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Ruídos Redondos Rodas
Ruídos Redondos Rodas
Ruídos Redondos Rodas
UBERLÂNDIA
2019
LUMA MARIA BRAGA DE URZEDO
UBERLÂNDIA
2019
AGRADECIMENTOS
Ao meu amor, Renan Henrique de Chaves, pelo companheirismo, as boas risadas e o afeto
ao longo de todos esses anos.
Agradeço à minha orientadora, Profª. Drª. Marisa Martins Gama-Khalil, por todas as
conversas, correções, leituras e momentos de aprendizado. São dez anos trilhando o
caminho do conhecimento ao lado dessa mulher que é uma fonte de inspiração e uma
amiga para toda a vida.
Aos professores que compuseram minha banca de qualificação, Prof. Dr. Cláudio Zanine
e Prof. Dr. Alexander Meireles, cujas ponderações foram essenciais para que eu chegasse
neste resultado final.
À minha amiga Aline Lúcia que sempre esteve presente com bons papos e reflexões e aos
meus amigos que moram em lugares distantes mas que permanecem em meu coração e
me motivam mesmo a distância: Lígia, Danilo e Naiana.
Agradeço à CAPES pelo apoio financeiro no último ano desta pesquisa. Visto que o
presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
Termino agradecendo a Deus, esse ser metafísico que, por meio da fé, nos leva a fazer
coisas muito malucas, como nunca desistir.
porque nós aqui, nesta nossa bolinha de barro,
não costumamos pensar em nada que seja
diferente dos nossos próprios costumes.
Voltaire
RESUMO
El presagio del primer contacto de los humanos con los extraterrestres es uno de los temas
frecuentes de la ciencia ficción, un género literario que se extendió después de los
descubrimientos de Copérnico y Galileo. Nuestro estudio investigará cuándo empenzó el
contacto de estos seres con la ficción y se centrará, principalmente, en su recurrencia en
la ciencia ficción latinoamericana. Creemos que el estudio de los extraterrestres tiene
posibilidad de actuar como una metonía de la ciencia ficción, ya que la comprensión del
extraterrestre ser puede ayudar a conocer la ciencia ficción en su conjunto. Y, a partir del
análisis de cuatro cuentos – "Ma-Hôre" de Rachel de Queiroz (1961), "Um moço muito
branco" de João Guimarães Rosa (1962), "A Lula opta por sua tinta" por Adolfo Bio
Casares (1962) y "There are more things" de Jorge Luis Borges (1975) – también
trataremos de entender la ciencia ficción en el campo de los estudios literarios y romper
con la idea de que es solo otra literatura trivial.
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 11
3.2.2 – “A lula opta por sua tinta”, de Adolfo Bioy Casares, e o gênero fantástico nos
estudos latino-americanos...................................................................................................... 86
3.2.4 “There are more things”, de Jorge Luis Borges, o horror cósmico na América
Latina...................................................................................................................................... 100
INTRODUÇÃO
Por mais que os fãs de ficção científica devorem o romance mais recente do
escritor do momento, o tamanho da comunidade de entusiastas da ficção
científica é relativamente modesto. Mesmo um romance muito popular sobre
Alienígenas só alcançará um número reduzido de leitores. A literatura de
ficção científica só afetou de maneira ligeiramente indireta o público mais
amplo. Foram o cinema e a televisão que tiveram maior impacto na gama de
Alienígenas com a qual o grande público está familiarizado. Além das
limitações dos atores humanos e da necessidade de criar um personagem com
o qual a plateia possa se identificar, as histórias de ficção científica nos filmes
precisam ser acessíveis ao público. (LINCOLN, 2017, p. 17).
Nesse sentido, dividimos esta dissertação em três partes e cada uma delas
apresenta algumas seções. A primeira parte, intitulada “Pensando a ficção científica”, tem
como intuito recuperar algumas obras pioneiras em que o alienígena aparece e, ainda,
discutir sobre as definições de ficção científica e suas subdivisões, como a de ficção
científica hard e soft, por exemplo. Acreditamos ser essencial retomar algumas discussões
clássicas a toda literatura e estudos literários, como as de verossimilhança e
representação, para problematizar alguns aspectos relacionados à compreensão da ficção
científica de modo a nos auxiliar na expansão dos horizontes teóricos para o estudo de
obras latino-americanas. Também nos interessará, nessa parte inicial do trabalho,
desmontar o preconceito que recai sobre a ficção científica. Para isso, apresentaremos
algumas obras exemplares bem como uma breve argumentação acerca da concepção de
arte e, por fim, ainda nesta parte, faremos um percurso de análise de algumas das
principais obras literárias nas quais o alienígena aparece.
A parte dois, intitulada “Fantástico e ficção científica na América Latina”, irá
centrar-se na discussão da ficção científica latino-americana e para isso apresentaremos
algumas das primeiras obras de ficção científica escritas em nossos países, obras que
antecedem até mesmo G. H. Wells e Júlio Verne. Esses textos servem para demonstrar o
caráter híbrido da ficção científica latino-americana, e, desse modo, faz-se necessário que
ampliemos a nossa visão para perspectivas teóricas para além daquelas que enxergam a
ficção científica como um gênero autônomo. Apresentaremos a perspectiva genológica
de Todorov acerca do gênero fantástico, bem como demonstraremos a insuficiência dos
estudos restritivos que enclausuram textos em gêneros fechados, para que possamos a
partir daí traçar outro caminho. Contudo, discutiremos também a importância de se
defender textos latino-americanos como pertencentes à ficção científica, não a essa que
se encerra em um gênero, mas à ficção científica dentro de uma perspectiva modal, assim
como o fantástico.
Na terceira parte deste trabalho, encerraremos nosso estudo apresentando a análise
de quatro contos, são eles: “Ma-Hôre” de Rachel de Queiroz (1961), “Um moço muito
branco” de João Guimarães Rosa (1962), “A lula opta por sua tinta” de Adolfo Bioy
Casares (1962), e “There are more things” de Jorge Luis Borges (1975). A análise de
contos escritos no século XX por escritores canônicos da América Latina irá nos auxiliar
no arremate de argumentações apresentadas no decorrer deste trabalho. Nossa escolha se
14
deu muito pela necessidade de demonstrar que a ficção científica não se restringe a um
grupo fechado de escritores, mas sim que diversos autores experimentaram esse estilo de
escritura e que essas histórias passaram despercebidas pela crítica devido à dificuldade
de compreendê-las como sendo histórias de ficção científica, mesmo com elas tendo como
temática a presença do extraterrestre, um ícone desse modo narrativo.
Diversos teóricos auxiliaram-nos em nossos estudos, alguns para sustentar nossos
argumentos, outros como exemplo do quanto os estudos de ficção científica ainda são
repletos de preconceitos. Preferimos destacar em nossa introdução aqueles pesquisadores
que nos deram um auxílio positivo no desenvolvimento desta pesquisa sem incorrer em
formulações preconceituosas. No campo da ficção científica: o recém-lançado livro do
ensaísta inglês Adam Roberts, A verdadeira história da ficção científica – do
preconceito à conquista das massas, foi uma relevante ajuda para visualizarmos o
percurso da ficção científica global; The emergence of Latin American Science
ficction, da teórica estadunidense Rachel Haywood Ferreira, ainda não traduzido em
nosso país, foi de suma importância para a discussão da ficção científica latino-americana,
bem como Relatos pioneros de la ciencia ficcion latinoamericana, do venezuelano
Daniel Arella, que também não conta com uma tradução. Houve também textos relativos
à teoria literária em sentido lato que nos auxiliaram em nosso percurso argumentativo,
como aqueles que tratam do modo fantástico: o ensaio de Iréne Bessière “El relato
fantástico: forma mixta de caso y adivinanza” e o livro de Rosemary Jackson, Fantasy:
the literature of subversion, por exemplo. Do mesmo modo, algumas das colocações de
Todorov em Introdução à literatura fantástica, que costumam passar despercebidas
para muitos críticos; também as importantes discussões de Roland Barthes em sua Aula;
a noção apresentada por Coleridge de “suspensão de descrença”, discutida nos Seis
passeios pelos bosques da ficção de Umberto Eco e o bom e velho Aristóteles, com a
sua Poética.
Acreditamos que com o auxílio desses grandes teóricos seremos capazes de
expandir os horizontes dos estudos da ficção científica, assim como poderemos melhor
compreender a produção dela nos países latino-americanos e, nesse sentido, reforçamos
a importância das afirmações de Alejo Carpentier acerca do real maravilhoso latino-
americano. Escolhemos fazer a esse autor uma menção destacada, pois, seu olhar acerca
da realidade latino-americana norteou boa parte do presente estudo, bem como foi uma
15
de nossas motivações iniciais para nos debruçarmos sobre essa literatura em especial.
Percebemos que o caráter único da ficção científica latino-americana muito tem a ver com
a maneira como o povo latino-americano lida com sua realidade e em nossa análise
buscaremos evidenciar esse aspecto.
16
1 “Esta categoría del maestro argentino nos permite abordar y comprender los relatos de la prehistoria de
la ciencia ficción latinoamericana, que – como hemos visto – se caracteriza por la versatilidad de sus
propuestas y multiplicidad de temas fundacionales. La “imaginación razonada” constituye un “ejercicio de
inteligencia incesante y de imaginación feliz”; el ensayo y la ficción se confunden elaborando una
materialidad literaria de exigencia científica, que funda un mundo propio y autónomo sin pretensiones
moralizantes, como ocurre en la mayoría de la ciencia ficción estadounidense clásica y su preocupación por
el avance masivo de la tecnología, las guerras bacteriológicas y la amenaza de la superpoblació.”
(ARELLA, 2015, p. 26).
2 “En Latinoamérica se escribía ‘ciencia ficción’ antes de que Asimov pensara siquiera en escribir su
Fundación. Incluso antes, en el siglo xix, cuando Julio Verne –considerado como el primer autor en escribir
relatos maravillosos-científicos, el primer escritor reconocido como pionero del género– publica en 1869
Veinte mil leguas de viaje submarino, diez años después –¡y 16 años antes de que H. G. Wells escribiera
La máquina del tiempo (1895)!– un naturalista, zoólogo y escritor argentino de origen alemán, llamado
Eduardo Ladislao Holmberg, publica en 1879 su cuarta y última obra de ficción, Horacio Kalibang o los
autómatas, en la que adelantaría un tema de auténtica ‘ciencia ficción’: la inteligencia artificial.”
(ARELLA, 2015, p. 14).
18
de Samósata, Somnium (1634) de Kepler, dentre outras. Isso porque algumas das
primeiras histórias de ficção científica latino-americana foram escritas antes daquelas
consideradas, por muitos teóricos, as obras fundadoras do gênero (G. H. Wells e Verne).
O conto intitulado “Horacio Kalibang o los autómatas” de Eduardo Ladislao Holmbert é
um grande exemplo disso. Escrita em 1875, essa história antecipa uma das grandes
discussões da ficção científica: a inteligência artificial. Nela, um cientista cria uma grande
quantidade de robôs, os chamados autômatos, que tomam o lugar dos seres humanos,
sendo capazes de todos os tipos de manifestações afetivas e artísticas e Horácio Kalibang
é o menos perfeito desses autômatos, pois ele apresenta o defeito de sair de seu centro de
gravidade, enquanto os demais se passam perfeitamente por humanos. Entretanto, apesar
de dar início aos relatos maravilhosos científicos, ou de imaginação raciocinada, como
diria Borges, na América Latina, Holmbert ambienta sua narrativa na Alemanha, por
acreditar que seria impossível que em seu país, a Argentina, pudessem se passar histórias
que tratassem de uma temática científica. A ideia da impossibilidade de se escrever ficção
científica em países com pouco desenvolvimento tecnológico não foi exclusiva de
Holmbert, ela é compartilhada, ainda hoje, por diversos teóricos, tanto estrangeiros
quanto latino-americanos, como Vélez García (2007, p. 14):
Acreditamos que tal peculiaridade não está relacionada ao fato de nossos países
estarem em desvantagem tecnológica e científica, se comparados aos Estados Unidos ou
aos países da Europa. Afinal, isso equivaleria a dizer que para um escritor escrever boas
histórias com fantasmas deveria ter uma vivência em castelos mal-assombrados, frase
essa que soaria muito absurda. De fato, a ficção científica latino-americana parece se
preocupar menos em explicar ou projetar tecnologias, contudo, explicar tal característica
3
“La ciencia ficción hispanoamericana presenta determinadas particularidades y la más relevante de ellas
es la ausencia significativa de datos empíricos científicos que sustenten la trama. Este desapego por la
validación científica de los hechos narrados obedece a las circunstancias emanadas del contexto
socioeconómico en el que surgen estas obras, marcado por la ausencia de un desarrollo económico
equiparable al de las naciones punteras en lo que a escritura de ciencia ficción se refiere.” (VÉLEZ
GARCÍA, 2007, p. 14).
19
4
“A pesar de la compleja genealogía de la ciencia-ficción escrita en América Latina desde fines del siglo
XVIII, existe una limitada bibliografía crítica sobre el tema producida en el ámbito académico que se ocupa
de la región. La desconfianza de la crítica latinoamericana hacia la ciencia-ficción tiene larga data y
complejo origen. Muchos trabajos tienden a rastrear sus fuentes en la producción anglosajona, subrayando
las relaciones con el pulp, o buscan las raíces de la ciencia-ficción en lo fantástico (cuando no la confunden
20
o la mezclan con el realismo mágico) como formas de legitimar una modalidad de producción que, a todas
luces, no parece ajustarse con claridad a los modelos folkloristas, localistas y/o contestatarios que han
constituido buena parte de la producción cultural latino-americana” (ARES, 2012, p. 15).
5
“el delírio epistemológico, el cual, em su textura, parodia la cientificidade propia del discurso objetivo”
(ARELLA, 2015, p. 15).
6
“El cuerpo híbrido y sustancialmente irreconciliable de “La doble y única mujer” de Pablo Palacio
comparte su anatomía autónoma y solitaria con las características del género naciente de la proto ciencia
ficción en Latinoamérica: 1) Dificultad para ser ubicada dentro de las características esenciales de los
parámetros rígidos genéricos; 2) Imposibilidad para ser clasificada dentro de las etiquetas que generalmente
se le atribuyen: realismo mágico, neofantasía, fantasía racionalista, literatura fantástica, ciencia blanda; 3)
Incapacidad para relacionarse con sus congéneres, preeminencia de lo individual frente a lo colectivo, del
artificio frente al realismo. En pocas palabras, está más inclinada al surgimiento de una sintaxis rigurosa
que otorgue verosimilitud a argumentos fantásticos, que a argumentos lógicos científicos orientados hacia
lo cósmico-planetario, sostenidos por un lenguaje técnico encarnado por la imaginación.” (ARELLA, 2015,
p. 15-16).
21
americanas e essa nos parece uma de suas mais emblemáticas distinções, pois a tradição
anglófona, mesmo sendo bastante diversificada em seus temas e abordagens, dificilmente,
por parte dos teóricos da área, é desvinculada da especulação científica:
É estranho que se qualifique uma obra como sendo mais literária ou menos
literária do que outra, mas o que os teóricos querem quando chamam a ficção científica
da América Latina de mais literária é criar um antagonismo com a de língua inglesa, bem
como associar a nossa ficção científica ao fantástico8, já que a tradição da ficção científica
latino-americana preocupa-se menos em explicar e discutir tecnologias e mais com as
consequências trazidas por tais adventos, bem ao modelo do Frankenstein de Mary
Shelley, considerado por alguns teóricos uma das obras fundadoras da ficção científica.9
Enquanto o modelo da ficção científica de língua inglesa está ligado ao apego à tecnologia
e sua explicação ao longo das narrativas e, por isso, é considerada mais científica e menos
literária, nela o discurso científico ocupa um papel central em suas histórias e é
responsável por um dos maiores embates dentro do gênero.
7
“Mientras que los norteamericanos se enfrascaban en la parte científica, los latinoamericanos preferían,
por su naturaleza, la parte fantástica, imaginativa e inventiva. Por esta razón tan simple, las obras pioneras
de la ciencia ficción latinoamericana demuestran una ventaja alta en cuanto a su “literariedad”, con la
complejidad implícita que pueda acarrear este término. Estaríamos hablando entonces de una escritura
marginal, influenciada principalmente por los padres pioneros del género gótico: Edgar Allan Poe, E. T. A.
Hoffmann y Mary Shelley.” (ARELLA, 2015, p. 20).
8
Essa discussão será aprofundada e melhor apresentada na Parte 2 deste trabalho.
9
Roberts (2018) discorda dessa visão: “A presente obra, como é evidente, não concorda com a crença –
manifestada tão amiúde por críticos que quase se aproxima de um dogma – de que (nas palavras de Paul
Alkon) “a ficção científica começa com Frankenstein de Mary Shelley” (Alkon, Science Fiction Before
1900, p.1). Isso não significa negar que essa novela se provou uma grande influência sobre a subsequente
FC.” (2018, p. 191). Compartilhamos do posicionamento de Roberts, tanto que apresentaremos exemplos
bem anteriores à novela de Shelley ao longo de nosso trabalho.
22
Antes de a expressão “ficção científica” ser inventada, uma briga com relação
à abordagem do romance científico já tinha sido travada. Estou falando de Júlio
Verne e H. G. Wells, pois o primeiro não aceitava a máquina do tempo do
segundo sem que este desse uma explicação aceitável de como ela funcionava.
Verne exigia isso, porque ele próprio esmerava-se em explicar cada detalhe de
seus balões dirigíveis e do seu moderno submarino Náutilus, e Wells sequer
havia dado um nome à sua máquina do tempo. (BELLI, 2012, p. 93).
Essa discussão pode ainda remontar uma mais antiga e que abrange todo o campo
literário: a questão da representação e da verossimilhança. Aristóteles, em A poética, obra
escrita há vinte e três séculos, apresenta-nos a ideia de mimesis. Para o filósofo, a mimesis
corresponde à imitação das ações humanas e, sendo assim, cabe ao poeta três
possibilidades de imitação:
O poeta é imitador, como o pintor ou qualquer outro imaginário; por isso, sua
imitação incidirá num destes três objectos: coisas quais eram ou quais são,
quais os outros dizem que são ou quais parecem, ou quais deveriam ser. Tais
coisas, porém, ele as representa mediante uma elocução que compreende
palavras estrangeiras e metáforas e que, além disso, comporta múltiplas
alterações, que efetivamente consentimos ao poeta. (ARISTÓTELES, 1990,
1460 – b).
E ainda em:
A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor
precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de
“suspensão de descrença”. O leitor tem de saber que o que está sendo narrado
é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o escritor está
25
Muitos leitores cometem o equívoco desse rei e acreditam que a obra literária se
refere a uma coisa real no mundo, especialmente quando o autor dessa obra traz alguns
elementos que parecem corresponder ao mundo real. Tal qual Eco (1994) exemplifica
acerca de seu desejo enquanto escritor de familiarizar-se com os acontecimentos que narra
e suas personagens, no caso de seu romance o Pêndulo de Foucault (1989), pesquisou
sobre a posição das estrelas na determinada noite em que a narrativa se passava e utilizou
os nomes de ruas da cidade de Paris. Seu apego a esses detalhes, segundo o próprio autor,
não se deu por uma necessidade de emular um realismo, mas, mesmo assim, confundiu
um fã que lhe enviou uma carta questionando-o sobre o fato del ter deixado de narrar um
incêndio que ocorrera no mesmo dia e lugar em que se passavam os eventos da narrativa.
A experiência de Eco (1994), assim como a noção de acordo ficcional, podem nos auxiliar
a compreender o problema do apego exacerbado à rigorosidade do discurso científico
dentro das histórias de ficção científica. O autor que apresenta em sua história argumentos
científicos não faz isso com o intuito de escrever um tratado científico, transcrever
formulações tecnológicas ou deter-se estritamente no que a ciência de seu tempo propõe.
Se evitar o subjetivo, o impreciso e o improvável, dificilmente esse escritor poderá
compor um texto artístico e literário.
Uma bela ilustração literária dessa questão é o conto “Do Rigor da ciência” de
Jorge Luiz Borges. Nessa pequena história, o narrador nos conta de cartógrafos que
buscavam criar mapas em escalas cada vez mais realistas, chegando ao final em uma
escala 1:1 que reproduzia toda a cidade tal qual ela era. Contudo, esse mapa torna-se desse
modo inútil, já que o seu tamanho equivaleria ao da própria cidade, tornando a consulta
inviável. O que essa história nos mostra é que a tentativa de reproduzir as coisas
exatamente como elas são é um exercício improdutivo que, ao invés de dar conta da
totalidade das coisas, cria um mundo limitador, algo sem vida, impossível de ser lido de
forma criativa, que não serve ao campo literário. Afinal, a obra literária, diferentemente
do conto de Borges:
mantém a todo instante uma aparência de mundo (um efeito de real). (SODRÉ,
1974, p. 14).
Cabe à ficção científica parecer científica (um efeito de real), não sê-la de fato. É
possível que ela tenha um apego maior ou menor aos preceitos científicos, ensinando-nos
sobre conceitos complexos por meio de uma linguagem ficcional ou, simplesmente,
contando-nos histórias extraordinárias. Não devemos desconsiderar a possibilidade de
esse tipo de ficção ensinar, como relata Belli sobre sua experiência com o gênero:
Quanto ao termo ficção científica, acho muito apropriado, uma vez que essa
literatura surgiu do entendimento sobre ciência. Eu mesmo entendi o que era
ciência lendo ficção científica. A ficção científica narra histórias para as várias
possibilidades de entendimento racional sobre coisas fundamentais do
universo e sobre nós mesmos. Não sei se no dia de amanhã será possível dar
outro nome, mas a essência não deve ser perdida. (BELLI, 2012, p. 112).
Assim como foi para Belli, a ficção científica, bem como qualquer outro gênero
literário, pode ensinar muito ao seu leitor, como explica Barthes (1978) em sua Aula
inaugural no Collège de France, ao tratar sobre as três forças da literatura: Mathesis,
Mimesis, Semiosis. Barthes nos diz que “A literatura assume muitos saberes” (1978, p.16)
e que se, por algum acaso descabido, todas as disciplinas fossem abolidas da escola e
apenas uma pudesse ficar, deveria ser a literatura, pois ela carrega consigo os
conhecimentos das mais diversas áreas. Contudo, os saberes na literatura aparecem de
forma indireta:
É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que sejam as
escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente, categoricamente
realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do real. Entretanto, e nisso
verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes, não fixa, não
fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso.
Por um lado, ele permite designar saberes possíveis — insuspeitos,
irrealizados: a literatura trabalha nos interstícios da ciência: está sempre
atrasada ou adiantada com relação a esta, semelhante à pedra de Bolonha, que
irradia de noite o que aprovisionou durante o dia, e, por esse fulgor indireto,
ilumina o novo dia que chega. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para
corrigir essa distância que a literatura nos importa. (BARTHES, 1978, p. 16-
17).
Esse desejo pelo impossível, uma função utópica, é o combustível para a literatura,
assim como sua capacidade de mobilizar os mais diversos saberes, porém, ainda há uma
terceira força, sem a qual não há literatura. A semiosis, força que gera o jogo feito com a
linguagem, é um processo que Barthes chama de escritura e que é responsável pela
imprevisibilidade e multiplicidade da linguagem literária. O escritor tem na linguagem
literária a liberdade para escolher a forma que melhor corresponderá ao seu desejo de
escritura, diferente da linguagem cotidiana que nos é imposta, mesmo sem que
percebamos.
Essas três forças irão constituir o essencial para a literatura no pensamento
barthesiano. A questão Wells e Verne, se pensada a partir dessa perspectiva, acaba
tornando-se simplesmente uma questão de preferências individuais, pois tanto um autor
quanto o outro jogaram com essas três forças em suas obras. Wells talvez um pouco mais
com a mimesis, enquanto Verne preocupou-se bastante com a mathesis, mas algo que é
comum aos dois, inquestionavelmente, é a riqueza de suas escrituras, colocando-os como
grandes protagonistas da história da ficção científica e contribuindo, ainda hoje, para a
teorização e subdivisão desse gênero:
Essa briga tinha uma razão de ser e, de certa forma, ela persiste até hoje entre
escritores, críticos e leitores. Há aqueles que precisam de uma explicação
plausível e científica para o funcionamento de máquinas com viagens mais
rápidas que a luz, armas desintegradoras, teletransportes, clonadores de
pessoas e animais etc. que fazem parte da trama, que são utilizados tanto pelas
forças do mal como pelas do bem. Pois são as diferenças dessas abordagens
que determinam se uma narrativa é hard ou soft... Será? (BELLI, 2012, p. 93-
94).
As ficções soft, sob essa nova perspectiva, correspondem às histórias cujo pano
de fundo ou tema tenha a ver com ciência, contudo, de forma implícita. A ciência não é
fator determinante para a trama, tanto que tais histórias poderiam se passar em passados
distantes ou num presente tal qual o que vivemos; a ciência, nesse caso, torna-se só uma
“roupagem” para a narrativa.
É importante enfatizar que os campos científicos são mais extensos do que o senso
comum costuma considerar. Não só as ciências exatas podem influenciar na ficção
científica, mas questões de humanidades, linguagem e biologia contribuem e constituem
um campo riquíssimo para esse tipo de ficção. Muito se descaracteriza a ficção científica
latino-americana devido a esse tipo de mentalidade restritiva acerca das ciências.
As definições de ficção científica hard e soft são diversas e em sua grande maioria
insuficientes para dar conta das obras, contudo, Roberts (2018) apresenta-nos uma
possibilidade de compreensão dessas duas modalidades a partir de duas noções de ciência,
uma rígida, proposta por Bertrand Russell, e uma anárquica, proposta por Paul
Feyerabend. Para o primeiro, “o método científico envolve uma passagem sem desvios
da observação à generalização” (ROBERTS, 2018, p. 44), escolhendo fatos significativos
e utilizando meios para se chegar a leis que possibilitem uma generalização. Já o segundo,
segundo Roberts, argumenta em seu livro Contra o Método (1975) que a ciência precisa
ser anárquica, pois o excesso de regras que constituem esse meio inibe o progresso.
Apesar de radical e um tanto quanto excêntrica, a teoria de Feyerabend, de fato, tem um
grande ponto a ser considerado. A limitação do que deve constituir o corpus científico
impede que questões proeminentes, mas aparentemente tolas ou aparentemente insanas,
29
recebam atenção e financiamento para serem pesquisadas e, com isso, o campo científico
mantém-se fechado para a possibilidade de novas descobertas. Essas duas mentalidades
tão opostas podem referir-se também a um modo de fazer ficção científica:
Os outros binários que podem ser apontados a partir das noções de ficção
científica hard e soft, segundo Roberts (2018), são: arte/ciência, romance/novela e
ciência/tecnologia. Quanto ao primeiro, acreditamos que ele tenha sido resolvido ao longo
desta primeira parte de nosso trabalho, especialmente quando nos referimos às questões
de representação e verossimilhança. Com relação ao segundo, apesar dele constituir o
debate acerca dos gêneros mais populares na escrita de ficção científica, não será objeto
de nossa atenção neste momento, já que nosso corpus é composto por contos. Já quanto
ao último, buscaremos esclarecê-lo a seguir.
Comumente acredita-se que a tecnologia é derivada da ciência (e nesse sentido
acaba-se excluindo muitas ficções científicas que não se relacionam com as ciências
exatas ou artefatos tecnológicos, como afirmamos anteriormente), mas, como bem lembra
Roberts, “a ciência se torna uma moldura filosófica idealista [...]. A tecnologia, por outro
lado, é o discurso de ferramentas e máquinas, sendo as ferramentas extensões do
trabalhador humano [...] e as máquinas, dispositivos que se mantêm a parte do trabalhador
humano” (2018, p. 49). Para esse ensaísta inglês (2018), as ferramentas e máquinas são
predominantes como novums10 na ficção científica, contudo, também existem aquelas
obras que possuem natureza mais conceitual e científica.
Apesar da predominância, pelo menos no âmbito da ficção científica de língua
inglesa, de narrativas que têm a tecnologia como seu novum, as narrativas conceituais
acabam tendo melhor recepção por parte da crítica:
10
Conceito de Darko Suvin explicado por Roberts como sendo “o dispositivo, artefato ou premissa
ficcionais que põe em foco a diferença entre o mundo que o leitor habita e o mundo ficcional do texto de
FC. Esse novum pode ser algo material, como uma espaçonave, uma máquina do tempo ou um dispositivo
de comunicação mais-rápido-do-que-a-luz; ou pode ser algo conceitual, como uma nova versão de gênero
ou consciência” (ROBERTS, 2018, p. 37).
30
Pulp era, por definição, material de baixa qualidade. Essas revistas só eram
encontradas em bancas de jornal, nas esquinas, jamais nas livrarias, para onde
se dirigia a nata da sociedade. Destinadas ao público de baixa renda, as pulps
eram várias vezes mais baratas do que um livro de livraria, ou não valeria a
pena pagar por esse tipo de literatura. (BELLI, 2012, p. 50).
Essas revistas, que tiveram origem ainda no século XIX, tinham como temas
romances melosos, fantasias, histórias policiais e de aventura e tornaram-se logo um meio
para a expansão da ficção científica. Com o tempo, algumas revistas, devido ao excelente
trabalho de editores (como J. C. Henneberger fundador da revista Weird Tales que
chegou a publicar contos e novelas de H. G. Wells e H. P. Lovecraft, ou mesmo Hugo
Gernsback, na Amazing Stories), passaram a valorizar mais do que o caráter puramente
comercial, refinando seus conceitos e filtros editoriais.
É certo que algumas motivações controversas contribuíram para que o imaginário
do público geral acerca da ficção científica se prendesse à ideia de especulação científica
ou projeção tecnológica, como no caso de Hugo Gernsback em sua revista Modern
Electrics, que era antes de tudo um catálogo de peças e utensílios elétricos. Os contos
publicados valorizavam especialmente “a descrição e nomes de um grande número de
máquinas que poderiam existir no futuro” (BELLI, 2012, p. 54). Mais tarde, Gernsback
desvinculou-se da mera especulação científica e organizou uma das mais influentes
revistas de ficção científica, a Amazing Stories, que em sua primeira edição trouxe
histórias de H. G. Wells, Julio Verne e Edgar Allan Poe.
32
A revista Amazing Stories acirrou a concorrência nesse meio, fazendo com que
as outras revistas também refinassem seus conteúdos, desse modo ela publicou grandes
nomes que posteriormente se consagrariam dentro do gênero, como Isaac Asimov, Arthur
C. Clarke, Ray Bradbury, dentre outros. Atribuir às revistas pulp o mero caráter de
literatura de massa e considerá-las a maior ou única forma de expressão da ficção
científica contribui, ainda hoje, para a desvalorização do gênero. Contudo, esse histórico
só nos reafirma o potencial inventivo e possibilidade de alcance da ficção científica.
Mesmo à margem, a ficção científica desse período conseguiu encontrar sua identidade e
seu público e, diferentemente do que os intelectuais e acadêmicos da época acreditavam,
esse público não era composto de pessoas simplesmente alienadas e ignorantes. Do
mesmo modo, os escritores da época também não podem ser resumidos à definição feita
por Sodré:
tempo (1895), de Wells, ou apagar os conflitos do homem em Eu, Robô (1950), de Isaac
Asimov? A ficção científica, assim como toda arte literária, refere-se ao que é
essencialmente humano.
A ficção científica é muito diversa em temas, abordagens e intencionalidades
discursivas, não corresponde apenas a um artefato, produto formular, ou apenas a uma
literatura de massa, como acredita Sodré:
Kepler integrou duas realidades opostas, mas que diziam muito sobre ele mesmo
e o período em que ele viveu. Lembremo-nos de que “entre 1560 e 1660 [...] cerca de 100
mil bruxas foram condenadas” (Hufton, 1995, p. 340) em toda a Europa e que nesse
mesmo período, em 1553, era publicado o livro As Revoluções dos Orbes Celestes que
continha uma nova visão do cosmos, heliocêntrica, apresentada por Copérnico. A maneira
com que Kepler conseguiu apresentar essas duas visões de mundo em sua obra não só
demonstra que a ficção científica pode representar uma vanguarda em seu sentido
temático como também estético. Esse entendimento reafirma nosso argumento de que a
ficção científica é uma expressão artística bem mais antiga do que Sodré propõe.
Escritores como Wells e Verne são citados constantemente por Sodré, porém,
outros como Kepler e Voltaire são ignorados; uma possível leitura de seu texto seria a de
que tais autores, por sua elevada qualidade, não poderiam ter suas obras elencadas como
pertencentes à ficção científica. O teórico ainda cita uma referência bem mais antiga,
35
Luciano de Samósata, como um escritor que fez uso da linguagem científica de sua época,
mas que tinha um projeto bem acabado, diferente da ficção científica. Acreditamos que
ao excluir tais obras do campo da ficção científica Sodré (1973) faz um recorte bastante
limitado e que acaba se mostrando incapaz de sustentar esse seu posicionamento com
relação à ficção científica.
O terceiro argumento apresenta-se na verdade mais como um desdobramento do
segundo. Sodré parece se esquecer de que a ficção científica não foi uma manifestação
localizada exclusivamente nos Estados Unidos. Se ele considerasse sua manifestação na
América Latina, por exemplo, veria que ela está estritamente ligada às vanguardas do
período, como afirma Arella:
Como explicar o estranho apelo que a FC pulp continua a ter sobre o gênero?
Suas limitações são demasiado óbvias e inegáveis para precisarem de muita
elucidação. Ela foi, em geral, uma literatura pueril e limitada em termos
estéticos, voltada para o denominador mais baixo, com frequência reacionária
no âmbito ideológico, raramente mais do que um passatempo, uma literatura
de distração. Contudo, há mais alguma coisa. Flaubert disse uma vez que
gostava mais de ouropel que de prateado porque aquele possuía todas as
11
“La ciencia ficción latinoamericana en sus orígenes no es ciencia ficción propiamente, sino que surge a
partir de la experimentación vanguardista como la de Huidobro, Felisberto Hernández, Pablo Palacio o
ideas avanzadas de los modernistas más aplicados: Rubén Darío, Amado Nervo, Clemente Palma, Leopoldo
Lugones, o por las innovaciones primogénitas del género naciente en el continente: Holmberg, Borges,
Bioy Casares, Clemente Palma, Jodorowsky.” (ARELLA, 2015, p. 44).
36
comparar essa sensação com a que sentem fazendo a mesma coisa pela
milésima vez, concordarão conosco. (CHKLOVSKI, 1978, p. 43-44).
Quantos de nós conseguem lembrar a primeira vez em que leu uma história e qual
a sensação que sentiu? A experiência de Montag, que era apenas um leitor funcional,
talvez nos lembre um pouco da nossa, uma vez que ele se sentiu animado e confuso, como
uma criança recém-alfabetizada porém muito curiosa se sentiria ao se deparar com uma
história complexa. Com esse olhar, o protagonista segue em busca de respostas sobre qual
o sentido daquelas histórias e sobre o motivo delas serem consideradas tão prejudiciais à
sociedade, e é a partir desses questionamentos que ele presta atenção pela primeira vez
nas pessoas com as quais convive e na organização social a qual pertence. O romance de
Bradbury liberta-nos do automatismo perceptivo na medida em que nos faz compartilhar
da visão singular de Montag. Olhamos para aquele mundo ficcional de maneira
prolongada e mais atenta do que olhamos para o nosso e, assim como Montag,
ponderamos sobre o quanto a tecnologia distanciou as pessoas de lá e sobre o quanto a
ausência da arte fragilizou as relações humanas e a autonomia daquelas personagens. Ao
término da história, lançamos esse mesmo olhar, que percebe ao invés de apenas
reconhecer, ao nosso mundo e constatamos que a realidade de Montag não é tão distante
da nossa.
Fahrenheit 451 é uma obra que trabalha muito bem com o procedimento
explicado por Chklovski e apoiamo-nos nos argumentos apresentados por esse teórico
russo na medida em que acreditamos que a arte deve ter esse caráter movente, que
desestabiliza de maneira a nos fazer perceber o nosso mundo mais atentamente. Além da
obra de Bradbury, podemos citar diversos outros exemplos de ficções científicas capazes
de nos fazer perceber o mundo com um olhar singular, como as obras dos autores já
citados, ou que ainda citaremos em nosso estudo (Wells, Verne, Shelley, Voltaire, Kepler,
Asimov, etc.).
ficção científica, contudo, assinalar pontualmente suas origens é uma tarefa que escapa a
qualquer consenso.
Há algumas noções inquestionáveis, como a de que a ficção científica não é uma
expressão que surgiu apenas no século XX, assim como a de que a ficção científica deve,
de alguma forma, relacionar-se a um tipo de discurso científico ou tecnicista. Porém, os
pontos de discordância formam uma lista bem maior. Em qual nível deve se dar a relação
da ficção científica com a ciência, de quais discursos e de quais concepções de ciência ela
deve falar, são algumas das questões:
Para alguns críticos, a identidade da ciência, visto que ela modifica a parte
ficção da FC, é a questão crucial quando se trata de definir o gênero. O
influente argumento de Brian Aldiss, de que a FC começa com o Frankenstein
de Mary Shelley, de 1818 (embora o próprio Aldiss relacione numerosos e
importantes antecessores), conta com o pressuposto de que a FC não poderia
ter se originado antes do século XIX precisamente porque foi apenas no século
XIX que a ciência, como agora compreendemos o termo, obteve curso cultural
generalizado. Para citar Peter Nicholls: “A FC em si requer consciência do
enfoque científico [...]. Um modo cognitivo, científico de ver o mundo só
emergiu no século XVII e só penetrou de modo efetivo na sociedade nos
séculos XVIII (de forma parcial) e XIX (em grande extensão)” (CLUTE e
NICHOLLS, ANO, p. 567-68, apud ROBERTS, 2018, p. 42).
considerações de Aristóteles feita por Ptolomeu que falava sobre várias esferas, questões
de elementos da natureza e elementos misteriosos.
Na história de Luciano, ele e vários homens fazem uma expedição de navio e,
levados por uma forte ventania chegam à Lua que, aliás, encontra-se em guerra com o
Sol. Ele e seus tripulantes ajudam a resolver essa briga e retornam ao planeta Terra,
fazendo antes uma breve visita ao planeta Vênus que estava sendo colonizado. A partir
dessa breve sinopse, a história de Luciano pode ser confundida com muitas daquelas que
constituem o subgênero chamado “Space Opera”, contudo, a escrita peculiar do grego,
repleta de sátiras e ironias, bem como de descrições hiperbólicas e, muitas vezes, até
insólitas, muito possivelmente desestabilizem o leitor e levem-no a se questionar sobre a
seriedade de tal história. Esse é provavelmente o efeito que o autor quer gerar, pois sua
ironia, apresentada desde o início da obra, já nos revela, a partir de um discurso
metaficcional, que sua obra não será nada convencional:
são de relevância até hoje para se pensar a ficção científica, na medida em que o autor
antecipou algumas das questões que já discutimos nessa parte de nosso trabalho. Além
disso, sua história nos mostra que os seres extraterrestres representam uma vanguarda da
ficção científica, pois são uma das primeiras inquietações humanas acerca do cosmos.
Após o período de Luciano, a literatura de ficção científica passa por um longo
hiato. Por mais de mil anos essa forma de expressão literária, e especialmente as histórias
que tratam de alienígenas, praticamente desapareceram. Não que não houvesse mais
histórias de viagens para além de nosso planeta, mas a abordagem, totalmente sustentada
pelo discurso religioso cristão do período, distanciava-se de qualquer discussão científica.
Um grande exemplo é A Divina Comédia (Séc. XIV), de Dante Alighieri. Nessa obra,
Dante percorre o Inferno, que se encontra no centro da Terra, o que alguns especuladores
chamam de terra oca, e o Céu, que se encontra fora da atmosfera de nosso planeta, o que
poderia configurar-se como uma viagem espacial. Contudo, a interpretação desses
espaços fantásticos não se dá por meio de uma racionalização, como acontece na ficção
científica, afinal, eles são sustentados a partir do discurso cristão, da interpretação
religiosa. Roberts, acerca do romance medieval, afirma que:
Como acontecia com a novela grega, a trasladação para os céus era antes o
translado para um reino divino que para um reino material, mas, ao contrário
dos gregos, as expedições interplanetárias medievais partilhavam uma unidade
monoteísta anexada a uma autoridade religiosa totalitária, que negava as
possibilidades imaginativas que a FC requer. Essa cultura pode produzir um
Dante, mas não um Asimov. (ROBERTS, 2018, p. 81-82).
O período medieval, por ser marcado pela religiosidade, não se mostrou um solo
produtivo para a ficção científica, especialmente no que tange aos seres extraterrestres.
Era impossível se pensar em universos habitados por outros seres sem que a paixão de
Cristo fosse questionada, os alienígenas teriam seu próprio Cristo ou nosso Cristo teria
sido crucificado para salvá-los também? Além disso, a concepção cosmológica, ainda
associada às discussões de Aristóteles e Ptolomeu, colocava a Terra no centro do
universo, deixando o homem, assim, em uma posição bastante confortável.
A nova visão cosmológica apresentada por Copérnico em 1553 e depois reforçada
por Galileu em 1632 desestabiliza essa ordem para as novas gerações, criando um
fenômeno de histórias de alienígenas cristãos no século XVII:
12
“SF is being used to reinforce a particular, narrow ideological construction of ‘American-ness’ by
demonizing some notional scapegoat.”(ROBERTS, 2000, p. 70).
44
auge na leitura de Orson Wells de A Guerra dos Mundos em uma rádio, o que levou a
população ao desespero, com muitos acreditando que, de fato, uma invasão alienígena
estava acontecendo. Outro exemplo seria o livro de Campbell, citado por Belli:
exploratória na Antártida. O gigante fica fascinado pelo quanto esses pequenos conhecem
sobre ciências exatas, como física e matemática, contudo, quando toca em questões
existenciais, percebe que os humanos não conseguem chegar a um consenso, alguns citam
Descartes, outros citam Tomás de Aquino, há aqueles que citam Locke, e nenhum deles
responde precisamente nenhuma pergunta. Micrômegas promete a eles um presente
contendo todas essas informações, porém, ao final descobrimos se tratar de um livro em
branco.
O conto de Voltaire é muito significativo e representa um marco para as histórias
de alienígenas por três motivos. O primeiro, como já afirmamos, é que em Micrômegas
(1750) o ser extraterrestre chega ao nosso planeta pela primeira vez; essa abordagem se
tornará, depois de Voltaire, uma das mais populares na ficção científica. O segundo
refere-se à questão da escala de tamanho, como bem lembra Roberts:
Voltaire nos dá uma aula sobre as proporções do universo e ainda leva-nos a uma
reflexão sobre o lugar do humano no cosmos, o que nos conduz ao terceiro ponto.
Micrômegas revela-nos muito sobre a pequenez e impotência humana, o gigante mostra-
nos que “[...] assim como a Terra não é mais o centro físico do sistema solar, a
humanidade não pode ser considerada o foco filosófico ou teológico do universo”
(ROBERTS, 2018, p. 157). Os homens deixam de ocupar uma posição ativa na história
de Voltaire, afinal, o extraterrestre é quem questiona e quem explora o cosmos. Essa
perspectiva, que nos é dada a partir da chegada de um extraterrestre sábio e bondoso,
tomará uma feição muito mais assustadora a partir daí, uma vez que A Guerra dos
mundos (1898) de H. G. Wells acentuará a nossa pequenez e impotência com a chegada
de alienígenas que desejam tomar o planeta Terra para si.
Escrito pouco mais de um século depois de Micrômegas, o romance de Wells será
responsável pela consagração da ficção científica no gosto popular, tanto que alguns
teóricos localizam a origem desse gênero tão antigo com o surgimento da obra de Wells,
juntamente com a de Júlio Verne. De fato, a obra de ambos os autores irá constituir todo
um paradigma da ficção científica a partir daí. Verne, com seu apego científico, irá
46
influenciar nas já tão populares voyages extraordinaires, dando a elas disposições mais
embasadas no mundo e suas possibilidades e tornando-as menos fantasiosas, enquanto
Wells irá constituir toda uma mentalidade de medo e monstruosidade acerca da figura do
extraterrestre. Wells irá influenciar e inspirar a criação de diversas obras sobre invasões
alienígenas, como lembra Brian Aldiss, no prefácio de A guerra dos mundos:
13
The Encyclopedia of Science Fiction edited by John Clute, David Langford, Peter Nicholls and Graham
Sleight. London: Gollancz, updated 31 August 2018. Web. Disponível em: <http://www.sf-
encyclopedia.com/entry/latin_america>. Acesso em: 11 jan. 2019.
14
“As Mauricio-José Schwarz wrote in the 1993 encyclopedia, ‘although there is a certain overall Latin-
American identity, it is not always easy to generalize. Argentina, Cuba and Mexico, for instance, have such
widely different histories, geographies, political systems and inhabitants that sometimes the Spanish
language (and some universal aspirations) are the only common ground shared by their literature; in the
case of Portuguese-speaking Brazil there is also the language barrier.’ At the same time, the nations of Latin
America share linguistic ties, Iberian colonial pasts, and – with exceptions – histories of recurring political
unrest. They have also tended to be on the periphery of global politics, economics, and scientific research,
and faced the external pressures and influences that such a position entails. Such commonalities have often
led anthologists, editors, and critics in Latin America and elsewhere to publish and study Latin American
sf on a regional level as well as in national contexts.” (Mauricio-José Schwarz and Rachel Haywood
Ferreira. “Latin America”. The Encyclopedia of Science Fiction edited by John Clute, David Langford,
Peter Nicholls and Graham Sleight. London: Gollancz, updated 31 August 2018. Web. Disponível em:
<http://www.sf-encyclopedia.com/entry/latin_america>. Acesso em: 11 jan. 2019.
49
Desde o século XIX até os dias atuais, a ficção científica tem consistentemente
provado ser um veículo ideal para o registro de tensões relacionadas com a
definição da identidade nacional e do processo de modernização. Há muito que
as tensões têm sido agravadas na América Latina pelo desafio de construir e/ou
deter uma identidade nacional diante de uma influência significativa do Norte
e pela assimilação desigual da tecnologia nos países latino-americanos, que
resultou em uma situação que García Cancline denominou de
“heterogeneidade multitemporal”. (FERREIRA, 2011, p. 3, tradução nossa).15
15
“From the nineteenth century to the presente day, Science fiction has consistently proved to be na ideal
vehicle for registering tensions related to the defining of national identity and the modernization process.
There tensions have long been exacerbated in Latin America by challenge of constructing and/or
mantaining a national identity in the face of significant influence from the North and by de uneven
assimilation of technology in Latin American countries, wich has resulted in a situation that García Cancline
has termed ‘multitemporal heterogeneity’.” (FERREIRA, 2011, p. 3).
50
16
“Texts carrying the sf label are frequently assumed to be second- or third-string works of pulp fiction,
and they often draw charges of being a party to cultural imperialism and of failing to refl ect local realities.”
(FERREIRA, 2011, p. 3).
51
no anno de 2000, série publicada no Brasil entre 1868 e 1872, de Joaquim Felício dos
Santos; O Doutor Benignus, romance do brasileiro nascido em Portugal Augusto Emílio
Zaluar, publicado em 1875; e Dos partidos en lucha e Viaje maravilloso del Señor Nic-
Nac, de 1875 e 1876, respectivamente, do argentino Eduardo Ladislao Holmberg.17
Esses autores jamais tiveram contato, nunca constituíram um grupo com métodos
e discussões convergentes, compartilharam apenas o mesmo gosto pelo gênero e as
mesmas influências estrangeiras como as de Voltaire em Micrômegas (1752), de Swift
em Viagens de Gulliver (1726), e de Thomas More, com sua Utopia (1516). Apesar de
serem parte de um estilo de escrita global, as obras desses autores não chegaram a ser
conhecidas por leitores globais e tampouco por leitores locais, tiveram pouco alcance e
não chegaram a ter uma segunda edição no período em que foram escritas, mas somente
muitos anos depois. Contudo, a grande quantidade de obras que surgiu nesse período
assinalado contribuiu para que esses autores saíssem do esquecimento e se tornassem
objeto de curiosidade de estudiosos de gerações seguintes e, especialmente, na
contemporaneidade. Haywood Ferreira argumenta que:
17
Acreditamos que o conto Horacio Kalibang o Los autómatas, também de Eduardo Ladislao Holmberg,
já citado na Parte 1 de nosso trabalho como um dos pioneiros da ficção científica latino-americana, , pode
do mesmo modo ser incluído nessa lista.
53
Por essa crença na prosperidade de seus países, apesar das constantes crises
políticas e econômicas que os cercavam, utopias das nações latino-americanas
descreveram muito bem o sentimento predominante na época, como no caso das obras
México en el año 1970 e Páginas da história do Brasil escripta no anno de 2000, ou,
como ficou conhecida posteriormente, Brasil 2000, que descrevem México e Brasil,
respectivamente, em um futuro grandioso. Darko Suvin, importante teórico da ficção
científica, defende que as utopias não podem ser ficção científica se apenas os aspectos
sociais são alterados, como lembra Roberts:
18
“Latin American scientific, economic, and cultural dependence was also expected to be short-lived. The
mid to late nineteenth and early twentieth centuries were times of nation building in Latin America, in terms
of institutions and infrastructure, and also of great real and/or perceived national potential. A number of
Latin American nations prospered economically from booms in the markets for their natural resources. The
dawn of the twentieth century also saw the birth of Spanish American modernism, the first of the Latin
American literary movements to resonate beyond Latin American shores. In the sciences, as Nancy Stepan
has said, “Latin Americans were still small contributors to science by world standards” (Hour 40), but she
describes Latin American scientists as “attuned” to European scientific advances [...] Texts written in the
sf tradition in nineteenth-century Latin America, then, would not have been perceived as pale imitations of
imperialistic literary models portraying extrapolated societies based on unattainable technologies, but as
works that described the present with the authority of scientific discourse and reached for the brighter future
that seemed destined to come.” (FERREIRA, 2011, p. 6).
54
narrativa, o médico e sua expedição chegam a ter contato com um ser extraterrestre vindo
do Sol e que lhes aconselha a seguir o caminho da ciência, pois, dessa maneira o Brasil
passaria a ser reconhecido tanto pelos outros países estrangeiros quanto pelos habitantes
do sol. A principal mensagem dos alienígenas para os brasileiros era a de que o país estava
atrasado tecnologicamente e que mais cientistas e curiosos, como os homens daquela
expedição, precisavam surgir. Percebemos nesse tipo de trecho que o povo brasileiro é
representado em uma posição de inferioridade não apenas com em relação aos
alienígenas, mas também com relação aos países de maior desenvolvimento científico e
tecnológico do período. Afinal, como é acentuado pelos extraterrestres nessa obra, muitos
países no planeta Terra já se aproximavam deles em conhecimento, enquanto que o Brasil
ainda estava muito longe disso.
Porém, não só Augusto Emílio Zaluar apresentou extraterrestres nesse período,
uma obra mais excêntrica, de Holmberg, fez isso misturando elementos místicos e
científicos: Viaje maravilloso del Señor Nic-Nac.
É importante dizer que Viaje maravilloso del Señor Nic-Nac foi o título
completo que recebeu em seu período de publicação a obra Viaje maravilloso del señor
Nic-Nac [al planeta Marte, en el que se refieren las prodigiosas aventuras de este
señor y se dan a conocer las instituciones, costumbres y preocupaciones de un mundo
desconocido]: fantasía espiritista. Trata-se de uma novela in media res que apresenta
seu protagonista, o senhor Nic-Nac, preso em um hospício após relatar estranhas histórias
sobre uma viagem ao planeta Marte. As histórias desse senhor são tão extraordinárias que
jornalistas vão visitá-lo para registrar sua aventura e transformá-la em um livro e é a partir
das entrevistas feitas para o livro que temos acesso ao ocorrido com o protagonista.
A viagem de Nic-Nac ao planeta Marte se dá de maneira nada convencional ou
científica. Após encontrar um guru e revelar-lhe o desejo de empreender uma jornada
espiritual, aprende um método para separar o corpo da alma: ficar em jejum quase até a
morte. Oito dias depois, sem comer ou beber absolutamente nada, Nic-Nac recebe a visita
de um médico exatamente no momento em que finalmente consegue desprender a alma
de seu corpo, o médico acidentalmente lhe acompanha nesse processo, assim como o guru
que o orientou e então os três, inexplicavelmente, chegam a Marte.
O planeta Marte muito se assemelha ao planeta Terra e, em uma montanha, o guru
revela que, na verdade, ele é um marciano. Depois disso, Nic-Nac e o médico viajam pelo
56
Para o teórico, o fantástico “[...] dura apenas o tempo de uma hesitação” (2004, p.
47), podendo desvanecer-se ao longo do texto, às vezes com uma simples frase do tipo “e
acordou daquele pesadelo” (2004, p. 47). A hesitação é um sentimento que pode ser
compartilhado pelas personagens e Todorov defende que geralmente é (contudo, não
58
Este exige que três condições sejam preenchidas. Primeiro, é preciso que o
texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo
de criaturas vivas e a hesitar entre uma explicação natural e uma explicação
sobrenatural dos acontecimentos evocados. A seguir, esta hesitação pode ser
igualmente experimentada por uma personagem [...]. Enfim, é importante que
o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a
interpretação alegórica quanto a interpretação “poética”. Estas três exigências
não têm valor igual. A primeira e a terceira constituem verdadeiramente o
gênero; a segunda pode não ser satisfeita. Entretanto, a maior parte dos
exemplos preenchem as três condições. (TODOROV, 2004, p. 38-39).
A segunda condição defendida por Todorov, de que o fantástico não pode receber
interpretações alegóricas ou poéticas, relaciona-se mais uma vez ao caráter estruturalista
das proposições feitas na sua obra, pois, opõe o gênero narrativo ao poético, sendo o
primeiro capaz de representar, ou seja, ficcionalizar, e o segundo capaz apenas de evocar
interpretações puramente semânticas. Enquanto a alegoria é caracterizada como uma
proposição de duplo sentido, uma metáfora contínua prejudicial ao fantástico por
desconsiderar os eventos insólitos na narrativa em detrimento de uma interpretação não
sobrenatural, alegórica, que está fora do texto. Para ele, as alegorias são mais presentes
em fábulas e até mesmo em contos de fadas, mas não devem ser uma interpretação
possível na narrativa fantástica.
Não desconsideramos as contribuições estruturalistas para o campo da literatura,
muito menos a importância da obra de Todorov para o fantástico, contudo, lançamos um
olhar crítico especialmente quanto ao aspecto supracitado, porque acreditamos que a
poesia pode contar histórias, como é o caso do poema narrativo de Edgar Allan Poe, “O
corvo”, e que a alegoria corresponde a algo essencial a toda literatura, não só à fantástica.
Toda obra, em um nível maior ou menor, faz uso de metáforas, alegorias. Alguns dos
60
seres fantásticos mais célebres possuem um forte caráter alegórico em sua construção e
interpretação, como é o caso do vampiro, do lobisomem e até mesmo no caso do
alienígena. Acreditamos que uma interpretação alegórica não invalida o fantástico e as
sensações que esse tipo de narrativa pode gerar, como de medo, hesitação e/ou surpresa.
Posteriormente, no capítulo dez de Introdução à literatura fantástica, Todorov
retoma sua crítica à alegoria ao discutir o famoso conto de Franz Kafka, “A
Metamorfose”. Para o búlgaro, essa obra foi constantemente lida de maneira alegórica,
fazendo com que o evento sobrenatural não gere nenhuma hesitação e, por isso, seria
necessário lermos para além da alegoria. O procedimento utilizado por Kafka, chamado
por Todorov de adaptação, seria análogo ao da hesitação fantástica, porém inverso:
Nesse sentido, até mesmo Todorov demonstra que a tentativa de rotulação pode
falhar, pois, as obras de ficção científica, assim como “A Metamorfose” de Kafka,
incorporam tanto elementos do maravilhoso quanto do estranho, “dois gêneros
aparentemente incompatíveis” (TODOROV, 2004, p. 180). Contudo, o procedimento da
ficção científica para chegar a esse resultado é totalmente oposto ao de Kafka, afinal, em
Kafka “[...] o acontecimento sobrenatural não provoca mais hesitação pois o mundo
61
descrito é inteiramente bizarro, tão anormal quanto o próprio acontecimento a que serve
de fundo” (TODOROV, 2004, p. 181), enquanto que a ficção científica parte de ideias
familiares a nós, possibilidades imaginadas a partir do que conhecemos ou já ouvimos
falar acerca do cosmos e da ciência, especialmente no caso do alienígena.
Há uma ambiguidade que envolve as narrativas com extraterrestres que se
aproxima bastante desse processo de adaptação descrito por Todorov, isso porque esses
seres parecem compartilhar de uma certa “existência”, quer dizer, seja por meio de relatos
de abdução, seja por estudos científicos, em vários momentos parece-nos bastante
plausível, e até mesmo familiar, a possibilidade de vida extraterrestre. Donald R.
Burleson, em seu tópico sobre alienígenas, presente em Icons of horror and the
supernatural: an encyclopedia of our worst nightmares, reflete sobre esse caráter
peculiar do alienígena:
19
“[...] the alien icon in literature and film differs, in its impact upon the human psyche, from such other
icons of horror and the supernatural [...]. Practically no one claims to have had any experience, indirect or
otherwise, with vampires or zombies, but many people (even if they have not had such experiences
themselves directly) at least have a friend or a relative who claims to have seen something truly anomalous
in the skies.
Thus the alien icon isone that, at least by rumor, has enjoyed some exposure in human experience, [...]. If
an alien is an entity that one’s Aunt Clara or one’s dentist may conceivably have seen, or whose spacecraft
at any rate such people may have glimpsed, then the alien enters that twilight realm of the perhaps fictitious,
perhaps not entirely fictitious being. It is this ambiguity, this difficulty in categorizability, in part, that lends
the icon its interest for readers and for patrons of film.” (BURLESON, 2007, p. 2).
62
de céticos, como o famoso astrofísico Carl Sagan,20 demonstram o quão prolífico pode
ser o caminho para a compreensão do alienígena ficcional por meio do procedimento de
adaptação descrito por Todorov.
Em algumas obras discutidas ao longo deste trabalho é fácil perceber esse
movimento de estranhamento que se transfigura em familiaridade, como em A Guerra
dos mundos, por exemplo, em que uma das possibilidades de leitura pode ser a de não
questionamento sobre o quão impossível são os eventos narrados, mas, pelo contrário, o
questionamento sobre o quão possíveis eles podem ser.
Essa forma de leitura exige uma ótica imbuída de certa credulidade ou, pelo
menos, de incerteza com relação aos extraterrestres; há, todavia, histórias que parecem
colocar seus leitores sob uma lente cética. Para que esse tipo de percepção se torne mais
evidente contamos a seguir uma história “real” de abdução que influenciou a crença
popular em extraterrestres, mas que, em contrapartida, também mobilizou um enorme
grupo de céticos, prontos para desmascará-la: a história do casal Betty e Barney Hill.
Esse casal fazia uma viagem à noite, no ano de 1961, nos Estados Unidos da
América e depois de uma parada por volta de 22h viram uma luz no céu, aparentemente
um satélite, contudo, essa luz parecia se movimentar na direção do carro. O casal levava
consigo uma cadelinha que passou a latir descontroladamente, o que os levou a fazer uma
parada na estrada totalmente deserta. Já quando se encontravam estacionados
conseguiram distinguir a forma por trás da luz: tratava-se de uma nave com formato oval
que continha várias janelas e uma pequena porta. O casal percebeu que era encarado
através das janelas por seres humanoides, com uma altura média de 1,60 e pele de cor
acinzentada. Depois disso escutaram uma sirene e sentiram-se sonolentos, quando
finalmente voltaram à consciência encontravam-se dentro do carro, seguindo caminho na
estrada, cerca de 60 km depois do local em que haviam estacionado e não se lembravam
de absolutamente nada que lhes havia ocorrido nas últimas horas.
Betty e Barney procuraram primeiramente a ajuda do governo que investigou o
caso mas não chegou a nenhuma conclusão. A falta de respostas incentivou Betty a buscar
ajuda em livros de ufologia, levando-a a acreditar seriamente que ela e o esposo haviam
20
Don Lincoln em “Universo Alien: se os extraterrestres existem... Cadê eles?” sobre Carl Sagan diz: Carl
Sagan, com sua famosa expressão ‘bilhões e bilhões’, foi um astrobiólogo, astrônomo e astrofísico muito
bem-sucedido como divulgador científico. Ele e seus colegas passaram um tempo considerável refletindo
sobre o que nossos conhecimentos de física e química nos dizem sobre como os Alienígenas poderiam ser.
(2017, p.15)
63
sido abduzidos naquele dia. Depois disso, ela passou a ter sonhos sobre o suposto evento,
neles o casal era submetido a diversos experimentos e exames. Barney, ao contrário da
esposa, buscou esquecer o evento inexplicável, entretanto, precisou procurar ajuda de
médicos psiquiatras devido a um elevado nível de estresse. Depois de ser submetido a
sessões de regressão, Barney relatou eventos muito parecidos com aqueles descritos pela
esposa, o que parecia confirmar o caso de abdução sofrido por eles. Sobre a história do
casal Hill, o físico estadunidense Don Lincoln, em seu livro Universo Alien: se os
extraterrestres existem... cadê eles?, afirma que:
ainda, pois, como lembra Haywood Ferreira, em The emergence of latin american
science fiction:
Não quer dizer que esse hibridismo seja exclusivo da ficção cientifica latino-
americana, entretanto, os sistemas de crenças latino-americanas do século XIX, período
em que as primeiras histórias de ficção científica surgem em nossos países,
diferentemente da racionalidade e ceticismo crescente nos países da Europa e Estados
Unidos, levaram nossos escritores a reunir em suas histórias discursos científicos e
religiosos, ou, ainda, discursos de ciências canônicas e ciências alternativas, sendo o
discurso sobrenatural aquele que costumava sobrepor-se ao final. As novas religiões
heterodoxas, exportadas da Europa, que buscavam conciliar a ciência e a religião, ou seja,
explicar questões metafísicas por meio de argumentos sistematizados por métodos
considerados científicos, contribuíram para essa dualidade em nossa ficção científica.
Contrariamente ao que se poderia pensar, as inúmeras subdivisões atribuídas à
ficção científica dificultam a definição de obras latino-americanas como Viaje
maravilloso del Señor Nic-Nac, por exemplo. A obra é intitulada pelo seu próprio autor
como sendo um relato espiritualista e, realmente, o modo como Nic-Nac consegue chegar
ao planeta Marte se aproxima mais de um chamado “desdobramento” do espírito do que
de uma experiência científica, tal qual as ciências canônicas descrevem. Em
21
“Science fiction is a genre with notoriously nebulous borders, and Latin American science fiction has a
particularly strong propensity to form hybrids with neighboring genres. The latter is due in part to influences
from national literatures, including a number of strong traditions of the fantastic. Hybridity is also fostered
by the nature of local reception for science-fictional works. As Molina-Gavilán et al. explain, ‘Historically,
in the absence of sustained attention from the literary establishment, Latin American writers have been free
to disregard the more stringent genre boundaries that shaped early sf production in the U.S.’ (‘Chronology’
369). In light of these considerations, some latitude— up to and including dual categorization—clearly
must be allowed when discussing genre and Latin American science fiction.” (FERREIRA, 2001, p. 8).
67
22
“The dual labeling of works as both science fiction and fantastic is perfectly valid and not infrequently
necessary. One must, however, be cautious and not overhasty in the unlabeling of works as science fiction
in favor of these other genres. Eduardo Ortiz is not wrong, for example, to discuss Holmberg’s The
Marvelous Journey of Mr. Nic-Nac to the Planet Mars (1875-76) as a fantastic text. Ortiz’s arguments
to deny that the text is also an early work of science fiction, however, depend on a narrowly defined
characterization of sf that does not take into account the permeable boundaries of the genre, especially
during a time before it had been more rigidly codified by publishers, writers, critics, and tradition
(“Transition” 63). When science fiction is excluded from the genealogy of such Latin American texts,
valuable tools for understanding and analysis are lost. Examining works through a lens of science fiction
underscores the authoritative role of scientific discourse in nineteenthcentury Latin America. Without such
a perspective, direct literary influences from the sf tradition may be removed from the picture, and the
writer’s knowledge and intentional deployment or adaptation of the emerging themes, icons, and
conventions of science fiction may be missed or misinterpreted. Further, reading a Latin American text
within the framework of the genre can shed light on the ongoing exploration of issues of influence,
imitation, and originality in Latin American literature and culture.” (FERREIRA, 2001, p. 11).
68
23
“When Northerners label science-fictional texts as works of magic realism, it is often due to the status of
magic realism as the prime export genre from Latin America to the North. This phenomenon can lead to
what David William Foster has described as ‘the often quite seriously distorting image of Latin American
literature provided by what gets translated into English (i.e., what satisfies the English-reading public’s
tastes) and what gets studied by foreign scholars’ (v). From a Latin American perspective, Capanna writes
of a desire to escape these limiting stereotypes, to show, as it were, the other side of the coin: ‘The
alternative (to magic realism) is what many of us want: to adopt an attitude of critical reflection that permits
a less passionate analysis of a reality that, ‘magical’ as it may be, has its own rationality and its own
69
O termo realismo mágico foi criado por volta de 1924 ou 1925 por um crítico
de arte alemão chamado Franz Roth num livro publicado pela Revista do
Ocidente, que traz o título de O realismo mágico. [...]
O que ele chamava de realismo mágico era simplesmente uma pintura onde
formas reais combinavam-se de uma maneira não condizente com a realidade
cotidiana. E na capa do livro aparecia o famoso quadro de Enrique Rousseau,
o Aduaneiro; no qual se vê um árabe dormindo tranquilamente no deserto,
junto a um bandolim, com um leão que se insinua e uma lua de fundo; aquilo
é realismo mágico porque é uma imagem inverossímil, impossível mas enfim,
fixada ali. (CARPENTIER, 1987, p. 123).
profound strengths’ (in ‘Coloquio a Distancia’ 16). Science fiction is not written as a counterbalance to
magic realism—it has far too long a history in Latin America for such a theory to hold any water—but it
does provide an alternative angle on Latin American literature and culture. To have an understanding of
Latin American science fiction, then, is to have a more complex and complete picture of Latin American
reality.” (FERREIRA, 2001, p. 8-9).
70
ou vizinho –, a única relação que o realismo mágico estabelece com os textos de ficção
científica da América Latina se dá por meio da generalização e do equívoco na rotulação
das narrativas.
O caráter peculiar da ficção científica produzida na América Latina, bem como
uma série de preconceitos contribuíram para que muitas obras, como as obras pioneiras
da ficção científica latino-americana, fossem rotuladas como pertencentes a outros
gêneros, esquecidas ou mesmo mal interpretadas. É essencial resgatar tais obras e
demonstrar a potencialidade da ficção científica em nossos países, contudo, é preciso
encontrar uma definição para ficção científica que consiga apreender a pluralidade desse
estilo de escritura. A definição de ficção científica como um gênero, assim como a de
fantástico como um gênero, ao buscar abranger um grande número de obras, acaba por
fazer o contrário: restringe e delimita. Entretanto, é possível expandirmos as definições
de fantástico e de ficção científica, encontrarmos maneiras não tão categóricas para
discuti-las, como faz muito bem Adam Roberts, em Science Fiction: the New Critical
Idiom, quando mostra o quanto as definições de ficção científica e fantástico se
aproximam:
24
“Most of these novels are narratives that elaborate some imaginative or fantastic premise, perhaps
involving a postulated future society, encounters with creatures from another world, travel between planets
or in time. In other words, science fiction as a genre or division of literature distinguishes its fictional worlds
to one degree or another from the world in which we actually live: a fiction of the imagination rather than
observed reality, a fantastic literature.” (ROBERTS, 2002, p. 1).
71
e não aquela que delimita e supercategoriza. Uma via para se pensar é o estudo da ficção
científica como parte de um campo maior que compreende os mais diversos tipos de
histórias sobrenaturais, o chamado modo fantástico.
25
“El relato fantástico provoca la incertidumbre, en el examen intelectual, porque utiliza datos
contradictorios reunidos según una coherencia y una complementariedad propias. No define una cualidad
actual de objetos o seres existentes, como tampoco constituye una categoría o un género literario, pero
supone una lógica narrativa a la vez formal y temática que, sorprendente o arbitraria para el lector, refleja,
bajo el aparente juego de la invención pura, las metamorfosis culturales de la razón y del imaginario
colectivo. La síntesis no nace aquí del inventario vasto y diverso de los textos, sino dé la organización, por
contraste y por tensión, de los elementos y de las implicaciones heterogéneas que crean el atractivo del
relato fantástico y su unidad.” (BESSIÈRE, 2001, p. 84).
72
A teórica busca reunir duas concepções divergentes até então, afirma que existem
aspectos formais que irão constituir esse modo de escritura, como já defendia Todorov
em sua investigação, mas, ao contrário dele, acredita que existem também fatores
extratextuais que irão contribuir para as temáticas do fantástico. Dessa forma, o fantástico
não se constitui como um gênero com uma definição fechada, mas sim como um modo
de narrar que reflete as inquietações coletivas, as quais se dão por meio de relações
paradoxais capazes de gerar incerteza e tensão:
26
“El relato fantástico utiliza los marcos sociológicos y las formas del entendimiento que definen los
dominios de lo natural y lo sobrenatural, de lo trivial y lo extraño, no para inferir alguna certeza metafísica
sino para organizar la confrontación de los elementos de una civilización relativos a los fenómenos que
escapan a la economía de lo real y de lo «surreal», cuya concepción varía según las épocas. Se corresponde
con la formulación estética de los debates intelectuales de un periodo, relativos a la relación del sujeto con
lo suprasensible o con lo sensible; y presupone una percepción esencialmente relativa de las convicciones
y de las ideologías del momento, aplicadas por el autor. La ficción fantástica fabrica, así, otro mundo con
palabras, pensamientos y realidades que son de este mundo. Ese nuevo universo elaborado en la trama del
relato se lee entre líneas, en el juego de las imágenes y de las creencias, de la lógica y de lo afectos,
contradictorios y comúnmente recibidos. Ni mostrado ni probado, sino solamente designado, extrae de su
propia improbabilidad algún indicio de posibilidad imaginaria, pero, lejos de perseguir ninguna verdad -ya
sea ésta la de la psique oculta y secreta-, toma su consistencia de su propia falsedad.” (BESSIÈRE, 2001,
p. 85).
73
Irène Bessière não foi a única teórica que propôs um estudo do fantástico por meio
da perspectiva modal, a teórica estadunidense Rosemary Jackson, em seu livro Fantasy:
the literature of subversion, ressalta algumas questões apresentadas por Bessiére e
defende a importância de se pensar no fantástico enquanto um modo, colocando-o entre
os modos maravilhoso e mimético. Para Jackson, o modo maravilhoso abrange obras
como os contos de fadas e outras histórias em que uma voz impessoal narra eventos
distantes; nessas histórias marcas textuais como “era uma vez”, “há muito tempo” e um
final como “e viveram felizes para sempre” colocam o evento sobrenatural fora do alcance
do leitor e até mesmo do protagonista. Enquanto o modo maravilhoso não se preocupa
em emular o mundo real de nenhuma forma, o modo mimético terá como preocupação
essencial fazer com que o texto ficcional se aproxime ao máximo do mundo “real”.
Segundo Jackson, o modo fantástico irá jogar com esses dois outros modos:
Assim como Bessière, Jackson enxerga o fantástico como um modo que carrega
em seu cerne a relação paradoxal, e de subversão, entre o “real” e o sobrenatural e
comporta um grande número de narrativas. É possível relacionarmos mais uma vez a
concepção do modo fantástico com a ficção científica, porquanto na ficção científica é
notável a construção de um efeito de real como motivação principal de inúmeras obras.
A associação da ficção científica com o modo fantástico é manifestada mais
27
“Fantastic narratives confound elements of both the marvellous and the mimetic. They assert that what
they are telling is real - relying upon all the conventions of realistic fiction to do so - and then proceed to
break that assumption of realism by introducing what - within those terms - is manifestly unreal. They pull
the reader from the apparent familiarity and security of the known and everyday world into something
strange, into a world whose improbabilities are closer to the realm normally associated with the marvellous.
The narrator is no clearer than the protagonista about what is going on, nor about interpretation; the status
of what is being seen and recorded as ‘real’ is constantly in question. This instability of narrative is at centre
of the fantastic as a mode.” (JACKSON, 1981, p. 34).
74
28
FURTADO, Filipe. Ficção Científica. In: CEIA, Carlos (Coord.). E-Dicionário de Termos Literários
(EDTL), dez. 2009. Disponível em: <http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/fantastico-modo/>. Acesso em:
27 set. 2016.
75
Levou algum tempo para que os colaboradores dessa nova onda da ficção
científica latino-americana mostrassem algum interesse na história ou crítica
do gênero. Assim, a ocorrência em 1957-58 do primeiro dos três eventos que
marcaram a reemergência da ficção científica latino-americana deve ser na
maior parte atribuída à coincidência. O ano de 1957 viu a publicação da
primeira compilação das histórias curtas de Holmberg por Antonio Pagés
Larraya no volume Cuentos fantásticos. O conto de ficção científica “Horacio
Kalibang o Los autómatas” (1879) foi incluído na coleção, e as discussões de
Pagés Larraya sobre Dos partidos en lucha e Nic-Nac em seu “Estudio
Preliminar” foram por muitos anos a fonte para muita da informação sobre
essas obras tão difíceis de se obter. Não obstante esse aparente “ano da ficção
científica para a Argentina”, no entanto, Pagés Larraya não se referia ao
tratamento singular de Holmberg dispensado ao tema das viagens espaciais,
nem fazia nenhuma menção ao termo “ficção científica” a propósito de
qualquer desses três textos. Também em 1957, o crítico brasileiro Alexandre
Eulálio republicou cerca de cinquenta páginas de Brasil 2000 na Revista do
Livro. Eulálio declarou sua intenção de republicar o romance na íntegra – algo
que ele nunca fez por razões desconhecidas, embora reconhecesse a relevância
de uma republicação, dado o valor histórico da obra. No entanto, vale notar
que Eulálio não faz conexão alguma entre Brasil 2000 e o gênero ficção
científica. (FERREIRA, 2009, p. 162).
por outros estilos, passaram despercebidas em meio ao imenso projeto literário de seus
autores.
Acreditamos que as definições de gênero bastante restritivas, bem como a
ausência de rotulação ou a rotulação indevida, discutida por Haywood Ferreira,
interferiram sobremaneira nesse sentido, pois, a ficção científica não foi um fenômeno
isolado a um grupo, foi, pelo contrário, uma escritura que instigou os mais diversos
autores e, nesse momento da segunda onda da ficção científica latino-americana que
coincidiu com o auge de algumas literaturas nacionais, grandes autores aproximaram-se
da ficção científica, alguns de maneira mais convencional, como no caso de Augusto
Emílio Zaluar, autor de Doutor Benignus, outros de forma mais excêntrica, como no
caso de Eduardo Ladislao Holmberg, autor de Viaje maravilloso del Señor Nic-Nac.
No conto de Queiroz, somos apresentados a uma atmosfera tal qual aquela clássica
das histórias pulp: uma expedição interplanetária em um futuro desconhecido resulta no
80
Assim, a história é no fim uma fantasia sobre ser capaz de usar as ferramentas
da tecnologia contra os pretensos colonizadores, para afirmar o poder da
periferia. Ma-Hôre é um trickster, capaz de se apropriar das ferramentas da
tecnologia para os seus próprios objetivos, voltando-as contra os usurpadores
que subestimaram e subvalorizaram sua cultura. Nesse sentido, Ma-Hôre pode
ser comparado a Prometeus, que ousou roubar o fogo dos poderosos deuses.
Embora a própria cultura de Ma-Hôre considere o fogo como seu inimigo, ele
consegue comandar a espaçonave, o equivalente moderno do fogo, isto é, a
tecnologia. Como em Frankenstein, de Mary Shelley, a história parece avisar
que o Brasil, como Ma-Hôre, não deveria ser tentado pelo poder da ciência e
da tecnologia, e se satisfazer com a sua própria cultura não tecnológica
(GINWAY, 2005, p. 56).
[...] o conto possui um caráter cautelar, segundo o qual o Brasil não deve se
apropriar de avanços oriundos de outras culturas. O caso parece ser o contrário:
embora a derradeira frieza do homúnculo cause sobressalto no leitor, é por
meio da apropriação da tecnologia alheia que ele consegue se libertar do
cativeiro. A apropriação é, portanto, investida de um valor positivo.
(GIROLDO, 2016, p. 94).
Concordamos com o ponto de vista apresentado por esse estudioso, pois Ma-Hôre
ao buscar conhecer a tecnologia humana não só pode regressar ao seu planeta como
82
temporal que é capaz de abarcar o passado (“Foi”) e o futuro (“daqui a muitos anos”).
Essa temporalidade já conduz o leitor a um tempo diferente daquele vivenciado na
realidade prosaica. O planeta Taloi também é um completo desconhecido, Rachel de
Queiroz não escolheu como espaço de sua narrativa nenhum dos planetas familiares de
nossa galáxia.
É nesse sentido que a autora joga com a ficção científica tradicional, assim como
nas famosas séries Flash Gordon e Buck Rogers, a indefinição do tempo e espaço
possibilitam a apresentação de qualquer ser e qualquer situação, contudo, diferentemente
desses clássicos estadunidenses que aproveitavam essa liberdade para apresentar os mais
diversos clichês, Rachel de Queiroz apresenta-nos uma versão futurista de algo que se
aproxima da história bíblica de Davi e Golias, em um sentido mais metafórico clássico da
comparação dos tamanhos/forças.
Ginway acredita que “[...] ‘Ma-Hôre’ é mais dinâmica em sua abordagem da
cultura brasileira, retratando a apropriação das ferramentas da tecnologia para o uso
contra o colonizador, assim afirmando a fantasia da colonização reversa” (ANO, p. 60),
mas mais do que uma fantasia de colonização reversa, existe não só no povo brasileiro,
mas também em toda América Latina, cuja população é majoritariamente cristã, a crença
de que o pequeno pode vencer o grande por meio da fé e da engenhosidade, tal qual Davi
derrotou o gigante Golias apenas utilizando uma funda, uma simples arma de fibra vegetal
e couro capaz de acoplar uma pedra.
Parece-nos plausível tal relação visto que o conto de Queiroz transita entre duas
instâncias: a primeira relaciona-se a uma organização textual voltada para os modelos
estadunidenses de ficção científica e a outra, que percorre as entrelinhas de seu texto, se
relaciona aos temas e paradigmas de uma literatura nacional e latino-americana, cuja
religiosidade, o não apego aos discursos tecnicistas e o hibridismo genológico dão o tom
da obra.
Essa primeira instância coloca o alienígena em evidência, com a apresentação
desse outro que deve ser subjugado, ou, pelo menos, adestrado. Entretanto, o
desenvolvimento da narrativa rompe com esse enredo tradicional, levando-nos para a
segunda instância, uma perspectiva outra, capaz de subverter um modelo e romper com
expectativas. É por meio de uma leitura mais atenta, capaz de atravessar essa superfície,
que percebemos o quanto Raquel de Queiroz não quer emular, ou apropriar-se da ficção
84
científica estadunidense, mas sim reivindicar sua autonomia, tal qual o pequeno
alienígena, protagonista dessa sua história.
3.2.2 – “A lula opta por sua tinta” de Adolfo Bioy Casares, e o gênero fantástico nos
estudos latino-americanos
Sabemos muito bem que dom Juan não era homem de cortar a água do jardim,
por descuido, num verão seco. Não à toa nós o considerávamos o baluarte da
cidade. [...]. Em sua vida, regida pela moderação e pela ordem, ninguém, que
eu me lembre, computou uma fraqueza, fosse uma bebedeira, uma rameira ou
um tropeço político. Num passado que de bom grado esqueceríamos – quem
de nós, em matéria de infâmia, não deu as suas saidinhas? – dom Juan se
manteve limpo. (BIOY CASARES, 2013, p. 96).
Graças a essa sua história impecável, dom Juan é um dos homens de maior
prestígio na cidade; acima dele, na consideração do povo, havia apenas sua mãe, Dona
Remédios, mulher forte e capaz de resolver qualquer conflito. Completa o quadro da
família de dom Juan seu afilhado, dom Tadeíto, que não é tão exaltado pela população
como seus demais familiares. A inteligência do rapaz é constantemente questionada ao
longo da história e apenas o narrador, que é também professor do jovem, o defende das
galhofas sofridas.
A ênfase na apresentação das personagens dada pelo narrador busca demonstrar a
confiabilidade dessa família, a fim de evitar qualquer dúvida acerca dos eventos que serão
narrados. Assim como nas histórias de abdução, nas quais as credenciais das pessoas
85
envolvidas são enfatizadas para que não se questione sobre a veracidade do contato, esse
narrador prepara seu leitor para não duvidar do que será revelado ao final da história. E,
assim como apresentou a família de dom Juan, antes mesmo que o leitor possa questionar
sobre sua idoneidade, o narrador se apresenta como um estudioso com uma mentalidade
a frente de seus conterrâneos:
- O padrinho disse para dona Remédios que eles têm uma visita morando no
depósito que quase sucumbiu dias atrás, porque parecia uma espécie de
gangorra de parquinho aquele que nem abrira os livros e que ele não perdeu a
calma embora o estado dela fosse de dar dó e lhe recordasse um bagre
agonizando fora do lago. Disse que pensou em trazer um balde cheio de água,
porque intuiu que pedia água e ele não ia ficar de braços cruzados e deixar
morrer um semelhante. Não obteve resultado apreciável e preferiu trazer um
bebedouro a tocar na visita. Encheu o bebedouro com muitos baldes de água e
não obteve resultado apreciável. De repente lembrou do aspersor e como o
médico de cabeceira que testa, às cegas, remédios para salvar um moribundo,
foi correndo buscar o aspersor e o conectou. O resultado foi apreciável a olhos
vistos, porque o moribundo reviveu como se lhe fizesse muito bem respirar o
ar molhado. O padrinho disse que perdeu um tempo com sua visita, porque
perguntou como pôde se precisava de alguma coisa, e que a visita era
francamente esperta, e depois de uns quinze minutinhos já bicava aqui e ali
alguma palavra em espanhol e lhe pedia rudimentos para se instruir. O
padrinho disse que mandou o filhado pedir os textos do primeiro grau para o
professor. Como a visita era francamente esperta, aprendeu tudo em dois dias,
e em um dia tudo o que ele quis do segundo grau. Depois disse o padrinho,
86
Todo o relato acerca do evento sobrenatural é dado por dom Tadeíto, o membro
menos confiável da família de dom Juan, o que leva o narrador a ter, por um breve
momento, uma postura cética e perguntar ao menino “Você andou lendo Sobre coisas
vistas no céu, do doutor Jung?” (BIOY CASARES, 2013, p, 103). Todavia, a credulidade
predomina, levando o narrador a querer saber mais sobre as motivações do alienígena e a
não duvidar nem por mais um momento da existência do hóspede interplanetário. É dito
então pelo menino que o extraterrestre frustrou-se quando soube da condição de nosso
planeta: governado por péssimas pessoas, capazes de soltar bombas atômicas e destruir
toda a Terra. O extraterrestre contava ainda que em lugares mais distantes do cosmos já
haviam feito tal descoberta e por ambição e cobiça mundos já haviam sido devastados. O
futuro do planeta Terra parecia igualmente tenebroso para ele que afirmava vir em missão
de paz: “[...] veio como amigo e libertador e pedia o pleno apoio do padrinho para levar
adiante um plano para salvar o mundo” (BIOY CASARES, 2013, p. 103).
Por mais que o alienígena se mostrasse amigável e sábio, tal qual o gigante
Micrômegas de Voltaire, dom Juan opta por não ajudá-lo em seu retorno e desliga o
aspersor, levando o alienígena à morte. O título do conto parece sintetizar tal desfecho:
“A lula opta por sua tinta”, ou seja, se a humanidade estava próxima a entrar em colapso
que isso fosse realizado pelas próprias mãos dos homens e não por uma possível invasão
alienígena. Ou, como opinaram os homens do bar quando souberam da escolha de dom
Juan:
- Dom Juan não quer que o tirem de seu lugar – opinou o galego. – Prefere que
este mundo vá pelos ares a que a salvação venha de outros. Veja você, é uma
forma de amar a humanidade.
- Medo do desconhecido – comentei. – Obscurantismo. (BIOY CASARES,
2013, p. 105).
Há-de ter-se já tornado claro que aquilo que aqui designo por paródia não é
apenas aquela imitação ridicularizadora mencionada nas definições dos
dicionários populares. O desafio a esta limitação do seu sentido original, tal
como é sugerido, pela etimologia e a história do termo, é uma das lições da
arte moderna a que atender em qualquer tentativa de elaborar uma teoria da
paródia que se lhe adeque. O Ulysses, de Joyce, fornece o exemplo mais
patente da diferença, quer em alcance, quer em intenção, daquilo que
designarei por paródia no século XX. Há extensos paralelismos com o modelo
homérico, ao nível das personagens e do enredo, mas trata-se de paralelismos
com uma diferença irônica. (HUTCHEON, 1985, p. 16).
É possível pensar no conto de Bioy Casares como uma paródia nesse sentido
apresentado por Hutcheon, pois, se nos lembrarmos de alguns clássicos da ficção
científica, notaremos que há um paralelismo irônico na história do argentino. Isso porque,
enquanto em A guerra dos mundos a queda de cilindros gigantescos anunciava a
chegada de seres alienígenas, em “A lula opta por sua tinta”, a ausência do aspersor em
um jardim e o estranho pedido de um jovem prenunciam o evento sobrenatural.
Se tomarmos a paródia no sentido apresentado pelas estudiosas Graça Paulino,
Ivete Walty e Maria Zilda Cury, em Intertextualidades: teoria e prática, a “paródia é
[...] uma forma de apropriação que, em lugar de endossar o modelo retomado, rompe com
ele, sutil ou abertamente” (CURY; PAULINO; WALTY, 1997, p. 36). Acreditamos que
29
“Lo paródico y lo fantástico se combinan también en ‘El calamar opta por su tinta’. [...] En el primero,
el narrador personaje es un maestro de un pequeño pueblo en la pampa bonaerense. El lenguaje coloquial
predomina y los diálogos de personajes típicos de esa región rural prevalecen. La parodia se constituye
sobre el tratamiento de una temática frecuente en la ciencia ficción, el de la llegada secreta de un extra-
terrestre. En este caso, tras una serie de investigaciones y descubrimientos de incógnitas, se revela hacia el
final del cuento que tiene el aspecto de un bagre, quien finalmente no logra sobrevivir en su nuevo hábitat.”
(MARTÍNEZ, 2018, p. 133).
88
o conto de Bioy Casares não nega a ficção científica, mas sim apresenta a temática de
maneira incomum e, nesse sentido, não é possível compreendê-lo como uma paródia.
A não identificação com os modelos, especialmente estadunidenses de ficção
científica, corresponde a uma característica da escrita latino-americana do gênero. Tal
característica remonta às origens da ficção científica que exerceram maior influência do
que aquela matriz que se tornou tradicional nos Estados Unidos. Além disso, julgamos
que o jogo capaz de fazer o leitor e as personagens adaptarem-se ao evento insólito
corresponde a uma importante característica da boa ficção científica.
Em “A lula opta por sua tinta” somos apresentados a um cenário realista, com
personagens humanas que vivem um estilo de vida muito corriqueiro e próximo ao nosso.
Essa familiaridade corresponde ao processo de adaptação descrito por Todorov (2004) ao
falar da ficção científica. Nesse conto, fatos corriqueiros tomam proporções muito mais
assustadoras do que os sobrenaturais e o ser alienígena, mesmo possuindo uma forma
totalmente anômala, parecido com um bagre, é tratado como um semelhante que necessita
de ajuda. O sumiço do aspersor cria mais expectativas e estranhamento do que quando se
sabe da real natureza do hóspede de dom Juan. Quando os habitantes do vilarejo
conhecem a história, por meio do relato de dom Tadeíto, há uma espécie de fechamento
que tranquiliza a população, como se a ordem pudesse ser reestabelecida só depois de
todos saberem exatamente tudo que havia se passado naquele local.
Aos acostumados à ficção científica hard, o conto de Bioy Casares passa longe de
ser uma ficção científica já que os aspectos humanos, especialmente as discussões sobre
a vida em uma pequena comunidade, sobressaem àqueles relativos ao encontro com o
alienígena e ao fato da descoberta dessa forma de vida extraterrestre não levar a população
a uma discussão cosmológica, mas, sim, a uma discussão existencial. O ponto central
dessa descoberta está na escolha de dom Juan e no que aqueles homens do vilarejo
poderiam fazer a partir dela:
O conto ao final mostra-se uma grande discussão acerca de como o homem lida
com seu planeta e como se relaciona com seus semelhantes. Dom Juan concluiu que os
homens não mereciam ser salvos, não pelas mãos de um alienígena, e os homens do bar
que souberam da história, por meio de dom Tadeíto, apesar do grande pessimismo,
decidem tentar salvar o extraterrestre para que ele pudesse reverter os problemas da
humanidade, contudo, já era tarde “o bagre” estava morto.
Acreditamos que em “A lula opta por sua tinta” há uma discussão essencial para
a ficção científica e que é apresentada de maneira não muito comum: enfatizando os
pequenos eventos e deixando o grande evento em um segundo plano. Tal forma de
apresentação pode ofuscar o fato de que é perfeitamente possível enxergar esse conto
como uma ficção científica soft, cujos temas sociais se sobressaem aos tecnológicos. Quer
dizer, por mais que o tema do alienígena não ocupe posição central no enredo, é ele que
desencadeia uma reflexão existencial. O foco do escritor argentino não está na chegada
do alienígena, mas em como isso mexe com a mente de um povo, principalmente de um
povo que jamais teve grandes preocupações.
A restrição de um conto tão rico à categoria de gênero fantástico todoroviana só é
possível se desconsiderarmos os aspectos supracitados. A hesitação, elemento essencial
para o fantástico, não acontece nesse conto e, como já defendemos, a adaptação se faz
muito mais preponderante nessa história. O próprio Adolfo Bioy Casares, no prólogo da
Antologia da literatura fantástica organizada por ele, Jorge Luis Borges e Silvina
Ocampo, defende uma visão amplificada de fantástico, como lembra Gama-Khalil em seu
artigo “A literatura fantástica: gênero ou modo?”, presente na revista Terra Roxa e
outras terras:
Adolfo Bioy Casares (2009), no prólogo da antologia que organiza com Borges
e Ocampo, considera a literatura fantástica como um gênero e defende a
amplitude abrangida por ela, já que acredita que tal gênero seria constituído
por uma heterogeneidade de textos antigos de vários lugares do mundo ―
Zendavesta, Bíblia, a épica de Homero, As mil e uma noites. Como se pode
notar, Bioy Casares denomina gênero, mas a concepção que ele expõe acerca
da literatura fantástica estaria mais afinada à ideia de modo literário. Para Bioy
Casares provavelmente os primeiros especialistas do gênero/ou modo tenham
sido os chineses. Como é possível inferir, por intermédio das palavras do citado
prólogo e da seleção de contos feita pelos organizadores da antologia, a
90
Podemos acrescentar ainda a ficção científica nesse grupo, já que nesse mesmo
prólogo, ao definir as diferentes possibilidades de fantástico, Bioy Casares em vários
momentos defende modos de se construir o fantástico que se aproximam do que
compreendemos como ficção científica. O argentino afirma que os contos fantásticos
podem ser classificados pela explicação que o evento sobrenatural recebe na narrativa e
um dos tipos é aquele “[...] que têm explicação fantástica, mas não sobrenatural
(‘científica’ não me parece o adjetivo conveniente para essas invenções rigorosas,
verossímeis, à força de sintaxe)” (BIOY CASARES, 2013, p. 15). Outro momento em
que o autor aproxima sua definição de fantástico da ficção científica é quando afirma que:
O conto de Bioy Casares, presente nessa coletânea, é justamente “A lula opta por
sua tinta” e nele o aspecto de familiaridade acresce um efeito de real que equivale muito
à definição apresentada na citação acima. E, nesse sentido, há uma forte aproximação do
conto e da definição de fantástico apresentada pelo autor com a ficção científica, visto
que o exemplo apresentado por ele é justamente H. G. Wells.
“A lula opta por sua tinta” é, sem dúvidas, um conto excêntrico, ou seja, um conto
que não segue as convenções do centro, mas que notavelmente se aproxima do que se
compreende como ficção científica. Por mais que saibamos do alienígena, só ao final é
totalmente explicitada a presença desse ser e suas motivações nos são contadas. Há ainda
o caráter reflexivo envolto em toda a história e que remete a um dos maiores medos do
período em que o conto foi escrito: uma possível guerra nuclear. Esse medo mostrou-se
um grande combustível para a ficção científica mundial do período e Bioy Casares lançou
um olhar muito mais sutil para esse perigo, aquele olhar típico do povo latino-americano:
tomado pela impotência e passividade, pois nossos países nunca foram detentores desse
tipo de poder bélico.
91
3.2.3 – “Um moço muito branco”, de João Guimarães Rosa, e o real maravilhoso latino-
americano
“Um moço muito branco” é um conto breve que carrega uma série de incógnitas.
Em um povoado de Minas Gerais um desastre de proporções catastróficas acontece,
levando pessoas a perderem seus lares, suas terras, seus rebanhos, algumas ao
desaparecimento, outras até a morte. É nesse contexto que surge um homem muito
branco, muito mais que os demais habitantes do local e de uma brancura sobrenatural:
“Tão branco; mas não branquicelo, senão que de um branco leve, semidourado de luz:
figurando ter por dentro da pele uma segunda claridade. Sobremodo se assemelhava a
esses estrangeiros que a gente não depara nem nunca viu; fazia para si uma outra raça.”
(ROSA, 1967, p. 99). Devido à catástrofe, pressupõe-se que o rapaz deveria ser uma das
vítimas, pois, além de ter sido encontrado apenas enrolado em um cobertor, o moço não
falava e parecia não possuir nenhuma memória.
O rapaz passa a ser querido por todos e torna-se hóspede na fazenda de Hilário
Cordeiro. A recepção e o afeto de todos não é suficiente para que ele se sinta parte daquela
sociedade já que havia nele sempre um ar distante, mas, curiosamente, todos que se
aproximavam dele sentiam-se muito bem:
E, todavia de seu zelo, mais para diante, Hilário Cordeiro iria ter melhor razão,
eis que tudo lhe passou a dar sorte, quer na saúde e paz, em sua casa, seja no
assaz prosperar dos negócios, cabedais e haveres E não que o moço lhe
facultasse ajuda, na sujeição de serviço ou no vagar a algum ofício, em que, de
feito, nem pudesse dar descargo de si – com as mãos não calejadas, alvas e
finas, de homem-de-palácio. Ele andava muito na lua, passeava por todo o
lugar e alhonde, praticando aquela liberdade vaporosa e o espírito de solidão
(ROSA, 1967, p. 102).
[...] escravo meio alforriado de um músico sem juízo, e ele próprio de Ideia
conturbada; por último, então, delirado varrido, pelo fato de padecidos os
grandes pavores, no lugar do Condado: girava agora por aqui e ali, a pronunciar
advertências desorbitadas sandices – querendo pôr em pé de verdade
portentosa aparição que teria enxergado, nas margens do Rio do Peixe, na
véspera das catástrofes. (ROSA, 1967, p. 100).
A posição marginal que José Kakende ocupa nessa sociedade faz com que seus
relatos sejam ignorados, entretanto, tais relatos justificam muitos dos eventos
sobrenaturais relacionados ao moço. O primeiro deles refere-se à visão que ele tem nas
margens do Rio do Peixe, próximo ao dia da grande catástrofe, e que parece prenunciar a
chegada de um ser de outro mundo:
Félix, dia 18 de maio, depois é descrita a empolgação dele com os fogos do dia de São
João, dia 24 de junho, no dia de Nossa Senhora das Neves, 5 de agosto, o moço auxilia
Duarte Dias a encontrar os diamantes e, por fim, no dia de Santa Brígida, 23 de julho, o
moço muito branco vai embora.
Há um problema na organização temporal das duas datas finais que nos levam a
duas possibilidades, a primeira é que o moço passou muito tempo na comarca de Serro
Frio e depois de mudar a vida de Duarte Dias ficou mais um ano vagando por aquele
povoado sem fazer nada de extraordinário; a segunda, e mais provável, é que a imprecisão
temporal se dá em consequência de uma outra, a imprecisão da história contada, que,
segundo o narrador, aconteceu em um passado não muito distante, no ano de 1872, e foi
passada por gerações: “Seja de maneira ainda hoje se conta, mas transtornado incerto,
pelo decorrer do tempo, porquanto narrado por filhos ou netos dos que eram rapazes, quer
ver que meninos, quando em boa hora o conheceram” (ROSA, 1967, p. 100).
A referência aos feriados santos, o nome do homem que abrigou o moço (Hilário
Cordeiro), os relatos de José Kakende e ainda o evento da ida do moço a uma missa,
demonstram a importância da fé para a compreensão dessa história. Os feitos
sobrenaturais que cercam o rapaz não causam estranhamento na população, pois, para ela
o rapaz carregava algo de santo consigo, como demonstra a fala do padre ao descrevê-lo:
“Comparados com ele, nós todos, comuns, temos os semblantes duros e o aspecto de má
fadiga constante” (ROSA, 1967, p. 101). A ida à missa funciona como um teste para se
saber as reais intenções do rapaz:
Mas levaram o moço à missa, e ele portou-se, não fez modos de crer nem
increr. Cantoria e músicas do coro, escutasse, no sério sentimental. Triste, dito,
não; mas: como se conseguisse, em si, mais saudade que as demais pessoas,
saudade inteirada, a salvo do entendimento, e que por tanto se apurava numa
maior alegria – Coração de cão com dono. Seu sorriso às vezes parava, referido
a outro lugar, outro tempo. Sorrindo mais com o rosto, senão com os olhos;
suposto que nunca se lhe viram os dentes. Padre Bayão, antes de com ele
bondosamente conferir, de improviso lhe representou diante o signo-da-cruz:
e ele não mostrou o desagrado da matéria. (ROSA, 1967, p. 101).
Mas, por contra, no dia da venerada Santa Brígida, de voz comum de novo dele
se soube: o moço, plácido. Disse-se, que saíra, na véspera, de paragem, pelos
altos, num de seus desapareceres; era um tempo de trovoadas secas. José
Kakende contava somente que o ajudara a acender, de secreto, com formato,
nove fogueiras; e, mais, o Kakende soubesse apenas repetir aquelas suas velhas
e divagadas visões – de nuvem, chamas, ruídos, redondos, rodas, geringonça e
entes. Com a primeira luz do sol, o moço se fora, tidas asas. (ROSA, 1967, p.
104).
Mais uma vez, uma descrição muito similar a de um disco voador é interpretada
por Kakende segundo sua fé, ele enxerga o moço como um anjo, subindo aos céus com
suas asas. Acreditamos que a forte influência da religiosidade não aparece nesse conto
numa tentativa de suplantar discussões de um outro nível abstrato como a da existência
de vida alienígena. Muito pelo contrário, em “Um moço muito branco” a ambiguidade do
ser extraterrestre é acentuada por essa confluência com a fé, e também há de observar-se
que os relatos de discos voadores surgem apenas no século XX, bem como o fato do termo
Objeto Voador Não Identificado (OVNI) ter sido cunhado apenas por volta dos anos 1940
e, com isso, seria impossível, mesmo que o evento se desse em um centro urbano
intelectual, reconhecê-lo como tal, restando, assim, a interpretação do evento a partir do
que aquela sociedade representada nele conhecia: o milagre (se pensarmos em um sentido
lato, os anjos também possuem uma existência “extra-terrestre”).
Por mais que a figura de José Kakende inspire pouca confiança ele não é o único
que nos dá pistas sobre a real natureza do moço. O próprio Guimarães Rosa buscou
instigar seus leitores a chegarem a essa possível interpretação. A primeira edição do livro
Primeiras Estórias, uma coletânea de contos do escritor mineiro, do qual o conto “Um
moço muito branco” faz parte, apresenta pequenas ilustrações feitas por Luis Jardim,
ilustrações essas que foram acompanhadas e sugeridas por Rosa. A que acompanha o
conto que analisamos revela-nos muito sobre a história:
Rosa nos mostra, em “Um moço muito branco”, que a relação do real maravilhoso
latino-americano com a ficção científica é plausível, pois, a realidade maravilhosa desse
pequeno povoado faz com que a chegada de um ser insólito como um moço,
excessivamente branco, “[...] contam que seus olhos eram cor-de-rosa” (ROSA, 1967, p.
101), seja capaz de transformar a vida de todos à sua volta, e que ele seja tratado com
naturalidade e familiaridade, não havendo hesitação, medo ou qualquer transtorno
relacionado a essa figura destoante. Não há também questionamentos acerca da origem
ou das motivações do moço muito branco ou uma tentativa de controle e ocultamento de
sua história. Diferentemente do que se esperaria em uma narrativa tradicional de ficção
científica de contato alienígena, não há a necessidade de estudá-lo, basta levá-lo à missa
e perceber que não há nele nenhum tipo de oposição ao que é sagrado para aquele povo.
Bráulio Tavares faz uma interessante análise desse conto em um artigo intitulado
“João Guimarães Rosa’s ‘A Young Man, Gleaming, White’ and the Protocol of the
Question” presente no livro Latin American Science Fiction: Theory and Practice
96
Eu tenho uma certa cautela quando cito uma história como essa de Guimarães
Rosa como um exemplo de ficção científica (SF), já que leitores mais radicais
do gênero correm o risco de se sentirem desapontados. Eles podem acabar
dissecando a história, linha por linha, procurando por motivos de SF e, no
processo, deixam de fora ou ignoram o que resta. Essa abordagem é um erro
de leitura que aflige os leitores de todos os tipos de ficção, não apenas os
leitores do SF. Qualquer um que se aproxima de um texto literário com uma
agenda ou lista de ideias e se dedica a encontrar essas ideias dificilmente
consegue ter uma visão clara do texto real, a menos que tenha sido escrito por
alguém com a mesma lista de verificação. (TAVARES, 2012, p. 66-67,
tradução nossa).30
É compreensível que o teórico modalize bastante seu discurso para esse público,
visto que a ficção científica latino-americana, ao vincular-se a discursos religiosos e de
ciências menos ortodoxas, dilui algumas das fronteiras delimitadas pelos aficionados
estadunidenses. Em “Um moço muito branco” a religiosidade não busca obscurecer a
ciência, na verdade, pela ausência de justificativas para o evento improvável, a fé torna-
se uma solução plausível. Se pensarmos sob essa perspectiva, o conto de Rosa diz muito
sobre a realidade dos países latino-americanos que, subjugados tecnologicamente,
abrigam-se em uma fé capaz de justificar muitos eventos inexplicáveis.
Quando Carpentier diz que “[q]uanto ao real maravilhoso, precisamos apenas
estender as mãos para alcançá-lo” (1987, p. 129), podemos pensar nessa história, visto
que, independentemente de o moço ser um alienígena ou um anjo, ele é acolhido por
aquela sociedade e visto e tratado como um semelhante. Sua partida deixa saudades, como
se a sua presença fantástica desencadeasse o melhor naquele povo, como se sua existência
desse sentido à existência deles:
30
“I take a certain amount of caution when I cite a story such as this one by Guimarães Rosa as an example
of science fiction (SF), since more radical readers of the genre run the risk of feeling disappointed. They
can end up dissecting the story, line by line, looking for SF motifs, and in the process, leave out or ignore
what remains. This approach is an error of reading that afflicts readers of all kinds of fiction, not just readers
of SF. Anyone who approaches a literary text with an agenda or checklist of ideas and dedicates himself or
herself to finding said ideas can hardly manage to have a clear vision of the actual text, unless it has been
written by someone with the same checklist.” (Tavares, 2012, p. 66-67).
97
O objetivo de uma história como “Um moço muito branco” não é explorar a
figura do alienígena nem a civilização que ele supostamente representa, mas
sim o ambiente humano em que ele pousa, como se fosse um paraquedas.
Estudar o alienígena e a “alienação” é um obstáculo da ficção científica hard,
cujo foco principal é a especulação científica. Na literatura de Guimarães Rosa,
o alienígena é de interesse apenas como um fator perturbador para aquele
ambiente, um catalisador de reações humanas, e a fonte de um mistério
especial que a história busca intensificar mais do que resolver. (TAVARES,
2012, p. 67, tradução nossa).31
Por mais que o conto de Rosa não instigue discussões como aquelas da ficção
hard, é possível que o aspecto social que predomina na ficção científica soft permita-nos
compreender esse conto com pertencente à ficção científica. Nosso objetivo não é alargar
o conceito indiscriminadamente para que toda e qualquer história possa ser compreendida
como uma ficção científica. Contudo, no conto “Um moço muito branco”, mesmo que
sutilmente, a temática do alienígena, que tem papel central na ficção científica, se faz
presente assim como o aspecto social relacionado à recepção e tratamento do
sobrenatural, bem como a justificação dele por meio de elementos religiosos que dizem
muito sobre como o latino-americano, de maneira geral, relaciona-se com a temática do
extraterrestre.
Nesse sentido, a definição de fantástico como um modo pode auxiliar-nos, já que
os estudos de Bessière e Jackson compreendem a ficção científica como integrante desse
modo que abriga as mais diversas histórias nas quais o sobrenatural irrompe. Acreditamos
que é necessário chamar o conto “Um moço muito branco” de conto de ficção científica
para que elementos que aparecem de maneira muito sutil nele possam ser percebidos.
Porém, o chamamos assim não por acreditarmos que ele se encaixe nos modelos pré-
estabelecidos da ficção científica como um gênero, mas sim pela capacidade de expansão
e acolhimento que o modo fantástico dá à ficção científica, valorizando histórias que
31
“The objective of a story like ‘A Young Man, Gleaming, White’ is not to explore the figure of the alien
nor the civilization that he supposedly represents, but rather the human environment in which he lands, as
if by parachute. Studying the alien and ‘alienness’ is a staple of hard SF, whose main focus is scientific
speculation. In the literature of Guimarães Rosa, the alien is of interest only as a disturbing factor to the
environment, a catalyst of human reactions, and the source of a special mystery that the story seeks to
intensify more than to resolve.” (TAVARES, 2012, p. 67).
98
3.2.4 – “There are more things”, de Jorge Luis Borges, o horror cósmico na América
Latina
nos Estados Unidos, decide retornar à Argentina depois da morte de um tio e da venda da
casa deste para uma personalidade estranha. Tal qual em contos de detetive, esse narrador
conversa com alguns habitantes da cidade para tentar descobrir mais sobre o comprador,
mas, diferentemente do que normalmente encontramos nesse tipo de história, as pistas
levantadas por ele não são muito efetivas, porque as pessoas temem o estranho homem
que comprou a casa e evitam falar sobre as excêntricas reformas feitas e até mesmo têm
medo de passar na porta da mansão.
O narrador não se contenta com as poucas e vagas respostas que recebe da
população local e então decide entrar na casa para descobrir o que de estranho poderia
haver lá. É nesse momento que a história torna-se mais obscura, já que o que o homem
encontra é incompreensível, sobrenatural, indescritível. Tanto os objetos da casa quanto
seu morador são diferentes de tudo que os olhos humanos são capazes de conceber:
Parece-nos que há uma certa ironia envolvida na dedicatória a Lovecraft, visto que
o estadunidense em seus textos buscou sempre dar forma aos seus monstros, por mais
anômalos que eles fossem (lembremo-nos do famoso Cthulhu que se tornou ícone pop,
com camisetas e diversas ilustrações de sua imagem). Em Borges, a impotência em
relação ao desconhecido é elevada ao máximo impossibilitando qualquer descrição, o
mais próximo que há do entendimento é quando o narrador atenta para os objetos da casa:
Havia muitos objetos ou uns poucos objetos entrelaçados. Lembro agora uma
espécie de comprida mesa operatória, muito alta, em forma de U, com
cavidades circulares nos extremos. Pensei que podia ser o leito do habitante,
cuja monstruosa anatomia se revelava assim, obliquamente, como a de um
animal ou a de um deus, por sua sombra. (BORGES, 1999, p. 41).
e aspecto desse ser sobrenatural. A estudiosa afirma em seu artigo “Objetos insólitos e
assombrados: da concretude prosaica à maldição”, presente na revista Todas as musas,
que:
Vivemos rodeados por objetos e muitas vezes não nos damos conta de que eles,
situados externamente a nós, constituem a nossa subjetividade. Os objetos que
temos em nossas casas falam muito daquilo que somos e da nossa compreensão
de mundo. Nessa linha de entendimento, “[n]ão se pode falar de processo de
subjetivação sem referir-se a dobras, mas não se pode falar de dobras sem
referir-se ao objetual” (DOMÈNECH; TIRADO; GÓMEZ, 2001, p.128).
Nossa subjetividade, composta por dobras, é, pois, construída igualmente por
meio de exterioridades, isto é, o “fora” nos constitui; portanto o que
imaginamos compor o nosso interior tem sua forte e imprescindível relação
com o exterior, com os objetos que povoam o espaço habitado por nós.
(GAMA-KHALIL, 2017, p. 44).
O conto de Borges elucida tal discussão, uma vez que o narrador só consegue se
aproximar de uma conclusão acerca do ser visto por ele a partir do momento em que lança
seu olhar aos objetos da casa. O ser sobrenatural ao comprar a casa se desfaz dos objetos
anteriores e contrata arquitetos e marceneiros para criar os objetos de seu agrado, ou seja,
objetos que se adequem não simplesmente às suas necessidades, mas que se integrem ao
seu modo de existência tão peculiar.
Os objetos e cômodos da casa, tão estranhos e anormais, são elementos que geram
medo, aquele medo mais profundo descrito por Lovecraft, “o medo do desconhecido”
(LOVECRAFT, 2018, p. 34), isso porque auxiliam na antevisão do morador que só ao
final temos uma pista sobre sua verdadeira origem:
Como seria o habitante? O que podia procurar neste planeta, não menos atroz
para ele que ele para nós? De que secretas regiões da astronomia ou do tempo,
de que antigo e agora incalculável crepúsculo haveria alcançado este arrabalde
sul-americano e esta precisa noite? (BORGES, 1999, p. 41).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Afinal, enquanto nos Estados Unidos a ficção científica logo entrou no gosto
popular, em nossos países ela passou despercebida e isso possivelmente contribuiu para
que as amarras e ditames para a sua produção fossem menores por aqui. Lá, os editores
de revista, como Hugo Gernsback da Amazing Stories, apresentavam em seus editoriais
discussões sobre as temáticas e como elas deveriam ser tratadas em suas revistas, isso
acabou contribuindo para a constituição de um gênero bastante encerrado em discussões
tecnológicas. Já em nossas terras, as obras de imaginação racionalizada não encontraram
nenhuma sistematização rigorosa ou prescrição, apresentando assim, geralmente,
algumas das temáticas clássicas de maneiras pouco convencionais.
Associamos algumas características da ficção científica latino-americana – como
a falta de rigor aos preceitos científicos canônicos e a consideração de ciências não
ortodoxas, bem como o apego a religiões heterodoxas que buscaram conciliar discursos
religiosos e científicos – ao entendimento da realidade latino-americana como sendo uma
realidade maravilhosa. Ao longo de todo nosso estudo, demonstramos a relevância das
ponderações de Alejo Carpentier acerca da realidade latino-americana e o quanto isso
influencia no modo como tratamos o sobrenatural em nossos países.
Não consideramos o supracitado aspecto uma desvantagem, tanto que ressaltamos
que alguns desses elementos da produção latino-americana podem nos auxiliar na
compreensão da ficção científica como um todo. Pois, por ela acentuar o caráter fantástico
presente nas histórias de ficção científica nos instigou a pensar no quanto isso se apresenta
enquanto aspecto possível, e necessário, a esse tipo de literatura.
Retomamos o conceito de mimesis e de verossimilhança de Aristóteles, visto que
eles ressoam ainda hoje tanto nos estudos do fantástico quanto nos da ficção científica. O
porquê de recorrermos a uma proposta tão antiga deve-se ao fato de existirem diversas
confusões no tratamento desses conceitos, principalmente com relação àquelas leituras
que enxergam a verossimilhança como algo que se relaciona a uma similitude com o
verdadeiro, o real.
Aristóteles foi de grande relevância para podermos afirmar que a ficção científica
não deve ser refém da realidade científica de sua época, ela não precisa, necessariamente,
justificar-se para seu leitor. Para aqueles que talvez persistam nesse tipo de afirmação,
podemos argumentar que existem ainda outras noções capazes de referendar nossa
afirmação: a noção de suspensão de descrença, de Coleridge, e ainda a do efeito de real,
105
descrito por Barthes. Nesse sentido, cabe dizer que o escritor pode trazer para seus textos
alguns elementos da realidade, apegar-se a estudos científicos para basear a sua obra e,
ainda, descrever esses estudos exaustivamente, isso pode, inclusive, enriquecer suas
narrativas, conferindo-lhe assim um efeito de real. Entretanto, o leitor não deve se deixar
enganar, deve se lembrar sempre de que está lendo uma ficção, fazer o pacto ficcional.
Na ficção científica, algumas obras facilitam esse acordo, outras se apegam
bastante à ciência e tornam, algumas vezes, essa percepção mais nebulosa. Mas mesmo
assim, é necessário que firmemos nosso entendimento nesse sentido de que, antes de tudo,
trata-se sempre de uma ficção e não de um texto de algum campo científico. Todavia, não
negamos a possibilidade de a ficção científica ensinar, e lembramo-nos inclusive de Aula,
quando Barthes define as três forças que movem a literatura: mimesis, mathesis e
semiosis. Os conceitos apresentados por Barthes auxiliaram-nos também na resolução de
uma contenda interna à ficção científica, aquela que opõe os escritores H. G. Wells e
JúlioVerne. De nosso ponto de vista, em ambos é possível enxergar as três forças da
literatura: os saberes aparecem em suas obras de maneira dinâmica, suas escrituras
tornaram-se clássicas e as histórias que contam representam algumas das maiores
inquietações dos homens. Esses dois autores também exemplificam as distinções de
ficção científica hard e soft e mostram-nos que é possível escrever grandes obras partindo
tanto de noções científicas rígidas quando de noções anárquicas.
Sentimos a necessidade de contrapor algumas colocações feitas por Muniz Sodré
em seu livro A ficção do tempo, isso porque percebemos que, por mais que seu livro
tenha sido escrito há algumas décadas, alguns dos preconceitos que ele acaba por difundir
ainda são compartilhados em espaços acadêmicos do presente. Tais preconceitos
consistem principalmente na vinculação da ficção científica a uma literatura de massa e,
ainda, à desconsideração da relevância da ficção científica no interior do campo artístico
literário.
Como respostas a esses preconceitos apoiamo-nos na noção de arte como
procedimento de singularização, proposta pelo formalista russo Chklovski. Acreditamos
que a teoria apresentada pelo russo coloca em evidência uma das principais características
da ficção científica, que é a capacidade de fazer seu leitor lançar um novo olhar diante do
mundo. Aliás, todas as obras que citamos ao longo deste estudo exemplificam bem a
106
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