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Rosa Lobato de Faria - Os Linhos Da Avó

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OS LINHOS DA AVÓ

ROSA LOBATO DE FARIA

ASA LITERATURA
1: edição: Novembro de 2004
Depósito legal d? 215289/04 ISBN 972-41-4038-5
Reservados todos os direitos
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SANTA IRIA DE AZÓIA • PORTUGAL
ESTRADA MARGINAL

Não devia ser assim. A razão devia prevalecer sobre o


sentimento. De nada me serviu ter uma avó inglesa que
tentou ensinar-me o autocontrolo como regra número um da
boa educação. Talvez o sangue moreno do meu avô
português me incutisse a tendência contrária. Mas a avó era
forte: levei trinta e cinco anos a descobrir a minha
verdadeira natureza.
Isto pensava Lina às sete horas da tarde de um dia de
Novembro, diante dos pontos de História dos seus alunos,
que era preciso corrigir.
Olhava atentamente para um exercício escrito dando a
impressão de grande concentração no trabalho e
aproveitava para pensar noutra coisa. Desenvolvera essa
técnica no tempo de Filipe. Ele seria incapaz de interromper
o seu trabalho, ou a leitura, ou mesmo um filme
interessante na televisão. Curiosamente, não mostrava o
mesmo respeito pelos pensamentos da mulher. Sentia-se,
por qualquer obscura razão, autorizado a invadir o campo
prioritariamente privado do exercício individual de pensar.
Lina sentia-se furiosa com esse hábito do marido.
A técnica desenvolvida com Filipe mostrava-se ineficaz
com António. Este interrompia-a constantemente com
perguntas fúteis ou comentários despropositados. O Porto
joga amanhã.
Já trocaste os botões do meu blazer? O que é o jantar?
Sabes quem vi hoje?, e assim por diante.
Lina não se importava com isso. A voz dele era como
um animal doméstico movendo-se pela casa. Familiar e
indispensável. Dava-lhe segurança e a ilusão de ser amada.
Em última análise, era inútil especular acerca da
prevalência da razão sobre o sentimento. Restava-lhe um
pouco de lucidez para compreender que a sua paixão ilógica
pelo António era avassaladora e irreversível. Um daqueles
sentimentos contra os quais a razão nada pode.
Pôs-se decididamente a corrigir os pontos, com uma
atenção relativa, já que para o António a tarefa diária de ler
o jornal da tarde não era silenciosa, mas um permanente
exercício oral, de crítica, comentário, tagarelice.
Lina respondia com monossílabos bem-humorados,
embora soubesse que tais respostas não eram necessárias:
António não procurava o diálogo, era apenas a sua maneira
de ler o jornal, ou de tentar comunicar, ou de viver com
uma mulher.
Quando Isa acordou no meio da noite não percebeu
onde estava. Isto é: sabia que estava na sua cama, no seu
quarto, mas não se lembrava que momento era aquele da
sua vida.
Acontecia-lhe muitas vezes, pouco antes de adormecer
ou pouco antes de acordar, não distinguir com precisão o
tempo, embora reconhecesse sempre o espaço. Imaginava
o tempo como um longo caminho mais ou menos brumoso e
podia entrar nele mais atrás ou mais adiante, não tendo por
isso a certeza, ao acordar, de quem iria encontrar naquele
quilómetro da sua vida.
Estava escuro. Havia alguém na sua cama. Um vulto
grande, envolto no lençol, adormecido de costas para Isa. É
o António, pensou ela. E foi de novo invadida pelo sono.
António prepara-se para acordar. O seu cérebro, ainda
cheio de nevoeiro, começa a tomar conhecimento do corpo.
António está abraçado a uma mulher. Isa, murmura ele de
olhos fechados. Com o rosto acaricia-lhe os cabelos. Mas a
assombrosa cabeleira de Isa, cheia de reflexos dourados,
seu principal encanto, não está ali. Deveria encontrá-la
como uma almofada suave entre o ombro e a orelha da
mulher. Em vez disso sentia a linha do pescoço, o côncavo
liso do ombro. Éa Laura, pensa. Mas se é a Laura eu não
devia estar abraçado a ela. Zangámo-nos para sempre.
Abre os olhos.
Não são os cabelos curtos, louros, ondulados, talhados
na nuca, de Laura. Reconhece Lina. Os cabelos pretos, lisos,
macios, cortados a direito, de Lina. O cheiro fresco, infantil,
dos cabelos de Lina. Tem Lina adormecida nos braços e por
um breve momento não sabe explicar porquê.
Filipe e Laura almoçam numa esplanada elegante,
aproveitando o lindo dia que o verão de S. Martinho lhes
oferece.
Comem um prato requintado, bebem um óptimo vinho,
qualquer coisa que os entretenha se a conversa se tornar
confrangedora de mais.
Filipe teve alguma relutância em aceitar o convite de
Laura. Desagrada-lhe discutir os amores adulterinos da sua
própria mulher e do marido de Laura, com a própria Laura.
Mas ela fala do caso com o maior à-vontade. Parece ser
para ela um tema inesgotável.
A Lína é uma vitima da Isa. Nada mais do que uma
vítima. A Isa sim, é uma mulher perigosa. Brinca com os
homens porque isso a diverte e ninguém me convence que
não foi ela que estragou o vosso casamento. Coitada da
Lina, é apenas um acidente na vida do António. Como a Isa,
de resto, também foi. Não tarda que o António volte para
casa. Ele não pode passar sem mim, sou uma espécie de
mãezinha dele e já que lhe permito todos os desvios não sei
porque há-de viver com uma mulher que não lhe trata da
roupa.
Sim, a Lina não é muito esse género doméstico, não.
No fundo do que o António gosta é da roupa bem
tratada. E já que trabalha na fábrica do meu pai, mais vale
que se apresente impecável antes que o pai se aperceba
desta história toda e o ponha na rua. Havia de ser
engraçado, o António sem emprego.
A Lina ganha bem, atreveu-se o Filipe.
Mas o António tem princípios de macho latino. Acha
normal trabalhar na fábrica do meu pai, mas nunca aceitaria
ser sustentado pela amante.
Laura ri-se. É uma mulher interessante, coberta de
roupas caras e de boas jóias um pouquinho vistosas de
mais.
No braço direito uma pulseira de platina, rígida, sem
fecho. Uma escrava que bate na borda do prato quando ela
corta o medalhão de vitela.
Isa acordou tarde, como sempre lhe acontece ao
sábado. Lembra-se que bebeu um pouco de mais na
véspera, que voltou para casa com um amigo de longa data.
Há rasto dele.
Sim, um papel preso ao espelho, por cima do lavatório.
És a mulher mais bonita do mundo. Telefono-te para irmos
jantar. Eduardo.
Claro que sou, mas ele só diz isto para ser amável.
Coitado do Eduardo. Um fracasso na cama, do mais primário
que há. Janta com a tia dele e é se quer!
Bebe um sumo de frutas e pensa em António, nas mãos,
na pele, na boca, no corpo de António.
Nos olhos turvos de ciúme de António.
Nas mãos tão doces de António, prestes a estrangular o
célebre pescoço de cisne de Isa, estrela da televisão.
Quando Isa e António entraram no restaurante, muitas
cabeças se viraram.
O par mais bonito de Lisboa, disse alguém.
Isa viu Lina e Filipe sentados a uma mesa para quatro e
foram ter com eles.
Estão à espera de alguém?
Estávamos mas acabam de telefonar a dizer que não
podem vir. A Rita e o Alberto. A mãe da Rita adoeceu, não
pode ficar com as crianças.
Como é que há pessoas que ainda têm filhos!, disse a
Isa.
Eu tenho, disse o António.
Querem sentar-se ou estão apaixonados de mais para
compartilhar a mesa?, disse a Lina com bom humor.
Isa sentou-se logo. António hesitou. Odiava ter que
aturar a Lina e o Filipe, o charme que a Isa não deixaria de
atirar para cima deles.
Isa apoiou os cotovelos na mesa, cruzou os longos
dedos e olhou em volta da sala, uma atitude que lhe era
peculiar. Quando chegava a um lugar público sentava-se,
cruzava os dedos e olhava em redor, sacudindo ao de leve a
cabeleira assombrosa para que os reflexos cor de cobre
funcionassem como chispas de sedução.
António morria de ciúme, mas sabia que este era o
preço a pagar por aparecer publicamente com uma mulher
conhecida de todos. Lindíssima. Elegante. Célebre.
Agora que já tinha feito o reconhecimento do território,
distribuído alguns sorrisos e pequenos gestos formais de
saudação discreta, Isa conversava com o casal à mesa.
Filipe, aparentemente tímido, encontrava a sua verve na
presença envolvente de Isa. De resto Lina era a melhor
amiga dela e viam-se com muita frequência. Amigas do
colégio, confidentes e todas essas coisas.
António tinha ciúmes de Lina.
Conversou com Filipe de todos os assuntos banais na
ordem do dia, a política, a crise económica, o filme
candidato ao Oscar, o livro do amigo comum que sem se
saber como, ou talvez sim, se tornava um best-seller.
Isa e Lina cochichavam e riam, como fazem tantas
vezes as mulheres muito íntimas, que conseguem ter
conversas inteiras sem que ninguém perceba o sentido do
que dizem.
António deduziu que falavam dele. Então Isa olhou-o no
fundo dos macios olhos negros e disse numa provocação:
O que foi? Também já não posso falar com a minha
amiga? Como se lhe lesse o pensamento.
António apertou no bolso o pequeno isqueiro laçado,
com um L gravado a ouro, que Laura lhe devolvera nessa
manhã.
Sei perfeitamente que continuas a andar com essa
mulher da televisão. Não adianta esconder. Toda a gente
vos vê em toda a parte.
Ando, sim. E se me chateias muito, saio de casa e vou
viver com ela.
Coitado de ti, que não tens onde cair morto! Havia de
ter graça. É ela que te vai sustentar?
António hesitou e virou-lhe as costas. Laura atirou-lhe
com o isqueiro que tinha na mão.
Vem cá, cobarde! Não me vires as costas!
António apanhou o isqueiro e veio devagar pousá-lo
sobre a cómoda.
Leva-o, não o quero. Estou farta dos teus presentes
falsos e circunstanciais.
Não és tu que queres manter as aparências?
Já mantive. Recebi o isqueiro, com a minha inicial
gravada e tudo, no dia dos meus anos diante da família
reunida. Agora leva-o. Dá-me imenso gozo que não o possas
oferecer à tua diva. A letra não coincide!
António guardou o isqueiro no bolso. Laura não sabe
que o nome de Isa é Luísa. Ela não usa porque não o acha
um nome televisivo.
Estão deitados lado a lado, depois do amor. Isa brinca
com o isqueiro com que acabou de acender um cigarro.
Olha o amante. Acha-o um homem belíssimo, grande,
moreno, de rosto sério, cabelo preto encaracolado como o
de um adolescente. Tem o nariz direito e sensível em que as
mulheres reconhecem uma aptidão especial para o amor.
Sente-se morrer perante a beleza deste homem. Queria
dizer-lhe isto, mas não pode. Não quer mostrar nenhuma
fraqueza diante de António. Quer ser a mais forte. Quer dar-
lhe a sensação de que é ela que domina esta relação.
António queria poder dizer-lhe que o isqueiro pertencia
a Laura. Mas Isa nunca o aceitaria. E ele tem necessidade
de cobrir Isa de presentes, não resistiu à tentação de
mentir, de insinuar que mandou gravar a letra para ela.
Porquê um L? Tenho is em todas as minhas coisas.
Soube por acaso que o teu nome é Luísa. É um
testemunho da nossa intimidade.
Ama-a e mente-lhe. Porquê?
Entre os dois, sobre a cama, instala-se o silêncio. Não
podem revelar o que lhes vai no pensamento. Por isso
sorriem, tocam-se e fazem amor. Só os corpos falam
verdade.
Filipe e Lina deitaram-se pacificamente e Filipe
adormeceu. Mas Lina tem insónia. Apetece-lhe escrever. É
uma necessidade imperiosa, que a assalta por vezes, uma
vontade de dizer certas palavras por certa ordem que de
manhã terá esquecido.
Hesita.
Se acender a luz Filipe acorda e vai perguntar-lhe se
está doente. Se lhe dói a cabeça. Se quer um copo de leite.
Escrever é um acto secreto que Lina não quer partilhar
com ninguém. Fá-lo quando está sozinha ou nas salas de
estudo, no colégio, embora a incomode escrever diante de
trinta adolescentes, mesmo concentrados no trabalho. Cai
das nuvens quando algum se lhe dirige. Setôra, não percebi
isto aqui. Está a anos luz daquela sala e odeia que a
interrompam.
Não é escritora.
Mas quando lhe vem a vontade de escrever é como se
uma onda imensa se erguesse e a submergisse.
Agora é noite. Precisa de saltar da cama
silenciosamente e ir escrever para a sua mesa de trabalho.
Observa Filipe na obscuridade e tenta adivinhar se ele dará
por isso, se acordará por se sentir sozinho, como uma
criança abandonada durante o sono.
Sai da cama rastejando, sem desfitar as pálpebras
imóveis de Filipe. Quando chega à porta do quarto Filipe
revolve-se entre os lençóis.
Lina?
Vou à casa de banho, dorme.
Mas Filipe acordou. Acendeu a luz.
Se eu lhe explicasse?, pensa Lina.
Impossível. Filipe não admite que alguém possa sair da
cama às quatro da manhã só porque tem vontade de
escrever. Filipe não conhece Lina. Ela organizou defesas
contra a vontade que ele tem de conhecê-la, quando lhe
interrompe os pensamentos com perguntas, quando não
respeita a área privada da sua alma. Filipe sente-se excluído
dum recanto secreto da vida de Lina e isso fá-lo sofrer. Lina
não desconfia sequer que isso se passa no coração de Filipe.
Esconde-lhe os pensamentos e as páginas que escreve.
Acha que Filipe jamais compreenderá. Lina não conhece
Filipe.
Volta para a cama, segura-lhe na mão, mas separa-os o
silêncio. Até que o sono os toma e lhes oferece sonhos que
nunca poderão partilhar.
Lina não é bonita. Grande, de pernas fortes e ombros
largos, herdou a tez morena do pai e os olhos azuis da avó
inglesa, claros de mais para parecerem inteligentes. Mãos e
pés sólidos, ar desportivo, nenhuma coqueterie. Boa como
pão, dirá o António um dia. Sente-se maternal, mas não tem
filhos. Embala os homens nesse indiviso amor.
Foi o que atraiu Filipe, que precisa sempre de um abraço
protector e materno, Filipe é frágil, magro, louro, muito
civilizado e culto. É médico e percebe quase tudo. Não quer
ter filhos. Quer ser o filho único de Una. Quem diria que um
dia ficará órfão?
Lina tem por ele o amor sereno dos seus aguados olhos
azuis. Ainda não despertou nela a paixão que lhe dorme na
pele morena. Sente-se feliz por não ser como Isa, objecto ou
sujeito de amores desvairados. O seu amor é calmo e dá a
mão a Filipe por debaixo da mesa, como para provar a si
própria que se sente ao abrigo de todas as tempestades.
E contudo entende as tempestades alheias. É
confidente de Isa, sabe de cor os amores turbulentos de Isa
e António; os ciúmes dele, as infidelidades dela, os dramas.
Sorri de tudo como quem vai ao teatro.
Isa é a menina má de uma família boa. Teatro, cinema,
televisão, amores ilícitos, tudo o que possa escandalizar uns
pais conservadores.
Como não há justiça neste mundo, o sucesso e a fortuna
fizeram dela a sua predilecta. Fora de casa desde os catorze
anos, fez-se à sua custa e venceu.
Ficou a rir-se daqueles que lhe vaticinaram miséria e
perdição.
É feliz à sua maneira. Aprendeu a não se preocupar com
o dia de amanhã e muito menos com o de ontem. Confia na
sua boa estrela, na sua beleza e na sua capacidade de
recuperação. Ama a vida e tudo o que ela proporciona aos
sentidos: a comida, a bebida, as roupas caras e macias, o
luxo, o amor. Lê muito. Aprende depressa. Não aprofunda
nada, mas sabe um pouco de tudo.
Exaspera-a a ignorância de António, que é engenheiro e
despreza a literatura. Para ela a cultura passa pelos
escritores, os dramaturgos, os pintores, os poetas. A ciência
não lhe diz nada. António sorri e tenta explicar-lhe. É o
diálogo impossível. Até porque quando António sorri, Isa só
vê esse sorriso. A boca pequena e carnuda. Os dentes. A
cova no queixo.
Conheceram-se ao acaso das noites lisboetas.
Aparentemente não tinham nada em comum. Durante mais
de um ano observaram-se mutuamente, como dois
lutadores que medem as armas do adversário.
Numa noite mais longa aconteceu: sem transição, sem
perguntas nem respostas, amaram-se como dois
condenados.
Isa, a independente, ficou dependente dos beijos de
António, dos olhos de António, das mãos de António. E
porque esta situação a revolta, atraiçoa-o, briga com ele,
desconcerta-o. De manhã diz que não quer tornar a vê-lo,
que não anda com homens casados, que o acha estúpido,
primário, machista. À noite telefona-lhe. É de novo a
adversária duma doce luta sem fim.
São duas Isas contraditórias, mas António, por seu mal,
está perdidamente apaixonado por ambas.
Laura não ama o marido; considera-o sua propriedade.
Casou muito nova com o filho do melhor amigo do pai,
porque acredita na ordem natural das coisas. Teve direito a
tules de alta costura e seiscentos convidados. Moradia com
jardim. Três partos em clínicas caras. Teve direito a tudo,
incluindo esse marido de aveludados olhos que as amigas
lhe invejam. Declara-se apaixonada. Mas como não sabe o
que isso é, aceita as infidelidades de António, aventuras
sem amanhã, entradas em casa fora de horas. Acha que
isso faz parte da vida e até dá colorido ao seu casamento
sem história.
Mas a existência de Isa na vida de António veio
subverter esta tolerância sorridente. Isa é de mais. E Laura,
talvez tocada também pelo feitiço dos cabelos fulvos, sente-
se tentada a desencadear forças de que apenas suspeita,
levando António para o campo perigoso das definições.
Ou eu ou ela. Tens de escolher.
António prefere não responder. Laura não sabe que o
problema não se equaciona nesses termos. Teria que ser Isa
a dizer-lhe:
Ou eu ou ela. Tens de escolher.
Aí sim, saberia a resposta. Mas Isa não o quer. Jamais o
aceitaria de portas adentro, doméstico e conjugal. Isa
pertence a uma categoria diferente de mulheres. É solta,
sem preconceitos, sem laços, gosta de viver ao acaso das
suas emoções. António? Sim. António sempre, não.
Por isso, quando Laura insiste, ele ameniza o tom
cortante da conversa, com um não digas disparates e um
beijo ao de leve na testa, não sem que ela emende, por
instinto, a contra--onda do cabelo louro.
Lina e Filipe jantam em casa de Isa. Um jantar
extraordinário, pouco convencional. A mesa repleta de
alimentos que à primeira vista não têm relação uns com os
outros. É preciso ter um espírito aberto para apreciar as
refeições inventadas por Isa. O jantar não tem princípio nem
fim. As coisas estão ali. Vão-se comendo. É tudo delicioso.
Acaba mesmo por se descobrir alguma concordância entre
um petisco chinês, uma lagosta ao natural e uma salada
exótica com molho de queijo.
Isa veste o modelo preto, que é sobretudo um decote,
com que se fez fotografar para a principal revista de moda.
Há dez convidados. E falta António.
A noite corre macia. As bebidas também. Isa não vê as
horas uma única vez. De resto não usa relógio, muito menos
à noite. Não tem horas, não tem obrigações. E
aparentemente não espera ninguém.
Há no ar uma interrogação. Isa dança com Filipe, depois
com Eduardo, depois com Luís, depois com João, depois com
Pedro, de novo com João. Abraçada. Envolvente. Fatal.
A noite avança. Alguns casais despedem-se. Isa prepara
outra bebida, pousa compridamente num sofá. E Lina, muito
cúmplice, pergunta-lhe ao ouvido:
O António?
O António? Não sei. Deve aparecer por aí. Não sei.
Mas o António não virá.
Não conseguiu libertar-se de um infindável jantar de
família. Vai saber que Isa recebeu os amigos. Dançou.
Seduziu. Não falou nele. Que João ainda ficou quando todos
saíram. Vai morrer de ciúme. Vai ter vontade de matar. Mas
não dirá nada. Teme o olhar selvagem que Isa não deixará
de lhe lançar, um olhar que equivale a uma discussão
inteira em que todas as culpas lhe cabem a ele.
Lina e Filipe fazem amor. Os gestos repetidos,
reconfortantes, mas rotineiros. Filipe pensa em Isa, no seu
decote, no seu perfume. Mas não sabe transmitir a Lina o
clima perverso dessa sedução. É apenas uma imagem no
ecrã privado da sua libido.
Lina pensa em Isa. Na aparente facilidade com que
esqueceu António e aceitou João. Como um simples jogo de
damas em que todas as pedras têm igual valor. Pensa nisto
enquanto se deixa amar pelo marido e a sua vida parece-
lhe, de repente, terrivelmente cinzenta.
Eu ou ela, diz Laura.
Fecha a porta do carro com fúria e arranca. Está
atrasada para o cabeleireiro. António segue o carro com os
olhos. Vê-a sair o portão e entrar na estrada, sem olhar.
Deseja mentalmente que um camião surja da curva. Mas
não acontece nada. A estrela de Laura vela por ela e pela
sua condução temperamental.
Volta para dentro e pensa que, contra o costume, tem o
sábado por sua conta. Pega no telefone e liga para Isa.
Ninguém atende. Está a dormir, pensa. É sábado. Tentativa
tosca de enganar-se a si próprio.
Pega no carro e vem lentamente saboreando o sol até
Lisboa. A inventar desculpas para Isa. A odiá-la de perdido
amor.
Lina e Filipe estão a tomar o pequeno-almoço. Em
silêncio. Lina está maldisposta mas não sabe o motivo.
Ovários, pensa. Esta chatice todos os meses a dar-me cabo
do carácter. Como se Filipe tivesse culpa. Dá-lhe um beijo
leve e é como se chupasse creme de barbear.
Enxugaste mal a cara. Tens a pele húmida.
Eu gosto. Sinto-me mais fresco.
Aí, a campainha da porta.
Lina traça o roupão turco, azul forte e vai abrir.
António? Mas que surpresa! Queres café?
Senta-se e serve-o. Sabe o que o traz. Não é novidade
esta visita intempestiva.
Lina é a maior amiga de Isa. Funciona para António
como o seu prolongamento. Estar com Lina é estar mais
perto de Isa. Lina entende. Mas António teima em justificar-
se.
Como sei que vocês se levantam cedo... descobri lá em
casa o livro de que tu falaste, Lina. Não o li, confesso. Mas
parece que é um êxito e a Laura compra tudo o que faz
sucesso. Vocês sabem... Posso telefonar? Tinha pensado que
talvez pudéssemos ir almoçar os quatro, isto é, se a Isa
acordar... há bocado ninguém atendia...
É capaz de ser cedo.
Estiveram com ela ontem à noite?
Não, não a vemos há uma semana. Estivemos lá em
casa, numa festinha que ela deu.
Eu sei, eu sei. Ficou furiosa porque eu não pude
aparecer. .. Mas ontem fui buscá-la, tínhamos combinado
jantar e ela não estava. Tinha o telemóvel desligado e hoje
não atende o fixo.
Visivelmente nervoso, pega no telefone. Marca. Espera.
Torna-se perceptível que o som da campainha ecoa numa
casa deserta.
Isa abre os olhos sobre uma decoração desconhecida.
Sim, claro, o hotel. Mas porquê?
Aos poucos acode-lhe à memória a noite da véspera.
Combinou com o António que jantava com ele. Impossível
dizer-lhe que tinha um jantar marcado com o João. Isa ri-se.
Imagina o desespero do António à sua porta, a tocar em
vão.
Pronto. Agora estamos quites. Apeteceu-lhe faltar à
minha festa e a mim apeteceu-me mandá-lo bugiar.
Só que depois de muitos copos João imaginara aquela
fuga para um hotel dos arredores, já que Isa lhe explicara
que António devia estar colado à sua porta à espera de a
ver entrar.
Fora exactamente assim. A noite em claro à espera de
Isa. A chegada a casa, de manhã, quando Laura se
levantava para ir arranjar o cabelo. A discussão, eu ou ela.
Isa imagina qualquer coisa nesse género. A cena
conjugal que adora provocar. Mas no fundo está grata a
essa Laura que não liberta o António, que o mantém
amarrado por todos os laços subtis da família, do conforto,
da estabilidade, das refeições a horas, da roupa passada a
ferro.
Para amar António, Isa precisa de desejá-lo. Para desejá-
lo precisa de não o ter em permanência. E assim ela tem o
direito de se considerar livre, de entrar e sair, de combinar e
faltar, de o provocar e trair e de o ter sempre, sempre,
manietado a seus pés.
Vais ver como ele entra na ordem! Admito lá que ele
passe a noite com aquela cabra!
Não se rale, madame. Aquela mulher não prende
ninguém. É só fachada! Partiu uma unha, madame. Quer
que corte todas?
Não, não cortes. Lima essa. Não achas que fiz bem? Ou
ela ou eu. Não estou para aturar isto.
Esteja descansada que ele não sai de casa. Isso é que
era bom! Mas olhe que falaram aqui que ela já não anda
com ele...
Quem é que disse?
Têm-na visto com aquele da televisão. Ai, esquece-me o
nome. Aquele que fala no telejornal... João...
Ainda bem que me dizes. Estás a dar-me uma ideia...
Então?...
Espera, deixa-me pensar... Era divertido pô-lo fora
quando tivesse a certeza que a outra não o recebe. Ficava
na rua com a bagagem, tinha que ir para um hotel... Só uma
noite, para o fazer pensar...
Laura e a manicura riem-se desta partida pregada ao
inimigo comum. Estão divertidíssimas. Vingam-se de todos
os maridos do mundo.
O telefone toca no quarto de Isa. Um grito de gaivota à
procura de rumo. Um grito perdido no vento.
Isa entra em casa e ouve o telefone tocar. Lentamente a
grande actriz atende com voz ensonada, como se falasse de
outro planeta.
Humm? Quem é?
Isa? És tu?
E quem é que havia de ser? Acordaste-me.
É que eu... desde ontem...
Não deu. Estava deprimida.
Mas tínhamos combinado...
Eu sei. Mas estou farta disto. De não te poder ter
quando me apetece. Olha, chateei-me. Tomei comprimidos,
desliguei o telefone e fui dormir.
Mas eu...
Se quiseres vem cá. Vou só tomar um duche. Que horas
são?
.. .Onze. Onze e vinte.
Achas que são horas de me acordar? Ao sábado. Não
me apareças antes da uma.
Desliga. Começa a despir-se devagar, sorrindo para o
espelho. Escolhe uma roupa simples, impecavelmente
moderna e verifica que esqueceu no hotel o seu melhor
lenço de seda natural.
Sabem como a Isa é. Estava a dormir, tomou
comprimidos, desligou o telefone... Acordei-a.
Se desligou o telefone como é que a acordaste?
António fitou Lina com ódio. Sempre a lucidez dela para
lhe arruinar as ilusões.
Pois, tens razão... Devo ter percebido mal.
Saiu sem olhar para eles.
A paixão é uma estranha doença, disse Filipe.
António não vê o sol que inunda a marginal. Não
dormiu, tem a cabeça vazia. Somente, bem no meio da
testa, uma ideia fixa.
Vou sair de casa. Vou sair de casa imediatamente. Ela
não volta a dizer-me que tomou comprimidos por não poder
ter--me quando quer. Não volta a mentir-me. Não volta a
fazer pouco de mim. Que se lixe a Laura, a fábrica, a família,
o dinheiro. Que se lixe tudo. Quero a Isa. Vou tê-la só para
mim. Hoje.
Vê-se a arrumar um saco de viagem como se assistisse
a um filme. Mas os gestos estão todos lá. Os gestos das
grandes ocasiões. Dos momentos decisivos em que se
desafia o destino. Os gestos com que se desencadeiam as
forças da tragédia.
O senhor engenheiro vai viajar?
Vou. Diga à senhora que não venho hoje.
Sai sem fechar a porta, arranca em direcção a Lisboa,
sem que a criada, pressentindo o temporal, se atreva a
dizer mais uma palavra.
Ainda não é uma hora. Tem que abrandar porque não se
atreve a chegar à porta de Isa antes da hora marcada.
Antegoza a cena que se segue:
Saí de casa, aqui me tens, decide o que quiseres...
Escolheu mal as palavras. Isa está em fúria, de pé na
sua frente. Está vestida de branco. Uma pulseira de argolas
de metal chocalha no seu pulso magro. A cabeleira parece
uma chama pronta a incendiá-lo.
Não tinhas o direito. Entras por aqui dentro de mala,
como se isto fosse um hotel. Como sempre, nem pensaste
em consultar-me. A minha opinião não risca. Tu é que
resolves, tu é que és o macho.
Isa, ouve-me! Se quiseres vou para um hotel, ou para
casa da Lina e do Filipe. Eles têm aquela casa enorme...
Estás parvo? Em casa da Lina? A que propósito? Bem,
vamos almoçar e conversar calmamente sobre o assunto.
Acho que te precipitaste, mais nada.
Digamos que a minha decisão não tem nada a ver
contigo. Fartei-me de ter a Laura a fazer-me cenas. Resolvi
de repente. Pensei que te ia dar uma alegria.
Claro, mas enfim, apanhaste-me desprevenida...
Subitamente o grande plano dos olhos do António. Os
seus olhos bons, aveludados, cheios de ternura desajeitada.
O soberbo nariz de António, o recorte da boca...
Isa vem para ele, envolve-o num abraço e beija-o como
se ele fosse água e ela a moribunda da sede. E tudo fica
certo, porque nenhum deles consegue raciocinar.
Achas que posso deixar cá o saco, enquanto vamos
almoçar?
Claro, põe no meu quarto.
António atravessa o corredor. O quarto de Isa é a última
porta. Entra. Escolhe criteriosamente o lugar onde há-de pôr
o saco. Para que não fique muito evidente, nem muito
escondido.
Ouve a campainha. O seu instinto de ciumento previne-
o de que será útil ouvir sem ser visto. E o que ouve é uma
voz de homem a dizer assim:
Meu amor, esqueceu-se do lenço no meu carro. Se ao
menos se tivesse esquecido do coração lá no hotel...
Cochichos de Isa. A porta da rua que se fecha. Mas
António não ouve mais nada. O sangue subiu-lhe todo à
cabeça, o coração é um tambor. Avança para Isa e os seus
dedos cegos apertam o pescoço de cisne da célebre estrela
da televisão.
A campainha da porta volta a tocar. Isa está caída no
chão. António vai abrir.
O senhor costuma ler a Bíblia?
António bate com a porta na cara da Testemunha.
Corre para Isa. Ela está viva. Apenas exausta do esforço
com que se defendeu. Magoada no corpo, mortalmente
ofendida na alma.
Rua, balbucia ela. Rua!
Arrasta-se até ao quarto, aos pontapés traz o saco até à
porta.
Rua!, diz com a voz estrangulada.
Rua, maldito.
Tenho que te agradecer nunca me teres acusado de
nada.
António está em casa de Lina. Acaba de lhe explicar
tudo o que aconteceu naquele dia fatídico.
Lina, é evidente, conhecia a versão de Isa. A brutalidade
de António, o ciúme cego, a frase acusadora.
Não basta que o António goste de mim. É preciso
mostrar. E não é a apertar-me o pescoço que ele me
convence do seu amor. Era o que me faltava! Se não fosse o
escândalo processava-o por tentativa de homicídio!
A atitude de António é toda penitência, arrependimento,
confusão. Está grato a Lina e a Filipe que o acolheram sem
uma palavra de censura, embora já soubessem de tudo por
um telefonema da Isa. Deu muito tempo. António andou às
voltas por Lisboa, meteu pela marginal, por hábito,
apercebeu-se de que não estava em estado de voltar para
casa, entrou num bar e só ao fim da tarde apareceu a Lina,
vulnerável como uma criança perdida.
Já sei tudo, disse a Lina. O Filipe também. Podes cá ficar
se quiseres. Já fiz a cama no quarto da Nanucha.
A Nanucha fora o último cão vadio recolhido por Lina,
uma solteira grávida posta fora de casa, e o quarto tomara
para sempre o seu nome, embora a Nanucha vivesse agora
na Bélgica, casada e feliz.
Foste formidável em nunca me fazer a mais pequena
censura. És uma grande, grande amiga. E eu que às vezes
tinha ciúmes teus!... Estou aqui há quantos dias, quinze?
Doze.
E aquela menina que nunca mais me disse uma palavra!
Ela julga que eu sou de pedra, como ela? Queixava-se da
minha falta de disponibilidade. Pois bem, saí de casa, nem
vejo os meus filhos, ou será que ela não sabe?
Sabe. Mas acho um exagero não veres os teus filhos. O
que é que uma coisa tem com a outra? Que dramático!
Não quero sujeitá-los aos interrogatórios da Laura.
Tu é que sabes.
Tens uma aspirina?
Porquê, estás doente?
Como é que eu posso estar bom? Não durmo...
Vou pedir ao Filipe que te veja. Ele está agora no
consultório. Porque é que não passas por lá? Fazia-te bem.
Sair, apanhar ar.
Lina está a arrumar papéis na sua mesa de trabalho
sem olhar para António. É o silêncio que a faz voltar a
cabeça. E logo o som inconfundível de um soluço. António
chora. Um choro de homem, pungente, contido. Um choro
animal de fera doente.
Lina perde a sua frieza costumada. Abraça-o.
Ó António, não! Por favor não chores. Vai-se compor
tudo, vais ver... A Isa está magoada, é uma questão de
tempo.
António devolve-lhe o abraço. Encontra conforto
naquela mulher maternal, calorosa, segura.
Lina, tens sido tão boa para mim...
Beija-lhe repetidamente o rosto, beijos molhados,
quentes de lágrimas, num abraço apertado, apertado... As
bocas encontram-se. Lina desanda numa vertigem, mas
entende o que se está a passar. A boca de António, os
dentes perfeitos, o hálito fresco, a língua sábia. A alegoria
da seta do Cupido, que alveja em pleno peito, para
subverter os valores e a vida. As mãos de António ganham
terreno. Vai-me levar para a cama e eu não vou fazer nem
menção de resistir.
Deitam-se e fazem amor.
António encontrou um certo equilíbrio na relação com
Lina. Ela é sólida, ama incondicionalmente e, se não o faz
esquecer Isa, pelo menos adormenta-lhe as feridas. Lina
não pede nada em troca. É boa como o pão, cheira a
plantas silvestres, é leal e serena.
Serena, apesar desta viragem inteiramente imprevista
da sua vida, da sua mente e do seu corpo. A descoberta
total. O deslumbramento, como se naquele beijo António a
tivesse contagiado da sua doença de paixão.
Lina deu-se um tempo e depois teve a inevitável
conversa com Filipe. Explicou-lhe que sabia que António não
a amava, ela era apenas um sucedâneo de Isa.
Continua a ser assim. Mas Lina quer viver o seu
primeiro, o seu único amor. Filipe, rendido à evidência, saiu
de casa sem alarde, à espera de melhores dias. Menos
como um marido traído do que como um filho, cuja mãe tem
pressa de aproveitar o fim da juventude.
Isa ouve incrédula e risonha, da própria boca de Lina, a
história deste amor entre todos inesperado. Esta mosquinha
morta, com olhos de traça... pensa. Não é mulher para o
António. É só eu querer... Saboreia, pantera total, um
antegosto a sangue.
Laura não se conforma de ter falhado o mais saboroso
momento da sua vida. Pôr o António fora de casa depois de
uma grande cena e perdoar-lhe no dia seguinte, teria sido,
depois de longamente ruminada, a sua bela vingança. Mas
não aconteceu assim. Quando chegou a casa recebeu um
breve recado dizendo que ele não viria. E ele não veio. Nem
nessa noite, nem nas seguintes.
Tentou mobilizar o pai para prejudicar o António na
fábrica. Mas aquele limitou-se a dizer ao genro (que já
pusera o lugar à disposição) que as desavenças conjugais
dos seus empregados não lhe diziam respeito.
Laura vive agora manobrando na sombra, culpando Isa,
conversando com Filipe. É o seu novo passatempo e a
aventura sentimental do marido é um pouco a sua, como
aqueles pais que vivem no mapa-mundo as viagens do filho
marinheiro.
Isa fica quinze dias em casa a pôr hirudoide nas negras
do pescoço, a pretexto de gripe e neurastenia. Quando fez a
sua aparição, envolta em sedas raras até ao queixo, todos a
acharam mais deslumbrante que nunca. Era sexta-feira.
Foi na manhã seguinte que, entre as brumas do sono,
julgou ter António na sua cama. E o seu espírito navegou,
entre nevoeiro, pelo corpo de António, que para Lina é
porto, para Laura é rio, e para Isa o mar imenso onde
gostaria de voltar a perder-se.
Isa chegou à hora do almoço.
Está a mesa posta para três, Lina diante de António, Isa
à direita dele. Mas Isa senta-se no lugar de Lina, não se
conforma de dar a António o seu pior perfil.
Lina, por delicadeza, não diz nada. Põe o almoço na
mesa, senta-se no lugar que sobra.
O almoço decorre sem sobressaltos. Conversa corrida
de pessoas muito íntimas, tudo fácil, como se ninguém
pudesse fazer ou ter feito mal a ninguém. António ri. Um
pouco alto de mais.
Na hora do café, Isa apoia os cotovelos na mesa, pousa
o queixo sobre as longas mãos cruzadas e diz a António
depois de um demorado olhar,
Estou cheia de saudades tuas.
É um convite aberto. Não disse, estava cheia de
saudades tuas, o que significaria, tinha saudades porque
não te via há que tempos. Pelo contrário, estou cheia de
saudades tuas, precisamente porque te vi.
Lina observa a reacção de António. Sabe que já perdeu.
Ele baixa os olhos. A maçã-de-adão oscila
verticalmente. Bebe um golo de café. Sorri. Morde o beiço.
Os olhos de Isa não enganam. Estão dourados, cheios
de estrelas e os dentes brilham no sorriso aberto,
pressentindo a presa.
Lina levanta-se, tomada de mal-estar. Vai à cozinha a
pretexto de encher o açucareiro.
Isa não perde tempo.
Vem comigo. Eu sei que não gostas dela. Vê-se.
Estás doida, Isa. Não digas essas coisas.
OK. Espero por ti à noite.
Lina volta e Isa diz-lhe que António está com bom
aspecto, vê-se logo que tem sido bem tratado. No mesmo
tom elogia a exuberância das plantas. Gabaria o gato se
houvesse gato. E de repente lembra-se de um compromisso,
sai a correr, com dois beijinhos rápidos atirados da porta.
Como se qualquer contacto físico com aqueles dois fosse
deslocado e redundante.
Não vás, pediu Lina.
Não vou aonde?, mentiu António.
A noite parece infinita, com uma lua imensa, um silêncio
excessivo, um céu aquático.
A noite antiquíssima e distante. A noite.
Lina pensa que gostava de ver a noite de cima e
mergulhar e afogar-se nela.
Senta-se no terraço com um bloco no colo. Está um frio
intenso. Novembro está no fim.
Lina escreve. Poucas linhas. Alguns pensamentos
breves, talvez um poema, que tem como fundo as
gargalhadas artificiais de António. Lina percebe, de súbito,
como tudo é falso e como o seu amor é inútil. Observa a
noite. Queria formar o salto, mergulhar e afogar-se nela.
Levanta-se devagar e engole um a um, sem desfitar a
noite, todos os comprimidos que Filipe receitou a António no
princípio da sua estada lá em casa. Repara agora que
António não tomou nenhum: não há desgraça que lhe
perturbe o sono. Ainda bem.
António chega de manhã, inundado do perfume de Isa e
encontra Lina morta em cima da cama.
Ao lado dela um bloco com qualquer coisa escrita que
António não consegue ler. Tenta, mas não compreende.
Dentro da cabeça de António nada funciona.
Imagens estilhaçadas do sorriso de Isa, à hora do
almoço, dos olhos estupidamente azuis de Lina, a voz de
Laura, ou ela ou eu.
Agora ninguém. Só este buraco negro onde tudo parece
ter-se afundado, este pavor irremediável, este cancro
chamado culpa a devorá-lo vivo, para sempre.
Não lhe ocorre nenhum gesto, nenhuma acção. Odeia
Lina.
Queria bater-lhe e gritar-lhe que viva, que faça como
Laura, que o deixe amar Isa sem dramas verdadeiros.
Laura. Ela saberá o que fazer. E Filipe. É claro, antes de
mais nada é preciso chamar Filipe.
Pega no telefone e liga para Isa.
Mas ninguém atende.
A campainha do telefone é um grito de gaivota que se
perdeu no vento.
Novembro chegou ao fim. Está um dia bonito, frio,
luminoso. O mar bravo salpica a marginal.
António guia devagar. Não quer pensar em nada.
Quando os pneus chiam no saibro do jardim, uma criada
assoma e vê com espanto o carro do patrão.
O senhor engenheiro quer almoçar? A senhora está no
cabeleireiro.
Não obrigado, já comi.
Pousa o saco no degrau de pedra e entra em casa sem
fechar a porta.
A MULHER QUE MASTIGOU O MEU DESTINO

Era uma rapariguinha com aparência de mulher que


nunca tinha sido criança. Não sabia nada, a não ser que se
chamava Eva. Vivia numa espécie de jardim onde não
acontecia coisa nenhuma e que ela não sabia se era bonito
ou feio porque não conhecia outro lugar com que pudesse
compará-lo. Por ali vagueava, coçava-se e dormia um outro
ser, igualmente bronco, igualmente apático, com quem não
era possível conversar porque nenhum deles tinha passado
nem futuro nem desejos nem desconfortos nem alegrias
nem tristezas. O ser chamava-se Adão.
Viviam nus. Porém não se atraíam, não se desejavam e
mal se apercebiam que entre eles havia diferenças de forma
e conteúdo. Alguém lhes dissera, mas já por
desinteressante o haviam esquecido, que Adão fora
moldado num pedaço de barro e Eva nascera da costela
barrenta de um Adão ainda informe. Ah, e tinham uma
coisita dentro da cabeça vagamente parecida com
consciência onde estava gravada uma única informação:
não comer os frutos da macieira grande à beira do riacho.
Então Eva, cansada de vegetar, lembrou-se de observar
os ditos frutos e descobriu que era capaz de pensar. Ficava
horas a olhá-los e vislumbrou um novo sentido para a sua
estúpida existência só no facto de imaginar o que
aconteceria se trincasse uma maçã.
Uma manhã encontrou enroscada na árvore uma
serpente. E, surpresa das surpresas, pela primeira vez
alguém falou com Eva.
A serpente pareceu-lhe encantadora quando se pôs a
seduzi-la com descrições de outros mundos possíveis,
outros sentimentos, outras inquietações. Explicou-lhe que
poderiam existir dentro dela, daquela mesma Eva vegetal e
monolítica, miríades de pensamentos, emoções, desejos,
abismos, paraísos, se ela tivesse a coragem de dar uma
simples dentada numa simples maçã.
E então começou o desassossego.
Um dia Eva, farta de não ser nada, ousou o fácil,
elegante, decisivo gesto de estender a mão e colher a
maçã.
Mordeu-a. Primeiro com receio, depois com volúpia,
depois com ganância, foi mastigando o seu próprio destino.
Receio. Volúpia. Ganância. Três sentimentos que nem
imaginava que existiam. E de súbito viu Adão que se
aproximava, olhou-o com desejo e com luxúria, tudo tão
novo, tão excitante, e compreendeu que se ele comesse
daquela maçã poderiam partilhar uma exaltante
experiência.
Foi fácil convencê-lo. Eva agora era mulher e sabia
como tentar um homem.
E Adão comeu a maçã e foi tomado por uma inquietação
impensável e desconhecida e viu pela primeira vez que o
corpo de Eva era complementar do seu próprio corpo e com
ela conheceu o prazer e o desassossego dos sentidos.
E no espírito de ambos nasceu um desassossego ainda
maior, o desejo de conhecimento, de compreensão, de
aprendizagem e uma sede inexplicável de Bem e de Mal.
E foi nesse momento que Deus viu que não tinha mais
como travar a força que imprimira às suas criaturas e
deixou-os ser humanos com suas grandezas e misérias,
para sempre desassossegados, desgraçados, sonhadores e
incompletos.
E expulsou-os do Paraíso com o seu divino sopro
transformado em temporal, sopro esse que lhes imprimiu na
alma o mais transcendente de todos os desassossegos, esse
mistério que mais tarde se chamaria Arte.
MAÇÃ

Todas as quintas-feiras vou ao Porto. Meto-me no carro


ao princípio da tarde e volto na sexta-feira à noite para
passar o fim-de-semana com a minha mulher, Maria da
Glória. Digo-lhe que vou tratar de assuntos. Mas a verdade
é que vou encontrar-me com a mulher que eu amo.
O nome dela é Paula. Mas porque, tal como eu, é
casada, a Paula é o meu fruto proibido, por isso chamo-lhe
Maçã.
Estou casado com a Maria da Glória há catorze anos.
Como não temos filhos a nossa vida é muito organizada e
bastante monótona. Aprovo uma certa rotina. Agrada-me,
até, que o meu único acto transgressor aconteça a um dia
certo da semana. A quinta-feira é o dia em que o marido da
Paula, que integra uma equipa de médicos que tratam a
obesidade, vem a Lisboa dar consulta. Isto é, vem à quinta-
feira ao princípio da tarde, fica no hotel e vai à sexta passar
o fim-de-semana com a mulher.
Às vezes, quando paro na estrada para tomar um café,
entretenho-me a imaginar se algum daqueles senhores que
viajam em sentido contrário será o marido da Paula.
Também me ocorre, quando, ao volante, a cabeça se
permite alguns desmandos, que a Maria da Glória podia ser
amante daquele médico das quintas-feiras, ela que andou a
fazer dieta segundo os ditames dessa equipa do Porto.
É só uma fantasia, mas reconheço que tem
potencialidades. Quando penso nessa hipótese verifico que
não me perturba. Primeiro porque não amo a Maria da
Glória, só gosto dela. Segundo, porque por nada desta vida
abdicaria da minha Maçã. Terceiro porque gosto de sossego,
odeio lances dramáticos e situações que alterem a paz
podre da minha vidinha lisboeta.
Toda a minha capacidade de aventura se esgota neste
romance de amor.
O Porto tem o ambiente ideal para estes encontros
clandestinos. É uma cidade brumosa, fechada, de uma
austeridade um pouco conservadora, que torna mais
excitante a evasão.
Vivemos a nossa aventura com mil cuidados. O marido
da Paula pertence a uma família tradicional e ela tem pavor
de ser vista comigo. Por isso ficamos no hotel e comemos
no quarto, porque daquela única vez em que descemos à
sala de jantar, ela julgou ver conhecidos em todos os cantos
e ficou tão nervosa que optei por utilizar sempre o room-
service. Melhor assim: evito expor a sua beleza aos olhares
cobiçosos dos homens, aos relances invejosos das
mulheres. Durante vinte e quatro horas por semana a minha
Maçã é só minha e nem sequer me apetece pensar no que
fará nos restantes seis dias. E como se ela se materializasse
nos meus braços às quintas-feiras à tarde e desaparecesse
como um sonho na hora da despedida pelas ruas
misteriosas do Porto.
Gosto de a ver chegar, precedida pelo seu perfume
envolvente, com as suas roupas caras, os seus cabelos
castanhos um pouco longos, fofos como uma nuvem, e os
seus imensos olhos cor de mel. Despe o casaco do seu
tailleur de bom corte cujo forro desliza pela seda da blusa
com um breve rumor luxuoso. Passeia um pouco a
reconhecer o espaço, serve-se de um sumo e só depois se
aproxima de mim, com um sorriso que lhe põe uma covinha
funda na face esquerda e outra, imperceptível, na direita.
Conversa sobre um ou outro problema doméstico, o livro
que anda a ler, o filme, a exposição que viu com uma
amiga. É tagarela e encantadora e suficientemente
romântica para fingir que está ali de visita e não para soltar
da jaula o animal selvagem que habita o seu pequeno
ventre.
Depois há uma pausa, porque eu não ponho lenha na
fogueira daquela encenação, e de súbito, sem aviso, toma
posse da minha boca, do meu corpo, enquanto atira para
longe as roupas caras, a lingerie maravilhosa, o relógio, os
anéis, as pulseiras. Até os brincos a incomodam, costuma
dizer que nua é nua, desenrosca os diamantes das orelhas e
pousa-os sem cerimónia num cinzeiro qualquer.
Então, todas as minhas fantasias, que a Glorinha não
aprova, são possíveis naquele quarto sombrio do meu hotel,
com uma vista deslumbrante sobre o rio Douro que nunca
mais nos lembramos de olhar. Com aquela mulher, mal
amada por outro homem, que me entrega (a mim, imagine-
se, a mim!) os tesouros da sua magnífica sensualidade.
Fruto proibido, murmuro--lhe ao ouvido. Maçã!
E para sempre passei a associar o Porto à palavra maçã,
a cidade tornou-se para mim um fruto por descascar,
apetecível, trincável, de sucos saborosos e prazeres
secretos.
Conheci a Paula no bar do meu hotel, onde ela esperava
uns amigos que não apareceram, precisamente numa
quinta--feira em que eu tinha ido ao Porto realmente tratar
de assuntos.
Vi aquela mulher belíssima ali sentada há tanto tempo,
imóvel, distante, um pouco vaga, que me atrevi a convidá-la
para uma bebida.
Ela não bebe álcool, mas aceitou um cocktail de sumos,
com direito a frutos inteiros, palha colorida e sombrinha.
Pediu um garfo para apanhar o morango e as cerejas sem
caroço aninhadas no fundo da taça e como o criado
interpretou mal o seu pedido e trouxe um guardanapo de
pano, ela meteu dois dedos no líquido, comeu as frutas e a
seguir teve um olhar, pousado bem no fundo dos meus
olhos, enquanto chupava das pontas dos dedos o que
restava de sumo.
Foi apenas um momento, magnetizado por uma incrível
carga sexual. Logo a seguir baixou os olhos e limpou
delicadamente as mãos ao guardanapo.
Não sou grande conhecedor de mulheres. Posso mesmo
dizer que foi a Paula que me ajudou a descobrir as minhas
potencialidades nesse campo. Mas tive a certeza de que
aquele olhar, aquele gesto, tinham sido um convite
expresso que só um louco deixaria escapar. Perguntei-lhe se
gostaria de visitar o meu quarto e ela aceitou com a mesma
naturalidade com que aceitaria um convite para ver as
montras de jóias nos corredores do hotel.
No quarto passeou um pouco, como agora sei que é seu
hábito, e disse, mostrando as covinhas da face pela
primeira vez, devo estar louca, sou casada e nunca na
minha vida me meti num disparate assim.
Talvez não seja um disparate, respondi, desesperado de
desejo. Daqui a pouco saberemos.
E soubemos.
Eu soube que o corpo dela era perfeito e capaz de todas
as loucuras, que a sua ternura era infinita, que a sua alegria
era uma bênção.
Ela soube que me apaixonei por ela sem remissão, que
fiquei escravo do calor dos seus braços, da prisão das suas
pernas.
Ambos soubemos que era um disparate maravilhoso,
sem o qual não poderíamos continuar a viver.
Hoje é quarta-feira. A Paula telefonou-me a chorar e a
dizer--me adeus. A equipa médica que luta contra os quilos
supérfluos abriu uma clínica nos Estados Unidos e o marido
da Paula foi escolhido para dirigi-la. Ele não voltará a Lisboa.
Ela deixará de ter as quintas-feiras. E, por fim, partirão para
Nova Iorque dentro de um mês.
A minha Paula. A minha Maçã.
Nem sequer posso procurá-la, porque a Paula nunca me
deu o telefone nem o apelido com medo que num dia de
angústia resolvesse ligar-lhe. É ela que me liga sempre mas
agora jurou não fazê-lo mais, para não prolongar
inutilmente esta agonia.
Sinto-me horrivelmente só. Agora tenho pena de não
me ter aberto mais com a Paula, contado os pormenores da
minha vida. Nem sequer lhe disse nunca que sou casado.
Ela é tão romântica que me custou pô-la perante uma
verdade vulgar, comezinha, um casamento a cair de
maduro, um homem com fantasias extraconjugais. Inventei
uma velha mãe doente, fiz a rábula do filho dedicado,
impossibilitado de casar para não descurar os seus deveres
filiais. A Paula preocupava-se com a minha mãe, mandava-
lhe presentes, perfumes, lenços de seda, bijutarias, que eu
oferecia à Maria da Glória, coberto de remorsos, não por
mentir à Glorinha, mas por dar um destino diferente às
intenções tão doces do meu único amor.
O meu caso com a Paula durou quase um ano. Agora já
passaram mais dez. Eu e a Glorinha festejamos as bodas de
prata na próxima semana. Que fará a Paula na Big Apple?
Para sempre Maçã.
Chamo-me Helena e sou esquizofrénica. O que mais
gosto de fazer é mentir. Não há nada mais divertido, mais
arriscado e mais excitante.
A minha mãe dizia sempre que eu devia escrever
romances. Mas do que eu gosto é de ser protagonista dos
meus próprios romances, sem nunca perder o fio à meada
das minhas invenções.
A minha mãe era cientista. Médica psiquiatra. Foi ela
quem tratou sempre de mim. Usou-me até como cobaia,
mas sempre com bons resultados. Dava-me toda a
liberdade. Só não queria que eu casasse ou tivesse filhos.
Por isso, quando por volta dos meus vinte e poucos anos se
apercebeu de como eu andava assanhada, mandou-me
operar. Como se faz às gatas, disse ela. Para aliviares as
pulsões.
Assim pude sempre ter namorados sem qualquer
problema. A minha mãe inteirava-se de tudo mas não me
proibia de nada. Só não consentia que os trouxesse cá a
casa, já se vê. Nem eu queria. O divertido era eles nunca
perceberem muito bem quem eu era. Cheguei a ter três
namorados ao mesmo tempo. Inventava, para cada um, um
nome diferente, uma personalidade diferente, uma vida
diferente. O jogo era comigo própria. Nunca me podia
enganar nem trocar os pormenores das minhas histórias.
Este era o grande desafio. Claro que também gostava de ir
com eles para a cama, mas mesmo aí tinha
comportamentos distintos, cada um para cada qual, umas
vezes tímida, outras depravada, outras apaixonada e fiel.
Mantinha sempre o mesmo comportamento com o mesmo
homem assim, ainda que eles se conhecessem uns aos
outros, jamais suspeitariam que andavam a dormir com a
mesma mulher.
Com a minha mãe a minha atitude era de filha
amantíssima. E sim, foi a única pessoa de quem gostei.
Todas as outras me cansavam rapidamente e me deixavam
um terrível vazio um sentimento de frustração.
Quando era pequena, o entusiasmo pelas minhas
amiguinhas durava apenas umas semanas; na adolescência
ainda menos que isso e os namorados menos que as
amigas. Na idade adulta acontecia o mesmo com os
amantes, enfim, com algumas excepções, daqueles que até
queriam casar e tudo e aí é que eu lhes dava o golpe de
misericórdia. Era preciso não me chatearem nada para os
aguentar um pouco mais, até finalmente me cansar. Porque
era trabalhoso inventar todas aquelas histórias e mais
trabalhoso ainda mantê-las. Quando a brincadeira já não me
divertia, acabava com ela.
Nada, faço sexo ao acaso com os pescadores de
ocasião. Depois lavo-me nas ondas, apanho conchinhas que
guardo às centenas em caixas de sapatos, esqueço os
rostos, confundo o sal dos beijos com o cuspo do mar.
Estou aqui sozinha, no terraço batido pelo vento, a
escrever estes disparates num caderno quadriculado onde a
minha mãe me mandava copiar as receitas dos bolos.
A palavra disparate lembra-me um amante qualquer,
não sei bem qual. Acho que era um moreno, muito bom na
cama, por quem tive um fraquinho especial.
Podia talvez mandá-lo vir. Ele era, se bem me lembro,
de Lisboa. Creio que solteiro, com uma mãe velha e doente
que já deve ter morrido.
Sim, agora lembro-me dele perfeitamente. Mas não
posso chamá-lo para a minha beira, porque aí estragaria a
mentira mais bem construída de todas e, tornando-me
acessível, deixaria de ser o fruto proibido.
Apetecível.
Trincavel.
Maçã.
Agora que a minha mãe morreu, reparei que não tenho
uma única amiga, um único amor. Sinto-me perdida na
nossa velha casa da Foz, absurdamente grande e vazia.
Costumo passear pela praia, especialmente no Inverno,
e, sem mais problemas porque já não tenho paciência para
inventar.
UM BANCO NO JARDIM

O senhor Pascoal tinha o costume de, quando saía do


trabalho, atravessar o jardim público e sentar-se num banco
daqueles antigos de tábuas e costas enroladas. No jardim já
havia bancos modernos, de uns que têm para trás e para a
frente, duros e direitos, com azulejos que arrefecem o
traseiro. Os amigos costumavam ir beber uma cervejola,
mas ele raramente os acompanhava: preferia aquele banco
sossegado, que parecia ter ficado esquecido num recanto
aprazível, com árvores onde os passarinhos cantavam.
Talvez por ficar na sombra e um pouco isolado, nunca
ninguém se sentava ali. Por isso, no dia 3 de Fevereiro de
2004, estranhou ver ali uma velha a ocupar o centro do
banco.
Pediu licença e sentou-se. A velha fez que não ouviu.
Era mal--encarada, meio desgrenhada, magra, vestida de
preto e tinha os olhos baixos. Deve ser surda ou se calhar
está a dormir, desculpou-a o Pascoal. E ficou com a ponta
do banco onde costumava pensar na vida e gozar a tarde
quando não chovia.
Não fazia tenções de meter conversa com a velha, mas
quando deu por si já estava a perguntar-lhe se morava para
aquelas bandas porque nunca a vira antes.
Sou daqui e sou de toda a parte, disse a velha com uma
risadinha roufenha.
Daqui e de toda a parte, estranhou o Pascoal. Sou a
Morte, disse ela sem levantar os olhos. O Pascoal passou-se
da cabeça.
Ai és a Morte? Pois então deixa-me que te diga que
estás completamente maluca. Andas a matar rapazes novos
que jogam à bola, meninas que são operadas à garganta,
mães com bebés pequenos que lhes dá a dor de cabeça e tu
tunga, vê lá se começas a ter outro critério mais
equilibrado.
Pela primeira vez a Morte levantou os olhos que
pareciam de vidro verde, mas não olhou para o Pascoal.
Pousou a vista um pouco acima da cabeça dele, um pouco à
esquerda e um passarinho caiu morto da árvore, mesmo ali,
quase aos pés da velha.
Porra, pensou o Pascoal, escapei por um triz, mas não
se deu por achado. Continuou a descompor a Morte.
Ouve lá, minha maluca, porque é que tu não levas só as
pessoas mais idosas, as que já cumpriram a sua missão, as
que já não servem para nada, as que já estão podres de
tanta dor, as que estão fartas disto? Sim, porquê?
Porque sou cega, disse a Morte, e levantou-se.
Então compra um cão, ele que fareje quem não presta,
olha a grande cabra.
Ela já ia longe e o Pascoal não teve a certeza se ela
ouviu.
Acontecia-lhe dormitar no banco e pensou que tinha
sonhado. A Morte não tem vagar para se sentar num banco
de jardim a conversar com as suas futuras vítimas.
Passado coisa de um mês, falando com a sua Etelvina,
voltaram a um assunto que há algum tempo os vinha
tentando. Ela já estava reformada por doença, tinham um
dinheirito de parte, ele pedia a reforma antecipada e abriam
uma pequena drogaria que fazia falta ali na rua: produtos
de limpeza, sabonetes, utilidades. Precisamente estava
devoluta uma lojinha dois prédios abaixo.
Vai o bom do Pascoal pedir a reforma antecipada e diz-
lhe a madame do balcão,
Pascoal Antunes Laranjeira? Nascido a 13 de Setembro
de 1938?
Isso mesmo.
Falecido a 3 de Fevereiro de 2004. Outro!
Ó senhora, falecido como? Sou eu, estou vivo, não vê?
Diz aqui o computador. Outro!
Ai que a puta da velha anda a ver se me apanha, disse o
Pascoal a lembrar-se do passarinho morto por cima da sua
cabeça.
A madame do balcão lançou-lhe um olhar tenebroso,
deve ter pensado que era com ela, porque em tentativas
subsequentes envenenou-lhe todo o processo e o Pascoal
não abriu a drogaria porque estava morto, o que se torna
pouco prático para tratar das burocracias deste mundo.
Um dia em que chegou a casa um pouco mais tarde
porque um dos seus colegas fazia anos e ele acompanhou-
os nas cervejolas, a mulher disse-lhe logo à entrada,
Esteve aí uma velha à tua procura.
Uma velha?
Uma velha. Tinha uns olhos esquisitos e trazia um cão.
Trazia um cão, dizes tu?
Trazia um cão grosso e feio, tão mal-encarado como ela.
Disse que voltava.
Pois, Etelvina, filha. Prepara o meu fato escuro, uma
camisa branca, a gravata que eu comprei para o casamento
da nossa neta, que desta vez não escapo.
Vais sair com a velha?
Olá se vou. A grande vaca seguiu o meu conselho.
O LAÇO

Sou um homem pacato. Em dez anos de casamento, a


Adriana nunca se queixou. Às vezes diz que eu falo pouco,
que não me abro, que não partilho as coisas com ela. Mas é
o meu feitio. Gostaria de lhe dizer, por exemplo, que me
sinto poeta. Não que saiba escrever, não é isso, mas poeta
por dentro, cheio de metáforas, de imagens bonitas, de
palavras musicais. Ela havia de se rir de mim e eu não
suporto que se riam de mim. Como da última vez em que
tive de usar smoking e a Adriana riu até às lágrimas porque
eu tinha o laço torto. Irremediavelmente torto. Acho que o
defeito é do meu pescoço. Visto smoking duas vezes por
ano, no máximo, e o laço fica sempre torto.
Hoje vamos a uma festa. Aniversário de casamento de
um casal amigo. Se a Adriana sai do banho e começa a rir
da tortuosa posição do meu laço, garanto que a mato. Há
poucas coisas no mundo que me enervam, mas rirem-se de
mim e do meu laço com vida própria, é mais do que consigo
aguentar.
A Adriana sai do banho, linda, húmida, enrolada num
toa-lhão cor de fogo. Parece uma rainha pagã, com os
cabelos soltos, ondulados nas pontas. Protegeu-os da água
e estão secos, mas parecem selvagens assim recém-
libertados da touca. Os braços nus seguram a toalha e as
pernas aparecem na sua total desinibição. Percebo que vou
ter que despir o smoking e atirar para o chão o vestido, a
bolsinha de missangas, os sapatos de cetim que a esperam
sobre a cama. Vou desmanchar de novo o laço, paciência,
de qualquer modo está inelutavelmen-te torcido.
Tens o laço torto, diz a Adriana, e desata a rir.
Aproximo-me dela e a Adriana pensa que lhe vou
oferecer o pescoço para que me ajeite o laço, mas é ela que
me oferece o pescoço nu para que o esgane.
Seguro-lhe as mãos atrás das costas, das costas dela,
quero dizer, e tenho à minha mercê a jugular azul, talvez
lilás, se eu fosse vampiro que prazer cravar-lhe os dentes,
vê-la tornar-se exangue nos meus braços, ter a certeza de
que nunca mais iria rir de mim.
Aperto-a tanto que os olhos se tornam inquietos, diz,
agora não, o seu perfume envolve-me de forma hipnótica,
apetece-me mergulhar nele, navegar a todo o pano nesse
mar de aromas, amá-la enquanto a mato devagarinho.
Quero matá-la com as minhas mãos mas não usarei a
faca, nem a arma de fogo, nem o veneno, nem as minhas
lâminas, ali mesmo à mão na casa de banho. Posso escolher
entre apertar-lhe a garganta com todas as minhas forças ou
atabafá-la até à morte com as almofadas de penas, e deixá-
la estendida na cama ao lado do vestido por estrear, com os
olhos azuis escancarados de espanto.
Tinha dez anos quando o meu avô me mostrou as flores
do linho. Sobe para a carroça, disse ele, se queres ver a cor
dos olhos da mulher com quem hás-de casar. Eu subi,
encantado com aquelas férias no norte onde aprendi mais
numa semana do que num ano inteiro em Lisboa. Eram as
primeiras horas da manhã e aquele ar tão limpo, cheio de
cantos de pássaros, de odores diferentes, múltiplos,
agrestes, despertava os meus sentidos, ensinava-me a
terra. O avô levou-me por um caminho sem fim, ao ritmo do
passo vagaroso do velho cavalo de chapéu de palha.
Quando chegámos ao campo de linho ele deixou-se ficar
com as rédeas na mão, a olhar em silêncio. Depois
desdobrou um guardanapo de quadrados vermelhos e fez
aparecer dois grandes pães, um com presunto para ele,
outro com queijo para mim. Dois copos grossos e curtos,
uma garrafa de verde branco. Eu nunca tinha bebido vinho
e disse que não queria, mas o avô garantiu que se eu ia
conhecer a cor dos olhos da minha futura mulher, tinha que
beber como um homem e deixar que aquela gotinha de
álcool ajudasse a imaginação. Assim fiz. O pão ainda estava
quente, o vinho ainda estava fresco. Fiquei um pouco tonto
e muito alegre e o meu avô desceu da carroça, segurou na
minha mão, levou-me pelo campo e apontou, num gesto
circular olha e eu olhei e vi multiplicados por mil os olhos da
Adriana e a profecia ficou comigo, tão viva, que quando a
conheci tive a certeza de que me estava destinada desde
que os homens cultivaram o linho.
Agora estou a beijá-la enquanto lhe seguro as duas
mãos atrás das costas com a minha mão direita, e com a
esquerda lhe tapo o nariz. Debate-se. Sinto-lhe os seios que
se esmagam contra a minha camisa de cerimónia, ainda
não tenho o casaco vestido. Sou obrigado a deixá-la respirar
porque a boca desce agora pelo decote para beijar-lhe o
corpo, aquele corpo que é a minha perdição, embora nunca
lho diga da forma apaixonada como o sinto. A toalha há
muito que escorregou para o chão. A pele ainda está
húmida, morna, deliciosa, e eu penso confusamente que
quando terminar de matá-la ficará fria como uma estátua de
mármore.
Quando na nossa lua-de-mel entrámos no Louvre de
mãos dadas a Adriana conseguiu iludir a vigilância do
guarda, atrapalhado com uma escola barulhenta, para
apalpar o corpo da Vénus de Milo. Achei que estava quente,
disse ela, de tal forma aquela carne palpitava de vida.
Falámos nisso durante dias, da impressão que lhe fez aquela
pedra que parecia viva, ínterrogámo-nos se a arte seria isso,
criar vida a partir de matéria informe, sons caóticos,
palavras sem sentido, telas vazias. Iniciávamos apenas a
nossa vida adulta, recém-formados, re-cém-casados,
procurando respostas em tudo, incluindo a descoberta
alucinada dos corpos. O teu corpo, Adriana. Mesmo quando
o nosso casamento carrilou numa certa rotina, não deixei
nunca de interrogar-me sobre esse mistério que faz com
que me roje mentalmente a teus pés, de corpo e alma.
E agora estou aqui a matar-te. Não devias ter rido do
meu laço torto. Não devias. Ainda por cima não sei como se
faz. Não tenho experiência. Dizemos eu mato-te mas não
sabemos como separar do seu encanto esse conjunto
milagrosamente harmonioso de ossos, músculo, pele,
cabelos, e o que dizer dos olhos, da boca, dos dentes, do
sorriso, das unhas, do cheiro, da saliva, da batida exaltante
do coração. O teu coração, Adriana, que se esconde sob
este maravilhoso seio esquerdo, o que tem o sinalzinho cor-
de-rosa junto do mamilo. O teu coração, meu amor.
Parece que o mais fácil é apertar o pescoço. Coloco a
polpa dos polegares naquela covinha da garganta, tão
bonita, entre duas clavículas perfeitas, que te sustentam
esses ombros de estátua.
Quantas vezes nas nossas peregrinações pelos museus
te comparei às esculturas admiráveis dos maiores artistas,
Rodin, Bellini, Canova, mas nenhuma delas tinha a maciez
dos teus contornos, a penugem dourada, apenas visível em
contraluz, as minúsculas imperfeições da pele que te
tornam única, sim, estas levíssimas sardas que a última
praia te deixou no nariz e na pele do decote e a que as
pontas cor de mel dos teus cabelos propõem a rima certa e
me transportam para outro lugar.
Estamos à beira-mar e não há como a espuma para
enquadrar as tuas pernas perfeitas, fortes sem serem
grossas, altas sem serem magras, ágeis sem serem
musculosas. Os teus pés descalços trazem a nudez
primordial que torna a praia da manhã num lugar virgem,
como se a areia, alisada pelo vento da noite e a última maré
cheia, fosse pisada pela primeira vez. Embriagados de sal e
de sol fazíamos amor entre as rochas com pequenas ondas
mansas a lamber-nos o corpo num vaivém festivo. E tu rias,
com os rins na água e as pernas de deusa enroladas na
minha cintura.
Ai, Adriana, como a vida tem força. Se não fechar os
olhos não poderei matar-te. Irei pelo contrário possuir-te,
com fúria, com raiva, com paixão, mais uma vez sujeito ao
império da tua força, da tua exuberância, da tua troça tens
o laço torto não suporto que troces de mim, eu nunca te
disse mas amo-te para além do razoável, por isso não podes
rir-te depois de eu me ter esforçado tanto para te agradar,
às cegas aperto-te a garganta, aperto, aperto, até não ver
mais nada, não entender mais nada, até caíres sobre a
toalha vermelha que te rodeia o corpo nu como uma
gigantesca flor de sangue.
Inclinado sobre a cómoda, tento compor o laço. A porta
da casa de banho abre-se, talvez com o vento, tens o hábito
de tomar duche com a janela aberta para não embaciar os
espelhos.
Surges enrolada na toalha cor de fogo, orvalhada,
despenteada, belíssima e dizes, num sorriso sedutor, bravo,
o teu laço está impecável.
Um pouco à bruta arranco-te a toalha, deito-te ao lado
do vestido novo, empurro para o chão os sapatos de cetim.
Fazemos um amor fora de horas, excitante,
inesperado agora não agora sim, e o meu laço fica
irremediavelmente torcido e tu, Adriana, nunca saberás os
perigos de viver há dez anos com um poeta em construção.
O DESAFIO FANTASMA

A história que vou contar não é ficção: se fosse ficção


não teria o menor interesse. Na ficção podemos inventar o
que quer que seja e tentar convencer o leitor de que a
nossa história é verdadeira. Normalmente isso resulta, mas
neste caso não. O que torna esta história surpreendente é o
facto de ela se ter passado na realidade. Na realidade? O
que é a realidade? Bom, não vou filosofar, vou apenas
recontar o que me contou a minha amiga que a viveu, a
quem eu pedi licença para escrevê-la e a quem me limitei a
mudar o nome. Vou chamar-lhe Isabel.
A Isabel é uma professora viúva, reformada, de natureza
tranquila e divertida, que emprega a melhor parte do seu
tempo a ler e a escrever bonitos contos infantis. Está
sempre a prometer que vai publicá-los, mas até hoje nem
eu nem os dois filhos conseguimos convencê-la a decidir-se.
A Isabel é distraída, um pouco vaga, talvez, mas sempre
uma pessoa encantadora.
A Isabel, no desejo de fugir à canseira de Lisboa,
comprou uma casa na província. Escolheu o Algarve, não
porque preferisse essa zona do país, mas, conforme me
explicou, para garantir que filhos, noras e netos não
deixariam de visitá-la.
Foi o que aconteceu na última semana do mês de Junho
de 2002.
Eles chegaram e asseguraram-se de que a televisão
funcionava perfeitamente, porque queriam ver a final do
campeonato do mundo de futebol que teria lugar no dia 30.
A Isabel, é claro, como a grande maioria das mulheres
da sua idade, não percebe patavina de futebol. Mas
imediatamente se dispôs a interessar-se, para partilhar com
os membros da família esse acontecimento que parecia ser
tão importante para eles.
Na véspera do esperado jogo foram todos sair e Isabel
ofereceu-se para ficar a tomar conta do neto mais pequeno.
O bebé dormia e, contra os seus hábitos, Isabel ligou a
televisão. Qual não foi o seu espanto quando percebeu que
tudo se preparava para o grande desafio Brasil —
Alemanha. As equipas, no campo, já cantavam o hino e
Isabel apressou-se a
ligar para os telemóveis dos filhos. Mas estavam
desligados. Deixou recados aflitos, meninos, está a dar o
jogo, o tal Brasil — - Alemanha que vocês queriam ver.
Vocês enganaram-se na data, filhos. Vai começar agora
mesmo. Espero que estejam em casa de amigos e possam
dar pelo engano.
E obrigou-se a ver o desafio para poder, ao menos,
relatar-lhes os lances fundamentais. Foi quando se deu
conta de que não percebia mesmo nada de futebol. Então,
com o seu método de professora, foi buscar um caderno e
pôs-se a tomar nota dos principais detalhes. Não sabia o
significado das palavras, por isso foi escrevendo: canto,
remate, livre, ataque, posse de bola e golo, mas golo ela
sabia o que era.
No seu caderninho registou que aos cinquenta e dois
segundos se deu o primeiro ataque do Brasil e aos dois
minutos e vinte e três um remate de Kleberson, que falhou.
Que aos cinco minutos e dezoito Roque Júnior cometeu uma
falta sobre Neuville e viu o cartão amarelo. Aos seis minutos
e doze, um livre para a Alemanha, Klose falhou o golo. Aos
oito e vinte e dois é a vez de Bode ver cartão amarelo por
falta sobre Lúcio. Aos quinze e quarenta e dois novo livre
para a Alemanha, Klose marca, mas a bola ressalta em
Roberto Carlos. Toma ainda nota que aos dezasseis minutos
a Alemanha estava a tomar conta do jogo, com maior posse
de bola (foi o locutor que disse, ela limitou-se a apontar). Na
primeira parte mais cinco remates: Ronaldinho e Ronaldo,
ao lado. Jeremeis, da Alemanha, por cima. Kleberson falhou
por pouco. De novo Kleberson, à trave. Ronaldo, à figura do
guarda-redes, já aos quarenta e cinco minutos.
Depois o intervalo. Entrevistas e declarações de que
anotou o essencial.
Na segunda parte, um cabeceamento de Jeremeis à
figura do guarda-redes Marcos, um livre para a Alemanha
mas Klose atira ao poste, um livre para o Brasil apontado
por Ronaldo bate na barreira e finalmente, aos sessenta e
seis minutos e cinquenta segundos, o golo de Ronaldo,
assistido por Rivaldo, enche de palmas, algazarra e samba a
torcida verde e amarela. Houve ainda um remate da
Alemanha por Jeremeis, ao lado; e aos setenta e oito
minutos e vinte e cinco segundos o segundo golo do Brasil,
de novo por Ronaldo assistido por Rivaldo, e é o delírio. A
Alemanha ainda remata, por Bierhoff, mas Marcos defende e
o Brasil sagra-se pentacampeão do Mundial de Futebol.
O jogo termina ao minuto noventa e três e vinte e três
segundos, Isabel pousa a caneta exausta mas feliz por ter
feito com tanta dedicação e rigor o seu trabalho de casa.
Quando os filhos chegaram, ela perguntou viram o jogo,
receberam o meu recado, qual jogo, qual recado, sim,
aquela tal final do campeonato que vocês tanto queriam ver
afinal era hoje e eu tomei nota de tudo para vos poder
contar como foi. O Brasil ganhou dois a zero à Alemanha,
mas isso com certeza vocês já sabem.
Os filhos olharam-na como se ela fosse inimputável, ó
mãe, que confusões que a mãe faz, realmente não percebe
mesmo nada de futebol, o que a mãe viu foi outro jogo
qualquer porque a final é amanhã.
Ainda tentou mostrar-lhes o caderninho mas eles nem
ligaram, riram com ternura e deram-lhe um beijo, mas
Isabel ficou triste, porque é terrível quando os próprios
filhos duvidam da nossa capacidade mental.
No dia seguinte sentaram-se diante da televisão para
ver o jogo e Isabel teve a certeza de que não ia acontecer
nada porque o jogo tinha sido na véspera. Embora os filhos
lhe tivessem mostrado os jornais, para a convencerem da
sua confusão.
Mas Isabel estava enganada. Quando o jogo começou
ela foi buscar o caderno e entregou-o ao filho mais novo,
porque teve a certeza absoluta de que as imagens eram as
que já tinha visto.
De espanto em espanto, os rapazes foram verificando
no caderno os pormenores do desafio e quando tudo
terminou, os filhos, as noras e o neto crescido estavam
praticamente em estado de choque. O filho mais velho
rompeu o silêncio muitos minutos depois para perguntar, a
mãe tem a certeza de que se sente bem?
Sinto-me óptima e não estou maluca, se é isso que
queres dizer. Eu acho que foi só o tempo que se
desnorteou...
Sabiam que o tempo, às vezes, perde o norte? Eu não
sabia. Entrego-vos a história tal como a Isabel e os filhos ma
contaram e, para poder fazê-lo, socorri-me do caderninho
de apontamentos da minha amiga, que viu no dia vinte e
nove de Julho de dois mil e dois um desafio fantasma que só
aconteceu no dia trinta.
CRIADA PARA TODO O SERVIÇO

Uma mulher caminha pela estrada. Dir-se-ia uma


rapariga se não fosse o casacão austero, escuro, monástico,
que a cobre do pescoço aos tornozelos. Se não fosse o
cabelo apanhado em carrapito. Se não fosse a cabeça
curvada.
Na mão traz uma mala de viagem, modesta, atada com
uma corda que se esfiapa.
Dirige-se à casa senhorial que se avista da curva. A
mulher pára, tira um lenço imaculado do bolso, limpa a
testa, as asas do nariz. Ninguém a verá suada, nem
despenteada, nem cansada, nem doente, nem frágil. Apesar
de tão magra, apesar de tão séria.
Bate à porta das traseiras e a Celeste vem abrir. És a
que vem das irmãzinhas de Nossa Senhora das Dores?
Entra.
Na presença da senhora mantém a cabeça baixa.
A irmã Maria das Chagas gabou-te muito, diz que és
calada, obediente e uma óptima cozinheira. Chamas-te...
Plácida, se à senhora agradar o meu nome. Plácida das
Dores, criada para todo o serviço.
A Quinta da Torre, a mais bonita dos arredores da vila,
fica um pouco isolada mas nem por isso a vida dos seus
habitantes é solitária. A construção mais próxima é o
convento, com cuja Madre Superiora mantêm boas relações,
mas da vila e até da cidade vêm frequentemente visitas e
amigos.
Os proprietários, na casa dos cinquenta, são Norberto
Alcântara, e sua mulher Paulina. Vive com eles a irmã viúva
de Norberto, Lídia, que veio, com a sua fortuna, acrescentar
a do irmão. Nenhum deles tem filhos. E quanto a herdeiros
umas vagas sobrinhas que vivem na Austrália e de quem
ninguém já tem muitas certezas.
Os Alcântara vão fazendo obras na casa, a bela
construção do princípio do século xix, herdada dos avós de
Paulina, que mantêm impecável e à qual sempre
acrescentam um móvel, um quadro, um pormenor de
estuque para surpresa e elogio dos amigos.
Quando a cozinheira Aldina, disposta a gozar o seu pé-
de-meia junto dos netos, se reformou, abriu uma crise
doméstica que nem a Paulina nem a Lídia podiam colmatar.
De culinária tinham a teoria e os livros de receitas e a
Celeste, especialista em limpezas e tratamento de roupas,
não se atrevia com as panelas. Havia ainda o Fausto, que
guiava o carro e servia à mesa e que de gastronomia só
sabia comer.
Recorreram à caseira e durante uma semana comeram
feijoadas, açordas e tortilhas.
Até que a Paulina disse, vou falar com a irmã Maria das
Chagas, talvez alguma daquelas órfãs que elas criam no
convento tenha jeitinho e consiga aprender.
Plácida das Dores é uma cozinheira exímia, tudo o que
sai das suas mãos é delicioso e primorosamente
apresentado. Ninguém lhe ouve uma palavra. Quem entra
de surpresa na cozinha não vê nunca um prato por lavar,
um copo sujo no lava-loiças. Mesmo no auge do serviço.
Com convidados. Com refeições complicadas. Com
sobremesas várias. Com aperitivos e bebidas.
Nunca ninguém a viu sem farda. Sem o carrapito
enrolado com água. Se uma das senhoras se levanta de
noite por sede ou por insónia, ela aparece às três da manhã,
fardada, penteada, com o avental duro de goma, minha
senhora, a senhora deseja que lhe faça um chazinho.
Esta mulher parece uma alma do outro mundo, diz Lídia.
Não digas isso. É a criada mais irrepreensível, mais
dedicada que algum dia existiu.
Um dia Paulina veio do cabeleireiro com o cabelo
apanhado num chígnon. Por delicadeza Plácida penteou-se
com uma trança solta nas costas. Só então perceberam que
tinha dezoito anos.
Os anos passaram e nunca Plácida das Dores deu razão
de queixa a ninguém. É verdade que não sorria, não falava,
não cantarolava como as empregadas costumam fazer.
Nunca falou em aumento, nunca pediu uma folga, nunca
reclamou de nada. Mesmo quando a Celeste começou a
embirrar com ela, por achar que a patroa Paulina a preferia,
e tentou intrigas que caíram pela base. Plácida limitava-se a
dizer, a senhora dona Paulina é que sabe. É tudo como a
senhora entender.
Foi-se fazendo cada vez mais feia e mais magra, o
cabelo preto ficou grisalho, as mãos, com as unhas sempre
tratadas e cortadas rentes, foram ficando encordoadas de
veias. Mas o rosto permanecia sereno, quase sem rugas,
como se o nome que lhe puseram, Plácida das Dores, a
retratasse sem ser precisa mais nenhuma explicação.
Paulina adorava-a. Achava maravilhoso ter uma escrava
que a servia praticamente de joelhos e não pedia nada em
troca. Sabia que aquela mulher a serviria até ao fim dos
seus dias com uma fidelidade e uma devoção nunca vistas.
Não se enganava.
Quando Lídia adoeceu, com uma doença óssea que a
prendeu à cama, foi Plácida quem cuidou dela dia e noite,
sem um queixume, sem um protesto, sem descurar, sequer,
o seu serviço.
Quando a doença obrigou Lídia a internar-se na clínica
da cidade, a vinte quilómetros da quinta, era Plácida quem
lá ficava de noite. Fausto levava-a quando ela acabava o
seu dia de trabalho, e ia buscá-la de manhã cedo, a tempo
de tratar do pequeno-almoço dos senhores. Vestia o
casacão sobre a farda e cuidava de todas as necessidades
da doente. Se alguma vez encostou a cabeça no divã posto
no quarto para esse fim, ninguém viu ou disso encontrou
sinal.
Pareces uma alma do outro mundo, dizia-lhe Lídia
quando abria os olhos e a via de pé junto à cama, atenta,
solícita, prestável.
Serviu-a sem esmorecer até ao seu último suspiro.
Temos a certeza de que a minha cunhada havia de
querer contemplar-te no testamento. Mas com a doença e
tudo o mais, sabes como é... Por isso o senhor doutor
Norberto vai dar-te uma quantia...
A senhora desculpe mas não quero. Não fiz nada mais
do que a minha obrigação. E, mesmo, para que havia eu de
querer o dinheiro? Nunca gastei um tostão do meu
ordenado. Os senhores dão-me tudo.
Foi o maior discurso que fez em toda a sua vida.

Depois foi a vez de Norberto Alcântara, que já padecia


da doença óssea da irmã, pelos vistos hereditária, sofrer um
acidente vascular cerebral.
Internaram-no na clínica onde a irmã morrera e da qual,
antes de reformar-se, tinha sido director. Voltou para casa
com um lado do corpo paralisado, a fala presa, o rosto
deformado.
Valeu-se Paulina da sua inquebrantável Plácida a quem
nem baba, nem fezes, nem urina, nem vómito repugnavam.
Ajudou a patroa a tratá-lo, a virá-lo, a lavá-lo, a alimentá-lo,
quem sabe a amá-lo, mas isso nem expressão nem sorriso
nem voz denunciaram.
E Norberto morreu, já de idade avançada, e de idade
avançada ficou Paulina só, na sua linda casa de que passou
a tornar-se avara.
É tudo o que me resta, dizia ela a Plácida, esta casa
cheia de recordações do meu querido marido com quem fui
tão feliz, da minha querida cunhada que tão boa companhia
me fez. Só confio em ti, Plácida, por isso vou entregar-te as
chaves, todas as chaves, da adega, da despensa, dos
armários das pratas, das gavetas das jóias. Eu estou a ficar
bacoca e tenho medo de me esquecer onde as guardo.
Se eu morrer levas o que te apetecer, sou eu que te
ofereço, não tens que te acanhar.
Não quero nada, minha senhora. Só o privilégio de servi-
la e de acompanhá-la até ao último dia da minha vida.
Era sincera. Nunca mostrara o mais remoto interesse
por bens materiais.
É uma alma penada, costumava dizer Lídia. Só as almas
têm tanto desapego pelas coisas da terra.
E Paulina foi ficando cada vez mais velha.
Agora já não sai do quarto e é Plácida quem lhe faz
companhia. Dia e noite. Sempre atenta a qualquer desejo
ou necessidade da senhora.
Com o serviço da cozinha reduzido às refeições dos
colegas e aos caldinhos e grelhados de Paulina, Plácida tem
muito mais tempo livre e passa-o no quarto de Paulina. Lê-
lhe. Joga com ela às cartas. Vigia-lhe o sono. Dá-lhe banho.
E até, coisa espantosa, lhe canta para adormecer, músicas
de igreja, como se cantasse à Virgem. É um canto gutural,
tímido, afinado, que às vezes, quando ninguém ouve,
termina num soluço.
Nos últimos tempos Paulina passou a exigir que Plácida
comesse com ela. Fez birra. Disse que não comia mais se
não lhe fizesse companhia. A princípio a criada comia de pé
com o prato na mão. Não conseguia sentar-se numa posição
de igualdade com a patroa. Depois punha-se de joelhos,
com o queixo à altura do prato, na pequena mesa dos
aposentos de Paulina. Por fim, uma noite — Plácida isto é
uma ordem —, ousou timidamente sentar-se a mastigar
uma garfada de arroz, a engolir uma colher de sopa.
Foi nesse dia que elas chegaram. Como abutres atraídos
pelo cheiro do sangue.
São as sobrinhas da Austrália. Três. Com os maridos e os
filhos crescidos. Oito.
A chefe de grupo é a do meio e chama-se Cíntia.
Espalham-se pela casa toda, a sopesar as pratas, a
avaliar os quadros. Dão ordens aos berros, põem os pés na
seda dos sofás, dão beijos à tia Paulina, relegam Plácida
para a cozinha.
Chamam-lhe abusadora, mandam-na cozinhar para toda
a família. Os adolescentes vão ao frigorífico, sujam,
entornam, reclamam.
Paulina tem uma trombose. Cíntía acusa Plácida. Tira-
lhe as chaves.
Chamam a ambulância. Levam a Paulina para a clínica.
Plácida aparece de casacão para acompanhá-la. Cíntia diz
que não é preciso. Que ela faz falta em casa para cozinhar
para a família.
Os caseiros despedem-se, fartos das ordens dos
senhores australianos.
Celeste e Fausto despedem-se. Plácida fica.
Limpa. Arruma. Faz catorze camas. Lava roupa. Passa a
ferro. Trata dos cães. E cozinha. Cozinha. Cozinha.
Quando é que eu posso ir ver a minha senhora, não
pode, mas eu, ela não recebe visitas, mas eu, cale-se
mulher e veja se faz o serviço. Estamos habituados a ter
bons empregados e não saloias de carrapito como você.
E passam-se dias e dias e dias. E passam-se meses e
meses e meses.
Quando é que eu posso ir ver a minha senhora.
Nunca, sua estúpida. A tia Paulina não conhece
ninguém. Vamos lá nós, por caridade, mas nem vale a pena.
Mas eu.
Pois, você é uma especialidade. A tia Paulina deve estar
mesmo preocupada com a bruxa da sopeira.
E um dia Cíntia chega e diz, a tia Paulina morreu.
Enterramo-la amanhã.
De madrugada já Plácida está à porta, com o casacâo
enfiado, um véu na cabeça, um terço nos dedos. O primeiro
adolescente a levantar-se pergunta-lhe onde é que vais,
espantalho.
Ao funeral da minha senhora.
Mãe, acorde. A bruxa quer ir ao enterro.
Nem pense. Alguém tem de tomar conta da casa. E nós
somos a família, não podemos faltar. À noite vamos chegar
cheios de fome. Queremos um bom jantar.
Fica à porta a vê-los partir.
Vai à mata, colher cogumelos. Conhece-os bem. Sabe
distinguir os bons dos venenosos. O senhor doutor adorava
o seu pato cerejado com cogumelos.
Começa cedo a preparar o jantar. Para que os patos
fiquem bem tenros. São catorze pessoas à mesa, há que
lidar.
Põe uma mesa bonita. Com a toalha branca bordada a
azul, a preferida da senhora dona Lídia.
O serviço inglês de ramagens azuis, de que a senhora
dona Paulina tanto gostava.
Os castiçais de prata com velas azuis.
Chegam aliviados, fartos da maçada do enterro, dos
pêsames, do cheiro enjoativo das flores.
Os copos de cristal mais altos, que os senhores
trouxeram de França.
Para a sopa, um velouté delicioso. Depois o pato com
cogumelos e batatinhas novas, espinafres à Ia creme, arroz
de passas e amêndoas.
De sobremesa uma encharcada de ovos, um gelado de
framboesa.
Da garrafeira, o melhor tinto.
Encontram o jantar pronto, rescendendo, uma Plácida
impecável, de farda preta e avental bordado.
Plácida, estão aqui as suas contas. E uma carta de
recomendação se quiser trabalhar. Suponho que está rica,
mas enfim. Como deve calcular não precisamos mais de si.
Já contratámos pessoal como deve ser. A partir de amanhã
pode ir. Mas hoje sirva o jantar.
Como a senhora quiser. A senhora é que sabe.
Quando o primeiro se levanta da mesa para ir vomitar,
Plácida diz, vou lá fora tratar dos cães.
Veste o casacão, pega na mala, tão leve como quando
chegou há trinta e quatro anos, sai pelas traseiras, solta os
cães e dirige-se à mata onde já está a gasolina e as
acendalhas. Espera um pouco. Vê começarem a acender-se
as luzes das diferentes casas de banho. Não parece que
estejam a sentir-se muito bem.
Espalha a gasolina à volta da casa. Pacientemente vai
lançando fogo a tudo que arde. Muito rapidamente a casa
está em chamas.
Lá dentro morre-se envenenado, queimado, asfixiado.
Uma mulher velha caminha pela estrada. De casacão
austero. De cabelo apanhado em carrapito. De cabeça
curvada.
Bate à porta de uma moradia com jardim. À porta das
traseiras.
Uma senhora nova vem abrir.
Ah, é a nova empregada?
Sim, minha senhora. Tenho referências.
Entre.
Enquanto desdobra a carta a dona da casa pergunta-lhe
como se chama.
Plácida, se o meu nome agradar à senhora. Plácida das
Dores, criada para todo o serviço.
OS LINHOS DA AVÓ

Primeiro os lisos, base do bragal, que não chegaram a


ser toalha ou dobra, colcha ou anágua, guardados à espera
de um dia e esse dia chegará e serão mortalha. Depois os
bordados, que entre os pratos da melhor loiça mostraram
anos a fio seus enfeites e prendas, pontos a cheio, de
sombra, de matiz, pontos de cruz como pinturas que
maravilham até pelo avesso. Toalhas de mãos com pontos
ricos de cordão, Riche-lieu, crivo trabalhado com arte,
servidas na hora sagrada de enxugar o neófito à pia do
baptismo. E os lençóis. Para noites de solidão, de desespero,
de amor ou de parto, com suas flores, bolinhas e ajours.
Mãos de fada lhes chamavam, tirar os fios, contá-los,
prendê-los, acertar do outro lado uma gradinha, ou
desencontrá-los para efeito de aranha, ou passar-lhes um fio
de cor para contrariar a brancura do linho.
Matilde arrumava os linhos da avó e pensava que só ali,
na Quinta das Canas, se sentia verdadeiramente em casa,
ligada a uma história de mulheres, bordados, receitas,
tachos de cobre e compotas de pêssego que em Lisboa
esquecia, atarefada entre o laboratório e as aulas. Ter um
marido arquitecto não ajudava muito: não se pareciam com
aquela as casas que ele desenhava. Acariciou um lençol e
pensou nos seus sete anos de casamento. Mornos. Talvez
por sua culpa, pelo seu feitio pouco sociável, a sua
preferência por leituras e cêdês de jazz que não propiciam o
diálogo. Filha única criada sem mãe pelos cantos da Quinta
das Canas, habituara-se ao silêncio e ao espaço de uma
casa onde o ranger de uma porta ou o fechar de uma
gaveta tomavam a sonoridade de actos rituais. A avó Marta,
tão serena e diáfana, com os seus lindos cabelos ondulados
presos por ricos travessões antigos, era a imagem da
harmonia. Transmitira-lhe para sempre o sentido da
liberdade, o direito de errar, o gosto pela leitura e a postura
anti-social de erguer os olhos para o horizonte um pouco
acima da cabeça dos outros. Foi por isso que quando o
Ricardo apareceu...
Telefone, menina Matilde. É o senhor arquitecto.
Estou. Sim, fico mais alguns dias, há bastante que fazer.
Não sei, até domingo... Vens passar o fim-de-semana? Está?
Ah, não sabes se podes. Pronto, faz como quiseres. Eu
aproveito as férias efico até acabar tudo aqui. Queres que te
ligue? Está? Ah, ligas tu. Pronto, até logo.
...que quando Ricardo apareceu, com modos tão
diferentes, e a sua gargalhada ruidosa que assustava os
pássaros, se enamoraram as duas, avó e neta, daquela
maravilhosa vitalidade.
De férias numa quinta vizinha, Ricardo começou a
comparecer aos pequenos-almoços servidos no terraço, que
ele dizia serem acontecimentos estéticos para além de
gastronómicos:
resistível de beleza o espectáculo dos mates, dos
laranjas, dos ocres, dos dourados, dos amarelos-creme, dos
vermelhos-gin-;a dos brancos e dos negros. Tudo em
porcelana Vista Alegre, de formas altas, fora de moda, sobre
a tela de fundo da toalha de linho. Era uma imagem de
estabilidade e segurança, grata, por contraste, ao
temperamento nómada de Ricardo. Talvez por isso o
casamento. Talvez por isso o seu relativo fracasso.
Lá pelo terceiro ano, compreenderam que não podiam
ter filhos. Não que os médicos lhes encontrassem qualquer
impedimento orgânico mas a verdade é que Matilde não
engravidava. Queria muito uma filha, quase tanto como
Ricardo queria um filho, mas restava-lhe contentar-se com
os filhos dos outros, de quem era professora, e mais tarde,
quando começou a trabalhar no laboratório, não lhe sobrou
tempo para se auto-compadecer.
Germana, ajuda-me por favor: vou levar estes lençóis
antigos para a arca grande e aqui no armário ficam só os
que estão a uso. E arranja-me qualquer coisa simples para o
jantar: o senhor arquitecto também não vem hoje.
Foi no jantar do quarto aniversário de casamento, um
jantar à luz das velas que comemorava mais a forma do que
o conteúdo, que surgiu pela primeira vez entre eles o tema
da adopção. Mas para além da grande inércia que os
tomava perante a desmotivadora burocracia, não
conseguiram pôr-se de acordo sobre o sexo da criança a
adoptar. E chegaram a uma conclusão utópica: adoptar dois
irmãos, um casal, de preferência gémeos. Foi Ricardo o mais
entusiasta. Qualquer coisa dentro de Matilde bloqueava a
alegria da decisão. E à medida que os anos passavam a
urgência de ser mãe a qualquer preço ia-se diluindo entre a
dúvida e o comodismo.
E contudo ali, na Quinta das Canas, naquela casa
silenciosa e fresca onde tinha crescido, sentia uma
necessidade de continuação como se a recente morte da
Avó lhe desse a certeza de que não havia lugares vagos,
mas apenas elos consecutivos na cadeia das gerações. Mas
estaria o seu casamento em condições de receber uma
criança? Este afastamento ocasional de Ricardo, que pelos
vistos tendia a prolongar-se, dava-lhe a ocasião e o lugar
para fazer a análise sempre adiada.
Naquela relação não acontecia nada. Até a rotina
parecia deteriorar-se, porque Ricardo trabalhava cada vez
até mais tarde e começava mesmo a ausentar-se uma vez
por outra aos fins-de-semana. Outra mulher? Matilde
verificou com tristeza que isso não a preocupava. Nem
queria confessar a si própria que de certo modo a aliviava,
justificava a sua tendência para a introversão e o
isolamento. A verdade é que daquele casamento, depois
dos primeiros meses de descoberta mútua em que o bom
humor de Ricardo se esgotara em si próprio, pouco mais
ficou que uma relação convencional e monótona. Com uma
única excepção, a intimidade do casal nunca fora exemplar,
não se podia dizer que a cama os salvaria. Porque a atitude
de Matilde era romântica: esperava um acontecimento
fantástico, sideral, que ocorreria apesar da sua passividade,
de fora para dentro, em que ela seria mais espectadora do
que interveniente. Mas Ricardo era apenas um homem e o
amor não cai sobre uma cama fria como um milagre
revelador. Não. Mas um dia caiu.
Telefone, menina.
Sim? Afinal sempre vens? Óptimo. Então avisa-nos das
horas, para a Germana saber se conta contigo para o
almoço. Até sábado.
Ó Germana, a Avó ainda tinha outro armário com linhos,
não tinha? Ah já sei, lá em cima no quarto grande. Fica para
amanhã. Hoje vou tomar um banho bem quente, comer a
tua sopa de legumes e sentar-me à lareira com um livro até
me dar o sono.
Não há como o crepitar de uma lareira para acordar
lembranças e reviver sensações. Enroscada na velha
poltrona da Avó, Matilde permitiu-se finalmente pensar
naquela única noite da sua vida em que, como uma bem-
aventurada, tivera, ao fim de sete anos, a revelação do que
poderia ser o amor. Como foi? Porque é que aconteceu?
Lembro-me que jantámos cedo. Não sei porquê tinha
resolvido fazer aquela receita antiga de borrego estufado,
perfumado de ervas e avivado por uma suspeita de
malagueta. As batatinhas novas, alouradas na frigideira, ou
deveria dizer sertã, que é como se chama lá onde a receita
nasceu, faziam toda a diferença daquele molho sábio, e a
alface, cortada em juliana e temperada com orégãos,
completava a teoria de paladares. Entusiasmada pelos
aromas que flutuavam na casa e me embriagavam um
pouco, abri uma garrafa de um tinto velho, oriundo da
garrafeira da Avó, que mo recomendara para um dia
especial. Efiz um doce, com muitos ovos, conventual e
afrodisíaco, com o seu molho de caramelo e o seu antegosto
de canela. Um verdadeiro festim. Num dia normal. Que deus
pagão instigador dos sentidos me compeliu a esta pequena
orgia, não sei dizer. Mas foi ele, isso tinha a certeza, que
impediu que o telefone tocasse, que pôs um programa
insípido na televisão, que sintonizou a rádio na série, sem
palavras, dos concertos brandeburgueses, que fez cair um
inesperado temporal para que a ninguém ocorresse sair de
casa e que por fim nos levou à beira da revelação
inominável.
E tudo foi perfeito. Pela primeira vez Matilde sentiu-se
liberta, inventiva, exaltada e Ricardo encontrou com ela os
gestos exactos, as carícias intraduzíveis, os pontos mágicos,
e não couberam palavras naquela hora de êxtase, de vida,
amor e morte, e nunca a música barroca lhes pareceu tão
profana e divina e total.
Duas semanas mais tarde receberam a notícia
inesperada da morte da Avó, naquela mesma poltrona,
quando fazia a sesta. A Avó não estava doente. Estava
apenas cada vez mais lenta e translúcida, toda sorriso e
cabelos ondulados, com os seu., vestidos intemporais onde
avultavam franjas de xailes de seda.
A Avó morreu e Matilde correu para a Quinta das Canas
dizer-lhe até logo, Avó, e a tomar posse da casa, agora
inteiramente sua, inventariar um pouco, escolher alguns
objectos para a casa de Lisboa e fazer as arrumações que a
Avó sempre adiara. Sentia-se feliz naquelas tarefas
tranquilas. A casa cheirava bem. De manhã, o sol ainda
tímido daquele começo de Primavera iluminava a tijoleira e
fazia faiscar os cobres. Lá fora a lúcia-lima perfumava o ar e
atraía as abelhas cujo zumbido prometia mais sol e mais
mel.
Matilde cantarolava diante do armário do quarto grande
quando de súbito se sentiu doente. Angustiada. Com a
certeza de que Ricardo não viria no sábado. E o telefone
tocou e era o Ricardo a dizer que não vinha no sábado, mas
que tinha escrito uma carta a explicar. Escrito? Como assim?
Em sete anos de casamento e algumas separações
ocasionais usara sempre o telefone. Nem um postal
ilustrado, quanto mais uma carta. A explicar. Matilde viu
tudo a andar à roda. Correu para a casa de banho e
vomitou. Depois sentiu-se bem e verificou com ternura que
os linhos da Avó não tinham fim.
A carta chegou no dia seguinte. E como se sempre
tivesse sabido o que ela continha, Matilde leu que Ricardo já
pensava na separação há longo tempo e só não falara para
não desgostar a Avó Marta, que adorava. Havia de facto
outra mulher. E o casamento deles, tão degradado (como os
prédios que ele reconstrói, pensou Matilde) e ainda por cima
sem filhos, etc, etc, etc...
Então e aquela noite? Foi um acaso? Foi uma
despedida? Foi?...
E de repente Matilde teve a certeza. Compreendeu
plenamente. Relacionou tudo. Soube.
Estava grávida. Primeiro ficou quieta, sentada na beira
da cama da Avó, onde se refugiara para ler a carta. Depois
foi acometida de uma tremura, de um riso imparável de
onde brotavam lágrimas, de uma alegria plena. Nunca mais
voltaria à casa de Lisboa. Ia ter uma filha. Podia vê-la
naquele mesmo quarto, daí a vinte ou trinta anos. Teria os
cabelos leves e ondulados da Avó Marta, os seus gestos
tranquilos, a sua pele transparente. Seria alta e usaria
aquele mesmo avental antigo, de florinhas azuis. E quando
ela, Matilde, tivesse morrido, a filha da sua filha Marta viria
arrumar os linhos, os lisos primeiro, os bordados por cima e,
entre eles, aromas de alfazema e de maçã.
UM SEGREDO

Eu sou a guardiã dos segredos. Ao meu tampo de


madeira velha encosta-se uma mulher bonita a escrever
cartas de amor. Só eu a oiço suspirar ou rir docemente, só
eu sinto, contra o meu rebordo, as batidas do seu coração.
Nas minhas pequenas gavetas, adornadas de um relevo
que mãos hábeis bordaram com a goiva, escondem-se
palavras secretas, papéis antigos, documentos
indispensáveis que contam a história de uma família.
Ninguém viola os meus segredos. Com uma chavinha de
prata, de que pende um bonito cordão vermelho com franja
de seda na ponta, fecham os meus esconderijos. Quem o
faz é a mulher bonita que escreve cartas e guarda outras
nos meus escaninhos, como antes fez a mãe dela e, antes
da mãe, a avó.
Chamam-me papeleira porque guardo papéis. Mas o
meu verdadeiro nome é secretária porque guardo segredos.
Nem tudo o que escondo são papéis. Na gaveta de
baixo do meu bojudo ventre, há livros de poemas com flores
secas entaladas nas páginas e álbuns de fotografias. Nas
gavetas pequenas há objectos esquecidos, colares de
pérolas rebentados, dados de madrepérola com que alguém
jogou num dia especial, uma tesourinha de prata, um sinete
de brasão, lacre, cha- | ves talvez de outros segredos que
ninguém lembra mais.
Há também, num dos meus escaninhos, um anjo de
marfim com a asa partida, e o pedaço decepado das penas
está embrulhado em papel de seda lilás.
Este anjo costuma conversar comigo no silêncio da
noite. A ele, porque é um anjo, posso contar os segredos, os
que guardo por vocação e destino e que ninguém conhece
além da mulher bonita, e os meus próprios que ninguém
quer conhecer, nem mesmo a mulher bonita.
Porque eu, a guardiã dos segredos dos outros, também
tenho um segredo só meu.
Esse segredo é a saudade do tempo em que era um
carvalho no meio da floresta e sonhava viver eternamente a
namorar o vento e a abrigar aves nos meus ramos.
É por isso que quando se apagam todas as luzes e
através das cortinas posso sentir o temporal, a brisa ou o
luar, a madeira do meu corpo geme suavemente, estala um
pouco, suspira devagar e eu sonho que sou ainda o carvalho
e estou a abraçar a tempestade, a acariciar os cabelos da
brisa, a beijar os dedos do luar, a embalar o sono dos
pássaros.
De dia, a mulher bonita senta-se ao pé de mim e
perfuma o meu tampo encerado com o aroma dos seus
cotovelos que e lembra a alfazema no chão da floresta.
Escreve: Meu Amor...
O resto não posso contar, porque é um segredo.
A FÓRMULA

Imagine-se uma Lisboa desaparecida, logo a seguir à


guerra de 39-45 do século vinte, com muitos carros
eléctricos, poucos automóveis e valores que pareciam
eternos. Quando a mercearia e a farmácia eram pilares do
bairro, e as moradias com jardim ainda não tinham dado
lugar aos prédios que foram, aos poucos, descaracterizando
a cidade. Quando se ia às compras com alguns tostões, a
coca-cola era proibida e, para o bem e para o mal, não
havia televisão. Quando a vida da burguesia era serena, as
criadas eram internas e os serões eram pacatos. Quando se
namorava com chapperon e o casamento era para sempre,
porque não havia divórcio. Quando as senhoras recebiam
dos seus pretendentes flores e bilhetinhos escritos em letra
francesa. Quando as cantigas de amor eram interpretadas
por cantores líricos em 78 rotações.
Antonieta saiu o portão do jardinzinho, parou no
passeio, olhou para os dois lados da rua e atravessou
cautelosamente. Com o xaile escuro sobre a farda, parecia
mais uma auxiliar de hospital saindo do turno da noite, que
a criada antiga de uma casa antiga. Apertava o xaile ao
peito com as duas mãos: não levava sequer porta-moedas,
porque a conta na farmácia era um ponto de honra das duas
irmãs que servia.
Bom-dia, menina Antonieta. São os papelinhos do
costume?
Passou bem, senhor Américo? Querem seis papelinhos
ei uns positórios para a tosse, que a dona Cândida não anda
bem. Pegou-se-lhe um catarro dos filhos da Vina que lá
foram buscar a caixinha para uma impige na perna do pai.
Graças a Deus vai havendo cada vez mais males da
pele, não é menina Antonieta?
Diz que é da bomba atómica. Traz comichões e coceiras
e pica-picas, irsipelas, outras mais feias chamam-lhe
puríazes.
Também cá temos pomadas boas — disse o senhor
Américo só para a ouvir.
Não me faça rir, senhor Américo! A pomada das minr
senhoras não é pomada, é milagre. Aquilo é coisa
abençoada e tão antiga que elas já nem sabem se a tal tia
freira que a inventou era tia do avô, se do bisavô, se de
quem. Coisas de outros tempos... mas avie-me que tenho
de fazer o almoço.
O senhor Américo pesou e embalou metodicamente os
seis papelinhos de óxido de zinco e, como sempre que um
esforço mental o abalava, a boca saltou-lhe várias vezes
para a direita, um tique que lhe dava um ar contrariado.
Trabalhava há trinta anos na farmácia Candeias, direcção
técnica da doutora Carlota Candeias, que nunca tinha visto,
nem ninguém sabia quem era. O farmacêutico era ele,
Américo Edmundo Queimado. Era ele o director, o técnico, o
proprietário, embora a farmácia, diga-se em abono da
verdade, não lhe pertencesse. Mas nem já o verdadeiro
dono tinha muito a certeza disso.
O senhor Américo sorriu quando entregou o pacotinho
com os pós e os supositórios, assentou na conta das
manas olivais e perguntou entre dois tiques com um ar
supostamente distraído.
A menina Antonieta sabe ler?
Sei assinar o nome com a dona Cândida a segurar a
minha mão.
Eulália afadigava-se na cave e ia falando alto, um pouco
para a irmã, um pouco para si própria.
Veio o rapaz trazer a renda. Agora mandam o rapaz.
Começou com uma conversa de humidade na parede da
casa de banho, mas levou uma resposta: Não gostam da
casa? É saírem, que a casa é da minha irmã e ela pode
querer casar. Ou é proibido uma pessoa casar-se? Já não
digo eu, que enfim, estou velha. Mas a mana, bonita como
é, pode arranjar pretendente. O nosso santo pai foi nisso
que pensou quando comprou a casa do lado. Uma para cada
uma. Cada macaco no seu galho. Casamento apartamento.
Está a ouvir mana Cândida? Imagine
mandarem o rapaz!
Cândida enchia caixinhas redondas, de baquelite
(graças ao progresso tinham posto de lado as caixas de
cartão por onde a gordura alastrava), com uma pasta
espessa, pegajosa, acinzentada, a Pomada da Madre Eulália,
vulgo, mezinha das manas.
Fingia não ouvir todo aquele relambório acerca do
casamento. Pobre dela, o único pretendente fora um velho,
amigo do pai, morto de congestão há mais de vinte anos.
Mas para a irmã mais velha ela era a eterna menina, a
Candidinha, perpetuando uma infância que para a Eulália
era a única forma de vida conhecida, agora sem o pai e com
a Antonieta tomando o lugar da velha Adozinda, mas
sempre a casa, o jardinzinho, a irmã, o laboratório na cave,
a pomada.
A pomada era a razão das suas vidas e, juntamente com
a renda da casa ao lado, a sua única fonte de rendimento.
Vendiam-na barata, baratíssima, mas em enormes
quantidades, tanto quanto um produto artesanal se pode
vender em grandes quantidades. Para as manas, contudo,
era o suficiente para manterem uma vida decente, sem
luxos mas confortável, e sobretudo sem nenhuma incerteza,
porque a pomada vender-se-ia sempre e cada vez mais. A
fórmula era um segredo de família, escrupulosamente
guardado e era, de facto, milagrosa.
Maria Cândida cedeu à insistência cuidadosa da irmã e
meteu-se na cama a tratar do catarro. Antonieta vinha
animá-la.
É um perigo dona Cândida. Andam aí purmonias, que
esta gripe moderna é assim: dá tosse; pouca febre; dores
nas pernas e nas cruzes e um pesadelo na cabeça que se
ouvem coisas a passar nos miolos. Disseram-me na
farmácia. A dona Aldina foi tirar uma chapa e melhorou mas
quem sofre de sonosite fica sempre mais atacada.
Eu não sofro disso, Antonieta. Estou só constipada, não
é nada de grave.
Então trate de comer que sem forças não se cura. Ai,
agora é a porta. Mas aquela rapariga não se mexe? Nazaré,
olha a porta!
Nazaré, criadinha-para-todo-o-serviço-ajudante-de-
Antonieta estava precisamente a abrir a porta ao senhor
Américo Edmundo Queimado, que se fez anunciar com um
cartão-de-visita.
Diga às senhoras que está aqui o senhor Américo da
farmácia. Venho inteirar-me da saúde da exma. senhora
dona Cândida.
Faz favor de entrar. Espere um bocadinho aqui na sala
que eu vou avisar a dona Eulália. Ela está na cave...
Não, não incomode as senhoras. Diga só que eu me
queria inteirar e... oferecer os meus préstimos.
Nazaré foi. Américo mirou apreciativamente aquela sala
novecenústa, um tanto decadente, o xaile de franjas sobre a
camilha, as molduras com jacintos gravados a fogo, os
rectângulos de tapeçaria nos encostos dos sofás, as caixas
de rapé nacaradas na pedra do tremo. E na parede de
honra, os papás Olivais em duas fotografias separadas,
amarelas, solenes, um pouco inclinadas para diante, como
se cumprimentassem as visitas.
A mãe Olivais, morta tísica aos vinte e poucos anos,
tinha a expressão que as mortas prematuras costumam ter
nas fotografias. Um ar etéreo, parado no tempo, quase
sorrindo, com a gola alta de rendinhas escondendo a
fragilidade do pescoço e os caracóis puxados para o alto, de
um louro baço, fazendo-lhe uma auréola esfiapada, que
duas travessas complicadas não podiam conter. O papá
mostrava-se, ao contrário, um homem na força da vida, a
face luzidia, o bigode engraxado, a lapela debruada, o lábio
denunciando o gosto de prazeres rotundos, o olhar
vencedor. Um pouco inquietante, o papá.
Mas já a mana Eulália apresentava ao visitante os seus
enérgicos setenta anos, pesada mas ligeira, e encantada
com a quebra da monotonia que o senhor Américo, de pé na
sua sala, provocava.
Mas sente-se senhor Américo. É uma honra que nos dá!
Vai tomar um chazinho.
E, ignorando os protestos do visitante, partiu a dar
ordens agitadas mas precisas. Voltou logo, abriu um
pequeno armário de portinhas de vidro onde cristais luziam,
e tirou dois cálices e uma garrafa alta, de rolha facetada.
Uma gota de porto, disse. Uma gota, enquanto não vem
o chá.
O Américo Edmundo não esperava aquele acolhimento.
Mas homem de muitas experiências vividas na imaginação,
aceitou o porto, mirou-lhe a cor à altura dos olhos, elogiou-o
e bebeu aos golinhos, em silêncio, como se nesta
solenidade qualquer conversa fosse uma ofensa. Pousou por
fim o cálice na mesa de embutidos que lhe estava à
esquerda, passou nos lábios um lenço imaculado e só então
falou.
Espero que o incómodo da senhora dona Cândida seja
passageiro.
A Candidinha tem tosse. De resto, uma pontinha de
febre, mas ela é uma rapariga bem constituída, graças a
Deus. Fui eu que saí mais à nossa querida mãe. Os
achaques vieram todos para mim. Esta afirmação,
contrastante com o aspecto robusto de Eulália,
desconcertou um pouco o Américo, que pigarreou antes de
dizer em tom de confidência:
Do aspecto ninguém se queixa, dona Eulália. Eu vejo-os
lá na farmácia, parece que vendem saúde e às vezes...
Pois é. Mas nunca posso ir à cama, como sabe. Tenho
grandes responsabilídades para com os meus doentinhos,
que fazem bicha na porta da cozinha. Mas o senhor sabe
como é.
Ambos sabiam o exagero que havia nisto, mas sendo
praticamente concorrentes, não ficava bem ao senhor
Américo outra coisa que não fosse acenar com a cabeça,
grave e afirmativamente. Achou oportuno entrar no
assunto. Precisamente ocorreu-me... O quê, senhor
Américo?
Bom, ocorreu-me... Não é a senhora dona Maria Cândida
que se ocupa da venda? Enquanto ela guardar o leito...
Guardar o quê?
O leito... estiver de cama, eu podia dar uma ajuda,
vender a pomada lá na farmácia.
Nem pensar nisso, senhor Américo! É porque o senhor
não sabe o trabalhão que nos dá esta gente. Vêm em
grupos, famílias inteiras com as crianças... Vêm da
província, trazem farnel, presuntos, galinhas, guarda-
chuvas, mantas... Nós estamos habituadas, senhor Américo,
e mesmo com a Candidinha doente, a Antonieta e a Nazaré
dão conta de tudo. Mas é muito amável, senhor Américo,
muito amável em ter pensado nisso. Ao seu dispor, dona
Eulália.
E depois sabe... a Candidinha é uma santa. Mesmo
doente manda-lhes uma palavrinha... Eles acham que o
poder da pomada tem a ver com a bondade dela, com
aquela carinha de anjo que Deus lhe deu... A pomada passa
nas mãos dela. É ela que a põe nas caixas, tudo isso... É
claro que nós sabemos que muito antes da Candidinha
nascer a pomada já era milagrosa, curava tudo: dizem que a
madre Eulália que a inventou morreu em cheiro de
santidade... Mas são ditos antigos, não é senhor Américo,
ditos antigos... pois é.
Caiu um silêncio. Edmundo torceu por três vezes a boca
para a direita... Tinha a sensação incómoda de que estava a
ser levado por aquela mulher, só não percebia para onde...
Entrara ali convencido de que vinha dar o primeiro passo na
execução de um plano bem urdido. Mas por qualquer
estranha razão sentia-se manipulado por aquela velha
prazenteira, faladora, que com solicitude maternal lhe
oferecia chá e pequenos que-ques ainda mornos, com
passas que o senhor Américo pousava com a ponta dos
dedos na borda do pires. Achava-as quentes para o
intestino.
Um mês depois desta visita, Maria Cândida, sentada no
quarto, preparava o começo do seu dia. Quer isto dizer que
ultimamente os seus dias eram diferentes do que tinham
sido durante sessenta e dois anos, que Maria Cândida tinha
necessidade de se sentar de manhã cedo a pensar nisso,
quando as outras mulheres da casa dormiam ainda.
Maria Cândida tinha um pretendente, e até que ponto
esta circunstância podia subverter todas as coisas, era a
razão da sua meditação matinal. Tudo acontecera
inesperadamente, quando no terceiro dia da sua inocente
gripe recebera um imenso ramo de rosas, em absoluta
desproporção com o seu pequeno catarro. Porém, o choque
fora enorme. O cartão, com o lindo nome Américo Edmundo
Queimado em letra francesa, rezava assim
Não ver o seu rosto de anjo é para todos uma tristeza.
Melhore depressa, Senhora Dona Cândida e aceite as
flores que lhe envia um seu criado.
Eulália aparecera logo, com um risinho entendido e fora
muito clara:
Eu não lhe disse, mana, que ia arranjar um
pretendente? Ora aí tem. Aproveite que isto de maridos
anda péssimo.
Que disparate, mana! Eu tenho lá idade para isso! Estão
todos doidos ou é uma partida de mau gosto?
Qual história, menina! O homem quer a pomada, é o
que é. E isto sem ofensa, porque a mana, bonita e virtuosa
como é, tem muito mérito para o fazer apaixonar. E é isso
mesmo que vai fazer. Porque eu estou velha, qualquer dia
passo-me e quero deixá-la entregue, como o papá que Deus
tenha ma entregou a mim. Estou informada: o Américo é um
bom partido, tem de seu. Nunca foi casado e há-de querer
quem lhe chegue a tisana quando o tempo vier. A farmácia
dá. E com a pomada em boas mãos podem ser milionários.
Hão-de ter filhos e para eles irá o segredo. Sempre assim foi
e assim há-de ser.
Filhos? A mana enlouqueceu? Sabe a idade que eu
tenho? Filhos? Era só o que me faltava. A mana pensa que
isto é a Bíblia? Filhos aos sessenta e dois anos!?
Sessenta e dois? Pois é. Enfim. Isso logo se vê. Faça por
si, mana. Faça por si, que se eu visse que não era por bem
não a aconselhava.
E Maria Cândida tinha ficado o dia inteiro de olho nas
rosas, como quem se abeira do mistério.
No espírito do senhor Américo outras convulsões tinham
passado. Refeito daquela sensação de desconforto sentido
sob o olhar maternal da mana Eulália, pusera-se a medir de
novo os prós e os contras do seu plano.
A sua primeira ideia foi seduzir a criada Antonieta, levá-
la a copiar a fórmula, ir para a América, fazer um fortunão.
Mas dominou-se. Em primeiro lugar, nada indicava que a
bronca da Antonieta cedesse aos seus encantos. Em
segundo lugar, tais métodos não eram dignos da sua
conceituada posição de homem e de farmacêutico. Pensou
na Maria Cândida, aquela mulher apagada, que parecia a
fotografia, em negativo, de uma mulher bonita, suave,
envelhecendo com brandura, falando baixo e sorrindo
muito, agradava-lhe, achava-se capaz de amá-la. Era um
homem honesto e buscava justificação para os seus actos.
Não havia pressa. Fariam um noivado longo, um casamento
discreto. Porque sem casamento não haveria fórmula, isso
era tão certo como o sol nascer todos os dias.
Custava-lhe casar. Sessenta anos de celibato marcam
profundamente os hábitos de um homem. Mas com a sorte
grande ali à mão, como poderia hesitar? E foi assim que
comprou as rosas. E as zínias. E os lírios. E até, em data
especial, uma orquídea.
Maria Cândida cedia. Eulália aprovava. E a casa, sempre
cheia de flores, rejuvenescia.
Começou o noivado. Américo atravessava a rua à
tardinha, ao fechar da farmácia, para encontrar um chá
tardio, mas servido a primor (deixara até de jantar) e uma
Cândida tardia, mas a primor vestida e perfumada. Falavam
pouco. Nenhum deles tinha um passado de onde extrair
historietas, peripécias, dessas que costumam animar os
namoros e ajudar os noivos a saber um pouco mais um do
outro. Falava-se da chuva, dos doentinhos, dos tempos do
papá (era Eulália que inevitavelmente trazia o assunto), da
excelência das torradas ou dos sco-nes da Antonieta.
Passados alguns meses, Américo permitia-se já ler o
jornal da tarde, às vezes em voz alta para poder comentar,
dar opiniões, nunca refutadas, sobre política, economia, fait-
divers. Era já o homem da casa, com direito a atenções
especiais, a lugar certo, a argola no guardanapo. Tudo muito
bem, só que pomada, zero. Continuava na santa ignorância
de sempre, aviando mecanicamente à Antonieta as porções
de óxido de zinco em seis papelinhos. Mas viria com o
tempo. Viria. Américo Edmundo sabia esperar com
paciência. Com o ar mais natural dizia frases casuais como:
Candidinha, minha flor, deve estar a acabar o óxido, ou têm
vendido muito pouca pomada? Candidinha respondia: Não,
pelo contrário, tem-se vendido imenso mas a mana Eulália é
que é das químicas. E riam as duas muito alegres por serem
donas daquele segredo que excluía o macho. Isto vai mal,
pensava Américo, só lá vou com o casamento e
evidentemente tenho que pensar nisso. Mas custava-lhe.
Como o tempo melhorasse, começou a convidar as
manas para passeios aos domingos na esperança de que
Eulália se cansasse e pudesse sair só com a Maria Cândida.
O que, de facto, aconteceu. E então, uma tarde, na Estufa
Fria, encetou a conversa que há meses trazia atravessada,
que o fazia ter insónias e lhe agravava o tique nervoso. Foi
com a boca saltando inoportunamente para a direita que
começou:
Candidinha, minha flor, temos que apressar o nosso
casamento. Eu sou um homem prático e acho que quem
casa na nossa idade tem obrigação de contemplar o lado
material.
Silêncio.
Não acha, Candidinha?
Contemplar? Não percebi o que é contemplar o lado
material.
Quer dizer: pensar, providenciar, bom, olhar ao lado
material.
Não temos dificuldades. O Américo também não, pois
não?
Claro que não, não foi isso que eu quis dizer.
Então não percebi.
A Candidinha já pensou que podíamos ser milionários?
E para que havíamos de querer ser milionários?
A boca do senhor Américo estava praticamente colada
à direita.
Ó Candidinha, não desconverse.
Ela olhou-o com uma expressão interrogativa, levantou-
se e foi admirar uma planta rara oriunda da Austrália.
Nesse dia o assunto ficou encerrado; mas no domingo
seguinte o Américo voltou de novo:
Vamos marcar a data, Candidinha? Estamos em Março...
tem preferência pelo mês de Maio?
Gosto do Outono.
Bom, mas Maio, para o casamento, é uma bonita época.
Podemos fazer uma curta viagem... É, acho bem. Maio,
então. Pode ser. Não parece entusiasmada, Candidinha.
É que... adoro ser sua noiva. Não sei se vou gostar de
ser sua mulher.
Como? Mantém este noivado e tem dúvidas quanto ao
casamento?
Não, não é isso, é que... É. Acho que Maio está bem.
Bom, então em Maio. Quanto ao lado material... Não
olhe para mim dessa maneira, Candidinha, não disse
nenhuma in-decência...
Senhor Américo, por favor.
Agora é senhor Américo? Candidinha, minha flor, a
senhora é um encanto. Mas vamos ter que fazer uma
escritura de casamento, sabia?
Calculava.
E quanto ao lado material há pormenores a acertar.
Acho que sim.
Já pensou que, sendo eu farmacêutico, podíamos
transformar a pomada numa fonte de rendimento
valiosíssima?
Cândida riu alegremente. Parecia, de súbito, uma
rapariguinha, tão inocente e fresco era o seu riso.
Concorda, Candidinha?
Ora, Américo, deixe lá a pomada. Temos vivido bem,
assim como as coisas estão. A mana Eulália é feliz com o
seu laboratório, ela gosta de continuar a tradição da
família... E se um dia, um dia que eu espero que venha
muito longe, ela faltar, há-de caber-nos a nós...
Américo levantou-se um pouco bruscamente. De
repente aborreceu a Estufa Fria, as plantas australianas e as
pomadas em geral.
Discretamente, como estava previsto, o casamento
realizou-se no princípio de Junho. Cândida e Américo
partiram para o norte, de comboio, já que o senhor Américo
não possuía automóvel e Candidinha temia o avião.
Maria Cândida conhecia pela primeira vez a vida de
hotel, a vida de casada, a mudança, e tudo lhe causou uma
forte impressão.
Américo era um amante delicado, pouco exigente, algo
cerimonioso, e Candidinha amou-o mais do que alguma vez
julgara possível. Começava a sentir a estranha sensação de
deixar de ser a mana da Eulália para ser a esposa do senhor
Américo Edmundo Queimado.
Tinham até cartões (em letra francesa) com os dois
nomes e o seu novo apelido. Isso era importante e fê-la
pensar que o seu marido (o seu marido!) tinha direito a ser
tomado a sério no ponto sensível que Cândida sabia estar a
ser escamoteado entre eles. Na véspera do regresso a casa
— a casa de Eulália, entenda-se — a recém-casada alindou-
se, esteve particularmente terna durante o jantar e à
sobremesa disse assim:
Dizia o Américo, aqui há tempos, que aquela pomada
nos podia enriquecer? Américo sentiu o coração dar-lhe um
pulo no peito. A boca saltou-lhe três vezes para a direita,
puxando mesmo o tendão do pescoço. Chegara a hora da
recompensa. Resolveu saboreá-la.
Sim, falei nisso, mas como vocês não ligam a essas
coisas... E podíamos enriquecer, como?
Bom, registávamos a fórmula, fazíamos uma fabriqueta,
distribuíamos para as farmácias... Mais tarde íamos
aumentando o negócio, podíamos exportar... Isto, claro, se
ambas concordassem. E estando eu, como farmacêutico...
Tem o curso, Américo?
O curso? Qual curso?
De farmacêutico, claro.
Não. Não tenho o curso, Candidinha. Tenho a
experiência, Candidinha. A tarimba, sabe o que é? A
tarimba. A Carlota Candeias, sabe quem é? Não. Nem eu.
Era a do curso. Nunca pôs lá os pés, porque não sabia nada,
tenho a certeza. Sou prático de farmácia, sabe o que quer
dizer prático? Praticante, o que pratica, percebeu,
Candidinha?
Desculpe, querido, não o quis ofender...
Mas ofendeu. Quero enriquecê-la, fazê-la milionária,
uma rainha... e só me pergunta se tenho o curso!
Candidinha engoliu uma lágrima e jurou a si mesma
falar com a mana Eulália. Américo Edmundo falara alto;
estava nervoso, queria enriqucê-las. Só mostrava zelo,
cuidado com os negócios da esposa. Américo Edmundo
ralhara. E era seu marido. Por isso quando voltaram a casa
e a vida entrou no seu ritmo quotidiano, Maria Cândida
começou a procurar uma ocasião de falar com a irmã. Não
era fácil. Eulália desviava toda e qualquer conversa sobre o
assunto, embora de forma risonha, como se se tratasse de
coisa sem importância.
Foi só alguns meses mais tarde, numa manhã em que,
na cave, enchiam caixinhas, que Cândida tentou:
A mana não acha que o casamento tem corrido bem?
Pergunta-me a mim? Essa agora!
Quero dizer, em relação a si. Isto é...
Isto é?
Sim, somos uma família feliz, não somos? A mana
simpatiza com o Américo, acha que ele tem bom carácter?...
Acho sim senhor.
A mana não acha, que sendo ele farmacêutico, era
natural que nos ajudasse a fazer a pomada?
Não, não, Candidinha. A fórmula é da família. Da família.
Ele agora é da família.
Não, não. Família directa. Pais para filhos. Se tiverem
filhos a fórmula vai para eles.
Ó mana! Como é que a mana quer que eu tenha filhos?
Está a fazer pouco de mim?
Oiça lá, Candidinha. Falta-lhe alguma coisa? Está a
pensar enriquecer à custa do nosso pai, do nosso avô, de
todos que guardaram tão bem o segredo?
Enriquecer, não, mana, que eu não sou ambiciosa nem
gosto de luxos, nem quero nada para mim. Mas às vezes
acho que podia...
Ora, mana Cândida! A mana agora é uma senhora
casada. Se precisar de outras coisas, diga ao seu marido
que a sustente! E como pelos vistos não tencionam ter
filhos, a fórmula podia até passar para mãos estranhas... o
papá não havia de gostar.
Se Maria Cândida tivesse feito a mesma pergunta ao
seu marido acerca do êxito do casamento, ele não poderia,
sem mentir, dar-lhe uma resposta afirmativa. De facto,
Américo Edmundo Queimado não era feliz. Vivia
atormentado, chegando a desejar o tempo em que a
pomada da Madre Eulália não tinha entrado na sua vida. O
tempo desocupado em que saía de manhã do seu
confortável quarto com porta para a escada para se dirigir à
farmácia e aviar papelinhos de óxido de zinco a uma
Antonieta anónima, de mãos metidas no xaile. É certo que o
calor da casa das irmãs, a óptima comida, a sua doce
mulher, o bem-estar económico deveriam bastar-lhe. Eram
coisas com que nunca se atrevera a sonhar. Boas.
Delicadas. De acordo com o seu temperamento burguês.
Mas, como um espinho numa pele macia, a maldita fórmula
não o deixava gozar a vida. Um dia fez mesmo um gesto de
que se envergonhava. Saiu pela cozinha, apanhou uma das
caixinhas que ali se guardavam para venda, levou-a para a
farmácia para analisar. Pôs o ajudante ao balcão e disse que
não queria ser incomodado. Mas a sua ciência, a sua
prática, a tarimba de que tanto se orgulhava, foram
insuficientes para descobrir o segredo de uma simples
freira... Isolou os componentes, classificou-os. Mas faltava
qualquer coisa. Era a manipulação, algo no exci-piente. Não
entendia. Trabalhou o dia inteiro e decidiu que procuraria os
ingredientes necessários, tentaria fazer a pomada. No dia
seguinte pôs mãos à obra. E no outro. E no outro. Só
conseguiu uma matéria líquida, um soro viscoso, amarelo,
com outro cheiro, outro aspecto e nenhuma virtude.
Chegou a descer à cave quando todos dormiam, na
ânsia de procurar, de encontrar, de saber: os almofarizes,
lavados, alinhavam-se na mesa de mármore. As caixinhas
vazias esperavam a ração da manhã. Os ingredientes, nas
prateleiras, eram os que conhecia. E nas gavetas havia
cartas velhas, receitas antigas de compotas onde açúcar se
escrevia com dois esses.
Assim passaram alguns anos. Américo ganhava barriga.
Cândida perdia a sua, airosa como uma donzela. Eulália
começava a queixar-se de uma dor no peito. Trabalhava
muito, ultimamente. Enquanto Cândida se preocupava com
as refeições, os fatos do marido, o arranjo da casa, Eulália
fechava-se na cave e produzia quantidades imensas de
pomada. Quando Candidinha descia para ajudá-la,
verificava que tudo estava pronto, era só embalar, mas
nunca havia caixas que chegassem. Sendo a produção
superior à venda, foram-se acumulando milhares de
caixinhas e toda a cave não era mais que um imenso
armazém, até ao dia em que Eulália caiu à cama e não se
levantou mais.
Cândida não se preocupou com a fabricação. Havia
pomada para vários anos, mas Américo achou que era a
oportunidade de atacar. À tarde, vindo da farmácia, visitava
a cunhada no quarto. Encontrava-a sempre bem-disposta e
pensava é hoje mas faltava-lhe a coragem. Ele próprio não
entendia porque fazia da sua curiosidade um remorso.
Sendo ele um profissional e o homem da família, porque
havia de comportar-se como um malfeitor, como um ladrão,
se em relação à pomada se sentia com direitos legítimos?
Não eram, ele e a mulher, os herdeiros de tudo? Porque
hesitava em ter com a cunhada uma conversa aberta, clara,
uma conversa de irmãos? Porém, alguma coisa lhe travava
a língua, lhe envenenava o pensamento, a alma. Ras'parta a
pomada e mais quem a inventou. E aí lembrou-se da freira,
a madre Eulália, e ocorreu-lhe que ela teria pacto com o
diabo, pois só assim, passados tantos anos, poderia um
inocente sofrer tais ânsias, infernizado como um possesso,
capaz de roubar, quem sabe matar...
Meu Deus, que pensamento horrível! Mas de facto
Eulália já não servia para nada, era uma velha inútil, e
Américo sabia que Cândida nunca lhe daria a fórmula
enquanto a irmã fosse viva. Já falara com ela no assunto de
todas as formas possíveis. A mulher amava-o, mas nesse
ponto era intransigente: um dia, se a minha irmã faltar...
À medida que o tempo passava a ideia ia tomando
forma. O velho médico da família, que tratava Eulália, dizia
muitas vezes: são os anos, são os anos e mais de oitenta é
muito ano... Mas ia-lhe receitando vários medicamentos que
Américo se apressava a trazer da farmácia. Comprimidos,
de um modo geral, uma tisana, um supositório. Injecções,
nunca. Injecção era o que o Américo esperava. Estava
preparado, saberia o que fazer. Mas Eulália não gostava de
injecções e o médico poupava-a.
Para que vais fazer isso, velho bode?, dizia Américo a si
próprio. A mulher um destes dias morre... Pois sim,
respondia-se, mas também eu tenho mais de setenta e já
não tenho tempo de ser rico... Deixara de ser um desejo:
era uma ideia fixa que a arteriosclerose acentuava.
Um dia aconteceu. Antonieta entrou na farmácia aos
gritos, descomposta, sem xaile:
Senhor Américo, ela morre da ingina, venha depressa. A
dona Cândida telefonou, o doutor diz que era uma injecção
de cor, cor... vá lá depressa, faça-lhe alguma coisa que a
minha senhora morre...
Coramina? Não. Procurou na prateleira. Preparou a
seringa. Atravessou a rua. A boca torcida. O coração nos
ouvidos. Uma névoa nos olhos. Entrou em casa, subiu as
escadas, chegou ao quarto.
Sai, disse à mulher, que chorava. Sai.
Eulália agonizava. Com gestos precisos apertou o braço
com o elástico, o algodão molhado em álcool afagou a veia,
a agulha entrou, o líquido começou a penetrar. Eulália,
sorridente, deu um suspiro fundo.
Américo saiu do quarto, chamou a mulher com doçura:
Candidinha, ela morreu.
Morreu? Mas a injecção?...
Não foi a tempo.
Muda, Cândida avançou para a irmã morta, fechou-lhe
os olhos murmurando: mana... Ficou toda a noite ao lado
dela.
Américo mostrou-se à altura do seu papel de homem da
casa. Tomou todas as providências, consolou a mulher, deu
todas as ordens. Mandou fechar a farmácia. Pôs uma cruz
na porta. Mas era tudo como um pesadelo. Revia-se no
gesto de espetar a agulha, o líquido a correr na veia...
Guardou os dias que a decência mandava. Ficou em
casa, acompanhando Candidinha no seu desgosto. A
pergunta queimava-lhe a cabeça, mas não se atrevia a fazê-
la. A mulher havia de falar nisso, tinha forçosamente de lhe
dizer, qualquer dia... E disse:
Parece impossível a mana morrer sem me dizer a
fórmula...
Como?
Sim, a fórmula da pomada... Ela é que a sabia. Eu só
enchia as caixinhas...
Era mentira. Mas Maria Cândida, assombrada noite após
noite pela imagem de Eulália no caixão, meditara, rezara
muito e decidira respeitar a vontade da mana, do papá, da
tia freira morta em cheiro de santidade. E, como se tivesse
herdado, juntamente com os seus brincos de turquesa, a
inteligência da irmã, compreendeu que o segredo, de que
era agora a única detentora, a tornava forte, superior,
poderosa.
Parece mentira, lamuriou entre suspiros.
Com o tempo, o tique nervoso do senhor Américo
Edmundo Queimado transformou-se num medonho esgar.
E nunca mais naquela casa se ouviu a palavra fórmula.
VEM O SENHOR

Da nossa câmara, que uma pesada cortina de veludo


protegia da aragem do claustro, era impossível ouvir os teus
passos. E, no entanto, eu pressenti-te, quando desmontaste
e entregaste o cavalo ao palafreneiro. Talvez porque ouvisse
o relincho do animal (um grito aflito, ansioso), imaginei que
te aproximavas, pisando levemente as lajes do pátio,
querendo surpreender-me na alcova, saudoso dos meus
braços e do meu amor. Tive a visão dos teus pés calçados
de borzeguins de cabedal suave, que eu tantas vezes
sentira no corpo em jogos amorosos, quando me levantavas
com a bota os vestidos, me derrubavas, me acariciavas com
ela as coxas oferecidas, a cintura macia. Quantas vezes de
joelhos, rastejando de paixão, lhes entrelacei os atilhos de
pele, bem atados, para que não tropeçasses. Quantas
vezes, meu senhor, te descalcei, te massajei os pés
fatigados das tuas andanças de homem.
A visão que, como verdadeiramente vista, surgia ante
os meus olhos era também a da orla da tua capa, oscilando
ao ritmo dos teus passos, na excitação do reencontro, o
veludo negro em fartas pregas orladas de passamanaria,
dançando na marcha segura pelo corredor do claustro.
Via, claramente vistos, os teus contornos e a orla da tua
capa em movimento, mas não via o teu adorado rosto. Esse
tê-lo-ia bem perto, antes de nada, quando a tua boca ávida
devorasse a minha boca, quando, como um vampiro,
sugasses o meu pescoço.
Não se ouvia nada, nem o adejar de uma folha, nem um
riso de pássaro, e no entanto eu disse
Benta, vem o senhor.
Fiquei feliz por ter-me banhado ao fim da tarde numa
infusão de pétalas de rosa esmagadas no almofariz, a que
juntara Benta um toque de alfazema, e sentia agora o
prazer sensual de cheirar o meu próprio corpo, os ombros,
os braços, os seios de mamilos já erectos na expectativa
dos dedos do amado.
Benta, vem o senhor.
Amaciei os coxins do leito, alisei o linho dos lençóis,
coloquei a jeito o escabelo, que era degrau para alcançar
delícias, mandei trocar a água do jarro, verifiquei a limpidez
do vinh rápido, rápido, pedi toalhas limpas, acendi mais
velas e esperei.
Benta, vem o senhor.
Benta olhava-me um pouco inquieta, ainda murmurou
não ouço nada, mas seguiu cumprindo as minhas ordens.
E então de novo ouvi o teu cavalo, pensei tirar a pouca
roupa que trazia no corpo, mas não queria negar-te a
excitação impaciente de desnudar-me com as tuas próprias
mãos, apenas te facilitei a tarefa libertando o colo,
desfazendo alguns atilhos mais apertados, como quem quer
e não quer, descobrindo um pouco os seios, as pernas
depiladas com mel quente e depois suavizadas com loção
de cardamomo para, sem rebuço, entrelaçá-las nos teus
quadris, na tua cintura, no teu pescoço, para esfregá-las na
tua barba negra, cortada curta como a mim me apraz, às
vezes és tu que me seguras os pés e os roças no pescoço e
os beijas, cerrando os olhos claros, esses olhos iluminados
de todas as claridades que, dizem, herdaste de tua mãe
Inês de Castro.
Benta, vem o senhor.
Eram de paixão as nossas noites, por vezes de temporal
os nossos dias. As mulheres da casa temiam as tuas fúrias,
diziam as mais velhas que assim era teu pai El-Rei D. Pedro,
mas eu jamais me atemorizei com os teus negros e
infundados ciúmes. Muito ao contrário, mostrava-me alegre,
dulcíssima, infantil, mandava cozinhar no forno do pão um
borrego de leite que eu própria temperava, dispensava os
escudeiros, servia-te a comida e o vinho, os frutos mais
sumarentos, as nozes e o mel, e por fim fazia-te beber da
minha boca, entre risos e suspiros, o licor de tangerina,
receita dos monges de Alcobaça. Acabávamos debaixo da
mesa, entrelaçados como bichos, tu dizias boneja, barregã,
eu dizia meu amo e todo o meu corpo se abria ao ímpeto da
tua cólera e uma, duas, três vezes me possuías para acabar
chorando, beijando de leve a boca do meu corpo, os pelos
da tua barba misturados nos meus que, de tão fartos, te
serviam de coxim.
Assim ficávamos, tu babando-me as coxas num pranto
de criança arrependida, eu inteira, completa, inundada de
amor, até que anoitecia e te levava para a alcova e te
despia devagar e te embalava com doces cantigas de ninar
meninos e ficava a adorar o teu rosto adormecido,
esperando que a madrugada me devolvesse o meu João
altivo, o meu João adulto, o meu João apaixonado.
Eram de amor os meus dias e as minhas noites. Por isso
pressentia os teus passos do outro lado do mundo,
reconhecia, entre todos, o relinchar do teu cavalo, ouvia a
tua voz a tal distância que só o coração pode alcançá-la.
Benta, vem o senhor.
Muito moça me casaram com Álvaro Dias de Sousa, a
quem dei um filho e estimei e respeitei até à hora da sua
morte.
Foi meu marido recebido, e como tal o honrei e servi.
Mas o amor é matéria de outra qualidade, que jamais me
inquietara o coração. Essa alegria dolorosa, esse cuidar
constante, essa ventura inquinada de sobressaltos, só havia
de conhecê-la no paço do meu cunhado El-Rei D. Fernando,
esposo de minha irmã D. Leonor.
Minha irmã, a quem tanto quis na minha meninice,
revelou-se uma mulher má e interesseira, que teve em
pouca monta a honestidade e recato de mulher pela
vaidade de tornar-se rainha.
Casada com João Lourenço da Cunha, homem de alta
fidalguia, a quem cabia o tratamento de Dom, pôs os olhos
no Rei, que por ela perdeu toda a honra e bom senso.
Minha irmã Leonor era uma mulher belíssima, daquela
formosura que a idade não altera nem no corpo, nem no
rosto. E eu, que sei hoje o que é a paixão e a que extremos
ela pode levar-nos, quase me inclino a entender a loucura
do Rei, a cegueira, a determinação de um homem fraco e
cobarde, um rei apaixonado disposto a enfrentar mesmo o
desprezo, o escárnio, o ódio do seu povo.
Leonor, como era de seu natural, tudo comandava na
sombra. Assim, lembrou ao Rei que havia um vago
parentesco entre ela e o seu marido D. Lourenço da Cunha,
o que tornava o seu casamento pecaminoso, apesar da bula
de dispensa concedida pelo Papa.
Para D. Fernando foi isto mais que basto para atingir os
seus fins e sem nenhum pudor fugiu de noite com minha
irmã e com ela se casou por palavras de presente.
Foi o caso que o povo, ao perceber que o Rei se
propunha casar com Leonor, que alcunhava de bagaxa,
malvezada, boneja e feiticeira, se juntou em multidão nas
encostas da alcáçova que sobranceia o Tejo. Vinham
armados de ferramentas de seus misteres e havia entre eles
barqueiros, calafates, galeo-tes, moleiros, pescadores,
pergaminheiros, azeméis à mistura com hervoeiras,
alcoviteiras e rufiões. Dizem que treze mil pessoas
enxameavam pelas ruas e vielas de Alfama e do Castelo, na
esperança de demover o Rei de pôr no trono uma rainha
indigna.
Custa-me falar assim da minha própria irmã, mas do
lugar onde me encontro vejo claramente a razão do povo,
as traições e intrigas com que ela conduziu a sua vida e
todo o mal que me fez e a ti, meu amado, e peço a Deus
que se amerceie da sua alma pecadora.
Da finura do seu entendimento saiu o estratagema com
que enganaram o povo para o afastarem do paço e
prepararem a fuga. O Rei mandou recado que se juntassem
na manhã seguinte na Igreja de São Domingos onde lhes
falaria perante Deus, para jurar que jamais lhe passara pela
cabeça ter como esposa recebida a tal Leonor Telles, e que
uma coisa era ter amores com ela, outra, muito diferente,
colocá-la a seu lado no trono de Portugal.
O povo acabou por dispersar e ao outro dia esperou a
pé firme pelo Rei, que não veio e que a essa hora já se
encontrava em Santarém, com os fidalgos da sua confiança,
que cobriu de benesses para que o protegessem.
Cavalgaram para norte e Leonor, a quem nada contentava,
começou a insistir com o Rei que deveriam fazer um
casamento de praça, isto é, uma cerimónia pública, ao
contrário da união secreta acontecida logo após a fuga.
Assim se fez, porque D. Fernando não saberia negar
nada à sua Rainha que mais reinava no coração do Rei do
que ele no reino.
Após a cerimónia, que teve lugar no Mosteiro de Leça,
dirigiram-se ao Porto em grande estadão, onde se realizou o
acto da apresentação da rainha, do alto do trono, em vasta
quadra do paço, do mui alto e poderoso senhor Bispo do
Porto, de antemão preparada para tão solene
acontecimento.
Foste tu, meu amado, o primeiro a ajoelhar e a beijar a
mão do par real. Talvez houvesse no teu coração o
pressentimento de que estavas perante a irmã do grande
amor da tua vida. Quero acreditar nisto porque não posso
deixar de admirar a altivez do teu irmão Diniz que, embora
instado pelo Rei, se recusou a dobrar o joelho, dizendo não
vejo aí nenhuma rainha. É ela que deve beijar-me a mão a
mim, que sou filho de Rei.
D. Fernando saltou do trono de adaga em punho para
ferir o irmão que há muito estava na mira do seu ódio. Mas
alguns cavaleiros mais avisados travaram o braço a El-Rei e
não lhe consentiram o fratricídio.
O que faz a paixão. Fernando, o cobarde, não atentou
nas consequências da inevitável reacção de seu irmão Diniz,
mais forte, mais moço e mais afeiçoado a pelejar.
Leonor havia de persegui-lo e odiá-lo até ao fim dos
seus dias, o que levou Diniz a juntar-se, com Diogo Lopes
Pacheco, às hostes de Henrique II de Castela quando este,
em 1373, cercou Lisboa.
Quando Fernando casou com Leonor estava
comprometido com a princesa D. Beatriz de Castela e foi
mister, após o casamento, mandar recado a Henrique II,
dizendo-lhe que não podia honrar o seu compromisso por
ser casado com uma dona fidalga de Portugal, Leonor Telles
de Menezes, mas que não se anojasse El-Rei, porque
desejava continuar sendo seu amigo e como prova disso lhe
entregava as vilas e lugares que tinha em Castela.
Respondeu Henrique II que não pretendia casar a sua
filha com um homem cobarde e sem palavra e assim sendo
por aí se encerrou o assunto.
Ficou o Rei de Castela com um belo motivo para fazer a
guerra a seu primo de Portugal.
O cerco de Lisboa foi para Leonor razão de júbilo,
porque o martírio do povo, condenado à fome, à sede e à
miséria durante a guerra, era para ela a justa vingança dos
enxovalhos que sofrera desse mesmo povo aquando das
novas da aproximação do seu casamento.
Enquanto o povo sofria, ela e Fernando folgavam em
Santarém, passando dias e noites em banquetes e faustosos
saraus, indiferentes às dores alheias. Saberiam agora os
populares qual o preço de se terem atrevido a chamar-lhe
hervoeira, barregã e malvezada.
Por fim foi assinada a paz, em termos afrontosos para a'
dignidade do Rei de Portugal, e o real par entrou em Lisboa,
de onde fugira dois anos antes, para encontrá-la agora
devastada e faminta.
Minha irmã não hesitou em mandar executar todos os
que odiava, acusando-os de traição a soldo de Henrique II
de Castela.
Diz-se que D. Fernando vacilou na hora de assinar as
execuções, mas a imperiosa vontade de Leonor, a sua
doçura, a sua beleza, a sua boca carnuda que sugeria beijos
e pedia sangue, dominaram, como sempre, a vontade do
Rei.
Pressinto, meu amado, que virás de madrugada. Não sei
onde te leva, por montes e vales, o teu cavalo. Todos sabem
que, tal como o teu pai, és um exímio monteador, e não há
urso no seu esconderijo nem lobo na sua toca que não tema
a precisão das tuas flechas. Escondem-se coelhos e perdizes
ao som do teu galopar, fogem veados, quebrando as hastes
nos ramos das árvores.
Não tens dias de paz. É mister que abatas de um só
golpe esses animais que persegues, que os mates, que os
sangres, para gastar a sanha que te come o coração.
Ergueste muito cedo e, ainda antes d'alba, o
palafreneiro sela o teu incansável cavalo e partes a galope
como se daí dependesse a tua vida. Eu fico a acenar-te da
barbacã, mas tu não te voltas e, mesmo que o fizesses, o
meu vulto, dissolvido nas brumas ainda densas da aurora,
não o distinguirias das paredes sombrias do castelo.
Tu vais e eu fico. É esse o destino da mulher. Queria
montar o teu corcel, cavalgar abraçada a ti por penhascos e
matagais, sentir as batidas do meu peito na lã do teu
capote, presos os meus joelhos no calor da montada, soltos
na ventania os meus cabelos negros.
Eu fico. Enfeito a casa e o coração para a hora do teu
regresso, choro de ausência, canto de expectativa, e se
demoras, todos os receios se apoderam da minha saudade
e ponho a casa em alvoroço e sacudo ampulhetas e vigio a
cozinha. Ninguém pode pensar em descansar, em largar o
seu posto, porque o caldo tem de manter-se quente no
caldeirão de ferro, o cabrito no ponto, os miúdos de galinha
aromáticos no seu molho de ervas, e a cabidela não pode
avinagrar, nem o vinho azedar. O pão, mando enrolá-lo em
panos húmidos para que, à hora da tua ceia tardia, seja
torrado ao de leve e saiba a fresco.
E tu não vens e a minha inquietação toma conta de
tudo, porque te imagino atacado por lobos, ameaçado por
ursos, ou sacudido da tua montada, caído numa ravina,
sangrando entre penedos, e acendo todas as velas do meu
pequeno altar de Nossa Senhora dos Aflitos, e faço Benta
subir mil vezes os degraus em caracol da torre, sondar a
noite, descobrir no voo de algum milhafre caçador um sinal
da tua presença sete léguas ao redor, penetrar as sombras
com os seus olhos gastos, e a paciência infinita para ouvir-
me perguntar outra e outra e outra vez
Benta, vem o senhor?
E por fim tu chegas, porque só eu te sou abrigo e
refrigério.
É no meu leito que descansas o corpo e a alma, é na
minha pele que amacias as mãos calejadas do arco. O vinho
que te sirvo numa taça de ouro é o remédio que te cura os
males do espírito.
Se ficas levemente embriagado, logo te mostras mais
disposto ao amor. Salivas um pouco nos meus seios, que
sempre comparas a maçãs camoesas, e logo me procuras a
boca, e a tua língua tortura a minha e nunca nos saciamos
desse beijo molhado, depravado, enrolado de prazer, que
sabe a uvas, a mosto e amora. Logo requeres a minha boca
para outras loucuras e o sal do teu membro antecipa outras
carícias mais subtis, quando a tua língua descobre o bago
de romã que se esconde na sombra. Depois é a posse,
urgente, vigorosa, o desejo in-contido de nos fundirmos um
no outro, de gritar, de morrer. Às vezes recomeçamos tudo.
Outras vezes fazes-me rodar e cavalgas em mim, cavalgas
ainda, tentando talvez chegar àquele lugar no infinito onde
a tua montada jamais poderá conduzir-te, por mais que
rasgues florestas e desbraves caminhos.
Porque eu sou o caminho. O caminho secreto que leva
às fontes do prazer, aos lugares míticos, aos mares
enfeitiçados.
Eu sou a floresta. A floresta de recantos secretos, de
grutas azuis, de pássaros exóticos.
Eu sou o teu destino e a tua viagem. A tua amante, a
tua égua, o teu amor.
Enquanto os sucessos que narrei se desenrolavam no
reino de Portugal, eu mantinha-me em casa, cuidando do
meu filho, discreta e recatada, como convinha à minha
viuvez. Foi só depois que minha irmã voltou a Lisboa que
comecei a frequentar o paço na minha condição de cunhada
do Rei.
Bem sabes, João de Castro, como para mim não existia
nenhum outro, como pela primeira vez fizeste o meu
coração bater mais depressa, o meu corpo sentir-se vivo a
pedir carícias até então desconhecidas. Bem sabes que caí
de amores por ti como uma louca e já pensava em
esconder-me contigo pelos cantos mais escusos do castelo
quando me propuseste casamento.
Não queríamos dar nas vistas nem afrontar os invejosos.
Por isso fizemos um casamento discreto, por palavras de
presente, de noite, em minha casa, tendo por testemunhas
o teu escudeiro e a minha fiel Benta.
Fui tua mulher recebida, tua amante escolhida, teu
único amor. Até hoje e para sempre. Eu nunca amei outro
homem, tu nunca amaste outra mulher. Bem o sabes.
Apesar de tudo o que se disse. Apesar de tudo o que minha
irmã inventou.
Nunca poderia imaginar que a sanha da Rainha um dia
caísse sobre mim. Eu tentava ignorar os seus desvarios e
ser amiga dela. Em nome da nossa infância.
Quando meu pai foi assassinado às mãos de D. Pedro de
Castela, muito justamente cognominado o Cruel, fomos,
nossa mãe Dona Aldonça Telles de Menezes e seus filhos,
acolhidos por meu tio, o ilustre Conde de Barcelos, que
possuía o seu feudo em terras de Trás-os-Montes,
Por ali brincámos, em jogos de meninice, Leonor e eu,
meus irmãos João Afonso e Gonçalo, e ninguém poderia
prever o que o destino nos reservava.
Em brincos descuidosos corríamos, no tempo bom, por
aqueles montes, fazendo perder o fôlego a nossas amas,
escondendo-nos atrás das pedras, espreitando as luras dos
coelhos,
as meninas colhendo flores silvestres, primaveras,
pascoinhas e quaresmas, com que compúnhamos
ramalhetes para a nossa mãe, os rapazes jogando de
pelejar com espadas feitas de pau.
No tempo invernoso carecíamos de autorização de
nosso tio para sair de casa e todo o cuidado era pouco para
não escorregarmos na neve, mas gostávamos de ver gelar
as fontes e depois, à maneira que o sol ia aquecendo,
observar como começavam a correr de novo, primeiro a
medo, em grossas pingas, por fim jorrando água no seu
cantar alegre, a anunciar a Primavera.
Entre risos e gritos de meninos felizes ia decorrendo a
nossa vida simples.
Quem imaginaria que Leonor, a nossa irmãzinha linda,
meiga e sorridente, se tornaria não só Rainha de Portugal,
mas uma das mais impiedosas rainhas da cristandade?
Meu tio soube contratar para nós bons casamentos, com
fidalgos ilustres, ricos e honrados, e poder-se-ia prever para
nós duas vidas dignas e serenas, sem sobressaltos da
fortuna, até ao fim dos nossos dias.
Assim aconteceu durante alguns anos até aos sucessos
que me trouxeram aqui.
Pela mão do meu primeiro marido viera morar para a
corte e foi aí que recebi a minha irmã Leonor em visita e
compreendi como estava ansiosa por pisar os salões do
paço e conhecer a fidalguia ilustre.
Era ela casada com D. João Lourenço da Cunha, que ma
confiou, e na sua primeira visita nada de especial
aconteceu.
O Rei nem reparou nela e, apesar da sua beleza,
ninguém a olhou com algo mais que simples curiosidade.
Foi na segunda visita que tudo aconteceu. D. Fernando
perdeu o coração e a razão e nem mais olhou para a sua
meia-irmã Beatriz de Castro, com quem se dizia que
mantinha um comércio amoroso ilícito entre irmãos.
Não falaria disto se não fosse do teu conhecimento, mas
crê que tua irmã, de quem eu era dama, não tinha qualquer
culpa nas investidas doentes do irmão.
Meu cunhado D. Lourenço da Cunha começou a
estranhar a demora da mulher em Lisboa e mandou-lhe
recado para que voltasse para casa. Mas ela fingiu-se
doente, meteu-se na cama em minha casa e deixou-me na
situação embaraçosa de ter de mentir a D. Lourenço.
O Rei visitou-me, declarou-me sem mais rodeios que
pretendia casar com minha irmã Leonor por quem estava
perdidamente apaixonado. Eu respondi-lhe que Leonor era
casada e ele, D. Fernando, estava comprometido com a
Infanta de Castela. E que assim sendo, me parecia que ele
se preparava para fazê-la sua barregã, o que eu jamais
consentiria.
Seria esta minha posição irredutível que levou aos
acontecimentos que se seguiram? Serei eu culpada do
estratagema que Leonor engendrou para saltar da minha
casa para a cama do Rei e da cama do Rei para o trono de
Portugal?
Quero crer que não. Eu sou apenas humana. Leonor é
demoníaca. Um ser diabólico que traz no rosto a beleza
estonteante do anjo caído.
Contudo, tentei ser amiga dela. Assisti ao seu
casamento secreto. Perdoei-lhe muito do seu
comportamento extravagante. Tentei calar as más-línguas
quando se afiançava que presidia a orgias no seu próprio
paço. Como poderia eu ser uma ameaça?
Disseme Benta, que lhe disse uma moça serva na Corte,
conversada do escudeiro de um intermediário da Rainha,
que esta fora fazer saber a meu tio, Conde de Barcelos, que
ela veria com bons olhos o teu casamento com a infanta
Beatriz, minha sobrinha, filha do Rei. Que contava com ele
para me convencer a libertar-te, e a ti a aceitares a
tentadora proposta que, por morte do Rei, te colocaria no
trono.
Deves ter compreendido que a Rainha jamais cumpriria
a sua palavra. E eu compreendi que o que assustava Leonor
era que por morte de D. Fernando te sentasses no trono e
eu, sua irmã, lhe roubasse o lugar.
Nunca pretendi ser rainha de nada a não ser do teu
coração e do teu corpo. Rainha na nossa câmara onde a
pesada cortina de veludo nos defende da aragem do
claustro. Rainha da nossa casa onde te sirvo, onde te
servem, porque aqui tu és rei.
O resto, só a cabeça doente da minha irmã Leonor
julgou possível. Porque ela não ama e não sabe o que é
amor. Ser amada não lhe ensinou o que é amar.
Eu amo-te. Tu amas-me. E de tanto me amares, só
tenho a temer do teu ciúme. Ciúme de nada, ciúme de tudo,
ciúme da tua própria sombra, ciúme desse outro que te
habita e que não te deixa descansar.
Leonor entendeu isso.
Disseme Benta que pagou grossas maquias ao teu
vedor e ao comendador de Eivas, teus companheiros de
montaria, para te asseverarem que eu te atraiçoava.
Em que terreno lançaram a semente da dúvida! No teu
coração, culpado por me abandonares dias inteiros para
perseguir ursos e javalis, cansar o corpo, afinar a pontaria
em tudo o que mexesse por esses coutos e matagais.
Depois, num jantar de gala, alguém te terá murmurado
ao ouvido, passando-te para a mão um punhal da parte de
Leonor, que sendo eu tua esposa recebida, a lei te
autorizava a assassinar-me. Tinhas desde logo garantido o
perdão da Rainha. O que queria dizer o do Rei, que, velho e
atoleimado, mais não fazia que segui-la e obedecer-lhe.
Não tinha sido mister, se tanto desejavas derramar o
meu sangue, sujares em mim as tuas mãos e o teu punhal.
Não tinhas que carregar essa culpa que ora te atormenta,
não precisavas de levar para sempre um crime injusto na
consciência. Bastava teres-me dito morre porque me apraz
e eu, tua escrava, de bom grado teria rasgado o peito, o
ventre, os pulsos, eu própria te teria oferecido, como
sempre te ofereci, o coração e a vida.
Não sei se foi essa uma outra forma de me fazeres tua,
a última essência da posse, o grito derradeiro da paixão.
Choro por ti suspensa entre dois mundos. Acorrentada a
ti por laços de sangue e vento. Este é o pranto de Maria
Telles, que chora não as próprias lágrimas mas as tuas. Não
a sua vida na morte, mas a tua morte em vida.
Agora, tu não sabes, sou o pão que comes, a água que
bebes, o ar que respiras. Sou as tuas mãos e os teus pés e,
se te sentes cansado, é porque sempre cavalgo nas tuas
costas, abraçada a ti, com dedos de ferro cravados no teu
peito, falo-te ao ouvido, sou a tua voz e o teu pensamento,
dissolvida em ti, o único paraíso que sei.
Se me mataste, foi para melhor viver em ti, como tanto
desejava nos meus dias de carne, nos dias em que
pressentia os teus passos no silêncio do claustro, e
amaciava o leito e alisava o linho dos lençóis e punha o
escabelo a jeito, e trocava as toalhas e desatava as vestes e
abria o corpo e sustinha o coração no peito, e dizia, num
sopro de exaltação e febre,
Benta, vem o senhor.
Pressenti-te quando desmontaste e entregaste o cavalo
ao palafreneiro. Imaginei que te aproximavas, pisando
levemente as lajes do pátio. Vi, claramente vistos, os teus
borzeguins de pele macia, que tantas vezes lambi, a dar-
lhes lustro. Estremeci, como se me roçasse o ventre a orla
da tua capa debruada de passamanaria. Achei-me feliz por
ter banhado o corpo em água de pétalas de rosa esmagadas
no almofariz, a que juntara Benta um toque de alfazema.
Senti os mamilos erectos, húmida a gruta dos nossos
segredos. Aliviei a roupa na garganta para facilitar-te a
tarefa.
Benta, vem o senhor.
E tu vieste. E tal como em cada uma das nossas noites
de amor, disseste barregã, ergueste o teu punhal e eu
morri.
MULHER

A culpa é toda sua. Não diga que não, que eu bem lhe
leio o subtexto erótico na forma dançada como você passa
por ele, inundando-o do seu charme, do seu perfume e da
sua respiração rumorejante. Faz que não vê mas vê. Faz que
não quer mas quer. O homem fica tonto e você gosta. Traça
a perna diante dele daquela forma insólita, mostrando
dessous que deixaram de o ser, tilinta coisinhas de metal
quando lhe dá o perfil e o recorte esplêndido da sua
pequena orelha, e o botão da blusa, não me diga que o
perdeu, anda desabotoado três dedos abaixo do ponto de
viragem, viragem da cabeça dele, entenda-se.
Sim, sim, eu percebi que cortou o cabelo dessa forma
ultrajante para valorizar o pescoço, a linha dos ombros, e
ficar mesmo com o toque de androginia indispensável para
acordar nele todas as componentes. O sujeito sucumbe e
você diverte-se.
O processo arrasta-se há meses. Você não quer coisa
nenhuma definida. Você não quer. Gosta do jogo e joga. Mas
não quer mesmo? Ah, reside aí a volúpia da sua estratégia.
Você quer fingir que não quer, porque querer
completamente é completamente sem história. É a rotina do
costume e isso não é excitante, nem subtil, nem perverso.
Agora mesmo eu vi. Você tem reduzido o ângulo de
beijinho, aquele do pseudocasual olá está bom. Começou a
dez graus do eixo e já vai no grau dois. Com uma pequena
oscilação para grau um. Porque um destes dias você foi
apanhada de surpresa (ou fez de propósito) no grau zero...
Fez de propósito, claro, que ingenuidade a minha. Você não
deixa nada ao acaso. Grau zero era a jogada daquele dia,
mas o eixo apresentou-se húmido, prometedor... Quando a
sua boca roçou de leve e logo se retirou, você ficou presa no
seu próprio feitiço, a sua voz enrouqueceu um pouco mais,
você pousou a ponta dos dedos na garganta naquele gesto
que lhe é peculiar e disse Ah... Afastou-se devagar, não sem
primeiro filtrar entre as pestanas um olhar macio de
pantera, descer até à zona do botão perdido as unhas
curtas, sem verniz e sem escrúpulos.
O que acontece a seguir? Há que manter a
ambiguidade. Não lhe interessa queimar as etapas que pela
lógica dos acontecimentos se haveriam de seguir. Esse é o
procedimento corrente e você recusa a vulgaridade. Beijo
trocado? Esse seu corpo apetitoso como um barco, desculpe
se cito Pessoa, mas você tem realmente alguma coisa de
gomo, esse corpo, dizia, apertado contra a caxemira cor de
areia? De forma nenhuma. Seguir-se-ia um óptimo jantar e
isso era o fim de tudo. Senão vejamos. Você é
interessantíssima quando conversa, mas tem tendência,
entre um tinto alentejano de 97 e uma boa música de
fundo, a tornar-se um tanto sincera e era capaz de lhe dizer
que o acha o homem mais fascinante de toda a empresa;
que a forma como ele utiliza o humor a deixa sempre
comovida e excitada e que o aftershave dele se harmoniza
admiravelmente com camisas de seda italiana e absurdas
preferências por pintura flamenga e mulheres ruivas. A
seguir ele pousaria o casaco nos seus ombros, respirando o
desejo que se desprende da sua nuca e levá-la-ia para uma
nudez total, um contacto absoluto, um grito partilhado. E
depois? Mais nenhum mistério, mais nenhuma sedução.
Você saberia tudo sobre a temperatura do corpo dele, a
capacidade de a satisfazer, o seu grau de preconceito, a sua
fragilidade, naquele momento em que os homens parecem
tão indefesos e carentes e perdidos e talvez você não fosse
capaz de amá-lo bastante para continuar a negaceá-lo com
beijos do grau um depois de o ter visto na sua nudez inicial.
Não. É esta a beleza do jogo. Ele deseja-a furiosamente
mas não mostra. Você perde a cabeça só de ouvir o som da
sua voz, de olhar-lhe os dedos, os pulsos, o rosto de
estátua, o nariz grego e a boca. Você evita os olhos, não
quer denunciar-se, continua desprendida e bela, passeia
devagar o seu corpo de barco na madrugada pela penumbra
dos gabinetes, intercepta-lhe o campo magnético, desliza a
polpa do dedo polegar entre os dentes, mostra uma ponta
de língua cor-de-rosa, despe camisolas para que conste que
não usa nada sob a blusa, acaricia os seus próprios caracóis
cor de fogo no sítio exacto onde ele gostaria de perder as
mãos, cruza e descruza as coxas, deixa entrever rendinhas,
pouca coisa, é quase tudo pele dourada e por fim chega
junto dele, diz até logo, tenho um encontro, dá-lhe um beijo
de grau dois, vagaroso mas de grau dois, o tempo de ouvir
a maçã-de-adão oscilar, o tempo de sentir o sangue espesso
nas veias de ambos, a voz presa, um arrepio no ventre e já
saiu com um oscilar de labareda.
Eu sei. É essa a sua natureza. Nunca houve feiticeira
que desprezasse o prazer, o poder, a vertigem de comandar
o jogo.
AO SABOR DO CORPO

Morno entre lençóis move-se devagar, num torpor bom


de terra fértil depois da chuva, onde, quase em silêncio, se
espreguiçam morangos.
Na luz que se anuncia, surge debruado de azul-noite e,
mais abaixo, onde a aurora já toca, nacarado entre frouxos
de linho.
Há que vê-lo de perto, sentir a veia do pescoço, o velo
da axila, a cabeleira móvel, as pestanas descidas. Na
penumbra, a respiração é um animal doméstico, quente e
pachorrento, nimbado de hortelã. É bom ficar nesse cais
entre o sonho e o dia, nessa paz crepuscular onde todo o
erotismo é possível, entre o prazer do sono e a sonolência
do prazer.
Onde começa o desejo? No mamilo que se encrespa
tornando o moreno quase negro, o cor-de-rosa quase botão-
de-ouro; na lágrima cor de lua que molha as pétalas
carnudas da flor escondida entre colinas; ou simplesmente
no côncavo do braço, formigante e quente à procura de
beijos?
Os aromas acodem. Nos ombros, um pinhal onde cresce
alfazema, talvez um toque de alecrim que a cama exala e
se mistura na canela do dorso, no tojo da cintura, na
baunilha do ventre onde apetece passear a nudez na
garupa de cavalos brancos, ao luar.
O tempo parado, a morte adiada, a saudade esquecida,
o corpo sabe-se (em ciência e sabor) e desdobra-se de si
para si. Os ombros emergem, lisos, de quadros florentinos,
os seios e os pés evocam Botticelli: ninguém os amou tanto,
nem mesmo a noite. Os dedos dormem ainda, porque em
tudo há um segredo e os dedos são sábios e conhecem a
teia de que se faz o desejo, sabem retesar, afrouxar, os fios
entrelaçados. Mas ainda é cedo. Não se trata de incendiar a
rosa que dorme no fundo da gruta, mas apenas de iluminar
breves zonas de seiva, o joelho, a planta do pé, o nó secreto
entre as espáduas, o interior do pulso, a cova da garganta.
E vem o desejo dos pequenos ruídos, só audíveis por
dentro, por um ouvido que navegasse no sangue e
percebesse no peito um som de seda rasgando-se, nas
pernas um arrastar de veludos, no ventre uma cantata de
regato, nos seios um estremecer de tílias sob a chuva.
Agora o corpo pode voltar a adormecer. Roda para a
esquerda, em busca do coração e do seu antiquíssimo
sotaque, e as mãos, palma contra palma, vão esconder-se
entre as coxas maternais e quentes e nem mesmo a
insónia, branca nas madrugadas, tem a pele tão macia.
Este corpo é o teu. Se ele ainda não deu por isso,
ensina-lhe os cinco sentidos.
A alegria de ver. De procurar, olhando, galas
inesperadas, pormenores de beleza, uma orelha, um
tornozelo, um ombro, o umbigo, as veias da mão, a nudez
da nuca.
O espanto incomparável de ouvir: a espuma de um
sorriso, o silêncio da testa, o cântico da seda, o apelo da
pele.
A magia do tacto, capaz de todas as invenções: de
descobrir mistérios num dorso conhecido, profundezas do
mar na rota, O prazer.
E que dizer do olfacto? Dos aromas de vento e de
musgo, de castanheiros ao entardecer, de búzios e algas e
mais acima, ao virar da cintura, de lúcia-lima e flor do
aloendro.
E por fim o sabor. Sabor da boca, sabor de todas as
bocas que há no corpo, mágicas, prontas a largar o seu suco
que serve para compor filtros e poções afrodisíacas que
para sempre nos ensinam a parar o tempo, a adiar a morte,
a esquecer a saudade, a saborear o corpo, esse
desconhecido.
Acesos os pontos de partida, o sonho é um esboço
informe. Pedaços de sons, notas mozartianas de clavicórdio,
passos subindo escadas, risos mansos, rastejos órficos,
rumores de cetim branco desenrolado sem fim por mãos
sem corpo. Há mulheres enfeitadas de pássaros, de coxas
abertas e pálpebras fechadas, com estrelas penduradas no
sorriso e frutos esmagando-se nas mãos erguidas
escorrendo sumo pelos antebraços, que animais
mitológicos, de corno ao alto, lambem devagar. A mesa
posta desaparece no vento e caminhamos agora, nós, não
sabemos quem, por uma imensa nave de pedra onde as
sandálias ressoam, atrás de um anjo descalço de camisa
rasgada que voa imponderável e translúcido através de
uma rosácea de pedra que nos deixa prisioneiros numa
pequena cela povoada de pombos de olhos vermelhos que
arrancam as próprias penas e preparam com elas um leito
altíssimo, e agora sim, o cetim branco desenrolado cobre
tudo até ao limiar das estrelas e o amor acontece numa
paisagem sem limite.
É um deserto de gelo e o corpo deitado no trenó
estende a mão para senti-lo, mas o gelo é quente, os cães
rodeiam-no com os seus casacos matizados, mas não
ladram, o silêncio é total, o calor é imenso e cheira a
laranjais em flor.
Então começa a nascer o sol e o corpo move-se devagar
morno entre lençóis, debruado de azul-dia, irisado no
ventre, e o linho amarrotado espalha-se pelo chão, os dedos
húmidos desfazem o nó do sonho e os olhos abrem-se,
ainda cheios de paisagens brancas, orgasmos lunares,
rendilhados góticos e anjos transparentes.
Quieto, quieto, o corpo não se ergue ainda para que o
clima onírico se não dissipe. As pernas pesadas da
caminhada erótica até à quina das estrelas, a rosa dentro da
gruta a escorrer da corola um fogo líquido, quase extinto,
que vai e vem no enredo das veias, a boca entreaberta a
perguntar à língua de que sabores se lembra, acordam os
sentidos para o hálito puríssimo da manhã. Édia.
O corpo hesita, mas os pés, roçando um no outro como
quem se despede, procuram o dorso do tapete, põem na
vertical esse esplendor de carne. Apetece um espelho e a
certeza de que a vida está lá, um banho e a alegria de
cantá-la.
Agora o corpo move-se pela casa. Morde um fruto.
Inventa jogos de água e de espuma. Desembaraça-se dos
líquidos tépidos da noite. As mãos escolhem roupas suaves:
as sedas, as rendas, terão o dia inteiro a função de lembrar
à pele a sua natureza de beijo. Perfumes frescos que a farão
sentir-se, a ela, pele do corpo, como um linho caseiro
arrecadado em arca, entre maçãs.
Definida a temperatura da água, a espessura da
espuma, o aroma da toalha turca, o corpo entra no banho.
Cuidá-lo para que cuide de si e seja fonte de todas as
alegrias. Os seios, ainda erguidos como laranjas de gomos
tensos, já se relaxam no calor da água, os braços emergem
como flores exóticas, o sexo esquece o traje de medusa e
abre mão da sua maresia, as nádegas nadam, são velas
pandas nesta aventura lustral, as ancas suspendem o seu
orgulho de galera e deixam-se afundar com toda a
sobrecarga de tesouros reais.
Depois há que enxugar, massajando, finalizar o ritual
com gestos nunca de mais repetidos, exactos, plásticos,
evocando Renoir e os seus dorsos brancos expostos à
doçura da luz.
O corpo está pronto para enfrentar o dia. Perfumado,
vestido, enfeitado, paramentado para o complexo
cerimonial de viver, o corpo ocupa o espaço e reentra no
tempo. Guardará até à noite, até à hora incerta da
madrugada em que as formas se esbatem e os instintos se
instalam, um arsenal de sonhos, sensações, emoções,
desejos, ritmos, paisagens que o sono propicia e a aurora
estimula no seu vestido claro, desfolhando lençóis,
compondo aromas, sublinhando curvas, favorecendo
amores.
E o corpo, satisfeito de o ser, saber-se-á de novo.
Sou apenas um homem tímido, disse eu.
Ela fitou-me imóvel, séria, durante muito tempo, até eu
ter a certeza que não ia aguentar nem mais um segundo
aquele olhar, e então sorriu e murmurou, como se falasse
consigo própria, somos todos, não é?
Arrumou as pernas debaixo do corpo de maneira
diferente e acrescentou, é por isso que inventámos o
erotismo.
Nada naquela mulher me parecia erótico. Tinha um
rosto vulgar, de feições regulares sem maquilhagem, a pele
branca um pouco baça, os cabelos escuros cortados muito
curtos. Trazia calças pretas e uma camisa de seda, de
riscas, parece-me, sim, riscas irregulares dentro dos cinzas,
pretos e azuis, abotoada até ao penúltimo botão junto ao
pescoço. Tinha as unhas cortadas, sem verniz.
O erotismo, diz você?
Exactamente.
De novo o sorriso que era, concedo, como uma luz que
acendia de repente aquele rosto apagado.
Será que você sabe o que é o erotismo?
Eu achava que sabia. Imaginava-me a falar desse tema
com uma mulher de peitos redondos, pernas longas, lábios
cheios, cabeleira abundante. Linda e provocante. Não com
esta jovem magrinha e intelectual, que era o contrário de
todas as raparigas que me tinham atraído até então. Porém
uma estranha inércia mantinha-me sentado ao lado dela
naquele sofá, alheio a uma festa que morria.
Temos sete sentidos, como sabe.
Sete? Quer explicar?
Ela riu.
Suponho que você é um daqueles homens que dizem
que o erotismo é a poesia do sexo, mas que na hora do sexo
dispensam a poesia.
E não é assim?
Não sei. É tão pouco erótico saber tudo... Mas às vezes
imagino que se usarmos os nossos sete sentidos, o sexo em
si fica reduzido a uma desinteressante brincadeira dos
corpos, isto é, um fim em si mesmo, em vez de uma
travessia, uma viagem pelos recantos mais obscuros do
corpo e da alma, uma experiência excessiva, ilimitada... Mas
já é tarde. A festa acabou. Vou-me embora.
Vemo-nos amanhã?
Não sei porque disse isto. Ia ter que aturar a risota dos
meus amigos machistas quando percebessem que eu ia
sair, ou tinha saído, com a formiguinha insípida, como a
tinham classificado logo à entrada da festa.
Vemo-nos amanhã?
Não. Mas dê-me o seu telefone. Daqui a dois ou três
dias, ainda não sei, tenho a tarde livre.
Porque mistério passei os três dias que se seguiram
numa impaciência doentia, é coisa difícil de explicar.
Finalmente, ao quarto dia, ligou-me.
Gosta de chá?
Eu já nem me lembrava se gostava de chá mas disse
logo que sim, gosto imenso, e ela convidou-me para tomar
chá em casa dela, o que me pareceu, não sei porquê,
imensamente prometedor. Que disparate. Um simples chá
com uma mulher tão pouco excitante.
O gosto daquele chá não era nada parecido com o que
costumava tomar em casa da minha avó, há muitos anos,
quando ela era viva. Mas o nosso paladar muda com a
idade. Este era perfumado, exótico, e eu disse-lhe. Ela
sorriu.
Vejo que o olfacto é o seu primeiro sentido, disse. E é
bom que assim seja, porque era com ele que os nossos
antepassados farejavam a caça, as tempestades, os corpos
das fêmeas no cio. É bom saber que nem tudo se perdeu.
Eu pensava que o meu primeiro sentido era a visão, é a
partir dela que me apetece tocar, cheirar, saborear, até
ouvir...
Já experimentou tocar, cheirar, saborear, ouvir, de olhos
fechados?
Não sei, talvez. Acho que não. Quer aprender?
Aprender?
Claro. O erotismo aprende-se, como todas as artes.
Mesmo que você seja um intuitivo, o que significa que
possui o sexto sentido, tem de treinar o corpo e o espírito
para aceder ao sétimo, que é o sentido das artes.
Sentia-me deliciosamente excitado, mas de uma forma
desconhecida, mágica, proibida. Toda aquela inocência
aparente, duas pessoas numa sala de estar florida tomando
chá, tinha-se transformado numa situação agudamente
transgressora, fora do tempo e do espaço, como se
estivéssemos nus, debaixo da macieira do paraíso.
A partir desta confusão dos meus sentidos, começou a
longa aprendizagem.
Corria para casa dela com uma impaciência alucinada e
de olhos vendados, ficava tardes inteiras a ouvir sons,
músicas notas soltas, instrumentos desconhecidos, frases
em línguas estranhas, vozes sedutoras, murmúrios,
gemidos.
Ficava com vontade de lhe tocar, de me tocar, como se,
de olhos vendados, ninguém me visse, mas ela avisava, a
aula sobre o tacto ainda está para vir, é a antepenúltima,
depois do olfacto e antes da intuição.
Alguma coisa me dizia que esta mulher era uma louca
perigosa, mas abria-me sempre a porta com o seu ar de boa
aluna, de boa filha, de boa menina, sempre dejeans e
camisolas curtinhas que descobriam uma nesga de cintura
estreitíssima e os pés descalços, perfeitos, tão perfeitos que
eram a última imagem que eu me esforçava por guardar
antes dela me vendar os olhos para aquelas desvairadas
aventuras dos sentidos.
De descoberta em descoberta transcorreram meses. Eu
desejava-a como um demente, mas ela proibia-me de lhe
tocar, dizia, eu não sou deste mundo. Sou feita da matéria
dos sonhos, das miragens, dos poemas, das neblinas, das
ficções. Sou um ser intermédio entre ti e todas as mulheres
a quem, depois de mim, darás a conhecer prazeres
insuspeitados, inimaginados, mesmo sabendo nós que as
mulheres são capazes de muito imaginar. Mas não comigo,
não comigo. Só me darias prazer se fosses apenas espírito,
porque tudo são invenções e aparências e eu não vivo aqui
mas no lugar mais recôndito da tua sensibilidade.
Não gosto dessas conversas esotéricas. Tudo começa e
acaba no corpo, é o instrumento que temos para o prazer,
por mais que viajemos nas azinhagas secretas da mente. O
Beetho-ven pôde, na sua surdez, ter imaginado estes sons
maravilhosos
dentro da sua genial cabeça, mas eles só têm expressão
transpostos para o piano, para a orquestra.
É verdade. Mas o teu piano, a tua orquestra, é o corpo
das outras mulheres, não o meu.
Mas é a ti que eu quero. Não me faças morrer de sede à
beira da fonte.
Eu não sou a fonte, sou o rio. Corro e já não sou a
mesma. Dou-te a conhecer a sede e quando beberes eu já
passei.
Sim, eu conheci a sede.
No sentido do paladar fez-me atravessar sabores
afrodisíacos, elementares como o pão, inebriantes como o
vinho, excitantes, incompreensíveis, antegostos, pós-gostos,
quentes, frios, doces, amargos, insustentáveis,
inesquecíveis.
A visão levou-me por imagens tranquilas ou alucinantes,
exaltantes ou monótonas, mas todas, sem excepção, me
conduziam ao desejo de possuí-la, através de corpos, de
sugestões, de abstracções, de paisagens, de oceanos, de
desertos ou de florestas virgens.
A travessia do olfacto fez-me gritar de luxúria, delirar no
êxtase de alucinações totais, quer imaginando-me nos mais
esplendorosos jardins do éden, quer penetrando os secretos
aromas de corpos abertos à minha fruição.
No tacto trouxe-me seixos, areias, frutos, marfins, linhos
e sedas, madeiras como cetim, cetins como dorsos de
mulher. Era sempre algum recanto do seu corpo que eu
imaginava apalpar, num paroxismo de prazer inconcluso.
O sexto sentido foi um desdobrar de jogos mentais,
canalização de energias, adivinhações, explorações da
mente, feitiçarias, rituais. Aflorei o invisível, atravessei a
fronteira da loucura.
E foi assim que na primeira lição do sétimo sentido, na
mais erótica de todas as ofertas, me emasculei na sua sala
de estar, acrescentando uma flor de sangue às rosas do
tapete.
Agora, privado de matéria, habito todas as grutas do
seu corpo, os seus pequenos seios, o clitóris, o de dentro
das coxas, a curva do joelho, a axila, a nuca, o ninho do
umbigo, a planta hipersensível dos seus formosos pés.
E ela, olhada, cheirada, auscultada e tocada pelas mãos
do meu espírito que ela própria educou, sente necessidade
de transpor as minhas sonatas fantasmáticas para o piano
do seu corpo, e todas as noites traz para a sua cama
homens diferentes, mulheres diferentes, que vêm conhecer
a exaltação, o perigo, a vida, o delírio ou a morte, conforme
o meu capricho.
Porque, agora, sou eu o sétimo sentido.
TRÊS VEZES O NATAL

MEIA-NOITE E CINCO

Quando o meu marido telefonou de Washington a dizer


que não estaria em casa para a ceia de Natal porque havia
greve do pessoal de manutenção, fiquei completamente
desarmada, a pensar que aquele esforço todo não tinha
valido a pena. Tentei animar-me, pensei, pelo menos o
Rodrigo não falha, é ano sim, isto é, o ano passado
festejaram em casa dos sogros, por acaso cabia-nos a nós
mas trocaram, porque a Sofia era recém-nascida e os sogros
moram no mesmo prédio.
Com crianças o Natal anima. É verdade que a Sofia tem
só um ano, mas a Luisinha tem três e o Duarte cinco, vão
adorar os presentes e todas as guloseimas que preparei a
pensar neles.
Aí tocou outra vez o telefone e era a Emília.
Luísa, só te digo que não podemos ir. A Justa está com
um febrão, desconfiamos de pneumonia. Lembras-te o ano
passado? Pois é. Tem os mesmos sintomas e como é Natal
não arranjamos médico que venha cá a casa. E tu desculpa,
coitada, tiveste um trabalhão e agora isto. Desleixo dela
que não tomou a vacina.
A Emília e a Justa são minhas amigas de infância, irmãs
gémeas, que, depois de enviuvarem ambas, decidiram viver
juntas e amparar-se uma à outra. Fazem sempre parte dos
nossos Natais, porque a Justa não tem filhos e a única filha
da Emília vive com o marido no Canadá.
Digo-lhe que não se preocupe comigo, o importante é
que a Justa se ponha boa depressa, telefono para um
médico amigo que abnegadamente concorda em ir
examiná-la.
Fico um pouco mais só.
Os pequenos demoram. Ligo lá para casa, ninguém
atende. Tento o telemóvel, está desligado. Como eles
moram em Lisboa e eu no Estoril, fico logo a pensar em
disparates na auto-estrada.
Começo a inquietar-me de verdade quando o telefone
toca.
Mãe, imagine que a Joana está com um ataque de
apendicite. Não dá para acreditar! Começou de manhã com
dores de barriga, achámos que não era nada, foi piorando,
fomos a um serviço de urgência e agora dizem que é
apendicite aguda; vai ter de ser operada, provavelmente
ainda esta noite.
Coitada da Joana! Quer que vá para aí? Não, mãe. Nem
pense nisso. Sei que a mãe detesta guiar à noite e presumo
que dispensou o António.
Dispensei toda agente, é Natal, mas vou na mesma, de
comboio, ou isso.
Não venha, mãe. O pai vai chegar e a tia Justa e a tia
Emília...
Poupo-o às minhas outras decepções da noite.
Então e as crianças?
Já estão na minha sogra. E nós estamos aqui na clínica à
espera do cirurgião. Isto em noite de Natal demora tudo um
bocado mais.
Mas vai correr tudo bem, vai ver. Um grande beijo à
Joana e se precisarem de mim...
Não precisam.
Fico uns minutos a habituar-me a esta nova versão do
meu, Natal e de repente desato a chorar alto e a perguntar
porquê, porquê, porquê, como uma idiota.
Acalmo. Vou à cozinha ver se está tudo em ordem. A
ceia, para seis adultos em festa e três crianças, só espera
os últimos retoques. A mesa da sala de jantar está linda, só
falta acender as velas. Sobre o aparador o tinto já respira.
Faço a ronda dos presentes. Não me esqueci de nada?
De ninguém?
Vêm-me à memória os dias de chuva em que calcorreei
as ruas da Baixa, os corredores dos centros comerciais,
acotovelando-me com outros consumistas compulsivos,
carregada de embrulhos, ajoujada de cheiros e sabores, a
pensar que deixei o carro a léguas de distância, impossível
ir a pé com este carrego pelo meio dos engarrafamentos,
doem-me os pés, chove e não há um táxi no horizonte.
Mas isso já passou.
Estou aqui no calor da minha casa, tenho a lareira
acesa, a ceia pronta, o champagne no gelo. Feitas as
contas, sou muito feliz.
À meia-noite e cinco aproximo-me do Presépio e olho o
menino de marfim que parece acenar-me com dois dedinhos
erguidos na luz.
E, sem perceber como, entra-me no coração uma
alegria inexplicável, total, luminosa, trago para a mesa os
melhores bocados, os doces proibidos, acendo as velas
todas e abro desajeitadamente o champagne dos dias
especiais.
Passa-me pela cabeça uma vaga sensação de culpa mas
acho-a descabida, que mal pode haver neste sentimento de
felicidade?
Afinal é de uma festa de aniversário que se trata. E
aquele que faz anos está aqui.

A QUEM O CÉU ORDENA

E para as crianças compras o quê?


Sei lá, uma bola para o Carlinhos e um livro para a
Susana, que ela gosta dessas coisas.
E para o teu marido, nada?
Um cachecol, já comprei. Coitado do Miro que se farta
de trabalhar e chega ao Natal leva um cachecol!
Riu-se, com aquele riso contagioso que fazia com que as
pessoas gostassem dela logo à primeira vista.
Maria da Luz, o chefe chama-te.
(Ai meu Deus, logo hoje que eu queria chegar cedo a
casa!) Diga, Chefe.
Era a ver se você quer fazer serão. Era preciso conferir
aquela mercadoria ali do sector 3 e com esta história do
Natal anda tudo de rabo no ar para sair cedo...
Lá porque eu sou risonha, todos pensam que eu sou
parva, não é, senhor Azevedo? Tenho que telefonar ao meu
marido para dar o jantar às crianças. Posso? Ai, ai!
Claro, Maria da Luz. Use o meu telefone. E sempre são
cinquenta euros, pagos ao contado no final da noite...
Como é que uma pessoa com o ordenado mínimo pode
dizer que não a mais cinquenta euros, três dias antes do
Natal! Uma prendinha melhor para as crianças e é verdade,
pagar o bordado da blusa à Milú, aquela dívida de vinte
euros, uma fantasia de que se envergonhava, uma vaidade
daquelas, sem o Miro saber... Amanhã vou lá pagar.
A Maria da Luz não me fazia um favor?
Ó senhor Azevedo, não abuse.
É que amanhã é sábado, eu vou para fora e era preciso
convidar o padre para a inauguração do refeitório. O senhor
Director quer que ele venha benzer...
E porque é que não vai lá o senhor Director? Ora essa!
Deixou-me um cartão, mas eu não posso.
Bom, dê cá.
Os padres intimidavam-na. Lembrava-se de ser criança
e ter que inventar pecados para o padre não ralhar. Depois
era a penintência e essa parte ela gostava. Ficava ali no
sossego da igreja, a perder a conta às ave-marias, com
tantos pensamentos que naquela paz teimavam em tomar-
lhe conta da cabeça. Já rezei sete, ou oito? Bem, rezo mais
cinco e assim fica a penitência cumprida de certeza. E
voltava a dar consigo longe dali, ave-maria, se eu pudesse
comprar aqueles lápis de cera iguais aos da Emília, que
pecado cobiçar as coisas alheias, e isto no meio da
penitência, pronto, o melhor é rezar outras dez, já fico
despachada.
No dia seguinte, com os seus cinquenta euros, bem
seus, ganhos sem jantar e a cair de sono, Maria da Luz saiu
de manhã para pagar a blusa à Milú e ver umas coisinhas
para as crianças. Levava na carteira de plástico o cartão do
director para o padre, o passe social e a nota inteira de
cinquenta euros. Foi a Milú que ao trocar-lhe a nota
comentou estas rica, ou quê? Eu tinha-te dito que não era
pressa, mas agora no Natal cai sempre bem... e depois lá se
encheu de coragem e passou na igreja que era perto.
Por onde é que se entra para falar com o padre? Nunca
percebi nada disto! E hesitou na porta principal mas por
sorte saiu um sacristão com um papel para afixar na porta
que dizia, roupas para os pobres da paróquia, entregar no
n° 3 da Rua dos Priores.
Faz favor...
Na sacristia às quintas de manhã se é roupas, está aqui
escrito.
Não, queria falar com o senhor Padre.
Não está.
É que eu tenho um cartão. O director quer que ele vá
benzer o refeitório da fábrica... lá onde eu trabalho.
Desconfiado, o homem encarou-a. Mas Maria da Luz
com o seu sorriso infalível estendeu-lhe o cartão.
Bom. Eu entrego. E desapareceu.
Foi então que ela viu a mulher que chorava. Com a cara
virada para a parede, soluçava baixinho, tão desamparada e
só, que Maria da Luz, sem saber o que fazia, abraçou-lhe as
costas, não chore, não chore, o que é que tem.
A mulher mostrou-lhe um sorriso devastado pelas
lágrimas e pela desgraça e murmurou:
A menina não ligue. Ninguém me pode valer. Nem
Nossa Senhora em quem tenho tanta fé... Fui-lhe pedir, mas
ela não me ouviu...
Mas o que é, meu Deus, o que é?, e era como se aquela
aflição já fosse sua e as lágrimas já lhe vinham aos olhos,
sem saber porquê.
É a renda do quarto, menina. Tinha de pagar ao dia 8.
Mas este mês, com o Natal, ninguém me compra os bolos, é
só na pastelaria... Hoje são 22, se eu não pagar até amanhã
a senhoria põe-nos na rua, não é por mim, é pela minha
filha...
Mas a sua filha não ajuda?
Coitadinha, ela tem 18 anos, mas... bem... não é normal
e não anda...
Valha-me Deus, mulher. E é muito?
É muito, minha menina. E eu não sei pedir. São trinta
euros...
Maria da Luz, num clarão de alegria, viu dentro da
carteira de plástico as três notas de dez euros, que Milú lhe
dera de troco. E com o coração a bater abriu a carteira,
nervosa de tanta pressa, e entregou o dinheiro à mulher.
Tome, tome, vá pagar a sua renda. Mas primeiro entre
na igreja e agradeça. Nunca mais diga que Nossa Senhora
não a ouve.
Quem falara pela sua boca?, pensava Maria da Luz no
autocarro. Quem é a senhora?, dissera a mulher, consciente
de que lhe acontecia um milagre.
Quem era ela naquele momento? Como se atrevera a
dar todo o seu dinheiro a uma desconhecida? Não sabia.
Não queria saber. Ria-se só de pensar que se não tivesse
levado o passe teria de vir a pé para casa. Nunca mais se
lembrou dos presentes das crianças. Invadia-a uma alegria
tão grande que não conseguia explicar. Não continha o riso
e o choro, e no autocarro olharam-na com dó, pobre louca.
Ave-maria, cheia de graça, não posso, não posso ter a
pretensão de pensar que me incumbiste de uma missão,
que nada foi por acaso, o serão, o cartão para o padre, o
troco da Milú. Mas então como é que eu, que não tenho
nada, fui capaz... Não era a mim que o céu ia encarregar de
coisa nenhuma. Eu, que nunca fui capaz de rezar uma
penitência direita, que me desculpo com as crianças para
faltar à missa, que tenho medo
dos padres...
E ria, já na rua, debaixo de uma chuva grossa que
começara a cair e não sabia se era chuva ou lágrimas o que
escorria no seu rosto lavado.
Não sei o que foi isto, mas nunca me senti tão bem. E
vou receber multiplicado por mil o tão pouco que dei. Sei
que vou. Agora ou num Natal qualquer. Porque Deus não
deixa que falte nada àqueles a quem o céu ordena. E não
me posso esquecer de deitar o bacalhau de molho para a
consoada. Bem bom, o bacalhau. Bem alto. Oferecido ao
Miro por aquele cliente da camisaria, Deus lhe pague em
dobro, que este Natal vai ser o melhor da minha vida.

EU VI O MENINO JESUS

Era em baixo, na grande sala com lareira, que acontecia


tudo. Em cima eram os quartos das crianças, com janelas de
guilhotina abertas sobre o Alentejo a perder de vista sem
uma casa no horizonte. Essa solidão tornava mágico aquele
lugar e nós, as crescidas, gostávamos de imaginar que por
ali passavam os anjos, os fantasmas e os cavaleiros das
histórias. Nas férias de Natal vinham os dias entre todos
maravilhosos, envolvidos no cheiro quente e doce das filhos,
o acre do musgo do presépio, o festivo das velas a pingarem
de cera as agulhas do pinheiro novo. Eu era a mais nova das
crescidas, com cinco anos e meio de sonhos, de fadas, de
mistério. Tinha ficado a tremer de excitação com o cair do
crepúsculo, quando o Auto chegou da aldeia para nos
brindar com a sua representação medieval: um homem
vestido de Nossa Senhora, as canções guturais do princípio
dos tempos e o uníssono dos bordões na tijoleira encerada
de fresco. À noite a ansiedade aumentou, na hora fantástica
de aguardar a chegada do Menino Jesus e o seu cortejo de
anjos que traziam os presentes. Não conhecíamos o Pai
Natal. A nossa mitologia infantil não tinha assimilado aquele
gordo vestido de vermelho que aparecia nos postais
chegados do estrangeiro. Era o Jesus que vinha
recompensar o nosso bom comportamento ou castigar as
birras com pedaços de carvão embrulhados em papel
vistoso. À noite, na véspera do grande dia — só veríamos os
presentes de manhã —, ficávamos a falar baixinho, a
entalar os pés descalços debaixo da camisa de noite e a rir,
a rir, como se os anjos nos fizessem cócegas com a ponta
das asas. Vai lá ver se Ele chegou. Eu?
Não tens coragem? Claro que tenho.
Foi preciso juntar todas as forças, controlar os joelhos
que tremiam, pousar os pés descalços de um jeito especial
nos degraus de madeira velha, que rangia. A meio da
escada, uma janela em forma de vigia abria para a sala um
bonito vitral. Espreitei, sem coragem de continuar a descer.
Na lareira ardiam as últimas brasas. A árvore de Natal fazia
uma sombra na parede. Os embrulhos estendiam-se pelo
chão entre sapatos de todos os tamanhos. E, por entre os
presentes, pisando as brasas com os pezinhos descalços,
estava um menino loiro, luminoso, de camisinha azul. O
meu coração parou, soube que tinha de conter o grito que
me estrangulava. O relógio da sala deu uma badalada e o
Menino desapareceu. Ficaram os embrulhos, o pinheiro, as
brasas apagadas e o meu coração para sempre
deslumbrado. Subi a correr e como pude, contei. As
gargalhadas das crescidas, das verdadeiras crescidas, não
pararam de me humilhar.
És uma parva. Não sabes que são os pais que compram
os presentes?
E a mim que me importava! Os pais, os tios, os avós,
mas era o Menino que vinha dar-lhes aquele toque mágico
com as suas mãozinhas de cristal.
Eu é que sei. Eu vi.
Às vezes nestes Natais modernos, com tão poucas
lareiras e tão pouco mistério, dou por mim a desejar que
algum dos meus netos sinta o esvoaçar da camisinha azul e
ganhe para toda a vida a força poética da imaginação.
O COMBOIO

A senhora Casimira deixou-se morrer de tristeza, sem


perceber porque é que a vida lhe pregara uma partida
daquelas.
Naquele tempo as vilas do interior de Portugal eram
lugares isolados, esquecidos lá onde o diabo perdeu as
botas, e Vilar de Dume, apesar de elevada a vila por foral de
D. Diniz, continuava entregue ao seu próprio destino.
Todos amanhavam as suas pequenas courelas, como é
de uso no Norte, e tiravam da terra e do gado o necessário
para o sustento. E porque a necessidade aguça o engenho,
tinham desde tempos antigos organizado alguma vida
comunitária, como o forno do pão, a Casa das Crianças, que
deixava as mães livres para trabalhar nos campos, e um
fundo económico para os funerais. Esta era uma iniciativa
para a qual todos contribuíam de boa mente, na certeza de
que um dia dela iriam tirar proveito.
A vida social resumia-se aos encontros domingueiros na
missa do senhor padre Albaninho, na linda igrejinha do
século xii, dedicada a São Martinho de Dume, padroeiro da
vila.
O senhor padre Albaninho era assim chamado com
carinho e respeito pela população, que o considerava
exemplar: tanto percorria montes e vales a dorso de burro
para levar os últimos sacramentos a algum infeliz que se
finava, como se sentava a jogar às damas com os velhotes
da terra no café São Martinho.
Um dia chegou à mesa da jogatina com uma novidade:
recebera carta da senhora viscondessa de Vilar, que
anunciava a sua chegada e lhe pedia que arranjasse pessoal
capaz de lhe arejar e limpar a casa, e preparar refeições.
Pensava em duas mulheres internas e outra externa para
ajudas e recados, e um homem que lhe guiasse a charrette
e tratasse os cavalos.
Era uma notícia de arromba. Quando chegou a casa,
depois das damas, já tinha uma fila de mulheres à porta,
prontas a trabalhar no solar.
Não havia rapariga na vila e arredores que não
sonhasse entrar naqueles salões, pisar aqueles tapetes,
mirar-se naqueles espelhos. Não que os tivessem visto
alguma vez, mas o povo fala, não é?
O senhor padre Albaninho teve que pôr em prática todo
o seu bom senso, a razão acima do coração, e fazer uma
escolha muito criteriosa. As bonitas ficaram de fora, porque,
ele não disse mas dizia a carta, a senhora viscondessa viria
acompanhada do senhor viscondinho, que andaria pelos
vinte anos, e já se sabe que ninguém desconfia de ninguém,
mas podendo evitar, não é verdade? Escolheu então duas
mulheres bem casadas, boas donas de casa, sérias e
trabalhadeiras, que tomariam desde já a seu cargo a
limpeza e o arejo. As chaves tinha-as ele numa gavetinha
secreta da bancada da sacristia; mandou fazer cópias ao
ferreiro senhor Diniz, cujas entregou à Joaquina, a mais
velha das duas, para que avançassem com o trabalho.
Um problema, porém, se impôs desde logo ao senhor
padre Albaninho: nem a Joaquina nem a Aurora se
consideravam suficientemente habilitadas para cozinhar
para mesa tão ilustre.
Faziam um caldo de couve galega, um borrego assado
no forno comunitário pela Páscoa, uma arrozada de miúdos
de galo e pouco mais. E manjar branco, nos dias de festa.
Foi então que a Aurora se lembrou da senhora Casimira,
melhor cozinheira não havia em toda a vila, a Joaquina
confirmou, mas logo garantiu que não iam conseguir
arrancá-la de casa, desde a morte do marido era uma viúva
recolhida e chorosa, e já nem sequer ia cozinhar à Casa das
Crianças, como costumava antigamente, nem a viam a
tratar dos coelhos ou a amanhar as couves. Só a caridade
das vizinhas lhe punha alguma coisa na mesa, que ela
perdera o interesse pela vida. Há-de estar fraquinha, disse o
padre. Ao contrário, senhor padre Albaninho. Dizem que
engordou tanto que se envergonha de sair à rua, como é
que vai atrever-se a mostrar-se à senhora viscondessa? Há-
de ser doença, diagnosticou a Aurora. Vamos visitá-la,
propôs o padre.
Talvez a senhora Casimira sofresse do que hoje se
chama obesidade mórbida, mas naquele final do século
dezanove era apenas uma senhora muito forte para os mais
cerimoniosos, gorda ou gordíssima para os outros.
Foi gordíssima que a encontraram, sentada num banco
onde sobrava por todos os lados, entregue à sua viuvez e às
suas hormonas enlouquecidas.
Com mil delicadezas o padre Albano expôs-lhe o
assunto enquanto as outras duas mulheres iam à horta
buscar o necessário para um caldo e lhe punham a panela
ao lume.
Não há-de chegar nem aos calcanhares das suas
famosas sopas, mas sempre aquece e é de boa vontade,
disse a Aurora.
Ao contrário do que todos esperavam, na carinha gorda
(e bonita à sua maneira) da senhora Casimira, começou a
despontar uma luzinha interior, uma espécie de sorriso, um
ténue brilho no olhar, e ela disse assim:
Eu tinha dois sonhos na vida. Um era ir a Lisboa, mas
desse já me esqueci que o meu Aldo, que Deus tem, nunca
teve dinheiro para tanto. Outro era entrar no solar e ver
aquela cozinha que me disseram que é enorme e tem as
paredes cobertas de tachos de cobre e um regato que lá
corre para lavagens e conforme entra pela boca de uma
pedra desaparece pela boca de outra. Ali se pode pôr o
bacalhau de molho, metido num saco de serapilheira e
muito bem preso nuns ferros que até lá estão para não ir
por água abaixo, ou lavar as mãos quem se consiga agachar
até aquela a bem dizer fonte dentro de casa. São estas
maravilhas que sempre sonhei ver, mas cozinhar de
verdade num fogão de seis bocas de fogo, onde nunca falta
a lenha, era sonho de mais para a minha modesta pessoa.
Agora. Se a senhora viscondessa me aceitar de
cozinheira apesar da minha gordura, eu vou, que não posso
ficar aqui a morrer de infelicidade sem me mexer, à espera
que as banhas me subam à garganta e me esganem de vez.
Deus lhe pague, senhor padre Albaninho. E a vocês, amigas,
que de mim se lembraram e me ajeitaram o caldo, podem
até botar-lhe uma talhadinha de unto, que acham aí na
salgadeira.
E assim se preparou Vilar de Dume para a chegada
histórica da senhora viscondessa e seu filho, vulgo
viscondinho, que viriam dar à terra assunto, trabalho e
luzimento.
A senhora viscondessa aceitou sem problema a gorda
Casimira e à medida que ela e o filho iam provando os seus
petiscos, mais se afeiçoavam àquela mulher de bom
carácter e de tanto talento para o tempero. Afinal foi ela
que ficou interna, porque as outras tinham marido e filhos.
A senhora Casimira não tinha ninguém.
Era a senhora viscondessa uma pessoa
verdadeiramente avançada para a sua época (talvez para
qualquer época) e tinha o surpreendente costume de se
sentar a tomar chá com as suas empregadas todas as
quintas-feiras. Para elas era uma honra tão grande que
combinaram não contar a ninguém com medo do mau-
olhado. Para a dona da casa eram momentos encantadores
em que ouvia as confidências das suas criadas e amigas e
ficava a saber todos os assuntos e novidades da terra:
quem estava de namoro com quem, quem morrera, quem
nascera, que flores enfeitariam o altar de S. Martinho no
próximo domingo.
O viscondinho, que estava de férias, passava às vezes a
provar os incomparáveis bolos da senhora Casimira, a dar
um beijo à mãe, e a dizer uma palavra agradável às três
mulheres. Como era lindo com os seus olhos negros e os
dentes tão brancos, tão certos!
A senhora viscondessa também se abria a uma ou outra
confidência: contou-lhes que decidira voltar a Vilar de Dume
logo depois da morte do marido, mas que não o fizera há
mais tempo pela grande dificuldade de transporte: com
estradas péssimas a viagem de diligência era uma
verdadeira tortura. Mas agora tinha esperanças de que as
coisas mudassem: mexera uns cordelinhos em Lisboa, visto
o senhor visconde ter sido pessoa muito bem relacionado na
corte, e fora-lhe prometido que o caminho-de-ferro viria até
à cidade mais próxima de Vilar. Já não faltavam muitos
quilómetros, e de Vilar até à estação poderiam sempre
utilizar carroça, carruagem ou carro de bois. Seria um
enorme benefício para a terra, talvez alguns viajantes mais
curiosos e instruídos tivessem interesse em visitar a igreja
do século doze que era o orgulho dos Vilarenses. E daí, mais
negócios, mais dinheiros, mais freguesia, um bem
inestimável para a terra.
Prometeu mantê-las ao corrente do progresso das
negociações, pois de longe em longe chegavam cartas de
Lisboa com notícias.
Foi no dia em que o assunto foi abordado à mesa do chá
que a senhora Casimira, levantando os olhos para as
pinturas do tecto, disse:
Será possível que Deus queira realizar os dois únicos
sonhos que tive em toda a vida? O primeiro, que era
conhecer a cozinha desta casa, foi-me dado em braçadas de
fartura, pois nela trabalho e nesta casa moro por muita
bondade da senhora viscondessa aqui presente. E o
segundo, que era ir a Lisboa, quem sabe? Talvez o comboio
ainda seja do meu tempo e eu possa... Mas não quero
pensar nisso. Este velho sonho já estava esquecido lá para o
fundo do baú da minha alma, e não é bom dar arejo a
sonhos requentados.
Mas todas a contrariaram. Se o comboio viesse haviam
de ir todas a Lisboa, não é verdade, senhora viscondessa? E
a senhora a responder, porque não?, porque não?, com o
tempo logo se verá.
Passaram-se anos de uma vida suave, num Vilar de
Dume eternamente esquecido, sem apitos de comboio nem
agitação de turistas. A senhora viscondessa recebia notícias
da corte, que sim, que sim, que o caminho-de-ferro ia
avançar, o viscondinho vinha nas férias de Natal, cada vez
mais bonito, cada vez mais homem, e deixava muito boa
moça com flatos no coração.
Um dia trouxe a notícia de um próximo noivado e
prometeu à mãe que, se já houvesse comboio, o casamento
seria no solar.
A partir daí foi uma roda-viva de cartas, pedidos e
influências: o futuro sogro era chegado ao ministro, como
irmãos, e o assentamento dos carris começou. De boa-nova
em boa-nova, ficou prometido que a obra avançaria até
Vilar de Dume, pois não fazia sentido trazer os ilustres
convidados, fidalgos e damas da corte, em campanas e
carruagens por aqueles dois quilómetros de caminhos
pedregosos.
Começou na Vila um Deus nos acuda de esperanças e
preparativos. As lojas variaram suas reservas, as duas
tasquinhas prepararam-se para poderem ser chamadas de
restaurant (naquele tempo era em francês...), as mães
deram às filhas as arrecadas que tinham pertencido às
avós, os pais regatearam a compra de um lenço novo, de
uma blusa florida.
À senhora Casimira ninguém ouviu uma palavra sobre o
assunto. Via-se que tinha arrumado o seu sonho de ir a
Lisboa muito bem arrumado e só se preocupava em ser a
criada fiel e a cozinheira exímia que havia de encantar as
visitas se elas viessem. Estava agora ainda mais gordinha.
Temendo algum desconforto, a senhora viscondessa
mandara reforçar-lhe as tábuas da grande cama de casal,
mandara encher um colchão novo de folhelho bem
assentado.
Mas o tempo passou e o progresso finalmente chegou a
Vilar, sob a forma de trabalhadores suados que colocavam
os carris de ferro, alegria e esperança de toda a população.
O som vibrante de metal contra metal passou a ser a
música preferida dos vilarenses. O comboio vinha aí, e com
ele a fartura, o progresso, a civilização.
O casamento estava marcado por estratégia de
concerta-ção com o ministro, que garantia determinada
data para a inauguração e respectiva chegada do primeiro
comboio.
Os que vieram para assistir ao acontecimento nunca
mais esqueceriam a beleza da festa.
A senhora viscondessa pagara o fogo-de-artifício e os
fardamentos novos da banda, para que a vila fizesse boa
figura aos olhos dos visitantes. Toda a gente se deslocou à
estação cujo cimento ainda não secara, para ver descer do
comboio, primeira classe, as senhoras de Lisboa, os fidalgos
cortesãos, as crianças de roupas nunca vistas.
O solar encheu-se de vozes, de risos, de movimento. A
Aurora e a Joaquina contrataram mais três mulheres,
incluindo uma ajudante de cozinheira. Criaram-se algumas
quezílias na zona do pessoal entre as empregadas locais e
as criadas de quarto que algumas senhoras trouxeram. Não
faziam elas ideia do trabalhão que as da casa tinham tido a
preparar os quartos, onde nunca faltava a água quente e as
imaculadas toalhas de linho.
Depois, todas se reconciliaram no dia do casamento,
pois não há coração de mulher que se não enterneça
perante a visão de um par de noivos, jovens e lindos,
vestidos a rigor. A senhora Casimira, escondendo a sua
vastidão na sombra da igreja, chorou este mundo e o outro,
todas as suas frustrações e dissabores, mas também e
sobretudo a alegria de ver o viscondinho, que sempre a
tratara tão bem, sem nunca aludir ao seu problema (e esta
generosidade fazia-a soluçar), a casar-se, meu rico menino,
com moça tão fina que parecia uma santa.
Saiu antes do fim da missa, que o padre Albano quis
cantada, foi, no seu passo pesado, até à estação que ainda
não tinha visto, na esperança de olhar para o comboio, que,
evidentemente, não estava lá. Só vinha às sextas-feiras e
partia passados sete minutos, por ser fim da linha e terem
de virar a máquina. Mesmo assim, gostou do que viu. Voltou
para casa, o mais depressa que pôde, através das ruas
desertas, para ultimar os preparativos da boda.
Foi um sucesso. Parece que nem em Lisboa se tinha
visto tanto requinte e tão boa qualidade.
Os noivos saíram no fim do dia, que o amor não teme
estradas escalavradas, nem fazia sentido ficarem uma
semana à espera do comboio. Mas grande parte dos
convidados ficou. Foram dias difíceis para o pessoal, a
senhora Casimira mais a sua ajudante deram lindamente
conta do recado, e até houve um dia em que um fidalgo
galante exigiu a presença da cozinheira para ser felicitada.
Mas a cozinheira não veio. Escondeu-se no quarto a
pretexto de enxaqueca, como ouvia dizer à Joaquina que as
damas faziam constantemente. Uma gentil senhora
mandou-lhe até sais para cheirar. A carinha gorda, sem
rugas, da senhora Casimira abriu-se numa gargalhada. Ela e
a Joaquina, perdidas num ataque de riso.
Tudo correu pelo melhor. Na sexta-feira o comboio levou
os convidados, a estação encheu-se de povo para vê-los
partir e até a senhora Casimira, disfarçando a gordura com
uma colega de cada lado, não resistiu a ir espreitar o
comboio. Viu-o de longe, enrolado em fumos brancos, toda
aquela agitação da plataforma, as malas, as mãos
acenando, e, acima de tudo, aquele barulho lindo de
viagem, aquele ritmo de sonho, catrapan, catrapan,
catrapan, que soava aos seus ouvidos ainda depois da
última carruagem se ter perdido na curva, entre
castanheiros.
Depois de ter visto o comboio já nem era Lisboa o que
mais a atraía. Era aquele mistério com rodas de ferro que
levava as pessoas envoltas em bruma para um destino
desconhecido, distante e feliz.
A surpresa veio na quinta-feira seguinte. A senhora
viscondessa recebera um telegrama do viscondinho e quis
partilhar com as suas empregadas e amigas, pelo que repôs
o hábito de tomarem chá.
Começou por ler-lhes o telegrama em que o viscondinho
dava conta da sua felicidade e agradecia à mãe e às criadas
o esforço e o êxito alcançado.
As três mulheres não esconderam a comoção, enquanto
bebiam chá por xícaras de porcelana com recorte dourado e
comiam o incomparável bolo de noz com ovos-moles em
que a Casimira se ultrapassara.
E por fim a senhora viscondessa disse, quero agradecer-
lhes, a todas três, o trabalho extraordinário que fizeram.
Vou aumentar-lhes o ordenado e mandá-las conhecer
Lisboa. Agora que já temos o comboio é a coisa mais
simples do mundo. Uma pessoa da minha confiança vai
buscá-las à estação e acompanha-as ao hotel. Leva-as a
vários locais, Jardim Zoológico, Terreiro do Paço, Passeio
Público, e volta a metê-las no comboio na sexta-feira
seguinte. E, claro está, os vossos maridos também vão.
Eu, começou a Aurora. Nós, disse a Joaquina. Comboio,
sussurrou a Casimira.
A senhora viscondessa ainda falou um pouco sobre o
Jardim Zoológico, de como tinha sido fundado em 1884,
ainda era novidade, e dos animais exóticos que abrigava, de
girafas a catatuas, mas percebeu que era inútil qualquer
explicação: elas estavam demasiado emocionadas para
apreender fosse o que fosse. Nem conseguiram agradecer,
para além das lágrimas misturadas com bolo de noz.
Então está assente: vão de amanhã a uma semana e eu
ajudo-as a escolher o que hão-de levar.
A senhora Casimira perdeu o sono. Mal tentava fechar
os olhos vinha-lhe à memória aquele ruído lindo, catrapan,
catrapan, catrapan, e descobriu que era o seu coração,
apaixonado
pelo som do comboio, pela expectativa do comboio,
pela excitação do comboio.
Faria um bom farnel que chegasse para todos, frangos,
lombo assado, pão, bolos, vinho para os homens, uma
moringa de água da Fonte Boa.
Levava as noites a magicar nestas coisas, no domingo
foi a casa meter nas orelhas as meias-libras que a falecida
madrinha lhe dera pelo casamento, e na segunda-feira
pediu licença para sair e foi comprar um xaile de merino.
Preto, é claro, que o luto de uma viúva é sagrado. A senhora
viscondessa recomendara sapatos já batidos, para andarem
à vontade nas ruas de Lisboa, mas a Casimira achou que
teria de ter uns novos para a viagem, para pisar o chão do
comboio, com reverência e deslumbramento. Comprou-os
de presilha e tacão seguro mas houve que mudar o botão,
que o seu pé tinha o peito alto, enfim, gorducho.
Todas as noites, nas poucas horas que conseguia
dormir, sonhava com o comboio e percebeu que aquilo era
um estado de paixão pelo gigante de ferro com as suas
brumas de vapor, o seu resfolgar de bicho, e o coração,
catrapan, catrapan, catrapan.
Chegou o grande dia.
Despediram-se com beijos e lágrimas da senhora
viscondessa, como se fossem descobrir o caminho marítimo
para a índia, e dirigiram-se à estação, com as malas, a cesta
do farnel, o garrafão do vinho verde e duas moringas de
água fresca.
Parecia que o comboio não ia chegar nunca. Talvez não
venha, horrorizava-se a Casimira. Já sentia um frio na
barriga quando ele chegou. Majestoso, fazendo-se anunciar,
até parar, com ranger de ferros e baforadas de alívio.
Joaquina e Aurora subiram primeiro. Os maridos
passaram-lhes as bagagens e ajudaram a senhora Casimira
a subir.
Desfalecendo de nervos lá galgou os degraus altíssimos
para se confrontar com o inesperado: a porta era
estreitíssima e o seu corpanzil não cabia. Nem de frente,
nem de lado, nem de costas. Por mais que os maridos
empurrassem de baixo e as colegas puxassem de cima.
Como um amante cruel, o comboio da sua paixão rejeitava-
a. Os sete minutos esgotavam-se, o factor lançou o primeiro
apito. Então o marido da Joaquina, decidido, a ver que
perdia a viagem, puxou com a ajuda do outro marido a
senhora Casimira para o cais, subiu numa pirueta e o
comboio arrancou.
Aturdida, sem compreender o que lhe acontecia,
Casimira cambaleou até ao único banco da estação, e ali
ficou, a ver o seu sonho dissolvido em fumo, na curva, entre
castanheiros.
Quando conseguiu raciocinar dirigiu-se a casa, não ao
solar, mas a casa, subiu os degraus, trôpega como uma
velha sonâmbula, e, enrolada no xaile novo de merino,
meteu-se na cama, à espera da morte.
UM CÁLICE DE PORTO

Depois da morte súbita do marido, um médico no auge


da carreira, vítima de ataque cardíaco, Alice ficou à beira da
depressão. Vestiu-se de preto, meteu-se em casa e disse às
amigas que nunca mais na vida iria amar outro homem.
Mas, à medida que o tempo passava, foi pensando com
mais insistência nos belos olhos de Paulo, endocrinologista,
colega do marido, por quem tivera, dois anos atrás, uma
secreta paixão.
Foi consultá-lo, sob pretexto de alguém lhe ter dito que
a sua tiróide poderia ser causadora de todo aquele cansaço,
sonolência e desinteresse pela vida.
Paulo, que, por ser também psicólogo, era o ai-jesus das
senhoras de meia-idade, tentou tirar nabos da púcara para
entender um pouco a cabeça da sua paciente. Ela vinha vê-
lo semana após semana (já que ele não lhe cobrava a
consulta por se tratar da viúva de um amigo e colega) e,
com o correr do tempo, concluiu que Alice era labiríntica
mas muito interessante e particularmente bonita nos seus
elegantes quarenta e poucos anos.
Ela não tardou a esquecer o marido e, terapia para aqui,
confidência para ali, começou a surgir um clima propício a
beijos e carícias pudicas.
Às amigas Alice dizia que estava a tratar com êxito o
seu hipotiroidismo e não tardaria em sentir-se melhor e a
poder dedicar-se à culinária experimental que era o seu
passatempo favorito.
Andava a magicar em pratos que pudessem seduzir
Paulo com aromas raros, sabores surpreendentes e ervas
afrodisíacas.
Começou por convidá-lo para uma refeição ligeira, um
soufflé de brócolos e queijo, com um toque de mostarda e
pimenta-de-caiena. O seu defunto marido, Alberto, era
vegetariano, e ela especializara-se em pratos onde nem
carne nem peixe nem marisco podiam dar uma nota mais
epicurista à sua mesa.
Da segunda vez aventurou-se numa receita pessoal de
paella onde os mexilhões, o frango, as lulas, as gambás e as
ervilhas conviviam em cama de arroz com as três cores dos
pimentos, o açafrão, o louro e o funcho.
Foi um sucesso. Paulo era um verdadeiro apreciador e
trazia sempre os vinhos, de que era um conhecedor
encartado. Os magníficos néctares portugueses, das
melhores regiões e das melhores colheitas, eram objecto de
descrições quase líricas que deixavam Alice em estado de
paixão.
Cheirando e mirando o copo contra a luz, ele falava de
aromas de bagas silvestres colhidas de madrugada ou de
como, pelo sabor intenso e profundo, se adivinhava um veio
de baunilha, um toque achocolatado, um sopro de brisa
carregada do hálito da flor dos laranjais. Um vinho não se
bebe, sonha-se, dizia ele. Um vinho fala do solo, da encosta,
do sol, da idade da vinha, da sombra e do calor, das chuvas
tardias, dos odores do campo. Um vinho é arte abstracta.
Há vinhos que, de tão expressivos, de tão intensos, se
deveriam comer de garfo e faca. Há vinhos, como diz o Eça
de Queiroz no Mandarim, que para beber o segundo copo se
é capaz de matar o próprio pai.
Alice teve um arrepio. Ai, as coisas que tu dizes!, e
Paulo suspeitou que ela nunca lera O Mandarim.
Os meses passavam e os jantares multiplicavam-se.
Mas as técnicas de sedução de Alice, mesmo temperadas de
malagueta, curcuma, caril e açafrão, não pareciam resultar.
Depois da refeição ele discorria sobre a excelência da sua
arte culinária, embalava-se na poética enológica, recordava
o amigo falecido através de episódios das suas vidas de
estudantes, beijava Alice com timidez e partia.
Ela sabia-o divorciado. Não lhe parecia que houvesse
outra mulher: ele mostrava-se disponível e nunca recusava
um convite.
Era já um ritual. E os jantares, que começaram por se
realizar apenas aos fins-de-semana, já aconteciam agora
mais duas ou três vezes em dias úteis. Na mesa de Alice,
sempre posta a rigor, desfilaram os pratos regionais, as
massas italianas, a cozinha francesa. E as lagostas, as
perdizes, a lampreia, o salmão, o bacalhau a que ela dava
tratos prodigiosos, acendiam o pecado da gula, mas não o
da luxúria.
Paulo sentia-se um traidor. Alice era a viúva do seu
colega e amigo e apesar de ceder a beijos e carícias
superficiais, alguma coisa o impedia de dar o derradeiro
passo, um temor, um constrangimento, como se Alberto o
observasse.
Alice não compreendia. Sentia-se bonita, sensual,
medianamente culta e passava os seus dias rodeada de
livros de receitas, ou a correr supermercados e lojas da
especialidade em busca de matérias-primas, de legumes
frescos, de especiarias invulgares. Acreditava que um dia
descobriria o paladar, o aroma, o tempero que haviam de
conduzir Paulo à sua desconsolada cama de viúva.
Paulo apercebia-se, era bastante óbvio, de que Alice
ficara bem na vida, depois da morte do marido. Fizera obras
na casa de Lisboa e convidava-o às vezes para uma bonita
casinha à beira-mar. Talvez tivesse recebido um seguro de
vida, Alberto era previdente, ou fosse a única herdeira do
pai, proprietário de retrosarias na Rua da Conceição. E
assim sendo, Paulo nem sequer podia, perante a sua
consciência, apresentar a desculpa de querer proteger Alice
das incertezas do dia-a-dia. A grande verdade é que não
estava apaixonado por ela e começava a sentir-se cansado
dos seus avanços e das piadas dos colegas, mas a
excelência dos cozinhados de Alice ainda o amarrava à sua
mesa. E também lhe agradava que ela se revelasse, noite
após noite, um público fiel para os seus devaneios líricos
sobre os vinhos, aqui a cor densa com requebros
purpurinos, ali um aroma com percepção a madeira de onde
o fruto se quer soltar, além o músculo, a elegância, o
subtexto de amora silvestre.
Alice desesperava na busca da receita fatal que lhe
mataria aquela outra fome que lhe incendiava o sangue. Um
dia, era o tempo da caça, pensou ter encontrado uma
primeira hipótese da tentação perfeita. Para ser sincera já
pensava neste prato há bastante tempo, mas retraía-se por
ter sido este o último jantar de Alberto, um dia em que ele
resolvera quebrar a dieta vegetariana e ela se sentira com
disposições atrevidas, fruto do jejum sexual que o marido
lhe impunha há quase um mês. Ele comeu mais do que a
conta e foi no acto de amor que se seguiu que ele se finara
em cima dela. A partir daí, como é natural, considerou
proscrita a empada de lebre. Mas se funcionara com
Alberto, sempre tão desligado dos seus deveres conjugais,
porque não funcionaria com Paulo? Encheu-se de coragem,
ultrapassou os escrúpulos e meteu mãos à obra.
Foi com um sentimento de urgência no coração que
amanhou a lebre e a lavou num alguidar com vinho branco
para aproveitar todo o sangue. Cortou-a em pedaços,
desprezando a cabeça, e pô-los num tacho com cebola,
alho, alho francês, aipo, salsa, louro e alecrim. Um pouco de
azeite, um pouco de banha e toucinho em pequenas tiras
forneceram a gordura necessária ao cozinhado.
O tacho começou a rescender e aquele cheiro
maravilhosos beliscava-lhe a alma como um remorso. Mas
iria até ao fim. Regou com aguardente velha e flambeou.
Depois o vinho branco, com o tacho destapado para
evaporar o álcool, por fim o consommé. Baixou o lume,
tapou. Iria cozinhar devagar, dando-lhe tempo para
preparar a massa quebrada com que forrou a forma,
deixando um terço para a tampa.
Lavou e cortou cenouras em pequenos cubos. Desfez o
fígado da lebre num pouco de vinho do Porto e reservou.
Reparou que o coração lhe batia mais forte quando
retirou os pedaços de lebre e os desossou cuidadosamente.
Tanto trabalho não podia ser em vão.
Retirou um pouco do molho do tacho onde desfez a
farinha de araruta e adicionou o vinho com o fígado. Levou
ao lume e engrossou. Reservou algum molho para servir na
molheira. Juntou então os pedaços de lebre, que estava
tenríssi-ma, temperou de sal e pimenta, provou, envolveu,
retirou do lume.
Enquanto arrefecia, pôs-se a fazer a sobremesa: dezoito
gemas, meio quilo de açúcar em ponto de fio no tacho de
cobre e uma mistura de amêndoas, passas e coco, tudo
finamente cortado. No açúcar foi deitando alternadamente
as gemas batidas e a mistura de frutos. À volta colocou
pedacinhos de manteiga para não pegar. E por fim, quando
começou a cheirar a ovos queimados, despegou o doce e
virou-o para um prato de pyrex para não quebrar com a
calda a ferver.
Envolveu-a um aroma de casa honesta, de infância, de
bem-estar.
Então foram horas de acomodar a lebre e o seu molho,
cujo cheiro a ervas evocava lugares secretos e esconderijos
da mata, na forma forrada de massa. Cobri-la com a
restante massa, decorar a empada, metê-la no forno.
Passaram-lhe os escrúpulos. Os seus brios de boa
cozinheira sobrepuseram-se a sentimentalismos descabidos.
Quando Paulo chegou já encontrou Alice com o vestido
preto de sablé, os diamantes nas orelhas e as sandálias de
salto alto. Maquilhada e penteada a rigor. Perfumada com
sábia discrição. Nem um traço da cozinheira na anfitriã bela
e repousada.
Paulo só pôde admirá-la.
As amêijoas à Bulhão Pato da entrada, abertas em
azeite com alho e coentro, sem suspeita de areia, abriram-
lhe o apetite para a maravilhosa empada de lebre. Os ovos
queimados da sobremesa deixaram-no com a habitual
disposição lírica e prepararam-lhe o paladar para o delicioso
café de balão, uma mistura sábia de robusta e arábica que
lhe acordou os sentidos e a sagacidade.
Discorreu poeticamente sobre a refeição e o vinho e
Alice só esperava o momento certo, nem demasiado cedo
nem tarde de mais, para se retirar e vestir o deshabillé que
comprara para esta noite.
Num tom casual disse, Paulo, bebe um digestivo, um
conhaque, um cálice de Porto, enquanto vou pôr-me mais à
vontade. Este vestido é decotado mas a seda é quente. E o
jantar, o vinho...
Queres que levante a mesa?
Estás proibido. Fica tudo para amanhã.
Saiu da sala. Paulo foi à garrafeira e escolheu um Porto
Vintage 1980. Lembrava-se do seu sabor ligeiramente
aberto e frutado, da sua cor de caramelo com um toque de
cereja e de rubi, mas quando o deitou no copo de prova e o
observou a contraluz, apercebeu-se de que alguma coisa
estava errada: a escorrência do líquido no vidro não deveria
ser aquela. O vinho colava-se à parede do copo de uma
forma gordurosa, estranha. Não o provou.
Quando Alice voltou à sala, de roupa íntima e libido
acesa, Paulo não estava lá. Percorreu a casa, intrigada a
princípio, desesperada depois. Tanto trabalho para nada. A
fúria apoderou-se dela.
Pôs-se a meter no frigorífico as sobras perecíveis e não
resistiu, para acalmar as carências, a mais uma dose do
doce de ovos. Ficou a ruminar o coco com os dentes
acabados de lavar.
Horas depois deitou-se, após ter despejado sem respeito
o resto da segunda garrafa, considerada por Paulo quase
sagrada de tão rara e deliciosa, perfumada de bagas
silvestres e... bagh!, que se lixe, ele e os seus poemas
vinícolas.
Quando se deitou, no pressuposto de que iria ter
pesadelos, chorou um pouco na almofada de penas e fechou
os olhos a pensar no amor que não aconteceu.
Foi então que percebeu, mesmo de olhos fechados, que
havia uma alteração da luz. Sentou-se na cama, assustada.
E na luz azul que iluminava agora o quarto viu Alberto
sentado aos pés da cama, com o pijama com que
estrebuchara em cima dela.
Puta, disse ele. Puta assassina! Do lugar onde estou
posso ver tudo, presente, passado e futuro, e sei agora que
desfizeste seis comprimidos de nitroglicerina e os
misturaste no molho da minha primeira fatia da empada de
lebre com que me seduziste naquela noite fatal. Eu tinha-te
explicado que esse medicamento, que se mete debaixo da
língua na iminência de um ataque cardíaco, mata quem não
sofre do coração. Baixa a tensão até ao que literalmente se
pode classificar de ponto morto. E tu mataste-me para ficar
com o Paulo, mas o teu crime vai ser descoberto. Montei-te
uma armadilha e vais ser presa. Vais pagar o teu crime,
assassina de merda!
Em segundos ficou apenas a luz pálida da mesinha-de-
cabeceira e nem suspeita de luz azul nem de Alberto-fantas-
ma.
Porra, pensou Alice de manhã. Que pesadelo horrível!
Eu sei que não posso empanturrar-me de doces ao jantar. E
todo aquele vinho de bagas não-sei-o-quê...
Aqueceu o café, que sobrara no balão, e dispôs-se a
arrumar a mesa e a lavar a loiça.
Almoçou os restos do jantar, desconsoladamente. Não
lhe saía da cabeça o sonho horrível e assustador que lhe
acendera o quarto de azul. Um pesadelo, repetia, já a falar
alto pela casa. Só pode ter sido um pesadelo.
Mas não era.
Soube-o quando a polícia lhe bateu à porta e a levou
para a prisão preventiva, sob suspeita de ter envenenado o
vinho do Porto.
Paulo tinha apresentado queixa. Levara o copo em cujas
paredes o vinho corria de forma gordurosa e a análise do
líquido comprovara a existência de nifedipina, um
medicamento vendido em gotas, com efeito semelhante ao
dos comprimidos de nitroglicerina.
Foi o Alberto para se vingar, disse ela. Ele é que é
médico, ele é que sabe dessas coisas.
De cabeça perdida, metendo os pés pelas mãos e em
pânico por ter sido visitada pelo fantasma do marido,
explicou que Alberto se queria vingar, por estar convencido
de que ela o assassinara. Continuava a jurar que não queria
matar Paulo mas sim casar com ele, que não podia
adivinhar qual o digestivo que ele iria escolher, a menos
que envenenasse toda a garrafeira. Que desconhecia a
existência de tal substância, coisa de médicos,
evidentemente.
Não ficou provado que tivesse obtido a nifedipina, mas
sim que dois dias antes da morte de Alberto (o farmacêutico
do bairro, que a conhecia, confirmou), Alice tinha comprado
nitroglicerina com uma receita do marido (cuja assinatura
se revelou falsificada) pretextando que ele estava com
problemas cardíacos.
Uma colega cardiologista veio garantir que um mês
antes de morrer, Alberto fizera um checkup completo e o
electrocardiograma com prova de esforço revelara um
coração sem cansaço nem defeito.
Acabou por confessar que tinha morto o marido, mas
garantiu que jamais lhe passara pela cabeça assassinar
Paulo. Insistiu na história do fantasma de Alberto e da sua
vingança, o que fez sorrir o tribunal que viu nela uma
potencial serial killer.
Apanhou vinte e cinco anos e ficou na cadeia a comer
ossos de frango guisados com massa, tudo aguado e sem
qualquer tempero, e a receber a visita nocturna de Alberto
que lhe vinha contar como deitara a nifedipina no copo de
Paulo quando ele se virara de costas para pôr um CD
romântico no leitor. O que significava que estava disposto a
dormir com ela, o desgraçado.
Enchia-lhe a cela de azul, chamava-lhe puta assassina e
desaparecia.
O Paulo não veio nunca visitá-la.
A MORTE DO UNICÓRNIO

Dentro de um campo de margaridas que um pequeno


lago prateado iluminava, o Unicórnio branco, de crinas
doces e olhos azuis, parecia só, comovedor e mágico. No
canto superior direito da página voavam pombas e, olhando
melhor, cintilavam estrelinhas de orvalho nos ramos dos
abetos. Não havia vento: nem as folhas das árvores nem as
crinas de seda se agitavam e na superfície do lago prateado
não passava suspiro ou arrepio.
A menina ficou muito tempo com os olhos presos
naquela imagem. Eram as páginas centrais de um bonito
livro de contos — mas não era a história que lhe
interessava: o Unicórnio na sua paisagem de sonho que um
raio de luar transfigurava é que lhe fazia transbordar o
coração.
Olhou pela janela. O Unicórnio não poderia viver entre
aqueles prédios feios nem tão pouco na quinta, entre
pinheiros queimados. Devia haver algum lugar, ilha deserta
ou resto de paraíso onde o mítico cavalinho branco pudesse
erguer ao sol o seu chifre torcido como um búzio.
O que é que está a ler?, perguntou a madrasta. Quando
é que acaba com essas criancices e estuda alguma coisa de
concreto, matemática, geografia e assim, aquelas matérias
em que tem piores notas.
Não era má pessoa, a madrasta. Muito prática e
arrumada, boa dona de casa e sempre directa ao assunto.
Ao princípio a menina não gostava daqueles modos
despachados que não condiziam com o seu temperamento
sonhador. Mas quando no colégio comparavam madrastas, a
dela nem era das piores. Havia as que batiam, as que
castigavam, as que faziam queixinhas ao pai, as que só
davam os restos do jantar e para elas bife com batatas
fritas, as que davam ordem à criada para não lhes arrumar
o quarto porque os meninos tinham que se habituar, e
quem é que se entendia naquela confusão? Desarrumou,
não foi? Agora que arrume. Havia as que mexiam nas coisas
da escola e vinham com arzinhos misteriosos a bater na
palma da mão com o postal cheio de corações que o
namorado do dia tinha metido no livro de inglês. E isto, o
que é? É para estes disparates que anda na escola? Vou
mostrar ao seu pai, pode ter a certeza! Havia as que não
deixavam falar ao telefone, punham cadeados e tudo, e
essas evidentemente eram as piores.
Este livro não lhe ensina nada, continuou a madrasta.
São tudo balelas, coisas demasiado infantis para a sua
idade. Como é que a menina quer crescer? Acorde, ouviu?
Era a palavra que a menina odiava. Acorde, acorde, acorde,
como se ela fosse uma sonâmbula, uma incapaz, uma
bronca. E quando a madrasta saiu do quarto, pegou no livro
com fúria e atirou-o para o cesto dos papéis.
Mas foi só mais tarde que o Unicórnio começou a
morrer. A menina deitou o livro fora mas ficou com uma
lágrima nas pestanas, de raiva e amor pela sua infância
perdida. Não conseguiu estudar nada, apesar de ter um
teste de português no dia seguinte. Pois é, tinha que ser
crescida, esquecer as infanti-lidades, os sonhos cor-de-rosa,
o mundo das fadas, as divagações inúteis.
Vou ser prática como a minha madrasta. Esquecer de
vez as histórias de encantar.
Então sim. No meio do seu campo de margaridas, à
beira do lago prateado, o Unicórnio dobrou as patas da
frente, depois as de trás, deixou cair a crina de seda sobre
os olhos azuis, inclinou o corno espiralado como um búzio
da praia e deitou-se para morrer. De que serve um Unicórnio
que não tem lugar na imaginação de uma criança?
A menina nunca mais pensou em patetices. Cresceu,
aprendeu a vida, os dissabores, as mediocridades, o
dinheiro, o desamor. Fez-se boa aluna, séria e triste, e
ninguém mais lhe disse acorda menina. Alguma coisa no
fundo do seu coração lhe segredava que visse a vida com os
olhos do espírito, mas ela recalcava essa voz. Até que um
dia descobriu que tinha que ser pintora.
Começou por pintar quadros abstractos e ouvia
perguntar na organização das exposições mas onde raio é a
parte de cima desta coisa? Depois teve uma fase hiper-
realista onde às pessoas e às casas e aos móveis só lhes
faltava falar. Mais tarde começou a pintar interiores suaves
onde havia sempre uma janela aberta sobre paisagens
inexplicáveis.
Casou e teve um filho que gostava de se sentar nos
joelhos da mãe quando esta retocava as suas telas.
Mãe, como se chama aquele cavalinho?
Era um quadro todo em tons de azul com algumas
pinceladas prateadas, uma sugestão de pombas brancas e
talvez, entre o que se podia interpretar como um campo de
pequenas flores, houvesse um emaranhado de crinas, uma
forma de búzio.
Que cavalinho é este, mãe?
Chama-se Unicórnio, mora numa ilha deserta, num resto
de paraíso...
Lá longe, o Unicórnio sacudiu a franja prateada, abriu os
olhos azuis, espreguiçou-se, fez dançar a cauda de seda e
galopou entre os abetos.
O ANJO

Eu tenho um anjo.
Estava, quando eu nasci, ao lado do meu berço, roçou a
asa pelo rosto de minha mãe e disse-lhe, que esta criatura
te não dê cuidado. Terá o seu quinhão de dor e sofrimento,
o seu quinhão de alegria. Conhecerá a paixão e a raiva, a
desilusão e a esperança. Gemerá de prazer nos braços de
quem a não mereça, sorrirá de ternura de mãos dadas com
quem a idolatre. Será cuidada e cuidará, será servida e
servirá, será ajudada e ajudará. Há-de semear e há-de
colher, há-de cozinhar e há-de comer, há-de dar vida e há-
de viver. Aprenderá a trabalhar trabalhando, a amar
amando, a perdoar perdoando.
Eu estarei sempre lá. Para que não caia na miséria, na
podridão e no vício. Para que em todos os dias da sua vida
tenha um pão, um tecto, um copo de água, um agasalho,
um livro, um sonho.
Terá o seu quinhão de amor, terá o seu quinhão de
talento.
Minha mãe, apaziguada, reclinou-se no leito onde
acabava de me dar à luz, num tempo em que não havia
salas de parto nem médicos embuçados nem fecundações
in vitro, mas tão somente uma parteira prestável e a
vontade de Deus.
Aos seis anos o meu Anjo disse canta e eu não cantei.
Aos doze disse escreve e eu não escrevi. Aos vinte disse
aprende e eu não aprendi. Aos trinta disse pensa e eu não
pensei.
Aos quarenta caí e ele lá estava, o rosto rente ao chão,
as penas soltas a amaciar as pedras do caminho.
Então o Anjo levou-me pela mão às cantigas de amigo
da minha infância. Passámos invisíveis entre as espigas de
trigo e as ceifeiras cantavam, Amor não me digas nada,
minha mãe já acordou, tua boca diz calada, mais que aquilo
que falou. Minha mãe já acordou, não me dês a salvação:
oiço bem no teu silêncio o que diz o coração.
O Anjo disseme que aquela era a semente da minha
felicidade, que na singeleza daquela poesia e daquele trigo
estava a alegria da emoção nascente que haveria de
conduzir-me ao sopé da minha montanha.
E o anjo disseme. Não direi que o ouvi, mas o seu
sussurro fez vibrar uma corda disponível da minha alma e
quando em mim se faz silêncio, há um golpe de asa que me
toca e escuto uma melodia mágica que me guia e me
conforta.
E assim como nessa viagem pela mão do Anjo às raízes
do sonho, cantei, também na passagem pelos anos de
aprender, aprendi. Não só nos livros esquecidos mas
também nos olhos dos outros, nos gestos escusos ou
abertos, nas mãos que se estendem a medo, contraídas,
suadas, e nas mãos que se oferecem leais, secas e frescas,
sem nenhuma reserva. Aprendi nos meus erros, nos meus
julgamentos apressados, nas minhas omissões, mas
também nos erros alheios, nas injustiças alheias, nas
maldades alheias.
Quando, na minha peregrinação com o Anjo, parei na
estação de pensar, pensei. Pensei no concreto e no invisível,
no material e no imponderável, no por dentro e no por fora
de mim. Pensei com a cabeça, pensei sobretudo com o
coração.
Sou capaz de comover-me porque uma criança me
estende uma flor, porque o sossego da tarde, perfumado a
lúcia-lima tem um não sei quê de paraíso, porque o raio de
sol que toca a minha chávena de chá a torna única e
próxima da perfeição.
Sou capaz de saborear na memória aromas esquecidos,
de biscoitos na lata, de pão saído do forno, de terra lavrada
depois das chuvas, das laranjeiras quando estão em flor.
Ruídos esquecidos, o ranger de uma porta que ao abrir
punha uma mancha de sol na tijoleira, o canto de um
canário numa cozinha de azulejos, a cançãozinha álacre das
agulhas de tricô da minha mãe. E lembrei-me que de cada
malha nascia outra malha, como de cada dia nasce outro
dia, de cada pensamento um pensamento.
Tudo isto o meu Anjo me foi segredando, com paciência
própria de quem tem por sua conta toda a eternidade. Ele
acredita em mim, confia em mim, como decepcionar o meu
Anjo?
Um dia, o meu Anjo e eu, desembarcámos na estação
de escrever. Foi-me contando na viagem a Parábola dos
Talentos e como desagradavam ao Pai aqueles que os
enterravam ou os dissipavam, como eu própria já várias
vezes fizera. Fez-me recordar o tempo das ceifeiras e da
pequena semente de alegria que havia de germinar por
todos os meus caminhos. Pois bem, a estação de escrever
estava repleta de floridos arbustos, de uma espécie
desconhecida, e o Anjo disse que eles só floriam assim nas
proximidades da minha montanha e ali eu tinha insondáveis
razões para sentar-me e escrever o que me ditasse.
Fez-me analisar uma a uma cada tarefa cumprida,
mostrou-me que apenas esta estava incompleta e urgia
começá-la, porque no alto da montanha desabrochava uma
flor da cor das suas asas, escrita com várias sílabas da
palavra felicidade.
E como eu, tão apaixonada pelo meu Anjo que não
podia negar-lhe nada, assenti, pôs-se a ditar-me poemas,
murmurando apenas com um pequeno som de regato as
palavras, às vezes desconhecidas, às vezes familiares, mas
sempre colocadas, numa estranha luz, numa escondida
ressonância de mistério.
Por este hábil processo pôs-se mais tarde o meu Anjo a
ditar-me romances, histórias inteiras que ele tece com as
penas das suas asas e que eu transcrevo para lhe agradar.
E ao fazer-lhe esta simples vontade, nasceu no meu
coração, minúscula como um grão de mostarda, uma
inexplicável alegria, uma leveza como se eu própria tivesse
asas, asas minhas e não apenas as que o meu Anjo me
empresta para eu pressentir a inenarrável sensação de voar.
Dizem que os anjos não têm sexo. Mas o meu, tenho a
certeza, é masculino. Sei-o pelos braços fortes com que me
ampara e conforta, pelo dedo que me passa nas pálpebras
para que eu veja a imagem escondida, pelo beijo que me dá
na boca para que eu encontre a palavra que falta, pelo
hálito doce que aflora constantemente o meu pescoço.
Um dia, iremos ao alto da montanha olhar a flor da
perfeição. Dali voaremos juntos no caminho da luz e eu
verei o seu perfil que imagino moreno, as suas mãos com
que tirou tantas pedras debaixo dos meus pés, as asas com
que me envolveu ou com que simplesmente fez vibrar o ar
à minha volta.
Dirá ao Pai como, entre erros e acertos, inépcias e
vitórias, fiz render o meu pequeno talento e cumpri o meu
quinhão de risos e lágrimas.
De volta à terra, o meu Anjo segredará na corda
disponível de alguém que podem colocar, na pedra da
minha campa, a última sílaba da palavra felicidade.

Rosa Lobato de Faria Maio 2004


Table of Contents
OS LINHOS DA AVÓ
ESTRADA MARGINAL
A MULHER QUE MASTIGOU O MEU DESTINO
MAÇÃ
UM BANCO NO JARDIM
O LAÇO
O DESAFIO FANTASMA
CRIADA PARA TODO O SERVIÇO
OS LINHOS DA AVÓ
UM SEGREDO
A FÓRMULA
VEM O SENHOR
MULHER
AO SABOR DO CORPO
TRÊS VEZES O NATAL
MEIA-NOITE E CINCO
A QUEM O CÉU ORDENA
EU VI O MENINO JESUS
O COMBOIO
UM CÁLICE DE PORTO
A MORTE DO UNICÓRNIO
O ANJO

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