Science">
Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

O Que Foucault Tem A Nos Dizer Sobre Métodos

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 19

O QUE FOUCAULT TEM A NOS DIZER SOBRE MÉTODOS

INVESTIGATIVOS EM EDUCAÇÃO?

Bruno Nunes Batista1

RESUMO

Meu objetivo neste texto é discutir, em linhas gerais, como o pensamento de Michel Foucault
pode ser operacionalizado nas pesquisas educacionais. Com esse pressuposto em mente,
procuro demonstrar como a análise de discurso empreendida por esse filósofo nas suas
principais obras introduz uma abordagem criativa e diferente perante os arquivos pedagógicos.
Com Foucault, não haveria um método transcendental, tampouco um receituário metodológico,
mas sim perspectivas únicas de trabalho de acordo com cada objeto discursivo escolhido pelo
pesquisador. Nesse sentido, valho-me de algumas ideias presentes na sua arqueologia do saber
para sinalizar possibilidades investigativas, através de uma postura que também ecoa em
autores como Nietzsche, Veiga-Neto e Corazza.

PALAVRAS-CHAVE: Pós-estruturalismo; Estudos foucaultianos; Método; Pesquisas


educacionais.

¿QUÉ FOUCAULT TIENE NOS DICEN SOBRE MÉTODOS?


INVESTIGATIVOS EN LA EDUCACIÓN?

ABSTRACT

Mi objetivo en este texto es discutir, en líneas generales, cómo el pensamiento de Michel


Foucault puede ser operacionalizado en las investigaciones educativas. Con este supuesto en
mente, procuro demostrar cómo el análisis de discurso emprendido por ese filósofo en sus
principales obras introduce un enfoque creativo y diferente ante los archivos pedagógicos. Con
Foucault, no habría un método trascendental, tampoco un recetario metodológico, sino
perspectivas únicas de trabajo de acuerdo con cada objeto discursivo escogido por el
investigador. En este sentido, me valgo de algunas ideas presentes en su arqueología del saber
para señalar posibilidades investigativas, a través de una postura que también resuena en autores
como Nietzsche, Veiga-Neto y Corazza.

KEYWORDS: Post-structuralism; Foucaultian oriented studies; Method; Investigaciones


educativas.

1
Professor de ensino básico, técnico e tecnológico no Instituto Federal de Ciência, Educação e Tecnologia
Catarinense (IFC). Professor permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica
(ProfEPT/IFC). Tem formação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), na área de Geografia,
onde concluiu os cursos de doutorado, mestrado acadêmico e licenciatura plena. Lecionou na rede pública e
privada de ensino do Estado do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em ensino,
atuando principalmente nas seguintes linhas: Ensino de Geografia, formação docente e Filosofia da Educação.

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


156
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

Primeiras palavras

A palavra “método” foi construída etimologicamente a partir da junção de duas


palavras gregas, meta e odos: a primeira pode ser reconhecida como “para além” e a segunda
como “caminho”. Trata-se, costumeiramente, da definição pela qual o pesquisador empreende
uma maneira de compreender sua investigação em termos filosóficos, epistemológicos, etc.;
age como lanterna de uma busca de certa verdade, através de pontos de partida, percursos e
locais de chegada. O método entrelaça, subjetivamente, os objetivos de uma pesquisa
questionando o que ela é, qual é o seu alcance, o porquê da sua existência e como pode ela ser
instrumentalizada. Sobretudo, o método pode ser sintetizado como um caminho pelo qual
aprendemos como falar de um determinado objetivo.
Um engano não raramente cometido, no entanto, é que ao definirmos um método nas
nossas pesquisas educacionais incorremos nas grandes narrativas da ciência
positivista/cartesiana/moderna. Sabe-se plenamente dos incontáveis benefícios e contribuições
emanadas de tais abordagens e que, em vários campos do conhecimento, permanecem
operacionais. Porém, no que tange ao ensino e aprendizagem, é preciso ter cuidado. Esses
axiomas orbitam em torno de critérios como unidade metodológica, paradigma sistêmico, busca
de consenso, generalização e geração de leis; em contrapartida, trabalham sob a égide da
dualidade entre teoria e prática, ora dando supremacia à primeira – o cogito cartesiano é o
melhor exemplo... -, ora validando a pesquisa pela sua aproximação com a realidade prática,
sensível e cotidiana (o empirismo encontrado, por exemplo, em Locke e Hume).
Nem pelo polo da teoria e nem pelo polo da prática, a pegada aqui terá, a partir das
contribuições de Michel Foucault, um outro direcionamento. Pensando com esse filósofo, e
deslocando seu pensamento para a pesquisas especialmente no campo educacional, tentarei pôr
em pauta algumas possibilidades investigativas que não se valem das grandes narrativas
racionalistas ou empiristas. E não porque Foucault tenha perdido o sono ao longo da sua extensa
obra para resolver esse problema; aliás, para ele, isso seria um falso dilema, pois as teorias não
estão num lugar exterior ao mundo, mas são feitas por nós, a partir de relações contingentes e
históricas de poder e saber. Consequentemente, nem prática e nem teoria: tudo é prática. E, por
isso, devem ser analisadas como tal. Melhor dizendo: tratadas cognitivamente enquanto
discursos.
Foucault (1987) teoriza o discurso como um conjunto organizado, coerente e definido
de regras linguísticas através das quais nos pronunciamos sobre determinado objetivo. Segundo

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


157
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

ele, para nos referirmos sobre algum campo de conhecimento, devemos seguir normas
estratégicas e padrões enunciativos que nos autorizam a comentar sobre aquela área; dessa
forma, ninguém é livre para dizer o que quiser, no lugar que quiser, conforme o jeito que quiser.
É preciso seguir ordens discursivas, que autenticam a nossa palavra e a avaliam segundo
critérios de veracidade; “práticas divisoras”, que seccionam o certo e o errado (FOUCAULT,
1995).
Com esse instrumental posto, Foucault tratou ao longo das suas obras as teorias como
práticas construídas em meio a relações de poder e saber, de sorte que, como resultado, esses
discursos produzidos nunca foram neutros nem descolados de um a priori histórico que os
movia. Mais do que isso, continham no seu interior uma vontade de verdade que promoveria
um projeto de ascendência de uns sobre os outros. Com efeito, de um lado Foucault se vale do
criticismo kantiano para defender que os conceitos não são puros, mas corolários de práticas
sociais prévias; de outro, dá sequência ao programa de Nietzsche e mantém firme a concepção
segundo a qual o conhecimento sempre se manteve como um veículo arbitrário de dominação,
“[...] uma prática e uma teoria do discurso que é essencialmente estratégica; estabelecemos
discursos e discutimos, não para chegar à verdade, mas para vencê-la. É um jogo: quem perderá,
quem vencerá”? (FOUCAULT, 2002, p. 140). Por esses motivos, é necessário pensar o próprio
pensamento, problematizando a sua gênese, estrutura e funcionamento através do que vem
sendo dito e escrito.
No que tange às pesquisas em Educação, um primeiro exemplo dessa abordagem é que
não perguntaríamos, nos nossos projetos, quais seriam as melhores maneiras para ensinar um
conteúdo, e nem tampouco convergiríamos nossas forças para entender cientificamente como
os alunos aprendem. Ao contrário, faríamos uma espécie de garimpagem a fim de inventariar
quais seriam as teorias hegemônicas que vêm respondendo a essas perguntas. Na sequência,
descreveríamos quase exaustivamente o que mais aparece em termos linguísticos nesses
conceitos. Por fim, questionaríamos como emergiram e de onde efluíram esses pensamentos,
justamente para compreender quais foram as relações de poder e saber que as validaram. Em
suma, estaríamos fazendo uma arqueologia do saber.
A partir de agora, pretendo neste texto fazer um voo panorâmico sobre algumas linhas
de trabalho que Foucault desenvolveu com o intuito de compartilhar outras potencialidades para
se realizar investigações no campo educacional. Haja visto a expressividade desde a década de
1990 dos estudos foucaultianos nessa área, não serei aqui inédito e nem, muito menos,
metodologista. Meu objetivo é, até certo ponto, humilde: sintetizar as pontas de lança que dão

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


158
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

vigor à arqueologia no âmbito da análise discursiva para, talvez, arregimentar para essa grade
de inteligibilidade aquelas pesquisas que desejam ser mais analíticas do que denuncistas e/ou
prescritivistas. Sob outra perspectiva, muito me interessa contribuir para a queda parcial
daqueles manuais que vêm receitando, detalhadamente, o que devemos fazer para sermos
investigadores e produzirmos pesquisas. No caminho oposto, penso uma pesquisa como uma
elaboração artística, cuja qualidade advém do potencial de criação singular que transmite.

Escavar saberes

Para começo de conversa, nas trilhas do pensamento foucaultiano não se tem lugar
para a noção de método enquanto um modelo de programa que poderia conduzir o pesquisador
seguramente até o final da investigação. Por exemplo: da dialética entre a unidade de contrários
(materialismo histórico) surgiria no final uma síntese; pelas mãos da fenomenologia, chegar-
se-ia ao sentido primeiro que poderia explicar a subjetividade dos sujeitos; a etnografia lançaria
mão de diversas técnicas para compreender as pequenas relações sociais num determinado
lugar. Percebam que, nesses clássicos métodos, os pareceres já estão presentes a priori, cabendo
àquele que os executa faze-lo satisfatoriamente para encontrar os produtos verdadeiras da sua
pesquisa. Melhor dizendo: a Verdade, seja ela a histórica (luta de classes), a subjetiva e a
microssociológica.
Foucault não trabalha dessa forma, tampouco se coloca na “[...] posição a partir da
qual se chegue às últimas verdades ou se chegue cada vez mais perto das verdades
verdadeiramente verdadeiras” (VEIGA-NETO, 2009, p. 88). A junção entre Kant e Nietzsche
que atravessa seu pensamento propõe suspeitar das próprias teorias, ou mesmo daqueles
universais métodos, visto que eles foram feitos por sujeitos determinados num contexto de
poder e saber e que, principalmente, privilegiaram suas escolhas justamente devido a essa
conjuntura. Nesse sentido, as elaborações que fizeram para acessar a realidade não seriam
neutras, ainda que bem-intencionadas. Muitas vezes, aliás, elas foram as únicas que poderiam
ser feitas numa determinada época.
Em As palavras e as coisas, obra-prima de 1966 que projeta Foucault ao primeiro
escalão da Filosofia francesa, esse autor demonstra que as categorias que organizam
sistematicamente o pensamento de Marx – a totalidade, a História e a práxis – já estavam
presentes e vinham sendo cimentadas desde o século XVII. Assim, quando o marxismo
apresenta um projeto de sociedade que avançaria das mais subdesenvolvidas e alienadas às mais

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


159
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

desenvolvidas e conscientes, quase ao mesmo tempo a Economia, a Biologia, a Psicologia e as


linguagens estavam concebendo e representando o homem do mesmo modo, à maneira de
teleologia (FOUCAULT, 1999). Por serem tributárias de uma episteme, isto é, aquele conjunto
multifacetado de princípios e regras que agem como condição de possibilidade para o que se
pode pensar em uma dada época (FOUCAULT, 1987), acabaram transformando-se a partir de
um terreno primeiro e original. É por essa razão que um método de pesquisa capitaneado, por
exemplo, pelo materialismo histórico-dialético termina frequentemente funcionando como um
sistema de ferrolhos, “[...] que nos habitua às corridas de cancha reta, onde tanto o ponto de
partida, quanto o percurso, e mesmo o ponto de chegada são, tediosamente, visíveis”
(CORAZZA, 2002, p. 109). Com isso, o pesquisador já vai para o trabalho de campo com as
respostas prontas, servindo o restante das observações apenas para corroborar o que ele já sabia
de antemão. Quem não lembra, na Sociologia da Educação, dos trabalhos que assumiam que
havia um currículo oculto e que, por isso, iam até a escola a fim somente de identifica-lo? Ou
das pesquisas na esteira dos aparelhos ideológicos de Althusser, em que se deveria localizar as
condições ideológicas que falsificavam a realidade em uma determinada instituição educativa?
Deslocada desse âmbito, a obra foucaultiana, ao trabalhar num sentido de escavação
das condições de possibilidade para a emergência de um saber, teve que adaptar-se em termos
de método à particularidade de cada objeto escrutinizado, criando para cada um deles uma
perspectiva diferente de trabalho. Como Foucault mesmo dizia, “Não tenho teoria geral e
tampouco tenho um instrumento certo. Eu tateio, fabrico, como posso, instrumentos que são
destinados a fazer aparecer objetos. Os objetos são um pouquinho determinados pelos
instrumentos, bons ou maus, fabricados por mim” (FOUCAULT, 2003, p. 229). Para entender
as prisões modernas, Foucault teve que desenvolver sua própria teorização sobre o poder, afinal
ele acreditava que a concepção clássica de um poder centralizado e repressor não abarcaria os
micropoderes existentes no sistema prisional. Ao se referir à história da sexualidade, não
utilizou para tanto a teoria do desejo ou a psicanálise freudiana, mas se esforçou para escavar
os discursos da Grécia Antiga a fim de descobrir como que o mundo ocidental passou a se
pronunciar perante as práticas sexuais e as relações de gênero.
Nessa conjectura, quem quiser trabalhar com Foucault até pode se valer das categorias
de conteúdo que servem como fios condutores das suas análises: arqueologia, genealogia,
discurso, poder, episteme, subjetivação, ética, etc. No entanto, estará no lugar errado aquele que
esperar desse filósofo um método que defina as formas a partir das quais poderá relacionar-se
com o seu objeto de investigação. Dito de outra maneira, o pesquisador terá que colocar o pé

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


160
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

na água e arriscar-se, fazendo uma fusão entre materiais diversos para atribuir um novo olhar
ao que parecia que já estava claro para todo mundo. Por mais emblemático que pareça, terá que
adquirir o costume de não “[...] se apoiar na autoridade de quem quer que seja” (ECO, 2012, p.
124). Nessa verdadeira arte em que se transforma o método, caem por terra as garantias dadas
pela trindade laica Razão-Ciência-Progresso (MORIN, 1986).
Na lógica desenvolvida por Feyerabend (1977), pode-se dizer que os estudos
foucaultianos atuam contra o método. Não se valem da estatística nem de nenhuma metodologia
distinta; não operam ao lado da cronologia visando um final de história; não prometem soluções
nem procurar prescrever a verdade que nos salvaria do abismo da Modernidade. Engendram,
sim, estratégias bastante singulares, formulando esquemas de ação a fim de conseguir enxergar
de um outro ponto de vista a constituição de um determinado objeto de estudo.
Com esse aviso feito, na sequência vou demonstrar que se em Foucault não existiria
um método unissonante, no entanto na sua obra está presente uma postura perante o
conhecimento reconhecida como arqueologia. Por outro lado, ele se dedicou com fôlego a
elaborar uma categoria que nos é muito válida na Educação, e que também vou me ater com
maior proximidade. Trata-se do conceito de discurso.

Uma torção perante os discursos

Na esteira do pensamento nietzschiano, Foucault não teve como maior preocupação


encontrar a origem, um marcador temporal, que explicasse a existência de um determinado
conhecimento; muito menos dedicou-se a verificar se um saber funcionava ou não na prática;
por último, não perdeu o sono elaborando um programa de sociedade que pudesse ser colocado
imediatamente em prática. O que ele faz com fôlego em títulos como História da loucura e
Vigiar e punir (e explica n´A arqueologia do saber) é um notável esforço de entendimento de
como se constituíram - e se instituíram - os principais saberes reconhecidos em conjunto como
Modernidade. Em outras palavras: a) buscar a definição de quais elementos foram necessários
para que os conhecimentos tenham sido possíveis nessa época, assinalando sob qual espaço
epistemológico se permitiu o estabelecimento desses saberes; b) investigar as condições de
possibilidade históricas que chancelaram essas ideias; c) descrever, finalmente, o que sobrou
em termos discursivos disso tudo, dividindo em instâncias aquilo que ficou sendo autorizado a
se dizer e escrever. À essa tecnologia de pesquisa Foucault deu o nome de arqueologia.

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


161
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

Pensemos no caso de pesquisas debruçadas sobre a Educação. A partir dos trampolins


arqueológicos, nelas não encontraremos predisposições para melhorar a sala de aula, propondo
didáticas inovadoras. Nem, tampouco, procurar-se-á idealizar um cenário pedagógico ótimo
para servir de modelo avaliativo frente à descrição da realidade de uma determinada escola e/ou
prática docente. Será feito, ao contrário, outros questionamentos, que se desdobram em posturas
diferentes. Por exemplo: quais são as teorias sobre didática mais celebradas na
contemporaneidade? Que tipo de professor é tido como insuficiente na escola atual? O que vem
existindo em excesso, e o que pouco aparece, nas instituições escolares? E, por intermédio
dessas dúvidas, aí viria o cerne da problematização foucaultiana: de onde surgiram todas
recomendações? Como elas ganharam relevo e notoriedade? Quem são aqueles que as
promovem e defendem? Essas seriam, em resumo, as pedras de toque de uma investigação na
linha arqueológica de Foucault. Um outro exemplo: fala-se hoje, frequentemente, que o melhor
remédio para reformar positivamente a escola adviria das pedagogias ativas, que se centrariam
na aprendizagem do estudante utilizando metodologias interdisciplinares, sendo essas, por sua
vez, imbricadas pela resolução de problemas e construção de projetos. Foucault, com ceticismo,
indagaria: quem disse isso? E por que chegou a dizê-lo? Será que, a valer, alguém diria
facilmente o contrário, e teria voz para dizê-lo? Percorrendo o raciocínio nietzscheano, não
tomaríamos assim “[...] o valor desses ‘valores’ como dado, como efetivo, como além de
qualquer questionamento” (NIETZSCHE, 1998, p. 12).
Por um outro lado, se as perguntas que movem a arqueologia colocam de cabeça para
baixo o idealismo das mais puras teorias, perfura-se, por conseguinte, “[...] sob que condições
o homem inventou para si” (NIETZSCHE, 1998, p. 9) esses juízos e passou, desde então, a
avaliar enunciados e práticas sociais como boas ou ruins. O mais interessante é que, na esteira
desse processo, o juízo foi tornando-se maior do que o autor, constituindo uma episteme que
viria a arregimentar funcionários quase que automaticamente aos seus discursos. Daí por diante,
quem passa a falar é a linguagem régia, e não o autor, que morre (BARTHES, 2004).
E aí voltamos, mais uma vez, à questão de método na perspectiva de Foucault. Como
nesses sistemas de linguagem os “[...] enunciados têm suas regras próprias, de modo que não
temos, sobre os discursos, o controle que pensávamos ter” (VEIGA-NETO, 2002, p. 32), seria
necessária uma perspectiva investigativa que não etiquetasse as mais e menos corretas
interpretações, as práticas sociais mais e menos verdadeiras; uma abordagem,
consequentemente, que nos conduzisse ao entendimento dos elementos visíveis e enunciáveis
que fazem do mundo o que ele parece ser para nós. Sobretudo, uma metodologia inventiva e

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


162
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

particular a cada objeto de estudo que não esteja no “[...] lugar privilegiado a partir do qual se
possa olhar e compreender definitivamente as relações que circulam no mundo” (VEIGA-
NETO, 2002, p. 35), mas que se dispusesse corajosamente a realizar uma transgressão
metodológica, ou algo como uma pluralidade imedótica, a prática que não nega o que já foi
feito em termos de pesquisa e ação, mas que acrescenta à abordagem elementos que são
pertinentes e necessários àquele objeto bruto de estudo (CORAZZA, 2002). Elementos que não
miram um fim determinado nem “[...] a aderência pegajosa a qualquer mestria” (CORAZZA,
2002, p. 127), e sim que se arriscam a marcar o nome próprio do pesquisador no seu autoral
percurso investigativo.
O que um pensamento como o de Foucault nos coloca é que, para além do processo de
racionalização presente na Modernidade que foi corrigindo-nos como homens e mulheres,
façamos um movimento de problematização que não precise tomar como base de sustento as
grandes verdades científicas provenientes da moral e da noção de sujeito epistêmico. Que não
caia, conforme escreve Silveira (2002, p. 78), no “[...] engodo do desnudamento da verdade, da
identificação do verdadeiro sentido que é dito”, e sim, em outra perspectiva, que faça uma
leitura atenta da mecânica discursiva que atravessa dados tipos de enunciados. Desse modo, a
verdade vai sendo considerada como uma produção histórica cujo deslindamento pode ser
possível organizando suas regras de existência e formação, entendendo a que relações de poder
ela foi sendo submetida nesse processo (MACHADO, 2006).
Foucault (2002) compararia, nas conferências de 1973 no Rio de Janeiro, o discurso
como um troféu de um debate entre sofistas, no qual alguém venceu a argumentação enquanto
outro a perdeu. Coloca do avesso, portanto, a matriz transcendental socrática-platônica, posto
que não compactua da noção de um conhecimento ideal: trata-se tão somente de uma atividade
histórico-política que influencia “[...] na economia atual de nossas condições de existência”
(FOUCAULT, 2002, p. 156). E que deve ser analisada como tal: um produto desse mundo, feito
por homens desse mundo. Logo, uma atividade arqueológica, ou seja, fazendo uso de uma
máquina metodológica bem limitada a cada tempo e a cada espaço e que escava “[...]
verticalmente as camadas descontínuas do passado a fim de trazer à luz fragmentos de ideias,
conceitos, discursos já esquecidos e aparentemente desprezíveis” (VEIGA-NETO, 1995, p. 21).
Pela soma desses elementos e posturas que estou enumerando, depreendemos que não
aparece, em Foucault, as eternas e salvacionistas promessas de um método científico que
ofereça as garantias de verdade. Desancorado da linha dividida “sensibilidade/inteligibilidade”
de Platão, o projeto de trabalho foucaltiano visa descer ao nível do que foi dito e considerado

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


163
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

historicamente como verdadeiro, questionando quem vem falando sobre tal verdade, como essa
verdade vem sendo pronunciada, e de que lugar vem sendo dadas as ordens que submetem os
sujeitos à dada verdade: uma análise de discurso, enfim.

Possibilidades analíticas

Ao envidar-nos com base nas teorizações foucaltianas sobre o discurso, urge


imperativamente que, antes de qualquer coisa, conheçamos aquilo que a arqueologia das
formações discursivas não pretende fazer.
Explico: sob a ótica clássica de análise de discurso, seria feita uma atividade que
procuraria desvelar o que estaria escondido no texto, isto é, aquele conjunto de princípios e
valores que estariam “por trás” do mesmo. Essa postura advém de uma herança das variadas
noções de ideologia, segundo as quais, a rigor, existiria uma realidade falsa a ser representada
pela linguagem; ocorreria dessa linguagem ser apropriada pelas lutas oriundas das
desigualdades entre as classes sociais, de forma que aquela classe mais forte se vale do discurso
para tanto encobrir a ampla dominação que exerce, quanto, em outro viés, assegurá-la
(PÊCHEUX, 1990; FIORIN, 1990). Nesse âmbito, o analista de discurso fica imbuído de um
papel de “caçador” daquilo que está subintendido no texto e que não aparece à primeira leitura,
as palavras que o autor queria dizer, mas não disse, deixando-as nas entrelinhas implicitamente
(DUCROT, 1987).
No sentido oposto à essa configuração, Foucault nem perde tempo tentando identificar
o que um dado discurso esconde, buscando assim compreender o contexto ideológico sobre o
qual um autor escreveu seu texto: não há desejo algum em desnudar qualquer elemento que o
seja, com o propósito de mostrar a verdade verdadeira à população alienada. Em outras
palavras, Foucault defendia que o discurso não mascara, mas conduz uma verdade em que se
dilui a episteme de uma época. Um discurso não acoberta e nem oculta, ele é sim uma máquina
de produção de subjetividade, dispositivo que fabrica um determinado tipo ideal de sujeito
numa específica sociedade. Ele não é, portanto, uma teoria, mas uma prática social cujo mote é
servir de correia transmissora para inúmeras relações de poder e saber.
Vou tentar me expressar com maior clareza: na perspectiva foucaultiana, devido à
existência de um saber de fundo e maior que organizaria o conhecimento de uma época, os
discursos atuariam como catalisadores das maiores verdades; eles seriam, com efeito, os
resultados materiais do que é considerado mais verdadeiro em dados tempos e espaços

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


164
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

(DREYFUSS; RABINOW, 1995). Como eles não possuem prerrogativa própria que os
descolem de um lastro epistemológico de grande amplitude, acabam se constituindo como
meros veículos do que pode ser dito e escrito. Ora, basta uma leve lembrança na Educação
acerca das dicotomias que a cerca no que toca ao ensino e aprendizagem para percebermos que,
frequentemente, apenas falamos o que se pode falar; divisões do tipo bom aluno/aluno
problema, educação bancária/construtivismo, aula tradicional/aula contemporânea,
instrução/aprender a aprender são bons exemplos para ilustrar que um discurso desenrola
estrategicamente uma verdade, cuja manutenção parece às vezes inquestionável. Ou quem entre
os educadores escreveria de bom grado que desconfia da interdisciplinaridade, das pedagogias
de projetos e das metodologias participativas? Mais do que isso: quais programas de pesquisa
e cursos de pós-graduação aceitariam naturalmente um projeto que fosse na contracorrente
dessas palavras-mestras sobre como se ensina e como se aprende?
A questão que se acentua, nessa lógica, é que como um discurso é inerentemente um
mecanismo de produção de subjetividade, se continuarmos no exemplo das pedagogias ativas
e das metodologias participativas, veremos que não passaria em branco por uma análise de
discurso foucaultiana a tese de que elas definiriam um modelo almejado de sujeito, que deve
ser autônomo, livre, crítico e protagonista. Claro. Porém, se formos pensar que vivemos num
período histórico em que o neoliberalismo reina hegemônico e que ele mesmo tem entre seus
principais valores a ideia segundo a qual os sujeitos devem ser empresários e empreendedores
de si mesmos, então podemos concluir que o discurso pedagógico/educacional anterior não só
defende a única coisa que lhe é permitido defender, quanto, principalmente, é funcionário de
rebanho do pensamento neoliberal. Se evitarmos o ato de “caça ao oculto textual” e tão somente
nos contentarmos (o que já não é tarefa fácil...) em 1) descrever o que mais vem sendo dito
numa determinada disciplina escolar, enumerando suas principais linhas de força; 2)
identificarmos a moral que lhe é entranhada, a partir das divisões entre “certo” e “errado” que
aparecem e 3) acoplarmos a estrutura discursiva que se formou à episteme de uma
contemporaneidade, então talvez cairíamos para trás com a surpresa de que, amargamente,
somos bem menos autores (e bem menos livres) do que pensávamos ser...
Com a ilustração dessa análise em mente, podemos entender que a arqueologia
foucaultiana é conduzida a partir de uma inquietude sobre como um dado regime de verdade
“[...] se põe a funcionar na cabeça de milhares de pessoas como verdade, unicamente porque
foi pronunciado daquela maneira, naquele tom, por aquela pessoa, naquela hora” (FOUCAULT,
2003, p. 233). É daí que o discurso é bem um ato de coerção como um mecanismo de pressão

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


165
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

linguística, afinal não podemos falar tudo o que queremos, no lugar que queremos e, uma vez
que o fizermos, aumentam os riscos de sofrermos sanções que visam seja interditar, seja excluir
a nossa fala. Por conseguinte, é fundamental ter em mente que na teorização foucaultiana os
discursos “[...] classificam o saber e marginalizam tudo que não conseguem assimilar”
(ERIBON, 1990, p. 204).
Sendo que em Foucault (1987) os discursos produzem poder e saber a todo momento
e, justamente por isso, não nos estaria disponível um método geral e infalível que conseguisse
esmiúça-los plenamente, a tese do filósofo francês é que nos atenhamos à superfície de dados
ditos e escritos, assinalando o que pode e o que não ser escrito nos arquivos escolhidos; trata-
se, logo, de uma empreitada que vai ao encalço de entender as regras que organizam uma
formação discursiva, sabendo que ela é arbitrária e se ampara no binarismo do que considera
normal e anormal; é daí que perante ela, conseguiríamos “[...] determinar as condições de sua
existência, de fixar da maneira mais justa os seus limites, de estabelecer suas correlações com
os outros enunciados aos quais ele pode estar ligado, de mostrar que outras formas de
enunciação ele exclui” (FOUCAULT, 2000, p. 93). Como resultado dessa atividade, ao
conhecermos o sistema de formação sobre o qual se apoia esse conjunto de enunciados, nos é
aberta a oportunidade de compreendermos melhor como fomos subjetivados por relações de
poder que exercemos ou sofremos, posto que elas servem como receituários moralizantes
através dos quais julgamos as nossas vidas e as nossas ações.
Para o empreendimento arqueológico, o que Foucault (1987) nos oferece (e que não é
pouca coisa) é um armistício instrumentalizado por quatro categorias analíticas que configuram
sua grade de inteligibilidade. Elas são os objetos, os enunciados, os conceitos e as estratégias.
Por objetos do discurso Foucault entende o espaço comum de ideias que cimentam
uma determinada formação discursiva, isto é, as regras e normativas que estabelecem o que
pode ser escrito e não escrito naquele sistema linguístico. É o caso de, nessa categoria de análise,
investigar a regularidade presente nas práticas discursivas, algo que as fazem, não raramente,
previsíveis. Seriam, com efeito, os objetos os principais mantenedores das bases através das
quais as condições de repetição se sustentam, distribuindo os critérios de existência,
manutenção e modificação de um discurso. Pode-se falar sobre algo, mas segundo uma grade
de especificação; consegue-se transformar um discurso, só que sob rédea curta dos seus critérios
de validade e veracidade. Se fôssemos lembrar dos discursos educacionais na primeira metade
do século XX no Brasil, nos quais reinavam de maneira quase que absoluta os axiomas do
movimento conhecimento como Escola Nova, teríamos profícuos exemplos de como uma

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


166
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

formação discursiva é acessada através dos seus objetos; rememoremos que, naqueles dias, uma
proposta de ensino, ou a descrição de uma aprendizagem, deveriam ser chanceladas por
princípios normativos advindos do método racional-empírico, notadamente aquele concatenado
aos mantras do positivismo lógico, da Filosofia analítica e do evolucionismo darwiniano. O
docente, com efeito, era avaliado conforme as atividades intuitivas que elaborava, nas quais os
alunos teriam que estar no centro do processo de construção do conhecimento através das suas
ações. Assim, sob o perímetro desse objeto sob o qual se assenta um dado discurso, eis que se
produz “[...] um sujeito que questiona, segundo uma certa grade de interrogações explícitas ou
não, e que ouve, segundo um certo programa de informação; um sujeito que observa, segundo
um quadro de traços característicos, e que anota, segundo um tipo descritivo” (FOUCAULT,
1987, p. 58). Pergunta-mestra dessa categoria: o que se pode e o que se deve falar para entrar
num dado discurso?
Os enunciados, por sua vez, referem-se aos lugares institucionais e aos argumentos de
autoridade que não só mantém a estabilidade como, inclusive, funcionam como mecanismos
avaliativos de uma prática discursiva. Nesse sentido, um discurso se torna resguardado por
comunidades e/ou grupos disciplinares, que detêm os direitos soberanos sobre a produção de
um texto ou de uma fala; o melhor exemplo dessa prerrogativa aparece academicamente nas
citações a autores e nas referências bibliográficas: é preciso “[...] passar por eles para poder
dizer alguma coisa, já que sem eles nada teríamos a dizer” (CORAZZA, 1998, p. 198). No
entanto, essa relação se dá de modo imanente, isso porque os enunciados tanto servem para
estabelecer os privilégios de um determinado campo de pesquisadores, áreas, etc., quanto, nós,
ademais, fortalecemos essas relações de poder e saber, visto que esperamos que eles resolvam
nossas encruzilhadas investigativas ou que respondam parcialmente aos nossos problemas de
pesquisa. Então, se nos objetos perguntávamos o que se pode dizer e escrever, aqui a pergunta
seria sobre quem escreve mais e diz mais acerca de tal discurso; “Quem fala? Quem, no
conjunto de todos os sujeitos falantes, tem boas razões para ter esta espécie de linguagem?
Quem é seu titular?” (FOUCAULT, 1987, p. 56).
Em terceiro lugar, a coesão que agrega os elementos subjacentes à ordem de um
discurso se legitima por intermédio de um sistema de conceitos, organizado à maneira de
estrutura fixada, que produz os padrões morais que vão servindo de justificativa para os objetos
e enunciados. Ao longo da trajetória de um discurso, malgrado as transformações que foram
sendo empreendidas, persiste uma tradição e um rastreamento que limitam as práticas e fazem
com que mudanças feitas para atualizar um dado discurso tenham que ser edificadas à sombra

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


167
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

de um espírito discursivo de amplitude maior. Melhor dizendo: um discurso é um subconjunto


escrito, dito e praticado que pertencente a uma constelação maior de saberes ou, como havia
dito antes, à episteme de determinada época.
Um exercício interessante, nesse âmbito, é interrogar que conceitos servem como
ancoragem aos discursos pedagógicos contemporâneos. Na nossa leitura (que não cabe estendê-
la aqui) eles são provenientes daquele conjunto de saberes que, agrupados, demos o nome de
Modernidade. Para Silva (2013), a Modernidade se fundamenta na concepção de uma história
linear e evolutiva, desencadeada essa através de sucessos eventos e tramas num tempo
continuum. A Modernidade é a época dos grandes personagens que devem executar o seu
projeto básico, ou seja, emancipar os indivíduos, expandir as descobertas científicas,
inovar/renovar as artes, a tecnologia e as ciências e, por último, democratizar o acesso de tudo
isso ao maior inúmeros de pessoas (CANCLINI, 2013). Agora, pergunto: dentro seja das
pedagogias mais conservadoras, seja naquelas consideradas progressistas, haveriam no bojo das
dos seus ideários pressupostos que não sejam tributários desses imperativos modernos?
Por último, Foucault (1987) analisa o discurso e as suas formações por meio das
estratégias. Nessa categoria, o que mais interessa é ter acesso a série de táticas das quais se vale
um discurso para separar o enunciado correto do falso, expulsando do sistema linguístico que
lhe pertence o segundo. Dito de outra maneira, isso remeteria à discussão sobre o que o discurso
inclui ou exclui, tencionando aqueles parâmetros - nós/eles, dentro/fora, isso/aquilo – que põem
em operação uma vontade de verdade. Ao colocar sob vigilância como um discurso “[...] não
poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado
a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar” (FOUCAULT, 1987, p. 31); a arqueologia
do saber se utiliza de três amplas e abertas técnicas de identificação de mecanismos estratégicos
no interior de uma formação discursiva (FOUCAULT, 2000).
Vamos, novamente, descrever esses instrumentos tomando como alavanca a discussão
sobre Educação, a partir da seguinte pergunta: como uma autoridade pedagógica responderia
como dar uma boa aula? Bem, em primeiro lugar, ela o faria apresentando metodologias
apropriadas e inapropriadas de ensino e aprendizagem, a partir de critérios de veracidade e
falsidade, aulas boas e aulas ruins: uma proposição de validade; para tanto, esse sujeito ao qual
lhe foi atribuída uma legitimidade pelo discurso ordenado iria prescrever quais abordagens
pedagógicas e metodologias de ensino seriam insuficientes em termos de transposição didática,
logo, dispensáveis: proposição de normatividade; por último, essa autoridade reconhecida
ancoraria suas recomendações ao tempo presente e ao espaço geográfico contemporâneo para,

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


168
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

com efeito, concluir que a sociedade muda e, logo, também a escola, sua função e os seus atores:
assim, uma proposição de atualidade, pois invalida o que foi feito anteriormente por intermédio
de rótulos de anacronismo e defasagem.
É claro que essas categorias foucaultianas são abertas e, consequentemente, sinalizam
muito mais uma postura do pesquisador do que propriamente a sua aderência a quaisquer
receituários metodológicos definidos a priori. Em contrapartida, o maior poderio de uma ou de
outra categorização depende estreitamente do arquivo definido na pesquisa; ora, essas escolhas
tanto serão sempre arbitrárias quanto, basicamente, já interferem nos documentos analisados
num caminho sem volta. Dessa forma, não podemos esperar nem garantias e nem soluções
milagrosas da arqueologia de Foucault – quem sabe, algumas precauções. Aproveitando o
ensejo, eis o que farei na seção seguinte, já à guisa de conclusão: compartilhar algumas
recomendações que fazem relevo às categorias discursivas foucaultianas e que, espero, fechem
satisfatoriamente uma primeira aproximação para aqueles que estão à procura de outros
caminhos investigativos na Educação.

Considerações finais

Procuramos ilustrar nesse texto de uma forma assumidamente panorâmica como a


perspectiva foucaltiana pode ser utilizada em termos de método e perspectiva de trabalho na
Educação, com foco expandido sobre os processos de ensino e aprendizagem. Isso, obviamente,
levou-nos a adotar algumas prudências; inclusive, sinalizando o que não seria o mais apropriado
para se fazer nessa grade de inteligibilidade.
Como podemos ver, trabalhar com Foucault em Educação nem sempre é uma tarefa
fácil, tampouco uma instrumentalidade cuja abrangência abarcaria qualquer desejo de pesquisa.
Despojado das filosofias da consciência e/ou das certezas emanadas pelas psicologias da
aprendizagem, eis que o pesquisador que evoca o célebre filósofo percebe que seu seguro solo
lhe foi retirado, assim como, principalmente, a liberdade de pensamento que acreditava ter. Sob
a égide dos estudos foucaultianos, a nossa subjetividade é um elemento em continuado risco,
passível de ser capturado pelas inúmeros poderes e saberes existentes nas relações sociais; como
essas, para Bordieu (2001, p. 27) “[...] estão sempre acompanhadas de pressões, de injunções
ou de seduções”, as disputas não deixam de acontecer, de forma que aqueles territórios deixados
vagos certamente serão ocupados por novas conexões hegemônicas. No que se refere à

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


169
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

linguagem, essa tende a ser um corolário das assimetrias, produzindo uma prática social
conhecida como discurso.
Conforme acompanhamos nesse texto, na maior parte das vezes a autoria é uma mera
quimera cujo alcance é assustadoramente reduzido: as práticas discursivas preponderantes
funcionam como dragas que nos trazem tanto à força quanto implicitamente para o interior dos
seus enclaves, inclusive na maior parte das vezes com o nosso consentimento. Nesse sentido, o
equívoco que cometemos é adentrar num mundo elevado das ideias sem o cuidado de desconfiar
que esse melhor dos mundos talvez não esteja alheio a relações de poder e a dispositivos de
neutralização de subjetividade, enfim, ao microfascismo nosso de cada dia. Valho-me do alerta
de Barthes (2004, p. 15): “[...] a linguagem não pode ser considerada um simples instrumento,
utilitário ou decorativo, do pensamento”.
É daí que podemos entender o tour de force de Foucault ao longo da sua diversa obra
num tom francamente pessimista, posto que as garantias de uma sociedade evoluída, de um
mundo desenvolvido e de uma vida livre, justa e igualitária foram colocadas de cabeça para
baixo no momento em que o filósofo mostrou os capilares perigos que nunca deixaram de estar
à espreita de qualquer projeto de sociedade. É bastante provável que ele tenha sido o pensador
mais habilidoso em demonstrar que os maios valorosos ideários do Iluminismo tiveram que ser
produzidos à custa de dispositivos disciplinares e mecanismos de captura; que, pasmem, a
origem da escola moderna esteve próxima no tempo e no espaço de instituições como as prisões
e os manicômios.
No entanto, se Foucault nunca foi – e nem quis ser – aquele intelectual
condutor/líder/messiânico das massas, às quais endereçaria suas promessas de salvação, por
outro lado, sob a aporte da sua arqueologia, nos disponibilizou com notável fôlego ferramentas
de problematização do saber posto e hegemônico numa data época. Tratando o conjunto desses
conhecimentos como discursos, verdadeiras práticas ditas e escritas que se fazem soberanas,
ele indicou possibilidades para que pudéssemos desconstrui-los, compreendendo 1) de onde
vieram, 2) como emergiram, e 3) a serviço de quais relações de poder foram postos em
operação. Foucault não desejou, porém, desalojar esses discursos da sua zona de conforto para
substitui-los por outros, superiores e mais evoluídos. Tampouco poderíamos correlacionar suas
pesquisas à famosa ambição de Wittgenstein de mostrar à mosca a saída do vidro. Mais valeria,
nesse caso, a síntese do próprio filósofo: “Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o
que somos, mas recusar o que somos” (FOUCAULT, 1995, p. 239).

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


170
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

Sob esse pano de fundo, o que espero que tenha ficado evidente é que, a partir de
Foucault, teremos acesso nas nossas pesquisas a um método diferente do usual, em que as trilhas
escolhidas enxergam o mundo de um outro ponto de vista, não necessariamente o mais redentor;
entretanto, se essa postura perante a vida evita cair na vala comum do prometeísmo, por outro
lado oportuniza inúmeras pontas de lança metodológicas através das quais poderíamos elaborar
pesquisas semelhantes a obras de arte, sob as quais tatuaríamos a nossa inventividade, deixando
um pequeno legado que dificilmente seria replicado em outro lugar: quem sabe fazendo dele,
como poetizava Nietzsche (2005, p. 176), “[...] um temporal, caminhando prenhe de novos
raios”.
Nessa conjuntura, este artigo se instituiu mais como uma prudência, um sobreaviso,
uma cautela, cujo desejo maior é ter compartilhado, por intermédio de uma robusta matriz
conceitual sob a égide de um dos expoentes do Pós-Estruturalismo, algumas perspectivas que
vêm nos sendo muito úteis ao longo da nossa trajetória como professores e pesquisadores. É
por essa razão que, se fosse deixar uma última dica para quem se interessou pelos estudos
foucaultianos e a sua operacionalidade na Educação, eu a destrincharia através de dois
imperativos.
O primeiro é que, em nenhuma circunstância, o pesquisador se abstenha da coragem –
e da responsabilidade – de criar o seu método próprio de investigação. Logo, que construa a
metodologia de acordo com as necessidades próprias dos arquivos antepostos e das perguntas
formuladas. Que não abra mão, com efeito, do que de melhor Foucault nos deixou como
inspiração, isto é, a diversidade inclusa na singularidade de cada analista. Lembro-me aqui de
Deleuze e Guattari (2011, p. 18), para os quais uma pesquisa é sempre um exercício de
bricolagem, que vale justamente pela “[...] posse de um estoque ou de um código múltiplo,
heteróclito, porém limitado; a capacidade de introduzir os fragmentos em fragmentações
sempre novas”. No final, o que sobrar disso tudo é o que em termos de escrita e argumentação
não foi soterrado; escombros discursivos a partir dos quais se pode fazer ou construir alguma
coisa que valha a pena. Portanto, que não queiramos ser modelos metodológicos para ninguém.
Não há aspiração à elaboração de um receituário metodológico, ou um programa de
investigação discursiva; tampouco seria possível que um estudo foucaultiano pudesse ser
transposto linearmente para outros objetos: ele só se justifica enquanto feito pelo pesquisador
em cima dos arquivos que escolheu arbitrariamente. Esses arquivos não são e nem poderiam
ser espelhados diretamente em outro lugar (apenas se fossem reimpressões, ou copiados); no
momento em que colocamos a mão neles, emergem decisões, escolhas, inclusões e exclusões.

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


171
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

Finalmente, o segundo deles é traçar o caminho da escrita... escrevendo. A trajetória


investigativa se constitui e institui no momento em que vamos avançando, abrindo a facão
verdadeiras trilhas no interior de uma mata fechada. Em outras palavras, não faz sentido algum
nos preparamos para a empreitada abastecendo previamente uma caixa de ferramentas, na qual
estarão presentes um mapa com rota marcada, em cujas determinadas paradas deveríamos trazer
para auxílio esse ou aquele autor, esse ou aquele conceito. O processo não descarta o mapa
metodológico, mas nele deve haver espaço para a rasura, o apagamento, o acréscimo de
informações e a exclusão de outras tantas. Dados autores e seus subjacentes conceitos nos serão
fundamentais e não podemos negligenciá-los. Prever onde devem estar e dizer que será a partir
de tal conceito que vamos fazer tal coisa já seria, entretanto, arriscado e mesmo incongruente
às teorizações foucaultianas. Melhor conversarmos com o autor na ocasião em que ele se faz
premente, chamar a operacionalidade de tal conceito no instante no qual a sua linha de força
urge que se materialize. Antes que isso aconteça, é mera futurologia, prática previsível cuja
pretensão é moldar arbitrariamente o objeto à análise metodológica, ao passo que, com
Foucault, a intenção é justamente a contrária.

REFERÊNCIAS:

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.


BORDIEU, Pierre. Lições da aula: aula inaugural proferida no Collège de France em 23 de
abril de 1982. São Paulo: Ática, 2001.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da Modernidade.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
CORAZZA, Sandra Mara. História da infantilidade: a-vida-a-morte e mais-valia de uma
infância sem fim. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, UFRGS. Porto
Alegre, 1998.
______. Labirintos da pesquisa, diante dos ferrolhos. In: COSTA, M. V. (Org.). Caminhos
investigativos: novos olhares em educação. Rio de Janeiro: DP & A, 2002.
______. Didática da tradução, transcriação do currículo (uma escrileitura da diferença).
Proposições, São Paulo, n. 76, 2015.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São
Paulo: Editora 34, 2011.

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


172
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além
do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
ECO, Umberto. Como se faz uma tese. São Paulo: Perspectiva, 2002.
ERIBON, Didier. Michel Foucault: 1926-1984. São Paulo: Companhia das letras, 1990.
FEYERABEND, Paul. Contra o método: Esboço de uma teoria anárquica da teoria do
conhecimento. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.
______. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma
trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995.
______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
______. Ditos e escritos II: Arqueologia das ciências e histórias dos sistemas de pensamento.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
______. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.
______. Ditos e Escritos IV: Estratégia poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003.
FIORIN, José. Tendências da análise do discurso. Estudos linguísticos, São Paulo, v. 19, p.
173-180, 1990.
MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.
PÊCHEUX, Michel. Apresentação da análise de discurso. In: GADET, Françoise (Org.). Por
uma análise automática do discurso. Campinas: Pontes, 1990.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Currículo e identidade social: Territórios contestados. In: Silva,
Tomaz Tadeu da (Org.). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em
educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.


173
ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018
http://www.periodicos.ufrn.br/saberes

SILVEIRA, Rosa Hessel. “Olha quem está falando agora!” A escuta das vozes na educação. In:
COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos investigativos: novos olhares em educação. Rio
de Janeiro: DP & A, 2002.
VEIGA-NETO, Alfredo. Michel Foucault e educação: há algo de novo sob o sol? In: VEIGA-
NETO, Alfredo. (Org.). Crítica pós-estruturalista e educação. Porto Alegre: Sulina, 1995.
______. Olhares... In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos investigativos: novos
olhares em educação. Rio de Janeiro: DP & A, 2002.
______. Teoria e método em Michel Foucault: (im)possibilidades. Cadernos de Educação,
Pelotas, n. 34, set./dez. 2009.

ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 19, n. 2, Agosto, 2018, 155-173.

Você também pode gostar