de Pedagogia Institucional
GPU polícia secretasoviética
Quase todas as informações nos foram ofertadas por Gilles Monceau, professor
Grep Groupe de Recherchepour I'Education et la da UniversidadeParasVlll, a quem agradecemos.
Prospective (Grupo de Pesquisa para a Educação e a
Prospectiva)
GTE Grupo de Técnicas Ed ucativas
Icem Instituto Cooperativo da Escola Modema
lpem Instituto Parisiense da Escola Moderna
LCR Liga Comunista Revolucionária
MNEF Mutuelle Nationale des Etudiants de France
(Associação Nacional dos Estudantes da França)
NKVD Narodnyl Komissariat Vnontrennikh Vnontrenniikh
Diel(Comissariado do Povo para Assuntos Interiores
antigo órgão da polícia política soviética)
Ofaj Office Franco Allemand pour la Jeunesse (Escritório
Franco-alemãopara a Juventude)
OP Operário Profissional
0])A Offre Publique d'Achat (Oferta Pública de Compra)
Ouvrier Spécialisé(Operário Especializado)

Você também pode gostar