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SILVEIRA A Natureza Teorica Da Arte Na Reflexao Filosofica de Arthu Danto
SILVEIRA A Natureza Teorica Da Arte Na Reflexao Filosofica de Arthu Danto
SILVEIRA A Natureza Teorica Da Arte Na Reflexao Filosofica de Arthu Danto
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
CRISTIANE SILVEIRA
CURITIBA
2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA - MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA E CONTEMPORÂNEA
CRISTIANE SILVEIRA
CURITIBA
2010
Ao Marco e ao Lotan
AGRADECIMENTOS
The present work aims at understanding how the philosopher Arthur C. Danto
answers the question with which he starts his philosophical investigation on art,
namely, “what turns a common object into a work of art?”. In order to do so, I
will resort to two fundamental articles: the 1964 “The Artworld”, where Danto
introduces the concept of “artworld” as the answer to the former question, and
the 1992 “The Art World Revisited: Comedies of Similarities”, where the author
offers a revision of his original concept. In order to clarify the concept of
“artworld” and to evaluate to what extent it meets the objective which was set I
will accomplish three steps: the proper characterization of the terms implied in
Danto’s investigation out of the field of art in New York between the 1950s and
1960s; the presentation of the first answer Danto offered in “The Artworld”, in
1964; and, finally, the verification of the perdurance of the concept of “artworld”
in the corpus of Danto’s philosophy of art from the 1992 article “The Art World
Revisited: Comedies of Similarities”.
FIGURA 13 – “Is he the worst artist in the U.S.?”, Life, (January 31) 1964 ...174
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 09
APÊNDICES ...................................................................................................135
ANEXO ...........................................................................................................191
INTRODUÇÃO
1
STEUP, Matthias, "Epistemology". In: ZALTA, Edward N. (Ed.). The Stanford Encyclopedia of
Philosophy, (Spring 2010 Edition). Disponível em:
<http://plato.stanford.edu/archives/spr2010/entries/epistemology/>. Acesso em: 08/11/2010.
2
Cf. CARROLL, Noël. “Danto’s New Definition of Art and the Problem of Art Theories”. In: The
British Journal of Aesthetics Vol. 37, no. 4, October, 1997 pp. 386-91.
9
Danto a partir do artigo “The Art World Revisited: Comedies of Similarities”, de
1992.
10
práticas artísticas, tomando o período analisado como exemplar, as
ocorrências não se caracterizam pela ação descontínua de seus integrantes,3
mas por uma espécie de encadeamento discursivo que permite a aceitação de
novos exemplares como obras de arte. Se, como afirma Carroll (2000, p. 10),
concordamos que a prática da arte é expansiva e aberta a mudanças, as
alterações relevantes devem estar relacionadas com o que as precede ou elas
não seriam mudanças e expansões da prática. Ou seja, os fenômenos em
questão não podem ser completamente non sequiturs.
3
Um dos eventos mais desfigurados da história da arte recente é o caso de A Fonte de Marcel
Duchamp. Recorre-se comumente a esta obra como exemplar do suposto caráter arbitrário da
arte, no sentido de que a simples apresentação de um artefato por um artista seja suficiente
para transformá-lo em arte. É preciso considerar que, em 1917, por ocasião da submissão do
agora célebre mictório ao júri de uma exposição de escultura, aberta para qualquer artista que
procedesse ao pagamento da taxa de inscrição, a “obra” de Duchamp, sob o pseudônimo
Richard Mutt, fora recusada (como o artista certamente pretendia), não sendo, portanto,
tomada como obra pelo circuito de arte da época. O episódio granjeou moderada repercussão
na revista The Blind Man (New York, 1917), obtendo, seus readymades, reconhecimento
apenas entre as décadas de 1950 e 1960, quando a Pop Art já fazia sua incursão no cenário
artístico. Cf. DUCHAMP, Marcel, “Apropos of Readymades” [Palestra proferida mo Museum of
Modern Art, Nova York, 19 de outubro de 1961; publicado em Art and Artists, 1, 4, July, 1966].
Disponível em: www.iaaa.nl/cursusAA&AI/duchamp.html. Acesso em: 20/02/2010; “The Richard
Mutt Case” [originalmente publicado em The Blind Man 2, May, 1917]. In: HARRISON; WOOD,
1992, p. 248; e DANTO, Arthur C., “Duchamp e o Fim do Gosto”. Ars / publicação do
Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo, São Paulo, v. 6, n. 12, pp. (2º Semestre) 2008.
4
Daqui em diante referida como Transfiguration.
5
Daqui em diante referida como After the End of Art.
11
“The Artworld” (iv) suscitou o surgimento da igualmente disputada Teoria
Institucional da Arte.
12
é que esse componente antiestético tem dupla origem: em primeiro lugar, a
compreensão restrita da noção de juízo estético por parte de Danto e, em
segundo, a crença que as premissas assumidas sobretudo pelo artista Marcel
Duchamp foram efetivamente realizadas e que caberia, portanto, ao teórico,
apenas explicitá-las.
13
necessárias para a existência de arte, como mostrarei no segundo capítulo, foi
o filósofo George Dickie, efetivamente, quem apresentou uma definição de arte
a partir das ideias contidas em “The Artworld”. No que concerne ao escopo
desta dissertação, entretanto, não é a Teoria Institucional que está em foco,
mas os ajustes feitos por Danto à sua tese clássica do “mundo da arte” em
razão de seu desacordo com a teoria de Dickie. Este confronto é que irá
proporcionar essa nova visada em seu conceito de “mundo da arte” e que nos
permitirá avaliar, inclusive, se e quais são suas condições de manutenção na
filosofia madura de Danto.
6
Uma tradução do artigo “The Artworld” foi realizada pelo Prof. Dr. Rodrigo Duarte, ao passo
que “The Art World Revisited” permanece inédito em língua portuguesa. Cf. DANTO, Arthur. “O
mundo da arte”. Tradução de: DUARTE, Rodrigo. Artefilosofia, Ouro Preto, n. 1, pp. 13-25, jul.
2006.
14
1 O CONTEXTO ARTÍSTICO DE “THE ARTWORLD”: O PROBLEMA DAS
OBRAS DE ARTE INDISTINTAS DE OBJETOS COMUNS
1
O comentário foi feito pelo filósofo e crítico David Carrier (cf. DANTO, 2005, p. 20).
2
“Ela deriva de um lugar e tempo. Banhada pelo mainstream da arte europeia enquanto esta
seguia seu curso através da Renascença e da Itália seiscentista e da França do século XIX, a
filosofia da arte de Danto brota do solo da pintura e da escultura de Nova York de meados do
século XX. E uma metáfora física desse tipo é muito apropriada. Ninguém pode ler o texto de
Danto sem rememorar os cheiros, os lugares, a incansável excitação circundante, do Village,
das galerias do subúrbio e das ruas agitadas e sujas do Soho.” (WOLLHEIM, 1993, p. 36).
15
interior do campo da arte e com o qual o público, a crítica e os artistas
travavam embate. Enquanto os artistas pareciam se ocupar da obliteração da
lacuna entre arte e vida, ou arte e realidade, supostamente tão demarcada até
meados da década de 1950, Danto, de modo inverso e a partir dos mesmos
exemplares, pretende restabelecer tal distinção. Em 1964, no calor da
discussão sobre a arte produzida naquele momento, o autor indagava o que
fazia com que um objeto que aparentemente havia cruzado esta fronteira,
destituído de qualquer distinção aparente frente aos demais objetos do mundo
fosse considerado uma obra de arte. Esta foi, precisamente, a pergunta feita
por Danto: o que faz de um objeto comum uma obra de arte?
16
himself to the art that substantiates the aesthetic.3 (WOLLHEIM, 1993,
pp. 36-37).
3
“É uma grande e invejável conquista ter trazido tanta actualité para a prosa filosófica Anglo-
Saxônica. Ao mesmo tempo, é bastante arriscado, porque a distância até onde a direção geral
do argumento pode carregar o leitor nunca pode ser completamente dissociada de quão
inclinado o leitor já se encontre em relação à arte que substancia a estética.” (Ibid., pp. 36-37).
17
do que um simples deslocamento geográfico, corresponde ao ponto de origem
do qual decorrem as profundas transformações da arte como hoje a
conhecemos.
4
Para um estudo detalhado do contexto de transferência do modernismo para a Europa, cf.
GUILBAUT: “New York, 1935-1941: The De-Marxization of the Intelligentsia”, “The Second
World War and the Attempt to Establish an Independent American Art”, “The Creation of an
American Avant-Garde, 1945-1947” e “Success: How New York Stole the Notion of Modernism
from the Parisians”, in GUILBAUT, Serge. How New York stole the ideas of modern art.
Chicago: The University of Chicago Press, 1983; e GUILBAUT, S., “The New Adventures of the
Avant-Garde in America. Greenberg, Pollock, or from Trotskyism to the New Liberalism of the
‘Vital Center’”, in: FRASCINA, Francis (Ed.). Pollock and After: the critical debate. Londres:
Routledge, 2000, pp.197-210,
5
O termo “New York School” foi empregado nesse trabalho por caracterizar de maneira mais
abrangente esse período do modernismo americano. O termo “Expressionismo Abstrato” foi
empregado por Robert Coates (New Yorker , 1946), “Action Painting” por Harold Rosenberg
(Art News) e “Pintura de tipo americano” por Clement Greenberg (cf. GREENBERG, 1997,
pp.75-94).
6
Cf. “Jackson Pollock: is he the greatest living painter in the United States?”, in: Life, v. 27, nº6,
pp. 42-45, (August 8) 1949.
7
A exposição 15 Years of Jackson Pollock foi organizada como uma retrospectiva de sua obra,
18
ponto máximo no desenvolvimento daquela forma de arte moderna, toda a
chamada “primeira geração” de pintores americanos já havia também
estabelecido as formas canônicas de suas obras. A primeira representação
substancial dessa produção foi apresentada num levantamento sobre a Arte
Moderna nos Estados Unidos que percorreu vários países da Europa, entre os
anos de 1955-56,8 seguida ainda por uma segunda mostra que se concentrava
na pintura que, naquele momento, já havia se estabelecido como a “Escola de
Nova York”.9 Por volta de 1956, portanto, (HARRISON; WOOD, 1992, p. 683) o
predomínio americano sobre a cultura internacional da arte moderna estava tão
firmemente estabelecido quanto o fora o predomínio francês na passagem do
século XIX para o XX.
19
específico, e da aceitação de seus padrões de realização, o artista lidaria com
as condições históricas e sociais em que se insere de modo adequado. A partir
dessa proposição, pode-se inferir que o verdadeiro potencial crítico da arte não
residia no prospecto de sua relevância no que concerne à experiência humana
como um todo, mas na possibilidade de sua autonomia (HARRISON; WOOD,
1992, pp. 685-686). “Esta é a gênese do ‘abstrato’”, afirmava Clement
Greenberg, o mais influente crítico do período, no artigo “Avant-Garde and
Kitsch”, publicado em 1939:
11
Cf. GREENBERG, Clement, “After Abstract Expressionism”, in: ibid., pp. 766-769,
originalmente publicado em Art International, VI, nº8, Lugano, outubro de 1962, pp. 24-32;
“Post-Painterly Abstraction”, Los Angeles County Museum of Art, abr-jun de 1964 [ed. bras.
“Abstração pós-pictórica”, in: FERREIRA, Glória; COTRIM Cecília, op. cit., pp.111-116]
12
Cf. TUCKER, William; SCOTT, Tim. “Reflections on Sculpture”, in: HARRISON, C.; WOOD,
P., op. cit., pp.784-786.
20
encontravam naquela produção era consequência de sua submissão às
demandas inevitáveis do meio.13 Em seu mais célebre artigo, “Modernist
Painting”, publicado em 1960, Greenberg (2001, p. 101) afirmava que a
essência do modernismo residia no uso de métodos característicos de uma
disciplina para criticar essa mesma disciplina, não para subvertê-la, mas no
sentido de entrincheirá-la mais firmemente em sua área de competência:
13
Cf. FRIED, Michael, “Three American Painters”, in: ibid., pp.769-775.
21
disponível a posteriori.14 Desse modo, um juízo supostamente desinteressado,
como o seria apropriado, poderia ser justificado em termos de uma tendência
histórica pretensamente inexorável e a autoridade do gosto modernista
assegurada, portanto, com referência a um cânone (HARRISON; WOOD, 1992,
p. 686).
14
“O que o modernismo mostrou”, afirma Greenberg (2001, p. 108), “foi que, embora o
passado tivesse valorizado esses mestres [Leonardo, Rafael, Ticiano, Rubens, Rembrandt ou
Watteau] com justiça, frequentemente alegava razões erradas ou irrelevantes para tal”.
15
Cf. Cap. 2, seção 2.1.
22
“Teoria da Realidade”.16 Assim, por entender a importância desta noção para o
presente estudo e para, ao mesmo tempo, resguardar a coesão do texto,
apresento ao leitor, em apêndice a essa dissertação, uma abordagem da fonte
teórica original do modernismo que trata da “Arte como Realidade”.17 Feitas tais
considerações, retomo a problemática do contexto da arte na década de 1950,
já no momento de passagem da forma de arte dominante para a instauração de
uma possível nova vanguarda no final daquela década.
23
promover a ideia de poder e de originalidade do liberalismo americano
(FRASCINA, 2000),18 os representantes da vanguarda de uma geração
posterior começavam a se distanciar destas formas retóricas dominantes. O
ponto de origem da arte para esse grupo emergente passa a ser identificado
não com a luta individual por expressão diante das circunstâncias, mas, de
maneira mais paradoxal e fatalista, com a individualidade como uma
circunstância inevitável na qual a expressão é, ela própria, inevitavelmente
convencional (HARRISON; WOOD, 1992, pp. 683-684).19
Como artistas como Jasper Johns e John Cage acabaram por descobrir,
(HARRISON; WOOD, 1992, p. 684), conceber uma expressão de vanguarda
naquele momento significaria enfrentar o ardil do modernismo em sua forma
mais extrema: tudo é possível, “anything goes”, desde que haja uma linguagem
em que “tudo” possa ser dito.20 Para a geração de artistas do Expressionismo
Abstrato, assim como para seus contemporâneos europeus, a significação
inquestionável de certos temas tornou possível o engajamento da pintura e da
escultura com um repertório de mitos que, ao fim, servia como garantia da
profundidade do conteúdo da arte que produziam. Quando o mito (HARRISON;
WOOD, 1992, p. 684), no entanto, passa a ser visto como ideologia, o que
previne que os temas da comunicação em massa e da propaganda sejam
considerados também mitos em formação e clamem, da mesma maneira, por
significação trans-histórica? É preciso lembrar que uma das premissas
assumidas pela estética modernista era que distinções significativas poderiam
18
Cf. KOZLOFF, Max. “American Painting during the Cold War”, originalmente publicado em
Artforum, vol. 11, nº 9, pp. 43-54, May 1973; COCKCROFT, Eva. “Abstract Expressionism:
Weapon of the Cold War”, originalmente publicado em Artforum, vol. 11, nº 10, pp. 39-41, June
1974. In: FRASCINA, F., 2000.
19
Cf. CAGE, John.“On Robert Rauschenberg, Artist, and his Work” [originalmente publicado em
Metro, Milão, maio de 1961] e “Jasper Johns: Interview with David Sylvester” [entrevista
radiofônica concedida à BBC, Londres, em 10 de outubro de 1965]. In: HARRISON, C.; WOOD,
P. ibid., p.717-26; e SYLVESTER, David. “Johns I”. In: Sobre Arte Moderna. São Paulo: Cosac
Naify, 2006, pp. 253-260.
20
A expressão “anything goes”, recorrente nas críticas publicadas à época e comumente
reputada ao músico John Cage, segundo o compositor Peter Gena, nunca foi propriamente dita
por Cage, que advogava, entretanto, uma “falta de propósito proposital” [purposeful
purposelessness], in: GENA, Peter, “John Cage and the New York School: A
Hyperlecture/Conversation”, 1993. Apresentado no simpósio “Days of Silence Symposium”,
Museu de Arte Contemporânea de Varsóvia, Polônia, 7 de outubro de 1993; e na School of
Music, Columbia University, Nova York, 18 de fevereiro de 1994. Disponível em:
http://www.petergena.com/hyperlecture.html. Acesso em: 31/03/2010.
24
ser feitas entre uma arte elevada, dita “séria”, e uma cultura de massa
desprovida de valor.21 Provocar a instabilidade desse verdadeiro alicerce
modernista custaria de fato a manutenção dessa edificação teórica.
21
Cf. Clement Greenberg, “Avant Garde and Kitsch”, in: HARRISON; WOOD, 1992, pp. 529-
541; “Vanguarda e kitsch”, in: FERREIRA, Glória; COTRIM Cecília (orgs.), op. cit., pp. 27-43.
Originalmente publicado em Partisan Review, VI, nº5, Nova York, 1939, pp. 34-39.
22
Cf. HESS, Thomas B., “J’Accuse Marcel Duchamp”, Art News, February 1965; e PERL, op.
cit., p.354.
23
No corpo de professores da Black Mountain College, no período de 1948 e 1953, figuravam
Josef Albers, Willem de Kooning, Franz Kline, Karen Karnes, Richard Lippold, Robert
Motherwell, Aaron Siskind e Jack Tworkov, nas artes visuais; Lou Harrison, David Tudor e
Stefan Wolpe, na música; Merce Cunningham e Katerine Litz, na dança; R. Buckminster Fuller,
na arquitetura; e Paul Goodman, Albert William Levi, Charles Olsen e Mary Caroline Richards,
na literatura.
24
John Cage [1912-1992] foi professor nos cursos de verão de 1948 e 1952 e residente no
verão de 1953; Robert Rauschenberg [1925-2008] foi aluno nos períodos de 1948-49 e 1951-
52. Ambos estudaram com mestres da vanguarda europeia e, naquele momento, já haviam se
distanciado das práticas modernistas estabelecidas: Cage foi aluno de Arnold Schoenberg
25
No início dos anos 1950, John Cage já havia emergido como figura
central da vanguarda. Suas experimentações com processos parcialmente
seriais o levaram a evitar o predomínio do tom e da harmonia na composição,
passando a explorar, por outro lado, métodos sistemáticos para construir
música por meio do ritmo e da duração (GENA, 1992).25 Interessado nas
virtudes do ruído, criou peças de percussão em que utilizava instrumentos,
bugigangas e sua nova invenção, o “piano preparado”, no qual sons eram
produzidos pela inserção de vários objetos entre as cordas. Além disso, sua
paleta sonora foi expandida de modo a incluir sons ambientes, eletrônicos,
rádios, falas e outras fontes de seu cotidiano. Em 1952, John Cage organizou o
evento multimídia que viria a ser reconhecido como o primeiro happening,
intitulado Theater Piece Nº 1, em que figuravam também a série de White
Paintings de Rauschenberg.26 Este último, em 1954, de volta à Nova York,
conhece Jasper Johns, com quem faria uma longa e importante parceria no
cenário artístico.
entre 1935 e 1937, em Los Angeles, e Rauschenberg estudou com Albers em 1948-49 na
Black Mountain College. Cf. GENA, Peter, “Cage and Rauschenberg: Purposeful
Purposelessness Meets Found Order”; catálogo da exposição John Cage: Scores from the
early 1950s no Museu de Arte Contemporânea de Chicago, que ocorreu junto à exposição
Robert Rauschenberg, The Early 1950s, de 8 de fevereiro a 19 de abril de 1992. Disponível
em: <http://www.petergena.com/cageMCA.html>. Acesso em: 07/04/2010.
25
De acordo com Gena (1992), o profundo interesse na obra do compositor Erik Satie, em
Marcel Duchamp, nos surrealistas e no Zen (Cage estudou com Daisetz Suzuki) o preparou
para, gradualmente, remover o controle em favor de procedimentos aleatórios, durações
irracionais e sons autônomos, através de progressão não-linear, ao mesmo tempo em que
trazia para suas composições a possibilidade do silêncio. (Ibid.).
26
Cage concebeu o espetáculo de 45 minutos para um grupo de colegas aos quais se atribuiu
dois segmentos de tempo aleatórios em que pudessem realizar as atividades que
escolhessem. Simultaneamente, Charles Olsen e M. C. Richards liam suas poesias,
Cunningham dançava, seguido por um cão, David Tudor tocava a música de Cage no piano,
Rauschenberg tocava cilindros de cera num antigo gramofone Edison enquanto algumas de
suas pinturas brancas pendiam do teto, e Cage falava sobre Meister Eckhart e o Zen. (Ibid.).
27
Embora ostentasse a obra na capa da edição de janeiro da revista, a resenha publicada
26
notoriedade foram as séries de bandeiras americanas (FIGURA 3), de alvos e
de letras do alfabeto produzidas com uma técnica de pintura conhecida desde
a Antiguidade, – a encáustica, que se caracteriza pela mistura de cera e
pigmentos – capaz de dotar a superfície de densidade decorativa e suntuosa.
Algumas das obras incluíam ainda elementos de colagem, como a série de
compartimentos na parte superior de Large Target with Plaster Casts, que
continha moldagens de partes do corpo (PERL, 2005, p. 355). Aqui estão os
elementos indiciais da passagem: na medida em que as pinturas de Johns
apresentavam essencialmente as pinceladas e a superfície características do
Expressionismo Abstrato, diferindo destas apenas no que concerne ao tema,
acabavam por acusar o grau de arbitrariedade envolvido nas escolhas de seus
antecessores e ameaçavam todo o fundamento da teoria daquela geração. A
crítica e os artistas, como esperado, se ressentiram dessa afronta a todo o
sistema que haviam constituído.28
rotula Johns como “neodadá” e provoca uma sucessão de críticas com teor semelhante. Cf.
STEINBERG, Leo, “Jasper Johns: os sete primeiros anos de sua arte”, in: Outros Critérios, São
Paulo: Cosac Naify, 2008, p.45. Publicado originalmente como “Jasper Johns: The First Seven
Years of His Art”, Metro, nº4/5, 1962, e, com alterações, em Jasper Johns. Nova York: George
Wittenborn, 1963.
28
Para uma revisão da literatura crítica publicada naquele período, cf. STEINBERG, Leo, op.
cit., pp. 44-49.
27
ready-mades (PERL, 2005, p. 358). Para manter tudo isso unido, segundo o
historiador da arte Leo Steinberg (2008, p. 121), o plano do quadro de
Rauschenberg teve de se tornar “uma superfície à qual qualquer coisa
pensável e ao alcance pudesse aderir”; um plano útil a todos os propósitos e
que tornou o curso da arte mais uma vez não linear e imprevisível, a qual
denominou, já em 1968, flatbed.29 No plano do quadro do artista pode-se
pregar ou projetar qualquer imagem porque ela não funcionará como o
vislumbre de um mundo, e sim como “um recorte de material impresso”
(STEINBERG, 2008, p. 122). Para o historiador, o gesto mais simbólico de
Rauschenberg talvez tenha se produzido em 1955, quando, tomando sua
própria cama, o artista espalhou tinta no travesseiro e na coberta acolchoada e
a fixou verticalmente na parede [Bed, 1955] (FIGURA 6). Ali, “na postura
vertical da ‘arte’, ela continua a operar na imaginação como o companheiro
eterno de nossa outra fonte, nossa horizontalidade, o suporte plano sobre o
qual procriamos, concebemos e sonhamos” (STEINBERG, 2008, p. 122). Ainda
de acordo com Steinberg (2008, p. 122), “a horizontalidade da cama relaciona-
se ao ‘fazer’, assim como a verticalidade do plano do quadro do Renascimento
relacionava-se ao ver”. Steinberg nos aponta, então, a desestabilização de um
elemento constante que atravessa a história da arte ocidental desde o
Renascimento: a crença de que o fenômeno artístico devesse ser objeto de
contemplação. A nova proposição introduzida por essa geração intermediária,
apenas delineada aqui nesta seção, seria, portanto, que havia mais do que a
pura contemplação envolvida na apreciação da arte. Este é o aspecto central a
ser encampado pela nova vanguarda, como mostrarei na última seção dessa
contextualização.
29
Segundo Steinberg (2008, p. 125), o que denominou ‘flatbed’ é “mais do que uma distinção
do papel da superfície, se for compreendido como uma transformação interna da pintura que
alterou a relação entre o artista e a imagem e entre a imagem e o espectador. E ainda assim
essa mudança interna não passa de um sintoma das alterações que vão muito mais além das
questões de planos do quadro ou da pintura como tal. Faz parte de um abalo que se propaga
por todas as categorias purificadas. As incursões cada vez mais profundas da arte na não-arte
continuam a alienar o connoisseur, enquanto a arte o deserta e se aventura em estranhos
territórios, deixando os antigos critérios habituais regerem uma planície em erosão”. Artigo
baseado numa palestra proferida no Museu de Arte Moderna de Nova York em março de 1968
[originalmente publicado na revista Artforum, mar., 1972].
28
1.3 ARTE POP: A OBLITERAÇÃO DA LACUNA ENTRE ARTE E VIDA?
30
A exposição The New Realists [31 de outubro a 1º de dezembro de 1962], sob curadoria do
crítico francês, Pierre Restany [Sidney Janis Gallery, Nova York], apresentava obras de
quatorze artistas: Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg, James Rosenquist, Jim
Dine, George Segal, e Robert Indiana, entre os americanos, além de franceses, ingleses,
italianos e suecos. Em protesto contra esta exposição, Mark Rothko, Adolph Gottlieb, Philip
Guston e Robert Motherwell, representantes da chamada “New York School”, se retiraram do
rol de artistas representados pela galeria de Janis.
Cf. COPPET, Laura De; JONES, Alan, The Art Dealers, New York: Cooper Square Press, 2002,
p. 40.
31
Cf. FRIED, Michael, "New York Letter", Art International, December 20, 1962, p. 57 excerpted
in: MADOFF, Steven Henry (Ed.), Pop Art: A Critical History. Berkeley: University of California
Press, 1997, p. 267; JUDD, Donald, In the Galleries: Roy Lichtenstein, Arts, April 1962, pp. 52-
53; McLELLAN, Douglas, Roy Lichtenstein, Ferus Gallery, Artforum, July 1963, p. 47;
HOPKINS, Henry T., Andy Warhol, Ferus Gallery, Artforum, September 1962, p. 15; In the
Galleries: Donald Judd, Andy Warhol, Arts, January 1963, p. 49.
29
representavam (PERL, 2005, p. 440). O calendário daquele ano foi repleto de
estreias individuais: Jim Dine, já conhecido por seus happenings, na galeria
Martha Jackson, em janeiro; James Rosenquist, George Segal, Claes
Oldenburg e Tom Wesselmann, na Green Gallery, em fevereiro, maio,
setembro e novembro, respectivamente; Roy Lichtenstein na galeria de Leo
Castelli; Wayne Thiebaud, na galeria Allan Stone, em abril; Andy Warhol
apresentou a primeira série de trinta e duas pinturas de latas de sopa
Campbell’s (FIGURA 7), na Ferus Gallery, em Los Angeles, entre julho e
agosto; em outubro, Robert Indiana, na Stable Gallery, onde também Warhol
fez sua estreia no circuito oficial de Nova York, em novembro (FIGURA 8)32 até
seu encerramento, com a já citada The New Realists, na Sidney Janis Gallery.
Também em 1962, as obras de Roy Lichtenstein, Andy Warhol, Jim Dine,
Phillip Hefferton, Wayne Thiebaud, Joe Goode, Edward Ruscha, e Robert
Dowd foram incluídas na histórica exposição New Painting of Common Objects,
no Pasadena Art Museum, em Los Angeles,33 seguida por Six Painters and the
Object, no Guggenheim Museum, em 1963, sob curadoria de Lawrence
Alloway, que apresentava obras de Jim Dine, Jasper Johns, Roy Lichtenstein,
Robert Rauschenberg, James Rosenquist, e Andy Warhol.34 Em resumo, afirma
Perl,
[...] 1962 didn’t look like any other year in art that New Yorkers had
ever seen. But anybody who believed that these developments were a
total surprise had not been watching in the late 1950’s, when Johns
32
Na primeira exposição Pop de Andy Warhol numa galeria de Nova York havia dezoito obras
bastante heterogêneas que ganharam a atenção da imprensa em geral: três das séries
compostas por cem pequenas pinturas de latas de sopa [Campbell Soup Cans], cem pinturas
de garrafas de Coca-cola [Coke Bottles], e cem pinturas de notas de dólar [Dollar Bills]; um
arranjo com trinta e seis peças nas quais figuravam o rosto de Elvis [Red Elvis]; duas pinturas
de Marilyn Monroe, uma das quais composta de cinquenta imagens de sua face repetidas,
[Gold Marilyn Monroe e Marilyn Diptych]; assim como uma pintura-serigráfica do jogador de
baseball Roger Maris [Baseball]. Havia ainda Dance Diagram; Do It Yourself (Flowers), Close
Cover Before Striking, Troy Donahue e, finalmente, a primeira pintura da série Death and
Disaster, 129 Die in Jet.
Cf. DANTO, Arthur C., Andy Warhol. New Haven, Londres: Yale University Press, 2009, p. 39;
David Bourdon, Warhol. Nova York: Harry N. Abrams, Inc., 1989, p. 134. Para uma resenha
crítica da exposição, cf. FRIED, Michael, "New York Letter", op. cit., p. 57.
33
“New Painting of Common Objects” [Pasadena Art Museum, Los Angeles, 1962, curadoria de
Walter Hopps] foi a primeira mostra de arte Pop numa instituição pública nos Estados Unidos.
34
“Six Painters and the Object”, Guggenheim Museum, Nova York, 1963, curadoria de
Lawrence Alloway.
30
and Rauschenberg had stirred things up with subject matter derived
from popular sources. 35 (PERL, 2005, p. 441).
35
“[...] 1962 não parecia com nenhum outro ano que os Nova-iorquinos já tivessem visto na
arte. Mas qualquer um que acreditasse que esses desenvolvimentos fossem uma total
surpresa não havia prestado atenção ao final dos anos 1950, quando Johns e Rauschenberg
fizeram provocações com assuntos derivados de fontes populares.” (PERL, op.cit, p. 441).
36
“Os Novos Realistas estavam olhando os antigos abstracionistas como Khrushchev
costumava olhar para a Disneylândia – ‘Nós vamos enterrá-los’ era seu mote”. HESS, Thomas
B., em resenha da exposição “The New Realists”, Art News, dezembro de 1962, p. 12. Ibid., p.
454.
37
“A Symposium on Pop Art”, Museu de Arte Moderna de Nova York, 13 de dezembro de 1962.
A transcrição desta discussão foi publicada originalmente em Arts Magazine, Abr. 1963, pp. 36-
45. As citações do simpósio providas nesta seção constam do arquivo digital deste material.
Disponível em: http://popartmachine.com/blog/a-symposium-on-pop-art. Acesso em:
15/01/2010.
31
compreendermos as mudanças pelas quais a arte passava naquele momento,
bem como a resposta da crítica face a essas transformações.
38
“Clement Greenberg e Harold Rosenberg escreveram que progressivamente no século XX a
arte tem mantido um diálogo consigo mesma, a arte conduz à arte, e com sequência interna.
Isto ainda é verdade, mesmo com as referências externas que a pop art faz ao mundo
observado. [...] A pop art é uma nova pintura de paisagem bidimensional, o artista respondendo
especificamente ao seu ambiente visual. O artista está olhando ao redor novamente e pintando
o que ele vê. [...] Nós vivemos numa sociedade urbana, incessantemente exposta à mídia de
massa. Nossos dados visuais primários são em sua maioria de segunda-mão. Não é então
lógico que a arte seja feita do que nós vemos? Isso não foi verdadeiro no passado?
[...]
Cerca de um ano e meio atrás, eu vi o trabalho de Wesselmann, Warhol, Rosenquist e
Lichtenstein em seus estúdios. Eles estavam trabalhando de modo independente, alheios uns
32
Dentre os participantes, Hilton Kramer e Stanley Kunitz certamente
mantinham as posições mais claramente contrárias à nova vanguarda. Logo de
início, Kramer observa de maneira irônica que o fenômeno da Pop Art
realmente representava um avanço histórico notável, mas apenas em um
aspecto:
It neither creates new forms nor gives us new ways of perceiving the
visual materials out of which it is made; it takes the one from the
aos outros, mas com uma fonte comum de imagens. No período de uma ano e meio, eles
tiveram suas mostras, foram nomeados como um movimento, e aqui estamos nós discutindo
sobre eles num simpósio. Isto é história da arte instantânea, história da arte tão consciente de
si mesma que se atira para estar à frente da arte.” (GELDZAHLER, 1963).
39
“Ele representa algo novo, não tanto para a história da arte como para a história da crítica de
arte, já que a crítica, desde sua origem, tem sofrido com a situação humilhante de ter que lidar
com uma classe de objetos – a saber, as obras de arte – que eram muito mais interessantes
que qualquer coisa que pudesse ser dita a respeito deles. Com o advento da pop art, a
humilhação foi, por fim, diminuída. Ela foi, ao que parece, triunfantemente superada. A relação
do crítico com o seu material foi revertida de modo significativo, e os críticos estão agora livres
para confrontar uma classe de objetos, ainda que mais ou menos obras de arte, apenas porque
não são nenhuma outra coisa, sobre os quais quase qualquer coisa que [os críticos] digam irá
envolver o intelecto de modo mais completo e afetar as emoções mais sutilmente do que os
objetos cujos significados eles estão ostensivamente elucidando.” (KRAMER, 1963).
33
precedents of abstract art and the other from the precedents of
window display and advertising design. It adopts and adapts received
ideas and received goods in both spheres – form and content –
synthesizing nothing new, no new visual fact of aesthetic meaning, in
the process. 40 (KRAMER, 1963).
40
“Ela nem cria novas formas nem nos oferece novos modos de perceber os materiais visuais
dos quais é feita; ela toma a primeira dos precedentes da arte abstrata e o outro dos
precedentes dos dispositivos de vitrines e design de propaganda. Ela adota e adapta ideias
recebidas e bens recebidos em ambas as esferas – forma e conteúdo – e não sintetiza nada
novo no processo, nenhum novo fato visual de significado estético.” (KRAMER, 1963).
41
“A pop art executa uma charada moderadamente bem-sucedida – mas uma charada apenas
– a partir dos dois tipos de significação pelos quais nós estamos particularmente atraídos no
presente momento: o Real e o Histórico. A pop art parece dizer respeito ao mundo real,
contudo, para sua audiência, parece estar santificada pela tradição, a tradição do Dada. O que
significa que ela se faz dependente de algo exterior à arte para seu significado expressivo e, ao
mesmo tempo, se faz dependente dos mitos da história da arte para a sua integridade estética.
Em minha opinião, ambos os apelos são fraudulentos.
[...]
A pop art não nos diz como que é viver no momento presente da civilização – ela é meramente
parte da evidência dessa civilização. Seu efeito social é apenas reconciliar Lis [sic] a um
mundo de mercadorias, banalidades e vulgaridades – o que significa dizer, um efeito
indistinguível da arte da propaganda. Esta é uma reconciliação que deve – agora mais do que
nunca – ser recusada, se a arte – e a própria vida – deva ser defendida contra as
34
De acordo com Dore Ashton, quando Lawrence Alloway discutiu a Pop
Art pela primeira vez ele explicou que essa forma de arte estava baseada na
aceitação dos objetos produzidos em massa. Os materiais descartados das
cidades seriam usados de modo que a sua identidade original fosse
solidamente mantida: para Alloway (apud ASHTON, 1963), era essencial que o
“status original” do refugo fosse mantido. Segundo Ashton, Alloway desnudava
a tendência naturalista da Pop quando insistia que o acúmulo de tais materiais
se oferecia ao espectador como “porções” da vida e da cidade.
Ashton afirma ainda que com o advento da Pop Art a figura assertiva
do artista “mestre na produção de imagens” se dissolve. Para a crítica, sem
encontros metafóricos, há apenas o encontro casual de materiais num
continuum de sensações aleatórias.
35
In the emphasis on randomness and chance, on the virtual object
divested of associations, on the audience as participant, and in his
rebellion against metaphor, the pop artist generally begs the question
of reality. He refuses to take the responsibility of his choices. […]
The contemporary aesthetic, as exemplified by many pop artists and
certain literary and musical figures, implies a voluntary diminution of
choices. The artist is expected to cede to the choice of vulgar reality;
to present it in unmitigated form. Conventionally, choice and decision
are the essence of a work of art, but the new tendency reduces the
number and quality of decisions to a minimum. To the extent that
interest in objects and their assemblage in non-metaphorical terms
signifies a reduction of individual choices, pop art is a significant
sociological phenomenon, a mirror of our society. To the extent that it
shuns metaphor, or any deep analysis of complex relations, it is an
impoverished genre and an imperfect instrument of art.43 (ASHTON,
1963).
The question “Is it art?” is regularly asked of pop art, and that’s one of
the best things about it, to be provoking this question. […] We get
used to a certain took [sic], and before long we say, “Sure it’s art; it
looks like a De Kooning, doesn’t it?” This is what we might have said
five years ago, after growing accustomed to the New York School
look. Whereas ten years earlier, an Abstract Expressionist painting,
looking quite unlike anything that looked like art, provoked serious
doubts as to what it was.
Now I think the point of reformulating this question time and again is to
remind us that if there is a general principle involved in what makes a
work of art, we have yet to establish it. And I mean specifically this: Do
we decide that something is art because it exhibits certain general
characteristics? Or because of the way we respond to it? In other
words, exactly what is it that the artist creates?
43
“Em sua ênfase sobre o aleatório e o acaso, sobre o objeto virtual desprovido de
associações, sobre a audiência como participante e em sua rebelião contra a metáfora, o
artista pop geralmente levanta a questão da realidade. Ele se recusa a tomar a
responsabilidade de suas escolhas. [...]
A estética contemporânea, como exemplificada por muitos artistas pop e certas figuras
musicais e literárias, implica numa voluntária diminuição de escolhas. Espera-se que o artista
ceda à escolha da realidade vulgar; para apresentá-la de forma autêntica. Convencionalmente,
escolha e decisão são a essência de uma obra de arte, mas a nova tendência reduz o número
e a qualidade das decisões a um mínimo. Na medida em que o interesse em objetos e no seu
agrupamento em termos não metafóricos significa uma redução de escolhas individuais, a pop
art é um fenômeno sociológico significante, um espelho de nossa sociedade. Na medida em
que ela expulsa a metáfora, ou qualquer análise profunda de relações complexas, ela é um
gênero empobrecido e um instrumento imperfeito da arte.” (ASHTON, 1963).
44
Uma terceira questão é enunciada no início de sua fala, mas devido ao tempo exíguo da
apresentação não é desenvolvida: “(iii) dadas as suas características gerais (se definíveis),
como, em casos particulares, podemos separar a boa arte da arte ruim?” (STEINBERG, 1963).
36
Victor Hugo, after reading Les Fleurs du Mal, wrote to Baudelaire and
in five words summed up a system of aesthetics: “You create a new
shudder.” This implies that what the artist creates is essentially a new
kind of spectator response. The artist does not simply make a thing,
an artifact[…]. What he creates is a provocation, a particular, unique
and perhaps novel relation with reader or viewer.45 (STEINBERG,
1963).
45
“A pergunta “Isto é arte?” é constantemente feita em relação à pop art, e essa é uma das
melhores coisas a seu respeito, provocar esta pergunta. [...] Nós nos acostumamos com uma
certa [aparência] e depois de um tempo dizemos, “É claro que é arte: se parece com um De
Kooning, não é?” Isto é o que poderíamos ter dito cinco anos atrás, depois de termos nos
acostumado com a aparência da Escola de Nova York. Ao passo que, há dez anos, uma
pintura Expressionista Abstrata, por ser diferente de qualquer coisa que se parecesse com arte,
provocou sérias dúvidas com relação ao que era.
Creio que o propósito de reformular esta pergunta constantemente é para nos lembrar que se
há um princípio geral envolvido no que constitui uma obra de arte, nós ainda precisamos
estabelecê-lo. E quero dizer especificamente isso: Nós decidimos que alguma coisa é arte
porque ela exibe certas características gerais? Ou por causa da maneira com que
respondemos a ela? Em outras palavras, o que é isso exatamente que o artista cria?
Victor Hugo, depois de ler As Flores do Mal, escreveu a Baudelaire e em cinco palavras
sumarizou um sistema de estética: “Você cria um novo calafrio”. Isso implica que o que o artista
cria é essencialmente um novo tipo de reação do espectador. O artista não faz simplesmente
um artefato [...]. O que ele cria é uma provocação, uma relação particular, única e talvez nova
com o leitor ou com o público.” (STEINBERG, 1963).
46
“Se suas produções são ou não obras de arte eu não estou preparado a afirmar neste
momento. Mas que elas são parte da história da arte, de sua história psicológica e social, está
fora de questão. E se eu digo que eu não estou preparado para dizer se elas são arte ou não, o
que quero dizer é que eu ainda não posso ver a arte pelo tema. Quando digo a vocês, como
disse ao Sr. Lichtenstein, que eu não gosto de suas pinturas, eu estou meramente confessando
que em sua obra o tema existe para mim de modo tão intenso que me sinto incapaz de
alcançar quaisquer qualidades pictóricas que porventura existam.
37
O poeta Stanley Kunitz, à maneira de Kramer, também rechaça a
produção daquela nova geração com veemência:
We have had the supreme fortune of a great art in this century, and a
substantial part of that greatness originated and flowered here in this
country. For the past dozen years in particular I have rejoiced in the
companionship of an art that at its best […] I have felt to be notable for
its courage and self-reliance; its self-awareness, sprung between
psyche and medium; its rich spontaneity of nervous energy; the pitch
and range of its sensibility; and the simultaneous sense that it has
often given me of a wild act of assertion combined with a
metaphysical entrapment in the infrangible web of space-time. An art
of beginnings, misdirections, rejections, becomings, existences,
solitudes, rages, transformations.
The archetypal pop artist, who is nobody apart from the brute reality of
his milieu, will have nothing to do with the intense subjectivity of what
he calls “a painterly aesthetic” a phrase that is intended to ring like an
abusive epithet. He has no interest whatsoever in converting
existential feeling into unique gesture. The world of pop art is a clean,
welllighted [sic] place where we can see a deliberately tidy
arrangement of the most anonymous traces of collective man,
presented to us as though they were things in themselves, now that
they have been detached from […] the cycle of manufacture and
consumption. The pop artist assiduously refrains from divulging his
feelings while he is setting up his store. […] Perhaps he is saying that
it is futile to attempt a new creation, given the facts of our situation,
but we can only guess at that. All that we know is that he has limited
himself to a rearrangement of familiar counters. […] This is an art not
of transformation but of transposition.47 (KUNITZ, 1963).
Isso me encaminha para a segunda questão que queria abordar. Nós temos aqui uma
característica da pop art como movimento ou estilo: ter pressionado o tema para tal
proeminência que as considerações estéticas ou formais estão temporariamente mascaradas.
Nosso olhos vão ter de se acostumar de novo a uma nova presença na arte: a presença do
tema em absoluto acordo com a forma.” (STEINBERG, 1963).
47
“Nós tivemos a sorte suprema de possuir uma arte de excelência neste século, e uma parte
substancial dessa grandeza se originou e floresceu aqui neste país. Pelos últimos doze anos
principalmente eu tenho me regozijado na companhia de uma arte que no seu melhor [...] sinto
ser notável por sua coragem e independência; sua autoconsciência, surgida entre psique e
meio; sua espontaneidade rica em energia nervosa; o tom e a extensão de sua sensibilidade; e
o sentido simultâneo de um ato selvagem de afirmação combinado com uma armadilha
metafísica na teia inviolável de espaço-tempo que ela com frequência me proporcionou. Uma
arte de inícios, descaminhos, rejeições, mudanças, existências, isolamentos, fúrias,
transformações.
O artista pop arquetípico, que não é ninguém fora da realidade bruta de suas cercanias, não
terá nada a fazer com a intensa subjetividade daquilo que ele denomina “uma estética
pictórica” uma expressão que pretende soar como um epíteto ofensivo. Ele não tem interesse
algum em converter sentimento existencial em gesto único. O mundo da pop art é um lugar
limpo e bem iluminado onde podemos ver um arranjo deliberadamente organizado dos traços
mais anônimos do homem coletivo, apresentados a nós como se fossem coisas neles mesmos,
agora que foram apartados [...] do ciclo de manufatura e consumo. O artista pop assiduamente
se abstém de divulgar seus sentimentos enquanto está instalando sua loja [store]. [...] Talvez
ele esteja dizendo que é inútil intentar uma nova criação, dados os fatos de nossa situação,
mas podemos apenas imaginar isso. Tudo o que sabemos é que ele limitou a si mesmo à
38
Sobre a obra de Andy Warhol, Kunitz afirma:
reorganização de opostos familiares. [...] Esta não é uma arte de transformação, mas de
transposição.” (KUNITZ, 1963).
48
“Se o artista pop está preocupado em criar qualquer coisa, é com a criação de um efeito.
Considere, por exemplo, as celebradas fileiras de rótulos de Sopa Campbell’s. Dificilmente se
poderia esperar que tivéssemos qualquer interesse na pintura em si. De fato, é difícil pensar
nela como uma pintura afinal, uma vez que, aparentemente, a imagem serial foi
mecanicamente reproduzida com a ajuda de um estêncil. Se eu insistir, entretanto, em
classificá-la como uma pintura, sou obrigado a descrevê-la como um tipo de pintura literária,
visto que o efeito para o qual ela foi criada depende inteiramente de meu reconhecimento de
um par de referências implicado: primeiro, do supermercado preexistente de onde os rótulos
foram emprestados; e, segundo, das pinturas preexistentes de cuja estética pictórica esta
composição se origina. Não há valor e, em reconhecimento à sua modéstia, nenhuma
pretensão de valor na pintura em si, a menos que leiamos as notas de rodapé, por assim dizer,
e compreendamos as alusões.” (KUNITZ, 1963).
49
Cf. KOZLOFF, Max, Renderings: Critical Essays on a Century of Modern Art. New York:
Simon and Schuster, 1968, p. 221 [originalmente publicado em Art International, mar. 1962];
MYERS, John Bernard, “Junkdump Fair Survived” [Art and Literature, Autumn-Winter 1964, pp.
122, 129- 131], in: PERL, op. cit., pp. 457-462; McDONALD, Dwight, Against the American
Grain: Essays on the effects of Mass Culture [Nova York: Random House, 1962, p. 37], in:
PERL, op. cit., p. 460-461.
50
Cf. SEIBERLING, Dorothy, “Is he the worst artist in the U.S.?”, Life, January 31, 1964, pp.
79-83.
39
Lichtenstein o pior artista americano (FIGURA 13). Andy Warhol, por sua vez,
também em 1964, quando faz sua segunda exposição individual na Stable
Gallery, já havia se tornado uma personalidade pública. Naquela ocasião, o
espaço havia sido preenchido, do chão ao teto, com réplicas de embalagens de
produtos muito conhecidos, dentre os quais, as caixas de sabão Brillo, as
célebres Brillo Boxes (FIGURA 14). As obras – que consistiam numa série de
caixas construídas em madeira compensada em cujas faces se imprimiu a
logomarca do sabão Brillo, tal qual as verdadeiras embalagens do produto –
não possuíam nenhum traço relevante que as distinguisse destas últimas.
Warhol parecia ter cruzado a fronteira já atenuada que separava as obras de
arte dos demais objetos: a julgar pelo aspecto visual, o limite havia se
dissipado.
51
Cf. HARRISON; WOOD, op. cit., pp 687-742.
40
between construction and sculpture, and between some large
constructions and a quasi architecture.52 (KAPROW, 1965).
[...] This short essay has been in one sense an account of an avant-
garde. It has also been a world view. It has proceeded on the
assumption that at present any avant-garde art is primarily a
philosophical quest and a finding of truths, rather than purely an
aesthetic activity; for this latter is possible, if at all, only in a relatively
stable age when most human beings can agree upon fundamental
notions of the nature of the universe. If it is a truism that ours is a
period of extraordinary and rapid change, with its attendant surprises
and sufferings, it is no less true that in such a day all serious thought
(discursive or otherwise) must try to find in it a pattern of sense. In its
own fashion a truly modern art does just that.
Thus for us now, the idea of a “perfect work of art” is not only
irrelevant because we do not know what are the conditions for such a
52
“Um momento crítico foi alcançado numa grande área de esforços da vanguarda, que eu
acredito ser totalmente positivo, mas que está nos impondo a tarefa possivelmente
desagradável de revisar algumas premissas muito apreciadas com respeito à natureza das
artes plásticas. [...] as diferenças que uma vez foram tão claras entre as artes gráficas e a
pintura foram praticamente eliminadas; similarmente, as distinções entre pintura e colagem,
entre colagem e construção, entre construção e escultura e entre algumas grandes
construções e uma quase arquitetura.” (KAPROW. “Assemblages, Environments and
Happenings”, New York, 1965, in: HARRISON; WOOD (orgs.), 1995, p. 703).
53
“Mais recentemente, um grande conjunto de composições diversas referidas como Combines
(o nome que Robert Rauschenberg deu a seus próprios trabalhos), Neo-Dada, ou assemblages
emprega uma variedade de materiais e objetos num espectro igualmente variado de formatos,
afastando-se completamente das normas de aceitação exigidas pela “pintura” como a
conhecemos.” (KAPROW, 1965, in: ibid., p. 704).
41
phantasm, but it is, if desired, presumptuous and unreal. Though great
works are surely possible and may be looked forward to, it is in the
sense that they may be moments of profound vision into the workings
of things, an imitation of life, so to speak, rather than artistic tours de
force, i.e., cosmetics.54 (KAPROW, 1965, grifo meu)
54
“[...] Este pequeno ensaio é de certo modo um relato de uma vanguarda. É também uma
visão de mundo. Ele deriva da premissa que, no presente, qualquer arte de vanguarda é em
primeiro lugar uma busca filosófica e uma descoberta de verdades, em vez de simplesmente
uma atividade estética; já que esta última é possível, se o for, apenas numa época
relativamente estável em que a maioria dos seres humanos possa concordar sobre noções
fundamentais sobre a natureza do universo. Se for um truísmo que o nosso tempo é
caracterizado por mudanças rápidas e extraordinárias, com suas consequentes surpresas e
sofrimentos, não é menos verdade que neste momento todo pensamento sério (discursivo ou
não) deva tentar encontrar nele mesmo um padrão de sentido. À sua própria maneira, uma arte
verdadeiramente moderna faz exatamente isso.
Deste modo, agora, para nós, a ideia de uma “obra de arte perfeita” não é apenas irrelevante
porque não sabemos quais são as condições para tal fantasma, mas, se desejada, é
presunçosa e irreal. Embora grandes obras sejam certamente possíveis e possam ser
perseguidas, isso ocorre no sentido em que elas possam ser momentos de profunda visão do
funcionamento das coisas, uma imitação da vida, por assim dizer, em vez de tours de force
artísticos, i.e., cosméticos.” (KAPROW, 1965, in: ibid., p. 708, grifo meu).
55
"If someone says his work is art, it's art", afirmava Donald Judd. [JUDD apud de DUVE. "The
Monochrome and the Blank Canvas", in Reconstructing Modernism: Art in New York, Paris, and
Montreal, 1945–1964, Cf. GUILBAUT, S., op. cit. p. 272.
42
Exemplos podiam ser encontrados na dança, especialmente no Judson Group,
em que era possível que um espetáculo da companhia consistisse na
apresentação de uma pessoa sentada numa cadeira, e na música de
vanguarda, que desafiava a distinção entre sons musicais e não musicais
(DANTO, 2003, p. xvii).
56
“Duchamp´”, afirma Thomas Hess, “was the first artist to enter into this kind of compact with
his audience […] disastrously […] confusing art with life”.
[“Duchamp foi o primeiro artista a entrar nesse tipo de acordo com a audiência […]
desastrosamente […] imiscuindo a arte e a vida”].
Cf. HESS, T., “J’Accuse Marcel Duchamp”, in: Artnews, p. 53, February, 1965.
43
2 “THE ARTWORLD”: A TESE DO “MUNDO DA ARTE”
1
Cf. ZIFF, Paul, "The Task of Defining a Work of Art", 1953; WEITZ, Morris, “The Role of
Theory in Aesthetics”, 1956, pp. 27-30; KENNICK, William, “Does Traditional Aesthetics Rest on
a Mistake?”, 1958.
2
A determinação da natureza da arte, de maneira que pudesse ser formulada por meio de uma
definição, isto é, da afirmação de suas propriedades necessárias e suficientes seria, segundo
Morris Weitz, no artigo “The Role of Theory in Aesthetics”, a maior preocupação da teoria
estética. Contrário a essa disposição, Weitz indagava da possibilidade de existência de uma
teoria estética, no sentido mesmo de uma definição verdadeira ou de um conjunto de
44
funcionamento do conceito de arte derivado de uma das ideias contidas na
obra contemporânea de Wittgenstein: Weitz concebe o conceito de arte de
modo análogo àquele apresentado pelo filósofo vienense por meio da noção de
“jogos”. Grosso modo, o conceito de arte é aberto, segundo este autor, porque
suas condições de aplicação são reajustáveis e corrigíveis, permitindo o
surgimento de novas formas de arte. De acordo com Weitz, se “olharmos e
vermos” o que é isto a que denominamos “arte”, também não iremos encontrar
nenhuma propriedade comum a toda e qualquer obra de arte, mas apenas
cadeias de semelhanças que diferem em cada caso; jamais uma única
propriedade constante, à maneira do conhecido conceito de “jogos”.
The problem of the nature of art is like that of the nature of games, at
least in these respects: if we actually look and see what is it that we
call “art”, we will also find no common properties – only strands of
similarities. Knowing what art is is not apprehending some manifest or
latent essence but being able to recognize, describe, and explain
those things we call "art" in virtue of these similarities.3 (WEITZ, 1956,
p. 31).
propriedades necessárias e suficientes da arte. A tese ali defendida é que a teoria, no sentido
clássico requerido, nunca surgiria na estética, porque contraria a própria lógica do conceito.
Para Weitz, em suma, o conceito de “arte” é indefinível. Cf. WEITZ, Morris, 1956, pp. 27-35.
Para uma discussão sobre o tema cf. DANTO, Arthur, 1981, pp. 57-60.
3
“O problema da natureza da arte é como aquele da natureza dos jogos, pelo menos nestes
aspectos: se nós realmente olharmos e vermos o que é isto a que chamamos “arte”, nós
também não encontraremos propriedades comuns – apenas cadeias de semelhanças. Saber o
que a arte é não é apreender alguma essência manifesta ou latente, mas ser capaz de
reconhecer, descrever e explicar aquelas coisas a que chamamos “arte” em virtude dessas
semelhanças.” (WEITZ, 1956., p. 31).
4
Cf. KENNICK, W., op. cit.
5
Um trecho da referida passagem é também citado por Danto (1964, p. 572; p. 148 deste
volume) na seção introdutória do artigo “The Artworld” quando este alude ironicamente às
palavras de um “escritor recente”.
45
We are able to separate those objects which are works of art from
those which are not, because we know English; that is, we know how
correctly to use the word ‘art’ and to apply the phrase “work of art”. To
borrow a statement from Dr. Waismann and change it to meet my own
needs, “If anyone is able to use the word ‘art’ or the phrase ‘work of
art’ correctly, in all sorts of contexts and on the right sort of occasions,
he knows ‘what art is’, and no formula in the world can make him
wiser”. 6 (KENNICK, 1958, p. 321).
6
“Nós somos capazes de discriminar aqueles objetos que são obras de arte daqueles que não
são, porque nós sabemos Inglês; quer dizer, nós sabemos o quão corretamente usar a palavra
“arte” e a aplicar a expressão “obra de arte”. Tomando emprestada uma declaração de Dr.
Waismann e alterando-a para atender as minhas necessidades, “Se alguém é capaz de usar a
palavra ‘arte’ ou a expressão ‘obra de arte’ corretamente, em todo o tipo de contexto e no tipo
correto de ocasião, ele sabe ‘o que é arte’, e nenhuma fórmula no mundo pode torná-lo mais
sábio.” (KENNICK, 1958, p. 321).
7
“Ele conhece uma obra de arte quando vê uma, mas faz pouca, ou nenhuma, ideia do que procurar
quando é instruído a trazer um objeto que possua Forma Significante.” (KENNICK, 1958, p. 322).
8
Cf. DANTO, Arthur, 1981, pp. 58-60, 63-65.
46
suposta capacidade de reconhecimento por indução a partir dos exemplares já
constituídos como obras de arte defendida por Weitz e Kennick se revela
falsa.9 De fato, a julgar pelas propriedades que podem ser imediatamente
percebidas na obra, ela guardaria mais semelhanças com a “família” dos
produtos de limpeza disponíveis no supermercado do que com a “família” das
obras de arte.
[...] telling artworks from other things is not so simple a matter, even
for native speakers, and these days one might not be aware he was
on artistic terrain without an artistic theory to tell him so. And part of
the reason lies in the fact that terrain is constituted artistic in virtue of
artistic theories, so that one use of theories, in addition to helping us
discriminate art from the rest, consists in making art possible. 10
(DANTO, 1964, p. 572, grifo meu).
9
A referência feita por Danto à dificuldade em distinguir obras de arte de outros objetos
experimentada pelos “falantes nativos” [native speakers] na passagem que se segue, é
também claramente dirigida a Kennick.
10
“[...] distinguir obras de arte de outras coisas não é assunto tão simples, mesmo para
falantes nativos, e hoje em dia, um indivíduo poderia não estar ciente que está em terreno
artístico sem uma teoria artística que o alerte disso. E parte da razão reside no fato de que
aquele terreno é constituído como artístico em virtude de teorias artísticas, de modo tal que
uma aplicação das teorias, além de nos ajudar a discriminar arte do resto, consiste em tornar a
arte possível.” (DANTO, 1964, p. 572; p. 148 deste volume).
47
da disciplina estética,11 ao passo que, no pensamento de Danto, dois
importantes movimentos são feitos: (i) o autor não alude às “teorias estéticas”,
mas, num sentido mais estrito, às “teorias artísticas” e (ii) compreende que tais
teorias, ditas “artísticas”, não refletem aquilo que se passa no campo da arte,
mas constituem esse campo.
48
ideias. Em seguida, na seção 3, voltarei às considerações sobre as teorias que
tornam a arte possível.
12
Danto se dedicava à filosofia da ciência nos anos que precederam a publicação de “The
Artworld”: em 1960, editou uma antolologia sobre o assunto com seu colega da Universidade
de Columbia Sidney Morgenbesser. Cf. DANTO, A.; MORGENBESSER, S. (Eds.). Philosophy
of Science [New York: Meridian Books], 1960.
13
Trata-se de uma autobiografia intitulada “My Life as a Philosopher”, a ser publicada em breve
nos Estados Unidos, abrindo um grande volume que compila seus escritos sobre arte, e
gentilmente cedida pelo autor. DANTO, A. Re: Little doubt on the Artworld. [Mensagem
pessoal]. Recebida por: cristiane.silveira@ufpr.br, em: 08/06/2009.
14
É importante sublinhar que a noção de “ver como” [seeing as], no sentido proposto por
Hanson, dependia mais de habilidades adquiridas do que de teorias formais. Cf. N.R. Hanson,
Patterns of Discovery, Cambridge: Cambridge University Press, 1958.
15
“[...] Hanson mostrou que algo é uma observação científica apenas se o observador for
penetrado, por assim dizer, por um corpo de teoria. Eu estava recorrendo a algo semelhante
em “The Artworld”, quando falei em ter posse de uma teoria como parte do que significava ver
alguma coisa como arte. Mais tarde, falar de um evento como uma ação apenas “sob
determinada descrição” tornou-se um tanto trivial.” (DANTO, manuscrito, 2000-2007, no prelo).
49
Há ainda em “The Artworld” um segundo modelo teórico não
professado e que parece ter desempenhado papel fundamental no
desenvolvimento das ideias do autor. Muito semelhante àquele introduzido por
Thomas S. Kuhn, em seu livro The Structure of Scientific Revolutions,
publicado em 1962,16 esse modelo é claramente exibido no modo como o autor
introduz a questão:
50
interior da qual ocorre não apenas uma rejeição da teoria anterior, mas uma
mudança nos próprios conceitos científicos, de modo tal que se poderia dizer
que um mundo conceitual é substituído por outro: “when paradigms change, the
world itself changes with them”.18 (KUHN, 2006, p. 147). Novos paradigmas
exigem a reconstrução das premissas anteriores, bem como a reavaliação dos
fatos anteriores. O mesmo tipo de acontecimento é apresentado por Danto
através daquela que denomina a “Teoria da Imitação”,19 no trecho a seguir:
[…] the Imitation Theory of Art (IT) is, if one but thinks it through, an
exceedingly powerful theory, explaining a great many phenomena
connected with the causation and evaluation of artworks, bringing a
surprising unity into a complex domain. Moreover, it is a simple matter
to shore it up against many purported counterinstances by such
auxiliary hypotheses as that the artist who deviates from mimeticity is
perverse, inept, or mad. Ineptitude, chicanery, or folly are, in fact,
testable predications. Suppose, then, tests reveal that these
hypotheses fail to hold, that the theory, now beyond repair, must be
replaced. And a new theory is worked out, capturing what it can of the
old theory's competence, together with the heretofore recalcitrant
facts.20 (DANTO, 1964, p. 572-573).
18
“quando mudam os paradigmas, muda com eles o próprio mundo”. (KUHN, 2006, p. 147).
19
Danto toma como ponto de partida de seu artigo a famosa discussão sobre arte introduzida
na República de Platão e sua suposta manutenção. A teoria que denomina “Teoria da Imitação”
é, portanto, atribuída a duas personagens afastadas espaço-temporalmente, Sócrates e
Hamlet, através das quais os respectivos autores, Platão e Shakespeare, aludiam à arte como
um “espelho anteposto à natureza”, ainda que daí derivassem conclusões diferentes (Cf.
DANTO, 1964, pp 571-572; p. – deste volume).
No livro After the End of Art: Contemporary Art and the Pale of History, Danto (1997, p. 46) faz
o seguinte comentário sobre a “Teoria da Imitação”: “For an extended historical period, it was
taken for granted that to be an artwork, especially a work of visual art, was to be mimetic: to
imitate an external reality, actual or possible. […] ‘Imitation’ was the standard philosophical
answer to the question of what art is from Aristotle down into the nineteenth century, and well
into the twentieth”.
[Por um longo período histórico, se presumiu que ser uma obra de arte, especialmente uma
obra de artes visuais, era ser mimética: imitar uma realidade externa, existente ou possível. [...]
‘Imitação’ era a resposta filosófica padrão para a questão do que é a arte, de Aristóteles até o
século XIX e mesmo XX]. (DANTO, 1997, p. 46).
20
“[...] a Teoria da Imitação da Arte (TI) é, desde que a consideremos com atenção, uma teoria
extremamente poderosa, capaz de explicar um grande número de fenômenos relacionados à
causação e à avaliação das obras de arte, e que traz uma unidade surpreendente a um
domínio complexo. Além disso, salvaguardá-la de muitos supostos contra-exemplos por meio
de uma hipótese auxiliar, como a de que o artista que se desvia do mimetismo é perverso,
inepto ou maluco, é tarefa fácil. Ineptidão, zombaria, ou loucura são, de fato, predicações
aferíveis. Suponha, então, que testes revelem que essas hipóteses não conseguem mais
circunscrever, que a teoria, agora irreparável, deva ser substituída. E uma nova teoria é
composta, capturando o que pode da abrangência da antiga [teoria], bem como os fatos até
aquele momento recalcitrantes.” (DANTO, 1964, pp. 572-573; p. 149 deste volume).
51
Um paralelo parece também poder ser traçado entre aquilo que Danto
denomina “revolução conceitual” [conceptual revolution] e a conhecida noção
de “revoluções cientificas”21 na passagem que se segue:
21
De acordo com Kuhn (2006, p. 125), “[...] consideramos revoluções científicas aqueles
episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou
parcialmente substituído por um novo, incompatível com o anterior.”
22
“A partir do que foi exposto, alguém poderia representar certos episódios na história da arte
como similares a certos episódios na história da ciência, onde uma revolução conceitual está
sendo realizada e onde a recusa em aceitar certos fatos, em parte por preconceito, inércia e
egoísmo, se deve também ao fato de que uma teoria bem estabelecida, ou ao menos,
amplamente aceita está sendo ameaçada de modo tal que toda coerência entra em colapso.”
(DANTO, 1964, pp. 572-573; p. 149 deste volume).
23
Danto sugere que a sigla “RT” corresponderia às teorias da arte que enfatizam o caráter
“real” da obra em oposição ao caráter imitativo. Ao invés de conduzir sua leitura para o
referente externo, i.e., o representado, estas obras estimulariam novos pensamentos
conceituais do mesmo modo que o ambiente, ou seja, do mesmo modo que “nossa realidade”
estimula nossos pensamentos práticos (cf. FRY, 1990; Apêndice I). Estas teorias, sintetizadas
pelo autor num único enunciado em beneficio da exposição lógica de sua tese, sublinhavam os
elementos não imitativos das obras. Como não cópias do mundo real, elas seriam “uma nova
contribuição para o mundo” [a new contribution to the world] e objetos em seus próprios termos.
Cf. DANTO, 1964, p. 574.
52
of madmen's ravings. So to get them accepted as art, on a footing
with the Transfiguration (not to speak of a Landseer stag), required
not so much a revolution in taste as a theoretical revision of rather
considerable proportions, involving not only the artistic
enfranchisement of these objects, but an emphasis upon newly
significant features of accepted artworks, so that quite different
accounts of their status as artworks would now have to be given.24
(DANTO, 1964, p. 573, grifo do autor).
24
“Nos termos da teoria artística vigente (TI), seria impossível aceitá-las como arte, a não ser
como arte inepta: caso contrário, elas poderiam ser subestimadas como embustes,
autopromoção, ou como as contrapartes visuais de devaneios de loucos. Para aceitá-las como
arte, em pé de igualdade com a Transfiguração (para não falar de um cervo de Landseer),
demandou não tanto uma revolução no gosto como uma revisão teórica de proporções
bastante consideráveis, envolvendo não apenas o reconhecimento artístico desses objetos,
mas uma ênfase sobre as características significativas recém adquiridas das obras de arte
aceitas, de modo que explicações bastante diferentes de seu status como obras de arte teriam
agora de ser oferecidas.” (Ibid., p. 573; p. 149 deste volume).
25
Danto utiliza o termo “gosto” como “critério do juízo estético”. A compreensão do que, para
Danto, se encerra num juízo estético, entretanto, é tema a ser explorado adequadamente na
seção 2.3.1.
53
in Roger Fry's words, "not at illusion but reality." This theory (RT)
furnished a whole new mode of looking at painting, old and new. 26
(DANTO, 1964, pp. 573-574).
26
“De acordo com essa teoria, os artistas em questão não deveriam ser compreendidos como
se estivessem imitando formas reais sem obter êxito, mas, como se estivessem, de modo bem-
sucedido, criando novas formas, tão reais quanto as formas que se imaginava que a arte mais
antiga, em seus melhores exemplos, estaria imitando de forma admirável. A arte, afinal de
contas, era, desde há muito, considerada como criativa (Vasari diz que Deus foi o primeiro
artista), e os pós-impressionistas deveriam ser explicados como genuinamente criativos,
visando, nas palavras de Roger Fry, ‘não a ilusão, mas a realidade’. Esta teoria (TR) forneceu
um modo inteiramente novo de olhar para a pintura, antiga e nova.” (Ibid., pp. 573-574; p. 150
deste volume).
27
“Por intermédio dessa teoria (TR), as obras de arte reentraram no cerne das coisas, de onde
a teoria socrática (TI) havia procurado expulsá-las: se não mais reais do que algo que os
carpinteiros fabricam, pelo menos, elas não eram menos reais. Os pós-impressionistas
conseguiram uma vitória na ontologia.” (Ibid., p. 574, grifo do autor; p. 151 deste volume).
54
making”.28 (KUHN, 1996, p. 109). Na próxima seção, portanto, mostrarei a
natureza desse elemento constitutivo da arte.
Para Danto, a intuição provida pelas Brillo Boxes de Warhol era de que
candidatar-se à categoria de obra de arte significava necessariamente, para um
artefato, estar de tal maneira imbricado na atmosfera teórica em virtude da qual
ele se fez possível como arte que, destacado desse contexto, dificilmente o
constituiríamos como uma obra de arte. A tese forte do artigo “The Artworld” é,
portanto, a identificação desse domínio específico, que Danto denomina
“mundo da arte”, cuja inexistência tornaria impossível também a arte:
28
“[...] os paradigmas provêm não apenas um mapa, mas algumas das direções essenciais
para a produção de mapas.” (KUHN, 1996, p. 109).
Em seguida, Kuhn esclarece o que está implicado em sua afirmação: “In learning a paradigm
the scientist acquires theory, methods, and standards together, usually in an inextricable
mixture. Therefore, when paradigms change, there are usually significant shifts in the criteria
determining the legitimacy both of problems and of proposed solutions”
[“Ao aprender um paradigma, o cientista adquire uma teoria, métodos e padrões ao mesmo
tempo, numa mistura normalmente inextricável. Desse modo, quando mudam os paradigmas,
ocorrem também transformações significantes no critério que determina a legitimidade dos
problemas bem como das soluções propostas”]. (KUHN, 1996, p. 109).
29
“Ver alguma coisa como arte exige algo que o olho não pode perceber – uma atmosfera de
teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte.” (DANTO, 1964, p.
580; p. 158 deste volume).
55
trecho que se segue, é importante sublinhar uma distinção entre as duas
passagens. Afirmava Kuhn:
What a man sees depends both upon what he looks at and also upon
what his previous visual-conceptual experience has taught him to see.
In the absence of such training there can only be, in William James's
phrase, ‘a bloomin' buzzin' confusion.30 (KUHN, 1970, p. 112).
30
“O que um homem vê depende tanto daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência
visual-conceitual prévia o ensinou a ver. Na ausência de tal treino, somente pode haver o que
William James chamou de “confusão atordoante e intensa.” (KUHN, 2006, p. 150, tradução de:
BOEIRA, Beatriz Vianna; BOEIRA, Nelson).
31
Cf. Capítulo 2, seção 2.1.
32
Cf. Capítulo 1.
56
de teoria”:33 “How we see at the basic level relevant to adaptation is unaffected
by what we know, or what we believe”.34 (DANTO, 2001, p. 8).
33
Cf. DANTO, Arthur Danto, “Seeing and Showing”, in: The Journal of Aesthetics and Art
Criticism, 59:1, Winter 2001. Ensaio apresentado no Simpósio: “The Historicity of the Eye”.
34
“Como vemos no nível básico relevante à adaptação não é afetado pelo que sabemos, ou
por nossas crenças”. (DANTO, 2001, p. 8).
35
“De algum modo sabemos que deve haver uma interface entre sistemas de estímulos e
processos cognitivos centrais, relativa ao sistema de crenças, no sentido de que interpretamos
o que sentimos.” (Ibid., p. 8).
36
“É através dessa interface que a história sobrevém à percepção. A história da percepção é a
história de sistemas centrais conferindo àquilo que vemos sentidos que não têm tudo a ver com
o que vemos, já que eles são, com frequência, termos relacionais concedidos por coisas que,
com frequência, não estão presentes nas imagens. Não há dúvida que a percepção assim
estruturada seja histórica, simplesmente porque há uma história de tais sistemas. É em razão
disso que também somos seres históricos, diferentemente dos animais, com os quais nós
certamente compartilhamos os principais aspectos de nosso sistema visual de estímulos. [...] O
olho não é histórico, mas nós somos. A filosofia da arte começa aqui.” (Ibid., p. 9).
37
Cf. DANTO, 1992, pp. 15-31.
38
O conceito atribuído a John Ruskin (Londres, 1819-1900) permaneceu no debate artístico até
as décadas de 1950 e 1960 e ecoa na crítica de Clement Greenberg ou no mote “What you see
is what you see” [“O que você vê é o que você vê”] do artista Frank Stella (apud DANTO, 1992,
p. 17).
Afirmava Ruskin: “The whole technical Power of painting depends upon our recovery of what
may be called the innocency of the eye: that is to say, of a certain childish perception of those
flat stains of color, merely as such, without consciousness of what they signify, as a blind man
might see them if suddenly gifted with sight.”
57
da pintura The Innocent Eye Test (1981),39 do artista americano Mark Tansey,
Danto explora aquele ponto em que a filosofia da arte começa:
[“Todo o Poder técnico da pintura depende de nosso restabelecimento do que pode ser
chamado de inocência do olho: isso quer dizer, de certa percepção infantil daquelas manchas
planas de cor, meramente como tais, sem consciência do que elas significam, como um
homem cego as veria se fosse subitamente presenteado com a visão.”] (RUSKIN, J. The
Elements of Drawing, [1856-1857], apud DANTO, 1992, p. 17).
39
A pintura representa com pretensa seriedade um experimento científico em que a noção de
“olho inocente” está supostamente em jogo. Nela, representados de maneira realista, figuram
um grupo de cientistas e uma vaca, por eles conduzida até uma galeria onde podemos
reconhecer ainda duas pinturas dentro da pintura de Tansey: The Young Bull (1647) de Paulus
Potter e um quadro da série de montes de feno de Monet (década de 1890). A
pergunta/anedota aqui seria se Paulus Potter haveria atingido um alto grau de realismo na
representação capaz de despertar na vaca real, através de seu “olho inocente”, a reação que a
visão de um touro real desencadearia.
40
“Ser receptivo a obras de arte pictóricas exige [...] que sejamos receptivos a aspectos das
imagens para os quais os animais não podem ser receptivos, já que isto está além da
competência imagética da qual eles são capazes. Eles são incapazes daquilo [de serem
receptivos a obras de arte pictóricas] porque ver alguma coisa como arte não é uma habilidade
perceptual que se conecta, mas uma questão de estar situado, como os animais não estão, na
cultura e na história. A competência imagética é completamente natural, um subproduto
evolucionário. A competência artística é uma questão daquilo que poderíamos chamar de
significados não-naturais. Com isso quero dizer simplesmente que tais significados devem ser
aprendidos. O olho inocente pode ver que uma das rochas de Ruskin é uma rocha, pelos
mesmos caminhos pelos quais ele vê que uma rocha é uma rocha. O que o olho inocente não
pode ver é que uma das rochas de Ruskin é representada do modo como um olho inocente a
veria, de maneira que, como um desenho, ele propõe uma tese sobre a moralidade da
percepção e a virtude do mundo.” (DANTO, 1992, p. 21, grifo do autor).
58
intrínsecas manifestas à percepção, como, por exemplo, o fato da Brillo Box
“ser [feita] de madeira” e a embalagem do sabão Brillo “ser [feita] de papelão”
não nos ajudaria a distinguir a obra de arte do objeto comum. Desse modo,
pode-se inferir que as propriedades sensíveis são insuficientes para se
determinar se um objeto é artístico ou não.
59
questionável radicalização, que culmina por sugerir a cisão entre os domínios
da estética e da filosofia da arte.42 No prefácio à Transfiguration, Danto já
sinalizava não apenas a direção a ser tomada em sua investigação, mas
também dava indícios do seu entendimento do que se encerra no juízo
estético:
[…] a fresh new start was required, in which the transfigured objects
were so sunk in banality that their potentiality for aesthetic
contemplation remained beneath scrutiny even after metamorphosis.
This way the question of what made them artworks could be broached
without bringing aesthetic considerations in at all. This I believe to
have been the contribution of the Pop artist Andy Warhol.43 (DANTO,
1981, p. vi).
De acordo com o filósofo Martin Seel,44 em After the End of Art, Danto
elabora uma conclusão muito mais forte do que a afirmação de que as
propriedades intrínsecas não são suficientes para a determinação do que é
uma obra de arte. Danto afirma que,
42
Neste debate, por exemplo, o filósofo Noël Carroll tem defendido que a Filosofia da Arte e a
Filosofia da Estética são empresas diferentes. Carroll acredita que as teorias estéticas da arte
e as “intuições” que delas provêm são equivocadas e por esta razão desencoraja seu uso. O
autor crê, ainda, que este uso é motivado, em parte, pela aceitação tácita ou irrefletida de suas
premissas. Desse modo, Carroll sustenta que (i) a filosofia da arte e a estética deveriam ser
tratadas como duas áreas de investigação já que (ii) esta falha foi e continua a ser uma fonte
de confusão filosófica. Além disso, a ambiguidade entre a filosofia da arte e a filosofia da
estética – facilitada pela explicação do conceito de arte através da categoria do estético –
penetra profundamente no discurso desse campo. Quando a filosofia da arte se torna estética,
a agenda de discussão está já sutilmente estabelecida. Ainda de acordo com o autor, a história
da arte e a relação entre arte e moralidade, política e o mundo de modo geral – tópicos da mais
profunda importância para os teóricos da arte fora da tradição analítica – por exemplo, são
primariamente ignorados ou ativamente negados como assuntos de interesse filosófico. Cf.
CARROLL, N. 2001, p. 21.
43
“[...] seria preciso uma abordagem completamente nova, na qual os objetos transfigurados
estivessem tão submersos na banalidade que seu potencial para a contemplação estética
permaneceria inacessível ao escrutínio mesmo depois da metamorfose. Desse modo o exame
do que as transformou em obras de arte poderia ser iniciado sem a introdução de qualquer tipo
de consideração estética. Acredito ter sido esta a contribuição do artista Pop Andy Warhol.”
(DANTO, 1981, p. vi).
44
Cf. SEEL, M. “Art as Appearance: Two Comments on Arthur C. Danto’s After the End of Art”.
In: History and Theory, v. 37,n. 4, December 1998, pp. 102-114.
60
primarily to be looked at. Stared at, perhaps, but not primarily looked
at.45 (DANTO, 1997, apud SEEL, 1998, p.104).
45
“A visualidade desaparece gradualmente porque é pouco relevante à essência da arte como
a beleza provou ser. Para a existência da arte não é preciso nem haver um objeto para se
olhar, e se há objetos numa galeria, eles podem se parecer com qualquer coisa. [...] O que
quer que a arte seja, ela não é mais alguma coisa para ser fundamentalmente olhada.
Encarada, talvez, mas não fundamentalmente olhada.” (DANTO, 1997, apud SEEL, 1998,
p.104).
Ainda de acordo com Seel, Danto afirma nas páginas que se seguem que as considerações
estéticas, que atingiram seu clímax no sec. XVIII, “have no essential application to what I shall
speak of as ‘art after the end of art’ – i.e. art produced from the late 1960s on. That there was –
and is – art before and after the ‘era of art’ shows that the connection between art and
aesthetics is a matter of historical contingency, and not part of the essence of art”.
[“não têm aplicação essencial ao que denomino a ‘arte depois do fim da arte’ – i.e., a arte
produzida a partir do final da década de 1960. Que havia – e há – arte antes e depois da ‘era
da arte’ mostra que a conexão entre arte e estética é uma questão de contingência histórica, e
não parte da essência da arte”]. (DANTO, 1997, apud SEEL, 1998, p.104).
46
O argumento de Seel no referido artigo é que “a criação de aparências únicas no mundo” é o
ponto central de toda e qualquer produção artística.
47
“[…] é preciso admitir que alguma coisa deva corporificar o conteúdo – do modo como a face
corporifica sentimentos – e que seja, como Seel argumenta, difícil de imaginar uma obra de
arte visual completamente desmaterializada [...]. Certamente, esse é o emprego de “estético”
do modo como Kant o fazia na seção “Estética Transcendental” da Crítica da Razão Pura,
como relacionado com os sentidos como fonte de conhecimento. Este não é modo como o
termo é costumeiramente usado hoje em dia, quando se refere, ao invés, a respostas
apreciativas à beleza – ao estético como contrastado com as propriedades fenomênicas das
coisas.” (DANTO, 1998, p. 132, grifo do autor).
61
daquilo que compreende como um arcabouço conceitual bastante restrito que
associa arte e gosto, beleza e prazer (DANTO, 2000),48 e a segunda, uma
compreensão mais afeita àquelas noções surgidas no debate travado no
interior do campo da arte, por meio das teorias formalistas e às teorias
estéticas de matriz filosófica surgidas em meados do século XX.49 É o discurso
formalista, no entanto, que parece decisivo para sua formulação. Nesta
acepção, as propriedades estéticas estão subsumidas às propriedades
perceptuais do objeto, de modo que, ao assumi-las, Danto incorreria num erro
conceitual no que concerne à tradição filosófica. A experiência estética e a
experiência perceptual, sob esse entendimento, se tornariam equivalentes ou
assimiladas uma à outra, como observa o filósofo Michael Kelly:
The problem, as I see it, starts with his critique of aesthetic theories
that rely on the perceptual properties of artworks. Although this
critique is accurate, in part, because of the limits of relying on
perception alone to understand art philosophically, it should not apply
to aesthetics as well. To begin with ‘perceptual’ and ‘aesthetic’ are not
synonymous terms or concepts. Moreover, aesthetic properties are
not just perceptual because they include the conceptual plane Danto
discusses. That is, the aesthetic encompasses the perceptual and
conceptual, whereas in his philosophy of art, the aesthetic is equated
with the perceptual and the two are opposed to the conceptual. This
causes problems because the making and experience of artworks are
marked by the mixture of the perceptual and conceptual and thus by
the aesthetic, so to understand artistic practice and experience, we
cannot leave the aesthetic out of the picture, even while – in fact,
precisely when – we are trying to understand art philosophically.50
(KELLY, 2007, pp. 6-7).
48
Cf. DANTO, A. “Marcel Duchamp and the End of Taste: A Defense of Contemporary Art”.
Artigo apresentado na The Nexus Foundation, Tilburg, Holanda, 2000. Disponível em:
http://www.toutfait.com/online_journal_details.php?postid=846&keyword=danto. Acesso em:
18/10/2010.
49
Cf. SIBLEY, Frank. “Aesthetic Concepts,” Philosophical Review, 68, pp. 421–450, 1959;
reimpresso em: BENSON, J.; REDFERN, B.; COX, J.R. (Eds.). Approach to Aesthetics, Oxford:
Oxford University Press, 2001.
50
“O problema, como o compreendo, começa com sua crítica às teorias estéticas que se
sustentam em propriedades perceptuais das obras de arte. Embora essa crítica seja correta,
em parte, por causa dos limites em confiar apenas na percepção para entender a arte
filosoficamente, ela não deveria aplicar-se à estética também. Para começar, “perceptual” e
“estético” não são termos ou conceitos sinônimos. Além disso, propriedades estéticas não são
apenas perceptuais porque elas incluem o plano conceitual que Danto discute. Isto é, o estético
abrange o perceptual e o conceitual, enquanto em sua filosofia da arte, o estético é equiparado
ao perceptual e ambos são opostos ao conceitual. Isto causa problemas porque o fazer e a
experiência com as obras de arte são marcados pela mistura do perceptual e do conceitual e,
desse modo, pelo estético, de modo que, para entender a prática e a experiência artísticas, nós
não podemos deixar o estético fora do quadro, mesmo quando – de fato, precisamente quando
62
Danto, com frequência, justifica a exigência de um novo ponto de
partida para a filosofia da arte nos termos que concernem à recusa do primeiro
aspecto, i.e., da contemplação positiva, como um “sentido da beleza”
sustentada pelo conceito normativo do “gosto”.51 O autor atribui a Marcel
Duchamp a deposição do gosto como um imperativo estilístico (DANTO, 1998,
p. 133; 2008, pp. 21-22), cabendo-lhe, como filósofo, apenas acompanhar o
que se passava no território da arte.
– nós estamos tentando entender a arte filosoficamente.” KELLY, M. “Making a Brillo Box red,
white and blue is easy: making it an artwork isn’t”, 2007, pp. 6-7. Disponível em:
http://www.vanderbilt.edu/AnS/philosophy/events/.OCA/KellyDantoConference.pdf. Acesso em:
13/04/2007.
51
De acordo com Cohen (2000, p. 60), o gosto tem sido compreendido como (1) a capacidade
de sentir prazer em certos objetos artísticos e naturais, (2) a capacidade de identificar os
elementos constitutivos em tais objetos e (3) a capacidade de discernir certas propriedades
especiais. O gosto no sentido (1) é tema de discussão filosófica desde o inicio do século XVIII,
culminando na obra de David Hume e Immanuel Kant. Essa concepção de gosto é extensiva
da ideia de que a “beleza” ou a “excelência artística” não é ela própria uma propriedade
objetiva das coisas. Gosto no sentido (2), que é um análogo da noção de gosto como a
habilidade de discriminar com a língua e as papilas gustativas, tem sido também tópico de
discussão desde o século XVIII, articulado talvez mais claramente por Hume. Uma conexão
entre o sentido (1) e o sentido (2) foi também pretendida pelos autores do século XVIII. O gosto
no sentido (3), no entanto, é uma concepção originada em meados do século XX, notadamente
na obra de Frank Sibley [seu importante artigo “Aesthetic Concepts” foi publicado na
Philosophical Review em 1959]. O ponto central é a ideia de que a beleza, a elegância, a graça
e outras propriedades – coletivamente chamadas de “propriedades estéticas” – exigem uma
capacidade especial para seu reconhecimento, embora estas sejam propriedades
verdadeiramente objetivas fixadas nos objetos julgados. Apesar de discordar em alguns
aspectos, Danto (2007, p. 7) confessa grande admiração pelo referido artigo de Sibley.
52
“Duchamp, creio que sem assistência, demonstrou que é inteiramente possível que algo seja arte sem
que tenha qualquer relação com o gosto, bom ou mau. Desse modo, ele pôs fim àquele período do
pensamento e da prática estéticos que estava comprometido, para usar um titulo de David Hume, com o
padrão do gosto.“ (DANTO, 2000).
63
visual indifference with at the same time a total absence of good or bad
taste...in fact a complete anesthesia."53
64
de obra. Em 2007, ao tecer algumas considerações sobre o lugar da estética
em Transfiguration, Danto reconhece:
55
“Em particular, [Transfiguration] não levou em consideração as propriedades estéticas, que
haviam sido o fundamento da reflexão acadêmica sobre arte [...]. Minha repulsa a essa
literatura é que explica a coloração um tanto antiestética do livro, ao passo que tudo o que eu
tinha o direito de fazer era negar que a posse de interesse estético constituía uma terceira
condição necessária. Reconheço que estava, como a maioria dos filósofos, pensando
principalmente na beleza, e a razão para negar sua necessidade estava baseada na
observação de que muito da arte do mundo é valorizada não por sua beleza, visto que não há
nenhuma, mas por razões completamente diferentes.” DANTO, A.C. “The Transfiguration
tranfigured: concluding remarks, 2007, p. 3. Disponivel em:
http://www.vanderbilt.edu/AnS/philosophy/events/.OCA/DantoDantoConference.pdf. Acesso
em: 13/04/2007.
56
“[...] não menos na prática artística que na filosofia da arte, há uma tradição praticamente
ininterrupta, de Baumgarten através de Santayana até os formalistas do grupo Bloomsbury,
bem como Roger Fry e Clive Bell, que conecta arte com gosto, beleza com prazer, num conciso
pacote conceitual.” (DANTO, 2008, p. 18).
57
Para uma discussão aprofundada da noção de beleza na arte, cf. DANTO, A. The Abuse of
Beauty: Aesthetics and the Concept of Art. Chicago: Open Court Publishing
Company, 2002. Neste livro, Danto introduz a distinção entre o conceito de “beleza interna”
[internal beauty] na arte e beleza externa [external beauty] na estética em geral.
65
elimina, ao menos ostensivamente, toda a sorte de considerações dessa ordem
de sua teoria da arte.58
58
Para uma discussão sobre a experiência estética implicada na argumentação de Danto sobre
a natureza metafórica da representação artística em Transfiguration, cf. PUOLAKKA, Kalle. “Is
There Room for Aesthetic Experience in The Transfiguration of the Commonplace?”, 2007.
Disponível em:
http://www.vanderbilt.edu/AnS/philosophy/events/.OCA/PuolakkaDantoConference.pdf. Acesso
em: 19/04/2007.
59
“Eu achava as leituras interessantes, mas irrelevantes em grande medida, já que eu não
conseguia entender o que elas tinham a ver com a arte que me trouxe a Nova York em primeiro
lugar.” (DANTO, 2003, p. 1).
60
“Não é que as considerações estéticas, num sentido mais alargado, fossem irrelevantes para
a cultura do Expressionismo Abstrato: elas eram, ao invés, centrais nas discussões
intermináveis que aconteciam sobre a pintura estimulante vista nas galerias que mostravam
esses trabalhos, ou pelas quais disputavam nas festas de artistas. Apenas que nada que eu
tivesse aprendido nos textos de estética canônicos parecia remotamente conectado com o que
estava acontecendo na arte. Os temas que exercitavam os pintores que eu conhecia pareciam
tão distantes da filosofia que reivindicava lidar com a arte que alguém que conhecesse ambos
os lados da questão tinha de se perguntar qual era o propósito da filosofia. Foi muito depois da
ocasião em que ele disse isso pela primeira vez que eu ouvi uma versão do célebre insulto à
estética proferido pelo artista mordaz e agressivo, Barnet Newman – “a estética está para a
arte assim como a ornitologia está para os pássaros.” (DANTO, 2003, p. 1).
66
desse trabalho. Segundo o dictum de Newman, não havia nada que a estética,
como disciplina, pudesse ensinar à arte. Danto, por sua vez, afirma que as
questões que moviam os pintores pareciam radicalmente distantes daquelas
exercitadas pela filosofia da arte. Assim, em que medida as teorias podem
constituir o mundo da arte? Como estas afirmações e sua tese sobre o “mundo
da arte” podem ser conciliadas? Há aqui uma distinção fundamental a ser feita
entre as teorias estético-filosóficas em sentido forte, às quais se aludem na
passagem, e as teorias artísticas às quais Danto se refere em “The Artworld”
para que se possa compreender sua tese, como mostrarei na próxima
subseção.
67
sobre a prática artística, portanto, posteriores às práticas. Para o artista,
participando de um debate intitulado “Aesthetics and the Artist”,61 essa relação,
supostamente, implicaria numa atitude arrogante por parte dos estetas, como
se apenas com eles os artistas pudessem aprender de fato o que estavam
fazendo. Para o filósofo, restava a confrontação destas teorias com a arte já
produzida.
What in the end makes the difference between a Brillo Box and a work
of art consisting of a Brillo Box is a certain theory of art. It is the theory
that takes it up into the world of art, and keeps it from collapsing into
the real object which it is […]. Of course, without the theory, one is
unlikely to see it as art, and in order to see it as part of the art world,
one must have mastered a good deal of artistic theory as well as a
considerable amount of the history of recent New York painting. It
could not have been art fifty years ago. [...] The world has to be ready
for certain things, the artworld no less than the real one. It is the role
of artistic theories, these days as always, to make the artworld, and
art, possible. It would, I should think, never have occurred to the
painters of Lascaux that they were producing art on those walls. Not
unless there were Neolithic aestheticians.62 (DANTO, 1964, p. 581).
61
4th Annual Woodstock Art Conference. Participaram da conferência Robert Motherwell, John
Ashford, George Boas, James Fitzgibbons, Harry Holtzman, Susanne K. Langer, George L.K.
Morris, Barnett Newman, David Smith and Robert Wolff. (BRESLIN, 1993, p. 623 n. 53).
Durante um debate com a filósofa Susanne K. Langer, Barnett Newman atacou os estetas
profissionais, dizendo: "I feel that even if aesthetics is established as a science, it doesn't affect
me as an artist. I've done quite a bit of work in ornithology; I have never met an ornithologist
who ever thought that ornithology was for the birds." Mais tarde, ele diria: "Aesthetics is for the
artist as ornithology is for the birds."
[“Eu sinto que mesmo que a estética seja estabelecida como ciência, como um artista, ela não
me afeta. Eu já fiz muitos trabalhos em ornitologia: eu nunca encontrei um ornitologista que
pensasse que a ornitologia fosse para os pássaros”].
Cf. HO, Melissa, "Chronology of the Artists Life". In: TEMKIN, Ann (Ed.), Barnett Newman.
Philadelphia Museum of Art, 2002, pp. 318-35.
62
“O que no final das contas faz a diferença entre uma caixa de Brillo [Brillo box] e uma obra de
arte que consiste em uma Caixa de Brillo [Brillo Box] é uma certa teoria da arte. É a teoria que
a eleva ao mundo da arte, e a impede de colidir com o objeto real que ela é [...]. Obviamente,
68
De todo modo, é preciso explicitar a natureza dessa sorte de teorias às
quais, em “The Artworld”, Danto se refere usando as locuções “teoria da arte” e
“teorias artísticas”. Em primeiro lugar, há que se marcar claramente sua
distinção frente às teorias estético-filosóficas: o desenvolvimento sistemático
que caracteriza estas últimas nem sempre está presente nas teorias artísticas,
como poderíamos inferir desta afirmação: “most works of art are generated in
part by bodies of theory that do not rise to the level of philosophy”63. (DANTO,
2007, p. 33-34). No mesmo ensaio, Danto assume claramente a distinção que
por ora pretendo explicitar:
The sense in which I used the term “theory” in my early writings was
more or less equivalent to having a reason for believing that
something like Fountain or Brilllo Box were works of art – that their
presence in gallery or even museum spaces would not automatically
elicit “That’s not art!” I did not have in mind anything that was a
philosophical theory of art – a theory of the kind that I was to begin to
advance in TOC.64 (DANTO, 2007, p. 30, grifo do autor).
sem a teoria, é improvável que alguém a veja como arte, e para vê-la como parte integrante do
mundo da arte, é preciso ter dominado uma boa parte da teoria artística, assim como uma
quantidade considerável da história recente da pintura de Nova York. Ela não poderia ter sido
arte há cinquenta anos. [...] O mundo precisa estar preparado para certas coisas, o mundo da
arte não menos que o mundo real. É o papel das teorias artísticas, hoje e sempre, fazer o
mundo da arte, e a arte, possíveis. Jamais ocorreu aos pintores de Lascaux, eu presumo, que
eles estivessem produzindo arte naquelas paredes. Não, a menos que houvesse estetas
neolíticos.” (DANTO, 1964, p. 581); p. 161 deste volume).
63
“A maioria das obras de arte são geradas em parte por corpos de teoria que não ascendem
ao nível da filosofia.” (Id., 2007, p. 33-34).
64
“O sentido em que eu usava o termo “teoria” em meus primeiros escritos era mais ou menos
equivalente a ter uma razão para acreditar que coisas como A Fonte ou a Brillo Box eram obras
de arte – que a presença delas no espaço de uma galeria ou mesmo de um museu não
elicitaria automaticamente “Isto não é arte!”. Eu não tinha em mente nada que fosse uma teoria
filosófica da arte – uma teoria do tipo que eu estava prestes a desenvolver em The
Transfiguration of the Commonplace.” (Ibid., p. 30, grifo do autor).
69
To be an avant-garde artist was to live in this atmosphere of theory,
but the theory was being generated by the artists themselves. It wasn't
something that academics had a clue about. There was never greater
a distance between the art world and the academic world as in 1964.
[…] It was a theory that both generated these objects and was
generated from these objects. [...] It was all happening at the same
time.65 (DANTO, 2001).
65
“Ser um artista de vanguarda significava viver nessa atmosfera de teoria, mas a teoria estava
sendo gerada pelos próprios artistas. Aquilo era algo sobre o qual os acadêmicos não tinham a
menor ideia. Nunca houve uma distância tão grande entre o mundo da arte e o mundo
acadêmico como em 1964. [...] Era uma teoria que ao mesmo tempo gerava aqueles objetos e
era gerada a partir daqueles objetos. [...] Tudo estava acontecendo ao mesmo tempo.” (Id.,
2001).
Entrevista concedida a Michael Kelly [Professor do Departamento de Filosofia da Universidade
da Carolina do Norte, Charlotte] para o Projeto Educacional em Mídia Eletrônica da
Universidade de Columbia [Nova York, 2001]. Disponível em:
http://ccnmtl.columbia.edu/projects/mmt/danto/. Acesso em: 20/08/2007.
66
“Não buscamos as teorias dos artistas para encontrar a resposta para os problemas
estéticos, mas nos voltamos a elas como materiais para o estudo filosófico.” GAUSS, Charles
E. The Aesthetic Theories of French Artists. Baltimore: Johns Hopkins, 1949, pp. 5-6.
67
Cf. KRAUT, Robert. “Aesthetic Theory and Artistic Practice: Danto’s Transfiguration of the
Artworld”. First Online Conference in Aesthetics: Arthur Danto’s Transfiguration of the
Commonplace – 25 Years Later. 2007.
Disponível em: http://artmind.typepad.com/onlineconference. Acesso em: 04/08/2010.
70
observation and intention, or the possibility of engaging in institutional
activities without substantial theoretical baggage; readers of Kuhn,
Feyerabend, and Gombrich need not reaffirm that there is no innocent
eye (or ear). The point is not that participation in the artworld – as
artist, critic, or consumer – is somehow “theory neutral.” It is not. The
point, rather, is that participation in the artworld is not to be conflated
with theoretical reflection upon participation in the artworld.68 (KRAUT,
2007, p. 6).
68
“Concedido: a crítica de arte, a avaliação e a criação são saturadas de teoria. A participação
no mundo da arte exige pressupostos de fundo sobre a natureza e o propósito da arte, a
relevância de categorias de gênero, os determinantes contextuais de conteúdo, os “problemas”
artísticos que uma obra pretende resolver, e assim por diante. Não é preciso disputar sobre o
papel da teoria na prática, o caráter “carregado de teoria” da observação e da intenção, ou a
possibilidade de se engajar nas atividades institucionais sem bagagem teórica sólida; leitores
de Kuhn, Feyerabend e Gombrich não precisam reafirmar que não há olho inocente (ou
ouvido). A questão não é que a participação no mundo da arte – como artista, crítico ou
consumidor – é de algum modo “teoricamente neutra”. Não é. A questão, ao invés, é que a
participação no mundo da arte não deve ser confundida com a reflexão teórica sobre a
participação no mundo da arte.” (KRAUT, 2007, p. 6).
69
Cf. WEITZ, M. 1956, p. 35.
71
gerado por aqueles objetos, de modo a revelar uma relação de dependência
mútua entre obras de arte e teorias artísticas.
72
2.3.2.1 Teoria da Arte como Realidade
De acordo com essa nova teoria, designada por Danto como “Teoria da
Realidade”, os artistas em questão não deveriam ser entendidos como
imitadores de formas reais mal-sucedidos, mas como genuínos criadores de
novas formas. A pintura pós-impressionista (DANTO, 1964, p. 574) fundaria um
70
“Ora, estes artistas [os Pós-Impressionistas franceses] não procuram dar aquilo que pode,
afinal de contas, ser apenas um pálido reflexo da aparência verdadeira, mas suscitar a
convicção de uma realidade nova e definitiva. Eles não procuram imitar a forma, mas criar
forma; não imitar a vida, mas achar um equivalente para a vida. Com isso quero dizer que eles
desejam fazer imagens que, pela clareza de suas estruturas lógicas e pela unidade compacta
de textura, devem apelar à nossa imaginação desinteressada e contemplativa com algo da
mesma vivacidade com que as coisas da vida real apelam a nossas atividades práticas. Na
verdade, eles não visam à ilusão, mas à realidade.” (FRY, 1990, p. 167, grifo meu).
Publicado originalmente como “The French Group” no catálogo da segunda exposição Pós-
Impressionista nas Grafton Galleries, Londres, 1912.
73
novo espaço entre os objetos reais e cópias reais de objetos reais: essas obras
seriam não cópias [non-facsimiles]:
71
“Assim, Os Comedores de Batatas de Van Gogh, como consequência de certas distorções
incontestáveis, torna-se uma não cópia de comedores de batatas da vida real; e na medida em
que não é uma cópia de comedores de batatas, a pintura de Van Gogh, como uma não
imitação [non-imitation], tinha tanto direito de ser chamada de um objeto real quanto seu
suposto tema.” (DANTO, 1964, p. 574; p. 151 deste volume).
72
Cf. Platão, 1949 [598a-598b], pp. 454-455.
73
Cf. Capítulo 1, seção 1.3.
74
uma obra e os demais, todos a ele semelhantes, permanecem como objetos de
uso? Afinal, como é possível distinguir a realidade do objeto funcional “cama”
da obra de arte Bed de Rauschenberg ou de Bedroom Ensemble de
Oldenburg? Isto, de acordo com Danto (1964, p. 575), equivaleria a perguntar o
que faz destas camas obras de arte.
74
“Confundir uma obra de arte com um objeto real não é uma grande façanha quando uma
obra de arte é o objeto real com o qual foi confundido. O problema é como evitar tais erros, ou
desfazê-los uma vez que foram cometidos. A obra de arte é uma cama e não uma ilusão-de-
cama; desse modo, não há nada como o encontro traumático contra uma superfície plana que
deixou claro para os pássaros de Zeuxis que eles haviam sido enganados.” (DANTO, 1964, p.
575; p. 152 deste volume).
75
percepção com objetos comuns, é uma das premissas da investigação a ser
empreendida por Danto. De acordo com essa tese, tem-se um par de objetos,
aos quais denomina “contrapartes indiscerníveis” [indiscernible counterparts],
cujas propriedades intrínsecas perceptíveis são indistintas, mas que, apesar
disso, pertencem a classes diferentes: um deles é uma obra de arte e o outro,
um objeto qualquer. Danto pretende investigar, portanto, o que faz do primeiro
uma obra de arte e, em seguida, porque também o segundo, o simples objeto,
não o é. Será necessário prover, antes de tudo, uma análise adequada de seu
procedimento.
75
Fisher (1995, p. 468) inclui o termo “todas” em sua asserção: “X is an indiscernible
counterpart (IC) of Y if and only if X and Y share all manifest properties.” A inclusão do termo ,
no entanto, excluiria a própria obra que originou o princípio, ou seja, a Brillo Box de Andy
Warhol do rol dos pares indiscerníveis. De acordo com o modelo oferecido pela Brillo Box, não
há necessidade de que todas as propriedades manifestas à percepção sejam partilhadas, já
que a obra de arte e as embalagens são feitas, por exemplo, de materiais distintos. É
importante, no entanto, que essas incongruências não constituam uma diferença significativa.
Para Danto “ser feita de papelão” ou “ser feita de madeira” são afirmações que não poderiam
contribuir para a classificação de objetos como obras de arte: “Of course there were manifest
differences: Warhol’s were made of plywood and the others of cardboard. But even if things
were reversed, matters would have remained philosophically unaltered, leaving it then an option
that really no material differences need distinguish the artwork from the real thing.”
[“É claro que havia diferenças manifestas: as caixas de Warhol eram feitas de madeira
compensada e as outras de papelão. Mas mesmo que as coisas fossem ao contrário, as
questões teriam permanecido filosoficamente inalteradas, restando então a opção de que
realmente nenhuma diferença material deva distinguir a obra de arte da coisa real.”]. (DANTO,
1981, p. vi, grifo do autor).
76
share nonrelational properties that are of typical interest for an item of
a given type.76 (FISHER, 1995, p. 468).
76
“Note que essa relação não exige indiscernibilidade absoluta, o que significa a partilha de
todas as propriedades, relacionais e não-relacionais porque tal exigência significaria que
quaisquer pretensões de encontrar pares indiscerníveis fracassariam devido ao princípio de
identidade de indiscerníveis. Ao invés disso, tudo o que Danto exige é que os dois itens
partilhem propriedades não relacionais que sejam de interesse característico para um item de
um determinado tipo.” (FISHER, 1995, p. 468).
77
“[...] como objetos materiais individuais eles são claramente discerníveis uns dos outros, mas
como itens de avaliação estética ou interpretação seus atributos manifestos, o padrão
perceptual de cores e texturas os quais geralmente concebemos como definidores do conteúdo
visual de uma imagem, são semelhantes ou idênticos.” (FISHER, 1995, p. 468).
78
Warhol exercitou esta opção com uma exposição das genuínas latas de sopa Campbell’s.
77
“tese ampla da indiscernibilidade”.79 Tomando os exemplares apresentados em
“The Artworld” essa tese poderia ser assim formulada:
2. Toda obra de arte tem ou pode ter uma contraparte indiscernível que
é uma obra de arte distinta.
79
Para uma discussão aprofundada sobre as teses “ampla” e “atenuada” da indiscernibilidade,
cf. FISHER, J. A. “Is There a Problem of Indiscernible Counterparts?”, [In: The Journal of
Philosophy, Vol. 92, No. 9 (Sep., 1995)] 1995, pp. 467-484.
80
Em Fisher (1993, p. 470), a terceira afirmação é: (C) Toda obra de arte tem ou pode ter uma
contraparte indiscernível que é uma mera coisa.
78
2.5 O PROBLEMA DO SUBSTRATO: AS RELAÇÕES ENTRE O OBJETO
MATERIAL E A OBRA DE ARTE
81
“Começamos por explicar, talvez, que os rastros de tinta não devem ser menosprezados,
que eles são parte do objeto; de modo que o objeto não é uma mera cama com – por acaso –
rastros de tinta derramados sobre sua superfície, mas um objeto complexo, fabricado a partir
de uma cama e algumas marcas de tinta: uma cama-pintura. De maneira semelhante, uma
pessoa não é um corpo material com – por acaso – alguns pensamentos acrescidos, mas uma
entidade complexa, composta de um corpo e alguns estados de consciência: um corpo-
consciente. Pessoas, assim como obras de arte, devem ser então tomadas como irredutíveis
às suas partes, e são, nesse sentido, primitivas. Ou, mais precisamente, as marcas de tinta
não são parte do objeto real – a cama – que por acaso é parte da obra de arte, mas são, assim
como a cama, parte da obra de arte enquanto tal.” (DANTO, 1964, p. 576, grifo do autor; p. 153
deste volume).
79
A partir dessas observações, Danto elabora uma caracterização geral
de obras de arte que contêm objetos reais como suas partes constitutivas:
80
permitiriam a manutenção da distinção entre os dois objetos. Como, no
entanto, estas propriedades são reveladas?
84
“Procurar uma descrição neutra é ver a obra como uma coisa e, portanto, não como uma
obra de arte: é analítico ao conceito de obra de arte que deva haver uma interpretação. Ver
uma obra de arte sem saber que ela é uma obra de arte é comparável de certo modo ao que
81
Ainda que, como enunciado na seção 2.4, no limite, uma obra de arte e
um objeto qualquer partilhem todas as propriedades intrínsecas, existem tantas
outras propriedades que não são partilhadas pelos dois itens, ou seja, as
propriedades extrínsecas. Em sua totalidade, portanto, os dois itens possuem
um conjunto de propriedades distintas.
[...] in a rough way the form of the work may be that gerrymandered
portion of the object the interpretation picks out. Without the
interpretation, that portion lapses invisibly back into the object, or
simply disappears, for it is given existence by the interpretation. But
that gerrymandered portion is pretty much what I mean by the work,
whose esse is interpretari.85 (DANTO, 1981, p. 125).
seria a experiência de alguém diante de um impresso antes de aprender a ler; logo, vê-la como
uma obra de arte significa passar do domínio das meras coisas para um domínio de
significado.” (DANTO, 1981, p. 124, grifo do autor).
85
“[...] grosso modo, a forma da obra é aquela porção arbitrária do objeto que a interpretação
escolhe. Sem a interpretação aquela porção se dissipa no objeto, ou simplesmente
desaparece, já que sua existência lhe é dada pela interpretação. Mas esta porção arbitrária é
justamente o que entendo que a obra, cujo esse [ser] é interpretari [ser interpretada], seja.”
(DANTO, 1981, p. 125).
82
de tinta é Ícaro” [“é” da identificação artística] perfeitamente compatível com
“Este a não é b”, i.e., “Esta mancha de tinta não é Ícaro” [“é” da predicação]. De
acordo com Danto (1964, p. 577), com frequência e de modo contrário ao
conhecido princípio da contradição, a veracidade da primeira exige a
veracidade da segunda.86
É através das obras de arte fictícias Newton’s First Law e Newton’s Third
Law que Danto apresenta o uso dessa estrutura. As duas obras são compostas
de objetos materiais idênticos com as mesmas dimensões e elementos: uma
linha preta horizontal sobre fundo branco.
86
Para uma comparação dos usos distintos do verbo de ligação “é” cf. DANTO, 1981, p. 126-
127.
83
A linha negra da obra A, Newton’s First Law, segundo Danto, é explicada
pelo artista que a produziu como a trajetória de uma partícula isolada, enquanto
a segunda, Newton’s Third Law, representa o encontro de duas massas
dispostas na mesma direção, mas em sentidos opostos. A partir destas
identificações, que podem ser inferidas pelos títulos das obras, seguem-se, de
acordo com Danto, as identificações ditas “artísticas”:
87
“Considerar a linha central como uma borda (massa encontrando massa) impõe a
necessidade de identificar as metades superior e inferior da imagem como retângulos, e como
duas partes distintas (não necessariamente como duas massas, já que a linha poderia ser a
borda de uma massa projetando-se para cima – ou para baixo – no espaço vazio). Se for uma
borda, não podemos tomar a área toda da pintura como um espaço único: ela é, mais
propriamente, composta de duas formas, ou uma forma e uma não forma. Poderíamos
interpretar a área toda como um espaço único apenas aceitando a horizontal do centro como
uma linha que não é uma borda. Mas isso quase requer uma identificação tridimensional de
toda a imagem: a área pode ser uma superfície plana acima da qual a linha se encontra (vôo
de jato), ou abaixo (trajetória de um submarino), ou sobre (linha), ou dentro (fissura), ou através
(Primeira Lei de Newton) – embora nesse último caso a área não seja uma superfície plana,
mas uma seção transparente do espaço absoluto. Nós poderíamos tornar claras todas essas
qualificações preposicionais, imaginando cortes perpendiculares ao plano do quadro. Então,
dependendo da cláusula preposicional aplicável, a área é interrompida (artisticamente), ou não,
pelo elemento horizontal.” (Ibid., p. 578; p. 156 deste volume).
88
“[...] o espaço ultrapassa a pintura se a própria linha o faz; e nós estamos no mesmo espaço
em que a linha está.” (Ibid.; p. 156 deste volume).
84
bordas do objeto material podem ser parte da imagem, caso as massas
ocupem todo o espaço até as bordas, de modo que as bordas do objeto e das
massas coincidam. Neste caso, afirma o autor,
[…] the vertices of the picture would be the vertices of the masses,
except that the masses have four vertices more than the picture itself
does: here four vertices would be part of the artwork which were not
part of the real object. Again, the faces of the masses could be the
face of the picture, and in looking at the picture, we are looking at
these faces: but space has no face, and on the reading of A the work
has to be read as faceless, and the face of the physical object would
not be part of the artwork.89 (DANTO, 1964, p. 578, grifo do autor).
89
“[...] os vértices da pintura seriam os vértices das massas, exceto pelo fato de que as massas
têm quatro vértices a mais que a própria pintura: aqui, quatro vértices que seriam parte da obra
de arte não seriam parte do objeto real. Novamente, as faces das massas poderiam ser as
faces da pintura e, ao olharmos para a pintura, olhamos para essas faces: mas o espaço não
tem face, e, na leitura de A, a obra deve ser interpretada como desprovida de face, e a face do
objeto físico não seria parte da obra de arte. (Ibid.; p. 156 deste volume)
90
“[...] uma dada identificação determina quantos elementos a obra contém. Essas diferentes
identificações são incompatíveis umas com as outras, ou geralmente o são, e poder-se-ia dizer
que cada uma produz uma obra de arte diferente, ainda que cada obra de arte contenha o
objeto real idêntico como parte dela mesma – ou ao menos partes do objeto real idêntico como
partes dela mesma.” (Ibid.; p. 157 deste volume)
85
be an artwork that some part or property of it be designable by the subject of a
sentence that employs this special is”.91
But what about pure abstractions, say something that looks just like A
but is entitled Nº7? The 10th Street abstractionist blankly insists that
there is nothing here but white paint and black, and none of our
literary identifications need apply. What then distinguishes him from
Testadura, whose philistine utterances are indiscernible from his? And
how can it be an artwork for him and not for Testadura, when they
agree that there is nothing that does not meet the eye?93 (DANTO,
1964, p. 579).
91
“[...] é uma condição necessária para que alguma coisa seja uma obra de arte que alguma
parte ou propriedade dela seja designada pelo sujeito de uma sentença que emprega esse é
especial.” (Ibid., p. 577; p. – deste volume).
92
Cf. ibid., p. 579; p. 158 deste volume.
93
“Mas o que dizer sobre abstrações puras, algo que se pareça exatamente com A, mas que
foi intitulado Nº7? O abstracionista da Rua 10 insiste de modo estupefato que não há nada aqui
exceto tinta branca e preta, e que nenhuma de nossas identificações literárias se aplica. O que,
então, o distingue de Testadura, cujas declarações incultas são indiscerníveis das suas? E
como pode ser uma obra de arte para ele e não para Testadura, uma vez que eles concordam
que não há nada que não esteja disponível ao olhar?” (Ibid., p. 579; p. 158 deste volume).
86
daquilo que foi produzido como obra de arte é necessariamente dependente da
história da arte e das teorias artísticas que ele rejeita.
87
concerne às obras de arte. Fazendo referência a De Civitate Dei (413-426
A.D.), de Santo Agostinho, Danto afirma:
The artworld stands to the real world in something like the relationship
in which the City of God stands to the Earthly City. Certain objects,
like certain individuals, enjoy a double citizenship, but there remains,
the RT notwithstanding, a fundamental contrast between artworks and
real objects.94 (DANTO, 1964, p. 582).
94
“O mundo da arte está para o mundo real de modo semelhante à relação na qual a Cidade
de Deus [City of God] está para a Cidade Terrena [Earthly City]. Certos objetos, assim como
certos indivíduos, gozam de dupla cidadania, mas, a despeito da Teoria da Realidade, um
contraste fundamental entre obras de arte e objetos reais se mantém.” (Ibid., p. 582; p. 162
deste volume).
95
“A matriz de estilos é introduzida neste contexto como um mecanismo gráfico projetado para
situar as obras em seus contextos apropriados. Espera-se que ela nos capacite a traçar a
história de uma obra e a explicar por que e como um objeto é uma obra de arte em virtude de
ter surgido de um contexto artístico-histórico particular. Ao fazê-lo, a matriz de estilos é
destinada a traçar graficamente e visualmente o modo com que obras anteriores podem ser
caracterizadas retroativamente em termos de novos predicados que surgem como resultado da
criação de novas obras de arte.” BACHARACH, S. “How Transfiguration saved the Style
Matrix”, 2007, p. 2.
Disponível em: www.vanderbilt.edu/AnS/philosophy/.../BacharachDantoConference.pdf. Acesso
em: 18/05/2010.
88
A matriz de Danto é literalmente uma grade em que se posicionam as
obras de arte de acordo com aquilo que denomina “predicados artisticamente
relevantes”, i.e., predicados relevantes à classe das obras de arte, como “é
expressionista” ou “é representacional”, por exemplo. Nesta estrutura, os
predicados e seus opostos, ou seja, P e não-P, estão dispostos de modo a
descrever toda e qualquer obra de arte. Como opostos, se o objeto for do tipo
correto – neste caso, uma obra de arte – um dos predicados96 do par deve,
necessariamente, se aplicar a ele: “a necessary condition for an object to be of
a kind K [obra de arte] is that at least one pair of K-relevant opposites
[predicados opostos relevantes para as obras de arte] be sensibly applicable to
it.”97 (DANTO, 1964, p. 582, grifo meu). Assim, Danto apresenta o
funcionamento de sua matriz, de modo a explicitar como novos predicados são
adicionados a essa estrutura:
96
Em sua descrição da matriz de estilos no artigo, Danto (1964, p. 582) afirma que estes
predicados são opostos ou contrários, ao invés de contraditórios.
97
“uma condição necessária para que um objeto seja de um tipo K [obra de arte] é que ao
menos um par de opostos relevantes-K [predicados opostos relevantes às obras de arte] seja
logicamente aplicável a ele.” (DANTO, 1964, p. 582, grifo meu).
98
“[...] considere que F e não-F sejam um par oposto de tais predicados. Pode acontecer que,
durante um longo período de tempo, toda obra de arte seja não-F. Mas uma vez que nada, até
esse momento, é uma obra de arte e F, poderia nunca ocorrer a ninguém que não-F é um
predicado artisticamente relevante. A não-F-dade das obras de arte se mantém despercebida.
Por outro lado, todas as obras até um dado momento podem ser G, nunca ocorrendo a
ninguém até aquele momento que algo pudesse ser uma obra de arte e não-G; aliás, poder-se-
ia ter pensado que G era um traço definidor das obras de arte quando, na verdade, algo
devesse ser, primeiramente, uma obra de arte para que, depois, G fosse logicamente
predicável a ele – desse modo, não-G poderia também ser predicável às obras de arte, e o
próprio G, portanto, não poderia ter sido um traço definidor dessa classe.” (DANTO, 1964, p.
583, grifo do autor; p. 163 deste volume).
89
A matriz de fato representa o ponto de vista inicial de Danto sobre a
arte, de modo profundamente informado pela prática filosófica acerca da
ciência: ali, pretensamente, as obras de arte e os predicados que uma obra
possui em um determinado momento histórico são relacionados graficamente.99
Os predicados artisticamente relevantes não são exaustivamente explicitados
em “The Artworld”, mas, por vezes, parecem se referir às próprias teorias
artísticas, como na passagem citada: se G é um destes predicados e se
poderia ter sido tomado como um “traço definidor” das obras de arte até que
não-G estivesse também disponível em novas obras e, desse modo, provasse
o contrário, não é difícil fazer a relação entre esta afirmação e as
considerações feitas no início do artigo acerca da “Teoria da Imitação”. Assim,
o predicado “é imitação”, como suspeita Danto (1964, p. 571), tido como um
“traço definidor” da arte até o advento do pós-impressionismo abre espaço para
99
Em After the End of Art, Danto (1997, p. 164) revê e critica a noção de matriz de estilos
desenvolvida em “The Artworld”. O autor afirma que a inspiração para a matriz foi o ensaio
“Tradition and Individual Talent” de T. S. Eliot, em que se afirma que uma obra de arte pode ter
seu significado apenas em relação a outras obras e que cada nova obra modifica a ordem e as
relações entre aquelas obras que existiam anteriormente.
Danto faz também uma autocrítica de seu uso da matriz de estilos porque ao se revelar
extremamente dependente de afinidades perceptuais entre as obras de arte ela não leva
adequadamente em consideração as relações históricas entre as obras e, desse modo, entra
em conflito com a tese central de “The Artworld”, a saber, que a percepção artística é histórica
(1997, p. 165). A matriz de estilos implica numa visão anistórica da arte, afirma Danto (1997, p.
165) em retrospecto. "I of all people should have been alert to this. From the beginning of my
speculation on art, I have worked with – worked from – examples in which two outwardly similar
things may nevertheless differ in so radical a way that the outward similarity proves altogether
fortuitous. […] But that shows that I had not really thought things through when I first presented
the style matrix in 1964, in the same paper [“The Artworld”] in which I laid out the approach
using indiscernible counterparts and sought to solve the problems to which they give rise".
(DANTO, 1997, p. 162).
[“Mais do que qualquer outro eu deveria ter notado isso. Desde o início de minha investigação
sobre arte, eu tenho trabalhado com – trabalhado a partir de – exemplos nos quais duas coisas
externamente similares podem, contudo, diferir de modo tão radical que a similaridade exterior
se demonstra completamente fortuita. [...] Mas isso mostra que eu não havia examinado o
assunto à exaustão quando apresentei a matriz de estilos pela primeira vez, em 1964, no
mesmo artigo [“The Artworld”] em que eu organizei a abordagem usando contrapartes
indiscerníveis e procurei resolver os problemas que elas suscitavam”].
Como conclui Danto (1997, p. 165): "Artistic perception is through and through historical. And in
my view artistic beauty is historical as well. That was more or less the main thesis of "The Art
World," and what I had not seen at the time was the degree to which it is inconsistent with the
motivations of the style matrix".
[“A percepção artística é completamente histórica. Em meu ponto de vista, a beleza artística é
também histórica. Esta era mais ou menos a tese principal de “The Artworld”, e o que eu não
tinha notado à época era o grau em que isso é inconsistente com as motivações da matriz de
estilos”].
90
seu oposto “não é imitação” e revela sua falibilidade como definição real,
restando-lhe, se tanto, a posição de definição honorífica em um determinado
momento histórico.
It is, of course, not easy to see in advance which predicates are going
to be added or replaced by their opposites, but suppose an artist
determines that H shall henceforth be artistically relevant for his
paintings. Then, in fact, both H and non-H become artistically relevant
for all painting, and if his is the first and only painting that is H, every
other painting in existence becomes non-H, and the entire community
of paintings is enriched, together with a doubling of the available style
opportunities.100 (DANTO, 1964, p. 583, grifo do autor).
100
“É claro que não é fácil saber com antecedência quais predicados serão adicionados ou
substituídos por seus opostos, mas suponha que um artista determine que H deva, daquele
momento em diante, ser artisticamente relevante para suas pinturas. Então, efetivamente,
ambos H e não-H se tornam artisticamente relevantes para toda a pintura, e se a dele for a
primeira e única pintura que é H, toda e qualquer outra pintura existente se torna não-H, e toda
a comunidade de pinturas é enriquecida, junto com a duplicação das possibilidades de estilo
disponíveis.” (DANTO, 1964, p. 583, grifo do autor; p. 164 deste volume).
101
Cf. Capitulo 1.
91
que, inseparáveis das obras, são também históricas. A percepção da obra,
assim como seu contexto, é histórica. Contudo, de modo legítimo, alguém
haveria de se perguntar se isto é tudo; se há ajuizamento dessas
determinações internas do “mundo da arte” e, se houver, de que modo isso
acontece ou se os membros desse mundo são de fato apenas obras de arte,
história e teorias.
102
“museus, connoisseurs e outros são contrapesos no Mundo da Arte”. (DANTO, 1964, p. 584;
p. 165 deste volume).
92
3 “THE ART WORLD REVISITED”: UMA NOVA VISADA SOBRE O
“MUNDO DA ARTE”
1
“(i) entidades (artefatos ou performances) intencionalmente dotadas de um grau significante
de interesse estético por seus criadores, com frequência ultrapassando aquele da maioria dos
93
No agora clássico artigo “The Artworld”, ainda que não tenha oferecido
uma definição de arte, nem ao menos se proposto a tal tarefa, como mostrado
no capítulo precedente, Danto se contrapõe às teorias de Morris Weitz e
William Kennick e apresenta ao menos três condições necessárias para a
existência de arte, a saber, (i) a existência de um “mundo da arte”, i.e., um
ambiente formado por teorias artísticas e pela história da arte; (ii) a
identificação de conteúdo passível de designação pelo “é” da identificação
artística; e (iii) a presença de pelo menos um “predicado relevante para a arte”
[art-relevant predicate]. Em 1969 (CARROLL, 2000, p. 3), o filósofo George
Dickie passa a desenvolver uma noção de “mundo da arte” a partir daquela
apresentada por Danto em 1964, mas com ênfase bastante distinta, que
resultaria nas várias versões da chamada Teoria Institucional da Arte. De
acordo com Carroll (2000, p. 3), as teorias de Danto e Dickie e, numa
disposição semelhante, os escritos de Richard Wollheim e Joseph Margolis,
reabriram os prospectos para a tarefa de definir a arte, ocasionando uma vasta
literatura sobre o assunto nas décadas de 1970 e 1980.2
objetos de uso cotidiano, existem virtualmente em toda cultura humana conhecida; (ii) tais
entidades, e tradições a elas devotadas, poderiam existir em outros mundos possíveis; (iii) tais
entidades às vezes possuem funções não estéticas – cerimoniais ou religiosas ou
propagandísticas – e outras não; (iv) tradicionalmente, obras de arte são intencionalmente
dotadas por seus criadores de propriedades, normalmente perceptuais, tendo um grau
significante de interesse estético, frequentemente ultrapassando aquele da maioria dos objetos
de uso cotidiano; (v) a arte, assim compreendida, tem uma história complicada: novos gêneros
e formas de arte se desenvolvem, padrões de gosto evoluem, os entendimentos sobre as
propriedades estéticas e a experiência estética mudam; (vi) há instituições em algumas, mas
não em todas as culturas que envolvem um foco em artefatos e performances que têm um alto
grau de interesse estético e que carecem de qualquer uso prático, cerimonial ou religioso; (vii)
tais instituições às vezes classificam entidades que aparentemente carecem de interesse
estético junto com entidades que têm alto grau de interesse estético.” (ADAJIAN, 2008).
Cf. ADAJIAN, Thomas, "The Definition of Art". In: ZALTA, Edward N. (Ed.). The Stanford
Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition). Disponível em:
<http://plato.stanford.edu/archives/fall2008/entries/art-definition/>. Acesso em: 28/10/2010.
2
Entre essas teorias, destacam-se aquelas desenvolvidas por Marcia Muelder Eaton, Monroe
Beardsley, Terry Diffey, Harold Osborne, Jerrold Levinson, Jeffrey Wieand, Richard Eldridge,
Lucien Krukowski, Susan Feagin, James Carney, Richard Lind, William Tolhurst e Robert
Stecker. Para uma análise aprofundada sobre o tema, cf. DAVIES, Stephen. Definitions of Art.
New York: Cornell University Press, 1991.
94
obtida pelos escritos de Dickie e às menções feitas aos seus escritos, (i) Danto
foi identificado como um dos fundadores da Teoria Institucional da Arte. Nas
décadas de 1980 e 1990, o filósofo lança argumentos em refutação à teoria de
Dickie, assim como rechaça as paridades que se lhes atribuem.3 Nesse
movimento, (ii) Danto ajusta suas posições à luz dessa suposta diferença entre
sua teoria do “mundo da arte” e a Teoria Institucional de Dickie, de modo tal
que, dessa comparação, é possível extrair elementos importantes para
recompor sua própria noção. Por fim, (iii) é preciso verificar se ainda há lugar
para o “mundo da arte” na obra mais tardia de Danto. Se a resposta for
afirmativa, como consequência, há um aspecto suplementar a ser explorado:
como o essencialismo encampado por Danto em Transfiguration convive com o
historicismo implicado na noção de “mundo da arte”.
3
Cf. DANTO, 1981, p. viii.
4
DICKIE, George. “Defining Art”. In: American Philosophical Quarterly. Volume 6, Number 3,
July 1969, pp. 253-256.
95
Arthur Danto’s stimulating article, “The Artworld”, is helpful here. In
speaking of Warhol’s Brillo Carton and Rauschenberg’s Bed, he
writes, “To see something as art requires something the eye cannot
de[s]cry – an atmosphere of artistic theory, a knowledge of history of
art: an artworld.” What the eye cannot descry is a complicated non-
exhibited characteristic of the artifacts in question. The “atmosphere”
of which Danto speaks is elusive, but it has a substantial content.
Perhaps this content can be captured in a definition. I shall first state
the definition and then go on to defend it. A work of art in the
descriptive sense is (1) an artifact (2) upon which some society or
some sub-group of a society has conferred the status of candidate for
appreciation.5 (DICKIE, 1969, p. 254, grifo do autor).
A work of art in the classificatory sense is (1) an artifact (2) a set of the
aspects of which has had conferred upon it the status of candidate for
5
“O estimulante artigo de Arthur Danto, ‘The Artworld’, será útil aqui. Ao tratar das embalagens
de Brillo de Warhol e da Cama de Rauschenberg, ele escreve, ‘Ver alguma coisa como arte
exige algo que o olho não pode perceber – uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento
da história da arte: um mundo da arte’. O que o olho não pode perceber é uma complicada
característica não manifesta dos artefatos em questão. A ‘atmosfera’ da qual Danto fala é
elusiva, mas ela tem um conteúdo substancial. Talvez esse conteúdo possa ser capturado
numa definição. Primeiro, irei declarar a definição para em seguida defendê-la. Uma obra de
arte no sentido descritivo é (1) um artefato (2) ao qual alguma sociedade ou algum subgrupo de
uma sociedade conferiu o estatuto de candidato à apreciação.” (DICKIE, 1969, p. 254, grifo do
autor).
6
“Assumindo que a artefatualidade é o gênero [genus] da arte, falta ainda a diferença. Esta
segunda condição será uma propriedade social da arte. Além disso, esta propriedade social
será, na terminologia de Mandelbaum, uma propriedade relacional não manifesta.” (DICKIE,
1969, p. 253-254).
7
Foram três as versões anteriores da teoria institucional até a formulação daquela considerada
definitiva por Dickie, conhecida como “The Art Circle”, publicada em 1984.
96
appreciation by some person or persons acting on behalf of a certain
social institution (the artworld).8 (DICKIE, 1974, p. 464)
8
“Uma obra de arte, no sentido classificatório, é (1) um artefato (2) um conjunto dos aspectos
pelos quais lhe tenha sido conferido o estatuto de candidato à apreciação por alguma pessoa
ou pessoas agindo em nome de certa instituição social (o mundo da arte).” (DICKIE, 1974, p.
464).
9
Entre o artigo “The Artworld” e a publicação mais célebre de Arthur C. Danto sobre filosofia da
arte, o livro The Transfiguration of the Commonplace, há uma lacuna de quase duas décadas.
Alguns foram, no entanto, os artigos que, além de “The Artworld”, anteciparam a forma de
certos argumentos e de algumas análises contidas no livro, entre os quais: “Artworks and Real
Things”, in: Theoria, 29, 1973; “The Transfigurastion of the Commonplace” e “An Answer or
Two for Sparshott”, in: The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 1974 e 1976,
respectivamente; e “Pictorial Representations and Works of Art”, in: NODINE, C. F.; FISHER, D.
F. (Orgs.), Perception and Pictorial Representation, 1979.
10
Cf. DANTO, A. C., The Transfiguration of the Commonplace: a philosophy of art, pp. 91-95; A
Transfiguração do Lugar-Comum: uma filosofia da arte, pp. 147-151.
11
Desse debate, podemos destacar algumas objeções à Teoria Institucional: o filósofo Ted
Cohen (1973, pp. 69-82) afirma que algo pode ser apreciado apenas se for “apreciável”; e que
algumas coisas – entre as quais oferece como exemplos “tachinhas comuns, envelopes
brancos ordinários, garfos plásticos fornecidos em restaurantes drive-in” e, mais
particularmente, “urinóis” – não podem ser submetidos à apreciação e, por conseguinte, não
podem ser obras de arte; Monroe Beardsley (in: MOGENSEN, (Ed.),1976, pp. 194-209) afirma
ser incoerente dizer que uma obra de arte é feita por certa prática (a conferência do estatuto de
candidato à apreciação) em nome de uma determinada instituição (o mundo da arte) quando
nem as regras da prática e nem os limites da instituição podem ser especificados ; Danto
(1981, pp. 91-95) objeta quanto ao conceito de “apreciação”, que implicaria numa condição de
apreciação estética anterior à determinação de algo como uma obra de arte, que tornaria o
mundo da arte de Dickie e seus representantes, no mínimo, inoperantes. Essa condição
reintroduz, ainda, um aspecto posto em suspensão pelos ready-mades de Marcel Duchamp e a
Brillo Box de Andy Warhol, a saber, nossa capacidade de reconhecer obras de arte pela mera
inspeção visual; Richard Wollheim (1980, pp. 157-166; 2002, 13-16) pressiona o dilema dos
institucionalistas: ou os representantes do mundo da arte têm razões para tornar um objeto
uma obra de arte ou não têm. Se eles têm, então, suas razões deviam fazer parte da teoria e
se não têm, a teoria institucional implica uma irracionalidade incapaz de convencimento; Noël
Carroll (in: YANAL, R. (Ed.),1994, pp. xi-xii), por fim, afirma que a teoria institucional não
resolve o desafio apresentado pelos teóricos que defendem o conceito aberto, já que ela não
97
ensaio “The Art World Revisited: Comedies of Similarity”,12 publicado em 1992,
que Danto retoma sua noção de “mundo da arte” e a reconstrói de modo a
esclarecer os aspectos obscuros que se tornaram proeminentes quando Dickie
erigiu sua própria teoria a partir daquele artigo. O aspecto mais relevante a ser
combatido por Danto na referida revisão é a objeção levantada pelo filósofo
Richard Wollheim (1980, pp. 157-166; 2002, pp. 13-16), que sublinha o caráter
circular e arbitrário das teorias institucionais, de modo geral, e, sobretudo, da
Teoria Institucional de Dickie. Assim, quase três décadas depois, e provido do
aparato teórico desenvolvido em The Transfiguration of the Commonplace,
Danto reafirma a necessidade de um “mundo da arte” para a existência da arte,
ainda que essa noção de “mundo da arte” tenha sido alterada.
nos diz o que é uma obra de arte, mas que, ao propor suas condições, apenas nos diz que
uma obra de arte, o que quer que isso seja, se encaixa num determinado contexto social.
12
“The Art World Revisited: Comedies of Similarities”. In: DANTO, Arthur C. Beyond the Brillo
Box , Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 1992, pp. 33-53; pp.167-190 deste
volume.
98
3.2 O “MUNDO DA ARTE” INSTITUCIONAL vs. O “MUNDO DA ARTE” DE
DANTO
13
“[...] uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da história da arte”. (DANTO, 1964,
p. 580; p. 159 deste volume).
14
“[...] o mundo historicamente ordenado das obras de arte, emancipadas [enfranchised] por
teorias que são elas mesmas historicamente ordenadas”. (DANTO, 1992, p. 38; p. 172 deste
volume).
“Enfranchised” significa ter os direitos de um cidadão, como votar, por exemplo, de acordo com
informação do autor. DANTO, A. Dissertation on “The Artworld”. [Mensagem pessoal].
Mensagem recebida por: cristiane.silveira@ufpr.br, em: 04/05/2010.
99
work of art like Warhol's possible than what makes it actual.15
(DANTO, 1992, p. 38).
15
“Como tal, eu suponho, a minha era uma espécie de teoria institucional, na qual o mundo da
arte é, ele próprio, institucionalizado. Mas não era a Teoria Institucional da Arte, que se
originou de um mal-entendido criativo acerca de meu trabalho por parte de George Dickie, que
estava menos preocupado com o que faz com que uma obra de arte como a de Warhol seja
possível do que com o que a torna efetivamente uma obra de arte.” (Ibid., p. 38; p. 173 deste
volume).
16
“[...] o mundo da arte decretou que a Brillo Box – mas não a caixa de Brillo [Brillo box] – era
uma ‘candidata à apreciação’, para usar a famosa expressão de George Dickie.” (Ibid., p. 36; p.
171 deste volume).
100
as próprias ações: teorias artísticas sendo formuladas e uma história da arte
sendo organizada. Na medida em que estas atividades parecem requerer que
alguém as realize, a diferença salientada por Danto, a saber, a existência de
um corpo de especialistas responsáveis pelas determinações do mundo da arte
de Dickie em contraposição a sua noção de “mundo da arte”, constituído de
teorias artísticas e de obras de arte, é atenuada, ainda que não seja de todo
extinguida. Assim como na escolha entre o uso da voz ativa ou passiva numa
oração, a distinção sugere, sob certo aspecto, ser apenas uma questão de
ênfase: situa-se entre a fala do agente, no caso da Teoria Institucional, e sua
ação, no caso da teoria de Danto, se também levada ao extremo. Mas o que
parece de fato trazer à tona as peculiaridades de cada uma das teorias é a
possibilidade de recuo do ajuizamento no “mundo da arte” de Danto, sempre
situado num ponto externo ao sujeito.
101
3.3 ARTE E COGNIÇÃO
17
“Quanto maior a variedade de predicados artisticamente relevantes, mais complexos os
membros individuais do mundo da arte se tornam; e quanto mais se souber de toda a
população do mundo da arte, mais rica será a experiência com qualquer um de seus
membros.” (Id., 1964, p. 584; p. 164 deste volume).
102
social”. Danto afirma que essa tese da Teoria Institucional a assemelha à
Teoria Não Cognitivista do Discurso Moral, caracterizada pela ausência de
critérios de verdade:18
18
O Não cognitivismo moral, de acordo com van Roojen, (2009) é uma variedade de irrealismo
acerca da ética. Os Não cognitivistas defendem a tese de que não existem propriedades
morais ou fatos morais e afirmam que as declarações morais não se prestam a predicar
propriedades ou fazer declarações que possam ser substancialmente verdadeiras ou falsas.
Grosso modo, os não cognitivistas pensam que as declarações morais não têm condições de
verdade. Além disso, de acordo com essa teoria, quando as pessoas proferem sentenças
morais elas tipicamente não estão expressando estados da mente que são crenças ou que são
cognitivas do modo como as crenças o são. Em vez disso, elas estão expressando atitudes
não cognitivas mais semelhantes aos desejos, à aprovação ou à desaprovação.
Cf. van ROOJEN, M., "Moral Cognitivism vs. Non-Cognitivism". In: ZALTA, Edward N. (Ed.),
The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2009 Edition). Disponível em:
<http://plato.stanford.edu/archives/fall2009/entries/moral-cognitivism/>. Acesso em: 17/05/2010.
19
“De certo modo, a teoria de Dickie implica num tipo de elite dotada de autoridade
[empowering elite] e guarda parentesco distante com a Teoria Não Cognitivista da linguagem
moral. ‘Isto é arte!’ tem o status lógico de ‘Isto é bom!’, como a última foi interpretada nos
tempos áureos do alto Positivismo, quando os filósofos da moral avançados da época
pensavam que tudo o que a linguagem moral fazia era dar vazão aos sentimentos.” (Ibid., p.
38; p. 173 deste volume).
103
A distinction has to be drawn between having reasons for believing
something is a work of art and something being a work of art
depending upon the reasons for it being so. A Customs inspector may
indeed use the fact that the director of a national museum says
something is art a reason for believing that it is, just because of where
directors are placed in the structures of expertness. But his saying it is
a work of art is not a reason for it being one. Nevertheless, something
being a work of art is dependent upon some set of reasons, and
nothing really is a work of art outside the system of reasons which
give it that status: works of art are not such by nature. A rose is a rose
whatever its name, but a work of art is not.20 (DANTO, 1992, p. 39,
grifo do autor).
20
“Uma distinção deve ser feita entre ter razões para crer que algo seja uma obra de arte e
algo que se constitua como uma obra de arte de modo contingente às razões para que o seja.
Um inspetor da Alfândega pode realmente usar o fato de que o diretor de um museu nacional
disse que alguma coisa é arte como uma razão para crer que ela o seja, simplesmente pela
posição ocupada por diretores na estruturas de especialização. Mas a sua declaração de que
aquela é uma obra de arte não é uma razão para que ela o seja. Entretanto, ser uma obra de
arte é dependente de algum conjunto de razões, e nada pode ser uma obra de arte fora do
sistema de razões que deu a ela aquele estatuto: obras de arte não o são por natureza. Uma
rosa é uma rosa qualquer que seja seu nome, mas uma obra de arte não o é.” (Ibid., p. 39; p.
174 deste volume).
21
A passagem citada faz referência ao episódio ocorrido em 1965, quando as Brillo Boxes de
Andy Warhol foram impedidas de ingressar em território canadense por funcionários da
alfândega que insistiram que as pretensas esculturas eram materiais de propaganda e, por
esta razão, sujeitas ao pagamento de impostos para os quais itens denominados “esculturas
originais” estariam isentos. A querela chegou a Charles Comfort, então diretor da National
Gallery do Canadá, que, ao examinar fotografias das caixas, teria declarado: “Eu podia ver que
não se tratavam de esculturas” (COMFORT apud DANTO, 1992, p. 37; p. 171 deste volume).
Qualquer que fosse a resposta do diretor, afirmativa ou negativa, ela serviria apenas para
sustentar ou contrariar a atitude dos funcionários em relação às caixas, mas não diria nada a
respeito das obras ou das razões que as constituem ou não como obras de arte. Se inquiridos
sobre suas decisões, os funcionários só poderiam recorrer à declaração de Comfort para
justificá-las, jamais a razões fundadas nas próprias obras de arte.
104
3.3.1 “Mundo da arte” como “discurso de razões”
22
“O mundo da arte é o discurso de razões institucionalizado”. (Ibid., p. 46; p. 183 deste
volume).
23
De acordo com o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (2ª ed.,1986, p. 953), uma
“instituição” é uma “[5. Sociol.] estrutura decorrente de necessidades sociais básicas, com
caráter de relativa permanência, e identificável pelo valor de seus códigos de conduta, alguns
deles expressos em leis”.
De acordo com Abbagnano (2003, p. 571), na sociologia contemporânea, esse termo é de uso
frequente e foi empregado, p. ex., por Durkheim como objeto específico da sociologia, definida
precisamente como “ciências das instituições”. A instituição por vezes foi entendida como um
conjunto de normas que regulam a ação social (como em Durkheim); outras vezes, em sentido
mais geral, como “qualquer atitude suficientemente recorrente num grupo social”.
24
“[...] primeiro, que ser um membro do mundo da arte significa participar daquilo que
poderíamos denominar o discurso de razões; e em segundo lugar, a arte é histórica porque as
razões se relacionam umas às outras historicamente.” (DANTO, 1992, p. 40; p. 175 deste
volume).
105
Surgem, então, pela primeira vez textualmente, os membros do “mundo
da arte” de Danto, os sujeitos que participam do chamado “discurso de razões”.
De acordo com o filósofo (DANTO, 1992, p. 46), como o “mundo da arte” é o
“discurso de razões” institucionalizado, ser um membro do “mundo da arte” é,
por conseguinte, “to have learned what it means to participate in the discourse
of reasons for one’s culture”,25 ou seja, ter aprendido o que significa participar
dessa espécie de jogo de relações entre as obras de arte e as teorias que
formam esse contexto específico em uma determinada cultura.
25
“[...] ter aprendido o que significa participar do discurso de razões de sua cultura.” (Ibid., p.
46; p. 183 deste volume).
26
“Em parte, a resposta a pergunta deve ser histórica. Nem tudo é possível em qualquer
momento, como escreveu Heinrich Wölfflin, o que significa que certas obras de arte
simplesmente não poderiam ser introduzidas como obras de arte em certos períodos da
história da arte, embora seja possível que objetos idênticos a obras de arte pudessem ter sido
feitos naquele período.” (Id., 1981, p. 44).
106
then had evolved so as to exclude this as a possible artwork unless it
has been made when appropriate, and lingered on as an antique. The
artworld of the period would have excluded from the expressive
vocabulary of its contemporaries the deliberate exploitation of archaic
forms, in contrast with the situation today when, if an artist should
choose to employ archaic forms, this would be tolerated; but of course
if someone uses limestone stele today, they could hardly have the
same meaning as they would have had when Stonehenge was new.
And if today an artist exhibits a painting in the style of Watteau, we
should hesitate before declaring him out of date: this may be a self-
conscious archaism, in which case he stands in a very different
relationship to the Rococo style than Watteau would have done.27
(DANTO, 1981, p. 44-45).
Brillo Box had a shot at being a work of art because of the fact that so
many features, thought to be central to something’s identity as art, in
the years leading up to that, had been rejected as part of the essence
of art, so that the definition itself had become attenuated to the point
where pretty much anything could be a work of art. A member of the
art world would be one who was familiar with this history of
attenuation.28 (DANTO, 1992, p. 40).
Para Danto (1992, p. 40), o fato notável acerca da obra Brillo Box foi o
modo como Warhol articulou as relações entre a história da arte e a teoria que
a constituem como obra: ela surgiu de uma espécie de “submundo de imagens
bem conhecidas”, suficientemente distante das preocupações estéticas
daqueles interessados em arte, de modo que sua aparição tenha sido
27
“É fácil perceber a força dessa afirmação na direção histórica progressiva. Um escultor que
produzisse um torso arcaico de Apolo no período de Praxíteles teria morrido de fome, já que o
mundo da arte daquela época havia evoluído de modo a excluir tal objeto como uma possível
obra de arte a não ser que ele tivesse sido feito no momento apropriado, e persistisse como
uma antiguidade. O mundo da arte do período teria excluído do vocabulário expressivo de seus
contemporâneos a exploração deliberada de formas arcaicas, em contraste com a situação
atual em que, caso um artista escolha empregar formas arcaicas, isso seria tolerado; mas é
claro que se alguém usa monólitos calcários hoje em dia, eles não podem ter o mesmo
significado que teriam tido quando Stonehenge foi construído. E se hoje um artista exibir uma
pintura no estilo de Watteau, nós deveríamos hesitar antes de declará-lo ultrapassado: esse
poderia ser um arcaísmo autoconsciente, e nesse caso ele mantém uma relação muito
diferente com o estilo Rococó do que Watteau teria mantido.” (Ibid., pp. 44-45).
28
“A Brillo Box teve uma chance de se tornar uma obra de arte porque tantos aspectos, que se
imaginava centrais para a identidade de alguma coisa como arte, nos anos que a precederam,
haviam sido rejeitados como parte da essência da arte, de modo que a própria definição tinha
se tornado atenuada até o ponto em que quase qualquer coisa pudesse ser uma obra de arte.
Um membro do mundo da arte seria alguém que estivesse familiarizado com essa história de
atenuação.” (Id., 1992, p. 40; p. 175 deste volume).
107
considerada ultrajante, ao mesmo tempo em que não havia nada na concepção
de arte dominante que a impedisse de ser uma obra de arte. Por fim, se há
uma declaração, ela é feita pelo artista, muito embora esteja sob condições
restritivas e sujeita a ajuizamento, como podemos inferir desta passagem:
The fiat was perhaps Warhol’s, but enough people who participated in
the history of relevant reasons were prepared to admit it into the
canon of art that it was admitted. So it is true that when we know the
reasons we have all we need.29 (DANTO, 1992, p. 40).
[…] the discourse of reasons is what confers the status of art on what
would otherwise be mere things, and that the discourse of reasons is
the art world construed institutionally.31 (DANTO, 1992, p. 40).
108
contrapõe, a série de Flags, de Jasper Johns, os “combines” de Robert
Rauschenberg, por exemplo32 – e examinamos as teorias artísticas vigentes à
época, bem como o conteúdo teórico introduzido pelo objeto posto sob
análise33 para fundamentá-lo como obra de arte ou, pelo contrário, para excluí-
lo, mas não recorremos ao fato de Warhol tê-lo proposto como obra como
critério para sua classificação como tal.
32
Cf. Capítulo 1.
33
Segundo Danto (2009, p. 23), por exemplo, Warhol não foi o primeiro a levantar a questão da
arte em sua forma mais radical, mas ele redefiniu a forma da pergunta. A nova forma não
perguntava “O que é arte?”, mas sim: “Qual é a diferença entre duas coisas, exatamente iguais,
uma das quais é arte e a outra não?”. A sua maneira, para Danto, esta é como uma pergunta
religiosa: “Jesus is at once a man and a god. We know what it is to be a man. It is to bleed and
suffer, as Jesus did, or the customers whom the ads address. So what is the difference
between a man that is and the man that is not a god?”
[“Jesus é ao mesmo tempo um homem e um deus. Nós sabemos o que é ser um homem. É
sangrar e sofrer, como Jesus fez, ou os consumidores a quem os anúncios se dirigem. Então
qual é a diferença entre um homem que é e o homem que não é um deus?”]. (DANTO, 2009, p.
23).
109
In a sense, the discourse of reasons for a given culture is a sort of
language game, governed by rules of play, and for reasons parallel to
those that hold that only where there are games are there wins and
losses and players, so only where there is an art world is there art. 34
(DANTO, 1992, p. 46).
34
“Em certo sentido, o discurso de razões para uma dada cultura é um tipo de jogo de
linguagem, regido por regras de jogo, e por razões análogas àquelas que sustentam que
apenas onde há jogos há vitórias e derrotas e jogadores, apenas onde existe um mundo da
arte, existe arte.” (Id., 1992, p. 46; p. 183 deste volume).
35
“Eu queria dizer na verdade um mundo que consistisse de obras de arte, uma comunidade
autoenriquecedora de objetos ontologicamente complexos, frequentemente inter-referencial
(ou, como a expressão passou a ser usada mais tarde, “intertextual”), e que acima de tudo
tivesse um vetor histórico, de modo que algo pudesse ser parte daquele mundo em certo
momento, mas não num momento anterior. Então, nenhuma Brillo Box seria possível na
Pequim do século 18, nem na Amsterdã do século 17, mas pensei que, em 1964, o mundo da
arte havia se aberto o suficiente para acomodar as Brillo Boxes, e a pergunta interessante era,
agora que lhe era possível ser um membro, por que ela e não os inúmeros assemelhados do
mundo real.” (DANTO, A. "Responses and Replies". In: ROLLINS, Mark (Ed.). Danto and His
Critics. Oxford: Blackwell, 1993, pp. 203-204).
36
“Ver alguma coisa como arte exige algo que o olho não pode perceber – uma atmosfera de
teoria artística, um conhecimento da história da arte: um mundo da arte.” (Id., 1964, p. 580; pp.
158-159 deste volume).
110
que o que gostaria de ter dito à época acerca do que se requer para que algo
seja visto como arte poderia ser assim formulado:
[…] a knowledge of what other works the given work fits with, a
knowledge of what other works makes a given work possible. 37
(DANTO, 1997, p. 165)
The rules of play in Western art have been very much involved with a
form of criticism, which is why the shape of art history in the West has
been able to see itself as progressive. To be an artist in this art world
is in effect to take a position on the past, and inevitably on one’s
37
“[…] um conhecimento de a que outras obras uma determinada obra se ajusta, um
conhecimento de que outras obras tornam uma determinada obra possível.” (Id., 1997, p. 165;
(ed. bras.) 2006, p.183).
111
contemporaries whose position on the past differs from one’s own.
One’s work is therefore tacitly a criticism of what went before and what
comes after. And that means that to understand a work requires
reconstruction of the historical and critical perception which motivated
it.38 (DANTO, 1992, p. 47).
Por essa razão, na arte ocidental, “the point at which a work appears in
the evolving discourse of reasons is central to its identity”39 (DANTO, 1992, p.
47). As “regras do jogo” se apresentam sempre em contexto. Para o autor,
desde os Pré-Rafaelitas, os artistas têm estado implicitamente envolvidos na
empreitada semifilosófica de afirmar o que é ou não arte de modo que a
definição de arte veio a tomar um papel crescente na própria produção de arte
nos tempos modernos, chegando ao clímax recentemente, quando perguntar-
se se alguma coisa era ou não arte se tornou constante.
38
“As regras do jogo na arte Ocidental estão muito envolvidas com um tipo de crítica, razão
pela qual a forma da história da arte no Ocidente seja capaz de se ver como progressiva. Ser
um artista neste mundo da arte é na verdade tomar uma posição em relação ao passado e,
inevitavelmente, em relação aos seus contemporâneos, cuja posição em relação ao passado
difere de sua própria. Uma obra é, portanto, tacitamente, uma crítica ao que a precedeu e ao
que virá. E isso significa que entender uma obra exige reconstrução da percepção histórica e
crítica que a motivou.” (Id., 1992, p. 46-47; p. 183 deste volume).
39
“[...] o ponto em que uma obra surge no desenvolvimento do discurso de razões é central
para sua identidade.” (Ibid., p. 47; p. 184 deste volume).
40
“Mobiliário é arte? E a fotografia? Estas perguntas ajudaram a definir a forma do discurso de
razões que a Teoria Institucional se esforçou para apreender. Estas não seriam, por outro lado,
necessariamente, as questões para outras culturas e outros discursos. A tradição chinesa, por
exemplo, não prezava nem um pouco a verossimilhança, ao passo que nossa tradição celebra
112
Outro aspecto importante a se considerar é que, ao contrário do que a
Teoria Institucional nos induz a concluir, a classificação de um objeto como
obra de arte não se constitui, necessariamente, de uma decisão consensual
dos membros do “mundo da arte”. A constituição desse suposto corpo de
representantes em Danto é, à maneira de Dickie, também vaga, já que
qualquer um que tenha aprendido o que significa participar do “discurso de
razões” de uma determinada cultura possa ser um representante do “mundo da
arte”, mas as conclusões que podem ser extraídas das duas teses são
distintas. O primeiro indício que corrobora para esta distinção é a
caracterização feita por Danto desse corpo de representantes, como na
passagem a seguir:
as proezas do simulador. Assim, o advento da fotografia no século XIX não ofereceu nenhum
problema inicial para o mundo da arte chinesa. Quando ela passou a representar um desafio,
entretanto, toda a forma da história da arte na China mudou de modo a acomodá-la.” (Ibid., p.
47; pp. 183-184 deste volume).
41
“[...] nós certamente não iríamos querer definir [quem é um membro do “mundo da arte”]
como todos e apenas aqueles que consideraram a Brillo Box uma obra de arte em 1964 – isso
traria a mim, um filósofo, para dentro do mundo da arte e excluiria o diretor da National Gallery
do Canadá, sem falar na proprietária da galeria que as exibiu, que sentiu que havia sido
enganada. E isso certamente exclui o artista que arruinou o livro de assinaturas [ao registrar de
maneira enfática seu descontentamento em relação à exposição], para não mencionar vários
críticos muito sofisticados.” (Ibid., p. 37; p. 171-172 deste volume).
42
Além do diretor da National Gallery do Canadá, apontado por Danto como um dos
retardatários (1992, p. 40), muitos outros membros do mundo da arte poderiam ser citados.
Eleanor Ward, proprietária da Stable Gallery, estava suficientemente atualizada para aceitar a
pintura de uma nota de dólar de Andy Warhol como obra, em troca da qual ela lhe ofereceu sua
113
discursos dissonantes constituem determinados objetos como obras de arte.
Como, afinal, tais objetos podem ser classificados como arte?
primeira exposição individual, quando nenhum outro galerista o havia aceitado. Isto não a
impediu, entretanto, de sentir-se traída pelo artista, por ocasião de sua segunda mostra, aquela
em que Warhol apresenta as Brillo Boxes. Por outro lado, foram justamente aquelas obras que
atraíram o interesse de Leo Castelli, o mais celebrado galerista da época, que mantinha
reservas à produção de Warhol porque esta era muito semelhante àquilo que outro de seus
artistas, Roy Lichtenstein, estava produzindo. No momento em que Warhol passou a fazer
aquilo que considerava como “escultura”, sua reservas se desfizeram.
43
É importante notar que Danto não apresenta uma definição na forma de um enunciado em
Transfiguration, mas Noël Carroll (1993, p. 80) sumarizou da seguinte maneira a tese ali
apresentada: “something is a work of art if and only if (i) it has a subject (ii) about which it
projects some attitude or point of view (has a style) (iii) by means of rhetorical ellipsis (usually
metaphorical) (iv) which ellipsis engages audience participation in filling in what is missing, and
(v) where the work in question and the interpretations thereof require an art historical context.”
[“alguma coisa é uma obra de arte se e apenas se (i) ela tem um assunto (ii) sobre o qual ela
projeta alguma atitude ou ponto de vista (tem um estilo) (iii) por meio de elipse retórica
(normalmente metafórica) (iv) cuja elipse envolva participação da audiência para completar o
que está faltando e (v) onde a obra em questão e suas interpretações exijam um contexto
histórico-artístico.”]
114
is to be ready to interpret it in terms of what and how it means. 44
(DANTO, 1992, p. 41).
Danto afirma, portanto, que ver alguma coisa como arte significa estar
preparado para interpretá-la em termos do que ela significa e de que maneira
ela o faz. Como a tarefa da crítica seria justamente identificar os significados
dessas expressões simbólicas e explicar o modo com que tais significados
tomaram corpo, a crítica é, por fim, o próprio exercício do “discurso de razões”.
É importante notar também que, para Danto, aparentemente, o “mundo da arte”
da Teoria Institucional se resume apenas à crítica.
44
“A tese que emergiu de meu livro The Transfiguration of the Commonplace é que obras de
arte são expressões simbólicas, na medida em que elas corporificam seus significados. A
tarefa da crítica é identificar os significados e explicar o modo em que são corporificados.
Assim interpretada, a crítica é apenas o discurso de razões, participação que define o mundo
da arte da Teoria Institucional da Arte: ver alguma coisa como arte é estar pronto para
interpretá-la em termos do que ela significa e de que maneira [ela] o faz.” (DANTO, 1992, p. 41;
p. 176 deste volume).
45
“Há, simplesmente na natureza [do fato] de serem símbolos, um sistema de comunicação e
uma audiência implicados para a obra, e nós podemos identificar esta audiência como o mundo
da arte da obra, no qual seus membros estão familiarizados com o discurso de razões que
constitui aquela obra como uma obra e, então, como a obra que é.” (Ibid., p. 41, grifo meu).
115
eram imediatamente reconhecidas por aqueles que partilhavam o que
denomina “cultura comum”. A arte Pop apresentou o que lhes era
extremamente significante, e aparentemente secundário, como definidor de
suas próprias vidas. De algum modo profundo, afirma ainda Danto (1992, p.
41), aquela arte era conservadora, reconciliando aqueles que viviam a forma de
vida encarnada naquelas obras à forma de vida que de fato viviam.
46
“O tipo de interpretação a que me refiro aqui está sob a restrição de verdade e falsidade:
interpretar uma obra é estar comprometido com uma explicação histórica da obra.” (Ibid., p. 42;
p. 178 deste volume).
47
A “crítica de arte inferencial” é a metodologia apresentada pelo historiador da arte britânico
Michael Baxandall (1933-2008), em seu livro Patterns of Intention: On the Historical Explanation
of Pictures. New Haven, CT: Yale University Press, 1985.
48
“A teoria de mundos da arte a qual subscrevo é aquela de uma afiliação livre de indivíduos
que sabem o suficiente por meio da teoria e da história que são capazes de praticar o que o
historiador da arte Michael Baxandall denomina “crítica de arte inferencial”, que na realidade
significa simplesmente explicações históricas das obras de arte. Logo, as interpretações são
falsas quando as explicações o são.” (Ibid., p. 42, grifo meu; p. 178 deste volume).
116
Em primeiro lugar, é importante observar que Danto apresenta o termo
“mundos da arte”, na forma plural, pela primeira vez. A versão monolítica do
primeiro artigo ganha agora, aparentemente, um aspecto pluralista, resultado,
possivelmente, da experiência no exercício da crítica de arte a partir de
meados dos anos 1980. A intenção fica mais clara quando, logo adiante, Danto
apresenta a crítica proferida por Hilton Kramer, então crítico da revista Times,
acerca da obra Metronomic Irregularity II de Eva Hesse. Para Danto, a
avaliação desfavorável feita por Kramer, que considerou a obra uma simples
adaptação tridimensional da pintura de Pollock, se devia a uma falha em seu
“ver interpretativo” [interpretive seeing]. Kramer teria, portanto, interpretado a
obra a partir dos preceitos, ou da “teoria artística”, que sustentavam o
Expressionismo Abstrato e se mantido distante do “mundo da arte” do
Minimalismo, o imaginário do qual Hesse fazia parte. Danto (1992, p. 45)
termina por constatar que no “mundo da arte” em que Kramer desenvolveu seu
“bom olho” não haveria espaço para reagir adequadamente ao uso de materiais
industriais como aqueles utilizados deliberadamente no “mundo do
Minimalismo”.49
If one looks at the origins of modern art history and art criticism, which
are in the Renaissance, it is noticeable that really it arose out of
conversation. The germ even of Vasari's great Lives of the Artists lay
in dinner conversation at Cardinal Farnese's, as he says himself, and
[…] runs down to the workshop argument, two or three centuries of it.
After all, why else than for dialogue do something as hard and as odd
as attempting to verbalize about pictures? I shall claim inferential
criticism is not only rational but sociable.50 (BAXANDALL, 1985, p.
137).
49
Cf. ibid., pp. 43-46; pp. 181 deste volume.
50
“Se olharmos para as origens da história da arte e da crítica modernas, que se encontram na
Renascença, é possível perceber que ela realmente surgiu da conversa. O germe até mesmo
do grande Vidas dos Artistas, de Vasari, está nas conversas dos jantares do Cardeal Farnese,
como ele mesmo diz, e [...] continua na discussão de oficina, dois ou três séculos dessa
prática. Além do mais, por que fazer algo tão difícil e estranho como tentar verbalizar sobre
pinturas por outro modo que não seja o diálogo? Devo afirmar que a crítica inferencial não é
apenas racional, mas sociável.” (BAXANDALL, 1985, p. 137).
117
Se, por um lado, ao invocar a metodologia de Baxandall, o filósofo
reduz o papel determinante da intenção do artista na interpretação de obras de
arte,51 resta ainda esclarecer o papel desempenhado pela audiência que
interpreta a obra. Danto apresenta sua noção de interpretação nos termos da
distinção introduzida por Roland Barthes [1915-1980] entre o texto “de leitor” e
o texto “autoral”.52 É a primeira, a interpretação “de leitor”, que, para Danto, tem
capacidade de explicar a obra de arte, enquanto a segunda, a interpretação
“autoral”, se aproxima logicamente do discurso não cognitivista que consiste
em arbítrios e declarações. Esta última, a interpretação autoral, consiste no que
a obra significa para o espectador sem preocupar-se se esse significado é
verdadeiro ou falso. É ainda sob esse sentido de interpretação que se diz que a
51
Sobre o papel desempenhado pela intenção do artista na cadeia causal de inferências que
propõe, Baxandall (1985, p. 41-42) pondera: “[…] since pictures are human productions, one
element in the causal field behind a picture will be volition, and this overlaps with what we call
‘intention’. […] The intention to which I am committed is not an actual, particular psychological
state or even a historical set of mental events inside the head of Benjamin Baker or Picasso, in
the light of which – if I knew them – I would interpret the Forth Bridge or the Portrait of
Kahnweiler. Rather, it is primarily a general condition of rational human action which I posit in
the course of rearranging my circumstantial facts or moving about on the triangle of re-
enactment. […] So ‘intention’ here is referred to pictures rather more than to painters. In
particular cases it will be a construct descriptive of a relationship between a picture and its
circumstances.”
[“... já que pinturas são produções humanas, um elemento no campo causal por traz de uma
pintura será a volição, e isso se sobrepõe ao que chamamos ‘intenção’. [...] A intenção com a
qual estou comprometido não é um estado psicológico particular, verdadeiro ou mesmo um
conjunto histórico de eventos mentais dentro da cabeça de Benjamim Baker ou Picasso, a luz
dos quais – se os conhecesse – eu interpretaria a Forth Bridge ou o Retrato de Kahnweiler. Ao
invés disso, ela é fundamentalmente uma condição geral da ação racional humana que eu
proponho no curso da reorganização de meus fatos circunstanciais ou da perambulação no
triângulo de recaracterização. […] Portanto a ‘intenção’ aqui é referida às pinturas muito mais
do que aos pintores. Em casos particulares ela será uma construção descritiva de uma relação
entre uma pintura e suas circunstâncias.”] (BAXANDALL, 1985, pp. 41–42).
52
“De leitor”: do original “readerly”, tradução do termo “lisible”, criado por Roland Barthes
(1915-1980). “Autoral”: do original “writerly”, tradução do termo “scriptible”, também criado por
Barthes.
O termo em francês “lisible”, “legível”, ou “de leitor”, foi usado num sentido específico pelo
crítico Roland Barthes em seu livro S/Z (1970), e é comumente traduzido para o inglês como
“readerly” ou “readable”. Barthes aplica esse termo a textos (normalmente da tradição realista)
que não envolvam uma participação real do leitor que não seja o consumo de um significado
pré-fixado. Um texto “de leitor” pode ser facilmente entendido em termos das convenções e
expectativas já familiares e é, nesse sentido, “fechado”. Pelo contrário, o texto “autoral”
(“scriptible” ou “writerly”, normalmente modernista) desafia o leitor a produzir seus significados
a partir de um jogo “aberto” de possibilidades.
LISIBLE. In: The Concise Oxford Dictionary of Literary Terms. Oxford University Press, 2001,
2004. Disponível em: <http://www.answers.com/topic/lisible>. Acesso em: 17/05/2010.
118
obra admite um número infinito de interpretações e na qual a interpretação é
um “jogo de significantes” (DANTO, 1992, p. 42).
It may also perhaps be argued that part of what makes art important is
that it can or even must give rise to writerly interpretations, and come
to mean specific things to specific viewers without meaning the same
thing to every viewer. If I think of my family history while viewing King
Lear, that has no explanatory value so far as King Lear is concerned.
If I observe with pleasure that sometimes I can see my daughter’s
features in those of Manet’s Olympia, that is not inferential art
criticism. Readerly interpretation is fallible, just because it has the form
of an explanatory hypothesis, but it is not infinite and it is not
subjective.53 (DANTO, 1992, p. 42-43, grifo do autor).
53
“Poder-se-ia argumentar talvez que parte do que faz a arte importante é que ela pode ou
mesmo deve proporcionar interpretações autorais, e chegar a significar coisas específicas a
espectadores específicos, sem significar a mesma coisa para todo espectador. Se eu penso na
história da minha família enquanto assisto a Rei Lear, isso não tem valor explanatório, na
medida em que Rei Lear está em questão. Se eu observo com prazer que às vezes posso ver
as feições de minha filha na Olympia de Manet, isso não é crítica de arte inferencial. A
interpretação de leitor é falível, apenas porque ela tem a forma de uma hipótese explanatória,
mas ela não é infinita e não é subjetiva.” (DANTO, 1992, pp. 42-43; p. 178 deste volume).
54
“Não há declaração. A seu modo algo surpreendente, a crítica é, afinal, muito parecida com a
ciência, produzindo hipóteses de ponta e aparando-as ou produzindo outras.” (Ibid., p. 52-53; p.
190 deste volume).
119
3.4 ESSENCIALISMO E HISTORICISMO NA FILOSOFIA DA ARTE DE
ARTHUR DANTO
55
Cf. Capítulo 2, seção 2.1.
56
Cf. DANTO, 2006, p. 106.
57
Segundo Danto (1997, p. 193), a dificuldade com as grandes figuras do cânone da estética,
de Platão a Heidegger, não consiste em que eles tenham sido essencialistas, mas, antes, em
que tenham entendido a essência erroneamente. Ainda de acordo com o autor, existem duas
maneiras de se pensar a essência: extensivamente [extensionally], com referência à classe de
coisas denotada por um termo, ou, intensivamente [intensionally], com referência ao conjunto
de atributos que o termo conota. O engano apontado por Danto parece ocorrer quando se
opera extensivamente: desse modo, por indução, nos esforçamos por extrair os atributos
comuns e peculiares aos itens que formam a extensão do termo. O problema se inicia com a
crescente diversificação dos exemplares de obras de arte, atingindo seu grau extremo com o
surgimento de obras como a Fountain de Marcel Duchamp e a Brillo Box de Andy Warhol.
58
“A extrema heterogeneidade da extensão do termo obra de arte, sobretudo nos tempos
modernos, tem, por vezes, formado a base para a negação de que a classe de obras de arte
tenha um conjunto definidor de atributos e, portanto, a afirmação, lugar-comum quando iniciei
120
Em Transfiguration, seu principal trabalho sobre o assunto, Danto
produz uma longa argumentação para estabelecer os aspectos definidores de
uma obra de arte, muito embora os tenha resumido drasticamente nas
publicações que se seguiram. Em beneficio da clareza, porém, farei uso da
versão de fato enunciada e apresentada no livro After the End of Art.59 Assim,
com o intuito de encontrar uma definição da arte sob condições necessárias e
suficientes, Danto identificou apenas duas condições necessárias, mas, de
acordo com o próprio autor, não suficientes: “To be a work of art is to be (i)
about something and (ii) to embody its meaning”.60 (DANTO, 1997, p. 195, grifo
do autor).
minhas investigações em filosofia da arte, de que a arte, tal como os jogos, seja na melhor das
hipóteses uma classe de semelhança de família. [...] Minha contribuição, se é que houve
alguma, foi precisamente a de não ser iludido pela heterogeneidade da extensão do termo,
radicalizado por Duchamp e Warhol. Eles a tornaram radical porque a partir da classificação de
seu trabalho como arte, seguiu-se imediatamente que não mais se poderia dizer quais eram as
obras de arte pela observação, nem, por conseguinte, se poderia esperar que se chegasse a
uma definição por indução sobre os casos. Minha contribuição foi a de que uma definição
devesse agora ser encontrada que fosse não apenas consistente com a disjuntividade radical
da classe das obras de arte, mas que explicasse, ainda, como aquela disjuntividade era
possível. Mas, como todas as definições, a minha (que era provavelmente apenas parcial) era
inteiramente essencialista. (Id., 1997, p. 194, grifo do autor).
59
Noël Carroll (1997, p. 386) comenta que Danto não faz uso da teoria do “mundo da arte” na
definição enunciada em After the End of Art, sugerindo que Danto tenha vindo a abandoná-la
nesta última versão. Carroll (apud ROSENSTEIN, 2002, p. 46), observa que, em 1997, o autor
provê apenas duas condições para a arte: “sobre-o-quê” [aboutness], uma característica
referencial ou denotativa, e “significado-corporificação” [meaning-embodiment], que, segundo
Rosenstein, parece ser uma qualidade expressiva ou conotativa do que normalmente constitui
suas formas. Estas, afirma Carroll (1997, p. 387), são as duas condições necessárias para o
estatuto de arte, sem nenhuma reivindicação por suficiência conjunta. A tese defendida por
Carroll é que ao abandonar, ou ignorar, a sua antiga condição de “certificação do mundo da
arte” (ROSENSTEIN, 2002, p. 46), a teoria de Danto não seria capaz de distinguir entre coisas
comuns e objetos de arte. Embora concorde com a premissa de que sem um “mundo da arte”
não é possível reconhecer objetos como obras de arte, pretendo mostrar nesta última
subseção que a teoria do “mundo da arte” não foi abandonada na filosofia da arte de Danto,
mas é reorganizada de modo a acomodar essencialismo e historicismo sob uma mesma
guarda filosófica.
Cf. CARROLL, Noël, “Danto’s New Definition of Art and the Problem of Art Theories”. In: The
British Journal of Aesthetics Vol. 37, no. 4, October, 1997 pp. 386-91.
60
“Ser uma obra de arte é ser (i) sobre alguma coisa e (ii) corporificar o seu significado.”
(DANTO, 1997, p. 195, grifo do autor).
121
menos, ainda de acordo com Danto (2006, p. 216), a justificar a sua crença
filosófica de que a arte é um conceito essencialista.61 O que se pretende,
porém, neste momento, com o intuito de evitar possíveis mal-entendidos, é
apenas mostrar como esse aspecto bastante difundido da teoria da arte de
Arthur C. Danto, a saber, seu caráter essencialista, é compatível com o
historicismo contido na tese do “mundo da arte” apresentada neste trabalho.
61
Danto insiste que prover uma definição filosófica da arte corresponde a “mapear a essência
da arte” (DANTO, 1997, p. 195). O tema, entretanto, é controverso: a presunção de que para
definir algo nós devemos conhecer sua essência é, por vezes, referida como a falácia
essencialista (KELLY, 1998, p. 38, n. 29).
Cf. SHUSTERMAN, R., “The End of Aesthetic Experience”. In: Journal of Aesthetics and Art
Criticism, 55 (1999), 29-41; e BORDIEU, P., "The Historical Genesis of a Pure Aesthetic". In:
SHUSTERMAN, Richard (Ed.) Analytic Aesthetics, Oxford: Blackwell, 1989, pp. 147-160.
62
“Filosoficamente, a diferença entre mim e um institucionalista como Dickie não é que eu era
essencialista e ele não, mas que eu sentia que as decisões ao constituir algo como uma obra
de arte exigiam uma classe de razões para impedir que essas decisões fossem meramente
122
É importante assinalar que não houve, no curso da investigação
filosófica de Arthur Danto, a substituição de uma teoria por outra. O filósofo não
refuta a tese da existência de um “mundo da arte” para mais tarde retomá-la:
desde Transfiguration, essencialismo e historicismo operam de modo
complementar. Embora o termo “mundo da arte” não seja enfaticamente
abordado em Transfiguration – são apenas três as situações em que ocorre em
todo o livro63 – o capítulo 5, intitulado “Interpretation and Identification”,64
constitui-se de uma versão ampliada de algumas das análises contidas no
artigo publicado em 1964, em que até mesmo a tese principal de “The Artworld”
é apresentada integralmente: “To see something as art at all demands nothing
else than this, an atmosphere of artistic theory, a knowledge of the history of
art.”65 (DANTO, 1981, p. 135). E o autor completa, logo adiante,
Perhaps one can speak of what the world is like independently of any
theories we may have regarding the world […] But it is plain that there
could not be an artworld without theory, for the artworld is logically
dependent upon theory. So it is essential to our study that we
understand the nature of an art theory, which is so powerful a thing as
to detach objects from the real world and make them part of a different
world, an art world, a world of interpreted things. What these
considerations show is that there is an internal connection between
the status of an artwork and the language with which artworks are
identified as such, inasmuch as nothing is an artwork without an
interpretation that constitutes it as such.66 (DANTO, 1981, p. 135, grifo
do autor).
decretos de vontade arbitrária. E na verdade eu senti que conceder o estatuto de arte à Brillo
Box e à Fountain era menos uma questão de declaração do que de descoberta. Os
especialistas eram de fato especialistas da mesma maneira que os astrônomos são
especialistas em saber se algo é uma estrela. Eles viram que essas obras tinham significados
que faltavam as suas contrapartes indiscerníveis, bem como viram o modo como essas obras
encarnavam aqueles significados. (DANTO, 1997, p. 195).
63
Cf. id., 1981, pp. 5, 45 e 135.
64
Cf. ibid., pp. 115-135.
65
“Ver alguma coisa como arte afinal exige nada mais do que isso, uma atmosfera de teoria
artística, um conhecimento da história da arte.” (Ibid., p. 135).
66
“Talvez se possa falar de como o mundo é independentemente de quaisquer teorias que
possamos ter com relação ao mundo [...] Mas é evidente que não poderia haver um mundo da
arte sem teoria, porque o mundo da arte é logicamente dependente da teoria. Logo, é essencial
para o nosso estudo que entendamos a natureza de uma teoria da arte, uma coisa tão
poderosa que é capaz de separar objetos do mundo real e de torná-los parte de um mundo
diferente, de um mundo da arte, um mundo de coisas interpretadas. O que essas
considerações mostram é que há uma conexão interna entre o estatuto de uma obra de arte e
a linguagem com a qual obras de arte são identificadas como tal, na medida em que nada é
uma obra de arte sem uma interpretação que a constitua como tal.” (Ibid., p. 135. grifo do
autor).
123
Em After the End of Art, Danto procura explicitar o tipo de conjunção
entre os pontos de vista essencialista e historicista que os torna compatíveis:
67
“O conceito de arte, como essencialista, é atemporal. Mas a extensão do termo é
historicamente indexada – é na verdade como se a essência se revelasse através da história,
que é parte do que se pode inferir que Wölfflin tenha implicado ao dizer que ‘Nem tudo é
possível em todos os tempos, e certos pensamentos só podem ser pensados em certos
estágios de desenvolvimento’. A história pertence mais à extensão do que à intensão do
conceito de arte, e, novamente com a notável exceção de Hegel, praticamente nenhum filósofo
levou a sério a dimensão histórica da arte.” (Id., 1997, p. 196).
124
suma, o essencialismo na arte impõe o pluralismo, seja ele ou não,
de fato, percebido. (DANTO, 2006, p. 218).68
68
DANTO, A. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História. Tradução de
KRIEGER, Saulo Krieger. São Paulo: Odysseus, 2006.
69
“[...] há uma espécie de essência trans-histórica na arte, em toda parte e sempre a mesma,
mas que apenas se revela através da história.” (DANTO, 1997, p. 28).
125
na busca por sua própria definição: “Modern art has internalized both the truth
that art has a history and that (the search for) its essence determines the logic
of its history.”70 Assim, (DANTO; KELLY) colocando a imitação e a expressão
de lado, a arte moderna teria inaugurado sua busca histórica por autodefinição.
A arte no século XX, ao menos essa porção tipicamente identificada como
“vanguarda”, de acordo com essa caracterização (KELLY, 1998, p. 33), teria
continuado essa busca, especialmente no caso da pintura, através dos
movimentos conhecidos como Impressionismo, Expressionismo, Cubismo,
Surrealismo, Expressionismo Abstrato e assim por diante. De acordo com Kelly
(1998, p. 32), todas essas tentativas de definir a essência da arte (como luz,
expressão, planaridade, entre outros) fracassaram de modo tal que
perpetuaram a suposta crise de identidade iniciada na modernidade.
70
“A arte moderna internalizou a verdade que a arte tem uma história e que (a busca por) sua
essência determina a lógica de sua história.” (KELLY, 1998, p. 32).
71
Cf. DANTO, “The Artworld”,1964.
72
Cf. DANTO, The Transfiguration of the Commonplace, 1981.
73
Cf. DANTO, “The End of Art”, 1984; After the End of Art, 1997.
74
Cf. KELLY, M. “Essentialism and Historicism in Danto’s philosophy of Art”. In: Danto and his
Critics, 1998, pp. 30-43; HERVITZ, D. “The Beginning of the End: Danto on Postmodernism”. In:
Danto and his Critics, 1993, pp. 143-147.
126
4 CONCLUSÃO
127
de; (i) obras de arte historicamente ordenadas; e (ii) que estas obras sejam
emancipadas por teorias que são elas próprias historicamente ordenadas.
128
verificação nos termos das inferências históricas produzidas: as interpretações
são verdadeiras quando as explicações históricas o são. Do mesmo modo,
explicações históricas falsas ocasionam interpretações também falsas. Uma
última noção, tomada da distinção introduzida por Roland Barthes entre o texto
“de leitor” e o texto “autoral”, é ainda adicionada de modo a precisar sua ideia
de interpretação. É o tipo de interpretação “de leitor”, por seu caráter finito e
objetivo, que possui, para Danto, a capacidade explicativa exigida:
[...] we cannot readily separate the Brillo cartons from the gallery they
are in, any more than we can separate the Rauschenberg bed from
the paint upon it.2 (DANTO, 1964, p. 581).
1
“A interpretação de leitor é falível, apenas porque ela tem a forma de uma hipótese
explanatória, mas ela não é infinita e não é subjetiva.” (DANTO, 1992, p. 43; p. 119 deste
volume).
129
Em que medida essa declaração exclui de fato a experiência sensível
provocada pelo encontro com essa obra poderia ser tema de disputa. A
exclusão da experiência sensorial como fonte de aquisição de conhecimento
sobre a arte, no entanto, talvez seja uma conclusão muito extrema que retira de
nossa experiência com a arte parte do significado do que a arte seja. Este
seria, entretanto, objeto para uma futura investigação.
2
“[...] nós não podemos separar de imediato as embalagens de Brillo da galeria onde elas
estão, não mais do que podemos separar a cama de Rauschenberg da tinta sobre ela.” (Id.,
1964, p. 581; p. 161 deste volume).
130
REFERÊNCIAS
CARROLL, N. “Danto’s New Definition of Art and the Problem of Art Theories” .
In: The British Journal of Aesthetics Vol. 37, no. 4, October, 1997 pp. 386-91
DANTO, A. C. “The Artworld”. In: The Journal of Philosophy, Vol. 61, nº19, 15
de outubro de 1964, pp. 571-584.
131
DANTO, A. C. Beyond the Brillo Box. Berkeley, Los Angeles: University of
California Press, 1992.
DANTO, A. C. "Responses and Replies". In: Danto and His Critics, Mark Rollins
(Ed.). Oxford: Blackwell, 1993.
DANTO, A.C. The Abuse of Beauty: aesthetics and the concept of art. Chicago
& LaSalle: Open Court, 2003.
DANTO, A. C. Andy Warhol. New Haven & London: Yale University Press,
2009.
FRASCINA, Francis. Pollock and After: the critical debate. London: Routledge,
2000.
132
KUHN, T. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago: University of
Chicago Press, 1970.
ROLLINS, Mark (Ed.). Danto and His Critics. Oxford: Blackwell, 1993,
WOLLHEIM, R. Art and its objects: with six supplementary essays. Cambridge:
Cambridge University Press, 1980, pp. 157-166.
WOLLHEIM,R. A Pintura como arte. Tradução de: Vera Pereira. São Paulo:
Cosac Naify, 2002.
YEATS, W.B. “Velejando para Bizâncio”. Tradução de: VIZIOLI, Paulo. In:
Poemas. São Paulo: Companhia da Letras, 1992
133
DANTO, A. “Marcel Duchamp and the End of Taste: A Defense of
Contemporary Art”. Artigo apresentado na The Nexus Foundation, Tilburg,
Holanda, 2000. Disponível em:
http://www.toutfait.com/online_journal_details.php?postid=846&keyword=danto.
Acesso em: 18/10/2010.
KELLY, M. “Making a Brillo Box red, white and blue is easy: making it an
artwork isn’t”, 2007, pp. 6-7. Disponível em:
http://www.vanderbilt.edu/AnS/philosophy/events/.OCA/KellyDantoConference.
pdf. Acesso em: 13/04/2007.
134
ARTE E REALIDADE
1
Roger Fry (1866–1934) estudou Ciências Naturais na Universidade de Cambridge, mas ainda
no seu período de formação, interessou pela arte; Dedica-se à teoria estética em conseqüência
de suas atividadescomo pintor e crítico, nunca tendo sido particularmente educado em estética
filosófica: “My aesthetic has been a purely practical one, a tentative expedient, an attempt to
reduce to some kind of order my aesthetic impressions up to date.” [Minha estética tem sido
puramente prática, um expediente incerto, uma tentativa de reduzir a algum tipo de ordem
minhas impressões estéticas até o momento”]. Seus escritos, de acordo com Prettejohn (2005),
por vezes dotados de inconsistência lógica, se mostram mais interessantes, sobretudo, se
entendidos como tentativas de enfrentar os problemas levantados pela contemplação de
objetos que as gerações anteriores não consideravam belos, o que não se restringia apenas à
arte moderna europeia, mas à escultura africana e pré-colombiana, à arte islâmica e chinesa,
às pinturas rupestres e aos desenhos infantis.
2
Segundo Perl (2005, pp. 125-126), algo no “espírito de Manhattan” fez muitos artistas
agarrarem a oportunidade de dizer “Não!”: “Este ‘Não!’ era abastecido pelo pensamento dos
existencialistas, e também pelo interesse no Zen, que [Thomas] Hess dizia oferecer conceitos
como ‘não-pensamento, não-forma, não-permanência.’ Esse ‘Não!’, entretanto, ganhou um
ímpeto particular em Manhattan. O pintor Jack Tworkov escreveu, ‘não há nenhuma teoria da
cor que tenha muito desenvolvimento prático na pintura’. ‘Se vemos estrutura no passado’,
Georges McNeil dizia no Clube dos Artistas, ‘devemos ser anti-estruturais’. Num ensaio
chamado “Sensation and Modern Painting” [Sensação e Pintura Moderna], McNeil afirmou que
135
Segundo Perl (2005, p. 131), uma das ideias presentes nesse contexto
era a noção de “forma significante”, originada ainda na geração anterior e
apresentada pela primeira vez pelo crítico Clive Bell3 em seu livro Art,
publicado em Londres em 1914. A participação do crítico e pintor Roger Fry é
também digna de nota. Fry divide esforços com Bell no intuito de legitimar a
produção dos artistas pós-impressionistas na Inglaterra e, por essa razão,
escreveu ensaios que se tornariam clássicos da teoria da arte.4 Sobre a
adoção dessas noções por parte dos artistas do modernismo em solo
americano, Perl escreve:
The world of Bloomsbury aesthetes like Bell and Fry, with their
Oxbridge educations and frequent trips to France, was in many
respects alien to the rough-and-tumble ambience of Tenth Street. And
yet significant form had a back-to-basics appeal for many New
Yorkers, for it provided such a succinct definition of complex
phenomena – it was a way of saying “No!” to all the arcane of
iconography, to all the smothering intricacies of art history. The beauty
of significant form was that it located the logic of artistic tradition in
quase toda a pintura importante produzida desde o início do século XIX ‘tem sido marcada pela
não-beleza’. O escultor George Sugarman disse, ‘Eu não sou um construtivista’. Philip Pavia
falou da ‘não-história’, de Kooning do ‘não-ambiente’. Greenberg escreveu sobre o ‘desenho
‘anti-desenho’ e Rosenberg se referiu aos artistas americanos como ‘desejosos em arriscar
com o não-Estilo [unStyle] ou anti-Estilo’. McNeil dizia que as pinturas overall de Pollock
alcançaram ‘uma total forma sem forma’ [non-shape form]. William Seitz, em seu estudo
pioneiro sobre os Expressionistas Abstratos, relatou discussões sobre ‘não-comprometimento’
e ‘não-adesão’. Allan Kaprow falou sobre a criação de obras teatrais que ‘não tivessem início,
meio ou fim estruturados’ e que ‘não separassem o público e a peça’. Assim como Ad
Reinhardt, o pintor de abstrações reduzidas ao mínimo, que escreveu ensaios inteiros
compostos de negativas. Para a exposição ‘Contemporary American Art’, na Universidade de
Illinois, em 1952, ele escreveu “Abstract Art Refuses” [A Arte Abstrata Recusa], transformando
a história inteira da arte moderna num fluxo de ‘Nãos!’: ‘Por Manet e Cézanne – sem mitos ou
mensagens, sem ações ou imitações, sem orgias, sem dores, sem sonhos, sem estórias, sem
desordens’. E no que diz respeito ao presente, ele explicou que ‘muitos artistas, assim como
eu, recusam-se a se envolver em algumas idéias. Na pintura, para mim, nenhuma tapeação do
olho, nenhum orifício de janela, nenhuma ilusão, nenhuma representação, nenhuma
associação, nenhuma distorção, nenhuma caricatura de tinta, nenhuma figura bege ou
escorridos [drippings] [...] nenhum sadismo ou corte, nenhuma terapia’ – e assim segue por um
longo parágrafo.”
3
Crítico de arte e literatura inglês, Clive Bell (Arthur Clive Heward Bell), (1881-1964), figurou de
maneira proeminente no Bloomsbury Group. Educado em Cambridge, casou-se (1907) com
Vanessa Stephen, pintora, filha do editor Sir Leslie Stephen e irmã da escritora Virginia Woolf.
Parte da crítica escrita por Bell foi publicada em Art (1914), livro em que discorreu sobre sua
teoria da “forma significante”. Os livros An Account of French Painting (1932) e Since Cézanne
(1922) também se caracterizaram pela defesa da arte modernista.
4
Cf. FRY, 1990.
136
some grand but essentially simple formal principle.5 (PERL, 2005, p.
131).
5
“O mundo dos estetas do círculo de Bloomsbury como Bell e Fry, com suas educações
Oxbridge [referência às mais tradicionais universidades em operação contínua na Inglaterra,
Oxford e Cambridge] e viagens frequentes à França, era sob muitos aspectos estranho à
ambiência desordenada da Rua 10. Ainda assim, a forma significante tinha um apelo de retorno
às origens para muitos nova-iorquinos, na medida em que provia uma definição tão sucinta de
fenômenos complexos – era uma maneira de dizer “Não!” a toda obscuridade da iconografia, a
todas as complicações sufocantes da história da arte. A beleza da forma significante era que
ela situava a lógica da tradição artística num principio formal grandioso, mas essencialmente
simples.” (PERL, op. cit., p. 131).
6
Perl relata ainda que Clement Greenberg, por exemplo, ao retornar de uma viagem à Índia,
anunciava com satisfação que não era preciso muito tempo para se familiarizar e equiparar seu
olho ao do nativo. “Você vai descobrir”, afirmava o crítico, “que os juízos do seu próprio gosto
não são tão diferentes dos deles”. Assim, Greenberg poderia não saber nada sobre o deus ou
o episódio representado numa escultura indiana, mas ele poderia compreender a “forma
significante” tão facilmente como qualquer um, o que o colocaria em igualdade de condições
com seus colegas asiáticos mais eruditos quando confrontado com a arte produzida naquele
continente. Cf. PERL, op.cit., p. 132-133.
137
II. O repúdio à beleza e o apreço pela forma como traço fundamental do
modernismo clássico
It became clear that we had confused two distinct uses of the word
beautiful, that when we used beauty to describe a favourable
aesthetic judgment on a work of art we meant something quite
different from our praise of a woman, a sunset or a horse as
beautiful.8 (FRY, --, p. 205).
No início de sua carreira como crítico, Roger Fry escreveu uma série de
artigos sobre o pintor da Pré-renascença, Giotto [c. 1267-1337], nos quais
7
“An Essay in Aesthetics’’ (1909), in: Fry, Vision and Design, 1990, pp. 12–27.
8
Ficou claro que havíamos confundido dois usos distintos da palavra belo e que quando
usávamos a beleza para descrever um juízo estético favorável acerca de uma obra de arte
queríamos dizer algo bem diferente do que quando elogiamos uma mulher, um pôr-do-sol ou
um cavalo como belos. FRY, Roger. Vision and Design, p.205.
9
Para o homem comum, “belo” é, com maior frequência, sinônimo de “desejável”; a palavra
não conota necessariamente qualquer reação estética e estou tentado a crer que nas mentes
de muitos /da maioria o aspecto sexual da palavra é mais forte do que o estético [Fry, Vision
and Design, p. 205].
138
enfatizava os aspectos dramáticos de sua abordagem de assuntos religiosos.
Em 1920, no entanto, quando republicou parte de seus escritos sobre o artista
numa coletânea de críticas intitulada Vision and Design [Visão e Forma], sua
abordagem havia mudado tão profundamente que se fez necessária a inclusão
de uma nota que explicasse tais transformações (PRETTEJOHN, 2005, p.
162).
The following […] is, perhaps more than any other article here
reprinted, at variance with the more recent expressions of my
aesthetic ideas. It will be seen that great emphasis is laid on Giotto’s
expression of the dramatic idea in his pictures. I still think this is
perfectly true so far as it goes, nor do I doubt that an artist like Giotto
did envisage such an expression. I should be inclined to disagree
wherever in this article there appears the assumption not only that the
dramatic idea may have inspired the artist to the creation of his form,
but that the value of the form for us is bound up with recognition of the
dramatic idea. It now seems to me possible by a more searching
analysis of our experience in front of a work of art to disentangle our
reaction to pure form from our reaction to its implied associated
ideas.10 (FRY, 1990, p. ).
10
“O [ensaio] subsequente […] está, talvez mais do que qualquer outro artigo aqui reimpresso,
em oposição com as mais recentes expressões de minha ideias estéticas. Poder-se-ia notar
que há uma grande ênfase na expressão de Giotto da ideia dramática em suas pinturas. Ainda
penso que isso seja perfeitamente verdadeiro até certo ponto, nem duvido que um artista como
Giotto realmente pretendesse tal grau de expressão. Eu estaria inclinado a discordar toda vez
em que aparece nesse artigo a crença que não apenas a ideia dramática possa ter inspirado o
artista a criar sua forma, mas que o valor da forma para nós é inseparável do reconhecimento
da ideia dramática. Agora me parece possível, através de uma análise mais minuciosa de
nossa experiência diante de uma obra de arte, dissociar nossa reação à forma pura de nossa
reação às ideias associadas que estão implicadas. Cf. Fry, Vision and Design, nota p. 92.
11
A abordagem “formalista”, como ficou conhecida, (PRETTEJOHN, 2005) fazia com que fosse
possível que um observador não-ocidental e que não tivesse qualquer conhecimento sobre o
Cristianismo, por exemplo, encontrasse valor naquela imagem de Giotto; por extensão,
permitiria o mesmo àqueles que objetassem à mensagem Cristã, já que purgaria qualquer
preconceito sobre aquela história ou, ainda, impediria que os sentimentos de luto e desolação
participassem daquela experiência.
139
consideração a narrativa dramática, o envolvimento das emoções que sentimos
na vida, como a piedade ou a tristeza, as chamadas “ideias associadas”.12
Por “forma”, Fry (1990) não se referia à mera atratividade visual, já que
as pinturas dos impressionistas, obstinados em capturar os efeitos do mundo
natural, particularmente os fenômenos de luz e atmosfera, e que não lhe
causavam impacto, eram suficientemente atrativas. As qualidades de “forma
pura” encontradas nos pós-impressionistas eram diferentes. Fry acreditava que
estas formas não mais dependiam da imitação das aparências do mundo, mas,
ao invés disso, eram criadas na própria pintura.
12
Em “Retrospect”, o último ensaio de Vision and Design, Fry explica como seu encontro com a
arte francesa mudou seu pensamento. Quando publicou seus ensaios sobre Giotto da primeira
vez, estava muito pessimista em relação à arte de seu próprio tempo; acreditava que ao
impressionismo, o mais recente movimento com que estava familiarizado, faltava a excelência
da forma [design] que encontrava nos artistas da pré-renascença italiana. Então, em 1906, Fry
encontra duas pinturas de Paul Cézanne [1839-1906] que pareciam oferecer uma alternativa:
“To my intense surprise I found myself deeply moved” [“para minha completa surpresa, fiquei
profundamente emocionado”] FRY, 1990, p. 202. As pinturas eram uma natureza-morta e uma
paisagem e lhes faltavam, portanto, temas, assim como encontrados nas obras de Giotto [as
pinturas foram identificadas por Alan Bowness; cf. SPALDING, Frances, Roger Fry: Art and
Life, London, Toronto, Sydney, and New York: Granada Publishing (Paul Elek), 1980, p. 116].
Confuso acerca da intensidade de sua própria reação diante das obras, curiosamente, Fry
descreve o apelo dessas obras como “limitado”, quando sobre elas escreve pela primeira vez,
em 1906. Essa crítica mostrava ainda que a organização formal dessas obras o haviam
impressionado fortemente, ainda que, naquele momento, não pudesse conciliar esse
sentimento com suas crenças sobre arte, como relembra em 1920: “I was still obsessed by
ideas about the content of a work of art” [“Eu estava ainda obcecado por ideias sobre o
conteúdo de uma obra de arte” Fry, Vision and Design, p. 202.]. Nos anos que se seguiram, Fry
acompanhou as obras de Cézanne e outros artistas, como Paul Gauguin [1848-1903] e Vincent
van Gogh [1853-1890], num envolvimento que culminaria com as exposições pós-
impressionistas de 1910 e 1912. Nesse processo, Fry teria reformulado seu ponto de vista
sobre estética: dentro de poucos anos, o crítico não mais considerava a produção de Cézanne
“limitada” simplesmente porque lhe faltava um tema; ao invés disso, eleva a importância da
“forma pura”, a qualidade que de fato encontrava naquelas obras, à categoria fundamental das
obras de arte [PRETTEJOHN, p. 164-165].
13
The Pool at the Jas de Bouffan, Paul Cezanne, 1878.
140
recedes miraculously behind the hill-side, answered by the inverted concavity of
lighted air in the pool”.14 Conclui por afirmar, no entanto, que esse efeito é
alcançado através de “um perfeito instinto pela qualidade expressiva de valores
tonais” [“a perfect instinct for the expressive quality of tone values”] no interior
da imagem e não por reproduzir de maneira habilidosa a aparência dos
fenômenos naturais (PRETTEJOHN 165-166). Certamente por pretender
marcar fortemente essa distinção é que a beleza precisava ser destituída de
sua posição de modo a evitar que sua carga impregnasse a recepção da obra
como “ideia associada”.
14
“O ceu retrocede milagrosamente para trás da encosta do monte, a que responde a
concavidade invertida do ar iluminado na piscina”. FRY, Roger, ‘The New Gallery’, Athenaeum,
no. 4081, 13 January 1906, p. 56, apud PRETTEJOHN, 2005).
15
De acordo com Prettejohn (2005), era evidente que Fry e Bell objetavam, em parte, a usos
do termo beleza em sentidos que Kant teria associado com o termo “agradável”. Embora a
confusão percebida no uso comum da palavra não fosse algo novo, o problema parece ter
adquirido um novo caráter em relação à arte produzida no século XX. Mais do que nunca a
beleza parecia um termo muito brando ou anódino para descrever a arte genuína,
deliberadamente feia ou combativa produzida por determinados artistas ou a estranheza
provocada pela chamada “arte africana”, do Oriente ou da América do Sul e Central, aos olhos
europeus. Assim, um grande número de artistas e críticos modernistas condenou a beleza
como um fim artístico. Em artigo de 1948, intitulado “The Sublime is Now”, o artista americano
Barnett Newman [1905-1970] declarou que “The impulse of modern art was [the] desire to
destroy beauty” [“o ímpeto da arte moderna era o desejo de destruir a beleza”], que ele
associava com o inconveniente passado da tradição europeia. O desaparecimento do termo
beleza dos escritos do século XX, portanto, não teria ocorrido meramente para evitar os
equívocos de seu uso comum, mas seria, sobretudo, sintomático da mudança ocorrida na
agenda da arte: no século XX, a questão básica não mais seria “x é belo?”, mas sim, “x é
arte?”.
16
Em sua análise, Perl (2005, p.131) sublinha que essa não é propriamente uma descoberta
de Clive Bell e de Roger Fry. Perl traça suas origens em Kant, nos escritos de Delacroix e
Baudelaire, bem como, mais precisamente, em “The Problem of Form in the Fine Arts”, do
escultor Adolf Hildebrand, publicado na Alemanha, em 1893.
141
esculturas, obras arquitetônicas, cerâmicas, entalhes, têxteis, etc,” a qual
denominava “emoção estética”. O crítico supunha, dessa maneira, que se
pudéssemos descobrir alguma qualidade particular e partilhada por todos os
objetos que a provocavam, resolveríamos o que acreditava ser o problema
central da estética. Nós teríamos descoberto a qualidade essencial numa obra
de arte, a qualidade que distingue obras de arte de todas as outras classes de
objetos.
17
“Quando falamos em ‘arte’, fazemos uma classificação mental pela qual distinguimos a
‘classe de obras de arte’ de todas as outras classes. Qual é a justificativa dessa classificação?
Qual é a qualidade comum e peculiar a todos os membros dessa classe? [...] Qual é a
qualidade partilhada por todos os objetos que provocam nossas emoções estéticas? Que
qualidade é comum a Santa Sofia e aos vitrais de Chartres, a esculturas mexicanas, a um vaso
persa, a tapetes chineses, aos afrescos de Giotto em Pádua, e às obras-primas de Poussin,
Piero della Francesca e Cézanne? Apenas uma resposta parece possível – forma significante.
Em cada um, linhas e cores combinadas de um modo particular, certas formas e relações de
formas provocam nossas emoções estéticas. Essas relações e combinações de linhas e cores,
estas formas esteticamente emocionantes, eu denomino ‘Forma Significante’; e ‘Forma
Significante’ é a única qualidade comum a todas as obras de artes visuais.” (BELL, 2005, p.
10).
142
As a rule primitive art is good – and here again my hypothesis is
helpful – for, as a rule, it is also free from descriptive qualities. In
primitive art you will find no accurate representation; you will find only
significant form.[…] The representative element in a work of art may or
may not be harmful; always it is irrelevant. For, to appreciate a work of
art we need bring with us nothing from life, no knowledge or its ideas
and affairs, no familiarity with its emotions. Art transport us from the
world of man’s activity to a world of aesthetic exaltation”.18 (BELL,
2005, p. 17)
Before a work of art people who feel little or no emotion for pure form
find themselves at a loss. They are deaf man at a concert. They know
that they are in the presence of something great, but they lack the
19
power of apprehending it. (BELL, 2005, p. 20).
18
“Via de regra, a arte primitiva é boa – e aqui, novamente, minha hipótese é eficiente – já que,
geralmente, é também livre de qualidades descritivas. Na arte primitiva você não irá encontrar
nenhuma representação perfeita; você encontrará apenas forma significante. [...] O elemento
representativo numa obra de arte pode ser ou não danoso; sempre, é irrelevante. Já que, para
apreciar uma obra de arte não precisamos trazer nada da vida, nenhum conhecimento ou suas
ideias e assuntos, nenhuma familiaridade com suas emoções. A Arte nos transporta do mundo
da atividade do homem para um mundo de exaltação estética.” (BELL, 2005, p. 17).
19
“Diante de uma obra de arte, pessoas que sentem pouca ou nenhuma emoção pela forma
pura sentem-se /ficam perdidos/ confusos. São homens surdos num concerto. Sabem que
estão na presença de algo grande, mas lhes falta a capacidade para apreendê-la.” (Ibid., p.
20).
143
criadas como se fossem formas imitadas, uma imagem como se fosse uma
fotografia.
For them the significance of a work of art depends on what they bring
to it; no new thing is added to their lives, only the old material is
stirred. A good work of visual art carries a person who is capable of
appreciating it out of life into ecstasy: to use art as a means to the
emotions of life is to use a telescope for reading the news. 20 (BELL,
2005, p. 20).
20
Para eles, o significado de uma obra de arte depende do que eles trazem para ela; nada
novo é adicionado as suas vidas, apenas o velho/ antigo material vem à tona. Um bom trabalho
de artes visuais carrega a pessoa que é capaz de apreciá-lo da vida para o êxtase: usar a arte
como um meio de alcançar as emoções da vida é como usar um telescópio para ler o jornal.
(Idem, ibidem, p.20).
21
“Eles nunca perceberam o elemento representativo, assim, quando discutem imagens, falam
sobre as formas e as relações e quantidades de cores.” (Ibid., p. 20).
144
Great art remains stable and unobscure because the feelings that it
awakens are independent of time and place, because its kingdom is
not of this world.22 (BELL, 2005, p. 23).
22
“Na Europa do século XII, um homem poderia sentir-se fortemente emocionado por uma
igreja Romanesca e nada sentir por uma imagem T’ang. Para um homem de um período
posterior, a escultura Grega significava muito e a Mexicana, nada, já que apenas para a
primeira ele poderia prover um grande número de ideias associadas para que servissem de
objetos de emoções familiares. Mas o perfeito admirador, aquele que pode sentir a significância
profunda da forma, é elevado para além dos acidentes de tempo e espaço. Para ele, os
problemas de arqueologia, história e hagiografia são impertinentes. Se as formas de um
trabalho são significantes sua proveniência é irrelevante. Diante da grandeza das figuras
Sumérias no Louvre ele é tomado pelo mesmo arrebatamento de emoção até o mesmo êxtase
estético que, há mais de quatro mil anos, o admirador caldeu atingia. A marca da grande arte é
que seu apelo seja universal e eterno. A forma significante se mantém carregada com o poder
de provocar emoção estética em qualquer um capaz de senti-la. [...] A grande arte permanece
estável e precisa porque os sentimentos que ela suscita são independentes de tempo e lugar,
porque seu reino não pertence a esse mundo.” (BELL, 2005, p. 23).
145
O MUNDO DA ARTE1
1
Apresentado no simpósio “A Obra de Arte” no 61º Encontro Anual da American Philosophical
Association, Divisão Leste, em 28 de dezembro de 1964. O artigo “The Artworld” foi
originalmente publicado no The Journal of Philosophy, Vol. 61, nº19, 15 de outubro de 1964,
pp. 571-584.
2
Hamlet, personagem da peça homônima de William Shakespeare, declara: “[...] tudo que é
forçado deturpa o intuito da representação, cuja finalidade, em sua origem e agora, era, e é,
exibir um espelho à natureza; mostrar à virtude sua própria expressão; ao ridículo sua própria
imagem e a cada época e geração sua forma e efígie”. In: SHAKESPEARE, W. Hamlet, III, ii, p.
66. A referência a Sócrates advém da conhecida passagem do Livro X da República. In:
PLATÃO, A República, [Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1949], p. 316.
146
teoria que ele, ao invés, ilustra por meio deles. Se aquela teoria nos obriga a
classificá-los como arte, ela então mostra sua inadequação: “é uma imitação”
não será condição suficiente para “é arte”. Contudo, talvez porque os artistas
estivessem empenhados na imitação, à época de Sócrates e após, a
insuficiência da teoria não foi percebida até a invenção da fotografia. Uma vez
rejeitada como condição suficiente, a mimese foi rapidamente descartada até
mesmo como condição necessária; e desde as façanhas de Kandinsky,3 as
características miméticas foram relegadas à margem do interesse crítico, de tal
maneira que algumas obras resistem apesar de possuírem aquelas virtudes,
excelência naquela que foi outrora celebrada como a essência da arte,
escapando por pouco do rebaixamento a meras ilustrações.
3
Wassily Kandinsky (1866-1944), pintor, gravador, cenógrafo, designer, e teórico russo, foi
uma importante figura na história da arte do século XX, especialmente no que concerne à
transição da pintura representacional para a abstrata. Dentre seus escritos publicados em
língua portuguesa, destaca-se: Do Espiritual na Arte: e na Pintura em Particular [São Paulo:
Martins Fontes], 2000; Ponto e Linha Sobre o Plano [São Paulo: Martins Fontes], 2001; Olhar
Sobre o Passado [São Paulo: Martins Fontes], 1991.
4
A expressão definidora.
5
O termo “obra de arte”.
147
palavra ‘arte’ e a aplicar a locução ‘obra de arte’”.6 Teorias, neste sentido, são
algo como imagens especulares na acepção de Sócrates, demonstrando o que
já sabemos: reflexos prolixos da prática linguística corrente que dominamos.
6
A referência é a William E. Kennick, "Does Traditional Aesthetics Rest on a Mistake?" [Mind
67:267, Julho], 1958, pp. 317-334.
148
exemplos por meio de uma hipótese auxiliar, como a de que o artista que se
desvia do mimetismo é perverso, inepto ou maluco, é tarefa fácil. Ineptidão,
zombaria, ou loucura são, de fato, predicações aferíveis. Suponha, então, que
testes revelem que essas hipóteses não conseguem mais circunscrever, que a
teoria, agora irreparável, deva ser substituída. E uma nova teoria é composta,
capturando o que pode da abrangência da antiga [teoria], bem como os fatos
até aquele momento recalcitrantes. A partir do que foi exposto, alguém poderia
representar certos episódios na história da arte como similares a certos
episódios na história da ciência, onde uma revolução conceitual está sendo
realizada e onde a recusa em aceitar certos fatos, enquanto em parte por
preconceito, inércia e egoísmo, se deve também ao fato de que uma teoria
bem estabelecida, ou ao menos, amplamente aceita está sendo ameaçada de
modo tal que toda coerência entra em colapso.
Episódios como esse vieram à tona com o advento das pinturas pós-
impressionistas. Nos termos da teoria artística vigente (TI), seria impossível
aceitá-las como arte, a não ser como arte inepta: caso contrário, elas poderiam
ser subestimadas como embustes, autopromoção, ou como as contrapartes
visuais de devaneios de loucos. Para aceitá-las como arte, em pé de igualdade
com a Transfiguração (para não falar de um cervo de Landseer),7 demandou
não tanto uma revolução no gosto como uma revisão teórica de proporções
bastante consideráveis, envolvendo não apenas o reconhecimento artístico
desses objetos, mas uma ênfase sobre as características significativas recém
adquiridas das obras de arte aceitas, de modo que explicações bastante
diferentes de seu status como obras de arte teriam agora de ser oferecidas.
Como resultado da aceitação da nova teoria, não apenas as pinturas pós-
impressionistas foram aceitas como arte, mas inúmeros objetos (máscaras,
armas, etc.) foram transferidos de museus antropológicos (e outros lugares
heterogêneos) para musées des beaux arts, embora, como poderíamos
esperar do fato de que um critério para a aceitação de uma nova teoria é que
esta responda por toda e qualquer coisa que a antiga respondia, nada devendo
7
A Transfiguração [1518-1520, óleo sobre painel, 405 x 278 cm, Pinacoteca Vaticana,
Vaticano] (FIGURA -) é considerada a última e uma das mais importantes obras de Rafael
Sanzio (1483-1520); Sir Edwin Henry Landseer [1802-1873], pintor britânico conhecido por
suas pinturas de animais, sobretudo, cavalos, cães e cervos.
149
ser retirado do musée des beaux arts – mesmo se houvesse rearranjos
internos, como entre as salas de reserva técnica e o espaço expositivo.
Inúmeros falantes nativos penduraram acima de suas lareiras suburbanas
incontáveis reproduções de casos paradigmáticos para ensinar a expressão
‘obra de arte’ que teriam provocado uma apoplexia linguística em seus
antepassados Eduardianos.
8
Roger Fry (1866-1934), crítico de arte britânico, artista e ex-diretor do Metropolitan Museum of
Art de Nova York, foi um dos primeiros defensores do movimento que denominou Pós-
Impressionismo. Fry ganhou notoriedade por organizar, em 1910 e 1912, duas exposições de
arte pós-impressionista nas Grafton Galleries, em Londres. Seus escritos sobre arte estão
compilados no livro Vision and Design, Vision and Design. London: Oxford University Press,
1990.
150
é uma nota de dólar ilusória, mas, por outro lado, apenas porque não é ilusória,
ela não se transforma automaticamente em uma nota real de dólar. Ela antes
ocupa uma área recentemente aberta entre objetos reais e cópias reais de
objetos reais [real facsimiles of real objects]: é uma não cópia [non-facsimile],
se se requer um termo, e uma nova contribuição ao mundo. Assim, Os
Comedores de Batatas de Van Gogh, como consequência de certas distorções
incontestáveis, torna-se uma não cópia de comedores de batatas da vida real;
e na medida em que não é uma cópia de comedores de batatas, a pintura de
Van Gogh, como uma não imitação [non-imitation], tinha tanto direito de ser
chamada de um objeto real quanto seu suposto tema. Por intermédio dessa
teoria (TR), as obras de arte reentraram no cerne das coisas, de onde a teoria
socrática (TI) havia procurado expulsá-las: se não mais reais do que algo que
os carpinteiros fabricam, pelo menos, elas não eram menos reais. Os pós-
impressionistas conseguiram uma vitória na ontologia.
151
objetos são logicamente inimitáveis. Assim, a cópia de um numeral apenas é
aquele numeral: uma pintura de um 3 é um 3 feito de tinta. Johns, além disso,
pinta alvos, bandeiras e mapas. Por fim, no que espero que não sejam notas
de rodapé involuntárias a Platão, dois de nossos pioneiros – Robert
Rauschenberg e Claes Oldenburg – fizeram camas genuínas.
9
Danto criou o nome Testadura para significar uma pessoa teimosa e pragmática: "Someone
who sees the world as positivists say we see it" [“Alguém que vê o mundo como os positivistas
dizem que o vemos”], que, no caso da arte, significa que esta é julgada de acordo com critérios
perceptuais. KELLY, M. Arthur Danto’s “The artworld”. Disponível em:
<http://ccnmtl.columbia.edu/projects/mmt/danto/>. Acesso em: 10/08/2009.
152
II
Confundir uma obra de arte com um objeto real não é uma grande
façanha quando uma obra de arte é o objeto real com o qual foi confundido. O
problema é como evitar tais erros, ou desfazê-los uma vez que foram
cometidos. A obra de arte é uma cama e não uma ilusão-de-cama;10 desse
modo, não há nada como o encontro traumático contra uma superfície plana
que deixou claro para os pássaros de Zeuxis que eles haviam sido enganados.
Não fosse o segurança prevenindo Testadura a não dormir sobre as obras de
arte, ele possivelmente jamais teria descoberto que aquela era uma obra de
arte e não uma cama; e já que, afinal de contas, não se pode descobrir que
uma cama não é uma cama, como Testadura vai compreender que cometeu
um erro? Um tipo particular de explicação é requerido, já que o erro aqui é
curiosamente filosófico, algo como confundir – se pudermos assumir como
corretas algumas ideias bem conhecidas de P. F. Strawson – uma pessoa com
um corpo material quando a verdade é que uma pessoa é um corpo material,
no sentido que uma classe inteira de predicados, razoavelmente aplicáveis a
corpos materiais, são razoavelmente, e sem apelar a outros critérios, aplicáveis
a pessoas. Assim, você não pode descobrir que uma pessoa não é um corpo
material.
Começamos por explicar, talvez, que os rastros de tinta não devem ser
menosprezados, que elas são parte do objeto; de modo que o objeto não é
uma mera cama com – por acaso – rastros de tinta derramados sobre sua
superfície, mas um objeto complexo, fabricado a partir de uma cama e algumas
marcas de tinta: uma cama-pintura.11 De maneira semelhante, uma pessoa não
é um corpo material com – por acaso – alguns pensamentos acrescidos, mas
uma entidade complexa, composta de um corpo e alguns estados de
consciência: um corpo-consciente.12 Pessoas, assim como obras de arte,
10
No original, bed-illusion, ou seja, a ilusão de uma cama.
11
No original, paint-bed.
12
No original, conscious-body.
153
devem ser então tomadas como irredutíveis as suas partes, e são, nesse
sentido, primitivas. Ou, mais precisamente, as marcas de tinta não são parte do
objeto real – a cama – que por acaso é parte da obra de arte, mas são, assim
como a cama, parte da obra de arte enquanto tal. Isto poderia ser generalizado
numa caracterização aproximada de obras de arte que contêm objetos reais
como suas partes constitutivas: nem toda parte de uma obra de arte A é parte
de um objeto real R quando R é parte de A e pode, além disso, ser separado
de A e visto meramente como R. O engano, até aqui, terá sido confundir A por
parte dela mesma, a saber, R, ainda que não fosse incorreto dizer que A é R,
que a obra de arte é uma cama. É o ‘é’ que requer clarificação aqui.
154
uma condição necessária para que alguma coisa seja uma obra de arte que
alguma parte ou propriedade dela seja designada pelo sujeito de uma sentença
que emprega esse é especial. Esse é um é, a propósito, que guarda
parentesco com declarações míticas e comuns. (Desse modo, se é
Quetzalcoatl; aqueles são os Pilares de Hércules).
155
mais próxima de uma do que da outra, teria que haver uma força respondendo
por isso, o que é incompatível com o fato de ser a trajetória de uma partícula
isolada.
156
Observe aqui como uma identificação artística engendra outra identificação
artística e como, de modo consistente com uma dada identificação, somos
requeridos a oferecer outras e impedidos de oferecer outras tantas: de fato,
uma dada identificação determina quantos elementos a obra contém. Essas
diferentes identificações são incompatíveis umas com as outras, ou geralmente
o são, e poder-se-ia dizer que cada uma produz uma obra de arte diferente,
ainda que cada obra de arte contenha o objeto real idêntico como parte dela
mesma – ou ao menos partes do objeto real idêntico como partes dela mesma.
Existem, é claro, identificações sem sentido: ninguém poderia, creio eu, de
maneira sensata, ler a linha horizontal intermediária como Love’s Labour’s
Lost13 ou A Ascensão de Santo Erasmo.14 Por fim, perceba como a aceitação
de uma identificação em detrimento de outra significa, na prática, trocar um
mundo por outro. Poderíamos, de fato, adentrar um sereno mundo poético ao
identificarmos a área superior com um céu claro e sem nuvens, refletido na
superfície estática da água logo abaixo, brancura separada de brancura
apenas pela fronteira irreal do horizonte.
157
Mas o que dizer sobre abstrações puras, algo que se pareça
exatamente com A, mas que foi intitulado Nº7? O abstracionista da Rua 1015,
sem entender, insiste que não há nada aqui exceto tinta branca e preta, e que
nenhuma de nossas identificações literárias se aplicam. O que, então, o
distingue de Testadura, cujas declarações incultas são indiscerníveis das
suas? E como pode ser uma obra de arte para ele e não para Testadura, uma
vez que eles concordam que não há nada que não esteja disponível ao olhar?
A resposta, impopular como é provável que seja para os puristas de toda a
sorte, reside no fato de que este artista retornou à fisicalidade da tinta por meio
de uma atmosfera composta de teorias artísticas e da história da pintura
recente e remota, elementos os quais ele está tentando depurar seu próprio
trabalho; e como conseqüência disso, sua obra pertence a essa atmosfera e é
parte dessa história. Ele alcançou a abstração por meio da rejeição de
identificações artísticas, retornando ao mundo real de onde tais identificações
nos retiram (ele imagina), um tanto à maneira de Ch’ing Yuan, que escreveu:
158
perceber16 [descry] – uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da
história da arte: um mundo da arte.
III
16
Há um erro tipográfico na publicação original: onde se lê “decry”, leia-se “descry”. De acordo
com o autor, o sentido do verbo “to descry” é “perceber”: “que o olho apenas não pode
perceber” [“that the eye cannot alone perceive”]. Seria, ainda de acordo com o autor, como se
perguntássemos: “Como você pode afirmar que a água benta é benta [sagrada]?” [“How can
you tell that holy water is holy?”]. DANTO, A. Re: Little doubt on The Artworld. [Mensagem
pessoal]. Mensagem recebida por: cristiane.silveira@ufpr.br, em 08/06/2009.
159
“Inteiramente feito à mão” dito pelo guia quando confrontado com estes
objetos). Mas a diferença não pode consistir em artesania: um homem que
esculpiu seixos rolados [pebbles] a partir de pedras e construiu
cuidadosamente uma obra chamada Gravel Pile [Pilha de Pedregulhos] poderia
invocar a teoria de valor do trabalho para justificar a quantia que reclama; mas
a questão é: o que faz dela arte? E por que Warhol precisa fazer estas coisas,
de qualquer modo? Por que não apenas rabiscar sua assinatura sobre uma
delas? Ou destruí-la e exibi-la como Crushed Brillo Box [Caixa de Brillo
Destruída]17 (“Um protesto contra a mecanização...”) ou simplesmente
apresentar uma embalagem de Brillo como Uncrushed Brillo Box [Caixa Brillo
não destruída] (“Uma vigorosa afirmação da autenticidade plástica dos
[produtos] industriais”.)? Esse homem é algum tipo de Midas, que transforma
qualquer coisa em que toca no ouro da arte pura? E o mundo inteiro
consistindo em obras de arte latentes, à espera – como o pão e o vinho da
realidade – de que sejam transfiguradas, por meio de algum mistério obscuro,
nos indiscerníveis carne e sangue do sacramento? Pouco importa que a Brillo
Box possa não ser boa, ou, muito menos, grande arte. O impressionante é que
ela seja arte de qualquer modo. Mas se ela é, por que não o são as caixas
indiscerníveis de Brillo que estão na seção de estoque? Ou toda a distinção
entre arte e realidade entrou em colapso?
17
O verbo “to crush”, além de significar “destruir”, “esmagar”, é também usado no sentido de
“derrotar”, “aniquilar”, assim poderíamos traduzir o título fictício da obra como “Caixa de Brillo
derrotada”.
18
Referência ao filme L'année dernière à Marienbad [drama, França/Itália, 93 min.], 1961.
Direção: Alain Resnais; baseado na obra de Alain Robbe-Grillet.
160
prisioneiros: ou dizemos que ele é um construtor de pirâmides moderno. Na
verdade, não afirmamos essas coisas sobre o estoquista. Mas, por outro lado,
uma seção de estoque não é uma galeria de arte, e nós não podemos separar
de imediato as embalagens de Brillo da galeria onde elas estão, não mais do
que podemos separar a cama de Rauschenberg da tinta sobre ela. Fora da
galeria, elas são embalagens de papelão. Mas, por outro lado, removida a tinta,
a cama de Rauschenberg é uma cama, exatamente o que era antes de ser
transformada em arte. Contudo, ao examinarmos a questão detidamente,
descobrimos que o artista falhou, de modo real e necessário, em produzir um
mero objeto real. Ele produziu uma obra de arte, seu uso de embalagens reais
de Brillo sendo apenas uma expansão dos recursos disponíveis para os
artistas; uma contribuição aos materiais dos artistas, como o foi a tinta a óleo,
ou o tuche.
O que no final das contas faz a diferença entre uma caixa de Brillo
[Brillo box] e uma obra de arte que consiste em uma Caixa de Brillo [Brillo Box]
é uma certa teoria da arte.19 É a teoria que a eleva ao mundo da arte, e a
impede de colidir com o objeto real que ela é (num sentido do é distinto
daquele da identificação artística). Obviamente, sem a teoria, é improvável que
alguém a veja como arte, e para vê-la como parte integrante do mundo da arte,
é preciso ter dominado uma boa parte da teoria artística, assim como uma
quantidade considerável da história recente da pintura de Nova York. Ela não
poderia ter sido arte há cinquenta anos. Mas por outro lado, não poderia ter
havido, mantidas as mesmas condições, seguro de vôo na Idade Média, ou
apagadores para máquinas de escrever etruscas. O mundo precisa estar
preparado para certas coisas, o mundo da arte não menos que o mundo real. É
o papel das teorias artísticas, hoje e sempre, fazer o mundo da arte, e a arte,
possíveis. Jamais ocorreu aos pintores de Lascaux, eu presumo, que eles
estivessem produzindo arte naquelas paredes. Não, a menos que houvesse
estetas neolíticos.
19
O autor faz aqui um jogo de palavras em que o próprio termo “Brillo Box” é indiscernível
quando designa o produto ou a obra de arte.
161
IV
20
Referência à obra De Civitate Dei (413-426 A.D.), de Santo Agostinho [N.T.].
21
“Fora da natureza nunca mais / Forma da natureza irei tomar”. W.B. Yeats, “Velejando para
Bizâncio”. Tradução de: VIZIOLI, Paulo, in: Poemas [São Paulo: Companhia da Letras, 1992].
162
mesmo modo, opostos não são contrários, já que contrários podem ser ambos
falsos acerca de alguns objetos no universo, mas opostos não podem ser
ambos falsos; porque a alguns objetos, nenhum dos membros de um par
logicamente se aplica, a menos que o objeto seja do tipo correto. Então, se o
objeto é do tipo requerido, os opostos comportam-se como contraditórios. Se F
e não-F são opostos, um objeto o deve ser de um certo tipo K antes que
qualquer um destes logicamente se aplique; mas se o é um membro de K,
então o é F ou não-F, à exclusão um do outro. A classe de pares de opostos
que logicamente se aplica ao (ô)Ko, será designada como a classe de
predicados relevantes-K22. E uma condição necessária para que um objeto seja
de um tipo K é que ao menos um par de opostos relevantes-K23 seja
logicamente aplicável a ele. Mas, na verdade, se um objeto é do tipo K, no
mínimo e no máximo um de cada par de opostos relevantes-K se aplica a ele.
22
No original, K-relevant predicates, i.e., predicados relevantes a K [N.T.].
23
No original, K-relevant opposites, i.e., opostos relevantes a K [N.T.].
24
No original, non-F-ness, i.e., a qualidade/propriedade de ser não-F [N.T.].
163
relevantes para a arte [art-relevant predicates] em uso crítico. Permitindo agora
que ‘+’ corresponda a um dado predicado P e ‘ – ’ a seu oposto não-P, nós
podemos construir uma matriz de estilos mais ou menos como se segue:
164
linha pode ser ocupada pelos puristas. Tendo expurgado de suas telas o que
consideram como não essencial, eles atribuem a si mesmos o fato de terem
extraído a essência da arte. Mas essa é apenas sua falsa crença: exatamente
tantos predicados artisticamente relevantes são efetivamente verdadeiros
sobre seus quadrados monocromáticos quanto são efetivamente verdadeiros
sobre qualquer membro do Mundo da Arte, e eles podem existir como obras de
arte apenas na medida em que pinturas “impuras” existem. Precisamente
falando, um quadrado negro de Reinhardt é tão rico artisticamente quanto o
Amor Sagrado e Profano, de Ticiano. Isso explica como menos é mais.
25
Sobre o sentido da expressão “makeweights”, quando perguntado se considerava aqueles
elementos relevantes ou não, Danto responde: “I think I meant important factors. A
makeweight would be those metal elements ones throws into a scale to balance it.” [“Acho que
queria dizer fatores importantes. Um contrapeso seria um daqueles elementos de metal
colocados numa balança para equilibrá-la”]. DANTO, A. Re: Dissertation on the Art World.
[Mensagem pessoal]. Mensagem recebida por: cristiane.silveira@ufpr.br, em: 04/05/2010.
26
Ariadne auf Naxos [1912-16], ópera de Richard Strauss.
165
em virtude do qual ganharam sua entrada, o resto do Mundo da Arte se torna
igualmente mais rico em ter o predicado oposto disponível e aplicável aos seus
membros. E, para retornar ao ponto de vista de Hamlet com o qual iniciamos
essa discussão, as Brillo boxes podem nos revelar a nós mesmos, assim como
qualquer coisa: como um espelho anteposto à natureza, elas poderiam servir
para capturar a consciência de nossos reis.
166
O Mundo da Arte Revisado: Comédias das Semelhanças1
1
“The Art World Revisited” é uma versão ampliada do ensaio “Institutionalism and
Interpretation: Eva Hesse and Robert Mangold” [in: Kunst & Museum Journal, nº4, 1990] e foi
originalmente publicado numa compilação de textos intitulada Beyond the Brillo Box: the visual
arts in post-historical perspective [New York: Farrar Straus and Giroux, 1992], pp. 33-53.
167
A despeito dessas paridades, vale a pena interromper esse andamento
para considerar a diferença entre os métodos para a determinação entre um
Rembrandt e um não Rembrandt, de um lado, e entre arte e não arte, do outro.
A equipe de pesquisa baseada na Holanda que tem se dedicado a estabelecer
o verdadeiro corpus de Rembrandt consiste em scholars armados com o que
há de mais avançado em recursos científicos para aferir autenticidade – raio-X,
ressonância molecular, e afins – aliados ao domínio dos materiais documentais
disponíveis do século XVII e as disciplinas de especialização [connoisseurship]
através das quais se pode identificar Ferdinand Bol, Govaert Flinck, Gerard
Dou, Samuel van Hoogstraten como diferentes e similares uns aos outros e a
Rembrandt. Seus procedimentos são forenses e empíricos, assim, se diante da
alegação de que a proveniência do Cavaleiro Polonês é dúbia, alguém
pretender insistir que não é, ele(a) terá que equipar-se com o mesmo arsenal
científico que eles têm à disposição e contrapor cada evidência com outra
evidência. Ambos os partidos em tais disputas irão concordar com o tipo de
documento que poderia resolver a questão de um jeito ou de outro. Mas
mesmo se alguma coisa que é uma obra de arte num certo momento histórico
não pudesse tê-la sido num momento histórico anterior, e a ressonância
molecular pode nos dizer a que momento histórico um objeto pertence, nenhum
instrumento do tipo está disponível para estabelecer ou desprover a alegação
de que alguma coisa é uma obra de arte quando for historicamente possível
que ela o seja. A controvérsia não parece nem ao menos remotamente
científica. Portanto, como proceder?
168
Turing consistia em afirmar que se nós não podemos apontar a diferença, não
há diferença – que se, sob todos os aspectos, uma determinada produção é
considerada a de um ser humano, então, pode não haver diferença entre
humanos e máquinas de modo essencial, caso a produção fosse, na verdade,
de uma máquina ao invés da produção de um humano. Castle produziu um
objeto que, embora fosse um banco, parecia o bastante com um exemplar
abstrato de escultura em madeira que ele pôde submetê-lo a uma seleção para
uma exposição de esculturas, para a qual foi aceito pelos especialistas que
compunham o júri. Sua estratégia era a seguinte: todos consentem que
escultura é arte. Se uma peça de mobiliário não pode ser discriminada de uma
escultura por um júri de especialistas, pode não haver diferença entre uma
peça de mobiliário e uma obra de arte. Naturalmente, não é preciso dizer que o
que chamarei de Teste de Castle não poderia ter sido executado nos anos
1850 como o foi nos anos 1950, quando de fato aconteceu. As esculturas eram
facilmente identificadas como tal em meados do século XIX, já que a maioria
das esculturas eram estátuas e a maior parte das estátuas era realista.
Nenhum banco parecia realista o suficiente para ser confundido com uma
estátua, digamos, da Liberdade ou da Piedade ou de Louis Napoleão. Mas em
1959, quando Castle submeteu o que ele subsequentemente intitulou Stool
Sculpture [Escultura de Banco], tal coisa era possível, uma vez que agora havia
esculturas abstratas e mobiliário escultural, e que Stool Sculpture se parece
muito mais com um protótipo de abstração do que com um protótipo de banco.
De fato, você pode sentar-se nele, contanto que você seja tão ágil e atlético
quanto o próprio Castle, e que ele tenha lhe mostrado onde deve colocar suas
pernas. (Bancos, de qualquer maneira, são prototipicamente desconfortáveis).
A dificuldade com o Teste de Castle, como o vejo, é que ele funciona apenas
se for difícil ver que algo é uma peça de mobiliário. Ou apenas se você não
pode determinar a diferença, ainda que seja um especialista, entre um móvel e
uma escultura. A questão, no entanto, não avança muito dessa maneira: o
artifício seria fazer com que um protótipo de uma peça de mobiliário fosse
aceito como arte, sem a etapa mediadora de disfarçá-lo como escultura. Ainda
assim, de que outro modo, que não seja por apelo aos especialistas, a questão
pode ser resolvida? Castle, que apresenta astúcia filosófica ao longo de sua
169
carreira, havia tocado no que veio a ser conhecido como a Teoria Institucional
da Arte, de acordo com a qual o que faz com que alguma coisa seja arte e a
outra não é algo que o mundo da arte – i.e., os “especialistas” – prescrevem.
Resta apenas perguntar quem faz parte do mundo da arte.
170
papelão dos bons e sólidos containeres de compensado nos quais o pessoal
da Brillo transportava suas barras de sabão.
Deve ter sido com referência ao mundo da arte, então, que a teoria
Institucional procurou erigir a diferença: o mundo da arte decretou que a Brillo
Box – mas não a caixa de Brillo [Brillo box] – era uma “candidata à apreciação”,
para usar a frase famosa de George Dickie. E isso nos traz de volta à questão:
quem é membro do mundo da arte? É amplamente admitido que inspetores de
alfândega não o são, e realmente, para o olho literal do aduaneiro [douanier], o
Teste de Castle funciona assim: já que não existe diferença discernível entre a
Brillo Box e uma caixa de Brillo, não há diferença. Jerrold Morris, negociante de
arte de Toronto, tentou organizar uma exposição das famigeradas “esculturas”,
em 1965, mas a Alfândega canadense insistiu que a assim chamada escultura
de Warhol era uma mercadoria e sujeita ao pagamento de um imposto para o
qual “esculturas originais” estariam, de acordo com a lei, isentas. O Dr. Charles
Comfort era diretor da National Gallery do Canadá na época. Ele se colocou ao
lado dos inspetores da Alfândega. Examinando fotografias, ele declarou, “Eu
podia ver que não se tratavam de esculturas”. É verdade que imagens
fotográficas da Brillo Box e de caixas de Brillo são muito menos discerníveis do
que as próprias caixas. Mas Comfort é um membro do mundo da arte ou não?
A diretora da Stable Gallery, Eleanor Ward, sentiu-se completamente traída
pela Brillo Box. “Ela as odiou”, Emile de Antonio me escreveu (ele havia
organizado a exposição, a primeira de Warhol numa galeria séria de Nova
York). “Ela estava furiosa na abertura. As pessoas riam”. Um artista amigo
escreveu MERDA [SHIT] por todo o livro de assinaturas. Eu considerei que elas
fossem arte, mas eu não era de maneira alguma parte do mundo da arte
naquele momento. E é claro que Leo Castelli, que finalmente aceitou Warhol
em sua galeria, as considerou como arte. Mas o mundo da arte, claramente,
não é um organismo que funciona de modo unificado [which acts as one]: nós
certamente não iríamos querer definir [quem é um membro do “mundo da arte”]
como todos e apenas aqueles que consideraram a Brillo Box uma obra de arte
em 1964 – isso traria a mim, um filósofo, para dentro do mundo da arte e
excluiria o diretor da National Gallery do Canadá, sem falar na proprietária da
galeria que as exibiu, que sentiu que havia sido enganada. E isso certamente
171
exclui o artista que arruinou o livro de assinaturas [ao registrar de maneira
enfática seu descontentamento em relação à exposição], para não mencionar
vários críticos muito sofisticados. Além do mais, a Pop Art foi de fato popular –
um grande número de pessoas comuns adorava as Campbell’s Soup Cans
[Latas de Sopa Campbell’s], em parte talvez porque os “especialistas” as
odiavam. As pessoas adoravam o fato de que Warhol fez arte da mais comum
dentre as coisas comuns e fez com que as pessoas pagassem um bom
dinheiro por ela. (Na verdade, a Brillo Box foi um fracasso no que concerne ao
sucesso financeiro, e um dos pequenos arrependimentos de minha vida é que
não comprei uma à época).
Meu próprio artigo de 1964, que foi uma resposta filosófica imediata à
Brillo Box, foi explicitamente intitulado “O Mundo da arte”, mas estava menos
preocupado com a questão do que fez da Brillo Box uma obra de arte do que
com a questão um tanto Kantiana de como era possível que ela o fosse. E eu
pensei que devia haver algo no momento histórico que explicasse essa
possibilidade, na medida em que um objeto indiscernível não poderia ter sido
uma obra de arte em nenhum outro momento anterior. Eu escrevi desta
maneira: “Ver alguma coisa como arte requer algo que o olho não pode
perceber [descry] – uma atmosfera de teoria artística, um conhecimento da
história da arte: um mundo da arte”. Acredito que Matisse queria dizer algo
muito próximo a isso quando revelou a Tériade:
2
Estas declarações de Henri Matisse (1864-1954) foram publicadas originalmente no jornal
Surrealista Minotaure [II, nº9, 15 de outubro de1936, p. 3], cujo editor era o crítico E. Tériade
(1889-1983), sob o título “Constance de Fauvisme”. Uma tradução em língua inglesa foi
publicada em 1973.
172
Ora, eu pensava o mundo da arte como o mundo historicamente
ordenado das obras de arte, emancipadas [enfranchised]3 por teorias que são
elas mesmas historicamente ordenadas. Como tal, eu suponho, a minha era
uma espécie de teoria institucional, na qual o mundo da arte é, ele próprio,
institucionalizado. Mas não era a Teoria Institucional da Arte, que se originou
de um engano criativo sobre meu trabalho por parte de George Dickie, que
estava menos preocupado com o que faz com que uma obra de arte como a de
Warhol seja possível do que com o que a torna efetiva (efetivamente uma obra)
(what makes it actual). E a sua noção de mundo da arte era muito mais o corpo
de especialistas que conferem esse estatuto a alguma coisa por decreto. De
certo modo, a teoria de Dickie implica num tipo de elite dotada de autoridade
[empowering elite] e guarda parentesco distante com a Teoria Não-Cognitivista
da linguagem moral. “Isto é arte!” tem o estatuto lógico de “Isto é bom!”, como a
última foi interpretada nos tempos áureos do alto Positivismo, quando os
filósofos da moral avançados da época pensavam que tudo que a linguagem
moral fazia era dar vazão aos sentimentos. É mérito de Dickie que ele tenha
sociologizado onde outros psicologizaram, mas em termos de condições de
verdade, não há muita escolha: a sua era, ou é, uma Teoria Não-Cognitivista
da Arte. O cerne de sua teoria é que algo é arte quando for declarado como
arte pelo mundo da arte. E é esta a parte vulnerável de sua posição. Quem é o
mundo da arte?, é a pergunta padrão, juntamente com: Como alguém chega a
ser um membro dele? “Os representantes, se existirem, passam em revista
todos os candidatos ao estatuto de arte, e eles, então, enquanto conferem esse
estatuto a alguns, o negam a outros?”, Richard Wollheim pergunta de maneira
astuta. Quem mantém os registros dessas decisões: elas são anunciadas em
revistas de arte? Aqueles que escrevem sobre arte esperam do lado de fora
das salas de julgamento, desesperados para telefonar para suas publicações
com os furos de reportagem? Quão literalmente Dickie pode querer dizer o que
ele diz?
3
O termo “emancipado” guarda o sentido do termo original. De acordo com Danto,
“enfranchised” significa “ter os direitos de um cidadão, i.e., votar, etc”. DANTO, A. Re:
dissertation on The Art World. [Mensagem pessoal]. Recebida por: cristiane.silveira@ufpr.br,
em 04/05/2010.
173
Estas são dificuldades meramente maliciosas. Não é surpreendente
descobrir que o melhor argumento de Wollheim se apropria daquilo que
Sócrates usou contra Eutífron quando este último declarou ser um especialista
sobre o tema da piedade, considerado por ele, o que todos os Deuses amam.
A questão era, então, se algo é pio porque eles o amam ou se eles o amam
porque é pio. No último caso, deve haver ainda, então, alguma coisa que
caracterize a piedade que não foi ainda explicitada; a saber, aquilo com base
em que os deuses o amam. Uma vez que saibamos isto, nós podemos nos
tornar tão especialistas quanto os deuses. No primeiro caso, os deuses de fato
são especialistas no que eles amam, mas seu amor é completamente sem
fundamento ou razão. “Os representantes do mundo da arte devem ter, ou não
devem ter razões para o que fazem se o que eles fazem é escolher [to stick]?”,
Wollheim pergunta. Se sim, então “estas razões passam a ser tudo o que
precisamos saber. Elas irão nos prover uma explicação completa do que faz
com que uma pintura seja uma obra de arte [...] Qual é a necessidade adicional
para haver representantes do mundo da arte [...]?”. Referências a um mundo
da arte, ao menos como empregado por Dickie, abandonam qualquer definição
de arte uma vez que nós reconheçamos quais são as razões sobre as quais
um de seus membros vai sustentar uma alegação que alguma coisa é uma
obra de arte. Deve haver mais do que mera declaração envolvida nessa
questão, e uma vez que saibamos o que mais há, decretos parecem gratuitos.
174
que ela o seja, simplesmente pela posição ocupada por diretores na estruturas
de especialização. Mas a sua declaração de que aquela é uma obra de arte
não é uma razão para que ela o seja. Entretanto, ser uma obra de arte é
dependente de algum conjunto de razões, e nada pode ser uma obra de arte
fora do sistema de razões que deu a ela aquele estatuto: obras de arte não o
são por natureza. Uma rosa é uma rosa qualquer que seja seu nome, mas uma
obra de arte não o é. Isso é parte do que torna o conceito de arte
ontologicamente interessante. Se obras de arte fossem objetos naturais, algo
como a Teoria Institucional não poderia nem mesmo ter começado, mais ou
menos pelas mesmas razões pelas quais o Não Cognitivismo não poderia ter
iniciado se os valores estivessem espalhados sobre a paisagem como pedras:
não poderia haver uma Teoria Não Cognitivista das pedras!
Duas coisas devem ser ditas sobre essas razões para a concessão de
estatuto: primeiro, que ser um membro do mundo da arte significa participar
daquilo que poderíamos denominar o discurso de razões; e em segundo lugar,
a arte é histórica porque as razões se relacionam umas às outras
historicamente. A Brillo Box teve uma chance de se tornar uma obra de arte
porque tantos aspectos, que se imaginava centrais para a identidade de
alguma coisa como arte, nos anos que a precederam, haviam sido rejeitados
como parte da essência da arte, de modo que a própria definição tinha se
tornado atenuada até o ponto em que quase qualquer coisa pudesse ser uma
obra de arte. Um membro do mundo da arte seria alguém que estivesse
familiarizado com essa história de atenuação. O que era extraordinário acerca
da Brillo Box é que ela foi alçada de uma espécie de submundo de imagens
bem conhecidas, tão aparentemente distante das preocupações estéticas
daqueles nominalmente interessados em arte, que vê-la numa galeria de arte
tenha sido um choque, ao mesmo tempo em que era claro que não havia nada
na concepção de arte dominante que a excluísse de antemão. A declaração
talvez tenha sido de Warhol, mas um número suficiente de pessoas que
participavam da história das razões relevantes estavam preparadas para
admiti-la no cânone da arte em que foi admitida. Desse modo, é verdade que
quando conhecemos as razões nós temos tudo o que precisamos. O que se
ignora é que o discurso de razões é o que confere o estatuto de arte àquilo que
175
de outra maneira seria apenas uma mera coisa, e que o discurso de razões é o
mundo da arte interpretado de maneira institucional. Certamente, indivíduos
diferentes ocupam posições diferentes naquele discurso: o Diretor da National
Gallery do Canadá era claramente um retardatário [retardataire], fazendo do
Canadá, nos termos do contrariado galerista, o objeto de riso do mundo da
arte. Mas havia muitos que estavam comprometidos com posições anteriores
no mundo da arte, incluindo-se a própria galerista que estava, ainda assim,
suficientemente atualizada para ter aceitado uma pintura de Warhol de sua
“nota de dois dólares da sorte” [“lucky two-dollar bill”] como uma obra de arte,
em troca da qual ela lhe ofereceu sua primeira exposição individual, quando
nenhum outro galerista estava disposto a fazê-lo. Por outro lado, foi a Brillo Box
que converteu Castelli para o lado de Warhol: suas reservas haviam sido
apenas que Warhol parecia até aquele momento estar fazendo o tipo de coisas
que Lichtenstein estava fazendo. E agora que Warhol havia mudado para o que
Castelli considerava escultura sem hesitar, os fundamentos de suas reservas
se dissolveram.
176
comum da época, de modo que era como se as fronteiras do mundo da arte e
da cultura comum coincidissem. Estrelas de cinema, as estrelas das prateleiras
do supermercado, as estrelas do mundo dos esportes, as estrelas das páginas
dos quadrinhos, até mesmo, no caso do próprio Warhol, as estrelas do mundo
da arte, eram instantaneamente reconhecíveis para qualquer um que vivesse a
vida da cultura comum. A arte resgatou os sinais que significavam muito para
todos, como definidores de suas vidas diárias. Calor, nutrição, ordem e
previsibilidade são valores humanos profundos que as latas empilhadas de
sopas Cambell’s exemplificam. A barra de sabão Brillo simboliza nossa luta
contra a sujeira e o triunfo da ordem doméstica. O painel da história em
quadrinhos destila as fantasias de nossa infância e corporifica graficamente,
em suas cores marcadas e contornos nítidos, os prazeres visuais da
inocência. De alguma maneira profunda, a arte era conservadora, reconciliando
os que viviam sob a forma de vida encarnada naqueles trabalhos à forma de
vida que eles viviam. Warhol celebrou o mundo em que ele cresceu, e que ele
perdeu, muito à maneira que, uma década depois, Cindy Sherman, em seu
Untitled Film Stills, celebrou uma forma de vida desaparecida: no final dos anos
setenta, quando ela os produziu, os fotogramas dos quais se apropriou para tal
grande efeito estavam todos obsoletos e pertenciam aos arquivos de uma
cultura cinematografica em declínio. A diferença entre um fotograma de
Sherman e um fotograma "real" é paralela à distinção entre arte e artesanato
que Castle procurou cruzar, filosoficamente complicada pelo fato de que seus
fotogramas são tão parecidos com os fotogramas genuínos que, de acordo
com Peter Schjeldahl, não era incomum que as pessoas dissessem que
conheciam o filme ao qual o fotograma "dela" pertencia. Apenas como um
início de interpretação devemos dizer que os dela são sobre a classe de
fotogramas genuínos aos quais se assemelham ao ponto de serem facilmente
vistos como exemplares de sua denotação, e são ainda mais sobre os valores
e atitudes da vida a que os fotogramas pertencem. É por isso que suas
imagens são tão ricas. Quando fotogramas genuínos já não fazem parte da
cultura comum da audiência – quando os fotogramas de Sherman se parecem
meramente com fotografias – então, exigir-se-á dos talentos arqueológicos e
177
expositivos de um Warburg ou de um Panofsky para fazer seus significados
acessíveis.
178
“fazer crer”/ “fingir” [make believe] é que eu não posso ver como ela pode
tolerar a distinção entre os dois tipos de interpretação. É instrutivo observar a
forma como membros do mundo da arte respondem às obras de uma espécie
encontrada pela primeira vez quando a tarefa é estabelecer algo como um
fragmento de teoria para a obra e, em seguida, em contraposição, alguma
avaliação dela, como os críticos, por exemplo, são requeridos a fazer com
grande frequência. Roberta Smith, uma crítica do The New York Times, disse-
me certa vez que esta é a parte do seu trabalho, que ela acha mais atrativa:
muitas vezes ela vai ser a primeira a escrever sobre um determinado artista,
sem história ou teoria disponível para ajudá-la, já que o artista é bastante
desconhecido. Aqui, os que estão fora do mundo da arte terão dificuldade
considerável, porque para além do reconhecimento de que “deva ser arte", pois
está em uma galeria ou mesmo em um museu, há muito pouco que eles
possam dizer, por não terem acesso ao discurso de razões que se aplica. Na
melhor das hipóteses eles podem descrevê-lo de formas não artísticas, por
exemplo, "É feito de madeira" ou "Parece ser apenas um amontoado de cacos
de vidro". Mas mesmo quando se tem acesso ao discurso e, portanto, é
realmente parte do mundo da arte, não se é infalível. Alguém terá apenas
começado o discurso para a obra em questao, que permanecerá sujeita à
revisão. O mundo da arte não responde como um todo.
179
emaranhado: é como se ele tivesse sido trespassado pelos orifícios por alguém
que teria tido problemas para amarrar os sapatos. De certa forma, o arame se
parece com os cordões de um espartilho que foram afrouxados para permitir
que a carne confinada respirasse. Nada parecido com isso havia sido visto em
1966, a não ser que se frequentasse o estúdio de Hesse, e mesmo assim
aquilo seria um tanto novo. Ela foi pendurada na parede da Fischbach Marylyn
Gallery, em uma exposição organizada sob o título “Abstração Excêntrica”, de
Lucy Lippard. Foi lá que Hilton Kramer, o então crítico do Times, deu-lhe uma
devastadora interpretação imprecisa. "De segunda mão", escreveu ele. "Ela
simplesmente adapta as imagens das pinturas por gotejamento [drip paintings]
de Jackson Pollock para um meio tridimensional”. Agora, se olharmos para o
emaranhado de arame a partir dessa perspectiva, parece quase uma
descoberta conclusiva que o trabalho se pareça com uma tradução
tridimensional do pigmento emaranhado de Pollock. E poder-se-ia reconstruir
as intenções do artista, desta forma: Não seria maravilhoso fazer uma espécie
de análogo escultórico para a pintura por gotejamento, e introduzir na escultura
a mesma urgência, energia, espontaneidade que Pollock introduziu em sua
pintura! Face ao motivo proposto, a referida obra seria de fato patética, de
segunda mão, mas também de segunda categoria. As tensões maravilhosas da
pintura de Pollock, simplesmente não são encontrados naquela fiação solta e
quase inepta.
180
industriais. Mas em qualquer caso, uma vez que tenhamos decidido que as
placas perfuradas fazem parte do trabalho, a descrição de Kramer é ao mesmo
tempo incompleta e falsa. Uma descrição mais adequada, que agora elimina o
epíteto “de segunda mão", é a seguinte: a obra consiste em dois tipos de
elementos opostos, um mecânico e ordenado, o outro irregular e desordenado.
Um é clássico, o outro romântico, ou: um é macho e o outro fêmea. A obra está
organizada em torno das tensões entre eles. O arame desesperado se esforça
para unir os fragmentos separados de sua contraparte, mas eles permanecem
divididos enquanto ele percorre os orifícios para dentro e para fora em busca
de unidade, de harmonia e paz visual. Ela é, então, uma obra engraçada,
talvez muito engraçada. Em uma entrevista final, quatro anos depois, e
publicada no mês de sua morte prematura, Hesse falou sobre as qualidades
cômicas de seu trabalho, sua absurdeza objetiva, e mesmo (palavra dela) a
sua "tolice". Mas em 1966, isso pode ter sido invisível, para ela e para os
outros, ainda que pertencentes ao mundo da arte de Hesse ou hostis a ele.
181
tecido pintadas, e, em seguida, uma grande e irregular laçada feita de um tubo
metálico que se desprende de um canto, invade o nosso espaço e, em seguida
se esgueira de volta para o quadro no canto oposto. Uma decisão tem de ser
tomada em relação à laçada: ela é a obra, uma espécie de escultura parecida
com um verme, ou se a obra é uma espécie de interação ao estilo de um balé
entre dois componentes de uma obra que não tem base alguma. A obra de
Hesse forma, de fato, um corpus bastante consistente que expressa de
maneira consistente uma visão artística muito forte. Algumas metáforas estão
implícitas, algumas questões levantadas sobre a natureza da escultura, talvez
sobre a natureza das mulheres, talvez até mesmo sobre o significado do
amor. Tudo isso, a meu ver, é interno ao corpus e é explicitado pelo discurso
de razões que sua obra exige. Isto não é de maneira alguma decretado por um
mundo da arte institucionalizado. Hesse teria sido Hesse, talvez, em qualquer
época em que tivesse vivido, mas sua obra, como a conhecemos, teria sido
impossível em 1926 ou em 1886, e, possivelmente, sua personalidade, como a
conhecemos, também teria sido impossível naqueles tempos, dado o modo
como a personalidade é expressa na obra.
182
Kramer era muito diferente o que, aliás, o levou à involuntária comédia de
semelhanças que tanto desfigura a maneira do mundo da arte falar sobre arte:
se parece o mesmo (ou até mesmo semelhante), é o mesmo.
183
representar um desafio, entretanto, toda a forma da história da arte na China
mudou de modo a acomodá-la.
184
imperceptivelmente, graduadas em cores, mas a pureza só pode ir até o ponto
em que se torna simplesmente nada. Estes esforços são simplesmente
nada". No Herald Tribune naquele mesmo dia ("Um pouco deprimente no
mesmo dia", me disse Mangold): "A celebração da divisória de escritório, do
divisor de parede, ou da própria parede constitui uma visão bastante
aborrecida. A idée fixe de Mangold sobre a arte encontrada na não arte se
baseia fortemente em princípios negativos que a resposta de alguém para sua
construção em branco é igualmente negativa – se não provocadora de
bocejos”. Pode-se seguramente assumir que os leitores não correriam para a
Galeria Fischbach para ver a exposição inaugural de Mangold.
185
Rosalind Krauss, uma historiadora da arte com grande simpatia por seus
contemporâneos. Elas está se referindo à mesma obra que estaria morta e
esquecida se os críticos tivessem algum poder verdadeiro.
Seu trabalho inicial é muitas vezes descrito como tendo a ver com o
conteúdo implícito num vocabulário industrial, por exemplo, Lucy
Lippard o leu dessa forma em 1965. Naquele momento, parecia uma
boa maneira de caracterizá-lo por causa de tanta coisa que estava
acontecendo, ou seja, a escultura Minimalista e certa pintura
Minimalista, que era claramente evocativa das formas industriais, os
modos industriais de moldagem. E assim, ela fala sobre o seu
conteúdo como sendo tocado por aquilo, e ainda assim eu realmente
não sinto que isso seja verdade – pelo menos, minha impressão do
trabalho.
186
pintura de [Andrea del] Castagno sobre um escudo, naquele sentido holistico
frontal do escudo tanto como uma imagem [picture] e um emblema.
187
principalmente transhistórica, i.e., que há algum explanans comum e peculiar a
todos os membros de uma classe de afinidades. Normalmente, esses estão
para o explanans como um conjunto de instâncias estão para alguma forma
platônica, e a história da arte de afinidades é essencialmente platônica em
espírito. Mas eu digo apenas que até que alguma explicação legítima surja, a
resposta à alegação de afinidades é realmente “E daí?”. Muita ingenuidade da
história da arte vai em direção dessas reivindicações, como acontece nas aulas
de história da arte que avançam sobre afinidades, e com a demonstração,
através dos slides justapostos de semelhanças formais entre coisas que podem
não ter relação causal alguma umas com as outras. Mas em círculos
Minimalistas por volta de 1965, a utilização de materiais industriais foi temática.
Talvez por razões análogas às que impeliam a Pop a atacar a fronteira entre
arte alta e baixa, o Minimalismo atacou a fronteira entre as belas artes e as
artes industriais. Referência à política Minimalista é muito provável que seja
explicativa de maneira que a referência a afinidades não é.
188
encontrar no nível de acesso a seus motivos, alguma explicação histórica do
trabalho tem de ser encontrada, e a probabilidade de encontrá-la no mundo da
arte primário é maior do que a de encontrá-la em artefatos do século XV,
quaisquer que sejam as afinidades formais que possam haver. Farei apenas
uma observação. Na entrevista com Krauss, Mangold diz:
Dois pontos desta passagem devem nos lembrar da obra de Eva Hesse. A
referência às divisões de quatro pés, tamanho padrão, e termos como
"construída" e "materiais de construção" oferecem conotações que nos
conectam com a realidade industrial, a pré-fabricação e a padronização. ("4 por
8" carrega a mesma conotação vernácula que a sopa Campbell's, e ela
desaparece completamente quando convertemos a medida para centímetros,
como em catálogos europeus da obra de Mangold). Mas o termo
“aproximadamente” conota mãos e olhos ao invés de processos maquinais: os
orifícios de janelas em segmentos industriais não podem ser
“aproximadamente” situados: eles devem ser exatamente situados. E assim
nós encontramos as mesmas tensões entre o mecânico e o intuitivo, o social e
o individual, talvez, o repetitivo e o lúdico, que encontramos em obras de
Hesse, que em termos de "afinidades formais" não se parecem nem um pouco
com a de seu amigo e parceiro.
189
vezes não chegam a tocar-lhes, por vezes, excedem seus limites e são
cortadas. Elas são feitas à mão livre. E essas obras são realmente “abstrações
excêntricas”. É a geometria subvertida, a ordem desviada, a regularidade
desafiada. Elas são obras maravilhosas e espirituosas, mas o crítico em busca
de semelhanças, afinidades, influências e reminiscências certamente deixará-
de vê-las. Eis aqui o que escreve o respeitado crítico Donald Kuspit em 1987:
“Como Brice Marden, Mangold aqui tardiamente reconhece a profusão
expressionista de acontecimentos de superfície que era proeminente em tantas
obras dos anos 1980”. Kuspit chama isso de "concessão formal" [tokenism]
(“segunda mão”, cf. Kramer). O artista é acusado de manter-se na moda em
“um esforço para salvar uma geometria que atravessa ela mesma certa
dificuldade”. Mas a geometria sempre foi uma espécie de problema na obra de
Mangold, como testemunham os orifícios de janela “aproximadamente”
localizados de 1965, para os quais forma e superfície são verdadeiros aliados
na arte que Robert Mangold tem produzido por mais de um quarto de século.
A questão para mim aqui, no entanto, é menos quem está certo e quem
está errado do que o discurso de razões que é a substância do mundo da arte
no tratamento e na constituição de obras de arte, dentro do qual as questões
de certo e de errado surgem. Não há nenhum decreto. A seu modo algo
surpreendente, a crítica é, afinal, muito parecida com a ciência, desenvolvendo
hipóteses de ponta e aparando-as ou produzindo outras. Nesta atividade
institucionalizada, por outro lado, é melhor tomar cuidado com a comédia das
semelhanças. Em uma conversa com Maurice Drury, citada na biografia de Ray
Monk, Wittgenstein disse: "Hegel parece-me sempre querendo dizer que as
coisas que parecem diferentes são a mesma coisa, ao passo que o meu
interesse é mostrar que as coisas que parecem as mesmas são realmente
diferentes”. Quando li isso, pensei: Essa é em suma a minha filosofia da arte,
encontrar as diferenças profundas entre a arte e o artesanato, entre obras de
arte e meras coisas, quando os integrantes de ambas as classes são
exatamente semelhantes. O que serve para os propósitos da ontologia também
serve para os propósitos da crítica. Quando você encontrar uma semelhança,
desvie seu olhar e procure pela explicação de como expressões artísticas
diferentes podem parecer relacionados umas às outras.
190
ANEXO - ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 “Jackson Pollock: is he the greatest living painter in the United States?” Life, v. 27,
nº 6, (August 8) 1949.
191
FIGURA 2 Jasper Johns, Target with four faces, 1955
Encáustica, madeira pintada, jornal.
192
FIGURA 4 Robert Rauschenberg, Odalisk, 1955-58
Óleo, aquarela, crayon, pastel, papel, tecido, fotografias, reproduções impressas, jornal, metal,
vidro, travesseiro, poste de madeira e lâmpadas sobre estrutura de madeira com galo
empalhado, 210.8 x 64.1 x 68.8 cm.
193
FIGURA 6 Robert Rauschenberg, Bed, 1955
Combine painting, 6'2" x 31 1/2" x 6 1/2"
194
FIGURA 7 Andy Warhol, 32 Campbell's Soup Cans, 1962
Tinta à base de polímero sintético sobre trinta e duas telas, 510 x 410mm (cada tela)
195
FIGURA 9 Claes Oldenburg, The Store, 1962
Peças revestidas de gesso e tinta (Instalação)
196
FIGURA 11 Roy Lichtenstein, The Kiss, 1962
Óleo sobre tela, 80 x 68 cm.
197
FIGURA 13 “Is he the worst artist in the U.S.?”, Life, (January 31) 1964
198
FIGURA 14 Andy Warhol, Brillo Box, Stable Gallery, 1964
Detalhe e vistas das instalações.
199
FIGURA 15 Claes Oldenburg, Bedroom Ensemble, 1963
200