Rosa Lobato de Faria - Os Linhos Da Avó
Rosa Lobato de Faria - Os Linhos Da Avó
Rosa Lobato de Faria - Os Linhos Da Avó
ASA LITERATURA
1: edição: Novembro de 2004
Depósito legal d? 215289/04 ISBN 972-41-4038-5
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ESTRADA MARGINAL
A culpa é toda sua. Não diga que não, que eu bem lhe
leio o subtexto erótico na forma dançada como você passa
por ele, inundando-o do seu charme, do seu perfume e da
sua respiração rumorejante. Faz que não vê mas vê. Faz que
não quer mas quer. O homem fica tonto e você gosta. Traça
a perna diante dele daquela forma insólita, mostrando
dessous que deixaram de o ser, tilinta coisinhas de metal
quando lhe dá o perfil e o recorte esplêndido da sua
pequena orelha, e o botão da blusa, não me diga que o
perdeu, anda desabotoado três dedos abaixo do ponto de
viragem, viragem da cabeça dele, entenda-se.
Sim, sim, eu percebi que cortou o cabelo dessa forma
ultrajante para valorizar o pescoço, a linha dos ombros, e
ficar mesmo com o toque de androginia indispensável para
acordar nele todas as componentes. O sujeito sucumbe e
você diverte-se.
O processo arrasta-se há meses. Você não quer coisa
nenhuma definida. Você não quer. Gosta do jogo e joga. Mas
não quer mesmo? Ah, reside aí a volúpia da sua estratégia.
Você quer fingir que não quer, porque querer
completamente é completamente sem história. É a rotina do
costume e isso não é excitante, nem subtil, nem perverso.
Agora mesmo eu vi. Você tem reduzido o ângulo de
beijinho, aquele do pseudocasual olá está bom. Começou a
dez graus do eixo e já vai no grau dois. Com uma pequena
oscilação para grau um. Porque um destes dias você foi
apanhada de surpresa (ou fez de propósito) no grau zero...
Fez de propósito, claro, que ingenuidade a minha. Você não
deixa nada ao acaso. Grau zero era a jogada daquele dia,
mas o eixo apresentou-se húmido, prometedor... Quando a
sua boca roçou de leve e logo se retirou, você ficou presa no
seu próprio feitiço, a sua voz enrouqueceu um pouco mais,
você pousou a ponta dos dedos na garganta naquele gesto
que lhe é peculiar e disse Ah... Afastou-se devagar, não sem
primeiro filtrar entre as pestanas um olhar macio de
pantera, descer até à zona do botão perdido as unhas
curtas, sem verniz e sem escrúpulos.
O que acontece a seguir? Há que manter a
ambiguidade. Não lhe interessa queimar as etapas que pela
lógica dos acontecimentos se haveriam de seguir. Esse é o
procedimento corrente e você recusa a vulgaridade. Beijo
trocado? Esse seu corpo apetitoso como um barco, desculpe
se cito Pessoa, mas você tem realmente alguma coisa de
gomo, esse corpo, dizia, apertado contra a caxemira cor de
areia? De forma nenhuma. Seguir-se-ia um óptimo jantar e
isso era o fim de tudo. Senão vejamos. Você é
interessantíssima quando conversa, mas tem tendência,
entre um tinto alentejano de 97 e uma boa música de
fundo, a tornar-se um tanto sincera e era capaz de lhe dizer
que o acha o homem mais fascinante de toda a empresa;
que a forma como ele utiliza o humor a deixa sempre
comovida e excitada e que o aftershave dele se harmoniza
admiravelmente com camisas de seda italiana e absurdas
preferências por pintura flamenga e mulheres ruivas. A
seguir ele pousaria o casaco nos seus ombros, respirando o
desejo que se desprende da sua nuca e levá-la-ia para uma
nudez total, um contacto absoluto, um grito partilhado. E
depois? Mais nenhum mistério, mais nenhuma sedução.
Você saberia tudo sobre a temperatura do corpo dele, a
capacidade de a satisfazer, o seu grau de preconceito, a sua
fragilidade, naquele momento em que os homens parecem
tão indefesos e carentes e perdidos e talvez você não fosse
capaz de amá-lo bastante para continuar a negaceá-lo com
beijos do grau um depois de o ter visto na sua nudez inicial.
Não. É esta a beleza do jogo. Ele deseja-a furiosamente
mas não mostra. Você perde a cabeça só de ouvir o som da
sua voz, de olhar-lhe os dedos, os pulsos, o rosto de
estátua, o nariz grego e a boca. Você evita os olhos, não
quer denunciar-se, continua desprendida e bela, passeia
devagar o seu corpo de barco na madrugada pela penumbra
dos gabinetes, intercepta-lhe o campo magnético, desliza a
polpa do dedo polegar entre os dentes, mostra uma ponta
de língua cor-de-rosa, despe camisolas para que conste que
não usa nada sob a blusa, acaricia os seus próprios caracóis
cor de fogo no sítio exacto onde ele gostaria de perder as
mãos, cruza e descruza as coxas, deixa entrever rendinhas,
pouca coisa, é quase tudo pele dourada e por fim chega
junto dele, diz até logo, tenho um encontro, dá-lhe um beijo
de grau dois, vagaroso mas de grau dois, o tempo de ouvir
a maçã-de-adão oscilar, o tempo de sentir o sangue espesso
nas veias de ambos, a voz presa, um arrepio no ventre e já
saiu com um oscilar de labareda.
Eu sei. É essa a sua natureza. Nunca houve feiticeira
que desprezasse o prazer, o poder, a vertigem de comandar
o jogo.
AO SABOR DO CORPO
MEIA-NOITE E CINCO
EU VI O MENINO JESUS
Eu tenho um anjo.
Estava, quando eu nasci, ao lado do meu berço, roçou a
asa pelo rosto de minha mãe e disse-lhe, que esta criatura
te não dê cuidado. Terá o seu quinhão de dor e sofrimento,
o seu quinhão de alegria. Conhecerá a paixão e a raiva, a
desilusão e a esperança. Gemerá de prazer nos braços de
quem a não mereça, sorrirá de ternura de mãos dadas com
quem a idolatre. Será cuidada e cuidará, será servida e
servirá, será ajudada e ajudará. Há-de semear e há-de
colher, há-de cozinhar e há-de comer, há-de dar vida e há-
de viver. Aprenderá a trabalhar trabalhando, a amar
amando, a perdoar perdoando.
Eu estarei sempre lá. Para que não caia na miséria, na
podridão e no vício. Para que em todos os dias da sua vida
tenha um pão, um tecto, um copo de água, um agasalho,
um livro, um sonho.
Terá o seu quinhão de amor, terá o seu quinhão de
talento.
Minha mãe, apaziguada, reclinou-se no leito onde
acabava de me dar à luz, num tempo em que não havia
salas de parto nem médicos embuçados nem fecundações
in vitro, mas tão somente uma parteira prestável e a
vontade de Deus.
Aos seis anos o meu Anjo disse canta e eu não cantei.
Aos doze disse escreve e eu não escrevi. Aos vinte disse
aprende e eu não aprendi. Aos trinta disse pensa e eu não
pensei.
Aos quarenta caí e ele lá estava, o rosto rente ao chão,
as penas soltas a amaciar as pedras do caminho.
Então o Anjo levou-me pela mão às cantigas de amigo
da minha infância. Passámos invisíveis entre as espigas de
trigo e as ceifeiras cantavam, Amor não me digas nada,
minha mãe já acordou, tua boca diz calada, mais que aquilo
que falou. Minha mãe já acordou, não me dês a salvação:
oiço bem no teu silêncio o que diz o coração.
O Anjo disseme que aquela era a semente da minha
felicidade, que na singeleza daquela poesia e daquele trigo
estava a alegria da emoção nascente que haveria de
conduzir-me ao sopé da minha montanha.
E o anjo disseme. Não direi que o ouvi, mas o seu
sussurro fez vibrar uma corda disponível da minha alma e
quando em mim se faz silêncio, há um golpe de asa que me
toca e escuto uma melodia mágica que me guia e me
conforta.
E assim como nessa viagem pela mão do Anjo às raízes
do sonho, cantei, também na passagem pelos anos de
aprender, aprendi. Não só nos livros esquecidos mas
também nos olhos dos outros, nos gestos escusos ou
abertos, nas mãos que se estendem a medo, contraídas,
suadas, e nas mãos que se oferecem leais, secas e frescas,
sem nenhuma reserva. Aprendi nos meus erros, nos meus
julgamentos apressados, nas minhas omissões, mas
também nos erros alheios, nas injustiças alheias, nas
maldades alheias.
Quando, na minha peregrinação com o Anjo, parei na
estação de pensar, pensei. Pensei no concreto e no invisível,
no material e no imponderável, no por dentro e no por fora
de mim. Pensei com a cabeça, pensei sobretudo com o
coração.
Sou capaz de comover-me porque uma criança me
estende uma flor, porque o sossego da tarde, perfumado a
lúcia-lima tem um não sei quê de paraíso, porque o raio de
sol que toca a minha chávena de chá a torna única e
próxima da perfeição.
Sou capaz de saborear na memória aromas esquecidos,
de biscoitos na lata, de pão saído do forno, de terra lavrada
depois das chuvas, das laranjeiras quando estão em flor.
Ruídos esquecidos, o ranger de uma porta que ao abrir
punha uma mancha de sol na tijoleira, o canto de um
canário numa cozinha de azulejos, a cançãozinha álacre das
agulhas de tricô da minha mãe. E lembrei-me que de cada
malha nascia outra malha, como de cada dia nasce outro
dia, de cada pensamento um pensamento.
Tudo isto o meu Anjo me foi segredando, com paciência
própria de quem tem por sua conta toda a eternidade. Ele
acredita em mim, confia em mim, como decepcionar o meu
Anjo?
Um dia, o meu Anjo e eu, desembarcámos na estação
de escrever. Foi-me contando na viagem a Parábola dos
Talentos e como desagradavam ao Pai aqueles que os
enterravam ou os dissipavam, como eu própria já várias
vezes fizera. Fez-me recordar o tempo das ceifeiras e da
pequena semente de alegria que havia de germinar por
todos os meus caminhos. Pois bem, a estação de escrever
estava repleta de floridos arbustos, de uma espécie
desconhecida, e o Anjo disse que eles só floriam assim nas
proximidades da minha montanha e ali eu tinha insondáveis
razões para sentar-me e escrever o que me ditasse.
Fez-me analisar uma a uma cada tarefa cumprida,
mostrou-me que apenas esta estava incompleta e urgia
começá-la, porque no alto da montanha desabrochava uma
flor da cor das suas asas, escrita com várias sílabas da
palavra felicidade.
E como eu, tão apaixonada pelo meu Anjo que não
podia negar-lhe nada, assenti, pôs-se a ditar-me poemas,
murmurando apenas com um pequeno som de regato as
palavras, às vezes desconhecidas, às vezes familiares, mas
sempre colocadas, numa estranha luz, numa escondida
ressonância de mistério.
Por este hábil processo pôs-se mais tarde o meu Anjo a
ditar-me romances, histórias inteiras que ele tece com as
penas das suas asas e que eu transcrevo para lhe agradar.
E ao fazer-lhe esta simples vontade, nasceu no meu
coração, minúscula como um grão de mostarda, uma
inexplicável alegria, uma leveza como se eu própria tivesse
asas, asas minhas e não apenas as que o meu Anjo me
empresta para eu pressentir a inenarrável sensação de voar.
Dizem que os anjos não têm sexo. Mas o meu, tenho a
certeza, é masculino. Sei-o pelos braços fortes com que me
ampara e conforta, pelo dedo que me passa nas pálpebras
para que eu veja a imagem escondida, pelo beijo que me dá
na boca para que eu encontre a palavra que falta, pelo
hálito doce que aflora constantemente o meu pescoço.
Um dia, iremos ao alto da montanha olhar a flor da
perfeição. Dali voaremos juntos no caminho da luz e eu
verei o seu perfil que imagino moreno, as suas mãos com
que tirou tantas pedras debaixo dos meus pés, as asas com
que me envolveu ou com que simplesmente fez vibrar o ar
à minha volta.
Dirá ao Pai como, entre erros e acertos, inépcias e
vitórias, fiz render o meu pequeno talento e cumpri o meu
quinhão de risos e lágrimas.
De volta à terra, o meu Anjo segredará na corda
disponível de alguém que podem colocar, na pedra da
minha campa, a última sílaba da palavra felicidade.