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Projeto de Doutorado UFMG 2022
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Projeto de Doutorado UFMG 2022
BELO HORIZONTE
2022
0
OBJETO
Desde a chegada da Missão Francesa em 1816, a criação de representações pictóricas das
XIX, as cenas brasileiras foram representadas pelas artes visuais, expondo as contradições
de uma nação dividida entre as dualidades e antagonismos dos espaços rurais e urbanos.
espacialidade brasileira era evidenciada ora por seus aspectos naturais, ora por seus
abordagens comuns nas representações das paisagens do Brasil, tanto nos oitocentos
quanto depois no século XX. As imagens brasileiras do campo e cidade travaram uma
batalha para estabelecer as identidades visuais que deveriam representar a nação ao longo
dos anos.1
fotógrafos também começaram a participar desta disputa travada no campo das imagens,
com o objetivo de formar uma identidade visual para a nação2. Durante todo o Segundo
Reinado, a fotografia colaborou com a construção de uma retórica imagética que buscava
Como afirma a historiadora Natalia Brizuela: “O Brasil moderno e paradisíaco que surge
1
MIGLIACCIO. Arte e classicismo no Brasil: ciando paisagens e relendo tradições, p. 48.
2
BRIZUELA. Fotografia e Império: Paisagens para um Brasil Moderno, p. 43.
3
Idem, p. 57.
1
evidenciaram a diversidade das paisagens brasileiras. O campo e a cidade refletidos,
fotografia. E, com isto, atestar a singularidade das paisagens brasileiras por meio da
Reinado.5
Diante desta premissa, o presente projeto de tese pretende se debruçar sobre as fotografias
República do Brasil. Tendo como objetivo investigar se, também durante este período, as
fotografias foram tomadas como instrumento para gerar visibilidade para as paisagens
que deveriam ser tidas como símbolos da nação e capazes de criar identidades nacionais.
de criar uma imaginação acerca da geografia e do território brasileiro. Com isso, busca-
4
BRIZUELA. Fotografia e Império: Paisagens para um Brasil Moderno, p. 53.
5
Idem, p. 60.
6
BURKE. A Testemunha Ocular. p. 35.
2
Portanto, pretende-se aqui dar inteligibilidade aos usos e funções da fotografia como
durante a República, tal qual no Império, um projeto nacionalista que se baseava no uso
representar a nação.
uma parte considerável dos documentos que deverão ser analisados se encontra
Campos Sales.
trabalho, foi marcada por importantes reformas urbanísticas. Sendo muitas delas
3
A respeito disso, a historiadora Viviane Araújo destaca que:
fotografias rurais iam na contramão desta tendência, e apresentam a face atrasada e pobre
da nação. Como podemos notar no caso das fotografias de Flávio de Barros sobre os
Assim sendo, também lançaremos mão das fotos de moradores das áreas rurais para
das fotografias produzidas entre 1889 e 1899 poderá nos ajudar a pensar a função da foto
EXPLICITAÇÃO DO PROBLEMA
que representava sem dar espaço para contestação ou dúvida latente. Parte deste caráter
7
ARAUJO. O papel da fotografia na construção simbólica das reformas urbanas. p. 48.
8
ROUILLÉ. A fotografia, p. 62.
4
O deputado francês Dominique Arago, no seu discurso em defesa da aquisição dos
em julho de 1839, já havia destacado a natureza fiduciária e fidedigna das imagens obtidas
simples reprodução fiel da realidade deu a ela o status de prova irrefutável de fatos e
acima de qualquer suspeita, um testemunho impassível de falsificação. Por isso, ela pode
ter sido utilizada como uma forma de atestar os contrastes entre campo e cidade durante
O sociólogo alemão Siegfried Kracauer lembra, em seu artigo sobre fotografia, que:
incontestável. Esta mesma ideologia positivista confiava nas imagens capturadas pelas
lentes objetivas por serem fruto de um processo físico-químico, em grande parte alheio a
9
ARAGO. Relatório. p. 37.
10
KRACAUER. Fotografia, p. 269.
5
ação humana. E, como lembra a historiadora portuguesa Maria Medeiros, “a crença no
De acordo com Boris Kossoy, as fotografias apresentam uma segunda realidade ao seu
observador. Esta outra realidade seria aquela representada pelo documento. Pois:
barthesiano, e remete à ideia de que o referente fotográfico, de fato, esteve um dia diante
irrefutável, que potencialmente pode ter sido instrumentalizado pela República como
Portanto, faz-se mais uma vez indispensável lembrar que a Primeira República vivenciou,
que tais intervenções foram narradas em álbuns fotográficos que, além de propagandear
11
MEDEIROS. Fotografia e Verdade, p. 111.
12
KOSSOY. História e Fotografia, p. 168.
13
BARTHES. A câmara clara, p. 68.
6
fotógrafos atenderam à demanda de que tais intervenções fossem
documentadas, a partir de um meio capaz de promover seu registro e
divulgação da maneira considerada, então, a mais irrefutável de que se
dispunha.14
por Flávio de Barros, fotógrafo contratado pelo exército para registrar a Guerra de
Canudos, em 1897, serão fonte importante para investigar o uso da fotografia como
O uso da fotografia como instrumento ideológico das classes dominantes poderá ser
evidenciado através do estudo da fotografia intitulada 400 jagunços prisioneiros, feita por
Barros, em outubro de 1897, nos momentos finais da Guerra de Canudos. Esta imagem
Ao fazer uso do termo “jagunço” para se referir aos conselheiristas que se renderam aos
batalhões do exército para não morrer, o fotógrafo tenta passar a ideia de que a população
de Belo Monte era formada por pessoas violentas e naturalmente agressivas. Com isto, é
14
ARAUJO. O papel da fotografia na construção simbólica das reformas urbanas, p. 49.
15
MACHADO. A ilusão espetacular, p. 16.
7
possível que Flávio de Barros tenha buscado reunir argumentos que justificassem o
povo pobre, fraco e acuado, formado majoritariamente por mulheres e crianças. Muito
OBJETIVOS
seguinte forma:
que seriam admitidos como símbolos da nação. E compreender até que ponto a
3. Perceber se, de fato, a fotografia foi utilizada como testemunha ocular dos
8
edifícios, mas obras de grande porte. Esse tipo de registro de obras
acabadas, ou de acompanhamento de obras públicas relevantes, só fez
consolidar-se com o incremento do ritmo de construções e
modernização do Brasil. Prédio oficiais, fontes, chafarizes, praças,
estátuas, novas avenidas, intervenções urbanas, demolições saneadoras,
instalações de redes de transportes, tudo passou a ser registrado com
frequência crescente, para culminar na virada do século numa
intensidade proporcional ao ritmo das obras.16
coletiva. Já que
instrumento ideológico.
HIPÓTESE
16
FABRIS. Fotografia: usos e funções no século XIX, p. 165.
17
KOSSOY. Tempos da fotografia, p. 132.
9
território foram figurados, configurados e reconfigurados por meio da fotografia
3. A imagem fotográfica poderia ter sido utilizada como instrumento ideológico das
memórias coletivas a ponto de fixar na mente dos brasileiros paisagens que seriam
Escola dos Annales, desenvolveu o termo “lugares da memória” para falar sobre
18
SÜSSEKIND. O ensaio como hiato, p. 8.
19
SIMÕES JUNIOR. Cenários de Modernidade, p. 06.
20
MACHADO. A Ilusão Especular, p 19.
10
respectivas comunidades. Nora destaca que “Se habitássemos ainda nossa
memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares. Não haveria lugares
porque não haveria memória transportada pela história”.21 Para ele, a “memória
EXPLICITAÇÃO DO MÉTODOS
Assim como ocorre com outras formas de comunicação, uma imagem carrega signos que
naturalmente comunicam com o grupo social no qual ela foi criada. Imagens são feitas de
códigos culturais que são identificados e lidos pelos indivíduos que fazem parte da
contextualizar o seu período de produção. Desta forma faz-se necessário elencar uma série
histórico.
Tais perguntas, fundamentais para a pesquisa que trata fontes como a fotografia, são
21
NORA. Entre Memória e História, p. 8.
22
NORA. Entre Memória e História, p. 9.
23
BORGES. História & Fotografia, p. 79.
11
ocupa na sociedade?; para qual público o documento/imagens se destina?; e quais são as
aquilo que irá compor a imagem. Uma fotografia é sempre um recorte, e nunca consegue
reproduzir toda a cena. Por isso é trabalho do fotógrafo selecionar aquilo que será
Sob este aspecto, todos os elementos representados numa fotografia devem ser encarados
como indispensáveis para o entendimento das intenções por trás da criação da imagem.
Todos os personagens e objetos que compõem o referente fotográfico devem ser vistos
Neste sentido, o historiador que pretende lançar mão da fotografia como fonte primária
analisar tudo que se apresenta dentro deste enquadramento como referente da fotografia.
fotografias nos álbuns nunca ocorre por acaso ou coincidência. Faz-se imperativo
entender o conjunto de clichês como uma forma de narrativa que contribuirá para uma
imagens.
Outro ponto importante para o historiador que se propõe trabalhar com documentos
Para fazê-la falar, o historiador precisa lançar mão do saber dos que
dominam a história das técnicas fotográficas. Seu conhecimento muito
contribuiu para desvendar a datação das imagens, a identificação de
suas possíveis filiações estéticas e, ainda, permite-lhe levantar questões
relacionadas com o uso de um determinado tipo de máquina fotográfica
24
BORGES. História & Fotografia, p. 82.
12
e a margem de liberdade do fotógrafo. Esses elementos técnicos
permitem ao analista saber, por exemplo, se uma imagem é, ou não,
fruto de uma montagem.25
O pesquisador que estuda as fontes imagéticas deve prestar atenção às legendas e escritos
tais como título, data, nome de lugares ou de personagens retratados – são úteis para uma
Outra tarefa e a ser empregada diz respeito a recepção das fotografias, ou de parte das
25
BORGES. História & Fotografia, p. 87.
26
RODRIGUES. Análise e tematização da imagem fotográfica, p. 72.
27
MAUAD. Sob o signo da imagem, p. 23.
13
entre 1889 e 1899 informações capazes de indicar como estas imagens foram recebidas e
Por fim, deve-se observar o local retratado, o espaço físico e geográfico no qual a
entre cidade e campo serão aqui ainda mais importantes para alcançarmos os objetivos
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
estudo, é amplo pela própria natureza do tema e das fontes a serem trabalhadas. Logo,
além da própria história, serão convenientemente utilizadas para elucidar questões e tratar
Ao longo dos anos, a fotografia foi concebida como “duplo do real”.28 Todavia, longe de
ser isenta e ingênua, ela pode servir como instrumento ideológico das classes dominantes,
ajudar a construir o imaginário social e reforçar visões de mundo que vão ao encontro dos
reforçar a ideologia das classes dominantes, é que lançaremos mão da obra de Arlindo
28
DUBOIS. O ato fotográfico e outros ensaios, p. 27.
29
MACHADO. A ilusão espetacular, p. 14.
14
No tocante a análise do uso da foto como instrumento que auxilia a criação de identidades,
a obra de Benedict Anderson será muito útil para dar luz ao processo de construção
O autor britânico destaca como foi formada, ao longo dos séculos, o imaginário sobre a
áreas rurais e suas populações, sempre muito ligado a ideia de atrasamento civilizacional
30
ANDERSON. Comunidades Imaginadas, p. 278.
31
WILLIAMS. O campo e a cidade. p.11.
15
Outro texto mobilizado para auxiliar o estudo das fontes será A câmera clara, de Roland
Barthes. Através desta obra será proposto o debate a respeito das duas características
realidade e do passado. Como afirma semiólogo francês: “na Fotografia jamais posso
Ao analisar uma fotografia, não podemos duvidar que o referente fotográfico esteve
diante das lentes da câmera. Logo, o referente existe, ou melhor, existiu. Pois, para se
narrativa sobre o passado, que ainda se assume como um vestígio confiável do tempo
pretérito.
32
BARTHES. A câmera clara, p 67.
33
BARTHES. A câmera clara, p. 68.
16
passado. Esse auxílio à recordação pode ter contornos de granulação
fina e foco excelente, mas não fala. Eis por que a memória das
fotografias, excelente e inesgotável, assume vida própria como
recordação fantasmagórica, tão logo se suspenda o texto narrativo e
comunicativo que as emoldura. Só esse texto logra retraduzir as
imagens externas da memória em recordações viva.34
Este aspecto destacado por Assmann, a função da fotografia como vestígio ou indício do
passado, apresenta paralelismos com outra obra que também servirá de base para sustentar
nossas hipóteses e ideias a respeito dos usos da fotografia. A obra de Susan Sotag, Ensaios
mesmo como uma permanente imanência do passado. Sotag define a fotografia como
narrativa do passado. Pois, tanto uma como a outra, seriam capazes de quebrar com a
cronologia e com a relação de causa e consequência presente nas formas mais tradicionais
de narrativa histórica.
fatos e eventos do passado, criando um tempo vazio e homogêneo. Este, por sua vez,
A proposta apresentada por Benjamin é a criação de uma narrativa histórica que redima
o passado. Deste modo, o filósofo alemão defende a criação de uma narrativa histórica
que foque no fenômeno com o objetivo de exaltá-lo e destacá-lo dentro da história. Esta
34
ASSMANN. Espaços de recordação, p. 238.
35
SOTAG. Sobre a fotografia, p. 83.
36
GAGNEBIN. História e narração em Walter Benjamin, p. 12.
17
outra forma de contar os fatos busca ser, como o próprio Benjamin classificou, “um salto
eventos do tempo pretérito, e cria uma relação dialética entre o presente e o passado, se
inspira na fotografia. Desse modo, a narrativa fotográfica seria esta imagem dialética que
dá notoriedade ao fato histórico, e narra o passado de forma não cronológica e não causal,
de Belo Monte. Mesmo que ironicamente elas tivessem sido criadas com o objetivo
Canudos.
Por fim, os escritos do filósofo francês Jacques Rancière também contribuirão para a
A intenção é pensar as nuances que formam a relação entre a fotografia e verdade durante
o século XIX. E como a partir desta ideia de veracidade da imagem fotográfica este tipo
de documento foi instrumentalizado como prova irrefutável da existência daquilo que ele
representa.
37
BENJAMIN. Sobre o conceito de história, p. 230.
18
driblando as táticas do discurso que quer fazê-la expressar uma
significação.38
Esta proposta se adequa à linha “História Social da Cultura” porque se situa no campo da
chamada “Nova História Cultural”, e isso devido tanto ao modo de abordagem das fontes
históricas como a forma de desenvolver o tema a ser tratado. Sendo uma das principais
A partir dessa abordagem culturalista, pretendemos revelar não somente a forma pela qual
construção da realidade social brasileira e a visão sobre o Brasil entre os anos de 1889 e
1899.
38
RANCIÈRE. O destino das imagens, p. 18.
39
CHARTIER. A História Cultural entre práticas e representações, p. 17.
19
compreender os mecanismos pelos quais um grupo se impõe ou tenta
se impor, a sua concepção de mundo social, os valores que são os seus,
e o seu domínio.40
40
Idem.
20
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
21
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Perspectiva, 2013.
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