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Cesario Verde

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Cesário Verde

A REPRESENTAÇÃO DA CIDADE E DOS TIPOS SOCIAIS


A poesia de Cesário Verde faz-nos entrar num mundo em que as coisas se acumulam dentro
da cidade, numa pilha irregular cuja heterogeneidade faz, aliás, parte da própria experiência
urbana enquanto tal. O tecido da cidade não se constrói pela sobreposição do homogéneo ao
diferenciado mas, pelo contrário, pela integração de estratos e fenómenos profundamente
heterogéneos entre si. Essa acumulação coincide a ação de deambular por dentro da cidade
com a tentativa de fixação (captação) poética desse fluxo. Tudo isto traz também inevitáveis
consequências para a forma como o sujeito habita esse mundo que lhe é proposto: é que a
cidade é, sobretudo, um modo de existir e habitar um espaço, construindo nele uma
identidade pessoal e social que parte daquilo que a memória cultural legou para lhe acrescentar
outros modos, sempre diferentes.

→ A cidade aparece representada em Cesário Verde em múltiplas facetas: a cidade mercantil,


pujante de agitação, com os lojistas, as alegantes, as costureiras, as floristas...; a cidade que se
vai esvaziando - as suas sombras as suas cores amareladas, a «triste cidade que aos poucos se
silencia; a cidade burguesa com as casas apalaçadas, os criados, a saloia que vende legumes; a
cidade obreira, de barracões e quintalórios, onde trabalham calceteiros, se ouvem os pregões
das peixeiras e passa a «atrizita» que regressa tardiamente a casa.

A cidade surge como um espaço que se opõe ao campo. O espaço urbano é visto como
opressivo e destrutivo (por exemplo, nos poemas «Num bairro moderno» e «O sentimento
dum ocidental»), tanto para o sujeito poético como para os populares que para aí se
deslocam em busca de melhores condições de vida, na sequência do enorme êxodo rural
que ocorreu nesta época. Em contrapartida, o campo é perspetivado como um local de
liberdade — sendo que o espaço rural não é idealizado, mas descrito de forma realista e
concreta.
Mesmo nos poemas que se concentram no espaço citadino, são feitas referências
frequentes ao campo — como que a lembrar que a vocação do ser humano se orienta para
uma vida harmoniosa e natural, que só no campo se encontra, e que a vida na cidade o
desumaniza. Deste modo, no espaço urbano há sempre um desejo de evasão para o
campo.
A oposição cidade/campo alarga-se também ao campo amoroso: enquanto a cidade está
associada à ausência, impossibilidade ou perversão do amor, o campo representa a
possibilidade de vivência plena dos afetos.
DEAMBULAÇÃO E IMAGINAÇÃO: O OBSERVADOR ACIDENTAL
Consciente da sua arte, Cesário afirma: «Pinto quadros por letras, por sinais». É, de facto,
um poeta-pintor, e aos seus quadros não falta perspetiva, as coisas vão-se distribuindo por
planos sucessivos e fragmentários. Em «O sentimento dum ocidental», onde o poeta é
personagem deambulante, um observador ocasional, acumulam-se notações espaciais e
sensoriais. Os quadros são por vezes dinâmicos, quer pelo movimento da «câmara» do poeta,
que se desloca, quer porque há figuram que perpassam ou avançando, entram subitamente no
campo de visão. Verbos como sair, errar, embrenhar-se, seguir, usados na primeira pessoa,
caracterizam esta poesia errante.
O único modo de falar do real é falar poeticamente dele. O trabalho do poeta é, assim, crucial:
ele será o que vê, na realidade com que se cruza, aquilo que ela é, mais sobre o real,
percebendo-o como traços dos outros reais que ele transporta consigo. Não podemos deixar de
sublinhar a importância decisiva do sujeito poético como sujeito simultaneamente que vê e que
imagina. O poeta, deambulando pelo cenário urbano, torna-se permeável a todos os
encontros do inesperado, e elege para si o papel por excelência do observador, poucas vezes
interferindo ativamente de uma outra forma que não seja a de um percurso com
distanciamento crítico que o faz aceder à atividade da observação. Trata-se entretanto de um
sujeito-observador que, moderno, se coloca perante essa observação: aquele que se observa
a observar.

Cesário Verde representa nos seus versos a cidade (e o campo) através do registo de perceções
sensoriais: embora predominem as referências visuais, o eu lírico caracteriza também o espaço
urbano pelas constatações que lhe chegam através do ouvido, do olfato e do tato. A
caracterização da cidade é feita enquanto o eu lírico caminha pelas ruas, anotando em
movimento o que vê, ouve, cheira e sente. O facto de deambular permite-lhe uma perceção
dinâmica e um conhecimento mais completo da realidade urbana, na medida em que
passa por vários lugares e encontra diferentes personagens.
Mas Cesário não se contenta em apresentar a realidade «como ela é», ou seja, de forma
«objetiva». O sujeito poético coloca a sua subjetividade nessa descrição e fá-la acompanhar de
insinuações apreciativas. Esse olhar subjetivo sobre o real e a cidade concretiza-se em vários
casos numa representação imaginativa das figuras, dos elementos e dos espaços que são
descritos. Por outro lado, a imaginação criativa e a subjetividade do sujeito poético manifestam-
se também na utilização da técnica impressionista para representar a realidade. Tal sucede
quando a caracterização de um lugar ou de uma personagem é inicialmente definida por
características suas (normalmente associadas à luz e à cor) que o observador perceciona para
só num segundo momento esse elemento ser identificado.

As ruas de Lisboa são os espaços de deambulação e imaginação privilegiados pelo poeta.


Nelas dá conta das cores, dos sons e odores de uma cidade que se vai esvaziando. A cidade
mercantil e laboriosa vai dando lugar à cidade noturna com a sua soturnidade e melancolia
- «Sentimento dum ocidental». Já em «Num bairro moderno» o sujeito poético, enquanto
caminha para o emprego, relata a calma pacatez matinal de um bairro burguês que desperta,
num dia de verão, ao passo que em «Cristalizações» nos mostra um dia de frio de dezembro em
mais um percurso pelas ruas.
O IMAGINÁRIO ÉPICO - «O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL»
O poema foi publicado em 1880 no Jornal de Viagens, que nessa edição pretendia comemorar o
terceiro centenário do falecimento do autor d’Os Lusíadas. (Já aqui se vislumbra alguma ligação
entre a composição de Cesário e a epopeia camoniana.)
«O sentimento dum ocidental» é um poema longo que se centra na experiência de vida na
Lisboa da segunda metade do século XIX, como cidade ocidental moderna, bem como nos
sentimentos de melancolia, desânimo e até desespero que tal vivência desencadeia.
«O sentimento dum ocidental» é predominantemente um poema lírico, na medida em que
representa a vivência de um eu poético numa cidade moderna do mundo ocidental. Contudo, o
poema contém marcas que recordam o estilo épico mas que acabam por o subverter (ou
seja, por o contrariar). Essas características emergem logo por se tratar de um poema longo
com um forte pendor narrativo, como sucede numa epopeia: o eu poético relata o seu
percurso pela cidade. Mais ainda, esse sujeito podia estar a celebrar Lisboa e a vida dos seus
habitantes; mas, na verdade, está a criticá-la: a cidade é um lugar decadente, sem brilho e valor.
Há, contudo, uma dimensão épica no poema; mas essa não pertence ao presente, à Lisboa
moderna. O Tejo, a estátua de Camões e alguns outros elementos remetem para um passado
em que Portugal conheceu a grandeza e a glória. As alusões aos Descobrimentos e ao
Império Marítimo são, assim, um esboço de uma epopeia do passado, que o presente torna
amarga porque já não é essa a realidade moderna.
Como sucederia com Camões, se tivesse vivido no fim do século XIX, o sujeito poético perdeu o
motivo para celebrar a pátria decadente e a cidade sem brilho. No presente do eu poético,
a viagem que se pode fazer já não é a das Descobertas, plena de aventura, mas a fuga, a
evasão para outro lugar diferente: «Madrid, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo!»
Por fim, também as personagens que povoam a cidade moderna não são já os heróis militares,
cívicos, políticos e artísticos de outrora. São agora personagens decadentes como burgueses,
dentistas ou gente que trabalha mecanicamente, que não trazem estatuto épico à cidade.
O estilo de Cesário é prosaico e de tom coloquial, o que o situa longe do estilo elevado,
retórico e grandiloquente das epopeias. O próprio vocabulário do quotidiano da cidade («vari-
nas», «boqueirões», «becos») em nada se confunde com o léxico rico de um poema épico.

→ O imaginário épico é perspetivado de forma decetiva, nas temáticas da viagem, do mar e do


herói. O mar está presente, mas não como espaço de glória, assim como «os cais onde atracam
botes» não passam de caricaturas de uma grandiosidade perdida. Assim, a viagem limita-se à
deambulação pela cidade onde o poeta se sente preso. Os cais são mais locais de evasão do
que chegada, enquanto que para a via-férrea vão «felizes» os que partem em direção ao mundo
mítico e cosmopolita das grandes cidades. O herói aparece apenas pela evocação do passado
na figura de Camões.

→ A memória épica aparece subvertida pelo tom eufórico com que o poeta olha pata as
glórias marítimas do passado fazendo-as contrastar com a trivialidade do presente. Às
soberbas naus das Descobertas opõem-se agora uns tristes botes atracados no cais. Também
no largo que hoje ostenta com o nome de Camões, o poeta refere o «recinto público, vulgar»,
em contraste com a imagem do passado heroico na descrição da estátua de Camões: «Brônzeo,
monumental, de proposições guerreiras»
A PERCEÇÃO SENSORIAL E TRANSFIGURAÇÃO POÉTICA DO REAL
Perceção sensorial
Programaticamente realista e naturalista, e, até, materialista, a intrínseca necessidade impunha
que a poesia de Cesário tendesse para o percecionismo. Com efeito, olhar e ver, ouvir e
entender, cheirar e apreciar, entre outros, eis aí como que um dos pontos de partida da estesia
(estética) do autor. Os cheiros, os sons, as cores e, nalguns outros casos, as impressões táteis
conjugam-se, mas sempre em termos de uma irremediável frustração: a da «pintura».

Transfiguração poética do real


A sua poesia é marcada pelo sensorialismo, isto é, o primado dado às sensações, sobretudo
visuais, mas também provenientes de outros sentidos; é mesmo frequente a perceção
sinestésica, típica do sensorialismo impressionista.
No entanto, a par de uma visão objetiva do real em poemas que constituem longas
deambulações pela cidade ou pelo campo (passeios em que o olhar, como se fosse uma
câmara, vai captando o que vê, ouve, toca, cheira, saboreia), apresenta-nos Cesário marcas de
intervenção subjetiva e transfiguradora (fugas imaginativas no espaço e no tempo, imaginação
pictórica, através da imagem visual, quase surrealista, uma perceção subjetiva da realidade
objetiva).

→ O real, apreendido pelos sentidos, é transfigurado pela arte, que ora o recompõe
tornando-o mais belo - como a bela vendedeira de legumes transformada, pela «visão do
artista», num «corpo de belas proporções carnais» - ora acentua os tons sombrios ou os odores
desagradáveis da cidade, como sucede com as «sombras», a «soturnidade» e o «gás
extravasado». Esta transfiguração pode ainda identificar-se em metáforas sugestivas como os
«mestres carpinteiros» vistos como «morcegos», ou as varinas como um «cardume negro».

Na poesia de Cesário, há um sujeito poético que se encontra em permanente deambulação


e cujo olhar, à semelhança de uma câmara de filmar, vai captando imagens, como
instantâneos cuja rápida sucessão é por vezes sugerida através do recurso ao assíndeto
(recurso expressivo que consiste na omissão da conjunção coordenativa entre os
constituintes, que se separam apenas por vírgulas). Assim, a visão desempenha um papel
fundamental nestes poemas. O próprio sujeito poético tem consciência deste facto,
afirmando, no poema «Nós»: «Pinto quadros por letras, por sinais.»
No entanto, o sujeito poético não se limita a descrever objetivamente a realidade que
observa nas suas deambulações. Podemos considerar o momento de transfiguração das
lojas em que o sujeito poético observa em «O sentimento dum ocidental» como um passo
que tem subjacente uma intenção crítica, dado que a sua configuração como uma imensa
catedral com diversas capelas pode ser interpretada como uma condenação da elevação do
consumismo à condição de algo sagrado.
LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA
Para exprimir este mundo, até então desconhecido da poesia, Cesário introduziu no verso o
processo queirosiano de suprir pelo adjetivo ou pelo advérbio uma relação lógica extensa,
de imediatizar, pela surpresa da relação verbal, uma sugestão que morreria se
fraseologicamente se desdobrasse. A par disto, Cesário consegue valorizar poeticamente o
vocabulário e o tem de fala mais correntios na linguagem coloquial urbana, embalando o leitor
num ritmo que ondula entre a atenção ao pormenor e um abrir de horizontes, entre a sátira ou
a degradação, que nos oprimem, e um relance de beleza ideal, que nos expande.

O precursor da modernidade estética portuguesa apresenta os seguintes traços:


1. A técnica estilística de construiu versos como «poliedros de cristal», polifacetados
2. A criatividade do seu olhar interrogativo
3. A «competição» poética entre o «olhar» do impressionismo pictórico e a experiência de
metamorfoses plásticas que abriria caminho ao surrealismo

A linguagem nítida e perfeita com recurso a estrangeirismos; o objetivismo descritivo com


que procura transmitir a sua visão poética do real; o carácter antideclamatório, quase
prosaico, mas com perfeito domínio prosódico e rítmico dos seus versos; a linguagem rigorosa
e inovadora na introdução de palavras prosaicas que, assim, ganham dignidade de poéticas; a
composição formal rigorosa, em versos normalmente longos, muitas vezes alternando com
outros mais curtos; a preocupação com a musicalidade e o ritmo; e também as
comparações, metáforas, sinestesias inovadoras, a plasticidade da sua linguagem e imagística,
permitem ver em Cesário um parnasiano - mas sobretudo um moderno.

→ O vocabulário surpreende pela raridade e por algum prosaísmo, e serve o verso alexandrino
(12 versos) - o mais frequente nos seus versos. As estrofes mais utilizadas são a quadra e a
quintilha, construídas em esquemas regulares, com rigor métrico e rimático muito elevado.
Um número considerável das suas produções poéticas possui uma estrutura narrativa. Os
recursos expressivos mais frequentes são a comparação, a enumeração, a hipérbole, a metáfora
e a sinestesia. Salienta-se também o uso expressivo do adjetivo e do advérbio.
RESUMINDO

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