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A Morte Do Messias - Vol 2 - Raymond E Brown

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A M O R T E DO

MESSIAS
C o leçã o B ÍB L IA E H ISTÓ RIA
• A mulher israelita: papel social e modelo literário na narrativa bíblica —
Athalya Brenner
• Culto e comércio imperiais no apocalipse de João - J . Nelson Kraybill
• É possível acreditar em m ilagres? - Klaus Berger
• Esperança da glória, A —David A. deSilva
• Igreja e comunidade em crise: o evangelho segundo Mateus - J . Andrew Overman
• Jesu s exorcista: estudo exegético e hermenêutico de Mc 3, 20-30 -
Irineu J. Rabuske
• Metodologia de exegese bíblica - Cássio Murilo D ias d a Silva
• Moisés e suas m últiplas facetas: do Êxodo ao Deuteronômio —Walter Vogeis
• O judaísm o na Antiguidade: a história política e as correntes religiosas de
Alexandre Magno até o imperador Adriano —Benedikt Otzen
• O projeto do êxodo —M atihias Grenzer
• Os evangelhos sinóticos: formação, redação, teologia —Benito Marconcini
• Os reis reformadores: culto e sociedade no Judá do Pimeiro Templo -
Riehard H. Lowery
• Pai-nosso: a oração da utopia - Evaristo Martin Nieto
• Para compreender o livro do Gênesis —Andrés Ibanez Arana
• Paulo e as origens do cristianismo - Michel Quesnel
• Profetismo e instituição no cristianismo primitivo —Guy Bonneau
• São João —Yves-Marie Blanchard
• Simbolismo do corpo na Bíblia - Silvia Schroer & Thomas Staubli
• Terra não pode suportar suas palavras; reflexão e estudo sobre Amós, A —
Milton Schwantes

Série MAIOR

• Anjos e M essias; m essianismos judaicos e origem da cristologia - Luigi Schiavo


• Entre o céu e a terra, comentário ao “ Sermão da Montanha” (Mt 5-7) -
Franz Zeilinger
• Fariseus, escribas e saduceus na sociedade palestinense - Anthony Saldarini
• Introdução ao Novo Testamento —Raymond E. Brown
• O Nascimento do M essias; comentário das narrativas da infância nos evangelhos
de Mateus e Lucas - Raymond E. Brown
• Pedro e Roma; a figura de Pedro nos dois primeiros séculos —Joachim Gnilka
• Rei e M essias em Israel e no Antigo Oriente Próximo - John D ay ( Org.)
• Tobias e Judite —José Vílchez Líndez
Raymond E. Brown

A MORTE DO

MESSIAS
COMENTÁRIO DAS NARRATIVAS DA PAIXÁO
NOS QUATRO EVANGELHOS

Volume II
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

B rown, Raym ond E.


A morte do Messias : com entário das narrativas da Paixão nos quatro
Evangelhos, volum e II / Raym ond E . Brown : [tradução B arbara Theoto
Lam bert]. - São Paulo : P auíinas, 2011. - (C oleção B íb lia e história.
Série maior)
T ítu lo original: The death of the Messiah.
B ibliografia.

1. Narrativas da Paixão (Evangelhos) 2. B íb lia . N .T. Gospels -


Com entários 1. T ítu lo . 11. Série.

índice para catálogo sistemático:


1. N arrativas da Paixão : B íb lia : Novo Testam ento : Com entários 226.07

Título original: The death o f the Messiah - from Gethsemane to the grave: A Commentary on the
Passion Narratives in the Four Gospels, volume II

© 1994, by The Associated Sulpicians of the U. S.

Direção-geral: Bernadete Boff


Editores responsáveis: Vera Ivanise Bombonatto
e Matthias Grenzer
Tradução: Barbara Theoto Lambert
Copidesque: Tiago José Risi Leme
Coordenação de revisão: Marina Mendonça
Revisão: Ruth Mitzuie Kluska
Assistente de arte: Sandra Braga
Gerente de produção: Felício Calegaro Neto
Capa e diagramação: Manuel Rebelato Miramontes

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida


por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mec ânico,
incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou
banco de dados sem permissão escrita da Editora. Direitos reservados.

Pauíinas
R ua Dona Inácia Uchoa, 62
04110-020 - São Paulo - S P (B rasil)
Te l.: (11)2125-3500
http://w w w .paulinas.org.br - editora@ paulinas.eom .br
Telem arketing e S A C : 0800-7010081
© P ia Sociedade Filh as de São Paulo - São Paulo, 2011
Sumário do volume II

(Antes de cada “ato” e “cena” do Comentário, será apresentado um quadro


mais detalhado, que divide as seções [marcadas por §] em subseções.)

Abreviaturas......................................................................................................................................................................................... 7

Quarto ato: Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto


(Mc 15,20b-47; Mt 27,31b-66; Lc 23,26-56; Jo 19,16b-42)................................................................................21

Sumário do quarto ato, cena u m ......................................................................................................................................23

§ 37. Bibliografia da seção para a cena um do quarto ato:


A crucificação de Jesus (§§ 3 8 - 4 4 ) ................................................................................................................................27

§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultamento.....................................47

§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado


(Mc 1 5,20b-21; Mt 27,31 b-32; Lc 23,26-32; Jo 1 9 ,1 6 b -17a ).......................................................................59

§ 40. Jesus crucificado, primeira parte: 0 cenário


(Mc 15,22-27; M t 27,33-38; Lc 23,33-34; Jo 1 9 ,1 7b -2 4 )................................................................................85

§ 4 1. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz


(Mc 15,29-32; M t 27,39-44; Lc 23,35-43; Jo 19 ,2 5 -2 7)...............................................................................141

§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últimos acontecimentos, morte


(Mc 15,33-37; M t 27,45-50; Lc 23,44-46; Jo 19,28-30)............................................................................... 197

§ 4 3 . Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à morte de Jesus —


a. Efeitos externos (Mc 15,38; Mt 27,5 1-5 3; [Lc 23,45b])........................................................................... 273

§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à morte de Jesus —


b. Reações dos presentes (Mc 15,39-41; M t 27,54-56; Lc 23,47-49;Jo 19 ,3 1-3 7)....................325

Sumário do quarto ato, cena dois................................................................................................................................391

§ 45. Bibliografia da seção para a cena dois do quarto ato:


0 sepultamento de Jesus (§§ 4 6 -4 8 ).......................................................................................................................393
§ 46 .0 sepultamento de Jesus, primeira parte: O pedido do corpo por José
(Mc 15,42-45; Mt 27,57-58; Lc 23,50-52; Jo 19,38a)......................................................................................399
§ 4 7 .0 sepultamento de Jesus, segunda parte; Colocação do corpo no túmulo
(Mc 15,46-47; M t 27,59-61; Lc 23,53-56a; Jo 19,38b-42)......................................................................... 441
§ 4 8 .0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
(M t 27,62-66; Lc 23,56b)....................................................................................................................................................489

Apêndices..........................................................................................................................................................................................523

Apêndice l:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão........................................... 525

Bibliografia para o Apêndice l:0 Evangelho de Pedro...................................................................................565

Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês,ano)...............................................................................................569

Bibliografia para o Apêhdice II: Para datar a crucificação...........................................................................601

Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir..............................................................................603

Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes..........................................................................................621


Bibliografia para o Apêndice IV: JudasIscariotes..............................................................................................647

Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão..............651

Apêndice V I:0 sacrifício de Isaace a Paixão...........................................................................................................671

Bibliografia para o Apêndice V I:O sacrifício de Isaac......................................................................................681

Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão.........................683

Bibliografia para o Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários


das narrativas da Paixão.......................................................................................................................................................707

Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e morte.............................................711


Bibliografia para o Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão...................737

Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão:


porMarion LSoards................................................................................................................................................................ 739
Abreviaturas

AB Anchor Bible
AER American Ecclesiastieal Review
AJBI Annual o f the Japanese Biblical Institute
AJEC P. Richardson, org. Anti-Judaism in Early Christianity; Vol 1:
Paul and the Gospels. Waterloo, Ont., Canadian Corp. for Studies
in Religion & Wilfred Laurier Univ., 1986
AJINT W, P. Eckert et alii, orgs. Antijudaismus im Neuen Testament?
München, Kaiser, 1967
A JSL American Journal ofSemitic Languages and Literature
AJT American Journal o f Theology
AnBib Analecta Biblica
AnGreg Analecta Gregoriana
ANRW Aufstieg und Niedergang der rõmischen Welt
Ant. Antiguidades judaicas, de Flávio Josefo
AP R. H. Charles, org. Apocrypha and Pseudepigrapha o f the Old
Testament. Oxford, Clarendon, 1913, 2 v.
AsSeign Assemblées du Seigneur
ASTI Annual o f the Swedish Theological Institute
AT Antigo Testamento
ATANT Abhandlungen zur Theologie des Alten und Neuen Testaments
ATR Anglican Theological Review
A.U.C. anno urbis conditae ou ab urbe condita (no ano especificado da
fundação de Roma)
AUSS Andrews University Seminary Studies
BA Biblical Archaeologist

7
A m orte do Messias

BAA M. Black. An Aramaic Approach to the Gospel and Acts. 3. ed.


Oxford, Clarendon, 1967
BAG W. Bauer; W. F. Arndt; F. W. Gingrich. Greek- English Lexicon o f
the New Testament and Other Early Christian Literature. Cambridge
University, 1957
BAGD BAG revisto por F. W. Danker, Univ. of Chicago, 1979
BARev Biblical Archaeology Review
BDF F. Blass; A. Debrunner; R. W. Funk. A Greek Grammar o f the New
Testament. University of Chicago, 1961. Referências a seções
BEJ R. E. Brown. The Epistles o f John. Garden City, N.Y., Doubleday,
1982 (AB 30)
BeO Bibbia e Oriente
BETL Bibliotheca Ephemeridum Theologicarum Lovaniensium
BExT R Benoit. Exégèse et Théologie. Paris, Cerf, 1961-1982, 4 v.
BGJ R. E. Brown. The Gospel According to John. Garden City, N.Y.,
Doubleday, 1982. AB 29, 29A, 2 v.
BHST R. Bultmann. History ofthe Synoptic Tradition. New York, Harper
& Row, 1963
BibLeb Bibel und Leben
BibLit Bibel und Liturgie
BJG P. Benoit. Jesus and the Gospel. New York, Herder, 1973, 2 v.
BJR L Bulletin o f the John Rylands Library o f the University o f Manchester
BK Bibel und Kirche
BNM R. E. Brown. 0 nascimento do Messias [tradução Barbara Theoto
Lambert]. São Paulo, Paulinas, 2005
BR Biblical Research
BS Biblische Studien
BSac Bibliotheca Sacra
BSSNT K. Beyer. Semitische Syntax in Neuen Testament. Gõttingen,
Vandenhoeck & Ruprecht, 1962
BT The Bible Translator

8
Abreviaturas

BTB Biblical Theology Bulletin


BU Biblische Untersuchungen
BVC Bible et Vie Chrétienne
BW Biblical World
BWANT Beitrãge zur Wissenschaft vom Alten und Neuen Testament
ByF Biblia y Fe
BZ Biblische Zeitschrift
BZNW Beihefte zur ZNW
CB Cultura Bíblica
CBQ Catholic Biblical Quarterly
cc Corpus Christianorum. Series Latina
CCat Civiltà Cattolica
CCER Cahiers du Cercle Ernest Renan
CD Cairo (texto Genizá do Documento de) Damasco
CH Church History
CKC J. Vardaman & E. M. Yamauchi, orgs. Chronos, Kairos, Christos.
Winona Lake, IN, Eisenbrauns, 1989 (J. Finegan Festschrift)
CNBB Bíblia Sagrada — tradução da CNBB
ColB Collationes Brugenses
ConNT Coniectanea Neotestamentica
CQR Church Quarterly Review
CR Clergy Review
CSA Chicago Sudies 25, #1, 1986. Passion, Death, and Resurrection
of Jesus (volume de aniversário)
CSEL Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum
CT Christianity Today
CTM Concordia Theological Monthly
CTom Ciência Tomista
CurTM Currents in Theology and Mission
DACL Dictionnaire d ’Archéologie Chrétienne et de Liturgie

9
A m orte do Messias

DBG M. Dibelius. Botschaft und Geschichte. Tübingen, Mohr, 1953,


1956, 2 v.
DBS H. Denzinger & C. Bannwart. Enchiridion Symbolorum. A. Schõn-
metzer, revisor. 32. ed. Freiburg, Herder, 1963. Referências a
seções
DBSup Dictionnaire de la Bible, Supplément
DJ T. Mommsen, org. The Digest o f Justinian. Philadelphia, Univ. of
Pennsylvania, 1985, 4 v.
DJD Discoveries in the Judaean Desert
DJS A. Denaux, org. John and the Synoptics. Leuven Univ., 1992 (BETL
101). Analisado por Denaux em ETL 67 ,1 9 9 1 , p. 196-203
DNTRJ D. Daube. The New Testament and Rabbinic Judaism . London,
Athlone, 1956
DRev Downside Review
DSNT J. D. M. Derrett. Studies in the New Testament. Leiden, Brill, 1977-
1986, 4 v.
DSSW G. Dalman. Sacred Sites and Ways. New York, Macmillan, 1935.
Original alemão, 3. ed., 1924
EBib Études Bibliques
EJMI R. A. Kraft & G. W. E. Nickelsburg, orgs. Early Judaism and its
Modem Interpreters. Atlanta, Scholars, 1986
EKKNT Evangelisch-katholischer Kommentar zum Neuen Testament
EQ Evangelical Quarterly
ErbAuf Erbe und Auftrage
EspVie Esprit et Vie (posteriormente, UAmi du Clergé)
EstBib Estúdios Bíblicos
EstEcl Estúdios Eclesiásticos
ESM Evangelho secreto de Marcos
ETL Ephemerides Theologicae Lovanienses
ETR Études Théologiques et Religieuses
EvPd Evangelho de Pedro (ver Apêndice I)

10
Abreviaturas

EvT Evangelische Theologie


ExpTim Expository Times
FANT J. Finegan. The Archaeology o f the New Testament. Princeton Univ.,
1969
FAWA J. A. Fitzmyer. A Wandering Aramean. Missoula, MT, Scholars,
1979 (SBLMS 25)
FB Forschung zur Bibel
FESBNT J. A. Fitzmyer. Essays on the Semitic Background o f the New Testa­
ment. London, Chapman, 1971
FGN F. Van Segbrook et alii, orgs. The Four Gospels 1992. Leuven,
Leuven Univ., 1992, 3 v. (F. Neirynck Festschrift. BETL 100)
FRLANT Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen
Testaments
FTAG J. A. Fitzmyer. ToAdvance the Gospel. New York, Crossroad, 1981
FV Foi et Vie
FZPT Freiburger Zeitschrift fü r Philosophie und Theologie
GCS Die Griechischen Christlichen Schriftsteller. Berlin
GVMF H. Goldstein, org. Gottesverachter und Menschenfeinde? Juden
zwischen Jesus und friihchristlicher Kirche. Düsseldorf, Patmos,
1979
HE Eusébio. História Eclesiástica
HeyJ Heythrop Journal
HibJ Hibbert Journal
HJPAJC E. Schürer. The History o f the Jewish People in the Age o f Jesus
Christ. G. Vermes et alii, revisores. Edinburgh, Clark, 1973-1987,
3 v.
HPG C. Kopp. The Holy Places o f the Gospels. New York, Herder and
Herder, 1963
HSNTA E. Hennecke & W. Schneemelcher. New Testament Apocrypha.
Philadelphia, Westminster, 1963,1965, ed. rev., v. 1 ,1991, 2 v.
HTR Harvard Theological Review
A m orte do Messias

HUCA Hebrew Union College Annual


IBS Irish Biblical Studies
IEJ Israel Exploration Journal
IER Irish Ecclesiastical Record
ILS H. Dessau. Inscriptiones Latinae Selectae. Berlin, Weidmann,
1892-1916, 3 v. Citado pelo número da inscrição.
ITQ Irish Theological Quarterly
JAAR Journal o f the American Academy o f Religion
JANT M. R. Jam es. The Apocryphal New Testament. 2. ed. Oxford,
Clarendon, 1953
JB L Journal o f Biblical Literature
JB R Journal o f Bible and Religion
JE Jewish Encyclopedia
JE S Journal ofEcumenical Studies
JETS Journal o f the Evangelical Theological Society
JEW J J. Jeremias. The Eucharistic Words o f Jesus. 2. ed. New York,
Scribners, 1966
JJC L. H. Feldman & G. Hata, orgs. Josephus, Judaism and Christia-
nity. Leiden, Brill, 1987
JJS Journal o f Jewish Studies
JJT J J. Jeremias. Jerusalém no tempo de Jesus. São Paulo, Paulus, 1986
[Reeditado por Paulus e Academia Cristã, 2010]
JPFC S. Safrai & M. Stern, orgs. The Jewish People in the First Century.
Philadelphia, Fortress, 1974, 2 v.
JPHD E. Bammel & C. F. D. Moule, orgs. Jesus and the Politics o f His
Day. Cambridge Univ., 1984
JQR Jewish Quarterly Review
JR S Journal ofRoman Studies
JS J Journal for the Study o f Judaism in the Persian, Hellenistic and
Roman Period
JSNT Journal fo r the Study ofthe New Testament

12
Abreviaturas

JSNTSup Journal for the Study of the New Testament — Série suplementar
JTS Journal o f Theological Studies
KACG H. Koester. Ancient Christian Gospels. Philadelphia, Trinity, 1990
KBW Katholisches Bibelwerk. Stuttgart, Verlag
KJ King James ou Versão autorizada da Bíblia
KKS W. H. Kelber; A. Kolenkow; R. Scroggs. Reflections on the Ques-
tion: Was There a Pre-Markan Passion Narrative? SBLSP, 1971,
v. 2, p. 503-586
Kyr P. Granfield & J. A. Jungmann, orgs. Kyriakon. Münster, Aschen-
dorff, 1970, 2 v.
LB Linguística Bíblica
LD- Lectio Divina
LFAE A. Deissmann. Light from the Ancient East, ed. rev. New York,
Doran, 1927 (TU 68)
LKS H. Lietzmann. Kleine Schriften II. Berlin, Akademie, 1958
LS Louvain Studies
LumVie Lumière et Vie
LXX Septuaginta — Tradução grega do Antigo Testamento
MACM H. Musurillo. TheActs ofthe Christian Martyrs. Oxford, Clarendon,
1972
MAPM H. Musurillo. The Acts o f the P agan Martyrs. Oxford, Clarendon,
1954
MGNTG J. H. Moulton (e N. Turner). Grammar o f New Testament Greek.
Edinburgh, Clark, 1908-1976, 4 v.
MIBNTG C. F. D. Moule. An Idiom-Book of New Testament Greek. Cambridge
Univ., 1960
MM J. H. Moulton & G. Milligan. The Vocabulary o f the Greek New
Testament Illustrated from the Papyri and Other Non-Literary
Sources. [reimpr.:] Grand Rapids, Eerdmans, 1963
MMM Manuscritos do Mar Morto

13
A m orte do Messias

MNTS U. Luz & H. Weder, orgs. Die Mitte des Neuen Testaments. Got-
tingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1983 (E. Schweizer Festschrift)
ms., mss. manuscrito(s)
MTC B. M. Metzger. A Textual Commentary on the Greek New Testament.
New York, United Bible Societies, 1971
MTZ Münchener Theologische Zeitschrift
NAB New American Bible
NDIEC New Documents Illustrating Early Christianity
NEB New English Bible, 1961
NEv F. Neirynck. Evangélica, Gospel Studies - Études d ’Êvangile. Lou-
vain, Peeters, 1982, 1991, 2 v. (0 v. 1 traz artigos escritos entre
1966-1981; o v. 2, entre 1982-1991)
NHL J. M. Robinson, org. The N ag Hammadi Library. New York, Harper
& Row, 1988
NICOT New International Commentary on the Old Testament
NJBC R. E. Brown et alii, orgs. The New Jerome Biblical Commentary.
Englewood Cliffs, N. J. Prentice-Hall, 1990. Referências a artigos
e seções
NKZ Neue Kirchliche Zeitschrift
NorTT Norsk Teologisk Tidsskrift
NovT Novum Testamentum
NovTSup Novum Testamentum, Supplements
NP Narrativa da Paixão. Quase sempre as narrativas da Paixão dos
Evangelhos canônicos, que para este livro são Mc 14,26-15,47;
Mt 26,30-27,66; Lc 22,39-23,56; Jo 18,1-19,42
NRSV New Revised Standard Version o f the Bible
NRT Nouvelle Revue Théologique
NS new series (de periódicos)
NT Novo Testamento
NTA New Testament Abstracts
NTAbh Neutestamentliche Abhandlungen

14
Abreviaturas

NTS New Testament Studies


NTT Nederlands Theologisch Tijdschrift
OL The Old Latin Version of the Bible
OS The Old Syriac Version of the Bible
OScur The Curetonian tradition of the OS
OSsin The Sinaitic tradition of the OS
OTP J. H. Charlesworth, org. The Old Testament Pseudepigrapha. Garden
City, NY, Doubleday, 1983-1985, 2 v.
par. paralelo(s) da passagem citada, em um ou nos outros dois Evan­
gelhos sinóticos
PEFQS Palestine Exploration Fund, Quarterly Statement
PEQ Palestine Exploration Quarterly
PG J. Migne. Patrologia Graeca-Latina
PGJK K. Kertelge, org. DerProzess gegen Jesus. Freiburg, Herder, 1988
(QD 112)
PIB Pontifício Instituto Bíblico de Roma
PIBA Procedimentos da Irish Biblical Association
PILA R. J. Cassidy & P. J. Scharper, orgs. Political Issues in Luke-Acts.
Maryknoll, Orbis, 1983
PL J. Migne. Patrologia Latina
PMK W. H. Kelber, org. The Passion in Mark. Studies on Mark 14-16.
Philadelphia, Fortress, 1976
PNT R. E. Brown et alii, orgs. Peter in the New Testament. New York,
Paulist, 1973

Q Quelle ou fonte para material compartilhado por Mateus e Lucas,


mas ausente de Marcos
QD Quaestiones Disputatae
RA Revue Apologétique
RArch Revue Archéologique
RB Revue biblique

15
A m orte do Messias

RBen Revue Bénédictine


RDLJ D. D. Sylva, org. Reimaging the Death o f the Lukan Jesus. Frankfurt,
Hain, 1990 (Bonner Biblische Beitráge 73)
REA Revue des Etudes Anciennes
RechBib Recherches Bibliques
RechSR Recherches de Science Religieuse
R EJ Revue des Etudes Juives
RevExp Review and Expositor
RevQ Revue de Qumran
RevSR Revue des Sciences Religieuses
RHPR Revue d ’Histoire et de Philosophie Religieuses
RHR Revue d ’Histoire des Religions
RivB Rivista Bíblica
RQ Rômische Quartalschrift fü r Christliche Altertumskunde und Kir-
chengeschichte
RSJ G. Richter. Studien zum Johannesevangelium. J. Hainz, org. Re-
gensburg, Pustet, 1977 (BU 13)
RSV Revised Standard Version o f the Bible
RThom Revue Thomiste
RTL Revue Théologique de Louvain
RTP Revue de Théologie et de Philosophie
RTPL M. Limbeck, org. Redaktion und Theologie des Passionsberichtes
nach den Synoptikern. Darmstadt, Wissenchaftliche Buch., 1981
(Wege der Forschung 481)
RV The Revised Version o f the Bible
SANT Studien zum Alten und Neuen Testament
SB Sources Bibliques
SBB Stuttgarter Biblische Beitráge
SBE Semana Bíblica Espanola
SBFLA Studii Biblici Franciscani Fiber Annuus

16
Abreviaturas

SBJ La Sainte Bible de Jérusalem


SBLA Society of Biblical Literature Abstracts
SBLDS Society of Biblical Literature Dissertation Series
SBLMS Society of Biblical Literature Monograph Series
SBLSBS Society of Biblical Literature Sources for Biblical Studies
SBLSP Society of Biblical Literature Seminar Papers
SBS Stuttgarter Bibelstudien
SBT Studies in Biblical Theology
SBU Symbolae Biblicae Upsalienses
SC Sources Chrétiennes
ScEsp Science et Esprit
SEA Svensk Exegetisk Arsbok
SJT Scottish Journal o f Theology
SNTSMS Society for New Testament Studies Monograph Series
so Symbolae Osloenses
SPAW Sitzungsberichte der (kõniglichen) Preussischen Akademie der W'is-
senschaften
SPNM D. P. Sênior. The Passion Narrative According to Matthew. Leuven
Univ., 1975 (BETL 39)
SRSTP M. Avi Yonah & Z. Baras, orgs. Society and Religion in the Second
Temple Period. Jerusalem, Massada, 1977 (World History of the
Jewish People 8)
ST Studia Theologica
St-B H. L. Strack & P. Billerbeck. Kommentar zum Neuen Testament
aus Talmud und Midrasch. München, Beck, 1926-1961, 6 v.
StEv Studia Evangélica (I = TU 73, 1959; II = TU 87, 1964; III = TU
88, 1964; IV = TU 102, 1968; V = TU 103, 1968; VI = TU 112,
1973; VII = TU 126,1982)
SuS Sein und Sendung
SWJT Southwestern Journal o f Theology
TalBab Talmude babilônico

17
A m orte do Messias

Taljer Talmude palestinense


TBT The Bible Today
TCSCD C. Andresen & G. Klein, orgs. Theologia Crucis — Signurn Crucis.
Tübingen, Mohr, 1979 (E. Dinkler Festschrift)
TD Theology Digest
TDNT G. Kittel & G. Friedrich, orgs. Theological Dictionary o f the New
Testament. Grand Rapids, Eerdmans, 1964-1976; original alemão,
1928-1973,10 v.
TEB A Bíblia — TEB. São Paulo, Paulinas-Loyola, 1995
TG Theologie und Glaube
TJCSM E. Bammel, org. The Trial o f Jesus — Cambridge Studies in Honour
o f C. F. D. Moule. London, SCM, 1970 (SBT 2, série 13)
TJT Toronto Journal o f Theology
TLOTC A. Lacomara, org. The Language of the Cross. Chicago, Franciscan
Herald, 1977
TLZ Theologische Literaturzeitung
TM Texto massorético do AT ou Bíblia hebraica padrão
TNTSJ A. M. Johnson, Jr., org. The New Testament and Structuralism.
Pittsburgh, Pickwick, 1976 (Pittsburgh Theol. Monograph 11)
TPNL V. Taylor. The Passion Narrative ofSt Luke. Cambridge Univ., 1972
TPQ Theologisch-Praktische Quartalschrift
TQ Theologische Quartalschrift
TS Theological Studies
TSK Theologische Studien und Kritiken
TTK T. Baarda et alii, orgs. Text and Testimony. Kampen, Kok, 1988
(A. F. J. Klijn Festschrift)
TToday Theology Today
TTZ Trierer Theologische Zeitschrift
TU Texte und Untersuchungen
TV J. Rogge & G. Schille, orgs. Theologische Versuche. Berlin, Evan-
gelische Verlag. Neste anuário, o numeral romano que diferencia
o volume faz parte do título.
TZ Theologische Zeitschrift

18
Abreviaturas

UBSGNT United Bible Societies Greek New Testament


VC Vigiliae Christianae
VCaro Verbum Caro
VD Verburn Domini
Ylnt Vie Intellectuelle
í

VSpir Vie Spirituelle


VT Vetus Testamentum
WD Wort und Dienst
WUNT Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament
ww Wort und Wahrheit
ZAGNT M. Zerwick & M. Grosvenor. An Analysis o f the Greek New Testa­
ment. Roma, Pontificai Biblical Institute, 1974,1979, 2 v.
ZAW Zeitschrift fü r die Alttestamentliche Wissenschaft
ZBG M. Zerwick. Biblical Greek. Roma, Pontificai Biblical Institute,
1963
ZBTJ F. Viering, org. Zur Bedeutung des Todes Jesu. Gütersloh, Mohn,
1967
ZDMG Zeitschrift der Deutschen Morgenlandischen Gesellschaft
ZDPV Zeitschrift des Deutschen Palãstina-Vereins
ZKT Zeitschrift fü r die Katholische Theologie
ZNW Zeitschrift fü r die Neutestamentliche Wissenschaft
ZTK Zeitschrift fü r Theologie und Kirche
ZWT Zeitschrift fü r Wissenschaftliche Theologie
Abreviaturas-padrão são usadas para os livros bíblicos e para os Manuscritos
do Mar Morto. (Para informações a respeito dos manuscritos mais importantes, ver
NJBC, artigo 67, p. 82-95.) 0 AT, em geral, e os Salmos, em particular, são citados
conforme os números hebraicos de capítulos e versículos, o que se verifica mesmo
quando a LX X está em discussão. Ajudará aos leitores saber que nos Salmos o
número da LX X é sempre um número mais baixo que o número hebraico, por
exemplo, SI 22 hebraico é SI 21 da LXX. O número do versículo de um Salmo na
K J e na RSV é sempre um número mais baixo que na Bíblia hebraica, por exemplo,
SI 22,2 hebraico é SI 22,1 na RSV.

19
A m orte do Messias

Os nomes Marcos, Mateus, Lucas e João são usados para os escritos e também
para os autores. Não é feita nenhuma conjetura quanto à identidade dos evangelistas;
assim, quando empregado para o autor, João significa quem quer que tenha sido o
autor principal do Evangelho segundo João. Mc/Mt é usado onde Marcos e Mateus
(Evangelhos ou evangelistas) estão tão próximos a ponto de se considerar que eles
apresentam os mesmos dados ou o mesmo ponto de vista.

0 asterisco depois do nome de um ms. da Bíblia indica uma leitura do copista


original, diferenciada de adições ou mudanças posteriores. As seções (= capítulos)
deste livro são marcadas pelo sinal § mais um numeral de 1 a 48 (ver Sumário). As
remissões dentro do livro empregam esse sinal com o número da seção apropriada;
ver o título corrido no topo das páginas para obter um acesso fácil à seção indicada.

20
Q uarto ato :

J esus é crucificado e m orre no G ólgota .

É SEPULTADO ALI PERTO


(Mc 1 5,20b-47; Mt 27,31 b-6 6 ;
Lc 23,26-56;Jo 19,16 b-42)
O quarto ato da narrativa da Paixão descreve como Jesus, depois de ser levado
para o Gólgota, foi crucificado entre dois outros como "o Rei dos Judeus". Durante
as horas em que ficou pendurado na cruz, houve reações de várias pessoas que
estavam ali perto e também palavras pronunciadas por Jesus até ele entregar o
espírito. Sua morte foi recebida com acontecimentos extraordinários e, tam bém ,
reações de várias pessoas. Finalmente, José de Arimateia tomou o corpo e o
sepultou ali perto, enquanto as mulheres eram espectadoras.
Sumário do quarto ato, cena um

CENA UM: Jesus é crucificado e morre (Mc 15,20b-41; Mt 27,31b-56; Lc 23,26-49; Jo


19,16b-37)
§ 37. Bibliografia da seção: A crucificação de Jesus (§§ 38-44)
Parte I: Episódio de transição: Jesus levado do pretório de Pilatos para o local da
crucificação (§ 39)
Parte II: Geografia da crucificação, especificamente o local do Gólgota e do sepulcro
de Jesus
Parte III: Geral: A crucificação antiga; relatos evangélicos da crucificação de Jesus
(§ 40)
Parte IV: Cenário: título, terceira hora, vestes, o primeiro gole, “Pai, perdoa-lhes”
(§40)
Parte V: Relatos sinóticos das atividades na cruz; o “Bom Ladrão” lucano (§ 41)
Parte VI: Os que estavam perto da cruz (Jo 19,25-27); identidade das mulheres (§ 41)
Parte VII: Últimos acontecimentos e palavras, exclusive o grito mortal em Marcos/
Mateus (§ 42)
Parte VIII: 0 grito mortal (“Meu Deus, meu Deus...”) em Marcos/Mateus e Elias (§ 42)
Parte IX: A realidade da morte de Jesus e sua causa fisiológica (§ 42)
Parte X: O rasgamento do véu do santuário (§ 43)
Parte XI: Fenômenos especiais em Mt 27,51-53 (§ 43)
Parte XII: Reações sinóticas à morte: confissão do centuriâo; mulheres galileias (§ 44)
Parte XIII: Reações joaninas à morte: o lado perfurado; ossos quebrados (§ 44)
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultamento
A. Estrutura do relato de Marcos/Mateus
B. Estrutura do relato de Lucas
C. Estrutura do relato de João
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado
(Mc 15,20b-21; Mt 27,31b-32; Lc 23,26-32; Jo 19,16b-17a)
Comentário:
• Levando Jesus para fora; o carregamento da cruz; Simão Cireneu
• Jesus fala às filhas de Jerusalém (Lc 23,27-31)
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Análise:
§ 40. Jesus crucificado, primeira parte: 0 cenário (Mc 15,22-27; Mt 27,33-38; Lc 23,33-
34; Jo 19,17b-24)
Comentário:
#1. O nome do lugar (Mc 15,22; Mt 27,33; Lc 23,33a; Jo 19,17b)
#2. A oferta inicial de vinho (Mc 15,23; Mt 27,34)
#3. A crucificação (Mc 15,24a; Mt 27,35a; Lc 23,33b; Jo 19,18a)
#4. A divisão das roupas (Mc 15,24b; Mt 27,35b; Lc 23,34b; Jo 19,23-24)
#5. A terceira hora (Mc 15,25); os soldados mantêm guarda (Mt 27,36)
#6. A inscrição e a acusação (Mc 15,26; Mt 27,37; Lc 23,38; Jo 19,19-22)
#7. Dois bandidos ou malfeitores (Mc 15,27; Mt 27,38; Lc 23,33c; Jo 19,18b)
#8. “Pai, perdoa-lhes” (Lc 23,34a)
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: atividades no local da cruz
(Mc 15,29-32; Mt 27,39-44; Lc 23,35-43; Jo 19,25-27)
Comentário:
• O triplo escárnio de Jesus (Mc 15,29-32; Mt 27,39-44; Lc 23,35-39)
• A salvação do outro malfeitor (Lc 23,40-43)
• Amigos e discípulos perto da cruz (Jo 19,25-27)
Análise:
A. Historicidade
B. Algumas notas teológicas adicionais
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últimos acontecimentos, morte
(Mc 15,33-37; Mt 27,45-50; Lc 23,44-46; Jo 19,28-30)
Comentário:
• Escuridão na sexta hora (Mc 15,33; Mt 27,45; Lc 23,44-45a)
• O grito mortal de Jesus; Elias; oferta de vinho avinagrado (Mc 15,34-36; Mt
27,46-49)
• O grito mortal de Jesus em Lc 23,46
• As últimas palavras de Jesus e a oferta de vinho em Jo 19,28-30a
• A morte de Jesus em todos os Evangelhos
Análise:
A. Teorias de como Mc 15,33-37 foi composto
B. As últimas palavras de Jesus: tradição mais antiga e/ou historicidade
Sum ário do quarto ato, cena um

C. A causa fisiológica da morte de Jesus


D. Reescrito imaginoso que anula a crucificação
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à morte de Jesus:
a. Efeitos externos (Mc 15,38; Mt 27,51-53; [Lc 23,45b])
Comentário:
• O véu do santuário foi rasgado (Mc 15,38; Mt 27,51; Lc 23,45b)
• Fenômenos especiais em Mt 27,51-53
Análise:
A. As teologias dos evangelistas ao relatar o rasgamento do véu do santuário
B. A teologia de Mateus ao relatar os fenômenos especiais
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à morte de Jesus:
b. Reações dos presentes (Mc 15,39-41; Mt 27,54-56; Lc 23,47-49; Jo 19,31-37)
Comentário:
• Reações dos presentes segundo Marcos/Mateus
• Reações dos presentes segundo Lucas
• Reações dos presentes segundo João
• Reações dos presentes segundo o EvPd
Análise:
A. A historicidade dos que reagiram e de suas reações
B. A composição dos relatos sinóticos e joanino
§ 37. Bibliografia da seção para a cena
um do quarto ato: A crucificação de
Jesus (§§ 3 8-44)

As análises da crucificação de Jesus são particularmente numerosas. Para esta


bibliografia ser proveitosa, pareceu-me essencial uma divisão maior em partes que
de costume. Ver as treze subdivisões delineadas no sumário imediatamente anterior.

Parte I: Episódio de transição: Jesus levado do pretório de Pilatos para o local da


crucificação (§ 39)

B ishop, E. F. F. Simon and Lucius: Where did they come from? ExpTim 51,1939-1940,
p. 148-153.
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zum Neuen Testament und seiner Umwelt 16,1991, p. 55-87.

27
Q uarto «to ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

Parte II: Geografia da crucificação, especificamente o local do Gólgota e do


sepulcro de Jesus

B ahat, D. Does the Holy Sepulchre Church Mark the Burial of Jesus? BARev 12, #3,
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28
§ 37. Bibliografia da seção para a cena um do quarto ato: A crucificação de Jesus

Parte III: Geral: A crucificação antiga; relatos evangélicos da crucificação de Jesus


(§40)

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29
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

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30
§ 37. Bibliografia da seção para a cena um do quarto ato: A crucificação de Jesus

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Parte IV: Cenário: título, terceira hora, vestes, o primeiro gole,"Pai, perdoa-lhes" (§ 40)

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H arris , J. R. New Points of View in Textual Criticism. Expositor 8th Ser., 7, 1914, p.
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Parte XII: Reações sinóticas à morte: confissão do centurião; mulheres galileias


(§ 44: Mc 15,39-41; Mt 27,54-56; Lc 23,47-49)

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Parte XIII: Reações joaninas à morte: o lado perfurado; ossos quebrados


(§ 44: Jo 19,31-37)

(Estudos puramente fisiológicos da ferida no lado e do fluxo de sangue e


água como causa da morte de Jesus estão relacionados na Parte IX.)

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45
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos
da crucificação e do sepultamento

Chegamos agora à última das quatro divisões principais que chamei de


“Atos” do drama. Como antes, ao comentar esses relatos vou subdividir seguindo
principalmente a sequência marcana. Naturalmente, reconheço que tal divisão
não faz justiça à sequência dos outros Evangelhos até o ponto em que diferem de
Marcos. Contudo, ao comentar as cenas respectivas tomarei o cuidado de alertar o
leitor sobre as peculiaridades nos tratamentos de cada cena nos outros Evangelhos
e sobre os arranjos do material nesses Evangelhos. Este último “Ato” da NP tem
uma diversidade de personagens e locais, e o arranjo que cada evangelista dá a esse
material variado tem importância extraordinária para a interpretação do pensamento
do evangelista. Portanto, acho prudente, mesmo antes de comentar seções distintas,
dar ao leitor uma visão geral de três estruturas diferentes nos relatos da crucifi­
cação e do sepultamento (Marcos/Mateus, Lucas e João). A investigação dessas
estruturas esclarece um pouco como foi composto cada um dos relatos evangélicos
da crucificação e do sepultamento; assim, à medida que descrevo cada estrutura,
faço algumas observações gerais a respeito da composição. Em parte, Lucas está
próximo de Marcos/Mateus; em parte, tem estrutura diferente. Para facilitar a
avaliação dos dois aspectos lucanos, vou incluir uma coluna lucana comparativa
em minha apresentação da estrutura de Marcos/Mateus e depois fazer um exame
independente da estrutura lucana considerada à parte.

A. Estrutura do relato de Marcos/Mateus

0 Quadro 6 adiante esquematiza os principais elementos de Mc 15,20b-47


e Mt 27,31b-611 (e suplementarmente em Lc 23,26-56). Neste esquema, depois
da transição introdutória, o relato marcano consiste em cinco partes componentes1

1 Seria possível ampliar isso até Mt 2 7 ,6 6 .0 sepultamento (Mt 27,57-61) e a guarda no túmulo (Mt 27,62-
66), embora concluam a NP, fazem parte de uma narrativa em cinco seções da ressurreição (§ 48 A,
Quadro 9).

47
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

(quatro [§§ 4 0 -4 4 ] dizem respeito a Jesus crucificado, sendo o sepultamento um


quinto componente, com subdivisões próprias [§§ 4 5-46]). A parte central é a
terceira (§ 42), onde Jesus, perto da morte, pronuncia suas únicas palavras. Dos
dois lados, na segunda e na quarta partes, estão atividades que mostram as rea­
ções dos presentes a Jesus na cruz. Além dessa habilidade geral de organização, o
padrão narrativo de três está presente nos três escárnios de Jesus antes de morrer
e em três anotações de períodos de três horas (terceira, sexta, nona horas).2 Matera
julga descobrir um padrão marcano de agrupar seções colocando o mesmo tipo de
declaração antes e depois, mas os exemplos que oferece são muitas vezes forçados.3

O conteúdo da narrativa marcana é, em grande parte, determinado, mate­


rial e verbalmente, pelo desejo de mostrar cumprimento. O escárnio de Jesus na
cruz e o que acontece depois de sua morte continuam e realizam alegações feitas
no julgamento judaico a respeito da destruição do santuário e de ser o Messias, o
Filho de Deus. Mais proeminente ainda é o cumprimento de temas veterotestamen-
tários, por exemplo, a descrição pelo salmista do justo sofredor que é escarnecido
e esbofeteado pelos inimigos; a acusação, registrada em Sb 2,17-20, de que o
justo é impotente para impedir a morte ignominiosa, apesar de alegar que Deus
está do seu lado e que é Filho de Deus; o uso do versículo de um Salmo para a
oração de Jesus ao morrer na cruz. Esses temas da narrativa da crucificação são
incontestáveis; temas inspiradores menos certos também têm sido propostos. Por
exemplo, Matera (Kingship) acha o tema do rei do princípio ao fim de Marcos, até
onde não está claramente visível.4 Entretanto, nem um tema em particular, nem o

2 Esses períodos fazem parte de um padrão maior de tempo que percorre toda a NP marcana (§ 28), mas
não são úteis para subdividir o relato da crucificação (por exemplo, as referências à sexta e à nona horas
encontram-se em um único versículo!).
3 Ver Kingship, p. 57. Ele alega que as referências à 3a e à 6a horas agrupam material tradicional, igno­
rando o que relatei na nota 2. É imaginoso chamar “ Eles põem púrpura sobre ele” e “ Eles o despiram
da púrpura” , em Mc 15,17.20a, repetição eombinadora; são apenas ações correlatas. Digo o mesmo
de “ Ele está gritando para Elias” e “Vermos se Elias vem deseê-lo” , em Mc 15,35.36. Também acho
forçada a divisão proposta por Robbins (“ Reversed”), que junta em uma única unidade (Mc 15,16-24)
o escárnio romano de Jesus no pretório, Jesus sendo levado à crucificação, algumas das preliminares da
crucificação — tudo sob o título “Escárnio de Jesus como rei". Como Simão de Cirene, o lugar chamado
Gólgota e a oferta de vinho misturado com mirra harmonizam-se sob esse cabeçalho? Railey (“ Fali” , p.
103) elimina Mc 15,40-46 e encontra uma elaborada estrutura quiástica em Mc 15,20-39. Entretanto, o
quiasmo inclui um número grande demais de improbabilidades, por exemplo, fazer a cena central consistir
nos escárnios pelos transeuntes, e não nas únicas palavras de Jesus e sua morte, ou fazer o centurião
romano que confessa Jesus paralelo a Simão de Cirene, quando em Marcos (diferente de Lucas), em
estrutura narrativa e contexto, Simão está mais próximo de José de Arimateia.
4 Nas páginas 62-63, ele faz essas sugestões. Os criminosos à direita e esquerda de Jesus (Mc 15,27)
correspondem aos assentos à direita e à esquerda de Jesus na glória, como solicitado por Tiago e João

48
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultamento

motivo de realização explicam tudo o que Marcos relata a respeito da crucificação.


Principalmente na Primeira Parte (§ 40 adiante), há informações incluídas que
não têm nenhum propósito dramático ou teológico óbvio para Marcos. Penso em
especial no topônimo Gólgota, no título “o Rei dos Judeus ” e na primeira oferta de
vinho misturado com m ina. Esses eram provavelmente elementos antigos em um
relato do acontecimento, e alguns deles devem ser considerados históricos.

QUADRO 6. COMPARAÇÃO DOS RELATOS SINÓTICOS


DA CRUCIFICAÇÃO E DO SEPULTAMENTO
§ 3 9 . E p isó d io d e tran sição : Je s u s levad o p a r a se r cru cificad o 5
Mc 15,20b-21 Mt 27,31b-32 Lc 23,26-32
Levando-o para fora. igual igual
Simão Cireneu igual igual
Pai de Alexandre Rufo Multidão e filhas de Jerusalém
seguiam e lamentavam; J [= Jesus]
falou com elas.
§ 4 0 . Je s u s cru cificad o , p rim eira p arte : o cen ário
Mc 15,22-27 Mt 27,33-38 Lc 23,33-34
Sete informações (relacionadas Seis informações na mesma ordem Quatro informações reorganizadas
em § 40, adiante) de Marcos (Omite 3‘ hora; acrescenta (concentradas no dito de Jesus:
guarda6) “ Pai, perdoa-lhes.”)
§ 4 1 . J e s u s cru cificad o , segu n d a p arte : atividades no lo c a l d a cruz
Mc 15,28-32 Mt 27,39-44 Lc 23,35-43
Pessoas de pé, observando.
Três grupos escarnecedores igual (2a grupo e escárnio ampliado) Três grupos escarnecedores (com­
posição parcialmente diferente
de Marcos)
“Ladrão penitente”

(Mc 10,37.40)! O escárnio do brado por Jesus de abandono em Mc 15,34-35 é o escárnio do brado por
um falso rei Messias (embora nenhum dos termos apareça nesses versículos). O fato de Pilatos espantar-
-se por Jesus já ter morrido (Mc 15,44) faz eco ao espanto de Pilatos em Mc 15,5 com relação a “ o Rei
dos Judeus” (embora Mc 15,5 relacione o espanto à recusa de Jesus a responder outras acusações) e
contribui para a atmosfera de um sepultamento régio para Jesus! Matera menciona que Pilatos obteve
as informações a respeito da morte do centurião “que proclamou ser o Rei dos Judeus o Filho de Deus”
(embora Marcos não associe o centurião ao título “ o Rei dos Judeus”).
5 Esta não é, na verdade, uma cena independente em Marcos/Mateus (nem em João), mas uma sentença
de transição. A ampliação lucana força-me a dedicar a ela § 39.
6 Mc 15,25, “Agora era a terceira hora e eles o crucificaram” , está no mesmo lugar na sequência que Mt
27,36: “E tendo sentado, eles estavam guardando-o (montando guarda) ali” .

49
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

§ 4 2 . J e s u s cru cificad o , te r c e ira p arte : últim os acon tecim en to s, m o rte


Mc 15,33-37 Mt 27,45-50 Lc 23,44-46
Trevas da 6“ à 9* horas igual igual (eclipse do sol)
0 véu do santuário rasgou-se.
Na 9* hora, J. gritou a Deus igual J. deu um alto brado, entregando-
brado de abandono. -se nas mãos do Pai.
Interpretação com Elias igual
Oferta de vinho avinagrado, igual
escárnio com Elias
Tendo dado um alto brado, J. Tendo gritado, J. deixou ir o espirito. Tendo dito isso, J. expirou.
expirou.
§§ 4 3 - 4 4 . J e s u s cru cificad o , q u a rta p arte : acon tecim en to s p o ste rio re s à m o rte
d e Je s u s
Mc 15,38-41 Mt 27,51 -56 Lc 23,47-49
0 véu do santuário rasgou-se. igual
a terra tremeu, as pedras se partiram,
os túmulos se abriram, os santos res­
suscitaram e entraram na cidade santa.
0 centurião, tendo visto, con­ igual (outros com o centurião) 0 centurião, tendo visto, confessou
fessou J. como Filho de Deus. J. como homem justo.
Multidões voltaram, batendo no
peito.
Quatro m ulheres g alileias igual Os conhecidos de Jesus e as mulhe­
observavam de longe. res galileias de pé, de longe, viram.
§§ 4 6 - 4 7 . 0 sepu ltam en to d e Je s u s , p rim eira e segu n d a p arte s:
J o s é e o sepultam en to
Mc 15,42-47 Mt 27,57-61 Lc 23,50-56a
Entardecer, dia de preparação Entardecer
antes do sábado.
José pediu o corpo a Pilatos. igual igual (José não concordou com a
decisão contra J.)
Pilatos perguntou ao centurião
se J. estava morto.7
Pilatos concedeu o corpo a igual
José.
José amarrou o corpo e se- igual igual
pultou-o.
Duas mulheres observaram Duas mulheres sentaram-se em frente A s m ulheres olharam para o
o túmulo. ao sepulcro. túmulo.
Elas voltaram, aprontaram espe­
ciarias.

Relativamente às divergências mateanas do esquema marcano, esta é a mais longa omissão mateana.

50
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultamento

§ 4 8 . 0 sepu ltam en to d e Je s u s , te rc e ira p arte : n o sáb ad o


Mt 27,62-66 Lc 23,56b
Depois do dia da preparação, os chefes As mulheres repousaram.
dos sacerdotes conseguiram guardas
de Pilatos para vigiar o sepulcro.8

C o m po siç ã o . Independentemente da teoria de composição que se adote, as


observações gerais que acabamos de fazer a respeito da estrutura da narrativa mar-
cana da crucificação têm valor. E inevitável encontrar a mesma variedade de teorias
de composição que vimos em relação a partes anteriores da NP. Por exemplo, muitos
biblistas descobrem (às vezes considerado histórico) que foi adaptado ou readaptado
por Marcos. A esse centro, Finegan atribui Mc 15,21.22a.24a.26.27.37.40-41,
enquanto Linnemann propõe Mc 15,22a.24a.25a.33.34a.37.38 e Bultmann sugere
Mc 15,20b-24a.(27).37. Dormeyer acha que Mc 15,21.22a.23.24a.26.27.31a.32
c.34ab.37.38.40 se originaram de uma comunidade judeu-cristã primitiva. Outro
enfoque popular teoriza que a narrativa marcana resulta da combinação de dois
relatos. Schreiber considera o primeiro histórico, relacionando-o a Simão de Cirene
(Mc 15,20b-22a.24.27), e o segundo, apocalíptico, influenciado por reminiscências
veterotestamentárias (Mc 15,25.26.29a.32c.33.34a.37.38). Com referência a Mc
15,22-33, Taylor atribui Mc 15,22-24.26.29.30 a Marcos A e Mc 15,25.27.31.32.33
a Marcos B. Nas duas teorias de composição, os (frágeis) critérios costumeiros
de redação, duplicatas e interesse teológico são invocados para identificar etapas
pré-marcanas. Onde tais critérios produzem maior concordância é com referência
às informações que descrevi no final do parágrafo anterior como aparentemente
imotivadas (principalmente em Mc 15,22-27).9

Ao contrário, quando se julga que, até onde podemos remontar, havia aspectos
narrativos (padrão de três) e reflexões no AT, o método por trás da análise exata de
versículos e meio-versículos pré-marcanos torna-se suspeito. A desalentadora falta
de concordância entre os resultados defendidos pelos diversos biblistas (ver também
APÊNDICE IX) torna frágil todo o empreendimento. A esses problemas, se João não
é dependente de Marcos, é preciso acrescentar a questão joanina. A concordância

8 Mateus tem dois adendos significativos ao esquema marcano: no final, esta cena; antes, as reações da
terra, das pedras e dos túmulos à morte de Jesus (ver em § 43).
’ Como de costume, Pesch (Markus, v. 2, p. 482) afirma que, do jeito que está, Marcos reflete os relatos
primitivos e, assim, rejeita fragmentação. Ele identifica duas subseções: Mc 15,20b-24 e Mc 15,25-32.

51
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

entre os dois Evangelhos não está só nos detalhes (topônimo, crucificação entre
dois criminosos, acusação divulgada contra Jesus, escárnio pelos chefes dos sa­
cerdotes, divisão de roupas, oferta de vinho azedo \oxos\, Maria Madalena e outra
Maria), mas também em padrões de três e ecos de Salmos — em outras palavras,
concordância joanina com Marcos em aspectos que muitas análises pré-marcanas
consideram adições marcanas ou características de uma segunda fonte. Minha
opinião, então, é que, aqui, como em outras passagens, identificam-se tradições
primitivas (compartilhadas independentemente pelos Evangelhos), mas que não
podemos reconstruir uma narrativa pré-marcana com probabilidade significativa,
embora tenhamos boa razão para pensar que ela existiu.

B. Estrutura do relato de Lucas

Uma olhada na coluna lucana no esboço de Marcos/Mateus acima mostra


a extensão dos paralelos lucanos com Marcos. Especialmente notável é que a se­
quência geral de episódios similares é a mesma. Contudo, Taylor (Passion , p. 92)
observa que Lc 23,33-49 (minhas primeira a quarta partes de Jesus crucificado)
tem 265 palavras, somente 74 das quais encontram-se no material comparável em
Marcos (assim, apenas 28 por cento).10 A impressão dessa estatística diminui um
pouco quando percebemos que Lucas apresenta aqui material encontrado em outras
passagens de Marcos, por exemplo, o escárnio romano de Jesus.

Muitos dos elementos lucanos que não são idênticos a Marcos repercutem
temas comuns a Lucas-Atos, por exemplo, perdão, estar em paz com Deus, a
multidão compreensiva em contraste com as autoridades. Assim, encontra-se a
costumeira discordância quanto ao fato de Lucas ter tido uma fonte especial ou
reescrito livremente o material marcano (talvez com a ajuda de informações isola­
das de tradição não conhecida por Marcos). Aqui (como antes), prefiro a segunda
posição. Seja como for, um fato é certo: o relato final em Lc 23,26-56 foi escrito e
moldado cuidadosamente por Lucas. 0 que ele tirou de Marcos foi encaixado em
uma estrutura de arte ainda maior que a de Marcos:

a) Lc 23,26-32 (§ 39: Jesus levado para ser crucificado). Três partes favo­
ráveis a Jesus: i) Simão que leva a cruz atrás de Jesus na postura de discípulo; ii)

10 Das setenta e quatro palavras paralelas, quase um quarto encontram-se em dois versículos.

52
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultamento

uma grande aglomeração do povo e as filhas de Jerusalém que batem no peito e


lamentam; iii) dois malfeitores, um dos quais depois se compadece de Jesus. Ver o
paralelo que consiste em três partes depois da morte de Jesus em e).

b) Lc 23,33-34 (§ 40: Cenário da crucificação de Jesus). Consiste em três


subseções: i) topônimo, fato da crucificação, disposição dos dois malfeitores — in­
formações tiradas de Marcos; ii) oração de Jesus ao Pai pelo perdão — exclusiva
de Lucas; iii) divisão das roupas — informação tirada de Marcos. A afabilidade
do Jesus tipicamente lucano é realçada pela hostilidade circundante.

c) Lc 23,35-43 (§ 41: atividades no local da cruz). Cinco informações ao


todo: i) pessoas param e observam — não hostis; ii) autoridades zombam; iii)
soldados escarnecem; iv) um malfeitor blasfema; v) um malfeitor se compadece e
é recompensado. As três reações hostis principais assemelham-se a Marcos, com
alguma mudança de envolvidos de uma cena alhures em Marcos.11 A primeira e a
quinta, que emolduram as três centrais e não são hostis, são exclusivas de Lucas
e suavizam o impacto negativo da cena.

d) Lc 23,44-46 (§ 42: últimos acontecimentos, morte). Mais sucinto que


Marcos, Lucas tem dois elementos: i) trevas da 6- até a 9a hora (enquanto a luz
do sol escurece) e o rasgamento do véu do santuário — ambos de Marcos, onde,
entretanto, as trevas precedem e o rasgamento segue a morte de Jesus; ii) Jesus
brada com voz forte (tirado de Marcos), entregando o espírito ao Pai (quase o oposto
de Marcos, onde ele se sente abandonado por Deus). Lucas reúne os elementos
negativos de antemão, para que, depois da morte mais resignada de Jesus, tudo
possa ser positivo.

e) Lc 23,47-49 (§ 44: atividades no local da cruz depois da morte). Não é


autenticamente paralelo a § 41, como em Marcos (porque ali Lucas já neutralizou
a hostilidade dos três escárnios por sua estrutura), mas complementariamente pa­
ralelo a § 39, com suas três partes favoráveis a Jesus antes da crucificação. Aqui,
também há três partes favoráveis a Jesus: i) o centurião que louva a Deus e confessa
que Jesus é um justo, comparável a Simão que carregou a cruz atrás de Jesus; ii)1

11 Os transeuntes da tríade negativa marcana de escamecedores tomam-se pessoas lucanas mais positivas
que observam. Como Lucas também apresenta uma tríade de escamecedores, ali os soldados (romanos)
tomam o lugar dos transeuntes de Marcos. Marcos apresentou antes soldados romanos hostis a Jesus (Mc
15,16-20a) em uma cena depois do julgamento romano que Lucas não preservou naquela sequência,
mas da qual se apropriou aqui.

53
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

as multidões que voltam para casa batendo no peito — que correspondem à aglo­
meração do povo em § 39; iii) os conhecidos de Jesus e as mulheres da Galileia
que ficam longe e observam — que correspondem às filhas de Jerusalém em § 39.

f) Lc 23,50-56 (§§ 4 6 -4 8 : Sepultamento de Jesus e o dia seguinte). José


de Arimateia pede a Pilatos o corpo de Jesus e o sepulta em um túmulo onde ainda
ninguém fora sepultado. Esse material faz paralelo com Marcos e deixa de fora (como
faz Mateus) o espanto de Pilatos por Jesus já estar morto, aumentando a ênfase na
probidade de José (que, embora membro do conselho [sinédrio], não concordou com
o propósito dos outros membros) e (com objetivo apologético) evitando a possibi­
lidade de o corpo de Jesus ser confundido com outro corpo no mesmo túmulo. Ao
relato marcano das mulheres que veem onde Jesus é sepultado, Lucas acrescenta
a informação de que elas prepararam especiarias e unguentos e descansaram no
sábado. Desse último elemento tratarei em seção à parte, pois ele corresponde
funcionalmente ao esforço mateano muito mais longo para preencher o dia entre
a sexta-feira da morte de Jesus e o domingo em que sua ressurreição é revelada.

Esta análise da estrutura do relato lucano da crucificação é feita de maneira


a sugerir como uma adaptação imaginosa do material marcano explica muitas das
diferenças entre os dois Evangelhos. A teologia lucana mais benevolente, do papel
dos participantes humanos e do exercício de misericórdia por Jesus, está por trás
dessa adaptação. Contudo, deve ser reconhecido que a arte de Lucas transcende
um arranjo arquitetônico de informações para servir a sua teologia. A evolução dra­
mática do papel do malfeitor compassivo (“o bom ladrão” ) aproxima-se da técnica
joanina de escolher alguns incidentes da crucificação e realçar seus potenciais.
Seu Jesus soberano, que promete ao malfeitor a participação no paraíso “este dia”
(Lc 23,43), se assemelha ao Jesus que governa da cruz no relato joanino. É para
a estrutura deste último que agora nos voltamos.

C. Estrutura do relato de João

Em Lucas, ao contrário de Marcos/Mateus, Jesus levado ao lugar da cruci­


ficação constitui uma cena em si, integrante da estrutura geral. Em João, embora
não seja uma cena independente, a saída de Jesus para o Gólgota combina-se com
outras informações pertinentes ao cenário da crucificação, de modo que constitui
uma introdução que pode ser ligada a seis episódios que descrevem Jesus na cruz

54
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultamento

e seu sepultamento, e assim produz um padrão quiástico (quadro 7). É em parte


semelhante à mais elaborada organização quiástica de sete episódios no julgamento
de Pilatos (§ 32 D); mas na ausência do padrão fora/dentro que ali serviu de guia,
as diretrizes para divisões aqui são mais contestáveis.12

A quantidade de paralelismo nesse quiasmo não é uniforme. A principal


similaridade entre a Introdução e o Episódio 6 está na maneira lacônica na qual
relacionam o que aconteceu, mas o Episódio 6 é mais longo que a Introdução. Há
bom paralelismo entre o Episódio 1 e o Episódio 5. Em cada um deles, judeus
hostis a Jesus vão a Pilatos com um pedido destinado a reduzir a importância de
Jesus ou tirá-lo de cena, mas Pilatos não concorda da maneira que eles querem. Há
paralelismo moderado entre o Episódio 2 e o Episódio 4 no tema de cumprimento.
Reconhecendo que o tema geral na NP joanina é o controle de tudo isso por Jesus e
sua vitória na cruz, o Episódio 3 forma um centro excelente do relato da crucificação.
Nele, Jesus está cercado de uma comunidade de fiéis que ele transforma em uma
família obediente a sua vontade. Ele preserva os que o Pai lhe dá, e assim pode
bem seguir isso com a declaração de que agora tudo está consumado.

QUADRO 7. ESTRUTURA QUIÁSTICA DO RELATO JOANINO DA


CRUCIFICAÇÃO E DO SEPULTAMENTO
In tr o d u ç ã o (Jo 19,16b-18) E p isó d io 6 (Jo 19,38-42)
Jesus levado; carrega a cruz; Gól- José pede a Pilatos o corpo de
gota; crucificado com outros dois. Jesus; Nicodemos traz mirra; eles o
=
envolvem com panos e especiarias,
sepultando-o em um túmulo novo
no jardim.
E p isó d io 1 (Jo 19,19-22) E p isó d io 5 (Jo 19,31-37)
Inscrição dramatizada na procla­ Dia de Preparação; judeus pedem
mação trilíngue por Pilatos de Je ­ a Pilatos para retirar os corpos;
sus como rei; chefes dos sacerdotes = seus soldados quebram as pernas
pedem a Pilatos para mudar, mas dos outros, trespassam o lado de
ele se recusa. Jesus; sangue e água; duas citações
da Escritura.

12 Por exemplo, Janssens de Varebeke (“Structure” ) identifica sete episódios no relato da crucificação,
como no julgamento por Pilatos. Ele junta o que chamo de “Introdução” a meu “ Episódio 1” , enquanto
divide meu “Episódio 6” em dois. Além disso, é possível discutir se minha terminologia “Episódio 6”
é apropriada ou se eu deveria falar em Conclusão para combinar com a Introdução? Nenhuma das duas
designações faz justiça ao fato de estilisticamente Jo 19,38-42 ser mais evoluído que Jo 19,16b-18, mas
menos evoluído dramática e teologicamente que os outros episódios.

55
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

E p isó d io 2 (Jo 19,23-24) E p isó d io 4 (Jo 19,28-30)


Soldados dividem as roupas em Cônscio de terminar tudo, Jesus
quatro partes; tiram a sorte para = diz que tem sede; esponja de
a túnica sem costura; Escritura vinho avinagrado no hissopo; “ Está
cumprida. consumado” ;13 entrega o espírito.
E p isó d io 3 (Jo 19,25-27)
Mulheres de pé perto da cruz;
Jesus dirige-se à mãe e ao dis­
cípulo amado; discípulo toma-a
como sua.

João lida com algumas das mesmas informações tradicionais pertinentes à


crucificação que Marcos relaciona em seu cenário. Contudo, embora João relacione
três delas na Introdução (comparáveis às sete de Marcos), outras duas (inscrição,
divisão de roupas) ele transforma em seus Episódios 1 e 2, usando-os para drama­
tizar teologia. Somos tentados a considerar essas evoluções inteiramente obra do
quarto evangelista, até percebermos que os Episódios joaninos 1,2 e 3 apresentam
três reações a Jesus na cruz semelhantes ao agrupamento de três que Marcos tem
em suas atividades no local da cruz (§ 41). Os três grupos marcanos (transeuntes,
chefes dos sacerdotes, companheiros de crucificação) são todos hostis. João tem
um grupo verdadeiramente hostil (chefes dos sacerdotes), um parcialmente hostil
(soldados romanos) e um favorável (mulheres, mãe, discípulo).14 É possível teorizar
que João adapta Marcos de maneira imaginosa, mas me parece mais plausível
que o padrão narrativo de três fizesse parte do relato da crucificação desde onde
podemos investigar e que cada evangelista fez sua adaptação. 0 mesmo pode ser
dito de tonalidades bíblicas veterotestamentárias. Não há dúvida de que João
moldou estrutural, dramática e teologicamente material que lhe chegou a respeito
da crucificação; mas julgo menos plausível que esse material viesse de Marcos.

Como tratarei de João ao lado dos relatos sinóticos da crucificação e do


sepultamento e, portanto, implicitamente chamarei a atenção para similaridades,

13 Jesus crucificado faz três declarações em João e três em Lucas; mas não há duplicação entre os dois
conjuntos de declarações (e cada conjunto é característico da teologia do Evangelho respectivo). Além
disso, nenhuma das seis declarações em Lucas e João combina com a única declaração atribuída a Jesus
em Marcos/Mateus. As tradicionais “ sete últimas palavras de Jesus (na cruz)” são altamente divisíveis.
14 Das quatro (?) mulheres joaninas que estão de pé perto da cruz e das três mulheres em Marcos que
observam de longe, uma é obviamente idêntica (Maria Madalena) e outra talvez seja a mesma (a mulher
chamada Maria; ver o Quadro 8 em § 41).

56
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultaroento

talvez seja útil apresentar aqui uma lista de detalhes que aparecem nos (três ou
em um dos) relatos sinóticos, mas estão ausentes de João:

• Simão de Cirene (os três)

• Lamento das mulheres no caminho do Calvário (Lucas)

• Oferta inicial de vinho misturado (Marcos/Mateus)

• Oração de Jesus pelo perdão de seus algozes (Lucas)

• Indicações de tempo, por exemplo: 9 da manhã (Marcos); meio-dia a 3


da tarde (os três)

• Vários escárnios (os três)

• Arrependimento do “bom ladrão” (Lucas)

• Trevas sobre a terra (os três)

• O brado “ Eloi , Eloi, lam a sabachthani” (Marcos/Mateus)

• A sugestão de que ele procura a libertação por meio de Elias (Marcos/


Mateus)

• 0 último brado em voz alta de Jesus (os três)

• As palavras “ Pai, em tuas mãos coloco meu espírito” (Lucas)

• 0 rasgamento do véu do santuário (os três)

• 0 terremoto e a abertura dos túmulos (Mateus)

• Reação do centurião (os três)

• Arrependimento das multidões na volta para casa (Lucas)

• Investigação de Pilatos para afirmar a morte de Jesus (Marcos)

• 0 envolvimento do corpo em um sudário de linho (os três)

• A presença das mulheres no túmulo (os três)

• Compra de especiarias pelas mulheres (Lucas)

(A bibliografia para esta I ntrodução encontra-se em § 37.)

57
§ 39. Episódio de transição:
Jesus levado para ser crucificado
(Mc 15,20b-21; Mt 27,31b-32;
Lc 23,26-32; Jo 19,16b-17a)

Tradução

M c I5;20b-21:20bE eles o levam para fora, a fim de que pudessem crucificá-


-lo; 2le eles obrigam certo transeunte, Simão de Cirene, chegando do campo, pai
de Alexandre e Rufo, a tomar sua [de Jesus] cruz.
M t 27,31b-32:3lbE eles o levaram embora para ser crucificado. 32Mas, saindo,
encontraram um cireneu, chamado Simão; esse sujeito, eles obrigaram a tomar sua
[de Jesus] cruz.
Lc 2 3 ,2 6 -3 2 :2<SE quando eles o levaram embora, tendo pegado Simão, um
certo cireneu chegando do campo, eles puseram sobre ele a cruz para levar atrás
de Jesus. 270 ra , havia seguindo-o [Jesus] uma grande aglomeração do povo e de
mulheres que estavam batendo em si mesmas e lamentando por ele. 28Mas, tendo
se voltado para elas, Jesus disse: "Filhas de Jerusalém, não choreis por mim. Antes,
por vós mesmas chorai e por vossos filhos, 29porque, vede, vindo estão dias em que
dirão: 'Benditas sejam as estéreis e os ventres que não deram à luz e os seios que
não amamentaram'. 30Então começarão a dizer às montanhas: 'Caí sobre nós' e às
colinas: 'Escondei-nos'. 3lPorque, se na madeira verde eles fazem tais coisas, na seca
o que acontecerá?". 32M a s outros também estavam sendo levados, dois malfeitores,
com ele para serem executados.
Jo 19,16b-17a: l6bAssim eles tomaram Jesus consigo; ,7ae carregando a cruz
por si mesmo ele saiu...

59
Q uarto » to •JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto

Comentário

Esta é uma cena de transição, que muda Jesus do local onde se concentrava
a jurisdição romana em Jerusalém, e onde ele fora julgado e condenado, para o
lugar fora de Jerusalém onde tinham lugar as execuções. Consiste em dois elementos
básicos. Primeiro, comum a todos os Evangelhos, há uma descrição de Jesus levado
para fora e da cruz sendo carregada, por Simão ou por Jesus. Segundo, exclusivo
de Lucas é o seguimento de Jesus pelo povo e as mulheres, isto é, as filhas de
Jerusalém a quem Jesus dirige uma profecia de infortúnio. Em dois Evangelhos
(Marcos e Mateus), o primeiro elemento segue-se diretamente ao escárnio e aos
abusos de Jesus pelos soldados romanos. Contudo, alguns biblistas consideram o
escárnio romano em Mc 15,16-20a uma adição secundária e afirmam que outrora
Mc 15,20b vinha depois de Mc 15,15 na imediata execução da sentença de morte.

Levando Jesus para fo ra; o carregamento da cruz; Simão Cireneu

Levando Jesus para fora. Os quatro Evangelhos descrevem a mesma


ação inicial pela qual Jesus é levado para fora/embora/com eles para o local de
execução. Em Mc 15,15, Pilatos entregou Jesus “afim de que ele fosse crucificado” ;
o ato de levá-lo para fora em Mc 15,20b é descrito como o primeiro passo “a fim
de que pudessem crucificá-lo” (de modo semelhante, Mt 27,26 e 27,31b). 0 “eles”
que levam/levaram Jesus para fora (Marcos: exagein) ou embora (Mateus: apagein )
se refere aos soldados romanos — os soldados que pouco antes o tinham levado
embora (Mc 15,16: apagein ) ou o tinham levado consigo (Mt 27,27: paralambanein )
para o pretório e então tinham passado com a coorte inteira a escarnecer dele e
maltratá-lo. Como em Lucas e João, esse escárnio romano está ausente depois de
Pilatos entregar Jesus, há ambiguidade nesses Evangelhos quanto ao “eles” que
conduzem Jesus: “eles o levaram embora” (Lc 23,26: apagein); “eles tomaram
Jesus consigo” (Jo 19,16b:paralambanein, no sentido de tomar Jesus sob custódia).
Aos copistas, a fraseologia joanina deve ter parecido brusca; alguns testemunhos
textuais reduzem paralambanein a um particípio (tomando Jesus consigo) e acres­
centam em imitação dos sinóticos ou “eles puseram sobre ele a cruz” (Lc 23,26b)
ou “eles o levaram embora” (Lc 23,26a; Mt 27,31b). Em Lucas e João, a primeira
impressão é que “eles” são as autoridades judaicas e o povo presentes no final do
julgamento romano. Em § 35, dei razões para pensar que, apesar da imprecisão
quanto ao antecedente, os leitores de Jo 19,16b pensariam que os soldados romanos

60
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 39. Episódio de transição:Jesus levado para ser crucificado

estavam envolvidos no ato de conduzir Jesus até a cruz, porque antes, no meio do
julgamento romano (Jo 19,1-4), Pilatos entregara Jesus para esses soldados para ser
açoitado e escarnecido, e imediatamente depois da chegada ao local da crucificação,
esses soldados estão presentes e ativos (Jo 19,23-24). E provável que também os
leitores lucanos pensassem nos soldados romanos como aqueles que levaram Jesus
embora em Lc 23,264 De qualquer modo, nenhum dos dois evangelistas escreve
no espírito abertamente antijudaico de EvPd 3,5c-6, onde explicitamente o povo
judeu arrasta Jesus.

Na sequência de Marcos/Mateus, o “para fora” ou “embora” expresso nos


prefixos ex ou ab do verbo “levar” (agein ) significa logicamente de dentro do pretório,
embora os evangelistas possam ter tido uma pressuposição mais ampla. Nenhum
Evangelho sinótico nos diz precisamente onde era o local de execução em relação à
cidade murada de Jerusalém, mas de várias maneiras os três dão a impressão de que
a crucificação teve lugar fora dos muros. Imagina-se o lugar perto de uma estrada
ou caminho, pois transeuntes falam a Jesus na cruz (Mc 15,29; Mt 27,39). Ao que
tudo indica, a estrada leva à cidade a partir do campo, pois Simão Cireneu é um
transeunte que vem do campo (Lc 23,26). Mt 27,32 tem um segundo verbo, “sair”
(exerchesthai), que talvez sugira saindo da cidade, como faz o mesmo verbo (“ele
saiu” ) em Jo 19,17, pois nesse Evangelho Jesus já estava fora do pretório quando foi
entregue por Pilatos (Jo 19,13.16a). No final, Jo 19,20 é bastante específico: “ 0 local
onde ele foi crucificado era perto da cidade” ; nele, havia um jardim e nesse jardim,
um túmulo (Jo 19,41). 0 simbolismo em Hb 13,11-13, segundo o qual Jesus morreu
“fora da porta (ou acampamento)” faz parte do que deve ter sido a imagem comum.

Tudo isso se ajusta ao que sabemos dos costumes judaicos e romanos. Lc


24,14 especifica que o blasfemador devia ser levado para fora do acampamento
e apedrejado pela comunidade inteira (também Nm 15,35-36 — as duas passa­
gens usam exagein, o verbo empregado aqui só por Mc 15,20b). Quando Israel
estabeleceu-se na terra prometida, essa diretriz foi entendida em termos de fora da
cidade; foi aonde Nabot foi levado para ser apedrejado por amaldiçoar Deus e o rei
(lR s 21,13), e aonde Estêvão foi arrastado para ser apedrejado por blasfêmia contra
Moisés e Deus (At 7,58; ver At 6,11). Quintiliano (Declamationes 274) relata que

Em § 35, demonstrei detalhadamente que, embora Le 23,24-25 usasse “seus (deles)” vagamente para se
referir às autoridades judaicas e ao povo (Le 23,13), por “eles” de Le 23,26 ele quis dizer os soldados
romanos que só são mencionados em Lc 23,36.

61
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

sempre que criminosos eram crucificados, escolhiam-se estradas bem movimenta­


das, para que o maior número de pessoas vissem e fossem persuadidas pelo medo.
Um fragmento de Plauto (Carbonaria 2) declara que o criminoso carregava a viga
transversal (patibulum ) pela cidade, antes de ser preso à cruz. Em Miles gloriosus
(II,iv,6-7; ##359-360), Plauto é mais específico e afirma que a pessoa que carregava
a viga transversal perecería fora da porta. A única voz discordante é a de Melitão
de Sardes que, em seu Sobre a Páscoa, diz três vezes (72, 93, 94; SC 100, 114,
116) que Jesus morreu no meio da cidade. Logo depois que Jesus morreu, Herodes
Agripa I construiu o “terceiro muro” de Jerusalém, aumentando consideravelmente
a cidade para o norte, de modo que o lugar onde Jesus morreu foi incorporado à
cidade. Na primeira metade do século II, quando os romanos construíram Aelia
Capitolina no lugar onde ficava Jerusalém, o local da crucificação estava dentro
daquela cidade (ver também o mapa de Madaba, do século VI e, na verdade, desde
então Jerusalém). Melitão visitou essa cidade romana algumas décadas mais tarde
e o local da crucificação que lhe mostraram ficava no meio da cidade.2

O carregamento da cruz; Simão Cireneu. Os quatro Evangelhos


também descrevem o transporte da cruz: Marcos/Mateus usam airein (“tomar, pe­
gar” ). Lucas usa pherein (“transportar, levar”3), enquanto João emprega bastazein
(“carregar” ). O objeto desses verbos é sempre stauros (“cruz” ). Normalmente, a
parte vertical da cruz (stipes, staticulum [“cadafalso” ]) ficava fixada no local de
execução; e os condenados carregavam só a viga transversal (patibulum , isto é, uma
barra para fechar uma porta; ou antenna, lais de verga do velame). Quase sempre
era carregada atrás da nuca, como uma canga, com os braços do condenado puxa­
dos para trás e dobrados sobre ela. Por sinédoque, “cruz” podia ser usada para a
viga transversal (Sêneca, De vita beata ixx,3) e “viga transversal” podia ser usada
para “cruz” (Tácito, História iv,3); assim, ao contrário de artistas mais tardios, no
século I os leitores dos Evangelhos entendiam que apenas a viga transversal estava
incluída quando Jesus foi levado para fora.

Nos Evangelhos sinóticos, Simão Cireneu carrega a cruz. Ele não aparece
em nenhum outro papel na tradição neotestamentária. Em parte porque Simão
está ausente de João e do EvPd, Denker (também Linnemann) afirma que ele não
fazia parte da tradição pré-marcana mais primitiva; mas a opinião oposta é mais

2 Ver Harvey, “ Melito” .


3 Marcos emprega esse verbo em Mc 15,22 para os soldados que levam Jesus ao Gólgota.

62
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado

comum (Bultmann, Dibelius, Finegan, J. Weiss). Na verdade, há quem afirme que


seu nome era parte importante do testemunho ocular defendendo a tradição mais
antiga da crucificação (por exemplo, Gnilka, Markus, v. 2, p. 314 — juntamente
com as mulheres citadas na conclusão da história do sepultamento). Complementar
a isso é a tese de que ele se tornou cristão e foi lembrado pelo serviço que prestou
ao Senhor. (Tese semelhante será proposta para a memória do nome de José de
Arimateia.) Parece que essa tese se fortalece pelo fato de Marcos conservar os nomes
de seus filhos, que se presume serem conhecidos dos leitores cristãos marcanos
e/ou onde a tradição se formou. Apesar de João não mencioná-lo, Taylor (Mark, p.
588) escreve que Simão é sem dúvida figura histórica. No outro extremo da escala,
Reinach (“ Simon”, p. 183-184) afirma que o papel de Simão foi inventado para
dramatizar Mc 8,34 (= Lc 9,23; ver Lc 14,27): “ Se alguém quer me seguir [opiso],
que negue a si mesmo e tome [airein ] sua cruz e siga-me”.4 Contudo, na descrição
marcana de Simão, além do uso de “tomar sua cruz”, não há nenhuma referência a
seguir Jesus. Isso aparece (implicitamente) apenas em Lucas: “ Eles puseram sobre
ele a cruz para levar [pherein] atrás de [opisthen] Jesus”. Embora, como a maioria
dos biblistas,5 eu pense que Lucas tinha em mente o dito a respeito de seguir, ele
acrescentou um eco desse dito à tradição de Simão que assumiu de Marcos; e não
é possível verificar a tese de Reinach para Marcos. Nos três sinóticos, fica-se com
a impressão de que, anteriormente, Simão era figura desconhecida (“um certo” ) e
foi coagido a assumir o papel de tomar ou levar a viga transversal. Marcos/Mateus
usam aggareuein, um estrangeirismo em grego originário do persa, onde tinha a
conotação de forçar para o serviço do governo. Lucas descreve os captores de Jesus
como pegando (epilambanesthai) e pondo sobre (epitithenai) Simão a cruz.6 Se
alguém inventasse a história para descrever Simão como discípulo, certamente não
o descrevería como um desconhecido forçado a servir Jesus. (Reinach imagina que
forçar não era parte original do papel de Simão quando foi criado por seus filhos
para engrandecer o pai; Marcos o acrescentou para suavizar o tom da narrativa!)

4 Em nível histórico, Brandenburger (“Stauros” , p. 32-33) afirma que essa imagem de carregar a cruz não
era judaica e, assim, o dito foi formulado depois da crucificação de Jesus. Parece improvável que o dito
e também Simão como seu cumprimento fossem criações da comunidade posteriores à crucificação.
5 Loisy, seguido por Soards (“Tradition... Daughters” , p. 227), duvida que mesmo Lucas tenha sido in­
fluenciado pelo dito de Jesus a respeito de discipulado.
6 Lucas-Atos é responsável por uma alta porcentagem do uso desses dois verbos no NT.

63
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

São formuladas duas objeções contra a história de Simão, ambas baseadas


na prática romana. Plutarco (De sera numinis vindicta 9; #554 AB) diz: “ Todo mal­
feitor que vai para a execução carrega [até o local de execução] sua cruz [sfauras]”.
Em Oneirokritika (ii,56) de Artemidoro Daldiano lemos: “A pessoa que é pregada
na cruz primeiro carrega-a [até o local de execução]”. Assim, não seria normal os
romanos permitirem que outra pessoa carregasse a cruz de Jesus. Além disso, te-
riam eles forçado alguém a servir dessa maneira (mesmo se deixarmos de lado por
enquanto o fato de estarem forçando um judeu a trabalhar na Páscoa)? Enquanto
alguns biblistas (Blinzler, Prozess, p. 363) declaram que isso era típica arrogância
romana nas províncias, Josefo (Contra Apião 11,6; #73) admira a “ magnanimidade
e moderação dos romanos, pois eles não forçam os súditos a transgredir suas leis
nacionais”. Se o episódio de Simão é histórico, por que os romanos agiriam de
maneira tão insólita? Parece muito improvável que sentissem piedade de Jesus em
Marcos/Mateus, onde acabaram de escarnecer dele e maltratá-lo.7 Uma sugestão
mais plausível é que Jesus estava tão fraco fisicamente por causa da flagelação
que os soldados temiam que ele morresse antes de chegar ao lugar de execução e
a sentença do governador ser executada.8 A teoria de perigosa fraqueza por parte
de Jesus obtém algum apoio da surpresa demonstrada pela rapidez de sua morte
depois de ser crucificado (Mc 15,44; Jo 19,33).

Certos detalhes na descrição de Simão precisam ser comentados. Ele é


identificado como cireneu, detalhe incomum para inventar, se seu papel não era
histórico. Cirene era a capital do distrito norte-africano de Cirenaica, na região
da Líbia. Josefo (Contra Apião 11,4; 44) relata que, a fim de solidificar o domínio
egípcio nas cidades da Líbia, Ptolomeu I Soter (c. 300 a.C.) enviava judeus para ali
se estabelecerem.9 Havia uma sinagoga cireneia em Jerusalém (At 6,9). Pregadores
cristãos de Cirene aparecem em At 11,20; e Lúcio, o Cireneu, é mencionado ao
lado de Simeão, o Negro, em At 13,1, como líder cristão em Antioquia. Assim, não
é de modo algum implausível que houvesse um judeu cireneu chamado Simão em
Jerusalém, no tempo da morte de Jesus, e que ele se tornasse cristão.

' Mesmo se deixarmos de lado a questão de historicidade, resta o problema da plausibilidade do tema.
8 Lucas é um problema, porque Jesus não é açoitado nem flagelado na narrativa que precede. Como Lucas
deslocou e modificou blocos de material marcano, talvez ele não percebesse que seu novo arranjo produziu
problemas de lógica. Já vimos que, embora o Jesus lucano predissesse que seria açoitado, ele nunca é.
9 Os judeus eram um grupo favorecido entre os quatro grupos de Cirene; contudo, uma revolta judaica ali
é mencionada por Josefo em Ant. XIV,vii,2; ##114-118.

64
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado

Em Marcos (e Lucas), é dito que Simão chegava do agros, “campo, roça”.


É comum interpretarem que ele estava trabalhando no campo, mas isso não está
indicado.101Mesmo sem a possível dimensão agrícola, Simão faz uma viagem de
ida para Jerusalém (ou uma viagem de ida e volta, se ele saiu de Jerusalém para
ir ao campo ou à roça aquela manhã). Era tal atividade permitida a um judeu na
Páscoa? De fato, não nos é dito que Simão era judeu; Simão é nome grego, embora
frequentemente sirva de equivalente grego para o nome judaico Simeão (como no
caso de Simão Pedro); e os nomes dos dois filhos de Simão são greco-romanos.
Admitindo a maior probabilidade de Simão ser um judeu cireneu, Jeremia (JEWJ,
p. 76-77) afirma que a atividade descrita era permitida na Páscoa. Acho essa
solução particularmente duvidosa aqui, porque a omissão mateana de “chegando
do campo” talvez se origine do reconhecimento de que Marcos estava descrevendo
o que era impróprio em uma festa. Conforme explico em APÊNDICE II B3, abordo
o problema da festa de maneira diferente. 0 relato marcano, fundamental para a
cronologia sinótica, descreve apenas a Ultima Ceia em um contexto de Páscoa. Uma
observação teológica a respeito da refeição talvez tenha criado uma datação espúria;
João é plausível ao indicar que esse é o dia antes da Páscoa.11

Quanto aos filhos de Simão citados por Marcos, Alexandre é nome grego
e Rufo é nome romano (comum para escravos). Julgando ter Marcos sido escrito
para pessoas em Roma, há quem identifique o filho de Simão com o único outro
Rufo neotestamentário, “o eleito do Senhor” mencionado com a mãe em Rm 16,13.
“Alexandre” aparece outras quatro vezes no NT como o nome de um ou mais dos
adversários de Paulo.12 Tem havido muita especulação antiga e moderna a respei­
to de Simão e seus filhos; parece que a riqueza de imaginação quanto a figuras
neotestamentárias aumenta em proporção inversa ao que o NT nos diz a respeito
delas. Os dois filhos aparecem em narrativas na Assunção da Virgem copta e em
Os Atos de Pedro e André (JANT, p. 194,458). Bishop (“ Simon” ) sugere que Simão

10 A imaginosa alegação de C. C. Torrey (Our Translated Gospels, New York, Harper, 1936, p. 131) defende
de forma bastante dúbia que o nome cireneu sugere lavoura.
11 Na véspera da Páscoa, quase sempre o trabalho cessava por volta do meio-dia (APÊNDICE II, nota 19);
e isso explica por que Simão está chegando do campo. Contudo, João, que dá o cenário da véspera da
Páscoa e meio-dia como a hora em que o julgamento terminou, não menciona Simão.
12 N. Avigad (IEJ 21,1962, p. 1-12) relata sobre um ossário do início do séc. I d.C., descoberto no sudoeste
do Vale do Cedron, perto de Jerusalém, em 1941. Parece que pertenceu a uma família judaica da diáspora
de Cirenaica e tem o nome de Alexandre, filho de Simão. É inevitável que alguns especulem que esse
seja o filho mencionado em Marcos (ver Pesch, Markus, v. 2, p. 477).

65
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

era originário de Kyrenia, no norte de Chipre, e Paulo encontrou a mãe da família


enquanto ali esteve (At 13,4; Rm 16,13). Como Barnabé que vinha de Chipre (At
4,36-37), Simão tinha um campo na Judeia. Lee (“ Mark xv” ) afirma que Marcos
foi escrito em Jerusalém em 41 d.C., quando Simão e os dois filhos ainda estavam
ali. Há quem identifique Simão com Simeão, o Negro, relacionado ao lado de Lúcio
de Cirene em Antioquia em At 13,1. Por causa da associação dos cireneus com a
história de Estêvão (At 6,9; 11,19-20) e por causa dos nomes em estilo grego de
Simão e Alexandre, tem havido frequentes tentativas para identificar o pai e os filhos
como cristãos helenistas (At 6 ,l-6 ).13Irineu (Contra as heresias xxiv,4) associa com
Basílides (talvez incorretamente) a ideia gnóstica de que Jesus trocou de aparência
com Simão e ficou assistindo e rindo enquanto Simão era crucificado. E ssa ideia
nos leva a examinar o silêncio de João a respeito de Simão.

A ausência de Simão em João. Têm sido feitas tentativas para harmoni­


zar a afirmação de João de que Jesus carregou a própria cruz com o papel que os
sinóticos atribuem a Simão. Tirando vantagem da redação de Lucas (“ Eles puseram
sobre ele a cruz para levar atrás de Jesus” ), artistas retratam Jesus carregando a
parte da frente da cruz e Simão carregando a metade de trás. Entretanto, na verdade
Lucas não quer dizer que Simão carregou a parte de trás; ele carregou toda a viga
transversal, enquanto Jesus caminhava à frente, de modo que Jesus estava livre
para se voltar e conversar em Lc 23,28. Biblistas responsáveis (Blinzler, Taylor)
harmonizam, fazendo o próprio Jesus carregar a cruz durante algum tempo (João)
e então, quando Jesus enfraqueceu, Simão ser forçado a carregá-la (sinóticos).
Entretanto, parece haver uma qualidade deliberada em Jo 19,17a que indica que
embora conhecesse a tradição de Simão (e assim implicitamente atestasse sua
antiguidade), João rejeitou-a por razões próprias.

Em parte, essa abordagem depende da força do dativo heauto em Jo 19,17a.


Há quem o entenda como um dativo de vantagem, “ para si mesmo” (BDF 1882);
mas D. Tabachovitz (Eranos 4 4 ,1 9 4 6 , p. 301-305) afirma que é um dativo instru­
mental de pessoa, equivalente a d i’ heautou, “por si mesmo”. Uso semelhante de
heauto encontra-se em Martírio de Policarpo 13,2, quando o mártir tira a roupa ele
mesmo. Por que João rejeita com tanta firmeza o papel de Simão a favor de Jesus

13 Divagando, Derrett (“Haggadah” , p. 313) liga Simão com o Simeão veterotestamentário, um dos doze
filhos de Jacó que odiava seu irmão José e aconselhou os irmãos a matá-lo. A ideia de que Simão carregou
a viga transversal de Jesus deu origem à designação Kyrenaios, do hebraico qôrâ (viga).

66
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado

carregar a própria cruz? Há quem pense que a opinião gnóstica denunciada por
Irineu mencionada acima (na qual Simão é que foi crucificado) já era conhecida e
João a estava refutando. Outra explicação altamente especulativa é que João estava
introduzindo aqui a tipologia de Isaac, que carregou a lenha para seu sacrifício (Gn
22,6). Se esse simbolismo é ou não forçado depende até certo ponto de, quando João
escreveu, já serem conhecidas criações de midraxe nos quais Isaac era retratado
como um adulto que voluntariamente aceitou ser morto (tema do servo sofredor).
Ver essa questão no a p ê n d ic e VI.

Menos especulativa e mais provável é a observação de que a cristologia


joanina não tem espaço para a necessidade ou aceitação de ajuda por parte de Je ­
sus. O princípio fundamental de Jo 10,17-19 entra em jogo: “ Dou voluntariamente
minha vida [...] ninguém a tira de mim; antes eu a dou por vontade própria”. Vimos
toques joaninos anteriores na NP para salientar a soberania de Jesus: Jesus forçou
o grupo aprisionador a recuar e cair ao chão; contestou o sumo sacerdote a respeito
do motivo de estar sendo interrogado em Jo 18,21; disse a Pilatos: “ Tu não tens
nenhum poder sobre mim, em absoluto” (Jo 19,11). Que a omissão de Simão por
João era para enfatizar o controle ou autoridade que Jesus possuía até mesmo na
crucificação está implícito na declaração de Justino (Apologia I,xxxv,2) de que,
quando foi crucificado, Jesus acomodou os ombros à cruz, declaração à qual ele
acrescenta uma citação de Is 9,5: “ Em seus ombros está a autoridade/o poder”.

Jesus fala às filhas de Jerusalém (Lc 2 3 ,2 7-3 1)

A estrutura para esta cena. Mc 15,20b usa esta sentença para prefaciar
o aparecimento de Simão Cireneu: “ E eles o levam para fora a fim de que pudessem
crucificá-lo”. Lc 23,26 tomou emprestada a primeira metade da sentença de Marcos
também para prefaciar Simão (“ E quando eles o levaram embora” ).14 Lucas usa
a outra metade da sentença marcana em Lc 23,32 para concluir a cena presente:
“levados [...] para serem executados” . Assim, a partir de Mc 15,20b, Lucas cria uma
estrutura na qual ele põe o material dos vv. 27-31 que não tem nenhum paralelo

14 A concordância de Lucas e Mateus ao empregar apagein contra exagein de Marcos não é significativa.
Apagem é usado seis vezes na NP para deslocar Jesus e, independentemente, Mateus e Lucas preferem
permanecer consistentes com o uso anterior, em vez de seguir Marcos na introdução de um novo verbo
— verbo que Marcos usou em imitação das diretrizes da LXX a respeito da morte de blasfemadores: Lv
24,14; Nm 15,36.

67
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

marcano. (Ver a ANÁLISE abaixo quanto a Lucas ter tirado o material dos vv. 27-31
de uma fonte pré-lucana ou de sua própria composição livre.)

Lucas também fez mudanças no material a respeito de Simão Cireneu que


tomou emprestado de Marcos, de modo que algumas mudanças visíveis em Lc
23,26 levam ao material novo dos vv. 27-31.15A partir do relato marcano, presume-
-se que Simão se tornou cristão (porque seu nome foi preservado pela memória
cristã), mas, ao fazer Simão levar a cruz “atrás” (opisthen) de Jesus, Lucas atribui-
-lhe, alusivamente, a posição de discípulo (Lc 9,23). Há quem negue isso, porque
embora Lucas suavize o “obrigam” marcano, ainda assim Simão tem a cruz posta
sobre ele. Contudo, para Lucas, o contato com Jesus muda as pessoas inesperada
e repentinamente. Jesus vai à frente de Simão e mostra o caminho para a cruz.16 A
conversão de um involuntário seguidor e cruciferário não é mais difícil que a mu­
dança instantânea de um malfeitor penitente (“o bom ladrão” de Lc 23,40-43) ou
a proclamação da inocência de Jesus extraída do centurião romano que o crucificou
(Lc 23,47). 0 Simão lucano, então, é figura positiva que ajuda a transição para a
descrição de outros não opostos a Jesus que Lucas vai apresentar agora. Assim,
parece que, ao copiar de Marcos, Lucas compensa, via um avanço teológico, os
defeitos que cria na narrativa (por exemplo, Jesus consegue ajuda para carregar a
cruz, embora não tenha sido flagelado).

A aglomeração e as mulheres (Lc 23,27). Os mesmos resultados um


tanto divididos de narração e teologia aparecem na grande inserção lucana a res­
peito de outros que seguiram Jesus ao lugar de execução. A última vez que Lucas
mencionou “o povo” como participante da NP foi em Lc 23,13, em um contexto no
qual ele era hostil a Jesus. Talvez ele o tenha incluído implicitamente ao lado das
autoridades judaicas nos momentos finais do julgamento romano, quando Pilatos
entregou Jesus “a sua vontade” (Lc 23,25). Que impressão temos, então, quando
lemos, em Lc 23,27, “ Ora, havia seguindo-o uma grande aglomeração do povo” ?17
Embora “seguindo-o” não seja necessariamente postura de discipulado, à primeira

Uma pequena mudança é o “ E quando” inicial no v. 26 (kai hos) usado alhures por Lucas para indicar
mudança de lugar ou de tempo (Lc 2,39; 15,25 etc.; ver Büchele, Tod, p. 42).
16 At 3,15; 5,31 descreve Jesus como archegos, termo difícil de traduzir, mas que tem o sentido de prece­
dência; cf. Lc 19,28 (Talbert, Reading, p. 219).
No NT, uma “aglomeração do povo” é peculiar a Lucas (Lc 1,10; 6,17; At 21,36), com poly (“grande”)
representando a propensão lucana por exagero retórico (Fitzmyer, Luke, v. 1, p. 324).

68
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado

vista não há nenhuma sugestão de hostilidade (com a devida vênia a Büchele, Tod,
p. 43). Na verdade, Lucas parece atribuir um papel progressivamente favorável a
esta parte do populacho de Jerusalém. Se Lc 23,27 não diz que a “grande aglo­
meração do povo” se lamenta, ela está associada a mulheres que se lamentam e
são solidárias com Jesus. Mais adiante (Lc 23,35), quando Jesus pende da cruz,
é-nos dito que “o povo estava de pé ali observando”. Embora essa descrição seja
evasiva, o povo é assim diferenciado dos três tipos de escarnecedores, a descrição
dos quais se segue imediatamente. Em uma cena depois que Jesus morre na cruz
(cena que, por inclusão, se compara com esta antes da crucificação), Lc 23,48
relata que “todas as multidões que estavam reunidas para a observação disso [...]
voltaram batendo no peito”. 0 efeito total dessa progressão para simpatizar com
Jesus encontra-se no apócrifo Atos de Pilatos 4,5: “ Ora, quando o governador
olhou para as aglomerações de judeus de pé ali, viu muitos dos judeus chorando e
disse: ‘Nem toda a aglomeração deseja que ele seja executado’”. Essa imagem não
parecia implausível aos leitores antigos. Luciano (De morte Peregrini 34) observa
cinicamente que “os conduzidos à cruz [...] têm um grande número de pessoas
seguindo-os de perto” .

No grego lucano, “uma grande aglomeração”, além de reger “do povo”, tam­
bém rege “e de mulheres”. Entretanto, é duvidoso que Lucas pretenda enfatizar
o número de mulheres; antes, por meio do correlativo kai (“e” ), ele parece estar
chamando a atenção para um grupo de mulheres ao lado da aglomeração geral do
povo, um tanto como em At 17,4: “ Uma grande aglomeração de gregos devotos e
não poucas das mulheres importantes”. (Um kai correlato encontra-se novamente
na cena paralela depois da crucificação em Lc 23,49: “todos os conhecidos dele
[...] e as mulheres”.) De qualquer modo, as mulheres são as “que estavam batendo
em si mesmas e lamentando por ele” .18 Benoit, Lagrange e Marshall estão entre os
que julgam ser essa lamentação por alguém prestes a ser executado ato de piedade
religiosa, mas outros como Schneider duvidam que a lamentação por criminosos a
caminho da execução fosse permitida em público. Suetônio (Tiberius 61) relata: “ Os

18 Muitos biblistas veem aqui a influência de Zc 12,10: “ Eles olharão aquele que tiverem trespassado e
baterão em si mesmos de luto por ele como se por um filho único e chorarão com mágoa como pelo pri­
mogênito” . (Os versículos subsequentes de Zacarias atribuem o luto às várias famílias e suas mulheres.)
Parte deste versículo é citada por Jo 19,37 depois que Jesus morre na cruz e parece mais apropriada às
multidões que batem no peito depois que Jesus morre (Lc 23,48) do que a esta cena onde Jesus ainda
não sofreu nenhum dano físico.

69
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado a li perto

parentes [dos condenados em consequência da queda de Sejano — § 31, Bl] foram


proibidos de ficar de luto”. Quer essa restrição estivesse ou não em vigor antes, é
improvável que essa regra fosse aplicada a todo pequeno caso nas províncias. Desse
modo, não há nada que apoie a sugestão contrária de que, em vez de lamentação, as
mulheres haviam saído para protestar contra a execução e expressar apoio a Jesus
como rei. Lucas inclina-se a usar verbos duplos de lamentação (Lc 7,32; 8,52), e a
combinação de koptesthai e threnein que ele usa aqui encontra-se em Josefo (Ant.
VI,xiv,8; #377) para descrever a autoflagelação e a lamentação pela morte de Saul.

Como Lucas entende essas mulheres? Jesus chama-as de “filhas de Jerusa­


lém” e lhes dirige uma profecia negativa a respeito da sina da cidade na qual elas
serão envolvidas, por isso alguns biblistas como Neyrey (Passion , p. 111) identificam-
-nas com aquele grupo de Israel que consistentemente rejeitava os mensageiros de
Deus (ver também Untergassmair, Kreuzweg, p. 144). Isso está com certeza errado,
como indicam Giblin (Destruction, p. 97) e Soards (“ Tradition [...] Daughters”, p.
229). Essas mulheres são figuras solidárias com Jesus e a tragédia é que mesmo
suas lágrimas compassivas não as salvam da sina da cidade que mata os profetas.
Entretanto, não há razão para ir ao outro extremo e descrevê-las como discípulas,
pois as seguidoras de Jesus na narrativa são as mulheres da Galileia (Lc 23,49.55).
Além disso, é cedo demais no movimento em direção à crucificação para os leitores
pensarem nas mulheres que administravam analgésicos aos condenados (§ 40, #2
adiante). Mais exatamente, estamos no bem conhecido contexto de mulheres que
lamentam os mortos carpindo (como no caso de Saul que acabamos de descrever;
ver Jo 11,31; EvPd 12,52). A tristeza desamparada demonstrada pelo ato de se
autopunirem é um toque dramático, como é o uso delas para descrever um aspecto
de Jerusalém. Jesus entrou em Jerusalém em Lc 19,37-40, e em meio ao júbilo de
toda uma aglomeração dos discípulos que entoavam as bênçãos do rei; agora ele é
levado da cidade seguido por “uma grande aglomeração do povo” e das mulheres
que lamentam sua morte. É interessante que, na entrada de Jesus em Jerusalém em
Mt 21,5 e Jo 12,15, há um discurso pessoal para as “ filhas de Sião” ; Lucas guarda
seu discurso equivalente até aqui e é a ele que agora nos voltamos.

A sina das filhas de Jerusalém e seus filhos (Lc 23,28). Neyrey (P as­
sion, p. 111) lembra que o ato de Jesus se voltar para se dirigir a alguém é aspecto
lucano característico; strapheis ocorre sete vezes em Lucas, em comparação a cinco
nos três outros Evangelhos. Contudo, a natureza do discurso que se segue, positiva

70
§ 39. Episódio de transiçãoiJesus levado para ser crucificado

ou negativa, não se determina por essa ação.19 Embora “ filhas” possa significar
habitantes, aqui Lucas segue um padrão veterotestamentário de se dirigir a mulheres
como representantes da nação ou da cidade em oráculos de alegria ou desgraça:
“filhas de Israel” (2Sm 1,24); “filha de Sião” (Sf 3,14; Zc 9,9); e “filhas de Jeru­
salém” (Ct 2,7). Chamar as mulheres de “ filhas de Jerusalém” não é pejorativo,20
mas identifica a sina delas com a da cidade.

As palavras “não choreis [não chores]” foram dirigidas antes por Jesus à
viúva de Naim que chorava pelo filho (Lc 7,13) e aos que lamentavam a morte da
filha do chefe da sinagoga (Lc 8,52); assim, se adaptam bem ao contexto de la­
mentação por alguém prestes a morrer. Nos casos anteriores, Jesus estava prestes a
eliminar a causa de lamentação, ressuscitando o morto; aqui, ele volta a tristeza por
sua morte para a morte da cidade e seus habitantes. Um plen (“antes” ) estabelece
o contraste, que é realçado pela ordem quiástica de palavras: “ não choreis por
mim [...] por vós mesmas chorai” (ver uma estrutura um pouco semelhante em Lc
10,20). Aqui, a atmosfera não é muito diferente da de Jr 9,16-19, onde o Senhor
conclama as mulheres para chorar sobre Jerusalém: “ Um canto triste se ouve em
Sião: ‘Como estamos arruinados e muito envergonhados’ [...] Ouvi, vós mulheres
[...]. Ensinai a vossas filhas este canto triste e uma à outra este lamento”. Embora
a instrução de Jesus seja dirigida às mulheres que o seguem, por meio delas ele fala
a toda a aglomeração do povo de Jerusalém que não lhe foi hostil. A mensagem é
que agora nenhuma quantidade de lamentação pelo que lhe está sendo feito pode
salvar Jerusalém ou seu povo da destruição que está para chegar. Jesus não está
dizendo palavras de compaixão, como pensou Dalman, embora esse elemento esteja
presente; nem está apelando à reforma (Grundmann, Danker), pois é tarde demais;
nem está denunciando, pois os que seguem não estão fazendo o mal. Do mesmo
modo que os profetas de outrora que pronunciavam oráculos contra as nações (assim
Neyrey, Giblin), Jesus está falando a Jerusalém como representante de Israel — a
última de uma série de palavras de desgraça.

19 Às vezes, quando o Jesus tucano se volta, ele diz alguma coisa positiva para o interlocutor (Lc 7,9;
10,23), às vezes, alguma coisa negativa (Lc 9,55; ver Lc 22,61) e outras vezes, alguma coisa que não se
enquadra em nenhuma dessas categorias (Lc 7,44; 14,25).
20 Aqui, Lucas usa a forma hebraizada de Hierousalem para a cidade. Em § 33, nota 1, mencionei a tese
de la Potterie de que essa ortografia é usada em contextos positivos. A meu ver, essa tese é contestada
aqui, porque uma palavra de terrível desgraça está prestes a ser pronunciada.

71
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

Em Lc 11,49-50, Jesus advertiu que esta geração seria considerada respon­


sável pelo sangue de todos os profetas. Em Lc 13,34-35, Jesus falou diretamente
a Jerusalém advertindo que, porque ela se recusou a escutar, sua casa (= Templo
e toda a cidade) seria abandonada: “ Quantas vezes eu quis reunir teus filh o s como
a galinha reúne os pintinhos debaixo das a sa s!”. Em Lc 19,41-44 o próprio Jesus
chorou sobre Jerusalém e lhe falou que d ia s virão de destruição por seus inimi­
gos: “ Lançar-te-ão ao chão, a ti e a teus filh o s dentro de ti” . Finalmente, em Lc
21,20-24, ele falou que a devastação da Judeia se aproximava; “ Que os que estão
na Judeia fujam para a s m ontan has [...]. E ai das que tiverem (filhos) no ventre e
das que estiverem am am en tan d o naqueles dias”. Pus em itálico palavras nessas
passagens para mostrar como, em vocabulário e tema, o que Jesus diz às filhas de
Jerusalém em Lc 23,28-31 é consistente com ditos do Jesus lucano para Jerusalém
e a respeito dela durante o ministério. Em especial, já tinha havido uma advertência
de que mulheres e crianças inocentes pereceríam.21 Funcionalmente (mas sem
autoaceitação judaica de responsabilidade), esta passagem não está longe da cena
mateana em Mt 27,25: “ Seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos”. O castigo deve
ser infligido não só à geração que vive no tempo da morte de Jesus, mas também
a seus filhos, na geração da queda de Jerusalém em 70.

O pronunciamento de Jesus em Lc 2 3 ,2 9 : “ Vede, estão vindo dias


nos quais dirão: ‘Benditas as estéreis e os ventres que não deram à luz e os seios
que não amamentaram’”.22 Ao estudar este versículo, é útil manter separados dois
conjuntos de palavras (e idéias) bíblicas que envolvem bênção, um que podemos
chamar de “participial” e o outro “adjetival” :

P a r t ic íp io p a ss iv o : Hebraico baruk, grego eulogetos ou eulogem enos, latim


benedictus, português bendito — mais apropriadamente dirigido a Deus que deve
ser bendito pelos seres humanos.

A d je t iv o : Hebraico asre, grego m ak ario s , latim beatus, português fe liz ou


bendito — macarismo que não confere nem deseja uma bênção, mas reconhece

21 Assim, Dupont, “ II n’en sera” , p. 314-319; Rinaldi, “ Beate” , p. 62.


22 Este versículo manifesta algumas variantes de cópia. P75, códice de Beza, OL e OS omitem “ vede” .
Algumas variantes representam esforços para melhorar o equilíbrio poético dos objetos afetados pela
bênção pesarosa, isto é, mudanças para aproximar “ estéreis” e “ventres” , de modo que só as duas partes
do corpo das mulheres estão envolvidas (ventres, seios), em vez de um tríplice arranjo com uma referência
completa a mulheres estéreis, seguida pelos dois órgãos relativos a dar à luz. Entretanto, o último arranjo
(que segui) combina melhor a referência a “vós” e “vossos filhos” , no v. 28.

72
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado

um estado existente de boa sorte entre os seres humanos, às vezes por causa de
alguma coisa que Deus fez por eles.

Embora eu use o termo indiferenciado “bendito” com referência a esse dito


em Lc 23,29, o significado é de um macarismo.

Na ANÁLISE, vou examinar a composição geral desta seção em Lucas para a


qual este versículo é uma chave, mas mesmo aqui alguns fatos pertinentes à origem
do versículo são importantes para entender o comentário. Lucas tira-o de uma fonte
especial da NP; ou tira-o de uma fonte de ditos e adapta-o ao presente contexto; ou
simplesmente o compõe seguindo o modelo da LXX e das advertências anteriores
de Jesus a respeito de Jerusalém? Com essas perguntas em mente, examinemos
cada frase.

Um idou (“vede” ) inicial antes de um oráculo de desgraça para Jerusalém


encontra-se em Lc 13,35. Com ligeiras variações, a LXX usa “vindo estão dias” no
tempo presente em algumas profecias de alegria e de desgraça: Jr 7,32; 16,14; Am
4,2; Ml 3,19. Lucas usou a frase antes, por exemplo, nas advertências a Jerusalém
de Lc 19,43 e 21,6, mas sempre no tempo futuro. 0 tempo presente aqui em Lucas
indica dependência de uma fonte, ou Lucas mudou para o presente (imitando a LXX)
para assinalar que com a morte de Jesus os dias de ação divina final estão mais
próximos? Quanto a dias “em que dirão”, Taylor e Rehkopf veem estilo pré-lucano
e indícios de uma fonte da NP. Contudo, essa oração é também estilo da LXX (Is
3,7; 12,1) e em Jr 31,29.31 (= LX X 38,29.31) e em Lc 17,22-23, encontram-se em
estreita proximidade as frases “dias virão” e “dirão”.

Quanto ao que será dito (“ Benditas sejam as estéreis” ), para alguns como
Kãser (“ Exegetische”, p. 246), Lucas recorre a Is 54,1: “ Canta, ó estéril, que não
deste à luz” . Eles apontam para Is 54,10, que menciona montanhas e colinas,
como faz o versículo seguinte de Lucas. Is 54,1 era bem conhecido dos cristãos
primitivos, sendo citado em G1 4,27; 2 Clemente 2,1; Justino, Apologia 1,53. Con­
tudo, em todas essas citações, a passagem de Isaías é entendida como o profeta
pretendia: mensagem de alegria, porque a estéril agora terá filhos. Não é isso que
Lucas quer dizer.23 Antes, Lucas diz, de maneira paradoxal, que será melhor não

23 Kãser (“ Exegetische” , p. 251) tenta inclinar o v. 29 nessa direção. As estéreis constituem um Israel
espiritual que confia em Deus para ter filhos, substituindo as filhas de Jerusalém que representam Israel
carnal.

73
Q uarto ato •Jesus écrucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

ter filhos quando o sombrio juízo final chegar; de fato, os filhos são incapazes de
se proteger nesses tempos e os pais têm a angústia de ver os que eles trouxeram ao
mundo destruídos — se os pais tentam salvar os filhos, também perecem. Em Lm
4,4, há uma analogia precisa. Na horrível queda de Jerusalém para os babilônios,
as crianças de peito choram por comida, mas não há ninguém para alimentá-las.
Esse tema lúgubre era bem conhecido também na literatura greco-romana (Fitzmyer,
Luke, v. 2, p. 1498). Assim, se Lucas estava recorrendo a Is 54,1, ele tinha de mu­
dar não só o formato para um macarismo, mas também o sentido básico. É preciso
muito menos imaginação para relacionar Lc 23,29 com passagens que realmente
bendizem quem não tem filhos, por exemplo, Sb 3,13: “ Bendita é a mulher estéril
inviolada que não conheceu a transgressão do leito conjugal”. Com pessimismo,
Ecl 4,2-3 louva os mortos acima dos vivos e afirma ser melhor que ambos o que
nunca nasceu. 0 siríaco 2 Baruc 10,5b-10, escrito não mais que algumas décadas
depois de Lucas, usa esse tema em uma lamentação sobre Jerusalém destruída
pelos romanos: “ Bendito é o que não nasceu ou o que, tendo nascido, morreu”.
Ao que parece, então, Lucas recorreu a um tema comum apropriado à catástrofe
que Jerusalém tinha pela frente. Antes ele exprimiu esse tema com referência à
destruição de Jerusalém como uma desgraça: “Ai das que tiverem (filhos) no ventre
e das que estiverem amamentando naqueles dias” (Lc 21,23, tirado de Mc 13,17);
aqui, ele o expressa como bênção (macarismo). Ver a expressão lucana de bênçãos
e desgraças em paralelismo antitético em Lc 6,20-26.

Tudo isso sugere fortemente que Lucas não tirou Lc 23,29 de uma NP pré-
-lucana. Mas o próprio Lucas formulou inteiramente esta bênção que está expressa
em linguagem bíblica e reflete um tema bíblico que ele usa alhures em relação
a Jerusalém? Ou tirou-a de uma tradição de ditos e a reformulou? Logion 79 em
Evangelho de Tomé é importante neste estudo:

Uma mulher da multidão disse a ele: “Benditos sejam o ventre que te deu à luz e
os seios que te amamentaram”. Ele disse[-lhe]: “Benditos sejam os que ouvem a
palavra do Pai e guardam-na na verdade. Pois haverá dias em que direis: ‘Benditos
o ventre que não concebeu e os seios que não amamentaram”’.
Em uma análise cuidadosa dessa passagem, Soards (“ Tradition [...] Dau-
ghters”, p. 232-237) mostra como é difícil decidir se, ao usar palavras articuladas, o
Evangelho de Tome juntou Lc 11,27-28 e Lc 23,29, ou se, vice-versa, Lucas dividiu
em duas uma unidade original que o Evangelho de Tomé preservou. Ele prefere

74
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado

a última hipótese, apontando exemplos no uso lucano de Marcos onde elementos


de um único fragmento marcano aparecem em dois lugares diferentes de Lucas.
Exemplo ainda mais próximo da divisão proposta aqui é apresentado por Lc 2,14
e 19,38, dois versículos que originalmente faziam parte de um hino pré-lucano
(BNM, p. 510). Assim, não é improvável que o macarismo em Lc 23,29 viesse de
uma coletânea de ditos de Jesus, onde pode ter estado associado ao macarismo de
Lc 11,27-28. (Este dito tinha uma contrapartida em Mc 13,7 = Lc 21,23.) Para
introduzi-lo aqui no contexto de um oráculo às filhas de Jerusalém, Lucas empregou
conhecida linguagem da LX X, de modo que o “haverá dias” do Evangelho de Tomé
se transforma em “ vindo estão dias”.

Continuação do pronunciamento (Lc 23,30): “ Então começarão a


dizer às montanhas: ‘Caí sobre nós’, e às colinas: ‘Escondei-nos’”. Lucas usa o
auxiliar “começar a” cerca de vinte e nove vezes; e a sequência em Lc 29,29-30,
“dirão [...] começarão a dizer”, encontra-se em ordem inversa em Lc 13,26 e Lc
14,9. Na relação de aliança entre Deus e Israel, apela-se a montanhas e colinas
como testemunhas: elas ali estavam quando foi feita a aliança e ainda estão presen­
tes para testemunhar em momentos cruciais (Mq 6,1-2). Is 54,10 é quase sempre
citado como origem: “ Mesmo que as montanhas se afastem e as colinas se abalem,
meu amor não se afastará, nem minha aliança de paz se abalará”. Contudo, isso
está muito longe da significação deste versículo em Lucas, do mesmo modo que Is
54,1 estava muito longe da significação do versículo anterior em Lucas. O óbvio
antecedente é Os 10,8b que, em contexto relativo à capital Samaria (semelhante ao
uso lucano de Jerusalém), adverte que sob o castigo de Deus Israel clamará pela
libertação: “ E eles dirão às montanhas: ‘Cobri-nos’, e às colinas: ‘Caí sobre nós” ’.
(Observemos que Lucas inverte a ordem dos imperativos de Oseias encontrados no
TM e no Códice Vaticano da LX X.)24 0 versículo de Oseias fazia parte dos recursos
da expectativa apocalíptica cristã primitiva; com efeito, Ap 6,16 faz eco a ele para
descrever a situação dos poderosos da terra diante da ira do Cordeiro: “ E eles dirão
às montanhas e aos rochedos: ‘Caí sobre nós e cobri-nos” ’ (notemos a mesma inversão
dos imperativos que em Lucas). Se Lucas reformulou um dito de Jesus para formar
o v. 29, ele o fez paralelamente a uma advertência veterotestamentária da mesma

24 Na LXX do Códice Alexandrino, a ordem é a lucana. Esse códice (séc. V d.C.) se harmonizou com Lucas,
ou Lucas usou essa outra fonte grega?

75
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

significação no v. 30. 0 Filho de Deus e os profetas têm a mesma mensagem de


sina violenta para os desobedientes.

Término do pronunciamento (Lc 23,31): “ Porque se na madeira verde


eles fazem tais coisas, na seca o que acontecerá [será feito]?”. O verbo na última
oração (a apódose) é futuro.25 Diz respeito ao que será feito no tempo do castigo, do
mesmo modo que fizeram os vv. 29-30. Ali ouvimos o que os habitantes de Jerusa­
lém diriam; aqui ouvimos uma pergunta sobre o que será feito a eles. Entretanto, a
prótase da condição (ei mais o presente do indicativo) descreve uma coisa que está
realmente acontecendo; assim, o “eles” muda de sentido dos que reagirão no futuro
para os que estão fazendo alguma coisa a Jesus. (Em vez de admitir que há uma
lógica narrativa em tal mudança, há quem descreva os vv. 29-30 como inserção, de
modo que o “ Porque” do v. 31 seguiría o v. 28.) O tema principal da condição inclui
a bem conhecida fórmula proverbial a minore ad maius (do menor para o maior),
por exemplo, no AT, Pr 11,31: “ Se o justo é castigado na terra, quanto mais o ímpio
e o pecador” ; no NT, lPd 4,17: “ O julgamento começa com a casa de Deus; se o
julgamento é feito primeiro conosco, qual será o fim para os que desobedecem o
Evangelho de Deus” ; na literatura rabínica, com referência ao crucificado Jose ben
Jo’ezer (Midraxe Rabbah 65,22 a respeito de Gn 27,27): “ Se isso acontece com os
que fazem a vontade de Deus, o que acontecerá aos que O ofendem?” .

Quanto à metáfora usada na condição lucana, em Ez 17,24, uma árvore


verde (= nova) e uma seca (xylon chloron, xylon xeron) são um par em contraste.
Em Seder Elijah Rabbah 14 (p. 65 — séc. IX d.C.), sem o emprego de “ madeira”,
encontramos: “ Quando o úmido pega fogo, o que fará o seco?”. Lucas não é espe­
cífico quanto a que coisas são feitas na madeira verde e na seca; mas, recorrendo
a Ez 21,3; 24,9-10; e Is 10,17, Caird, Marshall e muitos outros presumem que está
incluído queimar: se podem queimar a madeira verde, molhada, não será a madeira
seca queimada muito mais? Entretanto, com Leaney, Neyrey e outros, é possível
pensar que o enfoque da comparação é a diferença de tempo entre a vida inicial da
árvore e seu período de envelhecimento, por exemplo, aplicada à diferença de tempo
entre o momento em que Jesus é crucificado e o momento em que Jerusalém será
destruída. A segunda é apoiada pelos vv. 29-30, que se referem ao futuro castigo
divino de Jerusalém e Israel. Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1498-1499) menciona uma

2o Isso é verdade, quer leiamos o subjuntivo aoristo genetai usado como futuro enfático em uma pergunta
deliberativa (BDF 3661), quer como futuro indicativo genesetai (Códice de Beza).

76
§ 39. Episódio de transição:Jesus levado para ser crucificado

possível comparação adicional entre a madeira na qual Jesus foi crucificado (At
5,30; 10,39; 13,29), que não foi consumida pelas chamas, e a madeira de Jeru­
salém, consumida pelas chamas — contudo, nenhuma das descrições proféticas
lucanas da destruição de Jerusalém menciona madeira ou chamas.26A imprecisão
dos sujeitos na prótase e na apódose e a falta de certeza quanto à significação
exata da metáfora levam a muitas interpretações do v. 31 (ver Plummer, Fitzmyer).
Deixe-me agrupá-las sob quatro cabeçalhos:

1) Os romanos como o sujeito do começo ao fim, por exemplo, se os romanos


tratam desse jeito a mim, que eles admitem ser inocente, como tratarão os que se
revoltam contra eles? Contudo, os romanos não são formalmente identificados em
Lucas como os agentes que levam Jesus para crucificá-lo.

2) Deus como o sujeito do começo ao fim, por exemplo, se Deus não poupa
o Jesus amado, muito mais o Judaísmo impenitente receberá o impacto do julga­
mento divino (assim, Creed, Fitzmyer, Manson, J. Schneider [TDNT, v. 5, p. 38],
G. Schneider, Zerwick). Mas pensa Lucas na crucificação como o que Deus está
fazendo a Jesus?

3) Os seres humanos como o sujeito do começo ao fim, por exemplo, se as


pessoas se comportam assim antes que seu cálice de iniquidade esteja cheio, o que
farão quando ele transbordar? Esta interpretação não faz justiça à especificidade
do contexto lucano e do discurso às filhas de Jerusalém; Jesus preocupa-se com o
destino daquela cidade. Ai três primeiras sugestões não pressupõem uma diferença
entre os sujeitos dos dois verbos na condição: “eles fazem” e “acontecerá ou será
feito” (passiva).

4) Os adversários de Jesus como o sujeito da prótase e Deus como o sujeito da


apódose. Que adversários? Lucas relata que Pilatos entregou Jesus “a sua vontade”.
Desse modo, embora seja provável que os leitores lucanos reconhecessem que os
romanos estavam levando Jesus para fora a fim de crucificá-lo, eles consideravam
os principais adversários “os chefes dos sacerdotes e os governantes e o povo” de
Lc 23,13 que queriam Jesus crucificado. A atitude é exemplificada pelos textos de
Lucas-Atos que generalizam ao descrever os judeus de Jerusalém ou seus líderes
como os que crucificaram Jesus (ver Blinzler, Trial, p. 280-281). Assim, o contexto

26 Ainda menos provável é um eeo da conspiração dos adversários de Jeremias (Jr 11,19): “Vinde, e po­
nhamos madeira no pão dele” (LXX) ou “ Destruamos a árvore em seu vigor” (TM).

77
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

com certeza dá preferência aos adversários de Jesus como o sujeito de “eles fazem”
na prótase. Quanto à apódose, os versículos imediatamente anteriores pressupõem
um julgamento divino vindo sobre Jerusalém e, assim, o sujeito mais óbvio por trás
do que acontecerá ou será feito é Deus. 0 uso da passiva para subentender a ação
divina é fenômeno bem atestado no grego bíblico e reflete a abstenção judaica de
citar Deus com demasiada frequência (BD F1301, 313; C. Macholz, ZNW 81,1990,
p. 247-253). Assim, a sugestão básica de Neyrey é, a meu ver, a mais plausível:
se eles (os líderes judaicos e o povo) tratam-me deste modo em tempo favorável
(quando não são forçados pelos romanos), muito pior eles serão tratados em tempo
desfavorável (quando os romanos os oprimirem). Nessa interpretação, madeira verde
e madeira seca são simplesmente, de modo proverbial, períodos diversos de tempo,
um mais favorável que o outro, e “madeira” não é interpretada alegoricamente. Como
nos versículos anteriores, reforma não é uma possibilidade; o destino de Jerusalém
e seus habitantes é selado pelo que os adversários de Jesus estão fazendo agora.

Dois malfeitores com Jesus (Lc 23,32). A ordem um tanto desajeitada


de palavras atestada em P75 e nos Códices Sinaítico e Vaticano diz literalmente: “ E
eram levados outros malfeitores dois com ele para serem executados” ; o sentido é:
“outros, que eram malfeitores, dois deles”. Entretanto, é de se presumir que, para
evitar a possibilidade de ler de uma forma que faria do próprio Jesus um malfeitor,
a tradição koiné de mss. mudou a ordem das palavras para: “outros, dois malfei­
tores”. De modo algum poderia o Jesus lucano ser um kakourgos (um “fazedor de
coisas más” ); com efeito, em Lc 23,22, Pilatos não achou nada “mau” (kakos) que
Jesus tivesse feito e depois de sua morte, um centurião declarou Jesus um homem
“justo [dikaiosY (Lc 23,47).

0 vocabulário desse versículo consiste em palavras que têm alta porcen­


tagem de uso lucano no NT: agein (“ levar” ), de kai (“ Mas [...] também” ), heteros
(“outro” ), kakourgos (“ malfeitor” ), anairein (“executar” ). Contudo, Soards (“ Tra-
dition [...] Daughters”, p. 239-240) está certamente correto ao julgar que essa é
simplesmente uma reescrita lucana de material marcano. Lucas usa agein no início
do versículo para assinalar uma inclusão com apagein (“levar embora” ) em Lc
23,26. Com referências a Jesus ser levado (embora) nos dois lados dele, o oráculo
das filhas de Jerusalém está acondicionado concisamente — um momento estático

78
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado

no trajeto.27 Como já mencionamos, Lc 23,26 usou apenas a primeira metade de


Mc 15,20b (a parte a respeito de levar Jesus para fora/embora). Ele decidiu adiar
o uso da segunda parte do versículo marcano, “a fim de que pudessem crucificá-lo”
até aqui onde ele a reformula como “para serem executados”. É a expressão que
Lucas (sozinho; Lc 22,2) usou para a trama dos chefes dos sacerdotes maquinada
antes da Páscoa: “ Eles procuravam executá-lo”. Por meio de uma inclusão maior,
Lucas nos diz que o que foi tramado anteriormente pelas autoridades judaicas está
agora prestes a acontecer.28

Marcos (também Mateus e João) espera até Jesus chegar ao lugar da crucifica­
ção para mencionar que outros dois (Marcos: lestai, “bandidos” ) foram crucificados
com ele. Lucas antecipa, pois presume que esses dois devem ter sido levados com
ele ao local da execução. Há quem pense que ter dois malfeitores com Jesus nesse
trajeto é a maneira lucana de ressaltar o cumprimento da predição de Jesus na Ultima
Ceia (Lc 22,37): “ E com criminosos [anomoi] foi ele contado”, citação de Is 53,12.
Isso não está claro: o vocabulário aqui (“malfeitores”, kakourgoi) é diferente e a
profecia teria sido cumprida com a mesma facilidade se Lucas deixasse a primeira
menção desses dois homens onde Marcos a pôs, no momento da crucificação. Mais
exatamente, Lucas chama a atenção para esses dois homens, antecipando sua pre­
sença e separando-a dos outros acontecimentos da crucificação, por causa da cena
muito importante na qual ele planeja apresentá-los enquanto Jesus pende na cruz.
Em Lc 23,39-43, a mais longa e mais importante mudança lucana na narrativa
da crucificação, Lucas retrata suas reações diferentes a Jesus. Parece que ele está
também bastante decidido quanto a preferir “malfeitores” aos “bandidos” (lestai)
de Marcos, ao que tudo indica por causa do tom pejorativo que a última palavra
adquirira nos turbulentos anos 50 e 60 e na Primeira Revolta Judaica. Embora
descreva Barrabás que foi preferido a Jesus pelos líderes judaicos e o povo como*7

2‘ Embora Lucas não contenha as histórias de Verônica e das três quedas de Jesus a caminho da crucificação,
a cena com as mulheres contribui para a devoção muito mais tardia das “ Estações da Cruz” . A mulher
chamada Berenice (latim: Verônica) aparece no julgamento de Jesus diante de Pilatos em Atos de Piíatos
7 e identifica-se como a mulher que tocou a veste de Jesus e foi curada de um fluxo de sangue (Lc 8,44
e par.). Apesar do significado de seu nome (“portadora da imagem”), não há referência a um retrato de
Jesus. Na obra latina Death of Pilate (JANT, p. 157-158), quando Jesus encontrou Verônica (mas não a
caminho do Calvário), a pedido dela ele imprimiu as feições de sua face em um pano de linho. Ver E.
Kuryluk, Verônica and Her Cloth, Oxford, Blackwell, 1991.
28 Ver também em At 2,23; 10,39; 13,28 o verbo “executar, matar” (anairein) usado para descrever a exe­
cução de Jesus pela vontade ou cumplicidade das autoridades judaicas e do populacho de Jerusalém.

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Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

alguém que desempenhou um papel em um tumulto (Lc 23,18-19), Lucas prefere


manter os que são crucificados com Jesus livres desse contexto sedicioso. Afinal
de contas, um deles estará este dia com Jesus no paraíso (Lc 23,43).

Análise

Dos dois elementos nesta cena onde Jesus está sendo levado/conduzido
para a cruz, o COMENTÁRIO já examinou em detalhe várias teorias que tratam do
primeiro, isto é, o carregamento da cruz. Rejeitei as teorias de que Simão de Cirene
foi inventado como uma pessoa (nunca existiu) ou como papel (existiu como pai
de Alexandre e Rufo, mas foi ficcionalmente engrandecido como tendo ajudado
Jesus). A alegação de que essa invenção tinha o propósito de incluir na narrativa
da crucificação o exemplo de um discípulo que renunciou a si mesmo, tomou a cruz
e seguiu Jesus (Mc 8,34) é fraca, pois em nenhum Evangelho Simão apresenta-se
voluntariamente (= renuncia a si mesmo) ou toma uma cruz sua, e em Marcos/
Mateus ele não segue atrás de Jesus. A alegação de que a invenção tinha o propó­
sito de proporcionar uma testemunha ocular da crucificação também é imprecisa,
pois Simão nunca mais é mencionado no NT; assim, não é afirmado que ele estava
presente e assistiu à crucificação (compare-se Mc 15,40).29 De modo paradoxal,
a anomalia de uma pessoa carregar a cruz de outra aumenta a possibilidade de
Simão ser figura histórica, lembrada porque ele ou seus filhos se tornaram cristãos.
É provável que a omissão joanina (aparentemente deliberada) de seu papel, por meio
da insistência de que Jesus carregou a cruz sozinho, reflita a cristologia joanina na
qual Jesus sacrificou a vida sem nenhuma coação humana e sem nenhum auxílio
humano. A ausência da atraente figura de Simão do EvPd talvez reflita a tendência
antijudaica desse apócrifo.

Exclusivo de Lucas (Lc 23,27-31) é o segundo elemento desta cena, o centro


da qual envolve o seguimento de Jesus pela aglomeração do povo, as mulheres que
batem em si mesmas e se lamentam e o oráculo de Jesus às filhas de Jerusalém.
Como acontece com todo o material exclusivo da NP lucana, há ampla diversidade
de opiniões quanto à composição. É amplamente reconhecido que Lucas tirou

29 A ideia de que os cristãos primitivos sentiam uma necessidade premente de ter testemunhas oculares
para apoiar a história dos acontecimentos da crucificação é incerta (ver Wansbrough. “Crucifixion” , p.
258-259); ainda mais incerta é a tese de que eles inventaram livremente personagens para preencher
essa necessidade.

80
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado

pelo menos Lc 23,26 de Mc 15,20b-21. Concordo com Büchele, Soards e outros


que Lucas também derivou Lc 23,32 dessa fonte (+ Mc 15,27) e a reescreveu de
modo a formar uma inclusão com Lc 23,26 e assim estruturar o material inserido
a respeito do povo e das mulheres. (Lucas também desejou formar uma inclusão
com Lc 22,2, onde as autoridades judaicas procuravam matar Jesus; e ele queria
preparar a inserção relativa aos dois malfeitores em Lc 23,39-43.)

As principais discordâncias concentram-se no material inserido em Lc


23,27-31. Como não há nenhum paralelo estreito em Marcos, muitos (Fitzmyer,
Rehkopf, Taylor etc.) pensam que aqui Lucas recorreu a uma fonte especial ou uma
NP especial. Contudo, como indicado no c o m e n t á r io , a maior parte do vocabulário
está atestada em outras passagens de Lucas-Atos, às vezes com notável frequência;
assim, a tese da fonte especial aumenta acentuadamente a relação estilística entre
Lucas e a suposta fonte. Outros pensam quase totalmente em termos de composição
lucana destes versículos, que difere apenas quanto a se e onde Lucas recorreu a
elementos mais primitivos.'*0 Por exemplo, quanto aos w. 27-28, Bultmann, Dupont
e Soards afirmam que o próprio Lucas os compôs, enquanto Kàser e Kudasciewicz
acham aqui (juntamente com o v. 31) o antigo núcleo pré-lucano da cena. Quanto aos
vv. 29-30, Kãser e Kudasciewicz afirmam que Lucas os compôs ele mesmo a partir
de temas veterotestamentários (LXX), enquanto Bultmann e Dupont acham aqui
(juntamente com o v. 31) o antigo núcleo pré-lucano, talvez existente em aramaico.3031
Soards e Untergassmair atribuem o v. 29 e o v. 31 à tradição (oral) pré-lucana, mas
acham que Lucas adaptou o v. 30 da LX X (talvez lembrado oralmente). Relato
essas opiniões (sem reproduzir todas as sutilezas) para mostrar como é impossível
chegar a qualquer acordo.

Indiquei no c o m e n t á r io que existe boa razão para crer que Lucas encontrou
o macarismo do v. 29 na tradição dos ditos de Jesus e o adaptou a este contexto.
O v. 30 faz claramente eco a Os 10,8b, enquanto o v. 31 é um provérbio obscuro:
assim, profecia e sabedoria são usadas por Lucas para confirmar o oráculo de Jesus.

30 No texto acima, menciono opiniões segundo as quais Lucas preserva um elemento mais primitivo. Alguns
biblistas (Finegan, Feldkãmper) enfatizam tanto a composição lucana, de modo que não se faz referência
a elementos mais primitivos ou esses elementos se tornam mero trampolim para a criação lucana e não
estão realmente preservados.
31 Para Bultmann, esta é uma história de pronunciamento que consiste em uma profecia cristã colocada na
boca de Jesus, mas não um dito genuíno de Jesus. Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1495) acha que o v. 28 pode
ter vindo de Jesus, mas em um contexto diferente.

81
Q uarto ato •Jesus c crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Quanto a haver uma tradição pré-lucana a respeito de mulheres que lamentavam


por Jesus enquanto ele ia morrer ou Lucas ter usado um tema comum para dar
contexto ao macarismo do v. 29, não vejo como saber.

O que está claro é que, quer tenhamos composição criativa quer reutilização
adaptativa, a mão e o modo de pensar de Lucas estão evidentes em quase todas as
linhas. Por que Lucas reuniu todo esse material? Os que enfatizam o tema parené-
tico em Lucas mencionam que só este relato evangélico de Simão ressalta que ele
levou a cruz atrás de Jesus. Entretanto, outros como Dibelius (From , p. 202-203),
Surkau (Martyrien, p. 96) e Aschermann (“Agoniegeber”, p. 149) veem forte signi­
ficado martirológico em elementos lucanos como Jesus sendo mais corajoso que os
circunstantes compassivos, a insistência por parte dele quanto ao fato de que sua
morte trará a intervenção divina que afetará o destino deles e os tempos que estão
para vir serão piores. Histórias de martírio cristãs e judaicas mais tardias (Martírio
de Policarpo 11,2; a crucificação de Jose ben Jo’ezer [ver acima, sob “ Término do
pronunciamento” ]) são invocadas como paralelos. Entretanto, essas sugestões são
tão alusivas a ponto de serem questionáveis (Untergassmair \Kreuzweg, p. 162-163]
contesta os paralelos de martírio).

Menos problemáticos, a meu ver, são os paralelos estruturais dentro da NP


lucana (ver § 38 B). No centro do relato da crucificação, em Mc 15,29-32, três
grupos escarnecem Jesus, e Lc 23,35b-39 adota e adapta essa tríade hostil. Mas
somente Lucas inicia a crucificação com três grupos envolvidos (Simão, a aglome­
ração do povo e de mulheres, os dois malfeitores) e anexa sequencialmente à morte
de Jesus outros três grupos envolvidos (Lc 23,47-49: o centurião, as multidões que
batem no peito, os conhecidos e as mulheres que observavam à distância). Essas
tríades respectivas, acrescentadas como introdução e anexadas,32 são solidárias
com Jesus (de fato, pelo menos um dos malfeitores tomará o lado dele). Em cada
tríade, o primeiro grupo (um único estranho sem nenhum envolvimento pessoal
anterior) e o último encontram-se em Marcos, enquanto o participante do meio (uma
pluralidade lamentadora) aparece somente em Lucas. (As filhas de Jerusalém, antes
da crucificação, e as mulheres da Galileia, depois da morte, também formam um
paralelismo estrutural.)

32 Em sua análise estrutural da narrativa da crucificação lucana, Büchele (Tod, p. 66-72) revela uma paixão
exagerada por encontrar tríades, mas isso não devia cegá-lo para a descoberta de alguns conjuntos de
três genuinamente paralelos.

82
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado

E ssas tríades adaptam-se à perspectiva teológica lucana de que, enquanto


alguns se opunham a Jesus (a tríade do meio, de escarnecedores, tirada de Marcos),
a vida de muitos outros era afetada positivamente pela Paixão. Se para Marcos a
Paixão manifesta a maldade e o fracasso humanos com o poder triunfante de Deus
manifestado principalmente depois que Jesus morre, para Lucas o amor de Deus,
o perdão e a cura já estão presentes em toda a Paixão. O despreparado e relutante
Simão surge em Lucas na postura de discípulo; nem todas as pessoas são hostis a
Jesus, pois uma aglomeração o segue e as mulheres de Jerusalém lamentam por
ele; um dos dois malfeitores que são levados com ele para morrer será feito vito­
rioso com ele; um centurião romano se tornará porta-voz da inocência de Jesus;
as multidões serão tão tocadas por sua morte que baterão no peito em penitência;
e as mulheres da Galileia que o seguiram tão fielmente verão sua morte de longe,
mas depois verão o túmulo vazio por sua vitória.

No c o m e n t á r io , mencionei que o oráculo falado às filhas de Jerusalém em


Lc 23,28-29, com seus acompanhamentos profético (Lc 23,30) e proverbial (Lc
23,31), é o jeito lucano de dizer que os responsáveis pela execução do Filho de
Deus serão punidos, até na próxima geração, por meio da destruição de Jerusalém.
Equivale funcionalmente às cenas diante de Pilatos acrescentadas em Mateus (“ Seu
sangue sobre nós e sobre nossos filhos” ) e em João (“ Não temos nenhum rei além
de César” ). Mas essas declarações autoconvincentes colocadas respectivamente
nos lábios de todo o povo e dos chefes dos sacerdotes são muito mais sombrias em
seu contexto e importância que o relutante oráculo relatado dos lábios de Jesus
por Lucas. O próprio fato de ser falado a mulheres que lamentam nega que a de­
vastação será merecida por todos que viverem para vê-la. Se a ira divina não pode
ser desviada de Jerusalém por causa de sua rejeição prolongada dos profetas e de
Jesus, Lucas mostra que nem todos eram hostis e deixa aberta a possibilidade de
o Deus que tocou os corações de Simão e de um dos malfeitores e do centurião
poder ser tocado pelas lágrimas dos que lamentaram o que estava sendo feito a
Jesus. Leitores modernos que reconhecem que questões de responsabilidade, culpa
e castigo são mais complicadas do que qualquer Evangelho retrata podem julgar
que Lucas introduz algumas sutilezas úteis.

(A bibliografia para este episódio encontra-se em § 37, Parte I.)

83
§ 40. Jesus crucificado, primeira parte:
0 cenário (Mc 15,22-27; Mt 27,33-38;
Lc 23,33-34; Jo 19,17b-24)

Tradução

M c 15,22-27:22E eles o conduzem para o lugar do Gólgota, que é interpretado


Lugar da Caveira;23e eles estavam lhe dando vinho com mirra, mas ele não o tomou.
24E eles o crucificam; e eles repartem suas roupas, tirando a sorte para elas quanto
a quem devia pegar o quê. 25A g o ra era a terceira hora e eles o crucificaram. 26E
havia uma inscrição da acusação contra ele, inscrita: " O Rei dos Judeus". 27E com
ele eles crucificam dois bandidos, um à direita e um à sua esquerda*
M t 2 7 ,33 -3 8 :33E tendo chegado a um lugar chamado Gólgota, que é cha­
mado Lugar da Caveira, 34eles lhe deram para beber vinho misturado com fel; e
tendo provado, ele não quis beber. 3SM as tendo-o crucificado, eles repartiram suas
roupas, tirando a sorte. 36E tendo sentado, eles estavam guardando-o (montando
guarda) ali. 37E eles puseram acima de sua cabeça a acusação contra ele, escrita:
"Este é Jesus, o Rei dos Judeus". 38Então ali são crucificados com ele dois bandidos,
um à direita, e um à esquerda.
Lc 2 3 ,3 3 -3 4 :33E quando chegaram ao lugar designado Caveira, ali eles o
crucificaram e os malfeitores, um à direita, o outro à esquerda. 34[Mas Jesus estava
dizendo: "Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que estão fazendo".] M a s repar­
tindo suas roupas, eles tiraram a sorte.
[Lc 23,38: Pois havia também uma inscrição sobre ele: " O Rei dos Judeus,
este (homem)".]

* A tradição grega koiné, a latina e a Peshitta Siríaea acrescentam um v. 28: “ E foi cumprida a Escritura
que diz: ‘E com criminosos foi ele contado’” . É o texto de Is 53,12 que Lucas cita em Lc 22,37. MTC,
p. 119, comenta que é muito raro Marcos citar expressamente o AT e que, se esse versículo estivesse
originalmente em Marcos, não haveria razão para Mateus ou para os escribas o omitirem. Com a devida
vênia a Rodgers (“ Mark” ), pequenas diferenças no contexto marcano não refutam que este versículo foi
copiado de Lucas, e Orígenes (Contra Celso 11,44) refere-se ao cumprimento da predição em Lucas.

85
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Jo 19,17b-24: l7bEle saiu para o que é chamado o Lugar da Caveira, que é


chamado em hebraico Gólgota, l8onde eles o crucificaram e com ele dois outros,
aqui e ali, mas Jesus no meio.
l9M a s Pilatos também escreveu um letreiro e o pôs sobre a cruz. O ra, estava
escrito: "Jesus, o Nazareu, o Rei dos Judeus". 20Por isso, muitos dos judeus leram
esse letreiro, porque o lugar onde ele foi crucificado era perto da cidade e estava
escrito em hebraico, latim e g re g o .21Assim, os chefes dos sacerdotes dos judeus
estavam dizendo a Pilatos: "N ã o escrevas 'O Rei dos Judeus', mas que esse sujeito
disse: 'Eu sou o Rei dos Judeus'" “ Pilatos respondeu: " O que escreví, escreví".
“ Assim os soldados, quando crucificaram Jesus, pegaram suas roupas e
fizeram quatro partes, uma parte para cada soldado; e (eles pegaram) a túnica.
O ra, a túnica era sem costura, desde cima tecida de uma ponta à outra. 24Assim
eles disseram uns aos outros: "N ã o vamos rasgá-la, mas vamos jogar sobre ela (para
ver) de quem ela é", a fim de que a Escritura fosse cumprida:
Repartiram minhas roupas entre eles,
e para meu traje tiraram a sorte.
Assim , então, os soldados fizeram essas coisas.
EvPd 4,10-12: l0E eles trouxeram dois malfeitores e crucificaram o Senhor no
meio deles. M a s ele estava calado, como não tendo nenhuma dor. "E quando co­
locaram a cruz de pé, eles escreveram que “Este é o Rei de Israel". I2E tendo posto
suas vestes diante dele, eles as repartiram e lançaram a sorte por elas.

Comentário

Anteriormente, quando analisei Jesus diante das autoridades judaicas e Jesus


no julgamento romano, prefaciei cada uma daquelas divisões principais (“Atos” ) da
NP com uma seção dedicada aos antecedentes. Entretanto, aqui esse procedimento
não me pareceu prático. 0 que chamo “Jesus crucificado, primeira parte” consiste,
em Marcos/Mateus e (em menor grau) em Lucas, de quase uma lista de discretos
itens pertinentes à crucificação. As provas históricas, geográficas e arqueológicas
pertinentes a cada um desses itens são mais proveitosas ao leitor como parte do
COMENTÁRIO a respeito do versículo que a menciona do que em uma seção introdutória
de antecedentes que necessariamente aparecem muitas páginas antes do versículo
respectivo. A natureza do material também me faz omitir uma ANÁLISE no final desta
seção. Nos sinóticos, embora alguns dos itens relatados cumpram a Escritura ou
se adaptem ao esboço geral do respectivo evangelista, outros estão presentes sem
nenhuma indicação clara de propósito. Na verdade, nenhuma única explicação
justifica a presença de todos os itens, e evangelistas diferentes talvez tivessem

86
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

razões diferentes para aquilo que incluíram. Mais uma vez, então, a investigação
de propósito e composição será mais prática se ligada a meu comentário de cada
um dos itens, em vez de ser reunida como estudo analítico no final.

Em Marcos, percebem-se sete itens: 1) nome do lugar; 2) oferta inicial de


vinho; 3) crucificação; 4) divisão de roupas; 5) tempo; 6) inscrição da acusação; 7)
dois bandidos. Um desses itens (#5) é exclusivo de Marcos. Mateus tem seis deles,
na mesma ordem que Marcos e copiados de Marcos com pequenas adaptações.
Lucas tem pelo menos quatro: ##1, 3, 7, 4 aqui no início; e # 6 (a inscrição) mais
adiante, em Lc 23,38.1 De modo geral, neste material não vejo razão para pensar
que Lucas precisou de outra fonte além de Marcos. Contudo, enquanto Marcos/
Mateus simplesmente relacionam os itens sem tentar explicar consequências teoló­
gicas nem repercussões veterotestamentárias, Lc 23,38 entrelaça na narrativa um
dos itens (#6) e Lc 23,39-43 expande outro (#7) em importante episódio teológico.

João tem um total de cinco itens. No início, ele relaciona #1, #3 e #7 ape­
nas como detalhes, mas depois expande # 6 e #4 como episódios importantes com
sentido teológico simbólico. Embora seja teoricamente possível que João tenha feito
uma seleção dos sete itens marcanos, há bastante diferença mesmo nos que são
paralelos para sugerir que lidamos com itens estabelecidos cedo na tradição e que
Marcos e João refletem essa tradição de modo independente.12 Vamos examinar os
sete itens na ordem marcana e então, em oitavo lugar, analisar a autenticidade do
controvertido Lc 23,34a, onde Jesus concede perdão.

# 1 . 0 nome do lugar (Mc 15 ,22; M t 2 7 ,3 3 ; Lc23,33a; Jo 19 ,17b )

A cena começa com a chegada de Jesus. Aqui, só Marcos usa um presente


histórico para o verbo de chegada (“conduzem” ), como fez em Mc 15,20b-21 quando
levam Jesus para fora e forçam Simão. Ele continuará a usar presentes históricos
nos vv. 24 e 27. Assim, há um forte estilo narrativo na relação desses itens. Mateus

1 E possível debater a presença de #2 (a oferta inicial de vinho) em Lucas, já que ele traz apenas uma
oferta de vinho e essa é mais parecida com a segunda oferta marcana.
2 Por exemplo, Mc 15,29-32 e Jo 19,19-27 têm três indivíduos/grupos que reagem a Jesus na cruz, mas o
único grupo compartilhado é o dos chefes dos sacerdotes, que aparecem como o principal componente
em um grupo que reage nos dois Evangelhos. As três reações marcanas são independentes da lista
introdutória de sete itens e as três são hostis a Jesus. As duas primeiras reações joaninas relacionam-se
com os itens introdutórios marcanos #6 e #4, e a terceira reação é de apoio a Jesus, não hostil.

87
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

e Lucas usam erchesthai (“chegar” ); João usa exerchesthai (“sair”, que apareceu
antes em Mt 27,32). Os biblistas discutem o tom de pherein em Marcos: sempre
significa “conduzir”, distinto de “carregar” ?1*3 Subentende aqui que Jesus teve de
ser conduzido (praticamente arrastado) porque estava fraco demais; e, nesse caso,
é por isso que Mateus e Lucas o evitaram?4 Ou “conduzir” tem simplesmente o
tom de Jesus sob compulsão?

Gólgota ou Lugar da Caveira. Quanto ao nome do lugar onde Jesus foi


crucificado, parece que as formas semítica (Golgotha) e grega (kranion), ambas
significando “caveira, crânio”, estavam na tradição.5 A forma semítica é omitida
por Lucas, mas isso não é inesperado; ele omitiu “ Getsêmani” também, presumi­
velmente porque essas palavras estrangeiras não faziam sentido para seus leitores
gregos. Marcos/Mateus põem primeiro o nome semítico, enquanto João põe primeiro
o grego.6

O verbo que expressa a equivalência em Marcos é methermeneuein (“ in­


terpretar, traduzir”, a ser usado novamente em Mc 15,34). Lucas substitui kalein
(“chamar, designar”, que como particípio passivo nesta situação é exclusivamente
lucano). Mateus e João usam formas de legein (“dizer”, mas aqui traduzido “cha­
mar” ) — a mudança que Mateus faz de Marcos é desajeitada, pois agora Mateus
tem “chamado” duas vezes na mesma sentença. Desse último emprego, tem-se a
impressão de que kranion não era simplesmente a tradução de “ Gólgota”, mas o nome
textual usado pelos de língua grega, impressão incrementada por Lucas. A relação
gramatical entre topos (“lugar” ) e kranion ou “ Gólgota” varia em cada Evangelho e
nem sempre é clara. Em Marcos/Mateus, por exemplo, pode-se pensar que “ Lugar”

1 0 verbo é menos frequente em Mateus e Lucas, onde significa “carregar” . Lc 23,26 acabou de usá-lo
para o ato de Simão carregar a cruz. Ver C. H. Tumer, JTS 26, 1924-1925, p. 12, 14.
4 Uma atitude semelhante fez os escribas mudarem o verbo marcano para agein (“levar”) no Códice de
Beza e nas minúsculas Ferrar?
3 Apesar da referência joanina a “hebraico” (como antes com referência a Gábata em Jo 19,13), “Gólgota”
(“Golgotha” no Códice Vaticano) está mais próximo do aramaico Gulgulta que do hebraico Gulgolet.
Na transliteração grega, a segunda sílaba (gul) foi dissimilada da primeira (BDF6). Ver a equivalência
com kranion na tradução da LXX de Jz 9,53; 2Bs 9,35. 0 equivalente latino é calvaria, daí o topônimo
“ Calvary” [Calvário], popular em inglês desde a tradução de Wyclif (1382).
6 E provável que a forma mais conhecida da comunidade joanina fosse a grega, pois parece que ele acha
necessário fornecer uma tradução grega até para termos transliterais comuns (Messias, Babi). Aparen­
temente, Marcos segue uma sequência transliterada aramaico/grego padrão já demonstrada no abba, ho
pater de Mc 14,36.

88
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

fazia parte da designação: “ Lugar de uma Caveira” ou “ Lugar da Caveira”.7 Lucas


não pensava que “ lugar” fazia parte do nome. A expressão joanina em Jo 19,17 é
literalmente: “Ele saiu para o que é chamado Lugar ‘da Caveira’, que é chamado
em hebraico Gólgota” ; copistas antigos não concordaram se a oração do “que”
modifica “caveira” (o que é mais provável) ou “lugar”.8

Ao deixar de lado esse pontos secundários, uma questão importante envolve


o que o nome subentende. Todas as formas nominais dadas acima são conciliáveis
com a sugestão de que a aparência do local assemelhava-se a uma caveira porque
era uma colina arredondada, que se elevava da superfície circundante.9 Em parte
por causa das informações joaninas de que ali havia um túmulo (Jo 19,41), muitos
pensam que entradas para túmulos semelhantes a grutas deram à colina aspectos
parecidos com rostos. Examinaremos no próximo parágrafo a localização tradicio­
nal do Gólgota em Jerusalém. Peregrinos do século IV falavam do Calvário que ali
existia como monticulus ou pequena colina (Jeremias, Golgotha, p. 2) e o que resta
dele hoje (dentro de uma igreja) tem cerca de 4 metros de altura (L. E. C. Evans,
“ Holy”, p. 112). A utilização de uma colina como o lugar de crucificação servia ao
objetivo romano de fazer do castigo uma advertência pública.

A localização em Jerusalém. Exatamente onde fora dos muros de Je ­


rusalém (§ 39, sob “ Levando Jesus para fora” ) Jesus foi crucificado? Como João
declara que Jesus foi sepultado perto (fato confirmado pela necessidade de pressa
subentendida na narrativa sinótica do sepultamento), esta questão é a mesma da
localização do túmulo de Jesus. A discussão concentra-se em incertezas quanto à
validade da localização escolhida pelos arquitetos de Constantino (que recorreram

7 Ver H. Koester, TDNT, v. 8, p. 203. O uso marcano duplo de “ lugar” , a saber, o lugar do Gólgota (com
o artigo “ o” faltando em alguns mss.) e Lugar da Caveira, faz alguns biblistas pensarem que Marcos
combinou fragmentos de informações. E mais provável que seja simplesmente tautologia marcana.
8 João também pode ser traduzido “Ele veio a um lugar chamado Caveira”, conforme preferido por P06 e
Jeremias (Golgotha, p. 1).
9 O nome Caveira recebeu outro significado na tradição cristã mais tardia, parte dele originando-se da
tradição judaica a respeito da área do Templo de Jerusalém. Orígenes (Comentário a Mt 27,33; #126;
GCS 38,265 e 41’,226) menciona a tese de que Adão foi sepultado aqui; e um século mais tarde, Pseudo-
-Basílio (In Isa. 5,1; #14; PG 30,348C) menciona a caveira de Adão. Jerônimo (In Matt. 4; CC 77,270)
conhece a tradição da caveira de Adão, mas não a aceita. Contudo, a caveira e os ossos de Adão estão
representados no pé do crucifixo em muitas pinturas e entalhes. Ainda outra explicação do nome é que
a Colina da Caveira era lugar de execução pública onde se encontravam caveiras na superfície ou perto
dela.

89
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

à tradição local) para construir, em 325-335 d.C., um grande encrave sagrado, que
consistia na basílica do Martyrion, um jardim sagrado com uma rotunda de pórticos
centralizada no túmulo (chamado o Anastasis) e um Calvário independente, que
se julgava ser a colina do Gólgota. O que resta da reconstrução pelas cruzadas de
tudo isso em 1099-1149 é, em geral, chamado de igreja do Santo Sepulcro. O foco
primordial do edifício eclesiástico (como o nome indica) tem sido sempre o túmulo
onde Jesus ficou, por isso reservarei o exame da história da localização e suas
igrejas para a última parte da ANÁLISE de § 47 adiante, a seção que trata do relato
evangélico do sepultamento de Jesus por José de Arimateia. Aqui, só me preocupo
com o que essa localização tradicional (que deve ser levada a sério como possível
lembrança histórica) nos revela a respeito do local do Gólgota.

Ponto crucial no debate é a localização por Josefo das diversas muralhas


defensivas construídas através da história de Jerusalém (Guerra V,iv,2; ##142ss). A
Segunda Muralha Setentrional existia no tempo de Jesus e a possível autenticidade
do local ocupado pela igreja do Santo Sepulcro depende de ele ter sido fora dessa
muralha (e não dentro dos muros, como agora está a igreja). Escavações a partir
da Segunda Grande Guerra esclareceram a situação,101pois aparentemente o local
tradicional ficava fora da muralha, em uma seção utilizada como pedreira desde o
século VIII ou VII a.C., e que no século I a.C. fora em parte tapada para servir de
jardim e lugar de sepultamento. O local não é longe da Porta do Jardim, na muralha
setentrional, e se encaixa bem na descrição de Jo 19,41: “ Mas havia no lugar onde
ele foi crucificado um jardim, e no jardim um túmulo novo no qual ninguém havia
sido colocado ainda”. O que é agora o Calvário erguia-se a 11-12 metros acima do
chão da pedreira, uma colina arredondada que devia ter sido facilmente visível das
muralhas. Foram encontrados indícios de túmulos cortados na rocha da colina.11
Assim, extensas escavações fortaleceram a causa da localização tradicional.

A igreja do Santo Sepulcro que está agora naquele local tem inconvenientes
emocionais, por exemplo, a querela irritante entre os sacerdotes ou monges que
representam igrejas antigas que celebram rituais ali, o encardimento opressivo, a

10 Em § 37, Segunda Parte, ver especialmente os escritos de Bahar, Benoit, Evans, Kretschmar, Lux-Wagner,
Riesner, Schein e Wilkinson (“Tomb”).
11 Bahat, “ Does” , p. 32. É plausível concluir que a rocha deste afloramento havia sido estragada por uma
rachadura resultante de um terremoto (um afundamento ainda é visível) e é por isso que os cavouqueiros
a desprezaram como inadequadas para produzir os blocos de alta qualidade de calcário melek que essa
área fornecia.

90
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

escuridão e (durante grande parte do século XIX) feios andaimes, porque os cristãos
não chegam a um acordo quanto aos consertos. Para os evangélicos protestantes
em especial, o incenso e a música de liturgias exóticas parecem quase idólatras.
Inevitavelmente tem havido tentativas de encontrar um local mais conveniente, o
mais famoso dos quais é o “Túmulo do Jardim” (associado no século XIX a Thenius,
Conder e ao general britânico Gordon), cerca de 250 metros ao norte das muralhas
turcas existentes e da Porta de Damasco. Uma colina arredondada que se parece com
uma caveira, um jardim projetado e um túmulo antigo tornam esta escolha atraente
para visitantes aos quais a igreja do Santo Sepulcro causa repulsa. Argumentos de
que o local do “ Túmulo do Jardim” não tem nenhuma tradição de antiguidade, de
que a fisionomia de caveira não se origina do século I, de que há muitos túmulos
de diversos períodos nesta área e de que as muralhas turcas estão muito longe dos
muros do tempo de Jesus convenceram a esmagadora maioria dos biblistas que esse
candidato a Gólgota não é digno de debate sério.12 Tese igualmente implausível foi
proposta em escritos persistentes por E. L. Martin: o Monte das Oliveiras, perto
do cume, era o lugar de execução.13 Seu principal argumento origina-se de uma
interpretação literalista de Mt 27,51-54, onde se tem a impressão de que o centurião
e os que estavam com ele viram o terremoto, o rasgamento do véu do santuário, os
túmulos se abrirem e os corpos dos santos falecidos ressuscitarem. Somente do Monte
das Oliveiras se podia ver a entrada do santuário ou “lugar santo” do Templo. Isso
presume que Mateus sabia que véu estava envolvido e que Martin leu sua mente de
maneira certa quanto a que véu, e que tudo isso aconteceu. (Marcos não especifica
que o centurião viu o rasgamento.) Não há o mais leve indício fora de Mateus de
que qualquer dessas coisas aconteceu quando Jesus morreu; como afirmarei em
§ 43, lidamos com simbolismo apocalíptico. A tentativa de entender Hb 13,10-13
literalmente como diretriz geográfica para o lugar onde Jesus foi “sacrificado” é
outra incompetência para reconhecer o simbolismo. A expressão joanina em Jo 19,20
é particularmente obscura (literalmente: “porque perto estava o lugar da cidade
onde Jesus foi crucificado” ). Na interpretação de Martin, isso significa que Jesus foi

12 Ver Vincent, “Garden” .


13 Ele afirma em A. S. K. Historical Report que sua tese é revolucionária, porque as igrejas tradicionais,
inclusive a Igreja Católica Romana “aceitam como ensinamento de facto de dogma (supostamente sob a
inspiração do Espírito Santo) que a igreja do Santo Sepulcro construída por Constantino e sua mãe é na
verdade o local da crucificação” . O local físico da crucificação no pensamento católico não tem nada a ver
com dogma, doutrina ou crença. Ao verificar os biblistas que relacionei na nota 10 acima, reconhece-se
que eles não decidem na base de preconceito religioso. Essa é uma pista falsa.

91
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

crucificado perto do “ Lugar [Templo] da cidade”, pois o Monte das Oliveiras ficava
defronte ao Templo. A meu ver, isso é totalmente implausível: “ Lugar” foi usado
apenas três versículos antes, em “o Lugar da Caveira” (Gólgota), e é plausível que
aqui também signifique isso. A tese mais implausível é a de Barbara Thiering:14
Gólgota era a esplanada meridional do povoado de Qumrã, perto do Mar Morto, a
mais de trinta quilômetros de Jerusalém por estrada (Pilatos e Caifás haviam ido
lá). Nunca se poderá provar fora de qualquer dúvida onde ficava o Gólgota, mas é
provável que não apareça nenhum candidato mais verossímil que o local tradicional.
Tradições dos séculos II e IV a respeito do local do sepultamento, que apontam
para o Santo Sepulcro, têm mais valor que essas modernas suposições que não têm
nenhum apoio arqueológico sério.

#2. A oferta inicial de vinho (Mc 15 ,23 ; M t 27,3 4)

Em Marcos/Mateus, é oferecido vinho a Jesus duas vezes. Aqui, no início do


processo de crucificação, “eles”, isto é, os soldados romanos, dão-lhe oinos (vinho
doce) misturado com mirra ou fel, mas ele não o toma/bebe. (Marcos usa o imperfeito
com talvez um ponto conotativo: estavam tentando dar.) No fim, depois do brado
de desolação de Jesus e pouco antes de sua morte, “alguém” entre os espectadores
enche uma esponja com oxos (vinho inferior, amargo, de gosto avinagrado), fixa-a
em um caniço e dá para ele beber (Mc 15,36; Mt 27,48). Isso é feito em um con­
texto de escárnio, mas não está claro se a ação em si é um escárnio. Não ficamos
sabendo se Jesus bebeu ou não.

Em Lucas, há apenas uma oferta de vinho: no meio do tempo de Jesus na


cruz, os soldados (primeira referência lucana a eles) escarnecem dele, adiantando-se
e oferecendo-lhe oxos. Parece a segunda oferta de Marcos/Mateus (entretanto, sem
esponja). Os agentes são os soldados, mas isso não é suficiente para se afirmar que é
um eco da primeira oferta, pois Lucas tende a tratar os espectadores favoravelmente
e talvez esteja corrigindo a imagem marcana da segunda oferta.

Em João, há apenas uma oferta de vinho: no final (Jo 19,29-30), pouco


antes de Jesus morrer, “eles” (os soldados?) põem uma esponja embebida em oxos

14 The Qumran Origins of the Christian Church, Sydney, Australian and New Zealand Studies in Theology
and Religion, 1983, p. 216; repetido em Jesus and the Secret of the Dead Sea Scrolls, San Francisco,
Harper, 1992, p. 113-115. A morte aconteceu na sexta-feira, em 33 d.C., depois de Jesus ter se casado
com Maria Madalena na noite de quarta-feira.

92
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

em um pouco de hissopo e erguem-na até os lábios de Jesus; ele toma esse vinho.
Claramente, um paralelo com a segunda oferta em Marcos/Mateus.

De modo geral, então, só Marcos/Mateus têm a oferta inicial de oinos, en­


quanto, mais tarde ou lá para o fim da crucificação, os quatro Evangelhos têm a
oferta de oxos, como faz o EvPd, (ver adiante). Somente João especifica que Jesus
tomou esse oxos. Havia duas ofertas de bebidas na tradição pré-evangélica e vários
evangelistas simplificaram a imagem de modo independente? Ou na tradição só
havia uma bebida oferecida — lá para o fim, em um contexto de escárnio, e com
antecedentes bíblicos? A última é uma solução mais simples, mas então é preciso
explicar por que Marcos (ou a tradição pré-marcana imediata) acrescentou o oinos
inicial. Não há nenhum eco bíblico claro de Salmos da Paixão nesta oferta inicial em
Marcos (Mateus acrescenta um, como veremos). Realmente, Marcos tem predileção
por duplicar cenas e ditos, e a oferta inicial fornece um tipo de inclusão (vinho no
início e no fim); mas existe um motivo teológico?

O uso marcano desse gesto. Não falta totalmente verossimilhança ao


que Marcos descreve. A ideia de um benevolente trago de vinho para entorpecer a
dor aparece já em Pr 31,6-7, onde, como exceção à advertência para os que estão
no poder não beberem, ouvimos: “ Dai bebida forte aos moribundos e vinho [oinos]
aos amargurados; quando bebem, esquecem sua miséria”. Passagens em escritos
judaicos mais tardios atestam a oferta de vinho perfumado aos condenados, como
forma de anestésico.15 Marcos escreve de uma mistura de mirra usando o particí-
pio passivo de smyrnizein, verbo relacionado com smyrna (“mirra” ).16 A mirra era
usada pelos egípcios para embalsamar; e passagens bíblicas referem-se a um uso
externo na preparação do corpo para o sepultamento (Mc 14,3; Lc 23,56; Jo 12,3;
19,39). Um uso mais amplo como perfume atraente é atestado em SI 45,9; Pr 7,17
e Ct 5,5. Há quem pense que ela era posta no vinho como anestésico ou narcótico,

15 TalBab Sanhedrin 43a fala de um grupo de mulheres de Jerusalém que, como ato de piedade, davam ao
condenado um recipiente de vinho contendo um grão de incenso de olíbano para entorpecê-lo. O tratado
talmúdico menor Semahot (‘Ebel Rabbati) 2,9 (44a) relata: “ Aos condenados [... ] é dado para beber vinho
contendo olíbano, para que não se sintam angustiados” . Tertuliano (De jejunio 12,3; CC 2,1271) conta
como na manhã de sua condenação amigos deram a um catecúmeno cristão vinho “medicado” , como
antídoto, mas ele ficou tão bêbado que não conseguiu confessar a que Senhor ele servia.
16 Também citado como myrra ou myron e, quando misturado com óleo, como stacte. E a goma resinosa
do arbusto conhecido como balsamodendron myrrha ou, mais precisamente, como commiphora myrrha
ou abyssinica. Ver detalhes em W. Michaelis, TDNT, v. 7, p. 457-459; G. W. Van Beek, BA 23, 1960, p.
83-86.

93
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

citando o uso farmacêutico de Dioscórides Pedânio no século I d.C. Entretanto, no


primeiro livro (#77) de The Greek Herbal o f Dioscorides (R. T. Gunther, org., Oxford
Univ., 1934, p. 42-43), há uma longa lista daquilo que a mirra ajuda (menstruação,
resfriados, disenteria, perda de cabelo, mau hálito, cheiro de suor etc.); mas há
somente uma palavra de passagem a respeito do efeito soporífero. Apuleio (O asno
de ouro viii,14) descreve uma mulher que droga um homem com vinho fortemente
soporífero para poder feri-lo enquanto dorme, mas a mirra não é mencionada.
Portanto, o efeito entorpecedor esperado da bebida pode bem ter sido associado ao
vinho em si (vinho doce, pesado), e não à mirra. Quanto ao propósito da mistura
de mirra, embora possa parecer estranho ao gosto moderno, o vinho perfumado
era apreciado na Antiguidade: “ 0 vinho mais fino nos tempos primitivos era o
temperado com o perfume da mirra” (Plínio, História Natural xiv,15; #92). Ele
continua: “ Também acho que o vinho aromático é constantemente feito de quase os
mesmos ingredientes que os perfumes, a partir da mirra, como dissemos” (História
Natural xiv,19; #107).

Todos esses antecedentes sugerem como era entendida a declaração mar-


cana quanto à oferta de vinho. A única surpresa no que ele descreve é que “eles”
que oferecem o vinho são soldados romanos; de fato, nas referências de pano de
fundo, os assistentes são, com frequência, família, amigos, ou devotos auxiliares.
Essa imagem evangélica pela qual os que escarnecem e açoitam Jesus oferecem
um gole analgésico torna inteligível por que “ele não o tomou”. Em Mc 14,36, no
Getsêmani, o Jesus marcano pedira ao Pai para tirar dele o cálice de uma morte
sofredora, mas viera a entender que fazer a vontade do Pai incluía beber esse cálice.
Beber o vinho misturado com mirra, dado a ele pelos inimigos a fim de diminuir
a dor, seria renegar o compromisso que assumira. Para o Jesus marcano a oferta
de vinho é outra manifestação do peirasmos ou teste que começara no Getsêmani.

A meu ver, essa análise da intenção teológica marcana na qual a bebida


recusada é usada para ressaltar a determinação de Jesus de se dar plenamente é
mais plausível que qualquer de diversas outras sugestões. Por exemplo, há quem
relacione a recusa de vinho aqui com a declaração simbólica na Ultima Ceia em
Mc 14,25: “Amém, eu vos digo, não beberei mais do fruto da vinha até o dia em
que o beberei de novo no Reino de Deus”. Contudo, a recusa de Jesus a beber o
vinho misturado com mirra certamente não faz parte desse adiamento até mais
tarde, quando o Reino de Deus for plenamente estabelecido, pois esse não é um

94
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

vinho positivo que, se Jesus o bebesse, traria a vinda do reino. Davies (“ Cup” ) tem
outra sugestão: Jesus considera sua morte uma expiação e Mixná Yoma 8,1 proíbe
beber no Dia da Expiação. Mas não há nenhum indício de que Marcos interpreta
a morte de Jesus contra o pano de fundo da metáfora do Dia da Expiação, como
faz a Epístola aos Hebreus.

O uso mateano desse gesto. Há quem argumente que Marcos alude a SI


69,22, que apresenta uma descrição do que os inimigos do justo sofredor lhe fazem:

E eles deram por meu pão fel [chole]


e para minha sede deram-me vinagre [oxos] para beber.
Entretanto, das quinze palavras gregas na LX X do versículo, somente “e” e o
verbo “dar” (em um tempo diferente) encontram-se em Mc 15,23. Se há um eco do
Salmo em Marcos, ele está na segunda oferta de vinho que envolve oxos (Mc 15,36).

Uma análise da primeira oferta de vinho em Mt 27,34 dá um resultado


diferente, pois esse Evangelho substitui o “ vinho com mirra” marcano por “vinho
misturado com fel [chole]”, de modo que o chole do primeiro verso do Salmo está
na primeira oferta mateana de vinho e o oxos do segundo verso do Salmo constitui
a segunda oferta mateana de vinho. Por paralelismo, os dois versos do Salmo dizem
a mesma coisa com vocabulário diferente: fel (chole) e vinagre ou vinho ordinário
(oxos) eram ofertas desagradáveis para o justo, que refletiam ódio ou desprezo.
Contudo, alhures, Mateus (e também outros autores neotestamentários; ver Jo 19,24
abaixo) mostra tendência a dividir o paralelismo de passagens veterotestamentá-
rias em duas declarações distintas, sendo que ambas se mostram cumpridas em
Jesus.17 É Mateus, então, não Marcos, quem faz a primeira oferta de bebida repetir
de maneira reconhecível SI 69,22.18 Isso representa um abandono da ênfase mar-
cana, pois, enquanto os leitores marcanos discerniam no vinho doce perfumado
com mirra o analgésico tradicional, os leitores mateanos não pensavam assim do
vinho misturado com fel. Ao contrário, reconheciam que, como Deus predissera por
intermédio do salmista, o justo estava sendo maltratado pelos inimigos.19Expliquei

17 Seu exemplo mais famoso está em Mt 21,5, onde um paralelismo com dois nomes para o mesmo animal
em Zc 9,9 (jumento, burrico) é dividido em uma descrição de dois animais e Jesus monta nos dois ao
mesmo tempo!
18 O texto koiné de Mt 27,34 vai além nesta distinção, lendo oxos, em vez de oinos, na primeira oferta de
vinho.
19 Como já foi mencionado, creio que a argumentação e as referências neotestamentárias a pregação justificam
o fato de pressupormos que considerável familiaridade com a Escritura era transmitida aos convertidos

95
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

acima que, com toda probabilidade, a razão pela qual o Jesus marcano não tomou o
vinho analgésico oferecido a ele foi que ele concordara em fazer a vontade do Pai e
beber o cálice. E ssa razão não se aplica a Mateus, como o evangelista reconheceu
implicitamente ao inserir uma nova explicação para a recusa de Jesus: “tendo pro­
vado, ele não quis beber”. Ele provou o fel que tinha sido misturado com o vinho
para escarnecer dele e reconheceu o escárnio.20

A mudança de m ina para fel sacrifica toda verossimilhança da narrativa


m ateana? Era costume pôr fel no vinho? Chole significa uma coisa amarga (fel,
veneno, absinto; ver Pr 5,4; Lm 3,15). Também há certo amargor no gosto aromático
da mirra;21 e o absinto (absinthium) era misturado ao vinho antigo (Plínio, História
Natural xix,19; #109) e também no vermute moderno. Assim, a imagem mateana
não é absurda, mesmo que os leitores reconheçam a ação neste contexto como hostil.

Embora não saibamos com certeza, em síntese sugiro que a cena seguinte
explica melhor a situação nos Evangelhos pertinente ao vinho oferecido a Jesus na
cruz. Na tradição mais primitiva, havia uma única oferta de vinho ordinário (vinagre,
oxos), provavelmente para escarnecer da sede de Jesus na cruz. Isso está preservado
na única oferta joanina e na segunda oferta de Marcos/Mateus. Ao que tudo indica,
foi o próprio Marcos que introduziu no relato da crucificação uma oferta inicial de
vinho temperado, porque essa era uma prática muito seguida em tais execuções.
A predileção marcana por duplicação é bem atestada; aqui, a introdução criou um
paralelismo inclusivo entre o início e o fim da cena. Mais importante, permitiu a
Marcos informar o leitor sobre a recusa de Jesus do que o pouparia de sofrer e
assim mostrar na etapa final do drama a disposição de Jesus para beber o cálice de
sofrimento que o Pai lhe dera. Ao adaptar Marcos e reconhecer o eco de SI 69,22 na
segunda oferta de bebida, Mateus introduziu outro eco (“fel” ) na primeira; assim,
a crucificação de Jesus cumpriu os dois versos do que o salmista dissera a respeito
do sofrimento do justo. Quanto a Lucas, sua única oferta de bebida (Lc 23,36) é
dependente do relato marcano da segunda oferta (não de uma tradição pré-lucana

gentios. Muitos judeus que passaram a crer em Jesus são considerados como já tendo recebido essa
familiaridade por sua educação.
20 Acho totalmente implausível a sugestão de Willcock (“ When”), segundo a qual Jesus cortesmente provou-
-o para demonstrar reconhecimento do bondoso propósito com o qual o vinho fora oferecido. 0 vinho foi
oferecido com um propósito bondoso em Marcos, não em Mateus.
21 Entretanto, são exagerados os esforços de R. C. Fuller (“Drink” ) e Ketter (“ Ist Jesus”) para afirmar que
a “coisa amarga” de Mateus é diferente da mirra de Marcos.

96
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

anterior; ver, adiante, § 41, sob “ Segundo escárnio lucano” ); sua omissão da pri­
meira oferta marcana de bebida é exemplo da costumeira simplificação lucana, que
dispensa a duplicação marcana.

Resta um fator complicador. Em EvPd 5,16, perto do fim do tempo de Jesus


na cruz e pouco antes (não depois, como em Marcos/Mateus) do brado de abandono
que Jesus soltou, “alguém dentre eles” (o povo judeu, que o crucificou), diz: “ Dai-lhe
para beber fel com vinho avinagrado [eixos]”. Então, tendo feito uma mistura, eles lhe
deram para beber. Discutirei no APÊNDICE I os (relativamente poucos) biblistas que
dão prioridade ao EvPd sobre as NPs canônicas. Seguindo (de maneira exagerada)
a ideia de Dibelius, de que a NP surgiu da reflexão sobre a Escritura, eles afirmam
que o forte eco de SI 69,22 contido no EvPd foi a forma original da tradição, e que
Marcos reduziu a qualidade bíblica ao omitir a referência a fel e introduzir uma
primeira oferta de bebida. Mateus restaurou parcialmente o tom original ao trazer
de volta o fel e introduzi-lo na primeira oferta de bebida. A meu ver, essa teoria
faz Marcos agir de forma muito implausível. Vejo antes uma tendência a aumentar
gradativamente os ecos do Salmo. Já havia o oxos (“vinho ordinário, vinagre” )
em Mc 15,36; Mateus acrescentou o fel na primeira oferta de bebida; ao eliminar
todos os elementos que não eram do Salmo, o EvPd reuniu o fel e o oxos em um
único verso. O que aparece no EvPd se encontra alhures, em escritos do século II;
portanto, não se pode ter certeza se o EvPd é a fonte desta combinação ou faz eco
a ela. Ao descrever a crucificação do Filho de Deus, Barnabé 7,3 relata: “ Foi-lhe
dado para beber vinho e fel”. Algumas linhas adiante (Barnabé 7,5), no contexto de
como tudo isso cumpriu as preparações veterotestamentárias faladas por Deus por
intermédio dos profetas, encontramos: “ Porque vais me dar a beber fel com vinho
avinagrado” (mesma redação que o EvPd). Irineu (Contra as heresias IV,xxxiii,12)
refere-se à predição de que lhe dariam para beber vinho avinagrado e fel. O eco
do Salmo passa a ser quase o último problema.

# U crucificação (Mc 15 ,24a; M t2 7,3 5 a ; Lc23,33b; Jo 19,18a)

Chegamos agora ao centro da Paixão, a crucificação em si, retratada na


arte com mais frequência que qualquer outra cena da história — com grande va­
riação no formato e na posição das cruzes, na maneira como Jesus é preso à cruz,
na maneira como está vestido, em suas expressões de angústia etc. Contudo, em

97
Q uahto ffo •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

toda literatura comparável, um momento tão crucial já foi expresso de maneira tão
sucinta e não informativa?

Marcos: E eles o crucificam [presente histórico]


Mateus: Mas tendo-o crucificado
Lucas: Ali eles o crucificaram
João: Onde eles o crucificaram

Nenhuma palavra é dita quanto ao formato da cruz, quanto à maneira como


ele foi pregado, quanto à importância da dor. Na verdade, em Mateus, a crucificação
está subordinada à divisão de roupas e em João, à designação do local. Em Lucas e
João, a crucificação de Jesus e a crucificação dos dois criminosos obtêm a mesma
atenção. Assim, no que se segue, dependemos fortemente de indícios fora do NT.22

A crucificação em geral. 0 termo “cruz” prejudica nosso entendimento,


pois dá a imagem de duas linhas que cruzam uma à outra. Nem o grego stauros, nem
o latim crux têm necessariamente esse sentido; ambos referem-se a uma estaca à
qual as pessoas eram ligadas de várias maneiras: empaladas, enforcadas, pregadas
e amarradas.23 0 uso de uma estaca para empalar normalmente matava a vítima
instantânea ou rapidamente. 0 uso de uma estaca ou um poste para crucificar
normalmente provocava uma morte lenta, pois nenhum órgão vital era perfurado.

A arqueologia fornece indícios de que a crucificação de piratas era conhecida


no porto de Atenas já no século VII a.C. Contudo, parece que Heródoto (História
i,126; iii,132.159) associa a crucificação primordialmente aos medos e aos persas, e
estes últimos talvez fossem os primeiros a empregá-la como castigo em larga escala.
Com a difusão do poder grego no Oriente por Alexandre Magno, no fim do século
IV, a crucificação tornou-se prática helenística comum. Os parentes cartagineses
dos fenícios praticavam a crucificação, e parece que o contato com eles nas guerras

22 Em § 37, Parte III, ver as contribuições úteis de Brandenburger, Fitzmyer, Hengel e H.-W. Kuhn
(“ Kreuzesstrafe” ).
23 Skolpos (“estaca, poste” ) e xylon (“árvore”) também aparecem em referências à crucificação. Quanto a
verbos, além do stauroun, empregado nos Evangelhos, encontram-se anastauroun, anaskolpizein (“prender
a um poste” ), kremannynai (“ pendurar” ) e proseloun (“pregar”). Deliberadamente ou não, Heródoto usa
anastauroun (v. 3, p. 125) com referência a cadáveres, e anaskolpizein (v. 1, p. 128; v. 3, p. 132) com
referência aos vivos. Entretanto, nuanças de sentido acabaram por ceder ao costume estilístico: Fílon usa
anaskolpizein e Josefo usa (a najstauroun. Ver Hengel, Crucifixion, p. 24. As raízes hebraicas encontradas
no vocabulário de crucificação incluem tlh (“pendurar” ), zqp (“erguer” ) e slb (“pendurar, empalar”).

98
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

púnicas explica sua difusão entre os romanos. Se os que tinham sido mortos de outra
maneira eram às vezes crucificados depois de mortos para exibição no Oriente, a
crucificação romana dos vivos constituía o castigo em si. Plauto (250-184 a.C.), que
em suas peças nos dá um mundo romano povoado de escravos, soldados e patifes,
é o primeiro autor latino a fornecer referências claras, embora sucintas, à crucifi­
cação. Era castigo aplicado primordialmente às classes baixas, aos escravos e aos
estrangeiros. Tácito (História II,lxxii,l-2) fala de um castigo “típico de escravos”
(servile modum) e Cícero (In Verrem II,v,63.66; #163.170) expressa horror oratório
à ideia de se ousar crucificar um cidadão romano. Na verdade, às vezes isso real­
mente acontecia (Hengel, Crucifixion, p. 39-40; H.-W. Kuhn, “ Kreuzesstrafe”, p.
736-740); mas, de modo geral, ao contrário dos cartagineses, os romanos poupavam
da crucificação as classes altas e a nobreza. A atitude reflete-se em relação a Jesus
em F1 2,7-8, que liga assumir a forma de escravo com a morte na cruz.

Quanto à crucificação por judeus, uma das mais antigas referências à prá­
tica é a execução, no começo do século I a.C., de 800 prisioneiros por Alexandre
Janeu.24 À medida que os exércitos romanos começaram a interferir na Judeia, a
crucificação de judeus se tornou questão de estratégia, por exemplo, o governador
da Síria crucificou 2.000 judeus em 4 a.C (Josefo, Ant. XVII,x,10; #295). No século
I d.C., Jesus é o judeu que sabemos ter sido crucificado. De outro modo, Josefo não
registra nenhuma crucificação de judeus durante a primeira parte da prefeitura
romana na Judeia (6-40 d.C.), embora haja ampla atestação de crucificação durante
a segunda parte dessa prefeitura (44-66 d.C.)25

Apesar do número de referências de passagem na literatura secular à crucifi­


cação, não aprendemos nada à guisa de informações detalhadas. Comparativamente,

24 Josefo, Guerra I,iv,6; #97; Ant. XIII,xiv,2; #380. É improvável que Josefo estivesse se referindo a uma
empalação que mataria ipsofacto a vítima; ver § 35, nota 4. Consultar, em § 23 A-B, outros exemplos de
crucificação por judeus e a interpretação de Qumrã que parece inculcar esse castigo. Halperian (“Cruci­
fixion” , p. 40-42) afirma que os judeus tomaram emprestada a crucificação dos romanos e a levaram para
a lei judaica envolvendo Dt 21,22-23. Ele sugere que a crucificação, que se tomou uma forma legítima
de castigo nos tempos de Qumrã, foi mais tarde substituída nos tempos rabínicos pelo estrangulamento,
uma pena capital mais rápida e menos torturante.
25 H.-W. Kuhn, “ Kreuzesstrafe” , p. 733. Ele observa (p. 686-687) que, no período de 1-150 d.C., incidentes
de crucificação raramente estão documentados em outros lugares (Grécia, Ásia Menor, Síria), exceto pela
crucificação de cristãos em Roma sob Nero.

99
Q ihu io ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

os lacônicos relatos evangélicos surgem como informativos (Hengel, Crucijixion, p.


25). Em parte, a situação se explica pelo fato de romanos instruídos considerarem
a crucificação um castigo bárbaro a ser comentado o menos possível. (Em todos os
períodos da história, os que praticam tortura não são demasiadamente comunicativos
quanto aos detalhes.) A relativa escassez de referências à crucificação na Antigui­
dade e sua casualidade são menos um problema histórico que um problema estético
(ibidem, p. 38). Em Digesto XLVIII,xix,28, Justiniano considera a crucificação uma
forma muito agravada da pena de morte (summurn supplicium: ver H.-W. Kuhn,
“ Kreuzesstrafe”, p. 746-751). Cícero (In Verrem II,v,64.55; ##165.169) refere-se a
ela como “castigo muito cruel e repulsivo”, e o “castigo extremo e máximo para um
escravo”. Ele diz (Pro Rabirio perduellionis v,16): “ 0 próprio nome ‘cruz’ deve não
só ficar longe do corpo de um cidadão romano, mas também de seus pensamentos
e seus ouvidos”. Sêneca (Epístola ei,14) fala da “árvore maldita”. Josefo (Guerra
VII,vi,4; #203) considera a crucificação “a mais lamentável das mortes”. Além das
referências neotestamentárias à infâmia da morte de Jesus na cruz (ICor 1,18.23;
Hb 12,2), temos o constante desprezo dos autores pagãos por uma religião que
estima tanto um homem executado pela pior das mortes na cruz infame.26

Pode-se pensar que a reticência dos autores a respeito dos detalhes da cruci­
ficação foi suplementada pela arte cristã dos primeiros séculos, quando a crucifica­
ção ainda era praticada, mostrando como artistas desse período imaginavam Jesus
crucificado. 0 simbolismo da cruz (sem um corpo) aparece na arte das catacumbas,
por exemplo, no hipogeu de Lucina do século III, e se torna comum por volta do
século IV. Contudo, muitas vezes o sinal da cruz é apenas uma aproximação rústica,
que nada nos diz a respeito do tipo de cruz que os cristãos julgavam ter sido usada
para Jesus. A situação se complica pela tendência dos arqueólogos mais antigos a
identificar qualquer coisa remotamente parecida com uma cruz como cristã.27 Quanto
a descrições de Jesus crucificado, há apenas cerca de meia dúzia de descrições dos
séculos II ao V (Leclercq, “ Croix”, com reproduções). Uma das mais antigas, uma
gravura diminuta em uma pedra de jaspe, do século II, talvez seja obra gnóstica;
mostra uma figura crucificada nua e contorcida, sem espectadores, e assim talvez

26 Justino, Apologia I,xiii,4; Orígenes, Contra Celso vi,10; Agostinho, Civitas Dei 19,23 (CC 48,690) com
referência a Porfírio.
27 O objeto cruciforme anterior a 79 em Herculaneum, o célebre quadrado de palavras Sator em Pompeia
(W. Bames, NTS 33,1987, p. 469-476), os sinais de mais em ossários da Judeia do século I e a cruz de
Palmira, de 134 d.C., são todos possíveis exemplos desse exagero.

100
§ 40, Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

ridicularize a crença cristã ortodoxa na morte de Jesus. Outra pedra preciosa, uma
cornalina do século II, da Romênia, mostra um Cristo super-humano na cruz, quase
duas vezes mais alto que os doze apóstolos circundantes. A representação do século
III encontrada na escola para pajens Domus Gelotiana do palácio imperial no monte
Palatino em Roma é o grafito de um asno crucificado; ridiculariza o Deus cultuado
pelos cristãos e aparentemente reutiliza o que pode ter sido uma forma padrão de
escárnio dirigido a um pretendente régio (Políbio, História viii,21; #3; ver NDIEC
3,1979, #34, p. 137). Que pena! Essas reproduções nada têm a nos ensinar a res­
peito de como Jesus foi crucificado. Admitindo a escassez de informações, vamos
mesmo assim procurar responder a diversas perguntas.

Em que tipo de cruz crucificaram Jesus? Sêneca declara (De conso-


latione ad Mareiam xx,3): “ Vejo cruzes ali, não apenas de um tipo, mas talhadas
de muitas maneiras diferentes. Algumas têm as vítimas com a cabeça inclinada
para o chão; algumas empalam os órgãos genitais; outras estendem os braços na
viga transversal”. Josefo (Guerra V,xi,l; #451) relata que os soldados romanos
sob Tito pregavam os prisioneiros em diversas posições. De vez em quando, só era
usada uma estaca vertical e as mãos do condenado eram erguidas verticalmente
e pregadas esticadas acima da cabeça. (Não foi isso que aconteceu no caso de
Jesu s,28 pois ele carregou uma viga transversal ao lugar de execução.) Onde tinha
lugar uma crucificação em massa, às vezes alguns criminosos eram presos a algo
parecido com um cadafalso ou tímpano — um painel de tábuas verticais. A des­
crição, do século V, da crucificação de Jesus no portal de Santa Sabina em Roma
mostra um tipo de cadafalso. Por causa da suposição de que só os dois criminosos
mencionados nos dois lados de Jesus foram crucificados no Gólgota, nesta cena
costumam ser imaginadas três cruzes individuais. Embora houvesse uma cruz
em forma de X (crux decussata, “torta” ), em geral, o fato de Jesus carregar uma
viga transversal costuma eliminá-la da discussão. Se a estaca vertical já se erguia
no Lugar da Caveira, a viga transversal era atada a ela de um de dois modos.
Um entalhe em forma de V era às vezes cortado bem no topo da estaca vertical
e a viga transversal colocada nele, dando a forma de um T (crux commissa) onde
nenhuma parte da cruz erguia-se acima da cabeça do crucificado.29 Barnabé 9,8

28 Com a devida vênia à Bíblia das Testemunhas de Jeová; ver J. F. Mattingly, CBQ 13, 1951, p. 441-442.
29 As vezes é citada como cruz de três braços, um vertical, descendo da viga transversal e dois horizontais
em cada lado do ponto onde a viga vertical divide ao meio a viga transversal.

101
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

presume que Jesus foi crucificado em uma cruz em forma de T e Justino (Diálogo
xci,2) descreve a viga transversal sendo adaptada à extremidade mais alta da es­
taca vertical, uma área em forma de chifre. (Entretanto, Justino está interessado
no cumprimento de uma passagem veterotestamentária, que trata de chifres, que
talvez guiasse sua descrição.) Outro tipo de cruz era formado se um entalhe fosse
cortado horizontalmente no lado da estaca vertical, a alguma distância do topo, e
a viga transversal fosse inserida nele, dando a forma de um sinal de mais alongado
(t, a crux immissa). E ssa seria uma cruz com quatro braços, sendo presumida por
Irineu (Contra as heresias II,xxiv,4), que, acrescentando um assento ou descanso
de nádegas a ela, fala de cinco extremidades. Tertuliano (Ad nationes I,xii,7; CC
1,31) compara a cruz de Jesus a um homem de pé com os braços abertos. É a cruz
favorita da arte cristã, porque Mt 27,37 menciona que “eles puseram acima de sua
cabeça a acusação” (ver Lc 23,38).

A que distância do chão erguia-se uma cruz? Encontramos a expressão


“subir na cruz” (anabainein, epibainein, ascendere). Muitas vezes a cruz era baixa
o suficiente para animais destroçarem os pés do crucificado, que talvez estivesse a
apenas uns trinta centímetros do chão. Suetônio (Galba ix,l) conta do homem que
alegava ser cidadão romano e foi por zombaria pendurado mais alto que os outros.
Três dos evangelistas imaginam que um caniço ou hissopo foi necessário para
erguer uma esponja cheia de vinho ordinário até os lábios de Jesus. Uma conjetura
comum é que a cruz de Jesus erguia-se a cerca de 2 metros de altura.

Como prenderam Jesus à cruz? Os criminosos eram presos à viga


transversal, sendo amarrados ou pregados; então a viga transversal era erguida por
estacas bifurcadas (forcillae ) e, com o corpo atado, inserida no entalhe da estaca
vertical. Hewitt (“ Use”, p. 40) cita indícios de que no Egito amarrar era mais co­
mum. Plínio (História Natural XXVIII,xi,46) inclui entre os acessórios mágicos a
corda (spartum ) de uma cruz; e Lívio (História I,xxvi,6) fala de criminosos sendo
amarrados a uma árvore e surrados ali. Por outro lado, Fílon (De posteritate Caini
17; #61) alude a homens crucificados e pregados a uma árvore. Uucano (Guerra
Civil, v, p. 547) tem uma feiticeira que junta ferro que foi cravado nas mãos (manus).
Em Plauto (Mostellaria ii,l; #360), um escravo oferece recompensa se alguém
tomar seu lugar na cruz, desde que os pés sejam pregados duas vezes e os braços
(brachia) duas vezes. Mixná Shabbat 6,10 menciona os cravos de um crucificado.

102
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

Sêneca (De vita beata xix,3) fala figurativamente de pessoas que cravam os próprios
cravos na cruz.

Dessas descrições, surgem questões pertinentes a Jesus. Nenhum relato


evangélico da crucificação nos diz se Jesus foi amarrado ou pregado. Para isso,
dependemos de descrições de cenas depois da morte de Jesus. Em Lc 24,39, Jesus
ressuscitado diz: “ Vede minhas mãos e meus pés”, declaração que sugere eles terem
sido perfurados. Mais especificamente, Jo 20,25.27 indica as marcas de cravos nas
mãos de Jesus. EvPd 6,21, ao descrever a descida do cadáver da cruz, fala em tirar
“os cravos das mãos do Senhor”. Inácio (Esmirniotas i,2) diz que Jesus foi “verda­
deiramente pregado”. Com um claro interesse simbólico, Efrém (Comentário sobre
o Diatesserão 20,31 [armênio; SC 121,365]) fala das mãos de Jesus pregadas e de
seus pés amarrados. Até onde são históricas essas passagens a respeito desse ponto
e até onde refletem o Salmo da Paixão (SI 22,17: “ Traspassaram minhas mãos e
meus pés” )? À guisa de resposta a essa última pergunta, nenhuma das passagens
acima que se referem a cravos apenas nas mãos faz eco à redação ou às metáforas
do Salmo. Na verdade, alguns biblistas, perplexos com o fracasso para examinar
uma passagem bíblica, sugerem que os evangelistas não estavam usando a LXX
do Salmo; contudo, Mc 15,34 cita claramente a LX X de SI 22,2. Talvez Lc 24,39
(a única passagem neotestamentária a mencionar os pés) reflita mesmo SI 22,17;
e, no século II, essa passagem do Salmo era citada explicitamente.30

Que as mãos de Jesus foram pregadas é considerado historicamente plau­


sível, desde que se entenda que essa não é uma terminologia clinicamente exata.
Cravos de um lado ao outro das palmas das mãos não carregariam o peso do corpo,
mas as rasgariam. Nas referências clássicas acima, Plauto é mais exato ao falar
de “braços” e, em sua maioria, os biblistas presumem que os cravos atravessaram
os pulsos de Jesus. (O hebraico ja d abrange não só a mão, mas também o ante­
braço.) Mais problemática é a historicidade dos cravos nos pés. Em 1932, Hewitt
(“ Use”, p. 45) escreveu: “ Há espantosamente poucas evidências de que os pés de
um crucificado fossem traspassados por cravos”. Em sua maior parte, os cravos
de crucificação descobertos por escavações nas regiões fronteiriças do Império
Romano não fornecem indicações de qual membro traspassaram. Contudo, H.-W.
Kuhn (“ Gekreuzigte”, p. 303-304) menciona a descoberta, no porto de Atenas

30 Justino, Apologia I,xxxv,5-7; Dialogue xcvii.3-4; Tertuliano, Adversus Iudaeos xiii, 10-11 (CC 2,1386).

103
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota, É sepultado ali perto

(Falero), de dezessete esqueletos de piratas com cravos de ferro nas mãos e nos pés,
o que reflete uma execução no século VII a.C. Muito mais importante para nossos
propósitos foi a descoberta, em junho de 1968, de um túmulo em Giv’at ha-Mivtar,
bem ao norte do túmulo de Simão, o Justo, em Jerusalém. Abrigava seis ossários
que continham os ossos de quase vinte pessoas. Em um ossário, entre os ossos
de três pessoas (uma delas uma criança pequena), estavam os de um homem de
vinte e tantos anos de idade que fora crucificado. A criança e também o homem se
chamavam Yehohanan (YHEHNN), mas havia também a designação BN HGQW,
que confunde os biblistas. Yadin (“ Epigraphy” ) sugeriu ler hqwl,31 “o de pernas
arqueadas”, de modo que a criança era o filho de um homem crucificado com as
pernas separadas. H.-W Kuhn (“ Gekreuzigte”, p. 312) sugere um eco da palavra
grega agkylos [latim ancyla ], “arqueado, vergado”, que descreve os ossos. A data
de crucificação para o Yehohanan mais velho era algumas décadas antes de 70 d.C.
Uma descrição dos ossos e cravos foi publicada por V. Tzaferis, J. Naveh e N. Haas
em IE J 20,1970, p. 18-59; e muitas descrições de Yehohanan na cruz baseiam-se
na apresentação deles (ver o vol. Suplementar, 1976, do Interpreters Dictionary o f
the Bible, p. 200). H.-W. Kuhn (Gekreuzigte” ) e Zias & Skeles (“ Crucified” ) per­
ceberam graves erros na apresentação de 1970 (inclusive o tamanho dos cravos).
Os braços estavam amarrados (não pregados) na viga transversal;32 parece que as
pernas estavam escarranchadas na viga vertical, de modo que os pés estavam pre­
gados nos lados dela (não na frente); com toda a probabilidade, dois cravos foram
usados, cada um traspassando primeiro uma placa de madeira de oliveira, o osso
do calcanhar e então a superfície de madeira da cruz — a madeira de oliveira era
para impedir o crucificado de soltar os pés do cravo. Não parece que os ossos da
perna tivessem sido quebrados deliberadamente enquanto ele estava vivo na cruz,
como relatado originalmente.33 Pelo menos os dados desta crucificação, aproxima­
damente contemporânea da crucificação de Jesus, devem afastar o ceticismo quanto
à plausibilidade da sugestão de que os pés de Jesus foram pregados.

31 Naveh (“Ossuary”), que publicou a inscrição, não deu um sentido satisfatório a HGQWL. Na proposta de
Yadin, é incerto se um mal escrito ‘ aparece como G ou ‘ era pronunciado e, portanto, escrito como G.
32 Para explicar o fato de estarem os ossos do pulso incólumes, Haas (“Anthropological” , p. 57-58) tinha
originalmente teorizado que os membros superiores eram pregados. Ver uma lista do que muitos consi­
deram defeitos na publicação de Haas em Zias & Charlesworth, “Crucifixion” , p. 279-280.
33 Haas (“Anthropological” , p. 57) havia relatado que o osso tibial direito era quebrado por um único golpe
que podia ser atribuído ao “ coup de grâce” final. À luz da análise mais recente, a quebra do osso pode
ter ocorrido enquanto os ossos eram postos no ossário.

104
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

Hewitt (“ Use”, p. 30-39) examina como os cravos foram retratados na arte


cristã subsequente. Surpreendentemente, algumas pinturas muito antigas de Jesus
na cruz, uma caixa de marfim do século V, preservada no Museu Britânico, e o
portal de madeira de Santa Sabina em Roma (Leclercq, “ Croix” ) não mostram
nenhum cravo nos pés. Gradativamente os cravos começam a ser representados
como longos — alongamento que reflete o interesse teológico no sangue de Jesus.
Quatro cravos são mais comuns no período mais primitivo.34 Segundo consta, He­
lena, mãe de Constantino, encontrou apenas três;35 e esse número acabou por se
tornar padrão (Gregório Nazianzeno, Boaventura) — um cravo para cada uma das
mãos e um terceiro cravo traspassando os pés de Jesus (o pé direito colocado sobre
o esquerdo, exceto na arte espanhola).

Ser pregado na cruz foi doloroso para Jesus: “ Castigados com os membros
estendidos [...] eles são atados e pregados à estaca no tormento mais amargo,
comida nociva para aves de rapina e sinistros restos para cães” (tradução livre
de Pseudo-Manetão [século III d.C.], Apotelesmatica, v. 4, p. 198-200; Hengel,
Crucijixion, p. 9). Nenhum Evangelho canônico menciona o sofrimento de Jesus.
Entretanto, quando relata que eles “crucificaram o Senhor”, EvPd 4,10 comenta:
“ Mas ele estava calado, como se não sentisse dor”.36

É preciso comentar dois outros itens menores pertinentes a Jesus preso à


cruz. O corpo do crucificado recebia apoio físico de várias maneiras, não como ato
de misericórdia, mas para que o sofrimento durasse mais tempo. Se o condenado
pudesse se erguer para respirar, ele sobrevivería mais tempo do que se o corpo
sem apoio fosse um peso morto pendurado pelos braços pregados ou amarrados.
O relato de que Jesus morreu tão rapidamente torna improvável que deveriamos
pensar que seu corpo teve um dos apoios seguintes, mas eu os menciono porque
eles aparecem na arte e nos escritos cristãos. Um suppedaneum ou escabelo era às

34 Uma contagem apoiada por Cipriano, Ambrósio, Gregório de Tours e Oráculo Sibilino 8,319-320.
35 A respeito de aspectos dúbios desse achado, ver J. W. Drijvers, Helena Augusta: The Mothzr of Constantine
the Great and the Legend of Her Finding the True Cross [Helena Augusta: a mãe de Constantino e a lenda
da cruz verdadeira], Leiden, Brill, 1991.
36 E ssa pode bem ter sido uma das passagens que levaram à desconfiança ortodoxa desse Evangelho (ver
a p ê n d ic e I), pois podia ser entendida como dando apoio à tese de que Jesus não era verdadeiramente

humano, nem mesmo real na época da crucificação. Entretanto, é mais provável que o autor simplesmente
reflita o tema do silêncio de Jesus (já visto em diversos cenários dos Evangelhos canônicos) combinado
ao tema de bravura relacionado com a descrição de Jesus como mártir. Policarpo (Martírio xiii,3) reza
para que Deus lhe conceda permanecer impassível nas chamas.

105
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

vezes atado perto da parte inferior da viga vertical. Nos séculos VI e VII, artistas
e escritores cristãos começaram a presumir que Jesus tinha um.3' Na cruz russa,
esse escabelo se torna outra viga transversal mais curta que atravessa a haste
vertical em um ângulo perto do fundo. No meio da cruz, havia às vezes um sedile
(“assento” ) ou pegma (“alguma coisa fincada” ), isto é, um bloco de madeira para
apoiar as nádegas. Sêneca (Epístola ci,12) escreve a respeito de tomar assento na
cruz; outra expressão é “montar” na cruz, como se a pessoa estivesse cavalgando
(;inequitare). 0 assento pode ter sido útil quando o condenado, amarrado ou pregado
à viga transversal, estava sendo baixado em posição; de fato, tomava parte do peso
durante o breve tempo em que a viga transversal estava sendo encaixada no nicho
preparado para ela na viga vertical.*38

#4. A divisão das roupas (Mc 15 ,24 b; M t2 7,3 5 b ; Lc 23,34b; Jo 19,23-24)

Em Marcos/Mateus, a declaração de que Jesus foi crucificado é imediata­


mente seguida pela divisão de suas roupas; na verdade, em Mateus, a crucificação
está gramaticalmente subordinada à divisão, quase como se a última fosse mais
importante. Em Lucas e João, a declaração de que Jesus foi crucificado é seguida
pela referência à crucificação de dois criminosos; e a referência à divisão de roupas
vem um pouco mais adiante. Em João, ela é preparada por uma segunda referência
à crucificação (Jo 19,23a); em Lucas, aparece incidentalmente, e apenas confirma
que Jesus estava sendo tratado como criminoso.

Os quatro Evangelhos indicam que “suas roupas” foram divididas. Como já


mencionamos, os condenados costumavam ser levados nus ao lugar de execução; e
assim, ou em atenção a Jesus, ou a Jerusalém, ou aos judeus, é feita uma exceção.
Além disso, as roupas são as suas, não as vestes de escárnio com que o haviam
vestido. E ssa troca foi especificada em Mc 15,20a; Mt 27,31a, mas não é nunca

3' E. Grube, Zeitschrift für Kuntsgeschichte 20, 1957, p. 268-287. Uma das mais antigas descrições da
crucificação, o grafito do asno crucificado no Palatino (séculos II — III; ver acima, neste mesmo item,
sob “A crucificação em geral”), tem um suppedaneum — indicação de que o uso era considerado normal.
Contudo, espécimes da arte cristã do século V (a caixa de marfim no Museu Britânico, o painel da porta
de Santa Sabina em Roma) não têm esse apoio para os pés.
38 Justino (Diálogo xci,2) descreve-o projetando-se da cruz de Jesus como o chifre de um rinoceronte,
mas ele está interessado no cumprimento de uma passagem veterotestamentária que trata de chifres (Dt
33,17). Como mencionei acima, sob “ Em que tipo de cruz crucificaram Jesus?” , ele constituía a quinta
extremidade da cruz para Irineu, enquanto Tertuliano (Ad nationes I,xxiv,4; CC 1,31) considerava-o um
assento que se sobressaía.

106
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

especificada em João ou Lucas. (Embora em Lucas os soldados romanos não vistam


Jesus com roupas de escárnio, a última vez que ouvimos falar no assunto [Lc 23,11]
Jesus estava com a veste esplêndida com a qual Herodes o vestira.)

Antes de discutir a divisão descrita nos Evangelhos, perguntemos se a divisão


significava que Jesus pendeu nu da cruz. Os evangelistas não são específicos e talvez
não soubessem; tudo o que podemos examinar são probabilidades. Com certeza
João, que dá a maior atenção à cena, é tão específico a respeito de cada peça de
roupa que se tem a impressão de que nada foi deixado de lado. O padrão romano
normal era crucificar os criminosos nus, como atestado por Artemidoro Daldiano
('Oneirokritika ii,53). Mas fizeram os romanos uma concessão especial ao horror
judaico de nudez (Jubileus 3,30-31; 7,20) e permitiram que uma tanga fosse usada
(.subligaculum )? Que os evangelistas creem terem os romanos permitido a Jesus
usar suas roupas até o Gólgota apoia isso. Mixná Sanhedrin 6,3 relata opiniões
rabínicas divergentes quanto a dever um homem ser apedrejado nu ou com uma
capa na frente. Midraxe Sipre 320, a respeito de Dt 32,21, julga ser uma das coisas
mais vergonhosas do mundo estar (ser castigado) nu no mercado. Entre as descri­
ções primitivas de Jesus crucificado (#3 acima), em diversas das pedras preciosas
esculpidas Jesus está nu. No fim do século II, Melitão de Sardes, (Sobre a Páscoa
97; SC 123,118) escreve a respeito de “seu corpo nu, nem ao menos considerado
digno de um traje para não ser visto. Portanto, as luzes celestes afastaram-se e o dia
escureceu, a fim de que fosse escondido o que estava desnudo sobre a cruz”. Padres
da Igreja como João Crisóstomo e Efrém, o Sírio, toleram essa opinião. Contudo,
em Atos de Pilatos 10,1, Jesus está vestido com uma tanga depois da divisão das
roupas; e tanto a caixa de marfim do século V no Museu Britânico como a porta de
cipreste de Santa Sabina retratam Jesus com uma tanga. Penso não haver um jeito
de resolver a questão, mesmo que os indícios favoreçam um despojamento completo.

A divisão e o Salmo 22. O que os evangelistas realmente descrevem em


termos de dividir e tirar a sorte tem semelhança notável nos quatro Evangelhos.39
Pode-se perguntar quanto essa linguagem reflete SI 22,19:
1 2 _ _ 3
Repartiram minhas roupas [pl. himation] entre eles,

,!9 As frases finais de Marcos são exclusivas desse Evangelho (“ para elas quanto a quem devia pegar o
quê” ), usando o verbo airein que foi empregado três versículos antes para o ato de Simão “tomar” a viga
transversal.

107
Q uarto ato - Jesus é crucificado e m orre no G ólg ota .f sepultado ali perto

4 5 6 7
e para meu traje [himatismos] tiraram a sorte.

A LX X do versículo do Salmo é citada exatamente (como citação de cum­


primento) apenas em Jo 19,24; mas os sete itens enumerados acima têm forte
semelhança com a descrição que os Evangelhos fazem da divisão:40

Mc 15,24b: n. 1, 2, 4, 6, 7
Mt 27,35b: n. 1, 2, 6, 7
Lc 23,34b: n. 1, 2, 6, 7
Jo 19,23b-24a: n. 2

Ao comparar essas estatísticas, a situação que surge é curiosa. Sem citar


o versículo do Salmo, os sinóticos usam metade do vocabulário do Salmo para
descrever a divisão, com Lucas um pouco mais distante do Salmo que Marcos/
Mateus. Como reforço, João cita o Salmo com exatidão, mas sua descrição do que
os soldados fizeram tem pouca coisa do vocabulário do Salmo.

Presumivelmente, no nível pré-evangélico (Oswald, “ Beziehungen”, p. 56),


os cristãos incluíam na NP o costumeiro desnudamento do prisioneiro, mas o faziam
na linguagem de um Salmo a respeito da sina do justo sofredor, o que ajudava a
exemplificar a preparação detalhada por Deus para a sina do Filho. Marcos seguiu o
padrão pré-evangélico; e Mateus e Lucas copiaram de Marcos, suprimindo o tempo
presente histórico (“repartem” ) e o final desajeitado “quanto a quem devia pegar
o quê”. João estava familiarizado com uma tradição semelhante e reconheceu-a
por uma citação de cumprimento, citando SI 22,19 com exatidão. Contudo, João
fez deste um episódio importante no relato da crucificação, ao narrar uma cena
que cumpre o Salmo em todos os detalhes sem usar o vocabulário do Salmo. No
Salmo em si, não se pretende nenhuma diferença de ação entre os dois versos; de
fato, “ repartiram” e “tiraram a sorte” são a mesma ação, sendo a segunda frase
simplesmente o meio de realizar a primeira. Do mesmo modo, somente um conjunto
de vestuário é citado sob os nomes de “roupas” e “ traje”. Entretanto, João ignora o
paralelismo (do mesmo modo que Mateus em relação ao fel e ao vinagre) e descreve

4(1 Houve acirrado debate entre os Padres da Igreja quanto ao fato de o salmista ter Jesus em mente quando
escreveu isso. Tertuliano o afirmou (Adv. Marcion IV,xlii; 4; CC 1,659), como também o Segundo Concilio
de Constantinopla (4* sessão; 12/13 de maio de 553) contra Teodoro de Mopsuéstia.

108
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

duas ações diferentes a respeito de duas peças diferentes de vestuário: as roupas


são divididas em quatro partes, enquanto o traje indivisível (= túnica) é sorteado.41

Parte da criação joanina que ultrapassa o Salmo representa simbolismo


teológico, como já se vê no arranjo esquemático de episódios (§ 38 C, Quadro 7).
Este é o Episódio 2 do relato joanino da crucificação. No Episódio 1, Pilatos dá tes­
temunho da soberania de Jesus por uma proclamação trilíngue. Agora, os soldados,
cuja tarefa de executar criminosos alinha-os com as forças hostis a Jesus, mesmo
assim cumprem as Escrituras. (Observemos que a divisão de trajes está enquadrada
dos dois lados por uma referência aos soldados.) O episódio seguinte diz respeito a
seguidores de Jesus.42 Onde João transcende o Salmo (e onde pode haver tradição
não sinótica pré-joanina) é em ter as roupas arranjadas em quatro partes, uma para
cada soldado (Jo 19,23b). Parece que pelotões de quatro soldados (grego: tetradion;
latim: quaternion) eram comuns.43 Um dos quatro pode bem ter sido um oficial e
mais adiante os sinóticos mencionam um centurião (Mc 15,39 e par.). Aqui, então,
temos verossimilhança joanina sem nenhuma orientação teológica clara.44

Que probabilidade existe de terem as vestes45 ido para os soldados que eram
guardiões do condenado? Em DJ XLVIII,xx,l, o princípio geral é que os bens dos
condenados são confiscados, mas DJ XLVIII,xx,6 relata uma distinção feita por
Adriano. As vestes que a pessoa condenada está vestindo não podem ser exigidas
pelos torturadores. Tácito (História iv,3) descreve um escravo crucificado enquanto
ainda usava anéis. Estava essa atitude mais branda do século II corrigindo a prática
mais gananciosa do século I? Quanto ao método empregado para dividir as roupas de

41 O aramaico de um targum mais tardio deste Salmo é às vezes invocado como base para a exegese joanina,
pois fala de lebusa, “ roupas” , em um verso, e petaga, “capa” , no seguinte; mas não há prova de que essa
interpretação existisse no século I.
12 Na nota 2 acima, mencionei que, como Marcos, João tem três reatores (Pilatos, soldados, seguidores)
que interagem com Jesus crucificado, embora a identidade dos reatores joaninos seja diferente da dos
de Marcos.
43 Em At 12,4, o rei Herodes Agripa I entrega Pedro à prisão sob custódia de quatro esquadrões.
44 Acho forçada a tentativa de relacionar as quatro partes das roupas às quatro mulheres (pela contagem
mais plausível) em Jo 19,25 (ver de la Potterie, “Tunique non divisée” , p. 135).
45 Se o próprio evangelista especulou ou não quanto ao que eram os quatro itens, os biblistas compensam
a falta joanina de especificidade. A. Edersheim (The Life and Times of Jesus the Messiah, 2. v., New
York, Longmans, Green, 1897, v. 1, p. 625) sugere: adorno de cabeça, sandálias/sapatos, faixa longa
e um talith grosseiro ou manto exterior. Kennedy (“Soldiers” ) afirma que Jesus foi levado descalço ao
Gólgota; e com base em Jo 13,4, que descreve Jesus vestindo alguma coisa debaixo do chiton. substitui
as sandálias por uma camisa ou túnica interior (o halúq mencionado na Mixná).

109
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Jesus, os três sinóticos usam ballein kleron (“lançar a sorte” ), expressão que aparece
em SI 22,19,46 onde, como em Marcos, é acompanhada da preposição epi (“sobre”
= “para” ). Com referência à túnica, não às roupas, Jo 19,24 emprega lagchanein
(“obter por acaso” = “jogar” ),47 acompanhado pela preposiçãoperi (“sobre” ). Quanto
ao que é imaginado, muitos biblistas acham que alguma coisa como dados teria
sido jogada. Entretanto, De Waal (“ Mora” ) duvida que os soldados teriam de modo
tão conveniente trazido uma pyrgos (“caixa de dados” ) para o lugar da crucificação.
Ele sugere um jogo de mora jogado por meio da adivinhação do número de dedos
estendidos sobre as mãos ocultas do adversário. Aparentemente foi assim que a
paráfrase de João por Nonos de Panópolis (c. 440) entendeu lagchanein : “estender
os dedos da mão para ela [a túnica]”.

A túnica que não foi rasgada. Jo 19,23-24 dá grande importância a um


chiton, que evidentemente ele identifica com o himatismos (“traje” ) de SI 22,19 e
mantém separado das outras quatro partes das “roupas” de Jesus. Chiton, quase
sempre traduzido por “túnica”, normalmente era uma veste longa usada sobre
a pele.48 A descrição que João dá de chiton arraphos, “sem costura, de cima [a
baixo] tecida de uma ponta à outra”,49 significa que esta era uma veste altamente
incomum ou apenas uma veste normal de qualidade especial? H. Th. Braun50
analisa a técnica de tecer: uma veste inconsútil não era necessariamente uma
peça de luxo, pois podia ser tecida por um artesão sem habilidade especial. C.
400, Isidoro de Pelúsio (Epístola 1,74; PG 78,233B) afirmou que esse estilo de
veste era característico dos pobres galileus — foi uma suposição ou ele de algum
modo preservou a tradição antiga? Segundo Aubineau (“ Tunique”, p. 105), muitos

40 Entretanto, no caso de Lc 23,34, o Códice Alexandrino e a família Lake de minúsculas têm uma leitura
divergente que emprega o plural klerous e que talvez seja original.
47 O relacionado ballein lachmon aparece em EvPd 4,10 (com epi) e Justino, Diálogo xcvii,3 (embora, em
Apologia I,xxxv,8, Justino use ballein kleron). Lachmos é palavra rara, encontrada principalmente em
reflexões a respeito desta passagem.
18 J. Repond, “Le costume du Christ” , em Bíblica 3,1922, p. 3-14 em relação a Jo 19,23.
45 Procuro seguir a ordem joanína de palavras. Não está claro o que a frase “de cima” modifica. Muitos a
entendem com o antecessor “ sem costura”, mas Nestle (“Coat”) a entende com “ tecida” que vem a seguir
(como fazem o Códice Latino c e testemunhos siríacos). Ele acredita que João descreve uma capa sem
costura no topo ou na parte superior. Em passagem a ser examinada mais adiante, Josefo (Ant. III,vii,4;
#161) descreve uma túnica sacerdotal que “ não consiste em duas partes [de pano] costuradas juntas nos
ombros e nos lados” .
M Fleur bleue, Revue des industries du lin, 1951, p. 21-28, 45-53.
§ 40.Jesus crucificado, prim eira parte:0 cenário

dos Padres da Igreja, julgando pelas roupas de seu próprio tempo, consideravam
a túnica joanina sem costura uma veste muito incomum, que revelava a majestade
de Jesus ou sua pobreza.

Têm sido feitas sugestões de que a veste tinha caráter sagrado e os soldados
supersticiosos temiam destruir isso ao rasgá-la. Alguns biblistas descobrem um
eco simbólico da história de José.51 Nestle (“ Ungenahte” ) lembra a capa especial
que José tinha (Gn 37,3), e que a LX X entendeu ser um chiton de muitas cores. E
provável que ali o hebraico descrevesse uma túnica longa, e ao que tudo indica, os
tradutores siríacos entenderam que ela era de mangas compridas.52 Vimos acima
(§ 29 B) a tese de que, na NP, José serviu como tipo ou imagem de Jesus. Gottlieb
Klein (“ Erláuterung” ) indica TalBab Taanit 11b, que em sua interpretação significa
que Moisés usava uma capa inconsútil (sem remate).

De modo geral, duas interpretações simbólicas deixaram as outras para


trás53* no número de adeptos que conquistaram: alusão à veste do sumo sacerdote
e símbolo de unidade. Cada uma delas precisa ser analisada em detalhe.

a) A veste do sumo sacerdote. A começar de Grotius, em 1641, biblistas


apelaram para interpretar João de acordo com a descrição por Josefo da túnica de
comprimento até o tornozelo (chiton) do sumo sacerdote (Ant. III,vii,4; #161): “ não
composta de duas partes”, costurada nos ombros e do lado, um pano longo tecido
(hyphasmenos). Embora o padrão da veste não esteja longe do de João, o vocabu­
lário descritivo é muito diferente. Só chiton é o mesmo e, para o sumo sacerdote,
essa pode ser uma veste externa, não uma interna, como se presume que fosse para
Jesus. Estariam João e Josefo nos dando traduções gregas independentes de uma

51 Outros procuram antecedentes pagãos. Saintyves (“ Deux” , p. 235-236) lembra que o traje dos deuses da
vegetação revelava sua natureza cósmica e que os mantos nas estátuas dos deuses tinham significância
(por exemplo, Macróbio, Saturnália I,xviii,22 fala de vestes colocadas na estátua de Dioniso ou Liber
para imitar o sol). A obra gnóstica Pistis Sophia I,ix,l 1 dá grande atenção à vestimenta de luz com a qual
Jesus estava vestido. É difícil saber como os leitores de João, presumivelmente de formação variada,
interpretaram a atenção de João às roupas de Jesus; mas os antecedentes detalhados do Salmo tomam
difícil acreditar que o autor de repente mudasse para um pano de fundo totalmente diferente para a
túnica.
52 Essa parece ser a importância de Midraxe Rabba 84,8 a respeito de Gn 37,3 (“alcançava até os punhos”).
Entretanto, Murmelstein (“ Gestalt” , p. 55) cita o siríaco e o midraxe como prova de que José usava uma
capa sem costura. G. Klein (“ Erláuterung” ) nega que a prova disso seja primitiva.
53 Além dessas duas, é possível mencionar a túnica sem costura como símbolo do próprio Cristo como
alguém com quem todos (inclusive celestes e terrenos) estavam em harmonia (Rutherford, “Seamless”).
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

tradição a respeito da “túnica tecida de linho fino” do sumo sacerdote (Ex 39,27;
Ex LXX 36,35)? Um fator que contribuiu para o interesse nela pode ter sido o
cuidado romano para ter controle das vestes do sumo sacerdote, liberando-as apenas
para festas (Josefo, Ant. XV,xi,4; ##403-408; X X ,i,l; # 6).54 Os que invocam esses
antecedentes sugerem que, depois de Jesus ser proclamado rei pelo título na cruz,
João agora simboliza-o como sacerdote.55 Alguns autores patrísticos comparam Jesus
ao sumo sacerdote em Lv 21,10, que não rasgou suas vestes.56 Entretanto, em geral,
de la Potterie (“ Tunique sans couture”, p. 256-257) está correto ao afirmar que a
interpretação de Jo 19,23 na qual a túnica é a vestimenta sumo sacerdotal é ideia
relativamente moderna.57 (Alguns que a apoiam também defendem a interpretação
a seguir, pois elas não são incompatíveis.)

b) Símbolo de unidade. O fato de não ser rasgada (schizein) a túnica sem


costura, elemento que não está no Salmo, é considerado símbolo de unidade entre
os seguidores de Jesus. De la Potterie (“ Tunique non divisée”, p. 131) aponta para
lR s 11,30-31, onde o profeta Aías rasgou seu novo himation em doze pedaços para
simbolizar a divisão do reino unido de Davi e Salomão. João mostra mais interes­
se na unidade que no sacerdócio (Jo 10,16: “ Um só rebanho, um só pastor” ; Jo
11,52: “ Reunir até os filhos dispersos de Deus e fazê-los um” ; Jo 17,21-22: “ Que
eles todos possam ser um” ). Um símbolo paralelo é a rede carregada de grandes
peixes que não se rasgou em Jo 21,11, o único outro emprego joanino de schizein.
0 substantivo relacionado schisma aparece em Jo 7,43; 9,16; 10,19 para divisões
que Jesus produz entre as pessoas. A ideia, então, é que soldados romanos, tão
proeminentes no início e no fim deste episódio, não romperam o que pertencia a
Jesus. De la Potterie (“ Tunique non divisée”, p. 136-137), forte proponente dessa
interpretação,58 acha que João tinha em mente a unidade do povo messiânico de
Deus. Na Igreja Ocidental, a interpretação de unidade é logo atestada com Cipriano

34 Também digna de nota é a interpretação alegórica do sumo sacerdote, que tinha uma veste especial;
harmoniza-se com a identificação que Fílon faz do sumo sacerdote como símbolo do Logos geral (De
ebrietate 21; #85-86; De fuga 20; ##108-112; ver Bacon, “Exegetical” , p. 423; Conybeare, “New”).
5,1 Para possíveis referências a Jesus como sacerdote em João, ver BGJ, v. 2, p. 765-767, 907-908, 993.
Também é invocado Ap 1,13, onde alguém semelhante a um filho de homem usa vestes possivelmente
simbólicas de sacerdote e rei. Em Hb 8-10, Jesus vai para a morte de uma forma comparável à oferenda
de sacrifício pelo sumo sacerdote no Dia da Expiação.
56 Isidoro de Sevilha, Quaestiones in Vet. Test. Lev 12,4; PI 83,330; também Severo de Antioquia.
” Os proponentes incluem Barrett, W. Bauer, Calmes, Durand, Haenchen, Hoskyns, Lightfoot e Loisy.
58 Outros proponentes incluem Bemard, Bultmann, Dauer, Lagrange e van den Bussche.

112
§ 40, Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

(De Ecclesiae Cath. Unitate 7; CC 3,254), que vê na túnica inconsútil, tecida desde
cima, um símbolo da Igreja indivisa sendo unificada do céu lá em cima. Um pouco
mais tarde, no Oriente, Alexandre de Alexandria critica os arianos por terem ras­
gado a túnica inconsútil de Jesus.59

Uma decisão a respeito de exatamente que tipo de simbolismo João tinha


em mente talvez não seja possível (isso é verdade de outros simbolismos joaninos),
embora haja mais indícios para a interpretação de unidade que para o simbolismo
sacerdotal. Em qualquer dessas interpretações, ainda se é forçado a lidar com a
importância simbólica de ter essa túnica indivisa tirada de Jesus. O que é certo é que
João ultrapassou os sinóticos neste e também nos outros episódios da crucificação.

# 5. A terceira hora (Mc 15 ,25 ); os soldados montando guarda (M t 27,36)

Aqui examinamos duas sentenças sucintas de importância diferente, encon­


tradas (apenas) em Marcos e Mateus, sequenciais à divisão das roupas. Mc 15,25:
“Agora era a terceira hora e eles o crucificaram” ; e Mt 27,36: “ E tendo sentado,
eles estavam guardando-o (montando guarda: terein) ali”. Surgem dois problemas:
a terceira hora marcana; a segunda referência marcana à crucificação e os soldados
mateanos montando guarda.

A terceira hora. Marcos tem uma longa e cuidadosa sequência de indi­


cações de tempo que dividem o dia e começam com a Ultima Ceia (ver § 28). Em
especial, esta é a primeira de três indicações de tempo no decorrer da crucificação,
continuada por “a sexta hora”, quando a escuridão cobriu a terra inteira em Mc
15,33, e “a nona hora”, quando Jesus gritou em Mc 15,34. (De cada lado dessas
três, estão proi [“cedo” = 6 horas da manhã] para levar Jesus a Pilatos em Mc 15,1
e opsia [“ tarde” = 6 horas da tarde?] para obter o corpo de Jesus em Mc 15,42.)
Mateus e Uucas, que preservam outros padrões marcanos de três e outras indica­
ções marcanas de tempo, omitem essa referência à terceira hora; assim, parece que
rejeitam a imagem marcana na qual Jesus foi crucificado às 9 horas da manhã ou
um pouco depois. Já Jo 19,14 descreve Jesus como ainda estando diante de Pilatos
na “sexta hora”, isto é, ao meio-dia.60

s9 Teodoreto, Hist. Ecl. I,iv,3-5; GCS xix,9. Em interpretações concentradas em unidade, às vezes a ênfase
é cristológica, por exemplo, a unidade de naturezas em uma única pessoa (Aubineau, “Tunique”, p. 126).
60 Essa discordância é importante à luz da concordância joanina de tempo com Marcos em relação às negações

113
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Com referência a essa passagem joanina (§ 35), mencionei e rejeitei uma


série de tentativas para harmonizar Marcos e João (também J. V. Miller, “Time” ).
Esses e outros biblistas incluem as seguintes tentativas (com cada uma das quais
eu relaciono uma objeção ou dificuldade básica):

• argumentar que a sexta hora joanina deve ser contada a partir da meia-
-noite, não da madrugada, e assim igualar 6 horas da manhã — horário
já analisado e rejeitado;61

• descartar a sexta hora joanina como declaração teológica (ela o é, mas


a sexta hora é também a primeira indicação de tempo pertinente à cru­
cificação em Mateus e Lucas);

• tornar a terceira hora marcana equivalente à sexta hora: a) interpretar


hote (“quando” ) como kai (“e” ), com alguns testemunhos textuais
de Mc 15,25, combinados com um entendimento incoativo do aoristo
(“começaram a crucificar” ), de modo que Marcos quer dizer que uma
série de ações relacionadas com a crucificação começaram às 9 horas
da manhã; b) argumentar que a terceira hora marcana abrange de 9
horas da manhã ao meio-dia (tese refutada pelo padrão marcano de
terceira, sexta e nona horas, que requer uma distinção entre a terceira
e a sexta; além disso, Marcos explica uma duração quando deseja uma,
por exemplo, da sexta à nona hora em Mc 15,33);62

• argumentar que a terceira hora marcana descreve o momento em que


Pilatos decidiu crucificar Jesus, enquanto a sexta hora joanina descreve
o momento da execução dessa decisão63 (na verdade, a presença e a

de Pedro (hora em que os galos cantam), a condução de Jesus a Pilatos (“ cedo” ) e o sepultamento de
Jesus (mais tarde no dia de preparação, imediatamente antes do sábado).
61 § 35, nota 45. J. P. Louw (Scriptura 29, 1989, p. 13-18) argumenta com firmeza que não se pode har­
monizar pela alegação de que Mc 15,25 representa o modo romano de calcular as horas, enquanto Jo
19,14 representa o modo grego. “Todos os dados de textos gregos e latinos antigos comprovam um único
sistema unificado de contar as horas do dia do nascente ao poente” (NTA 34, 1990, #88).
62 Uma proposta desesperada por Cowling, "MarkV", reconhece isto: enquanto a terceira hora marcana
era um período de três horas (das 9 ao meio-dia), a sexta e a nona horas mencionadas por Marcos eram
horas reais (meio-dia e 3 da tarde). Blinzler (Trial, p. 266) questiona se alguma dessas horas pode ser o
equivalente de um período de vigília de três horas.
63 Ver Teofilacto, Enarratio in Ev. Joannis (a respeito de Jo 19,14; P 124,269A) e Eutímio Zigabeno, Com-
mentarium in Marcurn (a respeito de Mc 15,25; PG 129,845A).

114
§ 40,Jesus crucificado,primeira parte:0 cenário

ação de Pilatos foram concluídas por Marcos dez versículos antes de ele
mencionar a terceira hora);

• argumentar que a “terceira” hora marcana é um erro de interpretação


pela “sexta”64 (ter-se-ia então duas referências marcanas à sexta hora);

• argumentar que, em muitas passagens, “hora” é escatológica, isto é,


a hora da luta final de Jesus, como em Mc 14,35.41 (entretanto, mais
uma vez a sequência de terceira, sexta e nona horas assinala indicações
específicas de tempo dentro dessa luta).

Minha conclusão geral é que as 9 horas da manhã marcanas e o meio-dia


joanino não se harmonizam em nenhuma das maneiras citadas. As duas indicações
podem ser teológicas; uma pode ser cronológica e a outra teológica ou litúrgica;
mas ambas não podem ser cronologicamente exatas.

A única indicação de tempo que aparece nos quatro relatos da crucificação


é “a sexta hora” (meio-dia). Talvez estivesse na tradição pré-evangélica, mas fosse
usada de modo diferente: nos sinóticos, para a escuridão cobrindo toda a terra; em
João, para a condenação de Jesus a ser crucificado. Passando para a história, deve­
mos reconhecer que as 9 horas da manhã marcanas para a crucificação têm muito
menos probabilidade que Jesus pendurado na cruz no início da tarde. 0 próprio
Marcos dá uma indicação de que Jesus não foi crucificado tão cedo; de fato, com
o entardecer se aproximando (entre 4 e 6 horas da tarde?), Pilatos se admira de
Jesus ter morrido tão depressa (Mc 15,44).

Se “a terceira hora” não fazia parte da tradição primitiva, Marcos (ou a


tradição pré-marcana imediata) acrescentou-a para seguir o padrão da terceira,
sexta e nona horas. Foi isso feito com propósitos estruturais ou havia um motivo
teológico? Gnilka (Markus, v. 2, p. 317) percebe aqui o determinismo cronológico
do pensamento apocalíptico no qual há períodos estabelecidos por Deus (estações
e tempos, anos, meses e semanas), embora não haja nenhum paralelo estreito com a
contagem marcana das horas diurnas. Sem seguir completamente essa tese, é pos­
sível reconhecer que a exata estrutura de tempo marcana nesse dia fatídico mostra
o esmero com que Deus cuidou dos acontecimentos que cercaram a morte do Filho.

64 E o contrário da tese de que a “ sexta” hora joanina era erro de um copista por “ terceira” . Mencionei as
duas propostas em § 35, nota 46.

115
Q uarto « o •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Uma segunda possibilidade é a estrutura de tempo ser influenciada pelos


padrões litúrgicos da Igreja marcana. A mais famosa de diversas tentativas para
explicar Marcos inteiro como um arranjo litúrgico é The Primitive Christian Calen-
dar, de P. Carrington, Cambridge Univ., 1952; o autor afirmou que Marcos consistia
em leituras organizadas de acordo com um calendário religioso. Menos forçada é
a tese de que, na origem da Igreja de Marcos, havia horas fixas de oração,65 talvez
principalmente para a comemoração anual da morte do Senhor. As horas cristãs
de oração são mencionadas em At 3,1 (nona hora); At 10,9 (sexta hora) e At 10,30
(nona hora). 0 local do Gólgota talvez seja lembrado por causa da tendência judaica
de homenagear (talvez com festas anuais) lugares associados à morte dos mártires.
A sugestão litúrgica é atraente, mas não passa de especulação.66

A segunda referência marcana à crucificação. Em Mc 15,24, encon­


tramos: “E eles o crucificam” ; em Mc 15,25: “Agora era a terceira hora e eles o
crucificaram” ; em Mc 15,27: “E com ele eles crucificam dois bandidos”. Mateus
tem a primeira e a terceira referências à crucificação, mas não a segunda. Por que
a repetição marcana? Não são necessárias teses de que Marcos combina uma tra­
dição estranha incorporando a segunda referência ou de que a segunda referência,
a única a usar um aoristo, deve ser traduzida “começaram a crucificar”. Com toda
a probabilidade, temos outro caso de estilo narrativo marcano que flui livremente.
Haverá duas referências a Jesus gritando em Mc 15,34.37. (Observemos também
a dupla referência à crucificação em Jo 19,18.23.)

Contudo, resta um problema. Mateus e Lucas não copiaram de Marcos


nenhum elemento de Mc 15,25: nem “a terceira hora”, nem a segunda referência
à crucificação. Há quem queira explicar o silêncio em Mateus e Lucas pela crítica
textual. Blinzler (Trial, p. 268-269) propõe que a forma de Marcos lida por Mateus
e Lucas (independentemente) não tinha Mc 15,25, que foi adição de um editor mais
tardio. Pode-se então atribuir a esse editor e a esse período mais tardio o interesse
litúrgico analisado acima. Ou se pode explicar a adição como resultado de uma
interpretação editorial errônea. Por exemplo, encontra-se nos escritos cristãos o

65 Talvez Karavidopoulos (“ Heure” ) e outros estejam corretos ao sugerir que essa era a prática da Igreja
de Roma, mas pode ter sido uma prática judeu-cristã mais geral. Daniel (Dn 6,11) tinha o costume de
rezar três vezes ao dia; e TalBab Berakot 26b atribui essa oração em horas fixas aos patriarcas.
66 Embora Gnilka (“ Verhandlungen” , p. 9) reconheça que houve influência litúrgica em Marcos, ele acha
que as referências marcanas de tempo foram acrescentadas com propósitos de historicidade.

116
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

tema de que Jesus passou seis horas na cruz, presumivelmente contadas a partir
da sexta hora até o entardecer, quando José de Arimateia chegou. O hipotético
editor marcano contou erroneamente as seis horas para trás, da hora da morte de
Jesus por volta da nona hora (3 da tarde), e assim surgiu com a crucificação na
terceira hora? Por mais atraentemente simples que seja a proposta de interpolação,
a pressuposição de uma forma diferente de Marcos disponível para Mateus e Lucas
é uma solução um tanto desesperada.67

Explica-se melhor a ausência dos dois elementos de Mc 15,25 em Mateus e


Lucas como omissão deliberada. Se a ausência do versículo marcano fosse manifes­
tada somente por Lucas, seria um problema secundário, pois Lucas já havia elimi­
nado a primeira oferta de vinho. Mas Mateus conservou todos os outros incidentes
preliminares marcanos. Por que ele de repente elimina os dois elementos de Mc
15,25? E possível explicar de maneira plausível a omissão da segunda referência à
crucificação porque Mateus e Lucas muitas vezes prescindem da repetição marca-
na, por exemplo, a repetição da oração em Mc 14,35-36, onde independentemente
eliminaram a primeira descrição marcana. Mas é necessária outra explicação para
a omissão de “a terceira hora” (quando as referências marcanas à sexta e à nona
hora são preservadas). Mateus e Lucas decidiram independentemente que o fato de
Marcos colocar a crucificação tão cedo era contra uma tradição bem estabelecida
que associava a sexta hora à crucificação de Jesus? Talvez achassem a introdução
marcana de uma completa estrutura de tempo inovação radical demais; ou, se a
estrutura marcana teve origem litúrgica, talvez eles não a tenham repetido porque
não tinham esse padrão de oração litúrgica em suas igrejas.

Os soldados montando guarda (Mt 27,36). Precisamente onde Mc 15,25


devia vir (depois da divisão das roupas, antes da inscrição), Mateus registra um
versículo diferente, não encontrado em Marcos: “E tendo sentado, eles estavam

67 Do mesmo modo, não confio na tese de J. P. Brown (JBL 78, 1959, p. 223), de que originalmente em
Marcos, no lugar onde agora está Mc 15,25, havia uma redação diferente pertinente a vigiar Jesus na
cruz e esse verbo deu solidez a Mt 27,36 (talvez por meio de reescrita mateana). Para estabelecer a
existência desse versículo marcano, além de Mt 27,36 com seu terein, é possível indicar Lc 23,35,
que na mesma posição sequencial de Mc 15,25 e Mt 27,36 diz: “ E o povo estava de pé ali observando
[theorein]”. Também é possível defender a originalidade de uma leitura alternativa de Mc 15,25 (apoiada
pelo Códice de Beza e a OL) que substitui por “ e eles o crucificaram” a interpretação “e eles o estavam
guardando \phylassein]” . Mas o vocabulário desses três testemunhos do hipotético versículo marcano
é muito variado e a interpretação de Marcos pelo Códice de Beza talvez resulte de uma tentativa de
harmonizar com Mateus.
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

guardando-o [montando guarda: terein] ali [ekei]”. Há verossimilhança aqui, pois


Petrônio (Satyricon 111) descreve um soldado designado para vigiar ladrões crucifi­
cados (ver Mt 27,38), para seus corpos não serem descidos (também Fedro, Fábulas
de Esopo, Apêndice de Perotti 15,9). O que é descrito por Mateus encaixa-se no
plano de sua NP: esses soldados são relembrados quando Jesus morre (Mt 27,54) a
fim de se juntarem ao centurião para dar testemunho do Filho de Deus. Em outros
detalhes, este versículo harmoniza-se com estilos e temas mateanos. Quanto à po­
sição dos soldados de sentar e guardar, só Mateus explica a presença de Pedro no
pátio do sumo sacerdote assim: “sentou-se com os guardas para ver [idein] o fim”
(Mt 26,58; ver 26,69). Só Mateus usa o verbo terein na NP (aqui; Mt 27,54; em
Mt 28,4, para a custódia do túmulo). Assim, com SPNM, p. 279-280, explica-se
este versículo como criação mateana. Esses soldados elevam o valor do testemunho
romano sobre Jesus, pois o reconhecimento de sua filiação divina baseia-se não só
no que aconteceu em sua morte, mas no que aconteceu durante toda a crucificação,
que os designados para montar guarda bem conheciam.

#6. A inscrição e a acusação (Mc 15,26; M t 2 7 ,3 7 ; Lc 23,38; Jo 19,19-22)

Os quatro Evangelhos concordam que o crime do qual Jesus foi acusado


existiu em uma forma escrita no local da crucificação. Marcos e Lucas chamam-na
epigraphe (“ inscrição” ) e Marcos acrescenta epigegrammene (“ inscrita” ) em típica
construção perifrástica. Mateus e João usam o particípio passivo gegrammenos
(“escrita” — também concordam ao incluir “Jesus” na redação); João usa titlos
(“letreiro” ), tradução grega do termo latino titulus (talvez por intermédio do latim
vulgar titlus). A terminologia joanina mais exata está em harmonia com sua tendên­
cia a fazer deste um episódio formal. Parece que, para João, titlos inclui a tábua e a
mensagem escrita nela, mas o termo podia referir-se apenas à mensagem.68 Há outro
sentido de titlos, como “ título” régio, que talvez não esteja de todo ausente de João.

Três Evangelhos mencionam a existência da inscrição/título no material


introdutório pertinente à crucificação. Lucas menciona-a somente mais adiante,
como base do escárnio de Jesus pelos soldados (por analogia com o fato de Marcos
fazer a substância da inscrição o objeto do escárnio judaico em Mc 15,32). O que
os evangelistas descrevem aqui não é uma notificação oficial relacionada com os

68 Ver F. R. Montgomery Hitchcock, JTS 31,1930, p. 272-273.

118
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

registros romanos, mas a técnica de informar o público em geral: se a crucificação


tinha o propósito de desencorajar o crime, era útil ter a especificidade do crime
publicada. Uma placa (tabula ; grego pinax) era preparada para indicar a acusação
contra o prisioneiro, isto é, o crime ou a causa poenae de sua condenação. Marcos/
Mateus falam de aitia, o termo usado em João (Jo 18,38; 19,4.6) na declaração de
Pilatos, de que não encontrou nenhuma causa contra ele. Blinzler (Trial, p. 254)
imagina que a escrita foi em letras vermelhas ou pretas, na superfície branca de
gesso de uma tábua. A partir de nossas principais referências a um titulus fora
do NT,69 parece que essa inscrição era frequente, mas não necessária, que havia
considerável amplitude na redação (que podia conter uma nota de sarcasmo) e que
o letreiro podia ser exibido de diversas maneiras. Eusébio exemplifica uma redação:
“ Este é Àtalo, o cristão”. Às vezes, o titulus era carregado à frente do condenado,
enquanto ele caminhava para ser crucificado, ou o faziam marchar ao redor do
anfiteatro; outras vezes, era pendurado em volta de seu pescoço. TalBab Sanhedrin
43 a (§ 18, E l) supõe que um arauto saiu para apregoar o crime de Jesus.

Os relatos evangélicos. Marcos não descreve a posição da inscrição; João


descreve-a como posta “sobre a cruz”. Lucas a tem “sobre [epi] ele” ; Mateus espe­
cifica que a “puseram [epitihenai] acima [epano] de sua cabeça”. Para harmonizar
os indícios, muitos artistas imaginam uma crux immissa (t), com a inscrição na
parte da viga vertical que se erguia acima de Jesus. Isso pode perfeitamente ter
sido o que todos ou quase todos os evangelistas pretendiam, pois todos acham que
os que estavam passando ou estavam perto podiam lê-la. O fato de nos indícios
seculares (bastante limitados) não termos nenhum exemplo do título sendo colocado
nessa posição leva alguns biblistas a preterir a localização evangélica como ficção.
Entretanto, com certeza, se os evangelistas estivessem criando livremente, eles
poderíam ter colocado o título em outra posição e fazê-lo legível. A verossimilhança
sugere que escritores que viviam no século I d.C. não descreveríam um cenário
totalmente implausível sem uma razão teológica.

A inscrição/título contém as únicas palavras pertinentes a Jesus que se


alega terem sido escritas durante sua vida. Notamos, entretanto (achando graça, se
pensarmos em abordagens literalísticas dos Evangelhos), que os quatro evangelistas
as relatam de maneira diferente (como faz EvPd 4,11):

69 Suetônio, Caligula xxxii,2; Domiciano x ,l; Tertuliano, Apologia ii,20 (CC 1,91); Díon Cássio, História
LIV,iii,7; Eusébio, HE V,i,44.

119
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Marcos: O Rei dos Judeus

Mateus: Este é Jesus, o Rei dos Judeus

Lucas: O Rei dos Judeus, este (homem)

João: Jesus, o Nazareu, o Rei dos Judeus70

EvPd: Este é o Rei de Israel

Marcos não relata quem fez a inscrição, mas as ações circundantes são as
dos soldados romanos. Mateus atribui a acusação escrita a “eles”, que têm de ser
os soldados de guarda. Lucas coloca a inscrição em um cenário onde ele menciona
soldados (romanos) pela primeira vez. Em nenhum dos sinóticos há a sugestão
de que a inscrição em si foi feita com o propósito de escárnio, embora, depois de
escritas, as palavras fossem usadas para escarnecer de Jesus. Pela inscrição e o
uso feito dela, tem-se a impressão de que, até o último momento, Jesus foi vítima
de acusação falsa.

O episódio em João. João não só transforma a inscrição em episódio im­


portante, mas também muda seu significado. Pilatos escreve o título. Essa indicação
não é diretamente contraditória à imagem sinótica, porque muitos leitores entendiam
que Pilatos mandou os soldados escrevê-la e colocá-la. Contudo, a proximidade da
atribuição a Pilatos e a impressão resultante de que ele e os chefes dos sacerdotes
estão no Gólgota discutindo uns com os outros permitem a João transformar a cena
na cruz em um encontro pessoal, que prolonga a luta no julgamento. Mais uma vez,
Pilatos e “os judeus” debatem a respeito de Jesus. Na conclusão evidente do julga­
mento, os chefes dos sacerdotes forçaram Pilatos a condenar Jesus, que ele sabia
não ser culpado; agora, com ironia, Pilatos inverte a posição de seus protagonistas
judaicos proclamando ser verdade a acusação que fizeram.71 A inferência de Pilatos
reutilizar deliberadamente a acusação judaica é explicada em Atos de Pilatos 10,1:

0 Em Jo 19,21, o título é repetido como “ 0 Rei dos Judeus” , forma que concorda com Marcos e deve ter
sido a redação básica na tradição.
n João tira proveito das complexidades da acusação. No julgamento romano, a pergunta de Pilatos: “És tu o
Rei dos Judeus?” (Jo 18,33) não era criação sua, mas veio da nação judaica e dos chefes dos sacerdotes
que lhe entregaram Jesus (Jo 18,34-35). Jesus não respondeu: “ Eu sou um rei” , mas: “Tu dizes que sou
rei” (Jo 18,37), para ressaltar que seu reino não era deste mundo como tinha sido subentendido. Contudo,
agora na cruz os chefes dos sacerdotes alegam: “Esse sujeito disse: ‘Eu sou o Rei dos Judeus’“ . E é em
resposta à afirmação deles declarando que o próprio Jesus fez a alegação que Pilatos confirma a realeza
de Jesus (presumivelmente no sentido que Jesus visualizava o reino).

120
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

“ Depois da sentença, Pilatos ordenou que a acusação contra ele fosse escrita como
título em grego, latim e hebraico, exatamente como os judeus tinham dito que ‘Ele
é o Rei dos Judeus’”. Na dramatização joanina, o governador romano reconquistou
seu domínio depois de ter sido intimidado por ameaças no fim do julgamento. Sem
esforço, a resposta lacônica (dada em grego) aos chefes dos sacerdotes dos judeus
pode ser traduzida em um epigrama latino digno de um prefeito autoritário: Quod
scripsi, scripsi. Os chefes dos sacerdotes aceitaram César como rei; agora têm de
se satisfazer com a repulsa do representante de César.

A formulação joanina das palavras do título é a mais solene e mais memo­


rável, como atestado pela arte tradicional da cruz com um INRI, do suposto latim
Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum. A solenidade aumenta com a indicação de que o
título era trilíngue.72 É inevitável que tenha havido tentativas de argumentar que a
forma joanina do título, inclusive o padrão trilíngue, é histórica. Variante peculiar
é a tese de Regard (“ Titre” ), que afirma que Mateus preserva em tradução literal
a forma hebraica da inscrição, Lucas preserva a forma grega e João, a forma lati­
na! Igualmente romântica é a tese de Lee (“ Inscription” ), segundo a qual o título
completo, “ Este é Jesus de Nazaré, o Rei dos Judeus”, foi escrito em consoantes
semíticas (aramaicas); mas o estilo mais longo da escrita grega e latina (que incluía
vogais) significava que só formas abreviadas apareceram na inscrição nessas lín­
guas, daí as variantes evangélicas mais sucintas. Ele invoca o testemunho ocular
de Simão Cireneu para a redação — uma coisa que os Evangelhos se recusam a
fazer. Tem havido tentativas de reconstrução do hebraico73 e até discussões quanto
ao fato de a relíquia do título (forma joanina) venerada na Igreja de Santa Croce in
Gerusalemme em Roma ser ou não autêntica.74

Deixando tudo isso de lado, podemos ter razoável certeza de que os solda­
dos não teriam o cuidado de transcrever uma acusação criminal em três línguas.

72 Na tradição textual koiné de Lc 23,38, se lê: “escreveram acima dele em letras gregas, latinas e hebrai­
cas” . Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1505) expressa a opinião da vasta maioria de biblistas: “Quase certamente
uma glosa tirada de Jo 19,20” .
73 Muitas das pinturas medievais mostram um texto hebraico, às vezes expresso na base do grego joanino
(ver Wilcox, “Text”). S. Ben-Chorin (Bruder Jesus, München, Deutscher Taschenbusch, 1977, p. 180) tem
uma sugestão peculiar: Yeshu Hanozri Wumelek Hayehudim, cujas quatro primeiras letras constituem um
jogo com o tetragrama YHWH. Blinzler (Trial, p. 254) volta-se para o aramaico (que é muitas vezes, se não
sempre, o que o “hebraico” joanino significa): Yesua Nazoraya malka diyehudaye (= minha modificação
da transcrição germânica de Blinzler).
74 The Month 155,1930, p. 428.

121
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

Inscrições multilíngues estavam em voga na Antiguidade, mas em cenários solenes,


por exemplo, proclamações imperiais. O túmulo de Gordiano III, construído por
soldados romanos, tinha inscrições em grego, latim, persa, hebraico e egípcio. (Os
hierosolimitas estavam familiarizados com o edito contra entrar em partes proibidas
do Templo, escrito em grego e latim [Josefo, Guerra VI,ii,4; #125]; e não é impossível
que, por ironia, esse edito contribuísse para a ideia de João.) Se, com intenção de
informar, os sinóticos relataram a existência de uma inscrição porque suas palavras
dariam oportunidade para o escárnio de Jesus, João foi em outra direção, que em
parte escarnece “os judeus”. Só na cena joanina do julgamento a importância do
título “ 0 Rei dos Judeus” foi analisada: é um título falso, quando se refere a um
reino deste mundo, mas Jesus é rei no sentido de que veio do alto para este mundo
a fim de dar testemunho da verdade (Jo 18,36-37). Aqui, o Pilatos joanino, que não
tem poder sobre Jesus, exceto o que lhe foi dado do alto (Jo 19,11), é levado a fazer
uma proclamação formal da verdade. Quando Jesus desafiou-o no julgamento: “ Todo
aquele que é da verdade ouve minha voz”, Pilatos desviou o assunto, perguntando
o que é a verdade (Jo 18,38a). Mas ninguém escapa tão facilmente do julgamento
na presença de Jesus e, agora, Pilatos é levado a professar publicamente o que não
quis confessar em particular.

Nesta proclamação, IÉSOUS NAZORAIOS tem toda a formalidade de


“ Tibério César” e o trilinguismo aumenta a atmosfera imperial ou régia. Para os
leitores cristãos, “Jesus, o Nazareu” modifica “ 0 Rei dos Judeus” para dar uma
imagem mais completa. 0 último, se entendido corretamente, tem verdade; mas o
próprio Jesus deu um “eu sou” a sua identificação como o primeiro em Jo 18,5.7-8.
Assim, no título que é o clímax do julgamento de Jesus pelo governador romano,
há o eco de uma designação de Jesus falada quando soldados romanos entraram
na cena da NP pela primeira vez para prendê-lo. As três línguas têm força sim­
bólica. Hebraico é a língua sagrada das Escrituras de Israel; latim é a língua do
conquistador romano (na verdade a palavra que João usa é Romaisti); grego é a
língua na qual a mensagem a respeito de Jesus está sendo proclamada e escrita. Os
escribas antigos viam possibilidades no simbolismo: alguns testemunhos textuais
koiné mudaram a ordem para hebraico, grego e latim, dando à língua imperial o
lugar de dignidade no fim; mas a primazia joanina não é determinada pelo que é
poderoso aqui embaixo. Podemos comparar o papel atual de Pilatos ao de Caifás
em Jo 11,49-52; 18,14. Sumo sacerdote aquele ano e, portanto, alguém que podia
profetizar, Caifás foi levado por Deus a, sem saber, falar a verdade a respeito de

122
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

Jesus: “ É melhor que um só homem morra pelo povo”. Tendo encontrado a verdade
(Jesus), Pilatos é levado a fazer uma proclamação imperial profeticamente verdadeira
em sua terminologia.75 Em Jo 19,16, “os judeus” disseram: “ Não temos nenhum rei
além de César” ; mas ironicamente o romano proclama um rei diferente (e maior)
que César. Ainda mais claramente que os sinóticos, João usa Pilatos para expressar
uma avaliação teológica.

Jo 19,20 nos diz que esse título dramático foi lido por muitos dos judeus,
porque “o lugar onde ele foi crucificado era perto da cidade”.76 Os relatos sinóticos
da crucificação têm três escárnios de Jesus pelos que contestam suas alegações; o
paralelo joanino mais próximo, em termos de conteúdo, é esta cena onde “os chefes
dos sacerdotes dos judeus” contestam a proclamação por Pilatos de “ O Rei dos
Judeus”. Na triunfal descrição joanina da crucificação, Pilatos é inflexível a favor
de Jesus. Os verbos em “ O que escrevi, escrevi” estão ambos no tempo perfeito: o
primeiro equivalente a um aoristo, o segundo sugerindo um efeito duradouro (BDF
3424). Comparemos a resposta do rei selêucida Demétrio em IMac 13,38: “ O que
garantimos a vós está garantido”. Nos lábios de Pilatos, a autoridade romana e o
respeito romano por uma declaração escrita encontram expressão.

Em João, esse é o encontro final de Jesus com seus adversários judaicos e os


“chefes dos sacerdotes dos judeus” ainda lhe recusam qualquer reconhecimento.
Esse é dado pelo representante dos gentios. Jesus dissera (Jo 12,32) que, quando
fosse elevado da terra, começaria a atrair todos para si; e agora isso começou. A
descrição joanina de Jesus crucificado está em harmonia com a famosa interpolação
cristã em SI 96,10: “ O Senhor reina da madeira [da cruz]”.77*

75 Pseudo-Cipriano (De montibus Sion et Sinai 9; PL 4,915C) diz que Pilatos tomou manifesto um dito
profético.
'6 Literalmente, “perto estava o lugar da cidade onde Jesus foi crucificado” . Martin (“ Place” , p. 3) usa a
emaranhada ordem grega das palavras para defender o Monte das Oliveiras como o local da crucifica­
ção, perto do lugar (isto é, Templo; ver Jo 11,48) da cidade. Entretanto, não há nada no contexto para
incentivar a interpretação de “lugar” aqui como o Templo; mais logicamente, é o Lugar da Caveira de Jo
19,17b. A gramática não apoia necessariamente a interpretação de Martin, pois eggys (“ perto”) rege a
frase de genitivo “ da cidade” . Schnackenburg (John v. 3, p. 271) menciona a separação de palavras que
se unem como marca do estilo joanino e como prova de que a cena foi composta em círculos joaninos.
77 Esta leitura não se encontra no TM, nem na LXX, mas está subentendida em Barnabé 8,5 e é conhecida
de Justino (Diálogo lxxiii,!), Tertuliano (Adv. Marcion xix,l; CC 1,533) e da tradição latina.

123
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto

EvPd. A inscrição na cruz é usada em EvPd 4,11 de uma forma que difere
das apresentações sinóticas e joanina. Como os judeus, não os soldados romanos,
crucificam Jesus, eles escrevem: “ Este é o Rei de Israel”. Antes, eles tinham
escarnecido de Jesus: “Julga justamente, Rei de Israel”, mas não há nenhuma
sugestão de que a inscrição em si seja um escárnio. “ O Rei de Israel” não é título
político, como é “ O Rei dos Judeus”. Para o cristão que escreveu o EvPd, Jesus é
verdadeiramente o Rei de Israel; e, por isso, os judeus proclamam a verdade nessa
inscrição, mesmo que escarneçam da reivindicação de Jesus a ela.

Há um núcleo histórico no título ou inscrição canônica? Como lembra


Bammel (“ Titulos”, p. 355-356), muitos biblistas críticos põem a inscrição de
lado, considerando-a invenção cristã: Bousset, porque ela mostra depreciação dos
judeus; Haenchen, porque contém uma confissão judeu-cristã de Jesus.78 Tais obje-
ções referem-se mais à transformação joanina do título que à simples existência da
inscrição “ 0 Rei dos Judeus” em relação à crucificação de Jesus.79 0 uso do título
aqui relaciona-se com seu uso no julgamento romano. Estava o uso no julgamento
cultuado na inscrição; ou a memória de uma inscrição na crucificação moldou o
relato do julgamento; ou eram ambos históricos; ou eram ambos formulações de fé
cristã? É implausível que o título “o Rei dos Judeus” seja total invenção cristã, pois
ele nunca aparece como confissão cristã.80 A reação relatada de Jesus a ela, “ Tu (o)
dizes”, indica não ser essa uma expressão que ele escolhería. Por outro lado, não
há nada implausível quanto a ela como acusação que um governador romano, ao
decidir uma causa segundo procedimentos extraordinários típicos de administração
provinciana em uma área de menor interesse como a Judeia, pudesse relacionar com
as diretrizes gerais da Lex Iulia de maiestate na jurisprudência ordinária de Roma (§
31, D3a acima). Que uma reivindicação a realeza traria uma violenta reação romana
é visto nas crucificações em massa realizadas por Varo, o governador romano da

‘8 Ao contrário, o biblista judeu Winter (“Marginal” , p. 250-251) afirma que a redação evangélica do título
é histórica, pois, se os cristãos tivessem criado a redação, eles teriam sido mais precisos a respeito da
identidade teológica de Jesus. Ele menciona a expressão cristã que foi o assunto da nota anterior: “ 0
Senhor reina da madeira [da cruz]” .
'9 A forma marcana da redação é com certeza a mais original entre os sinóticos, pois Mateus e Lucas
simplesmente a expandem. A mesma forma encontra-se na discussão entre os chefes dos sacerdotes e
Pilatos em Jo 19,21.
80 0 uso da designação pelos magos em Mt 2,2 não contradiz isso, pois ocorre antes de eles serem iluminados
por informações das Escrituras. Como Pilatos, os magos reconhecem certa verdade a respeito de Jesus,
mas em Mt 2,2 eles certamente não são descritos como cristãos.

124
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

Síria, contra autoproclamados reis e seus seguidores depois da morte de Herodes,


o Grande (Josefo, Ant. XVII,x,8.10; ##285.295). H.-W. Kuhn (“ Kreuzesstrafe”,
p. 735) acha que a inscrição é para historicizar a avaliação característica de Jesus
pelos romanos. Mas como se iniciou essa avaliação característica? Os cristãos não
preservaram nenhuma memória quanto aos detalhes básicos do acontecimento
mais importante de sua fé? As objeções à historicidade quase sempre se baseiam
na (dúbia) alegação de que os cristãos não tiveram acesso ao que foi dito nos jul­
gamentos pelo sinédrio e romano, mas aqui lidamos com um sinal público. Não
vejo nenhuma objeção convincente a sua historicidade como expressão da acusação
pela qual os romanos executaram Jesus.

# 7. Dois bandidos ou malfeitores (Mc 15 ,2 7; M t 2 7,3 8 ; Lc23,33c; Jo 1 9 ,18b)

Marcos tem mais um presente histórico em Mc 15,27: “ E com ele eles


crucificam dois bandidos”, que forma uma inclusão com Mc 15,24: “ E eles o cru­
cificam”. Não é sinal de que o que está no meio foi inserido (com a devida vênia a
Matera, Kingship, p. 27); é sinal de que Marcos está concluindo sua lista de itens
preliminares. No que se segue, Marcos começará de novo sua narrativa sequen­
cial. O mateano “ Então ali são crucificados com ele dois bandidos” (Mt 27,38) é
menos obviamente uma inclusão com “tendo-o crucificado” de Mt 27,35; mas a
lista mateana dos itens preliminares já foi sequencial, como sugerido por “Então”.
Enquanto Marcos/Mateus colocam assim a referência aos dois cocrucificados no
fim dos itens relacionados concernentes à crucificação, Lucas e João concordam ao
pô-la no início, na mesma sentença que anuncia a crucificação de Jesus no lugar da
Caveira; e assim fazem a presença dos cocrucificados mais incidental ou, pelo menos,
menos ascendente na lista. É digno de nota que os quatro Evangelhos mencionam
que dois outros foram crucificados com Jesus e concordam quanto a sua posição
relativa, de cada lado de Jesus.81 Contudo, os Evangelhos não são muito instrutivos
quanto a detalhes pertinentes à crucificação dos cocrucificados. E ssa concisão
deu rédeas à imaginação de comentaristas patrísticos e artistas para descrever a
crucificação dos dois criminosos como diferente da crucificação de Jesus, e assim
realçar a singularidade do Senhor.82 Por exemplo, os criminosos são não raro des­
critos como presos a um estilo de cruz diferente, amarrados, em vez de pregados,

81 Nos sinóticos, à direita e à esquerda; em João: “aqui e ali” , com Jesus no meio.
82 Crisóstomo, Homília sobre João 84 (85); PG 59,461.

125
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

ou sem inscrições de seu crime. Até receberam nomes, por exemplo, para o bom
(lado direito) e o mau (lado esquerdo): Joathas e Maggatras (Capnatas, Gamatras),
em mss. da OL de Lc 23,32 (e derivados); Zoatham e Camma, em um ms. da OL
de Mt 27,38; Dimas e Gestas, em Atos de Pilatos 9,4.83 Tudo isso ultrapassa os
Evangelhos que os mencionam sem explicação, mas também sem constrangimento
pelo fato de Jesus estar sendo tratado como um entre diversos criminosos.84 E dig­
no de nota que o código penal da Mixná não estava em vigor; Sanhedrin 6,4 não
admitia que duas pessoas fossem julgadas no mesmo dia.

Por que foram os cocrucificados incluídos nos relatos evangélicos? A resposta


mais simples é que sua presença mostra a indignidade à qual o Jesus inocente foi
submetido. Ele protestara em Mc 14,48 e par. que estava sendo preso como se fosse
um bandido (lestes); agora, na linguagem de Marcos/Mateus, ele é crucificado no
meio de bandidos. Lucas se dá ao trabalho de mostrar que Jesus é dikaios (“ino­
cente, justo” ); contudo, ele é crucificado entre kakourgoi (“malfeitores, criminosos”
— termo que talvez Lucas tenha escolhido a fim de evitar as implicações políticas
de lestes para seus leitores dos anos 80 e 90, depois da violência na Judeia nos
anos 50 e 60).

Há outros motivos.85 Exatamente como Marcos/Mateus mencionam a inscri­


ção entre os itens preliminares e então voltam mais adiante às palavras da inscrição
como fonte de escárnio, do mesmo modo também estes dois bandidos aparecem
mais adiante em Mc 15,32b e Mt 27,44 zombando de Jesus. Em Lucas, o tema de
uso futuro é ainda mais forte. Esse Evangelho já mencionou os dois malfeitores no
caminho para a crucificação (Lc 23,32), de modo que esta referência (Lc 23,33) é
reiteração da presença deles — tudo isso porque eles vão desempenhar um papel

83 Também se encontram Tito e Dumaco (que Jesus encontrou quando criança!) no Evangelho arábico da
Infância 23; ver Metzger, “ Names” , p. 89-95. A indicação mais curiosa é fornecida por B. Thiering (nota
14): Judas Iscariotes e Simão, o Mágico!
84 Matera (Kingship, p. 62) vê um eco do pedido de Tiago e João para se sentarem à direita e à esquerda de
Jesus em sua glória, pedido (Mc 10,35-37) que se segue imediatamente à terceira predição que Jesus faz
de sua Paixão. Contudo, a metáfora de um assento ou trono respeitado é tão diferente do que temos aqui
que a menção de direita e esquerda não basta para estabelecer um paralelo e, na verdade, o vocabulário
para “esquerda” não é o mesmo.
85 Além dos mencionados acima, Paton, “Kreuzigung” , vê aqui uma continuação do escárnio da Festa dos
Sacas, que foi sugerida por alguns como antecedente do escárnio romano de Jesus (§ 36 B). Entretanto,
Díon Crisóstomo (De Regno iv,66-70), a principal fonte de informações sobre essa festa, menciona apenas
um homem escarnecido, despido, açoitado e pendurado.

126
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: O cenário

em episódio importante em Lc 23,39-43, onde um escarnece, mas o outro confessa


Jesus e é recompensado por ele. E provável que, em João, sua futura utilidade no
relato da crucificação (embora diferente da utilidade nos sinóticos) também seja
um motivo. Não ouvimos nada de seu escárnio, mas depois de Jesus morrer, os
ossos deles serão quebrados e os de Jesus não (Jo 19,31-36). E ssa diferença realça
uma passagem bíblica pertinente a Jesus. O futuro dos malfeitores (terminologia
lucana) em EvPd 4,13-14 inclui elementos similares a Lucas e João, como veremos.

Qual é a relação entre as referências evangélicas aos dois cocrucificados e


Is 53,12 (“ Com criminosos [anomoi] ele foi contado” )? Os evangelistas claramente
consideraram o fato de Jesus ser crucificado entre criminosos uma indignidade
sofrida pelo Filho de Deus, mas essa passagem específica de Isaías deu origem ao
relato evangélico? Nem todos os itens pertinentes à crucificação foram originados
pela reflexão em textos veterotestamentários, por exemplo, a primeira oferta mar-
cana de vinho, se podemos julgar pelo vocabulário (§ 40, #2). Aqui também não
há nenhuma semelhança de vocabulário entre a passagem de Isaías e a descrição
evangélica dos cocrucificados. (O mesmo pode-se dizer de uma suposta similaridade
com SI 22,17: “ Uma companhia de marginais [ponerouomenoi] me rodeia”.) Lucas
é o único Evangelho que cita Is 53,12 (em Lc 22,37, na Última Ceia), mas não há
nenhuma indicação, no vocabulário, de que Lucas tenha visto essa passagem cum­
prida na crucificação de Jesus entre dois malfeitores.86 Um dos malfeitores surgirá
em luz altamente favorável e não como anomos. O único outro emprego lucano de
anomoi (At 2,23) sugere que os criminosos eram os que crucificaram Jesus, não
os que foram crucificados com ele. A aplicação de Is 53,12 a esta cena está clara
pela primeira vez na variante textual que constitui Mc 15,28 (ver a nota de rodapé
* no início desta seção). Presumivelmente, essa interpretação é do século II, de
um tempo em que havia tendência a encontrar para passagens evangélicas ligações
veterotestamentárias até então não percebidas.

De que crime eram os cocrucificados acusados? João é o menos instrutivo com


sua referência a “dois outros”, silêncio lamentável que não oferece nenhum incentivo
para associar esses dois com Barrabás, que João chama de lestes. Para Marcos/

116 A referência inicial aos malfeitores em Lc 23,32 revela sinais da escrita lucana em vocabulário e sintaxe,
e isso é verdade também deste versículo (Lc 23,33), onde os malfeitores são crucificados. Untergassmair
(Kreuzweg, p. 42) menciona que o inicial kai + hote + um verbo finito (“E quando chegaram”) ocorre sete
vezes em Lucas-Atos. A construção men [...] de (“um [...] outro”) na segunda parte do versículo também
é lucana (Fitzmyer, hike, v. 1, p. 108), embora hon men [...] twn de ocorra só aqui.

127
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

Mateus, eles são “dois bandidos” (pl. de lestes); contudo, esses Evangelhos nunca
usaram esse termo em relação a Barrabás, figura notória, preso com desordeiros.
Para Lucas, eles são “dois malfeitores” e novamente esse não é um termo que foi
usado para Barrabás. Em 7,26 do EvPd , que já falou dos “malfeitores” crucificados
(em EvPd 4,10), Pedro diz de si mesmo e de seus companheiros: “ Fomos procurados
por eles [os judeus] como malfeitores que desejam pôr fogo no santuário”. De acordo
com Marcos, havia nesta Páscoa pessoas na cadeia por causa de um tumulto, por
isso muitos biblistas concluem que os dois bandidos/malfeitores faziam parte dessas
pessoas; contudo, nenhum Evangelho estimula essa interpretação por semelhança de
vocabulário. Havia outros crucificados além desses dois? O silêncio evangélico talvez
subentenda uma negativa; contudo, a razão para especificar dois é arquitetônica,
para Jesus ser retratado no centro entre eles. Embora o uso de lestes por Marcos/
Mateus para designar os dois dê a impressão de que eles eram homens de violência
(certamente não ladrões, como indica a tradicional descrição de “bom ladrão” para
o penitente malfeitor lucano), é interessante que a inscrição que descreve o crime
de Jesus não tenha nenhuma sugestão disso para ele. Embora a acusação romana
contra Jesus fosse política, não tinha o mesmo tom que a designação por Marcos/
Mateus dos crucificados com ele.

#8. "Pai, perdoa-lhes" (Lc23,34a)

Antes de analisar o modo como Lucas situa e interpreta as palavras “ Pai,


perdoa-lhes, pois eles não sabem o que estão fazendo”, vamos refletir a respeito
dessas palavras como as primeiras que encontramos do que costuma ser chamado
de “as sete últimas palavras de Jesus”. Depois de ser crucificado, Jesus fala uma
vez em Marcos/Mateus, três vezes em Lucas e três vezes em João. Vou relacioná-las
nessa ordem evangélica, que é a ordem em que aparecem no NT e na análise que se
segue, vou referir-me a elas pelo número usado aqui: *1) “ Meu Deus, meu Deus, por
que razão [com que propósito] me abandonaste?” (Mc 15,34; Mt 27,46); *2) “ Pai
perdoa-lhes, pois eles não sabem o que estão fazendo” (Lc 23,34a); *3) “Amém,
eu te digo, este dia comigo estarás no paraíso” (Lc 23,43); *4) “ Pai, em tuas mãos
coloco meu espírito” (Lc 23,46); *5) “ Mulher, olha: teu filho [...]. Olha: tua mãe”
(Jo 19,26-27); *6 ) “ Tenho sede” (Jo 19,28); *7) “ Está consumado” (Jo 19,30).

Se tratarmos Marcos/Mateus como uma unidade, nenhum dito em um dos


três registros evangélicos encontra-se em outro. Até a última palavra de Jesus,

128
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

pronunciada imediatamente antes de morrer, não é a mesma em Marcos/Mateus,


em Lucas e em João — funcionalmente temos três tentativas diferentes de fazer um
dito captar a posição final de Jesus em seu papel no plano de Deus. Contudo, com
o entendimento de que Jesus falou sete vezes depois de ser crucificado, desde o
século II harmonizações os preservam como ditos distintos, mas em várias ordens.
Nestle (“ Seven” ) recorre à forma arábica do Diatessarão de Taciano e reconstrói
a ordem do século II como *3 , 5, 1, 6, 7, 2, 4. Ele relata a ordem que se tornou
tradicional na vida da Igreja alemã, por exemplo, em Württemberg, como *2 , 3,
5, 1, 6, 7, 4, com a variação mais frequente concentrando-se na ordem de 3 e 5.8'

Biblistas modernos que dão prioridade a Marcos presumem que *1, o (único)
dito de Marcos/Mateus, estava colocado como a última palavra de Jesus antes de
sua morte. Contudo, é evidente que a negatividade desse dito causava problemas e,
por isso, um dos ditos mais suaves, em especial *4 , é tradicionalmente colocado por
último. Tendo refletido sobre os ditos em geral, voltemo-nos agora para o primeiro
dos ditos lucanos.

No início de meus comentários a respeito de toda esta seção que trata de


itens que servem de cenário para a crucibcação, mencionei que Lucas tem cinco dos
sete itens marcanos, dos quais quatro (#1, 3, 7, 4) ocorrem aqui e o quinto (#6, a
inscrição), mais adiante. Se nos concentrarmos nos quatro, notaremos como Lucas
os organiza. Em uma sentença complexa que constitui um versículo (Lc 23,33),
há três itens (#1, 3, 7): o topônimo, a crucificação de Jesus e a crucificação dos
dois malfeitores. Então, o outro item (#4: a divisão das roupas) ocorre na segunda
sentença do versículo seguinte (Lc 23,34b), do qual a primeira (Lc 23,34a) é um
pedido de Jesus para que o Pai perdoe. Assim, o cenário lucano da crucificação
é organizado nesta sequência: a) no Lugar da Caveira, eles crucificam Jesus e os
dois malfeitores; b) Jesus reza pelo perdão; c) eles dividem as roupas de Jesus. E
provável que o primeiro e o terceiro sejam resumos lucanos de material marcano;
o item do meio é exclusivo de Lucas. Schweizer (Luke, p. 359) considera bastante
esse arranjo, pois encontra mais três padrões triplos, em Lc 23,35-43; 23,44-46 e
23,47-49, respectivamente. E afirma que na presente sequência, se a oração de Jesus
pelo perdão fosse omitida, o característico padrão de três lucano seria destruído.87

87 Ver uma abordagem homilética típica em sete artigos em ExpTim 41, 1929-1930. Ali a ordem de tra­
tamento é também *2 , 3, 5, 1, 6, 7, 4. Ver Kreitzer (“Seven”) para os diferentes arranjos de autores e
filmes modernos.

129
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Essa observação leva às duas questões que precisamos examinar pertinentes


a Lc 23,34a: primeiro, o sentido do versículo, em termos de por quem Jesus reza e
o objetivo moral da oração; segundo, a autenticidade da oração, em termos de ter
sido falada por Jesus ou escrita por Lucas. O fato de ser omitida por testemunhos
textuais importantes torna a segunda questão necessária.88

Sentido do versículo. Em meio a ações hostis dos que crucificam Jesus e


dividem suas roupas, no v. 34a, Jesus reza inesperada e misericordiosamente por
esses agentes. Quem são “eles” que “não sabem o que estão fazendo” ? Afirmei
acima (§ 35) que, embora Lucas ainda não tenha mencionado soldados romanos,
ele presumiu um conhecimento geral, por parte dos leitores, de que os romanos
crucificaram Jesus. E por isso concordo com Harnack, Flusser e outros que esse
ato de perdão abrangeu os romanos que fisicamente prenderam Jesus à cruz, mas
não entenderam que estavam cometendo esse ultraje ao Filho de Deus. Contudo,
Lucas nunca apresenta os romanos como únicos responsáveis pela crucificação;
eles realizaram a ação física, mas “os chefes dos sacerdotes e os governantes e o
povo” (os agentes judaicos de Lc 23,13 que são o último antecedente mencionado
para quaisquer “eles” na crucificação) bradaram para crucificar Jesus (Lc 23,21).
A caminho do lugar de crucificação, Jesus falou às filhas de Jerusalém: “ Se na
madeira verde elesfazem tais coisas ” ; e isso tinha de se referir a antagonistas judai­
cos simbolizados por Jerusalém. Em At 3,17; 13,27, os que agiram por ignorância
quando executaram Jesus são explicitamente identificados como o populacho judaico
e seus governantes. Portanto, em Lc 23,34a, os “eles” por quem Jesus reza incluem
os romanos e os judeus, em proporção a seus papéis respectivos na morte de Jesus.

E preciso dizer mais a respeito de o Jesus lucano rezar pelos agentes judaicos
que, de maneira tão consistente, têm sido hostis a ele. Como pode ele dizer que “eles
não sabem o que estão fazendo” ? Os chefes dos sacerdotes e suas coortes ouviram
Jesus pregar e, bem deliberadamente, rejeitaram sua proclamação. Fazem parte de
uma Jerusalém que Jesus denunciou por matar os profetas (Lc 13,34). Contudo,
foi a hierosolimitas empedernidos que Jesus atribuiu ignorância: “ Se conhecesses
hoje as coisas que trazem a paz; mas agora elas estão escondidas de teus olhos”
(Lc 19,42). Aparentemente, no modo de ver lucano, por mais que tramassem o mal,

88 Úteis para o estudo de Lc 23,34a são os artigos da BIBLIOGRAFIA de § 37, quarta parte, por Dammers,
Daube, Démann, Epp, Flusser, Harris, Moffatt, Nestle; também Feldkãmper (Betende, p. 257-267);
Harnack (“Probleme” , p. 255-261) e Wilkinson, “ Seven” .

130
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

sempre se pode dizer que os perpetradores não sabiam (isto é, não apreciavam a
bondade ou o plano de Deus); do contrário, não agiriam como agiram. Ao se opor aos
seguidores de Jesus a ponto de apedrejá-los, um Paulo que era aliado dos chefes dos
sacerdotes disse: “ Eu mesmo estava convencido de que era necessário fazer muitas
coisas contra o nome de Jesus o Nazareu” (At 26,9). Contudo, Lucas certamente
julgava que Paulo não sabia o que fazia. Talvez com Daube (“ For they”, p. 60) seja
possível resumir a atitude lucana assim: se havia os que não sabiam porque não
lhes disseram, havia também os que não sabiam porque, embora lhes tivessem dito,
não entenderam. Entretanto, é digno de nota que, embora os do segundo grupo não
saibam o que estão fazendo, eles precisam de perdão.

Quanto a castigo, Lc 12,48 faz uma distinção: “ Quem não sabe e faz coisas
que mereçam uma surra, receberá uma surra leve”. É de se presumir que isso se
refira à falta de conhecimento mais elementar, pois as palavras de Jesus às filhas
de Jerusalém mostram que o castigo torna-se inevitável para os malfeitores mais
repreensíveis. Se Lc 23,34a é autenticamente lucano, então é preciso distinguir
entre um perdão que é possível e um castigo que é inevitável. Mas não era um
apelo ao perdão combinado com o sentimento de castigo inevitável a mensagem
dos profetas veterotestamentários nos últimos dias antes da queda dos reinos de
Israel e de Judá?

Como a oração pelo perdão porque eles não sabem o que estão fazendo
combina as atitudes éticas do mundo contemporâneo com o NT? Como Daube
(“ For they”, p. 61-62, 65) menciona, há quem cite o princípio socrático: Ninguém
fa z o mal por ignorância de si mesmo, de seu lugar no mundo ou do bem supremo.
Então, eles passam depressa demais a presumir a origem grega da oração atribuída
a Jesus. Realmente, a atitude judaica para com a ignorância ao pecar é complexa.
Há passagens que refletem benevolência se a ignorância é falta de informação, de
modo que a ação se torna mesmo inadvertida ou impremeditada. Ao descrever a
expiação feita por sacerdotes pelo povo de Israel, Nm 15,25-26 oferece a certeza de
que o perdão pelos pecados de inadvertência será concedido até aos estrangeiros
residentes entre eles, “ pois a falta por inadvertência afeta todo o povo”.89 Contudo,
ações deliberadas, as realizadas com arbitrariedade, são julgadas severamente, e
a falta de pleno entendimento não era amplamente aceita como desculpa. Em 1QS

Hb 5,2 louva os sumos sacerdotes por tratarem com bondade os que não sabem e são enganados.

131
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

10,16-21, embora um salmista de Qumrã diga: “ Não pagarei a nenhum homem a


recompensa do mal”, e assim pareça abster-se de vingança, ele prossegue e mostra
estar ansiosamente esperando o julgamento divino daqueles que se afastam do
caminho. De modo mais benevolente, no TM de Is 53,12, o servo intercede pelos
pecados de todos, sem distinção de como os pecados foram cometidos (ver TalBab
Sota 14a). Em Jn 4,11, apesar de todos os horrores infligidos a outros pelos brutais
assírios, é feita a pergunta retórica se Deus não deveria ter piedade da população
de Nínive, “pessoas que não sabem distinguir a mão direita da esquerda”. Testa­
mento de Benjamim 4,2 declara: “A pessoa boa [...] mostra misericórdia a todos,
embora sejam pecadores”.90 Importante distinção é feita por Fílon (In Flaccum 2;
#7): “Para quem se desencaminha por causa da ignorância de um caminho melhor,
pode-se fazer concessão; mas quem com conhecimento faz o que é errado, não tem
defesa, porém, já está condenado em sua consciência” . Estaria Lc 23,34a pondo as
autoridades judaicas na primeira categoria? Ou com mais probabilidade estaria a
oração em desacordo com a atitude de Fílon para com a segunda categoria? Se o
Judaísmo não estava de acordo quanto a esta questão, o Cristianismo mais tardio
também não estava; e, como veremos adiante, essa talvez seja uma das razões pelas
quais esta oração não se encontra em todos os manuscritos do NT.

A autenticidade do versículo. Este versículo é omitido em importantes


testemunhos textuais, alguns deles bastante primitivos.91 Contudo, outros grandes
códices gregos e versões primitivas o contêm. É um caso onde o peso de testemu­
nhos textuais de um lado quase contrabalança o do outro lado. 0 que surge é que,
já no século II, alguns manuscritos de Lucas tinham a oração, enquanto outros
não tinham. Dessa situação, surgem as seguintes possibilidades para a origem da
oração de Lc 23,34a:

90 Precisamos ter cuidado. Há influência cristã nos Testamentos dos Doze Patriarcas.
91 P7\ os Códices Vaticano, de Beza, o corretor de Sinaítico, Koridethi, e as versões Sir'"1e Copta. Nestle
(“Father”) acha que a colocação deste dito de Jesus como penúltimo na ordem das sete últimas palavras
de Jesus em Diatessarão de Taciano, como examinada no início desta subseção, sugere que ela foi uma
inserção mais tardia e que a atitude original de Taciano foi influenciada pela falta da passagem na OS.
0 autor das Constituições Apostólicas usou Taciano; e depois de transmitir a palavra “ Meu Deus’’ de
Marcos/Mateus na nona hora, ele relata: “ Depois de pouco tempo, ele bradou com voz forte: ‘Pai, perdoa-
-lhes, pois eles não sabem o que estão fazendo’, e acrescentando ‘Em tuas mãos eu confio meu espírito’,
ele expirou e foi sepultado antes do pôr do sol em um túmulo novo” (Constituições Apostólicas V,xiv,17).

132
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: O cenário

• Foi falada por Jesus (no contexto da crucificação ou alhures) e preservada


somente por Lucas. Alguns copistas mais tardios acharam-na inaceitável
e a removeram.

• Foi falada por Jesus, mas não foi preservada por Lucas. Circulou como dito
independente e somente no século II foi inserida no contexto atual por um
copista para quem ela se adaptava bem aos sentimentos deste Evangelho.
Outros copistas não sabiam dela. (Presume-se uma história parecida para
a narrativa da mulher apanhada em adultério, que acabou sendo inserida
no início de Jo 8.) Essa posição é defendida por MTC, p. 180.

• Não foi falada por Jesus, mas formulada por Lucas (ou na tradição pré-
-lucana imediata) como vocalização apropriada do que Jesus deve ter
pensado: ele na verdade perdoou silenciosamente. Alguns copistas mais
tardios acharam-na inaceitável e a removeram.

• Não foi falada por Jesus, mas formulada no pensamento cristão pós-
-evangélico como apropriada a Jesus e inserida por um copista na NP
lucana, como contexto adequado.

Para discernir se os indícios favorecem a composição lucana, que é nosso


interesse aqui, examinaremos sequência, estilo, origens alternativas e por que
copistas a omitiram.

a) Sequência. Apesar do apelo de Schweizer à estrutura lucana completa


a favor da oração (terceiro parágrafo deste #8), esta oração atribuída a Jesus é
intrusiva, dividindo duas sentenças (vv. 33 e 34b) onde o sujeito é “eles”, isto é, os
crucificadores. Contudo, como lembra Harnack (“Probleme”, p. 257), essa intrusão
poderia ser obra de Lucas, porque ele insere um dito não marcano no meio de ma­
terial tomado por empréstimo de Marcos. Na verdade, é bastante eficaz encontrar
no meio de ações hostis pelos crucificadores uma oração por Jesus pelo perdão
deles. Nessa sequência, a oração encontra mais hostilidade (despindo-o de suas
roupas). Mesmo que este versículo não seja de Lucas, essa sequência fez sentido
para alguém, isto é, para o copista mais tardio que a inseriu.

b) Estilo. Como o versículo está agora, o nome de Jesus é necessário para


indicar a mudança de agente. O imperfeito “estava dizendo” (elegen) não é inco-
mum em Lucas para introduzir uma pergunta ou exigência. Jesus reza com grande
frequência em Lucas (Fitzmyer, Luke, v. 1, p. 244-245); e entre os sinóticos, uma

133
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

oração dirigida a Deus no vocativo grego “Pai”, sem nenhum modificador ou tra­
dução semítica, é peculiaridade lucana (Lc 10,21; 11,2; 22,42; 23,46). Na NP
lucana, se contarmos este exemplo, Jesus reza “ Pai” três vezes.92 Assim, o formato
da oração é bem lucano. Isso também é verdade do resto do vocabulário na oração
(Untergassmair, Kreuzweg, p. 46). O padrão “perdoa [...] pois” (aphes [ . . . ] gar) é
exatamente o mesmo que na forma lucana do Pai-nosso (Lc 11,4).93 Quanto a “o que
estão fazendo”, encontramos em Lc 6,11 os escribas e fariseus discutindo “o que
farão a Jesus” (ver também Lc 19,48). 0 Jesus lucano pinta uma imagem de Deus
que é generosa no perdão, antes mesmo que o arrependimento seja expresso (Lc
15,20; 19,10). Em Lc 6,27-29, Jesus ensina os discípulos: “Amai vossos inimigos;
fazei o bem aos que vos odeiam; bendizei os que vos amaldiçoam; rezai pelos que
vos maltratam”. Em Lc 12,10, ele diz: “ Todo aquele que fala uma palavra contra o
Filho do Homem será perdoado”. Logicamente, então, o que é feito contra o Filho
do Homem também pode ser perdoado. Se alguém quiser saber por que Jesus
pede ao Pai para perdoar, em vez de estender o perdão ele mesmo (como em Lc
5,20; 7,48), talvez ele esteja motivado pelo desejo de que sua oração seja imitada
pelos cristãos que sofrem injustamente, por exemplo, Estêvão, em At 7,60. Assim,
se alguém deseja pressupor que um copista do século II inseriu uma oração em
Lucas, esse copista tomou todo o cuidado de imitar o estilo e pensamento lucanos,
e foi tão bem-sucedido que o produto final ficou perfeitamente lucano.

c) Origens alternativas sugeridas. Se a oração não fosse parte original do


Evangelho lucano, de onde ela teria vindo? Uma sugestão é que foi formulada a
partir das atribuições neotestamentárias gerais de ignorância aos inimigos de
Jesus, por exemplo, ICor 2,7-8: Nenhum dos governantes deste mundo entendeu a
sabedoria secreta de Deus, “pois se tivessem entendido, não teriam crucificado o
Senhor da glória”. Contudo, o tema da ignorância é mais claro em Lucas-Atos que
em qualquer outro escrito neotestamentário. Quem estiver tentado a pressupor que
um copista leu passagens como At 3,17 e At 13,27, e então formulou esta oração, tem
razão ainda melhor para pressupor que a oração foi formulada pelo próprio Lucas.

92 No Monte das Oliveiras, para que o cálice fosse afastado; aqui, para o perdão de seus perseguidores, e
antes de morrer, confiando seu espírito nas mãos do Pai.
1,3 Alhures em Lucas, “perdoar” tem o objeto “pecados” ; contudo, o “lhes” sendo perdoados aqui são “os
homens pecadores” de Lc 24,7, em cujas mãos o Filho do Homem é entregue para ser crucificado.

134
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

Outros propõem que os cristãos criaram esta oração de Jesus ao refletirem


sobre o TM de Is 53,12: “ Ele suportou os pecados de muitos e fez intercessão pelos
transgressores”. E ssa reflexão teria de ser em hebraico, pois a LX X da segunda
sentença diz: “ Ele foi entregue por causa dos pecados deles”. Se Lc 23,34a foi
escrito por Lucas, já que ele normalmente trabalhava a partir da LX X, é preciso
pressupor que a reflexão sobre o TM foi feita pelo próprio Jesus ou por cristãos
pré-lucanos. Se o versículo não foi escrito por Lucas, mas acrescentado por um
copista, poderia ter sido criado por cristãos que ainda liam hebraico? Flusser (“ Sie
wissen”, p. 404-407) pensa assim, apresentando a missão cristã continuada para
os judeus como um contexto no qual a oração pelo perdão deles poderia ter sido
persuasiva. Ele indica o Evangelho dos Nazarenos como localização possível —
Evangelho conhecido nos séculos II a IV por Hegesipo, Eusébio e Jerônimo, que
também revelaram conhecimento da oração. Nesse Evangelho (#35; HSNTA, v.
1, p. 153; ed. rev., v. 1, p. 164), lemos que a oração de Jesus pelo perdão levou à
conversão de 8.000 judeus, conforme registrado nos Atos (At 2,41 + At 4,4). Na
mesma tendência, Hegesipo (refletindo o Cristianismo judaico do século II) descreve
como, em Jerusalém, no início dos anos 60, Tiago, o irmão do Senhor, ajoelhou e
rezou enquanto estava sendo apedrejado pelos escribas e fariseus: “ Senhor, Deus,
Pai, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que estão fazendo” (citado em Eusébio,
HE II,xxiii,16). O Segundo Apocalipse de Tiago de Nag Hammadi coloca temas
relacionados nos lábios de Tiago: “Juizes, fostes julgados; e vós não poupastes,
mas fostes poupados” (Segundo Apocalipse de Tiago V,57,21-24); “ Ele não vos
julgará pelas coisas que fizestes, mas terá compaixão de vós” (V,59,6-8). Foi a
oração primeiro atribuída a Tiago, o grande herói dos judeu-cristãos (o “ bispo dos
bispos” dos Pseudoclementinos [Epístola de Clemente, Prefácio]), e então, mais
tarde, transferida para Jesus? Ou a influência foi ao contrário: um dito de Jesus
favorável aos judeus foi preservado em círculos judeu-cristãos e se tornou parte
do martírio de Tiago, o irmão de Jesus? Notamos que nada no relato de Hegesipo
nega que Jesus pronunciara essa oração.

Um componente médio importante para relacionar o Tiago de Hegesipo e


Jesus quanto à oração é Estêvão. Em At 7,60, ele também se ajoelhou e rezou:
“ Senhor, não consideres este pecado contra eles”. Exatamente como em At 7,56,
onde consta que Estêvão viu os céus se abrirem e o Filho do Homem de pé à
direita de Deus, o Tiago de Hegesipo afirma que o Filho do Homem está sentado

135
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

à direita do Poder e virá sobre as nuvens do céu (HE II,xxiii,13). Assim, há uma
linha de ligação a partir da morte de Jesus, passando pela morte de Estêvão até a
imagem da morte de Tiago, no século II. A associação de uma oração pelo perdão
com o porta-voz helenístico Estêvão, que era contra o Templo, enfraquece a tese
de que ela foi preservada apenas em círculos judeu-cristãos. Fator comum entre
as três figuras é a morte de um mártir. Realmente, uma oração pelo perdão de
perseguidores não é característica no padrão de mártir judaico estabelecido pelas
vítimas dos tempos macabeus: elas advertiram que no fim Deus castigaria seus
perseguidores, privando-os da ressurreição (2Mc 7,14.19.31.35-36; 4 Macabeus
9,30; 10,11; 11,3). Contudo, o perdão como está expresso em Lc 23,34a tornou-se
sinal dos cristãos sofredores. Inácio (Efésios 10,2-3) exorta: “ Oferecei orações em
resposta às blasfêmias deles [...] sede pacíficos em resposta a suas crueldades e
não fiqueis ansiosos por imitá-los em troca [...]. Sejamos ansiosos imitadores do
Senhor”. Justino Mártir (Apologia 1,14) afirma: “ Rezamos por nossos inimigos e
empenhamo-nos em persuadir os que nos odeiam injustamente”. Consta que, no fim
do século II, os mártires de Lyon rezaram: “do mesmo modo que Estêvão, o mártir
perfeito: ‘Senhor, não consideres este pecado contra eles’” (HE V,ii,5).

Ao relacionar a oração com o martírio, mais uma vez precisamos indagar a


respeito da direção que o tema percorreu. Por exemplo, foi a oração originalmente
associada com o protomártir Estêvão e então transferida pelos copistas para a
narrativa da morte de Jesus para aumentar o elemento martirológico ali? Há sérias
dificuldades com essa tese. Surkan (Martyrien, p. 90) lembra que a NP lucana é
mais martirológica que a de Marcos ou Mateus, de modo que faz sentido pressu­
por que a oração já estava nos lábios do Jesus lucano, em vez de ser revertida do
martírio de Estêvão. Além disso, um estudo do uso lucano da NP marcana mostra
que Lucas transformou o relato da morte de Estêvão ao transferir para ele temas
que Marcos associou à morte de Jesus (blasfêmia, falso testemunho, hostilidade
para com o santuário/lugar santo, o papel do sumo sacerdote). Assim, haveria
tendência a se pensar que a influência foi da oração de Jesus para a oração de
Estêvão. Em Lucas-Atos, há outra oração atribuída a Jesus e a Estêvão na qual
o locutor respectivo encomenda seu espírito ao cuidado celeste (Jesus ao Pai, em
Lc 23,46; Estêvão ao Senhor Jesus, em At 7,59). Não se pode desprezar, então, a
possibilidade de Lucas-Atos ter uma oração pronunciada por Jesus e por Estêvão
para que Deus fosse leniente com os executores. Essa oração foi subsequentemente

136
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

atribuída por judeu-cristãos a Tiago, o irmão do Senhor, o herói mártir deles, e se


tornou também padrão para a atitude de outros mártires cristãos.

Até aqui, a análise mostra que não há nada que refute a autoria lucana
de 23,34a e nenhuma explicação alternativa convincente de sua origem. Se não
houvesse testemunhos textuais que não o contêm, não haveria dúvidas sérias entre
os biblistas quanto a esse versículo fazer parte da NP lucana. Contudo, se alguém
deseja afirmar que Lucas escreveu esta oração, resta uma objeção importante.

d) Por que copistas omitiram esta bela passagem de mss. que a continham?
A falta da oração em Marcos/Mateus pode ter deixado copistas apreensivos, mas só
isso certamente não os faria dar o passo drástico da eliminação. Acharam a oração
contraditória com as palavras ameaçadoras ditas por Jesus às filhas de Jerusalém
em Lc 23,29-32 que indicavam ser o castigo inevitável? Foi essa oração considerada
contraditória porque o Pai não concedera perdão aos judeus, mas fizera Jerusalém
ser destruída em 70? Esta última pergunta foi repetida pelos Padres da Igreja, por
exemplo, Jerônimo (Epístola CXX,viii,2; PL xx,993) explica que a oração ganhou
alguns anos de perdão para os judeus antes da destruição e durante esse tempo
milhares vieram a crer.

Embora as questões acima possam ter sido cogitadas, a sugestão primordial


de um motivo para copistas omitirem a oração é terem-na achado favorável demais
aos judeus. Em relação a isso, dois fatores são importantes. O primeiro é a convicção
cristã de que os judeus continuaram a ser perseguidores hostis muito depois da
morte de Jesus. Em lTs 2,14-16 ouvimos que os judeus expulsavam os cristãos e
impediam a proclamação do Evangelho. Segundo os Atos (At 13,45.50; 14,2.19;
17,5.13; 18,12), os judeus constantemente provocavam dificuldades para pregadores
cristãos. Jo 16,2 alega que os cristãos eram expulsos da sinagoga e executados.94
Josefo (Ant. X X ,ix,l; #200) relata que o sumo sacerdote Anás II ordenou que Tia­
go, o irmão de Jesus, fosse apedrejado no início dos anos 60. No século II e mais
tarde, os cristãos julgavam que eram capturados para o martírio porque os judeus
os denunciavam aos romanos. O Martírio de Policarpo fala do costumeiro zelo irado
dos judeus contra o santo (Martírio de Policarpo 12,2; 13,1). Justino, que estivera
na Palestina, dirige-se a seus adversários judeus: “Vós nos odiais e matais também

94 Não é dada nenhuma informação quanto ao fato de a execução ser direta ou indireta (isto é, informando
os romanos que essas pessoas já não tinham direito à tolerância oferecida aos judeus).

137
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

[...] com a mesma frequência com que obtendes autoridade” (Diálogo cxxxiii,6). A
oração de perdão que Jesus faz em Lc 23,34a talvez perturbasse os copistas que
compartilhavam essa imagem dos judeus como perseguidores implacáveis.

Um segundo fator que pode ter influenciado o julgamento dos copistas é


a moralidade da oração, como já examinamos no início de nosso estudo de Lc
23,34a. Como as autoridades judaicas agiam tão deliberadamente contra Jesus,
com certeza elas sabiam o que faziam e como então podiam ser perdoadas sem
genuíno arrependimento? A perseguição constante de cristãos era sinal de que esse
arrependimento não estava próximo e por isso os copistas do século II faziam seu
julgamento em um contexto do forte sentimento antijudaico revelado em Didaqué ,
EvPd, Apologia de Aristides, Doutrina de Adai e o siríaco Didascalia Apostolorum.
Mais tarde, João Crisóstomo escreveu: “ Depois de matardes Cristo [...] não resta
nenhuma esperança para vós, nenhuma retificação, nenhum perdão, nenhuma
desculpa” (Adv. Judaeos Oratio vi,2; PG xlviii,907). Como a concordância com
o pensamento e a prática da Igreja influenciavam o processo de aceitar escritos
como Escritura canônica, copistas que compartilhavam essa teologia podiam bem
ter decidido contra uma oração que pedia a Deus para perdoar os perseguidores
judeus de Jesus.95 O siríaco Didascalia II,vi,l (Connolly, org., p. 52) faz eco a Lc
23,34a, mas demonstra hesitação: “ Nosso Salvador estava suplicando a seu Pai
por pecadores: ‘Meu Pai, eles não sabem o que fazem, nem o que falam; mas se é
possível, perdoa-os’”. Epp (“ Ignorance” ) menciona que, embora o Códice de Beza
(que originalmente omitia Lc 23,34a) contenha os textos dos Atos a respeito da
ignorância dos participantes judeus na morte de Jesus, parece que ele faz essa
ignorância mais censurável.

De modo geral, depois de examinar os prós e os contras, considero mais fácil


pressupor que a passagem foi escrita por Lucas e eliminada por razões teológicas
por um copista mais tardio do que pensar ter sido ela acrescentada a Lucas por
um copista que se deu ao trabalho de planejá-la no estilo e pensamento lucanos.
Exceto talvez em círculos judeu-cristãos, no século II havia poucos copistas an­
siosos para ver Jesus rezar pelo perdão para os judeus.96 Harnack (“ Probleme”, p.

95 Hamack, Harris e outros consideram esse fator muito importante. Ver em BGJ (v. 1, p. 335) a questão
de hesitação dos escribas a respeito de incluir uma narração onde Jesus perdoou uma adúltera.
96 Contudo, não há um meio de se ter certeza: Um copista pode ter inserido esta oração como oração pelos
romanos, sem jamais imaginar que suas palavras seriam lidas como perdão para os judeus.

138
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário

261), que defendeu com muita firmeza a autenticidade de Lc 22,43-44, está menos
seguro (embora seja favorável) a respeito de Lc 23,34a; ele insiste, entretanto, que
a passagem não deve ser riscada de cópias do texto evangélico.

E irônico que talvez a mais bela sentença da NP seja textualmente duvidosa.


O sentimento por trás dela é a essência de responder à hostilidade no que veio a
ser considerada uma maneira cristã. Esta palavra de Jesus é certamente um fator
fundamental, que leva ao julgamento de Dante sobre Lucas como “o escriba da
bondade de Cristo”. Para alguns, se Jesus não pronunciou essas palavras, elas não
têm nenhuma importância religiosa cristã. Para outros, se Lucas não as escreveu,
elas são mero sentimento apócrifo. Para outros ainda, embora uma resposta afir­
mativa em um desses pontos ou em ambos fosse apreciada, o longo uso dessas
palavras pelos cristãos significa que elas adquiriram autoridade normativa. Se
foram acrescentadas por um escriba, o discernimento desse escriba torna-se uma
interpretação autêntica do Cristo lucano. Que pena! Com demasiada frequência,
não a ausência desta oração do texto, mas a não incorporação dela no coração é
o verdadeiro problema. Flusser (“ Sie wissen”, p. 393) começa seu estudo deste
versículo com a nota melancólica de que os cruzados citavam para os judeus uma
palavra (apócrifa) do Senhor: “Ainda chegará o dia em que meus filhos virão vingar
meu sangue”. Contudo, em seu NT em latim, os cruzados encontravam apresentada
como uma palavra genuína do Senhor a oração em Lc 23,34a — palavra que devia
lhes dar uma perspectiva muito diferente.

{A bibliografia para este episódio encontra-se em § 37, Partes III e IV.)

139
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte:
Atividades no local da cruz
(Mc 15,29-32; M t 27,39-44;
Lc 23,35-43; Jo 19,25-27)

Tradução

M c 15,29-32:29E os que passavam por ali estavam blasfemando contra ele,


sacudindo a cabeça e dizendo: "A h ! Ó aquele destruindo o santuário e construindo-
-o em três dias, 30salva-te a ti mesmo, tendo descido da cruz".
3lSimilarmente, também os chefes dos sacerdotes, escarnecendo dele entre
si com os escribas, estavam dizendo: "O u tro s ele salvou; a si mesmo ele não pode
salvar. 32Q u e o Messias, o Rei de Israel, desça agora da cruz, a fim de podermos
ver e crer".
M esm o os que tinham sido crucificados junto com ele estavam insultando-o.
M t 2 7,39-44:39M a s os que passavam por ali estavam blasfemando contra ele,
sacudindo a cabeça 40e dizendo: " Ó aquele destruindo o santuário e em três dias
construindo, salva-te a ti mesmo, se tu és Filho de Deus e desce da cruz"
4lSimilarmente, também os chefes dos sacerdotes, escarnecendo dele com os
escribas e anciãos estavam dizendo: 42"O u tro s ele salvou; a si mesmo ele não pode
salvar. Ele é o Rei de Israel — que desça da cruz e acreditaremos. 43Ele confiou
em Deus. Q u e seja libertado se Ele o ama, pois ele disse: 'Eu sou Filho de Deus'".
44Do mesmo modo, até os bandidos que foram crucificados junto com ele
o estavam insultando.
Lc 2 3 ,3 5 -4 3 :35E o povo estava de pé ali observando.
M as havia também governantes zombando, dizendo: "O u tro s ele salvou; que
se salve a si mesmo, se este é o Messias de Deus, o escolhido".
3éAIém disso, também os soldados zombavam, vindo para a frente, levando
para a frente para ele vinho avinagrado, 37e dizendo: "Se tu és o Rei dos ]udeus,
salva-te a ti mesmo". 38Pois havia também uma inscrição acima dele: " O Rei dos
]udeus, este (homem)".

141
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

39Além disso, um dos malfeitores suspensos estava blasfemando contra ele:


"N ã o és tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós".
'“ M as em resposta o outro, repreendendo-o, disse: "T u nem sequer temes a
Deus? Porque estás sob a mesma condenação; 4le na verdade nós justamente, pois
nós estamos recebendo o que é digno do que fizemos, mas ele não fez nada ilegal".
42E ele estava dizendo: "Jesus, lembra-te de mim logo que vieres em teu reino". 43E
ele lhe disse: "Am ém , eu te digo, este dia comigo vais estar no paraíso".
Jo 19,25-27:25M a s estavam de pé perto da cruz de Jesus sua mãe, e a irmã
de sua mãe, M aria de Ciopas, e M aria Madalena. 26Assim Jesus, tendo visto sua mãe
e o discípulo que ele amava de pé perto, diz a sua mãe: "M ulher, olha: teu filho".
27Então ele diz ao discípulo: "O lha: tua mãe". E a partir daquela hora, o discípulo
tomou-a como sua.
£Vft/4,l3: M as um certo indivíduo daqueles malfeitores insultou-os [os judeus],
dizendo: "Foi-nos feito sofrer deste modo, por causa do mal que fizemos; mas este,
tendo se tornado Salvador dos homens [seres humanos], que injustiça ele vos fez?"

Comentário

Na primeira parte da cena da crucificação, os evangelistas preparam o


terreno, ao designar lugar e hora e localizando Jesus na cruz entre dois bandidos
ou malfeitores. Na segunda parte, eles começam a ação do drama, mostrando-nos
como os que estavam presentes no Lugar da Caveira reagiram ao Jesus crucificado.
As reações que eles descrevem vão de negativas a positivas, conforme a perspec­
tiva teológica do evangelista a respeito da Paixão. Em Marcos/Mateus, a reação é
inteiramente negativa. Três grupos são relacionados e todos escarnecem de Jesus.
E outro exemplo dos padrões de três que vemos em toda a NP:1Jesus faz predições
a respeito da sina de três entre os que o seguem (a respeito de Judas, dos discípu­
los e de Pedro); no Getsêmani, Jesus reza três vezes, e três vezes volta e encontra
seus seguidores dormindo; Pedro nega Jesus três vezes; em Marcos, o período na
cruz divide-se nas terceira, sexta e nona horas. A reação negativa pela qual nem
uma única pessoa próxima da cruz é favorável a Jesus enquadra-se no pessimismo
geral que domina a NP marcana desde que Jesus saiu da Última Ceia e começou a

1 Importante aqui, pelo menos para Mateus e Lucas, é outro padrão de três: as três tentações de Jesus por
Satanás no início do ministério que se contrapõem aos três escámios de Jesus no fim de sua vida. Na
cruz, dois dos escárnios em Mateus (Mt 27,40.43) e dois em Lucas (Lc 23,35.37) são expressos como
orações condicionais, do mesmo modo que as três tentações em Mt 4,1-11 e Lc 4,1-13. Na verdade, o
escárnio mateano “ Se tu és Filho de Deus” (comparemos o “Se tu és o Rei dos Judeus” lucano) é verbatim
o mesmo que “Se tu és Filho de Deus” em duas das tentações. O tom das duas tríades é o mesmo.

142
§41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

proclamar uma advertência de escândalo (Mc 14,27). Na maioria dos casos, Mateus
preserva a perspectiva melancólica da NP marcana; e nesta cena na cruz, Mateus
segue Marcos de perto, fazendo apenas pequenas mudanças e acrescentando um
eco veterotestamentário (Mt 27,43) que só intensifica a hostilidade.

Em Lucas, a reação a Jesus na cruz é mista, negativa e positiva. Lucas preser­


va o padrão marcano de três escárnios de Jesus, mas ele circunda os três por uma
estrutura melhoradora, descrevendo no início “o povo” formado por espectadores
neutros, e no final um dos crucificados que é solidário com Jesus. Este último dá
a Lucas a oportunidade de fazer o escárnio terminar com um ato de salvação por
Jesus, outro caso onde Lucas trata o sofrimento de Jesus como salvífico.

Para João, este é o terceiro episódio da crucificação. No primeiro, quando


começou a crucificação, “os chefes dos sacerdotes dos judeus” foram silenciados
por Pilatos;2 no segundo, ao tratar Jesus como um criminoso a ser despojado de
suas roupas, os soldados sem saber cumpriram as Escrituras. Agora, encontramos
uma mistura de amigos, discípulos e parentes de pé perto da cruz, que compõem
uma comunidade de fiéis que Jesus institui como sua verdadeira família. Aqui, não
há escárnio de Jesus na cruz; ele triunfa sobre os inimigos.

Vou dividir meu estudo em três subseções. A primeira comenta o triplo es­
cárnio de Jesus comum aos sinóticos, embora Lucas modifique o esquema marcano.
A segunda examina o adendo ao esquema em Lc 23,40-43 onde um dos malfeito­
res suspensos toma o lado de Jesus contra o outro malfeitor que escarneceu dele
blasfemando — em outras palavras, o lado positivo da imagem lucana. A terceira
comenta a cena joanina bastante positiva ao pé da cruz.

0 triplo escárnio de Jesus (Mc 75 ,29 -3 2; M t2 7,3 9 -4 4 ; Lc 23,35-39)

Embora esta seja uma descrição sinótica comum, há pequenas variações


mateanas de Marcos e lucanas maiores. Vou usar um quadro para fazer uma
comparação geral. Os números 1, 2 e 3 à esquerda representam os três escárnios
na ordem em que ocorrem em cada Evangelho; as letras a, b e c representam

2 No artístico equilíbrio quiástico joanino (§ 38 C), exatamente como depois da introdução “ os chefes dos
sacerdotes dos judeus” enfrentam Pilatos no Episódio 1 para fazer um pedido a respeito de Jesus que
Pilatos frustra, também antes da conclusão “os judeus” reaparecem no Episódio 5 para fazer a Pilatos
outro pedido a respeito de Jesus (agora morto) que ele mais uma vez frustra. Mas eles não confrontam
Jesus enquanto ele pende da cruz.

143
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

respectivamente os escarnecedores, o assunto do escárnio e o desafio a Jesus para


salvar-se a si mesmo. Somente sob Mateus são mencionadas diferenças de Marcos.3

Marcos Mateus Lucas


o povo observa
1 a. transeuntes blasfemam governantes zombam
k destruindo o santuário + Filho de Deus Messias de Deus; escolhido
c. salva-te a ti mesmo; desce salvou outros; salve a si mesmo
2 a. chefes dos sacerdotes, escribas + anciãos soldados escarnecem
escarnecem
b. Messias, Rei de Israel Rei de Israel Rei dos Judeus
c. salvou outros; não a si mesmo salva-te a ti mesmo
desce, para crermos

Filho de Deus
seja libertado
3 a. dois cocrucificados zombam bandidos um malfeitor suspenso com ele blasfema
b. Messias
outro suspenso com ele solidariza-se; irá
para o paraíso

Antes de comentar cada escárnio, uma olhadela geral deve deixar claro
que a expansão lucana é, na maior parte, dependente de Marcos — a única séria
exceção possível é o assunto do diálogo entre Jesus e o malfeitor solidário. Lucas
cria um prefácio para o triplo escárnio, adaptando os transeuntes marcanos ao
povo e lhes atribuindo um papel neutro. Cria uma sequência para o triplo escárnio,
dividindo os dois cocrucificados marcanos e fazendo um deles solidário. Como ele
não tem transeuntes, Lucas preenche a lacuna na estrutura triádica, substituindo
por soldados. Na verdade, Lucas transforma o escárnio do meio em um compêndio
de cenas marcanas às quais ele não recorreu antes: escárnio por soldados romanos
imediatamente depois do julgamento romano (Mc 15,16-20a), a oferta de vinho (Mc
15,23 + 36) e a inscrição da acusação “ 0 Rei dos Judeus” (Mc 15,26). Com essa
observação geral, tratemos dos componentes um por um.

Primeiro escárnio em Marcos/Mateus (Mc 15,29-30; Mt 27,39-40).


Nenhum estudo deste escárnio inicial enquanto Jesus pendia da cruz pode se
permitir fazer vista grossa a seu caráter dramático. Os dois Evangelhos ilustram

3 Uma pequena diferença que achei complicada demais para incluir é que Mateus junta mais os escárnios
que Marcos. Ele repete o “Similarmente” marcano para introduzir o segundo escárnio, mas acrescenta
“ Do mesmo modo” para introduzir o terceiro escárnio. 0 mesmo efeito é obtido colocando o título “Filho
de Deus” no primeiro e no segundo escárnios.

144
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

amplamente a veemente hostilidade das autoridades judaicas determinadas a con­


seguir a morte de Jesus. Na verdade, no caso de uma multidão que viera pedir a
Pilatos para soltar um prisioneiro na festa, as resolutas autoridades conseguiram
instigar essa multidão a pedir a soltura de Barrabás e a crucificação de Jesus.
Mas aqui encontramos simples transeuntes judeus4 dos quais não há indicação de
terem encontrado Jesus antes e que não foram pré-programados pelas autoridades;
contudo, a primeira reação deles é blasfemar contra o crucificado, com base no
que ouviram a respeito dele.5 “ Blasfemar” é palavra significativa para Marcos e
proporciona inclusões com usos anteriores.6 No início (Mc 2,6-7 = Mt 9,3), Jesus
foi acusado de blasfêmia porque perdoava pecados, poder exclusivo de Deus. No
final do julgamento pelo sinédrio (Mc 14,61-64 = Mt 26,63-66), Jesus foi conde­
nado por blasfemar porque disse que era o Messias, o Filho do Bendito, o Filho do
Homem que seria visto à direita do Poder. No início de Marcos (Mc 3,22.28-30 =
Mt 12,24.31-32), escribas de Jerusalém eram associados ao cometimento de um
pecado eterno por blasfemar contra o Espírito Santo que operava nos exorcismos
de Jesus — eles o consideravam possuído por um espírito impuro. Agora, no fim,
quando Jesus pende da cruz, os transeuntes blasfemam contra Jesus, desafiando
seu poder de destruir o santuário e construí-lo em três dias.7 Assim, em Marcos,
a imagem de discórdia hostil é consistente do começo ao fim.

Antes de dar voz à blasfêmia deles, os transeuntes se comunicam pela lin­


guagem corporal, quando sacodem a cabeça de modo derrisório. Como veremos
a seguir (a respeito de Lc 23,35a), desse modo eles imitam uma ação que o AT
associa ao comportamento dos maus para com o justo sofredor. Começam a expressar

4 Marcos/Mateus não identificam os transeuntes como judeus, mas em um local judaico, o fato de não lhes
dar outra identidade certamente não permitia que os leitores chegassem a outra conclusão.
3 Já comentamos Mt 27,25, onde “todo o povo” assume a responsabilidade pela morte de Jesus (“Seu san­
gue sobre nós e sobre nossos filhos”). Marcos não é tão sistemático, mas o impacto geral desta narrativa
levaria a alguma conclusão a respeito do envolvimento repreensível do povo?
6 Mencionei, acima (§ 23, Elemento C), o que se toma óbvio aqui: no uso atestado neste período, blasphemein
não tem nenhuma inferência de pronunciar o nome sagrado YHWH. Envolve um insulto e, na maioria
das vezes, reflete arrogância, pela blasfêmia ou o blasfemado. Aqui, não tem diferença significativa
de empaizein (“escarnecer” ) e oneidizein (“injuriar” ), que Marcos/Mateus usam no segundo e terceiro
escárnios, exceto talvez na intensificação da irreverência.
' Esta blasfêmia é mais repreensível porque, em Mc 7,22, Jesus mencionou que ela é um vício que se
origina no coração das pessoas.

145
Q uarto »to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

seu desprezo com um forte expletivo: “Ah” (toque dramático marcano que Mateus,
mais moderado, omite).8

O assunto declarado que dá origem ao primeiro escárnio de Marcos/Ma-


teus é a acusação de que Jesus queria ou podia destruir o santuário do Templo e
reconstruí-lo em três dias — acusação feita de forma participial vocativa, quase
como se “aquele destruindo o santuário” tivesse se tornado descrição proverbial
para identificar Jesus. E óbvio que essa redação reproduz o testemunho dado contra
Jesus no julgamento pelo sinédrio judaico9 (testemunho falso e inconsistente de
Mc 14,57-59; legalmente testemunho suficiente de Mt 26,60-61). O modo de ser
colocada nos lábios de transeuntes sugere que a acusação é bem conhecida e que,
não importando o que Mateus tinha em mira ao chamar de falso o testemunho que
a invocava, ele não deixou claro que Jesus nunca a disse. Com toda a probabilidade,
não se espera que o leitor pergunte como essa alegação de Jesus ficou tão conhecida.
A reação dos transeuntes a ela na forma atual indica que seu caráter ofensivo não
se relaciona integralmente com as frases “feito por mão humana” e “não feito por
mão humana”, precisões interpretativas presentes em Mc 14,58, mas ausentes aqui
(e ausentes nos dois relatos mateanos do dito).

Quando lembramos que havia dois temas no julgamento pelo sinédrio ju­
daico em Marcos/Mateus, vemos que aqui há um esforço deliberado para recordar
o julgamento todo.

Temas do julgamento Escárnios marcanos Escárnios mateanos


1. Destruição do santuário 1. igual 1. igual + Filho de Deus
2. Messias, Filho do Bendito ou de Deus 2. Messias 2. Rei de Israel
Rei de Israel Filho de Deus

Marcos, que já usou “ blasfêmia” para lembrar a sentença no julgamento,


recorda o tema do primeiro julgamento no primeiro escárnio e o tema do segundo

8 O grego oua é usado em Epicteto para expressar admiração. Contudo, achando admiração desdenhosa
insatisfatória, Bishop (“oua”) sugere relacionar a expressão marcana ao arábico ’ua‘, advertência para
“ vigiar” pelo que cavalga um asno ou um camelo — os transeuntes advertem Jesus para ter cuidado
consigo mesmo. Sem pretender ser severo, considero isso uma fantasia pedante. Expletivos têm inteligi­
bilidade emocional sem se traçar sua etimologia; o dicionário é bastante informativo a respeito do “ Ah”
que usei para traduzir oua.
9 O uso aqui de “em [en] três dias” em lugar de “dentro de [dia] três dias” de Mc 14,58 (Mt 26,61) é uma
variante inexpressiva. A ordem mateana das palavras aqui, com “ em três dias” antes de “construindo”
(inversão da ordem do escárnio marcano), é a mesma ordem do dito do julgamento.

146
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

julgamento no segundo escárnio. Mateus lembra os dois temas do julgamento no


primeiro escárnio101e então repete “ Filho de Deus” no segundo escárnio. Várias
razões para a ênfase mateana no tema do “ Filho de Deus” se apresentam. Primeiro,
é bem possível que, na ocasião em que Mateus escreveu, o santuário de Jerusalém
já tivesse sido destruído e a incredulidade judaica hostil se concentrasse agora
primordialmente na cristologia, de modo que a questão de Jesus ser ou não o Filho
de Deus estava em primeiro plano nos debates das igrejas e sinagogas. Segundo,
Mateus lembra as tentações de Jesus no início do Evangelho e nelas, “se tu és Fi­
lho de Deus” é tema importante (ver nota 1 acima).11 Mencionei que esta cena de
escárnio em Marcos usa o tema da blasfêmia como uma inclusão com passagens
iniciais de seu Evangelho; Mateus usa “se tu és Filho de Deus” como sua frase
de inclusão. Uma terceira razão para a ênfase de Mateus em Jesus como o Filho
de Deus inclui uma repetição do livro veterotestamentário da Sabedoria em sua
descrição do escárnio do justo pelo ímpio — repetição envolvida com os temas de
ser salvo e libertado que são mais bem examinados abaixo (sob “ O desafio para
salvar-se a si mesmo ou ser libertado” ), no final do segundo escárnio em Marcos/
Mateus, onde Mateus faz uma inserção que facilita esse exame.

Entretanto, aqui já está claro um eco do tema veterotestamentário do escár­


nio do justo. Em § 40, #4, acima, ao estudar a divisão das roupas de Jesus, vimos
a lembrança das palavras de SI 22,19. Abaixo, veremos que as únicas palavras
faladas na cruz por Jesus moribundo em Marcos/Mateus citam SI 22,2. E, assim,
não é surpreendente termos aqui outra reverberação do Salmo 22:12

1(1 O primeiro escárnio marcano justapõe “ destruindo o santuário” e “salva-te a ti mesmo” , sem especificar
gramaticalmente que, se Jesus pode fazer uma coisa, deve ser capaz de fazer a outra. A adição mateana
de “se tu és Filho de Deus” esclarece isso e nos lembra, além do mais, que no julgamento mateano do
sinédrio a acusação de destruir o santuário não era falsa (como era para Marcos), mas levou diretamente
à pergunta do sumo sacerdote quanto a Jesus ser o Filho de Deus.
11 Nos escárnios perto da cruz, Mateus amplia as duas discórdias satânicas da natureza do Filho de Deus.
No início do Evangelho as tentações do diabo culminaram na oferta de um poder condizente com o
padrão do mundo para o Filho de Deus (Mt 4,8-9); no meio do Evangelho, Pedro foi chamado de Satanás
porque julgava o sofrimento irreconciliável com o fato de Jesus ser o Filho do Deus vivo (Mt 16,16.22-23).
Donaldson (“Mockers” ) defende vigorosamente que, nos escárnios, com sua ênfase no Filho de Deus,
Mateus transcendeu a imagem do justo sofredor em Marcos.
12 As palavras gregas em colchetes representam o vocabulário da LXX da passagem do Salmo usada no
relato evangélico do escárnio. Contudo, o uso evangélico da Escritura aqui é tão alusivo que nem sempre
temos certeza se o evangelista está lendo a LXX ou o TM. (McCaffrey, “ Psalm” , p. 86, também invoca a
possibilidade de leituras targumísticas.) Afora as alusões ao SI 22 e a Sb 2 citadas em meu texto, o prof.
E. Boring chamou minha atenção para Jr 48,27 (LXX 31,27), dirigido a Moab como censura: “E Israel
motivo de riso para ti? Foi ele pego entre ladrões para que balances a cabeça sempre que falas dele?” .

147
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. í sepultado ali perto

SI 22,8a: Todos os que me observaram [theorein] zombaram [ekmykterizein]


de mim;

8b: falaram com os lábios, sacudiram [kinein] a cabeça.

Em seu primeiro escárnio de Jesus na cruz, Marcos/Mateus imitam SI 22,8b


na frase a respeito de sacudir a cabeça;13 e, como agora veremos, Lucas recorre a
SI 22,8a quando reformula a passagem marcana.

O “ povo” que vigia (Lc 23,35a). Como expliquei no início desta seção,
Lucas fornece uma estrutura para os três escárnios, acrescentando reações antes
e depois. Se os “ transeuntes” que iniciam a cena marcana formam um grupo hostil
(de judeus) que blasfemam, Lucas começa com um “povo” (judeu) mais benevo­
lente.14 Ao descrever cuidadosamente esse grupo na cena da crucificação e sua
consequência, Lucas prepara a rápida aceitação de Jesus por um grande número
de hierosolimitas em At 2,41.47; 4,4; 6,1. Ao compor a estrutura, Lucas combina a
imagem marcana15 com SI 22,8a e escreve: “ E o povo estava de pé ali observando”.

Por si só, o aparecimento de pessoas em uma execução é negativo, represen­


tando curiosos que vieram se divertir com o espetáculo, como em 3 Macabeus 5,24,
onde uma multidão sai cedo para ver judeus serem executados. Mas a sequência
das referências lucanas ao povo no relato da crucificação indica uma atitude mais
positiva aqui. Certamente, “o povo” perto da cruz em Lc 23,35 é o mesmo que na

13 Isso é certamente indubitável por causa dos usos frequentes do SI 22 na NP; mas “sacudir a cabeça”
encontra-se em outras passagens de aflição e elas podem também ter sido lembradas, por exemplo, Lm
2,15: “ Todos os que passam pelo caminho batem palmas para ti, vaiam e sacodem a cabeça para a filha
de Jerusalém” . As duas frases em itálico encontram-se em Mc 15,29. Bailey (“ Fali” , p. 105) enfatiza
esses antecedentes em Lamentações e certamente há ironia em fazer os hierosolimitas escarnecerem de
Jesus da mesma maneira que os inimigos outrora escarneceram de Jerusalém.
14 Uma exceção à apresentação lucana geralmente favorável do “povo” ( a p ê n d ic e V, A) é Lc 23,13, que
junta o “povo” aos chefes dos sacerdotes e governantes — um grupo que, junto, levou Jesus a Pilatos
para ser castigado (Lc 23,14). Implicitamente, eles faziam parte de um “eles” que é hostil a Jesus em
todo o julgamento de Pilatos (Lc 23,18.21.23) e à vontade de quem Pilatos entrega Jesus (Lc 23,25).
Tentativas para fazer Lucas totalmente consistente ao lidar com esse povo (judeu) não reconhecem que
Lc 2,34 reconheceu Jesus como sinal contraditório que seria “ causa da queda e reerguimento de muitos
em Israel” .
10 Além de mudar os transeuntes marcanos para o povo de pé, Lucas omite o temperamental “sacudindo a
cabeça” marcano e muda o “estavam blasfemando” marcano do primeiro escárnio para o terceiro, ligando-o
ao malfeitor hostil (Lc 23,39). Como Lucas omitiu o tema da destruição do santuário no interrogatório de
Jesus diante do sinédrio, ele o omite também no escárnio.

148
§ 41 .Jesus crucificado, segunda parte:Atividades no local da cruz

“grande aglomeração do povo” que seguiu Jesus ao local da crucificação em Lc


23,27. Embora Lucas não tenha indicado a atitude ou razão deles para seguirem,
o fato de essa aglomeração acompanhar “mulheres que estavam batendo em si
mesmas e lamentando” por Jesus não daria a impressão de que eles tinham uma
atitude negativa para com Jesus.

Aqui, o povo é descrito estando “de pé [histanai] ali observando \theoreiri]".


Mais uma vez, nenhum verbo dessa descrição lucana revela a atitude de “o povo”
para com Jesus crucificado. Em grego que reflete formação semítica, o verbo hista­
nai muitas vezes não transmite nada mais que presença e virtualmente equivale a
“estar” em um lugar. Às vezes, entretanto, Lucas usa-o para pintar um quadro vivo,
como em Lc 23,10, onde ele diz que, diante de Herodes, os chefes dos sacerdotes
e os escribas tinham estado de pé ali, acusando-o [Jesus] insistentemente. Agora,
em contraste com o primeiro grupo transiente marcano, os transeuntes, o povo de
Lucas “de pé ali”, são presença continuada em toda a crucificação,16 pois, quando
Jesus morre, lemos em Lc 23,48: “ Todas as multidões que estavam reunidas para
a observação disso, tendo observado esses acontecimentos, voltaram batendo no
peito”. Ali vemos os resultados da observação (theorein) que começou enquanto
Jesus era escarnecido. Quer o povo já estivesse ou não compadecido, em contraste
com os três grupos de escarnecedores, sua observação levou ao arrependimento.
Desse modo, para Lucas — e isso será mais uma vez enfatizado em relação aos
dois malfeitores — , observar Jesus na cruz endurece a hostilidade de alguns e
amolece o coração de outros.

Primeiro escárnio em Lucas; segundo escárnio em Marcos/Ma-


teus (Lc 23,35b; Mc 15,31-32a; Mt 27,41-42)). Tendo omitido o primeiro grupo
de escarnecedores (os transeuntes que blasfemam) marcanos, Lucas teve de reor­
ganizar para obter seus três escárnios. Seguiu a ordem marcana, no sentido de que
o segundo grupo de escarnecedores marcanos, isto é, os chefes dos sacerdotes e
escribas que escarneciam de Jesus a respeito de ser o Messias, torna-se o primeiro
grupo lucano de escarnecedores: os governantes que zombam de Jesus a respeito
de ser o Messias. Vamos começar examinando em detalhe a passagem lucana.

16 De uma forma diferente, Mt 27,36 também inclui no local da cruz uma continuada presença observadora:
os soldados que se sentam montando guarda sobre ele ali.

149
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

As palavras iniciais são literalmente: “ Havia zombando, entretanto [de]


também [kai] os governantes”. E provável que, sob a influência do kai canhestro,
alguns escribas antigos17e alguns comentaristas modernos18 entendam que a vigília
do povo em Lc 23,35a era malevolente e desse modo complementava a zombaria
dos governantes. Na interpretação da maioria (defendida acima), na qual a vigília
não tem o propósito de ser hostil, há diversas maneiras de explicar o kai. É possível
recorrer a explicá-lo como parte da tomada de empréstimo de Marcos por Lucas
(“também os chefes dos sacerdotes” ), sem prestar atenção suficiente à dificuldade
assim criada acidentalmente. Mais simplesmente a força do kai pode ser adver­
bial, não tendo a implicação de que os governantes estavam zombando também
como outros tinham zombado, mas não só o povo estava de pé ali vigiando, como
também os governantes estavam zombando e dizendo. De certo modo, o kai chama
a atenção para a estrutura paralela das duas partes do v. 35, cada uma tendo um
sujeito acompanhado por um verbo finito, com a força de um tempo imperfeito,19 e
um particípio explicativo que continua a ação do verbo.

Em Marcos/Mateus, os verbos de insulto nos três escárnios são blasphe-


mein, empaizein e oneidizein, nessa ordem. Lucas usa ekmykterizein, empaizein e
blasphemein — é o último o clímax? Sua preferência por ekmykterizein (“zombar” )
ao oneidizein (“ injuriar” ) marcano talvez tenha sido ditada pelo aparecimento de
ekmykterizein em SI 22,8a. (Notemos que desse modo se está pressupondo que Lucas
percebeu o uso de SI 22,8b, mas preferiu usar 22,8a — montagem sutil!) Contudo,
o verbo já estava no vocabulário lucano, que é o único autor no NT a empregá-lo (Lc
16,14). Ele é maravilhosamente expressivo, pois se relaciona com myktos, “nariz”, e
por isso tem parte da conotação de “torcer o nariz para” ou “ ficar de nariz empina-
do”. Archontes, “governantes”, é exclusivo de Lucas na NP (Lc 23,13 e aqui) e, em
Lucas-Atos, às vezes corresponde aos componentes do sinédrio ( a p ê n d ic e V, B6).
Assim, é equivalente ao segundo grupo de escarnecedores marcanos: “os chefes dos
sacerdotes [...] com os escribas”, aos quais Mateus acrescenta os “anciãos” para

1' O Códice de Beza, que tem tendências antijudaicas, omite o “ havia também governantes” lucano, de
modo que o povo está de pé ali, vigiando e zombando dele. As famílias de minúsculas Lake e Ferrar
trazem os governantes zombando dele “com eles” (= o povo).
18 Plummer (Luke, p. 532) conta a vigília do povo como o primeiro de “ quatro tipos de maus-tratos” . E s­
truturalmente, em um episódio devemos suspeitar de quatro, não de três escárnios!
19 0 mais que perfeito de histanai em Lc 23,35a tem essa conotação, do mesmo modo que o perfeito tem
conotação de presente (BDF 971).

150
§ 41 Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

completar os componentes do sinédrio. Contudo, a preferência lucana pelo termo


genérico “governantes” apresenta um sutil contraste com “o povo”. Para Lucas, a
reação judaica a Jesus divide-se na Paixão (como na história subsequente): o povo
como um todo não é hostil, mas os governantes são. E muito diferente da perspectiva
mateana, onde “todo o povo” (Mt 27,25) toma o lado das autoridades.

Marcos traz os chefes dos sacerdotes “escarnecendo dele entre si” e falan­
do a respeito de Jesus na terceira pessoa. Gnilka (Markus, v. 2, p. 320) acha que
eles estão longe da cruz, mas isso destruiria o cenário onde o primeiro e o terceiro
escárnios estão imediatamente presentes para Jesus. É apropriado que membros
do sinédrio, sob várias designações, apareçam como os principais protagonistas do
primeiro escárnio de Lucas e do segundo escárnio de Marcos/Mateus, pois a cena
tem o propósito de lembrar aos leitores o desafio a Jesus no julgamento ou interro­
gatório do sinédrio. Marcos estabelece o padrão: as acusações contra Jesus pelas
autoridades judaicas quando elas o interrogaram são retomadas para escarnecer dele
enquanto ele pende da cruz, mas acabarão sendo o assunto da justificação divina
de Jesus depois de sua morte. Já examinamos em relação ao primeiro escárnio em
Marcos/Mateus a acusação de que Jesus afirmou poder destruir e construir o san­
tuário. Voltemo-nos agora para os títulos a respeito dos quais Jesus foi interrogado
nos procedimentos judaicos, a saber, “o Messias”, “o Filho do Bendito/de Deus”.
No escárnio perto da cruz, aparecem os seguintes títulos:

Mc 15,32: Messias, Rei de Israel

Mt 27,42: Rei de Israel, Filho de Deus

Lc 23,35-37: Messias de Deus, escolhido (32 escárnio), Rei dos Judeus

Por que Marcos só menciona “ Messias” e não “ Filho do Bendito/de Deus”,


especialmente quando na justificação de Jesus depois de sua morte o centurião
romano confessa-o como o Filho de Deus?20 Este último aspecto, considerado so­
zinho, é inteligível: um gentio não usaria “ Messias” ao confessar Jesus. E essa a
chave para a resposta? Marcos descreve as autoridades do sinédrio escarnecendo

20 Ao examinar esses títulos, farei perguntas em vez de apresentar soluções com firmeza. Aqui, a lógica
dos evangelistas é obscura e talvez a escolha de títulos não fosse tão deliberada quanto muitas soluções
supõem.

151
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto

do que as preocupa, isto é, “o Messias” e a confissão pelo centurião romano da


mesma realidade, mas sob o título de “ Filho de Deus” ?

Uma abordagem semelhante explica em parte o que Marcos acrescenta a


“ Messias”, embora não seja mencionado no julgamento do sinédrio, isto é, o título
“ Rei de Israel?” .21 A respeito deste título, Mateus segue Marcos, embora mantenha-o
bem separado de “ Filho de Deus”, enquanto Lucas muda para “o Rei dos Judeus”.
0 título lucano imita claramente a acusação contra Jesus no julgamento romano,
como evidencia o fato de Lucas atribuí-lo a soldados (romanos). Desse modo, Lucas
nos dá a chave para a intenção de Marcos, a saber: tendo lembrado o julgamento
judaico de Jesus com os temas do santuário e do Messias, Marcos quer também
lembrar o julgamento romano? Mas por que então Marcos não escreveu “o Rei dos
Judeus”, em vez do que realmente escreveu, “ Rei de Israel” ? Ele pretende dizer
(seguido por Mateus) que Pilatos e os romanos usam o título político “o Rei dos
Judeus” (Mc 15,2.9.12.18.26),22 mas que os judeus usam o mais teológico “ Rei
de Israel” ? Nossos indícios para essa suposição são por comparação externa. Em
EvPd 4,11, a inscrição na cruz, erguida por judeus é: “Este é o Rei de Israel”.23
Embora seja agradável pensar que Marcos quer lembrar o julgamento romano, a
sugestão de que o faz dando-nos o conhecido equivalente judaico de “o Rei dos
Judeus” subentende grande sutileza.

A preferência de Mateus por “ Filho de Deus” já foi examinada (sob “ Primeiro


escárnio em Marcos/Mateus”, acima), pois ele o emprega duas vezes, introduzindo-
-o no primeiro escárnio e também substituindo por ele o “ Messias” marcano do
segundo escárnio. Continua intrigante para este comentarista por que Mateus não
deixou “ Messias” ao lado de “ Filho de Deus”. Nada no relato mateano favorece
a tese de que “o Rei de Israel” traduz a acusação no julgamento romano, pois,
ao contrário do escárnio marcano, onde esse título vem depois das acusações a
respeito do santuário e Messias, em Mateus ele aparece entre as duas referências
a “ Filho de Deus”.

21 Dos sete usos marcanos de Christos (“ Messias” ), quatro são seguidos por um título em aposição: Filho
de Deus/do Bendito (Mc 1,1; 14,61), filho de Davi (Mc 12,35), Rei de Israel (aqui). Em Lc 23,2, Jesus
é acusado diante de Pilatos por alegar ser “o rei Messias” .
22 Ver no § 32, v. I, acima o uso deste título pelos rei seculares asmoneus e herodianos.
23 Também segundo Jo 12,12-13, Jesus foi louvado pela multidão quando entrou em Jerusalém: “Bendito
é o que vem em nome do Senhor e o Rei de Israel” .

152
§41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

Embora em Lucas “o Rei dos Judeus” (o terceiro escárnio) apresente menos


problemas como título, as adições que ele faz ao “ Messias” de Marcos são intri­
gantes; de fato, Lucas fala de “o Messias de Deus, o escolhido”. E digno de nota
que Lc 9,20 colocou a confissão de “o Messias de Deus” *2324 nos lábios de Pedro,
quando o paralelo em Mc 8,29 tinha simplesmente “o Messias” (e Mt 16,16 tinha
“o Messias, o Eilho do Deus vivo” ). Se perto da cruz os governantes judeus estão
zombeteiramente remontando a Jesus uma alegação que seus seguidores fizeram
para ele, Lucas tem o cuidado de insinuar para o leitor que o título é primordial­
mente teológico. Quanto ao outro adendo lucano, “o escolhido” (ho eklektos),25 no
relato da Transfiguração em Lucas (Lc 9,35) Deus chama Jesus de “ meu Lilho,
meu escolhido [eklelegmenos]”, cujo paralelo em Marcos 9,7 é “meu Lilho, meu
bem-amado \agapetos\'\ Mt 17,5 seguiu Marcos, mas acrescentou “em quem tenho
muito prazer”, forma completa usada pelos três sinóticos para descrever a voz celeste
no batismo de Jesus. Nas designações da Transfiguração e do batismo, o propósito é
fazer com que os leitores reconheçam a combinação de cristologia régia (SI 2,7: “Tu
és meu filho” ) e a cristologia do servo sofredor (Is 42,1: “ Vede meu servo [...] meu
escolhido, em quem minha alma se apraz” ). Como essa combinação representa a
reflexão cristã pós-ressurreição sobre o ministério de Jesus, os governantes judeus
em Lucas zombam da avaliação mais profunda de Jesus por seus seguidores.

O desafio para salvar-se a si mesmo ou ser libertado (esp. Mt 27,43).


Em relação ao segundo escárnio em Marcos/Mateus e ao primeiro escárnio em
Lucas, estudamos as personagens (autoridades do sinédrio) e os títulos que deram
origem ao escárnio. Mas há um desafio que percorre os dois primeiros escárnios
em Marcos/Mateus e os três em Lucas, a saber, um desafio, expresso de várias

24 Ver também “ Seu Messias” , em At 3,18, e “o Messias do Senhor” , em Lc 2,26 — este último (ou “Senhor
Messias”) é atestado como designação judaica em Salmos de Salomão 17,36(32) — ver BNM, p. 804.
23 Talvez porque “ o escolhido [eleito]” não fosse um título com o qual estivessem familiarizados, os copistas
adaptaram a frase, por exemplo, alguns mss. koirié suavizam Lc 23,35 para “ o Messias, o escolhido de
Deus” , enquanto P7i>tem “o Messias, o Filho de Deus escolhido” . (É o último uma tentativa de incorporar
os dois títulos que Lucas emprega no interrogatório judaico de Jesus: Messias e o Filho de Deus [Lc
22,67.70a]? “O escolhido de Deus” como título para Jesus tem magnífico apoio textual em Jo 1,34. Era
“ o escolhido ou eleito” um título no Judaísmo pré-cristão? O título aparece uma dúzia de vezes em 1
Henoc, entre 45,3 e 61,10, isto é, na parte de “Parábolas” que não foi encontrada entre as muitas cópias
de 1 Henoc de Qumrã, e isso mostra sinais de interpolação cristã; contudo, ver § 22 A, acima. 0 título
aparece em 4Q Mess Ar, com referência a uma criança recém-nascida que terá um grande futuro, mas
sem contexto suficiente para identificar essa figura como o Messias — assim J. A. Fitzmyer, FESBNT,
p. 127-160 versus J. Starcky.

153
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

maneiras, a Jesus para salvar-se a si mesmo,26 descer da cruz ou ser libertado por
Deus. Mt 27,43 acrescenta ao que foi adotado de Marcos todo um versículo para
tratar desse desafio. Permitam-me relacionar as diversas expressões, seguidas pelos
Evangelhos em que ocorrem e por uma indicação (1,2 ou 3) quanto a qual dos três
escárnios as contém nesse Evangelho específico.27

i. Salva-te a ti mesmo: Marcos 1, Mateus 1, Lucas 2-3

ii. Outros ele salvou; a si mesmo ele não pode salvar: Marcos 2, Mateus 2

Outros ele salvou; que se salve a si mesmo: Lucas 1

Ui. Desce da cruz: Marcos 1-2, Mt 1-2

iv. Ele confiou em Deus. Que seja libertado se Ele o ama (adendo de Mateus
a 2)

Diversos itens são imediatamente notáveis. Primeiro, venho tratando o


primeiro escárnio lucano como equivalente a certos aspectos do segundo escárnio
em Marcos/Mateus; sob ii está evidente que a equivalência se estende também ao
desafio. Contudo, Lucas não aprecia a redação marcana: “a si mesmo ele não pode
salvar”. Para Marcos, esse é um endurecimento artístico de atitude pelos segundos
escarnecedores (as autoridades do sinédrio) em relação aos primeiros (simples
transeuntes) — em Marcos, as autoridades estão certas da impotência de Jesus.
Mas o Jesus da NP lucana, embora não tão onipotente quanto o Jesus joanino, é
descrito como estando mais no controle de seu destino que o Jesus marcano; e
Lucas acharia “ não pode salvar” forte demais. Segundo, Lucas, que emprega três
vezes o tema marcano de Jesus salvar-se a si mesmo, evita o desafio marcano de
que Jesus deve descer da cruz. Teria Lucas considerado “ Salva-te a ti mesmo, tendo
descido da cruz” tautologia?

26 Pesch (Markus, v. 2., p. 488) acha que a incapacidade de salvar-se a si mesmo era um teste padrão que
traía o falso messias, mas as provas que apresenta (Apocalipse de Elias e Hipólito) são de mais de um
séeulo depois e encontradas em um contexto cristão.
2‘ Observemos que, sob i, o terceiro escárnio lucano adapta o desafio (tomado de Marcos) ao contexto no
qual ele é dirigido a Jesus por um malfeitor “ suspenso” com ele: “ Salva-te a ti mesmo e a nós” . 0 desafio
no segundo escárnio lucano também está na segunda pessoa (“ Salva-te a ti mesmo”); e o Códice de Beza
harmoniza também o desafio no primeiro escárnio (Lc 23,35b), mudando-o da terceira para a segunda
pessoa: “Tu salvaste outros, salva-te a ti mesmo” .

154
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

Mostrei acima como SI 22,8 deu forma ao primeiro escárnio de Marcos/


Mateus e à descrição lucana de “o povo” que precede os escárnios. O versículo
seguinte do Salmo influencia o desafio a Jesus:

SI 22,9a: Ele confiou no Senhor; que Ele o salve;

9b: Que Ele o salve porque o ama.

A referência em 9b a Deus que salva o justo foi adaptada nos desafios i e i i a


Jesus (que alega ser Filho de Deus ou o Messias). 0 desafio iv, forma relatada apenas
em Mt 27,43, faz uso claro também de SI 22,9a.28 Como a razão sarcástica de ser o
desafio i apresentado a Jesus é que “ele disse: ‘Eu sou Filho de Deus’”, é provável
que Mateus tenha em mente outro escárnio bíblico do justo sofredor pelo ímpio:
Sb 2,17a: Vejamos se suas palavras são verdadeiras,
17b: e comprovemos [peirazein] o que lhe acontecerá.
18a: Pois se o justo é filho de Deus,
18b: Ele o ajudará e o libertará da mão dos que se levantam contra ele.29

Claramente, é forte a atmosfera veterotestamentária do desafio arremessado


a Jesus.

Entretanto, há também temas derivados dos relatos evangélicos do ministério


de Jesus. “ Ele salvou outros” do desafio ii descreve globalmente uma série de ações,
pois “salvar” é frequente em narrativas de Jesus perdoando pecados e curando.30
Talvez seja especialmente significativo o uso evangélico de “salvar” para quando
Jesus liberta as pessoas da morte (Mc 5,23; Lc 8,50) — o Jesus que salvou outros
da morte deve ser capaz de salvar a si mesmo da morte.31 Mas os desafiantes não

28 SPNM, p. 287-288, debate em detalhe que forma linguística do texto do Salmo motivou Mateus e conclui:
“Embora possam estar presentes influências do hebraico e da LXX, não há nenhuma relação necessária
com uma dessas duas versões” . A questão é complicada pela liberdade de Mateus ao adaptar e por ele
ter em mente outras passagens. Aytoun, “H im selfrem onta “A si mesmo ele não pode salvar” , no desafio
ii ao último verso de SI 22,30, verso muito obscuro, que diz literalmente “ Sua alma ele não faz viva” e
que, na interpretação de Aytoun, significa que o sofredor não se salvou.
29 O contexto em Sb 2,19-24 continua com a resolução do ímpio de torturar e condenar o justo a uma morte
vergonhosa, “pois de acordo com suas palavras, Deus cuidará dele” .
30 Por exemplo, Mt 1,21; Mc 3,4 e par.; Lc 7,50; 8,48; 17,19; 18,42.
31 A sugestão de que Jesus não pode se salvar é particularmente irônica em Mateus, onde os leitores já
ouviram Jesus dizer: “ Pensas que não sou capaz de recorrer a meu Pai, e Ele imediatamente me proverá
com mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26,53).

155
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

demonstram saber que a advertência de Jesus aos discípulos tinha exatamente o


sentido oposto: “ Quem quiser salvar sua vida a perderá” (Mc 8,35 e par.). Do mesmo
modo, o desafio “desce da cruz” é exatamente o contrário da exigência que Jesus
fez aos discípulos para tomar a cruz e segui-lo.32 Em Marcos, o desafio para descer
da cruz é apresentado “a fim de podermos ver e crer”. Mas os leitores marcanos já
ouviram Jesus falar desses forasteiros na linguagem de Isaías (Mc 4,12, de Is 6,9):
“Eles na verdade veem, mas não percebem”. Mt 27,42 concentra-se no elemento
de crença: “ Desce da cruz e acreditaremos”.33 A ironia é que, se descesse, ele se
tornaria ipso facto inacreditável.

Já indiquei, na nota 1, os paralelos verbais entre esses três escárnios de


Jesus no final de Mateus e as três tentações de Jesus no início. “ Se tu és Filho de
Deus [...] desce da cruz” é muito semelhante a “ Se tu és Filho de Deus, joga-te
para baixo [do pináculo do Templo]” (Mt 27,40; 4,6). A intenção é que os leitores
mateanos reconheçam em cada um dos versículos que, se Jesus fizer o que o de­
safiador quer que ele faça, deixará de ser o que a alegação afirma: Ele não será o
Filho de Deus. Mais exatamente, só quando ele permanecer na cruz até morrer,
acreditarão ser ele Filho de Deus (Mt 27,54; Mc 15,39).

Segundo escárnio lucano (Fc 23,36-38). Em lugar do primeiro conjunto


marcano de zombadores, “os transeuntes”, Lucas colocou “o povo” e lhe deu um
papel neutro para estruturar os escárnios. Logicamente, isso significa que para
manter o padrão de três, Lucas tinha de introduzir um grupo substituto de escar-
necedores (ver o quadro no início desta subseção). Consequentemente, depois dos
governantes zombeteiros que formam o primeiro escárnio lucano, agora encontramos:
“Além disso, também os soldados zombavam”.34 O aparecimento desses soldados
finalmente especifica o vago “eles” que estão encarregados da execução de Jesus

32 Mc 8,34; Mt 10,38; 16,24; Lc 9,23; 14,27.


33 0 mesmo desafio seria expresso 150 anos mais tarde pelo incrédulo Celso: “Por que ele de qualquer
maneira não manifesta agora alguma coisa divina e se liberta dessa vergonha?” (Orígenes, Contra Celso
ii,35).
34 0 início dos três escárnios lucanos de Jesus na cruz (Lc 23,35b.36.39) é marcado por um de pospositivo,
traduzido por: “Mas [...] Além disso [...] Além disso...” . Apesar do costume de descrever esses três
insultos como “ escárnios” , o verbo empaizein, que é mais apropriadamente traduzido “escarnecer” ,
aparece apenas na segunda ação. Antes, os três Evangelhos usaram-no na terceira predição da Paixão
(Mc 10,33-34; Mt 20,19; Lc 18,32). Lucas usou empaizein nas duas cenas anteriores da NP, nas quais
Jesus foi ridicularizado (antes do julgamento judaico [Lc 22,63] e na presença de Herodes [Lc 23,11]),
enquanto Mc 15,20 e Mt 27,29.31 usaram-no apenas para o escárnio depois do julgamento por Pilatos.

156
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

desde que Pilatos o entregou.33*35 Embora não os identifique, Lucas com certeza quer
que pensemos em soldados romanos (com a devida vênia a Walaskay, “ Trial”, p. 92).
Na terceira predição lucana da Paixão (Lc 18,32), Jesus disse que seria entregue
aos gentios e escarnecido. Outros onze usos de stratiotes (“soldado” ) em Lucas-Atos
referem-se a soldados que oficiais romanos, como centuriões e tribunos, tinham
sob suas ordens.36 O título que eles usam aqui para escarnecer de Jesus é “o Rei
dos Judeus”, título que nunca se origina de judeus nos Evangelhos e que repete a
acusação de Pilatos (Lc 23,3) no julgamento romano. Por conseguinte, enquanto
o primeiro e o segundo escárnios marcanos avançam de transeuntes para chefes
dos sacerdotes e os escribas, o primeiro e segundo escárnios lucanos avançam de
governantes judaicos para soldados romanos. Os governantes judaicos zombam de
Jesus sob o título religioso “o Messias de Deus” ; os soldados romanos escarnecem
dele sob o título político “o Rei dos Judeus”. 0 fato de ambos desafiarem-no para
salvar-se a si mesmo da cruz mostra que tanto judeus como romanos entenderam
mal a identidade de Jesus.

Diversos aspectos do relato lucano exigem atenção. O primeiro é o paralelis­


mo entre a cena lucana no local da cruz onde Jesus é escarnecido pelos soldados
romanos e a cena de Marcos/Mateus no pretório depois do julgamento por Pilatos,
onde Jesus é escarnecido por uma coorte romana (§ 36). Aqui, em Lucas, e ali,
em Marcos, o verbo empaizein (“escarnecer” ) é usado, e o escárnio concentra-se
no título “ Rei dos Judeus”. Os escribas do Códice de Beza e da OS notaram essa
relação; de fato, em seu texto da cena lucana na cruz, exatamente como no escárnio
marcano pós-Pilatos, os soldados dizem: ‘“ Salve [chaire\, 0 Rei dos Judeus’, [...]
depois de terem posto nele também uma coroa de espinhos”. Pode-se dizer que há
em Marcos quatro conjuntos nos quais tem lugar o escárnio: julgamento judaico,
julgamento romano, na cruz e quando Jesus morre (Mc 15,36-37).37 O primeiro
e o terceiro são por judeus, o segundo por romanos e o quarto simplesmente por

33 Lc 23,26: “eles o levaram embora” ; Lc 23,33: “ali eles o crucificaram” ; 23,34: “ eles tiraram a sorte” .
36 As únicas exceções na prática lucana total estão em At 12,4.6.18 com os soldados do rei Herodes Agri-
pa I. Contudo, como esse rei assumira o papel governante antes desempenhado por prefeitos romanos,
pode-se dizer que Lucas sempre usa stratiotes para soldados de autoridade governante civil. 0 termo
não deve ser confundido com o strategos usado por Lucas-Atos para os “capitães do Templo” , que são
figuras sacerdotais acompanhadas por milícias judaicas encarregadas da ordem no Templo (a p ê n d ic e V,
B4), nem com strateuma, que Lc 23,11 usa para tropas de Herodes.
37 A relação entre o relato lucano e o último episódio marcano da crucificação que envolve a oferta de vinho
será examinada em breve.

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Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto

“alguém”. O sentido lucano de método fá-lo reduzir os escárnios a dois: um antes


do julgamento judaico, pelos captores judeus que estavam detendo Jesus, e o outro
na cruz, por soldados romanos.

O segundo aspecto que merece atenção é a ação dos soldados “vindo para
a frente, levando para a frente para ele vinho avinagrado [oxos]”. O fato de terem
os soldados de se adiantar (proserchesthai)38 implicitamente reconhece que Lucas
manteve os militares romanos nos bastidores até agora. Prospherein é o segundo
verbo lucano em sequência composto com pros, donde minha tradução repetitiva:
“levar para a frente”. O verbo é muitas vezes usado para uma respeitosa apresentação
religiosa de presentes (como em Mt 2,11), de modo que, em si, a ação descrita aqui
não é escarnecedora. Somente quando ouvimos as palavras dos soldados fica claro
que sua oferta de vinho barato39 é um presente burlesco para o rei.

Em § 40, #2, descreví os relatos em Marcos/Mateus de duas ofertas de


vinho para Jesus na cruz. No início, em Mc 15,23 (= Mt 27,34), eles (soldados
romanos) oferecem oinos ou vinho doce, misturado com mirra (fel), provavelmente
com o propósito caridoso de diminuir o sofrimento de Jesus; mas ele não o toma.
No hm, em Mc 15,36 (= Mt 27,48), um espectador enche uma esponja com oxos
ou vinho amargo, encaixa-a em um caniço e (em um contexto de escárnio) dá para
Jesus beber; mas não nos é dito se ele bebeu ou não.40 De modo não inesperado,
Lucas simplifica, relata apenas uma oferta de vinho e baseia sua narrativa princi­
palmente na segunda oferta marcana de vinho — afinal de contas, a primeira foi
ineficaz, pois Jesus a recusou. Na verdade, a única imitação possível da primeira
oferta marcana foi a especificação lucana daquilo que Marcos só subentende: os
soldados foram os agentes. Lucas também torna específico o escárnio insinuado

38 Este verbo, que ocorre 10 vezes em Lucas, 10 nos Atos (em comparação com 5 em Marcos, 1 em João),
ainda não tem a frequência (52 vezes) nem a importância mateanas (§ 13).
39 É difícil determinar a impressão transmitida pela oferta de oxos, o vinho tinto seco ordinário, diluído e
avinagrado (relacionado com oxys, “ ácido” ) que era a bebida posca ou comum dos soldados romanos,
por exemplo, dos estacionados em Hermópolis no Egito, conforme atestado por descobertas em papiros.
Para Mateus e talvez também para Marcos, o uso da palavra oxos na NP é uma imitação de SI 69,22 (ver
§ 42, sob “Elias e a oferta de vinho avinagrado” ), mas será que Lucas pretende que seus leitores façam
essa ligação e teriam eles feito?
w Em Jo 19,29-30, “eles” (os soldados?) põem uma esponja embebida em oxos em um pouco de hissopo e
a erguem até os lábios de Jesus; ele toma esse vinho. Não há nenhum escárnio envolvido. Nada sugere
que Lucas conhecesse a tradição joanina ou tenha recorrido ao relato de João.

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§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

pelo contexto no qual Marcos coloca a segunda oferta.41 Ao trazer escárnio e oxos
aqui, Lucas elimina diversos itens da repetição marcana.

Um terceiro aspecto é a informação: “ Pois havia também uma inscrição acima


dele: ‘O Rei dos Judeus, este (homem)’”. Lucas usa isso para explicar por que os
soldados foram impelidos a dizer a Jesus: “ Se tu és o Rei dos Judeus” — eles leram
o título que estava diante de seus olhos na cruz. Como vimos em § 40, #6, Mc 15,26
(= Mt 27,37) menciona a inscrição no início do relato da crucificação simplesmente
como item pertinente, sem dar explicações teológicas ou narrativas. Por outro lado,
Jo 19,19-22 amplia o título como centro do primeiro episódio narrativo do relato da
crucificação, trabalhando com o sentido dramático da linguagem empregada e o
protesto zangado dos chefes dos sacerdotes dos judeus, que fizeram Pilatos insistir
na afirmação da realeza de Jesus em relação aos judeus. O tratamento dado por
Lucas fica a meio-caminho entre as duas abordagens, pois Lucas usa os detalhes
marcanos com um instinto para sua importância narrativa não diferente de João.42
Como em Lucas a inscrição alimenta o escárnio dos soldados, ela não é apenas
um aviso do crime do acusado; é um motejo público de suas pretensões. Isso está
entrevisto no houtos (“este” ) que Lucas acrescenta à redação marcana da inscrição:
“ O Rei dos Judeus — este indivíduo!”.

Nessas condições, a meu ver o escárnio pelos soldados, exclusivo de Lucas,


é totalmente formado por esse evangelista, a partir de matéria-prima marcana, que
manifesta seu costumeiro talento para organização reajustada, simplificação por
meio da abstenção de repetição e preferência por uma fluência narrativa mais suave.

O terceiro escárnio (Mc 15,32b; Mt 27,44; Lc 23,39). Marcos/Mateus


concluíram o cenário da crucificação (§ 40) falando de dois bandidos que foram
crucificados ao lado de Jesus; Marcos/Mateus encerram a segunda parte da cena
da crucificação voltando a esses cocrucificados. Nos três sinóticos, este é o escárnio
mais conciso de Jesus na cruz. (Em Marcos, isso não é surpreendente, pois as três
cenas de oração em seu relato do Getsêmani também ficam cada vez mais concisas.)

111 O desafio nos escárnios marcanos para descer da cruz talvez lembrassem a Lucas o insulto que acom­
panhou a última oferta marcana de vinho, quanto a querer ver se Elias viría descê-lo da cruz.
42 Na verdade, escribas antigos traduziram erroneamente a semelhança funcional com João em uma relação
verbal. Como relatado em § 40, nota 72, em Lc 23,38 a tradição textual koiné substituiu “uma inscrição
acima dele” por “escrito acima dele em letras gregas, latinas e hebraicas” — certamente glosa tirada
de João. Sem essa glosa, o texto de Lucas não trai nenhuma dependência de João.

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Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Marcos introduz um novo verbo, oneidizein (“ injuriar, censurar” ), no imperfeito, e


a força contínua do tempo mais a força do kai inicial tornam pungente a concisão:
até os cocrucificados não pararam de injuriar Jesus. Marcos não dá expressão a
essa injúria, por isso Mateus presume ter ela sido feita “do mesmo modo” que os
escárnios precedentes.43 Quando (Mc 15,27) introduziu essas personagens, Marcos
falou delas como “dois bandidos” (plural de lestes; também Mt 27,38); mas aqui
ele não reproduz essa terminologia: eles são apenas cocrucificados. E evidente que
Marcos não está interessado no crime do qual essas personagens são culpadas, mas
somente em sua sina lamentável na cruz. Ele não está interessado no conteúdo do
que eles disseram, mas apenas no fato de terem injuriado Jesus. A força do terceiro
escárnio, então, é a acumulação de hostilidade: não só os transeuntes casuais e
os inimigos determinados de Jesus no sinédrio, mas até os infelizes que comparti­
lham sua sina falam mal dele. Na cruz, Jesus não tem amigos: é um justo solitário,
estreitamente rodeado por todos os lados de inimigos. Mais uma vez, pode ser que
o Salmo 22 esteja nos bastidores, pois no v. 7 assim fala o justo: “ Eu sou alguém
injuriado [oneidos] por seres humanos e considerado um nada pelo povo [laos ]”.
Palavras da mesma raiz, como oneidizein, são comuns em relatos veterotestamen-
tários que descrevem o escárnio sofrido pelo justo (SI 69,10; 89,51-52; Sb 5,3).

A versão lucana do terceiro escárnio tem significativas diferenças de Mar­


cos.44 Quando Lucas introduziu os criminosos que seriam crucificados com Jesus
em Lc 23,32.33, chamou-os de malfeitores (plural de kakourgos) e ele repete essa
designação aqui.45 Ao contrário de Marcos, ele quer enfatizar não só o destino
infeliz deles, mas também o fato de terem feito uma coisa repreensível. Um deles
será salvo e os leitores precisam ver que a abundante indulgência de Jesus não é
apenas simpatia pelos que sofrem, mas ainda verdadeira misericórdia para com os
pecadores. Na verdade, em Lucas, o primeiro malfeitor faz jus a sua designação. No
primeiro escárnio, os governantes judeus zombaram com incredulidade: “ Se este

” Embora separado do verbo, o grego to d'auto é traduzido por alguns quase como se fosse uma relação
objetiva: “ insultando-o do mesmo modo” .
44 Uma diferença secundária é que Lucas não fala dos que foram “crucificados junto” com Jesus, mas dos
“ suspensos” , isto é, o verbo kremannynai, que será usado para a morte de Jesus em At 5,30 e At 10,39
(“suspendem-no em uma árvore”). Esse verbo, que é mais bíblico, lembra a descrição em Dt 21,22.23 do
castigo para um pecado capital, mas não podemos ter certeza se aqui a intenção é aludir ao Deuteronômio.
45 Lucas é o único Evangelho que nunca usa lestes (“bandido”) para aqueles cuja prisão acompanha a Paixão
de Jesus — nem para Barrabás (Jo 18,40), nem para os cocrucificados (Mc 15,27 e Mt 27,38.44).

160
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

é o Messias”. No segundo escárnio, os soldados romanos escarneceram de Jesus:


“ Salva-te a ti mesmo”. Agora, o malfeitor que está suspenso ao lado de Jesus repete
as duas coisas em sua blasfêmia: “ Não és tu46 o Messias? Salva-te a ti mesmo e
a nós”. Apesar de toda a injustiça envolvida, os governantes judeus e os soldados
romanos tinham a seu favor as formalidades legais de interrogatório e julgamento,
mas o malfeitor (como lhe lembrará seu companheiro) está do outro lado da lei. Sua
blasfêmia contra Jesus é ainda mais infundada que a dos transeuntes a respeito
dos quais Mc 15,29 usou esse verbo. E um Jesus que foi vilipendiado sem causa
que agora mostra misericórdia.

A salvação do outro malfeitor (Lc 23,40-43)

Até aqui na cena presente, que descreve atividades na cruz, Lucas reelaborou
material marcano, mesmo quando criou o versículo introdutório (Lc 23,35) a respeito
do povo em vigília. Esse grupo neutro, colocado antes dos três escárnios hostis,
alertou aos leitores lucanos que a imagem na cruz não era completamente negativa.
Para combinar com esse versículo introdutório, Lucas agora termina a cena com
um episódio centralizado em uma personagem mais que neutra, a saber, “o outro”
malfeitor,47 que serve de testemunha da inocência de Jesus. Mais importante, este
episódio dá a Jesus a oportunidade de falar da cruz as últimas palavras de sua vida
dirigidas a pessoas. Durante os escárnios, ele não respondeu aos que exigiam sinais;
agora, ele fala a um malfeitor que reconhece ser criminoso. O outro ridicularizou

46 Vinte dos 53 usos neotestamentários de ouchi ocorrem em Lucas-Atos (Marcos: 0; Mateus: 9; João: 5); a
palavra pressupõe uma resposta afirmativa: na opinião desse malfeitor, Jesus alega ser o Messias. Esse tema
lembra o segundo escárnio marcano (Mc 15,32), onde Jesus é chamado sarcasticamente de “o Messias, o Rei
de Israel” . 0 Códice de Beza omite “ Não és tu o Messias?” . Por outro lado, a tradição koiné de Lucas (“Se
tu és o Messias”) adapta o terceiro escárnio lucano ao segundo, que diz: “ Se tu és o Rei dos Judeus” . Agnes
Lewis (“New” ) aponta para a leitura de OS’1": “Não és tu o Salvador” , leitura harmonizada com “Salva-te a
ti mesmo e a nós” . G. G. Martin (“New” ) aponta para EvPd 4,13, que fala de Jesus como “o Salvador dos
homens [seres humanos]” . EvPd e OS'"1refletem uma tradição comum, ou o primeiro influenciou o segundo?
Como datá-los a respeito um do outro é incerto; ambos são do século II.
47 Lucas nunca atribui outra designação. O popular “ bom ladrão” é imperfeito por dois motivos: primeiro,
o uso de lestes (“bandido” ) para o cocrucificado, embora encontrado em Marcos/Mateus, é evitado por
Lucas; segundo, Lucas não usa “ bom” para descrever este malfeitor, mas “mau” (kakos). Na tentativa de
ser mais preciso, há quem prefira “ penitente” a “ bom” ; contudo, como vou mencionar, embora reconheça
sua culpa, o malfeitor nunca é explícito a respeito de contrição. É inevitável que houvesse tentativas de
ser mais preciso, fornecendo diversos conjuntos de nomes para os dois criminosos (§ 40, #7). O malfeitor
salvo é identificado como o que está “ à direita” (Mc 15,27) de Jesus e o blasfemador como o que está “ à
sua esquerda [de Jesus]” .

161
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Jesus como rei implausível; agora, Jesus responde que este dia ele próprio estará
no paraíso. O malfeitor ímpio retomou o desafio: “ Salva-te a ti mesmo” (descendo
da cruz), e a ele acrescentou: “e (salva) a nós” ; Jesus salvará um dos “nós”, mas
permanecendo na cruz e entregando-se a seu Pai.

Onde Lucas obteve este episódio? Não há indícios de que Marcos (ou
Mateus, ou João) soubesse dele.48 Lucas tirou-o de uma tradição independente?
Alguns (Fitzmyer, Jeremias, Taylor) respondem afirmativamente, apontando para
aspectos não lucanos, por exemplo, paraíso. Contudo, como vão mostrar as notas de
rodapé, há também aspectos lucanos; assim, não é impossível pensar na cena como
criação teológica lucana.49 Ou é possível defender uma perspectiva intermediária:
Lucas tirou um elemento da tradição independente e desenvolveu-o neste episódio.
Quanto a esse elemento, há duas propostas principais: a) A tese de que o relato em
EvPd 4,13 representa tradição pré-lucana. Nessa tradição, só um dos malfeitores
desempenhou um papel ativo; e ele injuriou os judeus, expressando alguns dos te­
mas, mas não grande parte da redação encontrada em Lucas. Propõe-se que Lucas
combinou essa tradição independente com os dois difamadores cocrucificados de
Marcos. Entretanto, então é preciso supor que havia duas tradições primitivas muito
diferentes a respeito dos cocrucificados, a de Marcos e a do EvPd, cada uma, ao que
tudo indica, desconhecida do preservador da outra, até ambas caírem nas mãos de
Lucas. É também preciso pensar que, por acaso, a tradição primitiva pressuposta
para Evangelho de Pedroo EvPd se harmoniza extremamente bem com a teologia
desse Evangelho apócrifo, o que faz dos judeus os únicos adversários na Paixão.
Não é muito mais provável que o EvPd tenha recorrido remotamente a Lucas e
virado o episódio lucano em uma direção antijudaica? E ssa sugestão se harmoniza
com a abordagem geral que tenho defendido quanto ao EvPd, a saber, que ele
recorre aos Evangelhos canônicos (não necessariamente aos textos escritos, mas
não raro a memórias preservadas por terem sido ouvidas e relatadas oralmente), b)

48 Desde os tempos patrísticos, tem havido tentativas de harmonizar a imagem de Lucas com a de Marcos/
Mateus, onde os dois cocrucificados injuriam. Assim, podemos dar como exemplo a proposta de que
ambos teriam começado sendo hostis, mas um mudou de ideia, ou a alegação de que a imagem marcana
dos dois insultando não contradiz a imagem lucana onde só um blasfema. Dessas duas harmonizações, a
primeira não é fiel ao que é declarado nas respectivas narrativas evangélicas, enquanto a segunda ignora
a equivalência de injuriar e blasfemar (em paralelismo em 2Rs 19,22).
49 Como vou mencionar, a narrativa do Gênesis, de José aprisionado entre o (bom) mordomo que foi recon­
duzido a seu posto e o chefe dos padeiros que seria enforcado em uma árvore, pode ter inspirado Lucas
a descrever dois destinos diferentes para os malfeitores. Na narrativa da infância, a história de Abraão
e Sara no Gênesis inspirou a descrição lucana de Zacarias e Isabel.

162
§ 41 .Jesus crucificado,segunda parte:Atividades no local da cruz

A tese de que Lucas tirou da tradição um dito de “Amém” do Jesus clemente, que
prometeu a um pecador um lugar com ele no paraíso.50 Lucas adaptou então esse
dito ao contexto da cruz, aplicando-o a um dos malfeitores a respeito de quem ele
lera em Marcos. Sabemos que Lucas teve acesso a uma coleção dos ditos de Jesus,
e a adaptação proposta não é sem paralelo no procedimento lucano, pois muitos
pressupõem que, em Lc 22,29-30, Lucas tomou um dito que prometia tronos no
reino para os doze e adaptou-o ao contexto da Ultima Ceia.

E certo que, criação pura ou tradição no todo ou em parte, o episódio do


malfeitor solidário foi adaptado por Lucas para seu propósito teológico de pelo
menos três maneiras: a) Ele o usou para suprir o outro lado de uma estrutura posi­
tiva para os escárnios negativos, b) Ele apresentou “o outro malfeitor” como outra
testemunha imparcial da inocência de Jesus em uma corrente que se estende de
Pilatos e Herodes antes da morte de Jesus ao centurião depois da morte, c) Ele deu
outro exemplo de perdão que cura exercido durante a Paixão, em uma corrente que
inclui o servo do sumo sacerdote (de quem Jesus curou a orelha) e os que pregaram
Jesus à cruz (perdoados por não saberem o que faziam). As primeiras palavras que
o Jesus lucano falou ao povo foram na sinagoga de Nazaré, quando proclamou a
libertação para os prisioneiros e liberdade para os que eram oprimidos (Lc 4,18);
nada mais apropriado que suas últimas palavras dirigidas a outro ser humano
cumprissem essa promessa, oferecendo o paraíso a um malfeitor suspenso em uma
cruz. Se Lucas recebeu esse episódio de uma fonte (o que eu duvido), deve-se re­
conhecer por que ele preferiu essa fonte: tinha a mesma teologia que ele. Fitzmyer
(“ Today” ) faz bem de apelar a esse episódio para refutar a tese de que Lucas não
tem nenhuma teologia soteriológica da cruz.

O outro malfeitor fala a seu companheiro blasfemador (Lc 23,40-


41). Enquanto em Marcos/Mateus nenhuma resposta é dada aos insultos do cocruci-
ficado, em Lucas o sarcasmo e a repetida blasfêmia por parte de um dos malfeitores
recebem resposta direta51 do companheiro. Lucas gosta de pôr em contraste duas
personagens, por exemplo, Maria e Marta (Lc 10,38-42), o rico e Lázaro (Lc 16,19-
31), o fariseu e o publicano (Lc 18,9-14), João Batista e Jesus (Lc 7,33-34) — ver

50 É mais plausível que a sugestão de Robbins (“Crucifixion” , p. 41), segundo a qual originalmente o dito
se referia a um “gentio convertido que compartilhou o destino de um mártir, aspecto recorrente em
narrativas do Judaísmo mais tardio” . A salvação de um perseguidor é aspecto mais tardio nas narrativas
judaicas e cristãs de martírio e aqui não há nada que sugira antecedentes gentios.
51 Entre os Evangelhos, o padrão “em resposta [...] disse” é lucano e reflete o uso da LXX.

163
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

também a parábola dos dois filhos em Mt 21,28-32. Aqui, há também ressonância


da história em Gn 40 sobre o chefe dos padeiros e o mordomo (copeiro) presos com
José no Egito.52 O mordomo recebeu um lugar na corte do faraó, enquanto o chefe
dos padeiros foi enforcado em uma árvore. Depois de interpretar positivamente o
sonho do mordomo quanto ao futuro, José acrescentou: “ Lembra-te de mim [...]
quando as coisas te correrem bem e age [faze] com misericórdia para comigo”.03
Se, na história do Gênesis, o mordomo por fim eleva José com ele a um lugar de
prestígio na corte, na história lucana Jesus eleva o malfeitor com ele ao paraíso.

Vimos que os três escárnios de Jesus se parecem com as três tentações de


Jesus por Satanás. Jesus repreendeu (epitiman) Satanás por seu atrevimento (Lc
4,35.39.41); assim, não nos surpreende encontrar o mesmo verbo (mais comumente
usado em Lucas que nos outros Evangelhos) empregado aqui quando o segundo
malfeitor repreende o primeiro. A repreensão ganha ênfase com oude, “nem sequer”,
partícula usada cinco vezes por Lucas para iniciar uma sentença, como aqui. Os
intérpretes discordam a respeito da palavra modificada por ela na pergunta lucana:
“nem sequer” modifica “tu” (Marshall) ou “Deus”, ou “temes” (Plummer, Litzmyer)?
A última alternativa é a mais provável, pois oude precede imediatamente o verbo
“temer” ; mas o sentido geral é claro, não importa que palavra oude modifique.
Em Lc 12,4-5, o Jesus lucano advertiu que o único que deve ser temido é Deus,
que tem o poder para depois da morte de alguém lançar essa pessoa ao inferno; e
esse tipo de temor,54 baseado na justiça divina, está incluído aqui. Certamente, o
malfeitor fala de algo mais que simples temor piedoso, pois a advertência de que o
temor é imperioso é suscitada pela blasfêmia que foi dita contra o Lilho de Deus.

A frase “ Porque estás sob a mesma fcrima” é elíptica e um tanto obscura.


Garcia Pérez (“ Relato”, p. 263) sente-se impelido a recorrer ao aramaico, mas sua

’2 Ver em § 29 B outras semelhanças entre José e Jesus na NP, por exemplo, José foi vendido a inimigos
por Judá/Judas, um dos doze (filhos de Jacó), por vinte ou trinta moedas de prata.
13 Fora as semelhanças na narrativa bíblica, é digno de nota que o contemporâneo dos escritos de Lucas,
Josefo, em Ant. II,v,l; #62, fala dos companheiros de prisão de José como condenados (katakrinein) por
crimes e em Ant. II,v,2; #69, José sofre o destino de um malfeitor (kakourgos), apesar de suas virtudes,
enquanto em Lc 23,40, vemos os dois malfeitores e a mesma condenação (krima). Na tradição judaica
mais tardia, acreditava-se que o pedido na história de José para ser lembrado referia-se a um mundo
futuro, do mesmo modo que para Lucas a lembrança inclui o paraíso. Ver Nestle, “Ungenãhte” , p. 169;
Gottlieb Klein, “ Erlãuterung” ; e Derrett, “Two” , p. 201-209.
54 Phobeisthai (“ter medo”) é usado mais frequentemente por Lucas (23 vezes) que por qualquer outro
Evangelho (Marcos: 12 vezes; Mateus: 18; João: 5).

164
§ 41 .Jesus crucificado, segunda parte:Atividades no local da cruz

abordagem altamente especulativa produz uma tradução (“ Não temes a Deus quando
tu estás condenado?” ) não muito melhor que a derivada do grego. A inabilidade
do grego é suavizada quando se reconhece que “ Porque” é equivalente a “Afinal
de contas”. Que comparação está envolvida em “a mesma” — a mesma que a de
Jesus? Garcia Pérez (p. 287ss) rejeita essa inferência, argumentando que a frase
não passa de um lembrete de que o malfeitor blasfemador está sendo punido pelo
que fez. Contudo, no que se segue, a ideia parece ser que os três estão condenados
a morrer na cruz: dois justamente, um injustamente. Parte do problema de entender
precisamente o que Lucas quer dizer concentra-se em krima. Geralmente, no NT a
palavra se refere à ação judicial (julgamento ou condenação), mas pode se referir
ao resultado negativo da ação (execução). Uso “condenação” para me referir ao
complexo todo. Lucas quer que pensemos que os dois malfeitores foram julgados
do mesmo modo que Jesus foi, foram condenados (Lc 23,24 usa epikrinein para o
julgamento de Pilatos de que a exigência para crucificar Jesus devia ser satisfeita)
e levados embora para serem crucificados (Lc 23,26.32). Assim, os três tinham a
mesma experiência judicial.

No v. 41, o eloquente malfeitor admite que ele e o companheiro estão sendo


condenados justamente — implícito contraste com a declaração que será feita
depois da morte de Jesus em Lc 23,47: “ Certamente este homem era justo”. Em
linguagem tipicamente lucana, o malfeitor confessa: “ nós estamos recebendo o
que é digno do que fizemos” 55*— implícito contraste com a afirmação de Pilatos a
respeito de Jesus em Lc 23,15: “ Não há nada merecedor de morte que tenha sido
feito por ele”. (Do mesmo modo, em At 25,11, Paulo nega ter feito alguma coisa
que mereça a morte.) Embora o malfeitor fosse certamente capaz de saber que a
crucificação se ajustava a seu crime e ao de seu companheiro, como pode ele estar
tão certo do resto de sua afirmação (novamente expressa em linguagem lucana):36

55 “Receber” é apolambanein, que é usado 4 ou 5 vezes por Lucas, 1 por Marcos e 0 por Mateus e João.
Axios mais o genitivo (“digno de”) é usado 11 vezes em Lucas-Atos, 2 em Mateus e 6 no restante do NT.
“0 que fizemos” começa com um genitivo, não um acusativo; a atração do pronome relativo ao caso do
antecedente é aspecto gramatical lucano (Fitzmyer, Luke, v. 1, p. 108, sob 6). Prassein (“fazer”) é verbo
usado 19 vezes em Lucas-Atos, 2 em João, 0 em Mateus e Marcos.
36 “Mas” é de unido ao men (“ na verdade” ) precedente — uso clássico exagerado por Lucas (Fitzmyer,
Luke, v. 1, p. 108). “Fez” é prassein, usado novamente. Entre os Evangelhos, atopos (literalmente, “fora
de lugar”) ocorre somente em Lucas. Na verdade, em seu lugar, o Códice de Beza usa aqui o mais usual
poneros (“mal” ), apresentando um contraste com o julgamento dos “ homens de Israel” por Pedro em At
3,17: Jesus não fez nada de mal; mas eles fizeram o mal, embora por ignorância.

165
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

“ Mas ele não fez nada ilegal” ? Como ele sabe o que Jesus fez? Certamente, neste
gênero não devemos recorrer a uma explicação naturalista, por exemplo, o malfei­
tor conhecera Jesus antes57 ou ouvira dizer que Pilatos declarara Jesus inocente.
Mais exatamente, este malfeitor em Lucas tem de certo modo o mesmo papel que
a mulher de Pilatos teve em Mt 27,19: embora fosse uma gentia que nunca vira
Jesus antes, ela afirmou ser ele um “homem justo”. Ela soube disso por meio de
(revelação divina em) um sonho; entretanto, para as personagens lucanas como
este malfeitor ou o centurião depois da morte de Jesus: desde a primeira vez que
veem Jesus, sua inocência é transparente. Só aqueles cujos olhos estão cegos pela
ignorância não reconhecem isso (At 3,17).

É o reconhecimento da própria culpa e da inocência de Jesus equivalente a


arrependimento (metanoia) por parte do malfeitor? Em caso afirmativo, o perdão
implícito estendido a ele por Jesus é comparável ao estendido em Lc 15,20 pelo
pai do filho pródigo que não teve tempo suficiente para expressar plenamente sua
confissão (“ Pequei contra o céu e diante de ti” [Lc 15,21])? Ou este malfeitor ainda
não alcançou metanoia ? E ssa etapa incompleta requer um perdão maior — o tipo
subentendido por Paulo em Rm 5,8: “ Deus demonstrou Seu amor por nós visto que,
enquanto ainda éramos pecadores, Cristo morreu por nós”. O Jesus lucano curou a
orelha do servo do sumo sacerdote que lhe era hostil. Sua simples presença curou
a inimizade que existira entre Herodes e Pilatos. Ele espontaneamente implorou
a seu Pai o perdão para os que o crucificaram. Em nenhum desses três casos ele
procurou metanoia. Obviamente, então, os intérpretes não podem reclamar a exis­
tência de metanoia no coração desse malfeitor crucificado que reconheceu não ter
Jesus feito nada ilegal merecedor de condenação.

O outro malfeitor fala a Jesus (Lc 23,42). Depois de repreender o compa­


nheiro, o “outro” (malfeitor) agora dirige uma súplica (“estava dizendo” ) persistente
a Jesus. Seu modo de falar, “Jesus”, é chocante em sua intimidade, pois em nenhuma
outra passagem de nenhum Evangelho alguém se dirige a Jesus simplesmente por
seu nome, sem uma qualificação especificadora ou reverente.58 Tal familiaridade

11 Alguns Evangelhos apócrifos ampliam a narrativa do Menino Jesus no Egito e fazem sua família encontrar
favoravelmente este “assaltante” naquela época. Ver nota 70 adiante.
58 Eis as maneiras de se dirigir a Jesus nos Evangelhos: “Jesus Nazareno” (Mc 1,24; Lc 4,34); “Jesus, Filho
de Deus” (Mc 5,7; Lc 8,28); “Jesus, Filho de Davi” (Mc 10,47; Lc 18,38); “Jesus, Mestre” (Lc 17,13). Esses
padrões ajudam a explicar a variante textual koiné em Lc 23,42 (“E ele estava dizendo: ‘Jesus, Senhor,
lembra-te de mim...’”) e a variante do Códice de Beza: “Tendo se voltado para o Senhor, ele lhe disse...” .

166
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte:Atividades no local da cruz

impressiona alguns intérpretes como ilógica da parte de um malfeitor condenado


que encontrou Jesus pela primeira vez, mas é duvidoso que esse problema tenha
ocorrido a Lucas. Na NP, a saudação “Jesus” é comovente toque artístico, pois o
nome pessoal transmite a sinceridade do pedido. Fora isso, o uso reflete ironia. A
primeira pessoa com a segurança para ser tão atrevido é um criminoso condenado
que é também a última pessoa na terra a falar com Jesus antes de Jesus morrer.
A familiaridade não é irreverente, pois o malfeitor presume que Jesus tem o poder
real de conceder à vontade privilégios régios.

O privilégio pedido é expresso em termos de lembrança59 logo que Jesus


vier (subjuntivo aoristo: tenha vindo ou virá) em/a seu reino. “Em/a” reflete um
famoso problema textual. P75, Códice Vaticano e a tradição latina apoiam eis, “em”,
enquanto a tradição koiné, inclusive os Códices Sinaítico e Alexandrino, apoiam en,
“a”. No grego desse período, a linha de demarcação entre as duas preposições não é
precisa, mas aqui muitos intérpretes veem uma diferença de importância teológica.

a) Eis, “em” (preferido por Fitzmyer, Metzger, RSV, New Jerusalem Bible)
significa que o malfeitor pensava estar Jesus a caminho de seu reino e queria ser
lembrado assim que Jesus chegasse lá. (0 uso de eis em seguida a erchesthai,
“vir”, ocorre cerca de vinte e cinco vezes em Lucas-Atos e é expressão convencio­
nal para chegar a um lugar.) Como o malfeitor sabia com convicção que Jesus era
verdadeiramente rei? Mais uma vez deve ser lembrado que estamos lidando com
uma narrativa popular que não explica a lógica. Os soldados escarnecem de Jesus
como “o Rei dos Judeus”. Em seguida, o malfeitor reconhece uma injustiça feita a
Jesus e conclui que de fato ele governará um reino.60 Como isso acontecerá? Lucas

59 0 verbo mimneskesthai (“lembrar-se”) ocorre seis vezes em Lucas, em comparação a seis vezes em todos
os outros Evangelhos juntos. (Também o hotan [“logo que”] que o segue ocorre mais frequentemente em
Lucas que em qualquer outro Evangelho.) Pedidos de lembrança estão atestados em inscrições funerárias
judaicas primitivas (IEJ 5,1955, p. 234). Na verdade, o pedido para ser lembrado misericordiosamente
em situação mais favorável está atestado também em outras tradições religiosas. Diodoro da Sicília (séc. I
a.C.), Biblwtheca XXXIV/XXXV,ii,5-9, nos fala de um sírio que se dedicava a artes mágicas e profetizou
que a deusa lhe dissera que ele seria rei. Em um jantar onde alguns escarneceram dele, o pedido foi feito
por outros que lhe deram um presente: “Logo que fores rei, lembra-te desta boa ação” . Ele realmente se
tornou rei e os recompensou.
60 Há controvérsia se aqui basileia significa “ reino” ou “poder, governo, régio” , às vezes com a pressuposição
de que a leitura en (entendida como referência à parusia) é auxiliada se as palavras se referem a Jesus
(voltando) com poder régio. Entretanto, na verdade as duas preposições são sugestivas, com qualquer
das duas conotações de basileia, embora “reino” combine mais facilmente com eis e “ poder régio” com

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Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

não explica o entendimento do malfeitor; ele supõe que Deus intervenha e impeça
Jesus de morrer? Ou Deus fará Jesus vitorioso imediatamente depois da morte em
um reino desta terra ou em um reino no céu? As vezes, os estudiosos procuram
determinar a resposta perguntando o que um criminoso judeu (que provavelmente
não era um culto teólogo) teria entendido a respeito do destino de Jesus em 30/33
d.C. Essa é uma abordagem insatisfatória: em 80-95 d.C., quando Lucas escreveu,
leitores cristãos da frase com eis entenderíam que o malfeitor quis dizer “para teu
reino celeste”, porque sabiam que Jesus acabara de designar lugares (tronos) no
reino (Lc 22,29-30) e que ele foi para o céu (At 1,9-11; 7,56). Pode-se protestar
que eles também sabiam que Jesus não subiu ao céu antes do anoitecer do domin­
go de Páscoa (Lc 24,51) ou antes de quarenta dias depois do domingo de Páscoa
(At 1,3.9-11). Entretanto, o próprio fato de Lucas descrever a ascensão ao céu em
duas datas diferentes deixa aberta a possibilidade de que ele não viu problema em
reproduzir outra crença cristã primitiva de que, da cruz, Jesus subiu (de um modo
invisível, não mundano) ao céu quando morreu.61 Essa crença encontra-se em Hb
10-11, na linguagem joanina de ser “levantado” na cruz de volta ao Pai (Jo 3,14-
15; 8,28; 12,32.34; 13,1; 16,28), e mesmo em Lc 24,26, onde Jesus ressuscitado
fala de ter entrado (tempo passado) em sua glória depois do sofrimento. Entrar
(eiserchesthai) em sua glória era o mesmo que vir (erchesthai) em seu reino?62 Em
Dn 7,13-14, “ um como Filho de Homem” vem ao Ancião de Dias e recebe honra
e reino, o que se relaciona com Dn 7,22, onde os santos vêm tomar posse do reino.
A leitura eis de Lc 23,42 é bem consistente com essa interpretação.

en. Há quem alegue que o semitismo bemalkút (“no governo de” = “como rei” : Dn 6,29) reforça o grego
en basileia (G. Dalman, The Words of Jesus, Edinburgh, Clark, 1902, p. 133-134). A alegação de que
escribas mais tardios, que já não entendiam a formação semítica, mudaram-no para eis basileian é dúbia
porque esses escribas introduziríam uma teologia de subida ao céu da cruz que não foi proeminente em
tempos mais tardios.
61 Aplicando um Salmo a Jesus, em At 2,27 Pedro diz que Deus não deixaria o Santo ver a corrupção. A
ideia de diversas idas de Jesus ao Pai encontra-se também em João: elevação por meio da cruz, em Jo
12,32-33, e ascensão na Páscoa, em Jo 20,17. As narrativas evangélicas descrevem tudo o que aconteceu
depois da morte de Jesus como uma sequência que afetou os seguidores de Jesus que ficaram na história;
contudo, parece que os evangelistas entenderam que, da parte de Deus, tudo a partir da morte na cruz
até o derramamento do Espírito (do anoitecer da sexta-feira até Pentecostes) foi unificado e intemporal.
Ao morrer, Jesus passara além do tempo. A respeito de tudo isso, ver G. Bertram, “ Die Himmelfahrt Jesu
von Kreuz aus und der Glaube an seine Auferstehung” , em Festgabe Jur Adolf Deissmann, Tübingen,
Mohr, 1927, p. 187-217, esp. p. 215-216.
62 p7,i reaimente substitui “ glória” por “reino” , em Lc 24,26.

168
§41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

b) En, “a” (preferido por Lagrange, Lake, Plummer, G. Schneider), apresenta


uma série mais ampla de possibilidades que a leitura eis. Garcia Pérez, que a pre­
fere, menciona exemplos onde en significa “em”,63 e observa que ’th (hebraico) ou
Y (aramaico), embora normalmente signifiquem “vir”, são polivalentes, deslizando
para “ ir”. Como duvido que Lucas estivesse traduzindo do semítico, acho melhor
trabalhar com o sentido grego: “ Lembra-te de mim logo que vieres em [ou com]
teu reino [ou governo régio]”. Que “ lembra-te” adapta-se a esse contexto, SI 106,4
deixa claro: “ Lembra-te de mim, Senhor, enquanto favoreces teu povo. Yisita-me
[LXX: nos] com tua salvação”.

Com muita frequência, os que aceitam a leitura en entendem que Lucas se


refere à parusia, e parece que isso está subentendido pela subvariante da leitura
en no Códice de Beza: “ no dia de tua vinda”. Mais uma vez, não se deve avaliar
esta interpretação com base na hipótese de um criminoso judeu, em 30/33, esperar
a segunda vinda do Messias (o título usado na blasfêmia pelo primeiro malfeitor),
pois, aparentemente, a segunda vinda era conceito caracteristicamente cristão.64*
O verdadeiro problema é que, em 80-95, os leitores cristãos de Lucas certamente
esperavam a parusia. Na verdade, os defensores da leitura eis afirmam que o con­
ceito mais conhecido da parusia fez os escribas mudarem do eis original (com seu
conceito agora menos conhecido de subida da cruz ao céu) para en.6’ Que a vinda
do reino era linguagem apropriada para o fim dos tempos é evidente no Pai-nosso
(Lc 11,2): “que o teu reino venha”. A objeção de que o malfeitor crucificado fala
do reino de Jesus, não de Deus, pode-se indicar Lc 22,29, onde o Pai designou um
reino a Jesus (também Lc 1,33), e Mt 16,28, que se refere à parusia como “o Filho
do Homem vindo em seu reino”.

Nem todos os que defendem a leitura en situam-na em uma distante vinda


futura de Jesus, na parusia, para estabelecer seu reino na terra. Há quem pense
em Jesus vindo depois da morte deste malfeitor para levá-lo para o céu, mais ou
menos no sentido de Jo 14,3: “ E quando eu for preparar um lugar para vós, virei

“ “ Relato” , p. 272-284: ele cita exemplos da LXX e de Lc 1,17c; 4,1; 9,46.


M Deixando de fora o “segundo” elemento, SI 72,12-14 descreve o papel do futuro rei desejado ardente­
mente: “Ele libertará o povo [...] de fraude e violência ele os redimirá” . O dia da vinda do Senhor não
era sempre um dia de ira esperada (como é em Ap 6,17).
Esta argumentação está no nível de compreensão do leitor nos anos 80. Mas, considerando Lc 23,43 um
dito nos lábios do Jesus histórico, ele pode ter pensado que voltaria na parusia imediatamente depois de
sua morte. Parece que Lc 22,16 antecipa o cumprimento no Reino de Deus logo depois da Ultima Ceia.

169
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

novamente e vos tomarei para mim, para que onde eu estiver estejais também”.
Essa interpretação aproxima-se da imagem na leitura eis, pois ambas entendem
que o destino final é o céu. A principal diferença restante é se, depois de morrer,
Jesus leva o homem com ele diretamente da cruz para o céu, a fim de entrar no
reino, ou se, depois de morrer, Jesus vai para o céu e depois volta com poder régio
para levar o homem de volta com ele para o céu.

De modo geral, julgo que a resposta de Jesus em Lc 23,43, que examina­


remos agora, exclui a parusia com seu enfático “hoje”. Admite a segunda forma
da interpretação en que acabamos de examinar e também a interpretação eis. A
ideia de Jesus subindo da cruz para (eis) o reino parece-me a mais plausível. No
temível julgamento de Deus a respeito do qual ele advertiu o malfeitor blasfemador,
o “outro” malfeitor espera que Jesus seja justificado e alcance seu reino; ele pede
para ser lembrado nesse momento.

Resposta de Jesus ao outro malfeitor (Lc 23,43). 0 sinal dos discípulos


é estarem espontaneamente dispostos a responder ao convite de Jesus para segui­
do (Lc 5,11.27-28; 9,23.57-61; 18,22.28). Ao pedir para ser lembrado por Jesus,
esse malfeitor antecipou o convite e já expressou o desejo de seguir Jesus. Jesus
responde com um dito de “Amém”. Ao examinar a origem desta cena, mencionei
a possibilidade de, em vez de ser criação inteiramente lucana, ou inteiramente um
empréstimo tomado da tradição pré-lucana, a cena ter sido criada com base em
um dito tradicional, a saber, este pronunciamento de Amém de bênção futura, com
seu uso peculiar de “paraíso”. No início da NP, Marcos-Mateus colocaram seu dito
final de “Amém” quando Jesus predisse as três negações de Pedro. (Comparável é
o dito “Amém, amém” em Jo 13,38.) Lucas não tem nenhum dito de “Amém” ali,
de modo que seu único uso desse estilo na NP, que é também seu uso final dele,66
consiste nas últimas palavras ditas a um ser humano por Jesus em sua vida pré-
-ressurreição. Em § 5, mencionei sucintamente várias teorias a respeito do sentido
de um dito de “Amém” e salientei que o único aspecto que não pode ser debatido
é a atmosfera de solenidade projetada pelo “Amém”. E ssas últimas palavras do
Jesus lucano revelam a misericórdia divina além de toda expectativa, inclusive a

66 Lucas evita palavras semíticas (omitindo Abba, Hosanna, Rabbi); assim, é surpreendente que inclua
Amen 6 vezes (palavra que fica sem ser traduzida cerca de 8 vezes na LXX). Contudo, essa frequência
em Lucas é a mais baixa entre os Evangelhos (13 vezes em Marcos, 31 em Mateus, 25 vezes em João [no
formato duplo: Amém, Amém]). Ver a análise geral em 0 ’Neil, “Six” , p. 1-6. Dois dos usos lucanos têm
referência ao reino; este é o único dirigido a um indivíduo.

170
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

do malfeitor crucificado que suplicou a Jesus. Em Lc 11,9, Jesus prometeu: “ Pedi


e vos será dado” ; aqui, é dado mais abundantemente. O fato de Lucas prefixar um
“Amém” ao cumprimento nos diz muito a respeito da concepção lucana do Jesus
misericordioso.

Embora em grego “este dia” venha imediatamente depois de “digo”, não se


refere ao tempo de estar com Jesus no paraíso; “este dia” responde ao “ logo que” no
pedido do malfeitor.6' Por um lado, “este dia” tem um tom escatológico, de modo que
E. E. Ellis6768 está correto ao dizer que por si só a frase não significa necessariamente
o dia da crucificação, mas se refere a um período de salvação inaugurado pela morte
de Jesus. Contudo, o contexto, no qual a resposta transcende o pedido, favorece o
sentido literal de “este mesmo dia” (que, de qualquer modo, é escatológico), não
algum futuro indefinido no plano de Deus. Lucas informa isso pelas referências
que se seguem imediatamente (Lc 23,44) à sexta hora (meio-dia) e à nona hora (3
horas da tarde), isto é, horas daquele mesmo dia que agora está chegando ao fim.
Em Lc 2,11; 4,21 e 19,9, Lucas usa “este dia”69 a respeito de um dia cronológico
que é também um momento escatológico de salvação.

0 malfeitor pediu para ser lembrado por Jesus; mais é concedido em termos
de estar com Jesus; de fato, a resposta dada por Jesus inclui não só libertação,
mas também intimidade. Ao reconhecer a espontaneidade semelhante à de um
discípulo manifestada pelo malfeitor, Jesus lhe atribui o papel de discípulo. Em Lc
22,28-30, o Jesus lucano disse aos Doze: “Agora vós sois os que ficaram comigo
em minhas provações”, e como recompensa deu-lhes de comer e beber à sua mesa
no reino. Nessa analogia, a promessa de Jesus ao malfeitor, de que estaria com ele,
inclui mais do que estar em sua companhia no paraíso: inclui compartilhar sua
vitória (Plummer, Luke, p. 535).70 0 uso lucano de “comigo” talvez não alcance o

67 Assim Blathwayt, “ Penitent” . Os escribas aproximaram a ligação do “ este dia” com o que precede. Em
OS™, o malfeitor malevolente diz em Lc 23,39: “ Não és tu o Salvador? Salva-te a ti mesmo vivo hoje e
também a nós” . No Códice de Beza o malfeitor benevolente pede a Jesus para ser lembrado “no dia de
tua vinda” e Jesus começa sua resposta dizendo: “Tem coragem” ,
os pçjg 12, 1956-1957, p. 37. Ver “ o dia do Senhor” em profecias veterotestamentárias (Is 2,11; Jr 30,3
etc.). Hb 13,8 descreve Jesus Cristo como “o mesmo ontem, hoje e para sempre” .
6I) Semeron ocorre em Lucas-Atos um total de 20 vezes, em comparação a 8 em Mateus e 1 em Marcos.
70 No Evangelho árabe da infância, o Menino Jesus encontra no Egito os dois futuros malfeitores que seriam
crucificados com ele; Jesus diz a sua mãe que Tito (o malfeitor benevolente) “me precederá no paraíso”
(.Evangelho árabe da infância 23,2).

171
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

misticismo do uso paulino; mas em Lucas, como em Paulo (lTs 4,17; F 1 1,23; 2Cor
4,17), estar com Cristo descreve uma sina após a morte.

“Paraíso”, o destino designado no dito do “Amém”, é um termo muito dis­


cutido. Representa o céu, isto é, o mais alto céu no qual Jesus está eternamente à
direita de Deus, ou algum estado celestial inferior ou temporário? Em hebraico,
pardes é estrangeirismo persa (pairi, “sobre” ; daêza, “muro” : um recinto ou par­
que murado) e três vezes no AT claramente descreve um jardim (Ne 2,8; Ecl 2,5;
Ct 4,13). Na LX X, o grego paradeisos reproduz o hebraico pardes e gan/gannâ
(“jardim”, como no jardim do Éden).'1

Os que afirmam não ser “paraíso” em Lc 23,43 o mais alto céu da presença
plena de Deus, e assim o destino final, incluem Calvino, Maldonatus, Jeremias, Le-
loir, 0 ’Neill etc. Eles apresentam diversos argumentos: a) Muitos usos de “ paraíso”
subentendem uma forma inferior de proximidade a Deus, por exemplo, o paraíso
de Gn 2,15; 3,8, onde Deus caminhou com Adão e Eva; o paraíso de 2Cor 12,3-4,
onde ele é igual ao terceiro de sete céus (2Cor 12,2), um lugar para onde Paulo
foi arrebatado em visão mística. Paraíso é também o terceiro céu em 2 Henoc 8, o
lugar onde o justo espera o juízo final; ver também Vida de Adão e Eva (Apocalipse
de Moisés) 37,5. b) Não pode haver salvação ou redenção plena enquanto Jesus não
ressuscitar dos mortos.72 Assim, o malfeitor não teria sido levado definitivamente
à presença de Deus já na Sexta-Feira Santa. Como paralelo, pode-se mencionar
o relato mateano dos acontecimentos que tiveram lugar quando Jesus morreu (Mt
27,52-53): os túmulos se abriram e muitos corpos dos santos que tinham adormecido
ressuscitaram; eles saíram de seus túmulos e, depois da ressurreição de Jesus, eles
entraram na cidade santa — um tipo de salvação em dois passos, com o segundo
passo seguindo a ressurreição de Jesus no domingo de Páscoa, c) 0 malfeitor não
pode ir ao mais alto céu, pois não expressou arrependimento de maneira clara. (De la
Calle, “ Hoy”, p. 299, traça um paralelo entre paraíso e purgatório.) Ver, entretanto,
sob “ 0 outro malfeitor fala a seu companheiro blasfemador”, acima, onde relaciono*2

71 Ver Weisengoff, “Paradise” , p. 163-166; também J. Jeremias, TDNT, v. 5, p. 766-768. Nos primeiros
séculos do Judaísmo depois do exílio, referências ao paraíso tomaram-se razoavelmente frequentes, como
atestado pelos apócrifos; mas há menos uso na literatura rabínica primitiva — proporção de frequência
que sugere estarmos lidando com a terminologia da expectativa popular.
2 Bertram (“Himmelfahrt” , p. 202) relata que de acordo com Crisóstomo, os maniqueus usavam “Este
dia comigo estarás no paraíso” (bem como “Pai, em tuas mãos coloco meu espírito” ) para provar que a
ressurreição dos mortos não era realmente necessária.

172
§41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

exemplos da teologia lucana de perdão divino antes mesmo de o arrependimento


ser expresso. Um Jesus que era conhecido como amigo de pecadores (Lc 7,34), que
recebia pecadores e comia com eles (Lc 15,2), pode não ter sido escrupuloso para
levar um pecador ao mais alto céu, depois que esse pecador pediu para segui-lo.

Entendido como o mais alto céu ou derradeira bem-aventurança, “ Paraíso”


tem um número ainda maior de proponentes (Ambrósio,73 Cornelius a Lapide,
Fitzmyer [aparentemente], J. Knabenbauer, MacRae etc.) e é defendido por argu­
mentos impressionantes:74 a) No Judaísmo primitivo, paraíso e Éden assumiram o
significado de felicidade absoluta. Em Is 51,3, a glória futura de Sião é comparada
ao Éden, o jardim do Senhor. Grelot (“Aujourd’hui”, p. 198-200) menciona frag­
mentos aramaicos de 1 Henoc para o “paraíso de justiça”, isto é, o lugar aonde os
santos vão. Em Salmos de Salomão 14,3, os santos do Senhor vivem para sempre
no jardim do Senhor.7,7 Em 2 Henoc 65,10, o paraíso é uma residência eterna. Ver
também Testamento de Dã 5,12; Testamento de Levi 18,10-16. Lápides judaicas
mencionam o jardim do Éden, com certeza significando uma existência celestial
plena (Nestle, “ Luke xxiii” ). b) Esse sentido corresponde melhor ao pedido do
malfeitor para ser lembrado no reino de Jesus. Ele certamente não espera uma
posição celeste inferior. 2Tm 4,18 mostra que o reino celeste é o estado derradeiro,
c) Parece inconcebível que, depois da morte, Jesus só foi para um céu inferior, d)
“ Estar comigo” (meT emou) deve ter sentido próximo às expressões de suprema
bem-aventurança “com o Senhor” em lTs 4,17 (syn Kyrio) e 2Cor 5,8 {pros ton
Kyrion). e) A parábola do rico e Lázaro (Lc 16,19-31) mostra dois lugares no outro
mundo: o Hades, que é uma situação de tormento, e o seio de Abraão; e a divisão
entre eles é permanente. Não há nenhuma razão para pensar no seio de Abraão
como provisório e fazer distinção entre ele e o céu. Ver também a parábola do rico
construtor de celeiros em Lc 12,16-20. f) Não há nada estranho na ideia de um ato
de misericórdia completo (em vez de parcial) de Deus para com os moribundos.

74 Uma interpretação famosa é dada por Ambrósio, Expositio Evang. secundum Lucam 10,121 (CC 14,379:
“Vida é estar com Cristo; pois onde Cristo está, lá está o reino”.
74 Além dos argumentos que vou relacionar, há quem acrescente outro argumento de apoio à ideia de que
Jesus levou o malfeitor da cruz diretamente à suprema bem-aventurança, a saber, que isso é consistente
com o fato de Lucas tirar a ênfase da parusia. Ao interpretar o pensamento lucano, acho esse ato de tirar
a ênfase exagerado e não há nada nesta cena para apoiá-lo.
7,1 Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1507) imprime arriscadamente “no Paraíso” , como se fosse citação de Salmos
de Salomão 14,3.

173
Qim o mo •iesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

TalBab Aboda Zara 18a reflete uma perspectiva judaica (mais tardia) em situação
semelhante. O carrasco romano de um rabino santo perguntou se teria vida no
mundo futuro se fizesse alguma coisa que tornasse a morte do rabino menos tortu­
rante. O rabino respondeu afirmativamente; e quando ele morreu, uma voz do céu
afirmou que o rabino e o carrasco teriam vida no mundo futuro. Assim, pode-se
alcançar a vida eterna em um único momento, g) “ 0 paraíso de Deus” em Ap 2,7
é paralelo a essas outras descrições: nenhuma “segunda morte” (Ap 2,11); poder
sobre as nações (Ap 2,26); ter o nome no livro da vida (Ap 3,5); e, em especial,
sentar-se com Cristo em seu trono (Ap 3,21). Ap 22,2 usa metáforas do paraíso
para o estado de bem-aventurança perfeita e duradoura com Deus. Ao levar esse
malfeitor consigo para o paraíso, Jesus desfaz os resultados do pecado de Adão que
bloqueou o acesso à árvore da vida (Gn 3,24).*76

Assim, o segundo entendimento do paraíso em Lc 23,43, a saber, estar


com Cristo na presença plena de Deus, tem probabilidade muito alta. Qual, então,
seria a lição da ação de Jesus? Para responder, há quem recorra a simbolismo, por
exemplo, esse malfeitor era gentio ou representava os gentios; por isso, a história
indica a conversão dos gentios no último dia do mundo. Outros buscam antecedentes
históricos e encontram nesse malfeitor um zelota que foi atraído pela reivindicação
de Jesus à realeza (Hope, “ King’s Garden” ). Alguns Padres da Igreja contrasta­
ram esse corajoso malfeitor com os apóstolos que tinham fugido. Entretanto, essa
comparação representa uma miscelânea dos Evangelhos, pois em Lucas eles não
fogem. 0 único contraste claramente pretendido por Lucas é com o primeiro mal­
feitor, que permanece hostil para com a reivindicação de realeza por Jesus. Ainda
outros estudiosos acham que Lucas quer ensinar os leitores a receber o sofrimento
com paciência e a fazer dele ocasião para conquistar a graça de Jesus. A opinião
mais frequente é a mais óbvia: esta narrativa ensina a misericórdia imotivada de
Deus exercida por Jesus e nele. A ação implícita em Lc 23,43 é consistente com
a atividade do Jesus lucano que, durante seu ministério público, perdoou pecados
(Lc 5,20; 7,48) e trouxe a salvação (Lc 19,9). 0 fato de Jesus falar com tanta au­
toridade a respeito da sina do malfeitor mostra que ele tem o poder de julgamento
de Deus, que ele exerce misericordiosamente.77

‘6 Garrett (“Meaning” , p. 16) lembra que, na descrição lucana da morte de Jesus, há metáforas de Adão e
metáforas de Moisés (Lc 9,30-31: “ seu êxodo” ).
' 1 Neyrey (Passion, p. 139-140) descreve este versículo como pronunciamento judicial por alguém que At
10,42 descreve como “ordenado por Deus para ser juiz dos vivos e dos mortos” .

174
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

Contudo, há quem quase despreze essa apresentação lucana, comparando-a


com a soteriologia paulina pela qual a morte de Jesus é o fator que causa o perdão.
E feita a observação de que, em Lucas, Jesus não morre pelo pecador, mas une o
pecador a si na salvação. Variações dessa perspectiva são defendidas por Conzel-
mann, Talbert e Untergassmair, para citar alguns. Entretanto, o perdão concedido
aqui é certamente em vista da morte de Jesus, pois somente depois da morte Jesus
leva o malfeitor consigo para o paraíso. Deve-se também insistir que, para Paulo,
era importante não apenas o fato cruel da morte pela crucibcação, mas também a
intenção clemente de Jesus. Rm 5,6-8 fala do amor de Cristo por nós como parte de
sua morte salvífica. Assim, um perdão carinhoso concedido por Jesus crucificado a
um malfeitor não está realmente tão longe da noção paulina de que Cristo morreu
por nós enquanto ainda éramos pecadores. 0 Jesus que fala aqui continua o padrão
geral de misericórdia mostrado anteriormente na NP lucana, quando Jesus curou
a orelha do servo na cena da prisão, quando Jesus expressou preocupação quanto
ao destino futuro das filhas de Jerusalém no caminho para o lugar de execução e
quando Jesus rezou pelo perdão para os que o crucificaram. Muitas vezes chamado
episódio do “ bom ladrão”,78*este é antes outro aspecto do bom Jesus.

Amigos e discípulos perto da cruz (Jo 19,25-27)

Nos Evangelhos sinóticos, vimos um padrão de três escárnios de Jesus pelos


que estavam perto da cruz. Em Marcos/Mateus, havia só agentes hostis (transeuntes,
chefes dos sacerdotes com escribas/anciãos e criminosos crucificados), enquanto
Lucas imaginou os três agentes hostis (governantes, soldados e um malfeitor cru­
cificado) com o povo formado por observadores neutros e o outro malfeitor como
solidário. João também tem um padrão de três grupos de agentes na cruz - padrão
evidentemente estabelecido no início da tradição narrativa da crucificação - , embora
um episódio joanino independente seja construído ao redor de cada um deles. Em
Jo 19,19-22, os chefes dos sacerdotes dos judeus queixaram-se de maneira hostil
do título “o Rei dos Judeus” (tema que aparece no segundo escárnio lucano). Em
Jo 19,23-24, os soldados trataram Jesus como criminoso e dividiram suas roupas.

78 A tocante e charmosa observação de que no final ele também roubou o céu é consistente com a designação
de “ bom ladrão” . Infelizmente, não há nada na descrição dos dois eocrucificados em nenhum Evangelho
que sugira serem eles ladrões. A designação lestes (“bandido” ) em Marcos/Mateus não se refere a um
ladrão.

175
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Agora, em um movimento que transcende Lucas, um terceiro grupo joanino de


participantes consiste em amigos e discípulos de Jesus. Quando se analisa a ação,
Jesus triunfou sobre o primeiro grupo, pois Pilatos resistiu ao pedido deles; invo­
luntariamente, por suas ações, o segundo grupo cumpriu a Escritura pertinente a
Jesus; Jesus reorganiza os membros principais do terceiro grupo, a mãe e o discí­
pulo amado, como uma família no discipulado. Assim, de certa maneira, Jesus é
o agente supremo em todos os três episódios e realiza o plano dado a ele pelo Pai.

Os que estavam de pé perto da cruz (Jo 19,25). A sentença inicial


deste episódio proporciona um duplo contraste. Uma construção men [ ...] de oferece
um contraste no mínimo moderado entre as mulheres que estavam de pé (mais-
-que-perfeito de histanai usado com o sentido de imperfeito) perto {para ) da cruz
e os soldados que “fizeram essas coisas” (Jo 19,24). 0 outro contraste é implícito:
essas mulheres estão “de pé perto da cruz” antes de Jesus morrer, enquanto um
grupo de mulheres parcialmente comparável é mencionado em Mc 15,40, depois da
morte de Jesus, “observando de longe”. (Nessa situação, Lc 23,49 torna o contraste
mais nítido ao colocar essas mulheres entre os que “estavam de pé de longe”.79) Até
que ponto esse último contraste é real e intencional? Estão envolvidas as mesmas
mulheres? Estavam elas perto da cruz, longe ou as duas coisas?80 Há uma tradição
fundamental que se desenvolveu de maneiras diferentes nos Evangelhos sinóticos
e no joanino? Para estudar isso mais detalhadamente, precisamos reconhecer que
João tem dois componentes em seu grupo perto da cruz: primeiro, mulheres que
estão ali, mas não se envolvem no diálogo; segundo, a mãe de Jesus e o discípulo
amado, a quem Jesus se dirige. 0 primeiro componente é descrito no v. 25, com a
figura sobreposta da mãe de Jesus, que é introduzida ali, e o segundo componente é
descrito nos vv. 26-27. Comparemos o primeiro componente com as listas sinóticas
dos que olham de longe.

Como se pontuam “sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Clopas,81 e Maria
Madalena” ? Refere-se Jo 19,25 a duas, três ou quatro mulheres? Se duas mulheres

‘9 Na cena presente, Lc 23,35 relatou que “o povo estava de pé ali observando” , de modo que funcional­
mente Jo 19,25 quase combina dois versículos lucanos.
811 A harmonização padrão é que, tendo ficado de pé perto da cruz antes da morte de Jesus (João), depois
da morte elas se afastaram um pouco para observar (sinóticos).
81 A designação “de Clopas” apresenta quatro possibilidades, como indica Bishop em “ Mary Clopas”: 1) Irmã
de Clopas: é a hipótese menos provável, pois não há indícios de uma mulher identificada por intermédio
do irmão; 2) Mãe de Clopas: em árabe, às vezes a mulher é identificada por intermédio do nome do filho;

176
§41, Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

estivessem envolvidas, haveria dupla aposição: sua mãe = Maria de Clopas; a irmã
de sua mãe = Maria Madalena. Essa interpretação tem sérias improbabilidades:
por exemplo, que a mãe de Jesus, Maria, esposa de José, fosse citada como Maria
de Clopas. Outra improbabilidade é que Maria de Mágdala fosse irmã de Maria
de Nazaré, de modo que os pais deram às duas filhas o nome de Miriam. Nenhu­
ma outra referência evangélica a Maria Madalena sugere ser ela parente próxima
de Jesus (sua tia). Se três mulheres estivessem envolvidas,82 haveria apenas uma
aposição, a saber, a irmã de sua mãe = Maria de Clopas — o nome pessoal seria
parentético à designação “irmã”. Essa solução ainda deixa o problema de as duas
irmãs serem chamadas Miriam. Sendo assim, é bastante provável que devamos
pensar em quatro mulheres, como entenderam Taciano e a Peshitta Siríaca, que
inserem “e” entre a segunda e a terceira designações.83 A razão de não ser dado
o nome pessoal da mãe de Jesus talvez seja o fato de, como o discípulo que Jesus
amava (também nunca citado pelo nome), ela ter um papel predominantemente
simbólico. Mas por que, então, não é citado o nome da irmã da mãe de Jesus? Era
ela também tão conhecida que era desnecessário citar seu nome, ou este não foi
preservado na tradição? Não temos meios de saber.

Tendo decidido pelo número quatro, podemos agora comparar a lista joani-
na de mulheres perto da cruz com duas listas sinóticas da NP: uma de mulheres
mencionadas depois da morte de Jesus de pé ou observando de longe e outra de
mulheres na cena do sepultamento, que observaram Jesus sendo colocado no túmulo

3) Mulher de Clopas (Moffatt; [mais tardej Phillips; RSV; NEB; NAB): designação menos provável depois
que a mulher se toma mãe; 4) Filha de Clopas (Jerônimo; versões aráhicas primitivas; Goodspeed e tra­
duções Phillips [primitivas]; Bacon [“ Exegetical” , p. 423]): especificamente, a mulher não casada podia
ser identificada por intermédio do pai. Bishop acha que a escolha está entre 3 e 4 e defende 4, a favor do
qual seu artigo mais tardio, “Mary (of) Clopas”, cita o Diatessarão. De modo imaginoso, Bishop propõe
que mais tarde ela se tomou mãe de Tiago e Joset, e foi com seu pai Clopas (= abreviação de Cleopater)
a Emaús, em Lc 24,18. Entretanto, na verdade o nome Clopas não se encontra em outra passagem do NT;
e não é o mesmo que o nome Cléofas de Lc 24,18. Nunca é associado no NT com Maria, a mãe de Jesus,
apesar de tentativas patrísticas de fazê-lo seu parente (eonsanguíneo ou pelo casamento).
82 Evangelho de Filipe #28; II 59,6-11: “Havia três mulheres que sempre caminhavam com o Senhor:
Maria, sua mãe e sua [?] irmã e Madalena (a que era chamada sua companheira). Sua irmã e sua mãe e
sua companheira eram cada uma delas uma Maria” . Ver Klauck, “ Dreifache” . É tentador especular que
Maria (mulher de) Clopas era irmã de Jesus (ver Mc 6,3) e. portanto, todas as mulheres perto da cruz,
exceto Madalena, eram parentes de Jesus. Como a maioria das tentações, é melhor resistir a ela.
83 Entretanto, não há necessidade de proclamar que João quer pôr em contraste as quatro mulheres com
os quatro soldados do episódio precedente, pois em nenhum dos casos João aplica o termo “ quatro”
diretamente aos indivíduos.

177
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

por José de Arimateia. Ao elaborar o Quadro 8 para facilitar esta comparação, vou
também incluir (em destaque) uma terceira lista que consiste nas mulheres que
nos quatro Evangelhos vieram ao túmulo vazio na Páscoa. Com variada intensida­
de, há uma inferência de que as mulheres que assistiram no Gólgota à morte de
Jesus e também observaram seu sepultamento no túmulo antes do sábado vieram
ao mesmo túmulo depois do sábado. Consequentemente, as listas da Páscoa são
úteis para decidir a ambiguidade quanto a quem os evangelistas se referiam em
suas descrições anteriores. Embora possa parecer que o Quadro 8 das três cenas
(I: morte; II: sepultamento; III: Páscoa) seja complicado, pois precisa incluir tantas
listas dos seguidores agrupados de Jesus, o exame será facilitado se os leitores
prestarem atenção às letras maiúsculas na extremidade esquerda como um meio
de comparar as respectivas personagens: a linha horizontal A tem a personagem
que ocorre com mais frequência quando todas as cenas são consideradas; B tem a
segunda personagem mais frequente etc. Ao ler verticalmente, o numeral ao lado
de um nome indica a ordem na qual a pessoa aparece na cena indicada no topo
da coluna. Assim, na primeira coluna vertical (Cena I, em exame aqui), a ordem
da lista de nomes no texto joanino é: 1) a mãe de Jesus; 2) a irmã de sua mãe; 3)
Maria de Clopas; 4) Maria Madalena; 5) o discípulo que Jesus amava. João não
tem mulheres no sepultamento (II).

Há notável consistência de certos nomes nos diversos relatos evangélicos


das Cenas I, II e III. A linha A horizontal mostra que Maria Madalena é a citada
com mais frequência e aparece em nove das onze listas verticais e, assim, só não
é citada nas duas cenas lucanas que se referem a mulheres galileias sem usar
nomes pessoais.

Outra mulher chamada Maria (através da linha B no quadro) aparece com


alta consistência, embora a designação dada a ela varie. Duas vezes em Mateus ela
é simplesmente chamada “a outra Maria”. Quando é mais identificada nos sinóticos,
é por intermédio dos filhos Tiago e Joset/José.84 É boa a probabilidade de ser esta
Maria a mesma pessoa que João conhece como Maria de Clopas (seu marido ou pai).

84 A variante onde “Joset” é usado em Marcos e “José” em Mateus também ocorre nos nomes dos “irmãos”
de Jesus em Mc 6,3 e Mt 13,55. Como Tiago é também o nome de um “ irmão” de Jesus, muitos iden­
tificam os filhos da mulher perto da cruz com “os irmãos” de Jesus. Quando aceita, essa identificação
produz as mais diversas explicações: a) Maria, a mãe de Tiago e Joset/José não é a mesma Maria, mãe
de Jesus. Consequentemente, esses homens não são irmãos consanguíneos de Jesus, mas sim parentes
mais distantes, talvez primos, porque esta outra Maria era a mulher do irmão de José, Clopas. A respeito
de Clopas, ver Hegesipo (c. 150 d.C.), em Eusébio, HE III,xi e III,xxxii,l-6. b) As duas Marias são a
mesma pessoa; mas, como Maria, a mãe de Jesus, não acreditava (Mc 3,21.31-35; 6,4), Marcos prefere

178
QUADRO 8. AS MULHERES E OUTROS NA SEX TA -FEIR A (I) ANTES OU DEPOIS DA MORTE DE
JE SU S; (II) NO SEPULTAMENTO; E NA PÁSCOA (III), NO TÚMULO VAZIO
I in / 11 in I II ui i II iii

Jo 19,25 Jo ã o Mc 15,40-41 Mc 15,47 M c 1 6 ,1 Mt 27,55-56 Mt 27,61 M t 2 8 ,1 1x23,49 1x23,55 Lc 2 4 ,1 0

antes da 2 0 ,1 .2 depois da sepultamento P á s c o a depois da sepultamento P á s c o a depois da sepultamento P á sco a


morte P á sco a morte morte morte
A 4. Maria 1 . M a ria 1. Maria 1. Maria 1 . M aria 2. Maria 1. Maria 1, M a ria 1 . M a ria
Madalena M a d a le n a Madalena Madalena M a d a le n a Madalena Madalena M a d a le n a M a d a le n a
B 3. Maria 2. Maria, 2. Maria de 2 . M aria 3. Maria, mãe 2. a outra 2 . a o u tra 3 . M a ria
de Clopas mãe de Tia­ Joset d e T iago de Tiago e de Maria M aria d e T iago
go, o Menor, e José
de Joset
C 2. a irmã 3. Salomé 3 . S a lo m é 4. mãe dos 2. Jo a n a
de sua Jilhos de

179
mãe Zebedeu
D 2 . “1Vós” 4. muitas ou­ 1. muitas 2. as mulheres 1. as mulheres 4 . a s
tras mulheres mulheres que estavam que tinham o u tra s
que tinham que tinham seguindo com vindo com ele m ulh eres
subido com seguido Jesus ele da Gali­ da Galileia
ele a Jerusa­ da Galileia leia (ver Lc
lém 8,1-3)
E 1. sua 1. todos os
mãe conhecidos
5. o dis­ dele
cípulo
que Jesus
amava
§41.Jesuscrucificado,segundaparte:Atividadesnolocaldacruz
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

Ocasionalmente, mais uma mulher é lembrada pelo nome (linha C no Quadro


8), mas aqui a identificação varia bastante. Para Marcos, nas cenas I e III, Salomé
é a terceira mulher. (Em uma imitação do Diatessarão de Taciano preservada em
médio persa, encontrada entre os fragmentos de Turfan no deserto de Gobi, Salomé
é a segunda mulher, ao lado de Maria, na cena III, e a terceira mulher é Arsênia
— ver W. L. Peterson, em TTK, p. 187-192, esp. p. 189.) É a “ mãe dos filhos de
Zebedeu” mateana (alhures, apenas em Mt 20,20), identificação bem informada
da mulher chamada Salomé em Marcos? Mesmo se fosse para sugerir isso, não há
razão para equiparar nenhuma dessas com a Joana conhecida somente de Lucas,
que em outra passagem (Lc 8,3) ele descreve como a mulher de Cuza, intendente
de Herodes. O perigo de tentar identificar Salomé, a mãe dos filhos de Zebedeu, ou
Joana, com a mulher que João chama de “irmã de sua mãe” (isto é, irmã de Maria de
Nazaré) é óbvio; contudo, dessa identificação dúbia depende a tese que faz os filhos
de Zebedeu serem primos de Jesus. Há nomes variados para candidatos nas listas
dos Doze; do mesmo modo, também várias mulheres que estavam ligadas a Jesus
foram lembradas; e por razões que não podemos determinar, mulheres diferentes
foram preservadas em tradições de diferentes Evangelhos.

A linha D do quadro mostra que os evangelistas estavam cientes de que um


grupo de mulheres estava envolvido nos vários eventos que estamos examinando e
que a generalização deve nos tornar cautelosos quando tentamos igualar indivíduos
das listas.

A linha E do quadro tem registros tão peculiares a um Evangelho que apa­


rentemente não têm paralelos nas listas, mas têm considerável importância teológica
para os respectivos evangelistas. Aqui, estamos interessados principalmente em “sua
mãe” e “o discípulo que Jesus amava”, que são os protagonistas em Jo 19,26-27. A
expressão “ Todos os conhecidos dele” em Lucas será examinada completamente
em sua sequência apropriada em § 44, depois da morte de Jesus. Quero mencionar
aqui apenas que “todos” foi entendido literalmente por alguns biblistas para incluir
os Doze (sem Judas?), em harmonia com o louvor que recebem em Lc 22,28 por

designá-la pelos seus outros filhos (irmãos de Jesus), e não como Maria, a mãe de Jesus. (Ver o estudo
em Crossan, “ Mark” , p. 105-110.) Essa é uma interpretação dúbia da perspectiva geral de Maria por
parte de Marcos; além disso, tem de supor que os outros três evangelistas foram em direção oposta, pois
atribuíram a Maria um papel favorecido na memória cristã. E inacreditável que, se Lucas entendeu que a
Maria a quem ele se refere em Lc 24,10 como “ Maria de Tiago” era a mãe de Jesus, ele a teria designado
assim.

180
§ 41 .Jesus crucificado,segunda parte: Atividades no local da cruz

terem permanecido com Jesus em suas provações. Contudo, esse adjetivo inclusivo
sugere a presença (a certa distância da cruz) de outros discípulos homens além dos
Doze (cf. Lc 10,1). Vimos outro indício disso no relato marcano (Mc 14,51-52) de
um suposto discípulo que, depois de os Doze terem fugido (Mc 14,50), permaneceu,
e depois ele mesmo fugiu nu. A imagem joanina de “o discípulo que Jesus amava”
se enquadra nessa tradição, com o entendimento de que uma vaga lembrança
geral do envolvimento na NP de discípulos homens além dos Doze foi usada pelos
evangelistas individualmente para exemplificar suas teologias da P aixão? Marcos
a teria usado para fortalecer sua tese de fraqueza e fracasso humanos durante a
Paixão; Lucas, para fortalecer uma descrição otimista de fidelidade (pelo menos
parcial) pelos que tinham seguido Jesus; João, para concretizar simbolicamente
um discipulado que jamais titubeava. Mesmo por esse padrão de paralelos remotos
na tradição, não há nos sinóticos nenhum indício que apoie a imagem joanina da
mãe de Jesus presente na cena da cruz.8° Lucas, que mais adiante menciona sua
presença em Jerusalém antes de Pentecostes (At 1,14), provavelmente a citaria entre
as mulheres galileias, se soubesse que ela estava presente na crucificação. Como
veremos, para João ela serve de exemplo de discipulado e temos de nos contentar
em lidar com os versículos seguintes em nível teológico, sem sermos capazes de ir
além na solução das questões da antiguidade pré-evangélica da imagem da mãe e
do discípulo perto da cruz e sua historicidade.

Mas antes de voltar-me para os versículos que tratam dessas duas persona­
gens, como eu usaria o Quadro 8 para avaliar a outra parte da imagem que João dá
no v. 25, onde ele cita os nomes das três mulheres presentes com a mãe de Jesus,
mas não lhes atribui nenhuma parte ativa no que se segue? Das três cenas nas
quais mulheres são citadas na NP (com respeito à crucificação, observando o sepul-
tamento, indo ao túmulo vazio na Páscoa), aquela sobre a qual os evangelistas mais
concordam inclui Maria Madalena (explícita ou implicitamente com companheiras)
vindo ao túmulo na Páscoa e encontrando-o vazio. As mulheres estão ausentes da
cena joanina do sepultamento e há discordância entre João e os sinóticos quanto
à hora e ao lugar de sua presença na crucificação: Jo 19,25 menciona a irmã da
mãe de Jesus, Maria de Clopas e Maria Madalena (ao lado da mãe de Jesus e do
discípulo que ele amava) de pé perto da cruz, antes de Jesus morrer, enquanto Mc85

85 Na nota 84, julguei desfavoravelmente a tese de que “ sua mãe” deve ser identificada com a “ Maria, mãe
de Tiago e Joset/José” .

181
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

15,40 menciona Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, o Menor, e de Joset, e


Salomé, observando de longe depois que Jesus morreu. Agora, neste contexto de
crucificação, João está primordialmente interessado nas outras personagens, a mãe
de Jesus e o discípulo que ele amava, que João precisa colocar perto da cruz antes
da morte, pois Jesus lhes fala. Ao que tudo indica, a fim de agrupar na cena da
morte os previamente envolvidos com Jesus, João tomou uma forma da tradição de
Maria Madalena/outra Maria/outra mulher e ligou-a a sua cena específica; e ao
fazer isso, ele revela o fato de estar a tradição das três mulheres bem estabelecida a
respeito da crucificação. (Certamente, o modo joanino de relacionar as mulheres não
é derivação regressiva de sua menção a Maria Madalena no túmulo vazio; quanto à
origem da lista sinótica das mulheres depois da crucificação, ver § 44 A adiante.)
Digo “uma forma” da tradição das mulheres porque as listas em Marcos e João
são com certeza relacionadas (duas das três mulheres podem bem ser as mesmas)
e, contudo, João tem os nomes em ordem diferente, designa a segunda Maria de
modo diferente e identifica uma terceira mulher diferente. Isso torna improvável
que João tenha copiado de Marcos; é plausível que os dois evangelistas recorressem
a uma tradição pré-evangélica mais antiga. O fato de em João as três mulheres
só serem mencionadas e não lhes ser dirigida a palavra sugere que a localização
delas perto da cruz é secundária e que a apresentação marcana delas depois da
morte observando a certa distância está mais próxima da tradição antiga. Além
de ter a conveniência da consolidação, a relocação joanina mostra que o Filho do
Homem elevado na cruz começa a atrair todos para si (Jo 12,32-34). Ao colocar as
três mulheres na companhia da mãe de Jesus e do discípulo que Jesus amava (que
Jesus está prestes a reconstituir como família de discípulos), João é mais positivo
para com elas que qualquer Evangelho sinótico, embora até agora ele nunca as
tenha mencionado no seguimento de Jesus, nem indicado que elas estavam entre
“os seus” na Ultima Ceia (Jo 13,1) ou presentes durante a Paixão.

A mãe de Jesus e o discípulo amado (Jo 19,26-27). Embora “sua mãe”


seja mencionada em Jo 19,25 com as outras mulheres de pé perto da cruz, ela só
se torna protagonista em Jo 19,26, onde é unida ao discípulo amado. Um verbo
composto de para e histanai é usado para esses dois no v. 26, do mesmo modo que
histanai (“estar de pé” ) e para (“perto de” ) foram usados para as quatro mulhe­
res no v. 25 — tem-se a impressão de que duas tradições estão sendo reunidas.
Ouvimos falar desse outro discípulo em Jo 18,15-16, onde, não tendo fugido com

182
§ 41 .Jesus crucificado,segunda parte:Atividades no local da cruz

os demais, ele seguiu Jesus até o pátio do sumo sacerdote e conseguiu fazer Pedro
entrar. Agora, depois que Pedro negou Jesus, esse discípulo é o único homem fiel a
seguir Jesus até a cruz. Sua presença aqui é exclusiva de João e, na verdade, muitos
biblistas críticos atribuem-na ao evangelista, não à tradição joanina pré-evangélica.
Contudo, o próprio Evangelho, em sua segunda referência a ele na crucificação (Jo
19,35), faz dele a testemunha ocular e presumivelmente o portador da tradição que
garante a cena. Ao examinar o v. 25, apresentei alguns paralelos sinóticos que dão
plausibilidade à tese de que o discípulo já foi mencionado de modo incoativo na
história pré-joanina da crucificação, apesar de ser o evangelista quem elaborou e
sistematizou a importância teológica do discípulo como o discípulo preeminente-
mente amado. Embora a linguagem e a caracterização desse episódio que envolve a
mãe e o discípulo sejam totalmente joaninos, veremos abaixo que, funcionalmente,
o episódio tem um paralelo sinótico.

Jesus começa a falar ao ver sua mãe e o discípulo. (Nos sinóticos, as mu­
lheres veem [verbo diferente] Jesus de longe; aqui, ele vê as duas personagens de
perto.) A mãe é a primeira mencionada no par, e Jesus fala primeiro com ela; a
prioridade sugere que ela é a principal consideração do episódio. 0 discípulo é
mais importante na imagem evangélica total, e o interesse de Jesus em seu papel
é previsível; mas não dá para prever o papel da mãe de Jesus pelo que foi narrado
até aqui e precisa ser esclarecido. A última vez que ouvimos falar dela foi em Caná
(Jo 2,1-12), onde sua preocupação inicial era satisfazer as necessidades da festa de
casamento com um pedido implícito para Jesus agir. Ele se desassociou das preo­
cupações dela, identificando primeiro a hora designada para ele pelo Pai. Somente
a solicitação dela, “ Fazei tudo que ele vos disser”, e o fato de Jesus conceder-lhe
o pedido no final eram favoráveis a ela ter uma relação futura positiva com Jesus.
0 fato de os irmãos de Jesus, mencionados em companhia dela em Jo 2,12, serem
severamente julgados em Jo 7,3-7 por nunca terem acreditado nele deixa o leitor
em dúvida quanto ao papel da mãe de Jesus, embora ela nunca seja julgada assim.
Essa ambiguidade é resolvida aqui, pois a mãe está de pé com as outras mulheres
(na verdade, a primeira entre elas) que estão claramente ligadas a Jesus até sua
morte; e ela está prestes a ser posta em estreita relação com o discípulo ideal.

A ligação deste episódio com o de Caná é clara. São as duas únicas passa­
gens joaninas nas quais a mãe de Jesus aparece; essa mesma designação é usada
para ela nos dois casos (sem nenhum nome pessoal); em ambos, ele se dirige a

183
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

ela como “ Mulher”, palavra perfeitamente apropriada para um homem dirigir-se a


uma mulher, mas nunca encontrada no tratamento de um filho à mãe;86 e, embora
o episódio de Caná ocorresse antes que a hora chegasse (Jo 2,4), este episódio
ocorre depois que a hora chegou (Jo 13,1). As palavras de Jesus a sua mãe em
Jo 2,4 significavam que ele e ela não tinham nenhuma preocupação em comum;
suas palavras a ela aqui têm significado oposto. Chamam a atenção e revelam um
papel que a põe em íntima relação com o discípulo ideal, pois “ Olha: teu filho” é
outro exemplo de uso revelador de “ Olha” 87 descoberto por de Goedt (“ Schème” ;
ver BGJ, v. 1, p. 58). Do mesmo modo, “ Olha: tua mãe” é revelação para o discí­
pulo amado. A atmosfera é testamentária, visto que o Jesus moribundo dispõe das
duas personagens sem nome que são conhecidas apenas por intermédio de sua
relação com ele (sua mãe, o discípulo que ele ama). A importância do que é feito
é realçada no v. 28, onde lemos: “ Depois disso, Jesus tendo sabido que já tudo
estava consumado...”. Assim, o que Jesus faz em relação a sua mãe e ao discípulo
é seu último ato voluntário e é um ato de fortalecimento que revela e faz acontecer
um novo relacionamento. Somos lembrados de SI 2,7, “Tu és meu filho; hoje eu te
gerei”, que também envolve uma autorização reveladora.

Qual é o novo relacionamento que não existia antes? Qual é a importância


de instruir a mãe de Jesus para ser a mãe do discípulo amado e instruí-lo para ser
o filho dela? Uma linha de interpretação que se estende de Agostinho, passando
por Tomás de Aquino, a Lagrange encontra neste episódio uma manifestação de
devoção filial: o filho moribundo preocupa-se com o futuro da mãe e deixa-a com
seu amigo mais íntimo, para que ele cuide dela. 0 discípulo deve tratá-la como
trataria sua própria mãe.88 Não vejo nada no pensamento joanino que recomende
essa interpretação. Os discípulos joaninos não são deste mundo (Jo 17,14) e o que
lhes acontecerá em termos de bem-estar material até eles morrerem é uma questão
que o Jesus joanino considera irrelevante (Jo 21,22). Interpretar o relacionamento

86 Ver BGJ, v. 1, p. 99. Esse modo de tratar pode não ter parecido muito reverente aos escribas de um período
mais tardio, que tinham uma sensibilidade mariológica mais desenvolvida, o que explica a tendência a
omitir “ Mulher” de Jo 19,26 (alguns manuscritos coptas e um da OL).
87 Ide (“ olha, olhai” , usado em Jo 19,4.14) é encontrado nos melhores testemunhos textuais, mas existe
apoio respeitável para idou (“vê, vede” ). Barrett (John, p. 552) e outros acham semelhança com uma
fórmula de adoção; ver Tb 7,12 (Sinaítico): “Doravante, tu és seu irmão e ela é tua irmã” . Contudo, não
há nenhum paralelo preciso onde é à mãe que se fala primeiro; e é na teologia de Paulo, não na de João,
que a filiação adotiva tem um papel.
88 Schürmann (“Jesu” , p. 15) afirma que a tarefa não ê mútua: Mãe, cuida do teu filho; Filho, cuida da tua
mãe. Significa antes: Mãe, vê o filho que cuidará de ti; Filho, vê a mãe de quem cuidarás.

184
§ 41. Jesus crucificado,segunda parte: Atividades no local da cruz

entre o Jesus joanino e sua mãe em termos de desvelo filial é reduzir o pensamento
joanino ao nível da carne e também ignorar o distanciamento das preocupações da
família natural que teve lugar em Caná em Jo 2,4.8990

Muito mais intérpretes de João passaram para um nível teológico a fim de


entender a cena. Na maior parte do tempo, isso significa examinar o simbolismo das
duas personagens a quem Jesus se dirige. Já em um período primitivo da exegese
cristã, a que é chamada “ Mulher” aqui foi comparada com Eva, a mulher de Gn
2 -4 . Do mesmo modo que a velha Eva foi a mãe de todos os viventes (Gn 3,20),
esta nova Eva torna-se a mãe dos discípulos de Jesus, isto é, os dotados de vida
eterna. 0 discípulo amado era considerado um filho dado a Maria para substituir
Jesus que foi crucificado, do mesmo jeito que a velha Eva disse: “ Deus me deu um
filho para substituir Abel que Caim matou” (Gn 4,25; ver 4,1: “ Com a ajuda do
Senhor, concebi um homem” ).9(1 Esse simbolismo é fortalecido por um apelo a Ap
12 (quase sempre com a pressuposição de que esse livro relaciona-se com João),
onde a mulher que luta com o dragão (Ap 12,9 = a antiga serpente de Gn 3) é a mãe
do Messias (Ap 12,5), mas depois que ele é elevado para Deus e para seu trono,
ela tem outros filhos (Ap 12,17: “ Os que guardam os mandamentos de Deus” ) que
se levantam com ela na guerra travada contra ela por Satanás.

Trabalhando com Ap 12,2, onde a mulher em dores de parto está grávida


do Messias, outros apelam à imagem de Maria na narrativa lucana da infância e
identificam a mãe joanina de Jesus com a Senhora de Sião que dá à luz um novo
povo com alegria.91 Se o discípulo amado representa o cristão,92 Maria é considerada
personagem da Igreja (Ambrósio, Efrém), que é mãe para os cristãos, dando-lhes
vida no batismo. Nos séculos IX-XI, a interpretação passou da Maria simbólica
para Maria como pessoa que exerce a maternidade espiritual a partir do céu.93 Ao

89 Não quero dizer, decerto, que historicamente Jesus não era um filho amoroso para sua mãe. Se ela estava
em Jerusalém para a Páscoa, seu filho estaria preocupado com ela. Mas o nunca especificado “ sua mãe”
de João foi elevado ao nível de alcance teológico e as questões são as do espírito, não da carne.
90 Ver uma exposição completa em Feuillet, “Adieux” , p. 474-477.
91 Is 49,20-22; 54,1; 66,7-11; Feuillet, “Adieux” , p. 474-4480; “ Heure” , p. 361-380. Ver um estudo quanto
à validade desta metáfora para a narrativa lucana da infância em BNM, p. 380-391.
92 Orígenes, In Jo 1,4(6); GCS x,9: “Todo homem que se toma perfeito já não vive sua vida, mas Cristo vive
nele. E porque Cristo vive nele, foi dito a Maria a respeito dele: ‘Eis teu filho, Cristo’” .
98 A respeito de tudo isso, ver BGJ, v. 2, p. 924-925, e a literatura ali citada, esp. Koehler, Langkammer.
Este último (“Christ’s” , p. 103-106) afirma (contra C. A. Kneller) que a ideia da maternidade espiritual

185
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

defender essas interpretações simbólicas, alguns biblistas não fazem distinção entre
o que o evangelista pode ter pretendido em um ambiente do século I e o uso feito da
passagem para satisfazer as necessidades da Igreja subsequente. A interpretação
simbólica continua na exegese moderna. R. H. Strachan (The Fourth Gospel, 3. ed.,
London, SCM, 1941, p. 319) acha que a mãe representa a herança de Israel sendo
agora confiada aos cristãos (discípulo amado). Bultmann (John, p. 673) identifica a
mãe com judeu-cristãos e o discípulo com cristãos gentios, e faz a primeira encontrar
um lar com o segundo.94 Essa interpretação esquece a completa falta de interesse
por parte de João na distinção entre judeu e gentio, falta de interesse assinalada
não só pelo silêncio a respeito do assunto, mas também pelo princípio de que pais
humanos geram apenas carne, enquanto o Espírito vem da criação divina (Jo 3,3-6).
Talvez a dificuldade exegética mais séria a respeito dessas abordagens tenha sido
indicada por Schürmann (“Jesu”, p. 20). A cena não diz respeito primordialmente
às duas personagens em si, mas ao novo relacionamento que existe entre elas. Antes
de apresentar uma interpretação teológica desse relacionamento, quero comentar
a última parte de Jo 19,27.

“A partir daquela hora, o discípulo tomou-a como sua” tem sido assunto de
muita discussão, um bom exemplo da qual vê-se nas posições opostas assumidas
em animadas controvérsias por Neirynck (“Eis” ) e de la Potterie (“ Parole” e “ Et à
partir” ), dois importantes biblistas católicos romanos. Neirynck, famoso por suas
tentativas de estabelecer a dependência joanina de Marcos, com base no uso grego,
argumenta vigorosamente que “tomou” (lambanein eis) é verbo de movimento, como
em Jo 6,21, e que ta idia (“como sua” ) significa “para sua casa”, exatamente como
em Jo 16,32. De la Potterie afirma que, antes do século XVI, ninguém entendia
essas palavras no sentido material,95 e que a frase deve significar que o discípulo

de Maria não se encontrava em Ambrósio, mas pertencia ao escolasticismo e à Idade Média. O que se
encontra em Ambrósio é a descrição de Jo 19,26-27 como a “última vontade” pública e privada de
Jesus — legado particular ao discípulo amado (João, filho de Zebedeu) e um legado público a todos os
cristãos.
94 Meyer (“Sinn” ) reconhece corretamente que o discípulo amado toma-se irmão de Jesus nesta cena; mas
ele afirma que os irmãos naturais não mencionados de Jesus representam o Cristianismo judaico que
estava sendo substituído. Ele acha que o sentido simbólico da figura de mulher é irrelevante.
1,5 Certamente havia interpretações primitivas de que o discípulo amado levou Maria para sua casa. Na
verdade, isso era entendido tão literalmente que em Panaya Kapulu, na Turquia moderna (a cerca de
oito quilômetros da antiga Éfeso), é mostrada uma casa onde se supõe que Maria residiu com João (= o
discípulo amado) quando ele se mudou para Éfeso. Entretanto, de la Potterie remonta isso a Jo 19,26-
27a, o relacionamento mãe e filho, não à frase “como sua” . Um fator que toma o debate com Neirynck

186
§ 41 .Jesus crucificado,segunda parte:Atividades no local da cruz

aceitou-a em um tipo de intimidade espiritual.96 Em “ Et à partir”, p. 120, ele fala


de “espaço interior e espiritual”. Sb 8,18 mostra expressão similar para tomar a
própria Sabedoria para si. “A partir daquela hora” significa um começo (aoristo
incoativo: ele começou a tomar); e há uma dimensão escatológica, pois a mulher
representa o povo escatológico. De la Potterie (“ Et à partir”, p. 125) termina sua
interpretação criticando o método crítico histórico que não entra no sentido do texto.

Assumo uma posição entre essas duas. Por meio de paralelos gramaticais
e de vocabulário, Neirynck mostra o que o texto significa se a teologia joanina for
ignorada. Mas acho absolutamente inacreditável que uma cena dramática tão re-
veladora, que envolve a mãe de Jesus em um novo relacionamento com o discípulo
amado, conclua simplesmente com ele levando-a para sua casa. Rejeito não só os
aspectos extravagantes dessa interpretação, por exemplo, que eles saíram naquele
momento e não estavam presentes na morte (apesar de Jo 19,35, onde o discípulo
está pertinho depois da morte de Jesus), ou que podemos concluir disso que o dis­
cípulo era um indivíduo da Judeia que tinha uma casa ali perto. A interpretação
é invalidada mais profundamente porque presume que o evangelista estava inte­
ressado em onde essas duas personagens foram morar. Essa é uma questão desta
terra, da esfera cá em baixo, e não tem lugar no pensamento joanino (Jo 3,31). Na
descrição de Jo 6,42, os que estão interessados nas origens terrenas de Jesus são
judeus descrentes; os interessados no habitat terreno da mãe de Jesus não devem
ser considerados muito melhor. A ideia de proporcionar uma casa para a mãe de
Jesus não leva bem para Jo 19,28: “ Depois disso, Jesus tendo sabido que já tudo
estava consumado...” ), como se proporcionar acomodações fosse o propósito fun­
damental da vida de Jesus.

Por outro lado, parte da crítica histórica que de la Potterie ataca permite-nos
distinguir entre o misticismo mariológico mais tardio que tempera sua interpretação
e o tipo de questão teológica na qual um evangelista do século I estava interessado.
Não é preciso invocar “espaço interior e espiritual” para entender “como sua”. O

um pouco mais acerbo do que é necessário ser é o hábito que de la Potterie tem de referir-se ao que ele
“ mostra” (montrer) em escritos anteriores, por exemplo, “Et à partir” (p. 84, 98-99, 101), quando ele
quer dizer o que defendeu. Um argumento não substitui uma demonstração!
* Ver também “Parole” , p. 31, onde de la Potterie fala do espaço espiritual no qual o discípulo amado vive
como sua compreensão de Jesus. Acho difícil traduzir sua versão favorita de “o discípulo tomou-a como
sua” , a saber, “ Le Disciple 1’accueillit dans son intimité” . De la Potterie combina essa interpretação com
o valor representativo de Maria como a Nova Sião e personagem da Igreja (“Parole” , p. 38-39) — ver
nota 98 adiante.

187
QuftRTD no •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota.É sepultado ali perto

que é próprio do discípulo amado, o que é “sua”, não é sua casa, nem seu espaço
espiritual, mas o fato de ser ele o discípulo por excelência. “ Como sua” é o dis-
cipulado especial que Jesus ama.9' O fato de agora a mãe de Jesus ser a mãe do
discípulo e de ele a ter tomado como sua é um modo simbólico de descrever como
alguém ligado a Jesus pela carne (sua mãe, que faz parte de sua família natural)
torna-se ligado a ele pelo Espírito (um membro do discipulado ideal). Os que har­
monizam os Evangelhos alegam que Lc 1,38 mostra que Maria já é discípula na
Anunciação, pois ela diz: “ Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo
a tua palavra”. Mas não há razão para pensar que os leitores joaninos conheciam
essa cena lucana — advertência manifestada por meio da crítica histórica.

Observei acima que concordo com Schürmann que a importância deste


episódio está no novo relacionamento entre a mãe de Jesus e o discípulo amado,
não no simbolismo ligado a Maria pela história da interpretação.9798 Minha asserção
de que esse novo relacionamento envolve a questão de como a família natural
de Jesus relacionava-se com uma família criada pelo discipulado (em linguagem
joanina, por meio de nascimento do alto) ganha apoio pelo fato de que essa foi
precisamente uma questão com a qual os evangelistas sinóticos se debateram. Na
tradição sinótica, Maria aparece ativamente só uma vez, durante o ministério público,
quando ela e os irmãos de Jesus vêm procurar Jesus (Mc 3,31-35; Mt 12,46-50; Lc
8,19-21). Em Marcos, seguido por Mateus, seu pedido para ver Jesus não é tratado

97 Em Jo 16,32, Jesus predisse que os outros discípulos se dispersariam cada um para o seu lado — o deles
não era o discipulado especial que lhes possibilitaria ficar com Jesus. O “ como sua” do discípulo amado
é exatamente o contrário.
98 Nova Eva, a Igreja, a mãe de todo cristão que deve ser um discípulo amado, a mãe da Igreja ou do povo
escatológico, ou a sempre virgem que não tinha filhos próprios (além de Jesus) a quem ela pudesse ser
confiada — embora alguns desses títulos sejam válidos para questões teológicas mais tardias. A meu ver,
A. Kerrigan (“Jn. 19.25-27 in the Light of Johanine Theology and the Old Testament” , em Antonianum
35,1960, p. 369-416), ao argumentar que Jesus conferiu diretamente a Maria uma maternidade universal,
confunde a teologia joanina com a da Igreja mais tardia. Mais possível (mas ainda muito incerta) é a tese
de Zerwick (“Hour”) de que o contexto “ messiânico” em João, criado pelas citações da Escritura nos
episódios circundantes, torna provável que João pensava em Eva e sua posteridade e considerava Maria
a mãe da Igreja (p. 1192-1194). Entretanto, embora não negligencie outras ovelhas que não são deste
aprisco, o Evangelho de João preocupava-se primordialmente com a comunidade do discípulo amado.
Quando o Evangelho foi incluído no cânon, o escopo da maternidade foi ampliado. M.-E. Boismard (RB
61,1954, p. 295-296) é bastante cauteloso ao relacionar a atividade messiânica e Gn 3,15 a esta cena,
e ao insistir que os católicos não devem buscar todos os privilégios maternais de Maria no sentido deste
texto. No outro extremo do espectro, parece que Preisker (“Joh”) é quase polêmico ao questionar o culto
mariano de mãe e rainha aqui; para ele, Maria se torna simplesmente um membro da comunidade na
terra. Contudo, ter sido feita mãe do discípulo amado constitui uma posição única!

188
§41 Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

favoravelmente," pois Jesus tem um programa diferente, que diz respeito à vontade
de seu Pai. Apontando para os discípulos, ele os identifica como sua família: “ Quem
faz a vontade de Deus é irmão e irmã e mãe para mim” (Mc 3,35). Mateus deixa
o leitor com a impressão de que a família natural é independente da família de
discipulado. (Vimos que, para João, Caná representava uma rejeição por Jesus das
preocupações de sua mãe pelas necessidades da festa de casamento em favor de
um programa estabelecido pela “ hora” [determinada pelo Pai].) A reinterpretação
lucana (Lc 8,19-21) da cena marcana básica dá uma imagem muito diferente da
família natural. Ao omitir todo contraste entre a família natural e a família pelo
discipulado, Lucas faz a mãe e os irmãos discípulos modelares, que ouvem a pa­
lavra e a guardam, exemplificando desse modo a semente plantada em solo bom,
conforme explica a parábola imediatamente anterior (Lc 8,15). Segunda cena
joanina que envolve a mãe de Jesus, esta cena perto da cruz realiza, em relação à
primeira cena em Caná, o que a reinterpretação lucana realiza em relação à cena
marcana — coloca a família (a mãe de Jesus) no relacionamento de discipulado,
fazendo-a mãe do discípulo amado, que a toma em sua esfera de discipulado. A
mulher cuja intervenção em Caná a favor de necessidades terrenas foi rejeitada
porque a hora ainda não chegara recebe agora um papel na esfera gerada do alto
depois que a hora chegou.*100 Resta um toque de semelhança com Marcos no fato
de os “ irmãos” não se tornarem discípulos (Jo 7,3-7), mas serem substituídos pelo
discípulo amado, que, ao se tornar o filho da mãe de Jesus, se torna irmão de Jesus.

Lucas modificou o desalento da imagem marcana das reações hostis a Jesus


na cruz usando um malfeitor que foi recompensado com um lugar no paraíso (céu).
0 exemplo joanino positivo não olha para o céu, mas para a continuação terrena
do discipulado amado. Para João, não há descontinuidade entre o ministério de
Jesus e o período pós-ressurreição em relação a esse discipulado inigualável. 0
discípulo amado não veio a existir depois da ressurreição, mas já estava ali, durante
a própria crucificação. Como veremos adiante (§ 42), o dom do Espírito, associado

m Só Marcos (Mc 3,21) associa esta busca em Cafamaum ao fato de “ os seus” (= família em Nazaré) pen­
sarem que ele está fora de si e partirem para agarrá-lo.
100 Mesmo que esse papel não seja tão avançado quanto os papéis designados à mãe de Jesus na mariologia
mais tardia (ver nota 98), ser constituída a mãe do discípulo amado pelo desejo moribundo de Jesus é
papel privilegiado no discipulado. 0 não reconhecimento da importância disso faz com que H. M. Buck
(“ Fourth” , p. 175-176) entenda completamente mal a cena: Jesus já não é filho de sua mãe; ele é intei­
ramente o filho do Pai. “Ao dar a ela um novo filho, João exclui a Mãe de participar da obra de Cristo” .

189
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

ao que podemos chamar de fundação da Igreja, tem lugar para esse discipulado já
na cruz (Jo 19,30).101 Ao relacionar sua mãe (família natural) ao discípulo amado,
Jesus amplia o discipulado de maneira significativa como sinal de que crescerá e
abrangerá muitos indivíduos de origens diversas. Essa interpretação do episódio
de Jo 19,25-27 torna inteligível o fato de no versículo seguinte (Jo 19,28) se dizer
que Jesus sabe que tudo está agora consumado.

Análise

A quantidade de material que teve de ser o assunto de comentário nesta


parte da cena da crucificação, que intitulo “Atividades perto da cruz”, tentou-me
fortemente a fazer uma seção separada de Jo 19,25-27. Contudo, fiquei cada vez
mais convencido de que a passagem joanina tinha de ser tratada ao lado do episódio
sinótico de escárnio, para podermos apreciar as relações estruturais e funcionais,
e traçar o desenvolvimento da reflexão cristã na crucificação. Muitos dos pontos
importantes a respeito de estrutura e teologia já foram examinados no COMENTÁRIO,
de modo que o tratamento analítico será bastante sucinto. É preciso fazer algumas
observações adicionais quanto à historicidade e teologia.

A.Historicidade

A crucificação destinava-se a ser um evento público que produzia um efeito


de castigo nos observadores; assim, estamos certos de que havia pessoas ao redor da
cruz de Jesus. No elenco de personagens envolvidas nos relatos evangélicos, as que
é mais certo terem estado presentes historicamente são os soldados. Na crucificação
antes da morte de Jesus, em Marcos os soldados constituem o “eles” que realizam
todas as atividades descritas entre Mc 15,16 e Mc 15,27; mas não lhes é atribuído
nenhum papel no escárnio marcano de Jesus na cruz. Mateus segue Marcos, mas
explica o óbvio contando-nos que os soldados montam guarda a Jesus (Mt 27,36).

101 Se para João esse discipulado inigualável e a comunidade que produziu constituem a “Igreja” (embora
o Evangelho não empregue esse termo), o aspecto eclesiástico deste episódio em Jo 19,25-27 pode se
relacionar com a interpretação de unidade do episódio anterior (Jo 19,23-24), onde a túnica não foi ras­
gada (§ 40, #4, acima). Chevallier (“Foundation” , p. 343) reclama que seus companheiros protestantes
negligenciam o simbolismo eclesiástico de Maria, embora Calvino não o tenha negligenciado. Ele vê em
Jo 19,25-27 a formação de uma Igreja com dois tipos diferentes de ovelhas — uma nova família com
Maria representando o Israel histórico e o discípulo amado representando um novo tipo de discipulado
(p. 348).

190
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

Jo 19,23-24 é um relato expandido da divisão das roupas de Jesus pelos soldados


(tratamento normal de um criminoso). Só Lc 23,36-38 atribui aos soldados um
papel no escárnio de Jesus na cruz. Embora não seja improvável que os soldados
tomassem parte nos insultos a um criminoso crucificado arrogante, sem dúvida
essa é a forma lucana do escárnio de Jesus pelos soldados romanos que é relatada
durante e depois do julgamento por Pilatos nos outros Evangelhos. A historicidade
desse escárnio lucano deve ser relacionada com a historicidade daquele outro
escárnio (ver § 36 B, itens 1 e 4).

Certamente, também havia transeuntes (Marcos/Mateus) e espectadores


(Lucas), isto é, os “ muitos dos judeus” joaninos, pois o lugar de crucificação foi
escolhido pela facilidade de acesso e devia ser ao lado de uma estrada que levava
a uma porta da cidade (Jo 19,20: “perto da cidade” ). Não é implausível que alguns
dos presentes observassem de maneira neutra (Lucas) e alguns gratuitamente ex­
pressassem desprezo (Marcos/Mateus). Contudo, a linguagem que descreve esta
última reação é tão reminiscente de passagens veterotestamentárias que descrevem
o escárnio do justo,102 que torna impossível decidir se uma lembrança específica
do Gólgota estava na raiz da cena de Marcos/Mateus.

A presença de alguns dos membros do sinédrio que tinham incentivado a


morte de Jesus não é, de modo algum, implausível: é possível especular que eles
gostariam de ver o desenlace do que haviam iniciado.103 O salto da verossimilhança
para o fato histórico está assegurado se for aceita a historicidade do papel de José
de Arimateia (§ 46). Embora nem todos os membros do sinédrio fossem escrupulo-
samente religiosos, é plausível que os chefes dos sacerdotes e muitos dos escribas
e anciãos estivessem na cena da morte de um criminoso crucificado na Páscoa?
JEW J, p. 74-79, tenta mostrar que as atividades ao redor da crucificação descritas
pelos sinóticos eram possíveis no dia da festa. Mas, seja como for, vou seguir minha
prática costumeira de insistir que, depois da Ultima Ceia, os sinóticos não mencio­
nam a Páscoa, nem demonstram ter consciência de descreverem o próprio dia da
festa. Portanto, o único problema histórico que se origina do texto dos Evangelhos

102 Além das passagens citadas no c o m e n t á r io , vale a pena mencionar que o verbo empaizein (“escarnecer”)
aparece na florescente tradição dos mártires (lMc 9,26; 2Mc 7,7.10) que, como Surkau e outros mostram,
contribuiu para a imagem cristã da morte de Jesus.
103 Contudo, havia o perigo de estarem presentes no lugar de execução quando Jesus ou um de seus com­
panheiros morresse e o contato com um cadáver os tomar ritualmente impuros para celebrar a festa.

191
Q uarto >to •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

é se os chefes dos sacerdotes estariam ativos na cena da crucificação na véspera da


Páscoa (Jo 19,31). Em Jo 19,21, é descrita a atividade dos chefes dos sacerdotes;
contudo, seria de se esperar que estivessem no Templo, abatendo cordeiros para a
refeição da Páscoa que teria lugar ao anoitecer do dia da crucificação. Se, à primeira
vista, parece que esse envolvimento sacerdotal no Gólgota é implausível, devemos
admitir incerteza quanto às regras que governam a atividade dos sacerdotes sadu-
ceus na véspera da Páscoa. Mas talvez estejamos fazendo perguntas inadequadas,
considerando a intenção dos evangelistas. 0 fato de Mc 15,31 juntar os escribas aos
chefes dos sacerdotes, e Mt 27,41 sentir-se à vontade para acrescentar os anciãos,
deve nos advertir que os Evangelhos descrevem livremente a contínua atividade do
sinédrio sem lembranças precisas, e a função dramática e teológica do escárnio de
Jesus pelos que Lucas chama englobadamente de “os governantes” torna impossível
um julgamento histórico preciso.

Quando nos voltamos para a historicidade do escárnio de Jesus pelos cocru-


cificados, também encontramos problemas. Não há razão convincente para rejeitar
a asserção dos quatro evangelistas de que havia outros crucificados com Jesus, e
não é impossível que rudes criminosos expressassem desprezo pelas pretensões
religiosas de Jesus. Contudo, Marcos/Mateus não atribuem palavras diretas a esse
insulto a Jesus e Lc 23,39 faz um dos malfeitores suspensos usar praticamente as
mesmas palavras que apareceram no primeiro e segundo escárnios. Certamente,
então, não havia lembrança precisa desse insulto a Jesus, e o interesse dominante
era mostrar o justo maltratado pelo injusto. 0 episódio lucano peculiar, onde o outro
malfeitor é solidário com Jesus e lhe fala, desafia o julgamento histórico. Não há
meio de mostrar que esse episódio não podia ter acontecido, mas é preciso explicar
por que nenhum outro evangelista canônico está ciente dele. Acima, nesta mesma
seção, sob “A salvação do outro malfeitor”, sugeri que o elemento tradicional da
cena lucana é o dito do “Amém” (Lc 23,43) pelo qual Jesus promete o paraíso a
um pecador. Talvez Lucas tenha adaptado esse dito (que poderia ter sido pronun­
ciado em outra ocasião) ao cenário da crucificação e feito um dos cocrucificados
marcanos o objeto do perdão.

0 elemento mais difícil de verificar historicamente entre as atividades perto


da cruz é a presença dos amigos de Jesus, inclusive sua mãe e o discípulo que ele
amava, conforme descrito em Jo 19,25-27. A harmonia dessa imagem com a teologia
joanina de uma comunidade (igreja) de fiéis já existente antes de Jesus morrer é um

192
___________________________ § 41 Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz

fato que não comprova automaticamente que João inventou a cena. Veremos em § 44
que a presença de amigos ou companheiros de Jesus, a distância, conforme relatado
nos Evangelhos sinóticos, corresponde a um tema bíblico (SI 38,12; 88,9); assim, é
muito difícil decidir, com base na teologia, que uma imagem é mais histórica que a
outra, ou que uma delas é necessariamente histórica. Nada nos outros Evangelhos
corrobora a presença da mãe de Jesus no Gólgota, mas há alguns indícios de que
discípulos que não faziam parte dos Doze104 estavam envolvidos na NP. Quanto ao
costume romano, há quem apele para indícios rabínicos mais tardios de que não
raro o crucificado era cercado por parentes e amigos (e inimigos) durante as longas
horas de agonia.103 Contudo, no reinado de terror que se seguiu à queda de Sejano
em 31 d.C., “ Os parentes [dos condenados à morte] foram proibidos de ficar de luto”
(Suetônio, Tibério lxi,2; ver também Tácito, Anais vi,19). Sob vários imperadores
desse período, os parentes não tinham permissão para se aproximar do cadáver de
seu crucificado (§ 46). Assim, não podemos ter certeza de que soldados romanos
permitiríam o contato com Jesus descrito em Jo 19,25-27.106

B. Algumas notas teológicas adicionais

Já comentei (ver início do Comentário a esta seção) que, nas reações das
pessoas perto da cruz, um padrão de três (originário de uma tradição mais antiga)
se encontra em todos os Evangelhos, embora em João o padrão surja como três
episódios distintos (Jo 19,19-22; 19,23-24; 19,25-27).107 Está claro que o fato de
em Marcos (seguido por Mateus) as três reações de Jesus na cruz serem todas escár-
nios hostis harmoniza-se com a teologia marcana da NP, onde Jesus é inteiramente

1M Dentro do próprio quarto Evangelho, não há razão para pensar que o discípulo que Jesus amava lazia
parte dos Doze.
llh Stauffer (Jesus, p. 111, 179') cita Taljer Gittin 7,1. A passagem essencial nas duas obras parece ser
Tosepta Gittin 5,1 a respeito de um homem que foi crucificado e, enquanto ainda respirava, entregou
uma intimação de divórcio a sua mulher. Se entendo a lógica, a suposição é de que a mulher e a família
estavam perto da cruz para testemunhar isso.
Hl” No c o m k n t á r io , mencionei a probabilidade de uma tradição muito primitiva q u e envolvesse Maria em
uma cena que pusesse em contraste a família natural e a família constituída pelo discipulado. Entretanto,
os sinóticos têm a cena durante o ministério público e, assim, pode ser que João a adaptasse e a pusesse
em um novo cenário perto da cruz.
IIJ' Como não há indícios de que João tirou seus três episódios dos três eseárnios marcanos. é interessante
o fato de já existir na narrativa pré-evangéliea da crucificação o padrão de três. Vimos em § 27 que um
padrão de três negações por Pedro existia desde a época mais antiga a que podemos remontar a história.
A antiguidade identificável da narrativa, decerto, não deve ser confundida com a historicidade.

193
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

desertado por amigos e maltratado por inimigos. Há uma progressão dramática


nos escarnecedores, que são, desde transeuntes casuais, passando por membros
do sinédrio, até mesmo criminosos companheiros de condenação. O conteúdo dos
escárnios tem diversas dimensões teológicas. Por um lado, os escárnios pegam
os temas do julgamento de Jesus pelo sinédrio (destruir o santuário, alegar ser o
Messias [+ Filho de Deus, em Mateus]), quando Jesus foi ridicularizado como falso
profeta; assim, eles são transicionais para o que acontecerá quando Jesus morrer na
cruz e cumprir sua profecia, quando o véu do santuário se rasga e ele é confessado
como o Filho de Deus. Por outro lado, os escárnios explicam a natureza fortemente
religiosa do verdadeiro conflito entre Jesus e seus adversários judaicos. Se Pilatos
interrogou Jesus em relação à acusação de ser “o Rei dos Judeus”, e depois os
soldados romanos escarneceram dele sob esse título, essa questão desaparece em
Marcos/Mateus no que diz respeito aos escarnecedores judeus de Jesus na cruz.108

A imagem lucana é mais complicada. Sua construção dos três escárnios


hostis, com um prefácio neutro (o povo que observa) e uma conclusão benevolente
(o malfeitor solidário), harmoniza-se por completo com a aversão lucana por uma
imagem totalmente negativa. Em geral (mas ver nota 14 acima), na NP ele distingue
entre alguns governantes judaicos que se opõem com força a Jesus e o povo judeu
que não se opõe. Como ressaltei (sob “A resposta de Jesus ao outro malfeitor” ), a
salvação de um dos malfeitores por Jesus é típica da visão lucana de que a miseri­
córdia divina já está ativa na NP. Contudo, ao reorganizar os três escárnios hostis
dentro dessa estrutura, a sequência lucana de governantes judaicos, soldados ro­
manos e um malfeitor não preserva o objetivo teológico da progressão marcana. A
concentração já não é unicamente nas questões religiosas judaicas que se originam
da investigação do sinédrio, pois agora há entremisturada a acusação de “o Rei dos
Judeus” que se origina do julgamento romano e é lançada pelos soldados romanos.
Como o tema mais consistente nos três escárnios hostis é o desafio para salvar, esses
escárnios se transformam em preâmbulo ao que é o aspecto mais importante nesta
cena lucana: a aceitação desse desafio por Jesus, que salva o malfeitor solidário
no fim do episódio.

A organização joanina de atividades na cruz nos três episódios resulta


em um padrão teologicamente dramático. 0 Jesus soberano que reina da cruz é

108 Em Mc 15,32, “o Rei de Israel” tem um tom messiânico sem a sutileza política de “o Rei dos Judeus” .

194
§ 41 .Jesus crucificado,segunda parte: Atividades no local da cruz

vitorioso ou realiza o propósito divino nas três atividades (ver acima, sob “Amigos
e discípulos perto da cruz” ). Entre os que estão envolvidos nos episódios, há uma
progressão da hostilidade desde os chefes dos sacerdotes que consideram Jesus
um rei fraudulento, passando pela insensibilidade dos soldados que tratam Jesus
como criminoso, até a fidelidade da família e dos amigos que são constituídos em
uma nova posição por um ato de amor por Jesus. Este último episódio é o ponto
culminante do ministério de Jesus, que termina em uma nota positiva de sucesso.
Se sua gente não o aceitou, há uma nova gente “sua” que o aceita e, assim, recebe
o poder de se tornar “filhos de Deus” em um novo relacionamento com o Filho de
Deus (Jo 1,11-13).

(A bibliografia para este episódio encontra-se em § 37, Partes V e VI.)

195
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte:
Últimos acontecimentos, morte
(Mc 15,33-37; Mt 27,45-50;
Lc 23,44-46; Jo 19,28-30)

Tradução

M c 15,33-37: 33E a sexta hora tendo chegado, a escuridão cobriu a terra


inteira até a nona hora. 34E na nona hora, Jesus vociferou com um forte grito:
“ E loi, E lo i, lam a sabachthani?", que se traduz: "M e u Deus, meu Deus, por que razão
me abandonaste?". 35E alguns dos circunstantes, tendo ouvido, estavam dizendo:
"O lhai, ele está gritando para Elias". 3éM a s alguém, correndo, tendo enchido uma
esponja com vinho avinagrado, tendo-a posto em um caniço, estava lhe dando para
beber, dizendo: "Deixai (estar). Vejamos se Elias vem descê-lo". 37M as Jesus, tendo
soltado um forte grito, expirou.
M t 27,45-50:45M as desde a sexta hora, a escuridão cobriu toda a terra até a
nona hora. 4éM a s por volta da nona hora, Jesus bradou com um forte grito, dizen­
do: “ E li, E li, lem a sabachthani?" — isto é: "M e u Deus, meu Deus, com que propósito
me abandonaste?". 47M a s alguns dos que estavam de pé ali, tendo ouvido, estavam
dizendo que "Este sujeito está gritando para Elias". 48E imediatamente um deles,
correndo e tomando uma esponja cheia de vinho avinagrado e tendo-a posto em
um caniço, estava dando-lhe de beber. 49M as os restantes disseram: "Deixai (estar).
Vejamos se Elias vem salvá-lo". 50M as Jesus, novamente tendo berrado com um
forte grito, soltou o espírito.
[Lc 23,36: Além disso, também os soldados escarneciam, vindo para a frente,
trazendo para a frente para ele vinho avinagrado.]
Lc 2 3 , 4 4 - 4 6 : 44E já era cerca da sexta hora e a escuridão cobriu a terra
inteira até a nona hora, 4So sol tendo se eclipsado. O véu do Templo rasgou-se
pelo meio. 4ÍE tendo clamado com um forte grito, Jesus disse: "Pai, em tuas mãos
eu coloco meu espírito". M as tendo dito isso, ele expirou.

197
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Jo 19,28-30:28Depois disso, Jesus tendo conhecido que já tudo estava consu­


mado, a fim de que a Escritura se completasse, diz: "Tenho sede". 29Uma jarra estava
ali cheia de vinho avinagrado. Assim, pondo em hissopo uma esponja ensopada com
o vinho avinagrado, eles a trouxeram para a frente até sua boca. 30Assim , quando
ele tomou o vinho avinagrado, Jesus disse: "Está consumado"; e tendo inclinado a
cabeça, ele entregou o espírito.
EvPd 5,15-19: l5M as era meio-dia e a escuridão logo tomou conta de toda a
Judeia; e eles estavam aflitos e ansiosos, temendo que o sol se tivesse posto, pois ele
ainda estava vivo. [Pois] está escrito para eles: "Q u e o sol não se ponha sobre um
executado". léE alguém dentre eles disse: "Dai-lhe a beber fel com vinho avinagrado".
E tendo feito uma mistura, deram a beber. I7E eles cumpriram todas as coisas e com ­
pletaram os (seus) pecados em sua cabeça. l8M as muitos circularam com lâmpadas,
pensando que era noite e eles caíram. I9E o Senhor deu um grito, dizendo: "M e u
poder, Ó poder, tu me abandonaste". E tendo dito isso, ele foi elevado.

Comentário

Em § 38, apresentei uma visão geral da organização do último Ato das


NPs evangélicas, que consiste na crucificação/morte de Jesus. Entretanto, restam
dificuldades para determinar a demarcação de seções individuais e nesta seção,
não é fácil decidir qual a melhor maneira de fazer justiça à fluência da narrativa
de Marcos/Mateus. Em Marcos, vimos a importância de um horário que chama
a atenção para quase todo período de três horas. Embora fosse tentador dividir
o relato marcano com base nessas designações de tempo, nenhuma subdivisão
proporcional em duração ou conteúdo surgiría aqui, pois o versículo inicial desta
seção (Mc 15,33) tem dentro de si duas notações de três horas (sexta e nona horas).

Uma base mais plausível para subdividir esta seção marcana é recorrer à
menção de uma escuridão sobre toda a terra antes da morte de Jesus (Mc 15,33)
e à menção de um rasgamento do véu do santuário do Templo depois da morte de
Jesus (Mc 15,38). Isso nos dá dois sinais escatológicos dados por Deus que formam
uma inclusão de cada lado da agonia da morte de Jesus.1 Contudo, de outro ponto
de vista, o véu do santuário rasgado é parte integral da sequência pós-crucificação
que constitui as cenas seguintes (§§ 4 3 -4 4 ); de fato, o centurião que reage a ela é
paralelo às mulheres que olham de longe — as duas cenas exemplificam respostas

1 Como veremos na ANÁLISE, diversos biblistas interpretam essa inclusão como estrutura marcana colocada
pelo evangelista em tomo de material pré-marcano.

198
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte

à mudança de situação produzida pela morte de Jesus e a intervenção divina. As­


sim, não está claro se esta seção deve ser Mc 15,33-38 (sendo os vv. 33 e 38 uma
inclusão) ou 15,33-37 (com o v. 38 começando a seção seguinte: Mc 15,38-41).

Reconhecendo que nenhum método para subdividir Marcos é perfeito, neste


comentário que compara NPs escolhi o segundo porque a organização mateana do
material o favorece. Ao rasgamento do véu do santuário que tirou de Mc 15,38,
Mateus acrescentou uma série de sinais cosmológicos (Mt 27,51-53: terremoto,
túmulos abertos, ressurreição dos mortos) que não se associam com facilidade aos
últimos acontecimentos que precedem a morte na cruz.

Lucas e João têm arranjos do material anterior à morte que são fáceis de
identificar. Em Lc 23,44, o kai (“e” ) inicial, acompanhado pela primeira indica­
ção de tempo dada no relato da crucificação desse evangelista, sinaliza uma nova
subdivisão, como faz a mudança para descrição indireta da fala direta que pre­
cedeu. Em Lc 23,44-45, antes de Jesus morrer, Lucas associa a escuridão sobre
a terra inteira com o rasgamento do véu do santuário — dois sinais que Marcos
tinha colocado de maneira inclusiva em cada um dos lados da morte. Por meio
desse rearranjo, as duas ameaçadoras intervenções divinas constituem um esboço
ao qual Jesus reage por um ato de confiança na amorosa solicitude divina (Lc
23,46).2 Assim, Lucas é capaz de tornar positiva toda a cena depois da morte de
Jesus, com o trio do centurião, as multidões e as mulheres galileias espectadoras,
todos favoráveis a Jesus (Lc 23,47-49), do mesmo modo que havia um trio formado
por Simão, a aglomeração e as mulheres de Jerusalém favoráveis a Jesus antes de
ele ser crucificado (Lc 23,26-31). No padrão quiástico complicado de João (§ 38
C, Quadro 7), Jo 19,28-30 constitui o Episódio 4, facilmente distinguível dos dois
episódios subsequentes posteriores à morte em Jo 19,31-42 (a serem estudados
em §§ 44, 4 6 -4 7 ).

2 Matera (“Death” , p. 475) acha que, ao mudar o rasgamento do véu do santuário para antes da morte de
Jesus, Lucas tenta evitar a impressão de que essa morte marca o fim do Templo e seu culto. 0 esforço de
Lucas se harmoniza com seu plano de em Atos narrar cenas onde os apóstolos e Paulo vão ao Templo.
Concordo que Lucas reduz a proximidade do fim do culto no Templo, mas Deus rasgar o véu imediatamente
antes da morte de Jesus é sinal de que o fim é inevitável em harmonia com palavras ditas às “filhas de
Jerusalém” a respeito da destruição de Jerusalém na próxima geração (Lc 23,28-31).

199
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Este comentário tratará dos incidentes desta seção na ordem relacionada a


seguir; aqui, o EvPd apócrifo tem uma quantidade incomum de material paralelo
a Marcos/Mateus.

• Escuridão na sexta hora (sinóticos; EvPd )

• Grito de morte de Jesus, Elias e a oferta de vinho avinagrado em Marcos/


Mateus (EvPd)

• Grito de morte de Jesus em Lucas

• Ultimas palavras de Jesus e a oferta de vinho avinagrado em João

• Morte de Jesus (todos)

0 segundo dos incidentes acima requer o estudo mais longo, porque há um


complicado mal-entendido a respeito da vinda de Elias, que ocorre apenas em
Marcos/Mateus.

Escuridão na sexta hora (Mc 15,33; M t 2 7,4 5 ; Lc23,44-45a; EvPd 5 ,15 .18 )

Quando se lê a assustadora descrição de escuridão que cobre a terra inteira


do meio-dia às 3 horas da tarde (da sexta à nona hora), vêm à mente diversas in­
terpretações possíveis. Poderia ser um relato real envolvendo um fenômeno natural
(eclipse, tempestade etc.) ou um milagre totalmente sem paralelo.3 Ou poderia ser
uma descrição puramente figurativa, refletindo ou linguagem escatológica vetero-
testamentária ou metáfora helenística associada à morte de homens famosos, ou
ambas. Embora todas essas possibilidades tenham de ser estudadas, esse estudo
estará subordinado a nosso interesse primordial, a saber, o uso que cada evangelista
atribui ao tema da escuridão.

Escuridão em Marcos/Mateus. Não há um jeito de saber se os evangelis­


tas Marcos e Mateus pensavam ter havido escuridão física ao meio-dia no Gólgota
— é mais que provável que pensassem, pois eles a ligam a uma especificação de
“hora” semelhante às que ligam a acontecimentos que pressupõem serem reais —
mas o foco dominante nos dois Evangelhos é simbólico e teológico.

3 Ao resumir a história de interpretar a escuridão. Grández (“Tinieblas” , p. 183) chama a atenção para a
influência do Pseudo-Areopagita (c. 500 d.C.), que mencionou a analogia da grande intervenção milagrosa
de Deus no AT, especialmente no êxodo.

200
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

Marcos: As três horas intervenientes desde que os soldados crucificaram


Jesus às 9 da manhã (Mc 15,25) são preenchidas com o escárnio de Jesus na cruz
pelos transeuntes, pelos chefes dos sacerdotes e pelos cocrucificados. Nenhum ser
humano demonstrou misericórdia para o Filho de Deus e agora, ao meio-dia, no
reino da natureza, a terra inteira se cobre de escuridão. Embora alguns intérpretes
afirmem que em Marcos a escuridão termina antes que Jesus morra, Marcos não
declara isso; o que ele enfatiza é que a escuridão estendeu-se até o exato momento
(hora) em que Jesus morreu, a saber, a nona hora, quando Jesus deu seu grito de
abandono e expirou (Mc 15,34.37; 3 horas da tarde). Então, mesmo no nível mais
óbvio de simbolismo, a escuridão incrementa a melancólica descrição marcana da
crucificação que é o clímax da NP.

Entretanto, há um nível mais profundo de referência. Os escárnios anteriores


de Jesus imitavam descrições veterotestamentárias do justo, especialmente SI 22,8.
0 grito mortal de Jesus introduzido pela escuridão cita o verso inicial do mesmo
Salmo (SI 22,2). A reação a esse grito por alguém que corre para dar a Jesus vinho
avinagrado preenche SI 69,22. Assim, o contexto compele os leitores a pensar em
uma origem veterotestamentária para essa escuridão incomum empregada drama­
ticamente por Deus. A escuridão caótica precedeu a criação por Deus da luz em
Gn 1,2-3. Uma das pragas do êxodo foi durante três dias a escuridão “sobre toda a
terra”, invocada por Moisés como castigo para os egípcios (Ex 10,21-23).*34 0 (pri­
meiro) contexto pascal dessa praga faz dela um provável paralelo com a escuridão
na Páscoa da morte de Jesus.5 Quanto à escuridão que simboliza a cólera divina,
em amarga censura a Jerusalém Deus proclama: “ Seu sol se põe ao meio-dia; ela
está envergonhada e desgraçada” (Jr 15,9). Em Sb 5,6, os que escarneceram do
justo, duvidando que ele seja um “filho de Deus”, são levados a exclamar: “ Nós
nos extraviamos do caminho da verdade e a luz da justiça não brilhou para nós e
o sol não nasceu para nós”. Em Jr 33,19-21 (ausente da LXX), se o dia e a noite
já não seguem a sequência normal, é sinal de que Deus está rompendo a aliança.

4 Há quem ressalte que a escuridão egípcia durou três dias e a escuridão do Gólgota durou três horas;
entretanto, Marcos não menciona “três horas” , mas a sexta e a nona horas. Grayston (“ Darkness”) leva
o mau simbolismo da escuridão adiante e inclui a inorte (SI 88,11-13 e Jó 38,19: parte dos horrores do
outro mundo).
3 0 paralelo sugerido por Irineu (Contra as heresias IV,x,l) que envolve o sacrifício do cordeiro pascal
antes do pôr do sol (Dt 16,5-6) combina com a menção lucana (Lc 23,45a) do sol tendo eclipsado (ou
desaparecido).

201
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

Talvez o melhor paralelo veterotestamentário se encontre na escuridão que indica


“o dia do Senhor”, concebido como dia de julgamento e castigo: “ um dia de cólera
[...] um dia de escuridão e de tristeza” (Sf 1,15). J1 2,2 adverte: “Está próximo,
um dia de escuridão e de tristeza” (ver também J1 2,10); e J1 3,4 (RSV 2,31) pre­
diz: “ O sol se transformará em escuridão [...] na vinda do grande e terrível dia do
Senhor”. Em especial, Am 8,9-10 parece pertinente, embora o vocabulário seja
diferente do de Marcos: “ E nesse dia, diz o Senhor Deus, o sol se porá ao meio-dia
e a luz escurecerá na terra durante o dia [...]. Farei com que lamentem um filho
único e darei a seu dia um fim amargo”. Contra esse pano de fundo, é possível
dar a Marcos o significado de que, enquanto os escarnecedores exigiam de Jesus
na cruz um sinal (isto é, que ele descesse da cruz), Deus lhes dá um sinal como
parte de um julgamento do mundo, a saber, uma advertência de castigo que agora
se iniciava. Embora em toda a NP marcana Deus não tenha estado visivelmente
ativo, agora que Jesus bebe todo o cálice que seu Pai lhe deu, a intervenção divina
começa a ser percebida.

Como o substantivo ge significa “terra” e “ território”, é discutível se Marcos


descreve a escuridão sobre a terra inteira ou apenas sobre o território (da Judeia,
como EvPd 5,15 a entendeu).6 Há quem prefira a segunda hipótese como menos
embaraçosa para explicar, pois escuridão sobre a terra inteira durante três horas
no tempo da morte de Jesus teria sido mencionada em registros históricos ou astro­
nômicos antigos e não o foi. Entretanto, tal objeção histórica não deve influenciar
nossa interpretação de uma cena que primordialmente tem importância teológica.
Embora o alvo dos oráculos de julgamentos veterotestamentários no dia do Senhor
fosse em geral Israel ou a Judeia, os profetas certamente não restringiam os sinais
apocalípticos a um pequeno canto da terra. No contexto marcano, logo será trazido
à cena um centurião romano que pronunciará uma retumbante justificação de Jesus
(Mc 15,39); certamente, então, Marcos considera esse um dia de clímax para todos
os povos e a terra inteira.

6 Entre os que preferem “ território” estão Erasmo, Lutero. Billerbeck, Ewald, Klostermann, Knabenbauer,
Olhausen e Plummer. Entre os que preferem “terra” estão Gnilka, Grayston e Lohse, com Loisy afirmando
que nos Evangelhos a expressão “sobre a ge inteira” ou “sobre toda a ge” nunca tem sentido restrito a
“território” (Grández, “Tinieblas” , p. 204 — não tenho essa certeza quanto a Lc 4,25). Não é convincente
o argumento de que, em relação a Moisés, Ex 10,22-23 tem a praga “sobre todo o território do Egito” ;
por isso, aqui, por analogia, o castigo divino deveria vir sobre todo o território da Judeia. Não deveria a
praga divinamente enviada ser maior em relação a Jesus, Filho de Deus e, assim, “ sobre a terra inteira” ?

202
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

Mateus: Em Mt 27,45, ele segue Marcos de perto, se bem que em um grego


mais homogêneo.7 Entretanto, aspectos do contexto mateano servem para fortalecer
a mensagem simbólica e escatológica marcana. Somente em Mateus (Mt 27,25) “todo
o povo (judeu)” aceitou a responsabilidade diante de Pilatos por condenar Jesus à
morte pela crucificação; então, não é inesperado que Deus envie a escuridão como
advertência de julgamento iminente. Em Mateus (Mt 27,51-53), à morte de Jesus
se seguirão sinais escatológicos (terremoto, abertura de túmulos, ressurreição dos
mortos) ainda mais dramáticos que o rasgamento do véu do santuário em Marcos.
Com certeza, então, a escuridão é mais do mesmo. A forte ênfase mateana em “todo o
povo (judeu)” significa que seu “toda age ”, que é uma substituição do “age inteira”
marcano, refere-se ao território da Judeia, e não a toda a terra? Provavelmente não
— embora a explicação para Mateus mudar Marcos aqui não seja puramente uma
de preferência estilística, pois em outras passagens Mateus usa “ inteira” (holos)
para expansão geográfica. “ Sobre toda a ge” é uso muito comum na LX X e realça
a origem veterotestamentária para a escuridão. Aparece, em especial, em Ex 10,22,
uma das passagens citadas acima para esclarecer o sentido mateano.

A escuridão no E v P d . Embora descreva o mesmo acontecimento que Mc


15,33 e Mt 27,45, EvPd 5,15 o faz com um vocabulário quase totalmente diverso
(exceto pela palavra básica “escuridão” ). Se supusermos que EvPd recorreu aos
Evangelhos canônicos (pelo menos por intermédio da lembrança de ter ouvido um
Evangelho oralmente), algumas das mudanças talvez sejam intencionais, em vez
de casuais. A interpretação pelo EvPd de ge como a Judeia está de acordo com o
feroz antijudaísmo desse Evangelho apócrifo, no qual até aqui o rei judeu Herodes
dominou a morte de Jesus (EvPd 1,2) e o povo judeu arrasta o “ Filho de Deus”,
agora que eles têm poder sobre ele (EvPd 3,6) e escarnecem do Senhor, cospem
nele e o agridem e açoitam (EvPd 3,9), para finalmente crucificá-lo, dividindo suas
roupas (EvPd 4,10.12). Proíbem que quebrem os ossos do malfeitor cocrucificado
que demonstrou solidariedade com o Senhor, para que ele morra atormentado
(EvPd 4,14).

Como antes Mateus não tinha nenhum aviso de terceira hora comparável ao de Marcos, sua mudança de
“ a sexta hora tendo chegado” em Marcos para “ desde a sexta hora” é apenas um ajuste cronológico. Ele
usa o padrão de apo [...] heos (“de [...] até”) dez vezes para descrever um período de tempo (SPNM, p.
292).

203
Q uarto » to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Outro tema influenciou o vocabulário da descrição do EvPd : “ Mas era meio-


-dia e [...] o sol se tivesse posto”. As palavras em itálico fazem eco à descrição do
dia do Senhor em (na LX X de) Am 8,9 que, como já sugerimos, talvez tenha dado
origem ao simbolismo em Marcos.8 Caracteristicamente, o EvPd torna mais explí­
citos temas bíblicos encontrados nos Evangelhos canônicos. Ênfase adicional nas
Escrituras é vista na citação direta no EvPd do que está escrito: “ Que o sol não se
ponha sobre um executado”. Embora o EvPd tenha usado antes a mesma citação
literalmente, e na verdade tenha especificado que estava “na lei” (EvPd 2,5), a
citação não tem contrapartida exata no Pentateuco, nem em nenhuma passagem
do AT. 0 mais próximo que se chega é Dt 24,15 (LXX 24,17), ao insistir que os
salários do dia devem ser pagos antes de o sol se pôr. Esse refrão a respeito do pôr
do sol9 foi combinado com a ideia (mas não o vocabulário) de Dt 21,22-23, segundo
a qual um cadáver suspenso não deve permanecer na árvore durante a noite. Essa
injunção bíblica geral talvez estivesse por trás dos relatos dos Evangelhos canôni­
cos, pois todos eles descrevem um sepultamento antes do sábado, que começava
ao pôr do sol, mas só o EvPd cita a Escritura nesse ponto. Seria porque os leitores
do EvPd eram gentios que não entenderíam a mentalidade judaica quanto a esse
ponto, se fosse deixado implícito? É mais provável que (e talvez além disso) repre­
sente uma inferência antijudaica de hipocrisia: os que crucificaram Jesus foram
extremamente cuidadosos a respeito dessas minúcias quanto à hora exata do pôr
do sol, mas não hesitaram em escarnecer do Filho de Deus (EvPd 3,9).10 Ainda
mais um eco da literatura sagrada pode ser percebido, se o autor de EvPd conhecia
2 Henoc 67,1-3.'1 Ali, a escuridão cobre a terra quando Henoc fala e é levado ao
céu.12 Esse paralelo realça a sutileza apocalíptica dos fenômenos que ocorreram
enquanto Jesus estava na cruz.

8 Esta passagem mostra-me a impossibilidade de considerar o EvPd a NP original da qual Marcos e Mateus
eram dependentes. Por que um ou os dois deles teriam rejeitado a redação bíblica “ meio-dia” usada pelo
EvPd em favor de “a sexta hora” , não atribuível a nenhuma das passagens veterotestamentárias que são
os antecedentes para a escuridão?
9 Vê-lo em Ef 4,26: “Não deixeis o sol se pôr sobre vossa ira” .
10 Ao interpretar os Evangelhos canônicos, é preciso levar em conta a percepção pelos evangelistas de que
os que fizeram mal a Jesus não conheciam sua verdadeira identidade divina. Entretanto, no EvPd, os
perpetradores sabem que agiram mal (EvPd 7,25; 8,28; 11,48).
11 É bastante difícil datar este pseudepígrafo preservado em eslavônico e nunca atestado antes do século XIV
d.C., mas muitos o atribuem a por volta do século II d.C., quando o EvPd também estava sendo escrito.
12 A passagem continua: Quando o povo viu isso. deram glória a Deus e foram para casa — cf. Le 23,48.
Ver a influência de 2 Henoc em Clarke, “St. Luke” .

204
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

Para além do aspecto bíblico, o tratamento da escuridão em EvPd mostra


a faceta popular de contar história deste apócrifo. Em EvPd 5,18, nos é dito que
muitos circularam com lâmpadas porque pensaram que a noite talvez tivesse che­
gado, e ainda assim eles caíram. Essa descrição enfatiza vivamente que a escuridão
era intensa e, como sinal vindo de Deus, tinha o poder de paralisar os inimigos de
Jesus. Ao que tudo indica, esses adversários judeus tinham domínio sobre ele, mas
Deus agora começa a atacar seus pecados em suas cabeças (EvPd 5,17). Em Dt
28,29, Deus amaldiçoa o povo quando eles são desobedientes: “ Mesmo ao meio-
-dia, andarás tateando como um cego no escuro, incapaz de achares teu caminho”.

A escuridão em Lucas. Como em Marcos, a escuridão chega por volta


da sexta hora até a nona hora, mas entre a escuridão e o grito mortal de Jesus
interpõe-se o rasgamento do véu do santuário, que está associado ao eclipse do
sol. Além dessa descontinuação da ligação marcana entre a escuridão e a morte,
Lc 23,44-45 leva ao ponto crítico outros problemas a respeito da escuridão, pois
junta antes da morte de Jesus dois sinais tirados de Mc 15,33 (escuridão antes da
morte de Jesus) e de Mc 15,38 (rasgamento do véu do santuário depois da morte de
Jesus). Esse rearranjo é, sem dúvida, reflexo da propensão lucana para um relato
(logicamente) mais ordenado (Lc 1,3) e mostra um entendimento de que os dois
sinais são de origem semelhante, refletindo a cólera divina. Lucas queria concentrar
os elementos negativos antes do momento em que Jesus confiaria seu espírito às
mãos de seu Pai (Lc 23,46). Em Lucas, tudo que se seguir a esse ato de confiança
será positivo, reconhecendo a benevolência de Deus.

Se o registro lucano é razoavelmente inteligível, a redação lucana é um pro­


blema maior. Lc 23,44 é tomado por empréstimo de Mc 15,33 (como quase todos
reconhecem), pois doze de suas dezesseis palavras encontram-se em Marcos.13
Contudo, há alguns improvisos interessantes: Marcos é que costuma exagerar o uso
de “e” ; mas aqui, em Lc 23,44b, Lucas acrescenta um segundo “e”, criando coor­
denação. Mais importante é a adição lucana de “já” (ede), da qual pode-se inferir
que Jesus tinha estado na cruz antes do meio-dia (sexta hora), e assim encontrar
uma implícita harmonização com o horário marcano. Contudo, devemos também
mencionar a adição de “cerca de” (hosei) que, com uma expressão de tempo, é uso
lucano comum (Lc 9,28; 22,59; At 10,3). Leldkãmper (Betende, p. 273) observa

13 Várias das palavras não estão no estilo lucano normal, por exemplo, de Marcos Lucas toma “ sobre a terra
inteira” , enquanto em outras passagens (Lc 4,25; 21.35) ele prefere “toda a terra” .

205
Q u it o ho •iesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto

que desse modo Lucas demonstra uma avaliação da impossibilidade de atribuir


uma hora exata a um sinal escatológico como a escuridão do meio-dia.

Questão importante é o esclarecimento que Lucas dá em Lc 23,45a, que


parece ser independente de Marcos.14 E evidente que os escribas antigos também
ficaram confusos com esse esclarecimento, pois os mss. atestam basicamente duas
interpretações diferentes:

• tou heliou qklipontos: aoristo (ou de vez em quando presente: ekleipontos)


genitivo absoluto: P75, Códices Vaticano, Sinaítico, Efrém rescrito, alguns teste­
munhos saídicos.

Tradução a): o sol tendo se eclipsado

Tradução b): o sol tendo desaparecido

• kai eskotisthe ho helios: oração principal coordenada: Códices Alexandrino,


de Beza, Koridethi; Marcião; testemunhos latinos e siríacos; tradição koiné.

Tradução c): e o sol foi escurecido/obscurecido

Como veremos, há um grande problema astronômico quanto a pressupor um


eclipse do sol na hora da morte de Jesus; por isso, a segunda interpretação é muito
mais fácil (do mesmo modo que a tradução b da primeira interpretação) e, por essa
razão, pode ter sido preferida por escribas ansiosos para melhorar a aceitabilidade da
passagem. A primeira interpretação grega tem apoio textual mais impressivo e deve
ter preferência sob a regra de escolher como original a interpretação mais difícil.15

Resta o problema de como deve ser traduzida a primeira interpretação. A


tradução b é possível, pois “desaparecer, extinguir-se, acabar” é tradução normal
de ekleipein,16 e muitos biblistas lucanos modernos, de Lagrange a Marshall e
Fitzmyer, a preferem. Apesar de ser explicação banal da escuridão, essa tradução
evita o constrangimento de atribuir um erro a Lucas, pois um eclipse do sol não

14 E muito difícil derivar o grego lucano (as duas interpretações dadas acima) de Marcos, apesar da tentativa
de Buckler (“ Eli” , p. 378) de relacioná-lo com o Eloi (textos variantes Eli) e egkatelipes de Mc 15,34.
’’ Por causa da influência de Orígenes (ver adiante), comentaristas mais antigos preferiam a segunda in­
terpretação; mas, com a chegada de Tischendorf no século XIX e uma percepção mais nítida de crítica
textual, a primeira interpretação ganhou a preferência geral. Grández (“Tinieblas” ) apresenta um registro
de opiniões quanto a este ponto.
16 Exemplo interessante está na LXX de Eclo 22,9(11), que descreve uma pessoa morta como alguém que
perdeu (ekleipein) a luz ou cuja luz acabou.

206
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

pode ter lugar durante o período de lua cheia que inicia a Páscoa.17 Parece também
que a máxima duração atestada de um eclipse solar completo é de sete minutos e
quarenta segundos (Driver, “ Two”, p. 333), consideravelmente menos que as três
horas pressupostas pelos Evangelhos sinóticos. Qualquer sugestão de que Deus
suspendeu as possibilidades naturais e provocou um eclipse extraordinariamente
longo sobre a terra inteira em uma ocasião em que nenhum podia acontecer choca-se
com o silêncio de autores antigos contemporâneos do suposto acontecimento, como
Sêneca e Plínio, que normalmente teriam mencionado um prodígio tão extraordi­
nário. Se não houve nenhum eclipse do sol por ocasião da morte de Jesu s,18 que
outro fenômeno conhecido provocaria a escuridão ou a obscuridade da luz solar?
Muitas explicações têm sido oferecidas: manchas solares, tempestades solares, os
hamsin ou ventos sirocos que trazem uma tempestade de areia,19 um temporal com
trovoadas e raios, a consequência de uma erupção vulcânica na Arábia ou na Síria
etc. Entretanto, a passagem lucana não faz alusão a ventos ou tempestades (com­
parar At 2,2). Além disso, algumas dessas sugestões originam-se de pessoas que
viveram na Palestina e conheceram os fenômenos climáticos locais,20 mas Lucas
não revela esse tipo de conhecimento.

Por outro lado, há um padrão lucano que favorece a tradução a): “ 0 sol
tendo se eclipsado”, mesmo que essa tradução signifique que a descrição lucana

'' Este problema já era visto por Orígenes (Commentariorum Series 134; In Matt 27:45. GCS 38. p. 271-
741), que preferia a interpretação de que o sol ficou escurecido. Alhures, Orígenes insinuou que a ideia
de um eclipse foi introduzida por anticristãos para desacreditar os Evangelhos. (Lembramos que ele
pensava o mesmo da interpretação de Mt 27,16-17 que dava “Jesus” como nome próprio de Barrabás.)
Ver B. M. Metzger. “ Explicit references in the Works of Origen to Variant Readings in the New Testa-
ment Manuscripts” , em J. N. Birdsall & R. W. Thomson, orgs., Biblical andPatrístie Süuúes, A e * lork.
Herder, 1963, p. 78-95, esp. 87 (Memory of R. P. Casey). Júlio Africano, que nasceu em Jerusalém e
conheceu Orígenes, escreveu Chronikon em 221 d.C.; em 5,50 (ed. Rowth 2,297), ele relatou que Talos
(historiador do início do século I d.C.?) chamou essa escuridão de eclipse do sol, mas tal designação era
sem fundamento.
18 No passado, J. J. Scaliger (1598), A. Calmet (1725) e outros pensaram em um eclipse lunar, às vezes
combinado com um eclipse solar! Apelando a At 2,20, “ 0 sol se transformará em trevas e a lua em
sangue” , Humphreys & Waddington (“ Dating” ) sugerem que Lucas combinou uma tempestade de areia
com um eclipse lunar parcial, que aconteceu em 3 de abril de 33 d.C.
^ Isso é mencionado ou defendido por biblistas ilustres, por exemplo, Lagrange, Benoit, Fitzmyer. Driver
(“ Two”) afirma que como o Templo estava aberto do lado oriental (Mixná, Middot 2,4), o vento que trouxe
a areia podería ter rasgado o véu do santuário!
20 O que certamente é verdade a respeito da sugestão por Lagrange de um siroco; e já, ao escrever c. 396,
Jerônimo, que ali vivia, menciona uma escuridão incomum que teve lugar por volta de Pentecostes
(Contra loannem Hierosolymitanum 42, PL 23.393C).

207
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

não é cientificamente exata.21 Em sua narrativa da infância, Lucas relatou que “um
edito foi promulgado por César Augusto para que se realizasse um recenseamento
de toda a terra” (Lc 2,1). Até onde indicam os indícios conhecidos, nunca houve
esse recenseamento universal sob Augusto, apesar das engenhosas tentativas de
intérpretes para defender a exatidão lucana (ver BNM, p. 470-472,651-662). Houve
muitos editos de Augusto e muitos recenseamentos regionais; e Lucas, por confusão
ou licença artística, recorreu a eles a hm de criar um ambiente para o nascimento
de Jesus em Belém. Do mesmo modo, Lc 2,2 descreve esse recenseamento como
“o primeiro recenseamento sob Quirino como governador da Síria” e nos diz que
ele fez os pais de Jesus irem da Galileia a Belém. Houve um recenseamento (mas
da Judeia, não da Galileia) sob Quirino como governador da Síria; contudo, foi
realizado mais de dez anos depois da data mais plausível para o nascimento de
Jesus, que parece ter acontecido durante o reinado de Herodes, o Grande. Lucas
tomou um acontecimento conhecido (que era associado ao blho de Herodes) e por
confusão associou-o ao tempo do nascimento de Jesus.22 À luz desses procedimentos
na narrativa da infância, não é implausível que, tendo lido em Marcos a respeito de
escuridão ao meio-dia, Lucas a associasse a um bem conhecido eclipse do período
geral em que Jesus morreu e fizesse deste último a causa da primeira.23 A verossi­
milhança dessa associação, inclusive a exagerada duração da escuridão, é evidente
quando se leem algumas das não raro exageradas descrições literárias de um eclipse
solar. Por exemplo, Plutarco (Pelópidas xxxi,2) assim descreve um eclipse solar
em 364 a.C.: “A escuridão tomou conta da cidade durante o dia”. Sawyer (“ Why”,
p. 128) relata a descrição de um eclipse solar em Antioquia em 1176 que durou

21 O fato de Orígenes argumentar contra a interpretação de eclipse mostra que ela tinha apoio em seu
tempo; e havia escritores religiosos famosos (Crisóstomo, Cirilo de Alexandria) que a aceitavam, embora
pressupusessem um ato especial de Deus para produzi-lo. G. B. Caird, Danker e Sawver defendem a
tradução do eclipse e ela se encontra na NAB, Jerusalem Bible e NEB.
22 Neste caso, opto por confusão em vez de licença artística, porque Lucas demonstra confusão a respeito
desse recenseamento em At 5,36-37. Ali ele atribui ao famoso Gamaliel um discurso (ao que tudo indica
proferido no fim da década de 30) que menciona o levante de Teudas (que ocorreu uma década mais
tarde!) e, depois desse levante, menciona o recenseamento associado ao levante de Judas, o Galileu (=
recenseamento sob Quirino em 6 d.C.). Na verdade, a associação de Gamaliel com esse discurso pode ser
outro exemplo de Lucas incluir na narrativa acontecimentos e pessoas conhecidas em lugares e papéis
apropriados, mas de modo algum exatos.
23 E provável que Lucas não soubesse que não podería ter havido um eclipse na Páscoa. Killerman (“ Fins-
temis”) lembra que, apesar de ter habilidades científicas, Alberto, o Grande, talvez não soubesse que
a Páscoa ocorria na lua cheia. Contudo, Tucídides (História ii,28) fala de um eclipse do sol na lua nova
como aparentemente a única vez em que tal ocorrência teve lugar.

208
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

três minutos e vinte segundos: “ O sol ficou totalmente obscurecido; a noite caiu
e as estrelas apareceram [...] a escuridão durou duas horas; depois a luz voltou”.

Houve um eclipse mencionado nessa região, dentro de um ano ou dois da


morte de Jesus (30 ou 33 d.C.), a respeito do qual Lucas poderia ter ouvido ou lido?
Um eclipse solar, com a duração de 1 minuto e meio, ocorreu em partes da Grécia,
Ásia Menor e Síria em 24 de novembro de 29 d.C.24 Há possíveis referências per­
tinentes a ele nos autores antigos, mas a data que eles designam varia. A respeito
de um eclipse que aconteceu no reinado de Tibério (14-37 d.C.), Orígenes (Contra
Celso 11,33) relata que Flégon fez um registro desse eclipse juntamente com o de
um terremoto “no décimo terceiro ou décimo quarto livro, creio eu, de suas Crônicas
[Olympiades]”.25 (Flégon, grego do sudoeste da Ásia Menor, era historiador e viveu
no reinado de Adriano, 117-135 d.C.). Em sua Crônica para o 18a-19a ano do reinado
de Tibério, Eusébio (GCS, 2. ed., xlvii,174-175)26 relata que, segundo Flégon, no
quarto ano da 202a Olimpíada, houve um grande eclipse do sol, que superou todos
os que o precederam. Ao meio-dia, parecia noite. O ano especificado teria sido
de l fi de julho de 32 d.C. a 30 de junho de 33 d.C.27 Eusébio continua e liga esse
eclipse a um terremoto na Bitínia que fez edifícios caírem em Niceia e teve sinais
no Templo de Jerusalém relatados por Josefo; ele constrói claramente uma trama
que combina com os relatos evangélicos. Há quem tenha apelado a registros astro­
nômicos chineses para corroborar a escuridão (ver Grández, “ Tinieblas”, p. 198).

Se, por confusão ou por arte, Lucas ligou uma vaga lembrança desse eclipse
solar (que efetivamente ocorreu vários meses ou anos antes da morte de Jesus) com
a tradição marcana de escuridão no dia da morte de Jesus, não devemos pensar que
ele estava dando uma explicação puramente naturalista para essa última. Lucas
presumiu que o eclipse era controlado por Deus, que o empregou para assinalar a

24 Refletindo a opinião de que Lucas era antioqueno, Sawyer (“ Why” , p. 127) sugere que ele conhecera esse
eclipse quando jovem. Entretanto, a hipótese complica o problema da exatidão lucana, pois ele deveria
ter se lembrado de que o eclipse ocorreu no outono, não na primavera, quando Jesus foi crucificado.
21 Contudo, ao comentar Mateus (nota 17 acima), Orígenes toma o cuidado de mencionar que Flégon não
disse que o eclipse ocorreu na lua cheia.
26 Tibério reinou de 14 a 37; estaria Eusébio pensando em 31-32 d.C.? Holzmeister (“ Finstemis”) levanta
o problema de uma possível confusão entre um eclipse lunar em 3 de abril de 33 d.C. e o eclipse solar
em 24 de novembro de 29 d.C.
2‘ Alguns, como Maier (“ Sejanus”), usam esses indícios para defender a morte de Jesus em abril de 33,
mas tal raciocínio não elimina a impossibilidade de um eclipse solar na Páscoa.

209
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

morte do Filho. Não menos que Marcos, Lucas considerou essa escuridão resultante
do eclipse um dos sinais escatológicos dos últimos tempos mencionados no AT.28
Na narrativa lucana da infância, Jesus foi saudado como “aparecendo aos que
estavam na escuridão e na sombra da morte” (Lc 1,78-79). Na verdade, entre os
evangelistas, só Lucas mencionou previamente a escuridão na NP; de fato, quando
estava sendo preso, Jesus exclamou que esta era a “hora” de seus inimigos “e o
poder das trevas” (Lc 22,53). O simbolismo da volta da escuridão quando Jesus
morreu era evidente para os leitores de Lucas.

Entretanto, talvez haja na comunicação lucana outra dimensão que transcen­


de a origem veterotestamentária e os temas escatológicos manifestos em Marcos/
Mateus. A ligação entre um eclipse mencionado e a escuridão ao meio-dia, antes da
morte de Jesus, talvez tenha servido para salientar o impacto dessa morte no Império
Romano (que, como “os confins da terra” em At 1,8, é o que Lucas quis dizer com
“a terra inteira” em Lc 23,44). Lucas demonstrou interesse no efeito universal do
nascimento de Jesus ao ligá4o em Lc 21,1 ao edito de “ César Augusto para que se
realizasse um recenseamento de toda a terra”, e ele talvez esteja demonstrando um
interesse paralelo na morte de Jesus, que percebemos ao considerar como os leitores
de Lucas no mundo helenístico sem conhecimento da metáfora veterotestamentária
do “dia do Senhor” entenderam a escuridão, o eclipse e o rasgamento do véu do
santuário descritos em Lc 23,44-45. Há abundantes indícios greco-romanos de
que comumente se acreditava que sinais extraordinários acompanhavam a morte
de grandes homens ou figuras semidivinas.29 Se nos restringirmos a autores que
escreveram 100 anos antes ou depois da morte de Jesus, descobriremos que Plu-
tarco (Rômulo xxvii,6) relata que, na morte ou partida de Rômulo, “a luz do sol se
eclipsou”. Do mesmo modo, Ovídio (Os fastos, v. 2, p. 493) usa a expressão “o sol
fugiu” e Cícero (De republica vi,22), “pareceu que o sol [...] se extinguiu”. Quan­
do Júlio César foi assassinado, Plutarco (César lxix,4) fala de um obscurecimento
do sol e Josefo (Ant. XIV,xii,3; #309) descreve-o como ocasião em que “o sol se
afastou”.30 Na verdade, Plínio (História Natural ii,30; #97) menciona essa morte

28 A atitude de Lucas é evidente em At 2,17-21, quando em Pentecostes Pedro cita de J1 3,1-5 sinais
(inclusive o escurecimento do sol), mostrando que o que aconteceu a Jesus assinala “os últimos dias” .
28 Grández (“Tinieblas” , p. 199-200) relaciona cerca de trinta passagens de vinte e cinco autores helenísticos
pertinentes a isso, dos quais farei uma seleção. De um período mais tardio, há também alguns paralelos
rabínicos (St-B 1,1040-1042).
80 Do mesmo modo, Ovídio (Metamorfoses xv,785) descreve “a triste face do sol” e Virgílio (Geórgicas i,467)

210
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

para exemplificar uma ampla expectativa: “eclipses do sol portentosos e longos,


como quando César, o ditador, foi assassinado”.

Marcos/Mateus relatam o rasgamento do véu do santuário depois da morte


de Jesus, por isso deixaremos para § 43 o exame desse fenômeno, embora Lucas
o mencione em Lc 23,45b. Traduzi esse versículo como sentença separada para
evitar ter de traduzir de. Se essa partícula é conjuntiva, a escuridão/o eclipse e
o rasgamento do véu estão unidos como sinais negativos no céu e na terra. Se é
adversativa, estabelecendo um contraste com a escuridão negativa,31 então o ras­
gamento (talvez entendido como abertura de um caminho através do véu para o
santuário da casa do Pai) está ligado ao forte grito de Jesus quando ele coloca seu
espírito nas mãos do Pai.

0 grito m ortal de Jesus; Elias; oferta de vinho avinagrado (Mc 15,34-36; M t 27,4 6 -49 ;
EvPd 5 ,19 .16 )

As últimas palavras na cruz (suas únicas palavras em Marcos/Mateus) apa­


recem de três formas diferentes em Marcos/Mateus, Lucas e João, respectivamente;
e nós teremos de dedicar uma subseção a cada uma das três. 0 exame da forma de
Marcos/Mateus será feito sob três subtítulos: sentido do grito mortal,32 sua redação
e o mal-entendido a respeito de Elias combinado com a oferta de vinho avinagrado.

Sentido do grito mortal de Jesus. Às 3 horas da tarde, depois de três


horas de escuridão sobre a terra inteira, Jesus crucificado fala pela primeira e úni­
ca vez. (Embora muitas vezes se diga que, em Marcos, Jesus morre a essa hora, a
“nona hora” está afixada ao grito com voz forte de Jesus, não a sua morte, embora
possamos presumir que ele expirou logo depois — em especial se o “forte grito” do
v. 37 for simplesmente um recomeço do “forte grito” do v. 34.) “ Fala” não é exato,
pois Marcos usa o verbo boan e Mateus usa anaboan; além disso, os dois referem-se

relata que o sol “velou sua cabeça brilhante"’.


11 Com mais frequência, a partícula é ligeiramente adversativa; outras vezes, é realmente conjuntiva, tendo
a força de “também” depois de um kai (“e” ) precedente. Há também uma terceira possibilidade, a saber,
que é simplesmente transicional, significando “agora” ou “então” . Parece-me que a conotação favorece
juntar o rasgamento à escuridão, mas Sylva (“Temple” , p. 243) usa-a de outra maneira, traduzindo assim:
“ Então, a cortina do Templo rasgou-se pelo meio e Jesus, gritando com voz forte, d isse...” .
32 Embora eu reconheça a dificuldade resultante, procurei ser consistente ao traduzir phonein, phone como
“gritar” ; krazein como “ berrar” ; kraugazein como “ clamor, bradar” ; e boan ou anaboan como “vociferar” .
Ver também § 35.
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

ao que sai de sua boca como phone megale (“um forte grito” que se repete dois ou
três versículos adiante, quando Jesus morre). O âmbito de boan e anaboan inclui
proclamação solene, a aclamação ou o brado da multidão e um grito desesperado
por socorro.33 Em Lc 9,38; 18,38, boan é usado para descrever um homem que
grita em voz alta ou insistente para Jesus e, em Lc 18,7, para vozes que clamam a
Deus por ajuda. Em Marcos/Mateus, Jesus fala em semítico as palavras de SI 22,2a:
“ Meu Deus, meu Deus, por que razão me abandonaste?”. A segunda parte desse
versículo (SI 22,2b) em hebraico refere-se a Deus que está longe das “ palavras do
meu grito” . Claramente, então, a vociferação e o forte grito atribuem uma urgência
desesperada à súplica de Jesus. Além disso, aos familiarizados com a crucificação,
tal grito não parecería incomum. Blinzler (Trial, p. 261) descreve como parte do
que fazia a crucificação particularmente horrível “as vociferações de raiva e dor, as
maldições veementes e as explosões de desespero inominável das infelizes vítimas”.
Contudo, não foi com raiva, mas em oração, que Jesus vociferou seu forte grito, do
mesmo modo que, em Ap 6,10, os mártires gritaram com voz forte sua oração para
Deus intervir. Na verdade, orações feitas em voz alta são relativamente comuns na
história bíblica.34

Nos Evangelhos, porém, há ainda outra dimensão. A vociferação, o clamor


e o forte grito de Mc 15,34; Mt 27,46; Lc 23,46 e EvPd 5,19, bem como o forte
grito, o berro e o ato de soltar o sopro/espírito de Mc 15,37; Mt 27,50,35 constituem
um sinal apocalíptico semelhante aos elementos escatológicos de escuridão, véu
do santuário rasgado, terremoto e mortos ressuscitados que acompanham a morte
de Jesus nos vários Evangelhos. Em Jo 5,28, o grito do Filho do Homem faz todos
os que estão nos túmulos ouvirem; e em Jo 11,43, o clamor e o grito forte de Jesus
ajudam a chamar Lázaro do túmulo. Em lTs 4,16, o grito do arcanjo acompanha a
vinda do Senhor para ressuscitar os mortos, enquanto em 4 Esdras 13,12-13 o Ho­

33 Ver nos quatro Evangelhos o tratamento da proclamação de João Batista no deserto; também At 17,6;
25,24.
34 Lc 17,15; 19,37-38; lR s 8,25; Ez 11,13; Ne 9,4 etc. Midraxe Sifre sobre Dt 3,23 (Pisqa 26) diz que a
oração tem dez nomes e o primeiro que ele relaciona é “ grito” . Se Marcos esperava ou não que os leitores
soubessem que a nona hora quando Jesus pronunciou sua oração era a hora do ritual judaico para a
oração da tarde (ver Pesch, Markus, v. 2, p. 494), depende em parte de a organização de tempo marcana
refletir ou não um ritual de oração da Igreja em comemoração do dia da morte do Senhor.
33 Pode bem ser que, com esses fenômenos, Marcos (seguido por Mateus) pretenda fazer uma inclusão com
seu uso de alguns dos mesmos termos no início do Evangelho: por exemplo, Mc 1,2 cita Malaquias, a
base da expectativa de Elias; Mc 1,3 usa phone e boan a respeito de João Batista no deserto; Mc 1,10-11
faz o pneuma descer sobre Jesus enquanto um phone vem do céu.

212
§ 42.Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

mem do Mar chama a multidão para si. Em julgamento, o Senhorfa la , ruge e clama
às vezes produzindo terremotos, em Am 1,2; J1 4,16; Jr 25,30 e SI 46,7, do mesmo
modo que em Ap 10,3 o anjo berra com voz forte quando revela os sete trovões.36

Aspecto escatológico especial é a batalha hnal com o mal.37 Em linguagem


que repete Is 11,4 segundo 2Ts 2,8, o Senhor Jesus mata o ímpio (anomos) com o
sopro/espírito {pneuma) de sua boca. At 8,7 emprega boan e phone megale para
descrever o grito agudo dos espíritos impuros quando, derrotados, eles saem dos
possessos.38 (Observemos que, na cruz, quatro versículos depois de Mt 27,46, Jesus
soltará o espírito.) A descrição violenta do clamor de Jesus sugere que, em sua luta
mortal com o mal, ele se sente à beira da derrota, a ponto de precisar perguntar
por que Deus não o está ajudando? Em todo bom drama, as últimas palavras da
personagem principal são especialmente significativas. E importante para nós,
então, perguntar se devemos entender literalmente “ Meu Deus, meu Deus, por que
razão me abandonaste?” (SI 22,2).

Há muita coisa para nos encorajar a entendê-lo literalmente no nível da


descrição que o evangelista faz de Jesus. (A questão da liistorieidade, isto é, se SI
22,2 representa como Jesus realmente se sentiu no momento da morte, será tratada
na ANÁLISE.39) No trágico drama da NP de Marcos/Mateus, Jesus foi abandonado
por seus discípulos e escarnecido por todos os que vieram até a cruz. A escuridão
cobre a terra, não há nada que mostre Deus agindo do lado de Jesus. É natural que

36 Em cerca de doze passagens do Apocalipse, um “forte grito” acompanha a revelação ao vidente.


3‘ A. Fridrichsen, J. M. Robinson e Schreiber estão entre os muitos que consideram a Paixão marcana
um clímax do conflito com os demônios. Embora às vezes esse tema possa ser exagerado, defendo-o
contra Best (Temptation), que insiste que a vitória de Jesus sobre Satanás na tentação foi total e que,
consequentemente, Marcos não traz na Paixão nenhuma luta com o demoníaco, nem vitória sobre ele.
Como argumentei (§ 6), a referência sinótica no Getsêmani a peirasmos (Mc 14,38) continua uma luta
com Satanás ou o diabo iniciada com o peirazein de Mc 1,13.
38 Até agora, só os demônios sabem que Jesus é o Filho de Deus. Danker (“ Demonic”) explica que, quando
em Mc 15,37 Jesus expulsa o demônio (solta o espírito) com um grande grito, o centurião que viu a ex­
pulsão do demônio pode agora confessar Jesus como o Filho de Deus (p. 67-68). Na página 48, ele cita
com aprovação a opinião de Best, segundo a qual o grito de abandono reflete o fato de o próprio Jesus ter
se tornado o objeto da ira de Deus. Embora eu veja um aspecto da luta com o demoníaco na crucificação,
acho que essas opiniões ultrapassam a intenção marcana perceptível. Jesus nunca é mostrado como tendo
um elemento demoníaco interior; nenhum espírito demoníaco sai ou é expulso de Jesus em Mc 15,37; e
Jesus não é objeto da ira de Deus.
39 Braumann (“Wozu” , p. 158) distingue quatro etapas de interpretação: 1. O que Jesus quis dizer com o
Salmo, se ele o disse? 2. O que o Salmo significava em um nível pré-marcano? 3. O que Marcos quer
dizer com ele? 4. O que os leitores de Marcos entenderam?

213
Q uabto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. t sepultado ali perto

Jesus se sinta abandonado. Seu “ Por quê?” é o de alguém que sondou as profun­
dezas do abismo e se sente envolvido pelo poder da escuridão. Jesus não questiona
a existência de Deus ou o poder de Deus para fazer alguma coisa a respeito do que
está acontecendo; ele questiona o silêncio daquele a quem chama de “ Meu Deus”.40
Se prestarmos atenção à estrutura geral da NP de Marcos/Mateus, essa forma de
se dirigir à divindade é por si só significativa, pois em nenhum lugar antes Jesus
rezou a Deus como “ Deus”. Marcos/Mateus iniciaram a NP com uma oração na
qual a divindade foi chamada por Jesus de “ Pai”, a forma comum de tratamento
usada por Jesus e que captou sua confiança familial de que Deus não faria o Filho
passar pela “hora”, nem beber o cálice (Mc 14,35-36; Mt 26,39). Contudo, essa
oração filial, reiterada três vezes, não foi visível ou audivelmente respondida e
agora, depois de suportar a agonia aparentemente interminável da “hora” e beber
todo o cálice, Jesus grita uma última oração que é uma inclusão com a primeira
oração. Sentindo-se tão abandonado como se não estivesse sendo ouvido, ele já não
mais se atreve a chamar intimamente o Todo-poderoso de “ Pai”, mas emprega a
saudação comum a todos os seres humanos, “ Meu Deus”.41 (O fato de Jesus usar
linguagem de Salmo — fato ao qual Marcos não chama nossa atenção — não
torna menos notável o emprego dessa terminologia incomum nos lábios de Jesus.)
Marcos chama nossa atenção p aia esse contraste entre as duas orações e torna-o
mais comovente ao relatar a saudação em cada oração na língua de Jesus:
e “E/oi”, dando assim a impressão de palavras que vêm genuinamente do coração
de Jesus, distintas do restante de suas palavras que foram preservadas em uma

m Lacan (“Mon Dieu” , esp. p. 37, 53) tem reflexões intrigantes neste ponto. Embora o sofrimento humano
nos faça pensar que Deus está ausente, talvez isso seja porque moldamos Deus a nossa imagem e seme­
lhança. A cruz nos ensina que a autorrevelação do verdadeiro Deus, para quem a humildade é poder,
tem lugar na fraqueza humana. 0 silêncio confirma que existe um Deus. Afirmações teológicas poéticas
vigorosas a respeito da Palavra sucumbindo em um brado pelo Deus perdido marcam a cristologia de H.
U. von Balthasar, para quem a citação de SI 22,2 é fator importante; ver Zilonka, Mark, p. 207-221.
41 Eissfeldt (“Mein Gott”) descobre seis tons diferentes de sentido para essa expressão no AT, que vão da
referência a um ídolo doméstico a um meio de descrever o Deus da aliança com Israel (Dt 4,5). Nos
Salmos, em especial, expressa proximidade, envolvendo Deus nos altos e baixos da vida do suplicante (p.
10-15). Muitas vezes, como aqui nos lábios de Jesus, subentende uma associação interiorizada calorosa.
Gerhardson (“Jésus” , p. 222) adverte que a oração de Jesus em Marcos/Mateus não é, a saber: grito
radical em um universo que parece vazio de Deus, nem piedoso derramamento por alguém que não sabe
o que está dizendo, ou dito pronunciado apenas a fim de cumprir as Escrituras. Ao contrário, aquele que
fala não sente nenhum consolo, mas não perdeu o sentimento da vontade de Deus expressa na palavra
bíblica.

214
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

língua estrangeira (grego). Quando enfrenta a agonia da morte,42 na descrição de


Marcos Jesus recorre a sua língua materna.

Há uma indicação externa que também favorece o entendimento literal do


patos pessimista das últimas palavras de Jesus. Ao examinar a oração inicial “Abba”
da NP marcana, chamei a atenção para uma descrição paralela na Epístola aos
Hebreus (Hb 4,14-16; 5,7-10) à oração de Jesus Àquele que tinha o poder de salvá-
-lo da morte. Embora muitos aspectos da passagem de Hebreus tivessem ecos na
oração do Getsêmani em Marcos/Mateus, há outros aspectos que têm semelhanças
com a oração na cruz (§ 11, B2). É na cruz que Jesus aprende ainda mais plena­
mente “a obediência por aquilo que ele sofreu”. É aqui que ele faz “forte clamor”
e é aqui que ele será “ouvido do medo [ansioso]” e feito perfeito. Esses paralelos
em Hebreus nos encorajam a entender literalmente a passagem do Salmo na qual
Marcos/Mateus expressam o “desespero” de Jesus.43

Embora eu ache essa interpretação de Marcos convincente, é justo mencionar


que, desde os Padres da Igreja primitiva44 até os biblistas e pregadores contemporâ­
neos, muitos resistem à importância superficial que teria o fato de Jesus expressar
o sentimento de ser abandonado por Deus. Com muita frequência, nessa oposição
é feita a suposição de que o Salmo foi historicamente citado por Jesus e não é feita
nenhuma distinção entre o que Marcos/Mateus subentenderam e o que o próprio
Jesus sentiu. Zilonka (Mark, p.8-94) mostra como a interpretação literal “abando­
nado” foi rejeitada por biblistas católicos romanos como um todo durante a rejeição
pela Igreja da crítica histórica no período antimodernista, c. 1910.

Há quem negue o sentido óbvio das palavras, por exemplo, Sagne (“ Cry” )
vale-se do livro de Jó para explicar: “ O grito de Jesus na cruz não é acusação con­
tra Deus, mas a explosão de sofrimento no amor” ! Outra forma de rejeitar a ideia
de que Jesus foi abandonado reconhece que citar SI 22,2 subentende desespero,

42 Braumann (“Wozu” , p. 161-162) insiste que Jesus se sentir abandonado não se refere simplesmente ao
sofrimento, mas à morte. Léon-Dufour (“Demier” , p. 669) comenta que Jesus não entrou na morte com
todas as respostas tiradas da visão beatífica, mas com um “Por quê?” .
43 Read (“Cry”) encontra mais apoio para o tom resoluto de Marcos nas fórmulas de 2Cor 5,21 (“fê-lo ser
pecado por nós”) e F1 2,8 (“ humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte, mesmo a morte na cruz”).
44 Hasenzahl (Gottverlassenheit) combina sua abordagem curiosamente discrepante da “última palavra”
de Jesus em Marcos/Mateus com reflexões no entendimento cristológico do saltério grego, combinação
que nos adverte quanto à dificuldade de passar da reflexão cristã mais tardia para aquilo que Marcos
pretendia.

215
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

mas faz Jesus expressar isso não em seu nome, mas no nome de pecadores ou dos
judeus.45 Outros mudam o sentido de desespero para entrega amorosa, harmoni­
zando Marcos/Mateus com Lucas ou João, de modo que, por exemplo, o “ Pai, em
tuas mãos eu coloco meu espírito” lucano se torna a interpretação correta de “ Meu
Deus, meu Deus, por que razão me abandonaste?”. Ou eles suavizam a importân­
cia dos verbos aramaicos ou gregos usados por Marcos/Mateus. (De fato, esses
verbos têm vários tons de sentido e veremos que essa iniciativa foi compartilhada
por copistas antigos.) Buckler (“ Eli”, p. 384) lembra que os verbos semíticos (sbq
e ‘zb) significam não só “deixar, abandonar”, mas também “deixar uma herança,
entregar para” (‘zb em SI 10,14; 49,11), e por meio de exegese complicada, faz
Jesus recusar um papel régio em relação ao povo de Deus. Tem sido sugerido até
que a transliteração semítica dada por Marcos/Mateus constitui uma leitura errada
daquilo que Jesus realmente disse.46*

Em bases teológicas, outros contestam mais diretamente uma interpretação


literal de Marcos/Mateus. É feita a acusação de que entender literalmente a ex­
pressão a respeito de Deus desertar ou abandonar Jesus seria negar a divindade
de Jesus.4' Marcos certamente não subentendeu tal negação, pois imediatamente

4:> Assim, por exemplo, C. M. Macleroy (ExpTim 53, 1941-1942, p. 326): No amor, Jesus se identifica
conosco e com nossos pecados; ele sentiu a separação de Deus que nossos pecados trazem a nossa vida.
Is 53,6 registra essa perspectiva: “ O S e n h o r fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós” . Kenneally
(“Eli” , p. 132) atribui variações de perspectiva a Orígenes, Atanásio, Agostinho e Cirilo de Alexandria.
Fator complicador para os Padres da Igreja e biblistas católicos romanos mais tardios era a tradução da
segunda parte de SI 22,2 na LXX e na Vulgata: “Longe de minha salvação estão as palavras [isto é, o
relato] de meus pecados” (lendo s’gh [se aga], “grito” , como sg’h [segfâ], “ pecado” ). Esse sentimento
não podia ser atribuído literalmente ao Jesus sem pecado! Por outro lado, Wilkinson (“Seven” , p. 75-76)
cita com aprovação a perspectiva de Schmiedel, que relaciona essa passagem ao fato de Jesus suportar
o pecado do mundo: O horror desse pecado obscurece a proximidade de sua comunhão com o Pai. P.
Rogers (“Desolation” , p. 57), que relaciona várias perspectivas de tempos passados, atribui a Lutero a
tese de que Jesus na cruz era ao mesmo tempo supremamente bom e supremamente pecador.
“ Sidersky (“Passage”) mostra como a transliteração sabachthani (“ me abandonaste”), aparentemente do
aramaico sbq, representava uma forma de skh (hebraico-aramaico): “Por que me abandonaste?” — pergunta
que aparece em SI 42,10. Em artigo posterior (“Parole” ), ele se refere a outra possibilidade: o original
era uma forma de zbh (hebraico): “Por que me sacrificaste?” . Cohn-Sherbok (“Jesus’ Cry”) pensa no
original como pergunta retórica que incluía o aramaico sbh: “ Por que me louvaste?” , e considera isso um
grito de vitória que anuncia o reino messiânico — o que leva as pessoas a perguntarem onde está Elias.
Tais sugestões, evidentemente, invalidam a interpretação pelo evangelista do que significa a expressão
semítica.
4' Baker (“ Cry”) acha aceitável Jesus ser “desamparado” (retirada da luz e da alegria da presença de Deus),
mas de modo algum “abandonado” (quebra da unidade entre Pai e Filho); contudo, essa precisão de pen­
samento não é transmitida com transferência pelos verbos respectivos das línguas ocidentais. Kenneally

216
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

depois da oração de Jesus em Mc 15,34 encontramos o que constitui um clímax, a


confissão de Jesus como Filho de Deus (Mc 15,39). Ainda outra objeção encontra
desespero sendo atribuído a Jesus em uma interpretação literal da oração. Deses­
pero entendido como a perda de esperança em Deus ou de salvação é considerado
pecado grave, e o NT afirma que Jesus não cometeu nenhum pecado.48 Entretanto,
essa objeção é um tanto fora de propósito, pois nada na passagem marcana sugere
um sentido de perda de salvação ou perdão (ou mesmo a necessidade disso). Jesus
está rezando, e desse modo não pode ter perdido a esperança; chamar Deus de
“ Meu Deus” subentende confiança. Porque viu como Jesus morreu, o centurião
marcano confessa que Jesus era Filho de Deus; Marcos não poderia ter querido
dizer que o desespero de Jesus estimulou esse reconhecimento. Assim, desespero
no sentido estrito não é conjeturado.49 Mais exatamente, a questão é se a luta contra
o mal levará ou não à vitória; e Jesus é descrito como profundamente desanimado
no fim de sua longa batalha, porque Deus, a cuja vontade Jesus se entregou no
início da Paixão (Mc 14,36; Mt 26,39.42), não interveio na luta e aparentemente
deixou Jesus sem apoio. (Que isso não é verdade ficará evidente no segundo em
que Jesus morre, pois então Deus rasgará o véu do santuário e trará um pagão para
reconhecer publicamente a filiação divina de Jesus.) Jesus grita, na esperança de
que Deus transponha a alienação que ele sente.

Outros fatores entram na rejeição do significado literal da oração de Jesus.


Parece que esse significado contradiz a tranquila comunhão com Deus expressa
por Jesus em outras passagens. 0 Jesus joanino diz: “ Nunca estou só, porque o
Pai está comigo [...]. Eu venci o mundo” (Jo 16,32-33). 0 Jesus crucificado lu-
cano acabou de expressar a convicção de que este dia ele estaria no paraíso. Mas
essas declarações estão em outros Evangelhos que têm cristologias diferentes da

(“ Eli” , p. 130-131) acha erradas todas as sugestões de que a união hipostática foi rompida, de que Deus
retirou a graça verdadeira e Jesus perdeu a visão beatífica. Esses temores são expressos na linguagem
da teologia mais tardia e abrangem idéias que certamente não estavam na mente de Marcos, nem de seus
leitores. Uma questão mais realista é que apologistas não cristãos dos primeiros séculos podiam bem ter
encontrado uma contradição entre Jesus ser divino e contudo pronunciar tão desesperançada oração de
fraqueza.
Ui 2Cor 5,21; Hb 4,15; lPd 2,22; Jo 8,46; ljo 3,5.
49 Reimarus usou este versículo para afirmar que Jesus morreu revolucionário frustrado e derrotado. Tem
havido tentativas romanescas de fazer do desespero a última tentação de Jesus; mas isso também aparece
em Leonardo Boff, Via-sacra para quem quer viver: “ A esperança absoluta de Jesus só é compreensível
à luz de seu desespero absoluto” .

217
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

de Marcos/Mateus.50 Para Lucas e João, Deus está manifestamente com Jesus na


Paixão, de modo que Jesus dá voz respectivamente a certeza e vitória na cruz antes
de morrer. Para Marcos/Mateus, apesar de uma confiança de longo alcance de que
Deus fará vitorioso o Filho de Deus, Jesus chega a um momento de desânimo perto
da morte; e Deus exerce um poder irresistível só depois que Jesus morre. De fato,
o argumento comparativo pode ser usado para favorecer a interpretação literal da
oração de Marcos/Mateus como verdadeiramente agoniada, por exemplo, o tom de
desalento é provavelmente o que fez Lucas não copiar de Mateus esta oração de
Salmo e substituir por outra oração de Salmo muito mais positiva: “ Pai, em tuas
mãos eu coloco meu espírito”. Do mesmo modo, João, cujo Jesus diz “ O Pai e eu
somos um”, acharia estranha uma tradição onde ele grita: “ Meu Deus, meu Deus,
por que razão me abandonaste?”.

Talvez o argumento apresentado com mais frequência para suavizar o triste


significado do grito mortal em Marcos/Mateus baseie-se no contexto geral de SI 22.
Jesus cita o versículo inicial de um Salmo que continua por mais trinta versículos.
No final, o salmista adotará um ponto de vista positivo: alegrando-se, ele proclama
que sobreviveu ao perigo e que, afinal de contas, Deus não o rejeitou nem “ocultou
sua face” (SI 22,25).51 Consequentemente, alguns biblistas invocam o princípio
hermenêutico de que a citação neotestamentária de uma passagem veterotesta-
mentária específica supõe que os leitores estejam familiarizados com o contexto
dessa passagem e, portanto, entendam referências subentendidas a esse contexto.
Às vezes, esse princípio tem validade, mas não é universalmente verdadeiro. Apli­
cado aqui, significa que Marcos esperava que seus leitores reconhecessem que um
Salmo estava sendo citado, conhecessem o Salmo inteiro e percebessem por uma

M Naturalmente, muitos dos que formulam a objeção de uma falta de harmonia com outras palavras de
Jesus supõem que todas as “sete últimas palavras na cruz” eram históricas e que, portanto, o fato de
aparecerem em Evangelhos diferentes é irrelevante — as palavras têm de concordar porque todas se
originaram do mesmo Jesus. Lofthouse (“Cry” ) relaciona esse e outros argumentos não críticos contra
atribuir a Mc 15,34 a sensação de Jesus se sentir abandonado.
1,1 Burchard (“ Markus” ) e Trudinger (“ Eli” ) defendem firmemente a importância positiva do Salmo inteiro
para interpretar a citação de Jesus. Trudinger (p. 253-256) chega a apelar para o título onde, diz ele,
Imnsh não significa “ Ao maestro musical” , mas sim “Àquele que traz a vitória” , isto é, fazendo vitorioso
o justo sofredor. Por outro lado, Léon-Dufour (“ Demier” , p. 672) relaciona argumentos contra esse tipo
de interpretação: a situação de alguém perto da morte na cruz não subentende uma longa oração que
consiste em um Salmo inteiro, e não há ênfase no fato de um Salmo estar sendo citado.

218
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

referência ao angustiante versículo inicial o destino triunfante daquele que reza —


em suma, entender o sentido quase oposto daquilo que se descreve Jesus dizendo!
Em outras passagens, ao citar Salmos,52* Marcos/Mateus mostram a habilidade de
citar um Salmo com exata pertinência ao ponto a ser considerado, e não há razão
suficiente para pensar que eles não seguiram o mesmo procedimento aqui. Se se
desejar recorrer ao contexto do Salmo inteiro sem pressupor esse extraordinário uso
contresens de SI 22,2, é possível suplementar o sentido literal desse versículo citado
com duas observações. Primeiro, o final positivo do Salmo ajuda a mostrar que, ao
atribuir a Jesus esse sentimento de abandono, Marcos não pensou que Jesus fosse
culpado de desespero ou tivesse perdido a esperança. Marcos sabia que a Paixão
culminou em vitória, embora sondasse as profundezas do sofrimento solitário; por
essa razão, era apropriado que ele retratasse Jesus em seu momento mais deprimido
na Paixão pronunciando o mais trágico versículo33 de um Salmo que termina com
uma nota triunfante. Segundo, o interlocutor no Salmo é alguém que foi entregue
a Deus desde o nascimento (SI 22,10-11) e constantemente confiou em Deus (SI
22,9). Isso torna particularmente enternecedora a difícil situação presente, onde
pela primeira vez Deus não responde e aparentemente abandona o suplicante. É
óbvio que essa situação geral é muito apropriada para Jesus na cruz.54

De modo geral, então, não encontro nenhum argumento persuasivo contra


atribuir ao Jesus de Marcos/Mateus o sentimento literal de sentir-se abandonado
expresso na citação do Salmo. A interpretação dessa oração no final da NP deve

’2 Possíveis citações do SI 22 ou alusões a ele na NP mareana eneontram-se em Mc 15,24.29.30.31. Ver


no a p ê n d ic e VII mais detalhes sobre a citação de Salmos.
’3 A importância do versículo aumenta quando consideramos o levantamento de Gaza (“ Relief', p. 181)
mostrando que o saltério como um todo ressalta que Deus não abandona os que buscam ajuda (SI 9,11;
16,10; 37,25.28; 94,14). Ela descreve esse como o único caso em que Deus abandona o justo. Entretanto,
fora do saltério, ouvimos em 2Cr 32,31 que, diante dos emissários babilônicos, “Deus abandonou-o [o rei
Ezequias] para testá-lo, para conhecer tudo o que estava em seu coração” . Além disso, o Jesus mateano
mostra uma percepção de que a confiança errada na ajuda divina é ilusão. Nas tentações no início do
Evangelho, o diabo citou SI 91,11-12, querendo dizer que, se Jesus era Filho de Deus, Deus ordenaria
aos anjos que o segurassem e não o deixassem tropeçar em uma pedra. Ali Jesus respondeu que o Senhor
Deus não seria posto à prova.
:>4 A meu ver, nada disso justifica interpretar Mc 15,34 em termos de Jesus suportar a ira de Deus. Em seu
levantamento de interpretações, P. Rogers (“ Desolation” , p. 57) atribui a Anselmo de Canterbury, em Cur
Deus Homo?, a tese de que Jesus foi abandonado para satisfazer a zangada justiça de Deus. Os defensores
modernos não raro defendem-na em continuidade com o entendimento de que “o cálice” de Mc 14,36
é “ o cálice da ira” . Mas o tema da oração de Jesus na cruz é a omissão de Deus para agir, sem qualquer
sugestão quanto a por quê. Nada no Evangelho sugere a ira de Deus contra Jesus como explicação.

219
O lm o ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto

seguir o mesmo caminho que a interpretação da oração inicial da NP em Mc


14,35-36 e Mt 26,39. Ali, muitos rejeitam o sentido literal de que Jesus realmente
queria que a hora passasse dele e não estava ansioso para beber o cálice do sofri­
mento. Não podiam atribuir a Jesus tal angústia em face da morte. Ao se aceitar
literalmente essa angústia no momento inicial em que Jesus ainda chamava Deus
de “Abba, Pai”, deve-se do mesmo modo aceitar literalmente esse protesto gritado
contra o abandono, arrancado de um Jesus totalmente desamparado, que agora está
tão isolado e alheado a ponto de não mais usar a linguagem de “ Pai”, mas sim falar
como o mais humilde dos servos.

Redação do grito mortal de Jesus. Em Marcos/Mateus, há duas redações


de SI 22,2. A primeira é transliteração do semítico em caracteres gregos; a segun­
da é tradução do significado desse versículo em grego. A transliteração semítica
precisa ser comparada às formas hebraica (TM) e aramaica do versículo do Salmo;
a tradução grega precisa ser comparada à tradução do versículo do Salmo pela
LXX. As seguintes traduções semíticas de SI 22,2 são pertinentes a nosso estudo:

Hebraico (MT): 'Eli, 'Eli, lamâ ‘azabtani


Aramaico: ’Elaht, ’Elahi, lema sebaqtanf 5
Marcos: Eloi, Eloi, lam a sabachthani
Mateus: Eli, Eli, lema sabachthani56
Códice de Beza: Elei, Elei, lam a zaphthani57
As pequenas diferenças entre Marcos e Mateus têm sido objeto de muita
discussão, quanto à língua que cada um transcreve (aramaico ou hebraico) e também
quanto à originalidade.58 Claramente, sabachthani em Marcos/Mateus se parece com*3

“ Esta é uma reconstrução gentilmente verificada para mim por J. A. Fitzmyer; o aramaico do século I
permitia ’Elt ou 'Elaht. O targum mais tardio (c. 450) sobre os Salmos (Lagarde, org.) lê: 'Elt, 'Eli, mit-
tül mâ sebaqtani, empregando um interrogativo (mtwl mh) não atestado no aramaico do século I. Ver a
transliteração de Mateus no Códice de Washington: Eli, Eli ma sabachthanei.
’6 Leituras variantes de mss. harmonizam a forma do nome de Deus em Marcos/Mateus para se ler em amhos
Eloi ou Eli. Do mesmo modo, há tentativas de harmonizar a diferença de lama e lema, e testemunhos
da tradição koiné leem lima em Marcos. O exótico sabachthani é escrito sabaktanei no Códice Vaticano
de Mateus, sabapthanei no Vaticano de Marcos e sabachtanei no Sinaítico de Mateus, sibakthanei no
Alexandrino de Marcos.
3‘ Assim em Marcos e Mateus; Elei é variante sem importância de Eli.
58 Embora, em harmonia com a teoria de prioridade marcana, haja muitos defensores da forma de Marcos
como mais original, biblistas em um número surpreendente apoiam a originalidade mateana: Allen.
Dalman, Hauck, Huby, Jeremias, Klostermann, Rehm, Taylor, Zahn etc.

220
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte

o verbo no aramaico, não no hebraico do Salmo; consequentemente, muitos biblistas


concordam que o Salmo está sendo citado em aramaico. Contudo, aparentemente, os
dois Evangelhos usam formas mistas: o Eloi de Marcos está próximo do aramaico,
enquanto o Eli de Mateus repete o hebraico; o lama de Marcos lembra o hebraico,
enquanto o lema de Mateus assemelha-se ao aramaico. Embora não seja impossível
que a tradição registrasse uma citação mista em hebraico-aramaico,59 essa não
é uma conclusão necessária. Primeiro, havia dialetos de hebraico e também de
aramaico onde formas divergiam daquilo que podia ser chamado de padrões mais
clássicos das duas línguas, por exemplo, aramaico galileu, uma forma da qual é
provável que Jesus tenha falado. Especificamente, Rehm (“ Eli” ) afirma que o Eli
de Mateus não é hebraico, mas aramaico falado, enquanto o Eloi de Marcos repre­
senta o aramaico tradicional. Mesmo sem essa distinção, ’E l e ’Elah para “ Deus”
estão atestados em documentos aramaicos.60 Segundo, a transliteração de vogais e
consoantes semíticas não era um procedimento exato. (A transcrição padronizada do
TM usada acima não traduz exatamente a pronúncia hebraica no tempo de Jesus.)
Rehm afirma que a shewa (vogal “e” breve) no aramaico lema ’ podia ser transcrita
como e ou a, de modo que o lam a de Marcos não é realmente um eco do hebraico.
Alguns biblistas afirmam até que o sabachthani de Marcos/Mateus não transcreve o
aramaico sebaqtaní.61 Entretanto, em bases puramente linguísticas, é perfeitamente
possível afirmar que a transliteração marcana representa o aramaico ou um dialeto
aramaico, não uma mistura de hebraico-aramaico. Isso está em harmonia com a
tendência marcana em outras passagens de apresentar aramaico transliterado, não
hebraico.62 Enquanto a transliteração mateana também podia representar aramaico,
não é improvável que o evangelista mais literário tenha harmonizado pelo menos

59 É uma perspectiva partilhada com variações por muitos biblistas (Gundry, Lagrange, Stendahl, Strecker
etc.), alguns dos quais afirmam que Jesus falou essa mistura. Entre os que afirmam que, na tradição, SI
22,2 era originalmente citado em aramaico estão Cadoux e McNeile; os que defendem a citação original
em hebraico incluem Dalman, Gnilka, Kilpatrick, Taylor e Wellhausen.
60 Por exemplo, Targum Onqelos; ver na nota 55, acima, o Targum sobre os Salmos.
61 Normalmente, ch translitera o h, não o <j semítico (geralmente traduzido por k). Contudo, na transliteração
é preciso levar em conta a influência do th na consoante que o precede, de modo que a tradução k do q
semítico foi mudada para ch (Rehm, “Eli” , p. 275). Ver a nota 46, acima.
62 Ver talitha koun (Mc 5,41); ephphatha (Mc 7,34): hosanrui (Mc 11,9.10); abba (Mc 14,36); Golgothn
(Mc 15,22). Korban (Mc 7,11) tem sido muitas vezes considerada reflexo do hebraico (da Mixná), mas
qrbn (qorban) está agora atestado na inscrição de um ossário aramaico descoberto perto de Jerusalém na
década de 1950 (FESBNT. p. 93-100).

221
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gélgota. É sepultado ali perto

o nome de Deus à forma usada em oração na linguagem hebraica sagrada.63 Ge­


ralmente se concorda que, no Pai-nosso, Mateus (Mt 6,9) muda a saudação mais
antiga “Pai” (Lc 11,2, que representa o ’Abba do aramaico) para “ Pai nosso (que
estás) no céu”, em conformidade com o uso tradicional da sinagoga. O mesmo
tipo de influência pode ter estado em atividade aqui. A transliteração de Marcos
no Códice de Beza é interessante, pois ali vemos mais um passo pelo escriba que
harmonizou totalmente a passagem com o hebraico.64*

A solução que acabou de ser proposta para as variantes nas transliterações


de Marcos/Mateus e de Beza é rejeitada por outros na suposição de que estes são
os ipsissima verba de Jesus e que ele recitou o Salmo em hebraico. Além da impro­
vável suposição de historicidade (ver a n á l is e ), essa abordagem pressupõe outras
incertezas, por exemplo, que Jesus sabia ler63 e que ele conhecia as Escrituras em
hebraico. A partir da descoberta em Qumrã do targum de Jó (11Q), temos indícios
claros de que as traduções aramaicas de alguns livros bíblicos já existiam vários
séculos antes do tempo de Jesus. Se ele usou essas palavras, não há nenhuma ra­
zão convincente para não tê-las dito em aramaico; e não importa que língua usou,
havendo boa razão para pensar que uma comunidade cristã primitiva de língua
aramaica as preservou em aramaico. A afirmação de que a forma hebraizada no
Códice de Beza representava o acesso do escriba a uma tradição pré-marcana não
é plausível.

63 Teremos de voltar à razão de Mateus para mudar a interpretação marcana quando examinarmos a inter­
pretação errônea das palavras de Jesus com o significado de que ele era Elias (ver adiante, sob “Elias e
a oferta de vinho avinagrado” ).
M Aqui concordo com Rehm (“Eli” , p. 275), embora outros biblistas contestem a derivação do zaphthani
de Beza do hebraico ‘azabtani. (Admitidamente, a transliteração é esquisita; primeiro, perdeu-se o ayin
inicial, e então a transliteração normal b tomou-se ph sob a influência do th seguinte.) Nestle (“ Mark
xv”) e Gnilka (“Mein Gott”) derivam zaphthani não da raiz ‘zb (abandonar), mas da raiz z’p (enraivecer-se
contra). Eles afirmam que Beza traduz o zapthani transliterado por uma forma de oneidizein (“Por que
me injuriaste?”) e que oneidizein não é usado na LXX para traduzir ‘zb. Contudo, também não traduz
z’p; e nas traduções gregas de Símaco e Luciano, traduz ‘zb.
63 Para isso, Lc 4,16-21 é o único indício. Fitzmyer (Luke, v. 1, p. 526-527) relata o debate entre biblistas
em relação ao fato de essa ser criação lucana livre, baseada em Mc 6,l-6a, ou representar uma tradição
independente. Ele considera Lc 4,17-21 “ mais bem atribuído à pena de Lucas” , porque revela uma
preocupação lucana característica. Contudo, é provável que Meyer (Marginal, v. 1, p. 266-276 [trad.
brasileira, Imago]) deva ser seguido ao afirmar que Jesus aprendeu a ler e a explicar as Escrituras
hebraicas.

222
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

Passemos agora da transliteração do semítico das palavras de Jesus em Mar-


cos/Mateus para a tradução66 dessas palavras em grego. A lista a seguir compara
o texto evangélico com a tradução de SI 22,2 na LXX:

LX X: ho theos, ho theos mou, prosches moi hina ti egkatelipes me

Marcos: ho theos mou, ho theos mou, eis ti egkatelipes meb‘

Mateus: thee mou, thee mou, hinati me egkatelipes

Códice de Beza: ho theos mou, ho theos mou, eis ti oneidisas mebS

EvPd: he dynamis mou, he dynamis, kateleipsas me

Do fato de uma tradução ser dada, pode-se julgar que já não se esperava
que a audiência entendesse a redação semítica (e, na verdade, o EvPd já não a
repete). Ao examinar a oração inicial da NP em Marcos (§ 7,), vimos que a pre­
sença do aramaico transliterado e da tradução grega (Mc 14,36: Abba ho Pater)
talvez representasse uma história da oração sendo recitada em aramaico primeiro;
depois (em uma comunidade mista), nas duas línguas; finalmente, só em grego.
E tentador pressupor uma história semelhante para a oração marcana final de Je ­
sus; mas obviamente as circunstâncias nas quais os cristãos rezavam essa oração
como Jesus a rezava teria de ser restrita, por exemplo, em tempos de martírio ou
sofrimento extremo. Quanto à redação, a LXX (“ Deus, Meu Deus, atende-me, com
que propósito tu me abandonaste?” ) representa a tradução literal do hebraico do
TM, exceto pela omissão do primeiro pronome possessivo e a inserção de uma
frase implorando atenção {prosches moi).b9 Embora usassem a redação da LX X,
Marcos/Mateus ficaram mais próximos do hebraico ao evitarem as peculiaridades
da LXX. (Biblistas como Black, Gundry e Stendahl [SPNM, p. 297] consideram o
hinati de Mateus [“com que propósito” ] melhora estilística do eis ti [“ para/por que
razão” ]; contudo, em Mt 26,8, Mateus seguiu Mc 14,4 ao usareis ti. É mais provável*68

“ Marcos usa methermeneuein (“ interpretar”) conto fez com referência ao Gólgota em Mc 15,22. Mateus
(Mt 27,33) evitou-o ali, do mesmo modo que o mudou aqui. SPNM, p. 296, sugere que ele o achou muito
desajeitado; contudo Mateus o usou em Mt 1,23.
6‘ Códice Vaticano omite o segundo ho theos mou.
68 Esta interpretação só está em Marcos.
m Há quem atribua essas mudanças da LXX a uma interpretação errônea de uma das palavras Eli no
hebraico como a preposição ‘eli, "para mim” .

223
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

que Mateus esteja se adaptando ao grego da LXX.70) Há quem especule que eles
conheciam uma forma mais sucinta do versículo do Salmo na LX X diferente da
do século IV que conhecemos; outros pensam que Marcos/Mateus adaptaram a
LXX à redação hebraica71 ou à tradição semítica das palavras de Jesus. Qualquer
das duas soluções torna improvável que a tradição evangélica mais primitiva das
palavras de Jesus tivesse só o grego (como no EvPd ) e que a transliteração semítica
fosse acrescentada mais tarde para dar verossimilhança.

Códice de Beza. Como na transliteração semítica, aqui também, para Marcos,


este códice tem uma tradução notável em oneidisas : “ Por que tens me insultado?”.
A leitura ocidental repercute no exprobasti de um testemunho em latim antigo, no
maledixisti do Códice Bobiensis (Burkitt, “ On St. Mark” ) e no in opprobrium dedist
de Porfírio. Harnack (“ Probleme”, p. 261-264) defende a aceitação do verbo grego
de Beza como original, com o resultado de que o padrão de Marcos egkatelipes
(“abandonado” ) teria sido mais tarde harmonizado com a LXX. Ousou o escriba
de Beza mudar o egkatelipes marcano, se o encontrou, considerando o apoio de
Mateus e da LX X para essa leitura? Com mais frequência, argumenta-se que o
escriba de Beza mudou realmente Marcos porque achou a ideia do abandono de
Jesus por Deus teologicamente ofensiva. Entretanto, essa solução não deixa de ter
problemas: por que, então, ele não mudou Mateus também? Deus insultar Jesus é
menos ofensivo que Deus abandoná-lo? É provável que não haja nenhuma inter­
pretação totalmente satisfatória da originalidade de Beza, mas alguns fatores são
interessantes. Embora Harnack ache que oneidisas não pode ter sido uma tradução
da transliteração semítica zaphthani de Beza, o verbo oneidizein é usado por Símaco
e Luciano para traduzir ‘zb (nota 64); assim, o escriba pode não ter julgado seu
oneidizein muito ousado diante da tradução egkataleipein. Talvez para ele fosse uma
questão de grego mais bem conhecido — talvez um grego teológico mais usual, pois
palavras relacionadas com oneidizein descrevem os sofrimentos de Cristo em Rm
15,3 e Hb 13,13 (ver também Hb 10,33; 11,26). A passagem de Romanos cita SI
69,10 e, portanto, a ideia de que Jesus foi insultado pode ter-se fixado na memória*1

11 Braumann (“Wozu” , p. 159-611) e Burchard (“Markus” , p. 81) insistem que o eis ti marcano significa
“para que fim” , não “por que” . E mais difícil explicar a substituição mateana do nominativo ho theos,
usado em Marcos (e na LXX) como vocativo, pelo raro vocativo clássico thee (BDF 147). Contudo, o
mesmo tipo de substituição ocorreu na oração inicial na NP ao Pai, em Mt 26,39, em contraste com Me
14,36.
1 É presumível que seja isso que Áquila fez, pois sua tradução grega não tinha o prosches moi.

224
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte

cristã. Marcos usou esse verbo para descrever o terceiro escárnio de Jesus na cruz:
“ Mesmo os que tinham sido crucificados junto com ele o estavam insultando” (Mc
15,32b; Mt 27,44). E Deus agora suspeito de apresentar mais um escárnio na série
ou há uma possibilidade de ter o escriba de Beza entendido que Jesus estava per­
guntando “ Meu Deus, Meu Deus, por que me escarneceste (permitiste que eles me
escarnecessem)?”. Nesse caso, haveria menos problema para saber por que Beza
permitiu ler em Mateus: “Por que me abandonaste?”. As duas perguntas teriam o
sentido de perguntar por que Deus permitiu que essas coisas fossem feitas a Jesus.

Há um corolário menor, mas fascinante, dessa leitura ocidental mencionado


por Skehan (“ St. Patrick” ). Relata-se que o apóstolo da Irlanda tinha, c. 400 d.C.,
um jeito peculiar de rezar em latim: “ Quando eu gritar ‘Heliam (Heliam)’ com
minha força, vede, o esplendor desse sol descerá sobre mim”. Ao invocar o sol,
Patrício usa uma forma transliterada do grego Helios (talvez recorrendo em parte
a uma imagem de Elias [latim Elias] que subiu para lá em seu carro de fogo [2Rs
2,11]), mas ao mesmo tempo faz eco à oração de Jesus. O Códice Bobiensis, do
Norte da África, nos dá uma indicação de onde ele conseguiu sua redação:72 nele,
em Mc 15,34-36, Jesus reza “ Heli, Helianm” (= grego Eli, Eli, “Meu Deus”) e os
circunstantes referem-se a “ Helion [...] Helias” (= grego E lia n [. . . ] Elias: “ Elias” ).
Houve um momento na interpretação latina ocidental da oração de Jesus em que se
julgou ter ele dirigido uma censura ao sol por tê-lo abandonado ou insultado? Isso
faria sentido perfeito imediatamente depois do versículo a respeito da escuridão
que cobriu a terra inteira!

A trad u ção em EvPd 5 ,19. Sem o acompanhamento de nenhuma transli-


teração do semítico, o EvPd relata as últimas palavras de Jesus como: “ Meu poder.
0 poder, tu me abandonaste”, claramente mais próximo de Marcos/Mateus que de
Lucas ou de João. Três possibilidades (com variações) surgem imediatamente: 1)
o EvPd representa uma tradição original que foi secundariamente modificada por
Marcos/Mateus; 2) o EvPd é secundário e representa uma modificação de Marcos/
Mateus; 3) Tanto o EvPd como Marcos/Mateus derivam de uma tradição original.
Em um período mais primitivo na pesquisa do EvPd, essa questão foi provavelmente
resolvida com base em uma análise teológica do documento como obra docética na
qual Jesus era simplesmente um arcabouço humano habitado por um poder divino.

‘2 Isso representa a tradição africana do latim antigo e os bispos britânicos que assistiram a um concilio
da Igreja no Norte da África poderíam ter difundido esse tipo de tradução.

225
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

A base para essa opinião encontrava-se em EvPd 4,10, onde “o Senhor” não sentiu
dor quando foi crucificado. Quase sempre, então, essa passagem era interpretada
como se refletisse a teologia atribuída a Cerinto (Irineu, Contra as heresias I,xxvi,l),
pela qual o ser divino (Cristo) que desceu sobre Jesus no batismo se retirou dele
antes que ele morresse. E ssa análise tornou difícil para muitos biblistas atribuir
originalidade ou prioridade à redação do grito mortal em EvPd. Hoje, entretanto,
essa interpretação docética do EvPd está, em grande parte, abandonada.73 A des­
crição de que Jesus não sentiu nenhuma dor é considerada um toque martirológico
que mostra a bravura daquele que está prestes a morrer e se reconhece que a
interpretação do grito mortal por Cerinto é muito improvável, pois está claro que
Jesus permanece divino depois que o “poder” o deixou (ver EvPd 6,21; 10,40).
Consequentemente, a decisão a respeito das três possibilidades relacionadas acima
tem de ser feita em outras bases.

Ao considerarmos as possibilidades individualmente, precisamos não esque­


cer o relacionamento geral que já vimos entre o EvPd e os Evangelhos canônicos.
Essa experiência passada torna uma aceitação simples demais da possibilidade 1)
bastante improvável, pois até agora não encontramos nada para nos fazer pensar
que Marcou ou Mateus recorreram ao EvPd. Realmente, uma passagem específica,
ela mesma citação da Escritura, talvez estabeleça uma exceção. Todavia, mesmo
nessa base limitada é difícil entender como Marcos/Mateus poderíam ter tirado
sua forma do último grito de Jesus do grito que está no EvPd. Seria preciso pensar
que, em um período mais tardio da evolução dos Evangelhos, foi por eles ou por
um deles74 introduzida uma redação aramaica não encontrada em sua fonte. Além
disso, eles teriam modificado a redação para favorecer uma cristologia mais baixa,
pois teriam introduzido a ideia de Deus abandonando Jesus — ideia mais ofensiva
teologicamente que a do poder de Jesus desertando-o.

A possibilidade 2) parece provável em outros casos, pelo menos no sentido


de que talvez o autor de EvPd tenha ouvido uma leitura de Mateus ou de Marcos e
escrito de memória a partir dessa comunicação oral, e não a partir de uma cópia
escrita. Aqui, como sinal provável da influência de Marcos/Mateus no EvPd, no­
tamos que essas palavras de Jesus vêm depois de uma referência à escuridão que

74 Brown, “Gospel of Peter” , p. 325, 340; ver a p ê n d ic e I.


74 Mateus está mais próximo que Marcos do EvPd — assim, talvez seja preciso supor que, neste caso,
Mateus tomou emprestado do EvPd e Marcos tomou emprestado de Mateus!

226
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

dominou fortemente toda a Judeia (EvPd 5,15a), isto é, em grande parte a mesma
sequência de Marcos/Mateus, embora o EvPd contenha uma descrição muito mais
dramatizada (EvPd 5,15b-18) que a encontrada em Marcos/Mateus e a oferta de
vinho avinagrado venha antes das palavras de Jesus, e não depois delas. EvPd
5,19 relata que o Senhor “bradou, dizendo” com o emprego do mesmo grego de
Mt 27,46 (mas sem “um forte grito” ). Na citação das palavras de Jesus, o EvPd
permanece próximo de Marcos/Mateus e/ou da LX X na escolha do verbo katalei-
pein, que não difere em sentido de seu egkataleipein. Os dois pontos que precisam
ser explicados quando se supõe a dependência do EvPd de Marcos/Mateus são as
mudanças, no EvPd, de pergunta para declaração'0 e de “ Meu Deus, meu Deus”
para “ Meu poder, Ó poder”. Como a pergunta em Marcos/Mateus já subentende
que um abandono aconteceu, a mudança para “tu me abandonaste” no EvPd não
é muito significativa, exceto na medida em que uma atitude mais indefinida para
com a citação exata da Escritura (SI 22,2) é uma pergunta no TM e na LXX. A
mudança deliberada de “ Deus” para “poder” é a verdadeira questão. A cristologia
do EvPd é extremamente alta (por exemplo, nunca se refere a “Jesus”, mas sempre
a “o Senhor” ; pensando na figura de Jesus ressuscitado com a cabeça mais alta que
os céus [EvPd 10,40]); assim, o autor talvez achasse ofensiva a ideia de que Deus
abandonou Jesus. Entretanto, essa mesma explicação choca-se com uma explica­
ção frequente da razão pela qual o EvPd se lembrou de “poder” como substituto
de “ Deus”, a saber, que era um título para Deus, como em Mc 14,62 e Mt 26,64,
onde Jesus fala do Filho do Homem sentado à direita “do Poder” (Lc 22,69: “do
poder de Deus” ).*76 Ao se considerar o uso de “ poder” como alteração deliberada
de Marcos/Mateus e da LX X, a fim de fazer o fato de Jesus ser abandonado menos
ofensivo, é preciso interpretar o termo literalmente.

A possibilidade 3) para as palavras de Jesus (combinada com 2] para o con­


texto) apresenta menos obstáculos no sentido de ser possível prescindir de supor a
eliminação intencional de “ Deus” com base em uma postura teológica. Se SI 22,2 foi
associado ao grito mortal de Jesus e várias interpretações desse versículo do Salmo
floresceram lado a lado, o autor do EvPd talvez tenha escolhido a que ele conhecia
da tradição oral, sem rejeição deliberada daquela na LX X seguida por Marcos/

‘5 Na verdade, é possível ler a forma verbal no EvPd como pergunta, mas não há razão gramatical para
fazê-lo, como há em Marcos/Mateus.
76 Deve ser mencionado que “ meu Poder” como referência a Deus é mais desajeito que “o Poder” .

227
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto

Mateus. Há indícios de outra tradução do SI 22 que poderia ter sido conhecida do


autor do EvPd. A palavra hebraica para Deus, ’£7, originou-se da raiz verbal \vl
Çyl), que também deu origem a muitas palavras que envolvem força. O substantivo
constructo ’e/ aparece na expressão “a força das mãos” em Pr 3,27; Ne 5,5; Mq 2,1.
Assim, o ’e/í de SI 22,2 poderia ser entendido com o significado de algo como “ Meu
forte” ou “ Minha força”. No século II d.C., contemporâneo do EvPd como parte de
uma tentativa judaica de produzir uma tradução grega mais fiel ao hebraico, Aquila
traduziu SI 22,2 como: “ Meu forte [ischyre], meu forte”, tradução que Eusébio julgou
poder ser traduzida mais eloquentemente: “ Minha força” (Demonstratio evangélica
X,viii,30; GCS 23, p. 476). Se o autor de EvPd ouvira Mateus lido oralmente e se
lembrava de que o Jesus moribundo citou o Salmo, não poderia ter registrado isso
com a tradução do Salmo que ele conhecia — tradução menos ofensiva teologica­
mente e que fazia sentido perfeito? Ele poderia ter querido dizer que Jesus sentiu
que sua força física o deixara, sentimento que não tinha de ser expresso em uma
pergunta retórica como em Marcos/Mateus. Ou o autor do EvPd poderia ir mais
além e, como a palavra dynamis foi usada para o poder milagroso de Jesus (Mc
5,30), insinuar que agora Jesus não podia libertar a si mesmo porque perdera o
poder de fazer milagres — poder sempre delimitado pelo propósito, já que Jesus
jamais o usou para vantagem própria? Ou o autor poderia ter pretendido ir ainda
mais além, na direção de F1 2,7 e da ideia de Jesus esvaziar-se a si mesmo, não
de sua divindade,7' mas em termos de experimentar a impotência humana como
a de um escravo? Não muito depois de o EvPd ser escrito, Taciano especulou que
a divindade deve ter estado oculta daquele que foi morto na cruz, pois, se tivesse
sido revelada, o que ia ser morto não temeria, e os assassinos não conseguiríam
matar.'8 Em tudo isso, o EvPd seria testemunha de como a tradição do grito mortal
de Jesus estava sendo reinterpretada e entendida em círculos populares do século II.

E lia s e a o fe rta de vinho avin agrad o . Pouco antes da morte de Jesus,


Mc 15,35-36 e Mt 27,47-49 combinam esses dois elementos em uma sequência
bastante desajeitada. 0 elemento de Elias encontra-se apenas em Marcos/Mateus,

' Em meados do século II, Justino talvez estivesse polemizando contra um entendimento errôneo da perda
de dynamis quando escreveu que Jesus já tinha o poder quando nasceu (Diálogo lxxxviii,2) e que algum
poder oculto de Deus lhe pertencia em sua crucificação (Diálogo xlix,8).
8 Relatado por T. Baarda, “A Syriac Fragment of Mar Ephraem’s Commentary on the Diatessaron” , em
NTS 8,1961-1962, p. 287-300. esp. 290.

228
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

enquanto o oxos ou vinho avinagrado'9 é elemento universalmente comum na NP,


sendo mencionado em todos os Evangelhos canônicos e no EvPd. Algumas obser­
vações gerais a respeito dessa situação são úteis antes de tentarmos desemaranhar
o difícil relato de Marcos/Mateus.

Fator importante na oferta de vinho avinagrado a Jesus na cruz é o eco de


SI 69,22, que descreve como o justo é escarnecido pelos inimigos:

E para meu pão eles deram fel,


e para minha sede deram-me vinagre para beber.

Com certeza, Mateus e o EvPd tinham em mente este Salmo, pois ambos
mencionam fel,*80 o outro componente do Salmo além do vinho avinagrado. E plau­
sível também que o Salmo seja o que Jo J9 ,28-30 tem em mente: ali, o “ Tenho
sede” de Jesus está explicitamente colocado no contexto da conclusão da Escritura;
e depois de beber o vinho, ele diz: “ Está consumado”. Embora Marcos seja muito
menos específico, o contexto todo de Mc f 5,36 faz eco a passagens das Escrituras,
inclusive SI 22,2. Somente a descrição lucana da oferta de vinho avinagrado não
dá ao leitor nenhuma indicação de que o Salmo está sendo cumprido: em Lc 23,36,
em meio aos três escárnios de Jesus na cruz, o vinho avinagrado lhe é oferecido
pelos soldados (romanos). (A dificuldade de relacionar Marcos e Lucas a SI 69,22
sugere que a cena não foi inventada por meio de reflexão nesse Salmo.) Ao mudar
de lugar a ação que em Marcos estava colocada imediatamente antes da morte de
Jesus, Lucas desiste de alguns de seus simbolismos manifestos.

Outro aspecto da oferta de vinho avinagrado que é comum à maioria das


narrativas é o escárnio. Isso não é surpreendente, pois em SI 69,22, fel e vinagre
funcionam como pilhéria deliberada. Até Lucas, que obscureceu o pano de fundo
do Salmo, conserva o elemento de escárnio. Curiosamente, embora Jo 19,28-30
manifeste um forte componente bíblico, João é o único a não descrever nenhum

‘9 Oxos era vinho tinto amargo ou vinagre barato, diferente do oinos oferecido anteriormente, que fora
misturado com mirra ou fel, e mencionado respectivamente (e só) em Mc 15,23 e Mt 27,34. Ver § 40,
#2, acima. E difícil decidir traduzir oxos como “ vinagre” ou como “vinho” . A escolha depende de o
elemento principal ser escárnio ou bebida. Em SI 69,22, usei “vinagre” porque o escárnio é o tema
principal; decidi não criar parcialidade para com a situação dos Evangelhos e usei “vinho avinagrado”
do princípio ao fim.
80 Mt 27,34 (misturado com oinos); EvPd 5,16; ver as diferenças em § 40, #3.

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Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

escárnio visível. Talvez isso aconteça porque João é o que melhor mistura a oferta
de vinho ao tema, e consequentemente sacrifica um dos aspectos originais do gesto.

A partir dessas observações, podemos construir o roteiro seguinte: em uma


primeira etapa da tradição da crucificação, a referência a uma oferta de vinho foi
preservada ou introduzida porque mostrava como, pouco antes de morrer, Jesus
foi escarnecido exatamente como o foi o justo sofredor em SI 69,22. Percebe-se
que este item teve uma história independente dos outros fenômenos de morte pelos
Hinos de Qumrã, onde os mentirosos que perseguem os justos matam a sede dos
inimigos com vinho avinagrado (1QH 4,10-11). Estranhamente, a tradição pré-
-marcana (ou, menos provável, Marcos) combinou esta oferta de vinho com uma
referência a Elias — tão estranhamente que é muito difícil analisar o tema. Digo
“menos provável, Marcos”, porque a falta de jeito da combinação81 sugere que
Marcos não criou nenhum componente, pois nesse caso ele adaptaria um ao outro
para fazer uma trama mais suave. Seria mais fácil explicar a falta de jeito se Marcos
juntasse duas tradições já formadas.82 Na verdade, talvez Marcos não entendesse
muito bem a inter-relação delas. Enquanto Mateus seguiu Marcos nisso, modifi­
cando parte da falta de jeito, Lucas eliminou o componente de Elias e mudou a
oferta de vinho avinagrado para um ponto anterior da narrativa, isto é, na tradição
dos três escárnios de Jesus na cruz (§ 41). 0 autor do EvPd manteve o contexto
de morte de Marcos/Mateus eliminando ou esquecendo o componente de Elias.
De modo independente de Marcos (presumivelmente), João recorreu à tradição do
vinho avinagrado combinada com últimas palavras, mas tornou a combinação mais
inteligível fornecendo uma referência bíblica para a sede de Jesus, de modo que
as últimas palavras de Jesus se referissem à conclusão da Escritura. Ou ele não
conhecia, ou rejeitou a tradição de Elias. Comecemos agora a testar esse cenário
estudando a sequência de Marcos/Mateus.

Se, imediatamente depois de Jesus gritar as palavras de SI 22,2, Marcos ti­


vesse incorporado a seu relato da morte de Jesus esta afirmação: “Alguém, correndo,

81 Não está claro como o grito a Elias (Mc 15,35) origina-se de ouvir Jesus citar SI 22,2 (Mc 15,34) ou por
que (erroneamente) ouvir um grito a Elias faria alguém oferecer vinho avinagrado a Jesus (Mc 15,36a)
ou se e por que essa oferta está envolvida em ver se Elias vem ou não descer Jesus.
82 Não acho persuasiva a tese de Matera (Kingship, p. 29-32), segundo a qual havia três tradições indepen­
dentes (citação de Salmo, oferta de vinho, Elias). Em Marcos/Mateus, EvPd e João (assim, em quatro de
cinco de nossos testemunhos), uma citação de Salmo de morte (com redação variante) está relacionada à
oferta de vinho avinagrado e essa conjunção pode bem representar a mais antiga tradição identificável.

230
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte

tendo enchido uma esponja com vinho avinagrado, tendo-a posto em um caniço,
estava lhe dando para beber” (isto é, o que agora está em Mc 15,36a), não havería
problema. Concluir-se-ia que essa era uma referência discreta a SI 69,22, dando
base bíblica ao escárnio do justo pelos inimigos. Os problemas são causados pelo
que Mc 15,35 realmente relata imediatamente depois de Jesus bradar as palavras
de SI 22,2, a saber: “ E alguns dos circunstantes, tendo ouvido, estavam dizendo:
‘Olhai, ele está gritando para Elias” ’. Esse equívoco é reiterado em Mc 15,36b:
“ Vejamos se Elias vem descê-lo”. 0 primeiro problema é por que o “Eloi, Eloi,
lam a sabachthani” de Jesus leva os circunstantes a concluírem que ele clamava
por Elias. 0 segundo problema é como o equívoco deles se relaciona com alguém
correndo e pegando vinho avinagrado para oferecer.

P r im e ir o , os nomes Eloi e Eli e Elias (Elias). Este problema é um ótimo


teste do enfoque hermenêutico adotado para o relato marcano. Biblistas que sabem
semítico se perguntam a respeito da verossimilhança (ou mesmo historicidade) de
um momento em que as pessoas de fala semítica ouviam o aramaico ’Elaht (trans­
crito por Marcos como Eloi) e o entendiam erroneamente como o nome do profeta
’Eltyahi2, às vezes abreviado ’Elíyâ. (Pergunta-se com menos frequência como essas
pessoas de fala semítica ouviam lema ’ sebaqtaní [que Marcos transcreve lam a sa­
bachthani e traduz “ Por que me abandonaste?” ] e entendiam-no como apelo para
Elias vir descer Jesus.) Tem havido tentativas engenhosas e às vezes desesperadas
para encontrar uma pronúncia dialetal do nome de Deus ou do nome de Elias que
explique de modo mais plausível como os circunstantes judeus confundiram um
com o outro.83

Mateus, que ao que tudo indica sabia aramaico e também hebraico, talvez já
percebesse o problema; de fato, o Eli que ele usa ao transcrever o nome de Deus,
além de introduzir nas palavras aramaicas de Jesus uma designação de Deus
hebraica mais tradicional (ver acima, sob “ Redação do grito mortal de Jesus” ),
proporciona uma forma de tratamento que é mais plausível os circunstantes terem
entendido erroneamente como o nome do profeta ’Eltyâ .84 A esse respeito, alguns

83 Rehm (“Eli” , p. 276-277) argumenta, baseado na analogia de outros nomes próprios abreviados, que o
já abreviado 'Eltya poderia ter sido mais abreviado para 'Eli. Ver a opinião de Kutscher na nota a seguir.
M Guillaume (“Mt. xxvii” ) leva isso mais adiante quando argumenta que o sufixo possessivo da primeira
pessoa em “ meu Deus” , embora escrito iy (transcrito í), era na verdade pronunciado iya, como o sufixo
semítico antigo escrito dessa maneira. Essa perspectiva é contestada por E. Kutscher, The Language
and Linguistic Background of the Isaiah Scroll (1Q Isa“), em Studies on Texts of the Desert of Judah 6,

231
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

biblistas defendem a originalidade da transliteração semítica (hebraica) mateana


do nome de Deus, em vez da forma marcana (Mc 15,34), mas essa solução enfrenta
sérias objeções.8”

A meu ver, o enfoque para entender Marcos descrito acima é problemático e


talvez reaja a um falso problema. Em parte, supõe que, além de preservar algumas
palavras aramaicas, Marcos descreve uma cena que faria sentido se os leitores
entendessem a linguagem semítica subjacente. Entretanto, com toda probabilidade,
Marcos escrevia para leitores que não sabiam semítico. Afinal de contas, ele traduzia
regularmente palavras aramaicas para eles e, em Mc 7,3-4, sentiu-se compelido
a explicar alguns costumes judaicos elementares. Quando se permanece no nível
do grego, os leitores não têm problema para entender a cena de Marcos (assim
também Schenke e Brower). Depois de ouvirem em aramaico exótico as palavras
de Jesus, uEloi ...”, e depois de lhes ter sido contado que isso foi entendido mal
por circunstantes judeus como apelo a Elias (transcrição grega para “ Elias” ), eles
teriam presumido que o semítico que fundamentava a forma grega do nome do
profeta estava próximo do aramaico transliterado Eloi que Jesus usou. É o que os
ouvintes do Evangelho de Marcos que não conhecem aramaico fazem desde então.

Não sabemos se o próprio Marcos sabia ou não que a forma semítica do


nome do profeta não era igual ao aramaico de Jesus para “ Meu Deus”, pois não
está claro se Marcos sabia ler ou entendia aramaico e hebraico.86 Portanto, talvez
Marcos não tenha percebido que, para qualquer leitor que soubesse semítico, sua

Leiden, Brill, 1964, p. 181-182. A explicação que Kutscher dá do texto mateano é que o nome de Elias
era pronunciado 'Eli como em inscrições judaicas em Roma.
a’ Por exemplo, como, então, se explica a redação de Marcos? E preciso supor que alguém (Marcos ou um
copista mais tardio) mudou Eli, a transliteração hebraica que era mais original (quer a tenha encontrado
em Mateus, quer em uma tradição pré-marcana) e fazia mais sentido como base para o equívoco de Elias,
para a transliteração aramaica que agora se encontra em Marcos, a saber, Eloi. Por quê? Foi com base
no princípio de que Marcos sempre usa transliterações aramaicas? Acho tal abordagem implausível.
Alguém (Marcos ou um copista) que conhecia esse tanto de semítico teria sido bastante perceptivo para
saber que estava produzindo uma confusão a respeito do equívoco de Elias.
8I’ 0 fato de Marcos ter preservado algumas palavras aramaicas não responde a essa pergunta. Uma de
suas seis transliterações aramaicas (nota 62, acima) é topônimo; duas são fórmulas de cura que foram
memorizadas em aramaico por cristãos de língua grega (já que eram consideradas possuidoras de poder
de cura como palavras exóticas); duas outras são fórmulas de oração. Para dar um exemplo de como
uma pessoa pode imitar fórmulas de outra língua que não fala nem lê, quando a missa era celebrada em
latim, católicos romanos das mais variadas línguas usavam e entendiam Dominus vobiscum sem saber
latim. Do mesmo modo, muitos dos judeus de hoje sabem algumas fórmulas de oração hebraica sem ter
a capacidade para falar ou ler hebraico.

232
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

transliteração de Eloi não se confundia com Elias, o nome do profeta. É provável


que Mateus, que ao que tudo indica conhecia realmente as línguas semíticas, tenha
percebido o problema, e é por isso que mudou o nome da divindade para o hebraico
(transliterado) Eli, que não seria confundido facilmente.

Se o chamado para a vinda de Elias não se originou no nível semítico da


tradição de um equívoco genuíno do nome de Deus, como esse elemento surgiu
e que função ele teve como componente separado na narrativa da morte? Fator
importante é que a expectativa da vinda de Elias encaixa-se na série marcana de
acontecimentos que cercam a morte de Jesus, a saber, o grito forte, escuridão sobre
a terra inteira, rasgamento do véu do santuário do Templo. (A lista é mais longa em
Mateus: terremotofs], abertura de túmulos, ressurreição dos mortos santos.) Elias
era muito proeminente nas expectativas populares do fim dos tempos, como tauma-
turgo em tempo de crise moral, como precursor da vinda de Deus, como ungidor do
Messias.87 (Ê provável que todos esses se relacionassem com a última predição nos
livros proféticos: “ Eis que eu vos envio o profeta Elias, antes que chegue o dia do
Senhor, o dia grandioso e terrível” [Ml 3,23, ou 4,5 na RSV].) Entretanto, pode-se
protestar que a vinda de Elias não pode ser associada aos outros sinais apocalípticos
que cercam a morte de Jesus, porque os outros são descritos como acontecendo,
enquanto a expectativa de Elias é um mal-entendido. Contudo, lembramos que a
expectativa de Elias foi apresentada antes como mal-entendido, precisamente em
relação ao sofrimento do Filho do Homem e da ressurreição dos mortos (Mc 9,9-13;
Mt 17,9-13): “ Por que os escribas dizem que Elias precisa vir primeiro?”, ao que
Jesus respondeu: “ Eu vos digo que Elias veio”. (Mateus acrescenta que eles não
o conheceram — assim também o Filho do Homem sofrerá nas mãos deles.) Na
cruz, quando o Filho do Homem está finalmente sofrendo sua sina, Marcos/Mateus
mostram uma série de sinais pressagiados pelos profetas para o fim dos tempos,
mas a única reação dos circunstantes é repetir o mal-entendido a respeito de Elias
(ao passo que, como Brower, em “ Elijah”, insiste, os leitores sabem que Elias veio
como João Batista). Embora tenham visto a escuridão e ouvido o forte grito de Jesus,
eles entendem que ele chama Elias.88 Transformam a esperada vinda de Elias em

8‘ Ver Cohn-Sherbok, “Jesus’ Cry”; Gnilka, “ Mein Gott” . Uma baraita ou tradição mais antiga em TalBab Baba
Qamma 60b diz: “Quando cães uivam, o anjo da morte chega à cidade; se os cães fazem travessuras, Elias,
o profeta, vem à cidade” . TalBab Abada Zara 17b e 18b ligam Elias e a libertação do jugo dos romanos.
88 O substantivo phone é usado para descrever o grito de Jesus em Mc 15,34; o verbo phonein é usado em
Mc 15,35: “ Ele está gritando para Elias” . Embora haja quem entendesse que isso significa “ Ele está
chamando por Elias” , isso normalmente exigiría prosphonein.

233
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

escárnio de Jesus: “ Vejamos se Elias vem descê-lo” (Mc 15,36b), do mesmo modo
que algumas horas antes eles tinham zombado de Jesus: “desça da cruz” (Mc 15,32;
ver Mc 15,31). Mateus aumenta a hostilidade do escárnio fazendo alguns dos que
ali estão de pé empregar o desdenhoso houtos com referência a Jesus: “ Este sujeito
está gritando para Elias” (Mt 27,47). As palavras que usam para lançar dúvida
sobre Jesus são: “ Vejamos se Elias vem salvá-lo” (Mt 27,49), que fazem eco a um
escárnio anterior dirigido a Jesus: “ Salva-te a ti mesmo, se tu és Filho de Deus”
(Mt 27,40; também Mt 27,42: “A si mesmo ele não pode salvar” ). Ironicamente,
embora Elias não intervenha a favor de Jesus, logo Deus o fará, e de forma muito
visível, que todos verão.

S egundo , a oferta de vinho avinagrado. Já examinamos a oferta de vinho


avinagrado (oxos) como um eco de SI 69,22; mas agora precisamos tratar do tema em
Mc 15,36; Mt 27,48-49 e EvPd 5,16-17. Todos os relatos supõem que havia vinho
avinagrado à mão (Jo 19,29 deixa isso explícito: “Uma jarra estava ali cheia de vinho
avinagrado” ). Isso não é implausível, pois oxos é o grego para o posca, ou vinho
tinto rústico bebido pelos soldados romanos (MM, p. 452-453). Por si só, a oferta
de oxos a Jesus não precisa ter sido hostil, pois o vinho avinagrado é implicitamente
uma bebida desejável em Nm 6,3 e Rt 2,14. Em sua biografia de Catão, o Antigo
(i,7), Plutarco diz: “Água era o que ele bebia em campanhas, mas ocasionalmente,
com uma sede devastadora, ele pedia vinho avinagrado”.89 Contudo, em Marcos
o contexto torna provável que a oferta de vinho não foi um gesto amigável. Se faz
eco ao uso de oxos em SI 69,22, Marcos lembra como o justo recebeu alimento
amargo dos inimigos. 0 ceticismo sarcástico associado a respeito de esperar para
ver se Elias viria descer Jesus (Mt 15,36b) sugere escárnio. Mas a cena é muito
complicada. Quem é o “alguém” que corre para pegar o vinho avinagrado? O fato
de ser esse vinho bebida de soldado e de, em Lucas, serem explicitamente soldados
que oferecem o vinho faz muitos comentaristas suporem que Marcos tem em mira
um soldado romano,90 só para indicar como seria improvável um soldado romano
saber a respeito de Elias. E ssa identificação pode ser uma pista falsa, pois a lógica
mais profunda da narrativa marcana sugere que o “alguém” é um dos circunstan-
tes mencionados no versículo anterior. A objeção de que os soldados romanos que

89 Ver outras referências em Colin, “ Soldato” , p. 105.


90 Veale (“ Merciful”) baseia essa suposição na combinação de Marcos e João. Metzger (“Names” , p. 95)
relata que, no Códice Egberti (século X), o que ofereceu o vinho recebe o nome de Stephaton.

234
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte

normalmente guardavam os crucificados e afastavam os simpatizantes não teriam


permitido esse gesto supõe o que não está claro, a saber, que o gesto era compas­
sivo. Ainda assim, é complicado quando esse mesmo “alguém” fala e diz: “Aphete.
Vejamos se Elias vem descê-lo”.91 Qual é a ligação entre a ação do “alguém” de
oferecer vinho e o que ele diz? Parece que o interlocutor apresenta uma razão para
dar a Jesus uma bebida. A força de aphete normalmente seria “ Deixai-o estar” ou
“ Deixai-o em paz” ; mas quem o “alguém” estaria detendo, já que ele é o único a
agir? Devemos supor algum movimento hostil não mencionado por parte dos outros
circunstantes que o “alguém” está impedindo ao oferecer oxos? Nesse caso, a oferta
tem o propósito de reanimar Jesus para que ele não morra cedo demais, antes que
eles tenham a oportunidade de ver se Elias virá. (0 vinho avinagrado com certe­
za reanimava; de fato, como Colin [“ Soldato”, p. 128] menciona, o odor acre do
vinagre sob o nariz do condenado tinha aquele efeito.) Ou é o “alguém” que está
embaraçado por ser visto fazendo uma coisa boa para Jesus, tentando fingir que
está do lado dos céticos circunstantes? Isso, entretanto, talvez seja construir uma
trama complicada demais. Aphete é às vezes simplesmente um intensivo forte, que
serve praticamente como verbo auxiliar para um imperativo, como em Mc 10,14:
“ Deixai as crianças virem a mim”. Aqui, então, o sentido é: “Realmente vermos...
.. ”,92 e talvez não seja de se esperar ter de insistir na questão de como a bebida
de vinho alcançaria o objetivo do interlocutor. Deixei a tradução de 15,36b literal
para mostrar o problema.

Aqui, mais uma vez, Mateus, que mudou o Eloi marcano para Eli, talvez
porque reconhecesse que Eli não seria facilmente confundido com o nome do
profeta Elias, procura endireitar o tema que encontrou em Marcos. Em Mt 27,48,
ele deixa claro que quem corre para pegar o vinho é um dos que estão de pé ali,
que pensou estar Jesus gritando por Elias (e assim, consciente ou inconsciente­
mente, impede a interpretação dos soldados romanos). 0 corredor já não é quem
fala; mais exatamente, “os restantes disseram”. Os interlocutores apresentam uma

91 Lee (“Two” , p. 36) faz os circunstantes falarem, supondo (de maneira implausível) que Marcos foi com­
posto em semítico e que o watv final da forma plural ’mrw se perdeu por haplografia, ao ser confundido
com a inicial nun do subjacente “ Sair” jussivo. Esses aperfeiçoamentos eruditos de Marcos remontam
à Antiguidade, pois as versões siríacas de Mc 15,36 leem um plural para “dizendo” , em vez do bem
atestado singular.
92 MGNTG, v. 1, p. 175. Taylor (Mark, p. 595) opta por isso e a tradução de Moffatt é parecida: “ Vamos,
vejamos” .

235
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali p e r t o _______________

razão para não dar algo de beber a Jesus. Consequentemente, agora aphete pode
ser traduzido literalmente: “ Deixai-o [= Jesus] em paz”. Os outros observadores
(judaicos) pensam que o oferecedor voluntário de vinho está, de forma perturbadora,
interferindo ou mesmo fazendo alguma coisa hostil a Jesus (fazendo eco à atmosfera
hostil de SI 69,22, que a menção de fel em Mt 27,34 mostra estar na lembrança do
evangelista) e talvez tentando apressar a morte de Jesus.93 Eles querem que Jesus
seja deixado em paz para ele sobreviver o suficiente para eles verem se a oração a
Elias é respondida.

EvPd 5,16 está mais próximo de Mateus ao apresentar um tema homogêneo.


Um dos judeus responsáveis pela crucificação de Jesus (nenhum soldado romano
é mencionado) propõe maltratar Jesus dando-lhe fel com vinho avinagrado para
beber. Não há ambiguidade a respeito do objetivo malévolo do oxos, já que fel é o
primeiro elemento mencionado. Os próprios judeus fazem essa mistura, claramente
evocativa de SI 69,22. Consequentemente, EvPd 5,17 pronuncia uma sentença
condenatória contra eles: “ E eles cumpriram todas as coisas [isto é, as Escrituras,
a respeito de maltratar o justo] e completaram os (seus) pecados na cabeça”. É
outro exemplo do sentimento antijudaico que é muito mais proeminente no EvPd
que nos Evangelhos canônicos.

Antes de nos afastarmos da discussão de Marcos/Mateus, devemos mencio­


nar uma linha adicional no fin al de Mt 27,49 encontrada em alguns testemunhos
textuais importantes (Códices Vaticano e Sinaítico, a família irlandesa-britânica
de manuscritos latinos, Harclean Siríaco e Crisóstomo): “ Mas outro, tendo pegado
uma lança, trespassou seu lado e saiu água e sangue”. Pennells (“ Spear” ) defende
a autenticidade desse texto. Levaria a Mt 27,50, onde Jesus berra com um forte
grito e expira. Pennells acha que o constrangimento pela imagem de Jesus berrando
quando foi trespassado e morrendo de um ferimento por lança levou à supressão da
passagem ou sua transferência para depois da morte de Jesus, como em Jo 19,34.
Entretanto, muitos críticos textuais julgam-na uma adição alexandrina erudita a
Mateus copiada de Jo 19,34 (com o qual ele partilha dez de treze palavras): “ Um
dos soldados trespassou-lhe o lado com uma lança e imediatamente saiu sangue e
água”. É de se presumir que a passagem joanina tenha sido copiada à margem de um
ms. de Mateus e então, subsequentemente, introduzida no texto, embora não esteja

91 Taylor (Mark, p. 596) chama a atenção para os indícios dados por Goguel de uma crença de que a morte
de um crucificado era apressada fazendo-o beber.

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§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

totalmente claro por que, ao introduzir em Mateus um esboço joanino, o copista


mudaria esse episódio de depois da morte de Jesus, onde João o colocou, para antes
da morte.94 Entretanto, a situação pode ter sido mais complexa. No início do século
XIV (Concilio de Viena, papa Clemente V), por causa da importância da água e
do sangue como símbolos para o batismo e a Eucaristia, houve uma controvérsia
quanto a eles terem vindo de Cristo antes ou depois de sua morte. Os franciscanos
espirituais apoiaram a ordem mateana anterior à morte, com Ubertino de Casale
citando um ms. latino que pelo visto estava em Paris e era independente da família
irlandesa-britânica. Burkitt encontra indícios da leitura mateana em uma epístola de
Jerônimo ao papa Dâmaso. Um Evangelho minúsculo (72) do século XI no Museu
Britânico (Harley 5647) tem uma anotação alegando que Taciano a apoiava — o que
levaria o adendo mateano de volta ao século II, antes da probabilidade da melhoria
alexandrina. Há uma disputa erudita quanto a Taciano ter introduzido o golpe de
lança de Jo 19,34 em sua harmonia consecutiva antes da morte de Jesus (embora
esse posicionamento contradiga a explícita indicação joanina de que Jesus estava
morto e não seja apoiado por um de nossos principais guias para a harmonia de
Taciano, isto é, o comentário de Efrém) e, assim, ter sido responsável pela ideia
que deu origem ao adendo mateano. A respeito de tudo isso, ver os artigos em §
37, Parte 8, por Burkitt (“ Ubertino” ), Pennells, Vogeis e van Kasteren; este último
pensa que o adendo mateano antecedeu Taciano. Embora não haja possibilidade
de originalmente o adendo fazer parte de Mateus, sua própria existência em mss.
de Mateus é testemunho de como os cristãos primitivos harmonizavam os relatos
evangélicos da Paixão.

0 grito m ortal de Jesus em Lc 23,46

Das complicações que cercaram o grito mortal em Marcos/Mateus, passamos


para o relato lucano mais simples. A oferta de vinho avinagrado é antecipada (Lc
23,36), Elias não é mencionado9^ e só o grito mortal em si é relatado: “ Pai, em
tuas mãos eu coloco meu espírito”.

94 Outra diferença secundária é que João menciona “ sangue e água” , enquanto o adendo mateano traz
“água e sangue” . Foi essa mudança efetuada em Mateus sob a influência de ljo 5,6: “Jesus Cristo veio
[...] por água e sangue” ?
Büchele (Tod, p. 52-53) argumenta que Lucas eliminou o chamado por Elias porque, para Lucas, o pró­
prio Jesus tinha o papel de Elias (assim também Bomkamm, Conzelmann, Schreiber). Isso não está tão
claro; afinal de contas, uma referência lucana à vinda de Elias aqui teria sido uma inclusão com o papel

237
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Embora o grito lucano tenha redação completamente diferente do grito


marcano, há boa razão para pensar que Lucas está modificando o relato marcano.
Antes da morte de Jesus, Lucas agrupa a escuridão sobre a terra inteira e o ras-
gamento do véu do santuário (ver acima, sob “A escuridão em Lucas” ). Esses dois
sinais apocalípticos negativos, adotados por Lucas a partir de Marcos, simbolizam
o julgamento por Deus dos que escarnecem de Jesus em Lc 23,35b-39. As últimas
palavras de Jesus (Lc 23,46) estão ligadas a esses sinais por um “e” — em reação
a eles, então, ele grita ao Pai suas palavras de confiança e morre sem temor. Do
mesmo modo que no início da NP Lucas omitiu a passagem onde o Jesus marcano
começou a ficar muito perturbado e confuso, expressando-se na linguagem adap­
tada de SI 42,6 (“ Minha alma está muito triste até a morte” ), no final da NP Lucas
remove o grito desesperado de abandono do Jesus marcano originário de SI 22,2. 0
motivo lucano dessa remoção é primordialmente teológico; ele está também sendo
consistente com o padrão de suas normas editoriais ao não relatar as palavras
aramaicas marcanas de SI 22,2 e ao ter só um forte grito, em contraste com os
dois de Marcos (do mesmo modo que teve só um canto do galo, em contraste com
os dois de Marcos.*96

Quanto à redação, o abrandamento da descrição marcana já começa com a


preferência lucana pelo verbo “clamar” (phonein) ao “vociferar” (boan) marcano.
Este último é uma ação violenta demais para ser atribuída ao Jesus lucano.97 Lucas
segue o exemplo marcano ao fazer o Jesus moribundo rezar na linguagem do saltério,
mas prefere SI 31,6 a SI 22,2. A redação lucana é idêntica à da LXX do Salmo (“ Em
tuas mãos colocarei meu espírito” ), exceto que a forma do verbo (paratithenai) foi
mudada do futuro para o presente e “ Pai” passou a fazer parte da citação.98 No SI

de João Batista como Elias no início do Evangelho (Lc 1,17). Parece que a tese de que Lucas suprimiu
o episódio de Elias porque não se encaixava em sua descrição de Jesus como mártir (W. Robinson, Sch-
neider) depende de interpretar o episódio positivamente, como se os participantes quisessem que Elias
ajudasse Jesus. Se eles fizeram a referência a Elias em escárnio, o episódio se adapta muito bem a uma
apresentação de mártir. Mais simplesmente, Lucas pode ter omitido a referência porque não entendia
como Marcos podia extrair um chamado a Elias da citação do Salmo por Jesus.
96 Mesmo um “forte grito” (phone megale) é ousado para Lucas. Jesus, que reza com frequência, nunca rezou
antes com tanta veemência, pois até agora, um “forte grito” é a marca de exclamações por demônios,
um leproso, a multidão dos discípulos e os inimigos de Jesus. Contudo, palavras da raiz phon- não são
estranhas à NP lucana (Lc 22,60.61; 23,20.21.23) e maior ênfase é apropriada para a última palavra de
Jesus.
9‘ A combinação cognata “clamar com um forte grito” ocorre também em At 16,28, com referência a Paulo.
* O verbo paratithenai significa “ colocar voltado para, colocar ao lado de, entregar” . Abramowski e Goodman

238
§42. Jesus crucificado, terceira parte: Ú ltim os acontecimentos, m orte

31, o salmista reza para ser libertado dos inimigos e suas armadilhas — rezando
com convicção, pois o versículo citado continua: “Tu me redimes, Ó Senhor”. A
libertação de inimigos hostis é também o tema no SI 22 citado pelo Jesus marcano;
mas Marcos atribui a Jesus o versículo mais desesperado desse Salmo, enquanto
Lucas atribui-lhe um versículo confiante. Ouvimos em Lucas a respeito dos escri-
bas e chefes dos sacerdotes que procuram pôr as “ mãos” em Jesus (Lc 20,19; ver
Lc 22,53) e Jesus predisse que o Filho do Homem seria “entregue” (paradidonai)
nas “mãos” de homens pecadores (Lc 9,44; ver Lc 24,7); mas o desenlace da NP
acontece quando Jesus proclama que é nas “mãos” do próprio Pai que ele “coloca”
(paratithenai) seu espírito, isto é, tudo o que ele é e tem. “Espírito” não é sim­
plesmente um componente parcial do ser humano (como em “alma” e corpo); é a
pessoa viva, ou poder de vida que transcende a morte. No caso de Jesus, entretanto,
“espírito” transcende as definições antropológicas usuais, pois ele foi concebido
pelo Espírito que desceu sobre Maria (Lc 1,35) e em seu batismo, o Espírito Santo
desceu sobre ele em forma corpórea (Lc 3,22), de modo que ele estava cheio do
Espírito Santo (Lc 4,1) e se movimentou pela Palestina no poder do Espírito (Lc
4,14). Quando “entrega” seu espírito ao Pai, Jesus leva de volta ao lugar de origem
sua vida e m issão." Se Lucas dramaticamente mudou o tom teológico da cena da
morte ao preferir SI 31,6 para as últimas palavras de Jesus, em vez da escolha
marcana de SI 22,2, outra mudança significativa é visível quando comparamos a
saudação do Jesus marcano (“ Meu Deus” ) a “ Pai” do Jesus lucano (também Lc
10,21; 11,2), saudação pela qual a citação do Salmo é personalizada. Em parte, a
escolha lucana de “ Pai” aqui é por meio de inclusão com as primeiras palavras de
Jesus em Lc 2,49: “ Não sabíeis que devo estar na casa de meu P ai”. Entretanto,
por comparação com a NP marcana, há outra inclusão. O movimento na oração
do Jesus marcano, desde a cena inicial no Getsêmani, onde ele usou “ Pai” (Mc
14,36), até a cena da morte, onde ele usa “ Meu Deus” (Mc 15,34), é de crescente
alienação. Mas o Jesus lucano é de uma consistência total em toda a NP, rezando ao
“Pai” no início, no Monte das Oliveiras (Lc 22,42), e ao “ Pai” no fim, no lugar da
crucificação chamado Caveira. Na verdade, dentro do relato lucano da crucificação,*

(“Luke xxiii” ) descrevem discussões entre pessoas de língua siríaca (nestorianos, Efrém) a respeito de
como traduzi-lo, preferindo, por razões dogmáticas, “ recomendar” a “estabelecer” . Quanto a “Pai” , a
inclusão de um discurso direto pode ter sido catalisada por “ Ó Senhor” no segundo verso do versículo
do Salmo.
m Feldkamper (Betende, p. 277-279) é muito útil nesses pontos.

239
Q uabto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

há ainda outra inclusão: no exato momento em que está sendo crucificado, Jesus
rezou “Pai” (Lc 23,34) exatamente como faz no momento em que morre naquela
cruz — duas orações peculiares ao Jesus lucano.

Lucas toma grande cuidado ao descrever a morte de Jesus, de modo que


essa imagem ficará gravada nas mentes dos leitores que são seguidores de Jesus.
Na hora da morte, seus sentimentos devem imitar os sentimentos do Mestre quando
ele enfrentou a morte. Em At 7,59-60, Estêvão, o primeiro mártir cristão, é descrito
berrando (krazein) com um “forte grito”, tendo dito: “ Senhor Jesus, recebe meu
espírito”. A eficácia da lição lucana é vista meio século depois ou mais, em Justino
(Diálogo 105): “Por isso, Deus também nos ensina por Seu Filho que devemos lutar
[agonizesthai; ver agonia em Lc 22,44] por todos os meios para sermos justos e,
na hora de nossa saída [exodus; Lc 9,31] pedir que nossas almas não caiam sob
nenhuma potência [má] semelhante. De fato, quando Cristo estava entregando
[apodidonai] seu espírito na cruz, ele disse: ‘Pai em tuas mãos coloco meu espírito’.
Isso também aprendi das memórias”.

Há quem veja outro simbolismo aqui recorrendo ao costume judaico atestado


mais tarde de recitar SI 31,6 na oração da noite.100 Presumindo que esse costume
já estava na moda, Hendrickx (Passion , p. 123) escreve com imaginação: “Jesus,
que morreu na nona hora (três horas da tarde), no momento em que as trombetas
soaram para a oração da noite, recitou esta oração com precisamente este final:
‘Em tuas mãos entrego meu espírito’. Juntando-se ao povo na oração da noite, Jesus
expressou confiança e certeza de que sua morte era apenas um ato de ‘ir dormir’ e,
portanto, o início da vida com o Pai”. Duvido disso: a data em que o Salmo começou
a ser usado como oração da noite é incerta; a descrição lucana de Jesus clamando
com um forte grito certamente não sugere oração da noite; e mesmo em Lucas
há sinais apocalípticos que impedem de pensar na morte de Jesus como apenas
um ato de “ir dormir” . Afinal de contas, o Jesus lucano proclamou este período
inteiro como a hora de seus inimigos e do “ poder das trevas” (Lc 22,53). A oração
de Jesus na hora da morte proclama com confiança que o poder das trevas não é
capaz de separá-lo de seu Pai. Quando é visto novamente depois da morte, ele fala
com clareza do reino de seu Pai: “Eu envio sobre vós a promessa de meu Pai” (Lc

ioo yer referências em St-B, v. 2, p. 269. TalBab Berakot 5a relata a máxima de Abaye segundo a qual, na
hora de dormir, mesmo o erudito deve recitar um versículo de súplica, por exemplo: “ Em tuas mãos
coloco meu espírito; tu me redimiste, Ó Senhor, Deus da verdade” .

240
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

24,49; At 1,4; ver At 1,7). E quando voltar como o Filho do Homem no final, ele
virá “ na glória do Pai” (Lc 9,26).

As últim as palavras de Jesus e a oferta de vinho em Jo 19,28-30a

O relato joanino (Episódio 4 no esboço estrutural em § 38 C, acima) é mais


longo que o de Lucas, mas mais curto que o de Marcos/Mateus. Embora haja nele
obscuridades por causa da dupla referência a tudo estar consumado, ele tem uma
narrativa direta quando comparada às obscuridades de Marcos/Mateus. À guisa de
simplificação, João não tem os indicadores de tempo da crucificação dos sinóticos
(sexta e nona horas) e elementos apocalípticos (escuridão, forte grito, rasgamento
do véu do santuário, terremoto); no lado positivo, João integra estreitamente a oferta
de vinho avinagrado ao eco de um Salmo. A perspectiva teológica, como veremos,
é tipicamente joanina.

Antes de comentarmos cada versículo em detalhe, é útil dar uma olhada no


arranjo geral do episódio. Este episódio começa em Jo 19,28a com a certeza de que
“já tudo estava consumado [tetelestai, de telein]”. Então, (Jo 19,28b) depois de uma
declaração de sede feita por Jesus “a fim de que a Escritura se completasse [teleio-
the, de teleioun]”, há em Jo 19,29 uma oferta de vinho avinagrado. Em Jo 19,30a,
quando Jesus o toma, ele afirma: “ Está consumado [tetelestai]”. Parece ilógico ter
três indicadores separados que envolvem consumar, completar e consumar; mas o
que acontece aqui está correlacionado, e João quer insistir maciçamente em como
Jesus morre só depois de terminar o que veio fazer.

“ Depois disso, Jesus tendo conhecido que já tudo estava consu­


mado” (Jo 19,28a). O episódio se inicia com uma frase joanina estereotipada:
“Depois disso”, que indica sequência lógica e às vezes cronológica (BGJ, v. 1, p.
112). A frase “Jesus tendo conhecido” é um pouquinho desajeitada;101 e se é tenta­
do a traduzi-la como “tendo percebido” ou “ tendo ficado ciente”, de modo que um
determinado incidente ou ação possa ser identificado como levando Jesus a essa
percepção. Contudo, é duvidoso que João quisesse apresentar Jesus aprendendo
qualquer coisa, pois o que quer que o Jesus joanino faça ou diga flui daquilo que

lm Há variada ordem de palavras nos melhores testemunhos textuais que apoiam eidos, “tendo conhecido” ,
em vez de idon, “tendo visto” , da tradição koiné. No que se segue, “já ” está ausente de alguns testemu­
nhos e aparece em sequência variada em outros. Evidentemente, os copistas primitivos viram algumas
das dificuldades explicadas acima.

241
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

ele viu com o Pai antes de sua encarnação e, na verdade, antes do começo do mundo
(Jo 5,19; 8,28; 17,5). João deixa o leitor saber o que Jesus já sabia.

Na verdade, a atemporalidade do conhecimento de Jesus (que serve de


chave para entender o sentido daquilo que ele conhece, isto é, “que já tudo estava
consumado” ) é esclarecida por outras duas passagens em João, com as quais essa
passagem forma uma inclusão. Jesus ser elevado na cruz é a ideia fundamental
da segunda parte de João, que muitos chamam “ 0 Livro da Glória” (BGJ v. 1,
p. cxxxviii; v. 2, p. 541-542). Esse livro começa em Jo 13,1: “Antes da festa da
Páscoa, Jesus, tendo conhecido que tinha chegado a hora de passar deste mundo
para o P ai...”. Jo 13,1 e Jo 19,28a têm uma referência temporal que leva ao “Jesus
tendo conhecido” ; o que é conhecido em cada caso tem uma finalidade; contudo,
cerca de seis capítulos de atividade os separam. Parte da solução é que o início da
Ultima Ceia e a morte de Jesus na cruz fazem parte da mesma “hora”. Intermédio
entre eles é Jo 18,4, versículo de transição da ceia para a Paixão-crucificação:
“Assim Jesus, tendo conhecido tudo o que estava para lhe acontecer...”. 0 “Assim”
é implicitamente uma referência temporal, pois é consequente a Jesus ter saído da
ceia para o jardim do outro lado do Cedron e a Judas ter trazido forças reunidas
contra ele. Mais uma vez, Jesus conhece isso e tudo o que se seguirá — descrição
perfeitamente em harmonia com o leitmotiv da Paixão joanina, em que Jesus está
no controle: “ Eu dou minha vida [...] eu a dou por vontade própria” (Jo 10,17-18).
Nos três exemplos, o particípio “ tendo conhecido” chega em um momento crucial
do progresso da ação onde o leitor talvez precise de certeza de que Jesus estava no
controle. 0 particípio está expresso em termos do que aconteceu, mas leva a algo
significativo que está prestes a acontecer.

Se existe progresso temporal, em João ele está não no conhecimento de Jesus,


mas sim no que ocorreu ou está ocorrendo para permitir o relato “já tudo estava
consumado”. 0 “tudo” (panta) é plural neutro e (pelo menos em parte102) tem de
se referir a tudo o que Deus deu para Jesus fazer: “ 0 Pai ama o Filho e entregou
tudo [panta ] em suas mãos” (Jo 3,35; também Jo 5,17.20; 6,37.39). Consideradas
juntas, as frases iniciais de Jo 19,28a (“ Depois disso [...] já tudo estava consumado” )
precisam incluir uma referência ao episódio anterior onde Jesus constitui sua mãe
e o discípulo que ele amava em um novo relacionamento familiar (§ 41, acima, sob

11)2 0 “ em parte” leva em conta a disputa erudita sobre o objeto no fim estar no plano cristológico (Becker)
ou no plano bíblico, ou nos dois planos. Ver o exame cuidadoso em Bergmeier, “TETELESTAF’.

242
§ 42 Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

“A mãe de Jesus e o discípulo amado” ) e fez deles “seus” que estavam habilitados a
se tornar filhos de Deus — desse modo cumprindo o propósito declarado no Prólogo
para a Palavra que se tornou carne (Jo 1,12).103

Contudo, casos anteriores da expressão “Jesus tendo conhecido” levam ao


que se segue. E, assim, precisamos admitir a probabilidade de “tudo estava con­
sumado” (Jo 19,28a) transcender a ação de Jesus no episódio precedente e incluir
a conclusão da Escritura prestes a ser narrada em Jo 19,28b-29. 0 segundo uso de
“consumado” em Jo 19,30a aumenta essa probabilidade, formando uma inclusão
que abrange o que ocorre no meio. Realmente, o verbo “consumar” (telein) ocorre
só aqui (Jo 19,28a.30a) em João; assim, não há nenhum precedente joanino para ele
incluir o cumprimento da Escritura. Contudo, telein é usado em outras passagens
do NT para a morte de Jesus como cumprimento dos profetas (Lc 18,31; 22,37; At
13,29) e certamente em João a crucificação de Jesus faz eco a temas da Escritura.
Jo 3,14 afirmou que, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também é
preciso levantar o Filho do Homem. Essa imagem de “levantar”, aplicada mais duas
vezes ao Filho do Homem em João (Jo 8,28; 12,32-34, com esta última referindo-se
especificamente ao tipo de morte que Jesus iria ter), é a linguagem usada para a sina
do servo sofredor em Is 52,13. Pode-se também afirmar que a linguagem joanina
para Jesus dar sua vida (psyche) em Jo 10,11.15.17-18 origina-se de Is 53,10, com
sua referência ao servo que dá a vida {psyche) como oferenda pelo pecado.104105Em
suma, não há grandes obstáculos para dar a “tudo estava consumado” um conteúdo
duplo, que reporta ao episódio anterior em que Jesus, elevado, começou a atrair
discípulos para si, como prometera (Jo 12,32), e refere-se à conclusão da Escritura
que está prestes a acontecer.

“A fim de que a Escritura se completasse, (ele) diz: “ Tenho sede”


(Jo 19,28b). A interpretação que acabou de ser apresentada põe esta oração de
propósito em estreita relação com a primeira metade do versículo como parte do que
estava consumado.103 O verbo “completar” é teleioun, aplicado à Escritura apenas

10,1 Em Ex 40,33, na conclusão da construção do tabernáculo, lemos: “ Moisés acabou [syntelein] todas as
obras” ; assim, há precedente bíblico para o instrumento escolhido de Deus “acabar” a obra que Deus
lhe deu para fazer.
1(M Em Mc 10,45, o Filho do Homem dá a vida (psyche) em resgate por muitos e assim é provável que esse
emprego da linguagem de Isaías tenha origens pré-evangélicas.
105 Contudo, porque acho que a oração de propósito também aponta para o que se segue, não concordo com
uma tradução que relacione “consumado” com “a fim de que” tão estreitamente, como faz 0 . M. Norlie

243
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

aqui em João, que normalmente emprega pleroun (“cumprir” ) para a Escritura,


como em Jo 12,38; 13,18; 15,25; 17,12; 19,24. Consequentemente, Bergmeier
(“ TETELESTAF , p. 284) e outros perguntam se teleioun não chegou a João de uma
fonte pré-evangélica. Mas julgo que o uso do verbo aqui é deliberadamente joanino.
Primeiro, teleioun vem da mesma raiz de telein e, assim, lexicograficamente ajuda
a mostrar que a conclusão da Escritura faz parte da consumação de todas as coisas
por Jesus. Segundo, teleioun foi usado antes em João, quando Jesus completa a obra
que Deus lhe deu para fazer (Jo 4,34; 5,36; 17,4) e assim deixa claro que o fato de
consumar todas as coisas também inclui sua tarefa cristológica. Terceiro, teleioun
é mais apropriado que pleroun para esta referência específica à Escritura, porque
este é o cumprimento final, o telos, o fim. 106

Nessa interpretação, a frase hina (“a fim de que” ), como é de se esperar na


gramática grega, é regida pela(s) forma(s) verbal(is) precedente(s) (“tendo conhecido
[...] estava consumado” ). Resta a questão de relacionamento dessa oração com o
que vem em seguida. Gramáticas importantes (BDF, § 478; MGNTG, v. 3, p. 344)
citam isso como exemplo de onde a oração final precede a oração principal, de modo
que o cumprimento da Escritura relaciona-se com Jesus dizer “Tenho sede”. Essa
relação adicional, onde hina aponta para a frente e também para trás, é favorecida
pela percepção de que o sujeito “Jesus” e o verbo principal, “diz”, abrangem entre
eles todas as orações que examinamos. A principal objeção a que a oração hina
aponte para a frente é que o que Jesus diz não é citação explícita da Escritura. E
citação implícita? Como a resposta imediata a ela é a oferta de vinho avinagrado,
muitos pensam em SI 66,22: “Para minha sede, eles deram-me vinagre para beber”.
Isso significa que, apesar da expressão “a fim de que a Escritura se completasse,
(Jesus) diz: ‘Tenho sede” ’, o elemento bíblico não está nas palavras de Jesus, mas
na resposta que elas provocam. Entretanto, veremos abaixo dúvidas de que João
apresenta essa oferta como escárnio. Consequentemente, embora uma referência
ao SI 69 possa ter existido em nível pré-evangélico para a oferta de vinho e possa
ainda estar discretamente presente na reação ao “ Tenho sede” de Jesus, precisamos

(Simplified New Testament, Grand Rapids, Zondervan, 1961): “Jesus, conhecendo que tudo havia sido
feito [tetelestai] para cumprir as Escrituras, disse...” .
1,16 Telos ocorre em Jo 13,1, que já mencionamos como paralelo inclusivo a Jo 19,28a: “ Ele agora mostrou
seu amor por eles até o fim” ,

244
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

discutir mais se não há também (ou, na verdade, primordialmente) um elemento


bíblico na própria sede expressa por Jesus.107

Que passagem da Escritura João tinha em mente no “ Tenho sede” ? Digna


de consideração é a possibilidade de João estar familiarizado com a tradição de que
Jesus moribundo rezou na linguagem de SI 22,2 (“ Meu Deus, meu Deus, por que
razão me abandonaste?” ), tradição da qual Marcos se apropriou em seu Evangelho.
Parece que, no início da NP, João conheceu a tradição da oração também apropriada
por Marcos, na qual Jesus pediu ao Pai “que, se é possível, a hora passasse dele” (Mc
14,35). A atribuição deese sentimento a Jesus era irreconciliável com a cristologia
joanina; e, assim, em outra passagem do quarto Evangelho, encontramos uma cena
que constitui um comentário sobre esse sentimento fazendo Jesus recusar-se a rezar
essa oração e substituí-la por outra: “ E o que devo dizer? Pai, salva-me desta hora?
Mas para isto (com este propósito) cheguei a esta hora. Pai, glorifica teu nome” (Jo
12,27-28). Do mesmo modo aqui, o tema de SI 22,2 onde Jesus é abandonado por
Deus é irreconciliável com a cristologia joanina. (Encontramos praticamente um
comentário corretivo sobre ele em outra passagem do quarto Evangelho: “ Nunca
estou sozinho, porque o Pai está comigo” [Jo 16,32].) João o teria substituído
apelando a outro versículo de SI 22, a saber, “ Seca como argila cozida está minha
força [ou garganta]; minha língua penetra em minha garganta; tu me derrubaste
na poeira da morte” (SI 22,16)? Embora sede não seja mencionada no versículo,
está claro que o sofredor a sente a ponto de morte.

Por que João não citou SI 22,16 literalmente, se era isso que ele pretendia?
Uma resposta possível é que o relutante salmista acusa Deus de tê-lo levado a essa
situação, enquanto João considera Jesus o Senhor de seu destino. Talvez Jesus
declarar “ Tenho sede” pouco antes de morrer signifique que ele está deliberada-
mente cumprindo a situação imaginada no Salmo, impressão harmoniosa com sua
afirmação em Jo 10,17-8, segundo a qual ele dá sua vida e ninguém a tira dele. Faz
também Jesus responsável pela reação em termos da oferta de vinho avinagrado
e qualquer cumprimento da Escritura nessa ação (talvez SI 69,22 e, além disso, o
tema do cordeiro pascal — ver adiante). Essa proposta de SI 22,16 como ponto de10

10‘ Jesus na cruz podia na verdade ter sede, mas com certeza João não descreve desinteressadamente uma
sede real. Ao buscar simbolismo, há quem encontre uma conexão com as palavras que Jesus disse à
Samaritana em um meio-dia anterior: “ Dá-me de beber” (Jo 4,6-7). A meu ver, a relação é obscura demais
para ser proveitosa.

245
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

referência de Jo 19,28b é conjetural, mas está em harmonia com os padrões e o


pensamento joaninos. Outros candidatos são sugeridos;108 mas uma referência pri­
mordial ao SI 22, seguida de uma possível referência secundária ao SI 69, significa
que João adaptou a sua cristologia os Salmos nos quais sabemos que outros cristãos
e evangelistas estavam pensando. Ao pano de fundo bíblico, devemos acrescentar
outra nota da cristologia joanina. No início da NP, em vez de Jesus rezar para que
o Pai tire dele o cálice do sofrimento (como em Mc 14,36), João descreveu Jesus
repreendendo Pedro por puxar a espada para resistir ao grupo aprisionador: “ 0
cálice que o Pai me deu — não vou bebê-lo?” (Jo 18,11). “ Tenho sede”, em Jo
19,28b, mostra essa mesma determinação de beber o cálice.

Oferta de vinho avinagrado em hissopo (Jo 19,29). 0 esboço joanino


desta ação difere dos relatos sinóticos109 em alguns aspectos significativos. Em
Marcos/Mateus (com clarezas de estilo variadas), um circunstante judeu enche a
esponja de vinho avinagrado e oferece-a a Jesus em um caniço, escárnio de certa
forma ligado a Jesus chamar Elias. Não ficamos sabendo como ele obteve o vinho
que não raro era associado a soldados romanos, nem como ele tinha um caniço
apropriado à mão. Em Lucas (antes, e não como parte da cena da morte), soldados
romanos vieram para a frente e ofereceram o vinho como escárnio do Rei dos Ju­
deus.110 Os soldados tinham o vinho e também uma lança para erguer aos lábios
de Jesus a esponja cheia dele, mas Lucas se cala a respeito de tudo isso. João se
dá ao trabalho de explicar que estava ali uma jarra cheia de vinho avinagrado. Não
são especificados os “eles” que enchem uma esponja com esse vinho. As últimas
dramatis personae mencionadas foram a mãe de Jesus e o discípulo amado, mas

108 Bomháuser (Death, p. 153), Hoskyns (John, p. 531, Beutler (“Psalm” , p. 54-56) e Witkamp (“Jesus”)
sugerem SI 42,3: “Minha alma [isto é, eu] tem sede de Deus, do Deus vivo” . Outro candidato é SI 63,2:
“Ó Deus (tu és) meu Deus, que eu procuro; por ti minha carne anela e minha alma tem sede”. Não é
possível excluir essas possibilidades, principalmente porque João pode ter tido um senso coletivo de
completar a Escritura. Bampfylde (“John”) argumenta que a Escritura é Zc 14,8 (em combinação com
Ez 47), que reforça Jo 7,38: “Como a Escritura diz: ‘De dentro dele correrão rios de água viva’” (ver
BGJ, v. 1, p. 320-323). Há grande probabilidade de alguma forma desta última proposta ser aplicável
a Jo 19,34 (embora seja discutível que Escritura precisamente fundamenta Jo 7,38), mas muito menor
probabilidade do que é apropriado aqui.
109 0 paralelo está claramente entre João e a segunda oferta em Marcos/Mateus que consistia em oxos. Ver
minha avaliação da estranha opinião de Freed, segundo a qual João apresenta uma interpretação da
primeira oferta de Marcos em BGJ, v. 2, p. 928.
11(1 É interessante que, embora divergindo de muitas maneiras ao descrever sua única oferta de vinho (oxos),
Lucas e João usam o verbo prospherein (“ trazer para a frente” ) para descrever a ação.

246
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

parece que Jo 19,27 encerra o envolvimento da mãe na cena. Consequentemente,


quase todos os comentaristas presumem que os leitores devam pensar nos soldados
romanos que estavam ativos em Jo 19,23-24 e que tinham acesso ao vinho e a Jesus.
Obviamente, só um dos soldados levou o vinho aos lábios de Jesus, de modo que
“eles” inclui os que sugeriram a ideia e ajudaram. Esses militares eram capazes
de escárnio, pois no meio do julgamento, diante de Pilatos, soldados romanos es­
carneceram de Jesus (Jo 19,2-3). Entretanto, na cena mais recente (Jo 19,23-24),
eles estavam simplesmente pondo em prática o tratamento costumeiro do criminoso
sem nenhuma brutalidade excepcional. Em Jo 19,29, nada sugere escárnio; mais
exatamente, parece que os soldados respondem espontaneamente ao pedido de Jesus
de alguma coisa para beber. (Ver acima, sob “Elias e a oferta de vinho avinagrado”,
oxos, “ vinho avinagrado”, como bebida para matar a sede.) Em Jo 19,23-24, João
relatou que os soldados dividiram as roupas de Jesus da maneira como o fizeram
“a fim de que a Escritura fosse cumprida” — indicação de que, embora talvez não
soubessem, eles estavam sob a direção de Jesus, que estava organizando a Paixão
como parte de dar a vida. A reação deles a sua declaração de sede está sob a mesma
organização, como veremos.

0 item verdadeiramente enigmático na imagem joanina é a indicação de


que a esponja embebida de vinho é posta em hissopo. Marcos/Mateus mencionam
um caniço, presumivelmente uma haste comprida e forte. Lucas e o EvPd men­
cionam um instrumento para alcançar a boca de Jesus.111 0 que João quer dizer
com “hissopo” ? Em uma escala mais ampla, não é fácil ter certeza do que a Bíblia
quer dizer com “hissopo”.112 Hissopo é planta da família labiada, relacionada com
hortelã e tomilho; mas o hissopo “verdadeiro”, conhecido dos europeus (Hyssopus
officinalis L.), não cresce na Palestina. As descrições bíblicas do hissopo (hebr.
\jzob; gr. hyssopos) talvez nem sempre se refiram à mesma planta, por exemplo, é
descrita como pequena planta cerrada que cresce em rachaduras das paredes,
planta que lR s 5,13 subentende ser o mais humilde dos arbustos. Quanto ao hissopo
associado com a Páscoa e a aspersão, muitos pensam em Origanum Maru L., ou

111 Parte da diferença entre esses escritos origina-se de uma imagem diferente da altura da cruz. A crux
humilis tinha pouco mais de dois metros de altura. Será que João está pensando na crux sublimis, mais
alta?
112 Já os rabinos discutiam o que a Mixná queria dizer com hissopo; em TalBab Sabbat 109b, os dois can­
didatos propostos são artemísia e manjerona, com preferência pela última.

247
QyftRTo ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

manjerona síria,113 um arbusto que alcança quase um metro de altura, com caule
relativamente grande e ramos com folhas e flores que são altamente absorventes
e, portanto, apropriadas para aspersão (Lv 14,4-7; Nm 19,18). Nada nos relatos
bíblicos sugere que esse hissopo podia aguentar o peso de uma esponja encharcada.
De diversas maneiras, os biblistas procuram evitar essa dificuldade e justificar a
exatidão do relato joanino.114

Influenciados por Mt 27,34 (“vinho [oinos] misturado com fel” ), alguns


escribas e escritores religiosos (Eusébio, Hilário, Nonos e Crisóstomo) entendem
que Jo 19,29 significa que o hissopo estava misturado ao vinho.115 Outra tentativa
antiga de evitar a dificuldade atrai muito mais atenção: um ms. cursivo (476) lê
hyssos (“dardo” ) em vez de hyssopos. (Isso se relaciona com pertica, “mastro, vareta,
cajado longo”, encontrado em alguns mss. da OL.) Sem conhecer esse ms. grego,
J. Camerarius (morto em 1574) sugeriu essa emenda; e uma leitura de dardo foi
aceita por Tischendorf, Blass, Lagrange, Bernard e (com equivalentes) por algumas
tradições (Moffatt, Goodspeed, NEB). Mas há muitas objeções: Galbiati (“ Issopo”, p.
395) afirma que hyssos traduz o latim pilum, arma dos legionários romanos, não das
tropas de coortes à disposição de Pilatos. Quando fala de uma arma semelhante a
lança (Jo 19,34), João usa logche, não hyssos. Embora “dardo” faça mais sentido que
“hissopo”, MTC (p. 253) menciona corretamente que hyssos resultou do fato de um
copista suprimir uma sílaba por causa das letras que iniciam a palavra seguinte.116

1,3 Alguns autores (Galbiati, “ Issopo” , p. 393) diferenciam duas espécies, sendo a manjerona (Origanum
majorana) uma variedade menor da planta, de jardim.
114 Há quem afirme que, depois de algum tempo, o talo da manjerona fica lenhoso; Nestle (“Zum Ysop” )
argumenta que havia uma haste alta de hissopo perto da cruz e menciona uma aldeia da Transjordânia com
o nome de “ Casa de Hissopo” (Josefo, Guerra Vl,iii, 4; #201). Ainda assim, muitos duvidam de que ela
fosse suficientemente firme. Milligan (“ St. John’s” , p. 29) levanta a possibilidade de, tanto nas referências
veterotestamentárias como aqui, um feixe de hissopo ser amarrado a uma vara; contudo, dificilmente
haveria esse instrumento preparado no lugar da crucificação e a espontaneidade da ação não admite a
preparação de um. Outros sugerem que, neste caso, “ hissopo” se refere a Sorgum vulgare L., que alcança
o comprimento de quase dois metros, e argumentam que esse é o caniço de Marcos/Mateus. Esta é apenas
uma de cerca de dezessete outras plantas que foram propostas (ver Wilkinson, “Seven”, p. 77).
n'’ Nestle (“Zum Ysop” , p. 265) lembra que o hissopo servia de remédio e componente alimentar. Plínio
(História Natural xiv,19; #109) descreve uma bebida feita jogando três onças de hissopo da Cilícia em
um galão e meio de vinho. Galbiati (“Issopo” , p. 397-400) afirma que o grego original de João tinha
hissopo e caniço (kalamos), com o hissopo usado para amarrar a esponja ao caniço. Depois, o hissopo
foi entendido erroneamente como condimento.
1lfl Por haplografia, hyssopoperithentes tomou-se hyssoperithentes. Acho improvável a sugestão de G. Schwarz
(“ Hissopo”), de que um aramaico raro e só mais tarde atestado ’ez ('izza'), “ vareta” (= Marcos/Mateus,
“caniço”), foi interpretado erroneamente em João como ’ezôb, “ hissopo” .

248
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte

Solução muito melhor é aceitar o fato de João se referir ao hissopo bíblico,


apesar da implausibilidade física causada pela fragilidade dessa planta. Ao tratar
das ofertas de vinho a Jesus na cruz em Marcos/Mateus, vimos que, na primeira
oferta de vinho, Mateus realçou o componente bíblico (possivelmente implícito em
Marcos), mudando o “vinho com mirra”, de Mt 15,23, para “vinho misturado com
fel” (Mt 27,34), apesar da implausibilidade disso, a fim de fazê-lo combinar com
o primeiro verso de SI 69,22, onde os inimigos dão fel para o justo. Apesar da im­
plausibilidade do hissopo como apoio para a esponja, talvez João esteja efetuando
essa mudança na oferta de vinho com o mesmo propósito de fazer eco à Escritura.117
A mais famosa referência a hissopo está em Ex 12,22, que especifica que hissopo
deve ser usado para aspergir o sangue do cordeiro pascal nas molduras das portas
das casas dos israelitas. Isso é evocado por Hb 9,18-20 para descrever como a
morte de Jesus ratificou uma nova aliança, lembrando àqueles a quem a carta era
dirigida que Moisés usou hissopo para aspergir o sangue de animais a fim de selar
a antiga aliança. Teria João introduzido hissopo na oferta de vinho para mostrar
Jesus cumprindo o papel bíblico do cordeiro pascal? Outras passagens que sugerem
um papel de cordeiro para Jesus na NP joanina são Jo 19,14, onde Jesus é julgado
ao meio-dia, a mesma hora em que começava na área do Templo (§ 35, Episódio
7) a matança de cordeiros para a Páscoa; e Jo 19,33.36, onde o fato de não serem
quebrados os ossos de Jesus cumpre a Escritura que se refere a não quebrar os
ossos do cordeiro pascal (Ex 12,10; § 44, adiante).118 É plausível que a referência
a hissopo em Jo 19,29 tenha o propósito de alertar os leitores para uma inclusão
com a descrição inicial de Jesus por João Batista no Evangelho: “ Vede o Cordeiro
de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29). Nesse caso, o fato de Jesus ter
causado aquela oferta de vinho com seu “ Tenho sede” concluiría a obra que o Pai
lhe dera para fazer e também completaria as Escrituras.

“Assim, quando ele tomou o vinho avinagrado, Jesus disse: ‘Está


consumado’” (Jo 19,30a). A sugestão acima, de que João tinha um entendi­
mento positivo da oferta de vinho avinagrado no hissopo, explica não só que Jesus

117 A leitura de escribas mencionada acima, na qual o vinho avinagrado é misturado com hissopo, é reco­
nhecimento implícito disso.
1,8 Milligan (“St. John’s” , p. 25-26) acrescenta outro aspecto da Páscoa. Ele tenta afirmar que não era vinagre
nem vinho o que foi oferecido a Jesus, e que vinagre era usado no ritual da Páscoa. Na narrativa joanina,
seria possível pensar que os soldados teriam vinagre durante seu período de guarda aos crucificados? A
ligação do vinagre com a Páscoa é altamente duvidosa.

249
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

provocou essa oferta ao dizer “ Tenho sede”, mas também que ele tomou o vinho
ofertado quando o estenderam até sua boca — o que é mencionado só em João. Em
Jo 18,11, Jesus disse que queria beber o cálice que o Pai lhe dera; quando bebe
o vinho oferecido, Jesus completa esse compromisso feito no início da NP. Quando
bebe o vinho da esponja posta em hissopo, Jesus simbolicamente desempenha o
papel bíblico do cordeiro pascal profetizado no início de seu ministério, e assim
termina o compromisso feito quando a Palavra se fez carne.

Em Jo 19,28a, ouvimos acerca de “Jesus tendo conhecido que já tudo


estava consumado” ; agora, em Jo 19,30a, Jesus exprime isso diretamente: “ Está
consumado”.119 E ssas duas passagens de telestai cercam o dito de Jesus: “ Tenho
sede”. Existe um padrão paralelo com o forte grito em Mc 15,34 e 15,37 que cer­
ca o dito de Jesus: “ Meu Deus, meu Deus, por que razão me abandonaste?”. De
outro ponto de vista, embora em Marcos/Mateus e em Lucas as últimas palavras
de Jesus sejam uma citação salmódica, em João o eco salmódico “ Tenho sede” é
o antepenúltimo dito de Jesus, enquanto “ Está consumado” constitui exatamente
as últimas palavras. Como “ Tenho sede” vem sob a rubrica de “ tudo estando
consumado”, podemos pensar nele e em “ Está consumado” como funcionalmente
constituindo um só dito.

Assim consideradas, as últimas palavras joaninas de Jesus na cruz fazem


um contraste interessante com as relatadas por Marcos/Mateus e por Lucas. Em
Marcos/Mateus, a citação de SI 22,2 expressa a forte consciência que Jesus tem de
ter sido abandonado por Deus, que não o assistiu de maneira visível durante a NP.
SI 22 termina com uma nota de vitória, mas Marcos só deixa isso aparecer depois
da morte de Jesus — a morte na cruz é o ponto baixo antes de um triunfo que há
de vir. Embora haja quem pense que Mateus muda o clímax para vitória,120 não
encontro nada no texto que justifique isso. A teologia mateana da morte de Jesus
não difere significativamente da marcana. Em Lucas, a citação de SI 31,6 expressa
a inabalável confiança de Jesus em Deus, que é sempre um Pai amoroso para ele.
Em toda a NP, até quando maltratado, Jesus age de maneira consistente com seu

119 Acho duvidosa a tentativa de Robbins (“ Crucifixion” , p. 39) de encontrar antecedentes bíblicos para
este uso de telein no duplo syntelein de Jó 19,25-27; o sentido das duas passagens é muito diferente.
1211 A respeito do Jesus mateano, Sênior (Passion [...] Matthew, p. 141) escreve: “ E com o grito, um último
ato de integridade: o sagrado sopro de vida do Filho de Deus é devolvido em confiança ao Deus que o
tinha dado” . Para mim, essa é teologia lueana. não mateana, da morte.

250
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

comportamento em vida, curando, perdoando e estendendo a mão aos sofredores.


As primeiras palavras dos lábios de Jesus que Lucas registrou (Lc 2,49) expres­
saram espanto pelo fato de os pais não saberem que ele estava “na casa de meu
Pai”, e em todo o ministério, Jesus rezou com grande frequência. E apropriado que
as últimas palavras registradas sejam uma oração indicando que ele será tomado
pelas mãos do Pai.

Em João, Jesus, que veio de Deus, completou a missão que o Pai lhe deu,
de modo que sua morte é uma decisão deliberada de que agora tudo esteja con­
sumado, tomada por alguém que está no controle. Seu “Tenho sede”, que faz eco
a SI 22,16, provoca a oferta de vinho avinagrado no hissopo, cumprindo não só SI
69,22, mas também o tema do êxodo de aspergir o sangue do cordeiro. Jesus disse
que o testemunho dado em seu nome pelo Pai (Jo 5,37) estava em harmonia com
as Escrituras, que também dão testemunho dele (Jo 5,39). Consequentemente, seu
“Está consumado” refere-se à obra que o Pai lhe deu para fazer e ao cumprimento da
Escritura. Como “ Cordeiro de Deus”, ele tirou o pecado do mundo, desse modo pre­
enchendo e completando o papel do cordeiro pascal na teologia veterotestamentária.

A m orte de Jesus em todos os Evangelhos

Nos Evangelhos, as notícias da morte são extremamente lacônicas:

Mc 15,37: Mas Jesus, tendo soltado [aphienai] um forte grito, expirou


[ekpnein].

Mt 27,50: Mas Jesus, novamente tendo berrado [krazein] com um forte grito,
soltou [aphienai] o espírito.

Lc 23,46: Mas tendo dito isso, ele expirou.

Jo 19,30b: E tendo inclinado a cabeça, ele entregou o espírito.

EvPd 5,19b: E tendo dito isso, ele foi elevado [analambanein ].

Cada notícia da morte consiste em duas partes: primeira, uma oração par-
ticipial introdutória, em quatro dos cinco testemunhos, envolvendo fala; segunda,
um verbo principal descrevendo a morte.

A oração introdutória. Marcos/Mateus têm a emissão de um forte grito,


a segunda vez em cada Evangelho que essa frase foi empregada. Já mencionei que

251
Q uarto « o •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

o “consumado” joanino, também empregado duas vezes (a segunda pelo próprio


Jesus), é funcionalmente paralelo à duplicação em Marcos/Mateus. Lucas e (prova­
velmente de maneira independente) o EvPd decidem-se por uma referência neutra
às palavras anteriores de Jesus.

O “forte grito” marcano sem palavras antes da morte tem sido assunto de
muita especulação. Críticos das fontes se perguntam se essa não seria a reminis-
cência mais antiga, de modo que todas as últimas palavras (citações de Salmos)
atribuídas a Jesus foram adições subsequentes. Médicos discutem se isso é
compatível com asfixia como causa fisiológica da morte de Jesus (Ver esses dois
pontos na a n á l is e abaixo.) Entretanto, há sérias dificuldades ao se apelar à ex­
pressão marcana para decidir essas questões. Vimos acima (sob “ Sentido do grito
mortal de Jesus” ) que “forte grito” é um dos aspectos escatológicos que cercam a
morte de Jesus e, portanto, não é apenas uma reminiscência concreta.121 A dupla
referência a um “forte grito” em Mc 15,34.37, que são também os dois versículos
onde aparece o nome de Jesus, reflete a predileção marcana por duplicação que
já encontramos (cf. as duas referências a “eles crucificam” em Mc 15,24.27). Na
verdade, é apropriado perguntar se, com seu particípio aoristo “tendo soltado um
forte grito”, Marcos imagina um grito independente daquele que ele expressou em
Mc 15,34 (com “ Meu Deus, meu Deus, por que razão me abandonaste?” ). Ou se
depois de uma interrupção (a oferta de vinho e o equívoco com Elias), Marcos não
está simplesmente resumindo assim: “ Mas Jesus, tendo soltado aquele forte grito
[em Mc 15,34], expirou”. Vimos em Mc 15,1 um particípio aoristo marcano, “ tendo
feito sua consulta”, que provavelmente era apenas continuação das deliberações
jurídicas em Mc 14,53-64 depois da interrupção proporcionada pelas negações de
Pedro em Mc 14,66-72. Se para Marcos não houve nenhum segundo forte grito,
mas só uma referência ao primeiro, prescindimos da teorização quanto ao caráter
pré-marcano do grito sem palavras emitido por Jesus antes de morrer.

Mateus (Mt 27,50) acrescenta um palin (“ novamente” ) ao que ele toma de


Marcos122 e, portanto, entendeu claramente que houve um segundo grito. Acho
duvidosa a interpretação disso por Sênior em SPNM, p. 304-305. Apesar da reda­
ção pertinente a ser abandonado em SI 22,2, ele enfatiza a nota de confiança no

121 Naturalmente, um estertor pode ter vindo dos lábios de Jesus antes que ele morresse, mas o “forte grito”
marcano não é simples relato disso.
122 Procedimento incomum, palin ocorre dezessete vezes em Mateus, vinte e oito em Marcos.

252
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

Salmo. Quando clama novamente antes de morrer, Jesus expressa sua “fé confiante
e triunfante”. A introdução mateana de krazein (“ berrar” ) faz eco a sentimentos
como os de SI 22,6 (“A ti gritaram e foram salvos” ) e SI 22,25 (“ Mas quando ele
gritou para Ele, Ele o ouviu” ). Não só discordo dessa interpretação positiva do
significado fundamental do uso de SI 22,2 pelo Jesus mateano, mas afirmo que,
se krazein vem a Mateus do Salmo, é preciso derivá-lo do versículo imediatamente
depois de SI 22,2: “ Eu chamo de dia e tu não respondes” (SI 22,3). A meu ver,
Bieder ( Vorstellung, p. 52) está mais próximo da verdade quando interpreta esse
grito mateano como semelhante ao grito marcano, emergindo não da vitória, mas
do abismo de se sentir abandonado.

Embora esteja seguindo Marcos, Lucas muda “tendo soltado um forte grito”
para “ tendo dito isso”. Como Lucas já usou a expressão “forte grito”, o fato de não
reproduzi-lo uma segunda vez não se origina de aversão por ele. Se, como Mateus,
Lucas interpretou Marcos (provavelmente de maneira errada) com o significado
de um segundo forte grito, talvez ele esteja mais uma vez evitando, de maneira
característica, a duplicação marcana. Ou Lucas pode ter reconhecido que Marcos
apenas se referia ao primeiro grito retomado depois de uma interrupção e achou
a continuação confusa e desnecessária. Como Lucas não tinha vinho nem a inter­
rupção com Elias, ele se referiu a esse grito mais simplesmente: “tendo dito isso”.

Já examinamos o dito joanino de continuação: “ Está consumado”. Em certo


sentido, é o equivalente das orações introdutórias de ditos nos sinóticos que acaba­
mos de examinar. Mas João também tem uma oração participial: “tendo inclinado
a cabeça”. Por si só, poderia ser simplesmente uma imagem de exaustão, mas isso
seria irreconciliável com a insistência joanina em um Jesus que é Senhor de seu
destino. Afinal de contas, esse é um Jesus que não precisou da ajuda de Simão
Cireneu, mas carregou a cruz sozinho até o Gólgota (Jo 19,17). Alguns comentaristas
joaninos (Braun, Loisy) afirmam que inclinar a cabeça é o ato de um homem que vai
dormir e, certamente em João, o sono é imagem possível para a morte (Jo 11,11-14).
Contudo, o sono não se ajusta à imagem dinâmica de Jesus na NP joanina. Esse é o
único Evangelho que mostra de pé, perto da cruz de Jesus, um grupo de seguidores
aos quais ele fala (Jo 19,25-27). “ Inclinando a cabeça” participial modifica a ação
principal de entregar o espírito. Não indicaria a direção da entrega, a saber, aos
que estavam de pé perto da cruz?

253
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Descrição da morte. Nenhum dos evangelistas usa os verbos comuns para


morrer: apothneskein ou teleutan,123 Marcos e Lucas têm a descrição mais simples
e empregam ekpnein (“expirou” ). A luz de sua teoria (que julgo exagerada) de ex­
pulsão de demônios na morte de Jesus, Danker (“ Demonic”, p. 67-68) acredita que
ekpnein significa que Jesus “expulsou o pneuma [espírito demoníaco]” e associa o
forte grito com a saída do demônio. Com certeza Lucas, que aqui repete a redação
de Marcos, não entendeu isso. 0 Jesus lucano, que foi concebido em Maria pela
vinda do Espírito Santo (Lc 1,35), não poderia jamais ter sido habitado por um de­
mônio; foi em Judas que Satanás entrou (Lc 22,3). De maneira menos imaginativa,
Taylor (Mark, p. 596) encontra em ekpnein a sugestão de morte violenta repentina,
presumivelmente porque o interpreta com o significado de forte sopro, em seguida
a um forte grito. Novamente duvido que Lucas, que usa esse verbo, atribua morte
violenta a Jesus. Mais simplesmente, como ekpnein é eufemismo para “morrer” em
Sófocles, Plutarco e Josefo (BAGD, p. 244), do mesmo modo que minha tradução
literal “expirar”, Marcos e Lucas talvez tenham usado o verbo como descrição neutra.

À primeira vista, a redação de Mateus parece enfatizar que Jesus volunta­


riamente “soltou o espírito”. Provavelmente, Mateus tomou aphienai (“soltar” ) do
“soltou um forte grito” marcano (Mc 15,37), onde o verbo reflete uma ação mais
atormentada que voluntária. Mateus pode ter tirado pneuma (“espírito” ) de uma
análise do ekpnein marcano. Na verdade, aphienai (com psyche, “ alm a , vida1'1) é
usado de maneira neutra para morrer na LXX (Gn 35,18; 3 Esdras 4,21), como
é o êxodo ou a saída do espírito (Eclo 38,23; Sb 16,14). Assim, tudo que Mateus
está dizendo é que Jesus soltou a força vital ou o último suspiro, ato resignado que
consistia em não oferecer outra resistência, embora a morte revelada não fosse
exatamente voluntária.

Embora siga de perto a forma mateana desses últimos acontecimentos antes


da morte de Jesus, o EvPd afasta-se significativamente dos Evangelhos canônicos
no verbo usado para descrever a morte: “ele foi elevado” (analambanein , verbo
associado com a ascensão em Atos 1,2.11.22; lTm 3,16; Mc 16,19). Aqui, não há
nenhuma negativa da ressurreição (pois isso será descrito nitidamente em EvPd
9,35-10,42) e nenhum docetismo, como se o verdadeiro Jesus que era apenas

123 Por si só isso não basta para mostrar que todos os evangelistas queriam enfatizar o aspecto voluntário da
morte de Jesus. Taylor (Mark, p. 596) encontra um elemento voluntário em Mateus e João, mas não em
Marcos.

254
§ 42.Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

espiritual fosse embora, deixando a aparência de um corpo (pois, em EvPd 6,21-24,


o corpo de Jesus ainda tem o poder de fazer a terra tremer). Há dois entendimentos
possíveis. O primeiro é que ser “elevado” reflete a teologia cristã primitiva de que a
entrada de Jesus no céu foi diretamente da cruz, embora os que mantivessem esse
ponto de vista também descrevessem Jesus ressuscitando dos mortos e, subsequen­
temente, subindo ao céu — teologia que atesta o entendimento sutil de que, depois
da morte, Jesus saíra do tempo. Como vimos em Lc 23,43, Lucas subentende que
Jesus foi ao paraíso no dia de sua morte, mas ainda descreve subsequentemente
uma ressurreição e duas ascensões (Lc 24,51; At 1,11)! Precisamente porque essa
teologia origina-se do período cristão mais primitivo124 e, em séculos posteriores, uma
sequência cronológica foi entendida muito mais literalmente. Duvido que o EvPd
seja tão sutil com seu analambanein em EvPd 5,19b. Uma segunda explicação é
que, no século II, o verbo “levado” era apenas eufemismo para morrer, assim como
hoje relatamos carinhosamente a morte de pessoas idosas aos netos dizendo que
foram levadas ao céu. Vaganay (Évangile , p. 257) dá exemplos de Irineu, Orígenes
e 0 S sm de “levar para o alto, receber” como equivalente a “morrer”. Na opção por
essa segunda explicação, o EvPd, como Mateus, simplesmente encontrou um modo
mais gracioso de relatar que Jesus morreu.

0 “ele entregou [paradidonai] o espírito” joanino é não raro interpretado à luz


do “ Pai, em tuas mãos eu coloco [todo o: paratithenai] meu espírito”. Sem dúvida,
em teoria essa interpretação é possível. Jesus vai para o Pai; e há certa conveni­
ência em ter a longa série dos que entregam Jesus (§ 10) chegar ao fim com Jesus
se entregando. Contudo, este é o Jesus joanino que já é um com o Pai — ele pode
ir para o Pai, mas pode entregar o espírito para o Pai? Lembrando o que dissemos
a respeito de “ inclinado a cabeça”, não teremos uma sequência se, enquanto vai
para o Pai, Jesus dá seu espírito aos que estão de pé perto da cruz? Em Jo 7,37-39,
Jesus prometeu que, quando fosse glorificado, os que creram nele receberiam o
Espírito. O que seria mais adequado do que os fiéis que não foram embora quando
Jesus foi preso (Jo 18,8), mas se reuniram perto da cruz, serem os primeiros a
recebê-lo? Isso significaria que, embora os outros evangelistas descrevessem Jesus
como exalando ou entregando o espírito ou a força vital, João repensou a tradição e
equiparou “espírito” ao Espírito Santo. Intérpretes joaninos sérios, como Bernard

124 Outro testemunho é Hebreus. Em Hb 9,1 lss, parece que Jesus passa da cruz diretamente para o lugar
santo celeste com seu sangue; mas Hb 13,29 refere-se à ressurreição.

255
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Bultmann e Lagrance, rejeitam isso. Importante objeção é que, alhures no pensa­


mento neotestamentário, somente o Cristo ressuscitado concede o Espírito Santo.
Entretanto, embora não ressuscitado dos mortos, o Jesus de João está elevado na
cruz e já passando deste mundo para o Pai (Jo 13,1; 17,11). Ele já usufrui a mes­
ma posição que nos outros Evangelhos e chega quando ele ressuscita dos mortos.
Outra objeção é que o ato de conceder o Espírito Santo é explicitamente colocado
ao anoitecer do domingo de Páscoa em Jo 20,22. Contudo, é preciso reconhecer
o jeito joanino de combinar apresentações cristãs comumente conhecidas com as
peculiares à memória de sua comunidade. Na cena do domingo de Páscoa em Jo
20,19-23, ele preserva a tradição, compartilhada por outros Evangelhos, de que o
Jesus ressuscitado apareceu aos Doze (ver Jo 20,24), os ancestrais da Igreja maior.
Nessa tradição da Igreja maior, nada é relatado a respeito de seguidores especiais
de Jesus que não eram membros dos Doze, mas estavam de pé perto da cruz —
alguns deles (em especial o discípulo amado) foram os ancestrais da comunidade
joanina. E bem do estilo joanino que, embora sem rejeitar os Doze (em especial
Pedro), João dê prioridade ao discípulo que Jesus amava. De maneira plausível,
então, João quer dizer que, quando inclinou a cabeça para os que estavam perto
da cruz, isto é, fiéis que eram lembrados como antepassados da comunidade joa­
nina, Jesus entregou-lhes o Espírito Santo. Eles foram os primeiros a serem feitos
filhos de Deus pelo Jesus vitorioso, quando ele estava elevado na cruz, mas antes
de ressuscitar dos mortos.

Análise

Quatro assuntos serão examinados aqui: A. Composição desta seção em


Marcos; B. A tradição e/ou historicidade das últimas palavras de Jesus; C. A causa
fisiológica da morte de Jesus; e D. Reescrita imaginosa dos relatos evangélicos de
modo a anular ou negar a crucificação.

A . Teorias de como Mc 15 ,3 3 -3 7 fo i composto

Conforme mencionei no COMENTÁRIO, há muitas características marcanas nesta


seção, o que resulta na série costumeira de teorias de composição, dependendo
de se supor ou não que uma característica marcana subentende criação marcana.
Boismard (Synopse, v. 2, p. 426) acha que o texto mais primitivo era muito mais

256
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Ú ltim os acontecimentos, m orte

sucinto: na nona hora, Jesus, tendo soltado um forte grito, expirou (Mc 15,34a.37).
Como alhures, Pesch (Markus, v. 2, p. 491) atribui a íntegra de Mc 15,33-39 à NP
pré-marcana, e a divide (como sempre) em três subseções (33,34-36,37-39). Para
Bultmann (BHST, p. 273-274), a seção toda é secundária e “fortemente adulterada
pela lenda”, com a possível exceção do v. 37. Taylor (Mark, p. 651) considera os vv.
34-37 parte da narrativa original (A), com o v. 33 como matéria B. Muitos biblistas
consideram os vv. 34 e 37 (Jesus falando ou agindo com um forte grito) duplicata,
só um dos quais é original, ou talvez como moldura marcana para cercar material
mais primitivo nos vv. 35-36. Matera (Kingship, p. 57) considera os vv. 35-36,
parênteses cercados pelos vv. 34 e 37, o terceiro escárnio relatado em Marcos, em
seguida aos feitos pelos soldados romanos no pretório (Mc 15,16-20a) e pelos três
grupos que vieram ao Gólgota (vv. 27-32). (Tenho de comentar que o escárnio em
Mc 15,36 é de intensidade muito menor que os dois escárnios precedentes, e não
completamente paralelo.) Dentro de Mc 15,35-36, Matera encontra outros parênteses
pela referência a Elias nos dois versículos. (Novamente comento que a primeira
referência a Elias está no fim do v. 35 e, portanto, certamente não lidamos com
um início/conclusão. Além disso, as referências a Elias não são repetitivas, como
o são as referências a “forte grito”, mas estão em uma descrição progressiva. São
erroneamente descritas como parênteses.) Embora eu ache a estrutura de Matera
forçada, acho-o mais plausível quando sugere que Marcos encontrou o uso do SI 22
já em voga,125 e elaborou esse uso em uma narrativa coerente. Parece que Lührmann
(Markus, p. 263) considera antiga grande parte do material na passagem, embora
fosse Marcos quem estabeleceu a relação entre Elias e o resto.

Aqui, como anteriormente, duvido que tenhamos metodologia adequada para


discernir com precisão fontes pré-marcanas reescritas por Marcos a partir de sua
própria criação. Já no COMENTÁRIO sugeri um roteiro mais plausível que envolvia
todos os Evangelhos e, por conveniência, vou agora resumi-lo.

Duas tradições independentes - a saber, a) o último grito de Jesus, com­


binado com a oferta de vinho avinagrado; b) escárnio a respeito de Elias - foram
unidas por Marcos, ou na tradição pré-marcana, para nos dar a cena que agora
existe em Marcos/Mateus — união que produziu narrativa um tanto confusa, na

123 Contudo, na p. 60 ele fala do uso primitivo do Salmo na “ apologética” da Paixão. Mais plausível seria que
o uso primitivo refletisse uma tentativa pelos cristãos de reconciliar suas crenças com as expectativas que
a Escritura lhes ensinou — não, a princípio, apologética contra os outros, mas para a autocompreensão.

257
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

qual o tema de Elias é estranhamente relacionado ao grito de Jesus e ao vinho.


A cena de Marcos/Mateus está cheia de reminiscências bíblicas: as palavras do
grito de Jesus são citação de SI 22,2, onde o justo dirigiu seu lamento a Deus;
“vinho avinagrado” é a mesma palavra (oxos) que SI 69,22 usou para a bebida de
vinagre oferecida pelos inimigos ao justo para escarnecer dele; a vinda de Elias
é expectativa escatológica que amplia as palavras do último dos profetas em Ml
3,23. O autor do EvPd conhecia a tradição que afirmava ter Jesus citado SI 22,2,
mas apresenta uma tradução diferente do nome divino. Como não parece que a
tradução do EvPd é correção teológica de Mateus ou de Marcos (pois o sentido não
é muito diferente), talvez ela represente outra forma da tradição primitiva à qual
Marcos também recorreu.

Parece que, em Lucas, o relato é uma tentativa de aperfeiçoar o relato mar-


cano, eliminando o elemento de Elias, mudando a escarnecedora oferta de vinho
avinagrado para o cenário dos três escárnios de Jesus na cruz narrados antes (§
41), pondo a redação do grito de Jesus em harmonia com a teologia lucana da Pai­
xão. Consequentemente, o Jesus lucano não usa a linguagem de ser abandonado
por Deus, da LX X de SI 22,2, e sim a linguagem de se entregar às mãos de Deus
da LX X de SI 31,6. João não demonstra nenhum conhecimento do tema de Elias,
mas talvez conhecesse a tradição de SI 22,2, mais a do vinho avinagrado (em uma
forma pré-marcana?) — parece que seu relato onde Jesus disse “ Eu nunca estou
sozinho, porque o Pai está sempre comigo” (Jo 16,32) é um comentário discordante
a respeito do tema de Jesus se sentir abandonado por Deus. João faz eco a SI 22,16;
69,22 e Ex 12,22 na manifestação de sede por Jesus e na reação a seu lamento com
a oferta de vinho avinagrado. (De todos os relatos evangélicos, esta é a narrativa
mais suave.) Consequentemente, as últimas palavras de Jesus, “ Está consumado”,
além de manifestar a entrega plenamente controlada de sua vida, assinalam o com­
pleto cumprimento da Escritura. Esse episódio altamente aprimorado demonstra
ser composição joanina.

B. As últim as palavras de Jesus: tradição mais antiga e/ou historicidade

Há três relatos evangélicos diferentes das últimas palavras de Jesus (Marcos/


Mateus, Lucas, João); desses, quando muito só um representa a mais antiga tra­
dição discernível. Parece que todos os evangelistas sabiam da citação de Jesus de
SI 22,2 (embora dois não a tenham reproduzido) e a forma aramaica transliterada

258
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Ú ltim os acontecimentos, morte

em Marcos é defendida como mais antiga que a forma em Mateus. Não raro, então,
afirma-se que “ Eloi , Eloi, lam a sabachthani?" de Marcos é a mais antiga tradição
cristã reconhecível do último grito de Jesus e até que Jesus o pronunciou. Não se
pode ter por certa nenhuma dessas duas afirmações, por isso a questão precisa ser
examinada. Embora eu vá trabalhar com a hipótese de desenvolvimento evangélico
resumida nos dois parágrafos anteriores, muitos dos pontos a serem examinados
abaixo têm validade, mesmo que a hipótese seja rejeitada.

A citação de SI 22,2 pode ser a mais antiga tradição relatada nos Evangelhos;
mas foi essa citação produto da reflexão cristã sobre a crucificação ou se originou
do próprio Jesus? Não é inconcebível que, historicamente, um Jesus torturado pelos
sofrimentos expressasse seu desespero usando a oração de um Salmo que descrevia
a condição desesperançada de um justo sofredor. Como a oração citada por Jesus
era o verso inicial do Salmo (SI 22,2), os cristãos seguiram a orientação de Jesus
procurando passagens do Salmo que interpretassem os outros acontecimentos da
crucificação (ver APÊNDICE VII, B2).

Vejamos os argumentos favoráveis e contrários à historicidade.126 E comum


julgar que o fato de ser a oração lembrada em aramaico mostra que ela se origina
de Jesus, do mesmo jeito que Abba é quase sempre tratado como ipsissimum verbum
de Jesus. Contudo, uma comunidade cristã de fala aramaica realmente compôs
orações em aramaico, por exemplo, Maranatha (ICor 16,22). Há quem rejeite essa
observação, alegando que não há indícios de que o NT atribuiu a Jesus essas orações
criadas por cristãos. Todavia, a esse respeito, At 2,27 justifica o estudo. Embora
apareça em um sermão por Pedro, a citação de SI 16,10 está expressa na primeira
pessoa, linguagem essa que subentende ser Jesus quem fala: “ Não abandonarás
[egkataleipein, como em SI 22,2] minha alma ao Hades, nem permitirás que teu
santo conheça a decomposição”. 0 pessimismo de “ Meu Deus, meu Deus, por que
razão me abandonaste?” é apresentado como outro argumento pela historicidade.
Nenhum cristão ousaria pôr um grito tão desesperado nos lábios do Salvador! En­
tretanto, esse grito não é expressão de desespero no sentido estrito (ver “ Sentido do
grito mortal de Jesus” ) e os cristãos primitivos certamente não julgariam irreverente

126 Zilonka (Mark, p. 46-47) relaciona seis argumentos que apoiam a historicidade da citação de SI 22,2 em
Mc 15,34 como palavras reais de Jesus, argumentos propostos por biblistas católicos romanos do início
do século XX; mais adiante (p. 169), ele lembra que, na década de 1970, nenhum dos seis sobrevivera
ao impacto da crítica histórica moderna.

259
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

ou indigno descrever Jesus rezando um Salmo. O argumento de que os sentimentos


de SI 22,2 fazem sentido quando Jesus enfrenta a morte apoia a possibilidade de
Jesus ter citado o Salmo; entretanto, só raramente os evangelistas descrevem os
sentimentos íntimos de Jesus.127

Se a tradição original a respeito das últimas palavras de Jesus não tinha SI


22,2, o que teria feito Marcos ou um cristão pré-marcano escolher essa passagem
para ser inserida? Se Marcos a inseriu, é possível apresentar como razão a concor­
dância dessa citação do Salmo com a visão marcana pessimista da Paixão, pois SI
22,2 constitui um comentário perceptivo do fato de Deus não ter interferido para
salvar da morte o que lhe era fiel. Se um cristão pré-marcano a inseriu, como desde
o começo era preceito que Jesus morreu “conforme as Escrituras” (ICor 15,3), é
possível sugerir que o SI 22 inteiro foi uma das primeiras Escrituras a se unir a
aspectos da Paixão; então, o uso de SI 22,2 seria simplesmente mais um passo.128
Um argumento contra atribuir a citação de SI 22,2 ao próprio Jesus é o fato de outros
evangelistas (Lucas e João) sentirem-se à vontade para mudar as últimas palavras
de Jesus (que deviam ter tido solenidade especial) para outras citações ou alusões
a Salmos. Essa substituição seria mais fácil se fosse reconhecido que a citação de
SI 22,2 se originou da reflexão cristã sobre a Paixão, comparada a qual a citação
de outro Salmo teria o mesmo direito de ser considerada apropriada. Quando os
argumentos favoráveis e contrários são pesados, ninguém pode dizer que o caso pró
ilEloi, Eloi, lam a sabachthani? ” está comprovado como as ipsissima verba de Jesus.

Se é possível que a citação de SI 22,2 se originasse da reflexão cristã sobre


a morte de Jesus, que outras possibilidades existem para as últimas palavras de
Jesus via tradição mais antiga e/ou historicidade? Logicamente, parece haver três:
1. Jesus permaneceu calado; 2. Jesus soltou um forte grito sem palavras; 3. Jesus
pronunciou algumas palavras básicas. Examinemos essas possibilidades uma por
uma.

127 Floris (“Abandon” , p. 284) afirma que o Salmo 22 reflete não a crise de Jesus quando ele enfrentou a
morte, mas a crise de seus discípulos quando procuraram entender como ele podería ter tido tal morte
no plano de Deus.
128 Tem sido chamada a atenção para Midraxe Tehillim sobre SI 22,2 (seção 6). Ele declara que nos três dias
do jejum decretado em Est 4,16 (jejum que Midraxe Rabbah sobre a passagem de Ester associa com a
Páscoa), devia-se dizer no primeiro dia: “Meu Deus” , no segundo dia: “ Meu Deus,” e no terceiro dia:
“ Por que me abandonaste?” . Mas esse é um testemunho tardio demais para nos permitir apelar a esse
costume a fim de explicar por que um cristão primitivo colocaria SI 22,2 nos lábios de Jesus.

260
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte

1. S ilên cio . Em Marcos/Mateus, desde a hora em que foi crucificado até


agora, Jesus não disse nada. Claramente, então, não é inconcebível que ele morresse
sem dizer nada. (Na verdade, ao não falar, Jesus poderia se ver como cumpridor da
descrição do servo sofredor em Is 53,7, que não abriu a boca enquanto era levado
para a matança.) Nesse caso, os três relatos evangélicos das últimas palavras de
Jesus representam o uso pelos cristãos dos Salmos, quando eles refletiam sobre
qual devia ter sido a atitude de Jesus. Embora não ilógica, essa proposição não
tem apoio direto nos textos evangélicos, pois Jesus fala em voz alta em todos eles.

2 . G rito sem palav ras . Que Jesus soltou um forte grito está atestado de várias
maneiras pelos três sinóticos e o EvPd. Em todos esses testemunhos, palavras são
então produzidas para o grito; mas, em Mc 15,37 e Mt 27,50, há uma segunda refe­
rência (em continuação?) a um “forte grito”, desta vez sem palavras. E um grito sem
palavras a memória mais antiga, de modo que as palavras do Salmo relatadas nos
Evangelhos representam suplementação cristã mais tardia? Entre os que defendem
uma forma dessa possibilidade estão Bacon, Bertram, Boman, Bultmann, Hauck,
Loisy, Pallis, Strathmann, Wansbrough e J. Weiss. Ao contrário de 1 acima, aqui
uma subsequente produção de palavras estaria em harmonia com o que se julga ter
sido original, não contra a direção dele. Encontra-se apoio para a proposição em Hb
5,7 de que faz Jesus proferir “forte clamor [...] àquele que tem o poder de salvá-lo
da morte”, mas não relata nenhuma palavra nesse clamor. Rejeito a afirmação de
que um homem crucificado agonizante não teria forças para pronunciar palavras,
mesmo que pudesse emitir um estertor ou arquejo — argumento às vezes usado
para apoiar essa proposição.129 Ocasionalmente, veem-se outros que alegam ser a
atribuição de um berro ou grito mortal a Jesus menos teológica que fazê-lo recitar
uma passagem de Salmo e, portanto, talvez seja mais histórica. Isso deixa passar o
fato relatado no COMENTÁRIO, segundo o qual “ um forte grito” tem tom apocalíptico
e, assim, podia ser um dos sinais dos últimos tempos (como escuridão, rasgamento
do véu do santuário, terremoto, túmulos abertos) pelos quais os cristãos expunham
a significância da morte de Jesus (Schützeichel, “ Todesschrei” ).

3 . P ala vra ( s ) bá sica ( s ). Trabalhando a partir das palavras de Jesus relatadas


nos Evangelhos, biblistas formularam hipóteses de um dito ou grito mais básico. A

120 Contudo, o fato de crucificados conseguirem falar e falarem antes de morrer (sob “ Sentido do grito mortal
de Jesus” , acima) nada faz para apoiar sugestões extravagantes na direção contrária, por exemplo, que
Jesus na cruz recitou todo o Salmo 22! (Holst, “Cry” , p. 287).

261
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

tese de Sahlin (“ Verstândnis” ) atraiu atenção considerável, por exemplo, Boman,


Léon-Dufour. Ele sugeriu que Jesus disse em hebraico: uE lt a U a ” (“ Tu és meu
Deus” ), encontrado quatro vezes no saltério (SI 22,11; 63,2; 118,28; 140,7; também
Is 44 ,17).130 Os circunstantes pensaram que ele estava falando aramaico, “ Eltya
ta ” (“ Elias, vem” ). Palavras usadas para reproduzir e traduzir o hebraico falado
foram confundidas nas traduções gregas subsequentes, o que levou à citação de
SI 22,2.131 Uma lembrança do original é vista no fato de Marcos/Mateus escolhe­
rem o versículo de um Salmo no qual u,Eli ,attam aparecia.132 Sahlin prossegue e
teoriza que o próprio Jesus estava pensando em SI 118,28: “ Tu és meu Deus e eu
te darei graças”, isto é, a conclusão dos Salmos de Hallel iniciada na Última Ceia
(Mc 14,26).133 Sem as complexidades envolvidas nas idéias de Sahlin, há quem
imagine Jesus simplesmente gritando em voz alta Eli ” (“ Meu Deus” ), em hebraico,
de modo que daí se originaram a expansão para SI 22,2 e também o equívoco de
Elias (ver Boman, “ Letzte”, p. 112). A mudança de “ E li ’a tt a íl para SI 22,2 pode
ter sido facilitada por uma relação comprovada do tema; de fato, o midraxe Mekilta
a respeito de Ex 15,2 (Shirata 3), midraxe escrito relativamente cedo na era cristã,
diz que E li, “ Meu Deus”, denota a regra de compaixão ou misericórdia e cita SI
22.2 (“ Meu Deus, meu Deus, com que propósito me abandonaste?” ). A vantagem de
ambas as formas da proposição é que elas remontam a Jesus ou à tradição evangélica
mais antiga. Além disso, a proposição concorda com todos os Evangelhos ao fazer
Jesus dizer palavras antes de morrer. Se não se aceita que o próprio Jesus citou SI
22.2 antes de morrer (possibilidade que não deve ser desprezada), essa proposição
parece a melhor alternativa. Mais que isso não se pode reivindicar.

130 Que essa oração não seria inapropriada ao enfrentar a morte é afirmado por Léon-Dufour (“ Demier” , p.
678), que chama a atenção para a invocação do nome de Deus na Shema, a confissão piedosa judaica
recitada com mais frequência (“Ouvi, Ó Israel, o Senhor nosso Deus [’Elohênu], o Senhor é único”), e
para a tradição mais tardia de que, quando morreu, Aqiba disse: “ O Senhor é único” .
131 Uma transliteração marcana (ou pré-marcana) primitiva para o grego dizia Eli atha, traduzida para o
grego como theos mou ei sy (“Tu és meu Deus”) — o que se reflete na presença de só um theos mou no
Códice Vaticano. O ei sy se tomou eis ti, e o enigmático “ Meu Deus, por que razão” foi interpretado como
parte de SI 22,2 e completado na linguagem desse Salmo.
132 Alguns biblistas afirmam que João também fez isso, pois ligam “Tenho sede” com SI 63,2: “ Ó Deus, meu
Deus [...] de ti minha alma tem sede” .
133 Ver em § 5, dúvidas quanto ao uso na ceia da Páscoa dos Salmos de Hallel no início do século I, quando
Jesus morreu e/ou se Marcos esperava ou não que os leitores estivessem a par de tal costume.

262
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

C. A causa fisiológica da m orte de Jesus

A crucificação não perfura nenhum órgão vital, de modo que é inevitável


especular que fator físico ou orgânico fez com que Jesus morresse. As descrições
evangélicas extremamente sumárias da morte de Jesus pouco ajudam a responder
essa pergunta. Marcos e Lucas dizem evasivamente que ele expirou; é provável
que Mateus não queira dizer mais nada. João enfatiza o controle de Jesus sobre sua
morte quando ele entrega o espírito. O EvPd realça a intervenção de Deus, pois a
voz passiva (“Jesus foi elevado” ) é uma circunlocução para a atividade divina —
ambas são claramente descrições teológicas. No início de § 18, mencionei que os
especialistas na lei (advogados, professores de direito etc.) produziram muitos estu­
dos do julgamento de Jesus com a pressuposição de que, a partir de sua profissão,
podiam lançar luz sobre a legalidade dos procedimentos. Quase sempre escreveram
sem consciência de que os relatos neotestamentários não podiam ser tratados como
se fossem registros minuciosos do tribunal. Não nos surpreende que muitos dos
especialistas em medicina (médicos, professores de anatomia etc.) tenham escrito
para explicar a causa da morte de Jesus, usando os relatos evangélicos como se
os detalhes ali preservados fossem observações minuciosas que possibilitavam
um diagnóstico. Por exemplo, eles observaram que Jesus pôde soltar um ou mais
fortes gritos (Marcos/Mateus, Lucas, EvPd), que ele teve sede (João), que morreu
surpreendentemente logo (Mc 15,44-45; Jo 19,33) e que depois da morte, sangue e
água jorraram de um ferimento com lança em seu lado. Muitas vezes, os escritores
médicos expressaram suas conclusões sem reconhecer que todos ou alguns desses
aspectos representam um simbolismo teológico, não uma descrição histórica.134

Os escritores cristãos primitivos nem sempre se preocuparam em especular


a respeito de uma causa física, porque consideravam a morte milagrosa e comple­
tamente sob o controle de Jesus, que não tinha de morrer. Tertuliano (Apologia
xxi,19; CC 1,126) explica que Jesus, “com uma palavra que expressava sua vontade,

134 No artigo “Autopsy” , que tem o subtítulo “Biblical Illiteracy Among Medicai Doctors” , D. E. Smith critica
de maneira devastadora Edwards et alli (um pastor metodista e dois profissionais da Clínica Mayo) pela
falta de crítica manifestada no artigo que escreveram em 1986: “On the Physical Death of Jesus” . Ele
pergunta (p. 14) como uma publicação científica, o Journal of the American Medicai Association pôde
publicar um trabalho que a imensa maioria de biblistas avaliaria imediatamente como ‘‘não científico” e
“pseudointelectual” . Smith é severo, mas expõe um problema real; ver as notas 138,139 e 141. Contudo,
as diretrizes de Smith (p. 4-5) quanto ao que é histórico (as decisões do Seminário de Jesus e a crítica de
P. Winter de que o que está descrito nos Evangelhos a respeito dos procedimentos legais judaicos não
corresponde ao ‘‘procedimento judaico normal”) precisam de mais profissionalismo do lado bíblico.

263
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

dispensou seu espírito, antecipando o trabalho dos algozes”. Recentemente, já no


século XX, na maioria das vezes as explicações fisiológicas têm sido combinadas
com fatores cristológicos e espirituais.

Um levantamento de explicações médicas por Wilkinson (“ Incident”, p. 154)


relata que a primeira discussão da morte de Jesus como questão fisiológica foi a de
F. Grunner, em 1805. Em 1847, J. C. Stroud, M.D., em The Physical Cause o f the
Death o f Christ (ed. rev. 1871), sugeriu o que se tornou tese clássica, isto é, a ruptura
violenta do coração de Jesus, dando aos pregadores a oportunidade de ressaltar
que, literalmente, o Senhor morreu de coração partido, causado por sua visão da
ingratidão humana, do pecado etc. Sem depreciar a morte pelo consentimento de
Jesus, Stroud teorizou que, depois de uma hemorragia ocorrer através da parede
do coração para dentro do saco pericárdico, houve uma coagulação sanguínea que
o separou do soro. A estocada da lança abriu o saco pericárdico, soltando as duas
substâncias que apareceram como sangue e água. A tese de Stroud foi apoiada pelo
Dr. W. Hanna, The Last Days o f Our Lord’s Passion, 1868, e ainda era defendida
por A. R. Simpson (“ Broken” ) em 1911. Entretanto, gradativamente, novas experi­
ências médicas revelaram que rupturas cardíacas não ocorrem espontaneamente
nem sob pressão de agonia mental, mas são o resultado de um estado anteriormente
precário do músculo cardíaco. Além disso, a coagulação de sangue no pericárdio
teria exigido mais tempo depois da morte do que o relatório evangélico adota. Os
artigos de Merrins e Sharpe representam refutações médicas da tese de coração
partido defendida por Stroud, embora a seu modo eles preservem o elemento
do sobrenatural e volitivo.135 A tese seguinte que se tornou clássica identificou
a causa da morte como sufocação. Seu proponente mais famoso foi o cirurgião
francês R Barbet.136 Seu estudo da crucificação realizado em 1950 apoiou-se em
sua pesquisa na década de 1930 e na pesquisa anterior, na década de 1920, pelo
Dr. LeBec; mas ele também se apoiou fortemente no Santo Sudário como repre­
sentação exata do cadáver do Cristo crucificado. Havia sido feito experimento em
soldados austro-alemães da Primeira Grande Guerra que foram pendurados vivos

1,5 As respostas de Young a Sharpe e de Southerland a Sharpe e Young mostram a intensidade do debate
no início da década de 1930. Vê-se uma discussão médica rejeitada porque o médico não fez justiça à
declaração joanina de que Jesus entregou seu espírito.
136 Muito antes, S. Haughton, que era ministro e médico, afirmou (em F. C. Cook, org., The Speakers Com-
mentary on the New Testament, London, Murray, 1881, v. 4, p. 349-350) que Jesus morreu de asfixia e
também da ruptura do coração (Stroud).

264
§ 42, Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

pelas duas mãos em um poste. Caso fossem traduzidos os resultados horripilantes


da crucificação, o quadro a seguir seria plausível. Presa à cruz pelos pulsos e os
tornozelos, a vítima mudaria o peso dos braços para as pernas.137 Se não houvesse
apoio para as nádegas e nenhum suporte para os pés, o peso morto do corpo logo
faria o crucificado pender exausto. Os músculos intercostais que facilitam o ato de
inalar ficariam fracos demais para funcionar, de modo que os pulmões, incapazes
de se esvaziar, ficariam cheios de dióxido de carbono. A morte resultaria de asfi­
xia. Barbet (Doctor, p. 119-120) afirmou que, após a morte, uma lança horizontal
espetada do lado direito penetrou em Jesus acima da quinta costela e perfurou o
quinto espaço intercostal, penetrando na aurícula direita do coração (que sempre
tem sangue) e no pericárdio (cujo soro parecia-se com água). Aspectos da teoria
de asfixia foram considerados confirmados pelo experimento nazista em Dachau
e o enfoque foi reiterado na década de 1960 por outro médico francês, J. Bréhant.
Uma variação do mesmo enfoque foi defendida em 1986 pelo Dr. W. D. Edwards,
da clínica Mayo: o principal efeito fisiopatológico da crucificação era a interferência
na respiração e, por conseguinte, a asfixia.138 Gilly (Passion , p. 120-121) atribuiu
a morte de Jesus à sufocação progressiva quando, sob o efeito de todo o sofrimento
precedente, os músculos respiratórios foram tetanizados.139

Contudo, foram feitas muitas outras proposições.140 Quanto à lança espe­


tada, Primrose (“ Surgeon” ) argumentou que o açoitamento frontal prejudicava o
abdômen, de modo que, quando o estômago foi espetado, saíram sangue e água.
Lossen (“ Blur” ) argumentou que a lança atingiu não só as artérias de Jesus entre
as costelas da terceira área intercostal (produzindo sangue), mas também o pulmão
(do qual saiu o soro de aparência aquosa). Em uma série de artigos (especialmen­

1.7 Nessa teoria, quebrar as penas apressava a morte, porque então elas não podiam ser usadas para erguer
o peso do corpo.
1.8 Edwards (p. 1461) não exclui a desidratação e a parada cardíaca congestiva como possíveis fatores
colaboradores e na p. 1463, ele diz: “Continua pendente se Jesus morreu de ruptura cardíaca ou de in­
suficiência cardiorrespiratória” . E provável que a água que fluiu da ferida feita pela lança correspondesse
a fluido seroso pleural e pericárdico (p. 1463). Assim, de algumas maneiras, apesar de sua tendência
principal para a asfixia, o artigo combina muitas das soluções do último século, inclusive algumas que
muitos consideravam felizmente descartadas.
1M A. M. Dubarle (EspVie 96, #5, Jan. 30, 1986, p. 60-62), em crítica mordaz, tem esperança de que, em
seu exercício da medicina, Gilly não cometa os numerosos erros que manifesta em todas as outras áreas
desse livro.
140 Resumos dessas proposições encontram-se em Wilkinson (“Physical” ) e Blinzler (Prozess, p. 381-384).

265
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

te “ Wound”, 1957), Sava, médico do Brooklyn, afirmou que os experimentos de


Barbet foram invalidados porque ele trabalhou com cadáveres que estavam mortos
havia mais de vinte e quatro horas. O fluido pericárdico teria de passar através do
pulmão para chegar à superfície do tórax, e um cadáver recente não teria exibido o
túnel vazio imaginado por Barbet para essa passagem. Além do mais, no pericárdio
só caberíam seis ou sete centímetros cúbicos de fluido. Na teoria do próprio Sava
(“ Wounds”, 1954), o açoitamento provocava uma hemorragia na cavidade pleural
entre as costelas e os pulmões que produzia fluido que acabava por se dividir em
partes serosas claras e partes vermelho-escuras.

Quanto à causa da morte, Edwards combinou asfixia e choque hipovolêmico;141


na verdade, a insuficiência de sangue nas diversas partes do corpo entra em várias
teorias complexas, por exemplo, Marcozzi (“ Osservazioni” ) propôs sufocação rela­
cionada com insuficiência circulatória. Às vezes sugerem que o choque provocou
dilatação aguda do estômago, de modo que ele continha fluido aquoso escuro.
Razões psicológicas e físicas teriam produzido esse choque, por exemplo, a agonia
espiritual no Getsêmani, exposição durante três a seis horas na cruz e a perda de
sangue no açoitamento.142 Na suposição de que os relatos evangélicos dão história
detalhada, há quem tenha tentado refutar essa sugestão, indicando o vigor de Jesus
antes de morrer e seu forte grito. Contudo, E. Sons (Benedictine Monthly 33,1957,
p. 101-106) responde que um tipo de choque visto na Segunda Grande Guerra,
resultante de castigo físico severo, deixava plena consciência até a morte. Foi pro­
posto um coágulo resultante do dano aos vasos sanguíneos durante o açoitamento.

A meu ver, o principal defeito da maioria dos estudos que relatei até aqui é
eles terem sido escritos por médicos que não se ativeram a sua profissão e deixaram
um entendimento literalístico dos relatos evangélicos influenciar suas opiniões a
respeito da causa física da morte de Jesus. Não há indícios de que os evangelistas
sabiam alguma coisa sobre o assunto, e a discussão da causa da morte podería ser
mais bem conduzida simplesmente empregando o melhor do conhecimento médico

141 Seu artigo (“On the Physical”), escrito em associação com outros, dá com grande convicção, mas notável
falta de senso crítico, uma combinação de detalhes dos relatos bíblicos, a partir do Santo Sudário e de
manuais que tratam de práticas de crucificação. Seria preciso fazer advertências em quase todas as
direções.
142 Wilkinson (“Physical” , p. 104-105) explica isso muito bem. Bali & Leese (“ Physical” , p. 8) afirmam: “A
agonia mental, associada a choque oligoêmico produzido por lesão, podería ter sido combinação letal,
produzindo a morte repentina de Cristo por síncope cardíaca” .

266
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte

para determinar como é provável que qualquer pessoa crucificada morresse (e não
citando um único detalhe bíblico como confirmação). O estudo recente por Zugibe
(“ Two” ), examinador médico e patologista, aproxima-se dessa meta. Ele contesta
a teoria de asfixia de LeBec, Barbet e outros, afirmando que os experimentos aos
quais eles recorreram consistiam em homens pendurados com as mãos quase
diretamente acima da cabeça. Ele conduziu experimentos com voluntários cujos
braços, em crucificação simulada, foram estendidos em um ângulo de 60° ou 70°
em comparação ao tronco do corpo, o que não resultou nenhuma asfixia. Ele afirma
que o choque causado pela desidratação e pela perda de sangue é a única explica­
ção médica plausível para a morte de Jesus crucificado. Obviamente, os diversos
comentaristas médicos não chegaram a nenhuma certeza e, embora experimentos
em crucificação real talvez sejam o único meio de alcançar uma probabilidade mais
alta, acreditamos que esse barbarismo esteja agora seguramente restrito ao passado.

D. Reescrito imaginoso que anula a crucificação

Apesar das imperfeições, os estudos médicos descritos acima levam a sério


o testemunho evangélico unânime de que Jesus morreu na cruz. Hesitante, mas
com esperança de que seja de ajuda, decidi apresentar um levantamento sucinto de
teorias que reescrevem a apresentação evangélica em uma hipótese radicalmente
diferente. É uma compreensão embaraçosa da natureza humana que, quanto mais
fantástica a hipótese, mais sensacional é o estímulo que recebe e mais intenso o
interesse passageiro que atrai. Pessoas que jamais se dariam ao trabalho de ler
uma análise responsável das tradições a respeito de como Jesus foi crucificado, foi
sepultado e ressuscitou dos mortos ficam fascinadas pelo relato de alguma “nova
compreensão” no sentido de que ele não foi crucificado nem morreu, em especial
se seu modo de vida subsequente incluir fugir com Maria Madalena para a índia.
Alimentadas ou não por um racionalismo que busca desmascarar o milagroso ou
pela fascinação do que é insólito, muitas vezes tais idéias modernas reproduzem
antigas explicações que rejeitam a morte de Jesus na cruz, modificando-a por meio
de confusão ou de uma trama.

1. C onfusão . N o século II, circulavam algumas sugestões de que alguém


que não era Jesus foi crucificado no Gólgota. Segundo Irineu (Contra as heresias
I,xxiv,4), o gnóstico Basílides afirmou que Jesus não sofreu. “ Em vez disso, certo
Simão de Cirene foi obrigado a carregar a cruz para ele [...] e, por ignorância e

267
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

erro, foi ele que crucificaram”. Se circulava no século I, essa opinião pode ter sido
uma das razões de João ignorar a tradição de Simão e insistir que Jesus carregou
a cruz sozinho (§ 39).

Tomé, cujo nome João explica três vezes como “ Gêmeo” (Jo 11,16; 20,24;
21,2), era confusamente identificado no Cristianismo de língua siríaca, em especial
da região de Edessa, com Judas, um dos quatro “irmãos” de Jesus mencionados
em Mc 6,3 e Mt 13,55. Assim, foi criada a figura de Judas Tomé, irmão gêmeo
de Jesus, imagem popular em círculos gnósticos.143 A ideia de Jesus ter um sósia
talvez fosse um dos fatores que levaram à tese de que alguém que se parecia com
Jesus foi crucificado em lugar dele. Uma forma gnóstica disso é a alegação de que a
aparência física de Jesus foi crucificada, mas o verdadeiro Jesus (que era puramente
espiritual) não foi.144 Cerinto fez a distinção em termos do Jesus terreno e do Cristo
celeste, pois Irineu (Contra as heresias I,xxvi,l) relata a opinião de Cerinto de que
Cristo desceu sobre Jesus no batismo e “ no fim, Cristo retirou-se novamente de
Jesus — Jesus sofreu e ressuscitou, enquanto Cristo permaneceu impassível, visto
que era um ser espiritual”. No Apocalipse de Pedro de Nag Hammadi (VII,81,7-
25), lemos que Pedro viu duas figuras envolvidas na crucificação: algozes estavam
golpeando as mãos e os pés de uma; a outra estava em cima de uma árvore rindo
do que acontecia. “ 0 Salvador me disse: ‘O que viste na árvore, alegre e rindo, é
o Jesus vivo; mas aquele em cujas mãos e pés eles pregam o cravo é sua porção
carnal. E o substituto sendo envergonhado, o que veio a existir à sua semelhança’”.
O Segundo Tratado do Grande Set VII,51,20-52,3 afirma: “ Visitei uma habitação
corpórea, primeiro joguei fora o que estava nela e entrei [...]. Ele era um homem
terreno; mas eu, eu sou do alto dos céus.” A confusão que isso provocou entre os
ignorantes durante a Paixão é descrita pitorescamente: “ Foi outro, o pai deles, que
bebeu o fel e o vinagre; não fui eu [...]. Foi outro, Simão, que carregou a cruz sobre
os ombros” (Segundo Tratado do Grande Set VII,56,6-11).

143 Está atestado em escritos como 0 Livro de Tomé (11,138,2.4); O Evangelho de Tomé (11,32,11); Atos de
Tomé I.
144 O ponto de vista de Taciano era, de maneira ambígua, próximo de uma perspectiva gnóstica. Baarda (nota
78, acima), ao escrever sobre a então recentemente disponível versão siríaca do comentário de Efrém
a respeito do Diatessarão de Taciano, encontra ali a tese de que a divindade foi separada do morto e
oculta dele por uma força/um poder (ver EvPd 5,19). A. d’Alès (RechSR 21, 1931, p. 200-201) relata
que alguns autores dos séculos IV e V julgavam que a divindade saiu do corpo de Jesus acompanhando
sua alma.

268
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

O Corão (4,156-157) critica os judeus por “dizerem: ‘Matamos o Mes­


sias, Jesus, o filho de Maria, o mensageiro de Alá’, quando não o mataram nem
crucificaram;145 mas ele foi falsificado [ou: substituído por um sósia] diante de seus
olhos.. ,146 E certamente eles não o mataram”. Apologistas islâmicos afirmam que
Maomé não teria dificuldade para aceitar a crucificação de Jesus; portanto, o fato
de não tê-la aceitado mostra que recebeu revelação de Deus sobre o assunto. Mas
não sabemos se Maomé conhecia bem o Cristianismo ortodoxo; é provável que o
Cristianismo árabe que ele conhecia viesse da Síria, fosse heterodoxo e trouxesse
consigo as opiniões gnósticas de substituição descritas acima. (Trõger [“Jesus”, p.
217] afirma que certamente os comentaristas islâmicos do Corão estavam familia­
rizados com textos gnósticos.) A sugestão de uma fraude leva-nos a outro aspecto
dos enfoques que negam a Jesus a morte por crucificação.

2 . T ra m a . A ideia da crucificação como trapaça circulava na Antiguidade.


Em 1966, foi chamada a atenção para uma defesa do Islã escrita c. 1000 por ‘Abd
al-Jabbar.14‘ A parte dirigida contra o Cristianismo deduziu o conhecimento deste
último não só dos Evangelhos canônicos, mas também de escritos siríacos traduzi­
dos, originários do século V; parece que esses escritos representam as composições
de uma seita judeu-cristã primitiva que não considerava Jesus divino (século II,
nazarenos?). Segundo o relato básico, Judas concordou em apontar Jesus, o Naza­
reno, aos judeus e assim, em meio a uma grande multidão reunida para a Páscoa,
“Judas Iscariotes tomou a mão de um homem e beijou-a”, fugindo depois disso. Os
judeus agarraram o homem que havia sido apontado e levaram-no diante de Pilatos,
mas o homem soluçou e chorou, e negou que alguma vez tivesse proclamado ser o

140 Se a ênfase está no “não” ou no “o” é incerto. A última hipótese facilita uma interpretação de substituição.
Trõger (“Jesus” , p. 215) relata que todas as interpretações islâmicas giram em torno de uma substituição.
A interpretação mais comum pressupõe que outra pessoa foi crucificada: um discípulo, um Sérgio bem
conhecido, ou alguém (por exemplo, Judas) que foi mudado para se parecer com Jesus. Alguns teólogos
xiitas modernos afirmam que, embora o corpo de Jesus tenha morrido, seu espírito foi levado ao céu.
Trõger (p. 218) afirma que o próprio Maomé “ não queria, de modo algum, negar a crucificação e morte
de Jesus como fato histórico” . É provável que ele quisesse dizer que, na realidade, o verdadeiro profeta
vive porque não pode ser morto.
146 A sentença bastante obscura que omiti parece dizer que os próprios judeus estão incertos a respeito
disso.
141 S. Pines, The Jewish Christians of the Early Centuries of Christianity According to a New Source, Jerusa­
lém, Central Press, 1966, esp. p. 54, 56 (Proceedings of the Israel Academy of Sciences and Humanities
2,13). S. M. Stem, “ Quotations from Apocryphal Gospels in ‘Abd al-Jabbar” , em JTS n s 18, 1967, p.
34-57, esp. 44-45.

269
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Messias. Al-Jabbar, interpretando que isso significava haver Judas deliberadamente


apontado o homem errado, usa-o para provar que Maomé estava certo. O escrito
do século V referia-se à trapaça por Judas, ou ela está sendo interpretada no docu­
mento à luz do Corão? Se a intenção era a trapaça, ela remontava às etapas mais
antigas do grupo judeu-cristão ou o entendimento que eles tinham da crucificação
se corrompeu entre os séculos II e V? De qualquer modo, no ano 1000 Judas já
entrara em teorias de trama como o responsável por uma hipótese muito diferente
do relato padrão da morte de Jesus na cruz.148

As vezes, o próprio Jesus era considerado o trapaceiro. Acima, registramos


o relato por Irineu da tese de Basílides de que Simão de Cirene foi crucificado em
vez de Jesus. Simão podia ser confundido com Jesus porque “ por sua vez, Jesus
assumiu a forma de Simão e ficou perto, rindo”.

Uma forma especial da tese de trama é que uma das bebidas de vinho ofe­
recidas a Jesus — entre os Evangelhos, só em Jo 19,30 Jesus toma o vinho — era
um narcótico que o entorpeceu de modo que ele parecia morto, mas pôde ser rea-
nimado depois que os algozes partiram. Heppner (“ Vermorderte” ) relata a respeito
de uma variante sugerida por G. B. Wiener (1848) e ressuscitada na década de
1920, segundo a qual deram a Jesus vinho de morrião, também chamado vinho
de morte. Morios era uma planta usada para fazer filtros, um tipo de beladona que
provocava o sono, às vezes identificada com a planta da mandrágora. Plínio (História
Natural xxi,105; #180) fala dela como veneno que mata mais depressa que o ópio
e, quando misturado ao vinho, produz desmaio. Heppner (p. 664-665) fala de uma
obra apócrifa que descreve a irmã de Judas dando-o a Jesus porque ela viu quantos
problemas ele causara. Thiering (Qumran, p. 217-219) afirma que o sumo sacerdote
Jônatas bondosamente ofereceu a Jesus vinho misturado com veneno (chole, “fel” )
para que ele não sofresse mais. Depois de prová-lo, Jesus perdeu a consciência
e pareceu morrer. Simão Mago (médico), que havia sido crucificado com Jesus e
que teve as pernas quebradas, foi colocado no túmulo da gruta com ele (ao lado
de Judas). Ela nos assegura: “ Dentro do túmulo, Simão Mago trabalhou depressa,
apesar das pernas quebradas. Espremeu o sumo dos aloés e despejou-o com mirra

™ Variantes da teoria de trama de Judas encontram-se em APÊNDICE IV; em muitas delas, ele não queria
que Jesus morresse e supôs que Jesus seria libertado, mas foi tomado pelo remorso quando Jesus foi
realmente morto.

270
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte

pela garganta de Jesus. O veneno, que ainda não fora absorvido, foi expelido e, às
3 da manhã, soube-se que ele sobrevivería”.

Em 1965, H. J. Schonfield criou uma sensação com o livro The Passover Plot,
que sugeria uma vasta conspiração. Jesus preparou o terreno para sua entrada em
Jerusalém e intencionalmente forçou Judas a traí-lo. Escolheu a véspera da Páscoa
para o dia de sua morte, para que o corpo fosse descido da cruz rapidamente. A
bebida dada a Jesus foi adulterada para produzir inconsciência, permitindo, assim,
que ele fosse reanimado quando José de Arimateia reclamou seu corpo. Seu plano
deu errado por causa do ferimento da lança, de modo que Jesus morreu realmente
logo depois, mas não da crucificação. Sem dúvida, muitos dos que se apressaram
a comprar o livro pensaram estar adquirindo a mais recente obra de erudição. 0
levantamento acima mostra que não é provável haver muita coisa nova sob o sol
nesses exercícios da imaginação. Essas teorias demonstram que, em relação à Pai­
xão de Jesus, apesar da máxima popular, a ficção é mais estranha que o fato — e
muitas vezes, intencionalmente ou não, mais lucrativa.

(A bibliografia para este episódio encontra-se em §37, Partes VII, VIII e IX.)

271
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte:
Acontecimentos posteriores à morte
de Jesus - a. Efeitos externos
(Mc 15,38; Mt 27,51-53; [Lc 23,45b])

Tradução

M c 15,38: E o véu do santuário foi rasgado em dois, de alto a baixo.


M t 27,51-53: SIE vede, o véu do santuário foi rasgado de alto a baixo, em
dois. E a terra foi sacudida e as rochas foram partidas, 52e os túmulos foram abertos
e muitos corpos dos santos adormecidos foram ressuscitados. S3E tendo saído dos
túmulos depois da ressurreição dele, eles entraram na cidade santa; e eles foram
feitos visíveis a muitos.
[Lc 23,45b: (44E já era cerca da sexta hora, e a escuridão cobriu a terra
inteira até a nona hora, 45ao sol tendo sido eclipsado.) 45bO véu do santuário foi
rasgado pelo meio. (46E tendo clamado com um forte grito, Jesus disse: "Pai, em
tuas mãos eu coloco meu espírito").]
EvPd 5,20-6,22: S’20E na mesma hora [meio-dia], o véu do santuário de
Jerusalém foi despedaçado em dois. 62IE então eles arrancaram os cravos das mãos
do Senhor e o colocaram no chão; e toda a terra foi sacudida e houve um grande
medo. 22Então o sol brilhou e descobriu-se ser a nona hora.
EvPd 10,41-42: (O s presentes no alvorecer de dom ingo ouviam uma voz dos
céus dirigida à gigantesca figura do Senhor que foi tirado do sepulcro): 4l"Fizeste
proclamação para os adormecidos?". 42E em obediência, foi ouvido vindo da cruz:
"Sim".

Comentário

Entre a morte de Jesus (§ 42) e o sepultamento por José de Arimateia


(§§ 4 6 - 47), há dois conjuntos de acontecimentos ou reações à morte, a) Efeitos

273
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

externos, não raro físicos, de natureza extraordinária (Mc 15,38; Mt 27,51-53; EvPd
5,20-6,22). Esses efeitos físicos vão ser examinados nesta seção (§ 43), a saber:
rasgamento do véu do santuário, tremor da terra, as rochas que foram partidas,
abertura dos túmulos, ressurreição dos corpos dos santos adormecidos, a entrada
deles na cidade santa e o fato de ficarem visíveis a muitos. Nenhum desses efeitos
são relatados depois da morte de Jesus por João,1 nem por Lucas, embora neste
último o rasgamento do véu do santuário preceda a morte de Jesus (Lc 23,45b). b)
Reações de pessoas que estavam presentes (Mc 15,39-41; Mt 27,54-56; Lc 23,47-
49; Jo 19,31-37; EvPd 7 ,2 5 -8 ,2 9 2). Os que reagem incluem o centurião, os que
montavam guarda a Jesus, as multidões reunidas, as mulheres, os “judeus” hostis
e os soldados que vieram buscar os corpos. Embora suas reações quase sempre
estejam estreitamente relacionadas com os acontecimentos físicos (por exemplo, o
centurião reage ao rasgamento do véu do santuário), o exame delas será reservado
à próxima seção (§ 44).

Em a), encontramos um padrão óbvio para subdivisão. O rasgamento do


véu do santuário encontrado em Marcos, Mateus, Lucas e EvPd será examinado
primeiro. Cerca de seis fenômenos especiais relatados apenas por Mateus entre os
Evangelhos canônicos (um ou dois deles encontram eco no EvPd ) vão constituir a
segunda subdivisão. Comentaristas do período neotestamentário em diante mostram
grande engenhosidade para interpretar esses eventos, e considerável discussão
será necessária em meu COMENTÁRIO para manter a extravagante abundância de
tais interpretações (embora elas sejam interessantes) separada daquilo que cada
evangelista quis transmitir pelo acontecimento que descreveu e daquilo que de
maneira plausível foi entendido por seus ouvintes/leitores do século I.

0 véu do santuário foi rasgado (Mc 15,38; M t 2 7 ,5 1 ;L c 23 ,45b; EvPd 5,20)

A interpretação daquilo que os Evangelhos narram aqui é, a meu ver, relati­


vamente simples. As complicações originam-se da introdução de uma interpretação

1 O mais próximo que João chega de alguma coisa exterior e física é o fluxo de sangue e água do lado de
Jesus perfurado (Jo 19,34).
2 De fato, o EvPd mistura os dois conjuntos de reações. Em meio a efeitos externos em EvPd 5,20-6,22 (véu
rasgado, terra sacudida, sol voltando), encontramos “houve um grande medo” ; mas muitas das reações
pessoais (dos judeus, de Pedro e seus companheiros) acontecem depois. Ver em § 43 A, adiante, uma
análise do que o EvPd fez.

274
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

do véu encontrada em Hebreus e de tentativas de discernir que véu do Templo


histórico é indicado e que importância isso acrescentaria. A existência de uma
tradição diferente que inclui o rompimento do lintel do Templo também entra na
discussão. E ssas questões serão examinadas uma por uma.

O papel deste fenômeno nas narrativas evangélicas. A linguagem


usada para descrever o rasgamento do véu (katapetasma ) é notavelmente estável:

Marcos: E o véu do santuário foi rasgado em dois, de alto a baixo.

Mateus: E vede, o véu do santuário foi rasgado de alto a baixo, em dois.

Lucas: 0 véu do santuário foi rasgado pelo meio.

EvPd: 0 véu do santuário de Jerusalém foi despedaçado em dois.

Doze das treze palavras gregas em Marcos/Mateus são idênticas; a única


diferença está no início. 0 simples kai (“e” ) marcano será usado por Mateus para
introduzir seis fenômenos adicionais que ele acrescentará em Mt 27,51b-53; mas ele
decide realçar este primeiro fenômeno, o único que ele tira de Marcos, pelo kai idou
(“ E vede” ), que ele usa em outras passagens cerca de uma dúzia de vezes,*1*3 mas que
nunca é empregado por Marcos. Além de mudar o rasgamento do véu para antes da
crucificação, Lucas simplifica a duplicação marcana (“de alto a baixo” e “em dois” )
em uma única expressão: “ pelo meio”,4 que significa “no ou ao meio”. Reconhe­
cendo a tendência do EvPd a um vocabulário diferente, é notável encontrar apenas
uma diferença significativa, diaregnynai (“despedaçar [se]” ) em vez de schizein
(“rasgar” ). Aqui, talvez o EvPd tenha sido influenciado pelo uso de diaregnynai em
Marcos/Mateus para o sumo sacerdote que rasga as roupas, despedaçando-as, por
causa da blasfêmia de Jesus durante o julgamento pelo sinédrio.5 Aparentemente, o
EvPd era dirigido a uma audiência sem conhecimento da Palestina e, assim, talvez
fosse útil especificar “o santuário de Jerusalém”. Considerando esse vocabulário
semelhante, passemos agora a interpretar cada Evangelho.

3 A frequência do padrão faz-me questionar a tentativa de Witherup (“ Death” , p. 577) de tornar essa
expressão no v. 51a parte da sequência de tempo do capítulo 27 (v. 46: nona hora; v. 48: imediatamente;
v. 57: entardecer).
1 Lucas usa mesos mais que Marcos/Mateus juntos. Se essa mudança também tem ou não importância
teológica, será discutido adiante.
3 Infelizmente, não temos esse julgamento preservado na cópia ainda existente do EvPd (que começa com
o julgamento por Herodes/Pilatos); talvez seguisse a forma mateana (Mt 26,65 [Mc 14,63]).

275
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Marcos. Duas vezes antes, ambas na NP, Marcos fala de naos, “o santuário”.6
Diante dos chefes dos sacerdotes e do sinédrio inteiro, foi dado falso testemunho
contra Jesus, a saber, que ouviram-no dizer: “eu destruirei este santuário feito por
mão humana e dentro de três dias, outro não feito por mão humana eu construirei”
(Mc 14,58). Enquanto Jesus pendia da cruz, os que passavam por ali blasfemavam
contra ele: “Ah! Ó, aquele destruindo o santuário e construindo-o em três d ias...”
(Mc 15,29). Parte da importância da narrativa presente, que constitui uma terceira
referência ao santuário, deve ser que Jesus é justificado: rasgar o véu do santuário
destrói, de um modo ou de outro, aquele Lugar Santo. (Outra sequência quase
idêntica de três passagens trata do problema de Jesus alegar ser o Messias, o Filho
de Deus — Mc 14,61; 15,32; 15,39; no sinédrio, na cruz, depois da morte — , e ali
também a última justifica Jesus.) Contudo, Marcos não explica exatamente como
rasgar seu véu destrói o santuário e, assim, precisamos analisar a imagem quanto
ao rasgamento e ao véu do santuário.

1) O rasgamento. Claramente, a passiva “foi rasgado” faz de Deus o agente.7


No início do ministério de Jesus, os céus foram “rasgados”, para Deus poder falar a
partir deles e declarar a respeito de Jesus: “ Tu és meu Filho amado” (Mc 1,10-11);
agora, do céu, Deus intervém novamente, rasgando o véu do santuário de modo
que no versículo seguinte o centurião será levado a confessar: “ Verdadeiramente,
este era Filho de Deus”.8 Em Mc 15,34, Jesus externou com um forte grito sua
sensação de ser abandonado por Deus e foi escarnecido pelos que estavam de pé
ali. Pelo violento rasgamento (schizein), Deus responde com vigor, não só para
justificar Jesus, a quem Deus não abandonou, mas também para expressar cólera
contra os chefes dos sacerdotes e o sinédrio que decretou essa morte para o Filho
de Deus. Diversos testemunhos cristãos primitivos confirmam essa interpretação
do rasgamento como ato colérico. Em Testamento de Levi 10,3, quando Deus já não
mais suporta Jerusalém por causa da iniquidade dos sacerdotes, o véu do Templo

6 Embora o que Jesus diga a respeito do “Templo” (to hieron) ou nele não deixe de ter relação com sua
atitude para com “o santuário” , é mais provável que a evocação imediata seja de passagens que empregam
o mesmo vocabulário.
' Tradições mais tardias atribuem o rasgamento ao próprio Templo, ou aos anjos, mas em ambos os casos
a ação fundamental é de Deus.
8 Motyer (“ Rending”) usa esse paralelismo de forma exagerada, na tentativa de encontrar nesta cena um
Pentecostes marcano: houve uma descida do Espírito (Mc 1,10: pneuma) quando os céus foram rasgados
no início de Marcos, por isso a mesma coisa acontece no final, no rasgamento do véu, como é insinuado
quando Jesus expira (Mc 15,37: ekpnein).

276
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

é rasgado para que a vergonha deles não seja mais disfarçada.9 No EvPd , os si­
nais que cercam a morte de Jesus, incluindo o rasgamento do santuário em dois
(.EvPd 5,20), mostram que ele é justo (EvPd 8,28) e levam os judeus, os anciãos
e os sacerdotes a dizer: “Ai de nossos pecados. O julgamento se aproxima e o fim
de Jerusalém” (EvPd 7,25). Na verdade, esse mesmo Evangelho, ao usar o verbo
“despedaçar” (como observado acima), sugere uma ligação entre o sumo sacerdote
despedaçar as roupas diante do sinédrio, enquanto exigia a morte de Jesus (Mc
14,63), e Deus rasgar o véu na morte de Jesus, sendo este último ato uma resposta
colérica ao primeiro.10 Afinal de contas, naquele exato momento no julgamento do
sinédrio, Jesus advertiu ao sumo sacerdote que ele e os colegas juizes veriam o Filho
do Homem vindo (Mc 14,62) — uma vinda em julgamento que começou na cruz.

Se a cólera é o simbolismo dominante no rasgamento em Mc 15,38, há tam­


bém um elemento de tristeza pelo que aconteceu a Jesus e/ou pelo que acontece
ao santuário e a Jerusalém? O Códice de Beza e a OL mudam o “rasgado em dois”
marcano para “duas partes”. Estaria o escriba que iniciou a adição pensando em
2Rs 2,12, onde Eliseu, inconsolável com a partida de Elias, rasga sua túnica em
dois pedaços (palavra grega diferente)? A ligação poderia ter sido sugerida pelas
referências a Elias em Mc 15,35-36 quando Jesus morreu. Daube (“ Veil”, p. 24) usa
isso para defender o tema de tristeza e aponta também para TalBab Mo‘ed Qatan
25b, que relaciona as ocasiões tristes onde se rasgam as próprias roupas, para não
serem costuradas novamente: uma delas é a destruição do Templo e de Jerusalém,
isto é, primeiro pelo Templo e depois um rasgamento ampliado por Jerusalém.11
Referindo-se ao rasgamento do véu do santuário como obra de um anjo (ver nota
52, adiante), a homilia de Melitão Sobre a Páscoa 98 diz que, embora o povo não
tenha rasgado as roupas por ocasião da morte de Jesus, um anjo rasgou as dele.
A prova não é conclusiva, mas não se deve desprezar o tema adicional de tristeza.

9 Em uma série de artigos, M. de Jonge examina a exegese cristã primitiva do rasgamento do véu, usando
os Testamentos dos Patriarcas como exemplo principal. Quer se pense nessa obra como judaica, glosada
por cristãos, quer como composição cristã, houve um cristão em atividade nas passagens que citarei aqui.
10 Essa ligação, feita na Antiguidade pelo EvPd, é mais plausível que a tentativa de Bailey (“Fali” , p.
104) de tomar paralelos o ato de “ desvelar” Jesus (Mc 15,24: “ eles repartem suas roupas”) e o ato de
“desvelar” o santuário — paralelo proposto que não envolve nenhum vocabulário e pouca semelhança
simbólica.
11 Como parte da ligação entre o rasgamento do véu do santuário e o rasgamento de roupas, Daube indica
o aramaico/hebraico pargod, que significa “cortina” e também “túnica” .

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Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

2) O véu do santuário. A função geral desse véu era separar o Lugar Santo
do profano, e o rasgamento do véu significava a destruição do caráter especial ou
santidade que fazia do lugar um santuário. Contra o pano de fundo do santuário como
lugar de morada divina — ideia compartilhada igualmente por pagãos e judeus — ,
rasgar o véu significava que a divindade ou a presença da divindade partira. Segundo
Ez 10, a glória de Deus saiu do Templo irada com as idolatrias ali praticadas, pouco
antes de Deus empregar os babilônios como instrumentos na destruição do Templo.
Em 2 Baruc, apócrifo judaico que descreve a destruição de Jerusalém pelos romanos
(descritos como babilônios), um anjo retira o véu e outros equipamentos do Santo
dos Santos (2 Baruc 6,7) antes de ser ouvida a voz que convida: “ Entrai inimigos
e vinde adversários, pois o que guardava a casa abandonou-a” (2 Baruc 8,2). Uma
forma cristã dessa imagem encontra-se em Tertuliano (Adv. Iudaeos xiii,15; CC
2,1388), que relata que um espírito santo (isto é, anjo) costumava habitar no Templo
antes do advento de Cristo, que é o Templo; também Didascalia Apostolorum VI,v,7
(Funk, org., p. 312): “ Ele desertou o Templo, [deixando-o] desolado, rasgando o véu
e retirando dele o espírito santo”. Aqui, o amor marcano por duplicação tem forte
efeito literário: o véu é rasgado “de alto a baixo” e “em dois”, por isso não é restau-
rável. Assim, para Marcos, o rasgamento do véu do santuário significa que, com a
morte de Jesus, o santuário como tal deixou de existir; o edifício que continuou de
pé ali não é mais Lugar Santo. Contudo, além de indicar simbolicamente o que já
acontecera, o rasgamento do véu do santuário mantinha valor como sinal do que
ainda estava por vir, e como advertência ameaçadora de um julgamento que não
voltaria atrás. (Os que liam Marcos quando ou depois que os romanos destruíram
fisicamente o santuário do Templo de Jerusalém devem ter visto nisso o cumpri­
mento do que foi expresso antes pelo rasgamento do véu. Afinal de contas, o Jesus
marcano lhes dissera para ficarem à espreita dos sinais nos recintos sagrados [Mc
13,14]: “ Quando virdes a abominação desoladora de pé onde não deve [...] então
que os que estiverem na Judeia fujam para as montanhas”.) Como sinal negativo
depois da morte, o rasgamento é paralelo à escuridão antes da morte de Jesus. O
dia do Senhor com seu ônus de julgamento estava sendo anunciado.

M ateus. Aqui, por um lado, o sinistro caráter apocalíptico do que já foi


realizado por intermédio da morte de Jesus é intensificado. Os leitores de Mateus
ouviram Jesus castigar Jerusalém por matar os profetas, predizendo: “ Vede, vossa
casa está abandonada e deserta” (Mt 23,37-38). Quanto mais cólera divina haveria

278
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

por matarem o Filho (Mt 21,33-41)! Para esclarecer isso, o rasgamento do véu do
santuário é acompanhado pelo tremor da terra e as rochas que se partem, e que
são (como veremos na próxima subseção) portentos apocalípticos conhecidos dos
últimos tempos descritos no AT e nos escritos judaicos primitivos. Por outro lado, a
abertura dos túmulos, o ressuscitamento dos muitos corpos dos santos adormecidos
e o fato de ficarem visíveis a muitas pessoas de Jerusalém, embora também façam
parte do contexto apocalíptico esperado, são sinais positivos. Mateus mostra que o
julgamento divino começa com os sinais negativos e os positivos.

L u c a s. Embora o rasgamento do véu do santuário nesse Evangelho, narrado


em Lc 23,45b, ocorra imediatamente antes da morte de Jesus (ver § 42), mencionei
que deixaria o exame do fenômeno para esta subseção. 0 adiamento não foi porque
pretendo interpretar Lucas por meio de Marcos, mas porque a mudança por Lucas
do véu rasgado para uma posição entre a escuridão sobre a terra inteira e as últi­
mas palavras de Jesus cria uma ambiguidade que é mais bem avaliada agora que
examinamos o simbolismo desse portento em Marcos/Mateus. Caso tenha achado
insatisfatória a localização marcana, talvez de algum modo Lucas interprete o
véu rasgado de maneira diferente. Depois da transferência lucana, são possíveis
duas linhas de interpretação do rasgamento: a) ele retém parte da força negativa
e está ligado à escuridão que o precede como duplo sinal de desprazer divino; b)
adquiriu força positiva e está ligado às últimas palavras de Jesus como reação
positiva em contraste com a escuridão. Mencionei em § 42 (ver parágrafo da nota
31) que, deliberadamente, não traduzi a partícula de em Lc 23,45b porque, em
bases puramente gramaticais, não é possível decidir se o de tem sentido conjun-
tivo, dando um “E (também)” introdutório que favorece a interpretação a), ou um
sentido adversativo, dando um “ Mas”, que favorece a interpretação b). (Em minha
tradução, procurei refletir a existência de de sem prejudicar a exegese, separando
o v. 45b como sentença independente.)12 Vamos agora avaliar cada interpretação.

a) Ligando o rasgamento do véu com a escuridão. Lc 23,47-49 (passagem a


ser examinada em § 44, adiante) apresentará, depois da morte de Jesus, três tipos
de pessoas que reagem compassivamente e, assim, afirmam a importância salvífica
da morte. Considero esse agrupamento uma construção lucana para fazer par com

12 Sylva (“Temple” , p. 242) trata a sentença independente na NEB como se significasse que o rasgamento
do véu “pode não ter par, sem ser estreitamente ligado ao que o precede ou segue” . Esse não é meu
entendimento do fenômeno; ele deve estar relacionado com um ou com o outro.

279
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

as três reações favoráveis a Jesus antes que ele fosse crucificado, agrupamento
também característico de Lucas (Lc 23,26-32). Nesse contexto otimista depois da
morte de Jesus, Lucas não podia permitir a permanência do sinistro rasgamento
do véu que ele encontrou em Marcos, por isso ele o mudou para onde já havia um
contexto sinistro, colocando-o antes da morte para formar uma unidade com a
escuridão que cobriu a terra inteira desde a sexta hora até a nona hora, enquanto
Jesus sofria na cruz (Mc 23,44-45). Combinado com a escuridão/o eclipse, o véu
rasgado do santuário apresenta um padrão de portentos horríveis nos céus e na
terra. Esse arranjo adequava-se à teologia lucana de outra maneira.13 No julgamento
lucano pelo sinédrio, não houve nenhuma predição de que Jesus destruiría o santu­
ário e, assim, na cruz não havia necessidade de descrever um cumprimento dessa
predição depois da morte de Jesus. Na perspectiva lucana, o Templo não perdeu
o valor sagrado por nada que aconteceu no tempo de Jesus, pois a narrativa dessa
vida começou e terminou com uma cena no conjunto do Templo (Lc 1,9 [rcaos];
24,53 [hieron]). Na verdade, nos primeiros dias da vida cristã em Jerusalém, os que
acreditavam em Jesus iam diariamente ao Templo para rezar (At 2,46; 3,1). Somente
com Estêvão ouvimos que o Altíssimo não habita a casa construída pelas mãos de
Salomão (At 7,48-49), e Estêvão é aquele condenado diante das autoridades por
falar contra o Lugar Santo, dizendo: “ Este Jesus, o Nazareu, destruirá este lugar”.14
Ao mudar a imagem marcana onde o rasgamento do véu era violenta reação divina
à morte de Jesus, Lucas evita dessacralizar o santuário judaico na hora da morte.
0 rasgamento do véu do santuário antes da morte de Jesus é advertência de que a
rejeição continuada de Jesus resultará na destruição do Lugar Santo, principalmente
quando a rejeição chegar ao ponto de matar os que (como Estêvão) o proclamam.15
Para Marcos, o rasgamento do véu depois da morte de Jesus refletia a destruição
presente da santidade do santuário e também servia como sinal de uma destruição

13 Para o que se segue, ver as proveitosas observações de F. Weinert, CBQ 44, 1982, p. 69-70.
14 Isso é caracterizado como falso testemunho em At 6,13-14. Não porque o dito não seja verdadeiro, mas
porque a atividade é entendida mal: o próprio Jesus nada faz para destruir o Lugar Santo, mas a atitude
dos governantes e, em especial, dos sacerdotes para com ele e seus seguidores é a ocasião de um julga­
mento divino que tira do Lugar Santo sua santidade. Estêvão, que é martirizado, assinala um momento
decisivo na atitude cristã para com o Templo. Embora, mais adiante nos Atos, Paulo vá ao Templo (At
21,26), ele já declarou (At 17,24) que o Senhor do céu e da terra não habita em santuários (naos) feitos
pelo homem.
lo Green (“Death”) encontra uma ênfase um pouco diferente: “O tempo do Templo não terminou [...]. Mas
ele já não é o centro ao redor do qual a vida se orienta. Em vez de servir como ponto de reunião para
todos os povos sob Iahweh, ele agora se tornou o ponto de partida da missão para todos os povos” .

280
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

futura, menos simbólica. Para Lucas, o rasgamento do véu, agora colocado antes da
morte de Jesus, permanece no nível de um sinal sinistro, que aponta para o futuro
(que ele narra nos Atos).

b) Ligando o rasgamento do véu com as últimas palavras de Jesus. Esta


abordagem foi exposta por Pelletier e, de maneira comovente, por Sylva. Embora
parte da argumentação corroborante inclua o papel do véu em Hebreus (que exa­
minarei adiante), quero apresentar o caso aqui em bases puramente lucanas. Se
se der um sentido adversativo ao de do v. 45b (“ Mas o véu do santuário foi rasgado
pelo meio” ), é possível interpretar esse fenômeno como reação à escuridão sobre
a terra inteira. 0 véu foi rasgado para que Jesus possa ir da escuridão circun­
dante para o Pai, a fim de colocar seu espírito nas mãos do Pai, como ele próprio
diz imediatamente depois de o véu ser rasgado. Diversos fatores favorecem essa
interpretação. 0 véu já não é mais rasgado “em dois de alto a baixo” como em
Marcos — imagem mais violenta — , mas rasgado “pelo meio”, como se alguém
passasse por ele. No início desse Evangelho (Lc 1,35), a vinda do Espírito sobre
Maria causou a concepção do Filho de Deus; no início do ministério (Lc 3,21-22),
o céu “se abriu” e o Espírito Santo desceu sobre Jesus, enquanto uma voz do céu
declarou: “ Tu és meu Filho amado”. Agora, em suas últimas palavras, o Filho brada
ao Pai, ao devolver esse espírito às mãos de Deus. Mas por que pelo véu rasgado
do santuário? Lembramo-nos de que, pouco depois do nascimento, Jesus foi apre­
sentado ao Senhor no Templo de Jerusalém (Lc 2,22-27). Aos doze anos, ele foi
encontrado pelos pais no Templo e, quando censurado, respondeu que precisava
estar na casa de seu Pai. Lucas, então, descreve o Templo, “ uma casa de oração”
(Lc 19,46) como o lugar da presença divina e, assim, Jesus é mostrado agora (ele
mesmo ou seu espírito) passando através do véu rasgado para o santuário celeste
que continha essa presença. Hebreus nos ensina que alguns cristãos primitivos
pensavam realmente dessa maneira (ver adiante). Um argumento adicional vem da
morte de Estêvão em At 7,55-59: Ele vê o céu aberto e o Filho do Homem de pé, à
direita de Deus; e quando morre, diz: “ Senhor Jesus, recebe meu espírito.” Estava
oferecendo seu espírito através dos céus abertos a Jesus, que agora estava no céu
aonde fora antes (At 1,11), do mesmo modo que Jesus ofereceu seu espírito através
do véu rasgado a seu Pai no santuário. Lucas mudou as últimas palavras de Jesus
do grito marcano de abandono para devota afirmação de confiança; por que não

281
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

mudaria o véu rasgado marcano de um sinal negativo de destruição do santuário


para um sinal positivo de acesso a Deus?

Essa interpretação é possível, mas não a acho correta,16 porque não dá aten­
ção suficiente às palavras exatas que Lucas usou, a saber: “rasgado” (schizein) e
“santuário” (naos). No início do ministério de Jesus e também por ocasião da morte
de Estêvão, quando descreve a abertura dos céus como passagem para o espírito
(descer sobre Jesus ou subir de Estêvão), Lucas usa um verbo para abertura. De
fato, no batismo (Lc 3,21), ele muda a expressão marcana (Mc 1,10) “os céus
rasgarem-se [schizein]” para o menos violento “abrir”. O único outro uso evangélico
de schizein por Lucas além desta passagem do véu do santuário mostra como ele
entende sua força; em Lc 5,36, ele introduz esse verbo na parábola de rasgar um
pedaço de uma veste nova (Mc 2,21 tinha airein ). Os dois únicos usos nos Atos (At
14,2; 23,7) mostram uma multidão rasgada em duas partes, dividida entre favoráveis
e desfavoráveis a Jesus. Assim, Lucas nunca usa schizein para uma abertura pela
qual se passa, e sua preservação aqui desse verbo que ele encontrou em Marcos
(contrário a sua prática em Lc 3,21) sugere que ele manteve sua força negativa.
Além disso, é preciso ter cuidado ao generalizar a partir das declarações de Lucas
a respeito do Templo (hieron) para seu uso, aqui, do santuário (naos), copiado de
Marcos.17 Seu único outro uso evangélico de “santuário” (em Lc 1,9.21.22, para o
lugar onde Zacarias desempenha seus deveres sacerdotais) sugere uma percepção
da distinção entre os dois. Não há prova de que Lucas pensasse em Jesus em ter­
mos sacerdotais e, portanto, seria bastante incomum ter o Jesus lucano passando
(ele mesmo ou seu espírito) pelo santuário, aonde só sacerdotes vão. Lucas tinha
uma atitude positiva para com o Templo (também pressuposta na interpretação a]
acima); mas ele preserva um sinal da destruição do santuário, isto é, o lugar onde
sacerdotes e, em especial, o sumo sacerdote ministravam para a presença de Deus,
pois sabe que os sacerdotes e, em especial, o sumo sacerdote continuarão hostis a
Jesus, perseguindo Pedro, João, Estêvão, Paulo e outros cristãos (At 4,6; 5,17; 7,1;
9,1-2.21; 22,30; 23,14; 24,1; 25,2).

16 Em outras bases que não as que proponho, Green (“Death” , p. 550-552) também discorda de Sylva e
enfatiza que, como ela acontece antes do rasgamento do véu, a escuridão negativa deve interpretar esse
rasgamento.
1' Não posso deixar de mencionar o título do artigo de Sylva: “The Temple Curtain and Jesus’ Death in the
Gospel of Luke [A cortina do Templo e a morte de Jesus no Evangelho de Lucas]” (itálicos meus).

282
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

Em suma, então, sem desprezar totalmente essa segunda interpretação (b) de


Lucas, definitivamente prefiro a primeira interpretação (a), onde o rasgamento do
véu do santuário (como a escuridão) é indicador negativo da cólera divina, embora
para Lucas essa cólera não seja imediatamente destrutiva como é em Marcos. Por
haver um elemento de ignorância entre os que executam Jesus (Lc 23,34; At 3,17),
um período de graça é concedido antes de se tomar verdade cristã que Deus não
mora em casas feitas por mãos humanas e que Jesus de Nazaré destruiu esse lugar
santo (At 7,48-49; 6,13-14).

Depois de comentar os três relatos sinóticos do rasgamento do véu do san­


tuário, normalmente eu passaria a expor os outros fenômenos narrados somente
por Mateus (Mt 27,51b-53). Entretanto, não posso passar tão facilmente de minha
interpretação do véu do santuário rasgado como portento negativo que parece claro
em Marcos/Mateus (e mais provável em Lucas), sem comentar várias questões
complementares que fazem alguns biblistas lhe darem outra interpretação. Como
já examinei diversas interpretações de Lucas (exame forçado pela mudança lucana
da localização marcana), no que se segue preocupo-me primordialmente com uma
interpretação diferente do véu rasgado em Marcos.

O véu em Hebreus. Esta epístola jamais emprega as palavras naos (“san­


tuário” ), hieron (“ Templo” ) ou schizein (“rasgar” ); mas, ao usar a metáfora da tenda
ou tabernáculo pré-Templo, pinta um retrato notável de Jesus como sumo sacerdote
da Nova Aliança que se comporta como fez o sumo sacerdote veterotestamentário
no dia da expiação (Yon Kippur). Nessa descrição, ocorrem as únicas outras re­
ferências neotestamentárias (três) ao katapetasma (“ véu” ) do qual falam as três
cenas sinóticas. Em Hb 6,19-20, Jesus, sumo sacerdote eterno segundo a ordem
de Melquisedec, é descrito como precursor que entrou “ no lugar interior do véu”
(santuário interior separado do exterior por um véu). Em Hb 9,2-3, a descrição do
tabernáculo israelita inclui a (seção) exterior da tenda chamada de Lugar Santo e
“atrás do segundo véu está a (seção da) tenda chamada Santo dos Santos”.18 Em
Hb 10,19-20, é assegurado aos leitores: “ Temos a segurança da entrada nos santos
pelo sangue de Jesus, entrada que ele inaugurou para nós como caminho novo e
vivo através do véu, isto é, sua carne”.19

18 A descrição presume, mas não descreve, um primeiro véu na entrada do Lugar Santo.
19 A partir da analogia do sumo sacerdote israelita, temos de presumir que, como o véu, a carne era uma
coisa pela qual Jesus tinha de passar (a encarnação do Filho de Deus?) para chegar ao céu.

283
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Para nossos propósitos, não é necessário entrar nas disputas a respeito de


como interpretar essa metáfora. A hipótese a seguir é plausível. Uma vez por ano,
o sumo sacerdote judaico passava através do katapetasma ou véu que separava o
Lugar Santo do Santo dos Santos interior; neste último, ele incensava a tampa de
ouro (kapporet) da Arca da Aliança20 e a aspergia com o sangue de um bezerro e
um bode previamente sacrificados (Lv 16,11-19). Do mesmo modo, segundo He-
breus, o sumo sacerdote Cristo passou através do katapetasma, que é sua carne,
para o Santo dos Santos que é o mais alto dos céus, levando o próprio sangue a fim
de consumar ali o sacrifício iniciado na cruz. Assim fazendo, ele abriu o caminho
para os fiéis entrarem no santuário celeste. É E f 2,13 (“Vós que outrora estáveis
longe ficastes perto pelo sangue de Cristo” ) forma independente da mesma ideia?

Ao refletir sobre o relato por Marcos/Mateus das orações de Jesus no Get-


sêmani e na cruz, encontramos um paralelo em Hb 4,14-16; 5,7-10 quando Jesus,
sumo sacerdote provado como somos, “dirigiu preces e súplicas com forte clamor e
lágrimas àquele que tinha o poder de salvá-lo da morte”. Esse paralelismo foi mais
bem explicado pressupondo uma tradição muito antiga de Jesus rezando a Deus
antes de morrer, tradição que foi criada pelo uso de Salmos em uma narrativa de
Marcos e, independentemente, em um hino em Hebreus. No caso presente, então,
não é improvável que houvesse um discernimento teológico primitivo de que a morte
de Jesus redefiniu a presença de Deus entre o povo escolhido, presença até agora
encontrada no santuário velado (Santo dos Santos) da prática litúrgica israelita. Na
linha de desenvolvimento que levou à apresentação marcana, esse discernimento
foi combinado com as ameaças de Jesus ao santuário de Jerusalém, profetizando
destruição a menos que sua proclamação do Reino de Deus fosse observada. A
rejeição dessa proclamação, por meio da crucificação daquele que a proclamava,
causou a destruição do santuário, simbolizada pelo irreparável rasgamento do
véu que marcava sua distinção como o lugar da presença divina. E ssa destruição
simbólica, grave como era, prenunciou a destruição física final do Templo pelos
romanos. Na linha independente de desenvolvimento que levou a Hebreus, esse
discernimento foi combinado com a teologia de Cristo como o sumo sacerdote da
Nova Aliança. Mais uma vez (implicitamente), o santuário perdera toda importância,

20 Isso existia nos santuários pré-exílicos, mas não no Templo do tempo de Jesus e, juntamente com o fato
de não ser a construção do Templo ordenada por Deus como foi a edificação do tabemáculo, explica por
que Hebreus tirou sua metáfora deste último.

284
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

mas não pela destruição; agora, a presença divina no santuário celeste é descrita
como aberta a todos os que seguem Jesus através do véu.

Esse entendimento da relação das passagens do katapetasma em Hebreus


e em Mc 15,38 não apresenta grande problema para a interpretação de Marcos já
dada acima. E ssas obras neotestamentárias apresentam tendências independentes
de uma tradição primitiva21 nas quais a metáfora final que surge é muito diferente:
em Marcos, um rasgamento destrutivo do véu, fazendo o santuário perder sua santi­
dade; e em Hebreus, uma abertura positiva do véu à presença divina em um Santo
dos Santos celeste. Entretanto, surgem problemas quando a perspectiva positiva
de Hebreus é introduzida na explicação de Mc 15,38, de modo que a passagem
marcana surge com a) só uma interpretação positiva, por exemplo, o véu foi rasga­
do para que Jesus levasse outros ao santuário, ou b) uma interpretação negativa e
também uma positiva.22 Como devem ser avaliadas essas sugestões?

Julgo a) impossível. Reconhecemos que seria agradável ver uma imagem


marcana inteiramente positiva surgir da morte de Jesus (como a imagem lucana em
Lc 23,47-49), e assim eliminaras implicações antijudaicas de um julgamento divino
destrutivo quanto ao santuário de Jerusalém. Mas a interpretação a) negligencia
ilegitimamente a relação entre o naos usado em Mc 15,38 com as duas passagens
marcanas anteriores com naos, ambas na NP e ambas referindo-se à destruição

21 Embora dois autores pudessem ter notado de maneira independente a mudança no local da presença de
Deus. sua descoberta do símbolo principal do katapetasma em relação à morte de Jesus sem a influência
de uma tradição comum é menos provável. Além disso, como minha citação de literatura judaica deixará
claro, descrições do castigo divino de Jerusalém incluíam tradicionalmente o Santo dos Santos e seu
equipamento; e é evidente que a tradição cristã primitiva se voltava para esse mesmo simbolismo. Além
das passagens do véu (interior), há Rm 3,25, com sua referência ao hilasterkm (kapporet).
22 Muitas vezes, os comentaristas não distinguem entre a) e b); eles também discordam (como será expli­
cado) se o véu exterior foi rasgado para permitir acesso ao Lugar Santo ou se o véu interior foi rasgado
para permitir acesso ao Santo dos Santos. Contudo, entre os que, de um modo ou de outro, atribuem uma
interpretação positiva ao rasgamento do véu em um ou outro Evangelho sinótico, estão Bartsch, Benoit,
Caird, Ellis, Gnilka, Linnemann, Motyer, Pelletier, Sabbe, Schneider, Taylor, Vogtle e Yates. Lindeskog
(“Veil” , p. 134) defende, como eu, uma tradição comum por trás dos sinóticos e de Hebreus, mas acha
que a consequência dessa tradição primitiva foi positiva. Nem todas as interpretações positivas são
iguais à apresentada por Hebreus. Por exemplo, em Testamento de Benjamim 9,4, a cortina (kaploma) do
santuário é rasgada, com o resultado de que o Espírito de Deus se derrama sobre todos os gentios como
fogo. Efrém (Comentário sobre o Diatessarão xxi,4-6; SC 121,376-378) relaciona algumas atividades desse
Espírito, por exemplo, usar o véu rasgado para vestir de maneira honrosa o corpo nu de Jesus na cruz.
Jerônimo (Epístola 120, Ad Hed-ybiam 8; CSEL 55,490) e outros Padres da Igreja têm mistérios celestes
revelados quando o véu foi rasgado, e nesse contexto às vezes citam ICor 13,12 e 2Cor 3,16-18. Uma
interpretação gnóstica nesse sentido encontra-se no Evangelho de Filipe 11,3; 85,5-21.

285
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

do naos por Jesus. Também não faz justiça a um elemento de violência subenten­
dido pelo rasgamento (schizein). E injustificável negligenciar completamente esses
fatores com base na metáfora de Hebreus que jamais menciona naos nem schizein.

A primeira vista, a interpretação b) merece mais atenção, pois respeita o


sentido negativo exigido pela sequência marcana.23 Contudo, é preciso provar que
Mc 15,38 sofre da explicação positiva encontrada em Hebreus. Dois argumentos
básicos são apresentados pelos que respondem afirmativamente. Primeiro, eles
observam que, na primeira referência a naos em Mc 14,58, há sentido negativo e
também positivo: não só a destruição do naos feito por mão humana, mas a cons­
trução de outro naos, não feito por mão humana. (Geralmente, eles ignoram o fato
de que a segunda referência a naos em 15,29 tem só a parte negativa, ênfase que
sugere que, quando a narrativa continua, a preocupação primordial de Marcos é
mostrar a destruição do naos.) Entretanto, a dedução de que, portanto, deveria
haver cumprimento negativo e positivo no rasgamento do véu em Mc 15,38 (Vóg-
tle, “ Markinische”, p. 374-375) é fraca, pois o elemento positivo (se precisar estar
presente) pode estar na confissão de Jesus como Filho de Deus pelo centurião em
Mc 15,39, e não ter nada a ver com o véu. Essa confissão em Mc 15,39 é o centro
do segundo argumento apresentado por proponentes da interpretação b). Veremos
em § 44 que o centurião que declara a verdadeira identidade de Jesus representa
os gentios prontos a reconhecer o que os judeus negaram. Mas há quem leve isso
mais adiante e afirme que Jesus, tendo ido através do véu rasgado para o santuário
celeste, começa a levar outros através desse véu.24 Ao avaliar isso, a pessoa se sente
perturbada pela total falta de linguagem de entrada em Mc 15,38-39 e até mesmo
de uma referência subentendida ao céu. (A metáfora marcana não é, em absoluto,
como a da cena lucana onde Jesus promete que um malfeitor estará com ele neste
dia no paraíso [Lc 23,40-43].) Se voltarmos a Mc 14,58, a imagem positiva da
construção por Jesus de outro santuário não feito por mão humana não nos fará
pensar em um santuário celeste, pois certamente esse existe eternamente. É mais
provável Marcos estar descrevendo a substituição por um santuário que consista
em fiéis, como em outras passagens neotestamentárias que imaginam um Templo

23 Teoricamente é possível debater se o rasgamento do véu pode ser negativo e positivo ao mesmo tempo,
mas símbolos são notoriamente resistentes à lei da não contradição.
24 Apelam a At 7,55-56, onde Estêvão levanta os olhos para o céu: “ Vede, percebo os céus abertos e o Filho
do Homem de pé à direita de Deus” .

286
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

de pedras vivas (§ 20). Nessa interpretação, Mc 15,39 mostra o primeiro novo fiel
depois da morte de Jesus e, assim, o começo da construção de outro santuário. Essa
exegese de Mc 15,39 nada faz para apoiar uma leitura positiva do véu rasgado do
santuário em Mc 15,38. De modo geral, então, não vejo nenhuma razão sólida para
transferir de Hebreus uma interpretação positiva de Mc 15,3825 pela qual o véu foi
rasgado para permitir a Jesus entrar no santuário celeste, levando outros atrás dele.

Os véus no Templo do tempo de Jesus. Interpretações diferentes da que


defendo para Mc 15,38 têm sido apresentadas com base no significado especial que
o véu tinha no Templo herodiano. Esse argumento baseia-se nas suposições de que
os evangelistas conheciam esse significado e de que somos capazes de recuperá-lo;
consequentemente, alguns artigos eruditos foram dedicados a uma investigação his­
tórica da questão. Antes de terminar este exame, farei uma contestação hermenêutica
à abordagem inteira; mas, no momento, quero expor os fatos disponíveis. Fitzmyer
(.Luke, v. 2, p. 1518) conta treze cortinas ou véus no Templo, mas a questão pode
ser ainda mais complicada. Muitas declarações quanto aos véus baseiam-se em
descrições no Pentateuco da organização do tabernáculo. Como o tabernáculo ou
tenda das andanças no deserto não era construído rigidamente, mas transportável,
cortinas, em vez de divisórias permanentes, desempenhavam papel importante. Mas
as descrições do tabernáculo no Pentateuco estão cobertas de lembranças de uma
edificação mais permanente em Silo, construída quando os israelitas conquistaram
o controle das regiões montanhosas da Judeia e Samaria. Quanto ao Templo, temos
algumas descrições detalhadas do Templo de Salomão, menos detalhes do Templo
de Zorobabel e para o Templo herodiano que existia no tempo de Jesus, algumas
passagens em Josefo e Fílon (bem como lembranças muito mais tardias na Mixná
e no Talmude, muitas vezes influenciadas pelo idealismo).26 As descrições de um
Templo mais primitivo são quase sempre influenciadas pela experiência, por parte
do autor, do Templo agora de pé e são ainda mais complicadas pelo desejo de mostrar
que o Templo, que era essencialmente um empreendimento (régio) humano, seguiu
em suas estruturas as diretrizes que, por intermédio de Moisés, Deus dera para

25 Os que adotam ou preferem uma interpretação negativa (com matiz multiforme e com referência a um ou
outro Evangelho) incluem Danker, Dormeyer, Grundmann, Juel, Lohmeyer, Lührmann, Marshall, Maurer,
Schenke, Schmid, Schreiber e Zahn.
26 Quero deixar de lado a complicação de que o Templo herodiano não foi terminado no tempo de Jesus e,
assim, mesmo o uso das descrições de Josefo quanto ao Templo concluído é anacrônico. Ver em Légasse
(“Voiles”) as complicações das diversas descrições dos véus.

287
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

o tabernáculo. Claramente portas eram usadas no Templo como divisórias; mas


nem sempre podemos decidir se a menção de cortinas e véus é anacronismo, ou
divisórias de pano eram mantidas em muitas entradas e saídas do Templo, mesmo
que agora ociosas, por amor à tradição. Por exemplo, lR s 6,31-34 fala de portas,
enquanto 2Cr 3,14 fala de um véu que levava ao Santo dos Santos. Josefo (Ant.
VIII,iii,3; ##71-75) descreve portas com véus ou cortinas entrelaçadas; eAristeias
7,86 descreve o véu exterior (katapetasma ) concebido para combinar com as portas,
que evidentemente eram deixadas abertas, pois ventos moviam e tornavam bojudo
o véu. De modo geral, precisamos ser cautelosos quando lemos as descrições por
biblistas dos véus do santuário que existiam no tempo de Jesus e verificar se elas
se baseiam em descrições contemporâneas do Templo herodiano ou consistem em
uma miscelânea de descrições mais primitivas de aplicabilidade incerta.

Para o exame presente, dois ou três véus são importantes. Dentro do pátio
interior da área do Templo herodiano, ficava o Templo sagrado em si, dividido em
duas salas. 0 portal levava ao Lugar Santo (Hêkal) e na extremidade dessa sala,
ficava a entrada para outro aposento menor, o Santo dos Santos (Debtr; ver em NJBC
76,42 desenho do Templo salomônico, que estabeleceu o padrão). Os dois véus que
nos interessam são os que pendiam na entrada do pátio exterior que dava para o
Lugar Santo (o véu exterior) e na entrada do Lugar Santo para o Santo dos Santos
(o véu interior).27 Um terceiro véu entra no exame porque no tabernáculo havia um
véu (que chamarei de véu do recinto) na entrada para todo o recinto ou conjunto
sagrado; e as descrições bíblicas nem sempre são claras quanto a que entrada (para
o conjunto ou estrutura) está envolvida e também se o indicado é o véu do recinto
ou o véu exterior. (Légasse [“ Voiles”, p. 568-571] nega que houvesse um véu no
recinto dos Templos salomônico e de Zorobabel.) Qual desses véus é indicado nos
relatos sinóticos que falam do rasgamento do katapetasma ? 0 vocabulário vetero-
testamentário para os véus exteriores e interiores não é rigorosamente consistente:
katapetasma é usado tanto para o véu exterior como para o interior,28 porém, com
mais frequência para o véu interior, enquanto kalymna é usado para o véu exterior
(e o véu do recinto), mas, até onde entendo, não para o véu interior.29 0 vocabulário,

27 Mixná Yoma 5,1 descreve uma cortina dupla, com espaço no meio, mas Légasse (“ Voiles” , p. 580-581)
julga essa descrição fictícia.
28 Mas, no meu entender, não é usado para o véu do recinto, a menos que Nm 3,26 refira-se a ele.
29 Não tento fazer estas relações completas: 1) Descrições do véu do recinto encontram-se em Ex 27,16;
35,17; 38,18; 39,40; 40,8.33; Nm 4,26, que usam meselt em hebraico e kalymma (“cortina” ) no grego

288
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

então, favorece ligeiramente a interpretação da referência sinótica ao katapetasma


como tendo em mente o véu interior (na hipótese de se pretender a especificidade).
O fato de katapetasma em Hebreus referir-se claramente ao véu interior que cobria
a entrada para o Santo dos Santos também aponta nessa direção.30 Contudo, muitos
afirmam que os sinóticos referiam-se ao véu exterior que assinalava a entrada do
pátio externo para o Lugar Santo.31 0 véu exterior, não o interior, era visível à dis­
tância. Consequentemente, aqueles para quem Mc 15,39 (que o centurião viu que
assim Jesus expirou) significa que ele também viu literalmente o rasgamento do
véu (Mt 27,54: viu “estes acontecimentos” )32 afirmam que o véu exterior deve ter
estado envolvido. Que diferença faz? Isso depende de o véu exterior ter ou não um
significado especial. Pelletier (“ Grand” ) descreve o véu exterior como uma enorme
cortina em um pórtico de entrada que tinha quase trinta metros de altura (daí a
importância de “de alto a baixo” ). Segundo Josefo (Guerra V,v,4; ##213-214), a
cortina tinha quatro cores diferentes que simbolizavam os elementos do universo
(fogo, terra, ar, água) e representavam o panorama dos céus.33 (Entretanto, Fílon

da LXX. Fílon (De vita Mosis ii,19; #93) fala de um hyphasma ou peça tecida. 2) Encontram-se des­
crições do véu exterior em Ex 26,36-37; 35,15; 39,38; 40,5.28; Nm 3,25.31; 4,25, que usam mesek em
hebraico e kalymma, katakalymma, kalymma kapetasmatos e epispastron (“ cortina de puxar”) no grego
da LXX. Fílon a chama de kalymma em De vita Mosis 2,21; #101, mas katapetasma (modificando-a uma
vez como “o primeiro” véu) em De specialibus legibus 1,171.231.274. Aparentemente, o véu exterior é
citado em Lv 21,23 e Nm 18,7, que usam paroket em hebraico e katapetasma em grego. 3) Encontram-se
descrições do véu interior em Ex 26,31-33; 30,6; 35,12; 39,34; 40,21; Nm 4,5, que usam paroket em
hebraico e katapetasma no grego da LXX (e Fílon). É digno de nota que, embora a descrição hebraica
dos véus exterior e interior em Ex 36,35-37 os diferencie como mesek e patroket, a LXX (Ex 37,3-5) usa
katapetasma para ambos.
30 Os Padres da Igreja e estudiosos subsequentes que julgam estarem Marcos/Mateus referindo-se ao véu
interior incluem Crisóstomo, Teodoreto, Cirilo de Alexandria e Tomás de Aquino; e Billerbeck, Hauck,
Lindeskog, Plummer, Schneider, Sênior, Swete, Taylor e Turner.
” Estes incluem Orígenes e Jerônimo; e Bartsch, Benoit, Driver, Emst, Fitzmyer, Huby, Lagrange, Lohmeyer,
McNeile, Pelletier e Vincent. Yates (“Velum” , p. 232) acredita que Mateus e Lucas se referiam ao véu
exterior, mas acha Marcos obscuro.
32 Ver em § 40, #1, acima, a teoria de E. L. Martin. No mesmo estilo, D. Brown (“Veil” ) lembra que, se o véu
interior fosse rasgado, os únicos a saber seriam os sacerdotes, pois só eles tinham permissão para entrar
no Lugar Santo; e segundo os relatos sinóticos nesse momento, eles estavam no Gólgota. De qualquer
modo, seria provável que eles anunciassem tal acontecimento se ele tivesse lugar na hora da morte de
Jesus? Ocasionalmente, os que insistem na questão histórica afirmam que os sacerdotes que revelaram
o rasgamento do véu interior foram os que se tomaram seguidores de Jesus (At 6,7)!
33 Em apoio ao simbolismo celeste, Pelletier (“Veil” , p. 171) também aponta para Eclo 50,5-7, onde Simâo,
o sumo sacerdote, sai do katapetasma e é comparado a uma estrela, ao sol, à lua e a um arco-íris. Em
“Voile” , ele chama a atenção para oparapetasma, um véu de lã semelhante, enorme, colorido, que pendia

289
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

[De Vita Mosis ii,17-18; ##84-88], que também fala do simbolismo dos quatro ele­
mentos, descreve cortinas à volta toda do tabernáculo e, assim, tem-se a impressão
de que o simbolismo não se restringia ao véu exterior.) Lindeskog (“ Veil”, p. 136)
consegue estabelecer parte do mesmo simbolismo a partir do que estava por trás do
véu interior, agora não mais a Arca da Aliança, mas uma pedra especial designada
como fundamental — pedra que esteve envolvida na criação do mundo, a porta para
o inferno e o céu (Mixná Yoma 5,2; TalBab Yoma 54b). Por tudo isso, argumenta-
-se que o rasgamento do véu do santuário tinha significado cósmico interpretado
pelos fenômenos extras em Mt 27,51b-53 (terra sacudida, rochas partidas, túmulos
abertos)34 ou tinha importância salvífica para todos, pois envolvia um rasgamento
dos céus que ofereciam acesso à presença de Deus. Ulansey (“ Heavenly” ) emprega
a ideia de simbolismo celeste para o véu realçar a inclusão entre o rasgamento do
véu e o rasgamento dos céus no início de Marcos.

Apesar da enorme quantidade de pesquisa dedicada à questão do véu ex-


terior/interior e ao simbolismo esotérico dos véus respectivos, rejeito, ao lado de
Dormeyer e Lamarche, o valor da especulação toda em relação à descrição evan­
gélica. Quando muito, pode-se atribuir possibilidade às decisões eruditas quanto
a que véu os evangelistas tinham em mente (se é que os três tinham em mente o
mesmo véu). Quanta confiança podemos ter no fato de que a descrição geral “o véu
do santuário” usada pelos três evangelistas transmitiu alguma precisão a respeito
de exterior/interior? Mais radicalmente, que prova temos de que os evangelistas
sabiam o número de véus ou detalhes a respeito deles e seu simbolismo? Nenhum
deles tinha sequer estado dentro do Lugar Santo. Algum deles já tinha estado em
Jerusalém e visto o véu exterior à distância?35 Eram as interpretações esotéricas dos
véus amplamente conhecidas? Ainda mais radicalmente, há alguma probabilidade
de que os leitores do Evangelho soubessem a respeito de tudo isso? Marcos (Mc
7,3-5) teve de explicar a seus leitores costumes de pureza judaicos elementares.

do portal do Templo de Olímpia, na Grécia, descrito por Pausânias (Descriptio Graecae V,xxii,4) como
tendo sido doado pelo rei sírio Antíoco (IV?). Segundo lMc 1,22 e Josefo {Ant. XII,v,4; #250), Antíoco
IV tirou o véu do Templo de Jerusalém c. 169 a.C.
M Está claro que se julgava ter a morte de Jesus significado cósmico e interpreto os fenômenos mateanos
especiais como simbolizando isso. É outra questão se o rasgamento do véu tinha esse significado.
,3 Em Lc 1,5-10.21-22 e At 3,2.11, Lucas demonstra conhecimento de costumes sacerdotais e de detalhes
da planta do Templo, mas era esse conhecimento pessoal ou simplesmente fazia parte da tradição que
recebeu? Ele nada acrescenta locativo à imagem marcana do véu.

290
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

Podemos seriamente pensar que ele esperava que eles interpretassem o rasgamento
do véu contra um pano de fundo não fornecido dos arranjos de cortina no edifício
herodiano e do modo como eles eram pintados? Desde o início deste comentário,
afirmei que a compreensibilidade perceptível para uma audiência do século I é guia
importante (embora não suficiente) para interpretação. Uma coisa é pressupor que
os cristãos (judeus e gentios) naquela audiência conheciam os temas básicos das
Escrituras judaicas pertinentes a Jesus; outra coisa é pressupor que eles entendiam
detalhes de simbolismo cósmico que não estão contidos nas descrições bíblicas do
Templo. Com base nesse princípio, afirmo que não devemos introduzir na exegese
de Mc 15,38 e par. informações esotéricas a respeito dos véus históricos no Templo
de Jerusalém.

Fenômenos que marcam a destruição do Templo (principalmente


em Josefo e Jerônimo). Sob esse título um tanto embaraçoso, vou tratar de
material que realmente esclarece como o relato do rasgamento do véu do santuá­
rio se encaixa no entendimento do povo do século I e como era interpretado pelos
cristãos primitivos.36

Na Antiguidade, era amplamente entendido que quase sempre Deus ou os


deuses davam sinais na morte de pessoas nobres ou importantes. 0 sangue de
um mártir macabeu extinguiu o fogo aceso pelos torturadores para queimá-lo (4
Macabeus 9,20) e houve um eclipse da lua na noite em que Herodes, o Grande,
executou Matias, que havia incitado os jovens a purificar o Templo removendo uma
águia que Herodes ali colocara (Josefo, Ant. XVII,vi,4; #167). Às vezes, no cusu de
mártires judeus que morriam com devoção, ouvia-se uma voz do céu proclamando
o destino abençoado deles no mundo que há de vir (TalBab Berakot 61b; ‘Aboda
Zara 18a). Quanto à atitude greco-romana em relação à escuridão que cobriu a
terra ao meio-dia antes de Jesus morrer, citei (§ 42, trecho relacionado à nota 30)
eclipses que se pensou assinalarem a morte de Rômulo e de Júlio César. Além
disso, Virgílio (Geórgicas i,472-490) acrescenta prodígios terrestres e celestiais
por ocasião da morte de César: o Etna despejando rochas derretidas; estrépitos
de armas nos céus alemães; os Alpes estremecendo; uma voz apavorante falando
nas florestas; espectros pálidos na noite escura; os marfins do Templo chorando
e os bronzes suando; relâmpagos frequentes em um sol sem nuvens; e cometas.

56 Muito proveitosos no que se segue são os estudos por de Jonge, McCasland, Montefiore, Nestle e Zahn
relacionados em § 37, Parte X. Ver também J^ange na Parte XI.

291
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Díon Cássio (História LX,xxxv,l) relata portentos por ocasião da morte de Cláudio,
inclusive um cometa visto por longo tempo, um aguaceiro de sangue, um raio que
atingiu os estandartes dos soldados, a abertura sozinha do Templo de Júpiter Víctor.

Díon Cássio associa sinais semelhantes à queda de Alexandria para Otaviano


em 30 a.C. (LI,xvii,4-5), de modo que, além da morte de homens, a “morte” de
lugares e instituições de renome era marcada pelos deuses. Um dos mais famosos
desses casos é importante para nosso exame.

Jo s e fo (Guerra VI,v,3; ##288-309) fala de cerca de oito prodígios que


ocorreram entre 60 e 70 d.C. e serviram de sinistros presságios enviados por Deus
da futura devastação do Templo de Jerusalém pelos romanos, embora muitos judeus
tolamente os entendessem como sinais positivos. Nos CÉUS, apareceu um astro com
forma de sabre; um cometa37 persistiu em brilhar por um ano; às 3 da manhã,
uma luz tão intensa quanto o dia brilhou ao redor do altar e do santuário; carros
e exércitos vistos em todo o país nas nuvens antes do pôr do sol (dito com ênfase
especial que isso não é uma fábula). Na área do T e m p lo , houve muitos sinais: uma
vaca pariu um cordeiro; a porta oriental de bronze maciço do pátio interior abriu-
-se sozinha à meia-noite, embora vinte homens tivessem dificuldade para movê-la;
em Pentecostes, os sacerdotes do pátio interior ouviram uma voz coletiva: llEstamos
partindo daqui” (isto é, do santuário3
738); anos de desgraças contra Jerusalém e o
santuário pressagiados por Jesus, filho de Ananias, que as autoridades de Jerusa­
lém agarraram, espancaram e entregaram aos romanos para ser executado, mas
foi considerado louco e solto pelo governador. Tácito, que estava em Roma durante
os últimos anos em que Josefo ali viveu, escreveu (História v,13), com referência
à destruição do Templo de Jerusalém por Tito, que houve sinais agourentos que
os judeus tolamente consideraram favoráveis. Incluíam exércitos lutando nos céus;
fogo iluminando o Templo; portas do Lugar Santo abrindo-se abruptamente; uma
voz sobre-humana declarando que os deuses o estavam abandonando e, ao mesmo
tempo, um grande movimento dos que partiam.39

37 Ponho em itálico temas que vão entrar no estudo subsequente.


38 Em muitas referências nas páginas que se seguem, presume-se a presença de um anjo ou anjos (espírito
ou espíritos) no Santo dos Santos. As vezes, eles podem ser os anjos que adoram a divina presença (como
em Is 6,2-3) ou que guardam o santuário; outras vezes, como o anjo do Senhor, talvez representem uma
descrição antropomórfica de Deus.
39 Embora Montefiore (“Josephus” , p. 152) julgue Tácito uma testemunha independente, talvez a opinião
de McCasland (“Portents” , p. 330-311) de que Tácito recorreu a Josefo esteja correta.

292
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

Os parágrafos precedentes devem ter deixado claro que, no século I, os


leitores dos Evangelhos, quer judeus, quer gentios, não tinham um grande pro­
blema com o rasgamento do véu do santuário (ou os fenômenos adicionais em Mt
27,51b-53) que os Evangelhos associavam com a morte de Jesus em 30/33 d.C. Na
era posterior a 70, os cristãos logo se tornaram conscientes dos presságios que os
judeus associavam com a destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos.40 Por
causa do tema comum da destruição do Lugar Sagrado de Jerusalém, eles facilmente
misturaram as duas tradições de sinistros sinais divinos. Vamos examinar alguns
traços dessa mistura e de como ela atuava interpretativamente.

Abaixo (sob “ Os quatro fenômenos terrestres em Mt 27,51bc.52ab como


reações à morte de Jesus” ), vou citar um fragmento poético de Melitão de Sardes
(c. 70 d.C.), que descreve o que aconteceu quando Jesus morreu. A terra tremeu,
os céus temeram, o anjo rasgou as roupas, o Senhor trovejou do céu e o Altíssimo
deu um grito. Embora a lista de Melitão esteja relacionada com os fenômenos
acrescentados em Mt 27,51b-53, a metáfora tem algumas semelhanças com os
portentos de Josefo antes da destruição do Templo. De modo semelhante e si­
multaneamente, Aí ascensões de Tiago (Pseudoclementinas I,xli,3) relata que o
mundo inteiro sofreu com Jesus. 0 sol escureceu; os astros foram perturbados, o
mar ficou agitado; as montanhas se moveram; as sepulturas se abriram; e o véu
do Templo rasgou-se como se lamentasse a destruição que pairava sobre o lugar.
Tertuliano (Adv. Marcion IV,xlii,5; CC 1,660) liga o rasgamento do véu do Templo
à saída de um anjo que abandona a filha de Sião.41 Eusébio (HE III,viii,l-9) cita

40 Além da lista de Josefo, temos outras tradições. 2 Barnabé 6-8 relata que, antes da destruição do Templo
pelos babilônios (= romanos), anjos vieram e tiraram a mobília do Santo dos Santos, inclusive o véu,
o efod, happoret, o altar e as vestes sacerdotais. Só então uma voz veio do meio do Templo e permitiu
a entrada dos adversários, porque o guardião tinha saído da casa. Taljer Yoma 6,43c diz que, entre os
presságios, quarenta anos antes da destruição do Templo (ver § 18, D l, acima), suas portas se abriram
espontaneamente. Rabbi Johanan ben Zakkai repreendeu o Templo por se dar a esse trabalho, pois Zc
11,1 já havia profetizado: “Abre tuas portas, ó Líbano, para que o fogo devore teus cedros” . (Lembramos
que o Templo salomônico era construído de cedro do Líbano.) TalBab Yoma 39b relata que, naquele tempo,
sortes sagradas eram malsucedidas, a faixa rubra sobre a entrada do Templo permaneceu vermelha, em
vez de se tomar branca no Dia da Expiação, e uma das lâmpadas do candelabro de sete braços apagou-
-se. TalBab Gittin 56b narra que Tito entrou no Santo dos Santos, rasgou o véu com a espada e sangue
jorrou. Apesar do estrato cristão final, muitos julgam que Lives of the Prophets contém antigas tradições
judaicas. Ali (ed. Torrey, p. 44), Habacuc diz: “0 véu do santuário interior será rasgado em pedaços e
os capitéis das duas colunas serão retirados” . A respeito de “capitéis” , ver nota 45 a seguir.
41 Em Transitus Mariae (difícil de datar) 10 (JANT, p. 195), as mulheres que ministravam no Templo fogem
para o Santo dos Santos durante a escuridão na crucificação. Ali elas veem um anjo descer com uma

293
Q uakto ato •JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto

a passagem inteira de Josefo a respeito dos portentos da destruição do Templo;


alhures (Demonstratio Evangélica VIII,ii, 121-124; GCS xxiii,389-390), ele diz
que o portento de Pentecostes relatado por Josefo aconteceu depois da morte do
Salvador e então chama a atenção para uma cena que ocorreu durante o governo
de Pilatos, deixando um confuso indicador do espaço de tempo dos acontecimentos
narrados. Em sua Crônica (ver § 42, nota 26 e parágrafo relacionado), Eusébio liga
ao período geral da morte de Jesus o eclipse relatado por Flégon (relacionado com
Lc 23,45a), um terremoto na Bitínia (relacionado com Mt 27,51b) e os portentos
de Pentecostes relatados por Josefo (relacionados com o véu)! 0 obscurecimento
da diferença de tempo entre o que aconteceu a Jesus em 30/33 d.C. e o que acon­
teceu perto da destruição do Templo em 70 d.C. (espaço de tempo de uma geração
de quarenta anos) é característico de outros escritores cristãos. Entre os diversos
autores e suas tradições, a mistura aconteceu por causa de: a) referências judaicas
a certas ocorrências quarenta anos antes da destruição; e/ou b) uma teologia que
considerava a morte de Jesus o motivo da destruição (posterior) do Templo; e/ou c)
o reconhecimento de que o rasgamento do véu do santuário era sinal que antecipava
a destruição do Templo inteiro, conforme Jesus previu.

Jerôn im o tem papel muito importante no desenvolvimento da tradição do


véu, não só por causa de seu uso do material de Josefo, mas também por causa
de seu acesso a testemunhos cristãos apócrifos primitivos. Significativas são meia
dúzia de referências, que abrangem um espaço de quase trinta anos (entre 380 e
409), mas nem sempre são consistentes e talvez reflitam uma tradição crescente na
mente do próprio Jerônimo.42 Vou tratá-las em ordem cronológica, na medida em
que as datas podem ser verificadas. Na Epístola 18a (Ad Damasum Papam 9; CSEL
54,86), Jerônimo comenta a visão que Isaías teve (Is 6,4) do trono do Senhor no
Templo, onde os serafins cantam louvores à santidade de Deus: “ E o lintel [sobre a
moldura da porta] foi sacudido pela voz com que eles gritavam e a casa encheu-se
de fumaça”. Jerônimo cita um Padre grego (Gregório de Nazianzo?) para quem isso
se cumpre na destruição (romana) do Templo e no incêndio de Jerusalém. Contu­
do, outros afirmam que o lintel do Templo foi erguido quando o véu do Templo foi

espada para rasgar o véu em dois e ouvem uma voz forte prenunciando uma desgraça contra Jerusalém
por matar os profetas. Quando veem o anjo do altar voar para o dossel do altar com o anjo da espada, elas
sabem “que Deus abandonou Seu povo” . Ver também Gospel (Questions) of Bartholotmu 24—27 (HSNTA
1,491; ed. rev., 1 v., p. 542-543).
í2 VerZahn, “Zerrissene”, p. 733, 740, 751 e 753.

294
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

rasgado e a casa toda de Israel foi desorganizada por uma nuvem de erros. Era a
esse mesmo período que Josefo se referia quando escreveu a respeito dos sacerdotes
que ouviram as vozes das hostes celestes vindo da parte mais íntima do Templo:
“ Saiamos destas moradas”. Na Epístola 46 (Paulae et Eustochii ad Marcellam 4;
CSEL 54,333), Jerônimo associa o rasgamento do véu do Templo com o cerco de
Jerusalém por um exército e o fim da proteção angelical. Ele cita novamente Josefo,
mas agora de modo tal que Josefo parece dizer que as vozes das hostes celestes
irromperam “na ocasião em que o Senhor foi crucificado”. Em seu Commentarium
in Matt. 4 (a respeito de Mt 27,51; SC 259,298) Jerônimo faz referência a um Evan­
gelho, que ele menciona com frequência (isto é, o Evangelho escrito em caracteres
hebraicos, embora fosse, na verdade, em aramaico, usado pelos nazareus da região
de Bereia ou Alepo).43 Nesse Evangelho, diz ele: “ Lemos que o lintel de tamanho
infinito do Templo foi despedaçado e fragmentado”. Depois, ele repete a referência
de Josefo a respeito do clamor das hostes angélicas. Na Epístola 120 (Ad Hedjbiam
8; CSEL 55,489-490), Jerônimo mais uma vez cita Josefo e também se refere ao
Evangelho escrito em letras hebraicas, onde “ Lemos, não que o véu do Templo
foi rasgado, mas que o lintel de grande tamanho do Templo foi erguido”. Em seu
Commentarium in Isaiam 3 (CC 73,87), mais uma vez em referência a Is 6,4, ele
fala do lintel do Templo sendo erguido e todos os gonzos quebrados, cumprindo a
ameaça do Senhor, em Mt 23,38, de que a casa ficaria deserta.44 Mais adiante no
mesmo escrito (18; CC 73A,775), ao comentar a balbúrdia na cidade e no Templo
(Is 66,6) que faz parte do som do Senhor retribuindo aos inimigos, Jerônimo vê
uma referência indubitável ao período em que Jerusalém foi cercada por exércitos
romanos. Mais uma vez, ele cita a passagem de Josefo a respeito do clamor das
hostes angélicas que presidiam o Templo.

Examinei isso em detalhes porque esclarece de modo interessante os fatores


que entraram na interpretação cristã. Obviamente, a tradição judaica a respeito dos
fenômenos pressagiosos que cercaram a destruição do Templo (neste caso, expressa
por Josefo) influenciou o entendimento dos fenômenos que acompanharam a morte

43 Ver M. J. Lagrange, RB 31,1922, p. 161-181,321-344. De maneira confusa, às vezes Jerônimo trata este
Evangelho dos Nazareus como se fosse o original semítico por trás do Mateus grego. (Não é o mesmo que
o Evangelho dos Hebreus conhecido dos Padres Alexandrinos, que é independente do Mateus grego.) Ele
alega tê-lo traduzido para o grego (e o latim?), mas nem sempre temos certeza se ele cita-o diretamente
ou de citações em outros, ou de memória.
44 Ele especifica que, quarenta e dois anos depois da Paixão, o Templo foi destruído.

295
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

de Jesus. Os dois conjuntos de ações expressam a cólera de Deus, e os de 30/33


prenunciam a destruição maior em 70; na verdade, a linha entre os dois é indistinta.
O rasgamento do véu do santuário que atuava em um nível simbólico acaba por se
tornar a sacudidela ou sublevação do lintel do Templo, como ocorreu na destruição
do edifício pelos romanos. Um catalisador na ligação das apresentações cristãs
de 30/33 e 70 é a profecia veterotestamentária que se refere a acontecimentos no
Templo sempre que a redação, independente do que significava originalmente (Is
6,4 era positivo!), se aplicava a um ou outro conjunto de fenômenos. Quando se
segue o fluxo cronológico das passagens de Jerônimo, nota-se que ele menciona
primeiro a ruptura do lintel do Templo na interpretação de Is 6,4 e então, mais
tarde, menciona que encontrou isso (em vez do rasgamento do véu) no Evangelho
apócrifo. Com certeza, então, Jerônimo viu uma relação entre a interpretação daquele
Evangelho e a exegese de Isaías. Os fenômenos que cercam a morte de Jesus em
Mc 15,33.38 fazem eco a passagens veterotestamentárias (principalmente às que
dão os sinais do dia do Senhor). O mesmo fazem outros fenômenos que surgiram
em círculos populares e dos quais temos conhecimento por intermédio dos Padres
e dos escritos apócrifos; mas ali entra em jogo um conjunto diferente de passagens
veterotestamentárias.45 Estas observações servem de introdução salutar para o
primeiro conjunto atestado de outros fenômenos que ocorreram depois da morte
de Jesus e que eram usados para suplementar o rasgamento marcano do véu do
santuário, a saber, os relacionados em Mateus.

45 A respeito do lintel em lugar do véu, dois artigos de Nestle (“Sonnenfinsternis” e “ Matt 27,51”) são
fascinantes. No contexto de descrever o dia do Senhor quando chega o fim para o povo de Deus, Israel,
o hebraico de Am 8,3 fala dos “cânticos” (strôt) do Lugar Santo sendo transformados em gemidos. A
LXX refere-se aos “painéis do teto” (phatiwmata) do santuário, enquanto a Vulgata de Jerônimo tem
“dobradiças da porta” . Áquila traz os pinos da porta [strophigges], ao que tudo indica lendo sír por
shír.) No grego clássico, a palavra que a LXX usa para “gemido” (ololyzein) não raro refere-se ao grito
de deusas e a coisas sagradas. O TM de Am 9,1 traz o Senhor de pé perto do altar dizendo: “ Bate nos
capitéis das colunas e as soleiras tremerão” . A LXX (ao que tudo indica lendo as consoantes kprt por
kptr do TM) traz a tampa da Arca da Aliança golpeada e os pilones do pórtico sacudidos, enquanto a
Vulgata de Jerônimo tem as dobradiças da porta golpeadas e os lintéis sacudidos. Se se juntar a LXX e
a Vulgata destas passagens, tem-se referências a painéis do teto, gritos estranhos na área do santuário e
lintéis sacudidos — parcialmente os ingredientes da combinação por Jerônimo do lintel rasgado e dos
fenômenos descritos por Josefo. Algumas das combinações eram anteriores a Jerônimo. Ao descrever
o martírio no altar do sacerdote Zacarias, pai de João Batista, Protoevangelho de Tiago 24,3 diz: “ Os
painéis do teto do santuário gemeram e eles [isto é, os sacerdotes ou (variante) os painéis] rasgaram as
roupas de alto a baixo” . Isso combina Am 9,1; 8,3 e Mc 15,38 ou Mt 27,51a.

296
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

Fenômenos especiais em M t 2 7,5 1-5 3 (e EvPd)

Cenas anteriores da NP também têm material exclusivo de Mateus, a saber,


a morte de Judas e as trinta moedas de prata, o sonho da mulher de Pilatos, Pi-
latos lavando as mãos e “ seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos” — material
que sugeri ter se originado de animados contos da Paixão. Aqui, só Mateus entre
os Evangelhos canônicos tem uma lista adicional de fenômenos aterradores que
choraram a morte de Jesus.46 Embora, como o rasgamento do véu do santuário, eles
reflitam a escatologia apocalíptica, esses fenômenos são ainda mais imaginosos. O
EvPd, que fez eco a material mateano especial na cena de Pilatos lavando as mãos,
faz eco a pelo menos um desses fenômenos (o tremor da terra).47

A fim de estudar atentamente a passagem mateana, é útil apresentar os


versículos em uma estrutura de verso por verso:

Mt 51a: E vede, o véu do santuário foi rasgado de alto a baixo em dois.


b : E a terra foi sacudida,
c : e as rochas foram partidas;
52a: e os túmulos foram abertos,
b: e muitos corpos dos santos adormecidos foram ressuscitados.
53a: E tendo saído dos túmulos
b: depois da ressurreição dele
c: eles entraram na cidade santa;
d: e eles foram feitos visíveis a muitos.

Pus em itálico quatro versos (Mt 51bc, 52ab) para que os leitores percebam
a semelhança de uns com os outros (quatro sentenças simples coordenadas ou
orações principais, que começam com kai, nas quais o verbo é um passivo aorís-
tico) e também suas diferenças do mais complicado Mt 51a (que Mateus tirou de
Marcos) e de Mt 53.48 E quase como se o padrão passivo aorístico de Mt 51a que

* Entre os Padres da Igreja e também entre os biblistas modernos (ver § 37, Parte XI), esses fenômenos
têm sido assunto de uma quantidade extraordinária de discussões. Bons levantamentos de opiniões
encontram-se em Aguirre Monasterio e Maisch.
47 Esse fato fortalece minha opinião de que, em parte, o EvPd é um Evangelho folclórico.
48 Embora o v. 51a também tenha um passivo aorístico, a ação básica é modificada por uma longa frase
descritiva. 0 v. 53 começa com uma construção participial mais uma frase e o primeiro verbo principal

297
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

indica ação divina fosse assumido para construir um pequeno quarteto poético que
consiste em dois dísticos (Mt 51b e c são inter-relacionados, do mesmo modo que
Mt 52a e b) com o terremoto de Mt 51bc levando aos resultados descritos em Mt
52ab. O v. 53 tem a aparência de uma reflexão obtida dos acontecimentos de Mt
52ab.49 Refrãos poéticos quase sempre fazem parte da apresentação popular de um
acontecimento e são atestados em referências neotestamentárias às consequências
da morte de Jesus.50 Um paralelo poético muito próximo encontra-se em Sobre a
Páscoa de Melitão de Sardes, composto c. 170 d.C. No contexto da descrição da
morte do Senhor e da escuridão que a acompanhou, Melitão (98; SC 123,118)
escreve quatro dísticos nos quais, enquanto os primeiros versos censuram a in­
sensibilidade dos judeus, os segundos versos descrevem os fenômenos terrestres
ou celestes correspondentes desta maneira:

A terra estava tremendo...

Os céus temeram51...

O anjo rasgou as vestes52...

é ativo, não passivo. A tese anteriormente defendida por Schenk (Passionsbericht), segundo a qual um
hino apocalíptico judaico de sete versos descrevendo a ressurreição dos mortos estava por trás dos vv.
51b-53d, é insatisfatória a muitos respeitos. Para obter sete versos começando com kai (“e” ), ele teve de
apagar o v. 53b e acrescentar um kai no início do v. 53c. Além disso, ele teve de mudar o particípio no
v. 53a para um verbo finito e ignorar a mudança de passivo para ativo. A atribuição desse hino a fontes
judaicas esquece-se da força temporal do aoristo: essas ações apocalípticas aconteceram (em Jesus, como
creem os cristãos) e não são apenas previstas no futuro. A mesma objeção resiste à tentativa de fazer os
hinos da narrativa lucana da infância judeus, em vez de composições (judeu-)cristãs; ver BNM, p. 418.
Ver a rejeição da tese de Schenk por Sênior, “ Death of Jesus” , p. 318-319; Aguirre Monasterio, Exégesis,
p. 69-71. Sênior (“Matthew’s Special Material” , p. 278) relata que Schenk abandonou essa teoria.
49 Não pontuei Mt 53abc de propósito para mostrar o problema de 53b ter de ser lido com 53a ou 53c.
50 lPd 3,18-19, que consiste em cinco ou seis versos poéticos, tem tom escatológico: o que morreu na carne
e recebeu vida no espírito vai pregar aos espíritos na prisão. Ef 4,8, que consiste em três versos, retrata
Cristo subindo às alturas, levando um grande número de cativos. Talvez a passagem neotestamentária
análoga de forma mais próxima a Mt 27,51b-52b seja lTm 3,16, composto de seis versos (orações
principais curtas) em um padrão de três dísticos: Cristo é o sujeito inominado e todos os verbos estão na
passiva aorística. Em frequentes interpretações, este poema vai da encarnação à ascensão, mas o conjunto
podería referir-se à morte de Jesus e suas consequências. Ver (acima, sob “Josefo” ) os Reconhecimentos
Pseudoclementinos l,xli,3, que têm padrão estilizado; não está claro se isso se origina de Mateus ou de
outra tradição independente de sinais que acompanharam a morte de Jesus.
Provável referência à escuridão que cobriu toda a terra.
>2 Isso se refere ao rasgamento do véu do santuário. Tertuliano (Adv. Marcion lV,xlii,5; CC 1,660): ” 0 véu
do Templo foi rasgado por um anjo que deixou a Filha de Sião” . Ver Bonner, “Two” , p. 183-185.

298
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte; Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

O Senhor clamou do céu,


e o Altíssimo deu um grito.

Notemos que a referência contextual à escuridão é seguida de alusões a um


terremoto e a um forte grito.

Com essas observações gerais quanto ao formato, volto-me agora a uma


consideração mais rigorosa dos fenômenos em si. (Embora eu prefira a opinião de
que o quarteto nos vv. 51b-52b é pré-mateano e que o v. 53 é criação mateana fora
do quarteto, vou deixar essa questão de lado até termos examinado o conteúdo.)

Os quatro fenômenos terrestres em Mt 27,51bc.52ab como rea­


ções à morte de Jesus. Anteriormente, ouvimos falar da escuridão sobre toda
a terra ao meio-dia e do rasgamento do véu do santuário. Se acrescentarmos esses
dois aos quatro fenômenos relatados nos vv. 51b-52b, há em Mateus um total de
seis sinais apocalípticos associados à morte de Jesus.53 (Mais dois serão associados
à ressurreição de Jesus no v. 53, totalizando oito.) Alguns anos mais tarde, Inácio
(Tralianos 9,1) escreveu que Jesus “foi verdadeiramente crucificado e morreu, à
vista dos que estavam no céu e na terra e sob a terra”.34 Talvez não seja romântico
demais, então, ver em Mt 27,51b uma progressão de sinais nos céus (escuridão)
para sinais na terra (véu do santuário rasgado, terra sacudida, rochas partidas),
para sinais sob a terra (abertura dos túmulos e ressurreição dos mortos). Os que
cercavam a cruz de modo escarnecedor exigiam um sinal do céu na vinda de Elias
(Mt 27,49); Deus, que recusou esse sinal, agora respondeu amplamente, de maneira
majestosamente apropriada ao poder divino.

A questão da realidade histórica desses sinais está certamente além de


nossa estimativa, mas, mesmo no nível superficial da narrativa evangélica, eles
são, por natureza, de visibilidade variada. Só algumas pessoas poderíam ter visto
o rasgamento do véu do santuário e a ressurreição dos corpos dos santos mortos.
Apesar do generalizado “ muitos” mateano, apenas alguns hierosolimitas poderíam
ter visto esses santos quando eles se tornaram visíveis na cidade santa. A escu­
ridão de três horas sobre toda a terra ao meio-dia, entretanto, e o tremor da terra

’’ Didaqué 16,6 fala de três sinais dos últimos dias: “Primeiro, o sinal de uma abertura no céu; depois, o
sinal do toque da trombeta; e, em terceiro lugar, a ressurreição [anastasis] dos mortos” .
a4 Inácio (Efésios 19), com suas referências à concepção virginal, uma estrela e formas de mágica (cf. magos)
demonstra conhecimento do tipo de material popular que Mt 2 incorporou à narrativa do nascimento;
talvez ele também conhecesse o material popular incorporado à NP mateana.

299
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

(e provavelmente as rochas que foram partidas ao mesmo tempo) devem ter sido
visíveis a todos na área, pelo menos. Talvez Mateus reconheça isso, pois, em Mt
27,54, quando relata que “o centurião e os que com ele guardavam (montavam
guarda sobre) Jesus” viram todos “estes acontecimentos” e ficaram muito assustados,
ele destaca o tremor (da terra) como exemplo. Essa especificação proveitosamente
reconhece que o terremoto é o fator principal em Mt 27,51b-53, influenciando os
outros três fenômenos. (É o único dos quatro preservado claramente no EvPd.) O
terremoto faz com que as rochas se partam (Mateus repete o schizein usado para
o rasgamento do véu do santuário) e os túmulos se abram. Por si mesmos, esses
três primeiros dos quatro fenômenos poderiam ter sido ocorrências naturais, pois
a Palestina é propensa a sofrer terremotos; contudo, como com a escuridão sobre
toda a terra (descrita por Lucas como resultado de um eclipse), a regulagem do
tempo mostra que um passivo divino está sendo empregado nos verbos e que Deus
está ativo em tudo isso. 0 quarto fenômeno, a ressurreição dos santos mortos,05
torna isso indubitável. É preciso examinar os quatro um por um, para perceber
seu significado escatológico.

A terra sacudida (Mt 27,51b).5


556 Só em Mateus uma estrela saudou o nas­
cimento do “ Rei dos Judeus” (Mt 2,2.9); portanto, não é surpreendente, à guisa
de inclusão, que na morte, além de a escuridão cobrir toda a terra (Mt 27,45), a
própria terra seja sacudida. Em § 42, vimos que, ao descrever o eclipse relatado por
Flégon, Orígenes e Eusébio fizeram referência a um forte terremoto. Provavelmente,
a referência mateana a um tremor da terra, combinada com Is 6,4, explica a mu­
dança na metáfora da tradição cristã mais tardia do rasgamento do véu do santuário
na morte de Jesus para a ruptura e viravolta do lintel do Templo (ver acima, sob
“Jerônimo” ). Há numerosos exemplos veterotestamentários de tremores da terra

55 Precisamos rejeitar, então, quaisquer tentativas de tratar os quatro fenômenos de maneira diferente. Se
pelos padrões modernos os primeiros são menos sobrenaturais e mais fáceis de aceitar que os últimos,
a estrutura e também o significado da cena mateana colocam todos eles no mesmo nível da intervenção
divina.
56 Embora, em geral, Riebl (Auferstehung) prefira um antecedente semítico pré-mateano para a descrição
dos fenômenos, nas páginas 49-50 ela reconhece que o vocabulário de “E a terra foi sacudida [seiein]”
é bem mateano. Um substantivo relacionado, seismos (“sacudida, tremor”), é usado para o segundo
terremoto associado com a abertura do túmulo de Jesus em Mt 28,2, enquanto o verbo seiein é mantido
para a sacudida ou o tremor dos guardas (Mt 28,4) em resposta. Anteriormente, o verbo foi usado para
a agitação de Jerusalém quando Jesus entrou (Mt 21,10). A meu ver, Witherup (“ Death” , p. 580) força
demais quando considera “ sacudida” carregada de significado, embora a palavra realmente represente
reação a acontecimentos referentes a Jesus.

300
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

como sinal de julgamento divino ou dos últimos tempos, por exemplo, Jz 5,4; Is
5,25; 24,18; Ez 38,19. No contexto da cólera ardente de Deus, manifestada contra
o povo de Deus que é tão mau, Jr 4,23-24 relata: “ Olhei para a terra e ela estava
deserta e vazia; para os céus e sua luz se extinguira; olhei para as montanhas e elas
trepidavam e todas as colinas se moviam”. A combinação de escuridão e terremoto
como parte do julgamento encontra-se também na descrição do dia do Senhor em
J1 2,10: “ Diante deles, a terra treme e os céus balançam; o sol e a lua escurecem
e as estrelas retiram seu brilho”.5758Testamento de Levi 3,9 estende a reação às
regiões inferiores: “ E os céus e a terra e os abismos são movidos diante da face de
Sua grande majestade”. Em 1 Henoc 1,3-8, como parte do grande tremor da terra
que saúda a vinda de Deus do céu para julgar o mundo, até as sentinelas celestes
tremem — detalhe interessante para comparar com o segundo terremoto mateano
(Mt 28,2-4), quando um anjo do Senhor abre o túmulo de Jesus e os guardas tremem
de medo. Quando o Senhor vem em resposta ao grito do justo no dia de sua aflição,
lemos em SI 77,19: “A terra tremeu e se abalou” (também 2Sm 22,7-8). Em Mt
24,7-8 (Mc 13,8), terremotos marcam o início das dores dos últimos tempos. Assim,
se estavam familiarizados com parte dessa origem, os leitores de Mateus não teriam
dificuldade para reconhecer no tremor da terra que acompanhou o rasgamento do
véu do santuário um sinal apocalíptico do julgamento evocado pela morte cruel à
qual sujeitou-se o Filho de Deus. Quanto aos leitores de origem primordialmente
greco-romana, Virgílio relatou que os Alpes estremeceram por ocasião do assassi­
nato de César (ver acima, sob “ Fenômenos que marcam a destruição do Templo” ).
Na verdade, quando quer parodiar a morte de um homem famoso, Luciano combina
um terremoto com um abutre falante que voa para o céu como sinais que saúdam
sua partida (De morte Peregrini 39).

Rochas partidas (Mt 27.51cj.;>8 Este pode ser considerado exemplo de para­
lelismo poético, que usa outros verbos para dizer a mesma coisa, como “a terra foi
sacudida”. Contudo, muitas vezes, o poder de Deus ao espedaçar as rochas sólidas
é item especial ao descrever julgamento. A frase “o despedaçamento das rochas”

57 Também J1 4,15-16 [RSV 3,15-16]; Is 13,9-13; Ag 2,6.21; Ap 6,12; Assunção [Testamento] de Moisés
10,4-5.
58 Embora petra (“rocha, pedra” ) seja mais frequente em Mateus (cinco vezes) que nos outros Evangelhos,
o verbo schizein é usado em outras passagens de Mateus apenas para o rasgamento do véu do santuário
dois versos antes, onde ele tomou-o emprestado de Marcos. Este último usa-o não só aqui, mas também
no batismo, para o rasgamento dos céus (Mc 1,10).

301
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

ocorre na LX X de Is 2,19 na descrição de onde os que fogem no dia do Senhor vão


esconder seus ídolos. Em lR s 19,11-12, como parte do que pode ser esperado em
uma teofania, ouvimos falar de um vento forte que divide as montanhas e esmaga
as rochas, e depois disso acontece um terremoto. Zc 14,4 descreve o juízo final
com Deus vindo ficar no Monte das Oliveiras e “rasgando-o” pelo meio; Na 1,5-6
relata que, quando a cólera de Deus se desencadeia, as montanhas são sacudidas
e as rochas são despedaçadas em direções diferentes. Em Testamento de Levi 4,1,
passagem poética com um formato parecido com o de Mt 27,51b-52b, quando Deus
julga os seres humanos, “as rochas se partem e o sol escurece”.

Túmulos abertos (Mt 27,52a).59 Para Mateus, a ação de Deus de abrir as


entranhas da terra depois da morte de Jesus é uma inclusão com a abertura dos
céus por Deus no início do ministério, no batismo de Jesus (Mt 3,16).60 A ligação
da abertura dos túmulos com o despedaçamento das rochas anterior está esplen-
didamente visível nas pinturas das paredes da sinagoga de Dura-Europos, que
retratam a ressurreição dos mortos como parte da recuperação da vida pelos ossos
ressequidos de Ez 37 — um quadro do século III61 que é muito útil para entender
como Mateus e/ou seus leitores imaginavam a cena que ele narra.62 Ali, na mon­
tanha coberta de árvores que se parte (quase com certeza o Monte das Oliveiras
partido por um terremoto),63 rochas são partidas, desse modo abrindo túmulos
escavados nas encostas da montanha e expondo corpos dos mortos e suas partes. E
descrita uma figura que talvez seja o Messias davídico (ver Ez 37,24-25) que causa

Quando eu examinar o sepultamento de Jesus, darei estatísticas sobre as várias palavras para túmulo e
sepulcro; aqui, é empregado mnemeion, termo que Mateus usa três vezes para o túmulo de Jesus.
60 Em contraste, Mc 1,10 e 15,38 fazem a inclusão entre o rasgamento dos céus e do véu do santuário.
61 A sinagoga de Dura foi construída c. 200 d.C. As pinturas, inclusive a pintura de Ezequiel na parede
norte, originam-se do período que se seguiu à ampliação em 244 d.C.
62 H. Riesenfeld, The Resurrection in Ezekiel xxxvii and the Dura-Europos Paintings, Uppsala, Lundequistska
Bokhandeln, 1948; R. Wischnitzer-Bernstein, “The Conception of the Resurrection in the Ezekiel Panei
of the Dura Synagogue” , em JB L 60, 1941, p. 43-55. esp. p. 49; U. Schubert, “Jüdische” , p. 3-4; A.
Grabar, “Le thème religieux des fresques de la synagogue de Doura (245-256 après J.C.)’’, em RHR
123, 1941, p. 143-192. Aguirre Monasterio (Exégesis, p. 84-97) relaciona aos afrescos de Dura várias
reflexões litúrgicas targumínicas e judaicas a respeito de Ez 37. Nenhuma parte desse material é um guia
totalmente confiável ao entendimento folclórico da ressurreição dos mortos, mas ele pode bem estar mais
perto desse entendimento que a exegese moderna de textos veterotestamentários relativos ao assunto.
63 Ver Zc 14,4, onde Deus vem a exercer julgamento no Monte das Oliveiras. A insistência mateana, no
versículo seguinte (Mt 27,53), no fato de que eles entraram na cidade santa (de Jerusalém) pode ter sido
influenciada pelo local do julgamento em Zacarias.

302
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

essa ressurreição dos mortos. Anterior e contemporâneo ao escrito de Mateus, há


testemunho da importância que Ez 37 tinha para os justos que morriam por suas
convicções a respeito de Deus. Em Massada, onde zelotas judeus fizeram sua últi­
ma resistência contra os exércitos romanos em 73 d.C., no piso da sinagoga foram
encontrados fragmentos de um rolo no qual estava escrito o relato por Ezequiel de
sua visão da ressurreição dos ossos mortos. Consequentemente, mesmo à parte das
pinturas de Dura-Europos, Ez 37,12-13 pode ser a passagem explicativa por trás da
descrição mateana neste verso e no que se segue, pois apresenta a única abertura
de túmulos (distinta da simples ressurreição dos mortos) descrita no AT.64 O povo
de Deus está convencido de que virá a conhecer o Senhor porque: “Abrirei vossos
túmulos [mnema] e vos farei sair de vossos túmulos e vos conduzirei para a terra
de Israel”. Anteriormente, cada descrição de um fenômeno isolado na lista mateana
de quatro em Mt 27,51b-52b, embora repetisse parcialmente em paralelismo o que
precedeu (o tremor da terra partiu as rochas e assim abriu os túmulos), também
proporcionou uma nova perspectiva. Isso é verdade aqui também, pois o sinal
moveu-se dos céus (escuridão) e da terra (véu do santuário rasgado, terra sacudida,
rochas partidas) para debaixo da terra. Que túmulos foram abertos? A resposta a
isso está envolvida com a identidade dos “santos” no quarto fenômeno.

Muitos santos adormecidos ressuscitaram (Mt 27,52b).65 “Adormecido” é


frequente eufemismo neotestamentário para os mortos (lTs 4,13; ICor 15,20; Jo
11,11; 2Pd 3,4). No contexto de julgamento, 1 Henoc 91,10 imagina que “os justos
se levantarão de seu sono” (também 4 Esdras 7,32); e 2 Baruc (Siríaco) 21,24
considera Abraão, Isaac e Jacó adormecidos na terra. (Alguns Padres da Igreja,
como Agostinho e Crisóstomo, imaginaram que Mateus quis dizer que esses cor­
pos foram despertados de seu sono da morte pelo brado e pelo forte grito de Jesus
quando ele morreu [Mt 27,46.50].) Alhures no NT, os “santos” ou “sem pecado”
são os que creem em Jesus (ICor 14,23; Rm 1,7; At 9,13; Hb 13,24), do mesmo

64 Notemos que Ez 37,7 menciona um terremoto (ver Grassi, “Ezekiel”). Contudo, sinto-me incrédulo quanto
a uma ligação entre Ez 37,6 (“Eu darei meu espírito para vós e vós vivereis” ) e Mt 27,50, onde Jesus
“soltou o espírito” . A metáfora das duas passagens é diferente. Os santos adormecidos são ressuscitados
quando a terra é sacudida no momento da morte de Jesus; não entendo que Mateus quer dizer que eles
receberam o espírito solto de Jesus. Aguirre Monasterio (Exégesis, p. 184) afirma que Mateus usa uma
expressão altamente incomum para morrer; mas, então, pode-se perguntar: se Mateus pretendia fazer
um paralelo com Ez 37,6, por que não escolheu um verbo que facilitaria isso?
65 Egeirein (“elevar, ressuscitar”) é usado trinta e seis vezes em Mateus, treze das quais se referem à res­
surreição dos mortos.

303
Q uarto ato •Jesus é crucificado c m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

modo que, às vezes, no AT, eles são o povo de Israel (Is 4,3; Dn 7,21; 8,25). Nesta
passagem, eles devem ser judeus que morreram depois de uma vida santa.66 1
Henoc 61,12 coloca em paralelismo “todos os santos que estão no céu” e “todos
os eleitos que moram no jardim da vida”. Testamento de Levi 18,10-11 prevê que
o sumo sacerdote ungido dos últimos dias “abrirá as portas do paraíso [...] e dará
aos santos para comer da árvore da vida”. Ao notar que Mateus fala dos “corpos”
dos santos, em vez de simplesmente dos “santos”, há quem tente distinguir entre
esta ressurreição e a da pessoa integral, como se esta fosse uma ressurreição
intermediária antes da ressurreição final. Entretanto, nenhuma distinção desse
tipo é feita pelo uso de “corpo”, pois a ressurreição dos corpos mortos dos túmulos
é apenas metáfora estabelecida.67 Até este ponto, os sinais apocalípticos foram
negativos (escuridão, véu do santuário rasgado, terremoto), mas este sinal mostra
o lado positivo do julgamento divino centralizado na morte do Filho de Deus: os
bons são recompensados e os maus castigados.

Judeus que acreditavam na ressurreição corporal esperavam que todos os


santos (justos) fossem ressuscitados e recebessem o reino (Dn 7,22; Lc 14,14), ou
mesmo que todos os seres humanos devessem ser ressuscitados e recebessem de
Deus destinos diferentes (Dn 12,2; Jo 5,28-29). Uma ressurreição seletiva como
aqui é bastante peculiar e leva à especulação:68 que túmulos foram abertos e que
santos foram ressuscitados? O contexto mateano (Mt 27,53-54) no qual a abertura
dos túmulos faz parte dos fenômenos visíveis para o centurião e outros guardas
no Gólgota, e no qual os ressuscitados ficam visíveis na cidade santa, indica que
Mateus pensa em túmulos de santos na área de Jerusalém próxima ao lugar onde

66 Eles são os que, em outras passagens (Mt 13,17; 23,29), Mateus associa com profetas antigos, sob o título
“ os justos [dikaioi]" — mudança de vocabulário que talvez indique a origem não mateana dessa parte.
(Syr'1" e Efrém leram “justos” em lugar de “ santos” nessa passagem.) Embora alguns Padres da Igreja
incluam gentios, o contexto em Mateus indica claramente que ele pensa em judeus — por que gentios
iriam para a “ cidade santa” ? Sb 5,5 assim escreve sobre o destino do judeu piedoso morto: “Vede como
ele é considerado entre os filhos de Deus [anjos], como compartilha a sorte dos santos [também anjos,
ou humanos virtuosos mortos?]” .
6‘ Ver, em Is 26,19, os mortos revivendo e os que estão nos túmulos sendo levantados. Em Diatessarão,
Taciano reconheceu a equivalência dessa terminologia ao ler “os mortos” em lugar de “muitos corpos
dos santos adormecidos” ; ver W. L. Petersen, NTS 29,1983, p. 494-507.
68 Mateus usa “ muitos” com frequência e, por si só, o uso é necessariamente partitivo (ver Mt 9,10; 13,17;
24,11). “Muitos corpos dos santos adormecidos” contém um genitivo epexegético (os “muitos corpos”
são “ os santos adormecidos” ), mas o contexto deixa claro que nem todos os justos de todo tempo e lugar
foram ressuscitados.

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§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

Jesus morreu.69 Embora alguns comentaristas sugiram que Mateus descreve a li­
bertação das grandes figuras conhecidas da história veterotestamentária para quem
a recompensa foi adiada até a redenção trazida por Jesus,70 supõe-se que relativa­
mente poucas delas foram sepultadas na área de Jerusalém. Devido à especulação
que liga “ lugar da Caveira” ao crânio de Adão (§ 40, nota 9), esse patriarca foi
sugerido (Epifânio). E porque, em At 2,29, Pedro menciona que o túmulo de Davi
está “conosco até hoje” em Jerusalém, aquele rei santo é outro candidato (Agos­
tinho). Houve quem recorresse a Mt 23,37, com sua acusação de que Jerusalém
matou os profetas, sugerindo a possibilidade de terem sido sepultados ali. Outros
comentaristas pensaram em santos mais próximos do tempo de Jesus ou envolvi­
dos com ele, apesar de só existir lenda quanto ao lugar onde foram sepultados. Na
Antiguidade, João Batista foi citado como um dos corpos ressuscitados, embora
isso fosse posto em dúvida por comentaristas mais tardios (Cornelius a Lapide),
com base no fato de diversas igrejas (Roma, Amiens) alegarem ter relíquias de sua
cabeça preservada. O Evangelho de Nicodemos (Atos de Pilatos) 17,1 diz que Jesus
ressuscitou Simeão, o idoso que tomou o menino Jesus nos braços (Lc 2,25-28),
bem como os dois filhos de Simeão que haviam morrido recentemente. Na verdade,
seus túmulos ainda podiam ser vistos abertos e essas pessoas ilustres ressuscitadas
estavam vivas e moravam em Arimateia!

Tal especulação é desnecessária, pois essa poética descrição popular é de-


liberadamente vaga — seu ponto forte é atmosfera, não detalhes. Observemos que
os aspectos de medo, falta de reconhecimento, dúvida e prova exigida que acom­
panham a ressurreição e as aparições de Jesus não se encontram em Mt 27,52-53.
A identidade do Jesus ressuscitado como o mesmo de quem a crucificação e morte
tinham sido testemunhadas era importante para os autores neotestamentários; mas,
aqui, a questão é o poder espantoso da ação divina, não a identidade do ressusci­
tado. A vinda do Reino de Deus no ministério de Jesus foi entendida não como a
manifestação final do reino (isto é, a culminância onde o Filho do Homem reunirá

w Outros túmulos encontram-se adjacentes ao Calvário e ao túmulo de Jesus na igreja do Santo Sepulcro
em Jerusalém e os relatos evangélicos do sepultamento de Jesus presumem a presença de uma área de
sepultamento perto dali.
Depois de tratar das façanhas de muitas grandes figuras veterotestamentárias, Hb 11,39-40 diz: “ E todos
eles, embora provados pela fé, não receberam a promessa [...], para não serem feitos perfeitos sem nós” .
A respeito dos profetas veterotestamentários, Inácio (Magnésios 9,2) escreve: “ Quando chegou aquele
por quem eles justamente esperavam, ele os ressuscitou dos mortos” . Ver mais especificamente Martírio
(Ascensão) de Isaías 9,17-18 (ver adiante, sob ‘“A cidade santa’ [Mt 27,53c]”).

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Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

diante dele todas as nações, designando as que devem herdar o reino preparado
para elas desde a fundação do mundo, como em Mt 25,31-34), mas como uma
incursão que o inaugura e antecipa. Do mesmo modo, esta ressurreição de “muitos
corpos” quando Jesus morre não é a ressurreição final universal, mas uma incursão
do poder de Deus significando que os últimos tempos começaram e o julgamento
foi inaugurado (ver D. Hill, “ Matthew”, p. 80-82). No julgamento pelo sinédrio,
Jesus advertiu o sumo sacerdote e as autoridades que o julgavam: “ De agora em
diante, vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e vindo sobre as nuvens
do céu” (Mt 26,64). A escuridão, o véu do santuário rasgado, a terra sacudida, as
rochas partidas, os túmulos abertos e os corpos ressuscitados dos santos formam o
aspecto exterior apocalíptico que esclarece o cumprimento parcial do julgamento
divino subentendido naquela advertência profética, quando o Todo-poderoso reage
à morte do Filho do Homem que é o Filho de Deus.

Quando se aprecia o caráter apocalíptico simbólico, poético e popular dos


quatro versos de Mt 27,51b-52b com os fenômenos que descrevem, eles não apre­
sentam nenhum grande problema. Eles estão claramente ligados à morte de Jesus na
tarde de sexta-feira,71 daí o tom sinistro de julgamento que precede a ressurreição
dos santos. Mas a situação foi complicada por tentativas teológicas cristãs de en­
tender cronologicamente os vários aspectos da morte de Jesus e de sua ida ao Pai.
Uma tentativa, refletida alhures no NT e em escritos da Igreja primitiva, preenche
o interstício entre a morte na sexta-feira e a descoberta do túmulo vazio no domingo
cedo, fazendo Jesus descer ao inferno; e examinaremos isso no parágrafo seguinte.
Outra tentativa faz toda vitória fluir da ressurreição de Jesus, e estudaremos isso
em relação ao versículo seguinte (Mt 27,53).

A DESCIDA AO INFERNO. Onde ficou Jesus desde a hora em que morreu e foi
sepultado até aparecer na Páscoa? Uma resposta cristã primitiva, já examinada
acima (§ 41), em relação a “ Este dia comigo vais estar no paraíso” (Uc 23,43), era

1 Veremos que o v. 53 muda o enfoque para a Páscoa. Hutton (“ Ressurrection”), recorrendo ao EvPd
10,41, onde os “adormecidos” são mencionados depois da ressurreição de Jesus, considera todos esses
fenômenos originários de um relato transposto da ressurreição. Além da tese extremamente duvidosa de
que o EvPd é mais original que Mateus, os elementos de julgamento colérico no v. 51bc estão ligados à
escuridão sobre toda a terra ao meio-dia e ao véu rasgado do santuário, e não à ressurreição, se podemos
julgar pelos relatos canônicos. Contra a defesa por Hutton da prioridade do relato do EvPd, ver Aguirre
Monasterio, Exégesis, p. 115, 151; e Maisch, “Osterliche” , p. 102-103 — também Sênior (“Death of
Jesus” , p. 314-318), que menciona que até a aparição de anjos na ressurreição, em Mt 28,2-4, funciona
de modo diferente da aparição angelical em EvPd 10,39.

306
________________ §43.Jesuscrucificado,quartaparte:AcontecimentosposterioresàmortedeJesus- a.Efeitosexternos

que ele foi para Deus ou estava no céu. Esse, afirmo, era o entendimento histórico
original dos poéticos versículos mateanos que examinamos — sexta-feira era o tempo
de vitória e a própria cruz era o local de julgamento, de modo qu e, funcionalmente,
a ressurreição dos santos adormecidos por ocasião da morte de Jesus tem a mesma
importância que o Jesus lucano levar ao paraíso o malfeitor que fora crucificado
com ele no mesmo dia em que ambos morreram. Entretanto, outra perspectiva era
que Jesus não só entrou no céu depois da ressurreição que aconteceu na Páscoa:
e, às vezes, nesse cenário, o tempo intermediário foi ocupado com uma descida ao
reino dos mortos.72 Ali, julgava-se que ele esmagou os maus espíritos ou libertou
da reclusão os santos mortos (ou, pelo menos, os arrependidos) que esperavam (na
prisão ou em um tipo de limbo chamado inferno) pela redenção ou pelo acesso ao
céu.73 E ssa especulação deve ter começado logo, pois parece que foi pressuposta
em uma série de passagens neotestamentárias (admitidamente obscuras),'4 embo­
ra muitas vezes haja falta de especificidade quanto a quando a descida ocorreu.
lPd 3,18-19 fala de Cristo ter sido executado na carne, mas ter recebido vida no
espírito, no qual, “ tendo ido, fez proclamação [keryssein] aos espíritos na prisão”.
Depois de uma referência ao que está pronto para julgar os vivos e os mortos, lPd
4,6 diz: “ Pois é por isso que o Evangelho foi pregado até para os mortos, a fim de
que, embora julgados na carne segundo seres humanos, possam viver segundo Deus
no espírito”. E f 4,8-10 indica que houve uma descida para as partes inferiores da
terra antes de Cristo subir às alturas levando um grande número de cativos (ver
também Rm 10,6-7; F1 2,9).

‘2 A frase do credo “ Desceu ao inferno” aparece nos Credos Oriental (fórmula de Sirmium) e Ocidental
(Credo Romano Antigo, usado em Aquileia) no século IV, embora não haja unanimidade quanto ao que
significa, em parte por causa de debates a respeito da posição de Orígenes de que as almas dos maus
podiam ser convertidas depois da morte. Sobre tudo isso, ver W. J. Dalton, Christs Proclamation to the
Spirits, AnBib, Rome, PBL, 1965; 2. ed. 1989.
■3 As imagens mentais judaicas primitivas do que se seguia à morte não eram uniformes e, na verdade,
muitas vezes tinham mudado drasticamente desde os tempos bíblicos (pré-exílicos), quando o Xeol não
era mais que um túmulo, um lugar de escuridão e sombra (Jó 10,21) onde os corpos de todos os mortos
estavam inertes, sem esperança (Jó 17,13.15). Ver N. J. Tromp, Primitive Conceptions of Death and the
Nether World in the Old Testament, Rome, PBI, 1969. Mais próximo dos pontos de vista descritos no
texto acima está 4 Esdras 4,35-42, onde as almas dos justos perguntam quanto tempo têm de permanecer
em seus compartimentos, e um arcanjo explica: no Hades, os compartimentos são como o útero, pois,
quando o número pré-mensurado das idades e dos tempos estiver completo, esses lugares devolverão os
que lhes foram entregues desde o começo.
,l Muitas delas são poéticas e consistem em diversos versos (talvez de um poema maior), do mesmo modo
como mencionei que Mt 27,51b-52 é poético.

307
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Parece que nada do que está acima, a respeito da descida ao inferno, tem
alguma coisa a ver com a imagem em Mt 27,52, com seus túmulos abertos e a
ressurreição dos santos adormecidos por ocasião da morte de Jesus, mas temos
indícios de que as duas imagens foram entrelaçadas no início do século II, senão
antes.75 Além de referências à escuridão envolvendo toda a Judeia e o ato de rasgar
o véu do santuário, EvPd 6,21 relata que “toda a terra foi sacudida”, o que revela
conhecimento de um dos fenômenos caracteristicamente mateanos. Depois, em EvPd
10,41-42, quando o Senhor é levado do sepulcro, uma voz do céu fala: “ Fizeste
proclamação [keryssein] aos adormecidos?” ; e da cruz há uma resposta obediente:
“ Sim”. Obviamente, essa proclamação (linguagem de lPd 3,19) aos adormecidos
(linguagem semelhante à de Mateus) tinha de ter acontecido entre a hora em que
Jesus morreu e a hora em que ressuscitou. A combinação de linguagem mateana
com a da descida é ainda mais óbvia em Justino (Diálogo 72-74), quando ele alega
o cumprimento de uma citação espúria de Jeremias:76 “ O Senhor Deus de Israel
lembrou-se de Seus mortos, os adormecidos na terra da sepultura; e Ele desceu até
eles para pregar-lhes a Boa-nova [euaggelizein] de Sua salvação”.77Justino (Apologia
l,xxxv e l,xviii) faz referência a documentos (autos) do julgamento de Jesus diante
de Pilatos, e conhecemos esse mesmo tipo de material lendário em forma mais
tardia nos Atos de Pilatos (Evangelho de Nicodemos). Ali (Atos de Pilatos 17ss),
os ressuscitados Simeão e seus filhos, de quem os túmulos abertos ainda podem
ser vistos (claramente, um eco dos fenômenos mateanos) são trazidos de Arimateia,
onde agora vivem, para dar uma declaração juramentada, escrita, às autoridades
judaicas a respeito dos milagres que Jesus fez no Hades, ao derrotar o Hades e
Satanás, e levar ao paraíso todas as figuras famosas do AT e João Batista. Quando
examinamos as tradições populares de Judas, que Mt 27,3-10 assumiu e moldou em
uma narrativa a respeito do preço do sangue inocente, indicamos outras transforma­
ções desse material da morte de Judas nos Atos e em Pápias. Não é surpreendente
encontrar a mesma situação aqui em tradições populares diversas a respeito dos
sinais apocalípticos que acompanharam a morte de Jesus. Mesmo se autores mais

'3 Essa abordagem ainda é defendida por alguns, por exemplo, Bousset, R. C. Fuller, Gschwind, Neile,
Pesch e Schniewind.
76 A passagem de Jeremias, com interpretação semelhante, também se encontra em Irineu, Contra as
heresias IV,xxii,l.
77 Mais tarde, Eusébio (HE I,xii,20) cita uma carta apócrifa de Abgar de Edessa: “ Ele foi crucificado, desceu
ao Hades [...] ressuscitou os mortos; e, embora descesse sozinho, subiu ao Pai com grande multidão” .
0 Apocalipse de Esdras 7,1-2 grego relata: “ Fui deixado em uma sepultura e ressuscitei meus eleitos e
chamei Adão do Hades” .

308
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

tardios ligaram essas tradições, no relato mateano que mostra imaginosamente


como a ressurreição de Jesus destruiu o poder da morte, nada sugere que o próprio
autor sabia a respeito da descida ao inferno/Hades (ver Fascher, Auferweckung, p.
38; Aguirre Monasterio, Exégesis, p. 153-171).

Saída dos túmulos, entrada na cidade santa e aparições (Mt 27,53).


Já mencionei que o estilo de escrita muda notavelmente quando passamos dos bre­
ves versos coordenados da quadra (Mt 27,51b-52b), expressos no passivo aorístico,
para a complexa expressão ativa participial (muito mais próxima do estilo mateano
normal) em Mt 27,53. 0 momento que é o foco de interesse teológico também
muda. Não é Jesus “primícias dos que adormeceram” (ICor 15,20), “o primogênito
dentre os mortos” (Cl 1,18)? Não dá o escrito cristão mais antigo sobre o assunto
(lTs 4,14) a ordem correta: “Jesus morreu e ressuscitou; assim, por meio de Jesus,
Deus levará com ele os que adormeceram” ? Como, então, podem os muitos corpos
dos santos adormecidos ter sido ressuscitados (Mt 27,52b) antes de o próprio Jesus
ser ressuscitado? Encontramos essa dificuldade ao examinar Lc 23,42-43, onde
está subentendido que Jesus iria a seu reino na mesma sexta-feira de sua morte
e levaria ao paraíso o malfeitor suspenso com ele. Ao que parece, consternados
com essa perspectiva que parecia negligenciar a ressurreição e a Páscoa, escribas
mudaram o “ para teu reino” lucano para “em teu reino”, mudando a referência para
a parusia; e comentaristas explicaram que paraíso não era realmente o mais alto
dos céus, para onde Jesus e seu companheiro iriam somente depois da ressurreição.
Manobra semelhante está em ação em Mt 27,53, concentrada na frase em Mt 53b
sobre a ressurreição, na referência terrena ou celeste da “cidade santa” em 53c e
nos tipos de corpos que foram feitos visíveis em 53d.

“ D epois d a ressurreição </eíe” (Mt 27,53b).7879Normalmente, em relação


à ressurreição de Jesus, o verbo egeirein é traduzido transitivamente por “ levantar
[ressuscitar]” e anistanai, intransitivamente, por “levantar-se [ressuscitar]”,'9 com
o substantivo anastasis (quarenta e duas vezes no NT) traduzido como “elevação,

'8 É a frase mais difícil de Mt 27,51-53, mas devemos rejeitar tentativas de removê-la ou neutralizá-la,
quer antigas (Códice 243; Siríaco Palestinense), quer modernas (Klostermann). Embora se possa julgar
que essa frase é adição editorial ao v. 53, essa adição teria sido feita na ocasião em que o Evangelho
apareceu pela primeira vez e, assim, deve ser tratada como parte de Mateus. Ver nota 106.
79 Não desejo entrar aqui na complicada questão do agente da ressurreição, Deus ou Jesus; ver NJBC
81,133. A distinção levantar/levantar-se dada acima é simples demais, em especial para egeirein, pois
o sentido do verbo muda conforme a perspectiva dos autores neotestamentários específicos e a passiva
significa tanto “ser ressuscitado, ser levantado” , como “ ressuscitar, levantar” .

309
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

ressurreição”. Mas aqui temos a única ocorrência neotestamentária de egersis,


“elevar, ressuscitar”. Devemos entendê-lo intransitivamente, de modo que o “dele
[Jesus]” que se segue é possessivo, equivalente a “depois que Jesus ressuscitou” ?80
Ou devemos dar-lhe uma força transitiva (mais esperada), de modo que o “dele” é
acusativo, isto é, “depois da ressurreição de Jesus” ? Como essas duas possibilidades
têm a mesma conotação (e colocam Mt 27,53 no todo ou em parte em um contexto
pascal), a decisão entre elas não tem importância. Mais crucial é uma terceira
interpretação, que trata egersis como transitivo, com um objeto subentendido: “de­
pois que ele os [isto é, os corpos dos santos adormecidos] ressuscitou”.81 E ssa é a
tradução que apresenta menos problemas interpretativos, pois não muda o enfoque
da morte de Jesus na sexta-feira que ocupou a atenção nos versículos precedentes.
Contudo, a própria facilidade dessa interpretação deixa-nos desconfiados de estar­
mos lidando com um aperfeiçoamento erudito. Além do mais, gramaticalmente isso
envolve um genitivo objetivo duplo, a saber, “a ressurreição dele [deles]”. Então, é
mais prudente lidar com uma das duas primeiras interpretações que fazem 53b se
referir à ressurreição de Jesus e, assim, a um contexto pascal.

Se traduzirmos 53b com o significado de “depois de sua [de Jesus] ressur­


reição”, como pontuamos a oração principal em 53abc? Alguns biblistas atribuem
toda a ação do v. 53 ao período pascal depois da ressurreição de Jesus (Binzler,
R. C. Fuller, Sickenberger, Wenham), com o efeito gramatical de tratar 53b como
aparte parentético que modifica o todo. Embora produza uma imagem atraentemente
simples, isso não faz justiça ao fato de “depois da ressurreição dele” não aparecer
primeiro na sentença, onde poderia modificar tudo o que se seguia. Além disso,
se toda a ação do v. 53 fosse pós-ressurreição, teria sido narrada, de modo mais
lógico, no capítulo seguinte de Mateus que começa na Páscoa.82 Com mais respeito
pela gramática, poderiamos pôr uma vírgula depois de 53b, de modo a juntá-lo a
53a: “ Depois de ter saído dos túmulos depois da ressurreição de Jesus [no domingo

80 Um bom paralelo é a LXX de SI 139,2: “Conheceis minha egersis” , isto é, minha elevação; similarmente
Sf 3,8: “o dia de minha anastasis” .
81 Alguns mss. gregos minúsculos e a versão etiópica deixaram isso explícito ao ler “a elevação [ressurreição]
deles” , em vez de “a elevação [ressurreição] dele” .
82 Alguns biblistas (Hutton, Resch, Seidenstecker, Trilling, Zeller) afirmam que este versículo, ou toda a
passagem de Mt 27,51b-53, faz parte do relato no capítulo 28 e foi erroneamente colocado aqui.

310
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

ou depois dele83], eles...”. Isso significaria que, embora eles fossem ressuscitados
na sexta-feira, os santos esperaram dentro de seus túmulos até o domingo, quando
Jesus ressuscitara dos mortos — cortesia extraordinária! Perspectiva menos ilógica
origina-se da colocação de uma vírgula depois de 53a e, assim, juntando 53b a 53c
(assim A. Schlatter, T. Zahn): “ E tendo saído de seus túmulos [na sexta-feira], depois
da ressurreição de Jesus [domingo], eles entraram na cidade santa; e eles [...]”. Isso
tiraria da sexta-feira da morte de Jesus (quando os outros fenômenos de Mt 27,51b-
-52b ocorreram) só uma cena composta, que consiste em dois fenômenos: a entrada
na cidade santa e a aparição de 53d. Embora eu prefira esta última interpretação
do v. 53, a questão importante é que este versículo muda para a Páscoa da sexta-
-feira dos vv. 51-52 no mínimo a consequência da saída dos túmulos, a saber, as
aparições, e assim produz um ambiente que dá prioridade à ressurreição de Jesus.
O m eta (“depois” ) de Mt 27,53b tem tom causativo: a ressurreição de Jesus tornou
possível a entrada dos santos ressuscitados na cidade santa e suas aparições ali.84

“A c id a d e s a n t a ” (Mt 27,53c). A difícil questão temporal que acabamos


de examinar tem de subentender que os mortos ressuscitados passaram dias em
algum lugar; e assim, é importante determinar o que Mateus imagina ao relatar
que os corpos dos santos adormecidos entraram na “cidade santa”. (Uma respos­
ta a isso será, em parte, influenciada pelo fato de serem mortais ou imortais os
mortos ressuscitados, questão a ser discutida em relação à oração seguinte [53d]
em Mateus.) O uso dessa designação para Jerusalém em passagens como Is 48,2;
52,1; Ap 11,2, bem como antes, em Mateus (Mt 4,5-6), elimina todos os outros
candidatos terrenos.85 Contudo, não poucos intérpretes rejeitam a ideia de muitos
mortos ressuscitados conhecidos serem vistos em Jerusalém — esse fenômeno em

* Estou sendo cauteloso porque os relatos evangélicos da ressurreição não dizem que Jesus ressuscitou dos
mortos no domingo (embora isso seja subentendido alhures em algumas das fórmulas do “ terceiro dia”).
Eles indicam que ele estava ressuscitado no domingo, pois nesse dia o túmulo foi encontrado vazio.
84 SPNM 317. Observemos o pensamento de Inácio (Magnésios 9,1), que escreveu não muito depois de
Mateus: “o dia do Senhor, no qual também nossa vida se levantou por meio dele e de sua morte” . 0
propósito dos santos ressuscitados não é testemunhar contra Jerusalém, pois não há nada negativo nesta
cena de aparições e Mateus certamente não usaria “cidade santa” para Jerusalém em uma cena de
condenação pelos “santos” . Os seletos videntes da cidade santa compartilham a santidade dos que são
vistos. No verbo emphanizein, há um elemento de revelação, de deixar claro: os santos ressuscitados são
um testemunho da vitória de Jesus sobre a morte.
85 Por que Mateus usa a designação “ a cidade santa” [hagios], em vez de falar diretamente de Jerusalém?
Está tirando proveito de uma designação comprovada que contém a mesma palavra que ele acabou de
usar para os “santos” (hagioi) em 52b?

311
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

grande escala teria deixado alguns vestígios na história judaica e/ou secular! Conse­
quentemente, apelam para o uso de “cidade santa” para uma nova Jerusalém celeste
em Ap 21,2.10; 22,19 (“a cidade que está para vir” de Hb 13,14) e interpretam Mt
27,53c com o significado de que os mortos ressuscitados entraram no céu depois
da ressurreição de Jesus.86 Certamente, isso concorda com descrições onde o Jesus
ressuscitado leva uma hoste ao céu (por exemplo, E f 4,8). O Martírio (Ascensão)
de Isaías 9,7-18 descreve como os justos do tempo de Adão em diante tiveram de
esperar até a encarnação de Cristo para receber suas coroas; ele defraudou o anjo
da morte ressuscitando dos mortos, e quando ascendeu ao sétimo céu, eles ascen­
deram com ele. Testamento de Daniel 5,12 traz “os santos” revigorando-se no Éden
e os justos alegrando-se na Nova Jerusalém. Contudo, há uma imperfeição fatal na
interpretação desta “cidade santa” celeste de Mt 27,53c: “ Eles foram feitos visíveis
a muitos” em 53d certamente não pode se aplicar ao céu! Nem se refere a aparições
terrenas depois de uma ida não mencionada ao céu (ver Winklhofer, “Corpora”, p.
41-43), pois Mateus não demonstra nenhum interesse no tempo intermediário. Com
certeza, o propósito é referir-se a aparições na Jerusalém terrena.

“ E les foram feitos visíveis a m uitos” (Mt 27,53d). Considerada sozinha,


a referência poética à ressurreição dos santos adormecidos em Mt 27,52ab seria, sem
dúvida, interpretada como ressurreição para a vida eterna.87 O que é acrescentado
em Mt 53d a respeito de aparições em Jerusalém não contesta necessariamente
essa interpretação. Afinal de contas, foram atribuídas aparições em Jerusalém a
Jesus, que certamente gozava da vida eterna.88 A ideia de que os corpos dos santos
adormecidos foram feitos visíveis (passiva de emphanizein, indicando que Deus foi

86 Ver Gschwind, Niederfahrt, p. 192. Eusébio (Demonstratio evangélica IV,xxii,4; GCS 23,169), usan­
do terminologia mateana, relata que, depois da ressurreição, muitos corpos dos santos adormecidos
levantaram-se (anistanai) e foram levados com ele para a cidade santa e verdadeiramente celeste (também
X,viii,64; GCS 23,483).
8‘ Que a vida eterna esteja envolvida é afirmado por muitos Padres da Igreja, por exemplo, os alexandrinos
(Clemente, Orígenes, Cirilo), Epifânio, Eusébio, Gregório de Nissa e Anselmo.
88 Essas aparições de Jesus são narradas por Lucas e João: Mateus tem uma aparição perto do túmulo a
Maria Madalena e à outra Maria (Mt 28,1.9-10), mas nenhuma aparição de Jesus na cidade. Tem sido
sugerido que a aparição desses muitos mortos ressuscitados na cidade santa compensa por essa falta
em Mateus.

312
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

o agente89) a muitos na cidade santa, mas implicitamente não a todos, corresponde


ao que Pedro declara em Jerusalém em At 10,40-41: “Deus ressuscitou Jesus no
terceiro dia e concedeu-lhe tornar-se visível [emphanes] não a todo o povo, mas a
nós”. Entretanto, há diferenças importantes. Os autores neotestamentários lembram-
-se da identidade daqueles aos quais o Jesus ressuscitado foi feito visível e colocam
um ponto final nessas aparições, exatamente quando descrevem a partida de Jesus
ao ser elevado ao céu (ICor 15,5-8; Lc 24,51; At 1,3.9; Mc 16,19). Não há nenhuma
outra memória dos santos ressuscitados mateanos; as pessoas da cidade santa às
quais eles apareceram não são identificadas e não somos informados a respeito de
quando, ou se, eles foram para o céu. Consequentemente, no pensamento cristão
primitivo surgiu outro entendimento dos santos ressuscitados: eles não foram ele­
vados à vida eterna, mas (como os ressuscitados por Jesus durante seu ministério)
foram apenas ressuscitados para a vida normal. Foi realizado um milagre, mas não
o milagre de uma ressurreição como a de Jesus. Eles foram “feitos visíveis” em
seus corpos usuais e morreríam novamente.90 Essa concepção está por trás da já
mencionada afirmação, no Evangelho de Nicodemos, de que os ressuscitados inclu­
íam Simeão e seus dois filhos, que haviam morrido recentemente (e assim, é de se
presumir que não estavam decompostos — lembremo-nos de que os ressuscitados
por Jesus durante o ministério haviam acabado de morrer). O caráter comum de
sua existência renovada confirma-se pelo relato de que moravam em Arimateia.
Eusébio (HE IV,iii,2) cita o apologista Quadrato, que viveu durante o reinado de
Adriano (117-138), a respeito dos que ressuscitaram dos mortos: “ Depois da partida
de Jesus, eles existiram por longo tempo e alguns deles chegaram até os nossos
dias”. Embora repita em parte o caráter popular dos fenômenos intensos associados
à morte de Jesus,91 esse folclore é bastante impróprio para o impulso apocalíptico

89 Como observa Witherup (“Death” , p. 581), este verbo (emphanizein) na passiva tem sentido ativo (“ apa­
recer” ); mas, no caso dos mortos ressuscitados, só Deus pode fazê-los aparecer. Contudo, a observação
de Witherup demonstra que esse não é o mesmo tipo de passiva encontrado antes nos quatro verbos da
quadra (Mt 27,51b-52b).
90 Sustentado por Crisóstomo, este ponto de vista teve sólido seguimento no Ocidente: Tertuliano, Ambrósio,
Agostinho, Tomás de Aquino (Suma teológica Illa, q. 53, a. 3) e Suarez; e ainda tem defensores: Cull-
mann, Fascher, Lagrange, Vosté e Witherup. Uma terceira e menos conhecida interpretação pressupõe
que corpos aparentes estavam envolvidos: nem mortais, nem imortais (Lucas de Bruges, 1606 d.C.).
91 Citei anteriormente paralelos em descrições greco-romanas da morte de pessoas famosas ou insti­
tuições para mostrar que os fenômenos evangélicos eram inteligíveis para leitores daquelas origens,

313
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

daqueles fenômenos. Se nos lembrarmos de que o critério de interpretação precisa


ser o que Mateus queria dizer com sua narrativa (não o que achamos que aconte­
ceu), a concatenação de sinais nos céus, na terra e sob a terra certamente não nos
permite pensar que a culminância foi a ressuscitação para a vida normal. Os que
foram ressuscitados por Jesus durante o ministério não tinham de aparecer nem ser
feitos visíveis a alguns; essa descrição só faz sentido a respeito dos que são elevados
a outra esfera, do mesmo modo que Jesus foi elevado e apareceu.

De modo geral, então, parece que a melhor interpretação de Mt 27,53 é


a seguinte: aos vv. 51b-52b, fragmento poético que descreve quatro fenômenos
escatológicos associados com a morte de Jesus, Mateus acrescentou outros dois
fenômenos escatológicos associados com a ressurreição de Jesus, a saber, saírem
dos túmulos para entrarem em Jerusalém e serem feitos visíveis para muitos. A s­
sim, os que foram elevados à vida eterna por ocasião da morte de Jesus fizeram
suas aparições depois da ressurreição dele. Esses santos entraram em Jerusalém, a
cidade santa, perto da qual Deus julgará todos no fim dos tempos; e suas aparições
atestaram que Jesus conquistara a morte e prometera que, no fim, todos os santos
ressuscitariam. Mateus não relata o que lhes aconteceu depois das aparições em
Jerusalém, do mesmo modo que não relata o que aconteceu a Jesus depois de sua
última aparição (Mt 28,16-20). É de se supor estar manifesto que tanto ele como
eles, tendo sido libertados da morte, doravante habitam com Deus.92 Deixarei para
a ANÁLISE a seguir a questão do motivo de Mateus expandir a tradição.

independentemente do valor teológico que pudessem atribuir a esses prodígios. Díon Cássio (História,
LI,xvii,5) relata que, na queda de Alexandria para os romanos, “os espíritos desencarnados [eidolon]
dos mortos foram feitos visíveis” .
1,2 Epifânio (Panarion LXXV,vii,6-7; CCS 37,339) fala dos santos ressuscitados que vão junto com Jesus
à cidade santa, isto é, na Jerusalém terrena para aparecer e na Jerusalém celeste para estar com Deus.
Bieder (Vorstellung, p. 54) relata a tese de Diodoro de Tarso, segundo a qual eles foram levados para o
alto como Elias.

314
§43.Jesuscrucificado,quartaparte:AcontecimentosposterioresàmortedeJesus- a.Efeitosexternos

Análise

Todos os fenômenos que examinamos nesta seção representam uma inter­


pretação teológica da consequência da morte de Jesus, interpretação na linguagem
e metáforas do apocalíptico. Indiquei no COMENTÁRIO que fazer de sua historicidade
literal uma grande preocupação é deixar de entender sua natureza como símbolos
e o gênero literário no qual são apresentados.93 Exemplo comparável seria os lei­
tores de c. 4000 d.C. debaterem a historicidade literal do livro de George Orwell,
1984: Orwell foi um intérprete extremamente perceptivo das forças destrutivas à
solta durante sua vida, mas sua visão era discriminativa, não uma história do que
realmente aconteceu em um ano específico. (Ou para dar um exemplo dos tempos
neotestamentários, certamente não podemos pressupor a historicidade literal dos
sinais apocalípticos que Pedro vê cumpridos em Pentecostes em At 2,19-20, por
exemplo, a lua transformar-se em sangue.94) Admitindo que, para a fé cristã, a en­
trega voluntária do Filho de Deus mudou as relações humanas com Deus e assim
transformou o cosmos, a metáfora apocalíptica era, de muitas maneiras, um meio
mais eficiente para comunicar as verdades que ultrapassam a experiência comum
do que seria a dissertação discursiva. Com todas as suas imagens vigorosas, os
apocalipticistas ainda escrevem dentro da esfera limitadora da aproximação humana;
eles demonstram uma percepção de que não exauriram a riqueza do que é do outro
mundo — percepção que uma exposição mais precisa e prosaica às vezes obscurece.

93 A questão da historicidade literal da abertura dos túmulos, da ressurreição dos corpos dos santos
adormecidos e suas aparições a muitos na cidade santa (Mt 27,52-53) não é a mesma que a questão de
o corpo de Jesus ter apodrecido no túmulo e ele ter sido visto por muitos. Ver, acima (sob “Eles foram
feitos visíveis a muitos”), a atmosfera muito diferente nos relatos desses dois acontecimentos.
94 Para alguns, não afirmar a historicidade do rasgamento do véu do santuário, ou do terremoto, ou das
aparições dos mortos ressuscitados, todos narrados em relação à morte de Jesus, é negar uma diretriz ou
inspiração dos relatos evangélicos. Estranhamente, esse julgamento deprecia o poder singular de Deus
que busca proteger. Se os seres humanos pudessem fazer uma rica exposição do significado da morte de
Jesus em linguagem e gênero diferentes da história, em que bases se negaria a liberdade de Deus para
proporcionar orientação a essa expressão?

315
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

A . As teologias dos evangelistas ao relatar o rasgamento do véu do santuário

Embora os três sinóticos o relatem, não há dúvida (mesmo se julgarmos sim­


plesmente pelo vocabulário) de que um relato básico foi copiado para os outros dois
Evangelhos e, por analogia com o que vimos em outras passagens, não há nada que
nos faça duvidar de que o relato básico era o de Marcos. Marcos usa e até exprime
esse fenômeno para corresponder a sua organização da narrativa evangélica e seu
propósito teológico. Na macroescala do Evangelho inteiro, o rasgamento dos céus
em Mc 1,10-11 marcou o início da misericordiosa intervenção de Deus quando o
Espírito desceu sobre Jesus e a voz celeste declarou: “ Tu és o meu Filho amado” ;
e o rasgamento do véu do santuário, no final do Evangelho, marca a cólera divina
para com as autoridades de Jerusalém que, tendo escarnecido daquela identifica­
ção, crucificaram o mesmo Filho. 0 versículo seguinte mostrará que Deus agora
se voltará para estranhos que reconhecem o que os líderes do povo de Jesus não
reconheceram: “ Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus”. Na microescala
da NP, o escárnio, durante o julgamento do sinédrio e na cruz (Mc 14,58; 15,29),
da afirmação de Jesus de que ele destruiría este “santuário” foi agora respondido,
e mostra que Jesus falou a verdade: o véu que demarcava o santuário como espaço
santo foi rasgado de alto a baixo, em dois — não há mais verdadeiramente um
santuário no Templo de Jerusalém, pois Deus já não está presente ali.95 Embora
Marcos ligasse esse julgamento colérico ao momento da morte de Jesus, se ele e
seus leitores vivessem quando as legiões romanas sob Tito incendiaram o Templo
de Jerusalém, teriam considerado o rasgamento do véu do santuário como presságio
dessa destruição mais material que estava para vir.

Entretanto, o uso e até a reformulação marcanas não comprovam a criação


marcana. No COMENTÁRIO, ao comparar o simbolismo marcano do véu rasgado com
o simbolismo da passagem de Jesus pelo véu em Hebreus (acima, nesta mesma
seção, sob “ O véu em Hebreus” ), achei boa razão para sugerir que, em um estágio
pré-marcano, os cristãos perceberam que a morte de Jesus redefiniu a presença

% A palavra “ santuário” é o instrumento primordial de Marcos para ligar os textos que envolvem a afir­
mação de Jesus no julgamento do sinédrio e seu cumprimento no momento de sua morte. Ver acima (no
início desta seção, sob “O papel deste fenômeno nas narrativas evangélicas”) a possibilidade de existir
uma ligação secundária entre o ato do sumo sacerdote de despedaçar suas vestes ao ouvir a blasfêmia
na afirmação de Jesus, diante do sinédrio, de que era o Filho do Bendito e o ato de Deus rasgar o véu
do santuário, área acessível exclusivamente a sacerdotes, a fim de mostrar que a blasfêmia foi contra o
Filho de Deus.

316
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

divina entre o povo escolhido para ser de Deus. Mesmo quando a literatura judaica
primitiva descrevia o julgamento divino corretivo concentrando-se na devastação do
lugar sagrado de Jerusalém (cuja santidade Deus parou de proteger), daí a reflexão
cristã sobre o simbolismo nesse lugar sagrado do véu, que demarcava a santa pre­
sença de Deus. (Afirmei não ser preciso decidir se, originalmente, a referência era
ao véu exterior ou interior: não há nada nas narrativas evangélicas que especifique
isso, e os leitores dos Evangelhos talvez nem conhecessem essa diferença, embora os
leitores de Hebreus fossem orientados para o véu interior.) É provável que a tradição
pré-marcana já considerasse o rasgamento do véu hostil, e Marcos intensificou isso
fazendo o véu rasgado “do santuário” confirmar as referências anteriores da NP à
destruição do santuário por Jesus. O autor de Hebreus viu possibilidades positivas
no véu: Jesus passou pelo véu carregando sangue para oferecer um sacrifício eter­
no no lugar sagrado celeste e, como precursor, levou outros a segui-lo. Nas duas
interpretações (a de Marcos e a de Hebreus) o santuário terreno, aquele construído
por mãos humanas, já não tinha sentido.

Lucas e Mateus combinaram o rasgamento do véu do santuário, que tomaram


de Marcos, com outros sinais apocalípticos. Sem acrescentar novos sinais, Lucas fez
isso mudando o rasgamento para antes da morte de Jesus e unindo-o à escuridão.
Ao meio-dia, Deus espalhou a escuridão sobre a terra inteira (Lc 23,44-45a), en-
colerizado pela morte próxima na cruz de um Jesus a quem, anos antes, no recinto
do Templo, Simeão havia saudado como “ luz para ser uma revelação para os gentios
e ser uma glória para teu povo Israel” (Lc 2,32). Do mesmo modo, encolerizado,96
Deus rasgou o véu desse santuário, onde anos antes o sacerdote Zacarias ouvira o
anjo Gabriel proclamar o início da volta de muitos filhos de Israel ao Senhor seu
Deus (Lc 1,8-23, esp. 1,16). Por meio da relocalização lucana, a destrutibilidade
do rasgamento, que Marcos enfatizou em seu padrão de cumprimento de profecias,
deu preferência a seu outro papel (secundário em Marcos) como sinal de destruição
futura. Para Lucas, há um período de graça para o arrependimento (At 3,17-21),
mas de maneira essencial e inevitável estão próximos os dias em que os hieroso-
limitas dirão às montanhas: “ Caí sobre nós” (Lc 23,30). Recorrendo à tradição
popular, Mateus relaciona o ato de Deus rasgar o véu do santuário a outros sinais

* No c o m e n t á r io , expliquei por que não aceitei a ligação do véu rasgado com a oração final, de confiança,
de Jesus, de modo a ele se tomar sinal positivo dos céus abertos.

317
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

apocalípticos, dados por Deus, que intensificam o julgamento provocado pela morte
na cruz do Filho de Deus.

Mas, antes de analisarmos os sinais mateanos adicionais, devemos consi­


derar o EvPd , que exemplifica outras circunstâncias que refletem a imaginação
popular. Como na descrição sinótica comum, EvPd 5,15 colocou a escuridão que
“tomou conta de toda a Judeia” ao meio-dia, antes que o Senhor fosse “ levado
para o alto” (EvPd 5,19), mas não sem dramatizar o efeito da escuridão: “ Muitos
circularam com lâmpadas, pensando que era noite, e eles caíram” (EvPd 5,18).
Depois de relatar a partida do Senhor, mas “ na mesma hora [meio-dia]” ,97 EvPd
5,20 relata o rasgamento do véu do santuário de Jerusalém; e só em EvPd 6,22
ficamos sabendo: “ Então o sol brilhou e descobriu-se ser a nona hora”. Em outras
palavras, a ambiguidade sinótica a respeito de quando a escuridão terminou (§ 42,
sob “ Escuridão na sexta hora” ) é utilizada para fazer as três horas de ausência do sol
envolverem a cena da morte e sua consequência imediata.98 Dentro dessa estrutura,
surge o tremor da terra, mas não como parte de uma quadra poética expressando
um julgamento apocalíptico por Deus, como em Mateus. A terra treme quando o
corpo do Senhor é colocado sobre ela, efeito que produz “grande medo” 99 (EvPd
6,21b). Pouco antes de ser elevado, o Senhor gritou: “ Meu poder, Ó poder, tu me
abandonaste” (EvPd 5,19); mas esse exercício de discernimento teológico adapta
o terremoto para mostrar que o corpo morto retém o poder divino,100 um corpo que

97 Notemos a indicação de que Jesus morreu ao meio-dia. A sexta hora ou meio-dia é a única menção de
tempo encontrada nos quatro relatos canônicos da crucificação, embora o que acontece ao meio-dia varie:
condenação por Pilatos (João); escuridão depois de uma crucificação às 9 da manhã (Marcos); escuridão
sem indicar que a crucificação tivera lugar muito antes (Mateus, Lucas).
98 Assim, a combinação no EvPd do véu despedaçado com a escuridão difere da combinação lucana que
acabamos de examinar. O fato de EvPd 6,22 relatar que “ o sol brilhou” depois da notícia de que Jesus
“foi levado para o alto” (EvPd 5,19) deixa claro que a lei duas vezes mencionada a respeito de o sol não
se pôr sobre alguém que morreu (EvPd 2,5; 5,15) não foi transgredida.
99 Em minha abordagem ao EvPd, pressupus que esporadicamente a tradição popular pré-mateana à qual
Mateus recorreu continuou sua evolução e foi a essa etapa de evolução mais tardia que o EvPd recorreu.
Contudo, o EvPd também recorreu a uma lembrança do conteúdo de Mateus. No caso presente, diante de
pelo menos duas possíveis derivações, creio que o EvPd se explica melhor como dependente de Mateus.
Entretanto, no caso da tradição relacionada de que, entre a morte e a ressurreição, o Senhor fizera uma
proclamação aos adormecidos (EvPd 10,41), creio que o EvPd estava recorrendo a outros desdobramentos
da tradição popular, pois não encontro nenhuma prova de que Mateus sabia da “descida ao inferno”
(acima, sob “A descida ao inferno”).
100 Embora isso possa ser desvalorizado como perspectiva mágica, também pode ser uma apreciação, expressa
com simplicidade, da encarnação e seus resultados duradouros.

318
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

EvPd 10,40 descreve como tão gigantesco que a cabeça se esticava além dos céus.
EvPd nos dá uma confirmação antecipada do fascínio em formação pelos fenômenos
da morte que vimos (acima, sob “Josefo” e “Jerônimo” ) em plena florescência no
período patrístico.

B. A teologia de M ateus ao relatar os fenômenos especiais

Mateus herdou de Marcos dois fenômenos escatológicos (escuridão sobre


toda a terra ao meio-dia e o véu rasgado do santuário) como sinais do julgamento
divino em reação à morte do Messias, o Filho de Deus. A eles, Mateus acrescentou
outros seis fenômenos, também sinais escatológicos ou mesmo apocalípticos por
natureza. Quatro deles encontram-se em Mt 27,51b-52b, em uma quadra poética
de orações principais paratácticas subdivisíveis em dois dísticos, um ameaçador
(terra sacudida, rochas partidas), o outro encorajador (túmulos abertos, corpos dos
santos ressuscitados). 0 COMENTÁRIO mostrou até onde os quatro sinais faziam eco
à Escritura. Como os fenômenos tomados por empréstimo de Marcos, os fenômenos
na quadra apresentavam uma forma dramática na qual pessoas comuns, familia­
rizadas com o pensamento veterotestamentário, entendiam que a morte de Jesus
na cruz apresentara o dia do Senhor com todos os seus aspectos, negativos (cólera
e julgamento divinos) e positivos (conquista da morte, ressurreição para a vida
eterna).101 A quadra representava uma forma de pensamento cristão (muitas vezes
primitivo) que ligava a resposta divina a um dos momentos usados para descrever
a passagem de Jesus além do tempo, sem explicar a resposta cronologicamente,
atribuindo resultados diferentes aos passos individuais, em uma sequência de
crucificação, ressurreição, ascensão e dom do Espírito. Tentativas primitivas de
identificar o tremor da terra com um terremoto também conhecido do fim dos anos
20, e de identificar quais os mortos que foram ressuscitados, mesmo que elas te­
nham objetivos teológicos próprios, mostram incompetência para preservar o caráter
simbólico da linguagem bíblica estabelecida de apocalíptica.

101 O significado dos fenômenos é escatológico, não cristológico, pois Deus é o agente, não Jesus. Entretanto,
o fato de Deus fazer isso por causa da morte de Jesus tem consequências para a identidade de Jesus, e
isso é reconhecido pela confissão dele como Filho de Deus, feita pelo centuriâo e os guardas que estavam
com ele em Mt 27,54. Quanto à soteriologia, aqui a morte de Jesus não ressuscita os mortos. Deus os
ressuscita na ocasião dessa morte.

319
Q uarto ato »JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto

O estilo da quadra em Mt 27,51b-52b não é tipicamente mateano, e o caráter


imaginativo e dramático dos fenômenos sugere um fragmento poético pré-mateano
que circulava em círculos populares.102 (Na nota 50, acima, indiquei outros poemas
ou hinos breves que tratavam do evento morte-ressurreição-ascensão.) Afirmei que
o véu do lugar sagrado era um símbolo associado com a morte de Jesus em nível
pré-marcano, pois aparece de outra maneira em Hebreus. Talvez já a frase passiva
aorística “o véu foi rasgado”, preservada nos três Evangelhos canônicos e só ligei­
ramente adaptada no EvPd , também fosse pré-marcana.103 A imitação do padrão
podia ter dado origem a uma quadra no mesmo estilo passivo aorístico, amontoando,
uns sobre os outros, presságios apocalípticos que interpretavam a morte de Jesus.
E ssa quadra pode ter chegado até Mateus proveniente dos mesmos círculos que
forneceram algum material sobre a narrativa da infância (em especial a história dos
magos, a estrela e o rei cruel do capítulo 2) e o relato da morte de Judas, perseguido
pelo medo do sangue inocente.104 Esse material é quase totalmente composto de
ecos entrelaçados da Escritura e, em um grau não atestado em outras passagens
de Mateus, dá rédeas à imaginação quanto a símbolos. 0 fato de Jerusalém estar
envolvida em todas essas cenas sugere que, aqui, embora muito modificadas por
Mateus, ouvimos elaborações da história de Jesus que se originou entre os cristãos

102 Os que pressupõem uma unidade pré-mateana (por trás da quadra ou do conjunto de Mt 27,51b-53)
incluem Aguirre Monasterio, Bartsch, Bieder, Fischer, Haenchen, Hauck, Hirsch, Plummer e Riebl. Na
questão de vocabulário e estilo pré-mateano, ver Aguirre Monasterio, Exégesis, p. 29-56.
103 Marcos, então, ao acrescentar “santuário” , levou essa frase para uma sequência pela qual ela cumpriu
duas passagens anteriores que prediziam a destruição do santuário.
104 Consistente com sua costumeira aversão a pressupor qualquer tradição pré-mateana claramente definida
(que não Marcos ou Q), Sênior (“Death of Jesus”, p. 320; “Matthew’s Special Material” , p. 282-285) defende
a composição mateana da quadra. Ele alega que o principal argumento para a posição pré-mateana é a
parataxe dos quatro versos, e apresenta um exemplo de parataxe formado por Mateus nos quatro versos
de Mt 7,25. A fraqueza desse argumento aparece se traduzirmos o último versículo literalmente: “E caiu
a chuva, e vieram os rios, e sopraram os ventos, e bateu contra aquela casa” . Primeiro, essa estrutura
quádrupla é menos regular que a de Mt 27,51b-52b, como veremos na mudança do padrão de sujeito
na última oração. Segundo, a ordem das palavras é diferente, e é precisamente a ordem das palavras
nos vv. 51b-52b (com o verbo por último) que sugere a Riebl (Auferstehung, p. 58-60) um antecedente
semítico (escrito). Terceiro, apesar do padrão de quatro versos, a descrição do que acontece em Mt 7,25
é concreta (isto é, os fenômenos são os da experiência comum), enquanto o conteúdo de Mt 27,51b-52b é
altamente imaginativo e faz eco à Escritura, do mesmo modo que o outro material popular característico
de Mateus mencionado acima. A alegação de que, de vez em quando, Mateus sozinho de repente surgia
criando tal material é muito menos verossímil que a alegação de que ele incorporou material popular que
surgiu em tomo do nascimento e da morte de Jesus. Quarto, se Mateus criou a quadra nos vv. 51b-52b e
mencionou mais fenômenos no v. 53, por que ele mudou o estilo tão bruscamente de uma das passagens
para outra?

320
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

de Jerusalém. A objeção de que, apesar de aspectos semitizantes, a quadra pré-


-mateana perceptível existia em grego (não em semítico) não refuta as origens em
Jerusalém. Os hinos lucanos da infância, que também podem ter sido de origem
cristã hierosolimita, são conhecidos apenas em grego semitizado, apesar de tenta­
tivas (não convincentes) de reconstruir os originais semíticos (BNM, p. 418-423).

Aos quatro fenômenos da quadra, Mt 27,53 acrescentou mais dois (entrada


dos santos ressuscitados na cidade santa, sendo feitos visíveis a muitos) em um
versículo de construção notadamente diferente de Mt 51b-52b e mais próximo do
estilo próprio de Mateus. Há quem afirme que temos aqui outro fragmento de tra­
dição pré-mateana, mas é mais provável que Mateus tenha suplementado a quadra
com um comentário próprio.103*Por quê? E possível sugerir dois motivos prováveis.

0 primeiro motivo mateano implicava estender o simbolismo escatológico


à Páscoa e ligá-lo à ressurreição de Jesus. Mateus agiu sob a influência de uma
tendência do pensamento cristão que caracterizava Jesus como o primogênito ou
as primícias dos mortos (acima, sob “ Saída dos túmulos, entrada na cidade santa
e aparições” ) — aspecto aparentemente negligenciado ao localizar a ressurreição
dos santos adormecidos na sexta-feira antes da ressurreição de Jesus. Sem mudar
essa apresentação, Mateus faz mais justiça à prioridade de Jesus, ao relatar que
os santos que foram ressuscitados na sexta-feira entraram na cidade santa e foram
feitos visíveis a muitos só “depois da ressurreição dele”.106 A liberdade dos cristãos
primitivos para ligar o simbolismo escatológico a qualquer um dos acontecimentos
da sequência morte-ressurreição-ascensão-dom do Espírito (que são, do ponto de
vista divino, apenas aspectos diferentes de um momento intemporal) está exemplifi­
cada também em At 2,16-20. Essa passagem vê cumprido em Pentecostes o que foi
profetizado por Joel: antes da chegada do dia do Senhor, prodígios no céu, em cima,

103 Há duas objeções, originárias do vocabulário, a atribuir o v. 53 a Mateus. Em outras passagens, ele não
usa emphanizein (“fazer visível” ); mas o adjetivo emphanes é usado em At 10,40 em relação ao Jesus
ressuscitado e, assim, talvez estejamos lidando com linguagem de ressurreição-aparição. Alhures, Ma­
teus não usa egersis (“elevação”), mas provavelmente quer continuar a partir de egeirein, no v. 52b: os
santos foram elevados antes e, agora, Mateus concentra-se na elevação de Jesus. Positivamente para a
composição mateana: entre os Evangelhos, só Mateus usa “ cidade santa” para Jerusalém, a saber, quando
o diabo levou Jesus até ali para tentá-lo e questionar se ele era realmente o Filho de Deus (Mt 4,5-6; cf.
5,35). O caso presente de entrar na “cidade santa” é seguido por uma confissão de Jesus como o Filho
de Deus.
106 Considero esta frase a chave para a perspectiva teológica de Mateus, por isso rejeito a sugestão (ver
Riebl, Auferstehung, p. 54-56) de que ela representa reorganização pós-mateana.

321
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

e sinais na terra, embaixo (sangue, fogo, nuvem de fumaça, sol transformado em


escuridão, lua transformada em sangue). A passagem dos Atos, ao enfatizar sinais
apocalípticos, é o equivalente lucano de Mt 51b-53. Além de revelar flexibilidade
quanto ao acontecimento salvífico aos quais os sinais podiam ser ligados, lança luz
sobre a interpretação de Mateus de duas outras formas. Primeiro, adverte contra
historicizar com demasiada facilidade o simbolismo. Como mencionei no início da
ANÁLISE, tem havido algumas tentativas de afirmar que, em Pentecostes, a lua real­
mente se transformou em sangue, enquanto tem havido muitas tentativas de tratar
os sinais escatológicos mateanos como históricos. Além disso, a passagem dos Atos
é explicitamente uma citação da Escritura, e essa observação leva-nos mais adiante
em nossa busca para determinar por que Mateus se sentiu impelido a suplementar
a quadra dos vv. 51b-52b que ele recebeu da tradição popular.

0 segundo motivo mateano para acrescentar o v. 53 foi o cumprimento da


Escritura. Acima, mencionei o quanto Ez 37, com sua descrição criativa da animação
dos ossos secos, influenciou a imaginação judaica na descrição da ressurreição dos
mortos. E provável que a primeira parte de Ez 37,12-13, “ Eu abrirei vossos túmu­
los”, tenha moldado o terceiro verso da quadra de Mt 27,51b-52b, “e os túmulos
foram abertos”. Mas a passagem de Ezequiel continua: “ E vos farei sair de vossos
túmulos e vos conduzirei para a terra de Israel. Então sabereis que eu sou o Senhor”.
Do mesmo modo que em outras passagens Mateus realça a origem e a natureza de
materiais tirados de Marcos, também aqui, biblicamente, ele transcende a quadra
ao apresentar, em Mt 27,53, o cumprimento do restante da passagem de Ezequiel:
“ E tendo saído dos túmulos [...], eles entraram na cidade santa [de Jerusalém]”.
Outra passagem bíblica pode ter moldado a adição mateana, em especial a última
oração, “e eles foram feitos visíveis a muitos”, isto é, Is 26,19 (LXX): “ Os que estão
nos túmulos serão ressuscitados e os que estão no território [na terra] se rejubila-
rão”. Assim, no que ele acrescenta a Marcos (a quadra tirada da tradição popular
e seu comentário a respeito dela), Mateus aperfeiçoou o discernimento teológico.
Em linguagem e metáforas apocalípticas tomadas por empréstimo da Escritura,
ele ensina que a morte de Jesus e sua ressurreição (“elevação” ) marcaram o início
dos últimos tempos10' e do julgamento divino, sacudindo a terra como um acompa­

l0' De certa maneira, para Mateus os últimos tempos começaram com o nascimento do Messias; mas
havia diferentes aspectos dos últimos tempos e, aqui, chegamos ao momento escatológico de castigo e
recompensa.

322
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos

nhamento à escuridão ameaçadora que se espalhou sobre ela e elevando os santos


a uma nova vida. Esses santos são judeus; na parte seguinte da cena, para a qual
nos voltaremos agora, Mateus apresentará gentios (o centurião e os guardas que
estavam com ele) e sua confissão de fé. Desde o nascimento de Jesus (que incluiu
José e os magos) até sua morte, Mateus está interessado em mostrar que Jesus trouxe
salvação aos judeus e igualmente aos gentios.108 Assim, na linguagem de Ezequiel,
por meio do Filho de Deus eles vêm a saber “que eu sou o Senhor”.

(.A bibliografia para este episódio encontra-se em § 37, Partes X e XI.)

108 Entretanto, talvez valha a pena salientar que os aspectos salvfficos positivos desta imagem concentram-
-se na elevação (ressurreição) dos mortos e na confissão pelo centurião, não no rasgamento do véu do
santuário.

323
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte:
Acontecimentos posteriores à morte
de Jesus - b. Reações dos presentes
(Mc 15,39-41; Mt 27,54-56; Lc 23,47-49;
Jo 19,31-37)

Tradução

M c 15,39-41:39M a s o centurião que tinha estado de pé ali na frente dele,


tendo visto que ele assim expirou, disse: "Verdadeiramente, este homem era Filho
de Deus". '“ M a s havia também mulheres observando de longe, e entre elas Maria
Madalena e Maria, mãe de Tiago M eno r e de Joset, e Salomé 4l(que, quando ele
estava na Galileia, costumavam segui-lo e servi-lo), e muitas outras que tinham
subido com ele a Jerusalém.
M t 27,54-56: S4M as o centurião e os que com ele estavam guardando (m on­
tando guarda sobre) Jesus, tendo visto o tremor (de terra) e estes acontecimentos,
temeram excessivamente, dizendo: "Verdadeiramente, este era Filho de Deus". 5SM as
havia ali muitas mulheres observando de longe, as que tinham seguido Jesus desde
a Galileia, servindo-o, “ entre elas estavam M aria Madalena e Maria, mãe de Tiago
e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu.
Lc 23,47-49:47M a s o centurião, tendo visto esse acontecimento, estava glori-
ficando a Deus, dizendo: "Certamente este homem era justo". 48E todas as multidões
que estavam reunidas para a observação disso, tendo observado esses acontecimentos,
voltaram batendo no peito. 49M a s todos os conhecidos dele estavam de pé a certa
distância, e as mulheres que o acompanhavam desde a Galileia, vendo essas coisas.
Jo 19,31-37:3lEntão os judeus, como era dia de preparação, a fim de que
os corpos não ficassem na cruz no sábado, pois esse sábado era um grande dia,
pediram a Pilatos que suas pernas fossem quebradas e eles fossem retirados.

325
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. 1 sepultado ali perto

32Assim, os soldados vieram e quebraram as pernas de um e do outro que tinham


sido crucificados com ele; 33mas, tendo vindo a Jesus, quando viram-no já morto,
eles não quebraram suas pernas. 34Entretanto, um dos soldados trespassou seu
lado com uma lança e imediatamente saíram sangue e água. 35E aquele que viu dá
testemunho e verdadeiro é seu testemunho e esse um sabe que ele fala o que é
verdade, a fim de que vós também acrediteis. 3éPois essas coisas aconteceram a fim
de que a Escritura pudesse ser cumprida: "Seu (do animal, ou seu, da pessoa) osso
não será quebrado". 37E por sua vez, uma outra Escritura diz: "Eles vão ver quem
eles perfuraram".
EvPd 4,14 (depois de EvPd 4,13, onde um dos malfeitores crucificados insultou
os judeus por fazerem o Salvador sofrer injustamente}: E tendo ficado irritados
com ele, eles ordenaram que não houvesse nenhuma perna quebrada, a fim de que
ele morresse atormentado.
EvPd 6,21: E então eles arrancaram os cravos das mãos do Senhor e o colo­
caram no chão; e toda a terra foi sacudida e houve um grande medo.
EvPd 7,25-8,29:7'2SEntão os judeus e os anciãos e os sacerdotes, tendo vindo
a saber quanto mal eles tinham feito a si mesmos, começaram a bater em si mesmos
e dizer: " A i de nossos pecados. O julgamento se aproxima e o fim de Jerusalém".
26M as eu com os companheiros fiquei triste; e tendo sido feridos em espírito, fica­
mos escondidos, pois éramos procurados por eles como malfeitores desejosos de
incendiar o santuário. 27Além de todas essas coisas, estávamos jejuando; e ficamos
sentados lamentando e chorando noite e dia até o sábado. 8,28M a s os escribas e
fariseus e anciãos, tendo se reunido uns com os outros, tendo ouvido que todo o
povo estava m urmurando e batendo no peito, dizendo que "S e em sua morte esses
sinais muito grandes aconteceram, vede como ele era justo", 29temeram (especial­
mente os anciãos) e...

Comentário

Dividirei meus comentários aqui sob quatro cabeçalhos: Marcos/Mateus,


Lucas, João e EvPd. Embora os sinóticos tenham em comum duas reações, a
saber, a do centurião (Mateus inclui medo) e das galileias, Lucas tem a primeira
reação de forma diferente, mais uma reação extra (das multidões arrependidas)
intercalada entre elas, desse modo garantindo tratamento especial. João tem uma
apresentação diferente, na qual “os judeus” reagem querendo que os corpos sejam
retirados — pedido que muda a atenção para o corpo morto de Jesus que se torna
a fonte de sangue e água, conforme testemunho do discípulo amado. 0 EvPd tem
quatro reações em um padrão disperso e de natureza variada: medo, como em

326
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

Mateus; judeus arrependidos, como em Lucas; discípulos que lamentam e autori­


dades judaicas ameaçadas.

Reações dos presentes, segundo Marcos/Mateus

Depois das ações divinas escatológicas que precederam, um de (“ Mas” )


inicial muda a cena para reações humanas. Não há nenhuma hostilidade em ne­
nhuma das duas que são relatadas (do centurião, das mulheres), mas os biblistas
discordam drasticamente quanto ao tom de cada uma.

Reação do centurião (Mc 15,39; Mt 27,54). Esta pessoa louva


espontaneamente Jesus como Filho de Deus. Anteriormente, Mc 15,16-24 e Mt
27,27-35 nos falaram de soldados romanos que escarneceram de Jesus no pretório
e levaram-no embora para o Gólgota; ali, deram-lhe vinho, crucificaram-no e repar­
tiram suas roupas. (Mt 27,36 acrescentou que eles então se sentaram e montaram
guarda sobre ele.) Nenhum dos dois Evangelhos menciona a presença de um oficial
do posto de centurião.1 Contudo, agora Marcos nos faz saber que ele tinha estado
de pé ali bem na frente de Jesus, em posição para observar o que se passava,2 e, é
de se presumir, encarregado da execução. (Este último ponto será confirmado em
Mc 15,44, quando Pilatos chama o centurião para perguntar se Jesus está morto.)
Somente a reação dele é descrita, como se os outros soldados já não estivessem
presentes: evidentemente, para Marcos, é mais eficiente fazer um único porta-voz
avaliar Jesus. Mateus preenche a cena acrescentando aos avaliadores de Jesus os
soldados que estavam sentados, “guardando (montando guarda sobre) ele”. Como Mt
27,36 preparou para essa adição, a fluência da narrativa mateana é um progresso
sobre a inesperada introdução marcana de uma pessoa que o tempo todo tinha
estado “de pé ali, na frente dele”. E o que é mais importante, desse modo Mateus
estabelece a justeza legal de “ Verdadeiramente, este era Filho de Deus” ; agora, é
confissão não por um homem, mas por uma pluralidade de testemunhas (que estão

1 No NT, somente Marcos, com sua predileção por latinismos, usa (3 vezes) o empréstimo kentyrion, do latim
centurion, relacionado com centum (cem), palavra encontrada também na literatura grega (por exemplo,
Políbio, História VI,xxiv,5). Mateus e Lucas preferem a palavra mais propriamente grega, hekalontarches
(variante hekatontarchos, relacionada com htkaton, “ cem”) que aparece 20 vezes no NT (4 em Mateus,
16 em Lucas-Atos).
2 Em 2Rs 2,15 e Eclo 37,9 a frase ex enanlias (“ na frente de, diante de”) é usada com idein (“para ver”).

327
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

à altura da pluralidade das testemunhas do julgamento pelo sinédrio chamadas a


juízo contra a dignidade exaltada de Jesus).

O que o c e n tu rião viu. Mc 15,39 relata que a reação do centurião seguiu-


-se a ele ter visto “que ele assim expirou”. O que isso significa? Dois versículos antes
(Mc 15,37), Marcos escreveu: “ Mas Jesus, tendo soltado um forte grito, expirou”.
Consequentemente, pode-se equiparar o “assim” do v. 39 com soltar um forte grito
no v. 37. Os Códices de Beza, Freeriano e Alexandrino, embora divirjam na redação
grega, apresentam todos o centurião como tendo-o visto gritando e expirando. A
fim de explicar como “ ver” um grito levou à elevadíssima avaliação cristológica por
parte do centurião, alguns comentaristas imaginosamente conjeturam a respeito do
conteúdo não mencionado do grito. Stock (“Bekenntnis”, p. 292) indica passagens
veterotestamentárias onde um grito acompanhava a ação divina (acima, § 42, sob
“ Sentido do grito mortal de Jesus” ) e levanta a possibilidade de o grito sem palavras
de Jesus ter sido revelador. Mas, na narrativa, é plausível que o centurião romano
(ou os leitores de Marcos) reconhecessem isso? Danker (“ Demonic”, p. 69) afirma
que um mau espírito saiu de Jesus com um forte grito quando ele morreu e foi a
visão dele que impressionou o centurião. Em § 42, nota 38, expliquei por que não
achei convincente a interpretação que Danker dá para Jesus expirar com um forte
grito; contudo, mesmo que se devesse aceitar sua teoria, essa derrota das forças
do mal poderia fazer o centurião exclamar que Jesus era bom ou inocente, mas
por que o levaria a dar a Jesus a mais alta avaliação cristológica no Evangelho?
Durante o ministério de Jesus, por meio de seu poder dado por Deus, demônios
saíam dos possessos com um forte grito (Mc 1,26; cf. 3,11; 5,13); se agora, por
meio desse poder, a mesma coisa aconteceu a Jesus, por que o centurião seria tão
facilmente movido a confessar a singular relação filial de Jesus com Deus? Outros
retroagem mais a área abrangida pelo “assim expirou” de Mc 15,39 para incluir Mc
15,34-36, isto é, o grito articulado de Jesus “ Meu Deus, meu Deus, por que razão
me abandonaste?” e o escárnio continuado pelos circunstantes até Jesus expirar
(“ Vejamos se Elias vem descê-lo”.) Essa extensão é proveitosa porque, ali, “ Meu
Deus” é invocado e a confissão do centurião inclui a relação de Jesus com Deus.3
Contudo, essa extensão não explica realmente o conteúdo exaltado da confissão do

3 Ao estudar a relação do forte grito expresso em Mc 15,34 e o forte grito não expresso de Mc 15,37, achei
mais provável que Marcos não tivesse pensado em dois gritos, mas, em Mc 15,37, estivesse simples­
mente retomando a narrativa (depois de uma interrupção em Mc 15,35-36) recordando o forte grito que
mencionara em Mc 15,34.

328
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

centurião, pois nada nesses versículos mostra que de fato Deus não abandonara
Jesus e, certamente, Deus não interveio para salvá-lo da morte.

Muito mais plausível é que “tendo visto que ele assim expirou”, em Mc 15,39,
tivesse o propósito de incluir não só a morte em Mc 15,37 (e o que a precedeu
imediatamente em Mc 15,34-36),4*mas principalmente Mc 13,38 e o que se seguiu
à morte: o rasgamento do véu do santuário. A objeção de que esse acontecimento
dificilmente pode ser considerado parte de “assim expirou” não dá força suficiente
ao “assim” que Marcos colocou em posição enfática. Na visão do centurião, Jesus,
que tinha clamado “ Meu Deus” pouco antes de expirar, era verdadeiramente Filho
de Deus porque Deus respondera de maneira dramática e, assim, mostrara que
Jesus não fora abandonado — resposta divina que, ao mesmo tempo, ironicamente
concedia o pedido dos que com escárnio pediram uma intervenção celeste. Mas
poderia o centurião ter visto isso? Há quem expresse a objeção de que o véu do
santuário interior que levava ao Santo dos Santos era visto somente pelos sacerdotes
do Templo e o véu exterior, apenas do lado leste (o Monte das Oliveiras), e não da
colina em forma de caveira do Gólgota, ao norte. Rejeito a própria aplicabilidade
dessa objeção. Se é expressa no nível da história, confusamente interpreta mal
um sinal apocalíptico como ocorrência concreta (§ 43, a n á u s e ). Se é expressa no
nível de fluência narrativa, supõe que Marcos e seus leitores conheciam a planta
arquitetônica e geográfica do Templo em relação ao Gólgota, suposição que contestei
acima (§ 43, sob “ Os véus no Templo do tempo de Jesus” ) ao discutir os véus. Não
há razão para pensar que a antiga audiência marcana (não mais que muita gente
hoje) teria tido problema com o rasgamento do véu ser visto pelo centurião. E, para
eles, fez sentido que esse tremendo sinal o tenha levado a entender que Jesus não
só era inocente, mas na verdade era tão estreitamente relacionado com Deus que a
divindade começara a destruir o santuário do povo que ousara escarnecê-lo.

0 primeiro intérprete conhecido de Marcos entendeu que a cena incluía o


que aconteceu depois da morte de Jesus, pois, em Mt 27,54, o centurião e os que
montavam guarda veem “o tremor (de terra) e estes acontecimentos” ’’ — em outras

4 Eu preferiría empurrar o “assim expirou” para Mc 15,33 e a escuridão que cobriu a terra inteira a partir
da sexta hora. E com certeza o que o centurião teria visto. Em tudo isso e do princípio ao fim desta seção,
penso no nível do fluxo narrativo, não no nível da historicidade.
’ Os códices Vaticano e de Beza leem o particípio presente ta ginomena, enquanto a tradição koiné lê o
partieípio aoristo ta genomena, “ essas coisas que tinham acontecido” .

329
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

palavras, muitos dos sinais apocalípticos operados por Deus para interpretar a morte
de Jesus: a terra sacudida, as rochas partidas, os túmulos abertos, os corpos dos
santos adormecidos ressuscitados.6 Mateus enfatiza o terremoto em parte porque
sua causa se relaciona com alguns dos outros sinais e em parte porque teria sido
o sinal mais claramente visível. Essa mudança de ênfase do véu rasgado (o centro
subentendido da atenção marcana) levanta a possibilidade de Mateus estar ciente
dos problemas topográficos a respeito de ver o véu. Entretanto, seja ou não seja isso
verdade, os sinais de Mateus não devem ser mais historicizados que os de Marcos;
e a visão que o centurião tem “desses acontecimentos” não deve ser contestada
com base em implausibilidades geográficas — quantos túmulos podiam ser vistos
do Gólgota? E compreensível que Mateus relate que a visão da terra tremendo e
dos outros acontecimentos provocasse temor excessivo,7 além de uma exclamação
(tirada quase literalmente de Marcos) que dá voz à admiração: “ Verdadeiramente,
este era Filho de Deus”.

O que significa “Filho de D eu s” ? Traduzi literalmente a expressão huios


theou em Marcos e theou huios em Mateus para tornar inteligível o problema que
os intérpretes têm com ela. É não articular, isto é, não tem o artigo definido antes
de nenhum dos dois substantivos, ao contrário da designação articular (isto é, com
o artigo definido) na pergunta do sumo sacerdote no julgamento do sinédrio: “ És tu
[...] o Filho do Bendito/Deus?” (ho huios tou eulogetou, em Marcos; ho huios tou
theou, em Mateus). Muitos biblistas afirmam que esse predicado na confissão de
Jesus pelo centurião significa algo menos que “o Filho de Deus”.8 Vou relacionar
seus três importantes argumentos e explicar por que discordo.

6 Os sinais que relacionei refletem a probabilidade de que “ o tremor e estes acontecimentos” devam ser
entendidos sequencialmente, isto é os “acontecimentos” são o que Mateus relacionou depois do terremoto.
Ao interpretar Mateus, não há razão adequada para incluir como Jesus morreu (com a devida vênia a
Vanni, “ Passione” , p. 88). Estou indeciso quanto ao rasgamento do véu, pois esse é o mesmo tipo de sinal
escatológico que os outros. Como expliquei em § 43, é plausível que Mt 27,53 signifique que, embora os
mortos tenham saído dos túmulos na sexta-feira, eles entraram em Jerusalém e apareceram no domingo
ou mais tarde, depois da ressurreição de Jesus. Ao descrever o que o centurião viu na sexta-feira, Mateus
pula esse versículo (que ele acrescentara) e volta aos acontecimentos da sexta-feira.
‘ Sphodra (“excessivamente”) ocorre 7 vezes em Mateus, 1 em Marcos e 1 em Lucas. 0 tremor da terra e o
temor entre os guardas reaparecem como tema mateano em Mt 28,2-4, quando o anjo do Senhor remove
a pedra do túmulo de Jesus.
8 RSV (1* edição), NEB, Phillips e Moffat traduzem-no como “um filho de Deus” . Em § 37, Parte XII, ver
o predicado menos que completo em Hamer, Johnson; também em C. Mann, ExpTim 20, 1908-1909, p.
563-564. Ver “ o Filho de Deus” integralmente valorizado em P. H. Bligh, Bratcher, Glasson, Goodwin,
Guy, Michaels, Stock.

330
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

1. Há quem argumente que Marcos, que até aqui nunca fez um ser humano
confessar Jesus como “o Filho de Deus”, não permitiria isso aqui. Entretanto, é
possível raciocinar em outra direção: Marcos faz, na verdade, os possuídos pelo
demônio reconhecerem que Jesus é “ (o) Filho do Deus (Altíssimo)” (Mc 3,11; 5,7;
cf. 1,24);9 ele faria o centurião confessar menos em resposta à ação impressionante
de Deus no momento da morte de Jesus? Que tal confissão não tenha sido feita
antes não é obstáculo, pois o pleno entendimento da identidade de Jesus não era
possível antes que o Filho do Homem sofresse (ver Mc 9,30-32). Além disso, Marcos
proporciona uma inclusão que estrutura o Evangelho: no início, Deus disse: “ Tu és
meu Filho amado” (não articular, Mc 1,11); no fim, um ser humano reconhece de
modo irrevogável essa verdade.10 Dentro da NP, a confissão com certeza destina-se
a retomar a questão levantada no julgamento pelo sinédrio, onde Jesus respondeu
“ Eu sou” ao lhe ser perguntado se era o Filho do Bendito. Por que Marcos teria
agora menos que isso confessado pelo centurião? Quanto a Mateus, este primeiro
argumento não se aplica, pois ele faz os discípulos confessarem Jesus como “ Filho
de Deus” (não articular, Mt 14,33) depois da caminhada sobre a água, e por Simão,
filho de Jonas, como “o Filho do Deus vivo” (articular, Mt 16,16) em Cesareia de
Filipe. A confissão pelo centurião e os guardas é continuação da confissão dos fiéis.

2) Gramaticalmente, há quem argumente que o predicado não articular deve


ter menos força que o articular e é indefinido, equiparando-se a “um filho de Deus”,
classificação compartilhada por outros seres humanos. Entretanto, essa alegação
a respeito da significação indefinida está longe de ser certa. Acabei de mencionar
que, nos capítulos 14 e 16, Mateus usou os títulos não articulares e articulares
alternativamente;11 ele faz isso novamente em Mt 26,63 (articular) e em Mt 27,40.43
(não articular). Em Lc 1,32.35, ao revelar a Maria como Jesus será chamado, o anjo
Gabriel usa “ Filho do Altíssimo” e “ Filho de Deus”, sem o artigo, e ninguém duvida

9 Como, em Mc 1,11, Deus revelou que Jesus era o Filho, muitos concordam que essa confissão por en-
demoninhados não deve ser considerada falsa. Os demônios sabem de modo sobrenatural o que os seres
humanos só sabem corretamente quando entendem o papel da cruz como componente da identidade de
Jesus (sua humanidade sofredora) — componente que também faz parte da identidade dos que querem
ser seus discípulos.
10 Pode haver outra inclusão, se “ Filho de Deus” em Mc 1,1 (que falta em alguns mss.) for genuíno.
11 Pode-se afirmar que há uma progressão da confissão não articular dos discípulos para a confissão articular
mais solene por Simão Pedro; mas certamente Mateus não estava fazendo os discípulos confessarem “Tu
és um filho de Deus” (como outros seres humanos) depois que Jesus caminhou sobre a água e acalmou
a tempestade.

331
Q umuo h o •lesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

de que ele tem em mente a mais alta cristologia. Quanto ao uso do título com o verbo
de ligação, há casos onde a designação “Filho de Deus” em sentido exclusivo é não
articular, quando, no todo, em parte ela precede o verbo, como acontece na confissão
do centurião, por exemplo, Mt 4,3.6 (= Lc 4,3.9); Mt 27,40; Jo 10,36. Na verdade,
depois de um famoso estudo por E. C. Colwell, mais precisão entrou na avaliação
do predicado não articular. A regra de Colwell, a saber, substantivos predicativos
definidos que precedem o verbo geralmente não têm o artigo,12 fez com que ele (p.
21) achasse em Mc 15,39 uma confissão de “o Filho de Deus”. Harner (“ Qualitative”,
p. 75) busca refinar a imagem gramatical argumentando que substantivos predica­
tivos não articulares que precedem o verbo de ligação atuam primordialmente para
expressar a natureza ou o caráter do sujeito. 0 centurião marcano, então, não quer
dizer que Jesus era um filho de Deus, pois nesse caso a designação teria seguido
o verbo. Mas nem o centurião quer dizer que Jesus era o único Filho de Deus em
sentido cristológico pleno, pois então o predicado seria articular. Mais exatamente,
ele quer dizer que Jesus era o tipo de Filho de Deus que é marcado por (e, portan­
to, é conhecido por meio de) sofrimento e morte. Embora pelo jeito as distinções
gramaticais de Harner sejam refinadas demais, ele corretamente subentende que
“ Verdadeiramente [...] Filho de Deus” inclui uma rejeição marcana de toda noção
falsa de filiação divina (em especial uma que exclua sofrimento) em circulação entre
os cristãos. Mas a avaliação de Harner deve ter estendido a qualificação do “tipo
de Filho de Deus” a todo o contexto da NP. Na lógica da narrativa marcana, o cen­
turião deve estar remontando à pergunta sobre “o Filho do Bendito” no julgamento
pelo sinédrio, pois essa é a única outra vez que a filiação divina é assunto da NP
marcana.13 Jesus é, de fato, o tipo de Filho de Deus sobre quem os líderes judaicos
fizeram perguntas, e cuja afirmação eles consideravam blasfema. E esse o significado
de “ Verdadeiramente”, a primeira palavra na confissão do centurião: na questão que
levou à morte de Jesus, a verdade estava do lado de Jesus.14

12 “ A Definite Rute for the Use of the Article in the Greek New Testament” , em JB L 52, 1933, p. 12-21.
E. S. Johnson (“ Is Mark”, p. 4), em seu exame de 112 casos de substantivos predicativos que precedem
o verbo, descobriu que 15 tinham o artigo e 97 não tinham.
13 No escárnio perto da cruz que o centurião pode ter ouvido, os chefes dos sacerdotes e os escribas con­
testaram o fato de Jesus ser “ o Messias, o rei de Israel” , sem mencionar o Filho de Deus. Mais uma vez,
a narrativa mateana é um progresso, pois em Mt 27,40.43, os transeuntes e os chefes dos sacerdotes
escarneceram da alegação que Jesus fez de ser o Filho de Deus.
14 Stock (“Bekenntnis” , p. 104) lembra que alethes teve essa força de solucionar uma disputa em seu único
uso marcano anterior (Mc 14,70b), onde os circunstantes afirmam a Pedro: “ Verdadeiramente, tu és um
deles, pois de fato és galileu” .

332
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

3) Com frequência, argumentam que um soldado romano15 pagão não teria


a formação religiosa para confessar Jesus como o Filho único do Deus verdadeiro.
Ele poderia ter reconhecido que Jesus era um homem bom ou santo, e um filho
de Deus nesse sentido ou, quando muito, um herói divino digno de ser cultuado.16
Mais uma vez, esse é o tipo errado de historicização. Não devemos perguntar o
que um soldado quis dizer no Gólgota no ano 30/33; é impossível descobrir isso.
(Se a cena é histórica e ele disse essa sentença, ele falou latim, onde não há artigo
definido [filius Dei\, ou grego? Neste último caso, será que conhecia as sutilezas
da gramática grega [regra de Colwell]? Ver Guy, “ Son”.) Devemos perguntar o que
esta cena significava para os leitores marcanos no fim dos anos 60 ou 70. Para eles,
o centurião tinha valor representativo como gentio e como oficial romano com res­
ponsabilidade que não reagiría por pura piedade ou credulidade.17Enquanto Jesus
pendia da cruz, os chefes dos sacerdotes com os escribas diziam: “ Que o Messias,

15 As tropas sob o controle do prefeito da Judeia muitas vezes não eram etnicamente romanas, nem italianas
(§31, nota 64), e o posto de centurião não exigia cidadania romana. Contudo, esse centurião vem com
seus soldados do pretório do prefeito romano (Mc 15,16.20) e será chamado por Pilatos para relatar a
morte de Jesus (Mc 15,44). Portanto, os leitores devem ter pensado nele como representante romano de
Pilatos. Isso foi entendido logo: EvPd 8,31 dá ao centurião, que, com os soldados, foi enviado por Pilatos
para guardar o túmulo de Jesus, o nome de Petrônio, que era o nome de um legado romano da Síria, c. 40
d.C. Atos de Pilatos 16,7 dá ao centurião o nome de Longino, nome usado por romanos da gens Cassia
(C. Schneider, “Hauptmann” , p. 5). Metzger (“ Names” , p. 95) relata que uma imagem do Códice Egberti,
do século X, chama de Estefato o homem que pôs o vinho avinagrado na esponja para oferecer a Jesus.
16 Quanto a declarar Jesus bom, em Mt 27,19 a mulher de Pilatos reconhece que Jesus é justo e, em Mt
27,23-24; Lc 23,14 e Jo 19,6, Pilatos declara Jesus inocente. Há quem apele para a forma lucana da
confissão do centurião (Lc 23,47: “ Certamente este homem era justo”) como prova de que Marcos queria
dizer isso, mas abaixo vou argumentar que Lucas muda, não traduz Marcos. Quanto a declarar Jesus
herói divino, P. H. Bligh (“ Note”) lembra que um pagão estaria familiarizado com a designação sebastos
(“digno de ser cultuado” ), ligada a Augusto, ou mesmo o huius sebastos ligado a Tibério.
17 Manus (“Centurions” , p. 269): “ Em um mundo onde o exército era usado para expandir o império e
conseguir hegemonia sobre nações fracas, o posto e posição de um centurião eram respeitáveis” . John­
son (“Is Mark”) apresenta proveitosos dados sociológicos, por exemplo, uma audiência helenística teria
visto um centurião como alguém com capacidade que lhe possibilitara avançar para uma respeitável
posição de oficial. (Observemos a admirável integridade e atitude solidária do tribuno em At 23,16ss e
do centurião em At 27,43.) Mas então Johnson prossegue e aplica mal informações históricas, a fim de
negar que o centurião confessou a filiação singular de Jesus. Sem dúvida, Johnson está certo ao dizer
que muitos soldados romanos que serviam na Judeia tinham desprezo por criminosos crucificados,
eram antijudaicos e desdenhavam as crenças judaicas como superstição. Mas Johnson não pergunta se
a audiência de Marcos teria notado isso. Não teria ela considerado mais convincente que alguém sem
nenhuma razão para ser favorável a Jesus tivesse reconhecido a verdade a respeito dele? Mais tarde, o
centurião Longino foi considerado santo cristão (comemorado em 15 de março), cujas relíquias foram
preservadas em Mântua.

333
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

o Rei de Israel, desça agora da cruz, a fim de podermos ver e crer” (Mc 15,32).
Agora, um gentio vê o que Deus fez e crê. A tradição Q sabe de um centurião que
no mesmo instante mostrou tal fé quanto a Jesus ter prometido a muitos do Oriente
e do Ocidente lugares à mesa com Abraão, Isaac e Jacó, enquanto os filhos do reino
seriam lançados fora, nas trevas (Mt 8,5-13; Lc 7,1-10). Esse centurião no local
da cruz é o equivalente marcano. No fim das aparições do Jesus ressuscitado nos
outros Evangelhos, há uma diretriz para proclamar o Evangelho de Jesus, além dos
confins do Judaísmo, para o mundo gentio (Mt 28,19-20; Lc 24,47; [At 1,8]; Jo
20,21 [por inferência]; apêndice marcano Mc 16,15). Para Marcos, que não relata
aparições do Jesus ressuscitado, esse centurião serve como símbolo para o cumpri­
mento incipiente da promessa de Jesus em Mc 13,10, segundo a qual o Evangelho
de Jesus seria pregado a todas as nações. Há também um eco veterotestamentário?
Admitindo-se o emprego do SI 22 na NP (APÊNDICE VII), em especial nas últimas
palavras de Jesus alguns versículos antes (Mc 15,34), Marcos pensava em SI
22,28 (“ Todos os confins da terra recordarão e se voltarão para o Senhor e todas
as famílias das nações se prostrarão diante Dele” )? Também é importante que a
confissão seja feita por um soldado romano. Ao narrar a atividade dos soldados na
crucificação, Mc 15,26 relatou uma inscrição que trazia a acusação contra Jesus:
“ 0 Rei dos Judeus”, que fazia eco à acusação no julgamento diante de Pilatos (Mc
15,2). Agora, o chefe dos soldados tacitamente ignora essa falsa questão política
e volta de maneira afirmativa à acusação no julgamento do sinédrio: “o Filho de
Deus [o Bendito]” .18

Quanto à verossimilhança,19 os leitores de Marcos não precisariam achar


estranha essa afirmação de fé por um centurião romano envolvido na crucificação
de Jesus. At 10 relata como outro centurião, Cornélio, veio espontaneamente a
ter fé em Jesus,20 e At 16,25-34 fala do guarda da cadeia onde Paulo estava, na
colônia romana de Filipos, que foi instantaneamente convertido pelo fato de Paulo

18 O contexto precedente exige que essa confissão seja interpretada em contraste com a negação. Creio que
Bligh (“Note” , p. 53) historiciza erroneamente quando entende que isso é contrário ao compromisso de
fidelidade ao imperador: “ Este homem, não César, é o Filho de Deus” . Não vejo nada que sugira que a
audiência marcana pensaria nesse contraste.
19 Petrônio (Satyricon, p. 111) menciona um soldado que ficou vigiando a cruz temendo que alguém levasse
o corpo para sepultamento.
20 Realmente, At 10,1-2 relata que ele já era devotado temente a Deus, mas o verdadeiro significado da
história é o inesperado da fé vir a esse centurião gentio (ver At 11,18; 15,7).

334
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

não tentar escapar. Nas narrativas judaicas de martírio, a intervenção divina a


favor do mártir e/ou o modo como o mártir estava disposto a sofrer pela verdade
às vezes convertiam os captores ou perseguidores,21 e essa se tornou também uma
característica das narrativas cristãs de martírio. Certamente, a aceitação das origens
celestes de Jesus por um centurião romano depois de um sinal divino não tem grau
de verossimilhança menor que o reconhecimento em Lc 23,42 do reino celeste de
Jesus por um malfeitor crucificado, sem nenhum sinal divino. Nenhuma das duas
pessoas tinha a formação religiosa das autoridades judaicas; ambas viram a verdade.

A guisa de resumo, então, não há nenhuma objeção convincente à tese de


que o predicado na confissão do centurião marcano significava “o Filho de Deus”
no sentido pleno do termo. Preferi lidar com as várias objeções porque alguns se
deixaram convencer por elas. Eu preferiría ter respondido à pergunta básica da
mesma maneira como lidei com a questão do que o sumo sacerdote queria dizer
quando perguntou a Jesus: “És tu [...] o Filho do Bendito/de Deus?”. Não há ne­
nhuma probabilidade de que a audiência marcana fizesse uma distinção entre o que
sua declaração de credo (Jesus é o Filho de Deus) significava c. 70 e o que o sumo
sacerdote e o centurião queriam dizer quando usaram “ Filho de Deus” em uma
narrativa situada em 30/33. A audiência ouviu uma das duas pessoas zombando
daquilo em que eles acreditavam e a outra afirmando-o.

Voltando-nos brevemente para Mateus, não vejo razão para pensar que
“Filho de Deus” na forma mateana da confissão pelo centurião signifique alguma
coisa diferente do uso marcano do termo. 0 particípio “dizendo”, que introduz a
confissão mateana, é dependente de “temeram excessivamente”. Em outras pala­
vras, o temor religioso gerado pelos sinais escatológicos é o contexto no qual Jesus
é aclamado como Filho de Deus. O “ Verdadeiramente”, que é a primeira palavra
da confissão, foi usado antes, no reconhecimento da filiação divina de Jesus pelos
discípulos em Mt 14,33. Vimos que Ez 37 influenciou muito a referência mateana
às rochas sendo partidas, os túmulos sendo abertos e os corpos sendo ressuscita­
dos. Agora que esses fenômenos ocorreram, o centurião e os guardas que os viram
reconhecem quem Jesus é, cumprindo Ez 37,13 (LXX): “Então sabereis que eu sou
o Senhor, quando eu abrir vossos sepulcros para conduzir meu povo para fora dos

21 Dn 3,28; 6,24; 3 Macabeus 6,20-29; ver Pobee, “ Cry” . Depois que o mártir Eleazar sofreu morte horrível,
o autor de 4 Macabeus 7,6-15 reconhece a importância extraordinária dessa nobre figura por uma série
de títulos laudatórios.

335
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

sepulcros”. O contraste entre uma confissão romana e a rejeição judaica é ainda


mais forte em Mateus do que o foi em Marcos. A rejeição judaica daquilo que o
romano afirmou é realçada pelo fato de, no julgamento mateano pelo sinédrio, o
sumo sacerdote usar esse mesmo título “o Filho de Deus” (Mt 26,63: ho huios tou
theou) e, enquanto Jesus pendia da cruz, alguns dos transeuntes (judeus), chefes
dos sacerdotes, escribas e anciãos escarnecerem de sua alegação de ser “ Filho de
Deus” (Mt 27,40.43: huios tou theou; theou huios; ver Vanni, “ Passione”, p. 89). A
aceitação gentia é realçada pelo fato de, depois da morte de Jesus, Mateus ter vários
confessores de “ Filho de Deus” (centurião, os que montavam guarda), desse modo
formando uma inclusão com o período depois do nascimento de Jesus, quando os
magos gentios vieram adorar “o Rei dos Judeus”, enquanto o rei judeu Herodes e
“todos os chefes dos sacerdotes e escribas do povo” eram hostis.22

“ Verdadeiramente, ESTE HOMEM era Filho de Deus”. 0 predicado é o aspecto


mais discutido da confissão do centurião em Marcos/Mateus e ao tratar dele aci­
ma, vimos a importância de “Verdadeiramente”. Contudo, não faríamos justiça à
teologia marcana se menosprezássemos o sujeito gramatical e o verbo da dramá­
tica declaração. Todas as outras confissões evangélicas de Jesus estão no tempo
presente; assim, o uso do tempo imperfeito, “era”, nesta confissão final, é único e
também significativo. Marcos/Mateus não querem dizer que a filiação divina de
Jesus é uma coisa restrita ao passado, mas o verbo mostra que a confissão é uma
avaliação do passado.23 Jesus foi Filho de Deus do princípio ao fim de um ministério
que começou quando Deus afirmou essa verdade (Mc 1,11), embora até este ponto
nenhum ser humano a tenha reconhecido. 0 sujeito gramatical em Marcos, “este
homem”, é descrição de Jesus raramente encontrada. Marcos usou-a anteriormen­
te só em Mc 14,71, quando Pedro declarou: “ Eu não conheço esse homem” — a
negação pelo principal discípulo compartilhou a redação da confissão de um novo
discípulo! (O versículo anterior na negação [Mc 14,70] foi o último uso marcano de
“ Verdadeiramente”, que reaparece aqui.) “ Este” colocado primeiro na confissão
tem parcialmente força locativa, chamando a atenção para aquele na frente de cujo
corpo crucificado o centurião está de pé. (Notemos como os bandidos crucificados
de cada lado de Jesus [Mc 15,27] são ignorados.) Entretanto, em maior grau, o

22 Mt 2,4.20; este último contém um plural: “aqueles que queriam matar o menino” , mostrando que todos
os grupos de Mt 2,4 estavam envolvidos.
2,1 A respeito de muitas das observações feitas aqui, ver Stock, “Bekenntnis” , p. 296-297.

336
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

“este” é designador: este que morreu desta maneira. Combinado com “era”, o
demonstrativo serve à teologia marcana de que a revelação do Filho de Deus teve
lugar na cruz. Quanto ao sujeito nominal, “homem [anthropos]”,24 Marcos contrasta
muitas vezes “ homem” [= ser humano] e “ Deus” (Mc 7,8; 8,33; 10,9.27; 11,30;
12,14) como alternativas opostas. Nessas passagens, os valores humanos são tão
diferentes dos de Deus a ponto de distorcer a verdade religiosa. Jesus agia e falava
com poder/autoridade (exousia : Mc 1,22.27; 11,28), mas os escribas o acusaram
de blasfemar alegando fazer coisas que só Deus podia fazer (Mc 2,7: notemos que
eles também veem origem humana e divina como alternativas opostas). Ao leitor,
é dito que a razão de Jesus não ser blasfemo é que, nele, o antagonismo entre o
humano e o divino não existe. Ele é o Filho do Homem cujos valores são os de Deus
e não os dos seres humanos: o Filho do Homem, que veio para servir, não para ser
servido (Mc 10,45), e que reconhece que seu papel é sofrer na cruz (Mc 8,31; 9,31;
10,33). Diante do sinédrio, Jesus respondeu aíirmativamente à pergunta do sumo
sacerdote a respeito de ser ele o Filho do Bendito (Deus) em termos de ver o Filho
do Homem (Mc 14,61-62); agora, o centurião romano vê “este homem” e o identifica
como o Filho de Deus.25 Manus (“ Centurions”, p. 264) expressa bem a totalidade
da imagem em Mc 15,39: “ Marcos faz o centurião romano um representante fiel do
Cristianismo gentio que viu a significância de Jesus como o Filho de Deus revelado
por excelência no drama da cruz”. Ele é o primeiro daquela comunidade de fiéis que,
na linguagem de Mc 14,58, constitui outro santuário não feito por mãos humanas,
que substitui o santuário de Jerusalém feito por mãos humanas, cujo véu acabou
de ser rasgado em dois, de alto a baixo.

Mt 27,54 tem um significado ligeiramente diferente, pois omite “homem” do


sujeito gramatical, que agora é simplesmente “este” e é transferido para o final, na
ordem grega de palavras: “ Verdadeiramente Filho de Deus era este”.26 Contudo,

21 Davis (“Marks”) é especialmente útil neste ponto.


25 A ordem gramatical da confissão de Mc 15,39 é apropriada (“este homem” como sujeito; “ Filho de
Deus” como predicado); de fato, do princípio ao fim dos Evangelhos, “Filho do Homem” , como Jesus
se autodenomina, é normalmente sujeito, enquanto “ o Filho de Deus” , dito por outros a respeito dele, é
geralmente predicado. A confissão do centurião foi saudada como “ o” clímax do Evangelho de Marcos. A
crítica dessa posição por Stockklausner e Hole (“ Mc 15,39” ) é, a meu ver, um pouco exagerada. Contudo,
eles estão certos em insistir que a ressurreição é também importante para Marcos, de modo que Mc 15,39
é mais bem caracterizado como clímax.
2f> Na terceira das negações de Pedro, onde Mc 14,71 trazia “ Não conheço esse homem” , Mt 26,74 preferiu
a alternativa de eliminar “esse” : “Não conheço o homem” . E o fato de Mateus por duas vezes evitar o

337
Q uarto aio •JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto

a referência ao Jesus crucificado é mantida. Enquanto ele pendia da cruz, outros


pronunciavam um escárnio equivalente a “Este era Filho de Deus?” como pergunta
ridícula que expressava incredulidade (ver Mt 27,40.43). O centurião mateano
responde com seu “ Verdadeiramente” introdutório.

Reação das mulheres (Mc 15,40-41; Mt 27,55-56). A segunda reação


à morte de Jesus é descrita com o dobro de extensão da primeira; contudo, nada
é dito pelos descritos, de modo que sua presença tem de falar por si só — fator
que produz discordância entre os intérpretes e que abre a possibilidade de que a
presença signifique coisas diferentes em Evangelhos diferentes.27

A id e n tific a ç ã o d a s m ulheres. Segundo Marcos, entre as “mulheres


observando de longe” estavam: i) Maria Madalena, isto é, Maria de Mágdala, na
margem noroeste do Mar da Galileia; ii) “ Maria, de Tiago Menor e de Joset, a
mãe” ; iii) Salomé — estas “costumavam segui-lo e servi-lo” quando ele estava na
Galileia28 — e iv) muitas outras que tinham subido com ele a Jerusalém. Nunca
antes Marcos mencionou que mulheres tinham seguido Jesus durante todo o seu
ministério público; assim, ao citar três delas, ele tem de fornecer algumas infor­
mações biográficas. Infelizmente, o que ele fornece é expresso de maneira confusa,
e menciona um grupo plural no início e também no fim de Mc 15,40-41. Tem-se
a impressão de que nenhuma das mulheres que observavam a certa distância era
natural de Jerusalém. Das três, é dito especificamente que, quando ele estava na
Galileia, elas costumavam segui-lo e servi-lo.29 Outras mulheres das quais não se

“esse homem” marcano na NP acidental ou, aos olhos de Mateus, a designação, que podería ser entendida
como “ esse sujeito” , é referência indigna a Jesus?
2| No esforço para descobrir uma nova estrutura no fim de Mateus, Heil (“ Narrative” , p. 420) tenta juntar a
reação das mulheres (Mt 27,55-56) ao relato do sepultamento e ressurreição, de modo que Mt 27,55-28,20
forma uma unidade. Acho isso errado, por três razões: a) como vou argumentar (§ 48 A), a descoberta
por Heil de três partes desiguais (cada uma com três subseções) representa um excesso de estruturação
estranho a Mateus; b) essa análise choca-se com a narrativa bem delineada que associa Mt 27,55-56
primordialmente com o que precedeu na crucificação, e não com o sepultamento e ressurreição que se
segue; e c) a análise ignora o paralelo inclusivo entre Mt 27,57-28,20 (observemos o início, com Mt
27,57) e Mt 1,18-2,23, a ser indicado adiante (Quadro 9; § 48 A).
28 Esses verbos no imperfeito têm força de mais-que-perfeito. Qualquer tentativa (ver Schottroff, “ Maria” )
de fazer os verbos incoativos com a ideia de que Marcos quer dizer que essas mulheres ainda estão se­
guindo e servindo Jesus nesta cena de crucificação não faz justiça à especificação marcana de que isso
teve lugar na Galileia. Somente em Mc 16,1 o evangelista nos informará que as mulheres ainda desejam
prestar serviços ao Jesus morto.
29 E provável que, aqui, Diakonein (“ servir, ministrar para” ) signifique tomar conta de necessidades ma­
teriais, em especial comida e bebida (ver Mc 1,13.31).

338
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

diz que fizeram isso (embora Marcos talvez tenha indicado que o fizeram) subiram
com (synanabainein ) Jesus a Jerusalém, isto é, presumivelmente vindo da Galileia,
na subida (anabainein ) descrita em Mc 10,32-33, onde Jesus advertiu aos compa­
nheiros que ele sofreria. Ficamos imaginando se Marcos queria dizer que as três
mulheres citadas também tinham subido com ele na mesma viagem.30

Mateus simplifica a imagem fazendo uma única menção de um grupo com­


binando os aspectos da dupla referência marcaria:31 i) as “muitas mulheres obser­
vando de longe” são as que “tinham seguido Jesus desde a Galileia, servindo-o”
— aqui, todas são galileias, todas o servem; todas o seguiram a Jerusalém. Entre
elas, estão ii) Maria Madalena; iii) “ Maria, de Tiago e de José, a mãe” ; iv) a mãe
dos filhos de Zebedeu.

A fim de comparar os nomes das mulheres identificadas individualmente,


consultar o Quadro 8 (§ 41), apresentado em relação à história joanina das mu­
lheres de pé perto da cruz. Esse quadro relaciona as mulheres mencionadas em
três cenas inter-relacionadas: na sexta-feira, nos arredores da cruz, e outra vez,
no sepultamento; na Páscoa, perto do túmulo vazio. Na linha D do quadro, aponto
para uma tradição (expressa de maneira diferente pelos diversos Evangelhos) de
um grupo maior de mulheres galileias associadas com Jesus que estavam presentes
em Jerusalém, tendo talvez vindo para a festa da Páscoa. Das mulheres identifica­
das pelo nome,32 a linha A mostra Maria Madalena como a lembrada com maior
frequência e, aqui, Marcos/Mateus citam-na em primeiro lugar. A linha B mostra
a alta frequência de outra mulher chamada Maria, quase sempre identificada por
intermédio dos filhos Tiago e Joset/José.33 Entretanto, nesta linha, Marcos apresenta

30 Tumer (“Marcan” 26,240) acha que não, que elas vieram mais tarde, exatamente no tempo da Páscoa,
na esperança de encontrar Jesus em Jerusalém. Pesch (Markrn, v. 2, p. 508) reconhece que a gramática
literal de Marcos favorece distinções no grau da adesão das mulheres; Schottroff (“Maria” , p. 13) rejeita
isso.
31 Este é um caso claro da implausibilidade da tese de que Marcos recorreu a Mateus e Lucas. Ambos
fazem uma descrição simples, de modo que Marcos teria tido de introduzir confusão.
32 Hengel (“ Maria” , p. 248) menciona uma tendência nas três cenas de relacionar três mulheres pelo nome,
semelhante à tendência de relacionar três dos Doze: Pedro, Tiago e João. É provável que essa relação
reflita a importância relativa dos três dentro do grupo maior e o primeiro designado em cada lista pode
ser respectivamente o primeiro a quem foi concedida uma aparição do Jesus ressuscitado (ICor 15,5,
para Cefas/Pedro).
33 Expliquei a probabilidade de ser ela a mulher a quem João chama de Maria de Clopas (marido ou pai
dela). Quanto às variantes “Joset”, em Marcos, e “José” , em Mateus, e a variação semelhante nos nomes
dos irmãos de Jesus, ver § 41, nota 84.

339
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

confusamente três designações para Maria: a certa distância da cruz, “ Maria, de


Tiago Menor e de Joset, a mãe” ; no sepultamento, “ Maria de Joset” ; e no túmulo
vazio, “Maria de Tiago”. Têm sido apresentadas muitas teorias para explicar como
surgiram essas diversidades;34 mas, felizmente, uma decisão nesse ponto não tem
importância para nosso estudo aqui.

A linha C do quadro mostra que há demasiada variação entre os Evangelhos


a respeito das outras mulheres citadas para permitir identificações comparativas. Só
Marcos menciona uma Salomé (aqui e em Mc 16,1 — na Palestina desse período,
Salomé era nome comum). Ela aparece também no segundo fragmento do Evan­
gelho secreto de Marcos (ESM 3,15-16), no momento em que Jesus vem a Jerico
(Mc 10,46a): “ Presentes ali estavam a irmã do jovem que Jesus amava e sua mãe,
e Salomé; e Jesus não as recebeu”. Bauckham (“ Salomé”, p. 257ss) menciona que
ela é subsequentemente lembrada, em especial em obras gnósticas, como uma das
(quatro) discípulas citadas de Jesus (por exemplo, Primeiro Apocalipse de Tiago
V,40,25-26). Deve ela ser mantida separada da Salomé do Protoevangelho de Tiago
19,3, que pode ter sido filha de José em um casamento anterior (ver Protoevangelho

34 Para mostrar a engenhosidade erudita, quero relacionar algumas das propostas com algumas indagações:
a) A primeira designação mais longa desta Maria era original e a segunda e terceira foram encurtadas a
partir da primeira. Talvez essa seja a opinião mais geral. Mas então por que não foi a ordem dos filhos na
primeira (Tiago antes de Joset) seguida? b) A segunda e a terceira designações de Maria eram originais
e a primeira era uma composição delas (R. Mahoney, Matera, Schenke). Isso se relaciona com a tese de
que a presença das mulheres no túmulo era mais original que a posição delas (longe ou perto) na cena
da cruz. Com que base, então, o autor da primeira designação de Maria, operando a partir da segunda e
da terceira, mudou a ordem dos nomes e acrescentou “ Menor” ao nome de Tiago? c) Somente a terceira
referência a Maria era original, pois a primeira e a segunda listas dos nomes das mulheres são facilmente
omitidas. Por que então a redação da primeira e da segunda referências a Maria difere da terceira? d) O
Códice Vaticano tem dois artigos definidos: “A Maria de Tiago Menor e a mãe de Joset” . Pesch e Schot-
troff entendem isso como designação de duas mulheres, de modo que a segunda e a terceira referências
são respectivamente a uma e à outra delas. Entretanto, Mateus entende que Marcos quer dizer uma só
mulher: “a outra Maria” (Mt 27,61; 28,1). e) A referência é a uma só mulher, mas sua designação deve
ser entendida como: “ Maria, a mulher de Tiago Menor e mãe de Joset” (Finegan, Lohmeyer). Entretanto,
essa dupla designação de uma só pessoa é bastante incomum. f) Crossan (“ Mark”) afirma que o nível pré-
-marcano falava de “ Maria de Tiago” na primeira e na terceira referências. Marcos acrescentou “Joset”
à primeira e criou a segunda (“ Maria de Joset”) porque Tiago e Joset estavam relacionados juntos entre
os irmãos de Jesus (Mc 6,3). (Entretanto, mais tarde, em PMK, p. 146, Crossan afirma que a terceira
referência às mulheres, em Mc 16,1, foi criada com base na primeira, em Mc 15,40). g) Esta Maria era
Maria, a mãe de Jesus (como em Jo 19,25-27); mas Marcos, que denegriu a importância de relações
familiares para Jesus (Mc 3,31-35), preferiu designá-la pelos outros filhos (Mc 6,3). Não se tem outro
exemplo dessa maneira de se referir a Maria, a mãe de Jesus, e, aparentemente, nem Mateus nem Lucas
descobriram-na sob essa alcunha. Embora este levantamento de opiniões, que considero deficiente, seja
realista, ouso fazer uma sugestão própria em § 47 B, a diante.

340
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

de Tiago 9,2) e, assim, uma “ irmã” de Jesus (mesmo pai legal)?35 Ou (quer his­
toricamente, quer por idealização subsequente) uma irmã de Jesus tornou-se uma
das galileias que o seguiam?

Na linha C, Mateus menciona a mãe dos filhos de Zebedeu, mulher citada


no NT apenas por ele. E ela identificação mateana da Salomé marcana? Ou, à dis­
tância da cruz (ele não cita nenhuma terceira mulher nas cenas do sepultamento e
do túmulo vazio), Mateus substitui Salomé (figura nunca mencionada por ele) por
outra mulher mais significativa? Anteriormente, Mateus muda duas vezes o que
recebeu de Marcos de um jeito que poderia dar à designação “a mãe dos filhos de
Zebedeu” significância evocativa aqui. Na questão de obter primeiros lugares no
reino de Jesus, em lugar dos filhos (Mc 10,35), Mt 20,20 teve o pedido feito pela
“mãe dos filhos de Zebedeu”. Ao mudar “Pedro e Tiago e João” de Mc 14,33, Mt
26,37 fez Jesus levar com ele ao Getsêmani “Pedro e os dois filhos de Zebedeu”.
Será que, depois dessas referências redolentes de fracasso, Mateus reintroduz à
distância da cruz “a mãe dos filhos de Zebedeu” como promessa de um papel futuro
para ela e também para seus filhos no seguimento de Jesus?

Na ANÁLISE, vou examinar a questão da presença das mulheres nas três


cenas (a cruz, o sepultamento, o túmulo vazio) para determinar qual pode ter sido
a localização mais original. Aqui, vamos nos concentrar no papel que as mulheres
desempenham na narrativa preservada de Marcos/Mateus da consequência da
morte de Jesus. Duas questões são tema de debate erudito: seu discipulado e a
importância de estarem “observando”.

E r a m a s m ulheres que ob servav am de lon ge d is c íp u la s? Em nível


de terminologia, Mateus usa mathetes para os adeptos de Jesus cerca de sessenta e
cinco vezes (dois terços das vezes, independentemente de Marcos e de Q). Embora
ele imagine a extensão do discipulado a todas as nações (Mt 28,19) e queira que
os leitores sejam discípulos segundo o modelo dos que descreve, não fica claro
se ele usa o termo durante o ministério de Jesus para se referir a outros além dos
Doze, que eram todos homens. (Ver Mt 10,1: “seus doze discípulos”.) A primeira
menção marcana de que Jesus tem discípulos (Mc 2,15) tem a oração explanativa
“pois havia muitos que o seguiam”. Em Mc 3,14, fica-se com a impressão de que

3j Mc 6,3 refere-se às irmãs de Jesus. Epifânio (Panarion LXXVlII,viii,l; LXXVIII,ix,6; GCS 37, p. 458.460)
cita nessa categoria Maria e Salomé, que eram filhas de José. Ver § 41, nota 82.

341
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

foi desse grupo maior de discípulos que ele designou os Doze. Tendo chamado
para si a multidão com seus discípulos (Mc 8,34), Jesus ressaltou a importância
da cruz em seu seguimento e, em Mc 9,35, falou aos Doze sobre a necessidade de
serem servos de todos. A indicação em Mc 15,41, de que as três mulheres citadas
“costumavam segui-lo e servi-lo” na Galileia, significa, então, que, na opinião de
Marcos, elas podiam ser chamadas “discípulas”, embora sua presença com Jesus
nunca tenha sido mencionada antes? Schottroff (“ Maria” ) diz que sim. Gerhards-
son (“ Mark”, p. 219-20), depois de descrever de modo muito positivo tudo o que
as mulheres fizeram, declara: “ Mas elas não estão descritas como verdadeiros
discípulos, e menos ainda como futuros apóstolos”.36 Precisamos reconhecer que
talvez estejamos perguntando uma coisa que Marcos nunca perguntou a si mesmo
e que duas perguntas são apropriadas para compreender essa situação. Se lhe
perguntassem, Marcos consideraria essas mulheres discípulos? (Desconfio que
sim). Marcos pensava nelas quando, ao descrever o ministério, escreveu a palavra
“discípulos” ? (Talvez não.)

Não importa como se responde a tais perguntas (se elas puderem ser res­
pondidas a partir dos indícios disponíveis) e fora do nível terminológico, a questão
do discipulado influi na interpretação da cena presente de modo especial. Como
parte de sua tese de que essas mulheres eram discípulas, Schottroff alega que elas
estavam na Ultima Ceia, foram ao Getsêmani, estavam entre “todos” que fugiram
e agora bravamente voltaram. Não vejo nada em Marcos que apoie essa alegação.
Mc 14,17 diz que Jesus veio à ceia com os Doze e não dá nenhuma indicação nessa
cena de que tinha mais alguém em vista.37 Em Mc 14,26, os que estavam na ceia
eram os que foram para o Monte das Oliveiras; e em Mc 14,40, cumprindo a profecia
que lhes fora feita em Mc 14,27, eram eles “todos” que fugiram. No capítulo 14,

,fl Também E. Schweizer, EvT NS 42, 1982, p. 294-300, discordando de Schottroff.


3‘ Que deve ter havido outros na ceia (cozinheiros, garçons) é irrelevante para determinar a importância
da narrativa evangélica, pois só personagens mencionadas atuam nesse nível. A presença de mulheres
(discípulas) na ceia tem às vezes entrado em debates atuais a respeito da ordenação de mulheres para
o sacerdócio. Para que ninguém pense que, ao negar a intenção de Marcos de incluir na ceia as obser-
vadoras que ele mencionou pela primeira vez na crucificação, estou, de forma velada, comentando a
questão da ordenação, quero observar que declarei muitas vezes que a questão de deverem as mulheres
ser celebrantes eucarísticos não pode ser decidida, positiva ou (como é feito com maior frequência)
negativamente, com base naquelas que os evangelistas descrevem como presentes na Ultima Ceia. A
descrição da ceia pelos evangelistas corresponde a questões com as quais eles lidavam; é com grande
perigo aplicada a problemas mais tardios da Igreja, que nunca lhes passaram pela cabeça.

342
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

Marcos está interessado pedagogicamente em mostrar o fracasso dos Doze, não de


mulheres que ele nunca menciona aos leitores. “ Todos” que fugiram do Getsêmani
nunca mais estão presentes na NP marcana ou, na verdade, no Evangelho de Marcos.
Em Mc 14,28, Jesus disse que, depois de sua ressurreição, iria à frente deles para
a Galileia; e é em relação a eles como uma audiência ausente que, na Páscoa, as
mulheres são instruídas pelo jovem (angelical): “Ide contar aos discípulos e a Pedro:
‘Ele vai à vossa frente para a Galileia’” (Mc 16,7). Com certeza, as mulheres que
devem levar a mensagem não fazem parte desses discípulos; é por isso que elas
têm de ser apresentadas aos leitores em Mc 15,40-41.

Com o e ra p a r a os leitores a v a lia r o ato de a s m ulheres ob servarem


d e lo n g e ? Têm sido propostas algumas avaliações errôneas. Sentimentalmente, há
quem imagine que a presença delas deve ter confortado Jesus, o que é totalmente
implausível: elas só são apresentadas depois da morte dele; são colocadas à dis­
tância, o que não incentiva os leitores a pensar que ele as vira; o grito de Jesus em
Mc 15,34 descreve um homem que não foi consolado. Outra sugestão é que elas
estavam sendo apontadas como exemplos de bravura, porque ousaram vir ao Gólgota.
Schottroff (“ Maria” ) ressalta que os que simpatizavam com líderes de movimentos
revolucionários eram passíveis de castigo, o que também é implausível. Certamen­
te, não é para os leitores de Marcos lembrarem espontaneamente esse panorama
revolucionário, devido ao fato de Jesus nunca ter sido apresentado como líder de um
movimento revolucionário, e não é relatada nenhuma tentativa da polícia judaica
ou dos soldados romanos para prender seus seguidores. Observando “à distância”
certamente não é descrição inicial destinada a fazer os leitores pensarem em bra­
vura. Na verdade, a última pessoa a quem se aplicou a frase foi Pedro que, em Mc
14,54, estava seguindo o Jesus preso “de longe”38 — as três negações indicam que
ele não queria ser identificado como seguidor de Jesus. Pelo desejo compreensível
de descobrir alguns dos aspectos não relatados dos papéis de mulheres nos inícios
cristãos, outros propõem que essas observadoras devem ser postas em contraste
com os discípulos homens de Jesus. Covardemente, os homens fugiram; as nobres
mulheres ficaram. Quando se faz essa comparação, “observando de longe”, mesmo se
não for uma descrição destinada a levar espontaneamente à ideia de comportamento
nobre, é melhor do que “eles todos fugiram” (Mc 14,50). Entretanto, que indício
existe de que a narrativa marcana incentivou os leitores a comparar os discípulos

38 É o único outro uso marcano na NP de apo makrothen e o único outro uso em todo o Evangelho de Mateus.

343
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

homens, cuja fuga foi mencionada cerca de sessenta versículos antes, com estas
mulheres de quem não se diz que ficaram (precisamente porque não nos foi dito
nada quanto a sua presença anterior)?

O contraste óbvio que Marcos dá aos leitores em versículos adjacentes, distin­


to dos impostos a seu texto, é entre o centurião que está de pé ali na frente de Jesus
e as mulheres que estavam observando de longe. Por ter visto como Jesus expirou,
o centurião, que presumivelmente antes não conhecia Jesus, é levado a confessá-lo
como Filho de Deus. Pelo fato de terem observado de longe, essas mulheres que
seguiram e serviram Jesus estão silenciosas e não transmitem nenhuma avaliação
dele. Quando nos lembramos de que Marcos não poupa as inadequabilidades das
pessoas ligadas a Jesus (família, discípulos), é consistente Marcos apresentar o
papel dessas seguidoras como inadequado. Na verdade, sua descrição delas faz eco
ao SI 38, onde um sofredor descreve como seus inimigos armam laços contra sua
vida e não consegue ajuda dos que lhe são próximos: “ Os que me eram próximos
ficaram de longe” (SI 38,12).

Para testar a tese de que Marcos não descreve o papel dessas observadoras
tão positivamente quanto muitos supõem, olhemos adiante, para as outras duas
cenas marcanas nas quais elas reaparecem (três cenas em quinze versículos). Em
Mc 15,42-47, José de Arimateia, alguém que procurava o Reino de Deus e teve a
coragem de pedir o corpo de Jesus a Pilatos, vai colocá-lo em um túmulo. As mu­
lheres vão observar onde ele foi colocado, sem qualquer intervenção de ajuda por
palavras ou ações. A única intervenção a favor de Jesus que Marcos lhes atribui
será em Mc 16,1, quando, depois do sábado, as três comprarão especiarias para
ungir Jesus.39 Que pena! A iniciativa resultará em fracasso. Quando, em Mc 16,5-
8, o jovem (angelical) informa às três que Jesus ressuscitou e que elas devem ir
dizer a Pedro que ele vai à frente deles para a Galileia, elas não têm a coragem
de obedecer. Não dizem nada a ninguém, pois estão com medo. Quando viu como
Jesus expirou, o centurião imediatamente confessou em voz alta a identidade di­
vina de Jesus. As três mulheres não são movidas a proclamar Jesus nem mesmo
quando são orientadas a fazê-lo por intervenção divina!40 A descrição marcana dos

m Suponho que os leitores de Marcos acharam esse ato favorável, a não ser que fosse para eles o conside­
rarem tolamente supérfluo depois de Mc 14,3-8, onde uma mulher derramara unguento de nardo puro
sobre a cabeça de Jesus, ungindo-lhe antecipadamente o corpo para o sepultamento.
10 Ver a tese de que as mulheres fracassam no túmulo vazio em A. T. Lincoln, JBL, p. 108,1989, p. 283-300.

344
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

discípulos homens de Jesus mostrou que, apesar de seguir Jesus de perto durante
o ministério, eles fracassaram porque não tiveram a força de permanecer com ele
enquanto ele suportou a cruz. Pelo jeito, Marcos agora usa as seguidoras de Jesus
para mostrar que observar o crucificado compreensivamente, mas de longe, era in­
suficiente para garantir a fidelidade exigida de discípulos; na verdade, nem mesmo
a notícia da ressurreição em si realizou isso. Nenhum dos dois grupos exemplifica
tomar a cruz para seguir Jesus - e isso é absolutamente necessário.41 Os dois gru­
pos tinham o propósito de instruir os leitores de Marcos. Os leitores que tinham
sido perseguidos e fracassaram fugindo ou negando Jesus identificavam-se com os
discípulos homens e, ao mesmo tempo, obtinham esperança deles que, afinal de
contas, receberam a promessa de que veriam Jesus na Galileia e que (como todos
sabiam), posteriormente, se tornaram fiéis proclamadores do Evangelho e acabaram
se mostrando dispostos a carregar a cruz. Os que tinham escapado da perseguição
e se orgulhavam de não ter fracassado estão talvez sendo advertidos de que o não
envolvimento e a relutância para confessar publicamente o Jesus ressuscitado
eram repreensíveis. Mas também eles não seriam deixados sem esperança: o fato
de serem lembrados na tradição os nomes dessas mulheres sugere que, no final,
o Jesus ressuscitado deu-lhes força para proclamá-lo — como afirma o autor do
apêndice marcano (Mc 16,9-10).

De modo geral, do princípio ao fim do ministério, Mateus trata os parentes


e discípulos de Jesus com muito menos pessimismo do que Marcos os tratou.42
Mateus também dá um tratamento mais favorável a essas seguidoras galileias?
Nada na cena presente ou na cena do sepultamento (Mt 27,61) indica diferença
considerável de Marcos; e, em Mt 28,1, em vez de fazer as mulheres intervirem
depois do sábado comprando especiarias a fim de ir ungir Jesus (Mc 16,1), Mateus

41 Apesar de uma série de tentativas eruditas de descrever as mulheres em Marcos como modelos de
fidelidade, o Evangelho trata homens e mulheres com relativa imparcialidade: ocasionalmente, homens
e mulheres são eficientes em sua reação a Jesus (Mc 9,38-39; 14,9), mas os seguidores costumeiros de
Jesus, homens e mulheres, fracassam em momentos cruciais. Ver E. S. Malbon, Semeia 28, 1983, p.
29-48; também C. C. Black, Disciples, p. 278, n. 37.
42 Quanto à família , Mateus não incluiu o pejorativo Mc 3,20-21, embora tenha copiado o que o precedia
(Mt 10,2-4 = Mc 3,22-27). Também Mt 13,57 omitiu a frase negativa a respeito dos parentes de Jesus
em Mc 6,4. Quanto a discípulos, por exemplo, em Mt 14,38 os discípulos confessam a filiação divina de
Jesus, ao passo que em Mc 5,52 seus corações estavam endurecidos. Mt 8,25; 9,32 evitaram a grosseria
para com Jesus por parte dos discípulos, relatada em Mc 4,38; 5,30-31.

345
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

atribui-lhes o motivo menos esclarecedor de desejarem ver o sepulcro.43 Entretanto,


no túmulo propriamente dito, a apresentação mateana das mulheres (Mt 28,8-10) é
dramaticamente o oposto da marcana. As mulheres ainda têm medo, mas obedecem
ao anjo e correm com grande alegria para transmitir aos discípulos a mensagem do
anjo. Quando o próprio Jesus lhes aparece, elas abraçam seus pés e o adoram (a
mesma redação que em Mt 2,11). Os leitores mateanos, então, tendo ficado com a
impressão de que essas espectadoras da crucificação e do sepultamento não reagi­
ram imediatamente tão bem quanto o centurião ou José de Arimateia, descobrem
que no fim elas demonstraram a fidelidade de verdadeiras seguidoras de Jesus.
Em Mateus, como em Marcos, as mulheres estão paralelas aos discípulos homens
(os Doze), não formam contraste com eles; mas, agora, o paralelismo é muito mais
positivo. Embora tivessem fugido do Getsêmani, depois que a mensagem do anjo
(repetida pelo Jesus ressuscitado) lhes foi retransmitida, os discípulos obedeceram
e foram para a Galileia. Quando Jesus lhes apareceu, apesar da contínua dúvida
de alguns, eles o adoraram e foram feitos apóstolos (Mt 28,16-20).

Reações dos presentes segundo Lucas

Lc 23,47-49 difere de Marcos/Mateus por ter três reações depois da morte de


Jesus na cruz, em vez de duas, e esse arranjo é claramente uma construção artística
lucana. Antes de Jesus ser colocado na cruz, quando estava sendo conduzido ao lugar
chamado Caveira, Lc 23,26-31 também descreveu três reações. Assim, Lucas coloca
a crucificação em um tríptico com três respondentes agrupados benevolamente em
cada lado da cruz. (Dentro da cena da crucificação [Lc 23,35-43], ele preservou
o padrão de três escárnios negativos que encontrou em Marcos, embora antes e
depois ele os tenha emoldurado com o “povo” neutro e o malfeitor de boa vontade.)
A caminho da crucificação, os reatores foram: i) Simão Cireneu, que trouxe a cruz
atrás de Jesus, isto é, na opinião de Lucas, um indivíduo que se tornou discípulo
tomando ou carregando a cruz (como se fosse sua) e seguindo atrás de Jesus (Lc
9,23; 14,27); ii) uma grande aglomeração das pessoas que seguiram Jesus ao lugar
de execução, evidentemente compassivas, mas sem revelar sua opinião por palavras
ou atos; iii) mulheres, saudadas como “filhas de Jerusalém” que batiam no peito

43 Em parte, a mudança de Marcos é ditada pela presença de guardas hostis no sepulcro, de modo que as
mulheres não teriam permissão para se aproximar do corpo. Contudo, Mateus também reconheceu ser
supérflua a intervenção marcana, pois Jesus já havia sido preparado para o sepultamento (Mt 26,12).

346
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

e lamentavam por ele. Na cena presente, os reatores são também um indivíduo e o


povo, e as mulheres: 1) o centurião que, com base no que viu acontecer, glorifica
a Deus e afirma que Jesus era justo; ii) todas as multidões que, depois de obser­
var, voltaram para casa batendo no peito; iii) todos os conhecidos dele de pé, à
distância, e as seguidoras desde a Galileia, olhando essas coisas, evidentemente
com compaixão, mas sem revelar sua opinião por palavras ou atos. A primeira e
a terceira dessas reações foram adaptadas de Marcos; a segunda é contribuição
lucana que corresponde à atitude mais favorável desse Evangelho para com o povo
judeu. Consideremos as três reações uma por uma.

Reação do centurião (Lc 23,47). Tendo visto esse acontecimento, ele


estava glorificando a Deus e afirmando que Jesus era justo. As expressões postas
em itálico representam diferenças do relato marcano do centurião. Tais diferenças
fizeram Creed, Fitzmyer, Taylor e outros afirmarem que, aqui, Lucas recorreu a
outra fonte que não Marcos,44 fonte muitas vezes considerada mais original porque
a confissão lucana parece mais apropriada nos lábios de um gentio romano que o
“ Filho de Deus” marcano. A meu ver, nada disso é necessário: com adaptações
que se ajustam a sua perspectiva teológica, Lucas recorreu totalmente a Marcos, e
não a outra fonte. Argumento básico para a dependência lucana de Marcos pode ser
tirado de dois conjuntos de palavras, a saber, a descrição introdutória do centurião
e sua confissão. As palavras introdutórias “ Mas o centurião, tendo visto” são as
mesmas em Marcos e Lucas, com exceção da substituição por Lucas do kentyrion
latinizado (relacionado com centum, “cento” ), usado só por Marcos, pelo grego
(apropriado para “centurião” ) hekatontarches (relacionado com hekaton, “cento” )
que, com a variante hekatontarchos, é usado dezesseis vezes em Lucas-Atos, e nunca
em Marcos.45 Quanto à confissão do centurião, a ordem das palavras lucanas está
muito próxima à de Marcos, embora a palavra-chave do predicado seja diferente:

44 Hanson (“ Does” , p. 77-78) afirma que a forma lucana é adaptação de Marcos, mas argumenta contra
Kilpatrick que a hipótese Proto-lucana (isto é, havia uma combinação de Q e uma fonte especial lucana
na qual Lucas introduziu material marcano) não é refutada por esta cena. Manus (“Centurions” , p. 268)
concorda com B. S. Easton que o dikaios lucano é original e sugere que representa “um entendimento
original da personalidade de Jesus que talvez fosse corrente na comunidade Q primitiva, principalmente
na região siro-palestina” .
41 Como vimos, Marcos não apresentou nenhuma preparação para o aparecimento do centurião de pé ali
na frente de Jesus, embora tenha descrito toda uma coorte romana reunida para escarnecer de Jesus no
pretório de Pilatos (Mc 15,16). Lucas apresentou menos preparação, pois só durante o escárnio de Jesus
na cruz (Lc 23,36) os leitores foram alertados de que soldados romanos estavam envolvidos.

347
Qimiom • JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto

Mc 15,39: alethos houtos ho anthropos huios theou en

Lc 23,47: ontos ho anthropos houtos dikaios en

Os dois evangelistas colocam o advérbio em posição enfática no início;46 e


os dois usam o tempo imperfeito do verbo, tão incomum em uma confissão. Se tais
semelhanças indicam o uso lucano de Marcos, como justificamos as diferenças
postas em itálico na sentença inicial acima?

Três d ife re n ça s d e M arcos. A p r im e ir a d if e r e n ç a está no que o cen-


turião viu: a saber, em Marcos: “que ele assim expirou” ; e em Lucas: “esse
acontecimento”.47 Para Marcos, “assim expirou” incluiu Jesus dando um grito de
abandono, a resposta escarnecedora dos circunstantes (vinho avinagrado, chacota
a respeito de Elias), novamente o forte grito, Jesus expirando e o véu do santuário
sendo rasgado por Deus. Lucas apresenta uma sequência diferente: as advertências
escatológicas da escuridão e do véu rasgado foram incorporadas (Lc 23,44-45)
antes da morte de Jesus; e em contraste, Jesus clamou uma oração de confiança,
expirando depois de dizer: “ Pai, em tuas mãos eu coloco meu espírito” (Lc 23,46).
0 violento conteúdo apocalíptico do “assim” marcano não precede imediatamente
a descrição lucana do centurião “tendo visto esse acontecimento”, nem a precede
nada parecido com a lista mateana de acontecimentos extraordinários.48 0 centurião
lucano viu a compostura de Jesus diante da morte, um Jesus cujo relacionamento
de confiança com Deus não foi interrompido nem mesmo pela morte.49

A seg u n d a d if e r e n ç a é que o centurião lucano, “tendo visto” o acontecimento,


respondeu “glorificando a Deus”. Depois da morte de Jesus, Lucas assim conclui
uma inclusão com o início do Evangelho, onde depois do nascimento de Jesus os

46 0 alethos de Marcos é praticamente sinônimo do ontos (“realmente, certamente” ) de Lucas, mas este
último é superficial ou autoenganoso, pois subentende que o que flui do próprio ser da pessoa é apropriado
para a confissão de que Jesus é justo, já que, do princípio ao fim do Evangelho (Lc 10,29; 16,15; 18,9;
20,20), Lucas contesta os que têm justiça ou integridade.
47 To genomenon, o particípio aoristo singular de ginesthai (“acontecer, suceder” ), que significa: “o que
aconteceu” . A forma plural ta genomena (“esses acontecimentos”) será usada no versículo seguinte. Em
Mt 27,54, o centurião e os guardas veem ta ginomena, o particípio presente neutro plural (nota 5 acima).
48 Naquela lista, Mateus mostrou como a morte de Jesus produziu a ressurreição dos santos adormecidos;
a crença em um efeito semelhante na vida após a morte é vista em Lucas: “ Este dia, comigo vais estar
no paraíso” (Lc 23,43). É para pensarmos que o centurião ouviu isso?
49 Há quem volte para trás “ este acontecimento” que o centurião viu, para incluir a oração de perdão para
seus algozes rezada por Jesus (Lc 23,34).

348
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

pastores voltaram (aos campos) “glorificando a Deus por tudo que tinham [...] visto”
(Lc 2,20). Na verdade, durante o relato lucano do ministério, “glorificando a Deus”
é reação comum quando se vê Jesus manifestar poder divino.50 Certamente, os
leitores lucanos não pararam para se perguntar, como fazem alguns comentaristas
modernos, se é plausível que um soldado gentio louvasse tão facilmente o Deus de
Israel. Eles perceberam que, do começo ao fim da vida de Jesus, os que tinham
olhos para ver louvavam consistentemente a Deus. Além disso, eles consideravam
apropriado que a glorificação final viesse de um gentio, antecipando desse modo a
recepção do Evangelho pelos confins da terra, a ser narrada no livro dos Atos (onde,
em At 13,48, gentios glorificam a Palavra de Deus). O tema de “glorificar a Deus”,
então, é claramente adição de Lucas ao que ele recebeu de Marcos a respeito do
centurião, e não há necessidade de supor uma fonte especial.

A terceira diferença é o que afirma a confissão do centurião em Lucas, isto


é, que esse homem (Jesus) era “justo”,51 em contraste com “Filho de Deus” em
Marcos. Por que, sem a sanção de uma fonte, Lucas passaria da fórmula marcana
cristológica para uma apreciação “inferior” de Jesus? Alguns biblistas negam que
uma mudança esteja envolvida, afirmando que dikaios representa o entendimento
lucano do huios theou marcano sem artigo. Na verdade, eles usam Lucas como
argumento para traduzir Marcos com o significado de “um filho de Deus” (ver
acima, sob “ O que significa “Filho de Deus,,V,). Na Antiguidade, Agostinho (De
consensu evangelistarum iii,20; CSEL 43,346) escreveu: “ Talvez o centurião não
tivesse entendido Jesus como o único gerado igual ao Pai, mas tivesse falado dele
como o Filho de Deus porque acreditava que ele era justo, assim como se diz que
muitos justos são filhos de Deus”. Nos tempos modernos, Plummer (Luke, p. 539)
interpreta as confissões marcana e lucana com o mesmo sentido: Jesus “era um
homem bom e estava certo em chamar Deus de Seu Pai”. Esse tipo de interpretação
confunde o que pode ter se passado historicamente na mente do centurião52 com
o que Lucas fê-lo dizer e querer dizer em nível narrativo. Afirmei que o centurião
marcano confessou Jesus como o Filho de Deus em sentido pleno, e não vejo possi­

5(1 Lc 5,25-26; 7,16; 13,13; 17,15 (por um samaritano); 18,43. Doxazein (“glorificar” ) com theos (“ Deus”)
como objeto ocorre 1 vez em Marcos, 2 em Mateus, 1 em João, 11 em Lucas-Atos.
31 Embora dikaios possa ser predicado nominal (“o justo”) sem o artigo, por estar colocado antes do verbo
copulativo (nota 12, acima), não há razão para não aceitar a costumeira tradução adjetival.
32 Goodwin (“Theou” , p. 129) representa uma erudição mais antiga para a qual o centurião poderia ter dito
as duas coisas.

349
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

bilidade de Lucas ter entendido mal Marcos. (Ao relatar o que aconteceu diante do
sinédrio, Lc 22,70 falou em “o Filho de Deus” interpretando corretamente “o Filho
do Bendito” marcano; devemos pensar que Lucas não reconheceu a continuação
marcana desse tema aqui?) Para afirmar que Lucas é dependente de Marcos nesta
cena, é preciso lidar com a mudança deliberada de Marcos por Lucas e sua prefe­
rência por uma designação de Jesus que era mais apropriada para seus propósitos.

O sentido d a confissão do centurião lucano. Os biblistas debatem a


conotação de dikaios aqui usado como predicado. Com frequência, é traduzido por
“inocente”.53 Este homem não era culpado da acusação pela qual foi executado,
o que, obviamente, no contexto da crucificação, um observador sem preconceitos
poderia concluir, mesmo sem ter nenhuma compreensão religiosa especial. O bem
pesquisado Greek-English Lexicon (Liddell & Scott, 9a edição) não dá “ inocente”
como tradução de dikaios, mas BAGD (196,3) dá, embora apenas com referência
a este versículo.54 Certamente, essa não é uma tradução indefensável; e, embora
eu prefira “justo”, o âmbito semântico de “justo” inclui inocência. Ressalto isso
porque alguns dos opositores da tradução “inocente” (Hanson, Karris) escrevem
quase como se “inocente” e “justo” fossem idéias totalmente diferentes.55 A tradução
competidora de dikaios como “justo, probo, reto” tem apoio igual, ou mesmo maior,
entre biblistas e traduções.56 A favor dela, Beck (“Imitatio”, p. 42) afirma que ne­
nhum outro uso de dikaios em Lucas-Atos é redutível simplesmente a “ inocente”,
isto é, não culpado.57 Para Lucas, o adjetivo tem amplo leque de sentido positivo,

13 Danker, Fitzmyer, Kilpatrick, Klostermann, Marshall; e as traduções do NT por Fenton, Goodspeed,


Moffatt, Wymouth, RSV, NRSV, NAB, NAB (rev.) e NEB.
54 Na LXX, ocasionalmente dikaios traduz rmqt, “puro, sem culpa” , em especial em frases fixas como
“sangue inocente” ; Gn 20,5; Pr 6,17; J1 4,19 etc. No NT, “inocente” é um possível entendimento de
dikaios aplicado a Jesus no contexto de sua morte em Mt 27,19; lPd 3,18.
oS Por exemplo, Karris (“Luke 23,47” , p. 68-70), que se preocupa porque descobrir elementos de martírio
na apresentação lucana da morte de Jesus favorece a tradução como “ inocente” , menospreza desneces­
sariamente o pano de fundo martirológico. Eram os mártires tão identificados como criminosos a ponto de
“justo” não poder se aplicar a eles tanto quanto “inocente” ? Brawley (Luke-Acts, p. 141, n. 24) contesta
a asserção de Karris (p. 65), segundo a qual “ dikaios não significa inocente, mas significa reto, probo” ,
e pergunta se é possível fundamentar uma diferenciação tão bem definida do grego.
56 Beck, Dechent, Hanson, Karris, Lagrange, C. Schneider e as traduções neotestamentárias de Wycliff,
Coverdale, Rheims, KJ, New Jerusalem Bible. Como “reto” evoca as idéias paulinas de “retidão, justiça” ,
prefiro “justo” , que também faz os leitores se lembrarem de “justiça” , qualidade fundamental do rei no
AT. O centurião está comentando a respeito de “ O Rei dos Judeus” .
31 Entretanto, Epp (“Ignorance” , p. 61-62) lembra que, no Códice de Beza de At 16,39, há uma adição que
desculpa os funcionários romanos que não sabiam que Paulo e Silas eram dikaioi, isto é, inocentes.

350
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

sendo usado para descrever os santos (Isabel e Zacarias, em Lc 1,6, e Simeão,


em Lc 2,25), até mesmo os santos mortos (Lc 14,14-15). Procurando responder a
diversas perguntas, examinemos seu sentido para Lucas na confissão do centurião.

Por que Lucas preferiu não apresentar a confissão marcana cristológica plena
de “ Filho de Deus” ? Ao traduzir dikaios como “ inocente”, alguns comentaristas
afirmam que Lucas achou essa afirmação mais apropriada a um espectador pagão.
(O argumento é menos apropriado se significar “justo”, pois essa designação, como
veremos, tinha origem veterotestamentária.) Outros atribuem a Lucas motivo apolo-
gético: confirmação romana de que Jesus era inocente e não politicamente subver­
sivo. C. Schneider (“ Hauptmann” ) afirma que Lucas temia uma leitura sincretista
da confissão de “ Filho de Deus” : os leitores lucanos poderíam considerar aceitável
o que um porta-voz pagão queria dizer ao espontaneamente confessar Jesus sob esse
título, visto que Lucas insistia no reconhecimento da filiação divina única e, assim,
em seu Evangelho, restringiu a proclamação do título a cristãos comprometidos. A
meu ver, esses motivos, se é que estão presentes, não influenciaram a preferência
lucana por dikaios. (Ver Beck, “ Imitatio”, p. 41, que os rejeita.)

A chave para a mudança do “ Filho de Deus” marcano está na importância


que dikaios tinha na narrativa lucana para a teologia de Lucas. Em Marcos, essa
avaliação muito alta de Jesus foi estimulada pela surpreendente intervenção divina
depois da morte de Jesus (rasgando o véu do santuário). Mas em Lucas, o que pre­
cede a confissão é a confiante oração de Jesus a seu Pai, com menos probabilidade
de levar a um pleno reconhecimento da divindade de Jesus.58 Além disso, em termos
de ter uma confissão gentia, Lucas foi mais flexível que Marcos/Mateus por causa
do leque apresentado por seu livro dos Atos. Se os dois primeiros evangelistas
queriam ter no final de sua história um gentio que chegou à fé plena em Jesus
(antecipando o destino da missão cristã), esta cena antes do sepultamento foi sua
última oportunidade. (Aparições depois da ressurreição, que em teoria ofereceríam
outra oportunidade, estavam arraigadas na tradição [por exemplo, ICor 15,5-8] e
nenhuma parte da tradição preservada alude a um gentio.) Entretanto, Lucas tinha
todo um segundo livro, grande parte do qual seria dedicada à difusão da fé entre os

58 Por outro lado, há quem argumente que, como o Jesus lucano dirige-se a Deus como “Pai” , é apropriado
para o centurião lucano reconhecê-lo como “Filho de Deus” . Esse raciocínio seria válido se Lucas en­
tendesse a expressão com o significado de “umfilho de Deus". Mas, na narrativa, um soldado pagão não
entendería facilmente a partir de uma oração a Deus como Pai que Jesus era o único Filho de Deus.

351
Q uarto «to ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

gentios; e, historicamente, esse era um contexto mais apropriado para descrever uma
conversão que levasse a uma confissão de Jesus na linguagem religiosa de “ Filho
de Deus”.59 De fato, os Atos dedicam um capítulo inteiro (cap. 10, em especial At
10,34-48) ao relato de como um centurião romano veio a crer. E ssa flexibilidade
permitiu a Lucas aqui adaptar a confissão do centurião, que ele tirou de Marcos,
a outra mensagem teológica.

Por que, conforme seus padrões de pensamento, Lucas escolheu dikaios


para expressar sua mensagem? Há diversas razões plausíveis, e vou dedicar um
parágrafo a cada uma, pois elas não se excluem mutuamente. Primeiro, o Jesus
lucano rezara: “ Pai, em tuas mãos eu coloco meu espírito”, fazendo eco a SI 31,6.
No mesmo Salmo (v. 19), lemos: “ Emudeçam os lábios mentirosos que falam contra
o justo [dikaios] com insolência, soberba e desprezo”.60 A oração do Jesus lucano
também faz eco a Sb 3,1: “As almas dos justos estão na mão de Deus” ; e no contexto
ali, a começar em Sb 2,12, está a trama de adversários ímpios para destruir um
dikaios que professa ter conhecimento de Deus chamando a si mesmo de “ filho”
{pais) de Deus, dizendo que Deus é seu pai (Sb 2,13.16). Os adversários dizem:
“ Se o justo [dikaios] é o filho de Deus [huios theou], Ele o ajudará” (Sb 2,18). Em
§ 41 (sob “ O desafio para salvar-se a si mesmo ou ser libertado” ), acima, vimos que
Mt 27,43 recorreu a essa passagem e, assim, é provável que ela fosse amplamente
conhecida dos cristãos primitivos. As idéias combinadas de que o justo entregou-se
à mão de Deus (como Jesus fez em oração na hora da morte) e de que o justo era
filho de Deus explicam por que Lucas considerou dikaios alternativa intercambiável
para o huios theou marcano na reação do centurião à oração de Jesus na hora da
morte. Antes, em Lucas, a revelação divina direta está associada à identificação
de Jesus como Filho de Deus (Lc 1,35; 3,22; 9,35). Não há nenhuma indicação
dessa intervenção divina na imagem lucana do centurião e, assim, a alternativa de
dikaios era mais lógica.

Um segundo fator contribuinte foi o uso de dikaios como título cristológico


na Igreja primitiva, recorrendo à prática veterotestamentária. Na idealização do
esperado rei davídico, ele é descrito como dikaios em Jr 23,5; Zc 9,9; Salmos

39 Assim Büchele, Tod, p. 54; Walaskay, “Trial” , p. 93.


60 O justo dikaios, especialmente perseguido sem justificativa por acusadores (observemos a combinação de
“justo” e “inocente”), é figura comum no saltério: SI 5,13; 7,10; 11,3.5; 34,16.18.20.22; 37,12.21.25.29.32
etc.

352
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

de Salomão 17,32,61 como é o servo sofredor em Is 53,11. Em um contexto onde


condenam Jesus como o Rei dos Judeus e o fazem sofrer morte ignominiosa, Lucas
considerou apropriados esses ecos bíblicos de dikaios. Ao usar “justo” a respeito
de Jesus, o centurião estava preparando os leitores de Lucas para as referências a
Jesus como “o justo” em At 3,14 e 7,52, título dado a ele em relação ao fato de ter
sido executado. Outros usos em At 22,14; Tg 5,6; lPd 3,18 e l jo 2,1 mostram que
a declaração solene do centurião, “ Certamente este homem era justo!”, tinha um
pouco do tom de confessar Jesus como “o justo”.62

Um terceiro fator, talvez o principal, por trás da escolha lucana de dikaios,


foi seu desejo de fazer a confissão do centurião encaixar-se em uma cadeia de
reações que passam pela apresentação lucana dos procedimentos romanos contra
Jesus. Que Jesus não era culpado das acusações lançadas contra ele é preocupação
lucana do princípio ao fim.63 Ele mostrou Pilatos repetidamente afirmando isso (Lc
23,4.14.22), chegando a citar Herodes como apoio (Lc 23,15) e, em duas dessas
referências (Lc 23,4.14), Pilatos falou em “este homem”, como faz o centurião.
Manifestamente, a confissão do centurião aumenta o testemunho. Ao julgar Jesus,
ele não tem a autoridade de Pilatos; contudo, seu testemunho de Jesus é convin­
cente contra o pano de fundo de conversão subentendida. Até este ponto, a única
informação da NP a respeito de soldados romanos dada por Lucas (Lc 23,36-38) é
que eles escarneciam de Jesus, aproximando-se (como se em deferência?) trazendo-
-lhe vinho avinagrado e dizendo: “ Se és o Rei dos Judeus, salva-te a ti mesmo”.
Quando agora, de repente, o chefe entre eles confessa ser Jesus realmente “justo”,
termo tradicionalmente usado para o rei davídico, tem-se de pensar que ele foi
persuadido, apesar de sua forte inclinação para o contrário. Elemento importante
na persuasão é a visão de Jesus aceitando a morte com uma oração que demonstrou
sua alegação de ser próximo de Deus. Assim inspirado, o centurião transcende o
“não culpado” de Pilatos, para afirmar que Jesus era o que alegava ser. Essa ines­
perada conversão à verdade a respeito de Jesus coloca o centurião em outra cadeia
de reações a Jesus, mais profunda que as de Pilatos e de Herodes. Como Lc 23,26

61 A justiça é, com frequência, relacionada como elemento fundamental na realeza divina e humana, por
exemplo, SI 72,1-2; 97,1-2; Is 9,6.
62 A respeito da predicação adjetival e nominal de dikaios, ver a nota 51 acima.
63 Será que isso reflete a apologética (que responde a acusações romanas reais ou temidas de que o “fun­
dador” desse grupo cristão era um usurpador régio condenado) ou simplesmente a convicção cristã não
sem implicações para o empenho missionário?

353
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

descreveu, Simão Cireneu nada sabia previamente de Jesus e estaria inclinado


desfavoravelmente em relação a Jesus depois que os crucificadores o pegaram para
impor a cruz de Jesus. Contudo, Simão é (simbolicamente) descrito como sendo
convertido instantaneamente, levando a cruz atrás de Jesus na posição de seguidor.
Do mesmo modo, os malfeitores cocrucificados (Lc 23,39-43) não simpatizariam
com esse pretendente régio e, na verdade, um deles blasfemou contra Jesus: “ Não
és tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós”. Contudo, o outro, apesar do passado
criminoso, converteu-se para reconhecer não só que Jesus não fizera nada ilegal,
mas também que ele tinha um reino e era próximo de Deus o bastante para poder
conceder uma participação nesse reino. Quando antepomos essas duas figuras ao
centurião, descobrimos que antes, durante e depois da agonia da crucificação de
Jesus, uma pessoa improvável (um estranho arrastado à força, um malfeitor conde­
nado e um soldado antes escarnecedor) instantaneamente reconheceu a verdade a
respeito daquele que estava sendo crucificado. Nenhum deles confessa a identidade
de Jesus em uma fórmula fixa tão conhecida como “o Filho de Deus”, mas sim na
cristologia subentendida de ligação pessoal. E ssa sequência de “conversões” servia
de desafio e também de incentivo aos leitores de Lucas. Além dessa cadeia de rea­
ções no interior da NP, o centurião faz parte de mais uma sequência. 0 primeiro a
ver Jesus em Jerusalém foi Simeão, que louvou a Deus e disse: “ Meus olhos viram
esta salvação que preparaste diante dos olhos de todos os povos: uma luz para ser
uma revelação para as nações” (Lc 2,28-32). 0 primeiro a ver Jesus em Jerusalém
depois de sua morte é o centurião, que glorifica a Deus e, ao confessar Jesus, torna-
-se um exemplo da salvação trazida aos gentios.

Reação das multidões (Lc 23,48). Só Lucas registra isso; mas é tão
típico de seu arranjo, redação e teologia que não é necessário supor nenhuma fonte
especial. Estruturalmente, esta reação é estreitamente paralela à do centurião:64

centurião tendo visto acontecimento estava glorificando dizendo

multidões tendo observado acontecimentos voltaram batendo no peito

Implicitamente, o centurião e as multidões estão no mesmo lugar de “ob­


servação” perto da cruz, reservado por Lucas para os que antes não estavam

64 Feldkãmper, Betende, p. 280. 0 paralelismo é ampliado por uma glosa (a ser examinada abaixo), onde
as multidões dizem palavras.

354
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

comprometidos com Jesus, distinto do lugar à distância onde os conhecidos e as


seguidoras de Jesus estão de pé no versículo seguinte. E ssas “ multidões” represen­
tam o “povo” que Lucas menciona antes e durante a crucifixão, como se vê quando
olhamos para as palavras-chave nas três passagens:63

Lc 23,27: Havia seguindo-o [Jesus] uma grande aglomeração do povo


Lc 23,35: E o povo estava de pé ali o b ser v a n d o

Lc 23,48: Todas as multidões que estavam reunidas para a o bserv a çã o

(Na primeira e na terceira passagens, há uma referência subsequente a mu­


lheres, Jerusalém e Galileia, respectivamente.) Antes, no julgamento romano (Lc
23,13-18), o povo, bem como os chefes dos sacerdotes e os governantes, foram hostis
a Jesus, pedindo sua morte (também a “ multidão” hostil em Lc 22,47). Entretanto,
nas três passagens da crucificação, eles passam do seguimento compreensivo e da
observação para o arrependimento. Como o centurião, o que os leva a mudar é ter
observado “acontecimentos”. Há quem considere o plural aqui variante inexpressiva
do “acontecimento” presenciado pelo centurião,6566 abrangendo apenas a morte pie­
dosa de Jesus. Contudo, talvez Lucas quisesse acrescentar a esse “acontecimento”
a confissão do centurião, de modo que as multidões ficaram comovidas ao observar
não só a morte, mas também a reação do centurião a ela. (Em Lc 5,25-26, há um
arranjo em série: o paralítico curado que vai para casa glorificando a Deus faz parte
daquilo que faz todos ficarem admirados e glorificarem a Deus.) As multidões que
batem no peito depois da morte crucificada de Jesus são paralelas às mulheres
de Jerusalém que, antes da crucificação, bateram em si mesmas67 e lamentaram
por Jesus (Lc 23,27-28). Nesse momento anterior, havia um elemento de tristeza
por alguém prestes a morrer, mas aqui as multidões expressam arrependimento.68

65 Untergassmair, Kreuzweg, p. 92.


66 Uma sugestão é que um sujeito plural levou a um objeto plural. Lucas usa o singular “ acontecimento”
em Lc 8,34-35; 24,12 e o plural, “acontecimentos” , em Lc 9,7.
6‘ Em Lc 23,48, Lucas usa o verbo transitivo r-yptein (“golpear, bater”) usado anteriormente no escárnio
romano de Jesus (Mc 15,19; Mt 27,30), quando os soldados estavam golpeando a cabeça de Jesus. Em Lc
23,27, Lucas usou o reflexivo de koptein (“bater” ), o mesmo verbo que é usado depois da morte de Jesus
em EvPd 7,25 (reflexivamente) e em EvPd 8,28 (transitivamente). Logo depois de Zc 12,10 (a passagem
a respeito de olhar para aquele que eles trespassaram, citada por Jo 19,37), Zc 12,12 usa koptein para
descrever o lamento das famílias davídicas em Jerusalém.
68 A necessidade de arrependimento é forte tema lucano: Lc 10,13; 11,32; 13,3.5; 15,7.10; 16,30; 17,3-4.

355
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

Sua tristeza não é apenas pelo passamento de uma vida humana, mas pela injusta
execução de alguém que visivelmente era próximo de Deus.

0 arrependimento das multidões não é uma conversão no nível da do cen-


turião, pois elas nem glorificam a Deus, nem confessam Jesus. At 2,38 mostra
que, para Lucas, o arrependimento não é suficiente, a menos que seja seguido
pela confissão do nome de Jesus. As multidões “ voltam” (presumivelmente, para
o lugar de onde vieram69), o que deixa seu futuro obscuro. As palavras de Jesus,
ditas antes da crucificação para as filhas de Jerusalém que acompanhavam a
grande aglomeração do povo, apresentaram o castigo divino como inevitável para
elas e seus filhos (Lc 23,27-31); contudo, o castigo não torna impossível o perdão,
pois depois Jesus rezou ao Pai para perdoar até os que o crucificaram (Lc 23,34).
De muitas maneiras, esta cena faz eco à parábola tipicamente lucana do fariseu
e do publicano (Lc 18,9-14). Durante o julgamento por Pilatos, as autoridades
(chefes dos sacerdotes, governantes) e também o povo bradaram pela condenação.
As autoridades não mostram sinais de pesar depois da morte de Jesus, pois, como
o fariseu da parábola, acreditam que são justos. As multidões do povo veem o
centurião proclamar que certamente Jesus era justo e, como o publicano, batem
no peito, implicitamente querendo dizer: “sê misericordioso conosco, pecadores”.

Os copistas não se contentaram em deixar implícito o que as multidões dis­


seram. Uma adição do século II encontra-se na 0 S sincur e na OL (St. Germain, ms.
g). Em formas variantes, aparecem nos lábios das multidões palavras como estas:
“Ai de nós! O que nos aconteceu por causa de nossos pecados? (O julgamento e)
0 fim de Jerusalém está próximo”. Dito semelhante encontra-se em Comentário
sobre o Diatessarão de Efrém (xx,28; SC 121,362) e em EvPd 7,25.70 As palavras
acrescentadas completam o paralelismo entre o centurião e as multidões, pois agora
ambos falam: o soldado gentio, em uma confissão de fé; as multidões judaicas, em
autocrítica.71*

69 Ver em Lc 2,20.43; 8,37.40; At 8,28 o uso absoluto de hypostrephein, sem um destino.


70 Ver em MTC, p. 182, redações precisas. Harris (“Origin”, p. 9) chama a atenção para uma versão siríaca
de 1 Macabeus (encontrada em um relato de martírio datado do século V d.C.), onde Matatias diz: “ Ai
de nós! O que nos aconteceu? Para ver a miséria de nosso povo e as ruínas da cidade santa!” (ver lMc
2,7.) Ele sugere que isso deu origem à glosa da OS, que por sua vez influenciou o Diatessarão, o EvPd e
a OL. Entretanto, Harnack (Briwhstücke, p. 57) afirma que essa e outras glosas evangélicas foram tiradas
do EvPd.
'* Em direção contrária, um testemunho do século IX nos diz que o Evangelho dos Nazareus (24, HSNTA,

356
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

Reação dos que estavam à distância (Lc 23,49). Com adaptações,


Lucas tirou de Marcos que havia galileias observando a certa distância — nove de
dezoito palavras deste versículo encontram-se em Mc 15,40-41. Lucas apresenta
essas mulheres (e todos os conhecidos de Jesus) “estando de pé de longe”, expressão
composta do verbo “estar de pé”, verbo que Mc 15,39 usou em forma composta
para o centurião, e a frase “de longe”, que Mc 15,40 usou para as mulheres que
observavam.72 Como Lucas já utilizara “observar” (theorein) para as multidões
cuja presença ele introduziu entre o centurião e as mulheres, aqui ele exemplifica
alternação estilística voltando a “ver” (horan) o verbo que ele usou para o centu­
rião.73 Lucas não dá os nomes das mulheres nem aqui, nem no sepultamento (Lc
23,55-56), mas só em referência ao túmulo vazio (Lc 24,10; talvez confirmação
indireta de que a localização do túmulo era novidade para todas ou algumas delas
[§ 41, acima]). Entretanto, para a compreensão dos leitores, a ausência de nomes
neste episódio lucano não é significativa, pois, nesse Evangelho (somente), “as
mulheres que o acompanhavam desde a Galileia” foram introduzidas no decorrer
do ministério galileu.74 Em Lc 8,1-3, foi-nos dito como, enquanto Jesus percorria
cidades e povoados proclamando e anunciando a Boa-nova do Reino de Deus, os
Doze estavam com ele, “e algumas mulheres que tinham sido curadas de espíritos
maus e enfermidades: Maria, chamada Madalena, de quem saíram sete demônios;
Joana, mulher do epitropos [“administrador” ? “companheiro” ? ” ] de Herodes, e
Susana e muitas outras que os serviam [diakonein] com seus bens”. Quando final­
mente, no túmulo vazio, em sua terceira referência na NP a essas mulheres, Lucas

v. 1, p. 150; ed. rev., v. 1, p. 162) relatou: “ A essa palavra do Senhor [Lc 23,34?], muitos milhares de
judeus que estavam de pé ao redor da cruz creram” .
ã Lucas emprega a expressão makrothen (“à distância”) duas vezes sozinha e duas vezes com apo (“de” ).
Enquanto Marcos/Mateus usaram apo makrothen para o seguimento por Pedro de Jesus até o pátio do
sumo sacerdote, Lc 22,54 omitiu apo. “De pé de longe” é péssima linguagem, mas preserva a distinção.
'3 O particípio horosai em Lc 23,49 é feminino por atração, mas certamente tem o propósito de se referir
também a “ todos os conhecidos dele” . Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1521) distingue entre um “olhar” mais
atento e o “ encarar” das multidões ociosas como um espetáculo no versículo anterior, mas Untergass-
mair (Kreuzweg, p. 105) deve ser seguido por não ver nenhuma diferença real entre os dois verbos. As
multidões certamente não são descritas como ociosas e a transformação para o arrependimento pela qual
elas passam por observação e observando (substantivo e verbo) é significativa. A respeito dos dois verbos,
ver BGJ, v. 1, p. 502-503.
74 Talvez para enfatizar a ligação entre as mulheres aqui e as apresentadas anteriormente, a tradição koiné
traz o particípio no aoristo (“tinham seguido” ), em vez do tempo presente. O synakolouthein lucano quase
combina os dois verbos em Mc 15,41, akolouthein e synanabainein (“subir com”), e assim simplifica
Marcos do mesmo modo que Mateus fez.

357
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

identifica aqueles de quem ele falou na cruz e no sepultamento, ele mistura Maria
Madalena e Maria, mãe de Tiago, da lista de Marcos (Mc 16,1; ver o Quadro 8 em
§ 41), com sua tradição dos nomes das galileias e assim, surge com a lista: “ Maria
Madalena, e Joana, e Maria de Tiago, e o resto (das mulheres) com eles” (Lc 24,10).

Ao apresentar as mulheres em Lc 8,3, Lucas usou diakonei, o mesmo verbo


que Marcos (Mc 15,41) usa aqui, mas acrescentou seu tom pessoal. Em Marcos, as
mulheres cuidam de necessidades materiais como comida e bebida (nota 29 acima),
mas Lucas especificou isso como sendo feito “com seus bens” . Elas não apenas
distribuíam, mas proviam. Nesse ponto, Lucas antecipou a ação das mulheres da
Igreja primitiva, tais como Lídia, cuja hospitalidade para Paulo ele descreve em At
16,14-15 (ver também Lc 10,7; 24,29). Isso, mais o fato de Lucas nos ter contado
que essas mulheres foram curadas por Jesus, fazia os leitores de Lucas pensarem
nelas como discípulas dedicadas,73 quando liam que elas estavam de pé a certa
distância na cena da crucificação, embora, não mais que Marcos, Lucas as faça
antes ativas na NP ou reativas aqui por palavras ou atos. O fato de mulheres serem
descritas como “estando de pé” ali, sem ter “voltado” ou ido embora como fizeram
as multidões do versículo anterior, prepara os leitores para a participação que
ainda está para vir. Na verdade, nas duas cenas seguintes nas quais as mulheres
reaparecem, Lucas transcende a descrição de Marcos (onde elas permanecem ina­
tivas durante o sepultamento e desobedientes no túmulo vazio). No sepultamento,
as mulheres lucanas não só veem onde Jesus é sepultado, mas vão imediatamente
preparar especiarias e bálsamos, para, assim que o descanso prescrito para o
sábado terminar, partirem para o túmulo com as especiarias (Lc 23,56; 24,1). Na
cena seguinte, ao saírem do túmulo vazio, elas transmitem a mensagem dos anjos
a respeito do Senhor vivo aos Onze e a todo o resto (Lc 24,9). Realmente, ao con­
trário de Mateus, Lucas não narra nenhuma aparição de Jesus para as mulheres
no túmulo; mas sua redação em At 13,31 deixa em aberto a possibilidade de ter
havido uma aparição subsequente para elas: “ Ele apareceu aos que vieram com
ele da Galileia”.'6 Assim, a imagem lucana toda das mulheres da Galileia na NP é

'5 Rosalie Ryan (“ Women” , p. 56-57) menciona que algumas biblistas (E. Tetlow, E. Schüssler Fiorenza)
acusam Lucas de atitude patriarcal para com as mulheres que as restringia a tarefas do lar ou “em casa” .
Ryan argumenta de modo convincente que Lc 8,1-3 descreve essas mulheres e os Doze similarmente como
estando “com” Jesus (quase um elemento técnico de díscipulado) e proclamando a Boa-nova do reino.
'6 Atos usa synanabainein, a palavra que Mc 15,41 usou para as mulheres. Para elas, Lucas usa synako-
louthein (Lc 23,49: “seguir com”) e synerchesthai (Lc 23,55: “ ir/vir com” ).

358
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

positiva: ao contrário das filhas de Jerusalém (o grupo paralelo antes da crucifica­


ção) que, com os filhos, não são poupadas do julgamento colérico de Deus sobre a
cidade, estas mulheres se reunirão em Jerusalém com os Onze e a mãe e os irmãos
de Jesus, dedicando-se à oração e, assim, preparando-se para a vinda do Espírito
em Pentecostes (At 1,13-14).

C o n h ecid os hom ens. A principal mudança lucana de Mc 15,40-41 em


termos dos que estão a certa distância da cruz observando/vendo é que Lucas faz
outro grupo preceder as mulheres galileias: “ Todos os conhecidos [gnostoi, masc.]
dele [Jesus]”.7' O “todos” é hipérbole lucana, como no versículo precedente: “todas
as multidões”. O masculino em si seria normalmente entendido como genérico, isto
é, “os conhecidos” consistiríam em homens, mas poderíam também incluir mulheres.
Todavia, como é seguido de uma referência explícita a mulheres, os intérpretes, em
sua maioria, concentram-se em quem eram esses homens “conhecidos” de Jesus
(por exemplo, Ketter, “ Ehrenrettung” ).

Há quem conjeture se Lucas tinha em mente algum grupo específico de in­


divíduos. Passagens de Salmos que tratam do justo sofredor poderíam ter sugerido o
uso, por exemplo, de SI 38,12: “ Meus amigos e vizinhos se aproximaram em frente
a mim e ficaram ali, e os que eram próximos a mim ficaram a certa distância’'’; SI
88,9: “Afastaste de mim meus conhecidos; eles me tornaram uma abominação para
eles”. Acima, citei passagens negativas de Salmos desse tipo como pano de fundo
para o relato marcano que não apresenta imagem favorável da participação das mu­
lheres da Galileia. Estou hesitante quanto a sua aplicabilidade aqui, reconhecendo
a descrição positiva de Lucas das reações depois da morte de Jesus. Naturalmente,
ele poderia ter tomado o pano de fundo e mudado o sentido. Mais provável ainda, o
uso pelo Salmo de gnostoi poderia ter ficado em sua mente e influenciado o que ele
escreveu. Em qualquer dos casos, o eco de um Salmo no último versículo do relato
lucano da crucificação é um lembrete de que Jesus morreu segundo as Escrituras
(ICor 15,3).

Se Lucas tinha mesmo um grupo específico em mente, que homens ele ima­
ginou (no nível de narrativa, deixando o nível de história para a ANÁLISE abaixo)?
Gnostos/oi ocorre uma dúzia de vezes em Lucas/Atos, mas quase sempre em uma

11 Os melhores textos leem auto (“dele” ); a tradição koiné lê autou (“seus” ). Uma tradução frequente abrange
as duas possibilidades: “todos os seus conhecidos” .

359
Q u<rto ato •Jesusé crucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto

expressão estabelecida a respeito de alguma coisa ser conhecida; consequentemente,


o termo em si não tem referência consistente. Muitos pensam que Lucas tinha em
mira ou incluiu os Onze (os Doze menos Judas). Ao contrário dos outros Evangelhos,
Lucas não disse aos leitores que os Onze (apóstolos, discípulos) fugiram ou tiveram
permissão para ir embora na ocasião da prisão de Jesus (embora ele nunca mencione
a presença deles na NP depois disso e mostre Pedro como o único a tentar seguir
Jesus até o pátio do sumo sacerdote). Se, aqui, os gnostoi estão associados com
as mulheres da Galileia, os Doze foram associados com elas em Lc 8,1-3. Em Lc
24,9, voltando do túmulo vazio, as mulheres vão relatar aos “ Onze e todo o resto” ;
e antes de Pentecostes, em At 1,13-14, as mulheres são novamente associadas aos
Onze. Mas Lucas, que com tanta frequência menciona os Doze ou Onze pelo título,
se referiria a eles nesta cena crucial de modo tão vago, a única vez que o faz em
Lucas-Atos?78 Talvez seja possível responder que Lucas estava ciente da tradição
comum de que os Onze não estavam presentes no lugar da Caveira e, por isso, não
ousou mencioná-los pelo nome. O fato de referir-se a eles somente depois da morte
de Jesus e colocá-los a certa distância pode ter sido parte da mesma sensibilidade
delicada. Contudo, o que essa obscura referência indireta realiza, já que muitos
leitores deixariam facilmente de entender a aplicação aos Doze?

Outra sugestão é que gnostoi inclui os parentes de Jesus, homens e mulheres,


e que esta passagem é parcialmente paralela à inclusão joanina (Jo 19,25-27) da mãe
de Jesus junto à cruz. At 1,14 associa em uma única frase “as mulheres e Maria, a
mãe de Jesus, e os irmãos dele”, do mesmo modo que o versículo presente associa
os gnostoi e as mulheres. Contribuindo para essa interpretação está o outro único
uso verdadeiramente paralelo de gnostoi (com referência a um grupo de pessoas)
em Lucas, a saber, no início do Evangelho em Lc 2,43-44. Ali, quando Jesus es­
tava perdido, tendo sido deixado para trás no Templo, os pais o procuraram “entre
parentes e gnostoi”. Embora não identifique os dois grupos, a passagem realmente
os associa. Contudo, esse argumento pode não dar certo, pois 2R s 10,11 e Ne 5,10
também associam gnostoi com parentes sem identificar os dois grupos, de modo
que se pode perguntar se gnostoi seria usado para parentes próximos. Além disso,

78 Há quem, lembrando que Lucas usa mathetes (“ discípulo”) menos que os outros Evangelhos, sugira que
grwstoi substitui isso aqui. Mas em nenhuma outra passagem acontece a mesma coisa.

360
§ 44. iesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

Lucas não faz referência aos “ irmãos” de Jesus na NP,79 nem nas aparições da
ressurreição no domingo de Páscoa, referência que contaria aos leitores que essas
pessoas, que não seguiram Jesus durante o ministério, tinham vindo a Jerusalém
para a Páscoa na qual ele morreu. (At 1,14 situa-se em outra ocasião de festa, uns
cinquenta dias mais tarde.)

Uma terceira sugestão, e a que me parece ser a mais plausível, é que Lucas
usa essa vaga descrição para designar outros discípulos e/ou amigos de Jesus (além
dos Doze). Lembramos que, entre os Evangelhos, só Lucas especifica que além
dos Doze há setenta (e dois) outros que Jesus enviou em missão evangelizadora
durante o ministério galileu (Lc 10,1.17). Não é implausível que esses galileus se­
jam associados aqui com as mulheres galileias. Quando voltam do túmulo vazio, as
galileias transmitem a mensagem dos anjos “aos Onze e todo o resto”, o que indica
a presença em Jerusalém naqueles dias de um grupo maior de seguidores de Jesus
além das mulheres e dos Doze. Imediatamente depois desse relato, Lc 24,13 fala de
dois deles que vão a Emaús e, mais tarde no mesmo dia, voltam a Jerusalém para
relatar aos Onze o que acontecera (Lc 24,33). Mais tarde, At 1,13-15, depois de
relacionar os Doze, as mulheres e a mãe e os irmãos de Jesus, refere-se a um grupo
de 120. Lucas usa termos vagos para descrever o grupo maior (“outros”, “todo o
resto” ), e é plausível que esta passagem seja outro exemplo (“todos os conhecidos
dele” ). Se essa interpretação está correta, Lucas indiretamente concorda com Jo
19,26-27, que coloca perto da cruz o discípulo sem nome que Jesus amava (e talvez
com Mc 14,41-52, que descreve certo jovem que segue Jesus desde o Getsêmani).

Em todo caso, não se deve deixar a especulação erudita a respeito desses


espectadores eclipsar o interesse primordial de Lucas no v. 49, isto é, as mulheres
que fazem parte de seu paralelismo com as outras mulheres antes da crucificação.

Reações dos presentes segundo João

Começamos aqui o Episódio 5 na estrutura quiástica do relato joanino da


crucificação e do sepultamento (§ 38 C). Devido à sensibilidade de João à conti­
nuidade narrativa, não nos surpreende que, aqui, ele não relacione simplesmente

79 Realmente, a palavra adelphoi ocorre na Ultima Ceia, em Lc 22,32, quando é dito a Simão Pedro para
amparar seus irmãos, mas o contexto em Lc 22,28-32 deixa claro que a referência é aos outros membros
dos Doze.

361
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

duas ou três reações, mas as entrelace em uma narrativa consecutiva. O fato de a


“reação” que vem de Jesus (sangue e água) eclipsar as reações dos outros a sua
morte é característico da preocupação cristológica joanina. O relato joanino é
singular ao misturar com essas reações um pedido para que os corpos fossem reti­
rados — pedido que os outros Evangelhos (e novamente João) descrevem na cena
do sepultamento (§ 46) em relação a José de Arimateia. Farei um exame detalhado
de como os corpos dos crucificados eram sepultados até esta cena (que trata do
sepultamento de Jesus), e aqui trato apenas de alguns detalhes do sepultamento
indispensáveis para tornar inteligível o relato joanino.

O pedido feito a Pilatos (Jo 19,31). Nesse versículo, João tem elementos
similares ao início da cena de sepultamento em Mc 15,42-45. As duas passagens
têm a oração, “como era dia de preparação [paraskeue],\ ao em ligação com o sábado
próximo. Antes, Jo 19,14 falou desta sexta-feira como “dia de preparação para a
Páscoa” (fazendo eco a uma fórmula hebraica ‘erebpesah); ali, ele estava interessado
na sexta hora (meio-dia) no dia de preparação, aparentemente porque era a hora do
início do abate dos cordeiros pascais. Agora, depois da morte de Jesus, João está
interessado nessa sexta-feira como o dia antes do sábado. (Lembro aos leitores que,
embora paraskeue signifique “ preparação”, o hebraico fundamental ‘ereb significa
“anoitecer, vigília”.) 0 fato aparentemente mais importante de ser o dia seguinte
Páscoa tem eco apenas na declaração “esse sábado era um grande dia”.8081 A Páscoa
perdeu seu significado para permanecer apenas “uma festa dos judeus”, agora que
o Cordeiro de Deus foi imolado? De qualquer modo, as duas referências joaninas
a “dia de preparação” em Jo 19,14 e aqui formam um tipo de inclusão em torno da

80 Parte desta oração encontra-se também em Lc 23,54. Há quem use o fato de Marcos e João comparti­
lharem três palavras gregas idênticas (mas não na mesma ordem) para afirmar a dependência joanina de
Marcos. Uma expressão de tempo convencional que podia ter sido usada extensamente na tradição não
é indicação decisiva.
81 Que é esse o significado de “ grande sábado” é apenas suposição, pois nenhuma designação igual ocorre na
literatura judaica primitiva (I. Abrahams, Studies in Pharisaism and the Gospels, New York, reimpressão
Ktav, 1968, v. 2, p. 68). Jo 7,37 usou “o grande dia” para designar um dia especial (o último) durante a
Festa das Tendas. Alguns (Bultmann, Leroy) acham indícios aqui de que João tinha antes interpretado
mal a cronologia ao indicar que sexta-feira (de dia) era o dia antes daquele no qual a refeição pascal
seria consumida (anoitecer de sexta-feira, sábado), pois agora João juntou a datação sinótica na qual o
anoitecer de sexta-feira/sábado era o dia depois que a refeição pascal tinha sido consumida (anoitecer
de quinta-feira) e “ grande” porque a oferenda de feixes tinha lugar naquele dia (Lv 23,6-14; ver a p ê n d ic e
II). E ssa crítica de que o autor joanino era culpado de declarações contraditórias no espaço de algumas
linhas é suspeita, em especial quando a questão envolvida (datação de festas) é uma questão sobre a
qual João anteriormente demonstrou cuidado.

362
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de lesus - b. Reações dos presentes

crucificação, a primeira ocorrendo quando Jesus foi sentenciado à morte, a outra


logo depois dessa morte.

E interessante que Marcos (implicitamente), João (explicitamente) e o EvPd


relacionem a urgência de sepultar Jesus ao fato de ser sábado o dia seguinte. Com
efeito, a lei por trás do desejo dos judeus de “que os corpos não ficassem na cruz
no sábado” (João — lei expressa em EvPd 2,5 como: “ O sol não deve se pôr sobre
alguém executado” ) é Dt 21,22-23, que insiste que, em qualquer dia (não apenas
no sábado), os cadáveres de criminosos suspensos não devem permanecer durante
a noite na árvore.82 Contudo, é provável que Marcos, João e o EvPd reflitam um fato
prático, a saber, que em dias especiais havia maior pressão para a observância. Em
termos de comportamento romano, Fílon (In Flaccum x,83) indica uma expectativa
de que, nas festas, as autoridades permitissem que os corpos fossem descidos e,
em termos de sensibilidades judaicas, a profanação de dias santos especiais seria
uma preocupação maior. Pode bem ter havido pressão extra para tirar Jesus da cruz
antes do sábado na semana da Páscoa.

Como veremos no primeiro episódio relativo ao sepultamento (§ 46), os


Evangelhos são unânimes em afirmar que José de Arimateia solicitou a Pilatos o
corpo de Jesus e, por fim, recebeu-o para sepultar. Embora diferindo em detalhes,
Marcos, João e o EvPd concordam que a maneira na qual o pedido e a concessão se
realizaram envolveu complicações. Em EvPd 2,3-5, como parte de seu retrato (não
histórico) de Herodes juridicamente supremo em Jerusalém, José requer a Pilatos e
este, por sua vez, solicita o corpo a Herodes. Em Mc 15,44-45, depois de José fazer
o pedido, Pilatos fica espantado por Jesus já ter morrido e chama o centurião para
confirmar a morte — obviamente, o centurião que, ficamos sabendo em Mc 15,39,
estivera “de pé ali, na frente” de Jesus e que tinha “visto que ele assim expirou”.
Em João, antes de José entrar em cena, “os judeus” pedem a Pilatos que as pernas
sejam quebradas e os corpos retirados. (Crurifrágio tinha o efeito de um golpe de
misericórdia [Harrison, “ Cicero”, p. 454].) Durante essa ação, os soldados veem
que Jesus está morto. Assim, Marcos e João concordam que a morte de Jesus foi
verificada por militares romanos antes de seu sepultamento, mas em Marcos isso é
feito a pedido específico de Pilatos. Talvez a apologética tenha influenciado a imagem
marcana (§ 46); a meta de João é primordialmente teológica, como veremos agora.

82 Quanto à aplicabilidade desta lei aos crucificados, ver § 23 A-B.

363
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Nem em Jo 19,21 nem em Jo 19,31 é dito que “os judeus” vêm/vão a Pilatos
e, embora nos sinóticos (também em EvPd 2,3), José venha/vá a Pilatos, Jo 19,38
não diz que ele faz isso. Consequentemente, há quem afirme que João erronea­
mente imagina que Pilatos em pessoa estivesse presente no Calvário. Na cena do
julgamento romano, entretanto, João meticulosamente situou Pilatos dentro e fora
do pretório porque convinha a sua dramatização do papel de Pilatos; e assim, em
vez de supor erro histórico, podemos supor que, aqui, João acha mais dramático
manter as personagens próximas do centro da cena onde se ergue a cruz de Jesus.
Vemos um paralelo no tratamento joanino das seguidoras de Jesus, não à distância,
como nos sinóticos, mas “perto da cruz” (Jo 19,25).

Embora, ao pedir a Pilatos para agir, “os judeus” almejem cumprir a lei,
eles também demonstram hostilidade,83 como a hostilidade sugerida no Episódio
1 paralelo (Quadro 7, § 38 C), quando, no início da crucificação, seus chefes dos
sacerdotes exigiram que Pilatos mudasse o título sobre a cruz de Jesus (Jo 19,21).
Agora, eles pedem primeiro que as pernas sejam quebradas e só então que os corpos
sejam retirados.84 É possível afirmar que “os judeus” pediam simplesmente que o
castigo da crucificação terminasse; contudo, quebrar as pernas não era parte tão
integral da crucificação que tivesse de ser incluída.85 Quando Jo 19,38a descreve
favoravelmente o pedido de José para “retirar” (mesmo verbo: airein), nada é dito a
respeito de quebrar pernas. Se EvPd 4,14 pode ser considerado uma interpretação
primitiva da tradição de quebrar as pernas encontrada em João, ali a ação está
definitivamente em um ambiente de hostilidade por parte dos judeus, embora a
lógica do EvPd do que eles querem seja diferente.86 Tudo isso torna possível que,

83 Legalidade e hostilidade também se combinaram em Jo 19,7: “ Nós temos uma lei e segundo a lei ele
deve morrer” .
84 A gramática joanina descuidada em Jo 19,31 fá-los pedir literalmente “que suas pernas fossem quebradas
e retiradas” . Não há necessidade de agravar a hostilidade de “os judeus” , supondo que eles sabiam que
Jesus já estava morto. Em crurifrágio (nome talvez cunhado por Plauto, Poenulus 4,2; #886), às vezes
outros ossos eram quebrados além dos ossos das pernas.
88 Apesar de relatos primitivos em contrário, Zias e Sekeles (“ Crucified” ) declaram, com referência ao
crucificado Yehohanan ben hgqwl (§ 40, #3, acima), que foi aproximadamente contemporâneo de Jesus:
“ Os indícios não apoiam a afirmação de que a vítima recebeu um golpe de misericórdia que quebrou
os ossos dos membros inferiores” . A partir do uso feito por Cícero, Harrison (“Cicero” ) mostra que o
crurifrágio tinha a conotação de ser castigo brutal merecido por tipos inferiores (por exemplo, piratas).
86 Eles não querem as pernas quebradas (pernas de Jesus ou pernas do malfeitor que tomou o partido de
Jesus?), para que o tormento dure mais. O EvPd usa skelokopein, enquanto João usa katagnynai ta skele.
No EvPd, o incidente de quebrar as pernas ocorre antes da morte de Jesus e está ligado a um paralelo
com o relato lucano de um dos cocrucificados, que se solidarizou com Jesus.

364
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte; Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

em João, “os judeus”, como parte de seu pedido para que os corpos dos crucifica­
dos sejam removidos, pedem que seja imposto um ato final de sofrimento.87 O fato
de, em João, o plano de “os judeus” para que as pernas sejam quebradas não ter
sucesso no caso de Jesus será apresentado como triunfo do plano de Deus previsto
nas Escrituras (Jo 19,36).

A ação dos soldados (Jo 19,32-34a). João não nos diz explicitamente
que Pilatos concedeu o pedido que “os judeus” fizeram; mas isso está subentendido
no “Assim” do início do v. 32, e no fato de se porem os soldados a fazer o que foi
pedido. Por que os soldados lidam primeiro com os dois cocrucificados de cada
lado de Jesus, deixando-o, o que estava no meio (Jo 19,18), para o fim? A resposta
não é que perceberam que Jesus já estava morto, pois essa observação só aparece
no v. 33, depois de terem quebrado as pernas dos cocrucificados. Antes, o arranjo
é ditado pelo objetivo dramático de lidarem com Jesus por último. Na narrativa,
a observação da morte faz os soldados rejeitarem o pedido de “os judeus”, não
quebrando as pernas de Jesus. Segundo a estrutura do relato joanino da crucifi­
cação e sepultamento (§ 38 C), este Episódio 5, antes da Conclusão, é paralelo
aos Episódios 1 e 2, depois da Introdução. No Episódio 1, como já mencionei, os
chefes dos sacerdotes de “os judeus” peticionaram a Pilatos quanto a mudar a
redação do título na cruz, do mesmo modo que, aqui, “os judeus” peticionam a ele
a respeito da quebra de pernas e remoção. Nos dois casos, a reação romana frustra
o propósito maldoso. No Episódio 2, os soldados decidiram não rasgar a túnica de
Jesus, cumprindo, desse modo, as Escrituras (SI 22,19); aqui, eles decidem não
quebrar os ossos de Jesus, cumprindo, desse modo, a Escritura (talvez SI 34,21 —
ver nosso exame de Jo 19,36).

Com seu relato de que os soldados viram Jesus “já morto” (Jo 19,33), João
afirma o que Mc 15,44 vai declarar mais diretamente quando Pilatos se admirou
de que Jesus “já tivesse morrido”.88 Esse forte testemunho da morte de Jesus em

8‘ DNTRJ, p. 325-329, menciona que, no pensamento judaico, a desfiguração era obstáculo para a res­
surreição, mas duvido que João atribua a “os judeus” a tentativa de impedir a ressurreição de Jesus.
Não temos certeza nem mesmo da atitude dos judeus do século I a esse respeito. Certamente, entre os
fariseus, havia uma crescente sensibilidade quanto a manter os corpos inteiros e não permitir que fossem
mutilados, mas será que pensavam que membros quebrados impediam a ressurreição? Afinal de contas,
havia quebra quando os ossos eram reunidos e colocados em ossuários.
88 A tradição primitiva de uma rápida morte para Jesus (considerando que, não raro, os crucificados sobrevi­
viam durante dias) alimenta a especulação médica a respeito do estado de saúde de Jesus e a verdadeira
causa médica de sua morte (já que a crucificação não perfurou nenhum órgão vital); ver § 42 B-C.

365
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

João não foi por motivos apologéticos (para provar que Jesus ressuscitou dos mor­
tos), mas pela cristologia. Mesmo de seu corpo morto saem elementos vivificantes
(simbolizados por sangue e água). Uma ação especial por “ um dos soldados” leva a
esse desdobramento, do mesmo modo que, no paralelo funcional em Mc 15,39; Mt
27,54, o centurião é o agente para a confissão cristológica. “ Verdadeiramente, este
(homem) era Filho de Deus”. Não nos surpreende que harmonizadores identifiquem
os dois, usando a lança (logche) do soldado joanino para dar o nome Longino ao
centurião mateano.89 A harmonização com a cena joanina é representada também
pela glosa em Mt 27,49 (§ 42, acima), onde, antes de Jesus morrer, enquanto
alguns dos circunstantes diziam que Jesus bradava por Elias, um deles pôs em
um caniço uma esponja cheia de vinho avinagrado, dando para Jesus beber: “ Mas
outro, tendo pegado uma lança, trespassou seu lado e saíram águ a e sangue ”. (As
palavras em itálico são compartilhadas pela glosa mateana e por João.90) E evidente
que perfurar o crucificado dava certeza de sua morte: “ Quanto aos que morrem
na cruz, o algoz não proíbe o sepultamento dos que foram perfurados [percussos]”
(Quintiliano, Declamationes maiores vi,9). A ação pelo soldado em Jo 19,34 tem
a falta de lógica da vida comum: como os outros soldados, ele vê que Jesus está
morto, contudo, para se certificar, ele sonda o corpo para obter uma reação revela-
dora, trespassando o lado de Jesus. Acho que é esse o significado, não um ato de
misericórdia com o objetivo de perfurar o coração (com a devida vênia a Lagrange,
Jean, p. 499), embora o verbo nyssein (“picar, enfiar” ) abranja cutucar (como para
despertar um homem adormecido) e mergulhar profundamente.91 João usa pleura
(“lado” ) no singular, embora em grego, normalmente se use o plural. Isso levou

89 A recensão mais primitiva (A) de Atos de Pilatos 16,7 tem o nome, enquanto a recensão mais tardia (B)
de Atos de Pilatos 11,1 traz: “ Mas Longino, o centurião [hekatontarchos, como em Mateus, não kentyrion,
como em Marcos] de pé ali, disse: ‘Verdadeiramente, este era Filho de Deus’ [como em Mateus]” .
* Michaels (“Centurion’s”) vê uma sequência progressiva que envolve passagens dos Atos de Pilatos na
nota precedente e na glosa.
91 Nyssein é usado no Códice de Beza de At 12,7 para cutucar o lado de Pedro a fim de acordá-lo, e em Eclo
22,19, para cutucar o olho e provocar lágrimas; mas por Josefo (Guerra III,vii,35; #335), para trespassar
um soldado romano e matá-lo. Observemos que é usada a lança leve (lancea, logche), não a lança pesada
(pilum, hyssos). Discordo de Wilkinson (“Incident” , p. 150), para quem o desejo de Tomé de pôr a mão
no lado de Jesus (Jo 20,25.27) mostra que João imaginava uma ferida larga e profunda. Tomé, que não
viu Jesus, usa linguagem exagerada para demonstrar o desejo de prova física grosseira. A Vulgata e a
Peshitta usaram o verbo “aberto” , que talvez reflita uma leitura errada (enoixen por enyxen), facilitando
uma interpretação na qual os sacramentos e até a Igreja originaram-se do lado de Jesus (ver BGJ, v. 2,
p. 949-952). Agostinho declara (In Jo cxx,2; CC 36,662): “Ele não disse ‘golpeado’ nem ‘ferido’, nem
outra coisa, mas sim ‘aberto’” .

366
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

alguns a sugerir que João recorda Gn 2,21-22, onde Deus tira uma pleura de Adão
e dela cria a mulher.92 A versão etiópica e os Atos de Pilatos (recensão B, 11,2)
especificam o lado direito; a arte e também a medicina (buscando a causa da morte
de Jesus) utilizam essa indicação. Se entendida historicamente, ela contraria a teoria
do golpe de misericórdia, pois um golpe no coração apontaria para o lado esquerdo;
mas Barbet (Doctor, p. 120) afirma que os soldados romanos eram treinados para
atacar o coração pelo lado direito porque o lado esquerdo do adversário era protegido
por um escudo. À luz da mentalidade antiga, é mais plausível haver uma origem
bíblica para esse detalhe imaginoso, por exemplo, Ez 47,1: “ E água corria do lado
direito” . Interpretações simbólicas do lado e da ferida servem de boa introdução
a um exame do fluxo de sangue e água produzido pela lança — um dos símbolos
dramáticos mais bem lembrados, embora não facilmente entendidos, em João.

“ Imediatamente saíram sangue e água” (Jo 19,34b).93 Em seguida


à morte de Jesus, Marcos/Mateus tinham sinais escatológicos que levaram à confis­
são pelo centurião romano. João tem esse sinal provocado por um soldado romano.
Deixo as questões históricas e de composição para a ANÁLISE e concentro-me aqui
naquilo que o texto, como ele se encontra agora, tinha o propósito de transmitir.
Portanto, não haverá tentativa de distinguir o que o episódio queria dizer na fonte
e o que ele queria dizer para o evangelista, como faz Schnackenburg (John, v. 3,
p. 289: não simbólico na fonte); ou, a fortiori, no que queria dizer para o redator
final, se foi ele quem acrescentou o “sangue e água” de Jo 19,34 ou o testemunho
de Jo 19,35. Também não vou examinar a evolução incrivelmente rica em reflexões
subsequentes pelos Padres da Igreja e teólogos a respeito do lado trespassado (ou

92 A. Loisy, A. Feuillet; ver em BGJ, v. 2, p. 949, o tema da nova Eva.


93 A posição de “ imediatamente” varia nas testemunhas textuais e algumas, interpretativas e patnsticas,
mais a glosa a Mt 27,49, leem “ água e sangue” . Talvez seja uma harmonização com ljo 5,6.8; mas M.-
E. Boismard (BB 60,1953, p. 348-350) argumenta que pode ser original e os escribas a adaptaram (em
todos, exceto um ms. grego!) à expressão mais normal “sangue e água” . B. Kraft (BZ 13, 1915, p. 354-
355), ao escrever a respeito da ordem “ água e sangue” em um fragmento copta de Irineu publicado por
P. de Lagarde em 1886, mostra que essa não era a interpretação de Irineu no século II, mas se origina
do copista mais tardio influenciado por uma versão copta que ele tinha diante de si. A. Barberis (Sindon
10, #11,1967, p. 31-33), influenciado pela insistência de Crisóstomo de que primeiro saiu água, depois
sangue, argumenta que houve dois fluxos: sangue e água, do golpe de lança, e depois mais sangue, durante
a remoção da cruz e o sepultamento, como prova o Santo Sudário — assim, as duas leituras textuais
podem ser confirmadas pela sequência sangue-água-sangue!

367
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

mesmo, coração trespassado94) como fonte simbólica de salvação, do amor divino


e dos sacramentos.95

Uma quantidade considerável de literatura moderna dedicada ao sangue e


água é de caráter médico. Quando se supõe que João descreve um acontecimento
real, que causa fisiológica teria feito um cadáver expelir sangue e um fluido que se
parece com água? A ANÁLISE de § 42 dedicou a subseção C a “A causa fisiológica
da morte de Jesus” e sintetizou a discussão pertinente. Evidentemente, nenhuma
parte dessa discussão dedicada a descobrir a causa natural do fenômeno de sangue
e água é condizente com o propósito de João ao relatá-lo, pois ele apresenta o fluxo
de sangue e água do Jesus morto como uma coisa tão maravilhosa que precisa
assegurar aos leitores que, por trás dele, está o testemunho garantido de uma
testemunha ocular. Embora esse testemunho refira-se primordialmente ao signifi­
cado teológico do sangue e água, ele com certeza não teria sido invocado se o que
é descrito fosse normal ou fácil de explicar. Contra Richter (“ Blut” ), para quem o
fluxo de sangue e água indicava simplesmente uma morte verdadeiramente humana,
Minear (“ Diversity”, p. 164) está correto ao salientar que a linguagem de ver e dar
testemunho em Jo 19,35 é consistentemente usada em João (Jo 1,34; 3,11.32-33),
para testemunho celeste. Embora se possa tergiversar quanto à aplicabilidade de
“milagre”, se esse termo é definido estreitamente demais como fora dos poderes da
natureza, uma longa tradição96 que avaliou esse fluxo como milagroso está mais
perto da intenção de João do que a moderna análise médica póstuma.97

94 Lavergne (“Coup” , p. 7) usa “ coração” no título de seu artigo; e, no resumo, aparece esta declaração:
“ Nesta palavra ‘coração’, em lugar da palavra mais comum ‘peito’, está contido o verdadeiro significado
deste trabalho [isto é, artigo]” .
93 A literatura é considerável, mas é possível apresentar proveitosamente uma amostra: J. Heer, “The
Soteriological Significance of the Johannine Image of the Pierced Savior” , em L. Scheffczyk, org., Faith
in Christ and the Worship of Christ, San Francisco, Ignatius, 1986, p. 33-46; A. A. Maguire, Blood and
Water. The Wounded Side of Christ in Early Christian Literature, Washington Catholic Univ., 1958 (Stu-
dies in Sacred Theology), que vai até o século IV; e S. P. Brock, “ ‘One of the Soldiers Pierced The
Mysteries Hidden in the Side of Christ” , em Christian Orient 9,1988, p. 49-59, que abrange os teólogos
da Igreja siríaca.
96 Representada por Orígenes, Tomás de Aquino, Cajetan, Comélio a Lapide e Lagrange, para citar alguns.
9' 0 conhecimento médico antigo também foi trazido à discussão. 0 pensamento grego, de Heráclito a
Galeno, ressaltava que proporções adequadas de sangue e água no corpo humano garantiam a saúde.
4 Macabeus 9,20 descreve a morte de um mártir em termos de seu sangue lambuzado em uma roda e
o fluido de seu corpo extinguindo as brasas ardentes. Midraxe Leviticus Rabbah 15,2, a respeito de Lv
13,2ss, diz: “0 ser humano é uniformemente equilibrado: metade água e a outra metade sangue” .

368
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

Reconhecendo que a intenção de João ao falar de sangue e água é teológica,


os biblistas se dividem quanto à precisa mensagem pretendida. João usou simbolismo
helenístico para descrever Jesus como divino? Havia uma antiga lenda homérica de
que os deuses tinham nas veias um tipo de sangue misturado com água, por exemplo,
Afrodite derramou sangue linfático misturado com água.98 Orígenes (Contra Celso
II, 36) relata a pergunta escarnecedora de Jesus ter nas veias o líquido divino que
era o sangue dos deuses. Não se pode jamais ter certeza do que era entendido pelos
leitores de João, que tinham origem helenística pagã, mas como em nenhuma outra
parte João depende dessa metáfora obviamente pagã para explicar Jesus, não vejo
razão para supor que ela fosse fator importante aqui.

João usou o sangue e água com intenção antignóstica? Sabemos que no século
II havia gnósticos docetistas que negavam ter Jesus realmente morrido na cruz (§
42, ANÁLISE D) e os Atos de João 101 representam Jesus negando que saiu realmente
sangue de seu corpo. C. 180, Irineu usou Jo 19,34b contra os docetas (Adv. haer.
III, xxii,2; IV,xxxiii,2). No século I, entretanto, quando João escreveu, existia esse
gnosticismo docético entre os que afirmavam crer em Jesus?99 Realmente, o fluxo
de sangue e água (se esta última era entendida como equivalente a ichor, fluido
da ferida) transmitia a ideia de que Jesus estava mesmo morto. Contudo, Hultkvist
(What) usa essa emanação para afirmar que Jesus não estava morto, mas apenas em
coma resultante de grave hemorragia. De qualquer modo, a morte de Jesus já não
estava comprovada pelo soldado que viu que ele estava morto e também perfurou-
-lhe o corpo? 0 versículo seguinte, com seu “a fim de que vós também acrediteis”,
sugere que o objetivo principal era a profundidade da fé, não a correção de um erro.

João pensava aqui em Jesus como o cordeiro pascal ou, de modo mais geral,
como vítima sacrifical, e tentava mostrar que ele preenchia o requisito de que o
sangue da vítima devia fluir no momento da morte para poder ser espargido?100

98 P. Haupt, American Journal of Philology 45, 1924, p. 53-55; E. Schweizer, EvT n s 12, 1952-1953, p.
350-351. Alexandre Magno, atingido por uma flecha e com muita dor, citou Homero (Ilíada v, 340): “O
que flui aqui, meus amigos, é sangue e não ‘soro’ [ichor], como o que flui das veias dos deuses benditos”
(Plutarco, Alexandre, xxviii,3).
99 Richter e outros pensam no gnosticismo como importante adversário no Evangelho. Em BGJ e BEJ, afirmei
que havia uma preocupação muito mais clara a respeito do gnosticismo incipiente na época mais tardia,
quando as Epístolas joaninas foram escritas, e isso é visível na referência a água e sangue em ljo 5,6.
100 Mixná, Pesahim 5,3,5. Assim Miguens (“Salió” , p. 13-16) e Ford (“ Mingled” ). Miguens (p. 17-20)
aponta para a semelhança entre o soldado trespassar o lado de Jesus com uma lança e a insistência da
lei judaica para que o sacerdote rasgasse o coração da vítima e fizesse o sangue fluir (Mixná, Tamid

369
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

Mas, então, por que o fluxo de água? A citação da Escritura em Jo 19,36 mostra
que João pode bem ter em mente a metáfora do cordeiro pascal, mas essa imagem
está ligada aos ossos que não foram quebrados, não ao fluxo de sangue.

Há quem sugira que João primordialmente chama a atenção para a origem


veterotestamentária (ver em Lefèvre, “ Seitenwunde”, uma rica variedade). Acima
(nota 92 e trecho a ela ligado), mencionei a tese de que Gn 2,21-22 (Eva, a partir
do lado de Adão) estava por trás da cena toda.101 Outros pensam no servo sofredor
derramando sua alma (vida) em Is 53,12 (se é isso que o hiphil de ‘rh significa).
Outro conjunto de passagens proposto inclui a metáfora do êxodo de Moisés, que
faz água fluir da rocha, e a imagem em Ez 47 de água que flui de Jerusalém —
ligação facilitada quando Jo 19,34 é lido à luz de Jo 7,38, onde água viva flui do
interior de Jesus. Esta última proposta acrescenta significância como base para
a explicação mais adotada, a saber, de que aqui João continua e desenvolve um
simbolismo que usou antes.

Em Jo 7,37-38, Jesus citou uma passagem bíblica aparentemente com refe­


rência a si mesmo: “ Do interior dele correrão rios de água viva”.102 Ali, o evangelista
interrompeu para explicar que Jesus se referia ao Espírito que os que acreditavam
nele haveríam de receber, pois ainda não havia o Espírito, já que Jesus não fora
glorificado. Na morte de Jesus, temos agora a hora de sua glorificação quando ele
foi elevado na cruz, de volta para o Pai (Jo 12,23-24.28-32; 13,1; 17,1.10-11).
E ssa morte é expressa pelo sangue, e o Espírito prometido que flui do interior dele
é expresso pela água.103 Essa interpretação não é contrária à ideia de que Jesus

4,2). Wilkinson (“Incident” , p. 150) rejeita a tese de Ford, segundo a qual o sangue deve fluir a fim de
poder ser espargido — no nível da história, isso não interessaria ao soldado; no nível da narrativa, não
interessaria ao autor.
101 Brock (“ One” ) mostra que essa metáfora era popular na Igreja de língua siríaca, juntamente com o sim­
bolismo de que a perfuração com a espada abriu o jardim da árvore da vida, que ficou protegido por uma
espada depois do pecado de Adão (Gn 3,24). Ver também R. Murray, Orientalia Christiam Periódica
39,1973, p. 224-234,491.
102 Outros entendem que o “dele” se refere ao fiel (BGJ, v. 1, p. 320-321). A Escritura é não raro identificada
como Nm 20,11, onde Moisés golpeia a rocha e as águas jorram. Em Midraxe Êxodos Rabbah 3,13, a
respeito de Ex 4,9, é dito que Moisés golpeou a rocha duas vezes, porque ele primeiro fez brotar sangue
e depois água, mas não sabemos se esta exegese estava em circulação no século I.
103 Assim também Vellanickal, “Blood” . Em uma combinação de excesso de simplificação e excesso de
sutileza, de la Potterie (“Symbolisme” , p. 208, 214-215) opõe-se a considerar a morte (sangue) histó­
rica e a água (Espírito) simbólica; ele prefere distinguir entre o sangue como “sinal” de morte e como
“símbolo” de vida. Entretanto, João nunca faz uma distinção linguística entre sinal e símbolo. Na minha

370
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

entregou o Espírito aos que estavam perto da cruz em Jo 19,30, mas é outro aspecto
da multifacetada entrega do Espírito pela morte, ressurreição e ascensão de Jesus.
(Observemos que, em cada caso, o Espírito vem de Jesus e, assim, é o Espírito de
Jesus.) Perto da cruz, sua mãe e o discípulo que ele amava representavam os ante­
passados da comunidade joanina — uma comunidade dos especialmente amados,
que já existiam antes que ele morresse e foram os primeiros a receber o Espírito.
Agora que ele foi elevado na morte, ele atrai todos para si (Jo 12,32) e todos os
que creem nele receberão o Espírito (Jo 7,39). As mesmas passagens veterotesta-
mentárias que foram a base para o fluxo de água viva de seu interior em Jo 7,38
(Nm 20,11; SI 78,15-16; Ez 47,1; ver BGJ, v. 1, p. 321-323) foram influentes em
Jo 19,34b. E, reconhecida a importância de Zc 9-14 na NP, pode-se destacar Zc
13,1 (“ Naquele dia, uma fonte estará à disposição da casa de Davi e dos habitantes
de Jerusalém, para a remoção do pecado e da impureza” ) e Zc 12,10 (“ Derramarei
sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de piedade e
compaixão” ) - ver abaixo, sob Jo 19,37, outros usos dessa passagem.104

Comecei este exame do fluxo de sangue e água indicando a equivalência


funcional de Jo 19,34 e Mc 15,39 no fato de cada um apresentar um soldado romano
no episódio que interpreta a morte de Jesus. Podemos acrescentar que cada uma
das passagens evangélicas alude ao amplo efeito salvífico dessa morte: Marcos, ao
fazer um gentio confessar Jesus, e João, ao cumprir a promessa de Jesus de atrair
todos para si por meio do derramamento do Espírito a todos os fiéis. Contudo, o
centurião marcano comentou a morte cristologicamente, enquanto o soldado de João
se mantém calado. 0 equivalente funcional do centurião marcano como intérprete é
a testemunha ocular joanina no versículo seguinte, para o qual nos voltamos agora.105

interpretação, o sangue simboliza a morte como João entende esse acontecimento histórico, isto é, teolo­
gicamente: morte glorificada e vivificante na cruz que eleva. Orígenes (Contra Celso ii,69) observa bem
que este é um tipo diferente de morto, que “mesmo como cadáver mostrou sinais de vida na água e no
sangue’’. A potencialidade de a água simbolizar o Espírito foi reconhecida logo (ver Irineu, Contra as
heresias IV,xiv,2).
104 Ver a relação de ljo 5,6-8 com essa interpretação de “sangue e água” em Jo 19,34b e também com o
papel do testemunho em Jo 19,35 em BEJ, p. 577-580. Além da interpretação de “ sangue e água” como o
Espírito que flui da morte glorificada de Jesus, há também a possibilidade de um simbolismo sacramental
secundário, quer os dois elementos simbolizem o batismo, quer o sangue simbolize a Eucaristia e a água,
o batismo. As duas interpretações sacramentais estavam em voga no fim do século II e início do século
III (BGJ, v. 2, p. 951), e a ideia de que os sacramentos brotaram da morte de Jesus não seria impossível
para o próprio João. Contudo, é difícil provar esse simbolismo.
105 O equivalente é fortalecido pela tese a ser mencionada (embora defendida por muito poucos) de que o
“aquele que viu dá testemunho” joanino era o soldado que perfurou o lado de Jesus.

371
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

O verdadeiro testemunho daquele que viu (Jo 19,35). Um comen­


tário parentético106107realça a importância do que precedeu. Do mesmo modo que o
centurião marcano, tendo “visto que ele assim expirou” (um “assim” que inclui a
intervenção escatológica de Deus no rasgamento do véu do santuário), interpretou
essa visão cristológica e salvificamente, agora João tem “o que viu”, sinal profético
que se seguiu à morte de Jesus e dá verdadeiro testemunho, “a fim de que vós tam­
bém acrediteis”. 0 que esse vidente joanino viu foi primordialmente o lado de Jesus
ser trespassado e dele saírem sangue e água (Jo 19,34), mas o ato de ver coloca
essa ação no contexto todo de Jo 19,31-33. Quem era o vidente? 0 estilo joanino
extremamente indireto aqui torna incerta a resposta a isso; em parte, depende de
ele se referir a duas pessoas diferentes em Jo 19,35a e 35b, respectivamente.

Quanto a Jo 19,35a (“ E o que viu dá testemunho e verdadeiro é seu teste­


munho” ), há dois homens destacados perto da cruz aos quais isso pode se aplicar.
0 antecedente mais próximo é o soldado (Minear, “Diversity”, p. 163-164); mas,
dentro de uma estrutura joanina, parece estranho que essa afirmação solene lhe
seja atribuída sem nenhuma indicação de que ele passou a crer. A importância do
testemunho adapta-se melhor ao discípulo que Jesus amava, mencionado alguns
versículos antes (Jo 19,26-27) de pé perto da cruz. Que a referência é a ele confirma-
-se em Jo 21,24, que fala do discípulo amado (citado em Jo 21,20-23): “ Este é o
discípulo que dá testemunho destas coisas e que escreveu estas coisas, e sabemos
que seu testemunho é verdadeiro” .10'

Alguns testemunhos latinos omitem o versículo e Nonos subentende uma interpretação um tanto diferente;
Blass (“ Über” ) argumenta, com base na crítica textual, que o versículo é tão duvidoso que nada pode
depender dele — opinião repetida em BDF 2916, onde Blass foi importante colaborador. Entretanto,
esta opinião não tem seguidores entre os comentaristas.
107 Há considerável debate sobre a hipótese de o autor indicar que o testemunho dado (martyrein, martyrid)
pelo discípulo amado em Jo 19,35a inclui o testemunho exemplificado no Evangelho escrito ou simples­
mente o da tradição básica por trás do Evangelho. A favor de uma indicação de que o discípulo escreveu
o Evangelho, é invocada a oração “que escreveu estas coisas” , de Jo 21,24; contudo, talvez isso não
signifique nada mais que “fez estas coisas serem escritas” , como em Jo 19,19, onde “ Pilatos também
escreveu um letreiro e o pôs sobre a cruz” . Lavergne (“Coup” , p. 11) relata que pesquisou os noventa e
nove usos de palavras com martyr- em Platão e que este parece empregar martyria (oito vezes) somente
no caso de testemunho escrito. Chase (“Two” ) argumenta que, em Jo 19,35, não há nada para indicar
que o discípulo escreveu, pois um relato escrito não aumentaria sua credibilidade. Este é, antes, um
comentário quase verbal do que preside a leitura do Evangelho em voz alta a um grupo de discípulos,
exatamente como um comentário é feito por “ nós” em Jo 21,24 ou, na verdade, por “eu” em Jo 21,25.

372
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

É mais difícil identificar a figura mencionada em Jo 19,35b: “e esse um


[ekeinos] sabe que ele fala o que é verdade, a íim de que vós também acrediteis”.
(E provável que a oração de propósito modifique a sentença toda, inclusive o ato de
dar testemunho no v. 35a, em vez de apenas “fala”.) 0 emprego de ekeinos sugere
a muitos um novo sujeito que sabe que a testemunha ocular (“ele” = o discípulo
amado) fala o que é verdade (ver detalhes em BGJ, v. 2, p. 936-937). Há quem
pense que ekeinos é Deus ou Jesus (mencionado em Jo 19,33),108 ambos ocasional­
mente identificados por João como ekeinos (mas só quando o contexto está claro),
ou mesmo o Paráclito (o Espírito simbolizado pela água) que é a testemunha por
excelência (Jo 15,26).109 A verdadeira objeção aos dois é que o contexto altamente
evasivo não nos prepara para o respectivo agente.110 O autor joanino também tem
sido sugerido como o ekeinos: o autor sabe que a testemunha ocular (o discípulo
amado) fala a verdade. Algo semelhante encontra-se em Jo 21,24: “sabemos que
seu testemunho [o do discípulo amado] é verdadeiro”. Entretanto, uma referência
a si mesmo como ekeinos é mais constrangedora que o emprego de “nós” ; conse­
quentemente, muitos atribuem Jo 19,35 a um redator que, como terceiro, declara
que o evangelista (ekeinos) sabe que a testemunha ocular fala a verdade.111

Outros, antigos e modernos (Nonos de Panópolis, Bacon, Bultmann, Schna-


ckenburg etc.), contestam a ideia de que ekeinos muda o sujeito. Pode-se mencionar
o uso anafórico do pronome como “ele” (BDF 2916; MGNTG, v. 3, p. 46) e nesse
padrão, a referência é ao próprio discípulo amado, o instrumento escolhido do
Espírito-Paráclito. Essa última identificação faz o melhor sentido dentro da estrutura

108 A favor desse ponto de vista, Nestle (“John xix” ) relaciona Abbott, Sanday, Strachan e Zahn, e relata que
ele remonta a Erasmo. Lavergne (“Coup” , p. 9-10) acha que ekeinos (aparentemente = Deus, até Jesus
ressuscitar) dá confirmação divina à veracidade do testemunho humano de Jo 19,35a. Há uma cadeia
de testemunhos em Jo 5,31-38 que culmina no Pai.
109 Kempthome (“ As God” ) argumenta que Deus é a testemunha, não Deus olhando do céu, mas na pessoa
do Espírito; e em apoio, ele cita ljo 5,6, que fala de Jesus ter vindo pela água e pelo sangue, e então
declara: “ e o Espírito é que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade” . Contudo, não se pode ir
adiante? Como João indica, o Espírito dá testemunho por meio de outros (Jo 15,26-27); assim, ao se
argumentar que o discípulo amado é o ekeinos de Jo 19,35b, a razão pela qual ele dá testemunho é a
personificação do Espírito-Paráclito.
110 Entre eles, a identificação como “Jesus” tem o maior seguimento, pois Jesus é mencionado pelo nome
nesta cena. Mas seria estranho fazer Jesus, que morreu, atestar a verdade do testemunho do que aconteceu
depois de sua morte.
111 Eles consideram o redator responsável pelo capítulo 21, em especial Jo 21,24. Ver, na a n á l is e B, a tese
contrária de que esse redator copiou de Jo 19,35, que era uma reflexão do evangelista.

373
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

da teologia joanina. O discípulo amado, que em Jo 19,35a vê e dá testemunho, é


quem fala em Jo 19,35b “a fim de que vós também acrediteis”.112 Sem dúvida, o se
deve crer é a significância cristológica e salvífica da morte de Jesus do modo como
o evangelista escreve este Evangelho: “para que creiais que Jesus é o Messias, o
Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31). No
início da narrativa joanina do ministério terreno de Jesus, João Batista foi quem viu
e deu testemunho de que Jesus é o Filho de Deus (Jo 1,34); por meio de inclusão
no fim desse ministério, o discípulo amado viu e deu testemunho da mesma verda­
de.113 O discípulo amado é mais perceptivo que qualquer outro seguidor de Jesus
e, de certo modo aqui, ele antecipa a fé na ressurreição. Realmente, ele próprio só
acreditará no Jesus ressuscitado quando vir as vestes no túmulo vazio (Jo 20,8); mas
sua percepção de que o Jesus que morreu na cruz é vivificante ajudará as pessoas
a crerem, do mesmo modo que a visão do Jesus ressuscitado nas outras obras neo-
testamentárias leva as pessoas à fé. (E observação feita por Harder, “ Bleibenden”,
quando ele compara ICor 15,6 e Jo 19,35.)

Cumprimento da Escritura (Jo 19,36-37). Alguns versículos antes,


ouvimos sobre a Escritura sendo “cumprida” (Jo 19,24: pleroun) ou “se completasse”
(Jo 19,28: teleioun) a respeito dos acontecimentos que precederam a morte de Je ­
sus.114A introdução no v. 36 relaciona a Escritura a “essas coisas” que aconteceram.
Logicamente, o plural refere-se a pelo menos dois itens: que as pernas de Jesus
não foram quebradas (Jo 19,33) e que seu lado foi trespassado por uma lança (Jo
19,34a), pois a citação no v. 36 refere-se ao primeiro e a citação no v. 37, ao último.
(É comum alegarem que não há citação referente ao fluxo de sangue e água [Jo
19,34b], que é abrangida pelo v. 35, mas voltaremos a essa questão mais adiante.)

A PRIMEIRA CITAÇÃO (Jo 19,36) é: “ Seu [de pessoa ou animal: auíou] osso
não será quebrado [syntribesetai]”. A ambiguidade do autou está preservada em
minha tradução, pois muita discussão se concentra na possibilidade de a referência

112 Aqui, o presente do subjuntivo é textualmente preferível ao aoristo. Um problema ainda mais grave de
decidir entre os dois tempos ocorre na oração paralela de Jo 20,31 (BGJ, v. 2, p. 1056).
113 Com base nesse discernimento transformado pela tese de que o discípulo amado era João, filho de Ze-
bedeu, tomou-se convenção pintar a crucificação como um tríptico com os dois Joãos testemunhas nos
painéis laterais.
114 De outro modo, nos acontecimentos da NP joanina, as palavras de Jesus é que foram “ cumpridas” (Jo
18,9.32). Em Mateus, a Escritura é cumprida em relação à prisão de Jesus sem resistência (Mt 26,54.56)
e em relação a Judas (Mt 27,9-10).

374
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

primordial ser o cordeiro pascal (“ seu” [do animal]) ou o salmista perseguido


(“seu” ). Esta passagem constitui um exemplo de como não devemos fácil ou univo-
camente supor que passagens veterotestamentárias dão origem, de modo criativo, a
acontecimentos evangélicos. A descrição joanina em Jo 19,33 usou skelos (“perna” )
e katagnynai (“quebrar” ; EvPd 4,14 usou skelokopein), enquanto a citação em Jo
19,36 usa osteon (ostoun: “osso” ) e syntribein (“quebrar, despedaçar” ). É mais que
provável ter a aplicação da Escritura pelo evangelista vindo depois de a descrição
básica do episódio joanino ter sido estabelecida ( a n á l is e B, abaixo). Há diversas
passagens bíblicas que empregam osteon e syntribein propostas como candidatas
para “aquele que” João tinha em mente, e precisamos examiná-las.

a) Uma passagem do Pentateuco, que expressa a lei concernente ao cordeiro


pascal:115

• Ex 12,10 (LXX); 12,46: “ Não quebrareis” [syntripsete] osso algum dele


[ap ’ autou ].

• Nm 9,12: “ Eles não quebrarão [syntripsousin] osso algum dele.

Em apoio a ser essa a referência primordial, recorde-se a descrição joanina de


Jesus como o Cordeiro de Deus (Jo 1,29.36), tempo fixado algumas horas antes da
refeição da Páscoa e possíveis referências implícitas ao cordeiro pascal em Jo 19,14
(meio-dia: a hora em que se iniciava o abate dos cordeiros pascais no Templo) e Jo
19,29 (hissopo: usado para aspergir o sangue do cordeiro).116 A imagem de Jesus
morrendo como cordeiro pascal ou sacrifício cujo sangue purifica do pecado tinha
ampla circulação entre os cristãos primitivos (ljo 1,7; ICor 5,7; lPd 1,19; Ap 5,8-9).
Contra a tese de que João se referia a uma passagem de cordeiro pascal, há o fato
de não ser o passivo singular do verbo usado por Jo 19,36 encontrado nos exemplos
acima, que têm formas ativas plurais do verbo. Há quem pressuponha mudança
deliberada pelo evangelista, por exemplo, para fazer os textos veterotestamentários
soarem mais como profecia. Outros pressupõem que ele usou uma tradução grega

n° É de se presumir que a aversão a ter um osso fraturado origine-se do desejo de que o que se oferece a
Deus seja perfeito. A partir de um levantamento religioso comparativo, Henninger (“Neuere”) mostra que
os ossos não eram quebrados porque osso e medula tinham de ser mantidos intactos para a reanimação,
mas admite que não há indícios dessa tese na percepção que Israel tinha do cordeiro.
116 Há quem acrescente Jo 19,31 (“ a fim de que os corpos não ficassem na cruz”) à luz de Ex 12,10, segundo
o qual, quando chega o dia seguinte, nada deve restar do cordeiro abatido ao anoitecer. Ver também
a p ê n d ic e VI a respeito de paralelos (esp. #12) entre a morte de Jesus e o sacrifício de Isaac.

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Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

diferente da encontrada na LX X .m Das várias passagens bíblicas que a NP cita


ou às quais alude claramente, esta seria a única do Pentateuco.

b) A descrição do justo sofredor em SI 34,21:

O Senhor preserva todos os ossos deles,


e nenhum deles [ex auton] será quebrado [syntribesetai]

O verbo passivo joanino é encontrado aqui, mas não o sujeito joanino (“o osso
dele” ). Outras citações bíblicas formais na NP joanina são dos Salmos.*118 Embora
o SI 34 nunca seja citado no NT em relação à Paixão de Jesus,119 o tema desse
Salmo (Deus responde ao chamado do aflito e liberta o justo: SI 34,7.20) adapta-se
bem à cena joanina: a Providência Divina impediu os soldados de quebrarem as
pernas de Jesus, ao contrário do pedido de seus inimigos. Alguns biblistas (Dodd,
Haenchen, Seynaeve, Torrey, B. Weiss) defendem essa como a passagem aludida
por João. Com Hemelsoet, Rehm e outros, acho que os indícios favorecem a imagem
do cordeiro pascal como a referência primordial; mas não vejo razão para João não
ter pretendido também fazer eco ao Salmo.120 Depois de um estudo detalhado da
linguagem, Menken conclui: “A melhor explicação para a forma peculiar da cita­
ção em Jo 19,36 parece ser que, aqui, elementos de SI 34,21 combinam-se com
elementos dos textos do Pentateuco”.121 Além disso, cordeiro e salmista perseguido
adaptam-se à teologia joanina.

11' Tem-se recorrido à forma de Ex 12,10 na LXX do Códice Vaticano, onde se lê syntripsetai, futuro médio
singular com sentido passivo: “ Um osso dele não será fraturado” . Contudo, o “ dele” (ap ’ autou) não é o
mesmo que o autou joanino, e o verbo ainda não é o mesmo que o futuro passivo singular (syntribesetai).
De fato, Merken (“ Old” , p. 2104) talvez esteja correto ao argumentar que o syntripsetai do Códice Vaticano
não é nada mais que outro modo de escrever a forma plural da LXX mais amplamente atestada do verbo
em Ex 12,10, syntripsete, pois nessa época ai e e tinham a mesma pronúncia.
118 Jo 19,24 citou SI 22,19; aparentemente, Jo 19,28-29 citou SI 22,16 e SI 69,22.
119 É citado em lPd 2,3; 3,10-12 (ver também 1 Clemente 22,1-7; Barnabé 9,2).
120 Bultmann, Schnackenburg e outros acham que a fonte joanina citava o Salmo, mas o evangelista viu
uma referência ao cordeiro pascal. Como não creio ser possível reconstruir essa fonte, prefiro ver a
possibilidade de João ter usado um desses textos bíblicos antes do outro.
121 “ Old” , p. 2106. Na verdade, nas páginas 2114-2116, ele observa de modo interessante que, já em Jubileus
49,13 (a versão etiópica, não a latina), encontramos ecos das passagens do Pentateuco pertinentes ao
cordeiro combinadas com SI 34,21: “ Não há nenhuma fratura de osso a partir do meio dele [o cordeiro
pascal], nem um único, porque nem um único osso dos filhos de Israel será fraturado” .

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§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

A SEGUNDA CITAÇÃO (Jo 19,37) é: “ Eles vão ver [opsontai eis] quem eles
perfuraram [<ekkentein]” (Zc 12,10).122 Como em Jo 19,36, há uma diversidade de
vocabulário entre a descrição no episódio (Jo 19,34a: nyssein, “ trespassar” ) e a
citação em Jo 19,37, e no episódio não está dito que nenhum grupo vê Jesus de­
pois do golpe de lança. Mais uma vez, então, a citação não dá origem ao episódio,
mas foi acrescentada para revelar a profundidade teológica de um relato existente.
Embora Zc 12,10 seja claramente citado, a redação dada por João à citação não
concorda literalmente (ver itálicos) nem com o TM (“Eles vão olhar para mim a
quem eles perfuraram” ),123124nem com a LX X padrão, Códice Vaticano (“Eles vão
olhar para [epiblepsontai] mim porque dançaram de modo insultante,,).m Com
muita frequência, com referência à parusia e às vezes em combinação com Dn
7,13, a forma grega da passagem de Zc 12,10 citada em João com seus opsontai
e ekkentein encontra-se em Ap 1,7 e fez eco em Barnabé 7,9 e Justino, Apologia
I,lii,12 (cf. Diálogo lxiv,7). Como, na maior parte, essas obras certamente não são
dependentes de João, não podemos pensar que João simplesmente mudou a leitura
da LX X padrão, adaptando-a ao TM. Ao contrário, ele e as outras testemunhas
citaram outra forma grega primitiva de Zc 12,10.125 João cita apenas uma linha de

122 Isso é introduzido por: “ E por sua vez \palin], uma outra Escritura diz” . Lavergne (“Coup” , p. 13-14)
recorre a um sentido mais antigo de palin como “atrás, para trás" e argumenta que se deve traduzir:
“ E, em sentido inverso, outra Escritura diz” . A primeira passagem bíblica proibia que fosse feito dano,
enquanto a segunda fala sobre ele ser perfurado. Há um contraste no conteúdo, mesmo sem a tradução
de Lavergne. É o único uso joanino de heteros, “ uma outra” ; seu equivalente aparece como fórmula com
variantes na literatura rabínica primitiva para juntar citações aplicáveis, por exemplo, Midraxe Mekilta
(Beshallah 2,84) a respeito deEx 14,4. Um eis (“em” ) segue “ver” , talvez com a alusão de penetrar para o
sentido da ferida provocada pela lança. Como parte de sua tendência a entender as preposições joaninas
literalmente, De la Potterie (“ Volgeranno” , p. 113) traduz “no interior de” .
123 No contexto, o “ mim” no hebraico é Iahweh, leitura tão difícil que muitos consideram o texto deturpado.
Cerca de quarenta e cinco mss. hebraicos (cotejados por Kennicott e de Rossi) têm “ele” , mas isso talvez
represente a tentativa de melhoramento por parte de copistas. 0 verbo opsontai (de horan), empregado
por João, não é empregado no grego da LXX para traduzir o hiphil de nbt usado pelo TM.
124 É provável que a LXX tenha se enganado na leitura do hebraico dqr (“perfurar”) como rqd (“ pular”). A
derivação da raiz de “ insultar” reconstituída por meio do latim inclui dançar ou saltar derrisoriamente
ao redor de alguém.
123 0 Códice de Viena (L), dos séculos V e VI, preserva uma leitura grega mais próxima de João e do TM:
“Eles olharão para mim a quem perfuraram” . 0 falecido P. W. Skehan, eminente especialista na LXX,
escreveu-me em correspondência pessoal: “ Não tenho nenhuma dúvida de que a interpretação do Códice
de Viena é pré-hexaplar (antes de Orígenes) e proto-Luciano [ver NJBC 68,69: uma revisão palestinense
da LXX do século II ou I a.C. que a aproxima do hebraico], e que fundamenta João” . Ainda é preciso
pressupor que o epiblepsontai (“olhar para” ) desta interpretação foi mudado para o opsontai (“ver”) das
interpretações cristãs e, por essa razão, Menken (“Textual” , p. 504) prefere supor que, fundamentando
João, há uma tradução grega do hebraico que era independente da LXX.

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Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

um longo versículo de Zacarias. As palavras de Zc 12,10 que precedem o verso


citado falam de Deus que derrama um espírito de compaixão sobre a casa de Davi e
os habitantes de Jerusalém. As palavras em Zc 12,10 que se seguem à linha citada
relatam o lamento sobre ele como primogênito amado. Como essas outras palavras
do versículo seriam significativas para João? Relatei, no início desta subseção que
trata das citações bíblicas, que convencionalmente considera-se essa segunda cita­
ção joanina (v. 37) referente ao lado de Jesus trespassado com uma lança (v. 34a),
mas não ao fluxo de sangue e água (v. 34b), nem ao testemunho daquele que viu (v.
35). Mas por que, então, não foram as citações da Escritura colocadas depois dos
vv. 33-34a, em vez de depois dos vv. 34b-35, aos quais eles não tinham nenhuma
referência? Por que “essas coisas”, que introduz a citação no v. 36, não se refere
ao que aconteceu nos versículos imediatamente anteriores, em especial ao surpre­
endente fluxo de sangue e água do lado de Jesus? Além disso, a citação no v. 37
fala de “ver quem eles perfuraram” e o único “ato de ver” que tem lugar depois que
o lado de Jesus é trespassado ocorre no v. 35, com referência ao discípulo amado
que dá testemunho do fluxo de sangue e água. É muito mais lógico, então, pensar
que a citação no v. 36 (osso não quebrado) refere-se aos vv. 32-33, e a citação no
v. 37 (ver quem eles perfuraram) refere-se aos vv. 34-35.

Nessa trama, Zc 12,10 fazia integralmente parte da perspectiva joanina


(assim também Hemelsoet, Venetz). As palavras iniciais de Zc 12,10, onde Deus
derrama um espírito de compaixão em ligação com a casa de Davi, relacionam-se à
água (= Espírito) que sai do lado de Jesus (v. 34b). O ato de ver o que foi perfurado
em Zc 12,10 por um sujeito plural (“eles” ) é realizado pelo único soldado do v.
34a que, tendo visto que Jesus já estava morto, trespassou o lado de Jesus e assim
provocou o fluxo e pelo discípulo amado que viu tudo isso.126 O lamento sobre o que
foi perfurado como “primogênito amado” mencionado no final de Zc 12,10 poderia
se relacionar com o v. 35b, onde ekeinos “fala o que é verdade a fim de que vós
também acrediteis”. Acreditar o quê? Jo 20,31 preenche o objeto: “para que creiais
que Jesus é o Messias, o Filho de Deus”. Ap 1,7 associa Zc 12,10 à vinda nas nuvens
do céu, tema não raro associado ao Filho do Homem vindo para julgar. Entretanto,
na escatologia percebida de João, o julgamento já acontece, pois o perfurado que

126 Menken (“Textual” , p. 504) argumenta que, apesar da redação de Zc 12,10, onde parece que “ eles”
que olham são os mesmos que “ eles” que perfuraram, há base na interpretação judaica para não igualar
os dois grupos. Em João, ao cumprir o pedido dos judeus e a ordem de Pilatos, o soldado romano faz a
perfuração, enquanto ele e o discípulo amado são os que veem.

378
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

pende da cruz é o Filho do Homem que foi elevado (Jo 3,14; 8,28; 12,32-34). Além
disso, como Jo 3,18-21 deixa claro, há sempre um aspecto duplo, positivo e negativo,
no julgamento constituído por ver e encontrar Jesus; e isso divide também os que
encontram o que foi perfurado. Os que aceitam o testemunho do discípulo amado
veem e creem, e assim recebem o Espírito que mana do Jesus gloriíicado, o Filho de
Deus. Mas, para “os judeus” que provocaram a perfuração com a exigência de que
as pernas de Jesus fossem quebradas, aquele que foi perfurado é, no pensamento
joanino, sinal de julgamento punitivo.127

Reações dos presentes segundo o EvPd

Neste comentário sobre as NPs canônicas, meu interesse no EvPd é ver


como linhas de desenvolvimento visíveis nos (ou mesmo antes dos) Evangelhos ne-
otestamentários continuaram no século II. 0 ato de quebrar as pernas relatado em
Jo 19,31-33 aparece em EvPd 4,14 em outro vocabulário antes da morte de Jesus
e está combinado com a imagem lucana de um dos malfeitores crucificados que é
solidário com Jesus. Na narrativa combinada, a malevolência judaica é intensifi­
cada pela malevolência implícita no pedido de Jo 19,31. No EvPd, não há nada a
respeito do ferimento da lança no lado de Jesus,128 nem do fluxo de sangue e água.

Em Marcos/Mateus, as reações das pessoas vêm depois dos fenômenos exte­


riores que manifestam a reação divina à morte do Filho (véu do santuário rasgado,
terra sacudida), de modo que o povo responde aos fenômenos e também à morte.
0 EvPd mistura os fenômenos e as reações. Em EvPd 6,21, é compreensível que o
tremor da terra, que tem lugar ao ser colocado sobre ela o corpo de Jesus, produza
medo entre os judeus. (Observemos que, agora, o poder que produz o tremor já
não é simplesmente a intervenção divina, como foi subentendido pela voz passiva
em Mt 27,51, mas está no corpo de Jesus morto, do mesmo modo que, em João,
o corpo morto é a fonte de um fluxo vivificante.) Entre os Evangelhos canônicos,

121 Ver BGJ, v. 2, p. 954-955; de la Potterie, “Volgeranno” , p. 116. Menken (“Textual” , p. 511) reconhece
que existe uma diferença no ato de ver o Jesus perfurado por crentes e descrentes, mas, estranhamente
(p. 505, notas 43,44), ele afirma que João não diz que “os judeus” ou os soldados romanos olharam para
o Jesus perfurado. Creio ser uma distinção sem sentido porque, na verdade, João também não diz que a
testemunha (o discípulo amado) olhou para o Jesus perfurado. O julgamento toca os que são as dramatis
personae da cena toda.
128 Em EvPd 6,21 (que partilha com Jo 20,25 uma referência a cravos), só são indicados ferimentos nas
mãos.

379
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

o medo é uma reação à morte de Jesus só em Mt 27,54, onde ele também segue
uma referência ao tremor de terra. Em Mateus, foram os soldados romanos que
“temeram excessivamente” ; no EvPd, como a crucifixão é feita pelos judeus, estes
são o sujeito de “ um grande medo”.

Um fenômeno mencionado pelos sinóticos antes da morte de Jesus foi a es­


curidão sobre a terra inteira. Mais dramaticamente ainda, EvPd 5,15-18 descreve
esse acontecimento também antes da morte, mas só o EvPd especifica que o fim da
escuridão aconteceu depois da morte de Jesus (EvPd 6,22, seguindo EvPd 5,19):
“ Então o sol brilhou e descobriu-se ser a nona hora”. Isso fez os judeus regozijarem-
-se e dar a José o corpo de Jesus para sepultamento (EvPd 6,23). Assim, no EvPd,
os fenômenos extraordinários produzem medo e também regozijo.

Mais reações de pessoas encontram-se em EvPd 7,25-8,29. Ao examiná-


-las, é preciso lembrar que elas acontecem depois do sepultamento de Jesus, não
só depois de sua morte, como nos Evangelhos canônicos. Em sequência, o EvPd
descreve quatro grupos: a) “os judeus e os anciãos e os sacerdotes”, em EvPd 7,25;
b) Pedro e seus companheiros, em EvPd 7,26-27; c) “os escribas e fariseus e an­
ciãos”, em EvPd 8,28a, continuado por EvPd 8,29-30; d) “todo o povo”, em EvPd
8,28b. Como a) e d) batem em si mesmos ou no peito, são eles relacionados? Como
conciliar o fato de que os anciãos entre os judeus e os sacerdotes em a) demonstram
arrependimento, enquanto os anciãos entre os escribas em c) não demonstram?
Parte da confusão origina-se do fato de, nesses versículos, o EvPd fundir reações à
morte de Jesus (como nos sinóticos) e uma narrativa de como as autoridades judaicas
conseguiram soldados de Pilatos para vigiar o lugar do sepultamento de Jesus (como
em Mt 27,62ss). Contudo, EvPd 7 ,25-8,29 apresenta uma interessante visão da
atitude do autor para com os judeus que (deixando os romanos completamente fora
da execução) ele descreve como responsáveis pela crucificação e morte de Jesus.
Tem-se a impressão de que, de modo geral, o EvPd imagina dois grupos judaicos,
um não arrependido e o outro arrependido. Ao descrever “escribas e fariseus e anci­
ãos” não arrependidos (EvPd 8,28a) que falarão com Pilatos a respeito do sepulcro
de Jesus (EvPd 8,29ss), o EvPd aproxima-se do espírito de João, onde “judeus”
malévolos pedem que as pernas sejam quebradas, e no tema se aproxima ainda
mais de Mateus, que em Mt 27,62ss traz “os chefes dos sacerdotes e fariseus” que
acabarão pagando as pessoas para mentir, abordam Pilatos a respeito do sepulcro
de Jesus — nos dois casos, a intenção é impedir a ressurreição. Os “escribas e

380
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

fariseus e anciãos” do EvPd temem porque ouviram a reação do povo a Jesus (EvPd
8,28-29); isso faz eco ao início da Paixão em Mc 14,1-2; Mt 26,3-5; e Lc 22,1-2,
onde os chefes dos sacerdotes e escribas ou anciãos buscam agarrar e matar Jesus
furtivamente, para não haver perturbação entre o povo, pois, como Lucas explica,
“eles temiam o povo”. Quanto a judeus arrependidos, tem-se a impressão de que
o EvPd diferencia entre “os judeus e os anciãos e os sacerdotes”, que batem em
si mesmos em EvPd 7,25, e “todo o povo”, que bate no peito em EvPd 8,28b. Os
primeiros o fazem porque, pelos pecados, tornaram inevitáveis o julgamento colérico
de Deus e o fim de Jerusalém, e assim fizeram mal a si mesmos. Os últimos o fazem,
depois de murmurar contra as autoridades, porque os grandes sinais mostraram-lhes
como Jesus era justo. Ao fazer essa diferenciação, o EvPd aproxima-se da dupla
imagem lucana de reações a Jesus antes da crucificação e depois de sua morte,
como se vê nas palavras em itálico no que se segue. Segundo Lc 23,27-32, quando
Jesus foi levado para fora para ser crucificado com dois malfeitores,129 havia uma
grande aglomeração do povo e das filhas de Jerusalém que estavam batendo em si
mesmas e lamentando, mas Jesus os advertiu da destruição apocalíptica que estava
para vir. Depois da morte de Jesus em Lc 23,48, “todas as multidões” bateram no
peito.130 Em suas imagens dos líderes judeus e o povo não arrependidos, e de vários
tipos de arrependidos, o EvPd continuou descrições encontradas nos Evangelhos
canônicos, mas escureceu o pano de fundo hostil.

Uma novidade intrigante entre as reações do EvPd (EvPd 7,26-27) é a de


Pedro e seus companheiros (hetairoi, aparentemente os Doze, com base em EvPd
14,59) depois da morte e sepultamento, e antes da ressurreição.131 Tendo deixado
os Doze e Pedro no Getsêmani ou no pátio do sumo sacerdote, os Evangelhos canô­
nicos só retomam a história deles na Páscoa, depois da descoberta do túmulo vazio.
Ao mencioná-los, o EvPd preserva a convenção evangélica canônica de não tê-los
presentes na crucificação; na verdade, explica sua ausência relatando que eles se

129 Observemos que, em EvPd 7,25, os judeus maltrataram a si mesmos.


130 Ver acima, sob “ Reação das multidões (Lc 23,48)” , variantes textuais em Lc 23,48 que estão muito
próximas do que se encontra no EvPd. Vaganay (Evangile, p. 269-270) examina a relação entre essas
variantes e o EvPd, e opta por uma fonte comum, enquanto Hamack argumenta que as variantes dependem
do EvPd.
131 Que Pedro relata essa reação como “eu” e inclui os companheiros como “nós” é inaudito nos Evangelhos
canônicos. Vaganay (Evangile, p. 271) cita isso como sinal claro de que o EvPd pertence ao gênero de
Evangelhos apócrifos pseudepígrafos. Observemos também no EvPd as emoções dramáticas nessa reação
“feridos em espírito” (cf. 2Mc 3,16); “lamentando e chorando” (Apêndice marcano 16,10).

381
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

esconderam porque os judeus os procuravam como malfeitores. Nenhum Evange­


lho canônico relata uma tentativa de prender os seguidores de Jesus juntamente
com ele, e o mais próximo que se chega do EvPd nesse ponto está em Jo 20,19,
onde os discípulos fecham as portas do lugar “por medo dos judeus”. A acusação
específica contra os discípulos no EvPd é que eles desejavam incendiar o santu­
ário do Templo. Mais perto disso está At 6,12-14, onde Estêvão é trazido perante
o sinédrio acusado de dizer que Jesus de Nazaré destruiría esse lugar (santo). O
EvPd descreve Pedro e os companheiros tristes e feridos em espírito, lamentando
e chorando, o que é um toque dramático compreensível. O mais significativo é
mostrá-los jejuando “noite e dia, até o sábado”. Nos três sinóticos (Mc 2,20 par.),
Jesus diz a respeito dos discípulos que, quando o noivo lhes fosse tirado, eles je-
juariam, e no tempo do EvPd havia certo costume de jejuar em relação à ocasião
da morte de Jesus.132 A frase “noite e dia” parece indicar um padrão judaico de o
dia começar ao anoitecer. “Até o sábado” é confuso porque, em EvPd 2,5, Jesus é
crucificado na véspera do sábado. E ssa curiosidade ajuda a reforçar uma imagem
do autor do EvPd como especializado em drama popular, mas fraco em detalhes
quanto à vida judaica no século I.

Análise

Como de costume, há duas questões básicas a serem examinadas: historici-


dade e composição, com a última aplicável principalmente a João.

A . A historicidade dos que reagiram e de suas reações

Depois da morte de Jesus, os Evangelhos canônicos descrevem três grupos


que estão presentes e reagem por ações, palavras ou observações: 1) Soldado(s)
e/ou centurião romanos (todos); 2) Multidões e/ou autoridades judaicas (Lucas,
João, EvPd); 3) Seguidores de Jesus (todos, EvPd). Ao avaliar a historicidade
desses indivíduos e suas reações, somos atormentados por um grande problema.
Com raras exceções, o que é descrito não é implausível, de modo que se pode falar

132 Tertuliano, De ieiunio 2,2; CC 2,1258; Constituições Apostólicas v,18 (Funk, org., p. 289); Didascalia
Apostolorum siríaca xxi,13 (Connolly, org., p. 180, 183). Em Evangelho dos Hebreus 7 (HSNTA, v. 1,
p. 165; ed. rev., v. 1, p. 178), os irmãos do Senhor jejuam de pão, depois da Última Ceia até Jesus lhes
aparecer.

382
§ 44 Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

de verossimilhança geral. Contudo, o que é descrito adapta-se rigorosamente aos


interesses dos evangelistas; de outro modo, eles não o incluiriam. A conformidade
com a teologia e a organização dramática de um Evangelho não comprova a criação
pelo evangelista, mas torna extremamente difícil provar a historicidade.

1. Soldados romanos. Que eles estavam presentes é certo; e se era desejada


a verificação da morte de Jesus (Marcos, João), eles a teriam realizado. A questão
da historicidade torna-se mais complicada quando o enfoque é no papel de um
soldado (João) ou oficial (centurião sinótico) em especial. Como em palavras ou
ações (diferentemente do significado teológico funcional), o soldado joanino não tem
nenhuma semelhança exterior com o centurião marcano, não há razão suficiente
para pensar que João recorreu a Marcos. Razoavelmente, é possível afirmar que a
tradição antiga falava de um soldado depois da morte de Jesus e que Marcos e João
representam diferentes evoluções dessa tradição. Por exemplo, era do conhecimento
comum que, entre o grupo de quatro encarregados de realizar a execução, um único
soldado ficaria no comando e, de maneira independente, em lugares diferentes a
narração poderia ter dramatizado o papel desse soldado em relação à morte de
Jesus. À guisa de contraste com os judeus hostis, uma tendência natural tinha de
apresentar os romanos como imparciais ou favoráveis.

Não há um meio de estabelecer a historicidade daquilo que o centurião diz


de verdade nos sinóticos, pois certamente não é por acaso que o que ele afirma se
adapta bem aos propósitos teológicos de cada um dos evangelistas. Em Marcos,
uma voz celeste identifica Jesus como Filho de Deus no início do Evangelho (Mc
1,11); é apropriado, então, que no final, depois da morte de Jesus, um ser humano
(gentio) reconheça que: “ Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus” (Mc
15,39). Mateus, que fez magos gentios reconhecerem Jesus no início do Evangelho,
faz, por inclusão, gentios (o centurião e os que estão com ele) reconhecerem Jesus
no final do Evangelho, reconhecimento como “ Filho de Deus”, título que ele usa
na NP com mais frequência que qualquer outro evangelista (Mt 26,63; 27,40.43).
No c o m e n t á r io , procurei mostrar que a forma lucana da confissão pelo centurião -
“ Certamente este homem era justo” (Lc 23,47) - foi uma adaptação da forma mar-
cana da confissão e, assim, nem independente nem original. Servia aos propósitos
teológicos lucanos fazer estranhos reconhecerem que Jesus era justo, na verdade,
o justo , antes e também depois da morte de Jesus na cruz.

383
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

A historicidade do relato joanino é complicada por Jo 19,35, que ressalta


a presença e a veracidade de uma testemunha ocular, aparentemente o discípulo
amado. Muitos biblistas duvidam da historicidade dessa figura, mas afirmo ser plau­
sível que, por trás da comunidade joanina e sua tradição, houvesse um discípulo de
Jesus, não uma figura importante por padrões exteriores (por exemplo, não um dos
Doze), mas alguém com um papel subsequente na vida joanina que mostrou que
ele era especialmente amado por Jesus. Mesmo se houvesse uma testemunha ocular,
é histórico tudo o que João atribui ao soldado, já que o enfoque do testemunho do
discípulo amado seria de significado teológico? 0 soldado não quebrar as pernas
de Jesus e, em vez disso, trespassar-lhe o lado com uma lança para se certificar
de que ele estava morto não é implausível. Contudo, a dificuldade de confirmar as
informações joaninas é exemplificada pelo fato de nenhuma outra obra cristã escrita
nos primeiros cem anos depois da morte de Jesus mencionar a ferida do lado.133
Mais complicada ainda é a historicidade do fluxo de sangue e água produzido pelo
golpe de lança. Barrett, Dodd e outros consideram improvável a simples invenção;
e é possível defender a historicidade desse fenômeno físico peculiar134 que, origi­
nalmente (em nível pré-evangélico), não fazia mais que confirmar a morte de Jesus.
Naturalmente, como insisti no COMENTÁRIO, o evangelista não apresenta o fluxo dessa
maneira; para ele, é sinal revelador celeste de grande significado teológico, que
cumpre uma profecia de Jesus.

2. Multidões e/ou autoridades judaicas. Era de se esperar a presença de


espectadores em uma crucificação. Histórias de perseguição injusta e martírio
tendem a pressupor tal grupo, por exemplo, 3 Macabeus 5,24 (que com certeza não
é histórico) descreve multidões reunidas para o espetáculo da execução de judeus.
A probabilidade da presença de sacerdotes e outras autoridades (pressuposta pelo
EvPd e provavelmente por João [cf. Jo 19,31, com 19,20-21]) é complicada por
perguntas irrespondíveis relacionadas à festa. Não tinham os sacerdotes deveres
no Templo, isto é, abater os cordeiros, já que era véspera do dia em que a refeição

133 Lc 24,39 menciona mãos e pés; EvPd 6,21 menciona as mãos.


134 A situação médica foi examinada em § 42, a n á l is e C. De um ponto de vista, corpos mortos não sangram
porque o coração cessa de bombear sangue através das artérias. Contudo, no período logo depois da
morte, especialmente quando a gravidade favorece um fluxo (por exemplo, um corpo mantido ereto) o
sangue pode escoar de uma abertura feita nas veias ou aurículas do coração, pois em vasos incólumes
ele não coagulou. 0 que é descrito como água misturada ao sangue pode ter sido algum tipo de fluido
corporal acumulado. Poucos médicos inclinam-se a dizer que o que João descreve é impossível.

384
§ 44 .Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

da Páscoa seria consumida ao anoitecer? Não se tornariam ritualmente impuros ao


ficarem perto de mortos crucificados? Quanto à historicidade das reações atribuídas
a eles, não é improvável que alguns dos seus compatriotas judeus fossem hostis a
Jesus na morte, como foram na vida. Contudo, o papel atribuído a “os judeus” em Jo
19,31 é marcadamente hostil e seu pedido a Pilatos no fim da cena da crucificação
é paralelo inclusivo ao pedido que lhe fazem no início (Jo 19,21). Lc 23,48 descreve
o arrependimento das multidões judaicas e historicamente não é improvável que
alguns dos espectadores locais pensassem que Jesus foi tratado injustamente pelos
romanos ou pelas autoridades judaicas ou por ambos. Contudo, a descrição lucana
das multidões (como componente em um padrão de três reações) depois da morte
de Jesus encaixa-se perfeitamente em sua descrição em geral mais compreensiva
do populacho de Jerusalém durante a NP, e constitui uma inclusão artística com a
menção da compreensiva aglomeração do povo (como componente em um padrão
de três reações) antes da morte de Jesus.

3. Seguidores de Jesus. Só João (Jo 19,25) coloca-os perto da cruz de Jesus


antes de sua morte e, em § 41 ( a n á l is e A), adverti que não era comum os romanos
permitirem a parentes e simpatizantes essa proximidade. Quanto à presença a
certa distância depois da morte (sinóticos), em alguns períodos de intenso medo
romano de conspiração ou de revoltas recorrentes, era imprudente demonstrar sim­
patia pelos condenados.135 Mas, como mencionei em § 31 (A e B), não há registro
de revoltas na Judeia durante o governo de Pilatos; ele não era um governador
ferozmente cruel (com a devida vênia a Fílon); nem existe prova verdadeira de
que havia planos para prender os seguidores de Jesus, como se ele fosse o líder de
um movimento perigoso. Consequentemente, a priori, não há nada implausível na
imagem sinótica de mulheres seguidoras (galileias, talvez nem mesmo conhecidas
em Jerusalém) observando de longe, sem expressar, de modo algum, sua atitude
para com a crucificação.136 (No comentário, expressei discordância da tese de que
o evangelista considerou a presença delas um ato de bravura.)

135 Tácito (Anais vi,19) e Suetônio (Tibério 61) indicam a hipersensibilidade sob Tibério, depois da queda
de Sejano em 31 d.C. Ver também Fílon, In Flaccum 9; #72; Josefo, Guerra II,xiii,3; #253 a respeito de
períodos mais tardios.
136 Em Lucas, homens conhecidos de Jesus também estão de pé à distância; em João, o discípulo amado
é testemunha ocular. Mais uma vez, isso não é implausível (assim Gerhardsson, “Mark” , p. 222); e ne­
nhum dos dois evangelistas menciona a presença de membros dos Doze, cuja fuga e ausência têm toda
probabilidade de ser histórica.

385
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

O que complica a questão da historicidade é a presença interligada dessas


mulheres nas três cenas da crucificação, do sepultamento e do túmulo vazio (Quadro
8, § 41). A mais sólida confirmação evangélica é que, na manhã de Páscoa, Maria
Madalena e algumas outras mulheres encontraram o túmulo de Jesus. Apesar
de significativa discordância acadêmica, a prova evangélica e a opinião erudita
favorecem a historicidade do túmulo vazio e, na verdade, de Madalena como a
primeira testemunha do fato de o corpo de Jesus não estar mais ali.137 Há muito foi
observado que, se houvesse invenção ficcional envolvida (com propósitos apologéti-
cos para apoiar a realidade da ressurreição), da descoberta do túmulo por homens,
não mulheres, o resultado seria mais provável, considerando-se as limitações na
validade do testemunho feminino.138 Entretanto, ironicamente, a historicidade das
mulheres galileias no túmulo na manhã de Páscoa é usada para lançar dúvidas
sobre a presença delas no Gólgota na sexta-feira, quer depois da morte na cruz quer
no sepultamento. Os evangelistas ou seus antepassados simplesmente adivinharam
que, se as mulheres encontraram o túmulo na Páscoa, elas deveríam ter visto onde
Jesus foi enterrado na sexta-feira e que, se as mulheres estavam ali para o enterro
do corpo, elas deveríam ter observado a morte? (A tendência primitiva de relacio­
nar morte, sepultamento e ressurreição está atestada em ICor 15,3-4.) Contudo,
“adivinhar” pode ser pejorativamente tendencioso, pois a inter-relação pressuposta
nessa pergunta revela respeitável lógica: para encontrar o túmulo de Jesus, os
cristãos tinham de saber onde ele foi enterrado e não há nenhum relato de que as
mulheres que encontraram o túmulo tiveram de perguntar a outros onde ele ficava.

De qualquer modo, julgo a inter-relação mais complicada. Como afirmei


acima (§ 41), parece que, em Jo 19,25-27, João combina sua cena envolvendo a mãe
de Jesus e o discípulo amado com outra tradição de três galileias na crucificação,
e desse modo atesta indiretamente a antiguidade da última. Sua forma e ordem

13‘ A descoberta do túmulo vazio por Madalena (todos os Evangelhos; EvPd) é uma questão diferente da
questão de ser ela a primeira pessoa a ver o Jesus ressuscitado (Mateus, João, Mc 16,9). A mistura dos
dois talvez seja responsável por certa ambiguidade a respeito de haver ou não outras mulheres com ela
quando descobriu o túmulo. E provável que, na lembrança mais antiga, só ela visse o Senhor ressuscitado
(João, Mc 16,9); mas ela e outras mulheres foram ao túmulo vazio, de modo que, por simplificação em Mt
28,9-10, Jesus lhes aparece. Em toda essa investigação da tradição mais antiga, refiro-me simplesmente
a encontrar o túmulo vazio, não à narrativa de aparições angelicais no túmulo, na qual é feita a revelação
de que Jesus ressuscitou e que, assim, explica por que o túmulo está vazio. Ver NJBC 81,124.
138 Josefo, Ant. IV,viii,15; #219; Mixná Ros Hassana 1,8; TalBab Sebuot 30a. Ver Gerhardsson, “ Mark” , p.
218.

386
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

dos nomes das mulheres (a mãe de Jesus e a irmã de sua mãe, Maria de Clopas,
e Maria Madalena) não parecem ter sido tomadas por empréstimo da enumeração
marcana (Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago Menor e de Joset e Salomé).
Uma explicação plausível é que havia uma tradição pré-evangélica a respeito de
mulheres galileias que observaram a crucificação de longe (João mudou-as para
perto da cruz por causa da combinação que ele faz com sua cena da mãe e do
discípulo amado com quem Jesus fala). De acordo com o padrão narrativo de três,
estava arraigada uma referência a três, das quais foram citados os nomes de duas:
Maria Madalena e outra Maria.139 Inevitavelmente, a presença de três mulheres na
tradição da crucificação influenciou a narrativa do encontro do túmulo vazio por
Maria Madalena e outras, de modo que as outras presentes na cena da manhã de
Páscoa começaram a ser identificadas de maneira harmoniosa com as mulheres
na crucificação — mais uma vez uma suposição não ilógica. Em § 47, vou explicar
por que acho que a especificação das mulheres no sepultamento (ausente de João)
é uma derivação regressiva da tradição expandida da descoberta do túmulo vazio
pelas mulheres.

B. A composição dos relatos sinóticos ejoanino

Em termos da composição da cena SINÓTICA, preciso apenas resumir o que já


foi exposto em vários lugares do COMENTÁRIO. A meu ver, Mateus e Lucas baseiam-
-se claramente em Marcos. Mateus acrescentou persuasão à confissão romana de
Jesus como Filho de Deus, fazendo-a vir dos outros guardas além do centurião.
Lucas expandiu as duas reações marcanas para três, a fim de unir os três grupos
que reagem a Jesus a caminho do lugar de execução (Lc 23,26-31). Em cada con­
junto de três, há um indivíduo (Simão, centurião), uma aglomeração ou multidão e
um grupo de mulheres (hierosolimitas, galileias). 0 arranjo de Marcos não é sem
talento artístico: um centurião gentio está de pé perto, em frente a Jesus, enquanto
as seguidoras galileias observam de longe. A reação positiva em Mc 15,39 é colo­
cada nos lábios de um gentio cuja confissão de Jesus como Filho de Deus reverte a
negação pelo sumo sacerdote judaico no julgamento (Mc 14,61) e, perto do fim do
Evangelho, apresenta o reconhecimento humano daquilo que a voz celeste proclamou

139 Na medida em que as mulheres foram incluídas em cada Evangelho, o nome da terceira foi especificado
de várias maneiras: Salomé (Marcos), mãe dos filhos de Zebedeu (Mateus), Joana (ver Lc 24,10) e irmã
da mãe de Jesus (João), o que provocou incerteza por haver quatro candidatas diferentes.

387
Q uarto *to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. Ésepultado ali perto

no batismo, quando o Evangelho começou (Mc 1,11). O papel das mulheres em Mc


15,40-41 é passivo e faz a transição para a cena seguinte (§ 46).140

O relato de J oão precisa de mais discussão porque, no COMENTÁRIO, abstive-


-me de abordar a maioria dos problemas de composição. Haenchen (John, v. 2,
p. 202) afirma que, aqui, João serve-se de uma tradição diferente da de Marcos,
contudo, apontei muitos paralelos funcionais. A meu ver, essa cena é curta demais
para permitir um julgamento quanto a Marcos e João representarem duas formações
totalmente separadas ou duas evoluções independentes do mesmo pequeno núcleo
pré-evangélico (Michaels). O que considero probabilidade extremamente imprová­
vel é que, aqui, João só conhecesse Marcos e tenha a ele recorrido criativamente.

Quanto às questões de fonte, contribuição do evangelista e redação, como


de costume, não há nenhum acordo erudito. Quero exemplificar os problemas
apresentando a tese de Bultmann com minhas observações parentéticas baseadas
no estudo realizado no c o m e n t á r io . Bultmann afirma que Jo 19,31-34a.36-37 che­
garam ao evangelista moldados pela comunidade e, comparada aos sinóticos, essa é
uma formação relativamente tardia concentrada no cumprimento da Escritura. (Por
causa de nítidas diferenças de vocabulário entre as citações bíblicas nos vv. 36-37
e nos episódios nos vv. 32-34a, afirmei que os primeiros não deram origem aos
últimos e foram acrescentados aos episódios depois que eles já estavam formados.)
Bultmann propôs que Jo 19,34b (fluxo de sangue e água) e Jo 19,35 (testemunho é
verdadeiro) foram acrescentados ao Evangelho completo do evangelista pelo Redator
Eclesiástico141 como referência a sacramentos, uma das preocupações característi­
cas da teologia do Redator. (Afirmei que a possível significância sacramental do
sangue e água é secundária; o principal sentido está relacionado com Jo 7,38-39,
isto é, o fluxo da água viva do Espírito de um Jesus glorificado na morte, e assim
está em perfeita harmonia com o simbolismo encontrado no corpo do Evangelho.)
Bultmann aplica as citações bíblicas em Jo 19,36-37 aos vv. 32-34a, mas não aos
vv. 32-33, inseridos mais tarde. (Afirmei que a citação bíblica em Jo 19,36 refere-
-se claramente aos vv. 32-33 e a citação em Jo 19,37 de Zc 12,10 só faz realmente

140 Assim Matera (Kingship, p. 50-51), que fala desses versículos como criação marcana. Creio ser mais
prudente falar da formação marcana de uma tradição mais antiga a respeito das mulheres, como expliquei
acima, sob historicidade.
141 Se falamos simplesmente de um redator (deixando de lado a atitude que Bultmann atribui ao Redator
Eclesiástico), esta teoria é antiga. Como Belser antes dele, Haensler (“Zu Jo” ) afirma que isso foi acres­
centado ao Evangelho na lista de Pápias dos presbíteros (HE III,xxxix,4.7).

388
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes

sentido se for referente a todo o conjunto dos vv. 34-35. De modo geral, então,
tomo o partido de Venetz, “Zeuge”, e outros que julgam ser Jo 19,34b-35 obra do
evangelista, não do redator.)

Reconhecendo que a descoberta de etapas na formação de Jo 19,31-37 está


longe de ser incontestável, nossos indícios apontam para Jo 19,31-34 como tradi­
ção narrativa que chegou até o evangelista.142 Durante sua inclusão no Evangelho,
ele a reescreveu e acrescentou o comentário parentético de Jo 19,35, bem como
as citações bíblicas de Jo 19,36-37, a fim de apresentar perspectivas teológicas
adicionais. Prefiro falar de tradição pré-joanina, em vez de reconstruir uma fonte
com exatidão. As etapas pré-evangélicas da tradição joanina e também o Evangelho
foram moldados na comunidade joanina e refletem uma continuidade com novos
entendimentos baseados em entendimentos mais primitivos. Portanto, sou cético
quando dizem existir uma diferença de sentido entre a suposta fonte e o Evangelho.
Se, como no caso da citação bíblica de Jo 19,36, duas imagens simbólicas diferentes
podem ter sido combinadas, fazemos mais justiça ao estado de nosso conhecimento
para justificar as duas interpretações no nível evangélico. É por essa razão que,
no COMENTÁRIO, não fiz nenhuma parte de minha interpretação depender do que o
nível pré-evangélico significava.

(A bibliografia para este episódio encontra-se em § 37, Partes XII e XIII.)

W2 Ao examinar a historicidade, mencionei ser possível que essa tradição pré-evangélica contivesse o ato
de quebrar as pernas, uma perfuração por lança e o fluxo de sangue e água como sinal de morte.

389
Sumário do quarto ato, cena dois

CENA DOIS: Jesu s é sepultado (Mc 15,42-47; Mt 27,57-66; Lc 23,50-56; Jo 19,38-42)


§ 45. Bibliografia da seção: O sepultamento de Jesu s (§§ 46-48)
Parte I: Bibliografia geral a respeito do sepultamento de Jesu s (§§ 46-47)
Parte II: A guarda no sepulcro em Mt 27,62-66 (§ 48)
§ 46. O sepultamento de Jesu s, primeira parte: O pedido do corpo por José
(Mc 15,42-45; Mt 27,57-58; Lc 23,50-52; Jo 19,38a)
C omentário

• Atitudes romanas em relação aos corpos dos crucificados


• Atitudes judaicas em relação aos corpos dos crucificados
• O pedido para o sepultamento segundo Mc 15,42-45
• O pedido para o sepultamento segundo Mt 27,57-58
• O pedido para o sepultamento segundo Lc 23,50-52
• Pedindo o sepultamento segundo Jo 19,38a
• O pedido para o sepultamento segundo o EvPd e o crescimento das lendas de José
A nálise

A. Estrutura interna dos relatos do sepultamento


B. Relação externa com os relatos da crucificação e ressurreição
C. Tradição pré-evangélica do sepultamento
§ 47. O sepultamento de Jesu s, segunda parte: Colocação do corpo no túmulo
(Mc 15,46-47; Mt 27,59-61; Lc 23,53-56a; Jo 19,38b-42)
C omentário

• Sepultamento de J esu s segundo Mc 15,46-47


• Sepultamento de J esu s segundo Mt 27,59-61
• Sepultamento de J esus segundo Lc 2 3 ,5 3 -5 6 a
• Sepultamento de J esus segundo J o 19 ,3 8 b -42

A nálise

A. Preparação e sepultamento do corpo


B. Presença e atividade de outras dramatis personae além de José
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

C. A igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém


§ 48. O sepultamento de Jesu s, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
(Mt 27,62-66; Lc 23,56b)
C omentário

• O pedido feito a Pilatos (Mt 27,62-64)


• Pilatos concede o pedido (Mt 27,65-66)
• Conclusão da história da guarda na narrativa da ressurreição (Mt 28,2-4.11-15)
A nálise

A. Estrutura da narrativa mateana do sepultamento e origens da história da guarda


no sepulcro
B. Historicidade da narrativa mateana da guarda no sepulcro
§ 45. Bibliografia da seção para a
cena dois do quarto ato:
0 sepultamento de Jesus (§§ 4 6 -48 )

A Parte I trata do sepultamento em geral (§§ 4 6 - 4 7 ) , enquanto a Parte II


concentra-se na cena mateana especial dos guardas no sepulcro (§ 4 8 ). Para escritos
a respeito do sepultamento e da igreja do Santo Sepulcro, ver, acima, BIBLIOGRAFIA

se c c io n a l § 37, Parte II.

Parte I: Bibliografia geral a respeito do sepultamento de Jesus (§§ 46-47)

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393
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395
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Parte II: A guarda no sepulcro em Mt 27,62-66 (§ 48)

(ver também a bibliografia de APÊNDICE I a respeito do EvPd)

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§ 4$. Bibliografia da seção para a cena dois do quarto ato: 0 sepultam m to de Jesus

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p. 415-429 (sobre Mt 28,2-4).

397
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus,
primeira parte:
O pedido do corpo por José
(Mc 15,42-45; Mt 27,57-58; Lc 23,50-52;
Jo 19,38a)

Tradução

M c 15,42-45:42E, sendo já o entardecer, como era dia de preparação, isto


é, o dia antes do sábado, 43José de Arimateia tendo vindo (um respeitado membro
do conselho que estava também ele próprio esperando o Reino de Deus), tendo
tomado coragem, veio diante de Pilatos e solicitou o corpo de Jesus. 44M a s Pila-
tos ficou espantado de que ele já tivesse morrido; e tendo chamado o centurião,
interrogou-o se ele estava morto havia algum tempo. 45E tendo vindo a saber do
centurião, ele concedeu o cadáver a José.
M t 27,57-58: S7Mas, sendo o entardecer, veio um homem rico de Arimateia
cujo nome era José, que tinha também ele próprio sido discípulo de Jesus. 58Esse
homem, tendo vindo diante de Pilatos, solicitou o corpo de Jesus. Então Pilatos
ordenou que (ele) fosse entregue.
Lc 2 3 ,5 0 -5 2 :50E vede um homem chamado José, sendo membro do conse­
lho, homem bom e justo — 5lele não estava de acordo com a decisão e o modo de
agir deles — de Arimateia, uma cidade dos judeus, que estava esperando o Reino
de Deus. 52Esse homem, tendo vindo diante de Pilatos, solicitou o corpo de Jesus.
Jo 19,38a: 38aMas, depois dessas coisas, José de Arimateia, sendo discípulo
de Jesus mas secreto por medo dos judeus, pediu a Pilatos se podia retirar o corpo
de Jesus e Pilatos (o) permitiu.
EvPd 2 ,3 -5 :3M a s José, o amigo de Pilatos e do Senhor, tinha estado de pé ali;
e sabendo que estavam prestes a crucificá-lo, ele veio diante de Pilatos e solicitou

399
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

o corpo do Senhor para sepultamento. 4E Pilatos, tendo mandado recado para He-
rodes, solicitou seu corpo. 5E Herodes disse: "Irm ão Pilatos, mesmo se ninguém o
tivesse pedido, nós o teríamos sepultado, já que na verdade o sábado está raiando.
Pois na lei está escrito: 'O sol não deve se pôr sobre alguém executado'".
ScE ele entregou-o []esus] ao povo antes do primeiro dia de sua festa dos
Pães sem fermento.
EvPd 6,23: E os judeus regozijaram-se e deram seu corpo a José para que ele
pudesse sepultá-lo, pois ele era alguém que tinha visto quantas coisas boas ele fez.

Comentário

O estudo do sepultamento de Jesus será dividido em três seções. A primeira


seção (§ 46) concentra-se no pedido pelo corpo feito por José a Pilatos. O exame
desse pedido exigirá um estudo das atitudes romanas e judaicas em relação ao se­
pultamento dos crucificados e um entendimento dos motivos de José de Arimateia.
A segunda seção (§ 47) tratará da colocação do corpo de Jesus no túmulo, enquanto
algumas pessoas que conheciam Jesus observam o sepultamento (as mulheres) e
outras tomam parte nele (Nicodemos). Aqui, haverá reflexão sobre os costumes
do sepultamento judaico que distinguem o sepultamento honroso do desonroso. A
terceira seção (§ 48), que constitui um epílogo e chega até o relato da ressurreição,
será dedicada à narrativa mateana da guarda colocada no sepulcro.

Em tudo isso, a clara e unânime apresentação evangélica é que Jesus recebeu


sepultamento honroso em um lugar que podia ser lembrado. Seu sepultamento não
foi o tipo de sepultamento comum, no qual os cadáveres ficavam em desordem;1
nem foi ele sepultado e depois sepultado de novo, de modo que as mulheres foram
ao túmulo errado na Páscoa e foi por isso que o encontraram vazio.2 Essas duas

1 Precisamos tomar o cuidado de reconhecer limitações em nosso conhecimento de práticas de sepultamento


no tempo em que Jesus viveu. Mesmo antes da recente sensibilidade quanto à limitada aplicabilidade
da Mixná ao tempo de Jesus e, portanto, a respeito de regras mixnaicas para sepultar os corpos dos con­
denados, Büchler (“Enterrement” , p. 74-75) reconheceu que as referências a sepultamento em Josefo
indicavam, no século I, uma situação diferente da descrita por informações mais tardias.
2 Seguindo as pegadas de G. Baldensperger (Le tombeau vide [Etudes d’histoire et de philosophie reli-
gieuses, Univ. de Strasbourg, p. 30], Paris, F. Alcan, 1935). Kennard (“ Burial” , p. 233) faz o túmulo
de José distinto do túmulo em que as mulheres viram Jesus ser colocado e faz de José o que voltou a
sepultar Jesus, sem o conhecimento das mulheres. A resposta a esses voos da imaginação faz parte das
seções do “túmulo vazio” de livros sobre a ressurreição. Ver P. De Haes, La résurrection de Jésus dans
1’apologétique des cinquante dernières années, Analecta Gregoriana 59, Roma, Univ. Gregoriana, 1953,
esp. p. 215-233; Craig, Assessing, p. 163-196. Um tipo diferente de duplo sepultamento é defendido por

400
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

últimas sugestões, típicas de tentativas racionalistas para refutar a realidade da


ressurreição, não encontram apoio no texto evangélico, nem na tradição cristã pri­
mitiva.3 Passagens como Rm 6,4 e Cl 2,12 tratam o sepultamento de Jesus como
base aceita para conclusões teológicas, e a tradição pré-paulina (originária dos anos
30?) em ICor 15,3-5 fixa o sepultamento de Jesus em uma cadeia estabelecida:
Cristo morreu, foi sepultado, ressuscitou e apareceu. Como essa memória cristã
de um sepultamento honroso se adapta à que conhecemos de atitudes romanas e
judaicas em relação aos corpos dos executados por crucificação? (Marcos não dá
nenhuma indicação de que houvesse alguma coisa extraordinária no fato de Jesus
ser sepultado e, por isso, é de se presumir que são pertinentes informações quanto
a atitudes comuns em relação a essa questão.) Examinemos essa questão antes de
tratarmos dos relatos evangélicos do pedido feito a Pilatos por José de Arimateia.

Atitudes romanas em relação aos corpos dos crucificados

Ao examinarmos leis ou costumes romanos que lidam com o sepultamento


de criminosos crucificados, encontramos alguma orientação em DJ 48,24,4 que dá
as opiniões clementes de Ulpiano e de Júlio Paulo, do período de c. 200 d.C. Os
corpos dos que sofrem a pena capital não devem ser recusados aos parentes (Ulpia­
no), nem àqueles que os buscam para sepultamento (Paulo). Ulpiano remonta sua
atitude a Augusto no Livro 10 de Vita Sua, mas reconhece que a generosa entrega
de corpos pode ter de ser recusada se a condenação foi por traição (maiestas). A
exceção verificou-se alguns anos antes de Ulpiano no tratamento dado aos mártires
de Lião, relatado em Eusébio (HE V,i,61-62): Os corpos dos cristãos crucificados
foram expostos durante seis dias e, depois, queimados para que as cinzas pudessem
ser espalhadas no Ródano. Os outros discípulos cristãos reclamaram: “ Não pudemos
enterrar os corpos na terra [...] nem dinheiro nem orações os comoveram, pois de

Bulst (“Novae” ), a fim de fazer a prova evangélica adaptar-se à imagem do Santo Sudário; sua teoria é
vigorosamente criticada por Blinzler (“Zur Auslegung”).
3 A primeira passagem cristã que a meu ver pode dar algum apoio a qualquer dessas hipóteses é a estranha
inscrição do arcebispo Hipácio de Éfeso, do ano de 536. Com referência à auto-humilhaçâo de Jesus, a
inscrição observa que ele não sé se humilhou em uma cruz, mas depois da morte, “ como indica a tradição
do evangelista, ele foi lançado para fora [aporiptein] nu e sem sepultamento; então na propriedade de
José foi ele sepultado, depositado no túmulo desse homem” . Bakhuizen van der Brink (“ Paradosis” , p.
217) sugere que a origem dessa “tradição” está na parábola de Mc 12,8 a respeito do filho do dono da
vinha; “ Agarrando-o, eles o mataram e o lançaram para fora [ekballein]'’.
4 Também T. Mommsen, Romisches, p. 987-990.

401
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

toda maneira possível eles montaram guarda, como se impedir o sepultamento lhes
desse grande vantagem”.

Se remontarmos a antes do século II, qual era a atitude romana no tempo


de Jesus para com os corpos dos criminosos crucificados? Apesar do que Ulpiano
nos diz a respeito de Augusto, ele nem sempre era tão clemente. Suetônio (Augusto
xiii,l-2) relata, com a óbvia desaprovação de percepção tardia do século II, que
Augusto recusou-se a permitir sepultamento decente para os corpos dos que lutaram
por Bruto: “ Esse assunto deve ser resolvido com os corvos”. Como Augusto consi­
derava Bruto traidor, o paralelo à pergunta do que aconteceria com os condenados
por traição (maiestas) é significativo. No reinado de terror que se seguiu à queda
de Sejano (31 d.C.), Tácito relata as ações de Tibério: “ Os sentenciados à morte
perdiam os bens e era proibido sepultá-los” (Anais VI,29). Além dessa vingança
imperial, Petrônio (Satyricon, p. 111-112) supõe ser normal a inclemência, pois
no tempo de Nero ele escreve a história de um soldado em Êfeso que negligenciou
o dever de impedir que os corpos de criminosos mortos fossem retirados da cruz.
Enquanto ele estava ausente à noite tendo um encontro amoroso com uma viúva,
os pais vieram furtivamente, desceram o corpo e o queimaram, o que fez o soldado
temer o mais severo castigo. Evidentemente, era quase proverbial que os que pen­
diam da cruz alimentassem os corvos com seus corpos (Horácio, Epístola I,xvi,48).

É difícil discernir a prática legal romana para uma província como a Judeia.
A lei citada acima (DJ) era juxta ordinem, isto é, lei consuetudinária em Roma
para lidar com cidadãos romanos. Decisões nas províncias para lidar com não
cidadãos eram quase sempre extra ordinem, de modo que um assunto como o fim
dado a corpos de crucificados teria sido deixado para o magistrado local. Antes do
tempo de Jesus, Cícero (In Verren II,v,45; #119) relata que na Sicília, muito mais
perto de Roma, um governador corrupto fazia os pais pagarem pela permissão para
sepultar os filhos. Fílon (In Flaccum x,83-84) nos conta que no Egito, na véspera
de um feriado romano, era costume “descer os que foram crucificados e entregar os
corpos aos parentes, porque se achava bom dar-lhes sepultamento e permitir-lhes
os ritos comuns”. Mas o prefeito Flaco (dentro de uma década da morte de Jesus)
“não deu nenhuma ordem para descer os que tinham morrido na cruz”, nem mesmo
na véspera de uma festa. Na verdade, ele crucificou outros, depois de maltratá-los
com o chicote. Ao olhar o quadro total, o que dizer da atitude provável de Pilatos
ao lidar com Jesus, que foi crucificado pela acusação de ser “o Rei dos Judeus” no

402
§ 46.0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

tempo de Tibério? Afirmei em § 31 B que Pilatos não era excessivamente brutal e,


como governador romano, não era provável que ele castigasse desnecessariamente
a família de um criminoso. Mas, em acusações de traição, os governadores romanos
ansiavam que o criminoso condenado não fosse considerado um herói a ser imitado.
E discutível se o caso de Jesus devia ou não ser considerado exemplo de maiestas
(§ 31 D); mas, se o foi, na verdade seria pequena a probabilidade de que o prefeito
da Judeia entregasse o corpo desse pretenso rei crucificado a seus seguidores para
sepultamento.5 Realmente, mesmo de acordo com Marcos (que não faz Pilatos
afirmar a inocência de Jesus, como fazem os outros evangelistas), Pilatos desconfia
que a acusação contra Jesus é por motivos diferentes dos declarados (Mc 15,10).
Contudo, na lógica da narrativa, tendo se comprometido com uma ação pública,
Pilatos teria de ficar apreensivo quanto à possível veneração de Jesus por seus
seguidores e quanto à severidade do imperador em assuntos relativos a maiestas.

Atitudes judaicas em relação aos corpos dos crucificados

Como vimos (§ 23 A), há sólidos indícios de que, na época de Jesus, a cru­


cificação incluía-se nas leis e costumes judaicos que controlavam o enforcamento
e, em especial, sob Dt 21,22-23: “ Quando alguém tiver cometido um crime de
pena capital e for executado e suspenso na árvore, o cadáver não ficará a noite
toda na árvore; mas deverás sepultá-lo no mesmo dia, pois o que foi suspenso é
maldição de Deus”. O conflito entre atitudes romanas e judaicas é expresso assim
por S. Lieberman: “A prática romana de privar criminosos executados do rito de
sepultamento e expor os cadáveres na cruz por muitos dias [...] horrorizava os
judeus”.6 Na Primeira Revolta Judaica, os idumeus jogavam fora os cadáveres sem
sepultamento. Ao comentar isso com repulsa, José declara: “ Os judeus são tão
cuidadosos a respeito de ritos funerais que mesmo os que são crucificados porque
foram condenados são descidos e sepultados antes do pôr do sol”.7

■’ Se o governador quisesse ser compassivo, seria mais provável ele dar o corpo à família do crucificado. É
interessante que nenhum Evangelho formula essa possibilidade, embora, decerto, só em João há membros
da família presentes na crucificação (Jo 19,25-27: a mãe de Jesus e a irmã dela).
6 “ Some” , v. 2, p. 517. Evidentemente, quando as autoridades se recusavam a entregar o corpo para se­
pultamento, os judeus agiam por conta própria e roubavam o corpo; o Semahot (‘Ebel Rabbati) rabínico
2,11 mais tardio proíbe isso.
' Guerra IV,v,2; #317. Essa prática aplicava-se até a suicidas e aos corpos dos inimigos (Guerra III,viii,5;
#377) e a todos os que fossem condenados pela lei judaica a serem executados (Ant. IV,viii,24; ##264-265).

403
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

Entretanto, a questão crucial no Judaísmo era o tipo de sepultamento. A


pessoa suspensa era maldita principalmente porque, com muita frequência na
prática legal judaica, esse castigo era conferido aos já executados de outra maneira,
por exemplo, por apedrejamento.8 No AT, vemos a tendência a recusar aos ímpios
o sepultamento honroso em um pedaço de terra ancestral (lR s 13,21-22). Até um
rei como Joaquim, apesar de sua posição, tendo sido condenado pelo Senhor por
iniquidade, fez com que Jeremias dissesse estas palavras a seu respeito (Jr 22,19):
“ Será sepultado como um jumento, arrastado e jogado lá fora, longe das portas de
Jerusalém” . Jr 26,23 refere-se a um profeta, condenado (injustamente) e morto pelo
rei, que foi jogado “na vala comum” (ver também 2Rs 23,6). 1 Henoc 98,13 exclui
das sepulturas preparadas os ímpios que se alegram com a morte dos justos e, em
Josefo (Ant. V,i,14; #44), Acar recebe ao cair da noite “o sepultamento ignominioso
apropriado aos condenados” (ver também Ant. IV,viii,24; #264). 0 relato da morte
de Judas em Mt 27,5-8 mostra que os judeus do tempo de Jesus9 pensavam em uma
vala comum para os desprezados, não em um túmulo familiar. Na época da Mixná
(.Sanhedrin 6,5), há uma referência a dois lugares de sepultamento que “eram man­
tidos preparados pelo tribunal, um para os que eram decapitados ou estrangulados
e o outro para os que eram apedrejados ou queimados”. Tosepta Sanhedrin 9,8
declara: “ Mesmo que o criminoso seja rei dos reis, ele não pode ser enterrado no
sepulcro de seus pais, mas apenas nos sepulcros preparados pelo tribunal”. (Houve
quem pensasse que a redação dessa passagem estava expressa de maneira polêmica
contra os cristãos.) Depois que a carne do morto se decompunha, os ossos podiam ser
reunidos e sepultados no sepulcro ancestral (Mixná Sanhedrin 6,6). (Obviamente,
a vala comum proporcionada pelo tribunal não é considerada uma sepultura ou
ossuário comum indistinguível, onde cadáveres podiam ser confundidos, pois os
ossos tinham de ser passíveis de recuperação.) Alguns aspectos da prática eram
certamente ideais ou refletiam uma situação pós-NT (ver nota 1); mas os ossos do
crucificado Yehohanan ben hgqwl, encontrados em um sepulcro do século I em Giv’at
ha-Mivtar em 1968 (§ 40, #3), estavam em um ossuário10 adjacente ao ossuário de

8 Ver o debate em Mixná Sanhedrin 6,4: “Todos os que eram apedrejados eram depois enforcados, segundo
o rabino Eliezer, mas os Sábios dizem: ‘Ninguém é enforcado, exceto o blasfemador e o idólatra’” .
9 Quer seja fato, quer seja lenda, está claro que a narrativa mateana tomou forma entre cristãos judeus da
Palestina.
10 A respeito de ossilegium, ver Meyers, “Secondary” ; Figueras, “Jewish” .

404
§ 46.0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

Simão, o construtor do Templo, de modo que o segundo sepultamento honroso do


crucificado não era prática tão tardia como se pensava outrora.

Como essa atitude de que criminosos deviam receber (a princípio) um sepul­


tamento indigno aplicava-se aos crucificados por gentios? Na Bíblia e na Mixná, há
uma pressuposição de que a pessoa condenada era punível com a morte sob a lei
judaica, que é a lei de Deus. Entretanto, em uma situação política onde a pena de
morte era imposta por gentios, o contrário podia ser verdade: um judeu inocente ou
nobre podia ser crucificado por uma coisa que não estava sob a lei de Deus, ou na
verdade por guardar a lei divina. Encontramos essa questão formulada em TalBab
Sanhedrin 47a-47b, onde Abaye se queixa: “ Compararias os que são mortos por
um governo [gentio] com os que são executados pelo Beth Din? Os primeiros, como
sua morte não está de acordo com a lei [judaica], obtêm o perdão; mas os segundos,
cuja morte foi justamente merecida, não são [assim] perdoados”. Essa distinção teve
de ser feita muito antes, ou não teria havido nenhuma tradição de sepultamento
honroso para os mártires macabeus.'1Assim, não descartamos a possibilidade de
um honroso primeiro sepultamento para alguém crucificado pelos romanos.

Qual foi a atitude judaica para com o Jesus crucificado? 0 desejo de tirar
seu corpo da cruz antes do pôr do sol está implícito no apelo de José a Pilatos, nos
sinóticos, e explícito em Jo 19,31; EvPd 2,5; 5,15. Contudo, a tendência seria dar a
Jesus um sepultamento honroso ou desonroso? Segundo Marcos/Mateus, o sinédrio
achou-o merecedor de morte pela acusação de blasfêmia e, segundo Josefo (Ant.
IV,viii,6; #202), o blasfemador era apedrejado, suspenso “e sepultado ignominio-
samente e na obscuridade”. Em Martírio de Policarpo 17,2, os judeus instigam
a oposição para que o corpo de Policarpo não seja entregue a seus adeptos para
sepultamento honroso. Por outro lado, Jesus foi executado pelos romanos, não por
blasfêmia, mas sob a acusação de ser o Rei dos Judeus. Teria essa sido considerada
morte não de acordo com a lei judaica e, assim, não necessariamente sujeitando o
crucificado a sepultamento desonroso?

Com esse pano de fundo, estamos agora prontos para procurar entender as
narrativas evangélicas do pedido de José a Pilatos.1

11 M. Hadas, The Third and Fourth Books of the Maccabees, New York, Harper, 1953, p. 104-113.

405
Q uarto ato • t
Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. sepultado ali perto

O pedido para o sepultamento segundo Mc 15,42-45

Durante toda a cena do sepultamento, Marcos é o relato fundamental entre


os sinóticos, pois não existe razão sólida para pensar que Mateus ou Lucas conhe­
ciam alguma coisa além daquilo que Marcos lhes forneceu. Nesta primeira seção,
também João está muito próximo da imagem marcana; e, se João é independente
de Marcos, essa semelhança nos faz pensar que, aqui, Marcos não se afastou muito
da tradição pré-evangélica comum. 0 exame cuidadoso e detalhado de Marcos,
então, parece poupar tempo no exame dos outros Evangelhos.

Indicação de tempo (Mc 15,42). Marcos dá duas indicações de tempo,


mais uma explicação da segunda. A primeira é: “sendo já o entardecer [o/raa]”.12
Precisamente que hora do dia está indicada? Segundo a última especificação de
tempo dada (Mc 15,34.37), Jesus gritou na nona hora (3 da tarde) e então expirou.
A lei judaica ordenava que o crucificado fosse descido e sepultado antes do pôr do
sol, que assinalava o início de outro dia. Então, pela fluência narrativa, a cena se
passa em algum ponto entre 3 da tarde e o pôr do sol. Por si só, opsia não transmite
informações precisas a respeito da relação com o início do dia seguinte.13 0 “já” e
o “como” marcanos seguintes são os únicos indícios de que José estava cônscio da
pressão temporal e deve ter se apressado. As ações prestes a serem descritas agora
(ir diante de Pilatos, que chamaria o centurião, comprar um pano de linho, descer o
corpo, amarrá-lo e pô-lo em um lugar de sepultamento) não levariam muito menos
de duas horas. Consequentemente, pela lógica, antes que por simples tradução, os
intérpretes pressupõem que Marcos tem em mente o fim da tarde, não antes de
4h30min. 0 que deve ser enfatizado é que opsia adapta-se a uma série de referên­
cias de tempo que Marcos nos faz em relação à morte de Jesus (Mc 15,1.25.33.34;
cedo, 3a, 6a, 9a horas), de modo que a intenção é mais sequência que precisão.14

12 Ginesthaí, no genitivo absoluto, como jeito de indicar o tempo que já “estava presente” é formulação que
Marcos usa nove vezes.
13 Exemplo de sua imprecisão encontra-se em Mt 14,15,23b, onde “ sendo o entardecer” precede e segue a
multiplicação dos pães, como se a ação não tivesse tomado tempo. Em passagens como Mt 14,15 e 20,8,
“entardecer” parece ser o fim da tarde, enquanto em Mt 16,2, parece que o sol já se pôs. Quanto ao uso
marcano, exemplos anteriores de opsia eram acompanhados de precisões que estabeleciam o tempo. Em
Mc 1,32, opsia foi aprimorado por: “depois do pôr do sol” ; em Mc 14,17, quando opsia chegou, Jesus e
os Doze vieram sentar-se para a ceia de Páscoa, refeição que só podia ser feita quando o dia seguinte
tivesse começado.
14 O “já ” (ede) de Mc 15,42, colocado antes de opsia, está relacionado com a indicação de tempo anterior
da 9* hora, embora indiretamente sugira urgência.

406
§ 46.0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: O pedido do corpo por José

Na verdade, se tivéssemos decidido começar o exame da NP com a Última Ceia,


a referência ao “entardecer” em Mc 14,17, que iniciou o relato da Última Ceia,
poderia formar uma inclusão com o “entardecer” aqui para marcar o início e o fim.

A segunda indicação marcana de tempo, “como era dia de preparação


[ paraskeue]", além de mostrar que ainda era sexta-feira e que o dia seguinte não
começara, torna mais inteligível por que Marcos se deu ao trabalho de nos contar
que já era o entardecer. Enquanto examinavaparaskeue em Jo 19,14 (§ 35), indiquei
que ele traduzia o hebraico ereò (“vigília, dia anterior” ), mas acrescentava o tom
de aprontar para um dia seguinte importante. A fim de explicar esse conceito para
seus leitores (gentios), Marcos acrescenta uma versão que é mais que tradução
literal, “ isto é, o dia antes do sábado”. Marcos usou o ho estin inicial (“isto é” )
oito vezes antes; e, em Mc 3,17; 5,41; 7,11.34; 15,22.34, assinalou a tradução de
palavras aramaicas em grego para inteligibilidade. É evidente, então, que Marcos
não julgava o grego paraskeue por si só suficientemente esclarecedor para os lei­
tores; ele o traduziu em relação ao sábado, pois mesmo os gentios sabiam que os
judeus consideravam o sábado santo e não trabalhavam nesse dia.15 (Na verdade,
se paraskeue era pré-marcano [adiante, sob “José e Pilatos (Lc 23,52)” ], Marcos
talvez o esclarecesse com frases explanatórias tanto antes [“sendo já o entardecer” ]
como depois.) Em § 44 (sob “ Reações dos presentes segundo João” ), ao tratar
do quase idêntico “como era dia de preparação”, achei improvável que um dos
dois evangelistas pensassem que a necessidade de tirar os crucificados da árvore
(cruz) ocorresse somente na véspera de um sábado (ou de um dia de festa). Mais
exatamente, sua mútua ênfase no sábado que estava próximo reflete a sensação
intensificada de ultraje judaico, porque um dia sagrado seria profanado,16e também
a maior possibilidade de que, para evitar contratempos, os romanos consentissem
na descida dos corpos. É digno de nota que EvPd 2,5 concorda que era o dia antes
(do amanhecer) do próximo sábado e “antes do primeiro dia de sua festa dos Pães
sem fermento” (isto é, semelhante a Jo 19,14, que o explica como o dia antes da

L’ É interessante que quando Josefo usa paraskeue (Ant. XVI,vi,2; #163) ele também explica-o como sendo
antes do sábado.
16 Nos tempos rabínicos mais tardios, a necessidade de respeitar o sábado em termos de sepultamento é
demonstrada pela lenda de que, por ocasião da morte do rabino Judá ha-Nasi na véspera do sábado, todos
os habitantes de Israel reuniram-se para prantear e, por providência divina, o dia foi milagrosamente
alongado até cada israelita conseguir chegar em casa e acender a luz do sábado (Midrash Rabbah sobre
Ecl 7,12; #1).

407
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

Páscoa), embora este versículo do EvPd cite a indicação de tempo do sábado em


relação ao sepultamento antes do pôr do sol.

A descrição marcana de José de Arimateia (Mc 15,43). O fato de


todos os Evangelhos mencionarem José de Arimateia aqui pela primeira vez, de
Arimateia (local não galileu)17 ser seu lugar de origem ou residência identificado,
e de José ser descrito como tendo “vindo” em cena depois da morte de Jesus, dei­
xa claro que nenhum dos evangelistas considera este homem um galileu seguidor
de Jesus, ou alguém que até agora tivesse estado envolvido na NP. Nesses dois
aspectos, ele difere dos Doze18 e das mulheres (e dos conhecidos dele em Lucas)
que observaram a morte de Jesus de longe. Talvez por causa disso, Marcos fornece
mais que as informações costumeiras a respeito dele, mas infelizmente em uma
sentença enrolada ao extremo.19

“ Um respeitado membro do conselho” (euschemon bouleutes) é o primeiro


item de informação. Os leitores gentios de Marcos entendiam isso: em sua região,
eles deviam ter um conselho (boule) de cidade ou vilarejo, e em inscrições que
homenageiam administradores públicos, euschemon ocorre com frequência.20 A

1‘ Mateus e o EvPd (por interpretação intuitiva da tradição e provavelmente não com base em informações
históricas confidenciais) nos contam que o túmulo perto do Gólgota, onde Jesus foi sepultado, era o
túmulo de José. Entretanto, como muitos judeus queriam ser sepultados na área de Jerusalém perto do
Templo, a localização em Jerusalém do túmulo de José não nos diz necessariamente que José morava
na área de Jerusalém. Lucas chama Arimateia de “ uma cidade dos judeus” (Lc 23,51), querendo dizer
que ela ficava na Judeia. Muitos a identificam com Ramataim-sofim, de ISm 1,1. Em seu Onomasticon,
Eusébio sugeriu Rempthis ou Rentis, 15 km a nordeste de Lida. (IMe 11,34 associa Lida e Ramataim
como distritos.) Contudo, W. F. Albright (Annual of the American Schools of Oriental Research 4, 1922-
1923, p. 112-123) rejeita a identificação com Rentis e propõe Ramalá. Outra sugestão é Beit Rimeh, 8
km a leste de Rentis e cerca de 20 km a noroeste de Betei. Nenhum desses lugares está na Galileia.
18 EvPd 6,23 e 7,26 realçam a diferença: José está presente no sepultamento, enquanto os Doze estão
escondidos.
19 Gnilka (Markus, v. 2, p. 331) aponta a gramática difícil, por exemplo, os verbos duplicados: “ tendo vindo
[erchesthai] [...] veio diante [eiserchesthaiprosj’. Embora Marcos queira dizer que José era originário de
Arimateia, é possível interpretar que ele veio de Arimateia para ir diante de Pilatos.
20 Usado só aqui em Marcos, euschemon significa “influente, honrado, ilustre” . Em At 13,50, os judeus
incitam os cidadãos “influentes” contra Paulo e Barnabé; em At 17,12, “ influentes” mulheres gregas e
também homens abraçam a fé em Jesus. Em ICor 7,35; 12,24 e no único exemplo da LXX (Pr 11,25), o
sentido é “ digno, honrado” . A tentativa de Schreiber (“ Bestattung” , p. 143, nota 4) de ligar a descrição
de José como euschemon às pessoas ricas que põem grandes somas no tesouro (Mc 12,41-44) e aos ricos
ímpios de Is 22,16 que escavam túmulos para si e “ moradas no rochedo” é implausível. Não há nenhuma
ligação de vocabulário, e Marcos não diz que ele é rico ou o dono do túmulo. A descrição marcana é
claramente positiva.

408
§ 46.0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: O pedido do corpo por José

impressão dada é que José era membro ilustre do conselho da cidade que gover­
nava Jerusalém. Usando synedrion (“sinédrio” ), Marcos refere-se duas vezes na
NP (Mc 14,55; 15,1) ao organismo respeitado de Jerusalém que condenou Jesus,
um organismo que consistia em “todos os chefes dos sacerdotes, e os anciãos, e
os escribas” (Mc 14,53). Como mostrei (§ 18, B2), no decorrer da história esse
organismo foi citado em grego com certa permutabilidade, como boule e também
como synedrion; e Josefo (Guerra II,xvii,l; #405) usa bouleutes para membros
do conselho associados às autoridades governantes de Jerusalém. Com toda a
probabilidade, então, Marcos queria que os leitores soubessem que José era mem­
bro ilustre do sinédrio,21 embora, antes, Marcos descresse todos os membros do
sinédrio como tendo procurado testemunho contra Jesus, a fim de executá-lo (Mc
14,55: “o sinédrio inteiro” ), como tendo-o julgado culpado, punível com a morte
(Mc 14,64), e como tendo-o entregado a Pilatos (Mc 15,1: “o sinédrio inteiro” ).
“ Todos” e “ inteiro” podem bem ser uma hipérbole marcana, mas seu uso cria uma
atitude entre os leitores quanto à oposição do sinédrio a Jesus. Assim, não há nada
no primeiro item de informação marcana a respeito de José para fazer os leitores
pensarem nele como seguidor ou partidário de Jesus.

“ Que estava também ele próprio esperando [prosdechesthai:22 procurando] o


Reino de Deus” é o segundo item de informação marcana a respeito de José. O “ele

21 Manifestamente, é desse jeito que Lucas (Lc 23,50-51) entendeu Marcos. Os que se opõem a essa con­
clusão perguntam por que, tendo empregado synedrion duas vezes, Marcos muda para bouleutes a fim
de descrever um membro do sinédrio. Além da maior inteligibilidade de boule para os leitores gregos
mencionados acima, é digno de nota que nenhum autor neotestamentário jamais use a denominação de
synedrion para descrever um membro do sinédrio, por exemplo, synedros ou synedriakos. Podería Marcos
na prática ter pensado em bouleutes como o termo comum para essa personagem? A sugestão de Winter
(“Marginal” , p. 244), segundo a qual José não era membro do grande sinédrio, mas do Beth Din, ou
tribunal inferior que tinha o dever de verificar que os executados recebessem sepultamento decente, é
duplamente defectivo. Não só o grego marcano não dá razão para pensar em um organismo distinto, mas
também não há nenhum indício sólido de que essa diversidade de organismos existia na Jerusalém do
tempo de Jesus (ver § 18, B2). Ainda mais irreíletida é a conclusão de Shea (“ Burial” , p. 89-90), para
quem José era membro do consistório ou gabinete do sumo sacerdote que consistia em sacerdotes e
leigos — conclusão que ignora nossa falta de conhecimento preciso quanto à formação de um sinédrio
no tempo de Jesus (§ 18, Cl).
22 Nunca encontrado em Mateus ou João, mas sete vezes em Lucas-Atos. E construção perifrástica que dá
força ao verbo. Schreiber (“Bestattung” , p. 143-145) interpreta prosdechesthai à luz de Mc 4,12: “ vendo,
mas não percebendo” , de modo que José passa a ser um legalista piedoso que ignora Ex 23,1.7, a respeito
de matar o inocente, mas preocupa-se com o corpo! Como alguém pode considerar essa descrição negativa
desafia a imaginação. Dado o eminente valor atribuído a “o Reino de Deus” em Marcos, os leitores com
certeza interpretaram “ aguardando o Reino de Deus” positivamente. Se Marcos estava descrevendo

409
Q uarto aro •Jesusé crucificadoemorrenoGólgota.í sepultadoaliperto

próprio” talvez signifique um elemento do inesperado, considerando as informações


anteriores. “ Também” indica estar ele sendo comparado a outros que estavam es­
perando o Reino. Antes da morte de Jesus, Marcos descreveu os que escarneceram
dele como rei (e assim não aguardavam o Reino), e depois da morte de Jesus, os
que eram de várias maneiras solidários a ele. Em Mc 15,39-41, imediatamente
antes, esses últimos consistiam no centurião que, embora antes não fosse seguidor
de Jesus, foi movido a confessá-lo e nas mulheres que o seguiram na Galileia. José
era “ também” desse tipo, mas Marcos não deixa claro se a semelhança é com as
mulheres (que já eram seguidoras) ou com o centurião (nesse momento, não um
seguidor, mas acessível a se tornar um). É o único uso marcano d e prosdechesthai
e, assim, temos de examinar outras expressões sinônimas relacionadas com o Reino
para entender o que os leitores de Marcos ou de Mateus entenderam por “esperando
o Reino de Deus”.

Certamente essa frase abrangia os discípulos de Jesus, especificamente os


Doze, já que a eles foi dado “o mistério do Reino de Deus” (Mc 4,10-11). Portanto,
desde os tempos primitivos até o século XX, muitos intérpretes entenderam que
Marcos afirmou ser José discípulo.23 Se foi isso que Marcos quis dizer, por que adotou
um meio tão indireto e obscuro para dizê-lo?24 Ele não demonstrou essa dissimulação
ao relatar o sepultamento de João Batista (Mc 6,29): “ Seus discípulos [...] vieram e
pegaram seu cadáver e o puseram em um túmulo”. Na verdade, “esperando o Reino
de Deus” descreve uma expectativa judaica comum, que abrangia muitos outros
além dos discípulos de Jesus. Em lQ Sb 5,21, há uma bênção para o Príncipe da

uma trama legalista, como afirma Schreiber, então Mateus e Lucas independentemente entenderam mal
Marcos ao considerarem José personagem positivo.
23 Mt 27,57 descreve José como discípulo de Jesus (e o mesmo faz Jo 19,38a). Mas Mateus interpreta o
sentido de Marcos ou muda-o? Lucas não viu esse sentido em Marcos.
24 Uma resposta propõe obscuridade deliberada da parte de Marcos porque ele achou difícil apresentar um
membro do sinédrio que ao mesmo tempo era discípulo de Jesus. Não é solução satisfatória, considerando
que Marcos podería ter evitado essa dificuldade não escrevendo que “ o sinédrio inteiro” condenou Jesus.
Shea (“ Burial” , p. 91), seguindo Blinzler (“Grablegung” , p. 69), argumenta que Marcos não chamou José
de discípulo porque limitou essa palavra aos que acompanharam Jesus em suas viagens. É uma apreciação
estreita demais daquilo que discipulado significava para Marcos. E. Best (Following Jesus: Discipleship
in the Gospel of Mark, JSNTSup 4, Sheffield Univ., 1981, p. 39) deixa claro que seguir Jesus, que é a
característica do discípulo em Marcos, envolve a imitação de Cristo; é primordialmente um seguimento
espiritual, não geográfico. “ Os discípulos estão em uma viagem, ou peregrinação, na qual viajam atrás
de Jesus buscando uma dedicação como a su a...” (p. 246). Se, para Marcos, José (que estava aguardando
o Reino de Deus) acreditava em Jesus, não há nada nessa descrição que impeça Marcos de descrevê-lo
como discípulo.

410
§ 4 6 .0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

Congregação: “que ele estabeleça o Reino de Seu povo [de Deus] para sempre”. O
kadish, oração judaica primitiva, pede: “ Que Ele estabeleça Seu Reino em vossos
dias”. Mesmo em Marcos (Mc 12,34) houve um escriba que perguntou a Jesus
sobre os mandamentos e admirou o conhecimento que Jesus tinha da lei, mas que
não o seguiu especificamente — foi dito que o escriba não estava “ longe do Reino
de Deus”. Assim, para Marcos, os que aguardavam o Reino incluíam discípulos e
piedosos observadores da lei que estavam fora do discipulado. Estava esta última
categoria fechada a José por ele ser um dos membros do sinédrio que “procuravam
depoimento contra Jesus a fim de lhe dar a morte” (Mc 14,55)? É digno de nota
que Marcos não diz, como faz Mt 26,59: “procuravam falso depoimento contra Je ­
sus. ..”. Para Marcos, está claro que os chefes dos sacerdotes e os escribas agiram
traiçoeiramente (Mc 14,1); e os chefes dos sacerdotes eram invejosos e maliciosos
(15,10.31). Mas havia outros membros do sinédrio que tiveram de ser guiados pelo
sumo sacerdote para dizer que Jesus era culpado de blasfêmia (Mc 14,63-64) e, por
isso, devia ser punido com a morte. Se o José marcano estava entre esses membros
do sinédrio, ele pode ser descrito como judeu piedoso que aguardava o Reino de
Deus no sentido de que procurava apenas obedecer aos mandamentos, como fazia
o escriba de Mc 12,28.25

Tudo o que Marcos relatou até aqui, então, mostra haver uma possibilidade
e até probabilidade de Marcos não estar descrevendo José como discípulo de Jesus.
Agora, temos de perguntar se essa interpretação é refutada pelas duas orações
seguintes em Mc 15,43, a saber, que ele precisou de coragem para vir diante de
Pilatos e que ele requisitou o corpo de Jesus. A lógica de minha resposta será mais
fácil de entender se eu tratar das duas orações em ordem inversa.

O fim de Mc 15,43 nos diz que José “veio diante de Pilatos e solicitou o
corpo de Jesus”.26 Pode-se entender um discípulo de Jesus solicitando seu corpo
para sepultamento; mas por que um piedoso membro do sinédrio, cumpridor da

25 Um dos que consentiram na execução de Estêvão foi Saulo de Tarso (At 8,1), claramente uma pessoa que
aguardava o Reino de Deus — não discípulo de Jesus, mas acessível a se tomar um, quando esclarecido.
A tese de que José era um piedoso membro do sinédrio que só a tradição cristã em desenvolvimento
julgava ter sido discípulo na época do sepultamento foi impressivamente apresentada por Masson,
“Ensevelissement” ; desenvolvi-a mais em meu artigo “ Burial” .
26 Os três sinóticos usam o verbo aitein (“ solicitar”) aqui, o mesmo verbo que Marcos usou em Mc 15,8
quando a multidão subiu a Pilatos e “começou a solicitar (que ele fizesse) como ele costumava fazer para
eles” , isto é, soltar na festa um prisioneiro que eles solicitassem.
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

lei, que não era discípulo de Jesus, ia querer sepultar o corpo de um blasfemador
crucificado? Era uma questão de obedecer à vontade divina, pois a lei deuteronô-
mica exigia que mesmo o corpo de um criminoso não fosse deixado na cruz depois
do pôr do sol, situação ainda mais obrigatória porque o dia seguinte era o sábado.
As vezes levanta-se a objeção de que, se a solicitação de José fosse concedida, o
contato com o cadáver o teria tornado impuro, situação que um judeu piedoso ia
querer evitar. Como veremos a seguir, é provável que ele não fizesse o sepultamento
sozinho e tivesse servos para ajudá-lo; mas não vamos recorrer a essa explicação,
pois a narrativa não menciona servos. Os que escreveram a lei deuteronômica o
fizeram sabendo que quem tocasse em um cadáver se tornaria impuro;27 o sepulta­
mento era claramente visto como bem necessário que eclipsava a impureza que o
acompanhava. Acima, ao tratar de atitudes judaicas, mostrei como o sepultamento
de cadáveres era levado a sério no tempo de Jesus. Exemplo mais tardio da Mixná
(.Nazir 7,1) debate se o próprio sumo sacerdote, ao encontrar um cadáver extraviado,
teria de sepultá-lo, mesmo à custa de ficar contaminado. Assim, a preocupação de
José para sepultar Jesus era perfeitamente consistente com a piedade judaica.28
Objeção escrupulosa foi formulada quanto a saber se essa piedade permitiria a José
sepultar um criminoso crucificado no dia da Páscoa. Entretanto, como vimos, Marcos
só menciona a Páscoa com referência à refeição de Jesus na noite de quinta-feira e,
então, aparentemente ignora o cenário da Páscoa durante o dia ao descrever toda a
atividade subsequente do sinédrio e da crucificação. Em fidelidade ao que Marcos
enfatiza, não há razão para incluir a Páscoa em nossa procura por inteligibilidade
na cena do sepultamento, do mesmo modo que não precisamos incluir essa datação
na cena do julgamento.

Por que, se José não era discípulo de Jesus, foi preciso coragem da parte dele
para se aproximar de Pilatos?29 0 Pilatos marcano, que percebera que Jesus lhe

27 Ver em Mixná Oholot um estudo detalhado sobre esse assunto.


28 Por que José não solicitou os corpos dos criminosos crucificados em cada lado de Jesus? Temos de pres­
supor que, nos sinóticos, o enfoque da narrativa ficou restrito a Jesus, ignorando os outros dois que já
não tinham importância teológica ou dramática. Craig (Assessing, p. 176) levanta a possibilidade de José
ser delegado do sinédrio e também discípulo secreto, e ter obtido os três corpos, mas ter dado destino
aos corpos dos criminosos em uma sepultura comum.
29 0 tolmesas de Mc 15,43 continuou difícil, mesmo que se pensasse que ele era discípulo ou, pelo menos,
favorável a Jesus, pois foi omitido por Mateus (para quem José era discípulo) e por Lucas (para quem José
não concordou com a decisão do sinédrio contra Jesus). Em um artigo que cultiva constante harmonização
e presume que todo detalhe é histórico, Shea (“Burial” , p. 95) explica que a coragem de José (discípulo

412
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

fora entregue pelo sinédrio por inveja/zelo (Mc 5,10: phthonos) compreensivelmente
teria desconfiado se um membro do sinédrio o perturbasse novamente. Ou José
tinha medo de, ao solicitar o corpo de Jesus, o confundirem com um simpatizante
da causa do “ Rei dos Judeus” e, assim, ser manchado por maiestas, crime levado
muito a sério aos olhos romanos? Cícero (Philipic i,9; #23) admitiu que, embora
originalmente desaprovasse a Lex Iulia de maiestate (§ 31, D3, acima), essa lei
devia ser escrupulosamente observada, por amor à paz. Suetônio (Tibério 58) nos
conta: “ Um pretor perguntou a Tibério se, em sua opinião, tribunais deviam ser
convocados para julgar casos de traição [maiestas]. Tibério respondeu que a lei
devia ser imposta e, na verdade, ele a impunha de maneira muitíssimo feroz”. Tácito
(Anais vi,8) menciona a suspeita absurda de Tibério a respeito de todos os que
tivessem sido cordiais com Sejano, que era culpado de traição. Se nesse contexto foi
preciso coragem para José vir diante de Pilatos solicitar o corpo de um criminoso
crucificado como pretenso rei, o que o salvaria era o fato de ser membro respeitado
do sinédrio que havia entregado esse criminoso para perseguição. Incidentalmente,
à luz de atitudes romanas explicadas no início desta seção, o relato marcano é muito
mais plausível que os relatos mateano e lucano. Não era provável que um prefeito
desse o corpo a um discípulo de Jesus (Mateus), nem a um membro do sinédrio
que tinha argumentado a favor da inocência de Jesus (Lucas).30

Por que, se não era discípulo de Jesus, José deu a Jesus um sepultamento dig­
no? E ssa objeção, a meu ver, baseia-se em premissa falsa. Pressupõe que o sindon,
ou “pano de linho” que Mc 15,46 descreve como sendo comprado e usado por José
para amarrar e sepultar Jesus, era material fino ou caro (assim Shea, “ Burial”, p.
96-97). Isso está longe de ser passível de verificação, considerando a ampla série dos

de Jesus) de vir “diante” de Pilatos foi revelada na ignorância da impureza ritual que Jo 18,29 (ele quer
dizer Jo 18,28b) diz que ocorrería se “ os judeus” entrassem no pretório. Já que Marcos nunca menciona
essa impureza, como os leitores marcanos pensariam nessa possibilidade? Quanto a João, ele não diz
que José veio diante de Pilatos.
30 Scholz (“José” , p. 82-84) recorre ao uso marcano de paradidonai (“entregar” ) e vê Pilatos dar Jesus a José
como ação positiva para um sepultamento digno — embora nenhum Evangelho use o verbo paradidonai
para essa ação! Ver o estudo no parágrafo relativo às notas 52-54, abaixo. O argumento de que Pilatos
podia simplesmente ter decidido ser indulgente para com José, o discípulo de Jesus, não se encaixa no
que Marcos nos conta a respeito do cínico comportamento de Pilatos no julgamento (Mc 15,10.15), nem
com o relato de Pilatos por Josefo, nem com os costumes romanos de crucificação. Quando se supõe que
José era discípulo de Jesus, o comportamento do Pilatos marcano só faz sentido se Pilatos não conhecia
esse fato oculto; mas então se elimina grande parte da ousadia que fez pressupor o discipulado em
primeiro lugar.

413
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

usos de sindon para vestes de diferentes formas, tamanho e usos. Na verdade, para
deixar claro que o discípulo José tratou o corpo de Jesus apropriadamente, Mateus
(Mt 27,59) tem de acrescentar que o “pano de linho” era “limpo” . Argumentarei
em § 47 que Marcos descreve o tipo mais modesto de sepultamento, marcado pela
pressa e sem comodidades.

A afirmação de que Marcos apresentou José como piedoso membro do


sinédrio, mas não como discípulo de Jesus, dá sentido a um detalhe que é o cal­
canhar de Aquiles da interpretação como discípulo. Nenhum Evangelho canônico
mostra colaboração entre José e as seguidoras de Jesus que são descritas como
presentes ao sepultamento, observando onde Jesus foi posto (Mc 15,47 e par.).31 A
falta de cooperação no sepultamento entre dois grupos de discípulos de Jesus não
é facilmente compreensível, em especial quando a rapidez era necessária. Por que
as mulheres não ajudaram José, se ele era um colega discípulo, em vez de planejar
voltar depois do sábado quando ele não estaria lá?32 A falta de cooperação entre as
seguidoras de Jesus e um membro do sinédrio responsável pela morte de Jesus cujo
único desejo era que o corpo do criminoso fosse sepultado é bastante compreensível.
Ele não teria permitido a proximidade delas precisamente porque eram seguidoras
de Jesus. EvPd 12,50 dramatiza o que Marcos subentende, especificando que (no
dia da morte) os judeus tinham impedido Maria Madalena de prestar no túmulo os
serviços costumeiros de sepultamento para os entes queridos.

Essa interpretação de Marcos também faz sentido de outras notícias a respeito


do sepultamento de Jesus que talvez representem a tradição antiga. (Com esforço,
tudo que se segue pode ser explicado de outro jeito, mas sua redação favorece o
sepultamento de Jesus por judeus que condenavam Jesus, não por seus discípulos.)

31 Este exame busca fazer sentido da narrativa presente onde José e as mulheres galileias aparecem na mesma
cena. Ao se argumentar que as mulheres estavam ausentes da narrativa pré-marcana de sepultamento (§
47 B, adiante), a tese de que José era discípulo apresenta um problema a respeito do motivo pelo qual
elas ficaram afastadas. Afirmo que havia uma tradição pré-evangélica segundo a qual três galileias (uma
delas era Maria Madalena) observaram de longe a morte de Jesus na cruz. Há uma tradição muito forte
de que Maria Madalena foi ao túmulo na manhã de Páscoa. Se o José que desceu o corpo de Jesus da
cruz era discípulo, por que ela não veio ao sepultamento e o ajudou quando a pressa era importante?
32 Shea (“Burial” , p. 105) explica a falta de cooperação sob alegação de que as mulheres não deviam falar
com homens em público, principalmente com estranhos (José é estranho porque ele era um discípulo
de Jesus da Judeia e elas eram discípulas galileias!), e os sexos eram segregados em funerais. Em que
passagem dos Evangelhos (exceto em Jo 4, onde Jesus fala a uma samaritana) há algum problema quanto
a mulheres falarem com homens? Quanto a costumes de funerais, João (Jo 20,14-15) não tem dificuldade
a respeito de Madalena dirigir-se no túmulo a um homem quando pensa ser ele um jardineiro.

414
§ 46.0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte.O pedido do corpo por José

Um sermão em At 13,27-29 declara: “ Os habitantes de Jerusalém e seus governantes


[...] solicitaram a Pilatos que ele fosse morto; e depois de realizarem tudo o que foi
escrito dele, eles o desceram do madeiro da cruz e o colocaram em um túmulo”.31*33
Jo 19,31 nos diz que os judeus pediram a Pilatos que mandasse quebrar as pernas
dos crucificados e retirá-los. Uma leitura diferente no fim de Jo 19,38 continua a
narrativa: “ Então, eles vieram e retiraram seu corpo” .34 Do mesmo modo, em EvPd
6,21, lemos: “E então eles [os judeus] arrancaram os cravos das mãos do Senhor
e o colocaram no chão”.35 Justino (Diálogo xcvii,l) assim exprime o sepultamento:
“Pois o Senhor também permaneceu na árvore até quase o entardecer [hespera] e
pelo entardecer eles o sepultaram” — em um capítulo onde o contexto sugere que
“eles” sejam os adversários judaicos de Jesus, em vez de seus discípulos. O plural
pode ser apenas uma generalização da lembrança de José que era um dentre “os
judeus”, isto é, não discípulo de Jesus nesse momento, mas piedoso membro do
sinédrio responsável por sentenciar Jesus e que agiu com fidelidade à lei deutero-
nômica de sepultar antes do pôr do sol os suspensos (crucificados) em uma árvore.
Passemos agora à forma como foi respondida a solicitação desse membro do sinédrio.

A reação de Pilatos à solicitação de José (Mc 15,44-45). Uma


alegação comum36 é que um redator acrescentou a Marcos esses versículos no
todo ou em parte, com propósitos apologéticos, isto é, para provar pelo duplo tes­
temunho de Pilatos e do centurião que Jesus estava verdadeiramente morto, de
modo que sua ressurreição não foi apenas a ressuscitação de um coma. O principal

31 R. H. Fuller (The Formation of the Resurrection Narratives, New York, Macmillan, 1971, p. 54-55)
reconhece a antiguidade da tradição, mas interpreta o sepultamento, de maneira hostil, como o “último
ato do crime” . Isso não está realmente claro nos Atos e pode ter estado ausente por completo da tradição
fundamental.
34 Para Boismard (Jean , p. 444), os judeus são o sujeito nessa fbrflra mais primitiva da tradição joanina.
Murphy-CPConnor (“Recension”) rejeita os judeus como sujeito, pois eles haviam de querer evitar a
impureza ritual. (Ele deixa de levar em conta a grave responsabilidade dos judeus piedosos para sepultar
esse corpo mesmo a custa da impureza.) Para ele, “eles” são os discípulos anônimos do Evangelho de
João (apesar de nenhum grupo anônimo ser mencionado no contexto), de modo que o papel de José no
sepultamento (Jo 19,38) é interpolação mais tardia. Se “eles” é original, a identificação de Boismard é
muito mais plausível.
35 Na continuação da narrativa (EvPd 6,23), eles “ dão seu corpo a José, para que ele possa sepultá-lo” —
aparentemente uma combinação de duas tradições. Atos de Pilatos 12 relata que, quando ouviram que
José havia pedido o corpo de Jesus, os judeus se tornaram tão hostis a ponto de prender José; é outro
desdobramento da descrição evangélica mais tardia de José como discípulo de Jesus ou solidário a ele.
36 Klostermann, Lohmeyer, Loisy etc.; ver BHST, p. 274.

415
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

argumento para essa sugestão é sinótico: o espanto de Pilatos e a confirmação da


morte pelo centurião não são relatados nem por Mateus nem por Lucas; por isso,
muitos concluem que esse relato deve ter estado ausente da forma de Marcos que
eles conheceram. Alguns (Gnilka, Schenk) sustentam que, mesmo se Mc 15,44
fosse redacional, Mc 15,45b (“ele concedeu o cadáver a José” ) teria de estar no
Marcos original, porque a solicitação de José a Pilatos do corpo de Jesus precisava
de uma resposta e também porque Mateus relata uma resposta. Se posso começar
com essa exceção proposta, não vejo nada que a recomende. A solicitação de José
só precisa de uma resposta implícita, que é tudo o que recebe em Lucas. Mateus
tem uma resposta por Pilatos (Mt 27,58b: “ Então Pilatos ordenou que [ele] fosse
entregue” ), mas sua redação difere totalmente da de Mc 15,45b, de modo que a
dependência mateana desse último é duvidosa.

Consideremos Mc 15,44-45 como uma unidade, então. Além da ausência


dessa unidade em Mateus e Lucas, que argumentos corroboram ou contestam a
tese de que essa passagem foi acrescentada a Marcos por um redator mais tardio?37
Primeiro, até que ponto são o estilo e o vocabulário característicos de Marcos? A
introdução no v. 44 do prefeito romano mencionado anteriormente, “ Mas Pilatos”
(ho de Pilatos), é exatamente a mesma introdução no v. 47 da Madalena mencionada
anteriormente: “ Mas Maria” (he de Maria). Quando confrontou Jesus pela primeira
vez, o Pilatos marcano ficou espantado (Mc 15,5: thaumazein) por Jesus se recusar
a lhe responder; aqui, no último confronto de Pilatos com o problema de Jesus, ele
fica novamente espantado.38 No grego popular desse período, o verbo muitas vezes
rege uma sentença com “que” (hoti), mas aqui, o mais clássico “se” (ei: condicional
ou integrante) é empregado em uma pergunta indireta (BDF 4541; ZAGNT, v. 2, p.
164). A redação das duas perguntas marcanas indiretas a respeito da morte de Jesus
nos vv. 44 e 45 chama a atenção dos comentaristas: “espantado que ele já tivesse
morrido [ei ede tethneken]” e “ perguntou se ele estava morto havia algum tempo [ei
palai apethanen]”. 0 primeiro com ede não apresenta nenhuma dificuldade como

37 Isto é, alguém que subsequentemente acrescentou os versículos a um Evangelho completo — o Evan­


gelho que já tinha sido usado por Mateus e Lucas — suficientemente cedo para o versículo aparecer em
todas as cópias conhecidas. Pessoalmente, duvido que haja indícios suficientes no resto de Marcos para
pressupor tal figura.
38 Para Gnilka (Markus, v. 2., p. 333), este verbo indica a presença da divindade. Contudo, além da crença
marcana geral de que Jesus é maravilhoso, não vejo nada na narrativa dos dois usos por Pilatos que
sugira espanto religioso. Por que a morte rápida faria Jesus mais divinamente misterioso?

416
§ 4 6 .0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

estilo marcano, mas em nenhuma outra passagem Marcos usa palaiA910*Contudo, na


tese do redator, o redator teria escrito as duas perguntas e presumivelmente teria
variado a redação da segunda para evitar repetição. A mesma explicação seria apli­
cável se Marcos escrevesse esses versículos. Ao descrever como Pilatos convoca o
centurião, o v. 44 u sa proskaleisthai (“chamar/procurar” usado mais por Marcos [9
vezes] que por Mateus e Lucas), kentyrion (somente Marcos, 3 vezes) e eperoton (25
vezes em Marcos, tanto quanto em Mateus e Lucas juntos); o último verbo foi usado
antes a respeito de Pilatos, em Mc 15,2.4, e do sumo sacerdote em Mc 14,60.61. No
v. 45, “ tendo vindo a saber” representa a única passagem do NT onde apo (“de” )
é usado com ginoskein. Em grego, “Ele concedeu o cadáver [edoresato to ptoma] a
José” tem paralelismo auditivo com “José [...] solicitou o corpo [etesato to som a\\
E ssa é a única vez que Marcos usa doresthai, mas este verbo “conceder” é muito
apropriado para um ato de clemência (ver 2Pd 1,3-4). A palavra mais precisa para
um corpo morto, ptoma, usada por Marcos para expressar os resultados da investi­
gação de Pilatos (Jesus é agora um cadáver)40 foi empregada antes por Marcos (Mc
6,29) para descrever o sepultamento do cadáver de João Batista. O paralelo entre
a sina do precursor e a de Jesus continua em Mc 15,46 (que sem dúvida é marca­
no), pois a expressão “colocou-o em um lugar de sepultamento/túmulo” é usada
a respeito dos dois sepultamentos. Um último argumento estilístico pertinente à
identidade do autor dos vv. 44-45 é que o particípio que inicia o versículo seguinte
(Mc 15,46: “ E tendo comprado” ) logicamente modifica José, mas o último sujeito
em Mc 15,45 foi Pilatos. Se Mc 15,44-45 foram acrescentados por um redator, de
modo que originalmente o v. 46 continuava o v. 43, o sujeito ali era José. Acho que
esse argumento com certeza não é convincente, pois a última palavra no v. 45 foi
“José” e, por isso, o início do v. 46 simplesmente retoma-a como sujeito. Ad sensum,
tal construção não é incomum. Além disso, Mc 15,46 não continua perfeitamente
a narrativa do v. 43 porque, nessa sequência, não é dito que Pilatos concedeu a
solicitação de José. De modo geral, então, Blinzler está correto (“ Grablegung”, p.
59) ao argumentar que não se pode decidir a questão redacional recorrendo a estilo
ou vocabulário. Há diversos toques que podem ser considerados não marcanos,

39 É textualmente dúbio em Mc 6,47, corroborado pelo Códice de Beza e P 13


10 Daube (“Annointing” , p. 195) argumenta que ptoma (há quem a considere grosseira) era particularmente
adequada para um corpo morto mutilado, uma desgraça aos olhos dos rabinos (Mixná Sanhedrin 9,3).
Craig (Assessing, p. 177) vê aqui a possibilidade de um latinismo que reflete a linguagem oficial da ordem
do governador: donavit cadaver.

417
Q uarto ato ■ Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

mas são ultrapassados em número por palavras e padrões distintamente marcanos.


De modo geral, parece mais lógico supor que Marcos escreveu a passagem do que
introduzir um redator que imitou Marcos tão acuradamente.

Outro argumento que entrou na discussão da autoria de Mc 15,44-45 envolve


a plausibilidade. Vou examinar a questão, mas francamente não entendo o que a
plausibilidade do conteúdo ou a falta dela nos diz quanto a quem escreveu essa
passagem. Quando muito, pode-se argumentar que, se a ação descrita nesses versí­
culos fosse considerada completamente implausível por esse motivo, Mateus e Lucas
poderíam independentemente ter decidido eliminá-la, apesar de a encontrarem em
Marcos. (De fato, poucos argumentam dessa maneira, pois a ação não é totalmente
implausível.) A primeira pergunta é se seria provável que Pilatos averiguasse a morte
de um criminoso. Pouco sabemos a respeito da prática de governadores romanos
relativa a essa questão,41 mas Jo 19,32-34 mostra que outro evangelista não achava
implausível um soldado romano verificar se Jesus estava morto. A plausibilidade
marcana tem de ser determinada em termos da questão prática: foi o tempo que
Jesus ficou suspenso na cruz tão curto que sua morte poderia ter deixado uma au­
toridade espantada? Em Mc 15,25, Jesus foi crucificado na terceira hora, de modo
que Jesus ficou na cruz cerca de seis horas antes de morrer (Mc 15,34.37). Sêneca
(.Epístola ci,10-13) pressupõe que o crucificado podia durar muito tempo e Orígenes
relata que não era raro o crucificado sobreviver a noite toda e o dia seguinte.42 Com
certeza, então, Jesus realmente morreu antes que a maioria (e segundo Jo 19,32-33,
antes que os companheiros crucificados). Esse fator pode ter deixado o governa­
dor espantado, fazendo-o desconfiar que uma trapaça estivesse sendo praticada.
Por outro lado, é plausível que Jesus tenha morrido tão rapidamente? De fato, os
crucificados duravam tempos diferentes, dependendo de seu estado de saúde,43 da
severidade da tortura pré-crucificação a eles infligida (por exemplo, flagelação) e
da forma como eram crucificados (cravos, apoios). Josefo (Vida 75; ##420-421) nos
fala de ver três de seus amigos suspensos na cruz; foi contar a Tito, que deu ordens

41 Mixná Yebamot 16,3 mostra como os rabinos eram cautelosos: mesmo que alguém fosse crucificado
publicamente, a comprovação da morte só podia ser apresentada depois de um intervalo para a alma
sair do corpo.
42 Assim Barbet (Doctor, p. 68, sem suprir a referência). Do mesmo modo, Barbet indica um texto árabe
que afirma que, em 1247, um homem crucificado resistiu até o segundo dia.
43 C. F. Nesbitt (Journal of Religion 22, 1942, p. 302-313) indica a prevalência da malária no Vale do
Jordão e em tomo de Tiberíades, e especula que Jesus não estava bem nem era forte!

418
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

para que fossem descidos; dois deles morreram durante o tratamento por médicos
e o terceiro sobreviveu. (Observemos como o oficial romano chefe responde a uma
solicitação quanto ao crucificado.) De modo geral, então, não era impossível que
Jesus morresse relativamente depressa e não há nada notoriamente improvável a
respeito da reação de Pilatos ao comunicado da morte de Jesus em Mc 15,44-45.

A luz dessa discussão, há uma única objeção importante à afirmação de


que Marcos escreveu Mc 15,44-45. Como Mateus e Lucas poderíam ser levados
independentemente a omitir a passagem? Ao tratar de Mt 14,51-52, outra passa­
gem de dois versículos que descreve a fuga nu do jovem que queria seguir Jesus,
vimos que essa omissão independente ocorria de vez em quando. Ao que parece,
os dois evangelistas acharam a cena uma descrição escandalosa demais de um
discípulo para ser mantida. Aqui, como foi mencionado, quase sempre se afirma
que a reação de Pilatos em Mc 15,44-45 foi incluída com propósitos apologéticos,
para mostrar que Jesus estava verdadeiramente morto.44 Pensaram os evangelistas
mais tardios que a apologética tinha tido um efeito contrário, chegando a pôr em
dúvida a verdade da morte de Jesus e mostrando que um governador romano du­
vidou dela? Que independentemente essa reação poderia ter feito com que os dois
evangelistas omitissem essa passagem de Marcos não é uma solução perfeita, mas,
a meu ver, é mais provável que a teoria de um redator imaginário (de outro modo
não bem comprovado) ter acrescentado os versículos a Marcos cedo o bastante
para aparecerem em todas as cópias conhecidas, mas depois de Mateus e Lucas
recorrerem ao Evangelho.

0 pedido para o sepultamento segundo M t 27,5 7-5 8

Este relato tem menos da metade da extensão do de Marcos e, a meu ver,


depende por completo dele. Consequentemente, temos de prestar atenção não só
ao que Mateus inclui e adapta, mas também ao que ele omite.

Indicação de tempo (Mt 27,57a). Ao observar como Mateus reduz toda


uma sentença marcana a uma frase, lembramos que Mc 15,42, em estranha ju s­
taposição, tinha duas indicações de tempo, mais uma explicação da segunda: “ E,

44 Propostas alternativas compreendem o antidocetismo (Klostermann) ou o embelezamento narrativo pura­


mente decorativo (Blinzler). O propósito anterior aplica-se, creio eu, só se os versículos forem redacionais
e tardios.

419
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

sendo já o entardecer, como era dia de preparação, isto é, o dia antes do sábado”.
Como seria de se esperar, Mateus elimina a estranheza quando habilidosamente
reutiliza os três elementos marcanos para abranger os três dias, desde o sepulta-
mento ao entardecer de sexta-feira, até o túmulo vazio no domingo de manhã. (Para
demonstrar a reutilização, ao dar a redação mateana, vou pôr em itálico o que ele
tirou de Marcos.) A primeira indicação marcana de tempo é reutilizada por Mateus
aqui, para apresentar José e a solicitação do corpo na sexta-feira: “ Mas sendo o
entardecer”. M a t e u s vai usar a segunda notícia marcana de tempo em Mt 27,62
para introduzir o material especial que relatará a respeito dos fariseus e da guarda
no túmulo no sábado: “ no dia seguinte, isto é, depois do dia de preparação”. Mateus
vai usar o elemento marcano final, a frase explanatória a respeito do sábado,*46 em
Mt 28,1, para introduzir sua narrativa do túmulo vazio no domingo: “ Mas no fim
[opse\ do sábado , ao amanhecer [= início] do primeiro dia da semana”. (A respeito de
como o tempo era calculado para os dias da semana, ver Apêndice II, B l, adiante.)

A descrição mateana de José de Arimateia (Mt 27,57b). Passamos


páginas examinando o que Mc 15,43 quis dizer com “um respeitado membro do
conselho que estava também ele próprio esperando o Reino de Deus”. A interpre­
tação mais plausível foi que, embora José rejeitasse Jesus, como outros membros
do sinédrio, ele era homem piedoso que desejava cumprir a lei, daí desejar que o
corpo de Jesus fosse sepultado antes do pôr do sol. Ao rejeitar a tese de que Mar­
cos apresentou José como discípulo de Jesus, perguntei por que ele expressaria
essa informação de modo tão ambíguo em termos de estar “esperando o Reino de
Deus”. Mas eu poderia também ter feito a pergunta inversa: se Marcos não quis
dizer que José era discípulo, por que ele o descreve como “esperando o Reino de
Deus”, já que essa linguagem aplicava-se a discípulos de Jesus? A resposta a essa
pergunta e à descrição mateana de José está na grande probabilidade de José, de­
pois da ressurreição, ter se tornado cristão, e é por isso que seu nome foi lembrado
em todos os relatos evangélicos. Sabendo disso, mas também pensando que José
não era discípulo antes do sepultamento, Marcos deliberadamente descreveu-o em
linguagem própria de um judeu praticante e também de um (futuro) discípulo de

4,1 Embora não preserve todas as indicações marcanas de tempo na NP, Mateus mantém a inclusão pela qual
“o entardecer” assinala o início da Ultima Ceia (Mt 26,20) e o fim da crucificação pelo sepultamento.
46 Mc 16,1, que inicia a narrativa do túmulo vazio, tem outra referência ao sábado: “E quando o sábado
acabou” . Mateus evita a duplicação.

420
§ 46.0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

Jesus. Mateus, julgando que sutilezas são pedagogicamente perigosas, porque de


fato os leitores não as entendem, elimina a história de José anterior à Páscoa no
sinédrio47 e antecipa seu futuro, posterior à Páscoa, como cristão: “Veio um homem
rico de Arimateia, cujo nome era José, que tinha também ele próprio sido discípulo48
de Jesus”. (Mais uma vez, os elementos de Marcos estão em itálico.) A narrativa
consecutiva em Mateus é importante: as mulheres que tinham seguido Jesus desde
a Galileia estavam observando a crucificação a certa distância (Mt 27,55-56); agora,
vem um homem rico que também ele próprio tinha sido discípulo de Jesus — dois
tipos de adesão. Além disso, ao contrário dos mais famosos discípulos homens de
Jesus (os Doze) que tinham fugido, Mateus apresenta um discípulo homem que per­
manece com Jesus até a morte. Na descrição mateana, informações mais primitivas
se perderam, mas José, como cristão modelo, foi esclarecido.

Em suas omissões de material marcano, Mateus elimina não só “membro do


conselho” , mas também “ respeitado”, a posição especial que na narrativa marcana
ajudava a tornar inteligível o motivo de Pilatos conceder a solicitação. Em seu lugar,
Mateus apresenta “um homem rico”. José ser rico relaciona-se com o fato de ter um
túmulo novo (Mt 26,60),49 propriedade que, no tempo em que Mateus escreveu, se

4‘ Será que Mateus julgava isso impossível? É mais provável que ele julgasse impróprio repeti-lo.
48 Literalmente um verbo: “tinha sido discípulo de Jesus” . Antecipar a situação pós-ressurreição é impor­
tante característica do Evangelho de Mateus em sua cristologia e em seu tratamento dos seguidores de
Jesus, por exemplo, ao acrescentar confissões do Filho de Deus (Mt 14,33; 16,16, comparados a Mc 6,52;
8,29). Que ultraconservadores tenham entendido isso mal é visível na introdução editorial a “ Burial” ,
trabalho póstumo de 0 ’Shea. A tese de que, ao chamar José de discípulo, Mateus antecipa a situação
pós-ressurreição do homem é tratada como contestação da veracidade de Mateus. Essas intuições pós-
-ressurreiçâo antecipadas são a verdade para Mateus.
49 Uma base bíblica para o túmulo de um homem rico mateano é encontrada por alguns na descrição do
servo sofredor. O TM de Is 53,9 diz: “ E ele deu [isto é, colocou] com os ímpios sua sepultura, e com o
rico em suas mortes” . Muitos suspeitam de alteração na última sentença e sugerem emendas hebraicas
que produzem um melhor paralelismo sinônimo: “ e com os fazedores do mal seu túmulo” . As emendas
claramente nada fazem para apoiar o uso mateano desse versículo, que é dependente de “homem rico” ;
além disso, para Mateus, Jesus foi sepultado no túmulo novo de José, discípulo de Jesus, e assim, nem
com os ímpios, nem com eles. O targum mais tardio (“E ele jogará os ímpios na Geena, e os que são ricos
de posses que obtiveram pela violência, na morte de destruição”), embora mantenha “ricos” , não está
mais próximo de Mateus em sentido. Nem o está a LXX (“Darei o ímpio no lugar de [anti] seu sepulta­
mento e os ricos no lugar de sua morte”), que presumivelmente se refere à execução divina punitiva do
ímpio adversário do servo sofredor, em lugar dele. Barrick (“Rich”) apela à leitura de lQ sa, que para ele
significa: “ E eles fizeram a sepultura dele com os ímpios, mas seu corpo (deitado) com um (homem) rico” .
Essa interpretação requer interpretar os manuscritos bwmtw não como seu “monumento de sepultura” ,
mas como “ suas costas” , isto é, “corpo” . Ela corretamente reconhece que só por paralelismo antitético
o versículo pode funcionar em Mateus, mas ainda não explica como Mateus teria visto a primeira parte

421
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

tornara tradição cristã a respeito do lugar onde Jesus fora sepultado (por exemplo,
EvPd 6,24: “chamado o Jardim de José” ). Como o fato de José ser rico afetou seu
papel de discípulo cristão modelo? Quando leu o “esperando o Reino de Deus”
marcano, Mateus pensou nas palavras de Jesus que ele registrara antes, em Mt
19,23-24 (“ Um rico entrará no Reino do Céu com dificuldade [...], é mais fácil um
camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus” )?
Nesse caso, Mateus pode ter decidido descrever nesta cena depois da morte de
Jesus um rico que enfrentou o desafio de “ Vem, segue-me”, ao contrário do jovem
afastado por suas muitas posses (Mt 19,21-22). Mateus nunca relata a maldição que
Lc 6,24 atribui a Jesus: “Ai de vós, ricos, porque já recebestes vossa consolação”.50
Mateus não tem nenhuma advertência para não convidar vizinhos ricos ao banquete
(Lc 14,12), nenhuma parábola do rico que tolamente constrói grandes celeiros (Lc
12,16-21), nenhuma parábola do rico posto em contraste com Lázaro (Lc 16,1-13).
Ao contrário de Simão Pedro, Tiago e João (em Lc 5,11) que deixam “ tudo” para
seguir Jesus, esses ilustres em Mt 4,20.22 deixam coisas específicas (rede, barco,
pai). Sênior (Passion [ ...] Matthew, p. 151) lembra que Mateus se refere a uma
série muito mais ampla de moedas que Marcos e usa termos como “ouro”, “ prata”
e “ talento” cerca de 28 vezes, em comparação com 1 vez em Marcos e 4 em Lucas.
Pode-se suspeitar, então, que no meio da comunidade mateana havia ricos, e José
servia-lhes de discípulo modelo.

José e Pilatos (Mt 27,58). Já examinamos o problema da omissão por


Mateus do conteúdo de Mc 15,44-45.51* Portanto, o que Mateus nos dá aqui é uma
forma resumida de Mc 15,43b (e, alguns diriam, uma nova redação de Mc 15,45b).
Na sentença “tendo vindo diante [proserchesthai\ de Pilatos", Mateus preserva o
uso por Marcos de um segundo verbo “vir” para descrever José, mas simplifica o
redundante eiserchesthai pros (“ vir diante de” ) marcano. Em “ solicitou o corpo de
Jesus ”, Mateus preserva também o aitein marcano que usou anteriormente, em Mt
27,20, quando as multidões solicitaram de Pilatos Barrabás em lugar de Jesus, que

do versículo cumprida. Como vimos, em casos de citação bíblica, Mateus gosta de todos os detalhes
cumpridos. Pode-se, então, duvidar que Mateus tivesse essa passagem de Isaías em mente.
5(1 A bem-aventurança mateana pertinente (Mt 5,3) é: “ Felizes os pobres de espírito, pois deles é o Reino
dos Céus” — bem-aventurança que inclui os ricos, ao contrário da bem-aventurança lucana (Lc 6,20):
“Felizes, vós, os pobres” .
sl Argumentei ser mais provável que a versão de Marcos usada por Mateus tivesse esses versículos, mas
Mateus os omitiu porque tomar conhecido que o governador romano manifestou dúvida quanto a Jesus
estar realmente morto não ajudava a apresentação cristã da ressurreição.

422
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

queriam destruído. Agora, em contraste, a solicitação é dirigida a Pilatos por um


discípulo que queria salvar o corpo de Jesus da destruição.

Em Mt 27,58b (“Então Pilatos ordenou que (ele) fosse entregue” ), Mateus tem
a mesma ideia que Mc 15,45b (“ele concedeu o cadáver a José” ), mas expressou-
-a em vocabulário muito diferente.32 O Pilatos mateano aquiesce sem expressar
nenhuma hesitação e sem interrogar José, embora este seja discípulo de Jesus.
Dois fatores devem ser considerados no reconhecimento de que essa aquiescência
não é implausível, considerando a narrativa mateana. Primeiro, há uma diferença
entre a descrição de Pilatos marcana e a mateana. Durante o julgamento de Jesus,
o Pilatos marcano era um juiz cínico que não se esforçou muito em benefício de
Jesus: embora reconhecesse o preconceito dos inimigos de Jesus, entregou Jesus e
soltou Barrabás para satisfazer a multidão (Mc 15,10.15). Argumentei acima que
esse Pilatos não assumiría o risco de soltar o corpo do “ Rei dos Judeus” a um dis­
cípulo conhecido daquele rei. Mas, durante o julgamento, o Pilatos mateano ouviu
de sua mulher que Jesus era justo e ele lavou as mãos em público para permanecer
inocente do sangue de Jesus (Mt 27,19.24). Esse Pilatos bem-disposto podia con­
tinuar a mostrar sua convicção de que Jesus fora tratado injustamente, ordenando
que seu corpo fosse entregue a um discípulo precisamente porque reconheceu que
Jesus não tinha nenhum seguimento político. Segundo, ao contrário do marcano,
o José mateano era um homem rico (e, ao que tudo indica, influente) a quem um
governador não ia querer ofender negando sua solicitação. A resposta afirmativa de
Pilatos subentende a ação de soldados romanos, pois seriam eles que entregariam
o corpo. Apodidonai (“entregar/devolver” ) é verbo mateano (18 vezes, em compa­
ração a 1 em Marcos, 8 em Lucas); e, além do sentido de entregar o corpo, pode
ter a conotação de devolvê-lo aos adeptos de Jesus, já que José é discípulo.53 (Será
que Mateus queria que pensássemos que Pilatos sabia disso a respeito de José?
Do princípio ao fim da NP, vemos Jesus “entregue, abandonado” (paradidonai) de
um ator hostil para outro, em uma corrente que leva à cruz.54 Agora, finalmente ele
não é entregue de novo, mas devolvido a alguém que o ama.

’2 Se a forma de Marcos que Mateus usou tinha os vv. 44-45, então Mateus decidiu parafrasear a última
oração desses versículos.
33 O verbo aparece em Fílon (In Flaccum 83), em uma passagem a respeito de corpos sendo descidos da
cruz e entregues a parentes para receber ritos fúnebres.
54 Paradidonai, com referência a Judas antes da NP (Mt 26,2.15.16.21.23.24.25); também Mt 26,45.48;
27,2.3.4.18.26.

423
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

O pedido para o sepultamento segundo Lc23,50-52

Alguns biblistas pressupõem uma fonte especial para Lucas nesta seção
da narrativa do sepultamento (Grundmann, Schneider, B. Weiss); mas eu não vejo
nenhuma razão convincente para pensar que Lucas tinha alguma fonte escrita
além de Marcos aqui (assim também Büchele, Taylor), embora, como de costume
na NP, no que ele assumiu, Lucas exercesse uma liberdade maior em relação a
Marcos que Mateus. Lucas começa o relato do sepultamento com um “ E ” (kai )
inicial, exatamente como começou os relatos do julgamento romano (Lc 23,1) e da
crucificação (Lc 23,26). Antes de tratarmos do que Lucas registra no sepultamento,
devemos mencionar sua omissão inicial das duas indicações de tempo e da frase
explanatória que iniciou o relato marcano (Mc 15,42). A omissão do opsia (“entar­
decer” ) marcano não é surpreendente, pois Lucas-Atos nunca usa opsia (5 vezes
em Marcos, 7 em Mateus, 2 em João). Quanto ao marcano “era dia de preparação,
isto é, o dia antes do sábado”, Lucas vai reutilizar essas frases na segunda parte da
cena do sepultamento (§ 47 adiante); de fato, depois do efetivo sepultamento, Lucas
(Lc 23,54) declara: “ E era dia de preparação e o sábado estava raiando”. Colocado
ali, mostra implicitamente o sucesso de José para cumprir a lei de sepultar corpos
crucificados antes do pôr do sol e também a lei do descanso no sábado.” No início
do Evangelho, Lucas descreveu alguns judeus piedosos, zelosos praticantes da lei, e
ainda assim receptivos para participar do acontecimento de Jesus (Zacarias, Isabel,
Simeão, Ana: Lc 1,5-6; 2,25.36-37). A guisa de inclusão no fim do Evangelho, ele
apresenta José como o mesmo tipo de judeu.

A descrição lucana de José de Arimateia. O emprego de um kai


idou (“ E vede” ) inicial em Lc 23,50 é estilo lucano comum.*56 Embora dependa de
Marcos aqui, Lucas reorganiza o material, suplementa-o com inferências e, assim,
faz uma apresentação de José mais longa que a encontrada em qualquer outro

15 Lc 23,56ab mostra-nos explicitamente que esta última lei (que os leitores gentios conheciam) era im­
portante, pois, depois do sepultamento, as mulheres voltaram para onde estavam hospedadas, a fim de
preparar especiarias e mirra. “E então, no sábado, elas descansaram, de acordo com o mandamento” .
56 Ocorre vinte e seis vezes em Lucas; ver Fitzmyer, Luke, v. 1, p. 121. Feldkãmper (Betende) começa com
Lc 23,49 e, assim, à guisa de inclusão, tem as mulheres galileias no início e no fim (Lc 23,55-56) da
cena do sepultamento. Contudo, no v. 49, as mulheres estão de pé a certa distância, vendo as coisas que
aconteceram quando Jesus morreu. A melhor interpretação é que a estrutura lucana tem as duas cenas,
uma de morte e a outra de sepultamento, ambas terminando com as mulheres galileias observando ou
olhando.

424
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

Evangelho. “ Um homem chamado [onomati] José” inclui uma fórmula de identifi­


cação de nomes usada 27 vezes em Lucas-Atos (1 em Marcos, 1 em Mateus, 0 em
João); na verdade, o Evangelho iniciou-se em Lc 1,5 com: “um sacerdote chamado
Zacarias”. Na frase “sendo [hyparchon] membro do conselho”, Lucas insere seu
estilo (hyparchein ocorre 40 vezes em Lucas-Atos, 3 em Mateus, 0 em Marcos e
João), mas preserva bouleutes de Marcos, que ele obviamente entende significar
um membro do sinédrio responsável pela morte de Jesus (v. 51). Mas Lucas adia o
“esperando o Reino de Deus” marcano até depois de afirmar, em linguagem clara,
o caráter desse membro do sinédrio como “ homem bom e justo [dikaiosj”,3' des­
crição que substitui o “ respeitado” marcano e dá mais atenção ao caráter moral de
José que a sua posição no sinédrio. E ssa descrição encaixa o José lucano em um
padrão de judeus piedosos descritos no início do Evangelho: Zacarias, mencionado
acima, e sua mulher Isabel eram “justos diante de Deus” (Lc 1,6). Simeão não só
era “justo”, mas também “esperava a consolação de Israel”, do mesmo modo que
o José lucano é “justo” e está “esperando o Reino de Deus”.58 Assim, ao contrário
de Mateus, que faz de José um discípulo, Lucas preserva a sutileza marcana de
descrever um piedoso judeu praticante da lei — uma pessoa que, na ocasião do
sepultamento, não era discípulo de Jesus, mas tinha qualificações morais para se
tornar um quando reconhecesse que o esperado chegara. Marcos nunca explicou
como alguém que esperava “o Reino de Deus” podia fazer parte de um sinédrio
que julgou Jesus culpado de blasfêmia e merecedor da morte; mas Lucas resolve o
problema: José “ não estava de acordo [sygkatatithesthai] com a decisão e o modo
de agir deles”.59 Em sua análise, Lucas faz eco a importante linguagem bíblica,
pois os usos veterotestamentários de sygkatatithesthai em Exodo advertiram Israel:
“ Não ficarás de acordo com os ímpios como testemunha injusta [adikos]” (Ex 23,1)17

17 Das muitas traduções possíveis de dikaios (“direito, reto, santo”), parece que, aqui, “justo” é apropriado,
em oposição à injustiça do sinédrio.
571 Em Lc 1,27, a Virgem Maria foi desposada “ por um homem cujo nome era José” . .Nesse arranjo arquite­
tônico onde no fim da história Lucas faz José de Arimateia parecer-se com judeus piedosos do começo
da história, tem ele também a intenção de nos lembrar de seu homônimo, ou é acidental a semelhança
de nome?
A intenção é certamente fazer o trocadilho de que o bouleutes não concordava com o boule (9 vezes em
Lucas-Atos; 0 em Marcos, Mateus e João). E inferência por Lucas na tentativa de dar sentido à informa­
ção marcana e dificilmente uma coisa a respeito da qual ele tinha informação particular. Se essa última
hipótese fosse verdade, teríamos esperado que Lucas nos preparasse para essa exceção em seu relato dos
procedimentos do sinédrio. De fato, como menciono no texto acima, Lucas descreve as ações do sinédrio
contra Jesus com a mesma universalidade encontrada em Mc 14,53.55.64; 15,1 (“todos, inteiro”).

425
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

e “ Não ficarás de acordo com eles [os habitantes pagãos da terra] e seus deuses”
(Ex 23,32).60 Em Lc 22,66.70, todos os membros do sinédrio interrogam Jesus
e, em Lc 23,1, “toda a aglomeração deles” leva Jesus a Pilatos. Contudo, eis um
membro do sinédrio que não transgrediu as ordens divinas de advertência a Israel
ao concordar com juizes injustos do sinédrio ou com os romanos contra Jesus.61

No v. 51b, Lucas volta a copiar de Marcos informações básicas a respeito de


José. A notícia marcana de que José era de Arimateia, Lucas acrescenta em bene­
fício dos leitores gentios “uma cidade dos judeus”, querendo dizer que ela estava
na Judeia, do mesmo modo que falara de “ Cafarnaum, uma cidade da Galileia” (Lc
4,31). Deseja Lucas que os leitores também notem que, embora Jesus tenha sido
condenado e escarnecido como “o Rei dos Judeus” (Lc 23,3.37), houve um homem
bom e justo de “uma cidade dos judeus” que o sepultou? Mencionarei em § 47 que
Lucas desenvolve o papel das mulheres observadoras mais do que Marcos/Mateus:
José, de uma cidade da Judeia, e as mulheres da Galileia fazem par na narrativa
lucana do sepultamento. Somente no fim da descrição de José Lucas acrescenta
de Marcos “que estava esperando o Reino de Deus” (do mesmo modo que Lc 2,25
manteve “esperando a consolação de Israel” até o fim da descrição de Simeão).
De fato, Lucas interpreta essa oração do princípio ao fim da descrição, mas agora,
por fim, os leitores a entendem plenamente da maneira como Lucas quer que ela
seja entendida.62

José e Pilatos (Lc 23,52). “ Este homem, tendo vindo diante de Pilatos,
solicitou o corpo de Jesus” representa um exemplo de Lucas e Mateus (Mt 27,58)
em exata concordância verbal em nove palavras. Esse e outro caso de concordân­
cia na seção seguinte (§ 47) levam alguns biblistas, por exemplo, L.-M. Braun
(“ Sépulture” ), a pressupor que Mateus e Lucas têm uma fonte independente de
Marcos. Outros, como Büchele, pressupõem a influência da tradição oral sobre os

60 O único outro uso veterotestamentário está na história de Susana, em Dn 13,20, onde os lascivos anciãos
querem que ela “concorde” com eles.
61 Não há necessidade de harmonizar historicamente os “todos” ou “inteiro” com esta exceção, supondo
que José não estava presente no sinédrio quando a votação foi feita. Essa sugestão vai contra a intenção
literária de Lucas; ele deseja claramente descrever José como homem de coragem para divergir.
62 Burkin (“Note”) menciona que um pequeno fragmento uncial do século II do Diatessarão em Dura Eu-
ropos contém o grego de Lc 23,51 e claramente não é uma tradução da OS daquele versículo. Isso ajuda
a mostrar que, para sua harmonia, Taciano recorreu a textos gregos dos Evangelhos não diferentes dos
que conhecemos.

426
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

dois evangelistas. Em geral, sou mais favorável à segunda solução, mas, ao que tudo
indica, neste caso é desnecessário recorrer a ela. As cinco últimas palavras gregas
(= “solicitou o corpo de Jesus” ) são literalmente de Marcos; de fato, a concordân­
cia mútua de Mateus e Lucas contra Marcos consiste apenas em duas palavras. A
primeira, Houtos (“ Este um/homem” ), que certamente não é significativa, origina-
-se da necessidade de fornecer um sujeito depois de ter dividido o complicado Mc
15,43 em segmentos mais viáveis, processo simplificador que é normal tanto para
Mateus como para Lucas. A segunda concordância é o uso do particípio proselthon
(proserchesthai) com o dativo, em vez do finito marcano eiselthen (eiserchesthai) com
pros. Empregar um particípio faz parte da remodelação gramatical com propósitos de
sentido. Reduzir o acúmulo tautológico marcano de preposições (eis- como parte do
verbo, mais pros) para pros- como parte do verbo é melhoramento óbvio que poderia
ter ocorrido a cada evangelista de forma independente, em especial porque ambos
usam o verbo proserchesthai com muito mais frequência que Marcos (Mateus, 52
vezes; Lucas-Atos, 20; Marcos, 5).

Como Mateus, mas presumivelmente de forma independente, Lucas omite


o material de Mc 15,44-45 a respeito do espanto de Pilatos por Jesus já estar
morto e seu interrogatório do centurião para saber a verdade. De fato, mais radi­
calmente ainda que Mateus, Lucas não tem nada que corresponda, nem mesmo
em pensamento, a Mc 15,45b: “ Ele concedeu o cadáver a José”. (Entretanto, o fato
de José solicitar o corpo a Pilatos confirma minha asserção acima [§ 36 B], onde
afirmei ser intenção de Lucas fazer os leitores pensarem que coube aos romanos a
execução física.) Somente no início do versículo seguinte em Lucas (Lc 23,53: “ E
tendo descido” ; ver § 47), os leitores ficam sabendo que o Pilatos lucano aceitou
a solicitação de José.

Pedindo63o sepultamento segundo Jo 1 9,38a

Na cena joanina anterior, a fim de que os corpos não ficassem na cruz no


sábado, “os judeus [...] pediram [erotan] a Pilatos que suas pernas fossem quebra­
das e eles fossem retirados [airein ]” (Jo 19,31). João indicou implicitamente que
Pilatos cedeu à primeira parte dessa petição, pois os soldados vieram e começaram
a quebrar as pernas dos crucificados com Jesus (Jo 19,32). Contudo, não nos é dito

63 Todos os sinóticos usaram altein (“solicitar” ); João usa duas vezes (Jo 19,31.30) erotan (“ questionar,
pedir, solicitar” ).

427
Q uarto ato • Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

nada quanto à aprovação da segunda parte da petição: “que eles fossem retirados”.
Parece que isso é retomado agora em Jo 19,38a: José “pediu [erotan] a Pilatos se
podia retirar [airein] o corpo de Jesus”.64 Os leitores vão reconhecer a rivalidade
entre as duas petições para retirar o corpo, pois João explica que José era um
discípulo secreto de Jesus que temia “os judeus”. Se Pilatos sabia disso, então, ao
concordar com a petição de José, ele ao mesmo tempo estava negando a segunda
parte da petição de “os judeus” em Jo 19,31, pois com certeza eles não queriam
que Jesus tivesse um sepultamento respeitável. E ssa independência de ação estava
de acordo com o desdém anterior de Pilatos pelas iniciativas de “os judeus” contra
Jesus (Jo 18,31; 19,15.21-22). Ou devemos pensar que Pilatos não conhecia as
simpatias ocultas de José e considerou sua petição apenas um lembrete de que a
petição que “os judeus” fizeram tinha duas partes? Nesse caso, ao ceder a José,
Pilatos julgou ceder a “os judeus”.

Não há nenhum jeito de saber ao certo como João pretendia que entendés­
semos a atitude de Pilatos; entretanto, a obscuridade talvez indique que, em uma
etapa pré-evangélica da tradição joanina, José (ainda) não era discípulo de Jesus,
mas porta-voz de “os judeus” que apresentaram a petição de Jo 19,31: “pediram a
Pilatos que suas pernas fossem quebradas e eles fossem retirados” e que as duas
partes da petição lhe fossem concedidas. Mais tarde, quando José passou a ser
diferenciado dos judeus hostis (porque acreditou e assim se tornou um discípulo),
uma segunda petição, que reutilizou a linguagem da primeira (eretan e aiten nas
duas), foi formada para José.63 E ssa hipótese significa que o material de Jo 19,31-37
(que não tem paralelos sinóticos) e pelo menos parte do que está em Jo 19,38-42
(que tem paralelos sinóticos, exceto para o papel de Nicodemos) constituíam uma*60

64 Notemos que não é dito que “ os judeus” ou José vieram a Pilatos, ação pressuposta nos três sinóticos e
no EvPd. A respeito de João pensar ou não que Pilatos estava presente no lugar da crucificação, ver §
44, sob “ Reações dos presentes segundo João” , acima. 0 “ depois dessas coisas” , em Jo 19,38a, é um
vago conectivo joanino e claramente editorial.
60 Acima (ver parágrafo referente à nota 34), mencionei uma leitura alternativa em Jo 19,38b (Códice Si-
naítico, Taciano, OL, alguns Saídicos) com um sujeito plural: “ Então eles vieram e retiraram seu corpo” .
Essa leitura, apoiada por Boismard e Bultmann como original, talvez faça eco a essa etapa mais primitiva
da tradição joanina onde José trabalhou junto com os outros judeus que apresentaram a petição em Jo
19,31. Ou pode simplesmente ser 0 melhoramento de um escriba, a fim de preparar 0 caminho para 0
aparecimento de Nicodemos em Jo 19,39-40; dele, juntamente com José, se dirá: “ Então eles pegaram
0 corpo de Jesus” .

428
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

história consecutiva; é contrário a qualquer simples hipótese que, em Jo 19,31-42,


João tenha unido duas coletâneas de material distintas.

A descrição joanina de José de Arimateia. Seja tudo isso como for,


em sua forma atual, como os sinóticos mais tardios, Jo 19,38a representa uma
etapa da tradição a respeito de José onde sua vocação subsequente como cristão
tem sido transferida para sua situação antes do sepultamento de Jesus. Vimos que,
confrontado com a difícil descrição marcana de um piedoso membro do sinédrio
que, por inferência, deve ter votado contra Jesus, Mateus simplificou, omitindo o
membro do sinédrio e fazendo de José um discípulo antes do sepultamento, en­
quanto Lucas deixou-o membro do sinédrio, mas que não estava de acordo com a
decisão dos outros. A descrição joanina tem alguma coisa dessas duas abordagens.
Primeiro, como em Mateus, José é discípulo de Jesus.66 Segundo e mais próximo
de Lucas, ele era discípulo secreto por medo de “os judeus”. E fascinante que, na
parte seguinte da cena joanina (§ 47), José seja associado no sepultamento com
Nicodemos, mestre dos judeus (Jo 3,1 = membro do sinédrio) que é solidário com
Jesus e discorda do julgamento de seus colegas, as autoridades judaicas (Jo 7,50-
52). Quando pomos o José e o Nicodemos joaninos juntos, eles representam as
visões diferentes de José em Mateus e Lucas! Na verdade, a declaração de que até
agora o José joanino era dominado pelo “medo dos judeus” cria certa semelhança
com o que é relatado a respeito de José somente por Marcos (Mc 15,43), a saber,
que ele precisou de coragem para ir até Pilatos.

José e Pilatos. Já examinamos como o fato de José pedir a Pilatos para


retirar o corpo de Jesus reproduziu a solicitação de “os judeus” em Jo 19,31. Com
redação diferente tanto do “concedeu o cadáver” de Marcos como do “ordenou que
(ele) fosse entregue” de Mateus, João relata a aquiescência: “ Pilatos permitiu [epi-
trepein67]”. Neste Evangelho que dá a Pilatos um papel maior que qualquer outro,
sua ação final é a favor de um discípulo secreto de Jesus. O fato de não sabermos
dizer se Pilatos estava ou não a par disso não é inadequado a um Pilatos que João
dramatiza como o homem entre dois fogos e que nunca quer se decidir — o homem

06 Para Curtis (“Three” , p. 442-443), aqui João depende de Mateus, embora o vocabulário tenha diferenças
significativas. (João usa o substantivo, enquanto Mt 27,57 usa o verbo matheteuein, mateano em três de
suas quatro ocorrências veterotestamentárias.) A atitude para com José em todos os Evangelhos suben­
tende que ele se tornou cristão e facilmente isso podería ter levado dois autores a independentemente
falar dele na linguagem de discipulado.
6‘ Esse é o único emprego joanino do verbo (Marcos, 2 vezes; Mateus, 2; Lucas-Atos, 9).

429
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

que perguntou “ O que é a verdade?” (Jo 18,38), em resposta quando aquele que
é a verdade (Jo 14,6) estava de pé diante dele, fazendo o convite desafiador: “ Todo
aquele que é da verdade ouve minha voz” (Jo 18,37). Não sabemos, nem no fim,
mesmo indistintamente, se Pilatos ouviu.

0 pedido para o sepultamento segundo o EvPd e o crescimento das lendas de José

Vimos nos Evangelhos canônicos uma linha de desenvolvimento que mudou


José de piedoso membro do sinédrio cumpridor da lei de sepultar os crucificados
para uma posição mais santificada como discípulo modelo de Jesus. O EvPd dá-nos
um lampejo de outros desenvolvimentos adicionais no século II. Aqui nos é dito,
antes mesmo do julgamento, que José era amigo do Senhor (EvPd 2,3), na verdade,
talvez um que viajava com ele, pois vira as muitas coisas boas que Jesus fizera
(EvPd 6,23). Na parte preservada do EvPd, não há nenhuma indicação de que ele
era membro do sinédrio, embora seja descrito como “de pé ali” durante os proce­
dimentos contra Jesus sob Herodes e saiba que eles estão prestes a crucificá-lo.68
Na verdade, ele não é identificado como sendo “de Arimateia” e é amigo de Pilatos,
por isso os leitores do fragmento preservado do EvPd nem saberíam que ele era
judeu, a menos que reconhecessem “José” como nome caracteristicamente judaico.

Em “ele veio diante de Pilatos e solicitou o corpo do Senhor para sepul­


tamento”, EvPd 2,3 não se desvia de Mt 27,58. Observemos que, agora, não há
necessidade de coragem (Mc 15,43), porque José é amigo de Pilatos. O EvPd difere
nitidamente dos Evangelhos canônicos ao datar a visita de José ao romano antes de
Jesus ser crucificado e ao descrever Pilatos como incapaz de conceder a solicitação.
Em uma cena elucidativa da ignorância do autor quanto às realidades políticas da
Judeia do século I, Pilatos, por sua vez, precisa solicitar de Herodes o corpo de
Jesus — Herodes é o supremo juiz e governante. Enquanto em Lc 23,12 Herodes
e Pilatos tinham sido inimigos antes de porem Jesus em julgamento, o Herodes do
EvPd dirige-se ao “ Irmão Pilatos” (EvPd 2,5);69 e, falando como judeu observante
(!), ele dá ao romano uma breve instrução a respeito das minúcias da lei judaica
pertinente ao sepultamento antes do sábado.70 Essa instrução nos diz que o EvPd

68 É preciso cautela para julgar essa informação em EvPd 2,3, pois a maneira como José é mencionado
sugere que ele apareceu antes, na parte perdida da narrativa.
65 Os dois nunca conversam nos Evangelhos canônicos. A fórmula de “Irmão” podería ser protocolar entre
soberanos (Josefo, Ant. XIII,ii,2; #45); mas era também usada nos cumprimentos de cartas comuns.
70 Como em Mc 15,42, Lc 23,54 e Jo 19,31, a urgência quanto ao sepultamento é porque o dia seguinte

430
§ 46,0 sepultamento de Jesus, prim eira parte:Q pedido do corpo por José

situa o julgamento e a morte de Jesus na sexta-feira e só subsequentemente, em


EvPd 2,5c, ficamos sabendo que esse é (também) o dia “antes do primeiro dia de
sua festa dos Pães sem fermento” (em concordância parcial com João [Jo 19,14],
para quem este é o “dia de preparação para a Páscoa” ). Outra instrução cita em
paráfrase a lei específica que fundamenta a urgência para Jesus ser sepultado, lei
tacitamente pressuposta nos Evangelhos canônicos: “ O sol não deve se pôr sobre
alguém executado” (ver Dt 21,22-23).

Em resposta à solicitação transmitida por Pilatos, Herodes nunca diz direta­


mente que o corpo será concedido a José; mas isso acontece, embora com rodeios. Em
EvPd 6,21, os judeus que executaram Jesus arrancam os cravos das mãos do Senhor
e o colocam no chão. Quando toda a terra treme, há entre eles um grande medo.
Só depois de a longa escuridão que domina toda a Judeia (EvPd 5,15) terminar,
quando o sol brilha (EvPd 6,22) os judeus regozijam-se e dão o corpo a José, para
que ele o sepulte. Em uma etapa mais primitiva da tradição (como a reconstruo),
os judeus (um dos quais era José) obtiveram o corpo de Jesus; mas, agora, eles o
dão a José (que, ao que parece, não é um deles), “ pois ele era alguém que tinha
visto quantas coisas boas ele [o Senhor] fez” (EvPd 6,23). Não está claro o que
“pois” (epeide) significa: os judeus deram o corpo a José pois ele era alguém que
simpatizava com Jesus por causa do que havia visto — interpretação que tornaria
os judeus solícitos — ou, em uma constructio ad sensum, a oração com “pois” dá
a razão pela qual José solicitou o corpo?

O EvPd representa apenas o início de uma rebuscada lenda de José. Em


Atos de Pilatos (Evangelho de Nicodemos) 12, os judeus prendem e encarceram
José porque ele sepultou o corpo de Jesus. Em EvPd 15-16, José defende-se
diante dos chefes dos sacerdotes contando como Jesus lhe apareceu durante esse
encarceramento. Então, em EvPd 17, José narra que Jesus desceu ao inferno e
ressuscitou os mortos; José leva os chefes dos sacerdotes a Arimateia, para ver os
ressuscitados Simeão e seus filhos. Mas a evolução mais espantosa da lenda vem
do período medieval, nas histórias eclesiásticas de Glastonbury, na Inglaterra, e
de seus mosteiros.71 Tendo sido companheiro de Filipe, o apóstolo, na Gália, José

é o sábado. Já comentei que EvPd 7,27 mostra esquecimento ou confusão quando, depois da morte de
Jesus, mostra Pedro e os outros membros dos Doze (ver EvPd 14,59), “ lamentando e chorando noite e
dia até o sábado” .
71 A respeito de tudo isso, ver J. Armitage Robinson, Two Glastonbury Legends, Cambridge Univ., 1926;
R. F. Trebame, The Glastonbury Legends, London, Cresset, 1967.

431
Quaktoato • iesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto

atravessou para a Inglaterra, onde lhe foi dada uma ilha (Glastonbury, também
Avalon, de fama arturiana) no pântano. Cerca de 31 anos depois da morte de Jesus,
e 15 anos depois da assunção de Maria, ele construiu uma igreja de pau-a-pique em
honra de Maria. Por volta de 1400, afirmou-se que José trouxe o Santo Gral para a
Inglaterra, ou na verdade um receptáculo contendo o sangue de Jesus. Isso deu à
Grã-Bretanha status por ter uma Igreja fundada nos tempos apostólicos, igualando
as reivindicações da Espanha, de ter sido evangelizada por Tiago, o irmão de João
(tradição do século VII, mais tarde localizada em Compostela), e da França, de
ter sido visitada por Maria (Madalena), Lázaro e Marta (século XI, em especial na
região de Marselha). José entrou para as lendas arturianas, tornando-se parte da
visão de Galaaz do Santo Gral em Morte dArthur (século XV) de T. Malory. Em um
último toque da lenda de José, ele é um mercador, tio de Jesus, que levou o menino
Jesus consigo em uma viagem até a Grã-Bretanha.72 A venerada especulação de
W. Blake a respeito da visita de Jesus está no magnífico poema “Jerusalém”, que
por sua vez se tornou um hino comovente:

E no tempo antigo caminharam esses pés


Sobre a relva das montanhas inglesas?
E foi o sagrado Cordeiro de Deus
Visto nas aprazíveis pastagens inglesas?
E resplandeceu o Semblante Divino
Sobre nossas colinas enevoadas?
E foi Jerusalém construída aqui
Entre estes moinhos infernais?

Quem poderia prever tal êxito (na literatura, mas - ai! - não de fato) para
alguém que começou simplesmente como “respeitado membro do conselho que
estava também ele próprio esperando o Reino de Deus” ?

Análise

Com § 46, começamos três seções que tratam do sepultamento de Jesus. A


terceira seção (§ 48) trata do que aconteceu no dia de sábado depois do sepulta­
mento, em termos das mulheres que descansaram e dos fariseus que organizaram
uma guarda no túmulo. Consequentemente, somente as duas primeiras seções (46 e

2 E. Jung e M.-L. von Franz, The Grail Legend, Boston, Sigo, 1986, p. 344.

432
§ 46.0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

47) tratam do sepultamento em si. Minha organização delas como Primeira Parte e
Segunda Parte é puramente pela conveniência de apresentar meus COMENTÁRIOS em
unidades de tamanho viável. Do ponto de vista dos evangelistas, essas duas partes
estão unidas e formam um relato unificado relativamente breve do sepultamento
de Jesus. Para determinar como esse relato evoluiu, é vantajoso estudar a estrutura
interna e também a relação externa com os relatos da crucificação e da ressurreição.

A . Estrutura interna dos relatos do sepultamento

Apesar de sua relativa concisão e da história unificada que narram, parece


que os relatos são de origem complexa. O que José de Arimateia faz é fator impor­
tante em todos eles, mas, em um nível secundário, há a presença e a ação de outra
figura ou figuras. Em Marcos/Mateus, a presença secundária consiste nas duas
Marias, que são descritas em um só versículo e têm as funções pequeniníssimas
de observar (Marcos) ou de sentar-se em frente ao sepulcro (Mateus). Em Lucas,
a descrição das mulheres é mais extensa: elas seguiram (José quando ele desceu
Jesus e colocou-o no túmulo); depois de ver, elas voltaram (ao lugar onde estavam
hospedadas) e deixaram preparadas especiarias e mirra. A atenção que Lucas presta
a essas mulheres dá-lhes quase equivalência com José na história do sepultamento.
Em João, as mulheres estão ausentes, mas a outra figura é Nicodemos. Embora ele e
José trabalhem juntos para preparar o corpo e colocar Jesus no túmulo, Nicodemos
inicia o processo de sepultamento trazendo mirra e aloés; assim, torna-se a figura
dominante. No EvPd, os elementos da história do sepultamento estão espalhados:
antes da crucificação, a solicitação do corpo de Jesus (EvPd 2,3-5); depois da morte
de Jesus, a escuridão, o terremoto e o transporte do corpo para o sepulcro (EvPd
6,21-24); e, depois de os fariseus terem pedido a Pilatos uma guarda para vigiar
o sepulcro, a pedra rolada contra a entrada do túmulo (EvPd 8,32). Aqui, além de
José, judeus ou autoridades judaicas desempenham papel importante na concessão
do pedido e no fechamento do túmulo.

0 equilíbrio entre José e as outras figuras nos relatos do sepultamento não


raro revela o interesse teológico dos evangelistas. 0 sepultamento por José em si
não faz nada mais que concluir a crucificação, mas a presença de outras figuras
secundárias permite outras funções. As mulheres que estão presentes nos sinóticos
indicam a Páscoa e sua descoberta do túmulo vazio. Na verdade, em Lucas, essa
orientação torna-se o interesse dominante em um sepultamento que conclui com

433
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

as mulheres preparando especiarias e mirra que planejam usar na Páscoa. Como


veremos em § 47, a presença de Nicodemos ajuda João a descrever o sepultamento
como triunfo, apresentação apropriada em um Evangelho que mostra ser a crucifi­
cação uma exaltação vitoriosa. O papel exagerado dos judeus no sepultamento no
EvPd (Herodes concede o corpo solicitado; os fariseus, anciãos e escribas tomam
parte na ação de rolar a pedra contra a entrada do túmulo) não é surpreendente,
considerando o fato de, nesse Evangelho, eles julgarem, condenarem e crucificarem
Jesus. Anteriormente, vimos o forte preconceito antijudaico do EvPd e, aqui, a ati­
vidade contínua deles ajuda a mostrar que a malevolência das autoridades judaicas
para com o Filho de Deus não cessou com sua morte.

Essas observações a respeito da estrutura interna dos relatos do sepultamento


são complementadas quando estudamos a relação externa desses relatos com as
narrativas que os precedem e seguem imediatamente.

B. Relação externa com os relatos da crucificação e ressurreição73

Alguns biblistas afirmam que as aparições do Jesus ressuscitado foram


outrora proclamadas separadamente da NP, que terminava com a crucificação ou o
sepultamento de Jesus. Teoricamente, isso é possível, mas não há prova preservada
para sustentar a tese. Se deixarmos de lado obras gnósticas do século II e mais
tardias (às vezes denominadas “ Evangelhos” ), que se apresentam como revelações
do Jesus ressuscitado sem uma narrativa anterior do ministério terreno de Jesus,
os Evangelhos canônicos e o EvPd juntam material das aparições à crucificação
e sepultamento. As predições de Jesus a respeito do destino do Filho do Homem
( a p ê n d ic e VIII, A2), que em seu esboço básico são independentes das NPs canô­
nicas, juntam a ressurreição à morte. A tradição pré-paulina primitiva em ICor
15,3-5 junta que Cristo morreu, foi sepultado, ressuscitou e apareceu. A passiva
de thaptein usada ali também aparece em um discurso em At 2,29 que compara
Davi com Cristo; e At 13,29 afirma: “ Tendo-o descido do madeiro da cruz, eles o
colocaram no túmulo”.

Embora essa prova seja contrária a separar crucificação, sepultamento e


ressurreição como se fossem tradições completamente distintas, ela não resolve

73 Aqui estou primordialmente interessado no que esse relacionamento nos diz a respeito da composição
do relato do sepultamento. Entretanto, no último parágrafo desta subseção B, darei atenção a como o
relato do sepultamento funciona entre a crucificação e a ressurreição nos respectivos Evangelhos.

434
§ 46.0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

realmente o problema da antiguidade e do relacionamento de narrativas de sepul­


tamento e ressurreição.74 Reconhecemos que os cristãos primitivos afirmavam que
Jesus foi sepultado depois de morrer na cruz, mas a prova neotestamentária de fora
dos Evangelhos e dos Atos não registra onde Jesus foi sepultado, o que foi feito no
sepultamento e por quem. Para esclarecer o problema, lembramos que, embora em
sua maioria os biblistas reconheçam a antiguidade dos registros das aparições do
Jesus ressuscitado, muitos pensam que as narrativas das mulheres no túmulo vazio
são de origem relativamente tardia no século I. (E distinguimos mais além entre o
conhecimento do fato de Maria Madalena encontrar o túmulo vazio e uma narrativa
de desenvolvimento mais tardio a respeito de como anjos revelaram o sentido do
túmulo vazio.) Deve a narrativa do sepultamento no túmulo e da presença das mu­
lheres ali ser datada no mesmo período formativo que as narrativas do túmulo vazio,
como um tipo de formação retroativa a partir delas? Por exemplo, o relato de que,
na Páscoa, as mulheres sabiam onde o túmulo estava e como ele foi lacrado leva à
suposição de que elas observaram o sepultamento? Contudo, a teoria de formação
retroativa não explica a substância da narrativa do sepultamento concentrada em
José de Arimateia. A luz de nosso estudo acima, a respeito da estrutura interna
dos relatos do sepultamento, é possível responder a essa objeção teorizando que
uma narrativa básica do sepultamento por José pertencia à história da crucificação
e só a menção das mulheres em Marcos (seguido por Mateus e Lucas) foi formada
retroativamente a partir da história do túmulo vazio. Se João era independente de
Marcos, a presença de uma breve referência à retirada do corpo por José em Jo
19,38 e a ausência de mulheres no sepultamento dão apoio a essa teoria.75 Falei
de uma “narrativa básica do sepultamento” porque as diferenças entre a primeira
apresentação marcana de José como piedoso membro do sinédrio e a posterior

74 Dhanis (“Ensevelissement” , p. 375) estuda a opinião de biblistas que acham que a NP pré-marcana
continha uma narrativa do sepultamento refletida no todo ou em parte por Mc 15,42-47 (por exemplo,
Cerfaux, Michaelis, Taylor [provavelmente], Vaganay). Alguns deles (por exemplo, Taylor) não pensa­
vam que ela contivesse uma narrativa do túmulo vazio. Mastera (Kingship, p. 50-51) junta-se a Broer e
Schenke para argumentar que a narrativa do sepultamento em Mc 15,42-47 e a do túmulo vazio em Mc
16,1-8 eram originalmente separadas. Vou falar de um relato pré-evangélico do sepultamento e de uma
tradição pré-evangélica da descoberta por Madalena de que o túmulo estava vazio, mas reitero minha
convicção de que não podemos delinear exatamente uma NP pré-marcana inteira (§ 2, C2). Nem estou
certo de que, no nível pré-evangélico, havia uma narrativa desenvolvida a respeito do túmulo vazio.
'5 Vou deixar para a a n á l is e de § 47 o estudo da origem do papel de Nicodemos, encontrado somente em
João. Muitos aspectos do EvPd são criações polêmicas de histórias populares, por exemplo, Pilatos pedir
o corpo a Herodes e fariseus, anciãos e escribas trabalharem no sábado ao rolarem uma grande pedra
na entrada do túmulo.

435
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

descrição marcana de José já discípulo de Jesus ou membro do sinédrio que não


concordou com a decisão dos outros contra Jesus deixam claro outro desenvolvimento
no decorrer da redação dos Evangelhos.

Abaixo, vou trabalhar com essa teoria para ver o que identificamos como
sendo o material mais antigo na história do sepultamento por José. Mas, antes de
fazer isso, quero comentar brevemente a respeito da maneira de cada evangelis­
ta encaixar a cena do sepultamento na estrutura de sua NP. O que foi sugerido
a respeito da composição do relato do sepultamento nos dá a chave para o uso
marcano: o sepultamento é um conectivo entre a morte de Jesus e a narrativa do
túmulo deixado vazio pela ressurreição de Jesus, com José apontando para o que
aconteceu e as mulheres apontando para o que vai acontecer. Aqui, Lucas segue
Marcos de perto e, na verdade, ao ampliar o papel das mulheres, Lucas equilibra
a interferência. Há também um toque estrutural lucano no paralelismo realçado
entre Lc 23,47-49 e Lc 23,50-56a: cada um deles termina com as mulheres da
Galileia que observam o que acontece. (Ao variar os nomes das mulheres, Marcos
e Mateus não facilitam o paralelismo.) Mateus e João fazem uso estrutural singular
da narrativa do sepultamento em relação à crucificação e ressurreição. A cena ma-
teana do sepultamento (Mt 27,57-61) não é simplesmente continuação da história da
crucificação. Antes, junto com o episódio caracteristicamente mateano da guarda
no túmulo (Mt 27,62-66), ela está unida aos três episódios da ressurreição (Mt
28.1- 10.11-15.16-20) para constituir um final do Evangelho com cinco episódios
que fazem par com os cinco episódios iniciais da narrativa da infância (Mt 1,18-25;
2.1- 12.13-15.16-18.19-23). Essa análise de estrutura (que prefiro) e abordagens
equivalentes da estrutura mateana será examinada em detalhe na subseção A da
a n á l is e de § 48 (em especial no Quadro 9), quando considerarmos a guarda no
túmulo e a continuação desse tema da guarda na narrativa da ressurreição. Se
estruturalmente a cena mateana do sepultamento aponta com força para a frente,
a cena joanina do sepultamento (Jo 19,38-42) aponta para trás. E o Episódio 6
no relato joanino quiasticamente estruturado da crucificação (Quadro 7, § 38 C)
estreitamente unido ao Episódio 5 (Jo 19,31-37) como os dois episódios finais que
parcialmente combinam com os dois iniciais (Jo 19,19-22.23-24). No c o m e n t á r io

de § 47, os leitores verão a importância desse padrão estrutural para estabelecer o


papel de Nicodemos no sepultamento como ato positivo de louvor. Entretanto, aqui,
vamos nos concentrar em determinar o material pré-evangélico que fundamenta os
relatos do sepultamento como eles estão agora.

436
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

C. Tradição pré-evangélica do sepultamento

Examinaremos três elementos: a indicação de tempo, a descrição de José


de Arimateia e o sepultamento que ele deu a Jesus.

1. I ndica çã o de tem po . Uma referência ao dia no qual o sepultamento teve lu­


gar comoparaskeue, “dia de preparação”, encontra-se em todos os relatos canônicos;'6
e ela contém a inferência de que o sepultamento tinha de estar terminado antes que
o sábado começasse.7' Diversos fatores sugerem que essa indicação de tempo era
pré-marcana. Primeiro, ela traduz o hebraico ‘ereb (“ véspera, dia anterior” ); assim,
reflete uma etapa de fala semítica na formação dos Evangelhos. Segundo, Marcos
apresenta duas especificações de paraskeue: “sendo já o entardecer” e “ isto é, o dia
antes do sábado”. Certamente, ele não criou um termo que teria de explicar dessa
maneira; ao contrário, ele o usa porque é tradicional. Terceiro, João (que alhures
achamos independente de Marcos) usa o termo três vezes, uma com referência ao
momento de Pilatos sentenciar Jesus (Jo 19,14) e duas vezes com referência ao
sepultamento (Jo 19,31.42). Se João tivesse inventado o termo, seria lógico espe­
rarmos que ele lhe desse o mesmo sentido do princípio ao fim. Ao contrário, ele
usa sua ambiguidade a fim de fazê-lo a preparação para a Páscoa em Jo 19,14, mas
concorda com Marcos (Mateus e Lucas) ao fazer dele a preparação para o sábado
nas duas referências da narrativa do sepultamento. Uma explicação plausível é que
o sentido pré-sábado aqui era tradicional demais para mudar.

2. D e s c r iç ã o de J o sé de A r im a t e ia . Em todos os relatos do sepultamento,


sente-se a necessidade de identificar esta figura e isso subentende que José não
havia antes representado um papel conhecido na história de Jesus.78 No COMENTÁRIO
a respeito de Mc 15,43, sugeri que “ um respeitado membro do conselho que estava
também ele próprio esperando o Reino de Deus” 79 significava ser José um membro

‘ü Em Mateus (Mt 27,62), a frase “ depois do dia de preparação” introduz o episódio (§ 48) a respeito da
guarda no sepulcro.
T‘ Logicamente, o dia para o qual estava sendo feita a preparação tinha de ser importante. Nos sinóticos,
ao contrário de João, esse dia (que começaria ao entardecer) não podia ser aquele no qual a refeição
pascal seria consumida.
Mesmo os Evangelhos mais tardios, que relatam ter José sido discípulo ou bem-intencionado membro
do sinédrio, não indicam nenhuma cena anterior na qual sua presença tenha sido mencionada. Quanto
ao EvPd, ver nota 68, acima.
‘9 Braun (“Sépulture” , p. 37) argumenta ser essa a informação original a respeito de José e tudo o mais que
os Evangelhos relatam representa o retoque cristão do retrato.

437
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

do sinédrio religiosamente piedoso que, apesar da condenação de Jesus pelo siné-


drio, sentiu ter a obrigação sob a lei de sepultar antes do pôr do sol esse criminoso
crucificado. É muito improvável que Marcos tenha criado essa identificação, pois
ela está em oposição a suas generalizações hostis, que jogam a culpa em todos os
membros do sinédrio pela injustiça de sentenciar Jesus à morte (Mc 14,55.64; 15,1).
Quanto a João, ao tratar do relacionamento entre Jo 19,31 e Jo 19,38a, sugeri que,
em uma etapa mais primitiva do pensamento joanino, José era associado com “os
judeus” que pediram que os corpos fossem retirados — e assim, com o grupo que
tinha exigido a morte de Jesus (Jo 19,7).80 Somente por causa de seu discipulado
pós-ressurreição, sua solicitação do corpo de Jesus veio a ser considerada uma
solicitação oposta à que “os judeus” fizeram.81 Essa sugestão significa que, em
linguagem muito diferente, as tradições pré-evangélicas por trás de Marcos e por
trás de João estavam em harmonia quanto a sua visão de José, visão que não se
adaptou à perspectiva de nenhum dos dois evangelistas.

3. R á pid o e p e q u e n in íssim o se p u l t a m e n t o p o r J o s é .82 Pelo pouco que narram


a respeito das ações de José, os evangelistas (mesmo aqueles que o fazem discípulo
de Jesus) dão a impressão de um sepultamento eficiente, sem afetação.83 José solicita
a Pilatos o corpo de Jesus; a solicitação é concedida; José toma o corpo, envolve-o
em panos e o coloca em um túmulo (ali perto?). Não é feita nenhuma menção de
lavar o corpo ou ungi-lo imediatamente antes do sepultamento.84 Somente quando o

80 Essa não é a solução costumeira, pois muitos biblistas consideram a solicitação pelos judeus em Jo
19,31sse a solicitação por José duas tradições concorrentes incorporadas a João. Por exemplo, Boismard
(,Jean, p. 444-445) identifica cada tradição, com suas adições subsequentes, até a metade do versículo.
Em outra construção complicada, Loisy (Jean, p. 496) sugere que a tradição que se iniciou em Jo 19,31
foi continuada por Jo 19,40a.41-42, de modo que “eles” que sepultaram Jesus eram “ os judeus” . A isso
foram acrescentados os temas independentes do sepultamento por José (Jo 19,38) dos sinóticos e do
sepultamento por Nicodemos.
81 Por uma percepção tardia, era possível ver que, embora a intenção da solicitação judaica fosse hostil
depois que ela foi concedida, o fato de José realizar o sepultamento deu certo. Essa sutileza podia ser
percebida apresentando a solicitação duas vezes, uma com hostilidade e outra com melhor intenção.
82 Ao dividir o sepultamento em duas partes, a fim de obter unidades de extensão conveniente para co­
mentário, coloquei o sepultamento real na segunda parte (§ 47). Aqui, faço apenas um simples esboço
e deixo os detalhes para a segunda parte.
88 João traz um sepultamento mais elaborado, conforme o costume judaico, mas pela iniciativa de Nicodemos.
O relato joanino inicial das ações de José (Jo 19,38ab) não difere em essência do relato marcano.
84 Têm sido feitas tentativas de harmonizar a afirmação de José ser discípulo com o sepultamento pobre
que ele deu a Jesus, por exemplo: a de que ele ofereceu muitas das amenidades, mas os evangelistas não
acharam necessário mencioná-las (Blinzler— mas por que então os evangelistas mais tardios mencionam

438
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José

relato básico é modificado nos Evangelhos mais tardios sob o impacto do crescente
enobrecimento de José é declarado que o pano era alvíssimo, que o corpo foi lavado
(.EvPd ), que havia especiarias (João: mas mesmo então, nenhuma unção) e que o
túmulo era novo e até de José. Embora a necessidade de pressa fosse certamente
motivo para a parcimônia do sepultamento no relato básico, esse sepultamento
também combina com a descrição que o relato faz de José: alguém que foi motivado
pelo preceito (reino) de Deus expresso na lei segundo a qual os crucificados devem
ser retirados e sepultados antes do pôr do sol, mas alguém que a essa altura não
tinha nenhuma razão para homenagear o criminoso condenado.

Esbocei um relato pré-evangélico perceptível do sepultamento de Jesus por


José. (Se a presença de outras dramatis personae constitui ou não tradição antiga,
juntamente com detalhes a respeito do túmulo, será examinado na ANÁLISE de §
47.) Quanto disso é história? Que Jesus foi sepultado é historicamente certo. Que
a sensibilidade judaica queria que isso fosse feito antes do próximo sábado (que
também pode ter sido um dia de festa) também é certo, e nossos registros não nos
dão nenhuma razão para pensar que essa sensibilidade não foi respeitada. Que o
sepultamento foi feito por José de Arimateia é muito provável, pois uma criação
ficcional cristã (a partir do nada) de um membro do sinédrio judaico que faz o que
é certo é quase inexplicável, considerando a hostilidade nos escritos cristãos pri­
mitivos para com as autoridades judaicas responsáveis pela morte de Jesus. Além
disso, a designação fixa dessa personagem como “de Arimateia”, cidade muito
difícil de identificar e que não recorda nenhum simbolismo bíblico, torna uma
tese de invenção mais implausível ainda.85 O próprio fato de os Evangelhos mais

algumas amenidades, mas não as mais esperadas?); a de que, por respeito pela significação do sangue,
eles não lavaram o cadáver ensanguentado (Bulst e entusiastas do Santo Sudário); a de que José tentou
comprar especiarias, mas elas estavam em falta nas lojas (Gaechter, Shea). O caráter desesperado de
algumas dessas propostas é óbvio; é mais censurável que interpretem os Evangelhos pelo que não é
narrado pelos evangelistas porque, basicamente (mesmo que ineonscientemente), os que as propõem
discordam do que é narrado.
8a R. Mahoney (Two, p. 112) não crê que os relatos evangélicos sejam tão persuasivos na comprovação da
historicidade de José e seu papel no sepultamento. A conhecida ausência dos discípulos de Jesus no
sepultamento, alega ele, podería ter sido motivo para inventar um judeu proeminente de credenciais
irrepreensíveis. Mas por que inventar um membro do sinédrio, considerando a tendência cristã de uni­
versalizar a culpa do sinédrio visível em Mc 14,53 (“todos”); Mc 14,55 (“inteiro”); Mc 14,64 (“ todos”)?
Outra possibilidade que ele sugere é que um túmulo vazio fora de Jerusalém — suponho que ele se
refira ao associado ao sepultamento de Jesus — era ligado a essa figura de outro modo desconhecida.
Contudo, o fato de ser o túmulo de José só aparece nas camadas mais tardias do desenvolvimento evan­
gélico; a tradição muito antiga não identifica o túmulo. Se Marcos e João dão testemunho de uma tradição

439
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

tardios não terem de enobrecer José e aumentar a reverência do sepultamento dado


a Jesus mostra que os instintos cristãos não formaram livremente o que pressupus
ser o relato básico. Embora alta probabilidade não seja certeza, não há nada no
relato pré-evangélico básico do sepultamento de Jesus por José que não possa ser
plausivelmente considerado histórico.*86

(A bibliografia para este episódio encontra-se em § 45, Parte I.)

pré-evangélica a respeito de José, tão antiga que sua identidade já está sendo modificada, essa tradição
tem de remontar à primeira ou segunda décadas do Cristianismo, o que é um pouco cedo para criação
etiológica.
86 Bultmann (BHST, p. 274) caracteriza Mc 15,42-47: “ É um relato histórico que não dá nenhuma impres­
são de ser lenda, exceto pelas mulheres que aparecem novamente como testemunhas no v. 47 e nos vv.
44-45, que com toda a probabilidade não estavam no Marcos que Mateus e Lucas leram” . Taylor (Mark,
p. 599) julga essa citação uma simplificação, mas concorda a respeito das mulheres. Na próxima seção,
vou concluir também que a presença das mulheres aqui é provavelmente uma derivação regressiva de
sua presença na tradição do túmulo vazio.

440
§ 4 7 .0 sepultamento de Jesus,
segunda parte:
Colocação do corpo no túmulo
(Mc 15,46-47; M t 27,59-61;
Lc 23,53-56a; Jo 19,38b-42)

Tradução

M c 15,46-47:4ÍE, tendo comprado um pano de linho, tendo-o descido, com o


pano de linho ele o amarrou e pôs em um lugar de sepultamento que foi escavado
na rocha; e rolou uma pedra contra a entrada do túmulo. 47M a s M aria Madalena
e M aria de Joset estavam observando onde ele foi colocado.
M t 27,59-61: S9E tendo tomado o corpo, ]osé o envolveu em um pano de
linho branco limpo 60e colocou-o em seu túmulo novo, que ele tinha escavado na
rocha; e tendo rolado uma grande pedra na entrada do túmulo, ele foi embora.
6M a s M aria Madalena estava ali, e a outra Maria, sentadas em frente ao sepulcro.
Lc 23,53-56a: S3E tendo(-o) descido, ele o envolveu em um pano de linho e
colocou-o em um lugar de sepultamento escavado na rocha, onde ninguém tinha
sido depositado ainda. S4E era dia de preparação e o sábado estava raiando. 5SM as
as mulheres que tinham vindo com ele da Galileia, tendo seguido atrás, olharam
para o túmulo e como seu corpo foi colocado. 5éaMas, tendo retornado, prepararam
especiarias e mirra.
Jo 19,38b-42:38bEntão ele veio e retirou o corpo. 39M a s veio também N i-
codemos, o que primeiro viera até ele à noite, trazendo uma mistura de mirra e
aloés, aproximadamente cem libras. '“ Então eles pegaram o corpo de Jesus; e eles
ataram-no com panos junto com especiarias, como é o costume entre os judeus
para sepultar. 4M a s havia no lugar onde ele foi crucificado um jardim e no jardim,
um túmulo novo no qual ninguém havia sido colocado ainda. 42Então, ali, por ser
dia de preparação dos judeus, porque o túmulo estava perto, eles colocaram Jesus.

441
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

EvPd 6,24: E tendo pegado o Senhor, ele o lavou e amarrou com um pano
de linho e o levou a seu próprio sepulcro, chamado o Jardim de José.
EvPd 8,32: E tendo rolado uma grande pedra, todos os que estavam ali,
junto com o centurião e os soldados, colocaram (-na) contra a entrada do lugar de
sepultamento.

Comentário

Ao tratar do tipo de sepultamento dado a Jesus por José, descobrimos que,


enquanto os sinóticos diferem uns dos outros em detalhes, a diferença entre Mar­
cos e João é bastante nítida. A questão tem mais importância como teste para a
hipótese, antecipada na seção anterior (§ 46), de que, em uma forma primitiva da
tradição (representada por Marcos e talvez pela camada pré-joanina), José não era
discípulo de Jesus antes do sepultamento, mas piedoso membro do sinédrio inte­
ressado em cumprir a lei de ter os corpos dos crucificados sepultados antes do pôr
do sol. Como foi explicado ali (§ 46, sob “Atitudes judaicas em relação aos corpos
dos crucificados” ), desde os profetas até a Mixná havia a insistência para que al­
guém condenado segundo a lei israelita ou pelos tribunais judaicos não recebesse
sepultamento honroso. Um sepultamento honroso não seria dado a Jesus por um
membro do sinédrio que votara para que ele fosse condenado à morte por motivo
de blasfêmia. Entretanto, ao examinar a questão, somos parcialmente tolhidos pela
incerteza quanto ao que constituía um sepultamento honroso no tempo de Jesus. A
Mixná (Sabbat 23,5) menciona costumes de sepultamento, tais como lavar e ungir
o cadáver, vesti-lo e atar-lhe o queixo e fechar os olhos. Detalhes de um sepulta­
mento honroso são revelados na literatura narrativa judaica: aparar o cabelo, vestir
o cadáver com cuidado, cobrir a cabeça com um véu, talvez atar as mãos e os pés,
em vista de carregar o cadáver. Mas quantas dessas práticas eram costumeiras no
tempo de Jesus? Não há certeza, em especial porque é relatado que uma mudança
no estilo de sepultamento foi introduzida entre essa época e a Mixná.1 Quanto
aos costumes mencionados no NT, em um sepultamento honroso, Tabita (At 9,37)
é lavada e vestida em sua casa, enquanto em um sepultamento desonroso não é
mencionado que Safira e Ananias foram lavados (At 5,6.10). Nenhum Evangelho
canônico menciona que o corpo de Jesus foi lavado (embora EvPd 6,24 o faça) e
é bem possível que esse fosse o serviço mais básico que poderia ser prestado a

1 Rabban Gamaliel II (c. 110 d.C.) deve ter optado por costumes de sepultamento mais simples (TalBab
Mo'ed Qatan 27b).

442
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

alguém que morrera na cruz e estava coberto de sangue. (Mixná Oholot 2,2 espe­
cifica que sangue em um cadáver é impuro.) Unção e especiarias eram certamente
aspectos de um sepultamento honroso. Não são mencionados nos relatos sinóticos
do sepultamento honroso, mas Jo 19,40 relata: “ Então eles pegaram o corpo de
Jesus; e eles ataram-no com panos junto com especiarias, como é o costume entre os
judeus para sepultar”. At 8,2 relata que os homens devotos que sepultaram Estêvão
fizeram grandes lamentações por ele, mas não é mencionada nenhuma lamentação
por Jesus da parte de José ou mesmo das mulheres galileias.2 Assim, faltam singu­
larmente no relato marcano elementos que sugiram um sepultamento honroso para
Jesus, enquanto o relato joanino claramente concebe um sepultamento costumeiro
e, portanto, honroso. Com isso em mente, vamos estudar cada relato em detalhe.

Sepultamento de Jesus segundo Mc 15 ,4 6 -4 7

0 primeiro desses dois versículos descreve o sepultamento corporal de Jesus;


o segundo relaciona as observadoras.

Comprando um pano de linho, descendo o corpo, amarrando-


-o com o pano e enterrando-o (Mc 15,46a). Depois de Pilatos conceder o
cadáver (ptoma) a José, ele3 é descrito comprando um sindon, palavra que indica
o tipo de pano e/ou o que era feito dele. Primordialmente, sindon indica material
de linho de boa qualidade4 e secundariamente, algo como uma túnica, cortina, véu

2 Acho fraca a explicação para essa diferença com base no fato de Jesus ser condenado pelo sinédrio e
Estêvão não. Estêvão foi conduzido ao sinédrio e foi dado falso testemunho contra ele, e ele foi interrogado
pelo sumo sacerdote (At 6,12-14; 7,1), de modo que os membros do sinédrio podem bem ser “eles” que
se enfureceram contra ele, arrastaram-no para fora da cidade e o apedrejaram.
3 O sujeito do v. 45 era Pilatos, mas “José” foi a última palavra do versículo e, assim, se toma o sujeito do
pavticípio com o qual Marcos começa o v. 46.
4 Assim Blinzler, “ Othonia” , p. 160; Gaechter, “Zum Begrãbnis” , p. 220; Joiion, “Mathieu xxvii” , p. 59.
Entretanto, não se justifica afirmar que esse sindon era de tal qualidade que os leitores tinham de reco­
nhecer o sepultamento como honroso. (Byssos é o linho realmente de boa qualidade). Para especificar
que o sindon que ele tomou de Marcos condizia com um sepultamento feito para Jesus por um discípulo,
Mateus (Mt 27,59) acrescenta “branco limpo” (katharos). 0 argumento de Shea (“Burial” , p. 98), segundo
o qual, se José não fosse um discípulo de Jesus e estivesse apenas sepultando um criminoso, ele teria
envolvido o corpo em lençóis torcidos sujos, rasgados e em frangalhos, não faz sentido por dois motivos.
Primeiro, esse é um gesto apressado, improvisado de José. Devemos supor que ele iria para casa (em
Arimateia?) ou à cidade, em casa de amigos, pedir-lhes panos sujos? Ao contrário, ele foi comprar o
que estava prontamente disponível e, com certeza, as lojas não vendiam panos rasgados para enterrar
criminosos. Segundo, um pano de qualidade ao menos durável seria necessário para descer e carregar um
corpo manchado de sangue sem se rasgar, pois é assim que imaginamos ter sido transportado o cadáver

443
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

ou lençol desse material. A partir desse uso geral, não é fácil ser preciso quanto
ao tamanho e forma do sindon concebido aqui, e tudo o que ele pode significar é
que José comprou uma peça de linho. Embora os três sinóticos usem o termo no
sepultamento, o único outro caso neotestamentário da palavra está em Mc 14,51-
52, onde um sindon envolveu o jovem de tal maneira que ficou nas mãos dos que
o agarraram quando fugiu nu. Nessa analogia, muitos imaginam que o sindon do
sepultamento de Jesus tinha forma semelhante a um lençol ou uma toalha grande.
Entretanto, Blinzler (“ Grablegung”, p. 80) insiste que sindon se refere a diversos
pedaços de pano que correspondem na Mixná ao plural consistente de takrik para
vestes de sepultamento, e*5 ao uso no grego Vida de Adão e Eva 40 (fim do século
I?), onde Deus instrui Miguel para ir ao paraíso e “ me trazer três panos de linho
e seda [...] e estendê-los sobre Adão [...]. E eles trouxeram outros panos de linho
e prepararam também Abel”. Contudo, nada no relato sinótico faz alguém pensar
em mais que um pano;6 e certamente a literatura talmúdica atesta o uso, no sepul­
tamento, de um sadtn 7 ou pano de linho único, por exemplo, o rabino Judá ha-Nasi
foi sepultado em um só (Taljer KiEayim 9,3 [32b]).

Há quem pondere se José teve tempo suficiente para ir comprar esse pano,
pois Mc 15,42 nos diz que era “já o entardecer”.8 Parece ser inútil perguntar “ Havia
tempo suficiente?”, questões de uma narrativa que dá deliberadamente a impressão
geral de pressa, intercalada com indicações de tempo que não são precisas. Contudo,
tentativas de responder não deixam de ser interessantes. Blinzler (“ Grablegung”,
p. 61) afirma que José não tocou ele mesmo o corpo para não se tornar impuro (ver
Nm 19,11); em vez disso, mandou outros realizarem essa tarefa. Portanto, é preci­

de Jesus. Lc 7,12.14 descreve um corpo sendo carregado em um esquife, em um sepultamento honroso.


Büchler (“Enterrement” , p. 78-79,83) relata que, nos tempos da Mixná, um esquife (ou cama) era usado
se o sepultamento era perto, e um caixão se o sepultamento era longe; usar uma coisa tosca como um
esquife de cordas era o tipo de tratamento dado ao cadáver de um criminoso.
5 Por exemplo, KiVayim 9,4; Sabbaí 23,4; Sanhedrin 6,5.
6 Se os leitores soubessem que deveria haver vestes de sepultamento no plural, a menção de apenas uma
transmitiría o caráter mínimo do sepultamento. Mas não vejo razão para achar que os leitores de Marcos
tinham tal conhecimento. O Evangelho dos Hebreus (fragmento 7; HSNTA, v. 1, p. 165; ed. rev., v. 1, p.
178), que parece ser independente dos Evangelhos sinóticos, fala de um sindon.
' Sindon ocorre só quatro vezes em todo o AT grego, e essa é a palavra que ele traduz. Para obter o sentido
plural, o plural de cada um é usado nessas ocasiões.
8 Existe um problema adicional para os que pensam que para Marcos Jesus morreu no dia que começou
com a refeição da Páscoa. Seria possível comprar pano nesse dia de festa? JEWJ 77 afirma, como sempre,
que era possível, com base em Mixná Sabbat 23,4.

444
§ 47.0 sepultam ento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

so entender os verbos que descrevem sua ação de modo causai: “tendo mandado
comprar um pano de linho” — cooperação que apressou o processo. Do mesmo
modo, embora pareça que Marcos faz o próprio José “descer” 9 Jesus, José fez ou­
tros descerem-no. Às vezes, a confirmação disso encontra-se nas palavras ditas no
túmulo vazio em Mc 16,6: “ Vede o lugar onde eles o puseram”.

A única preliminar do sepultamento relatada por Marcos é que José


“amarrou” 10 o corpo de Jesus no material de linho, isto é, o mínimo que alguém
poderia fazer pelos mortos. Essa moderação deixa perplexos muitos que consideram
o José marcano discípulo de Jesus. (Midraxe Sipre a respeito de Dt § 221 indica
que é melhor deixar o corpo exposto a noite toda que enterrá-lo sem a preparação
apropriada, embora seja discutível se essa permissividade se aplicaria em Jerusa­
lém, a cidade santa.) Há quem pressuponha que o relato evangélico é condensado
e que certamente os leitores sabiam que José devia ter lavado o sangue. Nenhuma
dessas suposições (§ 46, nota 84) é necessária se José não era discípulo e não
sentia nenhuma obrigação de cuidar do crucificado além de enterrá-lo. Em Betânia,
Mc 14,8 faz o corpo de Jesus ser ungido por uma mulher antes do sepultamento
e isso era proléptico, precisamente porque Marcos não tinha nenhuma tradição
de unção (ou de outros atos bondosos) realizada para o corpo de Jesus depois de
sua morte.11 A unção em Betânia, antes da Paixão, foi o único item apropriado a
um sepultamento honroso que se diz ter o Jesus marcano recebido; e seria de se
esperar que a audiência de Marcos se lembrasse dela, pois “ Onde for anunciado
o Evangelho, no mundo inteiro, o que ela fez será mencionado em memória dela”.

Para descrever o sepultamento de um cadáver, o verbo katatithenai (“depo­


sitar, pôr” ), encontrado no texto koiné de Marcos, é raro no NT, e nos Evangelhos
ocorre só aqui. Nestle-Aland (26a edição) prefere ler, com os Códices Sinaítico e

9 O verbo kathairein usado por Marcos é a expressão técnica para retirar alguém da cruz (Josefo, Guerra
IV,v,2; #317; Fílon, In Flaccum 83).
10 Eneilein significa confinar uma coisa ou pessoa dentro de algo, por exemplo, um prisioneiro em grilhões,
ou uma criança em faixas; para Ghiberti (Sepoltura, p. 49), significa que o corpo foi envolvido firmemente.
E de se presumir, então, que o material de linho não só cobriu Jesus, mas também o envolveu.
11 Assim Daube, “ Anoiting” . Ele sugere que uma narrativa onde originalmente uma mulher ungia os pés
de Jesus (Lc 7,38 — ou talvez chorava sobre eles?) foi colocada imediatamente antes da NP em Marcos/
Mateus e, como o corpo de Jesus não foi ungido antes do sepultamento, a ação dessa mulher veio gradual­
mente a ser entendida como unção antecipada do corpo de Jesus (Mc 14,8; Mt 26,12) em preparação para
a morte e o sepultamento. No final da trajetória, Mateus elimina a unção pós-sepultamento pretendida
pelas mulheres (Mc 16,1; Lc 23,56a), desse modo fazendo a ação da mulher a única unção de Jesus.

445
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Vaticano, tithenai, o verbo usado por Mateus e Lucas (e Jo 19,42). Entretanto, é


difícil imaginar um escriba mudando um tithenai original para um katatithenai
incomum, e quebrando a harmonia evangélica comparativa, enquanto a mudança
do katatithenai marcano para tithenai, a fim de harmonizar com Mateus e Lucas,
é procedimento bastante compreensível dos escribas. Uma variedade de palavras
gregas sinônimas12 é usada nos Evangelhos para designar o lugar onde Jesus foi
sepultado e é útil identificar as diversas traduções que uso para distinguir as res­
pectivas palavras gregas e apresentar estatísticas de uso:13

mnema (“lugar de sepultamento” ): Marcos 2; Lucas 2; EvPd 6.

mnemeion (“túmulo” ): Marcos 5; Mateus 3; Lucas-Atos 7; João 9; EvPd 3.

taphos (“sepulcro” ): Mateus 4; EvPd 7 (entaphiazein, “colocar em um se­


pulcro” : Mateus 1, João 1; thaptein, “sepultar” : ICor 15,4; At 2,29).

Marcos relata que o lugar de sepultamento foi escavado na rocha, prática


atestada em Is 22,16 e frequente nos tempos neotestamentários, com pedreiras
muitas vezes servindo de locais apropriados para essas escavações. Como mencio­
namos em § 40, #1, o Gólgota era, ao que tudo indica, uma colina arredondada
que se elevava do chão de uma pedreira, protuberância rochosa que não servia
para extrair pedras, mas conveniente para talhar túmulos.

Rolando uma pedra contra a entrada do túmulo (Mc 15,46b). A


descrição encontrada aqui levanta a questão de Marcos (e/ou os outros evangelis­
tas) terem concebido um túmulo talhado na rocha vertical ou horizontalmente, pois
foram encontrados os dois tipos de túmulos judaicos, com aberturas verticais mais
comuns para sepultamento particular. Duas indicações são pertinentes. A primei­
ra é que José “rolou uma pedra contra a entrada [thyra] do túmulo”. A “ pedra” é
mencionada em todos os Evangelhos (não aqui, mas depois da Páscoa em Lc 24,2

12 Deve-se rejeitar como tentativas de hipercrítica (por exemplo, E. Hirsch) usá-las para detectar diferentes
fontes marcanas; com efeito, em Mc 5,2.3.5, do mesmo modo que aqui, mnema e mnemeion são inter-
cambiáveis. Igualmente implausível é a tentativa de Bomháuser (Death, p. 185) de distinguir taphos
como a depressão (na qual Jesus foi colocado) dentro da câmara mortuária na qual Jesus foi depositado
(mnemeion).
13 As estatísticas abrangem o uso nos relatos da Paixão e da Páscoa em relação ao corpo de Jesus, não o uso
neotestamentário geral. Os dois primeiros substantivos da lista relacionam-se entre si e sua raiz significa
“ memorial” . A melhor leitura no início de Mc 15,46b é mnema, com os Códices Sinaítico e Vaticano;
mas Nestle-Aland (26. ed.) aceita mnemeion do koiné, que, a meu ver, foi harmonizado com o mnemeion
no final do versículo.

446
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

e Jo 20,1). Mateus e o EvPd especificam que a pedra era grande, enquanto Mc 16,4
explica que ela era “ muito grande”. Os três sinóticos usam uma forma ou formas do
verbo “rolar” (proskyliein, apokyliein, anakyliein; o EvPd usa o simples kyliein).
Em Marcos/Mateus, José rola a pedra; Lucas e João não identificam o agente; em
EvPd 8,32, a pedra é rolada e colocada contra a entrada do túmulo por todos os
que estavam lá junto com o centurião e os soldados. Embora seja possível cobrir
com uma pedra o buraco que serve de entrada para uma abertura vertical, a lin­
guagem de rolar uma pedra contra a entrada não condiz com esse tipo de túmulo.14*
A segunda indicação é que o “outro discípulo” em Jo 20,5 se inclinou para olhar
dentro do túmulo, mas não entrou. Essas duas indicações encaixam-se bem em um
túmulo talhado na encosta de uma configuração rochosa e no qual se entra por uma
pequena abertura, semelhante a uma janela no nível do solo, com no máximo um
metro de altura, de modo que adultos teriam de se curvar para olhar ou engatinhar
para dentro. (Hoje, os “ Túmulos dos Reis”, a aproximadamente 800 metros ao norte
da muralha da cidade velha em Jerusalém, em uma pedreira, oferecem excelente
exemplo desse tipo de lugar de sepultamento.11) E ssa abertura era fechada por
uma grande pedra lisa rolada contra ela; ou para túmulos mais elaborados havia
uma placa de pedra com formato de roda que podia ser rolada em um trilho de um
lado a outro da entrada, com o efeito prático de uma porta deslizante. Parece que
Mt 28,2 supõe16 uma grande pedra lisa, pois o anjo que removeu a pedra senta-se
sobre ela — uma pedra em forma de roda teria mais probabilidade de ser rolada
de volta em uma reentrância ou parte plana da rocha, do lado de fora do túmulo, e
assim não estaria disponível para sentar.

14 Jo 20,1 usa o verbo airein para descrever a pedra removida, mas não é preciso traduzir “ tirar” , como se
João imaginasse um túmulo de abertura vertical com a pedra em cima. O verbo ali significa “retirar” , do
mesmo jeito que no versículo seguinte, com referência ao corpo de Jesus. O propósito normal da colocação
dessa pedra era evitar que animais entrassem, em especial os que comeríam os corpos. Entretanto, na
imagem marcana, onde José era membro do sinédrio (e não, de maneira discemível, discípulo de Jesus),
fechar o túmulo talvez tivesse o propósito de impedir a entrada das mulheres seguidoras de Jesus que
estavam observando onde Jesus era colocado. Ouvem-se ecos disso na insistência de que a pedra era
(muito) grande, de que na Páscoa as mulheres estavam preocupadas a respeito de quem removería a
pedra para elas (Mc 16,3), e de que os guardas lacraram a pedra (Mt 27,66; EvPd 8,33).
13 Os túmulos do sinédrio nessa mesma região também estão em uma pedreira. Ver excelentes ilustrações
e explicações de túmulos em FANT, p. 181-219.
16 Devemos nos lembrar de que não há prova de algum dos evangelistas canônicos, que não foram eles
mesmos testemunhas oculares e escreveram trinta a quarenta anos depois do acontecimento, ter visto o
túmulo de Jesus. Sob a influência de túmulos que eles tinham realmente visto, cada um descreve o que
supôs ter sido o túmulo de Jesus (assim Ghiberti, Sepoltura, p. 63).

447
Q uarto «to •JesusécrucificadoemorrenoGélgota.Ésepultadoali perto

Como era o túmulo de Jesus por dentro? Quase sempre, os túmulos nos
quais se entrava por uma abertura horizontal tinham vários cômodos semelhantes
a grutas, com altura suficiente para adultos ficarem de pé,17 e ligados por túneis.
(Um túmulo desses podia começar com um cômodo para sepultamento e se expan­
dir para outros, conforme surgia a necessidade; ao descrever o túmulo de Jesus,
deve ser lembrada neste contexto a afirmação de que era um túmulo novo.) Nesses
túmulos, havia diversas maneiras de providenciar o sepultamento, às vezes apare­
cendo em combinação, mesmo que nem sempre esteja claro se sepulcros de estilos
diferentes estavam em uso na mesma época. Populares, especialmente na área de
Jerusalém, desde os tempos helenísticos, eram os koktm, isto é, lóculos (ou seja,
compartimentos grandes e fundos), com cerca de 30 ou 60 cm de largura e altura,
escavados horizontalmente na parede rochosa da gruta, a uma profundidade de 1,5
a 2 metros, podendo cada um receber um cadáver, a cabeça primeiro. Outro plano
compreendia um banco de pedra escavado ao redor de três lados dos cômodos, so­
bre o qual eram colocados corpos (ou com mais frequência ossuários). Ainda outro
plano compreendia um arcossólio ou nicho semicircular a mais ou menos um metro
do chão, formado escavando-se as paredes laterais da gruta a uma profundidade
de aproximadamente sessenta centímetros. 0 nicho, com o formato de meia-lua,
tinha no fundo uma saliência plana sobre a qual era depositado um cadáver ou, às
vezes, um recipiente no qual o corpo era colocado.18 Nenhum relato evangélico nos
diz que tipo de sepultamento foi imaginado; mas a história das mulheres no túmulo
vazio em Marcos (Mc 16,5 talvez pressuponha uma antessala com um banco, pois
descreve um jovem sentado dentro, à direita. Sepulturas judaicas a no máximo
vinte metros do túmulo tradicional de Jesus (o Santo Sepulcro) eram do tipo kokím,

17 A altura era quase sempre conseguida cavando-se buracos no chão. Especialmente útil para entender
esses túmulos é Puech, “ Nécropoles” . Ver em Liebowitz, “Jewish” , p. 108-111, uma série de tipos de
túmulos descobertos na arqueologia recente e também especificações da Mixná.
18 Já a partir do século I d.C., as câmaras de sepultamento dos ricos podiam ter grandes sarcófagos, escavados
na rocha (evolução dos arcossólios cavados) ou, o que era mais raro, soltos e independentes. Essa forma
de sepultamento tomou-se mais popular no século II d.C. Além de esquifes e caixões de madeira usados
para transportar corpos, a arqueologia mostra que o primeiro sepultamento em um túmulo era na madeira
(requisito na Mixná, Mo’ed Qatan 1,6) até terminar o tempo de decomposição e o ressepultamento ser
possível. Ossuários de calcário mole ou caixas de ossos eram para o o ressepultamento e muitos foram
recuperados do período imediatamente anterior a 70 d.C. Em parte, isso acontecia por razões práticas
(a coleta dos ossos permitia a reutilização dos túmulos), mas, o que era mais importante, por razões
religiosas (crença na ressurreição e na vida após a morte); ver Figueras, “Jewish” . Às vezes os ossos de
mais de um cadáver eram colocados no mesmo ossuário.

448
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

enquanto na área próxima um túmulo de família da época de Jesus consistia em


uma câmara com sepulturas em saliências de arcossólios dos dois lados. Jo 20,12
talvez pressuponha que o corpo de Jesus foi colocado sobre um banco ou sobre a
saliência de um arcossólio, pois há dois anjos, um sentado à cabeceira e o outro
aos pés do lugar onde Jesus ficara. Reconstruções do túmulo de Jesus baseadas no
conhecimento do lugar venerado na igreja do Santo Sepulcro indicam um arcossólio.19
Embora muito se tenha aprendido recentemente a respeito da história arquitetural
desse local (como vou relatar na subseção C da a n á l is e ) , não se pode esperar um
conhecimento mais detalhado dessa fonte.

Marcos nada nos diz a respeito de quem era dono do local de sepultamento,
nem por que José tinha permissão para usá-lo. Duas respostas propostas para essas
questões refletem-se na questão discutida em § 46, a saber, se Marcos descreve
um José que ainda não era seguidor de Jesus. A primeira das duas busca fazer
sentido do silêncio de Marcos a respeito de elementos que tornariam honroso o
sepultamento de Jesus — silêncio que subentende ter sido Jesus sepultado como
alguém que fora crucificado depois de ser condenado por um sinédrio. Fora dos
muros de Jerusalém,20 adjacente ao lugar da crucificação, pode bem ter havido
lugares de sepultamento para criminosos condenados, isto é, buracos escavados
na parede rochosa da colina usada para execução. Nos dias em que os romanos
deixavam os corpos serem descidos da cruz, lugares de sepultamento perto eram
uma necessidade, já que os corpos deviam ser recolhidos antes do pôr do sol. Dis­
tinto membro do sinédrio, José talvez tivesse acesso aos túmulos que serviam para
os que o sinédrio condenava. Então, em um desses túmulos perto da cruz,21 o José
marcano, agindo coerentemente como judeu piedoso observante da lei, poderia ter
colocado o cadáver de Jesus. As objeções a essa proposta baseiam-se nos outros
Evangelhos (por exemplo, a afirmação mateana de que o túmulo era de José) e em
indícios arqueológicos. Na igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, há algumas ru-

19 0 ’Rahilly, “ Burial” , p. 152; Puech, “Nécropoles” , p. 54; Bahat, “ Does” , p. 32.


20 Nos tempos tanaíticos (c. século II d.C.), passou a ser costume o cemitério para criminosos ser longe
(Klein, Tod, p. 64-99). Nos tempos neotestamentários, parece que o sepultamento deles fora da cidade
era suficiente (Mc 12,8; At 14,19).
21 O “ perto” está nos Evangelhos sinóticos por dedução, pois nenhum deles menciona carregar o corpo de
Jesus para o lugar de sepultamento, ação que não podia ter percorrido qualquer distância devido à hora
e ao sábado que se aproximava. (Carregar um corpo no sábado violaria a lei; ver Jo 5,10; Mixná, Sabbat
10,5.) Jo 19,41-42 faz explícita a proximidade do túmulo do local da crucificação.

449
Quarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

ínas do que tem sido tradicionalmente identificado como o túmulo de Jesus. Parece
que, se é genuíno, o túmulo indica um lugar de sepultamento mais elaborado que
os que eram fornecidos para o sepultamento de criminosos.22

A segunda resposta recorre a Mt 27,60, onde José usa seu próprio túmulo.
Essa resposta tem o atrativo de apresentar uma explicação simples da razão do
lugar de sepultamento estar à disposição de José para um sepultamento tão ex­
temporâneo. Há muitas objeções a ela e também alguns indícios corroborantes. À
guisa de objeções, no NT a informação só é fornecida por Mateus23 e faz parte da
expansão mateana do papel de José. Se, transcendendo Marcos, ele fez José discí­
pulo de Jesus, será que Mateus identificou o lugar de sepultamento como túmulo
de José precisamente porque isso explicaria por que ele estava disponível para
uso no sepultamento de Jesus? Contudo, em outra passagem, Mateus tem acesso a
uma tradição popular a respeito de Jerusalém (Mt 27,6-8: o “ Campo de Sangue”,
comprado com as moedas de prata de Judas para ser cemitério de forasteiros); e,
talvez, aqui também ele tivesse acesso a uma antiga tradição a respeito do túmulo.
O uso por José de seu túmulo harmoniza-se com a tese de que ele ainda não era
discípulo de Jesus, supondo-se que, em sua ansiedade para ter Jesus sepultado
antes do pôr do sol, ele estava disposto a deixar seu túmulo servir de receptáculo
temporário para o corpo do crucificado até o sábado terminar.24 (Entretanto, não
há nada no relato marcano que sugira ser esse um sepultamento temporário.) Qual
a probabilidade de um influente membro do sinédrio ter seu túmulo particular tão
próximo a um lugar de execução? Blinzler (“ Grablegung”, p. 85) tenta evitar o
problema alegando que não temos certeza de se o Gólgota era um lugar usual para
execução pública. Ou devemos pensar que escolher um lugar de sepultamento bem

22 Se Mc 16,5 subentende que o túmulo tinha uma antecâmara, isso também sugere uma estrutura elaborada.
Entretanto, o uso marcano de mnema e mnemein (a raiz significa “memorial” ; nota 13 acima) para o lugar
de sepultamento ou túmulo de Jesus dificilmente prova alguma coisa. Como indica BAGD 524, essas
palavras são termos genéricos para “sepultura” ou “túmulo” . Em At 13,29, o sepultamento de Jesus em
um mnemeion é ação hostil, ao que parece pelos inimigos judeus de Jesus. Além do mais, se a opção for
pela conotação de “memorial” , isso reflete a veneração cristã do local.
23 Nenhum outro Evangelho canônico declara que o túmulo pertencia a José. Isso é afirmado por EvPd
6,24, mas quase com certeza na dependência de Mateus.
24 Essa possibilidade aumentará se a informação de que esse era um túmulo novo, jamais usado antes (Mt
27,60; Lc 23,53; Jo 19,41), for histórica, pois então José não contaminaria membros mortos da família
colocando entre eles o cadáver de um criminoso.

450
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

perto da cidade santa25 era mais importante para os piedosos que a indesejabilidade
do Gólgota adjacente? (Externamente, túmulos magníficos do século I ainda estão
de pé no Vale do Cedron paralelo à ponta meridional das muralhas de Jerusalém,
lugar excelente, apesar de ser perto da indesejável Geena.)

Embora a primeira resposta tenha a vantagem metodológica de não depender


de informações de fora, a escolha de uma em vez da outra representa pouco mais que
uma conjetura, pois há outras possibilidades das quais não temos nenhuma prova,
por exemplo, o uso por José do túmulo de um amigo. É provável que Marcos jamais
esperasse que os leitores perguntassem a respeito da disponibilidade do túmulo.

As duas Marias (Mc 15,47). Tendo terminado a história de José quando


ele fecha o túmulo, Marcos volta nossa atenção para duas outras figuras da histó­
ria do sepultamento. Os leitores devem consultar o Quadro 8 (§ 41), que compara
essas galileias (e a forma como elas são identificadas) em três cenas marcanas
inter-relacionadas: observando de longe quando Jesus morreu (Mc 15,40-41: três
mulheres com os nomes citados); aqui (duas mulheres com os nomes citados); e
indo ao túmulo na Páscoa para ungir o corpo de Jesus (Mc 16,1: três mulheres com
os nomes citados). As duas primeiras das três mulheres descritas na cena inicial
(“ Maria Madalena e Maria mãe de Tiago Menor e de Joset” ) são mencionadas aqui
no sepultamento,26 mas a segunda, de forma abreviada: “ Maria de Joset”.2' Essas
duas (mais Salomé) também vão estar na cena da Páscoa: elas observaram Jesus
morrer; aqui, elas observam seu sepultamento nesse túmulo; elas vão encontrar
esse mesmo túmulo vazio. Notemos que, em Marcos, elas não se envolvem no
sepultamento,28 nem lamentam, como as mulheres da época estavam acostumadas
a fazer, nem mesmo expressam compaixão; Marcos está interessado apenas no ato

25 Mixná Baba Batra 2,9 insiste que as sepulturas sejam mantidas a cinquenta côvados (cerca de trinta
metros) distantes da cidade.
26 Alguns biblistas acham que Marcos cita duas mulheres a fim de cumprir o requisito da lei (Dt 19,15:
“Somente com a prova de duas ou três testemunhas uma acusação será admitida”), mas isso não explica
por que ele não manteve as três mulheres. Além do mais, havia limitações para as mulheres como tes­
temunhas (§ 44 A, acima).
2| Ver em § 44, nota 34, teorias que explicam as formas longa e curta da designação dessa Maria. Há mui­
tas leituras variantes do(s) nome(s) do filho aqui, mas “ Maria de Joset” é a mais bem atestada (Códice
Vaticano e alguns testemunhos koiné).
28 Em minha interpretação onde o José marcano não é discípulo amigável de Jesus, as discípulas mulheres
não têm permissão para participar. Contudo, a impressão básica na narrativa preservada é a de não
envolvimento.

451
Q uarto ato ■Jesus écrucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

de elas observarem. O tempo imperfeito (“estavam observando” ) significa que as


mulheres ficaram ali algum tempo e, assim, provavelmente durante todo o curto
processo de sepultamento. Esse tempo não deve ser enfraquecido e transformado em
imperfeito conativo (B. Weiss), “estavam tentando/querendo observar”, em especial
se isso levar à dedução de que elas, de fato, não observaram. (Por que, então, Marcos
as teria mencionado? Ele descreve uma sucessão de testemunhas para ligar o local
do sepultamento e o da ressurreição.) A oração com o tempo perfeito de tithenai
(“onde ele foi/tinha sido colocado” ) dá proeminência ao “onde”, precisamente porque
essas mulheres virão ao mesmo lugar na Páscoa. Contudo, não se deve forçar para
isso significar que as mulheres observaram apenas o lugar, e não a colocação (Mc
15,46: katatithenai) do corpo. (Por que, então, Marcos usaria o imperfeito “estavam
observando” ?) Reparemos que Lc 23,55, que revela conhecimento de Mc 15,47,
se refere às mulheres vendo não só onde, mas também como o corpo foi colocado.

Sepultamento de Jesus segundo M t 27,5 9-6 1

Em relação a Marcos, esse relato foi influenciado pela descrição mateana


de José como discípulo de Jesus antes do sepultamento, de modo que ele está cla­
ramente sepultando o mestre, não um criminoso condenado. Pilatos ordena que o
corpo seja devolvido a José, presumivelmente pelos soldados romanos (Mt 27,58).
Por conseguinte, José precisa apenas tomar (lambanein ) o corpo deles, não descê-lo
da cruz, como em Mc 15,46 (kathairein ). A apressada improvisação de comprar
material de linho de última hora é omitida; é de se presumir que o rico José mateano
estava preparado para uma resposta afirmativa de Pilatos e tinha o material à mão.
0 emprego mateano indireto da informação marcana de que o pano de linho foi
comprado há um instante atrás encontra-se em sua especificação de que o sindon
era katharos. Normalmente, isso significava “ limpo” e mantive esse sentido na
tradução, como sinal de atitude reverente no sepultamento. O elemento adicional
de “branco” origina-se do estudo meticuloso por Joüon (“ Matthieu xxvii” ), segundo
quem o adjetivo refere-se ao caráter fortemente alvejado do linho e sua genuína
brancura.29 Além disso, de modo mais reverente, Mateus descreve o que foi feito
ao corpo de Jesus (não a “ele”, como em Marcos). 0 uso de entylissein (“envolver” )
por Mateus é uma das famosas concordâncias com Lucas (Lc 23,53), ao contrário

29 Ver Ap 15,6; 19,8.14; o verbo relacionado, katharizein, é usado em SI 51,9, em paralelismo com lavar e
produzir um estado mais branco que a neve.

452
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

do enelein marcano. O verbo entylissein também se encontra em Jo 20,7; assim,


na última parte do século I, tornara-se parte da linguagem padrão pertinente ao
sepultamento. Independente um do outro, Mateus e Lucas preferiram-no ao prosaico
“amarrar” marcano. Mateus e Lucas (e Jo 19,42) também concordam no uso de
tithenai normal, em vez do raro katatithenai marcano; será que eles acharam um
tom pejorativo nesse verbo, do qual uma das conotações é livrar-se de um fardo?

Em Mateus, a principal inovação a respeito do lugar de sepultamento é


que o túmulo pertence a José e é novo. 0 primeiro item, que se adapta à imagem
de um discípulo sendo generoso no sepultamento do mestre, reflete uma dedução
por Mateus: se José tinha liberdade para usar o túmulo e era rico, com certeza o
túmulo era seu.30 Ou essa era uma lembrança concreta? (Acima, ao estudar que
tipo de túmulo Marcos imaginou, vimos os pontos fortes e fracos dessa afirmação.)
Ou, depois de se tornar cristão, esse judeu abastado comprou o túmulo no qual
tinha sepultado Jesus? A resposta à origem da propriedade de José talvez esteja
em ainda outra direção. EvPd 6,24 mostra a evolução de um topônimo, “o Jardim
de José”. Nessa analogia, na época de Mateus, foi o túmulo associado à atividade
de José ao sepultar Jesus indicado como “ túmulo de José” e foi isso simplificado
para o túmulo que José possuía?31

Quanto ao túmulo ser novo, Jo 19,41 está de acordo com Mateus: “ Havia
[...] no jardim um túmulo novo no qual ninguém havia sido colocado ainda”. Mais
uma vez, Curtis (“ Three”, p. 443) usa isso como prova da dependência joanina
de Mateus. Julgo-o antes sinal de que os dois evangelistas foram influenciados
por uma tradição de José em expansão,32 pois a mesma ideia é transmitida por Lc
23,53 e Jo 19,41, na linguagem de um lugar ou túmulo no qual ninguém já tinha
sido depositado/colocado. Em todos os Evangelhos, o relato do sepultamento e do
túmulo foi influenciado pelo relato subsequente da descoberta do túmulo vazio e
da proclamação de que Jesus ressuscitou. Exatamente como nos Evangelhos mais
tardios, o relato do túmulo vazio mostra a influência da apologética que se opõe
aos argumentos dos adversários contra a ressurreição, e também ao relato do se-

30 Ver em § 46, nota 2, o uso imaginoso desse túmulo como diferente daquele no qual as mulheres viram
Jesus ser colocado; ver em § 46, nota 49, a sugestão da origem em Is 53,9.
31 Ver a probabilidade de ser o túmulo de Jesus lembrado e venerado em C, na a n á l is e abaixo.
32 Do mesmo modo, parece que os dois foram influenciados independentemente pela tradição de uma
aparição pós-ressurreição de Jesus a Maria Madalena.

453
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

pultamento. O corpo de Jesus não podería ter sido confundido com outro corpo no
túmulo e depois perdido, pois o túmulo era novo.33

A descrição mateana do fechamento do túmulo não é muito diferente da de


Marcos. Mateus usa o lithos marcano para a “pedra” que fecha o túmulo e que será
rolada para trás por um anjo em ligação com o grande terremoto no domingo de
manhã (Mt 28,2), não a petra que ele usou ao descrever o terremoto e as “rochas”
que se partiram, e que levaram à ressurreição dos santos quando Jesus morreu
(Mt 27,51-52) — material que veio da fonte não marcana popular disponível para
Mateus. Ao relato marcano, Mateus acrescenta aqui o detalhe de que a pedra era
grande (informação que Marcos retém até descrever o túmulo aberto em Mc 16,4).34
E compreensível que o túmulo de um rico fosse de um padrão que exigia uma pedra
grande para fechamento. Mateus também acrescenta que José “foi embora” depois
de fechar o túmulo, de modo que as mulheres que são mencionadas em seguida
implicitamente permanecem ali sozinhas.35 Exatamente como para Marcos, também
para Mateus os leitores devem rever o Quadro 8 em § 41, a fim de perceber a ligação
entre as três cenas nas quais as galileias aparecem: na morte de Jesus, observan­
do de longe (Mt 27,55-56, onde três mulheres têm o nome mencionado); aqui, no
sepultamento (duas mulheres têm o nome mencionado); e indo ver o sepulcro na

33 Shea (“Burial” , p. 102) não percebe o fator apologético e tenta usar o fato de ser o túmulo novo histo­
ricamente como prova de que Jesus foi sepultado em um túmulo dispendioso. Não há nada nos relatos
evangélicos que apoie a sugestão de Bultmann (John, p. 680), segundo a qual o fato de ser novo mostra
que o túmulo ainda não foi profanado e, assim, é adequado para a santidade do corpo de Jesus. Como
mencionado na nota 24 acima, há quem relacione o túmulo novo com a preocupação judaica de que
restos mortais de parentes antepassados venerados seriam contaminados se o corpo de um criminoso
crucificado fosse introduzido em um túmulo já usado. Entretanto, os dois Evangelhos (Mateus, João) que
chamam o túmulo de “ novo” apresentam José como discípulo de Jesus; e, nessa situação, o corpo do
venerado mestre de José certamente não traria desonra a um túmulo de família já em uso.
34 R. H. Fuller (Formation, p. 54) atribui a retirada dessa pedra à forma mais primitiva da tradição da res­
surreição. Contudo, isso não justifica as tentativas de outros biblistas de usar o tamanho da pedra como
informação histórica que constitui outra prova de que o túmulo de Jesus era luxuoso. É má metodologia
ignorar o propósito com o qual os evangelistas narram detalhes e usar esses detalhes para criar uma
imagem histórica que os evangelistas talvez nunca tenham imaginado. A razão para mencionar o tamanho
da pedra é aumentar o elemento milagroso no fato de estar a pedra removida quando as mulheres visitam
o túmulo no domingo.
35 Que a função de “foi embora” é transferir a atenção para as mulheres é muito mais plausível que a tese
de Schreiber (“ Bestattung” , p. 160), segundo a qual Mateus contrasta a partida de José para observar o
sábado com a ação contínua das autoridades judaicas que gastam tempo no sábado para conseguir que
uma guarda seja colocada no túmulo de Jesus (Mt 27,62-66). Na verdade, Mateus não menciona “ sábado”
com nenhuma dessas duas ações.

454
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

Páscoa (Mt 28,1: as mesmas duas têm o nome mencionado). Seguindo o exemplo de
Marcos, Mateus só cita no sepultamento as duas primeiras mulheres que mencionou
na cena inicial (Mt 27,56: “ Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago e de José” ), e
abrevia a designação da segunda mulher para “a outra Maria”. O que é diferente
é Mateus não dizer, como fez Marcos, que as mulheres estavam observando onde
Jesus era colocado. Isso acontece por Mateus ter um senso judaico de como o valor
legal do testemunho delas era limitado? Ou os leitores presumiríam que, como as
mulheres “estavam” (imperfeito) ali sentadas bem em frente ao sepulcro, natural­
mente observaram o sepultamento? De qualquer modo, parece que as mulheres
tinham ido embora no dia seguinte, quando (em uma cena tipicamente mateana)
uma guarda de soldados protege o sepulcro e lacra a pedra em sua entrada (Mt
27,65). E digno de nota que, em referência às mulheres, Mt 27,61 introduz a palavra
taphos (“sepulcro” ) em vez de mnemeion (“túmulo” ), que ele usou com referência
a José; esse novo termo passa do relato da guarda (Mt 27,64.66) para a visita das
mulheres na manhã de Páscoa (Mt 28,1).

Sepultamento de Jesus segundo Lc23,53-56a

O relato lucano desta cena divide-se quase igualmente entre o sepultamento


por José e o que as mulheres estavam fazendo, pois Lucas dá a estas últimas mais
atenção do que Marcos/Mateus.

O sepultamento por José (Lc 23,53-54). Ao contrário de Mateus, Lucas


não fez José discípulo de Jesus antes do sepultamento; contudo, o José lucano não
concordou com a decisão do sinédrio contra Jesus. Portanto, o motivo de José para
sepultar Jesus, além de realizar um ato piedoso (visão de Marcos), incluía respeito
e pena. Como Mateus, Lucas omite a primeira oração marcana, “tendo comprado
um pano de linho”, presumivelmente por uma razão semelhante: sabendo que uma
injustiça estava sendo cometida, José já começara a fazer reparação preparando o
sepultamento. Ao contrário de Mateus (onde os que estão sob as ordens de Pilatos
entregam o corpo de Jesus), mas como Marcos, em Lucas José desce o corpo. Como
foi explicado em relação a Mateus, Lucas também prefere o que se tornou o verbo
mais comum, entylissein (“envolver” ), ao eneilein marcano (“amarrar” ) para des­
crever como o corpo de Jesus foi envolvido em um sindon. Outra vez com Mateus,
ele prefere o tithenai mais usual ao katatithenai marcano (“pôr, depositar” ) para
colocar o corpo de Jesus na sepultura. Contudo, com Marcos, Lucas usa mnema

455
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

(“lugar de sepultamento” ), em vez do mnemeion (“túmulo” ) mateano, modificando-o,


porém, com o elegante e raro adjetivo “escavado na rocha”. Ao contrário de Mateus,
Lucas não chama o lugar de sepultamento de “novo”, mas alcança o mesmo efeito
por meio da oração “onde ninguém tinha sido depositado ainda”, que se parece
com Jo 19,41: “no qual ninguém havia sido colocado ainda”.36 Há quem remonte
essa oração que conclui Lc 23,53 à fonte lucana especial (ver Fitzmyer, Luke, v.
2, p. 1523), mas eu considero o número incomum de concordâncias secundárias
características (Mateus e João, Lucas e João, Mateus e Lucas, todas em contraste
com Marcos) nesta seção sinal de que o uso apologético da narrativa do sepulta­
mento catalisara o desenvolvimento de uma descrição comumente usada, e que isso
influenciou os evangelistas quando eles escreveram a respeito do sepultamento.
(No caso de Mateus e Lucas, fê-los substituir independentemente o que Marcos
escrevera.) Além da apologética, talvez Lucas preferisse esta expressão específica
“onde ninguém tinha sido depositado ainda” como eco da sentença que usara para
descrever a entrada de Jesus como rei em Jerusalém em um jumentinho, “ no qual
ninguém montou ainda” (Lc 19,30.38). Adiante, vou sugerir que havia um caráter
régio no sepultamento em João; e talvez Sênior (Passion [ ...] Luke, p. 151-152)
não esteja errado ao achar um aspecto semelhante em Lucas, quando “o Rei dos
Judeus” é colocado em um túmulo.

Lucas omite a informação marcana de que José fechou o túmulo rolando uma
pedra contra a entrada e só menciona a pedra na cena da manhã de Páscoa (Lc
24,2) quando as mulheres vêm e acham-na removida. Em vez disso, Lucas coloca
aqui, depois do sepultamento, uma parte da indicação de tempo37*que Mc 15,42b
(“como era dia de preparação, isto é, o dia antes do sábado” ) colocou antes do se­
pultamento. Em Marcos, essa indicação, combinada com “sendo já o entardecer”,
explicou a urgência para tirar o corpo de Jesus da cruz e colocá-lo no túmulo. A
colocação lucana da indicação de tempo (“era dia de preparação e o sábado estava
raiando” ) tem efeito duplo. Primeiro, assegura ao leitor que a lei foi seguida, pois

36 O “depositado” tucano vem de keishai (Lucas, 6 vezes; Marcos, 0; Mateus, 3; João, 7); o “ colocado”
joanino é tithenai.
3' Jo 19,42 também tem uma indicação de tempo (“por ser dia de preparação dos judeus” ) no fim do relatório
do sepultamento. Mas João relata isso imediatamente antes de dizer que colocaram Jesus no túmulo, ao
passo que Lucas faz sua referência ao dia de preparação imediatamente depois de Jesus ser colocado no
lugar do sepultamento. Além disso, de modo muito diferente de Lucas, João tem uma indicação anterior
de tempo em Jo 19,31 (dia de preparação antes do sábado) antes da descida da cruz. Nesse detalhe, João
estava mais próximo de Marcos.

456
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

o sepultamento de Jesus terminou antes do sábado. Também ajuda a explicar por


que as mulheres que Lucas está prestes a mencionar não ficaram perto do túmulo,
mas foram embora para aprontar especiarias e mirra. Elas tinham de obedecer
ao descanso do sábado que ia começar (Lc 23,56b). Lucas emprega epiphoskein
no imperfeito: “o sábado estava raiando”, verbo que inclui phos (“luz” ) e reflete a
disposição onde os dias começam de manhã, quando o sol começa a brilhar. Esse
verbo parece estranho no contexto do calendário judaico onde o dia começa depois
do pôr do sol e, assim, com o início da escuridão. Apesar de esforços para explicar
o uso em termos de outras luzes que brilham à noite,38 com certeza ele apenas
reflete uma expressão idiomática costumeira descuidada, que nem sempre é exata
(Mt 28,1 emprega o mesmo verbo para o “despontar” do primeiro dia da semana:
não domingo de manhã cedo, mas sábado à noite, que é o início do domingo no
calendário judaico).

O que as mulheres viram e fizeram (Lc 23,55-56a). Como com os


outros Evangelhos sinóticos, os leitores devem mais uma vez consultar o Quadro 8
em § 41 para entender a inter-relação das três cenas nas quais as galileias apare­
cem: primeiro, estando de pé a certa distância e vendo as coisas que aconteciam
na morte de Jesus (Lc 23,49: ninguém citado39); aqui (ninguém citado) e indo ao
túmulo com especiarias na manhã de Páscoa (Lc 24,1, com três nomes citados em
Lc 24,10). Na cena presente, ao falar das “ mulheres que tinham vindo com ele da
Galileia”, Lucas repete quase literalmente a designação que usou na primeira cena,40
lembrando-nos de que as mulheres fizeram com Jesus a grande viagem da Galileia
para Jerusalém que começou em Lc 9,51. Enquanto Marcos/Mateus simplesmente
identificam as mulheres como galileias, a repetição lucana ultrapassa isso, asse­
gurando a continuidade dessas cenas de morte, sepultamento e ressurreição com
o ministério de Jesus na Galileia (desse modo Talbert, Reading, p. 225), e assim,
a consistência de toda a sua missão. E interessante que os homens conhecidos de

,8 Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1529) relaciona estas: a luz inicial da primeira estrela, ou do planeta Vênus, ou
do círio do sábado.
19 Ao examinar Lc 23,49, expliquei que não era necessário Lucas citar "as mulheres que o acompanhavam
desde a Galileia” porque (só ele entre os Evangelhos), durante o ministério galileu, Lucas apresentara
mulheres como Maria Madalena e Joana que, neste contexto, ele só citará em Lc 24,10, no final das
atividades delas.
40 Apesar de Lc 23,55 repetir a descrição das mulheres de Lc 23,49, Taylor (Passion, p. 93, 102-103),
que reconhece uma dependência de Marcos em Lc 23.49. atribui Lc 23.55 e também Lc 23,56a à fonte
lucana especial.

457
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Jesus, que só Lucas (Lc 23,49) mencionou na cena da morte como estando “de
pé de \apo\ longe”, agora desapareceram completamente da narrativa. Entretanto,
a ligação das mulheres com as duas cenas é realçada: elas não só estão em am­
bas, mas também seguiram atrás (Lc 23,55), isto é, provavelmente atrás de José,
quando ele desceu o corpo e o colocou no lugar de sepultamento (Lc 23,53).41 No
v. 55, Lucas é também mais específico que Marcos a respeito do que as mulheres
viram:42 não só o local do túmulo, mas também como o corpo de Jesus foi colocado
ali. Esta última observação significa que o viram ser envolvido em um pano de
linho (Lc 23,53), mas não ungido; é por isso que elas não ficaram no túmulo, mas
retornaram a fim de fazer as preparações para ungi-lo.43

Para onde elas retornaram? É de se presumir que para onde elas estavam
hospedadas em Jerusalém, lugar onde havia especiarias e mirra que podiam pre­
parar, pois, ao contrário de Mc 16,1, Lucas não relata que elas tiveram de comprar
esses produtos. (Na verdade, com o raiar do sábado, não haveria tempo para fazer
a compra.) São inúteis as engenhosas tentativas de harmonizar Lucas, onde as
mulheres tinham as especiarias antes de o sábado começar, com Marcos, onde as
mulheres só compraram as especiarias depois de o sábado acabar.44 Tendo lido
Marcos, Lucas deliberadamente mudou a sequência como parte de sua intenção de
escrever um relato mais “ordenado” (Lc 1,3). Lucas supostamente queria que os
leitores pensassem que, em sua previdência, essas mulheres já tinham adquirido
o que seria necessário. Ao introduzi-las em Lc 8,2-3, Lucas descreveu-as como

41 Katakolouthein significa literalmente “seguir para baixo” , mas Lucas com certeza não quer dizer para
baixo nas ladeiras do Lugar da Caveira; em At 16,17, o termo é usado para o seguimento de Paulo.
42 Lucas usa theasthai (“olharam para” ), não o theorein (“estavam observando” ) de Mc 15,47.
43 A construção participial que inicia Lc 23,56a liga-o estreitamente a Lc 23,55, de modo que a gramática
confirma a ligação lógica entre o que elas viram e o que elas fizeram. 0 verbo “retomar” , hypostrephein,
é bem lucano, e ocorre trinta e duas vezes em Lucas-Atos, mas nunca nos outros Evangelhos.
44 Por exemplo, a tese de que o que elas tinham na sexta-feira não era suficiente, por isso tiveram de comprar
mais no domingo (Marcos) — Lc 24,1 é específico, afirmando que as especiarias levadas pelas mulheres
ao lugar do sepultamento na manhã de domingo eram as que elas tinham preparado (na sexta-feira) e,
assim, não algumas compradas recentemente. Nem é admissível argumentar que a construção “de [Lc
23,56a: ‘Mas’] ... men [Lc 23,56b: ‘então’]” não é para ser considerada temporalmente sequencial, de
modo que Lucas pode ser lido de forma invertida: elas guardaram o sábado (Lc 23,56b) e então prepara­
ram especiarias (Lc 23,56a). A razão para essa suposta inversão é que Lucas queria terminar de narrar
o sepultamento antes de se voltar para a sequência do túmulo vazio (Vander Heeren, “ In narrationem”).
Entretanto, Lucas liga a preparação das especiarias à volta do lugar de sepultamento; essa inversão teria
de pressupor que elas ficaram no túmulo o sábado todo e “ retomaram” para onde estavam hospedadas
só no domingo!

458
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

provendo-lhe a subsistência ou “servindo” (diakonein) Jesus em seu ministério


público “com seus bens”. Elas o servem na morte, não menos que em vida.

O que as mulheres prepararam está descrito no versículo 56a pela forma


plural das palavras gregas aroma e myron (“especiarias e mirra” ). 0 plural de
aroma aparece no relato joanino do sepultamento (Jo 19,40), como também smyr-
non (Jo 19,39), outra palavra para mirra. Deixo para meu exame do relato joanino
do sepultamento um exame detalhado desses materiais fragrantes porque existe o
problema de saber se João se refere a especiarias pulverizadas ou a óleo perfumado
com elas. Como a myron lucana virtualmente sempre subentende líquido, não há
razão para duvidar que ele se refere a óleo e/ou unguento perfumados que serão
aplicados (derramando?) sobre o cadáver. Lucas leu em Mc 16,1 que o propósito
das mulheres indo ao túmulo na manhã de Páscoa era levar especiarias (aroma)
para ungir (alleiphein ) Jesus; e, embora Lucas não seja tão específico em Lc 24,1,
ele certamente quer que os leitores entendam o mesmo propósito.

Alguns biblistas, duvidando que as mulheres pudessem aprontar as espe­


ciarias e a mirra (Lc 23,56a) antes do pôr do sol, especulam se Lucas estava con­
fuso quanto ao cálculo de tempo judaico e pensou que o entardecer de sexta-feira
fazia parte do dia de preparação, e não do sábado. (Essa tese dá às mulheres até
a meia-noite de sábado para terminar de aprontar as especiarias antes do início
do sábado.) Mas Lc 22,13-14 sugere o entendimento de que a hora da refeição do
entardecer marcava o dia seguinte (o dia posterior àquele em que o cordeiro pascal
tinha sido sacrificado: Lc 22,7). A própria menção do sábado que estava “raiando”
em Lc 23,54 exige um ambiente de pressa, não de calma; assim, quer os biblistas
modernos pensem que havia, quer pensem que não havia tempo suficiente antes
do sábado para aprontar especiarias, Lucas queria que os leitores pensassem que
sim. Da direção oposta vem outra objeção ao relato lucano das especiarias. Por que
as mulheres tinham de realizar a tarefa antes do sábado, à luz da Mixná Sabbat
23,5, que diz que no sábado “ Eles podem preparar todos os requisitos necessários
para um cadáver, ungi-lo e lavá-lo, contanto que não movam nenhum dos membros
do corpo” ? Além da possibilidade de haver uma exigência mais rígida nos tempos
neotestamentários, essa regra da Mixná não se aplicava ao corpo de Jesus, pois
supõe uma situação na qual não foi possível sepultar o corpo antes do sábado, de
modo que os que vão sepultá-lo ainda estão de posse dele. Uma regra mais aplicável

459
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

da Mixná é Sabbat 8,1, que proíbe tirar no sábado óleo “suficiente para ungir o
menor dos membros”.

Sepultamento de Jesus segundo Jo 19,38b-42

Bem no início desta seção, mencionei que o relato joanino era muito diferente
do marcano, pois, em João, Jesus recebe um sepultamento honroso. Mateus (porque
modificara a imagem marcana, de modo que José se tornou discípulo de Jesus) já
mudara para uma descrição menos rígida do sepultamento: o linho era “branco
limpo” e o túmulo “novo”. Entretanto, nenhum sinótico sugere o uso de especiarias
no cadáver de Jesus entre a morte e o sepultamento, como faz João, onde são trazidas
aproximadamente cem libras. Ao mesmo tempo, João respeita a tradição a respeito
de José, pois só em Jo 19,38b ele não faz mais do que faz em Marcos. Depois da
permissão de Pilatos em Jo 19,38a, o José joanino “ veio [erchesthai, como em Mc
15,43a] e retirou [airein, enquanto Mc 15,46 tem kathairein ] o corpo” .

0 que faz a diferença no relato joanino que começa no v. 39 é a presença de


Nicodemos. Foi ele que veio “ trazendo uma mistura de mirra e aloés, aproximada­
mente cem libras”. Na verdade, sua presença torna a ação de José mais positiva,
se o lambanein da ação combinada (“eles pegaram o corpo” ) em Jo 19,40 tem um
tom mais favorável que o airein da ação solitária de José (ele “ retirou o corpo” )
em Jo 19,38b.40 João não especifica como José e Nicodemos colaboraram, a não
ser no próprio ato do sepultamento. Nicodemos comprou a grande quantidade de
especiarias em cima da hora, no momento em que soube da morte de Jesus, ou já as
tinha,*46 prevendo que Jesus não seria poupado pelos romanos? Lagrange (Jean , p.
503) supõe que José e Nicodemos haviam concordado em uma divisão de trabalho:
José foi a Pilatos, enquanto Nicodemos foi à loja de especiarias. Gaechter (“ Zum
Begrãbnis”, p. 221-223), com sua costumeira harmonização, propõe que ambos

43 Assim Hemelsoet (“Ensevelissement” , p. 54-55), que menciona Jo 1,12, onde todos os que “recebem”
(,lambanein) Jesus se tomam filhos de Deus.
46 Alguns testemunhos textuais, inclusive o Códice Sinaítico, leem “tendo” uma mistura de mirra e aloés,
em vez de “trazendo” . O fato de já haver uma mistura (migma) sugere preparação? A variante heligma,
encontrada nos Códices Sinaítico* e Vaticano (e considerada original por Barrett), significa “rolo” ou
“pacote”; não esclarece esta questão, pois provavelmente representa o esforço de um escriba para en­
tender como as especiarias foram transportadas. Outra variante secundária é smigma, forma de smegma
(“unguento” ), palpite de escribas quanto à natureza das especiarias. Bemard (John, v. 2, p. 653) explica
heligma como alteração de smigma.

460
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

foram à loja: José comprou o pano de linho (Mc 15,46) e Nicodemos comprou as
especiarias. Toda essa especulação choca-se com a intenção joanina: “ Mas veio
também Nicodemos” é espontâneo e inesperado. Os efeitos da morte de Jesus
encontram expressão independente nas reações de várias pessoas: em José, que
até este ponto tinha sido apenas um discípulo oculto por medo dos judeus, e agora
em Nicodemos, “que primeiro viera até ele à noite”. 0 fato de, como a respeito de
José em todos os Evangelhos, ser dito que Nicodemos “ veio” (ao local de execução,
depois da morte de Jesus) significa que ele não estava presente durante a Paixão.
Como o José marcano, Nicodemos era membro do sinédrio, “mestre de Israel” (Lc
3,10); contudo, embora estivesse interessado no Reino (Lc 3,1-5), ele só teve co­
ragem para vir a Jesus à noite, como João lembra aos leitores. Como o José lucano,
Nicodemos discordou dos colegas do sinédrio quanto ao julgamento deles contra
Jesus; contudo, ele o fez não professando a inocência de Jesus, mas formulando uma
tecnicalidade da lei (Jo 7,50-52). Implicitamente, ele era rico, como o José mateano,
pois tinha os meios para trazer grande quantidade de especiarias. E, finalmente,
como o próprio José joanino, ele faz por Jesus um ato público que demonstra mais
coragem do que até então fora revelada.

Entretanto, nosso estudo precisa entrar em mais detalhes, pois o relato joa­
nino levanta muitas questões. Como devemos entender o simbolismo das cem libras
(ou trinta quilos)? O que significa “mirra e aloés” — pedacinhos de incenso, ou um
líquido, e, no caso deste último, houve unção? O que João quer dizer com os “panos”
que atam o corpo de Jesus juntamente com as especiarias? Como João quer que
julguemos o gesto de Nicodemos? Vamos tratar dessas questões uma de cada vez.

“Aproximadamente cem libras” (Jo 19,39b). A litra ou libra romana


equivalia aproximadamente a doze onças e, assim, a quantidade devia ser apro­
ximadamente trinta quilos,4' o que ainda é uma quantidade extraordinária. Se
a referência era a especiarias pulverizadas ou fragmentadas, esse peso ocupava
espaço considerável no túmulo e ocultaria o cadáver sob um monte. A perplexidade
a respeito de onde essa quantidade foi obtida em cima da hora e como foi trazida
faz os biblistas procurarem modificar a quantidade. Por exemplo, A. N. Jannaris
(ExpTim 14,1902-1931, p. 460) propõe que se leia hekaston por hekaton, o que dá:
“mirra e aloés, aproximadamente uma libra de cada”. De Kruijf (“ More”, p. 236- 47

47 Josefo (Ant. XIV,vii,]; #106) dá um peso menor para a libra, o que faria a quantidade equivaler a cerca
de 23 libras atuais.

461
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

238) entende litra como medida não de peso, mas de volume; e, em analogia com
Jo 12,3, onde litra myrou inclui líquido em um frasco de alabastro, argumenta que
isso representa de seis a dez onças fluidas (aproximadamente 1/3 a 1/2 quartilho).
O resultado seria mais ou menos quatro galões de óleo perfumado.48 De Kruijf
afirma que essa interpretação elimina parte da extravagância irreal da quantidade.
Uma grande dificuldade é que, aqui, João não usa myron, palavra que subentende
óleo, mas, como veremos, termos que têm maior probabilidade de subentender
pó. Outros (por exemplo, Lagrange, Jean, p. 503) aceitam o significado “libra”,
mas especulam se não houve erro dos copistas a respeito do número (erro que não
deixou nenhum indício nas cópias textuais!). Em vez disso, é melhor reconhecer
que números grandes são empregados em várias cenas joaninas como sugestão
simbólica de abundância messiânica, por exemplo, em Jo 2,6, as seis talhas de água,
cada uma contendo duas ou três medidas (todas totalizavam de 120 a 180 galões),
e em Jo 21,11, os 153 peixes. Especificamente, o que estava simbolizado aqui?
De Kruijf (“ More”, p. 239) pensa em fé reverente. Outros apontam para grandes
quantidades de especiarias em sepultamentos régios. Foram necessários quinhentos
servos para carregar as especiarias (pl. de aroma) no sepultamento de Herodes, o
Grande (Josefo, Guerra I,xxxiii,9; #673; Ant. XVII,viii,3; #199). Fontes rabínicas
mais tardias (TalBab ‘Aboda Zara 11a; Semahot [‘Ebel Rabbati] 8,6 [47a]) falam
de setenta ou oitenta minas sendo queimadas por ocasião da morte (c. 50 d.C.?) de
Rabban Gamaliel, o Velho, que “valia mais que cem reis inúteis”. O antecedente
bíblico é Jr 34,5, onde o Senhor prometeu ao rei Sedecias, prestes a ser exilado,
que “como especiarias foram queimadas por teus antepassados, os antigos reis antes
de ti, do mesmo modo especiarias serão queimadas por ti”. A ideia de que Jesus
recebeu sepultamento digno de um rei corresponde bem à solene proclamação de
que na cruz ele foi verdadeiramente “o Rei dos Judeus” (Jo 19,19-20) e à afirmação
de que foi sepultado em um jardim (Jo 19,41; ver adiante). Quando Maria, irmã de
Marta, usou uma libra de mirra (myron) para ungir os pés de Jesus, Judas Iscariotes,
“um dos discípulos” de Jesus, queixou-se do desperdício de dinheiro (Jo 12,3-5);
ironicamente, agora, Nicodemos, que acaba de surgir como discípulo de Jesus, usa
cem libras de mirra (smyrna) no corpo de Jesus.

“Uma mistura de m irra [smyrna\ e aloés [aloe] ... junto com espe­
ciarias [pl. de aroma], como é o costume entre os judeus para sepultar”

48 Utilizando medidas presentes na Mixná, 0 ’Rahilly (“ Burial” , p. 310) calcula cerca de três galões.

462
§ 47.0 sepultam ento de Jesus, segunda parte:Colocação do corpo no túm ulo

(Jo l,39b-40).49 Os judeus não evisceravam o cadáver, como faziam os egípcios na


mumificação. Até onde sabemos a respeito desse período (ver início do C o m e n t á r io ,
acima) um sepultamento honroso costumeiro incluía lavar o corpo, untá-lo com óleo
e/ou colocar especiarias dentro do envoltório do corpo,50 e vesti-lo. Será que João
quer dizer que o corpo de Jesus foi ungido por José e Nicodemos? Ele não usa um
verbo para ungir (aleiphein), como fez em Jo 12,3, onde descreveu a ação de Maria
de Betânia que foi de certo modo associada à morte e sepultamento de Jesus (Jo
12,7), ação que Marcos/Mateus julgavam ser a única unção pré-sepultamento de
Jesus (Mc 14,8 [myrisein]; Mt 26,12).51 Em parte, a resposta à questão de João su­
bentender ou não uma unção aqui depende do sentido de aroma, sempre empregado
no plural nos relatos do sepultamento de Jesus. Significa “especiarias”, isto é, pós
secos e pedacinhos; ou significa “óleo feito de especiarias fragrantes” ? ’2 Em Mc
16,1, aroma é claramente trazido para ungir e, assim, compreende óleo. (Isso talvez
seja verdade também em Lc 23,56a; 24,1.) Entretanto, no sepultamento, especiarias
secas também podiam ser borrifadas ao redor do cadáver e onde ele era depositado,
para contrabalançar o odor da decomposição. Talvez fosse isso que se queria dizer
na descrição do sepultamento do rei Asa II (2Cr 16,14): “ Depositaram-no em um
leito e (o) encheram de especiarias e espécies de mirra”. (Ver também Pr 7,17, onde
diversas partículas fragrantes, não óleo, são borrifadas em uma cama.) A descrição
em Jo 19,40, onde o corpo de Jesus é atado “com panos junto com especiarias”
não parece prefigurar um líquido despejado sobre os panos. Mas não resolvemos
a questão antes de examinarmos a relação entre o plural de aroma e a mistura de
“mirra e aloés” mencionada no versículo anterior. (Mirra e aloés talvez fossem com­
binação frequente; ocorrem em Ct 4,14.) É esse aroma uma terceira substância ao
lado delas ou um nome para resumi-las? No segundo caso, são partículas secas ou
óleo? Infelizmente, as respostas a essas perguntas, que vou agora tentar conseguir,
envolvem considerável complexidade.

w Enquanto entre as NPs canônicas apenas Mateus usa taphos (“sepulcro”), o verbo joanino para “se­
pultar” é entaphiazein (“pôr era um sepulcro” ; também Mt 26,12), que se estende à preparação para o
sepultamento.
50 Assim Liebowitz, “Jewish” , p. 108. Ungir consistia necessariamente em esfregar o óleo no cadáver, pois
podia ser gotejado de um recipiente sobre o corpo, da cabeça aos pés. O propósito das especiarias era
em parte neutralizar o fedor da decomposição e, talvez, até mesmo retardá-la.
Em Mc 16,1, as mulheres compram especiarias (plural de aroma) para irem ungir (aleiphein) Jesus.
02 Ver 0 ’Rahilly, “Jewish” , p. 128-132. Uma fórmula de óleo para unção feito com a mistura de especiarias
e azeite de oliva é dada em Ex 30,23-25.

463
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

S m yrna. Há, na Bíblia grega, duas palavras para “ mirra” : myron e smyrna;
ambas são usadas nos relatos do sepultamento de Jesus, a primeira, por Lucas, e
a segunda, por João. ’ 1A LX X quase sempre traduz por myron o hebraico semen
(“óleo” ) e myrizein aparece em Josefo (Ant. X IX ,ix,l; #358) para ser perfumado
com unguento.54 Unguento ou óleo vegetal misturado a uma substância fragrante
era usado com propósitos de culto, cosméticos e sepultamento. Não se encontra
um claro exemplo bíblico de myron empregado para a especiaria pulverizada. E
o substantivo usado para mirra na cena em Betânia (Mc 14,3-8; Mt 26,6-12; Jo
11,2; 12,3-5; também Lc 7,37-38), onde se imagina óleo perfumado. É usado na
cena lucana de sepultamento em Lc 23,56, em combinação com aroma , e contribui
para pensarmos que Lucas se referia a líquido.

Por smyrna (a palavra que João usa aqui), a LX X traduz o hebraico mor
(relacionado com a raiz mrr, “amargo” ).55 Essa mirra é um pó seco, feito pela pul­
verização da resina viscosa que exsuda da baixa e troncuda commiphora abyssinica,
arbusto da família balsâmica que cresce no Sul da Arábia e no Norte da Somália.
Além de ter propriedades medicinais, porque emite forte perfume, era usada para
incenso (associada com olíbano em Mt 2,11), cosméticos e perfume (ver o verbo
smyrzein para vinho perfumado em Mc 15,23; ver § 40, #2, acima). 0 uso em
sepultamentos era para contrabalançar odores desagradáveis. Podia ser amontoado
como pó (Ct 4,6: “montes de mirra” e “colinas de incenso” ) ou gotejado em forma
líquida (Ct 5,5).

A loe. Os botânicos modernos nem sempre concordam quanto à classificação


e/ou o lugar de origem dos candidatos muitas vezes sugeridos para as referências
bíblicas a “aloés”, de modo que parte das informações oferecidas por enciclopédias
e dicionários bíblicos é contestada.56 As tentativas para discernir o que João queria
dizer vão em duas direções diferentes. O primeiro candidato, às vezes chamado

Aqui, são úteis os verbetes em TDNT por W. Michaelis, “myron, myrizo’’ (v. 4, p. 800-801), e “ smyrna,
$myrnizo“ (v. 7, p. 457-459). Também G. W. Van Beck, “Frankineense and Myrrh” . em BA 23, 1960. p.
70-95.
’4 Semen é também traduzido por elaion (“ azeite de oliva, unguento oleaginoso”). Myrizein (poético smyrizein)
relaciona-se com a raiz indo-europeia smur (inglês “smear” , português “untar” ); aleiphein é sinônimo.
” A forma grega pode ter sido assimilada a Smyrne, o nome da cidade de “ Esmirna” . Não se relaciona
etimologicamente com myron.
>6 Ver Hepper, “Identity” . Há cerca de 360 espécies diferentes do gênero aloés; algumas eram cultivadas
na Antiguidade e transportadas por mercadores e, assim, transplantadas para novas áreas.

464
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

aloés de madeira (do latim lignum, “lenho, madeira” ), é a madeira pulverizada,


fortemente aromática, do cerne da aquilaria agallocha , árvore nativa do Sudeste
da Ásia e semelhante ao sândalo; foi importada para terras bíblicas e usada em
incenso e perfume. Referências veterotestamentárias (SI 45,9; Pr 7,17; Ct 4,14)’757
associam “aloés” a substâncias fragrantes como cássia, cinamomo e nardo, do
mesmo modo que João os associa a mirra. Dessa maneira, muitos optam por isso
como referência joanina, embora em literatura fora da Bíblia, e ainda na maioria
das referências de hoje, isso não seja o que se quer dizer com “aloés” . O segundo
candidato é o aloés genuíno ou medicinal, a saber, o líquido insípido de um gênero
de plantas suculentas na família dos lírios chamado aloe officinalis ou aloe vera L,
do qual há muitas espécies. Aloe succotrina aparece frequentemente como a possível
espécie, pois o nome reflete origem na ilha de Socotorá, no Mar Vermelho, na costa
do Iêmen, localizada nas rotas comerciais para a Palestina.58*0 suco insípido dessa
planta, às vezes citada como aloés amargo, fornecia um remédio picante, de cheiro
desagradável,39 que também era usado para embalsamar. Contudo, naturalmente,
Jesus não foi embalsamado. Protestando que a planta é rara em Socotorá e nunca
foi amplamente cultivada, Hepper propõe uma espécie diferente, aloe vera (L.)
Burm f , genuína planta de aloés que cresce no Sudoeste da Arábia. Dela derivam
dois produtos: um gel mucilaginoso e uma exsudação amarela amarga, sendo que
as duas podem ser transformadas em sólido e pulverizadas, uma com propósitos
medicinais como curativo dermatológico, a outra oferecendo a possibilidade de ser
usada em sepultamentos.

Nenhuma certeza é possível, mas a ligação com smyrna torna provável que
João esteja pensando em duas substâncias fragrantes.60 Além disso, como a maioria
das alusões bíblicas ao aloés fragrante dá a impressão de imaginar uma substância

A árvore que produz aloés fragrantes não cresce na Palestina; assim, Nm 24,6 apresenta um problema,
pois (a menos que haja erro textual, como frequentemente se pressupõe) parece que a árvore dessa
passagem é cultivada no Vale do Jordão. Calleri Damonte (“Aloe” , p. 51-52) mostra como esse aloés de
madeira era amplamente conhecido na Antiguidade.
1,8 Omã e Socotorá são mencionadas na Antiguidade como fontes tradicionais de aloés. Contudo, Hepper
("Identity”) afirma que a planta em questão está com o nome errado, pois o que é corretamente chamado
aloe succotrina Lam é de origem sul-africana. O nome correto, afirma ele, é aloe perryi Baker.
M Plínio (História Natural xxvii,5; #14-20) discorre sobre o uso medicinal do aloés como adstringente,
laxante e remédio para dores de cabeça, hemorragias e hemorroidas.
60 Vardan, escritor armênio do século XII, cita Pápias: “Aloés é um tipo de incenso” (F. X. Funk, Patres
Apostolici, 2 v., Tübingen, Laupp, 1901, p. 1375).

465
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

pulverizada, a combinação aumenta a probabilidade de “mirra e aloés” joanino


em Jo 19,39 não ser referência a óleo ou unguento, mas a especiarias secas.61 Con­
sequentemente, traduzi aroma (pl.) de Jo 19,40 como “especiarias” — não uma
terceira substância, mas uma referência genérica à “ mirra” e ao “aloés” fragrantes
e pulverizados, mencionados anteriormente, que seriam borrifados com e/ou sobre
o envoltório de sepultamento ao redor de Jesus. Assim, embora João divirja dos
sinóticos ao dar um sepultamento mais elaborado a Jesus, nenhum dos Evangelhos
pressupõe que Jesus foi ungido com óleo entre a morte e o sepultamento.62 Entre­
tanto, essa conclusão não tem utilidade para harmonizar os relatos. Admitindo-se
que Jesus não foi ungido na sexta-feira, se cem libras de especiarias (mirra e aloés)
foram sepultadas com ele, não havería razão para as mulheres comprarem nem pre­
pararem mais especiarias para usar na Páscoa, como fazem em Marcos e Lucas.63

“Ataram-no [dein] com panos [pl. de othonion\” (Jo 19,40). Mais uma
vez, é difícil determinar exatamente o que João deseja transmitir. Dein foi usado
em Jo 11,44 para mãos e pés amarrados firmemente, amarração que deve ter en­
volvido faixas passadas várias vezes ao redor dos membros para prendê-los bem.
É a referência aqui também a essa amarração múltipla e apertada?64 0 eneilein
(“amarrou” ) marcano e o entylissein (“envolveu” ) mateano/lucano permitiram a
imagem de uma única peça de pano de linho (sindon) cobrindo o corpo de Jesus
e, portanto, talvez um cadáver amarrado de modo não tão apertado. Vimos que
não havia nada na descrição sinótica que sugerisse uma pluralidade de roupas de

61 Plínio (História Natural xiii,3; #19) dá o grego diapasma como nome técnico de uma mistura de arômatas,
e magma como nome de unguento consistente. Ver Calleri Damonte (“Aloe” , p. 49.55): sepultamentos
judaicos em Roma mostram o uso de substâncias aromáticas. Ele acha que o pó aromático era posto no
fundo e nos lados do lugar destinado a receber o corpo e que, depois de o corpo envolto ser baixado a
esse lugar, mais especiarias em pó eram espalhadas sobre ele, de cima.
62 Assim, não da maneira na qual ele fora ungido antes da Páscoa (Mc 14,3; Mt 26,7; Jo 12,3). Em parte
por causa do tema batismal na primeira apresentação de Nicodemos (Jo 3,5), Mercúrio (“ Baptismal” , p.
50-54) descobriu um elemento batismal nas especiarias para ungir no relato joanino do sepultamento.
Essa tese imaginosa perde toda plausibilidade, se nenhuma unção era pretendida.
“ Acima, rejeitei a tese de que, em Marcos, as mulheres só observaram o lugar onde Jesus foi depositado,
não os procedimentos do sepultamento — tese usada em Lagrange e outros para harmonizar Marcos e
João, com o pretexto de que as mulheres não viram as especiarias de Nicodemos. A harmonização com
Lc 23,55 é ainda mais inacreditável, pois ali elas olharam “como seu corpo foi colocado” .
64 Ghiberto (Sepoltura, p. 50-52) lembra que, nos papiros, dein tem o sentido de movimento iminente. Pode-
-se responder a Feuillet e Lavergne que lhe atribuir um sentido simbólico (um prisioneiro amarrado que
será libertado pela ressurreição — também Prete, “E lo legarano” , p. 192) não significa que não tenha
nenhum sentido literal.

466
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

sepultamento. O que João pretende com sua forma plural othonia? (Mais que isso,
João escreve de outra veste separada na história do túmulo vazio de Jo 20,7, um
soudarion que tinha estado na cabeça de Jesus.65) Embora alguns (por exemplo,
Bulst) pensem em faixas de pano da largura de ataduras ou ataduras semelhantes
a envoltórios de múmias, não sabemos se os judeus desse período envolviam faixas
ao redor de cadáveres da maneira imaginada. Quando quis descrever faixas de linho
que atavam as mãos e os pés de um cadáver (Jo 11,44), João usou o plural de keiria,
não de othonion. Além disso, o significado “faixas” não é tradicional.66 O plural
de othonion designa categoria ou tamanho (BDF 141), não o número de peças, por
exemplo, um papiro do século IV (Catálogo Rylands, vol. 4, #627, p. 117-122) indica
othonion como categoria geral e sindonion (veste feita do material de sindon) como
espécie. Vaccari (“ edesan” ) aceita essa relação entre othonia genérico e sindon
específico como aplicável aos Evangelhos; mas Blinzler (“ Othonia” ) acha que sin­
don é o material genérico do qual são feitos othonia ou peças. No Códice Vaticano
grego de Jz 14,12-12, o plural de sindon e o plural de othonion são designações
intercambiáveis para as mesmas trinta vestes; e Garcia Garcia (“ Lienzos” ) acha
que o othonia joanino refere-se ao sindon marcano. (Em uma variante, Ducatillon
[“ Linceul” ] acha que othonia inclui não só o sindon, mas também o soudarion, ou
cobertura de cabeça, que será mencionado no túmulo depois da ressurreição e as
keiriai ou faixas para amarrar que estão subentendidas.) Essas interpretações, que
variam quanto a conteúdo e plausibilidade, pelo menos advertem que não devemos
com demasiada facilidade descrever como contraditórios o termo marcano (e sinótico
geral) e o termo joanino para a veste de sepultamento de Jesus.67 Entretanto, no nível

65 No túmulo vazio, ele se enrola sozinho. Em grego, essa palavra é estrangeirismo do latim sudarium,
relacionado etimologicamente com sudor (“suor”), que servia para secar. E de se presumir que fosse
um tipo de guardanapo ou lenço. Lázaro tinha o rosto coberto ou envolto por um (Jo 11,44) e há quem
julgue que a função era impedir o queixo de cair, como descrito em Mixná Sabbat 23,5. Em Lc 19,20,
um servo embrulha uma soma de dinheiro em um soudarion; em At 19,12, um desses panos toca a pele
de Paulo e é aplicado sobre os doentes.
“ Somente a partir da década de 1870, “faixas de linho” e “ataduras” apareceram em Bíblias vernáculas
como traduções de othonia, em lugar do tradicional “ panos de linho” . Em parte, essa nova tradução
depende de se considerar othonion diminutivo no significado, bem como forma de othoné (“pano de
linho, lençol” ; At 10,11; 11,5). Mas a vaga conotação de formas diminutivas nesse período (BDF 1113)
pode significar que não há diferença entre othone e othonion; além disso, a primeira palavra designa o
material e a segunda um artigo feito dela. Ver detalhes em Bartina, “ Othonia” ; Blinzler, “ Othonia” ; e
Vaccari, “edesan”.
bt Não vejo razão para pensar que João conhecia o sindon marcano e mudou-o para othonia, pois não há
nenhum significado teológico no último vocábulo. A diferença talvez reflita tradições diferentes por trás

467
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

das impressões que provocam nos leitores, parece que os sinóticos descrevem um
único pano de sepultamento, enquanto João fala de diversos envoltórios de pano.
Não é possível decidir se a imagem joanina de pluralidade realça a impressão de um
sepultamento honorífico. A fim de visualizar e descrever como Jesus foi sepultado,
em vez de recorrer à tradição histórica, cada autor talvez tenha empregado apenas
a roupa de sepultamento com a qual estava familiarizado.

Como avaliar o gesto de Nicodemos? Sua história passada é importante.


Primeiro, ele viera a Jesus, à noite. Apesar da atração que sentia por Jesus como
mestre da parte de Deus (Jo 3,2), ele não estava disposto a revelar publicamente (de
dia) seu interesse. No nível de simbolismo joanino, ele ainda fazia parte do reino
das trevas quando veio à luz do mundo (Jo 8,12; 9,5). Mais tarde, ele protestou
quanto à ilegalidade do procedimento das autoridades suas companheiras (sinédrio)
contra Jesus (Jo 7,50-51). Foi um passo à frente, pois ele já não era fingido, mas
ainda não avisou os adversários de Jesus que o respeitava como mestre. Essas ações
durante o ministério não colocavam Nicodemos significativamente mais alto que as
autoridades que Jo 12,42-43 criticou. Eles acreditavam em Jesus, mas, de medo dos
fariseus e para não serem expulsos da sinagoga, não o confessavam publicamente.
“ Eles amavam a glória [= louvor] dos homens mais que a glória de Deus”. Para
João, essa fé pusilânime equivalia à falta de fé; pois, como Jesus diz em Jo 5,44:
“ Como podem pessoas como vós acreditar, quando aceitais glória [louvor] uns dos
outros, mas não buscais a glória que vem do Deus Único”.

A questão controversa é se o comportamento de Nicodemos no sepultamento


é outro exemplo negativo de fracasso, de fé insuficiente e de falta de entendimento,
ou representa mudança positiva para a expressão de fé mais adequada. E ssa dis­
cussão é de grande importância, pois dela depende todo o tema do sepultamento
em João. A posição positiva é a opinião da maioria,68 e eu compartilho dela; mas,

de Marcos e João. Quer Lc 24,12 (a respeito do qual há um problema textual) tenha sido escrito por Lucas,
quer tenha sido acrescentado por um escriba mais tardio, seu autor não percebeu nenhuma contradição
em fazer Paulo ver apenas othonia no túmulo onde Lc 23,53 colocou Jesus envolvido em um sindon: e,
com certeza, Lc 24,12 veio de outra fonte que não Marcos, de onde Lc 23,53 tirou sindon.
68 Além dos comentários típicos, ver o episódio de Nicodemos em: K. Stasiak, “The Man Who Came by
Night” , em TBT 20, 1982, p. 84-89; J. N. Suggit, “ Nicodemus — the True Jew” , em Neotestamentica
14, 1981, p. 90-110. Quanto à opinião negativa, além dele mesmo e de De Jonge, Sylva relaciona como
defensores apenas P. W. Meyer e G. Nicholson. Pode-se acrescentar W. A. Meeks (JBL 91, 1972, p.
54-55).

468
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

para esclarecer a questão, é necessário um exame da posição negativa defendida


por Sylva e por de Jonge. Sylva (“ Nicodemus” ) afirma que levar especiarias em tal
quantidade assinala a falta de entendimento quanto ao fato de que Jesus vive além
da morte, como também fazem o verbo dein (“atar”, usado também para Lázaro em
Jo 11,44) e o emprego de vestes de sepultamento que o Jesus ressuscitado teria de
descartar (Jo 20,6-7). De Jonge (“ Nicodemus”, p. 34) descreve que José e também
Nicodemos “chegaram a um beco sem saída”, pois consideram o sepultamento
definitivo e não conseguem ver além do túmulo. João quer que comparemos esses
homens aos quais faltam entendimento e fé com o discípulo amado cujo testemunho
(Jo 19,35) promove a crença dos cristãos em um período além da sepultura.

Contestando essas teses, afirmo que essa visão negativa das ações de
Nicodemos representa uma confusão quanto a tipos de fé. Em João, é inevitável
que, quando o discípulo amado aparece ao lado de outra figura na mesma cena, o
discípulo amado manifesta uma fé mais perceptiva; mas isso não significa que a
outra figura não creia, como demonstram as muitas vezes que o discípulo amado
e Simão Pedro são unidos em contraste implícito. Vimos que o testemunho dado
pelo discípulo amado quando sangue e água saíram do lado de Jesus (Jo 19,34-
35) constituiu certa analogia com o testemunho que os apóstolos deram do Cristo
ressuscitado (At 10,40-42), embora claramente a fé do discípulo ainda não fosse
crença plena no Jesus ressuscitado (que surgiu depois de Jo 20,8). A fé de Nicodemos
não está nesse nível, pois ele não dá testemunho e não sabemos o que Nicodemos
esperava para o futuro em termos de ressurreição — lembramos que, em João, a
ressurreição de Jesus não é claramente prenunciada como nas narrativas sinóticas.
Na cena de Nicodemos, João não está preocupado com preparar para a ressurrei­
ção (ele não tem testemunhas mulheres aqui), mas com a culminância do triunfo
da crucificação. Não há nada negativo a respeito do ato de sepultar Jesus, pois,
depois que morreu, ele tinha de ser sepultado. A convicção joanina de que Jesus
é “a ressurreição e a vida” (Jo 11,25) não tornou o sepultamento desnecessário;
antes, tornou o sepultamento insignificante. A questão é se João pretendia que
se entendesse que o modo como Nicodemos enterrou Jesus era algo positivo que
glorificava Jesus ou algo negativo, que o descrevia enganosamente. O fato de parte
do vocabulário usado para sepultar Lázaro ser reutilizado aqui não tem conotação
negativa, pois João (Jo 19,40) indica que descreve o que era costume.69

69 O fato de ser isso costume “entre os judeus” não sugere despeito, mas apenas indica que Nicodemos fez

469
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Antes, no Evangelho de João, fiéis que eram adeptos de Jesus e se identi­


ficavam como seus discípulos foram postos em contraste com os que acreditavam,
mas tinham medo de ser conhecidos como seus discípulos. Nesta “ hora” da morte
e sepultamento de Jesus, o discípulo amado em Jo 19,31-37 é o exemplo por exce­
lência do primeiro grupo de fiéis. Até este ponto, José e Nicodemos em Jo 19,38-42
fizeram parte do segundo grupo; mas, agora, são apresentados como transformados
por intermédio da vitória de Jesus na cruz, de modo que eles saem do último grupo
para constituir uma nova categoria, não mais posta em contraste com o primeiro
grupo, mas complementar a eles. Ficamos com a expectativa de que a ação pública
de José e Nicodemos os leve a dar testemunho de Jesus depois da ressurreição.
Se a falha anterior de José, mencionada por João, é que, embora discípulo, ele se
escondeu por medo de “os judeus”, nesta narrativa isso já não é mais verdade. Seu
pedido para “retirar o corpo de Jesus” (Jo 19,38a) é apresentado como o oposto do
pedido que “os judeus” fizeram para fazer exatamente a mesma coisa (Jo 19,31),
e ele os venceu. Com certeza, ele já não se mostra acovardado pelo medo de “os
judeus”. Se a falha anterior de Nicodemos, mencionada por João, é que ele viera a
Jesus à noite e, assim, por inferência, em particular, agora ele vem antes do pôr do
sol e, assim, publicamente. Se até agora ele era uma das autoridades que punham a
glória dos homens antes da glória de Deus, ele mudou sua prioridade. A quantidade
de especiarias que ele traz faria honra a um rei e, como diz Bacon (“ Exegetical”,
p. 424), testemunha a sinceridade dessa reverência atrasada. Não há uma palavra
no relato que sugira ter um desses homens considerado o fim definitivo de Jesus.
Na verdade, embora saiba que uma pedra está diante da entrada do túmulo (Jo
20,1), João não põe José e Nicodemos perto, nem lacra o túmulo. Além disso, é
violação de todo o fluxo da narrativa joanina de crucificação-sepultamento sugerir
que o último episódio não é mais que “ um beco sem saída”. João transformou a
crucificação no triunfo de Jesus; assim, também transformou o sepultamento em
um triunfo. Alguém que reinou como rei na cruz recebe um sepultamento digno
de sua posição.

E importante recordar a estrutura desta narrativa esboçada em § 38 C. Os


dois primeiros episódios mostraram como os inimigos de Jesus inadvertidamente

o que se esperava. Do ponto de vista da linguagem, pode ser mais significativo que, em vez de apenas
retirar o corpo de Jesus, como os judeus pediram (Jo 19,31) e como José fez (Jo 19,38b — ver § 46, nota
65), quando Nicodemos vem, ele e José “tomam” ou “aceitam” (lambanein) o corpo de Jesus.

470
§ 47.0 scpultam ento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

contribuíram para sua vitória na cruz. Em Jo 19,19-22, a exigência feita a Pilatos


pelos chefes dos sacerdotes judaicos fez Pilatos proclamar solenemente que Jesus
era verdadeiramente “o Rei dos Judeus” ; e, em Jo 19,23-24, os soldados romanos
cumpriram o que foi escrito de Jesus nas Escrituras. Os dois últimos episódios
mostram como tipos diferentes de fiéis glorificam Jesus trazendo à tona as con­
sequências de sua morte. Em Jo 19,31-37, o discípulo amado, a quem o Espírito
foi entregue quando Jesus morreu (Jo 19,30), dá testemunho do fato de que uma
exigência feita a Pilatos pelos judeus fez com que os soldados romanos causassem
o cumprimento da promessa de Jesus de água viva (bem como o cumprimento das
Escrituras quanto a outros detalhes a respeito da morte de Jesus). O propósito é
fazer outros acreditarem. Em Jo 19,38-42, José e Nicodemos ganharam coragem
para glorificar a Jesus publicamente com um régio presente de especiarias e com o
lugar em que o sepultam. E o cumprimento das palavras de Jesus: “ Quando eu for
elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,31-34). José e Nicodemos são os dois
primeiros atraídos dentre os que até então tinham apoiado Jesus não publicamente,
como os fiéis precisam fazer. O propósito é incentivar outros dentro da sinagoga a
seguir o mesmo caminho.

“ Um jardim e, no jardim , um túmulo novo, no qual ninguém havia


sido colocado ainda. Então ali, por ser dia de preparação dos judeus,
porque o túmulo estava perto, eles colocaram Jesus” (Jo 19,41-42).70
Embora João compartilhe eventos da tradição do sepultamento encontrados em
Mateus (Mt 27,60: “túmulo novo” ) e em Lucas (Lc 23,53: “onde ninguém tinha
sido depositado ainda” ), ele também tem eventos não atestados em outras passa­
gens. Que o sepultamento foi perto do lugar onde Jesus foi crucificado representa
provavelmente uma dedução comparável à que foi subentendida pelos outros Evan­
gelhos (nota 21, acima).'1Mais significativo e exclusivo de João entre os Evangelhos
canônicos é estar o túmulo em um jardim (kepos),‘2 tradição que aparece, talvez

70 Desta vez, João não indica se o dia de preparação é para a Páscoa (Jo 19,14) ou para o sábado (Jo 19,31).
Taciano e alguns mss. optaram pela segunda alternativa e acrescentaram: “porque o sábado começara” .
■' Acho forçada a tentativa (por exemplo, A. Loisy) de ver aqui um eco do tema do cordeiro pascal de Ex
12,46, que especifica que o cordeiro deve ser comido no lugar e nenhuma parte da carne levada embora.
Mais forçada ainda é a tentativa (Price, “Jesus” , p. 17) de relacionar “ túmulo novo, no qual ninguém
havia sido colocado ainda” com ISm 6,7, onde a Arca da Aliança é carregada por vacas “ nas quais ainda
não havia sido posta uma canga” .
‘2 Em Jo 18,1, esse termo foi aplicado a um local no Monte das Oliveiras e talvez signifique pomar. 0 tema
do jardim é retomado em Jo 20,15 com a suposição por Maria Madalena de que Jesus é o “jardineiro”

471
Qmmoato • JesusécrucificadoemorrenoGólgota.t sepultadoaliperto

de modo independente, em EvPd 6,24 como “o Jardim de José”.73 Para o EvPd, o


nome explica-se por que o sepulcro pertencia a José. Entretanto, João demonstra
ignorar esse título de propriedade — a razão que ele apresenta para o sepultamento
de Jesus nesse túmulo em especial é sua proximidade do lugar onde ele foi cruci­
ficado. Se, mais tarde, o local veio a ser conhecido popularmente como “o Jardim
de José”, a base joanina está na tradição de que José usou um túmulo nesse jardim
para sepultar Jesus. Vamos examinar primeiro a possibilidade ou verossimilhança
desse sepultamento no jardim e, depois, sua significância no pensamento joanino.

Possibilidade/verossimilhança. Os sepultamentos judaicos eram feitos fora da


cidade e isso significa fora das portas da cidade. É muito provável que Jesus tenha
sido crucificado e sepultado ao norte de Jerusalém. Importante junção na muralha
setentrional da cidade (onde sua seção oriental pendia mais ao norte para incluir
a área da fortaleza Antônia) chamava-se Gennath (Josefo, Guerra V,iv,2; #146),
nome ligado à Porta do Jardim (hebraico gan, aramaico ganna ’= “jardim” ), uma das
quatro portas na muralha setentrional. Na verdade, o caminho do local provável do
pretório de Pilatos (o palácio herodiano; § 31, C2) ao local mais provável do Gólgota
levaria Jesus rumo leste, ao longo do lado urbano da muralha setentrional, para sair
da cidade pela Porta do Jardim. Uma razão inteligível para essa designação da porta
era a existência de jardins nessa área setentrional. Certamente, houve sepultamentos
importantes ao norte das muralhas, por exemplo, os dos sumos sacerdotes João Hir-
cano e Alexandre Janeu (Guerra V,vi,2 e V,vii,3; ##259, 304). Krauss (“ Double”,
p. 8) indica que não era incomum os judeus porem seus mortos para descansar em

(ikepouros) que tirara o corpo de Jesus do túmulo. No Evangelho Secreto de Marcos 2,26, o túmulo do
irmão da mulher sem nome ficava em um jardim; é bem possível que isso reflita uma combinação dos
relatos joaninos dos sepultamentos de Lázaro e de Jesus (§ 15, acima).
‘3 Como Price (“Jesus”) mostra, a tradição do jardim teve uma rica história subsequente. Tertuliano (De
Spectaculis 30 [CC 1,253]) relata uma asserção polêmica judaica, segundo a qual o jardineiro desse
pedaço de terra tirou o corpo de Jesus do túmulo para que as multidões de visitantes não estragassem
seus pés de alface ou couve. 0 Livro da Ressurreição de Cristo pelo Apóstolo Bartolomeu 1,6-7 (copta,
séculos V a VII; JANT 183) nos conta que o nome do jardineiro era Filógenes e Jesus curara seu filho.
Ele ofereceu um túmulo perto de sua horta aos judeus que procuravam um lugar para sepultar Jesus,
o tempo todo planejando tirar o corpo e sepultá-lo honrosamente. Mas, quando voltou à meia-noite,
encontrou o túmulo cercado por anjos e viu o Pai ressuscitar Jesus. O apologista anticristão muçulmano
‘Abd al-Jabbar, ao escrever c. 1000 (§ 42 D, acima), relata que Jesus foi crucificado em um campo de
melões e vegetais — tema que talvez ele tenha tirado de ataques judaicos ao culto de Jesus crucificado
como idólatra, expresso na linguagem de Jr 10,3-5 (um ídolo de madeira montado como espantalho em
um campo de pepinos; Price, “Jesus” , p. 24). Na polêmica de Toledoth Yeshu, Judas sepultou Jesus em
um jardim sob um riacho (Ibid., p. 27).

472
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

campos ou jardins (em especial quando planejavam coletar posteriormente os ossos


para “ novo sepultamento” em um ossuário); e TalBab Yebamot 86b menciona um
jardim e cemitério nas proximidades.74 C. 350 d.C., Cirilo de Jerusalém (Catequese
14,5; PG 33,829B) relatou que os restos de um jardim que existira anteriormente
ainda eram visíveis adjacentes à Basílica do Martírio, que Constantino construíra
recentemente para homenagear o local do túmulo de Jesus (subseção C na ANÁLISE
abaixo). Assim, não há nada implausível na história joanina segundo a qual havia
um jardim na área setentrional de Jerusalém onde Jesus foi crucificado e ele foi
sepultado em um túmulo nesse jardim.

Significância. Planeja João uma inclusão, ao fazer a NP começar em Jo 18,1


com Jesus saindo para o outro lado do Cedron com os que eram seus discípulos,
para onde havia um jardim (kepos), e terminando a NP em um jardim onde Jesus
é sepultado por dois homens que acabam de tornar público o fato de serem discí­
pulos? Com certeza isso é uma possibilidade. Alguns estudiosos também tentaram
encontrar um paralelo entre o jardim do outro lado do Cedron e o paraíso {para-
deisos) de Gn 2,8, onde Deus colocou o primeiro ser humano, e onde o pecado foi
cometido pela primeira vez. Por causa da dessemelhança de vocabulário, não achei
essa proposta convincente; nem aceito esse paralelo aqui, apesar da tentativa de
reforçá-lo por intermédio do paralelismo de Adão que Paulo percebeu na morte de
Cristo (Rm 5,12-21) e/ou pela tese de que o Gólgota recebeu esse nome por causa
da caveira de Adão (§ 40, nota 9).

Mencionei anteriormente que quantidades enormes de especiarias eram


usadas em sepultamentos régios. E o fato de serem os reis de Judá sepultados em
túmulos de jardins (2Rs 21,18.26) parte da mesma imagem? Pela LX X de Ne 3,16,
ficamos sabendo que o sepulcro do rei Davi ficava em um jardim e At 2,29 mostra
que o túmulo de Davi era popularmente conhecido na época neotestamentária. Era
o sepultamento de Jesus no jardim lembrado por ser considerado simbolicamente
apropriado para o Filho de Davi? Foi a tradição recordada por João em particular
por causa da ênfase em Jesus de Nazaré na cruz ter sido triunfalmente proclamado
“o Rei dos Judeus” ? Os indícios para essa tese não são suficientes para estabelecer
prova, mas esse simbolismo seria uma conclusão apropriadíssima para a NP joanina.

74 Parece que o sepultamento em jardins também foi costume grego; assim M. Smith, Clement, p. 105.

473
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Análise

Como ressaltei, minha divisão do estudo do sepultamento de Jesus em duas


partes (§ 46 e 47) é somente por conveniência para comentar, pois, de fato, os relatos
evangélicos são relativamente breves e unificados. Na a n á l is e de § 46, já examinei
a composição dos relatos e reconstruí uma tradição pré-evangélica do sepultamento
por José que pode ter sido compartilhada por Marcos (que influenciou Mateus e
Lucas) e João. Com base nesse exame geral, vou me concentrar aqui na preparação
e no sepultamento do corpo (a última parte da cerimônia de sepultamento por José)
e na atividade de outras dramatis personae (o adendo ao sepultamento por José).
A análise se encerrará com um resumo do que se conhece da história da igreja do
Santo Sepulcro e do local onde ela está — resumo que representa o que a tradição
cristã em Jerusalém nos relata a respeito do lugar de sepultamento.

A . Preparação e sepultam ento do corpo

A descrição marcana do final do sepultamento por José é lacônica: José


desceu o corpo, amarrou-o em um pano de linho e o pôs em um lugar de sepul­
tamento escavado na rocha. (Em harmonia com o enobrecimento de José, Mateus
e Lucas enfeitam a descrição do pano e/ou do túmulo.) Depois do sepultamento,
Marcos nos diz que José rolou (proskyliein) uma pedra contra a porta do túmulo.
(Mateus acrescenta que ele foi embora.) 0 relato joanino complica-se pela inter­
venção de Nicodemos, que ajudou José e, assim, mudou o estilo do sepultamento
para um sepultamento realizado segundo os costumes judaicos. Contudo, se nos
limitarmos ao que João atribui só a José em Jo 19,38b, e saltarmos o papel de
Nicodemos e suas especiarias na ação conjunta de Jo 19,40-42, o final da história
das atividades de sepultamento em João fica assim: José veio e retirou o corpo;
ele atou-o (eles ataram-no) com panos; ele colocou-o (eles colocaram-no) em um
túmulo em um jardim próximo, um túmulo novo, no qual ninguém ainda havia
sido colocado. A oração em itálico no fim de meu resumo do final representa um
embelezamento do túmulo quase idêntico ao embelezamento que Mateus e Lucas
acrescentam a Marcos e, por isso, pode ser considerada uma etapa mais tardia da
composição joanina. A parte do resumo que não foi posta em itálico mostra como
João está próximo de Marcos. Portanto, com base na concordância entre Marcos
e João, sugeri em § 46 C a existência de uma tradição pré-evangélica do final do
sepultamento por José, onde José pegava (descia) o corpo, envolvia-o em panos e

474
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

o colocava em um túmulo (implicitamente próximo). Marcos e João incorporaram


essa tradição em um vocabulário bem diferente.75 E ssa diferença não só ajuda a
confirmar que João não copiou de Marcos, mas também sugere que a tradição
comum se concretizou na etapa de fala semítica da formação pré-evangélica, de
modo que já havia formulações diferentes na etapa grega da tradição pré-marcana
e pré-joanina. Embora em si não prove historicidade, essa percepção de origem
primitiva contribuiu para meu entendimento, no final da ANÁLISE de § 46, de que
“ não há nada no relato pré-evangélico básico do sepultamento de Jesus por José
que não possa ser plausivelmente considerado histórico”.

Mas, agora, com base em algumas diferenças entre Marcos e João em suas
descrições do final do sepultamento, quero formular perguntas a respeito de outros
detalhes que possam ter existido no relato pré-evangélico do sepultamento por José.

No RELATO p r é - e v a n g é lic o , J o sé d e sc e u J esu s da c r u z ? Os Evangelhos con­


cordam que José precisava da permissão de Pilatos, mas discordam se os soldados
de Pilatos desceram o corpo e o entregaram a José (Mateus implicitamente, João
talvez; no EvPd, os judeus descem o corpo e o entregam a José), ou se o próprio
José o desceu (Marcos, Lucas). Ajudaria a resolver a questão se soubéssemos
como os romanos costumavam agir depois de fazerem a concessão de permitir um
sepultamento individual. Mostravam ter o domínio da situação, não deixando nin­
guém tocar o corpo até realmente o entregarem, ou se poupavam do trabalho extra
e desdenhosamente faziam o solicitante realizar o trabalho braçal de desprender
o cadáver da cruz? Não vejo nenhum jeito de decidir, embora a primeira hipótese
pareça um pouquinho mais provável, especialmente quando haveria diferentes
remoções dos corpos dos crucificados, de modo que os próprios romanos teriam
de descer da cruz pelo menos alguns.

Marcos: kathairein (“retirar” ), eneilein (“amarrar” ), sindon (“ pano de linho”), katatithenai (“pôr”). João:
lambanein (“ tomar”), dein (“atar”), othonion (plural: “panos” ), tithenai (“colocar”). É complicado teorizar
que João copiou de Marcos o breve centro da ação, mas mudou quase todas as palavras-chave. Por quê?
É preciso pressupor ou que João é independente de Marcos (com os dois recorrendo à mesma tradição
pré-evangélica) ou uma remota dependência, baseada em ter ouvido ou lido Marcos no passado. Esta
última sugestão tropeça no fato de os detalhes marcanos mais brilhantes que as pessoas tendem a lembrar
não estarem preservados em João, por exemplo, que o túmulo foi escavado na rocha ou que a pedra foi
rolada contra a entrada do túmulo. Lucas e Mateus, que são dependentes de Marcos (entretanto, não
por memória do passado, mas por uso direto do Marcos escrito), preservam o primeiro desses aspectos
e Mateus preserva o segundo.

475
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

Q ue d e t a l h e s a r e sp e it o do t ú m u lo fo ra m in clu íd o s no r e la t o p r é - ev a n g élico

DO SEPULTAMENTO? Marcos (seguido por Mateus e Lucas, com vocabulário um pouco


diferente) especifica que o túmulo foi escavado na rocha. João não; em vez disso,
ele declara que o túmulo ficava em um jardim perto do local da crucificação. A
meu ver, esses detalhes a respeito do túmulo não estão no mesmo nível das indica­
ções de que ele era novo (Mateus, João), de que ninguém fora depositado/colocado
nele antes (Lucas, João) e de que pertencia a José (Mateus, EvPd). E ssas últimas
indicações originam-se ou de interesses apologéticos associados ao túmulo vazio,
ou do enobrecimento de José; assim, é mais provável que representem uma etapa
formativa mais tardia. (0 fato de ser tardia não exclui todas as possibilidades de
ser real.) Mencionei no COMENTÁRIO que túmulos escavados na rocha eram comuns
na área ao norte de Jerusalém que é o local mais plausível para o Gólgota e que
havia uma Porta do Jardim que conduzia para essa área, presumivelmente assim
chamada porque ali havia jardins ou pomares.'6 Se os cristãos guardaram a memó­
ria do túmulo de Jesus (e isso é plausível), esses detalhes, bem como a indicação
de que esse era um túmulo de acesso horizontal com a porta bloqueada por uma
rocha, podem ser reais. Isso não significa necessariamente que faziam parte da
tradição pré-evangélica primitiva do sepultamento por José; ainda podem ter sido
acrescentados em uma etapa mais tardia (quer pré-marcana, quer marcana, pré-
-joanina ou joanina), à medida que se formavam. Ou podem refletir verossimilhan­
ça, por exemplo, túmulos escavados na rocha, fechados por pedras roladas, eram
frequentes na área ajardinada ao norte de Jerusalém e, assim, é de se supor que
Jesus foi depositado em um túmulo como esse. Comentários semelhantes podem
ser feitos a respeito da indicação (explícita em João, implícita nos outros) de que
o túmulo era perto de onde Jesus foi crucificado. Um José que não era discípulo
não teria se dado ao trabalho, nem teria tido tempo antes do sábado, de levar para
longe o corpo do criminoso crucificado; consequentemente, o túmulo ficava (real
ou plausivelmente) perto do Gólgota. Mais uma vez, não vejo jeito de resolver essa
questão. Por não pensar que os cristãos se lembravam do túmulo onde Jesus foi
sepultado, inclino-me a preferir a realidade à verossimilhança para explicar a origem76

76 Realmente, João pode perfeitamente dar um significado teológico ao cenário de jardim do sepultamento
(acima, penúltimo parágrafo antes desta A n á l i s e ) ; assim, é possível argumentar que esse detalhe não é
sem motivação e deve ser juntado aos outros que foram trazidos ao quadro do sepultamento por razões
apologéticas ou teológicas. Entretanto, a significação teológica neste caso não está tão clara a ponto de
se pensar que deu origem à menção de um jardim; é mais provável que as possibilidades teológicas
tenham se originado do fato de um jardim ser mencionado no relato do sepultamento.

476
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

desses detalhes. Contudo, o fato de Marcos e João não compartilharem nenhum


deles torna menos provável que eles se encontrassem na tradição pré-evangélica
perceptível que fundamenta os dois Evangelhos.

NO RELATO PRÉ-EVANGÉLICO, JOSÉ FECHOU O TÚMULO COM UMA PEDRA? Em Marcos,


seguido por Mateus (que torna a pedra grande), o próprio José rola a pedra contra
a porta do túmulo. Nem Lucas nem João especificam quem foi o responsável pela
pedra estar ali. No EvPd , os interessados em guardar o túmulo, isto é, os soldados
romanos e as autoridades judaicas, rolam uma grande pedra até a porta do túmulo.
Na hora da manhã de Páscoa em que as mulheres chegam ao túmulo, as cinco obras
concordam que a pedra foi ou é removida.7' Há razões para julgar, então, que a
tradição pré-evangélica da descoberta do túmulo vazio por Maria Madalena fazia
referência ao túmulo já aberto porque a pedra que o fechava tinha sido rolada/mo-
vida para trás.'8 Não seria impulso nem grande nem ilógico presumir que a pessoa
que sepultou Jesus pôs a pedra na entrada do túmulo e, portanto, pode bem ser
que o fechamento do túmulo por José fosse entendido na história do sepultamento
como derivação retroativa da tradição do túmulo vazio. Tal derivação regressiva não
significa necessariamente que essa ação por José não fosse historicamente real — o
que logicamente se supõe ter acontecido com mais frequência do que realmente
aconteceu — , não mais que a aceitação da realidade das ações de José significa que
o fechamento do túmulo estava incluído na tradição pré-evangélica do sepultamen­
to. A tradição independente a respeito de José não menciona a pedra no relato do
sepultamento, mas apenas na narrativa do túmulo vazio; esse fato sugere que não
havia fechamento do túmulo na narrativa pré-evangélica do sepultamento por José
e apoia a teoria da derivação retroativa. Contudo, é preciso admitir a possibilidade
de João ter omitido o fechamento do túmulo por razões teológicas, já que, quanto
mais forte a identificação de José como discípulo antes do sepultamento, menos

Marcos: apokyliein, anakyliein', Mateus e Lucas: npokxheur, João airein; EvPd: kyliein. Não tenho certeza
de até que ponto a pedra de sepultamento removida repercute em lPd 2,4, que convida as pessoas a virem
“ até ele, pedra viva, rejeitada pelos seres humanos, mas diante de Deus escolhida e valiosa” . Mercúrio
(“Baptismal” , p. 48-49) menciona esse como um dos temas batismais nas descrições evangélicas do
sepultamento, juntamente com a água que flui do lado de Jesus, o pano de linho e o jardim (do paraíso!).
8 A especulação quanto a como ele foi aberto faz parte de uma grande etapa da evolução da história,
com a introdução do(s) anjo(s), para interpretar o propósito do túmulo vazio, de modo que a história se
transforma em meio eficaz para proclamar o Senhor ressuscitado. Quanto ao agente da remoção, Marcos,
Lucas e talvez João subentendem que o(s) anjo(s) que aparecem no/perto do túmulo a removeram. Mateus
descreve um anjo que desceu do céu e rolou a pedra para trás; em EvPd, a pedra rola sozinha.

477
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

provável é a tendência de tê-lo perto do túmulo com certeza, como se ele não esti­
vesse aberto à ressurreição. E por isso que o fechamento do túmulo se torna uma
ação dos adversários de Jesus no EvPd, como o ato de lacrar o túmulo em Mt 27,66.

F oram m e n c io n a d a s e s p e c i a r i a s no r e l a t o p r é - e v a n g é lic o do s e p u l t a m e n -

TO? A questão das especiarias é mais complicada. Em relação a Nicodemos, João


menciona mirra (smyrna), aloés e especiarias como parte do sepultamento no qual
José colabora. Lucas menciona especiarias e mirra (myron) sendo preparadas pelas
mulheres depois do sepultamento, ao entardecer da sexta-feira, antes do início do
sábado. Em Marcos (Mc 16,1), as mulheres compram especiarias na manhã de
Páscoa depois de o sábado terminar, antes de irem até o túmulo. O fato de nenhum
dos três Evangelhos que se referem a “especiarias” (pl. de aromo)79 associá-las à
ação pessoal de José torna duvidoso que houvesse menção a especiarias na tradi­
ção pré-evangélica de um sepultamento por José. 0 uso de especiarias fazia parte
da tradição pré-evangélica do túmulo vazio e foi interpretado retroativamente no
sepultamento? Ou havia outras tradições de sepultamento, além do sepultamento
por José que estivemos examinando? Essa pergunta nos leva a um exame do se­
gundo assunto nesta ANÁLISE: o fato de todos os Evangelhos terem em seus relatos
do sepultamento outros atores além de José.

B. Presença e atividade de outras dramatis personae além de José

Os Evangelhos sinóticos têm em comum a presença de mulheres galileias


no túmulo; e usando Lc 24,10 para esclarecer Lc 23,55, vemos que implicitamente
eles concordam que duas dessas mulheres eram Maria Madalena e Maria, mãe de
Tiago e Joset/José. Nicodemos age somente em João. Em EvPd, 6,21.23, os judeus
“arrancaram os cravos das mãos do Senhor e o colocaram no chão [...] e deram seu
corpo a José para que ele pudesse sepultá-lo” ; e em EvPd 8,32, soldados romanos e
escribas, fariseus e anciãos, “ tendo rolado uma grande pedra [...], colocaram (-na)
contra a entrada do lugar de sepultamento”. (A narrativa do EvPd continua para
que esses últimos agentes lacrem o lugar de sepultamento e ali montem guarda.) Se,
como especulei, José de Arimateia era originalmente um membro do sinédrio que
não estava do lado de Jesus, não é surpreendente que a tradição cristã a respeito

79 Talvez eles não interpretem as especiarias da mesma maneira. Afirmei no COMENTÁRIO que João pensa
em mirra seca e aloés pulverizados, enquanto Marcos (claramente) e Lucas (provavelmente — myron é,
em geral, óleo) pensam em um óleo ou unguento líquidos para ungir.

478
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

do sepultamento quisesse acrescentar a ele figuras mais favoráveis a Jesus, como


as mulheres e Nicodemos.80 Por outro lado, depois de se imaginar que José era
cristão antes do sepultamento e se acreditar que Jesus ressuscitado rompeu os
laços com o túmulo, parte do caráter negativo do processo de sepultamento (tentar
livrar-se de Jesus) foi rapidamente atribuído a seus inimigos. Foram outras tradições
pré-evangélicas que atribuíram um papel a essas dramatis personae adicionais
no sepultamento de Jesus trazidas aos Evangelhos por meio da combinação delas
com a narrativa de José? Ou a presença dessas dramatis personae foi produto de
dedução das narrativas de ressurreição do túmulo vazio e/ou de criação teológica,
e/ou, no caso de inimigos, de apologética? Tenham ou não aparecido nas tradições
pré-evangélicas, sua presença era histórica? São perguntas com as quais precisamos
lidar agora, quando tratamos separadamente das origens do papel das mulheres
galileias e de Nicodemos nos relatos do sepultamento. A [origem do papel] dos
judeus no fechamento do túmulo vai ser deixada para a seção seguinte (§ 48), onde
examinaremos o relato mateano do pedido dos chefes dos sacerdotes e fariseus para
guardar o túmulo, juntamente com seu paralelo no EvPd.

1. As MULHERES GALILEIAS. Os leitores devem refrescar a memória que têm do


estudo concentrado no Quadro 8 de § 41. Foi mencionado que, das três aparições
dessas mulheres na NP (longe da cruz, observando o sepultamento, vindo ao túmu­
lo vazio na Páscoa), aquela com a qual os evangelistas mais concordam envolvia
Maria Madalena (explícita ou implicitamente com companheiras) vindo ao túmulo
na Páscoa e encontrando-o vazio. Essa e outra tradição primitiva em que a Maria
Madalena foi concedida a primeira aparição do Senhor ressuscitado em Jerusalém
foram o fator primordial para preservar a memória das mulheres galileias.81 O que
significa a discordância entre os evangelistas, em especial entre Marcos e João,
quanto à presença dessas mulheres nas cenas anteriores da NP? Em § 41 e § 44
A, acima, examinei a presença delas na crucificação e argumentei que Jo 19,25
e Mc 15,40 indicavam a probabilidade de uma tradição pré-evangélica segundo a
qual três mulheres estavam presentes na cena (a certa distância) da cruz. Maria
Madalena, uma outra Maria (identificada variadamente) e uma terceira mulher.

80 Outra reação, como vimos, foi transformar José em alguém mais favorável a Jesus.
81 A atividade subsequente de Maria Madalena tomou-se assunto de criação lendária floreada, não diferente
das lendas que se difundiram em tomo de José de Árimateia. Entretanto, o fato de primordialmente ela
ser uma figura dos relatos da ressurreição faz o relato dessas lendas parecer deslocado em um livro a
respeito da NP.

479
Qmmo ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

É mais difícil defender uma tradição primitiva comum que incluía a presença
delas no sepultamento. Sinais negativos são que elas estão ausentes de João, que em
Marcos (o relato sinótico básico) elas não têm participação ativa no sepultamento e
que elas observam o sepultamento no túmulo de modo a poder voltar a ele na Páscoa
e reparar o que ficou faltando no sepultamento. A tese de derivação retroativa, então,
é muito atraente: a saber, que do papel de Maria Madalena e suas companheiras
na tradição do túmulo vazio e da tradição primitiva da presença de três mulheres
galileias na crucificação foi logo deduzido que elas estavam no sepultamento. Elas
foram incluídas na narrativa marcana do sepultamento (seguida por Mateus e Lu­
cas) a fim de tornar a história do sepultamento mais claramente uma ligação entre
a crucificação e a ressurreição. A ação de José foi primordialmente a culminância
do relato da Paixão e crucificação; e a observação pelas mulheres preparou para
a ressurreição a partir do túmulo. (Claramente, o relato joanino do sepultamento,
que não menciona as mulheres, encerra a crucificação; serve como Episódio 6 da
narrativa da crucificação em um padrão quiástico [§ 38 C], mas nada faz para
preparar a visita de Maria Madalena a um túmulo vazio.) Entretanto, na imagem
marcana maior, com sua presença na crucificação, no sepultamento e no túmulo
vazio, as mulheres inter-relacionam as três cenas.

Em § 44, nota 34, examinei tentativas engenhosas de usar variações nos


nomes das mulheres (em especial das outras Marias) para determinar a cena na
qual eles eram mais originais. Não causa surpresa que essa técnica tenha sido usada
aqui também, por exemplo, Gnilka (Markus, v. 2, p. 331) afirma que, embora a
lista marcana de nomes na narrativa do túmulo vazio (Mc 16,1) seja secundária e
tirada da lista na crucificação (Mc 15,40), a lista de nomes aqui no sepultamento
é tradição mais antiga, pois só duas são mencionadas. Blinzler (“ Grablegung”, p.
61) considera original a lista aqui e também no túmulo vazio. Embora eu considere
esta abordagem baseada em nomes, na melhor das hipóteses, complementar a outra
argumentação, sugeri que as duas mais antigas tradições dos nomes tinham três
mulheres na crucificação (Maria Madalena, outra Maria, uma terceira mulher82),
e Maria Madalena (e vagamente outras mulheres) no túmulo vazio. Mais tarde, os
nomes das mulheres no túmulo vazio foram harmonizados com os nomes dados às

82 Duvido que a terceira mulher fosse identificada na tradição pré-evangélica, pois cada Evangelho lhe
atribui um nome diferente; ver § 44, nota 139.

480
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

mulheres perto da cruz, mas em forma abreviada, pois já haviam sido mencionadas.83
Assim, se examinarmos mais uma vez o Quadro 8, “ Maria Madalena e Maria, mãe
de Tiago Menor e de Joset e Salomé”, em Mc 15,40, se transformaram em “ Maria
Madalena, a Maria de Tiago e Salomé”, em Mc 16,l . 84 Segundo a tese de que a
referência às mulheres no sepultamento é derivação retroativa da presença delas no
túmulo vazio, a abreviação continua: somente “ Maria Madalena e Maria de Joset”,
com a decisão de citar aqui o outro filho de Mc 15,40, que foi omitido do outro uso
em Mc 16,1.85 Mateus foi além na simplificação e usou no sepultamento (Mt 27,61)
a mesma forma abreviada (Maria Madalena e a outra Maria) que vai usar no túmulo
(Mt 28,1). Entretanto, essas sugestões quanto ao procedimento dos evangelistas
neste assunto complexo continuam altamente especulativas.

2 . N ic o d em o s . Esta personagem adicional no sepultamento encontra-se so­


mente em João, onde apareceu em duas cenas anteriores (Jo 3 ,lss; 7,50 -52). Para
explicar sua presença aqui (quando está totalmente ausente do relato sinótico do
sepultamento), um número extraordinário de sugestões têm sido feitas pelos biblistas.
Muito simplesmente, alguns pensam ter havido um Nicodemos histórico que fez
exatamente o que João descreveu, mas foi esquecido na tradição da Igreja maior.
(Mais que os outros evangelistas, João demonstra um conhecimento de Jerusalém
e dos seguidores de Jesus ali.) Vimos a probabilidade de, à medida que a tradição
crescia, José ter se transformado de piedoso membro do sinédrio observante da lei,
que antes do sepultamento não era seguidor de Jesus, em discípulo ou simpatizante
de Jesus. Era a imagem original mais complexa, com diversos membros do sinédrio
judaico ansiosos para que Jesus fosse enterrado antes do pôr do sol, inclusive José,
que não era discípulo, e Nicodemos, que foi simpatizante de Jesus durante todo o
ministério público; e foram os dois unificados em José em pregações simplificadas

88 Essa harmonização não aconteceu em João que, ao citar pelo nome apenas Maria Madalena (que fala
como “nós”) no túmulo, preserva a situação mais antiga.
84 Se compararmos os respectivos textos mateanos, descobriremos que “ Maria Madalena e Maria, mãe de
Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu” , em Mt 27,56, se transformaram em “Maria Madalena
e a outra Maria”, em Mt 28,1. Com seu senso de ordem, depois de designar as mulheres galileias pelo
nome no decorrer do ministério em Lc 8,1-3, na crucificação e no sepultamento Lucas simplesmente
refere-se a elas de modo geral, citando-lhes os nomes mais uma vez (de forma abreviada) apenas quando
termina a história do túmulo vazio (Lc 24,10).
85 Este último passo estava no nível literário; os passos anteriores estavam no todo ou em parte na formação
oral das tradições evangélicas. A explicação que apresentei responde a muitas das objeções que levantei
contra outras teorias a respeito dos nomes em § 44, nota 34.

481
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

que deixaram consequências nos relatos sinóticos? A principal dificuldade com


essas sugestões históricas é que, em Marcos, o sepultamento por José é apressado
e mínimo; em João, a presença de Nicodemos e suas especiarias torna o sepulta­
mento comum e honroso — quando se afirma que a tradição sinótica se esqueceu
de Nicodemos, ela também esqueceu a própria natureza do sepultamento. Outra
tese é que, embora Nicodemos fosse autêntico nas cenas joaninas do ministério
de Jesus, ele foi acrescentado aqui com propósitos simbólicos. Por exemplo, com o
lembrete de que antes Nicodemos viera à noite (Jo 19,39, fazendo eco a Jo 3,1-2),
será que João queria que os leitores recordassem o diálogo inicial entre Jesus e
Nicodemos a respeito de “água e espírito” (Jo 3,5), quando refletiam no sentido da
água que saiu do lado de Jesus em Jo 19,34? Ainda outra tese é que Nicodemos era
inteiramente criação joanina imaginativa. É mencionado que ele era muito parecido
com José. Os dois eram membros do sinédrio, os dois sentiam atração por Jesus;
os dois mantinham oculta sua simpatia por ele. Era José uma figura por demais
confirmada na tradição para permitir dramatização, de modo que João moldou
uma réplica que podia funcionar em outro lugar além do sepultamento?86 Ou, ao
lado de José, que durante a vida de Jesus foi discípulo oculto por medo dos judeus,
João quis colocar uma figura como Nicodemos, que personificasse os líderes da
sinagoga que, em um período mais tardio, eram conhecidos dos cristãos joaninos, e
demonstrasse publicamente simpatia por Jesus somente depois de um momento de
grande provação (e, assim, finalmente rompendo o padrão de segredo de Jo 12,42)?

Nenhuma dessas teses pode reivindicar grande probabilidade. De fato, os


dois episódios incluídos no sepultamento, Jo 19,31-37 e Jo 19,38-42, estão entre
os mais difíceis do Evangelho para discernir a história da composição joanina.
Contudo, algumas observações podem ser feitas com certeza (embora não permitam
uma decisão): o papel de Nicodemos estava ausente do relato pré-evangélico do
sepultamento por José; ao ser acrescentado, ele mudou o estilo do sepultamento de
mínimo para comum; o papel de Nicodemos é bem joanino na orientação triunfal
que dá ao sepultamento como culminância da crucificação entronizante. Então, neste
episódio e também no precedente, como o testemunho ocular de Jo 19,35 (isto é, o

86 Uma objeção à suposta incapacidade de dramatizar a imagem de José é constituída pelo que acontece a
José no EvPd, onde ele fica amigo de Pilatos (EvPd 2,3), “ que tinha visto quantas coisas boas ele [Jesus]
fez” (EvPd 6,23). Ali, José é como “ muitos dos judeus” no ministério do Jesus joanino — “ tendo visto
o que Jesus fizera, eles creram nele” (Jo 11,45, em contraste com Jo 12,37).

482
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

discípulo amado de Jo 19,26-27), temos presente uma personagem essencial e bem


joanina, não conhecida dos sinóticos, que estabelece o simbolismo teológico da cena.

Como muitos outros comentaristas a respeito de João (Barrett, Dodd, Schna-


ckenburg etc.), reconheço que não se deve chegar apressadamente à conclusão de
que personagens exclusivamente joaninas não são históricas porque seu papel se
harmoniza com a teologia do Evangelho. Afinal de contas, João faz uso teológico se­
melhante de personagens cuja existência é confirmada pelos outros Evangelhos, por
exemplo, Simão Pedro. Quanto às personagens caracteristicamente joaninas, afirmo
que João não inventou simplesmente o discípulo que em sua descrição era amado
por Jesus. Considero-o um discípulo relativamente pequeno quando comparado aos
citados na tradição comum, por exemplo, os Doze, mas um que alcançou grande
importância dentro dos limites da tradição joanina, onde sua constante proximidade
de Jesus foi percebida como modelo para o comportamento da comunidade. Não
vejo razão para negar a Nicodemos uma possível historicidade; mas essa opinião
não garante que realmente ele apareceu em todas as cenas em que é descrito. Uma
decisão nesse ponto precisa ter a ajuda de outros fatores, por exemplo, não só se a
personagem joanina está ou não ausente do paralelo sinótico (o que por si só não é
muito decisivo87), mas se a presença da figura joanina está ou não em conflito com
a apresentação sinótica. A situação presente é próxima disso.

C. A igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém

Quero encerrar esta análise do que pode ser antigo na narrativa do sepul­
tamento com a luz lançada sobre o túmulo de Jesus pelo que conhecemos do local
tradicional no qual o Gólgota e o túmulo eram venerados em Jerusalém e da série
de igrejas ali construídas.88 Certamente, o local possui verossimilhança, pois já
vimos que está localizado apropriadamente para o que os Evangelhos nos relatam
a respeito do lugar da execução e do sepultamento de Jesus. Ficava ao norte da
Segunda Muralha Norte do tempo de Jesus, perto da Porta do Jardim; escavações

87 Não é verdadeiramente significativo que Lc 24,12 (se autêntico) só mencione Pedro correndo para o
túmulo enquanto em Jo 20,2-4 o discípulo amado está ao lado de Simão Pedro (embora essa combinação
seja puramente joanina e bastante simbólica). Como Lc 24,24 mostra, foi na tradição lucana que “ alguns
dos que estavam conosco [assim, mais de um] foram ao túmulo” .
88 Na B ib l io g r a f ia d a S e ç à o de § 37, sob a Parte II (Geografia), ver em especial os artigos de Bahat, Krets-
chmar, Ross e Wilkinson (“Church”), que refletem os estudos fundamentais de Coüasnon e Corbo. Devo
a Bahat e Wilkinson grande parte do que resumo nesta seção.

483
Q üahto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

mostram que havia uma pedreira no local que havia começado a ser tapada, de modo
que servia de jardim para grãos e árvores (figueiras, alfarrobeiras, oliveiras) e para
sepultamentos, principalmente do tipo kokím (ver COMENTÁRIO acima). Mas, além da
verossimilhança, que se aplica a diversos locais, por que este candidato, a igreja do
Santo Sepulcro, surgiu primeiro em sua afirmação de que, dentro de suas paredes,
estão o Gólgota e o túmulo? (Aparentemente, no primeiro milênio, nenhum local
era dentro da basílica erigida nesse ponto: o local da crucificação estava em um
pátio e o do túmulo, em uma rotunda separada da igreja por um jardim.) O próprio
nome atual da igreja sugere que a afirmação principal se centraliza no túmulo e,
aqui, vou me concentrar nisso.

Começamos com reflexões sobre a probabilidade de que os cristãos se


lembravam corretamente de qual era o túmulo de Jesus, embora nesse período
primitivo haja poucos indícios de que preservaram uma lembrança precisa dos
locais de outros fenômenos associados a ele. Nos Evangelhos, há sinais claros de
interesse teológico no túmulo. Ao reconhecer a existência de uma antiga tradição
segundo a qual, na manhã de Páscoa, Maria Madalena encontrou vazio o túmulo
onde Jesus fora sepultado, muitos biblistas pressupõem um desenvolvimento cons­
tante em narrativas completas com a presença de um anjo ou anjos que servia
para interpretar a importância do túmulo vazio como indicador da ressurreição.
Entretanto, o interesse no simbolismo do túmulo não era necessariamente acom­
panhado pelo conhecimento do local exato. A informação que Marcos dá, a saber,
que ele foi escavado na rocha, dificilmente ajuda a tornar o local identificável; só o
relato joanino de que o túmulo ficava em um jardim perto do Gólgota e a indicação
mateana (por suposição?) de que era o túmulo de José servem para esse propósito.
Contudo, temos de nos voltar para indícios fora dos Evangelhos, a fim de estabelecer
a probabilidade de um ponto lembrado.

Havia nesse período uma crescente veneração judaica dos túmulos dos
mártires e profetas.89 Os supostos túmulos dos macabeus passaram a ser venerados
desde que foram considerados mártires do culto do verdadeiro Deus (acima, § 46,
sob “Atitudes judaicas em relação aos corpos dos crucificados” ). Na verdade, no
século IV, os cristãos de Antioquia assumiram esses túmulos dos judeus como
lugares de oração e peregrinação.90 As Vidas dos Profetas, obra com história com­

m Ver Jeremias, Heiligengrãber, esp. p. 145.


90 Crisóstomo, De Maccabeis 1,1 (PG 50,617); Homilia 11, De Eleazaro 1,1 (PG 63,523-524).

484
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

plicada, mas que talvez tenha raízes no Judaísmo do século I d.C., tem o cuidado
de, na maioria dos relatos, nos contar onde o profeta foi sepultado. De interesse
especial é As Vidas dos Profetas 1,9, que nos diz que o túmulo de Isaías em Jeru­
salém ficava “perto do túmulo dos reis, a oeste do túmulo dos sacerdotes, na parte
meridional da cidade” (= o Vale do Cedron). Quanto ao túmulo de Ageu (As Vidas
dos Profetas 14,2): “ Quando morreu, foi sepultado perto do túmulo dos sacerdotes,
com grandes honras, do mesmo modo que eles”. Zacarias, que era o filho marti-
rizado de um sacerdote, foi tomado pelos sacerdotes e sepultado com seu pai (As
Vidas dos Profetas 23,1). 0 Vale do Cedron e a área ao norte de Jerusalém estão
pontilhados de túmulos monumentais desse período, que comemoram (com e sem
exatidão) a memória de profetas, homens veneráveis, sábios, sacerdotes e membros
da realeza. Já mencionei os “ Túmulos dos Reis” (na realidade, o conjunto de túmulos
da rainha Helena de Adiabena, que morreu cerca de vinte e cinco anos depois de
Jesus), que apresentam excelente paralelo em muitos aspectos para estudar o tipo
de lugar onde talvez Jesus tenha sido sepultado (escavado em uma pedreira; con­
tendo sepultamentos kokim e em arcossólios; fechado por uma pedra rolada). Uma
razão especial para lembrar o túmulo de Jesus está na fé cristã de que o túmulo
foi desocupado por sua ressurreição dos mortos. Sendo possível recorrer a atitudes
mais tardias da Mixná, Berakot 9,1 incentiva a pensar que os seguidores judaicos
de Jesus não esqueceram o local desse tremendo acontecimento: “ Quando é mos­
trado um lugar onde aconteceram prodígios em Israel, dizei: ‘Bendito Aquele que
operou prodígios para nossos antepassados neste lugar’”. Infelizmente, o EvPd não
demonstra nenhum conhecimento seguro da Palestina do século I; de outro modo,
seria possível recorrer a EvPd 6,24, que dá um topônimo, “o Jardim de José”, como
prova de que os cristãos podiam indicar o local do túmulo.

Alguns fatores históricos podem ter influenciado a lembrança do local. Um


parente próximo de Jesus, Tiago, “o irmão do Senhor”, ficou sendo figura importante
na comunidade cristã de Jerusalém (G1 2,9), logo depois da ressurreição de Jesus
(ICor 15,7: “apareceu a Tiago” ) até 62 d.C., quando foi executado pelo sumo sacer­
dote Anás II (Josefo, Ant. X X ,ix,l; #200). Nesse período, ele pode muito bem ter
tido um interesse de família no túmulo, interesse que seria uma tradição viva entre
os parentes de Jesus que deviam ter sido proeminentes no Cristianismo palestino
do século II (Eusébio, HE iii,19-20). Os sepultamentos no jardim da pedreira, que
marcou o local tradicional, foram interrompidos quinze anos depois da morte de

485
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

Jesus, pois o jardim foi incorporado a Jerusalém quando Herodes Agripa I (41-44
d.C.) empurrou os muros da cidade mais para o norte. Ainda mais difícil seria a
retenção da lembrança do local durante a grande mudança que ocorreu depois da
Segunda Revolta Judaica, quando Adriano reconstruiu Jerusalém como a cidade
romana de Aélia Capitolina. Não era permitida a presença de judeus nessa nova
cidade, mas a comunidade cristã pôde continuar, porque o bispado agora passou
para as mãos de cristãos gentios (HE IV,vi,3-4). Em 135, na área geral do local do
túmulo, foi construída uma imensa plataforma — uma área retangular fechada, sobre
a qual os romanos construíram um Templo a Afrodite (embora alguns estudiosos,
recorrendo a Jerônimo, falem de um Templo a Júpiter). A escolha de erguer um
Templo pagão bem em cima do túmulo de Jesus pode ter sido acidental e não uma
afronta deliberada à que, afinal de contas, era apenas uma seita pequena.91 Contudo,
pode também ter servido para marcar o local agora enterrado pelos duzentos anos
seguintes (Kretschmar, “ Kreuz”, p. 424). Quanto ao Gólgota, segundo Jerônimo,
projetava-se acima da plataforma e constituía a base para uma estátua de Afrodite.
Na última parte do século II, o local do túmulo enterrado foi mostrado a Melitão de
Sardes quando este foi a Jerusalém, e ele o descreveu como estando no meio das
ruas largas da cidade romana (§ 39, acima).

Em 325, segundo Eusébio e Cirilo de Jerusalém, que foram contemporâneos


do acontecimento, a tradição a respeito do local da crucificação e sepultamento
orientou os construtores encarregados pelo imperador Constantino, que queria
descobrir os lugares sagrados e homenageá-los com uma igreja (ver L. E. C. Evans,
“ Holy”, p. 123). Quando demoliram as estruturas de Adriano e cavaram o ater­
ro, encontraram o túmulo da gruta, descoberta descrita por Eusébio em De vita
Constantini iii,30-32 (GCS vii,91-93 — ver S. Heid, Rõmische Quartalschrift 87,
1992, p. 1-28). Cirilo de Jerusalém, que pregou na basílica de Constantino c. 350,
também fala do túmulo como sendo uma gruta ou caverna.92 Além de construir uma

91 L. D. Sporty (BA 54, 1991, p. 28-35) pensa antes em uma afronta ao Judaísmo. Olhando, do Monte
das Oliveiras, ao longo de uma linha leste-oeste daquilo que era a Porta Áurea do conjunto do Templo,
através do local do Santo dos Santos, para onde o Templo de Afrodite foi construído, o Templo pagão
ficava em um ponto dominantemente mais alto, no extremo ocidental da linha que se elevava acima das
ruínas religiosas judaicas — sinal visível do triunfo romano sobre o Judaísmo. A decisão dos arquitetos
de Constantino de construir a igreja deles no local do Templo de Afrodite, que destruíram, e assim, na
mesma linha leste-oeste, mostrou o triunfo do Cristianismo sobre as religiões romana e judaica.
92 Catechesis 14,9 (PG 33,833B); em 14,22 (PG 33,853A), ele afirma que a pedra que fechava o túmulo
ainda estava lá.

486
§ 47.0 sepultam ento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo

basílica comprida no sentido leste-oeste chamada Martyrion (terminada em 336),


os arquitetos de Constantino trabalharam na gruta do sepultamento e no Gólgota
e, assim, criaram um conjunto sagrado com três locais importantes. Quanto à gruta
sagrada, a câmara interior do túmulo com o nicho de sepultamento foi deixada in­
tacta; mas os construtores cortaram grande parte da antecâmara exterior da gruta,
bem como a face rochosa externa, até restar apenas a estrutura de um bloco no nível
da superfície. Em seguida, eles adornaram o exterior com uma edícula que tinha
pequenas colunas de mármore e telhado de ouro, transformando-a, desse modo,
em um sacrário. Mais tarde, isso se tornou o centro de uma rotunda com colunatas,
intitulada Anastasis (Ressurreição),93 engastada em um pátio ajardinado a oeste da
basílica Martyrion. 0 Gólgota ou outeiro do Calvário ficava no canto meridional do
pátio, tocando o extremo ocidental da basílica.

Os invasores persas de 614 arrancaram algumas das preciosas ornamen­


tações da edícula, mas não se interessaram pelo túmulo rochoso subjacente que,
felizmente, não foi danificado pelo incêndio que acompanhou a depredação. Nem
outro grande incêndio no século X parece ter danificado o túmulo em si. A catástrofe
aconteceu em 1009, quando o califa fatimida do Cairo, Hakim, como parte de sua
tentativa de abolir o Cristianismo, destruiu todo o conjunto e praticamente arrasou
o túmulo, deixando traços das paredes rochosas originais apenas no norte e no sul
(o que, felizmente, bastou para permitir a investigadores mais tardios descobrirem
a planta da edícula). Em uma reconstrução quarenta anos mais tarde, foi erigida
uma réplica do túmulo e a rotunda da Anastasis foi parcialmente restaurada, mas
a basílica de Constantino não foi reconstruída.

Quando os cruzados chegaram, em 1099, começaram a construir uma


igreja para alojar a Anastasis e o Calvário; e ela foi terminada em 1149. Tendo a
forma geral que ainda está de pé, ela exibia os arcos ogivais e outros traços que
começavam a aparecer nas igrejas europeias da época. 0 Gólgota recebeu forma
retangular e um revestimento de mármore foi colocado sobre ele (embora a rocha
original do outeiro ainda seja visível na parte posterior); desse modo, ele agora
se erguia dentro da igreja como uma alta capela em forma de caixa, não longe da

Bahat (“ Does” , p. 40) faz a interessante sugestão de que a rotunda imitava a forma do Templo de Afro-
dite, que existira acima do local do fórum da Aelia Capitolina de Adriano; na verdade, é provável que
algumas das colunas desse Templo tenham sido usadas. Ele aponta para Templos de Afrodite com forma
de rotunda em outros lugares, inclusive Roma.

487
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

edícula que cobria o túmulo reconstruído. Mais uma vez, a área do Santo Sepulcro
se tornou um local de sepultamento, desta vez para os reis cruzados do Reino Latino
de Jerusalém. Os cruzados foram expulsos em 1187. Através dos séculos, terremotos
e incêndios danificaram a grande igreja deles e a enfraqueceram; e tentativas de
escorá-la deixaram uma feia confusão de traves de apoio e vigas de madeira. Foi só
com a reconstrução iniciada em 1959 que a longa história de estruturas situadas
embaixo se tornou visível. E debaixo de 1.700 anos de esforços arquitetônicos, não
perceptíveis aos olhos do peregrino, que vê uma cobertura de mármore, existem
ainda os restos muito escassos das paredes de uma gruta que mais tem direito a
reivindicar ter sido o lugar de sepultamento escavado na rocha no qual um piedoso
membro do sinédrio colocou o cadáver de Jesus crucificado.

(A bibliografia para este episódio encontra-se em § 45, Parte I.)

488
§ 4 8 .0 sepultamento de Jesus,
terceira parte: No sábado,
a guarda no sepulcro
(Mt 27,62-66; Lc 23,56b)

Tradução

Lc 23,56b: 54bE então, no sábado, elas descansaram segundo o mandamento.


M t 27,62-66: 62Mas, no dia seguinte, que é depois do dia de preparação,
reuniram-se os chefes dos sacerdotes e os fariseus diante de Pilatos, “ dizendo:
"Senhor, lembramo-nos de que aquele impostor disse quando ainda estava vivo:
'Depois de três dias, vou ressuscitar (serei ressuscitado)'. “ Portanto, ordena que o
sepulcro seja tornado seguro até o terceiro dia, para que, tendo vindo, os discípu­
los não o roubem e digam ao povo: 'Ele foi ressuscitado dos mortos', e a última
impostura será pior que a primeira". “ Pilatos disse a eles: "V ó s (podeis ter) tendes
uma guarda custodiai. Ide tornar seguro como sabeis". “ Tendo ido, eles fizeram o
sepulcro seguro com a guarda custodiai, tendo lacrado a pedra.
[M t 28,2-4 (depois do sábado, no sepulcro): 2E vede, houve um grande
terremoto, pois um anjo do Senhor, tendo descido do céu e tendo avançado, re­
moveu a pedra e estava sentado nela. 3Ora, sua aparência era como um relâmpago
e suas vestes brancas como a neve. 4Mas, por medo dele, os que montavam guarda
tremeram e ficaram como mortos.]
[M t 28,11-15 (depois que as mulheres encontram o Jesus ressuscitado que
lhes diz para irem a seus irmãos, os discípulos): "Mas, quando estavam indo, vede,
alguns dos guardas custodiais, tendo entrado na cidade, anunciaram aos chefes
dos sacerdotes todas as coisas que tinham acontecido. I2E, tendo se reunido com
os anciãos e tendo tomado uma decisão, eles deram muitas moedas de prata aos
soldados, °dizendo: "Dizei que 'os discípulos dele, tendo vindo à noite, o roubaram,
enquanto estávamos dormindo'. I4E se isso for ouvido pelo governador, nós (o)
persuadiremos e vos livraremos de preocupação". I50 ra , tendo pegado as moedas

489
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

de prata, eles fizeram como foram instruídos. E esta palavra tem sido divulgada
entre os judeus até este dia.]
EvPd 8 ,2 8 -9 ,3 4 :8'28M a s os escribas e fariseus e anciãos, tendo se reunido uns
com os outros, tendo ouvido que todo o povo estava murmurando e batendo no
peito, dizendo que "Se na sua morte estes sinais muito grandes aconteceram, vede
como ele era justo", 29ficaram com medo (especialmente os anciãos) e vieram diante
de Pilatos, suplicando-lhe e dizendo: 30"Entrega-nos soldados a fim de podermos
salvaguardar seu lugar de sepultamento por três dias, para que, tendo vindo, seus
discípulos não o roubem e o povo aceite que ele ressuscitou dos mortos, e eles
nos façam mal". 3lM as Pilatos lhes entregou Petrônio, o centurião, com soldados,
para salvaguardar o sepulcro. E com esses, os anciãos e escribas vieram ao lugar
de sepultamento. 32E, tendo rolado uma grande pedra, todos os que estavam ali,
junto com o centurião e os soldados, colocaram (-na) contra a entrada do lugar de
sepultamento. 33E eles marcaram(-no) com sete lacres de cera e, tendo armado uma
tenda ali, eles (o) salvaguardaram. 9,34Mas, cedo, quando o sábado estava raiando,
uma multidão veio de Jerusalém e da área circundante, a fim de poderem ver o
túmulo lacrado.
[EvPd 9,35-11,49:9’3SMas, na noite em que o Dia do Senhor raiou, quando
os soldados (o) estavam salvaguardando, dois a dois em cada período, houve uma
voz forte no céu; 3ée eles viram que os céus se abriram e dois homens que tinham
muito esplendor desceram de lá e vieram perto do sepulcro. 37M a s aquela pedra
que tinha sido empurrada contra a entrada, tendo rolado sozinha, foi para o lado,
a certa distância; e o sepulcro se abriu e os dois jovens entraram. ia38E então, aque­
les soldados, tendo visto, acordaram o centurião e os anciãos (pois eles também
estavam presentes, salvaguardando). 39E, enquanto relatavam o que tinham visto,
novamente eles viram três homens que saíram do sepulcro, com os dois apoiando
o outro e uma cruz seguindo-os, ^ e a cabeça dos dois alcançando o céu, mas a
do que era conduzido pela mão por eles ultrapassando os céus. 4IE eles estavam
ouvindo uma voz dos céus dizendo: "Fizestes a proclamação para os adormecidos?".
42E uma homenagem foi ouvida da cruz: "Sim ". "’43E então, aquelas pessoas estavam
procurando uma perspectiva comum para sair e deixar essas coisas claras a Pilatos;
^e, enquanto ainda estavam ponderando sobre isso, aparecem novamente os céus
abertos e um certo homem, tendo descido e entrado no lugar de sepultamento.
45Tendo visto essas coisas, os que estavam ao redor do centurião apressaram-se à
noite diante de Pilatos (tendo deixado o sepulcro que estavam salvaguardando) e
descreveram todas as coisas que na verdade tinham visto, agonizando grandemente
e dizendo: "Verdadeiramente, ele era o Filho de Deus". 4íEm resposta, Pilatos disse:
"Estou limpo do sangue do Filho de Deus, mas foi para vós que isto parecia (a
coisa a fazer)". 47Então, todos, tendo avançado, estavam suplicando e exortando-o
a mandar o centurião e os soldados não dizerem a ninguém o que tinham visto.

490
§ 48.0 sepultam ento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

48"Pois", disseram, "é melhor para nós ter o débito do maior pecado à vista de Deus
que cair nas mãos do povo judeu e ser apedrejados". 49E, então, Pilatos mandou o
centurião e os soldados não dizerem nada.]

Comentário

Nesta última seção de meu comentário da NP, coloquei juntos meio versí­
culo de Lucas e uma cena de Mateus. Embora nada tenham em comum quanto
ao conteúdo, essas duas unidades têm função semelhante. Nenhuma atividade foi
narrada por Marcos entre o sepultamento de Jesus na presença de Maria Madalena
e Maria de Joset, quando já era o entardecer do dia antes do sábado (Mc 15,42), e
a vinda de Maria Madalena e Maria de Tiago e Salomé ao lugar de sepultamento
quando o sábado passara (Mc 16,1-2). Os dois evangelistas que recorreram a
Marcos completam mencionando o que aconteceu no sábado interposto entre as
duas referências marcanas.1

O esforço de Lucas é sucinto e simples. Em sua interpretação, o silêncio


marcano a respeito das mulheres no sábado significa que elas descansaram nesse
dia. Ao especificar isso e relacioná-lo com a observância do “mandamento”,2 isto
é, “ Lembra-te de santificar o dia do sábado [...] nele não farás trabalho algum”
(Ex 20,8-10), Lucas descreve as mulheres como cuidadosas observantes da lei.
Assim, no fim do Evangelho, a imagem lucana do sepultamento e da ressurreição de
Jesus em Jerusalém apresenta personagens piedosas e obedientes à lei, do mesmo
tipo que havia sido descrito no início, durante as visitas de Jesus a Jerusalém, no
tempo de sua infância e meninice (Lc 2,22-24.25.37.41-42). Por inclusão, Lucas

1 Nenhum teólogo se interessa mais pela significância do que aconteceu nesse sábado santo que Hans
Urs von Balthasar; contudo, suas reflexões (guiadas pelas experiências místicas de Adrienne von Speyr)
não se concentram no que os evangelistas canônicos atribuem a esse dia. Para von Balthasar (Mysterium
Paschale, Edinburgh, Clark, 1990; original alemão 1969), o crucificado, condenado como pecador e
completamente abandonado por Deus, desceu entre os mortos no sábado, a fim de mostrar solidariedade
com os que tinham abandonado Deus em pecado, um “sim” divino que destrói as portas do inferno ao
abraçar o “ não” de pecadores mortos impenitentes e dar esperança para a salvação de todos. Conceito
grandioso, mas com uma diferença paradoxal do interesse mateano de mostrar que o pecado continuou no
sábado. E o EvPd, não Mateus, que declara que entre o ato de lacrar o túmulo, no amanhecer do sábado
(EvPd 9,33-34), e a saída do Senhor do túmulo, na madrugada do dia do Senhor (EvPd 9,35; 10,39-40),
o crucificado fez a proclamação para os adormecidos (EvPd 10,41). Mt 27,52 colocou a ressurreição dos
santos adormecidos na tarde da sexta-feira antes do sepultamento de Jesus.
2 A frase lucana “ segundo o mandamento” é omitida pelo Códice de Beza, talvez para evitar dar a impressão
de que os que acreditavam em Jesus estavam presos ao ritual do sábado.

491
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

expressa sua teologia de que toda a vida de Jesus, do começo ao fim, foi marcada
pelo respeito da lei e que ele atraía seguidores dessa inclinação entre os judeus.

Mateus também acrescenta o sábado de uma forma inclusiva, que faz o


fim do Evangelho combinar com o começo; com efeito, na a n á l is e , subseção A,
adiante, mostrarei que ele organiza cinco episódios, de Mt 27,57 a 28,20, de modo
a torná-los paralelos à estrutura de sua narrativa da infância. A história da guarda
no sepulcro, que começa no sábado, é elemento essencial na organização dos cinco
episódios. 0 COMENTÁRIO todo será dedicado a interpretar essa história da guarda
em Mateus, e talvez os leitores achem útil conhecer antecipadamente algumas
das conclusões a que chegarei na a n á l is e pertinente aos contornos básicos. Uma
história consecutiva a respeito da guarda do sepulcro chegou a Mateus proveniente
da mesma coleção de tradição popular a que ele recorreu para adições anteriores
que ele acrescentou à NP marcana, tais como: o suicídio de Judas e o dinheiro de
sangue (Mt 27,3-10); o sonho da mulher de Pilatos (Mt 27,19); Pilatos lavando as
mãos do sangue de Jesus, enquanto o povo aceitava a responsabilidade por ele (Mt
27,24-25); os fenômenos extraordinários na terra e no céu quando Jesus morreu
(Mt 27,51b-53). Vou afirmar que o autor do EvPd recorreu não só a Mateus, mas
também a uma forma independente da história da guarda do sepulcro, e em EvPd
8,28-11,49, a história básica ainda se encontra consecutivamente (embora detalhes
da história sejam modificados por fatos mais tardios). Entretanto, Mateus dividiu a
história da guarda para constituir o segundo episódio (Mt 27,62-66, antes da res­
surreição) e o quarto episódio (Mt 28,11-15, depois da ressurreição) na narrativa do
sepultamento e da ressurreição,3 exatamente como a história de Herodes foi dividida
para constituir o segundo e o quarto episódios da narrativa da infância. A história
da guarda no sepulcro, quando contada como uma unidade em círculos populares,
não tinha de ser relacionada com a outra história do túmulo vazio (as mulheres vêm
ao túmulo) que encontramos em Marcos; mas Marcos e o EvPd inter-relacionam
as duas histórias: Mateus mistura-as e o EvPd narra-as uma depois da outra (ver
em EvPd 12,50-13,57 a história das mulheres). Como a relação dos fenômenos
extraordinários em Mt 27,51b-53, o foco primordial da história da guarda era a mi­
lagrosa confirmação divina da vitória de Jesus, de modo que a formação do elemento

3 Um pequeno segmento está entrelaçado no terceiro episódio (Mt 28,2-4, como parte de Mt 28,1-10);
fenômeno semelhante ocorre na narrativa da infância, onde Herodes é mencionado no terceiro episódio.

492
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 48.0 sepuitam ento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

apologético (que o corpo não foi roubado) surgiu lógica e temporal mente (com toda
a probabilidade) mais tarde. Questões a respeito da historicidade e/ou a respeito
dos elementos mais antigos da história da guarda também ficarão para a a n á l is e .

Voltemo-nos agora para um comentário detalhado da primeira parte da his­


tória mateana da guarda, isto é, a parte que integra a narrativa do sepuitamento,
que vou dividir em duas subseções: primeiro, o pedido feito a Pilatos; segundo,
a concessão e execução do pedido. Uma terceira subseção apenas examinará a
segunda parte da história da guarda quando ela continua na narrativa mateana da
ressurreição. A narrativa muito mais longa do EvPd não será objeto de comentário
detalhado, mas será introduzida para suplementar observações a respeito de Mateus.4

0 pedido feito a Pilatos (M t 27,6 2 -6 4)

Indicação de tempo. Como o pedido diz respeito a guardar o sepulcro


para que não tentem forçá-lo, logicamente ele tinha de ser feito antes de o túmulo
ser (encontrado) aberto na manhã de domingo depois do sábado.560 EvPd prefere
apresentá-lo antes do raiar de sábado (ver EvPd 9,34). Se o autor estava calculando
o tempo pelos padrões judaicos, ele quer dizer que o pedido foi feito no fim da tarde
de sexta-feira; do contrário, talvez ele queira dizer que foi feito nas primeiras horas
de sábado, antes do amanhecer. Entretanto, não se pode concluir nada quanto a
esse ponto, devido às indicações confusas a respeito do sábado no EvPd!1 Mateus
prefere apresentar o pedido no próprio sábado. A variação de tempo entre o EvPd
e Mateus sugere que pode não ter havido nenhuma indicação precisa de tempo na
história da guarda, ausência que permitiu a cada autor encaixá-la onde achou melhor
no interstício entre sexta-feira e domingo. Na verdade, a indicação de tempo em Mt
27,62 (“depois do dia de preparação” — um jeito bastante indireto de referir-se ao
sábado) revela a mão organizada de Mateus. Ao examinar os elementos de indicação

4 Esta decisão é imposta pela natureza do volume como comentário dos Evangelhos canônicos. Às vezes,
não hesito em acrescentar uma subseção a respeito de um breve segmento no EvPd, mas os vinte e dois
versículos da história da guarda constituem mais de um terço do que foi preservado do EvPd.
’ Nas narrativas canônicas do sepuitamento de Jesus, só Mateus usa laphos (“sepulcro” ) e dois de seus
quatro usos estão na história da guarda, com o quarto em Mt 28,1, que liga a história ao relato das mulheres
vindo na Páscoa. No relato da Páscoa, mnemeion (“túmulo") é a palavra canônica mais frequentemente
usada (Marcos1.4; Mateus: 1; Lucas: 5; João: 7) — Marcos e Lucas usam rnnema uma vez cada um.
6 Por exemplo, em EvPd 7,27, depois da morte e do sepuitamento de Jesus, o autor nos diz que os discípulos
ficaram “sentados lamentando e chorando noite e dia até o sábado” , embora já tivesse escrito “o sábado
está raiando", quando Jesus foi condenado à morte {EvPd 2.5)1

493
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

de tempo para a história do sepultamento em Mc 15,42 (já o entardecer, dia de


preparação, o dia antes do sábado), mencionei que, na passagem correspondente
(Mt 27,57), Mateus usou apenas uma das indicações marcanas (entardecer) e que
ele reservou as outras para mais tarde, a saber, “dia de preparação” para esta cena
(Mt 27,62) e “sábado” para a cena seguinte no túmulo vazio (Mt 28,1, onde ele
economiza nas menções de “sábado” em Mc 15,42 e 16,1).

Os envolvidos. Mt 27,62 relata que “ reuniram-se os chefes dos sacerdotes


e os fariseus”.7 Synagein (“ reunir-se” ) faz eco a outras passagens da NP mateana
(Mt 26,3.57; 27,17.27), onde os que eram ou seriam adversários de Jesus se reu­
niram. (0 relato do EvPd da história da guarda usa o mesmo verbo [EvPd 8,28]
— indicação de que, se o autor recorreu a uma forma independente da história da
guarda, ele também tinha ouvido Mateus e foi influenciado por expressões mateanas
conhecidas.) Se combinarmos “os chefes dos sacerdotes” aqui com seu reapareci­
mento em Mt 28,11-12, onde são associados aos “anciãos”, reconheceremos estar
lidando com os adversários tradicionais de Jesus na NP mateana, onde a designação
“chefes dos sacerdotes” aparece outras quinze vezes e “anciãos”, outras sete vezes.
Gnilka (Matthaus, v. 2, p. 487) está correto ao ver aqui os componentes do sinédrio.
A surpreendente exceção é a referência a “os fariseus”, que só aparecem aqui na
NP mateana.8 Em outras palavras, esta história a respeito da guarda no sepulcro
transgride a lembrança tradicional (e até histórica) de que os fariseus não atuaram
na morte de Jesus. 0 fato de os fariseus só aparecerem aqui no EvPd (EvPd 8,28:
independentemente ou recorrendo a Mateus?) sugere que não podemos traçar uma
forma da história da guarda que não os tenha. Kratz (Auferweckung, p. 57-59) não
vê nenhum significado especial na presença dos fariseus aqui, mas, para outros, ela
sugere que a história da guarda no sepulcro foi expressa em um período em que os
fariseus haviam se tornado os principais adversários dos cristãos (depois de 70?),
quer a história tenha, quer não tenha antecedentes mais primitivos.9

7 A passagem correspondente em EvPd 8,28 tem: “os escribas e fariseus e anciãos [...] reunidos” contra
Jesus. Mais adiante, Mt 28,12 introduz “ os anciãos” em sua história, do mesmo modo que EvPd 8,29
vai reiterar que “os anciãos” estavam presentes.
8 Alhures nas NPs canônicas, só em Jo 18,3. Em Mateus, “os chefes dos sacerdotes e os fariseus” foram
associados pela última vez em Mt 21,45-46, quando procuraram prender Jesus porque suas parábolas
os ameaçavam.
9 Contudo, precisamos observar que, depois de serem mencionados no início de Mateus e do EvPd, os
fariseus nunca mais são citados; os chefes dos sacerdotes e os anciãos, em Mateus, e os anciãos e escribas,
no EvPd, são figuras hostis na história toda.

494
§ 48.0 sepultam ento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

Há quem se pergunte se uma reunião dos chefes dos sacerdotes e dos fa­
riseus diante de Pilatos não teria sido uma transgressão do sábado. Certamente,
Mateus não chama a atenção a essa transgressão, pois sua circunlocução “ no dia
seguinte, que é depois do dia de preparação” evita menção do sábado.10 Um com­
portamento verdadeiramente implausível encontra-se no que o EvPd faz acontecer
no período “quando o sábado estava raiando” (EvPd 9,34). Depois que se juntaram
para lacrar o túmulo, os anciãos e escribas armaram uma tenda ali e, ao lado dos
soldados, salvaguardaram o túmulo durante todo o sábado até a noite, quando o
dia do Senhor (domingo) raiou (EvPd 8,33-10,38). No sábado, juntou-se a eles
uma multidão que saiu para ver o túmulo lacrado (EvPd 9,34). A imagem de tantos
judeus praticantes que passam o sábado em um túmulo é outro fator (juntamente
com a confusão cronológica a respeito do calendário judaico) que nos faz duvidar
que o EvPd tenha sido escrito por um judeu-cristão culto.

Recordação de Jesus e do que ele disse. Em Mt 27,63, as autoridades


judaicas chamam o prefeito de “ Senhor”, cortesia jamais atestada em encontros na
NP. Eles lhe falam de Jesus como o “ impostor” {planos) e do que é provável que
os discípulos afirmem a respeito de sua ressurreição como uma “impostura” (Mt
27,64: plane). Nenhuma dessas palavras é usada em outras passagens por Mateus
e o verbo correspondente, “enganar” (planan ), jamais é usado em nenhuma NP
sinótica. Entre os Evangelhos, o verbo é aplicado a Jesus somente em Jo 7,12.47.
Em § 24 B, acima, mencionei que a polêmica judaica que identificava Jesus como
o falso profeta de Dt 13,2-6; 18,20, atestada no Talmude e em outras obras da
literatura judaica, aparentemente não faz parte dos estratos pré-70 do NT. Assim,
temos outro indicador de que a formulação da história da guarda talvez seja rela­
tivamente tardia.11

Em Mt 27,63, os adversários citam para Pilatos as palavras de Jesus: “ De­


pois de três dias, vou ressuscitar (serei ressuscitado)”. Em nenhuma passagem de
Mateus (ou em qualquer outro Evangelho), Jesus diz realmente essas palavras. Nas
três predições da Paixão de Mt 16,21; 17,22-23 e 20,18-19 (ver A p ê n d ic e VIII),

10 Que esse dia fazia parte do período festivo dos Pães sem fermento, que começava com a refeição pascal
na noite de quinta-feira/sexta-feira, embora dedução lógica das indicações cronológicas mateanas mais
primitivas, está ainda mais longe da imagem mateana aqui.
11 Digna de nota é a ausência de qualquer referência às proclamações na forma da história da guarda no
EvPd. Talvez na psicologia da narrativa do EvPd, onde o povo diz como Jesus era justo (EvPd 8,28),
devamos imaginar que seus adversários julgavam sensato não atacá-lo diretamente.

495
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

ele falou de o Filho do Homem ser ressuscitado no terceiro dia. A expressão “ três
dias” ocorreu realmente na passagem do sinal de Jonas (Mt 12,40: “o Filho do
Homem estará no seio da terra três dias e três noites” ), sinal dirigido aos escribas
e fariseus (Mt 12,38),12 e na afirmação da destruição do santuário atribuída a Jesus
no julgamento judaico e na cruz (Mt 26,61; 27,40: “dentro de três dias (o) construi­
rei” ). Contudo, mesmo aí não encontramos “depois de três dias”, o que subentende
ressurreição na segunda-feira, o quarto dia.13 Mas talvez não devamos pressionar
com rigor a questão de redação rigorosa;14 de fato, a indicação de tempo é do ponto
de vista da narrativa total, não de um momento histórico no sábado, quando as
autoridades judaicas estavam falando. Na sequência de sepultamento-ressurreição,
Mt 27,57.62 e 28,1 indicam dias distintos, com o último sendo o “amanhecer do
primeiro dia da semana” — depois desses três dias indicados, Jesus terá ressusci­
tado. Na verdade, Mt 28,6 (“ Pois ressuscitou exatamente como disse” ) empenha-se
em indicar a verdade de uma predição que, em Mt 27,63, as autoridades judaicas
caracterizaram como vindo de um impostor! O que realmente nos surpreende nesta
cena diante de Pilatos é que os chefes dos sacerdotes e os fariseus não só conhecem
a essência do dito de Jesus, mas o entendem corretamente como referindo-se a sua
ressurreição. Embora na narrativa os discípulos de Jesus tenham ouvido muito mais
predições da ressurreição de Jesus do que os chefes dos sacerdotes e os fariseus,
nenhum dos Evangelhos lhes atribui esse discernimento antes da ressurreição ou,
às vezes, até mesmo depois de encontrarem o Jesus ressuscitado!1-1Está claro que
a história foi formulada em um contexto onde os cristãos proclamam a ressurreição
e seus adversários entendem o que eles proclamam.

12 Giblin (“Structural” . p. 414-419) defende longamente a passagem de Jonas como antecedente do dito
de Jesus que os chefes dos sacerdotes e os fariseus relatam a Pilatos. Nela o Filho do Homem está “no
seio da terra” e é ali que as autoridades judaicas querem manter Jesus em resposta a sua audaciosa
advertência a eles no julgamento (Mt 26,64: “ Vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e
vindo sobre as nuvens do céu” .
13 Walker (“After” ) lembra que as autoridades judaicas estão citando isso no sábado e, nesse dia, pedem
que tornem o sepulcro seguro “ até o terceiro dia” , o que significaria a segunda-feira. Ele sugere que
algumas das expressões tradicionais referentes a três dias são calculadas a partir da quinta-feira.
14 Em outras passagens dos Evangelhos, mesmo quando Jesus cita suas próprias palavras, a citação não é
necessariamente literal (ver Jo 18,9).
1’ E aqui que tentativas literalistas de historicidade tropeçam. Lee (“Guard” , p. 63) afirma que as palavras
de Jesus, inclusive uma declaração a respeito da destruição do santuário do Templo dentro de três dias,
foram denunciadas aos chefes dos sacerdotes por Judas. Isso pressupõe que Judas alcançou um enten­
dimento desse ou dos outros ditos como referência à ressurreição.

496
§ 4 8 .0 sepultam ento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

Um pedido formulado por causa do medo quanto aos discípulos


de Jesus. Mt 27,64 começa com o pedido das autoridades judaicas a Pilatos para
que emita uma ordem que dure até o terceiro dia. O verbo keleuein (“ordenar” )
foi usado por Mateus alguns versículos antes (Mt 27,58) em lugar do doreisthai
marcano (Mc 15,45: “conceder” ) para explicar a concessão por Pilatos do corpo
de Jesus a José. Tendo expedido uma ordem que favorecia o discípulo de Jesus,
Pilatos agora recebe um pedido hostil aos discípulos. A limitação de tempo no
pedido, embora determinada pela predição de Jesus, tem o efeito psicológico de
facilitar uma resposta afirmativa: um governador romano não comprometería forças
por tempo indeterminado. Quando se trata do que foi pedido a Pilatos e por quê,
Mt 27,64 e EvPd 8,30 concordam de modo geral. A essência, mas não a redação
do pedido, é a mesma: é pedida ajuda a Pilatos (EvPd , especificamente “soldados” )
para assegurar ou salvaguardar (Mateus: asphalein ; EvPd : phylassein ) o sepulcro/
lugar de sepultamento (Mateus: taphos; EvPd: mnema). A redação do raciocínio por
trás do pedido é praticamente idêntica: “para que, tendo vindo, os/seus discípulos
não o roubem”.16 Mais uma vez, há variação de vocabulário, mas não de essência
no entendimento de que, tendo roubado o corpo, os discípulos usariam isso para
induzir “o povo” (ho laos em ambos) a acreditar na ressurreição de Jesus (passiva
de egeirein em Mateus; ativa de anistanai no EvPd). Mateus termina o pedido com
uma declaração gnômica: “E a última impostura será pior que a primeira” (expressa
na linguagem usada anteriormente em Mt 12,45: “ E o último estado desse homem
torna-se pior que o primeiro” ). Sarcasticamente, isso subentende que o ministério
todo de Jesus era falso, mas ironicamente deixa o problema lógico de saber por
que as autoridades judaicas levam tão a sério a afirmação feita por tal impostor. O
EvPd termina o pedido em tom diferente; consistente com sua imagem de “ todo o
povo” murmurar na morte de Jesus e professar que ele era justo (EvPd 8,28). No

16 O EvPd traz “seus discípulos” e também a tradição textual koiné de Mateus (provavelmente por contato
com Mt 28,13, onde a mentira diz que “ seus discípulos” roubaram o corpo); a expressão está ausente dos
Códices Vaticano e Sinaítico. (A tradição koiné de Mateus também acrescenta “ à noite” , mas novamente
em imitação de Mt 28,13.) Embora eu creia que o autor do EvPd estivesse familiarizado com a redação
mateana, não se deve deduzir demais quanto à dependência literária dessa oração, que é a concordância
literária literal mais extensa entre o EvPd e um Evangelho canônico. Que os discípulos vieram e roubaram
Jesus (descrição repetida em Mt 28,13; ver Jo 20.2.15) tornou-se acusação confirmada em discussões
polêmicas, como atesta Mt 28,15 (também Justino, Diálogo cviii,2); e a redação fixa dessa acusação
poderia ser conhecida do autor do EvPd sem dependência direta de Mateus. Contudo, a maior parte do
vocabulário está bastante ambientada em Mateus e o “ tendo vindo” mais um verbo de movimento é muito
mateano (vinte e sete vezes).

497
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

EvPd, as autoridades temem que o povo possa lhes “fazer mal” (poein kaka ). Aqui,
a linguagem é irônica; de fato, EvPd 4,10 (e Lucas) mostraram Jesus crucificado
entre os kakourgoi ou “malfeitores”.

Embora eu reserve as questões de historicidade para a ANÁLISE, vale a pena


examinar aqui a verossimilhança. Essa história parece plausível ao relatar o temor
de que o corpo de Jesus fosse roubado? E se podemos antecipar, é plausível que
Pilatos se movimentasse para impedir essa depredação? A violação de túmulos
não era incomum na Antiguidade, em geral em busca de tesouros; mas o caso
presente envolve a transferência de um cadáver, o que era feito ocasionalmente por
razões honestas (mudar os mortos recentes para um túmulo melhor) ou desonestas
(para feitiçaria ou magia), e a motivação sugerida para os discípulos (impostura)
na acusação diante de Pilatos cai nessa segunda categoria. Percebe-se que era
plausível pedir a ajuda de Pilatos para impedir a violação de túmulos destinada a
criar uma devoção supersticiosa em uma inscrição que tem uma história fascinante,
inscrição que alguns julgam ter sido provocada pelo que aconteceu ao túmulo no
qual Jesus foi sepultado.

No século XIX, entre algumas antiguidades adquiridas em Nazaré (mas não


necessariamente originárias dali), estava uma placa de mármore de cerca de 5 cm
por 3 cm que continha 22 linhas de uma inscrição grega. Foi enviada à Bibliothèque
Nationale de Paris em 1878, e publicada por F. Cumont em Revue d ’Histoire 163,
1930, p. 241-266. Traz o título Diatagm a Kaisaros. Não é designação comum de
um pronunciamento imperial e os biblistas ficaram intrigados para saber que tipo
de pronunciamento era e o César que o fez.17 Em geral, se sugere ser tradução do
latim, mas não há concordância quanto a se classificar como uma das declarações
jurídicas rigorosamente definidas, conhecidas a partir de tempos imperiais mais
tardios: edictum, rescriptum, decretum, mandatum. Talvez tenhamos o fragmento
de um edito que foi emitido só para uma seção do império,18 e não há meios para
determinar se era resposta a uma pergunta apresentada a Roma. Quanto ao “ Cé­
sar”, como Metzger (“ Nazareth”, p. 86-87) menciona, a série de sugestões vai de

11 A inscrição tem sido objeto de enorme bibliografia. Na ocasião em que Schmitt escreveu, em 1958
(“Nazareth” , v. 6, p. 361-363), já havia cerca de setenta registros, e a contagem subira para noventa em
1975, na época do artigo de Metzger (“ Nazareth” , p. 91-92).
18 De Zulueta (“Violation” , p. 193-194) menciona que, embora punida com multas, a violatio sepulchri só
foi tratada como problema criminal em todo o império no século II d.C.

498
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

Augusto, que se tornou imperador em 30 a.C., a Septímio Severo, que morreu em


241 d.C. Contudo, a imprecisão do título Diatagm a Kaisaros sugere um período
antes da fixação do estilo imperial e a paleografia favorece o período de 50 a.C. a
50 d.C. Consequentemente, os primeiros imperadores, Augusto, Tibério e Cláudio,
são propostos com mais frequência.19 Augusto quase sempre designava a si mesmo
“ César” ; e, se não fosse pelo desejo de ver aqui uma aplicação a Jesus (o que exigiría
um imperador mais tardio que Augusto), sua candidatura teria apoio convincente.

O objetivo da inscrição20 é que sepulcros e sepulturas permaneçam em


paz para sempre. Os que infringem o caráter íntegro do sepultamento devem ser
julgados e punidos. Tais criminosos incluem todo aquele que tira corpos que foram
sepultados em um túmulo e/ou quem “com impostura maldosa transfere-os para
outros lugares”. O princípio dominante é: “ Será especificamente obrigatório honrar
os que foram sepultados. Que ninguém os remova por nenhuma razão”. É possível
entender por que o fato de ser a inscrição conhecida primeiro em Nazaré e advertir
contra mover corpos leva alguns a pensar que essa foi a resposta do imperador ao
relato de Pilatos, segundo o qual a descoberta do túmulo de Jesus vazio provocou
disputas entre os seguidores de Jesus e judeus que não acreditavam em Jesus, de
modo que eles debatiam a razão de estar o túmulo vazio. 0 fato de, c. 49 (?), Cláudio
ter “expulsado os judeus de Roma por causa de seus tumultos constantes incita­
dos por Cresto” (Suetônio, Claudius xxv,4) é não raro interpretado como tentativa
daquele imperador de resolver a briga nas sinagogas de Roma entre os judeus que
acreditavam e os que não acreditavam ser Jesus o Cristo. A “ inscrição de Nazaré”
tem sido considerada outro desses envolvimentos imperiais, talvez novamente por
Cláudio. E ssa sugestão é forçada e reflete mais imaginação que indícios. Não há
indícios sérios de que Pilatos tenha feito esse relatório, nem de que Roma estivesse
interessada no problema ou esse debate tenha ocorrido logo depois da ressurreição
de Jesus. Contudo, a inscrição realmente se encaixa no contexto da história da
guarda no túmulo. Por um lado, mostra que a violação de túmulos era muito grave
e que o governador romano poderia ter cedido soldados quando havia razões para
prever o roubo do corpo daquele que tivera morte notória. Por outro lado, o conhe­
cimento comum de que os que roubassem um corpo seriam seriamente castigados

19 Se a inscrição foi copiada durante os reinados de Augusto ou Tibério, não foi originalmente apresentada
em Nazaré, pois a Galileia não estava sob o domínio romano direto naquele período.
20 Ver transcrição e tradução em de Zulueta (“Violation” , p. 185) e Metzger (“ Nazareth” , p. 76-77).

499
Qumuomo • JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto

pelos romanos podia fazer os leitores perceberem o ridículo da afirmação judaica


de que os discípulos que fugiram quando Jesus foi preso agora ganharam coragem
para roubar o corpo de Jesus.

Pilatos concede o pedido (M t27,65-6 6 )

Em EvPd 8,30, as autoridades judaicas pediram a Pilatos: “ Entrega-nos


soldados, a fim de podermos salvaguardar seu lugar de sepultamento”. Esse voca­
bulário volta a ser usado para descrever a reação do prefeito: “ Pilatos lhes entregou
[paradidonai] Petrônio, o centurião, com soldados, para salvaguardar o sepulcro”
(EvPd 8,31). O verbo paradidonai, usado com tanta frequência na NP para a entrega
de Jesus, é agora usado de modo diferente e, talvez, com ironia. Como no EvPd
os judeus crucificam Jesus, é essa a primeira menção de soldados romanos. Não é
surpreendente que aqui apareça o centurião romano (kentjrion , como em Mc 15,39,
não hekatontarches, como em Mt 27,54) que foi apresentado nas narrativas sinóticas
da crucificação. Entretanto, ele é apenas uma lembrança transferida, pois, apesar
de ter o nome pessoal de Petrônio21 e ser mencionado cinco vezes na história da
guarda (EvPd 8,31.32; 9,38; 11,45.47), o centurião não faz nem diz nada sozinho.

Em Mt 27,65, Pilatos responde em discurso direto: “ Echete koustodian. Ide


tornar seguro como sabeis”. Deixei as duas primeiras palavras em grego por causa
de seu sentido duvidoso. Na maioria das vezes, entende-se que querem dizer “ Vós
tendes uma guarda custodiai própria” — em outras palavras, Pilatos recusa-se a
ajudar e diz aos chefes dos sacerdotes e aos fariseus que eles têm tropas próprias
que podem usar para tornar o sepulcro seguro. Inúmeros argumentos de peso
variado operam contra essa interpretação na qual os que guardavam o túmulo
seriam tropas judaicas reunidas pelas autoridades judaicas: 1) Em EvPd 8,31,
entende-se claramente que Pilatos dá soldados romanos para salvaguardar o local
de sepultamento. 2) Se as autoridades judaicas tinham tropas próprias para vigiar
o sepulcro, por que precisavam da ajuda de Pilatos, em primeiro lugar? 3) Mateus

21 Ver § 44, nota 15. É nome romano conhecido, por exemplo, um Petrônio foi governador da Síria em
39-42 d.C.; mas há quem o considere um jogo com o nome do autor do EvPd, a saber, o Petros de EvPd
14,60, do mesmo modo que uma filha chamada Petronilha foi atribuída ao primeiro dos Doze. Metzger
(“Names” , p. 95) relata que o Livro dos Bês, obra siríaca do século XIII, apresenta nomes para todos os
soldados enviados para vigiar o túmulo: “ Eram [em número de] cinco e eis seus nomes: Issacar, Gad,
Matias, Barnabé e Simão; mas outros dizem que eram quinze, três eenturiões e seus soldados romanos
e judeus” .

500
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

usa o termo koustodia para se referir às tropas que guardavam o sepulcro: um


empréstimo latino em grego que, na literatura cristã primitiva, só aparece nesta
história (Mt 27,65; 28,11). Esse latinismo se enquadra bem na imagem de um pre­
feito romano que designa tropas romanas.22 4) Mt 28,12 chama os que guardavam
o sepulcro de “soldados”, usando o plural de stratiotes, enquanto Mt 28,14 refere-
-se a Pilatos como o hegemon (“governador” ). Anteriormente (Mt 27,27), Mateus
usou esses dois termos gregos para se referir a “os soldados do governador” e, com
certeza, aqui ele está pensando nos mesmos soldados romanos. Em 22 dos 26 usos
neotestamentários de stratiotes, a referência é a soldados romanos; em outros 3
(At 12,4.6.18), a soldados sob o comando do rei Herodes Agripa I — a referência
nunca é a soldados controlados pelas autoridades judaicas de Jerusalém. 5) Se os
envolvidos fossem soldados judaicos sob o controle de autoridades judaicas, por que
seriam responsáveis perante o governador romano por cair no sono e não montar
guarda, como Mt 28,14 subentende?23

E muito mais provável que Mateus queira dizer que Pilatos deu às autori­
dades judaicas soldados romanos para ajudar a tornar o sepulcro seguro.24 Então,
a palavra-chave echete tem de ser traduzida não como “Vós tendes uma guarda
custodiai”, mas como “ Vós (podeis) ter uma guarda custodiai”, ou “E-vos concedi­
da uma guarda custodiai”, ou “ Tomai uma guarda custodiai”. 0 verbo echein está
sendo usado no sentido convencional de resposta afirmativa a um pedido: “ Vós a

22 Lee (“Guard” , p. 173) afirma romanticamente que Caifás ouviu custodia dos lábios de Pilatos, quando
ele falou com o sumo sacerdote em latim! No aramaico talmúdico, qústôdya’ aparece como empréstimo
do latim: isso enfraquecerá o argumento usado aqui. se for eco de uso aramaico mais primitivo.
23 Craig (“Guard” , p. 274) afirma que a referência é a uma guarda judaica porque, em Mt 28,11, os soldados
se apresentam aos sumos sacerdotes — se tropas romanas estivessem envolvidas, como no EvPd, elas
se apresentariam a Pilatos. Com dois fundamentos, acho esse argumento nada convincente. Primeiro, as
tropas romanas cedidas pelo Pilatos mateano foram postas sob as diretrizes dos chefes dos sacerdotes e
dos fariseus em Mt 27,65 (“Vós [podeis ter] tendes uma guarda custodiai. Ide tornar seguro como sabeis”),
então, naturalmente, as tropas relatam aos chefes dos sacerdotes o que aconteceu. Os chefes dos sacerdotes
reafirmam-lhes que, se cooperarem com a mentira quanto a dormir, não serão bodes expiatórios, com os
chefes dos sacerdotes dizendo a Pilatos que os soldados que ele lhes deu não eram confiáveis. Segundo,
no EvPd, onde tropas romanas estão claramente envolvidas, eles primeiro conferenciam com os anciãos
judaicos, que eles acordam (EvPd 10,38: 11,43), a respeito de como comunicar a Pilatos antes de irem
juntos fazer um relato a Pilatos (EvPd 11,45) — sensibilidade quanto à responsabilidade perante as
autoridades judaicas.
24 Há uma interessante adição interpretativa a Mt 27,65 no Códice 1424 minúsculo: “ E ele lhes entregou
homens armados, a fim de que se sentassem em frente à gruta e a vigiassem dia e noite” .

501
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

tendes” .25 Assim, em Mateus e também no EvPd, Pilatos dá soldados romanos às


autoridades judaicas para possibilitar a estas tornar o sepulcro seguro da melhor
maneira que elas sabiam. Simbolicamente, isso é importante, pois, quando a res­
surreição frustra essa segurança, os leitores devem reconhecer que Deus frustrou
o poder romano e também o judaico.

Mateus e o EvPd concordam que o sepulcro ou lugar de sepultamento foi


tornado seguro pondo-se lacres na pedra que foi usada para fechar a entrada. Em
Mateus (Mt 27,60), antes de o sábado começar, José de Arimateia rolara uma
grande pedra para a entrada do túmulo e foi essa pedra que “eles” lacraram.26 Não
está claro se as autoridades faziam parte do “eles” e, assim, estavam trabalhando
no sábado, ou se os soldados romanos foram os agentes que puseram o lacre sob
a orientação deles. Antes de o sábado amanhecer, em EvPd 8,31-33 os anciãos
e escribas vêm ao lugar de sepultamento e, juntos, com o centurião e os soldados
(romanos) e todos os que ali estavam, rolam uma grande pedra contra a entrada do
lugar de sepultamento e a lacram. Em Mateus e também no EvPd, a implicação é
que foi posto lacre na pedra, de tal maneira que abrir o túmulo quebraria o lacre
e, nesse lacre, foi feita a impressão de um selo. Um elemento especial no EvPd é
que havia sete selos. O número sete costuma ser simbólico na Bíblia, mas é difícil
ter certeza se aqui o sete apenas faz parte da imaginação folclórica ou tem simbo­
lismo especial.2' Pode-se apelar para Ap 5,1-5, que tem um rolo lacrado com sete
selos que não podem ser abertos por ninguém no céu ou na terra, exceto pelo leão
da tribo de Judá, o rebento de Davi que triunfou — o que reforça o sentido óbvio
do EvPd de que tudo foi feito para dificultar a abertura do túmulo (mas o poder de
Deus rompe todas as precauções humanas).*24

25 Ver BAGD, p. 3 3 ,1, 7b; também Smyth, “Guard” , p. 157-158. Os dois citam o papiro de Oxirinco (v. 1,
papiro 33, col. 3, linha 4), onde o magistrado Apiano pede um favor especial e o imperador (Marco Au­
rélio?) responde eche, isto é, “toma-o” ou “Tu o tens” . Também se pode apontar para Acts of the Scillitan
Martyrs, p. 13, onde o procônsul Saturnino faz uma concessão a Esperado: “Moram [...] habete” : “Tu
tens um adiamento” (MACM, p. 88).
26 O grego de Mt 27,66 é desajeitadamente abreviado; escribas da tradição textual ocidental tentaram
melhorá-lo: “com a guarda custodiai” (meta tes de koustodias), mudando-o para “com os guardas” (meta
ton phylakon).
2 Foram feitas diversas sugestões. Como os chefes dos sacerdotes estão envolvidos, há quem cite Zc 3,9;
4,10, onde é colocada diante do sumo sacerdote Josué uma pedra especial com sete faces, representando
os olhos do Senhor que percorrem a terra toda. Como o túmulo está na terra, também se faz referência a
4 Baruc 3,10, onde Deus lacra a terra com sete selos em sete períodos.

502
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

Conclusão da história da guarda na narrativa da ressurreição (M t 2 8 ,2 -4 .11-15 )

O EvPd preserva a história da guarda como uma unidade, de modo que a


seção da ressurreição nesta história (EvPd 9,35-11,49) segue-se imediatamente à
colocação do lacre no túmulo; e a história toda precede o clássico relato das mulhe­
res que vêm ao túmulo na manhã de Páscoa (EvPd 12,50-14,60). Mateus prefere
unir as duas em um padrão alternativo (ver A n á l is e ). Nenhuma das duas soluções
encobre o fato de serem a guarda no túmulo e as mulheres que vêm ao túmulo dois
relatos diferentes. Para descobrir o que faz parte da história da guarda do túmulo
em Mateus, precisamos olhar para o que ele acrescentou ao relato marcano da vinda
das mulheres ao túmulo. Em Marcos, Maria Madalena e as outras mulheres vêm
muito cedo no primeiro dia da semana e encontram a grande pedra removida, o
túmulo aberto e um jovem (anjo) sentado lá dentro. Em Mateus, as mulheres vêm
no sábado à noite (“quando o primeiro dia da semana estava amanhecendo”, isto
é, começando); quando chegam ao sepulcro, há um grande terremoto; um anjo do
Senhor desce e remove a pedra — um anjo com a aparência de relâmpago.28 Essas
ocorrências extraordinárias fazem os que montam guarda (terein, como em Mt 27,36)
tremerem e ficarem como mortos. Aqui, há uma ironia desvirtuada. O tremor de terra
que acompanhou a vinda do anjo faz os guardas tremerem; aqueles cuja presença
é assegurar que Jesus fique morto tornam-se eles próprios como mortos. Quanto
ao tempo, a cena correspondente em EvPd 9,35-37 também tem lugar na noite que
termina o sábado e inicia o “dia do Senhor”.29 Uma voz forte soa nos céus, que se
abrem (comparável ao terremoto de Mateus); e dois homens (anjos têm atributos
masculinos no pensamento judaico) descem dali e se aproximam do sepulcro. A
pedra rola sozinha para o lado e os dois entram no sepulcro. Os soldados de guar­
da acordam o centurião e os anciãos para relatar o que viram. Então, o EvPd tem
uma sequência que não tem paralelo em Mateus. Os dois homens angelicais, com
cabeças que alcançam da terra ao céu, trazem para fora do sepulcro Cristo, que é
ainda mais alto, e eles são seguidos por uma cruz falante, que assegura aos céus
que foi feita a proclamação aos que adormeceram (ver Mt 27,52).30

28 Na história das mulheres que vêm ao túmulo, em Mc 16,5 o jovem está vestido com um manto branco;
em Lc 24,4, os dois homens (anjos; ver Lc 24,23) estão com vestes resplandecentes. Isso corresponde à
segunda parte da descrição mateana (Mt 28,3b) das vestes angelicais brancas como a neve. A parte do
“ relâmpago” na descrição de Mt 28,3a pertence à história da guarda no túmulo.
29 Quando o EvPd foi escrito, o primeiro dia da semana (Mateus) se tomara o dia do Senhor.
,0 Declarei que não é meu propósito escrever um comentário do EvPd; contudo, como a cruz falante pode

503
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

No importante segmento seguinte da história em Mateus (Mt 28,11-15), al­


guns dos guardas custodiais entram em Jerusalém para anunciar (apaggellein ) aos
chefes dos sacerdotes todas as coisas que aconteceram (ta genomena). Mais uma
vez, isso é ironia desvirtuada: Apaggellein foi usado em Mt 28,8.10 para anunciar
a Boa-Nova da ressurreição e o centurião ver “esses acontecimentos” (ta ginomena)
produziu uma confissão de fé no Filho de Deus (Mt 27,54). Os chefes dos sacerdotes
reúnem-se (synagein) com os anciãos e tomam a decisão (symboulion lambanein) de
dar dinheiro (plural argyrion ) para os soldados mentirem. Aqui, Mateus usa uma
linguagem que cria inclusões com ações anteriores na NP. Em Mt 26,3, os chefes
dos sacerdotes e os anciãos reuniram-se (synagein ) e o resultado do encontro foi
que deram dinheiro (plural argyrion) para Judas entregar Jesus. Em Mt 27,1 os
chefes dos sacerdotes e os anciãos tomaram uma decisão (symboulion lambanein )
contra Jesus, segundo a qual deviam executá-lo, decisão que fez Judas devolver o
dinheiro (Mt 27,3), mas ele foi tratado desumanamente pelas autoridades. Assim,
para Mateus, as autoridades judaicas permanecem consistentes em sua identidade
e maneira de proceder.

A mentira que os soldados devem contar está expressa nos termos estabele­
cidos pelas autoridades judaicas quando abordaram primeiro Pilatos para tornar o
túmulo seguro (Mt 27,64): os discípulos de Jesus vieram e o roubaram — à noite,
enquanto os soldados dormiam. E, se Pilatos ouvir falar dessa imaginária negligência
do dever, as autoridades estão preparadas para desviar sua ira (presumivelmente
com outra mentira). Os leitores mateanos não se surpreenderíam com esse recurso
se recordassem Mt 26,59: “ Os chefes dos sacerdotes e o sinédrio inteiro procuravam
falso depoimento contra Jesus, para que pudessem lhe dar a morte”. Na imagem
polêmica sendo descrita, foram usadas mentiras para executar Jesus e mentiras
serão usadas para matar sua lembrança. Os soldados pegam o dinheiro, do mesmo
modo que fez Judas em Mt 26,15, e seguem as instruções,31 de modo que a falsa

parecer ridícula aos leitores modernos, devo chamar a atenção para outras dramatizações primitivas da
cruz como sinal do Filho do Homem (Mt 24,30), ou como sinal cósmico e árvore da vida, por exemplo,
Epístola Apostolorum 16; Apocalipse de Pedro 1; homilia anônima On the Pasch. 51,9-10 (SC 27, p. 177-
179); ver Mara, Evangile, p. 188-189; Schmidt, Karwnische, p. 71.
31 Pesch (“Alttestamentliche” , p. 95) chama a atenção para um padrão mateano estabelecido de cumprir
ordens; ver Mt 1,24-25; 21,6-7; 28,15; e 28,19-20. Mateus reutiliza o verbo didaskein de Mt 28,15 na
ordem de Jesus aos onze discípulos: “ Indo, portanto, fazei discípulos de todas as nações [...] ensinando-as
a observar tudo o que vos tenho ordenado” (Mt 28,19-20). As autoridades judaicas ensinam os soldados
a mentir; Jesus faz os discípulos ensinarem as pessoas a guardar os mandamentos. Para Mateus, não há
dúvida sobre quem realmente observa a lei.

504
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

“palavra tem sido divulgada entre os judeus até este dia” (Mt 28,15) — um tipo
de antievangelho. Nos Evangelhos sinóticos, esse é um dos poucos exemplos de
“os judeus” usado dessa maneira, para designar um grupo estranho e hostil (cf.
Mc 7,3), que reflete uma época em que os seguidores de Jesus (mesmo se nascidos
judeus) já não se consideravam judeus.

Novamente, o relato de EvPd (EvPd 11,43-49) é mais elaborado. Em resposta


à milagrosa abertura do túmulo pelos anjos e ao ato em que eles trazem Jesus para
fora do túmulo, acompanhados pela cruz falante, os que observam (que incluem
os soldados e os anciãos) tentam conseguir uma perspectiva ou um jeito de ver
o fenômeno (syskeptesthai) de modo a poderem sair e deixar estas coisas claras
(emphanizein) a Pilatos. Mas então eles veem os céus abertos e outro ser celes­
tial32 descer e entrar no lugar de sepultamento. Esse segundo fenômeno firma sua
decisão: embora seja noite, eles vão a Pilatos e lhe contam o que viram, inclusive
sua interpretação de que isso mostra que Jesus era o Filho de Deus. (Notemos que,
enquanto em Mateus o centurião e os que estavam com ele guardando [montando
guarda a] Jesus confessam isso, no EvPd a confissão é feita pelos guardas e também
pelas autoridades judaicas.33 A reação de Pilatos (“ Estou limpo do sangue do Filho
de Deus, mas foi para vós que isto parecia [a coisa a fazer]” ) aceita o entendimen­
to que professam ter de Jesus, mas lembra que, primordialmente, foram eles os
responsáveis pela morte (pelo “sangue” ) daquele de quem, agora com relutância,
eles reconhecem a posição. Entretanto, esse mesmo fato leva as autoridades judai­
cas a enfatizar seu medo angustiado de serem apedrejadas se o povo judeu ouvir
a verdade. (Observemos que no EvPd essas autoridades admitem implicitamente
que a blasfêmia que merecia apedrejamento não foi dita por Jesus, mas por elas.)
E assim, Pilatos, apesar de reconhecer que Jesus era o Filho de Deus, ordena ao
centurião e aos soldados que permaneçam calados. Se para Mateus uma mentira foi
difundida entre os judeus, para o EvPd o fato de tanto os romanos como os líderes
judaicos não contarem a verdade iludiu o povo.

32 Em EvPd 11,44, um anthropos, enquanto EvPd 9,36 e 10,39 usaram aner. A seção seguinte se referirá
a este ser celestial como neanislcos ou “jovem” (EvPd 13,55).
3,1 A forma da confissão do centurião em Lc 23,47 (“Certamente este homem era justo” ) tem paralelo na
reação do povo em EvPd 8,28: “Vede como ele era justo” .

505
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto

Análise

Já que a contribuição de Lucas a este episódio consiste em apenas meio


versículo que ajuda a transição para a narrativa do túmulo vazio ou da ressurrei­
ção, podemos nos concentrar aqui em Mateus (e nas passagens correspondentes
no EvPd). Em § 46 (a n á l is e A), examinei a estrutura da narrativa do sepultamento
nesse Evangelho, mas alertei aos leitores que o complicado problema da estrutura
mateana ficaria adiado até aqui, pois a história da guarda no sepulcro é segmento
importante da narrativa mateana do sepultamento. Depois de tratar da estrutura e
composição mateanas do sepultamento, vou concluir com a questão da historicidade
da narrativa da guarda.

A . Estrutura da narrativa m ateana do sepultamento


e origens da história da guarda no sepulcro

A lgum as t e o r ia s a r e s p e it o d e e s t r u t u r a . Como vimos, as narrativas mar-


cana e lucana do sepultamento consistiam em dois segmentos: um que tratava de
José de Arimateia e concluía a história da crucificação, e o outro que tratava das
mulheres galileias e servia de transição para a história do túmulo vazio e da res­
surreição.34 Mt 27,57-61 tem os mesmos dois segmentos e segue Marcos de perto.
Consequentemente, um autor como Sênior, que raramente reconhece outra fonte para
Mateus além de Marcos, considera o que se segue a respeito da guarda no túmulo
(Mt 27,62-66) simplesmente um complemento criativo mateano ao sepultamento.
Assim, em “ Matthew’s Account” [Relato de Mateus], v. 2, p. 1446-1448, ele propõe
uma estrutura que consiste em um relato bipartido do sepultamento (Mt 27,57-61 e
27,62-66) e um relato bipartido do túmulo vazio (Mt 28,1-10 e 28,11-15). A principal
dificuldade dessa estrutura é que ela separa e deixa sozinha a aparição de Jesus
na Galileia depois da ressurreição (Mt 28,16-20), embora ela esteja prenunciada
no primeiro segmento do relato do túmulo vazio (Mt 28,7).

Uma proposta muito mais elaborada foi feita por Heil, primeiro em “ Narrati-
ve”, artigo dedicado a Mt 27,55-28,20, e depois em um livro (Death ) que trata do
conjunto de Mt 2 6 -2 8 , com reflexões sobre a estrutura do Evangelho mateano em

34 João não tem o segmento das mulheres e toda a sua narrativa do sepultamento (inclusive Nicodemos)
conclui a história da crucificação mostrando o triunfo de Jesus. Faz parte da estrutura quiástica da
crucificação resumida em § 38 C.

506
§ 4 8 .0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

geral. Usando sua forma de crítica narrativa, ele descobre uma estrutura literária
extremamente complicada, baseada em “um padrão de alternância ou ‘intercâmbio’,
na qual cada cena enquadra e é por sua vez enquadrada por cenas contrastantes”
(“Narrative” , p. 419-420). Ele divide o sepultamento/ressurreição em três partes de
comprimento desigual: 1) Mt 27,55-61; 2) Mt 27,62-28,4; 3) Mt 28,5-20, cada uma
delas subdividida em três subseções (assim, nove segmentos ao todo). Um exemplo
do enquadramento na primeira parte é haver uma subseção sobre as mulheres da
Galileia em Mt 27,55-56 e outra em Mt 27,61 que serve de estrutura para a ação
de José, o discípulo, em Mt 27,57-60. Contudo, como já mencionamos em § 44, nota
27: para criar essa estrutura, Heil tem de ignorar o fluxo narrativo, já que, em Mt
27,55-56, as mulheres estão relacionadas à crucificação, não ao sepultamento, pois é
dito que elas observam especificamente a morte de Jesus e suas consequências. Em
uma escala maior, acho as divisões de Heil muito artificiais; e, embora descubram
alguns padrões mateanos, elas com frequência sacrificam outras questões maiores.
Em uma crítica inédita de Heil proferida na reunião da Associação Bíblica Católi­
ca em Uos Angeles, J. R. Donahue lembrou que a divisão de Heil não respeita os
gêneros de elementos diferentes nas narrativas do sepultamento/ressurreição. Em
crítica incisiva, Sênior (“ Matthews Account”, em especial v. 2, p. 1439-1440) fala
da “ natureza quase mecânica” do padrão literário de Heil; e, como o livro de Heil
estende esse padrão por Mateus todo, muitos compartilham a dúvida de Sênior de
que o evangelista fosse capaz de formular um plano tão elaborado. Sênior descon­
fia que Heil esteja inconscientemente adaptando “o texto ao leito procustiano do
padrão alegado”. Para mim, essa suspeita aplicada aos nove segmentos de Heil em
Mt 27,55-28,20 aumenta com sua descoberta subsequente de nove segmentos em
Mc 14,53-16,8 (Biblica 73,1992, p. 331-358).

O que proponho abaixo vai em outra direção, mais simples. Discordei de


Sênior por ele separar a aparição da ressurreição em Mt 28,16-20 da estrutura do
sepultamento e do túmulo vazio. Discordei de Heil por ele incluir em seu plano a
passagem da crucificação, Mt 26,55-56. Minha interpretação de estrutura abrangerá
o sepultamento, o túmulo vazio e a ressurreição, sem adições nem exclusões, assim,
Mt 27,57-28,20. (São também os limites da unidade mateana aceitos pelos estudos
estruturais independentes de Giblin, Uai e Turiot.) Essa interpretação tentará fazer
justiça à maneira como Mateus combinou material tirado de Marcos e material de
outras fontes (história da guarda no túmulo e aparição da ressurreição — que ele

507
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

não criou). Quero usar a origem da história da guarda no túmulo como entrada no
plano estrutural mateano.

O r ig in a l m e n t e , um a h ist ó r ia c o n se c u t iv a . Dois fatos facilmente perceptíveis


indicam que antigamente havia uma história consecutiva a respeito da guarda, não
entrelaçada com a história das mulheres no túmulo (como agora está em Mateus).
Primeiro, existe uma história consecutiva no EvPd e é muito difícil supor que o
autor do EvPd selecionou elementos do relato entrelaçado de Mateus, redigiu uma
história consecutiva (EvPd 8,28-11,49) e depois acrescentou-a no início da história
remanescente das mulheres no túmulo (EvPd 12,50-13,57).3a Segundo, extrair
de Mateus qualquer coisa referente ao túmulo que não esteja em Marcos nos dá a
história da guarda de modo que o entrelaçamento das duas histórias em Mateus não
produz uma sequência estreitamente integrada que tenha marcas de originalidade.

Este último ponto nos leva a uma análise da estrutura mateana que, a meu
ver, mostra que sem dúvida o próprio Mateus entrelaçou dois relatos. Em BNM, p.
62-63, apoiei os que reconheceram que, depois de uma genealogia introdutória,
a narrativa mateana da infância tem uma estrutura de cinco passagens, cada uma
com uma citação formal da Escritura. Estão estabelecidas em um padrão alternado
com os que são favoráveis a Jesus, a saber, José e a mãe, realçados na primeira,
terceira e quinta passagens, enquanto os inimigos de Jesus, em especial Herodes,
estão realçados na segunda e quarta passagens. Se usarmos A para designar as
passagens favoráveis e B para designar as passagens hostis, podemos esquema-
tizar o padrão como na Primeira Parte do Quadro 9. A Segunda Parte mostra um
padrão alternado na narrativa mateana do sepultamento/ressurreição.3536 Ali, o tema

35 O autor de EvPd pode perfeitamente ter conhecido o relato mateano da guarda (opinião baseada em seu
uso de vocabulário mateano), mas uma estrutura plausível é que ele também conhecia uma forma bem
concatenada da história e lhe deu preferência. A fim de juntá-la à história das mulheres no túmulo, o
autor do EvPd teve de fazer uma adaptação: a segunda desajeitada descida angelical do céu em EvPd
11,44. Os dois homens angelicais da primeira descida (EvPd 9,36) faziam parte da história da guarda,
mas eles saíram do túmulo apoiando Jesus. Como nos ensinam todos os Evangelhos canônicos, a história
das mulheres que o autor do EvPd estava prestes a narrar exigia a presença angelical no túmulo vazio
quando as mulheres chegaram (ver EvPd 13,55); e assim, ele teve de fazer outro homem angelical descer.
36 Este paralelo estrutural entre as duas narrativas, que defendo em BNM, p. 125-126, foi sugerido antes
por J. C. Fenton, “ Inclusio and Chiasmus in Matthew”, em StEv I, p. 174-179. De outro ponto de vista,
Giblin (“Structural”) afirma corretamente que a narrativa mateana da ressurreição não começa com Mt
28,1, mas com Mt 27,57. Ele indica uma inclusão entre matheteuein (“sido discípulo”), em Mt 27,57,
no começo, e esse verbo (“fazer discípulos” ) em Mt 28,19, no fim.

508
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

discípulos/mulheres atravessa as passagens A e o tema chefes dos sacerdotes/


Pilatos/guardas atravessa as passagens B.

QUADRO 9. COMPARAÇÃO DOS RELATOS MATEANOS DO


NASCIMENTO E DO SEPULTAMENTO/RESSURREIÇÃO

P r im e ir a p a r t e : 0 r e la t o d o n a sc im e n to

A1 Mt 1,18-25 (Is 7,14) Primeiro sonho-revelação angelical a J o s é sobre o menino que nascería
de Maria como o Messias.

B1 Ml 2,1-12 (Mq 5,1) Os magos vêm a H e ro d e s, os chefes dos sacerdotes e os escribas, que
dão informações, mas na verdade tramam com hostilidade contra Jesus; os
magos encontram o menino e a mãe em Belém e o adoram; eles voltam por
outro caminho.

A2 Mt 2,13-15 (Os 11,1) Segundo sonho-revelação angelical a J o sé para levar o menino e sua
mãe para o Egito.

B2 Mt 2,16-18 (Jr 31,15) H e r o d e s mata as crianças do sexo masculino de Belém, na tentativa ma­
lograda de matar Jesus.

A3 Mt 2,19-23 (ls 4,37) Terceiro sonho-revelação angelical a J osé: os que queriam matar o

menino estão mortos: ele deve levar o menino e sua mãe do Egito
para Nazaré.

S e g u n d a p a r t e : 0 r e la to d o s e p u lta m e n to /r e ssu r r e iç ã o

A' Mt 27,57-61 Sepultamento por José, um d is c íp u i o, com as s e g u id o r a s observando.

B1 Mt 27,62-66 C h e fe s d o s sa c e r d o te s e fariseus obtêm de Pilatos g u a r d a c u sto d ia i para assegurar


o sepulcro contra a pretensão de Jesus a ressuscitar.

A2 Mt 28,1-10 S e g u id o r a s vão ao sepulcro; terremoto; anjo vem do céu e remove a pedra; guardas
tremem e ficam como mortos; anjo revela às mulheres que devem contar aos d isc í­

pu lo s; as mulheres veem Jesus

B2 Mt 28,11-15 A g u a r d a cu sto d ia i anuncia todas essas coisas aos c h e fe s d o s sa c e r d o te s, que


com os anciãos a subornam com dinheiro para mentir que os discípulos roubaram o corpo.

A:‘ Mt 28,16-20 Em uma montanha na Galileia, Jesu s aparece aos onze d isc íp u l o s e lhes dá a missão
de irem a todas as nações.

Nos dois casos, está claro que uma história hostil e uma amistosa foram
entrelaçadas em um padrão positivo-negativo-positivo-negativo. Em cada caso, há
uma passagem onde as duas histórias se unem: perto do fim de B1, na narrativa da
infância, e no início de A2, na narrativa do sepulcro/ressurreição."7 Realmente,*

A natureza complexa deste episódio intermediário recebe tratamento especial de Giblin, “ StructuraF',
p. 409-411.

509
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

nesta última não há nenhuma diretriz tão segura quanto às cinco citações formais
na narrativa da infância;38 mas vale a pena mencionar que cada uma de suas cinco
passagens tem um verbo de movimento no início e as três primeiras têm indicações
de tempo.39 E ssa inclusão estrutural entre o início e o hm do Evangelho todo é, a
meu ver, indício de que este arranjo entrelaçado da história mateana da guarda no
sepulcro não representa o fluxo original dessa história (que outrora foi consecutiva).
0 novo arranjo entrelaçado na narrativa mateana do sepulcro/ressurreição também
significa que Mateus se afasta de Marcos, que usou o sepultamento primordialmente
como ligação entre os relatos da crucificação e da ressurreição.40 Embora haja ecos
contínuos da crucificação, em Mateus o sepultamento é primordialmente a parte
inicial de uma estrutura que aponta para as passagens da ressurreição. Finalmente,
a estrutura de cinco partes alerta-nos de que o elemento negativo da rejeição judaica
da ressurreição (dominante nas passagens B, a primeira das quais é, por acaso,
a que estamos comentando) não é primordial. Maior ênfase é dada às passagens
A e ao que Deus fez; o negativo está presente como contraste para mostrar que
Deus sai vitorioso. Apesar de sua intenção homicida contra o recém-nascido Rei
dos judeus, Herodes, os chefes dos sacerdotes e os escribas (Mt 2,20: “aqueles
que queriam matar o menino” ) foram frustrados e o menino foi trazido de volta do
exílio no Egito em segurança. Apesar da tentativa de manter o Rei dos Judeus no
sepulcro, Pilatos, os chefes dos sacerdotes e os anciãos são impedidos; e o Senhor
é trazido de volta do reino dos mortos em segurança.

U ma h is t ó r ia do m e sm o c o n ju n t o d e m a t e r ia l p o p u l a r do q u a l M ateu s

t ir o u OUTROS PROJETOS DA NP. Do princípio ao fim da NP mateana, afirmei que


Mateus ocasionalmente suplementou o material marcano que tinha disponível com
histórias que traziam o selo da reflexão imaginativa popular nos acontecimentos

18 A narrativa do sepulcro/ressurreição está mais interessada no cumprimento da palavra de Jesus de que


ele ressuscitaria depois de três dias do que no cumprimento dos profetas. Naturalmente, essa palavra,
na forma em que as autoridades judaicas a recordam, foi provavelmente pronunciada em comentário
sobre o profeta veterotestamentário Jonas, que ficou três dias e três noites na barriga da baleia.
39 Mt 27,57: erchesthai; Mt 27,62: synagein; Mt 28,1: erchesthai; Mt 28,11: poreuesthai e erchesthai; Mt
28,16: poreuesthai — todos os cinco versículos iniciais têm um de (“ Mas”) pospositivo. Quanto ao tempo:
Mt 27,57: “sendo o entardecer” ; Mt 27,62: “ no dia seguinte, que é depois do dia de preparação” ; Mt
28,1: “no fim do sábado, ao amanhecer [isto é, início] do primeiro dia da semana” .
40 Além disso, se a cena marcana do sepultamento tinha um elemento apologético destinado a mostrar que
Jesus estava verdadeiramente morto (a investigação de Pilatos) e isso foi omitido por Mateus, a história
mateana da guarda, que é adendo à cena do sepultamento, tem objetivo apologético compensador para
mostrar que Jesus saiu verdadeiramente do sepulcro.

510
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

que cercaram a morte de Jesus41 — histórias marcadas por metáforas expressivas


(sangue, sonhos), por fenômenos celestiais extraordinários (terremoto, ressurreição
dos mortos) e - ai! - por extrema hostilidade para com os judeus. Há elementos
de estilo mateano nessas histórias,42 de modo que o evangelista as reescreveu e
reformulou; mas há elementos peculiares a elas em número suficiente para me fazer
pensar que Mateus não as criou.

Entre essas histórias, mencionei a passagem de Judas se enforcando (Mt


27,3-10), com suas trinta moedas de prata, a insensibilidade dos chefes dos sacer­
dotes e dos anciãos que são escrupulosos quanto a dinheiro de sangue, mas não se
importam com a culpa envolvida em entregar um inocente à morte, e a alusão ao
“ Campo de Sangue” até os dias de hoje; o incidente do sonho da mulher de Pila-
tos a respeito de um justo (Mt 27,19); a descrição de Pilatos lavando as mãos do
sangue de um inocente, enquanto todo o povo diz: “ Seu sangue sobre nós e sobre
nossos filhos” (Mt 27,24-25); e, depois da morte de Jesus, a poética quadra onde
rochas se partiram, túmulos se abriram e os muitos corpos dos santos adormecidos
ressuscitaram (Mt 27,51b-53). Encontro sinais claros de que a história da guarda
no sepulcro tem o mesmo caráter de um brilhante material popular. Há um forte
sentimento antijudaico quando os chefes dos sacerdotes, os fariseus e os anciãos são
mostrados como patifes sem princípios; uma dramatização de Pilatos; um terremoto;
uma oferta de moedas de prata para comprar comportamento desprezível;43 uma
tradição que dura até hoje. Os paralelos ao material mateano suplementar aumentam
se examinarmos a forma da história da guarda no EvPd ,44 Ali, Pilatos diz: “ Estou

41 Lembro aos leitores que uso o termo “popular” para abranger uma transmissão de outro material sobre
Jesus que não seja pela transmissão querigmática, de pregação que marcou grande parte do material
sinótico ou pelo arranjo de provas do julgamento na sinagoga que formou o material joanino. Não tenho
em mente nada pejorativo histórica, teológica ou intelectualmente na designação. Na verdade, nas his­
tórias populares detectáveis em Mateus, questões teológicas perceptíveis são levantadas e a qualidade
da linguagem é muitas vezes bastante notável. Observemos, por exemplo, o uso quase técnico de echete
koustodian (“Vós [podeis ter] tendes uma guarda custodiai”) nesta história mateana da guarda (Smyth,
“Guard” , p. 157).
42 Pesch (“Alttestamentliche” ) é insistente neste ponto (entretanto, infelizmente ele não distingue de forma
adequada entre reformulação mateana e criação mateana).
43 A passagem de Judas e as moedas de prata vieram após Mt 27,1 quando “ todos os chefes dos sacerdotes
e os anciãos do povo tomaram uma decisão [symboulion lambanein] contra Jesus, segundo a qual eles
deviam executá-lo” . Na história mateana da guarda no sepulcro (Mt 28,11-12), os chefes dos sacerdotes
reúnem-se com os anciãos e, “ tendo tomado uma decisão” , dão dinheiro aos soldados.
44 Naturalmente, Mateus não foi o único autor influenciado pela reflexão imaginativa popular em
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

limpo do sangue do Filho de Deus, mas foi para vós que isto parecia (a coisa a
fazer)” (EvPd 11,46), do mesmo modo que em Mt 27,24, ele disse: “sou inocente
do sangue deste homem. Vós haveis de ver isso”. A proclamação aos “adormecidos”
depois da morte de Jesus é um tema em EvPd 10,41-42, comparável à ressurreição
dos “adormecidos” em Mt 27,52.45 O paralelo estrutural das cinco passagens entre
a narrativa mateana do sepulcro/ressurreição e a narrativa mateana da infância
também apoia a tese de que material popular foi a fonte para a história da guarda,
pois a narrativa da infância tem o mesmo tipo de material popular. Continha reve­
lação por intermédio de sonhos e anjos e, na verdade, na passagem dos magos, uma
comunicação celestial a gentios do que autoridades judaicas hostis não podiam ver
(do mesmo modo que houve revelação à mulher de Pilatos). A estrela que parou
sobre o lugar onde o menino Jesus se encontrava faz parte do mesmo contexto onde
os mortos que se erguem dos túmulos e vêm à cidade santa e são vistos por muitos
na ocasião da ressurreição de Jesus.46

Ao ressaltar que Mateus tomou e fragmentou uma história popular a fim de


combiná-la com material que ele tomou de Marcos a respeito do sepultamento e da
ressurreição, não sugiro que ele simplesmente copiou a história conforme a ouviu
ou leu. No COMENTÁRIO, vimos que o relato existente tem construções e vocabulário
mateanos. O evangelista não usou um método simples de composição; ele repensou
e reformulou material de que se apossou para dar uma unidade de propósito e estilo.
Ao estudar a narrativa da infância, encontrei o mesmo fenômeno no relato mateano
da história dos magos (ver BNM, p. 227-228).

U ma h ist ó r ia q u e e st á p r e se r v a d a em M a teu s em um a fo r m a m e n o s d e s e n ­

volvid a QUE NO E vP d . Afirmei que Mateus fragmentou uma história consecutiva

acontecimentos cristãos. Kratz (Auferweckung, p. 33-35) lembra que diversas histórias neotestamentárias
têm o tema de guardas frustrados que não conseguem impedir o santo que eles vigiam de escapar, por
exemplo, At 5,19-23 (história que envolve a libertação da prisão por um anjo do Senhor); At 12,4-11
(que também envolve um anjo do Senhor, um portão que se abre sozinho e um rei pecador); At 16,23-34
(um terremoto, com portas de prisão que se abrem sozinhas e correntes que se soltam).
45 Ver a p ê n d ic e I, nota 18. Pode-se acrescentar também que os fenômenos extraordinários da forma da
história no EvPd (a pedra que rola sozinha; o tamanho gigantesco dos anjos e o tamanho mais gigantesco
ainda do Senhor ressuscitado; a cruz falante) combinam com a afinidade pelo espetacular no material
mateano especial.
Vl A comparação da narrativa mateana da infância com a lucana, por exemplo, comparando os magos com
os pastores, ou a fuga para o Egito com a volta pacífica através de Jerusalém para Nazaré, mostra que,
seja a narrativa lucana histórica ou não, a mateana é mais folclórica.

512
§ 4 8 .0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

da guarda no sepulcro para entrelaçá-la com a história das mulheres no túmulo,


enquanto o EvPd preservou a forma consecutiva original da história da guarda.4.
Entretanto, isso não significa que a história do EvPd seja mais original. E bem
possível que no século II, quando o EvPd foi escrito (e assim, depois da época em
que Mateus havia recorrido a sua fonte), a história da guarda no sepulcro tivesse
continuado a evoluir em narração extraevangélica e se tornado uma composição mais
longa e mais elaborada. Embora eu discorde totalmente da alegação de Crossan,
segundo a qual grande parte do relato da Paixão no EvPd era anterior aos relatos
canônicos da Paixão e foi uma das principais fontes deles (ver APÊNDICE I), concordo
com ele que a relação não deve ser tratada simplesmente em termos de dependência
literária do EvPd dos Evangelhos canônicos. A meu ver, neste caso especial, o que
se encontra no EvPd explica-se melhor em termos do conhecimento que o autor
possuía dos Evangelhos canônicos (talvez pela lembrança de tê-los ouvido outrora),
em especial Mateus, bem como uma forma independente da história da guarda no
sepulcro e de sua atividade para combinar essas duas fotes de material.*48 Vamos
examinar os vários elementos dessa explicação.

Com comparações detalhadas, afirmarei no APÊNDICE I que o autor do EvPd


ouviu ou leu Mateus e conhecia tradições de origem lucana e joanina. Aqui, vou
somente expor alguns casos de possíveis ecos de Mateus no longo relato da guarda
no túmulo (EvPd 8,29-11,49).49 O “ Verdadeiramente ele era o Filho de Deus” no
EvPd está mais próximo do “ Verdadeiramente, este era Filho de Deus” mateano
que do “ Este homem era Filho de Deus” marcano. Mateus fala dos anciãos 7 vezes
na NP, em comparação com 3 em Marcos, 1 em Lucas (João, 0); o EvPd tem 3
referências a eles na história da guarda no sepulcro. É provável que também no
relato do EvPd tenha havido elementos entrelaçados tomados por empréstimo da

4' Isso foi proposto por B. A. Johnson e Walter, e aceito por muitos outros. Os proponentes dividem-se a
respeito de a forma pré-EvPd parar em EvPd 11,49 (de modo que, como penso, o autor do EvPd juntou-
-a à história separada das mulheres no túmulo) ou continuar até EvPd 13,57. A forma da história das
mulheres no EvPd tem muitas semelhanças com as formas canônicas e talvez represente simplesmente
uma nova narração de lembranças delas.
48 Em um estudo da intertextualidade no Protoevangelho de Tiago, W. S. Vorster (TTK, p. 262-275) afirma
que o autor desse apócrifo do século II combinou criativamente material canônico com outra tradição.
49 Há também ecos de material caracteristicamente lucano (o povo batendo no peito; dois homens angelicais
[arcer]). Se a busca se estendesse à história subsequente das mulheres no túmulo em EvPd 12,50-13,57,
ali seriam encontrados mais ecos de Lucas (ao alvorecer [orthrou]), bem como de João (“com medo por
causa dos judeus” ; inclinando-se para ver dentro do sepulcro).

513
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

forma mateana do material popular relacionado acima. (Entretanto, isso é muito


mais difícil de demonstrar, pois também este material poderia ter viajado indepen­
dentemente depois de Mateus recorrer a ele.50) Por exemplo, Mt 27,52 menciona o
destino dos “adormecidos” em uma quadra poética que tem boa possibilidade de
ser mais original que a dramatização dela em EvPd 10,41. O fato de Herodes e os
judeus dirigirem o julgamento e também a crucificação no EvPd significava que a
cena mateana de Pilatos lavando as mãos e se declarando inocente do sangue de
Jesus não podia ficar dentro do julgamento; ao que tudo indica, o EvPd fragmen­
tou o incidente, pondo o ato de lavar as mãos antes (ver EvPd 1,1) e a declaração
de estar limpo do sangue de Jesus depois da abertura do sepulcro. (Quando digo
“fragmentar”, não imagino isso como o ato de embaralhar de novo uma história
mateana que o autor do EvPd tinha em um manuscrito a sua frente; penso antes
que ele ouviu Mateus lido no passado e dessa audição tinha imagens na mente que
inconscientemente voltou a embaralhar sob o impacto de outras histórias da Paixão
que ouviu, tais como a da guarda no sepulcro.)

Contudo, há muitos elementos na longa história do EvPd que não se encon­


tram em Mateus. O próprio autor poderia tê-los acrescentado a uma história que
tirou de Mateus, pois esse é um Evangelho folclórico e popular, e é provável que o
autor tenha afinidade com o dramático e o extraordinário. Contudo, essa solução
não explica fatos importantes. 0 papel de Pilatos na história do sepulcro no EvPd
é dramaticamente diferente do papel que ele desempenhou em EvPd 2,4-5: ali, ele
teve de pedir a Herodes o corpo do Senhor para sepultamento; aqui, ele tem completa
autoridade sobre o sepulcro. Além disso, quando se compara o relato mateano da
guarda no sepulcro, que tem cerca de dez versículos, com o relato de vinte e dois
versículos no EvPd (mais de um terço do total da NP no EvPdl), nota-se que nenhu­
ma outra parte do relato da Paixão ou da ressurreição no EvPd foi expandida tão
extensivamente em comparação com uma cena canônica correspondente. Portanto,
na suposição de que o autor do EvPd agiu com certa consistência, temos o direito
de desconfiar que aqui ele teve outra fonte além de Mateus, a saber, um relato mais
desenvolvido da guarda no sepulcro. (Esse ponto é também apoiado pele fato de a

j0 Mateus e o EvPd mencionam os fariseus no início da história e somente ali (e em nenhuma outra passagem
da NP); em Mateus (Mt 28,1-2) e no EvPd (EvPd 9,35-36), há descida angelical do céu em ligação com
a abertura do sepulcro ao “ amanhecer” de domingo (epiphoskein: único uso mateano). Desconfio que
esses são elementos que Mateus encontrou na história original da guarda no sepulcro e que, portanto, o
autor do EvPd também poderia tê-los encontrado ali sem depender de Mateus.

514
§ 48.0 sepultam ento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

história ser consecutiva no EvPd.) O fornecimento do nome do centurião, os sete


selos, a pedra que rola sozinha, o relato da ressurreição com as figuras gigantescas,
a cruz falante, a confissão de Jesus como Filho de Deus pelas autoridades judaicas e
o medo que elas sentem do povo — é plausível que todos esses elementos estivessem
na forma mais desenvolvida da história conhecida pelo autor do EvPd e ausente da
forma conhecida por Mateus. (Realmente, Mateus não precisava relatar a história
inteira; mas por que ele teria omitido muitos desses itens?)

A probabilidade de o autor do EvPd ter disponíveis duas formas da história


da guarda no sepulcro, a mateana e outra, aumenta com os indícios de mais uma
forma de parte do material. O Códice Bobbiensis de Mc 16,3/4 tem uma adição
latina: “ De repente, na terceira hora do dia a escuridão chegou à terra inteira e anjos
desceram do céu; e erguendo-se no brilho resplendente do Deus vivo, eles subiram
[ascenderam] com ele; e imediatamente a luz surgiu”.51 E ssa história está colocada
imediatamente antes de as mulheres virem ao túmulo vazio. E claramente paralela
a EvPd 9,36; 10,39-40, que está colocada no mesmo contexto; mas é muito mais
simples. D. W. Palmer (JTS NS 27, 1976, p. 113-122) sugeriu que, originalmente,
essa história Bobbiensis estava ligada à hora da morte de Jesus quando a escuridão
cobriu a terra inteira, e que anjos desceram para tirar Jesus da cruz. (Deve-se lem­
brar que EvPd 6,22 menciona que, depois de o corpo de Jesus ser tirado da cruz,
o sol brilhou e pôs fim à escuridão.) Se esse fosse o caso, a história independente
que fundamenta o EvPd podería ter sido multifacetada, já combinando os fenôme­
nos que tiveram lugar perto da cruz (ver § 43, sob “ Fenômenos especiais em Mt
27,51-53 [e EvPd]” ) com os pertinentes aos guardas no sepulcro, combinação não
encontrada na forma da história do sepulcro conhecida de Mateus.

Além de elementos tirados de Mateus e de uma forma independente da


história da guarda, outros elementos no EvPd refletem a reorganização pelo autor
daquilo que ele recebeu; por exemplo, a expressão “o dia do Senhor” e a confusa
estrutura temporal concentrada ao redor do sábado.52 E certos elementos podem

51 Esse códice dos séculos IVA copia de um arquétipo do século II ou III. A gramática do latim é obscura
e com toda a probabilidade foi adulterada ao ser copiada. Entretanto, outros testemunhos de formas
independentes desse material podem ser sugeridos, por exemplo, não está claro que esta seção da
Ascensão de Tiago (meados do século II?) dos Reconhecimentos Pseudoclementinos (latinos 1,42,4) seja
dependente de Mateus: “Pois alguns dos que estavam guardando o lugar com diligência chamaram-no
de mágico quando não conseguiram impedi-lo de se levantar; outros fingiram que ele foi roubado” .
52 O fato de toda a primeira parte de Mateus que trata do pedido a Pilatos ter lugar no sábado, enquanto no
EvPd acontece antes do alvorecer do sábado, indica que a história original não tinha nenhuma indicação

515
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto

ter sido combinação. Por exemplo, por um lado, o uso de “os judeus” no fim da
história da guarda por Mateus em Mt 28,15 é incomum e pode ter sido original
na forma que ele conhecia dessa história. O aparecimento de Ioudaios no final
do relato, em EvPd 11,48, talvez signifique que também era original na forma
da história que o autor do EvPd conhecia, de modo que ele não precisou tomá-la
por empréstimo de Mateus. Por outro lado, EvPd usa o termo seis vezes e, assim,
fazia parte também do estilo do autor. Alguns estudiosos do EvPd afirmam que a
interação que sugeri de dependência de Mateus (e outros Evangelhos) lembrada
oralmente, de dependência de uma forma separada, mais desenvolvida da história
da guarda transmitida em círculos populares e de adições pessoais, constitui um
esquema complicado demais para explicar o que aparece no EvPd. Ao contrário,
no caso de um conto tão imaginoso, acho esse esquema plausível em um mundo
antigo onde a repetição de histórias oralmente e reminiscências de tê-las ouvido
eram mais comuns que ler essas histórias. É um esquema com certeza mais crível
que imaginar que o autor do EvPd trabalhava em uma escrivaninha com cópias
dos diversos Evangelhos canônicos apoiadas a sua frente, cuidadosamente fazendo
mudanças a fim de compor o conto de uma cruz falante.

0 o b je t iv o b á sic o da h ist ó r ia da g u a r d a . Três metas entram na discussão:


polêmica, apologética e escatologia apocalíptica. O final do relato mateano tem
inclinação polêmica: refuta uma história que circulava entre os judeus, a saber,
que os discípulos de Jesus roubaram seu corpo e depois, de modo fraudulento,
proclamaram a ressurreição.53 Mas certamente não é esse o objetivo primordial

precisa de tempo. Em outras passagens, o autor do EvPd demonstra ignorância da cronologia judaica
(nota 6, acima) e aqui, o fato de pôr os anciãos e o povo judeus para vigiarem o túmulo no sábado é
bastante implausível.
’3 Há quem afirme que, como prova apologética, a história mateana é fraca, pois a guarda só foi colocada
no sábado e, assim, o corpo poderia ter sido roubado entre o sepultamento, no fim da tarde de sexta-feira,
e a colocação do lacre no sábado. Eles mencionam que esse “ buraco” na história foi tampado no EvPd,
onde o lugar de sepultamento é fechado com uma pedra e vigiado antes de o sábado começar. Nenhuma
dessas observações me convence. A história mateana é sucinta e popular; cabe a nós pressupor que as
autoridades judaicas tomaram a precaução elementar de examinar o sepulcro para verificar se o corpo
ainda estava ali antes de o lacrarem no sábado. Isso fazia parte de assegurá-lo como elas sabiam (Mt
27,65). Se as autoridades eram espertas o bastante para recordar e entender uma declaração de Jesus a
respeito da ressurreição feita havia muito tempo, dificilmente seriam tão ingênuas a ponto de vigiar um
túmulo vazio. Quanto ao EvPd com sua sequência de tempo muito confusa, duvido que uma apologética
melhor fizesse o autor mudar para a tarde de sexta-feira a história do lacre. Essa datação relaciona-se
com outro motivo para lacrar o túmulo, a saber, uma reação ao que o povo estava dizendo em resposta
à morte de Jesus que acabara de acontecer (EvPd 8,28-29). Como o EvPd descreve o corpo de Jesus

516
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

da história básica. Se fosse excluído o tema de pagar aos soldados para difundir
uma mentira (tema ausente da forma da história da guarda no EvPd), a colocação
de uma guarda no túmulo e o fracasso dessa precaução para impedir o túmulo de
ser aberto pela intervenção divina ainda teria sentido. O elemento polêmico repre­
senta a última etapa ou a etapa final do uso da história da guarda desenvolvida no
período em que a polêmica judaica começara a descrever Jesus como “impostor”
(Mt 27,63: planos ) e quando, na área mateana, houve uma luta constante entre
missionários cristãos e mestres judaicos de crença farisaica (Mt 27,62: fariseus)
para persuadir o povo (Mt 27,64: “digam ao povo” ).*54 Deixando de lado a polêmica,
ainda encontramos um forte tom apologético: essa história prova que Jesus cumpriu
a palavra que havia dito: “ Depois de três dias vou ressuscitar (serei ressuscitado)” ;
não há dúvida, então, a respeito da verdade da Boa-Nova que seria proclamada pelos
discípulos a todas as nações até o fim dos tempos (Mt 28,19-20). Contudo, mais
uma vez a profecia de Jesus está ausente da forma da história da guarda no EvPd 55
e a apologética não explica todos os elementos. Consequentemente, muitos foram
levados a pensar que o elemento mais antigo e mais básico da história que funda­
menta Mateus e o EvPd pode ser mensagem escatológica expressa em metáforas
apocalípticas. A mensagem é que Deus faz o Filho divino triunfar sobre os inimigos
mesmo quando eles consistem no aparentemente todo-poderoso governante e nas
autoridades religiosas supremas — a mesma mensagem encontrada na história da
tentativa de Herodes de matar o menino, conforme narra o início do Evangelho. As
coisas espantosas que acontecem (em Mateus, o terremoto e um anjo que desce e
remove a pedra; no EvPd, muito mais) são uma dramatização do grande poder de
Deus comparado a obstáculos humanos insignificantes.56 No início do Evangelho,

saindo do túmulo, o autor com certeza não precisava de um lacre anterior no lugar de sepultamento para
provar que o corpo ainda estava lá.
54 Gnilka (Matthüus, v. 2, p. 488) nega a origem missionária, mas não apresenta nenhuma argumentação.
" Na narrativa do EvPd, o desejo de salvaguardar o lugar de sepultamento “ por três dias” (EvPd 8,30)
precisa subentender apenas que, depois desse período, o impostor com certeza estaria morto.
56 Reconhecendo que esse era o significado original da história da guarda, Kratz (Auferweckung, p. 74)
vê em uma segunda etapa da narração um aumento definido de um tema apologético, que só estava ali
ligeiramente no início, e depois, em uma terceira etapa, o desenvolvimento do caráter de uma epifania
da história (visível especialmente na abertura do túmulo e na intervenção angelical). Quanto ao EvPd
como um todo, é preciso reconhecer que em material expandido de memórias evangélicas canônicas, há
menos coisas espantosas que em material proveniente de uma fonte independente. Consequentemente,
há ênfases heterogêneas na forma final da NP no EvPd (ver o artigo de D. F. Wright, “Apologetic and
Apocalyptic” , com um título que capta a diversidade.

517
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto

Mateus incluiu uma história que descreve como o menino, que é Emanuel (“ Deus
conosco” ), encontraria perigosa oposição em sua tarefa predestinada de salvar
seu povo de seus pecados (Mt 1,21) e precisaria de intervenção divina. No fim do
Evangelho, ele descreve no túmulo a antecipação da luta escatológica e adverte aos
leitores que o Jesus ressuscitado que diz “ Estou convosco todos os dias, até o fim
dos tempos” (Mt 28,20) ainda enfrentará perigosa oposição que o poder de Deus,
agora manifestamente dado a ele (Mt 28,18), terá de superar.

B. Historicidade da narrativa m ateana da guarda no sepulcro

São necessários alguns prolegômenos a esta discussão. O foco principal


será o relato mateano, não o relato do EvPd, que considero forma mais tardia, mais
desenvolvida. Em princípio, há quem rejeite qualquer possibilidade de que o relato
mateano seja histórico, porque contém o sobrenatural, a saber, um anjo que desce
do céu para remover a pedra. Não considero metodologicamente correto deixar essa
rejeição a priori do sobrenatural determinar a historicidade e, na verdade, esse
princípio eliminaria a discussão de qualquer narrativa da ressurreição. A meu ver, a
possibilidade ou plausibilidade dessa história precisa ser discutida na mesma base
que a de qualquer outra história evangélica. Outros princípios a priori são invocados
para negar a historicidade. Por exemplo, a observação de que essa é uma história
tardia e popular (encontrada somente em Mateus, não em Marcos), ou de que tem
inclinação apologética, faz muitos rejeitá-la sem demora como invencionice. Afirmei
acima que a apologética não é o objetivo primordial e, mesmo se fosse, por que
são a apologética e a historicidade incompatíveis? Afinal de contas, pode ter sido
apresentado contra os adversários judeus do Cristianismo um argumento baseado
em alguma coisa que realmente aconteceu. Quanto ao aparecimento tardio da his­
tória na tradição evangélica, há, além da criação ficcional, outras razões possíveis
que poderiam fornecer uma explicação (por exemplo, a presença da guarda não
tinha importância antes de os inimigos espalharem a mentira de que o corpo fora
roubado).57 Do mesmo modo, a difusão em círculos populares, e não na pregação
pública, nem sempre aponta para a não historicidade.

Lee (“ Guard” , p. 171) sugere que um servo do sumo sacerdote, aquele a quem o Jesus ressuscitado deu
seu pano de linho do sepultamento segundo o Evangelho dos Hebreus 7 (HSNTA v.l, p. 165; ed. rev., v.
1, p. 178), mais tarde tomou-se cristão, e que só então a história se tomou conhecida. Além do dúbio
expediente de combinar informações tão diversas, esse argumento não leva em consideração que, embora
a mentira pudesse ter sido secreta, a designação da guarda era conhecida publicamente. Além disso,

518
§ 4 8 .0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

Tendo me recusado a tratar dessa questão nessas bases a priori, nem sempre
me impressiono com a força de argumentos a posteriori contra a historicidade. Por
exemplo, a mentira que os soldados são subornados para espalhar (“ Os discípulos
dele, tendo vindo à noite, o roubaram, enquanto estávamos dormindo” ) é às vezes
menosprezada como absurda. Alega-se que dormir em serviço era crime punido
com a morte no exército romano; por isso, os soldados saberíam que estavam con­
tribuindo para a própria morte, apesar da promessa de que os chefes dos sacerdotes
persuadiriam o governador e, assim, eliminariam suas preocupações. Entretanto,
no nível narrativo, como indiquei, os chefes dos sacerdotes são corruptos; e a
intenção é que os leitores presumam que eles mentiríam para Pilatos e, com toda
a probabilidade, o subornariam para não punir os soldados. No nível de fatos
circunstanciais, não está claro que dormir em serviço fosse sempre punido com a
morte. Tácito (Histórias v,22) fala de sentinelas descuidadas que, ao dormirem em
serviço, quase permitiram ao inimigo pegar seu general; mas parece que usaram
o comportamento escandaloso do general (ele estava longe do dever, dormindo com
uma mulher) para se proteger da falta. Em outras palavras, era possível chegar a
um acordo; e não é implausível que Pilatos não fosse tão rigoroso quanto ao com­
portamento das tropas temporariamente postas a serviço das autoridades judaicas,
se essas autoridades preferissem não pressionar por castigo.

Contudo, há um argumento importante contra a historicidade que é realmente


forte. Não só os outros Evangelhos não mencionam a guarda no sepulcro, mas a
presença da guarda ali torna o que eles narram a respeito do túmulo quase ininteli­
gível. Nos outros três Evangelhos canônicos, as mulheres vêm ao túmulo na Páscoa
e o único obstáculo mencionado que impede sua entrada é a pedra. Com certeza, os
evangelistas teriam tido de explicar como as mulheres esperavam entrar no túmulo
se houvesse uma guarda postada ali precisamente para impedir a entrada.38 Nos
outros Evangelhos, a pedra já está removida quando as mulheres chegam ali. Como
conciliar isso com o relato mateano onde, enquanto as mulheres estão no sepulcro,
um anjo desce do céu e remove a pedra? Há outras improbabilidades internas no
relato de Mateus (por exemplo, que as autoridades judaicas conheciam as palavras*58

talvez subentenda (erroneamente) que a guarda consistia em policiais do Templo judaico, entre os quais
estava o servo do sumo sacerdote.
58 Lee (“Guard” , p. 171) sugere que os guardas tinham fugido do túmulo antes da chegada das mulheres
ali, mas não é isso que Mateus relata.

519
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto

de Jesus a respeito da ressurreição e as entenderam, quando os discípulos não as


entenderam; que os guardas podiam mentir com sucesso a respeito da espantosa
intervenção celestial); mas eles tocam nos detalhes secundários da história. A falta
de harmonia com os outros Evangelhos toca no cerne da história, isto é, a própria
existência de uma guarda. É possível salvar a historicidade voltando a uma situação
pré-evangélica e afirmando que o membro do sinédrio judeu que enterrou Jesus,
José de Arimateia, tomou precauções para proteger o sepulcro e que isso evoluiu
para a história que Mateus agora conta? Entretanto, essa é uma sugestão bastante
hipotética; de fato, nem Mateus nem o EvPd ligam a guarda a José, e até alguma
pequena precaução teria deixado uma pista nos outros Evangelhos como obstácu­
lo para as mulheres na Páscoa. Declarações negativas absolutas (por exemplo, o
relato não tem base histórica) transcendem na maioria das vezes o tipo de indícios
disponíveis para os estudiosos biblistas. Mais exata é a observação de que, como
acontece com outro material mateano (por exemplo, a matança das crianças por
Herodes, em Belém, e a fuga para o Egito — história com paralelos funcionais com
esta narrativa), não há indícios nem internos nem externos que nos façam afirmar
a historicidade.59

Evidentemente, isso não significa que a história não tenha valor.60 Sugeri
que as funções polêmica e apologética eram, ao que tudo indica, secundárias e que
o objetivo fundamental era uma dramatização escatológica apocalíptica do poder
de Deus para tornar a causa do Filho bem-sucedida contra toda oposição humana,
mesmo que poderosa. João tem uma dramatização parcialmente parecida em Jo

’9 0 mesmo pode ser dito da ressurreição dos santos e seu aparecimento a muitos em Jerusalém (Mt
27,52-53). É notável que Blinzler (Prozess, p. 415), que tende a ser extremamente conservador quanto à
historicidade, reconheça a dificuldade para proclamá-la em relação à história da guarda. Quero lembrar
que, se algum material popular que Mateus usa para suplementar a NP e lhe dar mais vida deve ser
considerado não histórico, não temos meios de saber se o evangelista estava cônscio disso. Ele incluiu
um conjunto de material, mas estava ele em posição de avaliar o valor histórico de cada episódio?
60 W. L. Craig escreveu de forma muito perceptiva a respeito da ressurreição de Jesus e reduziu algumas
das pressuposições que fundamentam argumentos descuidadamente repetidos contra sua realidade. Em
sua tentativa (sem sucesso, a meu ver) de defender a historicidade da narrativa da guarda, é desapontador
que ele pareça ver a lenda sem valor como alternativa a um relato histórico (“Guard” , p. 274). A Bíblia
é uma coletânea de literaturas de muitos gêneros diferentes e nós a desvalorizamos quando enfatizamos
a história de modo a degradar outros tipos de literatura bíblica. Jonas é um livro veterotestamentário de
valor extraordinário, mesmo se nenhum homem com esse nome jamais foi engolido por um grande peixe
ou pôs o pé em Nínive. Gnilka (Matthaus, v. 2, p. 488-489), para quem Mateus pôs essa história (que
ele tinha encontrado) na narrativa da Páscoa a fim de refutar os ataques dos fariseus à ressurreição, acha
esse um meio duvidoso para defender o Evangelho. Mas era a defesa seu propósito principal?

520
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro

18,6, onde, no jardim do outro lado do Cedron, uma coorte de soldados romanos
sob um tribuno e guardas judeus caem por terra diante de Jesus quando ele diz:
“ Eu sou”. A verdade transmitida por drama é às vezes incutida mais eficazmente
na mente das pessoas que a verdade transmitida pela história.

O exame da história da guarda no túmulo encerra meu comentário conse­


cutivo da NP nos Evangelhos. O entrelaçamento mateano dessa história com sua
descrição da ressurreição lembra-nos de que a NP não é o fim do relato evangélico
de Jesus — nenhum dos Evangelhos canônicos termina sem um relato adicional
que dá a certeza (de várias maneiras) de que ele ressuscitou dos mortos. A última
linha da história mateana da guarda reflete uma situação trágica de polêmica e con-
trapolêmica que acompanhou a proclamação cristã do Senhor ressuscitado: “ E esta
[falsa] palavra ficou divulgada entre os judeus até este dia” (Mt 28,15). Entretanto,
essa mordaz acusação não é a conclusão do Evangelho de Mateus, que acontece
cinco versículos mais adiante, quando o Jesus ressuscitado diz: “ Eis que estou
convosco todos os dias, até o fim dos tempos” (Mt 28,20). A verdadeira preocupação
de Mateus é difundir essa última e verdadeira palavra entre os cristãos até hoje.

[A bibliografia para este episódio encontra-se em § 45, Parte II.)

521
A pêndices

I. 0 Ev a n g e lh o d e P e d ro — narrativa não canônica da Paixão

II. Data da crucificação (dia, mês, ano)

III. P assagen s pertinentes difíceis de traduzir

(M c 14,41; Hb 5,7-8; M t 26,50; Jo 19,13)

IV. Perspectiva geral de Judas Iscariotes

V. Autoridades e gru p o s judaicos m encionados nas narrativas da Paixão

VI. 0 sacrifício de Isaac e a Paixão

VII. Os antecedentes veterotestam entários das narrativas da Paixão

VIII. A s predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte

IX. A questão da narrativa pré-m arcana da Paixão, por M a rio n L Soard s


Apêndice 1: 0 Evangelho de Pedro -
narrativa não canônica da Paixão

Cerca de 400 quilômetros ao sul do Cairo e 100 quilômetros ao longo do


Nilo, ao norte de Nag Hammadi,1 está Akhmím (antiga Chemmis egípcia e Panó-
polis helenística), local, na Antiguidade, de um mosteiro de Pacômio e, a partir do
século V, de uma necrópole. Em 1886-1887, uma expedição arqueológica francesa
encontrou em uma das sepulturas dos monges um pequeno códice (14 cm x 11 cm).
Em suas 33 folhas de pergaminho de duas faces, quatro textos gregos fragmentários2
foram copiados por mãos diferentes entre os séculos IV e IX. Depois de uma página
retroinicial com uma cruz copta e uma impressão das letras do alfa ao ômega, as
páginas 2 a 10, originárias dos séculos VII-IX,3 são dedicadas a uma obra que
começa no meio de uma frase com um relato do julgamento de Jesus e termina no
meio de uma frase no mar, onde (presumivelmente) o Jesus ressuscitado aparecerá
a Simão Pedro, André e Levi. Ao que tudo indica, esse segmento incompleto era
tudo que o copista tinha da obra. Como nele Simão Pedro fala na primeira pessoa

1 Este é o sítio onde, em dezembro de 1945, pastores egípcios encontraram dentro de um jarro uma cole­
ção de treze códices (livros) coptas que tinham sido enterrados por volta de 400 d.C. — esses códices
continham cinquenta e dois tratados distintos, provavelmente de um dos mosteiros do século IV asso­
ciados a São Pacômio (292-348) que ficava dentro do raio de oito quilômetros do local da descoberta
(Chenoboskion, onde Pacômio começou sua vida de eremita, e Pabau, que era o mosteiro central). Esses
tratados constituem a Biblioteca de Nag Hammadi.
2 Além do Evangelho de Pedro, que vem primeiro, os outros três, em ordem, são o Apocalipse de Pedro, 1
Henoc 1,1-32,6 e, em uma (34a) página grudada na capa de trás, os Atos (Martírio) de São Juliano. Ver
a distribuição das páginas em Crossan, Cross, p. 4-5. A publicação original foi em U. Bouriant, org.,
Mémoires publiés par les membres de la Mission archéologique française au Caire, vol. 9, Paris, Leroux.
0 fascículo 1 (1892, p. 91-147) descreve os fragmentos, com as páginas 137-142 apresentando uma
transcrição grega e uma tradução francesa do Evangelho de Pedro; o fascículo 3 (1893, p. 217-235) for­
nece um estudo e transcrições com anotações críticas do Evangelho de Pedro, por A. Lods, e as Gravuras
II-VI reproduzem um fac-símile do grego.
3 As páginas têm 17-19 linhas cada uma (14 na 10a página, com 3 linhas deixadas em branco no final). J.
Armitage Robinson dividiu o texto em 14 capítulos; Hamack, em 60 versículos. Agora, é comum usar
os dois sistemas de referência simultaneamente, por exemplo, o v. 14, que termina o capítulo 4 (= EvPd
4,14), é seguido pelo v. 15, que inicia o capítulo 5 (= EvPd 5,15).

525
A pêndices

(14,60; cf. 7,26), os biblistas imaginaram que fazia parte do Evangelho de Pedro
mencionado por diversos autores da Igreja primitiva, um apócrifo que se sabia ter
estado em circulação na área de Antioquia antes de 200 d.C.4 Na década de 1970,
verificou-se que dois pequenos fragmentos do papiro de Oxirinco 2949 (com 16
palavras discerníveis de cerca de 20 linhas parciais) concordavam parcialmente
com EvPd 2,3-5 da cópia de Akhmím,5 provando que esta última transcrevera uma
obra que era conhecida no Egito do século II e ajudando a confirmar a identificação.
Por conseguinte, do começo ao fim deste comentário, uso a designação EvPd para
me referir ao texto de Akhmím com a pressuposição de que esse texto realmente
reproduz uma parte desse antigo Evangelho de Pedro.

O c o n t e ú d o d e s t e APÊNDICE é o s e g u i n t e :

A. Tradução literal do EvPd

B. Sequência e conteúdo do EvPd

1. Quadro sequencial (comparando o EvPd aos Evangelhos canônicos)

2. Comparação entre o conteúdo do EvPd e o dos Evangelhos canônicos

3. Proposta geral a respeito da composição baseada em sequência e


conteúdo

C. Aspectos da teologia do EvPd

1. 0 debate antigo sobre o docetismo do EvPd

2. Aspectos teológicos discerníveis no EvPd

D. Quando e onde foi composto o EvPd ?

Bibliografia6

4 Até onde sabemos, este foi o único Evangelho atribuído a Pedro na Antiguidade. Entretanto, não há nenhuma
citação preservada de quaisquer palavras dele, que possamos comparar com o texto de Akhmím. Há quem
duvide que o Evangelho petrino mencionado por Orígenes, com referência a material da narrativa da infância
(adiante, sob C), seja a mesma obra da qual encontramos a Narrativa da Paixão no Evangelho de Pedro.
Resposta afirmativa é sugerida por fragmentos latinos preservados do Comentário sobre Mateus, de Orígenes,
que mostra semelhanças com o modo de pensar do Evangelho de Pedro a respeito da Paixão, por exemplo,
125 diz que Jesus não sofreu nada (GCS 38,262, linha 26; cf. Evangelho de Pedro 4,10); em 140, Jesus é
“recebido” depois da morte (receptus; GCS 38,290, linha 22; cf. Evangelho de Pedro 5,19: anelephthe).
5 Ver Coles e Lührmann na B i b l io g r a f ia da Seção.
6 As obras da B ib l io g r a f ia da S eção que acho mais úteis são as de Swete, Vaganay, Beyschlag e Mara.

526
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

A. Tradução literal do EvPd7

'•'Mas nenhum dos judeus lavou as mãos, nem Herodes,


nem um só de seus juizes. E como eles não desejavam lavar,
Pilatos levantou-se. 1,2E então Herodes, o rei, ordena que o
Senhor seja levado [enviado?], tendo dito a eles: “ O que
ordenei que fizésseis a ele, fazei” .
2,3Mas José, o amigo de Pilatos e do Senhor,
tinha estado de pé ali; e, sabendo que estavam
prestes a crucificá-lo, ele veio diante de Pilatos
e solicitou o corpo do Senhor para sepultamento.
2,4E Pilatos, tendo mandado recado para Herodes,
solicitou seu corpo. 2,5E Herodes disse: “Irmão
Pilatos, mesmo se ninguém o tivesse pedido, nós o
teríamos sepultado, já que na verdade o sábado
está raiando. Pois, na lei está escrito: ‘0 sol
não deve se pôr sobre alguém executado’” .
2,5cE ele entregou-o ao povo antes do
primeiro dia de sua festa dos Pães sem fermento.
3,6Mas, tendo tomado o Senhor, correndo, eles o
estavam empurrando e dizendo: “ Vamos arrastar o
Filho de Deus agora que temos poder sobre ele” .
3,7E eles o vestiram com púrpura e o sentaram no
tribunal, dizendo: “Julga imparcialmente, Rei de
Israel” . 3,8E um certo indivíduo dentre eles,
tendo trazido uma coroa espinhosa, a pôs na
cabeça do Senhor. 3,9E outros que estavam de pé
ali cuspiam em sua face e outros estapeavam suas
bochechas. Outros o espetavam com um caniço; e
alguns o açoitavam dizendo: “ Com esta honra,
honremos o Filho de Deus” .

Esta tradução baseia-se no texto grego fornecido por Maria Mara, com uma única mudança significati­
va, isto é, preferindo par[ale]mphthenai, não par[ape]mphthenai em Evangelho de Pedro 1,2. Neirynck
imprime esse texto grego no fim de “ Apocryphal” , p. 171-175.

527
A pêndices

4,1°E eles trouxeram dois malfeitores e


crucificaram o Senhor no meio deles. Mas
ele estava calado, como não tendo nenhuma dor.
4,11E quando colocaram a cruz de pé, eles
escreveram que “ Este é o Rei de Israel” . 4,12E
tendo posto suas vestes diante dele, eles as
repartiram e lançaram a sorte por elas. 4,13Mas
um certo indivíduo daqueles malfeitores
insultou-os, dizendo: “ Foi-nos feito sofrer deste
modo, por causa do mal que fizemos; mas este,
tendo se tomado Salvador dos homens, que
injustiça ele vos fez?” . 4,14E tendo ficado
irritados com ele, eles ordenaram que não
houvesse nenhuma perna quebrada, a fim de que
ele morresse atormentado.
5,15Mas era meio-dia e a escuridão logo
tomou conta de toda a Judeia; e eles estavam
aflitos e ansiosos, temendo que o sol se tivesse
posto, pois ele ainda estava vivo. [Pois] está
escrito para eles: “ Que o sol não se ponha sobre
um executado” . 5,16E alguém dentre eles disse:
“ Dai-lhe a beber fel com vinho avinagrado” .
E, tendo feito uma mistura, deram a beber.
5,17E eles cumpriram todas as coisas e completaram
os (seus) pecados em sua cabeça. 5,18Mas muitos
circularam com lâmpadas, pensando que era noite e
eles caíram. 5,19E o Senhor deu um grito, dizendo:
“ Meu poder, Ó poder, tu me abandonaste” . E, tendo
dito isso, ele foi elevado.
5,20E na mesma hora [meio-dia], o véu do
santuário de Jerusalém foi despedaçado em dois.
6,21E então eles arrancaram os cravos das mãos do
Senhor e o colocaram no chão; e toda a terra foi
sacudida e houve um grande medo. 6,22Então, o sol
brilhou e descobriu-se ser a nona hora. 6,23E

528
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

os judeus regozijaram-se e deram seu corpo a José


para que ele pudesse sepultá-lo, pois ele era alguém
que tinha visto quantas coisas boas ele fez.
6,24E, tendo pegado o Senhor, ele o lavou e amarrou
com um pano de linho e o levou a seu próprio
sepulcro, chamado o Jardim de José.
7,25Então, os judeus e os anciãos e os
sacerdotes, tendo vindo a saber quanto mal eles
tinham feito a si mesmos, começaram a bater em si
mesmos e dizer: “Ai de nossos pecados. O
julgamento se aproxima e o fim de Jerusalém” .
7,26Mas eu, com os companheiros, fiquei triste; e,
tendo sido feridos em espírito, ficamos
escondidos, pois éramos procurados por eles como
malfeitores desejosos de incendiar o santuário. 7,27Além de
todas essas coisas, estávamos jejuando;
e ficamos sentados lamentando e chorando noite e
dia até o sábado.
8,28Mas os escribas e fariseus e anciãos,
tendo se reunido uns com os outros, tendo ouvido
que todo o povo estava murmurando e batendo no
peito, dizendo que “ Se em sua morte esses sinais
muito grandes aconteceram, vede como ele era
justo” , 8,29temeram (especialmente os anciãos)
e vieram diante de Pilatos, suplicando-lhe e
dizendo: 83°“ Entrega-nos soldados a fim de
podermos salvaguardar seu lugar de sepultamento
por três dias, a fim de não acontecer que, tendo
vindo, seus discípulos o roubem e o povo aceite
que ele ressuscitou dos mortos e eles nos façam
mal” . 8,31Mas Pilatos lhes entregou Petrônio,
o centurião, com soldados, para salvaguardar o
sepulcro. E, com esses, os anciãos e escribas
vieram ao lugar de sepultamento. 832E, tendo
rolado uma grande pedra, todos os que estavam

529
A pêndices

ali, junto com o centurião e os soldados,


colocaram(-na) contra a entrada do lugar de
sepultamento. 8,33E eles marcaram(-no) com sete
lacres de cera e, tendo armado uma tenda ali,
eles (o) salvaguardaram. 9,34Mas, cedo, quando o
sábado estava raiando, uma multidão veio de
Jerusalém e da área circundante, a fim de
poderem ver o túmulo lacrado.
9 35Mas, na noite em que o Dia do Senhor
raiou, quando os soldados (o) estavam
salvaguardando dois a dois em cada período,
houve uma voz forte no céu; 9,36e eles viram
que os céus se abriram e dois homens que tinham
muito esplendor desceram de lá e vieram perto do
sepulcro. 9,37Mas aquela pedra que tinha sido
empurrada contra a entrada, tendo rolado sozinha,
foi para o lado, a certa distância; e o sepulcro
se abriu e os dois jovens entraram. I0’38E então,
aqueles soldados, tendo visto, acordaram o
centurião e os anciãos (pois eles também estavam
presentes, salvaguardando). 10’39E, enquanto
relatavam o que tinham visto, novamente eles
viram três homens que saíram do sepulcro, com os
dois apoiando o outro e uma cruz seguindo-os,
10,40e a cabeça dos dois alcançando o céu, mas a
do que era conduzido pela mão por eles
ultrapassando os céus. 10’41E eles estavam
ouvindo uma voz dos céus dizendo: “ Fizestes
a proclamação para os adormecidos?” . I0,42E
uma homenagem foi ouvida da cruz: “ Sim” .
11,43E então, aquelas pessoas procuravam uma
perspectiva comum para sair e deixar essas
coisas claras a Pilatos; u,44e enquanto ainda
estavam ponderando sobre isso, aparecem
novamente os céus abertos e um certo homem,

530
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

tendo descido e entrado no lugar de


sepultamento. ll,45Tendo visto essas coisas,
os que estavam ao redor do centurião
apressaram-se à noite diante de Pilatos (tendo
deixado o sepulcro que estavam salvaguardando) e
descreveram todas as coisas que na verdade tinham visto, ago­
nizando grandemente e dizendo:
“ Verdadeiramente, ele era o Filho de Deus” .
n,46Em resposta, Pilatos disse: “Estou limpo do
sangue do Filho de Deus, mas foi para vós que
isto parecia (a coisa a fazer)” . 11,47Então,
todos, tendo avançado, estavam suplicando e
exortando-o a mandar o centurião e os soldados
não dizerem a ninguém o que tinham visto.
ll,48“ Pois” , disseram, “ é melhor para nós ter
o débito do maior pecado à vista de Deus que
cair nas mãos do povo judeu e ser apedrejado” .
11•49E então, Pilatos mandou o centurião e os
soldados não dizerem nada.
I2,500ra, ao amanhecer do dia do Senhor,
Maria Madalena, discípula do Senhor (que,
amedrontada por causa dos judeus, já que eles
estavam ardentes de cólera, não fizera no
túmulo do Senhor o que as mulheres estavam
acostumadas a fazer pelos seus mortos queridos),
12,5‘tendo tomado consigo amigas, dirigiu-se ao
túmulo onde ele tinha sido colocado. 12,52E elas
estavam com medo que os judeus as vissem e diziam: “ Se,
na verdade, naquele dia em que ele foi crucificado
não pudemos chorar e bater em nós mesmas, agora
em seu túmulo podemos fazer essas coisas.
l2,53Mas quem removerá para nós até a pedra
colocada contra a entrada do túmulo a fim de que,
tendo entrado, possamos sentar ao lado dele e
fazer as coisas esperadas?

531
A pêndices

12,54Pois a pedra era grande e temos medo de que


alguém nos veja. E se formos incapazes, vamos ao
menos atirar contra a entrada o que trazemos em
memória dele; vamos chorar e bater em nós mesmas,
até chegarmos em casa” .
13,55E tendo ido, elas encontraram o sepulcro
aberto. E tendo se aproximado, elas se inclinaram
ali e viram ali certo jovem sentado no meio do
sepulcro, belo e vestido com um manto esplêndido,
que disse a elas: 13,56“Por que viestes? A quem
procurais? Não aquele que foi crucificado? Ele
ressuscitou e foi embora. Mas, se não acreditais,
inclinai-vos e olhai o lugar onde ele jazia,
porque ele não está aqui. Pois ele ressuscitou e
foi embora para o lugar de onde foi enviado” .
13,57Então as mulheres fugiram atemorizadas.
14,580ra, era o último dia dos Pães sem fermento e muitos
saíram, voltando para casa, pois a festa
acabara. 14,59Mas nós, doze discípulos do Senhor,
estávamos chorando e entristecidos; e cada um,
entristecido por causa do que se passara, partiu para sua casa.
14’60Mas eu, Simão Pedro, e meu irmão André, tendo tomado
nossas redes, saímos para o mar. E estava conosco Levi de
Alfeu, a quem o Senhor...

B. Sequência e conteúdo do Ev P d

Para estudar o relacionamento do EvPd com os Evangelhos canônicos, é


importante entender seu conteúdo e a sequência em que é apresentado. A seguir,
vou apresentar: 1) um quadro para ajudar com a sequência; 2) algumas listas que
comparam o EvPd com cada um dos Evangelhos canônicos; e 3) um plano geral
da composição do EvPd baseado em 1 e 2. Em tudo o que diz respeito a essa com­
paração de sequência ou redação, um fator deve ser considerado com firmeza. 0

532
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

Códice de Akhmím nos dá uma cópia feita cerca de seiscentos anos depois que o
EvPd original foi escrito; e podemos ter certeza de que os copistas fizeram mudanças
nesse longo tempo de transcrição8 — ao que tudo indica, ainda mais livremente
porque, além de ser considerada bastante heterodoxa, esta obra circulava privada­
mente e não era lida em público, ao contrário dos Evangelhos canônicos, onde se
exercia maior supervisão e mudanças teriam sido notadas. Quando o vocabulário,
ou mesmo a sequência do EvPd, está de acordo com os Evangelhos canônicos, há
sempre o perigo de algum copista ter substituído o que estava originalmente ali
pela redação ou padronização canônica mais conhecida.

1. Quadro sequencial

O Quadro 10 (a seguir) segue a sequência do EvPd; na primeira coluna, o


que estiver duplamente grifado encontra-se apenas no EvPd. Embora eu não veja
nada que recomende a teoria composicional de D. Crossan, teremos de examiná-la
adiante, nesta subseção, sob B3. Portanto, penso que pode ser útil aos leitores pôr
linhas pontilhadas ao redor de episódios na primeira coluna que Crossan considera
revisão ou redação secundária no EvPd;9 em sua teoria, todo o restante existia antes

8 Mencionei acima que a forma deste Evangelho no papiro de Oxirinco 2949, do século II, que só contém
dezesseis palavras, tem diferenças discemíveis da passagem do EvPd comparável.
9 Para Crossan, há dois tipos de adições: 1) inserções, ou cenas formadas de material dos Evangelhos
canônicos e introduzidas no Evangelho da Cruz, embora praticamente contradigam o que já estava
ali; 2) passagens de redação criadas para preparar e facilitar as inserções e, assim, remover as visíveis
contradições. Como ele tem análises diferentes em (a) Four, p. 134, e mais tarde, em (b) Cross, p. 21,
apresento os dois aqui, em colunas paralelas:
a) REDAÇÃO para INSERÇÃO b) REDAÇÃO para INSERÇÃO

EvPd 2 ,3-5ab —> 6,23-24 2,3-5ab —> 6,23-24


EvPd 7,26-27 - > 14,58-60 7,26-27; 14,58-59 - > 14,60
9 ,3 7 ; 11,43-44 —» 1 2 ,5 0 -1 3 ,5 7 11,43-44 —> 1 2 ,5 0 -1 3 ,5 7

No Quadro 10, adiante, consegui indicar, cercando com linhas pontilhadas, todas essas adições, exceto
EvPd 11,43-44 (e EvPd 9,37 de [a], que, pelo jeito, Crossan já não considera adição). Notemos que,
na teoria de Crossan, a colocação da preparação redacional não tem nada a ver com onde a inserção
aparecerá (na verdade, a segunda e terceira colunas horizontais pressupõem um ponto de vista muito
peculiar, quando se analisa a sequência dos versículos). Além disso, a classificação das inserções como
canônicas é atribuição um tanto indefinida. EvPd 14,60 tem semelhança com Jo 21,1-2 e com um nome
em Mc 2,14, mas será que devemos pensar que o autor final do EvPd realmente reuniu esse material
desconexo de um ms. de Marcos e um ms. de João para criar EvPd 14,60? (Koester, KACG, p. 220, apesar
de uma preferência geral pela abordagem de Crossan, faz objeção a seu tratamento de EvPd 14,60.) A

533
A pêndices

que os evangelistas canônicos escrevessem e era conhecido por eles. Não há coluna
para Marcos porque a sequência marcana básica é a mesma que a de Mateus e o
EvPd não tem nenhuma cena exclusiva de Marcos.

0 EvPd segue a fluência clássica do julgamento, passando pela crucifi­


cação, até o sepultamento e o túmulo, seguindo-se, presumivelmente, aparições
pós-ressurreição. Entretanto, a sequência no EvPd de episódios individuais não
é a mesma de nenhum Evangelho canônico, como se vê nas seções I, IV e V do
quadro. Contudo, em algumas sequências breves, o EvPd está mais próximo de
Marcos/Mateus que dos outros Evangelhos. Por exemplo, em II, embora o EvPd
coloque o caminho da cruz antes do escárnio e da flagelação (o oposto da ordem
de Marcos/Mateus), está claramente mais próximo desses dois Evangelhos que de
Lucas, que omite o escárnio aqui (e a flagelação completamente), ou de João, que
mudou o escárnio e a flagelação para o meio do julgamento romano. Por sua vez,
na última parte de III, a sequência do EvPd da escuridão, da bebida do vinho avi-
nagrado, do grito de Jesus “ Meu poder” e do véu rasgado do santuário aproxima-se
da de Marcos/Mateus, que têm as mesmas quatro informações, mas com o grito e
a bebida de vinho invertidos.

Quando se olha a sequência geral dos vinte e três itens que relacionei no
Quadro 10, é preciso muita imaginação para conceber o autor do EvPd estudando
Mateus com atenção, mudando o lugar de episódios e acrescentando cópias de
episódios de Lucas e João para produzir a sequência atual. Nas NPs dos Evange­
lhos canônicos, o exemplo é de Mateus trabalhando conservadoramente e Lucas
trabalhando mais livremente com o esboço marcano, e de cada um acrescentando
material; mas nenhum dos dois criou um produto final tão radicalmente diferente de
Marcos quanto o EvPd é diferente de Mateus. Alguns biblistas pensam que o autor
do Longo Final de Marcos conhecia Mateus e Lucas; seja como for, ele produziu
uma sequência de aparições da ressurreição que está perceptivelmente mais próxi­
ma da sequência em Lucas do que a sequência do EvPd está de qualquer um dos
quatro Evangelhos. A hipótese contrária de que os quatro evangelistas canônicos
recorreram completamente ou em parte ao EvPd é ainda mais inacreditável, em
respeito à sequência. Devemos acreditar que quatro autores diferentes usaram o
EvPd como fonte principal e nenhum preservou a sequência do EvPd por mais de

atribuição por Crossan de EvPd 2,3 à etapa mais tardia da composição do EvPd não recebe ajuda do
fato de esta passagem aparecer na cópia mais antiga conhecida, o papiro de Oxirinco 2949.

534
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

dois ou três dos vinte e três episódios que relacionei no quadro?10 A dificuldade
de hipóteses de cuidadosa dependência literária em qualquer direção vai se tornar
mais evidente no que se segue.

QUADRO 10. SE Q U E N C IA NO EV A N G ELH O D E P E D R O


E N O S E V A N G ELH O S CANÔ NICO S

EvPd M a te u s L ucas Jo ã o
I. 1 ,1 - 2 ,5 : Ju lgam e n to 2 7 ,1 1 - 2 6 : 2 3 ,2 - 2 5 : 1 8 ,2 8 - 1 9 ,16a:
dian te de H ero d e s S ó P ilato s P ilato s e só P ilato s
(c o m P ilato s p resen te) H erodes
1 .1 : H e r o d e s re c u s o u - s e a 2 7 ,2 4 (P ila to s)
la v a r a s m ã o s
1.2: H e r o d e s o rd e n o u a u e
o S e n h o r f o s s e le v a d o
2 ,3 - 5 b : S o lic ita ç ã o do 2 7 ,5 7 - 5 8 : 2 3 ,5 0 - 5 2 : 1 9 ,3 8 a :
co rp o do Sen h o r: J o s é —» P ila to s Jo s é —» P ila to s J o s é —> P ila to s
J o s é —» P ila to s —> H e r o d e s
2 ,5 c : H e r o d e s en tre g o u o 2 7 ,2 6 : P ila to s 2 3 ,2 5 P ila to s à 1 9 ,1 6 a : P ila to s
S e n h o r ao ao povo a o s so ld a d o s v o n tad e d e le s a e le s
d e le s
I I . 3 , 6 - 9 : C a m in h o 2 7 ,2 7 - 3 2 2 3 ,2 6 - 3 2 1 9 ,2 - 3 .16b-
d a c r u z ; e s c á r n io ; -17a
fla g e la ç ã o
3 ,6 : E l e s (o s ju d e u s ) em - 2 7 ,3 1 b : S o ld a ­ 2 3 ,2 6 : E le s le ­ 1 9 ,1 6 b :
D urraram e a r ra sta r a m o d o s ro m an o s v aram co n sig o E le s to m aram
F ilh o d e D eu s le v aram
3 ,7 - 9 : V este d e p ú rp u ra , 2 7 ,2 7 - 3 1 a : (ver 2 3 ,3 5 - 3 7 , 1 9 ,2 -3 : c o ro a
se n ta d o no trib u n a l, R e i to d o s o s ite n s, n a cru z) d e e sp in h o s,
d e I s r a e l e sc a r n e c id o , ex ce to b o fetad a; m an to p ú rp u ra ,
c ru z e s p in h o s a , c u sp id o , R e i d o s Ju d e u s R ei dos de
e sb o fe te a d o , e s p e ta d o com (v er 2 7 ,1 9 Ju d e u s ,
c a n iç o , F ilh o d e D e u s [trib u n al]; b o fe ta d a s
e s c a r n e c id o tam b ém 2 7 ,3 9 -
4 3 n a cruz)

10 Não vejo maior indício na tese de Crossan, segundo a qual os evangelistas canônicos recorreram somente
a parte do EvPd. Todos os itens de EvPd 2,5c até EvPd 6,22 estariam na parte que, na opinião dele,
eles usaram, e a diversidade de sequência entre o EvPd e os Evangelhos canônicos é bastante nítida em
grande parte dessa área.

535
A pêndices

III. 4 ,1 0 - 6 ,2 2 : 2 7 ,3 3 - 5 6 2 3 ,3 3 - 4 9 1 9 ,1 7 b - 3 7
C ru cificação
4 ,1 0 : C ru c ific a d o en tre 2 7 ,3 8 : en tre 2 3 ,3 3 : en tre 1 9 ,1 8 : en tre
m a lfe ito re s: s ile n c io so , b a n d id o s m a lfe ito re s ou tros
n e n h u m a d or

4 ,1 1 : T ítu lo n a cru z : R e i 2 7 ,3 7 : J e s u s , 2 3 ,3 8 : R e i d o s 1 9 ,1 9 : J e s u s ,
d e Israel R e i d o s Ju d e u s Ju d e u s o N azareu , R e i
d o s Ju d e u s
4 ,1 2 : V e ste s d iv id id a s 2 7 ,3 5 2 3 ,3 4 b 1 9 ,2 3 - 2 4
4 ,1 3 : M a lfe ito r p e n ite n te 23,40-43
4,14: N e n h u m a q u e b r a d e 1 9 ,3 1 - 3 3
p ern as
5 ,1 5 : E s c u r id ã o ao m eio- 2 7 ,4 5 a (sexta- 23,44-45a
-d ia : a n s ie d a d e d e a u e o nona horas) (sexta- nona
so l s e t iv e s s e Dosto horas )
5 ,1 6 - 1 8 : B e b id a : fel 2 7 ,3 4 .4 8 : 2 3 ,3 6 : 1 9 ,2 8 - 3 0 : vin ho
co m v in h o a v in a g r a d o ; D u a s b e b id a s : B e b id a : vin ho a v in a g r a d o ; ele
e le s c u m p riram to d a s a s vin ho (d oce) av in a g ra d o consumou todas
c o is a s ; n e c a d o em s u a com fe l e vinho as coisas
c a b e c a ; p e n s a r a m a u e e ra av in a g r a d o
n oite
5 ,1 9 : 0 S e n h o r gritou : 2 7 ,4 6 : “ M eu
“ M eu p o d e r” ; e le foi D eu s”
le v a d o p a r a o alto
5 ,2 0 : V é u do sa n tu á rio 2 7 ,5 1 a 2 3 ,4 5 b
r a sg a d o
6 .2 1 : A r ra n c a ra m o s 2 7 ,5 1 b .5 4
c ra v o s: c o lo c a ra m -n o
no c h ã o : te rra s a c u d id a :
m ed o
6.22: 0 so l b rilh o u : n on a 2 7 ,4 6 (n on a 2 3 ,4 4 (n on a
h ora hora) hora)
IV. 6 ,2 3 - 1 1 ,4 9 : 2 7 ,5 7 - 6 6 2 3 ,5 0 - 5 6 1 9 ,3 8 - 4 2
Sepultam en to
6 .2 3 - 2 4 : O s iu d e u s d e ra m 2 7 ,5 8 b - 6 0 2 3 ,5 3 - 5 4 1 9 ,3 8 b - 4 2
o corn o a J o s é ; e le o la v o u ; (n en hu m (n en h u m “ s e u (n en h u m p an o
p a n o d e lin h o ; “ s e u p ró ­ ja r d im ); se u p ró p rio ” ; d e lin h o ;
p rio ” se p u lc ro ; ja r d im tú m u lo n en h u m ja r d im ) n en h u m “ se u
p ró p rio ” )
7 ,2 5 : T r iste z a d o s ju d e u s ; 23,48: multidões
b ate m em si m e sm o s batem no peito

536
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

7.26-27: P e d ro e c o m m -
n h eiro s; triste z a , ieiu m
8 ,2 8 - 1 1 ,4 8 : G uardas no 2 7 ,6 2 - 6 6 ; 2 8 ,2 -
túmulo; abertura angelical; 4 .1 1 - 1 5
sa ír a m com o S e n h o r ei-
e a n te sc o e a c ru z fa la n te ;
g u a r d a s s ile n c ia r a m
V. As m u lh eres n o túm ulo
vazio; A p ariçõe s
d o Sen h o r
1 2 ,5 0 -1 3 - 5 7 : A s mulheres 2 8 ,1 .5 - 1 0 2 4 ,1 - 1 1 .2 2 - 2 3 2 0 ,1 - 2 .1 1 - 1 8
no túmulo vazio
1 4 .5 8 - 6 0 : D e p o is d a fe sta , 2 1 ,1 - 2 3 : P ed ro
o s 12 vã o u a r a c a s a : P e d ro e o u tro s no m a r
e ou tro s no m a r veem o Senhor

2 . Comparação entre o conteúdo do EvPd e o dos Evangelhos canônicos

Vou agora apresentar algumas listas para realizar esse propósito.11 Alguns
avisos gerais: na maior parte do tempo, refiro-me a “Jesus”, mas os leitores devem
se lembrar que o EvPd nunca usa o nome pessoal; sua alternativa mais frequente
é “o Senhor” . Exceto onde são apresentadas palavras gregas específicas, o que está
sendo comparado são informações ou episódios, não a redação. Mesmo quando
descreve um incidente também encontrado em um Evangelho canônico, o EvPd
usa vocabulário com diferenças extraordinárias. É muito raro concordar com algum
dos Evangelhos em mais de duas ou três palavras consecutivas.

a) Informações compartilhadas pelo EvPd e mais de um dos Evangelhos


canônicos (um asterisco indica que a informação respectiva está ausente de João
e, portanto, é característica sinótica):12

• Uso do termo generalizado “os judeus” (Mateus, João)

• O papel de Pilatos na morte de Jesus não é tão importante quanto o das


autoridades judaicas

11 Swete (Euaggelion, p. xvi-xx) apresenta listas que conferi com as minhas; obviamente, há opiniões
divergentes quanto ao que tem importância suficiente para ser incluído.
12 Vou começar com o julgamento romano canônico de Jesus e seu paralelo no julgamento herodiano no
EvPd, mas com o lembrete de que não temos a totalidade deste último. Vou dar relativamente pouca
atenção para comparar aparições pós-ressurreição no fim da lista, pois o EvPd é interrompido ali e não
sabemos o que teria sido relatado.

537
A pêndices

• José tem contatos com Pilatos a respeito do sepultamento do corpo de


Jesus

• José era amigo/discípulo de Jesus ou não votou contra ele

• A remoção do corpo da cruz é relacionada com a proximidade do sábado

• Jesus escarnecido como rei com traje púrpura/escarlate, coroa de espi­


nhos, flagelação, cuspidas, agressões

• Cadeira/assento no tribunal, com relação a Jesus ou a Pilatos (Mateus,


João)

• Crucificação de Jesus entre dois criminosos

• Na cruz, inscrição de que Jesus era Rei dos Judeus/de Israel

• Sorte lançada para dividir suas roupas/vestes

• Menção da sexta hora e *escuridão sobre a terra/Judeia

• E oferecida uma bebida de vinho avinagrado

• Palavras finais de Jesus como “ Meu poder/meu Deus” (Marcos/Mateus)13

• *Véu do santuário rasgado/fendido

• José sepulta Jesus em um túmulo, *em um pano de linho

• Uma (*grande) pedra tapa a entrada do túmulo; acaba sendo rolada/


removida

• No domingo, Maria Madalena (e outras) vão ao túmulo

• Ali, são abordadas por figuras, explícita ou implicitamente angelicais,


que explicam a ausência do corpo de Jesus

b) Informações compartilhadas por diversos Evangelhos canônicos, mas


ausentes do EvPd (um asterisco indica que a respectiva informação também está
ausente de João e, portanto, é característica sinótica):

13 Das sete “ Palavras” de Jesus na cruz, o EvPd não tem nada que se pareça com as três em Lucas ou as
três (diferentes) em João; sua única “palavra” é só em parte semelhante à única “palavra” em Marcos/
Mateus.

538
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

• O papel principal de Pilatos no julgamento de Jesus e sua conclusão de


que Jesus é inocente

• Barrabás e os gritos da multidão para crucificar Jesus

• A cruz carregada por Jesus e/ou *Simão de Cirene

• *Diversos escárnios a Jesus pregado na cruz

• *Confissão de Jesus (Filho de Deus, justo) pelo centurião imediatamente


depois da morte14

• Mulheres no local da cruz ou assistindo de longe; *mulheres no sepul-


tamento

• Jesus aparece a Maria Madalena no túmulo (Mateus, João)

• Jesus aparece aos discípulos/Doze em Jerusalém (Lucas, João)

Embora essas informações não sejam tão numerosas quanto as de a), várias
delas (Barrabás, escarnecedores na cruz, algumas das narrativas de aparição) são
componentes importantes nos relatos canônicos da Paixão e da ressurreição.

c) Informações características do EvPd e de Marcos. No âmbito da narra­


tiva abrangida pelo EvPd, Marcos tem três importantes informações ausentes dos
outros Evangelhos canônicos: uma referência da crucificação na terceira hora, a
pergunta de Pilatos se Jesus já tinha morrido (Mc 15,44-45) e, depois da mensagem
angelical no túmulo, traduzindo literalmente, as mulheres “ não disseram nada a
ninguém”. Nenhuma das três está no EvPd. Na NP propriamente dita, a caracte­
rística mais notável compartilhada por Marcos e pelo EvPd é o uso de kentyrion
para “centurião”.15 Só na história das mulheres no túmulo, no “ Dia do Senhor”, o
EvPd aproxima-se das características de vocabulário em Marcos. Em EvPd 12,53,
as mulheres fazem a pergunta retórica: “ Quem removerá para nós até a pedra colo­
cada contra a entrada do túmulo?” ; em Mc 16,3, elas perguntam: “ Quem removerá
para nós a pedra da entrada do túmulo?”. As duas obras têm a sentença “ Pois a*13

14 Essas confissões da identidade de Jesus acontecem mais tarde e em outras circunstâncias no EvPd (EvPd
8,28; 11,45).
13 EvPd 7,27 tem os verbos combinados penthein e klaiein (“lamentar e chorar”) para descrever a reação
de Pedro e seus companheiros à morte do Senhor. No material que examinamos aqui, só no Longo Final
de Marcos (Mc 16,10) aparece essa combinação e, novamente, é para descrever a reação dos que tinham
estado com Jesus.

539
A pêndices

pedra era grande”, embora a ordem das palavras seja diferente e só Marcos tenha
o advérbio sphodra (“ muito” ). As duas obras descrevem o ser (celestial) dentro do
sepulcro/túmulo como neaniskos (“jovem” ). As duas obras combinam os verbos
phobeisthai e pheugein para descrever a fu g a atemorizada das mulheres do túmu­
lo (EvPd 13,57; Mc 16,8), mas outra vez em ordem diferente. Só em EvPd 14,60
e Mc 2,14 ouvimos falar em Levi de Alfeu. Essas poucas semelhanças (diversas
das quais também contêm diferenças) são insuficientes para mostrar que o EvPd
foi uma fonte escrita primordial para o evangelista marcano (tese de Crossan) ou,
por outro lado, que o autor do EvPd tinha Marcos diante de si enquanto escrevia.

Preciso acrescentar mais a respeito deste último ponto, por causa da obra
de Neirynck, que tem forte pendor para relacionar a Marcos quase todo o material
canônico pertinente às mulheres no túmulo — tese da qual discordo. Em “Apo-
cryphal”, p. 144-148, ele examina em detalhe a relação da história das mulheres
no túmulo, em EvPd 12,50-13,57, com Mc 16,l-8.16 Há três grandes dificuldades
para pressupor dependência de Marcos: 1) Até Neirynck (“Apocryphal”, p. 144) tem
de declarar que essa é a seção mais “marcana” do EvPd, concessão que não alerta
suficientemente os leitores para o pouco distintivamente marcano encontrado no
restante do EvPd. Como Gardner-Smith observou com mordacidade (ver “ Gospel”,
p. 264-270), se o autor do EvPd lera Marcos, ele com certeza esquecera os detalhes.
A menos que os indícios da dependência de Marcos na história do túmulo sejam
realmente convincentes,17 creio ser lógico evitar inconsistência e rejeitar Marcos
como fonte do EvPd; 2) Ao julgar a concordância entre o EvPd e Marcos na história
do túmulo, notamos muitas diferenças na sequência interna e na ordem das pala­
vras. E ssas diferenças não devem ser menosprezadas no estudo da comparação que

16 Não há dúvida de que, ao formar EvPd 12,50-13,57, o autor do EvPd foi influenciado por material evan­
gélico canônico (até Crossan admite isso); há, nesta história, ecos de Lucas e de João, e de passagens
onde Marcos e Mateus concordam, combinadas com muitos aspectos que são característicos do EvPd (que
Madalena era discípula, que os judeus ardentes de cólera tinham anteriormente impedido as mulheres
de fazer o que elas estavam acostumadas a fazer, que elas queriam chorar e bater em si mesmas, que o
jovem dentro do túmulo era belo). Mas há indícios de que o autor do EvPd usou Marcos?
1' O que relacionei no parágrafo anterior acima é realmente tudo que há de paralelo nessa história. Neirynck
aumenta a base da dependência por pura hipótese. “ Ele ressuscitou e foi embora para o lugar de onde
foi enviado” , em EvPd 13,56 é substituição de “Ide dizer a seus discípulos e a Pedro que ele vai à vossa
frente para a Galileia; lá o vereis, como ele vos disse” (Mc 16,7). Mc 16,7 está em Mt 28,7. A ausência
desta diretriz para ir à Galileia em uma sequência do EvPd onde, de fato, os discípulos vão para o mar
pescar (EvPd 14,60) é para mim forte indicação que o autor não tinha diante de si nem mesmo o Mateus
escrito.

540
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

Neirynck faz entre as duas: ele teve de fazer mudanças na sequência marcana de
versículos, a fim de chamar a atenção para os paralelos; 3) Quando se deixam de
lado diferenças de ordem e sequência, e se compara apenas o vocabulário, vê-se que
há cerca de 200 palavras gregas na passagem do EvPd concernentes às mulheres no
túmulo, e cerca de 140 na passagem marcana. Quando se é generoso e se ignoram
diferenças de finais de caso e tempos de verbo, minha conta é que EvPd e o texto
de Marcos por Nestle compartilham cerca de 30 palavras. Deixando de lado outros
pontos da história onde Mateus ou Lucas está mais próximo que Marcos do EvPd
em vocabulário, dessas 30 palavras, Mateus tem cerca de 14 e Lucas, cerca de 17;
e como esses números nem sempre se sobrepõem, a estatística significa que o autor
do EvPd poderia ter obtido de Mateus ou de Lucas dois terços do vocabulário que
partilha com Marcos. Quanto às relativamente poucas palavras que o EvPd partilha
somente com Marcos (entre os Evangelhos canônicos), precisamos não nos esque­
cer da possibilidade de origem não canônica. Por exemplo, o neaniskos da história
do túmulo encontra-se só no EvPd e em Marcos; mas o ESM também descreve
um neaniskos em um túmulo e, assim, a imagem do jovem circulou realmente na
tradição apócrifa. A meu ver, então, as semelhanças da história do túmulo deixam
uma base muito insuficiente para se pressupor a dependência do EvPd de Marcos.

d) Informações características do EvPd e de Mateus. Aqui, a lista, apresen­


tada na sequência do EvPd, é bem longa e tem uma diferença dramática da relação
entre o EvPd e Marcos (observemos que só perto do fim a sequência mateana destas
características começa a se diferenciar da do EvPd)-.

• O ato de lavar as mãos em relação à inocência de Jesus (EvPd 1,1; Mt


27,24)

• Fel como parte da bebida de vinho dada a Jesus (EvPd 5,16; Mt 27,34)

• Anaboan (EvPd 5,19; Mt 27,46: “ bradar, dar um grito” ) para as últimas


palavras de Jesus

• Um tremor de terra em relação à morte de Jesus (EvPd 6,21; Mt 27,51)

• O sepulcro/túmulo no qual Jesus é sepultado é de José (EvPd 6,24; Mt


27,60)

• “ Reunião” de autoridades judaicas, inclusive fariseus (EvPd 8,28; Mt


27,62)

541
A pêndices

• Solicitação das autoridades judaicas a Pilatos para proteger a sepultura


“para, tendo vindo, seus/os discípulos não o roubarem” ; Pilatos concede
soldados (EvPd 8,30-31; Mt 27,64-65)
• 0 uso de taphos (“sepulcro” ), particularmente nessa história
• Lacrar a pedra que fechava a entrada do túmulo (EvPd 8,33; Mt 27,66)
• A aparição vinda do céu de “ homens” ou um anjo envolvidos com a
remoção da pedra da entrada do túmulo
• Tratamento dos “adormecidos” depois da morte de Jesus (EvPd 10,41;
Mt 27,52)18
• O pavor da guarda; a reunião com as autoridades judaicas; acordo de
que os guardas se manteriam em silêncio ou mentiríam
• Declaração de Pilatos segundo a qual ele estava limpo/era inocente do
sangue de Jesus (EvPd 11,46; Mt 27,24)

No outro lado da imagem, há muitas informações características de Mateus


não encontradas no EvPd: o sonho da mulher de Pilatos, “ Seu sangue sobre nós e
sobre nossos filhos”, rochas partidas, túmulos abertos, muitos dos santos adorme­
cidos ressuscitados e tornados visíveis aos hierosolimitas, a aparição de Jesus às
mulheres no túmulo. Quando esses elementos são acrescentados aos relacionados
sob b), onde Mateus é com maior frequência um componente dos “diversos Evan­
gelhos canônicos”, e às diferenças gerais de vocabulário, reconhecemos como é
difícil imaginar uma relação na qual um dos autores tinha diante de si um ms.
escrito pelo outro, do qual ele copiou.

e) Informações características do EvPd e de Lucas:

• Herodes desempenhou um papel no julgamento de Jesus19

18 Denker (Theologiegeschichtliche, p. 93-95) afirma que a ressurreição mateana dos adormecidos difere da
proclamação aos adormecidos no EvPd, porque este último não muda a sina dos mortos. Como se sabe
isso? Hamack (Bruchstücke, p. 69) observa corretamente que a proclamação não era de julgamento: são
os adormecidos que, por essa designação, podem ser despertados. Odes de Salomão 42,3-20 descreve
a abertura das portas do Xeol pelo Filho de Deus, e a saída salvífica dos que estavam nas trevas (ver
Crossan, Cross, p. 365-368).
19 Aqui, sigo a probabilidade superficial de que Herodes, o rei da NP em EvPd 1,1-2,5c, seja o Herodes
que atua somente em referências lucanas à Paixão (Lc 23,6-12.15; At 4,25-28), Herodes Antipas, o
tetrarca da Galileia. Admito, entretanto, que ele pode ser Herodes, o Grande, da história mateana dos
magos, que tentou matar o menino Jesus, pois desconfio que o autor do EvPd e/ou sua audiência não
distinguiam entre os perversos Herodes da memória cristã. Ver Brown, “Gospel of Peter” , p. 337.

542
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

• Relações amistosas entre Herodes e Pilatos (EvPd 2,5; Lc 23,12)

• Jesus entregue aos judeus depois do julgamento; soldados romanos só


mencionados mais tarde

• Cocrucificados são “ malfeitores” ; um deles é favorável a Jesus

• Morte de Jesus relacionada com o fim próximo de Jerusalém (EvPd 7,25;


Lc 23,28-31)

• Lamento do povo judeu, batendo em si mesmo/no peito (EvPd 7,25; Lc


23.27.48)

• Jesus reconhecido como “justo” (dikaios: EvPd 8,28; Lc 23,27.47)

• “ Raiar” do sábado (EvPd 9,34; Lc 23,54)

• Muitos/multidões voltaram para casa (hypostrephein: EvPd 14,58; Lc


23.48)

A lista não é tão longa quanto a lista mateana e, nessas poucas informações
compartilhadas, há diferenças importantes no EvPd: o papel de Herodes no jul­
gamento é maior que o de Pilatos; Herodes já tem relações amistosas com Pilatos;
da cruz, o malfeitor favorável fala aos judeus, não a seu companheiro. Além disso,
há informações notáveis, características de Lucas, que estão ausentes do EvPd:
a fala de Jesus às filhas de Jerusalém; as três “palavras” (ditos) lucanas de Jesus
na cruz; eclipse; o preparo de especiarias e mirra pelas mulheres; o descanso no
sábado; a pergunta retórica pelos homens angelicais no túmulo e os lembretes do
que Jesus disse na Galileia; todas as aparições pós-ressurreição do Jesus lucano.
Quando essas diferenças são acrescentadas ao fato do EvPd não seguir os padrões
excepcionais da sequência lucana, fica claro que, em conteúdo e sequência, a re­
lação do EvPd com Lucas está mais distante que a relação do EvPd com Mateus.

f) Informações características do EvPd e de João:

• E a véspera do primeiro dia dos Pães sem fermento/Páscoa

• Sua festa; uma festa dos judeus

• A questão de não quebrar os ossos de Jesus (um tanto obscura em EvPd


4,14)

• Os judeus estão com lâmpadas/lanternas (EvPd 5,18; Jo 18,3)

543
A pêndices

• Cravos nas mãos (EvPd 6,21; Jo 20,25; só implícito em Lc 24,39)

• Sepulcro/túmulo no jardim

• Os judeus falam a Pilatos de Jesus como Filho de Deus (EvPd 11,45;


Jo 19,7)

• As mulheres ou os discípulos têm medo dos judeus depois da morte de


Jesus

• As mulheres ou os discípulos inclinam-se para olhar dentro do sepulcro/


túmulo

• Simão Pedro e outros no mar (local de uma aparição)

Acima, dei várias vezes o capítulo e o versículo joaninos porque o lugar da


informação paralela era muito diferente; e, na verdade, essas são realmente infor­
mações, pois não há nenhuma história consecutiva compartilhada pelas duas obras
(a menos que haja uma na aparição a Simão Pedro onde o EvPd está inacabado, no
fim20). 0 julgamento de Pilatos em Jo 18,28-19,16a, com seu padrão dentro-fora do
pretório, é um conjunto cuidadosamente elaborado e nada disso aparece no relato
do julgamento no EvPd. Do mesmo modo, há um discernível arranjo quiástico dos
episódios no relato joanino da crucificação e do sepultamento que está ausente por
completo do EvPd. Embora partilhe com João informações como o título na cruz, a
divisão das vestes e o vinho avinagrado, o EvPd não contém nada da dramatização
joanina dessas informações em episódios distintos, e não apresenta nenhum eco dos
outros episódios: a mãe e o discípulo amado ao pé da cruz; a lança que trespassa o
lado de Jesus, de onde saíram sangue e água; Nicodemos e as cem libras de mirra
e aloés. É praticamente inconcebível que o autor do EvPd tivesse João diante de si
e copiasse tão pouca coisa distintamente joanina; e é certamente menos concebível
que o autor de João tivesse o EvPd como fonte principal para escrever sua NP.

g) Informações características do EvPd, não encontradas em nenhum Evan­


gelho canônico:

• Herodes como juiz principal a quem Pilatos precisa pedir o corpo

20 O início da história interrompida soa promissor, mas observemos que os outros discípulos citados em
EvPd 14,60 (André, Levi de Alfeu) são diferentes dos outros em Jo 21,2 (Tomé, Natanael, os filhos de
Zebedeu e outros dois discípulos).

544
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

• Passagem legal específica citada a respeito de o céu não se pôr sobre


alguém executado

• Os judeus, não os romanos, desempenharam todos os atos da crucificação,


desde a coroa de espinhos e a flagelação até a descida da cruz

• Quando crucificado, o Senhor ficou silencioso, como se não sentisse dor

• A escuridão ao meio-dia fez muitos precisarem de lâmpadas, achando


que era noite, e caírem

• Pedro e companheiros escondidos, procurados como malfeitores que


incendiariam o templo

• Petrônio, o centurião que salvaguardava o sepulcro; sete selos de cera

• A pedra rolando sozinha; a altura extravagante dos homens celestiais;


descrição da ressurreição do Senhor; ele ter pregado aos adormecidos;
a cruz falante

• Admissão de pecado pelas autoridades judaicas; seu medo de serem


apedrejadas pelo povo judeu

• As mulheres que vieram ao túmulo temiam que os judeus as vissem

• No último dia dos Pães sem fermento, eles voltaram para casa

• Presença de André e Levi de Alfeu no mar

Tendo apresentado essa série de listas que mostram várias maneiras de re­
fletir sobre a relação do EvPd com os Evangelhos canônicos, passo agora a avaliar
os indícios para ver que sugestão faz mais justiça a eles.

3. Proposta geral a respeito da composição baseada em sequência e conteúdo

Já faz mais de um século que o EvPd está acessível e, durante esse tempo,
os biblistas se dividiram quanto ao fato de o autor ter recorrido aos Evangelhos
canônicos (algum deles ou todos),21 ou ter escrito com base em uma tradição indepen­

21 Esse é o ponto de vista da maioria, por exemplo, Beyschlag, Burkitt, Doo, Finegan, Harris, M. R. James,
Lührmann, Mara, Maurer, Meier, Moffatt, J. Armitage Robinson, Swete, Turner, Vaganay, Wright, Zahn.
Embora alguns (por exemplo, Mara) pensassem que o autor ouviu os Evangelhos canônicos, muitos
presumiram que ele trabalhou com cópias escritas. Se somente alguns Evangelhos eram especificados
como fontes, na maioria das vezes eles eram Mateus e Marcos.

545
A pêndices

dente.22 Combinações de dependência e independência também têm sido propostas,


e a elas é preciso agora acrescentar a tese de Crossan, segundo a qual os quatro
evangelistas canônicos recorreram a uma forma primitiva do EvPd (que ele chama
de “ Evangelho da Cruz” ; ver EvPd 10,42)23 e, posteriormente, foram feitas adições
para produzir a forma atual do EvPd — adições que aumentaram a concordância
entre o EvPd e os Evangelhos canônicos (ver nota 9, acima). Em “ Gospel of Peter”,
escrevi uma refutação detalhada da tese de Crossan,24 e do princípio ao fim do
comentário a respeito de cenas individuais, mostrei por que eu não acreditava que
o EvPd apresenta uma forma mais original da NP que os Evangelhos canônicos.
Primeiro, se os quatro evangelistas canônicos usaram o Evangelho da Cruz como
fonte principal, por que nenhum deles seguiu o vocabulário e a ordem das palavras
por mais que duas ou três palavras? (A exceção óbvia é um segmento de oito pala­
vras: “para, tendo vindo, seus discípulos não o roubarem”, compartilhado por EvPd
8,30 e Mt 27,6 4 .25) Segundo Crossan, Mateus e Lucas trabalharam também com
Marcos — por que, então, eles trabalharam de modo tão diferente para preservar
um resíduo muito maior de vocabulário e ordem de palavras marcanos? Segundo,
se os evangelistas canônicos copiaram informações do EvPd, por que deixaram de
fora as informações relacionadas em g), acima, que incluem alguns dos elementos
mais atraentes do EvPd,26 em especial quando essas informações estavam em

22 Assim, em maior ou menor grau (alguns admitem o conhecimento de Marcos), Cameron, Crossan, Denker,
A. J. Dewey, Gardner-Smith, Hamack, Hilgenfeld, Koester, Moulton, Võlter, von Soden e Walter. Pro­
postas variadas têm sido feitas a respeito da tradição independente fundamental: por exemplo, histórias
distintas formadas por reminiscências veterotestamentárias, ou mesmo uma NP pré-evangélica contínua,
à qual os evangelistas canônicos também recorreram. A independência tem sido defendida com diversas
sugestões a respeito de quando o EvPd foi escrito, por exemplo, antes de alguns ou todos os Evangelhos
canônicos, ou na mesma época.
23 O Evangelho da Cruz consistia nas três unidades de EvPd 1,1-2 + 2,5c-6,22; 7,25 + 8,28-9,34;
9,35-10,42 + 11,45-49 (Crossan, Cross, p. 16). Quanto à dependência do Evangelho da Cruz pelos
Evangelhos canônicos, ele esquematiza essa teoria (p. 18): a principal fonte marcana era o Evangelho
da Cruz; Mateus usou o Evangelho da Cruz e Marcos, e o mesmo fez Lucas; João usou o Evangelho da
Cruz, Mateus, Marcos e Lucas. A. J. Dewey (“Time” ), que rejeita a teoria de Crossan, propõe três etapas
diferentes na composição do EvPd, com a última concluída depois da queda de Jerusalém em 70, mas
não explica a relação dos Evangelhos canônicos com essa NP primitiva.
24 Ver também as reações negativas de Neirynck (“Apocryphal” ), Green (“ Gospel” ) e D. F. Wright (“ Four”).
Este último (p. 60) formula a objeção interessante de que, aparentemente, o Evangelho da Cruz e as
inserções compartilham o mesmo vocabulário e o mesmo estilo.
25 Ver a variante secundária de “os” em Mateus versus “ seus” , do EvPd, em § 48, nota 16.
26 Menos de um terço delas faz parte de material que Crossan exclui da forma original do EvPd e, assim,
dois terços delas teriam sido conhecidas pelos evangelistas canônicos quando eles usaram o EvPd.

546
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

linhas adjacentes à que os evangelistas copiaram? Se Marcos copiou o centurião


(,kentyrion) do EvPd, por que não copiou o nome do centurião, Petrônio? Por que
Mateus copiaria do EvPd o fato de lacrarem o sepulcro e omitiría que havia sete
selos? Terceiro, por que, se Mateus, Lucas e João recorreram a material não marcano
do EvPd, eles nunca estão de acordo, em oposição a Marcos, no que acrescentaram?
Ver, nas listas d), e) e f), acima, as diversas informações nas quais cada Evangelho
concorda com o EvPd.21 Quando recorreram a material não marcano em Q, Mateus e
Lucas produziram uma enorme quantidade de concordância — só raramente temos
de reconhecer em um Evangelho material de Q que não está no outro. Como eles
lidariam de modo tão diferente com o EvPd ? Devemos pensar que Lucas e João
leram EvPd 4,13-14 e que Lucas extraiu e desenvolveu o elemento de um malfeitor
penitente, enquanto João extraiu e desenvolveu o elemento de nenhuma quebra de
pernas, sem nenhum deles dar a mínima indicação de estar a par do outro elemento
nessa passagem de dois versículos? — um silêncio ainda mais incompreensível na
teoria de Crossan, onde João conhecia Lucas tão bem quanto o EvPdl

Obviamente, no caso da segunda e terceira objeções contra a teoria de


Crossan, é muito mais fácil teorizar que o autor do EvPd conhecia os Evangelhos
canônicos, tornou o material que tomou emprestado mais expressivo com adições
imaginosas e pegou de cada Evangelho várias informações não encontradas no
outro. Entretanto, uma dependência literária de todos ou três Evangelhos canônicos
por parte do EvPd realmente não explica a primeira objeção quanto ao vocabulá­
rio, nem a falta de concordância em sequência, nem relaciona b) e g). Se tinha os
quatro Evangelhos diante de si, por que o autor do EvPd teria omitido Barrabás,
Simão de Cirene, as mulheres na crucificação e no sepultamento, e as aparições de
Jesus no túmulo ou em Jerusalém, em especial quando diversos Evangelhos tinham
essas informações? E onde ele conseguiu tantas informações não encontradas em
nenhum Evangelho? E como explicar a grande “ manobra” de detalhes no EvPd,
comparada a detalhes semelhantes nos Evangelhos canônicos? Por exemplo, João
19,38 descreve José de Arimateia como discípulo de Jesus, enquanto em EvPd 27

27 Crossan (Cross, p. 19) julga ter encontrado uma exceção onde dois Evangelhos concordam com o EvPd
em oposição a Marcos: Lc 24,4 e Jo 20,12 têm dois indivíduos no túmulo vazio em concordância com
EvPd 9,36, versus um em Mc 16,5. Mas ele pressupõe que João conhecia Lucas; portanto, como sabe
que João não copiou esse detalhe de Lucas, e não do EvPd? (Parece que, na página 361, ele reconhece
essa possibilidade.) Como os dois homens lucanos e os dois anjos joaninos não estão no mesmo cenário
ou posição em que estão os dois homens do EvPd, considero essa única exceção inteiramente duvidosa.

547
A pêndices

12,50 Maria Madalena é que é discípula do Senhor. Em Lc 23,6-12, Pilatos envia


Jesus a Herodes, de modo que Herodes e Pilatos ficam amigos; em EvPd 2,3-4,
onde Pilatos manda recado a Herodes, é José de Arimateia que é amigo de Pilatos.
Enquanto, em Mt 27,19 e Jo 19,13, Pilatos senta-se no bema para julgar Jesus,
EvPd 3,7 apresenta, de modo escarnecedor, Jesus sentado na kathedra convidado a
julgar imparcialmente. Jo 19,33 nos diz que os romanos não quebraram os ossos de
Jesus, porque ele já estava morto; em EvPd 4,14, os judeus ordenam que os ossos
do crucificado (Jesus) não sejam quebrados, presumivelmente para ele viver e sofrer
mais tempo. Outras dessas “ mudanças” podem ser citadas (ver Brown, “ Gospel of
Peter”, p. 335). É possível explicar algumas como preferências redacionais pelo
autor do EvPd ao mudar deliberadamente os Evangelhos escritos que tinha diante
de si, mas não tal multiplicidade.

Uma última objeção à tese de que o autor do EvPd compôs usando os Evan­
gelhos canônicos escritos é que temos o exemplo de um biblista do século II que
trabalhou com cópias dos quatro Evangelhos e as combinou para fazer uma NP
consecutiva, a saber, o Diatessarão de Taciano. O produto final é claramente reco­
nhecível, em vocabulário e sequência, como harmonização, e não mostra nenhuma
das variações aberrantes visíveis no EvPd.28

Depois de trabalhar com o quadro e as listas acima (e a vasta diferença de


vocabulário), estou convencido de que uma explicação faz mais sentido que qualquer
outra quanto à relação entre o EvPd e os Evangelhos canônicos.29 Duvido que o autor
do EvPd tivesse algum Evangelho escrito diante de si, embora estivesse familiarizado

28 Já Swete (Euaggelion, p. xxii-xxv), que colocou o EvPd depois dos Evangelhos canônicos, reconheceu
o problema de diferença de Taciano; e, pelo menos para ele, isso significava que não era possível expli­
car o EvPd em termos de o autor ter usado o Diatessarão. Ele formula a possibilidade de dependência
de uma harmonia pré-Taciano da história da Paixão de um tipo mais indefinido. Em vez de pressupor
esse intermediário, cuja existência não podemos provar, é mais econômico afirmar que, ao contrário da
harmonização literal que Taciano fez dos Evangelhos escritos, o EvPd é ele mesmo uma harmonização
livre de memórias e tradições evangélicas canônicas.
29 Não alego mais que isso. Pessoalmente, não sei reconstruir a história exata da composição de um longo
volume de comentário que eu mesmo escrevi há vinte e cinco anos. 0 que eu sabia antes de começar e
onde o obtive? Enquanto escrevia, quantas novas idéias consegui lendo outros autores (diferentes de suas
visões confirmadoras e estimulantes que eu já tinha)? Quantas vezes me beneficiei de dissertações que
li? Reconheço quando cito outros diretamente, mas não sei determinar sua influência indireta em frases
que usei e na forma como organizei o material. Como posso ter esperança de descobrir a composição
exata de uma seção do Evangelho de Pedro copiada cerca de 600 anos depois que o original foi escrito,
em especial quando esse original, composto há cerca de 1.850 anos, está agora perdido?

548
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

com Mateus, por tê-lo lido atentamente no passado e/ou ouvido sua leitura diversas
vezes no culto comunitário do dia do Senhor - por isso esse Evangelho deu a forma
dominante a seu pensamento. Com toda a probabilidade, ele ouvira pessoas que
estavam familiarizadas com os Evangelhos de Lucas e João — talvez pregadores
itinerantes que reformulavam histórias notáveis — e, assim, conhecia parte de seu
conteúdo, mas não tinha ideia de sua estrutura. A origem falada do EvPd repercute
no fato de cerca de um terço de seus versículos estarem em discurso direto. Sob c),
relatei que não vejo nenhuma razão estimulante para pensar que o autor do EvPd
foi diretamente influenciado por Marcos. (Precisamos nos lembrar de que, antes de
150 d.C., muito poucas igrejas tinham cópias de vários Evangelhos canônicos para
ler em público e uma cópia escrita de qualquer Evangelho era acessível a muito
poucos indivíduos. Na verdade, nesse período, a categoria de “mais conhecido” ou
“mais famoso” seria mais apropriada que “canônico”. Misturados na mente do autor
do EvPd estavam também contos populares a respeito de incidentes na Paixão, o
mesmo tipo de material popular que Mateus tinha utilizado ao escrever seu Evan­
gelho em um período mais primitivo. Tudo isso entrou em sua composição do EvPd,
Evangelho que não se destinava a ser lido na liturgia, mas a ajudar as pessoas a
visualizar imaginosamente a missão de Jesus.30 0 Diatessarão de Taciano mostra
que, no século II, havia tendência a se criar uma história consecutiva (embora em
nível literário e erudito) e o Protoevangelho de Tiago traz imaginosa remodelação
da narrativa da infância a partir de imitações de Mateus e Lucas combinadas com
criações populares também imaginosas.31 Portanto, a obra que proponho não seria
uma excentricidade nos tempos primitivos do Cristianismo.

Entretanto, fora dos tempos primitivos, afirmo que ela não é uma excentri­
cidade em nenhum tempo; e quero apresentar uma comparação contemporânea,

i0 Adiante, sob C l, vou narrar a história do bispo Serapião e o problema causado em Rossos, quando
algumas pessoas começaram a ler em público o Evangelho segundo Pedro.
31 Em termos de classificação literária, considero o Protoevangelho como primo do EvPd, da mesma es­
pécie que os Evangelhos apócrifos. Os instintos composicionais são bastante parecidos, mas o autor do
Protoevangelho de Tiago tinha acesso a cópias escritas de Lucas e Mateus. Por um lado, ele tem uma
expansão mais elaborada dos Evangelhos canônicos que o EvPd; por outro lado, quando os cita, ele o faz
com maior preservação do vocabulário correto. Dramaticamente, as duas obras descrevem acontecimentos
eseatológicos que os Evangelhos canônicos contentaram-se em deixar envoltos em silêncio: o verdadeiro
nascimento de Jesus em Protoevangelho de Tiago 19 e a verdadeira ressurreição em EvPd 10,39-41.
Teologicamente, essas descrições brilhantes deixaram as duas obras abertas a interpretações heréticas:
respectivamente encratismo e docetismo.

549
A pêndices

na esperança de tornar mais inteligível aos leitores minha teoria de composição.


(Embora eu tente descrever o que se segue de modo a que todos reconheçam sua
possibilidade, permitam-me declarar minha certeza de que as pessoas que descrevo
existiram em grande número no Catolicismo romano pré-Vaticano II.) Deixem-me
supor que selecionamos em nosso século alguns cristãos que leram ou estudaram
Mateus na escola dominical ou em aulas de catecismo há anos, mas nesse ínterim
não leram o NT. Contudo, ouviram as narrativas canônicas da Paixão lidas em
liturgias religiosas. Além disso, viram uma peça ou dramatização da Paixão no
cinema, na tevê ou no palco, ou ouviram uma no rádio; e assistiram a um serviço
religioso onde os pregadores usaram a imaginação para preencher lacunas da NP e
combinaram diversas passagens evangélicas, por exemplo, um serviço de três horas
da Sexta-feira Santa ou das Sete Ultimas Palavras. Se pedíssemos a esse seleto
grupo de cristãos para relatar a Paixão, tenho certeza de que eles teriam uma ideia
do esboço geral, mas não seriam necessariamente capazes de lembrar a sequência
apropriada de nenhum Evangelho em especial. Certamente, eles não reteriam na
memória as complicadas estruturas quiásticas joaninas. Eles se lembrariam de algu­
mas frases repetidas com frequência (por exemplo, moedas de prata, canto do galo,
“ Ele ressuscitou” ), mas, quanto ao mais, reformulariam em grande parte a história
em suas próprias palavras, talvez elevadas acima do nível da conversa normal, por
causa da solenidade da ocasião — palavras quase sempre de um ligeiro eco bíblico
tradicional, mas não exatamente as mesmas dos Evangelhos escritos. E possível
que os mais tradicionais entre esses narradores selecionados não se referissem à
personagem principal como “Jesus”, mas sim como “ Cristo” ou “nosso Senhor”.
Eles se lembrariam de um ou dois de seus ditos (“ palavras” ) na cruz, talvez os
que apreciavam mais, porém, com certeza, não de todos eles. Eles recordariam os
episódios bíblicos mais expressivos (Judas se enforcando, Pilatos lavando as mãos;
o bom ladrão [embora Lucas nunca o chame assim]; João e Maria ao pé da cruz
[embora o Evangelho de João não mencione esses nomes]), sem muita capacidade
para dizer em que Evangelho esses episódios apareceram. Eles compreenderiam que
o túmulo fora aberto por intervenção divina, mas dramatizariam a pedra retirada
de maneiras diferentes. Eles se lembrariam de personagens como Pilatos, Herodes
e o sumo sacerdote, mas não seriam realmente exatos a respeito da forma como se
envolveram no julgamento e na crucificação, ou de onde estavam em determinado
momento. Inclinar-se-iam a descrever com mais hostilidade os inimigos de Jesus
(em especial os adversários judaicos, devido à notável resistência do antissemitis-
mo) e lhes atribuiríam motivos maldosos. E, em meio às lembranças da Paixão dos

550
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

Evangelhos, havería uma adição de detalhes e episódios ausentes dos Evangelhos,


por exemplo, seriam apresentados os motivos de Judas; talvez o arrependimento
de Pedro; parte dos antecedentes do bom ladrão e seu nome (Dídimo); uma abor­
dagem pormenorizada do papel do centurião e, talvez, o nome Longino. Em outras
palavras, de nosso grupo de teste de cristãos, obteríamos paralelos modernos do
EvPd, que, como afirmei do princípio ao fim deste comentário, não foi produzido,
em uma escrivaninha, por alguém com fontes escritas diante de si, mas por alguém
com memória do que lera e ouvira (canônico e não canônico), à qual contribuiu
com imaginação e um sentimento de drama.

Até aqui, examinei a questão somente do ponto de vista de sequência e con­


teúdo. Quero acrescentar algumas observações a respeito da perspectiva teológica
do EvPd antes de examinar quando e onde esse Evangelho poderia ter sido escrito.

C. Aspectos da teologia do EvPd

No EvPd, temos apenas uma seção do Evangelho de Pedro original e, por


isso, precisamos ser muito cuidadosos quanto a julgar a teologia e a perspectiva do
autor original, em especial quando seu silêncio a respeito de alguma coisa entra no
julgamento, por exemplo, o fato de não mencionar Barrabás ou Simão de Cirene.
0 “autor do E rP â " realmente se refere à pessoa responsável pelo fragmento de
Akhmím. Orígenes (In Matt. x,17, a respeito de Mt 13,55; GCS 40,21) relatou
que, conforme o Evangelho de Pedro, José, esposo de Maria, tinha filhos de um
casamento anterior.32 Para conhecer perfeitamente o pensamento desse apócrifo
que abrangeu todo o ministério de Jesus, seria preciso mais do que foi preservado
na seção do relato da Paixão-ressurreição que temos no EvPd.

7. 0 debate antigo sobre o docetismo do EvPd

Podemos começar com o único exame extenso da obra na Antiguidade.


Eusébio (HE VI,xii,2-6) nos conta que Serapião, bispo de Antioquia, c. 190,33

32 Esse ponto de vista encontra-se claramente no Protoevangelho de Tiago, que Orígenes citou ao lado
do EvPd como fonte. E evidente que esses apócrifos do século II compartilharam material. Hamack
(.Bruchstücke, p. 90) atribui ao EvPd histórias e ditos não canônicos do ministério de Jesus encontrados
em escritos cristãos que parece terem tido conhecimento da NP do EvPd (Justino, Didascalia etc.; ver
D, adiante). Esse critério é muito incerto.
33 HE v,22 data-o do décimo ano do reinado de Cômodo (180-192).

551
A pêndices

escreveu um livro, Sobre o que é conhecido como o Evangelho segundo Pedro (Peri
tou legomenou kata Petron euaggelion), para refutar as mentiras contidas nesse
Evangelho, que tinham levado à heterodoxia alguns fiéis da comunidade de Rossos
(cidade na costa mediterrânea, cerca de 50 quilômetros a noroeste de Antioquia
através das montanhas). Depois dessa análise sucinta, Eusébio cita uma passagem do
livro de Serapião.34 Em princípio, o bispo rejeitava livros que falsamente usassem o
nome de um apóstolo; mas ele veio a Rossos pressupondo a ortodoxia da congregação,
por isso, sem um exame cuidadoso, deu permissão para que continuassem a leitura
do Evangelho atribuído a Pedro, embora tivesse havido uma controvérsia a respeito
da obra (quanto à autoria petrina?). Subsequentemente, Serapião foi alertado para
o perigo de heresia em relação à obra; por isso, agora ele alertava a comunidade
de Rossos para esperar que ele voltasse logo. (A heresia tinha alguma coisa a ver
com certo Marcanos, de outra forma desconhecido, que se presume fosse uma
personagem local que não era consistente em seu pensamento.) Tendo aprendido
com estudantes docetistas desse Evangelho, Serapião o analisara. Descobriu que a
maior parte dele estava de acordo com o verdadeiro ensinamento do Salvador, mas
haviam sido acrescentadas algumas coisas (que ele ia relacionar).

Ficou a impressão de que Serapião classificara o Evangelho atribuído a


Pedro como docético; por isso, quando foi descoberto o EvPd, muitos intérpretes
inclinaram-se a ler como docéticas diversas passagens ambíguas dessa obra (assim
L. A. Robinson, Zahn, J. R. Harris, Turner, Moulton, Swete etc.). Agora, a tendência
mudou e, em sua maioria, os autores recentes não encontram docetismo no EvPd
(assim Schmidt, Mara, Denker, McCant, Crossan, Head).35 Podemos mencionar que
Serapião (embora não deixasse muito claro) nunca disse que o Evangelho encontra­
do por ele era docético; ele disse, mais exatamente, que os docetas usavam-no, e
apontou passagens nele que podiam ser lidas doceticamente — com o benefício da
diretriz delas, Serapião percebia adições, mas ainda achava que a maior parte do
apócrifo era bastante ortodoxa. As passagens citadas como docéticas no EvPd >' .■

34 Parte da lembrança do próprio Eusébio entra na análise; é presumível que a citação represente exatamente
o ponto de vista de Serapião quase 150 anos antes.
35 Embora apoie esses biblistas, não posso simplesmente afirmar que o Evangelho do século II lido por
Serapião não tinha uma teologia docética. Eu precisaria ver a obra inteira, da qual o EvPd nos dá apenas
uma seção. Se o Evangelho atribuído a Pedro tinha uma narrativa da infância, como afirma Orígenes, a
perspectiva ali teria sido essencial para determinar tendências docéticas. Se o evangelista petrina ik.
foi consistente, talvez ele exibisse docetismo nessa área, embora não no relato da crucificação.

552
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

passíveis de interpretação não docética. Para resumir o que escrevi no comentário,


não é plausível que EvPd 5,19 (“ Meu poder, Ó poder, tu me abandonaste” ) seja
indicação de que a divindade saiu do corpo de Jesus antes da morte,36 porque o
corpo do Jesus morto ainda tem poder milagroso para provocar um terremoto (EvPd
6,21) e aquele que sai do túmulo é sobrenatural e prega aos que adormeceram
entre sua morte e ressurreição (EvPd 10,40-42). A declaração em EvPd 4,10, de
que o Senhor na cruz “estava calado, como não tendo nenhuma dor”, não precisa
ser afirmação de impassibilidade docética, pois a descrição de um mártir cristão
subentende bravura e assistência divina (Martírio de Policarpo 8,3).37

2. Aspectos teológicos discerníveis no EvPd

Se for deixada de lado a questão docética, quais são alguns dos aspectos
teológicos do EvPd ?

a) Manifesta uma cristologia muito alta. O nome pessoal Jesus nunca é usado,
nem mesmo “ Cristo”. “ Senhor” é a designação mais consistente (14 vezes); também
“ Filho de Deus” (4 vezes). Os que açoitam Jesus se referem a ele como o Filho de
Deus (EvPd 3.9); um malfeitor cocrucificado reconhece que ele é o “ Salvador dos
homens” (EvPd 4,12); todo o povo judeu reconhece que ele era justo (EvPd 8,28).
Soldados romanos e anciãos judeus que tentavam salvaguardar o túmulo têm de
reconhecer que Jesus é o Filho de Deus (EvPd 10,38; 11,45), como faz Pilatos
(EvPd 11,46). O poder divino é tão inerente a Jesus que, quando seu corpo morto
toca a terra, ela treme (EvPd 6,21); e seu corpo ressuscitado estende-se da terra
até acima dos céus, ultrapassando os anjos (EvPd 10,40).

b) Há forte animosidade antijudaica, em especial contra as autoridades re­


ligiosas. Entre as NPs canônicas, só João equipara-se ao EvPd na frequência (seis
vezes) de seu uso inamistoso de “os judeus” como outro grupo quase sempre hostil.
Embora haja casos de arrependimento judaico (EvPd 7,25; 8,28), Herodes e os

36 Wright (“Apologetic” , p. 405-406) concorda com esse julgamento, mas apresenta uma explicação
complicada de EvPd 5,19a: o dito que o poder saiu (não abandonou) o Senhor deve ser entendido como
equivalente a EvPd 5,19b: “E tendo dito isso, ele foi levado para o alto” . Se entendi Wright, o poder
divino é o fator identificador do Senhor que é elevado para Deus. Não creio que isso faça justiça a “me
deixaste” .
37 Wright (“Apologetic” , p. 402-403) afirma que, embora a expressão do EvPd não subentenda impassibi­
lidade docética, subentende sim impassibilidade divina, isto é, não que o Senhor não era humano, mas
que ele era verdadeiramente divino.

553
A pêndices

judeus não lavam as mãos (do sangue de Jesus: EvPd 1,1); são eles que o condenam,
escarnecem dele e cospem nele, estapeando-lhe as bochechas (EvPd 2,5c-3,9).
Eles completam seus pecados na própria cabeça (EvPd 5,17). Escribas, fariseus
e anciãos vigiam seu túmulo até no sábado, na tentativa de evitar a ressurreição
(EvPd 8,28.32-33; 10,38). Embora tenham visto Jesus ressuscitado e saibam ser
ele o Filho de Deus, eles persuadem Pilatos a guardar segredo, reconhecendo que
o que fazem é “o maior pecado à vista de Deus” (EvPd 10,38-11,49).

c) Há conhecimento da Escritura, principalmente implícito.38 A única citação


bíblica explícita está em EvPd 2,5, repetida em EvPd 5,15: “ Na lei, está escrito: ‘0
sol não deve se pôr sobre alguém executado’”. Na verdade, essa passagem não se
encontra no Pentateuco (nem em nenhum livro bíblico), mas é uma paráfrase de Dt
21,22-23, combinado com parte da fraseologia de Dt 24,15 (LXX 24,17). EvPd 5,16
(“ Dai-lhe a beber fel com vinho avinagrado” ) repete SI 69,22 (“E deram-me como
alimento fel e para minha sede, deram-me para beber vinho avinagrado” ). Desta
vez, a citação não está explícita e, mais uma vez, não é exata. Como mencionei acima
(§ 40, #2), a combinação de chole e oxos está tão estabelecida nos escritos cristãos
do início do século II que não há um meio de se ter certeza de que o EvPd usou
a LX X desse versículo. A descrição da escuridão em EvPd 5,15, diferente da dos
Evangelhos sinóticos, repete em frases fundamentais (“ Era meio-dia [...] temendo
que o sol se tivesse posto” ) a LX X de Am 8,9. Por um lado, as palavras do EvPd
concernentes às vestes de Jesus em EvPd 4,12 (“ Tendo posto suas vestes diante
dele, eles as repartiram e lançaram a sorte por elas” ) não estão próximas da redação
da LX X de SI 22,19 (“ Eles dividiram entre si minhas roupas e por minha túnica
lançaram a sorte” ), apenas com os verbos diamerizein e ballein iguais. 0 grito do
Senhor em EvPd 5,19 (“ Meu poder, Ó poder, tu me abandonaste” ) está ainda mais
longe da LX X de SI 22,2 do que estão Marcos/Mateus, e o autor do EvPd não nos
dá uma transcrição semítica, como fazem esses Evangelhos. Está ele fazendo sua

38 Swete (Euaggelion, p. xxvii) apresenta uma lista de passagens veterotestamentárias usadas no EvPd e em
outros escritos cristãos primitivos. O grande interesse no uso veterotestamentário do EvPd origina-se de
Dibelius (“Alttestamentlichen” ) que, apesar de julgar o EvPd dependente dos sinóticos, achava seu uso
da Escritura mais original que o de João e, na verdade, exemplificativo de um processo que deu origem
aos Evangelhos. (Ver minha indecisão quanto a isso em § 40, #2, acima.) Seguindo os passos de Dibelius,
Denker (Theologiegeschichtliche, p. 77) menciona um uso importante de Isaías e dos Salmos, mas grande
parte de suas opiniões nesse estudo baseiam-se em alusões muito discutíveis. Em parte, a alta avaliação
do emprego alusivo ou implícito da Escritura origina-se da tese de que ele era mais primitivo que o
apelo ao cumprimento de passagens citadas. Entretanto, não raro a preferência por estilos diferentes de
citação veterotestamentária pode ter sido uma questão de ambiente, em vez de antiguidade: o ambiente
popular versus o ambiente erudito e apologético.

554
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

própria tradução do hebraico? Ou está repetindo outra tradução grega em circulação


na época (§ 42, acima)? Se não vejo um meio de se ter certeza de que o autor do
EvPd usou as Escrituras da LX X, como fizeram os evangelistas canônicos, também
não sei se ele lia hebraico, embora tenha sido proposto um movimento hebraico
ocasional por trás de seu grego.39 Na verdade, o uso das Escrituras pelo autor não
nos diz o quanto ele leu o AT, o que é diferente de ter ouvido falar a respeito dele
ou referências feitas a ele em grego, como parte de sua formação religiosa. Lemos
em sua obra o eco de certos textos veterotestamentários ou alusões já intimamente
associadas aos acontecimentos da Paixão que ele estava narrando, em vez dos frutos
de sua consulta real de uma coleção de livros bíblicos?40

d) Parece haver confusão quanto a festas judaicas. O autor sabe do “primeiro


dia de sua festa dos Pães sem fermento” (EvPd 2,5c), com o que ele se refere à festa
do povo (judeu), uma festa que, como cristão, ele não consideraria sua. Esse primeiro
dia seria logicamente o sábado, que está despontando em EvPd 2,5, o dia depois
da morte de Jesus. Contudo, quando Jesus realmente morre, ele relata (EvPd 7,27)
que os discípulos do Senhor estavam jejuando e sentados, lamentando e chorando
“ noite e dia até o sábado”. Ao que tudo indica, ele não é sensível à observância do
sábado; de fato, ele relata que, na manhã de sábado, uma multidão (obviamente
de judeus) veio de Jerusalém e dos arredores para ver o túmulo lacrado de Jesus,
e que os escribas, fariseus e anciãos passaram a noite inteira, entre o entardecer
da sexta-feira e o alvorecer de sábado, em uma tenda, salvaguardando o túmulo,
e ficaram ali até que os anjos desceram no dia do Senhor (ver EvPd 8,33-10,38).
A sequência de EvPd 12,50-13,56 a EvPd 14,58 dá aos leitores a impressão de
que o dia do Senhor (domingo) era o último dia dos Pães sem fermento, embora o
sábado tivesse sido o primeiro dia — assim, pelo jeito, uma festa de dois dias, não
a festa de sete dias conhecida na Bíblia (Lv 23,6 etc.). Poderia ser apenas descuido
ao escrever, mas a impressão mais óbvia é que o autor pouco sabia a respeito da
prática judaica.

39 O chole (“fel” ) de SI 69,22 traduz o hebraico ros, palavra com diversos significados, o mais frequente
dos quais é “cabeça” . Estaria EvPd 5,16-17 jogando com os dois sentidos do hebraico fundamental:
“Dai-lhe a beber fel [...] completaram os (seus) pecados em sua caèeça” ?
40 Parece que Dt 2,22-23, empregado como pano de fundo pelo EvPd, foi usado por Aristo de Péla (c 140),
em uma apologética antijudaica em seu “Diálogo entre Jasão e Papisco” , conforme citado pelo Livro 2
do Comentário sobre Gálatas (sobre 3,14; PL 26,361-362). Cambe (“Récits”) argumenta que o EvPd pode
ser como muitas outras obras do século II ao usar Testimonia ou coletâneas de passagens percebidas
como aplicáveis a Jesus; neste caso, a sua Paixão, morte e ressurreição.

555
A pêndices

e) Há indícios de padrões cultuais cristãos já estabelecidos. O domingo é


conhecido como “o dia do Senhor” (EvPd 9,35; 12,50). Um jejum no sábado, que
na história relaciona-se com o tempo entre a morte de Jesus e sua ressurreição,
pode muito bem refletir a prática na época do autor.

D. Quando e onde foi composto o EvP d l

A história do bispo Serapião e a existência dos fragmentos de Oxirinco


mostram que, antes de 200, uma forma do EvPd era conhecida na Síria e também
no Egito. Na verdade, Serapião indica que a obra estava em circulação havia al­
gum tempo, pois ele procurou orientação a respeito do docetismo na obra “com os
sucessores dos que primeiro a usaram”. Paralelos no EvPd com tradições a respeito
da Paixão apresentadas pela Epístola a Barnabé ,41 por Justino,4243e pela Ascensão
de Isaias 113 confirmam que é improvável a composição depois de 150.

Se nos voltamos disso como de um terminal (a data antes da qual) para


o outro terminal (a data depois da qual), uma certeza virtual é que o EvPd não
poderia ter sido composto na Palestina no século I. Em um escrito que envolve um
cenário histórico, quer esse escrito seja 90 por cento fato, quer 90 por cento ficção,
espera-se pelo menos um mínimo de plausibilidade quanto a circunstâncias com
as quais todos estariam familiarizados. Os que hoje tentam escrever mais histórias
de Sherlock Holmes escrevem ficção, do mesmo jeito que A. Conan Doyle; mas,
vivendo muito mais tarde e fora da Inglaterra, podem facilmente cometer erros a
respeito da Londres do final do século XIX que ele nunca cometeria. Contudo,
nenhum deles cometeria o grande erro de descrever a Inglaterra daquele período

41 EvPd 5,16: “Dai-lhe a beber fel com vinho avinagrado” ; Epístola a Barnabé 7,5: “ Para dar-me fel com
vinho avinagrado” .
42 Em EvPd 3,7 e Apologia 1,35, Jesus está sentado no tribunal. EvPd 4,12 e Diálogo XCVII usam a ex­
pressão esquisita lachmon ballein (“lançar a sorte” ) em referência às vestes de Jesus. Em EvPd 10,41,
é feita a proclamação aos adormecidos entre a morte de Jesus e a ressurreição. Em Diálogo CXXII,4,
Deus se lembra dos adormecidos na terra do túmulo: “Ele desceu até eles para evangelizá-los a respeito
de sua salvação” . É debatido se Justino recorreu ao EvPd e se este era a obra “ Memórias [Apomnemo-
neumata] de Pedro” que ele menciona (Diálogo CVI,3); recentemente, Pilhofer (“Justin”) argumentou
afirmativamente para ambos.
43 Martírio e Ascensão de lsaías é obra complexa. Em Martírio e Ascensão de Isaías 3,15-17, dois anjos
abrem a sepultura de Jesus no terceiro dia e trazem-no para fora sobre os ombros, cena comparável a
EvPd 10,39-40. Essa passagem faz parte da seção do “Testamento de Ezequias” do apócrifo de Isaías,
que às vezes data de c. 100 ou um pouco depois (ver M. A. Knibb, OTP, v. 2, p. 149).

556
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

como uma república governada por um presidente, pois todos com probabilidade de
escrever ou ler tal história saberíam que a Inglaterra era monarquia. Certamente
não é concebível que um palestino do século I d.C. imaginasse que Herodes era o
governante supremo em Jerusalém e que o governador romano Pilatos era subordi­
nado a ele. As prefeituras romanas de 6 -4 0 ,4 5 -6 6 d.C. e a Revolta Judaica teriam
tornado o assunto de governança inesquecível pelo menos antes de 100. Desconfio
que até os judeus fora da Palestina estavam a par da governança da Judeia naquele
século, de modo que, ao desejar pressupor que o EvPd foi escrito no século I, seria
preciso afirmar ter ele sido escrito fora da Palestina,44 por um não judeu com um
bom conhecimento das Escrituras e de Jesus.43 Entretanto, há razões sólidas para
colocar esse autor no século II, e não no I. A primeira é a probabilidade, explicada
acima, de ter o autor usado ecos dos Evangelhos canônicos de Mateus, Lucas e
João (todos compostos por volta do ano 100), um uso que subentende ter o EvPd
sido composto, com toda a probabilidade, depois do ano 100.46

Além disso, o espaço de tempo entre 100 e 150 enquadra-se nos aspectos
teológicos que acabamos de discernir. Segundo a opinião geral, o desenvolvimento
comparativo é sempre um aferidor incerto para datar obras, pois teologias mais
antigas são muitas vezes contemporâneas em ângulos diferentes do Cristianismo.
Contudo, há diversas obras do início do século II que compartilham pontos de

44 Mara (Evangile, p. 31) está bastante correta quando escreve: “ Cauteur est complètement dépaysé” . Aos
leitores, é dito que isso acontece na Judeia (EvPd 5,15), mas o EvPd não tem nenhum dos topônimos que
aparecem nas NPs canônicas. A única referência local que ele contém (EvPd 5,20), não encontrada nos
Evangelhos sinóticos, “o véu do santuário de Jerusalém” , é informação para leitores que de outra forma
poderíam não saber que santuário estava envolvido. O EvPd silencia quanto à ida dos doze discípulos
para a Galileia depois da ressurreição: eles vão para casa e Simâo Pedro e André de repente estão no
mar. Será que o autor tem alguma ideia precisa de onde ficam a Galileia e o mar, ou de distâncias de
Jerusalém?
4’ A meu ver, isso mostra a total implausibilidade da tese de Crossan, segundo a qual o EvPd expressa a mais
antiga NP cristã, pois então, mais tarde, os evangelistas canônicos que tinham um conhecimento muito
melhor do ambiente e da história da Palestina que o manifestado no EvPd teriam, contudo, respeitado
o EvPd o bastante para fazer dele sua fonte principal! Naturalmente, quem aceita o ponto de vista que
Crossan apresenta em Cross (p. 405: “Parece-me muito provável que os mais próximos de Jesus não
sabiam quase nada quanto aos detalhes do acontecimento [a Paixão]” ) afasta a maioria dos controles
externos para julgar a datação.
40 Marcado por aspectos clássicos ocasionais (aticismos, optativos), o grego do EvPd às vezes tem sido usado
para datá-lo. F. Weissengruber (em Fuchs, Petrusevangelium, p. 117-120) alega que essa combinação de
estilo narrativo e classicismo renovado está particularmente aclimatada na primeira metade do século
II, mas muitos duvidam que tal precisão, em contraste com o grego do século I, seja possível.

557
A pêndices

vista teológicos do EvPd que transcendem qualquer coisa encontrada na maior


parte do NT, que foi escrito no século I. Mencionei que o EvPd compartilha com o
Protoevangelho de Tiago (geralmente datado de c. 150) a tendência de dramatizar
de maneira óbvia a divindade de Jesus (Protoevangelho de Tiago, ao descrever o
nascimento; EvPd, ao descrever a ressurreição do túmulo), dramatização ausente
das descrições canônicas desses momentos da vida de Jesus. A preferência por “o
Senhor”, em lugar de “Jesus”, como um jeito de se referir ao Nazareu tem prenuncio
evangélico canônico em Lucas, mas é abrangente no EvPd; é visível também em
Didaqué 8,2; 9,5; 11,2; 12,1 etc. A designação de domingo como “o dia do Senhor”
(EvPd 9,35; 12,50), que aparece em um dos últimos livros neotestamentários (Ap
I , 10), estava se difundindo no início do século II (Didaqué 14,1; Inácio, Magnésios,
9,1).47 0 período de jejum ligado ao dia da morte de Jesus (EvPd 7,27) tem para­
lelo na atitude de Didaqué 8,1, que incute o jejum na quarta e na sexta-feira.48 A
Epístola de Barnabé e Melitão de Sardes manifestam um antijudaísmo comparável
à animosidade demonstrada nas páginas do EvPd. (Perler, “ Evangile”, afirma com
convicção a dependência literária de Melitão do EvPd.) Beyschlag, então, está
justificado ao perceber no EvPd a atmosfera da primeira metade do século II.49

Quanto ao lugar de composição, embora Mara (Evangile, p. 217-218) tenha


sugerido a Ásia Menor e os fragmentos de Oxirinco levantem a possibilidade do
Egito (indicado antes por D. Võlter), a Síria é sugerida com mais frequência. A. F.
J. Klijn50 afirma que, antes de 150, havia na Síria um texto dos Evangelhos e dos
Atos que apresentava concordância com o Diatessarão, a Epistula Apostolorum e
o EvPd. A história de Serapião demonstra que o EvPd era conhecido em Rossos
e Antioquia, e, pelo menos em alguns círculos, era conhecido havia muito tempo.
Orígenes menciona o EvPd depois de visitar Antioquia. A Didascalia Apostolorum foi
escrita por um bispo na Síria, c. 200-225; a forma siríaca (em especial o capítulo 21

4‘ Há alguma controvérsia quanto a essas passagens se referirem apenas ao domingo de Páscoa ou ao


domingo em geral (W. Stott, NTS 12,1965-1966, p. 70-75).
48 Parece que na década de 120 em Roma, sob Sixto (I) e/ou Telésforo, o jejum nos dias anteriores à Páscoa
começara a ser introduzido. Ver Decretales Pseudo-Isidorianae, P. Uinschius, org., 1883; reimpressão:
Aalen, Scientia, 1963, p. 109-110.
49 Verborgene 46; essa é a datação mais comum por investigadores no passado e foi continuada por Denker
(entre as duas guerras judaicas), Johnson e Mara. Ver também Head, “Christology” .
50 A Survey of the Researches into the Western Text of the Gospels and Acts: Part II, 1949-69, Leiden, Brill,
1969, p. 25 (NovTSup 21).

558
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

= 5 latino) demonstra conhecimento do EvPd (diretamente ou por intermédio de um


florilégio de passagens evangélicas?). Paralelos com a Didaqué (muito provavelmente
composta na Síria) e a alta cristologia de Inácio de Antioquia também podem ser
citados. Paralelos em estilo e conteúdo entre o EvPd e o Protoevangelho de Tiago
foram mencionados; e H. R. Smid acha que este último “ foi possivelmente escrito
na Síria”.51 O autor do EvPd foi fortemente influenciado por Mateus, Evangelho com
toda a probabilidade escrito nos arredores de Antioquia.52 Um conhecimento de
elementos da NP lucana e joanina também estaria em harmonia com essa área.53
Quer fosse quer não fosse o autor de Lucas natural de Antioquia (assim Fitzmyer,
Luke, v. 1, p. 47), os Atos com certeza mostram conhecimento da comunidade
cristã de Antioquia. Prefiro a tradição antiga que associa a composição final de
João com Éfeso, em vez da opinião de alguns biblistas modernos (baseada quase
inteiramente em paralelos de idéias) que se fixa em Antioquia. Contudo, o vocabu­
lário teológico atestado apenas em João entre os Evangelhos aparece nos escritos
de Inácio, de modo que, com toda a probabilidade, alguém da área de Antioquia
no início do século II poderia ter conhecido alguns dos aspectos peculiares da NP
joanina. Finalmente, a atribuição deste Evangelho a Pedro é esclarecedora. Está
muito claro que Pedro atuou com proeminência na Igreja de Antioquia, pois, nos
anos 40, ali ocorreu o desacordo entre Pedro e Paulo descrito em G12,11-14. Como
Meier menciona (Antioch, p. 24), apesar da retórica de Paulo, foi ele quem saiu de
Antioquia, ali retornando raramente; Barnabé passou para o lado de Pedro; e o
Evangelho da área de Antioquia, Mateus (Mt 16,18), indica Pedro como a pedra
fundamental da Igreja de Cristo. Assim, um escritor daquela área, ao dramatizar a
Paixão de Jesus, podia muito bem ter escolhido Pedro como porta-voz.54

51 Protoevangelium Jacobi, Assen, Van Gorcum, 1965, p. 22.


52 J. P. Méier, na obra que escreveu com R. E. Brown (Antioch and Rome, New York, Paulist, 1983, p.
45-84), considera Mateus representante do ponto de vista da Igreja antioquena de 70-100 e Inácio e a
Didaqué representantes dessa Igreja depois de 100.
53 Prefiro essa expressão cautelosa. Nosso conhecimento limitado força-nos a procurar uma área onde esses
Evangelhos poderíam ter sido conhecidos; entretanto, devemos levar em conta a possibilidade contrária
de ter a composição sido escrita em uma área “atrasada” , por um autor cujas viagens o puseram em
contato com diversas apresentações cristãs de Jesus.
54 O caráter pseudonímico do EvPd foi muitas vezes mal compreendido ou desvirtuado na erudição mais
primitiva. No desejo de defender o valor dos Evangelhos canônicos contra essa nova descoberta, houve
quem desprezasse o autor como forjador, por exemplo, o costume censurável de Vaganay de referir-se
ao autor como “ le faussaire” , em um comentário que, sob outros aspectos, deu importante contribuição.
No século II, houve aumento de tradições que identificavam os apóstolos Mateus e João como autores de

559
A pêndices

Além do local geral, que tipo de formação cristã o EvPd reflete? Teorica­
mente, é possível que o autor viesse de uma cultura, por exemplo, judeu-cristã, e
dirigisse suas palavras a uma outra, cristã gentia; mas com tão poucos indícios
disponíveis, precisamos deixar de lado essa complicação e olhar para o EvPd como
se o autor e seus destinatários fossem do mesmo ambiente. Por causa da influência
da Escritura sobre o EvPd, alguns (por exemplo, Denker, Theologiegeschichtliche, p.
78) sugerem um ambiente judeu-cristão. Contudo, desde os tempos mais primitivos,
obras que empregavam a Escritura foram dirigidas a audiências gentias (Gálatas)
e, por volta do século II, o uso da Escritura era língua franca entre os cristãos.
A Epístola de Barnabé está cheia de citações e alusões bíblicas; contudo, o autor
de importante comentário a respeito dela sugere ter ela sido escrita para cristãos
gentios da área siro-palestina, ao que tudo indica por um gentio.55 Como mencio­
nei sob C, acima, o autor do EvPd parece confuso quanto aos costumes judaicos
e claramente considera os Pães sem fermento uma festa dos judeus, grupo hostil
do qual ele não faz parte.36 Se o sábado é mencionado em relação aos judeus (mas
sem muito conhecimento daquilo que eles não podiam fazer nesse dia), o domingo
passa a ser o dia do Senhor. É quase como se o autor e sua audiência estivessem
espiritualmente relacionados com os descritos por Inácio de Antioquia (Magnésios
9,1) como os que “já não observam mais o sábado, mas vivem de acordo com o dia
do Senhor”. Talvez estejamos naquele momento do desenvolvimento cristão quando
já não importava muito se a linhagem da pessoa era judaica ou gentia; os das duas
origens que acreditavam em Jesus consideravam-se cristãos, enquanto os “judeus”
eram um grupo específico de não cristãos. Havia conflito contínuo com esses judeus?
A presença de polêmica contra judeus no EvPd e de apologética implícita não prova
necessariamente isso. A herança de sentimento de ódio em relação a outro grupo*54

Evangelhos que, quase com certeza, eles não escreveram; essas atribuições acabaram sendo prefixadas
aos respectivos Evangelhos. 0 autor do EvPd foi mais adiante ao integrar sua atribuição dentro do texto
que estava escrevendo, do mesmo modo que fez o autor do Protoevangelho de Tiago (25,1). 0 desejo
de apoio apostólico e plausibilidade dramática são motivos prováveis que podemos atribuir ao autor
do EvPd; não há absolutamente nada que mostre que ele queria enganar. Vale a pena acrescentar que
as atitudes desdenhosas para com o autor do EvPd não se restringiram a biblistas que o julgavam um
usuário secundário dos Evangelhos canônicos; Gardner-Smith (“ Date” , p. 407) considerou-o “crédulo,
confuso, incompetente” .
3,5 P. Prigent, Épitre de Barnabé, SC 172, p. 22-24, 28-29.
54 Entretanto, novamente é necessário ter cautela; creio que o quarto evangelista nasceu judeu, mas não se
considerava judeu, porque as sinagogas que ele conhecia tinham expulsado crentes em Jesus e, assim,
tinham prática ou realmente dito a eles que já não eram mais judeus (Jo 9,28.34).

560
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

religioso é transmitida por gerações, mesmo quando já não há mais contato com esse
grupo. Contudo, precisamos admitir que algumas referências aos judeus no EvPd
têm um tom de legítima defesa, como se eles fossem um inimigo constante: Pedro
e seus companheiros esconderam-se depois da morte de Jesus, pois estavam sendo
caçados como malfeitores que incendiariam o santuário (do Templo; EvPd 7,26);
Maria Madalena não pôde fazer nada pelo corpo de Jesus no dia do sepultamento
porque os judeus estavam ardentes de cólera (EvPd 12,50). A questão se complica
por outras passagens que mostram os judeus agindo como penitentes (EvPd 7,25;
8,28). Consequentemente, as opiniões quanto ao relacionamento com os judeus no
ambiente do EvPd continuam altamente especulativas.

Passando para outro aspecto, considero o etos do EvPd mais tardio, mas não
muito afastado do etos que Mateus utilizou, nos anos 80 e 90, para o que chamei
de material popular (§ 48, nota 42) que ele usou para suplementar a NP marcana:
as histórias do suicídio de Judas e das moedas de prata contaminadas por sangue
inocente, do sonho da mulher de Pilatos, de Pilatos lavando as mãos do sangue
desse homem enquanto todo o povo assumia a responsabilidade, dos fenômenos que
acompanharam a morte de Jesus (tremor de terra, abertura de túmulos, aparecimento
dos santos adormecidos) e da guarda no sepulcro amedrontada pela descida de um
anjo e um terremoto — bem como a história dos magos e da estrela, e da matança
dos meninos de Belém pelo Herodes malvado na narrativa da infância. No comen­
tário acima, quando tratei dos episódios característicos da NP mateana, indiquei
os paralelos do EvPd a muitas delas; e, em especial, argumentei que o autor do
EvPd não só ouvira a forma mateana fortemente modificada da história da guarda
no sepulcro, mas também teve acesso a uma forma mais tardia, mais desenvolvida
da história que ainda preservava a continuidade do original. Afirmo, então, que
o EvPd é um Evangelho que reflete o Cristianismo popular, isto é, o Cristianismo
do povo comum, não no importante centro de Antioquia, onde leituras e pregações
públicas exerciam maior controle, mas nas cidades menores da Síria, não diferentes
de Rossos, onde Serapião familiarizou-se com ele.**57 O EvPd não era heterodoxo,

Harnack (Bruchstücke, p. 37) imaginou que o EvPd pertencia a um grupo fora da Igreja, no sentido de
não se sentir preso a tradições e rituais da Igreja maior. Não é isso que quero dizer: cristãos de todos os
períodos que se julgavam leais à Igreja maior tinham opiniões teológicas que não eram as mesmas dos
mestres oficiais (embora eles nem sempre tivessem consciência de ser esse o caso), não porque fossem
desobedientes, mas por causa da piedade e da imaginação populares. Os de Rossos que estavam come­
çando a ler trechos do EvPd publicamente ainda estavam dentro da Igreja maior, ou não teriam pedido
a opinião do bispo de Antioquia a respeito do assunto.

561
A pêndices

mas combinava muitos elementos imaginosos que transcendiam os Evangelhos


canônicos e os escritos de bispos como Inácio. Durante muitos séculos, inclusive
no século X X , a opinião cristã de Jesus tem divergido consideravelmente daquilo
que foi proclamado do púlpito como baseado na Escritura. Elementos de piedade
e imaginação populares serviram para completar a descrição com um colorido que
não se poderia justificar intelectualmente a partir dos Evangelhos escritos, mas
que, à sua maneira, foi um enriquecimento extraordinário.58 Até hoje, a imagem
do nascimento de Jesus que muitos cristãos têm está muito mais próxima daquilo
que é descrito por incontáveis manjedouras ou presépios de Natal (que, em última
instância, devem sua inspiração a Francisco de Assis) do que daquilo que é descrito
em Mateus ou Lucas. Assim também a imagem da Paixão e morte de Jesus que
muitos cristãos têm a partir do século I transcende o que se encontra em qualquer
Evangelho canônico ou em todos eles reunidos.

Uma objeção fundamental ao EvPd desde sua descoberta há mais de um


século é o fato de não ser histórico, objeção muitas vezes feita pelos que pressupõem
erroneamente que tudo o que for pertinente à Paixão nos Evangelhos canônicos é
histórico. As NPs canônicas são o produto de uma evolução que envolve considerável
dramatização, de modo que a história exata não é uma categoria aplicável a eles.59
Contudo, não tenho dúvida de que a NP marcana tem um componente histórico maior
do que tem a NP do EvPd,60 em parte porque representava uma coisa semelhante a
uma pregação comum que era associada à tradição apostólica — linha de origem
que exercia controle sobre fatos básicos, apesar de reorganizações e simplificação.
É por isso que ele recebeu reconhecimento da Igreja oficial (posição canônica) e
foi considerado parte do desígnio divino para o povo cristão (reconhecido como

58 0 popular desempenhou um papel especial não só porque o EvPd estava fora do processo de pregação
que formou o cânon, mas também por causa de seu colorido apocalíptico. Ver J. H. Chaslesworth, “ Folk
Traditions in Jewish Apolalyptic Literature” , em J. J. Collins & J. H. Charlesworth, orgs., Mysteries and
Revelations, Sheffield, Academic, 1991, p. 91-113 (Journal for the Study of Pseudepigrapha, Supl. 9).
59 Peço licença para mencionar que essa não é necessariamente uma opinião liberal, por exemplo, foi ado­
tada com referência aos relatos evangélicos do ministério todo de Jesus tanto pela Pontifícia Comissão
Bíblica Católica Romana quanto pelo Segundo Concilio Vaticano (NJBC 72,35.15).
60 Mara (Évangile, p. 30) diz que o autor do EvPd não parece ter sido dominado pela verdade dos fatos que
relata, mas foi contido pela verdade de sua interpretação. Entretanto, isso pode subtender que o autor
do EvPd diferenciava se o que relatava era ou não história.

562
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão

inspirado). Narrativas evangélicas como as do EvPd,bl compostas em círculos mais


populares, não estavam sob as mesmas influências controladoras, e era permitido
dar rédeas à imaginação. Contudo, às vezes eles atuavam muito apropriadamente
para possibilitar aos cristãos imaginar a Paixão. Duas grandes dificuldades podem
provocar má atuação. Se voos da imaginação chegassem ao ponto de se tornar
heterodoxos (e o século II era precisamente a época em que os limites entre hete-
rodoxia e ortodoxia estavam sendo traçados com nitidez), as autoridades religiosas
inclinavam-se a banir as histórias que apoiavam tais idéias aberrantes. No tempo
de Serapião, alguns usavam o EvPd para propaganda docetista, talvez nos moldes
segundo os quais um Jesus agonizante que, por assim dizer, não sentia dor não era
realmente humano, nem morria realmente.6162 Mas era uma segunda dificuldade que
inicialmente levou o EvPd a ser questionado. Se estou correto em afirmar que o
EvPd surgiu como produção popular, não concebida no seio da pregação da Igreja,
ele nunca foi destinado a se tornar proclamação oficial, mais do que uma peça so­
bre a Paixão. Mas, nesse momento, os cristãos de Rossos começavam a ler o EvPd
publicamente e, assim, a lhe dar uma posição ao lado dos Evangelhos canônicos,
coisa que Serapião jamais encontrara no importante centro de Antioquia. (Embora
alguns ali soubessem da existência do EvPd , ele, o bispo, não sabia.) A própria
natureza do cânon — a coletânea de livros pelos quais a Igreja se comprometeu a
viver como norma — sempre fará objeção a tal inovação.

O que é uma reação equilibrada ao EvPd hoje? Critiquei uma atitude


condenatória preponderante entre alguns comentaristas mais primitivos, para os
quais o autor do EvPd era herético ou alguém hostil à Igreja maior (com seu cânon

61 Em minhas observações, tenho em mente Evangelhos apócrifos narrativos, como o EvPd, o Protoevangelho
e o Evangelho da Infância de Tome'. Podem-se visualizar diferentemente coletâneas de ditos atribuídos a
Jesus que muitas vezes tinham um foco planejado de maneira muito mais cerebral. Embora popularmente
haja tendência a considerar os tratados encontrados na coleção de Nag Hammadi “ Evangelhos” gnós-
ticos, muito poucos deles alegam ser Evangelhos ou são, de algum modo, semelhantes aos Evangelhos
canônicos.
62 Tenho esperança de que hoje os cristãos reconheçam outra tendência heterodoxa no EvPd: suas descri­
ções antijudaicas intensificadas. Há antijudaísmo no NT em resultado da polêmica entre os judeus que
acreditavam em Jesus e os que não acreditavam, mas ele é mais moderado que o do EvPd e de Barnabé.
Esse é um exemplo do que considero uma verdade maior: frequentemente, entre cristãos comuns havia
(e há) mais hostilidade para com os judeus do que se percebe entre os porta-vozes oficiais — situação
que é verdade, vice-versa, também no Judaísmo, se podemos julgar pela comparação entre a Mixná e
talmudes mais oficiais com o popular Toledoth Yeshu. Diversas vezes citei peças da Paixão como exemplos
da tendência de enriquecer a história da morte de Jesus com a imaginação popular e, muitas vezes, um
forte antijudaísmo aparece nessas peças.

563
A pêndices

em desenvolvimento de apenas quatro Evangelhos), ou forjador tentando ganhar


credibilidade com uma abordagem não histórica de Jesus. Por outro lado, expliquei
que não vejo nenhuma razão sólida para saudá-lo como a NP mais antiga, nem
sou solidário com uma tendência simplista a considerar obras extracanônicas a
chave para o verdadeiro Cristianismo, em contraste com uma censura intolerante
representada pelo NT canônico. Contudo, embora aprecie o dilema de Serapião e o
senso de responsabilidade pastoral que o levou a finalmente reagir contra o EvPd
e, assim, para todos os propósitos práticos, terminar sua difusão, creio podermos,
ao mesmo tempo, ser gratos ao pranteador que enterrou com um monge do fim do
período patrístico um estranho livrinho de leituras espirituais que tratava da vida
após a morte e, assim, nos proporcionou com atraso uma visão fascinante do modo
dramático com que alguns cristãos comuns do início do século II descreviam a morte
do Messias. Sob o drama, a seu modo, o EvPd proclamou que Jesus era o Senhor
divino, vitorioso sobre tudo o que seus inimigos lhe fizeram por meio da crucificação.

564
Bibliografia para o Apêndice I:
0 Evangelho de Pedro

Esta é apenas uma bibliografia prática; bibliografias mais completas compos­


tas em anos diferentes encontram-se em Yaganay, Mara, Fuchs e Crossan (Cross);
concordâncias do vocabulário grego encontram-se em Fuchs e Yaganay.

B ey sch la n g , K. Die verborgene Überliefemng von Christus. Mtinchen, 1969, p. 27-64


(Siebenstern Taschenbuch 136).
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peito do EvPd.
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do EvPd e do Evangelho Secreto de Marcos.
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566
Bibliografia para o Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro

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567
Apêndice II:
Data da crucificação
(dia, mês, ano)

O exame desta questão só faz sentido se presumimos que os evangelistas


merecem confiança pelas pouquíssimas referências cronológicas que todos (mais
o EvPd ) fornecem, a saber, que Jesus morreu em Jerusalém em um dia antes do
sábado, no tempo da Páscoa, durante a administração de Pôncio Pilatos. Usaremos
essas indicações temporais uma a uma, como chaves para determinar as informações
a seguir a respeito da crucificação:

A. 0 dia da semana

B. A data no mês

1. Esclarecimento de cinco questões preliminares

2. Indícios evangélicos para datar a crucificação em relação à Páscoa


judaica

3. Tentativas para lidar com as discrepâncias

4. Breve exame da opinião adotada neste comentário

C. 0 ano

Bibliografia

Embora seja técnica por natureza, a análise da cronologia sempre dá uma


ideia de como os evangelistas trabalharam na opinião dos biblistas.

A.Odia da semana

Mc 15,42 identifica o dia em que Jesus morre como “o dia antes do sábado”
(prosabbaton). Embora não mencione o sábado em relação à crucificação, Mateus

569
A pêndices

indica claramente que o dia depois da morte de Jesus (Mt 27,62) é o sábado; de
fato, quando ele chega ao fim, começa o primeiro dia da semana (Mt 28,1). Logo
depois de Jesus ser enterrado, Lc 23,54 afirma que o sábado estava raiando. Jo 19,31
registra precauções sendo tomadas para os corpos não permanecerem na cruz no
sábado que se aproximava. EvPd 2,5 indica que Jesus morrería e seria sepultado
antes de o sábado raiar. Não é surpreendente, então, que, em grande maioria, os
biblistas aceitem que o Jesus crucificado morreu na sexta-feira e, na verdade, em
algum momento da tarde.1

Alguns dissidentes optam pela quinta-feira, ou mesmo a quarta-feira,2 prin­


cipalmente com base em Mt 12,40: “ 0 Filho do Homem ficará três dias e três noites
no seio da terra” (que repercute em Mt 27,63). Um cálculo retroativo da noite de
sábado até a noite de sexta-feira pode levar à conclusão de que Jesus tinha de estar
no túmulo na noite da quinta-feira para cumprir a profecia (ou mesmo na quarta-
-feira, à luz de Mt 28,1, onde as mulheres vão ao túmulo logo que o sábado acaba e
o domingo começa, e assim, antes da noite de sábado). Mas essa palavra profética
baseia-se especificamente no fato de Jonas ter ficado na barriga do peixe por três
dias e três noites (Jn 2,1) e está subordinada a profecias do Filho do Homem sendo
ressuscitado no terceiro dia (Mc 9,31; 10,34 etc.), o que torna a ressurreição no
domingo conciliável com a morte e o sepultamento na sexta-feira. Portanto, a base
de todo o estudo que se segue é a crucificação ter ocorrido sexta-feira, durante o dia.

B. A data no mês

Nenhuma data mensal é especificada pelos Evangelhos. Contudo, no contexto


dos últimos dias de vida de Jesus, todos fazem referência à Páscoa judaica e os

1 Indicações pertinentes específicas da hora incluem: nos sinóticos, Jesus está prestes a morrer na nona
hora (3 horas da tarde: Mc 15,34; Mt 27,46; Lc 23,44); EvPd 5,15-20 coloca a morte de Jesus no contexto
de meio-dia; em Jo 19,14, Jesus está diante do pretório de Pilatos na sexta hora (meio-dia).
2 Hoehner (“ Day” , p. 241-249) relaciona B. F. Westcott, J. K. Aldrich e R. Rush favoráveis à quinta-feira,
e W. G. Scroggie favorável à quarta-feira. Davison (“ Crucifixion”) defende a quarta-feira baseado no fato
de que o sábado mencionado por todos os Evangelhos como seguindo-se ao dia da crucificação era um
“ sábado anual” , não um sábado semanal. “ Sábado anual” é usado por ele para designar os dias dentro
de períodos festivos nos quais havia descanso do trabalho e uma assembléia sagrada. Ele encontra “ dois
sábados anuais” ligados à Páscoa ou à festa dos Pães sem fermento, a saber, o primeiro e o último do
período de sete dias (Lv 23,7-8). 0 primeiro “ sábado anual” da Páscoa no ano em que Jesus morreu foi
a noite da quarta-feira/quinta-feira, e foi durante o dia da quarta-feira que precedeu imediatamente esse
“ sábado” que Jesus foi julgado e crucificado — um dia de quarta-feira que era 14 de nisan. Infelizmente,
ele não apresenta provas disso.

570
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

sinóticos referem-se à festa dos Pães sem fermento. Convém, então, logo de início,
recordar a história dessas duas festas.

Nos textos bíblicos antigos que descrevem a Páscoa judaica (Ex 12,1-20; Lv
23,5-8; Nm 28,16-25), sua data dependia do ato de avistar a lua nova que iniciava
o mês de nisan,3 pois a celebração da festa acontecia na lua cheia desse mês. No
crepúsculo que terminava o 14 de nisan e iniciava o 15, o cordeiro (ou cabra) era
abatido e seu sangue borrifado no batente da porta da casa. Durante a noite do dia
15 (a noite da lua cheia), o cordeiro era assado e comido com pães sem fermento e
ervas amargas. Esse 15 de nisan também iniciava a semana da festa dos Pães sem
fermento. Seiscentos anos antes de Jesus, essas festas tinham sido unidas como um
período festivo combinado, que levava as pessoas ao templo de Jerusalém;4 e, mais
tarde, a imolação dos cordeiros foi considerada tarefa dos sacerdotes, assumindo
assim as características de um sacrifício.

A relação cronológica entre a morte de Jesus e a data dessas duas festas


complica-se pelo fato de, em seu significado manifesto, haver uma contradição
entre os sinóticos e João. A refeição que Jesus comeu na noite de quinta-feira
antes de ser preso, segundo os sinóticos, foi a refeição pascal (da Páscoa judaica),
ao passo que, em Jo 18,28, na manhã de sexta-feira, quando Jesus estava sendo
julgado diante de Pilatos, as autoridades judaicas e o povo recusaram-se a entrar
“no pretório para não se contaminarem e a fim de poderem comer a (refeição da)
Páscoa” — festa que, segundo Jo 19,14, ia começar no dia seguinte (isto é, sexta-
-feira ao anoitecer). Assim, a refeição pascal foi, para os sinóticos, ao anoitecer de

3 Também chamado abib (Ex 13,4), nisan era o primeiro mês do ano, embora em outro cálculo calendar o
Ano Novo fosse no sétimo mês (tishri).
* A Páscoa era a mais antiga das duas e se originara na cultura pastoral, quando Israel era seminômade,
andando de um lado para outro com seus rebanhos para encontrar pastos. A festa dos Pães sem fermento,
que marca o início da colheita da cevada, foi adotada mais tarde, durante a fase agrícola depois da entrada
em Canaã. Originalmente, a Páscoa não era uma festa (no AT, só Ex 34,25 chama-a de festa), na qual as
pessoas tinham de peregrinar ao santuário central, pois o cordeiro era morto e comido em casa; somente
quando unida aos Pães sem fermento ela se tomou uma das três festas de peregrinação. Ver a união dos
temas das duas em Dt 16,2-3, que, depois de falar do animal escolhido para o sacrifício da Páscoa, diz:
“ Durante sete dias comerás pão sem fermento” . Como veremos, no século I d.C., os nomes estavam se
tomando permutáveis. No século seguinte, “Páscoa” passara a ser o nome para a festa toda, de modo
que “a festa dos Pães sem fermento” jamais aparece na literatura tanaíta (Zeitlin, “Time”, p. 46), por
exemplo, Midraxe Mekilta (Pisha 7), a respeito de Ex 12,14, fala dos “Sete dias da festa da Páscoa” ; e
Mixná Pesahim 9,5 diz que, depois do Egito, “A Páscoa de todas as gerações subsequentes tinha de ser
observada durante sete dias” .

571
A pêndices

quinta-feira e Jesus morreu durante o dia depois dela; para João, foi ao anoitecer de
sexta-feira e Jesus morreu durante o dia antes dela. Antes de tratar em detalhe das
complexidades dessa aparente contradição, vamos revisar questões preliminares,
das quais precisamos estar seguros.

1. Esclarecimento de cinco questões preliminares

a) Há controvérsia a respeito de como foram contadas as horas na NP, a saber,


a terceira, a sexta e a nona hora em relação à condenação e crucificação. Estavam
os evangelistas que mencionam um ou todas essas horas contando a partir de 6
horas da manhã (assim, 9 horas da manhã, meio-dia, 3 horas da tarde) ou estavam
contando a partir da meia-noite (assim, 3, 6 e 9 da manhã)? Em sua maioria, os
biblistas aceitam o ponto de partida às 6 horas da manhã. Entretanto, a fim de
harmonizar dados evangélicos contrários, alguns (como Walker, “ Dating”, p. 294)
apelam a dois sistemas, por exemplo, julgam que Jo 19,14 conta da meia-noite, por ter
Jesus diante de Pilatos na sexta hora (= 6 horas da manhã); e que Mc 15,25 conta a
partir da alvorada, por ter Jesus crucificado na terceira hora (= 9 horas da manhã.)
No comentário, vimos que tais harmonizações são implausíveis e desnecessárias, de
modo que o cálculo a partir das 6 horas da manhã deve ser completamente aceito,
mesmo que isso deixe os relatos em conflito. Não é provável que nenhum evangelista
tivesse conhecimento pessoal cronologicamente exato do que aconteceu. Com toda
a probabilidade, eles encontraram na tradição uma indicação de tempo como “a
sexta hora” (mencionada por todos) e a ligaram a momentos diferentes da Paixão,
de acordo com seus interesses dramáticos e teológicos respectivos. Felizmente,
essa questão de contar horas não tem muita importância para este nosso estudo.

b) Há também controvérsia a respeito do início do dia: quando falava do dia


antes do sábado, o evangelista pensava em um dia que começava no pôr do sol da
quinta-feira (e assim, incluía o entardecer da quinta-feira/o dia da sexta-feira) ou
à meia-noite (que, em nosso cálculo moderno, termina a quinta-feira e começa a
sexta-feira), ou mesmo no nascer do sol da sexta-feira?5 Mais uma vez, na tentativa

5 Ver informações em Zeitlin, “Beginning”, com a advertência de que seu uso da Mixná para determinar
o período pré-70 (d.C.) talvez precise de restrições. Parenteticamente, quero observar que, embora no
calendário judaico o dia começasse ao anoitecer, o linguajar popular podería ter sido influenciado por
um modo de pensar em que o dia começava com o nascer do sol — o que ainda é verdade hoje quando,
no calendário, o dia começa à meia-noite. Isso deixou sua marca no uso de “alvorecer” para o início
de um domingo ao entardecer, em Mt 28,1 e EvPd 9,35: nenhum dos dois autores está pensando no

572
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

de harmonizar, há quem defenda sistemas diferentes (um judaico, um romano e um


grego local), empregados por evangelistas diferentes. No comentário, rejeitei esse
roteiro harmonizador para fugir de dificuldades. A questão que enfrentamos envolve
uma festa judaica e não há dúvida de que, no calendário litúrgico, o dia começava
ao entardecer. Além disso, o relato do sepultamento de Jesus na sexta-feira à tarde,
com seu tom de pressa, não faz sentido, a menos que todos os evangelistas estives­
sem calculando que um dia estava prestes a começar. Quando for importante, para
ajudar os leitores do estudo a seguir a se lembrarem do difícil conceito de um dia
que começava ao entardecer, em vez de escrever quarta-feira, quinta-feira e sexta-
-feira, com referência às ações pertinentes à crucificação, escreverei “quarta-feira
à noite/quinta-feira durante o dia” para abranger um dia que ia aproximadamente
das 6 horas da tarde de quarta-feira às 6 horas da tarde da quinta-feira; do mesmo
modo, “quinta-feira à noite/sexta-feira durante o dia” e “sexta-feira à noite/sábado
durante o dia” — usando para eles as abreviações quarta/quinta-feira, quinta/
sexta-feira, sexta-feira/sábado.

c) E comum encontrar-se a afirmação de que, embora em João Jesus morra


no dia anterior à Páscoa, nos sinóticos Jesus morre exatamente na Páscoa. A última
parte dessa afirmação não é clara. Nenhum Evangelho sinótico menciona a Páscoa
ou os Pães sem fermento em seu relato das horas da prisão, dos julgamentos, da
crucificação, da morte e do sepultamento de Jesus. Ao descrever o período em que
Jesus morre, as referências à Páscoa nos sinóticos são as preparações para a Ul­
tima Ceia ou comer a ceia.6 Entre os sinóticos, as últimas referências evangélicas
à “Páscoa” estão em Mc 14,16; Mt 26,19 e Lc 22,15, e as últimas referências aos
“ Pães sem fermento” estão em Mc 14,12; Mt 26,17 e Lc 22,7 — todas antes da
seção que aqui consideramos ser a NP, que começa depois da Última Ceia. (Exa­
minaremos mais adiante a importância de ser meticuloso neste ponto.) A expressão
“festa” ocorre realmente nos limites da NP (Mc 15,6; Mt 27,15, e o espúrio Lc
23,17) pertinentes ao costume de soltar um prisioneiro “em uma/na festa”. Contu­

domingo por volta das 5 horas da manhã; ambos estão pensando no sábado logo depois do pôr do sol.
Observemos que Mateus omite “ bem cedo” e “ao raiar do sol” de Mc 16,2; e, em EvPd 11,45, depois
dos acontecimentos, ainda é noite.
6 Parece que uma possível exceção é o aviso adiantado em Mc 14,1-2, a saber, que “a Páscoa e os Pães
sem fermento iam (ser) depois de dois dias” e as autoridades não queriam agarrar e matar Jesus na festa
(passagem que será examinada a seguir). Entretanto, na verdade essa passagem não nos incentiva a fixar
a prisão e morte de Jesus na festa propriamente dita.

573
A pêndices

do, mesmo que isso se refira “à festa” da Páscoa (como eu creio), não é definitivo
quanto a que dia se entende por antes ou durante o período festivo de oito dias da
Páscoa/Pães sem fermento.

d) O hebraico pesah e o grego pascha são termos ambivalentes, e se referem


não só a um dia de festa, mas também à imolação de um cordeiro ou cabra e à
refeição subsequente. Por amor à clareza (só no que se segue nesta subseção B
deste a p ê n d ic e ), onde for proveitoso usarei “ Páscoa” para o dia festivo e “páscoa/
pascal” para a imolação sacrifical e a refeição. Em cinco usos marcanos de pascha
no período dos últimos dias de Jesus, o emprego varia: Mc 14,1 nos diz que a festa
da Páscoa judaica seria “depois de dois dias” ; Mc 14,12 menciona primeiro o tempo
em que sacrificavam o animal pascal e depois, os preparativos para comer a páscoa
(refeição pascal); Mc 14,14 expressa o desejo de Jesus de “comer a páscoa com meus
discípulos” ; Mc 14,16 diz: “prepararam a páscoa/Páscoa judaica” (presumivelmente
a refeição pascal, mas também com o sentido de celebrar a festa da Páscoa).

e) 0 reconhecimento dessa ambivalência leva-nos a uma verdadeira ambi­


guidade que, possivelmente, tem raízes na instrução de Ex 12,6 - que o cordeiro
ou cabra pascal seja guardado até o dia 14 do mês (nisan, na nomenclatura mais
tardia) e depois, imolado “entre os dois entardeceres”. No período primitivo da
história israelita, quando a imolação era feita pelo chefe de uma família, é de se
presumir que isso significava que o animal era morto entre o crepúsculo (exatamente
quando o sol se punha) e a escuridão. Portanto, a imolação era no fim de um dia
(14) e a refeição, no início do seguinte (dia 15). Mais tarde, quando se desenvolveu
a prática de fazer os sacerdotes imolarem como sacrifício os cordeiros nos limites
do templo de Jerusalém, era necessário mais tempo para imolar milhares desses
animais trazidos pelas famílias que pretendiam celebrar a festa. Consequentemente,
a imolação começava no início da tarde do dia 14 (quando o sol começara a se pôr)
e, às vezes, quase seis horas separavam a imolação no dia 14 de nisan e a refeição
que tinha lugar ao entardecer que iniciava o dia 15. Assim, a questão de que dia
era considerado Páscoa é irrelevante para nosso estudo do tempo de Jesus. (No
Judaísmo moderno, onde já não há mais o sacrifício de um animal no santuário e a
refeição apresenta o pão sem fermento, a Páscoa é no dia 15 de nisan, primeiro dia
da festa dos Pães sem fermento, dia que começa ao entardecer, com essa refeição.)
As referências no AT, no NT, em Josefo e em Fílon nem sempre são claras nesse
ponto, em parte por causa da evolução histórica que acabamos de descrever e em

574
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

parte porque pesah e pascha referem-se à festa, à imolação e à refeição, conforme


foi explicado em d). Por um lado, Lv 23,5-6 declara com precisão: “A Páscoa
do Senhor cai no dia 14 do primeiro mês, no crepúsculo do entardecer. O dia 15
desse mês é a festa do Senhor dos Pães sem fermento”. Nm 28,16-17 também é
claro: “A Páscoa do Senhor cai no dia 14 do primeiro mês e no dia 15 é a festa de
peregrinação”. Do mesmo modo, Josefo (Ant. III,x,5; ##248-249) afirma: “ No dia
14 de nisan, oferecemos o sacrifício chamado pascha [...]. No dia 15, a Páscoa é
seguida pela festa dos Pães sem fermento”. Por sua vez, Fílon (Sobre as leis especiais
II,xxvii-xxviii; ##145.149.150.155) fala que a Páscoa ocorria no dia 14 do mês e
a festa dos Pães sem fermento começava no dia 15. Por outro lado, Josefo não faz
distinções: “ Por ocasião da festa dos Pães sem fermento, eles sacrificavam a pascha ”
(Ant. IX,xiii,3; #271);7 e “ Por ocasião dos Pães sem fermento, no dia 14 do mês”
(Guerra V,iii,l; #99). Com toda a probabilidade, Mc 14,12 (copiado por Lc 22,7) faz
parte dessa categoria imprecisa: “ No primeiro dia dos Pães sem fermento, quando
eles sacrificavam o cordeiro pascal”, pois tecnicamente eles sacrificavam o cordeiro
no dia M e o primeiro dia dos Pães sem fermento (quando comiam o cordeiro) era
o dia 15.8 E evidente que, no século I d.C., as duas festas tinham de tal maneira
se unido que muitas vezes, na linguagem comum, não eram feitas distinções. De
qualquer modo, este estudo adverte contra a afirmação de que, embora em João Jesus
morra no dia anterior à Páscoa, nos sinóticos Jesus morre na Páscoa propriamente
dita (declaração contra a qual argumentei por outro motivo em [c], acima). Se, de
acordo com o calendário religioso, 14 de nisan, quando os cordeiros eram imolados,
era tecnicamente a Páscoa, e a refeição pascal era consumida no início do dia 15,
que era o primeiro dia dos Pães sem fermento, então, segundo João, Jesus morreu
na Páscoa e segundo os sinóticos, ele morreu no dia seguinte à Páscoa, a saber, no
primeiro dia dos Pães sem fermento! Entretanto, pelo menos nesta subseção, onde
buscamos clareza, para evitar confusão provocada pelo problema de que dia era
considerado Páscoa, falarei de uma forma que espero não ser censurável. Em João,
Jesus morre na tarde do dia no qual os cordeiros estavam sendo imolados na área
do Templo e antes da refeição pascal (e assim, no dia 14 de nisan), e nos sinóticos,
Jesus morre durante o dia depois de uma refeição pascal ao entardecer, partilhada
com os discípulos (e assim, no dia 15 de nisan).

' Também Ant. XVIII,ii,2; #29: “A festa dos Pães sem fermento que chamamos de Páscoa” .
8 Do mesmo modo, com essa distinção, Mt 26,17 seria impreciso, pois ali os discípulos perguntam no
primeiro dia dos Pães sem fermento onde Jesus quer que seja preparada a refeição pascal.

575
A pêndices

2 . Indícios evangélicos para datar a crucificação em relação à Páscoa judaica

Nos sinóticos e em João, há indicações antecipadas quanto à próxima Páscoa


que servem de cenário para a Paixão de Jesus e depois, referências imprecisas
que associam à Páscoa episódios especiais, desde a Ultima Ceia até a condenação
de Jesus. Trataremos delas nesta ordem: a) indicações antecipadas sinóticas; b)
referências imprecisas sinóticas; c) indicações antecipadas joaninas; d) referências
imprecisas joaninas.

a) Indicações antecipadas sinóticas. Muitos biblistas iniciam a NP marcana


com Mc 14,1-2: “ Mas a Páscoa e os Pães sem fermento eram (iam ser) depois de
dois dias; e os chefes dos sacerdotes e os escribas procuravam um meio para, de­
pois de agarrá-lo à traição, matá-lo. Pois diziam: ‘Não na festa,9 para que não haja
tumulto do povo’” (ver Mt 26,1-5; Lc 22,1-2). O indicador de tempo na primeira
linha quase sempre tem importância não só por Marcos ser considerado o mais
antigo dos Evangelhos, mas porque há quem julgue ser esse o começo da NP pré-
-marcana, que é mais antiga ainda. Contudo, há grandes dificuldades a respeito
dele. Há mais quatro referências a pascha na sequência marcana da Paixão (Mc
14,12.14.16) e todas se referem ao sacrifício/refeição pascal. E ssas quatro refe­
rências e esta referência à festa da Páscoa originam-se da mesma fonte? Se não,
qual é a mais primitiva?

Há dois obstáculos para ligá-las. Primeiro, a notícia em Mc 14,1-2 é a primeira


camada de um típico arranjo marcano tipo encaixe de três episódios que podem
ser esquematizados desta maneira:

A. Uma ação incipiente ou B. Um episódio independente A’. Retomada da ação

desejada que exige tempo para que preenche o tempo e com- —> de A.

ser completada. plementa o tema de A.

Em Mc 14,1-11, a passagem onde se trama a morte de Jesus que examinamos


(Mc 14,1-2) serve de A; é seguida pela cena B da mulher que derrama o unguento

9 Há controvérsia se “a festa” significa Páscoa, Pães sem fermento, ou ambos. Como vimos, o uso clássico
aplicava “festa” aos Pães sem fermento; mas, no sécdo I d.C., o uso estava mudando, de modo que
“festa” era usado com mais frequência (e logo com exclusividade) para a Páscoa, e não para os Pães sem
fermento. Quando retoma o tema em Mc 14,12-16, Marcos menciona os Pães sem fermento mais uma vez
e a Páscoa, mais quatro ve;,es; é duvidoso que ele percebesse uma distinção calendar entre elas, mas a
Páscoa domina-lhe a mente.

576
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

na cabeça de Jesus em Betânia (Mc 14,3-9), que prevê a unção de seu corpo para
o sepultamento (Mc 14,8); então, Mc 14,10-11 tem o papel de A’, retomando a ação
de A, quando Judas procura os chefes dos sacerdotes e oferece-se para entregar-
-lhes Jesus. Quem entende a sequência de três episódios literalmente pergunta
quanto tempo dos dois dias que faltavam para a Páscoa foi ocupado por eles. Para
quem reconhece que a sequência é puramente literária, a unção pela mulher passa
a ser um episódio sem data,10 colocado como “ tapa-buraco” (donde a construção
de encaixe) entre duas partes de um único episódio da trama contra Jesus pelas
autoridades judaicas ajudadas por Judas, que continha o indicador de que a Páscoa
seria “depois de dois dias”. (Embora Mt 26,1-14 siga a sequência marcana tripartida,
Lc 22,1-6 omite o episódio da unção pela mulher [ver Lc 7,36-50] e faz uma única
seção da trama e da traição por Judas.)

Segundo, se “depois de dois dias antes da Páscoa e dos Pães sem fermen­
to” estava ligada à trama, essa frase especificava a data em que os sacerdotes e
escribas buscavam um meio de agarrar e matar Jesus ou a data em que Judas os
procurou? E que data exata está sendo calculada por uma relação com “a Páscoa
e os Pães sem fermento” ? Marcos está pensando em dois dias até 14 de nisan, ou
até 15 de nisan? (Veremos adiante o modo marcano impreciso de se referir a essas
festas.) Retroagir um interstício de dois dias a partir dessas duas datas evidente­
mente fixa a data dada em Mc 14,1 como 12 ou 13 de nisan. Contudo, Holtzmann,
Swete, Turner e outros afirmam que “depois de dois dias” não é calculado com
tanta facilidade. Assim como “depois de três dias” (em Mc 8,31; 9,31) é cumprido
com a ressurreição no terceiro dia, eles acham que “depois de dois dias” significa
a Páscoa no segundo dia — raciocínio que fixa a data em Mc 14,1 como o dia 13.
(Entretanto, a analogia com a ressurreição tem seus problemas.)

b) Referências sinóticas à ceia da Páscoa. Mc 14,12 prossegue a partir do


que acabamos de examinar, para relatar: “ E no primeiro dia dos Pães sem fermento,
quando eles sacrificavam o cordeiro pascal, seus discípulos lhe disseram: ‘Onde
queres que, tendo ido embora, preparemos, a fim de poderes comer o cordeiro (/a
refeição) pascal?” ’. Então, dois discípulos vão à cidade de Jerusalém e encontram
uma sala de hospedagem para Jesus comer o cordeiro (/a refeição) pascal com os
discípulos (Mc 14,16). “ E ao anoitecer, Jesus vem com os Doze; e reclinando-se

111 Em Jo 12,1, Maria unge os pés de Jesus em Betânia “seis dias antes da Páscoa” .

577
A pêndices

com eles e comendo, ele disse.. (Mc 14,17-18). Acima, sob Ble, vimos que quase
sempre havia imprecisão a respeito de datar a Páscoa quando ela se fundia com a
festa dos Pães sem fermento. Lv 23,6 localiza “o primeiro dia dos Pães sem fermen­
to” em 15 de nisan; na verdade, no AT, 14 de nisan nunca é chamado “o primeiro
dia dos Pães sem fermento”.11 Contudo, o resto da descrição marcana corresponde
ao que sabemos do dia 14 de nisan, por exemplo, a imolação dos cordeiros e os
preparativos para a refeição pascal. A páscoa era comida em um momento depois
de esse dia acabar e o dia quinze começar. (Os relatos mateano e lucano apontam
na mesma direção; e em nenhum dos sinóticos a Páscoa volta a ser mencionada
depois disso, como observamos em Blc, acima.) Assim, a refeição descrita (a
Ultima Ceia) que Jesus comeu com os Doze deve ter sido a refeição pascal (e o
é especificamente em Lc 22,15). Pela lógica da sequência no calendário — mas
não pela afirmação evangélica sinótica — , o que se segue no restante da noite (ida
ao Getsêmani, prisão, julgamento judaico) e durante o dia seguinte (julgamento
romano, crucificação, morte, sepultamento) deve ter acontecido no mesmo dia: 15
de nisan, uma quinta/sexta-feira. (Muitos comentaristas acrescentam “ na Páscoa”,
mas vimos acima que, tecnicamente nesse período, a Páscoa era no dia 14, o dia
do sacrifício do cordeiro, não o dia de comê-lo. De forma menos controversa, o dia
15 era tecnicamente o primeiro dia dos Pães sem fermento.)

Muitos biblistas aceitam este dia 15 de nisan como a data mais plausível
da crucificação, inclusive Baur, W. Bauer, Dalman, Edersheim, Jeremias, J. B.
Lightfoot, Schlatter e Zahn. Quase sempre, pelo menos implicitamente, parte da
lógica desses biblistas é que Marcos preserva a tradição mais antiga. A principal
razão para duvidar dessa cronologia é o número de atividades que os sinóticos
descrevem acontecendo no que deve ter sido um dia festivo solene: uma multidão
saindo para o Getsêmani para prender Jesus; uma sessão do sinédrio para condenar
Jesus à morte; autoridades do sinédrio e também multidões indo ver o governa­
dor romano; Simão de Cirene vindo dos campos (Mc 15,21); muitos transeuntes

11 A respeito de passagens controversas, ver JEWJ, p. 17, n. 2. Há quem tente entender, em Mc 14,12, o
grego prote (“primeiro”) como pro (“o dia antes dos Pães sem fermento”), ou pressuponha um original
aramaico mal compreendido, que deveria ter sido traduzido: “antes do primeiro dos Pães sem fermento”
(ver EvPd 2,5c). Com toda a probabilidade, estamos lidando com escrito marcano descuidado, onde o
que ele realmente queria dizer em Mc 14,12 é definido pela segunda frase, de modo que ele podería ser
parafraseado: “ E no dia inicial dos Pães sem fermento/da Páscoa, quando eles estavam sacrificando o
cordeiro” .

578
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

no local da crucificação (Mc 15,29); a compra de um pano de linho (Mc 15,46).


JEW J, p. 74-79, afirma que é possível encontrar indicações na tradição judaica
que permitem cada uma dessas ações em uma festa; mas, além de debates sobre
os pontos individuais de Jeremias,12 a aglomeração de tanta atividade em um dia
de festa parece altamente implausível. Além disso, toda essa ação contra Jesus no
dia festivo vai contra o desejo expresso dos chefes dos sacerdotes e dos escribas de
que prender Jesus e matá-lo não deveria acontecer na festa para que não houvesse
tumulto entre o povo (Mc 14,1-2).

c) Indicações antecipadas joaninas. Depois de relatar uma reunião do siné-


drio que resultou em um plano para matar Jesus (Jo 11,45-53) e na fuga de Jesus
para Efraim (Jo 11,54), João indica que “a Páscoa dos judeus estava próxima e
muitos da região subiram a Jerusalém, antes da Páscoa, a fim de se purificarem” (Jo
11,55). Embora a situação seja semelhante à das indicações antecipadas sinóticas,
examinadas em a), acima, o “estava próxima” de João é mais vago que o “depois de
dois dias” de Mc 14,1. E ssa proximidade da Páscoa faz muitas pessoas subirem a
Jerusalém para a festa, a fim de se purificarem, mas João não dá nenhuma indicação
de quanto tempo levaria — presumivelmente, não menos de sete dias.13 Em seguida,
nos é dito (Jo 12,1) que seis dias antes da Páscoa Jesus veio a Betânia, onde Maria
ungiu-lhe os pés, unguento guardado para seu sepultamento.14 Observemos que
João torna sequenciais os mesmos episódios que, em Mc 14,1-11, estão misturados.
Ali, Marcos colocou a unção em uma estrutura com a menção de que a Páscoa seria
depois de dois dias; com que seriedade, então, devemos entender a datação joanina
da cena de unção em seis dias antes da Páscoa? Tudo o que sabemos é que João
(ao contrário do que pratica em Jo 1,29.35.43; 2,1) não explica uma sequência de
dias antes de chegar à véspera da Páscoa; de fato, há apenas um dia interveniente

12 Muitos dos textos judaicos citados são de bem depois do tempo de Jesus e, assim, são duvidosamente
aplicáveis. Em especial, há quem tenha questionado a defesa por Jeremias de uma sessão do sinédrio
em um dia de festa, para a qual ele recorre à necessidade imediata de livrar o povo de um falso profeta
(JEWJ, p. 78-79).
Li Ver o costume de ser purificado antes de celebrar uma festa em Nm 9,10-11; 2Cr 30,16-18; Josefo,
Guerra I,xi,6; #229; At 21,24-27. Nm 19,11-12 exige um período de sete dias para purificar a impureza
contraída no contato com um cadáver, com purificação de água no terceiro e sétimo dias. Em relação aos
Pães sem fermento, é provável que isso acontecesse nos dias 10 e 14 de nisan.
14 Será que isso pode ser comparado a uma purificação no primeiro dia do período de sete dias mencionado
na nota anterior?

579
A pêndices

especificamente mencionado, a saber, o dia seguinte de Jo 12,12ss, no qual uma


multidão saúda Jesus com ramos de palmeiras quando ele entra em Jerusalém.

d) Referências joaninas à Páscoa que se aproxima. João tem uma referência


imprecisa à Páscoa judaica no contexto de Jesus comer com os discípulos, a saber,
em Jo 13,1, “antes da festa da Páscoa” aparece no início de uma introdução geral
à segunda parte do Evangelho que começa com uma refeição vespertina na noite
anterior à morte de Jesus. Em discordância com as referências cronológicas sinóticas
mais específicas à refeição, a redação joanina não sugere que Jesus come a refeição
pascal com os discípulos. Mais exatamente, depois de parte da refeição terminar,
Judas sai e assim faz alguns pensarem que Jesus lhe dissera para ir comprar o
que era necessário para a festa (Jo 13,29). Como a única festa que João menciona
é a Páscoa (não os Pães sem fermento) e a refeição é o fator principal na Páscoa,
certamente isso é indicação de que a refeição pascal ainda está por acontecer.
João se afasta ainda mais dos sinóticos ao continuar suas referências cronológicas
durante o dia seguinte e aplicá-las fora do círculo de Jesus a “os judeus” em geral.
Na manhã seguinte, diante do pretório de Pilatos, quando ele está prestes a iniciar
o julgamento de Jesus, os judeus (líderes e povo; ver Jo 18,35.38) são descritos (Jo
18,28) evitando a impureza para poderem comer o cordeiro (/a refeição) pascal.
E quando o julgamento está perto do fim,lo
*15 quando Pilatos leva Jesus para fora e
senta no tribunal, nos é dito que é dia de preparação para a Páscoa (Jo 19,14).16
Não há dúvida, então, de que João apresenta toda a noite fatídica e o dia seguinte
(que vimos ser quinta/sexta-feira) como 14 de nisan, o dia antes daquele em que
a refeição pascal seria consumida.17

É provável que os biblistas que defendem a cronologia joanina contra a dos


sinóticos constituam a maioria, por exemplo, Blinzler, Brooke, Burkitt, Cadoux,

lo No meio do julgamento, Jo 18,39 fala do costume judaico de soltar um prisioneiro na Páscoa, mas, por
essa referência, não dá para dizer se a Páscoa está prestes a começar ou já começou.
16 C. C. Torrey (JBL 50, 1931, p. 227-241) tenta evitar a importância disso, argumentando que paraskeue
(“ dia de preparação”) era simples equivalência do hebraico/aramaico ‘erebi’arâba’ (“véspera” ), especi­
ficamente a véspera do sábado, ou a sexta-feira. Portanto, João não se referia ao dia de preparação para
a Páscoa, mas a uma sexta-feira na semana da Páscoa. S. Zeitlin (JBL 51,1932, p. 263-271) mostra que
isso não é justificável com base em indícios semíticos e afirmei acima, em § 35, que a conotação grega
de “preparação” não deve ser descartada, nem mesmo em uma expressão estereotipada.
17 Embora, pelos cálculos calendares mais antigos, 14 de nisan, quando os cordeiros eram sacrificados,
possa ter sido considerado Páscoa (Ble, acima), para João, o dia 15, quando se fazia a refeição, era a
Páscoa.

580
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

Dibelius, Hoskyns, T. W. Manson, C. G. Montefiore, G. Ogg, Peake, Rawlinson,


Sanday, Strachan, Streeter e Taylor — apesar da tendência dos adversários deles
de citar o princípio geral de que não se pode esperar um relato histórico de João.
A meu ver, esse princípio é simplesmente tão inválido quanto a tese mais antiga de
que o quarto Evangelho foi escrito pela mais íntima das testemunhas oculares (João,
filho de Zebedeu) e, assim, é o mais histórico de todos os Evangelhos. Nenhum dos
quatro Evangelhos canônicos é história pura; todos preservam tradições mais antigas
transformadas pela reflexão teológica e reunidas com propósitos missionários ou
pastorais. Quando discordam, nenhum princípio geral resolve a questão do mais
plausível. A cronologia joanina é apoiada por EvPd 2,5c, onde Jesus é entregue para
execução “antes do primeiro dia de sua festa dos Pães sem fermento”, e por TalBab
Sanhedrin 43a: “ Na véspera da Páscoa Yeshu, foi pendurado”. (Entretanto, essas
duas referências podem ter sido influenciadas indiretamente por João.18) Com toda
a probabilidade, o argumento mais persuasivo para os que aceitam a datação da
crucificação é que, então, as muitas atividades descritas na quinta/sexta-feira não
ocorrem em um dia festivo. Entretanto, talvez seja errado supor que 14 de nisan, o
dia em que os cordeiros eram sacrificados na área do Templo, não era dia festivo.
Mesmo que fosse considerado apenas o “dia de preparação para a Páscoa” (Jo 19,14),
segundo a lei judaica mais tardia, como explicamos no comentário, algumas das
atividades eram proibidas também na véspera de um dia de festa, por exemplo, o
julgamento judaico por um crime capital. Entretanto, não temos certeza de quanto
essa atitude altamente protetora para com legalidades estava em vigor no século I.19

3 . Tentativas para lidar com as discrepâncias

Vimos que todos os Evangelhos fixam a morte de Jesus no dia anterior ao


sábado: assim, uma quinta/sexta-feira. Também vimos que, por causa de suas

18 Sabemos da existência, no Cristianismo do início do século II, dos “quartodecimanos” que afirmavam
dever a Páscoa cristã ser sempre celebrada no dia 14 de nisan, não importando o dia da semana em que
caísse. Para G. Ziener (“Johannesevangelium und urchristliche Passafeier” , em BZ 2,1958, p. 263-274),
o quarto Evangelho se origina de uma celebração judaico-cristã primitiva, do tipo dos quartodecimanos
— desse modo, a datação joanina pode ter tido apenas valor litúrgico. Entretanto, muitos veem a relação
na direção oposta: a datação joanina contribuiu para a prática dos quartodecimanos.
19 Sabemos que, a esse tempo, havia certo respeito por vésperas. Jt 8,6 não tem jejum na véspera do sábado
e na véspera da lua nova, mas não menciona a véspera das grandes festas. Mixná Pesahim 4,5 relata que
na Judeia era costume continuar com as ocupações na véspera da Páscoa até o meio-dia, mas na Galileia
o costume era não fazer absolutamente nenhum trabalho.

581
A pEnoices

indicações que apontam para a ceia que Jesus comeu com os discípulos como re­
feição pascal, os evangelistas sinóticos logicamente subentendem que essa quinta/
sexta-feira era 15 de nisan. As passagens joaninas que se referem a acontecimentos
na quinta-feira à noite e na sexta-feira durante o dia indicam que a quinta/sexta-feira
era 14 de nisan, a véspera (dia de preparação) do dia 15, quando a refeição pascal
seria consumida. Tentativas de lidar com essa discrepância entre os sinóticos e João
vão desde afirmar que as duas cronologias estão certas, passando pela preferência
de uma à outra, até a opinião de que nenhuma está certa. A solução mais fácil é
aceitar uma das duas apresentações como mais plausível — julgamento que não
resolve necessariamente a questão de historicidade, embora muitos comentaristas
combinem a busca para encontrar o que o evangelista pretendia com o estudo do
que aconteceu.20 Entretanto, não raro, na duvidosa suposição de que os Evangelhos
devem ser históricos, há o desejo de harmonizar as duas imagens. Examinemos
algumas das proposições mais proeminentes.

a) Os sinóticos e João estão corretos e é possível harmonizá-los reorgani­


zando a sequência. Quase sempre essa solução baseia-se na antiga tese de que o
autor de João conhecia os sinóticos e escreveu para suplementá-los, presumindo que
suas passagens seriam intercaladas com as deles (mas, que pena, esquecendo-se
de fornecer uma chave para fazer isso). A forma arábica do Diatessarão de Taciano
fixa Jo 13,1-20 (refeição datada antes da Páscoa) antes do relato sinótico da Última
Ceia (a refeição pascal). Isso deixa de fora a referência em Jo 18,28, onde os judeus
ainda não comeram a Páscoa. Para ser plausível, então, a reorganização tem de ser
combinada com outras proposições: por exemplo, as autoridades judaicas adiaram
a celebração da refeição pascal até se livrarem de Jesus, seu arqui-inimigo (tão
antiga quanto Crisóstomo).21 De modo geral, penso que essa solução pressupõe o
interesse em uma sequência harmonizada totalmente estranha aos evangelistas e
em algumas de suas combinações, presume um comportamento judaico implausível.

20 Outra questão é se algum dos evangelistas tinha conhecimento pessoal do dia exato em que Jesus morreu.
E possível duvidar disso sem descer ao niilismo de supor que nenhum autor conhecia nem se importava
com o que aconteceu na Paixão de Jesus.
21 Outra proposição é a de Heawood (“Time” , p. 42-44), segundo a qual, em João, o relato de que os judeus
evitaram a contaminação “ a fim de poderem comer a Páscoa” é confuso e, na verdade, significa: a fim
de poderem completar as purificações da festa dos Pães sem fermento — purificações que se seguiam
à refeição da Páscoa no dia 15. Zeitlin (“Time” , p. 46-47) está perfeitamente correto ao rejeitar essa
introdução em João de “Pães sem fermento” , nomenclatura que ele nunca emprega e que, quando João
escreveu, estava saindo de uso como nome da festa (nota 4, acima).

582
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

b) Os sinóticos e João estão corretos porque havia duas celebrações da


Páscoa, com um dia de diferença.22 Há quem apoie essa possibilidade com
base em um dispositivo da lei segundo o qual quem não conseguia celebrar no dia
14 de nisan podia celebrar no dia 14 do mês seguinte (Nm 9,10-11). Entretanto,
na verdade, essa “cláusula de escape” se opõe à probabilidade de outro escape
por meio de dias contíguos legalmente tolerados para a Páscoa no próprio mês de
nisan. (Nm 9,13 é severo com os que não comem no tempo marcado precisamente
porque uma alternativa está disponível.) Os que adotam a abordagem de duas
Páscoas sempre mencionam que a Páscoa (a lua cheia) era calculada a partir da
visão da lua nova no início de nisan, visão que variava em regiões diferentes. (Na
verdade, os judeus antigos tinham um conhecimento exato de astronomia que
pode ter ajudado o olho nu.) Outra alegação, bastante justificada, é que os vários
relatos veterotestamentários que descrevem como celebrar as festas nem sempre
eram consistentes, pois expressam práticas diferentes, que mudaram através dos
séculos, e que havia dissensão entre os judeus a respeito de como interpretá-las.
Certamente havia controvérsia quanto a alguns detalhes cronológicos pertinentes a
Páscoa/Pães sem fermento e a respeito de quando celebrar a festa das Semanas.23
Ao julgar as variantes dessa abordagem, é preciso reconhecer que os sinóticos ligam

22 Alguns biblistas apresentam como analogia o fato de, na diáspora, os judeus celebrarem a festa das
Semanas em um período de dois dias (para terem certeza de ser o dia certo), enquanto os de Jerusalém
celebravam em um único dia. A analogia é fraca, pois a celebração da Páscoa por Jesus teve lugar em
Jerusalém e ele não era judeu da diáspora. A referência em TalBab Megilla 31a a dois dias de Páscoa
para levar em conta a diáspora na Babilônia faz parte de um nível redacional, talvez cerca de cinco
séculos depois de Jesus.
23 Mixná Pesahim 4,5 preserva a memória de uma controvérsia entre as escolas de Shamai e Hilel quanto
ao fato de o trabalho antes da Páscoa ter de cessar na noite em que o 14 de nisan começava ou somente
ao nascer do sol. Quanto à festa das Semanas, depois do primeiro dia da festa dos Pães sem fermento
vinha o dia para fazer o gesto com o feixe das primícias da colheita da cevada. Lv 23,11 diz: “ O sacerdote
fará isso no dia seguinte ao sábado” ; e Lv 23,15-16 calcula a festa das Semanas (Pentecostes) como o
quinquagésimo dia de um período que começava depois do sábado. Havia controvérsia quanto ao fato
de o “ sábado” indicado ter de ser considerado equivalente ao dia santo de descanso, constituído pelo
dia 15 de nisan, o que poria o gesto das primícias em 16 de nisan, independentemente do dia da semana
em que este caísse (opinião associada aos fariseus; defendida por Josefo [Ant. III,x,5; #250] e Fílon [De
specialibus legibus ii,30; #176] e implícita na LXX de Lv 23,11), ou como o primeiro sábado que ocorresse
depois do dia 15, de modo que a cerimônia das primícias era sempre em um domingo (opinião associada
aos saduceus: ver Tosepta Ros Hassana 1,15). De modo interessante, H. Montefiore (“ When”), com base
em ICor 15,20, onde Cristo ressuscitou dos mortos como primícias, afirma que o gesto com o feixe no
dia 16 de nisan aconteceu, nesse ano, no domingo, quando o túmulo foi encontrado vazio; assim, sexta-
-sábado era o dia 15 e quinta/sexta-feira, o dia 14, como na cronologia joanina. Entretanto, segundo o
outro cálculo, o gesto sempre acontecia em um domingo, independentemente da data em nisan.

583
A pêndices

referências de tempo à refeição particular de Jesus com os discípulos, ao passo que


João descreve uma cronologia pública. Contudo, a celebração de uma verdadeira
refeição pascal em Jerusalém tinha de depender de quando os sacerdotes matavam
cordeiros no Templo, e assim os tornavam disponíveis para a refeição — fator público
que contrariava decisões calendares particulares. As variantes da abordagem das
duas Páscoas incluem as seguintes:

1) Talvez os galileus celebrassem a Páscoa um dia antes do que era costume


em Jerusalém (todo ano? esse ano?).24 Jesus e seus seguidores da Galileia teriam
então celebrado a Páscoa como os sinóticos descrevem, enquanto o calendário
público de Jerusalém estaria refletido em João. Mixná Pesahim 4,5 mostra que, no
século II d.C., havia uma diferença entre a Galileia e a Judeia quanto a quando o
trabalho devia parar na véspera da Páscoa, mas a existência de uma diferença no
século I quanto ao dia de celebrar a Páscoa continua uma suposição pouco sólida.

2) Talvez os fariseus seguissem um cálculo (e Jesus estava mais próximo


deles), enquanto os (sacerdotes) saduceus seguiam outro, que dirigia a vida pú­
blica (o indicado por João). Por exemplo, há uma teoria de que, quando o dia para
comer a páscoa caía no sábado (como no cálculo joanino), as limitações quanto
ao trabalho na véspera do sábado impediam os sacerdotes de imolar o número
necessário de cordeiros; e assim, eles tinham de começar o sacrifício um dia an­
tes, na quinta-feira à tarde. Do mesmo modo, Chenderlin (“Distributed”, p. 392)
afirma que as autoridades de Jerusalém podem ter tido de fazer uma provisão para
dois dias de sacrifício em nisan porque não conseguiam matar em um único dia
cordeiros suficientes para satisfazer as necessidades de centenas de milhares de
peregrinos que chegavam. (Contudo, começar a imolação ao meio-dia do dia 14 já
era uma concessão para abranger esses aspectos práticos.) Diante desse procedi­
mento sacerdotal - a teoria continua - e obrigados pela lei segundo a qual nada
do cordeiro imolado podia permanecer até a manhã seguinte, os fariseus e seus
simpatizantes tinham de comer o cordeiro na noite do primeiro dia, embora esse não
fosse o tempo regular (no ano da morte de Jesus, foi a noite de quinta/sexta-feira,
no dia 14), enquanto os saduceus, menos legalistas, esperavam até a segunda noite

21 Dockx (“Le 14 Nisan” , p. 26-29), depois de examinar algumas das variantes harmonizadoras que vou
apresentar, julga essa a única proposição realmente defensável. Ele sugere que os galileus não aceitavam
como obrigatória a decisão de uma comissão de calendário que se reunia em Jerusalém no dia 29 de
cada mês. Mixná Ros Hassana 1 é a fonte para os que imaginam como a lua nova que marcava um novo
mês era calculada em Jerusalém; ver Shepherd, “ Are Both” , p. 127.

584
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

regular, que começava no dia 15 (sexta/sábado). Contra essa teorização está o fato
de os saduceus realmente observarem a lei escrita, e não temos razão para pensar
que eles seriam capazes de ignorar Ex 12,10. Além disso, é estranho colocar toda
a responsabilidade de solucionar as discrepâncias evangélicas na disponibilidade
de um cordeiro morto, quando nenhum Evangelho menciona que um cordeiro
fazia parte da refeição. Certamente, Marcos não demonstra ter percepção de uma
controvérsia calendar entre saduceus e fariseus, pois, em sua primeira menção da
próxima Páscoa (Mc 14,1), os chefes dos sacerdotes cooperam com os escribas (um
grupo que, em outras passagens, ele associa com os fariseus: Mc 2,16; 7,1.5), em
uma trama contra Jesus que pressupõe o mesmo entendimento da festa.

3) Os cálculos cronológicos variavam em toda a diáspora, onde os judeus se


espalhavam a mais de 1.600 quilômetros de Jerusalém, talvez por isso houvesse
a estratégia de uma Páscoa de dois dias consecutivos, a fim de haver a certeza de
abranger o dia correto. De modo mais específico, Shepherd (“Are Both” ) sugere
que os judeus da diáspora utilizavam cálculos astronômicos fixos, segundo os quais
quinta/sexta-feira era 15 de nisan, enquanto os palestinos ficavam na dependência
de avistar a lua nova e sexta/sábado era o dia 15 para eles. Nessas explicações,
sabendo que estaria morto no segundo dos dois dias, Jesus optou nesse ano pelo
primeiro (embora ele não fosse um judeu da diáspora). Ele celebrou a refeição
pascal no dia 14 de nisan, enquanto muitos outros judeus de seu tempo fizeram a
refeição no dia 15 (sexta/sábado). Parece que essas teorias imaginam os sacerdotes
cooperando com um cálculo calendar que eles não aceitavam, ao imolarem cordeiros
no dia anterior a cada uma dessas Páscoas! O problema com todas essas soluções é
não termos nenhum indício para a celebração em Jerusalém de dois dias seguidos
como Páscoa. A solução foi inventada para sanar discrepâncias e não pode invocar
o apoio de práticas judaicas comprovadas.

c) Os sinóticos e João estão corretos porque os sinóticos não estavam


descrevendo uma refeição pascal.25 Ao contrário, do mesmo modo que João,

2a Com menos frequência, o argumento avança na direção oposta, a saber, que nos sinóticos e em João Jesus
fez a refeição da Páscoa com seus seguidores; e quando, durante o dia seguinte, Jo 18,28 relata que os
judeus não queriam se contaminar entrando no pretório, a fim de “poderem comer \phagein] o cordeiro/a
refeição pascal” , a referência é às refeições subsequentes do período festivo de sete dias. Chenderlin
(“Distributed” , p. 369-370) defende isso e menciona que o verbo para a Páscoa/páscoa propriamente
dita era thyein (“sacrificar”) ou poiein (“fazer”). Entretanto, dado que o AT mostra preocupação especí­
fica quanto à pureza preparatória para comer a refeição pascal (por exemplo, Nm 9,6-13, com Nm 9,11

585
A pêndices

estavam descrevendo uma refeição não pascal consumida por Jesus com os discí­
pulos no dia 14 de nisan. Alguns biblistas julgam que, na noite antes de morrer,
Jesus fez uma refeição abençoada de maneira especial,*26 ou uma refeição do tipo
consumido por confederações religiosas (Haburoth).27 Entretanto, além do fato de
sabermos muito pouco a respeito da prática dessas refeições sugeridas no século I
d.C. (o que seria um caso de explicar obscurum per obscurius), essas sugestões não
fazem justiça aos dados sinóticos a respeito de preparar para a páscoa, nem a Lc
22,15: “ Desejei comer convosco esta refeição pascal”. Sendo assim, uma sugestão
mais comum é que, na noite que terminou o dia 13 de nisan e começou o dia 14,
segundo os sinóticos e também João, Jesus comeu uma refeição pré-pascal,28 re­
feição essa que ele mesmo designou a fim de antecipar a refeição pascal habitual
a ser consumida na noite seguinte (que ele sabia não poder comer porque estaria
morto). Os indícios que JEW J, p. 41-62, reuniu para provar que a Última Ceia foi
uma refeição pascal29 são muitas vezes citados na teoria da refeição pré-pascal:
foi refeição pascal em tudo, exceto o cordeiro (que não pôde ser obtido porque só
seria imolado na tarde seguinte); e é por isso que Jesus falou de comer esta páscoa

usando phagein), essa é uma interpretação forçada. Além disso, lida mal com Jo 19,14, que chama o
dia em que Jesus foi julgado de “(dia de) preparação para a Páscoa” — claramente, essa linguagem
envolve a preparação para um dia muito especial, não para qualquer dia em uma temporada festiva de
uma semana. Por fim, a tese não faz justiça a Jo 13,29, o que é forte indicação de que a refeição que
Jesus está comendo não é a refeição da festa (da Páscoa), para a qual ainda é preciso comprar as coisas.
26 Não raro é feita referência a Qiddush (Kiddush), ou refeições de purificação, isto é, alimento consumido
nas vésperas de sábado e de festas para santificar ritualmente aqueles dias (ver Walker, “ Datíng” , p.
294). Taylor (Jesus, p. 115-116) relata que G. H. Box optou pela Qiddush de sábado, enquanto W. E.
Oesterley e G. H. C. Macgregor preferiram a Qiddush da Páscoa. Taylor (também Geldenhuys, “ Day” , p.
651) rejeita essas proposições baseado no fato de ser essa refeição consumida na noite em que o sábado
ou a Páscoa começava, assim, regularmente, na sexta para o sábado, e também em uma sexta nesse ano
em particular, se seguirmos a cronologia joanina para a Páscoa. Não há indícios de que qualquer delas
pudesse ser antecipada em um dia e consumida em uma quinta-feira à noite, como nos sinóticos. Ver
debates rabínicos a respeito de várias ocasiões para recitar a Qiddush em TalBab Pesahim 105a ss.
2‘ JJT J, p. 333-355, estuda as habârâ, tentando reconstruir a história dessas comunidades em Jerusalém
no século I d.C.; mas, quase todos os indícios são rabínicos e é muito difícil saber quanta organização
mais tardia foi retrojetada na imagem.
28 Ver Blank, “Johannespassion” , p. 151-152; Bomhãuser, Death, p. 63-64. Ocasionalmente, tenho a
impressão de que os proponentes da refeição pré-pascal pensam em uma refeição que era costume
aceito para a noite que terminava o dia 13 de nisan e começava o dia 14. Não conheço prova concreta
da existência, nessa época, de tal refeição estabelecida.
29 Consumida nos limites de Jerusalém, à noite, com um número apropriado (no mínimo dez); reclinado;
com os presentes lavados e, assim, ritualmente puros; vinho; a sugestão de dar alguma coisa aos pobres;
palavras interpretativas sobre o pão e o vinho.

586
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês,ano)

com seus seguidores. Contudo, a fluência da narrativa sinótica não favorece essa
antecipação particular da refeição pascal; (dois) discípulos são encarregados de ir à
cidade procurar uma casa onde Jesus possa comer a páscoa com os discípulos (Mc
14,12-16 e par.). E ssa preparação envolve contato público e certamente não supõe
que, quando se reunirem à noite, eles vão comer um tipo de páscoa particular um
dia antes de todas as outras pessoas. A meu ver, essa teoria é mais um exemplo
de uma criação ad hoc com propósitos de harmonização. Se não tivéssemos João,
os que agora se inclinam a encontrar uma refeição pré-pascal nos relatos sinóticos
da Ultima Ceia nunca pensariam nessa tese e defenderíam uma refeição pascal.

Além disso, quer se pense em uma refeição pascal, quer em uma pré-pascal,
os paralelos da Páscoa em JEW J são um apoio fraco. Muitos deles são tirados de
descrições mixnaicas da Páscoa que são duvidosamente aplicáveis ao tempo de
Jesus, como lembrou Bokser (“ Was” ), que se especializou em tentar reconstruir
a refeição festiva primitiva. Pessoalmente, acho bastante persuasiva sua tese30 de
que o seder da Páscoa, como o conhecemos de fontes judaicas, só surgiu depois
de 70 d.C., quando o cordeiro já não podia ser morto sacrificalmente e a perda
desse elemento principal da refeição fez com que maior ênfase simbólica fosse
dada a outros elementos à guisa de compensação. Por outro lado, precisamos tomar
cuidado ao aplicar os argumentos de Bokser a um exame dos relatos evangélicos
da Ultima Ceia. Eles provam que não é possível demonstrar que historicamente
Jesus comeu uma refeição pascal com os discípulos, como Jeremias e muitos outros
procuraram fazer. Eles não nos dizem se os evangelistas que conheciam a situação
judaica depois de 70 estavam distorcendo a descrição da última refeição de Jesus
com imagens das refeições pascais “sem cordeiro” que começaram a ser celebra­
das a esse tempo. Os aspectos da Páscoa semelhantes ao seder desenvolveram-se
logo depois de 70? Quando seus ecos entraram nas descrições cristãs da Ultima
Ceia? Já havia um desenvolvimento incipiente de simbolismo seder na Páscoa “sem
cordeiro” celebrada fora de Jerusalém, na diáspora, que teria facilitado os dois
processos? Os leitores devem se lembrar dessas questões quando considerarem,
na grande subseção a seguir (3), o ponto de vista que adotei neste comentário.
Entretanto, antes de nos voltarmos para ela, é preciso mencionar outra tentativa
para harmonizar os Evangelhos.

,0 B. M. Bokser, The Origins of the Seder, Berkeley, Univ. of Califórnia, 1984.

587
A pEndkes

d) Os sinóticos e João estão corretos na medida em que preservam memórias


da cronologia do calendário de Qumrã que Jesus seguiu em seus últimos dias.
Embora muitos tenham teorizado que simultaneamente houve adesão a diversos
calendários religiosos por judeus na Palestina no século I d.C., só tivemos nossa
primeira prova concreta disso com a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto,
em Qumrã, em 1947. Claramente, os que produziram os Manuscritos (identificados
pela maioria como essênios) aderiram ao calendário solar presumível no Livro dos
Jubileus, antigo calendário que fora substituído no Templo de Jerusalém (prova­
velmente no século II a.C.) pelo que costumamos pensar ser o calendário lunar
judaico comum. 0 calendário de Qumrã, baseado em um ano solar aproximado
de 364 dias, com adições intercaladas, era permanente de maneira engenhosa, de
modo que as festas caíam no mesmo dia da semana todos os anos. Por exemplo,
na suposição de que os dias sejam contados a partir do entardecer, 15 de nisan
(a data da refeição pascal) sempre começaria terça-feira à noite e continuaria du­
rante o dia da quarta-feira. Com Jaubert e Ruckstuhl, como defensores, e muitos
outros (Delorme, Skehan, Schwank, E. Vogt) expressando interesse ou apoio, uma
organização harmoniosa de detalhes evangélicos foi proposta para mostrar como
Jesus poderia ter seguido o calendário solar (essênio) de Qumrã. Nessa teoria, o
calendário solar reflete-se nas referências de tempo nos sinóticos, enquanto as in­
dicações joaninas foram influenciadas pelas datas correspondentes no calendário
lunar oficial, seguido pelas autoridades de Jerusalém. Esquematizo os resultados
no Quadro 11, a seguir.31

QUADRO 11. COMPARAÇÃO ENTRE O CALENDÁRIO SOLAR


(DE QUMRÃ) E O CALENDÁRIO LUNAR PARA DATAR EVENTOS
DA NARRATIVA DA PAIXÃO
Dia Acontecimento evangélico Data de nisan
terça-feira, durante o dia —» preparação para a refeição 14 solar
pascal (Mc 14,12-16) 11 lunar

31 As referências evangélicas que apresento ali supõem algum entendimento intuitivo pelos leitores: Mesmo
que um evento ocorra em diversos ou todos os Evangelhos, por exemplo, as negações de Pedro, apresento
a referência mais apropriada à sequência, por exemplo, só em Lucas essas negações são seguidas ime­
diatamente por um escárnio de Jesus. Quem quiser realmente saber por que apresento uma referência
em vez de outra deve consultar o estudo do episódio no comentário.

588
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

terça-feira, ao entardecer —> refeição pascal da Última C eia 15 solar


(Mc 14,17-18; Lc 22,15) comida antes (refeição pascal)
de 15 de nisan (lunar) (Jo 13,1)

noite —» Getsêm ani; prisão de Je su s 12 lunar


(terça/quarta) Interrogatório diante de Anás
(Mc 14,53a; Jo 18,13)
N egações de Pedro; escárnio pelos
criados (Lc 22,54-65)
Enviado a C aifás (Jo 18,24);
I a sessão do sinédrio (Lc 22,66-71)

quarta-feira durante Escárnio de Je su s pelas


o dia —» autoridades (Mc 14,65)
noite —> (Jesus sob a guarda do sumo sacerdote) 16 solar
(quarta/quinta-feira)

quinta-feira de manhã —¥ 2* sessão do sinédrio (Mc 15,1a) 13 lunar


Jesus levado a Pilatos (Mc 15,1b; Lc 23,1)
Início do julgamento por Pilatos
(Lc 23,2-5)
quinta à tarde —» Jesus levado a Herodes (Lc 23,6-12)
Volta a Pilatos e retomada do julgamento
(Lc 23,15ss); recesso
noite —> (Jesus sob a guarda de Pilatos) 17 solar
(quinta-sexta) Sonho da mulher de Pilatos (Mt 27,19)

sexta-feira de manhã —> Julgamento por Pilatos retomado; 14 lunar


Barrabás
Pilatos sentencia Jesus (Mc 15,15)
meio-dia antes da Páscoa (Jo 19,14)
(sacerdotes judeus imolam cordeiros
no recinto do Templo)
Crucificação, morte, sepultamento
por José
sexta-feira ao entardecer —» Je su s no túmulo 18 solar
Os ju d eu s comem su a refeição pascal
sábado de m anhã —¥ (Jo 18,28b) 15 lunar
Sacerdotes e fariseus pedem a (refeição pascal)
Pilatos para guardar o sepulcro
(Mt 27,62-64)

Vou agora relacionar argumentos apresentados em defesa dessa ousada re­


construção e, ao mesmo tempo, dar-lhes uma resposta separada por travessões: i)
Confere mais tempo para acontecimentos que parecem absurdamente amontoados
nos Evangelhos — mas isso desfaz o motivo de pressa e atuação furtiva que os

589
A pêndices

sinóticos atribuem às autoridades judaicas, ii) Satisfaz as demandas mixnaicas que


exigiam julgamentos durante mais de um dia para crimes punidos com pena de
morte, com um interstício antes da condenação — contudo (§ 18, C3, acima), não
há nenhum indício real de que essas leis judaicas mais tardias estavam em vigor
nessa época, iii) Possibilita que a unção de Jesus pela mulher em Betânia seja “seis
dias antes da Páscoa” (Jo 12,1) e só dois ou três dias antes da Páscoa (Mc 14,1.3) —
mas, só ao preço de ignorar como Marcos juntou Mc 14,1-16, conforme explicamos
acima, iv) Há uma tradição cristã que corrobora uma lembrança da Ultima Ceia na
noite de terça-feira, especialmente em Didascalia Apostolorum 21 (5,13; Connolly,
org., p. 181) — mas, é essa uma reminiscência histórica de que Jesus seguia um
calendário essênio, ou o desejo de cumprir a profecia de que Jesus ficou três dias
e três noites no seio da terra (Mt 12,40), conforme explicamos sob A, acima?

Esse resumo de argumentos de apoio não faz justiça à quantidade de enge-


nhosidade erudita dedicada à defesa da hipótese do calendário essênio. Contudo,
junto-me resolutamente aos que, em artigos ou em críticas de livros, a rejeitam
(Benoit, Blinzler, Gaechter, Jeremias, Ogg, Schubert, Trilling etc.). A harmonização
dos acontecimentos apresentados no quadro põe tradições pré-evangélicas genuínas
junto com revisões literárias pelos evangelistas que deveríam ser deixadas de fora de
uma reconstrução histórica. No comentário, afirmei que a organização lucana (que é
muito importante nesta teoria) origina-se de seu desejo de pôr em ordem mais lógica
(Lc 1,3: kathexes) o que ele encontrou em Marcos e é totalmente secundária. A ideia
de dois julgamentos em Marcos baseia-se em uma interpretação errônea de Mc 15,1.
Não se deve tentar encaixar em uma cronologia claramente imaginosa histórias que
Mateus tomou por empréstimo da tradição popular, por exemplo, o sonho da mulher
de Pilatos. Além disso, que indício existe de que Jesus, em qualquer outra época da
vida, seguiu uma coisa diferente do calendário oficial? A aderência ao calendário
era questão de profunda identidade religiosa; nenhuma acusação contra Jesus por
seus inimigos o recrimina por simpatias essênias ou irregularidades calendares. 0
que levaria Jesus e seus discípulos a se afastarem tão perigosamente do calendário
oficial nesse caso? Onde eles conseguiram o cordeiro para a Páscoa, dias antes do
tempo oficial para a imolação?32 Em suma, essa solução tem base menos plausível
que muitas outras harmonizações e só cria novas dificuldades.

32 Ruckstuhl (“ Zur Chronologie”, p. 50-51) apela para Josefo (Ant. XVIII,i,5; #19), passagem obscura.
É de se supor que os essênios enviassem oferendas ao Templo, mas observassem regras diferentes de

590
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

Ao concluir esta subseção, minha opinião é que as diversas tentativas de


conciliar as discrepâncias cronológicas entre os sinóticos e João são implausíveis,
desnecessárias e enganosas.33 As duas tradições evangélicas nos transmitiram in­
formações cronológicas irreconciliáveis. Pela lógica, então, nenhum ou apenas um
conjunto de informações é histórico. No que se segue, vou ultrapassar essa opinião
para sugerir por que os evangelistas produziram cronologias diferentes, sugestão
que vai esclarecer a tradição histórica mais antiga.

4 . Breve exame da opinião adotada neste comentário

A palavra “breve” aparece no título por duas razões: primeiro, ao refutar as


muitas soluções harmonizadoras acima, expus para os leitores os fatos básicos com
que é preciso lidar; segundo, o longo comentário sobre as NPs que é a essência
deste livro preenche o que está apenas esboçado aqui.

Antes que os Evangelhos fossem escritos, Paulo relatou como tradição rece­
bida (com toda a probabilidade remontando aos anos 30, quando se tornou seguidor
de Jesus) que, na noite em que Jesus foi entregue, ele tomou o pão e disse: “ Isto é o
meu corpo”, e depois da ceia: “ Este cálice é a nova aliança no meu sangue” (ICor
11,23-25). Em outras palavras, ele conhecia a tradição primitiva de uma Ultima Ceia
antes da morte de Jesus (com palavras eucarísticas em uma forma mais próxima do
que Lucas relata). Na mesma carta, Paulo desafia os leitores/ouvintes a jogar fora
o velho fermento, visto que eles são sem fermento, “de fato, Cristo, nosso cordeiro
pascal, foi imolado” (ICor 5,7). Ele declara que Cristo ressuscitou dos mortos,

purificação e, por isso, fossem barrados do recinto do Templo frequentado por outros. O que é incerto
é se Josefo quer dizer que, então, eles iam para outro lugar (em Jerusalém?) para oferecer sacrifícios
em Jerusalém, sob suas regras, ou que cessaram completamente de oferecer sacrifícios em Jerusalém.
Reconhecida a hostilidade dos sacerdotes de Jerusalém para com os sectários de Qumrâ atestada nos
Manuscritos do Mar Morto, é bastante duvidoso que os sacerdotes essênios de Qumrã tivessem permissão
para sacrificar publicamente cordeiros pascais em Jerusalém, de modo que um não essênio como Jesus
podería obter um, se decidisse seguir o calendário solar. Ver Blinzler, Prozess, p. 118-120; HJPAJC, v.
2, p. 570, 582, 588.
33 Infelizmente, muitos que têm interesses religiosos justificáveis nos Evangelhos sentem-se impelidos a
harmonizá-los. Contudo, quando se crê que os Evangelhos são a Palavra inspirada de Deus, por que
procurar melhorar o que eles oferecem, harmonizando suas diferenças, para apresentar aos outros uma
imagem unificada que eles não mostram? Quando se crê que a Igreja cristã foi guiada no reconhecimento
de que os Evangelhos são canônicos ou normativos, por que procurar produzir uma harmonia em lugar
deles? No século II, Taciano fez isso, mas, no fim, a Igreja toda recusou-se a substituir por sua harmonia
os quatro Evangelhos distintos.

591
A pêndices

“primícias dos que adormeceram” (ICor 15,20). Parece claro que, para Paulo, a
morte e a ressurreição de Jesus estavam associadas ao simbolismo dos primeiros
dias da festa da Páscoa/dos Pães sem fermento. Como uma festa de peregrinação
é a explicação mais plausível da razão de Jesus e seus discípulos galileus estarem
juntos em Jerusalém, considero histórico o fato de a Ultima Ceia e a crucificação de
Jesus terem lugar exatamente na Páscoa ou antes dela — fato que os cristãos bem
depressa usaram teologicamente, relacionando sua morte ao sacrifício do cordeiro
pascal. Paulo não é a única testemunha fora dos Evangelhos a fazer isso. Mais
tarde, mas não em óbvia dependência dos Evangelhos, lPd 1,19 fala do “precioso
sangue de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e sem mancha”, fazendo eco a
Ex 12,5. Embora (talvez sob a influência de convenções apocalípticas) Ap 5,6-14
use uma palavra grega para cordeiro (arnion ) que não é empregada pela LX X para
o cordeiro pascal, tal identificação talvez esteja por trás da imagem de Cristo no
livro do Apocalipse (em um contexto litúrgico de incenso, orações e hinos), de pé
como cordeiro imolado que, com seu sangue, adquiria para Deus gente de todas as
tribos. No comentário da Paixão, muitas vezes vimos que um antigo discernimento
encontrou seu caminho na narrativa de modo diferente em Marcos e em João.
Aqui, isso é verdade a respeito da identificação teológica pré-evangélica de Jesus
como cordeiro pascal.

Em Mc 14, a Última Ceia de Jesus com os discípulos é apresentada como


refeição pascal. Isso está claro em Mc 14,12-16, a preparação para a refeição; e,
por isso, creio que Lucas (Lc 22,15) interpreta Marcos corretamente quando faz
Jesus começar a ceia dizendo que desejou comer esta páscoa com os discípulos. Não
sei se a identificação teológica foi completada a ponto de os leitores reconhecerem
aspectos pascais em detalhes de como a refeição é comida e o cálice bebido.34 En­
tretanto, é óbvio que, nesta ceia pascal, as palavras faladas com referência ao pão
e vinho dão ao corpo e sangue de Jesus (“derramado por muitos” ) o lugar central

34 Aliás, ninguém mais sabe, por causa de duas graves lacunas em nossas informações: com que rapidez
foram introduzidas no ritual judaico da refeição pascal as adaptações do período pós-70, quando os
cordeiros já não eram sacrificados (adaptações explicadas na Mixná escrita por volta de 200), e até que
ponto estavam os futuros leitores cristãos dos anos 60-90 (quando os Evangelhos sinóticos foram escritos)
familiarizados com a celebração da Páscoa judaica contemporânea? Do começo ao fim do comentário,
afirmei que a explicação dada por Marcos em Mc 7,3-4 sugere que os leitores pouco sabiam a respeito do
Judaísmo. Lucas tem um bom conhecimento teórico (LXX) do Judaísmo, mas há poucas indicações do que
seus leitores conheciam. É bem possível que a seção judeu-cristã da comunidade mateana conhecesse
bastante o Judaísmo contemporâneo, embora de maneira polêmica.

592
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

que normalmente seria atribuído ao cordeiro sacrificado no Templo, cordeiro que


não é mencionado na Ultima Ceia. Em outras palavras, temos aqui um teologúmeno,
a saber, a apresentação da Última Ceia como refeição pascal é dramatização da
proclamação pré-evangélica de Jesus como o cordeiro pascal. Considerando que
Marcos escreveu isso em forma narrativa,35 foi ele o responsável pelo teologúmeno
básico? Ou, antes de Marcos escrever, os cristãos já haviam começado a imaginar
a “ceia do Senhor” (ICor 11,20) consumida “na noite em que ele foi entregue”
(ICor 11,23) como refeição pascal? 0 dia que começou ao entardecer com a re­
feição pascal teria sido 15 de nisan e o primeiro dia da festa de uma semana dos
Pães sem fermento.36 Mencionamos que Marcos não faz eco à datação desse dia
festivo em nenhum detalhe da Paixão de Jesus subsequente à ceia;3' na verdade,
sem manifestar nenhuma consciência de que precisa dar uma explicação, ele narra
atividades que são extremamente difíceis de conciliar com o dia festivo. Além disso,
com essa datação do dia festivo para a captura e crucificação, ele não modificou
o conflito implícito na referência em Mc 14,2 à trama dos chefes dos sacerdotes
e escribas para não agarrar e matar Jesus “ na festa”. Se Marcos tivesse criado a
datação pascal para a refeição, seria de se esperar que ele cogitasse as implicações
e desse maior consistência à narrativa. Parece mais provável que Marcos assumisse
um entendimento da ceia como refeição pascal e não tentasse mudar a narrativa
básica da Paixão à luz dela — e isso (talvez conscientemente) porque ele pensava
na caracterização pascal da refeição como teologia litúrgica, e não como história.38
A meu ver, então, embora os cristãos logo começassem a pensar na Última Ceia
como refeição pascal, essa imagem não nos dá informações históricas de que Jesus
morreu no dia 15 de nisan; e, na verdade, desconfio que Marcos tenha reconhecido

fa Portanto, a presença de estilo marcano em Mc 14,12-16 não soluciona a questão de ser marcana ou
pré-marcana a inspiração básica.
36 Pelos cálculos de muitos, teria sido Páscoa. Entretanto, como foi explicado em B le, acima, há inconsis­
tência nas referências do século I quanto ao fato de a Páscoa ter sido no dia 14 ou no dia 15 e, por essa
razão, evito o termo.
37 Como lembrei, durante o julgamento por Pilatos, Mc 15,6 e Mt 27,15 falam do costume de soltar um
prisioneiro “em uma/na festa” . Contudo, essa referência não precisa significar mais que durante o período
festivo de oito dias da Páscoa/dos Pães sem fermento e com certeza não ressalta o dia do julgamento
como o dia de festa por excelência.
38 Blank (“Joannespassion” , p. 151-154) apela à teoria de Schille, segundo a qual Marcos reflete o ambiente
cultuai da Páscoa cristã anual, que era a ocasião para recitar a NP. Grappe (“Essai” , p. 106-108) reúne
esforços para usar o que é conhecido a respeito dos quartodecimanos (nota 18, acima) para reconstruir
a prática da Páscoa judeu-cristã primitiva.

593
A pêndices

isso. Portanto, apesar de toda a tinta gasta com o assunto, em discussões cronológi­
cas devemos tratar com extrema cautela (e talvez desistir dela) a chamada datação
sinótica da crucificação em 15 de nisan (datação que, de fato, esses Evangelhos
nunca aplicam a outra coisa além da Ultima Ceia39).

Em Jo 1,29 (Jo 1,36), o discernimento teológico de Jesus como cordeiro


pascal encontra expressão direta quando João Batista o saúda como “o Cordeiro
de Deus que tira o pecado do mundo”.40 0 Evangelho não explica como Jesus, o
cordeiro, tira o pecado do mundo; mas 1 João (que sempre recorda antigas tradições
joaninas), em passagens relacionadas (ljo 1,7; 2,2), diz: “ 0 sangue de Jesus, Seu
Filho, nos purifica de todo pecado” e “ Ele próprio é uma expiação pelos nossos
pecados e não só pelos nossos pecados, mas também pelo mundo inteiro”. Essa
indicação de que, pela sua morte, o Cordeiro de Deus é eficaz contra o pecado do
mundo encontra reforço na incidência frequente de metáforas do cordeiro pascal
na NP joanina. Os soldados não quebram os ossos de Jesus (Jo 19,33), cumprindo
assim a descrição bíblica do cordeiro pascal: “ Não quebrarão nenhum de seus ossos”
(Jo 19,36: Ex 12,10.46; Nm 9,12; § 44, acima, sob “ Cumprimento da Escritura
[Jo 19,36-37]” ). 0 hissopo é usado para erguer a esponja de vinho avinagrado aos
lábios de Jesus, do mesmo modo como foi usado para espargir o sangue do cordeiro
pascal nos batentes das portas dos lares israelitas (Ex 12,22). É provável também
que, ao usar “a sexta hora” (o cálculo de “ hora” comum aos quatro relatos da morte
de Jesus) para o momento no “dia de preparação para a Páscoa” em que Pilatos
condenou Jesus à morte, Jo 19,14 aluda a Jesus como o cordeiro pascal; de fato,
isso aconteceu quando os sacerdotes começaram a imolar os cordeiros, em 14 de
nisan, em preparação para a refeição pascal no dia 15.41 Em outras palavras, como
Marcos, em sua narrativa João entrelaçou o discernimento pré-evangélico de Jesus

39 A única referência no contexto da Paixão não ligada à refeição está em Mc 14,1: “ Mas a Páscoa e os Pães
sem fermento eram (iam ser) depois de dois dias” . Como expliqueí, a natureza de encaixe do material que
se segue em Mc 14,1-11 significa que, sem as referências à Páscoa preparatórias da próxima refeição em
Mc 14,12-14, não poderiamos dizer com precisão, a partir de Marcos, a data do dia em que Jesus morreu
(14 ou 15 de nisan). 0 mesmo pode ser dito de Mateus e Lucas, que aqui dependem muito de Marcos.
40 BGJ (v. 1, p. 58-63) afirma que “ Cordeiro de Deus” talvez seja símbolo polivalente, destinado a recordar
não só o cordeiro pascal (sua referência mais plausível), mas também o tema do servo sofredor que vai
para a morte como ovelha levada ao matadouro (Is 53,7), e até o cordeiro apocalíptico. Os problemas de
vocabulário são discutidos ali.
41 Ver o estudo em § 35, nota 47 e parágrafo referente. Mencionei que, ao retratar Jesus na festa dos Taber-
náculos, assim como aqui, com referência à Páscoa, João esperava que os leitores percebessem alusões
ao simbolismo da festa que evoluira além do explicado no AT.

594
Apêndice 11: Data da crucificação (dia, mês, ano)

como o cordeiro pascal. Ao contrário de Marcos, ele não faz isso com referência
à Ultima Ceia, pois no relato joanino não há nada manifesto que aponte para ela
como refeição pascal e nenhuma referência ao corpo e sangue eucarísticos de Jesus
que pudesse tomar o lugar do cordeiro ausente.42

Como essa análise afeta nossa avaliação da cronologia joanina? Usamos as


sete referências joaninas à Pascoa (três em antecipação e quatro imprecisas, con­
forme examinamos sob B2cd, acima) para determinar que João retrata a quinta/
sexta-feira da Ultima Ceia, do julgamento e da morte de Jesus como 14 de nisan,
a véspera da Páscoa. Somente uma delas (Jo 19,14, examinada em último lugar no
parágrafo anterior), a que fala especificamente do “dia de preparação para a Pás­
coa”, relaciona-se com o fato de Jesus ser retratado como o cordeiro pascal e isso
por uma alusão sutil. Assim, a disparidade não apoia ter João criado a cronologia
para se ajustar a esse discernimento teológico.

Entretanto, essa observação não é suficiente para estabelecer a historicidade:


a cronologia de 14 de nisan, mesmo que não se origine da dramatização teológica
joanina, ainda pode ser produto da imaginação e uma suposição errada. Contudo, é
praticamente impossível encontrar uma data alternativa plausível. Vimos a dúvida
do 15 de nisan e não há nenhuma lembrança que sugira que a crucificação foi mais
tarde que isso. Na verdade, conforme indicado na nota 23, acima, a cerimônia das
primícias que não ocorre mais tarde no período festivo (dia 16 ou domingo) estava
ligada à ressurreição de Jesus, de modo que ele deve ter morrido antes disso. Nem
existe razão para pensar que Jesus morreu antes do dia 14. Não só não há nenhuma
lembrança evangélica nesse sentido, mas também nenhum dia anterior como o dia
13 ou 12 fazia parte da festa da Páscoa judaica ou estava associado à morte do
cordeiro pascal. Se Jesus foi executado em um desses dias, por que a lembrança
mais primitiva preservada da Última Ceia na noite em que Jesus foi entregue à
morte (1 Coríntios) coexiste com uma referência a ele como nosso cordeiro pascal
que foi sacrificado? Suponho ser possível teorizar que, se Jesus morreu no ambiente
geral da Páscoa, os cristãos poderiam ter começado a pensar nele como o cordeiro

42 Jeremias, evidentemente, encontra referências implícitas à Páscoa; ver nota 34, acima, e a questão
maior da duvidosa aplicabilidade ao século I do seder mixnaico da Páscoa. Se, em um período mais
primitivo do desenvolvimento da tradição evangélica joanina, houve um tema da Páscoa na Última Ceia,
ele relaciona-se em parte à aceitação da tese de que a passagem a respeito de comer a carne e beber
o sangue de Jesus em Jo 6,51-58 outrora estava no contexto do capítulo 13 da ceia (ver BGJ, v. 1, p.
287-291).

595
A pêndices

pascal; mas a referência explícita à noite em que ele foi entregue faz parte de uma
tradição que Paulo recebeu e assim nos leva de volta ao pensamento cristão dos dias
bem primitivos.43 Assim, há sólidas razões para julgar histórico o fato de Jesus ter
morrido na quinta/sexta-feira de 14 de nisan, o dia em que os cordeiros pascais eram
sacrificados e véspera de 15 de nisan,44 quando a refeição pascal seria consumida.

C.O ano

Exceto pelos poucos românticos para os quais Jesus não morreu na cruz,
mas acordou no túmulo e fugiu para a índia com Maria Madalena, em sua maioria
os biblistas aceitam o testemunho uniforme dos Evangelhos, segundo o qual Jesus
morreu durante o governo da Judeia por Pôncio Pilatos, que é comumente datado
entre 26 e 36 d.C.45 0 que fazer para estreitar o tempo? As narrativas da infância
de Mateus e Lucas (que não são modelos de história objetiva) indicam que Jesus
nasceu antes de Herodes, o Grande, morrer — morte controversa, mesmo que a
grande maioria aceite 4 a.C.46 Não sabemos quanto tempo antes dessa morte, mas
muitos apelam ao testemunho de Mt 2,26, segundo o qual Herodes procurou matar
os meninos “de dois anos para baixo” e assim optamos pela data do nascimento de
Jesus em 6 a.C. Durante o relato joanino do ministério público de Jesus (Jo 8,57),
“os judeus” lhe dizem: “Ainda não tens cinquenta anos” — quando se nota o tom
hiperbólico dessa declaração e se conta a partir das indicações mateanas e lucanas
do nascimento, ela sugere que Jesus estava ativo publicamente antes de 44 d.C.
Lc 3,23 diz que, quando começou seu ministério, Jesus tinha cerca de trinta anos
(assim, c. 24 d.C.?). Em Lc 3,1, João Batista recebe a Palavra de Deus no 152 ano
do reinado de Tibério César, mas essa datação não é sem dificuldades. Fitzmyer
(Luke, v. 1, p. 455) relaciona cinco fatores problemáticos no cálculo dessa data, mas

4,1 Percebo, evidentemente, que a referência ao cordeiro pascal em ICor 5,7 não é necessariamente tão
antiga quanto o material em ICor 11,23-25; mas as duas passagens se relacionam e não há nenhuma
indicação de novidade na apresentação paulina da metáfora do cordeiro pascal (que com certeza não
é um progresso da missão aos gentios), de modo que não podemos separá-los por um longo espaço de
tempo.
44 Ou, como Jo 19,14 o chama, o “dia de preparação para a Páscoa” .
45 Os evangelistas (exceto Marcos) mencionam o sumo sacerdócio de Caifás, mas isso não ajuda para datar
a crucificação, pois Caifás foi sumo sacerdote antes e depois do governo de Pilatos, de 18 a 36/37. Uma
datação excêntrica para a morte de Jesus é fornecida por R. Eisler (21 d.C.) e J. Steward (24 d.C.).
46 Ver BNM, p. 196-197, 791-795, também R. E. Brown, CBQ 48,1986, p. 482-483.

596
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

muitos optam por agosto/setembro de 28-29 d.C. Às vezes, o cálculo cronológico


lucano não é exato (por exemplo, para o censo sob Quirino; ver BNM, p. 651-662).
Além disso, não sabemos de quanto tempo foi o intervalo entre o recebimento da
Palavra por João Batista e o início do ministério de Jesus: vários anos ou alguns
meses? 0 fato de, depois de vinte versículos, Lucas voltar-se para Jesus tem levado
muitos calculadores a optar pelo tempo menor e iniciar o ministério de Jesus no
fim de 28; mas isso não é totalmente harmonioso com a ideia lucana de que Jesus
tinha cerca de 30 anos. Em Jo 2,20, quando Jesus purifica o Templo e prediz a
destruição do santuário, os adversários judaicos contestam que levou 46 anos
para construir o santuário. Josefo (Ant. XV,xi,l; #380; e Guerra I,xxi,l; #401) dá
duas datas diferentes para o início da reconstrução, a saber, 23/22 a.C. e 20/19
a.C., às quais a adição de 46 anos daria 24/25 e 27/28 d.C., respectivamente.47
Embora haja problemas a respeito da colocação joanina dessa cena de purificação
do Templo no início do ministério, quando os sinóticos a colocam nos últimos dias
da vida de Jesus, muitos biblistas aceitam a última data como histórica e usam-na
para confirmar a cronologia lucana que aponta para o ano de 28 d.C. como o início
da atividade pública de Jesus.

Se Jesus começou seu ministério a esse tempo (e esse é um grande “se” ),


quanto tempo durou o ministério antes que ele fosse crucificado? Os Evangelhos
sinóticos não apresentam um meio de calcular a duração do ministério e, da pouca
extensão do relato marcano, é possível presumir que durou um tempo relativamente
curto. Uma Páscoa é mencionada em Jo 2,13; outra em Jo 6,4 e uma terceira em
relação à morte de Jesus (Jo 11,55 etc.). Devido à concentração joanina altamente
teológica em temas pascais, são históricas essas referências a uma festa anual?
Se a resposta for sim, são essas três Páscoas (que João menciona com propósitos
próprios), as únicas Páscoas do ministério público? Se a resposta for sim, quanto
tempo Jesus esteve em atividade antes da primeira Páscoa mencionada? A resposta
talvez determine se devemos pensar em um ministério de dois anos ou de três anos.
Se acrescentarmos dois ou três anos a 28/29, dependendo de que mês nesses anos
Jesus começou a estar ativo, saímos com um limite entre 30 e 33 para a morte de
Jesus. As incertezas que indiquei a respeito de cada etapa do raciocínio tornam tais

4‘ Hoehner (“ Year” , p. 339) conta a partir do início da construção do santuário propriamente dito em 18/17
a.C. e surge com 30 d.C. — data que favorece a crucificação em 33.

597
A pêndices

cálculos bastante precários, para dizer o mínimo;48 contudo, eles tiveram impacto.
Blinzler (Prozess, p. 101-102) relaciona as opções de cerca de 100 biblistas para o
ano da morte de Jesus. Nenhum dos que ele relaciona optou por 34 d.C. (na verda­
de, Zeitlin o fez), ou 35, enquanto entre um e três optaram respectivamente pelos
anos 26,27, 28, 31, 32 e 36.49 Treze optaram por 29 d.C., cinquenta e três por 30,
e vinte e quatro por 33 >(l — assim, perto do limite que acabamos de mencionar.

A astronomia desempenha papel importante na redução dos anos possíveis


para a crucificação de Jesus. Se Jesus morreu no dia 14 de nisan, em que anos
durante o governo de Pilatos esse dia caiu em quinta/sexta-feira? Não é fácil
responder a essa pergunta, embora a exatidão matemática da astronomia antiga
fosse bem respeitável. Avistar a lua nova era essencial para determinar nisan e é
preciso calcular quando essa visão era possível na Palestina. Mesmo então, más
condições atmosféricas podiam interferir no ato de avistar e atrasar o que teria sido
o começo do mês. O calendário judaico era um calendário lunar e para mantê-lo
em sincronismo aproximado com o ano solar, era preciso acrescentar meses bissex­
tos. JEW J, p. 37, adverte que não temos registros históricos a respeito da adição
de meses bissextos em 27-30 d.C. E uma tradução para nossos meses deve usar
o calendário juliano, não o gregoriano, muito mais tardio. Não é surpreendente,
então, que os astrônomos tenham surgido com resultados diferentes; na verdade,
JEW J, p. 39-41, apresenta um relato extraordinário de opiniões que mudavam de
um lado para outro no período das décadas de 1920 a 1940. Não tendo nenhuma
competência pessoal, quero relatar aqui pontos de concordância parcial entre os

“ Alguns suplementam os cálculos dos Evangelhos com afirmações por autores da Igreja, como Tertuliano
e Clemente de Alexandria, de que Jesus morreu no 15“ ou 16“ ano de Tibério. Essas afirmações não só
derivam provavelmente direta ou indiretamente dos Evangelhos, mas também são problemáticas por si
só, em especial com respeito a como o início do reinado de Tibério estava sendo calculado.
w A data da conversão de Paulo, muitas vezes calculada em 36 d.C. (com base em G1 1,18-2,1), limita a
escolha da extremidade superior da escala. Obviamente, Jesus tinha de morrer antes disso. Entretanto,
Kokkinos (“Crucifixion” ) não se intimida e defende a morte de Jesus em 36, baseado no fato de que o
ano de 33 foi o do casamento de Herodes Antipas com Herodíades (que ocorreu antes da morte de João
Batista), que 33/34 foi o ano sabático que repercute em Lc 4,17-20 como parte do sermão de Jesus, e no
nascimento de Jesus em 12 a.C., o que o faz ter quase cinquenta anos em 36 d.C. (Jo 8,57).
E inútil relacionar alguns dos nomes. Entre as autoridades mais famosas ou cultas que optaram por 30
d.C. estão Benoit, Belser, Brandon, Conzelman, Dibelius, Flusser, Haenchen, Holtzmann, Jeremias,
Leitzmann, Metzger, Olmstead, Schürer, Wikenhausen e Zahn. Entre os que optaram por 33 d.C. estão
Bacon, Besnier, Hoehner, Husband, Gaechter, Maier, Ogg, Reicke, Renan e Tumer.

598
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)

estudos cuidadosos de Jeremias (JEWJ, p. 38) e os biblistas de Oxford, Humphreys


& Waddington,51 a saber, que o dia 14 de nisan:

• em 27 d.C., caiu na quarta/quinta-feira ou, com alguma probabilidade,


na quinta/sexta-feira;

• em 30 d.C., caiu na quinta/sexta-feira ou, com menos probabilidade, na


quarta/quinta-feira;

• em 33 d.C., caiu na quinta/sexta-feira.

Se excluirmos 27, não só como astronomicamente fraco, mas também como


cedo demais para a morte de Jesus à luz de quase todas as indicações evangélicas
relativas a sua vida e seu ministério relacionadas acima, restam duas probabilidades
para o 14 de nisan em uma quinta/sexta-feira (traduzidas para o calendário juliano),
a saber, 7 de abril de 3 0 ou 3 de abril de 33.52 Em geral, há uma tendência para
rejeitar 33 por subentender um Jesus velho demais e um ministério longo demais,
pois ele teria quase 40 anos quando morreu e teria exercido um ministério público de
uns quatro anos. Se morreu em 30, teria uns 36 anos quando morreu e teria exercido
um ministério de pouco menos de dois anos. Nenhuma dessas datas preenche todos
os detalhes dos indícios evangélicos quanto ao nascimento e ministério de Jesus,
mas como muitos desses detalhes têm propósito teológico e são imprecisos não vejo
problema a respeito. De algumas maneiras, a situação política em 33 (depois da
queda de Sejano em Roma, em outubro de 31) explicaria melhor a vulnerabilidade
de Pilatos às pressões do populacho,53 mas esse argumento é incerto demais para 01*

01 “ Dating” , p. 744; ‘"Astronomy” , p. 169; as datas em itálico são as que eles consideraram mais prováveis
astronomicamente. O estudo desses dois biblistas tem valor especial porque foram feitos todos os esforços
para levar em conta as variáveis. Entretanto, não diferentemente dos médicos que estudaram a morte
de Jesus (§ 42, ANÁl.lSE C), esses cultos cientistas tendem a entender literalmente as várias declarações
evangélicas, sem levantar os tipos de perguntas que propus no texto acima. Além disso, eles dão bastante
atenção a descrições apocalípticas da lua aparecendo como sangue quando Jesus morreu (At 2,19-20;
o apócrifo Relatório [Anáfora] de Pilatos, encontrado em JANT, p. 154), aparição que Humphreys &
Waddington relacionam com um eclipse lunar em 3 de abril de 33 d.C. — uma das duas datas prováveis
para a morte de Jesus.
a2 Ver uma voz contrária em Olmstead (“ Chronology” , p. 4, 6), que afirma que em 33 o dia 14 de nisan não
caiu em uma quinta/sexta-feira: “ O ano da crucificação só pode ser 30 d.C. [...] Sexta-feira, 7 de abril
de 30 d.C., está estabelecida tão firmemente quanto qualquer data na história antiga” .
53 ver § 31,B l; esta tese é defendida por Maier (“Sejanus”) e Hoehner (“Year”). Maier cita o terremoto e
o eclipse relatados por Flégon e a datação por Eusébio da morte de Jesus no 19“ ano de Tibério, sendo
que os dois podem ser calculados como indício para 33 d.C.

599
A pêndices

criar preferência. Não vejo nenhuma possibilidade de chegar a uma decisão pela
escolha de um dos dois anos.54

54 É interessante que, em CKC, o cálculo astronômico bastante certo de Humphreys & Waddington (“ As-
tronomy”) é seguido imediatamente pelo artigo muito cético de Beckwith (“Cautionary”), que põe em
dúvida quase todos os meios usados para calcular o ano da morte de Jesus.

600
Bibliografia para o Apêndice II:
Para datar a crucificação

Os escritos a respeito deste assunto são muito numerosos; e como datar é


questão tangencial para meu comentário, não procurei fazer com que esta biblio­
grafia fosse completa.
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602
Apêndice III:
Passagens pertinentes difíceis
de traduzir

Do princípio ao fim do comentário, lutei com as dificuldades naturais de


tradução e gramática. Entretanto, algumas passagens ou frases são tão difíceis
que exigem exame prolongado. Fazer isso nos COMENTÁRIOS respectivos significaria
extensas digressões, que desviariam a atenção da cadeia de pensamento. Sendo
assim, passei essas graves dificuldades de tradução para este APÊNDICE. Elas incluem:

A. Mc 14,41 (apechei)

B. Hb 5,7-8 (apo tes eulabeias)

C. Mt 26,50 (eph ho parei)

D. Jo 19,13 (ekathisen epi bematos)

A. Tradução de Mc 14,41 (apechei: § 10)

As palavras de Jesus aos discípulos sonolentos em Mc 14,41 contêm algumas


frases curtas que são difíceis de traduzir por causa de problemas de gramática e
expressões idiomáticas. Traduzi várias delas (que também se encontram em Mt
26,45) como perguntas: “ Continuais, então, dormindo e descansando?”. Aqui,
concentro-me na palavra isolada que se segue em Marcos (que Mateus omite, talvez
por não entendê-la): apechei. Couchoud (“ Notes”, p. 129) diz que ela “resistiu a
um batalhão de comentaristas”.1Na verdade, a começar por J. M. S. Baljon (1898),
alguns biblistas têm, sem rodeios, julgado apechei uma “leitura absurda” (K. W.
Müller, “Apechei”, p. 93). O verbo apechein consiste na preposição “de” e no verbo

1 Ver na B i b l io g r a f ia d a s e ç ã o (§ 4, Parte II), artigos por Anônimo (= Bomemann), Bemard (“St. Mark
xiv” ), Boobyer, de Zwaan, Hudson, Müller, Smisson e Zeydner; também Feldmeier, Krisis, p. 209-215.

603
A pêndices

“ter”. Nos papiros que tratam de comércio, ele é usado para descrever receber
integralmente uma quantia devida e dar recibo (LFAE, p. 110-112): é assim que a
pessoa “ tem do” favorecido. Esse sentido repercute no refrão de Mt 6,2.5.16: “ Eles
[os hipócritas] receberam sua recompensa [misthos]”. O verbo também significa
“estar distante de, abster-se de, manter-se afastado de”.

As traduções apresentadas para apechei em Mc 14,41 dividem-se nas que


entendem ter o verbo um sujeito que o tradutor preenche e as que entendem o verbo
impessoalmente. Um fator qualificativo nas teorias é como apechei se relaciona com
o que precede e, mais especificamente, com o que se segue (v. 41c: “chegou a hora;
vede, o Filho do Homem é entregue às mãos dos pecadores” ). Vou agora relacionar
algumas interpretações sugeridas sem procurar ser completo. As traduções que
esclarecem as várias proposições são minhas (não necessariamente as apresentadas
pelos biblistas que defendem a interpretação), simplificadas a bem da comparação.

1) Sujeito pessoal preenchido. Muitos dão “Judas” como o sujeito não men­
cionado.2 “Judas está recebendo [ou recebeu] o dinheiro” (de Zwaan, Smisson).
Foi prometido dinheiro a Judas em Mc 14,11 e sua chegada é anunciada em Mc
14,42 (o versículo seguinte aqui). Uma variante é a sugestão de Boobyer: “Judas
está tomando posse de mim”. Outra variante é a de Anônimo (Bornemann): “Judas
está longe”. Eutímio Zigabeno (In Matt. 26,45; PG 129,685D) apresenta outros
sujeitos: “ O diabo obteve poder sobre mim” ou “ 0 que me diz respeito [isto é, as
Escrituras] foi cumprido” (cf. Lc 22,37). Dormeyer (Passion , p. 132) propõe: “ 0
Pai [invocado em 14,36] recebeu minha oração” — contudo, lembramos que a
oração era para que a hora passasse, não para chegar, como acontece em 14,41c.
“ Deus está longe” é proposto por Feldmeier (Krisis , p. 212-215). Uma pergunta
fundamental pode ser feita a respeito de todas as sugestões que preenchem sujeitos:
o leitor marcano comum teria reconhecido espontaneamente o sujeito proposto?

2) A leitura no Códice de Beza. Em vez de apechei seguido de elthen he hora,


o Códice de Beza apresenta esta leitura: apechei to telos kai he hora.3 Embora telos
signifique “ fim” e hora signifique “hora”, o sentido de apechei com essa adição

2 Anônimo (“Erklãrung” , p. 105) observa que Jesus reluta em mencionar o nome de Judas por causa de
sua traição.
3 Encontram-se variações nos Códices Washingtonense e Koridethi, família 13 de minúsculos. OL e 0 S sin;
ver a relação em de Zwaan, “Text” , p. 460. He hora vem da oração seguinte no grego mais bem atestado
de Mc 14,41: “ Chegou a hora” .

604
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir

continua obscuro. O latim do Códice de Beza traz: sufficitfinis et hora — ver a tra­
dução de Jerônimo de apechei como “ É o bastante” ou “ Basta”, sob 3), adiante. As
traduções na OL incluem consummatus estfinis e adest finis, “ O fim se completou”
ou “está próximo”. BAA, p. 225, supõe que o Códice de Beza quer dizer: “ Longe
está o fim e a hora” que é exatamente o oposto do que está afirmado a respeito da
“hora” no v. 41c nos melhores mss. Para Zeydner (“Apechei”, p. 440), telos pode
ser traduzido como objeto: “ Recebeu-se o fim”. Uma tradução que combine leituras
gregas (Códices de Beza e Vaticano) resulta em: “ O fim está longe? Ora, a hora
chegou” (Hudson, “ Irony” ). Taylor (Mark, p. 556), que prefere a leitura do Códice
de Beza, apresenta como chave para o original: “ O fim é urgente; (e) chegou a
hora” ; mas é difícil justificar “é urgente” para apechei sem recorrer às alternativas
mencionadas em 5) e 6), abaixo. Outros (MTC, p. 114-115) sabiamente questionam
se o Códice de Beza não representa mais que uma suposição antiga quanto ao sig­
nificado de apechei (influenciado por telos echei, em Lc 22,37), em vez de acesso
ao texto original de Marcos.

3) Traduções impessoais. Quero relacionar algumas propostas. “Está longe?”,


pergunta respondida imediatamente por “ (Não), chegou a hora”. (Obtém-se o mesmo
sentido com a antecipação de hora como sujeito: “ Está longe a hora? Ela chegou”.)
Lagrange e Gnilka apresentam “Está tudo acabado; chegou a hora”. Outros propõem
“ Está liquidado” ou “ Está pago” em referência à traição de Judas (cf. Boobyer,
“Apec/iei”, p. 45). Bauer (BAGD, p. 85), retrocedendo do atestado ouden apechei,
“ Nada impede”, menciona a tese de que apechei significa “ Impede”, isto é, o sono
dos discípulos é um empecilho.

Muito importante é a tradução da Vulgata por Jerônimo: “ Basta”.4 Essa


tradução faz sentido, em especial depois de uma interpretação interrogativa ou ex-
clamatória dos verbos precedentes: “ Estais dormindo e descansando? Basta disso”.
Contudo, deu Jerônimo uma tradução de apechei que ele sabia ser justificada pelo
grego? Ou, fortemente influenciado pela OL, achou essa palavra intrigante e usou
finis (ver [2], acima) para moldar um significado que fizesse sentido? Ou achou e
substituiu outro verbo grego que traduziu (ver [5], abaixo)? O simples fato é que não
há praticamente nenhum indício em toda a literatura grega (independentemente de

4 Encontra-se essa tradução em Agostinho e em muitas traduções mais tardias: Lutero, RSV, NAB, a alemã
Einheitsübersetzung etc.

605
A pêndices

comentários a Mc 14,41) de que apechei signifique “ Basta” .56Consta que o léxico de


Hesíquio apresentou aporche ou exarchei (que significam “ basta” ) como sentidos
de apechei; mas essa relação não é dada na edição crítica de K. Latte, Hesychii
Alexandrini Lexicon, Copenhagen, Munksgaard, 1953, v. 1, linhas 6103-6116,
2 v. Em todo caso, Hesíquio (século VI?) era cristão e talvez fosse influenciado
pela Vulgata ou uma tradição de mss. de Marcos, semelhante ao Códice de Beza.
Ficamos, então, com dois exemplos pós-NT para o sentido proposto de “ Basta”
para apechei6 e ambos têm problemas.7 O primeiro está em uma das Anacreonta
(16[15 ou 28],33); são odes do período pós-clássico no estilo de Anacreonte e esta
ode específica talvez se origine do século II d.C. No contexto de um homem que
recita para um pintor que faz um quadro da namorada do homem, encontramos
apechei perto do fim, quando o homem pensa que quase vê a garota em pessoa.
Embora possa significar “ Basta”, alternativamente pode expressar a ideia de que
o pintor ganhou sua paga e deve parar. 0 segundo está no comentário de Cirilo de
Alexandria a Ageu (2,9; PG 71,1048B), onde apechei aparece no contexto de uma
declaração de que Deus não precisa de prata nem ouro. Em vez de “ Basta”, podia
querer dizer que Deus já tem a posse dessas coisas. Assim, nesses dois casos, a
tradução “ Basta” talvez reflita uma ideia preconcebida (influenciada pelo conhe­
cimento de Mt 14,41) de que apechei significa isso. Tal escassez de indícios põe
em dúvida essa tradução e, na verdade, provoca perguntas quanto a esforços para
traduzir apechei impessoalmente.8

4) Adulteração textual. Couchoud (“ Notes”, p. 130-131) sugere que o texto


de Mc 14,41 era originalmente mais extenso e continha frases agora encontradas
em Mc 14,42, por exemplo: “ Vede, aquele que me entrega se aproxima”. Atraído
por palavras semelhantes, um escriba erroneamente trocou a posição das linhas.
Quando o erro foi notado, a leitura correta foi posta na parte inferior da página já

5 O papiro de Estrasburgo 4,19 (século VI d.C.) é citado às vezes, mas ali apechei é leitura errônea, segundo
K. W. Müller (“Apechei” , p. 85). A leitura no papiro do Museu Britânico 1343,38 (século VIII) também
é vaga.
6 Assim F. Field, Notes on the Translatimi of the New Testament, Cambridge Univ., 1899, p. 39; Müller,
“Apechei” , p. 84-85.
7 Aqui, deixo de lado emendas perspicazes propostas por Couchoud (“ Notes” , p. 129); ele observa que na
primeira passagem apecho e na segunda apeche, seriam uma leitura mais sensata que apechei.
8 De Zwaan (“Text” , p. 467-468) apresenta um quadro de mais de cinquenta usos de apechein em papiros;
estão esmagadoramente no modo ativo, com o sentido de “ter recebido” . Muitos estão na primeira pessoa
do singular; nenhum dos que estão na terceira pessoa do singular (apechei) é impessoal.

606
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir

copiada, com uma nota na margem próxima de Mc 14,41: apechei to telos, “ O fim
(desta linha) está mais adiante”. Essa nota entrou no texto e foi confundida com
uma declaração de Jesus, erro agravado quando outro copista abandonou to telos
porque, lido assim, a declaração agora contradizia “ Chegou a hora”. Outras suges­
tões brilhantes poderíam ser relacionadas, mas não há um meio para estabelecer
se esse erro realmente ocorreu.

5) Tradução incorreta do semítico (na suposição de que o Evangelho grego


seja tradução literal de uma fonte ou original aramaico ou hebraico). C. C. Torrey,9
ao pressupor que apechei significa “ Basta”, sugeriu que o autor grego interpretou
erroneamente o aramaico kaddu (“já” ), sob a influência do significado siríaco dessa
palavra (“bastante” ). Entretanto, Black (BAA, p. 225-226) afirma que, em aramaico
e também em siríaco, kaddu significa “já”, e esse erro não foi cometido. Antes,
presumindo que a tradução de Beza (2, acima) é guia confiável para o grego marcano
e que, no Códice de Beza, apechei significa “longe”, Black sugere que o autor grego
leu erroneamente dhq (“ pressionar, insistir” ) como rhq (“estar longe” ). O aramaico
original de Marcos queria dizer: “ O fim e a hora estão pressionando”. Zeydner
(“Apechei", p. 441-442) aponta para o papel de sim, que significa “consumar” e
também “ pagar uma dívida” ; é de se presumir que foi entendido erroneamente no
segundo sentido, embora fosse empregado no primeiro: “ Está consumado” (ver Jo
19,30). A dificuldade básica mencionada no fim de 4), acima, agrava-se aqui: não
só não temos certeza da existência de um aramaico subjacente, mas também não
temos certeza quanto à prática do aramaico do tempo de Jesus.

6) Substituição de outros verbos gregos (na suposição de que apechei deve


se originar de leitura errada de um copista, porque não faz sentido), a) Epechei
de epechein, “segurar com firmeza, parar”, de modo que a referência era ao fim
da luta de Jesus em rezar para que a hora passasse. Essa leitura seria facilitada
se houvesse uma indicação de discurso indireto: ele lhes disse (que) ele estava
acabado, b) Epeste de ephistanai, “estar próximo”. A. Pallis10 acha que epeste foi
primeiro lido erroneamente como apeste, depois como apechei. O original era uma
declaração: “ Está próximo”, que igualava “ Chegou a hora” e a chegada de Judas
(Mc 14,43). c) Eneste de enistanai, “estar próximo”. Esta sugestão e a precedente

9 Our Translated Gospels, New York, Harper, 1936, p. 56-58.


10 A Few Notes on the Gospels according to St. Mark and St. Matthew, Liverpool, Booksellers, 1903, p.
22-24.

607
A pêndices

são influenciadas pelo adestfinis da OL.11 d) Arkei de arkein, “ bastar”, que se


julgava ser a base para o sufficit de Jerônimo. e) Etelesthe de telein, “estar con­
cluído”, apoiado pelo consummatus est finis, da OL. f) Apechei, não de apechein,
mas como imperfeito gramaticalmente justificável de apochein, “derramar” (K. W.
Müller, “Apechei”, p. 95-99). Em Mc 14,35, Jesus rezou para que a hora passasse;
em Mc 14,36, ele rezou para que o cálice (da cólera divina) fosse afastado; agora
ele reconhece em ordem inversa que precisa sofrer ambos: “ (Deus) derramou (sua
cólera no cálice); chegou a hora”.

E ssa lista de possibilidades, nenhuma delas realmente convincente, é


desalentadora até se perceber que a consequência de muitas delas é a mesma.
Apechei diz uma coisa que coincide com “chegou a hora; vede, o Filho do Homem
é entregue nas mãos dos pecadores”. Isso é verdade para leituras como “Judas
recebeu o dinheiro” ; “ 0 fim está pressionando/completou-se” ; “está liquidado”;
“ Basta” ; “ Deus derramou-se em abundância”. Em minha tradução, escolhi um
bem atestado sentido de apechein: “ 0 dinheiro foi pago”, que se ajusta à promessa
de pagar Judas em Mc 14,11. Não tenho certeza se está certo, mas realmente se
ajusta à proximidade do que se segue. 0 grande peirasmos começou para Jesus;
chegou a hora; ele é entregue aos pecadores.

B.Tradução de Hb 5,7-8 (§ 21 BI)

Hb 5 nos diz que Jesus rezou “ 7[...] àquele que tinha o poder de salvá-lo da
morte, e tendo sido ouvido de medo, 8apesar de ser Filho, aprendeu a obediência
pelas coisas que sofreu” . A frase que termina o v. 7, “de medo” (apo tes eulabeias),
é difícil de traduzir, de uma forma que faça justiça ao vocabulário e à gramática,
e ainda se adapte à fluência do pensamento. Apo (“de” ) é normalmente usado no
âmbito do sentido de uma coisa que sai de outra. Nesta passagem, muitos querem
traduzi-lo como “devido a, por causa de” (BDF 2101), ou mesmo “depois” (Andries-
sen). Eulabeia, relacionado com lambanein, tem um sentido radical de “aceitação”
que, em referência a Deus, vem a significar “medo de Deus, piedade, reverência”.
BAGD, p. 321, insiste que, no NT, seu provável significado é apenas “admiração
reverente” ; mas Bultmann (TDNT, v. 2, p. 751-753) menciona que, na literatura
clássica, eulabeia se transformou em “ansiedade, medo ansioso”, e ele atribui esse

11 De Zwaan (“Text” , p. 464) afirma que mesmo a leitura epechei, em a), se traduz adest.

608
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir

sentido ao emprego em Hb 12,28.12 Contudo, o fato de o significado “por causa de”,


de apo, e de o significado “medo (ansioso)”, de eulabeia, serem bastante questio­
náveis deve ser lembrado ao julgar as traduções sugeridas a seguir:

• “ tendo sido ouvido por causa de seu medo (reverente)”. Isso exige que
se entenda Jesus sendo salvo da morte como uma coisa diferente de não
morrer; o que se segue no v. 8 torna-se comentário modificador: embora
fosse ouvido, ainda tinha de aprender obediência. A Vulgata, os Padres
gregos, Lutero e muitas traduções modernas adotam esta interpretação.

• “tendo sido ouvido (e libertado) do medo (ansioso)”. Esta tradução,


adotada por Dibelius, Héring, Manson etc. (mas rejeitada com firmeza
por BDF 211), pressupõe uma elipse, mas tem a vantagem de tornar o
versículo seguinte exemplo complementar da luta humana.

• “salvá-lo da [ek\ morte e — tendo sido ouvido — de medo (ansioso)”


(assim Brandenburger, “ Texte”, p. 216). Esta tem o mesmo impacto que
a interpretação anterior, mas faz “salvar” reger orações com ek e apo
quase apostas.

• “tendo sido ouvido. Exceto por seu medo (reverente) e apesar de ser Filho,
aprendeu a obediência”. Dois fatores que podiam tê-lo poupado de ter
de aprender pelo sofrimento estão em aposição; contudo, então seria de
se esperar “apesar de mostrar medo (reverente) e de ser Filho...”. Ver
em Mt 6,7 o uso absoluto de “ouvido”.

• “morte. Tendo sido ouvido, de medo ansioso [apo] — apesar de ser Filho
— das [apo] coisas que sofreu, aprendeu”. Isso envolve uma aposição
entre as duas frases com apo que em grego estão inconvenientemente
separadas.

• “ (não) tendo sido ouvido” . Muitos aceitam a adição brilhante, não


comprovada textualmente, da autoria de Harnack, de um negativo para
explicar por que Jesus teve de aprender pelo sofrimento. Sua oração para
ser salvo da morte não foi ouvida, o que faz Hebreus concordar com a
cena no Getsêmani descrita por Marcos/Mateus.

12 “ Medo da morte” , em Hb 2,15, que claramente significa ansiedade é importante paralelo, embora use
phobos.

609
A pêndices

A meu ver, exceto pela última sugestão, que é uma emenda (sempre um
recurso desesperado), o objetivo básico do conjunto não muda decisivamente, quer
“de medo” enfatize a ansiedade dos sofrimentos de Jesus, quer, entendido como
reverência, afete sua posição como Filho.13

C. Tradução de Mt 26,50 (eph ho parei: § 13)

Já em § 13, nota 22, relacionei os muitos autores que escreveram artigos a


respeito deste versículo e muitos desses artigos concentraram-se nesta frase. (Os
outros são a respeito do sentido de hetairos, que a precede.) Parei, de parenai (“es­
tar presente” ; menos provável de parienai, “ vir aqui” ), significa: “ Estás aqui” ou
“ Estás aqui?”. Ho é pronome relativo neutro (“que” ) e, precedido pela preposição
epi, dá o sentido básico de “a que, para o qual”. Abaixo, vou relacionar algumas
tentativas de solucionar a ambiguidade de uma oração que diz literalmente: “Amigo,
para que estás aqui”. Ocasionalmente, vou usar itálicos em minhas traduções (não
necessariamente as dos autores citados) para esclarecer uma questão gramatical.

1) O pronome entendido como relativo para o qual o tradutor precisa preen­


cher um antecedente nominal subentendido. Do contexto da identificação de Jesus
por Judas com um beijo, para que ele seja entregue ao grupo aprisionador, obtemos
alguns dos antecedentes propostos. “Amigo (esse é um beijo de traição), para que
estás aqui”, ou: “Amigo, para isso (a traição) estás aqui”. O Jesus mateano já sabe
o que Judas está fazendo e, por isso, é mais provável que tal declaração indique seu
conhecimento (indicativo), em vez de sua surpresa (exclamativo). Como em todas
as sugestões (inclusive as que serão mencionadas abaixo) onde palavras devem
ser supridas, uma dificuldade óbvia é Mateus não dar o antecedente ao qual ele
se referia. At 10,21 exemplifica a facilidade e a clareza com que isso poderia ser
feito: “ Qual é o motivo [tis he aitia] pelo qual estás aqui?”.

2) O pronome, entendido como relativo, no qual um demonstrativo está


oculto (BAGD, p. 585, I 9), com o significado de “aquele que” ou “o que”. Sob
essa rubrica, muitos pressupõem uma aposiopese, isto é, uma frase interrompida
emocionalmente, ou porque Judas o estava beijando e interferindo em sua fala, ou
porque Jesus, dominado, não conseguiu continuar. “Amigo, aquilo para que estás

15 Ver mais detalhes, além dos autores mencionados no início de § 11 B, em P. Andriessen e A. Lenglet.
Bíblica 51,1970, p. 207-220, esp. 208-212; P. Andriessen, NRT 96, 1974, p. 282-292.

610
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir

aqui...”. A suposta emoção pode estar relacionada com a tese (duvidosa) de que
“ Rabi” e o beijo eram incomuns e, portanto, sinais hipócritas de respeito e amizade.
Talvez aqui caiba o valor de eph ho proposto por Lee: “para esse propósito, para
esse recado” ; assim: “Amigo, para isso estás aqui”.

3) O mesmo valor pronominal de 2), mas com um verbo auxiliar preenchido


pelo tradutor. Klostermann sugere: “Amigo, (estás usando mal um beijo) para aquilo
pelo qual estás aqui?”. 0 demonstrativo relativo como objeto de um verbo preenchido
muitas vezes torna-se pergunta indireta, como em uma possibilidade mencionada
por Zorell: “Amigo, (eu sei) para que estás aqui”. Às vezes, esse tipo de proposta
se torna elaborada (por exemplo, Belser): “Amigo, (pensas que não sei) para que
estás aqui?”. Exemplo antigo é dado por um cristão que foi executado sob Marco
Aurélio (MACM, p. 28-29): Ego de eph’ ho pareimi (“ Deixe-me fazer aquilo para
que estou aqui” ou, menos provável, “ Tenho aquilo para que estou aqui” ). Uma
complicada interpretação desse tipo é proposta por Wellhausen, em seu comentário
de Mateus: “Amigo, beijas-me com o objetivo para o qual é evidente que tu estás
a q u i?”. A objeção de que Mateus deveria ter fornecido um verbo se queria dizer
alguma coisa como isso ganha força quando vemos a facilidade com que Josefo
{Guerra, II,xxi,6; #615) o fez: “ Ele realizou [diepratteto] aquilo para que estava ali”.

Com muita frequência, o verbo preenchido é um imperativo: “Amigo, (faze)


aquilo para que estás aqui”. Isso tem a vantagem da concisão e põe Mateus em
harmonia com as palavras de Jesus a Judas em Jo 13,27: “ Faze [poieson] depres­
sa aquilo que fazes”.14 Um imperativo adapta-se ao outro imperativo do contexto
mateano: “ Levantai-vos; vamos; vede, aproxima-se aquele que me entrega” (Mt
26,46). Benoit e a NAB aceitam a interpretação do imperativo “ faze” e Eltester
aproxima-se dela com seu “Amigo, aquilo para que estás aqui (que seja feito)”.
Alguém pode se perguntar por que Mateus, que oito versículos antes escreveu
claramente “ Que tua vontade seja feita [genetheto]”, não usou um genetheto aqui,
mas Eltester responde que esta é uma saudação, e saudações são quase sempre
elípticas. Um tanto temerária é a sugestão de Blass, de uma adulteração textual
onde o original não tinha hetaire (“Amigo” ), mas sim aire ou hetaire aire: “ Toma
aquilo para que estás aqui”.

14 Não devemos ficar excessivamente impressionados porque um escriba do Códice Latino Armagh do século
IX seguiu nessa direção: “ Amice,fac ad qmd venisti” — é provável que ele tenha sido influenciado pelo
fac de João.

611
A pêndices

4) 0 relativo entendido como pronome interrogativo em uma pergunta direta:


“Amigo, para que estás aqui?” — tradução preferida pela maioria dos Padres da
Igreja. O uso interrogativo do pronome relativo hos é bem atestado em perguntas
indiretas, por exemplo, Jo 13,7: “ Não sabes agora o que estou fazendo”. Mas os
gramáticos não são unânimes quanto a encontrar esse uso em uma pergunta direta.15
A leitura de Mateus como pergunta direta apresenta um paralelo com a pergunta
lucana dirigida a Judas por Jesus (Lc 22,48); e lembramos que Eclo 37,2, que foi
apresentado em § 13, acima, como pano de fundo plausível para o uso mateano
de hetairos, é uma pergunta. Rehkopf defende com convicção o interrogativo, se­
guindo Deissmann, que rejeita os gramáticos como excessivamente influenciados
pelo grego clássico (e alguns dos escribas como excessivamente influenciados pelo
neoaticismo). Para ele, a pergunta que aparece na OL e na Vulgata é prova de que
os tradutores antigos entendiam que o grego helenístico permitia essa construção.16
Entretanto, não se tem certeza de quando os escribas antigos pararam de traduzir e
se tornaram criativos ao lidar com frases difíceis. Além disso, Eltester (“Freund”, p.
73) pergunta se alguém tem certeza de que a leitura latina “Amice ad quod venisti”
é pergunta, e não apenas uma preservação latina da ambiguidade do grego; afinal
de contas, parece que a Vulgata Clementina achou necessário esclarecer: “Amice,
ad quid venisti”. (Contudo, o 0 S sine Orígenes entenderam realmente uma pergunta.)

0 argumento favorito de Deissmann (“ Friend”, p. 493; LFAE, p. 125-131)


origina-se de uma inscrição que consiste em duas frases separadas por um espaço
em um recipiente para beber: eph ho parei [ ...] euphrainou, que ele traduz: “Para
que estás aqui? Bebe!”. Entretanto, como o copo é redondo, é possível com a mesma
facilidade ler euphrainou antes do eph ho parei: “ Bebe! É para isso que estás aqui”.
Owen, Klostermann, Spiegelberg, J. P. Wilson e BDF 300 optam pela segunda tra­
dução e, assim, removem o exemplo proposto de uso interrogativo direto do relativo.
Wilson (“ Matthew” ) compara-o ao uso exclamatório em Menander, Epitrepontes, p.
363 (Loeb, p. 424): “ Ó Hércules, o que fizeram [para mim]”.

15 “ Dificilmente” , diz BDF 3002 a respeito de Mt 26,50; vagos são Lee (“ Matthew” , p. xxvi), Owen e Zorell;
“ Um exemplo não ambíguo dele ainda está para ser encontrado” , diz BAGD, p. 5 8 4 ,1 9; uma questão
em aberto, diz ZAGNT, v. 1, p. 89.
16 Deissman, “Friend” , p. 492. A Vulgata, lida como pergunta, influenciou muitas traduções: Wycliífe,
Luther, Tyndale, KJ, RSV.

612
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir

5) Uma frase coloquial estabelecida. Precisamente por causa do brinde com


o copo de bebida, BDF 3002 sugere que pode ter havido uma frase estabelecida
eph ho parei, “E para isso que estás aqui”. Entenderiamos, então, “Amigo (como se
costuma dizer), é para isso que estás aqui” ser o modo irônico de Jesus para deixar
Judas saber que seu plano foi percebido. Uma Gegengruss (Eltester) ou saudação em
resposta, hetaire, eph ho parei, poderia ser apresentada por Jesus para se contrapor
ao chaire, rabbi, de Judas. Mais complicada é a sugestão de F. W. Danker,17 de que
eph ho ê erro de um copista para eph hô,18 e que a última era expressão idiomática
comercial estabelecida para a base contratual na qual as obrigações são cumpridas
e alguma coisa é feita. Assim, “ Esse é o trato”, ou, interpretado interrogativamente
aqui: “Amigo, que trato fizeste?”.

Apesar da falta de clareza gramatical, as diversas interpretações abrangem


um âmbito limitado de sentido. Independentemente do que a frase significava na
tradição pré-mateana (se existia ali), ela não pode agora servir de pergunta em busca
de informações — Jesus já sabe. Nem é provável que seja um relato de indignação.
Ou expressa a tristeza e a dor de Jesus pela traição (e esse talvez seja o objetivo da
pergunta em Lucas), ou mostra com ironia ou sarcasmo que Jesus sabe. Creio que
o contexto mateano (especialmente Mt 26,25) favorece esta última. Acho atraente
a sugestão no início de 5), acima (para a qual temos indícios concretos), segundo
a qual essa era uma frase estabelecida, em geral em um contexto de alegria jovial,
mas agora usada na situação oposta. As pessoas convidavam as outras a uma bebida
de camaradagem: “Amigo, alegra-te. É para isso que estás aqui”. À ironia de Judas
vir com um beijo e dizer “ Salve R abi!”, Jesus reage com a mesma ironia: “Amigo,
é para isso que estás aqui”.

D. Tradução de Jo 19,13 (ekathisen e p i bem atos : § 35)

Essas palavras19 surgem perto do fim do julgamento romano de Jesus, quando


Pilatos fracassou em diversas tentativas para Jesus ser solto e quando “os judeus”
começam a chantageá-lo com a ameaça: “ Se soltas este sujeito, não és amigo de

17 BAGD, p. 5 8 3 ,2a col., baseada em NTS 14,1967-1968, p. 424-439.


18 Esta, com um subscrito de iota, é variante em alguns mss. e no Textus Receptus.
19 Ver os artigos na B ib l io g r a f ia d a S e ç ã o (§ 30, Parte III) por Balagué, Corssen, de la Potterie, Derwacter,
Kurfess, 0 ’Rourke, Robert, Roberts, Trebole Barrera e Zabala; também Excursus XVII, em Blinzler,
Prozess, p. 346-356, e os diversos comentários de João.

613
A pêndices

César” (Jo 19,12). “ Ora, Pilatos, tendo ouvido essas palavras, levou Jesus para
fora e [...] no/para o lugar chamado Litóstroto”. Devem as palavras gregas (dadas
acima, no título da subseção) que se encaixam na lacuna ser traduzidas intransiti-
vamente, por exemplo, “e sentou-se no tribunal” ou transitivamente, por exemplo,
“e sentou-o [Jesus] no tribunal” (ou “em uma plataforma” que servia de lugar de
julgamento)? No COMENTÁRIO de § 35, optei pela tradução intransitiva, mas deixei
o exame detalhado para esta subseção.

0 grego bema, que representa o latim tribunal, tem dois sentidos básicos
pertinentes a este contexto. Refere-se ao sella curulis, ou “assento curul”, no qual o
juiz romano se sentava para presidir o julgamento de um crime grave. Josefo (Guerra
II,xiv,8; #301) menciona o bema que Floro colocou na frente do palácio onde ele se
hospedava em Jerusalém; é presumível que ficasse em uma elevação com degraus
que levavam até ele. Mas, pelo costume de usar o nome da parte pelo todo, bema
também se refere à plataforma, em geral semicircular e feita de pedra ou madeira,
no centro da qual ficava o assento do magistrado. Está claro o que Mt 27,19 quer
dizer com bema: Pilatos recebe o recado de sua mulher enquanto está sentado na
cadeira do tribunal e fica-se com a impressão de que o julgamento todo foi presidido
dessa cadeira.20 0 julgamento era realizado em uma de duas posições: uma sessio
de plano (fora do tribunal, literalmente “ao rés do chão” ), para crimes menores ou
procedimentos mais informais, e uma sessio pro tribunali (sentado na cadeira do
tribunal), por crimes graves; mas o juiz não mudava de uma posição para outra no
meio de um julgamento. Se o sentido intransitivo é seguido em Jo 19,13, Pilatos toma
assento no bema apenas no final do julgamento? Até este ponto, foi tudo informal,
de modo que o julgamento começa em Jo 19,13? João, evidentemente, não age como
repórter do tribunal, que descreve as técnicas; ele escreve como dramaturgo, com
a complicada sinopse de Pilatos indo de um lado para outro, para dentro e para
fora do pretório. Ele pode ter incluído um termo jurídico para dar a impressão de
que chegara o momento mais solene e importante do julgamento. A meu ver, fazer
Pilatos simplesmente sentar-se na plataforma, e não na cadeira do tribunal, não
se harmoniza com o cuidado na localização (Litóstroto, Gábata) e na marcação da
hora (ao meio-dia, antes da refeição pascal) que João dá a esse momento. Quando
se segue a tradução transitiva, onde Pilatos faz Jesus sentar-se no bema, é maior a
possibilidade de traduzi-lo como “ plataforma”.

20 Ver também o julgamento de Paulo diante de Festo em At 25,6.17; e Josefo, Guerra, II,ix,3-4; ##172.175.

614
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir

Entre os biblistas modernos, a tradução transitiva com Jesus no bema come­


çou a avançar com uma dissertação de 1872 por J. Groenigen, em Utrecht, e tem
muitos seguidores.21 Outros comentaristas (com os quais concordo)22 examinaram os
argumentos favoráveis à interpretação transitiva e os consideraram insuficientes.
Assim, traduzem Jo 19,13 intransitivamente, com Pilatos no bema (ou em primeiro
lugar intransitivamente, já que alguns admitem um duplo sentido23 — mas, nor­
malmente, os duplos sentidos joaninos não admitem visões contraditórias). É óbvio
que não se vai decidir a questão contando autoridades, por isso, voltemo-nos aos
argumentos principais.

1) A forma verbal ekathisen pode ser transitiva (colocou [alguma coisa/al-


guém] em) ou intransitiva (sentou em).24 Entretanto, na fluência da sentença, se fosse
transitivo seria de se esperar um objeto pronominal que falta aqui: “ Ele levou Jesus
para fora e sentou-o no bema”. De la Potterie tentou elaborar um argumento que no
grego neotestamentário, onde o segundo verbo tem o mesmo objeto que o primeiro,
não é necessário repetir o objeto. Porém, Blinzler (.Prozess, p. 347) afirma que, em
todos os exemplos dados por de la Potterie, nenhum pronome é necessário depois
do segundo verbo, porque não há nenhuma ambiguidade, isto é, o segundo verbo
não pode ser intransitivo. Por exemplo, em E f 1,20 - “ (Deus) tendo ressuscitado
Cristo dos mortos e sentado(-o) a sua direita” - , embora nenhum objeto pronomi­
nal seja expresso em grego, o verbo precisa ser transitivo (sentado alguém, não
sentou-se), porque Deus não pode sentar a sua própria direita. É interessante que
alguns escribas da tradição koiné ainda acharam prudente acrescentar um objeto
pronominal depois do verbo sentar em E f 1,20, talvez para facilitar a leitura em
público. (Nenhum escriba jamais acrescenta um pronome em Jo 19,13, e isso talvez

21 Por exemplo, Beutler, Boismard, Bonsirven, F. M. Braun, Charbonneau, Corssen, de la Potterie, Fenton,
Gardner-Smith, Guichou, ttaenchen, Harnack, Kurfess, Lightfoot, Loisy, G. H. C. Macgregor, MacRae,
Mader, Meeks, 0 ’Rourke, Roberts e Schwank.
22 Balagué, Barrett, W. Bauer, Benoit, Bemard, Blinzler, Bultmann, Bruce, Derwacter, Holtzmann, Hoskyns,
Knabenbauer, Lagrange, Lightfoot, A. Richardson, Robert. Zabala e Zahn.
23 Há quem julgue que João foi deliberadamente ambíguo à guisa de ironia teológica, por exemplo, J.
Ashton, Understanding the Fourth Gospel, Oxford, Clarendon, 1991, p. 228, seguindo R. H. Lightfoot.
Trebolle Barrera (“Possible”) lembra que o hebraico yib é intransitivo no qal e transitivo no hiphil. e
que, em algumas cenas de coroação (lR s 4,20), os tradutores gregos ficaram divididos quanto a ele ter
de ser traduzido intransitiva ou transitivamente. Para ele, João foi influenciado pelas possibilidades do
hebraico.
24 Derwacter (“ Modern” , p. 27) relata que 47 dos 50 usos neotestamentários de kathizein são intransitivos,
e que os outros 4 usos neotestamentários com bema são intransitivos.

615
A pêndices

signifique que os escribas nunca pensaram em ler o verbo transitivamente; nenhum


Padre grego leu-o transitivamente, e o mesmo pode-se dizer de todas as principais
versões antigas.) Por outro lado, quando o sentido pretendido é transitivo e pode
haver ambiguidade, o objeto costuma ser expresso, por exemplo, 2Rs 11,19; 2Cr
23,20; a LX X de Dn 4,37b(34). Balagué (“ Y lo”, p. 66), então, dá a regra contrária
à apresentada por de la Potterie: a menos que o contexto esteja totalmente claro,
quando kathizein não tem objeto expresso, ele é sempre intransitivo. É digno de
nota que Josefo usa a mesma expressão que João (kathizein epi bematos) a respeito
de Pilatos (Guerra II,ix,3; #172) e de Vespasiano (Guerra III,x,10; #532) e nos
dois casos ele é intransitivo.

2) 0 sentido de bema. Como mencionei acima, há quem considere argumento


importante contra o sentido intransitivo o fato de que, no meio de um julgamento, o
juiz romano não se sentaria de repente na cadeira do tribunal. Porém, eu argumen­
tei que João escreve para efeito dramático e, assim, com essa imagem de Pilatos
se sentando, João só diz que chegara o momento mais solene. Na direção oposta,
alguns, que entendem ser a cena histórica, não imaginam Pilatos profanando o
símbolo sagrado da justiça romana, o sella curulis, sentando nele um criminoso por
palhaçada, como o sentido transitivo dá a entender. Contudo, defensores do sentido
transitivo também respondem que não estamos lidando com a história, mas com
drama onde, por amor à ironia, talvez João tenha decidido fazer de Jesus o juiz
sentado em uma cadeira do tribunal. Entretanto, pode-se questionar se a ironia
joanina empregaria o intrinsecamente implausível para lograr o seu intento. Por
sentirem a força desse argumento, alguns defensores do sentido transitivo (de la
Potterie, “Jésus”, p. 226-231) afirmam que o bema no qual Jesus foi colocado não era
a cadeira do tribunal, mas a plataforma judicial ou a área em frente ao juiz romano.
Supostamente, essa tese recebe apoio da falta de artigo definido antes de bema em
Jo 19,13. Contudo, o artigo também está ausente nos dois exemplos, citados acima,
tirados de Josefo, onde bema significa realmente cadeira do tribunal. Há sempre
a possibilidade de kathizein epi bematos (nenhum artigo) ter sofrido influência do
latim sedere pro tribunali (linguagem onde falta o artigo definido). Também por
analogia, na LX X , “sentar-se no trono” (kathizein epi [tou] thronou) é empregado
sem o artigo definido. Se não se pode tirar nenhum argumento da falta de artigo
em Jo 19,13, Zabala (“ Enigma”, p. 21) está bastante correto ao argumentar contra

616
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir

a interpretação transitiva de que kathizein epi bematos não significa “empossar


como juiz”.

3) De la Potterie tira um argumento a favor da interpretação transitiva da


frase que se segue a ekathisen epi bematos, a saber, eis topon. Como parte de uma
tese que defende há muitos anos, a saber, que em João as preposições são usadas
com precisão, de la Potterie insiste que eis significa “ para dentro do lugar chama­
do Litóstroto” e afirma que a frase toda modifica o primeiro verbo “levou”, não o
segundo, “sentou”. A ideia básica, então, seria que Pilatos levou Jesus para fora,
para o lugar chamado Litóstroto, e sentou-o na plataforma judicial. Há diversas
dificuldades com essa opinião. 0 uso preciso de preposições por parte de João é
duvidoso (ver BGJ, v. 1, p. 5); eis (“para dentro de” ) e en (“em” ) são quase sempre
semanticamente indistinguíveis no grego desse período (BDF 205; 2071). Kathizein
eis, depois de um verbo de movimento como “levou”, tem o sentido de sentar-se ou
descansar em um lugar, como em ISm 5,11, ou é o equivalente a “sentar-se ali”,
como em 2Sm 15,29. Ver também 2Ts 2,4, onde eis [ ...] kathizein é usado para
“sentar-se no Templo de Deus”. Em Jo 19,13, o que acompanha “ levou Jesus” é
“ para fora” ; “em [eis] um lugar chamado Litóstroto” acompanha Pilatos sentado
em um tribunal. Robert (“ Pilate”, p. 281) afirma que eis é usado expressivamente
com kathizein, com o significado de “ir sentar-se”. 0 ’Rourke (“ Two” ) lembra que,
em uma série de verbos, quando uma frase se segue ao segundo verbo, é em geral
para ser construída com esse segundo verbo. Até Meeks, que defende o uso tran­
sitivo de kathizein, considera muito fraco esse argumento baseado em um sentido
literal para eis.

4) A imagem de Pilatos fazendo Jesus sentar-se no bema é defendida como


continuação do escárnio de Jesus em Jo 19,5: “ Vede o homem”, em Jo 19,5. Entre­
tanto, é necessário ser exato. Depois do escárnio de Jesus como rei pelos soldados
em Jo 19,2-3, o Ecce homo de Jo 19,5 pode ter tido a finalidade mais direta de
mostrar como era tola a acusação contra ele. Quanto a “ Olhai, vosso rei”, em Jo
19,14, a intenção não era escarnecer de Jesus, mas fazer “os judeus” assumirem a
responsabilidade por executar o próprio rei. Como o bema não é um trono, o escárnio
de Jesus sentado no bema deveria ter sido expresso não simplesmente como “ Olhai,
vosso rei”, mas como “ Olhai, vosso juiz”. E ssa observação nos leva a examinar um
argumento importante a favor da interpretação transitiva que alguns tirariam de

617
A pêndices

duas passagens mais primitivas, uma em EvPd, a outra em Justino, onde Jesus é
descrito sentado e é escarnecido como juiz.

EvPd 3,7 tem como sujeito o povo judeu: “ E eles o vestiram com púrpura
e o sentaram em uma cadeira do tribunal, dizendo: ‘Julga imparcialmente, Rei de
Israel’”. Este texto apoia realmente a leitura transitiva de Jo 19,13 se supusermos
que o autor do EvPd conhecia ou ouvira essa passagem? Observemos as mudanças
e suas implicações: no EvPd, o povo judeu, não Pilatos, é o sujeito; a clara referên­
cia a uma cadeira (kathedra kriseos) significa que bema não era entendido como
plataforma; um contexto de escárnio que não está claro em João foi produzido com
a adição de elementos do escárnio de Jesus pelos soldados romanos encontrado
em Jo 19,2-3; embora Jesus seja chamado rei, dizem-lhe de modo escarnecedor
para julgar imparcialmente (dikaios ; ver Mt 27,19); e, o que é muito importante, a
fim de tornar kathizein transitivo, um objeto pronominal (auton ) é colocado depois
dele — o elemento gramatical que está notavelmente ausente em João. Assim, isso
é mais uma nova redação que uma exegese de Jo 19,13, que adapta o tema a um
novo contexto dramático muito diferente do joanino. Como quase sempre em EvPd,
o que motiva a nova redação é o desejo de pôr em relevo semelhanças com o AT.
Aqui, a passagem em mente é Is 58,2, onde Deus reclama que os israelitas agem
como se fossem uma nação justa (o que eles não são): “ Eles me pedem julgamento
justo [dikaios]”. Não há nenhum eco desse texto em João.

Há pouca coisa a acrescentar a respeito da outra passagem, isto é, Justino,


Apologia I,xxxv,6. Depois de citar Is 58,2, Justino refere-se a Jesus sendo cruci­
ficado pelos judeus, que, depois de contradizê-lo, negaram ser ele o Messias: “E
como disse o profeta, levaram-no arrastando [diasyrein], sentaram-(no) em um/
no bema e disseram: ‘Julga-nos’”. Justino está próximo de EvPd 3,6, onde o povo
judeu diz: “ Vamos arrastar o Filho de Deus agora que temos poder sobre ele”.
Muitas das observações feitas acima, a respeito de EvPd, aplicam-se aqui. Não há
nenhum objeto pronominal que se siga a kathizein-, mas isso exemplifica a regra
segundo a qual o objeto pode ser omitido quando não há ambiguidade: os judeus
como pluralidade não podem sentar-se no bema.

A meu ver, dessas duas passagens é possível extrair importante argumento a


favor da leitura intransitiva de João. Sem o tipo de mudanças de cenário e detalhe
que elas apresentam, não se pode ler transitivamente a frase sobre o bema. Em EvPd
e Justino, somente dois lados estão envolvidos (os judeus e Jesus); em EvPd, depois

618
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir

que o povo senta Jesus na cadeira, falam com ele. Em Jo 19,13, estão envolvidos
três lados: Pilatos, os judeus e Jesus. Depois de Pilatos levar Jesus para fora e ter
lugar a ação envolvendo o bema, Pilatos fala aos judeus, não a Jesus. Se a ação
fosse transitiva e Pilatos tivesse sentado Jesus no bema, deveria haver o mesmo
dinamismo visto em EvPd e Justino: Pilatos teria falado a Jesus, não aos judeus, e
o teria desafiado a agir como juiz. No comentário, afirmei que a atmosfera solene
de tempo e lugar em Jo 19,13-14 nos incentiva a ler isso como momento culminante
do julgamento, onde Pilatos senta-se no sella curulis para proferir sentença e uma
condenação à morte. A fraqueza dos argumentos a favor da interpretação transitiva
significa que não há motivo para mudar esse quadro.

619
Apêndice IV:
Perspectiva geral de Judas Iscariotes

Resumo:

A. A vida de Judas

1. A existência de Judas

2. Tentativas para engrandecer o papel de Judas

3. Judas participou da Eucaristia?

4. O que Judas traiu?

5. Qual foi o motivo de Judas para entregar Jesus?

6. Como Judas morreu? (Atos e Mateus; Pápias)

B. O nome Iscariotes

1. Maneiras de escrever o nome

2. Várias explicações

Bibliografia

O NT nos revela relativamente pouco a respeito de Judas; mas, como vimos


em nosso comentário da NP (em especial em § 29), o que ele relata é altamente
dramático. Trabalhando com os poucos detalhes apresentados e aplicando discer­
nimento e imaginação: desde o princípio até o presente, autores aperfeiçoaram a
imagem. Entre os autores importantes que escreveram a respeito de Judas nos últi­
mos anos podemos citar Haugg, Halas, Gártner, Vogler e Klauck. Portanto, parece
que vale a pena dedicar um apêndice a Judas e reunir material pertinente a essa
importante figura da NP e, assim, transcender o que foi apropriado ao comentário
linha por linha.

621
A pêndices

A. A vida de Judas

Este Judas é mencionado 22 vezes no NT: Marcos, 3; Mateus, 5; Lucas-Atos,


6; João, 8. Se essa lista de obras neotestamentárias está correta cronologicamente,
o interesse em Judas foi progressivo. Marcos menciona-o entre os Doze escolhidos
em Mc 3,19, mas não volta a fazê-lo depois disso, até Judas começar o processo de
entregar Jesus em Mc 14,10-11. Os Evangelhos mais tardios realçam a imagem,
dando detalhes que talvez sejam relevantes ao motivo para Judas entregar Jesus.
Vamos agora analisar esse material e conjeturas eruditas baseadas nele.

1. A existência de Judas

O nome de um dos doze filhos de Jacó-Israel, Yehüdâ, é traduzido como Iou-


das na LX X. Os nomes dos patriarcas eram populares na época neotestamentária e
diversas figuras do NT chamam-se Judas.’ Assim, por si só, o nome desse homem
não é suspeito. Contudo, “Judas” relaciona-se etimologicamente a “judeu” ( Yehüdt,
Ioudaios);1
2 e, por isso, aquele que entregou Jesus podia ser considerado, pelos
que eram hostis a ele, o perfeito judeu. Agostinho afirma que Pedro representa a
Igreja e Judas representa os judeus (Enarratio in Ps 108 18,20; CC 40,1593.1596;
Sermão 152 10; PL 38,824). Como documenta Lapide ( Wer, p. 11-42, esp. 11-16),
isso foi explorado como polêmica antijudaica na literatura dramática e na arte, por
exemplo, ao descrever Judas com feições “semíticas” grosseiramente exageradas
e generalizar seu amor por dinheiro. Em outra direção, o fato de as consoantes de
seu nome (Yhwdh) expressarem em hebraico o valor numérico de trinta pode ter
contribuído para a conta mateana de trinta moedas de prata. As possibilidades
metafóricas do nome levaram alguns biblistas à tese de que Judas nunca existiu,
mas era originalmente uma figura simbólica (J. M. Robinson, W. B. Smith, G. Volk-
mar — ver Schlãger, “ Ungeschichlichkeit” ; Campbell, Did , p. 42). Os argumentos
apresentados incluem estes: a escassez de dados neotestamentários referentes a ele;
a afirmação de que o papel de Judas era primordialmente alegórico como advertência

1 Em algumas línguas, às vezes o nome está disfarçado, para evitar confusão com o Iscariotes, por exemplo
“ Jude” , em inglês. Um dos “ irmãos” de Jesus chama-se Judas (Mc 6,3 — ao que tudo indica, o autor
designado em Jd 1,1), como um discípulo que Jo 14,22 declara não ter sido o Iscariotes — talvez esse
último seja o “Judas, filho de Tiago” das listas em Lc 6,16; At 1,13.
2 A tribo de Judá era o principal componente do Reino do Sul, área que se tomou a província da Judeia
sob os romanos.

622
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

aos fiéis sobre a possibilidade de traírem Jesus (Plath, “ Warum”, p. 181-182); a


natureza teatral das cenas nas quais ele aparece (por exemplo, Mt 26,21-25, onde,
um depois do outro, os discípulos perguntam: “ Serei eu, Senhor?”, com Judas vindo
por último); a aparição de Judas em uma cena, em um Evangelho mais tardio, da
qual ele estava ausente em um Evangelho mais primitivo (comparemos a unção em
Betânia de Mc 14,4; Mt 26,8; Jo 12,4-5); as narrativas divergentes a respeito de
sua morte; o silêncio a respeito dele em Paulo, na maioria dos Padres Apostólicos,
em Aristides e em Justino. G. Volkmar sugeriu que a imagem de Judas foi criada a
partir da experiência cristã primitiva de ser entregue às autoridades romanas pelos
judeus, e Wrede (“Judas”, p. 132) examina se isso não seria possível. Na edição de
1864 de seu Leben Jesu, Strauss chegou perto de uma explicação mítica de Judas,
e muitos outros (por exemplo, Wrede, Heitmüller) consideram fictícia grande parte
da história de Judas. Enslin (“ How” ) considera as histórias das negações de Pedro
e da traição de Judas criações marcanas a partir de 2Sm 15-17. J. B. Bauer (“Ju­
das” ) afirma que o pensamento cristão primitivo de que Judas foi embora (At 1,25:
“para ir ao lugar que lhe cabia” ) e histórias diferentes de sua morte preencheram
a ignorância dos cristãos a respeito de seu destino. Jo 17,12 é citado como exemplo
de que, na opinião cristã, Jesus o perdera.

Grande parte do argumento em favor da não historicidade total ou quase total


resulta da interpretação do silêncio. É a invencionice de Judas um meio plausível
para representar o que poderia ter sido facilmente declarado? 0 tema de Judas = o
judeu nunca é sugerido no NT. A figura de Judas certamente não ajudou a imagem
cristã; na verdade, um adversário como Celso apontou-o como escolha errônea por
um Jesus supostamente divino (Orígenes, Contra Celso ii,ll). Todas as diversas
listas sinóticas dos Doze o mencionam, o que com certeza é tradição pré-evangélica.
Judas está firmemente inserido nas NPs sinóticas e também na joanina. Se ele
fosse criação fictícia, essa criação teria de ter acontecido na primeira década da
tradição cristã! Quanto ao avanço gradual nos Evangelhos mais tardios, isso pode
perfeitamente representar a imaginação preenchendo os espaços, mas não constitui
nenhum argumento contra a historicidade básica da personagem.

Outra diferença sutil nesse debate diz respeito ao papel de Judas. Por exem­
plo, Grayston (Dying, p. 395-399) admite que Judas não foi inventado por Marcos e
era um dos Doze, mas insinua a possibilidade/probabilidade de não ter ele desem­
penhado papel ativo na entrega de Jesus às autoridades judaicas. Grayston afirma

623
A pêndices

que a tradição cristã mais primitiva alegava que Deus entregou Jesus (paradidonai )
ou, em conflito com os judeus, que a hierarquia do Templo entregara Jesus. Somente
em reação a perigos cristãos internos Judas recebeu um papel na NP como o que
entregou Jesus à morte. Entendo os indícios quanto a paradidonai de maneira dife­
rente. A série de indivíduos que constam como tendo entregado Jesus foi examinada
em § 10. É perfeitamente possível que várias circunstâncias na pregação fizeram
um indivíduo ou outro ser enfatizado, mas não há nenhum indício convincente de
que a linguagem não fosse polivalente desde o início e de que um indivíduo como
Judas fosse criado em um nível mais tardio. Dorn (“Judas” ) apresenta um estudo
admiravelmente meticuloso da questão; ele afirma que, embora Judas certamente
tenha existido como um dos Doze durante a vida de Jesus, não há probabilidade
de, na tradição, ele ter sido incluído entre os Doze que deram testemunho do Jesus
ressuscitado. Algum fato que contestou seu discipulado acontecera entre o ministério
e a ressurreição. Se Judas fosse apenas o primeiro a fugir, isso daria razão suficiente
para a tradição evangélica unânime de que ele entregou Jesus, para uma tradição
antiga de que o círculo dos Doze teve de ser completado, como se a posição de
Judas estivesse definitivamente vaga, e para a associação do destino abominável de
Judas com o “ Campo de Sangue” ? Assim, a meu ver, a atenção a todos os indícios
apoia a tese de que um dos Doze, chamado Judas, entregou Jesus às autoridades
que planejavam sua morte. Na tradição, pouco mais que isso pode ser conhecido a
respeito de Judas, exceto que ele teve morte repentina e violenta, e que seu nome
ficou associado ao “ Campo/Terreno de Sangue”.

2.Tentativas para engrandecer o papel de Judas

Se alguns biblistas minimizam o papel de Judas a ponto de prescindir dele,


outros vão na direção contrária e lhe dão mais importância do que o NT confirma.
Por exemplo, os fatos de ser chamado filho de Simão (Jo 6,71), de estar presente à
unção em Betânia, como estão Marta, Maria e Lázaro (Jo 12,2-4), e de Mc 14,3
localizar na casa de Simão, o leproso, a unção em Betânia levaram J. A. Sanders
(NTS 1, 1954-1955, p. 29-41) a expor a teoria de que Judas era o irmão mais
velho de Marta, Maria e Lázaro da família de Simão, o leproso, em Betânia — na
verdade, “uma Marta masculina que fracassou” (p. 41)! Tem havido diversas tenta­
tivas de identificar Judas como o discípulo que Jesus amava no Evangelho de João
e Hueter (Matthew) acha que Judas pode ter escrito aquele Evangelho. A. Wright

624
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

(“ Was Judas” ) afirma que o número cardinal heis, usado a respeito de Judas na
frase “um dos Doze” 3 era coloquial para o ordinal (BDF1), de modo que Judas era o
“primeiro dos Doze”. Os argumentos apresentados para apoiar a prioridade de Judas
incluem: sua posição na Ultima Ceia (Jo 13,26, perto o bastante para ser alcançado
por Jesus); seu controle da bolsa comum (Jo 12,6); e a possibilidade sugerida por
Wright de ser ele um sacerdote, o que lhe permitia entrar no Templo até o santuário
no qual ele jogou as moedas de prata (Mt 27,5). Mas por que a comunidade cristã,
que não suprimiu a memória da entrega de Jesus por Judas, suprimiria a memória
de ser ele o primeiro entre os Doze? De fato não há nada que apóie a primazia de
Judas. Todas as listas dos Doze põem Simão Pedro em primeiro lugar; Mt 10,2
usa o número ordinal protos para ele, que desempenha nos Evangelhos um papel
muito maior que o de Judas. Na verdade, até João (irmão de Tiago) é mencionado
mais vezes que Judas (30 vezes [mais 4 como filho de Zebedeu] comparado com
22). Quanto a guardar a bolsa (se isso for real) nada nos valores proclamados por
Jesus torna esse papel primordial. Finalmente, segundo a tese de Wright, se heis
aplicado a Judas em Jo 6,71 significa “primeiro dos Doze”, o que significa quando
aplicado a Tomé (Jo 20,24)?

3. Judas participou da Eucaristia?

Além das tentativas eruditas de minimizar e maximizar a vida de Judas,


é dada atenção para apresentações divergentes nas poucas cenas em que Judas
aparece, por exemplo, a Última Ceia. Bornháuser (Death , p. 65-66) afirma que o
modo indireto de Jesus indicar aos discípulos onde ele comeria a ceia (Mc 14,13-15
e par.) refletia seu desejo de esconder o local de Judas. Mas Judas estava na ceia.
Estava Judas ainda lá quando Jesus distribuiu seu corpo e sangue aos discípulos

3 Bum (“ St. Mark”) relata que Wright tinha o ilustre apoio de F. Field, mas que J. F. Isaacson contra-
-argumentou que no grego helenístico, em oposição ao ático, ho eis significa “ um dos” , porque há casos
claros onde o artigo definido pode ser indefinido. A. T. Robertson (Expositor 8. Ser., 13, 1917, p. 278-
286), rejeita a tese de Wright, mas observa corretamente que ho heis ton dodeka é a melhor leitura em
uma passagem como Mc 14,10. Ele aceita a tentativa de H. B. Swete de fazer justiça ao artigo, dando
este sentido: esse um, o único dos Doze a ir aos chefes dos sacerdotes para entregar Jesus. J. R. Harris
(.Expositor 8. Ser., 14, 1917, p. 1-16) também não aceita a tese de Wright — em algumas tradições pri­
mitivas Judas é o terceiro ou sexto entre os Doze — mas tem problemas com a opinião de Robson quanto
a ho heis. Wright (Expositor 8. Ser., 14, 1917, p. 397-400, responde e se concentra especialmente na
tentativa fantasiosa de Harris para relacionar Judas Iscariotes com Issacar em termos de onde cada um
está colocado entre as doze tribos ou os doze apóstolos.

625
A pêndices

e aceitou essa dádiva embora tivesse decidido entregar Jesus? (Veja um estudo
da intensa discussão a respeito em Halas, Judas, p. 104-136.) Os que afirmam
a participação de Judas apontam para ICor 11,27-32, onde Paulo fala em forte
condenação de quem come o pão ou bebe o cálice do Senhor indignamente: “Essa
pessoa come e bebe sua própria condenação por não discernir o corpo. É por isso
que [...] e alguns morreram”. Eles perceberíam na advertência geral de Paulo
uma lembrança de Judas que comeu indignamente e logo morreu. Nenhum relato
evangélico descreve especificamente Judas recebendo o pão/corpo ou o vinho/
sangue. João não descreve a eucaristia na ceia e portanto nada pode ser feito
quanto ao bocado dado a Judas em Jo 13,26. Jesus servir-se do mesmo prato (de
comida) que Judas em Mc 14,20; Mt 26,23 é descrito de maneira bem diferente
da Eucaristia. Em Mc 14,18-21; Mt 26,21-25, a advertência de Jesus que prevê
a traição por Judas (abertamente em Mateus) precede as palavras sobre o pão e
o vinho (Mc 14,22-25; Mt 26,26-29). Nenhum dos dois evangelistas descreve a
partida de Judas da refeição (mencionada apenas por Jo 13,30), apesar de Judas
não estar entre os discípulos que vão com Jesus ao Getsêmani (porém ele chega
mais tarde: Mc 14,43; Mt 26,47). Não há meios, então, de saber se na mente desses
dois evangelistas Judas saiu depois da advertência (e antes da Eucaristia) ou de­
pois da Eucaristia. O relato de Lucas causa o problema: ali a advertência de Jesus
que prediz a traição (por Judas: Lc 22,21-23) segue-se às palavras sobre o pão e o
vinho (Lc 22,17-20). Certamente é de se supor que Judas estivesse ali durante a
advertência e as palavras eucarísticas. Contudo Lucas jamais menciona Judas pelo
nome durante a ceia; e sua falta de preocupação com qualquer possível inexatidão
subentendida na sequência que acabamos de descrever é evidente pela declaração
do Jesus lucano aos discípulos depois da desgraça do traidor em Lc 22,22: “ Vós
sois aqueles que permaneceram comigo em minhas provações [...] vos sentareis em
tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Lc 22,28.30). Se é plausível pensar
que Judas recebeu a Eucaristia e depois ouviu Jesus amaldiçoá-lo, teria ele saído
depois da maldição e antes da promessa?

Tem havido as costumeiras tentativas de solucionar o problema reorganizando


os textos. Hein (“Judas” ) pressupõe duas refeições: Judas estava em uma refeição
anterior quando decidiu entregar Jesus, mas não estava na Ultima Ceia e por isso
não recebeu a Eucaristia. Hein encontra indícios de duas refeições no Comentário
ao Diatessarão 19,3-4 de Efrém (SC 121,332-333) e nas Constituições Apostólicas

626
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

(Funk, org., p. 271), que permitem a distinção entre a noite do lava-pés e a noite
da Eucaristia — distinção que cresceu na liturgia, talvez? Preisker (“ Verrat”, p.
152-153) afirma que Mc 14,10-11 (Judas indo procurar os chefes dos sacerdotes
e concordar em entregar Jesus) está fora da ordem cronológica (assim também E.
Hirsch, Klostermann, Welhausen), pois originalmente essa passagem estava no
fim da Ultima Ceia como em Jo 13,30. A (hipotética) ordem lucana original era Lc
22,25.28-30.21-23.3-6; e assim Judas entregou Jesus depois da Eucaristia. Tais
rearranjos supõem que os escribas, escandalizados por encontrar Judas recebendo
a Eucaristia com o plano já determinado de trair Jesus, tentaram suavizar o relato.
Considero a maior parte disso hipótese improdutiva a respeito de um problema que
pode ter sido bem estranho à preocupação dos evangelistas.

4 .0 que Judas traiu?

Em meu comentário (p. 274, vol. I), insisti que o verboparadidonai aplicado
a Judas significa “entregar”, não “trair”.4 Judas entregou Jesus por meio de duas
ações segundo os sinóticos: ele foi antes ou com o grupo que veio prendê-lo para
mostrar-lhes onde e quando agarrar Jesus (em um lugar remoto no monte das Oli­
veiras, tarde da noite); e uma vez lá ele identificou quem era Jesus, diferenciando-o
dos outros que ali estavam (os discípulos). Alguns biblistas julgam uma ou as duas
dessas funções ilógicas e afirmam que Judas traiu Jesus de outra maneira. Vamos
primeiro considerar a asserção de falta de lógica. Não seriam o paradeiro e a iden­
tidade de Jesus bem conhecidos das autoridades ou, pelo menos, não poderíam eles
mandar a polícia seguir e prender Jesus sem a ajuda de Judas? A essa objeção é
possível responder da seguinte maneira: havia m assas de povo em Jerusalém para
a festa, o que dificultava a supervisão; normalmente Jesus não ficava em Jerusa­
lém, mas fora das muralhas (Mc 11,11; entre amigos em Jo 12,1-2); nos relatos
sinóticos é a primeira vez que Jesus vem a Jerusalém e não fazia muito tempo que
ele estava lá; mesmo em João, onde ele vinha a Jerusalém com frequência e podia
ser bem conhecido, Jesus por diversas vezes escapou de ser preso e se escondeu
(Jo 7,30.45-46; 8,59; 10,39-40; 11,54). Portanto, no nível de verossimilhança,

4 0 verbo clássico para trair é prodidonai. A única vez que uma palavra desse radical é aplicada a Judas
no NT é Lc 6,16 (prodotes). A preferência esmagadora por paradidonai origina-se do emprego em Is
53,12 [LXX]: “ Ele foi entregue por nossos pecados” .

627
A pêndices

não é ilógico que as autoridades judaicas quisessem ajuda quanto a onde e quando
prender Jesus sem tumulto.

Quando nos voltamos para as teorias dos que defendem a ideia de traição, a
suposição inevidente é que Judas deu às autoridades judaicas informações secretas
a respeito de Jesus que lhes permitiram mover uma ação contra ele. Quero relacio­
nar alguns ditos ou atos de Jesus que Judas supostamente traiu: Jesus afirmou que
destruiría o santuário (Goguel); Jesus afirmou ser o Filho de Deus (Grundmann)
ou o Messias, desse modo rompendo o segredo messiânico (Bacon, Bornhãuser, A.
Schweitzer, Seitz); Jesus esperava inaugurar o Reino de Deus com a Ultima Ceia
ou imediatamente depois dela (Bacon, Preisker; ver Mc 14,25; Lc 22,28-30 [SI
122,5]); Jesus tinha se deixado ungir (Bacon; ver Mc 14,3.8 [ISm 16,13]); Jesus
celebrou a Páscoa em hora ilegal ou de maneira ilegal (M. Black); Jesus aprovara
o uso da espada (Stein-Schneider; ver Lc 22,36-38; Is 53,12). Todas essas suges­
tões são especulativas, baseadas principalmente em temas que aparecem direta
ou indiretamente nos procedimentos judaicos contra Jesus. A objeção fatal a todas
elas, a meu ver, é que se fossem verdade Judas teria comparecido como testemunha
contra Jesus para tornar a acusação plausível.

Derrett (“ Iscariot”, com o aviso que aborda o NT com novos olhos e a aborda­
gem correta) estuda Judas à luz do mestrâ. A raiz hebraica e aramaica msr significa
“entregar” ; e como os judeus viviam sob domínio estrangeiro, palavras originárias
dessa raiz eram usadas para descrever a entrega de judeus aos governantes gentios.
No final do século II. d.C., Mixná Terumot 8,12 insiste que esse comportamento
é indesculpável sob quaisquer circunstâncias. Mais primitiva e mais aplicável ao
NT é a hostilidade do Rolo do Templo de Qumrã (11Q Miqdas 64,7-8): “ Se alguém
entregar seu povo a uma nação estrangeira [...] vós o pendurareis em uma árvore
e ele morrerá”.5 Como isso se aplica a Judas? Ele percebeu, quando entregou Je ­
sus às autoridades judaicas, que indiretamente o entregava a Pilatos? No nível de
verossimilhança seria de se esperar que ele conhecesse o procedimento normal
do sinédrio em crimes capitais. Por outro lado, segundo Mt 27,3, ao ver que as

0 Entretanto, em geral em Qumrã a raiz msr aplica-se a entregar alguém, como em CD 19,10. Não está claro
se CD 9,1 refere-se a esse mesmo assunto: “Todo aquele que jura levar alguém à destruição pelas leis
dos gentios, será ele próprio destruído” . Contraste P. Winter, RQ 6,1967-1969, p. 131-136 e Rabinowitz,
RQ 6,1967-1969, p. 433-435.

628
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

autoridades judaicas iam entregar Jesus aos romanos, Judas mudou de ideia com
remorso — quase como se ele não soubesse que o resultado seria esse.

É melhor aceitar o indício evangélico que a iniquidade de Judas foi entregar


seu mestre e amigo às autoridades ju daicas , mostrando-lhes como prender Jesus
sem desordem pública. Elas já sabiam o bastante a respeito de Jesus para serem
seriamente hostis com ele. Os Evangelhos concordam que na ocasião da Ultima Ceia
Judas já se voltara contra Jesus. Quando ele começou a se inclinar nessa direção?
Isso é incerto, pois, embora em Jo 6,70-71, no meio do ministério, Jesus refira-se
a Judas como “um diabo”, não está claro se essa designação significa que Judas já
estava planejando entregar Jesus (Zehrer, “Judasproblem”, p. 259).

5. Qual fo i o m otivo de Judas para entregar Jesus?

Marcos não dá nenhuma indicação do motivo de Judas fazer o que fez. Os


Evangelhos mais tardios mencionam dois fatores que talvez constituam motivação.
Primeiro, em Mt 26,14-15 Judas pergunta aos chefes dos sacerdotes: “ Que me da­
reis se eu vos entregar Je su s?”. Em Jo 12,4-6, onde Judas reclama que o unguento
deveria ter sido vendido por dinheiro, em benefício dos pobres, o evangelista dá clara
indicação de insinceridade: Judas “era ladrão: ele guardava a caixa de dinheiro e
podia se servir do que nela se depositava”. Esses dois episódios foram ligados na
obra medieval de Jacó de Voragine, Golden Legend: as trintas moedas de prata
especificadas em Mateus como o preço entregue pelos chefes dos sacerdotes foram
consideradas a autorrecompensa de Judas como dízimo sobre os 300 denários
pelos quais o unguento deveria ter sido vendido (Mc 14,5; Jo 12,5). Entretanto,
não podemos ter certeza de que a descrição de Judas como avarento não seja uma
difamação mais tardia de seu caráter conforme o princípio de que quem cometeu
um ato tão maldoso deve ter personificado todo o mal.6 Não há nada implausível na
ideia em si de Judas ser o encarregado da caixa de dinheiro, apesar do argumento
que seria mais provável Jesus dar essa tarefa a um ex-cobrador de impostos como
Levi/Mateus.

6 Bartnik (“Judas”) aponta para o caráter teológico dado a Judas como o arquétipo do pecador. Klauck
(Judas, p. 74) conjetura se Judas como ladrão não é uma retroprojeção do desagrado cristão primitivo por
haveres (At 2,44-45; 4,32-35). Nesse caso, entretanto, seria de se esperar que Lucas-Atos enfatizassem
a avareza de Judas. “O salário da maldade” em At 1,18 é geral demais para indicar avareza.

629
A pêndices

Lüthi (“ Problem” ) acha que a acusação de que Judas era ladrão aludia ao
diabólico, o que nos leva à segunda motivação apresentada nos Evangelhos. Lc 22,3
introduz a cena na qual Judas vai ter com as autoridades relatando: “ Então Satanás
entrou em Judas, chamado Iscariotes”. Antes da Ultima Ceia, Jo 13,2 informa o
leitor: “ O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão, o Iscariotes,
entregar Jesus”. Jo 13,27 ressalta que “depois do bocado de comida, Satanás entrou
em Judas”. Assim, Lucas e João apresentam Judas como instrumento de Satanás,
o agente principal na entrega de Jesus (veja Billings, “Judas” ). Para João, Judas
deu ao Príncipe deste mundo entrada no círculo íntimo de Jesus. Outra indicação
do diabólico é a designação de Judas como “o filho da perdição” (Jo 17,12, termo
usado por 2Ts 2,3 para a figura do inimigo de Deus) e como diabo (Jo 6,70). Além
disso, a ideia que Jesus conhecia Judas “desde o início” relaciona-se ao julgamento
que o diabo era um assassino “desde o início” (Jo 6,64; 8,44). Naturalmente, esse
é um julgamento teológico imaginado em retrospecto; não ajuda a determinar a
perspectiva pessoal de Lucas.

Tema bem conhecido é que o que Judas fez serviu ao cumprimento da


Escritura, conforme indicado em Mc 14,18-21 e par.; Mc 14,43-45.49 e par.; Jo
13,18; Mt 27,9. Contudo, essa é mais claramente ainda uma explicação teológica.

Os biblistas (e também romancistas e dramaturgos — ver Hughes, “ Fra-


ming” ) não hesitam em compensar a reticência do NT, propondo motivos para o
comportamento de Judas. Zehrer (“Judasproblem”, p. 262) lembra que alguns fatores
têm sido citados como motivo para deixar Judas escandalizado e o fazerem rejeitar
Jesus: a afirmação de Jesus de ser o Messias; a afirmação mais blasfema de ser o
Filho de Deus; a celebração ilegal da refeição pascal por Jesus em data antecipada;
e seus ditos a respeito do Templo (o próprio Zehrer rejeita-os). Usando material
neotestamentário, ao enfrentar a objeção de Celso que ao escolher Judas o Jesus
supostamente divino cometera um erro, Orígenes afirmou que Judas começara como
bom discípulo; avareza e falta de fé abriram caminho para o diabo (Comentário a
João xxxii,14 sobre Jo 13,18; GCS 10 [Orígenes 4], p. 448; ver E. Laeuchli, CH 22,
1953, p. 253-268). Na outra direção, alguns (por exemplo, Stauffer) pensam que
Judas talvez trabalhasse havia muito tempo com o sinédrio, ainda que os Evangelhos
o descrevam tomando sua decisão na ocasião da Última Ceia.7 Uma sugestão muito

A tendência a considerar que Judas já era de natureza má aumentou. No Evangelho arábico da infância
35, Judas é posuído pelo diabo em criança e agride o menino Jesus. Na influente Golden Legend do
século XIII pelo dominicano Jacó de Voragine (Festa de São Mateus, 24 de fevereiro) há uma advertência

630
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

popular é que Judas ficara impaciente por Jesus não inaugurar o Reino, impaciência
nascida do zelo (os que pensam que Judas era ardente nacionalista) ou da ambição
(os que reparam na sequência em Lc 22,21-24 onde a maldição contra o traidor é
seguida por uma disputa quanto a qual dos discípulos é o maior). Contudo, a respeito
dessa sugestão, Judas não desempenha nenhum papel nas diversas passagens neo-
testamentárias que tratam da realeza para Jesus ou da ambição entre os discípulos
(por exemplo, Jo 6,15; At 1,6; Mc 9,33-34; 10,37). Alguns, para os quais Judas
ainda acreditava em Jesus, sugerem que Judas o entregou na expectativa de Jesus
ser forçado a mostrar seu poder, dominar as autoridades e inaugurar os preceitos
divinos (Cox, “Judas”, p. 420-421). Como apoio, invocam Mt 27,3-5, onde Judas
parece ficar aturdido quando as autoridades entregam Jesus a Pilatos. Uma versão
específica disso é defendida por Stein-Schneider (“ Recherche”, p. 415-420): Judas,
discípulo fiel, tinha esperança de acabar com uma revolta que as ações de Jesus
tinham provocado e com dinheiro procurou fazer os chefes dos sacerdotes deixá-lo
ir. Ainda mais idiossincrática é a tese de G. Schwarz (Jesus, p. 12-31) que Judas
só estava obedecendo ordens de Jesus (Jo 13,27) para entregá-lo a Caifás, que era
conhecido de Judas (o discípulo anônimo de Jo 18,15b). O bocado de pão que Jesus
deu a Judas na ceia foi um gesto de gratidão e o beijo de Judas foi um gesto de des­
pedida como em Rt 1,14. (A mistura que Schwarz faz de textos de vários Evangelhos,
a nenhum deles dando o sentido que os evangelistas pretendiam, é cercada por sua
retroversão de segmentos das NPs no aramaico original!) Outros opinam que Judas
agora perdera a fé em Jesus e achava ser seu dever religioso deter o falso mestre.8
Lc 22,6 emprega o verbo exomologein para descrever as negociações de Judas com
os chefes dos sacerdotes. Quase sempre traduzido que Judas “consentiu”, o verbo
pode ter a conotação de “reconhecer, confessar” e assim alguns o entendem em
termos dos sacerdotes forçando Judas a confessar sua cumplicidade no seguimento
de Jesus antes de aceitarem seus serviços.

profética aos pais de Judas, na noite de sua concepção, que essa criança será má e ele o é a vida toda,
em especial quando fica amigo de Pilatos.
Pseudo-Tertuliano (Adv. Omnes Haer. 2,6; CC 2,1404) descreve os gnósticos para os quais Judas tentava
desmascarar Jesus como pessoa má. Nas lendas judaicas medievais do Toledoth Yeshu o rabino Jehuda
ish Bartola (Judas Iscariotes) ajuda o povo judeu a superar as defesas mágicas do perverso Jesus. Judas
tirou o corpo de Jesus do túmulo; e quando foi feita a mentirosa alegação de ressurreição, Judas refutou-a
mostrando o corpo.

631
A pêndices

Um grupo de gnósticos desenvolveu a estranha ideia de gratidão para com


Judas já que ele forçou os poderes deste mundo a agirem contra Jesus e assim
tornou possível a salvação (Pseudo-Tertuliano, Adv. Omnes Haer. 2,5; CC 2,14-4).
De vez em quando essa ideia é invocada mais sutilmente nas discussões modernas
(Lapide, “ Verráter”, p. 79), principalmente para remover qualquer ideia de atribuir
culpa pela crucificação. Muitos cristãos foram na direção contrária de descrever
Judas como figura odiosa. Judas passou pela história como homem marcado porque
era culpado pelo sangue inocente de Jesus. Além de fazer dele um símbolo odiado
dos judeus,9 os cristãos o usaram para exemplificar o mal dos que entregavam os
cristãos aos perseguidores romanos.10 No século II, o Martírio de Policarpo 6,2
julga que os que entregaram aquele santo ao grupo que veio prendê-lo “deviam
sofrer o mesmo castigo de Judas”. Embora não haja nenhum ensinamento oficial da
Igreja que uma pessoa específica tenha ido para o inferno, essa citação concorda
com a sugestão em At 1,25 (Judas foi embora “para ir ao lugar que lhe cabia” ) que
Judas foi condenado.11 Do mesmo modo, Irineu (Adv. haer. V,xxxiii,3-4), depois de
citar um fragmento de Pápias do início do século II no qual Jesus falou a respeito
da abundância dos últimos tempos, diz que Judas expressou descrença e o Senhor
deu a entender que ele não estaria entre os que veríam essa abundância.

6. Como Judas morreu? (Atos e M ateus; Pápias)

Em § 29, como parte do estudo de Mt 27,3-10, dei uma tradução da referência


à morte de Judas em At 1,16-20.25. Pápias, do início do século II, faz um terceiro
relato, que examinarei abaixo. Em § 29, comparei os relatos de Mateus e dos Atos
principalmente a partir da tentativa de determinar uma forma mais primitiva da
tradição; aqui nos ocuparemos da historicidade.

9 Observe a combinação em uma maldição dos tempos patrísticos invocada sobre quem quer que pertur­
basse uma sepultura: Que ele tenha a maldição e dos que dizem: “ Foracom ele [...] crucifica-o” (NDIEC
1,1976, #61, p. 100-1-1).
10 O Pastor de Hermas (Similitudes IX,xix,l-3) declara que não há arrependimento possível para “os que
entregam os servos de Deus” . Hermas é mais indulgente com os que não têm fé.
11 Isto está em harmonia com o julgamento em Mixná Sanhedrin 10,2 que Aquitofel (que se voltou contra
Davi e se enforcou) não tem lugar no mundo que há de vir. Na direção oposta, a desconfiança de Orígenes
do castigo eterno está exemplificada em sua opinião que o suicídio de Judas refletia uma alma exposta
que confessava e suplicava misericórdia (In Matt. 117, a respeito de Mt 27,3 (GCS 38,245). Halas (Judas,
p. 46) aponta para os Atos de André e Paub onde, depois de devolver o dinheiro, Judas encontrou Jesus
e foi mandado ao deserto para penitência; ali ele encontrou e adorou o demônio (JANT, p. 472).

632
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

a) O relato dos Atos em relação a Mt 27,3-10. Como se pode imaginar, em


face de dois relatos da morte de Judas tão diferentes como os contados por Mateus
e pelos Atos (e talvez mesmo um terceiro relato independente com mais diferen­
ças ainda), os maldizentes tiveram um proveito maravilhoso, já visível em Leben
Jesu por D. F. Strauss (1835). Biblistas conservadores altamente respeitáveis (por
exemplo, Benoit) também foram levados a reconhecer que as descrições da morte
de Judas foram completadas com exemplos veterotestamentários das mortes de
homens iníquos. Também era inevitável haver tentativas conservadoras eruditas de
defender a historicidade dos relatos de Mateus e dos Atos por meio de harmonização
ou reinterpretação.

Na antiguidade, já entre os copistas do texto neotestamentário e entre os


Padres da Igreja, houve tentativas, explícitas ou implícitas de solucionar as duas
principais diferenças entre Mateus e os Atos, isto é, a forma da morte (enforcamento
em Mateus; caindo prostrado e partindo-se ao meio nos Atos) e a compra do campo/
terreno (pelos chefes dos sacerdotes depois da morte de Judas em Mateus; pelo
próprio Judas nos Atos). Quanto à primeira diferença, a ideia que Judas não morreu
quando se enforcou (por exemplo, a corda rompeu-se) e que os Atos descrevem a
morte que ocorreu mais tarde já está implícita na OL de At 1,18: “ Ele se amarrou
pelo pescoço; e caindo de bruços ele se arrebentou ao meio”. Do mesmo modo, a
Vulgata traz: e tendo se pendurado, ele rebentou pelo meio”. E ssa harmonização
ainda é proposta por biblistas modernos, mas quase sempre com mais sutileza. Há
harmonização na teoria de Derrett (“ Miscellanea” ) que recorre a uma referência
de muitos séculos mais tarde em Seder Rabba de Bereshith 30 a alguém no inferno
que tem a barriga arrebentada e (as vísceras) caem-lhe diante do rosto. Derrett
imagina Judas dependurado de cabeça para baixo e explodindo!

A segunda diferença (a compra da terra) também continua a ser objeto de


explicação engenhosa. Haugg (Judas, p. 180) entende que os Atos permitem uma
interpretação na qual Judas deu o dinheiro e outros o usaram para comprar o campo.
Sigwalt (“Eine andere” ), Silva (“ Como murió” ) e Sickenberger (“Judas” ) agarram-se
em várias graduações ao fato de enquanto Mt 27,7 emprega agorazein para dizer
que “eles compraram”, At 1,18 emprega ktasthai para o que Judas fez e para este
último atribuem um sentido mais indireto de adquirido ou de ter estado à venda.
Sickenberger vai mais longe e sugere que quando se leva em conta o itacismo, a
forma dos Atos ektesato, em vez de derivar de ktasthai, origina-se de ktizein (“criar,

633
A pêndices

fazer; fundar” ), de modo que Judas seria descrito como o fundador que possibilitou a
compra (com referência a esse sentido do verbo em inscrições bizantinas posteriores
ao ano 1000). A meu ver essa harmonização distorce o sentido óbvio do texto dos
Atos, escrito em total ignorância da narrativa mateana.

Mais interessante é o efeito (às vezes independente de harmonização) para


interpretar as quatro palavras gregas extremamente difíceis de At 1,18: prenes
genomenos elakesen mesos, que traduzi: “ prostrado, partiu-se ao meio”. Literal­
mente, as primeiras palavras são “tornado prostrado” e há quem proponha “caiu
prostrado”, em parte para harmonizar com o relato mateano de enforcamento.
Entre outros biblistas que querem emendar, A. D. Knox (“ Death” ) lê: mesos ge­
nomenos elakesen prenes, “ E chegando no meio dele [do terreno que comprara],
caiu de cabeça para baixo”. J. W. Cohoon (JBL 6 5 ,1 9 4 6 , p. 404) argumenta que
as quatro palavras gregas são traduções incorretas de supostos originais hebraicos
e surge com: “ficando insano, ele enforcou-se em uma árvore” e assim consegue
perfeita consonância com Mateus. Nas páginas seguintes de JB L (p. 405-406), E.
J. Goodspeed refuta devastadoramente essa sugestão como produto de imaginação
descontrolada e gramática ruim.

Grande parte do debate sério concentra-se em prenes, “ prostrado, de cabeça


para baixo, de bruços [latim pronus\\ Em artigo famoso sobre prenes, Chase indicou
verbos de som semelhante: pimprasthai, “queimar” ; prethein, “ inchar” ; e embora
prenes não seja atestado com um sentido relacionado a esses verbos, ele afirmou
que seria uma formação natural para “ inchado” 12 e que ginesthai (genomenos) era
comum com termos médicos. A sugestão dada por Chase de traduzir prenes geno­
menos por “tendo inchado” produz uma leitura muito mais fácil: chegou a BAGD
e ao dicionário grego de Liddell-Scott como possibilidade e foi aceita por biblistas
da categoria de Harnack, Harris e Nestle. Estes pontos foram apresentados em
apoio: a) Judas é descrito como inchado (prestheis) nas duas citações da narrativa
de Pápias (veja abaixo).13 b) No códice C do Evangelho de Nicodemos (Atos de
Pilatos B; JANT, p. 116), depois do relato que quando o galo que a mulher de
Judas estava cozinhando começou a cantar, Judas “ imediatamente fez um laço de
corda e enforcou-se”, há uma adição marginal que tem elakisen epristhe ebreme-

12 Desautels (“Mort” , p. 236) afirma que o sentido de prenes depende de ser ou não derivado de uma raiz
pro- (cair para a frente) ou uma raiz pra- (inchar).
13 Prestheis reflete-se nas versões georgiana e armênia dos Atos.

634
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

sen — a ideia é que ele explodiu depois de inchar; e Chase considera ebremesen
uma confusão de errage mesos “e espalhou-se ou derramou-se a partir do meio”,
c) O castigo da mulher infiel incluía uma maldição que faria seu ventre inchar
(Nm 5,21-22.27).14 d) A morte que Deus inflige em várias pessoas indignas é por
inchaço.15 Na avaliação deve-se notar que o argumento b) é muito especulativo e
o d) é fraco, pois enquanto muitas figuras más são acometidas de intensas dores
e vermes nos intestinos,1617relativamente poucas constam como tendo inchado. Ao
rejeitar a tradução de Chase, H. J. Cadbury (JBL 45, 1926, p. 192-193) afirma
que em nenhum caso da literatura grega médica ou não médica prenes significada
inchado (veja também A. D. Knox, Lake).

A meu ver, as duas traduções de At 1,18 (“e prostrado, partiu-se ao meio” ou


“tendo inchado, partiu-se ao meio” não sugerem, nem de longe, que Lucas sabia que
Judas se enforcara, conforme está relatado em Mateus. Muitos dos que lutam para
harmonizar esses relatos o fazem por um princípio estranho à Bíblia em si, isto é, o
que está narrado deve ser histórico; e assim, se há dois relatos diferentes, deve ser
possível harmonizá-los. Não é possível harmonizar estes dois relatos; consequen­
temente, ambos não podem ser históricos e, de fato, talvez nenhum dos dois seja.

Na ANÁLISE do § 29 vimos até onde o AT (citado explicitamente ou pressu­


posto implicitamente) contribuiu para a narrativa mateana de Judas se enforcando,
as trinta moedas de prata e sangue inocente. Em especial, a imagem de Aquitofel
(2Sm 15-17), o conselheiro de confiança que tentou entregar Davi a Absalão e
fracassou e enforcou-se, influenciou implicitamente a descrição mateana da morte
de Judas.1' Também nos Atos, a Escritura (citada explicitamente ou pressuposta
implicitamente) molda a narrativa. Em At 1,20 duas citações de Salmos (SI 60,26;
109,8) relacionam-se com o encargo (episkope) vago de Judas ou seu lugar entre os

14 Também Josefo Ant. II,xi,6; #271); ver Eb. Nestle, “Fate” . Mais distante, em SI 109,18 a maldição deve
penetrar as entranhas dos maus, como água.
10 Na lenda de Aicar, segundo a versão siríaca (Sabedoria de Aicar 8,41) “ Nadan inchou como um saco e
morreu” Na versão arábica (Sabedoria de Aicar 8,38) e na armênia, ele incha e explode, ver também a
descrição da morte do iníquo imperador Galério por Eusébio (HE VII,xvi,51). Em Atos de Tomé 33 a grande
serpente má que havia posto Eva à prova incha, explode e morre, de modo que o veneno derramou-se
em abundância.
16 Ver a lista em n. 28 adiante.
17 A citação formal explícita de Zc/Jr em Mt 27,9-10 relaciona-se com o destino do dinheiro pago por sangue
inocente e a compra do campo mas não com a maneira em que Judas morreu.

635
A pêndices

Doze e com a escolha de outro para ocupar seu lugar. Também foram percebidas
referências implícitas.18 Para Wilcox e Manns há um reflexo da tradição preserva­
da no Targum Neofiti de Gn 44,18 onde Judá (= Judas) adverte: se Simeão e Levi
mataram pessoas para vingar o estupro de Dina (veja Gn 34,25), mulher que não
se incluía entre as tribos dos irmãos e não tinha nenhuma parte da terra prometida,
“quanto mais por causa de Benjamim, nosso irmão que faz parte do número das
tribos e que tem uma parte [holeq] e herança na divisão da terra”. Considera-se
isso relacionado com a descrição de Judas em At 1,17: “Ele se incluía entre nós e
foi incumbido de uma parte do ministério”.19 Julga-se que a referência a matar um
irmão foi entrelaçada com a história de Caim em Gn 4, onde ele mata o irmão Abel
em um campo (LXX pedion, “planície” ) e há ênfase no sangue.20 A validade dessa
base sugerida depende grandemente da antiguidade da composição de Targum
Neofiti que biblistas como J. A. Fitzmyer datam de um período consideravelmente
mais tardio que o NT. Também Dupont (“ Douzième” ) contestou intensamente a
abordagem que Wilcox faz a At l,15-26.21

Quanto à forma da morte de Judas em At 1,18, Benoit (“ Death”, p. 194)


invoca Sb 4,19, onde Deus pune os maus: “ Ele os despedaçará [deixando-os) sem
fala e prostrados {preneis]”.22 Mas ele também reconhece a influência da morte
da figura do antiDeus, Antíoco IV Epífanes em 2Mc 9,5-10; ele também caiu e,
subsequentemente, seu corpo decompôs-se. Assim, se o Judas mateano tem morte
semelhante à do mau traidor Aquitofel, o Judas lucano morre de maneira semelhante

18 Uma delas é SI 16,5-6 (parte da herança).


19 Parte da teoria é que holeq se relacionava com o haqel de haqel derna JHaeéldama em At 1,19).
20 Há quem julgue que esses textos também serviram de base para a narrativa mateana. Quando Deus
pergunta de Abel a Caim, este não demonstra nenhum remorso: “ Acaso sou o guarda de meu irmão?”
Funcionalmente, isso se assemelha à reação dos chefes dos sacerdotes e anciãos em Mt 27,4: “O que é
isso para nós?” Manns (“ Midrash” , p. 198) acha que os relatos da morte de Judas em Mateus e nos Atos
foram transmitidos oralmente em aramaico, donde a semelhança com o aramaico do targum Neofiti.
21 Nas p. 142-144, Dupont mostra que a maior parte do vocabulário no decisivo At 1,17 é completamente
lucano e que a ideia de receber uma parte é completamente bíblica, de modo que não é preciso recorrer
ao targum Neofiti. E. Richard (CBQ 42, 1980, p. 330-341) também rejeita a abordagem de Wilcox.
22 Sb 2,13.18 descreve o justo escarnecido como filho de Deus, paralelo com o escárnio de Jesus na cruz
(Mt 27,43). Betz (“Dichotomized” ), em um argumento complicado, invoca a linguagem de Qumrã a
respeito do membro da comunidade que continua seus maus modos (1QS 2,16-17): “Ele será eliminado
do meio de todos os filhos da luz [...]. A parte a ele atribuída ficará no meio dos malditos para sempre” .
Entretanto, a ligação entre elakesen mesos em Atos e ser “eliminado do meio” é tênue.

636
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

à morte de outra figura má.2*23 Antes de tirar alguma conclusão quanto à historici-
dade disso, examinemos brevemente um terceiro relato antigo da morte de Judas.

b) O relatofeito por Pápias. No 4a livro do Logion kyriakon exegeseis, escrito


bem antes de 150, Pápias descreveu a morte de Judas e, embora o livro não tenha
sido preservado, a passagem pertinente foi citada por Apolinário de Laodiceia (século
IV). E ssa citação foi, por sua vez, preservada em séries ou coletâneas de passagens
patrísticas a respeito das Escrituras. Lake (“ Death”, p. 23) dá o texto grego de duas
versões da citação de Pápias por Apolinário tiradas da série de Cramer publicada
em Oxford em 1844,24 uma do comentário de Mt 27, a outra do comentário de At
1. O comentário dos Atos é traduzido com mais frequência. Ali, Apolinário, tendo
declarado que Judas não morreu por enforcamento, mas foi descido e teve a morte
descrita em At 1,18, assegura ao leitor que Pápias narra a história mais claramente:25

Judas viveu sua evolução neste mundo como enorme exemplo de impiedade. Sua
carne estava tão inchada que onde um carro passaria facilmente ele não podia
passar. Na verdade, nem mesmo sua gigantesca cabeça sozinha passaria. Dizem
que suas pálpebras estavam tão intumescidas que ele já não conseguia ver a luz;
nem com o instrumento de um ótico dava para perceber-lhe os olhos, de tanto
que eles afundaram abaixo da superfície. Seu órgão íntimo era balofo e repulsivo
ao olhar em um grau que ultrapassava a vergonha. Conduzidos por meio dele de
todas as partes de seu corpo, fluíam juntos pus e vermes, para sua vergonha,
mesmo quando ele urinava. Depois de tantas torturas e castigos, dizem que sua
vida teve fim em seu terreno [chorion]; e por causa do cheiro esse terreno está até
agora deserto e desabitado. Na verdade, até o dia de hoje ninguém passa por esse
lugar sem tapar o nariz com a mão — tão grande foi a efusão de sua carne e tão
espalhada sobre a terra.
0 comentário de Mt 27 tem duas partes. A segunda parte (menos diretamente
atribuída a Pápias) é quase igual ao comentário de Atos que acabamos de citar. A
primeira parte, atribuída diretamente a Pápias, é muito mais sucinta.

2i 2Mc foi escrito em grego. Os relatos nos Atos das mortes de Judas e de Herodes Agripa I (2Me 12,23:
“ comido por vermes”) foi entendido não só por judeus de língua grega, mas também pelos que conheciam
os relatos greco-romanos de mortes ímpias (ver n. 28 adiante).
24 Ver também J. Kürzinger, Papias von Hierapolis, Regensburg, Pustet, 1983, p. 104-105.
25 Embora Apolinário saiba do enforcamento, nada do que ele cita sugere que Pápias sabia.

637
A pêndices

Judas viveu sua evolução neste mundo como enorme exemplo de impiedade. Sua
carne estava tão inchada que ele não podia passar onde um carro passaria facil­
mente. Tendo sido esmagado por um carro, suas entranhas foram expelidas.
Harris (“ Did Judas” ) defende a originalidade da forma mais longa, lem­
brando que, independente de Apolinário, Bar Salibi atribui a Pápias detalhes nela
mencionados. Lake (“ Death”, p. 25) prefere a versão sucinta e acha que a versão
mais longa surgiu do acúmulo de horrores das mortes horripilantes de homens
sabidamente maus.

É o relato de Pápias (em qualquer das formas) independente do relato de


Mateus e dos Atos? Com certeza não há nenhum sinal de dependência de Mateus.26
Paralelos com Lucas são um pouco mais cabíveis. Judas está prestheis (“ inchado” )
em Pápias eprenes (“prostrado” ) nos Atos.27 Contudo Pápias jam ais diz que Judas
se arrebentou pelo meio, como acontece nos Atos. Se ambos falam de chorion
(“terreno” ), a aquisição dele por Judas está ausente de Pápias. Em At 1,25, “seu”
modifica “lugar” (topos), não chorion como em Pápias. Um paralelo mais próximo
envolve SI 69,26, citado explicitamente em At 1,20 (“ Fique deserta sua morada e
não haja quem nela habite” ). É repetida implicitamente no relato de Pápias perto
do fim da forma longa onde o terreno de Judas está até agora deserto e desabitado.
Às vezes julga-se que outra passagem do SI 69 (SI 69,24) influenciou o relato de
Pápias: “ Que seus olhos fiquem escuros e não enxerguem e que seus rins tremam
continuamente”. A segunda passagem dos Salmos citada em At 1,20 é SI 109,8;
e há quem, ache a influência de SI 109,18 em Pápias: “ Que a maldição entre em
seu corpo como água e como óleo em seus ossos”. Mencionei parte de Sb 4,19 em
relação ao relato dos Atos (“Ele os despedaçará [deixando-os) sem fala e prostrados
outros versos desse versículo são considerados semelhantes ao relato de Pápias ao
descrever um cadáver desonrado e um escárnio incessante. A meu ver, essas re­
lações são muito frágeis. Ao que tudo indica é melhor contentar-se em dizer que o
relato de Pápias foi influenciado por relatos da morte de homens maus em narrativas
bíblicas e talvez também não bíblicas.28 Julgo (com Hilgenfeld, Lake, Nellessen,

26 Observe a diferença de vocabulário entre Pápias (forma longa) “ até o dia de hoje” (mechri [tes] semeron)
e Mt 27,8: “até hoje” (heos tes semeron).
27 A semelhança será muito mais próxima se Chase estiver certo ao afirmar que prenes pode significar
“inchado” . Klauck (Judas, p. 121) acha que Pápias está subordinado aos Atos.
28 Ver Benoit, “ Death”, p. 194. A forma longa de Pápias está mais próxima do relato completo da morte
de Antíoco Epífanes em 2Mc 9,5-10 (vermes, fedor insuportável) que At 1,18. A morte de Nadan na

638
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

Overbeck, Schweizer, van Unnik e outros) que o relato de Pápias, mesmo a forma
longa, é com toda a probabilidade independente dos Atos e também de Mateus.

3. Resumo. No século II havia três ou quatro mortes diferentes atribuídas a


Judas: suicídio por enforcamento (Mateus); ao se partir ao meio (Lucas); por inchaço
e esmagamento por um carro de modo que as entranhas saíram para fora (Pápias,
forma sucinta); e por sofrer de uma doença repugnante que lhe afetou todos os
órgãos (Pápias, forma longa). É alguma delas histórica? A forma longa de Pápias
é claramente lendária. O relato lucano é obscuramente sucinto e talvez descreva
o que não é possível. Herber (“ Mort”, p. 47-49) relata estudos médicos na França
quanto a ser possível uma pessoa partir-se ao meio sem um corte externo.29 Muitos
países têm a lenda de inchar e explodir porque o mal ou o espírito do mal está
dentro. Lembramo-nos de que, em Lc 22,3, Satanás entrara em Judas; a morte em
At 1,18 talvez reflita isso. Quanto à forma sucinta de Pápias, um acidente é com
certeza possível; mas o inchaço imenso é melodramático. Naturalmente, o debate
sobre que passagem de Pápias é a mais antiga influencia o valor das passagens
para a história. 0 suicídio por enforcamento em Mateus é certamente possível, mas
o paralelo quase exato com Aquitofel influencia a avaliação.

Embora seja decepcionante, a probabilidade histórica não pode ser atribuída


a nenhuma das diversas mortes. Afirmei em § 29 que os cristãos primitivos tinham
a tradição que Judas morreu de repente logo depois da morte de Jesus. Se é possível
obter probabilidade do indício, esse comentário deve ser aplicado à ideia de que
esses cristãos não conheciam os detalhes da morte de Judas. A morte repentina de
Judas persuadiu os cristãos que essa morte era castigo de Deus e essa persuasão
catalisou narrativas que evocavam outras mortes bíblicas que foram consideradas

forma arábica da lenda de Aicar (Sabedoria de Aicar 8,38) tem descrição muito ampliada do efeito do
inchaço no corpo. Herodes Agripa é ferido e comido por vermes em At 12,23. Josefo (Ant. XVII,vi,5;
##168-169) inclui na morte de Herodes, o Grande, ulceração das entranhas, apodrecimento do órgão
íntimo que produziu vermes, e mau-hálito. Além de ficar louco, o cruel governador de Cirene, Catulo.
sofre a deterioração das entranhas ulceradas (Josefo, Guerra VII,xi,4; ##451-453). Segundo Heródoto
(.História iv,205), larvas de inseto e vermes saem do corpo da cruel rainha cireneia Feretime. 0 mesmo
destino sofre Cassandra que age contra a família de Alexandre (Pausânias, Graeca Descriptio IX,vii,3-4).
0 hostil imperador Galério foi castigado com um abcesso no órgão íntimo, úlceras nas entranhas, uma
profusão de vermes e um fedor insuportável (Eusébio, HE VIII,xvi,3-5).
29 Não é na verdade relevante à questão de Judas Mixná Sanhedrin 9,5, onde um criminoso recalcitrante
é alimentado à força com cevada até sua barriga explodir. TalBab Shabbat 151b cita como exemplo que
três dias depois da morte a barriga explode e as entranhas saem.

639
A pêndices

castigo de Deus.30 O antecedente comum dos quatro relatos não é, então, nenhuma
forma de morte, mas sim a violência repentina da morte que precisava de interpre­
tação pelas Escrituras.

B.Onome Iscariotes
Quase sempre a designação “ Iscariotes” diferencia o Judas que entregou
Jesus de outros chamados Judas no NT. O que essa designação significa? Ela nos
diz alguma coisa a respeito da origem, do modo de vida, das atitudes ou da morte
de Judas? Morin (“ Deux” ) apresenta uma história interessante das muitas tentativas
de explicar o nome, que começaram já com Orígenes (c. 254: In Matt. 78, a respeito
de Mt 26,14; GCS 38, p. 187), que relatou o que ouvira. Antes de relacionar as
muitas sugestões, algumas apenas conjeturas, quero primeiro mencionar as diversas
formas nas quais a designação aparece em mss. neotestamentários.

1. Maneiras de escrever o nome


A designação “ Iscariotes” para Judas aparece 10 vezes no NT (Marcos, 2;
Mateus, 2; Lucas, 2; João, 4);31 entretanto, nunca nos limites da NP (calculada do
Getsêmani à sepultura). Há diversas maneiras diferentes de escrever o nome; todas
as formas da lista abaixo aparecem precedidas por Ioudas:32

• Iskarioth: Mc 3,19; 14,10; Lc 6,16

• (ho) Iskariotes: Mt 10,4; 26,14; Jo 12,4


• ho kaloumenos Iskariotes: Lc 22,3
• Simonos Iskariotou: Jo 6,71; 13,2633
• Simonos Iskariotes: Jo 13,2

30 Como indicado em n. 28, houve também modelos greco-romanos. A morte dos theomachoi, os competi­
dores contra os deuses, era tema clássico. É possível comparar as palavras de Jesus a respeito de Judas:
“Teria sido melhor para esse homem se ele não tivesse nascido” (Mc 14,21; Mt 26,24) com a declaração
de Sófocles (relatada por Estobeu, Florilegium 121,9): “ Não ter existido é melhor que sofrer grande
mágoa” .
31 Dibelius (“Judas” ) julga isso suficientemente frequente para sugerir ser provável que o nome contenha
um julgamento condenador.
32 Nem todas as variantes menos importantes estão relacionadas. Úteis para entender essas variantes são:
Halas, Judas p. 8-10; Haugg, Judas p. 72-78; e Torrey, “Name” , p. 51.
33 Somente João dá o nome do pai de Judas. Os mss. divergem nessas passagens a respeito da desinência
causai em Iskariot; apresento a leitura mais bem atestada.

640
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

• Skarioth: Códice de Beza e latim de Mc 3,19


• Skariotes: Códice de Beza e latim de Mt 10,4; 26,14
• apo Karyotou : Códice de Beza de Jo 13,2.26; Sinaítico (autor original),
Koridethi e Família 13 (minúsculos) de Jo 6,71
• Simonos Skarioth : Códice de Beza e OL de Jo 6,71

Dessas variações surgem três perguntas: a) Qual é mais original, Iskarioth


ou Iskariotes? Como Iskarioth está mais próximo do estilo de nomes hebraicos e
Iskariotes mais próximo do estilo grego (Klauck, Judas, p. 40), a última variação
pode bem ter resultado da concordância com a desinência adjetiva gentílica, por
exemplo, Simon ho Kananites (em alguns manuscritos de Mc 3,18 e Mt 10,4 ad­
jacentemente ao nome de Judas), ou com uma desinência nominal grega para um
papel ou profissão, por exemplo, stratiotes, “soldado”. Contudo, Arbeitman (“ Suffix” )
lembra que as palavras gregas terminadas em -tes, quando passadas para o hebraico/
aramaico, aparecem com as duas desinências -tys e -ot, correspondentes às duas
formas Iskariotes, Iskarioth ,34 b) Qual é a importância das leituras alternativas no
Códice de Beza (dos tipos apo Karyotou, Skarioth)? São reflexos da designação se-
mítica básica de Judas, ou tentativas dos copistas de interpretar o grego Iskarioth ? O
fato de só em João ocorrerem as leituras apo Karyotou sugere a segunda alternativa.
Uma discussão entre Eb. Nestle e F. H. Chase (ExpTim 9,1897-1898, p. 140,189,
240, 185-286) levanta a possibilidade de ter essa interpretação surgido com uma
tradução primitiva para o siríaco (ver o NT siro- haracleano) e dali ter passado por
intermédio de um revisor para o Códice de Beza e os indícios latinos — tudo parte
de uma antiga suposição de que Iskarioth continha uma designação geográfica. Do
mesmo modo, as leituras Skarioth/Skariotes talvez sejam interpretações de copistas,
mas pesam contra o entendimento geográfico de Iskarioth como homem de____ ,
pois ‘is (“homem” ) não teria sido dispensado tão facilmente, c) A leitura joanina (4a
na lista) Ioudas Simonos Iskariotou indica que Simão, pai de Judas, se chamava
Iscariotes? Dorn (“Judas”, p. 48) responde afirmativamente, julgando que Iscariotes
era sobrenome, derivado do lugar de onde se originavam seus portadores (ver adian­
te). Nesse caso, o nome nada nos diz quanto ao modo de vida de Judas. Embora
os dois genitivos em grego favoreçam “Judas, filho de Simão Iscariotes”, Ingholt
(“ Surname”, p. 154) afirma que, no original semítico, um adjetivo que descreve o

34 Ele afirma que o final â de uma forma como saqqarâ toma-se 6, daí a desinência -ot(h) no grego.

641
A pêndices

primeiro membro de tal série é colocado depois do segundo nome e possivelmente


atraído para o caso do segundo nome, assim: “Judas, filho de Simão, Iscariotes”.
Embora esse argumento por si só não seja totalmente persuasivo, essa leitura, que
só se encontra em duas passagens de João, não é base adequada para descartar o
outro indício de que Judas é que era lembrado como Iscariotes.

A conclusão mais segura dessas três questões é que as variações nos re­
latos da designação em mss. não são de grande ajuda para discernir seu sentido
original. Embora, ao que tudo indica, o nome do pai de Judas fosse Simão, o filho
era conhecido como Iscariotes. Formas com apo são suposições eruditas primitivas
de que Karioth designava o lugar de origem de Judas. Não há nenhuma diferen­
ça significativa entre Iskarioth e Iskariotes. Quando muito, as formas Skarioth e
Skariotes refletem o valor limitado a ser atribuído à primeira sílaba em supostos
originais (ver adiante).

Ao nos voltarmos para derivações propostas de “ Iscariotes”, talvez seja


importante o fato de ser essa designação usada em todos os relatos do ministério
de Jesus. Teorias que fazem o sentido do nome depender dos momentos finais da
narrativa evangélica (por exemplo, sua entrega de Jesus, o modo como Judas morreu)
têm de supor que o nome foi retroprojetado em descrições mais primitivas de Judas
nos Evangelhos, inclusive a escolha dele como um dos Doze. Teorias que explicam
a designação “ Iscariotes” em termos da origem de Judas (família ou localidade),
ocupação, aparência, perspectiva ou compromisso político não têm essa dificulda­
de — Judas tinha a alcunha quando foi chamado por Jesus para ser um discípulo.

2 . Várias explicações

a) Explicações secundárias. Para maior concisão, relaciono aqui explica­


ções antigas e modernas que tiveram ou têm seguimento limitado e, a meu ver,
pouca probabilidade.35 Associo a elas nomes de biblistas que as mencionaram ou
defenderam. Orígenes mencionou uma teoria que relacionava “ Iscariotes” ao fato
de Judas ser enforcado ou estrangulado; muito mais tarde, J. B. Lightfoot também
foi nessa direção: ’askera\ da raiz skr/sgr, “obstruir”. Jerônimo sugeriu zeker Ya,
“ memorial do Senhor”, que, para ser fiel a Orígenes, podia significar lembrança

35 Não dá para defender algumas das propostas antigas do ponto de vista de regras científicas que regulam
a transcrição do hebraico para o grego.

642
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

da maneira como Judas foi castigado pelo Senhor na morte. Para alguns, as trinta
moedas de prata indicam a raiz skr (“contratar, pagar” ). Lightfoot sugeriu scortea,
avental de couro usado por estafetas sobre a roupa, com a pressuposição de que a
bolsa de Judas que guardava os fundos comuns (informação apenas em Jo 12,6)
era costurada nesse avental ou talvez estivesse em uma caixa com tampa de couro.
Ele chamou a atenção para um estrangeirismo de scortea atestado no aramaico
talmúdico muito mais tardio ’isqôretiya’. Derrett (“ Iscariot”, p. 9-10) deriva “ Is­
cariotes” de ’isqa’ re’üt, “o que faz um negócio [dinheiro] por amizade”, derivação
associada com entregar Jesus por dinheiro. 0 substantivo aramaico ‘eseq, ‘isqa’, que
significa “negócio”, não é atestado em nenhum escrito aramaico antes de 100 d.C.
(cortesia de J. A. Fitzmyer de seu material de dicionário). A palavra apresentada
por Derrett para amizade, re‘üt, é hebraica, não aramaica. Derrett não explica
como um substantivo aramaico (de um período mais tardio) no estado enfático
estaria em uma cadeia de construção com um substantivo hebraico. Como parte
de sua discutível retroversão do grego neotestamentário para o aramaico original,
G. Schwarz (Jesus, p. 231) afirma que a segunda parte do grego para “ Iscariotes”
representa esta cadeia de desenvolvimento semítico: qrywt = qryf = qrt\ e que o
qrt’ nos targumim (pós-cristãos) refere-se a Jerusalém, de modo que Judas pode
ser o homem de Jerusalém.

Algumas sugestões derivam “ Iscariotes” de um nome próprio: de Issacar


( Yissakar; Jerônimo); de Jerico (Yerihô); de Sicar, na Samaria (Jo 4,5 [ver BGJ,
v. 1, p. 169]; Schulthess); de Carta, em Zabulon (Qartâ ; Js 21,34; H. Ewald).
Algumas dessas sugestões precisariam depender de redações neotestamentárias
de “ Iscariotes” sem a sílaba inicial Is-; também teriam de refletir uma desinência
adjetiva anexada a um nome próprio.

b) Homem de Cariot. A explicação mais popular de “Iscariotes” recorre a


uma suposta forma hebraica ’is Qertyôt, sugerindo que Judas veio de uma cidade
chamada Cariot. A forma do Códice de Beza apo Karyotou mostra que a ideia era
antiga. Têm sido apresentadas sérias objeções: i) Por que ’ís foi transliterado e não
traduzido como “homem” ou mesmo como pronome relativo, por exemplo, “ Filipe,
o que era de Betsaida”, em Jo 12,21? ii) Havia uma cidade de Cariot na Judeia ou
na Galileia? Muitos recorrem a Js 15,25 para uma Cariot na parte meridional da
Judeia (lembremo-nos de que Judas = Judá), entre Engadi e Bersabeia; na verdade,
algumas análises de Judas e seus motivos baseiam-se no fato de ser ele o único dos

643
AptNDICES

Doze originário da Judeia. O hebraico desse versículo tem Qeriyôt Hesron — que
Jerônimo e o targum aramaico consideram duas cidades; mas hoi poleis Aseron
da LX X entende o primeiro substantivo como plural de qiryâ, significando “as
cidades [ou aldeias] de Hesron”. Muitos comentaristas modernos consideram este
último correto; e, se for assim, Cariot na Judeia desaparece. Uma cidade moabita
chamada Qeriyôt é mencionada no hebraico de Am 2,2 (LXX poleis de novo) e de
Jr 48,24.41 (LXX Jr 31,24.41: Kerioth). Entretanto, alguns sugerem que Judas
veio da Transjordânia. Além disso, de qualquer modo, não há indícios de que ci­
dades mencionadas de 1.200 a 600 anos antes ainda existiam no tempo de Judas,
iii) A suposição de que ’is mais uma cidade chamada X significava “ homem de
X ” é duvidosa. O jeito normal de expressar isso em hebraico é com um adjetivo
gentílico, por exemplo, 'is Qeríyôti, ou “certo homem de” ('is had min Qeriyôt). As
vezes, defensores da abordagem ’is Qeriyôt apontam como justificativa para 'is Tôb
em 2Sm 10,6.8, mas ali a expressão significa “homens de Tob”. Outro exemplo
proposto é cronologicamente problemático, pois é do hebraico mais tardio da Mi-
xná; Jose b. Jo‘ezer de Sereda é 'is Seredâ (ver Sota 9 ,9 ;4Eduyyot 8,4; 'Abot 1,4).
De modo geral, as objeções tornam muito duvidoso o entendimento de Iscariotes
como “homem de Cariot”.

c) Sicário. O termo grego sikarios aparece em At 21,38; relaciona-se com


o grego sikarion, latim sica, “punhal” ; Josefo usa-o para descrever revolucionários
fanáticos que usavam punhais. Celada, Lapide, Schulthess e Wellhausen estão
entre os muitos que derivam “ Iscariotes” de uma forma desse termo. Cullmann
(“ Douzième”, p. 139) acha que Judas Iscariotes (nas listas sinóticas dos Doze,
Judas Kananites (variante saídica em Jo 14,22) e Judas, o Zelotes (contagiado por
Simão, o zelota: Lc 6,15; At 1,13), são todos a mesma pessoa. Para Cullmann,
Sicarius seria transliterado como Iskarioth e traduzido como Zelotes, enquanto o
aramaico transliterado da raiz qrí, “ser zeloso”, teria produzido Kananites. Muitos
que aceitam essa derivação recorrem às formas Skarioth e Skariotes do nome de
Judas (Códice de Beza e o latim de Mc 3,19; Mt 10,4; 26,14) para a dispensa da
primeira sílaba de Iskariotes e para uma forma mais próxima de sikarios. Essa
derivação está em harmonia com a suposição de que um entendimento político do
reino tornou Judas, um revolucionário, impaciente com Jesus, e o levou a entregá-
-lo. Etimologicamente, há objeções. Devemos supor uma metátese nas duas pri­
meiras sílabas da forma sikarios (sika para iska-)? Mas por quê, já que sika podia

644
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes

facilmente ter sido pronunciado? Ingholt (“ Surname”, p. 156) retorna a uma forma
aramaica ’isqaryaa (ou ’isk aryaa , se o siríaco for um guia). Do ponto de vista da
inteligibilidade, nada no modo de vida de Judas descrito no NT incentiva a ideia
dele como revolucionário político merecedor desse título. Mais seriamente, o indício
em Josefo (§ 31, A2f, acima) coloca a primeira existência dos sicarii e dos zelotas
na Palestina duas ou três décadas depois da morte de Judas.

d) Aquele que o entrega. A raiz sgr/skr nas formas verbais intensivas (pi‘el,
hiph‘il) significa “desistir, entregar, renunciar a” = LX X paradidonai). Há quem
aponte para Is 9,4: “ Eu entregarei [sikkarti] os egípcios”, sugerindo que uma forma
desse verbo para descrever Judas como aquele que entregou Jesus foi a origem
do nome Iscariotes. Morin (“ Deux”, p. 353) acrescenta o indício de sgr/skr nesse
sentido nas inscrições aramaicas de Sefire e no Apócrifo do Gênesis de Qumrã,
afirmando ser esse um verbo padrão para entregar criminosos a autoridades. Em
sua teoria, “ Iscariotes” relacionava-se a uma forma verbal pa‘el aramaica, com um
objeto como “o, lhe” (yesaggar/yesakkar yatêh [que ele traduz yotêh]), ou a uma
forma aph‘el (yaskar yatêh). Surgem diversas objeções: a forma sgr é mais comum
que a forma skr; e, embora g em semítico possa ser traduzido por um k em grego,
é mais normal a tradução por g. Além disso, seria preciso pressupor que nenhum
autor neotestamentário reconheceu que Iskarioth traduzia a ideia de entregar Jesus.
Morin luta corajosamente para provar que Mc 3,19 (loudan Iskarioth hos kai pa-
redoken auton) significa “Judas Iscariotes, que significa ‘Aquele que o entregou’”.
Mas Marcos escreveu uma sentença com “significa” apenas dois versículos antes:
Boanerges ho estin huioi brontes (“ Boanerges, que significa filhos do trovão” ) - que
é o jeito normal de escrever e, a meu ver, indica que Mc 3,19 deve ser traduzido
conforme o significado manifesto do grego, não como “que significa”, mas como
“Judas Iscariotes e foi ele quem o entregou”. Se dentro de trinta anos “ Iscariotes”
não foi reconhecido com o significado de “entregou”, há grande possibilidade de
que originalmente não significasse isso.

e) 0 enganador. Já em 1861, E. W. Hengstenberg propôs como origem 'is


seqarim, “ homem de mentiras”, da raiz sqr (“enganar” ). “ Mentira” seria seqer
ou siqra’; “ mentiroso” seria saqqar. Torrey (“ Name”, p. 59-61) defende saqray,
“ mentiroso”, como base para “ Iscariotes”, desde que a palavra se torne explícita
(seqarya’ ou dsqarya ). Apesar de não preferir essa derivação, Ingholt (“ Surname”,
p. 157) considera-a etimologicamente possível (ver também Gãrtner, Iscariot, p. 7).

645
A pêndices

Contudo, a Peshitta siríaca não reconheceu essa raiz na transcrição de Iskarioth.


Além do problema de derivação que teria sido verdade não de todo o modo de vida
de Judas, mas apenas de seu fim, é possível conjeturar quanto a uma alcunha que
não se parecia com o que Judas fez — em nenhum relato neotestamentário Judas
mente a respeito de Jesus.

f) 0 de rosto avermelhado. A raiz sqr está associada a se ter cútis trigueira


ou avermelhada.36 Ingholt (“ Surname”, p. 158-162) prefere essa derivação e aponta
para formas aramaicas como saqray, seqara ’ e ’isqara\ Tésseras palmirenas têm
nomes pessoais seguidos de ’sqr ou ’s qr; e o arábico tem el Asqar, que significa
“aquele com cútis avermelhada”. Descrições de Judas do século IX mostram-no
com o cabelo vermelho. Em At 13,1, ouve-se falar de “ Simeão, chamado o Negro”;
assim, um apelido baseado na cor não é impossível. Ehrman (“Judas” ) acrescenta
o indício em TalBab Gittin 56a de que o chefe dos sicarii ou do partido revolucio­
nário da Judeia em 70 d.C. era Abba Saqqara, sobrinho de Yohanan ben Zakkai.
Arbeitman (“ Suffix” ) apoia essa derivação e sugere que saqqarâ produziu o Iskar-
em Iscariotes. Apesar do apoio para essa teoria, é preciso entender que saber a cor
do cabelo ou da cútis de Judas não é avanço significativo.

Há quase cem anos, G. Dalman (Words, p. 52) declarou: “ É conjetura muito


plausível que ‘Iskarioth’ já era ininteligível para o evangelista”. Duvido que tenha­
mos ultrapassado muito essa opinião; e, se uma ou duas derivações de “ Iscariotes”
foram desenvolvidas desde então, mesmo que fossem verdade, não nos diriam muito
a respeito de Judas.

36 Da raiz sqr, Iscariotes foi relacionado com a ideia de “o tintureiro” .

646
Bibliografia para o Apêndice IV:
Judas Iscariotes

A bibliografia pertinente à morte de Judas em Mt 27,3-10 (às vezes incluindo


comparações com At 1,15-26) encontra-se em § 25, Parte III.

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649
Apêndice V:
Autoridades e grupos judaicos
mencionados nas narrativas da Paixão

Resumo:

A. Grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão

1. Termos para esses grupos e seu respectivo tratamento evangélico

2. Descrições evangélicas específicas

B. Autoridades judaicas descritas como hostis a Jesus

1. Sumo sacerdote, chefes dos sacerdotes

2. Escribas

3. Anciãos

4. Capitães do Templo

5. Fariseus

6. Governantes

Segundo Mc 14,43, acompanhando Judas e voltada contra Jesus, havia “uma


multidão [...] da parte dos chefes dos sacerdotes e dos escribas e dos anciãos”. At
13,27-28 declara que “os habitantes de Jerusalém e seus governantes” pediram a
Pilatos que Jesus fosse morto. Enquanto os Evangelhos canônicos atribuem a Pi-
latos e aos soldados romanos um papel direto na morte de Jesus, esses dois textos
e outros também atribuem um papel hostil a um grupo judaico coletivo (multidão,
povo, nação, judeus hierosolimitas, filhos de Israel) e a autoridades judaicas es­
pecíficas (chefes dos sacerdotes, escribas, anciãos, capitães do Templo, fariseus,

651
A p ê n d ic e s

governantes). Este APÊNDICE destina-se a dar uma visão global do papel atribuído
pelos Evangelhos ao grupo coletivo e às autoridades específicas.1

A. Grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão

É fato histórico que, dos quatro a sete milhões de judeus contemporâneos


de Jesus no Império Romano, só uma porcentagem infinitesimal ouviu falar dele
enquanto ele vivia. Mesmo dos judeus que viviam na Judeia e na Galileia em 30/33
d.C., só uma porcentagem diminuta ficou diante do pretório de Pilatos para exigir
a crucificação de Jesus ou escarneceu dele na cruz. Realmente, então, muitas de­
clarações neotestamentárias são generalizações exageradas. Por exemplo, em Mt
27,25, “todo o povo” diz: “ Seu sangue sobre nós e sobre nossos filhos”, enquanto
At 2,36 insiste: “ Que toda a casa de Israel saiba com certeza que Deus constituiu
Senhor e Messias esse mesmo Jesus que vós crucificastes”. (Em § 18 F, examinei
a questão do antijudaísmo nessas passagens e a malevolência para com os judeus
que elas produziram nos séculos subsequentes.) A situação não recebeu ajuda da
pregação popular que, de maneira confusa, misturou grupos que os Evangelhos
mantêm separados, por exemplo, sugerindo que a mesma multidão que o acolheu
quando Jesus entrou em Jerusalém voltou-se contra ele na Sexta-feira Santa.
Consequentemente, será um exercício útil procurar a exatidão quanto aos grupos
de judeus descritos pelos evangelistas e os papéis a eles atribuídos. Comecemos
relacionando os termos usados pelos diversos Evangelhos e depois estudando o tom
do tratamento em cada Evangelho.

1. Termos para os gruposjudaicos e seu respectivo tratam ento evangélico

Há estudos importantes de termos coletivos específicos empregados na NP


(por exemplo, Crowe e Kodell, sobre laos , “povo” ); mas, só quando levamos em
conta a série de termos empregados pelos vários autores, obtemos a imagem inteira.

1 Minha atenção primordial é no que cada autor nos diz quanto aos grupos e figuras hostis. Muito mais
complicado é até que ponto esses relatos são históricos. Se Marcos utilizou fontes escritas, essas fontes
concordavam quanto a personagens hostis? 0 próprio Marcos tinha conhecimento dessas diversas per­
sonagens ou apenas reorganizou o que recebeu das fontes ou da tradição? Que fatores contemporâneos
dos evangelistas (distintos de fatores históricos do tempo de Jesus) fizeram com que especificassem, am­
pliassem e/ou omitissem certas personagens hostis? Embora eu não procure responder a essas perguntas
aqui, no texto do comentário, onde possível, lidei com elas enquanto tratava de passagens específicas.

652
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão

Relaciono abaixo termos usados para descrever grupos judaicos ativos durante a
Paixão de Jesus, isto é, desde o momento em que ele saiu da ceia até quando foi
colocado na sepultura. Apesar de nosso interesse principal ser o testemunho dos
Evangelhos canônicos, acrescentarei os Atos2 e o EvPd.

• Multidão (ochlos)3: Marcos, Mateus, Lucas, EvPd

• Nação (ethnos): Lucas,4*João

• Povo (laos): Mateus, Lucas, Atos,51'"'™

• Os judeus: Mateus, João, Atos, EvPd

• Homens de Israel, filhos de Israel, nação de Israel: Mateus, Atos

• Habitantes de Jerusalém, filhas de Jerusalém, multidão de Jerusalém:


Lucas, Atos, EvPd

2 . Descrições evangélicas específicas

A lista acima é útil para mostrar que um grupo ou grupos judaicos desem­
penharam coletivamente um papel ou papéis importantes nas narrativas evangé­
licas da Paixão. Entretanto, um termo específico é passível de uso bem diferente,
descrevendo, em um Evangelho, um grupo favorável a Jesus e, em outro Evangelho,
um grupo hostil a ele, ou dentro do mesmo Evangelho descrevendo um grupo favo­
rável durante o ministério na Galileia, mas hostil durante a Paixão em Jerusalém.

2 Embora eu esteja primordialmente interessado nas referências à Paixão de Jesus nos Atos, o paralelismo
que os Atos fazem entre a hostilidade a Paulo e a hostilidade a Jesus é digno de nota. Via (“According” ,
p. 137) lembra: “Os que se opõem a Jesus são basicamente os mesmos que se opõem a Paulo” . Nessa
segunda condição estão os seguintes: “multidão(ões)” (7 vezes); “Gentios” (ethnoi, 3); “judeus” (passim);
“chefes dos sacerdotes” (5); “anciãos” (3); “governantes” (2); “soldados” (1); o sinédrio (7). Na Palestina,
Paulo foi julgado por dois procuradores romanos e um rei herodiano.
3 James (Trial, v. 1, p. 246-247) distingue dois sentidos de ochlos: o populacho em geral (não necessariamente
reunido) e uma multidão ou afluência de pessoas. Ele tenta argumentar que, no sentido de populacho,
o ochlos era amistoso com Jesus, por exemplo, Mt 27,15, comparado com Mc 15,8. Isso é sutil demais:
Mateus quer dizer o mesmo que Marcos, mas mudou a referência para a multidão para antes, a fim de
criar uma leitura mais suave. A multidão é representante do populacho; é por isso que Mt 27,25 refere-se
à multidão de Mt 27,24 como “todo o povo” .
4 Em At 4,25.27, ethnos é empregado no plural para gentios hostis a Jesus.
0 Além de atribuir ao povo um papel na morte de Jesus, os Atos (At 6,12) mostram o povo de Jerusalém
hostil a Estêvão.

653
A p ê n d ic e s

Portanto, precisamos estudar cada Evangelho separadamente em suas descrições


de uma coletividade hostil a Jesus durante a Paixão.

Marcos. Antes da NP, as multidões (ochlos) que encontram Jesus não lhe
são hostis. Mesmo quando Jesus vem a Jerusalém, a multidão (ou cada multidão)
fica admirada com seu ensinamento, ouve-o alegremente, de modo que a multi­
dão causa medo entre as autoridades que buscam destruir Jesus (Mc 11,18.32;
12,12.37). Contudo, na NP, além de descrever o ochlos hostil que vem com Judas
para prender Jesus, Marcos usa esse termo mais três vezes na NP (Mc 15,8.11.15)
para descrever uma multidão que se torna cada vez mais hostil a Jesus quando
ele está de pé diante de Pilatos. Em nível superficial de plausibilidade, pode-se
questionar se a multidão que vem prender Jesus e a multidão que clama por sua
crucificação consistem nas mesmas pessoas, mas, em nível narrativo, “a multidão”
torna-se um dos atores no drama e, no final de Marcos, ela não é amiga de Jesus.
Para descrever uma coletividade hostil a Jesus, na NP Marcos não usa “o povo”,6
nem “a nação”, ou “os judeus”.

Mateus. Em seu tratamento geral de “ multidão”, Mateus aproxima-se de


Marcos. Antes da NP, as multidões não são hostis a Jesus. Na verdade, quando
Jesus entra em Jerusalém, Mateus (Mt 21,8-9; nenhum paralelo marcano) mostra
multidões que o saúdam entusiasticamente como o Filho de Davi e, como em Marcos,
as autoridades que querem agir contra Jesus são impedidas pela multidão favorável
a ele (Mt 21,26.46). Contudo, quando começa a NP, aparece na cena da prisão uma
multidão(ões) hostil a Jesus e, no julgamento diante de Pilatos, há três referências
a uma multidão(ões) judaica que opta pela crucificação de Jesus.7 Com o emprego
de outros termos, a NP mateana descreve, mais vigorosamente que a marcana, um
antagonismo judaico coletivo para com Jesus; de fato, Mateus descreve como hostil
“ todo o povo”8 (Mt 27,25), “os judeus” (Mt 28,15) e “os filhos de Israel” (Mt 27,9).

6 Há uma referência marcana a “o povo” depois da chegada de Jesus a Jerusalém, e esse grupo é favorável
a Jesus (Mc 14,2).
‘ Emprego “multidão(ões)” por causa de um fenômeno mateano característico. Em Mt 26,47, “numerosa
multidão [sing.]” chega para prender Jesus, mas, em Mt 26,55, ele se dirige às “multidões [pl.]” . Diante
de Pilatos, “multidão” é singular em Mt 27,15, plural em Mt 27,20 e singular em Mt 27,24. Essa variação
é simplesmente um modo de generalizar; não há nenhuma diferença específica de sentido ou indicação
de fontes diferentes.
8 0 uso mateano de “o povo” (laos) é mais complicado que o marcano. Embora Mateus descreva em Jerusalém
um “povo” favorável a Jesus (Mt 26,5, paralelo a Mc 14,2; ver nota 6, acima), a designação frequente
“os anciãos do povo” pode ter o efeito de alinhar o povo com essas autoridades hostis. Entretanto, no

654
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão

Lucas. Antes da Última Ceia, os chefes dos sacerdotes e os capitães (do


Templo) concordam em dar dinheiro a Judas para que ele entregue Jesus “sem
uma multidão estar presente” (Lc 22,6), passagem que talvez subentenda ser a
multidão favorável a Jesus (também Lc 19,3). Das três presenças de ochlos na NP
lucana, a multidão na cena da prisão com Judas (Lc 22,47) é hostil; a multidão à
qual Pilatos se dirige em Lc 23,4 não é caracterizada e, em Lc 23,48, “todas as
multidões que estavam reunidas” sentem pesar pelo que foi feito a Jesus. As “filhas
de Jerusalém” em Lc 23,27 são mulheres que lamentam por Jesus. Mas a indicação
mais importante do pensamento lucano quanto à relação de uma coletividade judaica
com Jesus é o emprego de laos, “povo”. De 141 exemplos neotestamentários, 84 ou
sessenta por cento estão em Lucas/Atos (36 em Lucas; 48 em Atos). No início de
Lucas (Lc 1,17), a primeira anunciação angelical (do nascimento de João Batista)
representa o planejamento de um povo preparado para o Senhor e, na verdade, o que
acontece no Evangelho pode ser descrito assim: “ 0 Senhor Deus de Israel visitou e
redimiu Seu povo” (Lc 1,68; ver também Lc 2,32). No que precede a Paixão, depois
de Jesus purificar o recinto do Templo e ensinar ali (Lc 19,47-48), o esforço das
autoridades para destruí-lo foi frustrado “porque todo o povo persistia em ouvi-lo
falar” (também Lc 20,6.19.45; 21,38; 22,2). Gramaticalmente, “o povo” que apa­
rece diante de Pilatos em Lc 23,13 faz parte dos (“eles” ) que clamam contra Jesus
em Lc 23,18; mas, em Lc 23,35, consta que o povo estava ali de pé observando a
crucificação, enquanto outros escarneciam de Jesus. Assim, no Evangelho lucano
considerado sozinho, não se encontra ênfase em um grupo coletivo hostil a Jesus.

Entretanto, nos Atos os indícios são em contrário. Em At 2,22-23, a palavra


é dirigida aos “homens [andres] de Israel”, como àqueles que tomaram parte na
crucificação e morte de Jesus. Ao povo ou aos homens de Israel abordados em At
3,12, é dito que eles (At 3,13-15) entregaram Jesus, rejeitaram-no diante de Pilatos,
pediram um assassino em vez do Santo e, assim, mataram o autor da vida. At 4,27
descreve “os povos de Israel” unidos aos gentios contra Jesus. At 10,39 diz que
“os judeus” executaram Jesus, suspendendo-o em uma árvore. Em At 13,27-28,
os hierosolimitas e seus governantes levam a culpa pela morte de Jesus. 0 leitor

final da NP, os chefes dos sacerdotes e os fariseus temem que o anúncio da ressurreição pelos discípulos
convença “o povo” (Mc 27,62-64).

655
A p ê n d ic e s

da obra completa Lucas-Atos, então, fica com a forte sensação de que havia uma
coletividade judaica muito hostil a Jesus.9

João. Nem “multidão”, nem “povo” são usados para descrever os que agem
contra Jesus na NP. Mas Jo 18,35 usa “ nação” para os que, com os chefes dos
sacerdotes, entregaram Jesus a Pilatos. A frase “os judeus” é usada pelo menos
nove vezes na NP para descrever os que são hostis a Jesus e querem sua morte.
Esse último emprego fortalece bastante a imagem joanina de intervenção coletiva.10

EvPd. Aqui, o envolvimento de um grupo coletivo judeu na crucificação de


Jesus transcende o tratamento de “multidão” (EvPd 9,34), “povo” (hostil a Jesus
em EvPd 2,5; potencialmente favorável em EvPd 8,28.30; 11,48) e “os judeus”
(hostis a Jesus em EvPd 1,1; 6,23; 7,25; 12,50.52; favoráveis em EvPd 11,48).
Não há, no EvPd, nenhum envolvimento romano hostil na crucificação, de modo
que a responsabilidade é totalmente judaica: o rei judeu Herodes (EvPd 1,2; 2,5),
as autoridades judaicas (“os escribas e fariseus e anciãos”, em EvPd 8,28 [EvPd
8,31]) e os judeus ou povo judeu.

Logo, os indícios de que um grupo judeu - menos tendenciosamente iden­


tificado como multidão - colaborou com as autoridades judaicas na prisão e/ou
aprovou a crucificação de Jesus são unânimes. Essa unanimidade não estabelece
de maneira indubitável que tal hostilidade de um grupo de judeus para com Jesus
seja histórica, mas mostra como é hipotética e sem indícios importantes a afirmação
de Macoby (“Jesus”, p. 55-56), segundo a qual a multidão judaica, historicamente,
era favorável a Jesus, mas autores cristãos distorceram esse fato. Ao contrário, é
surpreendente que, considerando a tendência cristã a generalizar a responsabilidade
judaica, os Evangelhos apresentem de modo geral uma imagem mista onde, entre
os judeus presentes, alguns eram pró e alguns eram contra Jesus — imagem que

9 As vezes os exames do papel do povo na NP lucana não levam muito em conta as declarações nos Atos
e assim exageram o lado positivo da visão lucana geral. Compare escritos por Brawley (Luke-Acts, esp.
133ss.), Cassidy (“Trial”), p. 70.173-174), Rau (“ Volk”), Rice (“Role”) e Tyson (Death, p. 26-47).
10 Infelizmente, o estudo de “os judeus” em João foi desviado pela identificação realizada por Bultmann,
que tira da história “os judeus” e “o mundo” . A abordagem de Bultmann a João ignora em grande parte
as lutas com a sinagoga que moldaram o quarto Evangelho. (Granskou, “Antijudaism” , é um estudo
particularmente inútil de “os judeus” nessa herança de Bultmann.) Ao usar “os judeus” para referir-
-se aos que eram hostis a Jesus, João identifica as autoridades da sinagoga e seus seguidores da última
terça parte do século (conforme se encontra na história da comunidade joanina) como os herdeiros das
autoridades e do populacho que foram hostis a Jesus na Judeia e na Galileia durante sua vida.

656
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão

tem considerável plausibilidade. Além disso, onde uma multidão ou o povo são
mostrados contra Jesus, na maior parte do tempo essa hostilidade não é descrita
como espontânea, mas resultante da persuasão pelas autoridades religiosas.

6. Autoridades judaicas descritas como hostis a Jesus

Nos relatos da prisão, os Evangelhos mencionam como opostos a Jesus e como


agentes da prisão os chefes dos sacerdotes, os escribas, os anciãos, os capitães do
Templo e os fariseus. Um exame deles e da frequência com a qual os encontramos
nas diferentes versões da NP é importante para avaliar o que nos é dito a respeito
da principal força propulsora contra Jesus. Mesmo assim, esse exame precisa ser
interpretado com sutileza. Marcos menciona os escribas mais que os anciãos; por
isso, pode-se ficar com a impressão de que os escribas desempenharam um papel
maior que os anciãos na condenação de Jesus — e com a impressão contrária em
Mateus, onde as estatísticas são o inverso. Contudo, apesar das informações esta­
tísticas que vou fornecer, recomendo cautela quando percebemos que os ouvintes/
leitores dos diversos Evangelhos certamente não estavam cientes dessas estatísticas
e tinham muito mais probabilidade de formar impressões abrangentes. 0 fato de
estarem os fariseus ausentes da NP marcana não precisa significar que os ouvintes/
leitores marcanos pensariam (ou mesmo que Marcos gostaria de transmitir a ideia)
que os fariseus não tiveram nenhuma responsabilidade nessa morte. É provável que
as doze referências a fariseus no relato marcano do ministério público, apresentando-
-os como insensíveis e hostis a Jesus, persistissem e influenciassem o julgamento
dos ouvintes/leitores quanto a quais autoridades judaicas queriam a morte de
Jesus.11 Portanto, algumas observações baseadas em distinções meticulosas na
verdade talvez não sejam pertinentes ao que o Evangelho significava para os que o
receberam primeiro. Aqui, a conclusão de Kingsbury12 é muito apropriada: “Dentro
do mundo narrativo de Marcos, as autoridades religiosas — os escribas, fariseus,
herodianos, chefes dos sacerdotes, anciãos e saduceus — formavam uma frente
unida contrária a Jesus e, por esse motivo, constituíam literária e criticamente uma

11 Van Tilborg (Jewish, p. 6) afirma que Mateus não queria criar nenhuma distinção entre vários grupos
como os fariseus e os saduceus.
12 “ Religious”, p. 63. Kingsbury deixa muito claro (da mesma forma que espero ter sido neste a p ê n d ic e )

que não está lidando com história, mas com a impressão criada pela narrativa evangélica.

657
A p En i k e s

personagem única ou coletiva. Se Jesus é o protagonista, eles são os antagonistas”.


Peço aos leitores que se lembrem bem disso a seguir, quando introduzo precisões.

No que se segue, o número de “vezes” dado entre parênteses depois da


respectiva designação grega das autoridades não se refere à ocorrência total des­
sas autoridades nos Evangelhos, mas nos capítulos pertinentes à trama letal das
autoridades contra Jesus que precede diretamente a Ultima Ceia, a própria NP e
a narrativa da guarda no túmulo, a saber, Mc 14-15; Mt 26-28; Lc 22-23; Jo
11-12.18-19.13

7. Sumo sacerdote, chefes dos sacerdotes

Archiereus, archiereis (sing. “sumo sacerdote” ; pl. “chefes dos sacerdotes:


Marcos, 17 vezes; Mateus, 19; Lucas, 9; João, 19 — inclusive 4 em Jo 11,47-53.57).
Em todos os Evangelhos, os chefes dos sacerdotes são os mais ativos adversários de
Jesus durante a NP. Nenhum dos Evangelhos menciona aqui os que eram simples
sacerdotes.14 Portanto, devemos pressupor que não é a atividade sacerdotal desses
adversários que os torna hostis a Jesus, mas seu papel como chefes dos sacerdotes.
Havia apenas um sumo sacerdote de cada vez no Judaísmo, com o titular teorica­
mente determinado pela linhagem hereditária de Aarão, por intermédio de Sadoc.
De acordo com Nm 35,25, o sumo sacerdócio era vitalício: “até a morte do sumo
sacerdote que foi ungido com o óleo santo” (também 4 Macabeus 4,1). Mas, agora,
a situação se complicara por cerca de duzentos anos, já que governantes estran­
geiros não raro depunham sumos sacerdotes e os substituíam por outros, que não
eram necessariamente da mesma família.15 Parece que os judeus reagiram a essas
mudanças segundo sua crença teológica, com alguns reverenciando o candidato de
jure mesmo depois da deposição e outros aceitando o ocupante de facto.16 TalBab

13 Observemos que esse alcance transcende o que tenho considerado limites da NP, pois inclui a trama
anterior à ceia.
14 Isso é digno de nota, pois, em Jo 1,19, os sacerdotes são hostis a João Batista e em At 4,1-3, há sacerdotes
envolvidos na prisão de Pedro e João.
la McLaren (Power, p. 202-203) afirma que os romanos adotaram a prática iniciada por Herodes, de mudar
0 sumo sacerdote incumbente quando consideravam essa mudança apropriada ou vantajosa. A crescente
rotatividade de ocupantes do cargo resultou em ex-sumos sacerdotes, que eram um fenômeno do século
1 d.C. “Chefes dos sacerdotes” é linguagem desse século.
16 E. P. Sanders (Judaism, p. 322-323) faz algumas observações excelentes a respeito da complexidade das
atitudes em relação ao sumo sacerdote. A autoridade secular desejava que ele não deixasse as coisas

658
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão

Yoma 8b relembra com amargura (e exagero) esse período: “Por dinheiro estar sendo
pago com o propósito de obter a posição de sumo sacerdote, estes mudavam a cada
doze meses”. Durante os anos de 18 a 37 d.C. (uma detenção de cargo excepcio­
nalmente extensa) e, portanto, na ocasião da morte de Jesus, o sumo sacerdote era
Caifás, mencionado na NP por Mateus e João, embora João também se refira a Anás,
sogro de Caifás, como sumo sacerdote. Essas duas figuras foram examinadas em
detalhe no COMENTÁRIO de § 19. Quanto ao mais, na NP os Evangelhos têm o plural
“chefes dos sacerdotes”, tratamento por nós conhecido como também encontrado
em Josefo (Guerra II,xii,6; #243; Vida 38; #193). Os Manuscritos do Mar Morto
falam de “sacerdotes líderes” sob um sacerdote líder principal, junto com alguns
membros das famílias sacerdotais dentre as quais era escolhido o sumo sacerdote
e, com toda a probabilidade, alguém a quem foram confiados deveres sacerdotais
especiais.17 Em suma, o termo designa uma aristocracia sacerdotal de Jerusalém
com posições de poder privilegiado sobre o Templo e seu tesouro.

Na imagem sinótica, Jesus não teve nenhum encontro com os chefes dos
sacerdotes em seu ministério público até vir a Jerusalém pela primeira vez (Mc
11,1; Mt 21,1; Lc 19,28), de modo que, até esse momento, eles figuram apenas
nas predições da Paixão (Mc 8,31; 10,33; e par.; ver a p ê n d ic e VII, A2). Jesus os
irritou e eles começaram a procurar destruí-lo no mesmo dia em que ele chegou a
Jerusalém (Mt 21,15), ou no dia seguinte (Mc 11,18), ou logo depois (Lc 19,47). A
imagem joanina é mais complicada, pois Jesus vai a Jerusalém diversas vezes e, em
algumas dessas ocasiões, os chefes dos sacerdotes são descritos tramando contra
ele (Jo 7,32.45; 11,47-57; 12,10). Não nos são revelados todos os motivos deles,
mas a presença pública e as declarações de Jesus no Templo são mencionadas como
provocadoras de oposição. Além da questão quanto a Jesus ser o Messias, o que os
chefes dos sacerdotes dizem a respeito de Jesus e Pilatos se encaixa bem com as
apreensões de uma aristocracia sacerdotal endinheirada e poderosa, por exemplo:
“Achamos este sujeito desencaminhando nossa nação, proibindo o pagamento de

saírem do controle e trocava os titulares até encontrar um satisfatório; contudo, o sumo sacerdote tinha
interesses próprios (e os do povo) e podia agitar contra a autoridade a quem devia o cargo. Os piedosos
queriam que o sumo sacerdote ficasse do lado deles; preferiam que ele fosse piedoso, mas ele tinha au­
toridade em virtude do cargo, mesmo quando defendia uma causa impopular e apesar de uma linhagem
e conduta política duvidosas.
17 Ver HJPAJC, v. 2, p. 232-236; Sanders, Judaism, p. 327-329. Em minha descrição, combinei duas teorias
diferentes (famílias sacerdotais e deveres especiais) a respeito de quem eram “os chefes dos sacerdotes” ;
não vejo razão para ter de escolher entre eles.

659
A pêndices

tributos a César” (Lc 23,2); “ Se o deixarmos (continuar) assim, todos acreditarão


nele e os romanos virão tomar de nós o lugar [isto é, o Templo] e nossa nação” (Jo
11,48). Embora os chefes dos sacerdotes participem praticamente de todas as fases
da NP, não devemos esquecer que nunca eles são mostrados agindo sozinhos, como
lembra Via (“According”, p. 126-133). Eles trabalhavam no sinédrio e por meio
dele, daí a importância de considerar outras autoridades como escribas e anciãos.

2.Escríbas

Grammateis (Marcos, 5 vezes; Mateus, 2; Lucas, 3; João, O).18 Já que os


escribas jamais são mencionados em João, lidamos com uma descrição sinótica.
Precisamos dividi-la em um ministério pré-Jerusalém e um ministério de Jerusalém.
Ao contrário dos chefes dos sacerdotes, os escribas desempenham um papel na vida
de Jesus antes de sua vinda a Jerusalém (Marcos, 10 vezes; Mateus, 10; Lucas, 6) e,
em quase metade dessas ocasiões, eles estão unidos aos fariseus.19 Na verdade, em
Mc 2,16 ouvimos “os escribas dos fariseus” (também At 23,9), e em Lc 5,30, “os
fariseus e seus escribas”. Eles são descritos como mestres (Mc 1,22; 9,11) preocu­
pados com questões religiosas; assim, eles questionam, quase sempre de maneira
inamistosa, o comportamento de Jesus ou de seus discípulos (Mc 2,6-7.16; 7,1.5;

18 Os Atos empregam esse plural de grammateus três vezes para autoridades judaicas hostis em Jerusalém.
J. Jeremias (TDNT, v. 1, p. 741) lembra que, ao tratar de situações do século I, nem Fílon nem Josefo
usam grammateis da forma como os Evangelhos e os Atos usam essa palavra para os instruídos na Lei
(com exceção da referência a “ escribas sagrados” em Guerra VI,v,3; #291).
19 Essa situação complica-se bastante pelo fato de, depois de 70, rabinos que seguiam atitudes farisaicas
para com a Lei oral serem fundamentais no Judaísmo conhecido pelos evangelistas e, por isso, nas
descrições evangélicas do ministério de Jesus (que tinha tido lugar décadas antes) havia a tendência a
dar aos fariseus uma proeminência semelhante — às vezes por razões polêmicas, às vezes por simples
anacronismo. Portanto, é difícil discernir a relação histórica precisa entre os escribas e os fariseus no
tempo de Jesus. Não há nenhuma consonância na perspectiva de cada um dos evangelistas, nem de
como chegaram até ela. Eis algumas teorias como exemplo: A. F. J. Klijn (NovT 3, 1959, p. 259-267)
afirma que, apesar de quase sempre os escribas serem um grupo separado em Marcos, Mateus tende
a substituí-los por fariseus e Lucas omite referências a escribas ou os combina com fariseus. Cook
(Mark’s ) afirma que Marcos encontrou em três fontes diferentes referências a líderes hostis e não as
entendeu. Em seu relato, ele as reorganizou (ver nota 1, acima); mas, de fato, escribas e fariseus eram
idênticos, de modo que os escribas descritos na NP eram fariseus. Ao operar em um nível diferente de
interpretação evangélica, D. Lührmann (ZNW 78, 1987, p. 169-185) pensa que Marcos presumiu que
os leitores estavam informados quanto aos escribas e fariseus. Apresentados principalmente na Galileia,
os fariseus discutiam com Jesus a respeito das aplicações da lei oral; os escribas, mais proeminentes em
Jerusalém, contestavam a autoridade de Jesus para proclamar o Reino. Esta última era a questão que
mais preocupava a comunidade marcana.

660
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos m encionados nas narrativas da Paixão

9,14). Os escribas “de Jerusalém” (Mc 3,22) são descritos ameaçadoramente hostis
a Jesus durante seu ministério na Galileia. Já nas predições da Paixão (Mc 8,31;
10,33), o Jesus marcano começa a mencionar os escribas (em Jerusalém) que vão
desempenhar um papel na morte do Filho do Homem.20 Nos três sinóticos, quase
desde o momento da chegada de Jesus a Jerusalém, os escribas estão associados
aos chefes dos sacerdotes como adversários de Jesus (Mc 11,18.27; Mt 21,15; Lc
22,2). Mais que os outros evangelistas, Mateus (capítulo 23) faz uma ligação entre
esses escribas de Jerusalém e os encontrados no ministério mais primitivo, fazendo
Jesus em Jerusalém pronunciar oito “ais” para criticar os escribas e os fariseus (ver
Lc 20,46). Em Mc 14,1 e Lc 22,2, os escribas estão associados aos chefes dos
sacerdotes na trama que obterá a ajuda de Judas e as estatísticas iniciais dadas
acima mostram que eles continuam ativos em toda a NP, especialmente em Marcos.
Como, na perspectiva sinótica, as reuniões do sinédrio são constituídas de chefes
dos sacerdotes, escribas e anciãos, é de se presumir que as referências a escribas
de Jerusalém que querem Jesus morto descrevam escribas que faziam parte do
sinédrio, esteja isso especificado ou não.

Para resumir, então, nos sinóticos encontramos dois tipos de escribas.21


Há escribas de pendor farisaico que Jesus encontra principalmente na Galileia e
que ele confunde, irrita e até enraivece por causa de sua atitude para com o que
eles consideram prática religiosa estabelecida pela lei. Em Jerusalém, há também
escribas que fazem parte do sinédrio; e, junto com os chefes dos sacerdotes, eles
querem Jesus morto.22 (Questões de comportamento contrário à lei, tão proeminentes
no ministério, não são as acusações contra Jesus nos procedimentos judaicos.) Con­
tudo, preciso perguntar se seria de se esperar que os leitores de Marcos notassem a
distinção. Ou deviam eles pensar que os escribas que querem Jesus morto na NP
eram os mesmos que os escribas com filiação farisaica encontrados antes? Acredito

20 C. Weber (JBR 34,1966, p. 214-222) acha que não havia continuidade histórica entre os adversários de
Jesus na Galileia e em Jerusalém.
21 Os escribas são menos mencionados na NP de Mateus que nas NPs de Marcos e Lucas. Talvez isso seja
porque a Igreja mateana tinha escribas cristãos e, portanto, uma atitude positiva para com essa designação
(ver Mt 13,52; R. D. Crossan, “ Matthew” , p. 176). Cook (Marks) afirma que todas as referências lucanas
a escribas foram tiradas de Marcos ou acrescentadas sob a influência de Marcos.
22 D. R. Schwartz (Studies, p. 89-101) afirma que os escribas são representantes da lei sacerdotal e rivais
dos fariseus. Podería isso ser verdade, pelo menos quanto aos escribas de Jerusalém? Mas então os
fariseus não teriam voz no sinédrio descrito pelos sinóticos.

661
A pêndices

nesta última hipótese. Em Mateus, isso é ainda mais provável por causa dos “ais”
pronunciados em Jerusalém contra os escribas e os fariseus.

3. Anciãos

Presbyteroi (Marcos, 3 vezes; Mateus, 9; Lucas, 1; João, O).23 Em nosso exa­


me, podemos deixar de lado presbyteros usado em diversos sentidos; mais velho em
idade (Lc 15,25); autoridades da sinagoga que fazem parte da cena local (Lc 7,3);
autoridades da Igreja cristã modeladas nas autoridades da sinagoga (At 14,23); e
os antigos que são as fontes da tradição (Mc 7,3.5). Entretanto, é pertinente a nossa
pesquisa o fato de, entre os que querem Jesus morto na NP, estarem “anciãos” ou
muitas vezes, em Mateus, “anciãos do povo”. (É essa designação precisamente para
distingui-los de outros anciãos descritos acima?) Esses anciãos nunca aparecem
durante o ministério público galileu de Jesus e, em Jerusalém, são mencionados
apenas na companhia do(s) chefe(s) dos sacerdotes. Na verdade, em cinco das treze
ocorrências de “anciãos” nas NPs, os escribas também são mencionados; por isso,
mais uma vez lidamos com os elementos do sinédrio conforme concebidos pelos
sinóticos.

Os Evangelhos jamais explicam quem eram os anciãos, nem seu papel espe­
cífico em Jerusalém, mas a história de zeqentm (“anciãos” ) no AT lança luz sobre
eles. Os anciãos serviam de líderes das cidades (Jz 8,14), não só em assuntos de
estratégias comunitárias, mas também na administração da justiça (Rt 4,2.9.11).
Havia também “anciãos de Israel” (2Sm 3,17; 5,3), talvez representantes tirados de
várias tribos ou regiões. No final da monarquia, encontramos anciãos como grupo
poderoso em Jerusalém: na reunião que decidiría o destino de Jeremias, quando
os príncipes e o povo falavam aos sacerdotes e profetas, “alguns dos anciãos do
país” levantaram-se e comentaram (Jr 26,16-17). Uma carta de Jeremias (Jr 29,1)

23 Antes da NP, Lucas faz três referências a presbyteroi como autoridades judaicas e Atos faz mais sete.
Contudo, Gaston (“Antijudaism” , p. 141) afirma que o conhecimento lucano de “anciãos” vem apenas
de Marcos e foi convencionalmente expandido a partir dali para os Atos. Josefo não usa presbyteroi para
membros do sinédrio de Jerusalém (G. Bomkamm, TDNT, v. 6, p. 654). É preciso procurar sinônimos
que descrevam os que atuam como “anciãos” neotestamentários, por exemplo, hoi protoi, “os primeiros
homens” ; hoi en telei, “os na posição de liderança” ; gnorismoi, “ notáveis” ; hoi dynatotatoi, “os mais
poderosos/influentes” ; hoi episemoi, “os eminentes/ilustres” ; hoiprouchontes, “os respeitados/estimados” .
Também gerousia, para presbyterion, “conselho de anciãos” . (Ver McLaren, Power, p. 204-206, para as
referências de Josefo.) Porém, alguns desses poderíam ser o mesmo que archontes, “governantes” , a
serem examinados na subseção 6, a seguir.

662
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos m encionados nas narrativas da Paixão

aos exilados aprisionados por Nabucodonosor foi endereçada “Aos que ficaram dos
anciãos dos exilados, aos sacerdotes e aos profetas e a todo o povo”. Jr 19,1 fala
dos “anciãos do povo” (terminologia que reaparece em Mt 21,23; 26,3.47; ver nota
8, acima). Depois do exílio, a linhagem dos que voltaram era muito importante e
as genealogias dos chefes de família foram preservadas (Esd 8,1-14). Além disso,
encontramos na Judeia uma aristocracia de anciãos, considerados governantes em
certos assuntos, por exemplo, a propriedade é confiscada por ordem dos dirigentes
e dos anciãos em Esd 10,8. Vimos em § 18, BI que nos documentos desse período
pós-exílico aparecem referências (por exemplo, lMc 1 2,6,2Mc 1,10) a uma gerúsia
ou senado (que refletem respectivamente as palavras grega e latina para “ velho”,
daí um conjunto de anciãos). A liderança pelo sumo sacerdote de uma gerúsia
(mais tarde conhecida como sinédrio) era facilitada porque os nobres que atuavam
como anciãos nas deliberações seguiam, na maior parte, a opinião dos saduceus.
Josefo (Ant. XVIII,i,4; #17) nos relata que os saduceus não eram numerosos, mas
incluíam em suas fileiras pessoas do maior prestígio. Em 66 d.C., Josefo (Guerra
II,xvii,3; #411) mostra os homens de influência ou poder [dynatoi] deliberando com
os chefes dos sacerdotes e os fariseus mais notáveis a respeito da atitude a tomar
com Roma. Eles seriam semelhantes aos “anciãos” que aparecem na NP sinótica,
seguindo a iniciativa dos sacerdotes contra Jesus. Os anciãos eram uma aristocracia
não sacerdotal, uma nobreza por hereditariedade e fortuna, que eram consultados
em assuntos importantes que afetavam o povo. Talvez José de Arimateia fosse um
deles. É difícil perceber por que Mateus os menciona com mais frequência que os
outros Evangelhos na NP e, às vezes, em lugar dos escribas marcanos.24

Antes de passarmos a outro grupo de autoridades, talvez valha a pena ob­


servar que a tríade de chefes dos sacerdotes, anciãos e escribas (é essa a ordem
de precedência) é mencionada cinco vezes em Marcos (Mc 8,31; 11,27; 14,43.53;
15,1); duas vezes em Mateus (Mt 16,21; 27,41) e duas em Lucas (Lc 9,22; 20,1);
nunca em João. Só Mc 11,27 não está em relação direta com a Paixão de Jesus.

24 Doeve (“ Gefangennahme” , p. 465-466) acha que Mateus dá informações historicamente corretas de que
só os saduceus (chefes dos sacerdotes e anciãos) estavam envolvidos na morte de Jesus, daí o menosprezo
dos escribas. Mas, então, por que Mateus (Mt 27,62) faz a única referência das NPs sinóticas aos fariseus
e por que ele junta (no capítulo 23) os “ais” de Jesus contra os escribas e fariseus em um ambiente de
Jerusalém pouco antes da morte de Jesus?

663
A píndices

4 . Capitães do Templo

Strategoi (Marcos, 0; Mateus, 0; Lucas, 2; João, 0). Na trama das autoridades


para agarrar Jesus furtivamente e matá-lo, em Mc 14,1 os chefes dos sacerdotes e
os escribas conspiram; em Mt 26,3, os chefes dos sacerdotes e os anciãos do povo
conspiram e, em Mc 14,10 e também em Mt 26,14, é com os chefes dos sacerdotes
que Judas trata. Mas, em Lc 22,4, Judas conferência com os chefes dos sacerdotes
e os strategoi. Esse termo reflete o grego para liderar um exército (relacionado
com o português “estratégia” ) e costuma ser traduzido por “capitães”. Na prisão
de Jesus, enquanto Mc 14,43 tem uma multidão que vem com Judas “da parte dos
chefes dos sacerdotes e dos escribas e dos anciãos” (= membros do sinédrio), e Mt
26,47 tem a multidão “da parte dos chefes dos sacerdotes e dos anciãos do povo”,
Lc 22,52 tem presentes na cena “os chefes dos sacerdotes e capitães do Templo e
anciãos”. Isso dá a impressão de que esses capitães têm função militar ou policial
em relação ao Templo e têm posição de membros do sinédrio. Eles aparecem mais
três vezes nos Atos como autoridades de Jerusalém. Em At 4,1-3, “os sacerdotes e
o capitão [sing.] do Templo e os saduceus” deparam com Pedro falando no pórtico
de Salomão e o prendem, bem como a João. Em At 5,21-24, o sumo sacerdote e os
que estão com ele convocam “o sinédrio e todo o senado [Gerousia] dos filhos de
Israel”, mas os guardas não apresentam Pedro, pois ele saiu da prisão. “ Quando o
capitão do Templo e os chefes dos sacerdotes ouvem essas palavras”, ficam perplexos.
Então (At 5,26), “o capitão sai com os guardas” e traz Pedro e João diante do sumo
sacerdote. Embora confirmem a imagem evangélica, essas referências nos Atos dão
preferência a uma única figura, o capitão, que parece capaz de comandar os guardas.

Em Josefo (Guerra VI,v,3; #294), quando a porta de bronze maciço do


Templo abre-se sozinha, os vigias correm relatar o que aconteceu ao strategos.
Em Ant. XX,vi,2; #131, o governador da Síria põe o sumo sacerdote Ananias e
o stratego Anano em correntes e os envia para Roma (c. 50 d.C.). Ant. XX ,ix,3;
#208 fala do “escriba do capitão Eleazar; ele era filho do sumo sacerdote Ananias”.
E ssa imagem foi depois preenchida a partir da Mixná, onde, na posição seguinte
à do sumo sacerdote, há um sagan (termo hebraico que aparece no AT no plural
para “ prefeitos” e foi traduzido na LX X por strategoi ou archontes). Parece ser ele
o sacerdote que tem a responsabilidade suprema da ordem no Templo e ao redor
dele, servindo às vezes de substituto do sumo sacerdote (na verdade, talvez o filho
e herdeiro do sumo sacerdote para o cargo — ver JJT J, p. 225-228; HJPAJC, v.

664
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão

2, p. 277-279). Sentimo-nos mais à vontade recorrendo a esse indício mixnaico,


pois o muito mais primitivo Rolo da Guerra de Qumrã, contemporâneo do tempo
de Jesus, fala do sumo sacerdote e de seu substituto (misneh) à testa de doze chefes
dos sacerdotes (1QM 2,1-2).

A oscilação lucana entre um plural e um singular é confusa. Havia capitães


subordinados ao capitão, ou o termo tornou-se generalizado para imitar “chefes
dos sacerdotes” e “escribas” ? Contudo, sua imagem geral é plausível. Próximo ao
sumo sacerdote havia outro sacerdote que era membro proeminente do sinédrio
com autoridade especial para policiar os negócios do Templo - daí a designação
“capitão do Templo” - e com papel especial em prisões e julgamentos. Como parece
que o capitão era um dos chefes dos sacerdotes, não havia necessidade de ampliar
o entendimento sinótico dos três grupos que compunham o sinédrio: os chefes dos
sacerdotes, os escribas e os anciãos. Tinha Lucas uma tradição especial a respeito
do papel desse capitão (ou desses capitães) do Templo na prisão de Jesus ou essa
figura, mencionada na história da prisão e do julgamento de Pedro, foi revivida dos
Atos e, por analogia, aplicada à prisão de Jesus?

5. Fariseus

Pharisaioi (Marcos, 0; Mateus, 1; Lucas, 0; João, l).25 Apesar das frequen­


tes referências a fariseus no ministério público de Jesus em todos os Evangelhos,
na maior parte das vezes em postura inamistosa ou intensamente hostil a Jesus, e
apesar da crítica severa que lhes é dirigida em Mt 23, é notável a ausência deles
das três predições sinóticas da Paixão, da trama com Judas e, na verdade, de quase
toda a NP! Antes da NP, Mateus os menciona depois que Jesus entra em Jerusa­
lém tramando com os chefes dos sacerdotes para prendê-lo (Mt 21,45-46), mas os

25 Os opostos normais dos fariseus seriam os saduceus, mas os Saddoukaioi (citados 14 vezes no NT [Ma­
teus, 7; Marcos, 1; Lucas, 1; Atos, 5]) nunca são citados na NP, embora, segundo os três sinóticos (Mc
12,18; Mt 22,23.34; Lc 20,27), Jesus os tenha encontrado quando foi a Jerusalém. K. Müller (“Jesus
[...] Sadduzãer” , p. 9-12) insiste que Jesus foi ofensivo à teologia dos saduceus em outras questões além
das bem conhecidas dos anjos e da ressurreição corporal, por exemplo, em suas atitudes independentes
quanto à pureza (Mc 7,1-8), oferenda (Mc 7,9-13) e juramentos (Mt 23,16-22). No início deste a p ê n d ic e ,
indiquei que, entre outras personagens mencionadas na NP como hostis a Jesus, certamente todos ou
muitos dos “chefes dos sacerdotes” e, com toda a probabilidade, “os anciãos” , eram de concepção sadu-
ceia, mas a filiação dos “escribas” de Jerusalém é incerta. Sanders (Judaism, p. 318) apresenta pontos
de apoio para sua asserção: “Nem todos os aristocratas eram saduceus, mas talvez todos os saduceus
fossem aristocratas” .

665
A pêndices

versículos paralelos em Marcos e Lucas omitem “os fariseus”. Isso sugere estarmos
lidando com a generalização mateana, não com a tradição antiga. Nas NPs dos três
sinóticos, a única menção aos fariseus está na história exclusivamente mateana sobre
a guarda no túmulo (Mt 27,62), história que também contém a única referência das
NPs a “os judeus” (Mt 28,15). Sugeri em § 48 ser essa uma história popular que
refletia a atitude e o vocabulário antijudaicos de muitos cristãos comuns do tempo
de Mateus. No relato joanino do ministério, apesar de Jesus estar em Jerusalém, os
fariseus juntam-se ao sumo sacerdote na tentativa de prender Jesus (Jo 7,32-49),
na convocação do sinédrio para discuti-lo (Jo 11,47) e nas ordens quanto a sua
prisão (Jo 11,57). Nessas cenas, por meio de pressão nos fariseus, talvez João torne
a tradição a respeito da oposição sacerdotal a Jesus mais contemporânea nos anos
80 e 90, depois da perda de poder sacerdotal pela destruição do Templo, quando os
fariseus surgiram como os principais adversários judaicos da comunidade joanina.
Mas, mesmo depois dessas referências, é notável haver apenas uma única menção
aos fariseus em toda a NP joanina (Jo 18,3); Judas leva guardas dos chefes dos
sacerdotes e (dos) fariseus quando parte para prender Jesus.

A conclusão tirada de todas as indicações é que não havia nenhuma memória


cristã segura de que os fariseus como tais tenham desempenhado um papel na cru­
cificação de Jesus.26 Alguns dos escribas (e talvez até mesmo alguns dos sacerdotes)
que foram convocados contra ele como parte do sinédrio podem ter sido fariseus,
em vez de saduceus, na maneira como interpretavam a lei; mas sua participação na
entrega de Jesus à morte não era associada na lembrança cristã com o fato de serem
fariseus. Não nos surpreende então que as questões básicas da observância da lei
descritas como objetos de disputa durante o ministério entre Jesus e os fariseus
não apareçam no procedimento legal judaico contra Jesus.

Contudo, os evangelistas esperavam que os leitores comuns dos Evangelhos


fizessem uma ligação entre a oposição a Jesus pelos fariseus e escribas durante
o ministério e a determinação pelos chefes dos sacerdotes, escribas e anciãos de
executar Jesus quando ele fosse a Jerusalém — as autoridades judaicas opõem-se
a Jesus do princípio ao fim. Historicamente, isso talvez signifique que relatos da

26 Como indiquei na nota 19, acima, é muito difícil reconstruir historicamente o papel dos fariseus na vida
de Jesus e em § 18, C2, concordei com os que afirmaram não serem os fariseus política ou liturgicamente
uma força dominante em Jerusalém. Sanders (Judaism, p. 398) calcula que numericamente havia três
vezes mais sacerdotes e levitas que fariseus.

666
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos m encionados nas narrativas da Paixão

oposição farisaica a Jesus ajudaram as autoridades do sinédrio em seu plano: elas


sabiam que, se entregassem Jesus aos romanos com seu julgamento de que ele de­
via morrer, não enfrentariam protesto instigado pelos fariseus. Se um fariseu como
Saulo (Paulo) perseguisse os seguidores de Jesus (G1 1,13), precisaria de ajuda e
autorização. At 9,1-2; 22,5; 26,12 mencionam o sumo sacerdote, os chefes dos sa­
cerdotes e os anciãos como participantes da mesma perseguição. Se é histórica, essa
colaboração nos adverte para não exagerar na divisão da oposição judaica a Jesus.

6. Governantes

Archontes (Marcos, 0; Mateus, 0; Lucas, 2; João, O).2' Esta designação para


autoridades judaicas de Jerusalém hostis a Jesus só ocorre na NP em Lc 23,13.35;
mas, como veremos, há outras referências joaninas e lucanas que esclarecem seu
significado. Parte da dificuldade é que archontes abrange ampla série de gover­
nantes principescos, funcionários locais e homens de importância.2728 No entanto,
vamos nos limitar a archontes em Jerusalém que lidam com Jesus, à medida que
aparecem em João e em Lucas-Atos.29

Parece que os archontes joaninos operam com poderes e interesses que, em


outras passagens dos Evangelhos, são atribuídos aos membros do sinédrio. Em Jo
3,1, Nicodemos, homem dos fariseus e archon dos judeus, vai se encontrar com
Jesus à noite. Em Jo 7,26, quando Jesus fala publicamente, o povo pergunta: “ Será
que os archontes sabem que este é o M essias?”. Mas, ao ouvirem essa conversa
na multidão, os chefes dos sacerdotes e os fariseus enviam guardas para agarrar
Jesus (Jo 7,32). Quando os guardas voltam de mãos vazias e meio que crendo
nele, os fariseus respondem-lhes com desdém: “Alguns dos archontes dos fariseus

27 Com frequência consideravelmente maior, archontes, não raro traduzido por “ magistrados” , aparece em
Josefo como designação para autoridades de Jerusalém. McLaren (Power, p. 207) argumenta que eram
administradores não envolvidos em tomadas de decisões.
28 Nos Evangelhos e nos Atos, por exemplo, temos Beelzebu, archon de demônios, e o satânico “ archon
deste mundo” ; archontes dos gentios que exercem autoridade (Mt 20,25); archontes nas cidades gentias
(At 14,5; 16,19); Moisés é um archon (At 7,35); Jairo é o archon da sinagoga local (Lc 8,41); há um
archon ou alto magistrado ao qual partes discordantes se apresentam e, então, ele as entrega ao juiz (Lc
12,58); e há referências a um archon local sem contexto especificador (Mt 9,18.23; Lc 14,1; 18,18).
29 Tcherikover (“Was” , p. 73-74) afirma de maneira persuasiva que os archontes de Jerusalém não se
equiparam aos archons das cidades-estado gregas; mas, depois, ele argumenta que uma descrição delas
abrange as indicações em Josefo e no NT, a saber, que eram membros das famílias sacerdotais. Duvido
que o uso em João e Lucas permita tal precisão.

667
A pêndices

acreditou nele?” (Jo 7,48), mas Nicodemos lembra a injustiça desse julgamento (Jo
7,50). Em Jo 12,42, depois de relatar a opinião de Jesus a respeito da cegueira e da
descrença, João comenta: “ No entanto, muitos dos archontes creram nele; mas, por
medo dos fariseus, não o confessaram, para não serem expulsos da sinagoga”. As
indicações são um pouco confusas quanto a até que ponto os archontes se igualam
aos chefes dos sacerdotes e fariseus; além disso, alguns archontes são favoráveis a
Jesus e alguns contra ele. As dificuldades originam-se do fato de João escrever, em
terminologia geral, em um tempo mais tardio, para uma audiência que se presume
não estar particularmente interessada nas subdivisões das autoridades judaicas, e
por ele misturar à oposição a Jesus as táticas da oposição mais tardia da sinagoga
aos cristãos joaninos.

Voltando-nos para os escritos lucanos, descobrimos que At 4,26-27 alinha


contra Jesus os reis e os archontes de Jerusalém, e aparentemente identifica os
primeiros com Herodes e os últimos com Pilatos. Mas essa tentativa muito literal
de aplicar à Paixão uma passagem dos Salmos produz uma descrição que não é
realmente característica da visão lucana de archontes. Em At 13,27-29, Paulo de­
clara que “os habitantes de Jerusalém e seus archontes” condenaram Jesus (krinei)
e pediram a Pilatos que ele fosse morto; no fim, eles o desceram da árvore e o
puseram em um túmulo.30 Como essa descrição coincide com o que os membros
do sinédrio fizeram na NP lucana, presume-se ser archontes um termo genérico
para chefes dos sacerdotes, capitães do Templo, anciãos e escribas (Lc 22,52.66).
Em Lc 23,35, os archontes zombam de Jesus na cruz e as passagens paralelas em
Marcos/Mateus atribuem esse escárnio aos chefes dos sacerdotes e escribas. At 23,5
trata o sumo sacerdote como archon do povo. At 4,5-8 menciona os archontes ao
lado dos anciãos, escribas e chefes dos sacerdotes. Do mesmo modo, em Lc 23,13,
“os chefes dos sacerdotes e os archontes’’'’ são reunidos por Pilatos e Lc 24,20 faz
esses dois grupos responsáveis por entregar Jesus para ser condenado à morte e
por crucificá-lo.31 As duas dificuldades mencionadas no fim do parágrafo anterior

30 Seria essa uma referência a José de Arimateia, que Lc 23,50 descreve como bouleutes, isto é, membro
do boule, “conselho” , que se presume ser o sinédrio (§ 18, B2)?
31 Os archontes talvez estejam presentes sob outra designação em Lc 19,47, onde, depois de Jesus ter
purificado o Templo e ensinado ali, “os chefes dos sacerdotes e os escribas [...] e os notáveis [protoi] do
povo” fizeram um esforço para destruí-lo - comparemos, imediatamente depois, Lc 20,1: “os chefes dos
sacerdotes, e os escribas, com os anciãos” . O Testimonium Flavianum (Josefo, Ant. XVIII,iii,3; #64; ver
§ 18, E l, acima) diz que Jesus veio diante de Pilatos pela “ acusação dos homens mais notáveis [protoi
andres] entre nós” .

668
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos m encionados nas narrativas da Paixão

em relação a João também se aplicam aqui. Os Atos, escritos nos anos 80 ou 90,
contemporizam e empregam um termo geral e impreciso para comunicarem-se com
os leitores que não estão interessados nos títulos exatos das autoridades judaicas
do tempo de Jesus. Além disso, esse termo permite aos Atos traçar um paralelo
entre os que são hostis a Pedro e Paulo, e os que são hostis a Jesus. De modo geral,
com referência à Paixão, para Lucas-Atos os archontes equivalem a elementos do
sinédrio (em especial os escribas e anciãos) e são incansavelmente hostis a Jesus.
O uso genérico do termo dá a impressão de poderes que estão contra ele.

669
Apêndice VI:
0 sacrifício de Isaac e a Paixão

Resumo:

A. Teorias que relacionam a Aqedah à morte de Jesus

B. Elementos contributivos na elaboração da história do sacrifício de Isaac

1. Na história de Abraão de Gn 22,1-19

2. Na literatura judaica primitiva (antes de 100 d.C.)

3. Na literatura mais tardia (targumim, midraxes, Mixná)

C. Sugestão de paralelos neotestamentários à história de Isaac

1. Fora das narrativas da Paixão

2. Nas narrativas da Paixão

Bibliografia

A boa vontade de Abraão para oferecer Isaac, seu filho amado, como sacri­
fício, se Deus o ordenasse (Gn 22,1-19), refletiu-se no Judaísmo de uma forma que
fez de Isaac o centro de uma narrativa e uma teologia altamente desenvolvidas.
O produto final da notícia a respeito do sacrifício de Isaac é identificado como a
Aqedah, designação derivada da raiz “amarrar”, que reflete a percepção de que
Isaac foi amarrado da mesma forma que o cordeiro na oferenda diária do holocaus­
to (o tamid) era amarrado, conforme descrito em Mixná Tamid 4,1. P. R. Davíes
(“ Passover”, p. 59) assim descreve o tema da Aqedah: “A oferenda de Isaac [...]
é um sacrifício realmente completo, no qual foi derramado sangue, que constitui
um ato definitivamente expiatório e redentor para todo o Israel”.1 Obviamente há

1 Swetnam (Jesus, p. 18) desaprova essa descrição porque implicitamente ela não iguala o termo Aqedah
com a história de Abraão/Isaac de Gn 22, nem mesmo com algum pequeno embelezamento imaginoso

671
A pêndices

paralelos entre o sacrifício redentor de Jesus e a teologia da Aqedah do sacrifício


redentor de Isaac, mas como aconteceram esses paralelos? Comecemos com um
exame das sugestões.2

A. Teorias que relacionam a Aqedah à morte de Jesus

Em geral, é atribuído a A. Geiger o mérito de ter iniciado a discussão3 com


sua alegação de que a Aqedah expressava uma teologia estrangeira, trazida do Cris­
tianismo sírio para o Judaísmo por autores judeus babilônios do período posterior a
200 d.C. Depois de algumas décadas, I. Lévi4 protestou que se encontravam temas
da Aqedah entre autores judaicos palestinos do mesmo período, que a teologia não
era estrangeira e que a perspectiva básica sobre o sacrifício de Isaac já existia
muito antes. Em meados do século XX, a tese de que a teologia da Aqedah era
anterior ao Cristianismo conquistou um grande número de adeptos. Para muitos,
isso significava que a avaliação da morte de Jesus no NT (e até sua ressurreição:
Schoeps) foi influenciada pela avaliação do sacrifício de Isaac. Entretanto, Spiegel
(.Last , p. 116) achou que “as duas tradições a respeito do amarrado [Isaac] e do
crucificado [Jesus] apontam, ao que parece, para uma fonte comum no mundo
pagão antigo”. Logo depois do livro de Spiegel, Dahl (“Atonement” ) argumentou
com grande sutileza que as interpretações cristãs primitivas das tradições de Isaac
e da Aqedah judaica eram desenvolvimentos paralelos, mas independentes de Gn
22.5 Entretanto, no início da década de 1960, Le Déaut e Vermes recorreram a
targumim palestinenses sobre o Pentateuco6 como sinal da existência pré-cristã da
teologia da Aqedah (opinião apoiada também por McNamara), principalmente como
parte da liturgia da Páscoa judaica. A influência da Aqedah no NT foi defendida
em vários graus por Wood e Daly (visão maximalista). No entanto, uma contestação

da figura de Isaac na história. Entretanto, creio que a precisão é bastante sensata, pois ajuda a impedir
a interpretação de idéias e terminologia mais tardia retroativamente para um período mais primitivo da
literatura no qual elas não estão atestadas.
2 Uma proveitosa história sucinta das teorias sobre a Aqedah é apresentada por Swetnam, Jesus, p. 4-22.
3 Jüdische Zeitschrijt filr Wissenschaft und Leben 10, 1872, p. 166-171.
4 REJ 64,1912, p. 161-184. Os dois biblistas associaram a Aqedah à liturgia do Ano Novo.
5 Ainda outra possibilidade é que a teologia da Aqedah tenha surgido como contrapeso judaico à teologia
cristã da morte sacrifical de Jesus (Geiger, Chilton, P. R. Davies).
6 E ssas são as extensas traduções aramaicas conhecidas como Neofiti, Pseudo-Jônatas e o Targum
Fragmentário.

672
Apêndice VI: 0 sacrifício de Isaac e a Paixão

extremamente séria a essa datação primitiva dos targumim foi apresentada por
Fitzmyer — contestação com a qual eu pessoalmente concordo. Uma contestação
diferente encontra-se em Daniélou, enquanto P. R. Davies e Chilton rejeitam os
argumentos tirados da liturgia da Páscoa judaica reconstruída com base nos tar­
gumim. Na verdade, pode-se perguntar o quanto se conhece de qualquer fonte a
respeito dos detalhes da liturgia da Páscoa judaica no século I d.C. À luz de tais
incertezas, a abordagem mais proveitosa, que seguirei abaixo, é ser rigorosamente
descritivo quanto a que documentos contribuem, com quais informações.

B. Elementos contributivos na elaboração da história do sacrifício de Isaac

É inquestionável que, de Gn 22 para a imagem completa da Aqedah, houve


um desenvolvimento durante séculos. Não se pode reconstruir esse desenvolvimento
com segurança, mas é possível examinar a história de Abraão/Isaac em documentos
de épocas diferentes e observar elementos multiformes na apresentação.

7. Elem entos na história de Abraão de Gn 2 2 ,1-19

Antes de começar a relacionar os elementos, é preciso notar que a história é


expressivamente de Abraão, não de Isaac; louva a obediência de Abraão a Deus e
sua confiança nele. Aparentemente, Isaac é um menino pequeno, submetido àquilo
que seu pai diz e faz, que desempenha um pequeno papel como objeto das ações
de Abraão. Os elementos a seguir são pertinentes:

#1. Isaac é o muito amado filho único de Abraão (Gn 22,2.12.16: yahtd,
agapetos).

#2. Deus disse a Abraão: “Toma teu filho [...] e dirige-te à terra de Moriá”.
Abraão tomou consigo (paralambanein ) dois jovens servos e seu filho Isaac (Gn
22,2-3).

#3. Ao chegar, Abraão disse aos jovens servos: “ Sentai-vos neste lugar
[kathisate autou] com o jumento; eu e o menininho vamos adiante; e depois de
adorarmos, voltaremos a vós” (Gn 22,5).

#4. Abraão tomou a lenha para a oferenda e a pôs sobre Isaac, seu filho
(Gn 22,6)

673
A pêndices

#5. Isaac dirigiu-se a Abraão como “ (Meu) Pai” (Gn 22,7: ’ató; pater).

#6. Abraão amarrou (‘qd) Isaac e o colocou sobre a madeira (Gn 22,9).

#7. Um anjo do Senhor gritou para Abraão e lhe disse para não estender a
mão contra o menino (Gn 22,11-12).

#8. Depois de oferecer um carneiro como substituto, Abraão voltou aos jovens
servos (Gn 22,19); não é dito nada quanto à volta de Isaac.7

2. Elementos na literatura judaica prim itiva (antes de 100 d .C .)8

Sob esse título, vou incluir literatura deuterocanônica, como Eclo, Sb e lMc,
que certamente foi escrita antes da era cristã, juntamente com as obras de Josefo
compostas no século I d.C. Entre os apócrifos, Jubileus não data de muito depois
de 150 a.C. e é bem possível que 4 Macabeus date de pouco antes de 50 d.C. O
maior problema é a datação das Antiguidades Bíblicas de (Pseudo-)Fílon: foram
compostas pouco antes ou pouco depois de 70 d.C.; contudo, na suposição de que
idéias encontradas nelas circulavam antes da composição, eu as incluo nesta seção
de obras judaicas que podem ter influenciado o NT.9

#9. Muitas das referências na literatura deuterocanônica (e no NT) são a


uma história a respeito de Abraão na qual ele manifesta sua coragem e lealdade a
Deus (Eclo 44,20-21; Sb 10,5; lMc 2,52; Hb 11,17-20; Tg 2,21). Uma referência
à virtude de Isaac aparece em 4 Macabeus 16,20: “ Ele não se acovardou”.

#10. Jubileus 17,16-18 faz dessa a mais severa das dez provações de Abraão
engendradas por Mastema (Satanás). Essa imagem está em harmonia com a teologia
angelical dualista de Jubileus e pode não ter sido difundida.

#11. Monte Moriá, o lugar do sacrifício, é identificado com o Monte Sião


(Jubileus 18,13; ver 2Cr 3,1), o local davídico do futuro Templo (Josefo, Ant. I,xiii,2;
#226).

7 Esse silêncio levou a especulações quase místicas quanto ao paradeiro de Isaac.


8 Vou incluir várias referências cristãs primitivas à história de Gn 22 onde coincidem com os pontos de
vista na literatura judaica. 1 Clemente inclui-se com dificuldade dentro da estrutura temporal.
9 P. R. Davies e Chilton (“Aqedah” , p. 522-28) afirmam que Pseudo-Füon é tardio demais para ter in­
fluenciado o NT.

674
Apêndice VI: 0 sacrifício de Isaac e a Paixão

#12. A ocasião do sacrifício é estabelecida na Páscoa em Jubileus 17,15,


com 18,3.101

#13. Isaac dirige-se a Abraão como “ Pai” duas vezes em Jubileus 18,6.

#14. A idade de Isaac é dada como vinte e cinco anos em Josefo, Ant. I,xii,3;
#227.n

#15. Isaac apressa-se de bom grado para o altar (Josefo, Ant. I,xiii,4; #232)
e tolera ser sacrificado por amor à religião (4 Macabeus 13,12). Em Pseudo-Fílon
32,3, Isaac diz: “ Não vim eu ao mundo para ser oferecido como sacrifício àquele
que me criou?” (também Pseudo-Fílon 40,2: O que estava sendo oferecido estava
pronto). 1 Clemente 31,3 relata: “ Isaac com confiança, sabendo o que estava para
acontecer, foi alegremente levado como sacrifício”.

#16. Jubileus 18,9 relata as discussões nos concílios celestes que levam a
sustar a mão de Abraão e o Senhor fala ele mesmo para Abraão, a fim de detê-lo
(,Jubileus 18,11).

#17. Embora Isaac não tenha morrido sobre o altar, há uma passagem em
Pseudo-Fílon 32,4 (“ E quando ele oferecera o filho sobre o altar e amarrara-lhe os
pés para matá-lo” ) da qual se valem alguns como Vermes, Le Déaut e Daly para
argumentar que Pseudo-Fílon trata o sacrifício como completo. Swetnam (Jesus, p.
53-54), lembrando que é difícil interpretar as palavras de Isaac em Pseudo-Fílon
32, afirma que a linguagem de Pseudo-Fílon 32,3 “ parece ser calculada para su­
gerir que o sacrifício não se completou”. No entanto, “o autor considera o sacrifício
não consumado de Isaac uma expiação do pecado”.

#18. Em 4 Macabeus, vemos Isaac tornar-se um modelo para mártires:


“ Isaac não vacilou quando viu a mão de seu pai, armada com uma espada, descer
sobre ele” (4 Macabeus 16,20). A boa vontade da mãe dos sete filhos para deixar
os filhos morrerem por Deus compara-se à boa vontade de Abraão a respeito de
Isaac (4 Macabeus 14,20; 15,20).

10 Le Déaut (Nuit, p. 260-261) afirma que essa ligação com a Páscoa judaica difundiu-se cedo.
11 Na tradição midráxica, a idade aumenta para trinta e sete, com base em cálculos rabínicos derivados de
dados do Gênesis.

675
A pêndices

3. Elementos na literatura mais tardia (targum im , m idraxes, M ixná)

0 principal ponto controverso aqui refere-se aos elementos nos targumim.


Já na literatura datada do fim do século I d.C., apareciam alguns dos elementos
da teologia e da narrativa da Aqedah sobre o sacrifício de Isaac (por exemplo,
##14, 15, 17, acima). Não obstante, os targumim palestinenses sobre o Gênesis
apresentam uma imagem muito mais desenvolvida de Isaac, que contém alguns
elementos encontrados também nos midraxes primitivos, na Mixná e na Epístola
de Barnabé, obras indiscutivelmente do século II. Como mencionei acima, alguns
biblistas (Daly, Le Déaut, McNamara, Vermes etc.) argumentam que, aqui, os
targumim preservam o pensamento do século I. Entretanto, com certeza esses
targumim foram escritos depois do século I12 e acho extremamente problemático
construir a partir deles uma discussão de influência no NT. É mais provável que
eles nos mostrem como a teologia da Aqedah se desenvolveu nos séculos II e III
d.C. Quero relacionar alguns aspectos da história de Isaac que aparecem em um
ou mais targumim palestinenses ou (onde especificado) em outra literatura judaica
escrita depois de 100 d.C.

#19. Isaac demonstra medo diante da morte.

# 2 0 .0 próprio Isaac pede para ser amarrado (o que realça a ideia de Aqedah
e fortalece o paralelismo com o cordeiro amarrado do holocausto diário [tamíd]).

#21. Isaac olha para cima e vê os anjos no céu (e a shekina ou glória de


Deus). Uma voz no céu explica a cena: há dois indivíduos escolhidos, isto é, Abraão
que sacrifica e Isaac que é sacrificado.13

#22. O sangue de Isaac é mencionado em Midraxe Mekilta (Pisha 7, linhas


79, 81) e até as cinzas de Isaac em TalBab Ta‘anit 16a (“ Que [Deus] se lembre,
em nosso benefício, das cinzas de Isaac” ).

#23. No targum de Jó (3,19), Isaac é identificado como “o servo de Iahweh”.14

#24. Nos elementos targúmicos da liturgia da Páscoa judaica, a libertação


de Isaac e a libertação de Israel do Egito estão relacionadas. Na Pesikta de-Rab

12 Ver NJBC 68, p. 108-110; P. R. Davies & Chilton, “Aqedah” , p. 542-545.


13 Na pintura da sinagoga de Dura Europos, a mão de Deus impede Abraão de matar Isaac.
14 Embora poucos datem este targum antes do século IV (e muitos datem-no consideravelmente mais tarde),
biblistas como Le Déaut, Vermes e Wood acham que essa era uma identificação primitiva de Isaac. Ver
Rosenberg, “Jesus” .

676
Apêndice VI: 0 sacrifício de Isaac e a Paixão

Kahana do século V (Supl. 1,20), lemos que, graças ao mérito de Isaac que se
ofereceu amarrado sobre o altar, Deus ressuscitará os mortos.

#25. Epístola de Barnabé 7,2 traça um paralelo direto entre o sacrifício de


Isaac oferecido no altar e a entrega de si mesmo de Jesus na cruz. Em sua homilia
Sobre a Páscoa, Melitão faz duas referências a Isaac amarrado (59, 69) como pre­
nuncio da morte de Jesus; e nos fragmentos 9-10, Melitão indica diversos paralelos:
ambos carregaram madeira, ambos foram conduzidos por um pai — porém, Isaac
foi libertado enquanto Jesus sofreu a morte.13*15

C. Sugestão de paralelos neotestamentários à história de Isaac16

Claramente, os elementos mais tardios na narrativa e teologia de Isaac


(##19-24) aumentam a semelhança com a história de Jesus e não admira que
comparações específicas (#25) começassem a ser feitas no século II. Mencionei
acima que muitos biblistas recorrem a esses elementos mais tardios como base para
cenas do NT.17 Entretanto, aqui vou restringir minhas observações aos elementos
##1-18 de Isaac que de forma plausível são anteriores ou contemporâneos aos
escritos neotestamentários. Primeiro vou indicar sucintamente sugestões para a
influência de Isaac em temas ou escritos neotestamentários fora da NP — se forem
válidos, aumentam a possibilidade de influência na NP. Esta última será o assunto
da segunda seção abaixo.

7. Paralelos fora das narrativas da Paixão

• Referências ao sacrifício de Cristo. ICor 5,7 declara: “ De fato, Cristo,


nossa páscoa (nosso cordeiro pascal), foi imolado”, o que é considerado
reflexo do sacrifício de Isaac que teve lugar na Páscoa judaica (#12),
sacrifício no qual Isaac foi amarrado (como seria um cordeiro sacrifical).

13 Ver R. Wilken, “ Melito, the Jewish Community at Sardis, and the Sacrifice of Isaac” , TS 37, 1976, p.
53-69.
16 A designação “história de Isaac” é por preferência. A questão não é simplesmente a influência da história
de Abraão em Gn 22 sobre o NT, nem penso na Aqedah, que é plenamente desenvolvida (conforme definida
no início do a p ê n d ic e ) , que a meu ver talvez não tenha existido no Judaísmo antes dos séculos II e III d.C.
17 Como exemplo, Stegner tenta encontrar um paralelo entre o elemento #21 e a cena batismal onde Jesus
vê os céus se abrirem, enquanto uma voz do céu explica o que acontece. 0 tema do servo de Is 42,1,
invocado em Mc 1,11, é então comparável a #23.

677
A pêndices

Segundo Rm 8,32, Deus “não poupou seu próprio Filho, mas o entregou
por todos nós”.18 Em Jo 3,16, encontramos: “ Deus amou tanto o mundo
que Ele deu o único Filho”.19Essa expressão podería ter sido influenciada
pela descrição da generosa disposição de Abraão de sacrificar seu filho
amado (#1), em especial se Isaac era considerado vítima adulta e bem
disposta que também exemplificava obediência (##14-15). Notamos, no
entanto, que os paralelos sugeridos estão por demais no nível implícito.

• Influência na Epístola dos Hebreus. Swetnam (Jesus, p. 86-129) afirma que


uma passagem como Hb 11,17-19 mostra a influência de Isaac.20 Realmen­
te, Abraão é a figura principal que é invocada por causa de sua presteza
“para oferecer seu único filho”, de modo que só se pode pensar em Gn 22.
Mas, para Swetnam, o tema de teste (#10) e a referência ao recebimento
metafórico por Abraão de Isaac de volta dos mortos são fatores que indicam
“uma aparição incontestada da Aqedah em Hb 11,17-19” (p. 129). Nas
páginas 130-177, ele defende a base da Aqedah em Hb 2,5-18, com suas
referências à semente de Abraão (Isaac) e à obra hostil do diabo (#10).
Ele invoca também diversas outras passagens de Hebreus; mas, como se
vê, as alusões propostas à história desenvolvida de Isaac são muito sutis.

• Influências na Última Ceia.21 Em Jubileus e talvez mais amplamente


antes de 100 d.C., imaginava-se que o sacrifício de Isaac teve lugar
na Páscoa judaica (#12) e seu sangue torna-se tema dos midraxes. Os
sinóticos descrevem a Ultima Ceia como refeição pascal e em Mc 14,24
e Mt 26,28, Jesus especifica que seu sangue é “derramado por muitos”.
0 sacrifício de Isaac na Páscoa já assumira um aspecto expiatório e fora
associado à libertação de Israel (como mais tarde se tornaria específico:
#24)? Como foi mencionado acima, biblistas como P. R. Davies e Chilton
criaram dúvidas reais a respeito.

18 Dahl (“Atonement”) enfatiza esse versículo junto com G13,13-14 (Cristo suspenso no madeiro [na história
de Isaac, “um carneiro preso em um espinheiro” ], seguido por uma referência à bênção de Abraão) e
Rm 3,25-26 (Deus apresentou Cristo como expiação por seu sangue). A relação com a história de Isaac
nessas passagens é sutil, para dizer o mínimo.
19 É provável que originalmente esse texto não se referisse à morte de Jesus, mas à encarnação ou ao envio
por Deus do Filho ao mundo. Mesmo assim, ljo 4,10 pode ser considerado reinterpretação para incluir
a morte: “ Deus enviou Seu único Filho ao mundo [...] para ser a expiação por nossos pecados” .
20 Ver em R. Williamson, JTS n s 34,1983, p. 609-612, uma avaliação favorável da tese de Swetnam.
21 Em um sentido mais amplo, a cena da ceia podería ser interpretada como parte da NP, mas este comentário
começa o exame da NP depois da Ultima Ceia.

678
Apêndice VI: 0 sacrifício de Isaac e a Paixão

Os poucos exemplos dados acima demonstram como são sutis os alegados


paralelos entre o NT e os episódios da história de Isaac (fora da história de Abraão
em Gn 22,1-19). Se não se permite um apelo à existência no século I de temas da
Aqedah que só estão documentadas nos targumim e em outra literatura judaica,
não existe nenhuma alusão neotestamentária fora da NP para a teologia e os temas
desenvolvidos a respeito de Isaac. Portanto, é preciso avaliar os paralelos sugeridos
na NP pelos méritos deles sem muito apoio do resto do NT.

2. Paralelos nas narrativas da Paixão22

• Em Mt 26,36 (mas não em Mc 14,32), quando entra no Getsêmani, Jesus


diz ao grupo de discípulos: “ Sentai-vos neste lugar [kathisate autou]
enquanto, me afastando, rezo ali” ; e então ele toma consigo (paralam-
banein) Pedro e os dois filhos de Zebedeu. Bons paralelos linguísticos
encontram-se na história de Gn 22, como demonstrado em ##2-3, acima.
Contudo, notemos que o paralelo é mais entre Jesus e Abraão que entre
Jesus e Isaac.

• Um tema da cena no Getsêmani é a advertência de Jesus aos discípulos


para vigiarem e rezarem, a fim de não entrarem em provação (peirasmos:
Mc 14,38; Mt 26,41; Lc 22,40.46; também Hb 4,15, peirazein). Pode-se
comparar esse com o tema em Jubileus (#10) das provações de Abraão
engendradas por Mastema (cf. Jo 16,11 sobre a Paixão como julgamento
do príncipe deste mundo, e Lc 22,53, sobre um confronto com o poder
das trevas). Mais uma vez, o paralelismo é entre Jesus e Abraão.

• Na oração de Jesus no Getsêmani (Mc 14,36; Mt 26,39; Lc 22,41),


Jesus dirige-se a Deus como “ (Meu) Pai” (#5) e esse tema amplia-se
em Jubileus (#13). E difícil julgar como isso é significativo, pois seria
natural Isaac falar assim a seu pai.23

22 Grassi (“ Abba”, p. 450-454) apresenta uma lista útil de sugestões das quais seleciono algumas como
dignas de atenção. Algumas sugestões são forçadas demais (o Monte das Oliveiras na Paixão de Jesus
paralelo ao Monte Moriá em #11); outras baseiam-se no material de Isaac que não é demonstravelmente
tão primitivo quanto o NT (Jesus triste até a morte e pedindo para não beber o cálice como paralelo à
expressão de medo por Isaac em #19).
23 Grassi (“Abba”) dá grande importância a isso, mas o verdadeiro paralelo teria de estar na tradição tar-
gúmica mais tardia.

679
A pêndices

• Em (alguns mss. de) Lc 22,43, um anjo do céu fortalece Jesus em sua


oração no Monte das Oliveiras; em Mt 26,53, Jesus diz que podería
recorrer ao Pai e ser provido de doze legiões de anjos; em Jo 12,28b-29,
a voz celeste que fala a Jesus é confundida com um anjo. Em Gn 22, há
a intervenção de um anjo em benefício de Isaac (#7) e a história que se
desenvolve ressalta o papel celeste (#16). A intervenção celeste, espe­
cificamente angelical, não é incomum no AT e nos apócrifos judaicos;
e, assim, pressupor aqui a influência específica da história de Isaac nas
passagens evangélicas é imaginoso, principalmente por Jesus não ser
poupado, como Isaac o foi.

• Em Jo 18,11, quando Jesus é preso, ele diz: “ 0 cálice que o Pai me deu
— não vou bebê-lo?” Antes ele disse (Jo 10,17-18): “ Dou minha vida
[...] ninguém tira-a de mim; antes eu a dou por minha vontade” . Diante
de Pilatos (Jo 18,37), Jesus demonstra uma percepção de seu destino:
“A razão pela qual nasci e vim ao mundo é que eu possa dar testemunho
da verdade”. Há quem encontre um paralelo na boa vontade de Isaac
para ser sacrificado (#15) e um vocabulário paralelo nesta pergunta:
“ Não vim ao mundo para ser oferecido como sacrifício àquele que me
criou?”. Entretanto, na NP essa atitude é característica do Jesus joanino
e um paralelo quase tão bom com Isaac encontra-se em Hb 10,7 onde,
em uma citação de Salmo, é imaginado que Cristo disse: “ Eis que eu
vim para fazer tua vontade, Ó Deus!”.

• Quando Jesus vai ao Gólgota, Jo 19,17a relata: “e carregando a cruz por


si mesmo ele saiu”. Uma interpretação patrística, que apareceu já em
Melitão (#25), vê aqui um paralelo com o fato de Abraão tomar a lenha
para a oferenda e colocá-la sobre Isaac (#4). Mais uma vez o “ paralelo”
que não é linguístico só se encontra em João (pois os sinóticos apresentam
Simão Cireneu) e em Gn 22, sem os episódios mais tardios de Isaac.

À guisa de resumo geral, acho que, dos paralelos a Isaac sugeridos nas NPs,
os que têm maior plausibilidade são os paralelos ao relato de Abraão e Isaac em
Gn 22. Há muito pouca coisa relacionada de maneira plausível com os episódios
mais tardios de Isaac e a Aqedah.

680
Bibliografia para o Apêndice VI:
0 sacrifício de Isaac

Esta é uma bibliografia prática, a ser suplementada pela bibliografia completa


sobre a questão de Isaac no livro por Swetnam, relacionado abaixo.

C hilton , B. D. Isaac and the Second Night: a Consideration. Biblica 1 6 ,1 9 8 0 , p . 78-88.

D a h l , N. A. The Atonement — an Adequate Reward for the Akedah? (Ro 8:32). In: E llis ,
E. E. & WiLCOx, M., orgs. Neotestamentica et Semítica. Edinburg, Clark, 1969, p.
15-29 (Honor of M. Black).
D aly , R. J. The Soteriological Significance of the Sacrifice of Isaac. CBQ 39, 1977, p.
45-75.
D aniélou , J. La typologie dTsaac dans le christianisme primitif. Biblica 28, 1947, p.
363-393
D avies , R R. Martyrdom and Redemption: On the Development of Isaac Typology in the
Early Church. In: L ivingstone , E. A., org. Studia Patristica. Oxford, Pergamon, 1982,
v. 2, p. 652-658 (8th International Conf. on Patristic Studies, 1979).
_____ . Passover and the Dating of the Aqedah. J J S 3 0 ,1 9 7 9 , p. 59-67.
______ . & C hilton , B. D. The Aqedah: A Revised Tradition History. CBQ 40, 1978, p.
514-546.
G r a ssi , J. A. Abba, Father (Mark 14:36): Another Approach. JA A R 5 0 ,1 9 8 2 , p. 449-458.

H ayward, C. T. R. The Sacrifice of Isaac and Jewish Polemic against Christianity. CBQ
52, 1990, p. 292-306
L e D éa ut , R. De nocte paschatis. VD 4 1 ,1 9 6 3 , p. 189-195.

_____ . La nuit pascale. AnBib 22. Roma, PBI, 1963.


M c N amara , M . The New Testament and the Palestinian Targum to the Pentateuch. AnBib
27a. Roma, PBI, 1978, p. 164-168 (2a reimpressão).
R o sen b er g , R . A. Jesu s, Isaac, and the “ Suffering Servant” . JB L 8 4 ,1 9 6 5 , p. 381-388.

S ch oeps , H. J. The Sacrifice of Isaac in Paul’s Theology. JB L 6 5 ,1 9 4 6 , p. 385-392.

S pieg e l , S. The Last Trial: On the Legends and Lore of [...] the Akedah. New York,
Pantheon, 1967.

681
A p ê n d ic e s

Stadelmann, L. I. J. 0 sacrifício de Isaac: Um texto clássico sobre o discernimento espi­


ritual na Bíblia. Perspectiva Teológica 23,1991, p. 317-332.
Stegner, W. R. The Baptism of Jesus: A Story Modeled on the Binding of Isaac. Bible
Review 1, #3, outono de 1985, p. 35-45.
SwETNAM, J. Jesus and Isaac: A Study of the Epistle to the Hebrews in the Light of the
Aqedah. AnBib 94. Roma, PBI, 1981.
Vermes, G. Scripture and Tradition in Judaism. Leiden, Brill, 1961, p. 193-227.
Wood, J. E. Isaac Typology in the New Testament. NTS 14,1967-1968, p. 583-589.

682
Apêndice VII:
Os antecedentes veterotestamentários
das narrativas da Paixão

Depois de alguns comentários preliminares, o material será dividido desta


maneira:

A. Paralelos à Paixão no Antigo Testamento em geral

1. O Pentateuco

2. Livros Históricos

3. Livros Proféticos

4. Livros Sapienciais

B. Paralelos à Paixão nos Salmos

1. Paralelos à Paixão sugeridos nos Salmos (exceto SI 22)

2. SI 22 e a Paixão

Bibliografia

§ 1 B já apresentou a teoria de que a NP surgiu não da lembrança do que


aconteceu, mas simplesmente da reflexão imaginativa no AT, principalmente em
passagens que descrevem o sofrimento do justo nas mãos dos inimigos que tramam
contra ele e escarnecem de sua confiança em Deus. Embora eu tenha apresentado
razões para rejeitar essa abordagem radical (pelo menos com referência ao esboço
principal das NPs canônicas), é impossível negar que o ambiente veterotestamentá-
rio tenha exercido forte influência sobre a apresentação cristã primitiva da Paixão,
realçando o que tinha de ser relatado a fim de expandir o contorno de pregação
nas narrativas dramáticas. Além disso, em material da Paixão que não passou pelo

683
A p ín m c e s

cadinho da pregação comum ou dos debates na sinagoga e no qual se davam rédeas


à imaginação popular (por exemplo, o material especificamente mateano e o EvPd),
a influência veterotestamentária foi verdadeiramente criativa. É por isso que, por
exemplo, em Mt 27,3-10 e At 1,16-25, temos duas diferentes histórias da morte de
Judas, cada uma dramatizada em metáforas tomadas por empréstimo da morte de
uma figura má do AT, respectivamente Aquitofel e Antíoco Epífanes. A medida que
meu comentário sobre a NP prosseguiu pelos Evangelhos versículo por versículo,
indiquei a base veterotestamentária para episódios ou expressões distintas. Entre­
tanto, neste APÊNDICE vou examinar a questão da sequência veterotestamentária,1
concentrando-me nos livros que mais influenciaram as NPs e, depois, voltando-me
minuciosamente para os Salmos e, na verdade, para a obra mais influente, SI 22.
Este breve estudo deve ajudar a comprovar até que ponto os cristãos primitivos
consideravam a Paixão o cumprimento da vontade de Deus, prenunciada nos sofri­
mentos do justo inocente de Israel.

À guisa de introdução geral, é preciso mencionar que a Paixão reproduz o


AT de várias maneiras. Às vezes, há apenas uma alusão, sem qualquer aviso ao
leitor que se tem em mente a Escritura. Se uma alusão percebida é a uma situação
veterotestamentária, mas não utiliza o vocabulário da descrição das circunstâncias
do AT, nem sempre temos certeza se o autor neotestamentário planejou a referên­
cia.2 (Essa é uma das razões pelas quais há discordância entre listas de passagens
veterotestamentárias que influenciaram as NPs; meu catálogo a seguir pretende
apenas apresentar os paralelos que julguei importantes.) Outras vezes nas NPs, o
vocabulário do AT é repetido de maneira inconfundível; e, na verdade, em alguns
casos, a citação do AT torna-se explícita pelo uso de uma fórmula, por exemplo: “Isto
aconteceu a fim de que a Escritura (ou as palavras do profeta) se cumprissem.. ,”.3

1 Moo, Old Testament, ura de diversos escritos que apresentam um estudo mais detalhado, concentra-se
em temas específicos (servo sofredor, Zc 9-14, Salmos de lamentação, metáforas sacrificais) e não segue
a sequência veterotestamentária.
2 O entendimento de que a referência sugerida não é forçada é facilitado se alhures a respectiva situação
veterotestamentária serviu sem ambiguidade a outros autores cristãos. Mesmo sem essa ajuda, Dillon
(“Psalms” , p. 431) acha que a aparência bíblica geral das NPs cria uma atmosfera propensa ao reconhe­
cimento da probabilidade de alusões.
3 Em estatísticas que abranjam os Evangelhos por inteiro, citações de cumprimento são mais frequentes
em Mateus e João. Ocasionalmente, a ideia de que essas coisas aconteceram para cumprir a Escritura
confunde os fiéis e dá munição aos céticos. Como pode haver responsabilidade ou culpa da parte dos que
executaram Jesus ou daqueles por cujos pecados ele morreu, se tudo tinha de acontecer? Essa pergunta
não reconhece que quase sempre o pensamento bíblico não distingue entre a Providência Divina e a

684
Apêndice VII: Os antecedentes veterotcstam entários das narrativas da Paixão

Para referências a escritos (sagrados) ou à Escritura na NP de Marcos/Mateus,4


ver em especial Mc 14,27 (= Mt 26,31) e Mc 14,49 (cf. Mt 26,54.56). Fora dessas,
uma citação de cumprimento foi apresentada no material especificamente mateano
em Mt 27,9-10. A única citação lucana de cumprimento está na Ultima Ceia, em Lc
22,37. Na NP joanina,5 o cumprimento da Escritura veterotestamentária aparece
em Jo 19,24.36-37 (ver também Jo 19,28) e o cumprimento da palavra de Jesus
aparece em Jo 18,9.32.

Para apreciar uma influência mais ampla do AT sobre a maneira como os


cristãos entenderam a Paixão de Jesus, outros fatores devem ser lembrados. Primeiro,
concentro-me aqui nas NPs dos Evangelhos, mas há referências à morte de Jesus
na maioria dos outros livros neotestamentários. Não raro, essas referências também
foram influenciadas pelo AT, mas não necessariamente pelas mesmas passagens que
influenciaram os Evangelhos. Segundo, inclinamo-nos a pensar nas Escrituras (do
AT) escritas bem conhecidas de nossas Bíblias. Contudo, sabemos que, por meio
de uma abordagem como a um midraxe, o entendimento de episódios veterotesta-
mentários no tempo de Jesus transcendera o texto escrito. Por exemplo, em BNM,
p. 229-230, 255-257, mostrei que a história mateana de Herodes e do nascimento
de Jesus refletiam não só o relato de Ex 1,8-16 de como o faraó matou os meninos
para controlar o aumento dos hebreus no Egito, mas também aspectos desenvolvidos
dessa história que conhecemos por meio de Fílon e Josefo, a saber, que os magos
avisaram o faraó do nascimento de um menino hebreu maravilhoso, que salvaria
seu povo. Do mesmo modo, há a possibilidade de autores neotestamentários terem
recorrido para a Paixão a episódios de midraxes fora do sentido literal do AT.6

Por amor à conveniência, quero organizar o exame de acordo com agru­


pamentos veterotestamentários padronizados (Pentateuco, Livros Históricos,

predestinação, de modo que o que quer que aconteça é apresentado como sendo desejo de Deus. Segundo
um entendimento mais sutil, Deus não quis (= desejou) a morte violenta do Filho, mas a anteviu e a
transformou em uma coisa salvífica para todos.
4 Mais cedo, na Última Ceia, ver Mc 14,21 (= Mt 26,24).
5 Na Última Ceia, ver Jo 13,18, que repete SI 41, talvez citado implicitamente em Mc 14,18. Jo 15,25 tem
o cumprimento de um texto contido “na lei deles” (“Odiaram-me sem motivo”), que repete SI 69,5 e SI
35,19.
6 Entretanto, vou insistir com regularidade que precisamos ter indicações de que esses episódios do tipo
de midraxes eram conhecidos no século /; recorrer a midraxes judaicos mais tardios é metodologicamente
fraco.

685
A p ê n d ic e s

Livros Proféticos, Livros Sapienciais), com as últimas subseções dedicadas aos


Salmos e SI 22. Em geral, é dada preferência à forma da LX X para as passagens
veterotestamentárias.

A. Paralelos à Paixão no Antigo Testamento em geral

lO P e n ta te u c o

Acreditava-se que duas histórias do Gênesis apresentavam paralelos à


morte de Jesus. A primeira era o teste de Abraão em Gn 22,1-14, onde o patriarca
mostrou-se obediente a Deus mesmo quando lhe foi ordenado sacrificar Isaac,
seu amado filho. É provável que essa história esteja lembrada implicitamente em
passagens como Rm 8,32, que descreve Deus não poupando “ Seu próprio Filho”,
mas dando-o por todos, e l jo 4,9-10, onde se diz que Deus mostrou amor por nós
ao enviar o Filho como sacrifício expiatório.7 Se a elaboração semelhante a um
midraxe da história de Abraão conhecida como a Aqedah (isto é, o ato de amarrar
Isaac) já estava em circulação, as NPs evangélicas talvez a reproduzam em certos
detalhes; mas cada exemplo proposto é discutível (ver APÊNDICE VI). A segunda
narrativa influente foi a venda de José ao Egito, por sugestão de Judá, em troca de
vinte (trinta) moedas de prata (Gn 37,26-28) e a posterior salvação por José de
seus onze irmãos. Tinha paralelos nas moedas pagas a Judas (= Judá) por entregar
Jesus, no fracasso dos outros onze para ajudar Jesus e no restabelecimento deles
por Jesus como seus irmãos depois da ressurreição.

Ex 12 descreve o ritual de comer o cordeiro pascal e de borrifar seu sangue


com hissopo nos batentes das portas dos israelitas para poupá-los quando o anjo
matou os primogênitos egípcios. Os evangelistas sinóticos descrevem a Ultima Ceia
como refeição pascal. João chama Jesus de Cordeiro de Deus e o mostra condenado
ao meio-dia, quando os cordeiros da Páscoa eram imolados no recinto do Templo;
há uma esponja encharcada de vinho avinagrado que foi posta no hissopo para lhe
ser oferecida e uma citação formal que chama a atenção para seu cumprimento da
Escritura, ao não ter nenhum osso fraturado (semelhante ao cordeiro de Ex 12,46;
Nm 9,12).8 Outro símbolo da experiência do Êxodo por Israel, a serpente erguida

7 Ver a p ê n d ic e VI, nota 19.


8 Ver também, em ICor 5,7 e lPd 1,19, o sacrifício ou sangue de Cristo, o cordeiro, e, talvez, em Hb 9,14.

686
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão

no deserto para trazer cura (Nm 21,9; ver Sb 16,5-7) é vista em Jo 3,14-15 como
prenuncio do Filho do Homem ser erguido na crucificação para que os fiéis tenham
vida abundante.

2 . Livros Históricos9

Jesus era considerado descendente de Davi, na verdade intitulado “filho de


Davi”, por isso foi encontrado um paralelo à Paixão no momento mais desesperado da
vida de Davi, conforme descrito em 2Sm 15,13-37; 17,23. Ali, depois de seu amigo
de confiança e conselheiro Aquitofel (= Judas) passar para o lado do inimigo, Davi
atravessou o Cedron (ver Jo 18,1) e foi para a Subida das Oliveiras (ver Mc 14,26 e
par.), onde chorou e rezou (nos sinóticos, cena do Monte das Oliveiras). Davi pro­
videnciou para seus seguidores não sofrerem sua sina, mas voltarem a Jerusalém e
esperarem uma reunião futura (ver Jo 18,8b), enquanto o infiel Aquitofel, ao perceber
que seu plano contra Davi fracassara, foi para casa e enforcou-se (ver Mt 27,5b).

No final do período histórico veterotestamentário, as dramáticas narrativas


macabeias de mártires (o idoso Eleazar, a mãe e os sete filhos) que resistiram ao
rei pagão Antíoco Epífanes (2Mc 6,18-7,42; 4 Macabeus 5,1-18,23) têm sido
com frequência sugeridas como modelos para a recusa de Jesus a concordar com o
interrogatório de Pilatos, principalmente conforme narrado em Jo 19,10-11, onde
Jesus contesta o poder do governador sobre ele (ver 2Mc 7,16). No entanto, é notável
que nas NPs evangélicas faltem importantes aspectos das narrativas macabeias dos
mártires, por exemplo, descrições horripilantes das torturas e discursos desafiadores
que invocam castigo para o governante. A veneração dos túmulos dos macabeus (§
47 C, acima) ajuda-nos a avaliar a possibilidade de terem os cristãos guardado a
lembrança do túmulo de Jesus e recordarem anualmente a história de sua morte.

3 . Livros proféticos

Isaías vem em primeiro lugar na coletânea (ou escritos) dos Profetas Pos­
teriores. Em At 8,32-33, Filipe explica ao eunuco etíope que Is 53,7-8 (cordeiro
conduzido ao matadouro) se refere a Jesus. Assim, muitos consideram as passagens
do servo sofredor em Isaías10fonte importante para reflexão cristã sobre a Paixão de

Quatro destes livros são conhecidos na coletânea hebraica como os Profetas Anteriores.
10 Em geral, são descobertos quatro cânticos do servo (Is 42,1-4; 49,1-7; 50,4-11; 52,13-53,12); contudo,

687
A p ê n d ic e s

Jesus.11 lPd 2,22-24 relata que Jesus não cometeu nenhum pecado, que não havia
nenhuma mentira em sua boca12 (fazendo eco a Is 53,9b), e se entregou, levando
nossos pecados à cruz (fazendo eco a Is 53,10: o servo dando a vida como oferenda
pelo pecado, e a Is 53,5: o servo traspassado por nossas ofensas, esmagado por
nossos pecados). O tema de Jesus sendo entregue (paradidonai), que é favorito
nas NPs (§ 10, acima), reflete o tema do servo sendo entregue em Is 53,6.12.13 No
relato marcano do ministério (Mc 9,12), a “ Escritura” é citada dizendo que o Filho
do Homem deve sofrer muito e ser desprezado, o que faz eco a Is 53,3, onde o servo
sofre rejeição. Mt 8,17 especifica que Jesus cumpria as palavras de Isaías (Is 53,4),
visto que ele tomou nossas enfermidades e suportou nossos males. Apesar desse
amplo uso das passagens do servo (especialmente o quarto cântico), não são muitas
as indicações do tema do servo na NP propriamente dita. A única citação direta (de
Is 53,12: “ E com criminosos foi ele contado” ) acontece durante a passagem sobre a
espada na Ultima Ceia lucana (Lc 22,37). A ideia de que essa passagem de Isaías
foi lembrada nas descrições de Jesus na cruz entre dois bandidos/malfeitores (Mc
15,27 e par.) é duvidosa por causa da diferença de vocabulário.14 Esse mesmo tipo
de diferença torna incerta a ligação entre a descrição do servo em Is 53,7 (“ Ele não
abre a boca” ) e o silêncio de Jesus e sua recusa a responder nos julgamentos.15 Uma
alusão mais clara ao servo encontra-se no escárnio judaico de Jesus (Mc 14,65 e
par.), pois Is 50,6-7 descreve o servo sofrendo tapas nas faces e cuspidas no rosto.16

não sabemos até que ponto, nos tempos neotestamentários, consideravam-se essas passagens inter-
-relacionadas e/ou diferenciáveis do resto de Isaías.
11 R. A. Guelich (‘“The Beginning of the GospeF: Mc 1,1-15” , BR 27,1982, p. 5-15) e outros veem maciça
influência de Isaías sobre o Evangelho de Marcos; de fato, eles entendem que Mc l,l-2 a significa que
Marcos inicia o Evangelho de Jesus Cristo, conforme escrito (profetizado) por Isaías, o profeta. De opinião
contrária, o estudo da Paixão por Hooker, em Jesus, é cético quanto à provável influência de Isaías nessa
área dos Evangelhos.
12 Ver também ljo 3,5: “Nele não havia pecado” .
13 Paradidonai para entregar (a inimigos ou à morte) também aparece em SI 27,12; 118,18; 119,121;
140,9. Na segunda das três predições sinóticas da Paixão (Quadro 13, no a p ê n d ic e VIII), Mc 9,31 tem
o Filho do Homem “ entregue às mãos dos homens [anthropoi]” ; a metáfora das “mãos de” (pecadores
etc.) encontra-se em SI 71,4; 97,10; 140,5.
14 Is 53,12 é citado em Mc 15,28, mas é adição de um copista mais tardio, não texto marcano genuíno (§
40, nota de rodapé * , e #7, acima).
*’ (Mc 14,61 [= Mt 26,63]; Mc 15,5 [= Mt 27,12.14; Jo 19,9]; e Lc 23,9.) Hooker (Jesus, p. 89) é muito
rigoroso ao rejeitar a influência de Isaías nos relatos do silêncio de Jesus.
16 Fora dos cânticos do servo, há quem tenha sugerido como antecedente para a crucificação Is 65,2: “ Abri
os braços o dia todo para um povo desobediente e contraditório” .

688
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão

Jeremias. Mais próximo ao conjunto que cerca a morte de Jesus do que


as histórias dos mártires macabeus é o tema de Jr 26, inclusive a advertência do
profeta contra o Templo de Jerusalém,17 a reunião de sacerdotes e profetas contra
ele, a participação de “todo o povo”, a advertência de que eles trariam sangue
inocente sobre si e a afirmação de que ele “merecia a morte”. Sugeri em § 2 que
o padrão do livro de Jeremias, com palavras e ações proféticas e uma narrativa do
sofrimento e rejeição do profeta, influenciou a ideia de escrever um Evangelho a
respeito de Jesus que reuniria esses aspectos. Parte dessa sugestão faria “a Paixão
de Jeremias” (inclusive a tradição mais tardia de morte violenta) influenciar a
Paixão de Jesus. Digno de nota é que as alusões da NP mais próximas de Jeremias
estão no material especificamente mateano da Paixão (sangue inocente, dinheiro
de Judas, o campo do oleiro, “todo o povo” ),18 uma distribuição que sugere que,
em nível popular, a analogia entre Jesus e Jeremias teve forte influência. Quando
se acrescenta Lamentações ao cenário de Jeremias para a Paixão, em Lm 2,15
todos os que passam sacodem a cabeça para a aflita filha de Jerusalém, do mesmo
modo que em Mc 15,29 e Mt 27,39 os transeuntes sacodem a cabeça para o Jesus
crucificado. Lm 3,28-30 imagina que quem espera o Senhor se mantém calado
quando o jugo lhe é colocado e dá o rosto a quem lhe bate.

Ezequiel. Ez 37, a visão da revitalização das ossadas secas (em especial


Ez 37,12-13: “ Vou abrir vossos túmulos e vos fazer sair de vossos túmulos e
vos conduzir para a terra de Israel” ) é a base de outro material especificamente
mateano, a saber, a quadra poética que descrevia o que aconteceu quando Jesus
morreu: “ Os túmulos foram abertos e muitos corpos dos santos adormecidos foram
ressuscitados [...]. Eles entraram na cidade santa” (Mt 27,52-53). A influência
de Ezequiel nessa cena mateana é mais forte quando utilizamos os afrescos mais
tardios de Dura Europos como guia para o entendimento popular de Ez 37, pois ali
um terremoto parte as rochas, abrindo os túmulos (Mt 27,51: “A terra foi sacudida
e as rochas foram partidas” ).

Daniel. Dn 7 é não raro considerado a origem do uso evangélico de “ Filho do


Homem” para Jesus. Certamente, quando Jesus está de pé diante do sumo sacerdote

17 A forma poética disso (Jr 7,11) é citada em Mc 11,17 e par.


18 Jr 18,2; 19,1-2; 26,15-16. Fora desse material, ver Jr 15,9, onde um oráculo de ruína para Jerusalém
adverte que “ainda é dia e o seu sol já se pôs” . No contexto da Última Ceia, é possível comparar a “ nova
aliança” na fórmula eucarística lucana (Lc 22,20) com Jr 31,31.

689
A p ê n d ic e s

em Mc 14,62 e par., suas palavras (“ Vós vereis o Filho do Homem sentado à direita
do Poder e vindo com as nuvens do céu” ) fazem eco a uma combinação do SI 110,1
(“ Senta-te à minha direita” ) e Dn 7,13, com a visão de “um como filho de homem
vindo com as nuvens do céu”.19A visão em Daniel diz respeito a um tribunal celeste
onde é feito o julgamento de um filho de homem (= santos do Altíssimo: Dn 7,10.22),
do mesmo modo que a declaração de Filho do Homem por Jesus tem o contexto
de tribunal e julgamento. A questão de blasfêmia no julgamento talvez faça eco à
figura do antideus de Dn 7,8.20.25, que fala com arrogância contra o Altíssimo.
Vimos acima que Ez 37 deu a base para a descrição mateana dos fenômenos que
cercaram a morte de Jesus, mas a ressurreição dos corpos dos santos adormecidos
também reflete Dn 12,2: “ E muitos dos que dormem no pó da terra acordarão,
alguns para a vida eterna”. 0 julgamento de Jesus pelo sinédrio, em Marcos/Ma-
teus, assemelha-se à história de Susana em Dn 13 (anciãos, falsas testemunhas).

Profetas menores. A escuridão sobre a terra inteira da sexta hora (meio-dia)


à nona hora (3 da tarde) em Mc 15,33 e par. é quase sempre considerada alusão
ao dia escatológico do Senhor em Am 8,9: “ O sol se porá ao meio-dia e a luz será
escurecida sobre a terra durante o dia”. (Ver também Sf 1,15; J1 2,2). Essa escuridão
faz parte do que leva à confissão pelo centurião de Jesus como Filho de Deus em
Mc 15,39 e par.; e o versículo seguinte em Amós (Am 8.10) declara: “farei que
enlutem pelo filho único”.

Zc 9-14 exige atenção especial (ver Bruce, “ Book” ); de fato, como passagem
veterotestamentária única, ao lado de SI 22, ela apresenta a base mais extensa
para a Paixão. Na verdade, quando se começa a Paixão como comecei, depois da
Ultima Ceia, com Jesus indo do outro lado do Cedron para o Monte das Oliveiras,
suas primeiras palavras (Mc 14,27; Mt 26,31) são citação formal de Zc 13,7 a
respeito de ferir o pastor e dispersar as ovelhas. A entrada de Jesus em Jerusalém
(Mc 11,1-10 e par.), sentado em um burrico e saudado por hosanas, faz eco a Zc
9,9. Em Zc 14,21, a casa do Senhor é purificada de todos os mercadores no último
dia, do mesmo modo que Jesus purifica o Templo (Mc 11,15-19 e par.; em especial
Jo 2,16). Parece que a declaração de Jesus na Última Ceia que identifica o vinho
com sangue da aliança alude a Zc 9,11 (“o sangue de minha aliança convosco” ). Zc
11,12-13 estabelece o preço do pastor em trinta moedas de prata, que são lançadas

19 Ver alusões anteriores a este versículo de Daniel em Mc 8,38 e 13,26.

690
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão

na Casa do Senhor para o oleiro (ver § 29, a respeito de Mt 27,3-10). Jo 19,34.37,


quando o soldado trespassa com uma lança o lado de Jesus morto, lembra Zc 12,10,
a respeito de olhar para o que foi trespassado.20

4 . Livros Sapienciais1'

Pr 31,6-7 dá bebida inebriante aos moribundos e vinho aos amargurados, a


fim de fazê-los esquecer sua indigência; a passagem é muitas vezes proposta como
base para Mc 15,23 e Mt 27,34, onde, logo que Jesus chega ao Gólgota, antes mesmo
de ser crucificado, oferecem-lhe vinho. O livro da Sabedoria (de Salomão), escrito
em grego, ao que tudo indica em Alexandria, c. 100 a.C., tem uma passagem sobre
o justo sofredor que parece se repetir de maneira notável nas NPs.22 Zombadores
oprimem o justo (Sb 2,10ss), zangados com ele por ele declarar ter conhecimento
de Deus e se intitular filho de Deus (Sb 2,13), e porque, por essa mesma alegação,
sua vida não é como a dos outros homens (Sb 2,15). Em Sb 2,18, eles clamam por
um teste, para ver se as palavras desse homem são verdadeiras: “ Se o justo é o filho
de Deus, Ele o defenderá e o livrará das mãos de seus inimigos”. 0 tom do escárnio
de Jesus na cruz aproxima-se dessa passagem, em especial a redação caracterís­
tica de Mt 27,43: “ Ele confiou em Deus. Que seja libertado se Ele o ama, pois
ele disse: ‘Eu sou Filho de Deus’”. 0 equivalente na passagem da Sabedoria entre
“justo” e “filho de Deus” esclarece as formas evangélicas variantes na confissão
do centurião quando Jesus morre: “ Verdadeiramente, este (homem) era Filho de
Deus” (Mc 15,39; Mt 27,54) e “ Certamente este homem era justo” (Lc 23,47).23

B. Paralelos à Paixão nos Salmos, em especial SI 22

O livro dos Salmos é facile princeps entre os livros veterotestamentários que


dão base para a NP. Rose (“ Influence” ) é particularmente útil na percepção dos

20 Jo 7,38, com a água que flui de dentro de Jesus, talvez faça eco a Zc 14,8, onde a água flui de Jerusalém.
21 Esses livros sapienciais encontrados na Bíblia hebraica são quase sempre classificados em ou com “ os
outros livros (escritos)” .
22 Esta situação nos faz notar como o conhecimento de livros que nunca fizeram parte da Bíblia hebraica
logo entrou na reflexão cristã sobre as “Escrituras” .
23 A vitória do justo sofredor está descrita em Sb 5,1-5, que apresenta um paralelo geral melhor à vitória
do Jesus ressuscitado que a segunda parte de SI 22 (a ser examinado a seguir). Pode-se afirmar com
razoável certeza que a figura do servo sofredor de Isaías influenciou a imagem no livro da Sabedoria.

691
A pêndices

muitos paralelos que vou examinar adiante. Contudo, como Homerski (Abstract)
menciona corretamente, os paralelos dos Salmos são a detalhes secundários que
completam a história (na maioria das vezes, a incidentes que indicam o que outras
pessoas fazem a Jesus); e nenhum Salmo apresenta um paralelo ao esboço evangélico
básico da Paixão de Jesus. Também não parece que, ao ampliarem o esboço, os
cristãos primitivos fizessem uma interpretação versículo por versículo de qualquer
Salmo (nem mesmo do SI 22) semelhante ao que aparece no pesharim de Qumrã
sobre os Salmos (McCaffrey, “Psalm”, p. 73-74). Muitos Salmos citados nas NPs
ou aos quais elas aludem classificam-se como Lamentações ou Súplicas concen­
tradas nos sofrimentos do justo inocente, mas os Salmos de ação de graças (34) e
os Salmos Régios (2; 110) também servem de base para a Paixão. Depois de SI 22,
os Salmos mais incontestavelmente lembrados eram SI 6924 e SI 31, com SI 42/43
exercendo influência especial sobre João.25 Abaixo, vou seguir a ordem numérica
dos Salmos ao citar as passagens26 que foram propostas como apresentando subsí­
dios para a Paixão de Jesus. Às vezes, a alusão proposta é muito geral e altamente
especulativa; outras vezes (onde uso negrito), a proposta tem alta possibilidade,
probabilidade ou certeza. A subseção 1 examinará todos os Salmos, exceto SI 22,
que será examinado na subseção 2.

7. Paralelos à Paixão sugeridos nos Salmos (exceto SI 22)

SI 2,1-2 (LXX) diz: “ Por que os gentios agiram com arrogância e o povo
pensa em coisas vazias? Os reis da terra vieram tomar posição e os governantes
reuniram-se [sjnagein] no mesmo lugar contra o Senhor e contra Seu Messias”.

24 Antes das NPs, SI 69,10 (“O zelo por tua casa me devora” ) é usado no relato da purificação do Templo
em Jo 2,17. Outros usos de Salmos em passagens que preparam a Paixão incluem SI 118,22-23 como
parte da parábola de advertência dos meeiros na vinha (Mc 12,10-11 e par.). Ver também nota 5, acima,
quanto às citações na Ultima Ceia de SI 41,10; 69,5 e, talvez, 35,19.
25 Ver o debate entre Beutler e Freed. Beutler afirma que SI 42/43 exerceram para João a função que SI
69 e 22 exerceram para os sinóticos; Freed insiste que as passagens onde Beutler vê a influência de SI
42/43 são compostas livremente de diversas perícopes veterotestamentárias diferentes, que influenciaram
o vocabulário e a metáfora.
26 (Lembro aos leitores como números e versículos dos Salmos são citados; ver últimos parágrafos da seção
“Abreviaturas” .) Alguns talvez conjeturem a respeito da ordem, se relacionei os paralelos de Salmos
mais plausíveis (os que aparecem em negrito) em uma sequência que seguiu a ordem na NP evangélica
de acontecimentos ou palavras que faziam eco aos Salmos. E ssa sequência daria SI 41,10; SI 42,6; SI
110,1; SI 2,1-2; SI 69,22; SI 31,6; SI 34,21; SI 38,12. Em nenhum Evangelho a sequência de incidentes
com paralelos de Salmos segue a ordem numérica destes.

692
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão

É citado em At 4,25-27 com referência a Herodes (rei) e Pilatos (governante), os


gentios e os israelitas reunindo-se contra Jesus, o servo ungido de Deus. Na NP,
só Lucas (Lc 23,6-12) dá a Herodes um lugar ao lado de Pilatos no julgamento
de Jesus. O verbo “reunir-se”, com referência aos adversários judaicos de Jesus
juntando-se contra ele, encontra-se em Mt 26,3.57; 27,17.62; e Lc 22,66.

SI 18,7: “ Lá do seu santo santuário ele ouviu meu grito” talvez tenha eco em
Mc 15,37-38 e par., onde ao “forte grito” de Jesus segue-se o divino rasgamento
do véu do santuário.

SI 26,6 e 73,13 usam a imagem de lavar as mãos na inocência e servem de


antecedentes para Mt 27,24, onde Pilatos lava as mãos dizendo: “sou inocente do
sangue deste homem”.

SI 27,12 e 35,11, onde testemunhas injustas (adikoi) levantam-se contra o


justo; cf. as falsas testemunhas contra Jesus em Mc 14,57.59; Mt 26,59-60.

SI 31,6: “ Em tuas mãos colocarei meu espírito” fornece as últimas palavras


de Jesus em Lc 23,46: “Pai, em tuas mãos eu coloco meu espírito”. (0 uso deste
Salmo do justo sofredor deve ser comparado às últimas palavras de Jesus em Mar-
cos/Mateus; ver F , sob SI 22, a seguir.) Quanto a SI 31,12, ver nota 51, adiante.

SI 31,14: “ Enquanto estavam reunidos [synagein] contra mim, tramaram


[bouleuein] para tirar minha vida”.27 Depois da reunião contra Jesus em Mt 26,3
(ver SI 2,1-2 acima), os chefes dos sacerdotes e os anciãos tramaram (symbouleuein)
agarrar Jesus à traição e matá-lo (Mt 26,4). Ver também o relato em Jo 18,14 de
que Caifás “advertiu” ou “aconselhou” (symbouleuein) que Jesus devia morrer.

SI 31,23 traz a súplica do justo ouvida quando ele clama ao Senhor; cf. Mc
15,37-38 e par.

SI 34,21, onde o Senhor zela pelos ossos do justo para que nenhum só deles
se quebre, pode ser acrescentado à descrição do cordeiro pascal como outra fonte
da Escritura citada em Jo 19,36: “ Seu osso não será quebrado”.

SI 35,21, onde os inimigos do justo exclamam: “Ah!” ; cf. Mc 15,29. Ver sob
SI 27,12, acima, o uso de SI 35,11 e sob nota 5, acima, o uso na Última Ceia de SI
35,19. Ver também nota 52, adiante.

2 Ver também, em SI 71,10, inimigos que tramam contra o justo.

693
A pêndices

SI 38,12 traz os que estavam próximos ao aflito, “mantendo-se a [apo\ certa


distância” (ver também SI 88,9; 69,9). Em Mc 15,40-41 e Mt 27,55, as seguido-
ras observavam à distância a morte de Jesus na cruz; a essas mulheres, Lc 23,49
acrescenta: “ todos os conhecidos dele”.

SI 39,10 tem um suplicante que, por castigo, ficou mudo e não abria a boca,
o que tem sido sugerido como paralelo às vezes em que Jesus ficou calado e nada
respondeu.28

SI 41,7: um inimigo vem até o justo, fala sem sinceridade; cf. o comportamento
de Judas em Mc 14,45; Mt 26,49 e Jo 18,3.

SI 41,10, que descreve o amigo de confiança que partilhou do pão do justo


e depois levantou o calcanhar contra ele, aparece em uma citação de cumprimento
na Ultima Ceia em Jo 13,18 com referência a Judas. Talvez também fundamente
Mc 14,18 e par.29

SI 42,2-3 (“ Minha alma tem sede do Deus vivo” ) é às vezes considerado a


base para as palavras de Jesus crucificado em Jo 19,28: “ Tenho sede” (mas ver
SI 22,16).

SI 4 2 ,6 (ver também 42,12) - “ Por que estás triste, minha alma, e por que
me perturbas [syntarassein]? - é repetido por Jesus no Getsêmani em Mc 14,34
e Mt 26,38 (“ Minha alma está muito triste”30), e SI 42,7 (“ Minha alma está aflita
[tarassem]” ) se repete em Jo 12,27 (“Agora minha alma está aflita” ).31 Quanto a
SI 42,11, ver nota 51, adiante.

28 Ver nota 15, acima. Alguns biblistas invocam também o TM de SI 38,14: “Sou como [...] um mudo que
não abre a boca [LXX: um homem que não tem censuras na boca]” , mas este é um paralelo ao silêncio
de Jesus ainda mais incerto que Is 53,7.
29 Ao tratar do SI 22, Fisher (“ Betrayed” , p. 27-36) analisa o SI 41 e combina o paralelo de Judas com 2Sm
15-17 (Aquitofel trai Davi), examinado em § 5. SI 41,2 abençoa o que cuida do humilde e do pobre,
coisa que Judas fingiu fazer em Jo 12,4-5.
30 As palavras de Jesus continuam: “até a morte” , talvez fazendo eco a Jz 16,16 (onde a alma de Sansão cai
em desespero mortal) e em especial a Eclo 37,2: “Não é uma tristeza mortal quando teu companheiro
ou amigo toma-se inimigo?”
31 O Jesus joanino prossegue e pergunta: “E que direi? Pai, livra-me desta hora?” . SI 6,4-5 traz: “Minha
alma está aflita ao extremo [...] Ó Senhor [...] salva-me por amor à tua misericórdia” . Ver também Hab
3,2 (LXX).

694
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestam entários das narrativas da Paixão

SI 69,4 descreve o justo cansado de gritar, com a garganta seca ou rouca;


ver a referência ao forte grito mortal dado por Jesus em Mc 15,34.37 e a sua sede
em Jo 19,28. Ver na nota 5, acima, o uso de SI 69,5 pela Ultima Ceia.

SI 69,22 (“ E eles deram para meu pão fel e para minha sede deram-me a
beber vinho avinagrado [oms]” ) está claramente repetido em Mt 27,34 e 48, onde
é dado ao Jesus crucificado vinho (oinos) misturado com fel e, mais tarde, vinho
avinagrado. E provável haver alusões a esta passagem em Mc 15,36; Lc 23,36 e Jo
19,29, onde se oferece vinho avinagrado a Jesus. É também o Salmo que serviu de
base para Mc 15,23, onde se oferece a Jesus vinho (oinos) misturado com mirra?

SI 109,25 faz do justo objeto de escárnio para os que o veem e meneiam a


cabeça, do mesmo modo que os transeuntes blasfemam contra o Jesus crucificado e
sacodem a cabeça em Mc 15,29; Mt 27,39. Entretanto, essa expressão de desprezo
é comum no AT; ver Lm 2,15 e, em especial, SI 22,8.

SI 110,1, onde o Senhor Deus diz “ao meu senhor: ‘Senta-te à minha di­
reita’”, dá o contexto para o Filho do Homem “sentado à direita do Poder e vindo
com as nuvens” (Mc 14,62 e par.) na advertência de Jesus ao sumo sacerdote no
relato sinótico do julgamento judaico.

SI 118,22 fala da pedra que os construtores rejeitaram (apodokimazein ),


passagem usada por Jesus em Mc 12,10 como advertência à audiência hostil da
parábola dos meeiros da vinha. Na primeira das três predições sinóticas detalhadas
da Paixão (Quadro 13, no APÊNDICE VIII), Mc 8,31 e Lc 9,22 preveem que o Filho
do Homem será “rejeitado”.32

Voltemo-nos agora para o Salmo que apresenta o maior número de paralelos


às NPs.

2 . SI 22 e a Paixão

Tertuliano (Ad. Marcion III,xix,5; CC 1,533) falou do “ 212 [= 22a hebraico]


Salmo que continha a Paixão de Cristo toda” ; na verdade, ele é chamado simple­
smente o Salmo da Paixão. Comecemos com algumas observações gerais quanto à
estrutura, à origem e ao sentido do Salmo. Em geral, concorda-se que ele consiste

i2 Em vez de apodokimazein, a citação deste Salmo em At 4,11 usa exouthenein, forma variante de exou-
denein, “ considerar como nada, desdenhar” , que aparece em SI 22,7.

695
A pêndices

em duas partes: lamento individual, em SI 22,2-22,33 e ação de graças, em SI


22,23-32 (com SI 22,28-32 às vezes designado como hino escatológico de louvor).
Um “eu” que sofre fala do começo ao fim da primeira parte; mas, de repente, na
segunda parte, esse “eu” desaparece nos bastidores e a congregação louva o Senhor.
0 hebraico ajuda a transição, pois o v. 22 termina com “ Tu me respondeste” (ausente
da LXX), que explica a mudança de tom.34 Duhm e outros afirmam que dois Sal­
mos originalmente independentes foram ligados; em sua maioria, os biblistas (por
exemplo, Gunkel, Kittel, Lagrange, Westermann) tratam o Salmo como unidade,
com a possível exceção dos vv. 28-32.35 A interpretação é que, implícita ou expli­
citamente, o lamento contém um voto para dar ação de graças quando o suplicante
é ouvido (o que está assegurado). Nesse caso específico, há o reconhecimento de
que o Senhor livrou o suplicante da destruição. Assim, é bastante apropriado ter
uma lamentação unida a uma ação de graças. (Os Salmos onde a ação de graças
é praticamente a mensagem toda cumprem o voto da lamentação.) Um argumento
a favor da unidade encontra-se no v. 25, que subentende que alguém se afligiu e
clamou a Deus, como fez o “eu” da primeira parte do SI 22.

0 título (SI 22,1) que atribui o Salmo a Davi36 e o fato de Jesus aplicar a si
mesmo SI 22,2 (Mc 15,34; Mt 27,46) deram origem à percepção cristã primitiva
de que o Salmo era profecia a respeito do Messias sofredor.37 Assim, como men­

33 Essa parte subdivide-se em duas subseções: 2-11 (fala e lamento diretos a Deus) e 12-22 (descrição
do problema e súplica a Deus); ou em três subseções (por exemplo, Gese), 2-6, 7-12, 13-22, cada uma
incluindo uma queixa (que cresce em intensidade e extensão) e uma expressão de confiança devota.
34 Entretanto, como indicado por meus itálicos, muitos biblistas emendam por causa da brusquidão da
oração (“Salva-me da boca do leão e dos chifres do búfalo [salva] minha aflita pessoa”) ou preferem outro
sentido verbal: ‘Jaze-me triunfar,\
35 Os que dividem a primeira parte do Salmo em duas subseções (nota 33, acima) veem a segunda parte
também dividida em duas subseções: 23-27 e 28-32. Entretanto, Gelin, Martin-Achard e E. Podechard
estão entre os que pensam que os vv. 28-32 tinham origem diferente, refletida em seu tema diferente (a
realeza de Iahweh). E. Lipinski (Biblica 50, 1969, p. 153-168) considera-o hino dos séculos VIII ou VII
a.C.
* É possível debater se idwd contém um auetoris pouco convincente (“Salmo de Davi” ) ou se tem a função
de tomar o Salmo régio: “para o rei davídico” . R. B. Hayes, “Christ Prays the Psalms: PauPs Use of an
Early Christian Exegetical Convention” , em A. Malherbe & E. Meeks, orgs., The Future of Christology,
Minneapolis, Fortress, 1993, p. 122-136 (L. E. Keck Festschrift), afirma que a tradição de ler os Salmos de
lamentação régios (davídico) como prefiguração do Messias era primitiva o bastante para ser pré-paulina.
37 Áquila traduziu o que muitas vezes se julga ser uma notação musical no título do Salmo (SI 22,1: Imnsh:
“para o maestro” ) como “ao autor da vitória” (assim também Jerônimo); e a LXX traz: “ até o fim” — desse
modo, o messianismo recebia impulso escatológico. Ver Bomhãuser, Death, p. 2.

696
Apêndice VII:O s antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão

ciona Salguero (“ Quién”, p. 28), de Agostinho a Tomás de Aquino, predominava a


aplicação literal do SI 22 a Jesus crucificado. Justino (Diálogo 97,3-4) repreendeu
Trifão e os judeus por não perceberem que SI 22,17 tinha de falar do crucificado,
pois nenhum outro rei judaico teve as mãos e os pés traspassados.38 Na verdade, a
opinião de Teodoro de Mopsuéstia de que o Salmo não era profecia foi desaprovada
no Segundo (Quinto Ecumênico) Concilio de Constantinopla e condenada pelo
papa Virgílio, em 14/24 de maio de 553 (PL 69.84ss). No entanto, alguns biblistas
continuaram a interpretar típica ou espiritualmente a figura descrita no Salmo, em
vez de recorrer a uma teoria de profecia direta. Um dos fatores antigos em apoio
dessa tese é a segunda oração de SI 22,2 na LX X e na Vulgata: “ Longe de minha
salvação estão as palavras [isto é, o relato] de meus pecados” — a referência a
“ meus pecados”, inaplicável a Jesus, poderia ser entendida se a figura nos Salmos
representasse a humanidade. Na exegese judaica mais tardia (Rashi), o destino
do salmista identificava-se com o do povo judeu. Todavia, essas interpretações
coletivas também estão sujeitas a objeção, pois o Salmo está próximo dos lamentos
de indivíduos, por exemplo, de Jeremias. Sênior (“ Death Song”, p. 1461) julga
ser provável que o Salmo originou-se na experiência pessoal genuína do salmista
anônimo, experiência que acabou sendo considerada apropriada ao justo israelita.
Soggin (“Appunti”, p. 109-113) afirma que, para fazer justiça ao indivíduo régio
e também às interpretações coletivas do Salmo, devemos pensar na figura como o
porta-voz do rei para a comunidade, mas de um rei humilhado, como em Zc 9,9.39

Até certo ponto, as antigas disputas a respeito da aplicação profética direta


a Jesus já não são pertinentes.40 Embora alguns biblistas julguem que o Salmo foi
composto na última parte do período monárquico, com forte reorientação depois
de 586 a.C., em sua maioria agora eles pensam em um contexto litúrgico. Schmid

38 Diálogo 98-106 trata em grande parte da aplicação deste Salmo a toda a missão de Jesus, inclusive o
nascimento.
39 SI 22,10-11, com sua sugestão de que o salmista que fala foi tirado do seio e reservado desde o nasci­
mento, compara-se a SI 2,7, que envolve a geração do rei. Seguindo intérpretes escandinavos, Soggin
(“Appunti” , p. 114-115) afirma que o rei e o servo sofredor foram unidos na expectativa judaica, em
especial entre os anawin ou pobres.
* Contudo, ainda em 1948, no catolicismo romano, Feuillet (“ Souffrance”) insistia que SI 22 é amplamente
messiânico, conforme interpretado em sentido convencional, não literal, de modo que o salmista não tinha
de saber a respeito de Cristo com antecedência. Em 1978, Lange (“ Relationship” , p. 610), defendendo
uma aplicação tipológica, lembrou que, entre os luteranos do sínodo de Missouri, uma predição literal
por Davi ainda era a interpretação mais comum.

697
A pêndices

(“ Mein Gott”, p. 124) vê no Salmo a religião sacerdotal do período pós-exílico,


onde liturgicamente a oração do fiel relaciona-se com a comunidade cuja fé asse­
gura que Deus responderá. Stolz (“ Psalm 22” ) fala de um círculo pós-exílico de
justos sofredores que suportaram grande tribulação, mas permaneceram firmes,
aguardando a ajuda divina. Quanto à profecia, notamos que, no TM do Salmo,
o sofrimento está expresso no tempo presente, sem referência ao futuro, e não é
primordialmente uma predição. A figura a quem o salmista se dirige como “ Meu
Deus” (SI 22,2) está entronizada no Templo de Jerusalém, recebendo os louvores
de Israel (SI 22,4), e no céu, aguardando os louvores da terra toda (SI 22,28-30).
Um contexto especificamente litúrgico que muitos imaginam ser o serviço do tôdâ,n
que envolve aquele que tem a prece pela libertação atendida. Indo ao santuário,
essa pessoa cumpriu o voto incluído na lamentação e ofereceu uma refeição sa­
crifical para parentes e amigos, cantando o hino de ação de graças. A datação em
um contexto pós-exílico torna concebível que a vocalização por Jeremias de suas
queixas a Deus tenha influenciado o desenvolvimento do modelo dessa lamenta­
ção.4142 A referência ao salmista ser tirado da barriga e do seio “de minha mãe” (SI
22,10-11) compara-se a Jr 1,5 (cf. Jr 20,17-18), onde o profeta foi escolhido antes
de sair do ventre de sua mãe. 0 modelo de desalento e confiança de SI 22 iguala-se
ao tom dos solilóquios de Jeremias e Martin-Achard (“ Remarques”, p. 82) aponta
para o salmista como uma pessoa que, embora semelhante a Jeremias, tem maior
confiança, pois se recusa a terminar o Salmo no tom de Jr 20,14-18, amaldiçoando
o dia em que nasceu. Paralelos também foram percebidos entre SI 22 e os cânticos
do servo sofredor do Dêutero-Isaías, com os maus-tratos em SI 22,7-9 comparáveis
aos de Is 50,6; 53,3.43 0 servo traspassado (TM hll) por nossos pecados, em Is

41 A defesa de partes desta teoria está associada a J. Begrich (ZAW 52,1934, p. 81-92); foi contestada por
R. Kilian (BZ 12, 1968, p. 172-185), principalmente com referência ao fato de um oráculo sacerdotal
de cumprimento estar ou não envolvido. Com referência a SI 22 e a NP, o contexto do tôdâ é aceito por
Dillon, Gese, Mays, Reumann etc. Especificamente, Sênior (“Death” , p. 1460) aponta para Lv 7 ,lss,
com sua descrição de oferenda da paz.
42 Assim Gelin, “ Quatre” , p. 31. Holladay (“Background”) chama a atenção para paralelos persuasivos
entre SI 22 e Jr, mas pensa que o profeta recorreu ao Salmo.
43 Ver Ruppert, Leidende, p. 49-50; Feuillet, “ Souffrance” , p. 141-145. Embora Worden (“ My God” , p.
12) pense que o salmista baseou a descrição na imagem do servo, um elemento essencial da descrição
do servo está ausente, a saber, o sofrimento indireto. Deve-se observar que a descrição do açoitado e
escarrado em Is 50,6 leva ao louvor da ajuda divina em Is 50,7ss. Do mesmo modo, a descrição do servo
que não grita em Is 42,2 é seguida pela descrição de uma vocação divina (aparentemente da criação) com
propósitos salvíficos — sequência não diferente de SI 22,7-11. Contudo, os cânticos do servo resultam

698
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão

53,5, compara-se ao salmista que na LX X de SI 22,17 fala de suas mãos e seus pés
traspassados. (Não raro sugerem que o modelo do servo foi Jeremias, de modo que
talvez estejamos comparando literatura paralela, profética e litúrgica com o mesmo
antecedente.44) A ligação do cântico do servo de Is 53 e SI 22,7-9 foi atestada no
final do século I d.C., em 1 Clemente 16.

Não há indícios de que, no pré-Judaísmo, o SI 22 fosse aplicado ao aguarda­


do Messias,45 apesar do fato de o fim do Salmo dar forte impulso escatológico aos
sofrimentos do justo representado. Martin-Achard (“ Remarques”, p. 85) fala de
um assideu ou santo que é também personagem escatológica. Talvez esse contexto
explique o interessante emprego de temas semelhantes aos do SI 22 em um hino de
ação de graças de Qumrã, 1QH 5,5-19.46 Muitas vezes, julga-se que nesses hinos
o interlocutor é o herói da comunidade, o Mestre de Justiça, que expressa não só
a própria angústia, mas também a dor e a fé da comunidade que vive nos últimos
tempos. 1QH 5,10-11 (“ Eles não abriram a boca contra mim” ) contém a redação de
SI 22,14. 1QH 5,12-13 (“ Pois na angústia de minha alma Tu não me abandonaste.
Ouviste meu grito na amargura de minha alma; e recebeste o clamor de minha
aflição em meus gemidos” ) pode ser comparado com os sentimentos do salmista
que, depois de clamar a Deus em SI 22,3.20-22, declara em SI 22,25: “ele não
desprezou nem desdenhou o aflito em sua aflição e não lhe ocultou Sua face; mas
Ele o ouviu em seus gritos”.47 A continuação em 1QH 5,13 (“ Tu libertaste a alma
do aflito” ) faz eco à oração de SI 22,21: “ Livra minha alma”.

na justificação ou elevação do servo, enquanto SI 22 não ressalta a justificação pessoal daquele que
lamenta.
44 Stuhlmueller (“ Faith” , p. 18) relata com simpatia a opinião de H.-J. Kraus: Tantas passagens e tradições
convergentes têm eco em SI 22 que ele pode ter sido composto por muitos autores durante um longo
período. Entretanto, é mais provável que um Salmo antigo tenha sido revisado através dos séculos.
45 Meio milênio depois do tempo de Jesus, o Midrash on Psalms (tradução de Braude, v. 1, p. 298ss) mostra
um emprego régio do SI 22 ao rei Ezequias, quando ele foi ameaçado por Senaqueribe, e à rainha Ester,
quando os judeus foram ameaçados por Amã.
v' Ver Fisher, “Betrayed” , p. 25-27; Lange, “ Relationship” , p. 611-613; Rupert, Leidende, p. 114-133.
Dillon (“Psalms” , p. 435) vê em 1QH 3,19-36 uma analogia de estrutura com SI 22, exceto que o hino
de Qumrã tem esta ordem: ação de graças, lamento retrospectivo e perspectiva escatológica.
47 Observemos que em 1QH há um paralelo com a segunda parte do Salmo, mais positiva, enquanto nas
NPs evangélicas os paralelos óbvios são todos com os versos de lamentação da primeira parte.

699
A pêndices

0 pano de fundo que acabamos de citar nos ajuda a entender a aplicação


cristã do SI 22 ao Jesus sofredor,48 que também foi considerado o servo sofredor e
figura semelhante a Jeremias. Utilizando o exemplo de uma pessoa piedosa ou justa
especial (talvez até régia),49 o salmista expressou a tese de que o justo que confia
em Deus não raro sofre atrozmente nas mãos de adversários, a ponto de sentir-se
abandonado por Deus; contudo, no final Deus sempre defende o justo. (É uma refu­
tação indireta de outra tese mais simples, de que Deus libertará os favorecidos do
sofrimento — ver a atitude dos adversários de Jesus em Mt 27,43.) 0 salmista não
pede o castigo desses adversários, o que dá uma adaptabilidade especial a Jesus,
como deu o final escatológico em SI 22,28-32; de fato, por intermédio deste justo
sofredor, todos os confins da terra, inclusive as famílias dos gentios, são levados
a adorar o Deus de Israel. Como os cristãos primitivos pensavam que o Salmo foi
composto por Davi, esse entendimento também influenciou o modo de aplicarem o
Salmo ao Filho de Davi. E, depois que se criou a tradição de que o próprio Jesus
agonizante citou o primeiro verso do Salmo (SI 22,2, em Mc 15,34 e Mt 27,46),
seriam previsíveis outros usos cristãos para detalhes da crucificação.

Vamos agora relacionar alusões ao SI 22 que os biblistas perceberam nas


NPs evangélicas.50SlA lista segue a ordem dos Salmos, indicando em negrito alusões
ou citações que são mais plausíveis ou certas (quanto a essa distinção, ver também
Oswald, “ Beziehungen”, p. 56). A tradução do Salmo reflete a LXX.

1* SI 2 2 ,2 a: “ Meu Deus, meu Deus, recebe-me, com que propósito me


abandonaste?”. Na citação desse versículo por Jesus, Mt 27,46 aproxima-se um

48 Apesar da grande probabilidade de que o Salmo tenha fundamento litúrgico ou cultuai, os paralelos nos
hinos de ação de graças de Qumrã sugerem a possibilidade de a comunidade aplicar o Salmo a um indivíduo
mesmo fora da liturgia do Templo. Quanto à aplicação cristã a Jesus, é discutido se o Salmo era ou não
aplicado a Jesus em um contexto litúrgico, por exemplo, em um tôdâ cristão relacionado com a Eucaristia.
49 Mays (“ Prayer” , p. 329) afirma: “ 0 Salmo 22 pode ser a oração e o louvor simplesmente de qualquer
israelita. Embora não saibamos com certeza para quem ele foi escrito e por quais revisões passou, em sua
forma atual a figura no Salmo compartilha a vocação coletiva de Israel e o papel messiânico de Davi” .
50 As passagens do SI 22 citadas ou às quais aludem outras passagens do NT, fora dos Evangelhos, incluem:
Sl 22,14 (inimigos “ como um leão que ruge”) em lPd 5,8 (“o diabo [...] um leão que ruge”); Sl 22,22
(“Salva-me da boca do leão”) em 2Tm 4,17 (“Eu fui libertado da boca do leão” ); Sl 22,23 (“ Anunciarei
o teu nome aos meus irmãos; no meio da igreja [ekklesia] vou te louvar” ) quase literalmente em Hb 2,12.

700
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão

pouco mais da redação da LX X que Mc 15,34, mas nenhum dos dois cita a frase
em itálico, que também está ausente do TM.

2* SI 22,3: É possível aludir a “ Meu Deus, grito [...] de noite e não há


repouso para mim” no modelo sinótico de escuridão sobre a terra toda até a nona
hora, quando Jesus deu um forte grito (Mc 15,33-34; Mt 27,45-46; Lc 23,44.46).

3* SI 22,7b: E plausível haver alusão a “ Ultrajado [oneidizein] por seres


humanos e considerado um nada [exouthenein] pelo povo” no escárnio de Jesus
na cruz, onde, em Mc 15,29.32b e Mt 27,39.44, os transeuntes blasfemam contra
ele e o cocrucificado o “ultraja”.51 Em Lc 23,11, Herodes trata Jesus como nada (=
“com desprezo” ); ver também nota 32, acima.

4* SI 2 2 ,8a: É provável que “Todos os que me observavam zombavam de


mim” seja aludido na forma lucana (Lc 23,35a) do escárnio de Jesus na cruz: “ E
o povo estava de pé ali, observando. Mas havia também governantes zombando”.5152

5’ SI 2 2 ,8 b (“ Eles falavam com os lábios; eles sacudiam a cabeça” ) é


talvez a referência em Mc 15,29 e Mt 27,39, onde os que passam estão “sacudindo
a cabeça”.

6* SI 2 2 ,9 (“ Ele espera no Senhor; que Ele o liberte; que Ele o salve porque
Ele o deseja” ) tem eco parcial no desafio a Jesus na cruz: “ Salva-te a ti mesmo”
(Mc 15,30; Mt 27,40; Lc 23,39b). Tem um eco mais completo em Mt 27,43: “ Ele
confiou em Deus. Que seja libertado se Ele o ama”.

7* SI 22,16b (“ Minha língua está colada em minhas mandíbulas” ) é parte do


fundamento de Jo 19,28, onde, a fim de se cumprir a Escritura, Jesus diz: “Tenho
sede”. (Ver também SI 42,2-3; 69,4.)

8* SI 22,17b (“ Um grupo de malfeitores [poneroumenoi] me rodeia” ) talvez


esteja por trás da representação de Jesus crucificado entre dois bandidos (Mc
15,27; Mt 27,38; cf. Jo 19,18), em especial em Lc 23,33: “Eles o crucificaram e
os malfeitores [kakourgoi\, um à direita, o outro à esquerda”.

51 SI 31,12; 42,11; 102,9 e 119,22 referem-se a ser ultrajado por inimigos. Rm 15,3 cita SI 69,10 a respeito
de Cristo ser ultrajado.
52 O escárnio é descrito como “zombaria” também em SI 35,16.

701
A pêndices

9* SI 22,17c (“ Traspassaram53 minhas mãos e meus pés” ) está, ao que


tudo indica, repetido na descrição de Jesus crucificado, ressuscitado em Lc 24,39:
“ Vede minhas mãos e meus pés” (cf. Jo 20,25.27: “o lugar dos pregos [...] olha
as minhas mãos” ).

10* SI 22,19 (“ Repartiram minhas roupas entre eles e para meu traje tira­
ram a sorte” ) está por trás da descrição das roupas de Jesus crucificado nos quatro
Evangelhos545e aparece literalmente como citação de cumprimento em Jo 19,24.

11* SI 22,25c (“ E em meu grito [kragein], Ele me ouviu” ) talvez seja a refe­
rência na sequência sinótica onde, quando Jesus expira com um forte grito (phone),
tem lugar a intervenção divina e o véu do santuário se rasga (Mc 15,37-38; Mt
27,50-53; mas cf. Lc 23,46.45b).

12* SI 22,28b (“ Todas as famílias das nações se prostrarão diante Dele” )


talvez tenha uma referência remota na reação do centurião (gentio) ao confessar
Jesus que acabara de morrer (Mc 15,39; Mt 27,54; Lc 23,47).

E ssas doze propostas para citações do SI 22 ou referências a ele nas NPs


têm valor muito desigual. No entanto, que impressões surgem quando as conside­
ramos? A ordem dos versículos dos Salmos não corresponde à ordem dos paralelos
em nenhum dos quatro Evangelhos.35 Assim, a sequência da NP certamente não

53 O TM traz ''ka 'ari [como um leão] minhas mãos e meus pés” , que Áquila e Jerônimo entendem como
“ amarraram” , presumivelmente interpretando as consoantes como uma forma de krh (que deve ter pro­
duzido a forma karü, verbo que não é atestado alhures com esse sentido). A LXX usa oryssein, “ cavar” ,
recorrendo a um sentido atestado de krh (mas nunca em sentido figurado, como aqui). Outros, recorrendo
a paralelos acádios, supõem que krh signifique “ser baixo, mirrar” . (Ver J. J. M. Roberts, VT 23, 1973,
p. 247-252.) É também possível aceitar o texto do TM e entender um verbo: “ Como um leão (eles mar­
retaram) minhas mãos e meus pés” .
54 É de se presumir que, em suas descrições, os evangelistas usem a linguagem dos Salmos livremente; e
Robbins (“Reversed” , v. 2, p. 1176) mostra como Marcos reformula-a em seu estilo. Contudo, Scheifler
(“ Salmo”) argumenta que algumas das formas talvez representem o uso de um texto diferente do que está
no TM ou na LXX, por exemplo, o “repartindo suas roupas” participial lucano (Lc 23,34b), que reflete
a forma participial targúmica, ao contrário do verbo finito em TM/LXX. Seria preciso ter mais provas de
que o targum estava disponível no século I e de que Lucas lia aramaico.
55 Por exemplo, as passagens pertinentes Mc 15,24.27.29.30.32b.33-34.37-38.39 correspondem às pas­
sagens do SI 22 relacionadas como 1 0 \8 *.3 '.5 *.6 \3 '.2 *.r .ir .l2 *. Como 11' e 12* são muito duvidosos,
Robbins (“Reserved” , v. 2, p. 1179) talvez esteja correto ao afirmar que, em termos de ordem numérica,
os ecos do SI 22 em Marcos começam com SI 22,19 (10*) e se movem para trás até SI 22,2 (1*).

702
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão

foi criada deste Salmo.56 Na verdade, todos os paralelos referem-se a episódios da


crucificação, não a alguma coisa mais primitiva ou mais tardia na NP. Este Salmo,
então, deve ser chamado Salmo da crucificação, em vez de “o Salmo da Paixão”,
pois não há nenhum sinal visível de que ele criou ou influenciou fortemente outras
partes da Paixão. Dentro da narrativa da crucificação, as três áreas de concentração
são, na terminologia de minhas seções no comentário, o ambiente da crucificação
(§ 40: 8*.9*.10*), o escárnio de Jesus na cruz (§ 41: 3’.4*.5*.6*.) e a morte e suas
consequências (§§ 4 2 -4 4 : r.2 *.7 \ll*.1 2 *). Em outras palavras, considerando a
tradição histórica de que Jesus morreu em uma cruz, este Salmo, quando muito,
fez os cristãos: 1) concentrarem-se em certos detalhes, por exemplo, a presença de
malfeitores cocrucificados, as mãos (e os pés) traspassadas, a divisão das roupas; 2)
dramatizarem a hostilidade escarnecedora demonstrada a Jesus pelos que estavam
ao redor da cruz, contestando sua afirmação de ter a ajuda divina; e 3) realçar a
inversão na morte abandonado e na vitória subsequente.

Embora os quatro Evangelhos usem o Salmo (10*, talvez 8’), o emprego


respectivo não é o mesmo. 0 uso mais amplo do SI 22 está em Marcos/Mateus (1*.
2*.3*.5*.6‘.8’ .10*.H*.12*), com o emprego marcano distintamente mais pronunciado
somente em 6*. Assim, o efeito formador do SI 22 na NP já era grande quando o
primeiro Evangelho foi escrito (se não antes). Há quem considere o uso marcano
apologético (por exemplo, McCaffrey, “ Psalm”, p. 82-83), presumivelmente em
discussões com judeus que rejeitavam Jesus. Entretanto, 1) e 2) de minha análise
no parágrafo precedente não servem realmente a esse propósito; a principal citação
(1*) é tão desesperadora que criou problemas para a apologética; e não há nenhuma
história conhecida de o Salmo ter conotação messiânica que o tornasse atraente do
ponto de vista apologético.57 É muito mais provável que o apelo mais primitivo ao
Salmo fosse para possibilitar aos cristãos ver a relação entre o que aconteceu e o
plano de Deus. Os acontecimentos em torno dos quais os paralelos do Salmo foram
agrupados não são fatores implausíveis na crucificação: vários condenados eram

56 Stadelmann (“ Salmo”) usa uma extraordinária imaginação ao descobrir o esboço do conjunto de Mc 14—16
no SI 22, de modo que as NPs sinóticas foram estruturadas nesse Salmo. Os paralelos do SI 22 também
não são particularmente úteis para teorias de fontes pré-marcanas. Por exemplo, na tese de duas fontes
pré-marcanas propostas por Taylor (ver a p ê n d ic e IX), havería paralelos com o SI 22 nas duas fontes:
r.3*.5 *.6 '.1 0M 2 ’ em A; 2*.8* em B; e 11* em ambas.
57 É possível discutir se, em 6*, Mateus introduz um tom apologético mais forte que o encontrado em Marcos,
pelo menos na direção da polêmica, ao acrescentar uma referência mais clara de SI 22,9 ao escárnio de
Jesus pelos chefes dos sacerdotes.

703
A pêndices

crucificados ao mesmo tempo; seus bens, inclusive suas roupas, eram repartidos
entre os executores; os crucificados eram insultados. Mas, por meio do Salmo,
criou-se uma ponte entre os detalhes comuns da crucificação e a manifestação
veterotestamentária (Oswald, “Beziehungen”, p. 63).

Surge uma questão especial com respeito ao uso do Salmo por Marcos/
Mateus. Com as exceções dos duvidosos 11* e 12*, todos os paralelos propostos são
da primeira parte do Salmo. Assim, se o principal propósito de citar o Salmo (em
especial em 1*) era chamar a atenção para a vitória na segunda parte, os evange­
listas tomaram um caminho extraordinariamente obscuro para exprimir isso. Já
argumentei no comentário contra minimizar a forte sensação de isolamento desolado
que o uso de SI 22,2 dá ao Jesus marcano (e mateano); e na verdade, revertendo
a ordem e utilizando o primeiro versículo do Salmo (1*) no final da crucificação
como últimas palavras de Jesus, Marcos (seguido por Mateus) põe a ênfase cul­
minante no lamento mais desesperado do Salmo.58 Contudo, surge uma questão
um pouco diferente quando consideramos o que segue a NP: a seção de ação de
graças do Salmo (onde o lamento foi ouvido) influencia a narrativa por Marcos/
Mateus daquilo que aconteceu depois da morte de Jesus? Gese (“ Psalm, p. 22)
é um grande proponente dessa tese, e até liga a influência do Salmo à narrativa
da ressurreição, com a Eucaristia sendo um tôdâ ou refeição de ação de graças
cristã. As alusões em 11* e 12*, que se classificam quando muito como possíveis,
dentro da NP seguem a morte; mas, depois do sepultamento, na sequência mateana
pós-ressurreição, paralelos possíveis, mas bastante contestáveis, incluem Sl 22,23
(“Anunciarei o Teu nome a meus irmãos” ), paralelo à instrução às mulheres em
Mt 28,10 (“ Ide anunciar a meus irmãos que eles devem ir para a Galileia” );59 e
Sl 22,28 (“ Todas as famílias das nações se prostrarão diante Dele” ), paralelo a
Mt 28,19 (“ Indo, portanto, fazei discípulos de todas as nações” ). (Notemos que
não há nenhum vocabulário realmente paralelo em Marcos a nenhum desses pa­
ralelos propostos em Mateus; qualquer tentativa de fazer um paralelo entre José
de Arimateia e Sl 22,28, onde todos os confins da terra voltam-se para o Senhor,
não reconhece que José não é apresentado como convertido a Jesus em Marcos.)

58 Realmente, o Midraxe Mekilta (Shirata 3) cita Sl 22,2 (“ Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”)
como exemplo de misericórdia, mas acompanha essa citação com uma explicação justificadora de outras
passagens que invocam a Deus.
59 Ver também Jo 20,17: “Vai aos meus irmãos e dize-lhes...” .

704
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão

Alguns biblistas tentam encontrar uma referência à ressurreição nas palavras de


SI 22,30 (versículo obscuro) sobre os que descem para a poeira inclinando-se
diante de Deus; mas esses são claramente os orgulhosos curvando-se diante do
domínio de Deus e, assim, a passagem não é nem mesmo um bom paralelo à saída
mateana dos santos dos túmulos (Mt 27,52). Não estou muito convencido por tudo
isso. Uma coisa é afirmar que um entendimento muito primitivo da Paixão e suas
consequências era que o sofrimento de Jesus fez irromper o reino escatológico —
entendimento que encontra apoio no SI 22. Entretanto, é outra coisa ultrapassar
a influência lucidamente clara do SI 22 na narrativa da crucificação por Marcos/
Mateus para pressupor a influência contínua do Salmo na narrativa da ressurreição
por Marcos/Mateus, onde não há alusão clara ao SI 22, em especial porque, nessa
narrativa, a vitória concretiza-se primordialmente em Jesus, enquanto o Salmo não
fala da vitória daquele que proferiu o lamento, mas antes mergulha o indivíduo na
comunidade litúrgica.

0 exame do emprego lucano dos Salmos na NP (subseção anterior) mostra


que Lucas não está particularmente próximo de Marcos e isso também é verdade
com respeito ao SI 22. McCaffrey (“Psalm”, p. 27) acha que Lucas dá indícios de
uma tradição independente por esse motivo, mas as diferenças de Marcos talvez
reflitam simplesmente a opção editorial.60 Certamente, a rejeição de P pode ser
atribuída à cristologia lucana e a rejeição do papel dos transeuntes em 3* ao desejo
lucano de descrever os judeus (o povo) favoráveis a Jesus no fim de sua vida, para
combinar com os que saudaram seu nascimento. Quando se trata do escárnio de
Jesus pelos governantes, em 4*, Lucas realça o emprego marcano do Salmo (5*). A
concordância com Marcos em 2*.6*.8* e 10* diz respeito a detalhes da crucificação
em relação aos quais Lucas não tinha nenhuma sensibilidade específica diferente
da teologia marcana. Ao que tudo indica, a introdução lucana da referência ao SI
22 encontrada em 9* não diz respeito diretamente à crucificação, mas reflete o
interesse apologético de Lucas na realidade do corpo ressuscitado.

0 único emprego joanino claro do Salmo é 10‘ , porque 9*, 8* e 7* são respec­
tivamente apenas possíveis ou remotamente prováveis. Para pressupor a dependência
joanina de Marcos,61 é preciso imaginar que o evangelista removeu a maior parte

611 Oswald (“Beziehungen” , p. 64) sugere que Lucas estava mais interessado em uma apresentação marti-
rológica da Paixão, diferente da do SI 22.
61 João não segue nenhum dos empregos característicos do SI 22 em Mateus (6*), nem em Lucas (4*), com
a possível exceção de 9*.

705
A pêndices

das referências marcanas ao Salmo (muitas delas em episódios a respeito dos quais
não há nenhuma diferença teológica joanina especial), mas depois realçou outra
(10‘). Tem sido argumentado até que João utilizou outro Salmo como importante
fator orientador na NP (nota 25, acima). Tudo isso constitui um modus operandi
peculiar, para dizer o mínimo. Novamente, é mais fácil pressupor que a tradição
joanina da Paixão (ou da crucificação) desenvolveu-se de maneira independente, às
vezes com apelo a passagens veterotestamentárias diferentes das que dominaram
a tradição pré-marcana e marcana.

706
Bibliografia para o Apêndice VII:
Os antecedentes veterotestamentários
das narrativas da Paixão

Muitos escritos examinam o emprego do AT no NT; esta bibliografia limita-se


a exames do emprego do AT nas NPs evangélicas.

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Z e h r e r , F. Sinn und Problematik der Schriftverwendung in der Passion. TPQ 121,1973,


p. 18-25.

709
Apêndice VIII:
As predições de Jesus a respeito
de sua Paixão e morte

O controverso “ Seminário de Jesus” fez uma votação sobre a autenticidade


dos ditos de Jesus desta maneira: vermelho = é incontestável que ele disse isto
ou algo muito parecido; cor-de-rosa = é provável que ele tenha dito alguma coisa
parecida com isto; cinza = as idéias são dele, embora ele não tenha dito isto; preto
= ele não disse isto, que representa tradição mais tardia ou diferente.1 Em 1987,
onze ditos sinóticos onde Jesus falava a respeito de sua futura Paixão foram todos
recomendados para serem votados de preto (Butts, “Passion”, p. 107). Em outro
conjunto de votos, a maioria esmagadora votou que Jesus não predisse sua morte
de um modo fora dos poderes perceptivos de alguém comprometido em tempos
perigosos. Na raiz da questão estava o fator de muitos dos participantes relutarem
em admitir que Jesus falava de sua morte iminente em virtude de poderes “extra­
ordinários” (Borg, “Jesus Seminar”, p. 83-84). Obviamente, quanto ao modo de
pensar, há uma grande distância entre esses intérpretes e os evangelistas. Depois
de descrever um ministério onde, agindo com o poder de Deus, Jesus acalmou
a tempestade, multiplicou pães, transformou água em vinho, curou os doentes,
ressuscitou os mortos, fez os cegos verem, os mudos falarem e os surdos ouvirem,
os evangelistas com certeza pensavam que o poder divino permitia a Jesus prever
o futuro. Consequentemente, ao interpretar o lugar e o progresso das predições
evangélicas da Paixão, uma rejeição a priori de presciência extraordinária ou mi­
lagrosa é uma desvantagem. E ssa rejeição também distorce a busca pela história.
A historicidade deve ser determinada não pelo que julgamos possível ou provável,
mas pela antiguidade e confiabilidade dos indícios; e, até onde podemos pesquisar,
Jesus era conhecido e lembrado como alguém que tinha poderes extraordinários.
No que se segue, então, vou proceder sem pressupor que o conhecimento “supra-*

Ver R. W. Funk, Forum 2, #1, 1986, p. 54-55.


A pêndices

ordinário” do futuro é impossível2 e deixar que o próprio material evangélico guie


os discernimentos de como se desenvolveu uma tradição na qual Jesus predisse
sua Paixão e morte. 0 material será dividido desta maneira:

A. Predições sinóticas da Paixão e morte violenta de Jesus

1. Predições menos precisas ou mais alusivas

2. As três predições detalhadas da Paixão e morte do Filho do Homem

B. Predições joaninas da Paixão e morte de Jesus

C. Comparação entre João e os sinóticos e conclusões

Bibliografia

E preciso mencionar que, ao lidar com as predições de Jesus a respeito de


sua Paixão, atingimos o limite da questão maior de como Jesus entendia sua morte.
Schürmann (Jesu, p. 5) relaciona uma série de perguntas interessantes sobre essa
questão, que é útil parafrasear. Podia Jesus contar com a séria possibilidade de
morte violenta? Estava preparado para ela? (Bultmann levanta a possibilidade da
efetiva prostração de Jesus ao enfrentar essa circunstância.) Esse perigo influenciou
a maneira como ele agia? Podia Jesus conciliar essa morte com seu ministério?
Teria ele atribuído um valor salvífico a essa morte? Ele falou publicamente (ou
pelo menos diante dos discípulos) da morte violenta que se aproximava? Indicou o
sentido salvífico de sua morte nessas ocasiões e/ou na Ultima Ceia? Este a p ê n d ic e

não tenta responder a todas essas perguntas, mas a questão que examinamos tem
relevância para elas.

A. Predições sinóticas da Paixão e morte violenta de Jesus

Para evitar tornar esta subdivisão excessivamente longa, será necessário


limitar a maior parte do estudo às três famosas predições detalhadas do fim do

2 Os evangelistas sinóticos não viram nenhuma contradição entre atribuir a Jesus presciência do que
necessariamente aconteceria e descrever sua oração no Monte das Oliveiras pedindo para licar livre do
que previra. O autor de Hebreus não viu nenhuma contradição entre Cristo dizer “ Vim fazer tua vontade,
Ó Deus” (Hb 10,7) e ter de aprender “obediência pelas coisas que sofreu” (Hb 5,8). Quanto à questão
teológica da compatibilidade de liberdade com a presciência do que está predestinado, ver Whitely,
“Christ’s” .

712
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte

Filho do Homem (Mc 8,31; 9,31; 10,33-34 e par.). Contudo, precisamos entender
que essas não são expectativas isoladas de violência futura; por isso, relacionarei
no Quadro 12, a seguir, todos os ditos do Jesus sinótico que possam razoavelmen­
te ser considerados predições de uma Paixão ou crucificação, e farei um rápido
levantamento das predições menos precisas ou mais alusivas antes de voltar-me
para as três especiais (que estão marcadas I, II, III no quadro). Inevitavelmente, ao
decidir quais as passagens que são predições, os comentaristas apresentam listas
um pouco diferentes. Uma grande dificuldade é determinar se uma declaração
altamente alusiva deve ser incluída. Por exemplo, em Mc 8,34 (Mt 10,38; 16,24;
Lc 9,23; 14,27) Jesus diz: “ Se alguém desejar seguir após mim, renuncie a si
mesmo, e tome sua cruz e siga-me”. Embora certamente essa declaração não teria
sido preservada se Jesus não tivesse sido crucificado, o fato de o ato de carregar a
cruz estar sendo incentivado para todos os seguidores (só alguns dos quais serão
realmente crucificados) enfraquece bastante seu papel como predição do fim exato
de Jesus. Entretanto, apesar de algumas possíveis discordâncias de opinião, este
quadro de predições é, de modo geral, representativo das que devem ser discutidas
seriamente.3

QUADRO 12. PREDIÇÕES NOS EVANGELHOS SINÓTICOS


DA PAIXÃO E MORTE VIOLENTA DE JE SU S

M A R CO S M ATEUS LU C A S

2,20 9,15 5,35

I 8,31 I 16,21 I 9,22

9,12 17,12B (ver 17,25)

II 9,31 II 17,22-23 11 9,44

13,33

17,25

III 10,33-34 III 20,18-19 III l8,31b-33

3 Por exemplo, o quadro abrange a maioria das passagens tratadas no livro integral de Taylor sobre as
predições (Jesus), com exceção das palavras eucarísticas de Jesus que Taylor considera predições de
sua morte.

713
A pêndices

10,38 20,22 (12,50)

10,45 20,28

12,7-8 21,38-39 20,14-15

26,2

14,8 26,12

14,21 26,24 22,22

14,27-28 26,31-32

7. Predições menos precisas ou mais alusivas

a) As quatro “ predições” abaixo da linha horizontal em negrito no Quadro


12 são expressas em sua sequência evangélica no princípio ou dentro da própria
NP. Vou comentá-las neste parágrafo, embora eu prefira limitar o âmbito de seleção
ao ministério público, de modo que as predições ocorram suficientemente antes do
que acontece na narrativa. Pouco antes de os chefes dos sacerdotes e escribas se
reunirem para buscar um meio de prender Jesus (busca à qual Judas responderá),
em Mt 26,2 Jesus diz aos discípulos: “ Sabeis que dentro de dois dias vem a Páscoa,
e o Filho do Homem é (vai ser) entregue para ser crucificado”. Apesar do emprego
de “ Filho do Homem”, que é bem característico das predições da Páscoa, a origem
formativa deste dito elimina-o como verdadeira predição. Mateus simplesmente
tomou a indicação cronológica de Mc 14,1 - “A Páscoa e os Pães sem fermento
eram [para ser] dali a dois dias” (ver Lc 22,1; Jo 12,1) - e colocou-a nos lábios de
Jesus como lembrete teológico do ponto até onde Deus planejara tudo o que acon­
teceria. Em Betânia, na cena que se segue imediatamente (Mc 14,8; Mt 26,12; cf.
Jo 12,7), Jesus diz que a mulher ungiu seu corpo para o sepultamento, mas muitos
consideram isso uma interpretação tardia, depois que a morte ocorrera. Em Mc
14,21; Mt 26,24 e Lc 22,22, no contexto da predição de Jesus de que um dos Doze
o entregaria, ele diz: “ 0 Filho do Homem se vai, como está escrito a respeito dele
[Lucas: conforme o que está determinado], mas ai daquele pelo qual o Filho do
Homem é entregue”. Entendido sozinho, isso é para muitos uma predição ou com­
binação bastante antiga de predições (em especial quando removem a referência
à Escritura [“escrita” ], como faz Lucas). Contudo, no presente contexto, quando
Judas já chegou a um acordo com os chefes dos sacerdotes, Jesus tem mais o ar de
saber o que aconteceu do que o de saber o que vai acontecer. Por fim, no início do

714
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e morte

que considero a NP propriamente dita, quando Jesus sai da ceia e vai ao Monte
das Oliveiras, nós o encontramos predizendo: “Está escrito: ‘Ferirei o pastor, e as
ovelhas (do rebanho) se dispersarão’. Entretanto, depois de minha ressurreição irei
à vossa frente para a Galileia” (Mc 14,27-28; Mt 26,31-32). E ssa passagem já foi
examinada em § 5, acima. Como as grandes predições da Paixão, ela contém uma
referência à ressurreição; mas, ao contrário de outras predições, não está redigida
em termos do Filho do Homem e cita a Escritura explicitamente. Voltemo-nos ago­
ra para passagens anteriores do ministério de Jesus, que imprimi acima da linha
horizontal em negrito no Quadro 12.

b) Mc 2,20; Mt 9,15 e Lc 5,35 destacam-se por estarem colocadas no iní­


cio — colocação em harmonia com a apresentação joanina de um Jesus que sabe
desde o princípio o que lhe vai acontecer. A forma (marcana) básica é altamente
alusiva: “ Dias virão em que o noivo lhes será tirado, e eles jejuarão naquele dia”.
Muitos julgam que a escolha do verbo (possível eco de Is 53,8: “ Sua vida foi tirada
da terra” ) e o jejum pesaroso ao qual o “tirado” leva indicam a previsão de morte
violenta. Contudo, se Jesus tivesse sofrido morte não violenta, é provável que o
dito fosse conciliado com isso; então, não o considero, entendido isolado, exemplo
persuasivo da exata presciência de Jesus quanto a sua morte.

c) Mc 9,12 (“ Está escrito a respeito do Filho do Homem que ele deve sofrer
muitas coisas e ser tratado como nada [exoudenein]” )4 segue-se à primeira (I)
predição marcana detalhada da Paixão (Mc 8,31) e também a uma referência ao
Filho do Homem ressuscitando dos mortos (Mc 9,9). A forma mateana abreviada
(Mt 17,12b: “Assim também o Filho do Homem será maltratado da parte [hypo:
por] deles” ) está na mesma sequência. Uma declaração semelhante em Lc 17,25,
de que o Filho do Homem “deve sofrer muitas coisas e ser rejeitado por [apo]
esta geração”, segue-se à segunda (II) predição lucana específica.5 Embora em
seu contexto essas referências a sofrimento claramente prevejam toda a Paixão e
crucificação, há quem argumente que sozinhas elas não são mais específicas que
as descrições veterotestamentárias do justo maltratado pelos inimigos. À luz da

4 Isso ocorre dentro do contexto de uma pergunta. Notemos que Jesus é mostrado afirmando que o Filho
do Homem sofredor faz parte do registro bíblico; não há nenhum conhecimento de que essa descrição
seja inovação.
5 Lc 17,25 é secundário, talvez influenciado por Mc 9,12, mas ainda mais certamente deriva de Lc 9,22
(I), que por sua vez deriva de Mc 8,31 (1). Ver Fitzmyer, Luke, v. 2, p. 1165.

715
A pêndices

Escritura a ser examinada abaixo, sob 2), vale a pena mencionar que, em Is 53,3,
exoudenein é empregado a respeito do servo do Senhor no grego de Aquila, Símaco
e Teodocião. (Ver também a p ê n d ic e VII, nota 32.)

d) Em Lc 13,33, depois de ficar sabendo que Herodes quer matá-lo (Lc


13,31), Jesus diz: “ Mas, é necessário que hoje, amanhã e depois de amanhã eu con­
tinue, pois não convém que um profeta morra fora de Jerusalém”. Não há dúvida de
que essa é uma referência à morte violenta nas mãos dos que se opõem aos profetas
(como o versículo seguinte deixa explícito). Entretanto, essa declaração, entendida
por si só, representa uma inevitabilidade geral, em vez de exata presciência.

e) Mc 10,38 é dirigido a Tiago e João (o paralelo Mt 20,22 é dirigido à mãe


deles): “ Podeis beber o cálice que eu bebo, ou ser batizados com o batismo com
o qual eu sou batizado?”. (Ver Lc 12,50: “ Eu tenho um batismo com o qual ser
batizado, e como estou aflito até que isto se cumpra!”.) 0 fato de se seguir à ter­
ceira (III) e mais detalhada predição da Paixão (Mc 10,33-34; Mt 20,18-19) e da
reutilização da metáfora do cálice nos quatro Evangelhos quando Jesus começa sua
Paixão (Mc 14,36 e par.) deixa claro que Jesus se refere aqui a sua morte violenta.
Entretanto, mais uma vez, entendida sozinha, tal predição é muito alusiva; e se o
fim de Jesus fosse outro ainda poderia ter sido usada por cristãos.

f) Mc 10,45 (Mt 20,28) - “ O Filho do Homem não veio para ser servido,
mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos” - está alguns versículos
depois e, assim, mais uma vez é esclarecido pelo contexto — o ato de dar a vida
terá lugar na cruz. Contudo, entendida sozinho, se não tivesse havido crucificação,
talvez essa declaração de Jesus teria sido entendida como referência mais geral
à maneira como ele dedicou sua vida. Muitos biblistas consideram o “em resgate
por muitos” secundário e reflexo da descrição do servo em Is 53,11-12, que sofreu
por muitos. Ditos similares ao tema de servir em Lc 22,27 e Jo 13,16 não têm o
elemento de resgate.

g) Mc 12,7-8 (Mt 21,38-39; Lc 20,14-15), contida em uma parábola, des­


creve como os meeiros mataram e lançaram fora (ou lançaram fora e mataram) o
filho amado do homem que plantou a vinha que eles arrendavam. Embora não haja
dúvida quanto ao fato de o evangelista entender que Jesus se referia a si mesmo na
imagem do filho, se ele fosse decisivamente rejeitado pelas autoridades de outra
maneira que não mediante uma sentença de morte, é provável que os comentaristas
explicassem essa descrição simplesmente como exagero parabólico.

716
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte

Avaliação. De uma forma ou de outra, essas declarações apontam para a


morte com sofrimento, às vezes em linguagem figurada veterotestamentária ou
parabólica. Vimos que nenhuma delas, considerada separadamente, mostra clara
presciência da crucificação de Jesus pelos romanos. Contudo, considerá-las separa­
damente ou isoladas não faz justiça a seu efeito cumulativo. Se as passagens de b)
a g) encontram-se no ministério público, todas, exceto b) ocorrem na última parte
do relato evangélico desse período, a saber, quando aumentara a animosidade para
com Jesus. E ssa organização talvez se origine do plano para mostrar a progressão
de uma aceitação de Jesus no início para a rejeição no fim. Porém, seria uma se­
quência histórica diferente verdadeiramente plausível? Muitas vezes, o entusiasmo
por uma figura religiosa contestadora é mais forte no começo de sua proclamação,
mas diminui quando a qualidade perturbadora de sua mensagem fica mais clara.
Assim, historicamente, à medida que o ministério de Jesus progredia, a oposição a
ele aumentava; e ele ficava cada vez mais pessimista, prevendo o pior. Se esses ditos
predizem apenas vaga ou alusivamente a maneira da morte de Jesus, é porque sua
redação não reflete com exatidão o que aconteceu na Paixão do respectivo Evangelho.
Consequentemente, não é possível rejeitá-los simplesmente como retroprojeções do
que aconteceu. Outros fatores levam os biblistas a julgar alguns deles formulações
da Igreja primitiva, em vez de palavras de Jesus; mas é razoavelmente possível
afirmar que todos esses ditos proféticos expressos em vocabulário e metáforas
tão divergentes são posteriores a Jesus? Antes de respondermos a essa pergunta,
precisamos examinar as mais famosas predições da Paixão.

2 . As três predições detalhadas da Paixão e m orte do Filho do Homem

Entre os biblistas, há grande divergência de opiniões quanto à origem dessas


predições, como bem resumiu Maartens (“ Son”, p. 85). Bultmann e Conzelmann
consideram-nas criações da Igreja helenística. Hahn, Tõdt, Fuller e Hooker
atribuem-nas à Igreja primitiva de língua aramaica da Palestina, com parte da
argumentação de Fuller apontando para o início dos anos 30. O próprio Maartens
(p. 88-89) reúne argumentos para mostrar que, em essência, elas podem ter se
originado do Jesus histórico.6 No que é, afinal de contas, problema tangencial a meu

6 Em sua pesquisa a respeito do uso que Jesus faz de “o Filho do Homem” (§ 22, nota 35), Casey formula
a possibilidade interessante, mas complicada, de Jesus ter feito uma predição genuína de sua morte
sofredora, na qual os cristãos introduziram a referência a “o Filho do Homem” .

717
A pêndices

QUADRO 13. AS T R ÊS PREDIÇÕES SINÓTICAS DETALHADAS


DA PAIXÃO DO FILHO DO HOMEM

I. P rim e ira p re d iç ão d a P a ix ã o
M c 8 ,3 1 Mt 1 6 ,2 1 L c 9 ,2 2
Que é necessário para o Que é necessário para ele Que é necessário para o
Filho do Homem (Jesus) Filho do Homem
ir embora para Jerusalém

sofrer m uitas coisas e sofrer muitas coisas sofrer m uitas coisas

e ser rejeitado e ser rejeitado


pelos [hypo] anciãos d a parte dos [apo] anciãos d a parte dos/pelos [apo]
e os chefes dos sacerdotes e chefes dos sacerdotes anciãos

e os escribas e escribas e chefes dos sacerdotes


e escribas
e ser morto e ser morto e ser morto
e depois de três dias e no terceiro dia e no terceiro dia
ressu scitar ser ressuscitado ser ressuscitado

II. S eg u n d a p re d iç ão d a P a ix ã o
Mc 9 ,3 1 Mt 1 7 ,2 2 - 2 3 L c 9 ,4 4
Que o Filho do Homem 0 Filho do Homem Pois o Filho do Homem
é entregue está prestes a ser entregue está prestes a ser entregue

nas mãos dos homens;7 nas mãos dos homens; nas mãos dos homens;
e eles o matarão, e eles o matarão,
e tendo sido morto,

depois de três dias no terceiro dia

ele ressuscitará ele será ressuscitado

III. T e rc e ira p re d iç ão d a P a ix ã o
Mc 1 0 ,3 3 - 3 4 Mt 2 0 ,1 8 - 1 9 L c 1 8 ,3 1 b - 3 3
E o Filho do Homem E o Filho do Homem 4. E para o Filho do Homem8
será entregue será entregue 1. serão completadas

O plural de anthropos, embora se refira a seres humanos, é aqui traduzido por “ homens” para captar o
jogo de palavras em “o Filho do Homem \anthmpos]”.
Os numerais arábicos indicam a ordem dessas frases no grego lucano. 0 “para” de “para o Filho do
Homem” talvez seja regido por “completadas” (e assim seja equivalente a “em”) ou por “ escritas” (e
assim seja equivalente a “ sobre”).

718
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e morte

aos chefes dos sacerdotes e os aos chefes dos sacerdotes e 2. todas as coisas escritas
escribas; escribas; 3. por meio dos profetas;

e eles julgarão contra ele à e eles julgarão contra ele até


[dativo] morte [eis] a morte
e eles o entregarão e eles o entregarão pois ele será entregue

aos gentios aos gentios aos gentios

e eles escarnecerão dele para escarnecer e ele será escarnecido


e ele será arrogantemente
maltratado;

e eles vão cuspir nele e nele cuspirão;

e eles vão açoitá-lo e para açoitar e tendo(-o) açoitado

e eles (o) matarão e para crucificar eles o matarão

e depois de três dias e no terceiro dia e no terceiro dia

ele ressuscitará ele será ressuscitado ele ressuscitará

comentário sobre as NPs, não há um meio no qual eu tenha esperança de apresentar


e avaliar os detalhes exatos dessas discussões. No que se segue, concentro-me no
que é útil para entender os problemas.

Precisamos prestar atenção à exata redação das predições nos três sinóticos
(Quadro 13). Em geral, a prioridade marcana explica as relações entre as variantes
evangélicas, mas há alguns pontos interessantes. Mateus e Lucas sempre preferem
a fórmula querigmática fixa: “ressuscitado [egeirein] no terceiro dia” (ICor 15,4),
apesar do fato de Marcos ter “ressuscitar [anistanai] depois de três dias” ;9 mais uma
vez, isso explica a influência da tradição oral, mesmo copiando de um Evangelho
escrito. Em II, eles também concordam10 ao mudar do tempo presente marcano “é

9 Pode bem ser que “ ressuscitado” e “ressuscitar” reflitam traduções diferentes para o grego da mesma
forma verbal aramaica yequtm. Farmer escreveu um artigo sobre essas predições como provas para
sua abordagem do problema sinótico que afirma ter Marcos recorrido a Mateus e Lucas, por isso quero
mencionar que encontro aqui um argumento bastante contrário. Mateus e Lucas estão de acordo aqui e
usam uma fórmula querigmática bem estabelecida; contudo, Marcos prefere uma interpretação diferente.
Não entendo por que Marcos não os seguiría; entendo por que eles o corrigiríam.
10 A concordância de Mateus e Lucas em I - ao usar apo (“ da parte de” ), em lugar do hypo marcano (“por” ),
para os agentes da rejeição - não é significativa porque, respectivamente, de maneira diferente, eles
deixam o verbo “sofrer” dominar a relação gramatical. Eles também concordam ao não gostar da tediosa
repetição marcana do artigo definido antes de “ chefes dos sacerdotes” e “ escribas” . Estranhamente,
Farmer (“Passion” , p. 559) considera essa preferência gramatical facilmente explicável prova definitiva
de que Mateus e Lucas não dependiam de Marcos. Contudo, ele não tem problema em afirmar que Lucas

719
A pêndices

entregue” para o futuro com mellei (“está prestes a” — porém, em outra ordem
de palavras), presumivelmente evidenciando um instinto mútuo para esclarecer o
que Marcos quer dizer.11 Como na NP propriamente dita, Lucas manifesta mais
liberdade com respeito a Marcos do que Mateus, ao omitir a segunda parte de II e
remodelar a primeira parte de III.112

O primeiro problema é com quantas predições originais estamos lidando.


Muito poucos biblistas estão dispostos a afirmar que em três ocasiões diferentes o
Jesus histórico fez essas predições independentes. Muitos escolhem uma das pre­
dições como mais original e consideram as outras duas variantes dela.13 Jeremias
(Novo Testamento, p. 420) afirma que o arranjo de três surgiu porque Marcos tomou
três conjuntos de material, cada um dos quais tinha, por acaso, uma variante da
predição básica única. Essa sugestão parece desesperada. Perrin (“ Towards”, p. 20)
afirma que as três predições são fundamentais para a estrutura de Mc 8,22-10,52
e, portanto, que Marcos as compôs. Perrin certamente não admite uma situação
(Sitz) para elas além da que Marcos deu. Porém, como veremos, também João tem
três predições a respeito da elevação na morte do Filho do Homem e, com certeza,
João encontrou para elas uma situação diferente da de Marcos. Apesar disso, se
alguém pressupuser que houve um padrão de três pré-evangélico que Marcos e
João aperfeiçoaram independentemente, isso ainda deixa o problema de saber se os
três surgiram ou não de uma única predição. As predições II e III compartilham o
padrão do Filho do Homem sendo “entregue”, enquanto a predição I fala de “sofrer

(que, ele conclui por hipótese, recorreu a Mateus e não conhecia Marcos) omitiu infundadamente o “ir
embora para Jerusalém” mateano e o substituiu por “ e ser rejeitado” , interpretação que adiante Marcos
também preferiu à frase mateana mais original.
11 A tese contrária é mais difícil. Se Marcos usou Mateus e Lucas, por que ele discorda deles aqui ao preferir
o presente mais obscuro em lugar do futuro comum mais claro deles?
12 Quer se argumente que Mateus e Lucas dependem de Marcos, ou (com Farmer) que Marcos depende
de Mateus e Lucas (e que Lucas conhecia Mateus), a presença de formas verbais diferentes nos três
Evangelhos em III depois de “aos gentios” é um problema. Contra Farmer, por que Marcos escolhería
as formas verbais “vão escarnecer” e “vão cuspir”, não encontradas nem em Mateus nem em Lucas? E,
novamente contra Farmer, se conhecia Mateus, mas não conhecia Marcos, por que Lucas acrescentou
“cuspir” , sem nenhum apoio de Mateus e sem apoio interno em seu próprio relato, já que em Lucas nin­
guém cospe em Jesus? Na tese defendida mais amplamente de que Lucas (e Mateus) recorreu a Marcos,
os verbos “ escarnecer” e “cuspir” chegaram a Lucas a partir de Marcos.
13 Lohmeyer afirmou que as três predições marcanas originaram-se de Lc 17,25, mas muitos consideram
a passagem lucana secundária. Ver nota 5, acima.

720
Apêndice VIII: As p re d ize s de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte

muitas coisas” e, por isso, não seria desarrazoado pensar em dois ditos diferentes.14
Em qualquer caso, como a predição mais detalhada, muitos consideram III criação
secundária, ampliada retrospectivamente à luz do que aconteceu na NP. Mc 14,64
descreve os chefes dos sacerdotes e os escribas julgando contra Jesus; em Mc
15,15-20a, os soldados romanos (gentios) flagelam (açoitam), cospem, escarnecem
e crucificam (matam) Jesus. Assim, talvez as adições características de III quanto
a I e II sejam ecos da NP marcana. A forma mateana de III aumenta a analogia ao
substituir “ matar” por “crucificar”.15

Se nos concentrarmos em I e II, para Strecker a mais original é I; para


Fuller, Jeremias, Lindars e Tõdt, é II. Certamente, a vaga atuação em II (“pelas
mãos dos homens” ) é menos influenciada pela NP que a atuação dos anciãos, os
chefes dos sacerdotes e os escribas em I. Por outro lado, se II era mais original,
parece que Marcos não reconheceu isso, senão por que ele a teria posto no meio?
A discussão é espantosamente complicada e envolve muitos fatores, que talvez seja
útil expor aos leitores.

a) As três predições incluem a ressurreição depois de três dias ou no ter­


ceiro dia; por isso, muitos se recusam a examinar a previsão que Jesus fez de sua
morte sem tratar da previsão que ele fez de sua ressurreição (Lindars, Jesus, p.
62). Segundo os indícios evangélicos, Jesus foi sepultado na tarde de sexta-feira e
ressuscitou antes da manhã de domingo (ou, segundo Mt 28,1, antes do início do
domingo, logo depois de escurecer no sábado) e, assim, depois de pouco mais de
vinte e quatro horas no túmulo — não “depois de três dias” e só de modo geral
“no terceiro dia”. No § 20, com referência à profecia de Jesus quanto a destruir o
santuário e construí-lo (ou um outro) “dentro de três dias”, esse espaço de tempo
em suas diversas redações talvez não signifique nada mais que um breve espaço
de tempo, com a precisão sendo acrescentada ou percebida retrospectivamente. Ver
também em A id, acima, o espaço de tempo para Jesus prosseguir, a saber, “hoje,
amanhã e depois de amanhã”, na predição (Lc 13,33) de que um profeta não deve
morrer fora de Jerusalém. Quanto a “ressuscitar” e “ser ressuscitado”, é possível

14 Alguns que pensam em dois ditos básicos não escolhem Mc 8,31 e 9,31; Fuller (“ Son of Man Came” ,
p. 47) considera Mc 14,21a (“O Filho do Homem vai”) e Mc 14,21b (“O Filho do homem é entregue”),
com este último padrão refletido em Mc 9,31. Ver em A la, acima.
15 O III lucano tem seus problemas: na NP lucana, os romanos não açoitam nem cospem em Jesus e, assim,
Lucas tirou esses traços de Marcos em III sem reconhecer que sua reorganização da NP marcana significa
que agora a predição de Jesus permanece não cumprida (§ 35, acima).

721
A pêndices

debater se essa é uma vocalização retrospectiva de uma predição mais geral de


vitória sobre a morte hostil.16 Uma predição de ressurreição depois de três dias ou
no terceiro dia talvez seja uma reformulação da predição de Jesus de que, se so­
fresse morte violenta nas mãos de seus inimigos, ele sem demora seria justificado.17

b) Há quem exclua todas essas declarações porque nelas Jesus fala de “o


Filho do Homem” ; e, em sua opinião, Jesus nunca usou essa expressão a respeito
de si mesmo. Na Análise de § 22, expliquei os três tipos de “ditos do Filho do
Homem” encontrados nos Evangelhos e várias teorias sobre eles (inclusive a tese
improvável de que, nos ditos futuros, Jesus falava a respeito de outro, não de si
mesmo).18 Apresentei argumentos para pensar que Jesus pode perfeitamente ter
ampliado a descrição simbólica de “alguém semelhante a um filho de homem [ser
humano]” que Deus fortalece e faz vitorioso (Dn 7,13-14; SI 80,18), de modo que
se tornou “o Filho do Homem”, a figura humana específica por meio da qual Deus
manifesta seu triunfo escatológico.19 Ele identificou-se, então, como esse instru­
mento do plano de Deus. Ao abrir essa possibilidade, agi contra uma pressuposição
muito comum que fundamenta toda esta discussão, a saber, a tese de que, se um
conceito ou padrão identifica-se com esse contexto bíblico, não pode ter se origi­
nado de Jesus. O argumento prossegue assim: sabemos que os cristãos primitivos
entendiam e explicavam Jesus recorrendo a passagens bíblicas que seu ministério
esclarecera (ver o início lucano de III). Portanto, todo emprego da Escritura surgiu

16 Mesmo biblistas centristas duvidam que Jesus predisse literalmente sua ressurreição corporal no terceiro
dia. Na narrativa dos quatro Evangelhos, nenhum dos discípulos entendeu que ele quis dizer isso, e todos
eles tiveram dificuldade para compreender quando, de fato, ele ressuscitou no terceiro dia. 0 fato de não
entenderem é, sem dúvida, tema teológico, mas ainda sugere que, na tradição, Jesus não fora lucidamente
claro nesse ponto. Tem sido perguntado se, ao pensar a respeito do plano de Deus para a história futura,
Jesus distinguiu com algum detalhe entre parusia, ressurreição, consumação e construção do santuário
do Templo. São esses apenas jeitos diferentes de expressar a visão ou presciência escatológica básica
única? Seja como for, não concordo com a sugestão (ver Lindars, Jesus, p. 73) de que, em parte ou no
todo, isso podia ter sido predito sem tomar Jesus fundamental para o que ia acontecer: Ele é o agente
divino do reino neste tempo e no tempo que há de vir.
17 Assim Black (“Son of Man” , p. 7), para quem o estrato mais antigo de Filho do Homem refere-se a
sofrimento e justificação, sem referência a ressurreição; ele lembra que os três ditos joaninos de Filho
do Homem (que ainda vamos examinar) aproximam-se disso.
18 Marshall (“Son of Man”) apresenta um exame equilibrado de vários pontos de vista.
19 Lembro ao leitor que, como “o Filho do Homem” aparece quase exclusivamente nos lábios de Jesus,
a expressão não é facilmente atribuída à Igreja primitiva. Também não é fácil negar que Jesus refletiu
sobre Dn 7, pois essa é uma das pouquíssimas passagens veterotestamentárias onde há referência ao
Reino de Deus.

722
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte

na Igreja primitiva e não podemos seguramente atribuí-lo a Jesus. Afirmo que é


menos seguro negar dois fatores que frustram esse argumento.20 Primeiro, precisa
ter havido continuidade entre Jesus e seus seguidores mais primitivos, muitos dos
quais estiveram com ele durante sua vida. Se ele não tinha idéias a respeito de
uma questão que era essencial para eles, a saber, como ele se encaixava no plano
revelado de Deus, por que eles passaram a pensar nessa direção? “ Em benefício da
apologética” é resposta insatisfatória; eles próprios chegaram à fé antes de discutir
com outros. Segundo, nenhuma figura religiosa judaica do tempo de Jesus ignorava
as Escrituras. Um Jesus que nunca pensava em si mesmo à luz das Escrituras
torna-se mais inconcebível ainda, agora que temos um testemunho contemporâneo
da mentalidade de seu tempo nos Manuscritos do Mar Morto, que retratam um
esforço intenso para relacionar a vida do grupo à lei e aos Profetas. Consequente­
mente, prosseguirei com este exame da previsão por Jesus de seu fim, aceitando
como fato que Jesus usou realmente as Escrituras e ignorando a priori a opinião
preconcebida de que, embora Dn 7 oferecesse aos cristãos primitivos base para
criar uma esperança nele em termos do Filho do Homem, talvez não apresentasse
essa base ao próprio Jesus.

c) Mesmo os que admitem ter Jesus falado do Filho do Homem negam que ele
o fez em relação a seu sofrimento (um dos três tipos de “ditos do Filho do Homem” ).21
Afirmam que nada em Dn 7 sugere que aquele semelhante a um filho de homem
sofreria. Como Schaberg salienta tão sabiamente,22 isso não é exato. Em Dn 7,26,
um dos chifres da quarta besta oprime os santos do Altíssimo, que são “entregues
em suas mãos durante um período, dois períodos e meio período” (3 1/2 períodos),
antes que o Altíssimo lhes dê reino e domínio. Muitos biblistas identificam esses
santos como os simbolizados pelo “semelhante a um filho de homem” de Dn 7,13-
14, a quem o Ancião de Dias dará reino e domínio. Se Jesus reconhecesse seu

20 Em outras palavras, não aceito a tese de que um princípio minimalista como a descontinuidade é verda­
deiramente científico (já que os ditos que passam nessa rede são seguramente atribuídos a Jesus); esse
princípio garante uma distorção atroz.
21 Um fator neste julgamento é a ausência em Q dos ditos do Filho do Homem sofredor. Contudo, como Q
não tem uma NP, teria ela sido um veículo lógico para preservar predições pertinentes à Paixão? Dos
cinco ditos do Filho do Homem que Lindars aceita como autenticamente de Jesus, três (Mc 9,31; 10,45;
14,21) envolvem sofrimento. Contudo, na tese de Lindars (Jesus) de que “Filho do Homem” significa
“um homem como eu” , nem Mc 10,45 nem Mc 14,21 fazem sentido sem uma grande correção.
22 Ela reconhece (“Daniel” , p. 213-214) que idéias dispersas apresentadas por ela foram propostas por
Best, Lindars e Hooker, mas com certeza ela fez a melhor síntese.

723
A pêndices

papel em Dn 7,13-14, ele poderia ter usado a fraseologia de Dn 7,25 para predizer
que seria entregue às mãos de homens hostis a ele e teria de esperar durante um
espaço de tempo de três dias antes de ser vitorioso. Vale a pena notar que, embora
nessas predições Jesus não fale de sua vitória em termos de reino, Mc 14,25; Mt
26,29 e Lc 22,28-30 apresentam-no fazendo isso na Ultima Ceia. Nas predições I,
II e III, ele fala de ressurreição; e, embora acima eu tenha mencionado esse tema
como possivelmente uma explicação retroativa, Schaberg (“ Daniel”, p. 209-212)
lembra que Dn 12,1-2 tem uma ressurreição do povo santo de Deus. Se Daniel foi
a base a partir da qual foi formado o dito em Mc 9,31 (II), foi II, por sua vez, o dito
do qual I e III foram formados; ou é provável que a reflexão nas Escrituras tenha
dado origem àquelas formas variantes? Muitos estudiosos julgam que a referência
em III ao Filho do Homem sendo entregue “aos gentios” é retroprojeção da NP,
embora ta ethne não seja usado para os gentios em nenhuma NP.23 (At 4,25-27
refere-se a “gentios” e há quem afirme que Marcos pegou a expressão da pregação
primitiva: ver em [d], abaixo.) Entretanto, o chifre da quarta besta a quem os santos
do Altíssimo (simbolizado antes por alguém semelhante a um filho de homem) são
entregues em Dn 7,25 é um governante gentio.

Há também a probabilidade de outras passagens da Escritura terem sido


combinadas com Daniel para formular as predições. Um candidato plausível é a
imagem do servo sofredor em Is 52,13-12. Taylor (“ Origin” ) afirma que o uso da
metáfora do servo de Isaías pertence a camadas neotestamentárias primitivas. Em
especial, alguns recorrem ao targum a respeito de Is 53,5 (“entregue [msr] por
nossas iniquidades” ) como prova de que Jesus falou em aramaico de o Filho do
Homem ser “entregue” como na predição II.24 Quanto à predição I, julga-se que o
“desprezado e não respeitado” de Is 53,3 tem um eco em “ser rejeitado”, enquanto
“ele carregava [sò/] nossos sofrimentos” de Is 53,4 pode ser a base para “sofrer
muitas coisas”. Quando se pensa nessas passagens como base, não se pressupõe
necessariamente que Jesus se identificou como o servo. Conforme vemos nos hinos

23 Lc 23,2 e Jo 18,35 usam o singular ethnos para o povo judeu.


24 O paradidonai do grego marcano encontra-se na LXX de Is 53,6.12. É tentador sugerir que esse verbo,
que aparece em Dn 7,25, facilitou a associação de Dn 7 e Is 53; mas isso teria de ser no nível grego da
reflexão cristã, pois os verbos semíticos fundamentais em Dn 7,25 e Is 53,6.12 (e no targum de Is 53,5)
não são os mesmos. Contudo, 4 Esdras (13,32), obra judaica escrita originalmente em hebraico, associa a
figura apocalíptica do “ homem” (que faz eco a “filho de homem” em Daniel) com o “ servo” do Altíssimo
(que faz eco a Isaías) e, por isso, a ligação entre essas figuras pode ter sido feita em nível pré-cristão.
Nas predições da Paixão, como na base de Isaías referente ao servo, quem entrega é Deus (não Judas).

724
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte

de Qumrã e nos hinos do Benedictus e do Magnificat, um tema principal, que tem


uma analogia veterotestamentária primordial, não raro pega imagens, frases e pa­
lavras de muitas outras passagens veterotestamentárias, porque o porta-voz (autor)
tinha a mente imbuída de cultura bíblica. Sob A lf, acima, examinamos ditos nos
quais Jesus via-se em um papel de servo e, assim, passagens (inclusive Is 53) que
falavam de um tipo de servo podem ter moldado seu pensamento. E, na verdade, a
passagem do servo em Is 50,4 pode também ter feito parte da base. Muitos biblistas
consideram os ultrajes previstos em III retroprojeções dos relatos reais da NP daquilo
que foi feito, por exemplo, que cuspiríam em Jesus e o açoitariam; mas, em Is 50,6,
o servo diz: “ Minhas costas dei a açoites [...] não desviei o rosto da vergonha dos
escarros”.23*25 E interessante que, se Isaías influenciou parte ou tudo em I, II e III,
a característica soteriológica ou de expiação do papel do servo sofredor em Isaías,
tão amada pela Igreja primitiva (nossas enfermidades, nosso pecado, fomos cura­
dos, culpa de todos nós), não foi levada para essas predições. Nesse sentido, elas
podem ser consideradas menos aperfeiçoadas teologicamente que Mc 10,45 (“em
resgate por muitos” ; ver A lf, acima), ou Rm 4,25 (“entregue por nossas transgres­
sões” ), ou Rm 8,32 (“ Deus o entregou por [hyper] nós todos” ).26 Além de Daniel
e Isaías, outras passagens, especialmente dos Salmos, foram sugeridas como base
formadora para as predições da Paixão, por exemplo, SI 118,22 (“a pedra que os
construtores rejeitaram” ), para o “rejeitado” de I.27 As expressões “entregar” e “a
mão de” (pecadores etc.) encontram-se também nos Salmos ( a p ê n d ic e VII, nota 13).

d) Outros fatores que fundamentam a discussão das predições da Paixão


incluem se a linguagem na qual elas estão expressas aparece na pregação cristã
primitiva e em que etapa dessa pregação. Um princípio radical é que, se o vocabu­
lário de um dito encontra-se na pregação (por exemplo, nos sermões dos Atos, em
frases querigmáticas paulinas), isso não pode seguramente ser atribuído a Jesus.28

23 Ver em § 26 e § 36, a possível influência do texto de Isaías nos relatos da NP dos maus-tratos de Jesus,
de modo que se tem de lidar com um relacionamento triangular envolvendo a descrição em Isaías, as
predições e os relatos das NPs.
26 Também Rm 5,8 (“enquanto ainda éramos pecadores, Cristo morreu por [hyper] nós” ). A linguagem de
hyper não é usada em Is 53 e Perrin (“ Use” , p. 208) a atribui à etapa grega da pregação cristã primitiva.
2‘ Fuller (“Son of Man Carne”, p. 48) ressalta a base do Salmo. Se passarmos para outras predições, Perrin,
trabalhando com Mc 14,62 (“Vós vereis o Filho do Flomem sentado à direita do Poder e vindo com as
nuvens do céu” ), vê uma combinação criativa de Dn 7,13-14; SI 110,1 e Zc 12,10ss.
28 Uma variante do argumento encontra-se em Perrin (“Towards” , p. 26, 27). “Depois de três dias” é dis­
tintamente marcano e não remonta a Jesus. Além da duvidosa adequação da base para esse argumento,
ver § 2, C2, a respeito da questão de onde Marcos tirou sua linguagem.

725
A pêndices

Como acima, ao lidar com o uso da Escritura, creio que esse princípio garante a
desfiguração para entender Jesus. Se os discípulos eram responsáveis pela pregação
e se Paulo menciona que ele “recebeu” algumas fórmulas (dos cristãos primitivos),
teria sido inevitável a considerável continuidade entre o modo de Jesus se expres­
sar e as fórmulas repetidas na pregação?29 Em At 3,15, Pedro diz que os homens
de Israel “mataram” o autor da vida. Por que temos de pensar que “morto” nas
predições I, II e III é retroprojeção dessa linguagem? Se Jesus realmente predisse
que seria morto, o que seria mais natural do que os fiéis proclamarem que ele foi
“morto” exatamente como disse que seria?

A possibilidade (ou probabilidade) de continuidade linguística pode ser


rejeitada quando as fórmulas de pregação estão expressas em um grego impossível
de ser retrovertido para um aramaico que Jesus poderia ter falado,30 mas isso ocorre
relativamente poucas vezes. Ao defender a originalidade de Mc 9,31 (II), Jeremias
recorre abundantemente a sua capacidade de reconstruir o aramaico fundamental.31
Entretanto, é preciso ser cauteloso por diversos motivos. 0 grego da Septuaginta
influenciou pregadores e autores neotestamentários — um grego semitizado, mol­
dado pelo original hebraico ou aramaico que estava sendo traduzido. Portanto, a
redação de um dito de Jesus em um grego semitizado que pode ser retrovertido
em aramaico ou hebraico não prova necessariamente que existia um dito semítico
inicial. A composição original nesse grego semitizado permanece uma possibilida­
de. Jeremias indica um trocadilho aramaico em II em bar ’enasa ’ lidê benê enasa ’
(“o Filho do Homem nas mãos dos homens” ); mas o trocadilho também existe no

29 Perrin (“Towards” , p. 28) não aceita que o dei (“é necessário”) de Mc 8,31 (I) tenha vindo de Jesus,
pois reflete a apologética cristã primitiva. Creio ser possível defender a causa de não atribuir a Jesus
o vocabulário da apologética, pois o contexto da luta cristã com as sinagogas não existia no tempo de
Jesus. Mas foi “é necessário” , com relação ao plano de Deus, criado (e não apenas usado) no debate
apologético? Ou fez originalmente parte da tentativa cristã mais profunda de entender o ministério de
Jesus e (ouso sugerir) até parte da tentativa de Jesus para entender as mudanças de sua vida? A questão
da necessidade daquilo que é profetizado, que é importante porque dá um ar de inevitabilidade, está
convenientemente estudada sob o titulo do uso de dei. Entretanto, esse título é por demais estreito.
Mowery (“Divine”) lembra que dei é apenas uma de seis maneiras diferentes nas quais Lucas se refere
à intervenção divina na Paixão.
30 Em § 20, mencionei a dificuldade de retroverter para o aramaico as frases gregas adjetivas que modificam
“ santuário” na predição de Mc 14,58: “eu destruirei este santuário feito por mão humana e, dentro de
três dias, outro não feito por mão humana eu construirei” .
31 Reconhecer os substratos aramaicos não é ciência exata. Jeremias suspeita do dei (“é necessário” ) de I
como elemento mais tardio, enquanto Black (“ Son of Man”) considera a construção que inicia I semítica,
em vez de grega.

726
Apêndice VIlh A s predições de Jesus a respeito de sua Paixão e morte

grego que Marcos nos deu: huios anthropou [ ...] eis cheiras anthropon. “ Entregue
nas mãos de” é expressão semítica, mas aparece na LXX. Muito mais sólida é a
afirmação de Fitzmyer (“ New Testament”, p. 146-149), segundo a qual “o Filho do
Homem” certamente não é criação merecedora de crédito em grego e, com certeza,
representa o aramaico (não hebraico) br ’ns.i2 Contudo, mesmo quando um substrato
aramaico pode ser reconstruído, não é demonstrada a autenticidade do dito; os
seguidores cristãos primitivos de Jesus também falavam aramaico.

Antes de tirar quaisquer conclusões quanto a Jesus ter feito algumas das
predições atribuídas a ele na tradição sinótica, examinemos resumidamente as
contribuições à imagem em João.

6. Predições joaninas da Paixão e morte de Jesus

João será tratado mais resumidamente que os sinóticos, mas mesmo um tra­
tamento resumido parecerá sem sentido aos que afirmam que o quarto Evangelho
não nos diz nada a respeito do Jesus histórico. Comecei este APÊNDICE com uma
referência ao Seminário de Jesus; em 1991, a imprensa noticiou que a maioria votante
no seminário não considerou um único dito sequer em João originário de Jesus.

Como nos sinóticos (A l, acima), há em João referências alusivas à mor­


te violenta, embora as que menciono neste parágrafo não ajudem muito nossos
propósitos. Em Jo 1,29, João Batista saúda Jesus como “o Cordeiro de Deus que
tira o pecado do mundo”. Expliquei em APÊNDICE II, B4, que dentro do Evangelho
essa designação relaciona a morte de Jesus com o cordeiro pascal que derrama
seu sangue — sentido derivado da reflexão cristã primitiva sobre o fato de ter ele
morrido no tempo pascal (ICor 5,7). Porém, em BGJ (v. 1, p. 58-63), mencionei
não ser esse necessariamente o sentido mais primitivo da descrição de Jesus como
cordeiro e que, se a descrição remontava a João Batista, ele podia estar falando do
cordeiro apocalíptico vitorioso, ou mesmo da figura do servo em Is 53,7 que era
“como uma ovelha levada ao matadouro e como um cordeiro diante de seus tos-
quiadores”. Entretanto, para nossos propósitos aqui, embora o Jesus joanino aceite
a designação tacitamente, não faz parte de sua predição de seu fim. Em Jo 2,19,
“os judeus” são desafiados por Jesus: “ Destruí este santuário e em três dias eu o32

32 Cito essa forma porque, embora apareçam no aramaico mais tardio, as formas br ns ou br ns’ não se
encontram no século I d.C.; nem o significado de “eu” para “ Filho do Homem” .

727
A pêndices

erguerei”; e Jo 2,21 nos diz que o santuário era seu corpo. Entretanto, a leitura nas
entrelinhas de Jo 2,22 mostra que o evangelista dá uma interpretação mais tardia
de um dito enigmático (§ 20), que de qualquer modo não é uma predição clara,
porém, mais um aviso do que acontecerá se os adversários de Jesus prosseguirem
em seu caminho hostil.

Mais importante na imagem joanina é que, no meio do ministério (proporcio­


nalmente no ponto onde os sinóticos começam a ter predições alusivas frequentes
de morte violenta, como vimos no Quadro 12, acima), “os judeus” e as autoridades
de Jerusalém começam uma série de tentativas para matar Jesus (Jo 5,18; 7,1.25;
8,37.40.59; 10,31; 11,8) que culminam, em algum momento antes da Páscoa, em
uma reunião do sinédrio que formalmente faz planos para ele ser morto (Jo 11,49-
53). Muitos biblistas reconhecem que a imagem joanina de Jesus indo a Jerusalém
em diversas ocasiões é mais histórica que o esboço marcano simplificado de uma
única viagem a Jerusalém, no tempo de sua morte. (E historicamente provável que
nessas ocasiões ele encontrasse oposição.) Em João, então, quando os adversários
de Jesus em Jerusalém tornam-se cada vez mais agressivos, a probabilidade de
morte violenta nas mãos deles está constantemente diante de Jesus. Quando Jesus
diz em Jo 10,15: “ Por estas ovelhas eu dou minha vida”, ele expressa, na teologia
joanina, sua soberania sobre sua morte (Jo 10,17-18 — “ninguém tira [minha vida]
de mim” ); mas, no plano da narração, o tipo de morte à qual Jesus dá caráter
teológico é inevitável. Do mesmo modo, quando Jesus associa a seu sepultamento
o perfume que Maria põe em seus pés (Jo 12,3.7), seu comentário reflete inevita­
bilidade e presciência.

0 elemento mais importante nas predições que o Jesus joanino faz de seu
fim consiste em três ditos do Filho do Homem:33

• “ Do mesmo modo que Moisés elevou a serpente no deserto, também é


necessário que o Filho do Homem seja elevado” (Jo 3,14).

• “ Quando vós [judeus e fariseus] elevardes o Filho do Homem, então


sabereis que EU SOU” (Jo 8,28).

33 Muitos comentários de João tratam do tema do Filho do Homem joanino. Ver também R. Schnackenburg,
“ Der Menschensohn im Johannesevangelium” , em NTS 11, 1964-1965, p. 123-137; S. Smalley, “The
Johanine Son of Man Sayings” , em NTS 15, 1968-1969, p. 278-301; J. Coppens, “ Le Fils de 1’homme
dans 1’évangile johannique” , em ETL 52, 1976, p. 28-81; F. J. Moloney, The Johannine Son of Man, 2.
ed., Roma, Libreria Ateneo Salesiano, 1978.

728
Apêndice VIII: As p re d ize s de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte

• “ E eu, quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).
O evangelista comenta: “ Ora, ele dizia isso para dar um sinal de que
tipo de morte ele ia morrer” (Jo 12,33). Em seguida há uma reação
hostil dos ouvintes: “ Como podes dizer que é necessário para o Filho
do Homem ser elevado?” (Jo 12,34).

A interpretação que o evangelista dá ao terceiro dito deixa claro que essa


“elevação” envolve morte. 0 segundo dito subentende que a morte envolve ação
hostil dos adversários. 0 primeiro sugere fortemente que a morte envolve crucifi­
cação (ele deve ser elevado em um poste, para que todos vejam) e a explicação do
terceiro (“de que tipo de morte ele ia morrer” ) enfatiza esse envolvimento.34 Assim,
essas declarações são predições. Embora, na trama, a segunda e a terceira aconte­
çam depois de ter havido atentados contra a vida de Jesus, esses atentados levam
a se prever apedrejamento (Jo 8,59; 10,31; 11,8), não crucificação. Além disso, a
“elevação” envolve também, e talvez primordialmente, exaltação, pois, quando ela
acontecer, todos reconhecerão que Jesus é de Deus (“sabereis que EU SOU”, no
segundo dito) e todos serão levados a crer nele e se tornar um com ele (o terceiro).35
Quando, na cruz, Jesus é elevado fisicamente do chão, ele está ao mesmo tempo
sendo elevado simbolicamente para Deus e voltando ao Pai (ver Jo 17,11.13). Nessa
área, também, João quer que os leitores vejam Jesus verdadeiramente predizendo;
pois, quando ele foi elevado na cruz, José de Arimateia e Nicodemos, que até
então haviam sido discípulos hesitantes, se apresentam publicamente para lhe dar
um sepultamento honroso, agindo como representantes de “todos” os que Jesus
começara a atrair para si.

C. Comparação entre João e os sinóticos e conclusões

A meu ver, as três predições joaninas (aqui citadas como primeira, segunda
e terceira) estão claramente relacionadas com as três predições sinóticas da Paixão
(I, II, III). Todas têm o mesmo sujeito “Filho do Homem”. (Reparemos que, enquanto
Jesus diz “ Eu” na terceira, a audiência ouve “ Filho do Homem”.) Há um dei (“é

34 Isso se confirma na NP em Jo 18,31-32, quando ficou claro que, fisicamente, Pilatos, não os judeus,
deve executar Jesus (e, assim, ele vai morrer pelo castigo romano da crucificação), “ a fim de se cumprir
a palavra de Jesus que ele disse para expressar de que tipo de morte ele ia morrer” .
35 G. C. Nicholson (Death as Departure, Chico, CA, Scholars Press, 1983, p. 75-144 [SBLDS 63]) enfatiza
mais fortemente o fator de exaltação.

729
A pêndices

necessário” ) na primeira, como havia em I.36 Enquanto em I, II e III marcanos há


a predição de ser morto, o III mateano transforma isso em predição de ser crucifi­
cado, do mesmo modo que a terceira predição joanina encontra em “elevado” o tipo
de morte que ele ia sofrer. A passiva “entregue” aparece no II e no III sinóticos,
enquanto o I sinótico dá maior ênfase à atuação humana (“rejeitado por” ); João usa
uma forma passiva de “elevar” em suas primeira e terceira predições, mas enfatiza a
atuação humana na segunda (“ Quando vós elevardes” ). As três predições sinóticas
envolvem a vitória final: ressuscitar ou ser ressuscitado. Todas as predições joaninas
envolvem sua exaltação a Deus. De certa maneira, as predições joaninas são menos
aperfeiçoadas que as dos sinóticos, pois o que vai acontecer está expresso apenas
simbolicamente (“elevar” ), sem os detalhes sinóticos. Contudo, o efeito soterioló-
gico, ausente das três predições sinóticas, está presente nas predições joaninas: o
“sabereis” na segunda; o “atrairei todos a mim” na terceira.37

E ssas semelhanças tornam provável que João tirou seus três ditos dos
três sinóticos? 0 quarto evangelista leu Mc 8-10, escolheu I, II e III e decidiu
remodelá-los em redação totalmente simbólica e espalhá-los do princípio ao fim
de seu Evangelho? Isso parece forçado. A meu ver, uma hipótese mais provável é
que, já no plano pré-evangélico, havia uma coletânea de três ditos predizendo a
morte e ressurreição do Filho do Homem, e que as tradições marcana e joanina e/
ou os evangelistas aperfeiçoaram esses ditos e os empregaram de forma indepen­
dente.38 Se é plausível que Dn 7 ofereceu a base para a ideia de que um “alguém
semelhante a um filho de homem” poderia ser vitimado pelo representante do mal,
mas seria triunfante e exaltado à presença do Ancião de Dias, a forma marcana
das predições do Filho do Homem manteve parte do vocabulário e das metáforas
de Daniel (a entrega nas mãos do líder gentio e [talvez] a ressurreição), mas omitiu

36 O povo ouviu um dei também na terceira predição, embora Jesus não o tenha pronunciado. Devemos
presumir que, na trama joanina, essa audiência se lembra do primeiro dito e interpreta o terceiro por
meio do primeiro? É isso indício de que essas três predições eram outrora um bloco unificado?
37 Alhures, ao comparar João e os sinóticos, por exemplo, na multiplicação dos pães, encontro exatamente
o mesmo fenômeno envolvendo o que se pode considerar características mais primitivas e mais tardias.
Isso opera contra a tese de simples apropriação: um copista teria de criar características novas, de estilo
mais primitivo, além de incluir ou excluir características mais tardias.
38 Létoumeau (“Quatrième” ) mostra como esse aperfeiçoamento ajusta-se à respectiva teologia dos dois
Evangelhos. Em Marcos, além de alertar os discípulos quanto ao futuro de Jesus, os três ditos com con­
centração no sofrimento ensinam aos discípulos que, se desejam seguir Jesus, terão de compartilhar o
mesmo destino. Em João, a concentração nos três ditos a respeito da elevação de Jesus ensina a relação
entre a exaltação de Jesus e a fé que traz a salvação.

730
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte

a exaltação dessa figura de filho de homem ao trono de Deus. Exceto pelo título
derivado “ Filho do Homem”, a forma joanina não tem nenhuma das metáforas de
Daniel, mas preserva o impulso básico de exaltação. Vimos acima a probabilidade
de uma influência das passagens do servo sofredor de Isaías nas predições mar-
canas. Muitos pensam que o hypsoun joanino (“elevar” ) origina-se de Is 52,13:
“ Meu servo será elevado e muito exaltado”.39 Entretanto, Schaberg (“ Daniel”, p.
218) observa que Dn 12,1 (LXX, não Teodocião) emprega esse verbo para a ele­
vação do povo de Deus nos últimos tempos. Na nota 24, acima, mencionei que, no
plano grego, podia ser feita uma ligação entre a LX X de Daniel e Isaías, pois, nos
dois casos, é utilizado o verbo paradidonai, que aparece nas predições sinóticas
da Paixão; do mesmo modo, é possível fazer uma ligação entre a LX X de Daniel
e a de Isaías, pois as duas empregam o verbo hypsoun, que aparece nas predições
joaninas.40 É essa espécie de reflexão bíblica ligando passagens (juntamente com
os respectivos objetivos teológicos dos evangelistas41) que talvez tenha levado de um
padrão pré-evangélico comum de três predições ao que surgiu independentemente
em Marcos e João.

Mas por que as duas tradições teriam trabalhado com Daniel e Isaías? Essa
propensão já existia no plano pré-evangélico e, sendo assim, remontava a cristãos
mais primitivos em um plano pré-grego ou ao próprio Jesus? Está relacionada com
esse problema a pergunta formulada antes, mas deixada sem resposta: Havia uma
única predição básica ou várias predições por trás das três? Apesar de afirmações
feitas com convicção em alguns tratamentos eruditos das predições, duvido que
mesmo nossos modernos métodos de investigação sejam capazes de proporcionar
a precisão exigida por essas indagações. Quero apenas relacionar observações
conclusivas gerais que acho persuasivas.

39 A LXX interpreta: “ Meu servo [...] será elevado e muitíssimo glorificado” e certamente a glorificação
de Jesus é forte tema joanino.
40 Tem havido uma tentativa de remontar o hypsoun joanino a uma forma passiva de zap aramaico, que em
Esd 6,11 significa “empalar” e daí “crucificar” , e em aramaico (siríaco) mais tardio significa “levantar,
elevar” . Assim, João estaria fazendo trocadilho com os dois sentidos quando escreveu em grego a respeito
de Jesus ser elevado na cruz. Em um só verbo, João estaria resumindo o tipo de fórmula que os Atos
colocam nos discursos apostólicos: Vós o crucificastes, mas Deus o exaltou (veja At 2,32.36; 5,30-31).
É preciso mais provas de que, no aramaico do século I, a raiz zap tinha os dois sentidos e que João
trabalhou a partir de uma base aramaica.
41 Ver na nota 17, acima, a sugestão de Black de que o estrato pré-evangélico talvez estivesse mais próximo
da forma joanina final do que da de Marcos.

731
A pêndices

É história comprovada que Jesus era associado a João Batista e que João
Batista foi executado por Herodes (Antipas) porque sua pregação o tornava uma
figura perigosa. De certa forma, o início do ministério de Jesus de pregação públi­
ca estava associado ao fim da missão de João Batista. Como Jesus poderia não ter
previsto que sua missão lhe traria o mesmo fim violento?

E bastante plausível que Jesus exprimisse essa previsão. O exame das três
predições sinóticas e das três predições joaninas do Filho do Homem, e das mais
numerosas predições alusivas e menos detalhadas (Quadro 12, acima), mostra
que a presciência era atribuída a Jesus amplamente e em linguagem bem variada.
Somente uma pequena proporção dessa linguagem tem clara possibilidade de se
originar das NPs evangélicas. Portanto, não se deve tranquilamente alegar que as
predições são todas retroprojeções daquilo que os evangelistas sabiam ter aconteci­
do. Nem é fácil perceber como todas essas formulações são redutíveis a uma única
predição básica. Assim, julgo muito improvável a tese de que nenhum desses ditos
que preveem morte violenta se origina de Jesus. Obviamente, os pregadores cristãos
primitivos ampliaram e intensificaram o tema da presciência do plano divino que
Jesus possuía, mas essa impressionante criatividade sem base no próprio Jesus é
implausível. Contudo, a continuidade das predições expressas por Jesus às formadas
pela pregação cristã primitiva com certeza produz semelhanças de tema e redação;
por isso, é muito difícil determinar que forma de que dito é ou não é de Jesus.

Algumas dessas muitas predições fazem eco a descrições veterotestamentá-


rias de justos que sofrem e são perseguidos pelos ímpios. Sem dúvida, os cristãos
primitivos usam a Escritura para refletir sobre a morte de Jesus, mas não há nenhuma
razão séria para duvidar que Jesus usou a Escritura também para interpretar seu
papel no plano de Deus. Afinal de contas, o Reino de Deus é linguagem de Daniel.
Em especial, algumas atividades de Jesus parecem intencionalmente destinadas
a evocar os profetas de outrora, como Elias e Eliseu;42 e Jesus tinha de saber que
as missões deles de proclamar a Palavra de Deus punha suas vidas em perigo ao
atrair a hostilidade dos governantes. Certamente, Jesus sabia que a denúncia por
Jeremias das autoridades de Jerusalém levou a uma trama contra sua vida (Jr 26;

42 Curas, ressuscitações, multiplicação de pães, exercer poder sobre tempestades. (A respeito de não
menosprezar facilmente os milagres de Jesus, ver NJBC 78,20; 81,96.103-109.) Ver na b ib l io g r a fia da
se ç ã o , adiante, as obras por Davies, Downing e Gnilka quanto à possibilidade de Jesus considerar-se

profeta-mártir fornecer a chave para entender a presciência que Jesus tinha de seu fim.

732
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte

37-38). A essa altura do pensamento judaico, acreditava-se que, em sua maioria,


os profetas foram mortos por autoridades hostis (Lc 11,50-51; 13,33; ver As vidas
dos profetas). Em várias viagens a Jerusalém durante seu ministério, Jesus deve ter
mais de uma vez entrado em conflito com as autoridades ali, e seu conhecimento
da Escritura com certeza fê-lo dar-se conta de que um fim de profeta o aguardaria
se ele continuasse suas proclamações contestadoras.43 Suas reflexões bíblicas a
propósito de seu fim podem muito bem ter orientado as reflexões bíblicas mais
detalhadas por seus seguidores depois de sua morte. Não há nada implausível,
então, em pensar que Jesus fez uso de Daniel e Isaías nessas reflexões. Entretanto,
de maneira paradoxal, é impossível determinar precisamente quanto do uso desses
livros veterotestamentários atestado no NT veio do próprio Jesus.

Se Jesus previu que teria morte violenta nas mãos dos que se opunham a ele,
se falou a respeito disso e expressou sua previsão em linguagem bíblica, quantos
detalhes entraram em sua descrição de seu fim? Por um lado, somente as três pre­
dições sinóticas (I, II, III) apresentam detalhes; e, assim, pode-se suspeitar que
Jesus não entrou em detalhes ao prever um fim violento. Contudo, quero lembrar
que uma figura profética judaica que conhecia a situação religiosa e política do
início do século I d.C. bem podia ter sido um tanto detalhada em suas expectativas.
Se Jesus esperava problemas em Jerusalém, ele sabia que os chefes dos sacerdotes
estariam envolvidos. A violência comprovada dos chefes dos sacerdotes contra os
samaritanos, os fariseus e o Mestre de Qumrã, que já era história no tempo de Jesus,
apontava claramente nessa direção. Josefo mostra-nos o sumo sacerdote envolvido
com um sinédrio ou conselho em suas ações; e, assim, a inclusão de anciãos e
escribas nas generalizações de Jesus a respeito dos que se opunham a ele não é
inacreditável. (Precisamos, evidentemente, levar em conta que um grupo como
anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas é, com variações, padrão estabelecido
das NPs; mas isso não significa que o grupo não era histórico. Se efetivamente
um sinédrio julgou o que fazer com Jesus, esse sinédrio consistiu em vários tipos
de líderes judaicos.) Na verdade, se Jesus estava familiarizado com Jr 23,37-38
e seu quadro de sacerdotes, profetas e príncipes que exigiam o castigo e a morte
do profeta, ele podia perfeitamente ter incluído outros grupos hostis ao lado dos
chefes dos sacerdotes prevendo os que cometeríam violência contra ele. Teria ele
imaginado o envolvimento gentio (romano)? Se ele “subia” a Jerusalém somente nas

Gnilka (Jesu) acha que isso incluía o fato de Jesus ter uma perspectiva salvífica a respeito de sua morte.

733
A pêndices

festas, ele sabia a probabilidade (confirmada a partir de Josefo) de que o prefeito


romano estaria em Jerusalém no exato momento em que os chefes dos sacerdotes
tentariam livrar-se dele. Josefo mostra que, nessas ocasiões, as autoridades judaicas
tinham de lidar com o governador romano, e a perspectiva apocalíptica de Jesus,
de sua proclamação do reino, bem podia intuir uma ação gentia hostil. Quanto às
ações de escarnecer, cuspir e açoitar da predição III, descrições veterotestamen-
tárias da perseguição do justo guiaram as descrições nas NPs da violência que foi
feita a Jesus. Se Jesus pensava que o fariam sofrer, de que outra forma imaginaria
seu sofrimento, exceto nessa mesma linguagem veterotestamentária? Tendo feito
essas observações, quero reiterar que raramente (às vezes só uma vez) esse detalhe
encontra-se nas declarações de Jesus a respeito de seu fim. Este parágrafo tem
apenas o propósito de nos lembrar que um Jesus que não pensasse em nenhuma
dessas coisas seria esquisito.

Embora Jesus pudesse ter adquirido certa presciência da leitura dos sinais
dos tempos e mais presciência da reflexão sobre o que acontecera aos profetas e aos
justos de Deus no passado, não fazemos justiça a uma figura tão imbuída de Deus, se
racionalizamos demais a fonte de sua convicção de que ele seria rejeitado e morrería
violentamente, mas sairia justificado. Qualquer que tenha sido o raciocínio em seu
entendimento do que lhe aconteceria, ele certamente atribuiría sua convicção a
esse respeito a sua posição como aquele que Deus enviou para proclamar o reino.
Embora não concorde com ela, entendo a posição dos que negam que Jesus exercia
esse papel em relação a Deus. Acho mais difícil a posição dos que reconhecem que
ele exercia esse papel, mas imaginam que ele nunca falou a respeito de onde esse
papel o levaria. A proclamação do reino tinha de incluir convicções a respeito de
como o reino chegaria; e, para alguém que ligava a vinda do reino a sua própria
atividade, isso incluía convicções sobre seu fim44 — convicções que ele remontava
ao Deus cujo reino estava sendo proclamado.

44 Como mencionei no início deste APÊNDICE, é outra a questão de como a avaliação de Jesus de seu fim
relacionava-se com o valor soteriológico ligado a sua morte pelos cristãos primitivos. Eles diziam que
ele morreu por todos, pelos pecados, como sacrifício, por meio da redenção ou justificação ou salvação
etc. Ele pensava em alguma dessas categorias ou de algum modo relacionava sua morte com a vinda do
reino (Mc 14,25)? Há imensa literatura sobre o significado teológico da morte de Jesus (§ 1, nota 32); mas
vale a pena notar que Léon-Dufour (Face, p. 168-171) afirma que não está historicamente demonstrado
que Jesus declarou que morrería para salvar o mundo do pecado — ele deixou nas mãos de Deus essa
salvação. Segalla (“ Gesü”) julga as implicações dessa opinião minimalistas demais para uma cristologia
adequada.

734
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e morte

Acabei de escrever sobre as “convicções” e a “presciência” de Jesus; antes,


escrevi sobre “ previsão” e “expectativa”. Oberlinner, que dedicou um livro a essa
questão, talvez permitisse esses termos sob seu cabeçalho alemão Todeserwartung;
mas ele insiste que isso não significa necessariamente presciência infalível (Todes-
gewissheit). Ele acha que Jesus expressou sua expectativa de morte violenta e, assim,
não estava despreparado para ela, e o mesmo acontecia com os discípulos. Porém,
ele não tinha certeza do que aconteceria. Sabia o que seria plausível acontecer,
mas não tinha nenhuma concepção completamente arraigada dos acontecimentos.
Não vejo nenhum meio de determinar até onde sua relação com Deus no céu levou
Jesus da previsão para a presciência, e pode bem ser que ele mesmo não soubesse
responder a essa pergunta. A sutileza faz muito mais justiça às probabilidades do
que um voto negativo de que Jesus não fez (e talvez não pudesse ter feito) quaisquer
das predições atribuídas a ele.

735
Bibliografia para o Apêndice VIII:
As predições de Jesus a respeito
de sua Paixão

Muitos livros sobre a cristologia neotestamentária têm uma seção a respeito


destas predições, por exemplo, Fuller, Hahn, Tõdt.

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738
Apêndice IX: A questão de uma
narrativa pré-marcana da Paixão*
por Marion L. Soards**

Nos últimos anos, muito se tem escrito a respeito das fontes da NP marcana,
o que reflete uma diferença de opinião fundamental. De um lado, há biblistas que
afirmam que Marcos teve uma fonte primitiva para a NP, que ele copiou pratica­
mente inteira; de outro, há biblistas que afirmam que Marcos criou a NP usando
tradições independentes que já existiam e não recorreu a uma NP mais primitiva
contínua. A variedade de opinião é demonstrada pelas posições destes biblistas:
E. Linnemann (Studien ) emprega Redaktionsgeschichte para chegar à conclusão de
que o evangelista Marcos era ele próprio responsável pela forma coerente da NP e
que, na melhor das hipóteses, podemos falar de várias outras tradições que o autor
empregou ao criar a NP. J. Ernst (“ Passionserzãhlung” ) declara que ICor 15,3-4
revela a autêntica trajetória da NP original: morte —> sepultura —> ressurreição. Ele
conclui que, de Mc 15,30b a Mc 16,8 (menos elementos redacionais), encontramos
a trajetória da NP original. R. Pesch (Markus) trata todo o material entre Mc 8,27
e Mc 16,8 como sendo a NP pré-marcana, composta de trinta e nove unidades
narrativas que são facilmente organizadas em treze grupos de três narrativas. W.
Schmithals*1afirma que um único documento básico (Grundschrift) está por trás de
todo o Evangelho e, por isso, a NP pré-marcana deve ser considerada uma seção
dessa obra unificada mais primitiva.

Nota de R. E. Brown: O conteúdo deste a p ê n d ic e foi publicado como artigo em Biblebhashyam 1 1 , 1 9 8 5 ,


p. 1 4 4 - 1 6 9 . O professor Soards atualizou o estudo e gentilmente permitiu-me adaptá-lo ao estilo conciso
de meu comentário e encurtá-lo, eliminando duplicações bibliográficas e outras. Submeti-lhe a forma
final para aprovação. Ver minha avaliação de seu trabalho em § 2, E2, v. I.
Professor de Estudos neotestamentários Louisville Presbyterian Theological Seminary
1 Das Evangelium nach Markus. Okumenischer Taschenbuchkommentar zum Neuen Testament. v. 2.
Gütersloh, Mohn, 1979. 2 v.

739
A pêndices

Como a opinião erudita varia bastante quanto às dimensões da NP pré-


-marcana, é necessário estabelecer a seção a ser considerada neste APÊNDICE. Vou
tratar do material em Marcos desde a prisão de Jesus no Getsêmani até sua morte
e sepultamento, a saber, Mc 14,32 a Mc 15,47.2 Meu estudo inclui quatro grandes
seções:

A. Lista comentada de trinta e cinco biblistas com um resumo do método


de trabalho de cada um

B. Quadro 14, que examina os versículos atribuídos por esses biblistas3


à(s) NP(s) pré-marcana(s)4

C. Métodos/critérios para determinar a forma (ou não existência) da NP


pré-marcana

1. Paralelos

2. Tensões internas

3. Vocabulário e estilo

4. Temas teológicos e motivos literários

5. Agrupamentos conceituais

D. Conclusão deste exame: avaliação e inferências das origens da NP

2 Neste comentário, Brown começou com Mc 14,26 e, assim, meu Quadro 14 não abrange seu § 5 intro­
dutório (Mc 14,26-32).
3 Entre os trinta e cinco, só Mohr não está incluído (por razões a serem explicadas). Além dos trinta e cinco,
diversos renomados escritores sobre Marcos não estão incluídos, por exemplo, J. Gnilka, E. Güttgemanns,
M.-J. Lagrange, E. Linnemann, E. Lohmeyer e J. Schniewind, não porque sua erudição não é proveitosa,
mas porque sua abordagem e seu estilo tomam impossível apresentar suas conclusões no Quadro 14,
planejado para esta análise. Ver também PMK, pois alguns autores com o trabalho representado no Quadro
14 contribuíram para essa obra. As posições que assumem em PMK não variam das apresentadas no
quadro.
1 Também F. Neirynck (“Redactional” , p. 144-162) traz de maneira proveitosa listas do texto redacional
de Marcos como está descrito por Gnilka, Pesch e outros.

740
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

A. Biblistas e obras: lista comentada

Os biblistas analisados aqui têm suas opiniões examinadas na Seção B


(Quadro 14). Depois do nome de cada autor e do título da(s) obra(s) pertinente(s),5
há uma descrição do objetivo, do método e das conclusões do estudo do biblista.

As palavras “fonte” e “tradição” aparecem em todo este estudo — palavras


muitas vezes usadas com ambiguidade nos escritos a respeito da NP marcana.
Neste APÊNDICE, “fonte” designa um recurso, oral ou escrito, que existia em uma
forma basicamente estabelecida antes de Marcos recorrer a ele. “ Tradição” indi­
ca um recurso que era sucinto e talvez não tivesse forma estabelecida antes de
Marcos usá-lo. Por exemplo, se considerarmos a narrativa da negação de Pedro (§
27, acima: Mc 14,53.66-72), há pelo menos três maneiras de explicar a presença
desse episódio em Marcos. Primeiro, pode ser criação puramente marcana. Se­
gundo, Marcos poderia ter ouvido a tradição de que Pedro negou Jesus e escrito
ele mesmo a história. Terceiro, Marcos poderia ter recebido um relato meticuloso
da negação de Pedro e incorporado essa fonte em seu Evangelho, depois de fazer
as alterações apropriadas.

H. A n d e r so n (The Gospel ofMark, London, Oliphants, 1976 [New Century


Bible]) imagina uma extensa fonte pré-marcana, com uma história discernível de
tradições às quais Marcos acrescentou toques redacionais. A atenção a temas dife­
rentes na NP marcana (alguns relacionados a problemas vistos em outras passagens
do Evangelho de Marcos), a ligações problemáticas na narrativa e a linguagem e
estilo (inclusive estrutura) permite a Anderson definir a redação marcana e as
várias tradições que formam a NP pré-marcana.

E. R. B ü CKLEY (“ Sources” ) alega que duas fontes importantes estão por trás
da NP marcana. A Fonte A era um relato histórico básico e a Fonte B era um con­
junto de fragmentos curtos, independentes e mais nítidos que estavam intercalados
na Fonte A. Este ponto de vista é essencialmente igual ao de V. Taylor (ver abaixo),
embora a contribuição de Buckley tenha surgido antes da de Taylor.

R. B u lt m a n n (BHST) pressupõe que, por trás da NP marcana, havia uma


narrativa mais antiga, “que relatava muito sucintamente a prisão, a condenação pelo

5 Títulos abreviados são usados para obras já citadas nas bibliografias do comentário, em especial na
B i b l io g r a f ia G e r a l , que trata da NP marcana (§ 3 , Parte II).

741
A p ê n d ic e s

sinédrio e por Pilatos, o trajeto até a cruz, a crucificação e a morte” (p. 279). Ele
analisa cada perícope dentro da NP para determinar se a unidade está ligada aos
outros elementos da NP ou é uma tradição independente que foi incorporada mais
tarde à NP original. Bultmann considera a questão de até onde Marcos conhecia o
conjunto desenvolvido (da NP original e das adições subsequentes a esse fragmento
original) problema secundário, que não pode ser respondido com nenhuma certeza.
Ao tomar decisões quanto às dimensões e ao conteúdo da NP original, Bultmann
observa tradições paralelas em outros materiais tradicionais, duplicatas dentro de
perícopes, motivos apologéticos e teológicos, aspectos lendários, materiais editoriais
e explanatórios e tensões internas no texto.

J. C zerski (“ Passion” ) examina a NP marcana a partir da perspectiva da


crítica formal (ver Bultmann). Ele pressupõe uma NP pré-marcana que se desen­
volveu em quatro etapas: 1) morte e sepultamento, 2) julgamento diante de Pilatos
e a crucificação, 3) o julgamento diante do sinédrio e a narrativa do túmulo vazio
e 4) a adição de incidentes e tradições suplementares.

M. D ibelius (Frorn; ver também The Message o f Jesus Christ, New York, Scri-
bners, 1939) acha que Marcos copiou uma narrativa da Paixão in totum. Ele afirma
que o crítico pode suprimir da NP marcana, por julgá-las secundárias, cenas ou
partes que tenham elos artificiais com a narrativa, isto é, as partes da NP marcana
que estão em tensão com os materiais em torno delas (ou rompendo a continuidade
do contexto imediato ou interferindo na sequência narrativa do conjunto).

J. R. D onahue (Are You) afirma que a NP é estrutura criativa marcana; por


exemplo, Marcos compôs a cena do julgamento pelo sinédrio e intercalou-a no relato
da negação de Pedro. Donahue emprega os instrumentos da crítica redacional e da
crítica composicional para afirmar que Marcos usou pelo menos duas diferentes
tradições pré-marcanas independentes ao compor a primeira NP. Uma era tradi­
ção apologética baseada em textos veterotestamentários; a outra era uma tradição
histórica na qual Jesus foi conduzido ao sumo sacerdote. Elas foram combinadas
em uma redação marcana esmerada para produzir Mc 14,53a-65. Donahue utiliza
observações relacionadas a linguagem, estilo, estrutura, padrões e temas e motivos
teológicos para separar tradição de redação.

D. D ormeyer (Passion ) emprega estatística de vocabulário e crítica de esti­


lo, juntamente com a investigação de temas e motivos teológicos, para separar Mc

742
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

14.1- 16,8 em três concisas e distintas camadas separáveis. A primeira era uma
antiga história de martírio com um núcleo histórico. Mais tarde, essa camada foi
popularizada com adição de diálogos e expansões lendárias que imitavam biografias
proféticas. Por fim, Marcos acrescentou versículos de material parenético a esse
núcleo pré-marcano.

J. E rnst (“Passionserzáhlung” ) adota a confissão cristã primitiva de ICor


15,3-4 como ponto de partida para o conhecimento da Paixão de Jesus e expõe
uma trajetória: morte —» sepultura —> ressurreição. Ele sugere que Mc 15,20b-16,8
contém o núcleo pré-marcano (NP) que segue essa trajetória. Ernst separa esse
núcleo dos elementos redacionais marcanos, concentrando-se em componentes
teológicos e argumentando a partir de uma perspectiva estilística e composicional
de que certos elementos narrativos são secundários.

F. C. G rant (The Earliest Gospel, New York, Abingdon-Cokesbury, 1943;


The Gospels: Their Origin and Their Growth, New York, Harper, 1957) trabalha
essencialmente como crítico formal, concentrando-se na continuidade de toda
a NP e perguntando se perícopes individuais podiam ter ou realmente tiveram
existência independente fora do contexto da NP. No método e também nas conclu­
sões, a posição de Grant é quase idêntica à de Dibelius. Ele afirma que Marcos
adotou in totum uma NP pré-marcana e a expandiu, fazendo adições. Além dos
versículos indicados no Quadro 14, Grant alega que a NP pré-marcana incluía Mc
14.1- 2.10-11.17-18a.21-27.29-31.

S. E. J ohnson (A Commentary on the Gospel According to St. Mark, New


York, Harper & Brothers, 1966) refere-se à “considerável concordância” entre os
biblistas quanto às passagens a serem atribuídas à NP pré-marcana. Ele se refere
à obra de Grant e Dibelius, e, em seguida, relaciona os versículos de Marcos que
faziam parte da NP pré-marcana: Mc 14,l-2.10-11.17,18a.21-27.29-31.43-53a;
15.1- 15.21-22.24a.25-27-29a.32b-37.39. Johnson desconfia que essa NP era lida
juntamente com o AT no culto cristão primitivo.

W. K elber (KKS) trabalha de modo semelhante ao de Donahue (ver acima).


Ele acha “certo lampejo de uma tradição pré-marcana” (p. 539); mas, ao estudar Mc
14,32-42 da perspectiva de termos, vocabulário, motivos, estruturas e preocupações
teológicas marcanas, Kelber conclui que “ Marcos não é apenas o redator, mas, em
alto grau, o criador e autor da narrativa do Getsêmani” (p. 540).

743
A pêndices

E. K lo ster m a n n (Das Markusevangelium, 4. ed., Tübingen, Mohr, 1950


[Handbuch zum Neuen Testament 3]) alega seguir Bultmann ao pressupor uma NP
pré-marcana. Ele distingue a história contínua básica dessa NP pré-marcana de
expansões que são tanto “histórias mais primitivas já existentes”, como “criações
que surgiram de maneira nova”.

A. K o le n k o w (“ Trial” ) analisa Mc 15,l-20a e se concentra em 1) material


na narrativa para o qual Marcos não prepara o leitor e 2) a estrutura essencial do
fragmento. O método e as conclusões de Kolenkow são semelhantes aos de Kelber e
Donahue por dar ênfase à composição marcana em vez de às fontes pré-marcanas.

K. G. K uhn (“Jesus” ), ao estudar a cena do Getsêmani à luz de temas e


motivos teológicos, consegue distinguir duas fontes que foram empregadas na
estrutura de Mc 14,32-42. Uma fonte era cristológica e falava da “ hora”. A outra
fonte era parenética e falava do “cálice”.

W. L. L ane (The Gospel according to Mark, Grand Rapids, Eerdmans,


1974 [New International Commentary on the NT]) começa com a suposição dos
primeiros críticos formais de que Marcos tinha uma fonte primitiva adotada por ele
praticamente intacta. Lane afirma que Marcos “decidiu suplementá-la com tradi­
ções paralelas ou complementares, e organizá-la para o desenvolvimento de certos
temas” (p. 485). Para determinar como Marcos fez isso, Lane emprega tradições
paralelas de Paulo e dos Atos, e pergunta se determinada perícope podia ter tido
uma existência originalmente independente fora da NP.

X . L éo n-D u fo u r (“ Passion” ) esboça de maneira geral as opiniões de diversos


biblistas quanto ao conteúdo da PN pré-marcana e então relata o trabalho de Taylor
em detalhe e com aprovação. Ele também refere-se a Buse (“ St John [...] Marcan” ),
que menciona notáveis paralelos entre o quarto Evangelho e o estrato B (não o A)
da NP pré-marcana quando Taylor a separa. É, portanto, admissível duvidar que a
narrativa A apresente a NP primitiva. Ao examinar cada NP canônica separada e
comparativamente, Léon-Dufour conclui haver certo grau de independência para
cada relato, mas que Mateus e Marcos compartilharam uma fonte comum, enquan­
to Lucas e João compartilharam uma tradição comum. Por trás das quatro NPs
agrupadas duas a duas, ele discerne uma história primitiva, escrita ou oral, que os
evangelistas teriam eles próprios transformado, por meio da incorporação de relevan­
tes tradições orais. Embora não apresente uma reconstrução precisa, Léon-Dufour

744
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

define os limites gerais da “ história primitiva” : ao sair da sala onde foi consumida
a ceia do Senhor, Jesus foi preso no Jardim das Oliveiras; foi entregue pelo sumo
sacerdote a Pilatos, foi condenado à morte e crucificado. A história terminava com
o sepulcro e, talvez, uma aparição. Até onde percebo, ela consistia em Mc 14,3-
9.22-25.32-42.47-52.54.65.66-72; 15,2.6-14.16-20.25.27.31-33.38.40-41.47.

R. H. L ightfoot (History and Interpretation in the Gospels, New York,


Harper, 1934) concentra-se em Mc 14,1-16,8 e trabalha como crítico formal para
identificar acontecimentos posteriores fora da NP pré-marcana. Os critérios críticos
são semelhantes aos usados por Bultmann.

E. L ohse (History) afirma que Mc 10,33-34 pressupõe breve relato da Paixão.


Ele trabalha com os métodos da crítica formal (ver Bultmann) para determinar a
forma original da NP pré-marcana.

D. L ührmann (Markus) segue o exemplo de J. Becker e T. A. Mohr ao identi­


ficar semelhanças notáveis e amplas entre as NPs marcana e joanina. Ele insiste ser
preciso justificar esses paralelos, pois o Evangelho de João é, sob outros aspectos,
literariamente independente dos sinóticos e expressa outra interpretação teológica
da Paixão de Jesus. Lührmann conclui que alguma fonte está necessariamente por
trás desses atributos comuns; mas, ao discernir o alcance dessa NP pré-evangélica,
é preciso reconhecer que, ao contrário de estar ligado submissamente a ela, Marcos
incorporou-a com integridade. Lührmann atribui a ela: Mc 14,1.3-9.17-20.27.29-
56.60-61a; 14,63-15,29a; 15,32b-38; 15,40-16,6.8a.

W. Mohn (“ Gethsemane” ) utiliza os instrumentos da crítica redacional (ver


Donahue e Kelber) para afirmar que um original apocalíptico ( Vorlage) com ênfase
em “hora” e “sono” está por trás da atual cena do Getsêmani.

T. A. Mohr (Markus) investiga as bases históricas, tradicionais e teológicas


da NP marcana pela comparação meticulosa das NPs marcana e joanina. Ele con­
clui que Marcos empregou uma fonte importante que antes passara, ela própria,
por uma revisão. A reconstrução que Mohr faz da fonte (subdividindo os versículos
como a, b, c, e depois subdividindo mais como aa, ab, ba etc.) é tão complexa a
ponto de resistir a ser incluída na Seção B, abaixo; assim, seus resultados estão
relacionados aqui, como ele os dá: Mc 14,1-2 (em parte), 14,3.4.5a,6aa.8b.7ac.9ac;
l l , l a a (até Hierosolyma), 11,8.9a (em parte), 9b.l0 (em parte), Il,lla b .l5 a b b .l6 .
[19]; 14,18a (em parte), 1 4 ,18 b a.2 0 b .2 1 c.2 2 -2 3 .2 4 (sem tes diathekes),

745
A pêndices

14,25.32.33.34.35a.36 (sem ho pater), 14,37 (sem bò), 14,38-39.40aba.42a.43


(em parte), 14,45.46.47.50.51-52.53a.55-56.61b (sem palin e, talvez, com a
inserção de kai), 14,62.63-64.65b; 15,1 (em parte), 15,3.2.6.9.11.7.12 (sem hon
legete), 15,13.15 (sem boulomenos, por meio de poiesai), 15,16aa.l6b.l7.18 (em
parte), 15,19.20a (até autou), 15,20b-22a.24.26-27.34a (sem te enate hora),
15,36a.37b.40.42b.43.45b.46.47; 16,1.2.3.4a.5.8a (até mnemeiou) — então se­
guidos de um relato da aparição em Jo 20,llb-18.

M. Myllykoski (Letzten Tage) analisa a NP marcana no plano de palavras


e frases específicas e fora dele, concentrando-se, acima de tudo, no “ fio narrativo”
(.Erzãhlfaden) que unifica os diversos elementos da história. Depois de leituras minu­
ciosas e complementares de Marcos e João (e dos outros Evangelhos), ele afirma que
tensões e repetições perceptíveis interrompem a continuidade da narrativa e apontam
para uma NP pré-marcana. Myllykoski distingue entre o estrato mais antigo da NP e
uma NP ampliada que Marcos e João teriam usado como base de suas apresentações.
(Os asteriscos estão explicados em B, abaixo.) A tradição mais antiga abrangia
Mc ll,ll*.1 5 c .2 7 b *.2 8 *; 14,58*; 14,l-2*.10-ll*.17*.26*.43*.45*.46-47*.50.53a.
6 1 b *.6 2 a.6 5 c a*; 1 5 ,l*.3 *.2 *.1 5 b .l9 a *.2 0 b -2 2 a .2 3 -2 4 a .2 7 .2 6 . A fonte am ­
pliada da Paixão (com material da tradição mais antiga da Paixão em colche­
tes) continha Mc 11,8-10* [ ll,ll*.1 5 c .2 7 b *.2 8 *; 1 4 ,5 8 *; 14,1-2*]; 14,3-8*
[14,10-11*]; 14,17-20*.27a.29-31*.33-36*.41-42* [14,43*.45*.46-47*.50.53a];
14,5 4* [1 4 ,6 1 a*.6 2 a.6 5 ca*]; 14,66-72* [ 1 5 ,1 * 3 * 2 * ] ; 15,6-15a* [15,15b];
15,16-18.19b [15,19a*.20b-22a.23-24a], 15,24b [15,27.26]; 1 5 ,2 9 a.3 0 *.3 4 *
.3 6 a.3 7 *.4 0 *.4 2 -4 6 *; e Jo 2 0 ,l .ll b p .l2 ... 19ac.20*.22-23. Sou grato ao dr.
Myllykoski por me fornecer um exemplar do v. 1 de seu estudo e diversas páginas
manuscritas do v. 2, ainda em produção no momento em que escrevo; ele gentilmente
colaborou para determinar o conteúdo exato deste parágrafo descritivo.

D. E. Nineham (The Gospel ofSt. Mark, Baltimore, Penguin, 1963 [Pelican


NT Commentaries]) refere-se com frequência ao trabalho de “ biblistas” (sem muita
identificação) para defender a recuperação da NP pré-marcana. Usando métodos da
crítica formal, ele indaga se uma tradição tem probabilidade de ser histórica, isto é,
se uma tradição podería remontar a uma testemunha ocular. Ele também emprega
um critério semelhante ao da análise da crítica redacional de relações teológicas.

C. D. PEDDINGHAUS (Entstehung) afirma que uma NP pré-marcana, origi­


nalmente inspirada no Salmo 22, foi mais tarde aperfeiçoada e, por fim, tornou-se

746
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

o texto ao qual Marcos recorreu (Vorlage). Os métodos de estudo são em grande


parte os da crítica formal, com conhecimento dos métodos da crítica redacional.

R. P esch (Markus) argumenta que o compromisso marcano com materiais


mais primitivos sobre Jesus tem sido subestimado em muitos estudos contemporâ­
neos e afirma que Marcos usou fontes extensas, isto é, pelo menos sete blocos de
tradição pré-marcana. Uma delas era uma extensa NP mais primitiva, que abrangia
Mc 8,27-33; 9,2-13.30-35; 10,1.32-34.46-52; 11,1-23.27-33; 12,1-12.35-37.41-
44; 13,1-2 e 14,1-16,8. Como o objetivo deste material da NP é mais amplo que
o alcance dos versículos resumidos no Quadro 14, só as partes relevantes da NP
proposta por Pesch estão indicadas naquele gráfico.

E. J. P ryke (Redactional) relaciona catorze aspectos sintáticos que orientam


o estilo marcano. Seu exame de “versículos redacionais” que os biblistas identifica­
ram permite-lhe classificar os elementos do “texto redacional de Marcos” sob nove
títulos, oito dos quais são aplicáveis a versículos redacionais da NP. Desse modo,
Pryke isola os materiais tradicionais que Marcos empregou.

W. S chenk (Passionsbericht) utiliza crítica de vocabulário e estilo, e concen­


tra-se em temas e motivos teológicos para isolar duas fontes que estão por trás da
NP marcana. A primeira fonte (uma tradição de Simão) era uma história simples
que empregava alusões veterotestamentárias para estabelecer a inocência de Jesus.
A segunda, uma tradição apocalíptica, representava a teologia defendida pelos
adversários de Marcos. Marcos combinou essas fontes com elementos específicos
adicionais (Einzelstücke), coordenando os componentes sob os títulos do Jesus
sofredor e de imitação pelos discípulos.

L. S chenke (Gekreuzigte), com a ajuda da crítica literária, concentra-se em


temas teológicos da NP. Ele isola a relação pré-marcana mais antiga: o motivo do
justo sofredor que apresentava o sofrimento e a morte de Jesus como a do Messias.
Em uma etapa pré-marcana mais tardia, foi trabalhado material de um ângulo
polemicamente apologético que deixou clara a nítida distinção entre a comunidade
cristã e o Judaísmo oficial.

G. S chille (“ Leiden” ) usa os princípios da crítica formal para isolar uma


NP pré-marcana que pode ser descrita como coletânea de tradições cultualmente
orientadas em três partes: 1) tradição da quinta-feira do lava-pés, 2) tradição da

747
A pêndices

Sexta-Feira Santa e 3) tradição de histórias do túmulo. O objetivo geral dessas


tradições reunidas é Mc 14,18-16,8, com a omissão de Mc 14,55-65.
W. Schmithals (Markus) imagina um único escrito unificado (Grundschrifi), que
estava por trás de todo o Evangelho e continha uma NP. “0 Grundschrift e a reelabo-
ração redacional estão de modo relativo claramente separados um do outro porque, em
geral, com respeito a sua redação do Grundschrift, Marcos não revisa o Grundschrift,
mas, antes, o suplementa e ocasionalmente o abrevia ou reorganiza” (p. 43).
G. S chneider (“Verhaftung” e “Gab”), que não pressupõe uma NP pré-
-marcana, está mais interessado no processo de composição do texto marcano atual.
Ele emprega os métodos de crítica formal e redacional (ver Bultmann e Donahue).
J. S chreiber (Kreuzigungsbericht e Theologie) emprega crítica da lingua­
gem e de estilo, enquanto dá atenção a citações e concepções apocalípticas. Ele
distingue duas fontes que estavam por trás do texto da NP marcana (ver Schenk).
E. S chweizer (Mark), ao sugerir a forma e a essência da NP pré-marcana,
leva a sério os paralelos entre Marcos e João, e emprega os métodos da crítica formal.
R. S croggs, em KKS, afirma que, embora Mc 15,20b-39 revele uma com­
plexa história de transmissão, Marcos não criou essa seção. Na verdade, Marcos
mudou muito pouco a tradição que recebeu. Scroggs sugere que estilo e vocabulário
são “incertos demais” (p. 557) para serem usados como critérios metodológicos
definitivos. Ele usa os métodos da crítica formal e enfatiza o isolamento e a corre­
lação de grupos conceituais diferentes, que se encontram no texto para o processo
de reconstruir a história de transmissão.
V. Taylor (Mark) isola duas fontes que estavam por trás da NP marcana. A
fonte A, chamada fonte romana, era uma narrativa fluente, contínua e de caráter
resumido, marcada pelo realismo. A fonte B, chamada fonte semítica, era composta
de fragmentos concisos independentes, cheios de possíveis semitismos que estavam
intercalados em A. Os critérios da crítica formal estão unidos a questões de estilo
e vocabulário na obra de Taylor.

748
Apêndice IX :A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

6. Quadro 14: Teorias de vários biblistas quanto à composição da narrativa


marcana da Paixão

Oito páginas duplas compõem este quadro. O texto marcano é a tradução


literal que Brown fez para este comentário. Os símbolos usados estão explicados
abaixo. A ausência de um símbolo com referência a determinado versículo geral­
mente indica que o versículo em questão é considerado redacional pelo biblista cuja
opinião a respeito da NP pré-marcana está sendo dada em símbolos. As exceções
a esse princípio foram mencionadas acima, na descrição dos métodos de trabalho
de cada biblista.

Símbolos usados no quadro 14 abrangendo Mc 1 4 ,3 2 -1 5 ,4 7

A identifica um versículo como pertencente a uma/à fonte ou tradição pré-marcana que foi
incorporada por Marcos ao texto de sua NP.

B identifica um versículo como pertencente a uma segunda fonte ou tradição pré-marcana


independente, diferente de A, que foi incorporada por Marcos ao texto de sua NP.

C identifica um versículo como pertencente a uma terceira fonte ou tradição pré-marcana,


diferente de A e de B, que foi incorporada por Marcos ao texto de sua NP.

A 1/2/3 indica um versículo daquilo que foi outrora tradição independente que se tomou parte de
uma única fonte mais tardia, unificada, que, por sua vez, foi incorporada por Marcos ao texto
de sua NP; por exemplo, ver, sob Dormeyer, onde, depois de Mc 15,27, A1 significa que ele
atribui v. 27 a uma primeira etapa pré-marcana de tradição-história. Ver também, sob Ped-
dinghaus, onde, depois de Mc 15,27, A2 significa que ele atribui v. 27 a uma segunda etapa
pré-marcana de tradição-história. B e C às vezes também estão subdivididos.

a/b/c/ em seguida a um símbolo, designa parte do versículo ao qual o símbolo se refere; por exemplo,
sob Bucldey, depois de Mc 14,32, Aa e Bb significam que ele atribui 32a a A e 32b a B.

* em seguida a um símbolo, significa que uma palavra ou palavras do versículo às quais esse
símbolo se refere são provavelmente redacionais, mas que a preponderância do versículo
é pré-marcana.

? em seguida a outro símbolo, indica que o autor não tomou uma decisão clara quanto ao fato
de o versículo ser pré-marcano ou redacional.

□ ao redor de um símbolo, indica que o autor considera o versículo parte de uma adição se­
cundária à fonte primária que o símbolo designa, e que essa adição secundária foi feita antes
de Marcos incorporar a fonte (adição primária e secundária) ao texto de sua NP.

— área da NP não tratada pelo autor respectivo

749
A p ê n d ic e s

Klostermann
Dormeyer
Anderson

Bultmann

Kolenkow
Donahue
Dibelius
Buckley

Johnson
Czerski

Kelber
Grant
Emst

Kuhn
Mc 14,32-42

i
32 eles vêm à propriedade de [B ] Aa Aa 1 Aa A
nome Getsêmani; e ele diz a seus Bb Ab2
discípulos: “Sentai-vos aqui en­
quanto rezo” .
33E ele toma consigo Pedro, e Tiago [A ] Aa B
-
e João, e ele começou a ficar gran­ Bb
demente atormentado e angustiado.
^ E ele diz a eles: “Minha alma [A ] A Ab? - B
está muito triste até a morte. Perma­
necei aqui e continuai vigiando” .
^ E tendo ido um pouco mais [B ] B Aa2 A? - A
adiante, caía por terra e rezava que,
se é possível, a hora passasse dele.
ele dizia: “Abba, Pai, tudo é [A ] A A2 A? B
possível para ti: Afasta de mim este
cálice. Mas não o que eu quero, mas
o que tu (queres)” .
'^ E ele vem e encontra-os dormin­ [A ] B Aa2 B
do e diz a Pedro: “Simão. estás dor­
mindo? Não foste forte o bastante
para vigiar uma hora?
^ Continuai vigiando e rezando, a [A ] B A* B
fim de que não entreis em provação.
Na verdade, o espírito está pronto,
mas a carne é fraca” .

39E novamente tendo se afastado, B -


ele rezou, dizendo a mesma palavra.
^ E novam ente tendo vindo, [B ] A A
encontrou-os dormindo; pois seus
olhos estavam muito pesados e
eles não sabiam o que lhe deviam
responder.
^ E ele vem pela terceira vez e diz [Bb] B Ab 2 A
a eles: “Continuais, então, dormin­
do e descansando? 0 dinheiro foi
pago; chegou a hora; vede, o Filho
do Homem é entregue às mãos dos
pecadores.
42,Levantai-vos;
. . aque­
vamos; vede, B -
le que me entrega se aproxima” .

750
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

Peddinghaus
Léon-Dufour

Schm ithals
M yllyk o sk i

S chneider

Schw eizer
Lührm ann

Schreiber
Nineham

Schenke
Lightfoot

Scroggs
Schenk

S ch ille

T a ylo r
Pesch

P ryke
M ohn
Lohse
Lane

A A A A A A [A] A Ab A Aa*1 A A B

A A A A B* [A ] A A Ab1 A — B
B

A A A A A B* [A ] A A A A1 A Ab — B

A A A A A A B* [A ] A A A Aa1 A A — B
B

A A A A B* [A ] A A A A1 A A B

A A A A A Aa [A] A A A A1 A A B

A A A A [A] A A Ab1 A A B

A A A [A ] A A A A A — B

A A A [A ] A [A] A A Ab1 A A B
[ A c 1]

A A A Aa A Ab B* [A ] A A Aa*1 A A* B
B [A c * 1]

A A A A B* [A ] A A A1 A - B

751
AtfNDtCES

D o rm e y e r
B u ltm a n n

K o len k o w
A n d e rso n

D o n ah u e
D ib elh is
B u c k le y

Jo h n s o n
C z e rsk i

K e lb e r
G ra n t
E rn st

Kuhn
Mc 1 4 ,4 3 -5 2 1

!
^ E imediatamente, enquanto ele A A A A A A A A

cr
>
ainda falava, chega Judas, um dos
Doze, e com ele uma multidão com
espadas e paus, da parte dos chefes
dos sacerdotes e dos escribas e
dos anciãos.
^ 0 que o estava entregando, A B A A A A A A
dera-lhes um aviso, dizendo: “Ele
é (aquele) que beijarei. Agarrai-o e
levai-o em segurança”.

^ E tendo vindo, imediatamente A A A A A A2 A A A


tendo vindo para perto dele, diz:
“ Rabi”, e beijou-o calorosamente.

^ M a s eles lançaram as mãos sobre A A A A A A1 A A - A - -


ele e o agarraram.
^ M a s um certo in d ivíd u o dos B A A A2 A A A
que estavam por perto, tendo
desembainhado a espada, golpeou o
servo do sumo sacerdote e decepou
sua orelha.
^®E, em resposta, Jesus disse a A A A A A A
eles: “Como se contra um bandido
saístes com espadas e paus para
me pegar?
^ D ia após dia eu estava convosco A a A A A A A A
no Tem plo ensinando e não me
agarrastes. Entretanto - deixai que
se cumpram as Escrituras!”
^ E deixando-o, eles todos fugiram. A A A A A1 A A - A - -

um c e rto jo v e m esta va A A A1 A* A A
seguindo com ele, vestido com
um pano de lin h o sobre sua
nudez; e eles o agarram.
CO
° Mas ele, tendo deixado para A A A1 A* A - A - -
trás o pano de lin h o , fugiu nu.

752
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

!- ------------------------
L é o n - D u fo u r

P e d d in g h a u s
M yllyk oski

S c h m ith a ls
L ü h rm a n n

S c h w eiz er
S c h n e id e r

S c h r e ib e r
L ig h tfo o t

N in e h am

Sch enk e

S cro gg s
Sch enk

S c h ille

T a y lo r
M oh n

P ry k e
P esch
L an e

J3
9
J

A A A A A* Ab A3 A A Aa*1 A A* A A A

A A A A A A2 A A A A1 A A A A
B

A A A A A* A A2 A A A A1 A A A A

A A A A A* A A2 A A A A1 A A A A - A
B
A A A [A ?] A A* [A ?] A 2 A A A1 A [A ] A B

A A A A A [A?] A 3 A A A A A B

A A A A A [A ?] A 3 A A A A A B

A A A A A A A? A2 A A A1 A A A - B
B
A A A A A A2 A A A [A ] A B

A A A A A A2 A A A [A J A - B

753
A pêndices

K lo ste rm a n n
D o rm e y e r

K o len k o w
B u ltm a n n
A n d e rso n

D o n ah u e
D ib eliu s

Jo h n s o n
B u c k le y

C z e rsk i

K e lb e r
G ra n t

L an e
Mc 1 4 ,5 3 -6 5 g
a 1

eles levaram Jesus ao sumo sa­ A A Aa A A Aa Aa2 Aa Aa A A


cerdote e ali (agora) reúnem-se todos
os chefes dos sacerdotes, e os anciãos,

e os escribas.

'^E Pedro seguiu-o de longe até dentro B? A A B A2 A A


do pátio do sumo sacerdote, e ele estava
sentado junto com os guardas e se
aquecendo perto da chama abrasadora.

'^Mas os chefes dos sacerdotes e o A B A A1 A


sinédrio inteiro procuravam depoimento
contra Jesus, a fim de lhe dar a morte e
não encontravam (nenhum).
56Pois muitos davam falso depoimento
A B A C A2 - - - A
contra ele, e os depoimentos não eram
consistentes.

alguns, tendo se levantado, davam A A A A


C* - - -
falso depoimento contra ele, dizendo
58que “Nós o ouvimos dizendo que ‘eu
A A A A
destruirei este santuário feito por mão
humana e, dentro de três dias, outro não
feito por mão humana eu construirei’”.

^E mesmo assim seu depoimento não A A c - - - A


era consistente.

^ E tendo se levantado, o sumo sacerdote A A A A A


no meio (deles) interrogou Jesus, dizendo:
“Não tens absolutamente nada a respon­ " "
'
der ao que estes depõem contra ti?”.

^Mas ele ficou calado e não respon­ A Aa A Aa Ab2 A


deu absolutamente nada. Novamente o
sumo sacerdote o interrogava e lhe diz: Bb
“És tu o Messias, o Filho do Bendito?”.

^^Mas Jesus disse: “Eu sou e vós A B A Aa2 A


vereis o Filho do Homem sentado
à direita do Poder e vindo com as
" "
nuvens do céu”.

^Mas o sumo sacerdote, tendo rasgado A B A A2 A


- - -
suas vestes, diz: “Que outra necessida­
de temos de depoentes?

^Ouvistes a blasfêmia. 0 que é


evidente para vós?”. Mas eles todos
A B A A2 — - - A
julgaram contra ele como sendo cul­
pado, punível com a morte.

^ E alguns começaram a cuspir A A A? A c Ab2 A? A


nele e a cobrir sua face e golpeá-lo
e dizer-lhe: “Profetiza”; e os guardas
"
pegaram-no com tapas.

754
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

i- ----------------------------
3b

P e d d in g h a u s
M yllyk oski

S c h m ith a ls
L ü h rm a n n

S c h w eiz er
S c h n e id e r
L ig h tfo o t

S c h r e ib e r
N in e h am

Schenke

Scro gg s
Sch enk
1

S c h ille

T a y lo r
P ry k e
M ohn

P e sc h
Q J9
39

A A Aa Aa2 A Ab A Aa1 A Aa Aa Aa — [A ]
Ab3 B

A A A B* A? A3 A A A A A A — B

A A A A A A1 A? — [A ]

A A A A A A1 A — [A ]

A A B A2 Aa* - [A ]

A A B A2 A — [A ]

A A A2 - [A ]

A A A A B A1 A — [A ]

Aa Ab* A A A1 Ab Aa — [A ]
B

Aa A A A Aa1 A — [A ]
Ab2

A A A A A A1 Aa A — [A ]

A A A A A A1 Aa A? — [A ]

A A A Aca* A B A1 A — B

755
A pêndices

K lo ste rm a n n
D o rm e y e r
B u ltm a n n
A n d e rso n

D o n ah u e
1

D ib eliu s
B u c k le y

Jo h n s o n
C z e rsk i

K e lb e r
G ra n t
E rast

Kuhn

L an e
Mc 1 4 ,6 6 -7 2 -i
e
a*

Pedro estando em baixo no B A Ab2 - - “ A


pátio, vem uma das criadas do sumo
sacerdote;
^ e tendo visto Pedro se aquecendo B b B A Ab2 A
e tendo olhado para ele, ela lhe
d iz: “Tu também estavas com o
Nazareno, Jesus” .

^ ^ M a s ele negou, dizendo: “Não sei B Ba A A2 A


nem entendo o que estás dizendo” .
Ab
ele foi para fora no pórtico [e
um galo cantou].

a criada, vendo-o, começou B A A A


novamente a dizer aos circunstantes
que: “Este é um deles” .

^ aMas novamente ele o negava. B A A A


^ E pouco depois, os circunstantes
n o va m en te d iz ia m a P e d ro :
“Verdadeiramente tu és um deles,
pois de fato és galileu” .
^ Mas ele começou a amaldiçoar B A A A
e a jurar que: “ Não conheço esse
homem de quem falas” .

72 E, nesse instante, uma segunda A A Ac2 A


vez um galo can tou; e Pedro
lembrou-se da palavra como Jesus
a tinha falado para ele, que: “Antes
que um galo cante duas vezes, três
vezes tu me negarás” . E tendo saído
apressadamente, ele chorava.

756
A
A
A
A
A
A

A
L é o n - D u fo u r

A
A
A
A
A

A
A
L ig h tfo o t

L o h se

A
A
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L ü h rm a n n

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B*
B*
B*
B*
B*

B*
B*

M yllyk oski

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A
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A3
A3

A3
A3
A3
A3
A3

P e d d in g h a u s

A
A
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A

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A
A
0.
a
JS

V
V

Ab
Ab
Ab

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757
A
A
A
A

A
A
A

Sch enk

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A
A

A
A
A
A
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S c h ille

A
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S c h n e id e r

S c h r e ib e r
A

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A
A
A
A
A

S ch w eiz er

u
V
Se
Vi
to

B
B
B

B
B
B

T a y lo r
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
A p ê n d ic e s

K lo ste rm a n n
D o rm e y e r
B u ltm a n n

K o len k o w
A n d ergo n

D o n ah u e
D ib eliu s
B u c k le y

Joh n so n
C z e rsk i

K e lb e r
G ra n t

Kuhn
Mc 1 5 ,1 -1 5
j
^E nesse instante, cedo, tendo feito sua A A Ab1 A A A
consulta, os chefes dos sacerdotes com os
anciãos e escribas e o sinédrio inteiro, tendo
amarrado Jesus, levaram-no embora e o
entregaram a Pilatos.

Pilatos interrogou-o: “És tu o Rei dos Judeus?"’. A B A A A2 A A - A -


Mas em resposta, ele lhe diz: ‘Tu (o) dizes”.

3
E os chefes dos sacerdotes estavam acusando- A A A A A A1 A A - A -
-o de muitas coisas.

^Mas Pilatos tentou interrogá-lo novamente, A A A A A A A - A -


dizendo: “Não respondes absolutamente nada?
Vê de quanta coisa te acusaram”.

Mas Jesus não respondeu mais nada, de modo Aa A A A A A1 A A - A -


que Pilatos ficou espantado.

^Mas em uma/na festa ele costumava soltar A B A A1 A A - A -


para eles um prisioneiro que eles solicitassem.

^Mas havia alguém chamado Barrabás A A A A1 A A - A -


aprisionado com os desordeiros, os que
haviam cometido homicídio durante o tumulto.
g
E a multidão, tendo subido, começou a A A A A A A -
solicitar (que ele fizesse) como ele costumava
fazer para eles.
q
Mas Pilatos respondeu-lhes, dizendo: “Que­ A B A A2 A A A -
reis que eu liberte para vós ‘o Rei dos
Judeus'?”,

^pois ele tinha conhecimento de que (foi) A B A A2 A A - -


por inveja/zelo que os chefes dos sacerdotes o
tinham entregado.

^Mas os chefes dos sacerdotes instigaram A B A A1 A A - -


a multidão que ele, de preferência, soltasse
Barrabás para eles.

12
Mas em resposta novamente, Pilatos A B A A A
continuava dizendo a eles: “0 que, portanto,
farei com ele a quem vós chamais ‘o Rei dos
Judeus'?”.

13Mas eles gritaram de volta: “Crucifica-o”.


A B A A A - A -

14
Mas Pilatos continuava dizendo a eles: “Pois A B A A A -
o que fez ele que é mau?” . Mas eles gritaram
ainda mais: “Crucifica-o”.

^Mas Pilatos, desejando satisfazer a multidão, A A Ab A A1 A A Ab Ab


soltou para eles Barrabás; e ele entregou Jesus,
tendo mandado flagelá-lo, a fim de que ele
fosse crucificado.

758
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

L é o n - D u fo u r

P ed d in gh a u e

S c h m ith a ls
M yllyk oski
L ü h rm a n n

S ch w eiz er
S c h n e id e r

S c h r e ib e r
L ig h tfo o t

N in e h am

Sch enk e

Scro gg s
Sch en k

S ch ille

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L o h se

M ohn

P e sc h
L an e

 A A A* A? A2 A Ab A A*1 A* Aa? — A
B Ab

A A A A A* [A J A3 A A A1 B A - B

A A A A* A A3 A A B A1 B A* A - A

A A A A A3 A A A1 B A A — A

A A A A A3 A A B A1 B A* A - A

A A A A B* A A3 A A A2 B A* A - B

A A A A B* A A3 A C A2 B A A — B

A A A A B* A A3 A c A2 B A A — B

A A A A B* A A3 A A A2 B A A — B

A A A A B* A A3 A A2 B A A — B

A A A A B* A A3 A A c A2 B A* A — B

A A A A B* A A3 A B A2 B A B

A A A A B* A A3 A Ab B A2 B A — B
A A A A B* A A3 A Aa B A2 B A — B

A A A Ab A Aa3 A Aa B Aa2 B A A — A
Ba* Ab2 Ab * C [A b * 1]

759
A pêndices

K lo sle rm a n n
fl9

D o rm e y e r

K o len k o w
B u ltm a n n

D ib eliu s
B u c k le y

Jo h n s o n
C z e rsk i

K e lb e r
G ra n t
£a

Kuhn
Mc 1 5 ,1 6 -2 6 1fl g
9 u
1 O

^ M a s os soldados o levaram embora [A ] B A Aac2 A A -


para dentro do pátio, isto é, o pretório,
e convocaram a coorte inteira.
171E eles põem púrpura sobre ele; e [A ] B A A2 A A
tendo trançado uma coroa espinhosa,
eles a põem nele.
eles começaram a saudá-lo: “Salve, [A ] B A A2 - A A -
Rei dos Judeus” .
^ E eles golpeavam sua cabeça com [A ] B A Ab2 A A
um caniço e cuspiam nele; e, dobrando
o joelho, eles o reverenciavam.
^ aQuando escarneceram dele, eles [A a ] Ba Ab A Aa2 Ab A Aa
o despiram da púrpura e o vestiram
Ab Ab1
com suas próprias roupas. eles o
levam para fora, a fim de que pudessem
crucificá-lo;
21Ae eles obrigam certo transeunte, A A A A A1 A A A A
Simão de Cirene, chegando do campo,
pai de Alexandre e Rufo, a tomar sua
[de Jesus] cruz.
22 E eles o conduzem para o lugar A B A A A Aa^ A A A A
- -
do Gólgota, que é interpretado Lugar
da Caveira;
23°e eles estavam lhe dando vinho com A A A A A1 A A? A
- - -
mirra, mas ele não o tomou.
24 E eles o crucificam; e eles repartem A a A Aa A A Aa1 A A? Aa Aa - -
suas roupas, tirando a sorte para elas
Ab?
quanto a quem devia pegar o quê.
25J Agora era a terceira hora e eles o B A A A? A A
- - -
crucificaram.
^ E havia uma inscrição da acusação A? A A A1 A A A - A - -
contra ele, inscrita: “0 Rei dos Judeus".

760
Apêndice IX :A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

S a

Schmithals
Myllykoski
Lührmann

Schweizer
Schneider
3

Schreiber
J

Lightfoot

Nineham

Schenke

Scroggs
Schenk

Taylor
Schille
Pryke
Mohn
Lohse

Pesch
Lane

1
1 V
2 a.

A A A A A B [A ? ] A Aa A A1 B A - B
B

A A A A A B [A ? ] A A A A1 B A — B

A A A A A B [A ? ] A A A1 B A — B

A A A A A Aa* [A ? l A A A A1 B Ab - B
Bb

A A A A A Ab [A a?] A b 2 A Aa A A1 B Ab A Ab1 B
Ab Ab*

A A A A A A2 A A A A2 B A A A A1 A

A A A Aa A A2 A Aa A A1 B A Aa A A1 A

A A A A A A A3 A A A A1 B A A A1 A

A A A A Aa Aa A2 A A A A1 B A A Aa Aa1 A
Bb [A b ] A b 3

A A A A A1 A B A1 B B [A ] A2 B

A A A A A A1 A B A1 B B A A 4? A

761
A pêndices

K lo ste m ia n n
D o rm e y e r
B u ltm a n n
A n d e rso n

K o len k o w
D o n ah u e
D ib eliu s
B u c k le y

Joh n so n
C z e rsk i

K e lb e r
G ra n t
E rn st

Kuhn
Mc 1 5 ,2 7 -3 9

com ele eles cru cifica m dois A A? A A A1 A A A - A - -


bandidos, um à direita e outro à sua
esquerda.
29 E os que passavam por ali estavam A A A A A Aa Aa A
blasfem ando contra ele, sacudindo
a cabeça e dizendo: “A h ! ó aquele
destruindo o santuário e construindo-o
em três dias,
^ sa lv a -te a ti mesmo, tendo descido A A A A A - A - -
da cruz” .

^Sim ilarm ente, também os chefes dos A B A A Aa1 A A


sacerdotes, escarnecendo dele entre
si com os escribas, estavam dizendo: Ab2
“Outros ele salvou; a si mesmo ele não
pode salvar.
32 Que o M essias, o R ei de Israel, A Ba A A Aa2 A Ab Ab A
desça agora da cruz. a fim de podermos
ver e crer” . Mesmo os que tinham sido Ab Ac1
crucificados junto com ele estavam
insultando-o.
33J E a sexta hora tendo chegado, a B B A A A A* ?
- -
escuridão cobriu a terra inteira até a
nona hora.
^ E na nona hora Jesus vociferou com um B B A A Aab1 A A A* ?
forte grito: “ Eloi, Eloi, lama sabachthani?"
que se traduz: “Meu Deus, meu Deus, por
que razão me abandonaste?”
35J E alguns dos circunstantes, tendo B B A A A A A A* ?
- - -
ouvido, estavam dizendo: “O lhai, ele
está gritando para Elias” .
^ M a s alguém, correndo, tendo enchido A a B Aa? A A A A A A*?
uma esponja com vinho avinagrado,
tendo-a posto em um caniço, estava Bb
lhe dando para beber, dizendo: “Deixai
(estar). Vejamos se Elias vem descê-lo”.
37 Mas Jesus, tendo soltado um forte A A? A A A1 A A A A* ?
- - -
grito, expirou.
^ E o véu do santuário foi rasgado em B A A1 - A* ? - -
dois de alto a baixo.
39 Mas o centurião que tinha estado de A A A A A A*?
pé ali na frente dele, tendo visto que ele
assim expirou, disse: “Verdadeiramente,
este homem era Filho de Deus".

762
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pté-m arcana da Paixão

Léon-Dufour
=co

Myllykoski

Sehmithals
Lührmann

Schweizer
Schneider

Schreiber
Lightfoot

Nineham

Schenke

Scroggs
Schenk

Schille

Taylor
1

Mohn
Lohse

Pryke
Pesch
Lane
T3
•9
a-

i
A A A A A A A A2 A A A1 B A A A B

A A A Aa Ba A2 A A Aa1 B A* Ba A Aa3 A
B Ab2

A A A B* A2 A B A2 B A A A3 A

A A A Ac3 A Ab1 B A Ab3 B

A A A Ab Ab Aa b 3 A A1 B A* Bc Ab Aa4 B
Ac2

A A A A A1 A B A2 B B IA ] A2 B

A A A A B* A? Aa2 A Aa B Aa] B A* Ba [Al Aa2 A


Ab e d 3 Abc3

A A A A A? A2 A A B A A A

A A A A Ba Aa Aa2 A Ab Aa1 B A A Aa3 A


Ab ? Abc3

A A A A B* A A2 A A B A1 B A B A Aa2 A

A A A A A 1/2 A A B A2 B B fA ] B

A A A? A2 A B A1 B [ A 2] A

763
A pêndices

1----------------------------

K lo ste rm a n n
a

D o rm e y e r
B u ltm a n n

K o len k o w
D o n ah n e
B u c k le y

Jo h n s o n
C z e rs k i

K e lb e r
i %

G ra n t
IV
M c 15 ,4 0 -4 7
i
i
5
E
Eú J
^ M a s havia também mulheres ob­ A A1 A
servando de longe, e entre elas Maria
Madalena e Maria, mãe de Tiago Menor
e de Joset, e Salomé
^ (q u e , quando ele estava na Galileia, A A
costumavam segui-lo e se rvi-lo ), e
muitas outras que tinham subido com
ele a Jerusalém.
42 E, sendo já o entardecer, como era A Ab1 A - - -
dia de preparação, isto é, o dia antes
do sábado,
^ Jo s é de Arimateia, tendo vindo (um LA] A Aac^ A
respeitado membro do conselho que
estava também ele próprio esperando o
Reino de Deus), tendo tomado coragem,
veio diante de Pilatos e solicitou o corpo
de Jesus.
^ M a s Pilatos ficou espantado que ele [B ?] A A
já tivesse morrido; e, tendo chamado
o centurião, interrogou-o se ele estava
morto havia algum tempo.
^ E , tendo vindo a saber do centurião, [B ?] A A
ele concedeu o cadáver a José.

^ E tendo comprado um pano de linho, [A ] A Aa1 A


tendo-o descido, com o pano de linho ele
o amarrou e pós em um lugar de sepulta-
mento que foi escavado na rocha; e rolou
uma pedra contra a entrada do túmulo.
^ M a s M aria M adalena e M aria de [A ] A A ~ ~ -
Joset estavam observando onde ele
foi colocado.

764
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

Léon-Dufour

Schmithals
Myllykoski
Lühnnann

Schweizer
Schneider

Schreiber
Lightfoot

Nineham

Schenke

Scroggs
Schenk

Schille

Taylor
Lohse

Pryke
Pesch
Mohn
Lane
j
?

i
i
A A A A A B* A? A Ab B A A B

A A A A A Aa? A A B A B

A A A A B* A A A »1 C Ab [A ] - A

A A A B* A A Aa c A1 C A [A ] A

A A A B* A A A1 c A A

A A A B* A A A1 c A [A ] A

A A A A B* A A c A1 c A [A ] A

A A A A A A A c A1 c A [A ] B

765
A p Enoices

C. Exame de métodos e critérios

É possível classificar os métodos que os biblistas empregam para determinar


a forma e o conteúdo das fontes ou tradições que estão por trás da NP marcana de
várias maneiras; mas eu o farei sob cinco títulos, conforme indiquei no esboço no
início do APÊNDICE.

1. Paralelos

Os biblistas concentram-se em paralelos entre a NP marcana e outros escri­


tos, a fim de fazer comparações de forma, conteúdo, sequência, linguagem e estilo.
Bultmann (BHST, p. 275) acha os paralelos entre Marcos e João significativos,
pois é muito provável que esses autores tenham escrito de modo independente um
do outro. Ernst (“ Passionserzáhlung”, p. 171) estuda a NP marcana em relação à
confissão cristã primitiva de ICor 15,3-4. Lane (Mark, p. 485) compara Marcos com
fragmentos de tradição encontrados nos Atos, em 1 Coríntios, em Gálatas e em 1
Timóteo. Lohse (History, p. 15-16) compara Mc 10,33-34 e os sermões na primeira
parte dos Atos com a NP marcana. Schneider (“ Gab” p. 27,35-38) compara partes
da NP lucana com segmentos da NP marcana. Além disso, muitos biblistas notam
paralelos entre a NP marcana e certos textos veterotestamentários, principalmente
dos Salmos e do Dêutero-Isaías.6 Por fim, ao discutir a sequência dos julgamentos
em Marcos, outros consideram o tratado da Mixná Sanhedrin como paralelo.7

Paralelos entre a NP marcana e outras obras ou tradições neotestamentárias


são usados para reconstruir uma forma mais primitiva e mais simples da NP, pois
presume-se que tradições encontradas apenas na NP marcana são secundárias.
Materiais veterotestamentários permitem aos biblistas verem possíveis linhas de
influência e evolução que levam à NP. Os materiais da Mixná formulam perguntas
gerais a respeito da plausibilidade histórica da NP marcana.

Entretanto, surgem problemas na aplicação desse método de estudo. Com


respeito a materiais paralelos encontrados em outras passagens do NT, é válida
a suposição de que apenas os pontos comuns compartilhados por Marcos e outra*1

6 Por exemplo, Donahue (Are You, p. 53-102) e Lohse (History).


1 Ver em Winter (On the Trial, esp. p. 23, nota 6) uma história geral do emprego erudito do tratado Sanhe­
drin para criticar a NP marcana. Ver uma esmerada análise dos problemas em Blinzler, Trial e Prozess.
Entre biblistas com opiniões registradas no Quadro 14, ver Grant, Earliest, p. 177-178.

766
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

tradição neotestamentária formaram a NP mais antiga (por exemplo, Ernst)? Embora


esse método ajude-nos a recuperar uma forma mais simples da NP, precisamos nos
lembrar que nada foi provado quanto à forma e substância da NP específica que se
presume ter sido empregada por Marcos. A NP pré-marcana talvez já tivesse uma
história tradicional complexa antes de sua incorporação à NP marcana. Quanto a
paralelos veterotestamentários, é difícil ou impossível determinar como as linhas
da tradição mais primitiva foram influenciadas pelos textos veterotestamentários
que dão qualidade teológica aos acontecimentos descritos (por exemplo, Dibelius).
Como saber em que época o motivo veterotestamentário foi incluído na tradição da
Paixão — antes de Marcos ou por Marcos? Finalmente, por causa da data tardia da
codificação da Mixná, a relevância de seus textos é questionável. Como sabemos se
o procedimento descrito no tratado Sanhedrin era realmente praticado no século I?

2 . Tensões internas

Dentro do texto da NP marcana, há enigmas observáveis às vezes usados


como sinais de expansões secundárias de fontes/tradições da NP original. H. W.
Anderson fala de ligações desajeitadas entre Mc 14,46.47.48.49a e 49b.8 Bult-
mann identifica 14,55-64 e 15,1 como duplicatas.9 Dibelius (Message, p. 145-
146) descreve a cena no Getsêmani como fragmento que interrompe a fluidez da
tradição maior, unificada e contínua da NP. Kolenkow afirma que certo material se
destaca como tradição pré-marcana porque Marcos não preparou o leitor para as
informações que ele transmite.10 Schmithals (Markus, v. 2, p. 694) considera Mc
15,33.38 e 39 criações marcanas, porque esses versículos acrescentam um motivo
mais completamente helenizado que a narrativa básica, por exemplo, o motivo da
morte de Jesus como o Filho de Deus.

8 Mark, p. 321-322. Em resultado de sua análise das tensões internas encontradas em Mc 14,43-52,
Anderson conclui que os vv. 47, 48 e 49b foram adições marcanas.
9 BHST, p. 276-277. A partir da identificação desses fragmentos como duplicatas, Bultmann conclui que
“histórias especiais constituem o ingrediente principal da narrativa da Paixão” . O “ relato detalhado”
de Mc 14,55-64 divide a tradição de Pedro e se chama “ explicação secundária da breve declaração de
Mc 15,1” .
10 “Trial” , p. 551-553. Um exemplo dessas informações é o título “o Rei dos Judeus” . A inferência dessa
asserção é a maior probabilidade de ser atribuído a Marcos o material para o qual ele preparou o leitor.
Esse raciocínio é obviamente questionável.

767
A pêndices

Esse método tenta lidar com o incomum e/ou difícil dentro do texto e fazer
sentido de problemas evidentes. Ao operar de modo semelhante à crítica textual,
esse método prefere uma explicação simples a uma mais complicada. Mas é válida
essa inerente predisposição para a simplicidade e a continuidade? Inconsistências
que nos parecem problemáticas evidentemente não pareciam ser problemas para o
autor que produziu o texto final que temos; e como podemos ter certeza de que as
supostas inconsistências não existiam em uma etapa pré-marcana mais primitiva?
Em suma, esse método não distingue entre elementos secundários que Marcos
acrescentou e elementos secundários que se tornaram partes da NP antes de ela
chegar até Marcos.

3 . Vocabulário e estilo

Os biblistas empregam estes critérios de várias maneiras. Muitos comparam


frases e sentenças de Marcos com o grego usual do período e, assim, descobrem
padrões habituais de gramática, sintaxe e escolha de palavras marcanas. Bultmann
(BHST, p. 262-274) concentra-se simplesmente no estilo e considera certas partes
da NP marcana modificações por causa de seu caráter explicativo secundário. Por
outro lado, ao compilar uma lista de características redacionais das declarações
marcanas introdutórias e finais, Donahue (Are You, p. 53-102), Kelber (KKS, p.
537-543), Kolenkow (“Trial”, p. 550-556) e Pryke (Redactional) afirmam distinguir
entre elementos marcanos e não marcanos em qualquer perícope confirmada. Ao
distinguir a linguagem marcana da não marcana, Mohn concentra-se nas palavras
“hora” e “sono/dormir”. Taylor (Mark, p. 649-664) usa os critérios linguísticos
de realismo e a presença de possíveis semitismos dentro de uma narrativa para
distinguir uma fonte pré-marcana de outra.

Quando usados em conjunto com outro critério, os critérios de vocabulário e


estilo proporcionam informações úteis para entender a possível história da tradição.
Por exemplo, pela comparação do vocabulário de tradições paralelas encontradas nas
NPs marcana e joanina, o intérprete pode esclarecer as tradições que estavam por
trás desses relatos. Além disso, a ênfase em estilo e vocabulário ajuda o intérprete
a identificar e concentrar a atenção em temas significativos da NP. Mesmo assim, o
emprego de estilo e vocabulário para distinguir elementos marcanos de elementos
pré-marcanos na NP não demonstra ser o critério definitivo que alguns críticos
afirmam ser. Sinais de estilo marcano não nos dizem se Marcos criou a narrativa

768
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

independentemente ou apenas tornou a contar com suas palavras uma narrativa


que encontrou em uma NP mais primitiva. Resultados controversos são produzidos
ao se isolar uma parte da narrativa por meio de métodos estritamente linguísticos.11

4 . Temas teológicos e m otivos literários

Os biblistas afirmam que a presença destes temas e motivos na NP marcana


pode ser usada como guia para a composição marcana, porque ou são característi­
cos do Evangelho de Marcos como um todo (e assim presumivelmente originam-se
dele) ou não são (e assim presumivelmente originam-se de outra fonte, a saber, de
uma NP pré-marcana).

Ernst (“ Passionserzãhlung”, p. 173-176) concentra-se nos títulos de Cris­


to, tais como “ Filho de Deus” (Mc 14,61-62; 15,39), nos sinais da natureza (Mc
15,33.34.38) e no horário (Mc 15,25.33-34) na NP marcana, a fim de distinguir
elementos marcanos de elementos pré-marcanos. Kuhn (“Jesus” ) estuda a cena do
Getsêmani e encontra dois temas que revelam duas fontes pré-marcanas: uma fonte
cristológica caracterizada pela referência à hora de Jesus e uma fonte parenética
que se refere ao cálice. Schille (“ Leiden” ) distingue os dias na NP marcana e fala
de uma fonte pré-marcana, que consiste em três fragmentos, outrora separados, que
se concentravam na quinta-feira, na sexta-feira e no túmulo. Schreiber (Theologie,
esp. p. 32-33), seguido por Schenk (Passionsbericht), distingue dois temas teoló­
gicos que lhe permitem supor duas fontes pré-marcanas: uma apologética; a outra,
uma declaração sobre a morte de Jesus de uma perspectiva veterotestamentária/
apocalíptica.

0 foco desse método é útil para distinguir entre elementos literários pri­
mordiais e secundários. Contudo, há problemas. Primeiro, se um tema ou motivo
aparece somente na NP e não em outras passagens de Marcos, não há nenhuma
garantia de que seja pré-marcano. Talvez o único lugar apropriado para esse tema/
motivo aparecer seja no contexto da NP (por exemplo, “o Rei dos Judeus” ). Se um
tema ou motivo aparece na NP e no restante do Evangelho, não podemos automa­
ticamente concluir que esse elemento é originalmente marcano. Um tema/motivo

11 0 meticuloso estudo por Scroggs (KKS, p. 529-537) do valor de estilo e vocabulário para distinguir
tradições marcanas e pré-marcanas reúne provas estatísticas contra a afirmação de que foram estabe­
lecidos critérios definitivos pelos quais os críticos fazem essas distinções usando métodos estritamente
linguísticos.

769
A pêndices

poderia ter estado presente na NP pré-marcana e ter impressionado tanto Marcos


que ele preparou o leitor para esse tema/motivo da NP nas seções do Evangelho
anteriores à NP. Um tema específico poderia ter estado na NP marcana e também
em outra fonte diferente de Marcos; ou, na verdade, na NP marcana, no restante
do Evangelho e em uma fonte que não Marcos. Depois de fazer essa observação,
precisamos reconhecer que não possuímos instrumentos para determinar se o
tema/motivo foi empregado primeiro pelo autor de Marcos ou em uma etapa mais
primitiva da história da tradição.

5 . Agrupam entos conceituais

Scroggs (KKS, p. 556-563) defende o emprego de agrupamentos conceituais


no estudo da NP marcana. Ao estudar Mc 15,20b-39, ele afirma que o pesquisador
“ tem como único indício o conteúdo da linguagem”, pois “em uma narrativa tão
sucinta, assuntos de estilo e escolha de palavras são incertos demais para serem
usados com confiança” (p. 557). Assim, Scroggs identifica “materiais na história,
agrupados ao redor de certas estruturas conceituais [isto é: a) o arranjo das horas;
b) Jesus como o justo sofredor; c) Jesus como o Messias; d) as referências a Elias;
e e) as referências ao santuário do Templo], que são diferentes de outras estruturas
conceituais, se não contraditórios a elas”. Ao separar esses agrupamentos (de a] a e],
acima) da narrativa básica, ele identifica Mc 15,20b-24a como “seção estreitamente
organizada” (p. 559), à qual os agrupamentos conceituais foram posteriormente
acrescentados. Ele fala, “somente com a maior cautela, de certas etapas pelas
quais a narrativa passou, cada etapa contribuindo com um motivo próprio para a
interpretação teológica da morte de Jesus”.

Assim, ao distinguir entre agrupamentos conceituais e um núcleo da narra­


tiva, esse método permite ao intérprete descrever especulativamente a história da
tradição. A franca admissão da natureza especulativa dessa reconstrução é por si
só uma força, embora signifique que a certeza nunca será alcançada. Contudo, esse
método sofre da fraqueza de não distinguir fases marcanas de fases pré-marcanas
no desenvolvimento da tradição. Além disso, o intérprete que emprega esse método
corre dois riscos: 1) a tentação de forçar partes da tradição em agrupamentos para
os quais elas não estão totalmente qualificadas e 2) a possibilidade de ignorar

770
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

certos elementos da tradição ao reconstruir a história da tradição porque não há


lugar conveniente para situar esses fragmentos.12

D. Conclusões

Nosso levantamento dos métodos que os biblistas empregam para determinar


a forma e o conteúdo das fontes ou tradições que estão por trás da NP marcana
leva a diversas conclusões: 1) Nenhum método único permite-nos distinguir ele­
mentos marcanos de elementos pré-marcanos na NP e, assim, devemos perceber
a necessidade de usar uma série de métodos que seja a mais completa possível.
2) Já que existem forças e fraquezas inerentes em cada um dos métodos que em­
pregamos, devemos variar esses métodos, deixando que o texto sugira os métodos
mais apropriados para o estudo. 3) Por reconhecermos o perigo de determinados
métodos produzirem resultados específicos e muitas vezes previsíveis, as conclu­
sões quanto à existência ou não existência de uma NP pré-marcana precisam ser
cuidadosamente graduadas.

Não está dentro dos limites deste estudo tentar uma nova reconstrução da
NP pré-marcana. Entretanto, é possível perguntar se essas advertências quanto às
limitações dos instrumentos críticos levam a uma conclusão estritamente negativa
com respeito a nossa capacidade de saber alguma coisa sobre a NP pré-marcana.
Creio que não.

Estando onde está no Evangelho de Marcos, a descrição de Judas em Mc


14,43 (“Judas, um dos Doze” ) é notável. 0 leitor precisa dessa informação? Não.
Marcos apresenta Judas duas vezes (Mc 3,19; 14,10) antes de Mc 14,43. Tão pró­
ximo quanto em Mc 14,10, Marcos descreve Judas Iscariotes como um dos Doze.
Embora seja correto descrever o estilo marcano como às vezes redundante, não é
justo dizer que o Evangelho de Marcos caracteriza-se por tal repetição quase inútil,
como ocorre em Mc 14,43.13 A explicação que melhor justifica a redundância de

12 Em sua reconstrução, Scroggs nunca justifica Mc 15,27.


13 Talvez os leitores achem engraçado saber que o argumento que uso para mostrar nossa capacidade de
perceber uma NP pré-marcana contradiz um ponto que Brown afirmou em seu comentário (§ 13). Ele
argumenta que a repetição de “um dos Doze” não é redundante, pois no próprio momento da traição
a frase enfatiza a atrocidade do que acontece: é um dos próprios Doze de Jesus que o entrega. Talvez
eles também achem engraçado saber que, desde o primeiro esboço (1982) e a subsequente revisão para
publicação (1985) da obra que agora aparece neste APÊNDICE, tomei-me menos entusiasmado quanto a
esse argumento específico a favor de uma fonte pré-marcana da NP.

771
A pêndices

Mc 14,43 é que Marcos está empregando uma fonte. Sem as partes mais primitivas
do Evangelho de Marcos, o leitor precisa de informações referentes a Judas, tais
como Mc 14,43. Mas, o que devemos concluir da presente repetição? A descrição
em Mc 14,10 deve ser redação marcana baseada em parte em Mc 14,43. Quando
apresenta Judas ao leitor, Marcos o faz em uma lista dos Doze (Mc 3,14-19). Em
Mc 3,19, quando Marcos menciona Judas, ficamos sabendo 1) que Judas é “Judas
Iscariotes” e 2) que é o “que na verdade entregou-o [Jesus]”. Em Mc 14,43, Judas
é simplesmente “Judas”,14e é descrito como “um dos Doze”. Assim, é provável que,
quando Marcos descreve “Judas Iscariotes, (aquele) um dos Doze” (em Mc 14,10), o
nome Judas Iscariotes reflita Mc 3,19 e a descrição “um dos Doze” reflita Mc 14,43.
A forma do nome e a descrição em Mc 14,10, bem como a repetição desnecessária
de informações basicamente desnecessárias em Mc 14,43, sugerem que Marcos
usa uma fonte para este último versículo.

0 que se pode dizer quanto a essa fonte? 1) Não sabemos com certeza
absoluta onde a fonte começou, mas essa teria sido a primeira menção a Judas. 2)
Não haveria uso para uma tradição que relatasse apenas que Judas entregou Jesus.
Portanto, a atividade de Judas a essa altura exige que a história continue com um
relato da prisão, condenação e execução de Jesus. Entretanto, não temos certeza
absoluta quanto a onde a fonte marcana teria terminado.

Quando voltamos a atenção para o relato marcano da prisão, condenação


e execução de Jesus, encontramos uma narrativa com uma história complexa de
tradições, como mostra a obra de Bultmann e Scroggs. Mesmo assim, a presente NP
marcana (como estudamos em Mc 14,32-15,47) não tem margens extremamente
irregulares ou emendas óbvias. Marcos insere com habilidade em seu Evangelho
toda fonte que ele emprega, deixando apenas traços (por exemplo, Mc 14,43) da
existência mais primitiva da fonte.

Desse modo, nossa investigação nos traz a uma conclusão positiva e a um


ponto de desafio. Podemos seguramente concluir que, para escrever sua NP, Mar­
cos usa uma fonte. Entretanto, só conhecemos essa fonte da maneira como está
incorporada em Marcos. 0 maior desafio diante de nós não é a separação entre
a tradição e a redação marcana; pois, como mostra nosso trabalho anterior, essa

14 O apoio textual para acrescentar “ Iscariotes” é fraco e nem Mateus nem Lucas leem esse nome em Marcos.
A inserção é facilmente justificada como modificação dos copistas que põe essa referência a Judas em
conformidade com as duas referências mareanas anteriores a ele.

772
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão

tarefa talvez acabe sendo impossível. Mais exatamente, precisamos investigar as


ricas camadas de tradições que nos chegam na forma da NP marcana. E ssa con­
clusão não significa que podemos simplesmente descartar toda noção de atividade
editorial. Exige, entretanto, que uma preocupação com os dados desse trabalho
editorial não seja nossa preocupação principal.15

15 A posição que adoto é semelhante à de Juel, Messiah.

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