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A Morte Do Messias - Vol 2 - Raymond E Brown
A Morte Do Messias - Vol 2 - Raymond E Brown
A Morte Do Messias - Vol 2 - Raymond E Brown
MESSIAS
C o leçã o B ÍB L IA E H ISTÓ RIA
• A mulher israelita: papel social e modelo literário na narrativa bíblica —
Athalya Brenner
• Culto e comércio imperiais no apocalipse de João - J . Nelson Kraybill
• É possível acreditar em m ilagres? - Klaus Berger
• Esperança da glória, A —David A. deSilva
• Igreja e comunidade em crise: o evangelho segundo Mateus - J . Andrew Overman
• Jesu s exorcista: estudo exegético e hermenêutico de Mc 3, 20-30 -
Irineu J. Rabuske
• Metodologia de exegese bíblica - Cássio Murilo D ias d a Silva
• Moisés e suas m últiplas facetas: do Êxodo ao Deuteronômio —Walter Vogeis
• O judaísm o na Antiguidade: a história política e as correntes religiosas de
Alexandre Magno até o imperador Adriano —Benedikt Otzen
• O projeto do êxodo —M atihias Grenzer
• Os evangelhos sinóticos: formação, redação, teologia —Benito Marconcini
• Os reis reformadores: culto e sociedade no Judá do Pimeiro Templo -
Riehard H. Lowery
• Pai-nosso: a oração da utopia - Evaristo Martin Nieto
• Para compreender o livro do Gênesis —Andrés Ibanez Arana
• Paulo e as origens do cristianismo - Michel Quesnel
• Profetismo e instituição no cristianismo primitivo —Guy Bonneau
• São João —Yves-Marie Blanchard
• Simbolismo do corpo na Bíblia - Silvia Schroer & Thomas Staubli
• Terra não pode suportar suas palavras; reflexão e estudo sobre Amós, A —
Milton Schwantes
Série MAIOR
A MORTE DO
MESSIAS
COMENTÁRIO DAS NARRATIVAS DA PAIXÁO
NOS QUATRO EVANGELHOS
Volume II
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Título original: The death o f the Messiah - from Gethsemane to the grave: A Commentary on the
Passion Narratives in the Four Gospels, volume II
Pauíinas
R ua Dona Inácia Uchoa, 62
04110-020 - São Paulo - S P (B rasil)
Te l.: (11)2125-3500
http://w w w .paulinas.org.br - editora@ paulinas.eom .br
Telem arketing e S A C : 0800-7010081
© P ia Sociedade Filh as de São Paulo - São Paulo, 2011
Sumário do volume II
Abreviaturas......................................................................................................................................................................................... 7
Apêndices..........................................................................................................................................................................................523
AB Anchor Bible
AER American Ecclesiastieal Review
AJBI Annual o f the Japanese Biblical Institute
AJEC P. Richardson, org. Anti-Judaism in Early Christianity; Vol 1:
Paul and the Gospels. Waterloo, Ont., Canadian Corp. for Studies
in Religion & Wilfred Laurier Univ., 1986
AJINT W, P. Eckert et alii, orgs. Antijudaismus im Neuen Testament?
München, Kaiser, 1967
A JSL American Journal ofSemitic Languages and Literature
AJT American Journal o f Theology
AnBib Analecta Biblica
AnGreg Analecta Gregoriana
ANRW Aufstieg und Niedergang der rõmischen Welt
Ant. Antiguidades judaicas, de Flávio Josefo
AP R. H. Charles, org. Apocrypha and Pseudepigrapha o f the Old
Testament. Oxford, Clarendon, 1913, 2 v.
AsSeign Assemblées du Seigneur
ASTI Annual o f the Swedish Theological Institute
AT Antigo Testamento
ATANT Abhandlungen zur Theologie des Alten und Neuen Testaments
ATR Anglican Theological Review
A.U.C. anno urbis conditae ou ab urbe condita (no ano especificado da
fundação de Roma)
AUSS Andrews University Seminary Studies
BA Biblical Archaeologist
7
A m orte do Messias
8
Abreviaturas
9
A m orte do Messias
10
Abreviaturas
12
Abreviaturas
JSNTSup Journal for the Study of the New Testament — Série suplementar
JTS Journal o f Theological Studies
KACG H. Koester. Ancient Christian Gospels. Philadelphia, Trinity, 1990
KBW Katholisches Bibelwerk. Stuttgart, Verlag
KJ King James ou Versão autorizada da Bíblia
KKS W. H. Kelber; A. Kolenkow; R. Scroggs. Reflections on the Ques-
tion: Was There a Pre-Markan Passion Narrative? SBLSP, 1971,
v. 2, p. 503-586
Kyr P. Granfield & J. A. Jungmann, orgs. Kyriakon. Münster, Aschen-
dorff, 1970, 2 v.
LB Linguística Bíblica
LD- Lectio Divina
LFAE A. Deissmann. Light from the Ancient East, ed. rev. New York,
Doran, 1927 (TU 68)
LKS H. Lietzmann. Kleine Schriften II. Berlin, Akademie, 1958
LS Louvain Studies
LumVie Lumière et Vie
LXX Septuaginta — Tradução grega do Antigo Testamento
MACM H. Musurillo. TheActs ofthe Christian Martyrs. Oxford, Clarendon,
1972
MAPM H. Musurillo. The Acts o f the P agan Martyrs. Oxford, Clarendon,
1954
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Edinburgh, Clark, 1908-1976, 4 v.
MIBNTG C. F. D. Moule. An Idiom-Book of New Testament Greek. Cambridge
Univ., 1960
MM J. H. Moulton & G. Milligan. The Vocabulary o f the Greek New
Testament Illustrated from the Papyri and Other Non-Literary
Sources. [reimpr.:] Grand Rapids, Eerdmans, 1963
MMM Manuscritos do Mar Morto
13
A m orte do Messias
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tingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1983 (E. Schweizer Festschrift)
ms., mss. manuscrito(s)
MTC B. M. Metzger. A Textual Commentary on the Greek New Testament.
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MTZ Münchener Theologische Zeitschrift
NAB New American Bible
NDIEC New Documents Illustrating Early Christianity
NEB New English Bible, 1961
NEv F. Neirynck. Evangélica, Gospel Studies - Études d ’Êvangile. Lou-
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1966-1981; o v. 2, entre 1982-1991)
NHL J. M. Robinson, org. The N ag Hammadi Library. New York, Harper
& Row, 1988
NICOT New International Commentary on the Old Testament
NJBC R. E. Brown et alii, orgs. The New Jerome Biblical Commentary.
Englewood Cliffs, N. J. Prentice-Hall, 1990. Referências a artigos
e seções
NKZ Neue Kirchliche Zeitschrift
NorTT Norsk Teologisk Tidsskrift
NovT Novum Testamentum
NovTSup Novum Testamentum, Supplements
NP Narrativa da Paixão. Quase sempre as narrativas da Paixão dos
Evangelhos canônicos, que para este livro são Mc 14,26-15,47;
Mt 26,30-27,66; Lc 22,39-23,56; Jo 18,1-19,42
NRSV New Revised Standard Version o f the Bible
NRT Nouvelle Revue Théologique
NS new series (de periódicos)
NT Novo Testamento
NTA New Testament Abstracts
NTAbh Neutestamentliche Abhandlungen
14
Abreviaturas
15
A m orte do Messias
16
Abreviaturas
17
A m orte do Messias
18
Abreviaturas
19
A m orte do Messias
Os nomes Marcos, Mateus, Lucas e João são usados para os escritos e também
para os autores. Não é feita nenhuma conjetura quanto à identidade dos evangelistas;
assim, quando empregado para o autor, João significa quem quer que tenha sido o
autor principal do Evangelho segundo João. Mc/Mt é usado onde Marcos e Mateus
(Evangelhos ou evangelistas) estão tão próximos a ponto de se considerar que eles
apresentam os mesmos dados ou o mesmo ponto de vista.
20
Q uarto ato :
Análise:
§ 40. Jesus crucificado, primeira parte: 0 cenário (Mc 15,22-27; Mt 27,33-38; Lc 23,33-
34; Jo 19,17b-24)
Comentário:
#1. O nome do lugar (Mc 15,22; Mt 27,33; Lc 23,33a; Jo 19,17b)
#2. A oferta inicial de vinho (Mc 15,23; Mt 27,34)
#3. A crucificação (Mc 15,24a; Mt 27,35a; Lc 23,33b; Jo 19,18a)
#4. A divisão das roupas (Mc 15,24b; Mt 27,35b; Lc 23,34b; Jo 19,23-24)
#5. A terceira hora (Mc 15,25); os soldados mantêm guarda (Mt 27,36)
#6. A inscrição e a acusação (Mc 15,26; Mt 27,37; Lc 23,38; Jo 19,19-22)
#7. Dois bandidos ou malfeitores (Mc 15,27; Mt 27,38; Lc 23,33c; Jo 19,18b)
#8. “Pai, perdoa-lhes” (Lc 23,34a)
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: atividades no local da cruz
(Mc 15,29-32; Mt 27,39-44; Lc 23,35-43; Jo 19,25-27)
Comentário:
• O triplo escárnio de Jesus (Mc 15,29-32; Mt 27,39-44; Lc 23,35-39)
• A salvação do outro malfeitor (Lc 23,40-43)
• Amigos e discípulos perto da cruz (Jo 19,25-27)
Análise:
A. Historicidade
B. Algumas notas teológicas adicionais
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últimos acontecimentos, morte
(Mc 15,33-37; Mt 27,45-50; Lc 23,44-46; Jo 19,28-30)
Comentário:
• Escuridão na sexta hora (Mc 15,33; Mt 27,45; Lc 23,44-45a)
• O grito mortal de Jesus; Elias; oferta de vinho avinagrado (Mc 15,34-36; Mt
27,46-49)
• O grito mortal de Jesus em Lc 23,46
• As últimas palavras de Jesus e a oferta de vinho em Jo 19,28-30a
• A morte de Jesus em todos os Evangelhos
Análise:
A. Teorias de como Mc 15,33-37 foi composto
B. As últimas palavras de Jesus: tradição mais antiga e/ou historicidade
Sum ário do quarto ato, cena um
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§ 37. Bibliografia da seção para a cena um do quarto ato: A crucificação de Jesus
29
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Parte IV: Cenário: título, terceira hora, vestes, o primeiro gole,"Pai, perdoa-lhes" (§ 40)
31
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32
§ 37. Bibliografia da seção para a cena um do quarto ato: A crucificação de Jesus
Parte V: Relatos sinóticos das atividades na cruz; o "Bom Ladrão" lucano (§ 41)
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v. 5/2, p. 361-363 (“Aramâische Herrenworte” a respeito de Lc 23,42-43).
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B ishop, E. F. F. oua. Mark xv 29: A Suggestion. ExpTim 57,1945-1946, p. 112.
B lathwayt, T. B. The Penitent Thief. ExpTim 18,1906-1907, p. 288
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DE LA C alle ,F. “Hoy estarás conmigo en el Paraíso” . í Vision inmediata de Dios o puri-
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33
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
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0 ’N eill , J.C. The Six Amen Sayings in Luke. JTS ns 1 0 ,1 9 5 9 , p. 1-9, esp. 8 -9 a respeito
de Lc 23,43.
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T rilling , W. La promesse de Jésus au bon larron (Lc 23,33-43). AsSeign 96, 1967, p.
31-39. Reimpresso com pequenas modificações como Le Christ, roi crucifié, em
AsSeign 2d. Ser., 65,1973, p. 56-65.
W eisengoff , J. F. Paradise and St. Luke 23:43. AER 103,1940, p. 163-167.
Parte VI: Os que estavam perto da cruz (Jo 19,25-27); identidade das mulheres (§ 41)
( E st u d o s d o s v e r s íc u l o s o n d e o i n t e r e s s e p r in c ip a l é p r im o r d ia l m e n t e m a -
34
§ 37. Bibliografia da seção para a cena um do quarto ato: A crucificação de Jesus
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K oehler ,T. Les principales interprétations traditionnelles de Jn 19,25-27, pendant les
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§ 37. Bibliografia da seção para a cena um do quarto ato: A crucificação de Jesus
45
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos
da crucificação e do sepultamento
1 Seria possível ampliar isso até Mt 2 7 ,6 6 .0 sepultamento (Mt 27,57-61) e a guarda no túmulo (Mt 27,62-
66), embora concluam a NP, fazem parte de uma narrativa em cinco seções da ressurreição (§ 48 A,
Quadro 9).
47
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
2 Esses períodos fazem parte de um padrão maior de tempo que percorre toda a NP marcana (§ 28), mas
não são úteis para subdividir o relato da crucificação (por exemplo, as referências à sexta e à nona horas
encontram-se em um único versículo!).
3 Ver Kingship, p. 57. Ele alega que as referências à 3a e à 6a horas agrupam material tradicional, igno
rando o que relatei na nota 2. É imaginoso chamar “ Eles põem púrpura sobre ele” e “ Eles o despiram
da púrpura” , em Mc 15,17.20a, repetição eombinadora; são apenas ações correlatas. Digo o mesmo
de “ Ele está gritando para Elias” e “Vermos se Elias vem deseê-lo” , em Mc 15,35.36. Também acho
forçada a divisão proposta por Robbins (“ Reversed”), que junta em uma única unidade (Mc 15,16-24)
o escárnio romano de Jesus no pretório, Jesus sendo levado à crucificação, algumas das preliminares da
crucificação — tudo sob o título “Escárnio de Jesus como rei". Como Simão de Cirene, o lugar chamado
Gólgota e a oferta de vinho misturado com mirra harmonizam-se sob esse cabeçalho? Railey (“ Fali” , p.
103) elimina Mc 15,40-46 e encontra uma elaborada estrutura quiástica em Mc 15,20-39. Entretanto, o
quiasmo inclui um número grande demais de improbabilidades, por exemplo, fazer a cena central consistir
nos escárnios pelos transeuntes, e não nas únicas palavras de Jesus e sua morte, ou fazer o centurião
romano que confessa Jesus paralelo a Simão de Cirene, quando em Marcos (diferente de Lucas), em
estrutura narrativa e contexto, Simão está mais próximo de José de Arimateia.
4 Nas páginas 62-63, ele faz essas sugestões. Os criminosos à direita e esquerda de Jesus (Mc 15,27)
correspondem aos assentos à direita e à esquerda de Jesus na glória, como solicitado por Tiago e João
48
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultamento
(Mc 10,37.40)! O escárnio do brado por Jesus de abandono em Mc 15,34-35 é o escárnio do brado por
um falso rei Messias (embora nenhum dos termos apareça nesses versículos). O fato de Pilatos espantar-
-se por Jesus já ter morrido (Mc 15,44) faz eco ao espanto de Pilatos em Mc 15,5 com relação a “ o Rei
dos Judeus” (embora Mc 15,5 relacione o espanto à recusa de Jesus a responder outras acusações) e
contribui para a atmosfera de um sepultamento régio para Jesus! Matera menciona que Pilatos obteve
as informações a respeito da morte do centurião “que proclamou ser o Rei dos Judeus o Filho de Deus”
(embora Marcos não associe o centurião ao título “ o Rei dos Judeus”).
5 Esta não é, na verdade, uma cena independente em Marcos/Mateus (nem em João), mas uma sentença
de transição. A ampliação lucana força-me a dedicar a ela § 39.
6 Mc 15,25, “Agora era a terceira hora e eles o crucificaram” , está no mesmo lugar na sequência que Mt
27,36: “E tendo sentado, eles estavam guardando-o (montando guarda) ali” .
49
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Relativamente às divergências mateanas do esquema marcano, esta é a mais longa omissão mateana.
50
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultamento
Ao contrário, quando se julga que, até onde podemos remontar, havia aspectos
narrativos (padrão de três) e reflexões no AT, o método por trás da análise exata de
versículos e meio-versículos pré-marcanos torna-se suspeito. A desalentadora falta
de concordância entre os resultados defendidos pelos diversos biblistas (ver também
APÊNDICE IX) torna frágil todo o empreendimento. A esses problemas, se João não
é dependente de Marcos, é preciso acrescentar a questão joanina. A concordância
8 Mateus tem dois adendos significativos ao esquema marcano: no final, esta cena; antes, as reações da
terra, das pedras e dos túmulos à morte de Jesus (ver em § 43).
’ Como de costume, Pesch (Markus, v. 2, p. 482) afirma que, do jeito que está, Marcos reflete os relatos
primitivos e, assim, rejeita fragmentação. Ele identifica duas subseções: Mc 15,20b-24 e Mc 15,25-32.
51
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
entre os dois Evangelhos não está só nos detalhes (topônimo, crucificação entre
dois criminosos, acusação divulgada contra Jesus, escárnio pelos chefes dos sa
cerdotes, divisão de roupas, oferta de vinho azedo \oxos\, Maria Madalena e outra
Maria), mas também em padrões de três e ecos de Salmos — em outras palavras,
concordância joanina com Marcos em aspectos que muitas análises pré-marcanas
consideram adições marcanas ou características de uma segunda fonte. Minha
opinião, então, é que, aqui, como em outras passagens, identificam-se tradições
primitivas (compartilhadas independentemente pelos Evangelhos), mas que não
podemos reconstruir uma narrativa pré-marcana com probabilidade significativa,
embora tenhamos boa razão para pensar que ela existiu.
Muitos dos elementos lucanos que não são idênticos a Marcos repercutem
temas comuns a Lucas-Atos, por exemplo, perdão, estar em paz com Deus, a
multidão compreensiva em contraste com as autoridades. Assim, encontra-se a
costumeira discordância quanto ao fato de Lucas ter tido uma fonte especial ou
reescrito livremente o material marcano (talvez com a ajuda de informações isola
das de tradição não conhecida por Marcos). Aqui (como antes), prefiro a segunda
posição. Seja como for, um fato é certo: o relato final em Lc 23,26-56 foi escrito e
moldado cuidadosamente por Lucas. 0 que ele tirou de Marcos foi encaixado em
uma estrutura de arte ainda maior que a de Marcos:
a) Lc 23,26-32 (§ 39: Jesus levado para ser crucificado). Três partes favo
ráveis a Jesus: i) Simão que leva a cruz atrás de Jesus na postura de discípulo; ii)
10 Das setenta e quatro palavras paralelas, quase um quarto encontram-se em dois versículos.
52
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultamento
11 Os transeuntes da tríade negativa marcana de escamecedores tomam-se pessoas lucanas mais positivas
que observam. Como Lucas também apresenta uma tríade de escamecedores, ali os soldados (romanos)
tomam o lugar dos transeuntes de Marcos. Marcos apresentou antes soldados romanos hostis a Jesus (Mc
15,16-20a) em uma cena depois do julgamento romano que Lucas não preservou naquela sequência,
mas da qual se apropriou aqui.
53
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
as multidões que voltam para casa batendo no peito — que correspondem à aglo
meração do povo em § 39; iii) os conhecidos de Jesus e as mulheres da Galileia
que ficam longe e observam — que correspondem às filhas de Jerusalém em § 39.
54
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultamento
12 Por exemplo, Janssens de Varebeke (“Structure” ) identifica sete episódios no relato da crucificação,
como no julgamento por Pilatos. Ele junta o que chamo de “Introdução” a meu “ Episódio 1” , enquanto
divide meu “Episódio 6” em dois. Além disso, é possível discutir se minha terminologia “Episódio 6”
é apropriada ou se eu deveria falar em Conclusão para combinar com a Introdução? Nenhuma das duas
designações faz justiça ao fato de estilisticamente Jo 19,38-42 ser mais evoluído que Jo 19,16b-18, mas
menos evoluído dramática e teologicamente que os outros episódios.
55
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
13 Jesus crucificado faz três declarações em João e três em Lucas; mas não há duplicação entre os dois
conjuntos de declarações (e cada conjunto é característico da teologia do Evangelho respectivo). Além
disso, nenhuma das seis declarações em Lucas e João combina com a única declaração atribuída a Jesus
em Marcos/Mateus. As tradicionais “ sete últimas palavras de Jesus (na cruz)” são altamente divisíveis.
14 Das quatro (?) mulheres joaninas que estão de pé perto da cruz e das três mulheres em Marcos que
observam de longe, uma é obviamente idêntica (Maria Madalena) e outra talvez seja a mesma (a mulher
chamada Maria; ver o Quadro 8 em § 41).
56
§ 38. Introdução: estrutura dos relatos da crucificação e do sepultaroento
talvez seja útil apresentar aqui uma lista de detalhes que aparecem nos (três ou
em um dos) relatos sinóticos, mas estão ausentes de João:
57
§ 39. Episódio de transição:
Jesus levado para ser crucificado
(Mc 15,20b-21; Mt 27,31b-32;
Lc 23,26-32; Jo 19,16b-17a)
Tradução
59
Q uarto » to •JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto
Comentário
Esta é uma cena de transição, que muda Jesus do local onde se concentrava
a jurisdição romana em Jerusalém, e onde ele fora julgado e condenado, para o
lugar fora de Jerusalém onde tinham lugar as execuções. Consiste em dois elementos
básicos. Primeiro, comum a todos os Evangelhos, há uma descrição de Jesus levado
para fora e da cruz sendo carregada, por Simão ou por Jesus. Segundo, exclusivo
de Lucas é o seguimento de Jesus pelo povo e as mulheres, isto é, as filhas de
Jerusalém a quem Jesus dirige uma profecia de infortúnio. Em dois Evangelhos
(Marcos e Mateus), o primeiro elemento segue-se diretamente ao escárnio e aos
abusos de Jesus pelos soldados romanos. Contudo, alguns biblistas consideram o
escárnio romano em Mc 15,16-20a uma adição secundária e afirmam que outrora
Mc 15,20b vinha depois de Mc 15,15 na imediata execução da sentença de morte.
60
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 39. Episódio de transição:Jesus levado para ser crucificado
estavam envolvidos no ato de conduzir Jesus até a cruz, porque antes, no meio do
julgamento romano (Jo 19,1-4), Pilatos entregara Jesus para esses soldados para ser
açoitado e escarnecido, e imediatamente depois da chegada ao local da crucificação,
esses soldados estão presentes e ativos (Jo 19,23-24). E provável que também os
leitores lucanos pensassem nos soldados romanos como aqueles que levaram Jesus
embora em Lc 23,264 De qualquer modo, nenhum dos dois evangelistas escreve
no espírito abertamente antijudaico de EvPd 3,5c-6, onde explicitamente o povo
judeu arrasta Jesus.
Em § 35, demonstrei detalhadamente que, embora Le 23,24-25 usasse “seus (deles)” vagamente para se
referir às autoridades judaicas e ao povo (Le 23,13), por “eles” de Le 23,26 ele quis dizer os soldados
romanos que só são mencionados em Lc 23,36.
61
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Nos Evangelhos sinóticos, Simão Cireneu carrega a cruz. Ele não aparece
em nenhum outro papel na tradição neotestamentária. Em parte porque Simão
está ausente de João e do EvPd, Denker (também Linnemann) afirma que ele não
fazia parte da tradição pré-marcana mais primitiva; mas a opinião oposta é mais
62
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado
4 Em nível histórico, Brandenburger (“Stauros” , p. 32-33) afirma que essa imagem de carregar a cruz não
era judaica e, assim, o dito foi formulado depois da crucificação de Jesus. Parece improvável que o dito
e também Simão como seu cumprimento fossem criações da comunidade posteriores à crucificação.
5 Loisy, seguido por Soards (“Tradition... Daughters” , p. 227), duvida que mesmo Lucas tenha sido in
fluenciado pelo dito de Jesus a respeito de discipulado.
6 Lucas-Atos é responsável por uma alta porcentagem do uso desses dois verbos no NT.
63
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
' Mesmo se deixarmos de lado a questão de historicidade, resta o problema da plausibilidade do tema.
8 Lucas é um problema, porque Jesus não é açoitado nem flagelado na narrativa que precede. Como Lucas
deslocou e modificou blocos de material marcano, talvez ele não percebesse que seu novo arranjo produziu
problemas de lógica. Já vimos que, embora o Jesus lucano predissesse que seria açoitado, ele nunca é.
9 Os judeus eram um grupo favorecido entre os quatro grupos de Cirene; contudo, uma revolta judaica ali
é mencionada por Josefo em Ant. XIV,vii,2; ##114-118.
64
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado
Quanto aos filhos de Simão citados por Marcos, Alexandre é nome grego
e Rufo é nome romano (comum para escravos). Julgando ter Marcos sido escrito
para pessoas em Roma, há quem identifique o filho de Simão com o único outro
Rufo neotestamentário, “o eleito do Senhor” mencionado com a mãe em Rm 16,13.
“Alexandre” aparece outras quatro vezes no NT como o nome de um ou mais dos
adversários de Paulo.12 Tem havido muita especulação antiga e moderna a respei
to de Simão e seus filhos; parece que a riqueza de imaginação quanto a figuras
neotestamentárias aumenta em proporção inversa ao que o NT nos diz a respeito
delas. Os dois filhos aparecem em narrativas na Assunção da Virgem copta e em
Os Atos de Pedro e André (JANT, p. 194,458). Bishop (“ Simon” ) sugere que Simão
10 A imaginosa alegação de C. C. Torrey (Our Translated Gospels, New York, Harper, 1936, p. 131) defende
de forma bastante dúbia que o nome cireneu sugere lavoura.
11 Na véspera da Páscoa, quase sempre o trabalho cessava por volta do meio-dia (APÊNDICE II, nota 19);
e isso explica por que Simão está chegando do campo. Contudo, João, que dá o cenário da véspera da
Páscoa e meio-dia como a hora em que o julgamento terminou, não menciona Simão.
12 N. Avigad (IEJ 21,1962, p. 1-12) relata sobre um ossário do início do séc. I d.C., descoberto no sudoeste
do Vale do Cedron, perto de Jerusalém, em 1941. Parece que pertenceu a uma família judaica da diáspora
de Cirenaica e tem o nome de Alexandre, filho de Simão. É inevitável que alguns especulem que esse
seja o filho mencionado em Marcos (ver Pesch, Markus, v. 2, p. 477).
65
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
13 Divagando, Derrett (“Haggadah” , p. 313) liga Simão com o Simeão veterotestamentário, um dos doze
filhos de Jacó que odiava seu irmão José e aconselhou os irmãos a matá-lo. A ideia de que Simão carregou
a viga transversal de Jesus deu origem à designação Kyrenaios, do hebraico qôrâ (viga).
66
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado
carregar a própria cruz? Há quem pense que a opinião gnóstica denunciada por
Irineu mencionada acima (na qual Simão é que foi crucificado) já era conhecida e
João a estava refutando. Outra explicação altamente especulativa é que João estava
introduzindo aqui a tipologia de Isaac, que carregou a lenha para seu sacrifício (Gn
22,6). Se esse simbolismo é ou não forçado depende até certo ponto de, quando João
escreveu, já serem conhecidas criações de midraxe nos quais Isaac era retratado
como um adulto que voluntariamente aceitou ser morto (tema do servo sofredor).
Ver essa questão no a p ê n d ic e VI.
A estrutura para esta cena. Mc 15,20b usa esta sentença para prefaciar
o aparecimento de Simão Cireneu: “ E eles o levam para fora a fim de que pudessem
crucificá-lo”. Lc 23,26 tomou emprestada a primeira metade da sentença de Marcos
também para prefaciar Simão (“ E quando eles o levaram embora” ).14 Lucas usa
a outra metade da sentença marcana em Lc 23,32 para concluir a cena presente:
“levados [...] para serem executados” . Assim, a partir de Mc 15,20b, Lucas cria uma
estrutura na qual ele põe o material dos vv. 27-31 que não tem nenhum paralelo
14 A concordância de Lucas e Mateus ao empregar apagein contra exagein de Marcos não é significativa.
Apagem é usado seis vezes na NP para deslocar Jesus e, independentemente, Mateus e Lucas preferem
permanecer consistentes com o uso anterior, em vez de seguir Marcos na introdução de um novo verbo
— verbo que Marcos usou em imitação das diretrizes da LXX a respeito da morte de blasfemadores: Lv
24,14; Nm 15,36.
67
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
marcano. (Ver a ANÁLISE abaixo quanto a Lucas ter tirado o material dos vv. 27-31
de uma fonte pré-lucana ou de sua própria composição livre.)
Uma pequena mudança é o “ E quando” inicial no v. 26 (kai hos) usado alhures por Lucas para indicar
mudança de lugar ou de tempo (Lc 2,39; 15,25 etc.; ver Büchele, Tod, p. 42).
16 At 3,15; 5,31 descreve Jesus como archegos, termo difícil de traduzir, mas que tem o sentido de prece
dência; cf. Lc 19,28 (Talbert, Reading, p. 219).
No NT, uma “aglomeração do povo” é peculiar a Lucas (Lc 1,10; 6,17; At 21,36), com poly (“grande”)
representando a propensão lucana por exagero retórico (Fitzmyer, Luke, v. 1, p. 324).
68
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado
vista não há nenhuma sugestão de hostilidade (com a devida vênia a Büchele, Tod,
p. 43). Na verdade, Lucas parece atribuir um papel progressivamente favorável a
esta parte do populacho de Jerusalém. Se Lc 23,27 não diz que a “grande aglo
meração do povo” se lamenta, ela está associada a mulheres que se lamentam e
são solidárias com Jesus. Mais adiante (Lc 23,35), quando Jesus pende da cruz,
é-nos dito que “o povo estava de pé ali observando”. Embora essa descrição seja
evasiva, o povo é assim diferenciado dos três tipos de escarnecedores, a descrição
dos quais se segue imediatamente. Em uma cena depois que Jesus morre na cruz
(cena que, por inclusão, se compara com esta antes da crucificação), Lc 23,48
relata que “todas as multidões que estavam reunidas para a observação disso [...]
voltaram batendo no peito”. 0 efeito total dessa progressão para simpatizar com
Jesus encontra-se no apócrifo Atos de Pilatos 4,5: “ Ora, quando o governador
olhou para as aglomerações de judeus de pé ali, viu muitos dos judeus chorando e
disse: ‘Nem toda a aglomeração deseja que ele seja executado’”. Essa imagem não
parecia implausível aos leitores antigos. Luciano (De morte Peregrini 34) observa
cinicamente que “os conduzidos à cruz [...] têm um grande número de pessoas
seguindo-os de perto” .
No grego lucano, “uma grande aglomeração”, além de reger “do povo”, tam
bém rege “e de mulheres”. Entretanto, é duvidoso que Lucas pretenda enfatizar
o número de mulheres; antes, por meio do correlativo kai (“e” ), ele parece estar
chamando a atenção para um grupo de mulheres ao lado da aglomeração geral do
povo, um tanto como em At 17,4: “ Uma grande aglomeração de gregos devotos e
não poucas das mulheres importantes”. (Um kai correlato encontra-se novamente
na cena paralela depois da crucificação em Lc 23,49: “todos os conhecidos dele
[...] e as mulheres”.) De qualquer modo, as mulheres são as “que estavam batendo
em si mesmas e lamentando por ele” .18 Benoit, Lagrange e Marshall estão entre os
que julgam ser essa lamentação por alguém prestes a ser executado ato de piedade
religiosa, mas outros como Schneider duvidam que a lamentação por criminosos a
caminho da execução fosse permitida em público. Suetônio (Tiberius 61) relata: “ Os
18 Muitos biblistas veem aqui a influência de Zc 12,10: “ Eles olharão aquele que tiverem trespassado e
baterão em si mesmos de luto por ele como se por um filho único e chorarão com mágoa como pelo pri
mogênito” . (Os versículos subsequentes de Zacarias atribuem o luto às várias famílias e suas mulheres.)
Parte deste versículo é citada por Jo 19,37 depois que Jesus morre na cruz e parece mais apropriada às
multidões que batem no peito depois que Jesus morre (Lc 23,48) do que a esta cena onde Jesus ainda
não sofreu nenhum dano físico.
69
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado a li perto
A sina das filhas de Jerusalém e seus filhos (Lc 23,28). Neyrey (P as
sion, p. 111) lembra que o ato de Jesus se voltar para se dirigir a alguém é aspecto
lucano característico; strapheis ocorre sete vezes em Lucas, em comparação a cinco
nos três outros Evangelhos. Contudo, a natureza do discurso que se segue, positiva
70
§ 39. Episódio de transiçãoiJesus levado para ser crucificado
ou negativa, não se determina por essa ação.19 Embora “ filhas” possa significar
habitantes, aqui Lucas segue um padrão veterotestamentário de se dirigir a mulheres
como representantes da nação ou da cidade em oráculos de alegria ou desgraça:
“filhas de Israel” (2Sm 1,24); “filha de Sião” (Sf 3,14; Zc 9,9); e “filhas de Jeru
salém” (Ct 2,7). Chamar as mulheres de “ filhas de Jerusalém” não é pejorativo,20
mas identifica a sina delas com a da cidade.
As palavras “não choreis [não chores]” foram dirigidas antes por Jesus à
viúva de Naim que chorava pelo filho (Lc 7,13) e aos que lamentavam a morte da
filha do chefe da sinagoga (Lc 8,52); assim, se adaptam bem ao contexto de la
mentação por alguém prestes a morrer. Nos casos anteriores, Jesus estava prestes a
eliminar a causa de lamentação, ressuscitando o morto; aqui, ele volta a tristeza por
sua morte para a morte da cidade e seus habitantes. Um plen (“antes” ) estabelece
o contraste, que é realçado pela ordem quiástica de palavras: “ não choreis por
mim [...] por vós mesmas chorai” (ver uma estrutura um pouco semelhante em Lc
10,20). Aqui, a atmosfera não é muito diferente da de Jr 9,16-19, onde o Senhor
conclama as mulheres para chorar sobre Jerusalém: “ Um canto triste se ouve em
Sião: ‘Como estamos arruinados e muito envergonhados’ [...] Ouvi, vós mulheres
[...]. Ensinai a vossas filhas este canto triste e uma à outra este lamento”. Embora
a instrução de Jesus seja dirigida às mulheres que o seguem, por meio delas ele fala
a toda a aglomeração do povo de Jerusalém que não lhe foi hostil. A mensagem é
que agora nenhuma quantidade de lamentação pelo que lhe está sendo feito pode
salvar Jerusalém ou seu povo da destruição que está para chegar. Jesus não está
dizendo palavras de compaixão, como pensou Dalman, embora esse elemento esteja
presente; nem está apelando à reforma (Grundmann, Danker), pois é tarde demais;
nem está denunciando, pois os que seguem não estão fazendo o mal. Do mesmo
modo que os profetas de outrora que pronunciavam oráculos contra as nações (assim
Neyrey, Giblin), Jesus está falando a Jerusalém como representante de Israel — a
última de uma série de palavras de desgraça.
19 Às vezes, quando o Jesus tucano se volta, ele diz alguma coisa positiva para o interlocutor (Lc 7,9;
10,23), às vezes, alguma coisa negativa (Lc 9,55; ver Lc 22,61) e outras vezes, alguma coisa que não se
enquadra em nenhuma dessas categorias (Lc 7,44; 14,25).
20 Aqui, Lucas usa a forma hebraizada de Hierousalem para a cidade. Em § 33, nota 1, mencionei a tese
de la Potterie de que essa ortografia é usada em contextos positivos. A meu ver, essa tese é contestada
aqui, porque uma palavra de terrível desgraça está prestes a ser pronunciada.
71
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
72
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado
um estado existente de boa sorte entre os seres humanos, às vezes por causa de
alguma coisa que Deus fez por eles.
Quanto ao que será dito (“ Benditas sejam as estéreis” ), para alguns como
Kãser (“ Exegetische”, p. 246), Lucas recorre a Is 54,1: “ Canta, ó estéril, que não
deste à luz” . Eles apontam para Is 54,10, que menciona montanhas e colinas,
como faz o versículo seguinte de Lucas. Is 54,1 era bem conhecido dos cristãos
primitivos, sendo citado em G1 4,27; 2 Clemente 2,1; Justino, Apologia 1,53. Con
tudo, em todas essas citações, a passagem de Isaías é entendida como o profeta
pretendia: mensagem de alegria, porque a estéril agora terá filhos. Não é isso que
Lucas quer dizer.23 Antes, Lucas diz, de maneira paradoxal, que será melhor não
23 Kãser (“ Exegetische” , p. 251) tenta inclinar o v. 29 nessa direção. As estéreis constituem um Israel
espiritual que confia em Deus para ter filhos, substituindo as filhas de Jerusalém que representam Israel
carnal.
73
Q uarto ato •Jesus écrucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
ter filhos quando o sombrio juízo final chegar; de fato, os filhos são incapazes de
se proteger nesses tempos e os pais têm a angústia de ver os que eles trouxeram ao
mundo destruídos — se os pais tentam salvar os filhos, também perecem. Em Lm
4,4, há uma analogia precisa. Na horrível queda de Jerusalém para os babilônios,
as crianças de peito choram por comida, mas não há ninguém para alimentá-las.
Esse tema lúgubre era bem conhecido também na literatura greco-romana (Fitzmyer,
Luke, v. 2, p. 1498). Assim, se Lucas estava recorrendo a Is 54,1, ele tinha de mu
dar não só o formato para um macarismo, mas também o sentido básico. É preciso
muito menos imaginação para relacionar Lc 23,29 com passagens que realmente
bendizem quem não tem filhos, por exemplo, Sb 3,13: “ Bendita é a mulher estéril
inviolada que não conheceu a transgressão do leito conjugal”. Com pessimismo,
Ecl 4,2-3 louva os mortos acima dos vivos e afirma ser melhor que ambos o que
nunca nasceu. 0 siríaco 2 Baruc 10,5b-10, escrito não mais que algumas décadas
depois de Lucas, usa esse tema em uma lamentação sobre Jerusalém destruída
pelos romanos: “ Bendito é o que não nasceu ou o que, tendo nascido, morreu”.
Ao que parece, então, Lucas recorreu a um tema comum apropriado à catástrofe
que Jerusalém tinha pela frente. Antes ele exprimiu esse tema com referência à
destruição de Jerusalém como uma desgraça: “Ai das que tiverem (filhos) no ventre
e das que estiverem amamentando naqueles dias” (Lc 21,23, tirado de Mc 13,17);
aqui, ele o expressa como bênção (macarismo). Ver a expressão lucana de bênçãos
e desgraças em paralelismo antitético em Lc 6,20-26.
Tudo isso sugere fortemente que Lucas não tirou Lc 23,29 de uma NP pré-
-lucana. Mas o próprio Lucas formulou inteiramente esta bênção que está expressa
em linguagem bíblica e reflete um tema bíblico que ele usa alhures em relação
a Jerusalém? Ou tirou-a de uma tradição de ditos e a reformulou? Logion 79 em
Evangelho de Tomé é importante neste estudo:
Uma mulher da multidão disse a ele: “Benditos sejam o ventre que te deu à luz e
os seios que te amamentaram”. Ele disse[-lhe]: “Benditos sejam os que ouvem a
palavra do Pai e guardam-na na verdade. Pois haverá dias em que direis: ‘Benditos
o ventre que não concebeu e os seios que não amamentaram”’.
Em uma análise cuidadosa dessa passagem, Soards (“ Tradition [...] Dau-
ghters”, p. 232-237) mostra como é difícil decidir se, ao usar palavras articuladas, o
Evangelho de Tome juntou Lc 11,27-28 e Lc 23,29, ou se, vice-versa, Lucas dividiu
em duas uma unidade original que o Evangelho de Tomé preservou. Ele prefere
74
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado
24 Na LXX do Códice Alexandrino, a ordem é a lucana. Esse códice (séc. V d.C.) se harmonizou com Lucas,
ou Lucas usou essa outra fonte grega?
75
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
2o Isso é verdade, quer leiamos o subjuntivo aoristo genetai usado como futuro enfático em uma pergunta
deliberativa (BDF 3661), quer como futuro indicativo genesetai (Códice de Beza).
76
§ 39. Episódio de transição:Jesus levado para ser crucificado
possível comparação adicional entre a madeira na qual Jesus foi crucificado (At
5,30; 10,39; 13,29), que não foi consumida pelas chamas, e a madeira de Jeru
salém, consumida pelas chamas — contudo, nenhuma das descrições proféticas
lucanas da destruição de Jerusalém menciona madeira ou chamas.26A imprecisão
dos sujeitos na prótase e na apódose e a falta de certeza quanto à significação
exata da metáfora levam a muitas interpretações do v. 31 (ver Plummer, Fitzmyer).
Deixe-me agrupá-las sob quatro cabeçalhos:
2) Deus como o sujeito do começo ao fim, por exemplo, se Deus não poupa
o Jesus amado, muito mais o Judaísmo impenitente receberá o impacto do julga
mento divino (assim, Creed, Fitzmyer, Manson, J. Schneider [TDNT, v. 5, p. 38],
G. Schneider, Zerwick). Mas pensa Lucas na crucificação como o que Deus está
fazendo a Jesus?
26 Ainda menos provável é um eeo da conspiração dos adversários de Jeremias (Jr 11,19): “Vinde, e po
nhamos madeira no pão dele” (LXX) ou “ Destruamos a árvore em seu vigor” (TM).
77
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
com certeza dá preferência aos adversários de Jesus como o sujeito de “eles fazem”
na prótase. Quanto à apódose, os versículos imediatamente anteriores pressupõem
um julgamento divino vindo sobre Jerusalém e, assim, o sujeito mais óbvio por trás
do que acontecerá ou será feito é Deus. 0 uso da passiva para subentender a ação
divina é fenômeno bem atestado no grego bíblico e reflete a abstenção judaica de
citar Deus com demasiada frequência (BD F1301, 313; C. Macholz, ZNW 81,1990,
p. 247-253). Assim, a sugestão básica de Neyrey é, a meu ver, a mais plausível:
se eles (os líderes judaicos e o povo) tratam-me deste modo em tempo favorável
(quando não são forçados pelos romanos), muito pior eles serão tratados em tempo
desfavorável (quando os romanos os oprimirem). Nessa interpretação, madeira verde
e madeira seca são simplesmente, de modo proverbial, períodos diversos de tempo,
um mais favorável que o outro, e “madeira” não é interpretada alegoricamente. Como
nos versículos anteriores, reforma não é uma possibilidade; o destino de Jerusalém
e seus habitantes é selado pelo que os adversários de Jesus estão fazendo agora.
78
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado
Marcos (também Mateus e João) espera até Jesus chegar ao lugar da crucifica
ção para mencionar que outros dois (Marcos: lestai, “bandidos” ) foram crucificados
com ele. Lucas antecipa, pois presume que esses dois devem ter sido levados com
ele ao local da execução. Há quem pense que ter dois malfeitores com Jesus nesse
trajeto é a maneira lucana de ressaltar o cumprimento da predição de Jesus na Ultima
Ceia (Lc 22,37): “ E com criminosos [anomoi] foi ele contado”, citação de Is 53,12.
Isso não está claro: o vocabulário aqui (“malfeitores”, kakourgoi) é diferente e a
profecia teria sido cumprida com a mesma facilidade se Lucas deixasse a primeira
menção desses dois homens onde Marcos a pôs, no momento da crucificação. Mais
exatamente, Lucas chama a atenção para esses dois homens, antecipando sua pre
sença e separando-a dos outros acontecimentos da crucificação, por causa da cena
muito importante na qual ele planeja apresentá-los enquanto Jesus pende na cruz.
Em Lc 23,39-43, a mais longa e mais importante mudança lucana na narrativa
da crucificação, Lucas retrata suas reações diferentes a Jesus. Parece que ele está
também bastante decidido quanto a preferir “malfeitores” aos “bandidos” (lestai)
de Marcos, ao que tudo indica por causa do tom pejorativo que a última palavra
adquirira nos turbulentos anos 50 e 60 e na Primeira Revolta Judaica. Embora
descreva Barrabás que foi preferido a Jesus pelos líderes judaicos e o povo como*7
2‘ Embora Lucas não contenha as histórias de Verônica e das três quedas de Jesus a caminho da crucificação,
a cena com as mulheres contribui para a devoção muito mais tardia das “ Estações da Cruz” . A mulher
chamada Berenice (latim: Verônica) aparece no julgamento de Jesus diante de Pilatos em Atos de Piíatos
7 e identifica-se como a mulher que tocou a veste de Jesus e foi curada de um fluxo de sangue (Lc 8,44
e par.). Apesar do significado de seu nome (“portadora da imagem”), não há referência a um retrato de
Jesus. Na obra latina Death of Pilate (JANT, p. 157-158), quando Jesus encontrou Verônica (mas não a
caminho do Calvário), a pedido dela ele imprimiu as feições de sua face em um pano de linho. Ver E.
Kuryluk, Verônica and Her Cloth, Oxford, Blackwell, 1991.
28 Ver também em At 2,23; 10,39; 13,28 o verbo “executar, matar” (anairein) usado para descrever a exe
cução de Jesus pela vontade ou cumplicidade das autoridades judaicas e do populacho de Jerusalém.
79
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
Análise
Dos dois elementos nesta cena onde Jesus está sendo levado/conduzido
para a cruz, o COMENTÁRIO já examinou em detalhe várias teorias que tratam do
primeiro, isto é, o carregamento da cruz. Rejeitei as teorias de que Simão de Cirene
foi inventado como uma pessoa (nunca existiu) ou como papel (existiu como pai
de Alexandre e Rufo, mas foi ficcionalmente engrandecido como tendo ajudado
Jesus). A alegação de que essa invenção tinha o propósito de incluir na narrativa
da crucificação o exemplo de um discípulo que renunciou a si mesmo, tomou a cruz
e seguiu Jesus (Mc 8,34) é fraca, pois em nenhum Evangelho Simão apresenta-se
voluntariamente (= renuncia a si mesmo) ou toma uma cruz sua, e em Marcos/
Mateus ele não segue atrás de Jesus. A alegação de que a invenção tinha o propó
sito de proporcionar uma testemunha ocular da crucificação também é imprecisa,
pois Simão nunca mais é mencionado no NT; assim, não é afirmado que ele estava
presente e assistiu à crucificação (compare-se Mc 15,40).29 De modo paradoxal,
a anomalia de uma pessoa carregar a cruz de outra aumenta a possibilidade de
Simão ser figura histórica, lembrada porque ele ou seus filhos se tornaram cristãos.
É provável que a omissão joanina (aparentemente deliberada) de seu papel, por meio
da insistência de que Jesus carregou a cruz sozinho, reflita a cristologia joanina na
qual Jesus sacrificou a vida sem nenhuma coação humana e sem nenhum auxílio
humano. A ausência da atraente figura de Simão do EvPd talvez reflita a tendência
antijudaica desse apócrifo.
29 A ideia de que os cristãos primitivos sentiam uma necessidade premente de ter testemunhas oculares
para apoiar a história dos acontecimentos da crucificação é incerta (ver Wansbrough. “Crucifixion” , p.
258-259); ainda mais incerta é a tese de que eles inventaram livremente personagens para preencher
essa necessidade.
80
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado
Indiquei no c o m e n t á r io que existe boa razão para crer que Lucas encontrou
o macarismo do v. 29 na tradição dos ditos de Jesus e o adaptou a este contexto.
O v. 30 faz claramente eco a Os 10,8b, enquanto o v. 31 é um provérbio obscuro:
assim, profecia e sabedoria são usadas por Lucas para confirmar o oráculo de Jesus.
30 No texto acima, menciono opiniões segundo as quais Lucas preserva um elemento mais primitivo. Alguns
biblistas (Finegan, Feldkãmper) enfatizam tanto a composição lucana, de modo que não se faz referência
a elementos mais primitivos ou esses elementos se tornam mero trampolim para a criação lucana e não
estão realmente preservados.
31 Para Bultmann, esta é uma história de pronunciamento que consiste em uma profecia cristã colocada na
boca de Jesus, mas não um dito genuíno de Jesus. Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1495) acha que o v. 28 pode
ter vindo de Jesus, mas em um contexto diferente.
81
Q uarto ato •Jesus c crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
O que está claro é que, quer tenhamos composição criativa quer reutilização
adaptativa, a mão e o modo de pensar de Lucas estão evidentes em quase todas as
linhas. Por que Lucas reuniu todo esse material? Os que enfatizam o tema parené-
tico em Lucas mencionam que só este relato evangélico de Simão ressalta que ele
levou a cruz atrás de Jesus. Entretanto, outros como Dibelius (From , p. 202-203),
Surkau (Martyrien, p. 96) e Aschermann (“Agoniegeber”, p. 149) veem forte signi
ficado martirológico em elementos lucanos como Jesus sendo mais corajoso que os
circunstantes compassivos, a insistência por parte dele quanto ao fato de que sua
morte trará a intervenção divina que afetará o destino deles e os tempos que estão
para vir serão piores. Histórias de martírio cristãs e judaicas mais tardias (Martírio
de Policarpo 11,2; a crucificação de Jose ben Jo’ezer [ver acima, sob “ Término do
pronunciamento” ]) são invocadas como paralelos. Entretanto, essas sugestões são
tão alusivas a ponto de serem questionáveis (Untergassmair \Kreuzweg, p. 162-163]
contesta os paralelos de martírio).
32 Em sua análise estrutural da narrativa da crucificação lucana, Büchele (Tod, p. 66-72) revela uma paixão
exagerada por encontrar tríades, mas isso não devia cegá-lo para a descoberta de alguns conjuntos de
três genuinamente paralelos.
82
§ 39. Episódio de transição: Jesus levado para ser crucificado
83
§ 40. Jesus crucificado, primeira parte:
0 cenário (Mc 15,22-27; Mt 27,33-38;
Lc 23,33-34; Jo 19,17b-24)
Tradução
* A tradição grega koiné, a latina e a Peshitta Siríaea acrescentam um v. 28: “ E foi cumprida a Escritura
que diz: ‘E com criminosos foi ele contado’” . É o texto de Is 53,12 que Lucas cita em Lc 22,37. MTC,
p. 119, comenta que é muito raro Marcos citar expressamente o AT e que, se esse versículo estivesse
originalmente em Marcos, não haveria razão para Mateus ou para os escribas o omitirem. Com a devida
vênia a Rodgers (“ Mark” ), pequenas diferenças no contexto marcano não refutam que este versículo foi
copiado de Lucas, e Orígenes (Contra Celso 11,44) refere-se ao cumprimento da predição em Lucas.
85
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Comentário
86
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
razões diferentes para aquilo que incluíram. Mais uma vez, então, a investigação
de propósito e composição será mais prática se ligada a meu comentário de cada
um dos itens, em vez de ser reunida como estudo analítico no final.
João tem um total de cinco itens. No início, ele relaciona #1, #3 e #7 ape
nas como detalhes, mas depois expande # 6 e #4 como episódios importantes com
sentido teológico simbólico. Embora seja teoricamente possível que João tenha feito
uma seleção dos sete itens marcanos, há bastante diferença mesmo nos que são
paralelos para sugerir que lidamos com itens estabelecidos cedo na tradição e que
Marcos e João refletem essa tradição de modo independente.12 Vamos examinar os
sete itens na ordem marcana e então, em oitavo lugar, analisar a autenticidade do
controvertido Lc 23,34a, onde Jesus concede perdão.
1 E possível debater a presença de #2 (a oferta inicial de vinho) em Lucas, já que ele traz apenas uma
oferta de vinho e essa é mais parecida com a segunda oferta marcana.
2 Por exemplo, Mc 15,29-32 e Jo 19,19-27 têm três indivíduos/grupos que reagem a Jesus na cruz, mas o
único grupo compartilhado é o dos chefes dos sacerdotes, que aparecem como o principal componente
em um grupo que reage nos dois Evangelhos. As três reações marcanas são independentes da lista
introdutória de sete itens e as três são hostis a Jesus. As duas primeiras reações joaninas relacionam-se
com os itens introdutórios marcanos #6 e #4, e a terceira reação é de apoio a Jesus, não hostil.
87
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
e Lucas usam erchesthai (“chegar” ); João usa exerchesthai (“sair”, que apareceu
antes em Mt 27,32). Os biblistas discutem o tom de pherein em Marcos: sempre
significa “conduzir”, distinto de “carregar” ?1*3 Subentende aqui que Jesus teve de
ser conduzido (praticamente arrastado) porque estava fraco demais; e, nesse caso,
é por isso que Mateus e Lucas o evitaram?4 Ou “conduzir” tem simplesmente o
tom de Jesus sob compulsão?
1 0 verbo é menos frequente em Mateus e Lucas, onde significa “carregar” . Lc 23,26 acabou de usá-lo
para o ato de Simão carregar a cruz. Ver C. H. Tumer, JTS 26, 1924-1925, p. 12, 14.
4 Uma atitude semelhante fez os escribas mudarem o verbo marcano para agein (“levar”) no Códice de
Beza e nas minúsculas Ferrar?
3 Apesar da referência joanina a “hebraico” (como antes com referência a Gábata em Jo 19,13), “Gólgota”
(“Golgotha” no Códice Vaticano) está mais próximo do aramaico Gulgulta que do hebraico Gulgolet.
Na transliteração grega, a segunda sílaba (gul) foi dissimilada da primeira (BDF6). Ver a equivalência
com kranion na tradução da LXX de Jz 9,53; 2Bs 9,35. 0 equivalente latino é calvaria, daí o topônimo
“ Calvary” [Calvário], popular em inglês desde a tradução de Wyclif (1382).
6 E provável que a forma mais conhecida da comunidade joanina fosse a grega, pois parece que ele acha
necessário fornecer uma tradução grega até para termos transliterais comuns (Messias, Babi). Aparen
temente, Marcos segue uma sequência transliterada aramaico/grego padrão já demonstrada no abba, ho
pater de Mc 14,36.
88
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
7 Ver H. Koester, TDNT, v. 8, p. 203. O uso marcano duplo de “ lugar” , a saber, o lugar do Gólgota (com
o artigo “ o” faltando em alguns mss.) e Lugar da Caveira, faz alguns biblistas pensarem que Marcos
combinou fragmentos de informações. E mais provável que seja simplesmente tautologia marcana.
8 João também pode ser traduzido “Ele veio a um lugar chamado Caveira”, conforme preferido por P06 e
Jeremias (Golgotha, p. 1).
9 O nome Caveira recebeu outro significado na tradição cristã mais tardia, parte dele originando-se da
tradição judaica a respeito da área do Templo de Jerusalém. Orígenes (Comentário a Mt 27,33; #126;
GCS 38,265 e 41’,226) menciona a tese de que Adão foi sepultado aqui; e um século mais tarde, Pseudo-
-Basílio (In Isa. 5,1; #14; PG 30,348C) menciona a caveira de Adão. Jerônimo (In Matt. 4; CC 77,270)
conhece a tradição da caveira de Adão, mas não a aceita. Contudo, a caveira e os ossos de Adão estão
representados no pé do crucifixo em muitas pinturas e entalhes. Ainda outra explicação do nome é que
a Colina da Caveira era lugar de execução pública onde se encontravam caveiras na superfície ou perto
dela.
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Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
à tradição local) para construir, em 325-335 d.C., um grande encrave sagrado, que
consistia na basílica do Martyrion, um jardim sagrado com uma rotunda de pórticos
centralizada no túmulo (chamado o Anastasis) e um Calvário independente, que
se julgava ser a colina do Gólgota. O que resta da reconstrução pelas cruzadas de
tudo isso em 1099-1149 é, em geral, chamado de igreja do Santo Sepulcro. O foco
primordial do edifício eclesiástico (como o nome indica) tem sido sempre o túmulo
onde Jesus ficou, por isso reservarei o exame da história da localização e suas
igrejas para a última parte da ANÁLISE de § 47 adiante, a seção que trata do relato
evangélico do sepultamento de Jesus por José de Arimateia. Aqui, só me preocupo
com o que essa localização tradicional (que deve ser levada a sério como possível
lembrança histórica) nos revela a respeito do local do Gólgota.
A igreja do Santo Sepulcro que está agora naquele local tem inconvenientes
emocionais, por exemplo, a querela irritante entre os sacerdotes ou monges que
representam igrejas antigas que celebram rituais ali, o encardimento opressivo, a
10 Em § 37, Segunda Parte, ver especialmente os escritos de Bahar, Benoit, Evans, Kretschmar, Lux-Wagner,
Riesner, Schein e Wilkinson (“Tomb”).
11 Bahat, “ Does” , p. 32. É plausível concluir que a rocha deste afloramento havia sido estragada por uma
rachadura resultante de um terremoto (um afundamento ainda é visível) e é por isso que os cavouqueiros
a desprezaram como inadequadas para produzir os blocos de alta qualidade de calcário melek que essa
área fornecia.
90
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
escuridão e (durante grande parte do século XIX) feios andaimes, porque os cristãos
não chegam a um acordo quanto aos consertos. Para os evangélicos protestantes
em especial, o incenso e a música de liturgias exóticas parecem quase idólatras.
Inevitavelmente tem havido tentativas de encontrar um local mais conveniente, o
mais famoso dos quais é o “Túmulo do Jardim” (associado no século XIX a Thenius,
Conder e ao general britânico Gordon), cerca de 250 metros ao norte das muralhas
turcas existentes e da Porta de Damasco. Uma colina arredondada que se parece com
uma caveira, um jardim projetado e um túmulo antigo tornam esta escolha atraente
para visitantes aos quais a igreja do Santo Sepulcro causa repulsa. Argumentos de
que o local do “ Túmulo do Jardim” não tem nenhuma tradição de antiguidade, de
que a fisionomia de caveira não se origina do século I, de que há muitos túmulos
de diversos períodos nesta área e de que as muralhas turcas estão muito longe dos
muros do tempo de Jesus convenceram a esmagadora maioria dos biblistas que esse
candidato a Gólgota não é digno de debate sério.12 Tese igualmente implausível foi
proposta em escritos persistentes por E. L. Martin: o Monte das Oliveiras, perto
do cume, era o lugar de execução.13 Seu principal argumento origina-se de uma
interpretação literalista de Mt 27,51-54, onde se tem a impressão de que o centurião
e os que estavam com ele viram o terremoto, o rasgamento do véu do santuário, os
túmulos se abrirem e os corpos dos santos falecidos ressuscitarem. Somente do Monte
das Oliveiras se podia ver a entrada do santuário ou “lugar santo” do Templo. Isso
presume que Mateus sabia que véu estava envolvido e que Martin leu sua mente de
maneira certa quanto a que véu, e que tudo isso aconteceu. (Marcos não especifica
que o centurião viu o rasgamento.) Não há o mais leve indício fora de Mateus de
que qualquer dessas coisas aconteceu quando Jesus morreu; como afirmarei em
§ 43, lidamos com simbolismo apocalíptico. A tentativa de entender Hb 13,10-13
literalmente como diretriz geográfica para o lugar onde Jesus foi “sacrificado” é
outra incompetência para reconhecer o simbolismo. A expressão joanina em Jo 19,20
é particularmente obscura (literalmente: “porque perto estava o lugar da cidade
onde Jesus foi crucificado” ). Na interpretação de Martin, isso significa que Jesus foi
91
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
crucificado perto do “ Lugar [Templo] da cidade”, pois o Monte das Oliveiras ficava
defronte ao Templo. A meu ver, isso é totalmente implausível: “ Lugar” foi usado
apenas três versículos antes, em “o Lugar da Caveira” (Gólgota), e é plausível que
aqui também signifique isso. A tese mais implausível é a de Barbara Thiering:14
Gólgota era a esplanada meridional do povoado de Qumrã, perto do Mar Morto, a
mais de trinta quilômetros de Jerusalém por estrada (Pilatos e Caifás haviam ido
lá). Nunca se poderá provar fora de qualquer dúvida onde ficava o Gólgota, mas é
provável que não apareça nenhum candidato mais verossímil que o local tradicional.
Tradições dos séculos II e IV a respeito do local do sepultamento, que apontam
para o Santo Sepulcro, têm mais valor que essas modernas suposições que não têm
nenhum apoio arqueológico sério.
14 The Qumran Origins of the Christian Church, Sydney, Australian and New Zealand Studies in Theology
and Religion, 1983, p. 216; repetido em Jesus and the Secret of the Dead Sea Scrolls, San Francisco,
Harper, 1992, p. 113-115. A morte aconteceu na sexta-feira, em 33 d.C., depois de Jesus ter se casado
com Maria Madalena na noite de quarta-feira.
92
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
em um pouco de hissopo e erguem-na até os lábios de Jesus; ele toma esse vinho.
Claramente, um paralelo com a segunda oferta em Marcos/Mateus.
15 TalBab Sanhedrin 43a fala de um grupo de mulheres de Jerusalém que, como ato de piedade, davam ao
condenado um recipiente de vinho contendo um grão de incenso de olíbano para entorpecê-lo. O tratado
talmúdico menor Semahot (‘Ebel Rabbati) 2,9 (44a) relata: “ Aos condenados [... ] é dado para beber vinho
contendo olíbano, para que não se sintam angustiados” . Tertuliano (De jejunio 12,3; CC 2,1271) conta
como na manhã de sua condenação amigos deram a um catecúmeno cristão vinho “medicado” , como
antídoto, mas ele ficou tão bêbado que não conseguiu confessar a que Senhor ele servia.
16 Também citado como myrra ou myron e, quando misturado com óleo, como stacte. E a goma resinosa
do arbusto conhecido como balsamodendron myrrha ou, mais precisamente, como commiphora myrrha
ou abyssinica. Ver detalhes em W. Michaelis, TDNT, v. 7, p. 457-459; G. W. Van Beek, BA 23, 1960, p.
83-86.
93
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
94
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
vinho positivo que, se Jesus o bebesse, traria a vinda do reino. Davies (“ Cup” ) tem
outra sugestão: Jesus considera sua morte uma expiação e Mixná Yoma 8,1 proíbe
beber no Dia da Expiação. Mas não há nenhum indício de que Marcos interpreta
a morte de Jesus contra o pano de fundo da metáfora do Dia da Expiação, como
faz a Epístola aos Hebreus.
17 Seu exemplo mais famoso está em Mt 21,5, onde um paralelismo com dois nomes para o mesmo animal
em Zc 9,9 (jumento, burrico) é dividido em uma descrição de dois animais e Jesus monta nos dois ao
mesmo tempo!
18 O texto koiné de Mt 27,34 vai além nesta distinção, lendo oxos, em vez de oinos, na primeira oferta de
vinho.
19 Como já foi mencionado, creio que a argumentação e as referências neotestamentárias a pregação justificam
o fato de pressupormos que considerável familiaridade com a Escritura era transmitida aos convertidos
95
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
acima que, com toda probabilidade, a razão pela qual o Jesus marcano não tomou o
vinho analgésico oferecido a ele foi que ele concordara em fazer a vontade do Pai e
beber o cálice. E ssa razão não se aplica a Mateus, como o evangelista reconheceu
implicitamente ao inserir uma nova explicação para a recusa de Jesus: “tendo pro
vado, ele não quis beber”. Ele provou o fel que tinha sido misturado com o vinho
para escarnecer dele e reconheceu o escárnio.20
Embora não saibamos com certeza, em síntese sugiro que a cena seguinte
explica melhor a situação nos Evangelhos pertinente ao vinho oferecido a Jesus na
cruz. Na tradição mais primitiva, havia uma única oferta de vinho ordinário (vinagre,
oxos), provavelmente para escarnecer da sede de Jesus na cruz. Isso está preservado
na única oferta joanina e na segunda oferta de Marcos/Mateus. Ao que tudo indica,
foi o próprio Marcos que introduziu no relato da crucificação uma oferta inicial de
vinho temperado, porque essa era uma prática muito seguida em tais execuções.
A predileção marcana por duplicação é bem atestada; aqui, a introdução criou um
paralelismo inclusivo entre o início e o fim da cena. Mais importante, permitiu a
Marcos informar o leitor sobre a recusa de Jesus do que o pouparia de sofrer e
assim mostrar na etapa final do drama a disposição de Jesus para beber o cálice de
sofrimento que o Pai lhe dera. Ao adaptar Marcos e reconhecer o eco de SI 69,22 na
segunda oferta de bebida, Mateus introduziu outro eco (“fel” ) na primeira; assim,
a crucificação de Jesus cumpriu os dois versos do que o salmista dissera a respeito
do sofrimento do justo. Quanto a Lucas, sua única oferta de bebida (Lc 23,36) é
dependente do relato marcano da segunda oferta (não de uma tradição pré-lucana
gentios. Muitos judeus que passaram a crer em Jesus são considerados como já tendo recebido essa
familiaridade por sua educação.
20 Acho totalmente implausível a sugestão de Willcock (“ When”), segundo a qual Jesus cortesmente provou-
-o para demonstrar reconhecimento do bondoso propósito com o qual o vinho fora oferecido. 0 vinho foi
oferecido com um propósito bondoso em Marcos, não em Mateus.
21 Entretanto, são exagerados os esforços de R. C. Fuller (“Drink” ) e Ketter (“ Ist Jesus”) para afirmar que
a “coisa amarga” de Mateus é diferente da mirra de Marcos.
96
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
anterior; ver, adiante, § 41, sob “ Segundo escárnio lucano” ); sua omissão da pri
meira oferta marcana de bebida é exemplo da costumeira simplificação lucana, que
dispensa a duplicação marcana.
97
Q uahto ffo •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
toda literatura comparável, um momento tão crucial já foi expresso de maneira tão
sucinta e não informativa?
22 Em § 37, Parte III, ver as contribuições úteis de Brandenburger, Fitzmyer, Hengel e H.-W. Kuhn
(“ Kreuzesstrafe” ).
23 Skolpos (“estaca, poste” ) e xylon (“árvore”) também aparecem em referências à crucificação. Quanto a
verbos, além do stauroun, empregado nos Evangelhos, encontram-se anastauroun, anaskolpizein (“prender
a um poste” ), kremannynai (“ pendurar” ) e proseloun (“pregar”). Deliberadamente ou não, Heródoto usa
anastauroun (v. 3, p. 125) com referência a cadáveres, e anaskolpizein (v. 1, p. 128; v. 3, p. 132) com
referência aos vivos. Entretanto, nuanças de sentido acabaram por ceder ao costume estilístico: Fílon usa
anaskolpizein e Josefo usa (a najstauroun. Ver Hengel, Crucifixion, p. 24. As raízes hebraicas encontradas
no vocabulário de crucificação incluem tlh (“pendurar” ), zqp (“erguer” ) e slb (“pendurar, empalar”).
98
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
púnicas explica sua difusão entre os romanos. Se os que tinham sido mortos de outra
maneira eram às vezes crucificados depois de mortos para exibição no Oriente, a
crucificação romana dos vivos constituía o castigo em si. Plauto (250-184 a.C.), que
em suas peças nos dá um mundo romano povoado de escravos, soldados e patifes,
é o primeiro autor latino a fornecer referências claras, embora sucintas, à crucifi
cação. Era castigo aplicado primordialmente às classes baixas, aos escravos e aos
estrangeiros. Tácito (História II,lxxii,l-2) fala de um castigo “típico de escravos”
(servile modum) e Cícero (In Verrem II,v,63.66; #163.170) expressa horror oratório
à ideia de se ousar crucificar um cidadão romano. Na verdade, às vezes isso real
mente acontecia (Hengel, Crucifixion, p. 39-40; H.-W. Kuhn, “ Kreuzesstrafe”, p.
736-740); mas, de modo geral, ao contrário dos cartagineses, os romanos poupavam
da crucificação as classes altas e a nobreza. A atitude reflete-se em relação a Jesus
em F1 2,7-8, que liga assumir a forma de escravo com a morte na cruz.
Quanto à crucificação por judeus, uma das mais antigas referências à prá
tica é a execução, no começo do século I a.C., de 800 prisioneiros por Alexandre
Janeu.24 À medida que os exércitos romanos começaram a interferir na Judeia, a
crucificação de judeus se tornou questão de estratégia, por exemplo, o governador
da Síria crucificou 2.000 judeus em 4 a.C (Josefo, Ant. XVII,x,10; #295). No século
I d.C., Jesus é o judeu que sabemos ter sido crucificado. De outro modo, Josefo não
registra nenhuma crucificação de judeus durante a primeira parte da prefeitura
romana na Judeia (6-40 d.C.), embora haja ampla atestação de crucificação durante
a segunda parte dessa prefeitura (44-66 d.C.)25
24 Josefo, Guerra I,iv,6; #97; Ant. XIII,xiv,2; #380. É improvável que Josefo estivesse se referindo a uma
empalação que mataria ipsofacto a vítima; ver § 35, nota 4. Consultar, em § 23 A-B, outros exemplos de
crucificação por judeus e a interpretação de Qumrã que parece inculcar esse castigo. Halperian (“Cruci
fixion” , p. 40-42) afirma que os judeus tomaram emprestada a crucificação dos romanos e a levaram para
a lei judaica envolvendo Dt 21,22-23. Ele sugere que a crucificação, que se tomou uma forma legítima
de castigo nos tempos de Qumrã, foi mais tarde substituída nos tempos rabínicos pelo estrangulamento,
uma pena capital mais rápida e menos torturante.
25 H.-W. Kuhn, “ Kreuzesstrafe” , p. 733. Ele observa (p. 686-687) que, no período de 1-150 d.C., incidentes
de crucificação raramente estão documentados em outros lugares (Grécia, Ásia Menor, Síria), exceto pela
crucificação de cristãos em Roma sob Nero.
99
Q ihu io ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
Pode-se pensar que a reticência dos autores a respeito dos detalhes da cruci
ficação foi suplementada pela arte cristã dos primeiros séculos, quando a crucifica
ção ainda era praticada, mostrando como artistas desse período imaginavam Jesus
crucificado. 0 simbolismo da cruz (sem um corpo) aparece na arte das catacumbas,
por exemplo, no hipogeu de Lucina do século III, e se torna comum por volta do
século IV. Contudo, muitas vezes o sinal da cruz é apenas uma aproximação rústica,
que nada nos diz a respeito do tipo de cruz que os cristãos julgavam ter sido usada
para Jesus. A situação se complica pela tendência dos arqueólogos mais antigos a
identificar qualquer coisa remotamente parecida com uma cruz como cristã.27 Quanto
a descrições de Jesus crucificado, há apenas cerca de meia dúzia de descrições dos
séculos II ao V (Leclercq, “ Croix”, com reproduções). Uma das mais antigas, uma
gravura diminuta em uma pedra de jaspe, do século II, talvez seja obra gnóstica;
mostra uma figura crucificada nua e contorcida, sem espectadores, e assim talvez
26 Justino, Apologia I,xiii,4; Orígenes, Contra Celso vi,10; Agostinho, Civitas Dei 19,23 (CC 48,690) com
referência a Porfírio.
27 O objeto cruciforme anterior a 79 em Herculaneum, o célebre quadrado de palavras Sator em Pompeia
(W. Bames, NTS 33,1987, p. 469-476), os sinais de mais em ossários da Judeia do século I e a cruz de
Palmira, de 134 d.C., são todos possíveis exemplos desse exagero.
100
§ 40, Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
ridicularize a crença cristã ortodoxa na morte de Jesus. Outra pedra preciosa, uma
cornalina do século II, da Romênia, mostra um Cristo super-humano na cruz, quase
duas vezes mais alto que os doze apóstolos circundantes. A representação do século
III encontrada na escola para pajens Domus Gelotiana do palácio imperial no monte
Palatino em Roma é o grafito de um asno crucificado; ridiculariza o Deus cultuado
pelos cristãos e aparentemente reutiliza o que pode ter sido uma forma padrão de
escárnio dirigido a um pretendente régio (Políbio, História viii,21; #3; ver NDIEC
3,1979, #34, p. 137). Que pena! Essas reproduções nada têm a nos ensinar a res
peito de como Jesus foi crucificado. Admitindo a escassez de informações, vamos
mesmo assim procurar responder a diversas perguntas.
28 Com a devida vênia à Bíblia das Testemunhas de Jeová; ver J. F. Mattingly, CBQ 13, 1951, p. 441-442.
29 As vezes é citada como cruz de três braços, um vertical, descendo da viga transversal e dois horizontais
em cada lado do ponto onde a viga vertical divide ao meio a viga transversal.
101
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
presume que Jesus foi crucificado em uma cruz em forma de T e Justino (Diálogo
xci,2) descreve a viga transversal sendo adaptada à extremidade mais alta da es
taca vertical, uma área em forma de chifre. (Entretanto, Justino está interessado
no cumprimento de uma passagem veterotestamentária, que trata de chifres, que
talvez guiasse sua descrição.) Outro tipo de cruz era formado se um entalhe fosse
cortado horizontalmente no lado da estaca vertical, a alguma distância do topo, e
a viga transversal fosse inserida nele, dando a forma de um sinal de mais alongado
(t, a crux immissa). E ssa seria uma cruz com quatro braços, sendo presumida por
Irineu (Contra as heresias II,xxiv,4), que, acrescentando um assento ou descanso
de nádegas a ela, fala de cinco extremidades. Tertuliano (Ad nationes I,xii,7; CC
1,31) compara a cruz de Jesus a um homem de pé com os braços abertos. É a cruz
favorita da arte cristã, porque Mt 27,37 menciona que “eles puseram acima de sua
cabeça a acusação” (ver Lc 23,38).
102
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
Sêneca (De vita beata xix,3) fala figurativamente de pessoas que cravam os próprios
cravos na cruz.
30 Justino, Apologia I,xxxv,5-7; Dialogue xcvii.3-4; Tertuliano, Adversus Iudaeos xiii, 10-11 (CC 2,1386).
103
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota, É sepultado ali perto
(Falero), de dezessete esqueletos de piratas com cravos de ferro nas mãos e nos pés,
o que reflete uma execução no século VII a.C. Muito mais importante para nossos
propósitos foi a descoberta, em junho de 1968, de um túmulo em Giv’at ha-Mivtar,
bem ao norte do túmulo de Simão, o Justo, em Jerusalém. Abrigava seis ossários
que continham os ossos de quase vinte pessoas. Em um ossário, entre os ossos
de três pessoas (uma delas uma criança pequena), estavam os de um homem de
vinte e tantos anos de idade que fora crucificado. A criança e também o homem se
chamavam Yehohanan (YHEHNN), mas havia também a designação BN HGQW,
que confunde os biblistas. Yadin (“ Epigraphy” ) sugeriu ler hqwl,31 “o de pernas
arqueadas”, de modo que a criança era o filho de um homem crucificado com as
pernas separadas. H.-W Kuhn (“ Gekreuzigte”, p. 312) sugere um eco da palavra
grega agkylos [latim ancyla ], “arqueado, vergado”, que descreve os ossos. A data
de crucificação para o Yehohanan mais velho era algumas décadas antes de 70 d.C.
Uma descrição dos ossos e cravos foi publicada por V. Tzaferis, J. Naveh e N. Haas
em IE J 20,1970, p. 18-59; e muitas descrições de Yehohanan na cruz baseiam-se
na apresentação deles (ver o vol. Suplementar, 1976, do Interpreters Dictionary o f
the Bible, p. 200). H.-W. Kuhn (Gekreuzigte” ) e Zias & Skeles (“ Crucified” ) per
ceberam graves erros na apresentação de 1970 (inclusive o tamanho dos cravos).
Os braços estavam amarrados (não pregados) na viga transversal;32 parece que as
pernas estavam escarranchadas na viga vertical, de modo que os pés estavam pre
gados nos lados dela (não na frente); com toda a probabilidade, dois cravos foram
usados, cada um traspassando primeiro uma placa de madeira de oliveira, o osso
do calcanhar e então a superfície de madeira da cruz — a madeira de oliveira era
para impedir o crucificado de soltar os pés do cravo. Não parece que os ossos da
perna tivessem sido quebrados deliberadamente enquanto ele estava vivo na cruz,
como relatado originalmente.33 Pelo menos os dados desta crucificação, aproxima
damente contemporânea da crucificação de Jesus, devem afastar o ceticismo quanto
à plausibilidade da sugestão de que os pés de Jesus foram pregados.
31 Naveh (“Ossuary”), que publicou a inscrição, não deu um sentido satisfatório a HGQWL. Na proposta de
Yadin, é incerto se um mal escrito ‘ aparece como G ou ‘ era pronunciado e, portanto, escrito como G.
32 Para explicar o fato de estarem os ossos do pulso incólumes, Haas (“Anthropological” , p. 57-58) tinha
originalmente teorizado que os membros superiores eram pregados. Ver uma lista do que muitos consi
deram defeitos na publicação de Haas em Zias & Charlesworth, “Crucifixion” , p. 279-280.
33 Haas (“Anthropological” , p. 57) havia relatado que o osso tibial direito era quebrado por um único golpe
que podia ser atribuído ao “ coup de grâce” final. À luz da análise mais recente, a quebra do osso pode
ter ocorrido enquanto os ossos eram postos no ossário.
104
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
Ser pregado na cruz foi doloroso para Jesus: “ Castigados com os membros
estendidos [...] eles são atados e pregados à estaca no tormento mais amargo,
comida nociva para aves de rapina e sinistros restos para cães” (tradução livre
de Pseudo-Manetão [século III d.C.], Apotelesmatica, v. 4, p. 198-200; Hengel,
Crucijixion, p. 9). Nenhum Evangelho canônico menciona o sofrimento de Jesus.
Entretanto, quando relata que eles “crucificaram o Senhor”, EvPd 4,10 comenta:
“ Mas ele estava calado, como se não sentisse dor”.36
34 Uma contagem apoiada por Cipriano, Ambrósio, Gregório de Tours e Oráculo Sibilino 8,319-320.
35 A respeito de aspectos dúbios desse achado, ver J. W. Drijvers, Helena Augusta: The Mothzr of Constantine
the Great and the Legend of Her Finding the True Cross [Helena Augusta: a mãe de Constantino e a lenda
da cruz verdadeira], Leiden, Brill, 1991.
36 E ssa pode bem ter sido uma das passagens que levaram à desconfiança ortodoxa desse Evangelho (ver
a p ê n d ic e I), pois podia ser entendida como dando apoio à tese de que Jesus não era verdadeiramente
humano, nem mesmo real na época da crucificação. Entretanto, é mais provável que o autor simplesmente
reflita o tema do silêncio de Jesus (já visto em diversos cenários dos Evangelhos canônicos) combinado
ao tema de bravura relacionado com a descrição de Jesus como mártir. Policarpo (Martírio xiii,3) reza
para que Deus lhe conceda permanecer impassível nas chamas.
105
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
vezes atado perto da parte inferior da viga vertical. Nos séculos VI e VII, artistas
e escritores cristãos começaram a presumir que Jesus tinha um.3' Na cruz russa,
esse escabelo se torna outra viga transversal mais curta que atravessa a haste
vertical em um ângulo perto do fundo. No meio da cruz, havia às vezes um sedile
(“assento” ) ou pegma (“alguma coisa fincada” ), isto é, um bloco de madeira para
apoiar as nádegas. Sêneca (Epístola ci,12) escreve a respeito de tomar assento na
cruz; outra expressão é “montar” na cruz, como se a pessoa estivesse cavalgando
(;inequitare). 0 assento pode ter sido útil quando o condenado, amarrado ou pregado
à viga transversal, estava sendo baixado em posição; de fato, tomava parte do peso
durante o breve tempo em que a viga transversal estava sendo encaixada no nicho
preparado para ela na viga vertical.*38
3' E. Grube, Zeitschrift für Kuntsgeschichte 20, 1957, p. 268-287. Uma das mais antigas descrições da
crucificação, o grafito do asno crucificado no Palatino (séculos II — III; ver acima, neste mesmo item,
sob “A crucificação em geral”), tem um suppedaneum — indicação de que o uso era considerado normal.
Contudo, espécimes da arte cristã do século V (a caixa de marfim no Museu Britânico, o painel da porta
de Santa Sabina em Roma) não têm esse apoio para os pés.
38 Justino (Diálogo xci,2) descreve-o projetando-se da cruz de Jesus como o chifre de um rinoceronte,
mas ele está interessado no cumprimento de uma passagem veterotestamentária que trata de chifres (Dt
33,17). Como mencionei acima, sob “ Em que tipo de cruz crucificaram Jesus?” , ele constituía a quinta
extremidade da cruz para Irineu, enquanto Tertuliano (Ad nationes I,xxiv,4; CC 1,31) considerava-o um
assento que se sobressaía.
106
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
,!9 As frases finais de Marcos são exclusivas desse Evangelho (“ para elas quanto a quem devia pegar o
quê” ), usando o verbo airein que foi empregado três versículos antes para o ato de Simão “tomar” a viga
transversal.
107
Q uarto ato - Jesus é crucificado e m orre no G ólg ota .f sepultado ali perto
4 5 6 7
e para meu traje [himatismos] tiraram a sorte.
Mc 15,24b: n. 1, 2, 4, 6, 7
Mt 27,35b: n. 1, 2, 6, 7
Lc 23,34b: n. 1, 2, 6, 7
Jo 19,23b-24a: n. 2
4(1 Houve acirrado debate entre os Padres da Igreja quanto ao fato de o salmista ter Jesus em mente quando
escreveu isso. Tertuliano o afirmou (Adv. Marcion IV,xlii; 4; CC 1,659), como também o Segundo Concilio
de Constantinopla (4* sessão; 12/13 de maio de 553) contra Teodoro de Mopsuéstia.
108
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
Que probabilidade existe de terem as vestes45 ido para os soldados que eram
guardiões do condenado? Em DJ XLVIII,xx,l, o princípio geral é que os bens dos
condenados são confiscados, mas DJ XLVIII,xx,6 relata uma distinção feita por
Adriano. As vestes que a pessoa condenada está vestindo não podem ser exigidas
pelos torturadores. Tácito (História iv,3) descreve um escravo crucificado enquanto
ainda usava anéis. Estava essa atitude mais branda do século II corrigindo a prática
mais gananciosa do século I? Quanto ao método empregado para dividir as roupas de
41 O aramaico de um targum mais tardio deste Salmo é às vezes invocado como base para a exegese joanina,
pois fala de lebusa, “ roupas” , em um verso, e petaga, “capa” , no seguinte; mas não há prova de que essa
interpretação existisse no século I.
12 Na nota 2 acima, mencionei que, como Marcos, João tem três reatores (Pilatos, soldados, seguidores)
que interagem com Jesus crucificado, embora a identidade dos reatores joaninos seja diferente da dos
de Marcos.
43 Em At 12,4, o rei Herodes Agripa I entrega Pedro à prisão sob custódia de quatro esquadrões.
44 Acho forçada a tentativa de relacionar as quatro partes das roupas às quatro mulheres (pela contagem
mais plausível) em Jo 19,25 (ver de la Potterie, “Tunique non divisée” , p. 135).
45 Se o próprio evangelista especulou ou não quanto ao que eram os quatro itens, os biblistas compensam
a falta joanina de especificidade. A. Edersheim (The Life and Times of Jesus the Messiah, 2. v., New
York, Longmans, Green, 1897, v. 1, p. 625) sugere: adorno de cabeça, sandálias/sapatos, faixa longa
e um talith grosseiro ou manto exterior. Kennedy (“Soldiers” ) afirma que Jesus foi levado descalço ao
Gólgota; e com base em Jo 13,4, que descreve Jesus vestindo alguma coisa debaixo do chiton. substitui
as sandálias por uma camisa ou túnica interior (o halúq mencionado na Mixná).
109
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Jesus, os três sinóticos usam ballein kleron (“lançar a sorte” ), expressão que aparece
em SI 22,19,46 onde, como em Marcos, é acompanhada da preposição epi (“sobre”
= “para” ). Com referência à túnica, não às roupas, Jo 19,24 emprega lagchanein
(“obter por acaso” = “jogar” ),47 acompanhado pela preposiçãoperi (“sobre” ). Quanto
ao que é imaginado, muitos biblistas acham que alguma coisa como dados teria
sido jogada. Entretanto, De Waal (“ Mora” ) duvida que os soldados teriam de modo
tão conveniente trazido uma pyrgos (“caixa de dados” ) para o lugar da crucificação.
Ele sugere um jogo de mora jogado por meio da adivinhação do número de dedos
estendidos sobre as mãos ocultas do adversário. Aparentemente foi assim que a
paráfrase de João por Nonos de Panópolis (c. 440) entendeu lagchanein : “estender
os dedos da mão para ela [a túnica]”.
40 Entretanto, no caso de Lc 23,34, o Códice Alexandrino e a família Lake de minúsculas têm uma leitura
divergente que emprega o plural klerous e que talvez seja original.
47 O relacionado ballein lachmon aparece em EvPd 4,10 (com epi) e Justino, Diálogo xcvii,3 (embora, em
Apologia I,xxxv,8, Justino use ballein kleron). Lachmos é palavra rara, encontrada principalmente em
reflexões a respeito desta passagem.
18 J. Repond, “Le costume du Christ” , em Bíblica 3,1922, p. 3-14 em relação a Jo 19,23.
45 Procuro seguir a ordem joanína de palavras. Não está claro o que a frase “de cima” modifica. Muitos a
entendem com o antecessor “ sem costura”, mas Nestle (“Coat”) a entende com “ tecida” que vem a seguir
(como fazem o Códice Latino c e testemunhos siríacos). Ele acredita que João descreve uma capa sem
costura no topo ou na parte superior. Em passagem a ser examinada mais adiante, Josefo (Ant. III,vii,4;
#161) descreve uma túnica sacerdotal que “ não consiste em duas partes [de pano] costuradas juntas nos
ombros e nos lados” .
M Fleur bleue, Revue des industries du lin, 1951, p. 21-28, 45-53.
§ 40.Jesus crucificado, prim eira parte:0 cenário
dos Padres da Igreja, julgando pelas roupas de seu próprio tempo, consideravam
a túnica joanina sem costura uma veste muito incomum, que revelava a majestade
de Jesus ou sua pobreza.
Têm sido feitas sugestões de que a veste tinha caráter sagrado e os soldados
supersticiosos temiam destruir isso ao rasgá-la. Alguns biblistas descobrem um
eco simbólico da história de José.51 Nestle (“ Ungenahte” ) lembra a capa especial
que José tinha (Gn 37,3), e que a LX X entendeu ser um chiton de muitas cores. E
provável que ali o hebraico descrevesse uma túnica longa, e ao que tudo indica, os
tradutores siríacos entenderam que ela era de mangas compridas.52 Vimos acima
(§ 29 B) a tese de que, na NP, José serviu como tipo ou imagem de Jesus. Gottlieb
Klein (“ Erláuterung” ) indica TalBab Taanit 11b, que em sua interpretação significa
que Moisés usava uma capa inconsútil (sem remate).
51 Outros procuram antecedentes pagãos. Saintyves (“ Deux” , p. 235-236) lembra que o traje dos deuses da
vegetação revelava sua natureza cósmica e que os mantos nas estátuas dos deuses tinham significância
(por exemplo, Macróbio, Saturnália I,xviii,22 fala de vestes colocadas na estátua de Dioniso ou Liber
para imitar o sol). A obra gnóstica Pistis Sophia I,ix,l 1 dá grande atenção à vestimenta de luz com a qual
Jesus estava vestido. É difícil saber como os leitores de João, presumivelmente de formação variada,
interpretaram a atenção de João às roupas de Jesus; mas os antecedentes detalhados do Salmo tomam
difícil acreditar que o autor de repente mudasse para um pano de fundo totalmente diferente para a
túnica.
52 Essa parece ser a importância de Midraxe Rabba 84,8 a respeito de Gn 37,3 (“alcançava até os punhos”).
Entretanto, Murmelstein (“ Gestalt” , p. 55) cita o siríaco e o midraxe como prova de que José usava uma
capa sem costura. G. Klein (“ Erláuterung” ) nega que a prova disso seja primitiva.
53 Além dessas duas, é possível mencionar a túnica sem costura como símbolo do próprio Cristo como
alguém com quem todos (inclusive celestes e terrenos) estavam em harmonia (Rutherford, “Seamless”).
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
tradição a respeito da “túnica tecida de linho fino” do sumo sacerdote (Ex 39,27;
Ex LXX 36,35)? Um fator que contribuiu para o interesse nela pode ter sido o
cuidado romano para ter controle das vestes do sumo sacerdote, liberando-as apenas
para festas (Josefo, Ant. XV,xi,4; ##403-408; X X ,i,l; # 6).54 Os que invocam esses
antecedentes sugerem que, depois de Jesus ser proclamado rei pelo título na cruz,
João agora simboliza-o como sacerdote.55 Alguns autores patrísticos comparam Jesus
ao sumo sacerdote em Lv 21,10, que não rasgou suas vestes.56 Entretanto, em geral,
de la Potterie (“ Tunique sans couture”, p. 256-257) está correto ao afirmar que a
interpretação de Jo 19,23 na qual a túnica é a vestimenta sumo sacerdotal é ideia
relativamente moderna.57 (Alguns que a apoiam também defendem a interpretação
a seguir, pois elas não são incompatíveis.)
34 Também digna de nota é a interpretação alegórica do sumo sacerdote, que tinha uma veste especial;
harmoniza-se com a identificação que Fílon faz do sumo sacerdote como símbolo do Logos geral (De
ebrietate 21; #85-86; De fuga 20; ##108-112; ver Bacon, “Exegetical” , p. 423; Conybeare, “New”).
5,1 Para possíveis referências a Jesus como sacerdote em João, ver BGJ, v. 2, p. 765-767, 907-908, 993.
Também é invocado Ap 1,13, onde alguém semelhante a um filho de homem usa vestes possivelmente
simbólicas de sacerdote e rei. Em Hb 8-10, Jesus vai para a morte de uma forma comparável à oferenda
de sacrifício pelo sumo sacerdote no Dia da Expiação.
56 Isidoro de Sevilha, Quaestiones in Vet. Test. Lev 12,4; PI 83,330; também Severo de Antioquia.
” Os proponentes incluem Barrett, W. Bauer, Calmes, Durand, Haenchen, Hoskyns, Lightfoot e Loisy.
58 Outros proponentes incluem Bemard, Bultmann, Dauer, Lagrange e van den Bussche.
112
§ 40, Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
(De Ecclesiae Cath. Unitate 7; CC 3,254), que vê na túnica inconsútil, tecida desde
cima, um símbolo da Igreja indivisa sendo unificada do céu lá em cima. Um pouco
mais tarde, no Oriente, Alexandre de Alexandria critica os arianos por terem ras
gado a túnica inconsútil de Jesus.59
s9 Teodoreto, Hist. Ecl. I,iv,3-5; GCS xix,9. Em interpretações concentradas em unidade, às vezes a ênfase
é cristológica, por exemplo, a unidade de naturezas em uma única pessoa (Aubineau, “Tunique”, p. 126).
60 Essa discordância é importante à luz da concordância joanina de tempo com Marcos em relação às negações
113
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
• argumentar que a sexta hora joanina deve ser contada a partir da meia-
-noite, não da madrugada, e assim igualar 6 horas da manhã — horário
já analisado e rejeitado;61
de Pedro (hora em que os galos cantam), a condução de Jesus a Pilatos (“ cedo” ) e o sepultamento de
Jesus (mais tarde no dia de preparação, imediatamente antes do sábado).
61 § 35, nota 45. J. P. Louw (Scriptura 29, 1989, p. 13-18) argumenta com firmeza que não se pode har
monizar pela alegação de que Mc 15,25 representa o modo romano de calcular as horas, enquanto Jo
19,14 representa o modo grego. “Todos os dados de textos gregos e latinos antigos comprovam um único
sistema unificado de contar as horas do dia do nascente ao poente” (NTA 34, 1990, #88).
62 Uma proposta desesperada por Cowling, "MarkV", reconhece isto: enquanto a terceira hora marcana
era um período de três horas (das 9 ao meio-dia), a sexta e a nona horas mencionadas por Marcos eram
horas reais (meio-dia e 3 da tarde). Blinzler (Trial, p. 266) questiona se alguma dessas horas pode ser o
equivalente de um período de vigília de três horas.
63 Ver Teofilacto, Enarratio in Ev. Joannis (a respeito de Jo 19,14; P 124,269A) e Eutímio Zigabeno, Com-
mentarium in Marcurn (a respeito de Mc 15,25; PG 129,845A).
114
§ 40,Jesus crucificado,primeira parte:0 cenário
ação de Pilatos foram concluídas por Marcos dez versículos antes de ele
mencionar a terceira hora);
64 E o contrário da tese de que a “ sexta” hora joanina era erro de um copista por “ terceira” . Mencionei as
duas propostas em § 35, nota 46.
115
Q uarto « o •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
65 Talvez Karavidopoulos (“ Heure” ) e outros estejam corretos ao sugerir que essa era a prática da Igreja
de Roma, mas pode ter sido uma prática judeu-cristã mais geral. Daniel (Dn 6,11) tinha o costume de
rezar três vezes ao dia; e TalBab Berakot 26b atribui essa oração em horas fixas aos patriarcas.
66 Embora Gnilka (“ Verhandlungen” , p. 9) reconheça que houve influência litúrgica em Marcos, ele acha
que as referências marcanas de tempo foram acrescentadas com propósitos de historicidade.
116
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
tema de que Jesus passou seis horas na cruz, presumivelmente contadas a partir
da sexta hora até o entardecer, quando José de Arimateia chegou. O hipotético
editor marcano contou erroneamente as seis horas para trás, da hora da morte de
Jesus por volta da nona hora (3 da tarde), e assim surgiu com a crucificação na
terceira hora? Por mais atraentemente simples que seja a proposta de interpolação,
a pressuposição de uma forma diferente de Marcos disponível para Mateus e Lucas
é uma solução um tanto desesperada.67
67 Do mesmo modo, não confio na tese de J. P. Brown (JBL 78, 1959, p. 223), de que originalmente em
Marcos, no lugar onde agora está Mc 15,25, havia uma redação diferente pertinente a vigiar Jesus na
cruz e esse verbo deu solidez a Mt 27,36 (talvez por meio de reescrita mateana). Para estabelecer a
existência desse versículo marcano, além de Mt 27,36 com seu terein, é possível indicar Lc 23,35,
que na mesma posição sequencial de Mc 15,25 e Mt 27,36 diz: “ E o povo estava de pé ali observando
[theorein]”. Também é possível defender a originalidade de uma leitura alternativa de Mc 15,25 (apoiada
pelo Códice de Beza e a OL) que substitui por “ e eles o crucificaram” a interpretação “e eles o estavam
guardando \phylassein]” . Mas o vocabulário desses três testemunhos do hipotético versículo marcano
é muito variado e a interpretação de Marcos pelo Códice de Beza talvez resulte de uma tentativa de
harmonizar com Mateus.
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
118
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
69 Suetônio, Caligula xxxii,2; Domiciano x ,l; Tertuliano, Apologia ii,20 (CC 1,91); Díon Cássio, História
LIV,iii,7; Eusébio, HE V,i,44.
119
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Marcos não relata quem fez a inscrição, mas as ações circundantes são as
dos soldados romanos. Mateus atribui a acusação escrita a “eles”, que têm de ser
os soldados de guarda. Lucas coloca a inscrição em um cenário onde ele menciona
soldados (romanos) pela primeira vez. Em nenhum dos sinóticos há a sugestão
de que a inscrição em si foi feita com o propósito de escárnio, embora, depois de
escritas, as palavras fossem usadas para escarnecer de Jesus. Pela inscrição e o
uso feito dela, tem-se a impressão de que, até o último momento, Jesus foi vítima
de acusação falsa.
0 Em Jo 19,21, o título é repetido como “ 0 Rei dos Judeus” , forma que concorda com Marcos e deve ter
sido a redação básica na tradição.
n João tira proveito das complexidades da acusação. No julgamento romano, a pergunta de Pilatos: “És tu o
Rei dos Judeus?” (Jo 18,33) não era criação sua, mas veio da nação judaica e dos chefes dos sacerdotes
que lhe entregaram Jesus (Jo 18,34-35). Jesus não respondeu: “ Eu sou um rei” , mas: “Tu dizes que sou
rei” (Jo 18,37), para ressaltar que seu reino não era deste mundo como tinha sido subentendido. Contudo,
agora na cruz os chefes dos sacerdotes alegam: “Esse sujeito disse: ‘Eu sou o Rei dos Judeus’“ . E é em
resposta à afirmação deles declarando que o próprio Jesus fez a alegação que Pilatos confirma a realeza
de Jesus (presumivelmente no sentido que Jesus visualizava o reino).
120
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
“ Depois da sentença, Pilatos ordenou que a acusação contra ele fosse escrita como
título em grego, latim e hebraico, exatamente como os judeus tinham dito que ‘Ele
é o Rei dos Judeus’”. Na dramatização joanina, o governador romano reconquistou
seu domínio depois de ter sido intimidado por ameaças no fim do julgamento. Sem
esforço, a resposta lacônica (dada em grego) aos chefes dos sacerdotes dos judeus
pode ser traduzida em um epigrama latino digno de um prefeito autoritário: Quod
scripsi, scripsi. Os chefes dos sacerdotes aceitaram César como rei; agora têm de
se satisfazer com a repulsa do representante de César.
Deixando tudo isso de lado, podemos ter razoável certeza de que os solda
dos não teriam o cuidado de transcrever uma acusação criminal em três línguas.
72 Na tradição textual koiné de Lc 23,38, se lê: “escreveram acima dele em letras gregas, latinas e hebrai
cas” . Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1505) expressa a opinião da vasta maioria de biblistas: “Quase certamente
uma glosa tirada de Jo 19,20” .
73 Muitas das pinturas medievais mostram um texto hebraico, às vezes expresso na base do grego joanino
(ver Wilcox, “Text”). S. Ben-Chorin (Bruder Jesus, München, Deutscher Taschenbusch, 1977, p. 180) tem
uma sugestão peculiar: Yeshu Hanozri Wumelek Hayehudim, cujas quatro primeiras letras constituem um
jogo com o tetragrama YHWH. Blinzler (Trial, p. 254) volta-se para o aramaico (que é muitas vezes, se não
sempre, o que o “hebraico” joanino significa): Yesua Nazoraya malka diyehudaye (= minha modificação
da transcrição germânica de Blinzler).
74 The Month 155,1930, p. 428.
121
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
122
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
Jesus: “ É melhor que um só homem morra pelo povo”. Tendo encontrado a verdade
(Jesus), Pilatos é levado a fazer uma proclamação imperial profeticamente verdadeira
em sua terminologia.75 Em Jo 19,16, “os judeus” disseram: “ Não temos nenhum rei
além de César” ; mas ironicamente o romano proclama um rei diferente (e maior)
que César. Ainda mais claramente que os sinóticos, João usa Pilatos para expressar
uma avaliação teológica.
Jo 19,20 nos diz que esse título dramático foi lido por muitos dos judeus,
porque “o lugar onde ele foi crucificado era perto da cidade”.76 Os relatos sinóticos
da crucificação têm três escárnios de Jesus pelos que contestam suas alegações; o
paralelo joanino mais próximo, em termos de conteúdo, é esta cena onde “os chefes
dos sacerdotes dos judeus” contestam a proclamação por Pilatos de “ O Rei dos
Judeus”. Na triunfal descrição joanina da crucificação, Pilatos é inflexível a favor
de Jesus. Os verbos em “ O que escrevi, escrevi” estão ambos no tempo perfeito: o
primeiro equivalente a um aoristo, o segundo sugerindo um efeito duradouro (BDF
3424). Comparemos a resposta do rei selêucida Demétrio em IMac 13,38: “ O que
garantimos a vós está garantido”. Nos lábios de Pilatos, a autoridade romana e o
respeito romano por uma declaração escrita encontram expressão.
75 Pseudo-Cipriano (De montibus Sion et Sinai 9; PL 4,915C) diz que Pilatos tomou manifesto um dito
profético.
'6 Literalmente, “perto estava o lugar da cidade onde Jesus foi crucificado” . Martin (“ Place” , p. 3) usa a
emaranhada ordem grega das palavras para defender o Monte das Oliveiras como o local da crucifica
ção, perto do lugar (isto é, Templo; ver Jo 11,48) da cidade. Entretanto, não há nada no contexto para
incentivar a interpretação de “lugar” aqui como o Templo; mais logicamente, é o Lugar da Caveira de Jo
19,17b. A gramática não apoia necessariamente a interpretação de Martin, pois eggys (“ perto”) rege a
frase de genitivo “ da cidade” . Schnackenburg (John v. 3, p. 271) menciona a separação de palavras que
se unem como marca do estilo joanino e como prova de que a cena foi composta em círculos joaninos.
77 Esta leitura não se encontra no TM, nem na LXX, mas está subentendida em Barnabé 8,5 e é conhecida
de Justino (Diálogo lxxiii,!), Tertuliano (Adv. Marcion xix,l; CC 1,533) e da tradição latina.
123
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto
EvPd. A inscrição na cruz é usada em EvPd 4,11 de uma forma que difere
das apresentações sinóticas e joanina. Como os judeus, não os soldados romanos,
crucificam Jesus, eles escrevem: “ Este é o Rei de Israel”. Antes, eles tinham
escarnecido de Jesus: “Julga justamente, Rei de Israel”, mas não há nenhuma
sugestão de que a inscrição em si seja um escárnio. “ O Rei de Israel” não é título
político, como é “ O Rei dos Judeus”. Para o cristão que escreveu o EvPd, Jesus é
verdadeiramente o Rei de Israel; e, por isso, os judeus proclamam a verdade nessa
inscrição, mesmo que escarneçam da reivindicação de Jesus a ela.
‘8 Ao contrário, o biblista judeu Winter (“Marginal” , p. 250-251) afirma que a redação evangélica do título
é histórica, pois, se os cristãos tivessem criado a redação, eles teriam sido mais precisos a respeito da
identidade teológica de Jesus. Ele menciona a expressão cristã que foi o assunto da nota anterior: “ 0
Senhor reina da madeira [da cruz]” .
'9 A forma marcana da redação é com certeza a mais original entre os sinóticos, pois Mateus e Lucas
simplesmente a expandem. A mesma forma encontra-se na discussão entre os chefes dos sacerdotes e
Pilatos em Jo 19,21.
80 0 uso da designação pelos magos em Mt 2,2 não contradiz isso, pois ocorre antes de eles serem iluminados
por informações das Escrituras. Como Pilatos, os magos reconhecem certa verdade a respeito de Jesus,
mas em Mt 2,2 eles certamente não são descritos como cristãos.
124
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
81 Nos sinóticos, à direita e à esquerda; em João: “aqui e ali” , com Jesus no meio.
82 Crisóstomo, Homília sobre João 84 (85); PG 59,461.
125
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
ou sem inscrições de seu crime. Até receberam nomes, por exemplo, para o bom
(lado direito) e o mau (lado esquerdo): Joathas e Maggatras (Capnatas, Gamatras),
em mss. da OL de Lc 23,32 (e derivados); Zoatham e Camma, em um ms. da OL
de Mt 27,38; Dimas e Gestas, em Atos de Pilatos 9,4.83 Tudo isso ultrapassa os
Evangelhos que os mencionam sem explicação, mas também sem constrangimento
pelo fato de Jesus estar sendo tratado como um entre diversos criminosos.84 E dig
no de nota que o código penal da Mixná não estava em vigor; Sanhedrin 6,4 não
admitia que duas pessoas fossem julgadas no mesmo dia.
83 Também se encontram Tito e Dumaco (que Jesus encontrou quando criança!) no Evangelho arábico da
Infância 23; ver Metzger, “ Names” , p. 89-95. A indicação mais curiosa é fornecida por B. Thiering (nota
14): Judas Iscariotes e Simão, o Mágico!
84 Matera (Kingship, p. 62) vê um eco do pedido de Tiago e João para se sentarem à direita e à esquerda de
Jesus em sua glória, pedido (Mc 10,35-37) que se segue imediatamente à terceira predição que Jesus faz
de sua Paixão. Contudo, a metáfora de um assento ou trono respeitado é tão diferente do que temos aqui
que a menção de direita e esquerda não basta para estabelecer um paralelo e, na verdade, o vocabulário
para “esquerda” não é o mesmo.
85 Além dos mencionados acima, Paton, “Kreuzigung” , vê aqui uma continuação do escárnio da Festa dos
Sacas, que foi sugerida por alguns como antecedente do escárnio romano de Jesus (§ 36 B). Entretanto,
Díon Crisóstomo (De Regno iv,66-70), a principal fonte de informações sobre essa festa, menciona apenas
um homem escarnecido, despido, açoitado e pendurado.
126
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: O cenário
116 A referência inicial aos malfeitores em Lc 23,32 revela sinais da escrita lucana em vocabulário e sintaxe,
e isso é verdade também deste versículo (Lc 23,33), onde os malfeitores são crucificados. Untergassmair
(Kreuzweg, p. 42) menciona que o inicial kai + hote + um verbo finito (“E quando chegaram”) ocorre sete
vezes em Lucas-Atos. A construção men [...] de (“um [...] outro”) na segunda parte do versículo também
é lucana (Fitzmyer, hike, v. 1, p. 108), embora hon men [...] twn de ocorra só aqui.
127
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
Mateus, eles são “dois bandidos” (pl. de lestes); contudo, esses Evangelhos nunca
usaram esse termo em relação a Barrabás, figura notória, preso com desordeiros.
Para Lucas, eles são “dois malfeitores” e novamente esse não é um termo que foi
usado para Barrabás. Em 7,26 do EvPd , que já falou dos “malfeitores” crucificados
(em EvPd 4,10), Pedro diz de si mesmo e de seus companheiros: “ Fomos procurados
por eles [os judeus] como malfeitores que desejam pôr fogo no santuário”. De acordo
com Marcos, havia nesta Páscoa pessoas na cadeia por causa de um tumulto, por
isso muitos biblistas concluem que os dois bandidos/malfeitores faziam parte dessas
pessoas; contudo, nenhum Evangelho estimula essa interpretação por semelhança de
vocabulário. Havia outros crucificados além desses dois? O silêncio evangélico talvez
subentenda uma negativa; contudo, a razão para especificar dois é arquitetônica,
para Jesus ser retratado no centro entre eles. Embora o uso de lestes por Marcos/
Mateus para designar os dois dê a impressão de que eles eram homens de violência
(certamente não ladrões, como indica a tradicional descrição de “bom ladrão” para
o penitente malfeitor lucano), é interessante que a inscrição que descreve o crime
de Jesus não tenha nenhuma sugestão disso para ele. Embora a acusação romana
contra Jesus fosse política, não tinha o mesmo tom que a designação por Marcos/
Mateus dos crucificados com ele.
128
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
Biblistas modernos que dão prioridade a Marcos presumem que *1, o (único)
dito de Marcos/Mateus, estava colocado como a última palavra de Jesus antes de
sua morte. Contudo, é evidente que a negatividade desse dito causava problemas e,
por isso, um dos ditos mais suaves, em especial *4 , é tradicionalmente colocado por
último. Tendo refletido sobre os ditos em geral, voltemo-nos agora para o primeiro
dos ditos lucanos.
87 Ver uma abordagem homilética típica em sete artigos em ExpTim 41, 1929-1930. Ali a ordem de tra
tamento é também *2 , 3, 5, 1, 6, 7, 4. Ver Kreitzer (“Seven”) para os diferentes arranjos de autores e
filmes modernos.
129
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
E preciso dizer mais a respeito de o Jesus lucano rezar pelos agentes judaicos
que, de maneira tão consistente, têm sido hostis a ele. Como pode ele dizer que “eles
não sabem o que estão fazendo” ? Os chefes dos sacerdotes e suas coortes ouviram
Jesus pregar e, bem deliberadamente, rejeitaram sua proclamação. Fazem parte de
uma Jerusalém que Jesus denunciou por matar os profetas (Lc 13,34). Contudo,
foi a hierosolimitas empedernidos que Jesus atribuiu ignorância: “ Se conhecesses
hoje as coisas que trazem a paz; mas agora elas estão escondidas de teus olhos”
(Lc 19,42). Aparentemente, no modo de ver lucano, por mais que tramassem o mal,
88 Úteis para o estudo de Lc 23,34a são os artigos da BIBLIOGRAFIA de § 37, quarta parte, por Dammers,
Daube, Démann, Epp, Flusser, Harris, Moffatt, Nestle; também Feldkãmper (Betende, p. 257-267);
Harnack (“Probleme” , p. 255-261) e Wilkinson, “ Seven” .
130
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
sempre se pode dizer que os perpetradores não sabiam (isto é, não apreciavam a
bondade ou o plano de Deus); do contrário, não agiriam como agiram. Ao se opor aos
seguidores de Jesus a ponto de apedrejá-los, um Paulo que era aliado dos chefes dos
sacerdotes disse: “ Eu mesmo estava convencido de que era necessário fazer muitas
coisas contra o nome de Jesus o Nazareu” (At 26,9). Contudo, Lucas certamente
julgava que Paulo não sabia o que fazia. Talvez com Daube (“ For they”, p. 60) seja
possível resumir a atitude lucana assim: se havia os que não sabiam porque não
lhes disseram, havia também os que não sabiam porque, embora lhes tivessem dito,
não entenderam. Entretanto, é digno de nota que, embora os do segundo grupo não
saibam o que estão fazendo, eles precisam de perdão.
Quanto a castigo, Lc 12,48 faz uma distinção: “ Quem não sabe e faz coisas
que mereçam uma surra, receberá uma surra leve”. É de se presumir que isso se
refira à falta de conhecimento mais elementar, pois as palavras de Jesus às filhas
de Jerusalém mostram que o castigo torna-se inevitável para os malfeitores mais
repreensíveis. Se Lc 23,34a é autenticamente lucano, então é preciso distinguir
entre um perdão que é possível e um castigo que é inevitável. Mas não era um
apelo ao perdão combinado com o sentimento de castigo inevitável a mensagem
dos profetas veterotestamentários nos últimos dias antes da queda dos reinos de
Israel e de Judá?
Como a oração pelo perdão porque eles não sabem o que estão fazendo
combina as atitudes éticas do mundo contemporâneo com o NT? Como Daube
(“ For they”, p. 61-62, 65) menciona, há quem cite o princípio socrático: Ninguém
fa z o mal por ignorância de si mesmo, de seu lugar no mundo ou do bem supremo.
Então, eles passam depressa demais a presumir a origem grega da oração atribuída
a Jesus. Realmente, a atitude judaica para com a ignorância ao pecar é complexa.
Há passagens que refletem benevolência se a ignorância é falta de informação, de
modo que a ação se torna mesmo inadvertida ou impremeditada. Ao descrever a
expiação feita por sacerdotes pelo povo de Israel, Nm 15,25-26 oferece a certeza de
que o perdão pelos pecados de inadvertência será concedido até aos estrangeiros
residentes entre eles, “ pois a falta por inadvertência afeta todo o povo”.89 Contudo,
ações deliberadas, as realizadas com arbitrariedade, são julgadas severamente, e
a falta de pleno entendimento não era amplamente aceita como desculpa. Em 1QS
Hb 5,2 louva os sumos sacerdotes por tratarem com bondade os que não sabem e são enganados.
131
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
90 Precisamos ter cuidado. Há influência cristã nos Testamentos dos Doze Patriarcas.
91 P7\ os Códices Vaticano, de Beza, o corretor de Sinaítico, Koridethi, e as versões Sir'"1e Copta. Nestle
(“Father”) acha que a colocação deste dito de Jesus como penúltimo na ordem das sete últimas palavras
de Jesus em Diatessarão de Taciano, como examinada no início desta subseção, sugere que ela foi uma
inserção mais tardia e que a atitude original de Taciano foi influenciada pela falta da passagem na OS.
0 autor das Constituições Apostólicas usou Taciano; e depois de transmitir a palavra “ Meu Deus’’ de
Marcos/Mateus na nona hora, ele relata: “ Depois de pouco tempo, ele bradou com voz forte: ‘Pai, perdoa-
-lhes, pois eles não sabem o que estão fazendo’, e acrescentando ‘Em tuas mãos eu confio meu espírito’,
ele expirou e foi sepultado antes do pôr do sol em um túmulo novo” (Constituições Apostólicas V,xiv,17).
132
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: O cenário
• Foi falada por Jesus, mas não foi preservada por Lucas. Circulou como dito
independente e somente no século II foi inserida no contexto atual por um
copista para quem ela se adaptava bem aos sentimentos deste Evangelho.
Outros copistas não sabiam dela. (Presume-se uma história parecida para
a narrativa da mulher apanhada em adultério, que acabou sendo inserida
no início de Jo 8.) Essa posição é defendida por MTC, p. 180.
• Não foi falada por Jesus, mas formulada por Lucas (ou na tradição pré-
-lucana imediata) como vocalização apropriada do que Jesus deve ter
pensado: ele na verdade perdoou silenciosamente. Alguns copistas mais
tardios acharam-na inaceitável e a removeram.
• Não foi falada por Jesus, mas formulada no pensamento cristão pós-
-evangélico como apropriada a Jesus e inserida por um copista na NP
lucana, como contexto adequado.
133
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
oração dirigida a Deus no vocativo grego “Pai”, sem nenhum modificador ou tra
dução semítica, é peculiaridade lucana (Lc 10,21; 11,2; 22,42; 23,46). Na NP
lucana, se contarmos este exemplo, Jesus reza “ Pai” três vezes.92 Assim, o formato
da oração é bem lucano. Isso também é verdade do resto do vocabulário na oração
(Untergassmair, Kreuzweg, p. 46). O padrão “perdoa [...] pois” (aphes [ . . . ] gar) é
exatamente o mesmo que na forma lucana do Pai-nosso (Lc 11,4).93 Quanto a “o que
estão fazendo”, encontramos em Lc 6,11 os escribas e fariseus discutindo “o que
farão a Jesus” (ver também Lc 19,48). 0 Jesus lucano pinta uma imagem de Deus
que é generosa no perdão, antes mesmo que o arrependimento seja expresso (Lc
15,20; 19,10). Em Lc 6,27-29, Jesus ensina os discípulos: “Amai vossos inimigos;
fazei o bem aos que vos odeiam; bendizei os que vos amaldiçoam; rezai pelos que
vos maltratam”. Em Lc 12,10, ele diz: “ Todo aquele que fala uma palavra contra o
Filho do Homem será perdoado”. Logicamente, então, o que é feito contra o Filho
do Homem também pode ser perdoado. Se alguém quiser saber por que Jesus
pede ao Pai para perdoar, em vez de estender o perdão ele mesmo (como em Lc
5,20; 7,48), talvez ele esteja motivado pelo desejo de que sua oração seja imitada
pelos cristãos que sofrem injustamente, por exemplo, Estêvão, em At 7,60. Assim,
se alguém deseja pressupor que um copista do século II inseriu uma oração em
Lucas, esse copista tomou todo o cuidado de imitar o estilo e pensamento lucanos,
e foi tão bem-sucedido que o produto final ficou perfeitamente lucano.
92 No Monte das Oliveiras, para que o cálice fosse afastado; aqui, para o perdão de seus perseguidores, e
antes de morrer, confiando seu espírito nas mãos do Pai.
1,3 Alhures em Lucas, “perdoar” tem o objeto “pecados” ; contudo, o “lhes” sendo perdoados aqui são “os
homens pecadores” de Lc 24,7, em cujas mãos o Filho do Homem é entregue para ser crucificado.
134
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
135
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
à direita do Poder e virá sobre as nuvens do céu (HE II,xxiii,13). Assim, há uma
linha de ligação a partir da morte de Jesus, passando pela morte de Estêvão até a
imagem da morte de Tiago, no século II. A associação de uma oração pelo perdão
com o porta-voz helenístico Estêvão, que era contra o Templo, enfraquece a tese
de que ela foi preservada apenas em círculos judeu-cristãos. Fator comum entre
as três figuras é a morte de um mártir. Realmente, uma oração pelo perdão de
perseguidores não é característica no padrão de mártir judaico estabelecido pelas
vítimas dos tempos macabeus: elas advertiram que no fim Deus castigaria seus
perseguidores, privando-os da ressurreição (2Mc 7,14.19.31.35-36; 4 Macabeus
9,30; 10,11; 11,3). Contudo, o perdão como está expresso em Lc 23,34a tornou-se
sinal dos cristãos sofredores. Inácio (Efésios 10,2-3) exorta: “ Oferecei orações em
resposta às blasfêmias deles [...] sede pacíficos em resposta a suas crueldades e
não fiqueis ansiosos por imitá-los em troca [...]. Sejamos ansiosos imitadores do
Senhor”. Justino Mártir (Apologia 1,14) afirma: “ Rezamos por nossos inimigos e
empenhamo-nos em persuadir os que nos odeiam injustamente”. Consta que, no fim
do século II, os mártires de Lyon rezaram: “do mesmo modo que Estêvão, o mártir
perfeito: ‘Senhor, não consideres este pecado contra eles’” (HE V,ii,5).
136
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
Até aqui, a análise mostra que não há nada que refute a autoria lucana
de 23,34a e nenhuma explicação alternativa convincente de sua origem. Se não
houvesse testemunhos textuais que não o contêm, não haveria dúvidas sérias entre
os biblistas quanto a esse versículo fazer parte da NP lucana. Contudo, se alguém
deseja afirmar que Lucas escreveu esta oração, resta uma objeção importante.
d) Por que copistas omitiram esta bela passagem de mss. que a continham?
A falta da oração em Marcos/Mateus pode ter deixado copistas apreensivos, mas só
isso certamente não os faria dar o passo drástico da eliminação. Acharam a oração
contraditória com as palavras ameaçadoras ditas por Jesus às filhas de Jerusalém
em Lc 23,29-32 que indicavam ser o castigo inevitável? Foi essa oração considerada
contraditória porque o Pai não concedera perdão aos judeus, mas fizera Jerusalém
ser destruída em 70? Esta última pergunta foi repetida pelos Padres da Igreja, por
exemplo, Jerônimo (Epístola CXX,viii,2; PL xx,993) explica que a oração ganhou
alguns anos de perdão para os judeus antes da destruição e durante esse tempo
milhares vieram a crer.
94 Não é dada nenhuma informação quanto ao fato de a execução ser direta ou indireta (isto é, informando
os romanos que essas pessoas já não tinham direito à tolerância oferecida aos judeus).
137
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
[...] com a mesma frequência com que obtendes autoridade” (Diálogo cxxxiii,6). A
oração de perdão que Jesus faz em Lc 23,34a talvez perturbasse os copistas que
compartilhavam essa imagem dos judeus como perseguidores implacáveis.
95 Hamack, Harris e outros consideram esse fator muito importante. Ver em BGJ (v. 1, p. 335) a questão
de hesitação dos escribas a respeito de incluir uma narração onde Jesus perdoou uma adúltera.
96 Contudo, não há um meio de se ter certeza: Um copista pode ter inserido esta oração como oração pelos
romanos, sem jamais imaginar que suas palavras seriam lidas como perdão para os judeus.
138
§ 40. Jesus crucificado, prim eira parte: 0 cenário
261), que defendeu com muita firmeza a autenticidade de Lc 22,43-44, está menos
seguro (embora seja favorável) a respeito de Lc 23,34a; ele insiste, entretanto, que
a passagem não deve ser riscada de cópias do texto evangélico.
139
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte:
Atividades no local da cruz
(Mc 15,29-32; M t 27,39-44;
Lc 23,35-43; Jo 19,25-27)
Tradução
141
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Comentário
1 Importante aqui, pelo menos para Mateus e Lucas, é outro padrão de três: as três tentações de Jesus por
Satanás no início do ministério que se contrapõem aos três escámios de Jesus no fim de sua vida. Na
cruz, dois dos escárnios em Mateus (Mt 27,40.43) e dois em Lucas (Lc 23,35.37) são expressos como
orações condicionais, do mesmo modo que as três tentações em Mt 4,1-11 e Lc 4,1-13. Na verdade, o
escárnio mateano “ Se tu és Filho de Deus” (comparemos o “Se tu és o Rei dos Judeus” lucano) é verbatim
o mesmo que “Se tu és Filho de Deus” em duas das tentações. O tom das duas tríades é o mesmo.
142
§41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
proclamar uma advertência de escândalo (Mc 14,27). Na maioria dos casos, Mateus
preserva a perspectiva melancólica da NP marcana; e nesta cena na cruz, Mateus
segue Marcos de perto, fazendo apenas pequenas mudanças e acrescentando um
eco veterotestamentário (Mt 27,43) que só intensifica a hostilidade.
Vou dividir meu estudo em três subseções. A primeira comenta o triplo es
cárnio de Jesus comum aos sinóticos, embora Lucas modifique o esquema marcano.
A segunda examina o adendo ao esquema em Lc 23,40-43 onde um dos malfeito
res suspensos toma o lado de Jesus contra o outro malfeitor que escarneceu dele
blasfemando — em outras palavras, o lado positivo da imagem lucana. A terceira
comenta a cena joanina bastante positiva ao pé da cruz.
2 No artístico equilíbrio quiástico joanino (§ 38 C), exatamente como depois da introdução “ os chefes dos
sacerdotes dos judeus” enfrentam Pilatos no Episódio 1 para fazer um pedido a respeito de Jesus que
Pilatos frustra, também antes da conclusão “os judeus” reaparecem no Episódio 5 para fazer a Pilatos
outro pedido a respeito de Jesus (agora morto) que ele mais uma vez frustra. Mas eles não confrontam
Jesus enquanto ele pende da cruz.
143
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Filho de Deus
seja libertado
3 a. dois cocrucificados zombam bandidos um malfeitor suspenso com ele blasfema
b. Messias
outro suspenso com ele solidariza-se; irá
para o paraíso
Antes de comentar cada escárnio, uma olhadela geral deve deixar claro
que a expansão lucana é, na maior parte, dependente de Marcos — a única séria
exceção possível é o assunto do diálogo entre Jesus e o malfeitor solidário. Lucas
cria um prefácio para o triplo escárnio, adaptando os transeuntes marcanos ao
povo e lhes atribuindo um papel neutro. Cria uma sequência para o triplo escárnio,
dividindo os dois cocrucificados marcanos e fazendo um deles solidário. Como ele
não tem transeuntes, Lucas preenche a lacuna na estrutura triádica, substituindo
por soldados. Na verdade, Lucas transforma o escárnio do meio em um compêndio
de cenas marcanas às quais ele não recorreu antes: escárnio por soldados romanos
imediatamente depois do julgamento romano (Mc 15,16-20a), a oferta de vinho (Mc
15,23 + 36) e a inscrição da acusação “ 0 Rei dos Judeus” (Mc 15,26). Com essa
observação geral, tratemos dos componentes um por um.
3 Uma pequena diferença que achei complicada demais para incluir é que Mateus junta mais os escárnios
que Marcos. Ele repete o “Similarmente” marcano para introduzir o segundo escárnio, mas acrescenta
“ Do mesmo modo” para introduzir o terceiro escárnio. 0 mesmo efeito é obtido colocando o título “Filho
de Deus” no primeiro e no segundo escárnios.
144
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
4 Marcos/Mateus não identificam os transeuntes como judeus, mas em um local judaico, o fato de não lhes
dar outra identidade certamente não permitia que os leitores chegassem a outra conclusão.
3 Já comentamos Mt 27,25, onde “todo o povo” assume a responsabilidade pela morte de Jesus (“Seu san
gue sobre nós e sobre nossos filhos”). Marcos não é tão sistemático, mas o impacto geral desta narrativa
levaria a alguma conclusão a respeito do envolvimento repreensível do povo?
6 Mencionei, acima (§ 23, Elemento C), o que se toma óbvio aqui: no uso atestado neste período, blasphemein
não tem nenhuma inferência de pronunciar o nome sagrado YHWH. Envolve um insulto e, na maioria
das vezes, reflete arrogância, pela blasfêmia ou o blasfemado. Aqui, não tem diferença significativa
de empaizein (“escarnecer” ) e oneidizein (“injuriar” ), que Marcos/Mateus usam no segundo e terceiro
escárnios, exceto talvez na intensificação da irreverência.
' Esta blasfêmia é mais repreensível porque, em Mc 7,22, Jesus mencionou que ela é um vício que se
origina no coração das pessoas.
145
Q uarto »to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
seu desprezo com um forte expletivo: “Ah” (toque dramático marcano que Mateus,
mais moderado, omite).8
Quando lembramos que havia dois temas no julgamento pelo sinédrio ju
daico em Marcos/Mateus, vemos que aqui há um esforço deliberado para recordar
o julgamento todo.
8 O grego oua é usado em Epicteto para expressar admiração. Contudo, achando admiração desdenhosa
insatisfatória, Bishop (“oua”) sugere relacionar a expressão marcana ao arábico ’ua‘, advertência para
“ vigiar” pelo que cavalga um asno ou um camelo — os transeuntes advertem Jesus para ter cuidado
consigo mesmo. Sem pretender ser severo, considero isso uma fantasia pedante. Expletivos têm inteligi
bilidade emocional sem se traçar sua etimologia; o dicionário é bastante informativo a respeito do “ Ah”
que usei para traduzir oua.
9 O uso aqui de “em [en] três dias” em lugar de “dentro de [dia] três dias” de Mc 14,58 (Mt 26,61) é uma
variante inexpressiva. A ordem mateana das palavras aqui, com “ em três dias” antes de “construindo”
(inversão da ordem do escárnio marcano), é a mesma ordem do dito do julgamento.
146
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
1(1 O primeiro escárnio marcano justapõe “ destruindo o santuário” e “salva-te a ti mesmo” , sem especificar
gramaticalmente que, se Jesus pode fazer uma coisa, deve ser capaz de fazer a outra. A adição mateana
de “se tu és Filho de Deus” esclarece isso e nos lembra, além do mais, que no julgamento mateano do
sinédrio a acusação de destruir o santuário não era falsa (como era para Marcos), mas levou diretamente
à pergunta do sumo sacerdote quanto a Jesus ser o Filho de Deus.
11 Nos escárnios perto da cruz, Mateus amplia as duas discórdias satânicas da natureza do Filho de Deus.
No início do Evangelho as tentações do diabo culminaram na oferta de um poder condizente com o
padrão do mundo para o Filho de Deus (Mt 4,8-9); no meio do Evangelho, Pedro foi chamado de Satanás
porque julgava o sofrimento irreconciliável com o fato de Jesus ser o Filho do Deus vivo (Mt 16,16.22-23).
Donaldson (“Mockers” ) defende vigorosamente que, nos escárnios, com sua ênfase no Filho de Deus,
Mateus transcendeu a imagem do justo sofredor em Marcos.
12 As palavras gregas em colchetes representam o vocabulário da LXX da passagem do Salmo usada no
relato evangélico do escárnio. Contudo, o uso evangélico da Escritura aqui é tão alusivo que nem sempre
temos certeza se o evangelista está lendo a LXX ou o TM. (McCaffrey, “ Psalm” , p. 86, também invoca a
possibilidade de leituras targumísticas.) Afora as alusões ao SI 22 e a Sb 2 citadas em meu texto, o prof.
E. Boring chamou minha atenção para Jr 48,27 (LXX 31,27), dirigido a Moab como censura: “E Israel
motivo de riso para ti? Foi ele pego entre ladrões para que balances a cabeça sempre que falas dele?” .
147
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. í sepultado ali perto
O “ povo” que vigia (Lc 23,35a). Como expliquei no início desta seção,
Lucas fornece uma estrutura para os três escárnios, acrescentando reações antes
e depois. Se os “ transeuntes” que iniciam a cena marcana formam um grupo hostil
(de judeus) que blasfemam, Lucas começa com um “povo” (judeu) mais benevo
lente.14 Ao descrever cuidadosamente esse grupo na cena da crucificação e sua
consequência, Lucas prepara a rápida aceitação de Jesus por um grande número
de hierosolimitas em At 2,41.47; 4,4; 6,1. Ao compor a estrutura, Lucas combina a
imagem marcana15 com SI 22,8a e escreve: “ E o povo estava de pé ali observando”.
13 Isso é certamente indubitável por causa dos usos frequentes do SI 22 na NP; mas “sacudir a cabeça”
encontra-se em outras passagens de aflição e elas podem também ter sido lembradas, por exemplo, Lm
2,15: “ Todos os que passam pelo caminho batem palmas para ti, vaiam e sacodem a cabeça para a filha
de Jerusalém” . As duas frases em itálico encontram-se em Mc 15,29. Bailey (“ Fali” , p. 105) enfatiza
esses antecedentes em Lamentações e certamente há ironia em fazer os hierosolimitas escarnecerem de
Jesus da mesma maneira que os inimigos outrora escarneceram de Jerusalém.
14 Uma exceção à apresentação lucana geralmente favorável do “povo” ( a p ê n d ic e V, A) é Lc 23,13, que
junta o “povo” aos chefes dos sacerdotes e governantes — um grupo que, junto, levou Jesus a Pilatos
para ser castigado (Lc 23,14). Implicitamente, eles faziam parte de um “eles” que é hostil a Jesus em
todo o julgamento de Pilatos (Lc 23,18.21.23) e à vontade de quem Pilatos entrega Jesus (Lc 23,25).
Tentativas para fazer Lucas totalmente consistente ao lidar com esse povo (judeu) não reconhecem que
Lc 2,34 reconheceu Jesus como sinal contraditório que seria “ causa da queda e reerguimento de muitos
em Israel” .
10 Além de mudar os transeuntes marcanos para o povo de pé, Lucas omite o temperamental “sacudindo a
cabeça” marcano e muda o “estavam blasfemando” marcano do primeiro escárnio para o terceiro, ligando-o
ao malfeitor hostil (Lc 23,39). Como Lucas omitiu o tema da destruição do santuário no interrogatório de
Jesus diante do sinédrio, ele o omite também no escárnio.
148
§ 41 .Jesus crucificado, segunda parte:Atividades no local da cruz
16 De uma forma diferente, Mt 27,36 também inclui no local da cruz uma continuada presença observadora:
os soldados que se sentam montando guarda sobre ele ali.
149
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
1' O Códice de Beza, que tem tendências antijudaicas, omite o “ havia também governantes” lucano, de
modo que o povo está de pé ali, vigiando e zombando dele. As famílias de minúsculas Lake e Ferrar
trazem os governantes zombando dele “com eles” (= o povo).
18 Plummer (Luke, p. 532) conta a vigília do povo como o primeiro de “ quatro tipos de maus-tratos” . E s
truturalmente, em um episódio devemos suspeitar de quatro, não de três escárnios!
19 0 mais que perfeito de histanai em Lc 23,35a tem essa conotação, do mesmo modo que o perfeito tem
conotação de presente (BDF 971).
150
§ 41 Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
Marcos traz os chefes dos sacerdotes “escarnecendo dele entre si” e falan
do a respeito de Jesus na terceira pessoa. Gnilka (Markus, v. 2, p. 320) acha que
eles estão longe da cruz, mas isso destruiria o cenário onde o primeiro e o terceiro
escárnios estão imediatamente presentes para Jesus. É apropriado que membros
do sinédrio, sob várias designações, apareçam como os principais protagonistas do
primeiro escárnio de Lucas e do segundo escárnio de Marcos/Mateus, pois a cena
tem o propósito de lembrar aos leitores o desafio a Jesus no julgamento ou interro
gatório do sinédrio. Marcos estabelece o padrão: as acusações contra Jesus pelas
autoridades judaicas quando elas o interrogaram são retomadas para escarnecer dele
enquanto ele pende da cruz, mas acabarão sendo o assunto da justificação divina
de Jesus depois de sua morte. Já examinamos em relação ao primeiro escárnio em
Marcos/Mateus a acusação de que Jesus afirmou poder destruir e construir o san
tuário. Voltemo-nos agora para os títulos a respeito dos quais Jesus foi interrogado
nos procedimentos judaicos, a saber, “o Messias”, “o Filho do Bendito/de Deus”.
No escárnio perto da cruz, aparecem os seguintes títulos:
20 Ao examinar esses títulos, farei perguntas em vez de apresentar soluções com firmeza. Aqui, a lógica
dos evangelistas é obscura e talvez a escolha de títulos não fosse tão deliberada quanto muitas soluções
supõem.
151
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto
21 Dos sete usos marcanos de Christos (“ Messias” ), quatro são seguidos por um título em aposição: Filho
de Deus/do Bendito (Mc 1,1; 14,61), filho de Davi (Mc 12,35), Rei de Israel (aqui). Em Lc 23,2, Jesus
é acusado diante de Pilatos por alegar ser “o rei Messias” .
22 Ver no § 32, v. I, acima o uso deste título pelos rei seculares asmoneus e herodianos.
23 Também segundo Jo 12,12-13, Jesus foi louvado pela multidão quando entrou em Jerusalém: “Bendito
é o que vem em nome do Senhor e o Rei de Israel” .
152
§41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
24 Ver também “ Seu Messias” , em At 3,18, e “o Messias do Senhor” , em Lc 2,26 — este último (ou “Senhor
Messias”) é atestado como designação judaica em Salmos de Salomão 17,36(32) — ver BNM, p. 804.
23 Talvez porque “ o escolhido [eleito]” não fosse um título com o qual estivessem familiarizados, os copistas
adaptaram a frase, por exemplo, alguns mss. koirié suavizam Lc 23,35 para “ o Messias, o escolhido de
Deus” , enquanto P7i>tem “o Messias, o Filho de Deus escolhido” . (É o último uma tentativa de incorporar
os dois títulos que Lucas emprega no interrogatório judaico de Jesus: Messias e o Filho de Deus [Lc
22,67.70a]? “O escolhido de Deus” como título para Jesus tem magnífico apoio textual em Jo 1,34. Era
“ o escolhido ou eleito” um título no Judaísmo pré-cristão? O título aparece uma dúzia de vezes em 1
Henoc, entre 45,3 e 61,10, isto é, na parte de “Parábolas” que não foi encontrada entre as muitas cópias
de 1 Henoc de Qumrã, e isso mostra sinais de interpolação cristã; contudo, ver § 22 A, acima. 0 título
aparece em 4Q Mess Ar, com referência a uma criança recém-nascida que terá um grande futuro, mas
sem contexto suficiente para identificar essa figura como o Messias — assim J. A. Fitzmyer, FESBNT,
p. 127-160 versus J. Starcky.
153
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
maneiras, a Jesus para salvar-se a si mesmo,26 descer da cruz ou ser libertado por
Deus. Mt 27,43 acrescenta ao que foi adotado de Marcos todo um versículo para
tratar desse desafio. Permitam-me relacionar as diversas expressões, seguidas pelos
Evangelhos em que ocorrem e por uma indicação (1,2 ou 3) quanto a qual dos três
escárnios as contém nesse Evangelho específico.27
ii. Outros ele salvou; a si mesmo ele não pode salvar: Marcos 2, Mateus 2
iv. Ele confiou em Deus. Que seja libertado se Ele o ama (adendo de Mateus
a 2)
26 Pesch (Markus, v. 2., p. 488) acha que a incapacidade de salvar-se a si mesmo era um teste padrão que
traía o falso messias, mas as provas que apresenta (Apocalipse de Elias e Hipólito) são de mais de um
séeulo depois e encontradas em um contexto cristão.
2‘ Observemos que, sob i, o terceiro escárnio lucano adapta o desafio (tomado de Marcos) ao contexto no
qual ele é dirigido a Jesus por um malfeitor “ suspenso” com ele: “ Salva-te a ti mesmo e a nós” . 0 desafio
no segundo escárnio lucano também está na segunda pessoa (“ Salva-te a ti mesmo”); e o Códice de Beza
harmoniza também o desafio no primeiro escárnio (Lc 23,35b), mudando-o da terceira para a segunda
pessoa: “Tu salvaste outros, salva-te a ti mesmo” .
154
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
28 SPNM, p. 287-288, debate em detalhe que forma linguística do texto do Salmo motivou Mateus e conclui:
“Embora possam estar presentes influências do hebraico e da LXX, não há nenhuma relação necessária
com uma dessas duas versões” . A questão é complicada pela liberdade de Mateus ao adaptar e por ele
ter em mente outras passagens. Aytoun, “H im selfrem onta “A si mesmo ele não pode salvar” , no desafio
ii ao último verso de SI 22,30, verso muito obscuro, que diz literalmente “ Sua alma ele não faz viva” e
que, na interpretação de Aytoun, significa que o sofredor não se salvou.
29 O contexto em Sb 2,19-24 continua com a resolução do ímpio de torturar e condenar o justo a uma morte
vergonhosa, “pois de acordo com suas palavras, Deus cuidará dele” .
30 Por exemplo, Mt 1,21; Mc 3,4 e par.; Lc 7,50; 8,48; 17,19; 18,42.
31 A sugestão de que Jesus não pode se salvar é particularmente irônica em Mateus, onde os leitores já
ouviram Jesus dizer: “ Pensas que não sou capaz de recorrer a meu Pai, e Ele imediatamente me proverá
com mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26,53).
155
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
156
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
desde que Pilatos o entregou.33*35 Embora não os identifique, Lucas com certeza quer
que pensemos em soldados romanos (com a devida vênia a Walaskay, “ Trial”, p. 92).
Na terceira predição lucana da Paixão (Lc 18,32), Jesus disse que seria entregue
aos gentios e escarnecido. Outros onze usos de stratiotes (“soldado” ) em Lucas-Atos
referem-se a soldados que oficiais romanos, como centuriões e tribunos, tinham
sob suas ordens.36 O título que eles usam aqui para escarnecer de Jesus é “o Rei
dos Judeus”, título que nunca se origina de judeus nos Evangelhos e que repete a
acusação de Pilatos (Lc 23,3) no julgamento romano. Por conseguinte, enquanto
o primeiro e o segundo escárnios marcanos avançam de transeuntes para chefes
dos sacerdotes e os escribas, o primeiro e segundo escárnios lucanos avançam de
governantes judaicos para soldados romanos. Os governantes judaicos zombam de
Jesus sob o título religioso “o Messias de Deus” ; os soldados romanos escarnecem
dele sob o título político “o Rei dos Judeus”. 0 fato de ambos desafiarem-no para
salvar-se a si mesmo da cruz mostra que tanto judeus como romanos entenderam
mal a identidade de Jesus.
33 Lc 23,26: “eles o levaram embora” ; Lc 23,33: “ali eles o crucificaram” ; 23,34: “ eles tiraram a sorte” .
36 As únicas exceções na prática lucana total estão em At 12,4.6.18 com os soldados do rei Herodes Agri-
pa I. Contudo, como esse rei assumira o papel governante antes desempenhado por prefeitos romanos,
pode-se dizer que Lucas sempre usa stratiotes para soldados de autoridade governante civil. 0 termo
não deve ser confundido com o strategos usado por Lucas-Atos para os “capitães do Templo” , que são
figuras sacerdotais acompanhadas por milícias judaicas encarregadas da ordem no Templo (a p ê n d ic e V,
B4), nem com strateuma, que Lc 23,11 usa para tropas de Herodes.
37 A relação entre o relato lucano e o último episódio marcano da crucificação que envolve a oferta de vinho
será examinada em breve.
157
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto
O segundo aspecto que merece atenção é a ação dos soldados “vindo para
a frente, levando para a frente para ele vinho avinagrado [oxos]”. O fato de terem
os soldados de se adiantar (proserchesthai)38 implicitamente reconhece que Lucas
manteve os militares romanos nos bastidores até agora. Prospherein é o segundo
verbo lucano em sequência composto com pros, donde minha tradução repetitiva:
“levar para a frente”. O verbo é muitas vezes usado para uma respeitosa apresentação
religiosa de presentes (como em Mt 2,11), de modo que, em si, a ação descrita aqui
não é escarnecedora. Somente quando ouvimos as palavras dos soldados fica claro
que sua oferta de vinho barato39 é um presente burlesco para o rei.
38 Este verbo, que ocorre 10 vezes em Lucas, 10 nos Atos (em comparação com 5 em Marcos, 1 em João),
ainda não tem a frequência (52 vezes) nem a importância mateanas (§ 13).
39 É difícil determinar a impressão transmitida pela oferta de oxos, o vinho tinto seco ordinário, diluído e
avinagrado (relacionado com oxys, “ ácido” ) que era a bebida posca ou comum dos soldados romanos,
por exemplo, dos estacionados em Hermópolis no Egito, conforme atestado por descobertas em papiros.
Para Mateus e talvez também para Marcos, o uso da palavra oxos na NP é uma imitação de SI 69,22 (ver
§ 42, sob “Elias e a oferta de vinho avinagrado” ), mas será que Lucas pretende que seus leitores façam
essa ligação e teriam eles feito?
w Em Jo 19,29-30, “eles” (os soldados?) põem uma esponja embebida em oxos em um pouco de hissopo e
a erguem até os lábios de Jesus; ele toma esse vinho. Não há nenhum escárnio envolvido. Nada sugere
que Lucas conhecesse a tradição joanina ou tenha recorrido ao relato de João.
158
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
pelo contexto no qual Marcos coloca a segunda oferta.41 Ao trazer escárnio e oxos
aqui, Lucas elimina diversos itens da repetição marcana.
111 O desafio nos escárnios marcanos para descer da cruz talvez lembrassem a Lucas o insulto que acom
panhou a última oferta marcana de vinho, quanto a querer ver se Elias viría descê-lo da cruz.
42 Na verdade, escribas antigos traduziram erroneamente a semelhança funcional com João em uma relação
verbal. Como relatado em § 40, nota 72, em Lc 23,38 a tradição textual koiné substituiu “uma inscrição
acima dele” por “escrito acima dele em letras gregas, latinas e hebraicas” — certamente glosa tirada
de João. Sem essa glosa, o texto de Lucas não trai nenhuma dependência de João.
159
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
” Embora separado do verbo, o grego to d'auto é traduzido por alguns quase como se fosse uma relação
objetiva: “ insultando-o do mesmo modo” .
44 Uma diferença secundária é que Lucas não fala dos que foram “crucificados junto” com Jesus, mas dos
“ suspensos” , isto é, o verbo kremannynai, que será usado para a morte de Jesus em At 5,30 e At 10,39
(“suspendem-no em uma árvore”). Esse verbo, que é mais bíblico, lembra a descrição em Dt 21,22.23 do
castigo para um pecado capital, mas não podemos ter certeza se aqui a intenção é aludir ao Deuteronômio.
45 Lucas é o único Evangelho que nunca usa lestes (“bandido”) para aqueles cuja prisão acompanha a Paixão
de Jesus — nem para Barrabás (Jo 18,40), nem para os cocrucificados (Mc 15,27 e Mt 27,38.44).
160
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
Até aqui na cena presente, que descreve atividades na cruz, Lucas reelaborou
material marcano, mesmo quando criou o versículo introdutório (Lc 23,35) a respeito
do povo em vigília. Esse grupo neutro, colocado antes dos três escárnios hostis,
alertou aos leitores lucanos que a imagem na cruz não era completamente negativa.
Para combinar com esse versículo introdutório, Lucas agora termina a cena com
um episódio centralizado em uma personagem mais que neutra, a saber, “o outro”
malfeitor,47 que serve de testemunha da inocência de Jesus. Mais importante, este
episódio dá a Jesus a oportunidade de falar da cruz as últimas palavras de sua vida
dirigidas a pessoas. Durante os escárnios, ele não respondeu aos que exigiam sinais;
agora, ele fala a um malfeitor que reconhece ser criminoso. O outro ridicularizou
46 Vinte dos 53 usos neotestamentários de ouchi ocorrem em Lucas-Atos (Marcos: 0; Mateus: 9; João: 5); a
palavra pressupõe uma resposta afirmativa: na opinião desse malfeitor, Jesus alega ser o Messias. Esse tema
lembra o segundo escárnio marcano (Mc 15,32), onde Jesus é chamado sarcasticamente de “o Messias, o Rei
de Israel” . 0 Códice de Beza omite “ Não és tu o Messias?” . Por outro lado, a tradição koiné de Lucas (“Se
tu és o Messias”) adapta o terceiro escárnio lucano ao segundo, que diz: “ Se tu és o Rei dos Judeus” . Agnes
Lewis (“New” ) aponta para a leitura de OS’1": “Não és tu o Salvador” , leitura harmonizada com “Salva-te a
ti mesmo e a nós” . G. G. Martin (“New” ) aponta para EvPd 4,13, que fala de Jesus como “o Salvador dos
homens [seres humanos]” . EvPd e OS'"1refletem uma tradição comum, ou o primeiro influenciou o segundo?
Como datá-los a respeito um do outro é incerto; ambos são do século II.
47 Lucas nunca atribui outra designação. O popular “ bom ladrão” é imperfeito por dois motivos: primeiro,
o uso de lestes (“bandido” ) para o cocrucificado, embora encontrado em Marcos/Mateus, é evitado por
Lucas; segundo, Lucas não usa “ bom” para descrever este malfeitor, mas “mau” (kakos). Na tentativa de
ser mais preciso, há quem prefira “ penitente” a “ bom” ; contudo, como vou mencionar, embora reconheça
sua culpa, o malfeitor nunca é explícito a respeito de contrição. É inevitável que houvesse tentativas de
ser mais preciso, fornecendo diversos conjuntos de nomes para os dois criminosos (§ 40, #7). O malfeitor
salvo é identificado como o que está “ à direita” (Mc 15,27) de Jesus e o blasfemador como o que está “ à
sua esquerda [de Jesus]” .
161
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Jesus como rei implausível; agora, Jesus responde que este dia ele próprio estará
no paraíso. O malfeitor ímpio retomou o desafio: “ Salva-te a ti mesmo” (descendo
da cruz), e a ele acrescentou: “e (salva) a nós” ; Jesus salvará um dos “nós”, mas
permanecendo na cruz e entregando-se a seu Pai.
Onde Lucas obteve este episódio? Não há indícios de que Marcos (ou
Mateus, ou João) soubesse dele.48 Lucas tirou-o de uma tradição independente?
Alguns (Fitzmyer, Jeremias, Taylor) respondem afirmativamente, apontando para
aspectos não lucanos, por exemplo, paraíso. Contudo, como vão mostrar as notas de
rodapé, há também aspectos lucanos; assim, não é impossível pensar na cena como
criação teológica lucana.49 Ou é possível defender uma perspectiva intermediária:
Lucas tirou um elemento da tradição independente e desenvolveu-o neste episódio.
Quanto a esse elemento, há duas propostas principais: a) A tese de que o relato em
EvPd 4,13 representa tradição pré-lucana. Nessa tradição, só um dos malfeitores
desempenhou um papel ativo; e ele injuriou os judeus, expressando alguns dos te
mas, mas não grande parte da redação encontrada em Lucas. Propõe-se que Lucas
combinou essa tradição independente com os dois difamadores cocrucificados de
Marcos. Entretanto, então é preciso supor que havia duas tradições primitivas muito
diferentes a respeito dos cocrucificados, a de Marcos e a do EvPd, cada uma, ao que
tudo indica, desconhecida do preservador da outra, até ambas caírem nas mãos de
Lucas. É também preciso pensar que, por acaso, a tradição primitiva pressuposta
para Evangelho de Pedroo EvPd se harmoniza extremamente bem com a teologia
desse Evangelho apócrifo, o que faz dos judeus os únicos adversários na Paixão.
Não é muito mais provável que o EvPd tenha recorrido remotamente a Lucas e
virado o episódio lucano em uma direção antijudaica? E ssa sugestão se harmoniza
com a abordagem geral que tenho defendido quanto ao EvPd, a saber, que ele
recorre aos Evangelhos canônicos (não necessariamente aos textos escritos, mas
não raro a memórias preservadas por terem sido ouvidas e relatadas oralmente), b)
48 Desde os tempos patrísticos, tem havido tentativas de harmonizar a imagem de Lucas com a de Marcos/
Mateus, onde os dois cocrucificados injuriam. Assim, podemos dar como exemplo a proposta de que
ambos teriam começado sendo hostis, mas um mudou de ideia, ou a alegação de que a imagem marcana
dos dois insultando não contradiz a imagem lucana onde só um blasfema. Dessas duas harmonizações, a
primeira não é fiel ao que é declarado nas respectivas narrativas evangélicas, enquanto a segunda ignora
a equivalência de injuriar e blasfemar (em paralelismo em 2Rs 19,22).
49 Como vou mencionar, a narrativa do Gênesis, de José aprisionado entre o (bom) mordomo que foi recon
duzido a seu posto e o chefe dos padeiros que seria enforcado em uma árvore, pode ter inspirado Lucas
a descrever dois destinos diferentes para os malfeitores. Na narrativa da infância, a história de Abraão
e Sara no Gênesis inspirou a descrição lucana de Zacarias e Isabel.
162
§ 41 .Jesus crucificado,segunda parte:Atividades no local da cruz
A tese de que Lucas tirou da tradição um dito de “Amém” do Jesus clemente, que
prometeu a um pecador um lugar com ele no paraíso.50 Lucas adaptou então esse
dito ao contexto da cruz, aplicando-o a um dos malfeitores a respeito de quem ele
lera em Marcos. Sabemos que Lucas teve acesso a uma coleção dos ditos de Jesus,
e a adaptação proposta não é sem paralelo no procedimento lucano, pois muitos
pressupõem que, em Lc 22,29-30, Lucas tomou um dito que prometia tronos no
reino para os doze e adaptou-o ao contexto da Ultima Ceia.
50 É mais plausível que a sugestão de Robbins (“Crucifixion” , p. 41), segundo a qual originalmente o dito
se referia a um “gentio convertido que compartilhou o destino de um mártir, aspecto recorrente em
narrativas do Judaísmo mais tardio” . A salvação de um perseguidor é aspecto mais tardio nas narrativas
judaicas e cristãs de martírio e aqui não há nada que sugira antecedentes gentios.
51 Entre os Evangelhos, o padrão “em resposta [...] disse” é lucano e reflete o uso da LXX.
163
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
’2 Ver em § 29 B outras semelhanças entre José e Jesus na NP, por exemplo, José foi vendido a inimigos
por Judá/Judas, um dos doze (filhos de Jacó), por vinte ou trinta moedas de prata.
13 Fora as semelhanças na narrativa bíblica, é digno de nota que o contemporâneo dos escritos de Lucas,
Josefo, em Ant. II,v,l; #62, fala dos companheiros de prisão de José como condenados (katakrinein) por
crimes e em Ant. II,v,2; #69, José sofre o destino de um malfeitor (kakourgos), apesar de suas virtudes,
enquanto em Lc 23,40, vemos os dois malfeitores e a mesma condenação (krima). Na tradição judaica
mais tardia, acreditava-se que o pedido na história de José para ser lembrado referia-se a um mundo
futuro, do mesmo modo que para Lucas a lembrança inclui o paraíso. Ver Nestle, “Ungenãhte” , p. 169;
Gottlieb Klein, “ Erlãuterung” ; e Derrett, “Two” , p. 201-209.
54 Phobeisthai (“ter medo”) é usado mais frequentemente por Lucas (23 vezes) que por qualquer outro
Evangelho (Marcos: 12 vezes; Mateus: 18; João: 5).
164
§ 41 .Jesus crucificado, segunda parte:Atividades no local da cruz
abordagem altamente especulativa produz uma tradução (“ Não temes a Deus quando
tu estás condenado?” ) não muito melhor que a derivada do grego. A inabilidade
do grego é suavizada quando se reconhece que “ Porque” é equivalente a “Afinal
de contas”. Que comparação está envolvida em “a mesma” — a mesma que a de
Jesus? Garcia Pérez (p. 287ss) rejeita essa inferência, argumentando que a frase
não passa de um lembrete de que o malfeitor blasfemador está sendo punido pelo
que fez. Contudo, no que se segue, a ideia parece ser que os três estão condenados
a morrer na cruz: dois justamente, um injustamente. Parte do problema de entender
precisamente o que Lucas quer dizer concentra-se em krima. Geralmente, no NT a
palavra se refere à ação judicial (julgamento ou condenação), mas pode se referir
ao resultado negativo da ação (execução). Uso “condenação” para me referir ao
complexo todo. Lucas quer que pensemos que os dois malfeitores foram julgados
do mesmo modo que Jesus foi, foram condenados (Lc 23,24 usa epikrinein para o
julgamento de Pilatos de que a exigência para crucificar Jesus devia ser satisfeita)
e levados embora para serem crucificados (Lc 23,26.32). Assim, os três tinham a
mesma experiência judicial.
55 “Receber” é apolambanein, que é usado 4 ou 5 vezes por Lucas, 1 por Marcos e 0 por Mateus e João.
Axios mais o genitivo (“digno de”) é usado 11 vezes em Lucas-Atos, 2 em Mateus e 6 no restante do NT.
“0 que fizemos” começa com um genitivo, não um acusativo; a atração do pronome relativo ao caso do
antecedente é aspecto gramatical lucano (Fitzmyer, Luke, v. 1, p. 108, sob 6). Prassein (“fazer”) é verbo
usado 19 vezes em Lucas-Atos, 2 em João, 0 em Mateus e Marcos.
36 “Mas” é de unido ao men (“ na verdade” ) precedente — uso clássico exagerado por Lucas (Fitzmyer,
Luke, v. 1, p. 108). “Fez” é prassein, usado novamente. Entre os Evangelhos, atopos (literalmente, “fora
de lugar”) ocorre somente em Lucas. Na verdade, em seu lugar, o Códice de Beza usa aqui o mais usual
poneros (“mal” ), apresentando um contraste com o julgamento dos “ homens de Israel” por Pedro em At
3,17: Jesus não fez nada de mal; mas eles fizeram o mal, embora por ignorância.
165
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
“ Mas ele não fez nada ilegal” ? Como ele sabe o que Jesus fez? Certamente, neste
gênero não devemos recorrer a uma explicação naturalista, por exemplo, o malfei
tor conhecera Jesus antes57 ou ouvira dizer que Pilatos declarara Jesus inocente.
Mais exatamente, este malfeitor em Lucas tem de certo modo o mesmo papel que
a mulher de Pilatos teve em Mt 27,19: embora fosse uma gentia que nunca vira
Jesus antes, ela afirmou ser ele um “homem justo”. Ela soube disso por meio de
(revelação divina em) um sonho; entretanto, para as personagens lucanas como
este malfeitor ou o centurião depois da morte de Jesus: desde a primeira vez que
veem Jesus, sua inocência é transparente. Só aqueles cujos olhos estão cegos pela
ignorância não reconhecem isso (At 3,17).
11 Alguns Evangelhos apócrifos ampliam a narrativa do Menino Jesus no Egito e fazem sua família encontrar
favoravelmente este “assaltante” naquela época. Ver nota 70 adiante.
58 Eis as maneiras de se dirigir a Jesus nos Evangelhos: “Jesus Nazareno” (Mc 1,24; Lc 4,34); “Jesus, Filho
de Deus” (Mc 5,7; Lc 8,28); “Jesus, Filho de Davi” (Mc 10,47; Lc 18,38); “Jesus, Mestre” (Lc 17,13). Esses
padrões ajudam a explicar a variante textual koiné em Lc 23,42 (“E ele estava dizendo: ‘Jesus, Senhor,
lembra-te de mim...’”) e a variante do Códice de Beza: “Tendo se voltado para o Senhor, ele lhe disse...” .
166
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte:Atividades no local da cruz
a) Eis, “em” (preferido por Fitzmyer, Metzger, RSV, New Jerusalem Bible)
significa que o malfeitor pensava estar Jesus a caminho de seu reino e queria ser
lembrado assim que Jesus chegasse lá. (0 uso de eis em seguida a erchesthai,
“vir”, ocorre cerca de vinte e cinco vezes em Lucas-Atos e é expressão convencio
nal para chegar a um lugar.) Como o malfeitor sabia com convicção que Jesus era
verdadeiramente rei? Mais uma vez deve ser lembrado que estamos lidando com
uma narrativa popular que não explica a lógica. Os soldados escarnecem de Jesus
como “o Rei dos Judeus”. Em seguida, o malfeitor reconhece uma injustiça feita a
Jesus e conclui que de fato ele governará um reino.60 Como isso acontecerá? Lucas
59 0 verbo mimneskesthai (“lembrar-se”) ocorre seis vezes em Lucas, em comparação a seis vezes em todos
os outros Evangelhos juntos. (Também o hotan [“logo que”] que o segue ocorre mais frequentemente em
Lucas que em qualquer outro Evangelho.) Pedidos de lembrança estão atestados em inscrições funerárias
judaicas primitivas (IEJ 5,1955, p. 234). Na verdade, o pedido para ser lembrado misericordiosamente
em situação mais favorável está atestado também em outras tradições religiosas. Diodoro da Sicília (séc. I
a.C.), Biblwtheca XXXIV/XXXV,ii,5-9, nos fala de um sírio que se dedicava a artes mágicas e profetizou
que a deusa lhe dissera que ele seria rei. Em um jantar onde alguns escarneceram dele, o pedido foi feito
por outros que lhe deram um presente: “Logo que fores rei, lembra-te desta boa ação” . Ele realmente se
tornou rei e os recompensou.
60 Há controvérsia se aqui basileia significa “ reino” ou “poder, governo, régio” , às vezes com a pressuposição
de que a leitura en (entendida como referência à parusia) é auxiliada se as palavras se referem a Jesus
(voltando) com poder régio. Entretanto, na verdade as duas preposições são sugestivas, com qualquer
das duas conotações de basileia, embora “reino” combine mais facilmente com eis e “ poder régio” com
167
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
não explica o entendimento do malfeitor; ele supõe que Deus intervenha e impeça
Jesus de morrer? Ou Deus fará Jesus vitorioso imediatamente depois da morte em
um reino desta terra ou em um reino no céu? As vezes, os estudiosos procuram
determinar a resposta perguntando o que um criminoso judeu (que provavelmente
não era um culto teólogo) teria entendido a respeito do destino de Jesus em 30/33
d.C. Essa é uma abordagem insatisfatória: em 80-95 d.C., quando Lucas escreveu,
leitores cristãos da frase com eis entenderíam que o malfeitor quis dizer “para teu
reino celeste”, porque sabiam que Jesus acabara de designar lugares (tronos) no
reino (Lc 22,29-30) e que ele foi para o céu (At 1,9-11; 7,56). Pode-se protestar
que eles também sabiam que Jesus não subiu ao céu antes do anoitecer do domin
go de Páscoa (Lc 24,51) ou antes de quarenta dias depois do domingo de Páscoa
(At 1,3.9-11). Entretanto, o próprio fato de Lucas descrever a ascensão ao céu em
duas datas diferentes deixa aberta a possibilidade de que ele não viu problema em
reproduzir outra crença cristã primitiva de que, da cruz, Jesus subiu (de um modo
invisível, não mundano) ao céu quando morreu.61 Essa crença encontra-se em Hb
10-11, na linguagem joanina de ser “levantado” na cruz de volta ao Pai (Jo 3,14-
15; 8,28; 12,32.34; 13,1; 16,28), e mesmo em Lc 24,26, onde Jesus ressuscitado
fala de ter entrado (tempo passado) em sua glória depois do sofrimento. Entrar
(eiserchesthai) em sua glória era o mesmo que vir (erchesthai) em seu reino?62 Em
Dn 7,13-14, “ um como Filho de Homem” vem ao Ancião de Dias e recebe honra
e reino, o que se relaciona com Dn 7,22, onde os santos vêm tomar posse do reino.
A leitura eis de Lc 23,42 é bem consistente com essa interpretação.
en. Há quem alegue que o semitismo bemalkút (“no governo de” = “como rei” : Dn 6,29) reforça o grego
en basileia (G. Dalman, The Words of Jesus, Edinburgh, Clark, 1902, p. 133-134). A alegação de que
escribas mais tardios, que já não entendiam a formação semítica, mudaram-no para eis basileian é dúbia
porque esses escribas introduziríam uma teologia de subida ao céu da cruz que não foi proeminente em
tempos mais tardios.
61 Aplicando um Salmo a Jesus, em At 2,27 Pedro diz que Deus não deixaria o Santo ver a corrupção. A
ideia de diversas idas de Jesus ao Pai encontra-se também em João: elevação por meio da cruz, em Jo
12,32-33, e ascensão na Páscoa, em Jo 20,17. As narrativas evangélicas descrevem tudo o que aconteceu
depois da morte de Jesus como uma sequência que afetou os seguidores de Jesus que ficaram na história;
contudo, parece que os evangelistas entenderam que, da parte de Deus, tudo a partir da morte na cruz
até o derramamento do Espírito (do anoitecer da sexta-feira até Pentecostes) foi unificado e intemporal.
Ao morrer, Jesus passara além do tempo. A respeito de tudo isso, ver G. Bertram, “ Die Himmelfahrt Jesu
von Kreuz aus und der Glaube an seine Auferstehung” , em Festgabe Jur Adolf Deissmann, Tübingen,
Mohr, 1927, p. 187-217, esp. p. 215-216.
62 p7,i reaimente substitui “ glória” por “reino” , em Lc 24,26.
168
§41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
169
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
novamente e vos tomarei para mim, para que onde eu estiver estejais também”.
Essa interpretação aproxima-se da imagem na leitura eis, pois ambas entendem
que o destino final é o céu. A principal diferença restante é se, depois de morrer,
Jesus leva o homem com ele diretamente da cruz para o céu, a fim de entrar no
reino, ou se, depois de morrer, Jesus vai para o céu e depois volta com poder régio
para levar o homem de volta com ele para o céu.
66 Lucas evita palavras semíticas (omitindo Abba, Hosanna, Rabbi); assim, é surpreendente que inclua
Amen 6 vezes (palavra que fica sem ser traduzida cerca de 8 vezes na LXX). Contudo, essa frequência
em Lucas é a mais baixa entre os Evangelhos (13 vezes em Marcos, 31 em Mateus, 25 vezes em João [no
formato duplo: Amém, Amém]). Ver a análise geral em 0 ’Neil, “Six” , p. 1-6. Dois dos usos lucanos têm
referência ao reino; este é o único dirigido a um indivíduo.
170
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
0 malfeitor pediu para ser lembrado por Jesus; mais é concedido em termos
de estar com Jesus; de fato, a resposta dada por Jesus inclui não só libertação,
mas também intimidade. Ao reconhecer a espontaneidade semelhante à de um
discípulo manifestada pelo malfeitor, Jesus lhe atribui o papel de discípulo. Em Lc
22,28-30, o Jesus lucano disse aos Doze: “Agora vós sois os que ficaram comigo
em minhas provações”, e como recompensa deu-lhes de comer e beber à sua mesa
no reino. Nessa analogia, a promessa de Jesus ao malfeitor, de que estaria com ele,
inclui mais do que estar em sua companhia no paraíso: inclui compartilhar sua
vitória (Plummer, Luke, p. 535).70 0 uso lucano de “comigo” talvez não alcance o
67 Assim Blathwayt, “ Penitent” . Os escribas aproximaram a ligação do “ este dia” com o que precede. Em
OS™, o malfeitor malevolente diz em Lc 23,39: “ Não és tu o Salvador? Salva-te a ti mesmo vivo hoje e
também a nós” . No Códice de Beza o malfeitor benevolente pede a Jesus para ser lembrado “no dia de
tua vinda” e Jesus começa sua resposta dizendo: “Tem coragem” ,
os pçjg 12, 1956-1957, p. 37. Ver “ o dia do Senhor” em profecias veterotestamentárias (Is 2,11; Jr 30,3
etc.). Hb 13,8 descreve Jesus Cristo como “o mesmo ontem, hoje e para sempre” .
6I) Semeron ocorre em Lucas-Atos um total de 20 vezes, em comparação a 8 em Mateus e 1 em Marcos.
70 No Evangelho árabe da infância, o Menino Jesus encontra no Egito os dois futuros malfeitores que seriam
crucificados com ele; Jesus diz a sua mãe que Tito (o malfeitor benevolente) “me precederá no paraíso”
(.Evangelho árabe da infância 23,2).
171
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
misticismo do uso paulino; mas em Lucas, como em Paulo (lTs 4,17; F 1 1,23; 2Cor
4,17), estar com Cristo descreve uma sina após a morte.
Os que afirmam não ser “paraíso” em Lc 23,43 o mais alto céu da presença
plena de Deus, e assim o destino final, incluem Calvino, Maldonatus, Jeremias, Le-
loir, 0 ’Neill etc. Eles apresentam diversos argumentos: a) Muitos usos de “ paraíso”
subentendem uma forma inferior de proximidade a Deus, por exemplo, o paraíso
de Gn 2,15; 3,8, onde Deus caminhou com Adão e Eva; o paraíso de 2Cor 12,3-4,
onde ele é igual ao terceiro de sete céus (2Cor 12,2), um lugar para onde Paulo
foi arrebatado em visão mística. Paraíso é também o terceiro céu em 2 Henoc 8, o
lugar onde o justo espera o juízo final; ver também Vida de Adão e Eva (Apocalipse
de Moisés) 37,5. b) Não pode haver salvação ou redenção plena enquanto Jesus não
ressuscitar dos mortos.72 Assim, o malfeitor não teria sido levado definitivamente
à presença de Deus já na Sexta-Feira Santa. Como paralelo, pode-se mencionar
o relato mateano dos acontecimentos que tiveram lugar quando Jesus morreu (Mt
27,52-53): os túmulos se abriram e muitos corpos dos santos que tinham adormecido
ressuscitaram; eles saíram de seus túmulos e, depois da ressurreição de Jesus, eles
entraram na cidade santa — um tipo de salvação em dois passos, com o segundo
passo seguindo a ressurreição de Jesus no domingo de Páscoa, c) 0 malfeitor não
pode ir ao mais alto céu, pois não expressou arrependimento de maneira clara. (De la
Calle, “ Hoy”, p. 299, traça um paralelo entre paraíso e purgatório.) Ver, entretanto,
sob “ 0 outro malfeitor fala a seu companheiro blasfemador”, acima, onde relaciono*2
71 Ver Weisengoff, “Paradise” , p. 163-166; também J. Jeremias, TDNT, v. 5, p. 766-768. Nos primeiros
séculos do Judaísmo depois do exílio, referências ao paraíso tomaram-se razoavelmente frequentes, como
atestado pelos apócrifos; mas há menos uso na literatura rabínica primitiva — proporção de frequência
que sugere estarmos lidando com a terminologia da expectativa popular.
2 Bertram (“Himmelfahrt” , p. 202) relata que de acordo com Crisóstomo, os maniqueus usavam “Este
dia comigo estarás no paraíso” (bem como “Pai, em tuas mãos coloco meu espírito” ) para provar que a
ressurreição dos mortos não era realmente necessária.
172
§41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
74 Uma interpretação famosa é dada por Ambrósio, Expositio Evang. secundum Lucam 10,121 (CC 14,379:
“Vida é estar com Cristo; pois onde Cristo está, lá está o reino”.
74 Além dos argumentos que vou relacionar, há quem acrescente outro argumento de apoio à ideia de que
Jesus levou o malfeitor da cruz diretamente à suprema bem-aventurança, a saber, que isso é consistente
com o fato de Lucas tirar a ênfase da parusia. Ao interpretar o pensamento lucano, acho esse ato de tirar
a ênfase exagerado e não há nada nesta cena para apoiá-lo.
7,1 Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1507) imprime arriscadamente “no Paraíso” , como se fosse citação de Salmos
de Salomão 14,3.
173
Qim o mo •iesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
TalBab Aboda Zara 18a reflete uma perspectiva judaica (mais tardia) em situação
semelhante. O carrasco romano de um rabino santo perguntou se teria vida no
mundo futuro se fizesse alguma coisa que tornasse a morte do rabino menos tortu
rante. O rabino respondeu afirmativamente; e quando ele morreu, uma voz do céu
afirmou que o rabino e o carrasco teriam vida no mundo futuro. Assim, pode-se
alcançar a vida eterna em um único momento, g) “ 0 paraíso de Deus” em Ap 2,7
é paralelo a essas outras descrições: nenhuma “segunda morte” (Ap 2,11); poder
sobre as nações (Ap 2,26); ter o nome no livro da vida (Ap 3,5); e, em especial,
sentar-se com Cristo em seu trono (Ap 3,21). Ap 22,2 usa metáforas do paraíso
para o estado de bem-aventurança perfeita e duradoura com Deus. Ao levar esse
malfeitor consigo para o paraíso, Jesus desfaz os resultados do pecado de Adão que
bloqueou o acesso à árvore da vida (Gn 3,24).*76
‘6 Garrett (“Meaning” , p. 16) lembra que, na descrição lucana da morte de Jesus, há metáforas de Adão e
metáforas de Moisés (Lc 9,30-31: “ seu êxodo” ).
' 1 Neyrey (Passion, p. 139-140) descreve este versículo como pronunciamento judicial por alguém que At
10,42 descreve como “ordenado por Deus para ser juiz dos vivos e dos mortos” .
174
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
78 A tocante e charmosa observação de que no final ele também roubou o céu é consistente com a designação
de “ bom ladrão” . Infelizmente, não há nada na descrição dos dois eocrucificados em nenhum Evangelho
que sugira serem eles ladrões. A designação lestes (“bandido” ) em Marcos/Mateus não se refere a um
ladrão.
175
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Como se pontuam “sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria de Clopas,81 e Maria
Madalena” ? Refere-se Jo 19,25 a duas, três ou quatro mulheres? Se duas mulheres
‘9 Na cena presente, Lc 23,35 relatou que “o povo estava de pé ali observando” , de modo que funcional
mente Jo 19,25 quase combina dois versículos lucanos.
811 A harmonização padrão é que, tendo ficado de pé perto da cruz antes da morte de Jesus (João), depois
da morte elas se afastaram um pouco para observar (sinóticos).
81 A designação “de Clopas” apresenta quatro possibilidades, como indica Bishop em “ Mary Clopas”: 1) Irmã
de Clopas: é a hipótese menos provável, pois não há indícios de uma mulher identificada por intermédio
do irmão; 2) Mãe de Clopas: em árabe, às vezes a mulher é identificada por intermédio do nome do filho;
176
§41, Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
estivessem envolvidas, haveria dupla aposição: sua mãe = Maria de Clopas; a irmã
de sua mãe = Maria Madalena. Essa interpretação tem sérias improbabilidades:
por exemplo, que a mãe de Jesus, Maria, esposa de José, fosse citada como Maria
de Clopas. Outra improbabilidade é que Maria de Mágdala fosse irmã de Maria
de Nazaré, de modo que os pais deram às duas filhas o nome de Miriam. Nenhu
ma outra referência evangélica a Maria Madalena sugere ser ela parente próxima
de Jesus (sua tia). Se três mulheres estivessem envolvidas,82 haveria apenas uma
aposição, a saber, a irmã de sua mãe = Maria de Clopas — o nome pessoal seria
parentético à designação “irmã”. Essa solução ainda deixa o problema de as duas
irmãs serem chamadas Miriam. Sendo assim, é bastante provável que devamos
pensar em quatro mulheres, como entenderam Taciano e a Peshitta Siríaca, que
inserem “e” entre a segunda e a terceira designações.83 A razão de não ser dado
o nome pessoal da mãe de Jesus talvez seja o fato de, como o discípulo que Jesus
amava (também nunca citado pelo nome), ela ter um papel predominantemente
simbólico. Mas por que, então, não é citado o nome da irmã da mãe de Jesus? Era
ela também tão conhecida que era desnecessário citar seu nome, ou este não foi
preservado na tradição? Não temos meios de saber.
Tendo decidido pelo número quatro, podemos agora comparar a lista joani-
na de mulheres perto da cruz com duas listas sinóticas da NP: uma de mulheres
mencionadas depois da morte de Jesus de pé ou observando de longe e outra de
mulheres na cena do sepultamento, que observaram Jesus sendo colocado no túmulo
3) Mulher de Clopas (Moffatt; [mais tardej Phillips; RSV; NEB; NAB): designação menos provável depois
que a mulher se toma mãe; 4) Filha de Clopas (Jerônimo; versões aráhicas primitivas; Goodspeed e tra
duções Phillips [primitivas]; Bacon [“ Exegetical” , p. 423]): especificamente, a mulher não casada podia
ser identificada por intermédio do pai. Bishop acha que a escolha está entre 3 e 4 e defende 4, a favor do
qual seu artigo mais tardio, “Mary (of) Clopas”, cita o Diatessarão. De modo imaginoso, Bishop propõe
que mais tarde ela se tomou mãe de Tiago e Joset, e foi com seu pai Clopas (= abreviação de Cleopater)
a Emaús, em Lc 24,18. Entretanto, na verdade o nome Clopas não se encontra em outra passagem do NT;
e não é o mesmo que o nome Cléofas de Lc 24,18. Nunca é associado no NT com Maria, a mãe de Jesus,
apesar de tentativas patrísticas de fazê-lo seu parente (eonsanguíneo ou pelo casamento).
82 Evangelho de Filipe #28; II 59,6-11: “Havia três mulheres que sempre caminhavam com o Senhor:
Maria, sua mãe e sua [?] irmã e Madalena (a que era chamada sua companheira). Sua irmã e sua mãe e
sua companheira eram cada uma delas uma Maria” . Ver Klauck, “ Dreifache” . É tentador especular que
Maria (mulher de) Clopas era irmã de Jesus (ver Mc 6,3) e. portanto, todas as mulheres perto da cruz,
exceto Madalena, eram parentes de Jesus. Como a maioria das tentações, é melhor resistir a ela.
83 Entretanto, não há necessidade de proclamar que João quer pôr em contraste as quatro mulheres com
os quatro soldados do episódio precedente, pois em nenhum dos casos João aplica o termo “ quatro”
diretamente aos indivíduos.
177
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
por José de Arimateia. Ao elaborar o Quadro 8 para facilitar esta comparação, vou
também incluir (em destaque) uma terceira lista que consiste nas mulheres que
nos quatro Evangelhos vieram ao túmulo vazio na Páscoa. Com variada intensida
de, há uma inferência de que as mulheres que assistiram no Gólgota à morte de
Jesus e também observaram seu sepultamento no túmulo antes do sábado vieram
ao mesmo túmulo depois do sábado. Consequentemente, as listas da Páscoa são
úteis para decidir a ambiguidade quanto a quem os evangelistas se referiam em
suas descrições anteriores. Embora possa parecer que o Quadro 8 das três cenas
(I: morte; II: sepultamento; III: Páscoa) seja complicado, pois precisa incluir tantas
listas dos seguidores agrupados de Jesus, o exame será facilitado se os leitores
prestarem atenção às letras maiúsculas na extremidade esquerda como um meio
de comparar as respectivas personagens: a linha horizontal A tem a personagem
que ocorre com mais frequência quando todas as cenas são consideradas; B tem a
segunda personagem mais frequente etc. Ao ler verticalmente, o numeral ao lado
de um nome indica a ordem na qual a pessoa aparece na cena indicada no topo
da coluna. Assim, na primeira coluna vertical (Cena I, em exame aqui), a ordem
da lista de nomes no texto joanino é: 1) a mãe de Jesus; 2) a irmã de sua mãe; 3)
Maria de Clopas; 4) Maria Madalena; 5) o discípulo que Jesus amava. João não
tem mulheres no sepultamento (II).
84 A variante onde “Joset” é usado em Marcos e “José” em Mateus também ocorre nos nomes dos “irmãos”
de Jesus em Mc 6,3 e Mt 13,55. Como Tiago é também o nome de um “ irmão” de Jesus, muitos iden
tificam os filhos da mulher perto da cruz com “os irmãos” de Jesus. Quando aceita, essa identificação
produz as mais diversas explicações: a) Maria, a mãe de Tiago e Joset/José não é a mesma Maria, mãe
de Jesus. Consequentemente, esses homens não são irmãos consanguíneos de Jesus, mas sim parentes
mais distantes, talvez primos, porque esta outra Maria era a mulher do irmão de José, Clopas. A respeito
de Clopas, ver Hegesipo (c. 150 d.C.), em Eusébio, HE III,xi e III,xxxii,l-6. b) As duas Marias são a
mesma pessoa; mas, como Maria, a mãe de Jesus, não acreditava (Mc 3,21.31-35; 6,4), Marcos prefere
178
QUADRO 8. AS MULHERES E OUTROS NA SEX TA -FEIR A (I) ANTES OU DEPOIS DA MORTE DE
JE SU S; (II) NO SEPULTAMENTO; E NA PÁSCOA (III), NO TÚMULO VAZIO
I in / 11 in I II ui i II iii
179
mãe Zebedeu
D 2 . “1Vós” 4. muitas ou 1. muitas 2. as mulheres 1. as mulheres 4 . a s
tras mulheres mulheres que estavam que tinham o u tra s
que tinham que tinham seguindo com vindo com ele m ulh eres
subido com seguido Jesus ele da Gali da Galileia
ele a Jerusa da Galileia leia (ver Lc
lém 8,1-3)
E 1. sua 1. todos os
mãe conhecidos
5. o dis dele
cípulo
que Jesus
amava
§41.Jesuscrucificado,segundaparte:Atividadesnolocaldacruz
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
designá-la pelos seus outros filhos (irmãos de Jesus), e não como Maria, a mãe de Jesus. (Ver o estudo
em Crossan, “ Mark” , p. 105-110.) Essa é uma interpretação dúbia da perspectiva geral de Maria por
parte de Marcos; além disso, tem de supor que os outros três evangelistas foram em direção oposta, pois
atribuíram a Maria um papel favorecido na memória cristã. E inacreditável que, se Lucas entendeu que a
Maria a quem ele se refere em Lc 24,10 como “ Maria de Tiago” era a mãe de Jesus, ele a teria designado
assim.
180
§ 41 .Jesus crucificado,segunda parte: Atividades no local da cruz
terem permanecido com Jesus em suas provações. Contudo, esse adjetivo inclusivo
sugere a presença (a certa distância da cruz) de outros discípulos homens além dos
Doze (cf. Lc 10,1). Vimos outro indício disso no relato marcano (Mc 14,51-52) de
um suposto discípulo que, depois de os Doze terem fugido (Mc 14,50), permaneceu,
e depois ele mesmo fugiu nu. A imagem joanina de “o discípulo que Jesus amava”
se enquadra nessa tradição, com o entendimento de que uma vaga lembrança
geral do envolvimento na NP de discípulos homens além dos Doze foi usada pelos
evangelistas individualmente para exemplificar suas teologias da P aixão? Marcos
a teria usado para fortalecer sua tese de fraqueza e fracasso humanos durante a
Paixão; Lucas, para fortalecer uma descrição otimista de fidelidade (pelo menos
parcial) pelos que tinham seguido Jesus; João, para concretizar simbolicamente
um discipulado que jamais titubeava. Mesmo por esse padrão de paralelos remotos
na tradição, não há nos sinóticos nenhum indício que apoie a imagem joanina da
mãe de Jesus presente na cena da cruz.8° Lucas, que mais adiante menciona sua
presença em Jerusalém antes de Pentecostes (At 1,14), provavelmente a citaria entre
as mulheres galileias, se soubesse que ela estava presente na crucificação. Como
veremos, para João ela serve de exemplo de discipulado e temos de nos contentar
em lidar com os versículos seguintes em nível teológico, sem sermos capazes de ir
além na solução das questões da antiguidade pré-evangélica da imagem da mãe e
do discípulo perto da cruz e sua historicidade.
Mas antes de voltar-me para os versículos que tratam dessas duas persona
gens, como eu usaria o Quadro 8 para avaliar a outra parte da imagem que João dá
no v. 25, onde ele cita os nomes das três mulheres presentes com a mãe de Jesus,
mas não lhes atribui nenhuma parte ativa no que se segue? Das três cenas nas
quais mulheres são citadas na NP (com respeito à crucificação, observando o sepul-
tamento, indo ao túmulo vazio na Páscoa), aquela sobre a qual os evangelistas mais
concordam inclui Maria Madalena (explícita ou implicitamente com companheiras)
vindo ao túmulo na Páscoa e encontrando-o vazio. As mulheres estão ausentes da
cena joanina do sepultamento e há discordância entre João e os sinóticos quanto
à hora e ao lugar de sua presença na crucificação: Jo 19,25 menciona a irmã da
mãe de Jesus, Maria de Clopas e Maria Madalena (ao lado da mãe de Jesus e do
discípulo que ele amava) de pé perto da cruz, antes de Jesus morrer, enquanto Mc85
85 Na nota 84, julguei desfavoravelmente a tese de que “ sua mãe” deve ser identificada com a “ Maria, mãe
de Tiago e Joset/José” .
181
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
182
§ 41 .Jesus crucificado,segunda parte:Atividades no local da cruz
os demais, ele seguiu Jesus até o pátio do sumo sacerdote e conseguiu fazer Pedro
entrar. Agora, depois que Pedro negou Jesus, esse discípulo é o único homem fiel a
seguir Jesus até a cruz. Sua presença aqui é exclusiva de João e, na verdade, muitos
biblistas críticos atribuem-na ao evangelista, não à tradição joanina pré-evangélica.
Contudo, o próprio Evangelho, em sua segunda referência a ele na crucificação (Jo
19,35), faz dele a testemunha ocular e presumivelmente o portador da tradição que
garante a cena. Ao examinar o v. 25, apresentei alguns paralelos sinóticos que dão
plausibilidade à tese de que o discípulo já foi mencionado de modo incoativo na
história pré-joanina da crucificação, apesar de ser o evangelista quem elaborou e
sistematizou a importância teológica do discípulo como o discípulo preeminente-
mente amado. Embora a linguagem e a caracterização desse episódio que envolve a
mãe e o discípulo sejam totalmente joaninos, veremos abaixo que, funcionalmente,
o episódio tem um paralelo sinótico.
Jesus começa a falar ao ver sua mãe e o discípulo. (Nos sinóticos, as mu
lheres veem [verbo diferente] Jesus de longe; aqui, ele vê as duas personagens de
perto.) A mãe é a primeira mencionada no par, e Jesus fala primeiro com ela; a
prioridade sugere que ela é a principal consideração do episódio. 0 discípulo é
mais importante na imagem evangélica total, e o interesse de Jesus em seu papel
é previsível; mas não dá para prever o papel da mãe de Jesus pelo que foi narrado
até aqui e precisa ser esclarecido. A última vez que ouvimos falar dela foi em Caná
(Jo 2,1-12), onde sua preocupação inicial era satisfazer as necessidades da festa de
casamento com um pedido implícito para Jesus agir. Ele se desassociou das preo
cupações dela, identificando primeiro a hora designada para ele pelo Pai. Somente
a solicitação dela, “ Fazei tudo que ele vos disser”, e o fato de Jesus conceder-lhe
o pedido no final eram favoráveis a ela ter uma relação futura positiva com Jesus.
0 fato de os irmãos de Jesus, mencionados em companhia dela em Jo 2,12, serem
severamente julgados em Jo 7,3-7 por nunca terem acreditado nele deixa o leitor
em dúvida quanto ao papel da mãe de Jesus, embora ela nunca seja julgada assim.
Essa ambiguidade é resolvida aqui, pois a mãe está de pé com as outras mulheres
(na verdade, a primeira entre elas) que estão claramente ligadas a Jesus até sua
morte; e ela está prestes a ser posta em estreita relação com o discípulo ideal.
A ligação deste episódio com o de Caná é clara. São as duas únicas passa
gens joaninas nas quais a mãe de Jesus aparece; essa mesma designação é usada
para ela nos dois casos (sem nenhum nome pessoal); em ambos, ele se dirige a
183
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
86 Ver BGJ, v. 1, p. 99. Esse modo de tratar pode não ter parecido muito reverente aos escribas de um período
mais tardio, que tinham uma sensibilidade mariológica mais desenvolvida, o que explica a tendência a
omitir “ Mulher” de Jo 19,26 (alguns manuscritos coptas e um da OL).
87 Ide (“ olha, olhai” , usado em Jo 19,4.14) é encontrado nos melhores testemunhos textuais, mas existe
apoio respeitável para idou (“vê, vede” ). Barrett (John, p. 552) e outros acham semelhança com uma
fórmula de adoção; ver Tb 7,12 (Sinaítico): “Doravante, tu és seu irmão e ela é tua irmã” . Contudo, não
há nenhum paralelo preciso onde é à mãe que se fala primeiro; e é na teologia de Paulo, não na de João,
que a filiação adotiva tem um papel.
88 Schürmann (“Jesu” , p. 15) afirma que a tarefa não ê mútua: Mãe, cuida do teu filho; Filho, cuida da tua
mãe. Significa antes: Mãe, vê o filho que cuidará de ti; Filho, vê a mãe de quem cuidarás.
184
§ 41. Jesus crucificado,segunda parte: Atividades no local da cruz
entre o Jesus joanino e sua mãe em termos de desvelo filial é reduzir o pensamento
joanino ao nível da carne e também ignorar o distanciamento das preocupações da
família natural que teve lugar em Caná em Jo 2,4.8990
89 Não quero dizer, decerto, que historicamente Jesus não era um filho amoroso para sua mãe. Se ela estava
em Jerusalém para a Páscoa, seu filho estaria preocupado com ela. Mas o nunca especificado “ sua mãe”
de João foi elevado ao nível de alcance teológico e as questões são as do espírito, não da carne.
90 Ver uma exposição completa em Feuillet, “Adieux” , p. 474-477.
91 Is 49,20-22; 54,1; 66,7-11; Feuillet, “Adieux” , p. 474-4480; “ Heure” , p. 361-380. Ver um estudo quanto
à validade desta metáfora para a narrativa lucana da infância em BNM, p. 380-391.
92 Orígenes, In Jo 1,4(6); GCS x,9: “Todo homem que se toma perfeito já não vive sua vida, mas Cristo vive
nele. E porque Cristo vive nele, foi dito a Maria a respeito dele: ‘Eis teu filho, Cristo’” .
98 A respeito de tudo isso, ver BGJ, v. 2, p. 924-925, e a literatura ali citada, esp. Koehler, Langkammer.
Este último (“Christ’s” , p. 103-106) afirma (contra C. A. Kneller) que a ideia da maternidade espiritual
185
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
defender essas interpretações simbólicas, alguns biblistas não fazem distinção entre
o que o evangelista pode ter pretendido em um ambiente do século I e o uso feito da
passagem para satisfazer as necessidades da Igreja subsequente. A interpretação
simbólica continua na exegese moderna. R. H. Strachan (The Fourth Gospel, 3. ed.,
London, SCM, 1941, p. 319) acha que a mãe representa a herança de Israel sendo
agora confiada aos cristãos (discípulo amado). Bultmann (John, p. 673) identifica a
mãe com judeu-cristãos e o discípulo com cristãos gentios, e faz a primeira encontrar
um lar com o segundo.94 Essa interpretação esquece a completa falta de interesse
por parte de João na distinção entre judeu e gentio, falta de interesse assinalada
não só pelo silêncio a respeito do assunto, mas também pelo princípio de que pais
humanos geram apenas carne, enquanto o Espírito vem da criação divina (Jo 3,3-6).
Talvez a dificuldade exegética mais séria a respeito dessas abordagens tenha sido
indicada por Schürmann (“Jesu”, p. 20). A cena não diz respeito primordialmente
às duas personagens em si, mas ao novo relacionamento que existe entre elas. Antes
de apresentar uma interpretação teológica desse relacionamento, quero comentar
a última parte de Jo 19,27.
“A partir daquela hora, o discípulo tomou-a como sua” tem sido assunto de
muita discussão, um bom exemplo da qual vê-se nas posições opostas assumidas
em animadas controvérsias por Neirynck (“Eis” ) e de la Potterie (“ Parole” e “ Et à
partir” ), dois importantes biblistas católicos romanos. Neirynck, famoso por suas
tentativas de estabelecer a dependência joanina de Marcos, com base no uso grego,
argumenta vigorosamente que “tomou” (lambanein eis) é verbo de movimento, como
em Jo 6,21, e que ta idia (“como sua” ) significa “para sua casa”, exatamente como
em Jo 16,32. De la Potterie afirma que, antes do século XVI, ninguém entendia
essas palavras no sentido material,95 e que a frase deve significar que o discípulo
de Maria não se encontrava em Ambrósio, mas pertencia ao escolasticismo e à Idade Média. O que se
encontra em Ambrósio é a descrição de Jo 19,26-27 como a “última vontade” pública e privada de
Jesus — legado particular ao discípulo amado (João, filho de Zebedeu) e um legado público a todos os
cristãos.
94 Meyer (“Sinn” ) reconhece corretamente que o discípulo amado toma-se irmão de Jesus nesta cena; mas
ele afirma que os irmãos naturais não mencionados de Jesus representam o Cristianismo judaico que
estava sendo substituído. Ele acha que o sentido simbólico da figura de mulher é irrelevante.
1,5 Certamente havia interpretações primitivas de que o discípulo amado levou Maria para sua casa. Na
verdade, isso era entendido tão literalmente que em Panaya Kapulu, na Turquia moderna (a cerca de
oito quilômetros da antiga Éfeso), é mostrada uma casa onde se supõe que Maria residiu com João (= o
discípulo amado) quando ele se mudou para Éfeso. Entretanto, de la Potterie remonta isso a Jo 19,26-
27a, o relacionamento mãe e filho, não à frase “como sua” . Um fator que toma o debate com Neirynck
186
§ 41 .Jesus crucificado,segunda parte:Atividades no local da cruz
Assumo uma posição entre essas duas. Por meio de paralelos gramaticais
e de vocabulário, Neirynck mostra o que o texto significa se a teologia joanina for
ignorada. Mas acho absolutamente inacreditável que uma cena dramática tão re-
veladora, que envolve a mãe de Jesus em um novo relacionamento com o discípulo
amado, conclua simplesmente com ele levando-a para sua casa. Rejeito não só os
aspectos extravagantes dessa interpretação, por exemplo, que eles saíram naquele
momento e não estavam presentes na morte (apesar de Jo 19,35, onde o discípulo
está pertinho depois da morte de Jesus), ou que podemos concluir disso que o dis
cípulo era um indivíduo da Judeia que tinha uma casa ali perto. A interpretação
é invalidada mais profundamente porque presume que o evangelista estava inte
ressado em onde essas duas personagens foram morar. Essa é uma questão desta
terra, da esfera cá em baixo, e não tem lugar no pensamento joanino (Jo 3,31). Na
descrição de Jo 6,42, os que estão interessados nas origens terrenas de Jesus são
judeus descrentes; os interessados no habitat terreno da mãe de Jesus não devem
ser considerados muito melhor. A ideia de proporcionar uma casa para a mãe de
Jesus não leva bem para Jo 19,28: “ Depois disso, Jesus tendo sabido que já tudo
estava consumado...” ), como se proporcionar acomodações fosse o propósito fun
damental da vida de Jesus.
Por outro lado, parte da crítica histórica que de la Potterie ataca permite-nos
distinguir entre o misticismo mariológico mais tardio que tempera sua interpretação
e o tipo de questão teológica na qual um evangelista do século I estava interessado.
Não é preciso invocar “espaço interior e espiritual” para entender “como sua”. O
um pouco mais acerbo do que é necessário ser é o hábito que de la Potterie tem de referir-se ao que ele
“ mostra” (montrer) em escritos anteriores, por exemplo, “Et à partir” (p. 84, 98-99, 101), quando ele
quer dizer o que defendeu. Um argumento não substitui uma demonstração!
* Ver também “Parole” , p. 31, onde de la Potterie fala do espaço espiritual no qual o discípulo amado vive
como sua compreensão de Jesus. Acho difícil traduzir sua versão favorita de “o discípulo tomou-a como
sua” , a saber, “ Le Disciple 1’accueillit dans son intimité” . De la Potterie combina essa interpretação com
o valor representativo de Maria como a Nova Sião e personagem da Igreja (“Parole” , p. 38-39) — ver
nota 98 adiante.
187
QuftRTD no •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota.É sepultado ali perto
que é próprio do discípulo amado, o que é “sua”, não é sua casa, nem seu espaço
espiritual, mas o fato de ser ele o discípulo por excelência. “ Como sua” é o dis-
cipulado especial que Jesus ama.9' O fato de agora a mãe de Jesus ser a mãe do
discípulo e de ele a ter tomado como sua é um modo simbólico de descrever como
alguém ligado a Jesus pela carne (sua mãe, que faz parte de sua família natural)
torna-se ligado a ele pelo Espírito (um membro do discipulado ideal). Os que har
monizam os Evangelhos alegam que Lc 1,38 mostra que Maria já é discípula na
Anunciação, pois ela diz: “ Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo
a tua palavra”. Mas não há razão para pensar que os leitores joaninos conheciam
essa cena lucana — advertência manifestada por meio da crítica histórica.
97 Em Jo 16,32, Jesus predisse que os outros discípulos se dispersariam cada um para o seu lado — o deles
não era o discipulado especial que lhes possibilitaria ficar com Jesus. O “ como sua” do discípulo amado
é exatamente o contrário.
98 Nova Eva, a Igreja, a mãe de todo cristão que deve ser um discípulo amado, a mãe da Igreja ou do povo
escatológico, ou a sempre virgem que não tinha filhos próprios (além de Jesus) a quem ela pudesse ser
confiada — embora alguns desses títulos sejam válidos para questões teológicas mais tardias. A meu ver,
A. Kerrigan (“Jn. 19.25-27 in the Light of Johanine Theology and the Old Testament” , em Antonianum
35,1960, p. 369-416), ao argumentar que Jesus conferiu diretamente a Maria uma maternidade universal,
confunde a teologia joanina com a da Igreja mais tardia. Mais possível (mas ainda muito incerta) é a tese
de Zerwick (“Hour”) de que o contexto “ messiânico” em João, criado pelas citações da Escritura nos
episódios circundantes, torna provável que João pensava em Eva e sua posteridade e considerava Maria
a mãe da Igreja (p. 1192-1194). Entretanto, embora não negligencie outras ovelhas que não são deste
aprisco, o Evangelho de João preocupava-se primordialmente com a comunidade do discípulo amado.
Quando o Evangelho foi incluído no cânon, o escopo da maternidade foi ampliado. M.-E. Boismard (RB
61,1954, p. 295-296) é bastante cauteloso ao relacionar a atividade messiânica e Gn 3,15 a esta cena,
e ao insistir que os católicos não devem buscar todos os privilégios maternais de Maria no sentido deste
texto. No outro extremo do espectro, parece que Preisker (“Joh”) é quase polêmico ao questionar o culto
mariano de mãe e rainha aqui; para ele, Maria se torna simplesmente um membro da comunidade na
terra. Contudo, ter sido feita mãe do discípulo amado constitui uma posição única!
188
§41 Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
favoravelmente," pois Jesus tem um programa diferente, que diz respeito à vontade
de seu Pai. Apontando para os discípulos, ele os identifica como sua família: “ Quem
faz a vontade de Deus é irmão e irmã e mãe para mim” (Mc 3,35). Mateus deixa
o leitor com a impressão de que a família natural é independente da família de
discipulado. (Vimos que, para João, Caná representava uma rejeição por Jesus das
preocupações de sua mãe pelas necessidades da festa de casamento em favor de
um programa estabelecido pela “ hora” [determinada pelo Pai].) A reinterpretação
lucana (Lc 8,19-21) da cena marcana básica dá uma imagem muito diferente da
família natural. Ao omitir todo contraste entre a família natural e a família pelo
discipulado, Lucas faz a mãe e os irmãos discípulos modelares, que ouvem a pa
lavra e a guardam, exemplificando desse modo a semente plantada em solo bom,
conforme explica a parábola imediatamente anterior (Lc 8,15). Segunda cena
joanina que envolve a mãe de Jesus, esta cena perto da cruz realiza, em relação à
primeira cena em Caná, o que a reinterpretação lucana realiza em relação à cena
marcana — coloca a família (a mãe de Jesus) no relacionamento de discipulado,
fazendo-a mãe do discípulo amado, que a toma em sua esfera de discipulado. A
mulher cuja intervenção em Caná a favor de necessidades terrenas foi rejeitada
porque a hora ainda não chegara recebe agora um papel na esfera gerada do alto
depois que a hora chegou.*100 Resta um toque de semelhança com Marcos no fato
de os “ irmãos” não se tornarem discípulos (Jo 7,3-7), mas serem substituídos pelo
discípulo amado, que, ao se tornar o filho da mãe de Jesus, se torna irmão de Jesus.
m Só Marcos (Mc 3,21) associa esta busca em Cafamaum ao fato de “ os seus” (= família em Nazaré) pen
sarem que ele está fora de si e partirem para agarrá-lo.
100 Mesmo que esse papel não seja tão avançado quanto os papéis designados à mãe de Jesus na mariologia
mais tardia (ver nota 98), ser constituída a mãe do discípulo amado pelo desejo moribundo de Jesus é
papel privilegiado no discipulado. 0 não reconhecimento da importância disso faz com que H. M. Buck
(“ Fourth” , p. 175-176) entenda completamente mal a cena: Jesus já não é filho de sua mãe; ele é intei
ramente o filho do Pai. “Ao dar a ela um novo filho, João exclui a Mãe de participar da obra de Cristo” .
189
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
ao que podemos chamar de fundação da Igreja, tem lugar para esse discipulado já
na cruz (Jo 19,30).101 Ao relacionar sua mãe (família natural) ao discípulo amado,
Jesus amplia o discipulado de maneira significativa como sinal de que crescerá e
abrangerá muitos indivíduos de origens diversas. Essa interpretação do episódio
de Jo 19,25-27 torna inteligível o fato de no versículo seguinte (Jo 19,28) se dizer
que Jesus sabe que tudo está agora consumado.
Análise
A.Historicidade
101 Se para João esse discipulado inigualável e a comunidade que produziu constituem a “Igreja” (embora
o Evangelho não empregue esse termo), o aspecto eclesiástico deste episódio em Jo 19,25-27 pode se
relacionar com a interpretação de unidade do episódio anterior (Jo 19,23-24), onde a túnica não foi ras
gada (§ 40, #4, acima). Chevallier (“Foundation” , p. 343) reclama que seus companheiros protestantes
negligenciam o simbolismo eclesiástico de Maria, embora Calvino não o tenha negligenciado. Ele vê em
Jo 19,25-27 a formação de uma Igreja com dois tipos diferentes de ovelhas — uma nova família com
Maria representando o Israel histórico e o discípulo amado representando um novo tipo de discipulado
(p. 348).
190
§ 41. Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
102 Além das passagens citadas no c o m e n t á r io , vale a pena mencionar que o verbo empaizein (“escarnecer”)
aparece na florescente tradição dos mártires (lMc 9,26; 2Mc 7,7.10) que, como Surkau e outros mostram,
contribuiu para a imagem cristã da morte de Jesus.
103 Contudo, havia o perigo de estarem presentes no lugar de execução quando Jesus ou um de seus com
panheiros morresse e o contato com um cadáver os tomar ritualmente impuros para celebrar a festa.
191
Q uarto >to •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
192
___________________________ § 41 Jesus crucificado, segunda parte: Atividades no local da cruz
fato que não comprova automaticamente que João inventou a cena. Veremos em § 44
que a presença de amigos ou companheiros de Jesus, a distância, conforme relatado
nos Evangelhos sinóticos, corresponde a um tema bíblico (SI 38,12; 88,9); assim, é
muito difícil decidir, com base na teologia, que uma imagem é mais histórica que a
outra, ou que uma delas é necessariamente histórica. Nada nos outros Evangelhos
corrobora a presença da mãe de Jesus no Gólgota, mas há alguns indícios de que
discípulos que não faziam parte dos Doze104 estavam envolvidos na NP. Quanto ao
costume romano, há quem apele para indícios rabínicos mais tardios de que não
raro o crucificado era cercado por parentes e amigos (e inimigos) durante as longas
horas de agonia.103 Contudo, no reinado de terror que se seguiu à queda de Sejano
em 31 d.C., “ Os parentes [dos condenados à morte] foram proibidos de ficar de luto”
(Suetônio, Tibério lxi,2; ver também Tácito, Anais vi,19). Sob vários imperadores
desse período, os parentes não tinham permissão para se aproximar do cadáver de
seu crucificado (§ 46). Assim, não podemos ter certeza de que soldados romanos
permitiríam o contato com Jesus descrito em Jo 19,25-27.106
Já comentei (ver início do Comentário a esta seção) que, nas reações das
pessoas perto da cruz, um padrão de três (originário de uma tradição mais antiga)
se encontra em todos os Evangelhos, embora em João o padrão surja como três
episódios distintos (Jo 19,19-22; 19,23-24; 19,25-27).107 Está claro que o fato de
em Marcos (seguido por Mateus) as três reações de Jesus na cruz serem todas escár-
nios hostis harmoniza-se com a teologia marcana da NP, onde Jesus é inteiramente
1M Dentro do próprio quarto Evangelho, não há razão para pensar que o discípulo que Jesus amava lazia
parte dos Doze.
llh Stauffer (Jesus, p. 111, 179') cita Taljer Gittin 7,1. A passagem essencial nas duas obras parece ser
Tosepta Gittin 5,1 a respeito de um homem que foi crucificado e, enquanto ainda respirava, entregou
uma intimação de divórcio a sua mulher. Se entendo a lógica, a suposição é de que a mulher e a família
estavam perto da cruz para testemunhar isso.
Hl” No c o m k n t á r io , mencionei a probabilidade de uma tradição muito primitiva q u e envolvesse Maria em
uma cena que pusesse em contraste a família natural e a família constituída pelo discipulado. Entretanto,
os sinóticos têm a cena durante o ministério público e, assim, pode ser que João a adaptasse e a pusesse
em um novo cenário perto da cruz.
IIJ' Como não há indícios de que João tirou seus três episódios dos três eseárnios marcanos. é interessante
o fato de já existir na narrativa pré-evangéliea da crucificação o padrão de três. Vimos em § 27 que um
padrão de três negações por Pedro existia desde a época mais antiga a que podemos remontar a história.
A antiguidade identificável da narrativa, decerto, não deve ser confundida com a historicidade.
193
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
108 Em Mc 15,32, “o Rei de Israel” tem um tom messiânico sem a sutileza política de “o Rei dos Judeus” .
194
§ 41 .Jesus crucificado,segunda parte: Atividades no local da cruz
vitorioso ou realiza o propósito divino nas três atividades (ver acima, sob “Amigos
e discípulos perto da cruz” ). Entre os que estão envolvidos nos episódios, há uma
progressão da hostilidade desde os chefes dos sacerdotes que consideram Jesus
um rei fraudulento, passando pela insensibilidade dos soldados que tratam Jesus
como criminoso, até a fidelidade da família e dos amigos que são constituídos em
uma nova posição por um ato de amor por Jesus. Este último episódio é o ponto
culminante do ministério de Jesus, que termina em uma nota positiva de sucesso.
Se sua gente não o aceitou, há uma nova gente “sua” que o aceita e, assim, recebe
o poder de se tornar “filhos de Deus” em um novo relacionamento com o Filho de
Deus (Jo 1,11-13).
195
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte:
Últimos acontecimentos, morte
(Mc 15,33-37; Mt 27,45-50;
Lc 23,44-46; Jo 19,28-30)
Tradução
197
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Comentário
Uma base mais plausível para subdividir esta seção marcana é recorrer à
menção de uma escuridão sobre toda a terra antes da morte de Jesus (Mc 15,33)
e à menção de um rasgamento do véu do santuário do Templo depois da morte de
Jesus (Mc 15,38). Isso nos dá dois sinais escatológicos dados por Deus que formam
uma inclusão de cada lado da agonia da morte de Jesus.1 Contudo, de outro ponto
de vista, o véu do santuário rasgado é parte integral da sequência pós-crucificação
que constitui as cenas seguintes (§§ 4 3 -4 4 ); de fato, o centurião que reage a ela é
paralelo às mulheres que olham de longe — as duas cenas exemplificam respostas
1 Como veremos na ANÁLISE, diversos biblistas interpretam essa inclusão como estrutura marcana colocada
pelo evangelista em tomo de material pré-marcano.
198
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte
Lucas e João têm arranjos do material anterior à morte que são fáceis de
identificar. Em Lc 23,44, o kai (“e” ) inicial, acompanhado pela primeira indica
ção de tempo dada no relato da crucificação desse evangelista, sinaliza uma nova
subdivisão, como faz a mudança para descrição indireta da fala direta que pre
cedeu. Em Lc 23,44-45, antes de Jesus morrer, Lucas associa a escuridão sobre
a terra inteira com o rasgamento do véu do santuário — dois sinais que Marcos
tinha colocado de maneira inclusiva em cada um dos lados da morte. Por meio
desse rearranjo, as duas ameaçadoras intervenções divinas constituem um esboço
ao qual Jesus reage por um ato de confiança na amorosa solicitude divina (Lc
23,46).2 Assim, Lucas é capaz de tornar positiva toda a cena depois da morte de
Jesus, com o trio do centurião, as multidões e as mulheres galileias espectadoras,
todos favoráveis a Jesus (Lc 23,47-49), do mesmo modo que havia um trio formado
por Simão, a aglomeração e as mulheres de Jerusalém favoráveis a Jesus antes de
ele ser crucificado (Lc 23,26-31). No padrão quiástico complicado de João (§ 38
C, Quadro 7), Jo 19,28-30 constitui o Episódio 4, facilmente distinguível dos dois
episódios subsequentes posteriores à morte em Jo 19,31-42 (a serem estudados
em §§ 44, 4 6 -4 7 ).
2 Matera (“Death” , p. 475) acha que, ao mudar o rasgamento do véu do santuário para antes da morte de
Jesus, Lucas tenta evitar a impressão de que essa morte marca o fim do Templo e seu culto. 0 esforço de
Lucas se harmoniza com seu plano de em Atos narrar cenas onde os apóstolos e Paulo vão ao Templo.
Concordo que Lucas reduz a proximidade do fim do culto no Templo, mas Deus rasgar o véu imediatamente
antes da morte de Jesus é sinal de que o fim é inevitável em harmonia com palavras ditas às “filhas de
Jerusalém” a respeito da destruição de Jerusalém na próxima geração (Lc 23,28-31).
199
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Escuridão na sexta hora (Mc 15,33; M t 2 7,4 5 ; Lc23,44-45a; EvPd 5 ,15 .18 )
3 Ao resumir a história de interpretar a escuridão. Grández (“Tinieblas” , p. 183) chama a atenção para a
influência do Pseudo-Areopagita (c. 500 d.C.), que mencionou a analogia da grande intervenção milagrosa
de Deus no AT, especialmente no êxodo.
200
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
4 Há quem ressalte que a escuridão egípcia durou três dias e a escuridão do Gólgota durou três horas;
entretanto, Marcos não menciona “três horas” , mas a sexta e a nona horas. Grayston (“ Darkness”) leva
o mau simbolismo da escuridão adiante e inclui a inorte (SI 88,11-13 e Jó 38,19: parte dos horrores do
outro mundo).
3 0 paralelo sugerido por Irineu (Contra as heresias IV,x,l) que envolve o sacrifício do cordeiro pascal
antes do pôr do sol (Dt 16,5-6) combina com a menção lucana (Lc 23,45a) do sol tendo eclipsado (ou
desaparecido).
201
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
6 Entre os que preferem “ território” estão Erasmo, Lutero. Billerbeck, Ewald, Klostermann, Knabenbauer,
Olhausen e Plummer. Entre os que preferem “terra” estão Gnilka, Grayston e Lohse, com Loisy afirmando
que nos Evangelhos a expressão “sobre a ge inteira” ou “sobre toda a ge” nunca tem sentido restrito a
“território” (Grández, “Tinieblas” , p. 204 — não tenho essa certeza quanto a Lc 4,25). Não é convincente
o argumento de que, em relação a Moisés, Ex 10,22-23 tem a praga “sobre todo o território do Egito” ;
por isso, aqui, por analogia, o castigo divino deveria vir sobre todo o território da Judeia. Não deveria a
praga divinamente enviada ser maior em relação a Jesus, Filho de Deus e, assim, “ sobre a terra inteira” ?
202
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
Como antes Mateus não tinha nenhum aviso de terceira hora comparável ao de Marcos, sua mudança de
“ a sexta hora tendo chegado” em Marcos para “ desde a sexta hora” é apenas um ajuste cronológico. Ele
usa o padrão de apo [...] heos (“de [...] até”) dez vezes para descrever um período de tempo (SPNM, p.
292).
203
Q uarto » to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
8 Esta passagem mostra-me a impossibilidade de considerar o EvPd a NP original da qual Marcos e Mateus
eram dependentes. Por que um ou os dois deles teriam rejeitado a redação bíblica “ meio-dia” usada pelo
EvPd em favor de “a sexta hora” , não atribuível a nenhuma das passagens veterotestamentárias que são
os antecedentes para a escuridão?
9 Vê-lo em Ef 4,26: “Não deixeis o sol se pôr sobre vossa ira” .
10 Ao interpretar os Evangelhos canônicos, é preciso levar em conta a percepção pelos evangelistas de que
os que fizeram mal a Jesus não conheciam sua verdadeira identidade divina. Entretanto, no EvPd, os
perpetradores sabem que agiram mal (EvPd 7,25; 8,28; 11,48).
11 É bastante difícil datar este pseudepígrafo preservado em eslavônico e nunca atestado antes do século XIV
d.C., mas muitos o atribuem a por volta do século II d.C., quando o EvPd também estava sendo escrito.
12 A passagem continua: Quando o povo viu isso. deram glória a Deus e foram para casa — cf. Le 23,48.
Ver a influência de 2 Henoc em Clarke, “St. Luke” .
204
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
13 Várias das palavras não estão no estilo lucano normal, por exemplo, de Marcos Lucas toma “ sobre a terra
inteira” , enquanto em outras passagens (Lc 4,25; 21.35) ele prefere “toda a terra” .
205
Q u it o ho •iesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto
14 E muito difícil derivar o grego lucano (as duas interpretações dadas acima) de Marcos, apesar da tentativa
de Buckler (“ Eli” , p. 378) de relacioná-lo com o Eloi (textos variantes Eli) e egkatelipes de Mc 15,34.
’’ Por causa da influência de Orígenes (ver adiante), comentaristas mais antigos preferiam a segunda in
terpretação; mas, com a chegada de Tischendorf no século XIX e uma percepção mais nítida de crítica
textual, a primeira interpretação ganhou a preferência geral. Grández (“Tinieblas” ) apresenta um registro
de opiniões quanto a este ponto.
16 Exemplo interessante está na LXX de Eclo 22,9(11), que descreve uma pessoa morta como alguém que
perdeu (ekleipein) a luz ou cuja luz acabou.
206
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
pode ter lugar durante o período de lua cheia que inicia a Páscoa.17 Parece também
que a máxima duração atestada de um eclipse solar completo é de sete minutos e
quarenta segundos (Driver, “ Two”, p. 333), consideravelmente menos que as três
horas pressupostas pelos Evangelhos sinóticos. Qualquer sugestão de que Deus
suspendeu as possibilidades naturais e provocou um eclipse extraordinariamente
longo sobre a terra inteira em uma ocasião em que nenhum podia acontecer choca-se
com o silêncio de autores antigos contemporâneos do suposto acontecimento, como
Sêneca e Plínio, que normalmente teriam mencionado um prodígio tão extraordi
nário. Se não houve nenhum eclipse do sol por ocasião da morte de Jesu s,18 que
outro fenômeno conhecido provocaria a escuridão ou a obscuridade da luz solar?
Muitas explicações têm sido oferecidas: manchas solares, tempestades solares, os
hamsin ou ventos sirocos que trazem uma tempestade de areia,19 um temporal com
trovoadas e raios, a consequência de uma erupção vulcânica na Arábia ou na Síria
etc. Entretanto, a passagem lucana não faz alusão a ventos ou tempestades (com
parar At 2,2). Além disso, algumas dessas sugestões originam-se de pessoas que
viveram na Palestina e conheceram os fenômenos climáticos locais,20 mas Lucas
não revela esse tipo de conhecimento.
Por outro lado, há um padrão lucano que favorece a tradução a): “ 0 sol
tendo se eclipsado”, mesmo que essa tradução signifique que a descrição lucana
'' Este problema já era visto por Orígenes (Commentariorum Series 134; In Matt 27:45. GCS 38. p. 271-
741), que preferia a interpretação de que o sol ficou escurecido. Alhures, Orígenes insinuou que a ideia
de um eclipse foi introduzida por anticristãos para desacreditar os Evangelhos. (Lembramos que ele
pensava o mesmo da interpretação de Mt 27,16-17 que dava “Jesus” como nome próprio de Barrabás.)
Ver B. M. Metzger. “ Explicit references in the Works of Origen to Variant Readings in the New Testa-
ment Manuscripts” , em J. N. Birdsall & R. W. Thomson, orgs., Biblical andPatrístie Süuúes, A e * lork.
Herder, 1963, p. 78-95, esp. 87 (Memory of R. P. Casey). Júlio Africano, que nasceu em Jerusalém e
conheceu Orígenes, escreveu Chronikon em 221 d.C.; em 5,50 (ed. Rowth 2,297), ele relatou que Talos
(historiador do início do século I d.C.?) chamou essa escuridão de eclipse do sol, mas tal designação era
sem fundamento.
18 No passado, J. J. Scaliger (1598), A. Calmet (1725) e outros pensaram em um eclipse lunar, às vezes
combinado com um eclipse solar! Apelando a At 2,20, “ 0 sol se transformará em trevas e a lua em
sangue” , Humphreys & Waddington (“ Dating” ) sugerem que Lucas combinou uma tempestade de areia
com um eclipse lunar parcial, que aconteceu em 3 de abril de 33 d.C.
^ Isso é mencionado ou defendido por biblistas ilustres, por exemplo, Lagrange, Benoit, Fitzmyer. Driver
(“ Two”) afirma que como o Templo estava aberto do lado oriental (Mixná, Middot 2,4), o vento que trouxe
a areia podería ter rasgado o véu do santuário!
20 O que certamente é verdade a respeito da sugestão por Lagrange de um siroco; e já, ao escrever c. 396,
Jerônimo, que ali vivia, menciona uma escuridão incomum que teve lugar por volta de Pentecostes
(Contra loannem Hierosolymitanum 42, PL 23.393C).
207
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
não é cientificamente exata.21 Em sua narrativa da infância, Lucas relatou que “um
edito foi promulgado por César Augusto para que se realizasse um recenseamento
de toda a terra” (Lc 2,1). Até onde indicam os indícios conhecidos, nunca houve
esse recenseamento universal sob Augusto, apesar das engenhosas tentativas de
intérpretes para defender a exatidão lucana (ver BNM, p. 470-472,651-662). Houve
muitos editos de Augusto e muitos recenseamentos regionais; e Lucas, por confusão
ou licença artística, recorreu a eles a hm de criar um ambiente para o nascimento
de Jesus em Belém. Do mesmo modo, Lc 2,2 descreve esse recenseamento como
“o primeiro recenseamento sob Quirino como governador da Síria” e nos diz que
ele fez os pais de Jesus irem da Galileia a Belém. Houve um recenseamento (mas
da Judeia, não da Galileia) sob Quirino como governador da Síria; contudo, foi
realizado mais de dez anos depois da data mais plausível para o nascimento de
Jesus, que parece ter acontecido durante o reinado de Herodes, o Grande. Lucas
tomou um acontecimento conhecido (que era associado ao blho de Herodes) e por
confusão associou-o ao tempo do nascimento de Jesus.22 À luz desses procedimentos
na narrativa da infância, não é implausível que, tendo lido em Marcos a respeito de
escuridão ao meio-dia, Lucas a associasse a um bem conhecido eclipse do período
geral em que Jesus morreu e fizesse deste último a causa da primeira.23 A verossi
milhança dessa associação, inclusive a exagerada duração da escuridão, é evidente
quando se leem algumas das não raro exageradas descrições literárias de um eclipse
solar. Por exemplo, Plutarco (Pelópidas xxxi,2) assim descreve um eclipse solar
em 364 a.C.: “A escuridão tomou conta da cidade durante o dia”. Sawyer (“ Why”,
p. 128) relata a descrição de um eclipse solar em Antioquia em 1176 que durou
21 O fato de Orígenes argumentar contra a interpretação de eclipse mostra que ela tinha apoio em seu
tempo; e havia escritores religiosos famosos (Crisóstomo, Cirilo de Alexandria) que a aceitavam, embora
pressupusessem um ato especial de Deus para produzi-lo. G. B. Caird, Danker e Sawver defendem a
tradução do eclipse e ela se encontra na NAB, Jerusalem Bible e NEB.
22 Neste caso, opto por confusão em vez de licença artística, porque Lucas demonstra confusão a respeito
desse recenseamento em At 5,36-37. Ali ele atribui ao famoso Gamaliel um discurso (ao que tudo indica
proferido no fim da década de 30) que menciona o levante de Teudas (que ocorreu uma década mais
tarde!) e, depois desse levante, menciona o recenseamento associado ao levante de Judas, o Galileu (=
recenseamento sob Quirino em 6 d.C.). Na verdade, a associação de Gamaliel com esse discurso pode ser
outro exemplo de Lucas incluir na narrativa acontecimentos e pessoas conhecidas em lugares e papéis
apropriados, mas de modo algum exatos.
23 E provável que Lucas não soubesse que não podería ter havido um eclipse na Páscoa. Killerman (“ Fins-
temis”) lembra que, apesar de ter habilidades científicas, Alberto, o Grande, talvez não soubesse que
a Páscoa ocorria na lua cheia. Contudo, Tucídides (História ii,28) fala de um eclipse do sol na lua nova
como aparentemente a única vez em que tal ocorrência teve lugar.
208
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
três minutos e vinte segundos: “ O sol ficou totalmente obscurecido; a noite caiu
e as estrelas apareceram [...] a escuridão durou duas horas; depois a luz voltou”.
Se, por confusão ou por arte, Lucas ligou uma vaga lembrança desse eclipse
solar (que efetivamente ocorreu vários meses ou anos antes da morte de Jesus) com
a tradição marcana de escuridão no dia da morte de Jesus, não devemos pensar que
ele estava dando uma explicação puramente naturalista para essa última. Lucas
presumiu que o eclipse era controlado por Deus, que o empregou para assinalar a
24 Refletindo a opinião de que Lucas era antioqueno, Sawyer (“ Why” , p. 127) sugere que ele conhecera esse
eclipse quando jovem. Entretanto, a hipótese complica o problema da exatidão lucana, pois ele deveria
ter se lembrado de que o eclipse ocorreu no outono, não na primavera, quando Jesus foi crucificado.
21 Contudo, ao comentar Mateus (nota 17 acima), Orígenes toma o cuidado de mencionar que Flégon não
disse que o eclipse ocorreu na lua cheia.
26 Tibério reinou de 14 a 37; estaria Eusébio pensando em 31-32 d.C.? Holzmeister (“ Finstemis”) levanta
o problema de uma possível confusão entre um eclipse lunar em 3 de abril de 33 d.C. e o eclipse solar
em 24 de novembro de 29 d.C.
2‘ Alguns, como Maier (“ Sejanus”), usam esses indícios para defender a morte de Jesus em abril de 33,
mas tal raciocínio não elimina a impossibilidade de um eclipse solar na Páscoa.
209
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
morte do Filho. Não menos que Marcos, Lucas considerou essa escuridão resultante
do eclipse um dos sinais escatológicos dos últimos tempos mencionados no AT.28
Na narrativa lucana da infância, Jesus foi saudado como “aparecendo aos que
estavam na escuridão e na sombra da morte” (Lc 1,78-79). Na verdade, entre os
evangelistas, só Lucas mencionou previamente a escuridão na NP; de fato, quando
estava sendo preso, Jesus exclamou que esta era a “hora” de seus inimigos “e o
poder das trevas” (Lc 22,53). O simbolismo da volta da escuridão quando Jesus
morreu era evidente para os leitores de Lucas.
28 A atitude de Lucas é evidente em At 2,17-21, quando em Pentecostes Pedro cita de J1 3,1-5 sinais
(inclusive o escurecimento do sol), mostrando que o que aconteceu a Jesus assinala “os últimos dias” .
28 Grández (“Tinieblas” , p. 199-200) relaciona cerca de trinta passagens de vinte e cinco autores helenísticos
pertinentes a isso, dos quais farei uma seleção. De um período mais tardio, há também alguns paralelos
rabínicos (St-B 1,1040-1042).
80 Do mesmo modo, Ovídio (Metamorfoses xv,785) descreve “a triste face do sol” e Virgílio (Geórgicas i,467)
210
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
0 grito m ortal de Jesus; Elias; oferta de vinho avinagrado (Mc 15,34-36; M t 27,4 6 -49 ;
EvPd 5 ,19 .16 )
ao que sai de sua boca como phone megale (“um forte grito” que se repete dois ou
três versículos adiante, quando Jesus morre). O âmbito de boan e anaboan inclui
proclamação solene, a aclamação ou o brado da multidão e um grito desesperado
por socorro.33 Em Lc 9,38; 18,38, boan é usado para descrever um homem que
grita em voz alta ou insistente para Jesus e, em Lc 18,7, para vozes que clamam a
Deus por ajuda. Em Marcos/Mateus, Jesus fala em semítico as palavras de SI 22,2a:
“ Meu Deus, meu Deus, por que razão me abandonaste?”. A segunda parte desse
versículo (SI 22,2b) em hebraico refere-se a Deus que está longe das “ palavras do
meu grito” . Claramente, então, a vociferação e o forte grito atribuem uma urgência
desesperada à súplica de Jesus. Além disso, aos familiarizados com a crucificação,
tal grito não parecería incomum. Blinzler (Trial, p. 261) descreve como parte do
que fazia a crucificação particularmente horrível “as vociferações de raiva e dor, as
maldições veementes e as explosões de desespero inominável das infelizes vítimas”.
Contudo, não foi com raiva, mas em oração, que Jesus vociferou seu forte grito, do
mesmo modo que, em Ap 6,10, os mártires gritaram com voz forte sua oração para
Deus intervir. Na verdade, orações feitas em voz alta são relativamente comuns na
história bíblica.34
33 Ver nos quatro Evangelhos o tratamento da proclamação de João Batista no deserto; também At 17,6;
25,24.
34 Lc 17,15; 19,37-38; lR s 8,25; Ez 11,13; Ne 9,4 etc. Midraxe Sifre sobre Dt 3,23 (Pisqa 26) diz que a
oração tem dez nomes e o primeiro que ele relaciona é “ grito” . Se Marcos esperava ou não que os leitores
soubessem que a nona hora quando Jesus pronunciou sua oração era a hora do ritual judaico para a
oração da tarde (ver Pesch, Markus, v. 2, p. 494), depende em parte de a organização de tempo marcana
refletir ou não um ritual de oração da Igreja em comemoração do dia da morte do Senhor.
33 Pode bem ser que, com esses fenômenos, Marcos (seguido por Mateus) pretenda fazer uma inclusão com
seu uso de alguns dos mesmos termos no início do Evangelho: por exemplo, Mc 1,2 cita Malaquias, a
base da expectativa de Elias; Mc 1,3 usa phone e boan a respeito de João Batista no deserto; Mc 1,10-11
faz o pneuma descer sobre Jesus enquanto um phone vem do céu.
212
§ 42.Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
mem do Mar chama a multidão para si. Em julgamento, o Senhorfa la , ruge e clama
às vezes produzindo terremotos, em Am 1,2; J1 4,16; Jr 25,30 e SI 46,7, do mesmo
modo que em Ap 10,3 o anjo berra com voz forte quando revela os sete trovões.36
213
Q uabto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. t sepultado ali perto
Jesus se sinta abandonado. Seu “ Por quê?” é o de alguém que sondou as profun
dezas do abismo e se sente envolvido pelo poder da escuridão. Jesus não questiona
a existência de Deus ou o poder de Deus para fazer alguma coisa a respeito do que
está acontecendo; ele questiona o silêncio daquele a quem chama de “ Meu Deus”.40
Se prestarmos atenção à estrutura geral da NP de Marcos/Mateus, essa forma de
se dirigir à divindade é por si só significativa, pois em nenhum lugar antes Jesus
rezou a Deus como “ Deus”. Marcos/Mateus iniciaram a NP com uma oração na
qual a divindade foi chamada por Jesus de “ Pai”, a forma comum de tratamento
usada por Jesus e que captou sua confiança familial de que Deus não faria o Filho
passar pela “hora”, nem beber o cálice (Mc 14,35-36; Mt 26,39). Contudo, essa
oração filial, reiterada três vezes, não foi visível ou audivelmente respondida e
agora, depois de suportar a agonia aparentemente interminável da “hora” e beber
todo o cálice, Jesus grita uma última oração que é uma inclusão com a primeira
oração. Sentindo-se tão abandonado como se não estivesse sendo ouvido, ele já não
mais se atreve a chamar intimamente o Todo-poderoso de “ Pai”, mas emprega a
saudação comum a todos os seres humanos, “ Meu Deus”.41 (O fato de Jesus usar
linguagem de Salmo — fato ao qual Marcos não chama nossa atenção — não
torna menos notável o emprego dessa terminologia incomum nos lábios de Jesus.)
Marcos chama nossa atenção p aia esse contraste entre as duas orações e torna-o
mais comovente ao relatar a saudação em cada oração na língua de Jesus:
e “E/oi”, dando assim a impressão de palavras que vêm genuinamente do coração
de Jesus, distintas do restante de suas palavras que foram preservadas em uma
m Lacan (“Mon Dieu” , esp. p. 37, 53) tem reflexões intrigantes neste ponto. Embora o sofrimento humano
nos faça pensar que Deus está ausente, talvez isso seja porque moldamos Deus a nossa imagem e seme
lhança. A cruz nos ensina que a autorrevelação do verdadeiro Deus, para quem a humildade é poder,
tem lugar na fraqueza humana. 0 silêncio confirma que existe um Deus. Afirmações teológicas poéticas
vigorosas a respeito da Palavra sucumbindo em um brado pelo Deus perdido marcam a cristologia de H.
U. von Balthasar, para quem a citação de SI 22,2 é fator importante; ver Zilonka, Mark, p. 207-221.
41 Eissfeldt (“Mein Gott”) descobre seis tons diferentes de sentido para essa expressão no AT, que vão da
referência a um ídolo doméstico a um meio de descrever o Deus da aliança com Israel (Dt 4,5). Nos
Salmos, em especial, expressa proximidade, envolvendo Deus nos altos e baixos da vida do suplicante (p.
10-15). Muitas vezes, como aqui nos lábios de Jesus, subentende uma associação interiorizada calorosa.
Gerhardson (“Jésus” , p. 222) adverte que a oração de Jesus em Marcos/Mateus não é, a saber: grito
radical em um universo que parece vazio de Deus, nem piedoso derramamento por alguém que não sabe
o que está dizendo, ou dito pronunciado apenas a fim de cumprir as Escrituras. Ao contrário, aquele que
fala não sente nenhum consolo, mas não perdeu o sentimento da vontade de Deus expressa na palavra
bíblica.
214
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
Há quem negue o sentido óbvio das palavras, por exemplo, Sagne (“ Cry” )
vale-se do livro de Jó para explicar: “ O grito de Jesus na cruz não é acusação con
tra Deus, mas a explosão de sofrimento no amor” ! Outra forma de rejeitar a ideia
de que Jesus foi abandonado reconhece que citar SI 22,2 subentende desespero,
42 Braumann (“Wozu” , p. 161-162) insiste que Jesus se sentir abandonado não se refere simplesmente ao
sofrimento, mas à morte. Léon-Dufour (“Demier” , p. 669) comenta que Jesus não entrou na morte com
todas as respostas tiradas da visão beatífica, mas com um “Por quê?” .
43 Read (“Cry”) encontra mais apoio para o tom resoluto de Marcos nas fórmulas de 2Cor 5,21 (“fê-lo ser
pecado por nós”) e F1 2,8 (“ humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte, mesmo a morte na cruz”).
44 Hasenzahl (Gottverlassenheit) combina sua abordagem curiosamente discrepante da “última palavra”
de Jesus em Marcos/Mateus com reflexões no entendimento cristológico do saltério grego, combinação
que nos adverte quanto à dificuldade de passar da reflexão cristã mais tardia para aquilo que Marcos
pretendia.
215
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
mas faz Jesus expressar isso não em seu nome, mas no nome de pecadores ou dos
judeus.45 Outros mudam o sentido de desespero para entrega amorosa, harmoni
zando Marcos/Mateus com Lucas ou João, de modo que, por exemplo, o “ Pai, em
tuas mãos eu coloco meu espírito” lucano se torna a interpretação correta de “ Meu
Deus, meu Deus, por que razão me abandonaste?”. Ou eles suavizam a importân
cia dos verbos aramaicos ou gregos usados por Marcos/Mateus. (De fato, esses
verbos têm vários tons de sentido e veremos que essa iniciativa foi compartilhada
por copistas antigos.) Buckler (“ Eli”, p. 384) lembra que os verbos semíticos (sbq
e ‘zb) significam não só “deixar, abandonar”, mas também “deixar uma herança,
entregar para” (‘zb em SI 10,14; 49,11), e por meio de exegese complicada, faz
Jesus recusar um papel régio em relação ao povo de Deus. Tem sido sugerido até
que a transliteração semítica dada por Marcos/Mateus constitui uma leitura errada
daquilo que Jesus realmente disse.46*
4:> Assim, por exemplo, C. M. Macleroy (ExpTim 53, 1941-1942, p. 326): No amor, Jesus se identifica
conosco e com nossos pecados; ele sentiu a separação de Deus que nossos pecados trazem a nossa vida.
Is 53,6 registra essa perspectiva: “ O S e n h o r fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós” . Kenneally
(“Eli” , p. 132) atribui variações de perspectiva a Orígenes, Atanásio, Agostinho e Cirilo de Alexandria.
Fator complicador para os Padres da Igreja e biblistas católicos romanos mais tardios era a tradução da
segunda parte de SI 22,2 na LXX e na Vulgata: “Longe de minha salvação estão as palavras [isto é, o
relato] de meus pecados” (lendo s’gh [se aga], “grito” , como sg’h [segfâ], “ pecado” ). Esse sentimento
não podia ser atribuído literalmente ao Jesus sem pecado! Por outro lado, Wilkinson (“Seven” , p. 75-76)
cita com aprovação a perspectiva de Schmiedel, que relaciona essa passagem ao fato de Jesus suportar
o pecado do mundo: O horror desse pecado obscurece a proximidade de sua comunhão com o Pai. P.
Rogers (“Desolation” , p. 57), que relaciona várias perspectivas de tempos passados, atribui a Lutero a
tese de que Jesus na cruz era ao mesmo tempo supremamente bom e supremamente pecador.
“ Sidersky (“Passage”) mostra como a transliteração sabachthani (“ me abandonaste”), aparentemente do
aramaico sbq, representava uma forma de skh (hebraico-aramaico): “Por que me abandonaste?” — pergunta
que aparece em SI 42,10. Em artigo posterior (“Parole” ), ele se refere a outra possibilidade: o original
era uma forma de zbh (hebraico): “Por que me sacrificaste?” . Cohn-Sherbok (“Jesus’ Cry”) pensa no
original como pergunta retórica que incluía o aramaico sbh: “ Por que me louvaste?” , e considera isso um
grito de vitória que anuncia o reino messiânico — o que leva as pessoas a perguntarem onde está Elias.
Tais sugestões, evidentemente, invalidam a interpretação pelo evangelista do que significa a expressão
semítica.
4' Baker (“ Cry”) acha aceitável Jesus ser “desamparado” (retirada da luz e da alegria da presença de Deus),
mas de modo algum “abandonado” (quebra da unidade entre Pai e Filho); contudo, essa precisão de pen
samento não é transmitida com transferência pelos verbos respectivos das línguas ocidentais. Kenneally
216
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
(“ Eli” , p. 130-131) acha erradas todas as sugestões de que a união hipostática foi rompida, de que Deus
retirou a graça verdadeira e Jesus perdeu a visão beatífica. Esses temores são expressos na linguagem
da teologia mais tardia e abrangem idéias que certamente não estavam na mente de Marcos, nem de seus
leitores. Uma questão mais realista é que apologistas não cristãos dos primeiros séculos podiam bem ter
encontrado uma contradição entre Jesus ser divino e contudo pronunciar tão desesperançada oração de
fraqueza.
Ui 2Cor 5,21; Hb 4,15; lPd 2,22; Jo 8,46; ljo 3,5.
49 Reimarus usou este versículo para afirmar que Jesus morreu revolucionário frustrado e derrotado. Tem
havido tentativas romanescas de fazer do desespero a última tentação de Jesus; mas isso também aparece
em Leonardo Boff, Via-sacra para quem quer viver: “ A esperança absoluta de Jesus só é compreensível
à luz de seu desespero absoluto” .
217
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
M Naturalmente, muitos dos que formulam a objeção de uma falta de harmonia com outras palavras de
Jesus supõem que todas as “sete últimas palavras na cruz” eram históricas e que, portanto, o fato de
aparecerem em Evangelhos diferentes é irrelevante — as palavras têm de concordar porque todas se
originaram do mesmo Jesus. Lofthouse (“Cry” ) relaciona esse e outros argumentos não críticos contra
atribuir a Mc 15,34 a sensação de Jesus se sentir abandonado.
1,1 Burchard (“ Markus” ) e Trudinger (“ Eli” ) defendem firmemente a importância positiva do Salmo inteiro
para interpretar a citação de Jesus. Trudinger (p. 253-256) chega a apelar para o título onde, diz ele,
Imnsh não significa “ Ao maestro musical” , mas sim “Àquele que traz a vitória” , isto é, fazendo vitorioso
o justo sofredor. Por outro lado, Léon-Dufour (“ Demier” , p. 672) relaciona argumentos contra esse tipo
de interpretação: a situação de alguém perto da morte na cruz não subentende uma longa oração que
consiste em um Salmo inteiro, e não há ênfase no fato de um Salmo estar sendo citado.
218
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
219
O lm o ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto
“ Esta é uma reconstrução gentilmente verificada para mim por J. A. Fitzmyer; o aramaico do século I
permitia ’Elt ou 'Elaht. O targum mais tardio (c. 450) sobre os Salmos (Lagarde, org.) lê: 'Elt, 'Eli, mit-
tül mâ sebaqtani, empregando um interrogativo (mtwl mh) não atestado no aramaico do século I. Ver a
transliteração de Mateus no Códice de Washington: Eli, Eli ma sabachthanei.
’6 Leituras variantes de mss. harmonizam a forma do nome de Deus em Marcos/Mateus para se ler em amhos
Eloi ou Eli. Do mesmo modo, há tentativas de harmonizar a diferença de lama e lema, e testemunhos
da tradição koiné leem lima em Marcos. O exótico sabachthani é escrito sabaktanei no Códice Vaticano
de Mateus, sabapthanei no Vaticano de Marcos e sabachtanei no Sinaítico de Mateus, sibakthanei no
Alexandrino de Marcos.
3‘ Assim em Marcos e Mateus; Elei é variante sem importância de Eli.
58 Embora, em harmonia com a teoria de prioridade marcana, haja muitos defensores da forma de Marcos
como mais original, biblistas em um número surpreendente apoiam a originalidade mateana: Allen.
Dalman, Hauck, Huby, Jeremias, Klostermann, Rehm, Taylor, Zahn etc.
220
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte
59 É uma perspectiva partilhada com variações por muitos biblistas (Gundry, Lagrange, Stendahl, Strecker
etc.), alguns dos quais afirmam que Jesus falou essa mistura. Entre os que afirmam que, na tradição, SI
22,2 era originalmente citado em aramaico estão Cadoux e McNeile; os que defendem a citação original
em hebraico incluem Dalman, Gnilka, Kilpatrick, Taylor e Wellhausen.
60 Por exemplo, Targum Onqelos; ver na nota 55, acima, o Targum sobre os Salmos.
61 Normalmente, ch translitera o h, não o <j semítico (geralmente traduzido por k). Contudo, na transliteração
é preciso levar em conta a influência do th na consoante que o precede, de modo que a tradução k do q
semítico foi mudada para ch (Rehm, “Eli” , p. 275). Ver a nota 46, acima.
62 Ver talitha koun (Mc 5,41); ephphatha (Mc 7,34): hosanrui (Mc 11,9.10); abba (Mc 14,36); Golgothn
(Mc 15,22). Korban (Mc 7,11) tem sido muitas vezes considerada reflexo do hebraico (da Mixná), mas
qrbn (qorban) está agora atestado na inscrição de um ossário aramaico descoberto perto de Jerusalém na
década de 1950 (FESBNT. p. 93-100).
221
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gélgota. É sepultado ali perto
63 Teremos de voltar à razão de Mateus para mudar a interpretação marcana quando examinarmos a inter
pretação errônea das palavras de Jesus com o significado de que ele era Elias (ver adiante, sob “Elias e
a oferta de vinho avinagrado” ).
M Aqui concordo com Rehm (“Eli” , p. 275), embora outros biblistas contestem a derivação do zaphthani
de Beza do hebraico ‘azabtani. (Admitidamente, a transliteração é esquisita; primeiro, perdeu-se o ayin
inicial, e então a transliteração normal b tomou-se ph sob a influência do th seguinte.) Nestle (“ Mark
xv”) e Gnilka (“Mein Gott”) derivam zaphthani não da raiz ‘zb (abandonar), mas da raiz z’p (enraivecer-se
contra). Eles afirmam que Beza traduz o zapthani transliterado por uma forma de oneidizein (“Por que
me injuriaste?”) e que oneidizein não é usado na LXX para traduzir ‘zb. Contudo, também não traduz
z’p; e nas traduções gregas de Símaco e Luciano, traduz ‘zb.
63 Para isso, Lc 4,16-21 é o único indício. Fitzmyer (Luke, v. 1, p. 526-527) relata o debate entre biblistas
em relação ao fato de essa ser criação lucana livre, baseada em Mc 6,l-6a, ou representar uma tradição
independente. Ele considera Lc 4,17-21 “ mais bem atribuído à pena de Lucas” , porque revela uma
preocupação lucana característica. Contudo, é provável que Meyer (Marginal, v. 1, p. 266-276 [trad.
brasileira, Imago]) deva ser seguido ao afirmar que Jesus aprendeu a ler e a explicar as Escrituras
hebraicas.
222
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
Do fato de uma tradução ser dada, pode-se julgar que já não se esperava
que a audiência entendesse a redação semítica (e, na verdade, o EvPd já não a
repete). Ao examinar a oração inicial da NP em Marcos (§ 7,), vimos que a pre
sença do aramaico transliterado e da tradução grega (Mc 14,36: Abba ho Pater)
talvez representasse uma história da oração sendo recitada em aramaico primeiro;
depois (em uma comunidade mista), nas duas línguas; finalmente, só em grego.
E tentador pressupor uma história semelhante para a oração marcana final de Je
sus; mas obviamente as circunstâncias nas quais os cristãos rezavam essa oração
como Jesus a rezava teria de ser restrita, por exemplo, em tempos de martírio ou
sofrimento extremo. Quanto à redação, a LXX (“ Deus, Meu Deus, atende-me, com
que propósito tu me abandonaste?” ) representa a tradução literal do hebraico do
TM, exceto pela omissão do primeiro pronome possessivo e a inserção de uma
frase implorando atenção {prosches moi).b9 Embora usassem a redação da LX X,
Marcos/Mateus ficaram mais próximos do hebraico ao evitarem as peculiaridades
da LXX. (Biblistas como Black, Gundry e Stendahl [SPNM, p. 297] consideram o
hinati de Mateus [“com que propósito” ] melhora estilística do eis ti [“ para/por que
razão” ]; contudo, em Mt 26,8, Mateus seguiu Mc 14,4 ao usareis ti. É mais provável*68
“ Marcos usa methermeneuein (“ interpretar”) conto fez com referência ao Gólgota em Mc 15,22. Mateus
(Mt 27,33) evitou-o ali, do mesmo modo que o mudou aqui. SPNM, p. 296, sugere que ele o achou muito
desajeitado; contudo Mateus o usou em Mt 1,23.
6‘ Códice Vaticano omite o segundo ho theos mou.
68 Esta interpretação só está em Marcos.
m Há quem atribua essas mudanças da LXX a uma interpretação errônea de uma das palavras Eli no
hebraico como a preposição ‘eli, "para mim” .
223
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
que Mateus esteja se adaptando ao grego da LXX.70) Há quem especule que eles
conheciam uma forma mais sucinta do versículo do Salmo na LX X diferente da
do século IV que conhecemos; outros pensam que Marcos/Mateus adaptaram a
LXX à redação hebraica71 ou à tradição semítica das palavras de Jesus. Qualquer
das duas soluções torna improvável que a tradição evangélica mais primitiva das
palavras de Jesus tivesse só o grego (como no EvPd ) e que a transliteração semítica
fosse acrescentada mais tarde para dar verossimilhança.
11 Braumann (“Wozu” , p. 159-611) e Burchard (“Markus” , p. 81) insistem que o eis ti marcano significa
“para que fim” , não “por que” . E mais difícil explicar a substituição mateana do nominativo ho theos,
usado em Marcos (e na LXX) como vocativo, pelo raro vocativo clássico thee (BDF 147). Contudo, o
mesmo tipo de substituição ocorreu na oração inicial na NP ao Pai, em Mt 26,39, em contraste com Me
14,36.
1 É presumível que seja isso que Áquila fez, pois sua tradução grega não tinha o prosches moi.
224
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte
cristã. Marcos usou esse verbo para descrever o terceiro escárnio de Jesus na cruz:
“ Mesmo os que tinham sido crucificados junto com ele o estavam insultando” (Mc
15,32b; Mt 27,44). E Deus agora suspeito de apresentar mais um escárnio na série
ou há uma possibilidade de ter o escriba de Beza entendido que Jesus estava per
guntando “ Meu Deus, Meu Deus, por que me escarneceste (permitiste que eles me
escarnecessem)?”. Nesse caso, haveria menos problema para saber por que Beza
permitiu ler em Mateus: “Por que me abandonaste?”. As duas perguntas teriam o
sentido de perguntar por que Deus permitiu que essas coisas fossem feitas a Jesus.
‘2 Isso representa a tradição africana do latim antigo e os bispos britânicos que assistiram a um concilio
da Igreja no Norte da África poderíam ter difundido esse tipo de tradução.
225
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
A base para essa opinião encontrava-se em EvPd 4,10, onde “o Senhor” não sentiu
dor quando foi crucificado. Quase sempre, então, essa passagem era interpretada
como se refletisse a teologia atribuída a Cerinto (Irineu, Contra as heresias I,xxvi,l),
pela qual o ser divino (Cristo) que desceu sobre Jesus no batismo se retirou dele
antes que ele morresse. E ssa análise tornou difícil para muitos biblistas atribuir
originalidade ou prioridade à redação do grito mortal em EvPd. Hoje, entretanto,
essa interpretação docética do EvPd está, em grande parte, abandonada.73 A des
crição de que Jesus não sentiu nenhuma dor é considerada um toque martirológico
que mostra a bravura daquele que está prestes a morrer e se reconhece que a
interpretação do grito mortal por Cerinto é muito improvável, pois está claro que
Jesus permanece divino depois que o “poder” o deixou (ver EvPd 6,21; 10,40).
Consequentemente, a decisão a respeito das três possibilidades relacionadas acima
tem de ser feita em outras bases.
226
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
dominou fortemente toda a Judeia (EvPd 5,15a), isto é, em grande parte a mesma
sequência de Marcos/Mateus, embora o EvPd contenha uma descrição muito mais
dramatizada (EvPd 5,15b-18) que a encontrada em Marcos/Mateus e a oferta de
vinho avinagrado venha antes das palavras de Jesus, e não depois delas. EvPd
5,19 relata que o Senhor “bradou, dizendo” com o emprego do mesmo grego de
Mt 27,46 (mas sem “um forte grito” ). Na citação das palavras de Jesus, o EvPd
permanece próximo de Marcos/Mateus e/ou da LX X na escolha do verbo katalei-
pein, que não difere em sentido de seu egkataleipein. Os dois pontos que precisam
ser explicados quando se supõe a dependência do EvPd de Marcos/Mateus são as
mudanças, no EvPd, de pergunta para declaração'0 e de “ Meu Deus, meu Deus”
para “ Meu poder, Ó poder”. Como a pergunta em Marcos/Mateus já subentende
que um abandono aconteceu, a mudança para “tu me abandonaste” no EvPd não
é muito significativa, exceto na medida em que uma atitude mais indefinida para
com a citação exata da Escritura (SI 22,2) é uma pergunta no TM e na LXX. A
mudança deliberada de “ Deus” para “poder” é a verdadeira questão. A cristologia
do EvPd é extremamente alta (por exemplo, nunca se refere a “Jesus”, mas sempre
a “o Senhor” ; pensando na figura de Jesus ressuscitado com a cabeça mais alta que
os céus [EvPd 10,40]); assim, o autor talvez achasse ofensiva a ideia de que Deus
abandonou Jesus. Entretanto, essa mesma explicação choca-se com uma explica
ção frequente da razão pela qual o EvPd se lembrou de “poder” como substituto
de “ Deus”, a saber, que era um título para Deus, como em Mc 14,62 e Mt 26,64,
onde Jesus fala do Filho do Homem sentado à direita “do Poder” (Lc 22,69: “do
poder de Deus” ).*76 Ao se considerar o uso de “ poder” como alteração deliberada
de Marcos/Mateus e da LX X, a fim de fazer o fato de Jesus ser abandonado menos
ofensivo, é preciso interpretar o termo literalmente.
‘5 Na verdade, é possível ler a forma verbal no EvPd como pergunta, mas não há razão gramatical para
fazê-lo, como há em Marcos/Mateus.
76 Deve ser mencionado que “ meu Poder” como referência a Deus é mais desajeito que “o Poder” .
227
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali perto
' Em meados do século II, Justino talvez estivesse polemizando contra um entendimento errôneo da perda
de dynamis quando escreveu que Jesus já tinha o poder quando nasceu (Diálogo lxxxviii,2) e que algum
poder oculto de Deus lhe pertencia em sua crucificação (Diálogo xlix,8).
8 Relatado por T. Baarda, “A Syriac Fragment of Mar Ephraem’s Commentary on the Diatessaron” , em
NTS 8,1961-1962, p. 287-300. esp. 290.
228
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
Com certeza, Mateus e o EvPd tinham em mente este Salmo, pois ambos
mencionam fel,*80 o outro componente do Salmo além do vinho avinagrado. E plau
sível também que o Salmo seja o que Jo J9 ,28-30 tem em mente: ali, o “ Tenho
sede” de Jesus está explicitamente colocado no contexto da conclusão da Escritura;
e depois de beber o vinho, ele diz: “ Está consumado”. Embora Marcos seja muito
menos específico, o contexto todo de Mc f 5,36 faz eco a passagens das Escrituras,
inclusive SI 22,2. Somente a descrição lucana da oferta de vinho avinagrado não
dá ao leitor nenhuma indicação de que o Salmo está sendo cumprido: em Lc 23,36,
em meio aos três escárnios de Jesus na cruz, o vinho avinagrado lhe é oferecido
pelos soldados (romanos). (A dificuldade de relacionar Marcos e Lucas a SI 69,22
sugere que a cena não foi inventada por meio de reflexão nesse Salmo.) Ao mudar
de lugar a ação que em Marcos estava colocada imediatamente antes da morte de
Jesus, Lucas desiste de alguns de seus simbolismos manifestos.
‘9 Oxos era vinho tinto amargo ou vinagre barato, diferente do oinos oferecido anteriormente, que fora
misturado com mirra ou fel, e mencionado respectivamente (e só) em Mc 15,23 e Mt 27,34. Ver § 40,
#2, acima. E difícil decidir traduzir oxos como “ vinagre” ou como “vinho” . A escolha depende de o
elemento principal ser escárnio ou bebida. Em SI 69,22, usei “vinagre” porque o escárnio é o tema
principal; decidi não criar parcialidade para com a situação dos Evangelhos e usei “vinho avinagrado”
do princípio ao fim.
80 Mt 27,34 (misturado com oinos); EvPd 5,16; ver as diferenças em § 40, #3.
229
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
escárnio visível. Talvez isso aconteça porque João é o que melhor mistura a oferta
de vinho ao tema, e consequentemente sacrifica um dos aspectos originais do gesto.
81 Não está claro como o grito a Elias (Mc 15,35) origina-se de ouvir Jesus citar SI 22,2 (Mc 15,34) ou por
que (erroneamente) ouvir um grito a Elias faria alguém oferecer vinho avinagrado a Jesus (Mc 15,36a)
ou se e por que essa oferta está envolvida em ver se Elias vem ou não descer Jesus.
82 Não acho persuasiva a tese de Matera (Kingship, p. 29-32), segundo a qual havia três tradições indepen
dentes (citação de Salmo, oferta de vinho, Elias). Em Marcos/Mateus, EvPd e João (assim, em quatro de
cinco de nossos testemunhos), uma citação de Salmo de morte (com redação variante) está relacionada à
oferta de vinho avinagrado e essa conjunção pode bem representar a mais antiga tradição identificável.
230
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte
tendo enchido uma esponja com vinho avinagrado, tendo-a posto em um caniço,
estava lhe dando para beber” (isto é, o que agora está em Mc 15,36a), não havería
problema. Concluir-se-ia que essa era uma referência discreta a SI 69,22, dando
base bíblica ao escárnio do justo pelos inimigos. Os problemas são causados pelo
que Mc 15,35 realmente relata imediatamente depois de Jesus bradar as palavras
de SI 22,2, a saber: “ E alguns dos circunstantes, tendo ouvido, estavam dizendo:
‘Olhai, ele está gritando para Elias” ’. Esse equívoco é reiterado em Mc 15,36b:
“ Vejamos se Elias vem descê-lo”. 0 primeiro problema é por que o “Eloi, Eloi,
lam a sabachthani” de Jesus leva os circunstantes a concluírem que ele clamava
por Elias. 0 segundo problema é como o equívoco deles se relaciona com alguém
correndo e pegando vinho avinagrado para oferecer.
Mateus, que ao que tudo indica sabia aramaico e também hebraico, talvez já
percebesse o problema; de fato, o Eli que ele usa ao transcrever o nome de Deus,
além de introduzir nas palavras aramaicas de Jesus uma designação de Deus
hebraica mais tradicional (ver acima, sob “ Redação do grito mortal de Jesus” ),
proporciona uma forma de tratamento que é mais plausível os circunstantes terem
entendido erroneamente como o nome do profeta ’Eltyâ .84 A esse respeito, alguns
83 Rehm (“Eli” , p. 276-277) argumenta, baseado na analogia de outros nomes próprios abreviados, que o
já abreviado 'Eltya poderia ter sido mais abreviado para 'Eli. Ver a opinião de Kutscher na nota a seguir.
M Guillaume (“Mt. xxvii” ) leva isso mais adiante quando argumenta que o sufixo possessivo da primeira
pessoa em “ meu Deus” , embora escrito iy (transcrito í), era na verdade pronunciado iya, como o sufixo
semítico antigo escrito dessa maneira. Essa perspectiva é contestada por E. Kutscher, The Language
and Linguistic Background of the Isaiah Scroll (1Q Isa“), em Studies on Texts of the Desert of Judah 6,
231
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Leiden, Brill, 1964, p. 181-182. A explicação que Kutscher dá do texto mateano é que o nome de Elias
era pronunciado 'Eli como em inscrições judaicas em Roma.
a’ Por exemplo, como, então, se explica a redação de Marcos? E preciso supor que alguém (Marcos ou um
copista mais tardio) mudou Eli, a transliteração hebraica que era mais original (quer a tenha encontrado
em Mateus, quer em uma tradição pré-marcana) e fazia mais sentido como base para o equívoco de Elias,
para a transliteração aramaica que agora se encontra em Marcos, a saber, Eloi. Por quê? Foi com base
no princípio de que Marcos sempre usa transliterações aramaicas? Acho tal abordagem implausível.
Alguém (Marcos ou um copista) que conhecia esse tanto de semítico teria sido bastante perceptivo para
saber que estava produzindo uma confusão a respeito do equívoco de Elias.
8I’ 0 fato de Marcos ter preservado algumas palavras aramaicas não responde a essa pergunta. Uma de
suas seis transliterações aramaicas (nota 62, acima) é topônimo; duas são fórmulas de cura que foram
memorizadas em aramaico por cristãos de língua grega (já que eram consideradas possuidoras de poder
de cura como palavras exóticas); duas outras são fórmulas de oração. Para dar um exemplo de como
uma pessoa pode imitar fórmulas de outra língua que não fala nem lê, quando a missa era celebrada em
latim, católicos romanos das mais variadas línguas usavam e entendiam Dominus vobiscum sem saber
latim. Do mesmo modo, muitos dos judeus de hoje sabem algumas fórmulas de oração hebraica sem ter
a capacidade para falar ou ler hebraico.
232
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
8‘ Ver Cohn-Sherbok, “Jesus’ Cry”; Gnilka, “ Mein Gott” . Uma baraita ou tradição mais antiga em TalBab Baba
Qamma 60b diz: “Quando cães uivam, o anjo da morte chega à cidade; se os cães fazem travessuras, Elias,
o profeta, vem à cidade” . TalBab Abada Zara 17b e 18b ligam Elias e a libertação do jugo dos romanos.
88 O substantivo phone é usado para descrever o grito de Jesus em Mc 15,34; o verbo phonein é usado em
Mc 15,35: “ Ele está gritando para Elias” . Embora haja quem entendesse que isso significa “ Ele está
chamando por Elias” , isso normalmente exigiría prosphonein.
233
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
escárnio de Jesus: “ Vejamos se Elias vem descê-lo” (Mc 15,36b), do mesmo modo
que algumas horas antes eles tinham zombado de Jesus: “desça da cruz” (Mc 15,32;
ver Mc 15,31). Mateus aumenta a hostilidade do escárnio fazendo alguns dos que
ali estão de pé empregar o desdenhoso houtos com referência a Jesus: “ Este sujeito
está gritando para Elias” (Mt 27,47). As palavras que usam para lançar dúvida
sobre Jesus são: “ Vejamos se Elias vem salvá-lo” (Mt 27,49), que fazem eco a um
escárnio anterior dirigido a Jesus: “ Salva-te a ti mesmo, se tu és Filho de Deus”
(Mt 27,40; também Mt 27,42: “A si mesmo ele não pode salvar” ). Ironicamente,
embora Elias não intervenha a favor de Jesus, logo Deus o fará, e de forma muito
visível, que todos verão.
234
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte
Aqui, mais uma vez, Mateus, que mudou o Eloi marcano para Eli, talvez
porque reconhecesse que Eli não seria facilmente confundido com o nome do
profeta Elias, procura endireitar o tema que encontrou em Marcos. Em Mt 27,48,
ele deixa claro que quem corre para pegar o vinho é um dos que estão de pé ali,
que pensou estar Jesus gritando por Elias (e assim, consciente ou inconsciente
mente, impede a interpretação dos soldados romanos). 0 corredor já não é quem
fala; mais exatamente, “os restantes disseram”. Os interlocutores apresentam uma
91 Lee (“Two” , p. 36) faz os circunstantes falarem, supondo (de maneira implausível) que Marcos foi com
posto em semítico e que o watv final da forma plural ’mrw se perdeu por haplografia, ao ser confundido
com a inicial nun do subjacente “ Sair” jussivo. Esses aperfeiçoamentos eruditos de Marcos remontam
à Antiguidade, pois as versões siríacas de Mc 15,36 leem um plural para “dizendo” , em vez do bem
atestado singular.
92 MGNTG, v. 1, p. 175. Taylor (Mark, p. 595) opta por isso e a tradução de Moffatt é parecida: “ Vamos,
vejamos” .
235
Q uarto ato •Jesus é crucificado e morre no Gólgota. É sepultado ali p e r t o _______________
razão para não dar algo de beber a Jesus. Consequentemente, agora aphete pode
ser traduzido literalmente: “ Deixai-o [= Jesus] em paz”. Os outros observadores
(judaicos) pensam que o oferecedor voluntário de vinho está, de forma perturbadora,
interferindo ou mesmo fazendo alguma coisa hostil a Jesus (fazendo eco à atmosfera
hostil de SI 69,22, que a menção de fel em Mt 27,34 mostra estar na lembrança do
evangelista) e talvez tentando apressar a morte de Jesus.93 Eles querem que Jesus
seja deixado em paz para ele sobreviver o suficiente para eles verem se a oração a
Elias é respondida.
91 Taylor (Mark, p. 596) chama a atenção para os indícios dados por Goguel de uma crença de que a morte
de um crucificado era apressada fazendo-o beber.
236
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
94 Outra diferença secundária é que João menciona “ sangue e água” , enquanto o adendo mateano traz
“água e sangue” . Foi essa mudança efetuada em Mateus sob a influência de ljo 5,6: “Jesus Cristo veio
[...] por água e sangue” ?
Büchele (Tod, p. 52-53) argumenta que Lucas eliminou o chamado por Elias porque, para Lucas, o pró
prio Jesus tinha o papel de Elias (assim também Bomkamm, Conzelmann, Schreiber). Isso não está tão
claro; afinal de contas, uma referência lucana à vinda de Elias aqui teria sido uma inclusão com o papel
237
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
de João Batista como Elias no início do Evangelho (Lc 1,17). Parece que a tese de que Lucas suprimiu
o episódio de Elias porque não se encaixava em sua descrição de Jesus como mártir (W. Robinson, Sch-
neider) depende de interpretar o episódio positivamente, como se os participantes quisessem que Elias
ajudasse Jesus. Se eles fizeram a referência a Elias em escárnio, o episódio se adapta muito bem a uma
apresentação de mártir. Mais simplesmente, Lucas pode ter omitido a referência porque não entendia
como Marcos podia extrair um chamado a Elias da citação do Salmo por Jesus.
96 Mesmo um “forte grito” (phone megale) é ousado para Lucas. Jesus, que reza com frequência, nunca rezou
antes com tanta veemência, pois até agora, um “forte grito” é a marca de exclamações por demônios,
um leproso, a multidão dos discípulos e os inimigos de Jesus. Contudo, palavras da raiz phon- não são
estranhas à NP lucana (Lc 22,60.61; 23,20.21.23) e maior ênfase é apropriada para a última palavra de
Jesus.
9‘ A combinação cognata “clamar com um forte grito” ocorre também em At 16,28, com referência a Paulo.
* O verbo paratithenai significa “ colocar voltado para, colocar ao lado de, entregar” . Abramowski e Goodman
238
§42. Jesus crucificado, terceira parte: Ú ltim os acontecimentos, m orte
31, o salmista reza para ser libertado dos inimigos e suas armadilhas — rezando
com convicção, pois o versículo citado continua: “Tu me redimes, Ó Senhor”. A
libertação de inimigos hostis é também o tema no SI 22 citado pelo Jesus marcano;
mas Marcos atribui a Jesus o versículo mais desesperado desse Salmo, enquanto
Lucas atribui-lhe um versículo confiante. Ouvimos em Lucas a respeito dos escri-
bas e chefes dos sacerdotes que procuram pôr as “ mãos” em Jesus (Lc 20,19; ver
Lc 22,53) e Jesus predisse que o Filho do Homem seria “entregue” (paradidonai)
nas “mãos” de homens pecadores (Lc 9,44; ver Lc 24,7); mas o desenlace da NP
acontece quando Jesus proclama que é nas “mãos” do próprio Pai que ele “coloca”
(paratithenai) seu espírito, isto é, tudo o que ele é e tem. “Espírito” não é sim
plesmente um componente parcial do ser humano (como em “alma” e corpo); é a
pessoa viva, ou poder de vida que transcende a morte. No caso de Jesus, entretanto,
“espírito” transcende as definições antropológicas usuais, pois ele foi concebido
pelo Espírito que desceu sobre Maria (Lc 1,35) e em seu batismo, o Espírito Santo
desceu sobre ele em forma corpórea (Lc 3,22), de modo que ele estava cheio do
Espírito Santo (Lc 4,1) e se movimentou pela Palestina no poder do Espírito (Lc
4,14). Quando “entrega” seu espírito ao Pai, Jesus leva de volta ao lugar de origem
sua vida e m issão." Se Lucas dramaticamente mudou o tom teológico da cena da
morte ao preferir SI 31,6 para as últimas palavras de Jesus, em vez da escolha
marcana de SI 22,2, outra mudança significativa é visível quando comparamos a
saudação do Jesus marcano (“ Meu Deus” ) a “ Pai” do Jesus lucano (também Lc
10,21; 11,2), saudação pela qual a citação do Salmo é personalizada. Em parte, a
escolha lucana de “ Pai” aqui é por meio de inclusão com as primeiras palavras de
Jesus em Lc 2,49: “ Não sabíeis que devo estar na casa de meu P ai”. Entretanto,
por comparação com a NP marcana, há outra inclusão. O movimento na oração
do Jesus marcano, desde a cena inicial no Getsêmani, onde ele usou “ Pai” (Mc
14,36), até a cena da morte, onde ele usa “ Meu Deus” (Mc 15,34), é de crescente
alienação. Mas o Jesus lucano é de uma consistência total em toda a NP, rezando ao
“Pai” no início, no Monte das Oliveiras (Lc 22,42), e ao “ Pai” no fim, no lugar da
crucificação chamado Caveira. Na verdade, dentro do relato lucano da crucificação,*
(“Luke xxiii” ) descrevem discussões entre pessoas de língua siríaca (nestorianos, Efrém) a respeito de
como traduzi-lo, preferindo, por razões dogmáticas, “ recomendar” a “estabelecer” . Quanto a “Pai” , a
inclusão de um discurso direto pode ter sido catalisada por “ Ó Senhor” no segundo verso do versículo
do Salmo.
m Feldkamper (Betende, p. 277-279) é muito útil nesses pontos.
239
Q uabto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
há ainda outra inclusão: no exato momento em que está sendo crucificado, Jesus
rezou “Pai” (Lc 23,34) exatamente como faz no momento em que morre naquela
cruz — duas orações peculiares ao Jesus lucano.
ioo yer referências em St-B, v. 2, p. 269. TalBab Berakot 5a relata a máxima de Abaye segundo a qual, na
hora de dormir, mesmo o erudito deve recitar um versículo de súplica, por exemplo: “ Em tuas mãos
coloco meu espírito; tu me redimiste, Ó Senhor, Deus da verdade” .
240
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
24,49; At 1,4; ver At 1,7). E quando voltar como o Filho do Homem no final, ele
virá “ na glória do Pai” (Lc 9,26).
lm Há variada ordem de palavras nos melhores testemunhos textuais que apoiam eidos, “tendo conhecido” ,
em vez de idon, “tendo visto” , da tradição koiné. No que se segue, “já ” está ausente de alguns testemu
nhos e aparece em sequência variada em outros. Evidentemente, os copistas primitivos viram algumas
das dificuldades explicadas acima.
241
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
ele viu com o Pai antes de sua encarnação e, na verdade, antes do começo do mundo
(Jo 5,19; 8,28; 17,5). João deixa o leitor saber o que Jesus já sabia.
11)2 0 “ em parte” leva em conta a disputa erudita sobre o objeto no fim estar no plano cristológico (Becker)
ou no plano bíblico, ou nos dois planos. Ver o exame cuidadoso em Bergmeier, “TETELESTAF’.
242
§ 42 Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
“A mãe de Jesus e o discípulo amado” ) e fez deles “seus” que estavam habilitados a
se tornar filhos de Deus — desse modo cumprindo o propósito declarado no Prólogo
para a Palavra que se tornou carne (Jo 1,12).103
10,1 Em Ex 40,33, na conclusão da construção do tabernáculo, lemos: “ Moisés acabou [syntelein] todas as
obras” ; assim, há precedente bíblico para o instrumento escolhido de Deus “acabar” a obra que Deus
lhe deu para fazer.
1(M Em Mc 10,45, o Filho do Homem dá a vida (psyche) em resgate por muitos e assim é provável que esse
emprego da linguagem de Isaías tenha origens pré-evangélicas.
105 Contudo, porque acho que a oração de propósito também aponta para o que se segue, não concordo com
uma tradução que relacione “consumado” com “a fim de que” tão estreitamente, como faz 0 . M. Norlie
243
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
(Simplified New Testament, Grand Rapids, Zondervan, 1961): “Jesus, conhecendo que tudo havia sido
feito [tetelestai] para cumprir as Escrituras, disse...” .
1,16 Telos ocorre em Jo 13,1, que já mencionamos como paralelo inclusivo a Jo 19,28a: “ Ele agora mostrou
seu amor por eles até o fim” ,
244
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
Por que João não citou SI 22,16 literalmente, se era isso que ele pretendia?
Uma resposta possível é que o relutante salmista acusa Deus de tê-lo levado a essa
situação, enquanto João considera Jesus o Senhor de seu destino. Talvez Jesus
declarar “ Tenho sede” pouco antes de morrer signifique que ele está deliberada-
mente cumprindo a situação imaginada no Salmo, impressão harmoniosa com sua
afirmação em Jo 10,17-8, segundo a qual ele dá sua vida e ninguém a tira dele. Faz
também Jesus responsável pela reação em termos da oferta de vinho avinagrado
e qualquer cumprimento da Escritura nessa ação (talvez SI 69,22 e, além disso, o
tema do cordeiro pascal — ver adiante). Essa proposta de SI 22,16 como ponto de10
10‘ Jesus na cruz podia na verdade ter sede, mas com certeza João não descreve desinteressadamente uma
sede real. Ao buscar simbolismo, há quem encontre uma conexão com as palavras que Jesus disse à
Samaritana em um meio-dia anterior: “ Dá-me de beber” (Jo 4,6-7). A meu ver, a relação é obscura demais
para ser proveitosa.
245
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
108 Bomháuser (Death, p. 153), Hoskyns (John, p. 531, Beutler (“Psalm” , p. 54-56) e Witkamp (“Jesus”)
sugerem SI 42,3: “Minha alma [isto é, eu] tem sede de Deus, do Deus vivo” . Outro candidato é SI 63,2:
“Ó Deus (tu és) meu Deus, que eu procuro; por ti minha carne anela e minha alma tem sede”. Não é
possível excluir essas possibilidades, principalmente porque João pode ter tido um senso coletivo de
completar a Escritura. Bampfylde (“John”) argumenta que a Escritura é Zc 14,8 (em combinação com
Ez 47), que reforça Jo 7,38: “Como a Escritura diz: ‘De dentro dele correrão rios de água viva’” (ver
BGJ, v. 1, p. 320-323). Há grande probabilidade de alguma forma desta última proposta ser aplicável
a Jo 19,34 (embora seja discutível que Escritura precisamente fundamenta Jo 7,38), mas muito menor
probabilidade do que é apropriado aqui.
109 0 paralelo está claramente entre João e a segunda oferta em Marcos/Mateus que consistia em oxos. Ver
minha avaliação da estranha opinião de Freed, segundo a qual João apresenta uma interpretação da
primeira oferta de Marcos em BGJ, v. 2, p. 928.
11(1 É interessante que, embora divergindo de muitas maneiras ao descrever sua única oferta de vinho (oxos),
Lucas e João usam o verbo prospherein (“ trazer para a frente” ) para descrever a ação.
246
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
111 Parte da diferença entre esses escritos origina-se de uma imagem diferente da altura da cruz. A crux
humilis tinha pouco mais de dois metros de altura. Será que João está pensando na crux sublimis, mais
alta?
112 Já os rabinos discutiam o que a Mixná queria dizer com hissopo; em TalBab Sabbat 109b, os dois can
didatos propostos são artemísia e manjerona, com preferência pela última.
247
QyftRTo ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
manjerona síria,113 um arbusto que alcança quase um metro de altura, com caule
relativamente grande e ramos com folhas e flores que são altamente absorventes
e, portanto, apropriadas para aspersão (Lv 14,4-7; Nm 19,18). Nada nos relatos
bíblicos sugere que esse hissopo podia aguentar o peso de uma esponja encharcada.
De diversas maneiras, os biblistas procuram evitar essa dificuldade e justificar a
exatidão do relato joanino.114
1,3 Alguns autores (Galbiati, “ Issopo” , p. 393) diferenciam duas espécies, sendo a manjerona (Origanum
majorana) uma variedade menor da planta, de jardim.
114 Há quem afirme que, depois de algum tempo, o talo da manjerona fica lenhoso; Nestle (“Zum Ysop” )
argumenta que havia uma haste alta de hissopo perto da cruz e menciona uma aldeia da Transjordânia com
o nome de “ Casa de Hissopo” (Josefo, Guerra Vl,iii, 4; #201). Ainda assim, muitos duvidam de que ela
fosse suficientemente firme. Milligan (“ St. John’s” , p. 29) levanta a possibilidade de, tanto nas referências
veterotestamentárias como aqui, um feixe de hissopo ser amarrado a uma vara; contudo, dificilmente
haveria esse instrumento preparado no lugar da crucificação e a espontaneidade da ação não admite a
preparação de um. Outros sugerem que, neste caso, “ hissopo” se refere a Sorgum vulgare L., que alcança
o comprimento de quase dois metros, e argumentam que esse é o caniço de Marcos/Mateus. Esta é apenas
uma de cerca de dezessete outras plantas que foram propostas (ver Wilkinson, “Seven”, p. 77).
n'’ Nestle (“Zum Ysop” , p. 265) lembra que o hissopo servia de remédio e componente alimentar. Plínio
(História Natural xiv,19; #109) descreve uma bebida feita jogando três onças de hissopo da Cilícia em
um galão e meio de vinho. Galbiati (“Issopo” , p. 397-400) afirma que o grego original de João tinha
hissopo e caniço (kalamos), com o hissopo usado para amarrar a esponja ao caniço. Depois, o hissopo
foi entendido erroneamente como condimento.
1lfl Por haplografia, hyssopoperithentes tomou-se hyssoperithentes. Acho improvável a sugestão de G. Schwarz
(“ Hissopo”), de que um aramaico raro e só mais tarde atestado ’ez ('izza'), “ vareta” (= Marcos/Mateus,
“caniço”), foi interpretado erroneamente em João como ’ezôb, “ hissopo” .
248
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte
117 A leitura de escribas mencionada acima, na qual o vinho avinagrado é misturado com hissopo, é reco
nhecimento implícito disso.
1,8 Milligan (“St. John’s” , p. 25-26) acrescenta outro aspecto da Páscoa. Ele tenta afirmar que não era vinagre
nem vinho o que foi oferecido a Jesus, e que vinagre era usado no ritual da Páscoa. Na narrativa joanina,
seria possível pensar que os soldados teriam vinagre durante seu período de guarda aos crucificados? A
ligação do vinagre com a Páscoa é altamente duvidosa.
249
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
provocou essa oferta ao dizer “ Tenho sede”, mas também que ele tomou o vinho
ofertado quando o estenderam até sua boca — o que é mencionado só em João. Em
Jo 18,11, Jesus disse que queria beber o cálice que o Pai lhe dera; quando bebe
o vinho oferecido, Jesus completa esse compromisso feito no início da NP. Quando
bebe o vinho da esponja posta em hissopo, Jesus simbolicamente desempenha o
papel bíblico do cordeiro pascal profetizado no início de seu ministério, e assim
termina o compromisso feito quando a Palavra se fez carne.
119 Acho duvidosa a tentativa de Robbins (“ Crucifixion” , p. 39) de encontrar antecedentes bíblicos para
este uso de telein no duplo syntelein de Jó 19,25-27; o sentido das duas passagens é muito diferente.
1211 A respeito do Jesus mateano, Sênior (Passion [...] Matthew, p. 141) escreve: “ E com o grito, um último
ato de integridade: o sagrado sopro de vida do Filho de Deus é devolvido em confiança ao Deus que o
tinha dado” . Para mim, essa é teologia lueana. não mateana, da morte.
250
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
Em João, Jesus, que veio de Deus, completou a missão que o Pai lhe deu,
de modo que sua morte é uma decisão deliberada de que agora tudo esteja con
sumado, tomada por alguém que está no controle. Seu “Tenho sede”, que faz eco
a SI 22,16, provoca a oferta de vinho avinagrado no hissopo, cumprindo não só SI
69,22, mas também o tema do êxodo de aspergir o sangue do cordeiro. Jesus disse
que o testemunho dado em seu nome pelo Pai (Jo 5,37) estava em harmonia com
as Escrituras, que também dão testemunho dele (Jo 5,39). Consequentemente, seu
“Está consumado” refere-se à obra que o Pai lhe deu para fazer e ao cumprimento da
Escritura. Como “ Cordeiro de Deus”, ele tirou o pecado do mundo, desse modo pre
enchendo e completando o papel do cordeiro pascal na teologia veterotestamentária.
Mt 27,50: Mas Jesus, novamente tendo berrado [krazein] com um forte grito,
soltou [aphienai] o espírito.
Cada notícia da morte consiste em duas partes: primeira, uma oração par-
ticipial introdutória, em quatro dos cinco testemunhos, envolvendo fala; segunda,
um verbo principal descrevendo a morte.
251
Q uarto « o •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
O “forte grito” marcano sem palavras antes da morte tem sido assunto de
muita especulação. Críticos das fontes se perguntam se essa não seria a reminis-
cência mais antiga, de modo que todas as últimas palavras (citações de Salmos)
atribuídas a Jesus foram adições subsequentes. Médicos discutem se isso é
compatível com asfixia como causa fisiológica da morte de Jesus (Ver esses dois
pontos na a n á l is e abaixo.) Entretanto, há sérias dificuldades ao se apelar à ex
pressão marcana para decidir essas questões. Vimos acima (sob “ Sentido do grito
mortal de Jesus” ) que “forte grito” é um dos aspectos escatológicos que cercam a
morte de Jesus e, portanto, não é apenas uma reminiscência concreta.121 A dupla
referência a um “forte grito” em Mc 15,34.37, que são também os dois versículos
onde aparece o nome de Jesus, reflete a predileção marcana por duplicação que
já encontramos (cf. as duas referências a “eles crucificam” em Mc 15,24.27). Na
verdade, é apropriado perguntar se, com seu particípio aoristo “tendo soltado um
forte grito”, Marcos imagina um grito independente daquele que ele expressou em
Mc 15,34 (com “ Meu Deus, meu Deus, por que razão me abandonaste?” ). Ou se
depois de uma interrupção (a oferta de vinho e o equívoco com Elias), Marcos não
está simplesmente resumindo assim: “ Mas Jesus, tendo soltado aquele forte grito
[em Mc 15,34], expirou”. Vimos em Mc 15,1 um particípio aoristo marcano, “ tendo
feito sua consulta”, que provavelmente era apenas continuação das deliberações
jurídicas em Mc 14,53-64 depois da interrupção proporcionada pelas negações de
Pedro em Mc 14,66-72. Se para Marcos não houve nenhum segundo forte grito,
mas só uma referência ao primeiro, prescindimos da teorização quanto ao caráter
pré-marcano do grito sem palavras emitido por Jesus antes de morrer.
121 Naturalmente, um estertor pode ter vindo dos lábios de Jesus antes que ele morresse, mas o “forte grito”
marcano não é simples relato disso.
122 Procedimento incomum, palin ocorre dezessete vezes em Mateus, vinte e oito em Marcos.
252
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
Salmo. Quando clama novamente antes de morrer, Jesus expressa sua “fé confiante
e triunfante”. A introdução mateana de krazein (“ berrar” ) faz eco a sentimentos
como os de SI 22,6 (“A ti gritaram e foram salvos” ) e SI 22,25 (“ Mas quando ele
gritou para Ele, Ele o ouviu” ). Não só discordo dessa interpretação positiva do
significado fundamental do uso de SI 22,2 pelo Jesus mateano, mas afirmo que,
se krazein vem a Mateus do Salmo, é preciso derivá-lo do versículo imediatamente
depois de SI 22,2: “ Eu chamo de dia e tu não respondes” (SI 22,3). A meu ver,
Bieder ( Vorstellung, p. 52) está mais próximo da verdade quando interpreta esse
grito mateano como semelhante ao grito marcano, emergindo não da vitória, mas
do abismo de se sentir abandonado.
Embora esteja seguindo Marcos, Lucas muda “tendo soltado um forte grito”
para “ tendo dito isso”. Como Lucas já usou a expressão “forte grito”, o fato de não
reproduzi-lo uma segunda vez não se origina de aversão por ele. Se, como Mateus,
Lucas interpretou Marcos (provavelmente de maneira errada) com o significado
de um segundo forte grito, talvez ele esteja mais uma vez evitando, de maneira
característica, a duplicação marcana. Ou Lucas pode ter reconhecido que Marcos
apenas se referia ao primeiro grito retomado depois de uma interrupção e achou
a continuação confusa e desnecessária. Como Lucas não tinha vinho nem a inter
rupção com Elias, ele se referiu a esse grito mais simplesmente: “tendo dito isso”.
253
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
123 Por si só isso não basta para mostrar que todos os evangelistas queriam enfatizar o aspecto voluntário da
morte de Jesus. Taylor (Mark, p. 596) encontra um elemento voluntário em Mateus e João, mas não em
Marcos.
254
§ 42.Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
124 Outro testemunho é Hebreus. Em Hb 9,1 lss, parece que Jesus passa da cruz diretamente para o lugar
santo celeste com seu sangue; mas Hb 13,29 refere-se à ressurreição.
255
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Análise
256
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Ú ltim os acontecimentos, m orte
sucinto: na nona hora, Jesus, tendo soltado um forte grito, expirou (Mc 15,34a.37).
Como alhures, Pesch (Markus, v. 2, p. 491) atribui a íntegra de Mc 15,33-39 à NP
pré-marcana, e a divide (como sempre) em três subseções (33,34-36,37-39). Para
Bultmann (BHST, p. 273-274), a seção toda é secundária e “fortemente adulterada
pela lenda”, com a possível exceção do v. 37. Taylor (Mark, p. 651) considera os vv.
34-37 parte da narrativa original (A), com o v. 33 como matéria B. Muitos biblistas
consideram os vv. 34 e 37 (Jesus falando ou agindo com um forte grito) duplicata,
só um dos quais é original, ou talvez como moldura marcana para cercar material
mais primitivo nos vv. 35-36. Matera (Kingship, p. 57) considera os vv. 35-36,
parênteses cercados pelos vv. 34 e 37, o terceiro escárnio relatado em Marcos, em
seguida aos feitos pelos soldados romanos no pretório (Mc 15,16-20a) e pelos três
grupos que vieram ao Gólgota (vv. 27-32). (Tenho de comentar que o escárnio em
Mc 15,36 é de intensidade muito menor que os dois escárnios precedentes, e não
completamente paralelo.) Dentro de Mc 15,35-36, Matera encontra outros parênteses
pela referência a Elias nos dois versículos. (Novamente comento que a primeira
referência a Elias está no fim do v. 35 e, portanto, certamente não lidamos com
um início/conclusão. Além disso, as referências a Elias não são repetitivas, como
o são as referências a “forte grito”, mas estão em uma descrição progressiva. São
erroneamente descritas como parênteses.) Embora eu ache a estrutura de Matera
forçada, acho-o mais plausível quando sugere que Marcos encontrou o uso do SI 22
já em voga,125 e elaborou esse uso em uma narrativa coerente. Parece que Lührmann
(Markus, p. 263) considera antiga grande parte do material na passagem, embora
fosse Marcos quem estabeleceu a relação entre Elias e o resto.
123 Contudo, na p. 60 ele fala do uso primitivo do Salmo na “ apologética” da Paixão. Mais plausível seria que
o uso primitivo refletisse uma tentativa pelos cristãos de reconciliar suas crenças com as expectativas que
a Escritura lhes ensinou — não, a princípio, apologética contra os outros, mas para a autocompreensão.
257
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
258
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Ú ltim os acontecimentos, morte
em Marcos é defendida como mais antiga que a forma em Mateus. Não raro, então,
afirma-se que “ Eloi , Eloi, lam a sabachthani?" de Marcos é a mais antiga tradição
cristã reconhecível do último grito de Jesus e até que Jesus o pronunciou. Não se
pode ter por certa nenhuma dessas duas afirmações, por isso a questão precisa ser
examinada. Embora eu vá trabalhar com a hipótese de desenvolvimento evangélico
resumida nos dois parágrafos anteriores, muitos dos pontos a serem examinados
abaixo têm validade, mesmo que a hipótese seja rejeitada.
A citação de SI 22,2 pode ser a mais antiga tradição relatada nos Evangelhos;
mas foi essa citação produto da reflexão cristã sobre a crucificação ou se originou
do próprio Jesus? Não é inconcebível que, historicamente, um Jesus torturado pelos
sofrimentos expressasse seu desespero usando a oração de um Salmo que descrevia
a condição desesperançada de um justo sofredor. Como a oração citada por Jesus
era o verso inicial do Salmo (SI 22,2), os cristãos seguiram a orientação de Jesus
procurando passagens do Salmo que interpretassem os outros acontecimentos da
crucificação (ver APÊNDICE VII, B2).
126 Zilonka (Mark, p. 46-47) relaciona seis argumentos que apoiam a historicidade da citação de SI 22,2 em
Mc 15,34 como palavras reais de Jesus, argumentos propostos por biblistas católicos romanos do início
do século XX; mais adiante (p. 169), ele lembra que, na década de 1970, nenhum dos seis sobrevivera
ao impacto da crítica histórica moderna.
259
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
127 Floris (“Abandon” , p. 284) afirma que o Salmo 22 reflete não a crise de Jesus quando ele enfrentou a
morte, mas a crise de seus discípulos quando procuraram entender como ele podería ter tido tal morte
no plano de Deus.
128 Tem sido chamada a atenção para Midraxe Tehillim sobre SI 22,2 (seção 6). Ele declara que nos três dias
do jejum decretado em Est 4,16 (jejum que Midraxe Rabbah sobre a passagem de Ester associa com a
Páscoa), devia-se dizer no primeiro dia: “Meu Deus” , no segundo dia: “ Meu Deus,” e no terceiro dia:
“ Por que me abandonaste?” . Mas esse é um testemunho tardio demais para nos permitir apelar a esse
costume a fim de explicar por que um cristão primitivo colocaria SI 22,2 nos lábios de Jesus.
260
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte
2 . G rito sem palav ras . Que Jesus soltou um forte grito está atestado de várias
maneiras pelos três sinóticos e o EvPd. Em todos esses testemunhos, palavras são
então produzidas para o grito; mas, em Mc 15,37 e Mt 27,50, há uma segunda refe
rência (em continuação?) a um “forte grito”, desta vez sem palavras. E um grito sem
palavras a memória mais antiga, de modo que as palavras do Salmo relatadas nos
Evangelhos representam suplementação cristã mais tardia? Entre os que defendem
uma forma dessa possibilidade estão Bacon, Bertram, Boman, Bultmann, Hauck,
Loisy, Pallis, Strathmann, Wansbrough e J. Weiss. Ao contrário de 1 acima, aqui
uma subsequente produção de palavras estaria em harmonia com o que se julga ter
sido original, não contra a direção dele. Encontra-se apoio para a proposição em Hb
5,7 de que faz Jesus proferir “forte clamor [...] àquele que tem o poder de salvá-lo
da morte”, mas não relata nenhuma palavra nesse clamor. Rejeito a afirmação de
que um homem crucificado agonizante não teria forças para pronunciar palavras,
mesmo que pudesse emitir um estertor ou arquejo — argumento às vezes usado
para apoiar essa proposição.129 Ocasionalmente, veem-se outros que alegam ser a
atribuição de um berro ou grito mortal a Jesus menos teológica que fazê-lo recitar
uma passagem de Salmo e, portanto, talvez seja mais histórica. Isso deixa passar o
fato relatado no COMENTÁRIO, segundo o qual “ um forte grito” tem tom apocalíptico
e, assim, podia ser um dos sinais dos últimos tempos (como escuridão, rasgamento
do véu do santuário, terremoto, túmulos abertos) pelos quais os cristãos expunham
a significância da morte de Jesus (Schützeichel, “ Todesschrei” ).
120 Contudo, o fato de crucificados conseguirem falar e falarem antes de morrer (sob “ Sentido do grito mortal
de Jesus” , acima) nada faz para apoiar sugestões extravagantes na direção contrária, por exemplo, que
Jesus na cruz recitou todo o Salmo 22! (Holst, “Cry” , p. 287).
261
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
130 Que essa oração não seria inapropriada ao enfrentar a morte é afirmado por Léon-Dufour (“ Demier” , p.
678), que chama a atenção para a invocação do nome de Deus na Shema, a confissão piedosa judaica
recitada com mais frequência (“Ouvi, Ó Israel, o Senhor nosso Deus [’Elohênu], o Senhor é único”), e
para a tradição mais tardia de que, quando morreu, Aqiba disse: “ O Senhor é único” .
131 Uma transliteração marcana (ou pré-marcana) primitiva para o grego dizia Eli atha, traduzida para o
grego como theos mou ei sy (“Tu és meu Deus”) — o que se reflete na presença de só um theos mou no
Códice Vaticano. O ei sy se tomou eis ti, e o enigmático “ Meu Deus, por que razão” foi interpretado como
parte de SI 22,2 e completado na linguagem desse Salmo.
132 Alguns biblistas afirmam que João também fez isso, pois ligam “Tenho sede” com SI 63,2: “ Ó Deus, meu
Deus [...] de ti minha alma tem sede” .
133 Ver em § 5, dúvidas quanto ao uso na ceia da Páscoa dos Salmos de Hallel no início do século I, quando
Jesus morreu e/ou se Marcos esperava ou não que os leitores estivessem a par de tal costume.
262
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
134 No artigo “Autopsy” , que tem o subtítulo “Biblical Illiteracy Among Medicai Doctors” , D. E. Smith critica
de maneira devastadora Edwards et alli (um pastor metodista e dois profissionais da Clínica Mayo) pela
falta de crítica manifestada no artigo que escreveram em 1986: “On the Physical Death of Jesus” . Ele
pergunta (p. 14) como uma publicação científica, o Journal of the American Medicai Association pôde
publicar um trabalho que a imensa maioria de biblistas avaliaria imediatamente como ‘‘não científico” e
“pseudointelectual” . Smith é severo, mas expõe um problema real; ver as notas 138,139 e 141. Contudo,
as diretrizes de Smith (p. 4-5) quanto ao que é histórico (as decisões do Seminário de Jesus e a crítica de
P. Winter de que o que está descrito nos Evangelhos a respeito dos procedimentos legais judaicos não
corresponde ao ‘‘procedimento judaico normal”) precisam de mais profissionalismo do lado bíblico.
263
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
1,5 As respostas de Young a Sharpe e de Southerland a Sharpe e Young mostram a intensidade do debate
no início da década de 1930. Vê-se uma discussão médica rejeitada porque o médico não fez justiça à
declaração joanina de que Jesus entregou seu espírito.
136 Muito antes, S. Haughton, que era ministro e médico, afirmou (em F. C. Cook, org., The Speakers Com-
mentary on the New Testament, London, Murray, 1881, v. 4, p. 349-350) que Jesus morreu de asfixia e
também da ruptura do coração (Stroud).
264
§ 42, Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
1.7 Nessa teoria, quebrar as penas apressava a morte, porque então elas não podiam ser usadas para erguer
o peso do corpo.
1.8 Edwards (p. 1461) não exclui a desidratação e a parada cardíaca congestiva como possíveis fatores
colaboradores e na p. 1463, ele diz: “Continua pendente se Jesus morreu de ruptura cardíaca ou de in
suficiência cardiorrespiratória” . E provável que a água que fluiu da ferida feita pela lança correspondesse
a fluido seroso pleural e pericárdico (p. 1463). Assim, de algumas maneiras, apesar de sua tendência
principal para a asfixia, o artigo combina muitas das soluções do último século, inclusive algumas que
muitos consideravam felizmente descartadas.
1M A. M. Dubarle (EspVie 96, #5, Jan. 30, 1986, p. 60-62), em crítica mordaz, tem esperança de que, em
seu exercício da medicina, Gilly não cometa os numerosos erros que manifesta em todas as outras áreas
desse livro.
140 Resumos dessas proposições encontram-se em Wilkinson (“Physical” ) e Blinzler (Prozess, p. 381-384).
265
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
A meu ver, o principal defeito da maioria dos estudos que relatei até aqui é
eles terem sido escritos por médicos que não se ativeram a sua profissão e deixaram
um entendimento literalístico dos relatos evangélicos influenciar suas opiniões a
respeito da causa física da morte de Jesus. Não há indícios de que os evangelistas
sabiam alguma coisa sobre o assunto, e a discussão da causa da morte podería ser
mais bem conduzida simplesmente empregando o melhor do conhecimento médico
141 Seu artigo (“On the Physical”), escrito em associação com outros, dá com grande convicção, mas notável
falta de senso crítico, uma combinação de detalhes dos relatos bíblicos, a partir do Santo Sudário e de
manuais que tratam de práticas de crucificação. Seria preciso fazer advertências em quase todas as
direções.
142 Wilkinson (“Physical” , p. 104-105) explica isso muito bem. Bali & Leese (“ Physical” , p. 8) afirmam: “A
agonia mental, associada a choque oligoêmico produzido por lesão, podería ter sido combinação letal,
produzindo a morte repentina de Cristo por síncope cardíaca” .
266
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, m orte
para determinar como é provável que qualquer pessoa crucificada morresse (e não
citando um único detalhe bíblico como confirmação). O estudo recente por Zugibe
(“ Two” ), examinador médico e patologista, aproxima-se dessa meta. Ele contesta
a teoria de asfixia de LeBec, Barbet e outros, afirmando que os experimentos aos
quais eles recorreram consistiam em homens pendurados com as mãos quase
diretamente acima da cabeça. Ele conduziu experimentos com voluntários cujos
braços, em crucificação simulada, foram estendidos em um ângulo de 60° ou 70°
em comparação ao tronco do corpo, o que não resultou nenhuma asfixia. Ele afirma
que o choque causado pela desidratação e pela perda de sangue é a única explica
ção médica plausível para a morte de Jesus crucificado. Obviamente, os diversos
comentaristas médicos não chegaram a nenhuma certeza e, embora experimentos
em crucificação real talvez sejam o único meio de alcançar uma probabilidade mais
alta, acreditamos que esse barbarismo esteja agora seguramente restrito ao passado.
267
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
erro, foi ele que crucificaram”. Se circulava no século I, essa opinião pode ter sido
uma das razões de João ignorar a tradição de Simão e insistir que Jesus carregou
a cruz sozinho (§ 39).
Tomé, cujo nome João explica três vezes como “ Gêmeo” (Jo 11,16; 20,24;
21,2), era confusamente identificado no Cristianismo de língua siríaca, em especial
da região de Edessa, com Judas, um dos quatro “irmãos” de Jesus mencionados
em Mc 6,3 e Mt 13,55. Assim, foi criada a figura de Judas Tomé, irmão gêmeo
de Jesus, imagem popular em círculos gnósticos.143 A ideia de Jesus ter um sósia
talvez fosse um dos fatores que levaram à tese de que alguém que se parecia com
Jesus foi crucificado em lugar dele. Uma forma gnóstica disso é a alegação de que a
aparência física de Jesus foi crucificada, mas o verdadeiro Jesus (que era puramente
espiritual) não foi.144 Cerinto fez a distinção em termos do Jesus terreno e do Cristo
celeste, pois Irineu (Contra as heresias I,xxvi,l) relata a opinião de Cerinto de que
Cristo desceu sobre Jesus no batismo e “ no fim, Cristo retirou-se novamente de
Jesus — Jesus sofreu e ressuscitou, enquanto Cristo permaneceu impassível, visto
que era um ser espiritual”. No Apocalipse de Pedro de Nag Hammadi (VII,81,7-
25), lemos que Pedro viu duas figuras envolvidas na crucificação: algozes estavam
golpeando as mãos e os pés de uma; a outra estava em cima de uma árvore rindo
do que acontecia. “ 0 Salvador me disse: ‘O que viste na árvore, alegre e rindo, é
o Jesus vivo; mas aquele em cujas mãos e pés eles pregam o cravo é sua porção
carnal. E o substituto sendo envergonhado, o que veio a existir à sua semelhança’”.
O Segundo Tratado do Grande Set VII,51,20-52,3 afirma: “ Visitei uma habitação
corpórea, primeiro joguei fora o que estava nela e entrei [...]. Ele era um homem
terreno; mas eu, eu sou do alto dos céus.” A confusão que isso provocou entre os
ignorantes durante a Paixão é descrita pitorescamente: “ Foi outro, o pai deles, que
bebeu o fel e o vinagre; não fui eu [...]. Foi outro, Simão, que carregou a cruz sobre
os ombros” (Segundo Tratado do Grande Set VII,56,6-11).
143 Está atestado em escritos como 0 Livro de Tomé (11,138,2.4); O Evangelho de Tomé (11,32,11); Atos de
Tomé I.
144 O ponto de vista de Taciano era, de maneira ambígua, próximo de uma perspectiva gnóstica. Baarda (nota
78, acima), ao escrever sobre a então recentemente disponível versão siríaca do comentário de Efrém
a respeito do Diatessarão de Taciano, encontra ali a tese de que a divindade foi separada do morto e
oculta dele por uma força/um poder (ver EvPd 5,19). A. d’Alès (RechSR 21, 1931, p. 200-201) relata
que alguns autores dos séculos IV e V julgavam que a divindade saiu do corpo de Jesus acompanhando
sua alma.
268
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
140 Se a ênfase está no “não” ou no “o” é incerto. A última hipótese facilita uma interpretação de substituição.
Trõger (“Jesus” , p. 215) relata que todas as interpretações islâmicas giram em torno de uma substituição.
A interpretação mais comum pressupõe que outra pessoa foi crucificada: um discípulo, um Sérgio bem
conhecido, ou alguém (por exemplo, Judas) que foi mudado para se parecer com Jesus. Alguns teólogos
xiitas modernos afirmam que, embora o corpo de Jesus tenha morrido, seu espírito foi levado ao céu.
Trõger (p. 218) afirma que o próprio Maomé “ não queria, de modo algum, negar a crucificação e morte
de Jesus como fato histórico” . É provável que ele quisesse dizer que, na realidade, o verdadeiro profeta
vive porque não pode ser morto.
146 A sentença bastante obscura que omiti parece dizer que os próprios judeus estão incertos a respeito
disso.
141 S. Pines, The Jewish Christians of the Early Centuries of Christianity According to a New Source, Jerusa
lém, Central Press, 1966, esp. p. 54, 56 (Proceedings of the Israel Academy of Sciences and Humanities
2,13). S. M. Stem, “ Quotations from Apocryphal Gospels in ‘Abd al-Jabbar” , em JTS n s 18, 1967, p.
34-57, esp. 44-45.
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Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Uma forma especial da tese de trama é que uma das bebidas de vinho ofe
recidas a Jesus — entre os Evangelhos, só em Jo 19,30 Jesus toma o vinho — era
um narcótico que o entorpeceu de modo que ele parecia morto, mas pôde ser rea-
nimado depois que os algozes partiram. Heppner (“ Vermorderte” ) relata a respeito
de uma variante sugerida por G. B. Wiener (1848) e ressuscitada na década de
1920, segundo a qual deram a Jesus vinho de morrião, também chamado vinho
de morte. Morios era uma planta usada para fazer filtros, um tipo de beladona que
provocava o sono, às vezes identificada com a planta da mandrágora. Plínio (História
Natural xxi,105; #180) fala dela como veneno que mata mais depressa que o ópio
e, quando misturado ao vinho, produz desmaio. Heppner (p. 664-665) fala de uma
obra apócrifa que descreve a irmã de Judas dando-o a Jesus porque ela viu quantos
problemas ele causara. Thiering (Qumran, p. 217-219) afirma que o sumo sacerdote
Jônatas bondosamente ofereceu a Jesus vinho misturado com veneno (chole, “fel” )
para que ele não sofresse mais. Depois de prová-lo, Jesus perdeu a consciência
e pareceu morrer. Simão Mago (médico), que havia sido crucificado com Jesus e
que teve as pernas quebradas, foi colocado no túmulo da gruta com ele (ao lado
de Judas). Ela nos assegura: “ Dentro do túmulo, Simão Mago trabalhou depressa,
apesar das pernas quebradas. Espremeu o sumo dos aloés e despejou-o com mirra
™ Variantes da teoria de trama de Judas encontram-se em APÊNDICE IV; em muitas delas, ele não queria
que Jesus morresse e supôs que Jesus seria libertado, mas foi tomado pelo remorso quando Jesus foi
realmente morto.
270
§ 42. Jesus crucificado, terceira parte: Últim os acontecimentos, morte
pela garganta de Jesus. O veneno, que ainda não fora absorvido, foi expelido e, às
3 da manhã, soube-se que ele sobrevivería”.
Em 1965, H. J. Schonfield criou uma sensação com o livro The Passover Plot,
que sugeria uma vasta conspiração. Jesus preparou o terreno para sua entrada em
Jerusalém e intencionalmente forçou Judas a traí-lo. Escolheu a véspera da Páscoa
para o dia de sua morte, para que o corpo fosse descido da cruz rapidamente. A
bebida dada a Jesus foi adulterada para produzir inconsciência, permitindo, assim,
que ele fosse reanimado quando José de Arimateia reclamou seu corpo. Seu plano
deu errado por causa do ferimento da lança, de modo que Jesus morreu realmente
logo depois, mas não da crucificação. Sem dúvida, muitos dos que se apressaram
a comprar o livro pensaram estar adquirindo a mais recente obra de erudição. 0
levantamento acima mostra que não é provável haver muita coisa nova sob o sol
nesses exercícios da imaginação. Essas teorias demonstram que, em relação à Pai
xão de Jesus, apesar da máxima popular, a ficção é mais estranha que o fato — e
muitas vezes, intencionalmente ou não, mais lucrativa.
(A bibliografia para este episódio encontra-se em §37, Partes VII, VIII e IX.)
271
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte:
Acontecimentos posteriores à morte
de Jesus - a. Efeitos externos
(Mc 15,38; Mt 27,51-53; [Lc 23,45b])
Tradução
Comentário
273
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
externos, não raro físicos, de natureza extraordinária (Mc 15,38; Mt 27,51-53; EvPd
5,20-6,22). Esses efeitos físicos vão ser examinados nesta seção (§ 43), a saber:
rasgamento do véu do santuário, tremor da terra, as rochas que foram partidas,
abertura dos túmulos, ressurreição dos corpos dos santos adormecidos, a entrada
deles na cidade santa e o fato de ficarem visíveis a muitos. Nenhum desses efeitos
são relatados depois da morte de Jesus por João,1 nem por Lucas, embora neste
último o rasgamento do véu do santuário preceda a morte de Jesus (Lc 23,45b). b)
Reações de pessoas que estavam presentes (Mc 15,39-41; Mt 27,54-56; Lc 23,47-
49; Jo 19,31-37; EvPd 7 ,2 5 -8 ,2 9 2). Os que reagem incluem o centurião, os que
montavam guarda a Jesus, as multidões reunidas, as mulheres, os “judeus” hostis
e os soldados que vieram buscar os corpos. Embora suas reações quase sempre
estejam estreitamente relacionadas com os acontecimentos físicos (por exemplo, o
centurião reage ao rasgamento do véu do santuário), o exame delas será reservado
à próxima seção (§ 44).
1 O mais próximo que João chega de alguma coisa exterior e física é o fluxo de sangue e água do lado de
Jesus perfurado (Jo 19,34).
2 De fato, o EvPd mistura os dois conjuntos de reações. Em meio a efeitos externos em EvPd 5,20-6,22 (véu
rasgado, terra sacudida, sol voltando), encontramos “houve um grande medo” ; mas muitas das reações
pessoais (dos judeus, de Pedro e seus companheiros) acontecem depois. Ver em § 43 A, adiante, uma
análise do que o EvPd fez.
274
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
3 A frequência do padrão faz-me questionar a tentativa de Witherup (“ Death” , p. 577) de tornar essa
expressão no v. 51a parte da sequência de tempo do capítulo 27 (v. 46: nona hora; v. 48: imediatamente;
v. 57: entardecer).
1 Lucas usa mesos mais que Marcos/Mateus juntos. Se essa mudança também tem ou não importância
teológica, será discutido adiante.
3 Infelizmente, não temos esse julgamento preservado na cópia ainda existente do EvPd (que começa com
o julgamento por Herodes/Pilatos); talvez seguisse a forma mateana (Mt 26,65 [Mc 14,63]).
275
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Marcos. Duas vezes antes, ambas na NP, Marcos fala de naos, “o santuário”.6
Diante dos chefes dos sacerdotes e do sinédrio inteiro, foi dado falso testemunho
contra Jesus, a saber, que ouviram-no dizer: “eu destruirei este santuário feito por
mão humana e dentro de três dias, outro não feito por mão humana eu construirei”
(Mc 14,58). Enquanto Jesus pendia da cruz, os que passavam por ali blasfemavam
contra ele: “Ah! Ó, aquele destruindo o santuário e construindo-o em três d ias...”
(Mc 15,29). Parte da importância da narrativa presente, que constitui uma terceira
referência ao santuário, deve ser que Jesus é justificado: rasgar o véu do santuário
destrói, de um modo ou de outro, aquele Lugar Santo. (Outra sequência quase
idêntica de três passagens trata do problema de Jesus alegar ser o Messias, o Filho
de Deus — Mc 14,61; 15,32; 15,39; no sinédrio, na cruz, depois da morte — , e ali
também a última justifica Jesus.) Contudo, Marcos não explica exatamente como
rasgar seu véu destrói o santuário e, assim, precisamos analisar a imagem quanto
ao rasgamento e ao véu do santuário.
6 Embora o que Jesus diga a respeito do “Templo” (to hieron) ou nele não deixe de ter relação com sua
atitude para com “o santuário” , é mais provável que a evocação imediata seja de passagens que empregam
o mesmo vocabulário.
' Tradições mais tardias atribuem o rasgamento ao próprio Templo, ou aos anjos, mas em ambos os casos
a ação fundamental é de Deus.
8 Motyer (“ Rending”) usa esse paralelismo de forma exagerada, na tentativa de encontrar nesta cena um
Pentecostes marcano: houve uma descida do Espírito (Mc 1,10: pneuma) quando os céus foram rasgados
no início de Marcos, por isso a mesma coisa acontece no final, no rasgamento do véu, como é insinuado
quando Jesus expira (Mc 15,37: ekpnein).
276
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
é rasgado para que a vergonha deles não seja mais disfarçada.9 No EvPd , os si
nais que cercam a morte de Jesus, incluindo o rasgamento do santuário em dois
(.EvPd 5,20), mostram que ele é justo (EvPd 8,28) e levam os judeus, os anciãos
e os sacerdotes a dizer: “Ai de nossos pecados. O julgamento se aproxima e o fim
de Jerusalém” (EvPd 7,25). Na verdade, esse mesmo Evangelho, ao usar o verbo
“despedaçar” (como observado acima), sugere uma ligação entre o sumo sacerdote
despedaçar as roupas diante do sinédrio, enquanto exigia a morte de Jesus (Mc
14,63), e Deus rasgar o véu na morte de Jesus, sendo este último ato uma resposta
colérica ao primeiro.10 Afinal de contas, naquele exato momento no julgamento do
sinédrio, Jesus advertiu ao sumo sacerdote que ele e os colegas juizes veriam o Filho
do Homem vindo (Mc 14,62) — uma vinda em julgamento que começou na cruz.
9 Em uma série de artigos, M. de Jonge examina a exegese cristã primitiva do rasgamento do véu, usando
os Testamentos dos Patriarcas como exemplo principal. Quer se pense nessa obra como judaica, glosada
por cristãos, quer como composição cristã, houve um cristão em atividade nas passagens que citarei aqui.
10 Essa ligação, feita na Antiguidade pelo EvPd, é mais plausível que a tentativa de Bailey (“Fali” , p.
104) de tomar paralelos o ato de “ desvelar” Jesus (Mc 15,24: “ eles repartem suas roupas”) e o ato de
“desvelar” o santuário — paralelo proposto que não envolve nenhum vocabulário e pouca semelhança
simbólica.
11 Como parte da ligação entre o rasgamento do véu do santuário e o rasgamento de roupas, Daube indica
o aramaico/hebraico pargod, que significa “cortina” e também “túnica” .
277
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
2) O véu do santuário. A função geral desse véu era separar o Lugar Santo
do profano, e o rasgamento do véu significava a destruição do caráter especial ou
santidade que fazia do lugar um santuário. Contra o pano de fundo do santuário como
lugar de morada divina — ideia compartilhada igualmente por pagãos e judeus — ,
rasgar o véu significava que a divindade ou a presença da divindade partira. Segundo
Ez 10, a glória de Deus saiu do Templo irada com as idolatrias ali praticadas, pouco
antes de Deus empregar os babilônios como instrumentos na destruição do Templo.
Em 2 Baruc, apócrifo judaico que descreve a destruição de Jerusalém pelos romanos
(descritos como babilônios), um anjo retira o véu e outros equipamentos do Santo
dos Santos (2 Baruc 6,7) antes de ser ouvida a voz que convida: “ Entrai inimigos
e vinde adversários, pois o que guardava a casa abandonou-a” (2 Baruc 8,2). Uma
forma cristã dessa imagem encontra-se em Tertuliano (Adv. Iudaeos xiii,15; CC
2,1388), que relata que um espírito santo (isto é, anjo) costumava habitar no Templo
antes do advento de Cristo, que é o Templo; também Didascalia Apostolorum VI,v,7
(Funk, org., p. 312): “ Ele desertou o Templo, [deixando-o] desolado, rasgando o véu
e retirando dele o espírito santo”. Aqui, o amor marcano por duplicação tem forte
efeito literário: o véu é rasgado “de alto a baixo” e “em dois”, por isso não é restau-
rável. Assim, para Marcos, o rasgamento do véu do santuário significa que, com a
morte de Jesus, o santuário como tal deixou de existir; o edifício que continuou de
pé ali não é mais Lugar Santo. Contudo, além de indicar simbolicamente o que já
acontecera, o rasgamento do véu do santuário mantinha valor como sinal do que
ainda estava por vir, e como advertência ameaçadora de um julgamento que não
voltaria atrás. (Os que liam Marcos quando ou depois que os romanos destruíram
fisicamente o santuário do Templo de Jerusalém devem ter visto nisso o cumpri
mento do que foi expresso antes pelo rasgamento do véu. Afinal de contas, o Jesus
marcano lhes dissera para ficarem à espreita dos sinais nos recintos sagrados [Mc
13,14]: “ Quando virdes a abominação desoladora de pé onde não deve [...] então
que os que estiverem na Judeia fujam para as montanhas”.) Como sinal negativo
depois da morte, o rasgamento é paralelo à escuridão antes da morte de Jesus. O
dia do Senhor com seu ônus de julgamento estava sendo anunciado.
278
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
por matarem o Filho (Mt 21,33-41)! Para esclarecer isso, o rasgamento do véu do
santuário é acompanhado pelo tremor da terra e as rochas que se partem, e que
são (como veremos na próxima subseção) portentos apocalípticos conhecidos dos
últimos tempos descritos no AT e nos escritos judaicos primitivos. Por outro lado, a
abertura dos túmulos, o ressuscitamento dos muitos corpos dos santos adormecidos
e o fato de ficarem visíveis a muitas pessoas de Jerusalém, embora também façam
parte do contexto apocalíptico esperado, são sinais positivos. Mateus mostra que o
julgamento divino começa com os sinais negativos e os positivos.
12 Sylva (“Temple” , p. 242) trata a sentença independente na NEB como se significasse que o rasgamento
do véu “pode não ter par, sem ser estreitamente ligado ao que o precede ou segue” . Esse não é meu
entendimento do fenômeno; ele deve estar relacionado com um ou com o outro.
279
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
as três reações favoráveis a Jesus antes que ele fosse crucificado, agrupamento
também característico de Lucas (Lc 23,26-32). Nesse contexto otimista depois da
morte de Jesus, Lucas não podia permitir a permanência do sinistro rasgamento
do véu que ele encontrou em Marcos, por isso ele o mudou para onde já havia um
contexto sinistro, colocando-o antes da morte para formar uma unidade com a
escuridão que cobriu a terra inteira desde a sexta hora até a nona hora, enquanto
Jesus sofria na cruz (Mc 23,44-45). Combinado com a escuridão/o eclipse, o véu
rasgado do santuário apresenta um padrão de portentos horríveis nos céus e na
terra. Esse arranjo adequava-se à teologia lucana de outra maneira.13 No julgamento
lucano pelo sinédrio, não houve nenhuma predição de que Jesus destruiría o santu
ário e, assim, na cruz não havia necessidade de descrever um cumprimento dessa
predição depois da morte de Jesus. Na perspectiva lucana, o Templo não perdeu
o valor sagrado por nada que aconteceu no tempo de Jesus, pois a narrativa dessa
vida começou e terminou com uma cena no conjunto do Templo (Lc 1,9 [rcaos];
24,53 [hieron]). Na verdade, nos primeiros dias da vida cristã em Jerusalém, os que
acreditavam em Jesus iam diariamente ao Templo para rezar (At 2,46; 3,1). Somente
com Estêvão ouvimos que o Altíssimo não habita a casa construída pelas mãos de
Salomão (At 7,48-49), e Estêvão é aquele condenado diante das autoridades por
falar contra o Lugar Santo, dizendo: “ Este Jesus, o Nazareu, destruirá este lugar”.14
Ao mudar a imagem marcana onde o rasgamento do véu era violenta reação divina
à morte de Jesus, Lucas evita dessacralizar o santuário judaico na hora da morte.
0 rasgamento do véu do santuário antes da morte de Jesus é advertência de que a
rejeição continuada de Jesus resultará na destruição do Lugar Santo, principalmente
quando a rejeição chegar ao ponto de matar os que (como Estêvão) o proclamam.15
Para Marcos, o rasgamento do véu depois da morte de Jesus refletia a destruição
presente da santidade do santuário e também servia como sinal de uma destruição
13 Para o que se segue, ver as proveitosas observações de F. Weinert, CBQ 44, 1982, p. 69-70.
14 Isso é caracterizado como falso testemunho em At 6,13-14. Não porque o dito não seja verdadeiro, mas
porque a atividade é entendida mal: o próprio Jesus nada faz para destruir o Lugar Santo, mas a atitude
dos governantes e, em especial, dos sacerdotes para com ele e seus seguidores é a ocasião de um julga
mento divino que tira do Lugar Santo sua santidade. Estêvão, que é martirizado, assinala um momento
decisivo na atitude cristã para com o Templo. Embora, mais adiante nos Atos, Paulo vá ao Templo (At
21,26), ele já declarou (At 17,24) que o Senhor do céu e da terra não habita em santuários (naos) feitos
pelo homem.
lo Green (“Death”) encontra uma ênfase um pouco diferente: “O tempo do Templo não terminou [...]. Mas
ele já não é o centro ao redor do qual a vida se orienta. Em vez de servir como ponto de reunião para
todos os povos sob Iahweh, ele agora se tornou o ponto de partida da missão para todos os povos” .
280
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
futura, menos simbólica. Para Lucas, o rasgamento do véu, agora colocado antes da
morte de Jesus, permanece no nível de um sinal sinistro, que aponta para o futuro
(que ele narra nos Atos).
281
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Essa interpretação é possível, mas não a acho correta,16 porque não dá aten
ção suficiente às palavras exatas que Lucas usou, a saber: “rasgado” (schizein) e
“santuário” (naos). No início do ministério de Jesus e também por ocasião da morte
de Estêvão, quando descreve a abertura dos céus como passagem para o espírito
(descer sobre Jesus ou subir de Estêvão), Lucas usa um verbo para abertura. De
fato, no batismo (Lc 3,21), ele muda a expressão marcana (Mc 1,10) “os céus
rasgarem-se [schizein]” para o menos violento “abrir”. O único outro uso evangélico
de schizein por Lucas além desta passagem do véu do santuário mostra como ele
entende sua força; em Lc 5,36, ele introduz esse verbo na parábola de rasgar um
pedaço de uma veste nova (Mc 2,21 tinha airein ). Os dois únicos usos nos Atos (At
14,2; 23,7) mostram uma multidão rasgada em duas partes, dividida entre favoráveis
e desfavoráveis a Jesus. Assim, Lucas nunca usa schizein para uma abertura pela
qual se passa, e sua preservação aqui desse verbo que ele encontrou em Marcos
(contrário a sua prática em Lc 3,21) sugere que ele manteve sua força negativa.
Além disso, é preciso ter cuidado ao generalizar a partir das declarações de Lucas
a respeito do Templo (hieron) para seu uso, aqui, do santuário (naos), copiado de
Marcos.17 Seu único outro uso evangélico de “santuário” (em Lc 1,9.21.22, para o
lugar onde Zacarias desempenha seus deveres sacerdotais) sugere uma percepção
da distinção entre os dois. Não há prova de que Lucas pensasse em Jesus em ter
mos sacerdotais e, portanto, seria bastante incomum ter o Jesus lucano passando
(ele mesmo ou seu espírito) pelo santuário, aonde só sacerdotes vão. Lucas tinha
uma atitude positiva para com o Templo (também pressuposta na interpretação a]
acima); mas ele preserva um sinal da destruição do santuário, isto é, o lugar onde
sacerdotes e, em especial, o sumo sacerdote ministravam para a presença de Deus,
pois sabe que os sacerdotes e, em especial, o sumo sacerdote continuarão hostis a
Jesus, perseguindo Pedro, João, Estêvão, Paulo e outros cristãos (At 4,6; 5,17; 7,1;
9,1-2.21; 22,30; 23,14; 24,1; 25,2).
16 Em outras bases que não as que proponho, Green (“Death” , p. 550-552) também discorda de Sylva e
enfatiza que, como ela acontece antes do rasgamento do véu, a escuridão negativa deve interpretar esse
rasgamento.
1' Não posso deixar de mencionar o título do artigo de Sylva: “The Temple Curtain and Jesus’ Death in the
Gospel of Luke [A cortina do Templo e a morte de Jesus no Evangelho de Lucas]” (itálicos meus).
282
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
18 A descrição presume, mas não descreve, um primeiro véu na entrada do Lugar Santo.
19 A partir da analogia do sumo sacerdote israelita, temos de presumir que, como o véu, a carne era uma
coisa pela qual Jesus tinha de passar (a encarnação do Filho de Deus?) para chegar ao céu.
283
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
20 Isso existia nos santuários pré-exílicos, mas não no Templo do tempo de Jesus e, juntamente com o fato
de não ser a construção do Templo ordenada por Deus como foi a edificação do tabemáculo, explica por
que Hebreus tirou sua metáfora deste último.
284
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
mas não pela destruição; agora, a presença divina no santuário celeste é descrita
como aberta a todos os que seguem Jesus através do véu.
21 Embora dois autores pudessem ter notado de maneira independente a mudança no local da presença de
Deus. sua descoberta do símbolo principal do katapetasma em relação à morte de Jesus sem a influência
de uma tradição comum é menos provável. Além disso, como minha citação de literatura judaica deixará
claro, descrições do castigo divino de Jerusalém incluíam tradicionalmente o Santo dos Santos e seu
equipamento; e é evidente que a tradição cristã primitiva se voltava para esse mesmo simbolismo. Além
das passagens do véu (interior), há Rm 3,25, com sua referência ao hilasterkm (kapporet).
22 Muitas vezes, os comentaristas não distinguem entre a) e b); eles também discordam (como será expli
cado) se o véu exterior foi rasgado para permitir acesso ao Lugar Santo ou se o véu interior foi rasgado
para permitir acesso ao Santo dos Santos. Contudo, entre os que, de um modo ou de outro, atribuem uma
interpretação positiva ao rasgamento do véu em um ou outro Evangelho sinótico, estão Bartsch, Benoit,
Caird, Ellis, Gnilka, Linnemann, Motyer, Pelletier, Sabbe, Schneider, Taylor, Vogtle e Yates. Lindeskog
(“Veil” , p. 134) defende, como eu, uma tradição comum por trás dos sinóticos e de Hebreus, mas acha
que a consequência dessa tradição primitiva foi positiva. Nem todas as interpretações positivas são
iguais à apresentada por Hebreus. Por exemplo, em Testamento de Benjamim 9,4, a cortina (kaploma) do
santuário é rasgada, com o resultado de que o Espírito de Deus se derrama sobre todos os gentios como
fogo. Efrém (Comentário sobre o Diatessarão xxi,4-6; SC 121,376-378) relaciona algumas atividades desse
Espírito, por exemplo, usar o véu rasgado para vestir de maneira honrosa o corpo nu de Jesus na cruz.
Jerônimo (Epístola 120, Ad Hed-ybiam 8; CSEL 55,490) e outros Padres da Igreja têm mistérios celestes
revelados quando o véu foi rasgado, e nesse contexto às vezes citam ICor 13,12 e 2Cor 3,16-18. Uma
interpretação gnóstica nesse sentido encontra-se no Evangelho de Filipe 11,3; 85,5-21.
285
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
do naos por Jesus. Também não faz justiça a um elemento de violência subenten
dido pelo rasgamento (schizein). E injustificável negligenciar completamente esses
fatores com base na metáfora de Hebreus que jamais menciona naos nem schizein.
23 Teoricamente é possível debater se o rasgamento do véu pode ser negativo e positivo ao mesmo tempo,
mas símbolos são notoriamente resistentes à lei da não contradição.
24 Apelam a At 7,55-56, onde Estêvão levanta os olhos para o céu: “ Vede, percebo os céus abertos e o Filho
do Homem de pé à direita de Deus” .
286
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
de pedras vivas (§ 20). Nessa interpretação, Mc 15,39 mostra o primeiro novo fiel
depois da morte de Jesus e, assim, o começo da construção de outro santuário. Essa
exegese de Mc 15,39 nada faz para apoiar uma leitura positiva do véu rasgado do
santuário em Mc 15,38. De modo geral, então, não vejo nenhuma razão sólida para
transferir de Hebreus uma interpretação positiva de Mc 15,3825 pela qual o véu foi
rasgado para permitir a Jesus entrar no santuário celeste, levando outros atrás dele.
25 Os que adotam ou preferem uma interpretação negativa (com matiz multiforme e com referência a um ou
outro Evangelho) incluem Danker, Dormeyer, Grundmann, Juel, Lohmeyer, Lührmann, Marshall, Maurer,
Schenke, Schmid, Schreiber e Zahn.
26 Quero deixar de lado a complicação de que o Templo herodiano não foi terminado no tempo de Jesus e,
assim, mesmo o uso das descrições de Josefo quanto ao Templo concluído é anacrônico. Ver em Légasse
(“Voiles”) as complicações das diversas descrições dos véus.
287
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
Para o exame presente, dois ou três véus são importantes. Dentro do pátio
interior da área do Templo herodiano, ficava o Templo sagrado em si, dividido em
duas salas. 0 portal levava ao Lugar Santo (Hêkal) e na extremidade dessa sala,
ficava a entrada para outro aposento menor, o Santo dos Santos (Debtr; ver em NJBC
76,42 desenho do Templo salomônico, que estabeleceu o padrão). Os dois véus que
nos interessam são os que pendiam na entrada do pátio exterior que dava para o
Lugar Santo (o véu exterior) e na entrada do Lugar Santo para o Santo dos Santos
(o véu interior).27 Um terceiro véu entra no exame porque no tabernáculo havia um
véu (que chamarei de véu do recinto) na entrada para todo o recinto ou conjunto
sagrado; e as descrições bíblicas nem sempre são claras quanto a que entrada (para
o conjunto ou estrutura) está envolvida e também se o indicado é o véu do recinto
ou o véu exterior. (Légasse [“ Voiles”, p. 568-571] nega que houvesse um véu no
recinto dos Templos salomônico e de Zorobabel.) Qual desses véus é indicado nos
relatos sinóticos que falam do rasgamento do katapetasma ? 0 vocabulário vetero-
testamentário para os véus exteriores e interiores não é rigorosamente consistente:
katapetasma é usado tanto para o véu exterior como para o interior,28 porém, com
mais frequência para o véu interior, enquanto kalymna é usado para o véu exterior
(e o véu do recinto), mas, até onde entendo, não para o véu interior.29 0 vocabulário,
27 Mixná Yoma 5,1 descreve uma cortina dupla, com espaço no meio, mas Légasse (“ Voiles” , p. 580-581)
julga essa descrição fictícia.
28 Mas, no meu entender, não é usado para o véu do recinto, a menos que Nm 3,26 refira-se a ele.
29 Não tento fazer estas relações completas: 1) Descrições do véu do recinto encontram-se em Ex 27,16;
35,17; 38,18; 39,40; 40,8.33; Nm 4,26, que usam meselt em hebraico e kalymma (“cortina” ) no grego
288
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
da LXX. Fílon (De vita Mosis ii,19; #93) fala de um hyphasma ou peça tecida. 2) Encontram-se des
crições do véu exterior em Ex 26,36-37; 35,15; 39,38; 40,5.28; Nm 3,25.31; 4,25, que usam mesek em
hebraico e kalymma, katakalymma, kalymma kapetasmatos e epispastron (“ cortina de puxar”) no grego
da LXX. Fílon a chama de kalymma em De vita Mosis 2,21; #101, mas katapetasma (modificando-a uma
vez como “o primeiro” véu) em De specialibus legibus 1,171.231.274. Aparentemente, o véu exterior é
citado em Lv 21,23 e Nm 18,7, que usam paroket em hebraico e katapetasma em grego. 3) Encontram-se
descrições do véu interior em Ex 26,31-33; 30,6; 35,12; 39,34; 40,21; Nm 4,5, que usam paroket em
hebraico e katapetasma no grego da LXX (e Fílon). É digno de nota que, embora a descrição hebraica
dos véus exterior e interior em Ex 36,35-37 os diferencie como mesek e patroket, a LXX (Ex 37,3-5) usa
katapetasma para ambos.
30 Os Padres da Igreja e estudiosos subsequentes que julgam estarem Marcos/Mateus referindo-se ao véu
interior incluem Crisóstomo, Teodoreto, Cirilo de Alexandria e Tomás de Aquino; e Billerbeck, Hauck,
Lindeskog, Plummer, Schneider, Sênior, Swete, Taylor e Turner.
” Estes incluem Orígenes e Jerônimo; e Bartsch, Benoit, Driver, Emst, Fitzmyer, Huby, Lagrange, Lohmeyer,
McNeile, Pelletier e Vincent. Yates (“Velum” , p. 232) acredita que Mateus e Lucas se referiam ao véu
exterior, mas acha Marcos obscuro.
32 Ver em § 40, #1, acima, a teoria de E. L. Martin. No mesmo estilo, D. Brown (“Veil” ) lembra que, se o véu
interior fosse rasgado, os únicos a saber seriam os sacerdotes, pois só eles tinham permissão para entrar
no Lugar Santo; e segundo os relatos sinóticos nesse momento, eles estavam no Gólgota. De qualquer
modo, seria provável que eles anunciassem tal acontecimento se ele tivesse lugar na hora da morte de
Jesus? Ocasionalmente, os que insistem na questão histórica afirmam que os sacerdotes que revelaram
o rasgamento do véu interior foram os que se tomaram seguidores de Jesus (At 6,7)!
33 Em apoio ao simbolismo celeste, Pelletier (“Veil” , p. 171) também aponta para Eclo 50,5-7, onde Simâo,
o sumo sacerdote, sai do katapetasma e é comparado a uma estrela, ao sol, à lua e a um arco-íris. Em
“Voile” , ele chama a atenção para oparapetasma, um véu de lã semelhante, enorme, colorido, que pendia
289
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
[De Vita Mosis ii,17-18; ##84-88], que também fala do simbolismo dos quatro ele
mentos, descreve cortinas à volta toda do tabernáculo e, assim, tem-se a impressão
de que o simbolismo não se restringia ao véu exterior.) Lindeskog (“ Veil”, p. 136)
consegue estabelecer parte do mesmo simbolismo a partir do que estava por trás do
véu interior, agora não mais a Arca da Aliança, mas uma pedra especial designada
como fundamental — pedra que esteve envolvida na criação do mundo, a porta para
o inferno e o céu (Mixná Yoma 5,2; TalBab Yoma 54b). Por tudo isso, argumenta-
-se que o rasgamento do véu do santuário tinha significado cósmico interpretado
pelos fenômenos extras em Mt 27,51b-53 (terra sacudida, rochas partidas, túmulos
abertos)34 ou tinha importância salvífica para todos, pois envolvia um rasgamento
dos céus que ofereciam acesso à presença de Deus. Ulansey (“ Heavenly” ) emprega
a ideia de simbolismo celeste para o véu realçar a inclusão entre o rasgamento do
véu e o rasgamento dos céus no início de Marcos.
do portal do Templo de Olímpia, na Grécia, descrito por Pausânias (Descriptio Graecae V,xxii,4) como
tendo sido doado pelo rei sírio Antíoco (IV?). Segundo lMc 1,22 e Josefo {Ant. XII,v,4; #250), Antíoco
IV tirou o véu do Templo de Jerusalém c. 169 a.C.
M Está claro que se julgava ter a morte de Jesus significado cósmico e interpreto os fenômenos mateanos
especiais como simbolizando isso. É outra questão se o rasgamento do véu tinha esse significado.
,3 Em Lc 1,5-10.21-22 e At 3,2.11, Lucas demonstra conhecimento de costumes sacerdotais e de detalhes
da planta do Templo, mas era esse conhecimento pessoal ou simplesmente fazia parte da tradição que
recebeu? Ele nada acrescenta locativo à imagem marcana do véu.
290
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
Podemos seriamente pensar que ele esperava que eles interpretassem o rasgamento
do véu contra um pano de fundo não fornecido dos arranjos de cortina no edifício
herodiano e do modo como eles eram pintados? Desde o início deste comentário,
afirmei que a compreensibilidade perceptível para uma audiência do século I é guia
importante (embora não suficiente) para interpretação. Uma coisa é pressupor que
os cristãos (judeus e gentios) naquela audiência conheciam os temas básicos das
Escrituras judaicas pertinentes a Jesus; outra coisa é pressupor que eles entendiam
detalhes de simbolismo cósmico que não estão contidos nas descrições bíblicas do
Templo. Com base nesse princípio, afirmo que não devemos introduzir na exegese
de Mc 15,38 e par. informações esotéricas a respeito dos véus históricos no Templo
de Jerusalém.
56 Muito proveitosos no que se segue são os estudos por de Jonge, McCasland, Montefiore, Nestle e Zahn
relacionados em § 37, Parte X. Ver também J^ange na Parte XI.
291
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Díon Cássio (História LX,xxxv,l) relata portentos por ocasião da morte de Cláudio,
inclusive um cometa visto por longo tempo, um aguaceiro de sangue, um raio que
atingiu os estandartes dos soldados, a abertura sozinha do Templo de Júpiter Víctor.
292
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
40 Além da lista de Josefo, temos outras tradições. 2 Barnabé 6-8 relata que, antes da destruição do Templo
pelos babilônios (= romanos), anjos vieram e tiraram a mobília do Santo dos Santos, inclusive o véu,
o efod, happoret, o altar e as vestes sacerdotais. Só então uma voz veio do meio do Templo e permitiu
a entrada dos adversários, porque o guardião tinha saído da casa. Taljer Yoma 6,43c diz que, entre os
presságios, quarenta anos antes da destruição do Templo (ver § 18, D l, acima), suas portas se abriram
espontaneamente. Rabbi Johanan ben Zakkai repreendeu o Templo por se dar a esse trabalho, pois Zc
11,1 já havia profetizado: “Abre tuas portas, ó Líbano, para que o fogo devore teus cedros” . (Lembramos
que o Templo salomônico era construído de cedro do Líbano.) TalBab Yoma 39b relata que, naquele tempo,
sortes sagradas eram malsucedidas, a faixa rubra sobre a entrada do Templo permaneceu vermelha, em
vez de se tomar branca no Dia da Expiação, e uma das lâmpadas do candelabro de sete braços apagou-
-se. TalBab Gittin 56b narra que Tito entrou no Santo dos Santos, rasgou o véu com a espada e sangue
jorrou. Apesar do estrato cristão final, muitos julgam que Lives of the Prophets contém antigas tradições
judaicas. Ali (ed. Torrey, p. 44), Habacuc diz: “0 véu do santuário interior será rasgado em pedaços e
os capitéis das duas colunas serão retirados” . A respeito de “capitéis” , ver nota 45 a seguir.
41 Em Transitus Mariae (difícil de datar) 10 (JANT, p. 195), as mulheres que ministravam no Templo fogem
para o Santo dos Santos durante a escuridão na crucificação. Ali elas veem um anjo descer com uma
293
Q uakto ato •JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto
espada para rasgar o véu em dois e ouvem uma voz forte prenunciando uma desgraça contra Jerusalém
por matar os profetas. Quando veem o anjo do altar voar para o dossel do altar com o anjo da espada, elas
sabem “que Deus abandonou Seu povo” . Ver também Gospel (Questions) of Bartholotmu 24—27 (HSNTA
1,491; ed. rev., 1 v., p. 542-543).
í2 VerZahn, “Zerrissene”, p. 733, 740, 751 e 753.
294
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
rasgado e a casa toda de Israel foi desorganizada por uma nuvem de erros. Era a
esse mesmo período que Josefo se referia quando escreveu a respeito dos sacerdotes
que ouviram as vozes das hostes celestes vindo da parte mais íntima do Templo:
“ Saiamos destas moradas”. Na Epístola 46 (Paulae et Eustochii ad Marcellam 4;
CSEL 54,333), Jerônimo associa o rasgamento do véu do Templo com o cerco de
Jerusalém por um exército e o fim da proteção angelical. Ele cita novamente Josefo,
mas agora de modo tal que Josefo parece dizer que as vozes das hostes celestes
irromperam “na ocasião em que o Senhor foi crucificado”. Em seu Commentarium
in Matt. 4 (a respeito de Mt 27,51; SC 259,298) Jerônimo faz referência a um Evan
gelho, que ele menciona com frequência (isto é, o Evangelho escrito em caracteres
hebraicos, embora fosse, na verdade, em aramaico, usado pelos nazareus da região
de Bereia ou Alepo).43 Nesse Evangelho, diz ele: “ Lemos que o lintel de tamanho
infinito do Templo foi despedaçado e fragmentado”. Depois, ele repete a referência
de Josefo a respeito do clamor das hostes angélicas. Na Epístola 120 (Ad Hedjbiam
8; CSEL 55,489-490), Jerônimo mais uma vez cita Josefo e também se refere ao
Evangelho escrito em letras hebraicas, onde “ Lemos, não que o véu do Templo
foi rasgado, mas que o lintel de grande tamanho do Templo foi erguido”. Em seu
Commentarium in Isaiam 3 (CC 73,87), mais uma vez em referência a Is 6,4, ele
fala do lintel do Templo sendo erguido e todos os gonzos quebrados, cumprindo a
ameaça do Senhor, em Mt 23,38, de que a casa ficaria deserta.44 Mais adiante no
mesmo escrito (18; CC 73A,775), ao comentar a balbúrdia na cidade e no Templo
(Is 66,6) que faz parte do som do Senhor retribuindo aos inimigos, Jerônimo vê
uma referência indubitável ao período em que Jerusalém foi cercada por exércitos
romanos. Mais uma vez, ele cita a passagem de Josefo a respeito do clamor das
hostes angélicas que presidiam o Templo.
43 Ver M. J. Lagrange, RB 31,1922, p. 161-181,321-344. De maneira confusa, às vezes Jerônimo trata este
Evangelho dos Nazareus como se fosse o original semítico por trás do Mateus grego. (Não é o mesmo que
o Evangelho dos Hebreus conhecido dos Padres Alexandrinos, que é independente do Mateus grego.) Ele
alega tê-lo traduzido para o grego (e o latim?), mas nem sempre temos certeza se ele cita-o diretamente
ou de citações em outros, ou de memória.
44 Ele especifica que, quarenta e dois anos depois da Paixão, o Templo foi destruído.
295
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
45 A respeito do lintel em lugar do véu, dois artigos de Nestle (“Sonnenfinsternis” e “ Matt 27,51”) são
fascinantes. No contexto de descrever o dia do Senhor quando chega o fim para o povo de Deus, Israel,
o hebraico de Am 8,3 fala dos “cânticos” (strôt) do Lugar Santo sendo transformados em gemidos. A
LXX refere-se aos “painéis do teto” (phatiwmata) do santuário, enquanto a Vulgata de Jerônimo tem
“dobradiças da porta” . Áquila traz os pinos da porta [strophigges], ao que tudo indica lendo sír por
shír.) No grego clássico, a palavra que a LXX usa para “gemido” (ololyzein) não raro refere-se ao grito
de deusas e a coisas sagradas. O TM de Am 9,1 traz o Senhor de pé perto do altar dizendo: “ Bate nos
capitéis das colunas e as soleiras tremerão” . A LXX (ao que tudo indica lendo as consoantes kprt por
kptr do TM) traz a tampa da Arca da Aliança golpeada e os pilones do pórtico sacudidos, enquanto a
Vulgata de Jerônimo tem as dobradiças da porta golpeadas e os lintéis sacudidos. Se se juntar a LXX e
a Vulgata destas passagens, tem-se referências a painéis do teto, gritos estranhos na área do santuário e
lintéis sacudidos — parcialmente os ingredientes da combinação por Jerônimo do lintel rasgado e dos
fenômenos descritos por Josefo. Algumas das combinações eram anteriores a Jerônimo. Ao descrever
o martírio no altar do sacerdote Zacarias, pai de João Batista, Protoevangelho de Tiago 24,3 diz: “ Os
painéis do teto do santuário gemeram e eles [isto é, os sacerdotes ou (variante) os painéis] rasgaram as
roupas de alto a baixo” . Isso combina Am 9,1; 8,3 e Mc 15,38 ou Mt 27,51a.
296
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
Pus em itálico quatro versos (Mt 51bc, 52ab) para que os leitores percebam
a semelhança de uns com os outros (quatro sentenças simples coordenadas ou
orações principais, que começam com kai, nas quais o verbo é um passivo aorís-
tico) e também suas diferenças do mais complicado Mt 51a (que Mateus tirou de
Marcos) e de Mt 53.48 E quase como se o padrão passivo aorístico de Mt 51a que
* Entre os Padres da Igreja e também entre os biblistas modernos (ver § 37, Parte XI), esses fenômenos
têm sido assunto de uma quantidade extraordinária de discussões. Bons levantamentos de opiniões
encontram-se em Aguirre Monasterio e Maisch.
47 Esse fato fortalece minha opinião de que, em parte, o EvPd é um Evangelho folclórico.
48 Embora o v. 51a também tenha um passivo aorístico, a ação básica é modificada por uma longa frase
descritiva. 0 v. 53 começa com uma construção participial mais uma frase e o primeiro verbo principal
297
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
indica ação divina fosse assumido para construir um pequeno quarteto poético que
consiste em dois dísticos (Mt 51b e c são inter-relacionados, do mesmo modo que
Mt 52a e b) com o terremoto de Mt 51bc levando aos resultados descritos em Mt
52ab. O v. 53 tem a aparência de uma reflexão obtida dos acontecimentos de Mt
52ab.49 Refrãos poéticos quase sempre fazem parte da apresentação popular de um
acontecimento e são atestados em referências neotestamentárias às consequências
da morte de Jesus.50 Um paralelo poético muito próximo encontra-se em Sobre a
Páscoa de Melitão de Sardes, composto c. 170 d.C. No contexto da descrição da
morte do Senhor e da escuridão que a acompanhou, Melitão (98; SC 123,118)
escreve quatro dísticos nos quais, enquanto os primeiros versos censuram a in
sensibilidade dos judeus, os segundos versos descrevem os fenômenos terrestres
ou celestes correspondentes desta maneira:
Os céus temeram51...
é ativo, não passivo. A tese anteriormente defendida por Schenk (Passionsbericht), segundo a qual um
hino apocalíptico judaico de sete versos descrevendo a ressurreição dos mortos estava por trás dos vv.
51b-53d, é insatisfatória a muitos respeitos. Para obter sete versos começando com kai (“e” ), ele teve de
apagar o v. 53b e acrescentar um kai no início do v. 53c. Além disso, ele teve de mudar o particípio no
v. 53a para um verbo finito e ignorar a mudança de passivo para ativo. A atribuição desse hino a fontes
judaicas esquece-se da força temporal do aoristo: essas ações apocalípticas aconteceram (em Jesus, como
creem os cristãos) e não são apenas previstas no futuro. A mesma objeção resiste à tentativa de fazer os
hinos da narrativa lucana da infância judeus, em vez de composições (judeu-)cristãs; ver BNM, p. 418.
Ver a rejeição da tese de Schenk por Sênior, “ Death of Jesus” , p. 318-319; Aguirre Monasterio, Exégesis,
p. 69-71. Sênior (“Matthew’s Special Material” , p. 278) relata que Schenk abandonou essa teoria.
49 Não pontuei Mt 53abc de propósito para mostrar o problema de 53b ter de ser lido com 53a ou 53c.
50 lPd 3,18-19, que consiste em cinco ou seis versos poéticos, tem tom escatológico: o que morreu na carne
e recebeu vida no espírito vai pregar aos espíritos na prisão. Ef 4,8, que consiste em três versos, retrata
Cristo subindo às alturas, levando um grande número de cativos. Talvez a passagem neotestamentária
análoga de forma mais próxima a Mt 27,51b-52b seja lTm 3,16, composto de seis versos (orações
principais curtas) em um padrão de três dísticos: Cristo é o sujeito inominado e todos os verbos estão na
passiva aorística. Em frequentes interpretações, este poema vai da encarnação à ascensão, mas o conjunto
podería referir-se à morte de Jesus e suas consequências. Ver (acima, sob “Josefo” ) os Reconhecimentos
Pseudoclementinos l,xli,3, que têm padrão estilizado; não está claro se isso se origina de Mateus ou de
outra tradição independente de sinais que acompanharam a morte de Jesus.
Provável referência à escuridão que cobriu toda a terra.
>2 Isso se refere ao rasgamento do véu do santuário. Tertuliano (Adv. Marcion lV,xlii,5; CC 1,660): ” 0 véu
do Templo foi rasgado por um anjo que deixou a Filha de Sião” . Ver Bonner, “Two” , p. 183-185.
298
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte; Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
’’ Didaqué 16,6 fala de três sinais dos últimos dias: “Primeiro, o sinal de uma abertura no céu; depois, o
sinal do toque da trombeta; e, em terceiro lugar, a ressurreição [anastasis] dos mortos” .
a4 Inácio (Efésios 19), com suas referências à concepção virginal, uma estrela e formas de mágica (cf. magos)
demonstra conhecimento do tipo de material popular que Mt 2 incorporou à narrativa do nascimento;
talvez ele também conhecesse o material popular incorporado à NP mateana.
299
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
(e provavelmente as rochas que foram partidas ao mesmo tempo) devem ter sido
visíveis a todos na área, pelo menos. Talvez Mateus reconheça isso, pois, em Mt
27,54, quando relata que “o centurião e os que com ele guardavam (montavam
guarda sobre) Jesus” viram todos “estes acontecimentos” e ficaram muito assustados,
ele destaca o tremor (da terra) como exemplo. Essa especificação proveitosamente
reconhece que o terremoto é o fator principal em Mt 27,51b-53, influenciando os
outros três fenômenos. (É o único dos quatro preservado claramente no EvPd.) O
terremoto faz com que as rochas se partam (Mateus repete o schizein usado para
o rasgamento do véu do santuário) e os túmulos se abram. Por si mesmos, esses
três primeiros dos quatro fenômenos poderiam ter sido ocorrências naturais, pois
a Palestina é propensa a sofrer terremotos; contudo, como com a escuridão sobre
toda a terra (descrita por Lucas como resultado de um eclipse), a regulagem do
tempo mostra que um passivo divino está sendo empregado nos verbos e que Deus
está ativo em tudo isso. 0 quarto fenômeno, a ressurreição dos santos mortos,05
torna isso indubitável. É preciso examinar os quatro um por um, para perceber
seu significado escatológico.
55 Precisamos rejeitar, então, quaisquer tentativas de tratar os quatro fenômenos de maneira diferente. Se
pelos padrões modernos os primeiros são menos sobrenaturais e mais fáceis de aceitar que os últimos,
a estrutura e também o significado da cena mateana colocam todos eles no mesmo nível da intervenção
divina.
56 Embora, em geral, Riebl (Auferstehung) prefira um antecedente semítico pré-mateano para a descrição
dos fenômenos, nas páginas 49-50 ela reconhece que o vocabulário de “E a terra foi sacudida [seiein]”
é bem mateano. Um substantivo relacionado, seismos (“sacudida, tremor”), é usado para o segundo
terremoto associado com a abertura do túmulo de Jesus em Mt 28,2, enquanto o verbo seiein é mantido
para a sacudida ou o tremor dos guardas (Mt 28,4) em resposta. Anteriormente, o verbo foi usado para
a agitação de Jerusalém quando Jesus entrou (Mt 21,10). A meu ver, Witherup (“ Death” , p. 580) força
demais quando considera “ sacudida” carregada de significado, embora a palavra realmente represente
reação a acontecimentos referentes a Jesus.
300
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
como sinal de julgamento divino ou dos últimos tempos, por exemplo, Jz 5,4; Is
5,25; 24,18; Ez 38,19. No contexto da cólera ardente de Deus, manifestada contra
o povo de Deus que é tão mau, Jr 4,23-24 relata: “ Olhei para a terra e ela estava
deserta e vazia; para os céus e sua luz se extinguira; olhei para as montanhas e elas
trepidavam e todas as colinas se moviam”. A combinação de escuridão e terremoto
como parte do julgamento encontra-se também na descrição do dia do Senhor em
J1 2,10: “ Diante deles, a terra treme e os céus balançam; o sol e a lua escurecem
e as estrelas retiram seu brilho”.5758Testamento de Levi 3,9 estende a reação às
regiões inferiores: “ E os céus e a terra e os abismos são movidos diante da face de
Sua grande majestade”. Em 1 Henoc 1,3-8, como parte do grande tremor da terra
que saúda a vinda de Deus do céu para julgar o mundo, até as sentinelas celestes
tremem — detalhe interessante para comparar com o segundo terremoto mateano
(Mt 28,2-4), quando um anjo do Senhor abre o túmulo de Jesus e os guardas tremem
de medo. Quando o Senhor vem em resposta ao grito do justo no dia de sua aflição,
lemos em SI 77,19: “A terra tremeu e se abalou” (também 2Sm 22,7-8). Em Mt
24,7-8 (Mc 13,8), terremotos marcam o início das dores dos últimos tempos. Assim,
se estavam familiarizados com parte dessa origem, os leitores de Mateus não teriam
dificuldade para reconhecer no tremor da terra que acompanhou o rasgamento do
véu do santuário um sinal apocalíptico do julgamento evocado pela morte cruel à
qual sujeitou-se o Filho de Deus. Quanto aos leitores de origem primordialmente
greco-romana, Virgílio relatou que os Alpes estremeceram por ocasião do assassi
nato de César (ver acima, sob “ Fenômenos que marcam a destruição do Templo” ).
Na verdade, quando quer parodiar a morte de um homem famoso, Luciano combina
um terremoto com um abutre falante que voa para o céu como sinais que saúdam
sua partida (De morte Peregrini 39).
Rochas partidas (Mt 27.51cj.;>8 Este pode ser considerado exemplo de para
lelismo poético, que usa outros verbos para dizer a mesma coisa, como “a terra foi
sacudida”. Contudo, muitas vezes, o poder de Deus ao espedaçar as rochas sólidas
é item especial ao descrever julgamento. A frase “o despedaçamento das rochas”
57 Também J1 4,15-16 [RSV 3,15-16]; Is 13,9-13; Ag 2,6.21; Ap 6,12; Assunção [Testamento] de Moisés
10,4-5.
58 Embora petra (“rocha, pedra” ) seja mais frequente em Mateus (cinco vezes) que nos outros Evangelhos,
o verbo schizein é usado em outras passagens de Mateus apenas para o rasgamento do véu do santuário
dois versos antes, onde ele tomou-o emprestado de Marcos. Este último usa-o não só aqui, mas também
no batismo, para o rasgamento dos céus (Mc 1,10).
301
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Quando eu examinar o sepultamento de Jesus, darei estatísticas sobre as várias palavras para túmulo e
sepulcro; aqui, é empregado mnemeion, termo que Mateus usa três vezes para o túmulo de Jesus.
60 Em contraste, Mc 1,10 e 15,38 fazem a inclusão entre o rasgamento dos céus e do véu do santuário.
61 A sinagoga de Dura foi construída c. 200 d.C. As pinturas, inclusive a pintura de Ezequiel na parede
norte, originam-se do período que se seguiu à ampliação em 244 d.C.
62 H. Riesenfeld, The Resurrection in Ezekiel xxxvii and the Dura-Europos Paintings, Uppsala, Lundequistska
Bokhandeln, 1948; R. Wischnitzer-Bernstein, “The Conception of the Resurrection in the Ezekiel Panei
of the Dura Synagogue” , em JB L 60, 1941, p. 43-55. esp. p. 49; U. Schubert, “Jüdische” , p. 3-4; A.
Grabar, “Le thème religieux des fresques de la synagogue de Doura (245-256 après J.C.)’’, em RHR
123, 1941, p. 143-192. Aguirre Monasterio (Exégesis, p. 84-97) relaciona aos afrescos de Dura várias
reflexões litúrgicas targumínicas e judaicas a respeito de Ez 37. Nenhuma parte desse material é um guia
totalmente confiável ao entendimento folclórico da ressurreição dos mortos, mas ele pode bem estar mais
perto desse entendimento que a exegese moderna de textos veterotestamentários relativos ao assunto.
63 Ver Zc 14,4, onde Deus vem a exercer julgamento no Monte das Oliveiras. A insistência mateana, no
versículo seguinte (Mt 27,53), no fato de que eles entraram na cidade santa (de Jerusalém) pode ter sido
influenciada pelo local do julgamento em Zacarias.
302
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
64 Notemos que Ez 37,7 menciona um terremoto (ver Grassi, “Ezekiel”). Contudo, sinto-me incrédulo quanto
a uma ligação entre Ez 37,6 (“Eu darei meu espírito para vós e vós vivereis” ) e Mt 27,50, onde Jesus
“soltou o espírito” . A metáfora das duas passagens é diferente. Os santos adormecidos são ressuscitados
quando a terra é sacudida no momento da morte de Jesus; não entendo que Mateus quer dizer que eles
receberam o espírito solto de Jesus. Aguirre Monasterio (Exégesis, p. 184) afirma que Mateus usa uma
expressão altamente incomum para morrer; mas, então, pode-se perguntar: se Mateus pretendia fazer
um paralelo com Ez 37,6, por que não escolheu um verbo que facilitaria isso?
65 Egeirein (“elevar, ressuscitar”) é usado trinta e seis vezes em Mateus, treze das quais se referem à res
surreição dos mortos.
303
Q uarto ato •Jesus é crucificado c m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
modo que, às vezes, no AT, eles são o povo de Israel (Is 4,3; Dn 7,21; 8,25). Nesta
passagem, eles devem ser judeus que morreram depois de uma vida santa.66 1
Henoc 61,12 coloca em paralelismo “todos os santos que estão no céu” e “todos
os eleitos que moram no jardim da vida”. Testamento de Levi 18,10-11 prevê que
o sumo sacerdote ungido dos últimos dias “abrirá as portas do paraíso [...] e dará
aos santos para comer da árvore da vida”. Ao notar que Mateus fala dos “corpos”
dos santos, em vez de simplesmente dos “santos”, há quem tente distinguir entre
esta ressurreição e a da pessoa integral, como se esta fosse uma ressurreição
intermediária antes da ressurreição final. Entretanto, nenhuma distinção desse
tipo é feita pelo uso de “corpo”, pois a ressurreição dos corpos mortos dos túmulos
é apenas metáfora estabelecida.67 Até este ponto, os sinais apocalípticos foram
negativos (escuridão, véu do santuário rasgado, terremoto), mas este sinal mostra
o lado positivo do julgamento divino centralizado na morte do Filho de Deus: os
bons são recompensados e os maus castigados.
66 Eles são os que, em outras passagens (Mt 13,17; 23,29), Mateus associa com profetas antigos, sob o título
“ os justos [dikaioi]" — mudança de vocabulário que talvez indique a origem não mateana dessa parte.
(Syr'1" e Efrém leram “justos” em lugar de “ santos” nessa passagem.) Embora alguns Padres da Igreja
incluam gentios, o contexto em Mateus indica claramente que ele pensa em judeus — por que gentios
iriam para a “ cidade santa” ? Sb 5,5 assim escreve sobre o destino do judeu piedoso morto: “Vede como
ele é considerado entre os filhos de Deus [anjos], como compartilha a sorte dos santos [também anjos,
ou humanos virtuosos mortos?]” .
6‘ Ver, em Is 26,19, os mortos revivendo e os que estão nos túmulos sendo levantados. Em Diatessarão,
Taciano reconheceu a equivalência dessa terminologia ao ler “os mortos” em lugar de “muitos corpos
dos santos adormecidos” ; ver W. L. Petersen, NTS 29,1983, p. 494-507.
68 Mateus usa “ muitos” com frequência e, por si só, o uso é necessariamente partitivo (ver Mt 9,10; 13,17;
24,11). “Muitos corpos dos santos adormecidos” contém um genitivo epexegético (os “muitos corpos”
são “ os santos adormecidos” ), mas o contexto deixa claro que nem todos os justos de todo tempo e lugar
foram ressuscitados.
304
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
Jesus morreu.69 Embora alguns comentaristas sugiram que Mateus descreve a li
bertação das grandes figuras conhecidas da história veterotestamentária para quem
a recompensa foi adiada até a redenção trazida por Jesus,70 supõe-se que relativa
mente poucas delas foram sepultadas na área de Jerusalém. Devido à especulação
que liga “ lugar da Caveira” ao crânio de Adão (§ 40, nota 9), esse patriarca foi
sugerido (Epifânio). E porque, em At 2,29, Pedro menciona que o túmulo de Davi
está “conosco até hoje” em Jerusalém, aquele rei santo é outro candidato (Agos
tinho). Houve quem recorresse a Mt 23,37, com sua acusação de que Jerusalém
matou os profetas, sugerindo a possibilidade de terem sido sepultados ali. Outros
comentaristas pensaram em santos mais próximos do tempo de Jesus ou envolvi
dos com ele, apesar de só existir lenda quanto ao lugar onde foram sepultados. Na
Antiguidade, João Batista foi citado como um dos corpos ressuscitados, embora
isso fosse posto em dúvida por comentaristas mais tardios (Cornelius a Lapide),
com base no fato de diversas igrejas (Roma, Amiens) alegarem ter relíquias de sua
cabeça preservada. O Evangelho de Nicodemos (Atos de Pilatos) 17,1 diz que Jesus
ressuscitou Simeão, o idoso que tomou o menino Jesus nos braços (Lc 2,25-28),
bem como os dois filhos de Simeão que haviam morrido recentemente. Na verdade,
seus túmulos ainda podiam ser vistos abertos e essas pessoas ilustres ressuscitadas
estavam vivas e moravam em Arimateia!
w Outros túmulos encontram-se adjacentes ao Calvário e ao túmulo de Jesus na igreja do Santo Sepulcro
em Jerusalém e os relatos evangélicos do sepultamento de Jesus presumem a presença de uma área de
sepultamento perto dali.
Depois de tratar das façanhas de muitas grandes figuras veterotestamentárias, Hb 11,39-40 diz: “ E todos
eles, embora provados pela fé, não receberam a promessa [...], para não serem feitos perfeitos sem nós” .
A respeito dos profetas veterotestamentários, Inácio (Magnésios 9,2) escreve: “ Quando chegou aquele
por quem eles justamente esperavam, ele os ressuscitou dos mortos” . Ver mais especificamente Martírio
(Ascensão) de Isaías 9,17-18 (ver adiante, sob ‘“A cidade santa’ [Mt 27,53c]”).
305
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
diante dele todas as nações, designando as que devem herdar o reino preparado
para elas desde a fundação do mundo, como em Mt 25,31-34), mas como uma
incursão que o inaugura e antecipa. Do mesmo modo, esta ressurreição de “muitos
corpos” quando Jesus morre não é a ressurreição final universal, mas uma incursão
do poder de Deus significando que os últimos tempos começaram e o julgamento
foi inaugurado (ver D. Hill, “ Matthew”, p. 80-82). No julgamento pelo sinédrio,
Jesus advertiu o sumo sacerdote e as autoridades que o julgavam: “ De agora em
diante, vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e vindo sobre as nuvens
do céu” (Mt 26,64). A escuridão, o véu do santuário rasgado, a terra sacudida, as
rochas partidas, os túmulos abertos e os corpos ressuscitados dos santos formam o
aspecto exterior apocalíptico que esclarece o cumprimento parcial do julgamento
divino subentendido naquela advertência profética, quando o Todo-poderoso reage
à morte do Filho do Homem que é o Filho de Deus.
A DESCIDA AO INFERNO. Onde ficou Jesus desde a hora em que morreu e foi
sepultado até aparecer na Páscoa? Uma resposta cristã primitiva, já examinada
acima (§ 41), em relação a “ Este dia comigo vais estar no paraíso” (Uc 23,43), era
1 Veremos que o v. 53 muda o enfoque para a Páscoa. Hutton (“ Ressurrection”), recorrendo ao EvPd
10,41, onde os “adormecidos” são mencionados depois da ressurreição de Jesus, considera todos esses
fenômenos originários de um relato transposto da ressurreição. Além da tese extremamente duvidosa de
que o EvPd é mais original que Mateus, os elementos de julgamento colérico no v. 51bc estão ligados à
escuridão sobre toda a terra ao meio-dia e ao véu rasgado do santuário, e não à ressurreição, se podemos
julgar pelos relatos canônicos. Contra a defesa por Hutton da prioridade do relato do EvPd, ver Aguirre
Monasterio, Exégesis, p. 115, 151; e Maisch, “Osterliche” , p. 102-103 — também Sênior (“Death of
Jesus” , p. 314-318), que menciona que até a aparição de anjos na ressurreição, em Mt 28,2-4, funciona
de modo diferente da aparição angelical em EvPd 10,39.
306
________________ §43.Jesuscrucificado,quartaparte:AcontecimentosposterioresàmortedeJesus- a.Efeitosexternos
que ele foi para Deus ou estava no céu. Esse, afirmo, era o entendimento histórico
original dos poéticos versículos mateanos que examinamos — sexta-feira era o tempo
de vitória e a própria cruz era o local de julgamento, de modo qu e, funcionalmente,
a ressurreição dos santos adormecidos por ocasião da morte de Jesus tem a mesma
importância que o Jesus lucano levar ao paraíso o malfeitor que fora crucificado
com ele no mesmo dia em que ambos morreram. Entretanto, outra perspectiva era
que Jesus não só entrou no céu depois da ressurreição que aconteceu na Páscoa:
e, às vezes, nesse cenário, o tempo intermediário foi ocupado com uma descida ao
reino dos mortos.72 Ali, julgava-se que ele esmagou os maus espíritos ou libertou
da reclusão os santos mortos (ou, pelo menos, os arrependidos) que esperavam (na
prisão ou em um tipo de limbo chamado inferno) pela redenção ou pelo acesso ao
céu.73 E ssa especulação deve ter começado logo, pois parece que foi pressuposta
em uma série de passagens neotestamentárias (admitidamente obscuras),'4 embo
ra muitas vezes haja falta de especificidade quanto a quando a descida ocorreu.
lPd 3,18-19 fala de Cristo ter sido executado na carne, mas ter recebido vida no
espírito, no qual, “ tendo ido, fez proclamação [keryssein] aos espíritos na prisão”.
Depois de uma referência ao que está pronto para julgar os vivos e os mortos, lPd
4,6 diz: “ Pois é por isso que o Evangelho foi pregado até para os mortos, a fim de
que, embora julgados na carne segundo seres humanos, possam viver segundo Deus
no espírito”. E f 4,8-10 indica que houve uma descida para as partes inferiores da
terra antes de Cristo subir às alturas levando um grande número de cativos (ver
também Rm 10,6-7; F1 2,9).
‘2 A frase do credo “ Desceu ao inferno” aparece nos Credos Oriental (fórmula de Sirmium) e Ocidental
(Credo Romano Antigo, usado em Aquileia) no século IV, embora não haja unanimidade quanto ao que
significa, em parte por causa de debates a respeito da posição de Orígenes de que as almas dos maus
podiam ser convertidas depois da morte. Sobre tudo isso, ver W. J. Dalton, Christs Proclamation to the
Spirits, AnBib, Rome, PBL, 1965; 2. ed. 1989.
■3 As imagens mentais judaicas primitivas do que se seguia à morte não eram uniformes e, na verdade,
muitas vezes tinham mudado drasticamente desde os tempos bíblicos (pré-exílicos), quando o Xeol não
era mais que um túmulo, um lugar de escuridão e sombra (Jó 10,21) onde os corpos de todos os mortos
estavam inertes, sem esperança (Jó 17,13.15). Ver N. J. Tromp, Primitive Conceptions of Death and the
Nether World in the Old Testament, Rome, PBI, 1969. Mais próximo dos pontos de vista descritos no
texto acima está 4 Esdras 4,35-42, onde as almas dos justos perguntam quanto tempo têm de permanecer
em seus compartimentos, e um arcanjo explica: no Hades, os compartimentos são como o útero, pois,
quando o número pré-mensurado das idades e dos tempos estiver completo, esses lugares devolverão os
que lhes foram entregues desde o começo.
,l Muitas delas são poéticas e consistem em diversos versos (talvez de um poema maior), do mesmo modo
como mencionei que Mt 27,51b-52 é poético.
307
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Parece que nada do que está acima, a respeito da descida ao inferno, tem
alguma coisa a ver com a imagem em Mt 27,52, com seus túmulos abertos e a
ressurreição dos santos adormecidos por ocasião da morte de Jesus, mas temos
indícios de que as duas imagens foram entrelaçadas no início do século II, senão
antes.75 Além de referências à escuridão envolvendo toda a Judeia e o ato de rasgar
o véu do santuário, EvPd 6,21 relata que “toda a terra foi sacudida”, o que revela
conhecimento de um dos fenômenos caracteristicamente mateanos. Depois, em EvPd
10,41-42, quando o Senhor é levado do sepulcro, uma voz do céu fala: “ Fizeste
proclamação [keryssein] aos adormecidos?” ; e da cruz há uma resposta obediente:
“ Sim”. Obviamente, essa proclamação (linguagem de lPd 3,19) aos adormecidos
(linguagem semelhante à de Mateus) tinha de ter acontecido entre a hora em que
Jesus morreu e a hora em que ressuscitou. A combinação de linguagem mateana
com a da descida é ainda mais óbvia em Justino (Diálogo 72-74), quando ele alega
o cumprimento de uma citação espúria de Jeremias:76 “ O Senhor Deus de Israel
lembrou-se de Seus mortos, os adormecidos na terra da sepultura; e Ele desceu até
eles para pregar-lhes a Boa-nova [euaggelizein] de Sua salvação”.77Justino (Apologia
l,xxxv e l,xviii) faz referência a documentos (autos) do julgamento de Jesus diante
de Pilatos, e conhecemos esse mesmo tipo de material lendário em forma mais
tardia nos Atos de Pilatos (Evangelho de Nicodemos). Ali (Atos de Pilatos 17ss),
os ressuscitados Simeão e seus filhos, de quem os túmulos abertos ainda podem
ser vistos (claramente, um eco dos fenômenos mateanos) são trazidos de Arimateia,
onde agora vivem, para dar uma declaração juramentada, escrita, às autoridades
judaicas a respeito dos milagres que Jesus fez no Hades, ao derrotar o Hades e
Satanás, e levar ao paraíso todas as figuras famosas do AT e João Batista. Quando
examinamos as tradições populares de Judas, que Mt 27,3-10 assumiu e moldou em
uma narrativa a respeito do preço do sangue inocente, indicamos outras transforma
ções desse material da morte de Judas nos Atos e em Pápias. Não é surpreendente
encontrar a mesma situação aqui em tradições populares diversas a respeito dos
sinais apocalípticos que acompanharam a morte de Jesus. Mesmo se autores mais
'3 Essa abordagem ainda é defendida por alguns, por exemplo, Bousset, R. C. Fuller, Gschwind, Neile,
Pesch e Schniewind.
76 A passagem de Jeremias, com interpretação semelhante, também se encontra em Irineu, Contra as
heresias IV,xxii,l.
77 Mais tarde, Eusébio (HE I,xii,20) cita uma carta apócrifa de Abgar de Edessa: “ Ele foi crucificado, desceu
ao Hades [...] ressuscitou os mortos; e, embora descesse sozinho, subiu ao Pai com grande multidão” .
0 Apocalipse de Esdras 7,1-2 grego relata: “ Fui deixado em uma sepultura e ressuscitei meus eleitos e
chamei Adão do Hades” .
308
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
'8 É a frase mais difícil de Mt 27,51-53, mas devemos rejeitar tentativas de removê-la ou neutralizá-la,
quer antigas (Códice 243; Siríaco Palestinense), quer modernas (Klostermann). Embora se possa julgar
que essa frase é adição editorial ao v. 53, essa adição teria sido feita na ocasião em que o Evangelho
apareceu pela primeira vez e, assim, deve ser tratada como parte de Mateus. Ver nota 106.
79 Não desejo entrar aqui na complicada questão do agente da ressurreição, Deus ou Jesus; ver NJBC
81,133. A distinção levantar/levantar-se dada acima é simples demais, em especial para egeirein, pois
o sentido do verbo muda conforme a perspectiva dos autores neotestamentários específicos e a passiva
significa tanto “ser ressuscitado, ser levantado” , como “ ressuscitar, levantar” .
309
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
80 Um bom paralelo é a LXX de SI 139,2: “Conheceis minha egersis” , isto é, minha elevação; similarmente
Sf 3,8: “o dia de minha anastasis” .
81 Alguns mss. gregos minúsculos e a versão etiópica deixaram isso explícito ao ler “a elevação [ressurreição]
deles” , em vez de “a elevação [ressurreição] dele” .
82 Alguns biblistas (Hutton, Resch, Seidenstecker, Trilling, Zeller) afirmam que este versículo, ou toda a
passagem de Mt 27,51b-53, faz parte do relato no capítulo 28 e foi erroneamente colocado aqui.
310
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
ou depois dele83], eles...”. Isso significaria que, embora eles fossem ressuscitados
na sexta-feira, os santos esperaram dentro de seus túmulos até o domingo, quando
Jesus ressuscitara dos mortos — cortesia extraordinária! Perspectiva menos ilógica
origina-se da colocação de uma vírgula depois de 53a e, assim, juntando 53b a 53c
(assim A. Schlatter, T. Zahn): “ E tendo saído de seus túmulos [na sexta-feira], depois
da ressurreição de Jesus [domingo], eles entraram na cidade santa; e eles [...]”. Isso
tiraria da sexta-feira da morte de Jesus (quando os outros fenômenos de Mt 27,51b-
-52b ocorreram) só uma cena composta, que consiste em dois fenômenos: a entrada
na cidade santa e a aparição de 53d. Embora eu prefira esta última interpretação
do v. 53, a questão importante é que este versículo muda para a Páscoa da sexta-
-feira dos vv. 51-52 no mínimo a consequência da saída dos túmulos, a saber, as
aparições, e assim produz um ambiente que dá prioridade à ressurreição de Jesus.
O m eta (“depois” ) de Mt 27,53b tem tom causativo: a ressurreição de Jesus tornou
possível a entrada dos santos ressuscitados na cidade santa e suas aparições ali.84
* Estou sendo cauteloso porque os relatos evangélicos da ressurreição não dizem que Jesus ressuscitou dos
mortos no domingo (embora isso seja subentendido alhures em algumas das fórmulas do “ terceiro dia”).
Eles indicam que ele estava ressuscitado no domingo, pois nesse dia o túmulo foi encontrado vazio.
84 SPNM 317. Observemos o pensamento de Inácio (Magnésios 9,1), que escreveu não muito depois de
Mateus: “o dia do Senhor, no qual também nossa vida se levantou por meio dele e de sua morte” . 0
propósito dos santos ressuscitados não é testemunhar contra Jerusalém, pois não há nada negativo nesta
cena de aparições e Mateus certamente não usaria “cidade santa” para Jerusalém em uma cena de
condenação pelos “santos” . Os seletos videntes da cidade santa compartilham a santidade dos que são
vistos. No verbo emphanizein, há um elemento de revelação, de deixar claro: os santos ressuscitados são
um testemunho da vitória de Jesus sobre a morte.
85 Por que Mateus usa a designação “ a cidade santa” [hagios], em vez de falar diretamente de Jerusalém?
Está tirando proveito de uma designação comprovada que contém a mesma palavra que ele acabou de
usar para os “santos” (hagioi) em 52b?
311
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
grande escala teria deixado alguns vestígios na história judaica e/ou secular! Conse
quentemente, apelam para o uso de “cidade santa” para uma nova Jerusalém celeste
em Ap 21,2.10; 22,19 (“a cidade que está para vir” de Hb 13,14) e interpretam Mt
27,53c com o significado de que os mortos ressuscitados entraram no céu depois
da ressurreição de Jesus.86 Certamente, isso concorda com descrições onde o Jesus
ressuscitado leva uma hoste ao céu (por exemplo, E f 4,8). O Martírio (Ascensão)
de Isaías 9,7-18 descreve como os justos do tempo de Adão em diante tiveram de
esperar até a encarnação de Cristo para receber suas coroas; ele defraudou o anjo
da morte ressuscitando dos mortos, e quando ascendeu ao sétimo céu, eles ascen
deram com ele. Testamento de Daniel 5,12 traz “os santos” revigorando-se no Éden
e os justos alegrando-se na Nova Jerusalém. Contudo, há uma imperfeição fatal na
interpretação desta “cidade santa” celeste de Mt 27,53c: “ Eles foram feitos visíveis
a muitos” em 53d certamente não pode se aplicar ao céu! Nem se refere a aparições
terrenas depois de uma ida não mencionada ao céu (ver Winklhofer, “Corpora”, p.
41-43), pois Mateus não demonstra nenhum interesse no tempo intermediário. Com
certeza, o propósito é referir-se a aparições na Jerusalém terrena.
86 Ver Gschwind, Niederfahrt, p. 192. Eusébio (Demonstratio evangélica IV,xxii,4; GCS 23,169), usan
do terminologia mateana, relata que, depois da ressurreição, muitos corpos dos santos adormecidos
levantaram-se (anistanai) e foram levados com ele para a cidade santa e verdadeiramente celeste (também
X,viii,64; GCS 23,483).
8‘ Que a vida eterna esteja envolvida é afirmado por muitos Padres da Igreja, por exemplo, os alexandrinos
(Clemente, Orígenes, Cirilo), Epifânio, Eusébio, Gregório de Nissa e Anselmo.
88 Essas aparições de Jesus são narradas por Lucas e João: Mateus tem uma aparição perto do túmulo a
Maria Madalena e à outra Maria (Mt 28,1.9-10), mas nenhuma aparição de Jesus na cidade. Tem sido
sugerido que a aparição desses muitos mortos ressuscitados na cidade santa compensa por essa falta
em Mateus.
312
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
89 Como observa Witherup (“Death” , p. 581), este verbo (emphanizein) na passiva tem sentido ativo (“ apa
recer” ); mas, no caso dos mortos ressuscitados, só Deus pode fazê-los aparecer. Contudo, a observação
de Witherup demonstra que esse não é o mesmo tipo de passiva encontrado antes nos quatro verbos da
quadra (Mt 27,51b-52b).
90 Sustentado por Crisóstomo, este ponto de vista teve sólido seguimento no Ocidente: Tertuliano, Ambrósio,
Agostinho, Tomás de Aquino (Suma teológica Illa, q. 53, a. 3) e Suarez; e ainda tem defensores: Cull-
mann, Fascher, Lagrange, Vosté e Witherup. Uma terceira e menos conhecida interpretação pressupõe
que corpos aparentes estavam envolvidos: nem mortais, nem imortais (Lucas de Bruges, 1606 d.C.).
91 Citei anteriormente paralelos em descrições greco-romanas da morte de pessoas famosas ou insti
tuições para mostrar que os fenômenos evangélicos eram inteligíveis para leitores daquelas origens,
313
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
independentemente do valor teológico que pudessem atribuir a esses prodígios. Díon Cássio (História,
LI,xvii,5) relata que, na queda de Alexandria para os romanos, “os espíritos desencarnados [eidolon]
dos mortos foram feitos visíveis” .
1,2 Epifânio (Panarion LXXV,vii,6-7; CCS 37,339) fala dos santos ressuscitados que vão junto com Jesus
à cidade santa, isto é, na Jerusalém terrena para aparecer e na Jerusalém celeste para estar com Deus.
Bieder (Vorstellung, p. 54) relata a tese de Diodoro de Tarso, segundo a qual eles foram levados para o
alto como Elias.
314
§43.Jesuscrucificado,quartaparte:AcontecimentosposterioresàmortedeJesus- a.Efeitosexternos
Análise
93 A questão da historicidade literal da abertura dos túmulos, da ressurreição dos corpos dos santos
adormecidos e suas aparições a muitos na cidade santa (Mt 27,52-53) não é a mesma que a questão de
o corpo de Jesus ter apodrecido no túmulo e ele ter sido visto por muitos. Ver, acima (sob “Eles foram
feitos visíveis a muitos”), a atmosfera muito diferente nos relatos desses dois acontecimentos.
94 Para alguns, não afirmar a historicidade do rasgamento do véu do santuário, ou do terremoto, ou das
aparições dos mortos ressuscitados, todos narrados em relação à morte de Jesus, é negar uma diretriz ou
inspiração dos relatos evangélicos. Estranhamente, esse julgamento deprecia o poder singular de Deus
que busca proteger. Se os seres humanos pudessem fazer uma rica exposição do significado da morte de
Jesus em linguagem e gênero diferentes da história, em que bases se negaria a liberdade de Deus para
proporcionar orientação a essa expressão?
315
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
% A palavra “ santuário” é o instrumento primordial de Marcos para ligar os textos que envolvem a afir
mação de Jesus no julgamento do sinédrio e seu cumprimento no momento de sua morte. Ver acima (no
início desta seção, sob “O papel deste fenômeno nas narrativas evangélicas”) a possibilidade de existir
uma ligação secundária entre o ato do sumo sacerdote de despedaçar suas vestes ao ouvir a blasfêmia
na afirmação de Jesus, diante do sinédrio, de que era o Filho do Bendito e o ato de Deus rasgar o véu
do santuário, área acessível exclusivamente a sacerdotes, a fim de mostrar que a blasfêmia foi contra o
Filho de Deus.
316
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
divina entre o povo escolhido para ser de Deus. Mesmo quando a literatura judaica
primitiva descrevia o julgamento divino corretivo concentrando-se na devastação do
lugar sagrado de Jerusalém (cuja santidade Deus parou de proteger), daí a reflexão
cristã sobre o simbolismo nesse lugar sagrado do véu, que demarcava a santa pre
sença de Deus. (Afirmei não ser preciso decidir se, originalmente, a referência era
ao véu exterior ou interior: não há nada nas narrativas evangélicas que especifique
isso, e os leitores dos Evangelhos talvez nem conhecessem essa diferença, embora os
leitores de Hebreus fossem orientados para o véu interior.) É provável que a tradição
pré-marcana já considerasse o rasgamento do véu hostil, e Marcos intensificou isso
fazendo o véu rasgado “do santuário” confirmar as referências anteriores da NP à
destruição do santuário por Jesus. O autor de Hebreus viu possibilidades positivas
no véu: Jesus passou pelo véu carregando sangue para oferecer um sacrifício eter
no no lugar sagrado celeste e, como precursor, levou outros a segui-lo. Nas duas
interpretações (a de Marcos e a de Hebreus) o santuário terreno, aquele construído
por mãos humanas, já não tinha sentido.
* No c o m e n t á r io , expliquei por que não aceitei a ligação do véu rasgado com a oração final, de confiança,
de Jesus, de modo a ele se tomar sinal positivo dos céus abertos.
317
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
apocalípticos, dados por Deus, que intensificam o julgamento provocado pela morte
na cruz do Filho de Deus.
97 Notemos a indicação de que Jesus morreu ao meio-dia. A sexta hora ou meio-dia é a única menção de
tempo encontrada nos quatro relatos canônicos da crucificação, embora o que acontece ao meio-dia varie:
condenação por Pilatos (João); escuridão depois de uma crucificação às 9 da manhã (Marcos); escuridão
sem indicar que a crucificação tivera lugar muito antes (Mateus, Lucas).
98 Assim, a combinação no EvPd do véu despedaçado com a escuridão difere da combinação lucana que
acabamos de examinar. O fato de EvPd 6,22 relatar que “ o sol brilhou” depois da notícia de que Jesus
“foi levado para o alto” (EvPd 5,19) deixa claro que a lei duas vezes mencionada a respeito de o sol não
se pôr sobre alguém que morreu (EvPd 2,5; 5,15) não foi transgredida.
99 Em minha abordagem ao EvPd, pressupus que esporadicamente a tradição popular pré-mateana à qual
Mateus recorreu continuou sua evolução e foi a essa etapa de evolução mais tardia que o EvPd recorreu.
Contudo, o EvPd também recorreu a uma lembrança do conteúdo de Mateus. No caso presente, diante de
pelo menos duas possíveis derivações, creio que o EvPd se explica melhor como dependente de Mateus.
Entretanto, no caso da tradição relacionada de que, entre a morte e a ressurreição, o Senhor fizera uma
proclamação aos adormecidos (EvPd 10,41), creio que o EvPd estava recorrendo a outros desdobramentos
da tradição popular, pois não encontro nenhuma prova de que Mateus sabia da “descida ao inferno”
(acima, sob “A descida ao inferno”).
100 Embora isso possa ser desvalorizado como perspectiva mágica, também pode ser uma apreciação, expressa
com simplicidade, da encarnação e seus resultados duradouros.
318
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
EvPd 10,40 descreve como tão gigantesco que a cabeça se esticava além dos céus.
EvPd nos dá uma confirmação antecipada do fascínio em formação pelos fenômenos
da morte que vimos (acima, sob “Josefo” e “Jerônimo” ) em plena florescência no
período patrístico.
101 O significado dos fenômenos é escatológico, não cristológico, pois Deus é o agente, não Jesus. Entretanto,
o fato de Deus fazer isso por causa da morte de Jesus tem consequências para a identidade de Jesus, e
isso é reconhecido pela confissão dele como Filho de Deus, feita pelo centuriâo e os guardas que estavam
com ele em Mt 27,54. Quanto à soteriologia, aqui a morte de Jesus não ressuscita os mortos. Deus os
ressuscita na ocasião dessa morte.
319
Q uarto ato »JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto
102 Os que pressupõem uma unidade pré-mateana (por trás da quadra ou do conjunto de Mt 27,51b-53)
incluem Aguirre Monasterio, Bartsch, Bieder, Fischer, Haenchen, Hauck, Hirsch, Plummer e Riebl. Na
questão de vocabulário e estilo pré-mateano, ver Aguirre Monasterio, Exégesis, p. 29-56.
103 Marcos, então, ao acrescentar “santuário” , levou essa frase para uma sequência pela qual ela cumpriu
duas passagens anteriores que prediziam a destruição do santuário.
104 Consistente com sua costumeira aversão a pressupor qualquer tradição pré-mateana claramente definida
(que não Marcos ou Q), Sênior (“Death of Jesus”, p. 320; “Matthew’s Special Material” , p. 282-285) defende
a composição mateana da quadra. Ele alega que o principal argumento para a posição pré-mateana é a
parataxe dos quatro versos, e apresenta um exemplo de parataxe formado por Mateus nos quatro versos
de Mt 7,25. A fraqueza desse argumento aparece se traduzirmos o último versículo literalmente: “E caiu
a chuva, e vieram os rios, e sopraram os ventos, e bateu contra aquela casa” . Primeiro, essa estrutura
quádrupla é menos regular que a de Mt 27,51b-52b, como veremos na mudança do padrão de sujeito
na última oração. Segundo, a ordem das palavras é diferente, e é precisamente a ordem das palavras
nos vv. 51b-52b (com o verbo por último) que sugere a Riebl (Auferstehung, p. 58-60) um antecedente
semítico (escrito). Terceiro, apesar do padrão de quatro versos, a descrição do que acontece em Mt 7,25
é concreta (isto é, os fenômenos são os da experiência comum), enquanto o conteúdo de Mt 27,51b-52b é
altamente imaginativo e faz eco à Escritura, do mesmo modo que o outro material popular característico
de Mateus mencionado acima. A alegação de que, de vez em quando, Mateus sozinho de repente surgia
criando tal material é muito menos verossímil que a alegação de que ele incorporou material popular que
surgiu em tomo do nascimento e da morte de Jesus. Quarto, se Mateus criou a quadra nos vv. 51b-52b e
mencionou mais fenômenos no v. 53, por que ele mudou o estilo tão bruscamente de uma das passagens
para outra?
320
§ 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
103 Há duas objeções, originárias do vocabulário, a atribuir o v. 53 a Mateus. Em outras passagens, ele não
usa emphanizein (“fazer visível” ); mas o adjetivo emphanes é usado em At 10,40 em relação ao Jesus
ressuscitado e, assim, talvez estejamos lidando com linguagem de ressurreição-aparição. Alhures, Ma
teus não usa egersis (“elevação”), mas provavelmente quer continuar a partir de egeirein, no v. 52b: os
santos foram elevados antes e, agora, Mateus concentra-se na elevação de Jesus. Positivamente para a
composição mateana: entre os Evangelhos, só Mateus usa “ cidade santa” para Jerusalém, a saber, quando
o diabo levou Jesus até ali para tentá-lo e questionar se ele era realmente o Filho de Deus (Mt 4,5-6; cf.
5,35). O caso presente de entrar na “cidade santa” é seguido por uma confissão de Jesus como o Filho
de Deus.
106 Considero esta frase a chave para a perspectiva teológica de Mateus, por isso rejeito a sugestão (ver
Riebl, Auferstehung, p. 54-56) de que ela representa reorganização pós-mateana.
321
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
l0' De certa maneira, para Mateus os últimos tempos começaram com o nascimento do Messias; mas
havia diferentes aspectos dos últimos tempos e, aqui, chegamos ao momento escatológico de castigo e
recompensa.
322
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 43. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - a. Efeitos externos
108 Entretanto, talvez valha a pena salientar que os aspectos salvfficos positivos desta imagem concentram-
-se na elevação (ressurreição) dos mortos e na confissão pelo centurião, não no rasgamento do véu do
santuário.
323
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte:
Acontecimentos posteriores à morte
de Jesus - b. Reações dos presentes
(Mc 15,39-41; Mt 27,54-56; Lc 23,47-49;
Jo 19,31-37)
Tradução
325
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. 1 sepultado ali perto
Comentário
326
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
1 No NT, somente Marcos, com sua predileção por latinismos, usa (3 vezes) o empréstimo kentyrion, do latim
centurion, relacionado com centum (cem), palavra encontrada também na literatura grega (por exemplo,
Políbio, História VI,xxiv,5). Mateus e Lucas preferem a palavra mais propriamente grega, hekalontarches
(variante hekatontarchos, relacionada com htkaton, “ cem”) que aparece 20 vezes no NT (4 em Mateus,
16 em Lucas-Atos).
2 Em 2Rs 2,15 e Eclo 37,9 a frase ex enanlias (“ na frente de, diante de”) é usada com idein (“para ver”).
327
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
3 Ao estudar a relação do forte grito expresso em Mc 15,34 e o forte grito não expresso de Mc 15,37, achei
mais provável que Marcos não tivesse pensado em dois gritos, mas, em Mc 15,37, estivesse simples
mente retomando a narrativa (depois de uma interrupção em Mc 15,35-36) recordando o forte grito que
mencionara em Mc 15,34.
328
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
centurião, pois nada nesses versículos mostra que de fato Deus não abandonara
Jesus e, certamente, Deus não interveio para salvá-lo da morte.
Muito mais plausível é que “tendo visto que ele assim expirou”, em Mc 15,39,
tivesse o propósito de incluir não só a morte em Mc 15,37 (e o que a precedeu
imediatamente em Mc 15,34-36),4*mas principalmente Mc 13,38 e o que se seguiu
à morte: o rasgamento do véu do santuário. A objeção de que esse acontecimento
dificilmente pode ser considerado parte de “assim expirou” não dá força suficiente
ao “assim” que Marcos colocou em posição enfática. Na visão do centurião, Jesus,
que tinha clamado “ Meu Deus” pouco antes de expirar, era verdadeiramente Filho
de Deus porque Deus respondera de maneira dramática e, assim, mostrara que
Jesus não fora abandonado — resposta divina que, ao mesmo tempo, ironicamente
concedia o pedido dos que com escárnio pediram uma intervenção celeste. Mas
poderia o centurião ter visto isso? Há quem expresse a objeção de que o véu do
santuário interior que levava ao Santo dos Santos era visto somente pelos sacerdotes
do Templo e o véu exterior, apenas do lado leste (o Monte das Oliveiras), e não da
colina em forma de caveira do Gólgota, ao norte. Rejeito a própria aplicabilidade
dessa objeção. Se é expressa no nível da história, confusamente interpreta mal
um sinal apocalíptico como ocorrência concreta (§ 43, a n á u s e ). Se é expressa no
nível de fluência narrativa, supõe que Marcos e seus leitores conheciam a planta
arquitetônica e geográfica do Templo em relação ao Gólgota, suposição que contestei
acima (§ 43, sob “ Os véus no Templo do tempo de Jesus” ) ao discutir os véus. Não
há razão para pensar que a antiga audiência marcana (não mais que muita gente
hoje) teria tido problema com o rasgamento do véu ser visto pelo centurião. E, para
eles, fez sentido que esse tremendo sinal o tenha levado a entender que Jesus não
só era inocente, mas na verdade era tão estreitamente relacionado com Deus que a
divindade começara a destruir o santuário do povo que ousara escarnecê-lo.
4 Eu preferiría empurrar o “assim expirou” para Mc 15,33 e a escuridão que cobriu a terra inteira a partir
da sexta hora. E com certeza o que o centurião teria visto. Em tudo isso e do princípio ao fim desta seção,
penso no nível do fluxo narrativo, não no nível da historicidade.
’ Os códices Vaticano e de Beza leem o particípio presente ta ginomena, enquanto a tradição koiné lê o
partieípio aoristo ta genomena, “ essas coisas que tinham acontecido” .
329
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
palavras, muitos dos sinais apocalípticos operados por Deus para interpretar a morte
de Jesus: a terra sacudida, as rochas partidas, os túmulos abertos, os corpos dos
santos adormecidos ressuscitados.6 Mateus enfatiza o terremoto em parte porque
sua causa se relaciona com alguns dos outros sinais e em parte porque teria sido
o sinal mais claramente visível. Essa mudança de ênfase do véu rasgado (o centro
subentendido da atenção marcana) levanta a possibilidade de Mateus estar ciente
dos problemas topográficos a respeito de ver o véu. Entretanto, seja ou não seja isso
verdade, os sinais de Mateus não devem ser mais historicizados que os de Marcos;
e a visão que o centurião tem “desses acontecimentos” não deve ser contestada
com base em implausibilidades geográficas — quantos túmulos podiam ser vistos
do Gólgota? E compreensível que Mateus relate que a visão da terra tremendo e
dos outros acontecimentos provocasse temor excessivo,7 além de uma exclamação
(tirada quase literalmente de Marcos) que dá voz à admiração: “ Verdadeiramente,
este era Filho de Deus”.
6 Os sinais que relacionei refletem a probabilidade de que “ o tremor e estes acontecimentos” devam ser
entendidos sequencialmente, isto é os “acontecimentos” são o que Mateus relacionou depois do terremoto.
Ao interpretar Mateus, não há razão adequada para incluir como Jesus morreu (com a devida vênia a
Vanni, “ Passione” , p. 88). Estou indeciso quanto ao rasgamento do véu, pois esse é o mesmo tipo de sinal
escatológico que os outros. Como expliquei em § 43, é plausível que Mt 27,53 signifique que, embora os
mortos tenham saído dos túmulos na sexta-feira, eles entraram em Jerusalém e apareceram no domingo
ou mais tarde, depois da ressurreição de Jesus. Ao descrever o que o centurião viu na sexta-feira, Mateus
pula esse versículo (que ele acrescentara) e volta aos acontecimentos da sexta-feira.
‘ Sphodra (“excessivamente”) ocorre 7 vezes em Mateus, 1 em Marcos e 1 em Lucas. 0 tremor da terra e o
temor entre os guardas reaparecem como tema mateano em Mt 28,2-4, quando o anjo do Senhor remove
a pedra do túmulo de Jesus.
8 RSV (1* edição), NEB, Phillips e Moffat traduzem-no como “um filho de Deus” . Em § 37, Parte XII, ver
o predicado menos que completo em Hamer, Johnson; também em C. Mann, ExpTim 20, 1908-1909, p.
563-564. Ver “ o Filho de Deus” integralmente valorizado em P. H. Bligh, Bratcher, Glasson, Goodwin,
Guy, Michaels, Stock.
330
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
1. Há quem argumente que Marcos, que até aqui nunca fez um ser humano
confessar Jesus como “o Filho de Deus”, não permitiria isso aqui. Entretanto, é
possível raciocinar em outra direção: Marcos faz, na verdade, os possuídos pelo
demônio reconhecerem que Jesus é “ (o) Filho do Deus (Altíssimo)” (Mc 3,11; 5,7;
cf. 1,24);9 ele faria o centurião confessar menos em resposta à ação impressionante
de Deus no momento da morte de Jesus? Que tal confissão não tenha sido feita
antes não é obstáculo, pois o pleno entendimento da identidade de Jesus não era
possível antes que o Filho do Homem sofresse (ver Mc 9,30-32). Além disso, Marcos
proporciona uma inclusão que estrutura o Evangelho: no início, Deus disse: “ Tu és
meu Filho amado” (não articular, Mc 1,11); no fim, um ser humano reconhece de
modo irrevogável essa verdade.10 Dentro da NP, a confissão com certeza destina-se
a retomar a questão levantada no julgamento pelo sinédrio, onde Jesus respondeu
“ Eu sou” ao lhe ser perguntado se era o Filho do Bendito. Por que Marcos teria
agora menos que isso confessado pelo centurião? Quanto a Mateus, este primeiro
argumento não se aplica, pois ele faz os discípulos confessarem Jesus como “ Filho
de Deus” (não articular, Mt 14,33) depois da caminhada sobre a água, e por Simão,
filho de Jonas, como “o Filho do Deus vivo” (articular, Mt 16,16) em Cesareia de
Filipe. A confissão pelo centurião e os guardas é continuação da confissão dos fiéis.
9 Como, em Mc 1,11, Deus revelou que Jesus era o Filho, muitos concordam que essa confissão por en-
demoninhados não deve ser considerada falsa. Os demônios sabem de modo sobrenatural o que os seres
humanos só sabem corretamente quando entendem o papel da cruz como componente da identidade de
Jesus (sua humanidade sofredora) — componente que também faz parte da identidade dos que querem
ser seus discípulos.
10 Pode haver outra inclusão, se “ Filho de Deus” em Mc 1,1 (que falta em alguns mss.) for genuíno.
11 Pode-se afirmar que há uma progressão da confissão não articular dos discípulos para a confissão articular
mais solene por Simão Pedro; mas certamente Mateus não estava fazendo os discípulos confessarem “Tu
és um filho de Deus” (como outros seres humanos) depois que Jesus caminhou sobre a água e acalmou
a tempestade.
331
Q umuo h o •lesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
de que ele tem em mente a mais alta cristologia. Quanto ao uso do título com o verbo
de ligação, há casos onde a designação “Filho de Deus” em sentido exclusivo é não
articular, quando, no todo, em parte ela precede o verbo, como acontece na confissão
do centurião, por exemplo, Mt 4,3.6 (= Lc 4,3.9); Mt 27,40; Jo 10,36. Na verdade,
depois de um famoso estudo por E. C. Colwell, mais precisão entrou na avaliação
do predicado não articular. A regra de Colwell, a saber, substantivos predicativos
definidos que precedem o verbo geralmente não têm o artigo,12 fez com que ele (p.
21) achasse em Mc 15,39 uma confissão de “o Filho de Deus”. Harner (“ Qualitative”,
p. 75) busca refinar a imagem gramatical argumentando que substantivos predica
tivos não articulares que precedem o verbo de ligação atuam primordialmente para
expressar a natureza ou o caráter do sujeito. 0 centurião marcano, então, não quer
dizer que Jesus era um filho de Deus, pois nesse caso a designação teria seguido
o verbo. Mas nem o centurião quer dizer que Jesus era o único Filho de Deus em
sentido cristológico pleno, pois então o predicado seria articular. Mais exatamente,
ele quer dizer que Jesus era o tipo de Filho de Deus que é marcado por (e, portan
to, é conhecido por meio de) sofrimento e morte. Embora pelo jeito as distinções
gramaticais de Harner sejam refinadas demais, ele corretamente subentende que
“ Verdadeiramente [...] Filho de Deus” inclui uma rejeição marcana de toda noção
falsa de filiação divina (em especial uma que exclua sofrimento) em circulação entre
os cristãos. Mas a avaliação de Harner deve ter estendido a qualificação do “tipo
de Filho de Deus” a todo o contexto da NP. Na lógica da narrativa marcana, o cen
turião deve estar remontando à pergunta sobre “o Filho do Bendito” no julgamento
pelo sinédrio, pois essa é a única outra vez que a filiação divina é assunto da NP
marcana.13 Jesus é, de fato, o tipo de Filho de Deus sobre quem os líderes judaicos
fizeram perguntas, e cuja afirmação eles consideravam blasfema. E esse o significado
de “ Verdadeiramente”, a primeira palavra na confissão do centurião: na questão que
levou à morte de Jesus, a verdade estava do lado de Jesus.14
12 “ A Definite Rute for the Use of the Article in the Greek New Testament” , em JB L 52, 1933, p. 12-21.
E. S. Johnson (“ Is Mark”, p. 4), em seu exame de 112 casos de substantivos predicativos que precedem
o verbo, descobriu que 15 tinham o artigo e 97 não tinham.
13 No escárnio perto da cruz que o centurião pode ter ouvido, os chefes dos sacerdotes e os escribas con
testaram o fato de Jesus ser “ o Messias, o rei de Israel” , sem mencionar o Filho de Deus. Mais uma vez,
a narrativa mateana é um progresso, pois em Mt 27,40.43, os transeuntes e os chefes dos sacerdotes
escarneceram da alegação que Jesus fez de ser o Filho de Deus.
14 Stock (“Bekenntnis” , p. 104) lembra que alethes teve essa força de solucionar uma disputa em seu único
uso marcano anterior (Mc 14,70b), onde os circunstantes afirmam a Pedro: “ Verdadeiramente, tu és um
deles, pois de fato és galileu” .
332
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
15 As tropas sob o controle do prefeito da Judeia muitas vezes não eram etnicamente romanas, nem italianas
(§31, nota 64), e o posto de centurião não exigia cidadania romana. Contudo, esse centurião vem com
seus soldados do pretório do prefeito romano (Mc 15,16.20) e será chamado por Pilatos para relatar a
morte de Jesus (Mc 15,44). Portanto, os leitores devem ter pensado nele como representante romano de
Pilatos. Isso foi entendido logo: EvPd 8,31 dá ao centurião, que, com os soldados, foi enviado por Pilatos
para guardar o túmulo de Jesus, o nome de Petrônio, que era o nome de um legado romano da Síria, c. 40
d.C. Atos de Pilatos 16,7 dá ao centurião o nome de Longino, nome usado por romanos da gens Cassia
(C. Schneider, “Hauptmann” , p. 5). Metzger (“ Names” , p. 95) relata que uma imagem do Códice Egberti,
do século X, chama de Estefato o homem que pôs o vinho avinagrado na esponja para oferecer a Jesus.
16 Quanto a declarar Jesus bom, em Mt 27,19 a mulher de Pilatos reconhece que Jesus é justo e, em Mt
27,23-24; Lc 23,14 e Jo 19,6, Pilatos declara Jesus inocente. Há quem apele para a forma lucana da
confissão do centurião (Lc 23,47: “ Certamente este homem era justo”) como prova de que Marcos queria
dizer isso, mas abaixo vou argumentar que Lucas muda, não traduz Marcos. Quanto a declarar Jesus
herói divino, P. H. Bligh (“ Note”) lembra que um pagão estaria familiarizado com a designação sebastos
(“digno de ser cultuado” ), ligada a Augusto, ou mesmo o huius sebastos ligado a Tibério.
17 Manus (“Centurions” , p. 269): “ Em um mundo onde o exército era usado para expandir o império e
conseguir hegemonia sobre nações fracas, o posto e posição de um centurião eram respeitáveis” . John
son (“Is Mark”) apresenta proveitosos dados sociológicos, por exemplo, uma audiência helenística teria
visto um centurião como alguém com capacidade que lhe possibilitara avançar para uma respeitável
posição de oficial. (Observemos a admirável integridade e atitude solidária do tribuno em At 23,16ss e
do centurião em At 27,43.) Mas então Johnson prossegue e aplica mal informações históricas, a fim de
negar que o centurião confessou a filiação singular de Jesus. Sem dúvida, Johnson está certo ao dizer
que muitos soldados romanos que serviam na Judeia tinham desprezo por criminosos crucificados,
eram antijudaicos e desdenhavam as crenças judaicas como superstição. Mas Johnson não pergunta se
a audiência de Marcos teria notado isso. Não teria ela considerado mais convincente que alguém sem
nenhuma razão para ser favorável a Jesus tivesse reconhecido a verdade a respeito dele? Mais tarde, o
centurião Longino foi considerado santo cristão (comemorado em 15 de março), cujas relíquias foram
preservadas em Mântua.
333
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
o Rei de Israel, desça agora da cruz, a fim de podermos ver e crer” (Mc 15,32).
Agora, um gentio vê o que Deus fez e crê. A tradição Q sabe de um centurião que
no mesmo instante mostrou tal fé quanto a Jesus ter prometido a muitos do Oriente
e do Ocidente lugares à mesa com Abraão, Isaac e Jacó, enquanto os filhos do reino
seriam lançados fora, nas trevas (Mt 8,5-13; Lc 7,1-10). Esse centurião no local
da cruz é o equivalente marcano. No fim das aparições do Jesus ressuscitado nos
outros Evangelhos, há uma diretriz para proclamar o Evangelho de Jesus, além dos
confins do Judaísmo, para o mundo gentio (Mt 28,19-20; Lc 24,47; [At 1,8]; Jo
20,21 [por inferência]; apêndice marcano Mc 16,15). Para Marcos, que não relata
aparições do Jesus ressuscitado, esse centurião serve como símbolo para o cumpri
mento incipiente da promessa de Jesus em Mc 13,10, segundo a qual o Evangelho
de Jesus seria pregado a todas as nações. Há também um eco veterotestamentário?
Admitindo-se o emprego do SI 22 na NP (APÊNDICE VII), em especial nas últimas
palavras de Jesus alguns versículos antes (Mc 15,34), Marcos pensava em SI
22,28 (“ Todos os confins da terra recordarão e se voltarão para o Senhor e todas
as famílias das nações se prostrarão diante Dele” )? Também é importante que a
confissão seja feita por um soldado romano. Ao narrar a atividade dos soldados na
crucificação, Mc 15,26 relatou uma inscrição que trazia a acusação contra Jesus:
“ 0 Rei dos Judeus”, que fazia eco à acusação no julgamento diante de Pilatos (Mc
15,2). Agora, o chefe dos soldados tacitamente ignora essa falsa questão política
e volta de maneira afirmativa à acusação no julgamento do sinédrio: “o Filho de
Deus [o Bendito]” .18
18 O contexto precedente exige que essa confissão seja interpretada em contraste com a negação. Creio que
Bligh (“Note” , p. 53) historiciza erroneamente quando entende que isso é contrário ao compromisso de
fidelidade ao imperador: “ Este homem, não César, é o Filho de Deus” . Não vejo nada que sugira que a
audiência marcana pensaria nesse contraste.
19 Petrônio (Satyricon, p. 111) menciona um soldado que ficou vigiando a cruz temendo que alguém levasse
o corpo para sepultamento.
20 Realmente, At 10,1-2 relata que ele já era devotado temente a Deus, mas o verdadeiro significado da
história é o inesperado da fé vir a esse centurião gentio (ver At 11,18; 15,7).
334
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
Voltando-nos brevemente para Mateus, não vejo razão para pensar que
“Filho de Deus” na forma mateana da confissão pelo centurião signifique alguma
coisa diferente do uso marcano do termo. 0 particípio “dizendo”, que introduz a
confissão mateana, é dependente de “temeram excessivamente”. Em outras pala
vras, o temor religioso gerado pelos sinais escatológicos é o contexto no qual Jesus
é aclamado como Filho de Deus. O “ Verdadeiramente”, que é a primeira palavra
da confissão, foi usado antes, no reconhecimento da filiação divina de Jesus pelos
discípulos em Mt 14,33. Vimos que Ez 37 influenciou muito a referência mateana
às rochas sendo partidas, os túmulos sendo abertos e os corpos sendo ressuscita
dos. Agora que esses fenômenos ocorreram, o centurião e os guardas que os viram
reconhecem quem Jesus é, cumprindo Ez 37,13 (LXX): “Então sabereis que eu sou
o Senhor, quando eu abrir vossos sepulcros para conduzir meu povo para fora dos
21 Dn 3,28; 6,24; 3 Macabeus 6,20-29; ver Pobee, “ Cry” . Depois que o mártir Eleazar sofreu morte horrível,
o autor de 4 Macabeus 7,6-15 reconhece a importância extraordinária dessa nobre figura por uma série
de títulos laudatórios.
335
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
22 Mt 2,4.20; este último contém um plural: “aqueles que queriam matar o menino” , mostrando que todos
os grupos de Mt 2,4 estavam envolvidos.
2,1 A respeito de muitas das observações feitas aqui, ver Stock, “Bekenntnis” , p. 296-297.
336
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
“este” é designador: este que morreu desta maneira. Combinado com “era”, o
demonstrativo serve à teologia marcana de que a revelação do Filho de Deus teve
lugar na cruz. Quanto ao sujeito nominal, “homem [anthropos]”,24 Marcos contrasta
muitas vezes “ homem” [= ser humano] e “ Deus” (Mc 7,8; 8,33; 10,9.27; 11,30;
12,14) como alternativas opostas. Nessas passagens, os valores humanos são tão
diferentes dos de Deus a ponto de distorcer a verdade religiosa. Jesus agia e falava
com poder/autoridade (exousia : Mc 1,22.27; 11,28), mas os escribas o acusaram
de blasfemar alegando fazer coisas que só Deus podia fazer (Mc 2,7: notemos que
eles também veem origem humana e divina como alternativas opostas). Ao leitor,
é dito que a razão de Jesus não ser blasfemo é que, nele, o antagonismo entre o
humano e o divino não existe. Ele é o Filho do Homem cujos valores são os de Deus
e não os dos seres humanos: o Filho do Homem, que veio para servir, não para ser
servido (Mc 10,45), e que reconhece que seu papel é sofrer na cruz (Mc 8,31; 9,31;
10,33). Diante do sinédrio, Jesus respondeu aíirmativamente à pergunta do sumo
sacerdote a respeito de ser ele o Filho do Bendito (Deus) em termos de ver o Filho
do Homem (Mc 14,61-62); agora, o centurião romano vê “este homem” e o identifica
como o Filho de Deus.25 Manus (“ Centurions”, p. 264) expressa bem a totalidade
da imagem em Mc 15,39: “ Marcos faz o centurião romano um representante fiel do
Cristianismo gentio que viu a significância de Jesus como o Filho de Deus revelado
por excelência no drama da cruz”. Ele é o primeiro daquela comunidade de fiéis que,
na linguagem de Mc 14,58, constitui outro santuário não feito por mãos humanas,
que substitui o santuário de Jerusalém feito por mãos humanas, cujo véu acabou
de ser rasgado em dois, de alto a baixo.
337
Q uarto aio •JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto
“esse homem” marcano na NP acidental ou, aos olhos de Mateus, a designação, que podería ser entendida
como “ esse sujeito” , é referência indigna a Jesus?
2| No esforço para descobrir uma nova estrutura no fim de Mateus, Heil (“ Narrative” , p. 420) tenta juntar a
reação das mulheres (Mt 27,55-56) ao relato do sepultamento e ressurreição, de modo que Mt 27,55-28,20
forma uma unidade. Acho isso errado, por três razões: a) como vou argumentar (§ 48 A), a descoberta
por Heil de três partes desiguais (cada uma com três subseções) representa um excesso de estruturação
estranho a Mateus; b) essa análise choca-se com a narrativa bem delineada que associa Mt 27,55-56
primordialmente com o que precedeu na crucificação, e não com o sepultamento e ressurreição que se
segue; e c) a análise ignora o paralelo inclusivo entre Mt 27,57-28,20 (observemos o início, com Mt
27,57) e Mt 1,18-2,23, a ser indicado adiante (Quadro 9; § 48 A).
28 Esses verbos no imperfeito têm força de mais-que-perfeito. Qualquer tentativa (ver Schottroff, “ Maria” )
de fazer os verbos incoativos com a ideia de que Marcos quer dizer que essas mulheres ainda estão se
guindo e servindo Jesus nesta cena de crucificação não faz justiça à especificação marcana de que isso
teve lugar na Galileia. Somente em Mc 16,1 o evangelista nos informará que as mulheres ainda desejam
prestar serviços ao Jesus morto.
29 E provável que, aqui, Diakonein (“ servir, ministrar para” ) signifique tomar conta de necessidades ma
teriais, em especial comida e bebida (ver Mc 1,13.31).
338
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
diz que fizeram isso (embora Marcos talvez tenha indicado que o fizeram) subiram
com (synanabainein ) Jesus a Jerusalém, isto é, presumivelmente vindo da Galileia,
na subida (anabainein ) descrita em Mc 10,32-33, onde Jesus advertiu aos compa
nheiros que ele sofreria. Ficamos imaginando se Marcos queria dizer que as três
mulheres citadas também tinham subido com ele na mesma viagem.30
30 Tumer (“Marcan” 26,240) acha que não, que elas vieram mais tarde, exatamente no tempo da Páscoa,
na esperança de encontrar Jesus em Jerusalém. Pesch (Markrn, v. 2, p. 508) reconhece que a gramática
literal de Marcos favorece distinções no grau da adesão das mulheres; Schottroff (“Maria” , p. 13) rejeita
isso.
31 Este é um caso claro da implausibilidade da tese de que Marcos recorreu a Mateus e Lucas. Ambos
fazem uma descrição simples, de modo que Marcos teria tido de introduzir confusão.
32 Hengel (“ Maria” , p. 248) menciona uma tendência nas três cenas de relacionar três mulheres pelo nome,
semelhante à tendência de relacionar três dos Doze: Pedro, Tiago e João. É provável que essa relação
reflita a importância relativa dos três dentro do grupo maior e o primeiro designado em cada lista pode
ser respectivamente o primeiro a quem foi concedida uma aparição do Jesus ressuscitado (ICor 15,5,
para Cefas/Pedro).
33 Expliquei a probabilidade de ser ela a mulher a quem João chama de Maria de Clopas (marido ou pai
dela). Quanto às variantes “Joset”, em Marcos, e “José” , em Mateus, e a variação semelhante nos nomes
dos irmãos de Jesus, ver § 41, nota 84.
339
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
34 Para mostrar a engenhosidade erudita, quero relacionar algumas das propostas com algumas indagações:
a) A primeira designação mais longa desta Maria era original e a segunda e terceira foram encurtadas a
partir da primeira. Talvez essa seja a opinião mais geral. Mas então por que não foi a ordem dos filhos na
primeira (Tiago antes de Joset) seguida? b) A segunda e a terceira designações de Maria eram originais
e a primeira era uma composição delas (R. Mahoney, Matera, Schenke). Isso se relaciona com a tese de
que a presença das mulheres no túmulo era mais original que a posição delas (longe ou perto) na cena
da cruz. Com que base, então, o autor da primeira designação de Maria, operando a partir da segunda e
da terceira, mudou a ordem dos nomes e acrescentou “ Menor” ao nome de Tiago? c) Somente a terceira
referência a Maria era original, pois a primeira e a segunda listas dos nomes das mulheres são facilmente
omitidas. Por que então a redação da primeira e da segunda referências a Maria difere da terceira? d) O
Códice Vaticano tem dois artigos definidos: “A Maria de Tiago Menor e a mãe de Joset” . Pesch e Schot-
troff entendem isso como designação de duas mulheres, de modo que a segunda e a terceira referências
são respectivamente a uma e à outra delas. Entretanto, Mateus entende que Marcos quer dizer uma só
mulher: “a outra Maria” (Mt 27,61; 28,1). e) A referência é a uma só mulher, mas sua designação deve
ser entendida como: “ Maria, a mulher de Tiago Menor e mãe de Joset” (Finegan, Lohmeyer). Entretanto,
essa dupla designação de uma só pessoa é bastante incomum. f) Crossan (“ Mark”) afirma que o nível pré-
-marcano falava de “ Maria de Tiago” na primeira e na terceira referências. Marcos acrescentou “Joset”
à primeira e criou a segunda (“ Maria de Joset”) porque Tiago e Joset estavam relacionados juntos entre
os irmãos de Jesus (Mc 6,3). (Entretanto, mais tarde, em PMK, p. 146, Crossan afirma que a terceira
referência às mulheres, em Mc 16,1, foi criada com base na primeira, em Mc 15,40). g) Esta Maria era
Maria, a mãe de Jesus (como em Jo 19,25-27); mas Marcos, que denegriu a importância de relações
familiares para Jesus (Mc 3,31-35), preferiu designá-la pelos outros filhos (Mc 6,3). Não se tem outro
exemplo dessa maneira de se referir a Maria, a mãe de Jesus, e, aparentemente, nem Mateus nem Lucas
descobriram-na sob essa alcunha. Embora este levantamento de opiniões, que considero deficiente, seja
realista, ouso fazer uma sugestão própria em § 47 B, a diante.
340
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
de Tiago 9,2) e, assim, uma “ irmã” de Jesus (mesmo pai legal)?35 Ou (quer his
toricamente, quer por idealização subsequente) uma irmã de Jesus tornou-se uma
das galileias que o seguiam?
3j Mc 6,3 refere-se às irmãs de Jesus. Epifânio (Panarion LXXVlII,viii,l; LXXVIII,ix,6; GCS 37, p. 458.460)
cita nessa categoria Maria e Salomé, que eram filhas de José. Ver § 41, nota 82.
341
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
foi desse grupo maior de discípulos que ele designou os Doze. Tendo chamado
para si a multidão com seus discípulos (Mc 8,34), Jesus ressaltou a importância
da cruz em seu seguimento e, em Mc 9,35, falou aos Doze sobre a necessidade de
serem servos de todos. A indicação em Mc 15,41, de que as três mulheres citadas
“costumavam segui-lo e servi-lo” na Galileia, significa, então, que, na opinião de
Marcos, elas podiam ser chamadas “discípulas”, embora sua presença com Jesus
nunca tenha sido mencionada antes? Schottroff (“ Maria” ) diz que sim. Gerhards-
son (“ Mark”, p. 219-20), depois de descrever de modo muito positivo tudo o que
as mulheres fizeram, declara: “ Mas elas não estão descritas como verdadeiros
discípulos, e menos ainda como futuros apóstolos”.36 Precisamos reconhecer que
talvez estejamos perguntando uma coisa que Marcos nunca perguntou a si mesmo
e que duas perguntas são apropriadas para compreender essa situação. Se lhe
perguntassem, Marcos consideraria essas mulheres discípulos? (Desconfio que
sim). Marcos pensava nelas quando, ao descrever o ministério, escreveu a palavra
“discípulos” ? (Talvez não.)
Não importa como se responde a tais perguntas (se elas puderem ser res
pondidas a partir dos indícios disponíveis) e fora do nível terminológico, a questão
do discipulado influi na interpretação da cena presente de modo especial. Como
parte de sua tese de que essas mulheres eram discípulas, Schottroff alega que elas
estavam na Ultima Ceia, foram ao Getsêmani, estavam entre “todos” que fugiram
e agora bravamente voltaram. Não vejo nada em Marcos que apoie essa alegação.
Mc 14,17 diz que Jesus veio à ceia com os Doze e não dá nenhuma indicação nessa
cena de que tinha mais alguém em vista.37 Em Mc 14,26, os que estavam na ceia
eram os que foram para o Monte das Oliveiras; e em Mc 14,40, cumprindo a profecia
que lhes fora feita em Mc 14,27, eram eles “todos” que fugiram. No capítulo 14,
342
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
38 É o único outro uso marcano na NP de apo makrothen e o único outro uso em todo o Evangelho de Mateus.
343
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
homens, cuja fuga foi mencionada cerca de sessenta versículos antes, com estas
mulheres de quem não se diz que ficaram (precisamente porque não nos foi dito
nada quanto a sua presença anterior)?
Para testar a tese de que Marcos não descreve o papel dessas observadoras
tão positivamente quanto muitos supõem, olhemos adiante, para as outras duas
cenas marcanas nas quais elas reaparecem (três cenas em quinze versículos). Em
Mc 15,42-47, José de Arimateia, alguém que procurava o Reino de Deus e teve a
coragem de pedir o corpo de Jesus a Pilatos, vai colocá-lo em um túmulo. As mu
lheres vão observar onde ele foi colocado, sem qualquer intervenção de ajuda por
palavras ou ações. A única intervenção a favor de Jesus que Marcos lhes atribui
será em Mc 16,1, quando, depois do sábado, as três comprarão especiarias para
ungir Jesus.39 Que pena! A iniciativa resultará em fracasso. Quando, em Mc 16,5-
8, o jovem (angelical) informa às três que Jesus ressuscitou e que elas devem ir
dizer a Pedro que ele vai à frente deles para a Galileia, elas não têm a coragem
de obedecer. Não dizem nada a ninguém, pois estão com medo. Quando viu como
Jesus expirou, o centurião imediatamente confessou em voz alta a identidade di
vina de Jesus. As três mulheres não são movidas a proclamar Jesus nem mesmo
quando são orientadas a fazê-lo por intervenção divina!40 A descrição marcana dos
m Suponho que os leitores de Marcos acharam esse ato favorável, a não ser que fosse para eles o conside
rarem tolamente supérfluo depois de Mc 14,3-8, onde uma mulher derramara unguento de nardo puro
sobre a cabeça de Jesus, ungindo-lhe antecipadamente o corpo para o sepultamento.
10 Ver a tese de que as mulheres fracassam no túmulo vazio em A. T. Lincoln, JBL, p. 108,1989, p. 283-300.
344
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
discípulos homens de Jesus mostrou que, apesar de seguir Jesus de perto durante
o ministério, eles fracassaram porque não tiveram a força de permanecer com ele
enquanto ele suportou a cruz. Pelo jeito, Marcos agora usa as seguidoras de Jesus
para mostrar que observar o crucificado compreensivamente, mas de longe, era in
suficiente para garantir a fidelidade exigida de discípulos; na verdade, nem mesmo
a notícia da ressurreição em si realizou isso. Nenhum dos dois grupos exemplifica
tomar a cruz para seguir Jesus - e isso é absolutamente necessário.41 Os dois gru
pos tinham o propósito de instruir os leitores de Marcos. Os leitores que tinham
sido perseguidos e fracassaram fugindo ou negando Jesus identificavam-se com os
discípulos homens e, ao mesmo tempo, obtinham esperança deles que, afinal de
contas, receberam a promessa de que veriam Jesus na Galileia e que (como todos
sabiam), posteriormente, se tornaram fiéis proclamadores do Evangelho e acabaram
se mostrando dispostos a carregar a cruz. Os que tinham escapado da perseguição
e se orgulhavam de não ter fracassado estão talvez sendo advertidos de que o não
envolvimento e a relutância para confessar publicamente o Jesus ressuscitado
eram repreensíveis. Mas também eles não seriam deixados sem esperança: o fato
de serem lembrados na tradição os nomes dessas mulheres sugere que, no final,
o Jesus ressuscitado deu-lhes força para proclamá-lo — como afirma o autor do
apêndice marcano (Mc 16,9-10).
41 Apesar de uma série de tentativas eruditas de descrever as mulheres em Marcos como modelos de
fidelidade, o Evangelho trata homens e mulheres com relativa imparcialidade: ocasionalmente, homens
e mulheres são eficientes em sua reação a Jesus (Mc 9,38-39; 14,9), mas os seguidores costumeiros de
Jesus, homens e mulheres, fracassam em momentos cruciais. Ver E. S. Malbon, Semeia 28, 1983, p.
29-48; também C. C. Black, Disciples, p. 278, n. 37.
42 Quanto à família , Mateus não incluiu o pejorativo Mc 3,20-21, embora tenha copiado o que o precedia
(Mt 10,2-4 = Mc 3,22-27). Também Mt 13,57 omitiu a frase negativa a respeito dos parentes de Jesus
em Mc 6,4. Quanto a discípulos, por exemplo, em Mt 14,38 os discípulos confessam a filiação divina de
Jesus, ao passo que em Mc 5,52 seus corações estavam endurecidos. Mt 8,25; 9,32 evitaram a grosseria
para com Jesus por parte dos discípulos, relatada em Mc 4,38; 5,30-31.
345
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
43 Em parte, a mudança de Marcos é ditada pela presença de guardas hostis no sepulcro, de modo que as
mulheres não teriam permissão para se aproximar do corpo. Contudo, Mateus também reconheceu ser
supérflua a intervenção marcana, pois Jesus já havia sido preparado para o sepultamento (Mt 26,12).
346
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
44 Hanson (“ Does” , p. 77-78) afirma que a forma lucana é adaptação de Marcos, mas argumenta contra
Kilpatrick que a hipótese Proto-lucana (isto é, havia uma combinação de Q e uma fonte especial lucana
na qual Lucas introduziu material marcano) não é refutada por esta cena. Manus (“Centurions” , p. 268)
concorda com B. S. Easton que o dikaios lucano é original e sugere que representa “um entendimento
original da personalidade de Jesus que talvez fosse corrente na comunidade Q primitiva, principalmente
na região siro-palestina” .
41 Como vimos, Marcos não apresentou nenhuma preparação para o aparecimento do centurião de pé ali
na frente de Jesus, embora tenha descrito toda uma coorte romana reunida para escarnecer de Jesus no
pretório de Pilatos (Mc 15,16). Lucas apresentou menos preparação, pois só durante o escárnio de Jesus
na cruz (Lc 23,36) os leitores foram alertados de que soldados romanos estavam envolvidos.
347
Qimiom • JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto
46 0 alethos de Marcos é praticamente sinônimo do ontos (“realmente, certamente” ) de Lucas, mas este
último é superficial ou autoenganoso, pois subentende que o que flui do próprio ser da pessoa é apropriado
para a confissão de que Jesus é justo, já que, do princípio ao fim do Evangelho (Lc 10,29; 16,15; 18,9;
20,20), Lucas contesta os que têm justiça ou integridade.
47 To genomenon, o particípio aoristo singular de ginesthai (“acontecer, suceder” ), que significa: “o que
aconteceu” . A forma plural ta genomena (“esses acontecimentos”) será usada no versículo seguinte. Em
Mt 27,54, o centurião e os guardas veem ta ginomena, o particípio presente neutro plural (nota 5 acima).
48 Naquela lista, Mateus mostrou como a morte de Jesus produziu a ressurreição dos santos adormecidos;
a crença em um efeito semelhante na vida após a morte é vista em Lucas: “ Este dia, comigo vais estar
no paraíso” (Lc 23,43). É para pensarmos que o centurião ouviu isso?
49 Há quem volte para trás “ este acontecimento” que o centurião viu, para incluir a oração de perdão para
seus algozes rezada por Jesus (Lc 23,34).
348
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
pastores voltaram (aos campos) “glorificando a Deus por tudo que tinham [...] visto”
(Lc 2,20). Na verdade, durante o relato lucano do ministério, “glorificando a Deus”
é reação comum quando se vê Jesus manifestar poder divino.50 Certamente, os
leitores lucanos não pararam para se perguntar, como fazem alguns comentaristas
modernos, se é plausível que um soldado gentio louvasse tão facilmente o Deus de
Israel. Eles perceberam que, do começo ao fim da vida de Jesus, os que tinham
olhos para ver louvavam consistentemente a Deus. Além disso, eles consideravam
apropriado que a glorificação final viesse de um gentio, antecipando desse modo a
recepção do Evangelho pelos confins da terra, a ser narrada no livro dos Atos (onde,
em At 13,48, gentios glorificam a Palavra de Deus). O tema de “glorificar a Deus”,
então, é claramente adição de Lucas ao que ele recebeu de Marcos a respeito do
centurião, e não há necessidade de supor uma fonte especial.
5(1 Lc 5,25-26; 7,16; 13,13; 17,15 (por um samaritano); 18,43. Doxazein (“glorificar” ) com theos (“ Deus”)
como objeto ocorre 1 vez em Marcos, 2 em Mateus, 1 em João, 11 em Lucas-Atos.
31 Embora dikaios possa ser predicado nominal (“o justo”) sem o artigo, por estar colocado antes do verbo
copulativo (nota 12, acima), não há razão para não aceitar a costumeira tradução adjetival.
32 Goodwin (“Theou” , p. 129) representa uma erudição mais antiga para a qual o centurião poderia ter dito
as duas coisas.
349
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
bilidade de Lucas ter entendido mal Marcos. (Ao relatar o que aconteceu diante do
sinédrio, Lc 22,70 falou em “o Filho de Deus” interpretando corretamente “o Filho
do Bendito” marcano; devemos pensar que Lucas não reconheceu a continuação
marcana desse tema aqui?) Para afirmar que Lucas é dependente de Marcos nesta
cena, é preciso lidar com a mudança deliberada de Marcos por Lucas e sua prefe
rência por uma designação de Jesus que era mais apropriada para seus propósitos.
350
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
Por que Lucas preferiu não apresentar a confissão marcana cristológica plena
de “ Filho de Deus” ? Ao traduzir dikaios como “ inocente”, alguns comentaristas
afirmam que Lucas achou essa afirmação mais apropriada a um espectador pagão.
(O argumento é menos apropriado se significar “justo”, pois essa designação, como
veremos, tinha origem veterotestamentária.) Outros atribuem a Lucas motivo apolo-
gético: confirmação romana de que Jesus era inocente e não politicamente subver
sivo. C. Schneider (“ Hauptmann” ) afirma que Lucas temia uma leitura sincretista
da confissão de “ Filho de Deus” : os leitores lucanos poderíam considerar aceitável
o que um porta-voz pagão queria dizer ao espontaneamente confessar Jesus sob esse
título, visto que Lucas insistia no reconhecimento da filiação divina única e, assim,
em seu Evangelho, restringiu a proclamação do título a cristãos comprometidos. A
meu ver, esses motivos, se é que estão presentes, não influenciaram a preferência
lucana por dikaios. (Ver Beck, “ Imitatio”, p. 41, que os rejeita.)
58 Por outro lado, há quem argumente que, como o Jesus lucano dirige-se a Deus como “Pai” , é apropriado
para o centurião lucano reconhecê-lo como “Filho de Deus” . Esse raciocínio seria válido se Lucas en
tendesse a expressão com o significado de “umfilho de Deus". Mas, na narrativa, um soldado pagão não
entendería facilmente a partir de uma oração a Deus como Pai que Jesus era o único Filho de Deus.
351
Q uarto «to ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
gentios; e, historicamente, esse era um contexto mais apropriado para descrever uma
conversão que levasse a uma confissão de Jesus na linguagem religiosa de “ Filho
de Deus”.59 De fato, os Atos dedicam um capítulo inteiro (cap. 10, em especial At
10,34-48) ao relato de como um centurião romano veio a crer. E ssa flexibilidade
permitiu a Lucas aqui adaptar a confissão do centurião, que ele tirou de Marcos,
a outra mensagem teológica.
352
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
61 A justiça é, com frequência, relacionada como elemento fundamental na realeza divina e humana, por
exemplo, SI 72,1-2; 97,1-2; Is 9,6.
62 A respeito da predicação adjetival e nominal de dikaios, ver a nota 51 acima.
63 Será que isso reflete a apologética (que responde a acusações romanas reais ou temidas de que o “fun
dador” desse grupo cristão era um usurpador régio condenado) ou simplesmente a convicção cristã não
sem implicações para o empenho missionário?
353
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Reação das multidões (Lc 23,48). Só Lucas registra isso; mas é tão
típico de seu arranjo, redação e teologia que não é necessário supor nenhuma fonte
especial. Estruturalmente, esta reação é estreitamente paralela à do centurião:64
64 Feldkãmper, Betende, p. 280. 0 paralelismo é ampliado por uma glosa (a ser examinada abaixo), onde
as multidões dizem palavras.
354
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
355
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
Sua tristeza não é apenas pelo passamento de uma vida humana, mas pela injusta
execução de alguém que visivelmente era próximo de Deus.
356
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
v. 1, p. 150; ed. rev., v. 1, p. 162) relatou: “ A essa palavra do Senhor [Lc 23,34?], muitos milhares de
judeus que estavam de pé ao redor da cruz creram” .
ã Lucas emprega a expressão makrothen (“à distância”) duas vezes sozinha e duas vezes com apo (“de” ).
Enquanto Marcos/Mateus usaram apo makrothen para o seguimento por Pedro de Jesus até o pátio do
sumo sacerdote, Lc 22,54 omitiu apo. “De pé de longe” é péssima linguagem, mas preserva a distinção.
'3 O particípio horosai em Lc 23,49 é feminino por atração, mas certamente tem o propósito de se referir
também a “ todos os conhecidos dele” . Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1521) distingue entre um “olhar” mais
atento e o “ encarar” das multidões ociosas como um espetáculo no versículo anterior, mas Untergass-
mair (Kreuzweg, p. 105) deve ser seguido por não ver nenhuma diferença real entre os dois verbos. As
multidões certamente não são descritas como ociosas e a transformação para o arrependimento pela qual
elas passam por observação e observando (substantivo e verbo) é significativa. A respeito dos dois verbos,
ver BGJ, v. 1, p. 502-503.
74 Talvez para enfatizar a ligação entre as mulheres aqui e as apresentadas anteriormente, a tradição koiné
traz o particípio no aoristo (“tinham seguido” ), em vez do tempo presente. O synakolouthein lucano quase
combina os dois verbos em Mc 15,41, akolouthein e synanabainein (“subir com”), e assim simplifica
Marcos do mesmo modo que Mateus fez.
357
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
identifica aqueles de quem ele falou na cruz e no sepultamento, ele mistura Maria
Madalena e Maria, mãe de Tiago, da lista de Marcos (Mc 16,1; ver o Quadro 8 em
§ 41), com sua tradição dos nomes das galileias e assim, surge com a lista: “ Maria
Madalena, e Joana, e Maria de Tiago, e o resto (das mulheres) com eles” (Lc 24,10).
'5 Rosalie Ryan (“ Women” , p. 56-57) menciona que algumas biblistas (E. Tetlow, E. Schüssler Fiorenza)
acusam Lucas de atitude patriarcal para com as mulheres que as restringia a tarefas do lar ou “em casa” .
Ryan argumenta de modo convincente que Lc 8,1-3 descreve essas mulheres e os Doze similarmente como
estando “com” Jesus (quase um elemento técnico de díscipulado) e proclamando a Boa-nova do reino.
'6 Atos usa synanabainein, a palavra que Mc 15,41 usou para as mulheres. Para elas, Lucas usa synako-
louthein (Lc 23,49: “seguir com”) e synerchesthai (Lc 23,55: “ ir/vir com” ).
358
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
Se Lucas tinha mesmo um grupo específico em mente, que homens ele ima
ginou (no nível de narrativa, deixando o nível de história para a ANÁLISE abaixo)?
Gnostos/oi ocorre uma dúzia de vezes em Lucas/Atos, mas quase sempre em uma
11 Os melhores textos leem auto (“dele” ); a tradição koiné lê autou (“seus” ). Uma tradução frequente abrange
as duas possibilidades: “todos os seus conhecidos” .
359
Q u<rto ato •Jesusé crucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto
78 Há quem, lembrando que Lucas usa mathetes (“ discípulo”) menos que os outros Evangelhos, sugira que
grwstoi substitui isso aqui. Mas em nenhuma outra passagem acontece a mesma coisa.
360
§ 44. iesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
Lucas não faz referência aos “ irmãos” de Jesus na NP,79 nem nas aparições da
ressurreição no domingo de Páscoa, referência que contaria aos leitores que essas
pessoas, que não seguiram Jesus durante o ministério, tinham vindo a Jerusalém
para a Páscoa na qual ele morreu. (At 1,14 situa-se em outra ocasião de festa, uns
cinquenta dias mais tarde.)
Uma terceira sugestão, e a que me parece ser a mais plausível, é que Lucas
usa essa vaga descrição para designar outros discípulos e/ou amigos de Jesus (além
dos Doze). Lembramos que, entre os Evangelhos, só Lucas especifica que além
dos Doze há setenta (e dois) outros que Jesus enviou em missão evangelizadora
durante o ministério galileu (Lc 10,1.17). Não é implausível que esses galileus se
jam associados aqui com as mulheres galileias. Quando voltam do túmulo vazio, as
galileias transmitem a mensagem dos anjos “aos Onze e todo o resto”, o que indica
a presença em Jerusalém naqueles dias de um grupo maior de seguidores de Jesus
além das mulheres e dos Doze. Imediatamente depois desse relato, Lc 24,13 fala de
dois deles que vão a Emaús e, mais tarde no mesmo dia, voltam a Jerusalém para
relatar aos Onze o que acontecera (Lc 24,33). Mais tarde, At 1,13-15, depois de
relacionar os Doze, as mulheres e a mãe e os irmãos de Jesus, refere-se a um grupo
de 120. Lucas usa termos vagos para descrever o grupo maior (“outros”, “todo o
resto” ), e é plausível que esta passagem seja outro exemplo (“todos os conhecidos
dele” ). Se essa interpretação está correta, Lucas indiretamente concorda com Jo
19,26-27, que coloca perto da cruz o discípulo sem nome que Jesus amava (e talvez
com Mc 14,41-52, que descreve certo jovem que segue Jesus desde o Getsêmani).
79 Realmente, a palavra adelphoi ocorre na Ultima Ceia, em Lc 22,32, quando é dito a Simão Pedro para
amparar seus irmãos, mas o contexto em Lc 22,28-32 deixa claro que a referência é aos outros membros
dos Doze.
361
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
O pedido feito a Pilatos (Jo 19,31). Nesse versículo, João tem elementos
similares ao início da cena de sepultamento em Mc 15,42-45. As duas passagens
têm a oração, “como era dia de preparação [paraskeue],\ ao em ligação com o sábado
próximo. Antes, Jo 19,14 falou desta sexta-feira como “dia de preparação para a
Páscoa” (fazendo eco a uma fórmula hebraica ‘erebpesah); ali, ele estava interessado
na sexta hora (meio-dia) no dia de preparação, aparentemente porque era a hora do
início do abate dos cordeiros pascais. Agora, depois da morte de Jesus, João está
interessado nessa sexta-feira como o dia antes do sábado. (Lembro aos leitores que,
embora paraskeue signifique “ preparação”, o hebraico fundamental ‘ereb significa
“anoitecer, vigília”.) 0 fato aparentemente mais importante de ser o dia seguinte
Páscoa tem eco apenas na declaração “esse sábado era um grande dia”.8081 A Páscoa
perdeu seu significado para permanecer apenas “uma festa dos judeus”, agora que
o Cordeiro de Deus foi imolado? De qualquer modo, as duas referências joaninas
a “dia de preparação” em Jo 19,14 e aqui formam um tipo de inclusão em torno da
80 Parte desta oração encontra-se também em Lc 23,54. Há quem use o fato de Marcos e João comparti
lharem três palavras gregas idênticas (mas não na mesma ordem) para afirmar a dependência joanina de
Marcos. Uma expressão de tempo convencional que podia ter sido usada extensamente na tradição não
é indicação decisiva.
81 Que é esse o significado de “ grande sábado” é apenas suposição, pois nenhuma designação igual ocorre na
literatura judaica primitiva (I. Abrahams, Studies in Pharisaism and the Gospels, New York, reimpressão
Ktav, 1968, v. 2, p. 68). Jo 7,37 usou “o grande dia” para designar um dia especial (o último) durante a
Festa das Tendas. Alguns (Bultmann, Leroy) acham indícios aqui de que João tinha antes interpretado
mal a cronologia ao indicar que sexta-feira (de dia) era o dia antes daquele no qual a refeição pascal
seria consumida (anoitecer de sexta-feira, sábado), pois agora João juntou a datação sinótica na qual o
anoitecer de sexta-feira/sábado era o dia depois que a refeição pascal tinha sido consumida (anoitecer
de quinta-feira) e “ grande” porque a oferenda de feixes tinha lugar naquele dia (Lv 23,6-14; ver a p ê n d ic e
II). E ssa crítica de que o autor joanino era culpado de declarações contraditórias no espaço de algumas
linhas é suspeita, em especial quando a questão envolvida (datação de festas) é uma questão sobre a
qual João anteriormente demonstrou cuidado.
362
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de lesus - b. Reações dos presentes
363
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Nem em Jo 19,21 nem em Jo 19,31 é dito que “os judeus” vêm/vão a Pilatos
e, embora nos sinóticos (também em EvPd 2,3), José venha/vá a Pilatos, Jo 19,38
não diz que ele faz isso. Consequentemente, há quem afirme que João erronea
mente imagina que Pilatos em pessoa estivesse presente no Calvário. Na cena do
julgamento romano, entretanto, João meticulosamente situou Pilatos dentro e fora
do pretório porque convinha a sua dramatização do papel de Pilatos; e assim, em
vez de supor erro histórico, podemos supor que, aqui, João acha mais dramático
manter as personagens próximas do centro da cena onde se ergue a cruz de Jesus.
Vemos um paralelo no tratamento joanino das seguidoras de Jesus, não à distância,
como nos sinóticos, mas “perto da cruz” (Jo 19,25).
Embora, ao pedir a Pilatos para agir, “os judeus” almejem cumprir a lei,
eles também demonstram hostilidade,83 como a hostilidade sugerida no Episódio
1 paralelo (Quadro 7, § 38 C), quando, no início da crucificação, seus chefes dos
sacerdotes exigiram que Pilatos mudasse o título sobre a cruz de Jesus (Jo 19,21).
Agora, eles pedem primeiro que as pernas sejam quebradas e só então que os corpos
sejam retirados.84 É possível afirmar que “os judeus” pediam simplesmente que o
castigo da crucificação terminasse; contudo, quebrar as pernas não era parte tão
integral da crucificação que tivesse de ser incluída.85 Quando Jo 19,38a descreve
favoravelmente o pedido de José para “retirar” (mesmo verbo: airein), nada é dito a
respeito de quebrar pernas. Se EvPd 4,14 pode ser considerado uma interpretação
primitiva da tradição de quebrar as pernas encontrada em João, ali a ação está
definitivamente em um ambiente de hostilidade por parte dos judeus, embora a
lógica do EvPd do que eles querem seja diferente.86 Tudo isso torna possível que,
83 Legalidade e hostilidade também se combinaram em Jo 19,7: “ Nós temos uma lei e segundo a lei ele
deve morrer” .
84 A gramática joanina descuidada em Jo 19,31 fá-los pedir literalmente “que suas pernas fossem quebradas
e retiradas” . Não há necessidade de agravar a hostilidade de “os judeus” , supondo que eles sabiam que
Jesus já estava morto. Em crurifrágio (nome talvez cunhado por Plauto, Poenulus 4,2; #886), às vezes
outros ossos eram quebrados além dos ossos das pernas.
88 Apesar de relatos primitivos em contrário, Zias e Sekeles (“ Crucified” ) declaram, com referência ao
crucificado Yehohanan ben hgqwl (§ 40, #3, acima), que foi aproximadamente contemporâneo de Jesus:
“ Os indícios não apoiam a afirmação de que a vítima recebeu um golpe de misericórdia que quebrou
os ossos dos membros inferiores” . A partir do uso feito por Cícero, Harrison (“Cicero” ) mostra que o
crurifrágio tinha a conotação de ser castigo brutal merecido por tipos inferiores (por exemplo, piratas).
86 Eles não querem as pernas quebradas (pernas de Jesus ou pernas do malfeitor que tomou o partido de
Jesus?), para que o tormento dure mais. O EvPd usa skelokopein, enquanto João usa katagnynai ta skele.
No EvPd, o incidente de quebrar as pernas ocorre antes da morte de Jesus e está ligado a um paralelo
com o relato lucano de um dos cocrucificados, que se solidarizou com Jesus.
364
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte; Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
em João, “os judeus”, como parte de seu pedido para que os corpos dos crucifica
dos sejam removidos, pedem que seja imposto um ato final de sofrimento.87 O fato
de, em João, o plano de “os judeus” para que as pernas sejam quebradas não ter
sucesso no caso de Jesus será apresentado como triunfo do plano de Deus previsto
nas Escrituras (Jo 19,36).
A ação dos soldados (Jo 19,32-34a). João não nos diz explicitamente
que Pilatos concedeu o pedido que “os judeus” fizeram; mas isso está subentendido
no “Assim” do início do v. 32, e no fato de se porem os soldados a fazer o que foi
pedido. Por que os soldados lidam primeiro com os dois cocrucificados de cada
lado de Jesus, deixando-o, o que estava no meio (Jo 19,18), para o fim? A resposta
não é que perceberam que Jesus já estava morto, pois essa observação só aparece
no v. 33, depois de terem quebrado as pernas dos cocrucificados. Antes, o arranjo
é ditado pelo objetivo dramático de lidarem com Jesus por último. Na narrativa,
a observação da morte faz os soldados rejeitarem o pedido de “os judeus”, não
quebrando as pernas de Jesus. Segundo a estrutura do relato joanino da crucifi
cação e sepultamento (§ 38 C), este Episódio 5, antes da Conclusão, é paralelo
aos Episódios 1 e 2, depois da Introdução. No Episódio 1, como já mencionei, os
chefes dos sacerdotes de “os judeus” peticionaram a Pilatos quanto a mudar a
redação do título na cruz, do mesmo modo que, aqui, “os judeus” peticionam a ele
a respeito da quebra de pernas e remoção. Nos dois casos, a reação romana frustra
o propósito maldoso. No Episódio 2, os soldados decidiram não rasgar a túnica de
Jesus, cumprindo, desse modo, as Escrituras (SI 22,19); aqui, eles decidem não
quebrar os ossos de Jesus, cumprindo, desse modo, a Escritura (talvez SI 34,21 —
ver nosso exame de Jo 19,36).
Com seu relato de que os soldados viram Jesus “já morto” (Jo 19,33), João
afirma o que Mc 15,44 vai declarar mais diretamente quando Pilatos se admirou
de que Jesus “já tivesse morrido”.88 Esse forte testemunho da morte de Jesus em
8‘ DNTRJ, p. 325-329, menciona que, no pensamento judaico, a desfiguração era obstáculo para a res
surreição, mas duvido que João atribua a “os judeus” a tentativa de impedir a ressurreição de Jesus.
Não temos certeza nem mesmo da atitude dos judeus do século I a esse respeito. Certamente, entre os
fariseus, havia uma crescente sensibilidade quanto a manter os corpos inteiros e não permitir que fossem
mutilados, mas será que pensavam que membros quebrados impediam a ressurreição? Afinal de contas,
havia quebra quando os ossos eram reunidos e colocados em ossuários.
88 A tradição primitiva de uma rápida morte para Jesus (considerando que, não raro, os crucificados sobrevi
viam durante dias) alimenta a especulação médica a respeito do estado de saúde de Jesus e a verdadeira
causa médica de sua morte (já que a crucificação não perfurou nenhum órgão vital); ver § 42 B-C.
365
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
João não foi por motivos apologéticos (para provar que Jesus ressuscitou dos mor
tos), mas pela cristologia. Mesmo de seu corpo morto saem elementos vivificantes
(simbolizados por sangue e água). Uma ação especial por “ um dos soldados” leva a
esse desdobramento, do mesmo modo que, no paralelo funcional em Mc 15,39; Mt
27,54, o centurião é o agente para a confissão cristológica. “ Verdadeiramente, este
(homem) era Filho de Deus”. Não nos surpreende que harmonizadores identifiquem
os dois, usando a lança (logche) do soldado joanino para dar o nome Longino ao
centurião mateano.89 A harmonização com a cena joanina é representada também
pela glosa em Mt 27,49 (§ 42, acima), onde, antes de Jesus morrer, enquanto
alguns dos circunstantes diziam que Jesus bradava por Elias, um deles pôs em
um caniço uma esponja cheia de vinho avinagrado, dando para Jesus beber: “ Mas
outro, tendo pegado uma lança, trespassou seu lado e saíram águ a e sangue ”. (As
palavras em itálico são compartilhadas pela glosa mateana e por João.90) E evidente
que perfurar o crucificado dava certeza de sua morte: “ Quanto aos que morrem
na cruz, o algoz não proíbe o sepultamento dos que foram perfurados [percussos]”
(Quintiliano, Declamationes maiores vi,9). A ação pelo soldado em Jo 19,34 tem
a falta de lógica da vida comum: como os outros soldados, ele vê que Jesus está
morto, contudo, para se certificar, ele sonda o corpo para obter uma reação revela-
dora, trespassando o lado de Jesus. Acho que é esse o significado, não um ato de
misericórdia com o objetivo de perfurar o coração (com a devida vênia a Lagrange,
Jean, p. 499), embora o verbo nyssein (“picar, enfiar” ) abranja cutucar (como para
despertar um homem adormecido) e mergulhar profundamente.91 João usa pleura
(“lado” ) no singular, embora em grego, normalmente se use o plural. Isso levou
89 A recensão mais primitiva (A) de Atos de Pilatos 16,7 tem o nome, enquanto a recensão mais tardia (B)
de Atos de Pilatos 11,1 traz: “ Mas Longino, o centurião [hekatontarchos, como em Mateus, não kentyrion,
como em Marcos] de pé ali, disse: ‘Verdadeiramente, este era Filho de Deus’ [como em Mateus]” .
* Michaels (“Centurion’s”) vê uma sequência progressiva que envolve passagens dos Atos de Pilatos na
nota precedente e na glosa.
91 Nyssein é usado no Códice de Beza de At 12,7 para cutucar o lado de Pedro a fim de acordá-lo, e em Eclo
22,19, para cutucar o olho e provocar lágrimas; mas por Josefo (Guerra III,vii,35; #335), para trespassar
um soldado romano e matá-lo. Observemos que é usada a lança leve (lancea, logche), não a lança pesada
(pilum, hyssos). Discordo de Wilkinson (“Incident” , p. 150), para quem o desejo de Tomé de pôr a mão
no lado de Jesus (Jo 20,25.27) mostra que João imaginava uma ferida larga e profunda. Tomé, que não
viu Jesus, usa linguagem exagerada para demonstrar o desejo de prova física grosseira. A Vulgata e a
Peshitta usaram o verbo “aberto” , que talvez reflita uma leitura errada (enoixen por enyxen), facilitando
uma interpretação na qual os sacramentos e até a Igreja originaram-se do lado de Jesus (ver BGJ, v. 2,
p. 949-952). Agostinho declara (In Jo cxx,2; CC 36,662): “Ele não disse ‘golpeado’ nem ‘ferido’, nem
outra coisa, mas sim ‘aberto’” .
366
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
alguns a sugerir que João recorda Gn 2,21-22, onde Deus tira uma pleura de Adão
e dela cria a mulher.92 A versão etiópica e os Atos de Pilatos (recensão B, 11,2)
especificam o lado direito; a arte e também a medicina (buscando a causa da morte
de Jesus) utilizam essa indicação. Se entendida historicamente, ela contraria a teoria
do golpe de misericórdia, pois um golpe no coração apontaria para o lado esquerdo;
mas Barbet (Doctor, p. 120) afirma que os soldados romanos eram treinados para
atacar o coração pelo lado direito porque o lado esquerdo do adversário era protegido
por um escudo. À luz da mentalidade antiga, é mais plausível haver uma origem
bíblica para esse detalhe imaginoso, por exemplo, Ez 47,1: “ E água corria do lado
direito” . Interpretações simbólicas do lado e da ferida servem de boa introdução
a um exame do fluxo de sangue e água produzido pela lança — um dos símbolos
dramáticos mais bem lembrados, embora não facilmente entendidos, em João.
367
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
94 Lavergne (“Coup” , p. 7) usa “ coração” no título de seu artigo; e, no resumo, aparece esta declaração:
“ Nesta palavra ‘coração’, em lugar da palavra mais comum ‘peito’, está contido o verdadeiro significado
deste trabalho [isto é, artigo]” .
93 A literatura é considerável, mas é possível apresentar proveitosamente uma amostra: J. Heer, “The
Soteriological Significance of the Johannine Image of the Pierced Savior” , em L. Scheffczyk, org., Faith
in Christ and the Worship of Christ, San Francisco, Ignatius, 1986, p. 33-46; A. A. Maguire, Blood and
Water. The Wounded Side of Christ in Early Christian Literature, Washington Catholic Univ., 1958 (Stu-
dies in Sacred Theology), que vai até o século IV; e S. P. Brock, “ ‘One of the Soldiers Pierced The
Mysteries Hidden in the Side of Christ” , em Christian Orient 9,1988, p. 49-59, que abrange os teólogos
da Igreja siríaca.
96 Representada por Orígenes, Tomás de Aquino, Cajetan, Comélio a Lapide e Lagrange, para citar alguns.
9' 0 conhecimento médico antigo também foi trazido à discussão. 0 pensamento grego, de Heráclito a
Galeno, ressaltava que proporções adequadas de sangue e água no corpo humano garantiam a saúde.
4 Macabeus 9,20 descreve a morte de um mártir em termos de seu sangue lambuzado em uma roda e
o fluido de seu corpo extinguindo as brasas ardentes. Midraxe Leviticus Rabbah 15,2, a respeito de Lv
13,2ss, diz: “0 ser humano é uniformemente equilibrado: metade água e a outra metade sangue” .
368
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
João usou o sangue e água com intenção antignóstica? Sabemos que no século
II havia gnósticos docetistas que negavam ter Jesus realmente morrido na cruz (§
42, ANÁLISE D) e os Atos de João 101 representam Jesus negando que saiu realmente
sangue de seu corpo. C. 180, Irineu usou Jo 19,34b contra os docetas (Adv. haer.
III, xxii,2; IV,xxxiii,2). No século I, entretanto, quando João escreveu, existia esse
gnosticismo docético entre os que afirmavam crer em Jesus?99 Realmente, o fluxo
de sangue e água (se esta última era entendida como equivalente a ichor, fluido
da ferida) transmitia a ideia de que Jesus estava mesmo morto. Contudo, Hultkvist
(What) usa essa emanação para afirmar que Jesus não estava morto, mas apenas em
coma resultante de grave hemorragia. De qualquer modo, a morte de Jesus já não
estava comprovada pelo soldado que viu que ele estava morto e também perfurou-
-lhe o corpo? 0 versículo seguinte, com seu “a fim de que vós também acrediteis”,
sugere que o objetivo principal era a profundidade da fé, não a correção de um erro.
João pensava aqui em Jesus como o cordeiro pascal ou, de modo mais geral,
como vítima sacrifical, e tentava mostrar que ele preenchia o requisito de que o
sangue da vítima devia fluir no momento da morte para poder ser espargido?100
98 P. Haupt, American Journal of Philology 45, 1924, p. 53-55; E. Schweizer, EvT n s 12, 1952-1953, p.
350-351. Alexandre Magno, atingido por uma flecha e com muita dor, citou Homero (Ilíada v, 340): “O
que flui aqui, meus amigos, é sangue e não ‘soro’ [ichor], como o que flui das veias dos deuses benditos”
(Plutarco, Alexandre, xxviii,3).
99 Richter e outros pensam no gnosticismo como importante adversário no Evangelho. Em BGJ e BEJ, afirmei
que havia uma preocupação muito mais clara a respeito do gnosticismo incipiente na época mais tardia,
quando as Epístolas joaninas foram escritas, e isso é visível na referência a água e sangue em ljo 5,6.
100 Mixná, Pesahim 5,3,5. Assim Miguens (“Salió” , p. 13-16) e Ford (“ Mingled” ). Miguens (p. 17-20)
aponta para a semelhança entre o soldado trespassar o lado de Jesus com uma lança e a insistência da
lei judaica para que o sacerdote rasgasse o coração da vítima e fizesse o sangue fluir (Mixná, Tamid
369
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
Mas, então, por que o fluxo de água? A citação da Escritura em Jo 19,36 mostra
que João pode bem ter em mente a metáfora do cordeiro pascal, mas essa imagem
está ligada aos ossos que não foram quebrados, não ao fluxo de sangue.
4,2). Wilkinson (“Incident” , p. 150) rejeita a tese de Ford, segundo a qual o sangue deve fluir a fim de
poder ser espargido — no nível da história, isso não interessaria ao soldado; no nível da narrativa, não
interessaria ao autor.
101 Brock (“ One” ) mostra que essa metáfora era popular na Igreja de língua siríaca, juntamente com o sim
bolismo de que a perfuração com a espada abriu o jardim da árvore da vida, que ficou protegido por uma
espada depois do pecado de Adão (Gn 3,24). Ver também R. Murray, Orientalia Christiam Periódica
39,1973, p. 224-234,491.
102 Outros entendem que o “dele” se refere ao fiel (BGJ, v. 1, p. 320-321). A Escritura é não raro identificada
como Nm 20,11, onde Moisés golpeia a rocha e as águas jorram. Em Midraxe Êxodos Rabbah 3,13, a
respeito de Ex 4,9, é dito que Moisés golpeou a rocha duas vezes, porque ele primeiro fez brotar sangue
e depois água, mas não sabemos se esta exegese estava em circulação no século I.
103 Assim também Vellanickal, “Blood” . Em uma combinação de excesso de simplificação e excesso de
sutileza, de la Potterie (“Symbolisme” , p. 208, 214-215) opõe-se a considerar a morte (sangue) histó
rica e a água (Espírito) simbólica; ele prefere distinguir entre o sangue como “sinal” de morte e como
“símbolo” de vida. Entretanto, João nunca faz uma distinção linguística entre sinal e símbolo. Na minha
370
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
entregou o Espírito aos que estavam perto da cruz em Jo 19,30, mas é outro aspecto
da multifacetada entrega do Espírito pela morte, ressurreição e ascensão de Jesus.
(Observemos que, em cada caso, o Espírito vem de Jesus e, assim, é o Espírito de
Jesus.) Perto da cruz, sua mãe e o discípulo que ele amava representavam os ante
passados da comunidade joanina — uma comunidade dos especialmente amados,
que já existiam antes que ele morresse e foram os primeiros a receber o Espírito.
Agora que ele foi elevado na morte, ele atrai todos para si (Jo 12,32) e todos os
que creem nele receberão o Espírito (Jo 7,39). As mesmas passagens veterotesta-
mentárias que foram a base para o fluxo de água viva de seu interior em Jo 7,38
(Nm 20,11; SI 78,15-16; Ez 47,1; ver BGJ, v. 1, p. 321-323) foram influentes em
Jo 19,34b. E, reconhecida a importância de Zc 9-14 na NP, pode-se destacar Zc
13,1 (“ Naquele dia, uma fonte estará à disposição da casa de Davi e dos habitantes
de Jerusalém, para a remoção do pecado e da impureza” ) e Zc 12,10 (“ Derramarei
sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de piedade e
compaixão” ) - ver abaixo, sob Jo 19,37, outros usos dessa passagem.104
interpretação, o sangue simboliza a morte como João entende esse acontecimento histórico, isto é, teolo
gicamente: morte glorificada e vivificante na cruz que eleva. Orígenes (Contra Celso ii,69) observa bem
que este é um tipo diferente de morto, que “mesmo como cadáver mostrou sinais de vida na água e no
sangue’’. A potencialidade de a água simbolizar o Espírito foi reconhecida logo (ver Irineu, Contra as
heresias IV,xiv,2).
104 Ver a relação de ljo 5,6-8 com essa interpretação de “sangue e água” em Jo 19,34b e também com o
papel do testemunho em Jo 19,35 em BEJ, p. 577-580. Além da interpretação de “ sangue e água” como o
Espírito que flui da morte glorificada de Jesus, há também a possibilidade de um simbolismo sacramental
secundário, quer os dois elementos simbolizem o batismo, quer o sangue simbolize a Eucaristia e a água,
o batismo. As duas interpretações sacramentais estavam em voga no fim do século II e início do século
III (BGJ, v. 2, p. 951), e a ideia de que os sacramentos brotaram da morte de Jesus não seria impossível
para o próprio João. Contudo, é difícil provar esse simbolismo.
105 O equivalente é fortalecido pela tese a ser mencionada (embora defendida por muito poucos) de que o
“aquele que viu dá testemunho” joanino era o soldado que perfurou o lado de Jesus.
371
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Alguns testemunhos latinos omitem o versículo e Nonos subentende uma interpretação um tanto diferente;
Blass (“ Über” ) argumenta, com base na crítica textual, que o versículo é tão duvidoso que nada pode
depender dele — opinião repetida em BDF 2916, onde Blass foi importante colaborador. Entretanto,
esta opinião não tem seguidores entre os comentaristas.
107 Há considerável debate sobre a hipótese de o autor indicar que o testemunho dado (martyrein, martyrid)
pelo discípulo amado em Jo 19,35a inclui o testemunho exemplificado no Evangelho escrito ou simples
mente o da tradição básica por trás do Evangelho. A favor de uma indicação de que o discípulo escreveu
o Evangelho, é invocada a oração “que escreveu estas coisas” , de Jo 21,24; contudo, talvez isso não
signifique nada mais que “fez estas coisas serem escritas” , como em Jo 19,19, onde “ Pilatos também
escreveu um letreiro e o pôs sobre a cruz” . Lavergne (“Coup” , p. 11) relata que pesquisou os noventa e
nove usos de palavras com martyr- em Platão e que este parece empregar martyria (oito vezes) somente
no caso de testemunho escrito. Chase (“Two” ) argumenta que, em Jo 19,35, não há nada para indicar
que o discípulo escreveu, pois um relato escrito não aumentaria sua credibilidade. Este é, antes, um
comentário quase verbal do que preside a leitura do Evangelho em voz alta a um grupo de discípulos,
exatamente como um comentário é feito por “ nós” em Jo 21,24 ou, na verdade, por “eu” em Jo 21,25.
372
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
108 A favor desse ponto de vista, Nestle (“John xix” ) relaciona Abbott, Sanday, Strachan e Zahn, e relata que
ele remonta a Erasmo. Lavergne (“Coup” , p. 9-10) acha que ekeinos (aparentemente = Deus, até Jesus
ressuscitar) dá confirmação divina à veracidade do testemunho humano de Jo 19,35a. Há uma cadeia
de testemunhos em Jo 5,31-38 que culmina no Pai.
109 Kempthome (“ As God” ) argumenta que Deus é a testemunha, não Deus olhando do céu, mas na pessoa
do Espírito; e em apoio, ele cita ljo 5,6, que fala de Jesus ter vindo pela água e pelo sangue, e então
declara: “ e o Espírito é que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade” . Contudo, não se pode ir
adiante? Como João indica, o Espírito dá testemunho por meio de outros (Jo 15,26-27); assim, ao se
argumentar que o discípulo amado é o ekeinos de Jo 19,35b, a razão pela qual ele dá testemunho é a
personificação do Espírito-Paráclito.
110 Entre eles, a identificação como “Jesus” tem o maior seguimento, pois Jesus é mencionado pelo nome
nesta cena. Mas seria estranho fazer Jesus, que morreu, atestar a verdade do testemunho do que aconteceu
depois de sua morte.
111 Eles consideram o redator responsável pelo capítulo 21, em especial Jo 21,24. Ver, na a n á l is e B, a tese
contrária de que esse redator copiou de Jo 19,35, que era uma reflexão do evangelista.
373
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
A PRIMEIRA CITAÇÃO (Jo 19,36) é: “ Seu [de pessoa ou animal: auíou] osso
não será quebrado [syntribesetai]”. A ambiguidade do autou está preservada em
minha tradução, pois muita discussão se concentra na possibilidade de a referência
112 Aqui, o presente do subjuntivo é textualmente preferível ao aoristo. Um problema ainda mais grave de
decidir entre os dois tempos ocorre na oração paralela de Jo 20,31 (BGJ, v. 2, p. 1056).
113 Com base nesse discernimento transformado pela tese de que o discípulo amado era João, filho de Ze-
bedeu, tomou-se convenção pintar a crucificação como um tríptico com os dois Joãos testemunhas nos
painéis laterais.
114 De outro modo, nos acontecimentos da NP joanina, as palavras de Jesus é que foram “ cumpridas” (Jo
18,9.32). Em Mateus, a Escritura é cumprida em relação à prisão de Jesus sem resistência (Mt 26,54.56)
e em relação a Judas (Mt 27,9-10).
374
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
n° É de se presumir que a aversão a ter um osso fraturado origine-se do desejo de que o que se oferece a
Deus seja perfeito. A partir de um levantamento religioso comparativo, Henninger (“Neuere”) mostra que
os ossos não eram quebrados porque osso e medula tinham de ser mantidos intactos para a reanimação,
mas admite que não há indícios dessa tese na percepção que Israel tinha do cordeiro.
116 Há quem acrescente Jo 19,31 (“ a fim de que os corpos não ficassem na cruz”) à luz de Ex 12,10, segundo
o qual, quando chega o dia seguinte, nada deve restar do cordeiro abatido ao anoitecer. Ver também
a p ê n d ic e VI a respeito de paralelos (esp. #12) entre a morte de Jesus e o sacrifício de Isaac.
375
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
O verbo passivo joanino é encontrado aqui, mas não o sujeito joanino (“o osso
dele” ). Outras citações bíblicas formais na NP joanina são dos Salmos.*118 Embora
o SI 34 nunca seja citado no NT em relação à Paixão de Jesus,119 o tema desse
Salmo (Deus responde ao chamado do aflito e liberta o justo: SI 34,7.20) adapta-se
bem à cena joanina: a Providência Divina impediu os soldados de quebrarem as
pernas de Jesus, ao contrário do pedido de seus inimigos. Alguns biblistas (Dodd,
Haenchen, Seynaeve, Torrey, B. Weiss) defendem essa como a passagem aludida
por João. Com Hemelsoet, Rehm e outros, acho que os indícios favorecem a imagem
do cordeiro pascal como a referência primordial; mas não vejo razão para João não
ter pretendido também fazer eco ao Salmo.120 Depois de um estudo detalhado da
linguagem, Menken conclui: “A melhor explicação para a forma peculiar da cita
ção em Jo 19,36 parece ser que, aqui, elementos de SI 34,21 combinam-se com
elementos dos textos do Pentateuco”.121 Além disso, cordeiro e salmista perseguido
adaptam-se à teologia joanina.
11' Tem-se recorrido à forma de Ex 12,10 na LXX do Códice Vaticano, onde se lê syntripsetai, futuro médio
singular com sentido passivo: “ Um osso dele não será fraturado” . Contudo, o “ dele” (ap ’ autou) não é o
mesmo que o autou joanino, e o verbo ainda não é o mesmo que o futuro passivo singular (syntribesetai).
De fato, Merken (“ Old” , p. 2104) talvez esteja correto ao argumentar que o syntripsetai do Códice Vaticano
não é nada mais que outro modo de escrever a forma plural da LXX mais amplamente atestada do verbo
em Ex 12,10, syntripsete, pois nessa época ai e e tinham a mesma pronúncia.
118 Jo 19,24 citou SI 22,19; aparentemente, Jo 19,28-29 citou SI 22,16 e SI 69,22.
119 É citado em lPd 2,3; 3,10-12 (ver também 1 Clemente 22,1-7; Barnabé 9,2).
120 Bultmann, Schnackenburg e outros acham que a fonte joanina citava o Salmo, mas o evangelista viu
uma referência ao cordeiro pascal. Como não creio ser possível reconstruir essa fonte, prefiro ver a
possibilidade de João ter usado um desses textos bíblicos antes do outro.
121 “ Old” , p. 2106. Na verdade, nas páginas 2114-2116, ele observa de modo interessante que, já em Jubileus
49,13 (a versão etiópica, não a latina), encontramos ecos das passagens do Pentateuco pertinentes ao
cordeiro combinadas com SI 34,21: “ Não há nenhuma fratura de osso a partir do meio dele [o cordeiro
pascal], nem um único, porque nem um único osso dos filhos de Israel será fraturado” .
376
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
A SEGUNDA CITAÇÃO (Jo 19,37) é: “ Eles vão ver [opsontai eis] quem eles
perfuraram [<ekkentein]” (Zc 12,10).122 Como em Jo 19,36, há uma diversidade de
vocabulário entre a descrição no episódio (Jo 19,34a: nyssein, “ trespassar” ) e a
citação em Jo 19,37, e no episódio não está dito que nenhum grupo vê Jesus de
pois do golpe de lança. Mais uma vez, então, a citação não dá origem ao episódio,
mas foi acrescentada para revelar a profundidade teológica de um relato existente.
Embora Zc 12,10 seja claramente citado, a redação dada por João à citação não
concorda literalmente (ver itálicos) nem com o TM (“Eles vão olhar para mim a
quem eles perfuraram” ),123124nem com a LX X padrão, Códice Vaticano (“Eles vão
olhar para [epiblepsontai] mim porque dançaram de modo insultante,,).m Com
muita frequência, com referência à parusia e às vezes em combinação com Dn
7,13, a forma grega da passagem de Zc 12,10 citada em João com seus opsontai
e ekkentein encontra-se em Ap 1,7 e fez eco em Barnabé 7,9 e Justino, Apologia
I,lii,12 (cf. Diálogo lxiv,7). Como, na maior parte, essas obras certamente não são
dependentes de João, não podemos pensar que João simplesmente mudou a leitura
da LX X padrão, adaptando-a ao TM. Ao contrário, ele e as outras testemunhas
citaram outra forma grega primitiva de Zc 12,10.125 João cita apenas uma linha de
122 Isso é introduzido por: “ E por sua vez \palin], uma outra Escritura diz” . Lavergne (“Coup” , p. 13-14)
recorre a um sentido mais antigo de palin como “atrás, para trás" e argumenta que se deve traduzir:
“ E, em sentido inverso, outra Escritura diz” . A primeira passagem bíblica proibia que fosse feito dano,
enquanto a segunda fala sobre ele ser perfurado. Há um contraste no conteúdo, mesmo sem a tradução
de Lavergne. É o único uso joanino de heteros, “ uma outra” ; seu equivalente aparece como fórmula com
variantes na literatura rabínica primitiva para juntar citações aplicáveis, por exemplo, Midraxe Mekilta
(Beshallah 2,84) a respeito deEx 14,4. Um eis (“em” ) segue “ver” , talvez com a alusão de penetrar para o
sentido da ferida provocada pela lança. Como parte de sua tendência a entender as preposições joaninas
literalmente, De la Potterie (“ Volgeranno” , p. 113) traduz “no interior de” .
123 No contexto, o “ mim” no hebraico é Iahweh, leitura tão difícil que muitos consideram o texto deturpado.
Cerca de quarenta e cinco mss. hebraicos (cotejados por Kennicott e de Rossi) têm “ele” , mas isso talvez
represente a tentativa de melhoramento por parte de copistas. 0 verbo opsontai (de horan), empregado
por João, não é empregado no grego da LXX para traduzir o hiphil de nbt usado pelo TM.
124 É provável que a LXX tenha se enganado na leitura do hebraico dqr (“perfurar”) como rqd (“ pular”). A
derivação da raiz de “ insultar” reconstituída por meio do latim inclui dançar ou saltar derrisoriamente
ao redor de alguém.
123 0 Códice de Viena (L), dos séculos V e VI, preserva uma leitura grega mais próxima de João e do TM:
“Eles olharão para mim a quem perfuraram” . 0 falecido P. W. Skehan, eminente especialista na LXX,
escreveu-me em correspondência pessoal: “ Não tenho nenhuma dúvida de que a interpretação do Códice
de Viena é pré-hexaplar (antes de Orígenes) e proto-Luciano [ver NJBC 68,69: uma revisão palestinense
da LXX do século II ou I a.C. que a aproxima do hebraico], e que fundamenta João” . Ainda é preciso
pressupor que o epiblepsontai (“olhar para” ) desta interpretação foi mudado para o opsontai (“ver”) das
interpretações cristãs e, por essa razão, Menken (“Textual” , p. 504) prefere supor que, fundamentando
João, há uma tradução grega do hebraico que era independente da LXX.
377
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
126 Menken (“Textual” , p. 504) argumenta que, apesar da redação de Zc 12,10, onde parece que “ eles”
que olham são os mesmos que “ eles” que perfuraram, há base na interpretação judaica para não igualar
os dois grupos. Em João, ao cumprir o pedido dos judeus e a ordem de Pilatos, o soldado romano faz a
perfuração, enquanto ele e o discípulo amado são os que veem.
378
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
pende da cruz é o Filho do Homem que foi elevado (Jo 3,14; 8,28; 12,32-34). Além
disso, como Jo 3,18-21 deixa claro, há sempre um aspecto duplo, positivo e negativo,
no julgamento constituído por ver e encontrar Jesus; e isso divide também os que
encontram o que foi perfurado. Os que aceitam o testemunho do discípulo amado
veem e creem, e assim recebem o Espírito que mana do Jesus gloriíicado, o Filho de
Deus. Mas, para “os judeus” que provocaram a perfuração com a exigência de que
as pernas de Jesus fossem quebradas, aquele que foi perfurado é, no pensamento
joanino, sinal de julgamento punitivo.127
121 Ver BGJ, v. 2, p. 954-955; de la Potterie, “Volgeranno” , p. 116. Menken (“Textual” , p. 511) reconhece
que existe uma diferença no ato de ver o Jesus perfurado por crentes e descrentes, mas, estranhamente
(p. 505, notas 43,44), ele afirma que João não diz que “os judeus” ou os soldados romanos olharam para
o Jesus perfurado. Creio ser uma distinção sem sentido porque, na verdade, João também não diz que a
testemunha (o discípulo amado) olhou para o Jesus perfurado. O julgamento toca os que são as dramatis
personae da cena toda.
128 Em EvPd 6,21 (que partilha com Jo 20,25 uma referência a cravos), só são indicados ferimentos nas
mãos.
379
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
o medo é uma reação à morte de Jesus só em Mt 27,54, onde ele também segue
uma referência ao tremor de terra. Em Mateus, foram os soldados romanos que
“temeram excessivamente” ; no EvPd, como a crucifixão é feita pelos judeus, estes
são o sujeito de “ um grande medo”.
380
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
fariseus e anciãos” do EvPd temem porque ouviram a reação do povo a Jesus (EvPd
8,28-29); isso faz eco ao início da Paixão em Mc 14,1-2; Mt 26,3-5; e Lc 22,1-2,
onde os chefes dos sacerdotes e escribas ou anciãos buscam agarrar e matar Jesus
furtivamente, para não haver perturbação entre o povo, pois, como Lucas explica,
“eles temiam o povo”. Quanto a judeus arrependidos, tem-se a impressão de que
o EvPd diferencia entre “os judeus e os anciãos e os sacerdotes”, que batem em
si mesmos em EvPd 7,25, e “todo o povo”, que bate no peito em EvPd 8,28b. Os
primeiros o fazem porque, pelos pecados, tornaram inevitáveis o julgamento colérico
de Deus e o fim de Jerusalém, e assim fizeram mal a si mesmos. Os últimos o fazem,
depois de murmurar contra as autoridades, porque os grandes sinais mostraram-lhes
como Jesus era justo. Ao fazer essa diferenciação, o EvPd aproxima-se da dupla
imagem lucana de reações a Jesus antes da crucificação e depois de sua morte,
como se vê nas palavras em itálico no que se segue. Segundo Lc 23,27-32, quando
Jesus foi levado para fora para ser crucificado com dois malfeitores,129 havia uma
grande aglomeração do povo e das filhas de Jerusalém que estavam batendo em si
mesmas e lamentando, mas Jesus os advertiu da destruição apocalíptica que estava
para vir. Depois da morte de Jesus em Lc 23,48, “todas as multidões” bateram no
peito.130 Em suas imagens dos líderes judeus e o povo não arrependidos, e de vários
tipos de arrependidos, o EvPd continuou descrições encontradas nos Evangelhos
canônicos, mas escureceu o pano de fundo hostil.
381
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Análise
132 Tertuliano, De ieiunio 2,2; CC 2,1258; Constituições Apostólicas v,18 (Funk, org., p. 289); Didascalia
Apostolorum siríaca xxi,13 (Connolly, org., p. 180, 183). Em Evangelho dos Hebreus 7 (HSNTA, v. 1,
p. 165; ed. rev., v. 1, p. 178), os irmãos do Senhor jejuam de pão, depois da Última Ceia até Jesus lhes
aparecer.
382
§ 44 Jesus crucificado, quarta parte: Acontecim entos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
383
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
384
§ 44 .Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
135 Tácito (Anais vi,19) e Suetônio (Tibério 61) indicam a hipersensibilidade sob Tibério, depois da queda
de Sejano em 31 d.C. Ver também Fílon, In Flaccum 9; #72; Josefo, Guerra II,xiii,3; #253 a respeito de
períodos mais tardios.
136 Em Lucas, homens conhecidos de Jesus também estão de pé à distância; em João, o discípulo amado
é testemunha ocular. Mais uma vez, isso não é implausível (assim Gerhardsson, “Mark” , p. 222); e ne
nhum dos dois evangelistas menciona a presença de membros dos Doze, cuja fuga e ausência têm toda
probabilidade de ser histórica.
385
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
13‘ A descoberta do túmulo vazio por Madalena (todos os Evangelhos; EvPd) é uma questão diferente da
questão de ser ela a primeira pessoa a ver o Jesus ressuscitado (Mateus, João, Mc 16,9). A mistura dos
dois talvez seja responsável por certa ambiguidade a respeito de haver ou não outras mulheres com ela
quando descobriu o túmulo. E provável que, na lembrança mais antiga, só ela visse o Senhor ressuscitado
(João, Mc 16,9); mas ela e outras mulheres foram ao túmulo vazio, de modo que, por simplificação em Mt
28,9-10, Jesus lhes aparece. Em toda essa investigação da tradição mais antiga, refiro-me simplesmente
a encontrar o túmulo vazio, não à narrativa de aparições angelicais no túmulo, na qual é feita a revelação
de que Jesus ressuscitou e que, assim, explica por que o túmulo está vazio. Ver NJBC 81,124.
138 Josefo, Ant. IV,viii,15; #219; Mixná Ros Hassana 1,8; TalBab Sebuot 30a. Ver Gerhardsson, “ Mark” , p.
218.
386
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
dos nomes das mulheres (a mãe de Jesus e a irmã de sua mãe, Maria de Clopas,
e Maria Madalena) não parecem ter sido tomadas por empréstimo da enumeração
marcana (Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago Menor e de Joset e Salomé).
Uma explicação plausível é que havia uma tradição pré-evangélica a respeito de
mulheres galileias que observaram a crucificação de longe (João mudou-as para
perto da cruz por causa da combinação que ele faz com sua cena da mãe e do
discípulo amado com quem Jesus fala). De acordo com o padrão narrativo de três,
estava arraigada uma referência a três, das quais foram citados os nomes de duas:
Maria Madalena e outra Maria.139 Inevitavelmente, a presença de três mulheres na
tradição da crucificação influenciou a narrativa do encontro do túmulo vazio por
Maria Madalena e outras, de modo que as outras presentes na cena da manhã de
Páscoa começaram a ser identificadas de maneira harmoniosa com as mulheres
na crucificação — mais uma vez uma suposição não ilógica. Em § 47, vou explicar
por que acho que a especificação das mulheres no sepultamento (ausente de João)
é uma derivação regressiva da tradição expandida da descoberta do túmulo vazio
pelas mulheres.
139 Na medida em que as mulheres foram incluídas em cada Evangelho, o nome da terceira foi especificado
de várias maneiras: Salomé (Marcos), mãe dos filhos de Zebedeu (Mateus), Joana (ver Lc 24,10) e irmã
da mãe de Jesus (João), o que provocou incerteza por haver quatro candidatas diferentes.
387
Q uarto *to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. Ésepultado ali perto
140 Assim Matera (Kingship, p. 50-51), que fala desses versículos como criação marcana. Creio ser mais
prudente falar da formação marcana de uma tradição mais antiga a respeito das mulheres, como expliquei
acima, sob historicidade.
141 Se falamos simplesmente de um redator (deixando de lado a atitude que Bultmann atribui ao Redator
Eclesiástico), esta teoria é antiga. Como Belser antes dele, Haensler (“Zu Jo” ) afirma que isso foi acres
centado ao Evangelho na lista de Pápias dos presbíteros (HE III,xxxix,4.7).
388
§ 44. Jesus crucificado, quarta parte: Acontecimentos posteriores à m orte de Jesus - b. Reações dos presentes
sentido se for referente a todo o conjunto dos vv. 34-35. De modo geral, então,
tomo o partido de Venetz, “Zeuge”, e outros que julgam ser Jo 19,34b-35 obra do
evangelista, não do redator.)
W2 Ao examinar a historicidade, mencionei ser possível que essa tradição pré-evangélica contivesse o ato
de quebrar as pernas, uma perfuração por lança e o fluxo de sangue e água como sinal de morte.
389
Sumário do quarto ato, cena dois
A nálise
393
Quarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
B r o er , I. Die Urgemeinde und das Grab Jesu. Miinch, Kõsel, 1972 (SANT 31).
F o gueras , P. Jewish Ossuaries and Second Burial: Their Significance for Early Christianity.
Immanuel 19,1984-1985, p. 41-57.
G a ech ter , P. Zum Begrãbnis Jesu. ZKT 7 5 ,1 9 5 3 , p. 220-225.
394
§ 45. Bibliografia da seção para a cena dois do quarto ato: 0 sepultam ento de Jesus
H achlili, R. & K illebrew , A. Jewish Funerary Customs during the Second Temple Period,
in the Light of the Excavations at the Jericho Necropolis. P E Q 115,1983, p. 115-126.
H eil , J. P. The Narrative Structure of Matthew 27:55-28:20. JB L 1 1 0 ,1 9 9 1 , p. 419-438.
H emelsoet , B. L’ensevelissement selon Saint Jean. Studies in John. Leiden, Brill, 1970,
p. 47-65 sobre Jo 19,31-42 (J. N. Sevenster Festschrift; NovTSup 24).
H epper , F. N. The Identity and Origin of C lassical Bitter Aloes (Aloe). PEQ 1 2 0 ,1 9 8 8 ,
p. 146-148.
H oltzmann, O. Das Begrãbnis Jesu. ZNW 3 0 ,1 9 3 1 , p. 311-313.
JoüON, P. Matthieu xxvii,59: sindon kathara, “ un drap d’un blanc pur” . RechSR 24,
1934, p . 93-95.
K lein , S. Tod und Begrãbnis in P alastina zur Zeit des Tannaiten. Berlin, H. Itzkowski,
1908.
395
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
M etzg er , B. M . The Nazareth Inscription Once Again. New Testament Studies. Leiden,
Brill, 1980, p. 75-92. Originalmente publicado em E llis , E. E. & G r à sse r , E., orgs.
396
§ 4$. Bibliografia da seção para a cena dois do quarto ato: 0 sepultam m to de Jesus
397
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus,
primeira parte:
O pedido do corpo por José
(Mc 15,42-45; Mt 27,57-58; Lc 23,50-52;
Jo 19,38a)
Tradução
399
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
o corpo do Senhor para sepultamento. 4E Pilatos, tendo mandado recado para He-
rodes, solicitou seu corpo. 5E Herodes disse: "Irm ão Pilatos, mesmo se ninguém o
tivesse pedido, nós o teríamos sepultado, já que na verdade o sábado está raiando.
Pois na lei está escrito: 'O sol não deve se pôr sobre alguém executado'".
ScE ele entregou-o []esus] ao povo antes do primeiro dia de sua festa dos
Pães sem fermento.
EvPd 6,23: E os judeus regozijaram-se e deram seu corpo a José para que ele
pudesse sepultá-lo, pois ele era alguém que tinha visto quantas coisas boas ele fez.
Comentário
400
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
Bulst (“Novae” ), a fim de fazer a prova evangélica adaptar-se à imagem do Santo Sudário; sua teoria é
vigorosamente criticada por Blinzler (“Zur Auslegung”).
3 A primeira passagem cristã que a meu ver pode dar algum apoio a qualquer dessas hipóteses é a estranha
inscrição do arcebispo Hipácio de Éfeso, do ano de 536. Com referência à auto-humilhaçâo de Jesus, a
inscrição observa que ele não sé se humilhou em uma cruz, mas depois da morte, “ como indica a tradição
do evangelista, ele foi lançado para fora [aporiptein] nu e sem sepultamento; então na propriedade de
José foi ele sepultado, depositado no túmulo desse homem” . Bakhuizen van der Brink (“ Paradosis” , p.
217) sugere que a origem dessa “tradição” está na parábola de Mc 12,8 a respeito do filho do dono da
vinha; “ Agarrando-o, eles o mataram e o lançaram para fora [ekballein]'’.
4 Também T. Mommsen, Romisches, p. 987-990.
401
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
toda maneira possível eles montaram guarda, como se impedir o sepultamento lhes
desse grande vantagem”.
É difícil discernir a prática legal romana para uma província como a Judeia.
A lei citada acima (DJ) era juxta ordinem, isto é, lei consuetudinária em Roma
para lidar com cidadãos romanos. Decisões nas províncias para lidar com não
cidadãos eram quase sempre extra ordinem, de modo que um assunto como o fim
dado a corpos de crucificados teria sido deixado para o magistrado local. Antes do
tempo de Jesus, Cícero (In Verren II,v,45; #119) relata que na Sicília, muito mais
perto de Roma, um governador corrupto fazia os pais pagarem pela permissão para
sepultar os filhos. Fílon (In Flaccum x,83-84) nos conta que no Egito, na véspera
de um feriado romano, era costume “descer os que foram crucificados e entregar os
corpos aos parentes, porque se achava bom dar-lhes sepultamento e permitir-lhes
os ritos comuns”. Mas o prefeito Flaco (dentro de uma década da morte de Jesus)
“não deu nenhuma ordem para descer os que tinham morrido na cruz”, nem mesmo
na véspera de uma festa. Na verdade, ele crucificou outros, depois de maltratá-los
com o chicote. Ao olhar o quadro total, o que dizer da atitude provável de Pilatos
ao lidar com Jesus, que foi crucificado pela acusação de ser “o Rei dos Judeus” no
402
§ 46.0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
■’ Se o governador quisesse ser compassivo, seria mais provável ele dar o corpo à família do crucificado. É
interessante que nenhum Evangelho formula essa possibilidade, embora, decerto, só em João há membros
da família presentes na crucificação (Jo 19,25-27: a mãe de Jesus e a irmã dela).
6 “ Some” , v. 2, p. 517. Evidentemente, quando as autoridades se recusavam a entregar o corpo para se
pultamento, os judeus agiam por conta própria e roubavam o corpo; o Semahot (‘Ebel Rabbati) rabínico
2,11 mais tardio proíbe isso.
' Guerra IV,v,2; #317. Essa prática aplicava-se até a suicidas e aos corpos dos inimigos (Guerra III,viii,5;
#377) e a todos os que fossem condenados pela lei judaica a serem executados (Ant. IV,viii,24; ##264-265).
403
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
8 Ver o debate em Mixná Sanhedrin 6,4: “Todos os que eram apedrejados eram depois enforcados, segundo
o rabino Eliezer, mas os Sábios dizem: ‘Ninguém é enforcado, exceto o blasfemador e o idólatra’” .
9 Quer seja fato, quer seja lenda, está claro que a narrativa mateana tomou forma entre cristãos judeus da
Palestina.
10 A respeito de ossilegium, ver Meyers, “Secondary” ; Figueras, “Jewish” .
404
§ 46.0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
Qual foi a atitude judaica para com o Jesus crucificado? 0 desejo de tirar
seu corpo da cruz antes do pôr do sol está implícito no apelo de José a Pilatos, nos
sinóticos, e explícito em Jo 19,31; EvPd 2,5; 5,15. Contudo, a tendência seria dar a
Jesus um sepultamento honroso ou desonroso? Segundo Marcos/Mateus, o sinédrio
achou-o merecedor de morte pela acusação de blasfêmia e, segundo Josefo (Ant.
IV,viii,6; #202), o blasfemador era apedrejado, suspenso “e sepultado ignominio-
samente e na obscuridade”. Em Martírio de Policarpo 17,2, os judeus instigam
a oposição para que o corpo de Policarpo não seja entregue a seus adeptos para
sepultamento honroso. Por outro lado, Jesus foi executado pelos romanos, não por
blasfêmia, mas sob a acusação de ser o Rei dos Judeus. Teria essa sido considerada
morte não de acordo com a lei judaica e, assim, não necessariamente sujeitando o
crucificado a sepultamento desonroso?
Com esse pano de fundo, estamos agora prontos para procurar entender as
narrativas evangélicas do pedido de José a Pilatos.1
11 M. Hadas, The Third and Fourth Books of the Maccabees, New York, Harper, 1953, p. 104-113.
405
Q uarto ato • t
Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. sepultado ali perto
12 Ginesthaí, no genitivo absoluto, como jeito de indicar o tempo que já “estava presente” é formulação que
Marcos usa nove vezes.
13 Exemplo de sua imprecisão encontra-se em Mt 14,15,23b, onde “ sendo o entardecer” precede e segue a
multiplicação dos pães, como se a ação não tivesse tomado tempo. Em passagens como Mt 14,15 e 20,8,
“entardecer” parece ser o fim da tarde, enquanto em Mt 16,2, parece que o sol já se pôs. Quanto ao uso
marcano, exemplos anteriores de opsia eram acompanhados de precisões que estabeleciam o tempo. Em
Mc 1,32, opsia foi aprimorado por: “depois do pôr do sol” ; em Mc 14,17, quando opsia chegou, Jesus e
os Doze vieram sentar-se para a ceia de Páscoa, refeição que só podia ser feita quando o dia seguinte
tivesse começado.
14 O “já ” (ede) de Mc 15,42, colocado antes de opsia, está relacionado com a indicação de tempo anterior
da 9* hora, embora indiretamente sugira urgência.
406
§ 46.0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: O pedido do corpo por José
L’ É interessante que quando Josefo usa paraskeue (Ant. XVI,vi,2; #163) ele também explica-o como sendo
antes do sábado.
16 Nos tempos rabínicos mais tardios, a necessidade de respeitar o sábado em termos de sepultamento é
demonstrada pela lenda de que, por ocasião da morte do rabino Judá ha-Nasi na véspera do sábado, todos
os habitantes de Israel reuniram-se para prantear e, por providência divina, o dia foi milagrosamente
alongado até cada israelita conseguir chegar em casa e acender a luz do sábado (Midrash Rabbah sobre
Ecl 7,12; #1).
407
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
1‘ Mateus e o EvPd (por interpretação intuitiva da tradição e provavelmente não com base em informações
históricas confidenciais) nos contam que o túmulo perto do Gólgota, onde Jesus foi sepultado, era o
túmulo de José. Entretanto, como muitos judeus queriam ser sepultados na área de Jerusalém perto do
Templo, a localização em Jerusalém do túmulo de José não nos diz necessariamente que José morava
na área de Jerusalém. Lucas chama Arimateia de “ uma cidade dos judeus” (Lc 23,51), querendo dizer
que ela ficava na Judeia. Muitos a identificam com Ramataim-sofim, de ISm 1,1. Em seu Onomasticon,
Eusébio sugeriu Rempthis ou Rentis, 15 km a nordeste de Lida. (IMe 11,34 associa Lida e Ramataim
como distritos.) Contudo, W. F. Albright (Annual of the American Schools of Oriental Research 4, 1922-
1923, p. 112-123) rejeita a identificação com Rentis e propõe Ramalá. Outra sugestão é Beit Rimeh, 8
km a leste de Rentis e cerca de 20 km a noroeste de Betei. Nenhum desses lugares está na Galileia.
18 EvPd 6,23 e 7,26 realçam a diferença: José está presente no sepultamento, enquanto os Doze estão
escondidos.
19 Gnilka (Markus, v. 2, p. 331) aponta a gramática difícil, por exemplo, os verbos duplicados: “ tendo vindo
[erchesthai] [...] veio diante [eiserchesthaiprosj’. Embora Marcos queira dizer que José era originário de
Arimateia, é possível interpretar que ele veio de Arimateia para ir diante de Pilatos.
20 Usado só aqui em Marcos, euschemon significa “influente, honrado, ilustre” . Em At 13,50, os judeus
incitam os cidadãos “influentes” contra Paulo e Barnabé; em At 17,12, “ influentes” mulheres gregas e
também homens abraçam a fé em Jesus. Em ICor 7,35; 12,24 e no único exemplo da LXX (Pr 11,25), o
sentido é “ digno, honrado” . A tentativa de Schreiber (“ Bestattung” , p. 143, nota 4) de ligar a descrição
de José como euschemon às pessoas ricas que põem grandes somas no tesouro (Mc 12,41-44) e aos ricos
ímpios de Is 22,16 que escavam túmulos para si e “ moradas no rochedo” é implausível. Não há nenhuma
ligação de vocabulário, e Marcos não diz que ele é rico ou o dono do túmulo. A descrição marcana é
claramente positiva.
408
§ 46.0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: O pedido do corpo por José
impressão dada é que José era membro ilustre do conselho da cidade que gover
nava Jerusalém. Usando synedrion (“sinédrio” ), Marcos refere-se duas vezes na
NP (Mc 14,55; 15,1) ao organismo respeitado de Jerusalém que condenou Jesus,
um organismo que consistia em “todos os chefes dos sacerdotes, e os anciãos, e
os escribas” (Mc 14,53). Como mostrei (§ 18, B2), no decorrer da história esse
organismo foi citado em grego com certa permutabilidade, como boule e também
como synedrion; e Josefo (Guerra II,xvii,l; #405) usa bouleutes para membros
do conselho associados às autoridades governantes de Jerusalém. Com toda a
probabilidade, então, Marcos queria que os leitores soubessem que José era mem
bro ilustre do sinédrio,21 embora, antes, Marcos descresse todos os membros do
sinédrio como tendo procurado testemunho contra Jesus, a fim de executá-lo (Mc
14,55: “o sinédrio inteiro” ), como tendo-o julgado culpado, punível com a morte
(Mc 14,64), e como tendo-o entregado a Pilatos (Mc 15,1: “o sinédrio inteiro” ).
“ Todos” e “ inteiro” podem bem ser uma hipérbole marcana, mas seu uso cria uma
atitude entre os leitores quanto à oposição do sinédrio a Jesus. Assim, não há nada
no primeiro item de informação marcana a respeito de José para fazer os leitores
pensarem nele como seguidor ou partidário de Jesus.
21 Manifestamente, é desse jeito que Lucas (Lc 23,50-51) entendeu Marcos. Os que se opõem a essa con
clusão perguntam por que, tendo empregado synedrion duas vezes, Marcos muda para bouleutes a fim
de descrever um membro do sinédrio. Além da maior inteligibilidade de boule para os leitores gregos
mencionados acima, é digno de nota que nenhum autor neotestamentário jamais use a denominação de
synedrion para descrever um membro do sinédrio, por exemplo, synedros ou synedriakos. Podería Marcos
na prática ter pensado em bouleutes como o termo comum para essa personagem? A sugestão de Winter
(“Marginal” , p. 244), segundo a qual José não era membro do grande sinédrio, mas do Beth Din, ou
tribunal inferior que tinha o dever de verificar que os executados recebessem sepultamento decente, é
duplamente defectivo. Não só o grego marcano não dá razão para pensar em um organismo distinto, mas
também não há nenhum indício sólido de que essa diversidade de organismos existia na Jerusalém do
tempo de Jesus (ver § 18, B2). Ainda mais irreíletida é a conclusão de Shea (“ Burial” , p. 89-90), para
quem José era membro do consistório ou gabinete do sumo sacerdote que consistia em sacerdotes e
leigos — conclusão que ignora nossa falta de conhecimento preciso quanto à formação de um sinédrio
no tempo de Jesus (§ 18, Cl).
22 Nunca encontrado em Mateus ou João, mas sete vezes em Lucas-Atos. E construção perifrástica que dá
força ao verbo. Schreiber (“Bestattung” , p. 143-145) interpreta prosdechesthai à luz de Mc 4,12: “ vendo,
mas não percebendo” , de modo que José passa a ser um legalista piedoso que ignora Ex 23,1.7, a respeito
de matar o inocente, mas preocupa-se com o corpo! Como alguém pode considerar essa descrição negativa
desafia a imaginação. Dado o eminente valor atribuído a “o Reino de Deus” em Marcos, os leitores com
certeza interpretaram “ aguardando o Reino de Deus” positivamente. Se Marcos estava descrevendo
409
Q uarto aro •Jesusé crucificadoemorrenoGólgota.í sepultadoaliperto
uma trama legalista, como afirma Schreiber, então Mateus e Lucas independentemente entenderam mal
Marcos ao considerarem José personagem positivo.
23 Mt 27,57 descreve José como discípulo de Jesus (e o mesmo faz Jo 19,38a). Mas Mateus interpreta o
sentido de Marcos ou muda-o? Lucas não viu esse sentido em Marcos.
24 Uma resposta propõe obscuridade deliberada da parte de Marcos porque ele achou difícil apresentar um
membro do sinédrio que ao mesmo tempo era discípulo de Jesus. Não é solução satisfatória, considerando
que Marcos podería ter evitado essa dificuldade não escrevendo que “ o sinédrio inteiro” condenou Jesus.
Shea (“ Burial” , p. 91), seguindo Blinzler (“Grablegung” , p. 69), argumenta que Marcos não chamou José
de discípulo porque limitou essa palavra aos que acompanharam Jesus em suas viagens. É uma apreciação
estreita demais daquilo que discipulado significava para Marcos. E. Best (Following Jesus: Discipleship
in the Gospel of Mark, JSNTSup 4, Sheffield Univ., 1981, p. 39) deixa claro que seguir Jesus, que é a
característica do discípulo em Marcos, envolve a imitação de Cristo; é primordialmente um seguimento
espiritual, não geográfico. “ Os discípulos estão em uma viagem, ou peregrinação, na qual viajam atrás
de Jesus buscando uma dedicação como a su a...” (p. 246). Se, para Marcos, José (que estava aguardando
o Reino de Deus) acreditava em Jesus, não há nada nessa descrição que impeça Marcos de descrevê-lo
como discípulo.
410
§ 4 6 .0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
Congregação: “que ele estabeleça o Reino de Seu povo [de Deus] para sempre”. O
kadish, oração judaica primitiva, pede: “ Que Ele estabeleça Seu Reino em vossos
dias”. Mesmo em Marcos (Mc 12,34) houve um escriba que perguntou a Jesus
sobre os mandamentos e admirou o conhecimento que Jesus tinha da lei, mas que
não o seguiu especificamente — foi dito que o escriba não estava “ longe do Reino
de Deus”. Assim, para Marcos, os que aguardavam o Reino incluíam discípulos e
piedosos observadores da lei que estavam fora do discipulado. Estava esta última
categoria fechada a José por ele ser um dos membros do sinédrio que “procuravam
depoimento contra Jesus a fim de lhe dar a morte” (Mc 14,55)? É digno de nota
que Marcos não diz, como faz Mt 26,59: “procuravam falso depoimento contra Je
sus. ..”. Para Marcos, está claro que os chefes dos sacerdotes e os escribas agiram
traiçoeiramente (Mc 14,1); e os chefes dos sacerdotes eram invejosos e maliciosos
(15,10.31). Mas havia outros membros do sinédrio que tiveram de ser guiados pelo
sumo sacerdote para dizer que Jesus era culpado de blasfêmia (Mc 14,63-64) e, por
isso, devia ser punido com a morte. Se o José marcano estava entre esses membros
do sinédrio, ele pode ser descrito como judeu piedoso que aguardava o Reino de
Deus no sentido de que procurava apenas obedecer aos mandamentos, como fazia
o escriba de Mc 12,28.25
Tudo o que Marcos relatou até aqui, então, mostra haver uma possibilidade
e até probabilidade de Marcos não estar descrevendo José como discípulo de Jesus.
Agora, temos de perguntar se essa interpretação é refutada pelas duas orações
seguintes em Mc 15,43, a saber, que ele precisou de coragem para vir diante de
Pilatos e que ele requisitou o corpo de Jesus. A lógica de minha resposta será mais
fácil de entender se eu tratar das duas orações em ordem inversa.
O fim de Mc 15,43 nos diz que José “veio diante de Pilatos e solicitou o
corpo de Jesus”.26 Pode-se entender um discípulo de Jesus solicitando seu corpo
para sepultamento; mas por que um piedoso membro do sinédrio, cumpridor da
25 Um dos que consentiram na execução de Estêvão foi Saulo de Tarso (At 8,1), claramente uma pessoa que
aguardava o Reino de Deus — não discípulo de Jesus, mas acessível a se tomar um, quando esclarecido.
A tese de que José era um piedoso membro do sinédrio que só a tradição cristã em desenvolvimento
julgava ter sido discípulo na época do sepultamento foi impressivamente apresentada por Masson,
“Ensevelissement” ; desenvolvi-a mais em meu artigo “ Burial” .
26 Os três sinóticos usam o verbo aitein (“ solicitar”) aqui, o mesmo verbo que Marcos usou em Mc 15,8
quando a multidão subiu a Pilatos e “começou a solicitar (que ele fizesse) como ele costumava fazer para
eles” , isto é, soltar na festa um prisioneiro que eles solicitassem.
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
lei, que não era discípulo de Jesus, ia querer sepultar o corpo de um blasfemador
crucificado? Era uma questão de obedecer à vontade divina, pois a lei deuteronô-
mica exigia que mesmo o corpo de um criminoso não fosse deixado na cruz depois
do pôr do sol, situação ainda mais obrigatória porque o dia seguinte era o sábado.
As vezes levanta-se a objeção de que, se a solicitação de José fosse concedida, o
contato com o cadáver o teria tornado impuro, situação que um judeu piedoso ia
querer evitar. Como veremos a seguir, é provável que ele não fizesse o sepultamento
sozinho e tivesse servos para ajudá-lo; mas não vamos recorrer a essa explicação,
pois a narrativa não menciona servos. Os que escreveram a lei deuteronômica o
fizeram sabendo que quem tocasse em um cadáver se tornaria impuro;27 o sepulta
mento era claramente visto como bem necessário que eclipsava a impureza que o
acompanhava. Acima, ao tratar de atitudes judaicas, mostrei como o sepultamento
de cadáveres era levado a sério no tempo de Jesus. Exemplo mais tardio da Mixná
(.Nazir 7,1) debate se o próprio sumo sacerdote, ao encontrar um cadáver extraviado,
teria de sepultá-lo, mesmo à custa de ficar contaminado. Assim, a preocupação de
José para sepultar Jesus era perfeitamente consistente com a piedade judaica.28
Objeção escrupulosa foi formulada quanto a saber se essa piedade permitiria a José
sepultar um criminoso crucificado no dia da Páscoa. Entretanto, como vimos, Marcos
só menciona a Páscoa com referência à refeição de Jesus na noite de quinta-feira e,
então, aparentemente ignora o cenário da Páscoa durante o dia ao descrever toda a
atividade subsequente do sinédrio e da crucificação. Em fidelidade ao que Marcos
enfatiza, não há razão para incluir a Páscoa em nossa procura por inteligibilidade
na cena do sepultamento, do mesmo modo que não precisamos incluir essa datação
na cena do julgamento.
Por que, se José não era discípulo de Jesus, foi preciso coragem da parte dele
para se aproximar de Pilatos?29 0 Pilatos marcano, que percebera que Jesus lhe
412
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
fora entregue pelo sinédrio por inveja/zelo (Mc 5,10: phthonos) compreensivelmente
teria desconfiado se um membro do sinédrio o perturbasse novamente. Ou José
tinha medo de, ao solicitar o corpo de Jesus, o confundirem com um simpatizante
da causa do “ Rei dos Judeus” e, assim, ser manchado por maiestas, crime levado
muito a sério aos olhos romanos? Cícero (Philipic i,9; #23) admitiu que, embora
originalmente desaprovasse a Lex Iulia de maiestate (§ 31, D3, acima), essa lei
devia ser escrupulosamente observada, por amor à paz. Suetônio (Tibério 58) nos
conta: “ Um pretor perguntou a Tibério se, em sua opinião, tribunais deviam ser
convocados para julgar casos de traição [maiestas]. Tibério respondeu que a lei
devia ser imposta e, na verdade, ele a impunha de maneira muitíssimo feroz”. Tácito
(Anais vi,8) menciona a suspeita absurda de Tibério a respeito de todos os que
tivessem sido cordiais com Sejano, que era culpado de traição. Se nesse contexto foi
preciso coragem para José vir diante de Pilatos solicitar o corpo de um criminoso
crucificado como pretenso rei, o que o salvaria era o fato de ser membro respeitado
do sinédrio que havia entregado esse criminoso para perseguição. Incidentalmente,
à luz de atitudes romanas explicadas no início desta seção, o relato marcano é muito
mais plausível que os relatos mateano e lucano. Não era provável que um prefeito
desse o corpo a um discípulo de Jesus (Mateus), nem a um membro do sinédrio
que tinha argumentado a favor da inocência de Jesus (Lucas).30
Por que, se não era discípulo de Jesus, José deu a Jesus um sepultamento dig
no? E ssa objeção, a meu ver, baseia-se em premissa falsa. Pressupõe que o sindon,
ou “pano de linho” que Mc 15,46 descreve como sendo comprado e usado por José
para amarrar e sepultar Jesus, era material fino ou caro (assim Shea, “ Burial”, p.
96-97). Isso está longe de ser passível de verificação, considerando a ampla série dos
de Jesus) de vir “diante” de Pilatos foi revelada na ignorância da impureza ritual que Jo 18,29 (ele quer
dizer Jo 18,28b) diz que ocorrería se “ os judeus” entrassem no pretório. Já que Marcos nunca menciona
essa impureza, como os leitores marcanos pensariam nessa possibilidade? Quanto a João, ele não diz
que José veio diante de Pilatos.
30 Scholz (“José” , p. 82-84) recorre ao uso marcano de paradidonai (“entregar” ) e vê Pilatos dar Jesus a José
como ação positiva para um sepultamento digno — embora nenhum Evangelho use o verbo paradidonai
para essa ação! Ver o estudo no parágrafo relativo às notas 52-54, abaixo. O argumento de que Pilatos
podia simplesmente ter decidido ser indulgente para com José, o discípulo de Jesus, não se encaixa no
que Marcos nos conta a respeito do cínico comportamento de Pilatos no julgamento (Mc 15,10.15), nem
com o relato de Pilatos por Josefo, nem com os costumes romanos de crucificação. Quando se supõe que
José era discípulo de Jesus, o comportamento do Pilatos marcano só faz sentido se Pilatos não conhecia
esse fato oculto; mas então se elimina grande parte da ousadia que fez pressupor o discipulado em
primeiro lugar.
413
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
usos de sindon para vestes de diferentes formas, tamanho e usos. Na verdade, para
deixar claro que o discípulo José tratou o corpo de Jesus apropriadamente, Mateus
(Mt 27,59) tem de acrescentar que o “pano de linho” era “limpo” . Argumentarei
em § 47 que Marcos descreve o tipo mais modesto de sepultamento, marcado pela
pressa e sem comodidades.
31 Este exame busca fazer sentido da narrativa presente onde José e as mulheres galileias aparecem na mesma
cena. Ao se argumentar que as mulheres estavam ausentes da narrativa pré-marcana de sepultamento (§
47 B, adiante), a tese de que José era discípulo apresenta um problema a respeito do motivo pelo qual
elas ficaram afastadas. Afirmo que havia uma tradição pré-evangélica segundo a qual três galileias (uma
delas era Maria Madalena) observaram de longe a morte de Jesus na cruz. Há uma tradição muito forte
de que Maria Madalena foi ao túmulo na manhã de Páscoa. Se o José que desceu o corpo de Jesus da
cruz era discípulo, por que ela não veio ao sepultamento e o ajudou quando a pressa era importante?
32 Shea (“Burial” , p. 105) explica a falta de cooperação sob alegação de que as mulheres não deviam falar
com homens em público, principalmente com estranhos (José é estranho porque ele era um discípulo
de Jesus da Judeia e elas eram discípulas galileias!), e os sexos eram segregados em funerais. Em que
passagem dos Evangelhos (exceto em Jo 4, onde Jesus fala a uma samaritana) há algum problema quanto
a mulheres falarem com homens? Quanto a costumes de funerais, João (Jo 20,14-15) não tem dificuldade
a respeito de Madalena dirigir-se no túmulo a um homem quando pensa ser ele um jardineiro.
414
§ 46.0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte.O pedido do corpo por José
31 R. H. Fuller (The Formation of the Resurrection Narratives, New York, Macmillan, 1971, p. 54-55)
reconhece a antiguidade da tradição, mas interpreta o sepultamento, de maneira hostil, como o “último
ato do crime” . Isso não está realmente claro nos Atos e pode ter estado ausente por completo da tradição
fundamental.
34 Para Boismard (Jean , p. 444), os judeus são o sujeito nessa fbrflra mais primitiva da tradição joanina.
Murphy-CPConnor (“Recension”) rejeita os judeus como sujeito, pois eles haviam de querer evitar a
impureza ritual. (Ele deixa de levar em conta a grave responsabilidade dos judeus piedosos para sepultar
esse corpo mesmo a custa da impureza.) Para ele, “eles” são os discípulos anônimos do Evangelho de
João (apesar de nenhum grupo anônimo ser mencionado no contexto), de modo que o papel de José no
sepultamento (Jo 19,38) é interpolação mais tardia. Se “eles” é original, a identificação de Boismard é
muito mais plausível.
35 Na continuação da narrativa (EvPd 6,23), eles “ dão seu corpo a José, para que ele possa sepultá-lo” —
aparentemente uma combinação de duas tradições. Atos de Pilatos 12 relata que, quando ouviram que
José havia pedido o corpo de Jesus, os judeus se tornaram tão hostis a ponto de prender José; é outro
desdobramento da descrição evangélica mais tardia de José como discípulo de Jesus ou solidário a ele.
36 Klostermann, Lohmeyer, Loisy etc.; ver BHST, p. 274.
415
Q uarto «to •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
416
§ 4 6 .0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
417
Q uarto ato ■ Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
41 Mixná Yebamot 16,3 mostra como os rabinos eram cautelosos: mesmo que alguém fosse crucificado
publicamente, a comprovação da morte só podia ser apresentada depois de um intervalo para a alma
sair do corpo.
42 Assim Barbet (Doctor, p. 68, sem suprir a referência). Do mesmo modo, Barbet indica um texto árabe
que afirma que, em 1247, um homem crucificado resistiu até o segundo dia.
43 C. F. Nesbitt (Journal of Religion 22, 1942, p. 302-313) indica a prevalência da malária no Vale do
Jordão e em tomo de Tiberíades, e especula que Jesus não estava bem nem era forte!
418
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
para que fossem descidos; dois deles morreram durante o tratamento por médicos
e o terceiro sobreviveu. (Observemos como o oficial romano chefe responde a uma
solicitação quanto ao crucificado.) De modo geral, então, não era impossível que
Jesus morresse relativamente depressa e não há nada notoriamente improvável a
respeito da reação de Pilatos ao comunicado da morte de Jesus em Mc 15,44-45.
419
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
sendo já o entardecer, como era dia de preparação, isto é, o dia antes do sábado”.
Como seria de se esperar, Mateus elimina a estranheza quando habilidosamente
reutiliza os três elementos marcanos para abranger os três dias, desde o sepulta-
mento ao entardecer de sexta-feira, até o túmulo vazio no domingo de manhã. (Para
demonstrar a reutilização, ao dar a redação mateana, vou pôr em itálico o que ele
tirou de Marcos.) A primeira indicação marcana de tempo é reutilizada por Mateus
aqui, para apresentar José e a solicitação do corpo na sexta-feira: “ Mas sendo o
entardecer”. M a t e u s vai usar a segunda notícia marcana de tempo em Mt 27,62
para introduzir o material especial que relatará a respeito dos fariseus e da guarda
no túmulo no sábado: “ no dia seguinte, isto é, depois do dia de preparação”. Mateus
vai usar o elemento marcano final, a frase explanatória a respeito do sábado,*46 em
Mt 28,1, para introduzir sua narrativa do túmulo vazio no domingo: “ Mas no fim
[opse\ do sábado , ao amanhecer [= início] do primeiro dia da semana”. (A respeito de
como o tempo era calculado para os dias da semana, ver Apêndice II, B l, adiante.)
4,1 Embora não preserve todas as indicações marcanas de tempo na NP, Mateus mantém a inclusão pela qual
“o entardecer” assinala o início da Ultima Ceia (Mt 26,20) e o fim da crucificação pelo sepultamento.
46 Mc 16,1, que inicia a narrativa do túmulo vazio, tem outra referência ao sábado: “E quando o sábado
acabou” . Mateus evita a duplicação.
420
§ 46.0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
4‘ Será que Mateus julgava isso impossível? É mais provável que ele julgasse impróprio repeti-lo.
48 Literalmente um verbo: “tinha sido discípulo de Jesus” . Antecipar a situação pós-ressurreição é impor
tante característica do Evangelho de Mateus em sua cristologia e em seu tratamento dos seguidores de
Jesus, por exemplo, ao acrescentar confissões do Filho de Deus (Mt 14,33; 16,16, comparados a Mc 6,52;
8,29). Que ultraconservadores tenham entendido isso mal é visível na introdução editorial a “ Burial” ,
trabalho póstumo de 0 ’Shea. A tese de que, ao chamar José de discípulo, Mateus antecipa a situação
pós-ressurreição do homem é tratada como contestação da veracidade de Mateus. Essas intuições pós-
-ressurreiçâo antecipadas são a verdade para Mateus.
49 Uma base bíblica para o túmulo de um homem rico mateano é encontrada por alguns na descrição do
servo sofredor. O TM de Is 53,9 diz: “ E ele deu [isto é, colocou] com os ímpios sua sepultura, e com o
rico em suas mortes” . Muitos suspeitam de alteração na última sentença e sugerem emendas hebraicas
que produzem um melhor paralelismo sinônimo: “ e com os fazedores do mal seu túmulo” . As emendas
claramente nada fazem para apoiar o uso mateano desse versículo, que é dependente de “homem rico” ;
além disso, para Mateus, Jesus foi sepultado no túmulo novo de José, discípulo de Jesus, e assim, nem
com os ímpios, nem com eles. O targum mais tardio (“E ele jogará os ímpios na Geena, e os que são ricos
de posses que obtiveram pela violência, na morte de destruição”), embora mantenha “ricos” , não está
mais próximo de Mateus em sentido. Nem o está a LXX (“Darei o ímpio no lugar de [anti] seu sepulta
mento e os ricos no lugar de sua morte”), que presumivelmente se refere à execução divina punitiva do
ímpio adversário do servo sofredor, em lugar dele. Barrick (“Rich”) apela à leitura de lQ sa, que para ele
significa: “ E eles fizeram a sepultura dele com os ímpios, mas seu corpo (deitado) com um (homem) rico” .
Essa interpretação requer interpretar os manuscritos bwmtw não como seu “monumento de sepultura” ,
mas como “ suas costas” , isto é, “corpo” . Ela corretamente reconhece que só por paralelismo antitético
o versículo pode funcionar em Mateus, mas ainda não explica como Mateus teria visto a primeira parte
421
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
tornara tradição cristã a respeito do lugar onde Jesus fora sepultado (por exemplo,
EvPd 6,24: “chamado o Jardim de José” ). Como o fato de José ser rico afetou seu
papel de discípulo cristão modelo? Quando leu o “esperando o Reino de Deus”
marcano, Mateus pensou nas palavras de Jesus que ele registrara antes, em Mt
19,23-24 (“ Um rico entrará no Reino do Céu com dificuldade [...], é mais fácil um
camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus” )?
Nesse caso, Mateus pode ter decidido descrever nesta cena depois da morte de
Jesus um rico que enfrentou o desafio de “ Vem, segue-me”, ao contrário do jovem
afastado por suas muitas posses (Mt 19,21-22). Mateus nunca relata a maldição que
Lc 6,24 atribui a Jesus: “Ai de vós, ricos, porque já recebestes vossa consolação”.50
Mateus não tem nenhuma advertência para não convidar vizinhos ricos ao banquete
(Lc 14,12), nenhuma parábola do rico que tolamente constrói grandes celeiros (Lc
12,16-21), nenhuma parábola do rico posto em contraste com Lázaro (Lc 16,1-13).
Ao contrário de Simão Pedro, Tiago e João (em Lc 5,11) que deixam “ tudo” para
seguir Jesus, esses ilustres em Mt 4,20.22 deixam coisas específicas (rede, barco,
pai). Sênior (Passion [ ...] Matthew, p. 151) lembra que Mateus se refere a uma
série muito mais ampla de moedas que Marcos e usa termos como “ouro”, “ prata”
e “ talento” cerca de 28 vezes, em comparação com 1 vez em Marcos e 4 em Lucas.
Pode-se suspeitar, então, que no meio da comunidade mateana havia ricos, e José
servia-lhes de discípulo modelo.
do versículo cumprida. Como vimos, em casos de citação bíblica, Mateus gosta de todos os detalhes
cumpridos. Pode-se, então, duvidar que Mateus tivesse essa passagem de Isaías em mente.
5(1 A bem-aventurança mateana pertinente (Mt 5,3) é: “ Felizes os pobres de espírito, pois deles é o Reino
dos Céus” — bem-aventurança que inclui os ricos, ao contrário da bem-aventurança lucana (Lc 6,20):
“Felizes, vós, os pobres” .
sl Argumentei ser mais provável que a versão de Marcos usada por Mateus tivesse esses versículos, mas
Mateus os omitiu porque tomar conhecido que o governador romano manifestou dúvida quanto a Jesus
estar realmente morto não ajudava a apresentação cristã da ressurreição.
422
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
Em Mt 27,58b (“Então Pilatos ordenou que (ele) fosse entregue” ), Mateus tem
a mesma ideia que Mc 15,45b (“ele concedeu o cadáver a José” ), mas expressou-
-a em vocabulário muito diferente.32 O Pilatos mateano aquiesce sem expressar
nenhuma hesitação e sem interrogar José, embora este seja discípulo de Jesus.
Dois fatores devem ser considerados no reconhecimento de que essa aquiescência
não é implausível, considerando a narrativa mateana. Primeiro, há uma diferença
entre a descrição de Pilatos marcana e a mateana. Durante o julgamento de Jesus,
o Pilatos marcano era um juiz cínico que não se esforçou muito em benefício de
Jesus: embora reconhecesse o preconceito dos inimigos de Jesus, entregou Jesus e
soltou Barrabás para satisfazer a multidão (Mc 15,10.15). Argumentei acima que
esse Pilatos não assumiría o risco de soltar o corpo do “ Rei dos Judeus” a um dis
cípulo conhecido daquele rei. Mas, durante o julgamento, o Pilatos mateano ouviu
de sua mulher que Jesus era justo e ele lavou as mãos em público para permanecer
inocente do sangue de Jesus (Mt 27,19.24). Esse Pilatos bem-disposto podia con
tinuar a mostrar sua convicção de que Jesus fora tratado injustamente, ordenando
que seu corpo fosse entregue a um discípulo precisamente porque reconheceu que
Jesus não tinha nenhum seguimento político. Segundo, ao contrário do marcano,
o José mateano era um homem rico (e, ao que tudo indica, influente) a quem um
governador não ia querer ofender negando sua solicitação. A resposta afirmativa de
Pilatos subentende a ação de soldados romanos, pois seriam eles que entregariam
o corpo. Apodidonai (“entregar/devolver” ) é verbo mateano (18 vezes, em compa
ração a 1 em Marcos, 8 em Lucas); e, além do sentido de entregar o corpo, pode
ter a conotação de devolvê-lo aos adeptos de Jesus, já que José é discípulo.53 (Será
que Mateus queria que pensássemos que Pilatos sabia disso a respeito de José?
Do princípio ao fim da NP, vemos Jesus “entregue, abandonado” (paradidonai) de
um ator hostil para outro, em uma corrente que leva à cruz.54 Agora, finalmente ele
não é entregue de novo, mas devolvido a alguém que o ama.
’2 Se a forma de Marcos que Mateus usou tinha os vv. 44-45, então Mateus decidiu parafrasear a última
oração desses versículos.
33 O verbo aparece em Fílon (In Flaccum 83), em uma passagem a respeito de corpos sendo descidos da
cruz e entregues a parentes para receber ritos fúnebres.
54 Paradidonai, com referência a Judas antes da NP (Mt 26,2.15.16.21.23.24.25); também Mt 26,45.48;
27,2.3.4.18.26.
423
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Alguns biblistas pressupõem uma fonte especial para Lucas nesta seção
da narrativa do sepultamento (Grundmann, Schneider, B. Weiss); mas eu não vejo
nenhuma razão convincente para pensar que Lucas tinha alguma fonte escrita
além de Marcos aqui (assim também Büchele, Taylor), embora, como de costume
na NP, no que ele assumiu, Lucas exercesse uma liberdade maior em relação a
Marcos que Mateus. Lucas começa o relato do sepultamento com um “ E ” (kai )
inicial, exatamente como começou os relatos do julgamento romano (Lc 23,1) e da
crucificação (Lc 23,26). Antes de tratarmos do que Lucas registra no sepultamento,
devemos mencionar sua omissão inicial das duas indicações de tempo e da frase
explanatória que iniciou o relato marcano (Mc 15,42). A omissão do opsia (“entar
decer” ) marcano não é surpreendente, pois Lucas-Atos nunca usa opsia (5 vezes
em Marcos, 7 em Mateus, 2 em João). Quanto ao marcano “era dia de preparação,
isto é, o dia antes do sábado”, Lucas vai reutilizar essas frases na segunda parte da
cena do sepultamento (§ 47 adiante); de fato, depois do efetivo sepultamento, Lucas
(Lc 23,54) declara: “ E era dia de preparação e o sábado estava raiando”. Colocado
ali, mostra implicitamente o sucesso de José para cumprir a lei de sepultar corpos
crucificados antes do pôr do sol e também a lei do descanso no sábado.” No início
do Evangelho, Lucas descreveu alguns judeus piedosos, zelosos praticantes da lei, e
ainda assim receptivos para participar do acontecimento de Jesus (Zacarias, Isabel,
Simeão, Ana: Lc 1,5-6; 2,25.36-37). A guisa de inclusão no fim do Evangelho, ele
apresenta José como o mesmo tipo de judeu.
15 Lc 23,56ab mostra-nos explicitamente que esta última lei (que os leitores gentios conheciam) era im
portante, pois, depois do sepultamento, as mulheres voltaram para onde estavam hospedadas, a fim de
preparar especiarias e mirra. “E então, no sábado, elas descansaram, de acordo com o mandamento” .
56 Ocorre vinte e seis vezes em Lucas; ver Fitzmyer, Luke, v. 1, p. 121. Feldkãmper (Betende) começa com
Lc 23,49 e, assim, à guisa de inclusão, tem as mulheres galileias no início e no fim (Lc 23,55-56) da
cena do sepultamento. Contudo, no v. 49, as mulheres estão de pé a certa distância, vendo as coisas que
aconteceram quando Jesus morreu. A melhor interpretação é que a estrutura lucana tem as duas cenas,
uma de morte e a outra de sepultamento, ambas terminando com as mulheres galileias observando ou
olhando.
424
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
17 Das muitas traduções possíveis de dikaios (“direito, reto, santo”), parece que, aqui, “justo” é apropriado,
em oposição à injustiça do sinédrio.
571 Em Lc 1,27, a Virgem Maria foi desposada “ por um homem cujo nome era José” . .Nesse arranjo arquite
tônico onde no fim da história Lucas faz José de Arimateia parecer-se com judeus piedosos do começo
da história, tem ele também a intenção de nos lembrar de seu homônimo, ou é acidental a semelhança
de nome?
A intenção é certamente fazer o trocadilho de que o bouleutes não concordava com o boule (9 vezes em
Lucas-Atos; 0 em Marcos, Mateus e João). E inferência por Lucas na tentativa de dar sentido à informa
ção marcana e dificilmente uma coisa a respeito da qual ele tinha informação particular. Se essa última
hipótese fosse verdade, teríamos esperado que Lucas nos preparasse para essa exceção em seu relato dos
procedimentos do sinédrio. De fato, como menciono no texto acima, Lucas descreve as ações do sinédrio
contra Jesus com a mesma universalidade encontrada em Mc 14,53.55.64; 15,1 (“todos, inteiro”).
425
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
e “ Não ficarás de acordo com eles [os habitantes pagãos da terra] e seus deuses”
(Ex 23,32).60 Em Lc 22,66.70, todos os membros do sinédrio interrogam Jesus
e, em Lc 23,1, “toda a aglomeração deles” leva Jesus a Pilatos. Contudo, eis um
membro do sinédrio que não transgrediu as ordens divinas de advertência a Israel
ao concordar com juizes injustos do sinédrio ou com os romanos contra Jesus.61
José e Pilatos (Lc 23,52). “ Este homem, tendo vindo diante de Pilatos,
solicitou o corpo de Jesus” representa um exemplo de Lucas e Mateus (Mt 27,58)
em exata concordância verbal em nove palavras. Esse e outro caso de concordân
cia na seção seguinte (§ 47) levam alguns biblistas, por exemplo, L.-M. Braun
(“ Sépulture” ), a pressupor que Mateus e Lucas têm uma fonte independente de
Marcos. Outros, como Büchele, pressupõem a influência da tradição oral sobre os
60 O único outro uso veterotestamentário está na história de Susana, em Dn 13,20, onde os lascivos anciãos
querem que ela “concorde” com eles.
61 Não há necessidade de harmonizar historicamente os “todos” ou “inteiro” com esta exceção, supondo
que José não estava presente no sinédrio quando a votação foi feita. Essa sugestão vai contra a intenção
literária de Lucas; ele deseja claramente descrever José como homem de coragem para divergir.
62 Burkin (“Note”) menciona que um pequeno fragmento uncial do século II do Diatessarão em Dura Eu-
ropos contém o grego de Lc 23,51 e claramente não é uma tradução da OS daquele versículo. Isso ajuda
a mostrar que, para sua harmonia, Taciano recorreu a textos gregos dos Evangelhos não diferentes dos
que conhecemos.
426
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
dois evangelistas. Em geral, sou mais favorável à segunda solução, mas, ao que tudo
indica, neste caso é desnecessário recorrer a ela. As cinco últimas palavras gregas
(= “solicitou o corpo de Jesus” ) são literalmente de Marcos; de fato, a concordân
cia mútua de Mateus e Lucas contra Marcos consiste apenas em duas palavras. A
primeira, Houtos (“ Este um/homem” ), que certamente não é significativa, origina-
-se da necessidade de fornecer um sujeito depois de ter dividido o complicado Mc
15,43 em segmentos mais viáveis, processo simplificador que é normal tanto para
Mateus como para Lucas. A segunda concordância é o uso do particípio proselthon
(proserchesthai) com o dativo, em vez do finito marcano eiselthen (eiserchesthai) com
pros. Empregar um particípio faz parte da remodelação gramatical com propósitos de
sentido. Reduzir o acúmulo tautológico marcano de preposições (eis- como parte do
verbo, mais pros) para pros- como parte do verbo é melhoramento óbvio que poderia
ter ocorrido a cada evangelista de forma independente, em especial porque ambos
usam o verbo proserchesthai com muito mais frequência que Marcos (Mateus, 52
vezes; Lucas-Atos, 20; Marcos, 5).
63 Todos os sinóticos usaram altein (“solicitar” ); João usa duas vezes (Jo 19,31.30) erotan (“ questionar,
pedir, solicitar” ).
427
Q uarto ato • Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
nada quanto à aprovação da segunda parte da petição: “que eles fossem retirados”.
Parece que isso é retomado agora em Jo 19,38a: José “pediu [erotan] a Pilatos se
podia retirar [airein] o corpo de Jesus”.64 Os leitores vão reconhecer a rivalidade
entre as duas petições para retirar o corpo, pois João explica que José era um
discípulo secreto de Jesus que temia “os judeus”. Se Pilatos sabia disso, então, ao
concordar com a petição de José, ele ao mesmo tempo estava negando a segunda
parte da petição de “os judeus” em Jo 19,31, pois com certeza eles não queriam
que Jesus tivesse um sepultamento respeitável. E ssa independência de ação estava
de acordo com o desdém anterior de Pilatos pelas iniciativas de “os judeus” contra
Jesus (Jo 18,31; 19,15.21-22). Ou devemos pensar que Pilatos não conhecia as
simpatias ocultas de José e considerou sua petição apenas um lembrete de que a
petição que “os judeus” fizeram tinha duas partes? Nesse caso, ao ceder a José,
Pilatos julgou ceder a “os judeus”.
Não há nenhum jeito de saber ao certo como João pretendia que entendés
semos a atitude de Pilatos; entretanto, a obscuridade talvez indique que, em uma
etapa pré-evangélica da tradição joanina, José (ainda) não era discípulo de Jesus,
mas porta-voz de “os judeus” que apresentaram a petição de Jo 19,31: “pediram a
Pilatos que suas pernas fossem quebradas e eles fossem retirados” e que as duas
partes da petição lhe fossem concedidas. Mais tarde, quando José passou a ser
diferenciado dos judeus hostis (porque acreditou e assim se tornou um discípulo),
uma segunda petição, que reutilizou a linguagem da primeira (eretan e aiten nas
duas), foi formada para José.63 E ssa hipótese significa que o material de Jo 19,31-37
(que não tem paralelos sinóticos) e pelo menos parte do que está em Jo 19,38-42
(que tem paralelos sinóticos, exceto para o papel de Nicodemos) constituíam uma*60
64 Notemos que não é dito que “ os judeus” ou José vieram a Pilatos, ação pressuposta nos três sinóticos e
no EvPd. A respeito de João pensar ou não que Pilatos estava presente no lugar da crucificação, ver §
44, sob “ Reações dos presentes segundo João” , acima. 0 “ depois dessas coisas” , em Jo 19,38a, é um
vago conectivo joanino e claramente editorial.
60 Acima (ver parágrafo referente à nota 34), mencionei uma leitura alternativa em Jo 19,38b (Códice Si-
naítico, Taciano, OL, alguns Saídicos) com um sujeito plural: “ Então eles vieram e retiraram seu corpo” .
Essa leitura, apoiada por Boismard e Bultmann como original, talvez faça eco a essa etapa mais primitiva
da tradição joanina onde José trabalhou junto com os outros judeus que apresentaram a petição em Jo
19,31. Ou pode simplesmente ser 0 melhoramento de um escriba, a fim de preparar 0 caminho para 0
aparecimento de Nicodemos em Jo 19,39-40; dele, juntamente com José, se dirá: “ Então eles pegaram
0 corpo de Jesus” .
428
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
06 Para Curtis (“Three” , p. 442-443), aqui João depende de Mateus, embora o vocabulário tenha diferenças
significativas. (João usa o substantivo, enquanto Mt 27,57 usa o verbo matheteuein, mateano em três de
suas quatro ocorrências veterotestamentárias.) A atitude para com José em todos os Evangelhos suben
tende que ele se tornou cristão e facilmente isso podería ter levado dois autores a independentemente
falar dele na linguagem de discipulado.
6‘ Esse é o único emprego joanino do verbo (Marcos, 2 vezes; Mateus, 2; Lucas-Atos, 9).
429
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
que perguntou “ O que é a verdade?” (Jo 18,38), em resposta quando aquele que
é a verdade (Jo 14,6) estava de pé diante dele, fazendo o convite desafiador: “ Todo
aquele que é da verdade ouve minha voz” (Jo 18,37). Não sabemos, nem no fim,
mesmo indistintamente, se Pilatos ouviu.
68 É preciso cautela para julgar essa informação em EvPd 2,3, pois a maneira como José é mencionado
sugere que ele apareceu antes, na parte perdida da narrativa.
65 Os dois nunca conversam nos Evangelhos canônicos. A fórmula de “Irmão” podería ser protocolar entre
soberanos (Josefo, Ant. XIII,ii,2; #45); mas era também usada nos cumprimentos de cartas comuns.
70 Como em Mc 15,42, Lc 23,54 e Jo 19,31, a urgência quanto ao sepultamento é porque o dia seguinte
430
§ 46,0 sepultamento de Jesus, prim eira parte:Q pedido do corpo por José
é o sábado. Já comentei que EvPd 7,27 mostra esquecimento ou confusão quando, depois da morte de
Jesus, mostra Pedro e os outros membros dos Doze (ver EvPd 14,59), “ lamentando e chorando noite e
dia até o sábado” .
71 A respeito de tudo isso, ver J. Armitage Robinson, Two Glastonbury Legends, Cambridge Univ., 1926;
R. F. Trebame, The Glastonbury Legends, London, Cresset, 1967.
431
Quaktoato • iesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto
atravessou para a Inglaterra, onde lhe foi dada uma ilha (Glastonbury, também
Avalon, de fama arturiana) no pântano. Cerca de 31 anos depois da morte de Jesus,
e 15 anos depois da assunção de Maria, ele construiu uma igreja de pau-a-pique em
honra de Maria. Por volta de 1400, afirmou-se que José trouxe o Santo Gral para a
Inglaterra, ou na verdade um receptáculo contendo o sangue de Jesus. Isso deu à
Grã-Bretanha status por ter uma Igreja fundada nos tempos apostólicos, igualando
as reivindicações da Espanha, de ter sido evangelizada por Tiago, o irmão de João
(tradição do século VII, mais tarde localizada em Compostela), e da França, de
ter sido visitada por Maria (Madalena), Lázaro e Marta (século XI, em especial na
região de Marselha). José entrou para as lendas arturianas, tornando-se parte da
visão de Galaaz do Santo Gral em Morte dArthur (século XV) de T. Malory. Em um
último toque da lenda de José, ele é um mercador, tio de Jesus, que levou o menino
Jesus consigo em uma viagem até a Grã-Bretanha.72 A venerada especulação de
W. Blake a respeito da visita de Jesus está no magnífico poema “Jerusalém”, que
por sua vez se tornou um hino comovente:
Quem poderia prever tal êxito (na literatura, mas - ai! - não de fato) para
alguém que começou simplesmente como “respeitado membro do conselho que
estava também ele próprio esperando o Reino de Deus” ?
Análise
2 E. Jung e M.-L. von Franz, The Grail Legend, Boston, Sigo, 1986, p. 344.
432
§ 46.0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
47) tratam do sepultamento em si. Minha organização delas como Primeira Parte e
Segunda Parte é puramente pela conveniência de apresentar meus COMENTÁRIOS em
unidades de tamanho viável. Do ponto de vista dos evangelistas, essas duas partes
estão unidas e formam um relato unificado relativamente breve do sepultamento
de Jesus. Para determinar como esse relato evoluiu, é vantajoso estudar a estrutura
interna e também a relação externa com os relatos da crucificação e da ressurreição.
433
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
73 Aqui estou primordialmente interessado no que esse relacionamento nos diz a respeito da composição
do relato do sepultamento. Entretanto, no último parágrafo desta subseção B, darei atenção a como o
relato do sepultamento funciona entre a crucificação e a ressurreição nos respectivos Evangelhos.
434
§ 46.0 sepultam ento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
74 Dhanis (“Ensevelissement” , p. 375) estuda a opinião de biblistas que acham que a NP pré-marcana
continha uma narrativa do sepultamento refletida no todo ou em parte por Mc 15,42-47 (por exemplo,
Cerfaux, Michaelis, Taylor [provavelmente], Vaganay). Alguns deles (por exemplo, Taylor) não pensa
vam que ela contivesse uma narrativa do túmulo vazio. Mastera (Kingship, p. 50-51) junta-se a Broer e
Schenke para argumentar que a narrativa do sepultamento em Mc 15,42-47 e a do túmulo vazio em Mc
16,1-8 eram originalmente separadas. Vou falar de um relato pré-evangélico do sepultamento e de uma
tradição pré-evangélica da descoberta por Madalena de que o túmulo estava vazio, mas reitero minha
convicção de que não podemos delinear exatamente uma NP pré-marcana inteira (§ 2, C2). Nem estou
certo de que, no nível pré-evangélico, havia uma narrativa desenvolvida a respeito do túmulo vazio.
'5 Vou deixar para a a n á l is e de § 47 o estudo da origem do papel de Nicodemos, encontrado somente em
João. Muitos aspectos do EvPd são criações polêmicas de histórias populares, por exemplo, Pilatos pedir
o corpo a Herodes e fariseus, anciãos e escribas trabalharem no sábado ao rolarem uma grande pedra
na entrada do túmulo.
435
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Abaixo, vou trabalhar com essa teoria para ver o que identificamos como
sendo o material mais antigo na história do sepultamento por José. Mas, antes de
fazer isso, quero comentar brevemente a respeito da maneira de cada evangelis
ta encaixar a cena do sepultamento na estrutura de sua NP. O que foi sugerido
a respeito da composição do relato do sepultamento nos dá a chave para o uso
marcano: o sepultamento é um conectivo entre a morte de Jesus e a narrativa do
túmulo deixado vazio pela ressurreição de Jesus, com José apontando para o que
aconteceu e as mulheres apontando para o que vai acontecer. Aqui, Lucas segue
Marcos de perto e, na verdade, ao ampliar o papel das mulheres, Lucas equilibra
a interferência. Há também um toque estrutural lucano no paralelismo realçado
entre Lc 23,47-49 e Lc 23,50-56a: cada um deles termina com as mulheres da
Galileia que observam o que acontece. (Ao variar os nomes das mulheres, Marcos
e Mateus não facilitam o paralelismo.) Mateus e João fazem uso estrutural singular
da narrativa do sepultamento em relação à crucificação e ressurreição. A cena ma-
teana do sepultamento (Mt 27,57-61) não é simplesmente continuação da história da
crucificação. Antes, junto com o episódio caracteristicamente mateano da guarda
no túmulo (Mt 27,62-66), ela está unida aos três episódios da ressurreição (Mt
28.1- 10.11-15.16-20) para constituir um final do Evangelho com cinco episódios
que fazem par com os cinco episódios iniciais da narrativa da infância (Mt 1,18-25;
2.1- 12.13-15.16-18.19-23). Essa análise de estrutura (que prefiro) e abordagens
equivalentes da estrutura mateana será examinada em detalhe na subseção A da
a n á l is e de § 48 (em especial no Quadro 9), quando considerarmos a guarda no
túmulo e a continuação desse tema da guarda na narrativa da ressurreição. Se
estruturalmente a cena mateana do sepultamento aponta com força para a frente,
a cena joanina do sepultamento (Jo 19,38-42) aponta para trás. E o Episódio 6
no relato joanino quiasticamente estruturado da crucificação (Quadro 7, § 38 C)
estreitamente unido ao Episódio 5 (Jo 19,31-37) como os dois episódios finais que
parcialmente combinam com os dois iniciais (Jo 19,19-22.23-24). No c o m e n t á r io
436
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
‘ü Em Mateus (Mt 27,62), a frase “ depois do dia de preparação” introduz o episódio (§ 48) a respeito da
guarda no sepulcro.
T‘ Logicamente, o dia para o qual estava sendo feita a preparação tinha de ser importante. Nos sinóticos,
ao contrário de João, esse dia (que começaria ao entardecer) não podia ser aquele no qual a refeição
pascal seria consumida.
Mesmo os Evangelhos mais tardios, que relatam ter José sido discípulo ou bem-intencionado membro
do sinédrio, não indicam nenhuma cena anterior na qual sua presença tenha sido mencionada. Quanto
ao EvPd, ver nota 68, acima.
‘9 Braun (“Sépulture” , p. 37) argumenta ser essa a informação original a respeito de José e tudo o mais que
os Evangelhos relatam representa o retoque cristão do retrato.
437
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
80 Essa não é a solução costumeira, pois muitos biblistas consideram a solicitação pelos judeus em Jo
19,31sse a solicitação por José duas tradições concorrentes incorporadas a João. Por exemplo, Boismard
(,Jean, p. 444-445) identifica cada tradição, com suas adições subsequentes, até a metade do versículo.
Em outra construção complicada, Loisy (Jean, p. 496) sugere que a tradição que se iniciou em Jo 19,31
foi continuada por Jo 19,40a.41-42, de modo que “eles” que sepultaram Jesus eram “ os judeus” . A isso
foram acrescentados os temas independentes do sepultamento por José (Jo 19,38) dos sinóticos e do
sepultamento por Nicodemos.
81 Por uma percepção tardia, era possível ver que, embora a intenção da solicitação judaica fosse hostil
depois que ela foi concedida, o fato de José realizar o sepultamento deu certo. Essa sutileza podia ser
percebida apresentando a solicitação duas vezes, uma com hostilidade e outra com melhor intenção.
82 Ao dividir o sepultamento em duas partes, a fim de obter unidades de extensão conveniente para co
mentário, coloquei o sepultamento real na segunda parte (§ 47). Aqui, faço apenas um simples esboço
e deixo os detalhes para a segunda parte.
88 João traz um sepultamento mais elaborado, conforme o costume judaico, mas pela iniciativa de Nicodemos.
O relato joanino inicial das ações de José (Jo 19,38ab) não difere em essência do relato marcano.
84 Têm sido feitas tentativas de harmonizar a afirmação de José ser discípulo com o sepultamento pobre
que ele deu a Jesus, por exemplo: a de que ele ofereceu muitas das amenidades, mas os evangelistas não
acharam necessário mencioná-las (Blinzler— mas por que então os evangelistas mais tardios mencionam
438
§ 4 6 .0 sepultamento de Jesus, prim eira parte: 0 pedido do corpo por José
relato básico é modificado nos Evangelhos mais tardios sob o impacto do crescente
enobrecimento de José é declarado que o pano era alvíssimo, que o corpo foi lavado
(.EvPd ), que havia especiarias (João: mas mesmo então, nenhuma unção) e que o
túmulo era novo e até de José. Embora a necessidade de pressa fosse certamente
motivo para a parcimônia do sepultamento no relato básico, esse sepultamento
também combina com a descrição que o relato faz de José: alguém que foi motivado
pelo preceito (reino) de Deus expresso na lei segundo a qual os crucificados devem
ser retirados e sepultados antes do pôr do sol, mas alguém que a essa altura não
tinha nenhuma razão para homenagear o criminoso condenado.
algumas amenidades, mas não as mais esperadas?); a de que, por respeito pela significação do sangue,
eles não lavaram o cadáver ensanguentado (Bulst e entusiastas do Santo Sudário); a de que José tentou
comprar especiarias, mas elas estavam em falta nas lojas (Gaechter, Shea). O caráter desesperado de
algumas dessas propostas é óbvio; é mais censurável que interpretem os Evangelhos pelo que não é
narrado pelos evangelistas porque, basicamente (mesmo que ineonscientemente), os que as propõem
discordam do que é narrado.
8a R. Mahoney (Two, p. 112) não crê que os relatos evangélicos sejam tão persuasivos na comprovação da
historicidade de José e seu papel no sepultamento. A conhecida ausência dos discípulos de Jesus no
sepultamento, alega ele, podería ter sido motivo para inventar um judeu proeminente de credenciais
irrepreensíveis. Mas por que inventar um membro do sinédrio, considerando a tendência cristã de uni
versalizar a culpa do sinédrio visível em Mc 14,53 (“todos”); Mc 14,55 (“inteiro”); Mc 14,64 (“ todos”)?
Outra possibilidade que ele sugere é que um túmulo vazio fora de Jerusalém — suponho que ele se
refira ao associado ao sepultamento de Jesus — era ligado a essa figura de outro modo desconhecida.
Contudo, o fato de ser o túmulo de José só aparece nas camadas mais tardias do desenvolvimento evan
gélico; a tradição muito antiga não identifica o túmulo. Se Marcos e João dão testemunho de uma tradição
439
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
pré-evangélica a respeito de José, tão antiga que sua identidade já está sendo modificada, essa tradição
tem de remontar à primeira ou segunda décadas do Cristianismo, o que é um pouco cedo para criação
etiológica.
86 Bultmann (BHST, p. 274) caracteriza Mc 15,42-47: “ É um relato histórico que não dá nenhuma impres
são de ser lenda, exceto pelas mulheres que aparecem novamente como testemunhas no v. 47 e nos vv.
44-45, que com toda a probabilidade não estavam no Marcos que Mateus e Lucas leram” . Taylor (Mark,
p. 599) julga essa citação uma simplificação, mas concorda a respeito das mulheres. Na próxima seção,
vou concluir também que a presença das mulheres aqui é provavelmente uma derivação regressiva de
sua presença na tradição do túmulo vazio.
440
§ 4 7 .0 sepultamento de Jesus,
segunda parte:
Colocação do corpo no túmulo
(Mc 15,46-47; M t 27,59-61;
Lc 23,53-56a; Jo 19,38b-42)
Tradução
441
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
EvPd 6,24: E tendo pegado o Senhor, ele o lavou e amarrou com um pano
de linho e o levou a seu próprio sepulcro, chamado o Jardim de José.
EvPd 8,32: E tendo rolado uma grande pedra, todos os que estavam ali,
junto com o centurião e os soldados, colocaram (-na) contra a entrada do lugar de
sepultamento.
Comentário
1 Rabban Gamaliel II (c. 110 d.C.) deve ter optado por costumes de sepultamento mais simples (TalBab
Mo'ed Qatan 27b).
442
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
alguém que morrera na cruz e estava coberto de sangue. (Mixná Oholot 2,2 espe
cifica que sangue em um cadáver é impuro.) Unção e especiarias eram certamente
aspectos de um sepultamento honroso. Não são mencionados nos relatos sinóticos
do sepultamento honroso, mas Jo 19,40 relata: “ Então eles pegaram o corpo de
Jesus; e eles ataram-no com panos junto com especiarias, como é o costume entre os
judeus para sepultar”. At 8,2 relata que os homens devotos que sepultaram Estêvão
fizeram grandes lamentações por ele, mas não é mencionada nenhuma lamentação
por Jesus da parte de José ou mesmo das mulheres galileias.2 Assim, faltam singu
larmente no relato marcano elementos que sugiram um sepultamento honroso para
Jesus, enquanto o relato joanino claramente concebe um sepultamento costumeiro
e, portanto, honroso. Com isso em mente, vamos estudar cada relato em detalhe.
2 Acho fraca a explicação para essa diferença com base no fato de Jesus ser condenado pelo sinédrio e
Estêvão não. Estêvão foi conduzido ao sinédrio e foi dado falso testemunho contra ele, e ele foi interrogado
pelo sumo sacerdote (At 6,12-14; 7,1), de modo que os membros do sinédrio podem bem ser “eles” que
se enfureceram contra ele, arrastaram-no para fora da cidade e o apedrejaram.
3 O sujeito do v. 45 era Pilatos, mas “José” foi a última palavra do versículo e, assim, se toma o sujeito do
pavticípio com o qual Marcos começa o v. 46.
4 Assim Blinzler, “ Othonia” , p. 160; Gaechter, “Zum Begrãbnis” , p. 220; Joiion, “Mathieu xxvii” , p. 59.
Entretanto, não se justifica afirmar que esse sindon era de tal qualidade que os leitores tinham de reco
nhecer o sepultamento como honroso. (Byssos é o linho realmente de boa qualidade). Para especificar
que o sindon que ele tomou de Marcos condizia com um sepultamento feito para Jesus por um discípulo,
Mateus (Mt 27,59) acrescenta “branco limpo” (katharos). 0 argumento de Shea (“Burial” , p. 98), segundo
o qual, se José não fosse um discípulo de Jesus e estivesse apenas sepultando um criminoso, ele teria
envolvido o corpo em lençóis torcidos sujos, rasgados e em frangalhos, não faz sentido por dois motivos.
Primeiro, esse é um gesto apressado, improvisado de José. Devemos supor que ele iria para casa (em
Arimateia?) ou à cidade, em casa de amigos, pedir-lhes panos sujos? Ao contrário, ele foi comprar o
que estava prontamente disponível e, com certeza, as lojas não vendiam panos rasgados para enterrar
criminosos. Segundo, um pano de qualidade ao menos durável seria necessário para descer e carregar um
corpo manchado de sangue sem se rasgar, pois é assim que imaginamos ter sido transportado o cadáver
443
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
ou lençol desse material. A partir desse uso geral, não é fácil ser preciso quanto
ao tamanho e forma do sindon concebido aqui, e tudo o que ele pode significar é
que José comprou uma peça de linho. Embora os três sinóticos usem o termo no
sepultamento, o único outro caso neotestamentário da palavra está em Mc 14,51-
52, onde um sindon envolveu o jovem de tal maneira que ficou nas mãos dos que
o agarraram quando fugiu nu. Nessa analogia, muitos imaginam que o sindon do
sepultamento de Jesus tinha forma semelhante a um lençol ou uma toalha grande.
Entretanto, Blinzler (“ Grablegung”, p. 80) insiste que sindon se refere a diversos
pedaços de pano que correspondem na Mixná ao plural consistente de takrik para
vestes de sepultamento, e*5 ao uso no grego Vida de Adão e Eva 40 (fim do século
I?), onde Deus instrui Miguel para ir ao paraíso e “ me trazer três panos de linho
e seda [...] e estendê-los sobre Adão [...]. E eles trouxeram outros panos de linho
e prepararam também Abel”. Contudo, nada no relato sinótico faz alguém pensar
em mais que um pano;6 e certamente a literatura talmúdica atesta o uso, no sepul
tamento, de um sadtn 7 ou pano de linho único, por exemplo, o rabino Judá ha-Nasi
foi sepultado em um só (Taljer KiEayim 9,3 [32b]).
Há quem pondere se José teve tempo suficiente para ir comprar esse pano,
pois Mc 15,42 nos diz que era “já o entardecer”.8 Parece ser inútil perguntar “ Havia
tempo suficiente?”, questões de uma narrativa que dá deliberadamente a impressão
geral de pressa, intercalada com indicações de tempo que não são precisas. Contudo,
tentativas de responder não deixam de ser interessantes. Blinzler (“ Grablegung”,
p. 61) afirma que José não tocou ele mesmo o corpo para não se tornar impuro (ver
Nm 19,11); em vez disso, mandou outros realizarem essa tarefa. Portanto, é preci
444
§ 47.0 sepultam ento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
so entender os verbos que descrevem sua ação de modo causai: “tendo mandado
comprar um pano de linho” — cooperação que apressou o processo. Do mesmo
modo, embora pareça que Marcos faz o próprio José “descer” 9 Jesus, José fez ou
tros descerem-no. Às vezes, a confirmação disso encontra-se nas palavras ditas no
túmulo vazio em Mc 16,6: “ Vede o lugar onde eles o puseram”.
9 O verbo kathairein usado por Marcos é a expressão técnica para retirar alguém da cruz (Josefo, Guerra
IV,v,2; #317; Fílon, In Flaccum 83).
10 Eneilein significa confinar uma coisa ou pessoa dentro de algo, por exemplo, um prisioneiro em grilhões,
ou uma criança em faixas; para Ghiberti (Sepoltura, p. 49), significa que o corpo foi envolvido firmemente.
E de se presumir, então, que o material de linho não só cobriu Jesus, mas também o envolveu.
11 Assim Daube, “ Anoiting” . Ele sugere que uma narrativa onde originalmente uma mulher ungia os pés
de Jesus (Lc 7,38 — ou talvez chorava sobre eles?) foi colocada imediatamente antes da NP em Marcos/
Mateus e, como o corpo de Jesus não foi ungido antes do sepultamento, a ação dessa mulher veio gradual
mente a ser entendida como unção antecipada do corpo de Jesus (Mc 14,8; Mt 26,12) em preparação para
a morte e o sepultamento. No final da trajetória, Mateus elimina a unção pós-sepultamento pretendida
pelas mulheres (Mc 16,1; Lc 23,56a), desse modo fazendo a ação da mulher a única unção de Jesus.
445
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
12 Deve-se rejeitar como tentativas de hipercrítica (por exemplo, E. Hirsch) usá-las para detectar diferentes
fontes marcanas; com efeito, em Mc 5,2.3.5, do mesmo modo que aqui, mnema e mnemeion são inter-
cambiáveis. Igualmente implausível é a tentativa de Bomháuser (Death, p. 185) de distinguir taphos
como a depressão (na qual Jesus foi colocado) dentro da câmara mortuária na qual Jesus foi depositado
(mnemeion).
13 As estatísticas abrangem o uso nos relatos da Paixão e da Páscoa em relação ao corpo de Jesus, não o uso
neotestamentário geral. Os dois primeiros substantivos da lista relacionam-se entre si e sua raiz significa
“ memorial” . A melhor leitura no início de Mc 15,46b é mnema, com os Códices Sinaítico e Vaticano;
mas Nestle-Aland (26. ed.) aceita mnemeion do koiné, que, a meu ver, foi harmonizado com o mnemeion
no final do versículo.
446
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
e Jo 20,1). Mateus e o EvPd especificam que a pedra era grande, enquanto Mc 16,4
explica que ela era “ muito grande”. Os três sinóticos usam uma forma ou formas do
verbo “rolar” (proskyliein, apokyliein, anakyliein; o EvPd usa o simples kyliein).
Em Marcos/Mateus, José rola a pedra; Lucas e João não identificam o agente; em
EvPd 8,32, a pedra é rolada e colocada contra a entrada do túmulo por todos os
que estavam lá junto com o centurião e os soldados. Embora seja possível cobrir
com uma pedra o buraco que serve de entrada para uma abertura vertical, a lin
guagem de rolar uma pedra contra a entrada não condiz com esse tipo de túmulo.14*
A segunda indicação é que o “outro discípulo” em Jo 20,5 se inclinou para olhar
dentro do túmulo, mas não entrou. Essas duas indicações encaixam-se bem em um
túmulo talhado na encosta de uma configuração rochosa e no qual se entra por uma
pequena abertura, semelhante a uma janela no nível do solo, com no máximo um
metro de altura, de modo que adultos teriam de se curvar para olhar ou engatinhar
para dentro. (Hoje, os “ Túmulos dos Reis”, a aproximadamente 800 metros ao norte
da muralha da cidade velha em Jerusalém, em uma pedreira, oferecem excelente
exemplo desse tipo de lugar de sepultamento.11) E ssa abertura era fechada por
uma grande pedra lisa rolada contra ela; ou para túmulos mais elaborados havia
uma placa de pedra com formato de roda que podia ser rolada em um trilho de um
lado a outro da entrada, com o efeito prático de uma porta deslizante. Parece que
Mt 28,2 supõe16 uma grande pedra lisa, pois o anjo que removeu a pedra senta-se
sobre ela — uma pedra em forma de roda teria mais probabilidade de ser rolada
de volta em uma reentrância ou parte plana da rocha, do lado de fora do túmulo, e
assim não estaria disponível para sentar.
14 Jo 20,1 usa o verbo airein para descrever a pedra removida, mas não é preciso traduzir “ tirar” , como se
João imaginasse um túmulo de abertura vertical com a pedra em cima. O verbo ali significa “retirar” , do
mesmo jeito que no versículo seguinte, com referência ao corpo de Jesus. O propósito normal da colocação
dessa pedra era evitar que animais entrassem, em especial os que comeríam os corpos. Entretanto, na
imagem marcana, onde José era membro do sinédrio (e não, de maneira discemível, discípulo de Jesus),
fechar o túmulo talvez tivesse o propósito de impedir a entrada das mulheres seguidoras de Jesus que
estavam observando onde Jesus era colocado. Ouvem-se ecos disso na insistência de que a pedra era
(muito) grande, de que na Páscoa as mulheres estavam preocupadas a respeito de quem removería a
pedra para elas (Mc 16,3), e de que os guardas lacraram a pedra (Mt 27,66; EvPd 8,33).
13 Os túmulos do sinédrio nessa mesma região também estão em uma pedreira. Ver excelentes ilustrações
e explicações de túmulos em FANT, p. 181-219.
16 Devemos nos lembrar de que não há prova de algum dos evangelistas canônicos, que não foram eles
mesmos testemunhas oculares e escreveram trinta a quarenta anos depois do acontecimento, ter visto o
túmulo de Jesus. Sob a influência de túmulos que eles tinham realmente visto, cada um descreve o que
supôs ter sido o túmulo de Jesus (assim Ghiberti, Sepoltura, p. 63).
447
Q uarto «to •JesusécrucificadoemorrenoGélgota.Ésepultadoali perto
Como era o túmulo de Jesus por dentro? Quase sempre, os túmulos nos
quais se entrava por uma abertura horizontal tinham vários cômodos semelhantes
a grutas, com altura suficiente para adultos ficarem de pé,17 e ligados por túneis.
(Um túmulo desses podia começar com um cômodo para sepultamento e se expan
dir para outros, conforme surgia a necessidade; ao descrever o túmulo de Jesus,
deve ser lembrada neste contexto a afirmação de que era um túmulo novo.) Nesses
túmulos, havia diversas maneiras de providenciar o sepultamento, às vezes apare
cendo em combinação, mesmo que nem sempre esteja claro se sepulcros de estilos
diferentes estavam em uso na mesma época. Populares, especialmente na área de
Jerusalém, desde os tempos helenísticos, eram os koktm, isto é, lóculos (ou seja,
compartimentos grandes e fundos), com cerca de 30 ou 60 cm de largura e altura,
escavados horizontalmente na parede rochosa da gruta, a uma profundidade de 1,5
a 2 metros, podendo cada um receber um cadáver, a cabeça primeiro. Outro plano
compreendia um banco de pedra escavado ao redor de três lados dos cômodos, so
bre o qual eram colocados corpos (ou com mais frequência ossuários). Ainda outro
plano compreendia um arcossólio ou nicho semicircular a mais ou menos um metro
do chão, formado escavando-se as paredes laterais da gruta a uma profundidade
de aproximadamente sessenta centímetros. 0 nicho, com o formato de meia-lua,
tinha no fundo uma saliência plana sobre a qual era depositado um cadáver ou, às
vezes, um recipiente no qual o corpo era colocado.18 Nenhum relato evangélico nos
diz que tipo de sepultamento foi imaginado; mas a história das mulheres no túmulo
vazio em Marcos (Mc 16,5 talvez pressuponha uma antessala com um banco, pois
descreve um jovem sentado dentro, à direita. Sepulturas judaicas a no máximo
vinte metros do túmulo tradicional de Jesus (o Santo Sepulcro) eram do tipo kokím,
17 A altura era quase sempre conseguida cavando-se buracos no chão. Especialmente útil para entender
esses túmulos é Puech, “ Nécropoles” . Ver em Liebowitz, “Jewish” , p. 108-111, uma série de tipos de
túmulos descobertos na arqueologia recente e também especificações da Mixná.
18 Já a partir do século I d.C., as câmaras de sepultamento dos ricos podiam ter grandes sarcófagos, escavados
na rocha (evolução dos arcossólios cavados) ou, o que era mais raro, soltos e independentes. Essa forma
de sepultamento tomou-se mais popular no século II d.C. Além de esquifes e caixões de madeira usados
para transportar corpos, a arqueologia mostra que o primeiro sepultamento em um túmulo era na madeira
(requisito na Mixná, Mo’ed Qatan 1,6) até terminar o tempo de decomposição e o ressepultamento ser
possível. Ossuários de calcário mole ou caixas de ossos eram para o o ressepultamento e muitos foram
recuperados do período imediatamente anterior a 70 d.C. Em parte, isso acontecia por razões práticas
(a coleta dos ossos permitia a reutilização dos túmulos), mas, o que era mais importante, por razões
religiosas (crença na ressurreição e na vida após a morte); ver Figueras, “Jewish” . Às vezes os ossos de
mais de um cadáver eram colocados no mesmo ossuário.
448
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
Marcos nada nos diz a respeito de quem era dono do local de sepultamento,
nem por que José tinha permissão para usá-lo. Duas respostas propostas para essas
questões refletem-se na questão discutida em § 46, a saber, se Marcos descreve
um José que ainda não era seguidor de Jesus. A primeira das duas busca fazer
sentido do silêncio de Marcos a respeito de elementos que tornariam honroso o
sepultamento de Jesus — silêncio que subentende ter sido Jesus sepultado como
alguém que fora crucificado depois de ser condenado por um sinédrio. Fora dos
muros de Jerusalém,20 adjacente ao lugar da crucificação, pode bem ter havido
lugares de sepultamento para criminosos condenados, isto é, buracos escavados
na parede rochosa da colina usada para execução. Nos dias em que os romanos
deixavam os corpos serem descidos da cruz, lugares de sepultamento perto eram
uma necessidade, já que os corpos deviam ser recolhidos antes do pôr do sol. Dis
tinto membro do sinédrio, José talvez tivesse acesso aos túmulos que serviam para
os que o sinédrio condenava. Então, em um desses túmulos perto da cruz,21 o José
marcano, agindo coerentemente como judeu piedoso observante da lei, poderia ter
colocado o cadáver de Jesus. As objeções a essa proposta baseiam-se nos outros
Evangelhos (por exemplo, a afirmação mateana de que o túmulo era de José) e em
indícios arqueológicos. Na igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, há algumas ru-
449
Quarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
ínas do que tem sido tradicionalmente identificado como o túmulo de Jesus. Parece
que, se é genuíno, o túmulo indica um lugar de sepultamento mais elaborado que
os que eram fornecidos para o sepultamento de criminosos.22
A segunda resposta recorre a Mt 27,60, onde José usa seu próprio túmulo.
Essa resposta tem o atrativo de apresentar uma explicação simples da razão do
lugar de sepultamento estar à disposição de José para um sepultamento tão ex
temporâneo. Há muitas objeções a ela e também alguns indícios corroborantes. À
guisa de objeções, no NT a informação só é fornecida por Mateus23 e faz parte da
expansão mateana do papel de José. Se, transcendendo Marcos, ele fez José discí
pulo de Jesus, será que Mateus identificou o lugar de sepultamento como túmulo
de José precisamente porque isso explicaria por que ele estava disponível para
uso no sepultamento de Jesus? Contudo, em outra passagem, Mateus tem acesso a
uma tradição popular a respeito de Jerusalém (Mt 27,6-8: o “ Campo de Sangue”,
comprado com as moedas de prata de Judas para ser cemitério de forasteiros); e,
talvez, aqui também ele tivesse acesso a uma antiga tradição a respeito do túmulo.
O uso por José de seu túmulo harmoniza-se com a tese de que ele ainda não era
discípulo de Jesus, supondo-se que, em sua ansiedade para ter Jesus sepultado
antes do pôr do sol, ele estava disposto a deixar seu túmulo servir de receptáculo
temporário para o corpo do crucificado até o sábado terminar.24 (Entretanto, não
há nada no relato marcano que sugira ser esse um sepultamento temporário.) Qual
a probabilidade de um influente membro do sinédrio ter seu túmulo particular tão
próximo a um lugar de execução? Blinzler (“ Grablegung”, p. 85) tenta evitar o
problema alegando que não temos certeza de se o Gólgota era um lugar usual para
execução pública. Ou devemos pensar que escolher um lugar de sepultamento bem
22 Se Mc 16,5 subentende que o túmulo tinha uma antecâmara, isso também sugere uma estrutura elaborada.
Entretanto, o uso marcano de mnema e mnemein (a raiz significa “memorial” ; nota 13 acima) para o lugar
de sepultamento ou túmulo de Jesus dificilmente prova alguma coisa. Como indica BAGD 524, essas
palavras são termos genéricos para “sepultura” ou “túmulo” . Em At 13,29, o sepultamento de Jesus em
um mnemeion é ação hostil, ao que parece pelos inimigos judeus de Jesus. Além do mais, se a opção for
pela conotação de “memorial” , isso reflete a veneração cristã do local.
23 Nenhum outro Evangelho canônico declara que o túmulo pertencia a José. Isso é afirmado por EvPd
6,24, mas quase com certeza na dependência de Mateus.
24 Essa possibilidade aumentará se a informação de que esse era um túmulo novo, jamais usado antes (Mt
27,60; Lc 23,53; Jo 19,41), for histórica, pois então José não contaminaria membros mortos da família
colocando entre eles o cadáver de um criminoso.
450
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
perto da cidade santa25 era mais importante para os piedosos que a indesejabilidade
do Gólgota adjacente? (Externamente, túmulos magníficos do século I ainda estão
de pé no Vale do Cedron paralelo à ponta meridional das muralhas de Jerusalém,
lugar excelente, apesar de ser perto da indesejável Geena.)
25 Mixná Baba Batra 2,9 insiste que as sepulturas sejam mantidas a cinquenta côvados (cerca de trinta
metros) distantes da cidade.
26 Alguns biblistas acham que Marcos cita duas mulheres a fim de cumprir o requisito da lei (Dt 19,15:
“Somente com a prova de duas ou três testemunhas uma acusação será admitida”), mas isso não explica
por que ele não manteve as três mulheres. Além do mais, havia limitações para as mulheres como tes
temunhas (§ 44 A, acima).
2| Ver em § 44, nota 34, teorias que explicam as formas longa e curta da designação dessa Maria. Há mui
tas leituras variantes do(s) nome(s) do filho aqui, mas “ Maria de Joset” é a mais bem atestada (Códice
Vaticano e alguns testemunhos koiné).
28 Em minha interpretação onde o José marcano não é discípulo amigável de Jesus, as discípulas mulheres
não têm permissão para participar. Contudo, a impressão básica na narrativa preservada é a de não
envolvimento.
451
Q uarto ato ■Jesus écrucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
29 Ver Ap 15,6; 19,8.14; o verbo relacionado, katharizein, é usado em SI 51,9, em paralelismo com lavar e
produzir um estado mais branco que a neve.
452
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
Quanto ao túmulo ser novo, Jo 19,41 está de acordo com Mateus: “ Havia
[...] no jardim um túmulo novo no qual ninguém havia sido colocado ainda”. Mais
uma vez, Curtis (“ Three”, p. 443) usa isso como prova da dependência joanina
de Mateus. Julgo-o antes sinal de que os dois evangelistas foram influenciados
por uma tradição de José em expansão,32 pois a mesma ideia é transmitida por Lc
23,53 e Jo 19,41, na linguagem de um lugar ou túmulo no qual ninguém já tinha
sido depositado/colocado. Em todos os Evangelhos, o relato do sepultamento e do
túmulo foi influenciado pelo relato subsequente da descoberta do túmulo vazio e
da proclamação de que Jesus ressuscitou. Exatamente como nos Evangelhos mais
tardios, o relato do túmulo vazio mostra a influência da apologética que se opõe
aos argumentos dos adversários contra a ressurreição, e também ao relato do se-
30 Ver em § 46, nota 2, o uso imaginoso desse túmulo como diferente daquele no qual as mulheres viram
Jesus ser colocado; ver em § 46, nota 49, a sugestão da origem em Is 53,9.
31 Ver a probabilidade de ser o túmulo de Jesus lembrado e venerado em C, na a n á l is e abaixo.
32 Do mesmo modo, parece que os dois foram influenciados independentemente pela tradição de uma
aparição pós-ressurreição de Jesus a Maria Madalena.
453
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
pultamento. O corpo de Jesus não podería ter sido confundido com outro corpo no
túmulo e depois perdido, pois o túmulo era novo.33
33 Shea (“Burial” , p. 102) não percebe o fator apologético e tenta usar o fato de ser o túmulo novo histo
ricamente como prova de que Jesus foi sepultado em um túmulo dispendioso. Não há nada nos relatos
evangélicos que apoie a sugestão de Bultmann (John, p. 680), segundo a qual o fato de ser novo mostra
que o túmulo ainda não foi profanado e, assim, é adequado para a santidade do corpo de Jesus. Como
mencionado na nota 24 acima, há quem relacione o túmulo novo com a preocupação judaica de que
restos mortais de parentes antepassados venerados seriam contaminados se o corpo de um criminoso
crucificado fosse introduzido em um túmulo já usado. Entretanto, os dois Evangelhos (Mateus, João) que
chamam o túmulo de “ novo” apresentam José como discípulo de Jesus; e, nessa situação, o corpo do
venerado mestre de José certamente não traria desonra a um túmulo de família já em uso.
34 R. H. Fuller (Formation, p. 54) atribui a retirada dessa pedra à forma mais primitiva da tradição da res
surreição. Contudo, isso não justifica as tentativas de outros biblistas de usar o tamanho da pedra como
informação histórica que constitui outra prova de que o túmulo de Jesus era luxuoso. É má metodologia
ignorar o propósito com o qual os evangelistas narram detalhes e usar esses detalhes para criar uma
imagem histórica que os evangelistas talvez nunca tenham imaginado. A razão para mencionar o tamanho
da pedra é aumentar o elemento milagroso no fato de estar a pedra removida quando as mulheres visitam
o túmulo no domingo.
35 Que a função de “foi embora” é transferir a atenção para as mulheres é muito mais plausível que a tese
de Schreiber (“ Bestattung” , p. 160), segundo a qual Mateus contrasta a partida de José para observar o
sábado com a ação contínua das autoridades judaicas que gastam tempo no sábado para conseguir que
uma guarda seja colocada no túmulo de Jesus (Mt 27,62-66). Na verdade, Mateus não menciona “ sábado”
com nenhuma dessas duas ações.
454
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
Páscoa (Mt 28,1: as mesmas duas têm o nome mencionado). Seguindo o exemplo de
Marcos, Mateus só cita no sepultamento as duas primeiras mulheres que mencionou
na cena inicial (Mt 27,56: “ Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago e de José” ), e
abrevia a designação da segunda mulher para “a outra Maria”. O que é diferente
é Mateus não dizer, como fez Marcos, que as mulheres estavam observando onde
Jesus era colocado. Isso acontece por Mateus ter um senso judaico de como o valor
legal do testemunho delas era limitado? Ou os leitores presumiríam que, como as
mulheres “estavam” (imperfeito) ali sentadas bem em frente ao sepulcro, natural
mente observaram o sepultamento? De qualquer modo, parece que as mulheres
tinham ido embora no dia seguinte, quando (em uma cena tipicamente mateana)
uma guarda de soldados protege o sepulcro e lacra a pedra em sua entrada (Mt
27,65). E digno de nota que, em referência às mulheres, Mt 27,61 introduz a palavra
taphos (“sepulcro” ) em vez de mnemeion (“túmulo” ), que ele usou com referência
a José; esse novo termo passa do relato da guarda (Mt 27,64.66) para a visita das
mulheres na manhã de Páscoa (Mt 28,1).
455
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
Lucas omite a informação marcana de que José fechou o túmulo rolando uma
pedra contra a entrada e só menciona a pedra na cena da manhã de Páscoa (Lc
24,2) quando as mulheres vêm e acham-na removida. Em vez disso, Lucas coloca
aqui, depois do sepultamento, uma parte da indicação de tempo37*que Mc 15,42b
(“como era dia de preparação, isto é, o dia antes do sábado” ) colocou antes do se
pultamento. Em Marcos, essa indicação, combinada com “sendo já o entardecer”,
explicou a urgência para tirar o corpo de Jesus da cruz e colocá-lo no túmulo. A
colocação lucana da indicação de tempo (“era dia de preparação e o sábado estava
raiando” ) tem efeito duplo. Primeiro, assegura ao leitor que a lei foi seguida, pois
36 O “depositado” tucano vem de keishai (Lucas, 6 vezes; Marcos, 0; Mateus, 3; João, 7); o “ colocado”
joanino é tithenai.
3' Jo 19,42 também tem uma indicação de tempo (“por ser dia de preparação dos judeus” ) no fim do relatório
do sepultamento. Mas João relata isso imediatamente antes de dizer que colocaram Jesus no túmulo, ao
passo que Lucas faz sua referência ao dia de preparação imediatamente depois de Jesus ser colocado no
lugar do sepultamento. Além disso, de modo muito diferente de Lucas, João tem uma indicação anterior
de tempo em Jo 19,31 (dia de preparação antes do sábado) antes da descida da cruz. Nesse detalhe, João
estava mais próximo de Marcos.
456
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
,8 Fitzmyer (Luke, v. 2, p. 1529) relaciona estas: a luz inicial da primeira estrela, ou do planeta Vênus, ou
do círio do sábado.
19 Ao examinar Lc 23,49, expliquei que não era necessário Lucas citar "as mulheres que o acompanhavam
desde a Galileia” porque (só ele entre os Evangelhos), durante o ministério galileu, Lucas apresentara
mulheres como Maria Madalena e Joana que, neste contexto, ele só citará em Lc 24,10, no final das
atividades delas.
40 Apesar de Lc 23,55 repetir a descrição das mulheres de Lc 23,49, Taylor (Passion, p. 93, 102-103),
que reconhece uma dependência de Marcos em Lc 23.49. atribui Lc 23.55 e também Lc 23,56a à fonte
lucana especial.
457
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Jesus, que só Lucas (Lc 23,49) mencionou na cena da morte como estando “de
pé de \apo\ longe”, agora desapareceram completamente da narrativa. Entretanto,
a ligação das mulheres com as duas cenas é realçada: elas não só estão em am
bas, mas também seguiram atrás (Lc 23,55), isto é, provavelmente atrás de José,
quando ele desceu o corpo e o colocou no lugar de sepultamento (Lc 23,53).41 No
v. 55, Lucas é também mais específico que Marcos a respeito do que as mulheres
viram:42 não só o local do túmulo, mas também como o corpo de Jesus foi colocado
ali. Esta última observação significa que o viram ser envolvido em um pano de
linho (Lc 23,53), mas não ungido; é por isso que elas não ficaram no túmulo, mas
retornaram a fim de fazer as preparações para ungi-lo.43
Para onde elas retornaram? É de se presumir que para onde elas estavam
hospedadas em Jerusalém, lugar onde havia especiarias e mirra que podiam pre
parar, pois, ao contrário de Mc 16,1, Lucas não relata que elas tiveram de comprar
esses produtos. (Na verdade, com o raiar do sábado, não haveria tempo para fazer
a compra.) São inúteis as engenhosas tentativas de harmonizar Lucas, onde as
mulheres tinham as especiarias antes de o sábado começar, com Marcos, onde as
mulheres só compraram as especiarias depois de o sábado acabar.44 Tendo lido
Marcos, Lucas deliberadamente mudou a sequência como parte de sua intenção de
escrever um relato mais “ordenado” (Lc 1,3). Lucas supostamente queria que os
leitores pensassem que, em sua previdência, essas mulheres já tinham adquirido
o que seria necessário. Ao introduzi-las em Lc 8,2-3, Lucas descreveu-as como
41 Katakolouthein significa literalmente “seguir para baixo” , mas Lucas com certeza não quer dizer para
baixo nas ladeiras do Lugar da Caveira; em At 16,17, o termo é usado para o seguimento de Paulo.
42 Lucas usa theasthai (“olharam para” ), não o theorein (“estavam observando” ) de Mc 15,47.
43 A construção participial que inicia Lc 23,56a liga-o estreitamente a Lc 23,55, de modo que a gramática
confirma a ligação lógica entre o que elas viram e o que elas fizeram. 0 verbo “retomar” , hypostrephein,
é bem lucano, e ocorre trinta e duas vezes em Lucas-Atos, mas nunca nos outros Evangelhos.
44 Por exemplo, a tese de que o que elas tinham na sexta-feira não era suficiente, por isso tiveram de comprar
mais no domingo (Marcos) — Lc 24,1 é específico, afirmando que as especiarias levadas pelas mulheres
ao lugar do sepultamento na manhã de domingo eram as que elas tinham preparado (na sexta-feira) e,
assim, não algumas compradas recentemente. Nem é admissível argumentar que a construção “de [Lc
23,56a: ‘Mas’] ... men [Lc 23,56b: ‘então’]” não é para ser considerada temporalmente sequencial, de
modo que Lucas pode ser lido de forma invertida: elas guardaram o sábado (Lc 23,56b) e então prepara
ram especiarias (Lc 23,56a). A razão para essa suposta inversão é que Lucas queria terminar de narrar
o sepultamento antes de se voltar para a sequência do túmulo vazio (Vander Heeren, “ In narrationem”).
Entretanto, Lucas liga a preparação das especiarias à volta do lugar de sepultamento; essa inversão teria
de pressupor que elas ficaram no túmulo o sábado todo e “ retomaram” para onde estavam hospedadas
só no domingo!
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§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
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Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
da Mixná é Sabbat 8,1, que proíbe tirar no sábado óleo “suficiente para ungir o
menor dos membros”.
Bem no início desta seção, mencionei que o relato joanino era muito diferente
do marcano, pois, em João, Jesus recebe um sepultamento honroso. Mateus (porque
modificara a imagem marcana, de modo que José se tornou discípulo de Jesus) já
mudara para uma descrição menos rígida do sepultamento: o linho era “branco
limpo” e o túmulo “novo”. Entretanto, nenhum sinótico sugere o uso de especiarias
no cadáver de Jesus entre a morte e o sepultamento, como faz João, onde são trazidas
aproximadamente cem libras. Ao mesmo tempo, João respeita a tradição a respeito
de José, pois só em Jo 19,38b ele não faz mais do que faz em Marcos. Depois da
permissão de Pilatos em Jo 19,38a, o José joanino “ veio [erchesthai, como em Mc
15,43a] e retirou [airein, enquanto Mc 15,46 tem kathairein ] o corpo” .
43 Assim Hemelsoet (“Ensevelissement” , p. 54-55), que menciona Jo 1,12, onde todos os que “recebem”
(,lambanein) Jesus se tomam filhos de Deus.
46 Alguns testemunhos textuais, inclusive o Códice Sinaítico, leem “tendo” uma mistura de mirra e aloés,
em vez de “trazendo” . O fato de já haver uma mistura (migma) sugere preparação? A variante heligma,
encontrada nos Códices Sinaítico* e Vaticano (e considerada original por Barrett), significa “rolo” ou
“pacote”; não esclarece esta questão, pois provavelmente representa o esforço de um escriba para en
tender como as especiarias foram transportadas. Outra variante secundária é smigma, forma de smegma
(“unguento” ), palpite de escribas quanto à natureza das especiarias. Bemard (John, v. 2, p. 653) explica
heligma como alteração de smigma.
460
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
foram à loja: José comprou o pano de linho (Mc 15,46) e Nicodemos comprou as
especiarias. Toda essa especulação choca-se com a intenção joanina: “ Mas veio
também Nicodemos” é espontâneo e inesperado. Os efeitos da morte de Jesus
encontram expressão independente nas reações de várias pessoas: em José, que
até este ponto tinha sido apenas um discípulo oculto por medo dos judeus, e agora
em Nicodemos, “que primeiro viera até ele à noite”. 0 fato de, como a respeito de
José em todos os Evangelhos, ser dito que Nicodemos “ veio” (ao local de execução,
depois da morte de Jesus) significa que ele não estava presente durante a Paixão.
Como o José marcano, Nicodemos era membro do sinédrio, “mestre de Israel” (Lc
3,10); contudo, embora estivesse interessado no Reino (Lc 3,1-5), ele só teve co
ragem para vir a Jesus à noite, como João lembra aos leitores. Como o José lucano,
Nicodemos discordou dos colegas do sinédrio quanto ao julgamento deles contra
Jesus; contudo, ele o fez não professando a inocência de Jesus, mas formulando uma
tecnicalidade da lei (Jo 7,50-52). Implicitamente, ele era rico, como o José mateano,
pois tinha os meios para trazer grande quantidade de especiarias. E, finalmente,
como o próprio José joanino, ele faz por Jesus um ato público que demonstra mais
coragem do que até então fora revelada.
Entretanto, nosso estudo precisa entrar em mais detalhes, pois o relato joa
nino levanta muitas questões. Como devemos entender o simbolismo das cem libras
(ou trinta quilos)? O que significa “mirra e aloés” — pedacinhos de incenso, ou um
líquido, e, no caso deste último, houve unção? O que João quer dizer com os “panos”
que atam o corpo de Jesus juntamente com as especiarias? Como João quer que
julguemos o gesto de Nicodemos? Vamos tratar dessas questões uma de cada vez.
47 Josefo (Ant. XIV,vii,]; #106) dá um peso menor para a libra, o que faria a quantidade equivaler a cerca
de 23 libras atuais.
461
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
238) entende litra como medida não de peso, mas de volume; e, em analogia com
Jo 12,3, onde litra myrou inclui líquido em um frasco de alabastro, argumenta que
isso representa de seis a dez onças fluidas (aproximadamente 1/3 a 1/2 quartilho).
O resultado seria mais ou menos quatro galões de óleo perfumado.48 De Kruijf
afirma que essa interpretação elimina parte da extravagância irreal da quantidade.
Uma grande dificuldade é que, aqui, João não usa myron, palavra que subentende
óleo, mas, como veremos, termos que têm maior probabilidade de subentender
pó. Outros (por exemplo, Lagrange, Jean, p. 503) aceitam o significado “libra”,
mas especulam se não houve erro dos copistas a respeito do número (erro que não
deixou nenhum indício nas cópias textuais!). Em vez disso, é melhor reconhecer
que números grandes são empregados em várias cenas joaninas como sugestão
simbólica de abundância messiânica, por exemplo, em Jo 2,6, as seis talhas de água,
cada uma contendo duas ou três medidas (todas totalizavam de 120 a 180 galões),
e em Jo 21,11, os 153 peixes. Especificamente, o que estava simbolizado aqui?
De Kruijf (“ More”, p. 239) pensa em fé reverente. Outros apontam para grandes
quantidades de especiarias em sepultamentos régios. Foram necessários quinhentos
servos para carregar as especiarias (pl. de aroma) no sepultamento de Herodes, o
Grande (Josefo, Guerra I,xxxiii,9; #673; Ant. XVII,viii,3; #199). Fontes rabínicas
mais tardias (TalBab ‘Aboda Zara 11a; Semahot [‘Ebel Rabbati] 8,6 [47a]) falam
de setenta ou oitenta minas sendo queimadas por ocasião da morte (c. 50 d.C.?) de
Rabban Gamaliel, o Velho, que “valia mais que cem reis inúteis”. O antecedente
bíblico é Jr 34,5, onde o Senhor prometeu ao rei Sedecias, prestes a ser exilado,
que “como especiarias foram queimadas por teus antepassados, os antigos reis antes
de ti, do mesmo modo especiarias serão queimadas por ti”. A ideia de que Jesus
recebeu sepultamento digno de um rei corresponde bem à solene proclamação de
que na cruz ele foi verdadeiramente “o Rei dos Judeus” (Jo 19,19-20) e à afirmação
de que foi sepultado em um jardim (Jo 19,41; ver adiante). Quando Maria, irmã de
Marta, usou uma libra de mirra (myron) para ungir os pés de Jesus, Judas Iscariotes,
“um dos discípulos” de Jesus, queixou-se do desperdício de dinheiro (Jo 12,3-5);
ironicamente, agora, Nicodemos, que acaba de surgir como discípulo de Jesus, usa
cem libras de mirra (smyrna) no corpo de Jesus.
“Uma mistura de m irra [smyrna\ e aloés [aloe] ... junto com espe
ciarias [pl. de aroma], como é o costume entre os judeus para sepultar”
48 Utilizando medidas presentes na Mixná, 0 ’Rahilly (“ Burial” , p. 310) calcula cerca de três galões.
462
§ 47.0 sepultam ento de Jesus, segunda parte:Colocação do corpo no túm ulo
w Enquanto entre as NPs canônicas apenas Mateus usa taphos (“sepulcro”), o verbo joanino para “se
pultar” é entaphiazein (“pôr era um sepulcro” ; também Mt 26,12), que se estende à preparação para o
sepultamento.
50 Assim Liebowitz, “Jewish” , p. 108. Ungir consistia necessariamente em esfregar o óleo no cadáver, pois
podia ser gotejado de um recipiente sobre o corpo, da cabeça aos pés. O propósito das especiarias era
em parte neutralizar o fedor da decomposição e, talvez, até mesmo retardá-la.
Em Mc 16,1, as mulheres compram especiarias (plural de aroma) para irem ungir (aleiphein) Jesus.
02 Ver 0 ’Rahilly, “Jewish” , p. 128-132. Uma fórmula de óleo para unção feito com a mistura de especiarias
e azeite de oliva é dada em Ex 30,23-25.
463
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
S m yrna. Há, na Bíblia grega, duas palavras para “ mirra” : myron e smyrna;
ambas são usadas nos relatos do sepultamento de Jesus, a primeira, por Lucas, e
a segunda, por João. ’ 1A LX X quase sempre traduz por myron o hebraico semen
(“óleo” ) e myrizein aparece em Josefo (Ant. X IX ,ix,l; #358) para ser perfumado
com unguento.54 Unguento ou óleo vegetal misturado a uma substância fragrante
era usado com propósitos de culto, cosméticos e sepultamento. Não se encontra
um claro exemplo bíblico de myron empregado para a especiaria pulverizada. E
o substantivo usado para mirra na cena em Betânia (Mc 14,3-8; Mt 26,6-12; Jo
11,2; 12,3-5; também Lc 7,37-38), onde se imagina óleo perfumado. É usado na
cena lucana de sepultamento em Lc 23,56, em combinação com aroma , e contribui
para pensarmos que Lucas se referia a líquido.
Por smyrna (a palavra que João usa aqui), a LX X traduz o hebraico mor
(relacionado com a raiz mrr, “amargo” ).55 Essa mirra é um pó seco, feito pela pul
verização da resina viscosa que exsuda da baixa e troncuda commiphora abyssinica,
arbusto da família balsâmica que cresce no Sul da Arábia e no Norte da Somália.
Além de ter propriedades medicinais, porque emite forte perfume, era usada para
incenso (associada com olíbano em Mt 2,11), cosméticos e perfume (ver o verbo
smyrzein para vinho perfumado em Mc 15,23; ver § 40, #2, acima). 0 uso em
sepultamentos era para contrabalançar odores desagradáveis. Podia ser amontoado
como pó (Ct 4,6: “montes de mirra” e “colinas de incenso” ) ou gotejado em forma
líquida (Ct 5,5).
Aqui, são úteis os verbetes em TDNT por W. Michaelis, “myron, myrizo’’ (v. 4, p. 800-801), e “ smyrna,
$myrnizo“ (v. 7, p. 457-459). Também G. W. Van Beck, “Frankineense and Myrrh” . em BA 23, 1960. p.
70-95.
’4 Semen é também traduzido por elaion (“ azeite de oliva, unguento oleaginoso”). Myrizein (poético smyrizein)
relaciona-se com a raiz indo-europeia smur (inglês “smear” , português “untar” ); aleiphein é sinônimo.
” A forma grega pode ter sido assimilada a Smyrne, o nome da cidade de “ Esmirna” . Não se relaciona
etimologicamente com myron.
>6 Ver Hepper, “Identity” . Há cerca de 360 espécies diferentes do gênero aloés; algumas eram cultivadas
na Antiguidade e transportadas por mercadores e, assim, transplantadas para novas áreas.
464
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
Nenhuma certeza é possível, mas a ligação com smyrna torna provável que
João esteja pensando em duas substâncias fragrantes.60 Além disso, como a maioria
das alusões bíblicas ao aloés fragrante dá a impressão de imaginar uma substância
A árvore que produz aloés fragrantes não cresce na Palestina; assim, Nm 24,6 apresenta um problema,
pois (a menos que haja erro textual, como frequentemente se pressupõe) parece que a árvore dessa
passagem é cultivada no Vale do Jordão. Calleri Damonte (“Aloe” , p. 51-52) mostra como esse aloés de
madeira era amplamente conhecido na Antiguidade.
1,8 Omã e Socotorá são mencionadas na Antiguidade como fontes tradicionais de aloés. Contudo, Hepper
("Identity”) afirma que a planta em questão está com o nome errado, pois o que é corretamente chamado
aloe succotrina Lam é de origem sul-africana. O nome correto, afirma ele, é aloe perryi Baker.
M Plínio (História Natural xxvii,5; #14-20) discorre sobre o uso medicinal do aloés como adstringente,
laxante e remédio para dores de cabeça, hemorragias e hemorroidas.
60 Vardan, escritor armênio do século XII, cita Pápias: “Aloés é um tipo de incenso” (F. X. Funk, Patres
Apostolici, 2 v., Tübingen, Laupp, 1901, p. 1375).
465
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
“Ataram-no [dein] com panos [pl. de othonion\” (Jo 19,40). Mais uma
vez, é difícil determinar exatamente o que João deseja transmitir. Dein foi usado
em Jo 11,44 para mãos e pés amarrados firmemente, amarração que deve ter en
volvido faixas passadas várias vezes ao redor dos membros para prendê-los bem.
É a referência aqui também a essa amarração múltipla e apertada?64 0 eneilein
(“amarrou” ) marcano e o entylissein (“envolveu” ) mateano/lucano permitiram a
imagem de uma única peça de pano de linho (sindon) cobrindo o corpo de Jesus
e, portanto, talvez um cadáver amarrado de modo não tão apertado. Vimos que
não havia nada na descrição sinótica que sugerisse uma pluralidade de roupas de
61 Plínio (História Natural xiii,3; #19) dá o grego diapasma como nome técnico de uma mistura de arômatas,
e magma como nome de unguento consistente. Ver Calleri Damonte (“Aloe” , p. 49.55): sepultamentos
judaicos em Roma mostram o uso de substâncias aromáticas. Ele acha que o pó aromático era posto no
fundo e nos lados do lugar destinado a receber o corpo e que, depois de o corpo envolto ser baixado a
esse lugar, mais especiarias em pó eram espalhadas sobre ele, de cima.
62 Assim, não da maneira na qual ele fora ungido antes da Páscoa (Mc 14,3; Mt 26,7; Jo 12,3). Em parte
por causa do tema batismal na primeira apresentação de Nicodemos (Jo 3,5), Mercúrio (“ Baptismal” , p.
50-54) descobriu um elemento batismal nas especiarias para ungir no relato joanino do sepultamento.
Essa tese imaginosa perde toda plausibilidade, se nenhuma unção era pretendida.
“ Acima, rejeitei a tese de que, em Marcos, as mulheres só observaram o lugar onde Jesus foi depositado,
não os procedimentos do sepultamento — tese usada em Lagrange e outros para harmonizar Marcos e
João, com o pretexto de que as mulheres não viram as especiarias de Nicodemos. A harmonização com
Lc 23,55 é ainda mais inacreditável, pois ali elas olharam “como seu corpo foi colocado” .
64 Ghiberto (Sepoltura, p. 50-52) lembra que, nos papiros, dein tem o sentido de movimento iminente. Pode-
-se responder a Feuillet e Lavergne que lhe atribuir um sentido simbólico (um prisioneiro amarrado que
será libertado pela ressurreição — também Prete, “E lo legarano” , p. 192) não significa que não tenha
nenhum sentido literal.
466
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
sepultamento. O que João pretende com sua forma plural othonia? (Mais que isso,
João escreve de outra veste separada na história do túmulo vazio de Jo 20,7, um
soudarion que tinha estado na cabeça de Jesus.65) Embora alguns (por exemplo,
Bulst) pensem em faixas de pano da largura de ataduras ou ataduras semelhantes
a envoltórios de múmias, não sabemos se os judeus desse período envolviam faixas
ao redor de cadáveres da maneira imaginada. Quando quis descrever faixas de linho
que atavam as mãos e os pés de um cadáver (Jo 11,44), João usou o plural de keiria,
não de othonion. Além disso, o significado “faixas” não é tradicional.66 O plural
de othonion designa categoria ou tamanho (BDF 141), não o número de peças, por
exemplo, um papiro do século IV (Catálogo Rylands, vol. 4, #627, p. 117-122) indica
othonion como categoria geral e sindonion (veste feita do material de sindon) como
espécie. Vaccari (“ edesan” ) aceita essa relação entre othonia genérico e sindon
específico como aplicável aos Evangelhos; mas Blinzler (“ Othonia” ) acha que sin
don é o material genérico do qual são feitos othonia ou peças. No Códice Vaticano
grego de Jz 14,12-12, o plural de sindon e o plural de othonion são designações
intercambiáveis para as mesmas trinta vestes; e Garcia Garcia (“ Lienzos” ) acha
que o othonia joanino refere-se ao sindon marcano. (Em uma variante, Ducatillon
[“ Linceul” ] acha que othonia inclui não só o sindon, mas também o soudarion, ou
cobertura de cabeça, que será mencionado no túmulo depois da ressurreição e as
keiriai ou faixas para amarrar que estão subentendidas.) Essas interpretações, que
variam quanto a conteúdo e plausibilidade, pelo menos advertem que não devemos
com demasiada facilidade descrever como contraditórios o termo marcano (e sinótico
geral) e o termo joanino para a veste de sepultamento de Jesus.67 Entretanto, no nível
65 No túmulo vazio, ele se enrola sozinho. Em grego, essa palavra é estrangeirismo do latim sudarium,
relacionado etimologicamente com sudor (“suor”), que servia para secar. E de se presumir que fosse
um tipo de guardanapo ou lenço. Lázaro tinha o rosto coberto ou envolto por um (Jo 11,44) e há quem
julgue que a função era impedir o queixo de cair, como descrito em Mixná Sabbat 23,5. Em Lc 19,20,
um servo embrulha uma soma de dinheiro em um soudarion; em At 19,12, um desses panos toca a pele
de Paulo e é aplicado sobre os doentes.
“ Somente a partir da década de 1870, “faixas de linho” e “ataduras” apareceram em Bíblias vernáculas
como traduções de othonia, em lugar do tradicional “ panos de linho” . Em parte, essa nova tradução
depende de se considerar othonion diminutivo no significado, bem como forma de othoné (“pano de
linho, lençol” ; At 10,11; 11,5). Mas a vaga conotação de formas diminutivas nesse período (BDF 1113)
pode significar que não há diferença entre othone e othonion; além disso, a primeira palavra designa o
material e a segunda um artigo feito dela. Ver detalhes em Bartina, “ Othonia” ; Blinzler, “ Othonia” ; e
Vaccari, “edesan”.
bt Não vejo razão para pensar que João conhecia o sindon marcano e mudou-o para othonia, pois não há
nenhum significado teológico no último vocábulo. A diferença talvez reflita tradições diferentes por trás
467
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
das impressões que provocam nos leitores, parece que os sinóticos descrevem um
único pano de sepultamento, enquanto João fala de diversos envoltórios de pano.
Não é possível decidir se a imagem joanina de pluralidade realça a impressão de um
sepultamento honorífico. A fim de visualizar e descrever como Jesus foi sepultado,
em vez de recorrer à tradição histórica, cada autor talvez tenha empregado apenas
a roupa de sepultamento com a qual estava familiarizado.
de Marcos e João. Quer Lc 24,12 (a respeito do qual há um problema textual) tenha sido escrito por Lucas,
quer tenha sido acrescentado por um escriba mais tardio, seu autor não percebeu nenhuma contradição
em fazer Paulo ver apenas othonia no túmulo onde Lc 23,53 colocou Jesus envolvido em um sindon: e,
com certeza, Lc 24,12 veio de outra fonte que não Marcos, de onde Lc 23,53 tirou sindon.
68 Além dos comentários típicos, ver o episódio de Nicodemos em: K. Stasiak, “The Man Who Came by
Night” , em TBT 20, 1982, p. 84-89; J. N. Suggit, “ Nicodemus — the True Jew” , em Neotestamentica
14, 1981, p. 90-110. Quanto à opinião negativa, além dele mesmo e de De Jonge, Sylva relaciona como
defensores apenas P. W. Meyer e G. Nicholson. Pode-se acrescentar W. A. Meeks (JBL 91, 1972, p.
54-55).
468
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
Contestando essas teses, afirmo que essa visão negativa das ações de
Nicodemos representa uma confusão quanto a tipos de fé. Em João, é inevitável
que, quando o discípulo amado aparece ao lado de outra figura na mesma cena, o
discípulo amado manifesta uma fé mais perceptiva; mas isso não significa que a
outra figura não creia, como demonstram as muitas vezes que o discípulo amado
e Simão Pedro são unidos em contraste implícito. Vimos que o testemunho dado
pelo discípulo amado quando sangue e água saíram do lado de Jesus (Jo 19,34-
35) constituiu certa analogia com o testemunho que os apóstolos deram do Cristo
ressuscitado (At 10,40-42), embora claramente a fé do discípulo ainda não fosse
crença plena no Jesus ressuscitado (que surgiu depois de Jo 20,8). A fé de Nicodemos
não está nesse nível, pois ele não dá testemunho e não sabemos o que Nicodemos
esperava para o futuro em termos de ressurreição — lembramos que, em João, a
ressurreição de Jesus não é claramente prenunciada como nas narrativas sinóticas.
Na cena de Nicodemos, João não está preocupado com preparar para a ressurrei
ção (ele não tem testemunhas mulheres aqui), mas com a culminância do triunfo
da crucificação. Não há nada negativo a respeito do ato de sepultar Jesus, pois,
depois que morreu, ele tinha de ser sepultado. A convicção joanina de que Jesus
é “a ressurreição e a vida” (Jo 11,25) não tornou o sepultamento desnecessário;
antes, tornou o sepultamento insignificante. A questão é se João pretendia que
se entendesse que o modo como Nicodemos enterrou Jesus era algo positivo que
glorificava Jesus ou algo negativo, que o descrevia enganosamente. O fato de parte
do vocabulário usado para sepultar Lázaro ser reutilizado aqui não tem conotação
negativa, pois João (Jo 19,40) indica que descreve o que era costume.69
69 O fato de ser isso costume “entre os judeus” não sugere despeito, mas apenas indica que Nicodemos fez
469
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
o que se esperava. Do ponto de vista da linguagem, pode ser mais significativo que, em vez de apenas
retirar o corpo de Jesus, como os judeus pediram (Jo 19,31) e como José fez (Jo 19,38b — ver § 46, nota
65), quando Nicodemos vem, ele e José “tomam” ou “aceitam” (lambanein) o corpo de Jesus.
470
§ 47.0 scpultam ento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
70 Desta vez, João não indica se o dia de preparação é para a Páscoa (Jo 19,14) ou para o sábado (Jo 19,31).
Taciano e alguns mss. optaram pela segunda alternativa e acrescentaram: “porque o sábado começara” .
■' Acho forçada a tentativa (por exemplo, A. Loisy) de ver aqui um eco do tema do cordeiro pascal de Ex
12,46, que especifica que o cordeiro deve ser comido no lugar e nenhuma parte da carne levada embora.
Mais forçada ainda é a tentativa (Price, “Jesus” , p. 17) de relacionar “ túmulo novo, no qual ninguém
havia sido colocado ainda” com ISm 6,7, onde a Arca da Aliança é carregada por vacas “ nas quais ainda
não havia sido posta uma canga” .
‘2 Em Jo 18,1, esse termo foi aplicado a um local no Monte das Oliveiras e talvez signifique pomar. 0 tema
do jardim é retomado em Jo 20,15 com a suposição por Maria Madalena de que Jesus é o “jardineiro”
471
Qmmoato • JesusécrucificadoemorrenoGólgota.t sepultadoaliperto
(ikepouros) que tirara o corpo de Jesus do túmulo. No Evangelho Secreto de Marcos 2,26, o túmulo do
irmão da mulher sem nome ficava em um jardim; é bem possível que isso reflita uma combinação dos
relatos joaninos dos sepultamentos de Lázaro e de Jesus (§ 15, acima).
‘3 Como Price (“Jesus”) mostra, a tradição do jardim teve uma rica história subsequente. Tertuliano (De
Spectaculis 30 [CC 1,253]) relata uma asserção polêmica judaica, segundo a qual o jardineiro desse
pedaço de terra tirou o corpo de Jesus do túmulo para que as multidões de visitantes não estragassem
seus pés de alface ou couve. 0 Livro da Ressurreição de Cristo pelo Apóstolo Bartolomeu 1,6-7 (copta,
séculos V a VII; JANT 183) nos conta que o nome do jardineiro era Filógenes e Jesus curara seu filho.
Ele ofereceu um túmulo perto de sua horta aos judeus que procuravam um lugar para sepultar Jesus,
o tempo todo planejando tirar o corpo e sepultá-lo honrosamente. Mas, quando voltou à meia-noite,
encontrou o túmulo cercado por anjos e viu o Pai ressuscitar Jesus. O apologista anticristão muçulmano
‘Abd al-Jabbar, ao escrever c. 1000 (§ 42 D, acima), relata que Jesus foi crucificado em um campo de
melões e vegetais — tema que talvez ele tenha tirado de ataques judaicos ao culto de Jesus crucificado
como idólatra, expresso na linguagem de Jr 10,3-5 (um ídolo de madeira montado como espantalho em
um campo de pepinos; Price, “Jesus” , p. 24). Na polêmica de Toledoth Yeshu, Judas sepultou Jesus em
um jardim sob um riacho (Ibid., p. 27).
472
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
74 Parece que o sepultamento em jardins também foi costume grego; assim M. Smith, Clement, p. 105.
473
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Análise
474
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
Mas, agora, com base em algumas diferenças entre Marcos e João em suas
descrições do final do sepultamento, quero formular perguntas a respeito de outros
detalhes que possam ter existido no relato pré-evangélico do sepultamento por José.
Marcos: kathairein (“retirar” ), eneilein (“amarrar” ), sindon (“ pano de linho”), katatithenai (“pôr”). João:
lambanein (“ tomar”), dein (“atar”), othonion (plural: “panos” ), tithenai (“colocar”). É complicado teorizar
que João copiou de Marcos o breve centro da ação, mas mudou quase todas as palavras-chave. Por quê?
É preciso pressupor ou que João é independente de Marcos (com os dois recorrendo à mesma tradição
pré-evangélica) ou uma remota dependência, baseada em ter ouvido ou lido Marcos no passado. Esta
última sugestão tropeça no fato de os detalhes marcanos mais brilhantes que as pessoas tendem a lembrar
não estarem preservados em João, por exemplo, que o túmulo foi escavado na rocha ou que a pedra foi
rolada contra a entrada do túmulo. Lucas e Mateus, que são dependentes de Marcos (entretanto, não
por memória do passado, mas por uso direto do Marcos escrito), preservam o primeiro desses aspectos
e Mateus preserva o segundo.
475
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
Q ue d e t a l h e s a r e sp e it o do t ú m u lo fo ra m in clu íd o s no r e la t o p r é - ev a n g élico
76 Realmente, João pode perfeitamente dar um significado teológico ao cenário de jardim do sepultamento
(acima, penúltimo parágrafo antes desta A n á l i s e ) ; assim, é possível argumentar que esse detalhe não é
sem motivação e deve ser juntado aos outros que foram trazidos ao quadro do sepultamento por razões
apologéticas ou teológicas. Entretanto, a significação teológica neste caso não está tão clara a ponto de
se pensar que deu origem à menção de um jardim; é mais provável que as possibilidades teológicas
tenham se originado do fato de um jardim ser mencionado no relato do sepultamento.
476
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
Marcos: apokyliein, anakyliein', Mateus e Lucas: npokxheur, João airein; EvPd: kyliein. Não tenho certeza
de até que ponto a pedra de sepultamento removida repercute em lPd 2,4, que convida as pessoas a virem
“ até ele, pedra viva, rejeitada pelos seres humanos, mas diante de Deus escolhida e valiosa” . Mercúrio
(“Baptismal” , p. 48-49) menciona esse como um dos temas batismais nas descrições evangélicas do
sepultamento, juntamente com a água que flui do lado de Jesus, o pano de linho e o jardim (do paraíso!).
8 A especulação quanto a como ele foi aberto faz parte de uma grande etapa da evolução da história,
com a introdução do(s) anjo(s), para interpretar o propósito do túmulo vazio, de modo que a história se
transforma em meio eficaz para proclamar o Senhor ressuscitado. Quanto ao agente da remoção, Marcos,
Lucas e talvez João subentendem que o(s) anjo(s) que aparecem no/perto do túmulo a removeram. Mateus
descreve um anjo que desceu do céu e rolou a pedra para trás; em EvPd, a pedra rola sozinha.
477
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
provável é a tendência de tê-lo perto do túmulo com certeza, como se ele não esti
vesse aberto à ressurreição. E por isso que o fechamento do túmulo se torna uma
ação dos adversários de Jesus no EvPd, como o ato de lacrar o túmulo em Mt 27,66.
F oram m e n c io n a d a s e s p e c i a r i a s no r e l a t o p r é - e v a n g é lic o do s e p u l t a m e n -
79 Talvez eles não interpretem as especiarias da mesma maneira. Afirmei no COMENTÁRIO que João pensa
em mirra seca e aloés pulverizados, enquanto Marcos (claramente) e Lucas (provavelmente — myron é,
em geral, óleo) pensam em um óleo ou unguento líquidos para ungir.
478
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
80 Outra reação, como vimos, foi transformar José em alguém mais favorável a Jesus.
81 A atividade subsequente de Maria Madalena tomou-se assunto de criação lendária floreada, não diferente
das lendas que se difundiram em tomo de José de Árimateia. Entretanto, o fato de primordialmente ela
ser uma figura dos relatos da ressurreição faz o relato dessas lendas parecer deslocado em um livro a
respeito da NP.
479
Qmmo ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
É mais difícil defender uma tradição primitiva comum que incluía a presença
delas no sepultamento. Sinais negativos são que elas estão ausentes de João, que em
Marcos (o relato sinótico básico) elas não têm participação ativa no sepultamento e
que elas observam o sepultamento no túmulo de modo a poder voltar a ele na Páscoa
e reparar o que ficou faltando no sepultamento. A tese de derivação retroativa, então,
é muito atraente: a saber, que do papel de Maria Madalena e suas companheiras
na tradição do túmulo vazio e da tradição primitiva da presença de três mulheres
galileias na crucificação foi logo deduzido que elas estavam no sepultamento. Elas
foram incluídas na narrativa marcana do sepultamento (seguida por Mateus e Lu
cas) a fim de tornar a história do sepultamento mais claramente uma ligação entre
a crucificação e a ressurreição. A ação de José foi primordialmente a culminância
do relato da Paixão e crucificação; e a observação pelas mulheres preparou para
a ressurreição a partir do túmulo. (Claramente, o relato joanino do sepultamento,
que não menciona as mulheres, encerra a crucificação; serve como Episódio 6 da
narrativa da crucificação em um padrão quiástico [§ 38 C], mas nada faz para
preparar a visita de Maria Madalena a um túmulo vazio.) Entretanto, na imagem
marcana maior, com sua presença na crucificação, no sepultamento e no túmulo
vazio, as mulheres inter-relacionam as três cenas.
82 Duvido que a terceira mulher fosse identificada na tradição pré-evangélica, pois cada Evangelho lhe
atribui um nome diferente; ver § 44, nota 139.
480
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
mulheres perto da cruz, mas em forma abreviada, pois já haviam sido mencionadas.83
Assim, se examinarmos mais uma vez o Quadro 8, “ Maria Madalena e Maria, mãe
de Tiago Menor e de Joset e Salomé”, em Mc 15,40, se transformaram em “ Maria
Madalena, a Maria de Tiago e Salomé”, em Mc 16,l . 84 Segundo a tese de que a
referência às mulheres no sepultamento é derivação retroativa da presença delas no
túmulo vazio, a abreviação continua: somente “ Maria Madalena e Maria de Joset”,
com a decisão de citar aqui o outro filho de Mc 15,40, que foi omitido do outro uso
em Mc 16,1.85 Mateus foi além na simplificação e usou no sepultamento (Mt 27,61)
a mesma forma abreviada (Maria Madalena e a outra Maria) que vai usar no túmulo
(Mt 28,1). Entretanto, essas sugestões quanto ao procedimento dos evangelistas
neste assunto complexo continuam altamente especulativas.
88 Essa harmonização não aconteceu em João que, ao citar pelo nome apenas Maria Madalena (que fala
como “nós”) no túmulo, preserva a situação mais antiga.
84 Se compararmos os respectivos textos mateanos, descobriremos que “ Maria Madalena e Maria, mãe de
Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu” , em Mt 27,56, se transformaram em “Maria Madalena
e a outra Maria”, em Mt 28,1. Com seu senso de ordem, depois de designar as mulheres galileias pelo
nome no decorrer do ministério em Lc 8,1-3, na crucificação e no sepultamento Lucas simplesmente
refere-se a elas de modo geral, citando-lhes os nomes mais uma vez (de forma abreviada) apenas quando
termina a história do túmulo vazio (Lc 24,10).
85 Este último passo estava no nível literário; os passos anteriores estavam no todo ou em parte na formação
oral das tradições evangélicas. A explicação que apresentei responde a muitas das objeções que levantei
contra outras teorias a respeito dos nomes em § 44, nota 34.
481
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
86 Uma objeção à suposta incapacidade de dramatizar a imagem de José é constituída pelo que acontece a
José no EvPd, onde ele fica amigo de Pilatos (EvPd 2,3), “ que tinha visto quantas coisas boas ele [Jesus]
fez” (EvPd 6,23). Ali, José é como “ muitos dos judeus” no ministério do Jesus joanino — “ tendo visto
o que Jesus fizera, eles creram nele” (Jo 11,45, em contraste com Jo 12,37).
482
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
Quero encerrar esta análise do que pode ser antigo na narrativa do sepul
tamento com a luz lançada sobre o túmulo de Jesus pelo que conhecemos do local
tradicional no qual o Gólgota e o túmulo eram venerados em Jerusalém e da série
de igrejas ali construídas.88 Certamente, o local possui verossimilhança, pois já
vimos que está localizado apropriadamente para o que os Evangelhos nos relatam
a respeito do lugar da execução e do sepultamento de Jesus. Ficava ao norte da
Segunda Muralha Norte do tempo de Jesus, perto da Porta do Jardim; escavações
87 Não é verdadeiramente significativo que Lc 24,12 (se autêntico) só mencione Pedro correndo para o
túmulo enquanto em Jo 20,2-4 o discípulo amado está ao lado de Simão Pedro (embora essa combinação
seja puramente joanina e bastante simbólica). Como Lc 24,24 mostra, foi na tradição lucana que “ alguns
dos que estavam conosco [assim, mais de um] foram ao túmulo” .
88 Na B ib l io g r a f ia d a S e ç à o de § 37, sob a Parte II (Geografia), ver em especial os artigos de Bahat, Krets-
chmar, Ross e Wilkinson (“Church”), que refletem os estudos fundamentais de Coüasnon e Corbo. Devo
a Bahat e Wilkinson grande parte do que resumo nesta seção.
483
Q üahto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
mostram que havia uma pedreira no local que havia começado a ser tapada, de modo
que servia de jardim para grãos e árvores (figueiras, alfarrobeiras, oliveiras) e para
sepultamentos, principalmente do tipo kokím (ver COMENTÁRIO acima). Mas, além da
verossimilhança, que se aplica a diversos locais, por que este candidato, a igreja do
Santo Sepulcro, surgiu primeiro em sua afirmação de que, dentro de suas paredes,
estão o Gólgota e o túmulo? (Aparentemente, no primeiro milênio, nenhum local
era dentro da basílica erigida nesse ponto: o local da crucificação estava em um
pátio e o do túmulo, em uma rotunda separada da igreja por um jardim.) O próprio
nome atual da igreja sugere que a afirmação principal se centraliza no túmulo e,
aqui, vou me concentrar nisso.
Havia nesse período uma crescente veneração judaica dos túmulos dos
mártires e profetas.89 Os supostos túmulos dos macabeus passaram a ser venerados
desde que foram considerados mártires do culto do verdadeiro Deus (acima, § 46,
sob “Atitudes judaicas em relação aos corpos dos crucificados” ). Na verdade, no
século IV, os cristãos de Antioquia assumiram esses túmulos dos judeus como
lugares de oração e peregrinação.90 As Vidas dos Profetas, obra com história com
484
§ 47.0 sepultamento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
plicada, mas que talvez tenha raízes no Judaísmo do século I d.C., tem o cuidado
de, na maioria dos relatos, nos contar onde o profeta foi sepultado. De interesse
especial é As Vidas dos Profetas 1,9, que nos diz que o túmulo de Isaías em Jeru
salém ficava “perto do túmulo dos reis, a oeste do túmulo dos sacerdotes, na parte
meridional da cidade” (= o Vale do Cedron). Quanto ao túmulo de Ageu (As Vidas
dos Profetas 14,2): “ Quando morreu, foi sepultado perto do túmulo dos sacerdotes,
com grandes honras, do mesmo modo que eles”. Zacarias, que era o filho marti-
rizado de um sacerdote, foi tomado pelos sacerdotes e sepultado com seu pai (As
Vidas dos Profetas 23,1). 0 Vale do Cedron e a área ao norte de Jerusalém estão
pontilhados de túmulos monumentais desse período, que comemoram (com e sem
exatidão) a memória de profetas, homens veneráveis, sábios, sacerdotes e membros
da realeza. Já mencionei os “ Túmulos dos Reis” (na realidade, o conjunto de túmulos
da rainha Helena de Adiabena, que morreu cerca de vinte e cinco anos depois de
Jesus), que apresentam excelente paralelo em muitos aspectos para estudar o tipo
de lugar onde talvez Jesus tenha sido sepultado (escavado em uma pedreira; con
tendo sepultamentos kokim e em arcossólios; fechado por uma pedra rolada). Uma
razão especial para lembrar o túmulo de Jesus está na fé cristã de que o túmulo
foi desocupado por sua ressurreição dos mortos. Sendo possível recorrer a atitudes
mais tardias da Mixná, Berakot 9,1 incentiva a pensar que os seguidores judaicos
de Jesus não esqueceram o local desse tremendo acontecimento: “ Quando é mos
trado um lugar onde aconteceram prodígios em Israel, dizei: ‘Bendito Aquele que
operou prodígios para nossos antepassados neste lugar’”. Infelizmente, o EvPd não
demonstra nenhum conhecimento seguro da Palestina do século I; de outro modo,
seria possível recorrer a EvPd 6,24, que dá um topônimo, “o Jardim de José”, como
prova de que os cristãos podiam indicar o local do túmulo.
485
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
Jesus, pois o jardim foi incorporado a Jerusalém quando Herodes Agripa I (41-44
d.C.) empurrou os muros da cidade mais para o norte. Ainda mais difícil seria a
retenção da lembrança do local durante a grande mudança que ocorreu depois da
Segunda Revolta Judaica, quando Adriano reconstruiu Jerusalém como a cidade
romana de Aélia Capitolina. Não era permitida a presença de judeus nessa nova
cidade, mas a comunidade cristã pôde continuar, porque o bispado agora passou
para as mãos de cristãos gentios (HE IV,vi,3-4). Em 135, na área geral do local do
túmulo, foi construída uma imensa plataforma — uma área retangular fechada, sobre
a qual os romanos construíram um Templo a Afrodite (embora alguns estudiosos,
recorrendo a Jerônimo, falem de um Templo a Júpiter). A escolha de erguer um
Templo pagão bem em cima do túmulo de Jesus pode ter sido acidental e não uma
afronta deliberada à que, afinal de contas, era apenas uma seita pequena.91 Contudo,
pode também ter servido para marcar o local agora enterrado pelos duzentos anos
seguintes (Kretschmar, “ Kreuz”, p. 424). Quanto ao Gólgota, segundo Jerônimo,
projetava-se acima da plataforma e constituía a base para uma estátua de Afrodite.
Na última parte do século II, o local do túmulo enterrado foi mostrado a Melitão de
Sardes quando este foi a Jerusalém, e ele o descreveu como estando no meio das
ruas largas da cidade romana (§ 39, acima).
91 L. D. Sporty (BA 54, 1991, p. 28-35) pensa antes em uma afronta ao Judaísmo. Olhando, do Monte
das Oliveiras, ao longo de uma linha leste-oeste daquilo que era a Porta Áurea do conjunto do Templo,
através do local do Santo dos Santos, para onde o Templo de Afrodite foi construído, o Templo pagão
ficava em um ponto dominantemente mais alto, no extremo ocidental da linha que se elevava acima das
ruínas religiosas judaicas — sinal visível do triunfo romano sobre o Judaísmo. A decisão dos arquitetos
de Constantino de construir a igreja deles no local do Templo de Afrodite, que destruíram, e assim, na
mesma linha leste-oeste, mostrou o triunfo do Cristianismo sobre as religiões romana e judaica.
92 Catechesis 14,9 (PG 33,833B); em 14,22 (PG 33,853A), ele afirma que a pedra que fechava o túmulo
ainda estava lá.
486
§ 47.0 sepultam ento de Jesus, segunda parte: Colocação do corpo no túm ulo
Bahat (“ Does” , p. 40) faz a interessante sugestão de que a rotunda imitava a forma do Templo de Afro-
dite, que existira acima do local do fórum da Aelia Capitolina de Adriano; na verdade, é provável que
algumas das colunas desse Templo tenham sido usadas. Ele aponta para Templos de Afrodite com forma
de rotunda em outros lugares, inclusive Roma.
487
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
edícula que cobria o túmulo reconstruído. Mais uma vez, a área do Santo Sepulcro
se tornou um local de sepultamento, desta vez para os reis cruzados do Reino Latino
de Jerusalém. Os cruzados foram expulsos em 1187. Através dos séculos, terremotos
e incêndios danificaram a grande igreja deles e a enfraqueceram; e tentativas de
escorá-la deixaram uma feia confusão de traves de apoio e vigas de madeira. Foi só
com a reconstrução iniciada em 1959 que a longa história de estruturas situadas
embaixo se tornou visível. E debaixo de 1.700 anos de esforços arquitetônicos, não
perceptíveis aos olhos do peregrino, que vê uma cobertura de mármore, existem
ainda os restos muito escassos das paredes de uma gruta que mais tem direito a
reivindicar ter sido o lugar de sepultamento escavado na rocha no qual um piedoso
membro do sinédrio colocou o cadáver de Jesus crucificado.
488
§ 4 8 .0 sepultamento de Jesus,
terceira parte: No sábado,
a guarda no sepulcro
(Mt 27,62-66; Lc 23,56b)
Tradução
489
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
de prata, eles fizeram como foram instruídos. E esta palavra tem sido divulgada
entre os judeus até este dia.]
EvPd 8 ,2 8 -9 ,3 4 :8'28M a s os escribas e fariseus e anciãos, tendo se reunido uns
com os outros, tendo ouvido que todo o povo estava murmurando e batendo no
peito, dizendo que "Se na sua morte estes sinais muito grandes aconteceram, vede
como ele era justo", 29ficaram com medo (especialmente os anciãos) e vieram diante
de Pilatos, suplicando-lhe e dizendo: 30"Entrega-nos soldados a fim de podermos
salvaguardar seu lugar de sepultamento por três dias, para que, tendo vindo, seus
discípulos não o roubem e o povo aceite que ele ressuscitou dos mortos, e eles
nos façam mal". 3lM as Pilatos lhes entregou Petrônio, o centurião, com soldados,
para salvaguardar o sepulcro. E com esses, os anciãos e escribas vieram ao lugar
de sepultamento. 32E, tendo rolado uma grande pedra, todos os que estavam ali,
junto com o centurião e os soldados, colocaram (-na) contra a entrada do lugar de
sepultamento. 33E eles marcaram(-no) com sete lacres de cera e, tendo armado uma
tenda ali, eles (o) salvaguardaram. 9,34Mas, cedo, quando o sábado estava raiando,
uma multidão veio de Jerusalém e da área circundante, a fim de poderem ver o
túmulo lacrado.
[EvPd 9,35-11,49:9’3SMas, na noite em que o Dia do Senhor raiou, quando
os soldados (o) estavam salvaguardando, dois a dois em cada período, houve uma
voz forte no céu; 3ée eles viram que os céus se abriram e dois homens que tinham
muito esplendor desceram de lá e vieram perto do sepulcro. 37M a s aquela pedra
que tinha sido empurrada contra a entrada, tendo rolado sozinha, foi para o lado,
a certa distância; e o sepulcro se abriu e os dois jovens entraram. ia38E então, aque
les soldados, tendo visto, acordaram o centurião e os anciãos (pois eles também
estavam presentes, salvaguardando). 39E, enquanto relatavam o que tinham visto,
novamente eles viram três homens que saíram do sepulcro, com os dois apoiando
o outro e uma cruz seguindo-os, ^ e a cabeça dos dois alcançando o céu, mas a
do que era conduzido pela mão por eles ultrapassando os céus. 4IE eles estavam
ouvindo uma voz dos céus dizendo: "Fizestes a proclamação para os adormecidos?".
42E uma homenagem foi ouvida da cruz: "Sim ". "’43E então, aquelas pessoas estavam
procurando uma perspectiva comum para sair e deixar essas coisas claras a Pilatos;
^e, enquanto ainda estavam ponderando sobre isso, aparecem novamente os céus
abertos e um certo homem, tendo descido e entrado no lugar de sepultamento.
45Tendo visto essas coisas, os que estavam ao redor do centurião apressaram-se à
noite diante de Pilatos (tendo deixado o sepulcro que estavam salvaguardando) e
descreveram todas as coisas que na verdade tinham visto, agonizando grandemente
e dizendo: "Verdadeiramente, ele era o Filho de Deus". 4íEm resposta, Pilatos disse:
"Estou limpo do sangue do Filho de Deus, mas foi para vós que isto parecia (a
coisa a fazer)". 47Então, todos, tendo avançado, estavam suplicando e exortando-o
a mandar o centurião e os soldados não dizerem a ninguém o que tinham visto.
490
§ 48.0 sepultam ento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
48"Pois", disseram, "é melhor para nós ter o débito do maior pecado à vista de Deus
que cair nas mãos do povo judeu e ser apedrejados". 49E, então, Pilatos mandou o
centurião e os soldados não dizerem nada.]
Comentário
Nesta última seção de meu comentário da NP, coloquei juntos meio versí
culo de Lucas e uma cena de Mateus. Embora nada tenham em comum quanto
ao conteúdo, essas duas unidades têm função semelhante. Nenhuma atividade foi
narrada por Marcos entre o sepultamento de Jesus na presença de Maria Madalena
e Maria de Joset, quando já era o entardecer do dia antes do sábado (Mc 15,42), e
a vinda de Maria Madalena e Maria de Tiago e Salomé ao lugar de sepultamento
quando o sábado passara (Mc 16,1-2). Os dois evangelistas que recorreram a
Marcos completam mencionando o que aconteceu no sábado interposto entre as
duas referências marcanas.1
1 Nenhum teólogo se interessa mais pela significância do que aconteceu nesse sábado santo que Hans
Urs von Balthasar; contudo, suas reflexões (guiadas pelas experiências místicas de Adrienne von Speyr)
não se concentram no que os evangelistas canônicos atribuem a esse dia. Para von Balthasar (Mysterium
Paschale, Edinburgh, Clark, 1990; original alemão 1969), o crucificado, condenado como pecador e
completamente abandonado por Deus, desceu entre os mortos no sábado, a fim de mostrar solidariedade
com os que tinham abandonado Deus em pecado, um “sim” divino que destrói as portas do inferno ao
abraçar o “ não” de pecadores mortos impenitentes e dar esperança para a salvação de todos. Conceito
grandioso, mas com uma diferença paradoxal do interesse mateano de mostrar que o pecado continuou no
sábado. E o EvPd, não Mateus, que declara que entre o ato de lacrar o túmulo, no amanhecer do sábado
(EvPd 9,33-34), e a saída do Senhor do túmulo, na madrugada do dia do Senhor (EvPd 9,35; 10,39-40),
o crucificado fez a proclamação para os adormecidos (EvPd 10,41). Mt 27,52 colocou a ressurreição dos
santos adormecidos na tarde da sexta-feira antes do sepultamento de Jesus.
2 A frase lucana “ segundo o mandamento” é omitida pelo Códice de Beza, talvez para evitar dar a impressão
de que os que acreditavam em Jesus estavam presos ao ritual do sábado.
491
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
expressa sua teologia de que toda a vida de Jesus, do começo ao fim, foi marcada
pelo respeito da lei e que ele atraía seguidores dessa inclinação entre os judeus.
3 Um pequeno segmento está entrelaçado no terceiro episódio (Mt 28,2-4, como parte de Mt 28,1-10);
fenômeno semelhante ocorre na narrativa da infância, onde Herodes é mencionado no terceiro episódio.
492
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ § 48.0 sepuitam ento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
apologético (que o corpo não foi roubado) surgiu lógica e temporal mente (com toda
a probabilidade) mais tarde. Questões a respeito da historicidade e/ou a respeito
dos elementos mais antigos da história da guarda também ficarão para a a n á l is e .
4 Esta decisão é imposta pela natureza do volume como comentário dos Evangelhos canônicos. Às vezes,
não hesito em acrescentar uma subseção a respeito de um breve segmento no EvPd, mas os vinte e dois
versículos da história da guarda constituem mais de um terço do que foi preservado do EvPd.
’ Nas narrativas canônicas do sepuitamento de Jesus, só Mateus usa laphos (“sepulcro” ) e dois de seus
quatro usos estão na história da guarda, com o quarto em Mt 28,1, que liga a história ao relato das mulheres
vindo na Páscoa. No relato da Páscoa, mnemeion (“túmulo") é a palavra canônica mais frequentemente
usada (Marcos1.4; Mateus: 1; Lucas: 5; João: 7) — Marcos e Lucas usam rnnema uma vez cada um.
6 Por exemplo, em EvPd 7,27, depois da morte e do sepuitamento de Jesus, o autor nos diz que os discípulos
ficaram “sentados lamentando e chorando noite e dia até o sábado” , embora já tivesse escrito “o sábado
está raiando", quando Jesus foi condenado à morte {EvPd 2.5)1
493
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
7 A passagem correspondente em EvPd 8,28 tem: “os escribas e fariseus e anciãos [...] reunidos” contra
Jesus. Mais adiante, Mt 28,12 introduz “ os anciãos” em sua história, do mesmo modo que EvPd 8,29
vai reiterar que “os anciãos” estavam presentes.
8 Alhures nas NPs canônicas, só em Jo 18,3. Em Mateus, “os chefes dos sacerdotes e os fariseus” foram
associados pela última vez em Mt 21,45-46, quando procuraram prender Jesus porque suas parábolas
os ameaçavam.
9 Contudo, precisamos observar que, depois de serem mencionados no início de Mateus e do EvPd, os
fariseus nunca mais são citados; os chefes dos sacerdotes e os anciãos, em Mateus, e os anciãos e escribas,
no EvPd, são figuras hostis na história toda.
494
§ 48.0 sepultam ento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
Há quem se pergunte se uma reunião dos chefes dos sacerdotes e dos fa
riseus diante de Pilatos não teria sido uma transgressão do sábado. Certamente,
Mateus não chama a atenção a essa transgressão, pois sua circunlocução “ no dia
seguinte, que é depois do dia de preparação” evita menção do sábado.10 Um com
portamento verdadeiramente implausível encontra-se no que o EvPd faz acontecer
no período “quando o sábado estava raiando” (EvPd 9,34). Depois que se juntaram
para lacrar o túmulo, os anciãos e escribas armaram uma tenda ali e, ao lado dos
soldados, salvaguardaram o túmulo durante todo o sábado até a noite, quando o
dia do Senhor (domingo) raiou (EvPd 8,33-10,38). No sábado, juntou-se a eles
uma multidão que saiu para ver o túmulo lacrado (EvPd 9,34). A imagem de tantos
judeus praticantes que passam o sábado em um túmulo é outro fator (juntamente
com a confusão cronológica a respeito do calendário judaico) que nos faz duvidar
que o EvPd tenha sido escrito por um judeu-cristão culto.
10 Que esse dia fazia parte do período festivo dos Pães sem fermento, que começava com a refeição pascal
na noite de quinta-feira/sexta-feira, embora dedução lógica das indicações cronológicas mateanas mais
primitivas, está ainda mais longe da imagem mateana aqui.
11 Digna de nota é a ausência de qualquer referência às proclamações na forma da história da guarda no
EvPd. Talvez na psicologia da narrativa do EvPd, onde o povo diz como Jesus era justo (EvPd 8,28),
devamos imaginar que seus adversários julgavam sensato não atacá-lo diretamente.
495
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
ele falou de o Filho do Homem ser ressuscitado no terceiro dia. A expressão “ três
dias” ocorreu realmente na passagem do sinal de Jonas (Mt 12,40: “o Filho do
Homem estará no seio da terra três dias e três noites” ), sinal dirigido aos escribas
e fariseus (Mt 12,38),12 e na afirmação da destruição do santuário atribuída a Jesus
no julgamento judaico e na cruz (Mt 26,61; 27,40: “dentro de três dias (o) construi
rei” ). Contudo, mesmo aí não encontramos “depois de três dias”, o que subentende
ressurreição na segunda-feira, o quarto dia.13 Mas talvez não devamos pressionar
com rigor a questão de redação rigorosa;14 de fato, a indicação de tempo é do ponto
de vista da narrativa total, não de um momento histórico no sábado, quando as
autoridades judaicas estavam falando. Na sequência de sepultamento-ressurreição,
Mt 27,57.62 e 28,1 indicam dias distintos, com o último sendo o “amanhecer do
primeiro dia da semana” — depois desses três dias indicados, Jesus terá ressusci
tado. Na verdade, Mt 28,6 (“ Pois ressuscitou exatamente como disse” ) empenha-se
em indicar a verdade de uma predição que, em Mt 27,63, as autoridades judaicas
caracterizaram como vindo de um impostor! O que realmente nos surpreende nesta
cena diante de Pilatos é que os chefes dos sacerdotes e os fariseus não só conhecem
a essência do dito de Jesus, mas o entendem corretamente como referindo-se a sua
ressurreição. Embora na narrativa os discípulos de Jesus tenham ouvido muito mais
predições da ressurreição de Jesus do que os chefes dos sacerdotes e os fariseus,
nenhum dos Evangelhos lhes atribui esse discernimento antes da ressurreição ou,
às vezes, até mesmo depois de encontrarem o Jesus ressuscitado!1-1Está claro que
a história foi formulada em um contexto onde os cristãos proclamam a ressurreição
e seus adversários entendem o que eles proclamam.
12 Giblin (“Structural” . p. 414-419) defende longamente a passagem de Jonas como antecedente do dito
de Jesus que os chefes dos sacerdotes e os fariseus relatam a Pilatos. Nela o Filho do Homem está “no
seio da terra” e é ali que as autoridades judaicas querem manter Jesus em resposta a sua audaciosa
advertência a eles no julgamento (Mt 26,64: “ Vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e
vindo sobre as nuvens do céu” .
13 Walker (“After” ) lembra que as autoridades judaicas estão citando isso no sábado e, nesse dia, pedem
que tornem o sepulcro seguro “ até o terceiro dia” , o que significaria a segunda-feira. Ele sugere que
algumas das expressões tradicionais referentes a três dias são calculadas a partir da quinta-feira.
14 Em outras passagens dos Evangelhos, mesmo quando Jesus cita suas próprias palavras, a citação não é
necessariamente literal (ver Jo 18,9).
1’ E aqui que tentativas literalistas de historicidade tropeçam. Lee (“Guard” , p. 63) afirma que as palavras
de Jesus, inclusive uma declaração a respeito da destruição do santuário do Templo dentro de três dias,
foram denunciadas aos chefes dos sacerdotes por Judas. Isso pressupõe que Judas alcançou um enten
dimento desse ou dos outros ditos como referência à ressurreição.
496
§ 4 8 .0 sepultam ento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
16 O EvPd traz “seus discípulos” e também a tradição textual koiné de Mateus (provavelmente por contato
com Mt 28,13, onde a mentira diz que “ seus discípulos” roubaram o corpo); a expressão está ausente dos
Códices Vaticano e Sinaítico. (A tradição koiné de Mateus também acrescenta “ à noite” , mas novamente
em imitação de Mt 28,13.) Embora eu creia que o autor do EvPd estivesse familiarizado com a redação
mateana, não se deve deduzir demais quanto à dependência literária dessa oração, que é a concordância
literária literal mais extensa entre o EvPd e um Evangelho canônico. Que os discípulos vieram e roubaram
Jesus (descrição repetida em Mt 28,13; ver Jo 20.2.15) tornou-se acusação confirmada em discussões
polêmicas, como atesta Mt 28,15 (também Justino, Diálogo cviii,2); e a redação fixa dessa acusação
poderia ser conhecida do autor do EvPd sem dependência direta de Mateus. Contudo, a maior parte do
vocabulário está bastante ambientada em Mateus e o “ tendo vindo” mais um verbo de movimento é muito
mateano (vinte e sete vezes).
497
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
EvPd, as autoridades temem que o povo possa lhes “fazer mal” (poein kaka ). Aqui,
a linguagem é irônica; de fato, EvPd 4,10 (e Lucas) mostraram Jesus crucificado
entre os kakourgoi ou “malfeitores”.
11 A inscrição tem sido objeto de enorme bibliografia. Na ocasião em que Schmitt escreveu, em 1958
(“Nazareth” , v. 6, p. 361-363), já havia cerca de setenta registros, e a contagem subira para noventa em
1975, na época do artigo de Metzger (“ Nazareth” , p. 91-92).
18 De Zulueta (“Violation” , p. 193-194) menciona que, embora punida com multas, a violatio sepulchri só
foi tratada como problema criminal em todo o império no século II d.C.
498
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
19 Se a inscrição foi copiada durante os reinados de Augusto ou Tibério, não foi originalmente apresentada
em Nazaré, pois a Galileia não estava sob o domínio romano direto naquele período.
20 Ver transcrição e tradução em de Zulueta (“Violation” , p. 185) e Metzger (“ Nazareth” , p. 76-77).
499
Qumuomo • JesusécrucificadoemorrenoGólgota.Ésepultadoaliperto
21 Ver § 44, nota 15. É nome romano conhecido, por exemplo, um Petrônio foi governador da Síria em
39-42 d.C.; mas há quem o considere um jogo com o nome do autor do EvPd, a saber, o Petros de EvPd
14,60, do mesmo modo que uma filha chamada Petronilha foi atribuída ao primeiro dos Doze. Metzger
(“Names” , p. 95) relata que o Livro dos Bês, obra siríaca do século XIII, apresenta nomes para todos os
soldados enviados para vigiar o túmulo: “ Eram [em número de] cinco e eis seus nomes: Issacar, Gad,
Matias, Barnabé e Simão; mas outros dizem que eram quinze, três eenturiões e seus soldados romanos
e judeus” .
500
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
E muito mais provável que Mateus queira dizer que Pilatos deu às autori
dades judaicas soldados romanos para ajudar a tornar o sepulcro seguro.24 Então,
a palavra-chave echete tem de ser traduzida não como “Vós tendes uma guarda
custodiai”, mas como “ Vós (podeis) ter uma guarda custodiai”, ou “E-vos concedi
da uma guarda custodiai”, ou “ Tomai uma guarda custodiai”. 0 verbo echein está
sendo usado no sentido convencional de resposta afirmativa a um pedido: “ Vós a
22 Lee (“Guard” , p. 173) afirma romanticamente que Caifás ouviu custodia dos lábios de Pilatos, quando
ele falou com o sumo sacerdote em latim! No aramaico talmúdico, qústôdya’ aparece como empréstimo
do latim: isso enfraquecerá o argumento usado aqui. se for eco de uso aramaico mais primitivo.
23 Craig (“Guard” , p. 274) afirma que a referência é a uma guarda judaica porque, em Mt 28,11, os soldados
se apresentam aos sumos sacerdotes — se tropas romanas estivessem envolvidas, como no EvPd, elas
se apresentariam a Pilatos. Com dois fundamentos, acho esse argumento nada convincente. Primeiro, as
tropas romanas cedidas pelo Pilatos mateano foram postas sob as diretrizes dos chefes dos sacerdotes e
dos fariseus em Mt 27,65 (“Vós [podeis ter] tendes uma guarda custodiai. Ide tornar seguro como sabeis”),
então, naturalmente, as tropas relatam aos chefes dos sacerdotes o que aconteceu. Os chefes dos sacerdotes
reafirmam-lhes que, se cooperarem com a mentira quanto a dormir, não serão bodes expiatórios, com os
chefes dos sacerdotes dizendo a Pilatos que os soldados que ele lhes deu não eram confiáveis. Segundo,
no EvPd, onde tropas romanas estão claramente envolvidas, eles primeiro conferenciam com os anciãos
judaicos, que eles acordam (EvPd 10,38: 11,43), a respeito de como comunicar a Pilatos antes de irem
juntos fazer um relato a Pilatos (EvPd 11,45) — sensibilidade quanto à responsabilidade perante as
autoridades judaicas.
24 Há uma interessante adição interpretativa a Mt 27,65 no Códice 1424 minúsculo: “ E ele lhes entregou
homens armados, a fim de que se sentassem em frente à gruta e a vigiassem dia e noite” .
501
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
25 Ver BAGD, p. 3 3 ,1, 7b; também Smyth, “Guard” , p. 157-158. Os dois citam o papiro de Oxirinco (v. 1,
papiro 33, col. 3, linha 4), onde o magistrado Apiano pede um favor especial e o imperador (Marco Au
rélio?) responde eche, isto é, “toma-o” ou “Tu o tens” . Também se pode apontar para Acts of the Scillitan
Martyrs, p. 13, onde o procônsul Saturnino faz uma concessão a Esperado: “Moram [...] habete” : “Tu
tens um adiamento” (MACM, p. 88).
26 O grego de Mt 27,66 é desajeitadamente abreviado; escribas da tradição textual ocidental tentaram
melhorá-lo: “com a guarda custodiai” (meta tes de koustodias), mudando-o para “com os guardas” (meta
ton phylakon).
2 Foram feitas diversas sugestões. Como os chefes dos sacerdotes estão envolvidos, há quem cite Zc 3,9;
4,10, onde é colocada diante do sumo sacerdote Josué uma pedra especial com sete faces, representando
os olhos do Senhor que percorrem a terra toda. Como o túmulo está na terra, também se faz referência a
4 Baruc 3,10, onde Deus lacra a terra com sete selos em sete períodos.
502
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
28 Na história das mulheres que vêm ao túmulo, em Mc 16,5 o jovem está vestido com um manto branco;
em Lc 24,4, os dois homens (anjos; ver Lc 24,23) estão com vestes resplandecentes. Isso corresponde à
segunda parte da descrição mateana (Mt 28,3b) das vestes angelicais brancas como a neve. A parte do
“ relâmpago” na descrição de Mt 28,3a pertence à história da guarda no túmulo.
29 Quando o EvPd foi escrito, o primeiro dia da semana (Mateus) se tomara o dia do Senhor.
,0 Declarei que não é meu propósito escrever um comentário do EvPd; contudo, como a cruz falante pode
503
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
A mentira que os soldados devem contar está expressa nos termos estabele
cidos pelas autoridades judaicas quando abordaram primeiro Pilatos para tornar o
túmulo seguro (Mt 27,64): os discípulos de Jesus vieram e o roubaram — à noite,
enquanto os soldados dormiam. E, se Pilatos ouvir falar dessa imaginária negligência
do dever, as autoridades estão preparadas para desviar sua ira (presumivelmente
com outra mentira). Os leitores mateanos não se surpreenderíam com esse recurso
se recordassem Mt 26,59: “ Os chefes dos sacerdotes e o sinédrio inteiro procuravam
falso depoimento contra Jesus, para que pudessem lhe dar a morte”. Na imagem
polêmica sendo descrita, foram usadas mentiras para executar Jesus e mentiras
serão usadas para matar sua lembrança. Os soldados pegam o dinheiro, do mesmo
modo que fez Judas em Mt 26,15, e seguem as instruções,31 de modo que a falsa
parecer ridícula aos leitores modernos, devo chamar a atenção para outras dramatizações primitivas da
cruz como sinal do Filho do Homem (Mt 24,30), ou como sinal cósmico e árvore da vida, por exemplo,
Epístola Apostolorum 16; Apocalipse de Pedro 1; homilia anônima On the Pasch. 51,9-10 (SC 27, p. 177-
179); ver Mara, Evangile, p. 188-189; Schmidt, Karwnische, p. 71.
31 Pesch (“Alttestamentliche” , p. 95) chama a atenção para um padrão mateano estabelecido de cumprir
ordens; ver Mt 1,24-25; 21,6-7; 28,15; e 28,19-20. Mateus reutiliza o verbo didaskein de Mt 28,15 na
ordem de Jesus aos onze discípulos: “ Indo, portanto, fazei discípulos de todas as nações [...] ensinando-as
a observar tudo o que vos tenho ordenado” (Mt 28,19-20). As autoridades judaicas ensinam os soldados
a mentir; Jesus faz os discípulos ensinarem as pessoas a guardar os mandamentos. Para Mateus, não há
dúvida sobre quem realmente observa a lei.
504
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
“palavra tem sido divulgada entre os judeus até este dia” (Mt 28,15) — um tipo
de antievangelho. Nos Evangelhos sinóticos, esse é um dos poucos exemplos de
“os judeus” usado dessa maneira, para designar um grupo estranho e hostil (cf.
Mc 7,3), que reflete uma época em que os seguidores de Jesus (mesmo se nascidos
judeus) já não se consideravam judeus.
32 Em EvPd 11,44, um anthropos, enquanto EvPd 9,36 e 10,39 usaram aner. A seção seguinte se referirá
a este ser celestial como neanislcos ou “jovem” (EvPd 13,55).
3,1 A forma da confissão do centurião em Lc 23,47 (“Certamente este homem era justo” ) tem paralelo na
reação do povo em EvPd 8,28: “Vede como ele era justo” .
505
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. í sepultado ali perto
Análise
Uma proposta muito mais elaborada foi feita por Heil, primeiro em “ Narrati-
ve”, artigo dedicado a Mt 27,55-28,20, e depois em um livro (Death ) que trata do
conjunto de Mt 2 6 -2 8 , com reflexões sobre a estrutura do Evangelho mateano em
34 João não tem o segmento das mulheres e toda a sua narrativa do sepultamento (inclusive Nicodemos)
conclui a história da crucificação mostrando o triunfo de Jesus. Faz parte da estrutura quiástica da
crucificação resumida em § 38 C.
506
§ 4 8 .0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
geral. Usando sua forma de crítica narrativa, ele descobre uma estrutura literária
extremamente complicada, baseada em “um padrão de alternância ou ‘intercâmbio’,
na qual cada cena enquadra e é por sua vez enquadrada por cenas contrastantes”
(“Narrative” , p. 419-420). Ele divide o sepultamento/ressurreição em três partes de
comprimento desigual: 1) Mt 27,55-61; 2) Mt 27,62-28,4; 3) Mt 28,5-20, cada uma
delas subdividida em três subseções (assim, nove segmentos ao todo). Um exemplo
do enquadramento na primeira parte é haver uma subseção sobre as mulheres da
Galileia em Mt 27,55-56 e outra em Mt 27,61 que serve de estrutura para a ação
de José, o discípulo, em Mt 27,57-60. Contudo, como já mencionamos em § 44, nota
27: para criar essa estrutura, Heil tem de ignorar o fluxo narrativo, já que, em Mt
27,55-56, as mulheres estão relacionadas à crucificação, não ao sepultamento, pois é
dito que elas observam especificamente a morte de Jesus e suas consequências. Em
uma escala maior, acho as divisões de Heil muito artificiais; e, embora descubram
alguns padrões mateanos, elas com frequência sacrificam outras questões maiores.
Em uma crítica inédita de Heil proferida na reunião da Associação Bíblica Católi
ca em Uos Angeles, J. R. Donahue lembrou que a divisão de Heil não respeita os
gêneros de elementos diferentes nas narrativas do sepultamento/ressurreição. Em
crítica incisiva, Sênior (“ Matthews Account”, em especial v. 2, p. 1439-1440) fala
da “ natureza quase mecânica” do padrão literário de Heil; e, como o livro de Heil
estende esse padrão por Mateus todo, muitos compartilham a dúvida de Sênior de
que o evangelista fosse capaz de formular um plano tão elaborado. Sênior descon
fia que Heil esteja inconscientemente adaptando “o texto ao leito procustiano do
padrão alegado”. Para mim, essa suspeita aplicada aos nove segmentos de Heil em
Mt 27,55-28,20 aumenta com sua descoberta subsequente de nove segmentos em
Mc 14,53-16,8 (Biblica 73,1992, p. 331-358).
507
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
não criou). Quero usar a origem da história da guarda no túmulo como entrada no
plano estrutural mateano.
Este último ponto nos leva a uma análise da estrutura mateana que, a meu
ver, mostra que sem dúvida o próprio Mateus entrelaçou dois relatos. Em BNM, p.
62-63, apoiei os que reconheceram que, depois de uma genealogia introdutória,
a narrativa mateana da infância tem uma estrutura de cinco passagens, cada uma
com uma citação formal da Escritura. Estão estabelecidas em um padrão alternado
com os que são favoráveis a Jesus, a saber, José e a mãe, realçados na primeira,
terceira e quinta passagens, enquanto os inimigos de Jesus, em especial Herodes,
estão realçados na segunda e quarta passagens. Se usarmos A para designar as
passagens favoráveis e B para designar as passagens hostis, podemos esquema-
tizar o padrão como na Primeira Parte do Quadro 9. A Segunda Parte mostra um
padrão alternado na narrativa mateana do sepultamento/ressurreição.3536 Ali, o tema
35 O autor de EvPd pode perfeitamente ter conhecido o relato mateano da guarda (opinião baseada em seu
uso de vocabulário mateano), mas uma estrutura plausível é que ele também conhecia uma forma bem
concatenada da história e lhe deu preferência. A fim de juntá-la à história das mulheres no túmulo, o
autor do EvPd teve de fazer uma adaptação: a segunda desajeitada descida angelical do céu em EvPd
11,44. Os dois homens angelicais da primeira descida (EvPd 9,36) faziam parte da história da guarda,
mas eles saíram do túmulo apoiando Jesus. Como nos ensinam todos os Evangelhos canônicos, a história
das mulheres que o autor do EvPd estava prestes a narrar exigia a presença angelical no túmulo vazio
quando as mulheres chegaram (ver EvPd 13,55); e assim, ele teve de fazer outro homem angelical descer.
36 Este paralelo estrutural entre as duas narrativas, que defendo em BNM, p. 125-126, foi sugerido antes
por J. C. Fenton, “ Inclusio and Chiasmus in Matthew”, em StEv I, p. 174-179. De outro ponto de vista,
Giblin (“Structural”) afirma corretamente que a narrativa mateana da ressurreição não começa com Mt
28,1, mas com Mt 27,57. Ele indica uma inclusão entre matheteuein (“sido discípulo”), em Mt 27,57,
no começo, e esse verbo (“fazer discípulos” ) em Mt 28,19, no fim.
508
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
P r im e ir a p a r t e : 0 r e la t o d o n a sc im e n to
A1 Mt 1,18-25 (Is 7,14) Primeiro sonho-revelação angelical a J o s é sobre o menino que nascería
de Maria como o Messias.
B1 Ml 2,1-12 (Mq 5,1) Os magos vêm a H e ro d e s, os chefes dos sacerdotes e os escribas, que
dão informações, mas na verdade tramam com hostilidade contra Jesus; os
magos encontram o menino e a mãe em Belém e o adoram; eles voltam por
outro caminho.
A2 Mt 2,13-15 (Os 11,1) Segundo sonho-revelação angelical a J o sé para levar o menino e sua
mãe para o Egito.
B2 Mt 2,16-18 (Jr 31,15) H e r o d e s mata as crianças do sexo masculino de Belém, na tentativa ma
lograda de matar Jesus.
A3 Mt 2,19-23 (ls 4,37) Terceiro sonho-revelação angelical a J osé: os que queriam matar o
menino estão mortos: ele deve levar o menino e sua mãe do Egito
para Nazaré.
S e g u n d a p a r t e : 0 r e la to d o s e p u lta m e n to /r e ssu r r e iç ã o
A2 Mt 28,1-10 S e g u id o r a s vão ao sepulcro; terremoto; anjo vem do céu e remove a pedra; guardas
tremem e ficam como mortos; anjo revela às mulheres que devem contar aos d isc í
A:‘ Mt 28,16-20 Em uma montanha na Galileia, Jesu s aparece aos onze d isc íp u l o s e lhes dá a missão
de irem a todas as nações.
Nos dois casos, está claro que uma história hostil e uma amistosa foram
entrelaçadas em um padrão positivo-negativo-positivo-negativo. Em cada caso, há
uma passagem onde as duas histórias se unem: perto do fim de B1, na narrativa da
infância, e no início de A2, na narrativa do sepulcro/ressurreição."7 Realmente,*
A natureza complexa deste episódio intermediário recebe tratamento especial de Giblin, “ StructuraF',
p. 409-411.
509
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
nesta última não há nenhuma diretriz tão segura quanto às cinco citações formais
na narrativa da infância;38 mas vale a pena mencionar que cada uma de suas cinco
passagens tem um verbo de movimento no início e as três primeiras têm indicações
de tempo.39 E ssa inclusão estrutural entre o início e o hm do Evangelho todo é, a
meu ver, indício de que este arranjo entrelaçado da história mateana da guarda no
sepulcro não representa o fluxo original dessa história (que outrora foi consecutiva).
0 novo arranjo entrelaçado na narrativa mateana do sepulcro/ressurreição também
significa que Mateus se afasta de Marcos, que usou o sepultamento primordialmente
como ligação entre os relatos da crucificação e da ressurreição.40 Embora haja ecos
contínuos da crucificação, em Mateus o sepultamento é primordialmente a parte
inicial de uma estrutura que aponta para as passagens da ressurreição. Finalmente,
a estrutura de cinco partes alerta-nos de que o elemento negativo da rejeição judaica
da ressurreição (dominante nas passagens B, a primeira das quais é, por acaso,
a que estamos comentando) não é primordial. Maior ênfase é dada às passagens
A e ao que Deus fez; o negativo está presente como contraste para mostrar que
Deus sai vitorioso. Apesar de sua intenção homicida contra o recém-nascido Rei
dos judeus, Herodes, os chefes dos sacerdotes e os escribas (Mt 2,20: “aqueles
que queriam matar o menino” ) foram frustrados e o menino foi trazido de volta do
exílio no Egito em segurança. Apesar da tentativa de manter o Rei dos Judeus no
sepulcro, Pilatos, os chefes dos sacerdotes e os anciãos são impedidos; e o Senhor
é trazido de volta do reino dos mortos em segurança.
U ma h is t ó r ia do m e sm o c o n ju n t o d e m a t e r ia l p o p u l a r do q u a l M ateu s
510
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
41 Lembro aos leitores que uso o termo “popular” para abranger uma transmissão de outro material sobre
Jesus que não seja pela transmissão querigmática, de pregação que marcou grande parte do material
sinótico ou pelo arranjo de provas do julgamento na sinagoga que formou o material joanino. Não tenho
em mente nada pejorativo histórica, teológica ou intelectualmente na designação. Na verdade, nas his
tórias populares detectáveis em Mateus, questões teológicas perceptíveis são levantadas e a qualidade
da linguagem é muitas vezes bastante notável. Observemos, por exemplo, o uso quase técnico de echete
koustodian (“Vós [podeis ter] tendes uma guarda custodiai”) nesta história mateana da guarda (Smyth,
“Guard” , p. 157).
42 Pesch (“Alttestamentliche” ) é insistente neste ponto (entretanto, infelizmente ele não distingue de forma
adequada entre reformulação mateana e criação mateana).
43 A passagem de Judas e as moedas de prata vieram após Mt 27,1 quando “ todos os chefes dos sacerdotes
e os anciãos do povo tomaram uma decisão [symboulion lambanein] contra Jesus, segundo a qual eles
deviam executá-lo” . Na história mateana da guarda no sepulcro (Mt 28,11-12), os chefes dos sacerdotes
reúnem-se com os anciãos e, “ tendo tomado uma decisão” , dão dinheiro aos soldados.
44 Naturalmente, Mateus não foi o único autor influenciado pela reflexão imaginativa popular em
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
limpo do sangue do Filho de Deus, mas foi para vós que isto parecia (a coisa a
fazer)” (EvPd 11,46), do mesmo modo que em Mt 27,24, ele disse: “sou inocente
do sangue deste homem. Vós haveis de ver isso”. A proclamação aos “adormecidos”
depois da morte de Jesus é um tema em EvPd 10,41-42, comparável à ressurreição
dos “adormecidos” em Mt 27,52.45 O paralelo estrutural das cinco passagens entre
a narrativa mateana do sepulcro/ressurreição e a narrativa mateana da infância
também apoia a tese de que material popular foi a fonte para a história da guarda,
pois a narrativa da infância tem o mesmo tipo de material popular. Continha reve
lação por intermédio de sonhos e anjos e, na verdade, na passagem dos magos, uma
comunicação celestial a gentios do que autoridades judaicas hostis não podiam ver
(do mesmo modo que houve revelação à mulher de Pilatos). A estrela que parou
sobre o lugar onde o menino Jesus se encontrava faz parte do mesmo contexto onde
os mortos que se erguem dos túmulos e vêm à cidade santa e são vistos por muitos
na ocasião da ressurreição de Jesus.46
U ma h ist ó r ia q u e e st á p r e se r v a d a em M a teu s em um a fo r m a m e n o s d e s e n
acontecimentos cristãos. Kratz (Auferweckung, p. 33-35) lembra que diversas histórias neotestamentárias
têm o tema de guardas frustrados que não conseguem impedir o santo que eles vigiam de escapar, por
exemplo, At 5,19-23 (história que envolve a libertação da prisão por um anjo do Senhor); At 12,4-11
(que também envolve um anjo do Senhor, um portão que se abre sozinho e um rei pecador); At 16,23-34
(um terremoto, com portas de prisão que se abrem sozinhas e correntes que se soltam).
45 Ver a p ê n d ic e I, nota 18. Pode-se acrescentar também que os fenômenos extraordinários da forma da
história no EvPd (a pedra que rola sozinha; o tamanho gigantesco dos anjos e o tamanho mais gigantesco
ainda do Senhor ressuscitado; a cruz falante) combinam com a afinidade pelo espetacular no material
mateano especial.
Vl A comparação da narrativa mateana da infância com a lucana, por exemplo, comparando os magos com
os pastores, ou a fuga para o Egito com a volta pacífica através de Jerusalém para Nazaré, mostra que,
seja a narrativa lucana histórica ou não, a mateana é mais folclórica.
512
§ 4 8 .0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
4' Isso foi proposto por B. A. Johnson e Walter, e aceito por muitos outros. Os proponentes dividem-se a
respeito de a forma pré-EvPd parar em EvPd 11,49 (de modo que, como penso, o autor do EvPd juntou-
-a à história separada das mulheres no túmulo) ou continuar até EvPd 13,57. A forma da história das
mulheres no EvPd tem muitas semelhanças com as formas canônicas e talvez represente simplesmente
uma nova narração de lembranças delas.
48 Em um estudo da intertextualidade no Protoevangelho de Tiago, W. S. Vorster (TTK, p. 262-275) afirma
que o autor desse apócrifo do século II combinou criativamente material canônico com outra tradição.
49 Há também ecos de material caracteristicamente lucano (o povo batendo no peito; dois homens angelicais
[arcer]). Se a busca se estendesse à história subsequente das mulheres no túmulo em EvPd 12,50-13,57,
ali seriam encontrados mais ecos de Lucas (ao alvorecer [orthrou]), bem como de João (“com medo por
causa dos judeus” ; inclinando-se para ver dentro do sepulcro).
513
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
j0 Mateus e o EvPd mencionam os fariseus no início da história e somente ali (e em nenhuma outra passagem
da NP); em Mateus (Mt 28,1-2) e no EvPd (EvPd 9,35-36), há descida angelical do céu em ligação com
a abertura do sepulcro ao “ amanhecer” de domingo (epiphoskein: único uso mateano). Desconfio que
esses são elementos que Mateus encontrou na história original da guarda no sepulcro e que, portanto, o
autor do EvPd também poderia tê-los encontrado ali sem depender de Mateus.
514
§ 48.0 sepultam ento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
51 Esse códice dos séculos IVA copia de um arquétipo do século II ou III. A gramática do latim é obscura
e com toda a probabilidade foi adulterada ao ser copiada. Entretanto, outros testemunhos de formas
independentes desse material podem ser sugeridos, por exemplo, não está claro que esta seção da
Ascensão de Tiago (meados do século II?) dos Reconhecimentos Pseudoclementinos (latinos 1,42,4) seja
dependente de Mateus: “Pois alguns dos que estavam guardando o lugar com diligência chamaram-no
de mágico quando não conseguiram impedi-lo de se levantar; outros fingiram que ele foi roubado” .
52 O fato de toda a primeira parte de Mateus que trata do pedido a Pilatos ter lugar no sábado, enquanto no
EvPd acontece antes do alvorecer do sábado, indica que a história original não tinha nenhuma indicação
515
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. É sepultado ali perto
ter sido combinação. Por exemplo, por um lado, o uso de “os judeus” no fim da
história da guarda por Mateus em Mt 28,15 é incomum e pode ter sido original
na forma que ele conhecia dessa história. O aparecimento de Ioudaios no final
do relato, em EvPd 11,48, talvez signifique que também era original na forma
da história que o autor do EvPd conhecia, de modo que ele não precisou tomá-la
por empréstimo de Mateus. Por outro lado, EvPd usa o termo seis vezes e, assim,
fazia parte também do estilo do autor. Alguns estudiosos do EvPd afirmam que a
interação que sugeri de dependência de Mateus (e outros Evangelhos) lembrada
oralmente, de dependência de uma forma separada, mais desenvolvida da história
da guarda transmitida em círculos populares e de adições pessoais, constitui um
esquema complicado demais para explicar o que aparece no EvPd. Ao contrário,
no caso de um conto tão imaginoso, acho esse esquema plausível em um mundo
antigo onde a repetição de histórias oralmente e reminiscências de tê-las ouvido
eram mais comuns que ler essas histórias. É um esquema com certeza mais crível
que imaginar que o autor do EvPd trabalhava em uma escrivaninha com cópias
dos diversos Evangelhos canônicos apoiadas a sua frente, cuidadosamente fazendo
mudanças a fim de compor o conto de uma cruz falante.
precisa de tempo. Em outras passagens, o autor do EvPd demonstra ignorância da cronologia judaica
(nota 6, acima) e aqui, o fato de pôr os anciãos e o povo judeus para vigiarem o túmulo no sábado é
bastante implausível.
’3 Há quem afirme que, como prova apologética, a história mateana é fraca, pois a guarda só foi colocada
no sábado e, assim, o corpo poderia ter sido roubado entre o sepultamento, no fim da tarde de sexta-feira,
e a colocação do lacre no sábado. Eles mencionam que esse “ buraco” na história foi tampado no EvPd,
onde o lugar de sepultamento é fechado com uma pedra e vigiado antes de o sábado começar. Nenhuma
dessas observações me convence. A história mateana é sucinta e popular; cabe a nós pressupor que as
autoridades judaicas tomaram a precaução elementar de examinar o sepulcro para verificar se o corpo
ainda estava ali antes de o lacrarem no sábado. Isso fazia parte de assegurá-lo como elas sabiam (Mt
27,65). Se as autoridades eram espertas o bastante para recordar e entender uma declaração de Jesus a
respeito da ressurreição feita havia muito tempo, dificilmente seriam tão ingênuas a ponto de vigiar um
túmulo vazio. Quanto ao EvPd com sua sequência de tempo muito confusa, duvido que uma apologética
melhor fizesse o autor mudar para a tarde de sexta-feira a história do lacre. Essa datação relaciona-se
com outro motivo para lacrar o túmulo, a saber, uma reação ao que o povo estava dizendo em resposta
à morte de Jesus que acabara de acontecer (EvPd 8,28-29). Como o EvPd descreve o corpo de Jesus
516
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
da história básica. Se fosse excluído o tema de pagar aos soldados para difundir
uma mentira (tema ausente da forma da história da guarda no EvPd), a colocação
de uma guarda no túmulo e o fracasso dessa precaução para impedir o túmulo de
ser aberto pela intervenção divina ainda teria sentido. O elemento polêmico repre
senta a última etapa ou a etapa final do uso da história da guarda desenvolvida no
período em que a polêmica judaica começara a descrever Jesus como “impostor”
(Mt 27,63: planos ) e quando, na área mateana, houve uma luta constante entre
missionários cristãos e mestres judaicos de crença farisaica (Mt 27,62: fariseus)
para persuadir o povo (Mt 27,64: “digam ao povo” ).*54 Deixando de lado a polêmica,
ainda encontramos um forte tom apologético: essa história prova que Jesus cumpriu
a palavra que havia dito: “ Depois de três dias vou ressuscitar (serei ressuscitado)” ;
não há dúvida, então, a respeito da verdade da Boa-Nova que seria proclamada pelos
discípulos a todas as nações até o fim dos tempos (Mt 28,19-20). Contudo, mais
uma vez a profecia de Jesus está ausente da forma da história da guarda no EvPd 55
e a apologética não explica todos os elementos. Consequentemente, muitos foram
levados a pensar que o elemento mais antigo e mais básico da história que funda
menta Mateus e o EvPd pode ser mensagem escatológica expressa em metáforas
apocalípticas. A mensagem é que Deus faz o Filho divino triunfar sobre os inimigos
mesmo quando eles consistem no aparentemente todo-poderoso governante e nas
autoridades religiosas supremas — a mesma mensagem encontrada na história da
tentativa de Herodes de matar o menino, conforme narra o início do Evangelho. As
coisas espantosas que acontecem (em Mateus, o terremoto e um anjo que desce e
remove a pedra; no EvPd, muito mais) são uma dramatização do grande poder de
Deus comparado a obstáculos humanos insignificantes.56 No início do Evangelho,
saindo do túmulo, o autor com certeza não precisava de um lacre anterior no lugar de sepultamento para
provar que o corpo ainda estava lá.
54 Gnilka (Matthüus, v. 2, p. 488) nega a origem missionária, mas não apresenta nenhuma argumentação.
" Na narrativa do EvPd, o desejo de salvaguardar o lugar de sepultamento “ por três dias” (EvPd 8,30)
precisa subentender apenas que, depois desse período, o impostor com certeza estaria morto.
56 Reconhecendo que esse era o significado original da história da guarda, Kratz (Auferweckung, p. 74)
vê em uma segunda etapa da narração um aumento definido de um tema apologético, que só estava ali
ligeiramente no início, e depois, em uma terceira etapa, o desenvolvimento do caráter de uma epifania
da história (visível especialmente na abertura do túmulo e na intervenção angelical). Quanto ao EvPd
como um todo, é preciso reconhecer que em material expandido de memórias evangélicas canônicas, há
menos coisas espantosas que em material proveniente de uma fonte independente. Consequentemente,
há ênfases heterogêneas na forma final da NP no EvPd (ver o artigo de D. F. Wright, “Apologetic and
Apocalyptic” , com um título que capta a diversidade.
517
Q uarto ato •Jesus é crucificado e m orre no Gélgota. É sepultado ali perto
Mateus incluiu uma história que descreve como o menino, que é Emanuel (“ Deus
conosco” ), encontraria perigosa oposição em sua tarefa predestinada de salvar
seu povo de seus pecados (Mt 1,21) e precisaria de intervenção divina. No fim do
Evangelho, ele descreve no túmulo a antecipação da luta escatológica e adverte aos
leitores que o Jesus ressuscitado que diz “ Estou convosco todos os dias, até o fim
dos tempos” (Mt 28,20) ainda enfrentará perigosa oposição que o poder de Deus,
agora manifestamente dado a ele (Mt 28,18), terá de superar.
Lee (“ Guard” , p. 171) sugere que um servo do sumo sacerdote, aquele a quem o Jesus ressuscitado deu
seu pano de linho do sepultamento segundo o Evangelho dos Hebreus 7 (HSNTA v.l, p. 165; ed. rev., v.
1, p. 178), mais tarde tomou-se cristão, e que só então a história se tomou conhecida. Além do dúbio
expediente de combinar informações tão diversas, esse argumento não leva em consideração que, embora
a mentira pudesse ter sido secreta, a designação da guarda era conhecida publicamente. Além disso,
518
§ 4 8 .0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
Tendo me recusado a tratar dessa questão nessas bases a priori, nem sempre
me impressiono com a força de argumentos a posteriori contra a historicidade. Por
exemplo, a mentira que os soldados são subornados para espalhar (“ Os discípulos
dele, tendo vindo à noite, o roubaram, enquanto estávamos dormindo” ) é às vezes
menosprezada como absurda. Alega-se que dormir em serviço era crime punido
com a morte no exército romano; por isso, os soldados saberíam que estavam con
tribuindo para a própria morte, apesar da promessa de que os chefes dos sacerdotes
persuadiriam o governador e, assim, eliminariam suas preocupações. Entretanto,
no nível narrativo, como indiquei, os chefes dos sacerdotes são corruptos; e a
intenção é que os leitores presumam que eles mentiríam para Pilatos e, com toda
a probabilidade, o subornariam para não punir os soldados. No nível de fatos
circunstanciais, não está claro que dormir em serviço fosse sempre punido com a
morte. Tácito (Histórias v,22) fala de sentinelas descuidadas que, ao dormirem em
serviço, quase permitiram ao inimigo pegar seu general; mas parece que usaram
o comportamento escandaloso do general (ele estava longe do dever, dormindo com
uma mulher) para se proteger da falta. Em outras palavras, era possível chegar a
um acordo; e não é implausível que Pilatos não fosse tão rigoroso quanto ao com
portamento das tropas temporariamente postas a serviço das autoridades judaicas,
se essas autoridades preferissem não pressionar por castigo.
talvez subentenda (erroneamente) que a guarda consistia em policiais do Templo judaico, entre os quais
estava o servo do sumo sacerdote.
58 Lee (“Guard” , p. 171) sugere que os guardas tinham fugido do túmulo antes da chegada das mulheres
ali, mas não é isso que Mateus relata.
519
Q uarto ato ■Jesus é crucificado e m orre no Gólgota. t sepultado ali perto
Evidentemente, isso não significa que a história não tenha valor.60 Sugeri
que as funções polêmica e apologética eram, ao que tudo indica, secundárias e que
o objetivo fundamental era uma dramatização escatológica apocalíptica do poder
de Deus para tornar a causa do Filho bem-sucedida contra toda oposição humana,
mesmo que poderosa. João tem uma dramatização parcialmente parecida em Jo
’9 0 mesmo pode ser dito da ressurreição dos santos e seu aparecimento a muitos em Jerusalém (Mt
27,52-53). É notável que Blinzler (Prozess, p. 415), que tende a ser extremamente conservador quanto à
historicidade, reconheça a dificuldade para proclamá-la em relação à história da guarda. Quero lembrar
que, se algum material popular que Mateus usa para suplementar a NP e lhe dar mais vida deve ser
considerado não histórico, não temos meios de saber se o evangelista estava cônscio disso. Ele incluiu
um conjunto de material, mas estava ele em posição de avaliar o valor histórico de cada episódio?
60 W. L. Craig escreveu de forma muito perceptiva a respeito da ressurreição de Jesus e reduziu algumas
das pressuposições que fundamentam argumentos descuidadamente repetidos contra sua realidade. Em
sua tentativa (sem sucesso, a meu ver) de defender a historicidade da narrativa da guarda, é desapontador
que ele pareça ver a lenda sem valor como alternativa a um relato histórico (“Guard” , p. 274). A Bíblia
é uma coletânea de literaturas de muitos gêneros diferentes e nós a desvalorizamos quando enfatizamos
a história de modo a degradar outros tipos de literatura bíblica. Jonas é um livro veterotestamentário de
valor extraordinário, mesmo se nenhum homem com esse nome jamais foi engolido por um grande peixe
ou pôs o pé em Nínive. Gnilka (Matthaus, v. 2, p. 488-489), para quem Mateus pôs essa história (que
ele tinha encontrado) na narrativa da Páscoa a fim de refutar os ataques dos fariseus à ressurreição, acha
esse um meio duvidoso para defender o Evangelho. Mas era a defesa seu propósito principal?
520
§ 48.0 sepultamento de Jesus, terceira parte: No sábado, a guarda no sepulcro
18,6, onde, no jardim do outro lado do Cedron, uma coorte de soldados romanos
sob um tribuno e guardas judeus caem por terra diante de Jesus quando ele diz:
“ Eu sou”. A verdade transmitida por drama é às vezes incutida mais eficazmente
na mente das pessoas que a verdade transmitida pela história.
521
A pêndices
1 Este é o sítio onde, em dezembro de 1945, pastores egípcios encontraram dentro de um jarro uma cole
ção de treze códices (livros) coptas que tinham sido enterrados por volta de 400 d.C. — esses códices
continham cinquenta e dois tratados distintos, provavelmente de um dos mosteiros do século IV asso
ciados a São Pacômio (292-348) que ficava dentro do raio de oito quilômetros do local da descoberta
(Chenoboskion, onde Pacômio começou sua vida de eremita, e Pabau, que era o mosteiro central). Esses
tratados constituem a Biblioteca de Nag Hammadi.
2 Além do Evangelho de Pedro, que vem primeiro, os outros três, em ordem, são o Apocalipse de Pedro, 1
Henoc 1,1-32,6 e, em uma (34a) página grudada na capa de trás, os Atos (Martírio) de São Juliano. Ver
a distribuição das páginas em Crossan, Cross, p. 4-5. A publicação original foi em U. Bouriant, org.,
Mémoires publiés par les membres de la Mission archéologique française au Caire, vol. 9, Paris, Leroux.
0 fascículo 1 (1892, p. 91-147) descreve os fragmentos, com as páginas 137-142 apresentando uma
transcrição grega e uma tradução francesa do Evangelho de Pedro; o fascículo 3 (1893, p. 217-235) for
nece um estudo e transcrições com anotações críticas do Evangelho de Pedro, por A. Lods, e as Gravuras
II-VI reproduzem um fac-símile do grego.
3 As páginas têm 17-19 linhas cada uma (14 na 10a página, com 3 linhas deixadas em branco no final). J.
Armitage Robinson dividiu o texto em 14 capítulos; Hamack, em 60 versículos. Agora, é comum usar
os dois sistemas de referência simultaneamente, por exemplo, o v. 14, que termina o capítulo 4 (= EvPd
4,14), é seguido pelo v. 15, que inicia o capítulo 5 (= EvPd 5,15).
525
A pêndices
(14,60; cf. 7,26), os biblistas imaginaram que fazia parte do Evangelho de Pedro
mencionado por diversos autores da Igreja primitiva, um apócrifo que se sabia ter
estado em circulação na área de Antioquia antes de 200 d.C.4 Na década de 1970,
verificou-se que dois pequenos fragmentos do papiro de Oxirinco 2949 (com 16
palavras discerníveis de cerca de 20 linhas parciais) concordavam parcialmente
com EvPd 2,3-5 da cópia de Akhmím,5 provando que esta última transcrevera uma
obra que era conhecida no Egito do século II e ajudando a confirmar a identificação.
Por conseguinte, do começo ao fim deste comentário, uso a designação EvPd para
me referir ao texto de Akhmím com a pressuposição de que esse texto realmente
reproduz uma parte desse antigo Evangelho de Pedro.
O c o n t e ú d o d e s t e APÊNDICE é o s e g u i n t e :
Bibliografia6
4 Até onde sabemos, este foi o único Evangelho atribuído a Pedro na Antiguidade. Entretanto, não há nenhuma
citação preservada de quaisquer palavras dele, que possamos comparar com o texto de Akhmím. Há quem
duvide que o Evangelho petrino mencionado por Orígenes, com referência a material da narrativa da infância
(adiante, sob C), seja a mesma obra da qual encontramos a Narrativa da Paixão no Evangelho de Pedro.
Resposta afirmativa é sugerida por fragmentos latinos preservados do Comentário sobre Mateus, de Orígenes,
que mostra semelhanças com o modo de pensar do Evangelho de Pedro a respeito da Paixão, por exemplo,
125 diz que Jesus não sofreu nada (GCS 38,262, linha 26; cf. Evangelho de Pedro 4,10); em 140, Jesus é
“recebido” depois da morte (receptus; GCS 38,290, linha 22; cf. Evangelho de Pedro 5,19: anelephthe).
5 Ver Coles e Lührmann na B i b l io g r a f ia da Seção.
6 As obras da B ib l io g r a f ia da S eção que acho mais úteis são as de Swete, Vaganay, Beyschlag e Mara.
526
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
Esta tradução baseia-se no texto grego fornecido por Maria Mara, com uma única mudança significati
va, isto é, preferindo par[ale]mphthenai, não par[ape]mphthenai em Evangelho de Pedro 1,2. Neirynck
imprime esse texto grego no fim de “ Apocryphal” , p. 171-175.
527
A pêndices
528
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
529
A pêndices
530
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
531
A pêndices
B. Sequência e conteúdo do Ev P d
532
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
Códice de Akhmím nos dá uma cópia feita cerca de seiscentos anos depois que o
EvPd original foi escrito; e podemos ter certeza de que os copistas fizeram mudanças
nesse longo tempo de transcrição8 — ao que tudo indica, ainda mais livremente
porque, além de ser considerada bastante heterodoxa, esta obra circulava privada
mente e não era lida em público, ao contrário dos Evangelhos canônicos, onde se
exercia maior supervisão e mudanças teriam sido notadas. Quando o vocabulário,
ou mesmo a sequência do EvPd, está de acordo com os Evangelhos canônicos, há
sempre o perigo de algum copista ter substituído o que estava originalmente ali
pela redação ou padronização canônica mais conhecida.
1. Quadro sequencial
8 Mencionei acima que a forma deste Evangelho no papiro de Oxirinco 2949, do século II, que só contém
dezesseis palavras, tem diferenças discemíveis da passagem do EvPd comparável.
9 Para Crossan, há dois tipos de adições: 1) inserções, ou cenas formadas de material dos Evangelhos
canônicos e introduzidas no Evangelho da Cruz, embora praticamente contradigam o que já estava
ali; 2) passagens de redação criadas para preparar e facilitar as inserções e, assim, remover as visíveis
contradições. Como ele tem análises diferentes em (a) Four, p. 134, e mais tarde, em (b) Cross, p. 21,
apresento os dois aqui, em colunas paralelas:
a) REDAÇÃO para INSERÇÃO b) REDAÇÃO para INSERÇÃO
No Quadro 10, adiante, consegui indicar, cercando com linhas pontilhadas, todas essas adições, exceto
EvPd 11,43-44 (e EvPd 9,37 de [a], que, pelo jeito, Crossan já não considera adição). Notemos que,
na teoria de Crossan, a colocação da preparação redacional não tem nada a ver com onde a inserção
aparecerá (na verdade, a segunda e terceira colunas horizontais pressupõem um ponto de vista muito
peculiar, quando se analisa a sequência dos versículos). Além disso, a classificação das inserções como
canônicas é atribuição um tanto indefinida. EvPd 14,60 tem semelhança com Jo 21,1-2 e com um nome
em Mc 2,14, mas será que devemos pensar que o autor final do EvPd realmente reuniu esse material
desconexo de um ms. de Marcos e um ms. de João para criar EvPd 14,60? (Koester, KACG, p. 220, apesar
de uma preferência geral pela abordagem de Crossan, faz objeção a seu tratamento de EvPd 14,60.) A
533
A pêndices
que os evangelistas canônicos escrevessem e era conhecido por eles. Não há coluna
para Marcos porque a sequência marcana básica é a mesma que a de Mateus e o
EvPd não tem nenhuma cena exclusiva de Marcos.
Quando se olha a sequência geral dos vinte e três itens que relacionei no
Quadro 10, é preciso muita imaginação para conceber o autor do EvPd estudando
Mateus com atenção, mudando o lugar de episódios e acrescentando cópias de
episódios de Lucas e João para produzir a sequência atual. Nas NPs dos Evange
lhos canônicos, o exemplo é de Mateus trabalhando conservadoramente e Lucas
trabalhando mais livremente com o esboço marcano, e de cada um acrescentando
material; mas nenhum dos dois criou um produto final tão radicalmente diferente de
Marcos quanto o EvPd é diferente de Mateus. Alguns biblistas pensam que o autor
do Longo Final de Marcos conhecia Mateus e Lucas; seja como for, ele produziu
uma sequência de aparições da ressurreição que está perceptivelmente mais próxi
ma da sequência em Lucas do que a sequência do EvPd está de qualquer um dos
quatro Evangelhos. A hipótese contrária de que os quatro evangelistas canônicos
recorreram completamente ou em parte ao EvPd é ainda mais inacreditável, em
respeito à sequência. Devemos acreditar que quatro autores diferentes usaram o
EvPd como fonte principal e nenhum preservou a sequência do EvPd por mais de
atribuição por Crossan de EvPd 2,3 à etapa mais tardia da composição do EvPd não recebe ajuda do
fato de esta passagem aparecer na cópia mais antiga conhecida, o papiro de Oxirinco 2949.
534
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
dois ou três dos vinte e três episódios que relacionei no quadro?10 A dificuldade
de hipóteses de cuidadosa dependência literária em qualquer direção vai se tornar
mais evidente no que se segue.
EvPd M a te u s L ucas Jo ã o
I. 1 ,1 - 2 ,5 : Ju lgam e n to 2 7 ,1 1 - 2 6 : 2 3 ,2 - 2 5 : 1 8 ,2 8 - 1 9 ,16a:
dian te de H ero d e s S ó P ilato s P ilato s e só P ilato s
(c o m P ilato s p resen te) H erodes
1 .1 : H e r o d e s re c u s o u - s e a 2 7 ,2 4 (P ila to s)
la v a r a s m ã o s
1.2: H e r o d e s o rd e n o u a u e
o S e n h o r f o s s e le v a d o
2 ,3 - 5 b : S o lic ita ç ã o do 2 7 ,5 7 - 5 8 : 2 3 ,5 0 - 5 2 : 1 9 ,3 8 a :
co rp o do Sen h o r: J o s é —» P ila to s Jo s é —» P ila to s J o s é —> P ila to s
J o s é —» P ila to s —> H e r o d e s
2 ,5 c : H e r o d e s en tre g o u o 2 7 ,2 6 : P ila to s 2 3 ,2 5 P ila to s à 1 9 ,1 6 a : P ila to s
S e n h o r ao ao povo a o s so ld a d o s v o n tad e d e le s a e le s
d e le s
I I . 3 , 6 - 9 : C a m in h o 2 7 ,2 7 - 3 2 2 3 ,2 6 - 3 2 1 9 ,2 - 3 .16b-
d a c r u z ; e s c á r n io ; -17a
fla g e la ç ã o
3 ,6 : E l e s (o s ju d e u s ) em - 2 7 ,3 1 b : S o ld a 2 3 ,2 6 : E le s le 1 9 ,1 6 b :
D urraram e a r ra sta r a m o d o s ro m an o s v aram co n sig o E le s to m aram
F ilh o d e D eu s le v aram
3 ,7 - 9 : V este d e p ú rp u ra , 2 7 ,2 7 - 3 1 a : (ver 2 3 ,3 5 - 3 7 , 1 9 ,2 -3 : c o ro a
se n ta d o no trib u n a l, R e i to d o s o s ite n s, n a cru z) d e e sp in h o s,
d e I s r a e l e sc a r n e c id o , ex ce to b o fetad a; m an to p ú rp u ra ,
c ru z e s p in h o s a , c u sp id o , R e i d o s Ju d e u s R ei dos de
e sb o fe te a d o , e s p e ta d o com (v er 2 7 ,1 9 Ju d e u s ,
c a n iç o , F ilh o d e D e u s [trib u n al]; b o fe ta d a s
e s c a r n e c id o tam b ém 2 7 ,3 9 -
4 3 n a cruz)
10 Não vejo maior indício na tese de Crossan, segundo a qual os evangelistas canônicos recorreram somente
a parte do EvPd. Todos os itens de EvPd 2,5c até EvPd 6,22 estariam na parte que, na opinião dele,
eles usaram, e a diversidade de sequência entre o EvPd e os Evangelhos canônicos é bastante nítida em
grande parte dessa área.
535
A pêndices
III. 4 ,1 0 - 6 ,2 2 : 2 7 ,3 3 - 5 6 2 3 ,3 3 - 4 9 1 9 ,1 7 b - 3 7
C ru cificação
4 ,1 0 : C ru c ific a d o en tre 2 7 ,3 8 : en tre 2 3 ,3 3 : en tre 1 9 ,1 8 : en tre
m a lfe ito re s: s ile n c io so , b a n d id o s m a lfe ito re s ou tros
n e n h u m a d or
4 ,1 1 : T ítu lo n a cru z : R e i 2 7 ,3 7 : J e s u s , 2 3 ,3 8 : R e i d o s 1 9 ,1 9 : J e s u s ,
d e Israel R e i d o s Ju d e u s Ju d e u s o N azareu , R e i
d o s Ju d e u s
4 ,1 2 : V e ste s d iv id id a s 2 7 ,3 5 2 3 ,3 4 b 1 9 ,2 3 - 2 4
4 ,1 3 : M a lfe ito r p e n ite n te 23,40-43
4,14: N e n h u m a q u e b r a d e 1 9 ,3 1 - 3 3
p ern as
5 ,1 5 : E s c u r id ã o ao m eio- 2 7 ,4 5 a (sexta- 23,44-45a
-d ia : a n s ie d a d e d e a u e o nona horas) (sexta- nona
so l s e t iv e s s e Dosto horas )
5 ,1 6 - 1 8 : B e b id a : fel 2 7 ,3 4 .4 8 : 2 3 ,3 6 : 1 9 ,2 8 - 3 0 : vin ho
co m v in h o a v in a g r a d o ; D u a s b e b id a s : B e b id a : vin ho a v in a g r a d o ; ele
e le s c u m p riram to d a s a s vin ho (d oce) av in a g ra d o consumou todas
c o is a s ; n e c a d o em s u a com fe l e vinho as coisas
c a b e c a ; p e n s a r a m a u e e ra av in a g r a d o
n oite
5 ,1 9 : 0 S e n h o r gritou : 2 7 ,4 6 : “ M eu
“ M eu p o d e r” ; e le foi D eu s”
le v a d o p a r a o alto
5 ,2 0 : V é u do sa n tu á rio 2 7 ,5 1 a 2 3 ,4 5 b
r a sg a d o
6 .2 1 : A r ra n c a ra m o s 2 7 ,5 1 b .5 4
c ra v o s: c o lo c a ra m -n o
no c h ã o : te rra s a c u d id a :
m ed o
6.22: 0 so l b rilh o u : n on a 2 7 ,4 6 (n on a 2 3 ,4 4 (n on a
h ora hora) hora)
IV. 6 ,2 3 - 1 1 ,4 9 : 2 7 ,5 7 - 6 6 2 3 ,5 0 - 5 6 1 9 ,3 8 - 4 2
Sepultam en to
6 .2 3 - 2 4 : O s iu d e u s d e ra m 2 7 ,5 8 b - 6 0 2 3 ,5 3 - 5 4 1 9 ,3 8 b - 4 2
o corn o a J o s é ; e le o la v o u ; (n en hu m (n en h u m “ s e u (n en h u m p an o
p a n o d e lin h o ; “ s e u p ró ja r d im ); se u p ró p rio ” ; d e lin h o ;
p rio ” se p u lc ro ; ja r d im tú m u lo n en h u m ja r d im ) n en h u m “ se u
p ró p rio ” )
7 ,2 5 : T r iste z a d o s ju d e u s ; 23,48: multidões
b ate m em si m e sm o s batem no peito
536
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
7.26-27: P e d ro e c o m m -
n h eiro s; triste z a , ieiu m
8 ,2 8 - 1 1 ,4 8 : G uardas no 2 7 ,6 2 - 6 6 ; 2 8 ,2 -
túmulo; abertura angelical; 4 .1 1 - 1 5
sa ír a m com o S e n h o r ei-
e a n te sc o e a c ru z fa la n te ;
g u a r d a s s ile n c ia r a m
V. As m u lh eres n o túm ulo
vazio; A p ariçõe s
d o Sen h o r
1 2 ,5 0 -1 3 - 5 7 : A s mulheres 2 8 ,1 .5 - 1 0 2 4 ,1 - 1 1 .2 2 - 2 3 2 0 ,1 - 2 .1 1 - 1 8
no túmulo vazio
1 4 .5 8 - 6 0 : D e p o is d a fe sta , 2 1 ,1 - 2 3 : P ed ro
o s 12 vã o u a r a c a s a : P e d ro e o u tro s no m a r
e ou tro s no m a r veem o Senhor
Vou agora apresentar algumas listas para realizar esse propósito.11 Alguns
avisos gerais: na maior parte do tempo, refiro-me a “Jesus”, mas os leitores devem
se lembrar que o EvPd nunca usa o nome pessoal; sua alternativa mais frequente
é “o Senhor” . Exceto onde são apresentadas palavras gregas específicas, o que está
sendo comparado são informações ou episódios, não a redação. Mesmo quando
descreve um incidente também encontrado em um Evangelho canônico, o EvPd
usa vocabulário com diferenças extraordinárias. É muito raro concordar com algum
dos Evangelhos em mais de duas ou três palavras consecutivas.
11 Swete (Euaggelion, p. xvi-xx) apresenta listas que conferi com as minhas; obviamente, há opiniões
divergentes quanto ao que tem importância suficiente para ser incluído.
12 Vou começar com o julgamento romano canônico de Jesus e seu paralelo no julgamento herodiano no
EvPd, mas com o lembrete de que não temos a totalidade deste último. Vou dar relativamente pouca
atenção para comparar aparições pós-ressurreição no fim da lista, pois o EvPd é interrompido ali e não
sabemos o que teria sido relatado.
537
A pêndices
13 Das sete “ Palavras” de Jesus na cruz, o EvPd não tem nada que se pareça com as três em Lucas ou as
três (diferentes) em João; sua única “palavra” é só em parte semelhante à única “palavra” em Marcos/
Mateus.
538
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
Embora essas informações não sejam tão numerosas quanto as de a), várias
delas (Barrabás, escarnecedores na cruz, algumas das narrativas de aparição) são
componentes importantes nos relatos canônicos da Paixão e da ressurreição.
14 Essas confissões da identidade de Jesus acontecem mais tarde e em outras circunstâncias no EvPd (EvPd
8,28; 11,45).
13 EvPd 7,27 tem os verbos combinados penthein e klaiein (“lamentar e chorar”) para descrever a reação
de Pedro e seus companheiros à morte do Senhor. No material que examinamos aqui, só no Longo Final
de Marcos (Mc 16,10) aparece essa combinação e, novamente, é para descrever a reação dos que tinham
estado com Jesus.
539
A pêndices
pedra era grande”, embora a ordem das palavras seja diferente e só Marcos tenha
o advérbio sphodra (“ muito” ). As duas obras descrevem o ser (celestial) dentro do
sepulcro/túmulo como neaniskos (“jovem” ). As duas obras combinam os verbos
phobeisthai e pheugein para descrever a fu g a atemorizada das mulheres do túmu
lo (EvPd 13,57; Mc 16,8), mas outra vez em ordem diferente. Só em EvPd 14,60
e Mc 2,14 ouvimos falar em Levi de Alfeu. Essas poucas semelhanças (diversas
das quais também contêm diferenças) são insuficientes para mostrar que o EvPd
foi uma fonte escrita primordial para o evangelista marcano (tese de Crossan) ou,
por outro lado, que o autor do EvPd tinha Marcos diante de si enquanto escrevia.
Preciso acrescentar mais a respeito deste último ponto, por causa da obra
de Neirynck, que tem forte pendor para relacionar a Marcos quase todo o material
canônico pertinente às mulheres no túmulo — tese da qual discordo. Em “Apo-
cryphal”, p. 144-148, ele examina em detalhe a relação da história das mulheres
no túmulo, em EvPd 12,50-13,57, com Mc 16,l-8.16 Há três grandes dificuldades
para pressupor dependência de Marcos: 1) Até Neirynck (“Apocryphal”, p. 144) tem
de declarar que essa é a seção mais “marcana” do EvPd, concessão que não alerta
suficientemente os leitores para o pouco distintivamente marcano encontrado no
restante do EvPd. Como Gardner-Smith observou com mordacidade (ver “ Gospel”,
p. 264-270), se o autor do EvPd lera Marcos, ele com certeza esquecera os detalhes.
A menos que os indícios da dependência de Marcos na história do túmulo sejam
realmente convincentes,17 creio ser lógico evitar inconsistência e rejeitar Marcos
como fonte do EvPd; 2) Ao julgar a concordância entre o EvPd e Marcos na história
do túmulo, notamos muitas diferenças na sequência interna e na ordem das pala
vras. E ssas diferenças não devem ser menosprezadas no estudo da comparação que
16 Não há dúvida de que, ao formar EvPd 12,50-13,57, o autor do EvPd foi influenciado por material evan
gélico canônico (até Crossan admite isso); há, nesta história, ecos de Lucas e de João, e de passagens
onde Marcos e Mateus concordam, combinadas com muitos aspectos que são característicos do EvPd (que
Madalena era discípula, que os judeus ardentes de cólera tinham anteriormente impedido as mulheres
de fazer o que elas estavam acostumadas a fazer, que elas queriam chorar e bater em si mesmas, que o
jovem dentro do túmulo era belo). Mas há indícios de que o autor do EvPd usou Marcos?
1' O que relacionei no parágrafo anterior acima é realmente tudo que há de paralelo nessa história. Neirynck
aumenta a base da dependência por pura hipótese. “ Ele ressuscitou e foi embora para o lugar de onde
foi enviado” , em EvPd 13,56 é substituição de “Ide dizer a seus discípulos e a Pedro que ele vai à vossa
frente para a Galileia; lá o vereis, como ele vos disse” (Mc 16,7). Mc 16,7 está em Mt 28,7. A ausência
desta diretriz para ir à Galileia em uma sequência do EvPd onde, de fato, os discípulos vão para o mar
pescar (EvPd 14,60) é para mim forte indicação que o autor não tinha diante de si nem mesmo o Mateus
escrito.
540
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
Neirynck faz entre as duas: ele teve de fazer mudanças na sequência marcana de
versículos, a fim de chamar a atenção para os paralelos; 3) Quando se deixam de
lado diferenças de ordem e sequência, e se compara apenas o vocabulário, vê-se que
há cerca de 200 palavras gregas na passagem do EvPd concernentes às mulheres no
túmulo, e cerca de 140 na passagem marcana. Quando se é generoso e se ignoram
diferenças de finais de caso e tempos de verbo, minha conta é que EvPd e o texto
de Marcos por Nestle compartilham cerca de 30 palavras. Deixando de lado outros
pontos da história onde Mateus ou Lucas está mais próximo que Marcos do EvPd
em vocabulário, dessas 30 palavras, Mateus tem cerca de 14 e Lucas, cerca de 17;
e como esses números nem sempre se sobrepõem, a estatística significa que o autor
do EvPd poderia ter obtido de Mateus ou de Lucas dois terços do vocabulário que
partilha com Marcos. Quanto às relativamente poucas palavras que o EvPd partilha
somente com Marcos (entre os Evangelhos canônicos), precisamos não nos esque
cer da possibilidade de origem não canônica. Por exemplo, o neaniskos da história
do túmulo encontra-se só no EvPd e em Marcos; mas o ESM também descreve
um neaniskos em um túmulo e, assim, a imagem do jovem circulou realmente na
tradição apócrifa. A meu ver, então, as semelhanças da história do túmulo deixam
uma base muito insuficiente para se pressupor a dependência do EvPd de Marcos.
• Fel como parte da bebida de vinho dada a Jesus (EvPd 5,16; Mt 27,34)
541
A pêndices
18 Denker (Theologiegeschichtliche, p. 93-95) afirma que a ressurreição mateana dos adormecidos difere da
proclamação aos adormecidos no EvPd, porque este último não muda a sina dos mortos. Como se sabe
isso? Hamack (Bruchstücke, p. 69) observa corretamente que a proclamação não era de julgamento: são
os adormecidos que, por essa designação, podem ser despertados. Odes de Salomão 42,3-20 descreve
a abertura das portas do Xeol pelo Filho de Deus, e a saída salvífica dos que estavam nas trevas (ver
Crossan, Cross, p. 365-368).
19 Aqui, sigo a probabilidade superficial de que Herodes, o rei da NP em EvPd 1,1-2,5c, seja o Herodes
que atua somente em referências lucanas à Paixão (Lc 23,6-12.15; At 4,25-28), Herodes Antipas, o
tetrarca da Galileia. Admito, entretanto, que ele pode ser Herodes, o Grande, da história mateana dos
magos, que tentou matar o menino Jesus, pois desconfio que o autor do EvPd e/ou sua audiência não
distinguiam entre os perversos Herodes da memória cristã. Ver Brown, “Gospel of Peter” , p. 337.
542
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
A lista não é tão longa quanto a lista mateana e, nessas poucas informações
compartilhadas, há diferenças importantes no EvPd: o papel de Herodes no jul
gamento é maior que o de Pilatos; Herodes já tem relações amistosas com Pilatos;
da cruz, o malfeitor favorável fala aos judeus, não a seu companheiro. Além disso,
há informações notáveis, características de Lucas, que estão ausentes do EvPd:
a fala de Jesus às filhas de Jerusalém; as três “palavras” (ditos) lucanas de Jesus
na cruz; eclipse; o preparo de especiarias e mirra pelas mulheres; o descanso no
sábado; a pergunta retórica pelos homens angelicais no túmulo e os lembretes do
que Jesus disse na Galileia; todas as aparições pós-ressurreição do Jesus lucano.
Quando essas diferenças são acrescentadas ao fato do EvPd não seguir os padrões
excepcionais da sequência lucana, fica claro que, em conteúdo e sequência, a re
lação do EvPd com Lucas está mais distante que a relação do EvPd com Mateus.
543
A pêndices
• Sepulcro/túmulo no jardim
20 O início da história interrompida soa promissor, mas observemos que os outros discípulos citados em
EvPd 14,60 (André, Levi de Alfeu) são diferentes dos outros em Jo 21,2 (Tomé, Natanael, os filhos de
Zebedeu e outros dois discípulos).
544
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
• No último dia dos Pães sem fermento, eles voltaram para casa
Tendo apresentado essa série de listas que mostram várias maneiras de re
fletir sobre a relação do EvPd com os Evangelhos canônicos, passo agora a avaliar
os indícios para ver que sugestão faz mais justiça a eles.
Já faz mais de um século que o EvPd está acessível e, durante esse tempo,
os biblistas se dividiram quanto ao fato de o autor ter recorrido aos Evangelhos
canônicos (algum deles ou todos),21 ou ter escrito com base em uma tradição indepen
21 Esse é o ponto de vista da maioria, por exemplo, Beyschlag, Burkitt, Doo, Finegan, Harris, M. R. James,
Lührmann, Mara, Maurer, Meier, Moffatt, J. Armitage Robinson, Swete, Turner, Vaganay, Wright, Zahn.
Embora alguns (por exemplo, Mara) pensassem que o autor ouviu os Evangelhos canônicos, muitos
presumiram que ele trabalhou com cópias escritas. Se somente alguns Evangelhos eram especificados
como fontes, na maioria das vezes eles eram Mateus e Marcos.
545
A pêndices
22 Assim, em maior ou menor grau (alguns admitem o conhecimento de Marcos), Cameron, Crossan, Denker,
A. J. Dewey, Gardner-Smith, Hamack, Hilgenfeld, Koester, Moulton, Võlter, von Soden e Walter. Pro
postas variadas têm sido feitas a respeito da tradição independente fundamental: por exemplo, histórias
distintas formadas por reminiscências veterotestamentárias, ou mesmo uma NP pré-evangélica contínua,
à qual os evangelistas canônicos também recorreram. A independência tem sido defendida com diversas
sugestões a respeito de quando o EvPd foi escrito, por exemplo, antes de alguns ou todos os Evangelhos
canônicos, ou na mesma época.
23 O Evangelho da Cruz consistia nas três unidades de EvPd 1,1-2 + 2,5c-6,22; 7,25 + 8,28-9,34;
9,35-10,42 + 11,45-49 (Crossan, Cross, p. 16). Quanto à dependência do Evangelho da Cruz pelos
Evangelhos canônicos, ele esquematiza essa teoria (p. 18): a principal fonte marcana era o Evangelho
da Cruz; Mateus usou o Evangelho da Cruz e Marcos, e o mesmo fez Lucas; João usou o Evangelho da
Cruz, Mateus, Marcos e Lucas. A. J. Dewey (“Time” ), que rejeita a teoria de Crossan, propõe três etapas
diferentes na composição do EvPd, com a última concluída depois da queda de Jerusalém em 70, mas
não explica a relação dos Evangelhos canônicos com essa NP primitiva.
24 Ver também as reações negativas de Neirynck (“Apocryphal” ), Green (“ Gospel” ) e D. F. Wright (“ Four”).
Este último (p. 60) formula a objeção interessante de que, aparentemente, o Evangelho da Cruz e as
inserções compartilham o mesmo vocabulário e o mesmo estilo.
25 Ver a variante secundária de “os” em Mateus versus “ seus” , do EvPd, em § 48, nota 16.
26 Menos de um terço delas faz parte de material que Crossan exclui da forma original do EvPd e, assim,
dois terços delas teriam sido conhecidas pelos evangelistas canônicos quando eles usaram o EvPd.
546
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
27 Crossan (Cross, p. 19) julga ter encontrado uma exceção onde dois Evangelhos concordam com o EvPd
em oposição a Marcos: Lc 24,4 e Jo 20,12 têm dois indivíduos no túmulo vazio em concordância com
EvPd 9,36, versus um em Mc 16,5. Mas ele pressupõe que João conhecia Lucas; portanto, como sabe
que João não copiou esse detalhe de Lucas, e não do EvPd? (Parece que, na página 361, ele reconhece
essa possibilidade.) Como os dois homens lucanos e os dois anjos joaninos não estão no mesmo cenário
ou posição em que estão os dois homens do EvPd, considero essa única exceção inteiramente duvidosa.
547
A pêndices
Uma última objeção à tese de que o autor do EvPd compôs usando os Evan
gelhos canônicos escritos é que temos o exemplo de um biblista do século II que
trabalhou com cópias dos quatro Evangelhos e as combinou para fazer uma NP
consecutiva, a saber, o Diatessarão de Taciano. O produto final é claramente reco
nhecível, em vocabulário e sequência, como harmonização, e não mostra nenhuma
das variações aberrantes visíveis no EvPd.28
28 Já Swete (Euaggelion, p. xxii-xxv), que colocou o EvPd depois dos Evangelhos canônicos, reconheceu
o problema de diferença de Taciano; e, pelo menos para ele, isso significava que não era possível expli
car o EvPd em termos de o autor ter usado o Diatessarão. Ele formula a possibilidade de dependência
de uma harmonia pré-Taciano da história da Paixão de um tipo mais indefinido. Em vez de pressupor
esse intermediário, cuja existência não podemos provar, é mais econômico afirmar que, ao contrário da
harmonização literal que Taciano fez dos Evangelhos escritos, o EvPd é ele mesmo uma harmonização
livre de memórias e tradições evangélicas canônicas.
29 Não alego mais que isso. Pessoalmente, não sei reconstruir a história exata da composição de um longo
volume de comentário que eu mesmo escrevi há vinte e cinco anos. 0 que eu sabia antes de começar e
onde o obtive? Enquanto escrevia, quantas novas idéias consegui lendo outros autores (diferentes de suas
visões confirmadoras e estimulantes que eu já tinha)? Quantas vezes me beneficiei de dissertações que
li? Reconheço quando cito outros diretamente, mas não sei determinar sua influência indireta em frases
que usei e na forma como organizei o material. Como posso ter esperança de descobrir a composição
exata de uma seção do Evangelho de Pedro copiada cerca de 600 anos depois que o original foi escrito,
em especial quando esse original, composto há cerca de 1.850 anos, está agora perdido?
548
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
com Mateus, por tê-lo lido atentamente no passado e/ou ouvido sua leitura diversas
vezes no culto comunitário do dia do Senhor - por isso esse Evangelho deu a forma
dominante a seu pensamento. Com toda a probabilidade, ele ouvira pessoas que
estavam familiarizadas com os Evangelhos de Lucas e João — talvez pregadores
itinerantes que reformulavam histórias notáveis — e, assim, conhecia parte de seu
conteúdo, mas não tinha ideia de sua estrutura. A origem falada do EvPd repercute
no fato de cerca de um terço de seus versículos estarem em discurso direto. Sob c),
relatei que não vejo nenhuma razão estimulante para pensar que o autor do EvPd
foi diretamente influenciado por Marcos. (Precisamos nos lembrar de que, antes de
150 d.C., muito poucas igrejas tinham cópias de vários Evangelhos canônicos para
ler em público e uma cópia escrita de qualquer Evangelho era acessível a muito
poucos indivíduos. Na verdade, nesse período, a categoria de “mais conhecido” ou
“mais famoso” seria mais apropriada que “canônico”. Misturados na mente do autor
do EvPd estavam também contos populares a respeito de incidentes na Paixão, o
mesmo tipo de material popular que Mateus tinha utilizado ao escrever seu Evan
gelho em um período mais primitivo. Tudo isso entrou em sua composição do EvPd,
Evangelho que não se destinava a ser lido na liturgia, mas a ajudar as pessoas a
visualizar imaginosamente a missão de Jesus.30 0 Diatessarão de Taciano mostra
que, no século II, havia tendência a se criar uma história consecutiva (embora em
nível literário e erudito) e o Protoevangelho de Tiago traz imaginosa remodelação
da narrativa da infância a partir de imitações de Mateus e Lucas combinadas com
criações populares também imaginosas.31 Portanto, a obra que proponho não seria
uma excentricidade nos tempos primitivos do Cristianismo.
Entretanto, fora dos tempos primitivos, afirmo que ela não é uma excentri
cidade em nenhum tempo; e quero apresentar uma comparação contemporânea,
i0 Adiante, sob C l, vou narrar a história do bispo Serapião e o problema causado em Rossos, quando
algumas pessoas começaram a ler em público o Evangelho segundo Pedro.
31 Em termos de classificação literária, considero o Protoevangelho como primo do EvPd, da mesma es
pécie que os Evangelhos apócrifos. Os instintos composicionais são bastante parecidos, mas o autor do
Protoevangelho de Tiago tinha acesso a cópias escritas de Lucas e Mateus. Por um lado, ele tem uma
expansão mais elaborada dos Evangelhos canônicos que o EvPd; por outro lado, quando os cita, ele o faz
com maior preservação do vocabulário correto. Dramaticamente, as duas obras descrevem acontecimentos
eseatológicos que os Evangelhos canônicos contentaram-se em deixar envoltos em silêncio: o verdadeiro
nascimento de Jesus em Protoevangelho de Tiago 19 e a verdadeira ressurreição em EvPd 10,39-41.
Teologicamente, essas descrições brilhantes deixaram as duas obras abertas a interpretações heréticas:
respectivamente encratismo e docetismo.
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A pêndices
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Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
32 Esse ponto de vista encontra-se claramente no Protoevangelho de Tiago, que Orígenes citou ao lado
do EvPd como fonte. E evidente que esses apócrifos do século II compartilharam material. Hamack
(.Bruchstücke, p. 90) atribui ao EvPd histórias e ditos não canônicos do ministério de Jesus encontrados
em escritos cristãos que parece terem tido conhecimento da NP do EvPd (Justino, Didascalia etc.; ver
D, adiante). Esse critério é muito incerto.
33 HE v,22 data-o do décimo ano do reinado de Cômodo (180-192).
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A pêndices
escreveu um livro, Sobre o que é conhecido como o Evangelho segundo Pedro (Peri
tou legomenou kata Petron euaggelion), para refutar as mentiras contidas nesse
Evangelho, que tinham levado à heterodoxia alguns fiéis da comunidade de Rossos
(cidade na costa mediterrânea, cerca de 50 quilômetros a noroeste de Antioquia
através das montanhas). Depois dessa análise sucinta, Eusébio cita uma passagem do
livro de Serapião.34 Em princípio, o bispo rejeitava livros que falsamente usassem o
nome de um apóstolo; mas ele veio a Rossos pressupondo a ortodoxia da congregação,
por isso, sem um exame cuidadoso, deu permissão para que continuassem a leitura
do Evangelho atribuído a Pedro, embora tivesse havido uma controvérsia a respeito
da obra (quanto à autoria petrina?). Subsequentemente, Serapião foi alertado para
o perigo de heresia em relação à obra; por isso, agora ele alertava a comunidade
de Rossos para esperar que ele voltasse logo. (A heresia tinha alguma coisa a ver
com certo Marcanos, de outra forma desconhecido, que se presume fosse uma
personagem local que não era consistente em seu pensamento.) Tendo aprendido
com estudantes docetistas desse Evangelho, Serapião o analisara. Descobriu que a
maior parte dele estava de acordo com o verdadeiro ensinamento do Salvador, mas
haviam sido acrescentadas algumas coisas (que ele ia relacionar).
34 Parte da lembrança do próprio Eusébio entra na análise; é presumível que a citação represente exatamente
o ponto de vista de Serapião quase 150 anos antes.
35 Embora apoie esses biblistas, não posso simplesmente afirmar que o Evangelho do século II lido por
Serapião não tinha uma teologia docética. Eu precisaria ver a obra inteira, da qual o EvPd nos dá apenas
uma seção. Se o Evangelho atribuído a Pedro tinha uma narrativa da infância, como afirma Orígenes, a
perspectiva ali teria sido essencial para determinar tendências docéticas. Se o evangelista petrina ik.
foi consistente, talvez ele exibisse docetismo nessa área, embora não no relato da crucificação.
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Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
Se for deixada de lado a questão docética, quais são alguns dos aspectos
teológicos do EvPd ?
a) Manifesta uma cristologia muito alta. O nome pessoal Jesus nunca é usado,
nem mesmo “ Cristo”. “ Senhor” é a designação mais consistente (14 vezes); também
“ Filho de Deus” (4 vezes). Os que açoitam Jesus se referem a ele como o Filho de
Deus (EvPd 3.9); um malfeitor cocrucificado reconhece que ele é o “ Salvador dos
homens” (EvPd 4,12); todo o povo judeu reconhece que ele era justo (EvPd 8,28).
Soldados romanos e anciãos judeus que tentavam salvaguardar o túmulo têm de
reconhecer que Jesus é o Filho de Deus (EvPd 10,38; 11,45), como faz Pilatos
(EvPd 11,46). O poder divino é tão inerente a Jesus que, quando seu corpo morto
toca a terra, ela treme (EvPd 6,21); e seu corpo ressuscitado estende-se da terra
até acima dos céus, ultrapassando os anjos (EvPd 10,40).
36 Wright (“Apologetic” , p. 405-406) concorda com esse julgamento, mas apresenta uma explicação
complicada de EvPd 5,19a: o dito que o poder saiu (não abandonou) o Senhor deve ser entendido como
equivalente a EvPd 5,19b: “E tendo dito isso, ele foi levado para o alto” . Se entendi Wright, o poder
divino é o fator identificador do Senhor que é elevado para Deus. Não creio que isso faça justiça a “me
deixaste” .
37 Wright (“Apologetic” , p. 402-403) afirma que, embora a expressão do EvPd não subentenda impassibi
lidade docética, subentende sim impassibilidade divina, isto é, não que o Senhor não era humano, mas
que ele era verdadeiramente divino.
553
A pêndices
judeus não lavam as mãos (do sangue de Jesus: EvPd 1,1); são eles que o condenam,
escarnecem dele e cospem nele, estapeando-lhe as bochechas (EvPd 2,5c-3,9).
Eles completam seus pecados na própria cabeça (EvPd 5,17). Escribas, fariseus
e anciãos vigiam seu túmulo até no sábado, na tentativa de evitar a ressurreição
(EvPd 8,28.32-33; 10,38). Embora tenham visto Jesus ressuscitado e saibam ser
ele o Filho de Deus, eles persuadem Pilatos a guardar segredo, reconhecendo que
o que fazem é “o maior pecado à vista de Deus” (EvPd 10,38-11,49).
38 Swete (Euaggelion, p. xxvii) apresenta uma lista de passagens veterotestamentárias usadas no EvPd e em
outros escritos cristãos primitivos. O grande interesse no uso veterotestamentário do EvPd origina-se de
Dibelius (“Alttestamentlichen” ) que, apesar de julgar o EvPd dependente dos sinóticos, achava seu uso
da Escritura mais original que o de João e, na verdade, exemplificativo de um processo que deu origem
aos Evangelhos. (Ver minha indecisão quanto a isso em § 40, #2, acima.) Seguindo os passos de Dibelius,
Denker (Theologiegeschichtliche, p. 77) menciona um uso importante de Isaías e dos Salmos, mas grande
parte de suas opiniões nesse estudo baseiam-se em alusões muito discutíveis. Em parte, a alta avaliação
do emprego alusivo ou implícito da Escritura origina-se da tese de que ele era mais primitivo que o
apelo ao cumprimento de passagens citadas. Entretanto, não raro a preferência por estilos diferentes de
citação veterotestamentária pode ter sido uma questão de ambiente, em vez de antiguidade: o ambiente
popular versus o ambiente erudito e apologético.
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Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
39 O chole (“fel” ) de SI 69,22 traduz o hebraico ros, palavra com diversos significados, o mais frequente
dos quais é “cabeça” . Estaria EvPd 5,16-17 jogando com os dois sentidos do hebraico fundamental:
“Dai-lhe a beber fel [...] completaram os (seus) pecados em sua caèeça” ?
40 Parece que Dt 2,22-23, empregado como pano de fundo pelo EvPd, foi usado por Aristo de Péla (c 140),
em uma apologética antijudaica em seu “Diálogo entre Jasão e Papisco” , conforme citado pelo Livro 2
do Comentário sobre Gálatas (sobre 3,14; PL 26,361-362). Cambe (“Récits”) argumenta que o EvPd pode
ser como muitas outras obras do século II ao usar Testimonia ou coletâneas de passagens percebidas
como aplicáveis a Jesus; neste caso, a sua Paixão, morte e ressurreição.
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A pêndices
41 EvPd 5,16: “Dai-lhe a beber fel com vinho avinagrado” ; Epístola a Barnabé 7,5: “ Para dar-me fel com
vinho avinagrado” .
42 Em EvPd 3,7 e Apologia 1,35, Jesus está sentado no tribunal. EvPd 4,12 e Diálogo XCVII usam a ex
pressão esquisita lachmon ballein (“lançar a sorte” ) em referência às vestes de Jesus. Em EvPd 10,41,
é feita a proclamação aos adormecidos entre a morte de Jesus e a ressurreição. Em Diálogo CXXII,4,
Deus se lembra dos adormecidos na terra do túmulo: “Ele desceu até eles para evangelizá-los a respeito
de sua salvação” . É debatido se Justino recorreu ao EvPd e se este era a obra “ Memórias [Apomnemo-
neumata] de Pedro” que ele menciona (Diálogo CVI,3); recentemente, Pilhofer (“Justin”) argumentou
afirmativamente para ambos.
43 Martírio e Ascensão de lsaías é obra complexa. Em Martírio e Ascensão de Isaías 3,15-17, dois anjos
abrem a sepultura de Jesus no terceiro dia e trazem-no para fora sobre os ombros, cena comparável a
EvPd 10,39-40. Essa passagem faz parte da seção do “Testamento de Ezequias” do apócrifo de Isaías,
que às vezes data de c. 100 ou um pouco depois (ver M. A. Knibb, OTP, v. 2, p. 149).
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Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
como uma república governada por um presidente, pois todos com probabilidade de
escrever ou ler tal história saberíam que a Inglaterra era monarquia. Certamente
não é concebível que um palestino do século I d.C. imaginasse que Herodes era o
governante supremo em Jerusalém e que o governador romano Pilatos era subordi
nado a ele. As prefeituras romanas de 6 -4 0 ,4 5 -6 6 d.C. e a Revolta Judaica teriam
tornado o assunto de governança inesquecível pelo menos antes de 100. Desconfio
que até os judeus fora da Palestina estavam a par da governança da Judeia naquele
século, de modo que, ao desejar pressupor que o EvPd foi escrito no século I, seria
preciso afirmar ter ele sido escrito fora da Palestina,44 por um não judeu com um
bom conhecimento das Escrituras e de Jesus.43 Entretanto, há razões sólidas para
colocar esse autor no século II, e não no I. A primeira é a probabilidade, explicada
acima, de ter o autor usado ecos dos Evangelhos canônicos de Mateus, Lucas e
João (todos compostos por volta do ano 100), um uso que subentende ter o EvPd
sido composto, com toda a probabilidade, depois do ano 100.46
Além disso, o espaço de tempo entre 100 e 150 enquadra-se nos aspectos
teológicos que acabamos de discernir. Segundo a opinião geral, o desenvolvimento
comparativo é sempre um aferidor incerto para datar obras, pois teologias mais
antigas são muitas vezes contemporâneas em ângulos diferentes do Cristianismo.
Contudo, há diversas obras do início do século II que compartilham pontos de
44 Mara (Evangile, p. 31) está bastante correta quando escreve: “ Cauteur est complètement dépaysé” . Aos
leitores, é dito que isso acontece na Judeia (EvPd 5,15), mas o EvPd não tem nenhum dos topônimos que
aparecem nas NPs canônicas. A única referência local que ele contém (EvPd 5,20), não encontrada nos
Evangelhos sinóticos, “o véu do santuário de Jerusalém” , é informação para leitores que de outra forma
poderíam não saber que santuário estava envolvido. O EvPd silencia quanto à ida dos doze discípulos
para a Galileia depois da ressurreição: eles vão para casa e Simâo Pedro e André de repente estão no
mar. Será que o autor tem alguma ideia precisa de onde ficam a Galileia e o mar, ou de distâncias de
Jerusalém?
4’ A meu ver, isso mostra a total implausibilidade da tese de Crossan, segundo a qual o EvPd expressa a mais
antiga NP cristã, pois então, mais tarde, os evangelistas canônicos que tinham um conhecimento muito
melhor do ambiente e da história da Palestina que o manifestado no EvPd teriam, contudo, respeitado
o EvPd o bastante para fazer dele sua fonte principal! Naturalmente, quem aceita o ponto de vista que
Crossan apresenta em Cross (p. 405: “Parece-me muito provável que os mais próximos de Jesus não
sabiam quase nada quanto aos detalhes do acontecimento [a Paixão]” ) afasta a maioria dos controles
externos para julgar a datação.
40 Marcado por aspectos clássicos ocasionais (aticismos, optativos), o grego do EvPd às vezes tem sido usado
para datá-lo. F. Weissengruber (em Fuchs, Petrusevangelium, p. 117-120) alega que essa combinação de
estilo narrativo e classicismo renovado está particularmente aclimatada na primeira metade do século
II, mas muitos duvidam que tal precisão, em contraste com o grego do século I, seja possível.
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Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
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A pêndices
Além do local geral, que tipo de formação cristã o EvPd reflete? Teorica
mente, é possível que o autor viesse de uma cultura, por exemplo, judeu-cristã, e
dirigisse suas palavras a uma outra, cristã gentia; mas com tão poucos indícios
disponíveis, precisamos deixar de lado essa complicação e olhar para o EvPd como
se o autor e seus destinatários fossem do mesmo ambiente. Por causa da influência
da Escritura sobre o EvPd, alguns (por exemplo, Denker, Theologiegeschichtliche, p.
78) sugerem um ambiente judeu-cristão. Contudo, desde os tempos mais primitivos,
obras que empregavam a Escritura foram dirigidas a audiências gentias (Gálatas)
e, por volta do século II, o uso da Escritura era língua franca entre os cristãos.
A Epístola de Barnabé está cheia de citações e alusões bíblicas; contudo, o autor
de importante comentário a respeito dela sugere ter ela sido escrita para cristãos
gentios da área siro-palestina, ao que tudo indica por um gentio.55 Como mencio
nei sob C, acima, o autor do EvPd parece confuso quanto aos costumes judaicos
e claramente considera os Pães sem fermento uma festa dos judeus, grupo hostil
do qual ele não faz parte.36 Se o sábado é mencionado em relação aos judeus (mas
sem muito conhecimento daquilo que eles não podiam fazer nesse dia), o domingo
passa a ser o dia do Senhor. É quase como se o autor e sua audiência estivessem
espiritualmente relacionados com os descritos por Inácio de Antioquia (Magnésios
9,1) como os que “já não observam mais o sábado, mas vivem de acordo com o dia
do Senhor”. Talvez estejamos naquele momento do desenvolvimento cristão quando
já não importava muito se a linhagem da pessoa era judaica ou gentia; os das duas
origens que acreditavam em Jesus consideravam-se cristãos, enquanto os “judeus”
eram um grupo específico de não cristãos. Havia conflito contínuo com esses judeus?
A presença de polêmica contra judeus no EvPd e de apologética implícita não prova
necessariamente isso. A herança de sentimento de ódio em relação a outro grupo*54
Evangelhos que, quase com certeza, eles não escreveram; essas atribuições acabaram sendo prefixadas
aos respectivos Evangelhos. 0 autor do EvPd foi mais adiante ao integrar sua atribuição dentro do texto
que estava escrevendo, do mesmo modo que fez o autor do Protoevangelho de Tiago (25,1). 0 desejo
de apoio apostólico e plausibilidade dramática são motivos prováveis que podemos atribuir ao autor
do EvPd; não há absolutamente nada que mostre que ele queria enganar. Vale a pena acrescentar que
as atitudes desdenhosas para com o autor do EvPd não se restringiram a biblistas que o julgavam um
usuário secundário dos Evangelhos canônicos; Gardner-Smith (“ Date” , p. 407) considerou-o “crédulo,
confuso, incompetente” .
3,5 P. Prigent, Épitre de Barnabé, SC 172, p. 22-24, 28-29.
54 Entretanto, novamente é necessário ter cautela; creio que o quarto evangelista nasceu judeu, mas não se
considerava judeu, porque as sinagogas que ele conhecia tinham expulsado crentes em Jesus e, assim,
tinham prática ou realmente dito a eles que já não eram mais judeus (Jo 9,28.34).
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Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
religioso é transmitida por gerações, mesmo quando já não há mais contato com esse
grupo. Contudo, precisamos admitir que algumas referências aos judeus no EvPd
têm um tom de legítima defesa, como se eles fossem um inimigo constante: Pedro
e seus companheiros esconderam-se depois da morte de Jesus, pois estavam sendo
caçados como malfeitores que incendiariam o santuário (do Templo; EvPd 7,26);
Maria Madalena não pôde fazer nada pelo corpo de Jesus no dia do sepultamento
porque os judeus estavam ardentes de cólera (EvPd 12,50). A questão se complica
por outras passagens que mostram os judeus agindo como penitentes (EvPd 7,25;
8,28). Consequentemente, as opiniões quanto ao relacionamento com os judeus no
ambiente do EvPd continuam altamente especulativas.
Passando para outro aspecto, considero o etos do EvPd mais tardio, mas não
muito afastado do etos que Mateus utilizou, nos anos 80 e 90, para o que chamei
de material popular (§ 48, nota 42) que ele usou para suplementar a NP marcana:
as histórias do suicídio de Judas e das moedas de prata contaminadas por sangue
inocente, do sonho da mulher de Pilatos, de Pilatos lavando as mãos do sangue
desse homem enquanto todo o povo assumia a responsabilidade, dos fenômenos que
acompanharam a morte de Jesus (tremor de terra, abertura de túmulos, aparecimento
dos santos adormecidos) e da guarda no sepulcro amedrontada pela descida de um
anjo e um terremoto — bem como a história dos magos e da estrela, e da matança
dos meninos de Belém pelo Herodes malvado na narrativa da infância. No comen
tário acima, quando tratei dos episódios característicos da NP mateana, indiquei
os paralelos do EvPd a muitas delas; e, em especial, argumentei que o autor do
EvPd não só ouvira a forma mateana fortemente modificada da história da guarda
no sepulcro, mas também teve acesso a uma forma mais tardia, mais desenvolvida
da história que ainda preservava a continuidade do original. Afirmo, então, que
o EvPd é um Evangelho que reflete o Cristianismo popular, isto é, o Cristianismo
do povo comum, não no importante centro de Antioquia, onde leituras e pregações
públicas exerciam maior controle, mas nas cidades menores da Síria, não diferentes
de Rossos, onde Serapião familiarizou-se com ele.**57 O EvPd não era heterodoxo,
Harnack (Bruchstücke, p. 37) imaginou que o EvPd pertencia a um grupo fora da Igreja, no sentido de
não se sentir preso a tradições e rituais da Igreja maior. Não é isso que quero dizer: cristãos de todos os
períodos que se julgavam leais à Igreja maior tinham opiniões teológicas que não eram as mesmas dos
mestres oficiais (embora eles nem sempre tivessem consciência de ser esse o caso), não porque fossem
desobedientes, mas por causa da piedade e da imaginação populares. Os de Rossos que estavam come
çando a ler trechos do EvPd publicamente ainda estavam dentro da Igreja maior, ou não teriam pedido
a opinião do bispo de Antioquia a respeito do assunto.
561
A pêndices
58 0 popular desempenhou um papel especial não só porque o EvPd estava fora do processo de pregação
que formou o cânon, mas também por causa de seu colorido apocalíptico. Ver J. H. Chaslesworth, “ Folk
Traditions in Jewish Apolalyptic Literature” , em J. J. Collins & J. H. Charlesworth, orgs., Mysteries and
Revelations, Sheffield, Academic, 1991, p. 91-113 (Journal for the Study of Pseudepigrapha, Supl. 9).
59 Peço licença para mencionar que essa não é necessariamente uma opinião liberal, por exemplo, foi ado
tada com referência aos relatos evangélicos do ministério todo de Jesus tanto pela Pontifícia Comissão
Bíblica Católica Romana quanto pelo Segundo Concilio Vaticano (NJBC 72,35.15).
60 Mara (Évangile, p. 30) diz que o autor do EvPd não parece ter sido dominado pela verdade dos fatos que
relata, mas foi contido pela verdade de sua interpretação. Entretanto, isso pode subtender que o autor
do EvPd diferenciava se o que relatava era ou não história.
562
Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro - narrativa não canônica da Paixão
61 Em minhas observações, tenho em mente Evangelhos apócrifos narrativos, como o EvPd, o Protoevangelho
e o Evangelho da Infância de Tome'. Podem-se visualizar diferentemente coletâneas de ditos atribuídos a
Jesus que muitas vezes tinham um foco planejado de maneira muito mais cerebral. Embora popularmente
haja tendência a considerar os tratados encontrados na coleção de Nag Hammadi “ Evangelhos” gnós-
ticos, muito poucos deles alegam ser Evangelhos ou são, de algum modo, semelhantes aos Evangelhos
canônicos.
62 Tenho esperança de que hoje os cristãos reconheçam outra tendência heterodoxa no EvPd: suas descri
ções antijudaicas intensificadas. Há antijudaísmo no NT em resultado da polêmica entre os judeus que
acreditavam em Jesus e os que não acreditavam, mas ele é mais moderado que o do EvPd e de Barnabé.
Esse é um exemplo do que considero uma verdade maior: frequentemente, entre cristãos comuns havia
(e há) mais hostilidade para com os judeus do que se percebe entre os porta-vozes oficiais — situação
que é verdade, vice-versa, também no Judaísmo, se podemos julgar pela comparação entre a Mixná e
talmudes mais oficiais com o popular Toledoth Yeshu. Diversas vezes citei peças da Paixão como exemplos
da tendência de enriquecer a história da morte de Jesus com a imaginação popular e, muitas vezes, um
forte antijudaísmo aparece nessas peças.
563
A pêndices
564
Bibliografia para o Apêndice I:
0 Evangelho de Pedro
565
A pêndices
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1966 (Dissertação de Doutoramento em Teologia).
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566
Bibliografia para o Apêndice 1:0 Evangelho de Pedro
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W enham , D. & B lom berg , C. The Miracles of Jesus. Sheffield, JSOT, 1986, p. 40-1-
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de 1987, p. 56-60, esp. 58-60.
Zahn, T. D as Evangelium des Petrus. NKZ 4 ,1 9 8 3 , p. 143-218. Reimpresso como livro.
567
Apêndice II:
Data da crucificação
(dia, mês, ano)
A. 0 dia da semana
B. A data no mês
C. 0 ano
Bibliografia
A.Odia da semana
Mc 15,42 identifica o dia em que Jesus morre como “o dia antes do sábado”
(prosabbaton). Embora não mencione o sábado em relação à crucificação, Mateus
569
A pêndices
indica claramente que o dia depois da morte de Jesus (Mt 27,62) é o sábado; de
fato, quando ele chega ao fim, começa o primeiro dia da semana (Mt 28,1). Logo
depois de Jesus ser enterrado, Lc 23,54 afirma que o sábado estava raiando. Jo 19,31
registra precauções sendo tomadas para os corpos não permanecerem na cruz no
sábado que se aproximava. EvPd 2,5 indica que Jesus morrería e seria sepultado
antes de o sábado raiar. Não é surpreendente, então, que, em grande maioria, os
biblistas aceitem que o Jesus crucificado morreu na sexta-feira e, na verdade, em
algum momento da tarde.1
B. A data no mês
1 Indicações pertinentes específicas da hora incluem: nos sinóticos, Jesus está prestes a morrer na nona
hora (3 horas da tarde: Mc 15,34; Mt 27,46; Lc 23,44); EvPd 5,15-20 coloca a morte de Jesus no contexto
de meio-dia; em Jo 19,14, Jesus está diante do pretório de Pilatos na sexta hora (meio-dia).
2 Hoehner (“ Day” , p. 241-249) relaciona B. F. Westcott, J. K. Aldrich e R. Rush favoráveis à quinta-feira,
e W. G. Scroggie favorável à quarta-feira. Davison (“ Crucifixion”) defende a quarta-feira baseado no fato
de que o sábado mencionado por todos os Evangelhos como seguindo-se ao dia da crucificação era um
“ sábado anual” , não um sábado semanal. “ Sábado anual” é usado por ele para designar os dias dentro
de períodos festivos nos quais havia descanso do trabalho e uma assembléia sagrada. Ele encontra “ dois
sábados anuais” ligados à Páscoa ou à festa dos Pães sem fermento, a saber, o primeiro e o último do
período de sete dias (Lv 23,7-8). 0 primeiro “ sábado anual” da Páscoa no ano em que Jesus morreu foi
a noite da quarta-feira/quinta-feira, e foi durante o dia da quarta-feira que precedeu imediatamente esse
“ sábado” que Jesus foi julgado e crucificado — um dia de quarta-feira que era 14 de nisan. Infelizmente,
ele não apresenta provas disso.
570
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
sinóticos referem-se à festa dos Pães sem fermento. Convém, então, logo de início,
recordar a história dessas duas festas.
Nos textos bíblicos antigos que descrevem a Páscoa judaica (Ex 12,1-20; Lv
23,5-8; Nm 28,16-25), sua data dependia do ato de avistar a lua nova que iniciava
o mês de nisan,3 pois a celebração da festa acontecia na lua cheia desse mês. No
crepúsculo que terminava o 14 de nisan e iniciava o 15, o cordeiro (ou cabra) era
abatido e seu sangue borrifado no batente da porta da casa. Durante a noite do dia
15 (a noite da lua cheia), o cordeiro era assado e comido com pães sem fermento e
ervas amargas. Esse 15 de nisan também iniciava a semana da festa dos Pães sem
fermento. Seiscentos anos antes de Jesus, essas festas tinham sido unidas como um
período festivo combinado, que levava as pessoas ao templo de Jerusalém;4 e, mais
tarde, a imolação dos cordeiros foi considerada tarefa dos sacerdotes, assumindo
assim as características de um sacrifício.
3 Também chamado abib (Ex 13,4), nisan era o primeiro mês do ano, embora em outro cálculo calendar o
Ano Novo fosse no sétimo mês (tishri).
* A Páscoa era a mais antiga das duas e se originara na cultura pastoral, quando Israel era seminômade,
andando de um lado para outro com seus rebanhos para encontrar pastos. A festa dos Pães sem fermento,
que marca o início da colheita da cevada, foi adotada mais tarde, durante a fase agrícola depois da entrada
em Canaã. Originalmente, a Páscoa não era uma festa (no AT, só Ex 34,25 chama-a de festa), na qual as
pessoas tinham de peregrinar ao santuário central, pois o cordeiro era morto e comido em casa; somente
quando unida aos Pães sem fermento ela se tomou uma das três festas de peregrinação. Ver a união dos
temas das duas em Dt 16,2-3, que, depois de falar do animal escolhido para o sacrifício da Páscoa, diz:
“ Durante sete dias comerás pão sem fermento” . Como veremos, no século I d.C., os nomes estavam se
tomando permutáveis. No século seguinte, “Páscoa” passara a ser o nome para a festa toda, de modo
que “a festa dos Pães sem fermento” jamais aparece na literatura tanaíta (Zeitlin, “Time”, p. 46), por
exemplo, Midraxe Mekilta (Pisha 7), a respeito de Ex 12,14, fala dos “Sete dias da festa da Páscoa” ; e
Mixná Pesahim 9,5 diz que, depois do Egito, “A Páscoa de todas as gerações subsequentes tinha de ser
observada durante sete dias” .
571
A pêndices
quinta-feira e Jesus morreu durante o dia depois dela; para João, foi ao anoitecer de
sexta-feira e Jesus morreu durante o dia antes dela. Antes de tratar em detalhe das
complexidades dessa aparente contradição, vamos revisar questões preliminares,
das quais precisamos estar seguros.
5 Ver informações em Zeitlin, “Beginning”, com a advertência de que seu uso da Mixná para determinar
o período pré-70 (d.C.) talvez precise de restrições. Parenteticamente, quero observar que, embora no
calendário judaico o dia começasse ao anoitecer, o linguajar popular podería ter sido influenciado por
um modo de pensar em que o dia começava com o nascer do sol — o que ainda é verdade hoje quando,
no calendário, o dia começa à meia-noite. Isso deixou sua marca no uso de “alvorecer” para o início
de um domingo ao entardecer, em Mt 28,1 e EvPd 9,35: nenhum dos dois autores está pensando no
572
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
domingo por volta das 5 horas da manhã; ambos estão pensando no sábado logo depois do pôr do sol.
Observemos que Mateus omite “ bem cedo” e “ao raiar do sol” de Mc 16,2; e, em EvPd 11,45, depois
dos acontecimentos, ainda é noite.
6 Parece que uma possível exceção é o aviso adiantado em Mc 14,1-2, a saber, que “a Páscoa e os Pães
sem fermento iam (ser) depois de dois dias” e as autoridades não queriam agarrar e matar Jesus na festa
(passagem que será examinada a seguir). Entretanto, na verdade essa passagem não nos incentiva a fixar
a prisão e morte de Jesus na festa propriamente dita.
573
A pêndices
do, mesmo que isso se refira “à festa” da Páscoa (como eu creio), não é definitivo
quanto a que dia se entende por antes ou durante o período festivo de oito dias da
Páscoa/Pães sem fermento.
574
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
' Também Ant. XVIII,ii,2; #29: “A festa dos Pães sem fermento que chamamos de Páscoa” .
8 Do mesmo modo, com essa distinção, Mt 26,17 seria impreciso, pois ali os discípulos perguntam no
primeiro dia dos Pães sem fermento onde Jesus quer que seja preparada a refeição pascal.
575
A pêndices
desejada que exige tempo para que preenche o tempo e com- —> de A.
9 Há controvérsia se “a festa” significa Páscoa, Pães sem fermento, ou ambos. Como vimos, o uso clássico
aplicava “festa” aos Pães sem fermento; mas, no sécdo I d.C., o uso estava mudando, de modo que
“festa” era usado com mais frequência (e logo com exclusividade) para a Páscoa, e não para os Pães sem
fermento. Quando retoma o tema em Mc 14,12-16, Marcos menciona os Pães sem fermento mais uma vez
e a Páscoa, mais quatro ve;,es; é duvidoso que ele percebesse uma distinção calendar entre elas, mas a
Páscoa domina-lhe a mente.
576
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
na cabeça de Jesus em Betânia (Mc 14,3-9), que prevê a unção de seu corpo para
o sepultamento (Mc 14,8); então, Mc 14,10-11 tem o papel de A’, retomando a ação
de A, quando Judas procura os chefes dos sacerdotes e oferece-se para entregar-
-lhes Jesus. Quem entende a sequência de três episódios literalmente pergunta
quanto tempo dos dois dias que faltavam para a Páscoa foi ocupado por eles. Para
quem reconhece que a sequência é puramente literária, a unção pela mulher passa
a ser um episódio sem data,10 colocado como “ tapa-buraco” (donde a construção
de encaixe) entre duas partes de um único episódio da trama contra Jesus pelas
autoridades judaicas ajudadas por Judas, que continha o indicador de que a Páscoa
seria “depois de dois dias”. (Embora Mt 26,1-14 siga a sequência marcana tripartida,
Lc 22,1-6 omite o episódio da unção pela mulher [ver Lc 7,36-50] e faz uma única
seção da trama e da traição por Judas.)
Segundo, se “depois de dois dias antes da Páscoa e dos Pães sem fermen
to” estava ligada à trama, essa frase especificava a data em que os sacerdotes e
escribas buscavam um meio de agarrar e matar Jesus ou a data em que Judas os
procurou? E que data exata está sendo calculada por uma relação com “a Páscoa
e os Pães sem fermento” ? Marcos está pensando em dois dias até 14 de nisan, ou
até 15 de nisan? (Veremos adiante o modo marcano impreciso de se referir a essas
festas.) Retroagir um interstício de dois dias a partir dessas duas datas evidente
mente fixa a data dada em Mc 14,1 como 12 ou 13 de nisan. Contudo, Holtzmann,
Swete, Turner e outros afirmam que “depois de dois dias” não é calculado com
tanta facilidade. Assim como “depois de três dias” (em Mc 8,31; 9,31) é cumprido
com a ressurreição no terceiro dia, eles acham que “depois de dois dias” significa
a Páscoa no segundo dia — raciocínio que fixa a data em Mc 14,1 como o dia 13.
(Entretanto, a analogia com a ressurreição tem seus problemas.)
111 Em Jo 12,1, Maria unge os pés de Jesus em Betânia “seis dias antes da Páscoa” .
577
A pêndices
com eles e comendo, ele disse.. (Mc 14,17-18). Acima, sob Ble, vimos que quase
sempre havia imprecisão a respeito de datar a Páscoa quando ela se fundia com a
festa dos Pães sem fermento. Lv 23,6 localiza “o primeiro dia dos Pães sem fermen
to” em 15 de nisan; na verdade, no AT, 14 de nisan nunca é chamado “o primeiro
dia dos Pães sem fermento”.11 Contudo, o resto da descrição marcana corresponde
ao que sabemos do dia 14 de nisan, por exemplo, a imolação dos cordeiros e os
preparativos para a refeição pascal. A páscoa era comida em um momento depois
de esse dia acabar e o dia quinze começar. (Os relatos mateano e lucano apontam
na mesma direção; e em nenhum dos sinóticos a Páscoa volta a ser mencionada
depois disso, como observamos em Blc, acima.) Assim, a refeição descrita (a
Ultima Ceia) que Jesus comeu com os Doze deve ter sido a refeição pascal (e o
é especificamente em Lc 22,15). Pela lógica da sequência no calendário — mas
não pela afirmação evangélica sinótica — , o que se segue no restante da noite (ida
ao Getsêmani, prisão, julgamento judaico) e durante o dia seguinte (julgamento
romano, crucificação, morte, sepultamento) deve ter acontecido no mesmo dia: 15
de nisan, uma quinta/sexta-feira. (Muitos comentaristas acrescentam “ na Páscoa”,
mas vimos acima que, tecnicamente nesse período, a Páscoa era no dia 14, o dia
do sacrifício do cordeiro, não o dia de comê-lo. De forma menos controversa, o dia
15 era tecnicamente o primeiro dia dos Pães sem fermento.)
Muitos biblistas aceitam este dia 15 de nisan como a data mais plausível
da crucificação, inclusive Baur, W. Bauer, Dalman, Edersheim, Jeremias, J. B.
Lightfoot, Schlatter e Zahn. Quase sempre, pelo menos implicitamente, parte da
lógica desses biblistas é que Marcos preserva a tradição mais antiga. A principal
razão para duvidar dessa cronologia é o número de atividades que os sinóticos
descrevem acontecendo no que deve ter sido um dia festivo solene: uma multidão
saindo para o Getsêmani para prender Jesus; uma sessão do sinédrio para condenar
Jesus à morte; autoridades do sinédrio e também multidões indo ver o governa
dor romano; Simão de Cirene vindo dos campos (Mc 15,21); muitos transeuntes
11 A respeito de passagens controversas, ver JEWJ, p. 17, n. 2. Há quem tente entender, em Mc 14,12, o
grego prote (“primeiro”) como pro (“o dia antes dos Pães sem fermento”), ou pressuponha um original
aramaico mal compreendido, que deveria ter sido traduzido: “antes do primeiro dos Pães sem fermento”
(ver EvPd 2,5c). Com toda a probabilidade, estamos lidando com escrito marcano descuidado, onde o
que ele realmente queria dizer em Mc 14,12 é definido pela segunda frase, de modo que ele podería ser
parafraseado: “ E no dia inicial dos Pães sem fermento/da Páscoa, quando eles estavam sacrificando o
cordeiro” .
578
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
12 Muitos dos textos judaicos citados são de bem depois do tempo de Jesus e, assim, são duvidosamente
aplicáveis. Em especial, há quem tenha questionado a defesa por Jeremias de uma sessão do sinédrio
em um dia de festa, para a qual ele recorre à necessidade imediata de livrar o povo de um falso profeta
(JEWJ, p. 78-79).
Li Ver o costume de ser purificado antes de celebrar uma festa em Nm 9,10-11; 2Cr 30,16-18; Josefo,
Guerra I,xi,6; #229; At 21,24-27. Nm 19,11-12 exige um período de sete dias para purificar a impureza
contraída no contato com um cadáver, com purificação de água no terceiro e sétimo dias. Em relação aos
Pães sem fermento, é provável que isso acontecesse nos dias 10 e 14 de nisan.
14 Será que isso pode ser comparado a uma purificação no primeiro dia do período de sete dias mencionado
na nota anterior?
579
A pêndices
lo No meio do julgamento, Jo 18,39 fala do costume judaico de soltar um prisioneiro na Páscoa, mas, por
essa referência, não dá para dizer se a Páscoa está prestes a começar ou já começou.
16 C. C. Torrey (JBL 50, 1931, p. 227-241) tenta evitar a importância disso, argumentando que paraskeue
(“ dia de preparação”) era simples equivalência do hebraico/aramaico ‘erebi’arâba’ (“véspera” ), especi
ficamente a véspera do sábado, ou a sexta-feira. Portanto, João não se referia ao dia de preparação para
a Páscoa, mas a uma sexta-feira na semana da Páscoa. S. Zeitlin (JBL 51,1932, p. 263-271) mostra que
isso não é justificável com base em indícios semíticos e afirmei acima, em § 35, que a conotação grega
de “preparação” não deve ser descartada, nem mesmo em uma expressão estereotipada.
17 Embora, pelos cálculos calendares mais antigos, 14 de nisan, quando os cordeiros eram sacrificados,
possa ter sido considerado Páscoa (Ble, acima), para João, o dia 15, quando se fazia a refeição, era a
Páscoa.
580
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
18 Sabemos da existência, no Cristianismo do início do século II, dos “quartodecimanos” que afirmavam
dever a Páscoa cristã ser sempre celebrada no dia 14 de nisan, não importando o dia da semana em que
caísse. Para G. Ziener (“Johannesevangelium und urchristliche Passafeier” , em BZ 2,1958, p. 263-274),
o quarto Evangelho se origina de uma celebração judaico-cristã primitiva, do tipo dos quartodecimanos
— desse modo, a datação joanina pode ter tido apenas valor litúrgico. Entretanto, muitos veem a relação
na direção oposta: a datação joanina contribuiu para a prática dos quartodecimanos.
19 Sabemos que, a esse tempo, havia certo respeito por vésperas. Jt 8,6 não tem jejum na véspera do sábado
e na véspera da lua nova, mas não menciona a véspera das grandes festas. Mixná Pesahim 4,5 relata que
na Judeia era costume continuar com as ocupações na véspera da Páscoa até o meio-dia, mas na Galileia
o costume era não fazer absolutamente nenhum trabalho.
581
A pEnoices
indicações que apontam para a ceia que Jesus comeu com os discípulos como re
feição pascal, os evangelistas sinóticos logicamente subentendem que essa quinta/
sexta-feira era 15 de nisan. As passagens joaninas que se referem a acontecimentos
na quinta-feira à noite e na sexta-feira durante o dia indicam que a quinta/sexta-feira
era 14 de nisan, a véspera (dia de preparação) do dia 15, quando a refeição pascal
seria consumida. Tentativas de lidar com essa discrepância entre os sinóticos e João
vão desde afirmar que as duas cronologias estão certas, passando pela preferência
de uma à outra, até a opinião de que nenhuma está certa. A solução mais fácil é
aceitar uma das duas apresentações como mais plausível — julgamento que não
resolve necessariamente a questão de historicidade, embora muitos comentaristas
combinem a busca para encontrar o que o evangelista pretendia com o estudo do
que aconteceu.20 Entretanto, não raro, na duvidosa suposição de que os Evangelhos
devem ser históricos, há o desejo de harmonizar as duas imagens. Examinemos
algumas das proposições mais proeminentes.
20 Outra questão é se algum dos evangelistas tinha conhecimento pessoal do dia exato em que Jesus morreu.
E possível duvidar disso sem descer ao niilismo de supor que nenhum autor conhecia nem se importava
com o que aconteceu na Paixão de Jesus.
21 Outra proposição é a de Heawood (“Time” , p. 42-44), segundo a qual, em João, o relato de que os judeus
evitaram a contaminação “ a fim de poderem comer a Páscoa” é confuso e, na verdade, significa: a fim
de poderem completar as purificações da festa dos Pães sem fermento — purificações que se seguiam
à refeição da Páscoa no dia 15. Zeitlin (“Time” , p. 46-47) está perfeitamente correto ao rejeitar essa
introdução em João de “Pães sem fermento” , nomenclatura que ele nunca emprega e que, quando João
escreveu, estava saindo de uso como nome da festa (nota 4, acima).
582
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
22 Alguns biblistas apresentam como analogia o fato de, na diáspora, os judeus celebrarem a festa das
Semanas em um período de dois dias (para terem certeza de ser o dia certo), enquanto os de Jerusalém
celebravam em um único dia. A analogia é fraca, pois a celebração da Páscoa por Jesus teve lugar em
Jerusalém e ele não era judeu da diáspora. A referência em TalBab Megilla 31a a dois dias de Páscoa
para levar em conta a diáspora na Babilônia faz parte de um nível redacional, talvez cerca de cinco
séculos depois de Jesus.
23 Mixná Pesahim 4,5 preserva a memória de uma controvérsia entre as escolas de Shamai e Hilel quanto
ao fato de o trabalho antes da Páscoa ter de cessar na noite em que o 14 de nisan começava ou somente
ao nascer do sol. Quanto à festa das Semanas, depois do primeiro dia da festa dos Pães sem fermento
vinha o dia para fazer o gesto com o feixe das primícias da colheita da cevada. Lv 23,11 diz: “ O sacerdote
fará isso no dia seguinte ao sábado” ; e Lv 23,15-16 calcula a festa das Semanas (Pentecostes) como o
quinquagésimo dia de um período que começava depois do sábado. Havia controvérsia quanto ao fato
de o “ sábado” indicado ter de ser considerado equivalente ao dia santo de descanso, constituído pelo
dia 15 de nisan, o que poria o gesto das primícias em 16 de nisan, independentemente do dia da semana
em que este caísse (opinião associada aos fariseus; defendida por Josefo [Ant. III,x,5; #250] e Fílon [De
specialibus legibus ii,30; #176] e implícita na LXX de Lv 23,11), ou como o primeiro sábado que ocorresse
depois do dia 15, de modo que a cerimônia das primícias era sempre em um domingo (opinião associada
aos saduceus: ver Tosepta Ros Hassana 1,15). De modo interessante, H. Montefiore (“ When”), com base
em ICor 15,20, onde Cristo ressuscitou dos mortos como primícias, afirma que o gesto com o feixe no
dia 16 de nisan aconteceu, nesse ano, no domingo, quando o túmulo foi encontrado vazio; assim, sexta-
-sábado era o dia 15 e quinta/sexta-feira, o dia 14, como na cronologia joanina. Entretanto, segundo o
outro cálculo, o gesto sempre acontecia em um domingo, independentemente da data em nisan.
583
A pêndices
21 Dockx (“Le 14 Nisan” , p. 26-29), depois de examinar algumas das variantes harmonizadoras que vou
apresentar, julga essa a única proposição realmente defensável. Ele sugere que os galileus não aceitavam
como obrigatória a decisão de uma comissão de calendário que se reunia em Jerusalém no dia 29 de
cada mês. Mixná Ros Hassana 1 é a fonte para os que imaginam como a lua nova que marcava um novo
mês era calculada em Jerusalém; ver Shepherd, “ Are Both” , p. 127.
584
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
regular, que começava no dia 15 (sexta/sábado). Contra essa teorização está o fato
de os saduceus realmente observarem a lei escrita, e não temos razão para pensar
que eles seriam capazes de ignorar Ex 12,10. Além disso, é estranho colocar toda
a responsabilidade de solucionar as discrepâncias evangélicas na disponibilidade
de um cordeiro morto, quando nenhum Evangelho menciona que um cordeiro
fazia parte da refeição. Certamente, Marcos não demonstra ter percepção de uma
controvérsia calendar entre saduceus e fariseus, pois, em sua primeira menção da
próxima Páscoa (Mc 14,1), os chefes dos sacerdotes cooperam com os escribas (um
grupo que, em outras passagens, ele associa com os fariseus: Mc 2,16; 7,1.5), em
uma trama contra Jesus que pressupõe o mesmo entendimento da festa.
2a Com menos frequência, o argumento avança na direção oposta, a saber, que nos sinóticos e em João Jesus
fez a refeição da Páscoa com seus seguidores; e quando, durante o dia seguinte, Jo 18,28 relata que os
judeus não queriam se contaminar entrando no pretório, a fim de “poderem comer \phagein] o cordeiro/a
refeição pascal” , a referência é às refeições subsequentes do período festivo de sete dias. Chenderlin
(“Distributed” , p. 369-370) defende isso e menciona que o verbo para a Páscoa/páscoa propriamente
dita era thyein (“sacrificar”) ou poiein (“fazer”). Entretanto, dado que o AT mostra preocupação especí
fica quanto à pureza preparatória para comer a refeição pascal (por exemplo, Nm 9,6-13, com Nm 9,11
585
A pêndices
estavam descrevendo uma refeição não pascal consumida por Jesus com os discí
pulos no dia 14 de nisan. Alguns biblistas julgam que, na noite antes de morrer,
Jesus fez uma refeição abençoada de maneira especial,*26 ou uma refeição do tipo
consumido por confederações religiosas (Haburoth).27 Entretanto, além do fato de
sabermos muito pouco a respeito da prática dessas refeições sugeridas no século I
d.C. (o que seria um caso de explicar obscurum per obscurius), essas sugestões não
fazem justiça aos dados sinóticos a respeito de preparar para a páscoa, nem a Lc
22,15: “ Desejei comer convosco esta refeição pascal”. Sendo assim, uma sugestão
mais comum é que, na noite que terminou o dia 13 de nisan e começou o dia 14,
segundo os sinóticos e também João, Jesus comeu uma refeição pré-pascal,28 re
feição essa que ele mesmo designou a fim de antecipar a refeição pascal habitual
a ser consumida na noite seguinte (que ele sabia não poder comer porque estaria
morto). Os indícios que JEW J, p. 41-62, reuniu para provar que a Última Ceia foi
uma refeição pascal29 são muitas vezes citados na teoria da refeição pré-pascal:
foi refeição pascal em tudo, exceto o cordeiro (que não pôde ser obtido porque só
seria imolado na tarde seguinte); e é por isso que Jesus falou de comer esta páscoa
usando phagein), essa é uma interpretação forçada. Além disso, lida mal com Jo 19,14, que chama o
dia em que Jesus foi julgado de “(dia de) preparação para a Páscoa” — claramente, essa linguagem
envolve a preparação para um dia muito especial, não para qualquer dia em uma temporada festiva de
uma semana. Por fim, a tese não faz justiça a Jo 13,29, o que é forte indicação de que a refeição que
Jesus está comendo não é a refeição da festa (da Páscoa), para a qual ainda é preciso comprar as coisas.
26 Não raro é feita referência a Qiddush (Kiddush), ou refeições de purificação, isto é, alimento consumido
nas vésperas de sábado e de festas para santificar ritualmente aqueles dias (ver Walker, “ Datíng” , p.
294). Taylor (Jesus, p. 115-116) relata que G. H. Box optou pela Qiddush de sábado, enquanto W. E.
Oesterley e G. H. C. Macgregor preferiram a Qiddush da Páscoa. Taylor (também Geldenhuys, “ Day” , p.
651) rejeita essas proposições baseado no fato de ser essa refeição consumida na noite em que o sábado
ou a Páscoa começava, assim, regularmente, na sexta para o sábado, e também em uma sexta nesse ano
em particular, se seguirmos a cronologia joanina para a Páscoa. Não há indícios de que qualquer delas
pudesse ser antecipada em um dia e consumida em uma quinta-feira à noite, como nos sinóticos. Ver
debates rabínicos a respeito de várias ocasiões para recitar a Qiddush em TalBab Pesahim 105a ss.
2‘ JJT J, p. 333-355, estuda as habârâ, tentando reconstruir a história dessas comunidades em Jerusalém
no século I d.C.; mas, quase todos os indícios são rabínicos e é muito difícil saber quanta organização
mais tardia foi retrojetada na imagem.
28 Ver Blank, “Johannespassion” , p. 151-152; Bomhãuser, Death, p. 63-64. Ocasionalmente, tenho a
impressão de que os proponentes da refeição pré-pascal pensam em uma refeição que era costume
aceito para a noite que terminava o dia 13 de nisan e começava o dia 14. Não conheço prova concreta
da existência, nessa época, de tal refeição estabelecida.
29 Consumida nos limites de Jerusalém, à noite, com um número apropriado (no mínimo dez); reclinado;
com os presentes lavados e, assim, ritualmente puros; vinho; a sugestão de dar alguma coisa aos pobres;
palavras interpretativas sobre o pão e o vinho.
586
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês,ano)
com seus seguidores. Contudo, a fluência da narrativa sinótica não favorece essa
antecipação particular da refeição pascal; (dois) discípulos são encarregados de ir à
cidade procurar uma casa onde Jesus possa comer a páscoa com os discípulos (Mc
14,12-16 e par.). E ssa preparação envolve contato público e certamente não supõe
que, quando se reunirem à noite, eles vão comer um tipo de páscoa particular um
dia antes de todas as outras pessoas. A meu ver, essa teoria é mais um exemplo
de uma criação ad hoc com propósitos de harmonização. Se não tivéssemos João,
os que agora se inclinam a encontrar uma refeição pré-pascal nos relatos sinóticos
da Ultima Ceia nunca pensariam nessa tese e defenderíam uma refeição pascal.
Além disso, quer se pense em uma refeição pascal, quer em uma pré-pascal,
os paralelos da Páscoa em JEW J são um apoio fraco. Muitos deles são tirados de
descrições mixnaicas da Páscoa que são duvidosamente aplicáveis ao tempo de
Jesus, como lembrou Bokser (“ Was” ), que se especializou em tentar reconstruir
a refeição festiva primitiva. Pessoalmente, acho bastante persuasiva sua tese30 de
que o seder da Páscoa, como o conhecemos de fontes judaicas, só surgiu depois
de 70 d.C., quando o cordeiro já não podia ser morto sacrificalmente e a perda
desse elemento principal da refeição fez com que maior ênfase simbólica fosse
dada a outros elementos à guisa de compensação. Por outro lado, precisamos tomar
cuidado ao aplicar os argumentos de Bokser a um exame dos relatos evangélicos
da Ultima Ceia. Eles provam que não é possível demonstrar que historicamente
Jesus comeu uma refeição pascal com os discípulos, como Jeremias e muitos outros
procuraram fazer. Eles não nos dizem se os evangelistas que conheciam a situação
judaica depois de 70 estavam distorcendo a descrição da última refeição de Jesus
com imagens das refeições pascais “sem cordeiro” que começaram a ser celebra
das a esse tempo. Os aspectos da Páscoa semelhantes ao seder desenvolveram-se
logo depois de 70? Quando seus ecos entraram nas descrições cristãs da Ultima
Ceia? Já havia um desenvolvimento incipiente de simbolismo seder na Páscoa “sem
cordeiro” celebrada fora de Jerusalém, na diáspora, que teria facilitado os dois
processos? Os leitores devem se lembrar dessas questões quando considerarem,
na grande subseção a seguir (3), o ponto de vista que adotei neste comentário.
Entretanto, antes de nos voltarmos para ela, é preciso mencionar outra tentativa
para harmonizar os Evangelhos.
587
A pEndkes
31 As referências evangélicas que apresento ali supõem algum entendimento intuitivo pelos leitores: Mesmo
que um evento ocorra em diversos ou todos os Evangelhos, por exemplo, as negações de Pedro, apresento
a referência mais apropriada à sequência, por exemplo, só em Lucas essas negações são seguidas ime
diatamente por um escárnio de Jesus. Quem quiser realmente saber por que apresento uma referência
em vez de outra deve consultar o estudo do episódio no comentário.
588
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
589
A pêndices
32 Ruckstuhl (“ Zur Chronologie”, p. 50-51) apela para Josefo (Ant. XVIII,i,5; #19), passagem obscura.
É de se supor que os essênios enviassem oferendas ao Templo, mas observassem regras diferentes de
590
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
Antes que os Evangelhos fossem escritos, Paulo relatou como tradição rece
bida (com toda a probabilidade remontando aos anos 30, quando se tornou seguidor
de Jesus) que, na noite em que Jesus foi entregue, ele tomou o pão e disse: “ Isto é o
meu corpo”, e depois da ceia: “ Este cálice é a nova aliança no meu sangue” (ICor
11,23-25). Em outras palavras, ele conhecia a tradição primitiva de uma Ultima Ceia
antes da morte de Jesus (com palavras eucarísticas em uma forma mais próxima do
que Lucas relata). Na mesma carta, Paulo desafia os leitores/ouvintes a jogar fora
o velho fermento, visto que eles são sem fermento, “de fato, Cristo, nosso cordeiro
pascal, foi imolado” (ICor 5,7). Ele declara que Cristo ressuscitou dos mortos,
purificação e, por isso, fossem barrados do recinto do Templo frequentado por outros. O que é incerto
é se Josefo quer dizer que, então, eles iam para outro lugar (em Jerusalém?) para oferecer sacrifícios
em Jerusalém, sob suas regras, ou que cessaram completamente de oferecer sacrifícios em Jerusalém.
Reconhecida a hostilidade dos sacerdotes de Jerusalém para com os sectários de Qumrâ atestada nos
Manuscritos do Mar Morto, é bastante duvidoso que os sacerdotes essênios de Qumrã tivessem permissão
para sacrificar publicamente cordeiros pascais em Jerusalém, de modo que um não essênio como Jesus
podería obter um, se decidisse seguir o calendário solar. Ver Blinzler, Prozess, p. 118-120; HJPAJC, v.
2, p. 570, 582, 588.
33 Infelizmente, muitos que têm interesses religiosos justificáveis nos Evangelhos sentem-se impelidos a
harmonizá-los. Contudo, quando se crê que os Evangelhos são a Palavra inspirada de Deus, por que
procurar melhorar o que eles oferecem, harmonizando suas diferenças, para apresentar aos outros uma
imagem unificada que eles não mostram? Quando se crê que a Igreja cristã foi guiada no reconhecimento
de que os Evangelhos são canônicos ou normativos, por que procurar produzir uma harmonia em lugar
deles? No século II, Taciano fez isso, mas, no fim, a Igreja toda recusou-se a substituir por sua harmonia
os quatro Evangelhos distintos.
591
A pêndices
“primícias dos que adormeceram” (ICor 15,20). Parece claro que, para Paulo, a
morte e a ressurreição de Jesus estavam associadas ao simbolismo dos primeiros
dias da festa da Páscoa/dos Pães sem fermento. Como uma festa de peregrinação
é a explicação mais plausível da razão de Jesus e seus discípulos galileus estarem
juntos em Jerusalém, considero histórico o fato de a Ultima Ceia e a crucificação de
Jesus terem lugar exatamente na Páscoa ou antes dela — fato que os cristãos bem
depressa usaram teologicamente, relacionando sua morte ao sacrifício do cordeiro
pascal. Paulo não é a única testemunha fora dos Evangelhos a fazer isso. Mais
tarde, mas não em óbvia dependência dos Evangelhos, lPd 1,19 fala do “precioso
sangue de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e sem mancha”, fazendo eco a
Ex 12,5. Embora (talvez sob a influência de convenções apocalípticas) Ap 5,6-14
use uma palavra grega para cordeiro (arnion ) que não é empregada pela LX X para
o cordeiro pascal, tal identificação talvez esteja por trás da imagem de Cristo no
livro do Apocalipse (em um contexto litúrgico de incenso, orações e hinos), de pé
como cordeiro imolado que, com seu sangue, adquiria para Deus gente de todas as
tribos. No comentário da Paixão, muitas vezes vimos que um antigo discernimento
encontrou seu caminho na narrativa de modo diferente em Marcos e em João.
Aqui, isso é verdade a respeito da identificação teológica pré-evangélica de Jesus
como cordeiro pascal.
34 Aliás, ninguém mais sabe, por causa de duas graves lacunas em nossas informações: com que rapidez
foram introduzidas no ritual judaico da refeição pascal as adaptações do período pós-70, quando os
cordeiros já não eram sacrificados (adaptações explicadas na Mixná escrita por volta de 200), e até que
ponto estavam os futuros leitores cristãos dos anos 60-90 (quando os Evangelhos sinóticos foram escritos)
familiarizados com a celebração da Páscoa judaica contemporânea? Do começo ao fim do comentário,
afirmei que a explicação dada por Marcos em Mc 7,3-4 sugere que os leitores pouco sabiam a respeito do
Judaísmo. Lucas tem um bom conhecimento teórico (LXX) do Judaísmo, mas há poucas indicações do que
seus leitores conheciam. É bem possível que a seção judeu-cristã da comunidade mateana conhecesse
bastante o Judaísmo contemporâneo, embora de maneira polêmica.
592
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
fa Portanto, a presença de estilo marcano em Mc 14,12-16 não soluciona a questão de ser marcana ou
pré-marcana a inspiração básica.
36 Pelos cálculos de muitos, teria sido Páscoa. Entretanto, como foi explicado em B le, acima, há inconsis
tência nas referências do século I quanto ao fato de a Páscoa ter sido no dia 14 ou no dia 15 e, por essa
razão, evito o termo.
37 Como lembrei, durante o julgamento por Pilatos, Mc 15,6 e Mt 27,15 falam do costume de soltar um
prisioneiro “em uma/na festa” . Contudo, essa referência não precisa significar mais que durante o período
festivo de oito dias da Páscoa/dos Pães sem fermento e com certeza não ressalta o dia do julgamento
como o dia de festa por excelência.
38 Blank (“Joannespassion” , p. 151-154) apela à teoria de Schille, segundo a qual Marcos reflete o ambiente
cultuai da Páscoa cristã anual, que era a ocasião para recitar a NP. Grappe (“Essai” , p. 106-108) reúne
esforços para usar o que é conhecido a respeito dos quartodecimanos (nota 18, acima) para reconstruir
a prática da Páscoa judeu-cristã primitiva.
593
A pêndices
isso. Portanto, apesar de toda a tinta gasta com o assunto, em discussões cronológi
cas devemos tratar com extrema cautela (e talvez desistir dela) a chamada datação
sinótica da crucificação em 15 de nisan (datação que, de fato, esses Evangelhos
nunca aplicam a outra coisa além da Ultima Ceia39).
39 A única referência no contexto da Paixão não ligada à refeição está em Mc 14,1: “ Mas a Páscoa e os Pães
sem fermento eram (iam ser) depois de dois dias” . Como expliqueí, a natureza de encaixe do material que
se segue em Mc 14,1-11 significa que, sem as referências à Páscoa preparatórias da próxima refeição em
Mc 14,12-14, não poderiamos dizer com precisão, a partir de Marcos, a data do dia em que Jesus morreu
(14 ou 15 de nisan). 0 mesmo pode ser dito de Mateus e Lucas, que aqui dependem muito de Marcos.
40 BGJ (v. 1, p. 58-63) afirma que “ Cordeiro de Deus” talvez seja símbolo polivalente, destinado a recordar
não só o cordeiro pascal (sua referência mais plausível), mas também o tema do servo sofredor que vai
para a morte como ovelha levada ao matadouro (Is 53,7), e até o cordeiro apocalíptico. Os problemas de
vocabulário são discutidos ali.
41 Ver o estudo em § 35, nota 47 e parágrafo referente. Mencionei que, ao retratar Jesus na festa dos Taber-
náculos, assim como aqui, com referência à Páscoa, João esperava que os leitores percebessem alusões
ao simbolismo da festa que evoluira além do explicado no AT.
594
Apêndice 11: Data da crucificação (dia, mês, ano)
como o cordeiro pascal. Ao contrário de Marcos, ele não faz isso com referência
à Ultima Ceia, pois no relato joanino não há nada manifesto que aponte para ela
como refeição pascal e nenhuma referência ao corpo e sangue eucarísticos de Jesus
que pudesse tomar o lugar do cordeiro ausente.42
42 Jeremias, evidentemente, encontra referências implícitas à Páscoa; ver nota 34, acima, e a questão
maior da duvidosa aplicabilidade ao século I do seder mixnaico da Páscoa. Se, em um período mais
primitivo do desenvolvimento da tradição evangélica joanina, houve um tema da Páscoa na Última Ceia,
ele relaciona-se em parte à aceitação da tese de que a passagem a respeito de comer a carne e beber
o sangue de Jesus em Jo 6,51-58 outrora estava no contexto do capítulo 13 da ceia (ver BGJ, v. 1, p.
287-291).
595
A pêndices
pascal; mas a referência explícita à noite em que ele foi entregue faz parte de uma
tradição que Paulo recebeu e assim nos leva de volta ao pensamento cristão dos dias
bem primitivos.43 Assim, há sólidas razões para julgar histórico o fato de Jesus ter
morrido na quinta/sexta-feira de 14 de nisan, o dia em que os cordeiros pascais eram
sacrificados e véspera de 15 de nisan,44 quando a refeição pascal seria consumida.
C.O ano
Exceto pelos poucos românticos para os quais Jesus não morreu na cruz,
mas acordou no túmulo e fugiu para a índia com Maria Madalena, em sua maioria
os biblistas aceitam o testemunho uniforme dos Evangelhos, segundo o qual Jesus
morreu durante o governo da Judeia por Pôncio Pilatos, que é comumente datado
entre 26 e 36 d.C.45 0 que fazer para estreitar o tempo? As narrativas da infância
de Mateus e Lucas (que não são modelos de história objetiva) indicam que Jesus
nasceu antes de Herodes, o Grande, morrer — morte controversa, mesmo que a
grande maioria aceite 4 a.C.46 Não sabemos quanto tempo antes dessa morte, mas
muitos apelam ao testemunho de Mt 2,26, segundo o qual Herodes procurou matar
os meninos “de dois anos para baixo” e assim optamos pela data do nascimento de
Jesus em 6 a.C. Durante o relato joanino do ministério público de Jesus (Jo 8,57),
“os judeus” lhe dizem: “Ainda não tens cinquenta anos” — quando se nota o tom
hiperbólico dessa declaração e se conta a partir das indicações mateanas e lucanas
do nascimento, ela sugere que Jesus estava ativo publicamente antes de 44 d.C.
Lc 3,23 diz que, quando começou seu ministério, Jesus tinha cerca de trinta anos
(assim, c. 24 d.C.?). Em Lc 3,1, João Batista recebe a Palavra de Deus no 152 ano
do reinado de Tibério César, mas essa datação não é sem dificuldades. Fitzmyer
(Luke, v. 1, p. 455) relaciona cinco fatores problemáticos no cálculo dessa data, mas
4,1 Percebo, evidentemente, que a referência ao cordeiro pascal em ICor 5,7 não é necessariamente tão
antiga quanto o material em ICor 11,23-25; mas as duas passagens se relacionam e não há nenhuma
indicação de novidade na apresentação paulina da metáfora do cordeiro pascal (que com certeza não
é um progresso da missão aos gentios), de modo que não podemos separá-los por um longo espaço de
tempo.
44 Ou, como Jo 19,14 o chama, o “dia de preparação para a Páscoa” .
45 Os evangelistas (exceto Marcos) mencionam o sumo sacerdócio de Caifás, mas isso não ajuda para datar
a crucificação, pois Caifás foi sumo sacerdote antes e depois do governo de Pilatos, de 18 a 36/37. Uma
datação excêntrica para a morte de Jesus é fornecida por R. Eisler (21 d.C.) e J. Steward (24 d.C.).
46 Ver BNM, p. 196-197, 791-795, também R. E. Brown, CBQ 48,1986, p. 482-483.
596
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
4‘ Hoehner (“ Year” , p. 339) conta a partir do início da construção do santuário propriamente dito em 18/17
a.C. e surge com 30 d.C. — data que favorece a crucificação em 33.
597
A pêndices
cálculos bastante precários, para dizer o mínimo;48 contudo, eles tiveram impacto.
Blinzler (Prozess, p. 101-102) relaciona as opções de cerca de 100 biblistas para o
ano da morte de Jesus. Nenhum dos que ele relaciona optou por 34 d.C. (na verda
de, Zeitlin o fez), ou 35, enquanto entre um e três optaram respectivamente pelos
anos 26,27, 28, 31, 32 e 36.49 Treze optaram por 29 d.C., cinquenta e três por 30,
e vinte e quatro por 33 >(l — assim, perto do limite que acabamos de mencionar.
“ Alguns suplementam os cálculos dos Evangelhos com afirmações por autores da Igreja, como Tertuliano
e Clemente de Alexandria, de que Jesus morreu no 15“ ou 16“ ano de Tibério. Essas afirmações não só
derivam provavelmente direta ou indiretamente dos Evangelhos, mas também são problemáticas por si
só, em especial com respeito a como o início do reinado de Tibério estava sendo calculado.
w A data da conversão de Paulo, muitas vezes calculada em 36 d.C. (com base em G1 1,18-2,1), limita a
escolha da extremidade superior da escala. Obviamente, Jesus tinha de morrer antes disso. Entretanto,
Kokkinos (“Crucifixion” ) não se intimida e defende a morte de Jesus em 36, baseado no fato de que o
ano de 33 foi o do casamento de Herodes Antipas com Herodíades (que ocorreu antes da morte de João
Batista), que 33/34 foi o ano sabático que repercute em Lc 4,17-20 como parte do sermão de Jesus, e no
nascimento de Jesus em 12 a.C., o que o faz ter quase cinquenta anos em 36 d.C. (Jo 8,57).
E inútil relacionar alguns dos nomes. Entre as autoridades mais famosas ou cultas que optaram por 30
d.C. estão Benoit, Belser, Brandon, Conzelman, Dibelius, Flusser, Haenchen, Holtzmann, Jeremias,
Leitzmann, Metzger, Olmstead, Schürer, Wikenhausen e Zahn. Entre os que optaram por 33 d.C. estão
Bacon, Besnier, Hoehner, Husband, Gaechter, Maier, Ogg, Reicke, Renan e Tumer.
598
Apêndice II: Data da crucificação (dia, mês, ano)
01 “ Dating” , p. 744; ‘"Astronomy” , p. 169; as datas em itálico são as que eles consideraram mais prováveis
astronomicamente. O estudo desses dois biblistas tem valor especial porque foram feitos todos os esforços
para levar em conta as variáveis. Entretanto, não diferentemente dos médicos que estudaram a morte
de Jesus (§ 42, ANÁl.lSE C), esses cultos cientistas tendem a entender literalmente as várias declarações
evangélicas, sem levantar os tipos de perguntas que propus no texto acima. Além disso, eles dão bastante
atenção a descrições apocalípticas da lua aparecendo como sangue quando Jesus morreu (At 2,19-20;
o apócrifo Relatório [Anáfora] de Pilatos, encontrado em JANT, p. 154), aparição que Humphreys &
Waddington relacionam com um eclipse lunar em 3 de abril de 33 d.C. — uma das duas datas prováveis
para a morte de Jesus.
a2 Ver uma voz contrária em Olmstead (“ Chronology” , p. 4, 6), que afirma que em 33 o dia 14 de nisan não
caiu em uma quinta/sexta-feira: “ O ano da crucificação só pode ser 30 d.C. [...] Sexta-feira, 7 de abril
de 30 d.C., está estabelecida tão firmemente quanto qualquer data na história antiga” .
53 ver § 31,B l; esta tese é defendida por Maier (“Sejanus”) e Hoehner (“Year”). Maier cita o terremoto e
o eclipse relatados por Flégon e a datação por Eusébio da morte de Jesus no 19“ ano de Tibério, sendo
que os dois podem ser calculados como indício para 33 d.C.
599
A pêndices
criar preferência. Não vejo nenhuma possibilidade de chegar a uma decisão pela
escolha de um dos dois anos.54
54 É interessante que, em CKC, o cálculo astronômico bastante certo de Humphreys & Waddington (“ As-
tronomy”) é seguido imediatamente pelo artigo muito cético de Beckwith (“Cautionary”), que põe em
dúvida quase todos os meios usados para calcular o ano da morte de Jesus.
600
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Para datar a crucificação
601
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1945-1946, p. 403-414.
_____. The Date of the Crucifixion According to the Fourth Gospel. JBL 51, 1932, p.
263-271.
_____. The Time of the Passover Meai. JQR 42, 1951-1952, p. 45-50.
602
Apêndice III:
Passagens pertinentes difíceis
de traduzir
A. Mc 14,41 (apechei)
1 Ver na B i b l io g r a f ia d a s e ç ã o (§ 4, Parte II), artigos por Anônimo (= Bomemann), Bemard (“St. Mark
xiv” ), Boobyer, de Zwaan, Hudson, Müller, Smisson e Zeydner; também Feldmeier, Krisis, p. 209-215.
603
A pêndices
“ter”. Nos papiros que tratam de comércio, ele é usado para descrever receber
integralmente uma quantia devida e dar recibo (LFAE, p. 110-112): é assim que a
pessoa “ tem do” favorecido. Esse sentido repercute no refrão de Mt 6,2.5.16: “ Eles
[os hipócritas] receberam sua recompensa [misthos]”. O verbo também significa
“estar distante de, abster-se de, manter-se afastado de”.
1) Sujeito pessoal preenchido. Muitos dão “Judas” como o sujeito não men
cionado.2 “Judas está recebendo [ou recebeu] o dinheiro” (de Zwaan, Smisson).
Foi prometido dinheiro a Judas em Mc 14,11 e sua chegada é anunciada em Mc
14,42 (o versículo seguinte aqui). Uma variante é a sugestão de Boobyer: “Judas
está tomando posse de mim”. Outra variante é a de Anônimo (Bornemann): “Judas
está longe”. Eutímio Zigabeno (In Matt. 26,45; PG 129,685D) apresenta outros
sujeitos: “ O diabo obteve poder sobre mim” ou “ 0 que me diz respeito [isto é, as
Escrituras] foi cumprido” (cf. Lc 22,37). Dormeyer (Passion , p. 132) propõe: “ 0
Pai [invocado em 14,36] recebeu minha oração” — contudo, lembramos que a
oração era para que a hora passasse, não para chegar, como acontece em 14,41c.
“ Deus está longe” é proposto por Feldmeier (Krisis , p. 212-215). Uma pergunta
fundamental pode ser feita a respeito de todas as sugestões que preenchem sujeitos:
o leitor marcano comum teria reconhecido espontaneamente o sujeito proposto?
2 Anônimo (“Erklãrung” , p. 105) observa que Jesus reluta em mencionar o nome de Judas por causa de
sua traição.
3 Encontram-se variações nos Códices Washingtonense e Koridethi, família 13 de minúsculos. OL e 0 S sin;
ver a relação em de Zwaan, “Text” , p. 460. He hora vem da oração seguinte no grego mais bem atestado
de Mc 14,41: “ Chegou a hora” .
604
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir
continua obscuro. O latim do Códice de Beza traz: sufficitfinis et hora — ver a tra
dução de Jerônimo de apechei como “ É o bastante” ou “ Basta”, sob 3), adiante. As
traduções na OL incluem consummatus estfinis e adest finis, “ O fim se completou”
ou “está próximo”. BAA, p. 225, supõe que o Códice de Beza quer dizer: “ Longe
está o fim e a hora” que é exatamente o oposto do que está afirmado a respeito da
“hora” no v. 41c nos melhores mss. Para Zeydner (“Apechei”, p. 440), telos pode
ser traduzido como objeto: “ Recebeu-se o fim”. Uma tradução que combine leituras
gregas (Códices de Beza e Vaticano) resulta em: “ O fim está longe? Ora, a hora
chegou” (Hudson, “ Irony” ). Taylor (Mark, p. 556), que prefere a leitura do Códice
de Beza, apresenta como chave para o original: “ O fim é urgente; (e) chegou a
hora” ; mas é difícil justificar “é urgente” para apechei sem recorrer às alternativas
mencionadas em 5) e 6), abaixo. Outros (MTC, p. 114-115) sabiamente questionam
se o Códice de Beza não representa mais que uma suposição antiga quanto ao sig
nificado de apechei (influenciado por telos echei, em Lc 22,37), em vez de acesso
ao texto original de Marcos.
4 Encontra-se essa tradução em Agostinho e em muitas traduções mais tardias: Lutero, RSV, NAB, a alemã
Einheitsübersetzung etc.
605
A pêndices
5 O papiro de Estrasburgo 4,19 (século VI d.C.) é citado às vezes, mas ali apechei é leitura errônea, segundo
K. W. Müller (“Apechei” , p. 85). A leitura no papiro do Museu Britânico 1343,38 (século VIII) também
é vaga.
6 Assim F. Field, Notes on the Translatimi of the New Testament, Cambridge Univ., 1899, p. 39; Müller,
“Apechei” , p. 84-85.
7 Aqui, deixo de lado emendas perspicazes propostas por Couchoud (“ Notes” , p. 129); ele observa que na
primeira passagem apecho e na segunda apeche, seriam uma leitura mais sensata que apechei.
8 De Zwaan (“Text” , p. 467-468) apresenta um quadro de mais de cinquenta usos de apechein em papiros;
estão esmagadoramente no modo ativo, com o sentido de “ter recebido” . Muitos estão na primeira pessoa
do singular; nenhum dos que estão na terceira pessoa do singular (apechei) é impessoal.
606
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir
copiada, com uma nota na margem próxima de Mc 14,41: apechei to telos, “ O fim
(desta linha) está mais adiante”. Essa nota entrou no texto e foi confundida com
uma declaração de Jesus, erro agravado quando outro copista abandonou to telos
porque, lido assim, a declaração agora contradizia “ Chegou a hora”. Outras suges
tões brilhantes poderíam ser relacionadas, mas não há um meio para estabelecer
se esse erro realmente ocorreu.
607
A pêndices
Hb 5 nos diz que Jesus rezou “ 7[...] àquele que tinha o poder de salvá-lo da
morte, e tendo sido ouvido de medo, 8apesar de ser Filho, aprendeu a obediência
pelas coisas que sofreu” . A frase que termina o v. 7, “de medo” (apo tes eulabeias),
é difícil de traduzir, de uma forma que faça justiça ao vocabulário e à gramática,
e ainda se adapte à fluência do pensamento. Apo (“de” ) é normalmente usado no
âmbito do sentido de uma coisa que sai de outra. Nesta passagem, muitos querem
traduzi-lo como “devido a, por causa de” (BDF 2101), ou mesmo “depois” (Andries-
sen). Eulabeia, relacionado com lambanein, tem um sentido radical de “aceitação”
que, em referência a Deus, vem a significar “medo de Deus, piedade, reverência”.
BAGD, p. 321, insiste que, no NT, seu provável significado é apenas “admiração
reverente” ; mas Bultmann (TDNT, v. 2, p. 751-753) menciona que, na literatura
clássica, eulabeia se transformou em “ansiedade, medo ansioso”, e ele atribui esse
11 De Zwaan (“Text” , p. 464) afirma que mesmo a leitura epechei, em a), se traduz adest.
608
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir
• “ tendo sido ouvido por causa de seu medo (reverente)”. Isso exige que
se entenda Jesus sendo salvo da morte como uma coisa diferente de não
morrer; o que se segue no v. 8 torna-se comentário modificador: embora
fosse ouvido, ainda tinha de aprender obediência. A Vulgata, os Padres
gregos, Lutero e muitas traduções modernas adotam esta interpretação.
• “tendo sido ouvido. Exceto por seu medo (reverente) e apesar de ser Filho,
aprendeu a obediência”. Dois fatores que podiam tê-lo poupado de ter
de aprender pelo sofrimento estão em aposição; contudo, então seria de
se esperar “apesar de mostrar medo (reverente) e de ser Filho...”. Ver
em Mt 6,7 o uso absoluto de “ouvido”.
• “morte. Tendo sido ouvido, de medo ansioso [apo] — apesar de ser Filho
— das [apo] coisas que sofreu, aprendeu”. Isso envolve uma aposição
entre as duas frases com apo que em grego estão inconvenientemente
separadas.
12 “ Medo da morte” , em Hb 2,15, que claramente significa ansiedade é importante paralelo, embora use
phobos.
609
A pêndices
A meu ver, exceto pela última sugestão, que é uma emenda (sempre um
recurso desesperado), o objetivo básico do conjunto não muda decisivamente, quer
“de medo” enfatize a ansiedade dos sofrimentos de Jesus, quer, entendido como
reverência, afete sua posição como Filho.13
15 Ver mais detalhes, além dos autores mencionados no início de § 11 B, em P. Andriessen e A. Lenglet.
Bíblica 51,1970, p. 207-220, esp. 208-212; P. Andriessen, NRT 96, 1974, p. 282-292.
610
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir
aqui...”. A suposta emoção pode estar relacionada com a tese (duvidosa) de que
“ Rabi” e o beijo eram incomuns e, portanto, sinais hipócritas de respeito e amizade.
Talvez aqui caiba o valor de eph ho proposto por Lee: “para esse propósito, para
esse recado” ; assim: “Amigo, para isso estás aqui”.
14 Não devemos ficar excessivamente impressionados porque um escriba do Códice Latino Armagh do século
IX seguiu nessa direção: “ Amice,fac ad qmd venisti” — é provável que ele tenha sido influenciado pelo
fac de João.
611
A pêndices
15 “ Dificilmente” , diz BDF 3002 a respeito de Mt 26,50; vagos são Lee (“ Matthew” , p. xxvi), Owen e Zorell;
“ Um exemplo não ambíguo dele ainda está para ser encontrado” , diz BAGD, p. 5 8 4 ,1 9; uma questão
em aberto, diz ZAGNT, v. 1, p. 89.
16 Deissman, “Friend” , p. 492. A Vulgata, lida como pergunta, influenciou muitas traduções: Wycliífe,
Luther, Tyndale, KJ, RSV.
612
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir
613
A pêndices
César” (Jo 19,12). “ Ora, Pilatos, tendo ouvido essas palavras, levou Jesus para
fora e [...] no/para o lugar chamado Litóstroto”. Devem as palavras gregas (dadas
acima, no título da subseção) que se encaixam na lacuna ser traduzidas intransiti-
vamente, por exemplo, “e sentou-se no tribunal” ou transitivamente, por exemplo,
“e sentou-o [Jesus] no tribunal” (ou “em uma plataforma” que servia de lugar de
julgamento)? No COMENTÁRIO de § 35, optei pela tradução intransitiva, mas deixei
o exame detalhado para esta subseção.
0 grego bema, que representa o latim tribunal, tem dois sentidos básicos
pertinentes a este contexto. Refere-se ao sella curulis, ou “assento curul”, no qual o
juiz romano se sentava para presidir o julgamento de um crime grave. Josefo (Guerra
II,xiv,8; #301) menciona o bema que Floro colocou na frente do palácio onde ele se
hospedava em Jerusalém; é presumível que ficasse em uma elevação com degraus
que levavam até ele. Mas, pelo costume de usar o nome da parte pelo todo, bema
também se refere à plataforma, em geral semicircular e feita de pedra ou madeira,
no centro da qual ficava o assento do magistrado. Está claro o que Mt 27,19 quer
dizer com bema: Pilatos recebe o recado de sua mulher enquanto está sentado na
cadeira do tribunal e fica-se com a impressão de que o julgamento todo foi presidido
dessa cadeira.20 0 julgamento era realizado em uma de duas posições: uma sessio
de plano (fora do tribunal, literalmente “ao rés do chão” ), para crimes menores ou
procedimentos mais informais, e uma sessio pro tribunali (sentado na cadeira do
tribunal), por crimes graves; mas o juiz não mudava de uma posição para outra no
meio de um julgamento. Se o sentido intransitivo é seguido em Jo 19,13, Pilatos toma
assento no bema apenas no final do julgamento? Até este ponto, foi tudo informal,
de modo que o julgamento começa em Jo 19,13? João, evidentemente, não age como
repórter do tribunal, que descreve as técnicas; ele escreve como dramaturgo, com
a complicada sinopse de Pilatos indo de um lado para outro, para dentro e para
fora do pretório. Ele pode ter incluído um termo jurídico para dar a impressão de
que chegara o momento mais solene e importante do julgamento. A meu ver, fazer
Pilatos simplesmente sentar-se na plataforma, e não na cadeira do tribunal, não
se harmoniza com o cuidado na localização (Litóstroto, Gábata) e na marcação da
hora (ao meio-dia, antes da refeição pascal) que João dá a esse momento. Quando
se segue a tradução transitiva, onde Pilatos faz Jesus sentar-se no bema, é maior a
possibilidade de traduzi-lo como “ plataforma”.
20 Ver também o julgamento de Paulo diante de Festo em At 25,6.17; e Josefo, Guerra, II,ix,3-4; ##172.175.
614
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir
21 Por exemplo, Beutler, Boismard, Bonsirven, F. M. Braun, Charbonneau, Corssen, de la Potterie, Fenton,
Gardner-Smith, Guichou, ttaenchen, Harnack, Kurfess, Lightfoot, Loisy, G. H. C. Macgregor, MacRae,
Mader, Meeks, 0 ’Rourke, Roberts e Schwank.
22 Balagué, Barrett, W. Bauer, Benoit, Bemard, Blinzler, Bultmann, Bruce, Derwacter, Holtzmann, Hoskyns,
Knabenbauer, Lagrange, Lightfoot, A. Richardson, Robert. Zabala e Zahn.
23 Há quem julgue que João foi deliberadamente ambíguo à guisa de ironia teológica, por exemplo, J.
Ashton, Understanding the Fourth Gospel, Oxford, Clarendon, 1991, p. 228, seguindo R. H. Lightfoot.
Trebolle Barrera (“Possible”) lembra que o hebraico yib é intransitivo no qal e transitivo no hiphil. e
que, em algumas cenas de coroação (lR s 4,20), os tradutores gregos ficaram divididos quanto a ele ter
de ser traduzido intransitiva ou transitivamente. Para ele, João foi influenciado pelas possibilidades do
hebraico.
24 Derwacter (“ Modern” , p. 27) relata que 47 dos 50 usos neotestamentários de kathizein são intransitivos,
e que os outros 4 usos neotestamentários com bema são intransitivos.
615
A pêndices
616
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir
617
A pêndices
duas passagens mais primitivas, uma em EvPd, a outra em Justino, onde Jesus é
descrito sentado e é escarnecido como juiz.
EvPd 3,7 tem como sujeito o povo judeu: “ E eles o vestiram com púrpura
e o sentaram em uma cadeira do tribunal, dizendo: ‘Julga imparcialmente, Rei de
Israel’”. Este texto apoia realmente a leitura transitiva de Jo 19,13 se supusermos
que o autor do EvPd conhecia ou ouvira essa passagem? Observemos as mudanças
e suas implicações: no EvPd, o povo judeu, não Pilatos, é o sujeito; a clara referên
cia a uma cadeira (kathedra kriseos) significa que bema não era entendido como
plataforma; um contexto de escárnio que não está claro em João foi produzido com
a adição de elementos do escárnio de Jesus pelos soldados romanos encontrado
em Jo 19,2-3; embora Jesus seja chamado rei, dizem-lhe de modo escarnecedor
para julgar imparcialmente (dikaios ; ver Mt 27,19); e, o que é muito importante, a
fim de tornar kathizein transitivo, um objeto pronominal (auton ) é colocado depois
dele — o elemento gramatical que está notavelmente ausente em João. Assim, isso
é mais uma nova redação que uma exegese de Jo 19,13, que adapta o tema a um
novo contexto dramático muito diferente do joanino. Como quase sempre em EvPd,
o que motiva a nova redação é o desejo de pôr em relevo semelhanças com o AT.
Aqui, a passagem em mente é Is 58,2, onde Deus reclama que os israelitas agem
como se fossem uma nação justa (o que eles não são): “ Eles me pedem julgamento
justo [dikaios]”. Não há nenhum eco desse texto em João.
618
Apêndice III: Passagens pertinentes difíceis de traduzir
que o povo senta Jesus na cadeira, falam com ele. Em Jo 19,13, estão envolvidos
três lados: Pilatos, os judeus e Jesus. Depois de Pilatos levar Jesus para fora e ter
lugar a ação envolvendo o bema, Pilatos fala aos judeus, não a Jesus. Se a ação
fosse transitiva e Pilatos tivesse sentado Jesus no bema, deveria haver o mesmo
dinamismo visto em EvPd e Justino: Pilatos teria falado a Jesus, não aos judeus, e
o teria desafiado a agir como juiz. No comentário, afirmei que a atmosfera solene
de tempo e lugar em Jo 19,13-14 nos incentiva a ler isso como momento culminante
do julgamento, onde Pilatos senta-se no sella curulis para proferir sentença e uma
condenação à morte. A fraqueza dos argumentos a favor da interpretação transitiva
significa que não há motivo para mudar esse quadro.
619
Apêndice IV:
Perspectiva geral de Judas Iscariotes
Resumo:
A. A vida de Judas
1. A existência de Judas
B. O nome Iscariotes
2. Várias explicações
Bibliografia
621
A pêndices
A. A vida de Judas
1. A existência de Judas
1 Em algumas línguas, às vezes o nome está disfarçado, para evitar confusão com o Iscariotes, por exemplo
“ Jude” , em inglês. Um dos “ irmãos” de Jesus chama-se Judas (Mc 6,3 — ao que tudo indica, o autor
designado em Jd 1,1), como um discípulo que Jo 14,22 declara não ter sido o Iscariotes — talvez esse
último seja o “Judas, filho de Tiago” das listas em Lc 6,16; At 1,13.
2 A tribo de Judá era o principal componente do Reino do Sul, área que se tomou a província da Judeia
sob os romanos.
622
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
Outra diferença sutil nesse debate diz respeito ao papel de Judas. Por exem
plo, Grayston (Dying, p. 395-399) admite que Judas não foi inventado por Marcos e
era um dos Doze, mas insinua a possibilidade/probabilidade de não ter ele desem
penhado papel ativo na entrega de Jesus às autoridades judaicas. Grayston afirma
623
A pêndices
que a tradição cristã mais primitiva alegava que Deus entregou Jesus (paradidonai )
ou, em conflito com os judeus, que a hierarquia do Templo entregara Jesus. Somente
em reação a perigos cristãos internos Judas recebeu um papel na NP como o que
entregou Jesus à morte. Entendo os indícios quanto a paradidonai de maneira dife
rente. A série de indivíduos que constam como tendo entregado Jesus foi examinada
em § 10. É perfeitamente possível que várias circunstâncias na pregação fizeram
um indivíduo ou outro ser enfatizado, mas não há nenhum indício convincente de
que a linguagem não fosse polivalente desde o início e de que um indivíduo como
Judas fosse criado em um nível mais tardio. Dorn (“Judas” ) apresenta um estudo
admiravelmente meticuloso da questão; ele afirma que, embora Judas certamente
tenha existido como um dos Doze durante a vida de Jesus, não há probabilidade
de, na tradição, ele ter sido incluído entre os Doze que deram testemunho do Jesus
ressuscitado. Algum fato que contestou seu discipulado acontecera entre o ministério
e a ressurreição. Se Judas fosse apenas o primeiro a fugir, isso daria razão suficiente
para a tradição evangélica unânime de que ele entregou Jesus, para uma tradição
antiga de que o círculo dos Doze teve de ser completado, como se a posição de
Judas estivesse definitivamente vaga, e para a associação do destino abominável de
Judas com o “ Campo de Sangue” ? Assim, a meu ver, a atenção a todos os indícios
apoia a tese de que um dos Doze, chamado Judas, entregou Jesus às autoridades
que planejavam sua morte. Na tradição, pouco mais que isso pode ser conhecido a
respeito de Judas, exceto que ele teve morte repentina e violenta, e que seu nome
ficou associado ao “ Campo/Terreno de Sangue”.
624
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
(“ Was Judas” ) afirma que o número cardinal heis, usado a respeito de Judas na
frase “um dos Doze” 3 era coloquial para o ordinal (BDF1), de modo que Judas era o
“primeiro dos Doze”. Os argumentos apresentados para apoiar a prioridade de Judas
incluem: sua posição na Ultima Ceia (Jo 13,26, perto o bastante para ser alcançado
por Jesus); seu controle da bolsa comum (Jo 12,6); e a possibilidade sugerida por
Wright de ser ele um sacerdote, o que lhe permitia entrar no Templo até o santuário
no qual ele jogou as moedas de prata (Mt 27,5). Mas por que a comunidade cristã,
que não suprimiu a memória da entrega de Jesus por Judas, suprimiria a memória
de ser ele o primeiro entre os Doze? De fato não há nada que apóie a primazia de
Judas. Todas as listas dos Doze põem Simão Pedro em primeiro lugar; Mt 10,2
usa o número ordinal protos para ele, que desempenha nos Evangelhos um papel
muito maior que o de Judas. Na verdade, até João (irmão de Tiago) é mencionado
mais vezes que Judas (30 vezes [mais 4 como filho de Zebedeu] comparado com
22). Quanto a guardar a bolsa (se isso for real) nada nos valores proclamados por
Jesus torna esse papel primordial. Finalmente, segundo a tese de Wright, se heis
aplicado a Judas em Jo 6,71 significa “primeiro dos Doze”, o que significa quando
aplicado a Tomé (Jo 20,24)?
3 Bum (“ St. Mark”) relata que Wright tinha o ilustre apoio de F. Field, mas que J. F. Isaacson contra-
-argumentou que no grego helenístico, em oposição ao ático, ho eis significa “ um dos” , porque há casos
claros onde o artigo definido pode ser indefinido. A. T. Robertson (Expositor 8. Ser., 13, 1917, p. 278-
286), rejeita a tese de Wright, mas observa corretamente que ho heis ton dodeka é a melhor leitura em
uma passagem como Mc 14,10. Ele aceita a tentativa de H. B. Swete de fazer justiça ao artigo, dando
este sentido: esse um, o único dos Doze a ir aos chefes dos sacerdotes para entregar Jesus. J. R. Harris
(.Expositor 8. Ser., 14, 1917, p. 1-16) também não aceita a tese de Wright — em algumas tradições pri
mitivas Judas é o terceiro ou sexto entre os Doze — mas tem problemas com a opinião de Robson quanto
a ho heis. Wright (Expositor 8. Ser., 14, 1917, p. 397-400, responde e se concentra especialmente na
tentativa fantasiosa de Harris para relacionar Judas Iscariotes com Issacar em termos de onde cada um
está colocado entre as doze tribos ou os doze apóstolos.
625
A pêndices
e aceitou essa dádiva embora tivesse decidido entregar Jesus? (Veja um estudo
da intensa discussão a respeito em Halas, Judas, p. 104-136.) Os que afirmam
a participação de Judas apontam para ICor 11,27-32, onde Paulo fala em forte
condenação de quem come o pão ou bebe o cálice do Senhor indignamente: “Essa
pessoa come e bebe sua própria condenação por não discernir o corpo. É por isso
que [...] e alguns morreram”. Eles perceberíam na advertência geral de Paulo
uma lembrança de Judas que comeu indignamente e logo morreu. Nenhum relato
evangélico descreve especificamente Judas recebendo o pão/corpo ou o vinho/
sangue. João não descreve a eucaristia na ceia e portanto nada pode ser feito
quanto ao bocado dado a Judas em Jo 13,26. Jesus servir-se do mesmo prato (de
comida) que Judas em Mc 14,20; Mt 26,23 é descrito de maneira bem diferente
da Eucaristia. Em Mc 14,18-21; Mt 26,21-25, a advertência de Jesus que prevê
a traição por Judas (abertamente em Mateus) precede as palavras sobre o pão e
o vinho (Mc 14,22-25; Mt 26,26-29). Nenhum dos dois evangelistas descreve a
partida de Judas da refeição (mencionada apenas por Jo 13,30), apesar de Judas
não estar entre os discípulos que vão com Jesus ao Getsêmani (porém ele chega
mais tarde: Mc 14,43; Mt 26,47). Não há meios, então, de saber se na mente desses
dois evangelistas Judas saiu depois da advertência (e antes da Eucaristia) ou de
pois da Eucaristia. O relato de Lucas causa o problema: ali a advertência de Jesus
que prediz a traição (por Judas: Lc 22,21-23) segue-se às palavras sobre o pão e o
vinho (Lc 22,17-20). Certamente é de se supor que Judas estivesse ali durante a
advertência e as palavras eucarísticas. Contudo Lucas jamais menciona Judas pelo
nome durante a ceia; e sua falta de preocupação com qualquer possível inexatidão
subentendida na sequência que acabamos de descrever é evidente pela declaração
do Jesus lucano aos discípulos depois da desgraça do traidor em Lc 22,22: “ Vós
sois aqueles que permaneceram comigo em minhas provações [...] vos sentareis em
tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Lc 22,28.30). Se é plausível pensar
que Judas recebeu a Eucaristia e depois ouviu Jesus amaldiçoá-lo, teria ele saído
depois da maldição e antes da promessa?
626
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
(Funk, org., p. 271), que permitem a distinção entre a noite do lava-pés e a noite
da Eucaristia — distinção que cresceu na liturgia, talvez? Preisker (“ Verrat”, p.
152-153) afirma que Mc 14,10-11 (Judas indo procurar os chefes dos sacerdotes
e concordar em entregar Jesus) está fora da ordem cronológica (assim também E.
Hirsch, Klostermann, Welhausen), pois originalmente essa passagem estava no
fim da Ultima Ceia como em Jo 13,30. A (hipotética) ordem lucana original era Lc
22,25.28-30.21-23.3-6; e assim Judas entregou Jesus depois da Eucaristia. Tais
rearranjos supõem que os escribas, escandalizados por encontrar Judas recebendo
a Eucaristia com o plano já determinado de trair Jesus, tentaram suavizar o relato.
Considero a maior parte disso hipótese improdutiva a respeito de um problema que
pode ter sido bem estranho à preocupação dos evangelistas.
Em meu comentário (p. 274, vol. I), insisti que o verboparadidonai aplicado
a Judas significa “entregar”, não “trair”.4 Judas entregou Jesus por meio de duas
ações segundo os sinóticos: ele foi antes ou com o grupo que veio prendê-lo para
mostrar-lhes onde e quando agarrar Jesus (em um lugar remoto no monte das Oli
veiras, tarde da noite); e uma vez lá ele identificou quem era Jesus, diferenciando-o
dos outros que ali estavam (os discípulos). Alguns biblistas julgam uma ou as duas
dessas funções ilógicas e afirmam que Judas traiu Jesus de outra maneira. Vamos
primeiro considerar a asserção de falta de lógica. Não seriam o paradeiro e a iden
tidade de Jesus bem conhecidos das autoridades ou, pelo menos, não poderíam eles
mandar a polícia seguir e prender Jesus sem a ajuda de Judas? A essa objeção é
possível responder da seguinte maneira: havia m assas de povo em Jerusalém para
a festa, o que dificultava a supervisão; normalmente Jesus não ficava em Jerusa
lém, mas fora das muralhas (Mc 11,11; entre amigos em Jo 12,1-2); nos relatos
sinóticos é a primeira vez que Jesus vem a Jerusalém e não fazia muito tempo que
ele estava lá; mesmo em João, onde ele vinha a Jerusalém com frequência e podia
ser bem conhecido, Jesus por diversas vezes escapou de ser preso e se escondeu
(Jo 7,30.45-46; 8,59; 10,39-40; 11,54). Portanto, no nível de verossimilhança,
4 0 verbo clássico para trair é prodidonai. A única vez que uma palavra desse radical é aplicada a Judas
no NT é Lc 6,16 (prodotes). A preferência esmagadora por paradidonai origina-se do emprego em Is
53,12 [LXX]: “ Ele foi entregue por nossos pecados” .
627
A pêndices
não é ilógico que as autoridades judaicas quisessem ajuda quanto a onde e quando
prender Jesus sem tumulto.
Quando nos voltamos para as teorias dos que defendem a ideia de traição, a
suposição inevidente é que Judas deu às autoridades judaicas informações secretas
a respeito de Jesus que lhes permitiram mover uma ação contra ele. Quero relacio
nar alguns ditos ou atos de Jesus que Judas supostamente traiu: Jesus afirmou que
destruiría o santuário (Goguel); Jesus afirmou ser o Filho de Deus (Grundmann)
ou o Messias, desse modo rompendo o segredo messiânico (Bacon, Bornhãuser, A.
Schweitzer, Seitz); Jesus esperava inaugurar o Reino de Deus com a Ultima Ceia
ou imediatamente depois dela (Bacon, Preisker; ver Mc 14,25; Lc 22,28-30 [SI
122,5]); Jesus tinha se deixado ungir (Bacon; ver Mc 14,3.8 [ISm 16,13]); Jesus
celebrou a Páscoa em hora ilegal ou de maneira ilegal (M. Black); Jesus aprovara
o uso da espada (Stein-Schneider; ver Lc 22,36-38; Is 53,12). Todas essas suges
tões são especulativas, baseadas principalmente em temas que aparecem direta
ou indiretamente nos procedimentos judaicos contra Jesus. A objeção fatal a todas
elas, a meu ver, é que se fossem verdade Judas teria comparecido como testemunha
contra Jesus para tornar a acusação plausível.
Derrett (“ Iscariot”, com o aviso que aborda o NT com novos olhos e a aborda
gem correta) estuda Judas à luz do mestrâ. A raiz hebraica e aramaica msr significa
“entregar” ; e como os judeus viviam sob domínio estrangeiro, palavras originárias
dessa raiz eram usadas para descrever a entrega de judeus aos governantes gentios.
No final do século II. d.C., Mixná Terumot 8,12 insiste que esse comportamento
é indesculpável sob quaisquer circunstâncias. Mais primitiva e mais aplicável ao
NT é a hostilidade do Rolo do Templo de Qumrã (11Q Miqdas 64,7-8): “ Se alguém
entregar seu povo a uma nação estrangeira [...] vós o pendurareis em uma árvore
e ele morrerá”.5 Como isso se aplica a Judas? Ele percebeu, quando entregou Je
sus às autoridades judaicas, que indiretamente o entregava a Pilatos? No nível de
verossimilhança seria de se esperar que ele conhecesse o procedimento normal
do sinédrio em crimes capitais. Por outro lado, segundo Mt 27,3, ao ver que as
0 Entretanto, em geral em Qumrã a raiz msr aplica-se a entregar alguém, como em CD 19,10. Não está claro
se CD 9,1 refere-se a esse mesmo assunto: “Todo aquele que jura levar alguém à destruição pelas leis
dos gentios, será ele próprio destruído” . Contraste P. Winter, RQ 6,1967-1969, p. 131-136 e Rabinowitz,
RQ 6,1967-1969, p. 433-435.
628
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
autoridades judaicas iam entregar Jesus aos romanos, Judas mudou de ideia com
remorso — quase como se ele não soubesse que o resultado seria esse.
6 Bartnik (“Judas”) aponta para o caráter teológico dado a Judas como o arquétipo do pecador. Klauck
(Judas, p. 74) conjetura se Judas como ladrão não é uma retroprojeção do desagrado cristão primitivo por
haveres (At 2,44-45; 4,32-35). Nesse caso, entretanto, seria de se esperar que Lucas-Atos enfatizassem
a avareza de Judas. “O salário da maldade” em At 1,18 é geral demais para indicar avareza.
629
A pêndices
Lüthi (“ Problem” ) acha que a acusação de que Judas era ladrão aludia ao
diabólico, o que nos leva à segunda motivação apresentada nos Evangelhos. Lc 22,3
introduz a cena na qual Judas vai ter com as autoridades relatando: “ Então Satanás
entrou em Judas, chamado Iscariotes”. Antes da Ultima Ceia, Jo 13,2 informa o
leitor: “ O diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão, o Iscariotes,
entregar Jesus”. Jo 13,27 ressalta que “depois do bocado de comida, Satanás entrou
em Judas”. Assim, Lucas e João apresentam Judas como instrumento de Satanás,
o agente principal na entrega de Jesus (veja Billings, “Judas” ). Para João, Judas
deu ao Príncipe deste mundo entrada no círculo íntimo de Jesus. Outra indicação
do diabólico é a designação de Judas como “o filho da perdição” (Jo 17,12, termo
usado por 2Ts 2,3 para a figura do inimigo de Deus) e como diabo (Jo 6,70). Além
disso, a ideia que Jesus conhecia Judas “desde o início” relaciona-se ao julgamento
que o diabo era um assassino “desde o início” (Jo 6,64; 8,44). Naturalmente, esse
é um julgamento teológico imaginado em retrospecto; não ajuda a determinar a
perspectiva pessoal de Lucas.
A tendência a considerar que Judas já era de natureza má aumentou. No Evangelho arábico da infância
35, Judas é posuído pelo diabo em criança e agride o menino Jesus. Na influente Golden Legend do
século XIII pelo dominicano Jacó de Voragine (Festa de São Mateus, 24 de fevereiro) há uma advertência
630
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
popular é que Judas ficara impaciente por Jesus não inaugurar o Reino, impaciência
nascida do zelo (os que pensam que Judas era ardente nacionalista) ou da ambição
(os que reparam na sequência em Lc 22,21-24 onde a maldição contra o traidor é
seguida por uma disputa quanto a qual dos discípulos é o maior). Contudo, a respeito
dessa sugestão, Judas não desempenha nenhum papel nas diversas passagens neo-
testamentárias que tratam da realeza para Jesus ou da ambição entre os discípulos
(por exemplo, Jo 6,15; At 1,6; Mc 9,33-34; 10,37). Alguns, para os quais Judas
ainda acreditava em Jesus, sugerem que Judas o entregou na expectativa de Jesus
ser forçado a mostrar seu poder, dominar as autoridades e inaugurar os preceitos
divinos (Cox, “Judas”, p. 420-421). Como apoio, invocam Mt 27,3-5, onde Judas
parece ficar aturdido quando as autoridades entregam Jesus a Pilatos. Uma versão
específica disso é defendida por Stein-Schneider (“ Recherche”, p. 415-420): Judas,
discípulo fiel, tinha esperança de acabar com uma revolta que as ações de Jesus
tinham provocado e com dinheiro procurou fazer os chefes dos sacerdotes deixá-lo
ir. Ainda mais idiossincrática é a tese de G. Schwarz (Jesus, p. 12-31) que Judas
só estava obedecendo ordens de Jesus (Jo 13,27) para entregá-lo a Caifás, que era
conhecido de Judas (o discípulo anônimo de Jo 18,15b). O bocado de pão que Jesus
deu a Judas na ceia foi um gesto de gratidão e o beijo de Judas foi um gesto de des
pedida como em Rt 1,14. (A mistura que Schwarz faz de textos de vários Evangelhos,
a nenhum deles dando o sentido que os evangelistas pretendiam, é cercada por sua
retroversão de segmentos das NPs no aramaico original!) Outros opinam que Judas
agora perdera a fé em Jesus e achava ser seu dever religioso deter o falso mestre.8
Lc 22,6 emprega o verbo exomologein para descrever as negociações de Judas com
os chefes dos sacerdotes. Quase sempre traduzido que Judas “consentiu”, o verbo
pode ter a conotação de “reconhecer, confessar” e assim alguns o entendem em
termos dos sacerdotes forçando Judas a confessar sua cumplicidade no seguimento
de Jesus antes de aceitarem seus serviços.
profética aos pais de Judas, na noite de sua concepção, que essa criança será má e ele o é a vida toda,
em especial quando fica amigo de Pilatos.
Pseudo-Tertuliano (Adv. Omnes Haer. 2,6; CC 2,1404) descreve os gnósticos para os quais Judas tentava
desmascarar Jesus como pessoa má. Nas lendas judaicas medievais do Toledoth Yeshu o rabino Jehuda
ish Bartola (Judas Iscariotes) ajuda o povo judeu a superar as defesas mágicas do perverso Jesus. Judas
tirou o corpo de Jesus do túmulo; e quando foi feita a mentirosa alegação de ressurreição, Judas refutou-a
mostrando o corpo.
631
A pêndices
9 Observe a combinação em uma maldição dos tempos patrísticos invocada sobre quem quer que pertur
basse uma sepultura: Que ele tenha a maldição e dos que dizem: “ Foracom ele [...] crucifica-o” (NDIEC
1,1976, #61, p. 100-1-1).
10 O Pastor de Hermas (Similitudes IX,xix,l-3) declara que não há arrependimento possível para “os que
entregam os servos de Deus” . Hermas é mais indulgente com os que não têm fé.
11 Isto está em harmonia com o julgamento em Mixná Sanhedrin 10,2 que Aquitofel (que se voltou contra
Davi e se enforcou) não tem lugar no mundo que há de vir. Na direção oposta, a desconfiança de Orígenes
do castigo eterno está exemplificada em sua opinião que o suicídio de Judas refletia uma alma exposta
que confessava e suplicava misericórdia (In Matt. 117, a respeito de Mt 27,3 (GCS 38,245). Halas (Judas,
p. 46) aponta para os Atos de André e Paub onde, depois de devolver o dinheiro, Judas encontrou Jesus
e foi mandado ao deserto para penitência; ali ele encontrou e adorou o demônio (JANT, p. 472).
632
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
633
A pêndices
fazer; fundar” ), de modo que Judas seria descrito como o fundador que possibilitou a
compra (com referência a esse sentido do verbo em inscrições bizantinas posteriores
ao ano 1000). A meu ver essa harmonização distorce o sentido óbvio do texto dos
Atos, escrito em total ignorância da narrativa mateana.
12 Desautels (“Mort” , p. 236) afirma que o sentido de prenes depende de ser ou não derivado de uma raiz
pro- (cair para a frente) ou uma raiz pra- (inchar).
13 Prestheis reflete-se nas versões georgiana e armênia dos Atos.
634
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
sen — a ideia é que ele explodiu depois de inchar; e Chase considera ebremesen
uma confusão de errage mesos “e espalhou-se ou derramou-se a partir do meio”,
c) O castigo da mulher infiel incluía uma maldição que faria seu ventre inchar
(Nm 5,21-22.27).14 d) A morte que Deus inflige em várias pessoas indignas é por
inchaço.15 Na avaliação deve-se notar que o argumento b) é muito especulativo e
o d) é fraco, pois enquanto muitas figuras más são acometidas de intensas dores
e vermes nos intestinos,1617relativamente poucas constam como tendo inchado. Ao
rejeitar a tradução de Chase, H. J. Cadbury (JBL 45, 1926, p. 192-193) afirma
que em nenhum caso da literatura grega médica ou não médica prenes significada
inchado (veja também A. D. Knox, Lake).
14 Também Josefo Ant. II,xi,6; #271); ver Eb. Nestle, “Fate” . Mais distante, em SI 109,18 a maldição deve
penetrar as entranhas dos maus, como água.
10 Na lenda de Aicar, segundo a versão siríaca (Sabedoria de Aicar 8,41) “ Nadan inchou como um saco e
morreu” Na versão arábica (Sabedoria de Aicar 8,38) e na armênia, ele incha e explode, ver também a
descrição da morte do iníquo imperador Galério por Eusébio (HE VII,xvi,51). Em Atos de Tomé 33 a grande
serpente má que havia posto Eva à prova incha, explode e morre, de modo que o veneno derramou-se
em abundância.
16 Ver a lista em n. 28 adiante.
17 A citação formal explícita de Zc/Jr em Mt 27,9-10 relaciona-se com o destino do dinheiro pago por sangue
inocente e a compra do campo mas não com a maneira em que Judas morreu.
635
A pêndices
Doze e com a escolha de outro para ocupar seu lugar. Também foram percebidas
referências implícitas.18 Para Wilcox e Manns há um reflexo da tradição preserva
da no Targum Neofiti de Gn 44,18 onde Judá (= Judas) adverte: se Simeão e Levi
mataram pessoas para vingar o estupro de Dina (veja Gn 34,25), mulher que não
se incluía entre as tribos dos irmãos e não tinha nenhuma parte da terra prometida,
“quanto mais por causa de Benjamim, nosso irmão que faz parte do número das
tribos e que tem uma parte [holeq] e herança na divisão da terra”. Considera-se
isso relacionado com a descrição de Judas em At 1,17: “Ele se incluía entre nós e
foi incumbido de uma parte do ministério”.19 Julga-se que a referência a matar um
irmão foi entrelaçada com a história de Caim em Gn 4, onde ele mata o irmão Abel
em um campo (LXX pedion, “planície” ) e há ênfase no sangue.20 A validade dessa
base sugerida depende grandemente da antiguidade da composição de Targum
Neofiti que biblistas como J. A. Fitzmyer datam de um período consideravelmente
mais tardio que o NT. Também Dupont (“ Douzième” ) contestou intensamente a
abordagem que Wilcox faz a At l,15-26.21
636
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
à morte de outra figura má.2*23 Antes de tirar alguma conclusão quanto à historici-
dade disso, examinemos brevemente um terceiro relato antigo da morte de Judas.
Judas viveu sua evolução neste mundo como enorme exemplo de impiedade. Sua
carne estava tão inchada que onde um carro passaria facilmente ele não podia
passar. Na verdade, nem mesmo sua gigantesca cabeça sozinha passaria. Dizem
que suas pálpebras estavam tão intumescidas que ele já não conseguia ver a luz;
nem com o instrumento de um ótico dava para perceber-lhe os olhos, de tanto
que eles afundaram abaixo da superfície. Seu órgão íntimo era balofo e repulsivo
ao olhar em um grau que ultrapassava a vergonha. Conduzidos por meio dele de
todas as partes de seu corpo, fluíam juntos pus e vermes, para sua vergonha,
mesmo quando ele urinava. Depois de tantas torturas e castigos, dizem que sua
vida teve fim em seu terreno [chorion]; e por causa do cheiro esse terreno está até
agora deserto e desabitado. Na verdade, até o dia de hoje ninguém passa por esse
lugar sem tapar o nariz com a mão — tão grande foi a efusão de sua carne e tão
espalhada sobre a terra.
0 comentário de Mt 27 tem duas partes. A segunda parte (menos diretamente
atribuída a Pápias) é quase igual ao comentário de Atos que acabamos de citar. A
primeira parte, atribuída diretamente a Pápias, é muito mais sucinta.
2i 2Mc foi escrito em grego. Os relatos nos Atos das mortes de Judas e de Herodes Agripa I (2Me 12,23:
“ comido por vermes”) foi entendido não só por judeus de língua grega, mas também pelos que conheciam
os relatos greco-romanos de mortes ímpias (ver n. 28 adiante).
24 Ver também J. Kürzinger, Papias von Hierapolis, Regensburg, Pustet, 1983, p. 104-105.
25 Embora Apolinário saiba do enforcamento, nada do que ele cita sugere que Pápias sabia.
637
A pêndices
Judas viveu sua evolução neste mundo como enorme exemplo de impiedade. Sua
carne estava tão inchada que ele não podia passar onde um carro passaria facil
mente. Tendo sido esmagado por um carro, suas entranhas foram expelidas.
Harris (“ Did Judas” ) defende a originalidade da forma mais longa, lem
brando que, independente de Apolinário, Bar Salibi atribui a Pápias detalhes nela
mencionados. Lake (“ Death”, p. 25) prefere a versão sucinta e acha que a versão
mais longa surgiu do acúmulo de horrores das mortes horripilantes de homens
sabidamente maus.
26 Observe a diferença de vocabulário entre Pápias (forma longa) “ até o dia de hoje” (mechri [tes] semeron)
e Mt 27,8: “até hoje” (heos tes semeron).
27 A semelhança será muito mais próxima se Chase estiver certo ao afirmar que prenes pode significar
“inchado” . Klauck (Judas, p. 121) acha que Pápias está subordinado aos Atos.
28 Ver Benoit, “ Death”, p. 194. A forma longa de Pápias está mais próxima do relato completo da morte
de Antíoco Epífanes em 2Mc 9,5-10 (vermes, fedor insuportável) que At 1,18. A morte de Nadan na
638
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
Overbeck, Schweizer, van Unnik e outros) que o relato de Pápias, mesmo a forma
longa, é com toda a probabilidade independente dos Atos e também de Mateus.
forma arábica da lenda de Aicar (Sabedoria de Aicar 8,38) tem descrição muito ampliada do efeito do
inchaço no corpo. Herodes Agripa é ferido e comido por vermes em At 12,23. Josefo (Ant. XVII,vi,5;
##168-169) inclui na morte de Herodes, o Grande, ulceração das entranhas, apodrecimento do órgão
íntimo que produziu vermes, e mau-hálito. Além de ficar louco, o cruel governador de Cirene, Catulo.
sofre a deterioração das entranhas ulceradas (Josefo, Guerra VII,xi,4; ##451-453). Segundo Heródoto
(.História iv,205), larvas de inseto e vermes saem do corpo da cruel rainha cireneia Feretime. 0 mesmo
destino sofre Cassandra que age contra a família de Alexandre (Pausânias, Graeca Descriptio IX,vii,3-4).
0 hostil imperador Galério foi castigado com um abcesso no órgão íntimo, úlceras nas entranhas, uma
profusão de vermes e um fedor insuportável (Eusébio, HE VIII,xvi,3-5).
29 Não é na verdade relevante à questão de Judas Mixná Sanhedrin 9,5, onde um criminoso recalcitrante
é alimentado à força com cevada até sua barriga explodir. TalBab Shabbat 151b cita como exemplo que
três dias depois da morte a barriga explode e as entranhas saem.
639
A pêndices
castigo de Deus.30 O antecedente comum dos quatro relatos não é, então, nenhuma
forma de morte, mas sim a violência repentina da morte que precisava de interpre
tação pelas Escrituras.
B.Onome Iscariotes
Quase sempre a designação “ Iscariotes” diferencia o Judas que entregou
Jesus de outros chamados Judas no NT. O que essa designação significa? Ela nos
diz alguma coisa a respeito da origem, do modo de vida, das atitudes ou da morte
de Judas? Morin (“ Deux” ) apresenta uma história interessante das muitas tentativas
de explicar o nome, que começaram já com Orígenes (c. 254: In Matt. 78, a respeito
de Mt 26,14; GCS 38, p. 187), que relatou o que ouvira. Antes de relacionar as
muitas sugestões, algumas apenas conjeturas, quero primeiro mencionar as diversas
formas nas quais a designação aparece em mss. neotestamentários.
30 Como indicado em n. 28, houve também modelos greco-romanos. A morte dos theomachoi, os competi
dores contra os deuses, era tema clássico. É possível comparar as palavras de Jesus a respeito de Judas:
“Teria sido melhor para esse homem se ele não tivesse nascido” (Mc 14,21; Mt 26,24) com a declaração
de Sófocles (relatada por Estobeu, Florilegium 121,9): “ Não ter existido é melhor que sofrer grande
mágoa” .
31 Dibelius (“Judas” ) julga isso suficientemente frequente para sugerir ser provável que o nome contenha
um julgamento condenador.
32 Nem todas as variantes menos importantes estão relacionadas. Úteis para entender essas variantes são:
Halas, Judas p. 8-10; Haugg, Judas p. 72-78; e Torrey, “Name” , p. 51.
33 Somente João dá o nome do pai de Judas. Os mss. divergem nessas passagens a respeito da desinência
causai em Iskariot; apresento a leitura mais bem atestada.
640
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
34 Ele afirma que o final â de uma forma como saqqarâ toma-se 6, daí a desinência -ot(h) no grego.
641
A pêndices
A conclusão mais segura dessas três questões é que as variações nos re
latos da designação em mss. não são de grande ajuda para discernir seu sentido
original. Embora, ao que tudo indica, o nome do pai de Judas fosse Simão, o filho
era conhecido como Iscariotes. Formas com apo são suposições eruditas primitivas
de que Karioth designava o lugar de origem de Judas. Não há nenhuma diferen
ça significativa entre Iskarioth e Iskariotes. Quando muito, as formas Skarioth e
Skariotes refletem o valor limitado a ser atribuído à primeira sílaba em supostos
originais (ver adiante).
2 . Várias explicações
35 Não dá para defender algumas das propostas antigas do ponto de vista de regras científicas que regulam
a transcrição do hebraico para o grego.
642
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
da maneira como Judas foi castigado pelo Senhor na morte. Para alguns, as trinta
moedas de prata indicam a raiz skr (“contratar, pagar” ). Lightfoot sugeriu scortea,
avental de couro usado por estafetas sobre a roupa, com a pressuposição de que a
bolsa de Judas que guardava os fundos comuns (informação apenas em Jo 12,6)
era costurada nesse avental ou talvez estivesse em uma caixa com tampa de couro.
Ele chamou a atenção para um estrangeirismo de scortea atestado no aramaico
talmúdico muito mais tardio ’isqôretiya’. Derrett (“ Iscariot”, p. 9-10) deriva “ Is
cariotes” de ’isqa’ re’üt, “o que faz um negócio [dinheiro] por amizade”, derivação
associada com entregar Jesus por dinheiro. 0 substantivo aramaico ‘eseq, ‘isqa’, que
significa “negócio”, não é atestado em nenhum escrito aramaico antes de 100 d.C.
(cortesia de J. A. Fitzmyer de seu material de dicionário). A palavra apresentada
por Derrett para amizade, re‘üt, é hebraica, não aramaica. Derrett não explica
como um substantivo aramaico (de um período mais tardio) no estado enfático
estaria em uma cadeia de construção com um substantivo hebraico. Como parte
de sua discutível retroversão do grego neotestamentário para o aramaico original,
G. Schwarz (Jesus, p. 231) afirma que a segunda parte do grego para “ Iscariotes”
representa esta cadeia de desenvolvimento semítico: qrywt = qryf = qrt\ e que o
qrt’ nos targumim (pós-cristãos) refere-se a Jerusalém, de modo que Judas pode
ser o homem de Jerusalém.
643
AptNDICES
Doze originário da Judeia. O hebraico desse versículo tem Qeriyôt Hesron — que
Jerônimo e o targum aramaico consideram duas cidades; mas hoi poleis Aseron
da LX X entende o primeiro substantivo como plural de qiryâ, significando “as
cidades [ou aldeias] de Hesron”. Muitos comentaristas modernos consideram este
último correto; e, se for assim, Cariot na Judeia desaparece. Uma cidade moabita
chamada Qeriyôt é mencionada no hebraico de Am 2,2 (LXX poleis de novo) e de
Jr 48,24.41 (LXX Jr 31,24.41: Kerioth). Entretanto, alguns sugerem que Judas
veio da Transjordânia. Além disso, de qualquer modo, não há indícios de que ci
dades mencionadas de 1.200 a 600 anos antes ainda existiam no tempo de Judas,
iii) A suposição de que ’is mais uma cidade chamada X significava “ homem de
X ” é duvidosa. O jeito normal de expressar isso em hebraico é com um adjetivo
gentílico, por exemplo, 'is Qeríyôti, ou “certo homem de” ('is had min Qeriyôt). As
vezes, defensores da abordagem ’is Qeriyôt apontam como justificativa para 'is Tôb
em 2Sm 10,6.8, mas ali a expressão significa “homens de Tob”. Outro exemplo
proposto é cronologicamente problemático, pois é do hebraico mais tardio da Mi-
xná; Jose b. Jo‘ezer de Sereda é 'is Seredâ (ver Sota 9 ,9 ;4Eduyyot 8,4; 'Abot 1,4).
De modo geral, as objeções tornam muito duvidoso o entendimento de Iscariotes
como “homem de Cariot”.
644
Apêndice IV: Perspectiva geral de Judas Iscariotes
facilmente ter sido pronunciado? Ingholt (“ Surname”, p. 156) retorna a uma forma
aramaica ’isqaryaa (ou ’isk aryaa , se o siríaco for um guia). Do ponto de vista da
inteligibilidade, nada no modo de vida de Judas descrito no NT incentiva a ideia
dele como revolucionário político merecedor desse título. Mais seriamente, o indício
em Josefo (§ 31, A2f, acima) coloca a primeira existência dos sicarii e dos zelotas
na Palestina duas ou três décadas depois da morte de Judas.
d) Aquele que o entrega. A raiz sgr/skr nas formas verbais intensivas (pi‘el,
hiph‘il) significa “desistir, entregar, renunciar a” = LX X paradidonai). Há quem
aponte para Is 9,4: “ Eu entregarei [sikkarti] os egípcios”, sugerindo que uma forma
desse verbo para descrever Judas como aquele que entregou Jesus foi a origem
do nome Iscariotes. Morin (“ Deux”, p. 353) acrescenta o indício de sgr/skr nesse
sentido nas inscrições aramaicas de Sefire e no Apócrifo do Gênesis de Qumrã,
afirmando ser esse um verbo padrão para entregar criminosos a autoridades. Em
sua teoria, “ Iscariotes” relacionava-se a uma forma verbal pa‘el aramaica, com um
objeto como “o, lhe” (yesaggar/yesakkar yatêh [que ele traduz yotêh]), ou a uma
forma aph‘el (yaskar yatêh). Surgem diversas objeções: a forma sgr é mais comum
que a forma skr; e, embora g em semítico possa ser traduzido por um k em grego,
é mais normal a tradução por g. Além disso, seria preciso pressupor que nenhum
autor neotestamentário reconheceu que Iskarioth traduzia a ideia de entregar Jesus.
Morin luta corajosamente para provar que Mc 3,19 (loudan Iskarioth hos kai pa-
redoken auton) significa “Judas Iscariotes, que significa ‘Aquele que o entregou’”.
Mas Marcos escreveu uma sentença com “significa” apenas dois versículos antes:
Boanerges ho estin huioi brontes (“ Boanerges, que significa filhos do trovão” ) - que
é o jeito normal de escrever e, a meu ver, indica que Mc 3,19 deve ser traduzido
conforme o significado manifesto do grego, não como “que significa”, mas como
“Judas Iscariotes e foi ele quem o entregou”. Se dentro de trinta anos “ Iscariotes”
não foi reconhecido com o significado de “entregou”, há grande possibilidade de
que originalmente não significasse isso.
645
A pêndices
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649
Apêndice V:
Autoridades e grupos judaicos
mencionados nas narrativas da Paixão
Resumo:
2. Escribas
3. Anciãos
4. Capitães do Templo
5. Fariseus
6. Governantes
651
A p ê n d ic e s
governantes). Este APÊNDICE destina-se a dar uma visão global do papel atribuído
pelos Evangelhos ao grupo coletivo e às autoridades específicas.1
1 Minha atenção primordial é no que cada autor nos diz quanto aos grupos e figuras hostis. Muito mais
complicado é até que ponto esses relatos são históricos. Se Marcos utilizou fontes escritas, essas fontes
concordavam quanto a personagens hostis? 0 próprio Marcos tinha conhecimento dessas diversas per
sonagens ou apenas reorganizou o que recebeu das fontes ou da tradição? Que fatores contemporâneos
dos evangelistas (distintos de fatores históricos do tempo de Jesus) fizeram com que especificassem, am
pliassem e/ou omitissem certas personagens hostis? Embora eu não procure responder a essas perguntas
aqui, no texto do comentário, onde possível, lidei com elas enquanto tratava de passagens específicas.
652
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão
Relaciono abaixo termos usados para descrever grupos judaicos ativos durante a
Paixão de Jesus, isto é, desde o momento em que ele saiu da ceia até quando foi
colocado na sepultura. Apesar de nosso interesse principal ser o testemunho dos
Evangelhos canônicos, acrescentarei os Atos2 e o EvPd.
A lista acima é útil para mostrar que um grupo ou grupos judaicos desem
penharam coletivamente um papel ou papéis importantes nas narrativas evangé
licas da Paixão. Entretanto, um termo específico é passível de uso bem diferente,
descrevendo, em um Evangelho, um grupo favorável a Jesus e, em outro Evangelho,
um grupo hostil a ele, ou dentro do mesmo Evangelho descrevendo um grupo favo
rável durante o ministério na Galileia, mas hostil durante a Paixão em Jerusalém.
2 Embora eu esteja primordialmente interessado nas referências à Paixão de Jesus nos Atos, o paralelismo
que os Atos fazem entre a hostilidade a Paulo e a hostilidade a Jesus é digno de nota. Via (“According” ,
p. 137) lembra: “Os que se opõem a Jesus são basicamente os mesmos que se opõem a Paulo” . Nessa
segunda condição estão os seguintes: “multidão(ões)” (7 vezes); “Gentios” (ethnoi, 3); “judeus” (passim);
“chefes dos sacerdotes” (5); “anciãos” (3); “governantes” (2); “soldados” (1); o sinédrio (7). Na Palestina,
Paulo foi julgado por dois procuradores romanos e um rei herodiano.
3 James (Trial, v. 1, p. 246-247) distingue dois sentidos de ochlos: o populacho em geral (não necessariamente
reunido) e uma multidão ou afluência de pessoas. Ele tenta argumentar que, no sentido de populacho,
o ochlos era amistoso com Jesus, por exemplo, Mt 27,15, comparado com Mc 15,8. Isso é sutil demais:
Mateus quer dizer o mesmo que Marcos, mas mudou a referência para a multidão para antes, a fim de
criar uma leitura mais suave. A multidão é representante do populacho; é por isso que Mt 27,25 refere-se
à multidão de Mt 27,24 como “todo o povo” .
4 Em At 4,25.27, ethnos é empregado no plural para gentios hostis a Jesus.
0 Além de atribuir ao povo um papel na morte de Jesus, os Atos (At 6,12) mostram o povo de Jerusalém
hostil a Estêvão.
653
A p ê n d ic e s
Marcos. Antes da NP, as multidões (ochlos) que encontram Jesus não lhe
são hostis. Mesmo quando Jesus vem a Jerusalém, a multidão (ou cada multidão)
fica admirada com seu ensinamento, ouve-o alegremente, de modo que a multi
dão causa medo entre as autoridades que buscam destruir Jesus (Mc 11,18.32;
12,12.37). Contudo, na NP, além de descrever o ochlos hostil que vem com Judas
para prender Jesus, Marcos usa esse termo mais três vezes na NP (Mc 15,8.11.15)
para descrever uma multidão que se torna cada vez mais hostil a Jesus quando
ele está de pé diante de Pilatos. Em nível superficial de plausibilidade, pode-se
questionar se a multidão que vem prender Jesus e a multidão que clama por sua
crucificação consistem nas mesmas pessoas, mas, em nível narrativo, “a multidão”
torna-se um dos atores no drama e, no final de Marcos, ela não é amiga de Jesus.
Para descrever uma coletividade hostil a Jesus, na NP Marcos não usa “o povo”,6
nem “a nação”, ou “os judeus”.
6 Há uma referência marcana a “o povo” depois da chegada de Jesus a Jerusalém, e esse grupo é favorável
a Jesus (Mc 14,2).
‘ Emprego “multidão(ões)” por causa de um fenômeno mateano característico. Em Mt 26,47, “numerosa
multidão [sing.]” chega para prender Jesus, mas, em Mt 26,55, ele se dirige às “multidões [pl.]” . Diante
de Pilatos, “multidão” é singular em Mt 27,15, plural em Mt 27,20 e singular em Mt 27,24. Essa variação
é simplesmente um modo de generalizar; não há nenhuma diferença específica de sentido ou indicação
de fontes diferentes.
8 0 uso mateano de “o povo” (laos) é mais complicado que o marcano. Embora Mateus descreva em Jerusalém
um “povo” favorável a Jesus (Mt 26,5, paralelo a Mc 14,2; ver nota 6, acima), a designação frequente
“os anciãos do povo” pode ter o efeito de alinhar o povo com essas autoridades hostis. Entretanto, no
654
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão
final da NP, os chefes dos sacerdotes e os fariseus temem que o anúncio da ressurreição pelos discípulos
convença “o povo” (Mc 27,62-64).
655
A p ê n d ic e s
da obra completa Lucas-Atos, então, fica com a forte sensação de que havia uma
coletividade judaica muito hostil a Jesus.9
João. Nem “multidão”, nem “povo” são usados para descrever os que agem
contra Jesus na NP. Mas Jo 18,35 usa “ nação” para os que, com os chefes dos
sacerdotes, entregaram Jesus a Pilatos. A frase “os judeus” é usada pelo menos
nove vezes na NP para descrever os que são hostis a Jesus e querem sua morte.
Esse último emprego fortalece bastante a imagem joanina de intervenção coletiva.10
9 As vezes os exames do papel do povo na NP lucana não levam muito em conta as declarações nos Atos
e assim exageram o lado positivo da visão lucana geral. Compare escritos por Brawley (Luke-Acts, esp.
133ss.), Cassidy (“Trial”), p. 70.173-174), Rau (“ Volk”), Rice (“Role”) e Tyson (Death, p. 26-47).
10 Infelizmente, o estudo de “os judeus” em João foi desviado pela identificação realizada por Bultmann,
que tira da história “os judeus” e “o mundo” . A abordagem de Bultmann a João ignora em grande parte
as lutas com a sinagoga que moldaram o quarto Evangelho. (Granskou, “Antijudaism” , é um estudo
particularmente inútil de “os judeus” nessa herança de Bultmann.) Ao usar “os judeus” para referir-
-se aos que eram hostis a Jesus, João identifica as autoridades da sinagoga e seus seguidores da última
terça parte do século (conforme se encontra na história da comunidade joanina) como os herdeiros das
autoridades e do populacho que foram hostis a Jesus na Judeia e na Galileia durante sua vida.
656
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão
tem considerável plausibilidade. Além disso, onde uma multidão ou o povo são
mostrados contra Jesus, na maior parte do tempo essa hostilidade não é descrita
como espontânea, mas resultante da persuasão pelas autoridades religiosas.
11 Van Tilborg (Jewish, p. 6) afirma que Mateus não queria criar nenhuma distinção entre vários grupos
como os fariseus e os saduceus.
12 “ Religious”, p. 63. Kingsbury deixa muito claro (da mesma forma que espero ter sido neste a p ê n d ic e )
que não está lidando com história, mas com a impressão criada pela narrativa evangélica.
657
A p En i k e s
13 Observemos que esse alcance transcende o que tenho considerado limites da NP, pois inclui a trama
anterior à ceia.
14 Isso é digno de nota, pois, em Jo 1,19, os sacerdotes são hostis a João Batista e em At 4,1-3, há sacerdotes
envolvidos na prisão de Pedro e João.
la McLaren (Power, p. 202-203) afirma que os romanos adotaram a prática iniciada por Herodes, de mudar
0 sumo sacerdote incumbente quando consideravam essa mudança apropriada ou vantajosa. A crescente
rotatividade de ocupantes do cargo resultou em ex-sumos sacerdotes, que eram um fenômeno do século
1 d.C. “Chefes dos sacerdotes” é linguagem desse século.
16 E. P. Sanders (Judaism, p. 322-323) faz algumas observações excelentes a respeito da complexidade das
atitudes em relação ao sumo sacerdote. A autoridade secular desejava que ele não deixasse as coisas
658
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão
Yoma 8b relembra com amargura (e exagero) esse período: “Por dinheiro estar sendo
pago com o propósito de obter a posição de sumo sacerdote, estes mudavam a cada
doze meses”. Durante os anos de 18 a 37 d.C. (uma detenção de cargo excepcio
nalmente extensa) e, portanto, na ocasião da morte de Jesus, o sumo sacerdote era
Caifás, mencionado na NP por Mateus e João, embora João também se refira a Anás,
sogro de Caifás, como sumo sacerdote. Essas duas figuras foram examinadas em
detalhe no COMENTÁRIO de § 19. Quanto ao mais, na NP os Evangelhos têm o plural
“chefes dos sacerdotes”, tratamento por nós conhecido como também encontrado
em Josefo (Guerra II,xii,6; #243; Vida 38; #193). Os Manuscritos do Mar Morto
falam de “sacerdotes líderes” sob um sacerdote líder principal, junto com alguns
membros das famílias sacerdotais dentre as quais era escolhido o sumo sacerdote
e, com toda a probabilidade, alguém a quem foram confiados deveres sacerdotais
especiais.17 Em suma, o termo designa uma aristocracia sacerdotal de Jerusalém
com posições de poder privilegiado sobre o Templo e seu tesouro.
Na imagem sinótica, Jesus não teve nenhum encontro com os chefes dos
sacerdotes em seu ministério público até vir a Jerusalém pela primeira vez (Mc
11,1; Mt 21,1; Lc 19,28), de modo que, até esse momento, eles figuram apenas
nas predições da Paixão (Mc 8,31; 10,33; e par.; ver a p ê n d ic e VII, A2). Jesus os
irritou e eles começaram a procurar destruí-lo no mesmo dia em que ele chegou a
Jerusalém (Mt 21,15), ou no dia seguinte (Mc 11,18), ou logo depois (Lc 19,47). A
imagem joanina é mais complicada, pois Jesus vai a Jerusalém diversas vezes e, em
algumas dessas ocasiões, os chefes dos sacerdotes são descritos tramando contra
ele (Jo 7,32.45; 11,47-57; 12,10). Não nos são revelados todos os motivos deles,
mas a presença pública e as declarações de Jesus no Templo são mencionadas como
provocadoras de oposição. Além da questão quanto a Jesus ser o Messias, o que os
chefes dos sacerdotes dizem a respeito de Jesus e Pilatos se encaixa bem com as
apreensões de uma aristocracia sacerdotal endinheirada e poderosa, por exemplo:
“Achamos este sujeito desencaminhando nossa nação, proibindo o pagamento de
saírem do controle e trocava os titulares até encontrar um satisfatório; contudo, o sumo sacerdote tinha
interesses próprios (e os do povo) e podia agitar contra a autoridade a quem devia o cargo. Os piedosos
queriam que o sumo sacerdote ficasse do lado deles; preferiam que ele fosse piedoso, mas ele tinha au
toridade em virtude do cargo, mesmo quando defendia uma causa impopular e apesar de uma linhagem
e conduta política duvidosas.
17 Ver HJPAJC, v. 2, p. 232-236; Sanders, Judaism, p. 327-329. Em minha descrição, combinei duas teorias
diferentes (famílias sacerdotais e deveres especiais) a respeito de quem eram “os chefes dos sacerdotes” ;
não vejo razão para ter de escolher entre eles.
659
A pêndices
2.Escríbas
18 Os Atos empregam esse plural de grammateus três vezes para autoridades judaicas hostis em Jerusalém.
J. Jeremias (TDNT, v. 1, p. 741) lembra que, ao tratar de situações do século I, nem Fílon nem Josefo
usam grammateis da forma como os Evangelhos e os Atos usam essa palavra para os instruídos na Lei
(com exceção da referência a “ escribas sagrados” em Guerra VI,v,3; #291).
19 Essa situação complica-se bastante pelo fato de, depois de 70, rabinos que seguiam atitudes farisaicas
para com a Lei oral serem fundamentais no Judaísmo conhecido pelos evangelistas e, por isso, nas
descrições evangélicas do ministério de Jesus (que tinha tido lugar décadas antes) havia a tendência a
dar aos fariseus uma proeminência semelhante — às vezes por razões polêmicas, às vezes por simples
anacronismo. Portanto, é difícil discernir a relação histórica precisa entre os escribas e os fariseus no
tempo de Jesus. Não há nenhuma consonância na perspectiva de cada um dos evangelistas, nem de
como chegaram até ela. Eis algumas teorias como exemplo: A. F. J. Klijn (NovT 3, 1959, p. 259-267)
afirma que, apesar de quase sempre os escribas serem um grupo separado em Marcos, Mateus tende
a substituí-los por fariseus e Lucas omite referências a escribas ou os combina com fariseus. Cook
(Mark’s ) afirma que Marcos encontrou em três fontes diferentes referências a líderes hostis e não as
entendeu. Em seu relato, ele as reorganizou (ver nota 1, acima); mas, de fato, escribas e fariseus eram
idênticos, de modo que os escribas descritos na NP eram fariseus. Ao operar em um nível diferente de
interpretação evangélica, D. Lührmann (ZNW 78, 1987, p. 169-185) pensa que Marcos presumiu que
os leitores estavam informados quanto aos escribas e fariseus. Apresentados principalmente na Galileia,
os fariseus discutiam com Jesus a respeito das aplicações da lei oral; os escribas, mais proeminentes em
Jerusalém, contestavam a autoridade de Jesus para proclamar o Reino. Esta última era a questão que
mais preocupava a comunidade marcana.
660
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos m encionados nas narrativas da Paixão
9,14). Os escribas “de Jerusalém” (Mc 3,22) são descritos ameaçadoramente hostis
a Jesus durante seu ministério na Galileia. Já nas predições da Paixão (Mc 8,31;
10,33), o Jesus marcano começa a mencionar os escribas (em Jerusalém) que vão
desempenhar um papel na morte do Filho do Homem.20 Nos três sinóticos, quase
desde o momento da chegada de Jesus a Jerusalém, os escribas estão associados
aos chefes dos sacerdotes como adversários de Jesus (Mc 11,18.27; Mt 21,15; Lc
22,2). Mais que os outros evangelistas, Mateus (capítulo 23) faz uma ligação entre
esses escribas de Jerusalém e os encontrados no ministério mais primitivo, fazendo
Jesus em Jerusalém pronunciar oito “ais” para criticar os escribas e os fariseus (ver
Lc 20,46). Em Mc 14,1 e Lc 22,2, os escribas estão associados aos chefes dos
sacerdotes na trama que obterá a ajuda de Judas e as estatísticas iniciais dadas
acima mostram que eles continuam ativos em toda a NP, especialmente em Marcos.
Como, na perspectiva sinótica, as reuniões do sinédrio são constituídas de chefes
dos sacerdotes, escribas e anciãos, é de se presumir que as referências a escribas
de Jerusalém que querem Jesus morto descrevam escribas que faziam parte do
sinédrio, esteja isso especificado ou não.
20 C. Weber (JBR 34,1966, p. 214-222) acha que não havia continuidade histórica entre os adversários de
Jesus na Galileia e em Jerusalém.
21 Os escribas são menos mencionados na NP de Mateus que nas NPs de Marcos e Lucas. Talvez isso seja
porque a Igreja mateana tinha escribas cristãos e, portanto, uma atitude positiva para com essa designação
(ver Mt 13,52; R. D. Crossan, “ Matthew” , p. 176). Cook (Marks) afirma que todas as referências lucanas
a escribas foram tiradas de Marcos ou acrescentadas sob a influência de Marcos.
22 D. R. Schwartz (Studies, p. 89-101) afirma que os escribas são representantes da lei sacerdotal e rivais
dos fariseus. Podería isso ser verdade, pelo menos quanto aos escribas de Jerusalém? Mas então os
fariseus não teriam voz no sinédrio descrito pelos sinóticos.
661
A pêndices
nesta última hipótese. Em Mateus, isso é ainda mais provável por causa dos “ais”
pronunciados em Jerusalém contra os escribas e os fariseus.
3. Anciãos
Os Evangelhos jamais explicam quem eram os anciãos, nem seu papel espe
cífico em Jerusalém, mas a história de zeqentm (“anciãos” ) no AT lança luz sobre
eles. Os anciãos serviam de líderes das cidades (Jz 8,14), não só em assuntos de
estratégias comunitárias, mas também na administração da justiça (Rt 4,2.9.11).
Havia também “anciãos de Israel” (2Sm 3,17; 5,3), talvez representantes tirados de
várias tribos ou regiões. No final da monarquia, encontramos anciãos como grupo
poderoso em Jerusalém: na reunião que decidiría o destino de Jeremias, quando
os príncipes e o povo falavam aos sacerdotes e profetas, “alguns dos anciãos do
país” levantaram-se e comentaram (Jr 26,16-17). Uma carta de Jeremias (Jr 29,1)
23 Antes da NP, Lucas faz três referências a presbyteroi como autoridades judaicas e Atos faz mais sete.
Contudo, Gaston (“Antijudaism” , p. 141) afirma que o conhecimento lucano de “anciãos” vem apenas
de Marcos e foi convencionalmente expandido a partir dali para os Atos. Josefo não usa presbyteroi para
membros do sinédrio de Jerusalém (G. Bomkamm, TDNT, v. 6, p. 654). É preciso procurar sinônimos
que descrevam os que atuam como “anciãos” neotestamentários, por exemplo, hoi protoi, “os primeiros
homens” ; hoi en telei, “os na posição de liderança” ; gnorismoi, “ notáveis” ; hoi dynatotatoi, “os mais
poderosos/influentes” ; hoi episemoi, “os eminentes/ilustres” ; hoiprouchontes, “os respeitados/estimados” .
Também gerousia, para presbyterion, “conselho de anciãos” . (Ver McLaren, Power, p. 204-206, para as
referências de Josefo.) Porém, alguns desses poderíam ser o mesmo que archontes, “governantes” , a
serem examinados na subseção 6, a seguir.
662
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos m encionados nas narrativas da Paixão
aos exilados aprisionados por Nabucodonosor foi endereçada “Aos que ficaram dos
anciãos dos exilados, aos sacerdotes e aos profetas e a todo o povo”. Jr 19,1 fala
dos “anciãos do povo” (terminologia que reaparece em Mt 21,23; 26,3.47; ver nota
8, acima). Depois do exílio, a linhagem dos que voltaram era muito importante e
as genealogias dos chefes de família foram preservadas (Esd 8,1-14). Além disso,
encontramos na Judeia uma aristocracia de anciãos, considerados governantes em
certos assuntos, por exemplo, a propriedade é confiscada por ordem dos dirigentes
e dos anciãos em Esd 10,8. Vimos em § 18, BI que nos documentos desse período
pós-exílico aparecem referências (por exemplo, lMc 1 2,6,2Mc 1,10) a uma gerúsia
ou senado (que refletem respectivamente as palavras grega e latina para “ velho”,
daí um conjunto de anciãos). A liderança pelo sumo sacerdote de uma gerúsia
(mais tarde conhecida como sinédrio) era facilitada porque os nobres que atuavam
como anciãos nas deliberações seguiam, na maior parte, a opinião dos saduceus.
Josefo (Ant. XVIII,i,4; #17) nos relata que os saduceus não eram numerosos, mas
incluíam em suas fileiras pessoas do maior prestígio. Em 66 d.C., Josefo (Guerra
II,xvii,3; #411) mostra os homens de influência ou poder [dynatoi] deliberando com
os chefes dos sacerdotes e os fariseus mais notáveis a respeito da atitude a tomar
com Roma. Eles seriam semelhantes aos “anciãos” que aparecem na NP sinótica,
seguindo a iniciativa dos sacerdotes contra Jesus. Os anciãos eram uma aristocracia
não sacerdotal, uma nobreza por hereditariedade e fortuna, que eram consultados
em assuntos importantes que afetavam o povo. Talvez José de Arimateia fosse um
deles. É difícil perceber por que Mateus os menciona com mais frequência que os
outros Evangelhos na NP e, às vezes, em lugar dos escribas marcanos.24
24 Doeve (“ Gefangennahme” , p. 465-466) acha que Mateus dá informações historicamente corretas de que
só os saduceus (chefes dos sacerdotes e anciãos) estavam envolvidos na morte de Jesus, daí o menosprezo
dos escribas. Mas, então, por que Mateus (Mt 27,62) faz a única referência das NPs sinóticas aos fariseus
e por que ele junta (no capítulo 23) os “ais” de Jesus contra os escribas e fariseus em um ambiente de
Jerusalém pouco antes da morte de Jesus?
663
A píndices
4 . Capitães do Templo
664
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos mencionados nas narrativas da Paixão
5. Fariseus
25 Os opostos normais dos fariseus seriam os saduceus, mas os Saddoukaioi (citados 14 vezes no NT [Ma
teus, 7; Marcos, 1; Lucas, 1; Atos, 5]) nunca são citados na NP, embora, segundo os três sinóticos (Mc
12,18; Mt 22,23.34; Lc 20,27), Jesus os tenha encontrado quando foi a Jerusalém. K. Müller (“Jesus
[...] Sadduzãer” , p. 9-12) insiste que Jesus foi ofensivo à teologia dos saduceus em outras questões além
das bem conhecidas dos anjos e da ressurreição corporal, por exemplo, em suas atitudes independentes
quanto à pureza (Mc 7,1-8), oferenda (Mc 7,9-13) e juramentos (Mt 23,16-22). No início deste a p ê n d ic e ,
indiquei que, entre outras personagens mencionadas na NP como hostis a Jesus, certamente todos ou
muitos dos “chefes dos sacerdotes” e, com toda a probabilidade, “os anciãos” , eram de concepção sadu-
ceia, mas a filiação dos “escribas” de Jerusalém é incerta. Sanders (Judaism, p. 318) apresenta pontos
de apoio para sua asserção: “Nem todos os aristocratas eram saduceus, mas talvez todos os saduceus
fossem aristocratas” .
665
A pêndices
versículos paralelos em Marcos e Lucas omitem “os fariseus”. Isso sugere estarmos
lidando com a generalização mateana, não com a tradição antiga. Nas NPs dos três
sinóticos, a única menção aos fariseus está na história exclusivamente mateana sobre
a guarda no túmulo (Mt 27,62), história que também contém a única referência das
NPs a “os judeus” (Mt 28,15). Sugeri em § 48 ser essa uma história popular que
refletia a atitude e o vocabulário antijudaicos de muitos cristãos comuns do tempo
de Mateus. No relato joanino do ministério, apesar de Jesus estar em Jerusalém, os
fariseus juntam-se ao sumo sacerdote na tentativa de prender Jesus (Jo 7,32-49),
na convocação do sinédrio para discuti-lo (Jo 11,47) e nas ordens quanto a sua
prisão (Jo 11,57). Nessas cenas, por meio de pressão nos fariseus, talvez João torne
a tradição a respeito da oposição sacerdotal a Jesus mais contemporânea nos anos
80 e 90, depois da perda de poder sacerdotal pela destruição do Templo, quando os
fariseus surgiram como os principais adversários judaicos da comunidade joanina.
Mas, mesmo depois dessas referências, é notável haver apenas uma única menção
aos fariseus em toda a NP joanina (Jo 18,3); Judas leva guardas dos chefes dos
sacerdotes e (dos) fariseus quando parte para prender Jesus.
26 Como indiquei na nota 19, acima, é muito difícil reconstruir historicamente o papel dos fariseus na vida
de Jesus e em § 18, C2, concordei com os que afirmaram não serem os fariseus política ou liturgicamente
uma força dominante em Jerusalém. Sanders (Judaism, p. 398) calcula que numericamente havia três
vezes mais sacerdotes e levitas que fariseus.
666
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos m encionados nas narrativas da Paixão
6. Governantes
27 Com frequência consideravelmente maior, archontes, não raro traduzido por “ magistrados” , aparece em
Josefo como designação para autoridades de Jerusalém. McLaren (Power, p. 207) argumenta que eram
administradores não envolvidos em tomadas de decisões.
28 Nos Evangelhos e nos Atos, por exemplo, temos Beelzebu, archon de demônios, e o satânico “ archon
deste mundo” ; archontes dos gentios que exercem autoridade (Mt 20,25); archontes nas cidades gentias
(At 14,5; 16,19); Moisés é um archon (At 7,35); Jairo é o archon da sinagoga local (Lc 8,41); há um
archon ou alto magistrado ao qual partes discordantes se apresentam e, então, ele as entrega ao juiz (Lc
12,58); e há referências a um archon local sem contexto especificador (Mt 9,18.23; Lc 14,1; 18,18).
29 Tcherikover (“Was” , p. 73-74) afirma de maneira persuasiva que os archontes de Jerusalém não se
equiparam aos archons das cidades-estado gregas; mas, depois, ele argumenta que uma descrição delas
abrange as indicações em Josefo e no NT, a saber, que eram membros das famílias sacerdotais. Duvido
que o uso em João e Lucas permita tal precisão.
667
A pêndices
acreditou nele?” (Jo 7,48), mas Nicodemos lembra a injustiça desse julgamento (Jo
7,50). Em Jo 12,42, depois de relatar a opinião de Jesus a respeito da cegueira e da
descrença, João comenta: “ No entanto, muitos dos archontes creram nele; mas, por
medo dos fariseus, não o confessaram, para não serem expulsos da sinagoga”. As
indicações são um pouco confusas quanto a até que ponto os archontes se igualam
aos chefes dos sacerdotes e fariseus; além disso, alguns archontes são favoráveis a
Jesus e alguns contra ele. As dificuldades originam-se do fato de João escrever, em
terminologia geral, em um tempo mais tardio, para uma audiência que se presume
não estar particularmente interessada nas subdivisões das autoridades judaicas, e
por ele misturar à oposição a Jesus as táticas da oposição mais tardia da sinagoga
aos cristãos joaninos.
30 Seria essa uma referência a José de Arimateia, que Lc 23,50 descreve como bouleutes, isto é, membro
do boule, “conselho” , que se presume ser o sinédrio (§ 18, B2)?
31 Os archontes talvez estejam presentes sob outra designação em Lc 19,47, onde, depois de Jesus ter
purificado o Templo e ensinado ali, “os chefes dos sacerdotes e os escribas [...] e os notáveis [protoi] do
povo” fizeram um esforço para destruí-lo - comparemos, imediatamente depois, Lc 20,1: “os chefes dos
sacerdotes, e os escribas, com os anciãos” . O Testimonium Flavianum (Josefo, Ant. XVIII,iii,3; #64; ver
§ 18, E l, acima) diz que Jesus veio diante de Pilatos pela “ acusação dos homens mais notáveis [protoi
andres] entre nós” .
668
Apêndice V: Autoridades e grupos judaicos m encionados nas narrativas da Paixão
em relação a João também se aplicam aqui. Os Atos, escritos nos anos 80 ou 90,
contemporizam e empregam um termo geral e impreciso para comunicarem-se com
os leitores que não estão interessados nos títulos exatos das autoridades judaicas
do tempo de Jesus. Além disso, esse termo permite aos Atos traçar um paralelo
entre os que são hostis a Pedro e Paulo, e os que são hostis a Jesus. De modo geral,
com referência à Paixão, para Lucas-Atos os archontes equivalem a elementos do
sinédrio (em especial os escribas e anciãos) e são incansavelmente hostis a Jesus.
O uso genérico do termo dá a impressão de poderes que estão contra ele.
669
Apêndice VI:
0 sacrifício de Isaac e a Paixão
Resumo:
Bibliografia
A boa vontade de Abraão para oferecer Isaac, seu filho amado, como sacri
fício, se Deus o ordenasse (Gn 22,1-19), refletiu-se no Judaísmo de uma forma que
fez de Isaac o centro de uma narrativa e uma teologia altamente desenvolvidas.
O produto final da notícia a respeito do sacrifício de Isaac é identificado como a
Aqedah, designação derivada da raiz “amarrar”, que reflete a percepção de que
Isaac foi amarrado da mesma forma que o cordeiro na oferenda diária do holocaus
to (o tamid) era amarrado, conforme descrito em Mixná Tamid 4,1. P. R. Davíes
(“ Passover”, p. 59) assim descreve o tema da Aqedah: “A oferenda de Isaac [...]
é um sacrifício realmente completo, no qual foi derramado sangue, que constitui
um ato definitivamente expiatório e redentor para todo o Israel”.1 Obviamente há
1 Swetnam (Jesus, p. 18) desaprova essa descrição porque implicitamente ela não iguala o termo Aqedah
com a história de Abraão/Isaac de Gn 22, nem mesmo com algum pequeno embelezamento imaginoso
671
A pêndices
da figura de Isaac na história. Entretanto, creio que a precisão é bastante sensata, pois ajuda a impedir
a interpretação de idéias e terminologia mais tardia retroativamente para um período mais primitivo da
literatura no qual elas não estão atestadas.
2 Uma proveitosa história sucinta das teorias sobre a Aqedah é apresentada por Swetnam, Jesus, p. 4-22.
3 Jüdische Zeitschrijt filr Wissenschaft und Leben 10, 1872, p. 166-171.
4 REJ 64,1912, p. 161-184. Os dois biblistas associaram a Aqedah à liturgia do Ano Novo.
5 Ainda outra possibilidade é que a teologia da Aqedah tenha surgido como contrapeso judaico à teologia
cristã da morte sacrifical de Jesus (Geiger, Chilton, P. R. Davies).
6 E ssas são as extensas traduções aramaicas conhecidas como Neofiti, Pseudo-Jônatas e o Targum
Fragmentário.
672
Apêndice VI: 0 sacrifício de Isaac e a Paixão
extremamente séria a essa datação primitiva dos targumim foi apresentada por
Fitzmyer — contestação com a qual eu pessoalmente concordo. Uma contestação
diferente encontra-se em Daniélou, enquanto P. R. Davies e Chilton rejeitam os
argumentos tirados da liturgia da Páscoa judaica reconstruída com base nos tar
gumim. Na verdade, pode-se perguntar o quanto se conhece de qualquer fonte a
respeito dos detalhes da liturgia da Páscoa judaica no século I d.C. À luz de tais
incertezas, a abordagem mais proveitosa, que seguirei abaixo, é ser rigorosamente
descritivo quanto a que documentos contribuem, com quais informações.
#1. Isaac é o muito amado filho único de Abraão (Gn 22,2.12.16: yahtd,
agapetos).
#2. Deus disse a Abraão: “Toma teu filho [...] e dirige-te à terra de Moriá”.
Abraão tomou consigo (paralambanein ) dois jovens servos e seu filho Isaac (Gn
22,2-3).
#3. Ao chegar, Abraão disse aos jovens servos: “ Sentai-vos neste lugar
[kathisate autou] com o jumento; eu e o menininho vamos adiante; e depois de
adorarmos, voltaremos a vós” (Gn 22,5).
#4. Abraão tomou a lenha para a oferenda e a pôs sobre Isaac, seu filho
(Gn 22,6)
673
A pêndices
#5. Isaac dirigiu-se a Abraão como “ (Meu) Pai” (Gn 22,7: ’ató; pater).
#6. Abraão amarrou (‘qd) Isaac e o colocou sobre a madeira (Gn 22,9).
#7. Um anjo do Senhor gritou para Abraão e lhe disse para não estender a
mão contra o menino (Gn 22,11-12).
#8. Depois de oferecer um carneiro como substituto, Abraão voltou aos jovens
servos (Gn 22,19); não é dito nada quanto à volta de Isaac.7
Sob esse título, vou incluir literatura deuterocanônica, como Eclo, Sb e lMc,
que certamente foi escrita antes da era cristã, juntamente com as obras de Josefo
compostas no século I d.C. Entre os apócrifos, Jubileus não data de muito depois
de 150 a.C. e é bem possível que 4 Macabeus date de pouco antes de 50 d.C. O
maior problema é a datação das Antiguidades Bíblicas de (Pseudo-)Fílon: foram
compostas pouco antes ou pouco depois de 70 d.C.; contudo, na suposição de que
idéias encontradas nelas circulavam antes da composição, eu as incluo nesta seção
de obras judaicas que podem ter influenciado o NT.9
#10. Jubileus 17,16-18 faz dessa a mais severa das dez provações de Abraão
engendradas por Mastema (Satanás). Essa imagem está em harmonia com a teologia
angelical dualista de Jubileus e pode não ter sido difundida.
674
Apêndice VI: 0 sacrifício de Isaac e a Paixão
#13. Isaac dirige-se a Abraão como “ Pai” duas vezes em Jubileus 18,6.
#14. A idade de Isaac é dada como vinte e cinco anos em Josefo, Ant. I,xii,3;
#227.n
#15. Isaac apressa-se de bom grado para o altar (Josefo, Ant. I,xiii,4; #232)
e tolera ser sacrificado por amor à religião (4 Macabeus 13,12). Em Pseudo-Fílon
32,3, Isaac diz: “ Não vim eu ao mundo para ser oferecido como sacrifício àquele
que me criou?” (também Pseudo-Fílon 40,2: O que estava sendo oferecido estava
pronto). 1 Clemente 31,3 relata: “ Isaac com confiança, sabendo o que estava para
acontecer, foi alegremente levado como sacrifício”.
#16. Jubileus 18,9 relata as discussões nos concílios celestes que levam a
sustar a mão de Abraão e o Senhor fala ele mesmo para Abraão, a fim de detê-lo
(,Jubileus 18,11).
#17. Embora Isaac não tenha morrido sobre o altar, há uma passagem em
Pseudo-Fílon 32,4 (“ E quando ele oferecera o filho sobre o altar e amarrara-lhe os
pés para matá-lo” ) da qual se valem alguns como Vermes, Le Déaut e Daly para
argumentar que Pseudo-Fílon trata o sacrifício como completo. Swetnam (Jesus, p.
53-54), lembrando que é difícil interpretar as palavras de Isaac em Pseudo-Fílon
32, afirma que a linguagem de Pseudo-Fílon 32,3 “ parece ser calculada para su
gerir que o sacrifício não se completou”. No entanto, “o autor considera o sacrifício
não consumado de Isaac uma expiação do pecado”.
10 Le Déaut (Nuit, p. 260-261) afirma que essa ligação com a Páscoa judaica difundiu-se cedo.
11 Na tradição midráxica, a idade aumenta para trinta e sete, com base em cálculos rabínicos derivados de
dados do Gênesis.
675
A pêndices
# 2 0 .0 próprio Isaac pede para ser amarrado (o que realça a ideia de Aqedah
e fortalece o paralelismo com o cordeiro amarrado do holocausto diário [tamíd]).
676
Apêndice VI: 0 sacrifício de Isaac e a Paixão
Kahana do século V (Supl. 1,20), lemos que, graças ao mérito de Isaac que se
ofereceu amarrado sobre o altar, Deus ressuscitará os mortos.
13 Ver R. Wilken, “ Melito, the Jewish Community at Sardis, and the Sacrifice of Isaac” , TS 37, 1976, p.
53-69.
16 A designação “história de Isaac” é por preferência. A questão não é simplesmente a influência da história
de Abraão em Gn 22 sobre o NT, nem penso na Aqedah, que é plenamente desenvolvida (conforme definida
no início do a p ê n d ic e ) , que a meu ver talvez não tenha existido no Judaísmo antes dos séculos II e III d.C.
17 Como exemplo, Stegner tenta encontrar um paralelo entre o elemento #21 e a cena batismal onde Jesus
vê os céus se abrirem, enquanto uma voz do céu explica o que acontece. 0 tema do servo de Is 42,1,
invocado em Mc 1,11, é então comparável a #23.
677
A pêndices
Segundo Rm 8,32, Deus “não poupou seu próprio Filho, mas o entregou
por todos nós”.18 Em Jo 3,16, encontramos: “ Deus amou tanto o mundo
que Ele deu o único Filho”.19Essa expressão podería ter sido influenciada
pela descrição da generosa disposição de Abraão de sacrificar seu filho
amado (#1), em especial se Isaac era considerado vítima adulta e bem
disposta que também exemplificava obediência (##14-15). Notamos, no
entanto, que os paralelos sugeridos estão por demais no nível implícito.
18 Dahl (“Atonement”) enfatiza esse versículo junto com G13,13-14 (Cristo suspenso no madeiro [na história
de Isaac, “um carneiro preso em um espinheiro” ], seguido por uma referência à bênção de Abraão) e
Rm 3,25-26 (Deus apresentou Cristo como expiação por seu sangue). A relação com a história de Isaac
nessas passagens é sutil, para dizer o mínimo.
19 É provável que originalmente esse texto não se referisse à morte de Jesus, mas à encarnação ou ao envio
por Deus do Filho ao mundo. Mesmo assim, ljo 4,10 pode ser considerado reinterpretação para incluir
a morte: “ Deus enviou Seu único Filho ao mundo [...] para ser a expiação por nossos pecados” .
20 Ver em R. Williamson, JTS n s 34,1983, p. 609-612, uma avaliação favorável da tese de Swetnam.
21 Em um sentido mais amplo, a cena da ceia podería ser interpretada como parte da NP, mas este comentário
começa o exame da NP depois da Ultima Ceia.
678
Apêndice VI: 0 sacrifício de Isaac e a Paixão
22 Grassi (“ Abba”, p. 450-454) apresenta uma lista útil de sugestões das quais seleciono algumas como
dignas de atenção. Algumas sugestões são forçadas demais (o Monte das Oliveiras na Paixão de Jesus
paralelo ao Monte Moriá em #11); outras baseiam-se no material de Isaac que não é demonstravelmente
tão primitivo quanto o NT (Jesus triste até a morte e pedindo para não beber o cálice como paralelo à
expressão de medo por Isaac em #19).
23 Grassi (“Abba”) dá grande importância a isso, mas o verdadeiro paralelo teria de estar na tradição tar-
gúmica mais tardia.
679
A pêndices
• Em Jo 18,11, quando Jesus é preso, ele diz: “ 0 cálice que o Pai me deu
— não vou bebê-lo?” Antes ele disse (Jo 10,17-18): “ Dou minha vida
[...] ninguém tira-a de mim; antes eu a dou por minha vontade” . Diante
de Pilatos (Jo 18,37), Jesus demonstra uma percepção de seu destino:
“A razão pela qual nasci e vim ao mundo é que eu possa dar testemunho
da verdade”. Há quem encontre um paralelo na boa vontade de Isaac
para ser sacrificado (#15) e um vocabulário paralelo nesta pergunta:
“ Não vim ao mundo para ser oferecido como sacrifício àquele que me
criou?”. Entretanto, na NP essa atitude é característica do Jesus joanino
e um paralelo quase tão bom com Isaac encontra-se em Hb 10,7 onde,
em uma citação de Salmo, é imaginado que Cristo disse: “ Eis que eu
vim para fazer tua vontade, Ó Deus!”.
À guisa de resumo geral, acho que, dos paralelos a Isaac sugeridos nas NPs,
os que têm maior plausibilidade são os paralelos ao relato de Abraão e Isaac em
Gn 22. Há muito pouca coisa relacionada de maneira plausível com os episódios
mais tardios de Isaac e a Aqedah.
680
Bibliografia para o Apêndice VI:
0 sacrifício de Isaac
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Early Church. In: L ivingstone , E. A., org. Studia Patristica. Oxford, Pergamon, 1982,
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S pieg e l , S. The Last Trial: On the Legends and Lore of [...] the Akedah. New York,
Pantheon, 1967.
681
A p ê n d ic e s
682
Apêndice VII:
Os antecedentes veterotestamentários
das narrativas da Paixão
1. O Pentateuco
2. Livros Históricos
3. Livros Proféticos
4. Livros Sapienciais
2. SI 22 e a Paixão
Bibliografia
683
A p ín m c e s
1 Moo, Old Testament, ura de diversos escritos que apresentam um estudo mais detalhado, concentra-se
em temas específicos (servo sofredor, Zc 9-14, Salmos de lamentação, metáforas sacrificais) e não segue
a sequência veterotestamentária.
2 O entendimento de que a referência sugerida não é forçada é facilitado se alhures a respectiva situação
veterotestamentária serviu sem ambiguidade a outros autores cristãos. Mesmo sem essa ajuda, Dillon
(“Psalms” , p. 431) acha que a aparência bíblica geral das NPs cria uma atmosfera propensa ao reconhe
cimento da probabilidade de alusões.
3 Em estatísticas que abranjam os Evangelhos por inteiro, citações de cumprimento são mais frequentes
em Mateus e João. Ocasionalmente, a ideia de que essas coisas aconteceram para cumprir a Escritura
confunde os fiéis e dá munição aos céticos. Como pode haver responsabilidade ou culpa da parte dos que
executaram Jesus ou daqueles por cujos pecados ele morreu, se tudo tinha de acontecer? Essa pergunta
não reconhece que quase sempre o pensamento bíblico não distingue entre a Providência Divina e a
684
Apêndice VII: Os antecedentes veterotcstam entários das narrativas da Paixão
predestinação, de modo que o que quer que aconteça é apresentado como sendo desejo de Deus. Segundo
um entendimento mais sutil, Deus não quis (= desejou) a morte violenta do Filho, mas a anteviu e a
transformou em uma coisa salvífica para todos.
4 Mais cedo, na Última Ceia, ver Mc 14,21 (= Mt 26,24).
5 Na Última Ceia, ver Jo 13,18, que repete SI 41, talvez citado implicitamente em Mc 14,18. Jo 15,25 tem
o cumprimento de um texto contido “na lei deles” (“Odiaram-me sem motivo”), que repete SI 69,5 e SI
35,19.
6 Entretanto, vou insistir com regularidade que precisamos ter indicações de que esses episódios do tipo
de midraxes eram conhecidos no século /; recorrer a midraxes judaicos mais tardios é metodologicamente
fraco.
685
A p ê n d ic e s
lO P e n ta te u c o
686
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão
no deserto para trazer cura (Nm 21,9; ver Sb 16,5-7) é vista em Jo 3,14-15 como
prenuncio do Filho do Homem ser erguido na crucificação para que os fiéis tenham
vida abundante.
2 . Livros Históricos9
3 . Livros proféticos
Isaías vem em primeiro lugar na coletânea (ou escritos) dos Profetas Pos
teriores. Em At 8,32-33, Filipe explica ao eunuco etíope que Is 53,7-8 (cordeiro
conduzido ao matadouro) se refere a Jesus. Assim, muitos consideram as passagens
do servo sofredor em Isaías10fonte importante para reflexão cristã sobre a Paixão de
Quatro destes livros são conhecidos na coletânea hebraica como os Profetas Anteriores.
10 Em geral, são descobertos quatro cânticos do servo (Is 42,1-4; 49,1-7; 50,4-11; 52,13-53,12); contudo,
687
A p ê n d ic e s
Jesus.11 lPd 2,22-24 relata que Jesus não cometeu nenhum pecado, que não havia
nenhuma mentira em sua boca12 (fazendo eco a Is 53,9b), e se entregou, levando
nossos pecados à cruz (fazendo eco a Is 53,10: o servo dando a vida como oferenda
pelo pecado, e a Is 53,5: o servo traspassado por nossas ofensas, esmagado por
nossos pecados). O tema de Jesus sendo entregue (paradidonai), que é favorito
nas NPs (§ 10, acima), reflete o tema do servo sendo entregue em Is 53,6.12.13 No
relato marcano do ministério (Mc 9,12), a “ Escritura” é citada dizendo que o Filho
do Homem deve sofrer muito e ser desprezado, o que faz eco a Is 53,3, onde o servo
sofre rejeição. Mt 8,17 especifica que Jesus cumpria as palavras de Isaías (Is 53,4),
visto que ele tomou nossas enfermidades e suportou nossos males. Apesar desse
amplo uso das passagens do servo (especialmente o quarto cântico), não são muitas
as indicações do tema do servo na NP propriamente dita. A única citação direta (de
Is 53,12: “ E com criminosos foi ele contado” ) acontece durante a passagem sobre a
espada na Ultima Ceia lucana (Lc 22,37). A ideia de que essa passagem de Isaías
foi lembrada nas descrições de Jesus na cruz entre dois bandidos/malfeitores (Mc
15,27 e par.) é duvidosa por causa da diferença de vocabulário.14 Esse mesmo tipo
de diferença torna incerta a ligação entre a descrição do servo em Is 53,7 (“ Ele não
abre a boca” ) e o silêncio de Jesus e sua recusa a responder nos julgamentos.15 Uma
alusão mais clara ao servo encontra-se no escárnio judaico de Jesus (Mc 14,65 e
par.), pois Is 50,6-7 descreve o servo sofrendo tapas nas faces e cuspidas no rosto.16
não sabemos até que ponto, nos tempos neotestamentários, consideravam-se essas passagens inter-
-relacionadas e/ou diferenciáveis do resto de Isaías.
11 R. A. Guelich (‘“The Beginning of the GospeF: Mc 1,1-15” , BR 27,1982, p. 5-15) e outros veem maciça
influência de Isaías sobre o Evangelho de Marcos; de fato, eles entendem que Mc l,l-2 a significa que
Marcos inicia o Evangelho de Jesus Cristo, conforme escrito (profetizado) por Isaías, o profeta. De opinião
contrária, o estudo da Paixão por Hooker, em Jesus, é cético quanto à provável influência de Isaías nessa
área dos Evangelhos.
12 Ver também ljo 3,5: “Nele não havia pecado” .
13 Paradidonai para entregar (a inimigos ou à morte) também aparece em SI 27,12; 118,18; 119,121;
140,9. Na segunda das três predições sinóticas da Paixão (Quadro 13, no a p ê n d ic e VIII), Mc 9,31 tem
o Filho do Homem “ entregue às mãos dos homens [anthropoi]” ; a metáfora das “mãos de” (pecadores
etc.) encontra-se em SI 71,4; 97,10; 140,5.
14 Is 53,12 é citado em Mc 15,28, mas é adição de um copista mais tardio, não texto marcano genuíno (§
40, nota de rodapé * , e #7, acima).
*’ (Mc 14,61 [= Mt 26,63]; Mc 15,5 [= Mt 27,12.14; Jo 19,9]; e Lc 23,9.) Hooker (Jesus, p. 89) é muito
rigoroso ao rejeitar a influência de Isaías nos relatos do silêncio de Jesus.
16 Fora dos cânticos do servo, há quem tenha sugerido como antecedente para a crucificação Is 65,2: “ Abri
os braços o dia todo para um povo desobediente e contraditório” .
688
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão
689
A p ê n d ic e s
em Mc 14,62 e par., suas palavras (“ Vós vereis o Filho do Homem sentado à direita
do Poder e vindo com as nuvens do céu” ) fazem eco a uma combinação do SI 110,1
(“ Senta-te à minha direita” ) e Dn 7,13, com a visão de “um como filho de homem
vindo com as nuvens do céu”.19A visão em Daniel diz respeito a um tribunal celeste
onde é feito o julgamento de um filho de homem (= santos do Altíssimo: Dn 7,10.22),
do mesmo modo que a declaração de Filho do Homem por Jesus tem o contexto
de tribunal e julgamento. A questão de blasfêmia no julgamento talvez faça eco à
figura do antideus de Dn 7,8.20.25, que fala com arrogância contra o Altíssimo.
Vimos acima que Ez 37 deu a base para a descrição mateana dos fenômenos que
cercaram a morte de Jesus, mas a ressurreição dos corpos dos santos adormecidos
também reflete Dn 12,2: “ E muitos dos que dormem no pó da terra acordarão,
alguns para a vida eterna”. 0 julgamento de Jesus pelo sinédrio, em Marcos/Ma-
teus, assemelha-se à história de Susana em Dn 13 (anciãos, falsas testemunhas).
Zc 9-14 exige atenção especial (ver Bruce, “ Book” ); de fato, como passagem
veterotestamentária única, ao lado de SI 22, ela apresenta a base mais extensa
para a Paixão. Na verdade, quando se começa a Paixão como comecei, depois da
Ultima Ceia, com Jesus indo do outro lado do Cedron para o Monte das Oliveiras,
suas primeiras palavras (Mc 14,27; Mt 26,31) são citação formal de Zc 13,7 a
respeito de ferir o pastor e dispersar as ovelhas. A entrada de Jesus em Jerusalém
(Mc 11,1-10 e par.), sentado em um burrico e saudado por hosanas, faz eco a Zc
9,9. Em Zc 14,21, a casa do Senhor é purificada de todos os mercadores no último
dia, do mesmo modo que Jesus purifica o Templo (Mc 11,15-19 e par.; em especial
Jo 2,16). Parece que a declaração de Jesus na Última Ceia que identifica o vinho
com sangue da aliança alude a Zc 9,11 (“o sangue de minha aliança convosco” ). Zc
11,12-13 estabelece o preço do pastor em trinta moedas de prata, que são lançadas
690
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão
4 . Livros Sapienciais1'
20 Jo 7,38, com a água que flui de dentro de Jesus, talvez faça eco a Zc 14,8, onde a água flui de Jerusalém.
21 Esses livros sapienciais encontrados na Bíblia hebraica são quase sempre classificados em ou com “ os
outros livros (escritos)” .
22 Esta situação nos faz notar como o conhecimento de livros que nunca fizeram parte da Bíblia hebraica
logo entrou na reflexão cristã sobre as “Escrituras” .
23 A vitória do justo sofredor está descrita em Sb 5,1-5, que apresenta um paralelo geral melhor à vitória
do Jesus ressuscitado que a segunda parte de SI 22 (a ser examinado a seguir). Pode-se afirmar com
razoável certeza que a figura do servo sofredor de Isaías influenciou a imagem no livro da Sabedoria.
691
A pêndices
muitos paralelos que vou examinar adiante. Contudo, como Homerski (Abstract)
menciona corretamente, os paralelos dos Salmos são a detalhes secundários que
completam a história (na maioria das vezes, a incidentes que indicam o que outras
pessoas fazem a Jesus); e nenhum Salmo apresenta um paralelo ao esboço evangélico
básico da Paixão de Jesus. Também não parece que, ao ampliarem o esboço, os
cristãos primitivos fizessem uma interpretação versículo por versículo de qualquer
Salmo (nem mesmo do SI 22) semelhante ao que aparece no pesharim de Qumrã
sobre os Salmos (McCaffrey, “Psalm”, p. 73-74). Muitos Salmos citados nas NPs
ou aos quais elas aludem classificam-se como Lamentações ou Súplicas concen
tradas nos sofrimentos do justo inocente, mas os Salmos de ação de graças (34) e
os Salmos Régios (2; 110) também servem de base para a Paixão. Depois de SI 22,
os Salmos mais incontestavelmente lembrados eram SI 6924 e SI 31, com SI 42/43
exercendo influência especial sobre João.25 Abaixo, vou seguir a ordem numérica
dos Salmos ao citar as passagens26 que foram propostas como apresentando subsí
dios para a Paixão de Jesus. Às vezes, a alusão proposta é muito geral e altamente
especulativa; outras vezes (onde uso negrito), a proposta tem alta possibilidade,
probabilidade ou certeza. A subseção 1 examinará todos os Salmos, exceto SI 22,
que será examinado na subseção 2.
SI 2,1-2 (LXX) diz: “ Por que os gentios agiram com arrogância e o povo
pensa em coisas vazias? Os reis da terra vieram tomar posição e os governantes
reuniram-se [sjnagein] no mesmo lugar contra o Senhor e contra Seu Messias”.
24 Antes das NPs, SI 69,10 (“O zelo por tua casa me devora” ) é usado no relato da purificação do Templo
em Jo 2,17. Outros usos de Salmos em passagens que preparam a Paixão incluem SI 118,22-23 como
parte da parábola de advertência dos meeiros na vinha (Mc 12,10-11 e par.). Ver também nota 5, acima,
quanto às citações na Ultima Ceia de SI 41,10; 69,5 e, talvez, 35,19.
25 Ver o debate entre Beutler e Freed. Beutler afirma que SI 42/43 exerceram para João a função que SI
69 e 22 exerceram para os sinóticos; Freed insiste que as passagens onde Beutler vê a influência de SI
42/43 são compostas livremente de diversas perícopes veterotestamentárias diferentes, que influenciaram
o vocabulário e a metáfora.
26 (Lembro aos leitores como números e versículos dos Salmos são citados; ver últimos parágrafos da seção
“Abreviaturas” .) Alguns talvez conjeturem a respeito da ordem, se relacionei os paralelos de Salmos
mais plausíveis (os que aparecem em negrito) em uma sequência que seguiu a ordem na NP evangélica
de acontecimentos ou palavras que faziam eco aos Salmos. E ssa sequência daria SI 41,10; SI 42,6; SI
110,1; SI 2,1-2; SI 69,22; SI 31,6; SI 34,21; SI 38,12. Em nenhum Evangelho a sequência de incidentes
com paralelos de Salmos segue a ordem numérica destes.
692
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão
SI 18,7: “ Lá do seu santo santuário ele ouviu meu grito” talvez tenha eco em
Mc 15,37-38 e par., onde ao “forte grito” de Jesus segue-se o divino rasgamento
do véu do santuário.
SI 31,23 traz a súplica do justo ouvida quando ele clama ao Senhor; cf. Mc
15,37-38 e par.
SI 34,21, onde o Senhor zela pelos ossos do justo para que nenhum só deles
se quebre, pode ser acrescentado à descrição do cordeiro pascal como outra fonte
da Escritura citada em Jo 19,36: “ Seu osso não será quebrado”.
SI 35,21, onde os inimigos do justo exclamam: “Ah!” ; cf. Mc 15,29. Ver sob
SI 27,12, acima, o uso de SI 35,11 e sob nota 5, acima, o uso na Última Ceia de SI
35,19. Ver também nota 52, adiante.
693
A pêndices
SI 39,10 tem um suplicante que, por castigo, ficou mudo e não abria a boca,
o que tem sido sugerido como paralelo às vezes em que Jesus ficou calado e nada
respondeu.28
SI 41,7: um inimigo vem até o justo, fala sem sinceridade; cf. o comportamento
de Judas em Mc 14,45; Mt 26,49 e Jo 18,3.
SI 4 2 ,6 (ver também 42,12) - “ Por que estás triste, minha alma, e por que
me perturbas [syntarassein]? - é repetido por Jesus no Getsêmani em Mc 14,34
e Mt 26,38 (“ Minha alma está muito triste”30), e SI 42,7 (“ Minha alma está aflita
[tarassem]” ) se repete em Jo 12,27 (“Agora minha alma está aflita” ).31 Quanto a
SI 42,11, ver nota 51, adiante.
28 Ver nota 15, acima. Alguns biblistas invocam também o TM de SI 38,14: “Sou como [...] um mudo que
não abre a boca [LXX: um homem que não tem censuras na boca]” , mas este é um paralelo ao silêncio
de Jesus ainda mais incerto que Is 53,7.
29 Ao tratar do SI 22, Fisher (“ Betrayed” , p. 27-36) analisa o SI 41 e combina o paralelo de Judas com 2Sm
15-17 (Aquitofel trai Davi), examinado em § 5. SI 41,2 abençoa o que cuida do humilde e do pobre,
coisa que Judas fingiu fazer em Jo 12,4-5.
30 As palavras de Jesus continuam: “até a morte” , talvez fazendo eco a Jz 16,16 (onde a alma de Sansão cai
em desespero mortal) e em especial a Eclo 37,2: “Não é uma tristeza mortal quando teu companheiro
ou amigo toma-se inimigo?”
31 O Jesus joanino prossegue e pergunta: “E que direi? Pai, livra-me desta hora?” . SI 6,4-5 traz: “Minha
alma está aflita ao extremo [...] Ó Senhor [...] salva-me por amor à tua misericórdia” . Ver também Hab
3,2 (LXX).
694
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestam entários das narrativas da Paixão
SI 69,22 (“ E eles deram para meu pão fel e para minha sede deram-me a
beber vinho avinagrado [oms]” ) está claramente repetido em Mt 27,34 e 48, onde
é dado ao Jesus crucificado vinho (oinos) misturado com fel e, mais tarde, vinho
avinagrado. E provável haver alusões a esta passagem em Mc 15,36; Lc 23,36 e Jo
19,29, onde se oferece vinho avinagrado a Jesus. É também o Salmo que serviu de
base para Mc 15,23, onde se oferece a Jesus vinho (oinos) misturado com mirra?
SI 110,1, onde o Senhor Deus diz “ao meu senhor: ‘Senta-te à minha di
reita’”, dá o contexto para o Filho do Homem “sentado à direita do Poder e vindo
com as nuvens” (Mc 14,62 e par.) na advertência de Jesus ao sumo sacerdote no
relato sinótico do julgamento judaico.
2 . SI 22 e a Paixão
i2 Em vez de apodokimazein, a citação deste Salmo em At 4,11 usa exouthenein, forma variante de exou-
denein, “ considerar como nada, desdenhar” , que aparece em SI 22,7.
695
A pêndices
0 título (SI 22,1) que atribui o Salmo a Davi36 e o fato de Jesus aplicar a si
mesmo SI 22,2 (Mc 15,34; Mt 27,46) deram origem à percepção cristã primitiva
de que o Salmo era profecia a respeito do Messias sofredor.37 Assim, como men
33 Essa parte subdivide-se em duas subseções: 2-11 (fala e lamento diretos a Deus) e 12-22 (descrição
do problema e súplica a Deus); ou em três subseções (por exemplo, Gese), 2-6, 7-12, 13-22, cada uma
incluindo uma queixa (que cresce em intensidade e extensão) e uma expressão de confiança devota.
34 Entretanto, como indicado por meus itálicos, muitos biblistas emendam por causa da brusquidão da
oração (“Salva-me da boca do leão e dos chifres do búfalo [salva] minha aflita pessoa”) ou preferem outro
sentido verbal: ‘Jaze-me triunfar,\
35 Os que dividem a primeira parte do Salmo em duas subseções (nota 33, acima) veem a segunda parte
também dividida em duas subseções: 23-27 e 28-32. Entretanto, Gelin, Martin-Achard e E. Podechard
estão entre os que pensam que os vv. 28-32 tinham origem diferente, refletida em seu tema diferente (a
realeza de Iahweh). E. Lipinski (Biblica 50, 1969, p. 153-168) considera-o hino dos séculos VIII ou VII
a.C.
* É possível debater se idwd contém um auetoris pouco convincente (“Salmo de Davi” ) ou se tem a função
de tomar o Salmo régio: “para o rei davídico” . R. B. Hayes, “Christ Prays the Psalms: PauPs Use of an
Early Christian Exegetical Convention” , em A. Malherbe & E. Meeks, orgs., The Future of Christology,
Minneapolis, Fortress, 1993, p. 122-136 (L. E. Keck Festschrift), afirma que a tradição de ler os Salmos de
lamentação régios (davídico) como prefiguração do Messias era primitiva o bastante para ser pré-paulina.
37 Áquila traduziu o que muitas vezes se julga ser uma notação musical no título do Salmo (SI 22,1: Imnsh:
“para o maestro” ) como “ao autor da vitória” (assim também Jerônimo); e a LXX traz: “ até o fim” — desse
modo, o messianismo recebia impulso escatológico. Ver Bomhãuser, Death, p. 2.
696
Apêndice VII:O s antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão
38 Diálogo 98-106 trata em grande parte da aplicação deste Salmo a toda a missão de Jesus, inclusive o
nascimento.
39 SI 22,10-11, com sua sugestão de que o salmista que fala foi tirado do seio e reservado desde o nasci
mento, compara-se a SI 2,7, que envolve a geração do rei. Seguindo intérpretes escandinavos, Soggin
(“Appunti” , p. 114-115) afirma que o rei e o servo sofredor foram unidos na expectativa judaica, em
especial entre os anawin ou pobres.
* Contudo, ainda em 1948, no catolicismo romano, Feuillet (“ Souffrance”) insistia que SI 22 é amplamente
messiânico, conforme interpretado em sentido convencional, não literal, de modo que o salmista não tinha
de saber a respeito de Cristo com antecedência. Em 1978, Lange (“ Relationship” , p. 610), defendendo
uma aplicação tipológica, lembrou que, entre os luteranos do sínodo de Missouri, uma predição literal
por Davi ainda era a interpretação mais comum.
697
A pêndices
41 A defesa de partes desta teoria está associada a J. Begrich (ZAW 52,1934, p. 81-92); foi contestada por
R. Kilian (BZ 12, 1968, p. 172-185), principalmente com referência ao fato de um oráculo sacerdotal
de cumprimento estar ou não envolvido. Com referência a SI 22 e a NP, o contexto do tôdâ é aceito por
Dillon, Gese, Mays, Reumann etc. Especificamente, Sênior (“Death” , p. 1460) aponta para Lv 7 ,lss,
com sua descrição de oferenda da paz.
42 Assim Gelin, “ Quatre” , p. 31. Holladay (“Background”) chama a atenção para paralelos persuasivos
entre SI 22 e Jr, mas pensa que o profeta recorreu ao Salmo.
43 Ver Ruppert, Leidende, p. 49-50; Feuillet, “ Souffrance” , p. 141-145. Embora Worden (“ My God” , p.
12) pense que o salmista baseou a descrição na imagem do servo, um elemento essencial da descrição
do servo está ausente, a saber, o sofrimento indireto. Deve-se observar que a descrição do açoitado e
escarrado em Is 50,6 leva ao louvor da ajuda divina em Is 50,7ss. Do mesmo modo, a descrição do servo
que não grita em Is 42,2 é seguida pela descrição de uma vocação divina (aparentemente da criação) com
propósitos salvíficos — sequência não diferente de SI 22,7-11. Contudo, os cânticos do servo resultam
698
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão
53,5, compara-se ao salmista que na LX X de SI 22,17 fala de suas mãos e seus pés
traspassados. (Não raro sugerem que o modelo do servo foi Jeremias, de modo que
talvez estejamos comparando literatura paralela, profética e litúrgica com o mesmo
antecedente.44) A ligação do cântico do servo de Is 53 e SI 22,7-9 foi atestada no
final do século I d.C., em 1 Clemente 16.
na justificação ou elevação do servo, enquanto SI 22 não ressalta a justificação pessoal daquele que
lamenta.
44 Stuhlmueller (“ Faith” , p. 18) relata com simpatia a opinião de H.-J. Kraus: Tantas passagens e tradições
convergentes têm eco em SI 22 que ele pode ter sido composto por muitos autores durante um longo
período. Entretanto, é mais provável que um Salmo antigo tenha sido revisado através dos séculos.
45 Meio milênio depois do tempo de Jesus, o Midrash on Psalms (tradução de Braude, v. 1, p. 298ss) mostra
um emprego régio do SI 22 ao rei Ezequias, quando ele foi ameaçado por Senaqueribe, e à rainha Ester,
quando os judeus foram ameaçados por Amã.
v' Ver Fisher, “Betrayed” , p. 25-27; Lange, “ Relationship” , p. 611-613; Rupert, Leidende, p. 114-133.
Dillon (“Psalms” , p. 435) vê em 1QH 3,19-36 uma analogia de estrutura com SI 22, exceto que o hino
de Qumrã tem esta ordem: ação de graças, lamento retrospectivo e perspectiva escatológica.
47 Observemos que em 1QH há um paralelo com a segunda parte do Salmo, mais positiva, enquanto nas
NPs evangélicas os paralelos óbvios são todos com os versos de lamentação da primeira parte.
699
A pêndices
48 Apesar da grande probabilidade de que o Salmo tenha fundamento litúrgico ou cultuai, os paralelos nos
hinos de ação de graças de Qumrã sugerem a possibilidade de a comunidade aplicar o Salmo a um indivíduo
mesmo fora da liturgia do Templo. Quanto à aplicação cristã a Jesus, é discutido se o Salmo era ou não
aplicado a Jesus em um contexto litúrgico, por exemplo, em um tôdâ cristão relacionado com a Eucaristia.
49 Mays (“ Prayer” , p. 329) afirma: “ 0 Salmo 22 pode ser a oração e o louvor simplesmente de qualquer
israelita. Embora não saibamos com certeza para quem ele foi escrito e por quais revisões passou, em sua
forma atual a figura no Salmo compartilha a vocação coletiva de Israel e o papel messiânico de Davi” .
50 As passagens do SI 22 citadas ou às quais aludem outras passagens do NT, fora dos Evangelhos, incluem:
Sl 22,14 (inimigos “ como um leão que ruge”) em lPd 5,8 (“o diabo [...] um leão que ruge”); Sl 22,22
(“Salva-me da boca do leão”) em 2Tm 4,17 (“Eu fui libertado da boca do leão” ); Sl 22,23 (“ Anunciarei
o teu nome aos meus irmãos; no meio da igreja [ekklesia] vou te louvar” ) quase literalmente em Hb 2,12.
700
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão
pouco mais da redação da LX X que Mc 15,34, mas nenhum dos dois cita a frase
em itálico, que também está ausente do TM.
6* SI 2 2 ,9 (“ Ele espera no Senhor; que Ele o liberte; que Ele o salve porque
Ele o deseja” ) tem eco parcial no desafio a Jesus na cruz: “ Salva-te a ti mesmo”
(Mc 15,30; Mt 27,40; Lc 23,39b). Tem um eco mais completo em Mt 27,43: “ Ele
confiou em Deus. Que seja libertado se Ele o ama”.
51 SI 31,12; 42,11; 102,9 e 119,22 referem-se a ser ultrajado por inimigos. Rm 15,3 cita SI 69,10 a respeito
de Cristo ser ultrajado.
52 O escárnio é descrito como “zombaria” também em SI 35,16.
701
A pêndices
10* SI 22,19 (“ Repartiram minhas roupas entre eles e para meu traje tira
ram a sorte” ) está por trás da descrição das roupas de Jesus crucificado nos quatro
Evangelhos545e aparece literalmente como citação de cumprimento em Jo 19,24.
11* SI 22,25c (“ E em meu grito [kragein], Ele me ouviu” ) talvez seja a refe
rência na sequência sinótica onde, quando Jesus expira com um forte grito (phone),
tem lugar a intervenção divina e o véu do santuário se rasga (Mc 15,37-38; Mt
27,50-53; mas cf. Lc 23,46.45b).
53 O TM traz ''ka 'ari [como um leão] minhas mãos e meus pés” , que Áquila e Jerônimo entendem como
“ amarraram” , presumivelmente interpretando as consoantes como uma forma de krh (que deve ter pro
duzido a forma karü, verbo que não é atestado alhures com esse sentido). A LXX usa oryssein, “ cavar” ,
recorrendo a um sentido atestado de krh (mas nunca em sentido figurado, como aqui). Outros, recorrendo
a paralelos acádios, supõem que krh signifique “ser baixo, mirrar” . (Ver J. J. M. Roberts, VT 23, 1973,
p. 247-252.) É também possível aceitar o texto do TM e entender um verbo: “ Como um leão (eles mar
retaram) minhas mãos e meus pés” .
54 É de se presumir que, em suas descrições, os evangelistas usem a linguagem dos Salmos livremente; e
Robbins (“Reversed” , v. 2, p. 1176) mostra como Marcos reformula-a em seu estilo. Contudo, Scheifler
(“ Salmo”) argumenta que algumas das formas talvez representem o uso de um texto diferente do que está
no TM ou na LXX, por exemplo, o “repartindo suas roupas” participial lucano (Lc 23,34b), que reflete
a forma participial targúmica, ao contrário do verbo finito em TM/LXX. Seria preciso ter mais provas de
que o targum estava disponível no século I e de que Lucas lia aramaico.
55 Por exemplo, as passagens pertinentes Mc 15,24.27.29.30.32b.33-34.37-38.39 correspondem às pas
sagens do SI 22 relacionadas como 1 0 \8 *.3 '.5 *.6 \3 '.2 *.r .ir .l2 *. Como 11' e 12* são muito duvidosos,
Robbins (“Reserved” , v. 2, p. 1179) talvez esteja correto ao afirmar que, em termos de ordem numérica,
os ecos do SI 22 em Marcos começam com SI 22,19 (10*) e se movem para trás até SI 22,2 (1*).
702
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão
56 Stadelmann (“ Salmo”) usa uma extraordinária imaginação ao descobrir o esboço do conjunto de Mc 14—16
no SI 22, de modo que as NPs sinóticas foram estruturadas nesse Salmo. Os paralelos do SI 22 também
não são particularmente úteis para teorias de fontes pré-marcanas. Por exemplo, na tese de duas fontes
pré-marcanas propostas por Taylor (ver a p ê n d ic e IX), havería paralelos com o SI 22 nas duas fontes:
r.3*.5 *.6 '.1 0M 2 ’ em A; 2*.8* em B; e 11* em ambas.
57 É possível discutir se, em 6*, Mateus introduz um tom apologético mais forte que o encontrado em Marcos,
pelo menos na direção da polêmica, ao acrescentar uma referência mais clara de SI 22,9 ao escárnio de
Jesus pelos chefes dos sacerdotes.
703
A pêndices
crucificados ao mesmo tempo; seus bens, inclusive suas roupas, eram repartidos
entre os executores; os crucificados eram insultados. Mas, por meio do Salmo,
criou-se uma ponte entre os detalhes comuns da crucificação e a manifestação
veterotestamentária (Oswald, “Beziehungen”, p. 63).
Surge uma questão especial com respeito ao uso do Salmo por Marcos/
Mateus. Com as exceções dos duvidosos 11* e 12*, todos os paralelos propostos são
da primeira parte do Salmo. Assim, se o principal propósito de citar o Salmo (em
especial em 1*) era chamar a atenção para a vitória na segunda parte, os evange
listas tomaram um caminho extraordinariamente obscuro para exprimir isso. Já
argumentei no comentário contra minimizar a forte sensação de isolamento desolado
que o uso de SI 22,2 dá ao Jesus marcano (e mateano); e na verdade, revertendo
a ordem e utilizando o primeiro versículo do Salmo (1*) no final da crucificação
como últimas palavras de Jesus, Marcos (seguido por Mateus) põe a ênfase cul
minante no lamento mais desesperado do Salmo.58 Contudo, surge uma questão
um pouco diferente quando consideramos o que segue a NP: a seção de ação de
graças do Salmo (onde o lamento foi ouvido) influencia a narrativa por Marcos/
Mateus daquilo que aconteceu depois da morte de Jesus? Gese (“ Psalm, p. 22)
é um grande proponente dessa tese, e até liga a influência do Salmo à narrativa
da ressurreição, com a Eucaristia sendo um tôdâ ou refeição de ação de graças
cristã. As alusões em 11* e 12*, que se classificam quando muito como possíveis,
dentro da NP seguem a morte; mas, depois do sepultamento, na sequência mateana
pós-ressurreição, paralelos possíveis, mas bastante contestáveis, incluem Sl 22,23
(“Anunciarei o Teu nome a meus irmãos” ), paralelo à instrução às mulheres em
Mt 28,10 (“ Ide anunciar a meus irmãos que eles devem ir para a Galileia” );59 e
Sl 22,28 (“ Todas as famílias das nações se prostrarão diante Dele” ), paralelo a
Mt 28,19 (“ Indo, portanto, fazei discípulos de todas as nações” ). (Notemos que
não há nenhum vocabulário realmente paralelo em Marcos a nenhum desses pa
ralelos propostos em Mateus; qualquer tentativa de fazer um paralelo entre José
de Arimateia e Sl 22,28, onde todos os confins da terra voltam-se para o Senhor,
não reconhece que José não é apresentado como convertido a Jesus em Marcos.)
58 Realmente, o Midraxe Mekilta (Shirata 3) cita Sl 22,2 (“ Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”)
como exemplo de misericórdia, mas acompanha essa citação com uma explicação justificadora de outras
passagens que invocam a Deus.
59 Ver também Jo 20,17: “Vai aos meus irmãos e dize-lhes...” .
704
Apêndice VII: Os antecedentes veterotestamentários das narrativas da Paixão
0 único emprego joanino claro do Salmo é 10‘ , porque 9*, 8* e 7* são respec
tivamente apenas possíveis ou remotamente prováveis. Para pressupor a dependência
joanina de Marcos,61 é preciso imaginar que o evangelista removeu a maior parte
611 Oswald (“Beziehungen” , p. 64) sugere que Lucas estava mais interessado em uma apresentação marti-
rológica da Paixão, diferente da do SI 22.
61 João não segue nenhum dos empregos característicos do SI 22 em Mateus (6*), nem em Lucas (4*), com
a possível exceção de 9*.
705
A pêndices
das referências marcanas ao Salmo (muitas delas em episódios a respeito dos quais
não há nenhuma diferença teológica joanina especial), mas depois realçou outra
(10‘). Tem sido argumentado até que João utilizou outro Salmo como importante
fator orientador na NP (nota 25, acima). Tudo isso constitui um modus operandi
peculiar, para dizer o mínimo. Novamente, é mais fácil pressupor que a tradição
joanina da Paixão (ou da crucificação) desenvolveu-se de maneira independente, às
vezes com apelo a passagens veterotestamentárias diferentes das que dominaram
a tradição pré-marcana e marcana.
706
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709
Apêndice VIII:
As predições de Jesus a respeito
de sua Paixão e morte
Bibliografia
não tenta responder a todas essas perguntas, mas a questão que examinamos tem
relevância para elas.
2 Os evangelistas sinóticos não viram nenhuma contradição entre atribuir a Jesus presciência do que
necessariamente aconteceria e descrever sua oração no Monte das Oliveiras pedindo para licar livre do
que previra. O autor de Hebreus não viu nenhuma contradição entre Cristo dizer “ Vim fazer tua vontade,
Ó Deus” (Hb 10,7) e ter de aprender “obediência pelas coisas que sofreu” (Hb 5,8). Quanto à questão
teológica da compatibilidade de liberdade com a presciência do que está predestinado, ver Whitely,
“Christ’s” .
712
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte
Filho do Homem (Mc 8,31; 9,31; 10,33-34 e par.). Contudo, precisamos entender
que essas não são expectativas isoladas de violência futura; por isso, relacionarei
no Quadro 12, a seguir, todos os ditos do Jesus sinótico que possam razoavelmen
te ser considerados predições de uma Paixão ou crucificação, e farei um rápido
levantamento das predições menos precisas ou mais alusivas antes de voltar-me
para as três especiais (que estão marcadas I, II, III no quadro). Inevitavelmente, ao
decidir quais as passagens que são predições, os comentaristas apresentam listas
um pouco diferentes. Uma grande dificuldade é determinar se uma declaração
altamente alusiva deve ser incluída. Por exemplo, em Mc 8,34 (Mt 10,38; 16,24;
Lc 9,23; 14,27) Jesus diz: “ Se alguém desejar seguir após mim, renuncie a si
mesmo, e tome sua cruz e siga-me”. Embora certamente essa declaração não teria
sido preservada se Jesus não tivesse sido crucificado, o fato de o ato de carregar a
cruz estar sendo incentivado para todos os seguidores (só alguns dos quais serão
realmente crucificados) enfraquece bastante seu papel como predição do fim exato
de Jesus. Entretanto, apesar de algumas possíveis discordâncias de opinião, este
quadro de predições é, de modo geral, representativo das que devem ser discutidas
seriamente.3
M A R CO S M ATEUS LU C A S
13,33
17,25
3 Por exemplo, o quadro abrange a maioria das passagens tratadas no livro integral de Taylor sobre as
predições (Jesus), com exceção das palavras eucarísticas de Jesus que Taylor considera predições de
sua morte.
713
A pêndices
10,45 20,28
26,2
14,8 26,12
14,27-28 26,31-32
714
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e morte
que considero a NP propriamente dita, quando Jesus sai da ceia e vai ao Monte
das Oliveiras, nós o encontramos predizendo: “Está escrito: ‘Ferirei o pastor, e as
ovelhas (do rebanho) se dispersarão’. Entretanto, depois de minha ressurreição irei
à vossa frente para a Galileia” (Mc 14,27-28; Mt 26,31-32). E ssa passagem já foi
examinada em § 5, acima. Como as grandes predições da Paixão, ela contém uma
referência à ressurreição; mas, ao contrário de outras predições, não está redigida
em termos do Filho do Homem e cita a Escritura explicitamente. Voltemo-nos ago
ra para passagens anteriores do ministério de Jesus, que imprimi acima da linha
horizontal em negrito no Quadro 12.
c) Mc 9,12 (“ Está escrito a respeito do Filho do Homem que ele deve sofrer
muitas coisas e ser tratado como nada [exoudenein]” )4 segue-se à primeira (I)
predição marcana detalhada da Paixão (Mc 8,31) e também a uma referência ao
Filho do Homem ressuscitando dos mortos (Mc 9,9). A forma mateana abreviada
(Mt 17,12b: “Assim também o Filho do Homem será maltratado da parte [hypo:
por] deles” ) está na mesma sequência. Uma declaração semelhante em Lc 17,25,
de que o Filho do Homem “deve sofrer muitas coisas e ser rejeitado por [apo]
esta geração”, segue-se à segunda (II) predição lucana específica.5 Embora em
seu contexto essas referências a sofrimento claramente prevejam toda a Paixão e
crucificação, há quem argumente que sozinhas elas não são mais específicas que
as descrições veterotestamentárias do justo maltratado pelos inimigos. À luz da
4 Isso ocorre dentro do contexto de uma pergunta. Notemos que Jesus é mostrado afirmando que o Filho
do Homem sofredor faz parte do registro bíblico; não há nenhum conhecimento de que essa descrição
seja inovação.
5 Lc 17,25 é secundário, talvez influenciado por Mc 9,12, mas ainda mais certamente deriva de Lc 9,22
(I), que por sua vez deriva de Mc 8,31 (1). Ver Fitzmyer, Luke, v. 2, p. 1165.
715
A pêndices
Escritura a ser examinada abaixo, sob 2), vale a pena mencionar que, em Is 53,3,
exoudenein é empregado a respeito do servo do Senhor no grego de Aquila, Símaco
e Teodocião. (Ver também a p ê n d ic e VII, nota 32.)
f) Mc 10,45 (Mt 20,28) - “ O Filho do Homem não veio para ser servido,
mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos” - está alguns versículos
depois e, assim, mais uma vez é esclarecido pelo contexto — o ato de dar a vida
terá lugar na cruz. Contudo, entendida sozinho, se não tivesse havido crucificação,
talvez essa declaração de Jesus teria sido entendida como referência mais geral
à maneira como ele dedicou sua vida. Muitos biblistas consideram o “em resgate
por muitos” secundário e reflexo da descrição do servo em Is 53,11-12, que sofreu
por muitos. Ditos similares ao tema de servir em Lc 22,27 e Jo 13,16 não têm o
elemento de resgate.
716
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte
6 Em sua pesquisa a respeito do uso que Jesus faz de “o Filho do Homem” (§ 22, nota 35), Casey formula
a possibilidade interessante, mas complicada, de Jesus ter feito uma predição genuína de sua morte
sofredora, na qual os cristãos introduziram a referência a “o Filho do Homem” .
717
A pêndices
I. P rim e ira p re d iç ão d a P a ix ã o
M c 8 ,3 1 Mt 1 6 ,2 1 L c 9 ,2 2
Que é necessário para o Que é necessário para ele Que é necessário para o
Filho do Homem (Jesus) Filho do Homem
ir embora para Jerusalém
II. S eg u n d a p re d iç ão d a P a ix ã o
Mc 9 ,3 1 Mt 1 7 ,2 2 - 2 3 L c 9 ,4 4
Que o Filho do Homem 0 Filho do Homem Pois o Filho do Homem
é entregue está prestes a ser entregue está prestes a ser entregue
nas mãos dos homens;7 nas mãos dos homens; nas mãos dos homens;
e eles o matarão, e eles o matarão,
e tendo sido morto,
III. T e rc e ira p re d iç ão d a P a ix ã o
Mc 1 0 ,3 3 - 3 4 Mt 2 0 ,1 8 - 1 9 L c 1 8 ,3 1 b - 3 3
E o Filho do Homem E o Filho do Homem 4. E para o Filho do Homem8
será entregue será entregue 1. serão completadas
O plural de anthropos, embora se refira a seres humanos, é aqui traduzido por “ homens” para captar o
jogo de palavras em “o Filho do Homem \anthmpos]”.
Os numerais arábicos indicam a ordem dessas frases no grego lucano. 0 “para” de “para o Filho do
Homem” talvez seja regido por “completadas” (e assim seja equivalente a “em”) ou por “ escritas” (e
assim seja equivalente a “ sobre”).
718
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e morte
aos chefes dos sacerdotes e os aos chefes dos sacerdotes e 2. todas as coisas escritas
escribas; escribas; 3. por meio dos profetas;
Precisamos prestar atenção à exata redação das predições nos três sinóticos
(Quadro 13). Em geral, a prioridade marcana explica as relações entre as variantes
evangélicas, mas há alguns pontos interessantes. Mateus e Lucas sempre preferem
a fórmula querigmática fixa: “ressuscitado [egeirein] no terceiro dia” (ICor 15,4),
apesar do fato de Marcos ter “ressuscitar [anistanai] depois de três dias” ;9 mais uma
vez, isso explica a influência da tradição oral, mesmo copiando de um Evangelho
escrito. Em II, eles também concordam10 ao mudar do tempo presente marcano “é
9 Pode bem ser que “ ressuscitado” e “ressuscitar” reflitam traduções diferentes para o grego da mesma
forma verbal aramaica yequtm. Farmer escreveu um artigo sobre essas predições como provas para
sua abordagem do problema sinótico que afirma ter Marcos recorrido a Mateus e Lucas, por isso quero
mencionar que encontro aqui um argumento bastante contrário. Mateus e Lucas estão de acordo aqui e
usam uma fórmula querigmática bem estabelecida; contudo, Marcos prefere uma interpretação diferente.
Não entendo por que Marcos não os seguiría; entendo por que eles o corrigiríam.
10 A concordância de Mateus e Lucas em I - ao usar apo (“ da parte de” ), em lugar do hypo marcano (“por” ),
para os agentes da rejeição - não é significativa porque, respectivamente, de maneira diferente, eles
deixam o verbo “sofrer” dominar a relação gramatical. Eles também concordam ao não gostar da tediosa
repetição marcana do artigo definido antes de “ chefes dos sacerdotes” e “ escribas” . Estranhamente,
Farmer (“Passion” , p. 559) considera essa preferência gramatical facilmente explicável prova definitiva
de que Mateus e Lucas não dependiam de Marcos. Contudo, ele não tem problema em afirmar que Lucas
719
A pêndices
entregue” para o futuro com mellei (“está prestes a” — porém, em outra ordem
de palavras), presumivelmente evidenciando um instinto mútuo para esclarecer o
que Marcos quer dizer.11 Como na NP propriamente dita, Lucas manifesta mais
liberdade com respeito a Marcos do que Mateus, ao omitir a segunda parte de II e
remodelar a primeira parte de III.112
(que, ele conclui por hipótese, recorreu a Mateus e não conhecia Marcos) omitiu infundadamente o “ir
embora para Jerusalém” mateano e o substituiu por “ e ser rejeitado” , interpretação que adiante Marcos
também preferiu à frase mateana mais original.
11 A tese contrária é mais difícil. Se Marcos usou Mateus e Lucas, por que ele discorda deles aqui ao preferir
o presente mais obscuro em lugar do futuro comum mais claro deles?
12 Quer se argumente que Mateus e Lucas dependem de Marcos, ou (com Farmer) que Marcos depende
de Mateus e Lucas (e que Lucas conhecia Mateus), a presença de formas verbais diferentes nos três
Evangelhos em III depois de “aos gentios” é um problema. Contra Farmer, por que Marcos escolhería
as formas verbais “vão escarnecer” e “vão cuspir”, não encontradas nem em Mateus nem em Lucas? E,
novamente contra Farmer, se conhecia Mateus, mas não conhecia Marcos, por que Lucas acrescentou
“cuspir” , sem nenhum apoio de Mateus e sem apoio interno em seu próprio relato, já que em Lucas nin
guém cospe em Jesus? Na tese defendida mais amplamente de que Lucas (e Mateus) recorreu a Marcos,
os verbos “ escarnecer” e “cuspir” chegaram a Lucas a partir de Marcos.
13 Lohmeyer afirmou que as três predições marcanas originaram-se de Lc 17,25, mas muitos consideram
a passagem lucana secundária. Ver nota 5, acima.
720
Apêndice VIII: As p re d ize s de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte
muitas coisas” e, por isso, não seria desarrazoado pensar em dois ditos diferentes.14
Em qualquer caso, como a predição mais detalhada, muitos consideram III criação
secundária, ampliada retrospectivamente à luz do que aconteceu na NP. Mc 14,64
descreve os chefes dos sacerdotes e os escribas julgando contra Jesus; em Mc
15,15-20a, os soldados romanos (gentios) flagelam (açoitam), cospem, escarnecem
e crucificam (matam) Jesus. Assim, talvez as adições características de III quanto
a I e II sejam ecos da NP marcana. A forma mateana de III aumenta a analogia ao
substituir “ matar” por “crucificar”.15
14 Alguns que pensam em dois ditos básicos não escolhem Mc 8,31 e 9,31; Fuller (“ Son of Man Came” ,
p. 47) considera Mc 14,21a (“O Filho do Homem vai”) e Mc 14,21b (“O Filho do homem é entregue”),
com este último padrão refletido em Mc 9,31. Ver em A la, acima.
15 O III lucano tem seus problemas: na NP lucana, os romanos não açoitam nem cospem em Jesus e, assim,
Lucas tirou esses traços de Marcos em III sem reconhecer que sua reorganização da NP marcana significa
que agora a predição de Jesus permanece não cumprida (§ 35, acima).
721
A pêndices
16 Mesmo biblistas centristas duvidam que Jesus predisse literalmente sua ressurreição corporal no terceiro
dia. Na narrativa dos quatro Evangelhos, nenhum dos discípulos entendeu que ele quis dizer isso, e todos
eles tiveram dificuldade para compreender quando, de fato, ele ressuscitou no terceiro dia. 0 fato de não
entenderem é, sem dúvida, tema teológico, mas ainda sugere que, na tradição, Jesus não fora lucidamente
claro nesse ponto. Tem sido perguntado se, ao pensar a respeito do plano de Deus para a história futura,
Jesus distinguiu com algum detalhe entre parusia, ressurreição, consumação e construção do santuário
do Templo. São esses apenas jeitos diferentes de expressar a visão ou presciência escatológica básica
única? Seja como for, não concordo com a sugestão (ver Lindars, Jesus, p. 73) de que, em parte ou no
todo, isso podia ter sido predito sem tomar Jesus fundamental para o que ia acontecer: Ele é o agente
divino do reino neste tempo e no tempo que há de vir.
17 Assim Black (“Son of Man” , p. 7), para quem o estrato mais antigo de Filho do Homem refere-se a
sofrimento e justificação, sem referência a ressurreição; ele lembra que os três ditos joaninos de Filho
do Homem (que ainda vamos examinar) aproximam-se disso.
18 Marshall (“Son of Man”) apresenta um exame equilibrado de vários pontos de vista.
19 Lembro ao leitor que, como “o Filho do Homem” aparece quase exclusivamente nos lábios de Jesus,
a expressão não é facilmente atribuída à Igreja primitiva. Também não é fácil negar que Jesus refletiu
sobre Dn 7, pois essa é uma das pouquíssimas passagens veterotestamentárias onde há referência ao
Reino de Deus.
722
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte
c) Mesmo os que admitem ter Jesus falado do Filho do Homem negam que ele
o fez em relação a seu sofrimento (um dos três tipos de “ditos do Filho do Homem” ).21
Afirmam que nada em Dn 7 sugere que aquele semelhante a um filho de homem
sofreria. Como Schaberg salienta tão sabiamente,22 isso não é exato. Em Dn 7,26,
um dos chifres da quarta besta oprime os santos do Altíssimo, que são “entregues
em suas mãos durante um período, dois períodos e meio período” (3 1/2 períodos),
antes que o Altíssimo lhes dê reino e domínio. Muitos biblistas identificam esses
santos como os simbolizados pelo “semelhante a um filho de homem” de Dn 7,13-
14, a quem o Ancião de Dias dará reino e domínio. Se Jesus reconhecesse seu
20 Em outras palavras, não aceito a tese de que um princípio minimalista como a descontinuidade é verda
deiramente científico (já que os ditos que passam nessa rede são seguramente atribuídos a Jesus); esse
princípio garante uma distorção atroz.
21 Um fator neste julgamento é a ausência em Q dos ditos do Filho do Homem sofredor. Contudo, como Q
não tem uma NP, teria ela sido um veículo lógico para preservar predições pertinentes à Paixão? Dos
cinco ditos do Filho do Homem que Lindars aceita como autenticamente de Jesus, três (Mc 9,31; 10,45;
14,21) envolvem sofrimento. Contudo, na tese de Lindars (Jesus) de que “Filho do Homem” significa
“um homem como eu” , nem Mc 10,45 nem Mc 14,21 fazem sentido sem uma grande correção.
22 Ela reconhece (“Daniel” , p. 213-214) que idéias dispersas apresentadas por ela foram propostas por
Best, Lindars e Hooker, mas com certeza ela fez a melhor síntese.
723
A pêndices
papel em Dn 7,13-14, ele poderia ter usado a fraseologia de Dn 7,25 para predizer
que seria entregue às mãos de homens hostis a ele e teria de esperar durante um
espaço de tempo de três dias antes de ser vitorioso. Vale a pena notar que, embora
nessas predições Jesus não fale de sua vitória em termos de reino, Mc 14,25; Mt
26,29 e Lc 22,28-30 apresentam-no fazendo isso na Ultima Ceia. Nas predições I,
II e III, ele fala de ressurreição; e, embora acima eu tenha mencionado esse tema
como possivelmente uma explicação retroativa, Schaberg (“ Daniel”, p. 209-212)
lembra que Dn 12,1-2 tem uma ressurreição do povo santo de Deus. Se Daniel foi
a base a partir da qual foi formado o dito em Mc 9,31 (II), foi II, por sua vez, o dito
do qual I e III foram formados; ou é provável que a reflexão nas Escrituras tenha
dado origem àquelas formas variantes? Muitos estudiosos julgam que a referência
em III ao Filho do Homem sendo entregue “aos gentios” é retroprojeção da NP,
embora ta ethne não seja usado para os gentios em nenhuma NP.23 (At 4,25-27
refere-se a “gentios” e há quem afirme que Marcos pegou a expressão da pregação
primitiva: ver em [d], abaixo.) Entretanto, o chifre da quarta besta a quem os santos
do Altíssimo (simbolizado antes por alguém semelhante a um filho de homem) são
entregues em Dn 7,25 é um governante gentio.
724
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte
23 Ver em § 26 e § 36, a possível influência do texto de Isaías nos relatos da NP dos maus-tratos de Jesus,
de modo que se tem de lidar com um relacionamento triangular envolvendo a descrição em Isaías, as
predições e os relatos das NPs.
26 Também Rm 5,8 (“enquanto ainda éramos pecadores, Cristo morreu por [hyper] nós” ). A linguagem de
hyper não é usada em Is 53 e Perrin (“ Use” , p. 208) a atribui à etapa grega da pregação cristã primitiva.
2‘ Fuller (“Son of Man Carne”, p. 48) ressalta a base do Salmo. Se passarmos para outras predições, Perrin,
trabalhando com Mc 14,62 (“Vós vereis o Filho do Flomem sentado à direita do Poder e vindo com as
nuvens do céu” ), vê uma combinação criativa de Dn 7,13-14; SI 110,1 e Zc 12,10ss.
28 Uma variante do argumento encontra-se em Perrin (“Towards” , p. 26, 27). “Depois de três dias” é dis
tintamente marcano e não remonta a Jesus. Além da duvidosa adequação da base para esse argumento,
ver § 2, C2, a respeito da questão de onde Marcos tirou sua linguagem.
725
A pêndices
Como acima, ao lidar com o uso da Escritura, creio que esse princípio garante a
desfiguração para entender Jesus. Se os discípulos eram responsáveis pela pregação
e se Paulo menciona que ele “recebeu” algumas fórmulas (dos cristãos primitivos),
teria sido inevitável a considerável continuidade entre o modo de Jesus se expres
sar e as fórmulas repetidas na pregação?29 Em At 3,15, Pedro diz que os homens
de Israel “mataram” o autor da vida. Por que temos de pensar que “morto” nas
predições I, II e III é retroprojeção dessa linguagem? Se Jesus realmente predisse
que seria morto, o que seria mais natural do que os fiéis proclamarem que ele foi
“morto” exatamente como disse que seria?
29 Perrin (“Towards” , p. 28) não aceita que o dei (“é necessário”) de Mc 8,31 (I) tenha vindo de Jesus,
pois reflete a apologética cristã primitiva. Creio ser possível defender a causa de não atribuir a Jesus
o vocabulário da apologética, pois o contexto da luta cristã com as sinagogas não existia no tempo de
Jesus. Mas foi “é necessário” , com relação ao plano de Deus, criado (e não apenas usado) no debate
apologético? Ou fez originalmente parte da tentativa cristã mais profunda de entender o ministério de
Jesus e (ouso sugerir) até parte da tentativa de Jesus para entender as mudanças de sua vida? A questão
da necessidade daquilo que é profetizado, que é importante porque dá um ar de inevitabilidade, está
convenientemente estudada sob o titulo do uso de dei. Entretanto, esse título é por demais estreito.
Mowery (“Divine”) lembra que dei é apenas uma de seis maneiras diferentes nas quais Lucas se refere
à intervenção divina na Paixão.
30 Em § 20, mencionei a dificuldade de retroverter para o aramaico as frases gregas adjetivas que modificam
“ santuário” na predição de Mc 14,58: “eu destruirei este santuário feito por mão humana e, dentro de
três dias, outro não feito por mão humana eu construirei” .
31 Reconhecer os substratos aramaicos não é ciência exata. Jeremias suspeita do dei (“é necessário” ) de I
como elemento mais tardio, enquanto Black (“ Son of Man”) considera a construção que inicia I semítica,
em vez de grega.
726
Apêndice VIlh A s predições de Jesus a respeito de sua Paixão e morte
grego que Marcos nos deu: huios anthropou [ ...] eis cheiras anthropon. “ Entregue
nas mãos de” é expressão semítica, mas aparece na LXX. Muito mais sólida é a
afirmação de Fitzmyer (“ New Testament”, p. 146-149), segundo a qual “o Filho do
Homem” certamente não é criação merecedora de crédito em grego e, com certeza,
representa o aramaico (não hebraico) br ’ns.i2 Contudo, mesmo quando um substrato
aramaico pode ser reconstruído, não é demonstrada a autenticidade do dito; os
seguidores cristãos primitivos de Jesus também falavam aramaico.
Antes de tirar quaisquer conclusões quanto a Jesus ter feito algumas das
predições atribuídas a ele na tradição sinótica, examinemos resumidamente as
contribuições à imagem em João.
João será tratado mais resumidamente que os sinóticos, mas mesmo um tra
tamento resumido parecerá sem sentido aos que afirmam que o quarto Evangelho
não nos diz nada a respeito do Jesus histórico. Comecei este APÊNDICE com uma
referência ao Seminário de Jesus; em 1991, a imprensa noticiou que a maioria votante
no seminário não considerou um único dito sequer em João originário de Jesus.
32 Cito essa forma porque, embora apareçam no aramaico mais tardio, as formas br ns ou br ns’ não se
encontram no século I d.C.; nem o significado de “eu” para “ Filho do Homem” .
727
A pêndices
erguerei”; e Jo 2,21 nos diz que o santuário era seu corpo. Entretanto, a leitura nas
entrelinhas de Jo 2,22 mostra que o evangelista dá uma interpretação mais tardia
de um dito enigmático (§ 20), que de qualquer modo não é uma predição clara,
porém, mais um aviso do que acontecerá se os adversários de Jesus prosseguirem
em seu caminho hostil.
0 elemento mais importante nas predições que o Jesus joanino faz de seu
fim consiste em três ditos do Filho do Homem:33
33 Muitos comentários de João tratam do tema do Filho do Homem joanino. Ver também R. Schnackenburg,
“ Der Menschensohn im Johannesevangelium” , em NTS 11, 1964-1965, p. 123-137; S. Smalley, “The
Johanine Son of Man Sayings” , em NTS 15, 1968-1969, p. 278-301; J. Coppens, “ Le Fils de 1’homme
dans 1’évangile johannique” , em ETL 52, 1976, p. 28-81; F. J. Moloney, The Johannine Son of Man, 2.
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728
Apêndice VIII: As p re d ize s de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte
• “ E eu, quando eu for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12,32).
O evangelista comenta: “ Ora, ele dizia isso para dar um sinal de que
tipo de morte ele ia morrer” (Jo 12,33). Em seguida há uma reação
hostil dos ouvintes: “ Como podes dizer que é necessário para o Filho
do Homem ser elevado?” (Jo 12,34).
A meu ver, as três predições joaninas (aqui citadas como primeira, segunda
e terceira) estão claramente relacionadas com as três predições sinóticas da Paixão
(I, II, III). Todas têm o mesmo sujeito “Filho do Homem”. (Reparemos que, enquanto
Jesus diz “ Eu” na terceira, a audiência ouve “ Filho do Homem”.) Há um dei (“é
34 Isso se confirma na NP em Jo 18,31-32, quando ficou claro que, fisicamente, Pilatos, não os judeus,
deve executar Jesus (e, assim, ele vai morrer pelo castigo romano da crucificação), “ a fim de se cumprir
a palavra de Jesus que ele disse para expressar de que tipo de morte ele ia morrer” .
35 G. C. Nicholson (Death as Departure, Chico, CA, Scholars Press, 1983, p. 75-144 [SBLDS 63]) enfatiza
mais fortemente o fator de exaltação.
729
A pêndices
E ssas semelhanças tornam provável que João tirou seus três ditos dos
três sinóticos? 0 quarto evangelista leu Mc 8-10, escolheu I, II e III e decidiu
remodelá-los em redação totalmente simbólica e espalhá-los do princípio ao fim
de seu Evangelho? Isso parece forçado. A meu ver, uma hipótese mais provável é
que, já no plano pré-evangélico, havia uma coletânea de três ditos predizendo a
morte e ressurreição do Filho do Homem, e que as tradições marcana e joanina e/
ou os evangelistas aperfeiçoaram esses ditos e os empregaram de forma indepen
dente.38 Se é plausível que Dn 7 ofereceu a base para a ideia de que um “alguém
semelhante a um filho de homem” poderia ser vitimado pelo representante do mal,
mas seria triunfante e exaltado à presença do Ancião de Dias, a forma marcana
das predições do Filho do Homem manteve parte do vocabulário e das metáforas
de Daniel (a entrega nas mãos do líder gentio e [talvez] a ressurreição), mas omitiu
36 O povo ouviu um dei também na terceira predição, embora Jesus não o tenha pronunciado. Devemos
presumir que, na trama joanina, essa audiência se lembra do primeiro dito e interpreta o terceiro por
meio do primeiro? É isso indício de que essas três predições eram outrora um bloco unificado?
37 Alhures, ao comparar João e os sinóticos, por exemplo, na multiplicação dos pães, encontro exatamente
o mesmo fenômeno envolvendo o que se pode considerar características mais primitivas e mais tardias.
Isso opera contra a tese de simples apropriação: um copista teria de criar características novas, de estilo
mais primitivo, além de incluir ou excluir características mais tardias.
38 Létoumeau (“Quatrième” ) mostra como esse aperfeiçoamento ajusta-se à respectiva teologia dos dois
Evangelhos. Em Marcos, além de alertar os discípulos quanto ao futuro de Jesus, os três ditos com con
centração no sofrimento ensinam aos discípulos que, se desejam seguir Jesus, terão de compartilhar o
mesmo destino. Em João, a concentração nos três ditos a respeito da elevação de Jesus ensina a relação
entre a exaltação de Jesus e a fé que traz a salvação.
730
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte
a exaltação dessa figura de filho de homem ao trono de Deus. Exceto pelo título
derivado “ Filho do Homem”, a forma joanina não tem nenhuma das metáforas de
Daniel, mas preserva o impulso básico de exaltação. Vimos acima a probabilidade
de uma influência das passagens do servo sofredor de Isaías nas predições mar-
canas. Muitos pensam que o hypsoun joanino (“elevar” ) origina-se de Is 52,13:
“ Meu servo será elevado e muito exaltado”.39 Entretanto, Schaberg (“ Daniel”, p.
218) observa que Dn 12,1 (LXX, não Teodocião) emprega esse verbo para a ele
vação do povo de Deus nos últimos tempos. Na nota 24, acima, mencionei que, no
plano grego, podia ser feita uma ligação entre a LX X de Daniel e Isaías, pois, nos
dois casos, é utilizado o verbo paradidonai, que aparece nas predições sinóticas
da Paixão; do mesmo modo, é possível fazer uma ligação entre a LX X de Daniel
e a de Isaías, pois as duas empregam o verbo hypsoun, que aparece nas predições
joaninas.40 É essa espécie de reflexão bíblica ligando passagens (juntamente com
os respectivos objetivos teológicos dos evangelistas41) que talvez tenha levado de um
padrão pré-evangélico comum de três predições ao que surgiu independentemente
em Marcos e João.
Mas por que as duas tradições teriam trabalhado com Daniel e Isaías? Essa
propensão já existia no plano pré-evangélico e, sendo assim, remontava a cristãos
mais primitivos em um plano pré-grego ou ao próprio Jesus? Está relacionada com
esse problema a pergunta formulada antes, mas deixada sem resposta: Havia uma
única predição básica ou várias predições por trás das três? Apesar de afirmações
feitas com convicção em alguns tratamentos eruditos das predições, duvido que
mesmo nossos modernos métodos de investigação sejam capazes de proporcionar
a precisão exigida por essas indagações. Quero apenas relacionar observações
conclusivas gerais que acho persuasivas.
39 A LXX interpreta: “ Meu servo [...] será elevado e muitíssimo glorificado” e certamente a glorificação
de Jesus é forte tema joanino.
40 Tem havido uma tentativa de remontar o hypsoun joanino a uma forma passiva de zap aramaico, que em
Esd 6,11 significa “empalar” e daí “crucificar” , e em aramaico (siríaco) mais tardio significa “levantar,
elevar” . Assim, João estaria fazendo trocadilho com os dois sentidos quando escreveu em grego a respeito
de Jesus ser elevado na cruz. Em um só verbo, João estaria resumindo o tipo de fórmula que os Atos
colocam nos discursos apostólicos: Vós o crucificastes, mas Deus o exaltou (veja At 2,32.36; 5,30-31).
É preciso mais provas de que, no aramaico do século I, a raiz zap tinha os dois sentidos e que João
trabalhou a partir de uma base aramaica.
41 Ver na nota 17, acima, a sugestão de Black de que o estrato pré-evangélico talvez estivesse mais próximo
da forma joanina final do que da de Marcos.
731
A pêndices
É história comprovada que Jesus era associado a João Batista e que João
Batista foi executado por Herodes (Antipas) porque sua pregação o tornava uma
figura perigosa. De certa forma, o início do ministério de Jesus de pregação públi
ca estava associado ao fim da missão de João Batista. Como Jesus poderia não ter
previsto que sua missão lhe traria o mesmo fim violento?
E bastante plausível que Jesus exprimisse essa previsão. O exame das três
predições sinóticas e das três predições joaninas do Filho do Homem, e das mais
numerosas predições alusivas e menos detalhadas (Quadro 12, acima), mostra
que a presciência era atribuída a Jesus amplamente e em linguagem bem variada.
Somente uma pequena proporção dessa linguagem tem clara possibilidade de se
originar das NPs evangélicas. Portanto, não se deve tranquilamente alegar que as
predições são todas retroprojeções daquilo que os evangelistas sabiam ter aconteci
do. Nem é fácil perceber como todas essas formulações são redutíveis a uma única
predição básica. Assim, julgo muito improvável a tese de que nenhum desses ditos
que preveem morte violenta se origina de Jesus. Obviamente, os pregadores cristãos
primitivos ampliaram e intensificaram o tema da presciência do plano divino que
Jesus possuía, mas essa impressionante criatividade sem base no próprio Jesus é
implausível. Contudo, a continuidade das predições expressas por Jesus às formadas
pela pregação cristã primitiva com certeza produz semelhanças de tema e redação;
por isso, é muito difícil determinar que forma de que dito é ou não é de Jesus.
42 Curas, ressuscitações, multiplicação de pães, exercer poder sobre tempestades. (A respeito de não
menosprezar facilmente os milagres de Jesus, ver NJBC 78,20; 81,96.103-109.) Ver na b ib l io g r a fia da
se ç ã o , adiante, as obras por Davies, Downing e Gnilka quanto à possibilidade de Jesus considerar-se
profeta-mártir fornecer a chave para entender a presciência que Jesus tinha de seu fim.
732
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e m orte
Se Jesus previu que teria morte violenta nas mãos dos que se opunham a ele,
se falou a respeito disso e expressou sua previsão em linguagem bíblica, quantos
detalhes entraram em sua descrição de seu fim? Por um lado, somente as três pre
dições sinóticas (I, II, III) apresentam detalhes; e, assim, pode-se suspeitar que
Jesus não entrou em detalhes ao prever um fim violento. Contudo, quero lembrar
que uma figura profética judaica que conhecia a situação religiosa e política do
início do século I d.C. bem podia ter sido um tanto detalhada em suas expectativas.
Se Jesus esperava problemas em Jerusalém, ele sabia que os chefes dos sacerdotes
estariam envolvidos. A violência comprovada dos chefes dos sacerdotes contra os
samaritanos, os fariseus e o Mestre de Qumrã, que já era história no tempo de Jesus,
apontava claramente nessa direção. Josefo mostra-nos o sumo sacerdote envolvido
com um sinédrio ou conselho em suas ações; e, assim, a inclusão de anciãos e
escribas nas generalizações de Jesus a respeito dos que se opunham a ele não é
inacreditável. (Precisamos, evidentemente, levar em conta que um grupo como
anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas é, com variações, padrão estabelecido
das NPs; mas isso não significa que o grupo não era histórico. Se efetivamente
um sinédrio julgou o que fazer com Jesus, esse sinédrio consistiu em vários tipos
de líderes judaicos.) Na verdade, se Jesus estava familiarizado com Jr 23,37-38
e seu quadro de sacerdotes, profetas e príncipes que exigiam o castigo e a morte
do profeta, ele podia perfeitamente ter incluído outros grupos hostis ao lado dos
chefes dos sacerdotes prevendo os que cometeríam violência contra ele. Teria ele
imaginado o envolvimento gentio (romano)? Se ele “subia” a Jerusalém somente nas
Gnilka (Jesu) acha que isso incluía o fato de Jesus ter uma perspectiva salvífica a respeito de sua morte.
733
A pêndices
Embora Jesus pudesse ter adquirido certa presciência da leitura dos sinais
dos tempos e mais presciência da reflexão sobre o que acontecera aos profetas e aos
justos de Deus no passado, não fazemos justiça a uma figura tão imbuída de Deus, se
racionalizamos demais a fonte de sua convicção de que ele seria rejeitado e morrería
violentamente, mas sairia justificado. Qualquer que tenha sido o raciocínio em seu
entendimento do que lhe aconteceria, ele certamente atribuiría sua convicção a
esse respeito a sua posição como aquele que Deus enviou para proclamar o reino.
Embora não concorde com ela, entendo a posição dos que negam que Jesus exercia
esse papel em relação a Deus. Acho mais difícil a posição dos que reconhecem que
ele exercia esse papel, mas imaginam que ele nunca falou a respeito de onde esse
papel o levaria. A proclamação do reino tinha de incluir convicções a respeito de
como o reino chegaria; e, para alguém que ligava a vinda do reino a sua própria
atividade, isso incluía convicções sobre seu fim44 — convicções que ele remontava
ao Deus cujo reino estava sendo proclamado.
44 Como mencionei no início deste APÊNDICE, é outra a questão de como a avaliação de Jesus de seu fim
relacionava-se com o valor soteriológico ligado a sua morte pelos cristãos primitivos. Eles diziam que
ele morreu por todos, pelos pecados, como sacrifício, por meio da redenção ou justificação ou salvação
etc. Ele pensava em alguma dessas categorias ou de algum modo relacionava sua morte com a vinda do
reino (Mc 14,25)? Há imensa literatura sobre o significado teológico da morte de Jesus (§ 1, nota 32); mas
vale a pena notar que Léon-Dufour (Face, p. 168-171) afirma que não está historicamente demonstrado
que Jesus declarou que morrería para salvar o mundo do pecado — ele deixou nas mãos de Deus essa
salvação. Segalla (“ Gesü”) julga as implicações dessa opinião minimalistas demais para uma cristologia
adequada.
734
Apêndice VIII: As predições de Jesus a respeito de sua Paixão e morte
735
Bibliografia para o Apêndice VIII:
As predições de Jesus a respeito
de sua Paixão
737
A pêndices
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738
Apêndice IX: A questão de uma
narrativa pré-marcana da Paixão*
por Marion L. Soards**
Nos últimos anos, muito se tem escrito a respeito das fontes da NP marcana,
o que reflete uma diferença de opinião fundamental. De um lado, há biblistas que
afirmam que Marcos teve uma fonte primitiva para a NP, que ele copiou pratica
mente inteira; de outro, há biblistas que afirmam que Marcos criou a NP usando
tradições independentes que já existiam e não recorreu a uma NP mais primitiva
contínua. A variedade de opinião é demonstrada pelas posições destes biblistas:
E. Linnemann (Studien ) emprega Redaktionsgeschichte para chegar à conclusão de
que o evangelista Marcos era ele próprio responsável pela forma coerente da NP e
que, na melhor das hipóteses, podemos falar de várias outras tradições que o autor
empregou ao criar a NP. J. Ernst (“ Passionserzãhlung” ) declara que ICor 15,3-4
revela a autêntica trajetória da NP original: morte —> sepultura —> ressurreição. Ele
conclui que, de Mc 15,30b a Mc 16,8 (menos elementos redacionais), encontramos
a trajetória da NP original. R. Pesch (Markus) trata todo o material entre Mc 8,27
e Mc 16,8 como sendo a NP pré-marcana, composta de trinta e nove unidades
narrativas que são facilmente organizadas em treze grupos de três narrativas. W.
Schmithals*1afirma que um único documento básico (Grundschrift) está por trás de
todo o Evangelho e, por isso, a NP pré-marcana deve ser considerada uma seção
dessa obra unificada mais primitiva.
739
A pêndices
1. Paralelos
2. Tensões internas
3. Vocabulário e estilo
5. Agrupamentos conceituais
2 Neste comentário, Brown começou com Mc 14,26 e, assim, meu Quadro 14 não abrange seu § 5 intro
dutório (Mc 14,26-32).
3 Entre os trinta e cinco, só Mohr não está incluído (por razões a serem explicadas). Além dos trinta e cinco,
diversos renomados escritores sobre Marcos não estão incluídos, por exemplo, J. Gnilka, E. Güttgemanns,
M.-J. Lagrange, E. Linnemann, E. Lohmeyer e J. Schniewind, não porque sua erudição não é proveitosa,
mas porque sua abordagem e seu estilo tomam impossível apresentar suas conclusões no Quadro 14,
planejado para esta análise. Ver também PMK, pois alguns autores com o trabalho representado no Quadro
14 contribuíram para essa obra. As posições que assumem em PMK não variam das apresentadas no
quadro.
1 Também F. Neirynck (“Redactional” , p. 144-162) traz de maneira proveitosa listas do texto redacional
de Marcos como está descrito por Gnilka, Pesch e outros.
740
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
E. R. B ü CKLEY (“ Sources” ) alega que duas fontes importantes estão por trás
da NP marcana. A Fonte A era um relato histórico básico e a Fonte B era um con
junto de fragmentos curtos, independentes e mais nítidos que estavam intercalados
na Fonte A. Este ponto de vista é essencialmente igual ao de V. Taylor (ver abaixo),
embora a contribuição de Buckley tenha surgido antes da de Taylor.
5 Títulos abreviados são usados para obras já citadas nas bibliografias do comentário, em especial na
B i b l io g r a f ia G e r a l , que trata da NP marcana (§ 3 , Parte II).
741
A p ê n d ic e s
sinédrio e por Pilatos, o trajeto até a cruz, a crucificação e a morte” (p. 279). Ele
analisa cada perícope dentro da NP para determinar se a unidade está ligada aos
outros elementos da NP ou é uma tradição independente que foi incorporada mais
tarde à NP original. Bultmann considera a questão de até onde Marcos conhecia o
conjunto desenvolvido (da NP original e das adições subsequentes a esse fragmento
original) problema secundário, que não pode ser respondido com nenhuma certeza.
Ao tomar decisões quanto às dimensões e ao conteúdo da NP original, Bultmann
observa tradições paralelas em outros materiais tradicionais, duplicatas dentro de
perícopes, motivos apologéticos e teológicos, aspectos lendários, materiais editoriais
e explanatórios e tensões internas no texto.
M. D ibelius (Frorn; ver também The Message o f Jesus Christ, New York, Scri-
bners, 1939) acha que Marcos copiou uma narrativa da Paixão in totum. Ele afirma
que o crítico pode suprimir da NP marcana, por julgá-las secundárias, cenas ou
partes que tenham elos artificiais com a narrativa, isto é, as partes da NP marcana
que estão em tensão com os materiais em torno delas (ou rompendo a continuidade
do contexto imediato ou interferindo na sequência narrativa do conjunto).
742
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
14.1- 16,8 em três concisas e distintas camadas separáveis. A primeira era uma
antiga história de martírio com um núcleo histórico. Mais tarde, essa camada foi
popularizada com adição de diálogos e expansões lendárias que imitavam biografias
proféticas. Por fim, Marcos acrescentou versículos de material parenético a esse
núcleo pré-marcano.
743
A pêndices
744
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
define os limites gerais da “ história primitiva” : ao sair da sala onde foi consumida
a ceia do Senhor, Jesus foi preso no Jardim das Oliveiras; foi entregue pelo sumo
sacerdote a Pilatos, foi condenado à morte e crucificado. A história terminava com
o sepulcro e, talvez, uma aparição. Até onde percebo, ela consistia em Mc 14,3-
9.22-25.32-42.47-52.54.65.66-72; 15,2.6-14.16-20.25.27.31-33.38.40-41.47.
745
A pêndices
746
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
747
A pêndices
748
Apêndice IX :A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
A identifica um versículo como pertencente a uma/à fonte ou tradição pré-marcana que foi
incorporada por Marcos ao texto de sua NP.
A 1/2/3 indica um versículo daquilo que foi outrora tradição independente que se tomou parte de
uma única fonte mais tardia, unificada, que, por sua vez, foi incorporada por Marcos ao texto
de sua NP; por exemplo, ver, sob Dormeyer, onde, depois de Mc 15,27, A1 significa que ele
atribui v. 27 a uma primeira etapa pré-marcana de tradição-história. Ver também, sob Ped-
dinghaus, onde, depois de Mc 15,27, A2 significa que ele atribui v. 27 a uma segunda etapa
pré-marcana de tradição-história. B e C às vezes também estão subdivididos.
a/b/c/ em seguida a um símbolo, designa parte do versículo ao qual o símbolo se refere; por exemplo,
sob Bucldey, depois de Mc 14,32, Aa e Bb significam que ele atribui 32a a A e 32b a B.
* em seguida a um símbolo, significa que uma palavra ou palavras do versículo às quais esse
símbolo se refere são provavelmente redacionais, mas que a preponderância do versículo
é pré-marcana.
? em seguida a outro símbolo, indica que o autor não tomou uma decisão clara quanto ao fato
de o versículo ser pré-marcano ou redacional.
□ ao redor de um símbolo, indica que o autor considera o versículo parte de uma adição se
cundária à fonte primária que o símbolo designa, e que essa adição secundária foi feita antes
de Marcos incorporar a fonte (adição primária e secundária) ao texto de sua NP.
749
A p ê n d ic e s
Klostermann
Dormeyer
Anderson
Bultmann
Kolenkow
Donahue
Dibelius
Buckley
Johnson
Czerski
Kelber
Grant
Emst
Kuhn
Mc 14,32-42
i
32 eles vêm à propriedade de [B ] Aa Aa 1 Aa A
nome Getsêmani; e ele diz a seus Bb Ab2
discípulos: “Sentai-vos aqui en
quanto rezo” .
33E ele toma consigo Pedro, e Tiago [A ] Aa B
-
e João, e ele começou a ficar gran Bb
demente atormentado e angustiado.
^ E ele diz a eles: “Minha alma [A ] A Ab? - B
está muito triste até a morte. Perma
necei aqui e continuai vigiando” .
^ E tendo ido um pouco mais [B ] B Aa2 A? - A
adiante, caía por terra e rezava que,
se é possível, a hora passasse dele.
ele dizia: “Abba, Pai, tudo é [A ] A A2 A? B
possível para ti: Afasta de mim este
cálice. Mas não o que eu quero, mas
o que tu (queres)” .
'^ E ele vem e encontra-os dormin [A ] B Aa2 B
do e diz a Pedro: “Simão. estás dor
mindo? Não foste forte o bastante
para vigiar uma hora?
^ Continuai vigiando e rezando, a [A ] B A* B
fim de que não entreis em provação.
Na verdade, o espírito está pronto,
mas a carne é fraca” .
750
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
Peddinghaus
Léon-Dufour
Schm ithals
M yllyk o sk i
S chneider
Schw eizer
Lührm ann
Schreiber
Nineham
Schenke
Lightfoot
Scroggs
Schenk
S ch ille
T a ylo r
Pesch
P ryke
M ohn
Lohse
Lane
A A A A A A [A] A Ab A Aa*1 A A B
A A A A B* [A ] A A Ab1 A — B
B
A A A A A B* [A ] A A A A1 A Ab — B
A A A A A A B* [A ] A A A Aa1 A A — B
B
A A A A B* [A ] A A A A1 A A B
A A A A A Aa [A] A A A A1 A A B
A A A A [A] A A Ab1 A A B
A A A [A ] A A A A A — B
A A A [A ] A [A] A A Ab1 A A B
[ A c 1]
A A A Aa A Ab B* [A ] A A Aa*1 A A* B
B [A c * 1]
A A A A B* [A ] A A A1 A - B
751
AtfNDtCES
D o rm e y e r
B u ltm a n n
K o len k o w
A n d e rso n
D o n ah u e
D ib elh is
B u c k le y
Jo h n s o n
C z e rsk i
K e lb e r
G ra n t
E rn st
Kuhn
Mc 1 4 ,4 3 -5 2 1
!
^ E imediatamente, enquanto ele A A A A A A A A
cr
>
ainda falava, chega Judas, um dos
Doze, e com ele uma multidão com
espadas e paus, da parte dos chefes
dos sacerdotes e dos escribas e
dos anciãos.
^ 0 que o estava entregando, A B A A A A A A
dera-lhes um aviso, dizendo: “Ele
é (aquele) que beijarei. Agarrai-o e
levai-o em segurança”.
um c e rto jo v e m esta va A A A1 A* A A
seguindo com ele, vestido com
um pano de lin h o sobre sua
nudez; e eles o agarram.
CO
° Mas ele, tendo deixado para A A A1 A* A - A - -
trás o pano de lin h o , fugiu nu.
752
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
!- ------------------------
L é o n - D u fo u r
P e d d in g h a u s
M yllyk oski
S c h m ith a ls
L ü h rm a n n
S c h w eiz er
S c h n e id e r
S c h r e ib e r
L ig h tfo o t
N in e h am
Sch enk e
S cro gg s
Sch enk
S c h ille
T a y lo r
M oh n
P ry k e
P esch
L an e
J3
9
J
A A A A A* Ab A3 A A Aa*1 A A* A A A
A A A A A A2 A A A A1 A A A A
B
A A A A A* A A2 A A A A1 A A A A
A A A A A* A A2 A A A A1 A A A A - A
B
A A A [A ?] A A* [A ?] A 2 A A A1 A [A ] A B
A A A A A [A?] A 3 A A A A A B
A A A A A [A ?] A 3 A A A A A B
A A A A A A A? A2 A A A1 A A A - B
B
A A A A A A2 A A A [A ] A B
A A A A A A2 A A A [A J A - B
753
A pêndices
K lo ste rm a n n
D o rm e y e r
K o len k o w
B u ltm a n n
A n d e rso n
D o n ah u e
D ib eliu s
Jo h n s o n
B u c k le y
C z e rsk i
K e lb e r
G ra n t
L an e
Mc 1 4 ,5 3 -6 5 g
a 1
754
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
i- ----------------------------
3b
P e d d in g h a u s
M yllyk oski
S c h m ith a ls
L ü h rm a n n
S c h w eiz er
S c h n e id e r
L ig h tfo o t
S c h r e ib e r
N in e h am
Schenke
Scro gg s
Sch enk
1
S c h ille
T a y lo r
P ry k e
M ohn
P e sc h
Q J9
39
A A Aa Aa2 A Ab A Aa1 A Aa Aa Aa — [A ]
Ab3 B
A A A B* A? A3 A A A A A A — B
A A A A A A1 A? — [A ]
A A A A A A1 A — [A ]
A A B A2 Aa* - [A ]
A A B A2 A — [A ]
A A A2 - [A ]
A A A A B A1 A — [A ]
Aa Ab* A A A1 Ab Aa — [A ]
B
Aa A A A Aa1 A — [A ]
Ab2
A A A A A A1 Aa A — [A ]
A A A A A A1 Aa A? — [A ]
A A A Aca* A B A1 A — B
755
A pêndices
K lo ste rm a n n
D o rm e y e r
B u ltm a n n
A n d e rso n
D o n ah u e
1
D ib eliu s
B u c k le y
Jo h n s o n
C z e rsk i
K e lb e r
G ra n t
E rast
Kuhn
L an e
Mc 1 4 ,6 6 -7 2 -i
e
a*
756
A
A
A
A
A
A
A
L é o n - D u fo u r
A
A
A
A
A
A
A
L ig h tfo o t
L o h se
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A
A
A
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L ü h rm a n n
M ohn
B*
B*
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B*
B*
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M yllyk oski
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N in e h am
A3
A3
A3
A3
A3
A3
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P e d d in g h a u s
A
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A
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757
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B
B
B
B
B
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Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
A p ê n d ic e s
K lo ste rm a n n
D o rm e y e r
B u ltm a n n
K o len k o w
A n d ergo n
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D ib eliu s
B u c k le y
Joh n so n
C z e rsk i
K e lb e r
G ra n t
Kuhn
Mc 1 5 ,1 -1 5
j
^E nesse instante, cedo, tendo feito sua A A Ab1 A A A
consulta, os chefes dos sacerdotes com os
anciãos e escribas e o sinédrio inteiro, tendo
amarrado Jesus, levaram-no embora e o
entregaram a Pilatos.
3
E os chefes dos sacerdotes estavam acusando- A A A A A A1 A A - A -
-o de muitas coisas.
12
Mas em resposta novamente, Pilatos A B A A A
continuava dizendo a eles: “0 que, portanto,
farei com ele a quem vós chamais ‘o Rei dos
Judeus'?”.
14
Mas Pilatos continuava dizendo a eles: “Pois A B A A A -
o que fez ele que é mau?” . Mas eles gritaram
ainda mais: “Crucifica-o”.
758
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
L é o n - D u fo u r
P ed d in gh a u e
S c h m ith a ls
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A A A A* A A3 A A B A1 B A* A - A
A A A A A3 A A A1 B A A — A
A A A A A3 A A B A1 B A* A - A
A A A A B* A A3 A A A2 B A* A - B
A A A A B* A A3 A C A2 B A A — B
A A A A B* A A3 A c A2 B A A — B
A A A A B* A A3 A A A2 B A A — B
A A A A B* A A3 A A2 B A A — B
A A A A B* A A3 A A c A2 B A* A — B
A A A A B* A A3 A B A2 B A B
A A A A B* A A3 A Ab B A2 B A — B
A A A A B* A A3 A Aa B A2 B A — B
A A A Ab A Aa3 A Aa B Aa2 B A A — A
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759
A pêndices
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760
Apêndice IX :A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
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Myllykoski
Lührmann
Schweizer
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A A A A A B [A ? ] A A A1 B A — B
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A A A A A A A3 A A A A1 B A A A1 A
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A A A A A A1 A B A1 B B A A 4? A
761
A pêndices
K lo ste m ia n n
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K o len k o w
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D ib eliu s
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Joh n so n
C z e rsk i
K e lb e r
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Kuhn
Mc 1 5 ,2 7 -3 9
762
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pté-m arcana da Paixão
Léon-Dufour
=co
Myllykoski
Sehmithals
Lührmann
Schweizer
Schneider
Schreiber
Lightfoot
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Schenke
Scroggs
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Lohse
Pryke
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A A A A A A A A2 A A A1 B A A A B
A A A Aa Ba A2 A A Aa1 B A* Ba A Aa3 A
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A A A Ab Ab Aa b 3 A A1 B A* Bc Ab Aa4 B
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A A A A B* A A2 A A B A1 B A B A Aa2 A
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A A A? A2 A B A1 B [ A 2] A
763
A pêndices
1----------------------------
K lo ste rm a n n
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K o len k o w
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IV
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i
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5
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Eú J
^ M a s havia também mulheres ob A A1 A
servando de longe, e entre elas Maria
Madalena e Maria, mãe de Tiago Menor
e de Joset, e Salomé
^ (q u e , quando ele estava na Galileia, A A
costumavam segui-lo e se rvi-lo ), e
muitas outras que tinham subido com
ele a Jerusalém.
42 E, sendo já o entardecer, como era A Ab1 A - - -
dia de preparação, isto é, o dia antes
do sábado,
^ Jo s é de Arimateia, tendo vindo (um LA] A Aac^ A
respeitado membro do conselho que
estava também ele próprio esperando o
Reino de Deus), tendo tomado coragem,
veio diante de Pilatos e solicitou o corpo
de Jesus.
^ M a s Pilatos ficou espantado que ele [B ?] A A
já tivesse morrido; e, tendo chamado
o centurião, interrogou-o se ele estava
morto havia algum tempo.
^ E , tendo vindo a saber do centurião, [B ?] A A
ele concedeu o cadáver a José.
764
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
Léon-Dufour
s«
Schmithals
Myllykoski
Lühnnann
Schweizer
Schneider
Schreiber
Lightfoot
Nineham
Schenke
Scroggs
Schenk
Schille
Taylor
Lohse
Pryke
Pesch
Mohn
Lane
j
?
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i
A A A A A B* A? A Ab B A A B
A A A A A Aa? A A B A B
A A A A B* A A A »1 C Ab [A ] - A
A A A B* A A Aa c A1 C A [A ] A
A A A B* A A A1 c A A
A A A B* A A A1 c A [A ] A
A A A A B* A A c A1 c A [A ] A
A A A A A A A c A1 c A [A ] B
765
A p Enoices
1. Paralelos
766
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
2 . Tensões internas
8 Mark, p. 321-322. Em resultado de sua análise das tensões internas encontradas em Mc 14,43-52,
Anderson conclui que os vv. 47, 48 e 49b foram adições marcanas.
9 BHST, p. 276-277. A partir da identificação desses fragmentos como duplicatas, Bultmann conclui que
“histórias especiais constituem o ingrediente principal da narrativa da Paixão” . O “ relato detalhado”
de Mc 14,55-64 divide a tradição de Pedro e se chama “ explicação secundária da breve declaração de
Mc 15,1” .
10 “Trial” , p. 551-553. Um exemplo dessas informações é o título “o Rei dos Judeus” . A inferência dessa
asserção é a maior probabilidade de ser atribuído a Marcos o material para o qual ele preparou o leitor.
Esse raciocínio é obviamente questionável.
767
A pêndices
Esse método tenta lidar com o incomum e/ou difícil dentro do texto e fazer
sentido de problemas evidentes. Ao operar de modo semelhante à crítica textual,
esse método prefere uma explicação simples a uma mais complicada. Mas é válida
essa inerente predisposição para a simplicidade e a continuidade? Inconsistências
que nos parecem problemáticas evidentemente não pareciam ser problemas para o
autor que produziu o texto final que temos; e como podemos ter certeza de que as
supostas inconsistências não existiam em uma etapa pré-marcana mais primitiva?
Em suma, esse método não distingue entre elementos secundários que Marcos
acrescentou e elementos secundários que se tornaram partes da NP antes de ela
chegar até Marcos.
3 . Vocabulário e estilo
768
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
0 foco desse método é útil para distinguir entre elementos literários pri
mordiais e secundários. Contudo, há problemas. Primeiro, se um tema ou motivo
aparece somente na NP e não em outras passagens de Marcos, não há nenhuma
garantia de que seja pré-marcano. Talvez o único lugar apropriado para esse tema/
motivo aparecer seja no contexto da NP (por exemplo, “o Rei dos Judeus” ). Se um
tema ou motivo aparece na NP e no restante do Evangelho, não podemos automa
ticamente concluir que esse elemento é originalmente marcano. Um tema/motivo
11 0 meticuloso estudo por Scroggs (KKS, p. 529-537) do valor de estilo e vocabulário para distinguir
tradições marcanas e pré-marcanas reúne provas estatísticas contra a afirmação de que foram estabe
lecidos critérios definitivos pelos quais os críticos fazem essas distinções usando métodos estritamente
linguísticos.
769
A pêndices
770
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão
D. Conclusões
Não está dentro dos limites deste estudo tentar uma nova reconstrução da
NP pré-marcana. Entretanto, é possível perguntar se essas advertências quanto às
limitações dos instrumentos críticos levam a uma conclusão estritamente negativa
com respeito a nossa capacidade de saber alguma coisa sobre a NP pré-marcana.
Creio que não.
771
A pêndices
Mc 14,43 é que Marcos está empregando uma fonte. Sem as partes mais primitivas
do Evangelho de Marcos, o leitor precisa de informações referentes a Judas, tais
como Mc 14,43. Mas, o que devemos concluir da presente repetição? A descrição
em Mc 14,10 deve ser redação marcana baseada em parte em Mc 14,43. Quando
apresenta Judas ao leitor, Marcos o faz em uma lista dos Doze (Mc 3,14-19). Em
Mc 3,19, quando Marcos menciona Judas, ficamos sabendo 1) que Judas é “Judas
Iscariotes” e 2) que é o “que na verdade entregou-o [Jesus]”. Em Mc 14,43, Judas
é simplesmente “Judas”,14e é descrito como “um dos Doze”. Assim, é provável que,
quando Marcos descreve “Judas Iscariotes, (aquele) um dos Doze” (em Mc 14,10), o
nome Judas Iscariotes reflita Mc 3,19 e a descrição “um dos Doze” reflita Mc 14,43.
A forma do nome e a descrição em Mc 14,10, bem como a repetição desnecessária
de informações basicamente desnecessárias em Mc 14,43, sugerem que Marcos
usa uma fonte para este último versículo.
0 que se pode dizer quanto a essa fonte? 1) Não sabemos com certeza
absoluta onde a fonte começou, mas essa teria sido a primeira menção a Judas. 2)
Não haveria uso para uma tradição que relatasse apenas que Judas entregou Jesus.
Portanto, a atividade de Judas a essa altura exige que a história continue com um
relato da prisão, condenação e execução de Jesus. Entretanto, não temos certeza
absoluta quanto a onde a fonte marcana teria terminado.
14 O apoio textual para acrescentar “ Iscariotes” é fraco e nem Mateus nem Lucas leem esse nome em Marcos.
A inserção é facilmente justificada como modificação dos copistas que põe essa referência a Judas em
conformidade com as duas referências mareanas anteriores a ele.
772
Apêndice IX: A questão de uma narrativa pré-marcana da Paixão