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Atelie1, 9 - Racismo Ambiental J Cidadania e Biopolítica

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ISSN: 1982-1956

http://www.revistas.ufg.br/index.php/atelie

Racismo ambiental, cidadania e biopolítica: considerações


gerais em torno de espacialidades racializadas
Environmental racism, citizenship and biopolitics:
general considerations around racialized spatialities

Racismo ambiental, ciudadanía y biopolítica: consideracio-


nes generales sobre espacialidades racializadas

André Luiz de Souza Filgueira


Universidade Federal do Pará
andrefilgueiraodara@gmail.com

Resumo
Este artigo é uma revisão teórica em torno da categoria racismo ambiental. Para vis-
lumbrar a relevância desse conceito para o pensamento geográfico nacional, recorre-
se às contribuições oferecidas pelos paradigmas: cidadania, biopolítica e racismo.
Dessa forma, pretende-se não só dialogar com um conceito emergente, o racismo
ambiental, como também ambiciona-se verificar a legitimidade da hipótese: se a ocu-
pação do solo é, de fato, determinada pela cor da pele.
Palavras-chave: Racismo. Racismo Ambiental. Cidadania. Biopolítica. Resistência.

Abstract
This paper is a theoretical review focused on the environmental racism category. To
understand its relevance to national geographical thought, I bring out contributions
from the paradigms: of citizenship, biopolitics, and racism. I intend not only to dis-
cuss the emerging concept of environmental racism, but also to verify the hypothesis
that land use may be determined by skin color.
Keywords: Racism. Environmental Racism. Citizenship. Biopolitics. Resistance.

Resumen
Este artículo es una revisión teórica sobre la categoría del racismo ambiental. Para
vislumbrar la relevancia de ese concepto para el pensamiento geográfico nacional, se
recurre a las contribuciones ofrecidas por los paradigmas: ciudadanía, biopolítica y
racismo. De esa forma, se pretende no sólo dialogar con un concepto emergente, el
racismo ambiental, como también se ambiciona verificar la legitimidad de la hipóte-
sis: si la ocupación de la tierra es, de hecho, determinada por el color de la piel.
Palabras clave: Racismo. Racismo ambiental. Ciudadanía. Biopolítica. Resistencia.

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Para negar a essa realidade o caráter de Racismo


Ambiental, teríamos que deixar de lado bem mais
que nossas críticas às condições de saneamento,
acesso à água potável e à coleta de lixo, à falta de
equipamentos urbanos adequados, incluindo esco-
las e postos de saúde, e aos sempre presentes ris-
cos de deslizamentos ou contaminação química,
entre outros, que caracterizam esses aglomerados
populacionais. Muito mais que isso, teríamos que
esquecer a História.
Tânia Pacheco

Introdução
Esta textualidade, expressão do pensamento geográfico, aborda o conceito ra-
cismo ambiental. Uma categoria recente, nascida a partir da segunda metade do século
XX, por meio dos movimentos negro e de justiça ambiental, e que vem mobilizando
pesquisadores/as de diversas áreas do conhecimento, como os da ecologia política e os
das ciências humanas, para a compreensão das contradições territoriais, balizadas pelas
etnicidades. Sobretudo aqueles/as da geografia, que exploram a espacialidade pela racia-
lidade, a exemplo de Milton Santos (1996), Fabiana Luz (2020), Renato dos Santos
(2012), Diogo Cirqueira (2020), Lorena de Souza e Vinicius Aguiar (2019), Antonia
Garcia (2012) e Paula Regina Cordeiro (2020).
O esforço destes escritos é o de promover uma revisão teórica sumária acerca
do racismo ambiental, articulada com a cidadania, a biopolítica e a racialidade. O objeti-
vo é o de enfatizar a relevância do racismo ambiental, atestado no vácuo de cidadania e
na materialização da biopolítica, para a compreensão das assimetrias étnicas estruturan-
tes da organização espacial. A hipótese que impulsiona este exercício interpretativo é: a
distribuição das territorialidades urbana e rural é determinada pelo alijamento do seg-
mento étnico indesejado.
Para cumprir com este intento, o artigo é dividido em três seções. A primeira,
“o que é racismo ambiental?”, esboça a categoria racismo ambiental. Ao passo que a
segunda, “da negação da cidadania para o império da biopolítica: pilares do racismo
ambiental”, explicita, como o título sugere, a ausência da cidadania e a atuação da biopo-
lítica como alicerces sobre os quais repousam as desigualdades sócio-ambientais. A
terceira e última seção, “do racismo para o racismo ambiental: convergências estrutu-
rais”, fundamenta a base racial do racismo ambiental, ambos encarados como compo-
nentes intrínsecos das desigualdades sócio-espaciais.

O que é racismo ambiental?


Para responder à pergunta título desta seção, é oportuno recuar à segunda meta-
de do século passado. Segundo Aguiar e Souza (2019, p. 05), é nesse período que a co-
munidade afro-norte-americana, postulante por direitos civis, guiada por Martin Luther

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King, impulsionou a emersão do racismo ambiental. O ativismo negro na luta por direi-
tos civis e ambientais, acrescido da militância por justiça sócio-ambiental, pautados no
questionamento da poluição industrial em territórios ocupados pelos descendentes da
diáspora africana, deram a tônica do debate público sobre o assunto. Esse questionamen-
to embasou a reivindicação por justiça social, direitos civis, equidade e a contestação às
discriminações institucionais (sociais e ambientais, sobretudo as de domínios raciais)
praticadas pela sociedade e pelo Estado.
A fundamentação epistêmica do racismo ambiental remonta aos escritos de Ro-
bert Bullard (1996, p. 01). Ele é um dos responsáveis pela redação histórico-territorial
desse conceito. “O tema do racismo ambiental aparece inicialmente nos Estados Unidos
e vem se espalhando por outros países na África e na Ásia. No Brasil, ONGS e entidades
sindicais ainda estão iniciando este debate [...].”
A necessidade de avaliação do impacto causado na posse do solo é estimulada
pela ação da produção capitalista que – apropriando-se dos aparatos legais das institui-
ções estatais, dentre eles a legislação ambiental – deixa de auxiliar grupos socialmente
vulneráveis, a saber, negros e indígenas. Não dispondo do suporte do Estado na garantia
de suas vidas, essas comunidades passam a contar com a própria sorte no cumprimento
desse fim. Por isso Robert Bullard (1996, p. 01), em seus estudos dedicados à investiga-
ção do silêncio das políticas públicas nos Estados Unidos, que não recobrem os segmen-
tos subalternos, afirmou:

Nos Estados Unidos, por exemplo, algumas comunidades são roti-


neiramente intoxicadas enquanto o governo finge ignorar. A legis-
lação ambiental não tem beneficiado de maneira uniforme todos os
segmentos da sociedade. As populações não-brancas (afro-
americanos, latinos, asiáticos, povos das ilhas do Pacífico e povos
indígenas americanos), têm sofrido, de modo desproporcional, da-
nos causados por toxinas industriais em seus locais de trabalho ou
nos bairros onde moram. Estes grupos têm de lutar contra a polui-
ção do ar e da água-subprodutos de aterros sanitários municipais,
incineradores, indústrias poluentes, e tratamento, armazenagem e
vazadouro do lixo tóxico.
Essa situação configura o racismo ambiental nos Estados Unidos. Daí o esforço
de Bullard em compreender esse fenômeno. E no Brasil, será que há também racismo
ambiental? Se sim, como ele é disseminado? Sim, há racismo ambiental no Brasil. Aqui,
do mesmo modo como nos Estados Unidos, ele é executado pela incursão do capitalismo
e pelo negligenciamento estatal. E a teia dos grupos sociais atingidos é amplificada.

Com a expansão do agronegócio e dos empreendimentos eletroin-


tensivos, ambos com suas consequências diferenciadas, cada vez
mais inscrevemos nas nossas preocupações, campanhas e lutas
grupos de brasileiros que até então estavam de alguma forma dis-
tante da maioria de nós: povos indígenas, remanescentes de qui-
lombos, ribeirinhos, caiçaras, geraiszeiros, quebradeiras de coco e

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muitos outros representantes de populações tradicionais, de dife-


rentes formas atingidos pela ganância do capital. (PACHECO, s/d,
p. 01).
Dito isso, retoma-se à pergunta que anima esta seção: o que é, afinal, racismo
ambiental? É um objeto de estudo da ecologia política, área do saber dedicada ao exame
dos conflitos sócio-ambientais. O esforço dos pesquisadores é o de, a partir da constata-
ção do quadro de desigualdades habitacionais, mapear quem são os grupos alijados de
direitos sócio-espaciais e o de auxiliar, por meio desse diagnóstico, no seu acesso a terra.
A fim de melhor precisar o que é o racismo ambiental, a palavra é outorgada para o
Alfredo Seguel (2013, p. 01).

O racismo ambiental é uma violação de direitos humanos e é “uma


forma de discriminação causada por governos e políticas do setor
privado, práticas, ações ou inações, que intencionalmente ou não,
agridem o ambiente, a saúde, a biodiversidade, a economia local, a
qualidade de vida e a segurança em comunidades, trabalhadores,
grupos e indivíduos baseados em raça, classe, cor, gênero, casta,
etnicidade e/ou sua origem nacional.
As palavras de Tânia Pacheco definem o racismo ambiental como ações anco-
radas em injustiças sociais e ambientais. Tais ações incidem sobre grupos populacionais
vulneráveis. Esses grupos são vulneráveis porque são vítimas da operação racial, mani-
festa pela segregação espacial. Vejamos, a seguir, como esta assertiva é arranjada nas
palavras da própria autora (2006, p. 10):

chamamos de Racismo Ambiental às injustiças sociais e ambientais


que recaem de forma desproporcional sobre etnias vulnerabiliza-
das. [...] O racismo ambiental não se configura apenas através de
ações que tenham uma intenção racista, mas igualmente através de
ações que tenham impacto racial, não obstante a intenção que lhes
tenha dado origem.
Selene Herculano (2006, p. 11), por sua vez, oferece uma contribuição a respei-
to da categoria em questão. Ela a define como uma pluralidade de ações governamentais
a bancarrota de um grupo inferiorizado (negros, indígenas, migrantes, pescadores, entre
outros). Assim, o racismo ambiental é encarado como:

[…] conjunto de ideias e práticas das sociedades e seus governos,


que aceitam a degradação ambiental e humana, com a justificativa
da busca do desenvolvimento e com a naturalização implícita da
inferioridade de determinados segmentos da população afetados –
negros, índios, migrantes, extrativistas, pescadores, trabalhadores
pobres, que sofrem os impactos negativos do crescimento econô-
mico e a quem é imputado o sacrifício em prol de um benefício pa-
ra os demais. O racismo ambiental seria, portanto, um objeto de es-
tudo crítico da Ecologia Política (ramo das Ciências Sociais que

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examina os conflitos sócio-ambientais a partir da perspectiva da


desigualdade e na defesa das populações vulnerabilizadas).
Após transitar pelas interpretações de Seguel, Pacheco e Herculano no que tan-
ge ao racismo ambiental, constata-se dois aspectos comuns nas respectivas definições. O
primeiro aspecto remete à definição do racismo ambiental como carestia de direitos. Para
suprimi-la, a cidadania é demandada. A cidadania é entendida, nas palavras de Arendt
(1990), como direito a ter direitos. Os direitos requisitados, como será observado na
próxima seção, são os civis, políticos e sociais. O segundo aspecto, estimulado pela
leitura dos autores/as citados na conceituação do racismo ambiental, lembra a biopolíti-
ca, formulada pelo filósofo Michel Foucault. Com a biopolítica de Foucault, espera-se
entender como a vida passou a integrar as projeções de poder a ponto de comprometer a
existência de povos e espacialidades. Por isso, tais conceitos, cidadania e biopolítica,
serão explicitados a seguir para, depois, examinar a imbricação entre racismo e racismo
ambiental.
Antes, porém, cabe registrar que muito embora Seguel, Pacheco e Herculano
tenham nomeado de racismo ambiental o dispositivo de poder que orienta o campo espa-
cial, e tenham reconhecido, de algum modo, o protagonismo afro-norte-americano na
luta por equidade e qualidade de vida espacial, ambos não detalharam o racismo ambien-
tal. Não explicaram também o que entendem por raça e como isso aborta o segmento
socialmente indesejado, o não-branco, do acesso isonômico e qualitativo às territoriali-
dades, uma das bases para promoção da justiça social. Por isso essa lacuna, a carência do
desenvolvimento da racialidade à luz do racismo ambiental, será objeto de atenção da
terceira seção, “do racismo para o racismo ambiental: convergências estruturais”.
Seguindo ainda o apontamento crítico sobre os autores em tela, ambos não
compartilharam dados atualizados que fundamentam as realidades abordadas, acachapa-
das pelo racismo ambiental. Isso não quer dizer que o racismo ambiental seja uma cate-
goria insustentável. Como todo conceito é passível de limitações, trata-se de apresentar
as lacunas que carecem de preenchimento a fim de qualificá-lo. Fazer dele uma antena
catalisadora das tensões sócio-espaciais.
Pensando no Brasil, os hiatos epistemológicos do racismo ambiental foram con-
siderados nos estudos de Renato Santos (2012), Vinicius Aguiar (2015) e Aguiar e Sou-
za (2019). Estes deram a empiria necessária sem abrir mão da formulação teórica em
análise. Ainda há muito por ser feito em prol do exercício compreensivo da lógica étni-
co-segregacionista territorial em vigor.

Da negação da cidadania para o império da biopolítica: pilares do racismo ambien-


tal
A interpretação da cidadania que orienta esta textualidade é influenciada pela
reflexão do teórico político Nicola Matteucci (2000). Ele concebe a cidadania como o
acesso a direitos civis, políticos e sociais. A concepção de cidadania, calcada nos três
direitos (civis, políticos e sociais), tomada por Matteucci (2000), é originária dos estudos
de T. H. Marshall (1967).

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Seguindo a classificação proposta por Matteucci (2000, p. 354), os direitos civis


(os direitos-garantia, de cunho individualista), têm o caráter de limitar os poderes do
Estado. Esses direitos dizem respeito à personalidade do indivíduo (liberdade pessoal, de
pensamento, de religião, de reunião e liberdade econômica), por meio da qual é garanti-
da a ele uma esfera de arbítrio e de liceidade, desde que seu comportamento não viole o
direito dos outros. Os direitos civis obrigam o Estado a uma atitude de não impedimento,
a uma abstenção.
Quanto aos direitos políticos (liberdade de associação nos partidos, direitos elei-
torais), esses estão ligados à formação do Estado democrático representativo e implicam
uma liberdade ativa, uma participação dos cidadãos na determinação dos objetivos polí-
ticos do Estado.
Os direitos sociais, por sua vez, (direito ao trabalho, à assistência, à educação, à
tutela da saúde), são direitos que foram sendo maturados pelas novas exigências da soci-
edade industrial, implicando um comportamento ativo por parte do Estado visando a
garantir aos cidadãos condições de bem-estar social.
Colocada de modo geral, eis a noção de cidadania que instiga esta seção. Ou se-
ja, a cidadania é tomada como o acesso aos direitos: civis, políticos e sociais. Com base
na exibição do conceito racismo ambiental – oferecida por Seguel, Pacheco e Herculano
– identifica-se o acesso limitado de grupos subalternos (trabalhadores pobres, indígenas,
pescadores e negros e outros) aos direitos sociais (saúde, educação, trabalho e habita-
ção). Com isso, a cidadania plena, vista como o acesso integral aos três direitos, ainda é
um projeto a ser alcançado, pois a concessão dos direitos sociais é negada.
Em face do exposto, cabe uma interrogação: por que nomear de racismo ambi-
ental a privação dos direitos sociais? Ora, conforme nos lembrou Tânia Pacheco, o ra-
cismo ambiental consiste em práticas revestidas em injustiças sociais e ambientais sobre
grupos étnicos vulneráveis. Então, sob esse filtro, percebe-se que a carência de cidadania
incide em grupos historicamente marginalizados, como por exemplo, indígenas e negros.
Vale enfatizar que eles são marginalizados em virtude dos traços fenotípicos, identifica-
dos pela presença de melanina. Esse fato é determinante na ocupação desigual das espa-
cialidades urbana e rural. É contra a desigualdade espacial urbana que a sociedade civil
afro-norte-americana se levantou, na segunda metade do século passado, clamando por
justiça social, reivindicando a cidadania no âmbito nacional. Essa desigualdade, letal a
tais grupos étnicos, é orquestrada pelo Estado. E é nesse ponto que se insere o exame da
categoria biopolítica, elaborada pelo filósofo Michel Foucault.
De imediato, passo para apreciação das considerações do filósofo Peter Pál Pel-
bart (2003, p. 55), que anota a ‘origem’ do termo biopolítica. “O termo “biopolítica”
aparece pela primeira vez, na obra de Michel Foucault, em sua conferência proferida no
Rio de Janeiro em 1974 e intitulada “O nascimento da medicina social”. E a medicina
social é a uma ferramenta manuseada pelo Estado para controle dos corpos, da vida.
Após manter contato com as considerações de Pelbert, uma pergunta é posta: o
que é, afinal, biopolítica? Trata-se de um dado novo: da inscrição da vida nos cálculos

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do poder. A vida, o disciplinamento dos corpos, desde o alvorecer do século XVIII,


passou a ser o foco de atenção das decisões do Estado. Ele é quem faz viver e deixa
morrer. A fórmula moderna citada subverte a intervenção de sua antecessora, o poder
soberano. Essa última era orientada pela máxima: faz morrer e deixa viver. As palavras
de Carmelita Felício (2004, p. 04), que seguem o rastro do pensador francês, explicam
bem essa alteração.

Dois regimes, duas lógicas, duas concepções de morte, de vida, de


corpo, possíveis de serem localizadas na passagem do direito de fa-
zer morrer e deixar viver para o de fazer viver e deixar morrer,
quando se dá uma mudança no regime geral do poder. A mudança
que se processa no regime da soberania (grosso modo, até o século
XVII e, em alguns casos até o século XVIII) faz com que o poder
que, antes, era um poder negativo sobre a vida, um direito de apro-
priar-se de coisas, de tempo, de corpos, de vida, culmina com o
privilégio de suprimir a própria vida. Agora, o poder passa a funci-
onar na base da incitação, do controle, da vigilância, visando a
otimização das forças que ele submete. Gerir a vida, mais do que
decretar a morte. E quando exige a morte, é em nome da defesa da
vida que ele se encarregou de administrar.
Estamos diante de uma situação inédita: uma realidade manipulada pela lógica
do biopoder e não mais operada pelo poder soberano. Um exemplo clássico a ser dito –
que diferencia ambas e tonifica nossa linha argumentativa, concentrada na exposição do
biopoder – é a lembrança das guerras que assolam a geopolítica internacional, desde os
séculos XVIII. Elas não são mais ascendidas em defesa de um rei, do soberano, em obe-
diência ao princípio: faz morrer e deixa viver. Agora as guerras são detonadas em defesa
da vida, guiadas pela máxima: faz viver (um grupo, comunidade, nação) e deixa morrer
(outra coletividade). Como bem pontuou Michel Foucault (1988, p. 130), “agora é sobre
a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixa-
ção”.
Um exemplo concreto registrado acerca do controle dos corpos, executado pela
medicina social como exigência da ordem biopolítica moderna, e que, certamente, ilustra
bem a categoria biopolítica, é dado pelo próprio Foucault. Segundo o autor, o biopoder
assumiu duas fases em sua cristalização. A primeira, iniciada a partir do século XVII, é
ligada à ideia do corpo como máquina (que diz respeito ao “seu adestramento, na ampli-
ação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilida-
de e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos”. E a
segunda fase, não menos cruel, é inaugurada no século XVIII e repousa na tese do con-
trole rigoroso do corpo espécie. Vejamos, logo abaixo, como o próprio Foucault (1988,
p. 131) explica essa tese:

[…] a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saú-


de, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que
podem fazê-los variar; tais processos assumidos mediante toda uma

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série de intervenções e contrôles reguladores: uma bio-política da


população.
O esforço do autor de história da sexualidade é vislumbrar as articulações dis-
cursivas que tanto alimentam as práticas disciplinares, que recaem sobre os corpos, sobre
a vida. “As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois polos
em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida.” (FOUCAULT,
1988, p. 131). Portanto, isso é o que “caracteriza um poder cuja função mais elevada já
não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo.” (Idem, p. 131).
Assim, após acenar para o conceito biopolítica, resgata-se aspectos que vincu-
lam o racismo ambiental – pontuado por Bullard, Seguel, Herculano e Pacheco – com a
biopolítica. Recapitulando o caminho percorrido até aqui, Bullard, de saída, atesta a
resistência ao racismo ambiental, por parte da comunidade negra norte-americana, e
apresenta as práticas do racismo ambiental nos EUA, chanceladas pelo Estado; Alfredo
Seguel chama atenção para a violação dos direitos humanos pela ação governamental,
influenciadas pelo setor privado; ao passo que Tânia Pacheco define o racismo ambiental
como ações geradoras de injustiças sociais e ambientais; por fim, temos Selene Hercula-
no que pensa o conceito em exame como degradação “ambiental e humana” ou como
“naturalização implícita da inferioridade” de grupos vulneráveis.
A carência de direitos sociais – atrelada à ocupação segregada do espaço ambi-
ental, que dizima populações urbana e rural – é observada como fruto da ação do Estado
pela omissão de cidadania aos grupos subalternos. Assim, quando o Estado não atua em
benefício isonômico da cidadania ambiental, interpretada aqui como carência de direitos
sociais ou de justiça social para todos os grupos étnicos, ele os priva do acesso à vida e
promove a morte. Se o diagnóstico de Bullard, Seguel, Pacheco e Herculano estiver
correto, então os grupos eliminados (negros, indígenas e ribeirinhos) da posse cidadã do
meio ambiente são vítimas da gestão de um Estado genocida, que atua sob a racionalida-
de biopolítica. Com isso o que se quer dizer é: o racismo ambiental, visto como privação
étnico-espacial de cidadania, é uma extensão da biopolítica.
Todavia, convém mencionar que há outros escritos que tematizam a eliminação
sumária de negros no âmbito territorial pela biopolítica. Recordamos daqueles assinados
pelo filósofo camaronês Achille Mbembe (2018). Ele articula, no perímetro africano, a
biopolítica como apêndice da racialidade, traduzida como necropolítica. A necropolítica
são políticas de morte testadas de modo primeiro contra os não-brancos e que agora são
dissipadas para todo corpo social. Assim como também é lembrada da pesquisa de dou-
torado da filósofa Sueli Carneiro (2005), precursora do diálogo entre racismo e biopoder
na esfera da afro-diáspora.
O que se propôs aqui foi tomar o racismo ambiental como exercício de poder,
determinante na eliminação das comunidades pretas pela espacialidade. Outros casos de
racismo ambiental, acompanhado de restrição à cidadania e de corporificação biopolítica
se proliferam pelo país. Como os conflitos agrários entre fazendeiros e indígenas no
norte do Brasil; a celeuma em torno da demarcação de terras indígenas e quilombolas; e

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a destruição dos espaços sagrados dos povos de terreiro, expoentes de tradições afro-
religiosas.
É necessário que o racismo ambiental, exposto sob o imperativo da negação de
cidadania e das práticas biopolíticas, seja enfrentado. Caso contrário os agrupamentos
subalternos serão dizimados. A fim de vislumbrar horizontes de expectativas, frente a
um presente genocida, é vital grafar insurgências territoriais articuladas pelos segmentos
étnicos.
Como o racismo ambiental nasceu nos EUA pela contestação negra por justiça
socioambiental, o caminho a ser adotado aqui, no Brasil, é o do mapeamento apurado
dessas resistências. Entender quem são, o que objetivam e como se posicionam as rebe-
liões pretas espaciais aos donos do poder, em prol do acesso cidadão ao meio ambiente,
é o desafio do nosso século.
Quem pode elaborar o inventário dessas resistências socioambientais é o Mo-
vimento Negro Brasileiro (MNB), também conhecido, como designou Nilma Lino Go-
mes (2017), de Movimento Negro Educador. Guiado pela luta antirracista, manifesta na
articulação do diálogo entre a sociedade civil preta e o Estado para garantia da dignidade
da vida e para igualdade socioespacial a todas as raças, essa aglutinação tem muito a
ensinar em direção da ressignificação ambiental.
Esse coletivo vem intervindo, de modo pedagógico, em momentos decisivos da
história do Brasil (como no levante de Palmares, nas lutas abolicionistas, na Frente Ne-
gra Brasileira, na promulgação do Estatuto da Igualdade Racial e na homologação da Lei
de Cotas) em direção da inclusão socioespacial dos/as filhos/as de África. Eis o caminho
a ser percorrido em uma territorialidade na qual o acesso à existência e à cidadania afro-
descendentes são negados pela dinâmica agrária de marca biopolítica.

Do racismo para o racismo ambiental: convergências estruturais


O mote desta seção é a tematização do racismo, pela abordagem da raça, como
componente estruturante das desigualdades socioambientais. De saída, as considerações
do antropólogo congolês Kabengele Munanga (2004). Ele faz um histórico da origem da
categoria raça. O paradigma racial nasceu na botânica com uma finalidade classificatória
para designação da diversidade de animais e espécies. Seu uso para classificação da
diversidade humana, aplicado aos francos (germânicos) e gauleses (encarados como
plebe), se deu no século XVII. Esse foi um dos estopins para o deslocamento do uso da
raça, até então praticada como paradigma classificatório, para aplicação como hierarqui-
zação da diversidade humana, calcada nos traços morfológicos. No exemplo citado, os
francos testemunham a superioridade racial perante aos gauleses, lidos como raça inferi-
or. Isso se deu na curva do século XVII para o XVIII, pela necessidade de nomear o
outro oriundo de ambientes colonizados, como às Américas e à África.
A hierarquização foi um passo importante na configuração de um outro concei-
to, o racismo. O racismo é uma ideologia, de natureza essencialista, baseada na segmen-
tação hierarquizada da sociedade a partir das características morfológicas dos indivíduos.

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Pensando na companhia do etnólogo Carlos Moore (2007), há a ampliação do


alcance da operação racial. Ele a vê não só como resultante da modernidade e sim da
história. Isso porque a raça sempre estruturou as relações estabelecidas. Ela se inscreve
como um dos pilares fundantes da humanidade devido à permanência de uma estrutura
histórica determinada pela pigmentocracia. Ou seja, um ordenamento de sociedade mar-
cado pela divisão dos grupos em melanodérmicos e não melanodérmicos. Os primeiros,
negros e seus descendentes, são descartados na partilha das riquezas produzidas pelas
nações. A espacialidade, por exemplo, é uma das representações de riquezas na qual
negros/as são excluídos. Aos segundos, não-negros, são destinados o topo da pirâmide
social e seus patrimônios, simbólico e monetário, nacionais. Ainda segundo o etnólogo,
isso se deu desde à antiguidade (greco-romana, até a árabe-semita, denominadas de pro-
to-racismos) e se estendeu ao contemporâneo. Desde então, as relações de poder são
baseadas pela racialização.
Como assegura à ciência contemporânea, a raça, do ponto de vista biológico,
não existe. Isso pôde ser comprovado pelo Projeto Genoma Humano. Se a raça não exis-
te, por que o racismo ainda perdura? Porque o racismo encontra embasamento na raça
social e não na raça biológica. A raça social é um construto ideológico elaborado a partir
dos círculos acadêmicos da modernidade, que se beneficiou das hierarquizações morfo-
lógica, moral e psíquica para premiar grupos étnicos estabelecidos pela subjugação de
comunidades subalternas.
Ainda imbuídos do esforço de exposição do paradigma racial para compreensão
das desigualdades sócio-territoriais, devido à permanência da raça social, Aníbal Quija-
no (2002, p. 01) o expressa pelo conceito colonialidade do poder. A colonialidade do
poder é “um conceito que dá conta de um dos elementos fundantes do atual padrão de
poder, a classificação social básica e universal da população do planeta em torno da ideia
de “raça”.” A raça é um dispositivo de poder, posto em circulação pelo Ocidente, basea-
do na eliminação da diversidade pela lógica binária rivalizante (branco versus negro), a
fim de garantir a estrutura moderna dominação.
A raça é indispensável para dominação instaurada a partir da modernidade, lida
por Quijano (2005, p. 20) como colonialiade do poder, porque beneficia as estruturas de
poder pela universalização da diversidade. Universalizar para dominar, eis o lema:

Visto que a categoria raça se apresentava como o critério universal


e básico de classificação social da população, e em torno dela se
redefiniam as formas prévias de dominação, em especial entre se-
xos, “etnicidades”, “nacionalidades”, e “culturas”, esse sistema de
classificação social afetava, por definição, todos e cada um dos
membros da espécie. Era o eixo de distribuição dos papéis e das re-
lações associadas a eles no trabalho, nas relações sexuais, na auto-
ridade, na produção e no controle da subjetividade. E era segundo
esse critério de classificação das pessoas no poder que as identida-
des histórico-sociais se inscreviam entre toda a espécie.

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A presença da racialidade nos quadros estruturais de poder foi traduzida por


Sueli Carneiro (2011) como contrato racial. Ou seja, um sistema político não nomeado
que regula todo o corpo social. Um sistema tão preciso que estanca, pela atuação da
demarcação da sociedade entre brancos e não-brancos, a distribuição dos fundamentos
da democracia para todas as comunidades étnicas.
A manifestação da racialidade na ocupação espacial se dá pelo tensionamento
dos grupos étnicos. Segundo Renato dos Santos (2012, p. 58), as fronteiras invisíveis são
catalisação desse conflito. Posto que gerenciam as dinâmicas étnico-territoriais parame-
trizando comportamentos dos sujeitos, negros e não-negros, a partir da reprodução da
ideologia racial. Considerando o seu lugar de fala, emissário da identidade cultural e
regional carioca, o autor (2012, p. 62), cita espacialidades afro-brasileiras orientadas pela
lógica das fronteiras invisíveis.

A segregação, que se materializa na formação de bairros e comuni-


dades, gera também outras expressões espaciais, como clubes (por
exemplo, no Rio de Janeiro, o Renascença), as escolas de samba,
entre diversas marcas. Ela aparece também na toponímia, que grafa
nomes de lugares que remetem a África (por exemplo, Cubango
em Niterói, Colubandê e Mutondo em São Gonçalo, ambos na me-
trópole carioca), e às lutas históricas negras (que aparecem, por
exemplo, nos inúmeros bairros e comunidades com nomes de
Zumbi em várias cidades do país).
O componente de tensão é vislumbrado na dinâmica espacial quando o sujeito
membro de um grupo étnico transgride a fronteira invisível estabelecida para transitar
em um território oposto. Isso se dá, como cita Renato dos Santos (2012), quando um
indivíduo negro ousa visitar estabelecimento de alimentação destinado aos não-negros.
Ou quando esse mesmo sujeito opta pela fixação residencial em um bairro de elite.
Isso ocorre porque, segundo o saudoso geógrafo Milton Santos (2000), há um
lugar destinado à população afro-brasileira que foi configurado pela ideologia racial.
Qual é esse lugar? Ora, “um lugar predeterminado, lá em baixo, para os negros”. É tam-
bém Santos (2000) que aponta o modo pelo qual se processa a operação racial no Brasil.
Ela se dá pela corporeidade. O corpo negro é tomado como espacialidade na qual é ma-
nifesto o racismo no Brasil. Por isso, nas palavras de Milton Santos (2000),

[…] no caso brasileiro, o corpo da pessoa também se impõe como


uma marca visível e é frequente privilegiar a aparência como con-
dição primeira de objetivação e de julgamento, criando uma linha
demarcatória, que identifica e separa, a despeito das pretensões de
individualidade e de cidadania do outro. Então, a própria subjetivi-
dade e a dos demais esbarram no dado ostensivo da corporeidade
cuja avaliação, no entanto, é preconceituosa.
Em face do exposto, observa-se a permanência da raça social na determinação
das desigualdades étnico-raciais. Diante disso cabe perguntar: há desdobramento de tais

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desigualdades no acesso ao meio ambiente que, por sua vez, tenha conexão com o ra-
cismo ambiental? A resposta é afirmativa. Conforme o diagnóstico dos/a autores/a, o
racismo é uma ideologia sistêmica que emoldura as relações socioespaciais. A conexão
entre racismo e racismo ambiental se dá pela espacialidade corpórea e territorial. O cor-
po melanodérmico, tomado não apenas como residente do espaço, é extensão da própria
espacialidade. Ou seja, o corpo preto é uma espacialidade. Isso porque é nessa corporei-
dade que se materializa as tensões socioambientais estabelecidas.
Seguindo as pegadas dos/as autores/as já citados/as, enfrentar tais tensões pres-
supõe nomear a realidade imposta, semantizada de racismo ambiental. Afinal, quem
nomeia toma posse. Uma vez nomeada, convém cartografar as lutas e resistências. Inspi-
rados em Ratts (2018), codificamos essas resistências de corpos-espaços, estes que, por
sua vez, são ávidos de cidadania para subversão de ambientes racializados, sob o espec-
tro da biopolítica. O diálogo com o movimento negro educador pode ser a flecha de
Oxóssi que apontará o caminho para a construção de uma geografia(s) da(s) diferença(s).
Uma ciência concebida pelo (no) corpo-espaço negro, pelo diálogo com os movimentos
sociais afro-diaspóricos.
Afinal, como lembra Bárbara Christian (2002), o modo negro de fazer ciência
nada tem a ver com o cartesianismo abstrato ocidental. É um modo que consubstancia às
vivências socioambientais do corpo negro. Por isso, nem sempre essa geografia(s) da(s)
diferença(s), feita na corporeidade preta e militante, encontra respaldo em uma espacia-
lidade eivada pela hegemonia leucodérmica.
Por outro lado, convém dizer que uma geografia da diferença já está em curso.
Seja pelas diretrizes sócio-ambientais a exemplo de Félix-Silva, Oliveira e Bezerra
(2020), que examinaram, de modo preliminar, as insurgências de uma comunidade pes-
queira da Planície Litorânea do Piauí; Aguiar e Souza (2019) que destacam, como teste-
munho de resistência ao racismo ambiental no Brasil, a criação do GT (Grupo de Traba-
lho) em saúde e meio ambiente, fruto do ativismo acadêmico, e a composição da Rede
Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), comprometida, a partir da interlocução com os
movimentos sociais, com a denunciação, intervenção e resistência sócio-ambientais; e
Jesus e Oliveira (2021) que grafam o ativismo feminino negro indígena, de base inter-
seccional, no sul da Bahia, no enfrentamento das disputas ambientais.
Ou pelas diretrizes simbólico-estéticas, significadas pela literatura, um dos ca-
nais de disseminação do pensamento geográfico, nas quais se encontram a obra de Ita-
mar Vieira Júnior (2019), intitulada de Torto arado. Esta narra a saga das irmãs Beloní-
sia e Bibiana em uma espacialidade assinalada pela luta pela terra e pelo bem viver. O
modo como as irmãs confrontam a operação étnico-socioespacial, conduzidas pela cos-
movisão afro-diaspórica e pela reivindicação da identidade quilombola, é revolucionário.
Como pôde ser observado, em ambas as diretrizes foi detectada a influência do
Movimento Negro Educador. No entanto, essas e outras relutâncias, não citadas aqui,
são algumas iniciativas que carecem de adensamento a fim de dá corpo à geografia(s)
da(s) diferença(s).

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Considerações finais
O que apresentamos foi um esboço de leituras, acerca do racismo ambiental, a
fim de recuperar a sua atualidade em uma espacialidade na qual a identidade étnica é
determinante na ocupação do solo.
À luz do que foi tratado aqui, a certeza que nos move é: a ocupação ambiental é
urdida por desigualdades, lânguida de cidadania, intensificadas sobre corporeidades
espaciais negras. Todo esse empreendimento é erguido sob a assinatura do Estado biopo-
lítico.
O que resta a ser feito é a inscrição na ordem do discurso, pelo ativismo dos
movimentos sociais negros, na qual são instauradas as disputas pela narrativa a partir do
uso ambiental, para que a justiça socioambiental seja conquistada.
Para concluir, a palavra fica a cargo do escritor Itamar Vieira Junior (2019, p.
262). As considerações finais do premiado romance Torto arado, repercutem aqui tam-
bém. Elas denunciam a racionalidade vigente que regula a posse territorial: “sobre a terra
a de viver sempre o mais forte.” Até quando? Será que há insubordinações socioespaci-
ais de grupos étnicos?
Como foi nomeada a realidade imposta (racismo ambiental, de natureza anti-
cidadã, de marca biopolítica) quiçá o momento seja oportuno para escrever resistências
ambientais, de posse do suporte do Movimento Negro Educador, para, assim, tecer ou-
tros amanhãs.

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André Luiz de Souza Filgueira


Bacharel e licenciado em história pela PUC Goiás. Possui doutorado em li-
teratura pela Universidade de Brasília. Concluiu o estágio pós-doutoral em
ciências humanas, como bolsista PNPD da CAPES, no Programa de Pós-
Graduação em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado, pela Univer-
sidade Estadual de Goiás. É professor adjunto de história da África e de his-
tória e cultura afro-brasileira da Universidade Federal do Pará, com lotação
no campus universitário do Tocantins/Cametá.
TV Sete de setembro, n. 246, apartamento 201, Centro, Cametá-PA.
E-mail: andrefilgueiraodara@gmail.com

Recebido para publicação em fevereiro de 2021.


Aprovado para publicação em maio de 2021.

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