Cotas, Sociabilidade e Racismo Um Estudo Sobre As Relações Raciais Na UENP
Cotas, Sociabilidade e Racismo Um Estudo Sobre As Relações Raciais Na UENP
Cotas, Sociabilidade e Racismo Um Estudo Sobre As Relações Raciais Na UENP
Londrina
2023
GABRIEL GUSTAVO DOS SANTOS
Londrina
2023
GABRIEL GUSTAVO DOS SANTOS
The main objective of this dissertation is to analyze the impacts of racial affiliation
and the use of quotas on the sociability of quota and non-quota students at the
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). To do so, we selected four
courses from the aforementioned institution as the research universe, namely:
Spanish Literature, History, Dentistry and Law, all located on the Jacarezinho
campus, in the interior of Paraná. Field research was selected as a methodology,
which was divided into two complementary moments: 1) the application of an
online form and 2) the performance of in-depth interviews. As a result, we
managed to get 180 students to participate in answering the questionnaire and
21 in the interview stage. The collected data were systematized in graphs and
categorized in charts containing the most recurrent themes present in the reports.
Regarding the results obtained, we found that students showed strong support
for quotas, with a slight preference for public school quotas. Most positively
evaluated interactions at the university, with the exception of black quota
students, who feel less welcomed due to difficulties in permanence and
discrimination. Thus, we can see that race and the use of quotas effectively
impact university sociability, especially for black quota students, generating
feelings of exclusion, doubts about capacity and shame.
AA Ação Afirmativa
1 INTRODUÇÃO ................................................................................ 17
1.1 Metodologia ....................................................................................... 22
1 INTRODUÇÃO
1O racismo recreativo se manifesta por meio de um ''humor'' que permite a quem o pratica destilar
preconceitos contra grupos racializados, como os negros, e, ao mesmo tempo, camuflar essa
postura racista por detrás do argumento de que ''é apenas uma brincadeira''. Ver mais em
Racismo recreativo, de Adilson Moreira (2019).
19
2 A presença e atuação da professora Rosiney, uma das poucas docentes negras da UENP,
destacam-se como um exemplo significativo da importância e do potencial da mulher negra no
âmbito acadêmico. Sua atuação na instituição é uma referência no que diz respeito à temática
racial, demonstrando que, quando um indivíduo pertencente a um grupo social marginalizado é
capaz de adentrar um espaço de poder em posição proeminente, além de trazer consigo
conhecimentos e percepções próprios do seu lugar de enunciação, traz também consigo uma
gama de experiências e um novo sistema de significados capazes de provocar transformações
na percepção das pessoas ao seu redor e engendrar novos entendimentos. Minha experiência
com a profa. Rosiney é um espelho disso.
3 Em termos gerais, é um pacto estabelecido tacitamente entre brancos buscando preservar a
4O intuito inicial era pesquisar sobre os impactos do racismo na trajetória escolar e universitária
de estudantes cotistas negros da UENP, a partir de autores da Sociologia da Educação como:
Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Bernard Charlot, Bernard Lahire e Constantin Xypas.
Contudo, apesar de considerarmos os estudos sobre trajetórias relevantes, é preciso ter cuidado
e criticidade ao abordá-los, principalmente no campo educacional, para não os transformar em
discursos que legitimam a ideologia meritocrática. Como já não estava confortável em levar
adiante essa discussão, mesmo sabendo de sua pertinência, resolvi mudar o objeto do estudo.
21
1.1 METODOLOGIA
aderência no campo biológico, produz efeitos objetivos na vida dos diferentes grupos
socialmente racializados, sendo sua utilização uma das formas de denúncia dos problemas que
ela mesma produz.
6 Além de Jacarezinho, a UENP também está instalada em outras duas cidades, Bandeirantes e
Cornélio Procópio.
7 De acordo com o vestibular de 2021, os cursos mais concorridos da instituição são: Direito;
um mesmo ambiente que engloba também outras licenciaturas, como Ciências Biológicas,
Filosofia, Matemática e Pedagogia. Os cursos de Direito e Odontologia, por sua vez, estão
instalados, cada um, em prédios próprios e isolados. Por fim, os cursos de Educação Física e
Fisioterapia, mesmo também pertencendo ao CCS, estão em um local afastado do curso de
Odontologia. No segundo capítulo deste trabalho, apresentaremos mais detalhadamente sobre
como a UENP em Jacarezinho está dividida e seus impactos na sociabilidade dos estudantes.
11 ''Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi alertada sobre
constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) – o mais alto
nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional'' -
trecho adaptado da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Segundo o Lowy Institute,
o Brasil, sob a presidência de Jair Messias Bolsonaro, foi o país que teve a pior gestão pública
da pandemia no mundo baseado no cálculo de óbitos a cada 100 mil habitantes. Houve, por
parte do presidente da república, a adoção de um discurso negacionista, uma relativização dos
efeitos da doença e da própria pandemia, desestímulo de medidas preventivas, fomento de fake
news entorno de medicações ineficazes no trato da COVID-19 e um atraso na compra das
vacinas, o que resultou no retardamento da retomada das atividades presenciais e, até o
momento, em mais de 680 mil mortes, das quais 400 mil poderiam ser evitadas caso a postura
e as medidas adotadas fossem outras, apontam pesquisas (SENADO, 2021).
12 No parecer, os artigos quarto e décimo da resolução foram mencionados como justificativas
para não disponibilizar os dados requeridos. Por outro lado, foi sugerido que a universidade
divulgasse a proposta da pesquisa entre os estudantes dos cursos referidos.
13 O número de identificação dos pareceres para consulta é, respectivamente: 5.262.979 e
5.375.655.
25
retraíam, evitavam contato visual direto, quase como se não quisessem ser
vistos. Desse modo, se por um lado o fato de eu ser branco pode ter oportunizado
uma maior adesão de estudantes brancos, por outro, sinto que estabeleceu
limitações com alguns estudantes negros.
O intuito inicial era entrevistar ao menos três estudantes de cada curso,
sendo um cotista de escola pública, um cotista negro de escola pública14 e um
não cotista, para que tivéssemos acesso a diferentes perspectivas sobre um
mesmo tema. O número reduzido proposto inicialmente foi antevendo as
dificuldades que encontraríamos para conseguir participantes. Ao final da
pesquisa de campo, porém, superando a projeção anterior, conseguimos obter
a participação de um total de 21 estudantes, sendo sete do curso de Direito,
cinco de História, cinco de Letras Espanhol e quatro de Odontologia.
Bem mais da metade do número final de entrevistados deve-se,
especialmente, à ajuda do coordenador da Comissão de Acompanhamento das
Ações Afirmativas (CAAF) da UENP, prof. Mauro Januário, que foi o responsável
por mediar o nosso contato com os estudantes. Faz-se importante salientar que
buscamos, na medida do possível, obter a participação, principalmente, de
estudantes dos anos finais, por terem mais vivências universitárias e também
sujeitos com características diferentes, o que não foi possível inteiramente, visto
que dependíamos, sobretudo, do interesse deles em contribuírem com a
pesquisa. Outro ponto a ser mencionado, é que privilegiamos uma maior
participação e protagonismo de estudantes negros, uma vez que são eles os que
mais sofrem com as desigualdades e discriminações ocasionadas pelo racismo,
de modo que buscamos dar um foco maior às suas narrativas.
As entrevistas foram realizadas de modo remoto por meio de plataformas
15 Criada pelo educador e psicólogo Rensis Likert, em 1932, a escala vai de um a cinco pontos
e tem como função medir as percepções e atitudes dos indivíduos sobre um determinado assunto
(BERMUDES et al., 2016).
28
Cota para
Anália Parda 22 negros de Direito 5º ano
escola
pública
Cota para
Esther Preta 26 negros de Direito 3º ano
escola
pública
Cota para
Mauro Preto 18 negros de Direito 2º ano
escola
pública
Jorge Branco 19 Não cotista Direito 3º ano
Juliana Parda 20 Não cotista Direito 2º ano
Cota para
Cauê Negro 21 negros de Odontologia 3º ano
escola
pública
Cota para
Denise Parda 21 negros de Odontologia 2º ano
escola
pública
Vanessa Branca 19 Cota para Odontologia 2º ano
escola
pública
Manuela Branca 22 Não cotista Odontologia 4º ano
23 Cota para
Júnior Negro negros de História 2º ano
escola
pública
20 Cota para
Márcia Preta negros de História 1º ano
escola
pública
Janaína Indígena 28 Cota para História 3º ano
escola
pública
Matheus Branco 19 Não cotista História 2º ano
Cleiton Preto 30 Não cotista História 4º ano
Claudia Branca 20 Cota para Letras 1º ano
escola Espanhol
pública
Iasmin Branca 20 Cota para Letras 3º ano
escola Espanhol
pública
Cota para Letras
Luciana Parda 25 negros de Espanhol 2º ano
escola
pública
Cota para Letras
Roberto Negro 24 negros de Espanhol 1º ano
escola
pública
Cota para Letras
Tânia Negra 20 negros de Espanhol 2º ano
escola
pública
Fonte: dados da pesquisa.
31
18O conceito será aprofundado no segundo capítulo deste trabalho, quando será discutida a
sociabilidade universitária.
32
enquanto agente que utiliza às armas que têm à sua disposição, seja rebelião,
fuga ou suicídio, como instrumentos de sua libertação.
Levando em consideração que os debates em torno desta questão
representam por si só um campo vasto e complexo de estudos, interessa-nos,
por hora, apenas evidenciar como a relação senhor/escravizado no Brasil se
constituiu enquanto uma sociabilidade degenerada.
No Brasil, uma visão bastante difundida foi a do sociólogo Gilberto Freyre
([1933] 2003), em Casa-grande & senzala. A despeito de valorizar as muitas
culturas que constituem o país e negar o racismo científico, Freyre (2003)
defende que a miscigenação engendrada nos primeiros séculos da escravidão
brasileira (resultado dos abusos sexuais dos senhores sobre as escravizadas)
era um indicativo de que, aqui, havia uma suposta convivência harmônica entre
os grupos étnico-raciais, com poucos conflitos. Conforme aponta o antropólogo
Kabengele Munanga (1999), Freyre não tinha como foco central de sua análise
o ''contexto histórico das relações assimétricas de poder entre senhores e
escravos'', de modo que seu pensamento estava mais orientado no sentido de
reforçar o ideal de miscigenação. Ao centrar sua atenção nos aspectos positivos
dessa interação, o sociólogo estabelece as bases daquilo que viria a ser
nomeado, posteriormente, por autores críticos à sua teoria, como ''democracia
racial''.
Em contrapartida, outros estudiosos que também refletiram sobre o
período da escravidão enfatizaram em suas análises a desigualdade e a
violência como elementos centrais da relação senhor/escravizado, justamente
porque ela era o resultado direto da usurpação da liberdade dos povos africanos,
de sua desumanização e transformação em objeto-mercadoria (FERNANDES,
1959; CASTRO, 1990; SLENES, 1990; ALENCASTRO, 1990; PINSKY, 2000;
SCHWARCZ e STARLING, 2015; SOUZA, 2019). Os autores convergem na
mesma direção ao demonstrarem, cada um à sua maneira, como a organização
social do escravismo, baseada na subalternização e coisificação do povo negro,
dificultava uma sociabilidade plena. Segundo explica Florestan Fernandes
(1959, p. 104), no mundo escravocrata existia uma espécie de ''etiqueta das
relações sociais'' que tinha como princípio o entendimento de que ''o escravo
estava para o senhor ou os familiares e dependentes brancos dele, na mesma
posição que uma ‘coisa’ está para o seu ‘dono’ (...) na conveniência de ambos,
33
DEGENERADA
20 A concepção de que haveria grupos humanos superiores a outros é um dado que tem
acompanhado a humanidade em sua história. Na Grécia Antiga, por exemplo, era comum a
prática de lançar do monte Taigeto os recém-nascidos portadores de anormalidades físicas e
mentais, com o objetivo de se livrar dos mais fracos e tornar a raça mais forte (DIWAN, 2015).
Na Idade Média, o discurso de superioridade de um grupo sobre o outro mobilizaram disputas
em torno de territórios e era também utilizado como mecanismo de dominação física e simbólica.
Foi a partir dele que a colonização da América do Sul pelos portugueses e o genocídio dos povos
indígenas foi possível. Nesse sentido, podemos considerar que, embora o termo eugenia tenha
sido cunhado por Francis Galton, historicamente as práticas eugênicas de separar os ‘’bem-
nascidos’’ dos demais já existia há muito tempo. Sendo assim, a eugenia, em sua acepção
moderna, surge na Inglaterra industrial e em crise do século XIX, como uma disciplina
pseudocientífica com vistas a estabelecer um método de seleção humana baseado em critérios
biológicos (DIWAN, 2015). Essa relação entre o controle dos corpos para a manutenção de
poderes e privilégios é o que o filósofo Michel Foucault (2012) chamou de biopoder. Ele desponta
no século XIX como um mecanismo do capitalismo para investir nos corpos dos indivíduos a fim
de extrair e monopolizar suas potencialidades e produções. No capitalismo, a vida humana torna-
se essencial para a manutenção do poder das elites e passa, cada vez mais, a ser alvo de
investimentos para uma melhor eficiência, produtividade e, consequentemente, um maior retorno
aos investidores.
38
21 Consistia no processo de homogeneização racial. Para tal, era preciso, de um lado, ‘’o aumento
numérico da população branca ‘pura’ pelo movimento imigratório europeu, de outro, o
refinamento cada vez mais apurado da população brasileira pelo processo de mestiçagem que
iria reduzir o coeficiente dos sangues negro e índio. Essa colocação deixa mais nítida e precisa
a ideia do branqueamento da população brasileira’’ (MUNANGA, 1999, p. 77).
22 Em 1911, em um evento internacional que acontecia em Londres, o intelectual João Batista de
23 É importante levar em conta, no entanto, que uma fração da população rural, composta tanto
por negros quanto por brancos, desloca-se para as áreas urbanas, onde se converte em uma
reserva de mão de obra industrial (contribuindo para a formação das regiões periféricas e da
mão de obra industrial disponível no Brasil), enquanto outra parte permanece no campo.
Portanto, é crucial observar que mesmo nas regiões economicamente desenvolvidas, esses
estratos populacionais são integrados com o propósito de explorar sua força de trabalho e, dessa
forma, contribuir para o processo de acumulação no contexto urbano-industrial. Isso culmina em
uma significativa disparidade social não apenas entre as diferentes regiões do país, mas também
dentro delas.
41
Brasil. Fundada no dia 18 de junho de 1978, e lançada publicamente no dia 7 de julho, deste
mesmo ano, em evento nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em pleno regime
militar. O ato representou um marco referencial histórico na luta contra a discriminação racial no
país. Disponível em: https://mnu.org.br/mnu/. Acesso em 01 de abr. de 2023.
45
desigualdades entre os grupos poderiam ser aferidas com precisão. Assim, para
auxiliar na denúncia, conscientização e na intervenção sobre essa realidade
desigual, o MNU irá resgatar a ideia de raça como um instrumento político na
luta contra as mazelas raciais (GUIMARÃES, 2003). Com isso, quer-se dizer:
apesar de sermos considerados iguais formalmente, não temos os mesmos
direitos e as mesmas oportunidades, e a razão para isto encontra-se nas
discriminações e desigualdades que sofremos por conta da raça que a nós foi
imputada historicamente. Sendo assim, se por séculos ela (a raça) foi utilizada
para desumanizar, escravizar e matar, agora ela será ressignificada e utilizada
para conscientizar, empoderar, mobilizar e lutar por uma sociedade mais
equânime.
O resultado de anos de luta dos movimentos negros foi parcialmente
contemplado pelo recente reconhecimento por parte do Estado brasileiro sobre
a existência do racismo e na sua criação de políticas públicas focais para atender
às demandas da população negra, que por tantos anos, conforme buscamos
evidenciar neste tópico, foram deliberadamente negligenciadas.
28Ver mais sobre essa dimensão em Memórias da Plantação, de Grada Kilomba (2019).
29Ver mais sobre essa dimensão em Racismo e o negro no Brasil: questões para psicanálise
(2017).
47
branco.
Dimensão institucional30:
30 Ver mais sobre essa dimensão em Racismo Institucional: uma abordagem conceitual, de
Jurema Werneck (2016).
31 Ver mais sobre essa dimensão em O que é racismo estrutural? de Silvio de Almeida (2019).
48
33Bertulio (2007) apresenta uma série de exemplos de dispositivos penais que buscavam imputar
crime aos negros sem mencionar a cor da pele como justificativa, mas tacitamente tendo-a como
principal elemento motivador para tal; uma das medidas mais notórias foi a criminalização da
capoeira, em 1890.
53
34Domingues (2016) explica que, em 1930, após o golpe de estado dado por Getúlio Vargas, a
sociedade brasileira se polarizou em torno de duas forças políticas, esquerda e direita; contudo,
nenhuma delas incorporou verdadeiramente as demandas da população negra em suas pautas.
É precisamente neste contexto de abandono que surge a FNB. Ela era dividida em vários
departamentos que tinham como objetivo propiciar a melhoria na vida dos indivíduos negros.
Formada por mais de 60 filiações ao redor do Brasil, a FNB esteve presente não apenas em São
Paulo (onde estava sediada), mas também em outros estados, como Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Espírito Santo; no auge, estima-se que ela tenha tido mais de 200 mil sócios
(DOMINGUES, 2016). O mais importante dos departamentos era o destinado à educação, de
modo que as ações realizadas por eles também inspiraram outras iniciativas de natureza
semelhante.
54
perceberam que essa ideia era uma ''armadilha determinista'' que ''prendia o
Brasil ao atraso perpétuo por causa de sua vasta população não branca'' (ibidem,
p. 26). No lugar dessa crença paralisante foi introduzida a noção dinâmica de
que as raças poderiam se transformar: evoluir, no caso dos negros, e decair, no
caso dos brancos, a depender do nível de saúde, educação, cultura ou classe
social. Os reformistas acreditavam que o nível de educação e o prestígio social
poderiam influenciar na identidade racial do indivíduo.
Como resultado, Dávila (2006) aponta que houve entre os anos de 1917-
1945 uma série de tentativas do Estado, particularmente no Rio de Janeiro, em
expandir o sistema escolar com o objetivo integrar os negros e as camadas mais
pobres da população à escola, segmentos até então excluídos deste ambiente,
visando fomentar entre esses grupos práticas de cuidado à saúde, higiene,
assistência médica, bem-estar físico e o nacionalismo, buscando embranquecê-
los em seus comportamentos e pensamentos.
A educação incorpora, então, um discurso médico de viés higienista e
eugênico, no qual o negro é representado como uma mácula a ser tratada. A
lógica era bastante simples: sendo o negro um ''ser naturalmente degenerado''
moral, cultural, intelectual e fisicamente e vivendo em condições que
propiciavam o desenvolvimento de patologias e distúrbios, caberia à escola
oferecer ferramentas para a sua restauração. Contudo, as políticas formuladas
neste período, apesar de atuarem reforçando uma imagem depreciativa do
negro, ocultavam por meio de uma linguagem científica a questão racial como
sendo o problema (DÁVILA, 2006). Logo, esta pretensa desracialização contida
nos textos educacionais fomentou uma despolitização no debate público em
torno de tais medidas.
Nesse sentido, influenciado por pensadores da época, como Ulysses
Pernambuco, Carneiro Leão, Aníbal Bruno e Arthur Ramos, as escolas
passaram a adotar medidas interventivas, como exames médicos e psicológicos,
utilização de fichas antropométricas, o policiamento da higiene dos estudantes,
a implementação de novas disciplinas, como a educação física e a puericultura,
entre outras coisas (ARANTES, 2016; DÁVILA, 2006).
Buscando, supostamente, criar melhores condições para o ensino-
56
35 Era comum a realização de testes de inteligência e exames que relacionavam aspectos físicos
às características intelectuais e morais dos indivíduos, conforme apresentam os estudos de
Dávila (2006) e Arantes (2016).
36 Nilma Lino Gomes (2010, p. 20) define as AA enquanto "(...) políticas, projetos e práticas
37 É bem verdade que as cotas em si, desprovidas de sua essência redistributiva em favor de
grupos marginalizados, é uma prática antiga no Brasil e teve como público alvo, por muito tempo,
indivíduos brancos. A obra Políticas públicas e ações afirmativas (2007), do cientista social
Dagoberto José Fonseca, ilustra de modo muito didático como ao longo do tempo foram criadas
políticas públicas específicas que, longe de atender todos os indivíduos, produzia e reproduzia a
exclusão e subalternização de outros grupos – especialmente os negros e indígenas. O mesmo
é debatido no ensaio do historiador Tau Golin, intitulado Os cotistas desagradecidos, no qual ele
expõe a incoerência dos brancos, ou de seus descendentes, que foram contemplados por
políticas públicas específicas e são contrários à implementação de medidas semelhantes para
os negros. Convém mencionar, também, que na década de 1930, foi criada a Lei dos 2/3, que
impunha que pelo menos dois terços dos funcionários de empresas e instituições públicas
fossem "brasileiros natos", com o objetivo de reduzir a entrada de imigrantes estrangeiros e
fortalecer a identidade e o mercado interno nacional. Essa lei está ainda hoje em vigor e foi
incorporada à Consolidação das Leis do Trabalho com outro nome, de "nacionalização do
trabalho"; apesar de não empregar a terminologia "ação afirmativa" e não ter uma orientação
ideológica direta para resolver as desigualdades enfrentadas pelos negros, se levarmos em
consideração que estes também estavam entre os possíveis impactados, podemos considerá-la
como uma espécie de precursora daquilo que, hoje, chamamos de política de cotas.
38 Outro ponto importante de ser mencionado é que, embora não tenha sido implementada
39 Aqui, cabe menção ao Projeto de Lei (PL) nº 1.332/83, de autoria de Abdias do Nascimento,
que propunha uma série de medidas concretas para o enfrentamento do racismo em diversas
esferas sociais, especialmente na escola. Apesar de o PL ter sido arquivada, as propostas nele
contidas seguiram nas pautas dos movimentos negros e serviram, posteriormente, de base para
a formulação de outras importantes diretrizes sobre o assunto. Sobre o histórico de projetos de
AA destinadas aos negros que precederam a adoção da política de cotas, ver mais em
Moehlecke (2016).
40 Especial destaque à Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Vida e pela
Cidadania, que aconteceu no dia 20 de novembro de 1995 e reuniu cerca de 30 mil pessoas para
denunciar a ausência de políticas públicas voltadas para a população negra. Segundo Munanga,
esta foi a primeira vez em que o termo "ação afirmativa" foi empregado no Brasil no sentido de
exigir medidas específicas para esse grupo.
59
universidades.
Os estudos acerca da sociabilidade são fundados no campo da
sociologia pelo alemão Georg Simmel41 (1858-1918). Conforme elucida Heitor
(2007), Simmel tinha como uma de suas principais inquietações teóricas
compreender como a sociedade era possível. Castro (2020) explica que, para o
pensador, a sociedade não era tida como uma ''coisa'' mecânica, estática e
acabada, e sim um processo que resultaria das interações sociais estabelecidas
entre os indivíduos. É nesse sentido que, na sociologia simmeliana, o conceito
de interação é, como veremos a seguir, primordial.
Contemporâneo de Émile Durkheim, Simmel dispunha de uma
percepção bastante diferente sobre como o mundo social funcionava. Contrário
às explicações que defendiam que o indivíduo era um mero reprodutor das forças
sociais coercitivas (MAIA, 2001), o sociólogo alemão acreditava que eram os
próprios indivíduos em interação que davam origem à sociedade tal como ela é,
por meio de um contínuo processo ativo de construção, desconstrução e
reconstrução da realidade social (HEITOR, 2007). Desse modo, destaca-se o
caráter profundamente relacional da teoria simmeliana, na qual ''não podemos
encontrar nada absoluto, ou que tenha existência em si e por si só, uma vez que
as coisas só seriam constituídas em relações'' (SANTOS, 2021, p. 42).
Em seus estudos, Simmel (1983) reconhece que os indivíduos se unem
em torno de grupos sociais com base em necessidades interesses e específicos
(econômicos, religiosos, sanguíneos, etc.), mas para além disso, ele chama a
atenção para uma outra necessidade que os indivíduos também possuem, que
é a pura e simples satisfação de estar associado com outros seres humanos. O
filósofo alemão afirmava que os indivíduos são, de certo modo, ''impelidos para
esta forma de existência'' interativa (SIMMEL, 1983, p. 168).
Na mesma linha de raciocínio, os seres humanos teriam o que ele
chamou de ''impulso de sociabilidade'', que nada mais é do que a ''fonte'' e a
''substância'' da própria sociabilidade (SIMMEL, 1983). Em outras palavras, esse
impulso está relacionado a uma necessidade inata do ser humano de se conectar
41Filósofo de formação, Georg Simmel escreveu sobre muitos assuntos. Inclusive, ele mesmo
se considerava essencialmente um filósofo e embora no campo da filosofia ele seja tido como
um autor de menor importância, suas reflexões sobre a sociedade o colocaram ao lado de
grandes figuras da sociologia como Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber
(VANDENBERGHE, 2005).
63
com outros indivíduos. Nesse contexto, o único objetivo seria o simples processo
de interação, no seu sentido mais fundamental e genuíno.
Ao analisar o conceito de sociabilidade de Simmel, é importante ter em
mente que a abordagem dada pelo autor a esse conceito se assemelha à ideia
de tipo-ideal proposta por Weber. Isso significa que se trata da descrição do
fenômeno em sua "forma pura", desvinculada de contextos específicos, como
Simmel mesmo afirmava ao dizer que ele estava "suspenso no ar". Sobre isso,
Giddens (2012) elucida que no mundo real os tipos ideais são dificílimos de
serem encontrados, senão inexistentes, e na maioria das vezes apenas alguns
de seus aspectos são visíveis.
Todavia, tais construções ajudam a entender o mundo real, pois por meio
delas se torna possível estabelecer conexões e comparações com situações
concretas que nos deparamos cotidianamente. Tal característica abstrata não
invalida, contudo, o pensamento simmeliano, muito pelo contrário; conforme
veremos a seguir, as formulações sociológicas feitas por Simmel sobre a
interação social se tornaram referência e serviram de base para diversos autores
desenvolverem suas próprias teorias acerca do tema.
Sobre isso, Heitor (2007) explica que o conceito de sociabilidade foi
reformulado ao longo do tempo, especialmente pelos pesquisadores da Escola
de Chicago que o enfocaram a partir de uma abordagem essencialmente
empírica "como uma consideração dos modos, padrões e formas de
relacionamento social concreto em contextos ou círculos de interação e convívio
social" (HEITOR, 2007, p. 17). Nota-se, portanto, uma mudança substancial no
entendimento sobre o conceito, na qual há uma expansão no que poderia ser
compreendido como sociabilidade e que em Simmel se restringia
exclusivamente a uma forma pura de interação. Além disso, esse conceito foi
retirado do "mundo etéreo" no qual havia sido confinado e passou a ser aplicado
empiricamente em situações concretas de interação social.
Sociabilidade, de certo modo, passa a equivaler à interação que não se
exprime somente na agência do indivíduo, como também em "arranjos ou
disposições interativas e representações de ordem moral ou social"
(BRANCALEONE, 2020, p. 270). Retirando seu caráter exclusivamente
individual, torna-se possível adjetivar o termo sociabilidade de acordo com o
contexto no qual se manifesta e conforme os indivíduos que lhe dão vida.
64
42Baechler (1995, p. 77-78) explica que se designa por redes, de modo geral, "os laços, mais ou
menos sólidos e exclusivos, que cada ator social estabelece com outros atores, os quais estão
também em relação com outros atores, e assim por diante (...) a expressão ‘rede’ designaria o
conjunto de laços estabelecidos entre pessoas". Sendo assim, neste trabalho será adotada essa
terminologia para se referir ao modo como os estudantes se relacionam entre si e com os demais
indivíduos que compõem o espaço universitário.
66
UENP
Fonte: NPDIÁRIO.
Nota: Alterações feitas pelos autores
45O que contrasta com os dados do Censo de 2010, que demonstra que um pouco mais de 28%
da população paranaense é negra. É razoável supor que esse número seja atualmente ainda
maior, no entanto, a falta de acesso a dados atualizados decorrente do censo mais recente ter
sido realizado tardiamente, impede-nos de destacar de forma ainda mais pronunciada uma
desigualdade latente.
75
cursos.
A resistência por parte dos coordenadores dos cursos mais elitizados
revela um medo da perda de poder, não necessariamente para si, uma vez que
suas posições já estão consolidadas, mas para os seus herdeiros: filhos,
sobrinhos, netos. Sendo assim, a negação da política de cotas se evidencia
nesse contexto como a manifestação de uma angústia própria da branquitude,
que se sente ameaçada diante da possibilidade de ter estudantes negros e das
camadas populares frequentando o mesmo ambiente que os membros da elite
local. Isso nos permite refletir sobre como a exclusão social é um aspecto
imprescindível para a manutenção do racismo institucional, no qual poucos
indivíduos brancos têm acesso aos espaços de poder e aos privilégios dele
decorrentes. Dando continuidade na análise, Felipe menciona experiências em
outros campi, como o de Bandeirantes, no qual percebeu uma resistência bem
maior no que tange ao diálogo sobre as cotas, não apenas dos docentes, como
dos estudantes também. Com relação à diferença percebida entre a cidade de
Jacarezinho e Bandeirantes, é importante levar em conta o seu clima ideológico-
político.
Jacarezinho é conhecida por suas atividades culturais que são, em
grande parte, fomentadas pela UENP em parceria com o Serviço Social do
Comércio (Sesc)46, especificamente pelo CCHE, CLCA e pela faculdade de
Direito, que também são responsáveis por manter vivo um debate regional de
viés progressista ao produzir eventos institucionais sobre as mais diferentes
temáticas sociais. A cidade, se comparada a outras da região, demonstra ser
mais vanguardista e aberta ao possuir terreiros de candomblé e a ONG Núbia
Rafaela Nogueira, voltada para o grupo LGBTQIA+. Aliás, é ela a responsável
por produzir anualmente a "Marcha da Diversidade LGBTQIA+47", que reúne
centenas de participantes, incluindo famílias heteronormativas, não só da
cidade, mas de toda a região. Outro ponto a ser mencionado é que grande parte
dos cursos em Jacarezinho são de humanas, que, naturalmente, possuem uma
tendência a incentivar a reflexão crítica e o pensamento progressista.
48 Ao analisar a quantidade de inscritos nos eventos que abordaram a temática das cotas na
UENP, podemos observar uma nítida disparidade entre as cidades participantes. Essa
discrepância não se limita apenas a uma questão quantitativa, mas também qualitativa, pois
reflete uma falta de interesse geral em relação ao tema entre os discentes de Bandeirantes: ''A
Uenp realizou, em 2017, a 1ª Jornada de Debates: Ações Afirmativas na Uenp. As conferências
e os debates realizados nos três campi da instituição contaram com a participação de mais de
1.300 inscritos: aproximadamente 674 inscritos no campus de Cornélio Procópio, 484 inscritos
no campus de Jacarezinho e 154 inscritos no campus Luiz Meneghel, de Bandeirantes''
(BROCHADO et al., 2018, p. 118).
49 Na eleição presidencial de 2022, enquanto o candidato de extrema-direita, Jair Messias
Bolsonaro, obteve 51% dos votos em Jacarezinho, em Bandeirantes o número aumentou para
71,13%. Isso é um dado representativo, pois evidencia o nível de conservadorismo presente em
Bandeirantes. Por outro lado, embora em Jacarezinho o referido candidato também tenha obtido
a maioria dos votos, a vantagem conquistada foi por uma margem muito mais reduzida, cerca de
3%, o que demonstra um cenário menos hegemônico e mais propenso à diversidade de opiniões.
Vale ressaltar, adicionalmente, que entre os anos de 2005 e 2012, Tina Toneti, afiliada ao Partido
dos Trabalhadores (PT), ocupou o cargo de prefeita em Jacarezinho por um período de oito anos.
79
53 Nome atribuído pelos estudantes de Filosofia em alusão às praças públicas nas quais se
realizavam as assembleias políticas na Grécia Antiga.
54 Às sextas ocorre a "Feirinha da Ágora", na qual pessoas da cidade inteira se encontram na
ágora para conversar, ouvir música, fazer uso de ilícitos, comer e beber nos bares e lanchonetes
ao redor da universidade, enfim, desfrutar da sociabilidade. Em virtude de receber um grande
fluxo de pessoas, inclusive aquelas que vivem em bairros marginalizados e não são bem vistos
socialmente, nem todos os estudantes participam e desfrutam desse espaço.
83
Fonte: UENP56.
Por fim, o último prédio visitado foi o de Odontologia. Sua estrutura pode
ser vista como a mais problemática em diversos sentidos. Primeiramente, sua
localização, extremamente afastada do centro, perto de residenciais de alto
padrão, dificulta muito a locomoção até lá. Aliás, é importante mencionar que
para que os estudantes que moram em Jacarezinho cheguem até a faculdade é
necessário que eles façam o trajeto por meio de condução própria ou a pé, uma
vez que não há locomoção municipal que realize o trajeto. Por isso, muitos
Odontologia
Fonte: UENP57.
A maior crítica entre eles foi com relação à ausência de um local dentro
da universidade para comer, uma vez que a cantina se encontrava desativada
até o momento das entrevistas. Outros discentes também enfatizaram os poucos
e desconfortáveis lugares que dispõem para se reunir e conversar
informalmente. Muitos deles, a fim de demonstrar as debilidades da faculdade
de Direito, estabeleceram um paralelo com a FAFIJA, tendo-a como exemplo.
89
Com efeito, devido à sua estrutura física, a FAFIJA parece ser realmente
o ambiente mais adequado e preparado para que os estudantes interajam uns
com os outros. De acordo com alguns entrevistados, apesar dos cursos
passarem a maior parte do tempo interagindo entre si nos seus respectivos
blocos, a faculdade possui espaços de uso comum onde a maioria dos
acadêmicos se reúne para estabelecer redes de sociabilidade e compartilhar
ideias, tendo como principal ponto de encontro a já mencionada Ágora.
Essa estruturação favorece a criação de um clima de convivência e
colaboração entre os estudantes. A possibilidade de interação em espaços
compartilhados facilita o estabelecimento de relações interpessoais,
fortalecendo a construção de uma comunidade acadêmica mais unida e
engajada.
Outro ponto importante de se mencionar sobre o espaço a UENP de
Jacarezinho é que por ela estar fragmentada ao longo da cidade em prédios
distintos e abarcar um número reduzido de cursos, isso tende a fechar os
estudantes entre os seus, criando dificuldades no contato com os demais cursos.
Uma estudante de Odontologia comentou, inclusive, ter interesse nos debates
sobre questões sociais promovidos pela faculdade de Direito e FAFIJA, mas que
por conta da distância, não conseguia participar.
Logo, a limitação do ambiente físico redunda na pauperização da
experiência dos universitários, uma vez que dificulta o contato com estudantes
de outros cursos, com outras realidades e visões de mundo, não os permitindo
ampliar a sua compreensão da realidade. Além disso, a interação com
estudantes de diferentes áreas proporciona oportunidades de colaboração e
troca de ideias, promovendo um ambiente acadêmico mais diversificado e
enriquecedor. A falta de relação entre os cursos da UENP também restringe a
oportunidade dos estudantes na participação em grupos ou projetos de pesquisa
que não sejam necessariamente do curso em que estão matriculados e na
participação em eventos acadêmicos, que contribuem para o seu crescimento
pessoal e profissional.
Outrossim, essa fragmentação pode gerar um ambiente desarticulado,
onde há uma falta de sinergia entre os estudantes e uma menor coesão entre os
diferentes cursos. Isso pode limitar o potencial de mobilização estudantil,
dificultando a organização de atividades conjuntas, manifestações e ações
90
4.6 UENPRETA
celular também, daí eu tive que trancar, por isso estou voltando agora 58".
O estudante de História expressou o desejo de reativar o coletivo, o qual
ele considera ter sido a "melhor coisa que aconteceu" durante sua permanência
na UENP: "eu tenho mais um ano e pretendo articular as coisas pra antes de eu
sair ter pelo menos um documento falando sobre esse movimento negro e como
surgiu". Ao ser questionado se notava o mesmo nível de engajamento por parte
dos demais estudantes em relação às questões raciais, o estudante expressou
uma preocupação, já que não percebia muitos estudantes disponíveis para dar
continuidade ao projeto: "Minha principal preocupação é essa, quem vai manter
esse projeto? Ao meu lado, havia muitas pessoas incríveis. Eu gostaria que
outros estudantes se envolvessem no fortalecimento do NEABI, e que houvesse
mais professores negros".
Apesar de a UENPRETA ter tido pouco tempo de existência e estar, até
o momento da escrita, com suas atividades suspensas, acreditamos ser
relevante abordá-la, uma vez que ela se configura como a primeira e única
tentativa empreendida por estudantes negros em criar na UENP um espaço de
sociabilidade voltado para o compartilhamento de saberes e vivências, como
forma de resistência e empoderamento. O estudo de Alexsandro Souza (2018)
sobre o coletivo de estudantes negros na UEL demonstra sua capacidade
transformadora na vida dos participantes, interferindo não apenas no modo como
eles se relacionam com a universidade, mas também no modo como eles
percebem questões que transcendem esse espaço, influenciando de maneira
positiva a construção de sua identidade racial, além da militância em outros
espaços.
O estudo sobre sociabilidade nos ensina que o indivíduo é impulsionado
a se associar com outros indivíduos que compartilham de interesses,
características ou objetivos comuns. Nesse sentido, é possível perceber a
emergência de coletivos e grupos de afinidade na universidade como uma
resposta à falta de representatividade e acolhimento aos discentes que
pertencem a minorias ou grupos minorizados, como os negros. Assim, a criação
58Embora não haja estudos consolidados que demonstrem os impactos da pandemia na evasão
estudantil, pode-se imaginar que este tenha sido um dos principais problemas enfrentados pelos
estudantes, principalmente aqueles de origem humilde e que não dispunham de recursos para
acompanhar no modo remoto.
93
anos.
59Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
96
60Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
97
63Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
102
Outro provável motivo que faz com que os jovens negros não adentrem
a universidade é a necessidade perene de trabalhar para ajudar na renda
familiar. O IBGE demonstra que, em 2018, entre os jovens negros de 18 a 24
anos com o ensino médio incompleto, as principais justificativas dadas para
terem abandonados os estudos estavam relacionadas ao fato de ter de trabalhar
(61,8%).
64Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
103
65Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
104
concorrência. Cerca de 45% dos discentes negros não entraram por meio das
cotas para negros, desse montante, metade é oriunda das cotas para escola
pública (19%) e a outra de ampla concorrência (26%). Desse modo, é
fundamental que a UENP, além de buscar entender o porquê desses estudantes
não estarem utilizando as cotas destinadas especificamente a eles, também
identifique e incorpore os estudantes negros que não foram admitidos por meio
delas em suas estratégias de apoio e permanência, uma vez que, certamente,
eles enfrentam os mesmos desafios que os estudantes cotistas. Nesse caso,
algumas hipóteses podem ser utilizadas para explicar tal fenômeno, como, por
exemplo, ter estudado (parcial ou integralmente) em escola particular; receio de
optar pelas cotas por falta de conhecimento sobre como elas funcionam; receio
em não ser reconhecido como negro pela banca de heteroidentificação e a
própria forma de preenchimento de vagas; nos cursos de menor concorrência os
negros acabam entrando pela ampla concorrência.
66Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
105
percentual branco respondeu que sim, ao passo que entre o percentual pardo, a
maioria indicou que eram os primeiros de suas famílias a entrarem na
universidade na condição de estudantes. Quando comparados lado a lado,
notamos que a diferença numérica que separam os estudantes brancos e negros
que responderam sim é pequena se levarmos em consideração a presença
desproporcional desses grupos dentro do ambiente universitário. Desse modo,
a partir do critério de proporcionalidade dos grupos, verificamos que enquanto
22,03% dos discentes brancos são os primeiros a cursarem uma universidade,
o número praticamente dobra para 42,11% quando se trata dos estudantes
negros.
A seguir discutiremos sobre a percepção dos estudantes sobre as cotas
na instituição e sobre como é ser cotista.
106
Além disso, apenas 2,1% dos respondentes são desfavoráveis, o que aponta
para uma baixa resistência às cotas sociais na UENP.
Quanto às cotas para negros, o índice de apoio é levemente menor, mas
ainda assim bastante expressivo, com 90% dos respondentes sendo favoráveis.
Isso pode indicar que, apesar de a UENP já contar com cotas de escola pública,
há uma compreensão da necessidade de medidas específicas para também
combater a desigualdade racial no acesso à educação. Os 4,5% de
respondentes desfavoráveis, embora em menor número, ainda demonstram a
existência de resistência a esse tipo de política, o que pode ser reflexo de
preconceitos arraigados na sociedade ou dos efeitos do mito da democracia
racial, que propagou durante anos a tese de que o problema no Brasil era
exclusivamente de classe, não englobando a dimensão racial (HASENBALG,
1979; MUNANGA, 1999; IANNI, 2004a). Já os 5,5% que não souberam
responder apontam para a necessidade de um debate mais amplo e informativo
sobre o tema dentro do ambiente universitário.
Em geral, os dados sugerem que a UENP possui uma comunidade
acadêmica consciente da imprescindibilidade de uma educação cada vez mais
justa e inclusiva, o que é um dado, ao mesmo tempo, positivo para a instituição
e revelador, porque contrasta com os resultados obtidos por outros estudos,
especialmente aquelas que foram realizadas logo no início da implementação
dessa política. O trabalho de Menin (2008) sobre a percepção de 403
universitários sobre as cotas demonstrou que a maioria deles rejeitavam a
medida tendo como argumentação o mérito e a igualdade. Em um estudo
especificamente sobre a opinião dos discentes da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG) sobre as cotas para negros, Tarvanaro (2009) constatou
uma ampla rejeição, sendo que dos 84 participantes, 65 eram contrários.
A fim de aprofundar o entendimento sobre essa questão, na etapa das
entrevistas também questionamos a opinião dos participantes sobre as cotas na
UENP. Como tratavam-se de respostas abertas, elaboramos um quadro
contendo os temas mais recorrentes encontrados nas falas dos entrevistados:
108
67Convém mencionar que a frequência excede o número de entrevistados, porque ela está relacionada a quantidade de vezes que um determinado tema
apareceu em uma resposta; houve casos, por exemplo, que um único entrevistado discorreu sobre múltiplos temas.
109
68É paradoxal que, em diversos cenários, as cotas universitárias estejam beneficiando, em maior
medida, estudantes brancos provenientes de escolas públicas e com poucas condições
econômicas em vez dos negros, que, é preciso que se enfatize, foram os principais defensores
dessas políticas ao longo dos anos. O estudo de avaliação sobre a efetividade das cotas na UEL,
realizado por Maria Nilza da Silva e Jairo Queiroz Pacheco (2013, p. 103), demonstra justamente
que os discentes brancos foram os mais beneficiados com a política na instituição em detrimento
111
69 Ver mais no informativo produzido pelo IBGE sobre as desigualdades raciais no Brasil:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em 13 de jun.
de 2023.
113
que o letramento sobre questões raciais tem ocorrido de forma implícita através
das mídias, como TV, redes sociais, rádio, entre outras, que incorporaram o
debate sobre raça em suas pautas diárias. Atualmente, é possível perceber uma
maior atenção às questões relacionadas ao racismo em jornais, novelas, canais
de influenciadores digitais e outras plataformas. Essa abordagem naturalmente
leva os consumidores desses conteúdos a se familiarizarem com o tema e a
refletirem sobre suas próprias práticas.
Por outro lado, essa postura ainda está longe de ser uma regra entre
aqueles que possuem as mesmas características de Manuela, de modo que
outro ponto importante de sua fala diz respeito à resistência de muitos brancos
em procurar conhecimento sobre a questão racial; para além de um simples
desinteresse, nos parece ser uma tentativa, talvez inconsciente, de
autopreservação da branquidade e de seus ganhos. A lógica seria mais ou
menos a seguinte: quanto menos sei, menos culpa sinto de usufruir. De qualquer
modo, a fala consciente de parte dos entrevistados brancos é reveladora, pois
assinalam uma realidade bastante recente, praticamente impensável quando se
iniciou os debates sobre as cotas.
Refletindo sobre as redes de sociabilidade estabelecida entre brancos,
a estudiosa Cida Bento (2002), ao analisar o funcionamento das esferas
institucionais, cunhou o termo "pacto narcísico da branquitude" para denunciar o
acordo de cumplicidade tacitamente estabelecido entre os brancos, cujo objetivo
é garantir o monopólio dos privilégios e impedir que ele seja compartilhado com
os demais segmentos racializados.
Considerando o alto nível de adesão às cotas para negros (90%) por
parte dos acadêmicos brancos que responderam ao questionário, articulado com
os relatos colhidos na etapa das entrevistas, que sinalizaram para uma
desnaturalização, um olhar de estranheza, sobre aquilo que por muito tempo
operou sob a lógica do "normal", pode-se considerar que há entre os indivíduos
brancos que participaram da pesquisa um questionamento, mesmo que
inconsciente, sobre a branquidade e seus efeitos nocivos para os demais grupos.
Isso pode estar relacionado ao crescente interesse público sobre temas como
racismo estrutural, discriminação e privilégio branco, que na última década tem
ganhado mais espaço nas mídias a partir do debate, a nível nacional, introduzido
pelas cotas para negros. O debate público sobre essas questões tem levado,
114
[Era] uma escola muito forte, muito boa, né? No sentido dos
professores cobrarem bastante, as provas não eram fáceis
nem nada, pra conseguir tirar nota eu precisava estudar. Meus
professores eram muito bons também, o material era muito
bom, o ambiente todo colaborava. Era tranquilo, não tinha
muita bagunça, porque a maioria queria passar numa
faculdade difícil. Muita gente na minha sala, pelo menos na
época, pensava em fazer Medicina (Direito, 23 anos,
autodeclarado branco, não cotista).
70 No Brasil, assim como em qualquer outro país capitalista, prenhe de desigualdades sociais,
falar em meritocracia – termo que exprime a ideia de que qualquer um pode lograr mobilidade
social ascendente, independentemente de sua origem social, racial e cultural, apenas por meio
de seu esforço individual – é reafirmar uma falácia que tem como finalidade última a legitimação
da desigualdade pelas classes afetadas e, consequentemente, a sua reprodução inconteste.
Vários autores já demonstraram que não somente a origem socioeconômica, como também
outros marcadores, racial e de gênero, por exemplo, limitam as possibilidades de ascensão social
de grupos específicos. Ver mais sobre em Hasenbalg (1979) e em Passeron e Bourdieu (2014).
116
O fato de Juliana ter tido contato com poucos estudantes negros durante
sua estadia na educação privada é uma evidência de como as desigualdades
cumulativas originadas pelo racismo são um impeditivo para que a maioria dos
117
Outro eixo observado foi o que entendia as cotas como uma espécie de
incentivo para a continuação dos estudos. Percebemos que muitos estudantes
cotistas encontraram dificuldades em receber suporte de familiares para
concluírem os estudos básicos e ainda hoje enfrentam resistência por estarem
na universidade, pois para muitos deles a educação não é vista como algo
essencial.
A esse respeito, o sociólogo brasileiro Jessé Souza (2017), influenciado
pelos trabalhos de Pierre Bourdieu, argumenta que as desigualdades sociais,
para além de seu caráter meramente econômico, são reproduzidas também por
meio da socialização familiar. Segundo o autor, uma família de classe média
padrão, além de dispor dos capitais necessários para o facilitar o sucesso
educacional de seus herdeiros, ratifica constantemente a importância da
educação e estimula habilidades como leitura, disciplina, concentração e o
pensamento prospectivo. Por outro lado, muitos herdeiros da classe popular têm,
desde cedo, que trabalhar para ajudar na renda, não tendo tempo para os
estudos; além disso, eles estão submetidos a outro tipo de socialização, na qual
o pensamento imediatista é mais valorizado, dado os diversos problemas que
enfrentam diariamente para garantir a subsistência. Nesse caso, a educação é
vista como um "privilégio" com o qual, muitas vezes, não se pode contar.
Isso fica evidente na fala de alguns entrevistados, como o de Camila e
Claudia, respectivamente:
Eu achei que eles fossem ficar mais felizes. É que minha família
nunca viu a universidade como algo essencial. Aqui em casa
todo mundo sempre teve que trabalhar, então pra eles, tendo
faculdade ou não, o que importava era ter dinheiro em casa. Eles
sempre ficavam mais felizes quando eu conseguia outro
emprego, nunca foi a faculdade, mas o emprego, que é a coisa
que eles mais valorizam por aqui (Letras Espanhol, 20 anos,
119
71 Ver mais sobre em A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino ([1970]
2014), de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, os quais demonstram que "longe de
favorecer a igualdade de chances, a escola participa da reprodução das desigualdades sociais
e legitima estas desigualdades por um discurso meritocrático" (JOURDAIN: NOULIN, 2017, p.
60).
120
importantes para compreender essa questão, pois são elas que, em última
instância, guiam nossas condutas diante do mundo. Ocorre que, em uma
sociedade racista como a brasileira, a imagem do negro foi (e ainda é) construída
durante séculos a partir de aspectos degenerados, conforme já foi amplamente
destacado no capítulo um deste trabalho. O entendimento de que as cotas atuam
justamente na reestruturação desse imaginário social deturpado também foi
verificado durante as entrevistas, conforme pode ser visto na fala de Anália:
74 Convém enfatizar que, de acordo com nossa análise, nem todas as sugestões apresentadas
a seguir são positivas; muitas delas refletem opiniões que contrariam a concepção que
advogamos neste trabalho, a qual preconiza uma universidade mais inclusiva.
75 Aqui é importante explicar que o entrevistado não se colocou contrário às cotas para negros,
apenas enfatizou a necessidade de que toda trajetória escolar, e não apenas o ensino médio,
fosse realizado integralmente em escola pública, sendo aplicada essa obrigatoriedade aos
cotistas de escola pública e para os cotistas negros de escola pública.
76 Por não dispormos de dados quantitativos atualizados sobre o assunto, não é possível dizer
ao certo o que está causando o fenômeno evidenciado pelos participantes da pesquisa, isto é, a
baixa representatividade de estudantes negros. Todavia, é algo que merece atenção da
instituição em questão a fim de constatar se este quadro é realmente procedente e, então, pensar
em estratégias para solucioná-lo
126
ano que você estuda em escola particular já faz toda a diferença". Seu
posicionamento reforça o tencionamento existente entre educação pública e
privada, discutido anteriormente, e aponta para uma demanda institucional de
reavaliar os critérios de utilização dessa política e, consequentemente, seus
impactos.
Isso nos leva a outro apontamento feito por uma estudante cotista negro
que mencionou ser importante a UENP repensar, também, os critérios de
aprovação dos estudantes cotistas e instituir uma nota de corte mais rigorosa. A
discente se mostrou receosa sobre alguns possíveis efeitos da política de cotas
sobre o mérito de certos estudantes que optam por ela. Conforme argumenta,
muitas pessoas fazem o vestibular sem estudar, não se esforçam e passam
utilizando as cotas, o que, no seu entender, acaba por deslegitimá-las. Se por
um lado o aumento da nota de corte para os cotistas pudesse evitar
desproporções79 entre as médias das demais formas de ingresso, sua ocorrência
poderia limitar o acesso de candidatos que, embora não tenham atingido a
pontuação média, ainda assim apresentam condições intelectuais que os
habilitam estar na universidade. O posicionamento da estudante demonstra uma
lógica competitiva, resultado da ideologia meritocrática presente na sociedade,
que desconsidera as desigualdades estruturais que afetam,
desproporcionalmente, a vida dos diferentes grupos sociais. O fato de ela ser
uma estudante negra que entrou na universidade pelas cotas e mesmo assim ter
esse pensamento revela como a retórica meritocrática é complexa e a
necessidade de ser enfrentada.
A última crítica foi com relação ao que um estudante branco considerou
como falta de parâmetros do processo de heteroidentificação, a fim de diminuir
possíveis fraudes. Seu apontamento reside no fato de que algumas pessoas que
entraram especificamente por intermédio de cotas para negros não são, sob o
seu ponto de vista, negras o bastante – o mesmo sentimento também foi
compartilhado por outros estudantes negros, como Mauro, que disse:
- Frequência
Cotistas Cotista
Eixos Categorias Exemplos negros s de Total
temáticos de escola escola (%)
pública pública
Não percebe
nenhuma ''Lá todo mundo faz
Despreocup forma de faculdade, independente se 9 2 11
ação diferenciação é cotista ou não''. (42,86%) (9,52%) (52,38%)
no
tratamento.
Receio em ''Tive medo, porque a gente
falar vê uma diferença muito
abertamente grande da nota de corte da
sobre ser ampla concorrência. Então
Receio cotista com eu tive receio do que as 5 1 6
medo de pessoas iam pensar, se (23,81%) (4,76%) (28,57%)
discriminaçã iam comparar… Falar que
o. não é justo…''.
Estudantes ''Cara, a gente sente
empoderado orgulho, sabe? Pra muitos
Orgulho s na estar na universidade é 1 2 3
condição de algo histórico''. (4,76%) (9,52%) (14,29%)
cotistas.
''...ele começou a falar que
era um absurdo as cotas,
sabe? Falou bastante coisa
mesmo pra ela e aí o
restante do povo que
Relato de estava na van foi contrário
Discriminaç casos de a ele e tudo mais, mas 1 0 1
ão discriminaçã foi… foi bem pesado, (4,76%) - (4,76%)
o por ser porque ela chegou bem
cotista. mal na faculdade por conta
disso, de ela perguntar pra
gente ‘nossa, será que a
gente merecia estar aqui?’'.
Fonte: dados da pesquisa.
Por exemplo, se você olha pra mim sabe que eu sou cotista
sociorracial, eu acho que a gente tem essa característica, né?
Agora pra quem é cotista social, não sei se eles falam
abertamente, eu falo muito. [Então você acha que estudantes
negros que tem uma de pele mais escura já são
automaticamente taxados…] Sim. Mesmo aqueles que não
entraram por cotas às vezes são taxados… Eu acredito que
132
racismo, embora de maneira menos óbvia. Conforme nos ensina Simmel (1983),
o tato se limita a um comportamento superficial, muitas vezes ligado à etiqueta;
no exemplo prático em questão, verificamos que ele não tem levado ao
reconhecimento, à reflexão e à crítica do racismo por parte dos sujeitos. Pelo
contrário, parece dificultar esses processos, pois cria um clima de falsa harmonia
nas relações raciais que, conforme vimos nos relatos, são conflituosas.
O silêncio encontrado pode ser explicado por diversos fatores, dentre os
quais se destacam a sensação de desconforto em discutir o tema com colegas
e professores que não compartilham de suas vivências e experiências sociais.
Ademais, a presença majoritária de estudantes brancos de escolas particulares
pode criar o entendimento de que o tema das cotas não seja considerado uma
prioridade ou algo relevante para a maioria dos estudantes. A diferença
socioeconômica entre os cotistas e a maioria dos estudantes também pode gerar
mais medo e insegurança na abordagem do tema. Afinal, os cotistas podem se
sentir vulneráveis em um ambiente que historicamente lhes foi inacessível, o que
pode tornar mais difícil para eles expor suas opiniões e vivências sem serem
julgados ou estereotipados. Essas situações tendem a gerar um clima de tensão
e dificultar a formação de um diálogo aberto e construtivo entre os diferentes
grupos na universidade. Nessa linha de raciocínio, o silêncio seria uma forma de
burlar esses problemas e garantir a harmonia entre os estudantes.
Um ponto pertinente de ser abordado é que, em decorrência das cotas
na UENP serem recentes, mesmo o NEABI da instituição, não há uma grande
mobilização de estudantes negros/indígenas dentro da instituição, que
reivindique uma postura coletiva de orgulho pelo fato de ser cotista. Mesmo o
fato de as instituições estarem fragmentadas em espaços separados
desmobiliza que haja, como na UEL, um movimento de estudantes engajados
na questão racial que leve para os espaços da universidade temas que os
atravessam, como as cotas82. Os relatos indicam que na UENP esse processo
parece ocorrer, mais de forma desarticulada, em situações e com pessoas
pontuais.
Os dados colhidos pelo formulário, articulado ao conteúdo das
entrevistas, nos permitem inferir que, de fato, há uma aceitação por parte da
82 Ver mais em Alexsandro Eleotério (2018) e Nikolas Gustavo Pallisser Silva (2019).
141
cotista.
Nota-se, portanto, que a discriminação aberta vivenciada pela amiga de
Camila foi responsável por romper com o princípio da sociabilidade segundo o
qual os indivíduos tendem a proteger aqueles com os quais há maior
identificação (BAECHLER, 1995). Dessa forma, diferentemente do que
normalmente vemos ocorrer, o fato de ele ser branco não gerou um endosso dos
outros indivíduos brancos, mas sim originou um sentimento de solidariedade
com a dor do racismo sofrido pela jovem negra, revelando os efeitos do
letramento racial indireto que mencionamos previamente.
Apesar de toda reação contrária, os efeitos daquele episódio ''pesado''
foi responsável por despertar uma série de gatilhos na estudante, fazendo-a
reviver traumas recalcados e chegar ''bem mal na faculdade por conta disso''.
Assim que encontrou suas amigas, ela confidenciou o que havia acontecido,
dividindo com elas o amargo questionamento: ''nossa, será que a gente merecia
estar aqui?''. Observa-se que o discurso do agressor foi a tal ponto internalizado
que fez com que ela duvidasse sobre o seu direito e o de suas amigas, também
cotistas, de estarem na universidade, muito provavelmente ativando
experiências de discriminação racial vivenciadas em outros estágios da sua vida
e reforçando o sentimento de não-pertencimento.
Lamentavelmente, os incidentes de discriminação costumam ser
tratados no âmbito individual, em vez de serem enfrentados de maneira
institucional. No caso analisado, seria crucial que a UENP interviesse e
enfatizasse que o ingresso por meio de cotas não representa, como alguns
racistas erroneamente acreditam, uma entrada pela porta dos fundos. Pelo
contrário, é a realização do direito à educação superior. No entanto, o tema
frequentemente permanece restrito ao âmbito pessoal, gerando angústia e
incerteza, e, se não encontrar apoio, pode levar à evasão acadêmica. Isso nos
leva a questionar por que os estudantes não levam essas preocupações à
instituição. Com base nos relatos, a aparente ineficácia das medidas contra
casos desse tipo tende a desencorajar a formalização do problema no âmbito
institucional.
Assim, o discurso de Camila nos direciona o olhar para como a
experiência de discriminação pode ter um efeito mais amplo na sociabilidade dos
estudantes cotistas, levando-os a evitar falar sobre o tema das cotas por receio
145
83 De acordo com o sociólogo Alain Coulon (2008), ser estudante universitário implica,
necessariamente, tornar-se membro de uma comunidade. Desse modo, o êxito de um estudante
no ambiente universitário está relacionado, dentre outras coisas, ao modo como ele se relaciona
com os outros indivíduos que compõe esse espaço. O acolhimento, portanto, é parte importante
desse processo de afiliação.
84 Ver em: https://michaelis.uol.com.br/busca?id=xR2v. Acesso em 10 de abr. de 2023.
150
Sente-se acolhida/o?
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Cotistas negros de Cotistas de escola
Não cotistas
escola pública pública
Sim 23 40 80
Não sei 1 1 0
Não 6 4 15
universitário. saudável'',
''amizades''.
''a permanência
na universidade é
muito difícil'',
''cada um por si'',
''falta de
Falta de Estudantes que comunicação'',
acolhimento não se sentem ''pouco inclusivo'', 5 3 11 19
acolhidos. ''preconceito por (4,10%) (2,46%) (9,02%) (15,57%
parte de )
professores e
funcionários'', ''o
curso de Direito é
muito elitista''.
''ambiente sem
Estudantes que preconceitos'',
se sentem ''novo perfil de
acolhidos ao estudantes por
perceberem que causa das cotas'',
Ambiente na universidade ''ver meus 6 2 3 11
inclusivo há a inclusão de semelhantes'', (4,92%) (1,64%) (2,46%) (9,02%)
grupos ''amplitude de
marginalizados. pessoas'', ''ver o
crescente
ingresso de
negros''.
O sentimento de ''ambiente
acolhimento acolhedor'', ''lugar
vem da própria reconfortante’,
Espaço estrutura da ''tranquilidade 0 2 5 7
estimulante universidade e maior pelo menor - (1,64%) (4,10%) (5,74%)
de seus número de
espaços de pessoas'',
socialização. ''campus
pequeno''.
Fonte: dados da pesquisa.
mencionar que um dos estudantes não cotistas respondeu que se sentia acolhido
na universidade justamente porque era branco. Essa afirmação se coaduna com
a reflexão tecida, pois demonstra precisamente a percepção de que, sendo a
UENP um ambiente predominantemente branco, os estudantes brancos
gozariam naturalmente de uma sensação maior de acolhimento e pertencimento,
uma vez que estão em maior número – cenário propício para a preservação do
pacto narcísico. Essa dinâmica pode ser compreendida à luz da teoria da
sociabilidade de Simmel (1983), que destaca o papel do "estar entre iguais"
como um fator que influencia as relações sociais. Quando os indivíduos se
encontram em grupos nos quais compartilham características semelhantes,
como a cor da pele, há uma maior propensão para o estabelecimento de laços
sociais e uma sensação de conforto e familiaridade.
A fala de Juliana, na qual a discente aborda a experiência de seu pai
antes da implementação das cotas na UENP, nos leva a pensar que é bem
provável que, sendo uma ínfima parcela, os estudantes negros tenham
experimentado sentimentos como: solidão88, exclusão e alienação. Eles podem
ter enfrentado barreiras significativas para se integrarem plenamente ao
ambiente acadêmico, possivelmente sendo marginalizados e tendo suas vozes
silenciadas, dado que é uma realidade enfrentada, ainda hoje, por muitos negros
na academia, como destacado por Borba et al. (2019). Essa falta de
representatividade também pode ter impactado diretamente sua autoestima e
confiança, dificultando seu desenvolvimento pleno. Porém, como não tivemos
acesso aos estudantes que entraram antes das cotas, apenas podemos
especular sobre como teria sido suas experiências a partir da literatura que trata
do assunto. Não obstante, ratificamos a importância de estudos mais
aprofundados que resgatem as vozes desses indivíduos, justamente com vistas
a estabelecer um paralelo com a realidade atual.
De 2018 em diante, com a adesão da política de cotas pela UENP, inicia-
88Vários estudos têm se debruçado sobre a solidão dos negros em ambientes de poder, como o
acadêmico, dando um enfoque especial ao caso das mulheres negras. O minidocumentário A
solidão dos corpos negros no espaço acadêmico (2022), de Renata do Amaral Mesquita e
Rosalia Cristina Andrade Silva, converge com as informações coletadas e revela como a
ausência de representatividade afeta, de múltiplos modos, a sociabilidade universitária dos
estudantes negros. Ver mais sobre o tema também em: Negra e Acadêmica: a solidão no
diálogo entre pares nos espaços de poder (2019), de Carolina dos Anjos Borba et al., e A solidão
de uma aluna negra que chegou à universidade (2017), por Nairim Bernardo.
157
89 Conrado Dess (2022), sintetiza o termo da seguinte forma: "qualidade que, ao mesmo tempo,
gera e é gerada por um organismo representativo quando esse adquire a capacidade de
representar esteticamente, politicamente e socialmente determinada coletividade, sendo essa
coletividade, na maioria das vezes, um grupo social minoritário" – quando ele utiliza o termo
minoritário está se referindo não a quantidade de um determinado grupo, mas indicando que se
trata de um dispositivo simbólico na luta contra-hegemônica. Desse modo, a representatividade
abordada pelos estudantes diz respeito à necessidade de a universidade ter uma diversidade
racial maior entre seus membros.
158
399 docentes ativos, sendo 201 do gênero masculino e 197 do gênero feminino,
porém, nos documentos institucionais90 não há nenhuma referência ao
pertencimento racial deles, o que dificulta uma constatação mais aprofundada
sobre o perfil do corpo docente e, consequentemente, impede com que ações
afirmativas sejam implementadas para corrigir prováveis desproporcionalidades.
No entanto, não é necessário exercer um esforço considerável de
imaginação para constatarmos que a UENP, seguindo o padrão91 predominante
da maioria das IES no Brasil, apresenta uma composição docente
majoritariamente branca. Longe de ser uma mera suposição, tanto minha
experiência durante a graduação, ao participar de congressos em outros campi,
como também agora, durante a realização desta pesquisa, me permitem afirmar
categoricamente que, ao longo desses mais de cinco anos imerso na realidade
da instituição, tive contato com apenas cinco docentes negros, dos quais três
pertenciam ao curso de Letras e foram meus professores.
Durante as entrevistas, perguntamos se os discentes já haviam tido
algum professor negro durante a graduação, mas na absoluta maioria dos casos
a resposta era negativa, com raras exceções. De fato, a presença desses
docentes na UENP é tão reduzida que alguns estudantes de diferentes cursos
mencionaram estar cientes da existência de dois docentes negros em particular,
sendo um pertencente ao curso de Pedagogia, Donizete, e outra ao curso de
Letras, Rosiney. Esses professores destacam-se por seu constante
envolvimento com questões raciais e sua participação ativa em diálogos
interdisciplinares com outros cursos.
Em outros momentos, alguns entrevistados indicaram espanto ao
perceberem que nunca haviam tido aula com um docente negro, de modo que
essa espécie de "surpresa" pode estar relacionada com uma naturalização da
figura do professor universitário, que desfruta de posição socialmente
privilegiada, como sendo branco. Sobre essa questão, Laura diz:
Censo de Educação Superior daquele ano, que apenas 16,2% dos docentes das IES se
autodeclaravam negros. Ver mais em:
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/11/4964642-menos-de-3-dos-professores-
universitarios-do-brasil-sao-negros.html. Acesso em 10 de jun. de 2023.
161
pessoas como ele sejam "deixadas de canto", não permitindo que concluam seus
sonhos, e não uma fraqueza pessoal.
O relato da estudante é preocupante, na medida que indica que, embora
a UENP crie condições para que estudantes negros de escola pública ingressem
nesse curso, ainda que de forma reduzida, ela não oferece as mesmas
condições para que eles permaneçam e concluam seus estudos. Referente a
isso, outra estudante, Denise, demonstrou preocupação quanto à possibilidade
de uma colega de turma negra, também cotista, de não conseguir concluir a
faculdade:
acesso a serviços, recursos e direitos a um grupo específico devido à sua cor, cultura, origem
racial ou étnica (LÓPEZ, 2012). Frequentemente, essa falha é resultado da falta de atenção ou
do desconhecimento por parte da instituição, como exemplificado no caso mencionado.
95 Dyane Brito Reis Santos, em sua tese de doutoramento intitulada Para além das cotas: a
na sociabilidade universitária, por hora, o que fica nítido é que, para os discentes
negros, o principal impeditivo para que se sintam acolhidos está no fato de não
disporem de condições materiais para usufruir da universidade em pé de
igualdade com os demais estudantes.
Os dados colhidos por meio dos questionários demonstram, portanto,
que, quando o assunto é acolhimento, os estudantes, a depender do grupo ao
qual pertencem, apresentam demandas diferentes. Os cotistas de escola
pública, por exemplo, não deram ênfase nas dificuldades de permanência, o que
não queria dizer que ela também não seja um problema com o qual eles tenham
de lidar. Outro ponto a ser salientado é que nenhum deles relacionou a falta de
acolhimento a situações de discriminação. O mesmo foi constatado entre os não
cotistas, que não indicaram dificuldades de permanência ou envolvendo
situações de discriminação como determinantes para o não acolhimento.
A análise dos dados coletados revela diferenças nas razões que levam
os estudantes a perceberem uma falta de acolhimento na universidade.
Enquanto os cotistas de escola pública e os não cotistas apresentam uma
variedade maior de problemas que contribuem para essa percepção, os cotistas
negros enfrentam desafios específicos que desempenham um papel
determinante nessa questão.
Entre os desafios enfrentados pelos cotistas negros, destacam-se a
dificuldade de permanência na universidade, a falta de condições materiais
adequadas para aproveitar plenamente o ambiente acadêmico e o preconceito
racial. Esses fatores combinados impactam negativamente a experiência dos
cotistas negros, tornando a falta de acolhimento uma realidade significativa para
eles em comparação aos outros grupos.
Isso indica que o sentimento de acolhimento vivenciado por esses
estudantes é influenciado tanto por questões materiais, quanto simbólicas.
Nesse contexto, é interessante notar que os cotistas de escola pública e os não
cotistas compartilham, em alguns aspectos, percepções mais abrangentes sobre
o que contribui para o acolhimento no ambiente acadêmico. Para eles, o espaço
físico parece desempenhar um papel importante, representando um fator de
acolhimento para 7,41% dos cotistas de escola pública e 6,41% dos não cotistas.
Vale ressaltar que nenhum dos cotistas negros mencionou esse elemento em
suas respostas.
169
96 Criada pelo educador e psicólogo Rensis Likert, em 1932, a escala vai de um a cinco pontos
e tem como função medir as percepções e atitudes dos indivíduos sobre um determinado assunto
(BERMUDES et al., 2016).
97 É um software voltado para a sistematização e análise de dados, projetado para trabalhar
responderam ao questionário
98Sobre esse tema, ver mais em: Racismo e o negro no Brasil: questões para psicanálise
(2017).
174
como vimos, ele é um fenômeno complexo que muitas vezes opera de maneiras
sutis e enraizadas na sociedade, tornando-se difícil para algumas pessoas
perceberem e reconhecerem seus efeitos prejudiciais. Todavia, há que se
considerar, conforme aventado anteriormente, que há uma tendência entre os
discentes em avaliar positivamente o campo das relações sociais, dado que elas
são mais comuns do que aquelas em que há desentendimentos, embora elas
também existam.
101
Sobre as múltiplas formas como o racismo afeta a vida de um indivíduo negro, ver mais em
Memórias da Plantação, de Grada Kilomba (2019).
182
102 Para compreender mais sobre, ver em A humanidade questionada: violência e perversão
do racismo cotidiano (2021), de Maria Nilza da Silva. Aliás, nos últimos dias alguns casos
envolvendo a animalização do negro ganhou as manchetes dos jornais a partir de dois casos em
especial, o do jogador Vinícius Jr., que foi chamado de macaco pela torcida do Atlético, e de
duas influencers, Kérollen Cunha e Nancy Gonçalves, que gravaram a reação de crianças negras
ao receberem uma banana e um macaco de pelúcia.
103 De acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), a injúria
racial se aplica aos casos em que "qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos
minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e
que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou
procedência". A partir de 2023, a injúria racial passou a ser equiparada ao crime de racismo,
tornando a pena mais severa, com reclusão de dois a cinco anos, além de multa. Com essa
alteração, não há mais a possibilidade de fiança e o crime tornou-se imprescritível.
184
104 Ver mais em: Você conhece aquela? A piada, o riso e o racismo à brasileira (2013), de
Dagoberto José Fonseca.
105 Ver mais em: Mídias sociais e a naturalização de discursos racistas no Brasil (2020), de
Luiz Valério Trindade. Em 2022, crimes de ódio na internet tiveram um aumento de quase 70%
envolvendo racismo, lgbtfobia, xenofobia, neonazismo, misoginia, apologia a crimes contra a vida
e intolerância religiosa segundo a Central Nacional de Denúncias da Safernet. Só no primeiro
semestre foram realizadas 23.947 denúncias. Ver mais em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-02/denuncias-de-crimes-na-
internet-com-discurso-de-odio-crescem-em-2022. Acesso em 14 de jun. de 2023.
186
106 Sobre isso, a ideia de Erving Goffman, em A representação do eu na vida cotidiana (1985),
de que a vida social é encenada, como uma grande peça de teatro, na qual as pessoas seguem
rituais socialmente estabelecidos, desempenham papeis determinados e utilizam máscaras para
se autorepresentarem de acordo com o contexto no qual estão inseridos, cumpre bem com o
que, comumente, conhecemos de filtro social. Antigamente, por exemplo, utilizar a máscara de
racista não era um grande problema, atualmente, no entanto, a partir das conquistas dos negros,
da criminalização do racismo e das discussões levantadas pelos movimentos negros e
intelectuais, esta é uma máscara que, na maioria dos casos, fica reservada para ser utilizada na
alcova ou em um círculo restrito, pois sua utilização na vida social já não é mais bem vista, dado
que, para continuar na acepção do autor, ser racista tornou-se um estigma que ninguém, ou
melhor, quase ninguém, gostaria de carregar nos dias de hoje.
187
109
Oximoro é uma figura de linguagem que consiste na combinação de palavras ou expressões
que possuem significados opostos ou contraditório.
189
110Ver mais sobre segregação racial em: Nem para todos é a cidade (2006), de Maria Nilza da
Silva, e Território e segregação urbana: o "lugar" do negro na cidade (2014), organizado por
Maria Nilza da Silva e Mariana Panta.
190
Uma fala que sintetiza de forma mais evidente tudo aquilo que expomos
até aqui sobre o impacto do racismo na sociabilidade dos estudantes é a de
Janaína111. A estudante mencionou que, no início, sua turma era bem unida, mas
que a desistência de alguns estudantes e algumas situações problemáticas
fizeram com que esse vínculo que os mantinha unidos fosse, aos poucos, se
enfraquecendo. Segundo ela, durante o período da pandemia, muitos dos seus
colegas tiveram dificuldades em acompanhar as aulas por muitos motivos e que
houve uma movimentação para reformular a dinâmica das aulas, visando uma
inclusão maior. Entretanto, um grupo de estudantes, que ela denomina como
"clero112", se mostrou contrário à iniciativa, isso fez com que houvesse uma
fragmentação ainda maior na sua turma que já encontrava dificuldades em se
relacionar por conta de comentários racistas e classista.
Conforme ela destacou, os membros do clero "são adeptos do discurso
de que a universidade não pode ser para todos". Sua colocação é importante,
pois a estudante evidencia que este mesmo grupo já demonstrou, em outros
momentos, falas problemáticas sobre outros temas: "tem dois estudantes em
específico, um seminarista e uma outra estudante que defendem
veementemente que o racismo, tanto contra indígenas, como contra negros, não
existe e que as cotas são uma ferramenta de trapaça". Se por um lado, episódios
como esses causaram na estudante, em princípio, um mal-estar e um
113Ver mais sobre o racismo contra os povos indígenas em Existência e diferença: o racismo
contra povos indígenas (2019), de Felipe Milanez et al.
192
Por fim, com vistas a responder às questões que orientam este trabalho,
elaboramos, ao final do formulário, uma lista com as principais dificuldades que
os estudantes podem sofrer na universidade. Tratava-se de uma pergunta por
193
importância das palavras em um determinado contexto, de modo que torna a comparação entre
os diferentes grupos analisados mais palpável.
194
universidade
116De acordo com Jamila Geri Tomaschewski-Barlem et al. (2022, p. 755), a síndrome de burnout
se manifesta entre estudantes por meio de "três dimensões específicas: exaustão emocional,
descrita pelo sentimento de estar exausto em resposta às intensas exigências do estudo;
descrença, percebida como o desenvolvimento de uma atitude cética e distanciada no âmbito
dos estudos, e baixa eficácia profissional, assinalada pela percepção de estarem sendo
ineficazes como estudantes".
197
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
"abafem" a questão.
De outro modo, muitos cotistas revelaram nunca terem parado para
pensar sobre essa questão, justamente porque há um silenciamento
inconsciente que impede com que o tema, por vezes, surja. Dessa forma, o
silêncio acaba por funcionar, principalmente no caso dos estudantes negros,
como uma dimensão do tato da sociabilidade universitária com vistas a inibir
confrontos e que, consequentemente, acaba por reproduzir as violências
oriundas do racismo, criando um clima pretensamente ''harmônico''.
Nesse sentido, as informações coletadas demonstram que o uso das
cotas, apesar de não ser um assunto presente e constante, tende a influenciar
as redes de sociabilidade estabelecidas entre os estudantes, acarretando para
muitos discentes, especialmente os cotistas negros, sentimentos como a
autovigilância, vergonha e silenciamento, o medo, o esgotamento,
questionamentos sobre a capacidade e o direito em estar na universidade, etc.
Sobre estes, portanto, são adicionados pesos a mais, além daqueles que são
comuns da vida universitária, que não são necessariamente compartilhados
pelos não cotistas ou mesmo pelos cotistas de escola pública.
Esmiuçando mais o campo da interação social por meio das respostas
ao formulário, chegamos a alguns dados que nos ajudam a compreender melhor
as diferenças entre os grupos analisados.
De maneira geral, todos os grupos de estudantes focados demonstraram
uma alta taxa de percepções positivas sobre sentir-se acolhidos na universidade.
Notamos que tanto os cotistas provenientes de escolas públicas quanto os não
cotistas apresentaram uma variedade maior de respostas sobre os fatores que
os fazem sentir-se acolhidos na universidade, tais como estabelecer vínculos
sociais e se relacionar com o ambiente acadêmico. Em contrapartida, embora
muitos cotistas negros também tenham indicado esses aspectos, percebemos
que um outro elemento emergiu como fundamental para sua sensação de
acolhimento: a representatividade na instituição.
Nesse horizonte, constatou-se que os cotistas negros foram os que
menos compartilharam de uma percepção positiva e, ao mesmo tempo, os que
mais indicaram não se sentirem acolhidos, enfrentando desafios adicionais,
como dificuldades de permanência (tanto materiais quanto simbólicas) e
discriminação, o que tende a afetar a sua sociabilidade ao gerar sentimentos de
201
a sua sociabilidade ao ponto de, por exemplo, eles restringirem sua participação
nas atividades acadêmicas; para isso, seriam necessárias pesquisas com outras
abordagens metodológicas. Dessa forma, esta pesquisa entende suas limitações
e enseja que mais trabalhos se debrucem sobre a realidade da instituição, a fim
de construir uma descrição mais fidedigna da realidade.
Com relação aos problemas enfrentados pelos discentes, constatamos
que os três principais foram: tempo, financeiro e saúde psicológica – com pouca
variação na ordem. Na medida em que para os cotistas de escola pública e os
não cotistas o principal desafio é o tempo (59% e 46% respectivamente), para
os cotistas negros é a questão financeira (77%) que tende a limitar sua
sociabilidade ao criar dificuldades em participar ativamente da universidade.
Verificamos, portanto, que enquanto há uma maior diversidade de preocupações
entre os não cotistas e os de escola pública, como relação à infraestrutura
universitária, os cotistas negros ainda estão focados em suprir questões básicas
de permanência que, muitas vezes, outros desafios que os cercam acabam não
recebendo a mesma atenção.
Seja como for, acreditamos ter apontado para possíveis caminhos
explicativos quanto aos objetivos selecionados. Resta-nos responder à questão
norteadora deste trabalho: que tipo de sociabilidade as cotas produzem entre os
estudantes da UENP? Ela é mais construtiva, como defende Munanga (2007),
ou mais conflitiva, como supúnhamos de início a partir da teoria da sociabilidade?
As informações levantadas, tanto pelas entrevistas, como pelos questionários,
nos habilitam sugerir que, de um modo amplo, trata-se de uma sociabilidade
mais condizente com a primeira opção, que revela uma dimensão mais positiva
e aberta.
Contudo, isso não nos autoriza dizer, necessariamente, que a interação
social dos participantes seja harmoniosa e livre de conflitos, muito pelo contrário,
ao longo deste trabalho apresentamos uma série de informações que não nos
permitem pensar a UENP como um espaço perfeitamente inclusivo e igualitário.
Todavia, observamos a menção de muitos elementos mais positivos do
que negativos. O bom relacionamento entre os estudantes e a baixa menção de
discriminação pode estar relacionado a: um ambiente possivelmente mais
progressista do que de outras cidades da mesma região; um contato mais
aproximado entre os estudantes em decorrência do espaço físico; dificuldades
204
REFERÊNCIAS
2007.
_____. Igualdade racial: da política que temos à política que queremos. In:
SADER, E. (Org.). O Brasil que queremos. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2016.
209
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, 2019. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf.
Acesso em 28 de maio de 2022.
PIZA, E. Porta de vidro: entrada para branquitude. In: CARONE, I.; BENTO, M.
A. S. (org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e
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Letras, 2015.
SENADO. Pesquisas apontam que 400 mil mortes poderiam ser evitadas.
Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/06/24/pesquisas-apontam-
que-400-mil-mortes-poderiam-ser-evitadas-governistas-questionam. Acesso em
12 de nov. 2022.
SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. São Paulo, LeYa, 2017.
APÊNDICES
216
APÊNDICE A
APÊNDICE B
APÊNDICE C
APÊNDICE D