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1 (Spring 2022)
Abstract: In this essay, I analyze the oeuvre and performance of the Portuguese
singer and songwriter António Variações, in parallel with David Bowie. I examine
the apocalypse queer imaginary present in their work and artistic personas. In
different decades and countries, both were interventional in gender issues. For this,
they used ancient apocalyptic universes in their musical work, instilling them with
a personal and queer postmodern vision. To some extent, both were—Variations
in Portugal in the 1980s and Bowie in England in the 1970s—apocalyptic gay
messiahs. I examine the lyrics of two of their most significant songs in the fin-de-
siècle context, using José Bragança de Miranda’s and Jacques Derrida’s theories
about the apocalyptic to frame them.
Este artigo foi realizado com o apoio da Bolsa de Doutoramento em Estudos Culturais da
Universidade de Aveiro (BD/REITORIA/9316/2020). O autor já publicou um artigo no qual trata de
algumas temáticas similares a estas (Cf. Branco 2017).
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Branco
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Aliás, repare-se que, em certa medida, o próprio emergir das artes de massa e o protagonismo que
a cultura popular, a partir de certa altura, tomou (e, em consequência, uma certa fragmentação da
high culture) foram considerados per se apocalípticos. Esse fenómeno foi encarado, por uma parte
das elites intelectuais ocidentais, como o sinal de uma espécie de fim da civilização nos moldes em
que ela se tinha estruturado até então. Umberto Eco tratou este tema, de modo brilhante, na sua
marcante obra Apocalípticos e integrados, para a qual remeto. Ou seja, e reportando-nos aos tópicos
deste artigo, a música rock foi, no seu nascimento, e em várias épocas, considerada “demoníaca”, “a
música do diabo”, “caótica”, “apocalíptica”, entre outros epítetos. Repare-se que por ser “ruidosa”,
tocada em volume alto, ou o facto de os cantores, muitas vezes, se exprimirem numa forma de cantar
próxima do grito trouxe em si significações e aportes apocalípticos.
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Mas por que é que David Bowie se salienta entre os músicos que faziam parte dos
hábitos de audição de Variações? Nuno Galopim, sobre a obra do cantor português,
opina que “A sua música é aparentemente simples, mas aquilo é altamente
2
Silva propõe uma abordagem original a esta questão, pois, em vez de se focalizar, por exemplo, na
indumentária do cantor, localiza a fonte de queerness em Variações na sua performance vocal,
correlacionando-a com as figurações fadísticas de duas divas icónicas, Severa e Amália: “Variações’s
recording of fado and proclivity for its vocal techniques, when considered alongside his homoerotic
performances and compositions, provoke a consideration of the genre’s affective dispersions of
sex.… Pinheiro’s confusion underscores how such voltinhas were out of place in Lisbon’s
underground music scene, yet they are deployed by Variações in a vocal landscape of fado
topography, marked by dramatic turns of improvisation that sound out particularly feminine desire
and deviance” (127).
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Branco
Para além de ouvir Bowie nas discotecas que frequentava e nos discos que
adquiria, os caminhos geográficos e temporais percorridos por Variações, de
algum modo, cruzaram-se com os do cantor britânico, em momentos importantes
da carreira deste último. Acerca da sua estadia em Londres, Variações foi muito
explícito, dizendo: “ainda guardo a imagem da agonia dos hippies e do nascimento
da geração seguinte” (Duarte 2–3). A “geração seguinte” refere-se ao glam-rock,
onde pontificavam nomes como Marc Bolan e Queen. Variações esteve emigrado
em Londres, onde visitava museus e discotecas com frequência, em 1970–71,
precisamente na altura em que este pujante movimento musical e artístico eclodiu.
David Bowie era um dos nomes mais relevantes desse movimento, que fez a
transição da contracultura associada ao Flower Power Movement para o Punk.
Além disso, o cantor britânico fez furor ao atuar, em 1974, num famoso
programa de televisão holandês, encarnando Halloween Jack, o narrador-
personagem do álbum Diamond Dogs, pleno de referências profético-distópicas,
lançado nesse mesmo ano. Bowie recebeu um importante prémio à época, na
Holanda, o Dutch Edison Award (Top Pop). A foto concernente a essa atuação na
televisão holandesa tornou-se a mais difundida de Bowie, referente a essa sua fase
artística. E, note-se, foi precisamente em 1974 que Variações esteve na Holanda.
É, por isso, altamente improvável que a marcante atuação de Bowie tivesse
escapado a alguém integrado na cultura jovem de Amesterdão, e tão atento às
novidades artísticas, como era o seu caso.
No entanto, o dado mais revelador sobre a proximidade de Variações com o
universo musical de Bowie é aquilo que ele próprio afirmou sobre o cantor
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britânico e que não deixa margem para quaisquer dúvidas. Variações afirmou,
convicto: “David Bowie é uma das figuras do século. Uma fonte de inspiração para
mim” (Duarte 3). Vejamos, então, nos pontos seguintes, o que aproximava, em
concreto, os universos artísticos dos dois cantores.
No início da sua carreira, o cantor inglês queria ser poeta e demorou algum tempo
até optar em definitivo pela vocação musical. Era um jovem talentoso e
multifacetado: cantava e compunha, escrevia poesia e prosa, desenhava e pintava,
tinha uma grande apetência pelas artes dramáticas, nas quais investiu bastante,
tendo tido formação em mímica com o abalizado Lindsay Kemp (Leigh 63–77).
Mais tarde, participou em vários filmes. Concebeu, assim, a sua arte pop-rock
como um teatro musical, onde todos estes seus talentos se pudessem conjugar
expressivamente.
3
O vocábulo “holismo” foi cunhado por Jan Christian Smuts na sua obra Holism and Evolution
(1927). Este conceito foi posteriormente desenvolvido e aplicado em diversas áreas, desde as ciências
duras até às humanidades, por vários autores, Edgar Morin, John Muir e David Bohm entre eles.
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Branco
Esta noção de Teatro Total aplicada ao universo musical está também muito
presente em Variações e foi um dos elementos que contribuiu para o seu impacto
no Portugal de 80.5 Para o cantor português, a descoberta do pop-rock enquanto
arte interartística e intermediática teve uma grande importância, visto que, só aí,
ele sentiu ter encontrado o seu rumo artístico: “Tentei por todos os meios vir para
a música e o grande passo que eu dei foi um espetáculo que eu montei em Lisboa
com uma parte cénica, com muito teatro à mistura e a música” (Agora Nós). Sobre
esta fase essencial para o percurso posterior do cantor português, Pedro Ayres
Magalhães, que o viu tocar ao vivo nos primórdios da sua carreira, testemunha o
seguinte:
Os concertos dele eram como se fossem um happening. Era como
se fosse uma instalação cultural, uma happening-pop. Ele figurava
4
Poder-se-ia aduzir a noção postulada por Wagner de Obra Total, contudo, quer em Bowie, quer em
Variações, não me parece que se aplique. O conceito de Obra Total é, sobretudo, um conceito
operático. Talvez fizesse sentido, por exemplo, em relação ao Queen de Freddie Mercury. O Teatro
Total épico, cinemático, musical e com uma componente de intervenção sociopolítica de Piscator
parece-me mais em consonância com os intuitos estéticos de Variações e Bowie.
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Em adenda, acrescente-se que a obra de Erwin Piscator está ligada ao Teatro Épico de Bertolt
Brecht. Portanto, há, nos dois, um arreigado traço político. Ou seja, o teatro, em ambos, está ao
serviço de ideais políticos e o público é levado a refletir sobre o que vê desenrolar-se em cena. A arte
não serve apenas para espelhar a realidade, mas sim para a moldar, para a transformar.
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Note-se que havia, antes de Variações, alguns grupos portugueses de rock progressivo, como o
Tantra, que, à semelhança do Genesis, já utilizavam slides, máscaras, projeção de filmes
acompanhando as canções, etc. Contudo, estavam longe da conceção, de inspiração piscatoriana, de
Bowie e Variações, pois o seu intuito era meramente lúdico. Ora, não podemos nunca esquecer que,
no cantor português e no cantor britânico, todos esses meios estavam ao serviço de uma forte
componente socio-interventiva, em especial correlata às questões de género. O seu objetivo
primordial era despertar consciências, recorrendo, amiúde, à provocação e instigando, à semelhança
do Teatro Épico, a participação ativa do público.
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Colecionadores de ideias
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Bowie afirmou: “Sou um colecionador. Parece que sempre colecionei personalidades. Ideias. Tenho
uma filosofia de miscelâneas e amálgamas” (Leigh 135). Por sua vez, Variações, ao perguntarem-lhe
o que era para ele “o sonho”, respondeu, de modo rimbaudiano: “Todos os outros que eu gostava de
ser” (Duarte 4).
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David Bowie também tinha uma coleção de arte Déco e Arte Nova (Leigh 94).
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em forma de anel, advêm deste seu interesse pelas artes plásticas. Luís Carlos
Amaro, que foi baixista de um dos grupos que acompanhou Variações, recorda
esta faceta holística do cantor, dizendo que ele
As entrevistas eram também encaradas pelos dois cantores como uma espécie de
ensaios estéticos em modalidade oral, funcionavam como manifestos artísticos,
onde deixavam registadas as suas ideias em arquivo mediático. Foi o que sucedeu
quando Bowie afirmou publicamente a sua dissidência sexual. Ou quando, de
modo contíguo, Variações referia que “A Homossexualidade é apenas uma opção
sexual. Deve ser assumida por quem pratica e respeitada pelos outros” (Branco,
António 427–28). Mas, note-se, para eles a verdade estético-poética não tinha de
corresponder, na íntegra, à verdade factual. Por exemplo, quando Variações falava
de Amália, mas não referia artistas estrangeiros, estava com isso a fazer uma
proposta estética para a ideia de portugalidade que incluía o fado e artistas de uma
geração anterior ao boom do rock cantado em português, o que não quer dizer que
não apreciasse cantores e songwriters anglo-saxónicos.
Além das confluências já referidas, existem outras de igual importância: os
telediscos, os arranjos gráficos dos trabalhos discográficos, o cuidado nas
apresentações ao vivo, as referências literárias, que eram um aspeto muito
importante no trabalho de ambos.
Em suma, todos estes elementos confluíam para um pop-rock como arte
imersiva, holística, e sinalizava a sua constante sede de ideias novas e de não
aceitar espartilhos de nenhuma espécie. A este título, repare-se no panegírico do
proteísmo, contido na seguinte letrapoema de Variações, “Erva daninha a alastrar”.
Repare-se como há uma recusa pelas formas fixas em favor da fluidez e da
transformação: a pedra evolui para o barro e este para uma forma animal. A própria
erva, note-se, é rizomática, não fixa, proliferante. Há um elogio da mudança e da
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Intervenção sociopolítica
Entendido num sentido lato e apartidário, existe nos dois artistas uma forte
componente de intervenção sociopolítica que deve ser devidamente salientada,
dado que é um dos pilares mais importantes da obra e legado de ambos. Nos seus
discursos públicos, não deixaram a esse respeito quaisquer dúvidas. Mais do que
ser meramente um cantor, um pintor ou um poeta, Bowie queria ser um instigador
de novos comportamentos e ideias e Variações manifestou uma posição similar:
Como se depreende, a obra dos dois artistas está longe de ser apenas arte pela arte:
tem intenções mais sérias e profundas. Pietro Deandrea chama a nossa atenção para
o pendor político de Bowie:
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Queerness e fim-do-mundo
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pródiga em figurações alusivas aos textos bíblicos escatológicos, caso dos anjos e
dos videntes que protagonizam algumas das suas canções, entre elas “Anjinho da
guarda” e “Linha-Vida”. A vidência e a profecia são topoi muito presentes no seu
trabalho.
Por sua vez, Khodadadegan et al. inserem a tonalidade apocalíptica num
contexto de pós-modernidade:
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Não foi apenas Lennon a mostrar o seu descontentamento (Vd., por exemplo, a canção “God”) e a
fazer um balanço negativo sobre os ideais dos anos 60. Bob Dylan, em vários momentos, manifestou
opiniões similares (Cf. Crónicas). Sobre o seu papel nessa época, chegou a afirmar: “não me via
como um cantor de protesto … tinha havido um grande engano” (67).
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Note-se como alguns dos acontecimentos mais caraterísticos deste tempo pós-moderno, em que
vivemos, se enquadram perfeitamente nesta moldura conceptual, como é o caso do terrorismo e da
pandemia.
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Esta canção de Variações foi posteriormente recriada pelo Mão Morta em 1994, e por Márcia com
o Dead Combo em 2013, em dois álbuns de homenagem ao cantor.
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Variações refigures the fadista and her vocal repertoire through his
body and voice in a trans formation that casts fado as affect and
story of queer bodies and desires, making its public complicit in
the process. Thinking fado as queer affect and story through
Variações foregrounds the genre in deviance. Fado performances
emerge as a transgressive and promiscuous relationality of bodies
marked by moments of intensity. (128)
O que o cantor afirmou perante o país, através da sua obra e das isotopias
apocalípticas contidas nela, foi que as pessoas com identidades sexuais diferentes
não só faziam parte do Portugal pós 25 de Abril, mas eram também uma parte
importante da identidade e da cultura portuguesa. Não valia, por isso, virar a cara
para o lado e fingir que eles não existiam, pois eles faziam-se ouvir, alto e bom
som. Iniciou-se, por essa altura, um caminho libertário que não mais parou e
Variações esteve sempre, corajosamente, na linha da frente.
Obras citadas
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Branco
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por Eoin Devereux, Aileen Dillane e Martin J. Power, Routledge, 2015, pp. 2–
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Vários. Variações: As canções de António. EMI-Valentim de Carvalho, 1994.
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