Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Aquela Água Toda: João Anzanello Carrascoza

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 17

JOÃO

ANZANELLO
CARRASCOZA

Aquela
água
toda

ela Agua Toda_3a prova.indd 3 18/01/18 17:


Copyright © 2018 by João Luis Anzanello Carrascoza

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa e projeto gráfico


Alceu Chiesorin Nunes

Ilustrações de capa e miolo


Visca

Preparação
Ana Kronemberger

Revisão
Adriana Moreira Pedro
Thaís Totino Richter

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se
referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Carrascoza, João Anzanello


Aquela água toda / João Anzanello Carrascoza. — 1a ed.
— Rio de Janeiro : Alfaguara, 2018.

isbn 978-85-5652-023-4

1. Ficção brasileira  I. Título.

17-11470 cdd-869.3

Índice para catálogo sistemático:


1. Ficção : Literatura brasileira  869.3

[2018]
Todos os direitos desta edição reservados à
editora schwarcz s.a.
Praça Floriano, 19, sala 3001 — Cinelândia
20031-050 — Rio de Janeiro — rj
Telefone: (21) 3993-7510
www.companhiadasletras.com.br
www.blogdacompanhia.com.br
facebook.com/alfaguara.br
instagram.com/editora_alfaguara
twitter.com/alfaguara_br

ela Agua Toda_3a prova.indd 4 18/01/18 17:


Sumário

8 Aquela água toda


18 Cristina
28 Medo
36 Grandes feitos
42 Recolhimento
51 Mundo justo
65 Passeio
75 Paz
85 Vogal
92 Chave
102 Herança

ela Agua Toda_3a prova.indd 5 18/01/18 17:


ela Agua Toda_3a prova.indd 6 18/01/18 17:
ela Agua Toda_3a prova.indd 7 18/01/18 17:
Aquela
água
toda

ela Agua Toda_3a prova.indd 8 18/01/18 17:


E
ra, de novo, o verão. O menino estava na
alegria. Modesta, se comparada à que o es-
perava lá adiante. A mãe o chamou, e o ir-
mão, e anunciou de uma vez, como se natu-
ral: iriam à praia de novo, igualzinho ao ano anterior,
a mesma cidade, mas um apartamento maior, que o
pai já alugara. Era uma notícia inesperada. E ao ou-
vi-la ele se viu, no ato, num instante azul-azul, os pés
na areia fervente, o rumor da arrebentação ao longe,
aquela água toda nos olhos, o menino no mar, outra
vez, reencontrando-se, como quem pega uma concha
na memória.
É verdade, mesmo?, queria saber. A mãe confir-
mou. O irmão a abraçou e riram alto, misturando os
vivas. Ele flutuava no silêncio, de tão feliz. Nem lem-
brava mais que podia sonhar com o sal nos lábios, o
cheiro da natureza grande, molhada, a quentura do sol
nos ombros, o menino ao vento, a realidade a favor, e
ele na sua proa...

ela Agua Toda_3a prova.indd 9 18/01/18 17:


ela Agua Toda_3a prova.indd 10 18/01/18 17:
O dia mudou de mão, um vaivém se espalhou
pela casa. A mãe ia de um quarto ao outro, organizava
as malas, Vamos, vamos, dava ordens, pedia ajuda,
nem parecia responsável pela alegria que causara. O
menino a obedecia: carregava caixas, pegava roupas,
deixava suas coisas para depois. Temia que algo pu-
desse alterar os planos de viagem, e ele já se via lá, cer-
cado de água, em seu corpo-ilha; um navio passava ao
fundo, o céu lindo, quase vítreo, de se quebrar. Não,
não podia perder aquele futuro que chegava, de man-
sinho, aos seus pés. O menino aceitava a fatalidade da
alegria, como a tristeza quando o obrigava a se enco-
lher — caracol em sua valva. Não iria abrir mão dela.
Viver essa hora, na fabricação de outra mais feliz, ocu-
pava-o; e ele, ancorado às antigas tradições, fazia o
possível para preservá-la. A noite descia, e mais grossa
se tornava a casca de sua felicidade.
Quando se deu conta, cochilava no sofá,
exausto pelo esforço de preparar o dia seguinte. Es-
forçara-se para que, antes de dormir, a manhã fosse
aquela certeza, e ela seria mesmo sem a sua pobre
contribuição. Ignorava que a vida tinha a sua pró-
pria maré. O mar existia dentro de seu sonho, mais

11

ela Agua Toda_3a prova.indd 11 18/01/18 17:


do que fora. E, de repente, sentia-se leve, a caminhar
sobre as águas — o pai o levava para a cama, com
seus braços de espuma.

Abriu os olhos: o sol estava ali, sólido, o carro de


portas abertas à frente da casa, o irmão em sua ber-
muda colorida, a voz do pai e da mãe em alternância,
a realidade a se espalhar, o mundo bom, o cheiro do
dia recém-nascido. O menino se levantou, vestiu seu
destino, foi fazer o que lhe cabia antes da partida, to-
mar o café da manhã, levar as malas até o carro onde o
pai as ajeitava com ciência, a mãe chaveava a porta dos
fundos, Pegou sua prancha?, ele, Sim, como se num dia
comum, fingindo que a satisfação envelhecia nele, que
se habituara a ela, enquanto lá no fundo brilhava o ve-
rão maior, da expectativa.
Partiram. O carro às tampas, o peso extra do so-
nho que cada um construía — seus castelos de ar. A
viagem longa, o menino nem a sentiu, o tempo em on-
das, ele só percebia que o tempo era o que era quando
já passara, misturando-se a outras águas. Recordava-
-se de estar ao lado do irmão no banco de trás, depois

12

ela Agua Toda_3a prova.indd 12 18/01/18 17:


junto ao vidro, numa calmaria tão eufórica que, para
suportá-la, dormiu.
Ao despertar, saltou as horas menores — o lanche
no posto de gasolina, as curvas na descida da serra, a
garagem escura do edifício, o apartamento com mó-
veis velhos e embolorados — e, de súbito, se viu de
sunga segurando a prancha, a mãe a passar o protetor
em seu rosto, Sossega! Vê se fica parado!, ele à beira de
um instante inesquecível.
Ao lado do edifício, a família pegou o ônibus,
um trechinho de nada, mas demorava tanto para che-
gar... E pronto: pisavam na areia, carregados de bol-
sas, cadeiras, toalhas, esteiras, cada um tentando guar-
dar na sua estreiteza aquele aumento de felicidade. O
menino, último da fila, respirava fundo a paisagem, o
aroma da maresia, os olhos alagados de mar, aquela
água toda. Avaro, ele se represava. Queria aquela vi-
vência, aos poucos.
O pai demarcou o território, fincando o guar-
da-sol na areia. O irmão espalhou seus brinquedos
à sombra. A mãe observava o menino, sabia que ele
cumpria uma paixão. Não era nada de mais. Só o
mar. E a sua existência inevitável. Sentado na areia,

13

ela Agua Toda_3a prova.indd 13 18/01/18 17:


a prancha aos seus pés, ele mirava os banhistas que
sumiam e reapareciam a cada onda. Então, subita-
mente, ergueu-se, Vou entrar!, e a mãe, Não vai lá
no fundo!, mas ele nem ouviu, já corria, livre para
expandir seu sentimento secreto, aquela água toda
pedia uma entrega maior. E ele queria se dar, inteira-
mente, como um homem.
Foi entrando, até que o mar, à altura dos joelhos,
começou a frear o seu avanço. A água fria arrepiava.
Mas era um arrepio prazeroso, o sol se derramava so-
bre suas costas. Deitou de peito na prancha e remou
com as mãos, remou, remou, e aí a primeira onda o
atingiu, forte. Sentiu os cabelos duros, o gosto de sal,
os olhos ardendo. O desconforto de uma alegria su-
perior, sem remissão, a alegria que ele podia segurar,
como um líquido, na concha das mãos.
Pegou outra onda. Mergulhou. Engoliu água.
Riu de sua sorte. Levou um caldo. Outro. Voltou ao
raso. Arrastou-se de novo pela água, em direção ao
fundo, sentindo a força oposta o empurrando para
trás. Estava leve, num contentamento próprio do
mar, que se escorria nele, o mar, também egoísta na
sua vastidão. Um se molhava na substância do outro,

14

ela Agua Toda_3a prova.indd 14 18/01/18 17:


era o reconhecimento de dois seres que se delimitam,
sem saber seu tamanho.
O menino retornou à praia, gotejando orgulho.
O sal secava em sua pele, seu corpo luzia — ele, numa
tranquila agitação. E nela se manteve sob o guarda-
-sol com o irmão. Até que decidiu voltar à água, numa
nova entrega.
Cortou ondas, e riu, e boiou, e submergiu. Era ele
e o mar num reencontro que até doía pelo medo de aca-
bar. Não se explicavam, um ao outro; apenas se davam
a conhecer, o menino e o mar. E, naquela mesma tarde,
misturaram-se outras vezes. A mãe suspeitava daquela
saciedade: ele nem pedira sorvete, milho verde, refri-
gerante. O menino comia a sua vivência com gosto,
distraído de desejos, só com a sua vontade de mar.

Quando percebeu, o sol era suave, a praia se des-


povoara, as ondas se encolhiam. Hora de ir, disse o pai
e começou a apanhar as coisas. A família seguiu para
a avenida, o menino lá atrás, a pele salgada e quente,
os olhos resistiam em ir embora. No ônibus, sentou-se
à janela, ainda queria ver a praia, atento à sua paixão.

15

ela Agua Toda_3a prova.indd 15 18/01/18 17:


Mas, à frente, surgiam prédios, depois casas, prédios
novamente, ele ia se diminuindo de mar. O embalo do
ônibus, tão macio... Começou a sentir um torpor agra-
dável, os braços doíam, as pernas pesavam, ele foi se
aquietando, a cabeça encostada no vidro...
Então aconteceu, finalmente, o que ele tinha ido
viver ali de maior. Despertou assustado, o cobrador o
sacudia abruptamente, Ei, garoto, acorda! Acorda, ga-
roto!, um zum-zum-zum de vozes, olhares, e ele so-
zinho no banco do ônibus, entre os caiçaras, procu-
rando num misto de incredulidade e medo a mãe, o
pai, o irmão — e nada. Eram só faces estranhas.
Levantou-se, rápido no seu desespero, Seus pais já
desceram, o cobrador disse e tentou acalmá-lo, Desce no
próximo ponto e volta! Mas o menino pegou a realidade
às pressas e, afobado, se meteu nela de qualquer jeito.
Náufrago, ele se via arrastado pelo instante, intuindo
seu desdobramento: se não saltasse ali, se perderia na
cidade aberta. Só precisava voltar ao raso, tão fundo, de
sua vidinha...
Esgueirou-se entre os passageiros, empurrando-
-os com a prancha. O ônibus parou, aos trancos. O
cobrador gritou, Desce, desce aí! O menino nem pisou

16

ela Agua Toda_3a prova.indd 16 18/01/18 17:


nos degraus, pulou lá de cima, caiu sobre um canteiro
na beira da praia. Um búzio solitário, quebradiço. Saiu
correndo pelo calçadão, os cabelos de sal ao vento, o
coração no escuro. Notou com alívio, lá adiante, o pai
que acenava e vinha, em passo acelerado, em sua di-
reção. Depois... depois não viu mais nada: aquela água
toda em seus olhos.

17

ela Agua Toda_3a prova.indd 17 18/01/18 17:


Cristina

ela Agua Toda_3a prova.indd 18 18/01/18 17:


E
quando eu não queria mais que a prima Te-
resa perambulasse pelos meus pensamen-
tos, mesmo quando juntos, conversando
no quintal, seu braço a resvalar no meu, seu
cheiro entrando nos meus pulmões, e quando eu só a
queria comigo, frente a frente, nós dois mudos, sem
saber que a vida explodia debaixo da nossa quietude,
quando eu a queria real, fora dos meus sonhos, ela vol-
tou para o Rio de Janeiro com a tia Imaculada.
Inconformado, fui atrás da mãe, Por quê?, e a
mãe, Porque lá é a casa delas, e eu, Mas, e a mãe, sem
desconfiar que eu estava cheio de sombras, disse, Elas
vêm de novo, pro Natal.
Eu me recolhi todo, o Natal ia demorar demais,
uma dor oca no coração, uma vontade de só dormir,
de não crescer. A tristeza me envelhecia, e eu não
me esforçava para afastá-la. Esquecer a prima, como
quem apaga a luz do quarto, era trair o meu senti-
mento por ela.

19

ela Agua Toda_3a prova.indd 19 18/01/18 17:

Você também pode gostar