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Cotas, Sociabilidade e Racismo Um Estudo Sobre As Relações Raciais Na UENP

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GABRIEL GUSTAVO DOS SANTOS

COTAS, SOCIABILIDADE E RACISMO:


UM ESTUDO SOBRE AS RELAÇÕES RACIAIS NA UENP

Londrina
2023
GABRIEL GUSTAVO DOS SANTOS

COTAS, SOCIABILIDADE E RACISMO:


UM ESTUDO SOBRE AS RELAÇÕES RACIAIS NA UENP

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Universidade Estadual de Londrina - UEL, como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Sociologia.

Orientador: Profa. Dra. Maria Nilza da Silva

Londrina
2023
GABRIEL GUSTAVO DOS SANTOS

COTAS, SOCIABILIDADE E RACISMO:


UM ESTUDO SOBRE AS RELAÇÕES RACIAIS NA UENP

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Universidade Estadual de
Londrina - UEL, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Sociologia.
BANCA EXAMINADORA

Maria Nilza da Silva


Universidade Estadual de Londrina - UEL

Maria Angélica Minhoto


Universidade Federal de São Paulo –
Unifesp

Alexsandro Eleotério Pereira de Souza


Universidade Estadual de Londrina - UEL

Rosiney Aparecida Lopes do Vale


Universidade Estadual do Norte do Paraná -
UENP

Londrina, 31 de agosto de 2023.


AGRADECIMENTOS

À profa. Maria Nilza da Silva, pela valorosa confiança e por todo


respeito, delicadeza e ajuda no decorrer do trajeto;
A CAPES, pela bolsa de mestrado;
Aos professores que contribuíram com valiosas sugestões no
Exame de Qualificação, Maria Angélica Minhoto, Alexsandro Eleotério e Rosiney
Aparecida Lopes do Vale;
Ao prof. Mauro, por toda ajuda e boa vontade;
À profa. Rosiney, que me incentivou e acreditou mesmo quando
eu mesmo não acreditava;
À minha eterna e querida profa. de Português, Fernanda, a quem
devo tudo por ter me despertado o gosto pela leitura e escrita;
Aos meus pais, por todo suporte e por tentarem me entender,
mesmo quando não compreendiam;
Ao meu amor, Eduardo, por ser companheiro no sentido mais
preciso da palavra e por ser meu porto seguro em momentos tempestuosos;
Aos meus amigos, Bianca e Felipe, pela amizade, pelas trocas
e leituras e, especialmente, por todo o apoio nos momentos mais críticos;
Aos meus sogros que, tão prestativamente, ajudaram no
desenvolvimento da pesquisa;
Ao meu cunhado, que me ensinou a fazer gráficos;
À Sagwa, companheira inseparável de todas as horas, que ficou
ao meu lado – e em cima do meu colo – durante as inúmeras madrugadas afora
enquanto eu redigia este trabalho;
À Cacau, de alegria inesgotável e amor incondicional;
A todos que me acompanharam no caminho e que, direta ou
indiretamente, contribuíram para o meu desenvolvimento humano e,
consequentemente, também para o desenvolvimento deste trabalho;
Por último, mas não menos importante, a todos estudantes que
participaram da pesquisa, sem suas contribuições nada disso seria possível.
Para Ambrosina, minha avó.
Exemplo de força.
O morro não tem vez
E o que ele fez já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar

Tom Jobim (1927-1994)


...
RESUMO

SANTOS, Gabriel Gustavo dos. Cotas, sociabilidade e racismo: um estudo


sobre as relações raciais na UENP. 2023. 207f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Sociologia) – Centro de Educação, Comunicação e Artes, Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2023.

O objetivo principal desta dissertação é analisar em que medida elementos como


a raça e o uso de cotas afetam a sociabilidade dos estudantes cotistas e não
cotistas da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Para tanto,
selecionamos como universo da pesquisa quatro cursos da instituição
mencionada, a saber: Letras Espanhol, História, Odontologia e Direito, todos
localizados campus de Jacarezinho, interior do Paraná. Foi selecionada como
metodologia a pesquisa de campo, que foi dividia em dois momentos
complementares: 1) a aplicação de um formulário online e 2) a realização de
entrevistas em profundidade. Com isso, conseguimos a participação de 180
estudantes na resposta ao questionário e 21 na etapa das entrevistas. Os dados
colhidos foram sistematizados em gráficos e categorizadas em quadros
contendo os temas mais recorrentes presentes nos relatos. Com relação aos
resultados obtidos, verificamos que os estudantes demonstraram forte apoio às
cotas, com uma leve preferência pelas cotas de escola pública. A maioria avaliou
positivamente as interações na universidade, com exceção dos cotistas negros,
que se sentem menos acolhidos devido a dificuldades de permanência e
discriminação. Desse modo, podemos constatar que raça e uso de cotas
impactam, efetivamente, a sociabilidade universitária, especialmente dos
cotistas negros, gerando sentimentos de exclusão, dúvidas sobre capacidade e
vergonha.

Palavras-chave: racismo; sociabilidade; cotas; universidade; inclusão.


ABSTRACT

SANTOS, Gabriel Gustavo dos. Quotas, sociability and racism: a study on


racial relations at UENP. 2023. 207f. Trabalho de Conclusão de Curso
(Sociologia) – Centro de Educação, Comunicação e Artes, Universidade
Estadual de Londrina, Londrina, 2023.

The main objective of this dissertation is to analyze the impacts of racial affiliation
and the use of quotas on the sociability of quota and non-quota students at the
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). To do so, we selected four
courses from the aforementioned institution as the research universe, namely:
Spanish Literature, History, Dentistry and Law, all located on the Jacarezinho
campus, in the interior of Paraná. Field research was selected as a methodology,
which was divided into two complementary moments: 1) the application of an
online form and 2) the performance of in-depth interviews. As a result, we
managed to get 180 students to participate in answering the questionnaire and
21 in the interview stage. The collected data were systematized in graphs and
categorized in charts containing the most recurrent themes present in the reports.
Regarding the results obtained, we found that students showed strong support
for quotas, with a slight preference for public school quotas. Most positively
evaluated interactions at the university, with the exception of black quota
students, who feel less welcomed due to difficulties in permanence and
discrimination. Thus, we can see that race and the use of quotas effectively
impact university sociability, especially for black quota students, generating
feelings of exclusion, doubts about capacity and shame.

Key-words: racism; sociability; quotas; university; inclusion.


LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Informações sobre os entrevistados .............................................. 29


Quadro 2 - Opinião dos estudantes entrevistados sobre a existência de política
de cotas .......................................................................................................... 108
Quadro 3 – Percepções dos entrevistados sobre ser cotista na UENP ......... 130
Quadro 4 - Os motivos que fazem com que os estudantes se sintam acolhidos
ou não na UENP ............................................................................................ 151
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Curso dos estudantes que responderam ao questionário ............... 94


Tabela 2 – Cor dos estudantes que responderam ao questionário.................. 95
Tabela 3 – Renda dos estudantes que responderam ao questionário ............. 96
Tabela 4 – Gênero dos estudantes que responderam ao questionário ......... 101
Tabela 5 – Idade dos estudantes que responderam ao questionário ............ 102
Tabela 6 – Forma de ingresso dos que responderam ao questionário .......... 103
Tabela 7 - Primeiras(os) da família a entrarem na universidade.................... 104
Tabela 8 – Opinião dos estudantes que responderam ao questionário sobre as
cotas na UENP ............................................................................................... 106
Tabela 9 – Percepção dos estudantes que responderam ao questionário sobre
acolhimento na UENP .................................................................................... 150
Tabela 10 – Escala de Likert sobre sociabilidade dos estudantes da UENP que
responderam ao questionário ......................................................................... 169
Tabela 11 – Percepção dos estudantes cotistas e não cotistas sobre as principais
dificuldades que enfrentam na universidade .................................................. 193
FIGURAS

Figura 1 - Mapa do Norte Pioneiro do Paraná e a localização dos campi da UENP


......................................................................................................................... 71
Figura 2 - Entrada principal do prédio onde estão localizados os centros CCHE
e CLCA, mais conhecido como FAFIJA ........................................................... 82
Figura 3 - Fachada da faculdade de Direito da UENP ..................................... 84
Figura 4 - À esquerda, Clínica Odontológica, e à direita, Faculdade de
Odontologia ...................................................................................................... 85
Figura 5 – Principais dificuldades que os não cotistas enfrentam na universidade
....................................................................................................................... 193
Figura 6 – Principais dificuldades que os cotistas negros enfrentam na
universidade ................................................................................................... 194
Figura 7 – Principais dificuldades que os cotistas de escola pública enfrentam
na universidade .............................................................................................. 194
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

UEL Universidade Estadual de Londrina

UENP Universidade Estadual do Norte do Paraná

AA Ação Afirmativa

IES Instituição de Ensino Superior

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


MNU Movimento Negro Unificado

PROGRAD Pró-Reitoria de Graduação

CAAF Comissão de Acompanhamento e Avaliação das Políticas Afirmativas

DADAL Diretório Acadêmico Maria Lorena Campos Silva

Unesco Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................ 17
1.1 Metodologia ....................................................................................... 22

2 RACISMO, SOCIABILIDADE E DESIGUALDADES SOCIAIS ...... 31


2.1 A escravidão e o engendramento de uma sociabilidade degenerada .... 31
2.2 O racismo no pós-abolição e o refinamento de uma sociabilidade
degenerada................................................................................................... 35
2.3 O debate racial na atualidade ................................................................. 45

3 POLÍTICA DE COTAS E A FORMAÇÃO DE OUTRA


SOCIABILIDADE ............................................................................................. 51
3.1 O pós-abolição e a educação dos negros .......................................... 51
3.2 A educação como o monopólio da brancura ...................................... 54
3.3 Política de cotas: um breve histórico.................................................. 56
3.4 Diferentes perspectivas sobre as cotas ............................................. 60
3.5 As cotas e a sociabilidade universitária ............................................. 61

4 POLÍTICA DE COTAS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE


DO PARANÁ (UENP) ...................................................................................... 71
4.1 UENP: um breve contexto .................................................................. 71
4.2 Identificando desigualdades na UENP ............................................... 73
4.3 O início das cotas na UENP ............................................................... 75
4.4 UENP de jacarezinho ......................................................................... 80
4.5 Espaço e sociabilidade universitária .................................................. 86
4.6 UENPRETA ....................................................................................... 90
4.7 Perfil dos participantes ....................................................................... 93

5 COTAS NA UENP: OPINIÕES E PERCEPÇÕES DOS


ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS ................................................................ 106
5.1 Desnaturalizando a desigualdade sociorracial ................................. 110
5.2 O problema da precarização da educação pública .......................... 114
5.3 Cotas: possibilitando novas perspectivas ........................................ 118
5.4 Por um outro imaginário ................................................................... 121
5.5 Direito versus assistencialismo ........................................................ 123
5.6 Sugestões das/os estudantes sobre a política de cotas na UENP .. 124
5.7 Ser cotista na UENP ........................................................................ 129
5.8 Indiferença ou medo? A falta de discussões sobre cotas na UENP 130
5.9 Ser cotista: um misto de esgotamento e orgulho ............................. 142

6 DESVELANDO ELEMENTOS SOBRE A SOCIABILIDADE DE


ESTUDANTES COTISTAS E NÃO COTISTAS ............................................. 149
6.1 Percepções sobre o acolhimento na universidade: a perspectiva de
estudantes cotistas e não cotistas .............................................................. 152
6.2 A falta de acolhimento no ambiente universitário: uma perspectiva
comparativa entre estudantes cotistas e não cotistas ................................ 162
6.3 Informações sobre o convívio entre cotistas e não cotistas ............. 169
6.4 Percepções sobre o racismo na UENP ............................................ 180
6.5 Principais desafios diante a universidade ........................................ 192

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................... 198

REFERÊNCIAS .............................................................................................. 205

APÊNDICES .................................................................................................. 215


17

1 INTRODUÇÃO

Toda pesquisa acadêmica tem, ou pelo menos deveria ter, como


finalidade produzir conhecimentos e desvelar novas dimensões sobre um
determinado objeto. Atualmente, a partir das contribuições dos estudos
decoloniais (BALLESTRIN, 2013; MIGNOLO, 2016) e de feministas negras
(COLLINS, 2016; RIBEIRO, 2017), tem-se o entendimento de que nenhum
conhecimento social parte do ‘’ponto zero’’, isto é, de um local de observação
neutro e absoluto.
Tal pensamento, apesar de ter se popularizado nas últimas décadas, tem
raízes antigas. Max Weber, em seu estudo intitulado A ''objetividade'' do
conhecimento nas ciências sociais, publicado pela primeira vez em 1904, já
defendia que não existem conhecimentos puramente neutros, uma vez que o
interesse do cientista social por um determinado objeto é conduzido por valores
que são importantes e fazem sentido para ele.
Orientados por essas perspectivas, podemos dizer que a gênese de todo
conhecimento está situada ideologicamente (COHN, 2006) na medida em que
sofre influências diretas de experiências e interesses que derivam de elementos
constitutivos do próprio pesquisador, como sua raça, gênero, sexualidade,
classe, localização geográfica e tantos outros marcadores sociais.
Sendo assim, acredito ser importante não apenas evidenciar o objeto de
pesquisa escolhido, como também os princípios axiológicos que orientam tal
escolha e o lugar do qual eu enuncio, enquanto um homem branco,
homossexual, proveniente da classe trabalhadora, com formação integral pela
educação pública e residente do interior no Paraná.
Considerando tais aspectos, esta dissertação tem como objeto de
estudo a sociabilidade estabelecida entre estudantes cotistas e não cotistas da
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Por hora, podemos entender
a sociabilidade como o processo de interação que os seres humanos
estabelecem entre si por diferentes motivos e com distintas finalidades (SIMMEL,
1983; BAECHLER, 1995).
Mas antes de adentrar de modo mais detalhado na pesquisa
efetivamente, penso ser importante evidenciar ao meu interlocutor o que me
levou a optar por esse tema em meio a uma infinidade de tantos outros.
18

Enquanto um homem branco, hoje orientado por valores antirracistas, meu


discurso encobre duas vivências diferentes e, até mesmo, antagônicas
(SCHUCMAN, 2020): a de quem aprendeu a se solidarizar com as vítimas do
racismo e a de quem foi criado em um lar permeado por discursos e práticas
racistas e que, portanto, em grande parte da vida, reproduziu e luta, ainda hoje,
para não continuar reproduzindo-os.
Conforme elucida o sociólogo Norbert Elias (1983), é por meio da
socialização em grupo, especialmente no espelhamento com os adultos à sua
volta, que a criança desenvolve sua percepção inicial de mundo. No meu caso,
cresci e fui socializado em um ambiente dominado pelo racismo, que se
manifestava desde a sua forma recreativa1 (MOREIRA, 2019), bem como por
meio de injúrias explícitas disseminadas por membros familiares em certos
momentos.
Sendo assim, mesmo tendo como melhor amigo de infância um menino
negro, R, e nutrir um profundo carinho por ele, eu não estava imune e até mesmo
reproduzia os discursos que via diariamente em casa em nossa relação. Um
episódio que ficou marcado em mim, e certamente também ficou marcado nele,
foi quando a professora do ensino fundamental estava distribuindo bananas e eu
disse a ele que pegasse uma, pois se parecia com um macaco. Ao invés de ouvir
risadas, como era de costume, percebi apenas um silêncio envergonhado do
meu amigo. Na mesma hora a professora interveio, chamou minha atenção e
pediu que eu me desculpasse. Não entendi imediatamente a gravidade do
ocorrido, nem tampouco a postura altiva da professora, afinal de contas, ''era
apenas uma brincadeira''. Na ocasião, tínhamos por volta de sete anos.
Foi só no início da adolescência que, de fato, comecei a me questionar
sobre o racismo e a não o tratar mais como algo ‘’natural’’. Talvez, as
experiências de discriminação que eu sofri por conta de minha sexualidade
tenham contribuído no processo de autorreflexão. Por sentir na pele os efeitos
devastadores da discriminação, engajei-me na luta contra toda e qualquer forma
de opressão e subalternização.

1O racismo recreativo se manifesta por meio de um ''humor'' que permite a quem o pratica destilar
preconceitos contra grupos racializados, como os negros, e, ao mesmo tempo, camuflar essa
postura racista por detrás do argumento de que ''é apenas uma brincadeira''. Ver mais em
Racismo recreativo, de Adilson Moreira (2019).
19

E dentre as diversas bandeiras existentes, a luta contra o racismo foi a


que mais se destacou para mim na época, devido ao histórico mencionado e
porque, sendo gay numa família também homofóbica, não havia a possibilidade
de eu levantar minha própria bandeira e dar voz às minhas próprias angústias.
Hoje eu entendo que falar contra as outras formas de opressão foi um
mecanismo (inconsciente) que encontrei para desabafar sobre aquilo que eu
vivia enquanto um jovem gay, mas que não podia expressar abertamente.
Já na universidade, como estudante do curso de Letras da UENP,
interessei-me pelos debates educacionais, justamente porque eles tinham um
viés mais voltado ao social e para o questionamento do status-quo. No terceiro
ano de faculdade, em 2018, testemunhei o início da implementação da política
de cotas na instituição e logo percebi uma modificação, embora tímida, no corpo
discente, que se tornou mais plural e representativo. Foi neste contexto de
mudanças e inquietações que me aproximei da profa. Rosiney2, uma mulher
negra, e comecei a estudar, sob sua orientação, os impactos do racismo na
relação com o saber de estudantes cotistas, aproximando-me mais dos debates
sociológicos.
O período em que estive na universidade em contato com indivíduos
diversos, os conhecimentos que aprendi, as conversas com minha então
orientadora, as pesquisas que realizamos em conjunto e os debates nos grupos
de pesquisa dos quais participei, foram fundamentais para iniciar o processo de
ruptura com o pacto narcísico3 (BENTO, 2002), expandir meus horizontes sobre
a questão racial e finalmente consolidar uma postura antirracista que já se
encontrava em gestação.

2 A presença e atuação da professora Rosiney, uma das poucas docentes negras da UENP,
destacam-se como um exemplo significativo da importância e do potencial da mulher negra no
âmbito acadêmico. Sua atuação na instituição é uma referência no que diz respeito à temática
racial, demonstrando que, quando um indivíduo pertencente a um grupo social marginalizado é
capaz de adentrar um espaço de poder em posição proeminente, além de trazer consigo
conhecimentos e percepções próprios do seu lugar de enunciação, traz também consigo uma
gama de experiências e um novo sistema de significados capazes de provocar transformações
na percepção das pessoas ao seu redor e engendrar novos entendimentos. Minha experiência
com a profa. Rosiney é um espelho disso.
3 Em termos gerais, é um pacto estabelecido tacitamente entre brancos buscando preservar a

manutenção de privilégios raciais às custas de outros segmentos racializados, como os negros


e os indígenas. Ver mais em Pactos narcísicos no racismo, de Cida Bento (2002). O
empreendimento desta pesquisa demonstrou-se como um esforço contínuo, particularmente
acentuado, para confrontar o pacto narcísico cristalizado no meu inconsciente enquanto um
pesquisador branco – confronto esse que, certamente, não findará com o encerramento da
presente pesquisa.
20

Tendo em mente tais elementos, volto-me à pergunta lançada


anteriormente, sobre o que me motivou a escolher o objeto de pesquisa em
questão. O tema da sociabilidade me chamou a atenção no momento em que eu
estava almejando mudar4 de objeto de pesquisa. A partir de um olhar
retrospectivo, parece-me que, mesmo sem o conhecimento teórico sobre tal
conceito, ele esteve implicitamente presente em meus interesses e nas
pesquisas que realizei durante a graduação e, até mesmo antes, nas redações
escritas durante o ensino médio.
Uma das minhas grandes inquietações desde sempre foi entender como
é que o preconceito e a discriminação, que se expressam por meio da interação
social, afetam a vida dos indivíduos e sua subjetividade. Esse interesse muito
provavelmente é remanescente das experiências que enfrentei, tanto naquelas
em que fui vítima, como também naquelas em que fui o agressor. A
sociabilidade, portanto, me permite ver aquilo que, de fato, tem significação para
mim enquanto sujeito-pesquisador, que é a interação social e como ela pode
deformar e ser deformada por ideologias preconceituosas como o racismo.
Desse modo, refletindo sobre a universidade na qual me formei e
orientado por minhas experiências com a temática, despertou-me a curiosidade
de entender como se dava a sociabilidade entre os estudantes cotistas e não
cotistas a partir da incorporação de novos segmentos sociais à UENP por
intermédio das cotas. Esta pesquisa, portanto, nasceu de um questionamento
antigo, que carrego comigo desde o momento em que iniciei o processo de
autorreflexão sobre minha formação, sobre os impactos do racismo nas
interações intersubjetivas entre brancos e negros.
Para Franz Fanon (2008, p. 27), o racismo cria um padrão de interação
social alienado bastante difícil de se romper, no qual o ''branco está fechado na
sua brancura e o negro na sua negrura''. Nesse sentido, as cotas universitárias,
ao permitir a coexistência de diferentes segmentos da sociedade num mesmo
ambiente, criam condições para que haja um ponto de encontro entre eles.

4O intuito inicial era pesquisar sobre os impactos do racismo na trajetória escolar e universitária
de estudantes cotistas negros da UENP, a partir de autores da Sociologia da Educação como:
Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, Bernard Charlot, Bernard Lahire e Constantin Xypas.
Contudo, apesar de considerarmos os estudos sobre trajetórias relevantes, é preciso ter cuidado
e criticidade ao abordá-los, principalmente no campo educacional, para não os transformar em
discursos que legitimam a ideologia meritocrática. Como já não estava confortável em levar
adiante essa discussão, mesmo sabendo de sua pertinência, resolvi mudar o objeto do estudo.
21

Nesse contexto, emerge a indagação que norteia esta pesquisa: a nova


conjuntura estabelecida pela política de cotas na UENP, que resultou em uma
maior diversidade entre os estudantes, gera que tipo de sociabilidade entre os
discentes cotistas e não cotistas, com foco especial nos estudantes brancos e
negros? É com o intuito de refletir sobre essa questão que o presente estudo se
desenvolve.
Para o antropólogo Kabengele Munanga (2007, p. 18), a política de cotas
universitárias permite que discentes brancos e negros tenham a oportunidade de
conviver juntos e essa aproximação, na sua concepção, poderia ''desarmar os
preconceitos recebidos na educação familiar e escolar''. E embora tal percepção
seja factível, e até mesmo possa ser percebida em minha própria experiência,
nem todos conseguem tão facilmente romper com o ciclo de um racismo
internalizado desde muito cedo.
Nesses casos, o contato com o diferente pode causar tensões e
conflitos, pois de acordo com as teorizações do sociólogo Georg Simmel (1983),
para que a sociabilidade seja vivenciada de maneira harmônica e respeitosa, é
preciso que os indivíduos partilhem do mínimo de identificação possível entre si.
O racismo brasileiro, porém, ao hierarquizar os grupos humanos baseado na
ideologia do branqueamento, na qual os brancos figuravam o ''Belo e o Bom'' e
os negros e indígenas representavam o extremo oposto (RAMOS, 1979;
SOUZA, 1983), deformou a percepção social sobre estes, dificultando, como não
poderia ser diferente, o desenvolvimento de identificação e o sentimento de
alteridade, resultando em entraves na própria interação social estabelecida entre
eles.
Portanto, o objetivo geral deste estudo é entender em que medida
elementos como raça5 e o uso de cotas afetam a sociabilidade dos estudantes

5 Sobre a ideia de raça, convém apresentar algumas ponderações de Antonio Sérgio A.


Guimarães (2003). O sociólogo brasileiro expõe que no âmbito das Ciências Sociais, existem
dois tipos de conceito: a) analítico e b) nativo. O conceito analítico ''’permite a análise de um
determinado conjunto de fenômenos e faz sentido apenas no corpo de uma teoria'', já o nativo é
uma ''categoria que faz sentido no mundo prático, efetivo'' (GUIMARÃES, 2003, p. 95). Nessa
perspectiva, Octávio Ianni (2004a) afirma que a ideia de raça não existe senão no corpo de uma
ideologia, podendo ser considerado, portanto, um conceito essencialmente analítico. Sendo
assim, cabe enfatizar que, embora todos os grupos humanos sejam racializados, cada raça
possui um valor diferenciado a depender do contexto social em que está inserida. Na Europa,
nos EUA e em alguns países da América Latina, como o Brasil, a raça branca é tida como o
padrão de excelência e, por isso, ela goza de privilégios que outras raças não possuem. Em
suma, utilizamos a categoria racial porque, embora ela seja um construto social que não tenha
22

mencionados. Para compreendê-lo melhor, os objetivos específicos estão


divididos da seguinte forma: a) compreender a concepção que os estudantes
têm sobre a política de cotas, b) analisar a percepção que os estudantes têm
sobre o racismo no ambiente universitário, c) analisar o convívio dos cotistas e
não cotistas, d) e investigar quais as principais dificuldades que eles enfrentam
na universidade.
À vista disso, esta pesquisa, ao ter como finalidade produzir
conhecimentos sobre as relações raciais no contexto da UENP, busca contribuir
no sentido de: diagnosticar problemas, melhorar a qualidade de vida dos
estudantes, fomentar o desenvolvimento de um ambiente acadêmico de respeito
às diferenças e contribuir com a construção de uma sociedade fundamentada
em valores mais humanistas e, portanto, antirracistas.

1.1 METODOLOGIA

Nesse sentido, partimos de uma pesquisa quali-quantitativa de campo


dividida em dois momentos diferentes: a aplicação de um formulário online e a
realização de entrevistas em profundidade. A escolha por essas metodologias
diferentes se deu, além das especificidades de cada uma, porque desejávamos
comparar os resultados. Para tanto, escolhemos como lócus da pesquisa o
campus da UENP de Jacarezinho6, no Paraná. Para além da minha ligação com
a instituição, utilizamos dois outros critérios para esta escolha: a) o fato de haver
poucos estudos no campo das relações étnico-raciais que focalizam a realidade
em questão, b) e o fato de antes da implementação da política de cotas, em
2018, um levantamento feito pela própria instituição indicava que os cursos nos
quais havia maior concorrência7 o percentual de brancos oriundos de escola
particular era muito superior ao de estudantes negros e de escola pública. Antes,
os negros representavam 8% do corpo discente desses cursos, enquanto os

aderência no campo biológico, produz efeitos objetivos na vida dos diferentes grupos
socialmente racializados, sendo sua utilização uma das formas de denúncia dos problemas que
ela mesma produz.
6 Além de Jacarezinho, a UENP também está instalada em outras duas cidades, Bandeirantes e

Cornélio Procópio.
7 De acordo com o vestibular de 2021, os cursos mais concorridos da instituição são: Direito;

Odontologia; Medicina Veterinária; Fisioterapia e Agronomia.


23

brancos somavam 88% (BROCHADO et al. 2018).


Para delimitarmos o universo da pesquisa, escolhemos trabalhar, então,
com apenas quatro cursos do campus em tela, sendo que o critério foi selecionar
os dois mais concorridos (Direito e Odontologia8) e os dois menos concorridos
(História e Letras Espanhol9). Esta escolha se deve à hipótese de que nos cursos
mais concorridos a interação social entre os estudantes seja mais atravessada
por tensões, dado que, como evidencia a pesquisa de Brochado et al. (2018),
antes da implementação das cotas, o corpo discente era mais homogêneo
sociorracialmente. Dessa maneira, a existência de preconceitos e a falta de
identificação com o grupo dos estudantes cotistas, especialmente os negros,
pode resultar em conflitos entre os estudantes.
Antes de dar continuidade, é preciso explicar que em Jacarezinho, o
campus da UENP está dividido em diferentes pontos da cidade em quatro
prédios10 distintos. O curso de História está localizado no Centro de Ciências
Humanas e da Educação (CCHE), o de Letras no Centro de Letras,
Comunicação e Artes (CLCA), o de Direito no Centro de Ciências Sociais
Aplicadas (CCSA) e o curso de Odontologia no Centro de Ciências da Saúde
(CCS).
Afora ter de lidar com a fragmentação do campus da UENP em
Jacarezinho, a pesquisa de campo também foi bastante desafiadora por vários
outros aspectos. O primeiro, e mais evidente, foi o fato de ela ter sido realizada
em um contexto mundial atípico afetado por uma pandemia11 letal que ceifou a

8 Nesses cursos, os índices de concorrência, em 2021, estavam da seguinte forma: na


modalidade de ampla concorrência, 19,2 candidatos disputavam uma vaga em Direito, 18,7 pela
modalidade cota para escola pública e 3,5 pela cota para negros. Já no curso de Odontologia,
os índices de candidato por vaga na modalidade de ampla concorrência era de 16,4, na cota
para escola pública era 18,9 e na cota para negros 2,9.
9 Nesses cursos, os índices de concorrência não ultrapassam 1,0 candidato por vaga, tanto na

modalidade de ampla concorrência, quanto por cotas.


10 Embora os cursos de Letras e História pertençam a centros diferentes, eles estão situados em

um mesmo ambiente que engloba também outras licenciaturas, como Ciências Biológicas,
Filosofia, Matemática e Pedagogia. Os cursos de Direito e Odontologia, por sua vez, estão
instalados, cada um, em prédios próprios e isolados. Por fim, os cursos de Educação Física e
Fisioterapia, mesmo também pertencendo ao CCS, estão em um local afastado do curso de
Odontologia. No segundo capítulo deste trabalho, apresentaremos mais detalhadamente sobre
como a UENP em Jacarezinho está dividida e seus impactos na sociabilidade dos estudantes.
11 ''Em 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi alertada sobre

vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na República Popular da


China. Tratava-se de uma nova cepa (tipo) de coronavírus que não havia sido identificada antes
em seres humanos. Uma semana depois, em 7 de janeiro de 2020, as autoridades chinesas
confirmaram que haviam identificado um novo tipo de coronavírus, responsável por causar a
doença COVID-19. Em 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou que o surto do novo coronavírus
24

vida de centenas de milhares de brasileiros e de milhões no mundo todo. A


insegurança e o medo foram companheiros constantes nos momentos mais
dramáticos da pandemia de COVID-19, tanto pela preocupação com a vida de
familiares e amigos, como também pelo futuro da pesquisa, inerentemente, de
campo.
Outro problema foi o acesso aos dados dos estudantes. Logo no início,
foi protocolado um pedido formal à Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) da
UENP solicitando acesso a informações como e-mail e telefone celular para que
pudéssemos entrar em contato com eles. Após transcorrido mais de dois meses,
recebemos a resposta de que não seria possível termos conhecimento de tais
informações por conta das orientações contidas na Resolução12 nº 003/2021,
que trata da política de tratamento de dados pessoais da UENP.
A dificuldade seguinte foi com a questão do tempo na aprovação nos
Comitês de Ética, pois como a pesquisa em questão envolve duas universidades
distintas, era necessário a aprovação13 de ambas, tanto da UEL, como da UENP.
A UEL, enquanto proponente, foi a primeira a avaliar e aprovar, no dia 27 de
fevereiro de 2022. Em seguida, foi a vez da UENP, que avaliou e aprovou no dia
28 de abril do mesmo ano. Adicionalmente, a UENP só retomou suas atividades
presenciais no dia 16 de maio de 2022 e, por conta disto, a pesquisa de campo
somente pôde ocorrer, efetivamente, no mês de junho em diante. Por fim, o fato
de eu não morar em Jacarezinho e depender de terceiros para me deslocar
também dificultou o processo de pesquisa e retardou o seu desenvolvimento.
Posto isto, o primeiro momento da pesquisa de campo foi divulgar entre
os discentes um formulário online contendo perguntas sobre o perfil racial e

constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) – o mais alto
nível de alerta da Organização, conforme previsto no Regulamento Sanitário Internacional'' -
trecho adaptado da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Segundo o Lowy Institute,
o Brasil, sob a presidência de Jair Messias Bolsonaro, foi o país que teve a pior gestão pública
da pandemia no mundo baseado no cálculo de óbitos a cada 100 mil habitantes. Houve, por
parte do presidente da república, a adoção de um discurso negacionista, uma relativização dos
efeitos da doença e da própria pandemia, desestímulo de medidas preventivas, fomento de fake
news entorno de medicações ineficazes no trato da COVID-19 e um atraso na compra das
vacinas, o que resultou no retardamento da retomada das atividades presenciais e, até o
momento, em mais de 680 mil mortes, das quais 400 mil poderiam ser evitadas caso a postura
e as medidas adotadas fossem outras, apontam pesquisas (SENADO, 2021).
12 No parecer, os artigos quarto e décimo da resolução foram mencionados como justificativas

para não disponibilizar os dados requeridos. Por outro lado, foi sugerido que a universidade
divulgasse a proposta da pesquisa entre os estudantes dos cursos referidos.
13 O número de identificação dos pareceres para consulta é, respectivamente: 5.262.979 e

5.375.655.
25

socioeconômico e questões que buscavam avaliar o grau de concordância e


discordância sobre outros temas mais amplos, como: racismo na universidade,
opinião sobre cotas e convivência. O questionário tinha como público alvo todos
os estudantes dos cursos mencionados que ingressaram na UENP após 2018.
Ele foi criado para coletar informações objetivas e, também, servir como uma
espécie de convite para a etapa seguinte - das entrevistas, pois havia, ao final
do formulário, um espaço para que o participante indicasse interesse e
disponibilizasse seus dados para contato.
Inicialmente, a aproximação com os estudantes foi mediada pela
coordenação dos cursos, que permitiram divulgar presencialmente a pesquisa
nas turmas selecionadas. Como estratégia para ampliar a adesão estudantil, foi
produzido e entregue a eles um cartaz contendo dados sucintos sobre a
pesquisa e o pesquisador, bem como um QR Code que facilitava o acesso ao
documento. Os cartazes também foram colados em locais onde havia uma
grande circulação de estudantes.
Outro ponto importante a ser salientado diz respeito à divulgação feita,
espontaneamente, pelos discentes na página de Instagram do Diretório
Acadêmico Maria Lorena Campos Silva (DADAL), que aumentou
consideravelmente a quantidade de respostas ao questionário. Ao todo,
conseguimos obter a participação de 180 estudantes, no entanto, desse total,
apenas 31 indicaram interesse em contribuir com a etapa seguinte e forneceram
dados para o contato. E bem menos da metade respondeu às mensagens
confirmando a participação nas entrevistas.
Com relação à adesão dos estudantes, percebemos que houve uma
maior disponibilidade e abertura de acadêmicos brancos do que de negros, que
talvez se justifique pelo predomínio numérico do primeiro grupo em comparação
ao segundo dentro do ambiente universitário. Todavia, outro elemento deve ser
evidenciado, o fato de a pesquisa ser realizada por um homem branco. Indo para
um campo mais subjetivo, eu percebia um clima de surpresa quando eu me
apresentava como alguém que pesquisava sobre cotas, principalmente por parte
dos estudantes brancos, como se estivesse algo ''fora da ordem'', como se este
fosse um ''assunto de negro''. Por outro lado, a linguagem corporal de alguns
estudantes negros, sobretudo os do curso de Odontologia, demonstrava um
certo desconforto quando eu anunciava meu tema de pesquisa. Alguns se
26

retraíam, evitavam contato visual direto, quase como se não quisessem ser
vistos. Desse modo, se por um lado o fato de eu ser branco pode ter oportunizado
uma maior adesão de estudantes brancos, por outro, sinto que estabeleceu
limitações com alguns estudantes negros.
O intuito inicial era entrevistar ao menos três estudantes de cada curso,
sendo um cotista de escola pública, um cotista negro de escola pública14 e um
não cotista, para que tivéssemos acesso a diferentes perspectivas sobre um
mesmo tema. O número reduzido proposto inicialmente foi antevendo as
dificuldades que encontraríamos para conseguir participantes. Ao final da
pesquisa de campo, porém, superando a projeção anterior, conseguimos obter
a participação de um total de 21 estudantes, sendo sete do curso de Direito,
cinco de História, cinco de Letras Espanhol e quatro de Odontologia.
Bem mais da metade do número final de entrevistados deve-se,
especialmente, à ajuda do coordenador da Comissão de Acompanhamento das
Ações Afirmativas (CAAF) da UENP, prof. Mauro Januário, que foi o responsável
por mediar o nosso contato com os estudantes. Faz-se importante salientar que
buscamos, na medida do possível, obter a participação, principalmente, de
estudantes dos anos finais, por terem mais vivências universitárias e também
sujeitos com características diferentes, o que não foi possível inteiramente, visto
que dependíamos, sobretudo, do interesse deles em contribuírem com a
pesquisa. Outro ponto a ser mencionado, é que privilegiamos uma maior
participação e protagonismo de estudantes negros, uma vez que são eles os que
mais sofrem com as desigualdades e discriminações ocasionadas pelo racismo,
de modo que buscamos dar um foco maior às suas narrativas.
As entrevistas foram realizadas de modo remoto por meio de plataformas

14 É pertinente ressaltar a seguinte consideração: embora a UENP, em seus documentos


institucionais, faça uso de terminologias sociais e sociorraciais para diferenciar as modalidades
de cotas, neste trabalho optaremos por uma definição distinta, alinhando-nos à perspectiva
crítica apresentada por Kabengele Munanga durante sua cerimônia de recebimento do título de
doutor honoris causa pela Universidade de São Paulo (USP), em 2 de junho de 2023. Segundo
Munanga, a utilização do termo ‘’racial’’ para se referir exclusivamente às cotas destinadas aos
negros, em contraposição ao termo ‘’social’’, utilizado, sobretudo, para os brancos de escola
pública, reitera a invisibilização da racialização dos brancos, transmitindo a ideia de que ser
branco é não fazer parte de um grupo racial, ou seja, é não ter raça. Quando ocorre esse
encobrimento, há, consequentemente, uma invisibilização das vantagens e privilégios
associados à raça branca em detrimento das demais. Portanto, visando transcender essa
problemática, optamos por trabalhar com as terminologias cotas para estudantes de escola
pública quando nos referirmos às cotas sociais e cotas para negros de escola pública quando
nos referirmos às cotas sociorraciais.
27

como o Google Meet, WhatsApp e chamadas telefônicas, com exceção de duas


entrevistas que aconteceram presencialmente na universidade a pedido dos
entrevistados. De modo geral, elas tinham duração média de 25 a 35 minutos e
foram realizadas entre os meses de junho até final de julho. A entrevista mais
longa durou quase duas horas e a mais curta apenas 11 minutos. Elas seguiram
um roteiro semiestruturado que tinha como finalidade abordar as percepções e
vivências dos estudantes sobre o racismo na universidade, a política de cotas e
suas relações com o espaço universitário e com os outros estudantes.
Importante mencionar que todos os nomes dos entrevistados foram trocados por
pseudônimos neste trabalho.
Sobre o momento das entrevistas, houve situações de desconforto, tanto
minhas, como dos entrevistados. Da parte dos entrevistados brancos não houve
qualquer incômodo perceptível, já de alguns participantes negros foi possível
notar momentos de desconforto, principalmente em perguntas que tinham um
caráter mais sensível e abordavam experiências de dor e sofrimento oriundos do
racismo. O fato de estarem diante de um homem branco muito provavelmente
tenha contribuído com isso. Nesses casos, geralmente eram dadas respostas
rápidas e evasivas. Nas poucas vezes em que isso ocorreu, senti-me
consternado e evitei entrar em mais detalhes com receio de despertar gatilhos
emocionais. Acredito que a pesquisa tenha sofrido limitações nesse sentido,
porque não fui tão a fundo como poderia, mas ao mesmo tempo entendo que o
meu dever enquanto pesquisador que trabalha diretamente com as vivências de
seres humanos, para além de produzir conhecimentos, é, também, e sobretudo,
respeitá-las.
No tocante ao tratamento dos dados, escolhemos sistematizá-los de
duas formas diferentes. Aqueles mais objetivos, foram transformados em
quadros e gráficos utilizando a escala de Likert15, já as informações mais
subjetivas, foram categorizadas a partir dos temas mais recorrentes encontrados
nas respostas (BARDIN, 2011). Concernente à análise, buscamos interpretar os
dados colhidos, objetivos e subjetivos, à luz dos estudos da Sociabilidade e da
Sociologia das Relações Étnico-Raciais.

15 Criada pelo educador e psicólogo Rensis Likert, em 1932, a escala vai de um a cinco pontos
e tem como função medir as percepções e atitudes dos indivíduos sobre um determinado assunto
(BERMUDES et al., 2016).
28

Importante destacar que, embora os gráficos que apresentam as


informações coletadas por meio do questionário revelem o número total de
respostas, nossa análise dos dados quantitativos foi conduzida levando em
consideração o critério de proporcionalidade entre os grupos. Para isso,
dividimos o número de respostas pelo total de respondentes, tendo em mente
que o número de participantes variou dependendo das perguntas. Como forma
de fornecer contexto aos leitores, adicionamos notas de rodapé em cada um dos
gráficos, oferecendo informações sobre a quantidade de respondentes.
Com o intuito de responder aos objetivos elencados, a presente
dissertação está dividida em cinco capítulos. O primeiro aborda os impactos do
racismo na criação de um cenário desigual entre brancos e negros no Brasil que
afetou (e continua afetando) diferentes dimensões de suas vidas, desde as mais
simbólicas, como o campo das interações sociais, até as mais materiais, como
o acesso a bens sociais fundamentais, como o direito à educação formal.
Na sequência, evidenciamos como a educação do negro sempre foi uma
preocupação do Movimento Negro e demais segmentos sociais. Nesse sentido,
discutimos como a população negra no pós-abolicionismo foi excluída do
ambiente educacional e, consequentemente, os efeitos na vida desse grupo.
Finalmente, apresentamos dados sobre o surgiu a política de reserva de vagas
universitárias no Brasil e como ela atua no sentido de romper com esse cenário
desigual fomentado pelo racismo e criar uma universidade mais diversa social e
racialmente, capaz de propiciar efetivamente o desenvolvimento de uma
sociabilidade plena entre brancos e negros no Brasil.
Já no terceiro capítulo, é apresentado detalhadamente o lócus da
pesquisa. Primeiramente, é feita uma contextualização mais ampla sobre o
Paraná, apresentando suas características culturais e a qualidade de vida da
população negra no estado. Em seguida, são abordadas algumas informações
sobre a cidade Jacarezinho, onde se situam os cursos. Feito isso, trazemos
informações sobre a UENP para contextualizar o leitor sobre sua história, suas
características e sua organização. Com relação aos ambientes onde os cursos
estão localizados, buscamos descrevê-los, inclusive disponibilizando imagens.
Posteriormente, evidenciamos como se deu o processo de implementação das
cotas nesta instituição a partir de documentos institucionais e de uma entrevista
com um discente negro do curso de História que participou ativamente do
29

processo na função de representante estudantil, destacando os principais


desafios e conflitos encontrados. O capítulo busca demonstrar como é que a
inserção de novos segmentos marginalizados da sociedade dentro da UENP ao
mesmo tempo em que permite pensar em uma nova sociabilidade universitária,
mais plural, também demarca a existência de novos conflitos.
Os capítulos quarto e quinto trazem os resultados da pesquisa de
campo. Neles, entramos em contato com as experiências e percepções dos
participantes com relação a temas sensíveis, como racismo na universidade,
política de cotas, convívio na universidade e dificuldades e desafios que os
estudantes enfrentam no ambiente universitário, procurando compreender como
essas questões afetam a sociabilidade deles. As informações coletadas estão
categorizadas em quadros a partir dos temas mais recorrentes encontrados nas
respostas, seguidas de trechos que exemplificam o assunto abordado e em
gráficos. Os dados estão articulados a problematizações e interpretações
fundamentadas em estudiosos do campo da Sociabilidade e da Sociologia das
Relações Étnico-Raciais.
Por fim, nas considerações finais retomamos os principais pontos da
pesquisa, demonstrando se conseguimos atingir os objetivos propostos
inicialmente, bem como apresentando uma síntese dos resultados obtidos e as
conclusões que chegamos com base neles. Nessa parte também são apontados
alguns questionamentos que foram surgindo ao longo do processo de pesquisa.
Sobre os participantes das entrevistas, elaboramos um quadro para
facilitar a identificação e consulta por parte dos leitores:

Quadro 1 - Informações sobre os entrevistados16


Nome Raça Idade Forma de Curso Período do
autodeclarada ingresso curso
Cota para
Camila Preta 20 negros de Direito 5º ano
escola
pública
Cota para
Laura Negra17 19 negros de Direito 1º ano
escola
pública

16Todos os nomes são pseudônimos.


17Quando utilizamos o termo negro neste trabalho, estamos nos referindo a junção, realizada
pelo IBGE, dos segmentos pretos e pardos da população.
30

Cota para
Anália Parda 22 negros de Direito 5º ano
escola
pública
Cota para
Esther Preta 26 negros de Direito 3º ano
escola
pública
Cota para
Mauro Preto 18 negros de Direito 2º ano
escola
pública
Jorge Branco 19 Não cotista Direito 3º ano
Juliana Parda 20 Não cotista Direito 2º ano
Cota para
Cauê Negro 21 negros de Odontologia 3º ano
escola
pública
Cota para
Denise Parda 21 negros de Odontologia 2º ano
escola
pública
Vanessa Branca 19 Cota para Odontologia 2º ano
escola
pública
Manuela Branca 22 Não cotista Odontologia 4º ano
23 Cota para
Júnior Negro negros de História 2º ano
escola
pública
20 Cota para
Márcia Preta negros de História 1º ano
escola
pública
Janaína Indígena 28 Cota para História 3º ano
escola
pública
Matheus Branco 19 Não cotista História 2º ano
Cleiton Preto 30 Não cotista História 4º ano
Claudia Branca 20 Cota para Letras 1º ano
escola Espanhol
pública
Iasmin Branca 20 Cota para Letras 3º ano
escola Espanhol
pública
Cota para Letras
Luciana Parda 25 negros de Espanhol 2º ano
escola
pública
Cota para Letras
Roberto Negro 24 negros de Espanhol 1º ano
escola
pública
Cota para Letras
Tânia Negra 20 negros de Espanhol 2º ano
escola
pública
Fonte: dados da pesquisa.
31

2 RACISMO, SOCIABILIDADE E DESIGUALDADES SOCIAIS

Este capítulo pretende evidenciar o desenvolvimento de uma


sociabilidade entre brancos e negros no Brasil degenerada e os seus impactos
materiais e subjetivos na vida destes últimos, principalmente no que concerne
ao direito à educação formal, historicamente negado à população negra.

2.1 A ESCRAVIDÃO E O ENGENDRAMENTO DE UMA SOCIABILIDADE DEGENERADA

A reflexão sobre a questão racial, como pontua a professora Márcia Lima


(2016), pode ser empreendida por meio de diferentes perspectivas
investigativas. Neste estudo, privilegiamos a abordagem que tem como foco as
relações raciais entre brancos e negros no Brasil. Embora nem sempre apareça
explicitamente, um conceito central nesse campo de estudos é o de
sociabilidade, entendido, em sentido lato, como o processo de interação social18
(SIMMEL, 1983). Portanto, é imprescindível investigarmos como foi sendo
construída a relação social entre brancos e negros no Brasil para que possamos
entender, então, como elas se dão no ambiente universitário - tema do próximo
capítulo.
Se voltarmos ao período da escravidão, encontraremos o arquétipo da
relação senhor/escravizado. Há muitos trabalhos que se debruçam sobre essa
dinâmica através de diferentes lentes analíticas. Na dialética hegeliana, por
exemplo, há uma dependência do senhor quanto ao escravizado, tanto por conta
do seu trabalho, como também por seu reconhecimento. Sendo assim, na
alegoria proposta por Hegel, o poder do senhor advém e é legitimado pela
submissão do escravizado, que se sujeita aos seus mandos com medo da morte.
Enquanto em Hegel ([1807] 2013) o escravizado é pensado de forma abstrata,
na contemporaneidade ele ganha corpo e cor a partir de novas interpretações,
como a de Paul Gilroy (2001), que pensa esta relação tendo como ponto de
partida relatos históricos e literários de indivíduos negros que foram submetidos
ao jugo da escravidão. Em O Atlântico Negro, a relação senhor/escravizado é
marcada pela brutalidade e terror, sendo focalizada sob a ótica do escravizado

18O conceito será aprofundado no segundo capítulo deste trabalho, quando será discutida a
sociabilidade universitária.
32

enquanto agente que utiliza às armas que têm à sua disposição, seja rebelião,
fuga ou suicídio, como instrumentos de sua libertação.
Levando em consideração que os debates em torno desta questão
representam por si só um campo vasto e complexo de estudos, interessa-nos,
por hora, apenas evidenciar como a relação senhor/escravizado no Brasil se
constituiu enquanto uma sociabilidade degenerada.
No Brasil, uma visão bastante difundida foi a do sociólogo Gilberto Freyre
([1933] 2003), em Casa-grande & senzala. A despeito de valorizar as muitas
culturas que constituem o país e negar o racismo científico, Freyre (2003)
defende que a miscigenação engendrada nos primeiros séculos da escravidão
brasileira (resultado dos abusos sexuais dos senhores sobre as escravizadas)
era um indicativo de que, aqui, havia uma suposta convivência harmônica entre
os grupos étnico-raciais, com poucos conflitos. Conforme aponta o antropólogo
Kabengele Munanga (1999), Freyre não tinha como foco central de sua análise
o ''contexto histórico das relações assimétricas de poder entre senhores e
escravos'', de modo que seu pensamento estava mais orientado no sentido de
reforçar o ideal de miscigenação. Ao centrar sua atenção nos aspectos positivos
dessa interação, o sociólogo estabelece as bases daquilo que viria a ser
nomeado, posteriormente, por autores críticos à sua teoria, como ''democracia
racial''.
Em contrapartida, outros estudiosos que também refletiram sobre o
período da escravidão enfatizaram em suas análises a desigualdade e a
violência como elementos centrais da relação senhor/escravizado, justamente
porque ela era o resultado direto da usurpação da liberdade dos povos africanos,
de sua desumanização e transformação em objeto-mercadoria (FERNANDES,
1959; CASTRO, 1990; SLENES, 1990; ALENCASTRO, 1990; PINSKY, 2000;
SCHWARCZ e STARLING, 2015; SOUZA, 2019). Os autores convergem na
mesma direção ao demonstrarem, cada um à sua maneira, como a organização
social do escravismo, baseada na subalternização e coisificação do povo negro,
dificultava uma sociabilidade plena. Segundo explica Florestan Fernandes
(1959, p. 104), no mundo escravocrata existia uma espécie de ''etiqueta das
relações sociais'' que tinha como princípio o entendimento de que ''o escravo
estava para o senhor ou os familiares e dependentes brancos dele, na mesma
posição que uma ‘coisa’ está para o seu ‘dono’ (...) na conveniência de ambos,
33

quando um julgava desfrutar um ‘direito’, o outro se sentia cumprindo um ‘dever''.


No mesmo sentido, a professora Hebe Castro (1990), ao discorrer sobre ao
código jurídico da época, afirma que todo o sistema escravista estava
fundamentado no poder privado do senhor sobre os escravizados; portanto, uma
vez imbuídos da ideia de que eles não eram seres humanos, e sim mercadorias,
os senhores se punham contrários a qualquer lei ou medida que restringisse a
condição de proprietários. Dessa forma, a violência do senhor sobre os
escravizados foi sendo paulatinamente naturalizada e institucionalizada,
permitindo a prática de uma série de atrocidades sem maiores perturbações ou
intervenções em favor dos cativos (PINSKY, 2000).
Por outro lado, há diversos relatos na historiografia sobre o assunto que
buscam defender a existência de vínculos afetivos neste tipo de relação. A
historiadora Leila M. Algranti (1985, p. 82), por exemplo, em um estudo sobre a
vida doméstica no período colonial, menciona casos em que, segundo ela,
senhores e escravizados haviam criado ''fortes laços'' afetivos entre si. Ela cita
as alforrias que eram concedidas quando o senhor já estava em fim de vida, os
mandos proibindo a separação de famílias cativas e o fato de alguns
escravizados compartilharem do cotidiano com o senhor e sua família.
Não obstante ser possível que tenha, de fato, existido casos que
transcendiam o racionalismo calculista escravocrata, devemos ter cautela e
analisá-los com criticidade tendo em mente o contexto desigual em que os
sujeitos estavam inseridos. No tocante aos exemplos acima, cabem algumas
considerações. Geralmente, os senhores concediam alforria aos escravizados
quando já havia expropriado toda sua força de trabalho e estes não eram mais
úteis (CASTRO, 1990). Evitavam fragmentar as famílias porque elas podiam ser
utilizadas como uma espécie de chantagem caso o cativo causasse problemas
(SLENES, 1990). E permitiam que alguns - poucos - cativos compartilhassem do
cotidiano na condição de escravizados domésticos com o intuito de criar vínculos
de confiança e dependência (FERNANDES, 1959). Nos episódios mencionados
por Algranti (1985), e em tantos outros, o jogo de poder senhor/escravizado
continua intacto e operando em desfavor aos escravizados, apesar das
aparências pretensamente afetivas. A nosso ver, essa interação mais íntima a
qual a autora defende como algo positivo e afetuoso, constrói-se como sendo a
naturalização de uma sociabilidade degenerada, visto que por mais diferenciado
34

que fosse o tratamento recebido, a relação ainda assim funcionava na dinâmica


da dominação colonial.
Contudo, é importante mencionar que, a despeito de todos os
condicionamentos e restrições que este sistema impunha à sua vida, os cativos
tinham agência e se mobilizavam, a partir das condições que dispunham, para
confrontar a ordem estabelecida e/ou manter/conquistar direitos básicos, como
veremos mais adiante (PRIORE, 1985; ALENCASTRO, 1990; PINSKY, 2000;
SCHWARCZ e STARLING, 2015).
Tendo em vista os elementos arrolados, caminhamos no sentido
contrário de estudiosos que, por muito tempo, tentaram pintar a relação
senhor/escravizado enfatizando suas dimensões pacíficas e harmoniosas.
Comumente em narrativas desta natureza há um ocultamento e/ou suavização
das violentações às quais o povo negro escravizado foi submetido por séculos,
bem como da própria violência que sua condição social forçada de subordinação
representava.
Embora tais aspectos sejam importantes e tenham influência sobre a
sociabilidade de brancos e negros no Brasil, estamos coadunados à perspectiva
de Carlos Hasenbalg (1979), que defende que apenas a escravidão e o seu
legado não são capazes de explicar as relações raciais contemporâneas em sua
totalidade. Para ele, os componentes tradicionais das relações raciais não
permanecem intactos após o fim do escravismo, eles são reelaborados e
transformados dentro da estrutura social vigente. Com o fim do escravismo e a
emergência da sociedade de classes, o preconceito e a discriminação racial
adquirem novos significados e funções. Desse modo, o racismo enquanto uma
ideologia e como um conjunto de práticas não deve ser lido como um mero
arcaísmo, ao contrário, é preciso ter consciência de que eles operam na
atualidade visando manter, por meio de diferentes estratégias, os benefícios
materiais e simbólicos do grupo branco dominante. É fato que a escravidão
influenciou não apenas materialmente, como também subjetivamente a
formação da sociedade brasileira, mas para o autor é preciso ir além e entender
quais os mecanismos sociais que garantem a subsistência, ainda hoje, de uma
estrutura de posições sociais desiguais. Para tal, é preciso compreender o que
aconteceu no pós-abolição.
35

2.2 O RACISMO NO PÓS-ABOLIÇÃO E O REFINAMENTO DE UMA SOCIABILIDADE

DEGENERADA

Carlos Hasenbalg (1979) evidencia que, no final do século XIX, havia


uma nítida relação entre abolicionismo e imigracionismo, posto que se tinha a
concepção de que o progresso nacional estava diretamente atrelado ao
processo de branqueamento populacional. Portanto, o trabalho escravizado,
base do sistema escravista, foi substituído, no sistema de classes, pelo trabalho
de imigrantes europeus. Uma escolha bastante cômoda para um país cuja elite
sonhava em torná-lo branco, como veremos à frente.
Foi diante desta conjuntura que, em 13 de maio de 1888, finalmente foi
promulgada a Lei Áurea, que determinava o fim da escravidão no Brasil - um
sistema que já se encontrava em declínio. Em que se pese os ideais
humanitários de alguns abolicionistas como Luís Gama e Joaquim Nabuco, o fim
do escravismo ‘’consagrou uma autêntica espoliação dos escravos pelos
senhores’’, dado que aos escravizados "foi concedida uma liberdade teórica,
sem qualquer garantia de segurança econômica ou de assistência compulsória;
aos senhores e ao Estado não foi atribuída nenhuma obrigação com referência
às pessoas dos libertos, abandonados à própria sorte daí em diante"
(FERNANDES, 1959, p. 47). A população negra foi legada às margens da
sociedade e não pôde desfrutar coletivamente das novas oportunidades
oferecidas pelo novo sistema socioeconômico em pé de igualdade com os
imigrantes. Não houve, portanto, nenhuma tentativa do Estado em criar
condições materiais para uma efetiva integração do negro à sociedade de
classes e torná-lo, verdadeiramente, um cidadão para além do status jurídico-
político.
Com a transformação do escravizado em cidadão (pelo menos na letra
da lei), surge, então, entre os pensadores da época, o dilema de criar uma
identidade nacional. Essa preocupação, como descreve Munanga (1999, p. 51),
estava totalmente orientada pelas teorias racistas em voga naquele momento e
aflorou em uma sociedade que ainda mantinha a "estrutura mental herdada do
passado", na qual o negro e os mestiços representavam "coisas" e eram
relacionados à "força animal de trabalho".
Nesse sentido, a sociedade escravista, conforme pontua Neusa Santos
36

Souza (1983, p. 19), ao transformar o negro em cativo instituiu-lhe dentro


daquela estrutura social um lugar de subordinação, contribuindo para fomentar
"a representação do negro como socialmente inferior", fato que, naquele
momento, "correspondia a uma situação de fato". Ela explica que, ao longo de
séculos, foi sendo cristalizado no imaginário popular brasileiro o que ela chama
de Mito Negro, que consiste na representação social de indivíduos negros a partir
de elementos negativos, como o irracional, o feio, o ruim, o sujo e o exótico.
Porém, ela afirma que com fim do escravismo, tal representação já não
encontrava mais paralelo na nova dinâmica social oportunizada pela sociedade
de classes, de modo que após o abolicionismo, foi engendrado um novo
"dispositivo de atribuições de qualidades negativas aos negros" com o intuito de
justificar o racismo e "manter o espaço de participação social do negro nos
mesmos limites estreitos da antiga ordem social" (ibidem, p. 20). Dessa maneira,
pautados no racismo científico19, havia o entendimento que os negros, indígenas
e mestiços, considerados inferiores moral e intelectualmente, representavam um
obstáculo para o pleno desenvolvimento nacional.
É, portanto, a partir de 1870 que as teorias raciais estrangeiras, como o
evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o social-darwinismo,
penetram de maneira mais incisiva o campo intelectual brasileiro como uma nova
forma de explicar e legitimar as diferenças entre os diferentes membros da nação
(SCHWARCZ, 1993). No pós-abolicionismo, havia um intenso desejo por parte
dos "homens da ciência" de mudar a má percepção que o Brasil tinha no
estrangeiro, como um lugar incivilizado que produzia aberrações por conta da
miscigenação. Queria-se mostrar o Brasil como um "novo país" e, para tal, era
preciso reconstruir sua imagem a partir de uma ótica "moderna, industriosa,
civilizada e científica", em outras palavras, branca (SCHWARCZ, 1993, p. 31).
Em decorrência de uma realidade tão singular como a brasileira, na qual
a miscigenação adquirira contornos jamais antes vistos, não havia a
possibilidade de transpor ipsis litteris as teorias raciais estrangeiras para as
nossas experiências concretas, sendo necessário aos intelectuais brasileiros ‘’se
mover nos incômodos limites que os modelos [teóricos] lhes deixavam’’

19 ‘’Elaborações especulativas e ideológicas vestidas de cientificismo dos intelectuais e


pensadores da época’’ (MUNANGA, 1999, p. 51).
37

(SCHWARCZ, 1993, p. 19). Orientados por tais pensamentos, diferentes


autores, como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, João Batista
de Lacerda, Roquete Pinto e Francisco José de Oliveira Viana, refletiram, cada
um a seu modo, em torno de um ponto comum: a construção de uma identidade
nacional branca; mas, para tal, era necessário eliminar os expressivos
segmentos negro, mestiço e indígena da população (MUNANGA, 1999).
A eugenia, enquanto um ramo do conhecimento que tinha como objetivo
estabelecer um método de seleção20 humana baseado em critérios biológicos
(DIWAN, 2015), fomentou em muitos pensadores brasileiros a busca por uma
sociedade "pura" racialmente. Fundada inicialmente pelo inglês Francis Galton,
que cunha o termo pela primeira vez em 1883, ela nasceu com o objetivo de criar
um ‘’super-homem’’ por meio da purificação racial. Para tal, era preciso separar,
rebaixar e, em último caso, eliminar os "seres inferiores" que impediam o
progresso da humanidade em direção ao seu estágio supostamente mais
avançado. Seu pensamento foi utilizado como política de Estado em diferentes
países do mundo, inclusive no Brasil.
A tese de Charles Darwin sobre o evolucionismo é fundamental para a
formulação do pensamento eugenista de Galton. Com a publicação, em 1859,
de A origem das espécies, Darwin rompe com a concepção criacionista de
indivíduo e coloca em seu lugar uma explicação racional pautada na ordem
biológica sobre a origem e a evolução das espécies. Segundo sua teoria da
seleção natural, o organismo mais apto e melhor equipado biologicamente teria

20 A concepção de que haveria grupos humanos superiores a outros é um dado que tem
acompanhado a humanidade em sua história. Na Grécia Antiga, por exemplo, era comum a
prática de lançar do monte Taigeto os recém-nascidos portadores de anormalidades físicas e
mentais, com o objetivo de se livrar dos mais fracos e tornar a raça mais forte (DIWAN, 2015).
Na Idade Média, o discurso de superioridade de um grupo sobre o outro mobilizaram disputas
em torno de territórios e era também utilizado como mecanismo de dominação física e simbólica.
Foi a partir dele que a colonização da América do Sul pelos portugueses e o genocídio dos povos
indígenas foi possível. Nesse sentido, podemos considerar que, embora o termo eugenia tenha
sido cunhado por Francis Galton, historicamente as práticas eugênicas de separar os ‘’bem-
nascidos’’ dos demais já existia há muito tempo. Sendo assim, a eugenia, em sua acepção
moderna, surge na Inglaterra industrial e em crise do século XIX, como uma disciplina
pseudocientífica com vistas a estabelecer um método de seleção humana baseado em critérios
biológicos (DIWAN, 2015). Essa relação entre o controle dos corpos para a manutenção de
poderes e privilégios é o que o filósofo Michel Foucault (2012) chamou de biopoder. Ele desponta
no século XIX como um mecanismo do capitalismo para investir nos corpos dos indivíduos a fim
de extrair e monopolizar suas potencialidades e produções. No capitalismo, a vida humana torna-
se essencial para a manutenção do poder das elites e passa, cada vez mais, a ser alvo de
investimentos para uma melhor eficiência, produtividade e, consequentemente, um maior retorno
aos investidores.
38

mais chances de sobreviver e reproduzir-se. Essa visão, segundo Diwan (2015),


passa a ser incorporada em teorias econômicas e sociais que tentaram, entre os
séculos XIX e XX, explicar a realidade social por esse prisma, com o intuito de
legitimar ideologicamente contextos de dominação e exploração de um grupo
sobre o outro. Esse conjunto de teorias ficou conhecido como darwinismo social.
Inspirado nas ideias de seu primo Darwin, Galton decide dedicar-se ao
"aperfeiçoamento" da espécie humana. Após décadas de pesquisas realizadas
com membros da elite inglesa, ele chegou à conclusão de que o talento, assim
como a doença mental, a criminalidade e a marginalidade, não era resultado do
ambiente em que os indivíduos estavam situados, mas sim de uma herança
transmitida pela genética. É precisamente nesse sentido que ele cria, nos seus
dizeres, uma ciência para o melhoramento da linhagem humana: a eugenia.
Desse modo, o pressuposto da seleção natural é transposto pelo eugenista
inglês para a realidade social com o objetivo de melhorar a raça humana.
Segundo ele, era preciso impor um sistema de seleção, nesse caso arbitrária,
com base no controle sobre os corpos dos indivíduos considerados degenerados
e a procriação entre os indivíduos supostamente superiores que permitiria, ao
longo do tempo, eliminar as características defeituosas e inferiores dos seres
humanos (DIWAN, 2015).
O pensamento racial brasileiro é influenciado pelos ideais da eugenia na
construção do ideal de branqueamento como elemento central para se conseguir
resolver o "problema da mestiçagem" (SCHWARCZ, 1993; DIWAN, 2015) e
atingir uma sociedade mais próxima aos moldes de Francis Galton. De acordo
com Alberto Guerreiro Ramos (1979), a ideologia do branqueamento resultou da
hegemonia do grupo branco, que se explicava não a partir de caracteres
biológicos superiores transmitidos hereditariamente, mas devido à sua posição
de domínio/poder dentro da comunidade/sociedade oportunizada por elementos
de diversas ordens. Dessa maneira, em decorrência de uma conjunção de
fatores históricos, os brancos vieram a imperar em algumas partes do mundo e,
como consequência, "impuseram àqueles que dominam uma concepção do
mundo feita a sua imagem e semelhança. Num país como o Brasil, colonizado
por europeus, os valores mais prestigiados e, portanto, aceitos, são o do
colonizador" (RAMOS, 1979, p. 244). Neste paradigma, a brancura foi erigida
como um valor positivo e como símbolo do "excelso, do sublime, do belo. Deus
39

é concebido em branco e em branco são pensadas todas as perfeições. Na cor


negra, ao contrário, está investida uma carga milenária de significados
pejorativos. Em termos negros pensam-se todas as imperfeições" (ibidem, p.
241). Visto sob esta perspectiva, o branqueamento era menos uma preocupação
biológica e mais uma questão de manter a dominação ideológica e social do
grupo branco.
De todo modo, um dos principais sistematizadores do pensamento
eugenista no Brasil foi Oliveira Viana, creditado por Munanga (1999) como um
dos responsáveis por organizar e difundir as teorias racistas de sua época. No
seu pensamento, a miscigenação de brancos e negros poderia resultar em
mestiços "superiores" e "inferiores". Enquanto os primeiros estariam suscetíveis
ao processo de arianização21, os segundos seriam incapazes de ''progredir'' até
o gradiente máximo da brancura. A classificação dada por Viana tem por
referência o fenótipo dos indivíduos, de modo que são os aspectos físicos que
determinariam, sob seu ponto de vista, as qualidades morais e pessoais de cada
um. Nesse raciocínio, quanto mais próximo do negro africano e, portanto, mais
distante do padrão branco-europeu, mais degenerado, inferior e incapaz de
progredir o sujeito seria.
Na sua percepção, portanto, o mestiço seria "um mal necessário", isto é,
uma fase transitória no processo de branqueamento que levaria a sociedade
brasileira ao seu "destino" final22. A imigração fomentada pelo Estado brasileiro,
mencionada anteriormente, tem um papel fundamental nesse sentido. Segundo
Hasenbalg (1979, p. 247), "a imigração europeia era colocada como a solução,
a curto prazo, para o problema do trabalho causado pela abolição da escravidão,
bem como uma contribuição, a longo prazo, para o embranquecimento da
população".
Para termos dimensão de seu impacto, entre os anos de 1872 a 1950,

21 Consistia no processo de homogeneização racial. Para tal, era preciso, de um lado, ‘’o aumento
numérico da população branca ‘pura’ pelo movimento imigratório europeu, de outro, o
refinamento cada vez mais apurado da população brasileira pelo processo de mestiçagem que
iria reduzir o coeficiente dos sangues negro e índio. Essa colocação deixa mais nítida e precisa
a ideia do branqueamento da população brasileira’’ (MUNANGA, 1999, p. 77).
22 Em 1911, em um evento internacional que acontecia em Londres, o intelectual João Batista de

Lacerda, representando o governo brasileiro, defendeu a tese, coadunado com as contribuições


de Roquette Pinto, de que a partir de um século, isto é, em 2012, o Brasil não teria mais nenhum
negro em sua composição populacional, que seria formada, então, por 80% de brancos, 17% de
indígenas e 3% de mestiços.
40

em decorrência da importação de imigrantes europeus, a proporção do número


de negros na região Sudeste do país caiu de 49% para 16%. Essa iniciativa, com
um viés eugenista, também provocou alterações na distribuição geográfica de
brancos e negros pelo país, resultando em disparidades significativas. Enquanto
parte dos brancos (e imigrantes) foi direcionada para regiões mais
economicamente desenvolvidas, uma grande proporção dos negros foi relegada
a áreas subdesenvolvidas23 (HASENBALG, 1979). A ideologia do
branqueamento redundou, como explica o autor, em uma marginalização ainda
maior da população negra, pois criou dificuldades na sua integração plena ao
mercado de trabalho capitalista, minimizando qualquer possibilidade de melhoria
nas condições de mobilidade social desse grupo.
Por outro lado, o ideal de branqueamento criou um tipo de pensamento
racial bastante característico, vivo ainda hoje. O sociólogo Oracy Nogueira
([1954] 2007) foi um dos principais sociólogos brasileiros a se debruçar
profundamente sobre o que diferenciava as relações raciais no Brasil de outras
partes do mundo, como os Estados Unidos. Para ele, aqui, ao contrário dos EUA,
onde havia uma evidente linha de cor que separam brancos e negros, há ''uma
zona intermediária, fluida, vaga, que flutua até certo ponto ao sabor do
observador ou das circunstâncias'' (MUNANGA, 1999, p. 88). No Brasil, o
preconceito racial é de marca, conforme atesta Oracy (2007); ou seja, é por meio
dos traços corporais – tipo de cabelo, grossura dos lábios, largura do nariz e,
principalmente, tonalidade da pele – que é selecionada a vítima dos efeitos
perversos do racismo.
Essa escolha é feita de acordo com o ideal de brancura, de modo que
quanto mais um sujeito dele se afastar tanto mais ele será alvo dos efeitos
nocivos do racismo à brasileira. Por outro lado, aqueles mestiços que
apresentam características físicas negras ''suaves'', quando possuem outros
atributos relacionados à brancura, como capital cultural e econômico, podem ser

23 É importante levar em conta, no entanto, que uma fração da população rural, composta tanto
por negros quanto por brancos, desloca-se para as áreas urbanas, onde se converte em uma
reserva de mão de obra industrial (contribuindo para a formação das regiões periféricas e da
mão de obra industrial disponível no Brasil), enquanto outra parte permanece no campo.
Portanto, é crucial observar que mesmo nas regiões economicamente desenvolvidas, esses
estratos populacionais são integrados com o propósito de explorar sua força de trabalho e, dessa
forma, contribuir para o processo de acumulação no contexto urbano-industrial. Isso culmina em
uma significativa disparidade social não apenas entre as diferentes regiões do país, mas também
dentro delas.
41

incorporados ao grupo branco e receber um tratamento distinto dos demais


(MUNANGA, 1999). Nesse sentido, a ascensão social do negro dependia de sua
capacidade em se aproximar ao máximo dos valores da brancura e da sua
legitimação pelos brancos (FERNANDES, 1959), como consequência, o desejo
de ser integrado a esse grupo hegemônico e usufruir dos privilégios que ele
dispõe levou, em muitos casos, à interiorização de preconceitos e assimilação
de valores culturais da branquitude. O branqueamento, mais do que uma
questão de clarear a tonalidade da pele, está relacionado à ''compartilhar os
valores dominantes dessa cultura, ser um suporte dela'' (SOUZA, 2019, p. 45).
Todavia, o branqueamento absoluto da população, como almejavam os
eugenistas, não surtiu os resultados esperados, porque ele foi abandonado em
decorrência de vários fatores, como a resistência na formação de casais
interraciais, que naturalmente dificultou o processo de embranquecimento como
queriam os eugenistas (MUNANGA, 1999). Logo, em 1950, a ideia de
branqueamento deixa de ser defendida explicitamente pelas elites culturais e
pelo Estado brasileiro, no entanto, ela se manteve viva no imaginário social de
brancos e negros, servindo para reafirmar a noção de inferioridade/superioridade
de uma raça sobre a outra e condicionar a sociabilidade de ambos (MUNANGA,
1999).
O declínio do branqueamento enquanto política de estado também foi
influenciado por uma mudança de paradigmas que ocorreu na década de 1930
e que marcou uma alteração na orientação política do país, no sentido de focar
no desenvolvimento social (MUNANGA, 1999; GUIMARÃES, 2003). Dessa
forma, com o desenvolvimento da ciência, os discursos eugenistas
profundamente excludentes, como os propagados por Viana e outros autores,
foram cada vez mais difíceis de serem assimilados nos discursos públicos. É
nesse cenário de modificação de esquemas científicos que desponta a figura de
Gilberto Freyre e seu pensamento que preenchia a lacuna deixada pelo racismo
científico do final do século XIX.
Há uma reorientação nos pontos de interesse a partir de seus estudos,
de modo que ele continua abordando a questão da formação da identidade
nacional, mas ''desloca o eixo da discussão, operando a passagem do conceito
de ‘raça’ ao conceito de cultura'' (MUNANGA, 1999, p. 78). Em termos gerais,
Freyre partia do entendimento de que o encontro das três raças (negra, branca
42

e indígena), para além da miscigenação física, também redundou em uma


miscigenação cultural que, por sua vez, ‘’gerou um povo sem barreiras, sem
preconceitos’’ (ibidem, p. 80). Embora o autor nunca tenha utilizado este termo,
foi desse entendimento que nasceu a ideia da ''democracia racial''.
Embalado por essa nova corrente teórica que se abria, e influenciados
pelo terror do holocausto nazista, há por parte de muitos cientistas sociais da
época uma preocupação em retirar das ferramentas analíticas o conceito de
raça, como se ela não desempenhasse nenhuma função significativa na vida dos
sujeitos (GUIMARÃES, 2003). Tal ideologia, que nega a existência de
discriminação baseada na raça, dificultou o processo de reconhecimento das
desigualdades sociais ocasionadas pelo racismo (HASENBALG, 1979). O fato
de não ter havido no país um sistema de segregação institucionalizado no pós-
abolição, como em outros lugares do mundo, contribuiu com a falsa ideia de que
vivíamos em harmonia.
Além do mais, a especificidade do racismo brasileiro, envolto numa
''polida etiqueta racial'' sutil e disfarçada, na qual ''as manifestações públicas de
preconceito e as formas abertas de discriminação incorrem numa severa
desaprovação'' (ibidem, p. 252), também ajudou a fomentar o mito de que
éramos um povo com poucas tensões raciais. Inclusive, muitos autores
acreditavam que era o fator de classe, e não racial, que desempenhava o único
papel decisivo na subordinação do negro dentro da estrutura social
(HASENBALG, 1979; OSÓRIO, 2021).
Essa perspectiva foi contraposta anos depois pelos estudos24 de campo
patrocinados pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência

24 O interesse da Unesco emerge de um contexto marcado pelas consequências devastadoras


do Nazismo e por crescentes conflitos raciais, como o apartheid sul-africano e as leis
segregacionistas norte-americanas de Jim Crow, bem como pelos processos de descolonização
dos povos africanos e asiáticos (MAIO, 1999). Esse cenário mundial complexo e permeado de
conflitos fez com que o tema racial estivesse, mais do que nunca, em evidência em todo o
planeta. O Brasil foi escolhido como campo de pesquisa devido a sua enorme diversidade racial
e porque havia uma corrente teórica bastante influente na época, que pintava o país como uma
espécie de ‘’paraíso racial’’, no qual havia baixas taxas de tensões étnico-raciais (IANNI, 2004b).
A Unesco acreditava, portanto, que o Brasil poderia servir de exemplo para outras partes do
mundo na superação do racismo. Para tal, núcleos de pesquisa foram formados em regiões
tradicionais e também naquelas que estavam em processo de modernização para compreender
as especificidades das relações raciais de cada local, como São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e
em outros lugares do país. Participaram no projeto autores como Costa Pinto, Thales de
Azevedo, Florestan Fernandes e Roger Bastide.
43

e Cultura (Unesco), entre os anos de 1951 e 1952, que, longe de comprovarem


a tese inicial de que o Brasil seria um lugar onde haveria harmonia racial,
demonstrou que o racismo aqui, apesar de ser diferente de outras partes do
mundo, funcionava igualmente para dificultar o acesso da população negra às
oportunidades sociais (MAIO, 1999; IANNI, 2004b).
Munanga (1999) elucida que eram as elites dominantes que ganhavam
com tal concepção, pois ela permitia que as desigualdades sociais fossem
ocultadas, impedindo que os grupos negros e indígenas tivessem real
conhecimento sobre a desigualdade que os acometia, ademais, ela contribuía
no desenvolvimento de outro mito, o da meritocracia, pois nessa lógica a baixa
posição social era transferida ao grupo subordinado e traduzido como sendo o
fruto da incapacidade individual. Consequentemente, a ampla aceitação de tal
pensamento entre as décadas de 1930 e 1950 inviabilizou que fossem tomadas
medidas redistributivas em favor da população negra, porque tinha-se a ideia de
que tudo estava caminhando dentro da ''normalidade'' (HASENBALG, 1979).
Por conseguinte, o mito da democracia racial, ao falsear a realidade das
relações étnico-raciais brasileiras, alimentou uma desmobilização dos grupos e
dificultou a criação de uma coesão, uma identidade afirmativa desses grupos.
Portanto, o mito da democracia teve (e pode-se considerar que ainda tem) uma
influência muito grande na formação da sociedade brasileira. A ideia de que
somos um povo cuja sociabilidade ocorre de forma harmônica
independentemente do grupo social ou étnico-racial ao qual pertencemos é uma
mentira que vem sendo propagada há tempos. Nesse horizonte, o negro, o
indígena e suas culturas são erigidos como símbolos e patrimônios nacionais,
no entanto, eles não gozam efetivamente do mesmo prestígio e nem têm os
mesmos direitos garantidos se comparados à parcela branca da população.
Carlos Hasenbalg (1979) foi um dos principais autores 25 que
demonstraram a falácia do mito da democracia racial por meio de dados
empíricos sistematizados em suas pesquisas. Segundo o autor, caso ela

25 É relevante ressaltar as significativas contribuições da filósofa brasileira Lélia Gonzalez no que


diz respeito à investigação das dinâmicas raciais no Brasil. Através de seu trabalho, ela expunha
a presença arraigada do racismo na estrutura social, opondo-se à visão de intelectuais que
retratavam a realidade brasileira como harmoniosa de maneira ilusória. A autora também
introduziu diversos conceitos de grande importância ainda hoje, que nos permitem refletir sobre
o contexto brasileiro, como o "Pretuguês" e a "Améfrica Ladina".
44

realmente existisse, o pertencimento a um determinado grupo racial não deveria


interferir nas oportunidades de vida dos indivíduos, no entanto, seus trabalhos
demonstram que o racismo limita as oportunidades dos negros, como também
privilegia o grupo branco. Nesse horizonte, ele explica que as desigualdades
sociais entre brancos e negros, para além do desequilíbrio criado no escravismo,
é oriunda do racismo e da discriminação racial desenvolvidos pós-abolição, que
interferem no processo de mobilidade intergeracional, restringindo as
oportunidades dos negros em comparação aos brancos da mesma origem
social.
O racismo e a discriminação também tendem a produzir nos indivíduos
negros uma internalização26 da imagem deformada pela ideologia racista,
limitando sua motivação e seu nível de aspiração de acordo com o que é
''culturalmente imposto e definido como o ‘lugar apropriado’ para as pessoas de
cor'' (ibidem, p. 209). Nesse mesmo horizonte, o autor salienta que muitos negros
reduzem (deliberadamente ou inconscientemente) suas aspirações em
situações de competição direta com brancos, ''simplesmente para evitar de
serem lembrados ‘de seus lugares’ e sofrerem humilhação pessoal implícita em
incidentes discriminatórios'' (ibidem, p. 210). Em contraste, o ideal de
branqueamento, núcleo central da ideologia racista brasileira, contribui para
aumentar nos indivíduos brancos o seu nível de aspiração e autoconfiança, visto
que ''formar parte de um grupo que goza da supremacia estrutural em si mesma
reforça as capacidades pessoais e, portanto, encoraja a realização'' (ibidem, p.
209).
O que Hasenbalg fez foi dar linguagem científica e exemplificar a partir
de dados estatísticos o discurso propagado pela comunidade negra há tempos.
O Movimento Negro Unificado27 (MNU) já denunciava o mito da democracia
racial e apontava suas incongruências. Além disso, eles eram contrários ao
apagamento do conceito de raça, pois sabiam que só por meio dele é que as

26 Para compreender melhor esse fenômeno, recomendamos a leitura de Atitudes racistas de


pretos e mulatos em São Paulo, da socióloga e psicanalista Virgínia Bicudo, que aborda os
processos de interiorização dos preconceitos raciais nos sujeitos negros.
27 O Movimento Negro Unificado (MNU) é uma organização pioneira na luta do Povo Negro no

Brasil. Fundada no dia 18 de junho de 1978, e lançada publicamente no dia 7 de julho, deste
mesmo ano, em evento nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo em pleno regime
militar. O ato representou um marco referencial histórico na luta contra a discriminação racial no
país. Disponível em: https://mnu.org.br/mnu/. Acesso em 01 de abr. de 2023.
45

desigualdades entre os grupos poderiam ser aferidas com precisão. Assim, para
auxiliar na denúncia, conscientização e na intervenção sobre essa realidade
desigual, o MNU irá resgatar a ideia de raça como um instrumento político na
luta contra as mazelas raciais (GUIMARÃES, 2003). Com isso, quer-se dizer:
apesar de sermos considerados iguais formalmente, não temos os mesmos
direitos e as mesmas oportunidades, e a razão para isto encontra-se nas
discriminações e desigualdades que sofremos por conta da raça que a nós foi
imputada historicamente. Sendo assim, se por séculos ela (a raça) foi utilizada
para desumanizar, escravizar e matar, agora ela será ressignificada e utilizada
para conscientizar, empoderar, mobilizar e lutar por uma sociedade mais
equânime.
O resultado de anos de luta dos movimentos negros foi parcialmente
contemplado pelo recente reconhecimento por parte do Estado brasileiro sobre
a existência do racismo e na sua criação de políticas públicas focais para atender
às demandas da população negra, que por tantos anos, conforme buscamos
evidenciar neste tópico, foram deliberadamente negligenciadas.

2.3 O DEBATE RACIAL NA ATUALIDADE

Tem aumentado consideravelmente nas últimas décadas a produção


acadêmica sobre relações raciais no Brasil (BARRETO et al. 2020), fomentada
especialmente pelos debates em torno de conquistas recentes, como a política
de cotas, por exemplo. Essa expansão tem oportunizado uma maior reflexão
sobre diferentes elementos que perpassam a questão racial brasileira,
resultando, inclusive, na inclusão de termos no vocabulário cotidiano que
anteriormente eram restritos aos meios acadêmicos – como o adjetivo estrutural,
por exemplo.
A adjetivação do termo racismo ganhou força nas últimas décadas,
principalmente no intuito de tornar mais didático as diferentes dimensões que
este conceito comporta. Tendo em vista, então, sua complexidade e visando
entender como o racismo permanece na atualidade e se desenvolve,
apresentaremos uma série de definições que buscam evidenciar o entendimento
que se tem, hoje, sobre o assunto.
46

Antes de qualquer coisa, é preciso enfatizar que, apesar das


nomenclaturas utilizadas, todas elas se referem a diferentes dimensões de um
mesmo fenômeno - o racismo, que pode ser compreendido como ''uma forma
sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se
manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em
desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual
pertençam'' (ALMEIDA, 2019, p. 22). Dando continuidade, vamos ver algumas
de suas dimensões.
Dimensão intersubjetiva28:

Como o nome diz, a dimensão do racismo interpessoal versa


sobre os processos de desigualdade política com base na
raça/cor que ocorrem entre os sujeitos em interação. Inclui, por
exemplo, as relações que acontecem no interior das
organizações, as quais envolvem gestores e profissionais,
profissionais e usuárias(os), entre os próprios profissionais e
entre os próprios usuários; assim como os laços estabelecidos
entre familiares, casais, amigos, colegas ou, quem sabe, entre
inimigos. Perpassa, portanto, relações verticais e horizontais,
amistosas ou não. Ademais, a relação de descrédito e
humilhação pode ser efetivada entre um sujeito que
desempenha um papel social hierarquicamente superior (como
um chefe ou um pai branco versus funcionário ou filho
negro/indígena), mas também pode ocorrer entre aquele que, do
ponto de vista do papel social, ocupa formalmente um lugar de
subordinação, mas que, da perspectiva do racismo, assume ou
almeja assumir uma situação de vantagem, como, por exemplo,
entre um funcionário branco que desmerece seu chefe pelo
simples fato de ele ser negro(a) (CFP, 2017, p. 55).

Dimensão internalizada29: é a interiorização de pensamentos e condutas


''que alimentam no imaginário social a representação de superioridade e
inferioridade entre as raças'' (CFP, 2017, p. 58). A internalização do racismo por
parte de brancos e negros, no entanto, carrega significados e efeitos distintos.
Enquanto para os primeiros se traduz na manutenção de privilégios oriundos da
afirmação de sua identidade racial em detrimento das demais, para os negros
resulta na violação de sua humanidade, na distorção de sua autoimagem e no
esforço sisífico para negar-se a si próprio visando se enquadrar no padrão

28Ver mais sobre essa dimensão em Memórias da Plantação, de Grada Kilomba (2019).
29Ver mais sobre essa dimensão em Racismo e o negro no Brasil: questões para psicanálise
(2017).
47

branco.
Dimensão institucional30:

Refere-se ao nível político-programático das instituições, a


ações amplas, voltadas à coletividade, cujo impacto no sujeito é
posterior à ação maior, como consequência desta. Em outros
termos, às prioridades e escolhas de gestão que privilegiam ou
negligenciam determinados aspectos, infligindo condições
desfavoráveis de vida à população negra e indígena e/ou
corroborando o imaginário social acerca de inferioridade dessa
população, e, na contramão, atua como principal alavanca social
para os(as) brancos(as) (CFP, 2017, p. 48).

Dimensão estrutural31: é a dimensão que dá sustentação para que todas


as outras existam e se desenvolvam. Segundo Silvio de Almeida (2019, p. 33),
um dos responsáveis por popularizar o tema no Brasil,

(...) o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele é um


elemento que integra a organização econômica e política da
sociedade. Em suma, o que queremos explicitar é que o racismo
é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenômeno
patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade. O
racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a
reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam
a vida social contemporânea. De tal sorte, todas as outras
classificações são apenas modos parciais – e, portanto,
incompletos – de conceber o racismo.

Desse modo, percebemos que o racismo, conforme argumenta a


pesquisadora Fúlvia Rosemberg (2017), se constitui a partir de dois planos
indissociáveis: o material e o simbólico. O primeiro diz respeito ao não acesso
da população negra aos direitos sociais fundamentais, colocando-os à margem
e causando desigualdades abissais. E o segundo plano se refere ao modo de
pensar moldado pela ideologia racista, que se sustenta na presunçosa ideia de
superioridade do branco em relação aos outros grupos racializados, dentre eles,
o negro. Nessa linha de pensamento, há uma desvalorização dos atributos
físicos, intelectuais e morais destes últimos, incutindo em suas mentes a errônea
ideia de que são inferiores e, por conseguinte, subalternos.

30 Ver mais sobre essa dimensão em Racismo Institucional: uma abordagem conceitual, de
Jurema Werneck (2016).
31 Ver mais sobre essa dimensão em O que é racismo estrutural? de Silvio de Almeida (2019).
48

Alinhado com os debates raciais emergentes, houve nas últimas


décadas um aumento considerável nos estudos acadêmicos que buscavam
refletir, também, sobre a identidade racial branca e suas implicações (JESUS,
2012). No Brasil, esse tema ganha maior pujança a partir do ano 2000, com os
trabalhos de Edith Piza (2002: 2005) e Cida Bento (2004), apesar de já ter sido
abordado anteriormente por outros autores, como Guerreiro Ramos (1979).
Neste campo de estudos, emergem dois conceitos importantes, o de branquitude
e branquidade.
Na literatura que trata do assunto é comum haver a menção de ambos
como sendo sinônimos e utilizados para se referir aos traços da identidade racial
do branco e ''para dar nome às práticas realizadas por portadores da brancura
com o objetivo de manter o privilégio que o branco possui nas sociedades
estruturadas pela hierarquia racial'' (JESUS, 2012, p. 5). Contudo, Piza
estabelece uma diferenciação, a nosso juízo, salutar:

Ainda que necessite amadurecer em muito esta proposta,


sugere-se aqui que branquitude seja pensada como uma
identidade branca negativa, ou seja, um movimento de negação
da supremacia branca enquanto expressão de humanidade. Em
oposição à branquidade (termo que está ligado também a
negridade, no que se refere aos negros), branquitude é um
movimento de reflexão a partir e para fora de nossa própria
experiência enquanto brancos. É o questionamento consciente
do preconceito e da discriminação que pode levar a uma ação
política antirracista (PIZA, 2005, p. 7).

Em linhas gerais, a branquidade seria um lugar de privilégio, de


dominação racial, que se traduz não só em ''ponto de vista'' particular, como
também em práticas excludentes que são orientadas pela percepção da
brancura como valor absoluto (JESUS, 2012). A branquitude, por outro lado,
seria a tomada de consciência por parte de indivíduos brancos sobre a existência
da branquidade e sua negação prática, com vistas a tornar a sociedade um lugar
menos desigual.
A interseccionalidade, por sua vez, não apenas como geradora de
conhecimento, mas também como uma importante orientação metodológica
(COLLINS, 2022), tem cada vez mais sido incorporada nos debates atuais sobre
a questão racial, uma vez que permite aos pesquisadores investigar as
interconexões dos múltiplos sistemas de opressão que condicionam a existência
49

humana, a depender do gênero, raça, sexualidade, classe, idade e outros


marcadores sociais (COLLINS, 2017: 2016; CRENSHAW, 2002). Buscando se
desvencilhar das abordagens sub e superinclusivas, o olhar interseccional tem
como objetivo ''capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação
entre dois ou mais eixos da subordinação'' (CRENSHAW, 2002, p. 7) a fim de
compreender como eles interferem na vida cotidiana dos indivíduos,
reproduzindo desigualdades a partir de sistemas discriminatórios diversos.
Um exemplo metafórico bastante ilustrativo e que representa bem o
significado do pensamento interseccional é o apresentado por Crenshaw. Ela diz
o seguinte:

(...) faremos inicialmente uma analogia em que os vários eixos


de poder, isto é, raça, etnia, gênero e classe constituem as
avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e
políticos. É através delas que as dinâmicas do
desempoderamento se movem. Essas vias são por vezes
definidas como eixos de poder distintos e mutuamente
excludentes; o racismo, por exemplo, é distinto do
patriarcalismo, que por sua vez é diferente da opressão de
classe. Na verdade, tais sistemas, frequentemente, se
sobrepõem e se cruzam, criando intersecções complexas nas
quais dois, três ou quatro eixos se entrecruzam. As mulheres
racializadas frequentemente estão posicionadas em um espaço
onde o racismo ou a xenofobia, a classe e o gênero se
encontram. Por consequência, estão sujeitas a serem atingidas
pelo intenso fluxo de tráfego em todas essas vias. As mulheres
racializadas e outros grupos marcados por múltiplas opressões,
posicionados nessas intersecções em virtude de suas
identidades específicas, devem negociar o tráfego que flui
através dos cruzamentos (CRENSHAW, 2002, p. 7).

Assim, a abordagem interseccional surge como uma ferramenta crucial


para desvendar a complexa rede de opressões que se entrelaçam e moldam a
vida dos indivíduos. No caso de uma mulher negra que vive em uma região
periférica, por exemplo, sua experiência é profundamente influenciada pela
confluência de diversas formas de discriminação. Ela não está somente sujeita
ao racismo e machismo, mas também enfrenta uma miríade de outros
fenômenos igualmente impactantes. Essas formas de opressão não atuam de
forma isolada, mas se entrelaçam e se reforçam, criando uma experiência única
e muitas vezes devastadora.
Há que se considerar, portanto, que não somente a dimensão
50

intersubjetiva, mas todos esses elementos das relações raciais influenciam a


sociabilidade dos indivíduos - uma vez que a interação social é constituída tanto
do plano formal, como do plano simbólico, como veremos no próximo capítulo,
no qual o conceito será definido com maior precisão.
51

3 POLÍTICA DE COTAS E A FORMAÇÃO DE OUTRA SOCIABILIDADE

Neste capítulo, temos como objetivo fornecer uma definição precisa da


sociabilidade universitária que será adotada ao longo deste estudo, bem como
examinar o papel do racismo na exclusão do indivíduo negro do ambiente
educacional, tanto em termos físicos como simbólicos. Além disso, também
buscaremos destacar como as políticas de cotas representam uma ferramenta
com múltiplos objetivos, incluindo a promoção de uma sociabilidade mais
positiva entre os grupos racializados, com o intuito de mitigar o racismo
mencionado anteriormente.

3.1 O PÓS-ABOLIÇÃO E A EDUCAÇÃO DOS NEGROS

Conforme explica Carlos Hasenbalg (1979), a educação brasileira é,


historicamente, profundamente elitista. Diferentemente de outros países, como
os da Europa, que ofertavam educação primária às classes populares com o
intuito de controlá-las socialmente, no Brasil a educação se restringiu, por muito
tempo, à uma fração muito pequena e privilegiada da população branca, tendo
como principal função produzir ''símbolos de status'' (ibidem, p. 190). No Brasil
Império, por exemplo, além de todo o contexto desigual que limitava o horizonte
de possibilidade dos indivíduos negros com relação à educação, as restrições
eram reforçadas por meio de decretos32 que impediam o seu pleno acesso. Não
obstante, com a dissolução da ordem escravista, a questão da educação ganhou
uma importância maior dentro do cenário nacional, tendo em vista que ela se
transformou em um critério relevante para alocar os agentes mais qualificados
dentro do sistema produtivo capitalista (HASENBALG, 1979).
Todavia, como lembra Fernandes (1959), o pós-abolição não significou
a transformação efetiva do ex-escravizado em cidadão. Dessa forma, assolados
pelas desigualdades abissais reforçadas pelo abandono do Estado e pelas
práticas de discriminação racial fundamentadas num racismo enraizado, os

32Destacam-se os Decretos nº 1.331, de 1854, que impedia o acesso de escravizados às escolas


públicas e que determinava que a instrução de adultos negros livres estava condicionada à
disposição dos professores em ensinarem, e o de nº 7.031-A, de 1878, que defendia que os
negros só podiam estudar à noite, com restrições (BRASIL, 2004).
52

negros logo perceberam que era preciso eles próprios se organizarem


coletivamente para reivindicarem seus direitos básicos, como o da educação.
Neste cenário, acreditava-se que a educação representava o principal meio para
que as pessoas negras pudessem alcançar a respeitabilidade social, facilitando
a obtenção de direitos sociais, a entrada no mercado de trabalho e, por
conseguinte, a redução do preconceito racial (DOMINGUES, 2016).
Referindo-se às leis vigentes no pós-escravismo, a estudiosa Dora Lucia
de Lima Bertulio (2007) salienta que houve uma alteração na sua formulação
buscando manter uma posição de subalternidade do negro dentro da hierarquia
social, mas sem recorrer abertamente à questão da raça como um argumento
para a adscrição deste grupo. Segundo ela, os textos legais tiveram de
desenvolver uma linguagem sub-reptícia, isto é, capaz de emitir juízos de valor
nas entrelinhas; a consequência foi que os negros tiveram seus direitos
sorrateiramente limitados e, em certos casos, foram até mesmo criminalizados33
sem que houvesse uma referência racial explícita na legislação, embora esta
fosse, na realidade, a razão central.
À vista disto, esta forma dissimulada como o Sistema Judiciário atuou
para a preservação do status-quo das relações raciais no Brasil (BERTULIO,
2007), na qual se mantém os privilégios dos brancos sobre os demais grupos
considerados inferiores, reforçou, portanto, uma imagem pejorativa do negro e
contribuiu para fomentar não só a ideia de que éramos um país com um tipo de
racismo mais brando, mas também estimulou a criação de uma percepção
meritocrática da realidade que naturaliza as desigualdades sociais e culpabiliza
as vítimas, neste caso específico, os negros. Logo, um campo bastante afetado
por esta lógica foi o educacional, pois muito embora não se tenha notícias de leis
restritivas sobre a educação da população negra no pós-abolição, ainda assim a
literatura especializada indica as enormes dificuldades que eles enfrentaram em
virtude de uma série de mecanismos sub-reptícios que buscavam alijá-los deste
meio.
Muitas foram as mobilizações que buscaram integrar o negro à

33Bertulio (2007) apresenta uma série de exemplos de dispositivos penais que buscavam imputar
crime aos negros sem mencionar a cor da pele como justificativa, mas tacitamente tendo-a como
principal elemento motivador para tal; uma das medidas mais notórias foi a criminalização da
capoeira, em 1890.
53

sociedade por intermédio da educação. Uma das mais notáveis, em razão da


amplitude, foi a realizada entre os anos de 1931-1936 pela Frente Negra
Brasileira34 (FNB), tido como o primeiro movimento racial reivindicatório do pós-
abolicionismo. Ela partia do entendimento de que os negros só seriam
respeitados, valorizados e reconhecidos pela sociedade quando investissem na
sua instrução (DOMINGUES, 2016). Para este fim, a FNB localizada em São
Paulo criou uma escola que oferecia o curso de alfabetização para jovens e
adultos negros (posteriormente também incorporaram outros grupos étnico-
raciais), curso primário, outros cursos complementares e até uma biblioteca.
A despeito de sua relevância e conquistas incontestáveis, é preciso
mencionar que a FNB, conforme adverte Munanga (1999), assimilou em partes
o discurso eugenista daquele momento que defendia a tese de que os negros
precisavam se tornarem ''civilizados'' por intermédio de uma educação de
qualidade, isto é, centrada na cultura branca: ''era o próprio negro, vítima
designada pelo racismo, que devia se transformar para merecer a aceitação
pelos brancos. Por isso, ele devia renunciar a viver na promiscuidade, na
preguiça e na autodestruição. Resumidamente, a educação, a formação e a
assimilação do modelo branco forneceriam as chaves da integração'' (ibidem, p.
190).
Vale mencionar que mesmo após o fim do escravismo, muitos indivíduos
negros ainda eram restringidos de frequentar determinados ambientes
educacionais por intermédio de diferentes estratégias e justificativas. A partir de
jornais da época, Domingues (2016) evidencia alguns episódios que
exemplificam esta questão. Um caso bastante emblemático, registrado pelo
jornal Progresso, em 1929, foi de um casal de negros que, a despeito de terem
uma boa condição financeira, tiveram a matrícula de seu filho indeferida em um
colégio particular por conta da cor da pele: ''Não é nesse ponto, apenas, que se

34Domingues (2016) explica que, em 1930, após o golpe de estado dado por Getúlio Vargas, a
sociedade brasileira se polarizou em torno de duas forças políticas, esquerda e direita; contudo,
nenhuma delas incorporou verdadeiramente as demandas da população negra em suas pautas.
É precisamente neste contexto de abandono que surge a FNB. Ela era dividida em vários
departamentos que tinham como objetivo propiciar a melhoria na vida dos indivíduos negros.
Formada por mais de 60 filiações ao redor do Brasil, a FNB esteve presente não apenas em São
Paulo (onde estava sediada), mas também em outros estados, como Rio de Janeiro, Minas
Gerais e Espírito Santo; no auge, estima-se que ela tenha tido mais de 200 mil sócios
(DOMINGUES, 2016). O mais importante dos departamentos era o destinado à educação, de
modo que as ações realizadas por eles também inspiraram outras iniciativas de natureza
semelhante.
54

tornam rigorosos os nossos estatutos. Também não recebemos pessoas de cor,


embora oriundas de família de sociedade'' (PROGRESSO, 1929, p. 2 apud
DOMINGUES, 2016, p. 348). Em outros casos, mais sutis, os negros podiam até
ser admitidos, mas o tratamento diferencial e inferiorizante que recebiam,
prejudicava de tal modo não apenas o desenvolvimento educacional, como
também emocional dos estudantes, que fazia com que seus pais/responsáveis
fossem levados a retirá-los de tais ambientes para o seu bem-estar
(DOMINGUES, 2016).

3.2 A EDUCAÇÃO COMO O MONOPÓLIO DA BRANCURA

No início do século XX havia um certo consenso entre intelectuais e


cientistas brasileiros em torno da brancura como um valor a ser conquistado e
do qual dependia todo o futuro da nação. Valor este que seria alcançado por
meio da educação e da saúde pública, conforme aponta o estudo realizado por
Jerry Dávila (2006) sobre as reformas educacionais do Rio de Janeiro entre os
anos de 1917-1945.
É nesse sentido que, a partir da segunda década do século XX, as
políticas que visavam embranquecer a tonalidade da pele da população
brasileira por meio da imigração europeia dividem espaço com novas políticas,
baseadas em princípios eugênicos, que tinham como objetivo embranquecer ''o
comportamento e as condições sociais'' dos indivíduos negros e pobres. Nesse
viés, a brancura, para além da epiderme, se referia a uma série de elementos
socialmente elaborados que deviam ser apreendidos pelos negros a fim de
contribuir com o ''melhoramento'' da raça. Isso porque muitos intelectuais
estabeleciam uma correlação direta entre a cor negra e questões como falta de
saúde, preguiça e criminalidade. Havia, portanto, um consenso entre os
formuladores de políticas públicas de que ‘’as escolas eram as linhas de frente
da batalha contra a degeneração’’ (DÁVILA, 2006, p. 55).
Dávila (2006, p. 26) explica que de início, as elites brasileiras adotaram
a ideia determinista de que os brancos eram ''superiores e as pessoas de
ascendência negra ou mista eram degenerados''. Porém, com o passar do
tempo, especificamente a partir da segunda década do século XX, eles
55

perceberam que essa ideia era uma ''armadilha determinista'' que ''prendia o
Brasil ao atraso perpétuo por causa de sua vasta população não branca'' (ibidem,
p. 26). No lugar dessa crença paralisante foi introduzida a noção dinâmica de
que as raças poderiam se transformar: evoluir, no caso dos negros, e decair, no
caso dos brancos, a depender do nível de saúde, educação, cultura ou classe
social. Os reformistas acreditavam que o nível de educação e o prestígio social
poderiam influenciar na identidade racial do indivíduo.
Como resultado, Dávila (2006) aponta que houve entre os anos de 1917-
1945 uma série de tentativas do Estado, particularmente no Rio de Janeiro, em
expandir o sistema escolar com o objetivo integrar os negros e as camadas mais
pobres da população à escola, segmentos até então excluídos deste ambiente,
visando fomentar entre esses grupos práticas de cuidado à saúde, higiene,
assistência médica, bem-estar físico e o nacionalismo, buscando embranquecê-
los em seus comportamentos e pensamentos.
A educação incorpora, então, um discurso médico de viés higienista e
eugênico, no qual o negro é representado como uma mácula a ser tratada. A
lógica era bastante simples: sendo o negro um ''ser naturalmente degenerado''
moral, cultural, intelectual e fisicamente e vivendo em condições que
propiciavam o desenvolvimento de patologias e distúrbios, caberia à escola
oferecer ferramentas para a sua restauração. Contudo, as políticas formuladas
neste período, apesar de atuarem reforçando uma imagem depreciativa do
negro, ocultavam por meio de uma linguagem científica a questão racial como
sendo o problema (DÁVILA, 2006). Logo, esta pretensa desracialização contida
nos textos educacionais fomentou uma despolitização no debate público em
torno de tais medidas.
Nesse sentido, influenciado por pensadores da época, como Ulysses
Pernambuco, Carneiro Leão, Aníbal Bruno e Arthur Ramos, as escolas
passaram a adotar medidas interventivas, como exames médicos e psicológicos,
utilização de fichas antropométricas, o policiamento da higiene dos estudantes,
a implementação de novas disciplinas, como a educação física e a puericultura,
entre outras coisas (ARANTES, 2016; DÁVILA, 2006).
Buscando, supostamente, criar melhores condições para o ensino-
56

aprendizagem, os estudantes eram avaliados por meio de testes 35 físicos e


mentais que os classificavam numa lógica de inferiores/enfermos e
superiores/sadios (ARANTES, 2016). O objetivo era a formação de turmas
homogêneas. Desse modo, por conta da existência de todo um estigma em torno
do negro, as probabilidades das crianças negras serem diagnosticadas como
débeis e serem alocadas em turmas consideradas ''inferiores'' eram
consideravelmente altas (ARANTES, 2016).
Pietra Diwan (2015) e Jerry Dávila (2006) evidenciam que mesmo após
a deslegitimação do pensamento eugênico pela comunidade científica, depois
dos horrores cometidos durante da Segunda Guerra Mundial, o ideal eugênico
enquanto um elemento pulsante do pensamento racial brasileiro se manteve
ativo e, inclusive, pode ser percebido no cotidiano das relações étnico-raciais
ainda hoje, especialmente no campo educacional – trataremos disto mais à
diante.

3.3 POLÍTICA DE COTAS: UM BREVE HISTÓRICO

A estudiosa Sabrina Moehlecke (2016) explica que o termo ação


afirmativa36 (AA) surgiu nos EUA em meio aos conflitos que estavam
acontecendo na década de 1960, justamente como uma alternativa para diminuir
as tensões e desigualdades raciais vivenciadas naquele momento entre brancos
e negros, sendo amplamente denunciadas pela luta do movimento pelos direitos
civis, cujo cerne das reivindicações era a defesa da igualdade de oportunidades
para todos os cidadãos norte-americanos. Nessa concepção, o Estado deveria
garantir não apenas o fim das medidas segregacionistas, como também propiciar
melhorias nas condições de vida da população negra.
No entanto, se tomarmos a AA enquanto uma política focal que tem

35 Era comum a realização de testes de inteligência e exames que relacionavam aspectos físicos
às características intelectuais e morais dos indivíduos, conforme apresentam os estudos de
Dávila (2006) e Arantes (2016).
36 Nilma Lino Gomes (2010, p. 20) define as AA enquanto "(...) políticas, projetos e práticas

públicas e privadas que visam à superação de desigualdades que atingem historicamente


determinados grupos sociais, a saber: negros, mulheres, homossexuais, indígenas, pessoas com
deficiência, entre outros. Tais ações são passíveis de avaliação e têm caráter emergencial,
sobretudo no momento em que entram em vigor. Elas podem ser realizadas por meio de cotas,
projetos, leis, planos de ação, etc.".
57

como objetivo reduzir o preconceito, a discriminação e as desigualdades entre


diferentes grupos sociais e étnico-raciais marginalizados, Munanga (2007)
afirma que a primeira experiência dessa natureza que se tem notícia foi realizada
pela Índia37, em 195038, três anos após a sua independência, que garantia 15%
das vagas na legislatura, serviço público e na universidade à casta dos dálites.
Na esteira das experiências citadas acima, outros países também adotaram
medidas semelhantes, como é o caso da Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria,
África do Sul, Argentina, Cuba e Brasil (MOEHLECKE, 2016).
Moehlecke (2016) informa que a formatação da AA não é homogênea,
muito pelo contrário, ela assume diferentes formas e desenhos buscando melhor
responder às necessidades do contexto no qual é implementada, tendo como
público-alvo diferentes grupos e focando diferentes aspectos da vida social. Um
exemplo de AA mundialmente conhecido é a política de cotas, que ''consiste em
estabelecer um determinado número ou percentual a ser ocupado em área
específica por grupo(s) definido(s), o que pode ocorrer de maneira proporcional
ou não, e de forma mais ou menos flexível'' (ibidem, p. 415).
No contexto brasileiro, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ) se tornou a primeira instituição a introduzir o sistema de cotas em 2003.

37 É bem verdade que as cotas em si, desprovidas de sua essência redistributiva em favor de
grupos marginalizados, é uma prática antiga no Brasil e teve como público alvo, por muito tempo,
indivíduos brancos. A obra Políticas públicas e ações afirmativas (2007), do cientista social
Dagoberto José Fonseca, ilustra de modo muito didático como ao longo do tempo foram criadas
políticas públicas específicas que, longe de atender todos os indivíduos, produzia e reproduzia a
exclusão e subalternização de outros grupos – especialmente os negros e indígenas. O mesmo
é debatido no ensaio do historiador Tau Golin, intitulado Os cotistas desagradecidos, no qual ele
expõe a incoerência dos brancos, ou de seus descendentes, que foram contemplados por
políticas públicas específicas e são contrários à implementação de medidas semelhantes para
os negros. Convém mencionar, também, que na década de 1930, foi criada a Lei dos 2/3, que
impunha que pelo menos dois terços dos funcionários de empresas e instituições públicas
fossem "brasileiros natos", com o objetivo de reduzir a entrada de imigrantes estrangeiros e
fortalecer a identidade e o mercado interno nacional. Essa lei está ainda hoje em vigor e foi
incorporada à Consolidação das Leis do Trabalho com outro nome, de "nacionalização do
trabalho"; apesar de não empregar a terminologia "ação afirmativa" e não ter uma orientação
ideológica direta para resolver as desigualdades enfrentadas pelos negros, se levarmos em
consideração que estes também estavam entre os possíveis impactados, podemos considerá-la
como uma espécie de precursora daquilo que, hoje, chamamos de política de cotas.
38 Outro ponto importante de ser mencionado é que, embora não tenha sido implementada

efetivamente, na década de 1950, o intelectual Abdias do Nascimento, na ocasião do 1º


Congresso do Negro Brasileiro, já reivindicava a inclusão social dos negros por intermédio da
garantia de seu acesso à educação formal. Defendia ele: "Lutar para que enquanto não for
tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos estudantes negros, como
pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos particulares e oficiais de ensino
secundário e superior do país, inclusive nos estabelecimentos militares" (NASCIMENTO, 2003,
p. 253 apud SILVA e CARMO, 2017, p. 22).
58

A partir desse marco, diversas outras instituições passaram a adotar programas


de cotas, resultando em aproximadamente 83 instituições de ensino superior que
implementaram reservas de vagas baseadas em critérios sociais e raciais até
2010 (GUARNIERI e MELO-SILVA, 2017). No estado do Paraná, a UEL foi
pioneira na implementação de cotas para estudantes negros, tornando-se a
terceira instituição no país a aprovar essa medida em 2004 (FELIPE e
CARVALHO, 2021).
No contexto da implementação das políticas de cotas para a população
negra no sistema educacional, é imprescindível mencionar a luta pelos direitos
empreendida pelos indivíduos negros, tanto de forma individual como coletiva,
desde o período de sua chegada forçada ao país, mas com maior intensidade e
articulação a partir das ações promovidas pelos movimentos negros brasileiros,
especialmente a partir da década de 1970. Esses movimentos, ao questionarem
o discurso da democracia racial vigente na época, evidenciaram as
desigualdades existentes entre negros e brancos no Brasil, bem como
demandaram39 a adoção de medidas por parte do Estado (GOMES, 2011).
O debate sobre a necessidade de cotas raciais nas universidades
brasileiras ganhou especial relevo no âmbito teórico-político no fim da década de
1990 e início dos anos 2000, graças às ações do movimento negro40 e às
denúncias feitas na III Conferência Contra Xenofobia e Discriminação realizada
em Durban, África do Sul, em 2001, do racismo velado que atingia
cotidianamente os negros brasileiros, ampliando as discussões sobre a
necessidade de adoção de políticas públicas para o enfrentamento das
exclusões a que esse contingente estava submetido.
A culminação de todo esse processo de luta ocorreu em 26 de abril de
2012, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

39 Aqui, cabe menção ao Projeto de Lei (PL) nº 1.332/83, de autoria de Abdias do Nascimento,
que propunha uma série de medidas concretas para o enfrentamento do racismo em diversas
esferas sociais, especialmente na escola. Apesar de o PL ter sido arquivada, as propostas nele
contidas seguiram nas pautas dos movimentos negros e serviram, posteriormente, de base para
a formulação de outras importantes diretrizes sobre o assunto. Sobre o histórico de projetos de
AA destinadas aos negros que precederam a adoção da política de cotas, ver mais em
Moehlecke (2016).
40 Especial destaque à Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Vida e pela

Cidadania, que aconteceu no dia 20 de novembro de 1995 e reuniu cerca de 30 mil pessoas para
denunciar a ausência de políticas públicas voltadas para a população negra. Segundo Munanga,
esta foi a primeira vez em que o termo "ação afirmativa" foi empregado no Brasil no sentido de
exigir medidas específicas para esse grupo.
59

(ADPF) nº 186, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) proferiu decisão


reconhecendo a constitucionalidade das cotas universitárias reservadas aos
negros (GUARNIERI e MELO-SILVA, 2017). Essa decisão ressaltou o
reconhecimento das desigualdades sociais resultantes do racismo e a
necessidade do Estado em intervir para minimizar tais discrepâncias. Nesse
horizonte, a constitucionalidade das cotas foi seguida pela Lei 12.711/2012,
também conhecida como Lei das Cotas, que garante a reserva de 50% das
matriculas nas universidades e institutos federais a estudantes oriundos de
escolas públicas levando em consideração, também, um percentual mínimo de
negros.
Assim, ao instituir a política de reserva de vagas universitárias,
reconhece-se o acesso à educação como um direito fundamental que foi
historicamente negado a indivíduos negros e de baixa renda. Sobre a educação
como um direito, Carlos Roberto Jamil Cury (2002, p. 260) afirma:

O direito à educação parte do reconhecimento de que o saber


sistemático é mais do que uma importante herança cultural.
Como parte da herança cultural, o cidadão torna-se capaz de se
apossar de padrões cognitivos e formativos pelos quais tem
maiores possibilidades de participar dos destinos de sua
sociedade e colaborar na sua transformação. Ter o domínio de
conhecimentos sistemáticos é também um patamar sine qua non
a fim de poder alargar o campo e o horizonte desses e de novos
conhecimentos. O acesso à educação é também um meio de
abertura que dá ao indivíduo uma chave de autoconstrução e de
se reconhecer como capaz de opções. O direito à educação,
nesta medida, é uma oportunidade de crescimento cidadão, um
caminho de opções diferenciadas e uma chave de crescente
estima de si.

Nessa perspectiva, as cotas surgem como resultado do reconhecimento


de que, para alcançarmos uma sociedade mais justa, é necessário investir em
políticas focalizadas que implementem medidas específicas direcionadas aos
grupos desfavorecidos e marginalizados. Essas políticas visam reduzir as
desigualdades historicamente estabelecidas, além de promover a cidadania
desses grupos, permitindo-lhes o acesso não apenas ao conhecimento
acadêmico, mas também a oportunidades que ampliem seus horizontes e
estabeleçam novas relações, contribuindo assim para seu desenvolvimento
humano.
60

A seguir, abordaremos os principais argumentos que foram (e ainda são)


utilizados para defender e combater tal medida.

3.4 DIFERENTES PERSPECTIVAS SOBRE AS COTAS

Inicialmente, é necessário destacar que a questão da existência das


cotas nas universidades nunca foi objeto de consenso, principalmente aquelas
destinadas aos negros. Até o advento da ADPF nº 186, pode-se considerar que
havia um intenso debate entre intelectuais e juristas acerca da legitimidade
dessa política afirmativa. Apesar de se poder afirmar que os questionamentos
foram reduzidos desde então e com a constatação dos resultados positivos
dessa medida, ainda é possível encontrar nos dias de hoje correntes de
pensamento que se opõem à sua existência, muitas das quais se alimentam de
velhos argumentos.
A esse respeito, Munanga (2007) sintetiza alguns dos principais
argumentos contrários à adoção de tal medida, como, por exemplo, a) a
dificuldade em definir com precisão quem era negro no país em virtude do
processo de miscigenação ao qual o Brasil foi submetido; b) que as cotas
destinadas aos negros seriam uma injustiça para com os brancos pobres e
indígenas; c) que elas iriam criar um clima de tensão e hostilidade racial até
então inexistentes no país; d) que ela é inconstitucional, pois de acordo com a
Carta Maior todos somos iguais diante da lei; e) que ela iria influenciar
negativamente a autoestima dos sujeitos negros ao optarem ingressar na
universidade por meio desse recurso, entre muitos outros.
Foram muitos os argumentos evocados, mas um dos mais problemáticos
foi o que defendia que as cotas iriam "atingir os princípios do mérito e da
excelência, protegidos pelo sistema de vestibular, considerado como neutro e
democrático" (ibidem, p. 14). Tal justificativa de cunho meritocrático parte do
pensamento de que o ingresso dos estudantes negros nas universidades por
intermédio das cotas poderia levar à degradação da qualidade do nível do
ensino, uma vez que eles não teriam a mesma preparação que aqueles que
foram selecionados pelo vestibular de concorrência universal.
Assim, acreditava-se que os alunos negros cotistas não acompanhariam
61

o ritmo da universidade e teriam um resultado inferior em comparação com os


demais. Entretanto, tal concepção não haveria de existir, pois de acordo com
Munanga (2007), os estudantes cotistas são igualmente selecionados por meio
de vestibulares, com base, portanto, nos mesmos critérios de avaliação,
justamente a fim de separar aqueles considerados "melhores".
Nesse contexto, surgem dois grupos com opiniões distintas sobre as
cotas para negros. De um lado, aqueles que "defendem programas racialmente
neutros, fundamentados nas políticas de combate à pobreza, com ênfase na
melhoria do sistema público da educação básica, como solução para um acesso
menos desigual ao ensino superior"; e de outro, aqueles que "propõem uma
política ou programa de cotas para estudantes das escolas públicas,
combinando o critério socioeconômico com o critério racial ou étnico" (ibidem, p.
17-18).
Aqueles que compõem o primeiro grupo acreditam que ao focalizar as
desigualdades econômicas de forma ampla e universal, estariam
consequentemente beneficiando os alunos negros, uma vez que são eles, na
maioria dos casos, os que mais sofrem com isso. Contudo, tal percepção é
problemática, pois ela oculta a existência das discriminações raciais e os seus
impactos, reduzindo o problema ao campo econômico somente. Ignora-se,
nessa ótica, todos os efeitos nocivos, tanto materiais quanto simbólicos, que o
preconceito racial influi na vida desses indivíduos. O já aventado trabalho de
Carlos Hasenbalg (1979) e, mais recentemente, o de Mario Theodoro (2021),
são fundamentais para desmistificar esta visão. Já noutro lado, encontram-se
aqueles, e aqui eu faço coro, que defendem a combinação de ambos os
aspectos, justamente por entenderem que o negro é ''duplamente excluído pela
condição socioeconômica e pela discriminação racial'' (MUNANGA, 2007, p. 18).

3.5 AS COTAS E A SOCIABILIDADE UNIVERSITÁRIA

Até este ponto, abordamos a noção de sociabilidade em seu sentido lato,


todavia, é importante estabelecer uma contextualização mais abrangente e
relacioná-la ao contexto acadêmico, especialmente focalizando o novo contexto
interacional viabilizado a partir da implementação da política de cotas pelas
62

universidades.
Os estudos acerca da sociabilidade são fundados no campo da
sociologia pelo alemão Georg Simmel41 (1858-1918). Conforme elucida Heitor
(2007), Simmel tinha como uma de suas principais inquietações teóricas
compreender como a sociedade era possível. Castro (2020) explica que, para o
pensador, a sociedade não era tida como uma ''coisa'' mecânica, estática e
acabada, e sim um processo que resultaria das interações sociais estabelecidas
entre os indivíduos. É nesse sentido que, na sociologia simmeliana, o conceito
de interação é, como veremos a seguir, primordial.
Contemporâneo de Émile Durkheim, Simmel dispunha de uma
percepção bastante diferente sobre como o mundo social funcionava. Contrário
às explicações que defendiam que o indivíduo era um mero reprodutor das forças
sociais coercitivas (MAIA, 2001), o sociólogo alemão acreditava que eram os
próprios indivíduos em interação que davam origem à sociedade tal como ela é,
por meio de um contínuo processo ativo de construção, desconstrução e
reconstrução da realidade social (HEITOR, 2007). Desse modo, destaca-se o
caráter profundamente relacional da teoria simmeliana, na qual ''não podemos
encontrar nada absoluto, ou que tenha existência em si e por si só, uma vez que
as coisas só seriam constituídas em relações'' (SANTOS, 2021, p. 42).
Em seus estudos, Simmel (1983) reconhece que os indivíduos se unem
em torno de grupos sociais com base em necessidades interesses e específicos
(econômicos, religiosos, sanguíneos, etc.), mas para além disso, ele chama a
atenção para uma outra necessidade que os indivíduos também possuem, que
é a pura e simples satisfação de estar associado com outros seres humanos. O
filósofo alemão afirmava que os indivíduos são, de certo modo, ''impelidos para
esta forma de existência'' interativa (SIMMEL, 1983, p. 168).
Na mesma linha de raciocínio, os seres humanos teriam o que ele
chamou de ''impulso de sociabilidade'', que nada mais é do que a ''fonte'' e a
''substância'' da própria sociabilidade (SIMMEL, 1983). Em outras palavras, esse
impulso está relacionado a uma necessidade inata do ser humano de se conectar

41Filósofo de formação, Georg Simmel escreveu sobre muitos assuntos. Inclusive, ele mesmo
se considerava essencialmente um filósofo e embora no campo da filosofia ele seja tido como
um autor de menor importância, suas reflexões sobre a sociedade o colocaram ao lado de
grandes figuras da sociologia como Émile Durkheim, Karl Marx e Max Weber
(VANDENBERGHE, 2005).
63

com outros indivíduos. Nesse contexto, o único objetivo seria o simples processo
de interação, no seu sentido mais fundamental e genuíno.
Ao analisar o conceito de sociabilidade de Simmel, é importante ter em
mente que a abordagem dada pelo autor a esse conceito se assemelha à ideia
de tipo-ideal proposta por Weber. Isso significa que se trata da descrição do
fenômeno em sua "forma pura", desvinculada de contextos específicos, como
Simmel mesmo afirmava ao dizer que ele estava "suspenso no ar". Sobre isso,
Giddens (2012) elucida que no mundo real os tipos ideais são dificílimos de
serem encontrados, senão inexistentes, e na maioria das vezes apenas alguns
de seus aspectos são visíveis.
Todavia, tais construções ajudam a entender o mundo real, pois por meio
delas se torna possível estabelecer conexões e comparações com situações
concretas que nos deparamos cotidianamente. Tal característica abstrata não
invalida, contudo, o pensamento simmeliano, muito pelo contrário; conforme
veremos a seguir, as formulações sociológicas feitas por Simmel sobre a
interação social se tornaram referência e serviram de base para diversos autores
desenvolverem suas próprias teorias acerca do tema.
Sobre isso, Heitor (2007) explica que o conceito de sociabilidade foi
reformulado ao longo do tempo, especialmente pelos pesquisadores da Escola
de Chicago que o enfocaram a partir de uma abordagem essencialmente
empírica "como uma consideração dos modos, padrões e formas de
relacionamento social concreto em contextos ou círculos de interação e convívio
social" (HEITOR, 2007, p. 17). Nota-se, portanto, uma mudança substancial no
entendimento sobre o conceito, na qual há uma expansão no que poderia ser
compreendido como sociabilidade e que em Simmel se restringia
exclusivamente a uma forma pura de interação. Além disso, esse conceito foi
retirado do "mundo etéreo" no qual havia sido confinado e passou a ser aplicado
empiricamente em situações concretas de interação social.
Sociabilidade, de certo modo, passa a equivaler à interação que não se
exprime somente na agência do indivíduo, como também em "arranjos ou
disposições interativas e representações de ordem moral ou social"
(BRANCALEONE, 2020, p. 270). Retirando seu caráter exclusivamente
individual, torna-se possível adjetivar o termo sociabilidade de acordo com o
contexto no qual se manifesta e conforme os indivíduos que lhe dão vida.
64

Partindo desse entendimento, ao longo deste trabalho falaremos sobre


sociabilidade universitária para nos referirmos não apenas ao processo de
interação entre os diferentes agentes que compõem o ambiente acadêmico,
como também os elementos, sejam eles materiais ou simbólicos, que afetam
esta interação. Isso porque, conforme Baechler (1995, p. 66), sociabilidade é a
"capacidade humana de estabelecer redes, através das quais unidades de
atividades, individuais ou coletivas, fazem circular as informações que exprimem
seus interesses, gostos, paixões, opiniões" em diferentes espaços sociais.
Nesse sentido, cabe uma rápida diferenciação entre sodalidade e
sociabilidade. A primeira diz respeito à capacidade dos indivíduos de formarem
grupos e se articularem em torno de objetivos comuns. Nos dizeres do sociólogo,
"O que define um grupo como tal é não só sua capacidade de agir como ator
coletivo, mas o fato de ser essa a sua própria razão de ser" (BAECHLER, 1995,
p. 82). O fenômeno da sodalidade se refere aos indivíduos que se relacionam
entre si buscando atingir objetivos comuns estabelecidos pelo grupo e que, em
certa medida, pode até mesmo contradizer seus desejos próprios, uma vez que
estar em grupo pressupõe o consenso. Pode haver, nesse caso, a utilização de
uma racionalidade estratégica e, de certo modo, utilitarista.
A sociabilidade, por seu turno, mesmo que possa se manifestar em
agrupamentos formais e organizados, não se sujeita aos objetivos formulados
pelo grupo, ela o transcende porque está ligada, em última instância, aos
objetivos individuais de cada membro que só podem se satisfazer estando em
conjunto. Para exemplificar, imaginemos uma reunião do Movimento Estudantil
na qual são debatidas as reivindicações dos estudantes. Neste caso, temos o
fenômeno da sodalidade em curso. Imaginemos ainda que nos intervalos da
reunião é servido um café para eles, que, por sua vez, começam a conversar de
maneira descontraída sobre os mais distintos temas, desde acontecimentos
vivenciados durante o dia até momentos da reunião que mais despertaram a
atenção. Neste caso específico, temos o fenômeno da sociabilidade em seu
estado pleno. É importante ressaltar, conforme alerta Baechler (1995), que esses
fenômenos estão intrinsecamente interligados, de modo que ocorrem de forma
mútua e muitas vezes simultânea, sendo difícil separá-los no contexto prático.
No que diz respeito às formas de organização deliberada, isto é,
sodalidade, existem ainda aquilo que Baechler (1995, p. 70) denomina como
65

"grupos de pressão", ou seja: "uma coligação, ocasional ou permanente,


formada por atores sociais, que visa obter do poder político, isenções e
privilégios".
Ao contextualizar esses conhecimentos na análise universitária,
podemos compreender a coexistência dos fenômenos de sodalidade e
sociabilidade. Na universidade, os indivíduos se agrupam com base em
afinidades específicas, formando não apenas os conhecidos grupos informais,
apelidados de "panelinhas", mas também estabelecendo redes de interação que
se expandem além de seus próprios grupos. Além disso, é importante destacar
que a sodalidade na universidade não se limita apenas aos grupos de amizade,
pois também se manifesta na formação de grupos de pressão como os
movimentos estudantis e os coletivos – essa temática será aprofundada no
próximo capítulo.
Dando continuidade, Baechler (1995) explica que os exemplos de
redes42 de sociabilidade são muitos, podendo ir desde um simples bom dia entre
vizinhos, passando por mães em torno de um balde de areia com o qual suas
respectivas crianças brincam numa praia, até círculos de amigos conversando
na escadaria da universidade após uma prova difícil. Justamente em virtude de
uma grande quantidade de situações derivarem da sociabilidade, Baechler
(1995) destaca que é importante estabelecer algumas distinções a seu respeito,
estabelecendo duas categorias.
A primeira é uma categoria estaria relacionada às formas de
sociabilidade que acontecem de maneira espontânea. As redes de sociabilidade
desse tipo tendem a acontecer entre familiares, amigos, vizinhos, membros de
um mesmo grupo social e seria justamente o convívio regular que as tornariam
mais espontâneas. Já a segunda é uma categoria que estaria relacionada às
formas de sociabilidade que acontecem de maneira deliberada, "no sentido de
que são definidos espaços sociais, onde se encontram, por opção, atores sociais
que têm prazer e interesse em ser sociáveis uns com os outros. Os salões, os

42Baechler (1995, p. 77-78) explica que se designa por redes, de modo geral, "os laços, mais ou
menos sólidos e exclusivos, que cada ator social estabelece com outros atores, os quais estão
também em relação com outros atores, e assim por diante (...) a expressão ‘rede’ designaria o
conjunto de laços estabelecidos entre pessoas". Sendo assim, neste trabalho será adotada essa
terminologia para se referir ao modo como os estudantes se relacionam entre si e com os demais
indivíduos que compõem o espaço universitário.
66

círculos, os clubes, os cafés são exemplos disso" (BAECHLER, 1995, p. 77).


Na primeira categoria a sociabilidade acontece sem que ela seja o foco
central, quase como uma necessidade inevitável do meio em que os indivíduos
se encontram, não menos importante. Já na segunda, a sociabilidade não é só
querida como almejada, de modo que esses espaços são repletos de elementos
que instigam que a interação ocorra. Nesse contexto, a universidade abarca
ambas as categorias, uma vez que oferece espaços específicos nos quais os
estudantes se encontram por escolha própria. Além disso, a assiduidade
requerida pela vida universitária pressupõe um convívio regular, o qual
naturalmente resulta em formas mais espontâneas de interação.
Ao aprofundarmos na conceituação do termo, uma dimensão relevante
da sociabilidade é a civilidade, definida por Baechler (1995, p. 82) como "a
observância das conveniências, das boas maneiras entre os homens de uma
mesma sociedade". Mais do que apenas ter uma atitude vigilante frente às
normas de etiqueta social que regem determinadas formas interacionais em
contextos específicos, a civilidade está relacionada a uma postura que o
indivíduo deve adquirir no momento de interação, no qual ele deve, conforme for
possível, "impor silêncio a seus humores e problemas pessoais, e amenizar com
tato as asperezas de sua personalidade e os traços extravagantes de seu
personagem social" (BAECHLER, 1995, p. 81). A civilidade aqui retomada por
Baechler dialoga com o princípio democrático da sociabilidade e o tato que
Simmel havia teorizado um século antes.
É importante fazer algumas considerações sobre esse aspecto.
Tomemos como exemplo uma partida de futebol, onde é comum presenciarmos
cenas de racismo explícito direcionadas, frequentemente, aos jogadores em
campo. O estádio de futebol, frequentado por indivíduos de diversas origens e
características distintas, é um ambiente informal que costuma receber grupos de
famílias e amigos. Essa dinâmica cria um espaço confortável para que opiniões
compartilhadas na esfera privada também sejam expressas entre os presentes.
Além disso, devido à sua vastidão e à diversidade de pessoas reunidas, é pouco
provável que estranhos se encontrem no estádio e estabeleçam laços
duradouros de sociabilidade. Essa falta de convivência contínua contribui para
que as pessoas que frequentam o estádio de futebol não sigam tão
rigorosamente o princípio de civilidade teorizado por Simmel (1995).
67

Adicionalmente, o esporte, especialmente o futebol, é capaz de evocar


sentimentos diversos nos espectadores, como raiva, angústia, prazer e emoção.
Em momentos de estresse e decisão, essas emoções podem aflorar e fazer com
que comportamentos que normalmente seriam reprimidos em situações
cotidianas, como o racismo e outras formas de preconceito, se manifestem.
Esses elementos nos levam a refletir sobre como o estádio de futebol se torna
um ambiente propício para a quebra do princípio de civilidade e mais propenso
a criação de conflitos.
A sociabilidade na universidade, por seu turno, se configura de outra
forma. Apesar de existirem espaços mais informais, é a formalidade o que a
define. Além disso, este é um espaço, de certo modo, solitário, pelo menos no
início, porque geralmente os indivíduos vão só e precisam aos poucos formarem
seus laços de amizade e confiança por conta própria. Desse modo, muitas das
vezes precisam desenvolver uma conduta diferente das que têm com familiares
e amigos próximos, visando serem integrados mais facilmente pelos outros
estudantes. Nessa perspectiva, ela se caracteriza por ser um espaço de
continuidade, onde por vários anos as mesmas pessoas irão se encontrar
diariamente, por isso manter uma relação harmônica é importante para que esse
processo seja suportável. Além disso, este é o espaço, a priori, da razão, no qual
as ações normalmente são avaliadas racionalmente e onde o filtro social é quase
sempre respeitado, justamente para inibir conflitos e tornar o processo menos
tortuoso.
Nesse sentido, um aspecto importante para que isso ocorra é a formação
de vínculos. Estes, por sua vez, podem ser divididos entre fortes e fracos.
Segundo Baechler (1995, p. 80): "A força de um vínculo, segundo supõe, é
função do tempo que lhe é consagrado, da intensidade das emoções que
desperta, da intimidade estabelecida e da reciprocidade dos serviços prestados".
Indo mais além, ele afirma que quanto mais fortes forem os vínculos de uma
rede, mais a rede "tende a fechar-se sobre si própria" e se afastar de outras
redes. Por outro lado, quanto mais fracos forem os vínculos de uma rede, mais
ela tende a ser aberta e receptiva a estabelecer novos vínculos com outras
redes.
Ocorre que os vínculos também são influenciados pelo grau de
identificação que os indivíduos compartilham entre si. Conforme apontam
68

estudos sobre a branquitude, indivíduos brancos têm maior propensão a


proteger os seus semelhantes, justamente devido ao vínculo estabelecido
através da identificação. É exatamente por essa razão que Simmel defendia que
a sociabilidade plena ocorre somente dentro de um estrato social específico. Isso
se deve ao fato de que as diferenças nas características, experiências e
identidades podem resultar em um distanciamento entre as pessoas, diminuindo
o ponto de contato e, consequentemente, a possibilidade de identificação mútua.
Sobre essa questão de identificação, cabem algumas considerações.
Vale mencionarmos a noção de estrangeiro, teorizada primeiramente por Simmel
e retomada por Baechler (1995). Para Simmel, o estrangeiro é aquele que "se
instalou em caráter de permanência numa comunidade de que não é originário"
(BAECHLER, 1995, p. 80). Ele carrega, portanto, a proximidade e o afastamento,
uma vez que vindo de outra parte e com uma bagagem cultural própria, ele se
insere em um novo contexto, um novo grupo, e precisa aprender a se relacionar
com esta nova realidade. O estrangeiro, desse modo, é um ser que caminha
entre dois mundos; carrega os conhecimentos de sua origem étnica e cria novos
conhecimentos a partir do local onde se fixa, tendo, portanto, uma percepção
acerca da realidade mais ampla que o nativo.
Ocorre que muitos nativos, por não terem nenhuma identificação com o
estrangeiro além do fato de serem ambos pertencentes ao gênero humano,
realizam uma espécie de desumanização destes, o que impossibilita a criação
de redes de sociabilidade harmônicas e respeitosas (BAECHLER, 1995). Diz o
autor:

Indo mais além, o estrangeiro estaria inclusive fora da


humanidade, o que elimina qualquer possibilidade de
sociabilidade comum. Quando o único traço comum com o
estrangeiro é nosso vínculo comum à própria humanidade, o que
ressalta não é o semelhante, mas diferente, não é a diferença
individual, mas a do país, da cidade, da raça. A partir daí o
estrangeiro deixa de ser apreendido espontaneamente em sua
individualidade, mas como tipo determinado. Basta que esse tipo
esteja marcado, do ponto de vista dos autóctones, por traços
negativos, para que todas as perseguições coletivas se tornem
possíveis (BAECHLER, 1995, p. 81).

Um dos principais elementos na criação de redes de sociabilidade é,


portanto, a identificação que, como sabemos, é diretamente influenciada pelo
69

imaginário social que, especificamente no caso do Brasil, está permeado por


imagens depreciativas com relação à população negra e outros segmentos
sociais marginalizados. Segundo expõe Baechler (1995), a sociabilidade é um
fenômeno social que sofre influência de diversos fatores como: idade, gênero,
raça, classe, etc. Adicionalmente, aspectos relacionados à esfera material
também podem exercer influência na experiência desse fenômeno. Por exemplo,
a escassez de recursos pode não apenas restringir a capacidade de um
estudante de participar de certas atividades na universidade, como também
gerar sentimentos inibidores durante o processo de interação decorrentes dessa
falta de recursos, conforme veremos na parte de análise dos dados da pesquisa
de campo.
A questão da identificação, quando aplicada à realidade brasileira,
adquire contornos complexos, especialmente quando o que está em questão são
as redes de sociabilidade estabelecidas entre brancos e negros. De modo
sumário, a sociabilidade perpassa não somente as dimensões materiais da vida
humana como as simbólicas também. Não apenas o espaço físico, como
também o acesso a determinados bens, influencia no modo como cada indivíduo
viverá a sociabilidade. Segundo Maia (2001, p. 11): "a sociabilidade coloca em
relevo o universo simbólico que envolve os indivíduos nas diversas formas de
interação social. E esse universo simbólico que se apresenta como o cimento
mais profundo, que permite a fusão de subjetividades".
A autora nos chama a atenção para a artificialidade da realidade social,
como um produto da construção subjetiva. A realidade com a qual nos
deparamos cotidianamente "não existe externa ou independentemente do
entendimento mesmo dos indivíduos’’, é ela mesma o resultado de um universo
simbólico que "depende de constante atualização por parte dos indivíduos e de
práticas interativas concretas" (MAIA, 2001, p. 11).
Com a implementação das cotas e a reformulação do corpo discente
universitário, surge um cenário intrigante para avaliar essa questão, pois
passamos a ter indivíduos de grupos sociais diversos, provenientes de situações
socioeconômicas e culturais bastante distintas, congregados num mesmo
espaço. Sobre isso, Munanga (2007) entende que as cotas têm a capacidade de
fazer coexistir indivíduos com trajetórias, conhecimentos e experiências de vida
completamente diferentes, tornando a universidade, assim, um ambiente muito
70

mais rico, plural e democrático. Ele diz:

(...) pela primeira vez em sua vida, alguns alunos negros e


brancos terão a oportunidade de conviver, ao frequentarem a
mesma faculdade ou a mesma escola. Esta aproximação das
diferenças ou de convivência das diversidades pode desarmar
os preconceitos recebidos na educação familial e escolar, penso
eu (MUNANGA, 2007, p. 18).

Essa oportunidade, introduzida pelas cotas, de entrar em contato com


diferentes histórias é fundamental para enxergarmos a realidade de um modo
mais completo e complexo, sem a necessidade de nos orientarmos com base
em estereótipos e preconceitos, conforme defende a escritora nigeriana
Chimamanda Ngozi Adichie, em sua obra O perigo de uma história única
(2019). Corroborando com tal pensamento, Munanga (2017, p. 19) afirma:

Os preconceitos estão no tecido social, na cultura, nos livros


didáticos, em nossos imaginários e representações coletivas,
em nossa psicologia do relacionamento independentemente da
classe social à qual pertencemos. É nesses terrenos
privilegiados que devemos lutar para transformar as mentes e as
consciências individuais e coletivas.

Tendo em vista todos os elementos arrolados até o presente momento


é que julgamos ser importante avaliar como se dá a sociabilidade entre cotistas
e não cotistas na UENP, tendo como enfoque especial a realidade dos
estudantes negros. O uso deste constructo nos permitirá uma compreensão mais
aprofundada das dinâmicas sociais presentes nesse contexto específico,
podendo contribuir na identificação de possíveis barreiras, preconceitos ou
desigualdades que impactam suas interações e vivências acadêmicas.
71

4 POLÍTICA DE COTAS NA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO


PARANÁ (UENP)

Neste capítulo, será fornecida uma contextualização sucinta sobre a


universidade em questão, bem como uma descrição da implementação da
política de cotas nessa instituição. Em seguida, serão apresentadas informações
relevantes sobre a UENPRETA, o primeiro e único coletivo de estudantes negros
da universidade, até o presente momento da escrita.

4.1 UENP: UM BREVE CONTEXTO

A Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) foi criada, por meio


da Lei Estadual nº 15.300, em 28 de setembro de 2006 a partir da incorporação
de cinco faculdades estaduais, com mais de 50 anos de experiência, situadas
em três municípios do Norte Pioneiro do Paraná: Jacarezinho, Cornélio Procópio
e Bandeirantes. Organizada na forma multicampi, ela oferta um total de 27
cursos de graduação, e é constituída por 448 professores e mais de 5.000
estudantes, além de um enorme número de servidores que auxiliam em seu
funcionamento (UENP, 2019). O corpo discente da instituição é diverso, sendo
formado por alunos de 247 municípios de 11 estados brasileiros; embora exista
uma predominância do Paraná, seguido de São Paulo, que, juntos, somam
99,6% dos acadêmicos dessa universidade (UENP, 2019).

Figura 1 - Mapa do Norte Pioneiro do Paraná e a localização dos campi da


72

UENP

Fonte: NPDIÁRIO.
Nota: Alterações feitas pelos autores

O Norte Pioneiro, onde a UENP fica localizada, é uma mesorregião


composta por 46 cidades, com mais de 500 mil habitantes, e que faz divisa com
São Paulo. Em 2014 foi constatado, segundo pesquisa realizada pelo Ipardes
(Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social), que dentre as
mesorregiões do estado, a região nordeste era a que apresentava a menor
distribuição de riqueza por habitantes e participação no PIB do Paraná.
Para compreender melhor o contexto socioeconômico no qual a UENP
está inserida, apresentaremos algumas informações sistematizadas por
Fernandes et al. (2019) a partir de pesquisas realizadas pelo Ipardes em 2010.
No tocante à educação, 12,16% da população, na faixa etária de 15 anos
ou mais, que vivia nessa região, era analfabeta, ou seja, não era capaz de ler e
nem escrever. Outro dado alarmante é que em 2010, dos 46 municípios que
formam a região nordeste do Paraná, em apenas 20 deles haviam bibliotecas
públicas (Fernandes et al., 2019). Sobre a taxa de pobreza regional, em 2010,
10,41% da população vivia com uma renda per capita igual ou menor a R$
73

140,00 mensais43, ou seja, estava na linha da pobreza; enquanto 2,97% vivia em


pobreza extrema, com renda per capita igual ou inferior a R$ 70,00 mensais,
sendo que em 46% dos municípios (21), esse cenário era ainda pior
(FERNANDES et al., 2019).
Nessa mesma época foi constatado em cada município dessa
mesorregião que ao menos 10% de seus habitantes não possuíam acesso à
água encanada e saneamento básico. Ainda nesse sentido, foi verificado um
preocupante índice de mortalidade infantil, que registrava 17,92 mortes de
menores de um ano de idade a cada mil. Em 2010, o IDH (Índice de
Desenvolvimento Humano) da região era de 0,702, o que, segundo indicador
geral, representa um alto nível, embora esteja quase no limite mínimo dessa
zona (700), conforme aponta Fernandes et al (2019). Provavelmente, seguindo
o padrão da desigualdade nacional, dentre os habitantes dessa região com
menor acesso à educação e saneamento básico, assim como os mais pobres, a
porcentagem significativa deve ser negra44.

4.2 IDENTIFICANDO DESIGUALDADES NA UENP

Em 2016, conforme pesquisa realizada por Brochado et al. (2018),


constatou-se que dos 4.487 estudantes matriculados regularmente nos cursos
de graduação da universidade mencionada, 75% (3.350) eram oriundos de
escolas públicas. Essa porcentagem, embora seja alta, estava concentrada nos
cursos de menor concorrência, ao passo que nos cinco cursos mais concorridos
(Direito, Odontologia, Medicina Veterinária, Agronomia e Fisioterapia) e,
portanto, mais prestigiados socialmente, existia uma predominância de discentes
provenientes de escolas particulares, dado que cerca de 60% dos 1.137
estudantes oriundos da rede privada estavam alocados em um dos cursos
mencionados. O mesmo se dá em relação à cor da pele. Os quatro cursos que
apresentavam a mais elevada relação entre candidato/vaga, eram compostos,
majoritariamente, por discentes brancos, 88%, enquanto neles os negros se
restringiam a apenas 8%. Há diferenças similares também conforme as

43 Cujo valor do salário mínimo era, à época, R$ 510.


44 Não dispomos de informações mais atualizados por se tratar de dados do censo.
74

características dos cursos, nos de licenciatura, por exemplo, os negros eram


21% e os brancos 77%, já nos de bacharelado, eles eram, respectivamente, 13%
e 81%.
Nesse mesmo ano foi verificado que 20% dos alunos matriculados se
autodeclaravam negros (6% pretos e 14% pardos), 76% brancos e os amarelos,
indígenas e não declarados, juntos, somavam 4%45. Outro ponto a ser
mencionado é que, de acordo com o Exame Nacional de Desempenho dos
Estudantes (Enade) dos anos de 2012, 2013 e de 2014, dos estudantes
concluintes, apenas 16% eram negros, enquanto 79% eram brancos (Brochado
et al., 2018). Essas informações são de fundamental importância, porque
demonstram o racismo institucional presente na UENP, que historicamente
atuou como mantenedora das desigualdades sociorraciais na região. Desse
modo, os pesquisadores chegam à seguinte conclusão:

Portanto, apesar de os números mostrarem a existência de


negros nos cursos de graduação da Uenp, os dados revelam que
essa presença é desigual de acordo com as características dos
cursos, e que, em linhas gerais, a porcentagem de alunos
concluintes que se autodeclaram negros é insuficiente para que
essa universidade seja considerada inclusiva (BROCHADO et
al., 2018, p. 116).

Relevante comentar que, um ano antes, em 2015, ocorreu o "I Colóquio


de Cultura Afro-brasileira da UENP", cujo foco central foi pensar o negro no
contexto universitário e seus desafios. Naquele momento, foi realizado, na
cidade de Jacarezinho, um debate no qual foram apresentados uma série de
dados reveladores que já desnudavam a necessidade de políticas focais para
tornar a universidade um ambiente mais inclusivo e acessível. Assim, pode-se
inferir que esse evento foi um marco do início de um processo de reflexão da
instituição, o qual posteriormente levou a uma série de ações que culminaram
na adoção do sistema de cotas pela universidade.

45O que contrasta com os dados do Censo de 2010, que demonstra que um pouco mais de 28%
da população paranaense é negra. É razoável supor que esse número seja atualmente ainda
maior, no entanto, a falta de acesso a dados atualizados decorrente do censo mais recente ter
sido realizado tardiamente, impede-nos de destacar de forma ainda mais pronunciada uma
desigualdade latente.
75

4.3 O INÍCIO DAS COTAS NA UENP

Considerando a necessidade de estratégias para a redução das


desigualdades encontradas, em 2016 a "Comissão para estudos de ações
afirmativas no âmbito da Universidade Estadual do Norte do Paraná" foi criada
através da Portaria nº 376. A comissão, formada por professores, estudantes de
História e outros funcionários da instituição, teve como objetivo elaborar o
sistema de cotas da universidade. Destaca-se que a comissão estabeleceu
diálogo com outras universidades para compartilhar conhecimentos e
experiências com a finalidade de criar um sistema de cotas que atendesse às
necessidades da instituição e facilitasse sua aprovação. Nesse sentido, a
comissão recebeu especial apoio do NEAB da UEL, sob a coordenação de Maria
Nilza da Silva, que, em 2004, foi a primeira universidade no Paraná, e uma das
pioneiras no Brasil, a instituir a política de reserva de vagas para estudantes
negros e de escola pública.
Nesse cenário, em 2016 foram organizados uma série de eventos
institucionais promovidos pelo "I Círculo de Debates da UENP: Desafios
Contemporâneos para a Graduação", que tinha como objetivo produzir
encaminhamentos práticos a partir das demandas sinalizadas pela própria
comunidade acadêmica para a análise e deliberação dos conselhos superiores
da universidade. Na ocasião, um dos temas centrais debatidos foi a necessidade
de a UENP criar estratégias para a inclusão de grupos socialmente vulneráveis,
como os negros.
Em 2017, impulsionado por essas discussões, foi aprovado pelo
Conselho Universitário (CONSUNI) e Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão
(CEPE), a implementação do sistema de cotas nos cursos de graduação
oferecidos pela UENP, o qual destinava 40% das vagas para estudantes cotistas,
sendo 20% para candidatos de escola pública (sociais) e os outros 20% para
autodeclarados negros, também de escola pública (sociorraciais).
Para aprimorarmos nossa compreensão sobre o percurso trilhado até a
implementação das cotas, reportamos o relato de Felipe, um dos estudantes que
integrou a Comissão para Estudos de Ações Afirmativas da UENP. Quando
questionado sobre como foi todo o processo, ele discorre:
76

Foi uma experiência interessante! Quando você está dentro é


que você começa a entender como é que as coisas andam na
universidade. A gente fez um plano pra poder implementar as
cotas, foi feito um circuito de debates, que aconteceu nos três
campi, apresentações culturais, palestras com estudiosos da
área, né? Não só da UENP, como de fora, teve a professora
Maria Nilza, da UEL. Além da gente ter como plano o
convencimento, né? Convencer as pessoas que votavam no
CONSUNI, que era o órgão que decidia. E nós tivemos uma
certa tranquilidade. Por ser três campi nós tivemos uma certa
tranquilidade, no CCHE, CLCA... Ali na Direito teve um pouco
mais de tensão, mas a gente conseguiu fazer o ciclo de debates
também. Assim, eu acredito que, de um modo geral, os cursos
mais elitizados que tiveram um pouco mais de receio. Eu nem
falo pelos alunos, mas os coordenadores que estão por trás dos
cursos. E lá fora a gente teve uma resistência, aí por parte dos
alunos. Em Bandeirantes, por exemplo, a gente sabia que tinha
professores que eram contra. Tinham alunos e professores que
achavam que essa discussão não era tão importante assim.
Houve atos racistas também nos círculos de debate, nas rodas
de conversa... A UENP que organizou esses eventos, então teve
coisas assim... que a gente nunca imaginava. Tipo, trocar o login
do wi-fi do celular e colocar palavras racistas, sabe? Pra você
ver, né?! Daí a gente ia entrar na internet e via o login aberto
com frases racistas... Com menção a Hitler, falava pra gente ir
tocar pagode... Coisas que a gente sabe que é racismo. A gente
sabe que existem pessoas racistas que não tem coragem de
falar... Em Cornélio também teve uma adesão um pouco maior
por causa da administração, dos professores, mas foi uma
correria pra fazer esses debates e convencer alguns
professores. Foram apresentados estudos sobre o antes e o
depois das universidades que implementaram as cotas. Pra
quem não viu parece que as cotas vieram do nada, mas foi bem
trabalhoso. E essa é uma vitória também do Movimento
Estudantil, que abraçou a bandeira e lutou até o fim por ela
(História, 30 anos, autodeclarado preto, não cotista).

Através do relato de Felipe, somos apresentados à sua perspectiva


sobre como ocorreu a discussão acerca da implementação das cotas em
diversos campus da universidade. Segundo o estudante, ele sentiu uma maior
abertura ao diálogo sobre o tema das cotas nos Centro de Ciências Humanas e
da Educação (CCHE) e no Centro de Letras, Comunicação e Artes (CLCA), onde
estão localizados, respectivamente, os cursos de História e Letras. No curso de
Direito, entretanto, ele sinalizou que o clima de tensão era maior, justamente
porque Felipe percebeu, a partir de sua experiência, que nos cursos mais
elitizados, havia um "receio" maior em discutir sobre a necessidade de cotas.
Entretanto, ele não atribui esse sentimento aos estudantes, que em seu discurso
parecem ter sido mais receptivos à conversa, e sim aos coordenadores dos
77

cursos.
A resistência por parte dos coordenadores dos cursos mais elitizados
revela um medo da perda de poder, não necessariamente para si, uma vez que
suas posições já estão consolidadas, mas para os seus herdeiros: filhos,
sobrinhos, netos. Sendo assim, a negação da política de cotas se evidencia
nesse contexto como a manifestação de uma angústia própria da branquitude,
que se sente ameaçada diante da possibilidade de ter estudantes negros e das
camadas populares frequentando o mesmo ambiente que os membros da elite
local. Isso nos permite refletir sobre como a exclusão social é um aspecto
imprescindível para a manutenção do racismo institucional, no qual poucos
indivíduos brancos têm acesso aos espaços de poder e aos privilégios dele
decorrentes. Dando continuidade na análise, Felipe menciona experiências em
outros campi, como o de Bandeirantes, no qual percebeu uma resistência bem
maior no que tange ao diálogo sobre as cotas, não apenas dos docentes, como
dos estudantes também. Com relação à diferença percebida entre a cidade de
Jacarezinho e Bandeirantes, é importante levar em conta o seu clima ideológico-
político.
Jacarezinho é conhecida por suas atividades culturais que são, em
grande parte, fomentadas pela UENP em parceria com o Serviço Social do
Comércio (Sesc)46, especificamente pelo CCHE, CLCA e pela faculdade de
Direito, que também são responsáveis por manter vivo um debate regional de
viés progressista ao produzir eventos institucionais sobre as mais diferentes
temáticas sociais. A cidade, se comparada a outras da região, demonstra ser
mais vanguardista e aberta ao possuir terreiros de candomblé e a ONG Núbia
Rafaela Nogueira, voltada para o grupo LGBTQIA+. Aliás, é ela a responsável
por produzir anualmente a "Marcha da Diversidade LGBTQIA+47", que reúne
centenas de participantes, incluindo famílias heteronormativas, não só da
cidade, mas de toda a região. Outro ponto a ser mencionado é que grande parte
dos cursos em Jacarezinho são de humanas, que, naturalmente, possuem uma
tendência a incentivar a reflexão crítica e o pensamento progressista.

46 Como exemplos, pode-se mencionar o EnCena, que é um festival de teatro, e o FEJACAN,


uma amostra musical, ambas produzidas em parceria entre as instituições.
47 Convém salientar que a marcha foi integrada, após muito debate e resistência por parte de

alguns vereadores mais conservadores da cidade, ao calendário oficial de festividades.


78

Em Bandeirantes48, porém, a maioria dos cursos são de ciências da


natureza e tecnologia, além de a cidade ser mais voltada ao agronegócio e
manter valores mais conservadores49. Esses fatores podem influenciar a
receptividade à discussão sobre cotas. Em cursos de humanas, como História e
Letras, os debates sobre inclusão social e diversidade têm mais espaço, pois
essas áreas do conhecimento valorizam a pluralidade de perspectivas e
vivências. Já em cursos de ciências da natureza, o foco é mais voltado para a
lógica, a objetividade e a busca por respostas precisas. Essas diferenças nas
áreas de conhecimento podem refletir em uma maior ou menor abertura ao
diálogo sobre temas mais controversos.
Além disso, o contexto sociocultural em que a universidade está inserida
também pode influenciar na receptividade à discussão sobre cotas. Em cidades
mais conservadoras, como Bandeirantes, pode haver uma maior resistência a
mudanças que desafiam a manutenção de privilégios e a perpetuação de
desigualdades. Já em cidades mais progressistas, como Jacarezinho, a
discussão sobre inclusão social e diversidade pode ser mais aceita e incentivada.
É importante ressaltar que essas características não determinam
necessariamente a posição dos indivíduos em relação a questões como cotas,
mas podem influenciar a percepção e o entendimento dessas políticas,
especialmente em contextos nos quais a diversidade e a igualdade não são
amplamente discutidas e valorizadas.
Importante sinalizar que, embora a UENP tenha sido a terceira das sete
universidades estaduais do Paraná a adotar a política de cotas (FELIPE e

48 Ao analisar a quantidade de inscritos nos eventos que abordaram a temática das cotas na
UENP, podemos observar uma nítida disparidade entre as cidades participantes. Essa
discrepância não se limita apenas a uma questão quantitativa, mas também qualitativa, pois
reflete uma falta de interesse geral em relação ao tema entre os discentes de Bandeirantes: ''A
Uenp realizou, em 2017, a 1ª Jornada de Debates: Ações Afirmativas na Uenp. As conferências
e os debates realizados nos três campi da instituição contaram com a participação de mais de
1.300 inscritos: aproximadamente 674 inscritos no campus de Cornélio Procópio, 484 inscritos
no campus de Jacarezinho e 154 inscritos no campus Luiz Meneghel, de Bandeirantes''
(BROCHADO et al., 2018, p. 118).
49 Na eleição presidencial de 2022, enquanto o candidato de extrema-direita, Jair Messias

Bolsonaro, obteve 51% dos votos em Jacarezinho, em Bandeirantes o número aumentou para
71,13%. Isso é um dado representativo, pois evidencia o nível de conservadorismo presente em
Bandeirantes. Por outro lado, embora em Jacarezinho o referido candidato também tenha obtido
a maioria dos votos, a vantagem conquistada foi por uma margem muito mais reduzida, cerca de
3%, o que demonstra um cenário menos hegemônico e mais propenso à diversidade de opiniões.
Vale ressaltar, adicionalmente, que entre os anos de 2005 e 2012, Tina Toneti, afiliada ao Partido
dos Trabalhadores (PT), ocupou o cargo de prefeita em Jacarezinho por um período de oito anos.
79

CARVALHO, 2021), entendemos que sua adoção, mais de 13 anos depois da


UEL e quase cinco anos após o Governo Federal decretar a obrigatoriedade de
reserva de vagas para as universidades federais, deve ser entendida no bojo das
pressões realizadas pela comunidade local e por outras universidades brasileiras
que já haviam aderido a tal medida, deixando a UENP em uma posição de certa
forma desconfortável, tendo em vista o atraso em relação a outras instituições50.
Desse modo, a demora na adoção dessa política por parte da universidade
inviabilizou a entrada de muitos indivíduos negros e com dificuldades
socioeconômicas da região no ensino superior, reafirmando a pobreza,
subalternidade e relegando esses indivíduos à margem do Estado.
Cabe ainda salientar que, se por um lado a UENP estabeleceu a política
de cotas na universidade, não atuou imediatamente da mesma forma para a
permanência desses discentes na instituição, visto que, em geral, os cotistas são
em sua maioria um público de baixa renda e que tem sérias dificuldades de se
manter e arcar com as despesas relacionadas ao curso. Lembramos ainda que
a UENP não possui restaurante universitário (RU) e que não há no campus de
Jacarezinho um espaço de convivência para os alunos em geral. Nesse sentido,
afora a moradia estudantil, a universidade, até há pouco tempo51, não havia
tomado outras providências importantes no quesito relacionado a questão da
permanência dos estudantes cotistas.
Somente em 2022 foi instituído o Núcleo de Apoio ao Estudante (NAE),
que é "um órgão que dialoga com todas as Pró-Reitorias e Coordenadorias, no
sentido de buscar e promover, prioritariamente, condições de permanência a
estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, matriculados(as)
nos cursos de graduação e de pós-graduação da UENP, nas modalidades
presencial e EAD, sob o olhar da inclusão e das diversidades" (UENP), que

50 É importante ressaltar que as universidades estaduais do Paraná enfrentam uma situação


problemática em relação às cotas para estudantes negros. Ao contrário das universidades
federais, que desde 2012 são obrigadas a reservar uma porcentagem de vagas para esse grupo,
as estaduais dependem de uma deliberação interna para aprovar e implementar essa medida.
Nesse contexto, a demora de várias instituições, incluindo a UENP, em adotar cotas demonstra
uma resistência institucional em acolher estudantes negros. Um exemplo disso é a Unicentro,
que até o ano de 2023 ainda não possui cotas para estudantes negros e foi acionada pela
Defensoria Pública do Paraná para que reserve 20% de suas vagas para cotistas raciais. Ver
mais informações em: https://www.defensoriapublica.pr.def.br/Noticia/Defensoria-do-Parana-
vai-Justica-para-que-vestibular-da-Unicentro-reserve-20-de-suas-vagas. Acesso em 10 de jun.
de 2023.
51 Ver mais em: https://uenp.edu.br/nae. Acesso em 08 de abr. de 2023.
80

conta, ainda, com os serviços de um psicólogo e uma assistente social.


Recentemente, o NAE abriu um edital ofertando 10 bolsas para o Auxílio
Permanência para estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica
no valor de R$ 250,00 mensais; é preciso ponderar, no entanto, que a quantidade
de bolsas e o seu valor ainda são muito reduzidos diante das dificuldades e
demandas de muitos cotistas da universidade, conforme veremos adiante.
Por outro lado, não se pode desconsiderar que foi conquista importante
e que resulta do entendimento de que, para se atingir uma sociedade mais
equânime, é preciso investir em políticas focais (ou particularistas), que
elaborem medidas específicas voltadas aos grupos em desvantagem e
marginalizados, na busca por tentar reduzir as desigualdades historicamente
construídas e reforçadas. Ressaltamos, porém, a necessidade de maiores
investimentos por parte da UENP em programas dessa natureza para que,
efetivamente, as desigualdades dentro do espaço acadêmico sejam mitigadas.

4.4 UENP DE JACAREZINHO

Sobre a estrutura da UENP de Jacarezinho, é relevante mencionar que


ela engloba quatro centros que estão localizados em cinco prédios diferentes ao
longo da cidade. O Centro de Ciências da Saúde (CCS) abarca os cursos de
Educação Física, Fisioterapia e Odontologia. O Centro de Ciências Humanas e
da Educação (CCHE) agrupa os cursos de Ciências Biológicas, Filosofia,
História, Matemática e Pedagogia. O Centro de Ciência Sociais Aplicadas
(CCSA) inclui apenas o curso de Direito. E o Centro de Letras, Comunicação e
Arte (CLCA) compreende os cursos de Letras Inglês e Espanhol.
Embora os cursos de Letras e História pertençam a centros diferentes,
eles estão situados em um mesmo ambiente que engloba também outras
licenciaturas, como Ciências Biológicas, Filosofia, Matemática e Pedagogia. Os
cursos de Direito e Odontologia, por sua vez, estão instalados, cada um, em
prédios próprios e isolados. Por fim, os cursos de Educação Física e Fisioterapia,
mesmo também pertencendo ao CCS, estão em um local afastado do curso de
Odontologia.
Sobre o espaço, convém salientar que ele se caracteriza como um
81

elemento importante quando pensamos sobre sociabilidade. Conforme já vimos,


existem dois tipos de sociabilidade: a espontânea e a deliberada. Na primeira
categoria a sociabilidade acontece sem que ela seja o foco central, quase como
uma necessidade inevitável do meio em que os indivíduos se encontram, não
menos importante. Já na segunda, a sociabilidade não é só querida como
almejada, de modo que esses espaços são repletos de elementos que instigam
que a interação ocorra. Tendo isso em mente, podemos considerar que o
ambiente universitário, a priori, contempla essas duas formas de sociabilidade,
dado que o convívio diário torna a interação entre os estudantes espontânea,
mas também deliberada, dado que existem espaços propícios e destinados
especificamente para que ela ocorra.
Nossa pesquisa, portanto, teve como foco três prédios específicos. O
primeiro investigado, no qual eu me formei, foi aquele que enquadra os centros
CCHE e CLCA, mais conhecido por estudantes e docentes como FAFIJA52, e
que está situado na entrada da cidade. Ao seu redor estão uma série de
lanchonetes, bares e LAN houses bastante visitados pelos discentes. Os preços
praticados nesses lugares costumam ser bastante similares e buscam ser
acessíveis aos estudantes, sem fazer distinção entre aqueles que os
frequentam.
Em virtude dos vários cursos, ele possui uma estrutura muito maior do
que a dos outros centros, sendo composto por três blocos. O bloco mais amplo
engloba os cursos de História, Filosofia e Pedagogia. Em seguida, o segundo
bloco abrange os cursos de Letras e, por último, há um terceiro bloco composto
por Ciências Biológicas e Matemática, que está localizado mais distante dos
demais. Nele há uma extensa área aberta e verde, na qual os estudantes podem
caminhar e se reunir.
Em termos de infraestrutura, a maioria das salas possuem cadeiras
universitárias de madeira, ar condicionado, equipamentos de projeção para
apresentações e rede de internet wi-fi para os estudantes. Além disso,
recentemente foi instalado um elevador no bloco de Letras para dar mais
acessibilidade a uma estudante que possui dificuldades de locomoção. No prédio
há, ainda, uma biblioteca, um anfiteatro, uma cantina, salas de grupo de

52Abreviação de Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho, nome utilizado para


representar os dois centros até 2010, quando ocorreu essa separação.
82

pesquisa e salas de informática.


Os principais espaços de socialização, que favorecem o
desenvolvimento da sociabilidade, são, além da própria sala de aula, os
corredores, ao redor dos bancos de concreto distribuídos na universidade, na
biblioteca, nas escadarias que dão acesso aos blocos, nas salas dos grupos de
pesquisa, na cantina onde os estudantes se reúnem para comer e conversar e,
principalmente, na Ágora53. Este talvez seja o espaço mais frequentado,
movimentado e democrático de toda a universidade, pois se encontram nesse
local não apenas os estudantes de todos os cursos, inclusive de Direito, como
moradores da cidade e, até mesmo, pessoas em situação de rua. É comum
serem realizados, especialmente às sextas-feiras54, saraus de música ao vivo,
batalhas de rap e hip-hop, além de feiras onde discentes e artistas locais expõe
suas produções artísticas e culinárias. Além desses espaços, as dependências
da universidade, como a praça em frente à escadaria principal e os locais de
alimentação, são lugares também bastante frequentados pelos estudantes.

Figura 2 - Entrada principal do prédio onde estão localizados os centros CCHE

53 Nome atribuído pelos estudantes de Filosofia em alusão às praças públicas nas quais se
realizavam as assembleias políticas na Grécia Antiga.
54 Às sextas ocorre a "Feirinha da Ágora", na qual pessoas da cidade inteira se encontram na

ágora para conversar, ouvir música, fazer uso de ilícitos, comer e beber nos bares e lanchonetes
ao redor da universidade, enfim, desfrutar da sociabilidade. Em virtude de receber um grande
fluxo de pessoas, inclusive aquelas que vivem em bairros marginalizados e não são bem vistos
socialmente, nem todos os estudantes participam e desfrutam desse espaço.
83

e CLCA, mais conhecido como FAFIJA

Fonte: Tudo é Jacarezinho-PR55

O segundo prédio, onde fica somente o curso de Direito, está localizado


próximo ao centro da cidade e há cinco/sete minutos da FAFIJA. Nas suas
proximidades também há alguns lugares para comer, em menor número, com
preços também similares e relativamente acessíveis.
O local, apesar de abarcar somente as cinco turmas do curso, tem uma
infraestrutura bem maior do que o bloco de Letras, por exemplo. Com exceção
de pequenas árvores na entrada, sua área é quase completamente cinza,
formada a partir de concreto. Por outro lado, o local possui instalações superiores
às encontradas anteriormente. As salas de aulas são maiores e mais espaçosas,
as cadeiras universitárias são estofadas e mais confortáveis, e também contam
com ar condicionado, elevador, equipamento de projeção e rede de wi-fi.
Ademais, o local possui uma biblioteca, um grande e bem equipado anfiteatro,
uma quadra de esportes desativada, uma pequena lanchonete e uma sala de
estudos, conhecida pelos estudantes como aquário por conta de sua parede de
vidro.

55Disponível em: https://www.facebook.com/profile.php?id=100078434190700&locale=ms_MY.


Acesso em 16 de abr. de 2023.
84

Com relação aos espaços de socialização, nota-se aqui uma enorme


diferença se comparado ao prédio anterior. A faculdade de Direito tem poucos
lugares onde os estudantes podem se reunir quando não estão em aula, muitos
dos quais são desconfortáveis em virtude de não terem sido projetados para tal.
Em geral, eles se encontram nas salas, nos corredores, nas escadas, no fundo
do prédio onde está a quadra de esportes desativada na qual ficam uma pequena
lanchonete e a biblioteca. No entanto, o principal lugar onde os discentes se
reúnem para conversar é em frente à faculdade, em pé ou sentados nas muretas.

Figura 3 - Fachada da faculdade de Direito da UENP

Fonte: UENP56.

Por fim, o último prédio visitado foi o de Odontologia. Sua estrutura pode
ser vista como a mais problemática em diversos sentidos. Primeiramente, sua
localização, extremamente afastada do centro, perto de residenciais de alto
padrão, dificulta muito a locomoção até lá. Aliás, é importante mencionar que
para que os estudantes que moram em Jacarezinho cheguem até a faculdade é
necessário que eles façam o trajeto por meio de condução própria ou a pé, uma
vez que não há locomoção municipal que realize o trajeto. Por isso, muitos

56 Disponível em: https://uenp.edu.br/direito. Acesso em 16 de abr. de 2022.


85

discentes que moram na cidade vão juntos em um mesmo carro e "racham" as


despesas de combustível.
Em um mesmo prédio estão a Clínica Odontológica, na qual os
estudantes realizam seus estágios e prestam serviços à comunidade local, e a
faculdade de Odontologia. Esses dois ambientes são interligados por uma
recepção na qual os pacientes agendam e esperam por consultas. Próximo dali
existe uma pequena lanchonete com algumas poucas cadeiras e mesas nas
quais os estudantes, "amontoados", eventualmente descansam. Nas minhas
idas ao campo, não observei nenhum outro espaço destinado à socialização dos
estudantes a não ser esse.
O lugar é cercado por uma terra batida que causa bastante poeira ao
redor e uma folhagem rasteira. Mas o que chama a atenção é que não existe
nenhum local fora do prédio, sequer uma árvore, onde os pacientes/estudantes
possam se refugiar caso precisem esperar por um alguém. Desse modo, tanto
em dias de intenso sol, quanto de chuva, eles têm de ficarem expostos do lado
de fora às intempéries.
Por se tratar de uma obra relativamente recente, concluída em 2018, o
prédio dispõe de uma boa infraestrutura, com cadeiras universitárias estofadas,
ar condicionado, equipamentos de projeção e wi-fi. Com relação à clínica, não
foi possível verificar sua situação, uma vez que ela está sempre em utilização e
minha ida poderia interferir nos trabalhos desenvolvidos.
Outro ponto a ser mencionado é que, diferentemente dos outros dois
prédios, não há nenhum lugar próximo no qual os discentes podem ir para se
divertir ou comer. Por ser totalmente isolado, os estudantes dependem daqueles
que possuem carro/moto para se deslocarem a outros lugares.

Figura 4 - À esquerda, Clínica Odontológica, e à direita, Faculdade de


86

Odontologia

Fonte: UENP57.

A seguir, por meio dos relatos colhidos na etapa das entrevistas,


refletiremos brevemente sobre o impacto desses espaços no desenvolvimento
da sociabilidade universitária.

4.5 ESPAÇO E SOCIABILIDADE UNIVERSITÁRIA

Se por um lado o ambiente acadêmico pode propiciar o desenvolvimento


da sociabilidade, por outro, existem casos em que o espaço físico cria, ao
contrário, obstáculos no processo de interação entre os estudantes,
prejudicando o pleno desenvolvimento de redes de interação. Notamos essa
queixa em vários relatos, especialmente dos estudantes de Odontologia. Como
vimos, em vista de o prédio do curso estar localizado em um lugar ermo, alguns
discentes confidenciaram um sentimento de isolamento.
Além disso, os estudantes de Odontologia reclamaram das próprias
instalações do prédio, que não oferece espaços confortáveis onde eles possam

57 Disponível em: https://uenp.edu.br/odontologia. Acesso em 16 de abr. de 2023.


87

se reunir para descansar e conversar. De fato, em visitas ao local percebemos a


ausência de elementos que propiciassem a sociabilidade deliberada. O resultado
disso é visível em falas como a de Denise:

Eu falo que é a faculdade mais estranha que já conheci, porque


as outras têm vários cursos, muitas pessoas, então tem essa
coisa assim, sabe?! De ter um vínculo, porque tem gente ali a
todo momento. Nossa faculdade é sombria. Pra você ter noção,
no primeiro ano a única turma que a gente via um pouco mais
era o segundo ano, porque estavam no mesmo andar que o
nosso. As outras turmas a gente via pouquíssimas vezes, porque
eles ficavam no andar de cima, então eles chegavam e iam
direto pra lá, só desciam às vezes pra comer e chamar paciente
pra subir. Fora isso, eles entram por uma porta e a gente sai por
outra. [E eu percebi que não existem muitos espaços na
faculdade para os estudantes interagirem]. Nada, nada, nada.
Tipo, é mato, terra e a estrutura, só! A gente fala que já é
excluído e tem que ficar amontoado longe de tudo e de todo
mundo. Eu espero ansiosamente que a Fisioterapia suba, né? E
que façam alguma coisa, porque não tem nada. Tipo, não tem
uma pracinha, um banquinho, nada. Tem a cantina, mas é muito
pequena. No primeiro ano ficava 38 negos amontoados falando
ao mesmo tempo, e logo do lado é a sala de espera onde ficam
os pacientes, então era muito incomodo. A gente está ali sentado
na cantina comendo, aí os pacientes saem de lá da sala de
espera e vão comer na cantina porque só tem aquele lugar.
Então eles sentam no meio dali da gente e às vezes a gente tá
falando umas coisas que não tem nada a ver o paciente ouvir,
né?! (Odontologia, 21 anos, autodeclarada parda, cotista negra).

A discente descreve a falta de espaços adequados para interagir e


socializar, o que gera um sentimento de exclusão e isolamento. A ausência de
áreas comuns, como praças ou bancos, limita as oportunidades de encontro e
convivência entre os estudantes. A cantina, que seria um local de encontro, é
descrita como muito pequena e desconfortável, onde muitas pessoas se
amontoam e conversam ao mesmo tempo, perturbando a tranquilidade dos
pacientes que estão na sala de espera. Essa falta de espaços apropriados para
interação tende a afetar negativamente a sociabilidade e o senso de comunidade
entre os estudantes. Um exemplo disso é que a maioria dos estudantes de
Odontologia entrevistados, tanto cotistas como não cotistas, afirmaram que há
um clima de animosidade entre as turmas, permeado pela competitividade e
frieza.
88

Eu acho que o clima na Odonto é de muita competitividade e


egoísmo. Por exemplo, tem professor que não faz muita questão
de te ajudar, entendeu? Não é todo, mas a maioria que está lá,
não faz questão de crescer junto. Então, se você tem alguma
coisa que pode ajudar o outro, você não vai passar, se pode
ajudar, não vai ajudar. Óbvio que tem muita gente boa que ajuda
e que são legais, mas em geral o clima é de muita
competitividade. Tem um professor que já falou, por exemplo,
que ‘se você quer ser cirurgião, você tem que ser arrogante!’. E
é com essa arrogância também que ele trata os alunos,
entendeu? Então, assim, eu acho que tem uma coisa, um ar, um
ar de superioridade, talvez até por ser elitizado, eu não sei, mas
eu não acho agradável. Você vai conversar com uma galera da
Odonto, né? Você vai ver… Eu não não sei falar uma pessoa
que eu conheço que vai chegar e falar alguma coisa positiva, tá
todo mundo louco. Tipo, é normal você ver gente chorando todos
os dias na faculdade, seja no vestiário, na clínica, no corredor,
na sala de estudos, seja por prova, por paciente, por professor
arrogante. Então, assim, está bem complicado. Tem gente que
recebe a prova, chora, entrega em branco e vai embora.

Nesse horizonte, pode-se considerar que a limitação do contato entre as


turmas devido à disposição física da faculdade, como mencionado
anteriormente, dificulta a integração e a construção de laços entre os estudantes.
A falta de espaços comuns para encontros informais, troca de experiências e
interação social contribui para a formação de grupos isolados e acentua a
competição entre eles.
Queixas semelhantes, mas em menor proporção, foram observadas
também entre os estudantes de Direito. Ester afirma:

Na faculdade não tem! Nossa, lá parece que é muito… Como é


que eu posso dizer? Lá na FAFIJA tem a Ágora, vários espaços.
Na de Direito não tem nada! Até pra comer, não tem uma área
pra você… Tipo, não tem um espaço mínimo pra comer. Acho
que tem duas mesinhas só, pra aquela faculdade enorme… Não
tem um espaço, assim… Não tem ninguém pra vender nada lá
dentro. O pessoal precisa sair tudo pra fora (Direito, 26 anos,
autodeclarada preta, cotista negra).

A maior crítica entre eles foi com relação à ausência de um local dentro
da universidade para comer, uma vez que a cantina se encontrava desativada
até o momento das entrevistas. Outros discentes também enfatizaram os poucos
e desconfortáveis lugares que dispõem para se reunir e conversar
informalmente. Muitos deles, a fim de demonstrar as debilidades da faculdade
de Direito, estabeleceram um paralelo com a FAFIJA, tendo-a como exemplo.
89

Com efeito, devido à sua estrutura física, a FAFIJA parece ser realmente
o ambiente mais adequado e preparado para que os estudantes interajam uns
com os outros. De acordo com alguns entrevistados, apesar dos cursos
passarem a maior parte do tempo interagindo entre si nos seus respectivos
blocos, a faculdade possui espaços de uso comum onde a maioria dos
acadêmicos se reúne para estabelecer redes de sociabilidade e compartilhar
ideias, tendo como principal ponto de encontro a já mencionada Ágora.
Essa estruturação favorece a criação de um clima de convivência e
colaboração entre os estudantes. A possibilidade de interação em espaços
compartilhados facilita o estabelecimento de relações interpessoais,
fortalecendo a construção de uma comunidade acadêmica mais unida e
engajada.
Outro ponto importante de se mencionar sobre o espaço a UENP de
Jacarezinho é que por ela estar fragmentada ao longo da cidade em prédios
distintos e abarcar um número reduzido de cursos, isso tende a fechar os
estudantes entre os seus, criando dificuldades no contato com os demais cursos.
Uma estudante de Odontologia comentou, inclusive, ter interesse nos debates
sobre questões sociais promovidos pela faculdade de Direito e FAFIJA, mas que
por conta da distância, não conseguia participar.
Logo, a limitação do ambiente físico redunda na pauperização da
experiência dos universitários, uma vez que dificulta o contato com estudantes
de outros cursos, com outras realidades e visões de mundo, não os permitindo
ampliar a sua compreensão da realidade. Além disso, a interação com
estudantes de diferentes áreas proporciona oportunidades de colaboração e
troca de ideias, promovendo um ambiente acadêmico mais diversificado e
enriquecedor. A falta de relação entre os cursos da UENP também restringe a
oportunidade dos estudantes na participação em grupos ou projetos de pesquisa
que não sejam necessariamente do curso em que estão matriculados e na
participação em eventos acadêmicos, que contribuem para o seu crescimento
pessoal e profissional.
Outrossim, essa fragmentação pode gerar um ambiente desarticulado,
onde há uma falta de sinergia entre os estudantes e uma menor coesão entre os
diferentes cursos. Isso pode limitar o potencial de mobilização estudantil,
dificultando a organização de atividades conjuntas, manifestações e ações
90

coletivas em prol de demandas comuns, como a criação de coletivos, como


veremos a seguir.

4.6 UENPRETA

Durante o período de minha formação em Letras na UENP entre 2018 e


2019, tomei conhecimento, em conversas informais na Ágora, do início da
formação de um grupo de estudantes negros denominado UENPRETA. Na
ocasião, considerei a proposta bastante relevante, porém não me aprofundei em
suas particularidades. Posteriormente, ao eleger meu tema de pesquisa,
recordei a existência do grupo e percebi que o registro de suas atividades se
tornaria importante para compreender as dinâmicas raciais na UENP. Decidi,
então, empreender esforços para coletar informações sobre o UENPRETA,
porém, não obtive êxito em minha busca. Com vistas a compreender melhor
sobre o coletivo em questão, entrevistei Felipe, um dos estudantes envolvidos
em sua criação, responsável, inclusive, por nomeá-lo. Em conversa, o discente
contou que o motivo pelo qual não encontrei dados sobre a UENPRETA é porque
ela foi desativada em 2019 devido uma série de acontecimentos, como greves
e, posteriormente, a pandemia, que prejudicou sua retomada.
Sobre sua origem, ele informou que ela nasceu de uma ideia conjunta
de alguns estudantes, principalmente do curso de História, que estavam
diretamente ligados à implementação das cotas na instituição, com o objetivo de
acolher os novos grupos que estavam sendo incorporados à universidade por
intermédio da tal política. Significativo destacar que muitos que participaram da
criação desse grupo também faziam parte do movimento estudantil, que à época,
apesar de pautar pontualmente a temática racial, não a tinha como eixo
estruturante. Inclusive, em uma crítica a essa questão, Felipe afirma que em
certas ocasiões o debate sobre a questão racial era feito sem a participação ativa
de discentes negros. Nesse horizonte, a UENPRETA surge também como uma
tentativa de preencher esse vácuo e garantir que a perspectiva dos estudantes
negros fosse contemplada nas discussões e ações desenvolvidas na UENP.
Dessa forma, esse coletivo se caracteriza como sendo "a primeira
tentativa da formação de um movimento negro com a intenção de debater as
91

questões raciais" realizada inteiramente por estudantes na UENP. Outro ponto


importante de ser evidenciado de sua fala é que a UENPRETA emergiu quase
ao mesmo tempo da formação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena
(NEABI) da instituição. Assim, um dos objetivos era também formativo, no
sentido de "identificar os estudantes negros, fornecer uma orientação e
direcionar esses alunos pras pesquisas e possíveis bolsas".
Segundo relato de Felipe acerca da atuação do grupo, o projeto teve
duração curta, inferior a um ano, e contou com a realização de apenas quatro
encontros presenciais. O coletivo reuniu 12 participantes, em sua maioria
oriundos do CCHE e do curso de História, além dos organizadores, que se
reuniam na sala do Diretório Acadêmico. Em relação à participação de
estudantes de outros cursos, Felipe afirmou que foram feitos convites, porém,
devido às limitações de espaço, não houve grande adesão. Apenas dois
estudantes do curso de Direito participaram das atividades do grupo. Nos
encontros do grupo, além da promoção de um espaço para a troca de
experiências, havia também a realização de debates acerca de textos que
estabeleciam diálogo com as vivências dos membros.

Nesse pouco tempo, a gente conseguiu trocar figurinhas,


entramos em contato com alguns pensadores negros... as
conversas eram pra, de certa forma, ampliar a visão de
universidade que a gente tinha. Aos poucos a gente foi vendo
que existiam outras pessoas trabalhando com os assuntos que
a gente estava vivenciando dentro da universidade. Na época a
gente estava na onda de ler textos sobre descolonização, pra
rever esse eurocentrismo que tem na universidade e na nossa
própria vida. Era um modo da gente olhar um pouco pra dentro
também...

Sobre as causas da interrupção das atividades, o entrevistado informou


que, quando houve a greve dos professores em 2019, a atenção dos
organizadores se voltou para o movimento estudantil devido à natureza das
reivindicações. Em 2020, o coletivo, que naquele momento se encontrava
somente em stand-by, teve seu fim definitivo quando Felipe, o seu principal
articulador, teve de trancar os estudos: "foi complicado manter os estudos sem
uma internet adequada, sem o material adequado, na época eu estava sem
92

celular também, daí eu tive que trancar, por isso estou voltando agora 58".
O estudante de História expressou o desejo de reativar o coletivo, o qual
ele considera ter sido a "melhor coisa que aconteceu" durante sua permanência
na UENP: "eu tenho mais um ano e pretendo articular as coisas pra antes de eu
sair ter pelo menos um documento falando sobre esse movimento negro e como
surgiu". Ao ser questionado se notava o mesmo nível de engajamento por parte
dos demais estudantes em relação às questões raciais, o estudante expressou
uma preocupação, já que não percebia muitos estudantes disponíveis para dar
continuidade ao projeto: "Minha principal preocupação é essa, quem vai manter
esse projeto? Ao meu lado, havia muitas pessoas incríveis. Eu gostaria que
outros estudantes se envolvessem no fortalecimento do NEABI, e que houvesse
mais professores negros".
Apesar de a UENPRETA ter tido pouco tempo de existência e estar, até
o momento da escrita, com suas atividades suspensas, acreditamos ser
relevante abordá-la, uma vez que ela se configura como a primeira e única
tentativa empreendida por estudantes negros em criar na UENP um espaço de
sociabilidade voltado para o compartilhamento de saberes e vivências, como
forma de resistência e empoderamento. O estudo de Alexsandro Souza (2018)
sobre o coletivo de estudantes negros na UEL demonstra sua capacidade
transformadora na vida dos participantes, interferindo não apenas no modo como
eles se relacionam com a universidade, mas também no modo como eles
percebem questões que transcendem esse espaço, influenciando de maneira
positiva a construção de sua identidade racial, além da militância em outros
espaços.
O estudo sobre sociabilidade nos ensina que o indivíduo é impulsionado
a se associar com outros indivíduos que compartilham de interesses,
características ou objetivos comuns. Nesse sentido, é possível perceber a
emergência de coletivos e grupos de afinidade na universidade como uma
resposta à falta de representatividade e acolhimento aos discentes que
pertencem a minorias ou grupos minorizados, como os negros. Assim, a criação

58Embora não haja estudos consolidados que demonstrem os impactos da pandemia na evasão
estudantil, pode-se imaginar que este tenha sido um dos principais problemas enfrentados pelos
estudantes, principalmente aqueles de origem humilde e que não dispunham de recursos para
acompanhar no modo remoto.
93

de espaços como a UENPRETA, que buscam fomentar a troca de experiências,


a construção de redes de apoio e a discussão de questões raciais, se apresenta
como uma forma de resistência e empoderamento dos estudantes negros.
Através desses coletivos, é possível criar uma sociabilidade baseada em
interesses compartilhados, fortalecendo a identidade e a luta por
reconhecimento e igualdade no espaço acadêmico.
Sendo assim, o fato de a UENP não contar mais com iniciativas como
essa, organizadas por estudantes, pode ser vista com um dado preocupante,
uma vez que a ausência de grupos como a UENPRETA pode indicar uma falta
de espaço e de oportunidade para que eles possam se conectar, sem intermédio
de docentes, e compartilhar suas vivências, saberes e os desafios que estão
tendo dentro da universidade. O resultado disso pode ser um silenciamento
daquilo que os afeta, prejudicando a constatação dos problemas e,
consequentemente, dificultando sua resolução. Por não terem a oportunidade de
expressar o que sentem, um dos efeitos pode ser o adoecimento psicológico dos
estudantes e, até mesmo, a sua evasão. Outrossim, a existência desses
coletivos pode ter impacto não apenas na vida dos discentes negros, mas
também da universidade em geral, na medida em que estimulam o debate sobre
questões raciais e a luta por políticas de inclusão e equidade.

4.7 PERFIL DOS PARTICIPANTES

O formulário foi feito por meio da plataforma Google e encaminhado aos


estudantes de todas as turmas dos cursos de Direito, História, Odontologia e
Letras Espanhol que entraram a partir de 2018, quando a política de cotas foi
implementada na UENP. Ao todo, obtivemos 180 respostas.
Antes de tudo, é importante ressaltar que as informações coletadas por
meio do questionário e das entrevistas não têm a pretensão de serem
representativas. Devemos considerar que o preenchimento do questionário e
mesmo a participação das entrevistas pode ter sido realizado por pessoas com
perspectivas mais favoráveis em relação à temática, o que pode influenciar as
respostas e não refletir uma percepção abrangente dos fenômenos analisados.
Todavia, mesmo assim consideramos os dados coletados importantes, porque
eles podem gerar reflexões que levem a possíveis perguntas que, por sua vez,
94

possam produzir pesquisas e novos conhecimentos.


Dando prosseguimento, no formulário constavam 28 perguntas, entre
fechadas e abertas. A maioria eram questões objetivas, baseadas numa escala
de concordância e discordância, que tinham como função evidenciar algumas
percepções que eles tinham sobre assuntos relacionados às suas experiências
na universidade, como: cotas, convivência, racismo, discriminação e
dificuldades. Outras, visavam mapear o perfil racial e socioeconômico dos
estudantes. Cabe destacar que, em função de seu caráter mais subjetivo,
algumas perguntas foram abertas para que os estudantes tivessem mais
liberdade em suas respostas.
Neste tópico, nos deteremos de forma mais detalhada na exposição dos
dados objetivos de cor, renda, idade, gênero e forma de ingresso, buscando
evidenciar o perfil dos respondentes.
De antemão, cabe enfatizar que as informações apresentadas a seguir
dizem respeito à realidade de 180 estudantes dos cursos de Direito, Letras
Espanhol, Odontologia e História.

Tabela 1 - Curso dos estudantes que responderam ao questionário

Fonte: dados da pesquisa.

Sobre a participação dos cursos, evidencia-se uma nítida predominância


de Odontologia e Direito, que se justifica pela grande quantidade de estudantes
neles. Ambos estão entre os cursos mais concorridos da UENP e têm duração
de cinco anos, ao passo que Letras e História tem duração de apenas quatro
95

anos.

Tabela 2 – Cor dos estudantes que responderam ao questionário59

Fonte: dados da pesquisa.

O primeiro elemento que destacamos é a cor dos estudantes que


responderam ao survey. Dados do IBGE de 2010 evidenciam que a população
paranaense tem a seguinte distribuição racial: 29% se autodeclaram negros,
sendo pretos (3%) e pardos (26%), 70% se autodeclaram brancos e amarelos,
indígenas e não declarados somam 1%. Embora o gráfico apresente uma
correlação parcial dessa proporção, é importante levar em conta que a UENP
também atrai estudantes de outras regiões do Brasil, principalmente de São
Paulo. Além disso, vale ressaltar que a maioria da população brasileira se
autodeclara negra, representando aproximadamente 56,2%.
Por hora, cabe mencionar, segundo informações do IBGE, que entre os
jovens negros de 18 a 24 anos, 55,6% frequentam o ensino superior, ao passo
que entre os jovens brancos da mesma faixa etária o percentual sobe para
78,8%. Outro dado revelador é que, a despeito de iniciarem uma faculdade, os
negros são o grupo com mais chances de não conseguirem terminá-la (as
motivações serão abordadas no decorrer do trabalho).
Adicionalmente, observa-se nos estudos estatísticos que a taxa de
conclusão do ensino médio entre jovens brancos (76,8%) é significativamente

59Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
96

superior à parcela negra (61,8%) (IBGE, 2019). A desproporção entre brancos e


negros aptos a cursarem uma universidade é evidente e torna-se ainda maior
quando fazemos um recorte geográfico. No Sul do país, onde localiza-se a
UENP, a distância de negros em relação aos brancos é ainda maior, de 19,2
pontos percentuais (IBGE, 2019).
O IBGE salienta que, no Brasil, o nível de escolaridade está diretamente
relacionado ao retorno salarial. Dessa forma, as desigualdades educacionais
não se restringem apenas a esse campo e mostra seus efeitos nocivos também
na desigualdade no mercado de trabalho e no quesito renda, como veremos
adiante. E a despeito das melhorias nos índices educacionais relativos à
população negra, especialmente após a institucionalização do sistema de cotas,
do SISU (Sistema de Seleção Unificada) e do FIES (Fundo de Financiamento
Estudantil), ainda assim é patente a sub-representação do percentual negro no
ensino superior público (ver gráfico 2), que representa, no Brasil, como já
mencionamos, a maioria da população.

Tabela 3 – Renda dos estudantes que responderam ao questionário60

Fonte: dados da pesquisa.

Outro elemento destacado foi a renda. Analisá-la é importante na medida


em que ela é um fator capaz de, simultaneamente, limitar e expandir não só o
poder de aquisição de bens e serviços dos indivíduos, como também suas

60Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
97

aspirações, desejos e sonhos. Como sabemos, o salário está relacionado, em


grande medida, ao status ocupacional dos indivíduos. Sendo assim, quanto
maior for o nível de instrução, maior também tende a ser o status ocupacional e,
consequentemente, o salário (PASTORE, 1979: HERINGER, 2002: IBGE, 2019).
Embora não seja possível identificar a ocupação das(os) chefes de família
daqueles que responderam ao questionário, com base no critério de renda pode-
se inferir que aqueles que sobrevivem com 1 a 2 salários mínimos mensais (sm)
vem de uma estrutura familiar na qual, provavelmente, a ocupação dos pais ou
familiares não requer um alto nível de instrução. Geralmente, são os trabalhos
que não carecem de muita especialização os que pagam os menores salários do
mercado (IBGE, 2019).
A primeira coisa que nos salta à vista quando olhamos para o segmento
que sobrevive mensalmente com 1 a 2 salários mínimos é que ele é composto,
em sua maioria, por indivíduos negros (embora estes representem pouco mais
de ¼ do número total de participantes, como é visível no gráfico 2.
Proporcionalmente, 24,58% dos estudantes brancos sobrevivem nessa faixa de
renda, ao passo que, no caso dos negros, o número aumenta para 50,88%. Dito
de outro modo, apesar de serem minoria na universidade em questão, os negros
são maioria entre os estudantes com a menor renda familiar.
Em termos gerais, o recorte de rendimento familiar mensal revela que os
estudantes negros são os que vivem com os menores salários. O gráfico 3
aponta também que, quanto maior a renda, menor é a presença de indivíduos
negros. Na faixa de maior renda, o grupo com maior proporção são os brancos,
com um total de 12,71%, em contrapartida, no mesmo grupo os negros
representam somente 1,75%, evidenciando uma desigualdade brutal. Mas a que
isso se deve?
O sociólogo brasileiro José Pastore (1979) demonstra que a mobilidade
social no Brasil está estritamente relacionada ao status social que o indivíduo
tem dentro do sistema de estratificação social. Ele explica que esse status tende
a ser conferido com base em critérios adquiridos (educação, experiência,
especialização etc.) e critérios atribuídos (cor, gênero, religião etc.). Como vimos
no capítulo 2 deste trabalho, a raça é uma categoria que, especialmente no
Brasil, atuou (e continua atuando) para alijar principalmente a população negra
do sistema de recursos e oportunidades.
98

Um dos principais pensadores que jogaram luz a esta questão foi o


sociólogo Carlos Hasenbalg61 (1979), que deu profundas contribuições ao
debate sobre desigualdades sociais com ênfase na questão racial. O autor foi
um dos primeiros cientistas sociais a comprovar, por meio de uma metodologia
científica rigorosa, que a raça é, no Brasil, um critério social para o
preenchimento de posições na estrutura de classes e na estratificação social.
O pesquisador Rafael Guerreiro Osório (2021) destaca que, até a
década de 1980, tinha-se no âmbito teórico da Sociologia a perspectiva
hegemônica de que a persistência das desigualdades sociais entre brancos e
negros no Brasil devia-se, fundamentalmente, às barreiras interpostas pelas
classes sociais estabelecidas no período colonial, que inviabilizavam que certos
grupos experimentassem uma mobilidade social intergeracional ascendente.
Tinha-se, portanto, uma percepção de que, com o tempo, haveria naturalmente
uma maior integração do negro e aos poucos a desigualdades entre esses
grupos tenderia a desaparecer.
Nessa ótica, a discriminação racial não desempenhava papel
significativo na subordinação do negro dentro da estrutura de classes, muito pelo
contrário, certos teóricos, como Florestan Fernandes, argumentavam que, com
a industrialização e o desenvolvimento capitalista o preconceito de cor teria uma
importância cada vez menor na vida da população negra, uma vez que haveria
uma certa incompatibilidade com o mundo moderno que emergia.
Após a Segunda Guerra Mundial, entretanto, com as atrocidades
cometidas em torno da ideia de raça, ficou evidente que o racismo não era um
fenômeno pertencente apenas ao passado. No caso do Brasil, pôde-se observar
que a categoria raça, na sociedade industrial, longe do que Fernandes antevia,
funcionava, em linhas gerais, como um mecanismo para garantir a ascensão das
gerações brancas e sujeição das gerações negras dentro do sistema de
ocupações (OSÓRIO, 2021).
São precisamente os trabalhos de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle
Silva que demonstram cabalmente, por meio de dados do Censo Demográfico

61 Um estudo importante, que dá continuidade aos estudos quantitativos de Hasenbalg, é o do


economista Mario Theodoro, chamado A sociedade desigual: racismo e branquitude na
formação do Brasil, de 2021.
99

de 1960, que as desigualdades sociais no Brasil tinham no elemento raça/cor


uma de suas principais causas.
Concernente a questão levantada pelos trabalhos desses autores,
Osório (2021) explicita que a questão central levantada não era a de precisar os
limites entre as desigualdades ocasionadas pela classe e pela raça, até porque
isto não seria possível, pois embora essas noções possam ser analiticamente
separáveis, na vida concreta elas são indissociáveis. O que Hasenbalg e Valle
demonstram é que, assim como as desigualdades de classe, as desigualdades
raciais também eram transmitidas entre as gerações e reforçadas pela
discriminação racial, produzindo um ciclo de desvantagens cumulativas para a
população negra.
Por outro lado, conforme lembra Kabengele Munanga (1996), apenas a
mobilidade social do negro não seria suficiente para eliminar o racismo existente
em nossa sociedade, porque antes de ser uma questão econômica, o racismo é
um problema de ordem moral e ideológica (MUNANGA, 1996). Como o estudioso
argumenta, ''(...) as transformações formais não são automaticamente
acompanhadas pelos fatos e pelas transformações das mentalidades'' (ibidem,
p. 229).
E embora tenha havido, ao longo do tempo, melhoras relacionadas ao
quesito renda em todos os segmentos étnico-raciais (OSÓRIO, 2021), ainda
assim é possível observar discrepâncias quando comparamos o grupo dos
negros com o dos brancos.

Sob a ótica da renda, portanto, a desigualdade racial é estável.


Em três décadas, de 1986 a 2019, a desigualdade racial
alimentou mais de um décimo da elevada desigualdade de renda
brasileira. No que toca à razão entre as rendas médias e à
concentração da crescente parcela negra da população entre os
mais pobres, a desigualdade racial permaneceu elevadíssima,
praticamente intocada. Com boa vontade, pode-se registrar uma
pequena redução dessa desigualdade, todavia deve ser vista
com alguma suspeição, pois pode, em parte, ter sido
artificialmente produzida pelo maior aumento relativo da
declaração de cor preta ou parda entre os mais ricos. A renda
média dos brancos permanece ao menos duas vezes maior que
a dos negros (OSÓRIO, 2021, p. 22-23).
100

Isso também é visível nos índices sociais, como o do IBGE62, que


recentemente demonstrou que o rendimento médio dos paranaenses acima dos
14 anos, oriundo de ocupações formais e informais, é de R$ 2.590. E enquanto
entre os brancos esse valor aumente para R$ 2.906, entre os negros a quantia
decai para R$ 1.916. Em outros termos, o grupo branco no Paraná recebe, em
média, 52% a mais do que o grupo negro. Contando outras fontes de renda que,
além do trabalho, como aposentadoria e pensão, percebe-se a mesma
desigualdade na renda familiar per capita de brancos e negros; enquanto os
primeiros recebem, em média, R$ 1.750, os últimos recebem R$ 1.073. Quando
se analisa os 10% da população com menor renda, a população negra
paranaense, apesar de representarem 29% da população, somam 49,1% do
total. Em contrapartida, entre os 10% com maior renda, a proporção de negros
decai para 14,2%.
O mesmo se apercebe quando se vislumbra os dados nacionais.
Segundo o IBGE, o rendimento médio mensal dos brasileiros brancos com
ocupação é de R$ 2.796, enquanto entre as pessoas negras o valor é de R$
1.608. Em média, os brancos recebem 73,9% a mais que os negros. O IBGE
(2019, p. 3) revela que tal discrepância ''(...) corresponde a um padrão que se
repete, ano a ano, na série histórica disponível''. Nesse sentido, a tendência de
concentração de riqueza entre o segmento branco em detrimento do segmento
negro foi um dado também verificado em nosso estudo e está reportado no
gráfico 3 para análise.
O IBGE revela, ainda, que, quanto mais alto o rendimento, menor é a
ocorrência de indivíduos negros. Entre os indivíduos com ocupação em cargos
gerenciais com os rendimentos mais elevados, os negros são minoria absoluta,
representando somente 11,9%, enquanto os brancos monopolizam o eixo com
uma representação exorbitante de 85,9%. Quando se olha para a relação de
rendimentos de todas as fontes, percebe-se que dentre os 10% com maior
rendimento os negros correspondem a reduzida porcentagem de 27,7%. No
entanto, quando se analisa os 10% com menor rendimento, o número de negros
triplica e sobe vertiginosamente para um percentual de 75,2%.

62Ver mais em: https://www.bemparana.com.br/noticias/parana/no-parana-pessoas-brancas-


possuem-renda-52-maior-que-pretos-ou-pardos/. Acesso em 01 de jun. de 2023.
101

Tabela 4 – Gênero dos estudantes que responderam ao questionário63

Fonte: dados da pesquisa.

Outro aspecto importante que percebemos foi o alto índice da presença


feminina nos cursos pesquisados. Os dados organizados no gráfico 4 indicam
que as mulheres são maioria em todos os grupos raciais, exceto entre os
amarelos, em que há uma paridade de gênero. Entre os brancos, as mulheres
correspondem 63,56% e os homens 35,59%. Já no grupo negro, as mulheres
somam ainda mais, cerca de 70,18%, enquanto o número de homens decai para
29,82%. Segundo informações do IBGE de 2019, as mulheres representam
51,8% da sociedade brasileira e os homens 48,2%; predominância esta que
também se verifica na realidade do Paraná. As causas para uma super-
representação feminina na universidade muito provavelmente serão diferentes a
depender do grupo racial analisado.
Ao abordarmos a população negra, é fundamental destacar, por
exemplo, a necessidade de trazer à tona dados sobre a elevada taxa de
homicídios entre os jovens negros.
O IBGE revela que em 2017, a cada 100 mil habitantes, a taxa de
homicídio da população branca era de 16,0 enquanto da população negra era de
43,4: ''Em outras palavras, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes mais
chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca''
(IBGE, 2019, p. 9). O mesmo estudo demonstra que, enquanto o número de

63Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
102

homicídios se manteve estável no grupo branco entre os anos de 2012 a 2017,


durante esse mesmo período o número de mortes em relação aos negros
aumentou, redundando na alarmante cifra de 255 mil homicídios ao longo deste
intervalo temporal.
Quando se observa os números mais de perto, nota-se que a maior parte
dos homicídios recai sobre uma população jovem, cuja faixa etária varia entre 15
a 29 anos, negra e, fundamentalmente, masculina:

Em todos os grupos etários, a taxa de homicídios da população


preta ou parda superou a da população branca, contudo, é
preciso destacar a violência letal a que os jovens pretos ou
pardos de 15 a 29 anos estão submetidos: nesse grupo, a taxa
chegou a 98,5 em 2017, contra 34,0 entre os jovens brancos.
Considerando os jovens pretos ou pardos do sexo masculino, a
taxa, inclusive, chegou a atingir 185,0 (IBGE, 2019, p. 10).

Outro provável motivo que faz com que os jovens negros não adentrem
a universidade é a necessidade perene de trabalhar para ajudar na renda
familiar. O IBGE demonstra que, em 2018, entre os jovens negros de 18 a 24
anos com o ensino médio incompleto, as principais justificativas dadas para
terem abandonados os estudos estavam relacionadas ao fato de ter de trabalhar
(61,8%).

Tabela 5 – Idade dos estudantes que responderam ao questionário64

Fonte: dados da pesquisa.

64Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
103

O quesito idade também foi verificado. Percebemos que a maior parte


dos estudantes que participaram da resposta ao questionário têm, em média, de
18 a 25 anos. Poucos indicaram ter idade superior a 26 anos e o participante de
mais idade tinha 51 anos. Dos 18 respondentes que manifestaram ter entre 26 a
51 anos, 10 são brancos, sete são negros e uma é indígena. É preciso evidenciar
que mesmo sendo minoria no ambiente universitário, o grupo negro (12,28%) é
maior, proporcionalmente, do que grupo branco (8,47%) no número de
estudantes com mais idade (ver gráfico 5).
O IBGE (2019) expõe que a proporção de jovens brancos (36,1%) de
idade entre 18 a 24 anos que frequentam ou já concluíram o ensino superior é
quase o dobro quando contrastado com os jovens negros da mesma faixa etária
(18,3%). Dito de outra forma, os indivíduos negros tendem a iniciarem uma
faculdade já com idade superior a convencional.

Tabela 6 – Forma de ingresso dos que responderam ao questionário 65

Fonte: dados da pesquisa.

Com relação à forma de ingresso dos participantes, verifica-se no gráfico


6 que a grande maioria é proveniente da ampla concorrência, seguido das cotas
de escola pública e para negros, respectivamente. Notamos que nem todos os
estudantes negros fizeram uso da política de cotas e entraram por meio da ampla

65Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
104

concorrência. Cerca de 45% dos discentes negros não entraram por meio das
cotas para negros, desse montante, metade é oriunda das cotas para escola
pública (19%) e a outra de ampla concorrência (26%). Desse modo, é
fundamental que a UENP, além de buscar entender o porquê desses estudantes
não estarem utilizando as cotas destinadas especificamente a eles, também
identifique e incorpore os estudantes negros que não foram admitidos por meio
delas em suas estratégias de apoio e permanência, uma vez que, certamente,
eles enfrentam os mesmos desafios que os estudantes cotistas. Nesse caso,
algumas hipóteses podem ser utilizadas para explicar tal fenômeno, como, por
exemplo, ter estudado (parcial ou integralmente) em escola particular; receio de
optar pelas cotas por falta de conhecimento sobre como elas funcionam; receio
em não ser reconhecido como negro pela banca de heteroidentificação e a
própria forma de preenchimento de vagas; nos cursos de menor concorrência os
negros acabam entrando pela ampla concorrência.

Tabela 7 - Primeiras(os) da família a entrarem na universidade66

Fonte: dados da pesquisa.

Tínhamos como foco, também, compreender melhor sobre a


escolaridade familiar dos estudantes que responderam ao questionário. Nesse
sentido, perguntamos se eles eram os primeiros de suas famílias a cursarem
uma universidade. Como é visível no gráfico acima, menos da metade do

66Os dados fragmentados por curso estarão disponíveis ao final do trabalho, na parte dos
apêndices, para consultas.
105

percentual branco respondeu que sim, ao passo que entre o percentual pardo, a
maioria indicou que eram os primeiros de suas famílias a entrarem na
universidade na condição de estudantes. Quando comparados lado a lado,
notamos que a diferença numérica que separam os estudantes brancos e negros
que responderam sim é pequena se levarmos em consideração a presença
desproporcional desses grupos dentro do ambiente universitário. Desse modo,
a partir do critério de proporcionalidade dos grupos, verificamos que enquanto
22,03% dos discentes brancos são os primeiros a cursarem uma universidade,
o número praticamente dobra para 42,11% quando se trata dos estudantes
negros.
A seguir discutiremos sobre a percepção dos estudantes sobre as cotas
na instituição e sobre como é ser cotista.
106

5 COTAS NA UENP: OPINIÕES E PERCEPÇÕES DOS ESTUDANTES


UNIVERSITÁRIOS

Como vimos no capítulo anterior, a implementação da política de cotas


em universidades públicas têm sido objeto de intensos debates que o abordam
por diferentes perspectivas. No trabalho em tela, busca-se entender os seus
possíveis desdobramentos na sociabilidade dos estudantes. Nesse horizonte,
compreender o significado que os discentes atribuem a essa temática é
fundamental, pois dá um demonstrativo de como os cotistas podem estar sendo
vistos e, consequentemente, recebidos pela comunidade acadêmica em
questão. Convém destacar que alguns estudos têm apontado que um dos
elementos que indicam o modo como os estudantes cotistas e não cotistas se
relacionam é, exatamente, o significado que eles atribuem a tal medida
(RIBEIRO et al., 2014), pois como ensina Serge Moscovici (2003), o modo como
representamos socialmente um determinado objeto, molda também nossa
conduta diante dele. Tendo isso em mente, perguntamos qual era a opinião dos
estudantes sobre as cotas para escola pública e cotas para negros.
Antes de nos atermos às informações, é importante pontuar que elas
foram coletadas por meio de um questionário online, no qual os estudantes
podiam responder em total sigilo, justamente para que eles tivessem mais
liberdade e fossem mais autênticos em suas respostas. Além disso, cabe
mencionar que a questão a partir da qual foi elaborada o quadro a seguir era
fechada, contendo as três alternativas descritas logo abaixo:

Tabela 8 – Opinião dos estudantes que responderam ao questionário sobre as


cotas na UENP
Cotas de escola pública Cotas para negros de escola pública
Favorável Desfavorável Não sabe Favorável Desfavorável Não sabe
95,6% 2,1% 2,2% 90% 4,5% 5,5%
Fonte: dados da pesquisa.

Os dados apresentados indicam uma forte aceitação das cotas de escola


pública e cotas para negros nos cursos perscrutados. Em relação às cotas de
escola pública, 95,6% dos respondentes são favoráveis, o que sinaliza que a
maioria dos estudantes reconhecem a importância de políticas que visem
garantir a inclusão de grupos vulneráveis economicamente no ensino superior.
107

Além disso, apenas 2,1% dos respondentes são desfavoráveis, o que aponta
para uma baixa resistência às cotas sociais na UENP.
Quanto às cotas para negros, o índice de apoio é levemente menor, mas
ainda assim bastante expressivo, com 90% dos respondentes sendo favoráveis.
Isso pode indicar que, apesar de a UENP já contar com cotas de escola pública,
há uma compreensão da necessidade de medidas específicas para também
combater a desigualdade racial no acesso à educação. Os 4,5% de
respondentes desfavoráveis, embora em menor número, ainda demonstram a
existência de resistência a esse tipo de política, o que pode ser reflexo de
preconceitos arraigados na sociedade ou dos efeitos do mito da democracia
racial, que propagou durante anos a tese de que o problema no Brasil era
exclusivamente de classe, não englobando a dimensão racial (HASENBALG,
1979; MUNANGA, 1999; IANNI, 2004a). Já os 5,5% que não souberam
responder apontam para a necessidade de um debate mais amplo e informativo
sobre o tema dentro do ambiente universitário.
Em geral, os dados sugerem que a UENP possui uma comunidade
acadêmica consciente da imprescindibilidade de uma educação cada vez mais
justa e inclusiva, o que é um dado, ao mesmo tempo, positivo para a instituição
e revelador, porque contrasta com os resultados obtidos por outros estudos,
especialmente aquelas que foram realizadas logo no início da implementação
dessa política. O trabalho de Menin (2008) sobre a percepção de 403
universitários sobre as cotas demonstrou que a maioria deles rejeitavam a
medida tendo como argumentação o mérito e a igualdade. Em um estudo
especificamente sobre a opinião dos discentes da Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG) sobre as cotas para negros, Tarvanaro (2009) constatou
uma ampla rejeição, sendo que dos 84 participantes, 65 eram contrários.
A fim de aprofundar o entendimento sobre essa questão, na etapa das
entrevistas também questionamos a opinião dos participantes sobre as cotas na
UENP. Como tratavam-se de respostas abertas, elaboramos um quadro
contendo os temas mais recorrentes encontrados nas falas dos entrevistados:
108

Quadro 2 - Opinião dos estudantes entrevistados sobre a existência de política de cotas


- Frequência67 -
Eixos temáticos Categorias Exemplos Cotistas Cotistas
negros de de Não Total
escola escola cotistas (%)
pública pública
''Eu acho que essas cotas tem uma forma na
minha cabeça que eu vou tentar expressar em
Cotas como medida política um desenho para tentar explicar o que eu
para reduzir as desigualdades imagino. Eu imagino uma pessoa branca já
Desigualdades sociais que acometem conseguindo enxergar por cima de um muro… 6 2 4 12
sociais principalmente a população É uma imagem! E eu imagino uma pessoa (16,22%) (5,41%) (10,81%) (32,43%)
negra. negra tentando também enxergar por cima
desse mesmo muro. As cotas são um
banquinho que me levantam para eu
conseguir estar igual a essa pessoa branca''.
''A minha realidade e a dos outros cotistas, é
diferente daqueles que são da ampla
Cotas como medida paliativa concorrência. Eles estudaram a vida toda em
Educação para lidar com as defasagens colégios privados. Fizeram cursinho. Eles 5 2 1 8
pública da educação pública. tiveram uma base muito forte no Ensino (13,51%) (5,41%) (2,70%) (21,62%)
Básico. Eu e os outros cotistas, sempre de
escola pública, às vezes era mais complicado
obter informações e apoio''.
Cotas como incentivo para que
estudantes com baixo nível de ''Quem não tem um incentivo para entrar na
Incentivo aspiração limitado pelas universidade, não vai ter 100% do tempo para 5 2 0 7
condições de desigualdades, estudo. Não vai ter a melhor nota e vai querer (13,51%) (5,41%) - (18,92%)
que acometem, principalmente, entrar pelas cotas, porque sabe que pode
consegui''

67Convém mencionar que a frequência excede o número de entrevistados, porque ela está relacionada a quantidade de vezes que um determinado tema
apareceu em uma resposta; houve casos, por exemplo, que um único entrevistado discorreu sobre múltiplos temas.
109

a população negra, entrem na


universidade.
''O nosso povo ficou muito tempo sem ser visto
na sociedade. Fomos reduzidos a pessoas
Reparação Cotas como instrumento que só podem usar o trabalho braçal… Então 2 2 1 5
histórica ideológico capaz de alterar as cotas trazem a oportunidade para nós, (5,41%) (5,41%) (2,70%) (13,51%)
mentalidades. pretos, de mudar a forma como somos vistos
na sociedade''.
Cotas enquanto um direito ''... para além das conquistas individuais, as
Direito social conquistado cotas foram um direito obtido através de muita 1 2 0 3
coletivamente. luta, ocupação de reitoria e manifestações''. (2,70%) (5,41%) - (8,11%)
''Pra mim isso é mais um Band-Aid do que
Cotas enquanto uma ajuda do tratar mesmo o problema… O problema é
Assistencialismo Estado de caráter superficial. quem está passando fome, quem tem que 0 0 2 2
trabalhar muitas horas por dia, quem não tem - - (5,41%) (5,41%)
escola perto… E não ficar dando ajudinha''.
Fonte: dados da pesquisa.
110

O Quadro 2 apresenta um panorama interessante sobre as temáticas


que os entrevistados consideram importantes em relação a essa política pública.
Os seis temas encontrados - desigualdade social, escola pública, incentivo,
reparação histórica, direito e assistencialismo - demonstram que as cotas são
percebidas pelos estudantes como algo complexo, que envolve questões
sociais, históricas, políticas e econômicas.

5.1 DESNATURALIZANDO A DESIGUALDADE SOCIORRACIAL

O fato de o tema "desigualdade social" aparecer em primeiro lugar por


ordem de recorrência pode indicar que os entrevistados reconhecem as cotas
como uma forma de combater a desigualdade social, promovendo a inclusão de
grupos vulneráveis economicamente, com vistas a reduzir seus impactos e
promover uma melhoria na sua qualidade de vida. Especificamente sobre as
cotas para negros, nota-se uma forte concordância dos entrevistados, pois há
entre eles um entendimento geral de que o grupo negro é o mais afetado pelas
desigualdades, de modo que o problema não se deve unicamente à questão de
classe, carecendo, portanto, de medidas específicas.
Os relatos de muitos cotistas negros demonstram a consciência sobre
como o racismo afeta o acesso a oportunidades e espaços. Não se pode deixar
de mencionar, porém, que a maioria dos discentes não cotistas (brancos) que
abordaram esse tema, além de sensibilidade às pautas raciais, também
demonstraram ter uma leitura crítica e racializada dos problemas sociais. A título
de exemplificação, destacamos a afirmação de Paulo: "É muito mais fácil você
encontrar na universidade um aluno de baixa renda branco do que um aluno
negro… É muito esquisito de se pensar, mas o fato é que você ser branco
aumenta as chances de você estar na universidade, por isso tem que criar
essas pequenas portas de acesso para entrar no sistema 68" (História, 19 anos,

68É paradoxal que, em diversos cenários, as cotas universitárias estejam beneficiando, em maior
medida, estudantes brancos provenientes de escolas públicas e com poucas condições
econômicas em vez dos negros, que, é preciso que se enfatize, foram os principais defensores
dessas políticas ao longo dos anos. O estudo de avaliação sobre a efetividade das cotas na UEL,
realizado por Maria Nilza da Silva e Jairo Queiroz Pacheco (2013, p. 103), demonstra justamente
que os discentes brancos foram os mais beneficiados com a política na instituição em detrimento
111

autodeclarado branco, não cotista).


Nota-se que o estudante utiliza o adjetivo "esquisito" para se referir à
ampliação de oportunidades que ser branco implica na sociedade, o que marca
uma importante inversão de pensamento. A literatura que trata das relações
raciais demonstrou sobejamente, pela lógica do racismo institucional, que o
corpo negro não só tem sido anulado de espaços de poder, como a universidade,
como também sua ausência é vista sem espantos, de forma naturalizada. A fala
de Paulo é relevante, pois demarca justamente uma inflexão sobre o modo como
a questão é percebida atualmente.
O termo esquisito, presente em seu discurso, se encontra no mesmo
campo semântico do adjetivo estranho, como se algo estivesse fora do lugar e
indica um questionamento e, consequentemente, uma desnaturalização do fato
de os brancos serem maioria nos bancos universitários. Ao mencionar que "você
ser branco aumenta as chances de você estar na universidade", o estudante
demonstra o entendimento de que a filiação racial é um fator determinante no
acesso ao ensino superior no Brasil, especialmente no caso do grupo negro
quando se trata de oportunidades de acesso.
Ele observa que, apesar de existirem políticas de inclusão social como
de escola pública, a desigualdade racial ainda é um problema que precisa ser
enfrentado. Sua fala é significativa, porque revela um entendimento sobre a
importância de políticas públicas que focalizem não apenas a questão
socioeconômica, mas também a racial, para uma efetiva promoção de igualdade
de oportunidades entre os diferentes grupos que compõem a sociedade
brasileira.
Outro caso é o de Manuela, discente do curso de Odontologia, que faz
parte do grupo de estudantes de brancos com maior renda da UENP e se diz
totalmente favorável às cotas, pois entende que nem todos tiveram os mesmos
"privilégios" que ela. Assim como Paulo, quando a discente faz uso do
substantivo privilégio para se referir às oportunidades que sua condição
sociorracial lhe possibilitou, ela de alguma forma rompe com a lógica
meritocrática da branquidade de que tudo é simples resultado do esforço
individual, aproximando-se da branquitude (PIZA, 2002: 2005).

dos negros, "mostrando a necessidade de que seja feito um trabalho de esclarecimento e


divulgação junto às escolas públicas de ensino médio".
112

Na lógica apresentada pela estudante, nos aproximamos do conceito de


racismo, dado que aquilo que ela denomina como privilégio nada mais é do que
o resultado de uma sociedade formada a partir de normas, práticas e valores que
perpetuam o preconceito e a discriminação racial. Os vários indicadores sociais
existentes demonstram abundantemente que grupos racializados, como negros
e indígenas, têm menos oportunidades e enfrentam mais obstáculos para
alcançar sucesso, segurança e bem-estar em suas vidas69.
Retornando à entrevista com Manuela, ela confidenciou que sua
percepção não é compartilhada por muitos de seus familiares e amigos brancos
fora da universidade, o que a faz sentir, algumas vezes, isolada: "Tenho muitas
amigas que são contra as cotas, daí eu falo assim, ‘então você vai sentar e vai
estudar, porque é uma questão de você reconhecer que as pessoas não têm as
mesmas oportunidades que você’. Eu acho que o maior problema é não ir atrás
de conhecimento". Já na universidade, a estudante destaca que no seu grupo
de amigos há uma certa conformidade com relação à importância das cotas.
Todavia, o que chama atenção aqui é sua vivência fora da universidade.
Sua experiência enquanto uma mulher branca oriunda de uma família com boas
condições econômicas evidencia, ao mesmo tempo, duas coisas distintas: 1) a
dificuldade de conscientização de muitos indivíduos que não tiveram
experiências de vida que os levem a reconhecer a existência das desigualdades
sociais e raciais, como é o caso de seus familiares e amigos brancos; e 2) que o
debate racial aos poucos está adentrando no círculo de pessoas brancas com
alto poder aquisitivo e que isto está sendo introduzido por uma geração mais
jovem, caracterizada por uma atenção maior às novas
informações/conhecimentos, capacidade de autoanálise e abertura ao diálogo.
Se considerarmos as definições de Ferreira (2014) sobre letramento
racial crítico, enquanto um processo por meio do qual o indivíduo aprende a
compreender as problemáticas em torno da questão racial, reconhecer as
diversas manifestações do racismo e a desenvolver atitudes de enfrentamento
ao status-quo das relações raciais, parece-nos que as falas dos estudantes
convergem no sentido de demonstrar seus efeitos práticos. É interessante notar

69 Ver mais no informativo produzido pelo IBGE sobre as desigualdades raciais no Brasil:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em 13 de jun.
de 2023.
113

que o letramento sobre questões raciais tem ocorrido de forma implícita através
das mídias, como TV, redes sociais, rádio, entre outras, que incorporaram o
debate sobre raça em suas pautas diárias. Atualmente, é possível perceber uma
maior atenção às questões relacionadas ao racismo em jornais, novelas, canais
de influenciadores digitais e outras plataformas. Essa abordagem naturalmente
leva os consumidores desses conteúdos a se familiarizarem com o tema e a
refletirem sobre suas próprias práticas.
Por outro lado, essa postura ainda está longe de ser uma regra entre
aqueles que possuem as mesmas características de Manuela, de modo que
outro ponto importante de sua fala diz respeito à resistência de muitos brancos
em procurar conhecimento sobre a questão racial; para além de um simples
desinteresse, nos parece ser uma tentativa, talvez inconsciente, de
autopreservação da branquidade e de seus ganhos. A lógica seria mais ou
menos a seguinte: quanto menos sei, menos culpa sinto de usufruir. De qualquer
modo, a fala consciente de parte dos entrevistados brancos é reveladora, pois
assinalam uma realidade bastante recente, praticamente impensável quando se
iniciou os debates sobre as cotas.
Refletindo sobre as redes de sociabilidade estabelecida entre brancos,
a estudiosa Cida Bento (2002), ao analisar o funcionamento das esferas
institucionais, cunhou o termo "pacto narcísico da branquitude" para denunciar o
acordo de cumplicidade tacitamente estabelecido entre os brancos, cujo objetivo
é garantir o monopólio dos privilégios e impedir que ele seja compartilhado com
os demais segmentos racializados.
Considerando o alto nível de adesão às cotas para negros (90%) por
parte dos acadêmicos brancos que responderam ao questionário, articulado com
os relatos colhidos na etapa das entrevistas, que sinalizaram para uma
desnaturalização, um olhar de estranheza, sobre aquilo que por muito tempo
operou sob a lógica do "normal", pode-se considerar que há entre os indivíduos
brancos que participaram da pesquisa um questionamento, mesmo que
inconsciente, sobre a branquidade e seus efeitos nocivos para os demais grupos.
Isso pode estar relacionado ao crescente interesse público sobre temas como
racismo estrutural, discriminação e privilégio branco, que na última década tem
ganhado mais espaço nas mídias a partir do debate, a nível nacional, introduzido
pelas cotas para negros. O debate público sobre essas questões tem levado,
114

como afirma Schucman (2020), a mudanças no comportamento dos brasileiros


brancos, como o reconhecimento do racismo e de seus privilégios. Os dados não
nos permitem ponderar, porém, se essa postura se traduz efetivamente na
prática cotidiana ou apenas fica limitado ao plano das ideias, pois nem todo
branco que reconhece seus privilégios está disposto a abrir mão deles
(SCHUCMAN, 2020). Nesse sentido, é preciso que se realizem pesquisas mais
aprofundadas sobre o tema.

5.2 O PROBLEMA DA PRECARIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO PÚBLICA

Seguindo adiante, o segundo tema mais recorrente, "educação pública",


sugere que os estudantes reconhecem as cotas enquanto uma medida para
equilibrar as condições de concorrência entre os estudantes de escola pública e
de escola privada. Neste argumento, o elemento racial praticamente não
aparece e o foco é direcionado completamente para a infraestrutura educacional
e sua criação de defasagens. Para estes, as cotas estão diretamente ligadas à
necessidade de se resolver o problema causado pelo que eles consideram como
a "baixa qualidade da educação pública brasileira".
Alguns trechos ilustram essa visão, como o de Vanessa: "O Estado
deveria oferecer uma educação de ponta na qual todo mundo pudesse competir
por igual, mas não oferece. No meu ensino médio eu não tive uma aula de
verdade de Química, então como eu compito com uma pessoa que vem do
ensino particular e teve todas as aulas de Química?" (Odontologia, 19 anos,
autodeclarada branca, cotista de escola pública), de Ester: "A qualidade era
péssima. Eu terminei o Ensino Médio e não sabia o que eu ia fazer da vida. Não
teve uma pessoa que me incentivasse, falasse assim, ‘olha, você deveria fazer
um vestibular’. Não teve ninguém" (Direito, 26 anos, autodeclarada preta, cotista
negra) e Camila:

A defasagem é muito grande, o descaso governamental


também é muito grande com o ensino em escolas públicas. A
gente não é ensinada pra pensar, mas para virar mais um
soldadinho - que é a palavra que eu vou saber falar agora - que
vai trabalhar num serviço a mando de uma outra pessoa. Não
que seja vergonhoso, não é! (Direito, 20 anos, autodeclarada
115

preta, cotista negra).

As entrevistadas evidenciam uma série de problemas reais que


enfrentaram ao longo de suas trajetórias escolares na rede pública, como a
ausência de professores, ensino voltado para uma lógica tecnicista, ausência de
estímulos e informações. De fato, constatamos que o discurso de alguns
estudantes não cotistas que estudaram em escolas particulares retrata um
cenário bem diferente do indicado por aqueles que vieram de escola pública.
Vejamos o que diz Jorge:

[Era] uma escola muito forte, muito boa, né? No sentido dos
professores cobrarem bastante, as provas não eram fáceis
nem nada, pra conseguir tirar nota eu precisava estudar. Meus
professores eram muito bons também, o material era muito
bom, o ambiente todo colaborava. Era tranquilo, não tinha
muita bagunça, porque a maioria queria passar numa
faculdade difícil. Muita gente na minha sala, pelo menos na
época, pensava em fazer Medicina (Direito, 23 anos,
autodeclarado branco, não cotista).

Os dois trechos apresentam perspectivas bastantes diferentes sobre a


experiência escolar de cada estudante, trazendo à tona o mito da meritocracia70
em uma sociedade estruturada no racismo. Enquanto Jorge, que ingressou por
meio da ampla concorrência, descreve que estudou em uma escola forte e boa,
com professores exigentes e um ambiente de estudo tranquilo e colaborativo,
dando ênfase na qualidade do material didático e na motivação dos colegas em
passar em faculdades difíceis, como Medicina, as estudantes cotistas narram
uma experiência bastante diferente. Ester classifica a qualidade da escola que
estudou como péssima e relata que terminou o ensino médio sem saber o que
fazer da vida, destacando a falta de incentivo por parte dos professores ou de
qualquer pessoa que a encorajasse a fazer um vestibular. Vanessa menciona o
problema de falta de professores e Camila aponta para falta de estímulo do

70 No Brasil, assim como em qualquer outro país capitalista, prenhe de desigualdades sociais,
falar em meritocracia – termo que exprime a ideia de que qualquer um pode lograr mobilidade
social ascendente, independentemente de sua origem social, racial e cultural, apenas por meio
de seu esforço individual – é reafirmar uma falácia que tem como finalidade última a legitimação
da desigualdade pelas classes afetadas e, consequentemente, a sua reprodução inconteste.
Vários autores já demonstraram que não somente a origem socioeconômica, como também
outros marcadores, racial e de gênero, por exemplo, limitam as possibilidades de ascensão social
de grupos específicos. Ver mais sobre em Hasenbalg (1979) e em Passeron e Bourdieu (2014).
116

pensamento crítico dos estudantes e sua transformação em mão de obra barata.


Os trechos mencionados evocam questionamentos sobre como o discurso sobre
meritocracia é falho em um sistema que não oferece as mesmas oportunidades
para todos os estudantes, ratificando a existência de políticas particularistas,
como as cotas, para minimizar as desigualdades dele decorrentes.
Além disso, eles apontam para o fenômeno da precarização da
educação pública, que consiste, conforme Carvalho (2013), na deliberada falta
de projetos políticos eficazes e realmente interessadas na melhoria da qualidade
da educação, que é resultado da mercantilização da educação, que a transforma
em um mero bem comercial, buscando maximizar lucros e ignorando sua
dimensão transformadora e libertadora (FREIRE, 2005), gerando desigualdades
e excluindo das possibilidades de ascensão social propiciado pelos estudos os
segmentos mais vulneráveis economicamente da sociedade, especialmente os
negros.
Apesar de esse eixo temático não trazer como tema central a questão
racial, convém não negligenciar o fato de que a presença de indivíduos negros
em escolas privadas é consideravelmente menor, perfazendo menos de 10%
dos discentes totais, ao passo que nas escolas públicas sua presença é
majoritária, conforme mostra o estudo realizado pelo Grupo de Estudos
Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA) da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ) a partir de dados do Censo de 2020. Essa discrepância
entre os usuários também foi observada no relato de Juliana, que teve sua
trajetória dividida entre a escola pública e a privada:

A diferença [entre a escola pública e privada] é muito grande e


uma coisa que eu observei é que em questão de cor, na minha
escola particular eu tinha só uma amiga negra, a maioria era
branco, daí na escola pública que eu estudei tinha gente de
todos os tipos (...) Eu estava conversando com minha mãe e
ela falou sobre isso, ‘na sua sala só tinha fulana [uma estudante
negra], né?’ (...) Na minha antiga escola [particular], que tinha
uma educação de qualidade, devia ter, sei lá... Na escola
inteira dava pra contar nos dedos quantos negros tinham
(Direito, 20 anos, autodeclarada parda, não cotista).

O fato de Juliana ter tido contato com poucos estudantes negros durante
sua estadia na educação privada é uma evidência de como as desigualdades
cumulativas originadas pelo racismo são um impeditivo para que a maioria dos
117

indivíduos negros tenham acesso às mesmas oportunidades que os brancos.


Além disso, levando em consideração que muitas escolas particulares dispõem
de melhores condições de infraestrutura e que elas são frequentadas
predominantemente por estudantes brancos, sua fala ilustra como o racismo
atua para a preservação das desigualdades educacionais.
Observamos durante as entrevistas que muitos discentes, assim como
Juliana, frequentemente relacionam educação de qualidade com sistema
educacional privado e educação de baixa qualidade com sistema educacional
público. Todavia, quando se analisa o conjunto de respostas que enfocaram esse
tema, percebe-se uma visão não contestadora das razões pelas quais a
educação pública se encontra no estado "crítico" como apontaram, isto é, o
contexto mais amplo de desmonte de políticas públicas orquestrado pela agenda
neoliberal que produz os déficits de fato existentes e mencionados pelos
estudantes.
Com exceção de Camila, que sinaliza como causador do problema o
"descaso governamental", ao não abordarem os motivos, os outros entrevistados
acabam por enfatizar apenas a dimensão pública como sendo a principal
explicação do que eles consideram a baixa qualidade da educação a que foram
submetidos. Aliás, é importante fixar que a crítica (válida) ao sistema educacional
brasileiro tem sido, muitas vezes, cooptada, instrumentalizada e utilizada como
argumento para legitimar as diversas tentativas de privatização da educação no
país. Sobre isso, é preciso enfatizar que não podemos afirmar ao certo se os
participantes não possuem ciência, mesmo que ainda pouco elaborada, sobre
essa questão, mas o fato é que nas suas respostas não aparecem elementos
críticos.
Nesse sentido, evidencia-se que ainda há entre os entrevistados muitas
zonas cinzas no que tange ao debate educacional, carecendo à universidade
proporcionar debates que discutam o deliberado processo de sucateamento ao
qual a educação brasileira foi submetida durante décadas, a fim de evitar
incompreensões, bem como que todo ônus seja atribuído, indevidamente, à
dimensão pública, como se a "baixa qualidade", atribuída pelos estudantes,
resultasse apenas desse aspecto.
118

5.3 COTAS: POSSIBILITANDO NOVAS PERSPECTIVAS

Outro eixo observado foi o que entendia as cotas como uma espécie de
incentivo para a continuação dos estudos. Percebemos que muitos estudantes
cotistas encontraram dificuldades em receber suporte de familiares para
concluírem os estudos básicos e ainda hoje enfrentam resistência por estarem
na universidade, pois para muitos deles a educação não é vista como algo
essencial.
A esse respeito, o sociólogo brasileiro Jessé Souza (2017), influenciado
pelos trabalhos de Pierre Bourdieu, argumenta que as desigualdades sociais,
para além de seu caráter meramente econômico, são reproduzidas também por
meio da socialização familiar. Segundo o autor, uma família de classe média
padrão, além de dispor dos capitais necessários para o facilitar o sucesso
educacional de seus herdeiros, ratifica constantemente a importância da
educação e estimula habilidades como leitura, disciplina, concentração e o
pensamento prospectivo. Por outro lado, muitos herdeiros da classe popular têm,
desde cedo, que trabalhar para ajudar na renda, não tendo tempo para os
estudos; além disso, eles estão submetidos a outro tipo de socialização, na qual
o pensamento imediatista é mais valorizado, dado os diversos problemas que
enfrentam diariamente para garantir a subsistência. Nesse caso, a educação é
vista como um "privilégio" com o qual, muitas vezes, não se pode contar.
Isso fica evidente na fala de alguns entrevistados, como o de Camila e
Claudia, respectivamente:

As famílias mais carentes não têm o entendimento de que o


ensino é algo importante na vida do aluno. Então eles entram
como uma obrigação, ‘eu tenho que terminar isso daqui pelo
menos’. Não pensando num futuro, numa faculdade, em alguma
coisa assim… Pra mim também foi difícil ingressar na faculdade,
porque a minha família tinha esse mesmo pensamento, só que
eu não me deixei levar pelo pensamento deles, entendeu?
(Direito, 20 anos, autodeclarada preta, cotista negra).

Eu achei que eles fossem ficar mais felizes. É que minha família
nunca viu a universidade como algo essencial. Aqui em casa
todo mundo sempre teve que trabalhar, então pra eles, tendo
faculdade ou não, o que importava era ter dinheiro em casa. Eles
sempre ficavam mais felizes quando eu conseguia outro
emprego, nunca foi a faculdade, mas o emprego, que é a coisa
que eles mais valorizam por aqui (Letras Espanhol, 20 anos,
119

autodeclarada branca, cotista de escola pública).

Percebe-se que as desigualdades sociais mutilam a percepção de


muitas famílias sobre a perspectiva de futuro de seus filhos. Os trabalhos de
Pierre Bourdieu sobre a reprodução71 das desigualdades sociais intergeracionais
demonstram que elas tendem a fazer com que os indivíduos interiorizem as
relações de força entre as classes sociais e naturalizem sua existência. Segundo
o autor, os sujeitos em situação de dominação se encontram nessa condição
porque eles não têm, a princípio, instrumentos de compreensão sobre a
dominação a qual estão submetidos, de modo que já está tão interiorizada a
hierarquia social que todas as desigualdades dela provenientes são tidas como
naturais (JOURDAIN e NOULIN, 2017). Aquilo que foi descrito nos trechos acima
se traduz, em muitos casos, na autoeliminação da classe popular do ambiente
escolar/universitário, isto é, indivíduos que, consciente ou inconscientemente,
reduzem suas aspirações para evitar frustrações, pois acreditam que elas não
são possíveis de se concretizarem.
A falta de apoio familiar devido às dificuldades socioeconômicas se
soma, especialmente no caso dos estudantes negros, à limitação do nível de
aspiração causado pelo racismo. Florestan Fernandes (1959), em seu estudo
sobre a sociabilidade de negros e brancos em São Paulo, conseguiu identificar,
por meio de entrevistas, que muitos indivíduos negros ajustavam suas ambições
de acordo com o que era socialmente esperado deles, isto é, limitavam-se a
sonhar em ocupar cargos e posições de subserviência e menor destaque. Carlos
Hasenbalg (1979), tempos depois, identificou o mesmo fenômeno; para o autor,
uma sociedade fundamentada na ideologia racista, como a brasileira, tende a
produzir nos negros uma restrição quanto à sua motivação e nível de aspiração,
uma vez que lhe são transmitidos discursos a todo instante que colocam em
dúvida a capacidade do grupo racial ao qual pertencem e, por consequência, a
sua própria. Além disso, a discriminação direta e indireta tende a reduzir a
autoestima desses indivíduos e, naturalmente, limitar seus desejos e sonhos. A

71 Ver mais sobre em A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino ([1970]
2014), de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, os quais demonstram que "longe de
favorecer a igualdade de chances, a escola participa da reprodução das desigualdades sociais
e legitima estas desigualdades por um discurso meritocrático" (JOURDAIN: NOULIN, 2017, p.
60).
120

fala de Mauro é representativa desta questão:

No Ensino Médio, mesmo eu tendo notas excelentes a diretora


questionava a minha capacidade e dava a entender que quando
eu tivesse 18 anos eu não estaria na universidade e sim preso.
Algo bem problemático, que hoje olhando eu penso: ‘ah, poderia
ter metido um processo ali’, mas agora já foi… Foi horrível,
porque daí comecei a pensar ‘puts, nunca que eu vou chegar até
lá’. Tanto que é muito importante hoje eu estar dentro da
universidade. Não só para provar pra ela, né? Mas pras outras
pessoas que assim como ela não acreditam e algumas até não
querem que nós estejamos lá. Entende? Então é muito
importante. Por eu sempre ter o apoio da minha família, não me
afetou tanto, mas tem pessoas que se afetam bastante, nem
terminam a escola, saem, porque não são acolhidos (Direito, 18
anos, autodeclarado preto, cotista negro).

No caso acima, nota-se que a diretora da escola em que Mauro estudava


tinha expectativas limitantes em relação a ele, muito provavelmente por conta de
preconceitos raciais arraigados, insinuando que o jovem estaria destinado a
acabar na prisão em vez de ter sucesso acadêmico – típico pensamento racista.
Essa atitude impactou na autoestima e nas aspirações do estudante, levando-o
a duvidar de suas próprias capacidades e pensar que nunca seria capaz de
atingir seus objetivos. Ocorre que, por causa do suporte familiar, ele conseguiu
transformar a dor do racismo em energia e motivação para se dedicar ainda mais
aos estudos para provar não só à diretora, mas para todos aqueles que partilham
do mesmo pensamento racista, que eles estavam errados. No entanto, Mauro
reconhece que a falta de apoio para pessoas que enfrentam casos semelhantes
ao seu torna muito mais desafiadora a tarefa de lidar com essa situação de
maneira bem-sucedida. Quando um jovem que enfrenta episódios de racismo
dentro do ambiente escolar não encontra uma rede de apoio na instituição ou
mesmo fora, o mais comum é que ocorra o fenômeno da evasão escolar.
Pode-se considerar que a evasão está diretamente relacionada ao
racismo e no modo como ele impede a criação de um ambiente acolhedor,
seguro e equitativo para todos os estudantes. Dessa forma, ela tende a incidir
de maneira desproporcional grupos marginalizados socialmente. Os dados da
PNAD Contínua de 2019 revelam esse cenário: 71,1% das pessoas entre 14 e
29 anos que "abandonaram" a escola eram negros. Nesse horizonte, é preciso
problematizar e questionar a ideia de que toda evasão é efeito uma "decisão"
121

individual inteiramente consciente, introduzindo ao debate os efeitos do racismo,


da discriminação e desigualdades sociais que assolam, sobremaneira, os
negros.
Os relatos dos estudantes indicam que as cotas, para alguns deles,
atuam como um estímulo em face a um cenário de falta de apoio familiar,
dificuldades socioeconômicas e marcas deixadas pelo racismo, que agem
justamente para desestimular os discentes a seguir com os estudos. Nesse caso,
as cotas, ao aumentarem as probabilidades de ingresso, tornam o sonho de estar
dentro da universidade mais tangível. Mesmo assim, quando entram na
universidade, a falta de estímulo familiar ainda pode pesar contra, como é o caso
de Luciana, que afirma, ainda hoje, "quando surgem adversidades, eles dizem
para eu desistir. Não recebo tanto apoio por parte deles" (Letras Espanhol, 25
anos, autodeclarada parda, cotas para negros). Isso nos mostra que é
necessário que a universidade disponha de AAs que ofereçam apoio e condições
de permanência para os discentes oriundos de contextos familiares nos quais a
educação não é devidamente valorizada, dado que essa desmotivação tende a
gerar um ambiente mais suscetível à evasão.

5.4 POR UM OUTRO IMAGINÁRIO

O quarto eixo aborda a dimensão reparadora das cotas. De acordo com


os entrevistados, ao permitir o acesso de corpos que historicamente foram
excluídos do ambiente universitário, principalmente os negros, a política de cotas
tem a capacidade de "escrever uma nova história", como afirma Cauê, para além
das imagens controladoras72 (COLLINS, 2016) que foram construídas ao longo
de séculos e também de expandir o horizonte de oportunidades dos usuários. As
formulações de Serge Moscovici (2003) acerca das representações sociais são

72 A partir das vivências de mulheres afro-americanas, frequentemente sujeitas à definição de


suas imagens com base em percepções distorcidas e limitantes impostas por terceiros, como as
representações estereotipadas de "mammies, matriarcas, mães sob proteção de políticas de
bem-estar, mulas ou mulheres sexualmente denegridas" (COLLINS, 2016, p. 4), o conceito de
controle da imagem é empregado para destacar e denunciar a imposição de significados por
parte de pessoas brancas sobre a existência das mulheres negras. Em resposta a isso, muitas
intelectuais afirmam a necessidade de que as mulheres negras e outros grupos marginalizados
reivindiquem o direito à autodeterminação, ou seja, o direito de construir representações mais
diversas e autênticas.
122

importantes para compreender essa questão, pois são elas que, em última
instância, guiam nossas condutas diante do mundo. Ocorre que, em uma
sociedade racista como a brasileira, a imagem do negro foi (e ainda é) construída
durante séculos a partir de aspectos degenerados, conforme já foi amplamente
destacado no capítulo um deste trabalho. O entendimento de que as cotas atuam
justamente na reestruturação desse imaginário social deturpado também foi
verificado durante as entrevistas, conforme pode ser visto na fala de Anália:

A gente ficou muito tempo, o nosso povo, a gente ficou muito


tempo sem poder ser vistos na sociedade. Fomos reduzidos
a pessoas que só podem usar o trabalho braçal mesmo, eu
vejo isso pelo meu pai - minha mãe não, minha mãe é branca -,
mas eu vejo isso muito pelo meu pai e a visão que as pessoas
têm dele, de um homem forte e bom pra trabalho… trabalho
físico. Então acho que essa oportunidade que as cotas trazem
pra nós, pretos, é de mudar a forma que a gente é visto na
sociedade (Direito, 22 anos, autodeclarada parda, cotista negra).

Alguns elementos saltam aos olhos na fala da estudante. Quando ela


afirma que "a gente ficou muito tempo sem poder ser vistos na sociedade", está
se referindo a séculos de invisibilização do povo negro, que teve suas histórias,
realizações e culturas eclipsadas da História Oficial, como se nada tivessem
contribuído para a formação nacional. Ledo, e conveniente, "engano". Além
disso, a fala da discente reafirma o que foi previamente exposto: de que a
representação social define condutas. Ao dizer que as pessoas veem no seu pai
um "homem forte e bom pra trabalho… trabalho físico que seu pai", ela mostra
que o tratamento recebido por ele é diferente do que aquele recebido por sua
mãe, uma mulher branca. Com efeito, a redução do indivíduo negro à sua força
corporal não é um dado recente, muito pelo contrário, esta foi uma das formas
primevas de racismo (WIEVIORKA, 2007). Basta lembrarmos de como a lógica
cartesiana de separação entre alma/razão e corpo operou como uma
"confortável" justificativa para desumanizar seus corpos e torná-los objetos-
mercadorias, propiciando uma usurpação e expropriação mais palatável
(QUIJANO, 2005).
De qualquer modo, observa-se também que, quando a jovem fala da
importância das cotas, ela utiliza a terceira pessoal do plural, como um indicativo
de que a luta dos negros é intrinsecamente coletiva e, quando um ascende, isto
123

é algo representativo para todos os outros. Conforme o próprio relato da


estudante revela, na mentalidade racista, o negro não é tido como indivíduo, mas
sim reduzido a um mero representante de seu povo. Qualquer falha, descuido
ou atributo de ordem pessoal são transformados em elementos que representam
a totalidade dos negros. A eles é negado o direito à individualidade, este é o
monopólio da branquidade. De acordo com Bento (2005), o branco não precisa
lidar com isso, pois é sempre visto como exemplar único, justamente porque a
brancura ainda não é entendida pela maioria da população como raça. Por isso,
dificilmente os brancos são avaliados pela conduta de seus semelhantes, os
negros e indígenas, por outro lado, tem de lidar constantemente com o peso da
responsabilidade da ação de terceiros.
Sobre isso, Collins (2016) destaca a importância do processo de
autodefinição e autoavaliação que o pensamento feminista negro tem realizado
nas últimas décadas. Com vistas a se contrapor às imagens estereotipadas e
controladoras acerca da condição feminina afro-americana, as autoras têm
invocado a necessidade de desafiar a legitimação dos discursos que servem de
base para a sua construção, propondo sua troca por imagens internamente
definidas e, portanto, mais autênticas. Na percepção dos estudantes deste eixo
temático, as cotas atuariam para mudar a mentalidade dos indivíduos sobre o
negro e mais, seriam uma oportunidade para que eles mesmos escrevam suas
histórias para além dos limites racistas impostos, qual seja, um instrumento de
autodeterminação.

5.5 DIREITO VERSUS ASSISTENCIALISMO

Outros temas que aparecem no quadro, como "direito" e


"assistencialismo", apesar de sua incidência reduzida, também são importantes
para compreender a percepção dos estudantes sobre as cotas, apresentando
perspectivas diferentes sobre políticas de inclusão social. Decidimos abordar
ambos em um mesmo tópico, pois entendemos que eles representam faces de
uma mesma moeda.
No primeiro eixo temático as cotas são compreendidas como um
instrumento que garante que o direito à educação, conquistado por meio de
muita luta e mobilização social, seja devidamente cumprido, indo além de
124

benefícios individuais, visando a inclusão de grupos historicamente


marginalizados. Vale mencionar sua baixa recorrência, abordado por apenas por
três dos vinte discentes, sendo um cotista negro e dois de escola pública. Essa
baixa incidência nos permite questionar sobre o tipo de visão que os discentes
em geral têm sobre a educação, bem como problematizar os impactos na forma
como os estudantes cotistas percebem sua condição, pois quando não
compreendem que a educação é um direito73 e as cotas são uma medida para
garantir esse direito àqueles que, devido às desigualdades e discriminações, não
têm acesso igualitário, podem ter uma visão equivocada, considerando as cotas
como uma forma de caridade. Isso pode levar a uma internalização de
sentimentos de vergonha e o desenvolvimento de uma postura apolítica diante
de situações que envolvam o tema das cotas, como veremos posteriormente.
Já o segundo apresenta uma visão crítica às políticas de natureza
assistencialista, como as cotas, argumentando que elas não dão conta de
resolver o problema central que ocasiona as desigualdades: a pobreza. Neste
eixo a questão racial não foi abordada pelos discentes. Essa dimensão foi
identificada apenas em dois relatos de estudantes não cotistas, sendo um branco
e uma estudante negra, ambos oriundos de escolas particulares.
Em suma, enquanto o primeiro eixo reconhece as cotas como um direito
fundamental para a inclusão de grupos marginalizados à educação, o segundo
questiona sua efetividade, defendendo que medidas estruturais sejam tomadas
para solucionar os problemas sociais de forma mais abrangente. Contudo, a
despeito de terem se manifestado na fala dos entrevistados como se fossem
antagônicas, a nosso juízo, tratam-se de visões complementares. É preciso que
medidas a curto e médio prazo, como as cotas, sejam implementadas ao mesmo
tempo em que iniciativas de longo prazo, mais amplas e profundas, como a
melhoria do sistema educacional, sejam executadas.

5.6 SUGESTÕES DAS/OS ESTUDANTES SOBRE A POLÍTICA DE COTAS NA UENP

Os dados levantados por meio das entrevistas ratificam a ampla adesão


das cotas pelos estudantes dos cursos investigados. Observa-se que há

73 Ver mais em Cury (2002).


125

múltiplas representações sobre elas, quase a totalidade enfatizando aspectos


positivos. Nas entrevistas, entretanto, também foi possível identificar críticas ao
modelo de cotas adotado pela UENP.
Dentre os 21 entrevistados, somente quatro deles, apesar de
manifestarem apoio às cotas na instituição, apresentaram sugestões para o
incrementos e/ou alteração de determinados aspectos que, em sua perspectiva,
requerem ''refinamento''74. Foram elas: a) aumentar o número de estudantes
negros; b) criar políticas para a inclusão de pessoas transgêneras; c) delimitar
as cotas somente para aqueles que fizeram integralmente os estudos na
educação pública75; d) instituir uma nota de corte mais rigorosa; e) definir melhor
os parâmetros de heteroidentificação a fim de diminuir possíveis fraudes.
Destaca-se que, embora a política de cotas tenha propiciado um maior
acesso aos estudantes negros, o número está aquém do que poderia ser na
visão de muitos entrevistados76. Ao analisar a baixa presença indicada, deve-se
considerar um conjunto de variáveis que podem estar dificultando, mesmo com
tal medida, o ingresso desse segmento aos bancos universitários, como a
necessidade "abandonar" os estudos e trabalhar para contribuir na renda,
autoexclusão inculcada pelo racismo e até mesmo o desconhecimento sobre a
reserva de vagas. Outro ponto que merece destaque é que as cotas na UENP
são exclusivas para estudantes de escola pública, não incorporando o grupo de
discentes em situação de vulnerabilidade econômica que estudaram em escolas
particulares através de bolsas de estudo. Um exemplo disso é a UEL, que
passou a reservar 5% do total de vagas aos estudantes negros de quaisquer
percursos escolares, partindo do entendimento de que o racismo afeta a vida e
as oportunidades de todos os negros, independentemente de sua origem
socioeconômica.

74 Convém enfatizar que, de acordo com nossa análise, nem todas as sugestões apresentadas
a seguir são positivas; muitas delas refletem opiniões que contrariam a concepção que
advogamos neste trabalho, a qual preconiza uma universidade mais inclusiva.
75 Aqui é importante explicar que o entrevistado não se colocou contrário às cotas para negros,

apenas enfatizou a necessidade de que toda trajetória escolar, e não apenas o ensino médio,
fosse realizado integralmente em escola pública, sendo aplicada essa obrigatoriedade aos
cotistas de escola pública e para os cotistas negros de escola pública.
76 Por não dispormos de dados quantitativos atualizados sobre o assunto, não é possível dizer

ao certo o que está causando o fenômeno evidenciado pelos participantes da pesquisa, isto é, a
baixa representatividade de estudantes negros. Todavia, é algo que merece atenção da
instituição em questão a fim de constatar se este quadro é realmente procedente e, então, pensar
em estratégias para solucioná-lo
126

Outro apontamento crítico foi realizado por uma estudante cisgênera


sobre o fato de não haver nenhuma espécie de AA voltada para a inclusão de
pessoas transgêneras no ambiente universitário. Para entender a queixa feita
por ela, é preciso entender primeiro, mesmo que sumariamente, o que é a
transfobia e como ela afeta a vida de pessoas trans. Segundo Jesus (2012, p.
29), a transfobia é o "preconceito e/ou discriminação em função da identidade
de gênero de pessoas transexuais ou travestis". Nesse sentido, a transfobia
pode levar a diversas formas de violência, opressão e exclusão social. Em 2023
o Brasil figurou pelo 14º ano consecutivo em primeiro lugar no ranking de países
com mais mortes de pessoas trans e travestis do mundo, de acordo com
informações do Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais
Brasileiras da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra)77. Sabe-
se, também, que grande parte das pessoas trans se "evadem", ou melhor, são
excluídas, do ambiente escolar antes de concluir os estudos por conta do
preconceito e discriminações que vivenciam diariamente na escola, sem o apoio
da instituição que, em muitos casos, reforça ainda mais a violência contra esse
grupo. Além disso, a ausência de formação escolar/acadêmica, aliada ao
preconceito e discriminação, reduzem drasticamente as oportunidades de
trabalho para esse grupo, levando muitas, no caso das que se identificam com o
gênero feminino, a recorrer à prostituição como única fonte de renda 78. São por
esses, e vários outros motivos, que, acertadamente, a discente tece crítica à
UENP e sua urgente necessidade de pensar em maneiras de integrar esse
segmento à universidade.
Uma sugestão foi sobre as cotas serem reservadas somente para
aqueles que fizeram integralmente a trajetória escolar em escola pública. Ocorre
que no sistema de cotas da UENP apenas é avaliado o Ensino Médio, de modo
que pessoas que utilizaram a rede privada de ensino no Ensino Fundamental
também estão aptas a concorrer por essa modalidade. Contrariando essa lógica,
o estudante acredita que aqueles que estudaram em escolas particulares
durante o Ensino Fundamental não deveriam poder utilizar as cotas, porque "um

77 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/01/26/mortes-


pessoas-trans-brasil-2022.htm. Acesso em: 26 de abr. de 2022.
78 Conforme dados da Antra, 90% da população trans no Brasil tem a prostituição como única

forma de renda. Disponível em: https://edicaodobrasil.com.br/2021/05/28/90-da-populacao-


trans-no-brasil-tem-prostituicao-como-fonte-de-renda. Acesso em: 26 de abr. de 2022.
127

ano que você estuda em escola particular já faz toda a diferença". Seu
posicionamento reforça o tencionamento existente entre educação pública e
privada, discutido anteriormente, e aponta para uma demanda institucional de
reavaliar os critérios de utilização dessa política e, consequentemente, seus
impactos.
Isso nos leva a outro apontamento feito por uma estudante cotista negro
que mencionou ser importante a UENP repensar, também, os critérios de
aprovação dos estudantes cotistas e instituir uma nota de corte mais rigorosa. A
discente se mostrou receosa sobre alguns possíveis efeitos da política de cotas
sobre o mérito de certos estudantes que optam por ela. Conforme argumenta,
muitas pessoas fazem o vestibular sem estudar, não se esforçam e passam
utilizando as cotas, o que, no seu entender, acaba por deslegitimá-las. Se por
um lado o aumento da nota de corte para os cotistas pudesse evitar
desproporções79 entre as médias das demais formas de ingresso, sua ocorrência
poderia limitar o acesso de candidatos que, embora não tenham atingido a
pontuação média, ainda assim apresentam condições intelectuais que os
habilitam estar na universidade. O posicionamento da estudante demonstra uma
lógica competitiva, resultado da ideologia meritocrática presente na sociedade,
que desconsidera as desigualdades estruturais que afetam,
desproporcionalmente, a vida dos diferentes grupos sociais. O fato de ela ser
uma estudante negra que entrou na universidade pelas cotas e mesmo assim ter
esse pensamento revela como a retórica meritocrática é complexa e a
necessidade de ser enfrentada.
A última crítica foi com relação ao que um estudante branco considerou
como falta de parâmetros do processo de heteroidentificação, a fim de diminuir
possíveis fraudes. Seu apontamento reside no fato de que algumas pessoas que
entraram especificamente por intermédio de cotas para negros não são, sob o
seu ponto de vista, negras o bastante – o mesmo sentimento também foi
compartilhado por outros estudantes negros, como Mauro, que disse:

Eu e uma amiga estávamos falando sobre uma menina, que a


gente olhou pra ela e… não bateu a carteirinha de Wakanda [faz

79Vários estudos têm demonstrado que o desempenho de estudantes cotistas no decorrer da


graduação é semelhante aos dos não cotistas, em muitos casos, tendo médias superiores a
estes. Ver mais em Jacques Velloso (2009) e Silva e Jairo (2013).
128

o sinal de aspas] a gente brincou [risos]… porque não sei não…


Tem alguma coisa ali… porque a gente não leu ela como uma
pessoa negra, ou parda, enfim… (Direito, 18 anos,
autodeclarado preto, cotista negro).

É preciso ponderar que o entendimento de que a UENP deveria instituir


critérios fisionômicos mais rígidos para pessoas negras pleitearem as cotas para
negros, ao mesmo tempo em que pode reduzir as taxas de fraudes, também
pode ter como consequência a exclusão de pessoas que, apesar de não
apresentarem características físicas acentuadas, ainda assim sofrem, tomadas
as devidas proporções, com os efeitos do racismo e das desigualdades
estruturais que afetam a comunidade negra. Além disso, é preciso considerar
que o processo de miscigenação que ocorreu no Brasil acabou por produzir uma
sociedade cuja escala cromática é bastante variada, de modo que, muitos
intelectuais defendem que a identidade racial, apesar de encontrar no aporte
físico um importante indicador, não se limita a ele. Sendo assim, essa crítica abre
margem a um campo de discussão ainda em aberto, composto por diferentes
argumentos e pontos de vista, de modo que não procuramos adentrá-lo de forma
aprofundada, senão indicar sua existência bastante controversa.
Entre os entrevistados, apenas uma estudante relatou ser contrária às
cotas para negros. Como a entrevista ocorreu por meio de uma chamada
telefônica a seu pedido, não foi possível gravar a conversa e, portanto, reproduzir
sua fala na íntegra. Em síntese, Iasmin, estudante branca de 20 anos que entrou
por cotas de escola pública no curso de Letras Espanhol, disse que se sentia
grata e feliz pela existência das cotas, pois diante das suas dificuldades
socioeconômicas, e por ter estudado a vida toda em uma escola pública, não
teria chances de competir em pé de igualdade com aqueles que estudaram em
escola particular. As cotas, na sua visão, foram a única possibilidade para ela
entrar em uma universidade pública. Por outro lado, quando o assunto foi a cota
para negros, ela evidenciou outra percepção. A estudante relatou um episódio
que a fez confirmar a sua opinião contrária. Disse que no vestibular de 2020,
dois de seus colegas de turma do Ensino Médio se inscreveram para o curso de
Direito. Um jovem branco humilde de pouquíssimas condições socioeconômicas
e uma jovem negra com mais recursos. Ela disse que via o menino estudar muito
durante as aulas e inclusive no recreio para entrar na universidade e que não via
129

o mesmo esforço da jovem. Resultado: ela passou utilizando as cotas para


negros de escola pública, mesmo com uma nota mais baixa, e ele, mesmo
tirando uma nota mais alta que a dela, não conseguiu passar. Denise afirmou
não ter achado justo o resultado e, por isso, era contrária à existência de cotas
para negros.
Novamente, a ideologia da meritocracia desponta em outro relato. Nele
vemos que a estudante branca assumiu que, uma vez que seu colega branco
era mais esforçado, ele deveria ter sido aprovado em vez de sua colega negra,
que entrou por meio das cotas para negros. Sua lógica desconsidera o fato de
que, apesar do esforço individual, o racismo, por meio de refinadas estratégias,
cria obstáculos e desigualdades que dificultam que pessoas negras obtenham o
mesmo nível de sucesso que pessoas brancas. Sendo ela mesma uma pessoa
branca, sua fala encobre uma percepção que não é essencialmente apenas sua,
mas da própria branquidade, que se traduz no privilégio branco de não ter de
pensar em termos estruturais, limitando-se a casos particulares. A branquidade
individualiza o sujeito e o seu olhar para o mundo. Portanto, seu posicionamento
reflete uma percepção personalizada e individualizada da discussão, como se
aquele caso fosse representativo de todo o sistema de cotas a ponto de
deslegitimá-lo, desconsiderando uma conjuntura estrutural mais complexa, que
engendra defasagens sistemáticas que acometem, sobremaneira, a população
negra. Assim, o relato da estudante mostra a necessidade de uma discussão
mais ampliada sobre o tema das cotas, especialmente aquelas destinadas aos
negros.

5.7 SER COTISTA NA UENP

Seguindo com os objetivos da pesquisa, questionamos na etapa das


entrevistas como era ser cotista na UENP; com isso, queríamos observar a
vivência desses estudantes e qual a influência do uso das cotas no
desenvolvimento de sua sociabilidade na universidade. Os relatos colhidos
foram categorizados a partir dos temas mais recorrentes e organizados na forma
de um quadro que pode ser consultada logo abaixo.
130

Quadro 3 – Percepções dos entrevistados sobre ser cotista na UENP

- Frequência
Cotistas Cotista
Eixos Categorias Exemplos negros s de Total
temáticos de escola escola (%)
pública pública
Não percebe
nenhuma ''Lá todo mundo faz
Despreocup forma de faculdade, independente se 9 2 11
ação diferenciação é cotista ou não''. (42,86%) (9,52%) (52,38%)
no
tratamento.
Receio em ''Tive medo, porque a gente
falar vê uma diferença muito
abertamente grande da nota de corte da
sobre ser ampla concorrência. Então
Receio cotista com eu tive receio do que as 5 1 6
medo de pessoas iam pensar, se (23,81%) (4,76%) (28,57%)
discriminaçã iam comparar… Falar que
o. não é justo…''.
Estudantes ''Cara, a gente sente
empoderado orgulho, sabe? Pra muitos
Orgulho s na estar na universidade é 1 2 3
condição de algo histórico''. (4,76%) (9,52%) (14,29%)
cotistas.
''...ele começou a falar que
era um absurdo as cotas,
sabe? Falou bastante coisa
mesmo pra ela e aí o
restante do povo que
Relato de estava na van foi contrário
Discriminaç casos de a ele e tudo mais, mas 1 0 1
ão discriminaçã foi… foi bem pesado, (4,76%) - (4,76%)
o por ser porque ela chegou bem
cotista. mal na faculdade por conta
disso, de ela perguntar pra
gente ‘nossa, será que a
gente merecia estar aqui?’'.
Fonte: dados da pesquisa.

5.8 INDIFERENÇA OU MEDO? A FALTA DE DISCUSSÕES SOBRE COTAS NA UENP

Durante as conversas com os entrevistados, conseguimos identificar que


a experiência de ser cotista na UENP está fundamentada, principalmente, em
dois sentimentos, a despreocupação e o medo, que estão unidos por um mesmo
fio condutor: o silêncio. Silêncio este muito mais acentuado e com causas muito
mais problemáticas entre os cotistas negros. Ao analisarmos a situação dos
cotistas de escola pública, observamos que o silêncio muitas vezes está
relacionado a uma falta de reflexão, privilégio oriundo da ausência de
questionamentos devido ao fato de serem brancos. Por outro lado, para os
131

estudantes cotistas negros, mesmo entre aqueles que aparentam não se


importar com a questão, o não tocar no assunto parece estar ligado a uma
estratégia inconsciente para evitar possíveis conflitos – aprofundaremos esses
elementos ao longo deste tópico.
Quando questionados sobre como era ser cotista na UENP, a maioria
das respostas apontaram, em um primeiro momento, para um sentimento de
despreocupação com relação a essa questão. Percebeu-se que maioria dos
estudantes entrevistados relataram que lidam normalmente com o fato de serem
cotistas e muitos, quando questionados sobre o significado em sê-lo, após
pequenas pausas, revelaram nunca ter pensado sobre o assunto. Alguns
discentes disseram, inclusive, que mesmo quando um estudante menciona o fato
de ser cotista, essa informação tende a não ficar registrada em suas memórias,
porque a consideram algo trivial, sem importância. Vanessa afirma:

Não, nunca foi pautado esse assunto. É muito normal. Lá todo


mundo faz faculdade, independente se é cotista ou não. Todo
mundo estuda, entendeu? Todo mundo vai com esse objetivo,
então nunca nenhum professor ou nenhum aluno me perguntou
se eu era cotista ou não. Às vezes já surgiu o papo no primeiro
encontro, de quem era de escola pública, umas pessoas
levantaram a mão e pronto, mas o debate sobre cotas nunca
aconteceu (Odontologia, 19 anos, autodeclarada branca, cotista
de escola pública).

Segundo a percepção da entrevistada, não há diferenciação entre os


estudantes com base na forma de ingresso. Temos de levar em consideração
que Vanessa fala do lugar de uma mulher branca, dessa forma, o fato de não ter
particularmente percebido nenhum tratamento enviesado por ser cotista não
pode ser tomado, automaticamente, como uma realidade de todos os outros
estudantes, pois conforme o estudo de Souza (2018) demonstra, quando o
assunto é cotas, os negros são os mais estigmatizados, mesmo aqueles que não
ingressaram através de tal medida. O discurso de Anália enfatiza esse aspecto:

Por exemplo, se você olha pra mim sabe que eu sou cotista
sociorracial, eu acho que a gente tem essa característica, né?
Agora pra quem é cotista social, não sei se eles falam
abertamente, eu falo muito. [Então você acha que estudantes
negros que tem uma de pele mais escura já são
automaticamente taxados…] Sim. Mesmo aqueles que não
entraram por cotas às vezes são taxados… Eu acredito que
132

tenha sim. Eu reproduzo isso. Mesmo não querendo, eu


reproduzo. Porque eu acho que o pessoal, as pessoas olham
pra mim e já pensam, me ligam com as cotas, né? Então por eu
achar que as pessoas pensam isso de mim, eu meio que
também penso automaticamente, mas não que isso seja um
problema… Não pra mim (Direito, 22 anos, autodeclarada parda,
cotista negra).

Observa-se, portanto, que o peso da palavra cotista é muito maior para


as pessoas negras, porque ao serem minoria dentro do espaço universitário,
suas presenças tendem a ser prontamente relacionadas às cotas, enquanto os
discentes brancos podem dissimular80 muito mais facilmente ou mesmo se
esquivar de possíveis conflitos, caso julguem conveniente. O termo cotista e
suas variações podem carregar conotações pejorativas dependendo do contexto
em que são proferidas, sendo utilizados como formas de insulto. Em vista disso,
a fala da estudante nos direciona o olhar para o processo de estigmatização ao
qual o grupo negro pode estar submetido dentro da universidade, que prejudica
o estabelecimento de redes de sociabilidade inclusivas, dado que, quando isso
ocorre, os indivíduos em interação rompem com o processo de identificação
entre si e, consequentemente, podem criar entraves e limitações na interação.
Aqui, cabe mencionarmos a noção de estrangeiro, teorizada
primeiramente por Simmel e retomada por Baechler (1995). Simmel argumentou
que, em uma sociedade, os indivíduos podem ser considerados "estrangeiros"
quando não compartilham das mesmas características ou não pertencem ao
mesmo grupo social que a maioria. Em uma situação em que uma pessoa se
percebe como estrangeira, ela pode experimentar sentimentos de exclusão,
isolamento e constrangimento. Esses sentimentos podem ser agravados quando
a pessoa é vista pelos outros como estrangeira ou diferente e é submetida a
julgamentos ou críticas.
O estrangeiro é sempre visto como alguém fora do grupo de origem,
alguém que está em desvantagem na interação social e que precisa lidar com a
desconfiança e o preconceito dos demais membros da comunidade. Ao
relacionar o conceito de estrangeiro com o ser cotista, podemos perceber que o
estudante cotista muitas vezes também é visto como um Outro, alguém que não

80Esta questão é amplamente evidenciada no trabalho do pesquisador Nikolas Gustavo Pallisser


Silva (2019).
133

pertence ao grupo social dominante e que pode ser alvo de preconceito e


discriminação. Assim como o estrangeiro, o estudante cotista precisa se adaptar
a uma nova realidade, enfrentando desafios e barreiras que muitas vezes não
são enfrentadas pelos demais membros da comunidade acadêmica.
No entanto, é importante destacar que a ideia de ser um estrangeiro não
é necessariamente negativa. Assim como o estrangeiro, o estudante cotista traz
consigo uma bagagem cultural própria, que pode contribuir para a diversidade e
o enriquecimento do ambiente acadêmico. Portanto, é fundamental que sejam
criadas condições para que o estudante cotista se sinta acolhido e integrado, de
modo a garantir que a sociabilidade ocorra de forma satisfatória para todos os
envolvidos. Nesse contexto, a fala de outra estudante também é bastante
significativa:

Na sala, teve uma situação… Posso contar sobre a situação?


[Claro!]. Que foi meio assim, que eu percebi algo de errado… O
professor levou três livros para a sala de aula e ele disse que
daria um livro pra quem passou em primeiro lugar na universal…
acho que é assim que fala, né? Nas cotas e no PCD. E aí,
quando o professor falou isso, o que entrou pela universal o
menino levantou a mão lá em cima e ganhou o livro, quando ele
falou das cotas… Eu não passei em primeiro lugar, senão eu já
teria erguido minha mão com tudo para pegar o meu livro, né?
Mas a menina que passou, eu senti que ela ficou com receio de
falar que ela tinha passado utilizando cota. E eu até queria ter a
oportunidade de falar com ela… Eu ainda vou falar sobre isso! E
ela ficou com receio, sabe? Ficou uma coisa que todo mundo
observou, todo mundo ficou olhando… Ficou meio que um
constrangimento geral e, não por ela, mas acho que pela forma
que algumas pessoas olharam pra ela, sabe? De achar que
talvez ela é menos por ter utilizado as cotas e a gente sabe que
não é assim que funciona, né? Mas esse acontecimento ficou
marcado na minha memória e eu fiquei bem pensativa depois…
O assunto não é debatido, não sei porquê. Às vezes algumas
pessoas não tocam muito no assunto. Eu acho que… Sei lá,
acho que algumas pessoas sentem vergonha, eu vejo. Não sei
se esta é a palavra certa, mas acho que algumas pessoas se
sentem. E eu não sei, na sala de aula eu sou super
comunicativa, sempre converso, pergunto, enfim… E eu não sei
se é uma coincidência, às vezes é, às vezes é o jeito da pessoa,
mas a maioria… Eu não me lembro de algum cotista ter falado
alguma coisa durante a aula, não porque eles não se
manifestam, talvez por serem tímidos… (Laura, Direito, 19 anos,
autodeclarada negra, cotista negra).

Antes de adentrar na análise mais aprofundada do relato da estudante,


134

é pertinente promover uma crítica à conduta do professor que, ao premiar os


discentes pertencentes a diferentes categorias baseado em critérios
estritamente vinculados ao desempenho acadêmico, reforça uma noção de
mérito que se revela, em nosso entendimento, bastante perigosa quando o
assunto é tornar a universidade um local mais inclusivo. O critério do docente
para presentear aqueles considerados os ''melhores estudantes'' se apoia,
exclusivamente, na avaliação das notas alcançadas no vestibular. Contudo, ao
seguir esse caminho, o professor negligencia a diversidade de talentos,
habilidades e contribuições que não se limitam a um único exame, resultando
em uma sobrevalorização dos concursos. Esses concursos muitas vezes se
baseiam excessivamente em conteúdos e memorização, critérios que, embora
predominantes em muitas avaliações, não necessariamente refletem uma
medida precisa do que é ser um bom estudante.
Além disso, essa abordagem docente parece adotar uma visão
utilitarista da educação, promovendo um mercado de cursos preparatórios para
vestibulares que movimenta milhões no Brasil. Como é sabido, os estudantes de
famílias mais abastadas têm acesso ao capital econômico e tempo necessários
para aproveitar esses serviços, enquanto muitos da classe trabalhadora
precisam conciliar trabalho e estudos, uma realidade particularmente destacada
nas entrevistas, especialmente com os alunos negros. É importante ressaltar que
50% dos entrevistados negros vive com a renda familiar mais baixa, de um a
dois salários mínimos. Assim, mesmo que o professor partilhe os prêmios por
categorias de entrada, ainda perpetua a ideia utópica de que o sucesso é
puramente resultado do esforço individual, o que, na realidade, não reflete a
complexidade das barreiras enfrentadas por diferentes grupos de estudantes em
suas jornadas educacionais.
Em resumo, ao premiar os estudantes com base no 'mérito', a
abordagem do professor acaba por desconsiderar as desigualdades e desafios
distintos enfrentados por cada grupo de estudantes em sua trajetória
educacional. Além disso, ela tende a propiciar a criação de um ambiente no qual
os estudantes são primariamente avaliados com base em seus resultados
acadêmicos, sem que se reconheça devidamente a importância de valorizar e
compreender as experiências e trajetórias individuais que cada estudante
carrega consigo. Ademais, conduta contribui para reforçar um ambiente
135

competitivo, o que pode ter implicações negativas na dinâmica da sala de aula e


na interação entre os discentes.
Dando sequência, no trecho narrado, Laura observa uma situação em
que um professor distribui livros para os discentes que passaram em primeiro
lugar, sendo um para a universal (ampla concorrência) e outro para as cotas e
PCD. Quando a cotista que passou em primeiro lugar se levanta para pegar seu
livro, a estudante Laura percebe que a garota parece receosa em revelar que
utilizou cotas para passar no curso. Ela sente que a garota está sendo julgada
ou desvalorizada por ter utilizado cotas, o que gera um constrangimento geral na
sala de aula. A narrativa sugere que a situação vivida por ela pode ser vista como
um exemplo do "estranhamento", que é a sensação de se sentir excluído ou
diferente em um grupo social. Nesse caso, a cotista, ao ter de indicar que fez
uso das cotas, sinaliza ser uma estrangeira naquele ambiente acadêmico, em
que a maioria dos estudantes passou pela seleção de ampla concorrência. É
possível que ela tenha sido submetida a situações semelhantes em outras
ocasiões, o que pode ter reafirmado uma sensação de inadequação e
desconforto em relação ao seu lugar no grupo.
Outro aspecto importante a ser indicado diz respeito à questão de que,
tal como dizia Simmel sobre os estrangeiros terem uma visão privilegiada da
sociedade porque são capazes de observar as normas e valores de uma posição
exterior, Laura parece ter uma visão mais crítica e consciente da forma como a
temática das cotas é percebida no ambiente universitário, bem como isso afeta
a autoestima e a autoconfiança dos cotistas, uma vez que verifica que seus
colegas cotistas tendem a ser mais tímidos ou retraídos, o que pode ser
resultado da condição de estrangeiros ou de uma sensação de desconforto em
revelar sua origem social.
Em resumo, a narrativa da estudante cotista negra sugere que as cotas
podem gerar situações constrangedoras e conflitos na sociabilidade dos
estudantes, e que a condição de diferente pode ter um impacto significativo na
no modo como os estudantes vivenciam a universidade, mantendo uma postura
mais retraída e vigilante. Nessa perspectiva, as teorizações de Simmel sobre a
figura do estrangeiro e sua visão privilegiada da sociedade podem fornecer um
quadro analítico útil para compreender as experiências vividas pelos cotistas e
os desafios enfrentados na integração social e acadêmica.
136

Dando continuidade, apesar de existirem estudantes que falam


abertamente sobre as cotas, identificamos que para grande parte deles a forma
de ingresso é vista com despreocupação e raramente é trazida à tona. Luciana,
por exemplo, expõe: ''Meu convívio é normal, porque na verdade eu nem sei
quem são os alunos cotistas. Esta questão não é mencionada não'' (Letras
Espanhol, 25 anos, autodeclarada parda, cotista negra). Outros participantes
também mencionaram a dificuldade em identificar quem são os estudantes
cotistas em decorrência do silêncio que adeja sobre a questão. Tal postura
evidencia que após a entrada na universidade, o assunto das cotas dificilmente
surge, com isso, os possíveis conflitos dele decorrente não acontecem ou,
quando acontecem, não são atribuídos ao fato de serem cotistas.
Notamos que, geralmente, o tema das cotas surge somente no primeiro
ano de curso, mais especificamente nos primeiros dias de interação, no
momento em que os estudantes estão começando a se conhecer. Depois
dificilmente o assunto surge novamente. Parte dos entrevistados relataram que
tiveram, durante o ensino médio, pelo menos um debate promovido por um
professor a respeito das cotas. Todos que tiveram essa experiência
confidenciaram que ela foi bastante conflituosa e, em certo ponto, traumática,
por conta dos diferentes posicionamentos defendidos.
Camila, por exemplo, relembra que, no seu ensino médio, participou de
dois debates sobre a questão, nos quais ''todo mundo se manifestou, mas a
grande maioria era contrário às cotas, sabe? Eles falaram coisas assim, bem
absurdas…E eu defendia já as cotas, porque só a gente entende, né?'' (Direito,
20 anos, autodeclarada preta, cotista negra). O trecho ''porque só a gente
entende'' sugere que a estudante protagonizou embates na defesa das cotas
durante o ensino médio com colegas de turma que muito provavelmente eram
brancos e/ou tinham melhores condições financeiras, o que fazia com que eles
não compreendessem a importância de tal política.
No mesmo sentido, Denise argumentou ter ouvido, durante a época que
estava pensando em fazer um vestibular, inúmeros casos de discriminação de
estudantes cotistas por meio de notícias em jornais e por terceiros, o que a fez
ficar em ''choque'' e se questionar ''será que vou me fazer [o vestibular]? Como
vai ser quando eu entrar?'' (Odontologia, 21 anos, autodeclarada parda, cotista
negra). Pode-se supor que experiências como essas, marcadas pelo
137

desconforto, ou mesmo o contato distanciado com opiniões contrárias, produzam


em alguns sujeitos o que outra discente, Claudia, chamou de ''receio
inconsciente'' de não querer tocar no assunto. O fato de o ambiente universitário
da UENP ser hegemonicamente branco81, contribui com o imaginário de muitos
estudantes cotistas, especialmente os negros, de que enfrentarão os mesmos
conflitos envolvendo a temática que tiveram durante o ensino médio ou dos quais
ouviram falar.
Nesse horizonte, alguns estudantes negros disseram que tinham um
receio de expor a forma ingresso antes de entrar na universidade, com medo de
como essa informação seria vista e recebida pelos demais discentes. Porém, ao
ingressar no ambiente universitário, em alguns casos, esse temor se dissipou
após verificarem que não ocorreu nenhuma situação de tensão envolvendo esse
assunto como esperavam.
Dessa forma, o silêncio sobre as cotas impede que elas se tornem um
dilema com o qual os estudantes tenham de se deparar cotidianamente. Há,
evidentemente, exceções. Por ora, é pertinente compreendermos quais os
possíveis motivos que fazem com que o tema das cotas não seja abordado. Em
um primeiro momento, podemos pensar que é porque, em se tratando de um
assunto específico, ele dificilmente surja espontaneamente nas conversas dos
estudantes, que, conforme observamos, mostraram certa indiferença ao tema.
De fato, esse é um fator a se considerar, porém os relatos indicam que para além
da própria natureza do tema, outro aspecto deve ser também tomado em conta.
Vejamos as falas a seguir:

Não sei se é de propósito, mas ninguém da sala especificou


sobre a forma de ingresso. Falaram, ‘eu entrei pelo SISU’, ‘eu
entrei pelo vestibular’, mas ninguém falou se foi por cotas ou
não. Talvez seja algo inconsciente, não falar para não ser visto
de forma ruim, tanto que eu não falei que eu era cotista porque
eu pensei, ‘ah, talvez não seja uma pauta importante’. Talvez
realmente tenha esse receio inconsciente das pessoas falarem:
‘nossa, ele entrou só por causa das cotas’. Eu acho que não teria
este tipo de julgamento, mas a gente tem este tipo de receio
naturalmente, das pessoas nos julgarem, mesmo que a outra
pessoa não vá julgar (Iasmin, Letras Espanhol, 20 anos,
autodeclarada branca, cotista de escola pública).

81 Vide estudo realizado por Brochado et al. 2018.


138

Nunca parei para pensar, mas eu nunca vi ninguém falando que


é cotista, eu acho que o pessoal costuma não falar, se perguntar
talvez falem, mas costumam não falar. Eu acredito que eles
optam por não falar para não parecer que estavam pegando a
vaga de alguém, que vem daquele pensamento que o pessoal
normalmente tem. Eu acho que o pessoal prefere não falar para
meio que evitar este tipo de pensamento, sei lá… Mas eu levo
na boa, acho tranquilo (Roberto, Letras Espanhol, 24 anos,
autodeclarado negro, cotista negro).

Tive medo, porque a gente vê uma diferença muito grande da


nota de corte da ampla concorrência. Então eu tive receio do que
as pessoas iam pensar, se iam comparar… Falar que não é
justo… Nunca ninguém mencionou nada sobre, mas eu tenho
receio de falar que eu sou cotista. Vejo amigos que amigos de
outras universidades também têm (Mauro, Direito, 18 anos,
autodeclarado preto, cotista negro).

Os trechos acima evidenciam o medo dos estudantes cotistas em


especificar a forma de ingresso, provavelmente com receio de serem vistos de
forma negativa pelos outros colegas, assim como observou Laura. Isso
demonstra o entendimento de que tocar no assunto pode dificultar e, até mesmo,
restringir a sociabilidade dos estudantes. Entretanto, Claudia afirma acreditar
que isso não ocorreria, o que indica que ela não vivenciou na universidade
nenhum episódio que justificasse tal visão. O ''receio inconsciente'' salientado
pela discente, e corroborado em outros discursos, para além de situações
concretas que eles tenham vivido, parecem originar a partir de conjecturas do
que Claudia considera ser algo da própria natureza humana, isto é, o medo de
ser percebido e tratado de maneira diferenciada a ponto de dificultar o processo
de integração social.
Em alguns momentos nos quais há um diálogo aberto sobre o tema,
nota-se que os conflitos começam a aparecer. Uma fala indicativa é a do
estudante Junior, que diz: ''Às vezes a gente conversa [sobre as cotas], mas
quando a gente vê que está tendo atritos, aí geralmente acaba. Quando começa
a ter um debate que tem atrito a gente acaba, porque a gente é tudo colega,
então a gente prefere não arrumar atrito, sabe?'' (História, 23 anos,
autodeclarado negro, cotista negro). Seu relato nos alude ao pensamento de
Simmel (1983), o qual defende que para que a sociabilidade ocorra de forma
satisfatória, é preciso que os indivíduos implicados no processo de interação se
unam em torno de pontos em comum e neutralizem as adversidades que os
139

separam. Segundo o pensador, eles deveriam respeitar o que ele chama de


''natureza democrática'' da sociabilidade, isto é, precisariam ser capazes de
eliminar, no momento da interação, os aspectos singulares que os diferenciam,
a fim de anular tudo aquilo que possa gerar conflito. A fala de Junior revela que
em seu grupo de colegas há divergências sobre o tema das cotas, mas que são
silenciadas na tentativa de criar uma sociabilidade sem conflitos, mesmo que
eles sejam inevitáveis.
No tipo-ideal simmeliano, a anulação de opiniões e características
pessoais deveria criar um ambiente de pretensa igualdade entre os membros da
interação, porém, conforme adverte Simmel (1983, p. 172), a sociabilidade plena
somente poderia acontecer no interior de um determinado estrato social, de
modo que quando ela ocorre entre indivíduos pertencentes a grupos sociais
muito distintas acaba se tornando, segundo ele mesmo, ''inconsistente e
dolorosa''. A política de cotas, porém, torna o convívio entre diferentes grupos
sociais um imperativo com o qual os indivíduos devem aprender a lidar. Nessa
lógica, caberia aos membros da interação ter a sensibilidade, isto é, tato, no
modo como devem se comportar perante os outros, respeitando as normas de
bom convívio e evitando possíveis atritos. O tato, portanto, desempenha uma
função reguladora para que a sociabilidade ocorra de forma satisfatória
(SIMMEL, 1983).
Tomando em consideração esses pensamentos, o silêncio que envolve
as cotas nos parece uma estratégia encontrada pelos estudantes para serem
integrados mais facilmente ao ambiente universitário, como uma expressão do
tato no sentido de inibir conflitos na sociabilidade com os outros estudantes. Em
nossa pesquisa, verificamos um medo maior, especialmente entre os cotistas
negros dos cursos mais concorridos da UENP, em abordar o assunto; é preciso
relembrar que esses cursos são historicamente compostos por uma maioria de
jovens brancos de escolas particulares, com realidades socioeconômicas
bastante distintas dos cotistas, como demonstra o Gráfico 3 sobre o nível de
renda dos discentes.
A partir da perspectiva do indivíduo, é extremamente angustiante reviver
constantemente o racismo e seus efeitos subjetivos. O comportamento que aqui
denominamos de ''tato'' pode, de certa forma, permitir uma interação social mais
''suave'', mas, paradoxalmente, acaba contribuindo para a perpetuação do
140

racismo, embora de maneira menos óbvia. Conforme nos ensina Simmel (1983),
o tato se limita a um comportamento superficial, muitas vezes ligado à etiqueta;
no exemplo prático em questão, verificamos que ele não tem levado ao
reconhecimento, à reflexão e à crítica do racismo por parte dos sujeitos. Pelo
contrário, parece dificultar esses processos, pois cria um clima de falsa harmonia
nas relações raciais que, conforme vimos nos relatos, são conflituosas.
O silêncio encontrado pode ser explicado por diversos fatores, dentre os
quais se destacam a sensação de desconforto em discutir o tema com colegas
e professores que não compartilham de suas vivências e experiências sociais.
Ademais, a presença majoritária de estudantes brancos de escolas particulares
pode criar o entendimento de que o tema das cotas não seja considerado uma
prioridade ou algo relevante para a maioria dos estudantes. A diferença
socioeconômica entre os cotistas e a maioria dos estudantes também pode gerar
mais medo e insegurança na abordagem do tema. Afinal, os cotistas podem se
sentir vulneráveis em um ambiente que historicamente lhes foi inacessível, o que
pode tornar mais difícil para eles expor suas opiniões e vivências sem serem
julgados ou estereotipados. Essas situações tendem a gerar um clima de tensão
e dificultar a formação de um diálogo aberto e construtivo entre os diferentes
grupos na universidade. Nessa linha de raciocínio, o silêncio seria uma forma de
burlar esses problemas e garantir a harmonia entre os estudantes.
Um ponto pertinente de ser abordado é que, em decorrência das cotas
na UENP serem recentes, mesmo o NEABI da instituição, não há uma grande
mobilização de estudantes negros/indígenas dentro da instituição, que
reivindique uma postura coletiva de orgulho pelo fato de ser cotista. Mesmo o
fato de as instituições estarem fragmentadas em espaços separados
desmobiliza que haja, como na UEL, um movimento de estudantes engajados
na questão racial que leve para os espaços da universidade temas que os
atravessam, como as cotas82. Os relatos indicam que na UENP esse processo
parece ocorrer, mais de forma desarticulada, em situações e com pessoas
pontuais.
Os dados colhidos pelo formulário, articulado ao conteúdo das
entrevistas, nos permitem inferir que, de fato, há uma aceitação por parte da

82 Ver mais em Alexsandro Eleotério (2018) e Nikolas Gustavo Pallisser Silva (2019).
141

comunidade acadêmica dos cursos em tela às cotas de escola pública e para


negros na UENP. Por outro lado, os dados colhidos também indicam que há por
parte de alguns estudantes um silenciamento no que tange a essa questão
justamente para evitar possíveis conflitos. Parece que as experiências passadas
envolvendo essa questão desempenham um peso importante nessa postura. Na
pesquisa de Neto (2020) sobre a inclusão de estudantes cotistas na
Universidade Federal do Ceará, foi constatado o mesmo silêncio encontrado por
nós, revelando que a ausência de discussão sobre o tema das cotas na não é
uma realidade específica da UENP.
Além disso, enquanto os estudantes brancos, após entrarem na
universidade, não precisam se preocupar sobre o assunto, os negros, mesmo
aqueles que não fizeram uso de cotas, tendem a ser relacionado a elas. Sob
esse ponto de vista, a questão das cotas parece influenciar muito mais a
sociabilidade dos estudantes negros do que dos brancos, pois quando o tema
surge, por exemplo, enquanto estes podem se camuflar, aqueles quase sempre
vão ser trazidos à discussão, mesmo que contra suas vontades.
Acreditamos que o silêncio que envolve os cotistas brancos, embora
diferente do silêncio dos cotistas negros, uma vez que se origina mais do
desinteresse do que do medo, é igualmente prejudicial. Muitos deles, depois de
ingressar na universidade por meio das cotas, parecem esquecer a importância
da política que possibilitou sua entrada nesse espaço, e também não são
lembrados, ao contrário dos seus colegas negros cotistas. Em nossa
perspectiva, é fundamental que os cotistas brancos compreendam a árdua
batalha política travada, em grande parte pelos esforços dos coletivos negros,
para tornar possível sua entrada na educação superior. Portanto, é essencial
que eles se envolvam ativamente na defesa e na ampliação dessa política.
Quando um cotista branco se omite deliberadamente em um debate sobre cotas,
ele está contribuindo para reforçar a percepção de que apenas os negros são
beneficiados pelas cotas, quando, na realidade, muitas vezes é o grupo menos
impactado. Nesse contexto, a omissão na prática acaba por transferir toda a
responsabilidade, esforço e trabalho relacionados ao debate e à manutenção
dessa política para os negros. Aos brancos, cabe usufruir, apenas – o que, em
nossa leitura, se revela um enorme problema com o qual a universidade, de
forma institucionalizada, deve lidar.
142

5.9 SER COTISTA: UM MISTO DE ESGOTAMENTO E ORGULHO

Foi como uma menina de Direito, mas com um estudante da


UENP de um outro polo. Não vou lembrar de qual dos outros
lugares agora... Foi com a minha amiga. Ela estava dentro da
van dela, indo pra faculdade e uma outra pessoa - eu não sei o
nome, não sei quem é - descobriu que ela era cotista e falou
assim, ‘ah, mas só por isso que você está na faculdade, né?
Porque senão…’ E ele começou a falar que era um absurdo as
cotas, sabe? Falou bastante coisa mesmo pra ela e aí o restante
do povo que estava na van foi contrário a ele e tudo mais, mas
foi… foi bem pesado, porque ela chegou bem mal na faculdade
por conta disso, de ela perguntar pra gente ‘nossa, será que a
gente merecia estar aqui?’ Porque é um uma coisa que a gente
se pergunta muito. Inclusive, eu passo com a psicóloga toda
semana por conta disso, sabe? Da gente estar sempre se
autoafirmando, né? [Você acha que isso contribui para que
outros estudantes não falem abertamente sobre as cotas?] Eu
acredito que sim. Acredito que sim. E não por medo de
julgamento, mas porque assim… já é uma… já foi uma vida tão
difícil, né? Tendo que aguentar racismo de todos os lados, de
você ir pra escola e um professor ser racista com você, dos seus
coleguinhas tirarem sarro do seu cabelo desde o prezinho, de
você ir na no centro da cidade comprar alguma coisa numa loja
e a vendedora olhar torto pra você por conta da sua cor de pele.
E aí chega ali, na universidade, que você acha que as pessoas
são mais evoluídas no pensamento e você ouve um negócio
desse, então chega um momento que a gente está tão calejado
de ouvir essas coisas que a gente evita falar do assunto. Não
que deveria, né? Porque a gente tem que continuar debatendo.
É importante debater, mas assim… Estou cansada de levar
soco, sabe? De levar, de apanhar de todos os lados,
simplesmente por a nossa cor de pele ser diferente. Então sim,
com certeza (Camila, Direito, 20 anos, autodeclarada preta,
cotista negra).

Abrimos este tópico com o relato de Camila, uma estudante cotista


negra, que evidencia e sintetiza alguns elementos que elaboramos até aqui
sobre a temática das cotas. Sua fala evoca um impacto emocional significativo a
partir da lembrança sobre um episódio de discriminação sofrido por sua amiga
que a marcou profundamente. No trecho acima vemos a concretização dos
medos mencionados anteriormente por muitos cotistas. A cena se inicia com sua
amiga tendo sua rotina interrompida ao ser interpelada, enquanto se dirigiam
para a universidade, por um estudante branco de outro curso que se sentiu
confortável o bastante para questionar o uso de cotas e deslegitimar a conquista
e o direito da jovem em estar nesse ambiente. O agressor disparou uma série de
contrassensos, como ''ah, mas só por isso que você está na faculdade, né?
143

Porque senão…'', desmerecendo todo o esforço da estudante e dando a


entender que aquele não era um local para pessoas como ela.
Se voltarmos às teorizações de Simmel e Baechler, podemos perceber
que a visão que o discente tem sobre ela é, precisamente, a de um nativo sobre
um estrangeiro. Nativo é aquele que nasceu e se desenvolveu em um ambiente
tido por ele como ''seu''. Por contraste, estrangeiro pode ser entendido como
aquele que vem de fora e adentra um espaço que não é o seu de origem.
Podemos aplicar tal lógica ao contexto observado, no qual o estudante branco
vê a universidade como se aquele fosse o ''seu lugar'' e de seus semelhantes
por direito, enquanto que a discente negra é lida como alguém que está
''adentrando'' em um espaço que não lhe é naturalmente destinado. No discurso
proferido, ela é vista como um Outro, um corpo estranho que não faz parte do
grupo ''merecedor'' e que, portanto, não deveria estar ali. Essa visão é decorrente
de uma concepção colonialista/racista de universidade que busca preservar o
status-quo das relações raciais. Como consequência, os estudantes cotistas
negros tendem a serem vistos como ''intrusos'' em um ambiente acadêmico que,
historicamente, foi construído por e para a elite branca. Essa perspectiva revela
como a universidade ainda é um espaço permeado por preconceitos e
desigualdades estruturais, que se manifestam nas relações cotidianas entre os
estudantes e professores.
Embora não seja possível afirmar com pontualidade, é plausível supor,
em virtude de a UENP ser composta predominantemente de estudantes brancos,
que a van fosse composta majoritariamente por pessoas brancas, o que
explicaria a audácia do estudante em confrontar a cotista negra sem o menor
pudor. Conforme nos lembra Bento (2002), em locais onde os brancos são
maioria há, entre eles, um forte vínculo de apoio, solidariedade e privilégios que
acabam por fortalecer a exclusão e marginalização de outros grupos
racializados.
A partir desse entendimento, pode-se imaginar que o estudante julgou,
mesmo que inconscientemente, que suas palavras ofensivas e a tentativa de
humilhação encontraria respaldo no pacto narcísico da branquitude com os
indivíduos que estavam presenciando aquele episódio. Ocorre que a situação foi
inversa ao que ele provavelmente esperava e os demais estudantes
prontamente interviram, repreenderam sua atitude e se postaram em favor da
144

cotista.
Nota-se, portanto, que a discriminação aberta vivenciada pela amiga de
Camila foi responsável por romper com o princípio da sociabilidade segundo o
qual os indivíduos tendem a proteger aqueles com os quais há maior
identificação (BAECHLER, 1995). Dessa forma, diferentemente do que
normalmente vemos ocorrer, o fato de ele ser branco não gerou um endosso dos
outros indivíduos brancos, mas sim originou um sentimento de solidariedade
com a dor do racismo sofrido pela jovem negra, revelando os efeitos do
letramento racial indireto que mencionamos previamente.
Apesar de toda reação contrária, os efeitos daquele episódio ''pesado''
foi responsável por despertar uma série de gatilhos na estudante, fazendo-a
reviver traumas recalcados e chegar ''bem mal na faculdade por conta disso''.
Assim que encontrou suas amigas, ela confidenciou o que havia acontecido,
dividindo com elas o amargo questionamento: ''nossa, será que a gente merecia
estar aqui?''. Observa-se que o discurso do agressor foi a tal ponto internalizado
que fez com que ela duvidasse sobre o seu direito e o de suas amigas, também
cotistas, de estarem na universidade, muito provavelmente ativando
experiências de discriminação racial vivenciadas em outros estágios da sua vida
e reforçando o sentimento de não-pertencimento.
Lamentavelmente, os incidentes de discriminação costumam ser
tratados no âmbito individual, em vez de serem enfrentados de maneira
institucional. No caso analisado, seria crucial que a UENP interviesse e
enfatizasse que o ingresso por meio de cotas não representa, como alguns
racistas erroneamente acreditam, uma entrada pela porta dos fundos. Pelo
contrário, é a realização do direito à educação superior. No entanto, o tema
frequentemente permanece restrito ao âmbito pessoal, gerando angústia e
incerteza, e, se não encontrar apoio, pode levar à evasão acadêmica. Isso nos
leva a questionar por que os estudantes não levam essas preocupações à
instituição. Com base nos relatos, a aparente ineficácia das medidas contra
casos desse tipo tende a desencorajar a formalização do problema no âmbito
institucional.
Assim, o discurso de Camila nos direciona o olhar para como a
experiência de discriminação pode ter um efeito mais amplo na sociabilidade dos
estudantes cotistas, levando-os a evitar falar sobre o tema das cotas por receio
145

de serem julgados ou estigmatizados, afetando sua autoestima, confiança e


disposição para interagir com os outros. Esse efeito pode ser melhor entendido
à luz da teoria de Simmel, se tomarmos em conta como as diferenças entre os
indivíduos podem gerar formas de exclusão e hierarquização que prejudicam a
interação social. Ao mesmo tempo que a fala da estudante reforça a ideia
defendida anteriormente sobre o silenciamento em torno das cotas, ela revela
outra dimensão desse fenômeno: o cansaço.
A fala de Camila indica que, para além de apenas um medo de não ser
integrado ao ambiente acadêmico, o não falar sobre cotas também pode estar
relacionado a um cansaço de travar batalhas constantemente para se afirmar
como sujeito em uma sociedade que historicamente os excluiu e os marginalizou.
Camila acredita que o fato de os estudantes cotistas negros terem que lidar com
o racismo em todas as esferas de suas vidas torna difícil falar abertamente sobre
as cotas na universidade, uma vez que eles estão cansados de ter que lidar com
o preconceito e a discriminação todos os dias, então muitas vezes buscam não
tocar no assunto para evitar maiores transtornos. Esse cansaço pode ser
entendido como uma das manifestações dos impactos subjetivos do racismo,
que afetam não apenas a autoestima e a confiança dos estudantes cotistas
negros, mas também sua disposição para enfrentar situações de discriminação
e exclusão. Ao optar por evitar o tema das cotas, esses estudantes podem estar
se protegendo emocionalmente, evitando situações de confronto e desgaste que
podem reavivar traumas e experiências dolorosas.
Importante mencionar que Camila diz realizar sessões de
terapia/análise com um psicólogo. Outros estudantes cotistas negros também
mencionaram que realizam acompanhamento psicológico para lidar com os
efeitos subjetivos do racismo que sofreram, especialmente durante a infância e
no ambiente escolar, o que demonstra uma busca por ajuda para compreender
e lidar melhor com os problemas ocasionados pelo racismo. Como vimos, o
racismo gera uma série de sentimentos complexos nos indivíduos que com ele
sofre, de modo que a busca por um profissional, teórica e tecnicamente,
qualificado para auxiliar no processo de enfrentamento desses sentimentos pode
ser fundamental para a preservação de sua saúde mental e bem-estar
emocional.
A assistência psicológica desempenha um papel significativo na
146

promoção da conscientização, fortalecimento da autoestima e desenvolvimento


de estratégias eficazes de enfrentamento para os estudantes cotistas negros,
contribuindo para uma redução dos impactos subjetivos do racismo em suas
vidas. Além disso, a ajuda psicológica pode contribuir para a formação de uma
rede de apoio emocional e psicológico entre os estudantes cotistas negros, que
podem compartilhar suas experiências, traumas, trocar informações e se ajudar
mutuamente na busca por reduzir os impactos subjetivos do racismo e das
desigualdades sociais por eles vivenciadas. Por isso, é essencial que programas
como o Núcleo de Apoio Social e Psicológico (NASP) recebam o devido apoio e
fomento institucional.
O trecho narrado pela estudante cotista negra enfoca os efeitos do
racismo na sociabilidade universitária, desnudando a vulnerabilidade dos
estudantes cotistas, especialmente os negros, em serem discriminados a
qualquer momento e em qualquer lugar, bem como os efeitos danosos dessa
prática na confiança e autoestima deles.
Apesar de nas entrevistas apenas Camila ter abordado um episódio de
discriminação aberta pelo uso das cotas, no questionário também foram
encontrados casos dessa natureza, embora numa quantidade bastante reduzida.
Dentre eles, podemos mencionar que um dos respondentes observou que uma
professora ligou o descompromisso nos estudos de um discente ao fato de ele
ser cotista. Em outro caso, uma funcionária da UENP disse que por conta das
cotas para negros estavam entrando qualquer um na universidade, logo após o
estudante negro dizer que cursava Direito. Além disso, mencionaram que tanto
estudantes como professores fazem comentários adjetivados como
''preconceituosos'', ''maldosos'' e ''desnecessários'' sobre os cotistas, sem entrar
em detalhes sobre o conteúdo deles.
Por outro lado, identificamos durante as entrevistas, em menor número,
relatos de estudantes que tinham uma postura orgulhosa sobre o fato de serem
cotistas, trazendo em seus discursos toda uma luta coletiva permeada de
tensionamentos que os possibilitou estarem na universidade. Janaína, uma
estudante indígena que entrou na UENP por meio de cotas de escola pública,
marca bem em seu discurso o orgulho que sente por ter ingressado pelas cotas
e receber o título de cotista:
147

Cara, a gente sente orgulho, sabe? Pra muitos estar na


universidade é algo histórico! Eu acho que a gente tem orgulho
porque dentro da história da UENP ainda, para além das
conquistas individuais, as cotas foram um direito obtido através
de muita luta, ocupação de reitoria e manifestações. É uma
herança que esse movimento vem deixando pros próximos
alunos. Então, sim, a gente tem orgulho! Pra mim representa
muito, da perspectiva histórica mesmo, de poder, de nós
estarmos registrando isso dentro da história da UENP, que é
uma universidade católica no seu princípio. É uma universidade
católica, conservadora e tá tendo esse debate hoje com você é
porque em algum momento as pessoas fizeram essa demanda
(História, 28 anos, autodeclarada indígena, cotista de escola
pública).

A fala da discente destaca uma questão crucial: o sentimento de orgulho


surge nela a partir da compreensão da dimensão política das cotas. Como uma
participante ativa do Movimento Estudantil, ela revelou que seu envolvimento
nessa causa foi fundamental para o fortalecimento de sua identidade racial
afirmativa, além de incentivá-la a se engajar de maneira ativa no debate sobre
as políticas de cotas. Isso nos permite inferir que, caso houvesse uma maior
articulação política e social entre os estudantes da UENP, tal como acontece em
outras instituições, como a UEL, o entendimento e a postura dos estudantes
cotistas pudesse ser outra, mais aberta e contestadora, como a evidenciada pela
estudante e compartilhada também por seus colegas do Movimento Estudantil.
Atualmente, Janaína contou estar se articulando com outros cotistas
para criar um podcast sobre suas vivências na UENP: ''a gente tá com um projeto
aí pra sair de um podcast... pra que a universidade possa conhecer os alunos
cotistas, né? A gente vai convidar pra bater um papo, que nem você tá fazendo''.
Essa iniciativa se mostra de grande importância, pois permite que a voz dos
cotistas seja ouvida e suas experiências sejam conhecidas por um público mais
amplo. Além disso, o podcast pode ser uma ferramenta efetiva para combater o
preconceito e a discriminação, uma vez que oferece uma oportunidade para que
as pessoas conheçam de perto as vivências e desafios enfrentados pelos
cotistas na universidade. Além disso, iniciativas como essa podem inspirar
outros estudantes a também se engajarem em projetos semelhantes,
contribuindo para a criação de uma rede de apoio e solidariedade entre os
cotistas na universidade.
Em suma, o discurso da estudante ilustra a importância do
148

reconhecimento dos esforços e lutas coletivas empreendidas pelos grupos


marginalizados na sociedade e demonstra que a conquista de direitos e espaços
na sociedade não é algo que acontece de forma espontânea, mas sim, resultado
de uma luta constante e coletiva. A fala da estudante cotista indígena ressalta a
necessidade de valorizar e reconhecer a importância dos movimentos sociais
que defendem a inclusão e a igualdade de oportunidades para todos e revela
como a atuação nesses movimentos faz com que os participantes desenvolvam
uma postura mais crítica, ativa e de enfrentamento diante das problemáticas que
os atravessam.
149

6 DESVELANDO ELEMENTOS SOBRE A SOCIABILIDADE DE


ESTUDANTES COTISTAS E NÃO COTISTAS

Apesar dos dados apresentados até agora fornecerem uma


demonstração parcial das relações raciais nos cursos avaliados, nossa intenção
é aprofundar o conhecimento sobre a sociabilidade entre estudantes cotistas e
não cotistas na UENP por meio de perguntas mais objetivas sobre esse tema, a
fim de obter um quadro mais completo e detalhado. Para atingir esse objetivo,
elaboramos alguns quadros e gráficos a partir das respostas dos participantes
que completaram o questionário.
De início, queríamos entender se os estudantes se sentiam acolhidos na
UENP e se haviam diferenças de acordo com a forma de ingresso. Entender
essa questão é relevante, porque o acolhimento (ou a sua ausência) em um
determinado ambiente está diretamente relacionado ao modo como um indivíduo
irá engendrar sua sociabilidade naquele local83. Escolhemos especificamente o
termo acolhimento para compreender essa questão, porque ele evoca o sentido
de "lugar onde se encontra amparo, proteção", conforme definição do dicionário
Michaelis84.
Como vimos na teoria da sociabilidade (SIMMEL, 1983: BAECHLER,
1995), para que ela ocorra de forma satisfatória é preciso que haja um ambiente
de confiança e respeito mútuo entre as pessoas envolvidas. Desse modo,
quando os estudantes se sentem acolhidos em sua universidade, eles tendem a
se sentir mais seguros e confiantes não apenas em suas habilidades
acadêmicas, mas também em suas relações interpessoais.
Assim, formulamos a seguinte questão aos estudantes: "Você se sente
acolhida/o/e na UENP? Por quê?". Devido a pergunta ser aberta, alguns
participantes optaram por usar sinais de pontuação em vez de escrever uma
resposta completa, o que afetou o número total de respostas coletadas. Portanto,
conseguimos analisar as respostas de apenas 166 participantes, que foram

83 De acordo com o sociólogo Alain Coulon (2008), ser estudante universitário implica,
necessariamente, tornar-se membro de uma comunidade. Desse modo, o êxito de um estudante
no ambiente universitário está relacionado, dentre outras coisas, ao modo como ele se relaciona
com os outros indivíduos que compõe esse espaço. O acolhimento, portanto, é parte importante
desse processo de afiliação.
84 Ver em: https://michaelis.uol.com.br/busca?id=xR2v. Acesso em 10 de abr. de 2023.
150

organizadas no gráfico logo abaixo:

Tabela 9 – Percepção dos estudantes que responderam ao questionário sobre


acolhimento na UENP

Sente-se acolhida/o?
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Cotistas negros de Cotistas de escola
Não cotistas
escola pública pública
Sim 23 40 80
Não sei 1 1 0
Não 6 4 15

Não Não sei Sim

Fonte: dados da pesquisa.

Para obter uma mensuração mais ajustada, os dados foram analisados


levando em consideração a proporcionalidade de cada grupo.
Podemos observar que o grupo de não cotistas é o maior em proporção
nas respostas, representando 57,38% dos respondentes, enquanto que os
cotistas negros representam 17,05% e os cotistas de escola pública 25,57%. Em
relação à sensação de acolhimento na universidade, quando analisamos
proporcionalmente85, verificamos que a maioria dos respondentes em todas as
categorias afirmou sentir-se acolhido, com destaque para os cotistas de escola
pública, em que 88,89% afirmaram se sentir acolhidos, seguido pelos cotistas
não cotistas, com 83,52%, e pelos cotistas negros, com 76,67%.
Por outro lado, em relação aos que não se sentem acolhidos, o número
de não cotistas é maior em números absolutos, mas quando levamos em conta

85 O cálculo de porcentagem utilizado é simples, selecionamos o número de respostas de um


determinado grupo e dividimos pelo total de respondentes desse mesmo grupo, em seguida,
multiplicamos o resultado vezes 100 para obter o valor em porcentagem. Exemplos: Cotistas
negros: 6/30 * 100% = 20%. Cotistas de escola pública: 4/45 * 100% = 8,89%. Não cotistas: 15/95
* 100% = 15,79%. Esse tipo de cálculo é importante, pois facilita a comparação entre os grupos,
mesmo que eles possuam tamanhos diferentes na amostra, permitindo, assim, identificar
diferenças ou semelhanças nas percepções entre eles. O mesmo raciocínio será aplicado em
outros dados mais adiante.
151

a proporção de cada grupo, os cotistas negros são os que apresentam a maior


porcentagem de insatisfação, com 20%, seguidos pelos não cotistas, com
15,79%, e pelos cotistas de escola pública, com apenas 8,89%.
Os números revelam que os cotistas de escola pública são o grupo que
mais se sente acolhido, seguido dos não cotistas e, por último, dos cotistas
negros de escola pública. Além disso, é importante observar que a proporção de
respondentes que não souberam responder foi muito baixa, representando
apenas 1,13% do total de respondentes.
Portanto, os dados mostram que, em geral, a maioria dos respondentes
se sente acolhido na universidade, mas ainda há uma parcela significativa que
não se sente acolhida, principalmente entre os cotistas negros. Buscando
entender melhor as causas dos sentimentos expressos pelos discentes, com
base na mesma pergunta, criamos um quadro com as explicações mais
recorrentes.
É importante destacar que, por se tratar de uma pergunta aberta, dos
166 respondentes, apenas 122 apresentaram elucidações sobre o assunto.
Desse modo, como o objetivo era compreender o que gerava o sentimento de
acolhimento ou sua ausência, as respostas objetivas que apenas indicavam
"sim" ou "não", por já terem sido contabilizadas no gráfico anterior, foram, neste
caso, excluídas.

Quadro 4 - Os motivos que fazem com que os estudantes se sintam acolhidos


ou não na UENP
- Frequência
Exemplos Cotista
Eixos Categorias Cotista de Não Total86
temáticos negro escola cotista (%)
pública
''relação
O sentimento de respeitosa'',
acolhimento ''simpáticos e
Relacionam vem do bom receptivos'',
ento com relacionamento ''dispostos a 6 20 59 85
estudantes com aqueles ajudar uns aos (4,92%) (16,38% (48,36% (69,67)
e que formam o outros'', ) )
professores ambiente ''convivência

86Ao longo do texto evidenciaremos os dados levando em consideração a proporção de cada


grupo nas respostas. O número total de respondentes de cada grupo foi, no caso dos cotistas
negros, 17; dos cotistas de escola pública, 27; e dos não cotistas, 78. Assim, para obter os dados
proporcionais, dividimos o número de respostas pelo número de participantes e multiplicamos
por 100.
152

universitário. saudável'',
''amizades''.
''a permanência
na universidade é
muito difícil'',
''cada um por si'',
''falta de
Falta de Estudantes que comunicação'',
acolhimento não se sentem ''pouco inclusivo'', 5 3 11 19
acolhidos. ''preconceito por (4,10%) (2,46%) (9,02%) (15,57%
parte de )
professores e
funcionários'', ''o
curso de Direito é
muito elitista''.
''ambiente sem
Estudantes que preconceitos'',
se sentem ''novo perfil de
acolhidos ao estudantes por
perceberem que causa das cotas'',
Ambiente na universidade ''ver meus 6 2 3 11
inclusivo há a inclusão de semelhantes'', (4,92%) (1,64%) (2,46%) (9,02%)
grupos ''amplitude de
marginalizados. pessoas'', ''ver o
crescente
ingresso de
negros''.

O sentimento de ''ambiente
acolhimento acolhedor'', ''lugar
vem da própria reconfortante’,
Espaço estrutura da ''tranquilidade 0 2 5 7
estimulante universidade e maior pelo menor - (1,64%) (4,10%) (5,74%)
de seus número de
espaços de pessoas'',
socialização. ''campus
pequeno''.
Fonte: dados da pesquisa.

Vale sublinhar, conforme consta no quadro acima, que houve uma


enorme diversidade de respostas sobre aquilo que, no entender dos estudantes,
fazia com que eles se sentissem acolhidos. Inclusive, muitos apontamentos
divergem uns dos outros, de modo que as respostas apresentam um quadro
complexo na maneira como cada discente percebe sua própria realidade e atribui
valor a ela. As informações serão analisadas de forma mais detalhada a seguir.

6.1 PERCEPÇÕES SOBRE O ACOLHIMENTO NA UNIVERSIDADE: A PERSPECTIVA DE

ESTUDANTES COTISTAS E NÃO COTISTAS

De início, pode-se verificar que a maioria absoluta dos participantes


indicou sentir-se acolhido na UENP, tendo como principal argumento o bom
153

relacionamento com aqueles que formam o ambiente universitário, incluindo


estudantes e professores. No entanto, quando analisamos proporcionalmente,
percebemos uma desproporcionalidade de respostas de estudantes não cotistas
e cotistas de escola pública nesse eixo, que somam respectivamente 73,08% e
74,07%, ao passo que somente 35,29% dos cotistas negros manifestaram essa
perspectiva.
Ao analisarmos as respostas dos diferentes grupos de estudantes que
compõem esse eixo temático, observamos que não há grandes mudanças em
seu conteúdo. Alguns exemplos comuns citados por eles incluem o
estabelecimento de relações respeitosas, simpatia e receptividade por parte dos
outros membros da comunidade universitária, solidariedade, disposição para
ajudar uns aos outros, convivência saudável e a formação de vínculos de
amizade. Esses fatores podem ser considerados elementos importantes na
promoção de uma sociabilidade saudável e inclusiva na universidade.
Segundo Martins e Santos (2020), o tema da afetividade no
desenvolvimento cognitivo humano, apesar de já ter sido abordado por outros
autores do campo educacional, como Lev Vygotsky e Jean Piaget, encontra em
Henri Wallon o seu principal difusor. Para Wallon (1986), além da capacidade
biológica, o desenvolvimento estaria relacionado às influências, diretas e
indiretas, do meio social do qual um indivíduo fazia parte. Dizia ele: "O espaço
não é primitivamente uma ordem entre as coisas, é antes uma qualidade das
coisas em relação a nós próprios, e nessa relação é grande o papel da
afetividade, da pertença, do aproximar ou do evitar, da proximidade ou do
afastamento" (WALLON, 1979, p. 209).
Sob esse ponto de vista, podemos refletir sobre como os vínculos
afetivos construídos no ambiente universitário afetam, consequentemente, a
sociabilidade dos estudantes. Se analisarmos as respostas do primeiro eixo
temático, encontraremos indícios de que, na maioria dos casos, o ambiente
universitário da UENP, com ênfase nos cursos selecionados, tem permitido aos
estudantes a criação de relações interpessoais que poderíamos considerar como
sendo positivas, criando um clima no qual possivelmente os estudantes se
sintam mais abertos e estimulados não apenas ao desenvolvimento intelectual,
como também de outras dimensões de suas vidas.
Notamos que, de modo geral, enquanto para os estudantes cotistas de
154

escola pública e não cotistas o sentimento de acolhimento está relacionado à


capacidade em estabelecer vínculos e fazer amizades, para os cotistas negros,
além desta importante questão, o acolhimento está profundamente ligado,
também, à possibilidade de se verem representados no corpo discente e docente
da universidade. Para 35,29% dos cotistas negros que responderam, a
diversidade é o que os faz sentir-se acolhidos. Por outro lado, apenas 7,41% dos
cotistas de escola pública e 3,85% dos não cotistas indicaram que a pluralidade
é um elemento que contribui para o acolhimento. Nessa perspectiva, a política
de cotas se mostra como um instrumento extremamente relevante para criar um
clima acolhedor e estimulante para os estudantes negros, na medida em que
torna o ambiente acadêmico mais diverso e representativo.
Em O negro no mundo dos brancos (2007), Florestan Fernandes
concentrou seus estudos na condição dos negros em São Paulo, lançando luz
sobre as dinâmicas sociais e as questões enfrentadas por essa população, ao
fazer isso, o autor evidenciou as dificuldades encontradas por eles ao se
depararem em ambientes majoritariamente brancos. Nesses casos, era comum
os indivíduos negros sentirem sentimentos de solidão e exclusão, bem como
iniciarem um processo de alienação racial com o intuito de se aproximar do
padrão dominante estabelecido pela hegemonia branca.
Por essa ótica, o estudo de Florestan nos permite imaginar o quão
problemático deve ter sido a experiência de estudantes negros que ingressaram
na UENP antes de tal medida, especialmente nos cursos mais concorridos, dado
que eles eram, como já apontado, formados por uma maioria branca oriunda de
escola particular (BROCHADO et al. 2018). A ausência de indivíduos negros no
ambiente universitário também foi um tema presente nas entrevistas, como no
trecho destacado logo a seguir:

Igual eu te falei, meu pai estudou lá em 2010, né? E aí eu estava


comentando sobre isso e ele falou - e a gente vê nas fotos
também dos corredores - que não tinha quase nenhum negro na
sua sala. Na minha sala tem bastante. Tipo assim, em
comparação, né? Tem uns cinco ou seis87. Eu acho que
melhorou, porque se eu olhar em comparação com antes, não
tinha quase ninguém (Juliana, estudante de Direito, 20 anos,
autodeclarada parda, não cotista).

87 Na referida turma havia cerca de 70 estudantes no total.


155

Em uma das visitas à faculdade de Direito, observamos os quadros


mencionados pela discente, registrando o célebre momento da foto de preto, que
marca o encerramento da graduação. De fato, na maioria das imagens apenas
se conseguia distinguir um ou dois estudantes negros em meio a uma média de
60 acadêmicos brancos; sem contar, evidentemente, aquelas fotografias nas
quais não foi possível encontrar um único universitário negro sequer. Como
todos os registros encontrados eram anteriores à política de cotas, não foi
possível estabelecer um paralelo entre imagens, porém, as conversas com os
estudantes e as idas à campo nos permitem ponderar que há um crescente
incremento desse grupo no ambiente universitário, principalmente nos cursos
mais concorridos.
O trecho selecionado propicia a reflexão sobre como, até pouco tempo
antes das cotas, o curso de Direito era um monopólio exclusivo dos indivíduos
brancos. Ao considerar essa perspectiva, é possível compreender melhor a
situação de discriminação enfrentada pela amiga de Camila, uma estudante de
Direito, mencionada no capítulo anterior, bem como a resistência dos
coordenadores do curso em relação à implementação de políticas de cotas,
como apontado por Felipe no terceiro capítulo. Ao longo de décadas, a ausência
de estudantes negros nesse ambiente reforçou a ideia de que o curso era
exclusivo para pessoas brancas. Essa diminuta presença certamente impactou
negativamente a sociabilidade dos poucos estudantes negros que frequentaram
o curso antes de 2018, muito dos quais podem até mesmo terem não concluído
os estudos por causa de dificuldades oriundas dessa problemática.
Essa ausência de grupos historicamente subalternizados no campo
acadêmico também foi observada por José Jorge de Carvalho (2006), que
denominou o fenômeno como ''confinamento racial'', ou seja, a ausência da
diversidade étnico-racial em virtude de um pacto tácito, estrutural e estruturante
da ordem universitária. Como consequência prática, a ausência de negros e
indígenas resultaria, segundo o autor, na preservação de um currículo
eurocentrado e no uso de diferentes estratégias para preservação de
determinados privilégios da branquitude.
Nessa linha de pensamento, na qual estamos refletindo sobre os
impactos da hegemonia branca em cursos considerados "elitizados", convém
156

mencionar que um dos estudantes não cotistas respondeu que se sentia acolhido
na universidade justamente porque era branco. Essa afirmação se coaduna com
a reflexão tecida, pois demonstra precisamente a percepção de que, sendo a
UENP um ambiente predominantemente branco, os estudantes brancos
gozariam naturalmente de uma sensação maior de acolhimento e pertencimento,
uma vez que estão em maior número – cenário propício para a preservação do
pacto narcísico. Essa dinâmica pode ser compreendida à luz da teoria da
sociabilidade de Simmel (1983), que destaca o papel do "estar entre iguais"
como um fator que influencia as relações sociais. Quando os indivíduos se
encontram em grupos nos quais compartilham características semelhantes,
como a cor da pele, há uma maior propensão para o estabelecimento de laços
sociais e uma sensação de conforto e familiaridade.
A fala de Juliana, na qual a discente aborda a experiência de seu pai
antes da implementação das cotas na UENP, nos leva a pensar que é bem
provável que, sendo uma ínfima parcela, os estudantes negros tenham
experimentado sentimentos como: solidão88, exclusão e alienação. Eles podem
ter enfrentado barreiras significativas para se integrarem plenamente ao
ambiente acadêmico, possivelmente sendo marginalizados e tendo suas vozes
silenciadas, dado que é uma realidade enfrentada, ainda hoje, por muitos negros
na academia, como destacado por Borba et al. (2019). Essa falta de
representatividade também pode ter impactado diretamente sua autoestima e
confiança, dificultando seu desenvolvimento pleno. Porém, como não tivemos
acesso aos estudantes que entraram antes das cotas, apenas podemos
especular sobre como teria sido suas experiências a partir da literatura que trata
do assunto. Não obstante, ratificamos a importância de estudos mais
aprofundados que resgatem as vozes desses indivíduos, justamente com vistas
a estabelecer um paralelo com a realidade atual.
De 2018 em diante, com a adesão da política de cotas pela UENP, inicia-

88Vários estudos têm se debruçado sobre a solidão dos negros em ambientes de poder, como o
acadêmico, dando um enfoque especial ao caso das mulheres negras. O minidocumentário A
solidão dos corpos negros no espaço acadêmico (2022), de Renata do Amaral Mesquita e
Rosalia Cristina Andrade Silva, converge com as informações coletadas e revela como a
ausência de representatividade afeta, de múltiplos modos, a sociabilidade universitária dos
estudantes negros. Ver mais sobre o tema também em: Negra e Acadêmica: a solidão no
diálogo entre pares nos espaços de poder (2019), de Carolina dos Anjos Borba et al., e A solidão
de uma aluna negra que chegou à universidade (2017), por Nairim Bernardo.
157

se a diversificação do corpo discente por meio da ampliação de oportunidades


de acesso à universidade para a população negra e oriundos de escola pública.
Anália, remanescente da primeira turma que entrou por cotas na instituição,
relata como percebeu essa mudança:

Quando eu entrei tinha um ou dois negros ou pretos mais


retintos. Tinha muita gente branca. Muita, muita gente branca.
Agora, olhando - eu estou no quinto ano - vinte por cento da
universidade é preta, na Direito ali e na universidade em geral.
Visualmente dá pra ver muita diferença. Olhando agora, quando
eu olho pros calouros, eu falo assim ‘nossa, isso não tinha
quando eu entrei’. Então, visualmente dá pra ver bastante
diferença. Agora eu não sei falar pra você sobre como eles se
sentem lá, né? Mas eu acho que pra quem entra agora é muito
mais confortável ver e se identificar do que pra gente que já está
há anos (Direito, 22 anos, autodeclarada parda, cotista negra).

O relato da discente indica uma melhoria no cenário da sociabilidade dos


estudantes negros após a implementação das cotas, visto que, segundo seu
olhar, eles agora se sentem mais confortáveis para interagirem e se
autoafirmarem devido à maior identificação entre os colegas. É preciso ter em
mente, no entanto, que os efeitos nocivos da baixa presença de negros antes
das cotas não tenham sido completamente obliterados, uma vez que os brancos
continuam sendo maioria nos cursos avaliados. Essa disparidade é importante
de ser considerada, pois pode gerar uma série de dificuldades no processo de
interação. Com efeito, conforme vimos no quadro, a representatividade89 é um
dos principais elementos que fazem com que os estudantes cotistas negros se
sintam acolhidos dentro da universidade. Um exemplo de fala que expressa essa
ideia é a de Camila:

Eu fui bem acolhida na universidade. Pra falar a verdade, eu fui


melhor acolhida na universidade do que nas escolas em que eu
estudei, porque no fundamental eu sofri preconceito racial até de
professora. Então, assim… Chegar na faculdade e ter pessoas

89 Conrado Dess (2022), sintetiza o termo da seguinte forma: "qualidade que, ao mesmo tempo,
gera e é gerada por um organismo representativo quando esse adquire a capacidade de
representar esteticamente, politicamente e socialmente determinada coletividade, sendo essa
coletividade, na maioria das vezes, um grupo social minoritário" – quando ele utiliza o termo
minoritário está se referindo não a quantidade de um determinado grupo, mas indicando que se
trata de um dispositivo simbólico na luta contra-hegemônica. Desse modo, a representatividade
abordada pelos estudantes diz respeito à necessidade de a universidade ter uma diversidade
racial maior entre seus membros.
158

que me aceitam como eu sou, foi até estranho pra mim no


começo. O meu grupo de amizades na faculdade é muito misto,
tem negros, brancos, uma menina com gênero não definido…
Sabe? A gente vai aprendendo uns com os outros. Eu estou
gostando muito disso. Estou aprendendo coisas que eu nunca
imaginei na minha vida. E também a gente ensina um pouco…
Então na faculdade eu fui muito bem acolhida, graças a Deus. É
claro que tem um ou outro aí, né? Que destoa um pouco do
grupo, mas muito menos do que eu sofria na época de escola
(Direito, 20 anos, autodeclarada preta, cotista negra).

Ao discorrer sobre como se sente na UENP, a estudante estabelece um


paralelo entre sua experiência na universidade e sua tortuosa trajetória escolar,
na qual ela enfrentou preconceito racial, inclusive por parte de professores. Essa
comparação ressalta a significativa diferença que ela encontrou na universidade
em termos de acolhimento e aceitação. Ao dizer: "Chegar na faculdade e ter
pessoas que me aceitam como eu sou, foi até estranho pra mim no começo",
Camila evidencia que enfrentou um sentimento constante de inadequação ao
longo de sua vida, possivelmente devido ao racismo que sofreu e a decorrente
falta de aceitação em determinados ambientes, como os educacionais. Quando
a estudante utiliza o adjetivo "estranho" para caracterizar o fato de se sentir
aceita, isso demonstra que ela tinha uma ideia pré-estabelecida, a partir de suas
vivências anteriores, de que aquele seria outro espaço no qual ela não seria bem
recebida. Contudo, a estudante revelou ter tido uma experiência positiva na
universidade, onde finalmente se sentiu acolhida, provavelmente por conta de
seu grupo de amizades na faculdade ser bastante diverso, incluindo pessoas de
diferentes raças e identidades de gênero.
A política de cotas, se analisada como uma ferramenta para combater
preconceitos e permitir o contato entre diferentes grupos sociais, conforme
defendido por Munanga (2007), demonstra sua efetividade na experiência
vivenciada por Camila. Ela relata que a política de cotas está desempenhando
sua função, como evidenciado em suas palavras: "A gente vai aprendendo uns
com os outros. Eu estou gostando muito disso. Estou aprendendo coisas que eu
nunca imaginei na minha vida. E também a gente ensina um pouco". Esse
discurso indica uma sociabilidade mais aberta entre os estudantes, contrariando
a expectativa de uma dinâmica restrita em um curso considerado "elitizado". No
entanto, ao mencionar que "É claro que tem um ou outro aí, né? Que destoa um
pouco do grupo, mas muito menos do que eu sofria na época de escola", ela
159

evidencia a presença residual de casos isolados de racismo, porém, em uma


proporção significativamente menor do que na educação básica.
A percepção de Camila sobre sentir-se acolhida foi compartilhada por
outros cotistas negros através do questionário: "Sim, o fato de encontrar a cada
turma mais semelhantes faz com que eu me sinta mais acolhida" (Respondente
13 - Questionário, 2022); "Sim. Ver a crescente de negros/pretos ingressando
em uma universidade pública é reconfortante" (Respondente 44 - Questionário,
2022); "Sim, justamente pelo novo perfil estudantil que as cotas trouxeram: um
espaço para todos" (Respondente 29 - Questionário, 2022).
Para grupos excluídos e marginalizados socialmente, como os negros,
ver essa diversidade representada no ambiente acadêmico pode ser
extremamente significativo, pois tende a proporcionar uma sensação de
pertencimento e abrir caminho para a uma sociabilidade universitária mais
potente, considerando o compartilhamento de vivências semelhantes. Portanto,
o fato de esta questão estar mais presente nas falas dos cotistas negros revela
que a identificação é um fator crucial para o sentimento de acolhimento desse
grupo. Ao se depararem com colegas que compartilham experiências similares
e enfrentam desafios parecidos, os estudantes negros podem encontrar apoio e
identificação, o que tende a fortalecer sua trajetória acadêmica.
É importante ressaltar, no entanto, que muitos estudantes negros,
apesar de considerarem positivo o aumento da presença de negros por meio das
cotas, ainda consideram o índice muito baixo, especialmente levando em conta
que a sociedade brasileira é majoritariamente composta por negros. Esse dado
deve ser levado em consideração, pois, dependendo do indivíduo, isso pode
afetar sua experiência universitária. Um exemplo disso é o caso de Denise, que
ficou assustada e confessou duvidar de si mesma ao se deparar com a completa
ausência de professores negros em seu curso: "Na Odonto eu fiquei meio em
choque, porque todos os professores são doutores, são dentistas e todos
brancos! Aí eu vi que era muito distante, sabe? Tipo, uma era muito mesmo.
Essa faculdade era muito distante de ser pra todo mundo", levando-a ao seguinte
pensamento: "quando eu vi, foi assustador, porque fiquei pensando, 'será que
eu não vou ser dentista?" (Odontologia, 21 anos, autodeclarada parda, cotista
negra).
Sobre isso, é importante informar que UENP conta, atualmente, com
160

399 docentes ativos, sendo 201 do gênero masculino e 197 do gênero feminino,
porém, nos documentos institucionais90 não há nenhuma referência ao
pertencimento racial deles, o que dificulta uma constatação mais aprofundada
sobre o perfil do corpo docente e, consequentemente, impede com que ações
afirmativas sejam implementadas para corrigir prováveis desproporcionalidades.
No entanto, não é necessário exercer um esforço considerável de
imaginação para constatarmos que a UENP, seguindo o padrão91 predominante
da maioria das IES no Brasil, apresenta uma composição docente
majoritariamente branca. Longe de ser uma mera suposição, tanto minha
experiência durante a graduação, ao participar de congressos em outros campi,
como também agora, durante a realização desta pesquisa, me permitem afirmar
categoricamente que, ao longo desses mais de cinco anos imerso na realidade
da instituição, tive contato com apenas cinco docentes negros, dos quais três
pertenciam ao curso de Letras e foram meus professores.
Durante as entrevistas, perguntamos se os discentes já haviam tido
algum professor negro durante a graduação, mas na absoluta maioria dos casos
a resposta era negativa, com raras exceções. De fato, a presença desses
docentes na UENP é tão reduzida que alguns estudantes de diferentes cursos
mencionaram estar cientes da existência de dois docentes negros em particular,
sendo um pertencente ao curso de Pedagogia, Donizete, e outra ao curso de
Letras, Rosiney. Esses professores destacam-se por seu constante
envolvimento com questões raciais e sua participação ativa em diálogos
interdisciplinares com outros cursos.
Em outros momentos, alguns entrevistados indicaram espanto ao
perceberem que nunca haviam tido aula com um docente negro, de modo que
essa espécie de "surpresa" pode estar relacionada com uma naturalização da
figura do professor universitário, que desfruta de posição socialmente
privilegiada, como sendo branco. Sobre essa questão, Laura diz:

90 Ver mais em: https://uenp.edu.br/carreiras-salarios-uenp/carreiras-salarios-docentes/6114-


docentes-informacoes-funcionais-06-05-22/file. Acesso em 10 de jun. de 2023.
91 Em 2019 foi constatado, a partir de uma tabulação realizada pelo Estadão com os dados do

Censo de Educação Superior daquele ano, que apenas 16,2% dos docentes das IES se
autodeclaravam negros. Ver mais em:
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/11/4964642-menos-de-3-dos-professores-
universitarios-do-brasil-sao-negros.html. Acesso em 10 de jun. de 2023.
161

Não vi nenhum professor negro e nem tive aula com um no curso


de Direito. Assim, é difícil eu ter contato com todo mundo da
minha sala, ainda mais em tão pouco tempo, mas além de não
ter muitos alunos negros, a ausência de professores foi o que
mais me chocou quando cheguei na faculdade, porque eu acho
super legal que eles tentam colocar todo mundo igual, fazem
pesquisa, fazem projeto, não sei o quê… Mas quando a gente
para pra pensar mesmo no racismo estrutural que tem, onde não
tem um professor negro… Eu não vi nem funcionário negro, nem
nada, nada até agora… Nenhum! (Direito, 19 anos,
autodeclarada negra, cotista negra).

Os trechos selecionados abrem brechas para pensarmos, também,


sobre a solidão vivenciada pelos próprios docentes negros. A presença limitada
de docentes negros não apenas impacta os estudantes, como também afeta os
próprios professores que, muitas vezes, se encontram em uma posição
minoritária e enfrentam desafios específicos, como, por exemplo,
questionamentos sobre abordagens epistemológicas92 que destoam do cânone
branco-europeu. Diante de um contexto em que a representatividade racial é
escassa, esses profissionais se veem desafiados a demonstrar continuamente
sua competência e autoridade acadêmica, necessitando estar em constante
alerta e autoafirmação no intuito de legitimar sua presença naquele ambiente.
Por fim, observamos que o sentimento de acolhimento também foi
atribuído, em menor número, à configuração do espaço universitário pelos
cotistas de escola pública e não cotistas. As respostas de ambos os grupos,
embora não tenham entrado em muitos detalhes, convergem no sentido de
enfatizar a importância do espaço físico no fortalecimento de redes de
sociabilidade e sua influência no sentir-se acolhido. Nas respostas que
mencionaram essa questão, notamos que o acolhimento está associado a uma
interação maior entre os colegas propiciada pelo lugar físico.
Por outro lado, o não acolhimento também foi relacionado ao ambiente
universitário, mas por apresentar condições opostas. No entanto, há que se
considerar que as observações sobre isso foram feitas por estudantes do curso
de Odontologia. Levando em conta as informações apresentadas no terceiro
capítulo, que indicam a existência de diversas características específicas do
prédio do curso, ao analisar as respostas desses estudantes, é essencial levar

92Ver mais sobre as problemáticas que perpassam a vivência de docentes e pesquisadores


negros em: Aprendendo com a outsider within (2016), de Patrícia Hill Collins.
162

em consideração essas particularidades arquitetônicas, uma vez que elas


contribuem para a compreensão do motivo pelo qual eles percebem uma falta
de acolhimento no ambiente acadêmico em que estão inseridos.

6.2 A FALTA DE ACOLHIMENTO NO AMBIENTE UNIVERSITÁRIO: UMA PERSPECTIVA

COMPARATIVA ENTRE ESTUDANTES COTISTAS E NÃO COTISTAS

Embora em menor número, a falta de acolhimento também foi observada


nas respostas, principalmente dos cotistas negros de escola pública (29,41%),
enquanto os não cotistas (14,10%) e cotistas de escola pública (11,11%) tiveram
médias semelhantes.
Para os cotistas negros, a sensação de não acolhimento está
relacionada, sobretudo, às dificuldades de permanência na universidade – sobre
a qual discutiremos adiante. Entre os cotistas de escola pública, observamos
uma maior variedade de elementos que os fazem não se sentirem acolhidos na
universidade, tais como: a impessoalidade administrativa, o elitismo e a
superioridade de alguns veteranos. Quadro semelhante foi verificado nas
respostas dos estudantes não cotistas, que também apresentaram uma série de
causas para não se sentirem acolhidos dentro da UENP. Dentre elas, colocamos
em destaque: a desunião, a despreocupação de certos professores com o
ensino-aprendizagem dos alunos, a existência de "panelinhas", ambiente
competitivo, postura de arrogância de determinados colegas de turma, falta de
socialização entre as turmas, falta de comunicação, local afastado, etc.
Desse modo, verificamos que, enquanto para esses dois últimos grupos
o não acolhimento está relacionado a questões diversas, muitas das quais
resvalam em assuntos que parecem ser de natureza mais pessoal, a percepção
dos cotistas negros sobre o não acolhimento demonstra ser mais direcionada,
focalizando na maioria das respostas um problema específico: os desafios de se
manter na universidade. Destacamos algumas falas desses estudantes que
abordaram esse tema:

Não muito, principalmente no curso de Odontologia, onde os


alunos são obrigados a comprar inúmeros materiais de consumo
para o paciente e para si próprio e instrumentais que custam
uma fortuna! E ainda existem materiais que não dão usados na
clínica. Temos listas de materiais e instrumentais que ficam por
163

volta de 10 mil reais, como um aluno de cotas sociais ou


sociorraciais tem perspectiva de fazer um curso desse!!
Lembrando que o curso é integral! (Respondente 57 -
Questionário, 2022).

Na maioria das vezes, sim, no que tange ao tratamento dos


professores para com os alunos. Contudo, há uma carência do
curso em relação as atividades extracurriculares promovidas
pelo próprio curso, como palestras, eventos, excursões, etc.,
tendo em vista que são pagas e, normalmente, integrantes de
família de baixa renda, como eu, nem sempre possuem
condições financeiras para participar (Respondente 163 -
Questionário, 2022).

Não muito. Embora tenha ingressado pelo sistema de cotas


sociorraciais, a permanência na Universidade é muito difícil. A
Universidade criou meios para a garantia do ingresso de
pessoas hipossuficientes e negras, mas a partir do momento que
estas se tornam universitárias, não detém suas particularidades
consideradas em relação aos demais alunos de ampla
concorrência (Respondente 21 - Questionário, 2022).

Levando em consideração os trechos apresentados, fica evidente como


a dificuldade de permanência pode ser um fator limitante da sociabilidade dos
estudantes negros. Apesar de se tratar de uma instituição de ensino superior
pública, a admissão no ambiente acadêmico implica em uma série de custos
associados, incluindo, mas não se limitando a: despesas de transporte,
alimentação, materiais didáticos, serviços de fotocópia, aquisição de livros,
dispositivos eletrônicos móveis, computadores, bem como outros itens
indispensáveis para a vida universitária. Muitos cotistas negros, por não
conseguirem arcar com as despesas que envolvem estar na universidade, não
conseguem também participar e usufruir plenamente desse universo, o que gera
entre eles um sentimento de inadequação.
Essa questão foi percebida de modo mais acentuado nos cursos de
Direito e Odontologia, especialmente neste, no qual os gastos são extremamente
elevados, pois os discentes precisam comprar os equipamentos básicos de um
consultório e os materiais de uso cotidiano. O "kit dentista", como chamam os
estudantes, chega a custar, no final do curso, cerca de 40 mil reais U$ 8,200).
Nas conversas com eles, foi relatado que só podem participar das aulas aqueles
que possuem tais itens, não sendo possível compartilhá-los. Aqueles que não
possuem condições são levados a terem de desistir do curso. De acordo com
164

Vanessa, "Para um pobre entrar lá sem apoio, sem trabalho, é impossível. É


impossível! Por conta do material, por conta da infraestrutura, por ser uma
integral também por conta de não poder trabalhar" (Direito, 19 anos,
autodeclarada branca, cotista de escola pública).
Sabemos, conforme já demonstrado na Gráfico 3, que os cotistas
negros são os que tem menor renda entre os participantes da pesquisa e,
portanto, são os que mais sofrem com essa questão. Nesse sentido, quando
questionados se conheciam algum estudante negro que havia "desistido" do
curso, a maioria dos entrevistados de Odontologia mencionou algum caso.

Eu acho que na minha faculdade, se você for contar, não tem


quinze negros93. Eu acho um absurdo. A gente tinha um outro
menino, ele era da nossa turma, era negro, morava no Rio de
Janeiro, de origem pobre, ele saiu, porque ele não tinha
condições de pagar. Então, ele é a minoria da minoria, aquela
que é deixada de canto, que todo mundo deixa de canto. E ele
teve que sair por causa disso, porque ele não aguentou
(Vanessa, Direito, 19 anos, autodeclarada branca, cotista de
escola pública).

A fala da entrevistada nos possibilita contemplar múltiplos aspectos.


Inicialmente, ela indica uma baixa presença de estudantes negros no seu curso;
as incursões ao campo e o contato direto com as turmas nos permitiram
constatar que, de fato, Odontologia ainda é um curso no qual a maioria
esmagadora dos discentes são brancos. Observamos a presença de poucos
indivíduos que poderiam ser lidos socialmente como pardos e menos ainda os
que poderiam ser considerados pretos – aliás, é relevante salientar que uma das
poucas presenças negras inequivocamente identificadas naquele ambiente são
as funcionárias responsáveis pela limpeza da instituição.
Uma possível resposta para esse cenário é apresentada por Vanessa
durante sua declaração, ao mencionar o caso de um estudante negro
proveniente de uma origem socioeconômica desfavorecida, o qual ela denomina
como sendo a "minoria da minoria", que "não aguentou". Aqui, deve-se
problematizar a responsabilidade atribuída ao jovem por ter interrompido o curso,
em nossa leitura, é o racismo em sua forma institucional94 que faz com que

93 O curso de Odontologia possui uma média de 200 discentes.


94 O termo "racismo institucional" é aplicado quando as instituições não conseguem garantir o
165

pessoas como ele sejam "deixadas de canto", não permitindo que concluam seus
sonhos, e não uma fraqueza pessoal.
O relato da estudante é preocupante, na medida que indica que, embora
a UENP crie condições para que estudantes negros de escola pública ingressem
nesse curso, ainda que de forma reduzida, ela não oferece as mesmas
condições para que eles permaneçam e concluam seus estudos. Referente a
isso, outra estudante, Denise, demonstrou preocupação quanto à possibilidade
de uma colega de turma negra, também cotista, de não conseguir concluir a
faculdade:

Então, de Jacarezinho tem uma pessoa [uma estudante negra].


E, por incrível que pareça, essa única pessoa que é de Jacaré é
a mais carente da turma. A gente fica tipo, ‘meu, será que vai
conseguir terminar? Será que não vai? A gente se questiona…’,
ela ficou de exame em várias matérias, sabe? Ela não entregava
as coisas, ia embora, não fazia prova, não entregava trabalho…
(Odontologia, 21 anos, autodeclarada parda, cotista negra).

A pessoa mencionada pela entrevistada, quando abordada, não


demonstrou interesse em participar da pesquisa, mesmo com a mediação de
Denise. Durante a entrevista, a estudante forneceu o número de telefone celular
dessa pessoa, o que me permitiu acessar sua foto de perfil, isso me fez recordar
de tê-la observado com uma postura abatida e um tanto isolada dos demais
estudantes quando divulguei a pesquisa em sua turma. Sua linguagem corporal
indicava recuo após ouvir sobre o tema da minha pesquisa. É possível que ela
tenha optado por não participar devido à falta de conforto em compartilhar sua
experiência, talvez receosa de expor a difícil situação em que se encontrava.
Tanto o relato de Denise quanto a experiência em campo nos levam a
supor que estudantes com dificuldades em permanecer na universidade devido
a problemas de ordem financeira, possivelmente podem enfrentar dificuldades
para socializar e criar vínculos, uma vez que a qualquer momento eles podem
ser desfeitos; consequentemente, eles podem experimentar sentimentos como
exaustão, desmotivação, inadequação e vergonha95. Vale ressaltar que, embora

acesso a serviços, recursos e direitos a um grupo específico devido à sua cor, cultura, origem
racial ou étnica (LÓPEZ, 2012). Frequentemente, essa falha é resultado da falta de atenção ou
do desconhecimento por parte da instituição, como exemplificado no caso mencionado.
95 Dyane Brito Reis Santos, em sua tese de doutoramento intitulada Para além das cotas: a

permanência de estudantes negros no e Ensino Superior como política de Ação Afirmativa


166

a dificuldade de permanência dos cotistas negros seja mais evidente no curso


de Odontologia devido às suas características específicas, ela também é uma
realidade em outros cursos.
As dificuldades na permanência simbólica (SANTOS, 2009) também
está relacionada à elitização de determinados cursos, considerando que o
contraste entre realidades socioeconômicas distintas, especialmente no caso
dos cotistas negros, pode ser um fator inibidor da sociabilidade, uma vez que as
discrepâncias entre os mundos podem resultar em desalinhamentos
significativos, como ilustrado na fala de Esther:

Tem também a questão da classe social… Esses dias aconteceu


uma situação que eu acho que eu constrangi um professor,
porque ele ficou falando de um negócio de mesada. Ele dá aula
de recuperação de falência de empresas, daí ele começou a
falar… Porque tudo ele menciona os EUA, blá blá blá e daí já me
irrita, porque eu não sei nada do que ele está falando, né? Ele
fica falando das coisas que ele tem e isso me irrita. Ele é meio
narcisista e fica se engrandecendo… Aí ele ficou falando, ‘ah,
porque eu dou uma mesada para meu filho lavar a louça’, e eu
falei, ‘que mesada, professor! A gente é pobre!’. Daí ele
arregalou os olhos e ficou gaguejando. Ele acha que só tem rico
lá. Daí ele começou a falar da mãe dele e meio que
desconversou. Porque realmente, a maioria dos alunos é de
classe mais alta (Direito, 26 anos, autodeclarada preta, cotista
negra).

A fala da acadêmica, na qual ela ilustra uma situação em que se sentiu


constrangida ao ter de confrontar um professor que enfatizava sua condição
privilegiada, mencionando aspectos relacionados a mesadas e posses materiais,
abre margem para pensarmos sobre vários pontos importantes relacionados à
sociabilidade universitária.
Primeiramente, seu relato aponta para a percepção equivocada que seu
professor teve de que todos os alunos seriam oriundos de famílias com boas
condições financeiras, demonstrando uma falta de sensibilidade em relação à
diversidade socioeconômica existente no curso a partir das cotas. Apesar das
transformações ocorridas, parece permanecer arraigado o imaginário de que

(2009), estabelece uma distinção conceitual entre a permanência material e a permanência


simbólica. Enquanto a primeira diz respeito às dificuldades financeiras, a segunda está
relacionada as dificuldades encontradas no âmbito da interação social e ao sentimento de
pertencimento. Na prática, as duas dimensões da permanência atuam de maneira interligada.
167

esse espaço é reservado exclusivamente para indivíduos com recursos


financeiros substanciais, e, portanto, as colocações do professor sobre os
Estados Unidos e mesadas seriam presumivelmente compreendidas por todos.
O desacordo evidenciado entre a perspectiva do professor e a
experiência da estudante pode restringir a sensação de acolhimento, pois essas
diferenças podem gerar desconforto e dificultar a interação e identificação dos
estudantes com o ambiente acadêmico. Além disso, podem gerar sentimentos
de exclusão, inadequação e desigualdade, impactando negativamente o
sentimento de acolhimento e pertencimento dos estudantes cotistas negros,
reforçando a barreira da elitização, acentuando a marginalização desses
estudantes no ambiente universitário e dificultando sua permanência simbólica.
Embora não esteja explicitamente mencionado, a situação descrita
também revela um importante recorte racial, uma vez que o professor em
questão é um homem branco e o elitismo é uma das faces da branquitude, pois
reflete a privilegiada posição social e econômica historicamente atribuída à
população branca que, normalmente, desconsidera outras formas de se
relacionar com o mundo.
Considerando o teor do discurso do docente, é plausível inferir que sua
falta de sensibilidade se estenda também a outras temáticas, como a racial. No
contexto acadêmico, a presença de docentes brancos reproduzindo discursos e
comportamentos elitistas pode reforçar estereótipos e preconceitos,
perpetuando a marginalização e exclusão de estudantes cotistas negros ao
terem suas vivências negligenciadas.
Ao não levar em consideração diversidade socioeconômica e racial dos
estudantes, esses docentes podem contribuir para a criação de um ambiente
acadêmico hostil e desfavorável, onde o sentimento de acolhimento é afetado e
o sentimento de pertencimento desses estudantes é prejudicado. A falta de
sensibilidade para com as temáticas raciais e a reprodução de estereótipos
podem criar barreiras na sociabilidade, dificultando a interação e identificação
dos estudantes negros com o contexto universitário.
Dando sequência, observamos que, entre os cotistas negros, apenas um
relatou não se sentir acolhido por causa do "preconceito" por parte de
professores e funcionários, sem especificar de que tipo e como ele é expressado.
Mais adiante adentraremos em maior profundidade sobre o impacto do racismo
168

na sociabilidade universitária, por hora, o que fica nítido é que, para os discentes
negros, o principal impeditivo para que se sintam acolhidos está no fato de não
disporem de condições materiais para usufruir da universidade em pé de
igualdade com os demais estudantes.
Os dados colhidos por meio dos questionários demonstram, portanto,
que, quando o assunto é acolhimento, os estudantes, a depender do grupo ao
qual pertencem, apresentam demandas diferentes. Os cotistas de escola
pública, por exemplo, não deram ênfase nas dificuldades de permanência, o que
não queria dizer que ela também não seja um problema com o qual eles tenham
de lidar. Outro ponto a ser salientado é que nenhum deles relacionou a falta de
acolhimento a situações de discriminação. O mesmo foi constatado entre os não
cotistas, que não indicaram dificuldades de permanência ou envolvendo
situações de discriminação como determinantes para o não acolhimento.
A análise dos dados coletados revela diferenças nas razões que levam
os estudantes a perceberem uma falta de acolhimento na universidade.
Enquanto os cotistas de escola pública e os não cotistas apresentam uma
variedade maior de problemas que contribuem para essa percepção, os cotistas
negros enfrentam desafios específicos que desempenham um papel
determinante nessa questão.
Entre os desafios enfrentados pelos cotistas negros, destacam-se a
dificuldade de permanência na universidade, a falta de condições materiais
adequadas para aproveitar plenamente o ambiente acadêmico e o preconceito
racial. Esses fatores combinados impactam negativamente a experiência dos
cotistas negros, tornando a falta de acolhimento uma realidade significativa para
eles em comparação aos outros grupos.
Isso indica que o sentimento de acolhimento vivenciado por esses
estudantes é influenciado tanto por questões materiais, quanto simbólicas.
Nesse contexto, é interessante notar que os cotistas de escola pública e os não
cotistas compartilham, em alguns aspectos, percepções mais abrangentes sobre
o que contribui para o acolhimento no ambiente acadêmico. Para eles, o espaço
físico parece desempenhar um papel importante, representando um fator de
acolhimento para 7,41% dos cotistas de escola pública e 6,41% dos não cotistas.
Vale ressaltar que nenhum dos cotistas negros mencionou esse elemento em
suas respostas.
169

Porém, os estudantes negros apresentam percepções bastante distintas


dos demais, nas quais o acolhimento está intimamente relacionado à capacidade
de se verem representados, de terem condições adequadas para permanecerem
na universidade e de não serem vítimas de discriminação racial. Portanto, o
elemento racial desempenha um papel preponderante na forma como esses
estudantes vivenciam a universidade, influenciando diretamente sua percepção
de acolhimento.

6.3 INFORMAÇÕES SOBRE O CONVÍVIO ENTRE COTISTAS E NÃO COTISTAS

Continuando com os temas que perpassam a sociabilidade dos


estudantes da UENP, elaboramos uma sequência de perguntas objetivas para
avaliar o grau de concordância e discordância em relação ao convívio
universitário utilizando a Escala de Likert96. No questionário, os 180 estudantes
tiveram que pontuar uma das seguintes opções para cada afirmação
apresentada: 1. Concordo totalmente, 2. Concordo, 3. Não sei, 4. Discordo, 5.
Discordo totalmente. Os dados coletados foram agrupados e processados
utilizando o programa RStudio97 levando em consideração a proporção dos
grupos. Os resultados estão apresentados no gráfico a seguir.

Tabela 10 – Escala de Likert sobre sociabilidade dos estudantes da UENP que

96 Criada pelo educador e psicólogo Rensis Likert, em 1932, a escala vai de um a cinco pontos
e tem como função medir as percepções e atitudes dos indivíduos sobre um determinado assunto
(BERMUDES et al., 2016).
97 É um software voltado para a sistematização e análise de dados, projetado para trabalhar

especialmente com o R, que é uma linguagem de programação estatística.


170

responderam ao questionário

Fonte: dados da pesquisa.


171

O gráfico acima está dividido em duas partes opostas, de concordância


(à esquerda) e discordância (à direita), separadas por uma zona intermediária
que indica indecisão. Cada pergunta apresenta as respostas dos três grupos de
discentes levando em conta a sua proporcionalidade.

1. A primeira questão tinha como intuito compreender a percepção dos


estudantes cotistas e não cotistas em relação ao convívio com seus
colegas de turma. Os resultados revelaram que os estudantes
cotistas negros provenientes de escolas públicas apresentaram a
percepção mais positiva, com uma concordância de 87%. Tanto os
estudantes cotistas de escolas públicas quanto os não cotistas
também demonstraram altos índices de concordância em relação ao
convívio na universidade, ambos com 78%. Quanto ao grau de
incerteza, esses dois grupos também apresentaram índices similares
(18% e 19%). A discordância entre os estudantes cotistas de escola
pública e não cotistas foi de, respectivamente, 4% e 3%. Nenhum
estudante cotista negro indicou ter um convívio ruim com os colegas
de turma.

Entender a percepção dos estudantes sobre o convívio com seus


colegas de turma é importante, pois pode oferecer pistas sobre como eles se
sentem em relação a seus pares e como percebem a dinâmica social no
ambiente universitário. Essa questão buscou verificar possíveis diferenças na
percepção e interação entre os grupos de estudantes cotistas e não cotistas no
intuito de compreender melhor sobre a eficácia da política de cotas e de como a
inclusão é percebida na UENP.
O alto índice de avaliação positiva dos três grupos, com destaque aos
cotistas negros, demonstra um cenário favorável sobre a convivência nos cursos
analisados. Não podemos dizer, no entanto, que neles não existam
tensionamentos, muito pelo contrário, vários estudantes entrevistados indicaram
terem tido algum tipo de conflito – retomaremos isso mais à diante. Um
comentário que pode nos ajudar a explicar esta questão é o seguinte: "Sim.
Graças a Deus, tirando esse indivíduo em específico, sempre fui muito bem
172

tratado e não senti tratamento diferenciado" (Respondente 158, 2022). Vemos,


portanto, que apesar do discente ter tido conflito com um estudante em
específico, isso não faz com que ele julgue que possui um convívio ruim com os
outros estudantes. Desse modo, podemos supor que, no geral, os discentes
negros tendem a ter mais relações positivas do que negativas dentro do
ambiente acadêmico.
Os números dos dois outros grupos, cotistas de escola pública e não
cotistas, embora sejam menores quanto a uma boa percepção e maiores na
indecisão, ainda revelam um ambiente com bom nível de convivência. Essa
variação pode ser atribuída a fatores individuais, como diferenças de
personalidade, experiências pessoais ou até mesmo questões contextuais
específicas de cada estudante.

2. A segunda questão tinha como objetivo avaliar se os estudantes


estabeleciam boas relações além da sala de aula, ou seja, se
conseguiam socializar com estudantes de outros cursos e turmas.
Novamente, os estudantes cotistas negros obtiveram o maior índice
de concordância (74%), seguidos pelos não cotistas (72%) e pelos
cotistas de escolas públicas (43%). Nesse caso, foram os não
cotistas que apresentaram o menor grau de incerteza (22%),
seguidos pelos cotistas negros (26%) e pelos cotistas de escolas
públicas (43%). Em relação à discordância, o número foi maior entre
os não cotistas (6%) e os cotistas de escolas públicas (4%). Mais
uma vez, nenhum estudante cotista negro indicou ter uma relação
desfavorável com estudantes de outras turmas ou cursos.

Essa pergunta é relevante, porque permite examinar o grau de interação


e integração dos estudantes em um contexto mais amplo dentro da universidade.
A criação de relações positivas com colegas de outros cursos e turmas é
importante para promover um ambiente universitário inclusivo e colaborativo,
dado que pode estimular a troca de conhecimentos, a formação de redes de
apoio e a ampliação das perspectivas.
Relacionar-se para além do círculo restrito que um determinado
ambiente impõe não é algo que, para muitas pessoas, seja fácil ou, até mesmo,
173

desejado; muitos indivíduos enfrentam resistência quando precisam estabelecer


novos vínculos. Desse modo, a capacidade dos estudantes em expandirem sua
rede de sociabilidade para fora de suas turmas e blocos está intrinsecamente
relacionada à personalidade de cada um. Nesse sentido, questionamos aos
respondentes se eles se consideravam mais reservados ou mais sociáveis. O
resultado obtido foi o seguinte: o grupo que demonstrou maior tendência a serem
sociáveis foram os cotistas negros, com 74%, enquanto apenas 26% indicaram
serem reservados; na zona intermediária estão os não cotistas, contabilizando
53% como mais sociáveis e 47% mais reservados; finalmente, os cotistas de
escola pública afirmaram serem os mais retraídos, 49% indicaram ser mais
sociáveis e 51% mais reservados.
Talvez, o dado de que os cotistas negros se consideram mais sociáveis
gere surpresa, principalmente se levarmos em conta toda a gama de estudos 98,
que tem demonstrado os impactos danosos do racismo na individualidade do
sujeito negro e na construção de vínculos afetivos. Contudo, há que se ponderar
que, nos últimos anos, tem aumentado consideravelmente o número de pessoas
falando sobre as temáticas relacionadas às vivências negras e que muitos estão
buscando assistência especializada em consultórios de psicologia para obter
uma compreensão mais profunda das violências às quais estão expostos e
mitigar os traumas causados pelo racismo. Um exemplo disso é compartilhado
por Laura:

Olha, o meu jeito específico é ser muito comunicativa. Então eu


já cheguei sendo comunicativa, eu sou a representante da minha
sala, então, assim… Eu que acolhi todo mundo, vamos colocar
assim [risos]. Eu sou super a pessoa que conversa, que quando
vê que alguém está mais assim eu chego e converso com a
pessoa… E acho que isso reflete muito, pessoal mesmo, é… Eu
acho que eu tento acolher as pessoas, porque por muito tempo
não me acolheram, então eu vejo que antes de eu sentir assim,
‘ah, será que vão me acolher?’, eu vou e acolho todo mundo.
Mas eu vejo assim, que os estudantes cotistas que passaram
comigo às vezes não são tão acolhidos, por causa do jeito deles
talvez… Não pelo jeito, mas porque são mais tímidos e não tem
essa… Sabe? Não são tão acolhidos. Eu acho que eu sou
acolhida pelo meu jeito, por eu ser assim. Eu acho que se eu não
fosse assim, talvez seria diferente, ou talvez não… (Direito, 19
anos, autodeclarada negra, cotista negra).

98Sobre esse tema, ver mais em: Racismo e o negro no Brasil: questões para psicanálise
(2017).
174

O relato da estudante enfatiza que, para muitos negros, a habilidade de


ser sociável não é dada, mas sim é resultado de um processo de (re)construção
que envolve a recuperação de experiências anteriores ao racismo – que, muitas
vezes, encontra no ambiente escolar o seu maior difusor. Nesse contexto, a
estudante indica como está aprendendo a superar as barreiras que a
discriminação impôs a ela durante a infância e adolescência. Ela está
compreendendo que a "timidez" que experimentou na verdade era resultado das
restrições impostas pelo racismo, destacando a importância de reconhecer e
enfrentar esses impactos para seu desenvolvimento pessoal. Encontrar na
universidade indivíduos negros com trajetórias semelhantes, viabilizado
principalmente pelas cotas, certamente também tem um peso importante para o
contínuo desenvolvimento de sua postura mais aberta e receptiva.
A predominância de estudantes negros mais sociáveis indicada na
pesquisa possivelmente esteja relacionada ao processo de empoderamento99
que muitos têm realizado, como no trecho acima, a partir dos debates que vem
sendo feitos nas últimas décadas; por outro lado, há que se ponderar que,
eventualmente, parte de discentes negros mais retraídos, justamente por conta
dessa característica, não tenham participado da pesquisa com receio de se
expor. Por outro lado, a considerável taxa de estudantes que não souberam
responder a essa questão, principalmente entre os cotistas de escola pública,
talvez esteja relacionada, para além da questão da personalidade, ao fato de
que, entre eles, a maioria que respondeu o questionário estava no primeiro ou
segundo ano da graduação, o que significa que a maior parte do tempo de
interação entre eles havia sido feito no ambiente virtual por conta da pandemia,
de modo que muitos sequer tiveram contato com outras turmas e cursos durante
esse período.
Seja como for, os números demonstram um nível semelhante entre os
cotistas negros e não cotistas, com um índice superior a 70%, o que demonstra
uma boa taxa de relacionamento para além das próprias turmas. O baixo nível
indicado pelos cotistas de escola pública, porém, provavelmente seja um

99Trata-se da junção entre a capacidade de conscientizar-se sobre uma opressão socialmente


imposta e atuar no campo prático para transformá-la. Ver mais na obra de Joice Berth, O que é
empoderamento? (2019).
175

espelho do fato de que 53% deles, no momento do preenchimento do


questionário, estavam nos primeiros anos da graduação e tiveram seu campo de
interação restringido pela pandemia.

3. O terceiro questionamento visava verificar se os estudantes tinham


um relacionamento positivo com os estudantes cotistas negros. As
respostas de todos os grupos apresentaram pouca variação e
mostraram-se bastante semelhantes. Nesse caso, os estudantes
cotistas de escolas públicas demonstraram ter um convívio mais
positivo com os estudantes cotistas negros (96%), seguidos pelos
próprios estudantes cotistas negros (94%) e pelos não cotistas
(93%). O sentimento de indecisão também apresentou margens
bastante próximas, com 4% para o primeiro grupo e 6% para os
outros dois. Quanto à discordância, apenas 1% dos não cotistas
indicaram não ter uma boa relação com os estudantes cotistas
negros.

Os dados, de modo geral, apresentam uma percepção positiva dos três


grupos sobre relação com os cotistas negros, o que pode evidenciar um
ambiente de convivência favorável e um nível de integração bastante alto. O
maior índice entre os cotistas de escola pública pode estar relacionado ao fato
de que esses discentes, por possivelmente também enfrentarem dificuldades no
acesso à educação e também terem feito o uso das cotas, podem se identificar
mais facilmente e encontrar afinidades nesse contexto. Por outro lado, embora
os estudantes não cotistas tenham indicado uma visão ligeiramente menos
positiva, resultado talvez de um distanciamento da realidade social desses
indivíduos, a alta porcentagem, de 93%, sugere uma tendência de convivência
inclusiva entre os grupos analisados.
Outro ponto é que apenas 1% dos estudantes não cotistas
demonstraram que não possuem um bom convívio com os cotistas negros. Esse
baixo índice deve ser problematizado, pois conforme verificamos nas entrevistas,
os discentes apresentam dificuldades no reconhecimento do racismo dentro do
espaço universitário, logo, eles também podem apresentar dificuldades no
reconhecimento e compreensão dos conflitos causados pelo racismo, porque,
176

como vimos, ele é um fenômeno complexo que muitas vezes opera de maneiras
sutis e enraizadas na sociedade, tornando-se difícil para algumas pessoas
perceberem e reconhecerem seus efeitos prejudiciais. Todavia, há que se
considerar, conforme aventado anteriormente, que há uma tendência entre os
discentes em avaliar positivamente o campo das relações sociais, dado que elas
são mais comuns do que aquelas em que há desentendimentos, embora elas
também existam.

4. O quarto questionamento tinha o mesmo objetivo do item anterior,


porém focado no convívio com os estudantes cotistas provenientes
de escolas públicas. Os estudantes cotistas de escolas públicas
mantiveram o maior índice de concordância (96%), seguidos pelos
não cotistas (93%) e pelos estudantes cotistas negros (90%). A
indecisão, nesse caso, foi maior em comparação com a pergunta
anterior: 10% para os cotistas negros, 7% para os não cotistas e se
manteve nos 4% entre os próprios cotistas de escola pública. Por
outro lado, não houve nenhuma discordância em relação ao bom
convívio com os estudantes cotistas de escolas públicas.

Os números são praticamente iguais aos obtidos no questionamento


anterior. Por ser questões semelhantes, pode-se supor que os discentes
replicaram as respostas, redundando no resultado evidenciado. Contudo,
notamos algumas alterações, especialmente nas respostas dos cotistas negros,
que pontuaram um índice levemente menor do que os demais e o maior nível de
indecisão. Essa variação nos resultados pode ser o reflexo de uma falta de
acolhimento sentida pelos cotistas negros com relação a esses discentes. Outro
ponto é que não é possível identificar corretamente quem são os cotistas de
escola pública, uma vez que, por se tratar de pessoas brancas na maioria dos
casos, quando eles entram na universidade suas existências não são
relacionadas às cotas (PALLISSER, 2019). Ademais, ninguém indicou ter um
convívio ruim com esse grupo, o que pode significar que os cotistas negros
tendem a enfrentar mais conflitos em suas interações com os estudantes, muito
provavelmente por conta de carregarem um duplo estigma: de cotistas e negros.
177

5. A quinta pergunta teve como objetivo compreender se os estudantes


tinham um bom relacionamento com os professores. Entre todos os
grupos, os estudantes cotistas provenientes de escolas públicas
demonstraram a maior concordância com essa questão (94%),
seguidos pelos estudantes cotistas negros (90%) e pelos não cotistas
(81%). Em relação à indecisão, a maior parte foi observada nos não
cotistas (19%), enquanto os outros dois grupos apresentaram taxas
iguais (6%). Apenas os estudantes cotistas negros indicaram
discordância em relação a ter um bom relacionamento com os
professores (3%).

A questão relatada acima é bastante relevante, porque os professores


desempenham um papel fundamental dentro do ambiente acadêmico, pois são
responsáveis pela transmissão de conhecimentos, orientação e, até mesmo,
pelo apoio aos discentes. Estudos100 apontam que ter um bom relacionamento
com o professor influencia de maneira positiva a vivência e o rendimento dos
universitários, pois eles se sentem mais confortáveis e estimulados. Em
contrapartida, ter um mau relacionamento com um docente pode significar
entraves difíceis de serem superados, resultando em sentimentos como
desmotivação, falta de engajamento e até mesmo dificuldades no processo de
aprendizagem.
De forma ampla, as informações coletadas exibem uma boa percepção
dos estudantes sobre a relação com seus professores. Dois pontos, entretanto,
chamam a atenção. O primeiro é que, dentre os três grupos, os não cotistas
foram os que manifestaram, ao mesmo, uma visão, embora alta, menos positiva
e mais dúvidas sobre essa questão. Esse é um dado interessante, pois sugere
que esses universitários têm maiores dificuldades em avaliar o tipo de
relacionamento que estabelecem com os docentes. Outro ponto é que apenas
os cotistas negros, em uma pequena proporção, relataram não ter uma boa
relação com seus professores. Parte disso pode ser atribuído a uma questão
levantada anteriormente: a falta de representatividade no corpo docente. A
predominância de professores brancos nos cursos analisados pode ter um

100Ver mais em: Percepções de estudantes universitários sobre a relação professor-aluno,


de Oliveira et al. (2014).
178

impacto significativo na sociabilidade dos estudantes cotistas negros, resultando


em possíveis conflitos decorrentes da falta de conexão entre as realidades
vivenciadas por eles. Essa falta de representatividade pode contribuir para um
distanciamento maior entre os estudantes cotistas negros e os professores, em
comparação com os outros dois grupos, além de dificultar o estabelecimento de
vínculos. A falta de familiaridade com as experiências e perspectivas dos
estudantes cotistas negros por parte dos professores brancos pode resultar em
barreiras de comunicação, dificuldades na compreensão mútua e potenciais
conflitos oriundos do racismo.

6. A sexta pergunta se referiu à criação de laços de amizades na


universidade. Os estudantes não cotistas foram os que mais
concordaram com essa afirmação (94%), seguidos pelos estudantes
cotistas provenientes de escolas públicas (92%) e pelos estudantes
cotistas negros (90%). Enquanto os estudantes não cotistas e
cotistas de escolas públicas demonstraram indecisão semelhante
(3% e 4%, respectivamente), os estudantes cotistas negros foram os
mais indecisos (6%). Quanto à discordância, ela foi maior entre os
estudantes cotistas de escolas públicas (4%), enquanto foi
semelhante nos outros dois grupos (3%).

O estabelecimento de amizades durante o período universitário pode ter


um papel central no desenvolvimento acadêmico dos discentes, impactando
diretamente no sentimento de acolhimento e pertencimento, como vimos. Por
outro lado, a sua ausência pode levar ao isolamento e, até mesmo, à evasão dos
estudos. Um exemplo concreto é o relato de Luciana, que optou trancar a
faculdade por falta de interação com os colegas de turma: "Nesta turma eu me
sinto acolhida. Na de 2019 não, pois eles me ignoravam e eu não gostei. Esse
foi um dos motivos pelos quais parei os estudos" (Letras, 25 anos, autodeclarada
parda, cotista negra). Na sua fala não há elementos suficientes para avaliar se a
questão racial também foi um fator limitante de sua sociabilidade, embora não
devemos desconsiderá-lo, mas fato é que a estudante teve de interromper os
estudos em virtude de não ter conseguido estabelecer vínculos na sua turma de
2019.
179

Retomando os dados, eles tendem a mostrar um cenário bastante


positivo sobre o modo como os acadêmicos avaliam sua capacidade de criar
amizades na universidade, com poucas variações entre os grupos. Convém,
entretanto, mencionar, que os cotistas negros foram os que apresentaram menor
índice de concordância sobre ter amizades e também foi o grupo que mais
relatou indecisão sobre o assunto. Esse dado indica que os cotistas negros
podem enfrentar, devido ao racismo sofrido durante a vida, desafios adicionais
na criação de laços sociais na universidade, podendo impactar negativamente
sua vivência dentro desse ambiente.

7. Por fim, a última pergunta abordou o uso do espaço universitário


pelos estudantes. Aqueles que revelaram sentir-se mais confortáveis
foram os estudantes cotistas provenientes de escolas públicas
(94%), seguidos pelos estudantes cotistas negros (90%) e pelos
estudantes não cotistas (85%). Foram os estudantes não cotistas e
os provenientes de escolas públicas que apresentaram maior
indecisão sobre o tema (12% e 10%, respectivamente), enquanto os
estudantes cotistas negros apresentaram uma taxa de indecisão
menor (4%). Apenas os estudantes não cotistas (3%) e os
provenientes de escolas públicas (2%) indicaram discordância em
relação ao uso do espaço universitário.

Conforme vimos, os espaços universitários são de fundamental


importância para que os estudantes se sintam acolhidos, desempenhando um
papel significativo na forma como os estudantes interagem entre si, estabelecem
relacionamentos e participam ativamente da vida acadêmica. Desse modo, os
índices sugerem que os três grupos se sentem confortáveis em utilizar os
espaços acadêmicos, sem restrições. As respostas dos cotistas negros
indicando um bom uso da universidade, demonstra que, apesar dos desafios e
dificuldades enfrentados, eles estão conseguindo se adaptar e se sentir bem nos
ambientes universitários. Esse dado contrasta, em certa medida, com alguns
relatos de cotistas negros colhidos por meio das entrevistas que apresentamos
ao longo desta dissertação, que apresentam sentimentos de receio, medo e
vergonha por conta da discriminação. Isso nos permite ponderar que, os
180

questionários, em virtude de sua objetividade, reafirmaram uma percepção mais


positiva dos participantes, uma vez que os respondentes podiam atribuir apenas
uma resposta para cada pergunta, enquanto as entrevistas nos permitiram
acessar uma multiplicidade maior de informações e, consequentemente,
adentrar em problemáticas mais profundas.

6.4 PERCEPÇÕES SOBRE O RACISMO NA UENP

Outro ponto que queríamos entender era como o racismo afetava a


sociabilidade dos estudantes no ambiente universitário. De início, questionamos
se existe racismo na sociedade brasileira. Todos os 180 respondentes indicaram
que sim. Em seguida, perguntamos se eles já haviam presenciado ou sofrido
alguma situação de discriminação racial fora da universidade. Do total
mencionado, 75% responderam que sim, 25% que não e 5% não tinham certeza.
Sobre os que responderam não, vale mencionar que a maioria era
composta por indivíduos brancos e pouquíssimos pardos, apenas cinco, que
estavam no grupo dos estudantes com maior renda. O fato de serem
autodeclarados pardos, provavelmente por terem uma tonalidade de pele mais
clara, e possuírem uma boa condição financeira, pode implicar em uma outra
vivência, muito diferente daqueles que possuem a pele mais escura e fazem
parte do grupo dos que possuem menor poder aquisitivo, na qual o racismo pode
se manifestar de formas mais sutis e de difícil percepção.
Continuando, indagamos se eles haviam presenciado o mesmo
fenômeno dentro da universidade. Obtivemos, então, a seguinte porcentagem:
90% responderam que não e apenas 10% que sim. De pronto, a inversão nos
números nos chamou a atenção. Logo, as próprias respostas dos estudantes
indicaram que não é que o racismo não exista ali, mas é que ele se manifesta de
formas muito específicas e sutis, o que pode dificultar na sua identificação.
Nos relatos de racismo fora da universidade, todos os entrevistados
relataram casos de flagrante discriminação racial que sofreram, em geral, na
escola enquanto crianças/adolescentes ou em ambientes comerciais. Na maioria
dos casos, os participantes evidenciaram ocorrências inequivocamente
identificáveis como exemplos explícitos de racismo, tais como acusações falsas
de furto ou insultos relacionados a características físicas, morais ou intelectuais.
181

No entanto, observa-se que, quando ocorrem situações mais sutis, os


estudantes tendem a descrevê-las de forma diferente, usando termos como
"estranho", ao invés de identificá-las como manifestações de racismo.
De igual modo, podemos aplicar esse raciocínio ao ambiente
universitário. Como raramente se manifesta abertamente nesse local, o mais
comum é que ele apareça sutilmente em pequenos gestos, ações e palavras101.
Dessa forma, o seu diagnóstico é muito mais difícil de ser feito, uma vez que por
se apresentar de forma complexa e diferente do que normalmente aparecem em
outros ambientes, nem todos percebem tão nitidamente estas manifestações
como sendo oriundas do racismo, de modo que grande parte delas passam
despercebidas como simples brincadeiras ou comentários rudes.
Entre os 10% que responderam que já tinham presenciado ou sofrido
cenas de discriminação e preconceito na faculdade, observamos alguns
elementos presentes em seus relatos. Raramente foram mencionados casos
explícitos, é como se o racismo se mostrasse pelo não-dito. Ele é normalmente
visto pelos estudantes como uma "piada" ruim, um "comentário" sem noção, um
"olhar" diferente e uma "atitude" estranha. Ele quase nunca se mostra
completamente e quase sempre caminha furtivamente entre os indivíduos sem
ser notado. É como se ele estivesse fundido à realidade social de modo tão bem
feito que nem nos damos conta que ele está lá. Por não ser explícito, ele fica no
campo da subjetividade gerando dúvidas. Será? Há casos em que mesmo
percebendo que há algo estranho, por ser rotineiro, o indivíduo acaba por
naturalizar situações semelhantes e não mais questioná-las.
Nesse sentido, é importante evocarmos a fala da estudante Laura, por
meio da qual revelou-se temerosa sobre a possibilidade de um debate
envolvendo as questões raciais em sua turma. Ela diz:

(...) tenho receio de quando tiver… Porque sempre tem algumas


pessoas que tipo, assim… Uns meninos que fazem umas piadas
meio nada a ver, umas brincadeiras, no grupo mandam umas
coisas meio duvidosas, daí você fica… Ou então, ou talvez isso
é trauma de uma pessoa que já viveu com isso, não sei. Mas
entre as minhas amigas a gente sempre comenta, ‘ah, tal pessoa
já fez comentários que…’. É que já houve boatos na
universidade sobre alguns comentários e nunca teve, assim, um

101
Sobre as múltiplas formas como o racismo afeta a vida de um indivíduo negro, ver mais em
Memórias da Plantação, de Grada Kilomba (2019).
182

debate, mas a pessoa sempre comenta algumas coisas na aula,


daí eu fico ‘ai, meu deus!’ (Direito, 19 anos, autodeclarada negra,
cotista negra).

O excerto acima é elucidativo, porque, a partir dele, podemos observar


não apenas uma dificuldade encontrada pela estudante em nomear
pontualmente aquilo que lhe aconteceu, como também uma incerteza, ou
melhor, um questionamento sobre o ocorrido: "Ou então, ou talvez isso é trauma
de uma pessoa que já viveu com isso, não sei". Ademais, o fato de a estudante
afirmar sentir-se receosa em relação a um debate sobre questões raciais indica
a existência de um clima de tensão vivenciado por ela, e possivelmente por
outros indivíduos negros, em relação às possíveis reações de determinadas
pessoas. Isso pode afetar a sociabilidade dos estudantes negros, uma vez que
a sociabilidade é vivenciada subjetivamente, de modo que apenas uma situação
é capaz de deflagrar uma série de efeitos que podem redundar na vivência dos
estudantes na universidade.
Retomando, a dificuldade em reconhecer o racismo em outras formas
advém, sobretudo, do mito da democracia racial, que por muito tempo conduziu
o pensamento de diversos segmentos da sociedade (MUNANGA, 1996).
Considerando as peculiaridades do sistema escravista brasileiro e tomando
como referência, principalmente, a realidade norte-americana, diversos teóricos
dessa corrente argumentavam que o Brasil vivia em uma democracia racial, uma
vez que não possuía um racismo institucionalizado e tão evidente como o
presente naquele país.
Apesar de racismo à brasileira ser, na maior parte do tempo, um racismo
silencioso (MUNANGA, 1996), há casos em que ele se mostra mais
explicitamente, como podemos verificar no relato de Anália.

Então, se eu não me engano, o menino [um outro estudante de


Direito] chamou o meu amigo [também estudante de Direito] de
macaco, ou algo do tipo, e foi processado. Só que não deu nada
pra ele, pro cara que foi processado. Ele se formou, é advogado
hoje e tal... [E você sabe em que contexto isso aconteceu?] Eu
acho, não tenho certeza, mas eu acho que foi numa das… numa
das… como é que é o nome? Ocupação! Que faziam bastante
quando a gente estava tentando colocar as cotas na faculdade…
A gente sempre retorna pra esse assunto quando falamos do
cara que foi acusado, sabe? Porque ele se formou na
universidade e quando a gente menciona ele, a gente sempre
183

lembra do caso, mas eu não procurei saber como terminou. Eu


acho que foi pra juízo e não tinha dado em nada. Não
academicamente falando, porque ele se formou e está atuando
como advogado criminal. Esse rapaz, que cometeu esse erro, é
de uma turma anterior à implementação das cotas. Se eu não
me engano, quando eu entrei ele estava no quinto ou quarto ano.
Ele já estava bem no finalzinho (Direito, 22 anos, autodeclarada
parda, cotista negra).

No comentário acima, deparamo-nos com um exemplo evidente de


racismo, expressado por meio de uma caracterização zoomórfica que reduziu a
complexidade da condição humana do estudante a uma essência animalesca.
Este fenômeno denota um processo de animalização102 amplamente observado
durante o período da escravidão, no qual os indivíduos escravizados eram
cruelmente equiparados a seres irracionais. Longe de ser somente um "erro",
conforme atribuiu a estudante, episódios como esse caracterizam-se como
crimes de injúria racial103, uma vez que viola os direitos humanos desse grupo e
promove a perpetuação do preconceito e da discriminação racial.
Jorge, outro estudante do curso de Direito, disse em entrevista, que nos
primeiros anos de curso lhe contaram algumas histórias envolvendo casos de
discriminações. Quando pedi que mencionasse o caso que lhe marcou, ele
contou que alguns anos antes dele entrar na universidade houve uma tentativa
de ocupação na faculdade de Direito durante o intervalo e um estudante do curso
havia imitado um macaco para um dos manifestantes. Ele recorda que já ouviu
relatos que falavam que o sujeito que foi alvo da discriminação era um professor
negro da FAFIJA e outros diziam que havia sido um estudante negro. O discente
informou, ainda, que não há consenso sobre o caso. Alguns defendem que
certamente foi um ato explícito de racismo, outros defendem que ele só estava
gritando e "fazendo coisa de adolescente". De qualquer modo, a história ficou

102 Para compreender mais sobre, ver em A humanidade questionada: violência e perversão
do racismo cotidiano (2021), de Maria Nilza da Silva. Aliás, nos últimos dias alguns casos
envolvendo a animalização do negro ganhou as manchetes dos jornais a partir de dois casos em
especial, o do jogador Vinícius Jr., que foi chamado de macaco pela torcida do Atlético, e de
duas influencers, Kérollen Cunha e Nancy Gonçalves, que gravaram a reação de crianças negras
ao receberem uma banana e um macaco de pelúcia.
103 De acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), a injúria

racial se aplica aos casos em que "qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos
minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e
que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou
procedência". A partir de 2023, a injúria racial passou a ser equiparada ao crime de racismo,
tornando a pena mais severa, com reclusão de dois a cinco anos, além de multa. Com essa
alteração, não há mais a possibilidade de fiança e o crime tornou-se imprescritível.
184

conhecida também por outros cursos, pois recordo-me de muitos outros


estudantes também citarem o caso, mas não entrarem em detalhes. Para ele, o
episódio foi emblemático e revoltante.
Observa-se aqui um ponto central, que é a falta de eficiência em punir o
discente que, ao invés de ser expulso, conseguiu concluir seu curso, como
evidenciado na citação: "Só que não deu nada pra ele, pro cara que foi
processado. Ele se formou, é advogado hoje e tal..." Essa situação reforça o
argumento previamente apresentado de que a ausência institucional contribui
com o silenciamento de casos como esse por parte das vítimas, acabando por
colocá-las na posição de ter de lidar com essas questões de forma individual,
uma vez que elas têm a percepção de que a universidade não tomará medidas
efetivas para lidar com tais situações. Os diversos casos apresentados aqui
ratificam a necessidade de a UENP desenvolver mecanismos educativos e de
coibição mais eficazes.
Nesta passagem podemos perceber que os casos nos quais o racismo
é explícito geram mais burburinho e até ficam marcados na memória dos
sujeitos, que mesmo não tendo presenciado, comentam sobre o assunto -
embora, ainda que seja nítido, como vemos no relato de Jorge, sempre há
aqueles que tendem a amenizar o ocorrido. De qualquer modo, o episódio e a
repercussão que teve entre os estudantes, comparado com os resultados
obtidos nos questionários, nos permitem pensar que, de fato, situações como
essa, onde o racismo está estampado não são tão comuns nos cursos
analisados. O mesmo foi observado por Jorge: "Nunca percebi nenhuma coisa
nítida, até porque eu acho que esse tipo de coisa teria, graças a Deus, uma forte
represália de todo mundo" (Direito, 19 anos, autodeclarado branco, não cotista).
No entanto, mesmo quando ocorre, a resolução pode ser insatisfatória, como
evidenciado na declaração de Anália; apesar da denúncia do crime de racismo
cometido pelo estudante, nenhuma ação foi tomada contra ele - de forma irônica,
ele, por conseguinte, acabou se tornando um advogado criminal.
De todo modo, verificamos que na maior parte dos relatos obtidos sobre
o racismo na universidade havia a referência a um racismo cuja linguagem era,
na maioria das vezes, não-verbal e recreativa (ADILSON, 2019). Manuela,
estudante do curso de Odontologia, mencionou, nas suas próprias palavras, ter
presenciado "situações racistas em grupos de WhatsApp". Segundo ela, alguns
185

estudantes mandaram no grupo da turma figurinhas jocosas de teor racista. Ela


não quis entrar em detalhes sobre o conteúdo, mas revelou que estas mesmas
pessoas também fazem "brincadeiras"104 com outros assuntos igualmente
sérios. No entanto, ela disse nunca ter percebido uma manifestação explícita de
racismo dentro da universidade. Outros estudantes que responderam ao
questionário também indicaram terem presenciado situações de racismo nos
grupos de WhatsApp de suas respectivas turmas. Ninguém entrou em detalhes
sobre o conteúdo das mensagens, mas o que fica evidente é que no ambiente
online, muitas das vezes, as pessoas se sentem confortáveis o bastante assumir
uma postura que, presencialmente, talvez não teriam coragem
Desse modo, os relatos indicam que o ambiente virtual105 tem se tornado
um local cada vez mais propício para a manifestação de discursos de ódio,
especialmente de um racismo reprimido, porque além de promover um
distanciamento físico e emocional, permite o anonimato dos indivíduos; outro
aspecto relevante é a existência de múltiplas comunidades virtuais nas quais os
indivíduos compartilham interesses comuns, incluindo, por exemplo, o racismo.
Essa dinâmica proporciona um ambiente propício para que os participantes
expressem suas opiniões mais íntimas.
Felipe, estudante do curso de História que atuou ativamente no processo
de implementação da política de cotas dentro da UENP na função de
representante estudantil, revelou que em um dos ciclos de debates organizados
pela instituição na cidade de Bandeirantes para discutir acerca do tema,
aconteceram alguns ataques abertamente racistas: "[aconteceram] coisas que a
gente nunca imaginava, de trocarem o login do wi-fi e colocar palavras racistas.
Se você fosse logar na internet de lá, você via os nomes do wi-fi com menção à
Hitler, mandando a gente ir tocar pagode" (História, 30 anos, autodeclarado
preto, não cotista). Episódios dessa natureza evidenciam a existência de um
racismo latente e a presença de um ambiente hostil aos negros, permeado por

104 Ver mais em: Você conhece aquela? A piada, o riso e o racismo à brasileira (2013), de
Dagoberto José Fonseca.
105 Ver mais em: Mídias sociais e a naturalização de discursos racistas no Brasil (2020), de

Luiz Valério Trindade. Em 2022, crimes de ódio na internet tiveram um aumento de quase 70%
envolvendo racismo, lgbtfobia, xenofobia, neonazismo, misoginia, apologia a crimes contra a vida
e intolerância religiosa segundo a Central Nacional de Denúncias da Safernet. Só no primeiro
semestre foram realizadas 23.947 denúncias. Ver mais em:
https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-02/denuncias-de-crimes-na-
internet-com-discurso-de-odio-crescem-em-2022. Acesso em 14 de jun. de 2023.
186

preconceito e discriminação racial. A adulteração do wi-fi com conteúdo racista


revela a existência de estudantes dispostos, deliberadamente, a perpetuar
discursos e práticas discriminatórias.
A presença desses eventos racistas em um ambiente educacional,
pautado no princípio de abertura ao aprendizado, agrava a situação, revelando
a postura fechada dos estudantes brancos em relação ao diálogo. Nesse
contexto, é plausível que os estudantes negros inseridos nesse espaço estejam
experimentando um ambiente profundamente hostil. Esses ataques racistas
acarretam consequências significativas, não apenas em termos psicológicos
para as vítimas diretas, mas também na promoção de um ambiente desfavorável
para o estabelecimento de vínculos e na criação de um espaço propício e
acolhedor. Essas ações discriminatórias minam a construção de uma
comunidade inclusiva, onde todos os indivíduos possam se sentir valorizados e
respeitados. É essencial que medidas sejam adotadas pela UENP,
especialmente no campus de Bandeirantes, para promover a conscientização e
a sensibilização em relação à importância da diversidade e da igualdade racial
no ambiente universitário.
O trecho acima nos chama a atenção para a covardia da prática racista,
isto é, o fato de que os indivíduos que praticaram esses atos racistas precisaram
se "camuflar" e encontrar estratégias para manifestar seu preconceito dentro da
universidade. Os racistas estão sempre à espreita de uma oportunidade para
exprimir tudo aquilo que o filtro social106 lhes obriga a reprimir. O racista
dificilmente andará esbravejando na universidade o seu ponto de vista
preconceituoso e discriminatório, até porque ele sabe que, socialmente, há (pelo
menos no campo discursivo) uma intolerância a esse tipo de conduta. Se por um
lado esse ocultamente cria um ambiente ameno (pelo menos nas aparências),
por outro, instaura um clima de desconfiança e incerteza, afetando a

106 Sobre isso, a ideia de Erving Goffman, em A representação do eu na vida cotidiana (1985),
de que a vida social é encenada, como uma grande peça de teatro, na qual as pessoas seguem
rituais socialmente estabelecidos, desempenham papeis determinados e utilizam máscaras para
se autorepresentarem de acordo com o contexto no qual estão inseridos, cumpre bem com o
que, comumente, conhecemos de filtro social. Antigamente, por exemplo, utilizar a máscara de
racista não era um grande problema, atualmente, no entanto, a partir das conquistas dos negros,
da criminalização do racismo e das discussões levantadas pelos movimentos negros e
intelectuais, esta é uma máscara que, na maioria dos casos, fica reservada para ser utilizada na
alcova ou em um círculo restrito, pois sua utilização na vida social já não é mais bem vista, dado
que, para continuar na acepção do autor, ser racista tornou-se um estigma que ninguém, ou
melhor, quase ninguém, gostaria de carregar nos dias de hoje.
187

sociabilidade dos estudantes: a qualquer momento o racismo pode irromper e


mesmo vir de qualquer um. Tânia, apesar de nunca ter presenciado nenhum
episódio de racismo dentro da universidade, alegou sentir-se temerosa diante da
possibilidade. Para ela, as manifestações de racismo mais recentes na UEL 107
são indicativas e devem colocar os estudantes em estado de alerta, pois "está
propenso a acontecer lá, infelizmente a gente sabe que a qualquer momento
pode acontecer aqui" (Letras, 20 anos, autodeclarada negra, cotista negra).
Os olhares também são um fato recorrente presente na fala dos
estudantes que já foram vítimas desse racismo silencioso (MUNANGA, 1996). A
esse respeito, enfatizamos a fala de Vanessa, estudante de Odontologia, sobre
sua percepção sobre como sua colega de turma, uma mulher negra, é tratada
por pacientes na clínica odontológica.

Então, eu fico mais com a fulana [uma estudante negra], com


quem eu tenho mais amizade. Ela nunca comentou nada comigo
de que alguém a destratou, nunca, mas a gente percebe
algumas coisas. Às vezes, até mesmo o paciente… Por
exemplo, a gente foi fazer uma apresentação de estágio que tem
que fazer e é óbvio que você repara alguns olhares, e isso é uma
coisa absurda! E não são olhares sutis, a pessoa olha e cutuca
a outra… Tipo assim, todo mundo branco e só ela de preta,
entendeu? (Vanessa, Odontologia, 19 anos, autodeclarada
branca, cotista de escola pública).

A fala de Vanessa é pertinente, porque revela o racismo cotidiano ao


qual os sujeitos negros em processo de ascensão usualmente vivenciam. Suas
presenças são tidas como estranhas; é como se algo estivesse fora do lugar
perturbando a ordem108. Ou, então, é visto como algo exótico. De qualquer modo,
é o sentimento de estranheza e, principalmente, de não pertencimento que
imperam. Como veremos mais à frente, pelo fato do curso de Odontologia ser
uma graduação com altos custos, a presença de indivíduos negros nele, mesmo
após a política de cotas, é bastante limitada, uma vez que só aqueles que
possuem recursos é que conseguem, com efeito, se formarem. A desigualdade

107 Em 2022 apareceram pichações de mensagens racistas e de apologia ao nazismo em um


banheiro masculino do departamento de Geociências da instituição. Dentre as mensagens
escritas estavam que os "negros são burros" e que eles "merecem morrer".
108 Ver mais sobre a questão em Memórias da plantação (2019), de Grada Kilomba,

especialmente o capítulo 10, intitulado Segregação e contágio racial, no qual ela o


estranhamento dos brancos quando veem um negro em um ambiente que, segundo suas
percepções, não é o seu lugar.
188

social que acomete a população negra, aliada ao preconceito de cor, tornam a


combinação das palavras negro e dentista numa mesma frase, para muitos, um
verdadeiro oximoro109. O mesmo foi relatado por outra estudante:

Uma vez, no grupo da minha sala, encaminharam o contato de


um calouro, questionando se ele realmente era aluno ou se
haviam colocado o contato dele por engano no grupo de
calouros. Ele era negro e, se não me engano, estava fumando
na foto de perfil, logo, simplesmente sua aparência, causou
estranheza a alguns alunos, pois, fugia do padrão de "aluno de
direito". Eu encarei esse episódio como racismo e fiquei muito
incomodada com a situação (Respondente 108 - Questionário,
2022).

No relato mencionado, fica evidente a ocorrência de uma discriminação


racial. O fato do calouro negro ter sido descreditado e causar estranheza por
fugir do padrão branco de "aluno de Direito", demonstra a presença do
preconceito racial e do julgamento baseado em imagens controladoras
(COLLINS, 2016). O pensamento racista estabelece uma estrutura social rígida
na qual é concebido que um jovem negro não pode ser identificado como um
estudante de advocacia, mas sim, no máximo, como alguém que buscará os
serviços jurídicos quando confrontado com questões legais. Nesse caso, o fato
do jovem estar fumando em sua foto de perfil torna-se apenas um subterfúgio
para legitimar uma estranheza oriunda, na realidade, de um racismo
internalizado. Essa perspectiva recorrente, conforme vimos em relatos de outros
entrevistados, pressupõe, de forma equivocada, que todo jovem negro é
automaticamente associado à criminalidade.
O relato acima dialoga com outro, de um discente negro que respondeu
ao questionário. Esse estudante relatou que assim que entrou na universidade,
uma funcionária da instituição lhe disse que, por conta das cotas para negros,
estavam entrando "qualquer um". Isso aconteceu logo após ele dizer que era
estudante do curso de Direito. Temos um exemplo típico de racismo brasileiro,
no qual estratégias discursivas são utilizadas para expressar uma opinião sem
que haja possibilidade de contestação. Apesar de em nenhum momento a
funcionária dizer que os negros são inferiores e, por isso, ele e outros não

109
Oximoro é uma figura de linguagem que consiste na combinação de palavras ou expressões
que possuem significados opostos ou contraditório.
189

deveriam estar em um ambiente privilegiado como o universitário, é


precisamente isso o que sua fala revela nas entrelinhas. Ao não nomear o objeto
alvo do preconceito, o racismo brasileiro cria um cenário desmobilizador, no qual
quem é por ele vitimado, muita das vezes fica sem reação e/ou com uma dúvida
amarga sobre o ocorrido.
As falas apresentadas revelam que certos espaços - quanto mais
elitizados – tendem a ser demarcados por uma linha divisória que, embora não
seja real materialmente, é tácita e conhecida, mesmo que inconscientemente,
por todos110. Por mais que no Brasil não tenha havido segregação oficial como
em outros lugares, sempre existiu uma segregação informal, tanto nos espaços
físicos, como nas relações sociais; de modo que, ainda hoje, existem limites
socialmente impostos que indicam até aonde os negros podem ir. Aqueles que
cruzam tais limites, como os estudantes mencionados, são alvos de olhares,
comentários e, até mesmo, formas mais violentas de hostilidade.
Dentre os outros relatos de racismo vivenciados na UENP, um estudante
respondeu ao questionário que quando estava nas dependências da
universidade com seu amigo, também negro, foi interpelado e questionado se
estavam querendo roubar o ônibus. Mais uma vez, nos deparamos com uma
representação social controladora, na qual a presença de dois jovens negros em
proximidade com a universidade durante a noite é associada não à condição de
estudantes, mas sim à ideia de serem criminosos. Essa percepção estabelece
um estereótipo baseado em preconceitos raciais, desconsiderando a
possibilidade desses jovens serem, de fato, estudantes ou qualquer outra coisa
além de criminosos. Outros discentes não entraram em muitos detalhes, mas
também relataram ter sofrido episódios de racismo velado dentro da instituição,
desde "piadas" relacionadas à aparência física até "comentários sem noção"
vindos dos colegas.
Além desses casos, nos quais o racismo atua no campo das interações
sociais, o racismo estrutural também foi mencionado por outros estudantes,
embora nem todos utilizassem tal nomenclatura, era visível que a denúncia em
suas respostas indicava se tratar de um problema estrutural. A queixa mais

110Ver mais sobre segregação racial em: Nem para todos é a cidade (2006), de Maria Nilza da
Silva, e Território e segregação urbana: o "lugar" do negro na cidade (2014), organizado por
Maria Nilza da Silva e Mariana Panta.
190

comum foi referente à ausência de negros na universidade, tanto na forma de


estudantes, como em cargos de autoridade. Tal percepção sobre a realidade
demonstra uma consciência sobre um problema mais profundo e complexo
causado por um racismo que não se restringe ao campo das relações.

Bom, faz pouco tempo que estou na faculdade, e não presenciei


nenhuma situação de racismo diretamente. Mas creio que o
racismo estrutural é presente na universidade… tal como, uma
sala de quase 70 alunos, e nem 10%/20% dos alunos são
negros. E até o presente momento, não vi um professor, diretor/
funcionário negro. Não estou dizendo que essa faculdade em si
é racista. Mas o nosso sistema que vivemos tem um racismo
estrutural empregando. Isso é visível! (Respondente 74 -
Questionário, 2022).

Uma fala que sintetiza de forma mais evidente tudo aquilo que expomos
até aqui sobre o impacto do racismo na sociabilidade dos estudantes é a de
Janaína111. A estudante mencionou que, no início, sua turma era bem unida, mas
que a desistência de alguns estudantes e algumas situações problemáticas
fizeram com que esse vínculo que os mantinha unidos fosse, aos poucos, se
enfraquecendo. Segundo ela, durante o período da pandemia, muitos dos seus
colegas tiveram dificuldades em acompanhar as aulas por muitos motivos e que
houve uma movimentação para reformular a dinâmica das aulas, visando uma
inclusão maior. Entretanto, um grupo de estudantes, que ela denomina como
"clero112", se mostrou contrário à iniciativa, isso fez com que houvesse uma
fragmentação ainda maior na sua turma que já encontrava dificuldades em se
relacionar por conta de comentários racistas e classista.
Conforme ela destacou, os membros do clero "são adeptos do discurso
de que a universidade não pode ser para todos". Sua colocação é importante,
pois a estudante evidencia que este mesmo grupo já demonstrou, em outros
momentos, falas problemáticas sobre outros temas: "tem dois estudantes em
específico, um seminarista e uma outra estudante que defendem
veementemente que o racismo, tanto contra indígenas, como contra negros, não
existe e que as cotas são uma ferramenta de trapaça". Se por um lado, episódios
como esses causaram na estudante, em princípio, um mal-estar e um

111 Estudante de História, 28 anos, autodeclarada indígena, cotista social.


112 Referência ao fato de que o grupo é composto por uma maioria de seminaristas.
191

isolamento, por outro, a estudante indígena revelou que eles contribuíram no


processo de autoafirmação de sua identidade étnica e também na união com
outros colegas de turma, indígenas e negros, que eram igualmente afetados por
esse tipo de discurso: "Aí eu fui me unindo às pessoas da minha própria turma
dentro desse enfrentamento, né? Então ali, na sala, é bem pesado o clima. Hoje
a gente não se dá bem, mas foi a partir daí que eu decidi vestir a camisa mesmo".
Nesse sentido, ela enfatiza a importância que encontrou nas amizades que
construiu nas lutas do Movimento Estudantil, da qual é representante, e na sala
de aula, na qual criou uma rede de apoio e de enfrentamento. Ela diz: "eu não
sou bem quista pelo clero… a todo tempo eles ficam esperando alguma coisa
pra falar que eu sou selvagem, é bem declarado… acho que eu não tivesse sido
acolhida pelo Movimento Estudantil, eu teria desistido".
É importante destacar que, embora a população negra seja a mais
afetada pelo fenômeno do racismo no Brasil, devido à sua representatividade
numérica, os povos indígenas também sofrem com essa forma de
discriminação113. A análise da fala da acadêmica revela que, devido à sua
identidade indígena, os membros do clero a rotulam como selvagem, o que
reflete uma imagem controladora atribuída a esses grupos desde os tempos da
escravidão, quando os povos autóctones eram percebidos pelos europeus como
inferiores e bárbaros (COLLINS, 2016). A narrativa de Janaína sobre suas
experiências de racismo como indígena evidencia a persistência de estereótipos
arraigados e preconceitos enraizados na sociedade brasileira. Essa visão
discriminatória em relação aos povos indígenas é resultado de um longo
processo histórico de colonização, durante o qual a cultura e os direitos dos
povos originários foram negados e subjugados em favor dos interesses
colonizadores.
O relato da cotista indica como o racismo cria um ambiente de exclusão,
no qual a sociabilidade dos estudantes racializados, como os negros e indígenas,
fica comprometida ao ter receio de expressar seu ponto de vista e, até mesmo,
afirmar sua identidade étnico-racial. Contudo, no caso de Janaína, o racismo
serviu como um ponto de contato com outros estudantes negros e indígenas de
sua turma, que se uniram com vistas a criar um ambiente seguro e acolhedor

113Ver mais sobre o racismo contra os povos indígenas em Existência e diferença: o racismo
contra povos indígenas (2019), de Felipe Milanez et al.
192

para todos, no qual podiam compartilhar suas experiências. Esse grupo se


tornou uma fonte de apoio emocional para Janaína e seus colegas, permitindo
que eles se expressassem mais livremente, compartilhassem suas vivências e
fortalecessem sua identidade racial e étnica. No processo, eles fortaleceram
seus laços e descobriram a força coletiva que surge quando pessoas com
experiências semelhantes se unem em prol de uma causa comum.
Nesse sentido, os dados obtidos indicam que, apesar de o racismo
também se manifestar abertamente, pelo fato de ele aparecer, na maior parte do
tempo, de modo silencioso e recreativo dentro do ambiente universitário, sua
presença não é facilmente identificável. Por outro lado, os dados revelam,
também, que há uma crescente consciência sobre a existência do racismo na
sociedade de forma mais ampla. O fato de 100% dos estudantes reconhecerem
que no Brasil existe racismo é, com efeito, um avanço e uma conquista recente
de lutas antigas de personalidades e dos movimentos negros. Se há algumas
décadas a questão central era a necessidade de conscientizar sobre a existência
do racismo (MUNANGA, 1996), embora tal questão ainda não esteja
inteiramente resolvida, os dados da pesquisa indicam que hoje a questão mais
fulcral é expandir o entendimento sobre as múltiplas formas como o racismo age
na vida dos indivíduos, pondo travas na interação social. No entanto, não
conseguimos captar se o racismo vivenciado pelos discentes na universidade
limita a sociabilidade ao ponto de, por exemplo, eles restringirem sua
participação nas atividades acadêmicas; para isso, seriam necessárias
pesquisas com outras abordagens metodológicas. Por outro lado, verificamos
que é o fator econômico o que mais restringe a vivência dos cotistas,
especialmente os negros, na UENP – essa vulnerabilidade econômica dos
negros, como já aludido em outras partes do trabalho, é o resultado de uma soma
de fatores dentre os quais se destaca o racismo estrutural, como vetor principal
da manutenção das desigualdades sociais. Falaremos disso a seguir.

6.5 PRINCIPAIS DESAFIOS DIANTE A UNIVERSIDADE

Por fim, com vistas a responder às questões que orientam este trabalho,
elaboramos, ao final do formulário, uma lista com as principais dificuldades que
os estudantes podem sofrer na universidade. Tratava-se de uma pergunta por
193

meio da qual poderiam ser selecionadas várias respostas, inclusive, ao final


havia um espaço em branco para que o respondente, caso desejasse, indicasse
uma outra dificuldade que não estava listada. Com isso, queríamos analisar se
eles consideravam o convívio e a discriminação entre seus principais problemas.
Os dados foram tabelados:

Tabela 11 – Percepção dos estudantes cotistas e não cotistas sobre as


principais dificuldades que enfrentam na universidade
Temas Cotistas Cotistas de Não cotistas Total114
negros escola pública (%)
Tempo 14 29 46 89
(3,90%) (8,08%) (12,81%) (24,79%)
Financeiro 24 20 28 72
(6,68%) (5,57%) (7,80%) (20,06%)
Saúde 10 13 33 56
(2,79%) (3,62%) (9,19%) (15,60%)
Conteúdo 6 7 16 29
(1,67%) (1,95%) (4,46%) (8,08%)
Infraestrutura 4 9 15 28
(1,1%) (2,51%) (4,18%) (7,80%)
Família 7 6 11 24
(1,95%) (1,67%) (3,06%) (6,69%)
Convívio c/ 3 1 9 13
professores (0,84%) (0,28%) (2,51%) (3,62%)
Convívio c/ 1 2 8 11
estudantes (0,28%) (0,56%) (2,23%) (3,06%)
Discriminação 0 0 1 1
- - (0,28%) (0,28%)
Não tenho 3 8 25 36
(0,84%) (2,23%) (6,96%) (10,03%)

Fonte: dados da pesquisa.

Pode-se verificar uma curiosa variação entre os três grupos daquilo se


apresentam como desafio na universidade. Para se ter uma melhor visualização
da diferença observada, transformamos os dados em gráficos do tipo Nuvem de
Palavras115, uma vez que eles são mais visuais.

Figura 5 – Principais dificuldades que os não cotistas enfrentam na

114 Ao longo do texto evidenciaremos os dados levando em consideração a proporção de cada


grupo nas respostas. O número total de respondentes de cada grupo foi, no caso dos cotistas
negros, 31; dos cotistas de escola pública, 49; e dos não cotistas, 100. Assim, para obter os
dados proporcionais, dividimos o número de respostas pelo número de participantes e
multiplicamos por 100.
115 Utilizamos esse tipo de gráfico, pois ele é uma representação visual da frequência e

importância das palavras em um determinado contexto, de modo que torna a comparação entre
os diferentes grupos analisados mais palpável.
194

universidade

Fonte: dados da pesquisa.

Figura 6 – Principais dificuldades que os cotistas negros enfrentam na


universidade

Fonte: dados da pesquisa.

Figura 7 – Principais dificuldades que os cotistas de escola pública enfrentam


na universidade

Fonte: dados da pesquisa.

A análise proporcional e comparativa das principais dificuldades


195

enfrentadas pelos cotistas e não cotistas nos permite identificar algumas


diferenças no modo como cada grupo vivencia a universidade. No geral,
observa-se que, na ordem de preocupações, os cotistas negros mencionaram
com maior frequência dificuldades financeiras (77%), falta de tempo (45%),
problemas de saúde psicológica (32%) e desafios relacionados à família (23%).
Os cotistas de escola pública destacaram praticamente as mesmas dificuldades,
no entanto, a mais mencionada foi a falta de tempo (59%), seguida de problemas
financeiros (41%), com a saúde psicológica (26%) e entraves com relação à
infraestrutura universitária (18%). Os não cotistas também indicaram problemas
de falta de tempo como a principal dificuldade (46%), seguida de dificuldades
financeiras (28%), de saúde psicológica (33%) e dificuldades com o conteúdo
(16%).
Esses dados convergem com a Gráfico 3 e demonstra que o principal
desafio dos cotistas negros que participaram da pesquisa é o financeiro. Tal dado
também nos permite compreender melhor por que muitos indicaram dificuldades
de permanência e o sentimento de não acolhimento na universidade, de modo
que é necessário que a UENP pense em estratégias para que esses estudantes
não interrompam os estudos por não terem condições de permanecer na
universidade devido aos custos. Se comparado aos outros dois grupos que
também indicaram essa questão como sendo o segundo maior desafio,
verificamos a drástica diferença com os cotistas negros. Desse modo, embora
as dificuldades financeiras sejam uma realidade para a maior parte dos
participantes, ela não afeta de maneira igual os grupos.
Para os não cotistas e cotistas de escola pública a preocupação maior é
com o tempo escasso para dar conta das atividades acadêmicas. Por não
dispormos de maiores informações, podemos inferir que a falta de tempo pode
estar ligada a duas principais causas: a grande quantidade de demanda dos
cursos investigados e/ou o fato de esses estudantes precisarem trabalhar. Para
os cotistas negros, essa questão também é importante, mas secundária, tendo
em vista que o objetivo central para eles é permanecer na instituição.
Outro desafio que foi mencionado por todos os estudantes, na terceira
posição, foi relacionado a problemas psicológicos. Essa questão é vivenciada
pelos estudantes de maneira bastante parecida, com uma baixa variação, e
indica que as demandas envolvendo a universidade podem causar desgastes
196

psicológicos que, consequentemente, repercutem não apenas na sociabilidade


desses discentes, como também em seu rendimento acadêmico. Alguns
entrevistados revelaram terem depressão, ansiedade e já terem sofrido com a
síndrome de burnout116. No caso dos estudantes negros, acrescenta-se os
efeitos do racismo vivenciado durante a vida toda, que tende a agravar ainda
mais os quadros apresentados, redundando em um impacto significativo em sua
saúde mental.
Dando continuidade, inesperadamente, mas coerente com os gráficos
apresentados anteriormente, o convívio não está entre as principais
preocupações de nenhum grupo, de modo que sua aparição foi bastante
reduzida nas respostas. Sobre o convívio com os professores, o grupo que mais
apontou para esse tópico foi o dos cotistas negros (9%), empatado com os não
cotistas (9%), e seguido dos cotistas de escola pública (2%). Já sobre o convívio
com os estudantes, os que mais pontuaram foram os não cotistas (8%), seguido
dos cotistas de escola pública (4%) e dos cotistas negros (3%).
Essa baixa recorrência não nos autoriza dizer, necessariamente, que a
interação social dos participantes seja harmoniosa e livre de conflitos, muito pelo
contrário, ao longo deste trabalho apresentamos uma série de informações que
não nos permitem pensar a UENP como um espaço perfeitamente inclusivo e
igualitário. O que ela demonstra, por outro lado, é que, diante de uma série de
opções de desafios que eles encontram na universidade, este é um dos que têm
menor peso em suas avaliações, seja porque os tensionamentos são pontuais
ou porque conseguem lidar bem com essas situações. Especialmente no caso
dos cotistas negros, percebemos que muitos "relevam" certas "brincadeiras" ou
"comentários" que, na realidade, são formas do racismo, para justamente evitar
conflitos. É preciso pontuar que, o fato de relevarem muitas dessas situações,
não quer dizer, necessariamente, que não haja um impacto subjetivo; pelo
contrário, em muitos casos é esse tipo de expressão do racismo – por meio de
"brincadeiras" e "comentários" despretensiosos, os que causam maior dano

116De acordo com Jamila Geri Tomaschewski-Barlem et al. (2022, p. 755), a síndrome de burnout
se manifesta entre estudantes por meio de "três dimensões específicas: exaustão emocional,
descrita pelo sentimento de estar exausto em resposta às intensas exigências do estudo;
descrença, percebida como o desenvolvimento de uma atitude cética e distanciada no âmbito
dos estudos, e baixa eficácia profissional, assinalada pela percepção de estarem sendo
ineficazes como estudantes".
197

emocional. De modo geral, pode-se afirmar que os estudantes, ao analisarem o


campo das interações sociais, demonstram um olhar mais positivo, uma vez que
as relações de amizade são mais fortes e numerosas do que aquelas em que há
somente tensão.
Outro ponto interessante é que a discriminação não foi mencionada por
nenhum cotista entre os principais desafios que enfrentam na universidade, mas
sim por um estudante não cotista branco. Além da dificuldade em identificar o
racismo dentro da universidade, como já abordamos, esse dado reforça o
comentário anterior de que os cotistas negros parecem "relevar" o racismo como
estratégia de sobrevivência dentro desse espaço. Além disso, há que se
considerar que muitos também podem ter naturalizado determinadas situações
de discriminação a tal ponto que não mais as enxerga como algo problemático.
Além disso, não ter problemas foi muito mais mencionado pelos não
cotistas (25%) e pelos cotistas de escola pública (16%) do que pelos cotistas
negros (9%). O maior índice entre os não cotistas e o menor entre os cotistas
negros reafirma o fato de que, sobre estes, há pesos adicionais que interferem
em suas vivências na universidade. Enquanto entre os não cotistas há uma
variedade maior de estudantes com outras preocupações, como a infraestrutura
universitária, os cotistas negros ainda estão com o olhar tão voltado para
problemáticas básicas que, muitas das vezes, isso impede que eles percebam
outros desafios ao seu redor.
198

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto deste trabalho, o termo "sociabilidade" não se limitou


apenas à interação social em si, mas abrangeu também outros elementos que a
permeiam. Portanto, ao analisarmos a sociabilidade universitária de estudantes
cotistas e não cotistas, estivemos interessados, concomitantemente, em
questões de ordem objetiva, como aspectos estruturais do próprio ambiente
acadêmico, e também em questões subjetivas, como sentimentos, percepções,
comentários, linguagem corporal, entre outras pistas dadas pelos participantes.
Tendo isso em mente, as informações encontradas demonstram um cenário
preocupante com relação a como esse tema tem sido vivenciado pelos diferentes
grupos, aqui analisados, no contexto da UENP.
De início, na sondagem inicial sobre o perfil sociorracial dos participantes
da pesquisa, já nos deparamos com dados bastante inquietantes. Com relação
à renda familiar mensal, verificamos que 50% dos estudantes negros vivem com
um a dois salários mínimos, ao passo que os brancos somam somente 24%. Por
outro lado, ao analisar proporcionalmente o grupo de estudantes com renda mais
alta, constata-se que 12% do total de alunos brancos estão incluídos nesse
grupo, enquanto apenas 1,75% dos alunos negros fazem parte dele. A
desigualdade entre os grupos, contudo, se manifesta também em outros
marcadores. Sobre a escolaridade familiar dos discentes, observamos que 42%
dos negros eram os primeiros de suas famílias a estarem cursando uma
universidade, enquanto no caso dos brancos o número era de 22%. Além disso,
os dados demonstram que são os negros aqueles que ingressam com maior
idade; cerca de 12% deles possuem entre 26 a 51 anos, já o número de discentes
brancos com a mesma idade decai para 8%. Com relação ao gênero,
percebemos uma predominância feminina em ambos os grupos, com uma sub-
representação maior no caso dos homens negros. Portanto, embora constituam
minoria na universidade em comparação com o grupo branco, os estudantes
negros representam a maioria em todas as estatísticas que evidenciam a
desigualdade.
Os dados extraídos do questionário informam, também, que cerca de
45% dos discentes negros não entraram por meio das cotas para negros, desse
montante, metade é oriunda das cotas para escola pública (19%) e a outra de
199

ampla concorrência (26%). Desse modo, é fundamental que a UENP, além de


buscar entender o porquê desses estudantes não estarem utilizando as cotas
destinadas especificamente a eles, também identifique e incorpore os
estudantes negros que não foram admitidos por meio delas em suas estratégias
de apoio e permanência, uma vez que, certamente, eles enfrentam os mesmos
desafios que os estudantes cotistas.
No que diz respeito à maneira como os estudantes percebem questões
relacionadas ao ambiente acadêmico, também é possível identificar alguns
aspectos que merecem destaque e consideração. As informações coletadas
tanto por meio do questionário, como através das entrevistas, revelam que os
estudantes dos cursos analisados apresentam uma adesão significativa às cotas
para escolas públicas (95%) e para negros (90%), com uma preferência
ligeiramente maior pela primeira categoria. Observa-se, ainda, que há múltiplas
representações sobre as cotas, quase a totalidade enfatizando aspectos
positivos. Por outro lado, a diversidade de temáticas na percepção dos
estudantes demonstra a complexidade e a importância do debate sobre essa
política pública. Constatamos que o assunto das cotas não parece não estar
inteiramente compreendido por muitos entrevistados, alguns dos quais
mobilizaram ''velhos'' e já bastante conhecidos argumentos para se opor à sua
existência ou para propor sua alteração do formato atual. Além disso, apesar da
grande concordância constatada sobre sua existência, verificamos que não há
consenso entre os participantes em torno de qual seria a melhor configuração
para a política de cotas. Ademais, é fundamental deixar consignado que a UENP
ainda não implementou política de cotas para a inclusão da população trans,
conforme apontado por uma das estudantes entrevistadas; dessa forma, este é
um tema que, a nosso juízo, requer um avanço célere dado a crescente onda de
conservadorismo no contexto sócio-político brasileiro.
Dando continuidade, verificamos também que a percepção sobre ser
cotista na UENP está relacionada a duas posturas principais: despreocupação e
medo - ambos envolto em um silêncio. Entretanto, a causa do silêncio que
envolve as cotas na UENP é diferente de acordo com os grupos. Enquanto os
cotistas de escola pública, em sua maioria, não falam sobre o tema porque não
são questionados diretamente, observamos que, para grande parte dos cotistas
negros, é o medo de serem vistos e tratados diferentes que faz com que eles
200

"abafem" a questão.
De outro modo, muitos cotistas revelaram nunca terem parado para
pensar sobre essa questão, justamente porque há um silenciamento
inconsciente que impede com que o tema, por vezes, surja. Dessa forma, o
silêncio acaba por funcionar, principalmente no caso dos estudantes negros,
como uma dimensão do tato da sociabilidade universitária com vistas a inibir
confrontos e que, consequentemente, acaba por reproduzir as violências
oriundas do racismo, criando um clima pretensamente ''harmônico''.
Nesse sentido, as informações coletadas demonstram que o uso das
cotas, apesar de não ser um assunto presente e constante, tende a influenciar
as redes de sociabilidade estabelecidas entre os estudantes, acarretando para
muitos discentes, especialmente os cotistas negros, sentimentos como a
autovigilância, vergonha e silenciamento, o medo, o esgotamento,
questionamentos sobre a capacidade e o direito em estar na universidade, etc.
Sobre estes, portanto, são adicionados pesos a mais, além daqueles que são
comuns da vida universitária, que não são necessariamente compartilhados
pelos não cotistas ou mesmo pelos cotistas de escola pública.
Esmiuçando mais o campo da interação social por meio das respostas
ao formulário, chegamos a alguns dados que nos ajudam a compreender melhor
as diferenças entre os grupos analisados.
De maneira geral, todos os grupos de estudantes focados demonstraram
uma alta taxa de percepções positivas sobre sentir-se acolhidos na universidade.
Notamos que tanto os cotistas provenientes de escolas públicas quanto os não
cotistas apresentaram uma variedade maior de respostas sobre os fatores que
os fazem sentir-se acolhidos na universidade, tais como estabelecer vínculos
sociais e se relacionar com o ambiente acadêmico. Em contrapartida, embora
muitos cotistas negros também tenham indicado esses aspectos, percebemos
que um outro elemento emergiu como fundamental para sua sensação de
acolhimento: a representatividade na instituição.
Nesse horizonte, constatou-se que os cotistas negros foram os que
menos compartilharam de uma percepção positiva e, ao mesmo tempo, os que
mais indicaram não se sentirem acolhidos, enfrentando desafios adicionais,
como dificuldades de permanência (tanto materiais quanto simbólicas) e
discriminação, o que tende a afetar a sua sociabilidade ao gerar sentimentos de
201

inadequação, exaustão, desmotivação e vergonha. Observamos que 29% dos


cotistas negros indicaram a falta de acolhimento, enquanto os não cotistas (14,
%) e cotistas de escola pública (11%) tiveram médias bem inferiores e
semelhantes entre si.
Assim, os relatos de cotistas negros, principalmente os discentes dos
cursos mais concorridos, especialmente o de Odontologia, indicam que, embora
a UENP, por meio das cotas, crie para esse grupo a possibilidade de acesso,
parece não oferecer com a mesma efetividade a sua possibilidade de
permanência, de modo que foram vários os relatos de estudantes negros que, a
despeito de estarem em uma universidade pública, tiveram de interromper os
estudos por não conseguirem arcar com as despesas relacionadas ao curso.
Dessa forma, a hipótese inicial de que a sociabilidade nos cursos
altamente disputados seria mais permeada por tensões se confirmou devido a
duas razões principais: a) a hegemonia de estudantes brancos e provenientes
de escolas particulares, acompanhada de um corpo docente predominantemente
branco; b) competição acirrada entre eles que contribui para aumentar o temor,
principalmente de estudantes negros, de que a admissão por meio de cotas seja
questionada em maior medida do que nos cursos menos disputados.
Concernente à metodologia adotada, cabem alguns apontamentos.
Percebemos que o questionário, devido à sua natureza mais objetiva, abrangeu
uma visão mais ampla dos aspectos da sociabilidade universitária, mas não
conseguiu captar alguns detalhes, que apenas as entrevistas poderiam
evidenciar. Vale destacar que, apesar de os discentes terem avaliado, de
maneira geral, positivamente o convívio e a relação com o espaço acadêmico,
isso não significa que não haja tensões e conflitos na realidade universitária.
Ocorre que, ao terem de escolher dentre uma das alternativas ofertadas,
notamos que o participante levava em consideração aquilo que, para ele, tinha
mais peso em sua experiência. Nesse sentido, pode-se considerar que, a
despeito de todas as adversidades que os cotistas enfrentem, eles conseguem
formar relações sociais positivas. Essa reflexão sobre os diferentes resultados
obtidos pelas escolhas metodológicas realizadas é importante, pois reafirma a
necessidade do cruzamento de vários métodos e, especialmente, da relevância
do método qualitativo em pesquisas que versam sobre questões mais subjetivas,
como é o nosso caso.
202

Além disso, pelo fato de os grupos analisados serem desproporcionais


numericamente, a utilização da análise proporcional nos dados coletados pelo
questionário se revelou de suma importância para demonstrar as desigualdades
entre eles, principalmente contra a população negra. Essa abordagem nos
permitiu evitar distorções, dado que ao se basear apenas nos números
absolutos, poderíamos perder de vista as disparidades reais entre os diferentes
grupos como, de fato, constatamos.
Sobre o racismo na UENP, percebemos que ele se manifesta, na maioria
dos casos, em sua forma silenciosa e recreativa. O racismo influencia a
sociabilidade dos estudantes tanto por meio de "piadas" e comentários de cunho
preconceituoso, como também através da linguagem não verbal, em geral
olhares que indicam julgamento e estranheza quanto a presença negra dentro
da universidade.
Ao analisarmos os resultados do questionário, notamos que muitos
participantes afirmaram nunca ter presenciado situações de racismo na
universidade. No entanto, durante as entrevistas, diversos estudantes
mencionaram incidentes em que não rotulavam explicitamente como sendo
racismo, mas sugeriam a presença de "algo a mais". Desse modo, o racismo
parece afetar a sociabilidade universitária ao produzir nos estudantes negros
sentimentos como não pertencimento, dúvidas quanto à capacidade,
desmotivação, medo e silenciamento, vergonha, entre outros sentimentos
inibidores da potencialidade desses indivíduos.
Contudo, averiguamos que há uma falta de institucionalização desses
problemas. Os relatos dos estudantes apontam para uma ausência da instituição
que contribui para o silenciamento de casos de discriminação por parte das
vítimas, acabando por colocá-las na posição de ter de lidar com essas questões
de forma individual, uma vez que elas têm a percepção de que a universidade
não tomará medidas efetivas para lidar com tais situações. Os diversos casos
apresentados aqui ratificam a necessidade de a UENP desenvolver mecanismos
educativos e de coibição mais eficazes.
Além disso, apesar de termos consciência de que o racismo influencia
de forma mais direta no desenvolvimento da sociabilidade e no rendimento
acadêmico, em nossa pesquisa não conseguimos captar até que ponto o racismo
vivenciado pelos discentes na universidade também limita de modo mais direto
203

a sua sociabilidade ao ponto de, por exemplo, eles restringirem sua participação
nas atividades acadêmicas; para isso, seriam necessárias pesquisas com outras
abordagens metodológicas. Dessa forma, esta pesquisa entende suas limitações
e enseja que mais trabalhos se debrucem sobre a realidade da instituição, a fim
de construir uma descrição mais fidedigna da realidade.
Com relação aos problemas enfrentados pelos discentes, constatamos
que os três principais foram: tempo, financeiro e saúde psicológica – com pouca
variação na ordem. Na medida em que para os cotistas de escola pública e os
não cotistas o principal desafio é o tempo (59% e 46% respectivamente), para
os cotistas negros é a questão financeira (77%) que tende a limitar sua
sociabilidade ao criar dificuldades em participar ativamente da universidade.
Verificamos, portanto, que enquanto há uma maior diversidade de preocupações
entre os não cotistas e os de escola pública, como relação à infraestrutura
universitária, os cotistas negros ainda estão focados em suprir questões básicas
de permanência que, muitas vezes, outros desafios que os cercam acabam não
recebendo a mesma atenção.
Seja como for, acreditamos ter apontado para possíveis caminhos
explicativos quanto aos objetivos selecionados. Resta-nos responder à questão
norteadora deste trabalho: que tipo de sociabilidade as cotas produzem entre os
estudantes da UENP? Ela é mais construtiva, como defende Munanga (2007),
ou mais conflitiva, como supúnhamos de início a partir da teoria da sociabilidade?
As informações levantadas, tanto pelas entrevistas, como pelos questionários,
nos habilitam sugerir que, de um modo amplo, trata-se de uma sociabilidade
mais condizente com a primeira opção, que revela uma dimensão mais positiva
e aberta.
Contudo, isso não nos autoriza dizer, necessariamente, que a interação
social dos participantes seja harmoniosa e livre de conflitos, muito pelo contrário,
ao longo deste trabalho apresentamos uma série de informações que não nos
permitem pensar a UENP como um espaço perfeitamente inclusivo e igualitário.
Todavia, observamos a menção de muitos elementos mais positivos do
que negativos. O bom relacionamento entre os estudantes e a baixa menção de
discriminação pode estar relacionado a: um ambiente possivelmente mais
progressista do que de outras cidades da mesma região; um contato mais
aproximado entre os estudantes em decorrência do espaço físico; dificuldades
204

em identificar o racismo ou atribuir determinados conflitos a ele; silêncio sobre


as cotas e outros temas/experiências discriminatórias; sensibilização sobre a
questão racial a partir dos debates que acontecem na atualidade; e à
objetividade das perguntas, especialmente as do questionário.
Os dados indicam, portanto, que há ainda muitos desafios para os
estudantes cotistas, especialmente para os negros, de modo que esta pesquisa
espera contribuir para que a universidade se conscientize e busque construir
estratégias institucionais específicas para a inclusão efetiva e a superação dos
obstáculos identificados. É fundamental que a universidade reconheça as
dificuldades enfrentadas pelos estudantes cotistas e implemente políticas e
ações concretas para garantir um ambiente acadêmico mais acolhedor e
igualitário. Uma das medidas sugeridas é o fortalecimento de programas como
o NASP e o NAE, de apoio e suporte aos estudantes, especialmente aos cotistas
negros, que enfrentam desafios adicionais de discriminação e dificuldades de
permanência. Além disso, urge que a UENP crie uma política institucional efetiva
de fomento ao debate sobre a questão racial e de combate à discriminação e
outras formas de preconceito, não somente entre os discentes, mas também
entre os docentes e demais agentes que fazem parte do ambiente acadêmico.
Mas é preciso ir além, é fundamental a implementação de uma
abordagem interseccional e abrangente nos currículos de todos os cursos, uma
real inciativa de contratação de pessoas negras/indígenas/trans (tanto docentes
quanto técnicos), garantir a representatividade das populações
negra/indígena/trans em posições de liderança, nos programas de apoio à
permanência, em debates públicos, entre outros. Se desejamos
verdadeiramente que a universidade se torne um ambiente inclusivo para todos,
não podemos depender apenas da ação individual de cada pessoa. É necessário
institucionalizar essas mudanças para que possamos, de fato, superar as
desigualdades existentes. Caso contrário, estaremos condenados tal qual Sísifo,
a repetir eternamente os esforços de empurrar pedras sem nunca, contudo,
alcançarmos o destino esperado, desejado e imprescindível.
205

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____. Portaria/GR nº 376/2016. Disponível em:


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____. Auxílio permanência/2023-1 da UENP. Disponível em:


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WIEVIORKA, M. O racismo, uma introdução. São Paulo: Perspectiva, 2007.


215

APÊNDICES
216

APÊNDICE A

Informações sobre o perfil racial e socioeconômico dos discentes do curso de


Letras Espanhol que responderam ao questionário.
217
218

APÊNDICE B

Informações sobre o perfil racial e socioeconômico dos discentes do curso de


Direito que responderam ao questionário.
219
220

APÊNDICE C

Informações sobre o perfil racial e socioeconômico dos discentes do curso de


História que responderam ao questionário.
221
222

APÊNDICE D

Informações sobre o perfil racial e socioeconômico dos discentes do curso de


Odontologia que responderam ao questionário.
223

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