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Violinista Metafora

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Gustavo Albuquerque*

RESUMO

O objetivo do presente ensaio é tecer uma crítica logicamente rigorosa, além de promover
uma discussão crítico-argumentativa com réplicas e tréplicas, ao argumento do violinista,
exposto no artigo de J. Thomson, utilizando o procedimento da transformação de um
argumento analógico, como o argumento do violinista, em argumentos puramente
dedutivos através do método das regras de determinação elaboradas por T. R. Davies e S.
Russell. As críticas ao argumentos presentes na analogia do violinista se baseiam nos
seguintes princípios ou ponderações: no princípio do respeito à integridade física
universal, no princípio da responsabilidade sobre aquilo que se cria, na ponderação da
especialidade do vínculo materno a nível físico e psíquico e na ponderação da semelhança
de magnitude das exigências físicas/psíquicas relacionadas tanto ao “aborto seguro”
quanto ao parto. A conclusão a que se chegou nesse ensaio foi que os cinco argumentos
dedutivos construídos a partir de aspectos da analogia do violinista não se mostraram
cogentes, pois alguns dos pressupostos adotados não eram aplicáveis às situações reais do
aborto.

Palavras-chave: Bioética. Saúde pública. Aborto. Judith Thomson. Analogia do violinista.

Abortion and determination rules: a criticism of J. Thomson’s


violinist analogy based on deductive arguments

ABSTRACT

The objective of this essay is to weave a logically rigorous critique, in addition to


promoting a critical-argumentative discussion with replies and rejoinders, to the
violinist's argument, exposed in the article by J. Thomson, using the procedure of
transforming an analogical argument, such as the violinist argument, in purely deductive
arguments through the method of rules of determination elaborated by T. R.Davies and S.
Russell. The criticisms of the arguments presented in the violinist analogy are based on
the following principles or considerations: on the principle of respect for universal
physical integrity, on the principle of responsibility for what is created, on the
consideration of the specialty of the maternal bond at a physical and psychological level
and on weighting the similarity of the magnitude of physical/psychic demands related to
both “safe abortion” and childbirth. The conclusion reached in this essay was that the five
deductive arguments constructed from aspects of the violinist's analogy did not prove to
be cogent, as some of the assumptions adopted did not apply to real situations of abortion.

Keywords: Bioethics. Public health. Abortion. Judith Thomson. Violinist analogy.

Kairós: Revista Acadêmica


da Prainha
ISSN: 1807-5096
e-ISSN: 2357-9420 * Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desenvolve pesquisas na área de epistemologia e filosofia da
religião, a partir de uma perspectiva da filosofia analítica, possuindo também interesse em metafísica, filosofia da ciência e
Fortaleza, filosofia da física. E-mail: barbosa.gustavo.07@gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8779175191401253. Orcid:
v. 18, n. 2, 2022 https://orcid.org/0000-0002-1725-079X.
ALBUQUERQUE, G. Aborto e regras de determinação: uma crítica da analogia do violinista de J. Thomson a partir de
argumentos dedutivos

Introdução

O presente artigo pretende formular respostas a pergunta sobre se haveria


alguma forma de, a partir da hipótese1 de que um bebê no útero já goze do status de
pessoa humana em sua plenitude2, não sendo apenas uma pessoa em potencial,
defender a imoralidade do aborto em situações de estupro.
Pretende-se responder a essa pergunta apresentando o argumento seminal,
mais prolífico da história do debate sobre aborto, em que a autora diz: “I propose, then,
that we grant that the fetus is a person from the moment of conception3”(THOMSON,
1971, p. 48), fazendo com que seu argumento parta da pressuposição de que o feto
já é uma pessoa humana e não apenas um mero ser humano ou pessoa em potencial.
A atualidade do debate em torno do argumento de Thomson se vê na defesa intrépida
que David Boonin (BOONIN, 2003; 2019) faz de leves variações desse argumento em
seus livros de bioética de tendência “pró-escolha” lançados ou reeditados há poucos
anos4. Esse argumento, apresentado pela filósofa e ativista “pró-escolha” J. Thomson

1 Desde o influente artigo de Mary Anne Warren (WARREN, 1973), passou-se a cogitar se todos os
seres humanos, reconhecidos como tais por seu código genético, gozam do status de pessoa humana,
ou seja, podem ser considerados um membro da sociedade humana e gozam dos mesmos direitos que
nós. O principal direito negado aos meros humanos, que não são pessoas humanas plenas sendo
apenas pessoas em potencial, é o direito à vida. Em seu artigo, Warren sugere critérios que diferenciam
os meros seres humanos, pessoas em potencial, das pessoas humanas, tais como a capacidade de
sentir dor e de gozar do prazer, a capacidade de elaborar raciocínios complexos, a capacidade de
utilizar de linguagem, etc.
2 Há teóricos da ética que defendem a imoralidade do aborto baseando-se não no simples fato de que

todo ser vivo que possua DNA humano deve ser protegido, mas na noção de pessoa humana,
levantada originalmente por Mary Anne Warren, vendo o feto como uma pessoa humana em potencial
e, portanto, como detentor do direito à vida. Outros ainda defendem que o feto é sim uma pessoa
humana, e não pessoa humana em potencial, e que, sendo assim, tem direito à vida.
3 Em tradução livre minha: Eu proponho, então, que concedamos que o feto é uma pessoa humana

desde o momento da concepção.


4 Segundo Peter Kreeft expõe em seu debate muito esclarecedor com David Boonin em 2005, na

universidade de Yale, a fundamentação do posicionamento ético do movimento pró-vida, em geral,


diante da questão da moralidade ou imoralidade do aborto baseia-se na defesa de três premissas, que
uma vez aceitas implicam logicamente na imoralidade do aborto. Segundo Kree21ft, pensa-se que a
única forma de defender o aborto seria negar uma dessas três premissas. A primeira premissa consiste
na afirmação, que se fundamenta nas descobertas da ciência, de que a vida de todo e qualquer
indivíduo de toda e qualquer espécie animal inicia na concepção, uma vez que a partir daí o indivíduo
possui seu código genético completo e único. Logo, independente do estágio de desenvolvimento, da
capacidade, da raça, do sexo do ser humano, ele já é plenamente humano. A segunda premissa, de
ordem moral, consiste em afirmar que todo aquele que possui natureza humana possui o direito à vida,
não havendo distinção entre o direito que um ou outro ser humano possui à vida, uma vez que todos
possuem a mesma natureza que lhes confere o mesmo direito. Em outras palavras, Peter Kreeft
implicitamente exclui como desnecessária para o debate sobre o aborto a distinção entre “mero
humano”/“pessoa em potencial” e “pessoa humana”. A terceira premissa, de ordem legal, consiste em
afirmar que a lei deve proteger o mais básico dos direitos humanos, que é o direito à vida, com a

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ALBUQUERQUE, G. Aborto e regras de determinação: uma crítica da analogia do violinista de J. Thomson a partir de
argumentos dedutivos

em 1971, defende a moralidade do aborto não só em casos de estupro, mas também


para diversas outras situações.
Serão feitas algumas críticas a esse argumento, partindo daquilo que já está
presente na bibliografia de língua estrangeira que se desenvolveu ao longo dos anos,
e utilizando-se de um método de análise rigoroso que ainda não havia sido aplicado a
ele, para que o mesmo pudesse ser analisado da forma mais clara e criteriosa
possível.

O método e o argumento

O argumento do violinista, exposto no artigo de J. Thomson (1971), serve de


posicionamento favorável à possibilidade da realização de abortos em casos de
estupro, ou talvez até mesmo em casos de gravidez fruto de relações consentidas e
com consequências indesejadas, na medida em que houver simetria entre a situação
real sobre a qual se deseja falar (aborto) e a situação construída abstratamente na
analogia (mulher raptada). Caso não haja essa simetria, tanto a força retórica é
seriamente abalada quanto a inferência sugerida pelo argumento torna-se não
cogente. O que se deseja mostrar a seguir é justamente a falta dessa simetria entre
situação real e situação analógica.
Para mostrar isso da maneira mais clara possível se recorrerá à transformação
dos argumentos analógicos inferenciais em argumentos dedutivos segundo o método
das regras de determinação sugeridos por Davies e Russell (DAVIES, 1987), dado o
grande poder de esclarecimento que esse método proporciona para o entendimento
dos pressupostos assumidos pela analogia e não tão bem evidenciados nela
(BARTHA, 2019). Após a transformação de vários aspectos da analogia em
argumentos dedutivos, será mostrado como as premissas desses argumentos são
falsas, o que implica na incorreção do argumento.

exceção do caso onde um ser humano ameaça a vida de outro ser humano inocente. David Boonin
explica que sua posição, que segue a esteira do argumento do violinista exposto por Judith Thomson,
nega a implicação lógica sobre a imoralidade do aborto que deveria se seguir uma vez que se assumem
as três premissas anteriores. Ele afirma que a morte de alguém com direito à vida não é sempre imoral,
mesmo na situação em que não há ameaça a vida de ninguém inocente, uma vez que direito à vida
não implica em direito à ter acesso ao suporte necessário para continuar a viver se esse suporte fere o
direito à integridade física de outro ser humano.

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ALBUQUERQUE, G. Aborto e regras de determinação: uma crítica da analogia do violinista de J. Thomson a partir de
argumentos dedutivos

Serão apresentados cinco argumentos dedutivos a partir de cinco aspectos


presentes na principal analogia do artigo de Thomson. Será exposta uma descrição
do argumento inferencial pressuposto pela analogia e, em seguida, construir-se-á um
argumento dedutivo a partir dele.
1) Corresponde à realidade do aborto (domínio alvo) o aspecto da analogia do
violinista (domínio fonte) que se apoia na crença de que o aborto é moralmente
permitido devido ao direito à integridade corporal que a mãe possui. O argumento é
reconstruído a seguir com base nas afirmações presentes ao longo do artigo em que
foi exposta a analogia do violinista.
Sendo S (situação da mulher sendo raptada e plugada), T (situação da mulher
que engravidou), Q(S) (informação que se conclui a partir das premissas para a
situação S), Q(T) (informação que se conclui a partir das premissas para a situação
Q), tem-se que na situação S as seguintes premissas são verdadeiras:
(P1) O direito à integridade física de uma mulher é violado.5
(P2) O direito à integridade é violado tendo um alto benefício para um terceiro, bem
como um alto custo para a vítima da violação.6
(P3) Nessa situação S, a integridade física é violada sem o consentimento da vítima7.

Dos três pressupostos acima, conclui-se:

Q(S1): É moralmente aceitável que a vítima (mulher raptada) recupere sua integridade
corporal, mesmo deixando um terceiro (violinista) morrer.

5 “My own view is that if a human being has any just, prior claim to anything at all, he has a just, prior
claim to his own body” (THOMSON, 1971, p. 54).
6 “We surely must all grant that there may be cases in which it would be morally indecent to detach a

person from your body at the cost of his life. Suppose you learn that what the violinist needs is not nine
years of your life, but only one hour: all you need do to save his life is to spend one hour in that bed with
him. Suppose also that letting him use your kidneys for that one hour would not affect your health in the
slightest. Admittedly, you were kidnapped. Admittedly you did not give anyone permission to plug him
into you. Nevertheless, it seems to me plain you ought to allow him to use kidneys for that hour – it
would be indecent to refuse.” (THOMSON, 1971, p. 59).
7 “You wake up in the morning and find yourself back to back in bed with an unconscious violinist. He

has been found to have fatal kidney ailment, and the Society of Music Lovers has canvassed all the
available medical records and found that you alone have the right blood type to help. They have
therefore kidnapped you [...]” (THOMSON, 1971, p. 48-49).

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ALBUQUERQUE, G. Aborto e regras de determinação: uma crítica da analogia do violinista de J. Thomson a partir de
argumentos dedutivos

Como (P1), (P2), (P3) são verdadeiros também para a situação da mulher que
engravida sem desejar, independente de ter consentido com o ato sexual ou não,
segue-se:
Q(T1): É moralmente aceitável que a vítima (mulher grávida) recupere sua integridade
corporal, mesmo deixando um terceiro (feto) morrer.
2) Corresponde à realidade do aborto o aspecto da analogia do violinista que
se apoia na crença de que o aborto é legítimo, pois pode ser qualificado como uma
mera omissão de socorro e não um assassinato. O argumento é reconstruído a seguir
com base nas afirmações presentes ao longo do artigo em que foi exposta a analogia
do violinista.
Deste modo, temos:

(P4) Toda mulher tem direito à integridade corporal.


(P5) Obrigar uma mulher a ajudar, a um grande custo, alguém desconhecido, de uma
maneira que somente ela pode ajudar e de um problema que ela não foi responsável
por gerar, fere o direito à integridade corporal da mulher de uma maneira que esse
direito sobrepõe-se ao direito à vida que o desconhecido possui. 8

De P4 e P5, temos:

Q(S2): Não é imoral a mulher raptada recusar-se a ajudar, a um grande custo, alguém
desconhecido, de uma maneira que somente ela pode ajudar e de um problema que
ela não foi responsável por gerar.
(P4) e (P5) são aplicáveis não somente à situação da mulher raptada na analogia do
violinista, mas também para a situação de qualquer mulher que esteja grávida. Logo:

8 “You wake up in the morning and find yourself back to back in bed with an unconscious violinist. He
has been found to have a fatal kidney ailment, and the Society of Music Lovers has canvassed all the
available medical records and found that you alone have the right blood type to help. They have
therefore kidnapped you [...] To unplug you would be to kill him. But never mind, it´s only for nine months
[...] Is it morally incumbent on you to acede to this situation? What if it were not nine months, but nine
years? [...] What if the diretor of the hospital says, “Tough luck, I agree, for the resto of your life. Because
remember this. All persons have a right to life, and violinists are persons. Granted you have a right to
decide what happens in and to your body, but a person´s right to life outweighs your right to decide what
happens in and to your body. [...] I imagine you would regard this as outrageous [...].” (THOMSON,
1971, p. 48-49).

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ALBUQUERQUE, G. Aborto e regras de determinação: uma crítica da analogia do violinista de J. Thomson a partir de
argumentos dedutivos

Q(T2): Não é imoral que uma mulher grávida se recuse a ajudar a um grande custo
alguém desconhecido, de uma maneira que somente ela pode ajudar e de um
problema que ela não foi responsável por gerar.
3) Corresponde à realidade do aborto o aspecto da analogia do violinista que
parece apoiar-se na crença de que o aborto é tão seguro e isento de consequências
físicas e psíquicas para a mãe quanto o desplugue, realizado pela vítima do rapto,
seria seguro e isento de consequências físicas e psíquicas para a vítima do rapto. O
argumento é reconstruído a seguir com base nas afirmações presentes ao longo do
artigo em que foi exposta a analogia do violinista.
Assim, temos:

(P6) A opção de a mulher deixar de ajudar a pessoa desconhecida que está


precisando de sua ajuda oferece muito menor incômodo e muito menor risco à vida
da mulher que a opção de ajudar.9

Usando a conclusão do argumento 2, Q(S2), temos:

(P7) Não é imoral uma mulher recusar-se a ajudar a um grande custo alguém
desconhecido, de uma maneira que somente ela pode ajudar e de um problema que
ela não foi responsável por gerar.

De (P7) e (P6), temos:

Q(S3): Não é imoral que a mulher se desplugue do violinista deixando-o morrer.

O pano de fundo da analogia do violinista supõe que tanto (P6) quanto (P7)
também seriam válidas para a situação T, o que implica em:

Q(T3): Não é imoral que a mulher aborte sua criança.

9 O próprio termo utilizado para descrever a maneira como a mulher está vinculada ao violinista
(“plugada”) dá a entender a facilidade com que se poderia “desplugá-la” do violinista. Além disso, no
artigo, nos trechos já mencionados anteriormente nas notas de rodapé, Thomson parece querer
enfatizar o quão sacrificante seria para a mulher permanecer vinculada ao violinista ao invés da
solução, muito menos sacrificante, que é a de “desplugar-se”.

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ALBUQUERQUE, G. Aborto e regras de determinação: uma crítica da analogia do violinista de J. Thomson a partir de
argumentos dedutivos

4) Corresponde à realidade do aborto o aspecto da analogia do violinista que


se apoia na crença de que o aborto é legítimo caso a mãe tenha sido obrigada por
alguém a manter relações sexuais, assim como a vítima do rapto foi obrigada a estar
ligada ao violinista naquela cadeira. O argumento é reconstruído a seguir com base
nas afirmações presentes ao longo do artigo em que foi exposta a analogia do
violinista.
Deste modo, temos:

(P8) Toda pessoa humana possui direito à integridade física.


(P9) Obrigar uma mulher a ajudar, a um grande custo, alguém desconhecido, de uma
maneira que somente ela pode ajudar e de um problema que ela não foi responsável
por gerar, fere o direito à integridade física da mulher de uma maneira que ele se
sobrepõe ao direito à vida que o desconhecido possui.

Retomando Q(S3), temos:

(P10) Não é imoral que a mulher raptada se recuse a ajudar o violinista.

Além disso, tem-se também (P6), que nos leva a:

(P11) A opção de a mulher deixar de ajudar a pessoa desconhecida que está


precisando de sua ajuda oferece muito menor incômodo e muito menor risco à vida
da mulher que a opção de ajudar.

Logo, de (P8), (P9), (P10) e (P11), temos:

Q(S4): Se a mulher raptada não se deve responsabilizar pelas consequências da


violação à sua integridade corporal dado que essas consequências são apenas a
omissão de socorro a uma pessoa desconhecida que lhe custará muito menos do que
a opção de ajudá-la, então o desplugue é moralmente permitido.

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ALBUQUERQUE, G. Aborto e regras de determinação: uma crítica da analogia do violinista de J. Thomson a partir de
argumentos dedutivos

Está presente no pano de fundo da analogia do violinista que (P8), (P9), (P10)
e (P11) são verdadeiras também para a situação da gravidez devido a um estupro.
Logo, temos:

Q(T4): Se a mulher grávida não se deve responsabilizar pelas consequências da


violação à sua integridade corporal dado que essas consequências são apenas a
omissão de socorro a uma pessoa desconhecida que lhe custará muito menos do que
a opção de ajudá-la, então o aborto nessas circunstâncias é moralmente permitido.

5) Corresponde à realidade do aborto, o aspecto da analogia do violinista que


se apoia na crença de que a responsabilidade de uma mãe para com um filho fruto de
uma relação consentida, mas com consequências indesejadas (gravidez não
planejada), é idêntica a responsabilidade de um ser humano com alguém que lhe seja
completamente desconhecido. O argumento é reconstruído a seguir com base nas
afirmações presentes ao longo do artigo em que foi exposta a analogia do violinista.
Deste modo, temos:

(P12) A mulher raptada teve sua integridade física violada, sem seu consentimento.
(P13) O violinista não apresenta nenhum tipo de laço biológico nem afetivo com a
mulher raptada.10
(P14) O violinista necessita de acesso ao corpo da mulher raptada para continuar
vivendo11.

De (P12), (P13) e (P14), temos:

Q(S5): A mulher raptada não está moralmente obrigada a continuar fornecendo


acesso ao seu corpo para o violinista.

10 A própria analogia do violinista não faz nenhuma menção a algum suposto parentesco entre os dois,
o que poderia ter sido argumentado se fosse o caso dado que o domínio alvo da analogia é justamente
a situação da relação entre mãe e filho.
11 “He has been found to have a fatal kidney ailment, and the Society of music lovers has canvassed all

the available medical records and found that you alone have the right blood type to help” (THOMSON,
1971, p. 48-49).

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ALBUQUERQUE, G. Aborto e regras de determinação: uma crítica da analogia do violinista de J. Thomson a partir de
argumentos dedutivos

Para que houvesse a conclusão desejada, seria necessário que os três


pressupostos fossem válidos também para a situação T:

Q(T5): A mulher grávida devido a ato sexual consentido não está moralmente obrigada
a continuar fornecendo acesso ao seu corpo para o feto.

2 As críticas ao argumento

Diante da primeira alegação, pode-se dizer que (P1), (P2) e (P3) são premissas
verdadeiras tanto para a mulher que está grávida e quer abortar12 quanto para o feto
que passou a existir dentro do útero de sua mãe. Considerando isso, e levando em
conta que na grande maioria dos casos de aborto não há apenas um simples
desligamento entre mãe e filho que respeitaria a integridade física de ambos, mas há
um ato homicida direto contra a vida do feto (SCHMUTZ, 2002, p. 552-553), é possível
alegar que o direito deste à integridade física foi desrespeitado. A maioria dos casos
de aborto ocorre mediante o extermínio direto do bebê, que deve ser estraçalhado
(curetagem), desmembrado parte por parte (dilatação e evacuação), ou envenenado
(indução) para que só então haja a efetiva retirada dos restos mortais dele de dentro
do útero materno. Em suma, não houve respeito ao direito à integridade física que o
bebê possuía13. (SCHMUTZ 2002, p. 552).
Logo, para a imensa maioria dos casos de aborto, a analogia do violinista falha,
pois grande parte de seu apelo retórico está baseado na intuição de que uma mera
separação entre corpos não parece ser imoral já que é preciso respeitar o direito à
integridade física dos indivíduos. Entretanto, a analogia não se assemelha bem ao
que acontece na grande maioria dos casos de aborto.

12 Isso é verdade para a mulher pois 1) o feto viola a integridade física dela, 2) a continuidade da
existência do feto dentro do útero se dá mediante um alto custo para a mãe e, por fim, 3) a presença
do feto dentro do útero materno se dá sem o consentimento materno. Os três pressupostos também
são verdadeiros para o feto pois 1) o ato abortivo viola a integridade física do feto levando-o à morte,
2) a continuidade da existência da mulher sem que o feto esteja em seu útero se dá mediante um alto
custo para o feto e, por fim, 3) a retirada do feto de dentro do útero materno se dá sem o consentimento
do feto.
13 Esse argumento é conhecido na literatura como objeção do respeito à integridade corporal (KACZOR,

2015, p. 158).

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ALBUQUERQUE, G. Aborto e regras de determinação: uma crítica da analogia do violinista de J. Thomson a partir de
argumentos dedutivos

Contudo, resta-nos analisar os procedimentos de aborto (histeretomia,


histerectomia) que mais se assemelham ao que a analogia do violinista sugere quanto
ao procedimento que apenas separaria os dois seres humanos (CRISTOPHER
KACZOR, 2015, p. 160). Tanto na histerectomia quanto na histeretomia, o feto é
cirurgicamente retirado de dentro da mãe e, caso ainda não tenha desenvolvido
satisfatoriamente os seus pulmões, morrerá por “insuficiência pulmonar”. Nesses dois
procedimentos, o risco de morte para a mãe é muito maior e, por isso, eles são
raramente utilizados (SCHMUTZ, 2002, p. 553).
O problema com os dois procedimentos acima é que, por mais que
aparentemente tenha havido apenas um “desplugamento” entre os dois corpos, deve-
se perguntar: o feto teve o seu direito à integridade corporal respeitado? Se aqueles
que argumentam favoravelmente à moralidade do aborto estão preocupados com a
defesa da integridade corporal de pessoas humanas, então parece contraditório que
não estejam preocupados com a integridade corporal do feto, que já é reconhecido,
por hipótese, na analogia do violinista como uma pessoa humana (THOMSON, 1971,
p. 48).
Diante disso, poder-se-ia argumentar que no aborto através da histerectomia,
por exemplo, não se fere o direito à integridade física do feto pois não se realiza um
assassinato direto, mas sim uma espécie de omissão de socorro na qual a mãe não
está obrigada moralmente a ajudar o feto a continuar vivendo. Contudo, esse contra-
argumento não parece ser correto, conforme será mostrado na crítica à segunda
reconstrução argumentativa.
Além disso, ainda que abortar um feto através da histerectomia, por exemplo,
pudesse implicar numa morte cujo motivo pudesse ser justificadamente classificado
como omissão de socorro, é difícil argumentar que seria uma atitude moralmente
correta permitir que uma pessoa morresse uma vez que o ato de salvá-la seria tão
custoso, para quem poderia ajudar, quanto o ato de deixá-la morrer.
A implicação disso no presente contexto é que a premissa quatro seria falsa,
pois a continuação da gestação não obrigaria a mulher a realizar uma atividade mais
penosa do que o próprio processo do aborto. A afirmação da semelhança de
magnitude do custo das duas opções de ação para a mulher será argumentada a
seguir, quando se estiver tratando da reconstrução argumentativa três.

Kairós: Revista Acadêmica da Prainha. Fortaleza, v. 18, n. 2, 2022 59


ALBUQUERQUE, G. Aborto e regras de determinação: uma crítica da analogia do violinista de J. Thomson a partir de
argumentos dedutivos

Respondendo à segunda reconstrução, a premissa cinco claramente não é


aplicável ao caso de uma mãe desejando abortar, por dois motivos. O primeiro motivo
consiste em negar a aplicabilidade, ao caso do aborto de bebê fruto de ato sexual
consentido, da parte da premissa cinco que diz “de um problema que ela não foi
responsável por gerar”, já que a gravidez indesejada só foi possível porque a mãe
assumiu os riscos de engravidar ao decidir realizar o ato sexual.
Em outras palavras, a existência da criança, que aqui já é hipoteticamente
considerada uma pessoa conforme a assunção feita na analogia do violinista de
Thomson, é criada devido a um ato da mãe, algo que não ocorre na relação entre
mulher raptada e violinista. Em outras palavras, a relação (x é mãe de y) não possui
uma adequação analógica com a relação (x tem uma relação com y), pois ainda que
x em ambos os casos seja uma mulher, a relação entre x e y no segundo caso é
indeterminada ou indiferente enquanto no primeiro caso é uma relação de um vínculo
específico, o vínculo materno.
Diante disso, convém observar que, em uma omissão de socorro em que não
se está moralmente obrigado a ajudar, a pessoa que poderia vir a socorrer a outra
necessitada não causou direta nem indiretamente a situação na qual a pessoa em
apuros está. Por exemplo, em um caso de atropelamento, se houver uma omissão de
socorro de um motorista culpado para com a vítima, considera-se que o condutor agiu
moralmente errado ao não prestar socorro, cometendo um crime segundo a legislação
de alguns países ou, ao menos, cometendo atos considerados profundamente
desumanos mesmo em países onde a legislação não pune ainda esses casos (BBC,
2016).
O segundo motivo trata de negar que seja moralmente lícito livremente escolher
deixar de salvar a vida de alguém que somente você possui os meios para salvar,
ainda que esses meios sejam laboriosos e que você não tenha sido o responsável
pelo mal que a pessoa sofre14. Em outras palavras, uma vez que a mãe é justamente
a pessoa que guarda a maior relação de intimidade com o filho no nível físico, já que
somente ela é capaz de sustentar a vida da criança em seu útero, uma vez que não

14Aqui se supõe também que a escolha livre moralmente válida de salvar alguém não implique na
morte de outra pessoa inocente.

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argumentos dedutivos

existem alternativas para a transferência de um bebê entre úteros diferentes15; a mãe


deve esforçar-se para fazer o que está em seu alcance para salvar a vida do bebê.
Convém aqui lembrar que nem sempre escolher fazer aquilo que é certo implica na
escolha mais simples, mais fácil ou menos dolorosa.
Para esclarecer ainda mais essa situação, pode-se imaginar a seguinte
analogia16. Uma certa mulher compra um submarino e decide explorar o oceano,
começando pelo Alaska. Enquanto a mulher realiza todos os preparativos, uma
criança pequena que fugiu de seus pais entra no submarino e se esconde. A dona do
submarino inicia a viagem submergindo muitos metros de profundidade. Ela acha a
criança e, cheia de raiva, pensa no que deveria ser correto fazer.
A aventureira pondera que está muito distante de algum porto adequado para
aportar. Então, decide que se ela: 1) não havia desejado que a criança entrasse no
submarino; 2) havia tomado algumas precauções razoáveis contra intrusos; 3) não
havia planejado comida e oxigênio suficientes para ambas continuarem a viagem
confortavelmente, havendo apenas o suficiente para a sobrevivência de ambas; 4)
não deseja estragar seus sonhos e projetos pessoais que incluíam desbravar o
oceano, dada a grande dificuldade para conseguir preparar a viagem; 5) acha que a
criança faz muito barulho e é muito incômoda; 6) sabe que o submarino pertence a
ela e ela possui o direito a manutenção do seu bem-estar dentro daquilo que lhe
pertence; então ela não agiria moralmente mal caso resolvesse expulsá-la
imediatamente do submarino, mesmo que a criança não saiba nadar, indo até a
superfície de maneira a deixar a criança abandonada ao mar e esperando a morte por
incapacidade de respirar, semelhantemente à maneira como os bebês nascidos muito
prematuros morrem, dado que crianças não são capazes de respirar debaixo da água.
É extremamente razoável afirmar que foi uma fatalidade a criança entrar no
submarino, mas que mesmo com todos os incômodos, não é moralmente correto que
a dona do submarino mate indiretamente a criança, colocando-a num ambiente, no
caso jogando para fora do submarino, para a qual a infante não está minimamente

15 Na literatura sobre bioética pode-se apontar um argumento que lembra essa objeção, apontando
para as responsabilidades legais presentes em vários países oriundas da relação biológica existente
entre dois seres humanos: um pai é legalmente obrigado a amparar financeiramente um filho
indesejado; um filho é legalmente obrigado a amparar o pai ainda que ele seja um mau pai; um irmão
é legalmente obrigado a amparar o irmão em grave necessidade (KACZOR, 2015, p. 172-176).
16 É uma analogia semelhante as presentes na literatura (KACZOR, 2015, p. 172).

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argumentos dedutivos

preparada para sobreviver por razões intrínsecas à sua natureza. Da mesma maneira,
não é correto que a mãe mate indiretamente seu filho extraindo-o de um ambiente
para o qual ele está preparado e colocando-o num outro ambiente para o qual ele não
está preparado ainda.
Uma crítica à terceira reconstrução argumentativa contida na analogia do
violinista consiste em afirmar que as premissas seis e sete não são aplicáveis à
situação da gravidez. A explicação para a não aplicabilidade da premissa sete se
encontra explicitada no argumento anterior. Por outro lado, pode-se dizer que a
premissa seis não é verdadeira para o aborto pois tanto o processo de um aborto
quanto o processo de levar uma gravidez até o fim representam exigências de mesma
magnitude, tanto para o corpo quanto para a mente da mulher17.
Para esclarecer o quanto o chamado “aborto seguro” possui riscos semelhantes
ou até superiores ao de uma gestação devidamente acompanhada, tenhamos em
mente que após um aborto, podem ocorrer complicações físicas imediatas como
hemorragias, infecção e lesão uterina. Podem ocorrer também agravos físicos tardios
como doença inflamatória pélvica, câncer de mama e prematuridade em gestações
posteriores (FRANTZ, 2019, p. 429).
Para se ter uma ideia inicial da frequência dos eventos adversos físicos
imediatos associados ao procedimento do aborto, observe-se que estudos mostram
que, dependendo do local onde o aborto é realizado, as complicações imediatas
devido ao aborto cirúrgico podem variar de 1% a 11% (LANFRANCHI, 2013, p. 95,102;
LEDERLE, 2015; TAYLOR, 2017), podendo ser quatro vezes mais frequentes nos
casos de aborto utilizando medicamentos (NIIMÄKI, 2009). A intervenção
farmacológica ou a intervenção cirúrgica na gestação acrescenta riscos à saúde da
mulher que não estavam presentes na trajetória normal da gestação.
Como exemplo de riscos acrescidos, devido exclusivamente à intervenção
médica associada ao aborto, tem-se o risco de lesões uterinas durante o procedimento
de intervenção cirúrgica, descobertas mediante visualização direta da pélvis, que
ocorrem em 3% dos abortos realizados no primeiro trimestre da gestação (KAALI,

17 Desenvolver-se-á a partir desse ponto, em vista de justificar a falsidade da premissa seis, um


argumento com uma estrutura epistemológica diferente dos até então exibidos, que foram argumentos
de natureza ética concatenados de maneira logicamente segura. Utilizar-se-á agora de um argumento
a partir de pesquisas de experimentos científicos e do que se pode afirmar com boa probabilidade a
partir do conjunto deles.

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1989). Essas lesões podem levar a graus variados de alterações no fluxo menstrual,
abortos espontâneos e infertilidade.
Além dos riscos físicos, imediatos e tardios, diversas pesquisas vem sugerindo
a existência de riscos psicológicos, de curto, médio e longo prazo, associados ao
aborto induzido e até mesmo ao aborto espontâneo, havendo também uma aparente
proteção que o parto concluído confere às mulheres em comparação com as mulheres
que nunca tiveram filhos. Esses estudos, grosso modo, sugerem o aumento na
probabilidade de adoecer mentalmente, ou até morrer, em anos posteriores após a
mulher realizar um aborto induzido por causas variadas (REARDON, 2002;
COLEMAN, 2013; REARDON, 2017).
Um dos estudos mais robustos publicados defendendo essa tese, que ainda é
disputada no meio acadêmico, foi uma revisão sistemática de vinte e dois estudos
seguida de uma meta-análise, conduzida pela pesquisadora Priscilla Coleman e
publicado em 2011 numa revista de grande prestígio internacional, a British Journal of
Psychiatry (COLEMAN, 2011).
A partir dessas informações pode-se dizer que a informação que a ciência nos
proporciona hoje a respeito da relação entre saúde mental e aborto é que o aborto, na
melhor das hipóteses dado o caráter ainda não resolvido da questão18, provoca danos
somente em algumas mulheres que já estão com problemas mentais ou que são
forçadas a abortar. Na pior das hipóteses, o aborto implicaria num grande aumento de
risco de agravo mental para todas as mulheres.
Diante desse breve resumo das informações que a ciência nos proporciona a
respeito dos possíveis danos extras de natureza física, imediatos ou a longo prazo,
do aborto e dos possíveis agravos extras à saúde mental das mulheres que

18Atualmente, há grande discussão sobre a relação causal entre aborto, induzido ou espontâneo, e
problemas mentais, havendo também estudos que contestam as conclusões dos trabalhos acima
mencionados alegando problemas metodológicos, como amostragem de grupo controle enviesada, uso
de instrumentos de medida em saúde mental inadequados, incompleto ajuste para eliminação de
variáveis de confusão, tempo de observação inadequado, etc. (NATIONAL COLLABORATING
CENTRE FOR MENTAL HEALTH B, 2011; STEINBERG JR, 2014). Apesar dos resultados conflitantes
e das dificuldades metodológicas dos estudos, a A.P.A.,a mais prestigiada entidade médica de
psicologia, já reconhece que, em algumas circunstâncias (MAJOR B, 2008), como no caso de alguém
que possui previamente algum problema mental, o aborto está associado à piora do estado de saúde
mental do paciente e não o contrário. Além disso, pode-se dizer que a dúvida no mundo acadêmico
hoje repousa sobre a influência do aborto na vida psíquica da mulher é se ela é majoritariamente
negativa ou majoritariamente neutra, como se pode ver pelo posicionamento da A.P.A.

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engravidaram indesejadamente e abortaram frente àquelas que viveram a mesma


situação e não abortaram, e seguindo a própria linha de pensamento de Thomson
para a qual seria moralmente errado negar a assistência ao violinista se fossem
necessários somente uma hora para socorrê-lo (THOMSON, 1971, p. 59), pode-se
argumentar que a diferença de “danos” ou “incômodos” causados à mãe pelo
processo de uma gestação natural e pelo processo de aborto não justifica a
moralidade do aborto, porque nos dois processos existem “danos” ou “incômodos” de
semelhante magnitude, se formos ainda muito benévolos com a opção do “aborto
seguro”, com a diferença de que no processo de uma gestação natural temos o
enorme benefício de salvar uma vida a mais.
Uma crítica a quarta alegação pode ser feita considerando o que as três críticas
anteriores já concluíram: o respeito a integridade física de uma pessoa inocente não
pode ser unilateral; abortar não é incorrer em omissão de socorro moralmente válida;
todos os riscos envolvidos em um aborto são de magnitude maior ou igual aos riscos
envolvidos em uma gestação completa. Isso significa que das premissas oito a onze
não se segue que a conclusão tirada da situação S se aplique à situação T.
Diante de casos de estupro o que a mãe está moralmente livre para recusar é
de cuidar do filho após a gestação. Entretanto, ela não estaria moralmente isenta caso
decidisse matar esse filho, já que é possível argumentar que o aborto devidamente
assistido carrega em si riscos à saúde da mulher, em termos físicos e psíquicos, de
magnitude semelhante ou até maior aos riscos associados a dar à luz. Dessa forma,
a escolha ética a se fazer é pela opção que salva o maior número de vidas.
Uma crítica à quinta alegação consiste em observar que o simples elo biológico
entre mãe e filho já enseja algum tipo de responsabilidade da mãe com a manutenção
da vida de seu filho em seu útero, caso esse filho tenha sido fruto de uma relação
sexual consentida. Essa responsabilidade ocorre porque é necessário que as pessoas
se responsabilizem pelas consequências de seus atos quando os mesmos são
intencionais, livres e feitos com o conhecimento das possíveis consequências
oriundas das características intrínsecas ao ato, especialmente se a falta de
responsabilidade ameaçar a vida de uma outra pessoa que, como tal, deve ter sua
integridade física protegida. Diante disso, a premissa treze não se aplica à situação
da gravidez devido a uma relação sexual consentida.

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argumentos dedutivos

Para esclarecer os efeitos danosos da ausência da responsabilidade acima


citada, pode-se pensar na seguinte analogia, que visa refutar argumentos construídos
sobre essa base da “ausência de responsabilidade da mãe pelo seu filho indesejado”,
buscando amparo em distinções como “responsabilidade pela existência” e
“responsabilidade pelo suporte à vida”19 e no direito à integridade corporal, entendido
aqui como direito a ter seu corpo intacto e a usá-lo sem ser forçado por outros.
A analogia inicia com um paciente que contrata um médico cirurgião, o único
da região onde ele mora, para que o profissional faça uma cirurgia urgente de alta
complexidade e cuja ausência, ou mesmo atraso, implicaria em alta probabilidade na
morte do paciente. O cirurgião concorda em realizar o procedimento e todos os
preparativos são feitos o mais rápido possível, de modo que se consegue marcar a
data da cirurgia para o último dia viável para o sucesso da intervenção. No dia da
cirurgia, logo antes de seu início, com o paciente já anestesiado, o médico começa a
sentir fortes dores nas costas, mas não fortes o suficiente para impedi-lo de executar
seu trabalho. O médico inicia a cirurgia mesmo assim. Entretanto, ao longo da cirurgia,
sabendo a duração longa da mesma e observando o tamanho do sofrimento que
precisaria suportar para realizar a cirurgia até o fim, desiste da operação e aceita, com
tristeza, a morte do paciente, que possuía ainda alguns de seus órgãos fora do seu
corpo devido ao procedimento cirúrgico e, na ausência do cirurgião, iria morrer.
Os familiares do paciente reclamam indignados com o médico, afirmando que
o paciente tem o direito à vida e que o médico sabia que seria possível que surgissem
incômodos para o profissional durante a cirurgia, já que ela seria longa e estressante,
mas que, mesmo assim, ele havia concordado em fazê-la. Diante dessa situação, o
médico entende que seria um ato de grande bondade de sua parte aceitar sofrer as
intensas dores nas costas durante a cirurgia em prol de salvar a vida do paciente,
contudo nem o paciente, nem seus familiares têm direito de utilizar o corpo do médico
à maneira que quiserem, afinal, assim como o paciente possui direito à vida e à
integridade física, o cirurgião também o possui.
Os familiares ficam inconformados e dizem que, se ao menos o paciente
soubesse da inconstância do médico no cumprimento dos seus acordos, ele não teria
aceito ser operado por um profissional tão relapso. Dizem também que, se ao menos

19Essa distinção é usada pelo filósofo David Boonin, que se inspira na analogia do violinista de
Thomson para fazê-la (BOONIN, 2003).

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argumentos dedutivos

o profissional tivesse desistido de iniciar a operação uma vez que ele sabia que suas
costas poderiam continuar a doer durante a cirurgia, o doente poderia ter tentado
remarcar a cirurgia com outra pessoa, ao invés de morrer dentro da sala de cirurgia
com seus órgãos fora de seu corpo.
Diante dessa afirmativa, o médico responde explicando que tomou todas as
precauções razoáveis para manter-se em boa forma física antes da cirurgia e que não
pode ser responsabilizado por fatalidades.
Após a leitura dessa analogia, a questão que se coloca é: uma vez que
aceitemos que a mãe que concebe um filho indesejado, mas fruto de uma relação
consentida, não possui responsabilidade pelos potenciais resultados do ato sexual e,
portanto, permaneceria moralmente irrepreensível caso abortasse alegando que
ninguém possui direito ao uso do seu corpo a não ser ela mesma, então como se
poderia responsabilizar esse médico por sua atitude nesse caso? Na verdade, o
aborto nessas condições é ainda pior do que na analogia acima exposta, uma vez que
o bebê não foi consultado pela mulher se desejaria “arriscar-se” em meio a uma
gravidez da qual a mulher poderia desistir antes de dar à luz.
Essa analogia expõe o abismo moral em que o ser humano mergulharia uma
vez que aceitasse como éticas a atitude de uma mãe que nega ser responsável pelo
fruto de uma atividade sexual consentida, uma vez que sempre durante tal atividade
há o risco, inerente a ela, da concepção. Se isso fosse aceito, não somente a situação
da desistência de um médico cirurgião no meio da operação, acarretando a morte do
paciente, poderia ser aceitável, mas também seria aceitável a desistência de qualquer
outro profissional antes da conclusão de seus trabalhos, alegando a ausência de
dever que um profissional tem para com o benefício de um paciente mediante qualquer
dificuldade que o profissional encontre no caminho.
Se uma teoria ética não é capaz de incluir em suas reflexões a
responsabilização do indivíduo pelos potenciais efeitos esperados devido a
mecanismos naturais de correlação entre eventos (ato sexual heterossexual e
concepção da vida, por exemplo), tal teoria não será capaz de justificar
adequadamente nenhuma outra correlação entre eventos, ainda que feita mediante o
acordo prévio livre e consciente entre as partes, porque sempre se poderá recorrer ao
direito ao resguardo da integridade física, ainda que ele implique na perda do direito
à vida que o outro ser humano, que esperava o cumprimento do acordo, possui.

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Considerações Finais

O argumento analógico de Thomson, reconstruído sob os cinco aspectos


expostos no presente artigo, foi considerado inválido dado que várias de suas
premissas presentes na reconstrução não são verdadeiras no contexto do domínio
alvo da analogia. A primeira reconstrução é inválida porque as premissas um, dois e
três são aplicáveis tanto à mãe que deseja abortar quanto ao bebê no útero da mãe,
o que implica que o apelo ao direito à integridade física deve proteger tanto a mulher
quanto o bebê.
A segunda reconstrução é inválida porque a premissa cinco claramente não é
aplicável ao caso de uma mãe desejando abortar, por dois motivos. O primeiro motivo
consiste em negar a aplicabilidade, ao caso do aborto de bebê fruto de ato sexual
consentido, da parte da premissa cinco que diz “de um problema que ela não foi
responsável por gerar”, já que a gravidez indesejada só foi possível porque a mãe
assumiu os riscos de engravidar ao decidir realizar o ato sexual. O segundo motivo
trata de negar que seja moralmente lícito livremente escolher deixar de salvar a vida
de alguém que somente você possui os meios para salvar, ainda que esses meios
sejam laboriosos e que você não tenha sido o responsável pelo mal que a pessoa
sofre.
A terceira reconstrução é inválida porque as premissas seis e sete não são
aplicáveis à situação da gravidez. A explicação para a não aplicabilidade da premissa
sete se encontra explicitada na refutação à segunda reconstrução. Por outro lado,
pode-se dizer que a premissa seis não é verdadeira para o aborto pois tanto o
processo de um aborto quanto o processo de levar uma gravidez até o fim
representam exigências de mesma magnitude, tanto para o corpo quanto para a
mente da mulher.
A quarta reconstrução é inválida por causa da consideração das três críticas
anteriores. Considerando o que elas já concluíram: o respeito à integridade física de
uma pessoa inocente não pode ser unilateral; abortar não é incorrer em uma omissão
de socorro moralmente válida; todos os riscos envolvidos em um aborto e em uma
gestação levada até o fim são de magnitudes, na melhor das hipóteses para o aborto,
semelhantes. Isso significa que das premissas oito a onze não se segue que a
conclusão tirada da situação S se aplique à situação T.

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A quinta reconstrução é inválida porque a premissa treze não se aplica à


situação do aborto, uma vez que nessa situação há pelo menos o laço biológico. Além
disso, o laço biológico da mãe que concebeu um bebê fruto de relação sexual
consentida enseja responsabilidade para com a manutenção da vida do bebê
enquanto ele precisar permanecer em seu útero. Uma teoria ética que não reconheça
essa responsabilidade não será capaz de justificar adequadamente diversas
responsabilidades extremamente necessárias para a vida em sociedade, tais como as
oriundas do âmbito profissional.

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Recebido em: 06.04.2022.


Aprovado em: 11.11.2022.

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