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O Que Foucault Tem A Nos Dizer Sobre Métodos
O Que Foucault Tem A Nos Dizer Sobre Métodos
O Que Foucault Tem A Nos Dizer Sobre Métodos
INVESTIGATIVOS EM EDUCAÇÃO?
RESUMO
Meu objetivo neste texto é discutir, em linhas gerais, como o pensamento de Michel Foucault
pode ser operacionalizado nas pesquisas educacionais. Com esse pressuposto em mente,
procuro demonstrar como a análise de discurso empreendida por esse filósofo nas suas
principais obras introduz uma abordagem criativa e diferente perante os arquivos pedagógicos.
Com Foucault, não haveria um método transcendental, tampouco um receituário metodológico,
mas sim perspectivas únicas de trabalho de acordo com cada objeto discursivo escolhido pelo
pesquisador. Nesse sentido, valho-me de algumas ideias presentes na sua arqueologia do saber
para sinalizar possibilidades investigativas, através de uma postura que também ecoa em
autores como Nietzsche, Veiga-Neto e Corazza.
ABSTRACT
1
Professor de ensino básico, técnico e tecnológico no Instituto Federal de Ciência, Educação e Tecnologia
Catarinense (IFC). Professor permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica
(ProfEPT/IFC). Tem formação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na área de Geografia,
onde concluiu os cursos de doutorado, mestrado acadêmico e licenciatura plena. Lecionou na rede pública e
privada de ensino do Estado do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em ensino,
atuando principalmente nas seguintes linhas: Ensino de Geografia, formação docente e Filosofia da Educação.
Primeiras palavras
ele, para nos referirmos sobre algum campo de conhecimento, devemos seguir normas
estratégicas e padrões enunciativos que nos autorizam a comentar sobre aquela área; dessa
forma, ninguém é livre para dizer o que quiser, no lugar que quiser, conforme o jeito que quiser.
É preciso seguir ordens discursivas, que autenticam a nossa palavra e a avaliam segundo
critérios de veracidade; “práticas divisoras”, que seccionam o certo e o errado (FOUCAULT,
1995).
Com esse instrumental posto, Foucault tratou ao longo das suas obras as teorias como
práticas construídas em meio a relações de poder e saber, de sorte que, como resultado, esses
discursos produzidos nunca foram neutros nem descolados de um a priori histórico que os
movia. Mais do que isso, continham no seu interior uma vontade de verdade que promoveria
um projeto de ascendência de uns sobre os outros. Com efeito, de um lado Foucault se vale do
criticismo kantiano para defender que os conceitos não são puros, mas corolários de práticas
sociais prévias; de outro, dá sequência ao programa de Nietzsche e mantém firme a concepção
segundo a qual o conhecimento sempre se manteve como um veículo arbitrário de dominação,
“[...] uma prática e uma teoria do discurso que é essencialmente estratégica; estabelecemos
discursos e discutimos, não para chegar à verdade, mas para vencê-la. É um jogo: quem perderá,
quem vencerá”? (FOUCAULT, 2002, p. 140). Por esses motivos, é necessário pensar o próprio
pensamento, problematizando a sua gênese, estrutura e funcionamento através do que vem
sendo dito e escrito.
No que tange às pesquisas em Educação, um primeiro exemplo dessa abordagem é que
não perguntaríamos, nos nossos projetos, quais seriam as melhores maneiras para ensinar um
conteúdo, e nem tampouco convergiríamos nossas forças para entender cientificamente como
os alunos aprendem. Ao contrário, faríamos uma espécie de garimpagem a fim de inventariar
quais seriam as teorias hegemônicas que vêm respondendo a essas perguntas. Na sequência,
descreveríamos quase exaustivamente o que mais aparece em termos linguísticos nesses
conceitos. Por fim, questionaríamos como emergiram e de onde efluíram esses pensamentos,
justamente para compreender quais foram as relações de poder e saber que as validaram. Em
suma, estaríamos fazendo uma arqueologia do saber.
A partir de agora, pretendo neste texto fazer um voo panorâmico sobre algumas linhas
de trabalho que Foucault desenvolveu com o intuito de compartilhar outras potencialidades para
se realizar investigações no campo educacional. Haja visto a expressividade desde a década de
1990 dos estudos foucaultianos nessa área, não serei aqui inédito e nem, muito menos,
metodologista. Meu objetivo é, até certo ponto, humilde: sintetizar as pontas de lança que dão
vigor à arqueologia no âmbito da análise discursiva para, talvez, arregimentar para essa grade
de inteligibilidade aquelas pesquisas que desejam ser mais analíticas do que denuncistas e/ou
prescritivistas. Sob outra perspectiva, muito me interessa contribuir para a queda parcial
daqueles manuais que vêm receitando, detalhadamente, o que devemos fazer para sermos
investigadores e produzirmos pesquisas. No caminho oposto, penso uma pesquisa como uma
elaboração artística, cuja qualidade advém do potencial de criação singular que transmite.
Escavar saberes
Para começo de conversa, nas trilhas do pensamento foucaultiano não se tem lugar
para a noção de método enquanto um modelo de programa que poderia conduzir o pesquisador
seguramente até o final da investigação. Por exemplo: da dialética entre a unidade de contrários
(materialismo histórico) surgiria no final uma síntese; pelas mãos da fenomenologia, chegar-
se-ia ao sentido primeiro que poderia explicar a subjetividade dos sujeitos; a etnografia lançaria
mão de diversas técnicas para compreender as pequenas relações sociais num determinado
lugar. Percebam que, nesses clássicos métodos, os pareceres já estão presentes a priori, cabendo
àquele que os executa faze-lo satisfatoriamente para encontrar os produtos verdadeiras da sua
pesquisa. Melhor dizendo: a Verdade, seja ela a histórica (luta de classes), a subjetiva e a
microssociológica.
Foucault não trabalha dessa forma, tampouco se coloca na “[...] posição a partir da
qual se chegue às últimas verdades ou se chegue cada vez mais perto das verdades
verdadeiramente verdadeiras” (VEIGA-NETO, 2009, p. 88). A junção entre Kant e Nietzsche
que atravessa seu pensamento propõe suspeitar das próprias teorias, ou mesmo daqueles
universais métodos, visto que eles foram feitos por sujeitos determinados num contexto de
poder e saber e que, principalmente, privilegiaram suas escolhas justamente devido a essa
conjuntura. Nesse sentido, as elaborações que fizeram para acessar a realidade não seriam
neutras, ainda que bem-intencionadas. Muitas vezes, aliás, elas foram as únicas que poderiam
ser feitas numa determinada época.
Em As palavras e as coisas, obra-prima de 1966 que projeta Foucault ao primeiro
escalão da Filosofia francesa, esse autor demonstra que as categorias que organizam
sistematicamente o pensamento de Marx – a totalidade, a História e a práxis – já estavam
presentes e vinham sendo cimentadas desde o século XVII. Assim, quando o marxismo
apresenta um projeto de sociedade que avançaria das mais subdesenvolvidas e alienadas às mais
na água e arriscar-se, fazendo uma fusão entre materiais diversos para atribuir um novo olhar
ao que parecia que já estava claro para todo mundo. Por mais emblemático que pareça, terá que
adquirir o costume de não “[...] se apoiar na autoridade de quem quer que seja” (ECO, 2012, p.
124). Nessa verdadeira arte em que se transforma o método, caem por terra as garantias dadas
pela trindade laica Razão-Ciência-Progresso (MORIN, 1986).
Na lógica desenvolvida por Feyerabend (1977), pode-se dizer que os estudos
foucaultianos atuam contra o método. Não se valem da estatística nem de nenhuma metodologia
distinta; não operam ao lado da cronologia visando um final de história; não prometem soluções
nem procurar prescrever a verdade que nos salvaria do abismo da Modernidade. Engendram,
sim, estratégias bastante singulares, formulando esquemas de ação a fim de conseguir enxergar
de um outro ponto de vista a constituição de um determinado objeto de estudo.
Com esse aviso feito, na sequência vou demonstrar que se em Foucault não existiria
um método unissonante, no entanto na sua obra está presente uma postura perante o
conhecimento reconhecida como arqueologia. Por outro lado, ele se dedicou com fôlego a
elaborar uma categoria que nos é muito válida na Educação, e que também vou me ater com
maior proximidade. Trata-se do conceito de discurso.
particular a cada objeto de estudo que não esteja no “[...] lugar privilegiado a partir do qual se
possa olhar e compreender definitivamente as relações que circulam no mundo” (VEIGA-
NETO, 2002, p. 35), mas que se dispusesse corajosamente a realizar uma transgressão
metodológica, ou algo como uma pluralidade imedótica, a prática que não nega o que já foi
feito em termos de pesquisa e ação, mas que acrescenta à abordagem elementos que são
pertinentes e necessários àquele objeto bruto de estudo (CORAZZA, 2002). Elementos que não
miram um fim determinado nem “[...] a aderência pegajosa a qualquer mestria” (CORAZZA,
2002, p. 127), e sim que se arriscam a marcar o nome próprio do pesquisador no seu autoral
percurso investigativo.
O que um pensamento como o de Foucault nos coloca é que, para além do processo de
racionalização presente na Modernidade que foi corrigindo-nos como homens e mulheres,
façamos um movimento de problematização que não precise tomar como base de sustento as
grandes verdades científicas provenientes da moral e da noção de sujeito epistêmico. Que não
caia, conforme escreve Silveira (2002, p. 78), no “[...] engodo do desnudamento da verdade, da
identificação do verdadeiro sentido que é dito”, e sim, em outra perspectiva, que faça uma
leitura atenta da mecânica discursiva que atravessa dados tipos de enunciados. Desse modo, a
verdade vai sendo considerada como uma produção histórica cujo deslindamento pode ser
possível organizando suas regras de existência e formação, entendendo a que relações de poder
ela foi sendo submetida nesse processo (MACHADO, 2006).
Foucault (2002) compararia, nas conferências de 1973 no Rio de Janeiro, o discurso
como um troféu de um debate entre sofistas, no qual alguém venceu a argumentação enquanto
outro a perdeu. Coloca do avesso, portanto, a matriz transcendental socrática-platônica, posto
que não compactua da noção de um conhecimento ideal: trata-se tão somente de uma atividade
histórico-política que influencia “[...] na economia atual de nossas condições de existência”
(FOUCAULT, 2002, p. 156). E que deve ser analisada como tal: um produto desse mundo, feito
por homens desse mundo. Logo, uma atividade arqueológica, ou seja, fazendo uso de uma
máquina metodológica bem limitada a cada tempo e a cada espaço e que escava “[...]
verticalmente as camadas descontínuas do passado a fim de trazer à luz fragmentos de ideias,
conceitos, discursos já esquecidos e aparentemente desprezíveis” (VEIGA-NETO, 1995, p. 21).
Pela soma desses elementos e posturas que estou enumerando, depreendemos que não
aparece, em Foucault, as eternas e salvacionistas promessas de um método científico que
ofereça as garantias de verdade. Desancorado da linha dividida “sensibilidade/inteligibilidade”
de Platão, o projeto de trabalho foucaltiano visa descer ao nível do que foi dito e considerado
historicamente como verdadeiro, questionando quem vem falando sobre tal verdade, como essa
verdade vem sendo pronunciada, e de que lugar vem sendo dadas as ordens que submetem os
sujeitos à dada verdade: uma análise de discurso, enfim.
Possibilidades analíticas
(DREYFUSS; RABINOW, 1995). Como eles não possuem prerrogativa própria que os
descolem de um lastro epistemológico de grande amplitude, acabam se constituindo como
meros veículos do que pode ser dito e escrito. Ora, basta uma leve lembrança na Educação
acerca das dicotomias que a cerca no que toca ao ensino e aprendizagem para percebermos que,
frequentemente, apenas falamos o que se pode falar; divisões do tipo bom aluno/aluno
problema, educação bancária/construtivismo, aula tradicional/aula contemporânea,
instrução/aprender a aprender são bons exemplos para ilustrar que um discurso desenrola
estrategicamente uma verdade, cuja manutenção parece às vezes inquestionável. Ou quem entre
os educadores escreveria de bom grado que desconfia da interdisciplinaridade, das pedagogias
de projetos e das metodologias participativas? Mais do que isso: quais programas de pesquisa
e cursos de pós-graduação aceitariam naturalmente um projeto que fosse na contracorrente
dessas palavras-mestras sobre como se ensina e como se aprende?
A questão que se acentua, nessa lógica, é que como um discurso é inerentemente um
mecanismo de produção de subjetividade, se continuarmos no exemplo das pedagogias ativas
e das metodologias participativas, veremos que não passaria em branco por uma análise de
discurso foucaultiana a tese de que elas definiriam um modelo almejado de sujeito, que deve
ser autônomo, livre, crítico e protagonista. Claro. Porém, se formos pensar que vivemos num
período histórico em que o neoliberalismo reina hegemônico e que ele mesmo tem entre seus
principais valores a ideia segundo a qual os sujeitos devem ser empresários e empreendedores
de si mesmos, então podemos concluir que o discurso pedagógico/educacional anterior não só
defende a única coisa que lhe é permitido defender, quanto, principalmente, é funcionário de
rebanho do pensamento neoliberal. Se evitarmos o ato de “caça ao oculto textual” e tão somente
nos contentarmos (o que já não é tarefa fácil...) em 1) descrever o que mais vem sendo dito
numa determinada disciplina escolar, enumerando suas principais linhas de força; 2)
identificarmos a moral que lhe é entranhada, a partir das divisões entre “certo” e “errado” que
aparecem e 3) acoplarmos a estrutura discursiva que se formou à episteme de uma
contemporaneidade, então talvez cairíamos para trás com a surpresa de que, amargamente,
somos bem menos autores (e bem menos livres) do que pensávamos ser...
Com a ilustração dessa análise em mente, podemos entender que a arqueologia
foucaultiana é conduzida a partir de uma inquietude sobre como um dado regime de verdade
“[...] se põe a funcionar na cabeça de milhares de pessoas como verdade, unicamente porque
foi pronunciado daquela maneira, naquele tom, por aquela pessoa, naquela hora” (FOUCAULT,
2003, p. 233). É daí que o discurso é bem um ato de coerção como um mecanismo de pressão
linguística, afinal não podemos falar tudo o que queremos, no lugar que queremos e, uma vez
que o fizermos, aumentam os riscos de sofrermos sanções que visam seja interditar, seja excluir
a nossa fala. Por conseguinte, é fundamental ter em mente que na teorização foucaultiana os
discursos “[...] classificam o saber e marginalizam tudo que não conseguem assimilar”
(ERIBON, 1990, p. 204).
Sendo que em Foucault (1987) os discursos produzem poder e saber a todo momento
e, justamente por isso, não nos estaria disponível um método geral e infalível que conseguisse
esmiúça-los plenamente, a tese do filósofo francês é que nos atenhamos à superfície de dados
ditos e escritos, assinalando o que pode e o que não ser escrito nos arquivos escolhidos; trata-
se, logo, de uma empreitada que vai ao encalço de entender as regras que organizam uma
formação discursiva, sabendo que ela é arbitrária e se ampara no binarismo do que considera
normal e anormal; é daí que perante ela, conseguiríamos “[...] determinar as condições de sua
existência, de fixar da maneira mais justa os seus limites, de estabelecer suas correlações com
os outros enunciados aos quais ele pode estar ligado, de mostrar que outras formas de
enunciação ele exclui” (FOUCAULT, 2000, p. 93). Como resultado dessa atividade, ao
conhecermos o sistema de formação sobre o qual se apoia esse conjunto de enunciados, nos é
aberta a oportunidade de compreendermos melhor como fomos subjetivados por relações de
poder que exercemos ou sofremos, posto que elas servem como receituários moralizantes
através dos quais julgamos as nossas vidas e as nossas ações.
Para o empreendimento arqueológico, o que Foucault (1987) nos oferece (e que não é
pouca coisa) é um armistício instrumentalizado por quatro categorias analíticas que configuram
sua grade de inteligibilidade. Elas são os objetos, os enunciados, os conceitos e as estratégias.
Por objetos do discurso Foucault entende o espaço comum de ideias que cimentam
uma determinada formação discursiva, isto é, as regras e normativas que estabelecem o que
pode ser escrito e não escrito naquele sistema linguístico. É o caso de, nessa categoria de análise,
investigar a regularidade presente nas práticas discursivas, algo que as fazem, não raramente,
previsíveis. Seriam, com efeito, os objetos os principais mantenedores das bases através das
quais as condições de repetição se sustentam, distribuindo os critérios de existência,
manutenção e modificação de um discurso. Pode-se falar sobre algo, mas segundo uma grade
de especificação; consegue-se transformar um discurso, só que sob rédea curta dos seus critérios
de validade e veracidade. Se fôssemos lembrar dos discursos educacionais na primeira metade
do século XX no Brasil, nos quais reinavam de maneira quase que absoluta os axiomas do
movimento conhecimento como Escola Nova, teríamos profícuos exemplos de como uma
formação discursiva é acessada através dos seus objetos; rememoremos que, naqueles dias, uma
proposta de ensino, ou a descrição de uma aprendizagem, deveriam ser chanceladas por
princípios normativos advindos do método racional-empírico, notadamente aquele concatenado
aos mantras do positivismo lógico, da Filosofia analítica e do evolucionismo darwiniano. O
docente, com efeito, era avaliado conforme as atividades intuitivas que elaborava, nas quais os
alunos teriam que estar no centro do processo de construção do conhecimento através das suas
ações. Assim, sob o perímetro desse objeto sob o qual se assenta um dado discurso, eis que se
produz “[...] um sujeito que questiona, segundo uma certa grade de interrogações explícitas ou
não, e que ouve, segundo um certo programa de informação; um sujeito que observa, segundo
um quadro de traços característicos, e que anota, segundo um tipo descritivo” (FOUCAULT,
1987, p. 58). Pergunta-mestra dessa categoria: o que se pode e o que se deve falar para entrar
num dado discurso?
Os enunciados, por sua vez, referem-se aos lugares institucionais e aos argumentos de
autoridade que não só mantém a estabilidade como, inclusive, funcionam como mecanismos
avaliativos de uma prática discursiva. Nesse sentido, um discurso se torna resguardado por
comunidades e/ou grupos disciplinares, que detêm os direitos soberanos sobre a produção de
um texto ou de uma fala; o melhor exemplo dessa prerrogativa aparece academicamente nas
citações a autores e nas referências bibliográficas: é preciso “[...] passar por eles para poder
dizer alguma coisa, já que sem eles nada teríamos a dizer” (CORAZZA, 1998, p. 198). No
entanto, essa relação se dá de modo imanente, isso porque os enunciados tanto servem para
estabelecer os privilégios de um determinado campo de pesquisadores, áreas, etc., quanto, nós,
ademais, fortalecemos essas relações de poder e saber, visto que esperamos que eles resolvam
nossas encruzilhadas investigativas ou que respondam parcialmente aos nossos problemas de
pesquisa. Então, se nos objetos perguntávamos o que se pode dizer e escrever, aqui a pergunta
seria sobre quem escreve mais e diz mais acerca de tal discurso; “Quem fala? Quem, no
conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas razões para ter esta espécie de linguagem?
Quem é seu titular?” (FOUCAULT, 1987, p. 56).
Em terceiro lugar, a coesão que agrega os elementos subjacentes à ordem de um
discurso se legitima por intermédio de um sistema de conceitos, organizado à maneira de
estrutura fixada, que produz os padrões morais que vão servindo de justificativa para os objetos
e enunciados. Ao longo da trajetória de um discurso, malgrado as transformações que foram
sendo empreendidas, persiste uma tradição e um rastreamento que limitam as práticas e fazem
com que mudanças feitas para atualizar um dado discurso tenham que ser edificadas à sombra
com efeito, concluir que a sociedade muda e, logo, também a escola, sua função e os seus atores:
assim, uma proposição de atualidade, pois invalida o que foi feito anteriormente por intermédio
de rótulos de anacronismo e defasagem.
É claro que essas categorias foucaultianas são abertas e, consequentemente, sinalizam
muito mais uma postura do pesquisador do que propriamente a sua aderência a quaisquer
receituários metodológicos definidos a priori. Em contrapartida, o maior poderio de uma ou de
outra categorização depende estreitamente do arquivo definido na pesquisa; ora, essas escolhas
tanto serão sempre arbitrárias quanto, basicamente, já interferem nos documentos analisados
num caminho sem volta. Dessa forma, não podemos esperar nem garantias e nem soluções
milagrosas da arqueologia de Foucault – quem sabe, algumas precauções. Aproveitando o
ensejo, eis o que farei na seção seguinte, já à guisa de conclusão: compartilhar algumas
recomendações que fazem relevo às categorias discursivas foucaultianas e que, espero, fechem
satisfatoriamente uma primeira aproximação para aqueles que estão à procura de outros
caminhos investigativos na Educação.
Considerações finais
linguagem, essa tende a ser um corolário das assimetrias, produzindo uma prática social
conhecida como discurso.
Conforme acompanhamos nesse texto, na maior parte das vezes a autoria é uma mera
quimera cujo alcance é assustadoramente reduzido: as práticas discursivas preponderantes
funcionam como dragas que nos trazem tanto à força quanto implicitamente para o interior dos
seus enclaves, inclusive na maior parte das vezes com o nosso consentimento. Nesse sentido, o
equívoco que cometemos é adentrar num mundo elevado das ideias sem o cuidado de desconfiar
que esse melhor dos mundos talvez não esteja alheio a relações de poder e a dispositivos de
neutralização de subjetividade, enfim, ao microfascismo nosso de cada dia. Valho-me do alerta
de Barthes (2004, p. 15): “[...] a linguagem não pode ser considerada um simples instrumento,
utilitário ou decorativo, do pensamento”.
É daí que podemos entender o tour de force de Foucault ao longo da sua diversa obra
num tom francamente pessimista, posto que as garantias de uma sociedade evoluída, de um
mundo desenvolvido e de uma vida livre, justa e igualitária foram colocadas de cabeça para
baixo no momento em que o filósofo mostrou os capilares perigos que nunca deixaram de estar
à espreita de qualquer projeto de sociedade. É bastante provável que ele tenha sido o pensador
mais habilidoso em demonstrar que os maios valorosos ideários do Iluminismo tiveram que ser
produzidos à custa de dispositivos disciplinares e mecanismos de captura; que, pasmem, a
origem da escola moderna esteve próxima no tempo e no espaço de instituições como as prisões
e os manicômios.
No entanto, se Foucault nunca foi – e nem quis ser – aquele intelectual
condutor/líder/messiânico das massas, às quais endereçaria suas promessas de salvação, por
outro lado, sob a aporte da sua arqueologia, nos disponibilizou com notável fôlego ferramentas
de problematização do saber posto e hegemônico numa data época. Tratando o conjunto desses
conhecimentos como discursos, verdadeiras práticas ditas e escritas que se fazem soberanas,
ele indicou possibilidades para que pudéssemos desconstrui-los, compreendendo 1) de onde
vieram, 2) como emergiram, e 3) a serviço de quais relações de poder foram postos em
operação. Foucault não desejou, porém, desalojar esses discursos da sua zona de conforto para
substitui-los por outros, superiores e mais evoluídos. Tampouco poderíamos correlacionar suas
pesquisas à famosa ambição de Wittgenstein de mostrar à mosca a saída do vidro. Mais valeria,
nesse caso, a síntese do próprio filósofo: “Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o
que somos, mas recusar o que somos” (FOUCAULT, 1995, p. 239).
Sob esse pano de fundo, o que espero que tenha ficado evidente é que, a partir de
Foucault, teremos acesso nas nossas pesquisas a um método diferente do usual, em que as trilhas
escolhidas enxergam o mundo de um outro ponto de vista, não necessariamente o mais redentor;
entretanto, se essa postura perante a vida evita cair na vala comum do prometeísmo, por outro
lado oportuniza inúmeras pontas de lança metodológicas através das quais poderíamos elaborar
pesquisas semelhantes a obras de arte, sob as quais tatuaríamos a nossa inventividade, deixando
um pequeno legado que dificilmente seria replicado em outro lugar: quem sabe fazendo dele,
como poetizava Nietzsche (2005, p. 176), “[...] um temporal, caminhando prenhe de novos
raios”.
Nessa conjuntura, este artigo se instituiu mais como uma prudência, um sobreaviso,
uma cautela, cujo desejo maior é ter compartilhado, por intermédio de uma robusta matriz
conceitual sob a égide de um dos expoentes do Pós-Estruturalismo, algumas perspectivas que
vêm nos sendo muito úteis ao longo da nossa trajetória como professores e pesquisadores. É
por essa razão que, se fosse deixar uma última dica para quem se interessou pelos estudos
foucaultianos e a sua operacionalidade na Educação, eu a destrincharia através de dois
imperativos.
O primeiro é que, em nenhuma circunstância, o pesquisador se abstenha da coragem –
e da responsabilidade – de criar o seu método próprio de investigação. Logo, que construa a
metodologia de acordo com as necessidades próprias dos arquivos antepostos e das perguntas
formuladas. Que não abra mão, com efeito, do que de melhor Foucault nos deixou como
inspiração, isto é, a diversidade inclusa na singularidade de cada analista. Lembro-me aqui de
Deleuze e Guattari (2011, p. 18), para os quais uma pesquisa é sempre um exercício de
bricolagem, que vale justamente pela “[...] posse de um estoque ou de um código múltiplo,
heteróclito, porém limitado; a capacidade de introduzir os fragmentos em fragmentações
sempre novas”. No final, o que sobrar disso tudo é o que em termos de escrita e argumentação
não foi soterrado; escombros discursivos a partir dos quais se pode fazer ou construir alguma
coisa que valha a pena. Portanto, que não queiramos ser modelos metodológicos para ninguém.
Não há aspiração à elaboração de um receituário metodológico, ou um programa de
investigação discursiva; tampouco seria possível que um estudo foucaultiano pudesse ser
transposto linearmente para outros objetos: ele só se justifica enquanto feito pelo pesquisador
em cima dos arquivos que escolheu arbitrariamente. Esses arquivos não são e nem poderiam
ser espelhados diretamente em outro lugar (apenas se fossem reimpressões, ou copiados); no
momento em que colocamos a mão neles, emergem decisões, escolhas, inclusões e exclusões.
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