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Livro Filosofia Da Química No Brasil - 48d206

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Filosofia da Química no Brasil

Diretores da Série:

Prof. Dr. Harryson Júnio Lessa Gonçalves


(Unesp/FEIS)

Prof. Dr. Humberto Perinelli Neto


(Unesp/IBILCE)

Comitê Editorial Científico:

Prof. Dr. Adriano Vargas Freitas Prof. Dr. João Ricardo Viola dos Santos
Universidade Federal Fluminense (UFF) Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)

Prof. Dr. Alejandro Pimienta Betancur Prof. Dr. José Eustáquio Romão
Universidad de Antioquia (Colômbia) Universidade Nove de Julho e Instituto Paulo Freire (Uninove e IPF)

Prof. Dr. Alexandre Pacheco Prof. Dr. José Messildo Viana Nunes
Universidade Federal de Rondônia(UNIR) Universidade Federal do Pará (UFPA)

Prof. Dr. José Sávio Bicho de Oliveira


Prof.ª Dr.ª Ana Clédina Rodrigues Gomes
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)
Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA)
Prof. Dr. Klinger Teodoro Ciriaco
Prof.ª Dr.ª Ana Lúcia Braz Dias Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR)
Central Michigan University (CMU/EUA)
Prof.ª Dr.ª Lucélia Tavares Guimarães
Prof.ª Dr.ª Ana Maria de Andrade Caldeira Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Prof. Dr. Marcelo de Carvalho Borba
Prof. Dr. Antonio Vicente Marafioti Garnica Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP)
Prof.ª Dr.ª Márcia Regina da Silva
Prof. Dr. Armando Traldi Júnior Universidade de São Paulo (USP)
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)
Prof.ª Dr.ª Maria Altina Silva Ramos
Prof. Dr. Daniel Fernando Johnson Mardones Universidade do Minho, Portugal
Universidad de Chile (UChile)
Prof.ª Dr.ª Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Prof.ª Dr.ª Deise Aparecida Peralta
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Prof.ª Dr.ª Olga Maria Pombo Martins
Universidade de Lisboa (Portugal)
Prof. Dr. Eder Pires de Camargo
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) Prof. Dr. Paulo Gabriel Franco dos Santos
Universidade de Brasília (UnB)
Prof. Dr. Elenilton Vieira Godoy
Universidade Federal do Paraná (UFPR) Prof. Dr. Ricardo Cantoral
Centro de Investigação e Estudos Avanços do Instituto Politécnico
Prof. Dr. Elison Paim Nacional (Cinvestav, México)
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Prof. Dr. Rodrigo Ribeiro Paziani
Prof. Dr. Fernando Seffner Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Prof. Dr. Vlademir Marim
Prof. Dr. George Gadanidis Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Western University, Canadá
Prof. Dr. Wagner Barbosa de Lima Palanch
Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL)
Prof. Dr. Gilson Bispo de Jesus
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
Filosofia da Química no Brasil

Organizadores:
Jackson Gois
Marcos Antonio Pinto Ribeiro
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.behance.net/CaroleKummecke

O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são


prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de
inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Todos os livros publicados pela Editora Fi


estão sob os direitos da Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

http://www.abecbrasil.org.br

Série Processos Formativos - 9

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


GOIS, Jackson; RIBEIRO, Marcos Antonio Pinto (Orgs.)

Filosofia da Química no Brasil [recurso eletrônico] / Jackson Gois; Marcos Antonio Pinto Ribeiro (Orgs.) --
Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2019.

208 p.

ISBN - 978-85-5696-706-0

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Filosofia da química; 2. Ciência; 3. Brasil; 4. História da ciência; 5. Filosofia da ciência; I. Título.

CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Sumário

Prefácio...................................................................................................................... 9
José Antonio Chamizo

Apresentação ............................................................................................................ 21
Os Organizadores

1 ................................................................................................................................ 25
Filosofia da química: o relato de uma experiência
Kleber Cecon

2 ............................................................................................................................... 43
Filosofia com química, química com filosofia
Ronei Clécio Mocellin

3 ................................................................................................................................ 73
Investigações em Filosofia, Química e Currículo
Marcos Antonio Pinto Ribeiro

4.............................................................................................................................. 103
Ernst Cassirer: da Filosofia da Química à Semiótica
Waldmir Nascimento de Araujo Neto

5 .............................................................................................................................. 123
Uma aproximação pouco usual: a epistemologia de Jean Piaget e a Filosofia da
Química
Marcelo Leandro Eichler

6.............................................................................................................................. 143
Minha pequena história com a Filosofia da Química no Brasil
Nelson Rui Ribas Bejarano

7 .............................................................................................................................. 167
Aproximando filosofia da química, história da ciência e ensino de química:
trajetória e perspectivas
Paulo Alves Porto

8 ..............................................................................................................................191
Uma trajetória na Representação Química e Significação
Jackson Gois

Índice Remissivo ................................................................................................... 205


Prefácio

José Antonio Chamizo

A Filosofia da Química tem uma trajetória muito curta, e mais curta


ainda é a incorporação do seu ensino nos currículos escolares. Por isso,
este livro é uma linha divisória no breve e recente caminho andado na
América Latina. Seus organizadores conseguiram juntar três assuntos
que poderíamos considerar imiscíveis: a resenha bibliográfica dos
autores sobre as razões que os atraíram a este campo, seus interesses
atuais na Filosofia da Química e finalmente propostas de como deve ser
ensinada.
Juntei-me aos relatos revendo o longo processo que permitiu
identificar, vinte anos atrás, o que um pequeno grupo de químicos
dedicados ao ensino e ao currículo de química denominou como posição
dominante. Ou seja, como esse nome indica, a posição que prevalece
praticamente em todo o mundo. Inseri aqui partes dos textos de alguns
dos autores do presente trabalho para contextualizar a partir do Brasil as
preocupações e respostas que ali demos. Finalmente, resumo e especifico
a enorme quantidade de material bibliográfico que se encontram nessas
páginas, incorporando uma pequena lista de livros de Filosofia da
Química.
Em 1991, durante a realização da 11ª Conferência Internacional de
Educação Química em York, Inglaterra, como parte de um grupo de vinte
e oito professores e investigadores de diversos lugares do mundo
(lamentavelmente nenhum do Brasil) integrados a partir desse momento
no denominado Foro Internacional, fomos convidados a participar no
projeto Conceptual Structure of School Chemistry (CSSC), que estava
ocorrendo na Universidade de Utrech na Holanda. A ideia fundamental
10 | Filosofia da Química no Brasil

do projeto consistia em reconhecer se havia uma estrutura comum nos


currículos de química nos diferentes países e, caso assim fosse, identificar
suas origens. Depois da primeira reunião com todos os participantes, os
responsáveis do projeto escreveram um documento com cerca de dez
premissas agrupadas em três categorias sobre o ensino e a aprendizagem
de química. São elas:

• Categoria substantiva. Conceitos, relações e técnicas químicas como, por


exemplo, transformação química, aspectos de estrutura e ligação química, bem
como noções de análises qualitativas e quantitativas. Porém, nesse livro se vai
mais além; por exemplo, Waldmir de Araújo Neto, retomando Ernst Cassirer,
aponta:

A química não se converteu em ciência exata somente através do


refinamento constante de seus métodos de medida, mas fundamentalmente
por meio do aperfeiçoamento de seus instrumentos intelectuais, isto é,
através do caminho que teve de percorrer desde a simples fórmula química
até a fórmula estrutural. Em termos muito gerais o valor científico de uma
fórmula não só consiste em resumir situações empíricas dadas, mas em
provocar de certo modo novas situações. A fórmula estabelece problemas de
relações, conexões e séries que precedem a observação direta. É dessa forma
que uma fórmula chega a ser um dos maios mais importantes meios, ao qual
Leibniz chamou de “lógica do descobrimento”, a logica inventionis.

Sobre esse mesmo tema, insiste de maneira categórica Jackson Gois,


considerando esta e outras duas estruturas:

Isso nos leva de volta a questão central desse capítulo: qual a relação entre as
representações químicas e a elaboração de significados? Para a Química, o
Ensino de Ciências, a Filosofia da Ciência e a Filosofia da Química, a resposta
para essa pergunta é: significa porque representa. O que muda, de uma área
para outra, é o que está sendo representado pelas representações químicas: a
matéria (na Química), as concepções do cientista (no Ensino e na Filosofia da
Ciência) e uma concepção química (na Filosofia da Química). Nesse sentido,
o fundamento do significado é, atualmente, representacional.
José Antonio Chamizo | 11

• Estrutura filosófica. Fundamentos e metodologia da química como, por


exemplo, reducionismo, autonomia, realismo ou experimentação. Sobre este
assunto, Marcelo Leandro Eichler indica:

Conforme Giuseppe Del Re, a física teórica tende a ignorar os níveis


intermediários e tenta representar todos os sistemas como consistindo de
partículas elementares, ou de quase-partículas. Ele trouxe dois argumentos
em relação ao nível da complexidade. No primeiro, supõe que a coleção de
todos os níveis situados abaixo do qual dada coisa aparece como uma
unidade é essencial para uma completa descrição de sua realidade. No
segundo, entende que, a cada nível diminuído, a informação atual em dado
objeto é parcialmente latente e indeterminada. Portanto, ele argumentou
contra o reducionismo ao compreender que a realidade dos níveis superiores
não pode ser completamente predita, a menos que sejam conhecidos os
processos pelos quais as suas partículas elementares são postas juntas e a
natureza das propriedades emergentes. Na química, o autor contextualiza
esses argumentos criticando o reducionismo para os modelos orbitais das
propriedades dos materiais, da estrutura das substâncias químicas e de suas
transformações.

• Estrutura pedagógica. Objetivos e aproximações no ensino e aprendizagem da


química; por exemplo, a aprendizagem por descoberta ou a abordagem das
concepções prévias. Assim, Paulo Alves Porto aponta:

De forma resumida, a análise dos dados mostrou que as características mais


presentes nos discursos dos doutorandos a respeito da atividade química
foram sua presença profissional no setor produtivo, a possibilidade de
aplicações práticas, a existência de múltiplas interfaces com outras ciências e
o desenvolvimento de novas formas de explicação para os fenômenos. Em
relação às características do pensamento químico, os doutorandos
manifestaram concepções realistas, valorização das evidências
experimentais, e apontaram para o caráter qualitativo e relacional entre as
entidades químicas, bem como para a utilização de múltiplos modelos. As
entrevistas mostraram que o realismo químico, associado às entidades
submicroscópicas, tem papel operacional para os químicos em suas práticas
experimentais em laboratório. Esse realismo, que parece ser generalizado
entre os químicos, é reforçado pelo sucesso nas sínteses de substâncias e
materiais, pela consistência dos dados obtidos por meio de equipamentos de
caracterização estrutural, e vem contribuindo para o desenvolvimento da
12 | Filosofia da Química no Brasil

área. Entretanto, é preciso considerar que perspectivas realistas ingênuas, no


contexto do ensino de química, podem resultar em concepções alternativas a
respeito das entidades químicas, ou mesmo no desinteresse por essa ciência,
em virtude da incompreensão a respeito do processo que conduziu à
aceitação consensual da existência dessas entidades. Nesse sentido,
entendemos estar diante de uma distinção entre o contexto de produção do
conhecimento em química e o contexto de seu ensino, a qual requer a
explicitação e a problematização de questões filosóficas a fim de enriquecer a
formação dos professores de química.

O documento Conceptual Structure of School Chemistry, construído


depois da revisão de dezenas de livros texto publicados nas décadas de
1960 a 1990 em vários países e idiomas, foi submetido à consideração de
todo o grupo ao longo dos anos subsequentes. Baseados em nossa
própria experiência, os integrantes do denominado Foro Internacional,
comentamos e sugerimos correções deste primeiro documento, onde
encontramos uma grande quantidade de discrepâncias. Meus
conhecimentos sobre Filosofia da Ciência eram escassos, e se apoiavam
em Kuhn, Easlea e Bachelard, principalmente. Salvo o primeiro, todos os
outros eram praticamente desconhecidos para o restante do grupo, e o
que compartilhei foram em boa medida as ideias desses dois últimos
autores.
Pouco a pouco ficou claro que as premissas originais eram a
idealização sobre o currículo de química, construída a partir das ideias
que os responsáveis do projeto tinham sobre o ensino e a aprendizagem
em química, a partir da revisão de uma multidão de livros texto. É
conveniente recordar o papel que os livros-texto têm na formação dos
cientistas profissionais. Por exemplo, de acordo com Kuhn, que mais do
que nenhum outro filósofo insistiu na importância da educação na
conformação do que ele chama de “ciência normal” (KUHN, 1970, p.
214):

Porém, posto que os livros-texto são veículos pedagógicos para a perpetuação


da ciência normal, sempre que mudem a linguagem, a estrutura dos
José Antonio Chamizo | 13

problemas, ou as normas da ciência normal, tem, integralmente ou em parte,


que voltar a serem escritos.

A importância de Kuhn é manifestada também no presente livro,


como indica Kleber Cecon, em sua aproximação à Filosofia da Química:

As coisas mudaram um pouco quando eu li, pela primeira vez, a obra A


estrutura das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn, que por sinal tive
acesso devido a um trabalho de uma disciplina de licenciatura, que iniciei
logo após o bacharelado. Ali percebi que os dogmas a que eu estava exposto
tinham nome, eram os paradigmas. Nesta época em que eu já estava no
mestrado em química tomei uma ousada decisão. Assim que defendi meu
mestrado em química ambiental, acabei ingressando na graduação em
filosofia.

Avaliando a importância dos livros-texto na transmissão da ciência


normal, o mesmo Kuhn reconhece que não indicam como se construiu,
nem como se constrói o conhecimento científico (KUHN, 1977, p. 210):

Depois de tudo, os livros-texto se escrevem tempos depois dos


descobrimentos e dos procedimentos de confirmação cujos resultados
registram. Ademais, se escrevem com propósitos pedagógicos. O objetivo de
um livro-texto é o de dar ao leitor, da maneira mais fácil e econômica de
assimilar, um enunciado do que a comunidade científica contemporânea
acredita que sabe, assim como dos usos principais que se pode dar a esse
conhecimento. A informação relativa à forma em que se adquiriu esse
conhecimento – o descobrimento – e a razão de que tenha sido aceito pela
profissão – confirmação – é, no melhor dos casos, um excesso de bagagem.
Não obstante, incluir essa informação poderia aumentar os valores
“humanistas” do texto e fomentar a educação de cientistas mais flexíveis e
criativos, faria também que o texto se afastasse da facilidade de aprender a
linguagem científica contemporânea. Até o fechamento, só o último objetivo
foi tomado a sério pela maioria dos escritores de livros-texto de ciências
naturais. Em consequência, ainda que os textos sirvam para que os filósofos
descubram a estrutura lógica das teorias científicas terminadas, é provável
que sirvam mais para confundir que para ajudar o neófito que reivindica
métodos produtivos. Com a mesma esperança, poderia se buscar em um
livro-texto sobre linguagem, de nível universitário, a caracterização
14 | Filosofia da Química no Brasil

autorizada da literatura correspondente. Os textos sobre idiomas, como os


textos científicos, ensinam a ler a literatura, porém não a criar ou avalia-la.

Assim, pouco a pouco, e também com resultado da discussão


compartilhada através de cartas, já que todo esse processo foi antes do
uso generalizado da internet, ficou claro que a química dos livros-texto
não era necessariamente a química que praticamos como químicos
profissionais, assunto que coincide com o exposto por Marcos Antonio
Pinto Ribeiro:

Dessa forma, podemos formular duas asserções centrais. A primeira é que a


difícil relação entre filosofia e química é responsável por parte dos problemas
do sistema pedagógico da química. Sendo assim, a Filosofia da Química, ao
explicitar campos de problemas característicos da epistemologia, ontologia e
axiologia da Química, especificando os elementos característicos de sua
práxis, pode e deve servir como um dos elementos fundantes das decisões
curriculares e didáticas do ensino de química, contribuindo, assim, com uma
gramática forte para o seu aparelho pedagógico, principalmente nos
currículos de formação de professores. E a segunda é que, em função da
ausência desse debate, no contexto do currículo e do ensino de química, os
elementos da práxis química, discutidos pela filosofia da química, são
transmitidos tacitamente, o que compromete todo o aparelho pedagógico da
química. Ou seja, a química que se ensina não corresponde à química que se
pratica.

A química dos livros-texto é a que se descreve de maneira idealizada


nas premissas originais do Conceptual Structure of School Chemistry.
Resultado do anterior e aceitando a descrição de Kuhn de ciência normal,
se identificou com respeito ao currículo de química uma posição
dominante, que como seu nome indica, é a que prevalece praticamente
em todo o mundo e cuja posição substantiva-filosófica-pedagógica é: todo
o currículo de química atual tem uma estrutura substantiva dominante
baseada na teoria corpuscular, a qual é rigidamente combinada com uma
estrutura filosófica específica, o positivismo, e uma estrutura pedagógica
específica, a iniciação e preparação dos futuros químicos profissionais.
José Antonio Chamizo | 15

Reconhecer essa estreita posição dominante coincide com o dito pelo


mesmo Kuhn (1971, p. 350-351):

A característica mais distintiva da educação científica é que, em uma


extensão não compartilhada com nenhum outro campo criativo do saber, se
transmite através dos livros-texto escritos especialmente para os estudantes.
Cada livro que busca ser utilizado em um determinado curso compete, seja
em profundidade ou em detalhes pedagógicos, porém praticamente nunca
em estrutura conceitual... os livros-texto não abordam os problemas que os
cientistas profissionais enfrentam ou a variedade de técnicas que a
experiência lhes tem mostrado que são capazes de resolver. Em seu lugar, os
livros-texto exibem uma coleção de problemas-solução que os cientistas
profissionais aceitaram como paradigmáticos, pedindo-se aos alunos que,
seja em lápis e papel ou no laboratório didático, os resolvam utilizando os
métodos e/ou as substâncias que foram mostradas anteriormente em suas
páginas.

A ciência normal privilegia o trabalho tecnicamente preciso e


logicamente rigoroso, e é ao redor da qual se forma os docentes e alunos.
Assim, se pode interpretar o currículo de química como educação
científica normal com as seguintes características:

• A educação científica normal prepara os estudantes para fazer ciência normal.


• A educação científica normal é a forma dominante normal que se ensina as
ciências em praticamente todos os níveis, o qual a torna paradigmática.
• A educação científica normal contém, de maneira implícita, normas a respeito
da ciência, a filosofia e a pedagogia.

Uma característica importante do currículo paradigmático atual é a


rígida relação existente entre as temáticas, as posturas filosóficas
inerentes à química e a pedagogia, o que se manifesta na principal
conclusão obtida do Foro Internacional, que deve ser entendida como um
diagnóstico:

A educação química normal está isolada do sentido comum, da vida


cotidiana, da sociedade, da história e filosofia da ciência, da tecnologia, da
física escolar e da investigação química atual.
16 | Filosofia da Química no Brasil

Dura e pessimista como é, reflete semelhanças com outras posições


obtidas de diversas pesquisas em ensino. Como integrante do Foro
Internacional considero que a discussão ali sustentada é de importância
central para o desenvolvimento futuro dos planos de estudos em
química, em qualquer nível de escolaridade. Apesar dos limites do grupo
e do complexo processo de discussão, os acordos obtidos sobre os
aspectos mais gerais permitem supor que, com as precauções devidas, o
resultado é suficientemente provocador para ser ignorado.
Posteriormente um dos autores de Conceptual of School Chemistry,
B. van Brakel, identificou o que chamou de condições para escapar da
posição dominante do currículo de química, que são:

• Para escapar, se deve saber de onde se escapa. Isso requer uma análise ampla
do que se está ensinando na atualidade ao redor dos aspectos filosóficos
apresentados no livro.
• Para escapar, se deve saber do que se escapa. Com isso se quer dizer que é
necessário se construir uma nova visão do currículo de química, no qual é
particularmente importante a nível médio/superior, já que para a maioria dos
estudantes será a última vez que terão uma aproximação formal com essa
disciplina. Este assunto também é considerado no presente texto.
• Para escapar, se deve saber como escapar. Aqui o protagonista é o professor, e
sobre sua formação há muito o que dizer, também algo a que se dedica esse
texto.

Assim, nesse complexo caminho de crescimento acadêmico, as


propostas de formação de professores fora do convencional que
envolvam de maneira clara aos docentes são difíceis de se concretizar.
Um caminho possível, que deverá ser provado para escapar, é o indicado
com a investigação-ação e com a discussão específica de temas de
Filosofia da Química, como indica Nelson Rui Ribas Bejarano:

Todos esses números especiais da revista Hyle poderiam ser um rico


material (inicial) para a conformação de uma componente curricular de
formação de professores de química (inicial e continuada, porque não?) e
também para os bacharéis em química que também precisam se beneficiar
José Antonio Chamizo | 17

dessas reflexões. Afinal, a Filosofia da Química deve se remeter e interessar


toda a comunidade de químicos, sejam químicos educadores ou bacharéis,
sejam – especialmente – os professores formadores de professores de
química da área da educação, sejam os professores formadores da área
conhecida como da “área dura”.

Ou seja, seria ideal conseguir que os docentes de química, seja em


nível médio ou superior, desenvolvessem o estilo químico de pensar e
agir, o seu, nosso, próprio, como explica Ronei Clécio Mocellin:

A essa forma alternativa de experimentação Bensaude-Vincent chama de


“estilo químico” de raciocinar, que seria um conceito capaz de reunir
diferentes identidades cognitivas construídas pela química ao longo de sua
história. Portanto, num sentido geral, a noção de estilo químico serve para
delimitar um território de investigação autônomo, com métodos e objetos
(materiais e conceituais) próprios e que demanda a seus praticantes uma
maneira específica de trabalhar. Por exemplo, Kovac analisou esse raciocínio
prático dos químicos através de exemplos corriqueiros de um laboratório,
como a solubilidade e a reatividade. Segundo ele, os químicos desenvolveram
um “modo prático” de raciocinar, que ao contrário de um “modo abstrato”,
não começa por regras ou axiomas gerais, mas a partir da descrição
detalhada de fatos de casos particulares submetidos a certas condições.
Enquanto um “modo abstrato” partia de premissas universais, um “modo
prático” era contingente a contextos particulares.

A leitura e a discussão dos oito capítulos que formam esse livro sem
dúvida enriquecerão o trabalho acadêmico dos profissionais da química,
docentes, investigadores e tomadores de decisões, identificando que
somos iguais, porém também diferentes dos profissionais de outras áreas
científicas. Faltam livros de Filosofia da Química escritos na América
Latina e faltam também livros de Química escritos a partir da História e
Filosofia da Química. Há um longo caminho a percorrer, e esse é o nosso
caminho.

Bibliografia mínima de Filosofia da Química

BACHELARD, G. El materialismo racional, Buenos Aires: Paidós, 1976.


18 | Filosofia da Química no Brasil

BAIRD, D.; SCERRI, E.; MCINTYRE, l. (eds.). Philosophy of Chemistry: synthesis of a


new discipline, Dordrecht: Springer, 2006.

BENSAUDE-VINCENT, B.; SIMON, J. Chemistry: the impure science. London: Imperial


College Press, 2008.

BHUSHAN, N.; ROSENFELD, S. Of Minds and Molecules. In: New Philosophical


Perspectives on Chemistry, Oxford: Oxford University Press, 2000.

CHAMIZO, J.A. (coord.). Historia y Filosofía de la Química. Aportes para su enseñanza,


México: FQ-Siglo XXI, 2010.

EARLEY, J. E. (ed.). Chemical Explanation. Characteristics, Development Autonomy,


New York: Annals of the New York Academy of Sciences, 2003.

JANICH, P.; PSARROS, N. The Autonomy of Chemistry, Würzburg: Königshausen &


Newmann, 1998.

KLEIN, U. (ed.). Tools and modes of representation in the laboratory sciences,


Dordrecht: Kluwer, 2001.

KUHN, T. La tensión esencial, México: Fondo de Cultura Económica, 1977.

KUHN, T.S. La estructura de las revoluciones científicas, México: Fondo de Cultura


Económica, 1971.

LAZLO, P. La parole des choses ou la language de la chimie, Paris: Hermann, 1993.

LLORED, J.P. (ed.). The Philosophy of Chemistry. Practices, Methodologies and


Concepts, Newcastle: Cambridge Scholars Publishers, 2013.

MAUSKOPF, S. H. Chemical Sciences in the Modern World, Philadelphia: University of


Pennsylvania Press, 1993.

MATTHEWS, M. R. International Handbook of Research in History, Philosophy and


Science Teaching, Springer, Dordrecht, 2014.
José Antonio Chamizo | 19

NEWMAN, W. R. Atoms and alchemy: chemistry and the experimental origins of the
scientific revolution, Chicago: University of Chicago press, 2006.

NYE, M. J. From chemical philosophy to theoretical chemistry: dynamics of matter


and dynamics of disciplines, 1800-1950, Berkeley: University of California press,
1993.

RUTHENBERG K.; VAN BRAKEL, J. Stuff. The Nature of Chemical Substances,


Würzburg: Königshausen & Newmann, 2008.

SCERRI E.; MCINTYRE, L. (eds.). Philosophy of Chemistry. Growth of a New Discipline,


Springer, Dordrecht, 2015.

VAN BRAKEL, J. Philosophy of Chemistry. Between the Manifest and the Scientific,
Leuven: Leuven University Press, 2000.

WOODY, A.; Hendry, R.F., Needham, P. Philosophy of Chemistry, Amsterdam: Elsevier,


2012.
Apresentação

Os Organizadores

A Filosofia da Química é um campo disciplinar emergente em todo o


mundo, institucionalizado somente a partir da década de 1990. Devido a essa
recente organização, aproximações e propostas ao currículo do Ensino
Superior em cursos que formam os diversos profissionais da Química são
ainda pouco presentes. Nesta coletânea reunimos trabalhos do que
consideramos serem os primeiros pesquisadores do Brasil a tratarem de
temas próprios da Filosofia da Química, na intenção de evidenciar que esse
tem sido um foco muito acentuado de parte de autores brasileiros.
Por ocasião do encontro anual do ISPC (International Society for the
Phylosophy of Chemistry) ocorrido em 2015 na UFRJ, sob organização de
Waldmir Araújo Neto, encontramos muitos colegas com quem temos
dialogado sobre temas da Filosofia da Química. Essas conversas já ocorriam
anteriormente e continuam ocorrendo nas mais diversas situações em que
nos encontramos ao realizar nossas atividades como docentes de
universidades de nosso país, tais como grupos de pesquisa, congressos e
comissões examinadoras.
Nesse congresso, de âmbito internacional, concordamos coletivamente
sobre a necessidade de elaborar material que disponibilizasse para a
comunidade de profissionais da química e estudantes os temas já
trabalhados na pesquisa em Filosofia da Química em nosso país.
Entendemos também que seria importante destacar as relações entre essas
pesquisas e o ensino.
Em função da decisão que tomamos de descrever o início dessa área em
nosso país por meio da descrição de nossas próprias trajetórias acadêmicas,
os textos são apresentados em primeira pessoa, na intenção de mostrar as
22 | Filosofia da Química no Brasil

diferentes e convergentes trajetórias que trilhamos até a Filosofia da


Química. O leitor irá perceber que a convergência e o direcionamento se
deram, em grande parte, na passagem por disciplinas de cursos de
graduação em licenciatura em Química.
Coube a nós, organizadores, a tarefa de dar forma às propostas que
nasceram naquele importante evento, assim como convidar outros colegas
que não puderam comparecer, para compor conosco esse material. A partir
da ideia inicial naquele encontro, os organizadores buscaram então contatar
os pesquisadores de universidades públicas brasileiras que tinham temas da
Filosofia da Química em seus projetos de pesquisa.
Como resultado desse processo, produzimos esse material com a
certeza de criar um marco histórico para o início da Filosofia da Química no
Brasil. Essa coletânea representa os esforços de indivíduos e instituições na
direção de consolidar a pesquisa e o ensino de Química em nosso país.
Quando pensamos nos fundamentos filosóficos próprios da Química,
estamos procurando entender o papel destes pressupostos em suas diversas
consequências epistemológicas, ontológicas, metodológicas, curriculares e
institucionais. Em especial, nosso intuito é promover uma melhoria desse
conhecimento filosófico no ensino superior em Química.
Chamamos a atenção para a diversidade de distribuição geográfica dos
pesquisadores envolvidos (UFBA, UESB, UFPR, UFRGS, UFRJ, UNESP e
USP). Isso mostra que as muitas instituições de nosso país têm apoiado a
pesquisa em direção à Filosofia da Química. Com relação aos temas
abordados em cada capítulo, Kleber Cecon, atualmente professor do
Departamento de Filosofia da Universidade Estadual Paulista (UNESP)
campus de Marília, aborda sua trajetória acadêmica até a sua pesquisa de
doutorado, focalizada na relação entre a filosofia mecânica e a alquimia nos
trabalhos de Boyle. Seu texto visa servir como relato do surgimento da
filosofia da química no Brasil de seu ponto de vista. A partir de suas
experiências, ele procura refletir sobre o que seria, ou o que tem sido, uma
"filosofia da química". Atualmente esse autor trabalha com a pesquisa em
questões sobre teorias da matéria e a filosofia das ciências naturais.
Os Organizadores | 23

O capítulo escrito por Ronei Clécio Mocellin, atualmente professor do


Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
descreve as contribuições de Guyton de Morveau, coautor com Lavoisier
sobre a nova nomenclatura em Química e considerado o primeiro químico
da França, na cultura química e formas de comunicação de sua época. O
capítulo oferece uma ótima reflexão sobre o estilo químico de raciocinar.
Marcos Antonio Pinto Ribeiro, atualmente professor do Departamento
de Ciências e Tecnologias da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB), analisa no capítulo de sua autoria, a partir de sua tese de doutorado
no tema, as relações entre Filosofia, Química e Currículo. Propõe uma
agenda de problemas, principalmente domínios da práxis Química, estilos
didáticos, epistemológicos e cognitivos e relaciona estes temas com objetos
próprios da pedagogia Química, propondo um currículo crítico a partir da
natureza da práxis Química.
O capítulo escrito por Waldmir de Araújo Neto, atualmente professor
do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
descreve o papel da filosofia de Ernst Cassirer para a compreensão semiótica
das representações químicas. A partir de uma crítica contundente sobre o
racionalismo e da percepção da centralidade da ação humana, a linguagem
passa a ser vista como espaço de produção de significados das
representações químicas.
Marcelo Leandro Eichler, atualmente professor do Instituto de Química
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) descreve em seu
capítulo seu encontro com o tema da causalidade a partir da psicologia de
Jean Piaget. A partir do tema da inter-relação entre as áreas de conhecimento
desse psicólogo, com as áreas de conhecimento se organizando
necessariamente de forma cíclica e linear, Marcelo procura descrever o
provável estranhamento que um químico pode ter ao se deparar com a obra
piagetiana, principalmente pelo fato de Piaget ter declarado que as leis da
Física se aplicam à Química, o que resultaria numa redução por
interdependência. Na defesa da Química com seus próprios fundamentos
24 | Filosofia da Química no Brasil

filosóficos, Marcelo procura fazer uma reflexão sobre a própria ideia de


redução em várias possibilidades.
O colega Nelson Rui Ribas Bejarano, atualmente professor do Instituto
de Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA), descreve em seu
capítulo sua necessidade de revisitar, por meio de outros referenciais
teóricos, o estatuto epistemológico de sua ciência da natureza de referência,
no caso, a Química. Em seu estágio de pós-doutoramento, reflete sobre
diversos aspectos de concepções sobre realismo e redução a partir das
contribuições de Nagel e Putnam. Esse autor descreve ricamente sua
trajetória de percepção de aspectos gerais de uma Filosofia da Ciência para a
percepção de aspectos específicos da Filosofia da Química, que não são
tratados nas comunidades de Filosofia da Ciência.
O capítulo escrito por Paulo Alves Porto, atualmente professor do
Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), nos traz sua
trajetória em direção à História da Química e à semiótica de Charles Sanders
Peirce. Sua pesquisa se concentra na aproximação entre a História e o
Ensino de Química. Seu ponto de contato com a Filosofia da Química está
justamente na pergunta sobre o que seria essa Química que tanto queremos
ensinar. Nesse sentido, a História da Química fornece elementos para uma
Filosofia da Química.
No capítulo escrito por Jackson Gois, atualmente professor no
Departamento de Educação da Universidade Estadual Paulista (UNESP)
campus São José do Rio Preto, encontramos seu relato sobre o papel que a
filosofia de Ludwig Wittgenstein pode ter em uma compreensão processual
sobre a elaboração de significados. Esse autor descreve os potenciais
problemas que uma visão representacional de significado pode ter para o
ensino de uma forma geral e na Química de maneira específica.
1

Filosofia da química:
o relato de uma experiência

Kleber Cecon 1

Introdução

A filosofia da química é uma área relativamente recente de estudo.


Nos últimos anos um crescente interesse sobre ela tem sido despertado
nos diversos membros da comunidade acadêmica que atuam na área da
química, assim como da epistemologia e história das ciências naturais.
Sua aparição, do ponto de vista de minhas experiências, ocorreu
inicialmente como algo muito mais ligado aos profissionais da química, e
não tanto aos da filosofia.
O surgimento desta área de estudo ocorreu através da conexão
praticamente auto-organizada de membros das ciências naturais que
possuíam interesses comuns ligados à química, mas não eram
essencialmente questões químicas. Diversos membros com interesses na
definição de química, por exemplo, não encontravam em seus
laboratórios, ou em aulas teóricas sobre a estrutura e arranjo dos átomos
e moléculas, um lugar para discutir temas como esse. Que dirá então,
sobre a redutibilidade da química à física, afinal, que estudante de
química nunca ouviu de um colega físico, nem que seja de brincadeira, a
provocativa sentença: “A química é a física do elétron na camada de
valência”.

1
Professor de Filosofia das Ciências Naturais na graduação em Filosofia e associado ao programa de Pós-graduação
em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Unesp de Marília.
26 | Filosofia da Química no Brasil

A provocação de nossos colegas físicos que estudavam conosco


inevitavelmente levava a discussões interessantes, mas que tinham seu
lugar reservado na cantina, tomando um belo café da tarde, ou mesmo um
singelo copo de cerveja à noite. Como essas discussões interessantes não
tinham seu lugar no mainstream acadêmico, o que restou a elas foi adquirir
seu lugar junto àquele mesmo nicho a que pertenciam às discussões de
Sócrates no início da filosofia; nas refeições, nos momentos de lazer, nas
conversas de corredor, nas festas, entre outros lugares fora do ambiente
oficial. Geralmente essas discussões ocorriam em meio a público de críticos
amigos. Ninguém se restringia a fazer objeções e comentários por não ser
da área de “assuntos interdisciplinares de química”, pois a área
simplesmente não existia. Logo, restrições de caráter de autoridade eram
inexistentes. Quando alguma dessas questões era levada para o ambiente
acadêmico oficial, geralmente era acompanhada de um sorriso amarelo, e
uma adjetivação de que essa era uma interessante “conversa de cafezinho”.
Isso queria dizer, entenda-se, que aquela discussão não tinha seu lugar ali.
Esta situação levou, com o passar do tempo, a uma sincronia entre as
pessoas envolvidas com esse tema, pois com os avanços tecnológicos que
estavam sendo desenvolvidos como redes sociais, grupos de e-mails,
aplicativos de mensagens instantâneas, blogs, vlogs e todo tipo de facilitador
tecnológico de comunicação, não demorou muito para que as pessoas que
tinham esses interesses entrassem em contato entre si e, de repente,
tiveram a ideia de promover esses assuntos a um status oficial e trazê-los
para dentro da academia. É dentro desse panorama que apresento minha
própria trajetória acadêmica como um exemplo particular desta situação.

Meu contato com a Química

Uma estranha curiosidade a respeito do mundo em minha


adolescência me levou a decidir fazer um curso superior em ciências
puras. Aos dezessete anos ingressei no curso de química na Universidade
Estadual de Campinas, no ano de 1996. Naquela época lembro-me
Kleber Cecon | 27

claramente que meu objetivo, ao fazer aquele curso, era responder a


seguinte pergunta: “Do que o mundo é feito?”
Minha principal dúvida era essencialmente intelectual, e similar ao
que moveu alguns dos pré-socráticos eleatas 2. Lembro aqui que neste
período ainda não existia filosofia no segundo grau, e que eu não tinha
ideia do que isso tratava. Então acabei ingressando em um curso de uma
ciência pura, tendo na verdade anseio por respostas a questões
filosóficas. Isso não é tão incomum como pode parecer. Eu já tive contato
com diversas pessoas que me informaram que ingressaram em cursos de
física, matemática, biologia e química, quando, na verdade tinham
interesses metafísicos, humanísticos e até mesmo místicos e/ou
religiosos.
Ao longo do curso de química percebi que minhas dúvidas não eram
respondidas, ou se eram, era de forma circular. A resposta de que o
mundo era formado por átomos não ajudava muito, visto que quando
perguntava o que compunha os átomos, irremediavelmente falavam de
partículas subatômicas. Na minha cabeça, isso apenas dizia respeito à
questão de se a matéria era contínua ou descontínua, ou sobre sua
infinita ou não divisibilidade, mas não ao que era matéria efetivamente.
Daí uma das minhas grandes questões do curso que nunca fora resolvida
na graduação de química: “O que é a matéria?”
Claro que a resposta nunca surgiu, e nem poderia surgir, visto que
não era em um curso de química que este tipo de questão era abordada.
Nas disciplinas de física isso era ainda pior. Questões como: “Como é
possível atração à distância de partículas com cargas elétricas
contrárias?” ou “Como é possível uma onda, que por definição é a
oscilação de um meio, propagar-se no vácuo, no caso da luz?” também

2
Ver OS PRÉ-SOCRÁTICOS. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores, v. 1). Alguns filósofos pré-
socráticos têm como a base e início de seu pensamento filosófico exatamente na causa material do mundo. Thales,
considerado historicamente o primeiro filósofo da tradição ocidental, afirmou que o que constituía o mundo, ou
seja, seu princípio, era a água. Anaxímenes falou que era o ar. Heráclito defendia que o elemento de todas as coisas
era o fogo, e Empédocles ainda adicionou a Terra aos elementos do mundo. A causa material do mundo talvez
tenha sido a primeira preocupação filosófica da humanidade.
28 | Filosofia da Química no Brasil

dificilmente adquiriam junto à comunidade de estudantes e professores


qualquer relevância maior.
Inevitavelmente essas perguntas ou eram ignoradas, ou eram
respondidas com uma equação matemática, que meramente
representava a regularidade de um fenômeno, ou com um desenho que
era apenas uma representação gráfica do mesmo fenômeno e nada me
respondia. Lembro-me até hoje que em uma aula, ao questionar que
Newton especificamente não chegou a explicar a causa gravidade, mas
identificou o fenômeno e descreveu sua regularidade matematicamente,
muitos colegas ficaram chocados e chegaram até mesmo a acreditar que
eu estava menosprezando as contribuições de Newton, e que eu não
deveria fazer tal coisa. Essa situação me chamou muito a atenção, visto
que já conhecia na época o famoso trecho do General Scholium que
consta a partir da segunda edição da obra Philosophiae naturalis
principia mathematica, onde o próprio Newton claramente afirma 3:

Porém, até o presente momento eu não fui capaz de descobrir a causa


daquelas propriedades da gravidade através dos fenômenos, e eu não faço
hipóteses, pois tudo que não é deduzido dos fenômenos deve ser chamado de
hipótese, e hipóteses, sejam metafísicas ou físicas, sejam de qualidades
ocultas ou mecânicas, não tem lugar dentro da filosofia experimental. Nesta
filosofia proposições particulares são inferidas pelos fenômenos, e depois
disso generalizadas por indução. Foi assim que a impenetrabilidade, a
mobilidade, a força impulsiva dos corpos e as leis do movimento e da
gravitação foram descobertas. Para nós é o suficiente que a gravidade
realmente existe e age de acordo com as leis que nós explicamos, e serve
muito bem para dar conta de todos os movimentos dos corpos celestiais e do
nosso mar. (NEWTON, 1871, p. 530).

Era incrível que o Newton no imaginário de muitos colegas que


estudassem sua física fosse tão distante do Newton real. Considerações
externas a certos padrões das ciências puras eram não só tidos como não
importantes, mas também desestimulados. Comecei a acreditar que

3
NEWTON, I. Principia. Glasgow: James MacLehose Publ., 1871.
Kleber Cecon | 29

existia algo menos crítico e mais dogmático nas ciências do que eu


supunha até então.
As coisas mudaram um pouco quando eu li, pela primeira vez, a
obra A estrutura das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn 4, que por
sinal tive acesso devido a um trabalho de uma disciplina de licenciatura,
que iniciei logo após o bacharelado. Ali percebi que os dogmas a que eu
estava exposto tinham nome, eram os paradigmas. Nesta época em que
eu já estava no mestrado em química tomei uma ousada decisão. Assim
que defendi meu mestrado em química ambiental, acabei ingressando na
graduação em filosofia em 2003.

Filosofia e as múltiplas respostas que antes eram dadas

No curso de química minhas questões não eram respondidas. O que


na química foi nulo, dentro da filosofia foi o múltiplo. No curso de
graduação em filosofia aconteceu exatamente o oposto, fui exposto a
dezenas de respostas diferentes, todas igualmente possíveis, para minhas
eternas questões. Fiquei muito feliz ao poder ver que aquelas questões
não eram ridículas, que eram compreendidas e que foram levadas a sério
por toda uma tradição milenar. Havia diversas respostas para as minhas
indagações, mas nenhuma resposta definitiva era possível. Todo o
questionamento e liberdade de princípios faziam com que cada sistema
fosse defensável, blindado e isolado dos outros, todos perfeitamente
possíveis e qualquer perspectiva de base comum ou progresso no mesmo
molde das ciências naturais ficava, desta forma, comprometido.
Dentro do curso de filosofia trabalhei com algo que considerasse
minha formação prévia em química. Procurei o então grupo de pesquisa
em história da filosofia da natureza e iniciei uma pesquisa que tentava
envolver química e filosofia. O resultado dessa pesquisa foi meu trabalho

4
KUHN, T. The structure of scientific revolutions. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press, 1970.
30 | Filosofia da Química no Brasil

de conclusão de curso 5, onde estudei uma obra do filósofo e alquimista


Robert Boyle: O Químico Cético. O trabalho basicamente era focado nos
argumentos de Boyle que desconstruíam a teoria dos quatro elementos
de Aristóteles.
Depois de concluída a graduação e a licenciatura em filosofia, eu
passei para o doutorado direto em filosofia em 2006. Na época, tive a
ideia de estudar a origem da química a partir da alquimia, algo que
demandou um doutorado sanduíche em Londres. Durante o período do
sanduíche, descobri que a resposta para minha tese era muito mais
complexa do que eu pensava, e não poderia, aliás, ter resposta direta
visto que os termos “química” e “alquimia” eram usados como sinônimos
pela maioria dos autores do século XVII estudados por mim, época em
que supunha que a citada mudança da alquimia para química havia
ocorrido. Aparentemente o que aconteceu é que a diferença atual entre
química e alquimia decorreria mais devido a um erro etimológico do que
qualquer outra coisa 6. Por isso, acabei focando minha tese na relação
entre a filosofia mecânica e a alquimia 7 nos trabalhos de Boyle, duas
correntes que nem sempre andavam juntas. Por sinal, a química ou
alquimia era uma das opções filosóficas que competia com outros
sistemas filosóficos dentro da filosofia da natureza 8, e parece ter sido
inclusive uma das responsáveis pelo aspecto experimental da Revolução
Científica 9, tendo persistido muito depois dela.

5
CECON, K. Argumentos contrários aos elementos aristotélicos na obra ‘O químico Cético’ de Robert Boyle. 2005.
104f. Monografia (Graduação em Filosofia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2005.
6
NEWMAN, W. R.; PRINCIPE, L. M. Alchemy vs. Chemistry: etymological origins of a historiographic mistake.
Early Science and Medicine, v. 3, n. 1, p, 32-65, 1998.
7
CECON, K. A Relação entre a filosofia mecânica e os experimentos alquímicos de Robert Boyle. 2010. 160f. Tese
(Doutorado em Filosofia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Estadual de Campinas,
Campinas, 2010. Posteriormente adaptada para o livro CECON, K. A Relação entre a filosofia mecânica e os
experimentos alquímicos de Robert Boyle. Campinas: UNICAMP/Centro de Lógica, Epistemologia e História da
Ciência, 2011. 182p. (Coleção CLE, v. 61). ISBN 978-85-86497-09-4
8
GARBER, D. Why the Scientific Revolution Wasn’t a Scientific Revolution, and why it Matters. In: RICHARD, R. J.;
DASTON L. (Eds.). Kuhn’s Structure of Scientific Revolutions at Fifty: reflections on a science classic. Chicago:
University of Chicago Press, 2016. p. 133 – 146.
9
NEWMAN, W. R. Atoms and alchemy: chymistry and the experimental origins of the scientific revolution.
Chicago: University of Chicago Press, 2006.
Kleber Cecon | 31

A filosofia experimental baconiana certamente persistiu. Assim como a


química (ou chimica, como alguns gostam de chamá-la), originalmente um
programa competidor na filosofia da natureza e que persistiu juntamente
com a física matematizada no estilo newtoniano. (GARBER, 2016, p. 142.).

Depois de concluir meu doutorado em 2010, fui convidado para


ministrar uma disciplina de história da química na UNICAMP, coisa que me
deu, por sinal, imensa satisfação. Nesta altura de minha formação, já era
comum a união de temas de filosofia e química, e não via como algo tão
destoante uma área de interação. É como se a história da química fosse um
ponto de encontro para visões das teorias filosóficas acerca da constituição e
comportamento da matéria. Não foi difícil montar um curso neste sentido,
expondo as diferentes teorias da matéria na antiguidade, especialmente as
aristotélicas, assim como sua assimilação no mundo medieval e posterior
crítica na Revolução Científica do século XVII.
Já no ano de 2012 eu fora contratado para a vaga de professor
assistente doutor para a disciplina de “filosofia das ciências naturais” no
departamento de filosofia da UNESP de Marília. Desde então minhas
pesquisas sempre foram voltadas para a questão das teorias da matéria e
a filosofia das ciências naturais, como a física e como a química. No curso
de pós-graduação minha disciplina é sobre filosofias da matéria.
Atualmente em 2017 10 realizo um pós-doutorado na Universidade
de Princeton sobre sociedades científicas, como a The Royal Society of
London, por exemplo, que realizavam experimentos químicos
sistemáticos e controlados. Imaginar a química como um fenômeno
emergente da atividade de uma sociedade científica poderia ser
considerado como mais uma atividade da filosofia da química? Será que
a filosofia da química também forma sociedades?

10
Esse texto foi escrito e enviado em 2017 durante meu período de pós-doutorado
32 | Filosofia da Química no Brasil

International Society for the Philosophy of Chemistry - ISPC

Quando ouvi falar no termo “filosofia da química”, eu ainda estava na


graduação em filosofia. Apenas quando já era docente da UNESP tive a
oportunidade de conhecer uma sociedade de pesquisadores sobre o tema.
No ano de 2013 recebi uma mensagem de grupo de e-mail de “filosofia da
ciência” sobre um evento de “filosofia da química” que estavam divulgando.
Achei muito interessante a possibilidade de participar do evento, que seria
então organizado por um grupo que, descobri posteriormente, estava tendo
destaque entre os estudiosos da história da química, que era a International
Society for the Philosophy of Chemistry (ISPC). A sociedade foi oficialmente
formada em 1997, mas existiam algumas reuniões do grupo sobre filosofia
da química que já datavam desde 1994 11. Atualmente essa sociedade conta
com a presidência honorária de Rom Harré (University of Oxford), e no
Comitê executivo nomes como Eric Scerri (University of California) e
Brigitte Von Tiggelen (Chemical Heritage Foundation) 12.
Desde 1997 a sociedade organiza encontros pelo mundo, onde os
estudiosos de filosofia da química podem compartilhar e discutir os
resultados de suas pesquisas uns com os outros. Foi em 2013 que tive a
chance de participar de um desses eventos. Ele ocorreu em boa parte em
Montevidéu, no Uruguai. O evento na época chamava-se SUMMER
SYMPOSIUM 2013 13. O título me chamou especial atenção pelo fato do
evento ter se realizado no inverno do hemisfério sul. Isso colaborou com
uma ideia que eu já imaginava, o grupo havia começado com grande parte
de seus integrantes do hemisfério norte, americanos e europeus. Com o
passar do tempo, os latino-americanos passaram a ingressar no grupo de
participantes desses eventos, e seu número não parou de aumentar. Isso é
tão verdade, que na reunião do Summer Symposium de 2013, 16 de seus 32

11
https://sites.google.com/site/socphilchem/history.Acesso em: 31 jan. 2017.
12
https://sites.google.com/site/socphilchem/organization. Acesso em: 31 jan. 2017.
13
http://www.ispc2013.fq.edu.uy/. Acesso em: 31 jan. 2017.
Kleber Cecon | 33

participantes oficiais já eram latino-americanos, ou seja, metade deles 14. A


reunião de 2015, por sinal, foi no Rio de Janeiro, Brasil. O crescente número
de sul-americanos, e em especial de brasileiros com interesse em atividades
ligadas à história e filosofia da química é algo digno de nota.
Na época desenvolvi um trabalho de história da química que era
basicamente a explicação de um experimento químico descrito em um
dos cadernos de laboratório 15 de Robert Boyle. Notei imediatamente a
presença de alguns brasileiros para minha surpresa, e de outros colegas
que conheci durante meu doutorado sanduíche, como é o caso de Hazok
Chang. O número de pesquisadores não era tão grande no evento, e ali se
concentravam quase todos os pesquisadores da área. Em uma das
viagens do grupo, quando nos deslocamos de Montevidéu para Fray
Bentos 16, era uma piada corrente, verdade que um tanto mórbida, de que
se acontecesse um acidente com o ônibus a área de filosofia da química
seria imediatamente extinta.
Uma coisa que me chamou a atenção foi a variedade dos trabalhos
apresentados. Alguns eram sobre história da química, alguns eram
relacionados com ensino de química, outros sobre dados específicos da
química em seu país, e finalmente alguns com temas mais ligados à
epistemologia como, por exemplo, a questão da redutibilidade da química
à física. A sociedade no fundo conseguia reunir todas aquelas pessoas que
queriam falar sobre a química, mas não sobre química 17. Todas as
pessoas que queriam explorar aspectos humanos, sociais, pedagógicos e
epistemológicos daquela ciência. Coisas que não tinham lugar dentro da
química, mas que atraíam o interesse de muitos químicos. Dado o
crescente interesse de diversas pessoas nesses tópicos, o surgimento
desta sociedade seria apenas uma questão de tempo.

14
http://www.ispc2013.fq.edu.uy/imagenes/email.pdf. Acesso em: 31 jan. 2017.
15
BOYLE, R. Workdiaries. Edited by Michael Hunter. London: University of London, Centre for Editing Lives and Letters,
1997-2001. Disponível em: <http://www.livesandletters.ac.uk/wd/index.html>.
16
O deslocamento ocorreu para uma curiosa visita a uma fábrica de carnes, LEMCO, que estava no programa do
evento em questão.
17
Ou seja, um estudo em que a ciência química é tida como objeto de análise, e não analisar temas específicos da
ciência química.
34 | Filosofia da Química no Brasil

A ISPC lançou um periódico especializado oficial da sociedade, que é


o Foundations of Chemistry, disponível desde 1999, fator de impacto
0,811 e que conta com 18 volumes e 423 artigos 18, sobre os mais diversos
temas como; linguagem da química, modelos químicos, evolução
química, aspectos éticos e sociais da química, modelagem e
instrumentação, a natureza das explicações nas ciências químicas,
alquimia, química medieval e antiga entre outros temas 19.

O termo “Filosofia da Química” – Primeiras impressões e análise

A primeira vez que ouvi o termo “filosofia da química”, ainda no


início de minha graduação em filosofia, confesso que fiquei um tanto
reticente. Na época eu ainda então pensava “seria possível a filosofia
desta ou daquela coisa?”. Pensava então ainda a filosofia como um
modus operandi para resolução de problemas conceituais complexos
dentro de um determinado sistema estabelecido. Como a química não é
um sistema filosófico, não conseguia entender muito bem o que este
termo “filosofia da química” implicava. Porém, com o tempo, passei a
analisar a questão com mais cuidado.
Poderia a filosofia ser aplicável a qualquer coisa? Obviamente que
tal abordagem jamais poderia ser aplicada a um objeto particular, como é
o caso de uma beterraba específica, por exemplo. A beterraba, sendo
única, não poderia ser avaliada pela filosofia, como a arte seguramente o
faz, visto que ela (arte) consegue usufruir de particulares. Já o conceito
de beterraba, esse sim seria passível de alguma análise intelectual, afinal,
o conceito já pode ser trabalhado pela mente. Porém, seria muito
embaraçoso fazer tal “filosofia da beterraba”, visto que este conceito
jamais me permitiria realizar considerações, relações e silogismos de
qualquer relevância para quem quer que fosse. Quando o conceito em
questão é, porém, uma área de estudo das ciências naturais, a coisa muda

18
http://link.springer.com/journal/10698. Acesso em: 31 jan. 2017.
19
https://sites.google.com/site/socphilchem/publications . Acesso em: 31 jan. 2017.
Kleber Cecon | 35

um pouco de configuração. Uma ciência experimental natural é


constituída por diversos elementos, entre eles: paradigmas, uma
sociedade científica, jornais especializados, geração de teorias e hipóteses,
debates, centros de excelência e ensino, núcleos para desenvolvimento e
reprodução de experimentos controlados etc. Toda esta vasta riqueza
parece permitir que seja possível tal abordagem filosófica.
Mesmo o mais radical dos puristas ortodoxos do termo “filosofia”
(aqueles que não permitem a atribuição do termo “filosofia” a quase nada
novo, com medo que em breve tenhamos coisas como a “filosofia do pé-
de-pato” ou algo do gênero) não poderia deixar de aceitar que existe uma
“filosofia da ciência”, pois esta já ganhou seu espaço dentro da história da
filosofia e da tradição filosófica em termos relativamente recentes. Que
dirá de outras aventuras como o surgimento da “filosofia política”,
“filosofia da linguagem” e até mesmo da “filosofia da mente”, todos estes
citados já como parte obrigatória dos currículos de filosofia no ensino
superior do Brasil20. Como então achar tão esquisito o termo “filosofia da
química”, quando já existe uma “filosofia das ciências naturais”? De que
tipo de problemas nós estamos falando quando falamos sobre filosofia da
química? Seria a filosofia da química apenas uma parte específica da
filosofia das ciências naturais?

Filosofia da Ciência e Filosofia da Química

Curiosamente a filosofia da química é algo mais ligado à química do


que à filosofia 21. Dentro da filosofia da ciência o paradigma das ciências
físicas há algumas décadas imperava soberano tanto como exemplo, como
carro chefe das discussões acerca da natureza da ciência 22. Poderia ser o

20
Veja na página 4 do seguinte documento: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/
CES0492.pdf . Acesso em: 31 jan. 2017.
21
O que quero dizer com isso é que os pesquisadores da chamada área de filosofia da química são,
majoritariamente, químicos e não filósofos.
22
DEBUS, A. G. Chemists, physicians, and changing perspectives on the scientific revolution. Isis, v. 89, n. 1, p. 66-
81, Mar. 1998.
36 | Filosofia da Química no Brasil

caso de que a filosofia da química possa ser uma parte específica da filosofia
da ciência? Qual seria um típico problema da filosofia da ciência?
Apenas para citar um típico problema da filosofia da ciência,
peguemos aqui o caso do problema da demarcação, definido pelo filósofo
Imre Lakatos 23:

O problema da demarcação pode ser formulado nos seguintes termos: O que


distingue ciência de pseudo-ciência? Isso é uma forma extrema de colocar a
coisa, visto que o problema geral, chamado de Problema Generalizado da
Demarcação, é na verdade um problema que concerne às teorias científicas, e
tenta responder a questão: Quando uma teoria é melhor do que a outra?
(LAKATOS, 1999, p. 20).

A indagação do que é ou não é científico, por exemplo, é um típico


problema da filosofia da ciência. Isso claramente esbarra em profundas
questões epistemológicas e tem sérias repercussões em toda sociedade,
dado em parte pelo prestígio, poder e autoridade que o termo “científico”
carrega consigo. Ora, neste caso, poderíamos nos perguntar se, mutatis
mutandis, as questões como o que diferencia a química e alquimia, ou
mesmo qual é a definição de química, seriam estritamente falando
questões de filosofia da química. Questões de porque uma teoria química
é melhor do que outra, ou mesmo porque uma é adotada pela
comunidade em detrimento de outra (no caso em que ambas salvem
igualmente os fenômenos, evidentemente) também parecem questões
estritamente pertencentes à filosofia da química, por mera analogia.
Sendo assim, um estudo sobre o que diferencia astrologia e astronomia
poderia ser considerado como “filosofia da astronomia”. Então na
verdade o que temos é sempre filosofia, porém, quando abordando
questões particulares de determinada área, ela parece admitir seu
específico denominador.

23
LAKATOS, I. Lectures on scientific method. In: MOTTERLINI, M. (Ed.). For and Against Method. Chicago:
University of Chicago Press. 1999.
Kleber Cecon | 37

Sendo assim, acredito que é possível estabelecer então critérios para


uma espécie de filosofia da química stricto sensu, e lato sensu para
demais áreas coligadas. Afinal, em questões como a diferença entre
química e alquimia, como excluir o estudo de áreas como a história da
química? Seria impossível imaginar alguém estudando a história da
química, para que captando o movimento histórico desta ciência, tente
extrair sua essência e encontrar uma definição? Logo, parece claro o
motivo pelo qual a filosofia da química e a história da química parecem
guardar tantas relações. O que mais uma vez não seria inédito. Seria
apenas o caso de ver a mesmíssima relação, algumas vezes amigável e
outras vezes tensa, entre a filosofia da ciência e história da ciência. Certa
vez Kant se pronunciou sobre esta relação e muitos filósofos da ciência,
como Imre Lakatos, assumiram a sentença de Kant como uma diretriz
em seus trabalhos 24:

A Filosofia da ciência sem história da ciência é vazia, a História da ciência


sem filosofia da ciência é cega. Inspirando-se nesta paráfrase da famosa frase
de Kant, o presente trabalho tenta explicar de que modo a história da ciência
deveria aprender com a filosofia da ciência e vice-versa [...] A filosofia da
ciência proporciona metodologias normativas com cujos termos o historiador
reconstrói a “história interna” e proporciona, deste modo, uma explicação
racional do desenvolvimento do conhecimento objectivo [...] duas
metodologias rivais podem ser avaliadas com a ajuda da história [...]
qualquer reconstrução racional da história necessita ser completada por uma
“história externa” empírica [...] (LAKATOS apud ANDRE, 1996, p. 317).

Ainda também, em sentido estrito, poderíamos considerar efetivas


questões epistemológicas que apenas consideram exemplos oriundos da
química. A estas questões incluo aqui algumas como: “Seria a química,
teoricamente, redutível à física?”. A questão da redutibilidade da química
à física é recorrente em trabalhos da ISPC em seus encontros anuais e
parece ser um dos grandes debates dentro desta sociedade. Os

24
LAKATOS, I. História de la ciencia y sus reconstrucciones racionales. Madrid: Tecnos, 1987, p. 11-12 apud ANDRE,
J. M. Da História da ciência à filosofia da ciência: elementos para um modelo ecológico do progresso científico.
Revista Filosófica de Coimbra, n. 10, p. 315-359, 1996.
38 | Filosofia da Química no Brasil

reducionistas e fisicalistas parecem entrar em desacordo com os não-


fisicalistas ou adeptos de uma filosofia da emergência. Toda essa questão
também poderia ser classificada como uma atividade de filosofia da
química stricto sensu.
Parece que questões de história da química podem não ser
consideradas como filosofia da química de forma estrita, mas podem em
um sentido lato, enquanto uma atividade auxiliar que pode ser
necessária ou complementar à atividade principal. Da mesma maneira
outras atividades como ensino de química, políticas científicas e
tecnológicas, situações específicas da química em determinadas regiões,
entre outras questões, são adendos que não são estritamente filosofia da
química, mas podem prover informações relevantes para seu
desenvolvimento. Não é por acaso que todas essas questões aparecem
juntas em eventos de “filosofia da química”.
Dado tudo que foi apresentado, podemos talvez inferir por minhas
modestas considerações e exposição que filosofia da química,
estritamente falando, poderia ser a aplicação do modus operandi
filosófico para analisar problemas envolvendo conceitos específicos
dentro de um sistema que pertence às ciências químicas. Essa definição,
ainda que fraca e talvez insuficiente, parece ser à primeira vista o que a
define para mim no presente momento. Todas as atividades auxiliares
desta análise podem ser consideradas como uma espécie de filosofia da
química lato sensu.

Conclusão

Acho que podemos inferir que, assim como eu, diversos alunos que
procuram cursos de ciências puras estão no fundo procurando algo cujos
princípios podem estar mais distantes do curso que eles escolheram do que
imaginam. Talvez com a presença da disciplina de filosofia no ensino médio,
essa probabilidade tenha diminuído. Mesmo assim, muitos alunos que
ingressam em ciências puras acabam ingressando posteriormente em
Kleber Cecon | 39

cursos de filosofia, e geralmente acabam enveredando para a filosofia da


ciência. Os pesquisadores com este perfil que permaneceram na química
acabaram formando uma massa crítica em quantidade suficiente para
estabelecer um processo para trazer as discussões de humanidades ligadas à
química para dentro da academia. Uma parte deste processo foi a criação da
ISPC que, por sinal, apesar de ter sido criada por pesquisadores europeus e
americanos, possui um grande e crescente número de trabalhos
apresentados por pesquisadores latinos, indicando uma ascendente
tendência desta área em vários países da América Latina, inclusive no
Brasil.
Com relação à filosofia da química, realmente parece que podemos
fazer uma associação entre os temas de filosofia da ciência e com esse
paralelo tomar como não absurda a existência de uma área como filosofia
da química, de forma estrita, assim como podemos tomar uma série
diversa e variada de assuntos que gravitam pelo tema que podem ser
tomados como uma espécie de filosofia da química lato sensu. Acredito
que esta agregação de assuntos não deva ser vista como algo ruim, mas
sim como um cinturão de conhecimentos que podem auxiliar a filosofia
da química em seu sentido estrito. Além disso, a riqueza e pluralidade
desses temas podem vir a ser mais um elemento enriquecedor desta área
que, apesar de ser ainda muito pequena, guia a vida e a biografia de
muitos corações pelo mundo.

Referências

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ecológico do progresso científico. Revista Filosófica de Coimbra, n. 10, p. 315-
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Kleber Cecon | 41

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Pré-Socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores, v 1).


2

Filosofia com química, química com filosofia

Ronei Clécio Mocellin 1

Qual o interesse da história e da filosofia no estudo da química?


Durante minha graduação em química nos anos 1990 na Universidade
Federal do Paraná, essa era a pergunta comum que meus professores me
faziam ao expor minha curiosidade por esses domínios. Para eles,
estudar a história e as reflexões filosóficas engendradas pela química
tinha pouco a contribuir na formação de futuros químicos. A primeira
oportunidade de expressar meus interesses pela história e pela filosofia
das ciências me foi oferecida por um lógico, Décio Krause, então
professor do departamento de matemática. Krause, hoje atuando no
departamento de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina, foi
meu orientador de Iniciação científica e essencial para que eu começasse
a precisar e a definir melhor meus interesses de pesquisa. Mesmo eu não
tendo talento e gosto pela pesquisa em lógica, Krause dispôs-se a
orientar-me, recomendando o estudo de um autor que poderia aliar
minha formação em química com meus interesses histórico-filosóficos,
foi a descoberta de Gaston Bachelard.
No prefácio de seu livro A filosofia do não – filosofia do novo
espírito científico, Bachelard apresentava seu programa de investigação
filosófico para as “novas ciências” originadas a partir da segunda metade
do século XIX, como as geometrias não euclidianas e a química de
síntese, e do início do século XX, como as revoluções quântica e

1
Departamento de Filosofia – Universidade Federal do Paraná, roneimocellin@ufpr.br
44 | Filosofia da Química no Brasil

relativística. O não do título não significava negar ou condenar como


“simples erro” o passado de uma ciência, mas o de apontar modos
alternativos de pensar e de agir cientificamente ao longo de sua história,
da superação dos obstáculos e das consequentes rupturas
epistemológicas. Na primeira frase desse prefácio, Bachelard sustentava
uma posição com a qual concordei de imediato, a de que “a utilização dos
sistemas filosóficos em domínios afastados da sua origem espiritual é
sempre uma operação delicada, muitas vezes uma operação falaciosa.
Assim transplantados, os sistemas filosóficos tornam-se estéreis ou
enganadores” (Bachelard, 1984, p. 3). Ou seja, estudar os aspectos
filosóficos de uma ciência não consistia em aplicar o sistema deste ou
daquele filósofo, mas o de partir da própria ciência a fim de compreender
seus conceitos ontológicos, epistemológicos, metodológicos, éticos, enfim,
sua natureza filosófica. Esta inversão também lançaria novas luzes sobre
esses próprios sistemas filosóficos, pois muitas vezes os historiadores da
filosofia desconheciam a importância de conceitos derivados da química
na construção desses sistemas.
O prefácio também oferecia uma boa explicação para o fato de meus
professores verem com certa desconfiança a combinação de uma ciência
eminentemente experimental como a química com a filosofia,
aparentemente tão distante das práticas de laboratório. Se por filosofia se
entendesse um sistema externo sobreposto ao conhecimento químico
para dar-lhe fundamentação teórica, por certo, e seguindo uma longa
tradição de combate por uma identidade epistêmica para sua ciência, a
recusa de misturar química com filosofia era plenamente justificada.
Mais ainda, essa desconfiança era reforçada na medida em que a química
nem mesmo fazia parte dos debates entre filósofos da ciência
profissionais, sobretudo aqueles mais estudados nos cursos de “filosofia
da ciência” ofertados pelos departamentos de filosofia das universidades
brasileiras. Geralmente, as ementas desses cursos eram estruturadas a
partir das abordagens dos membros do Círculo de Viena, de Popper, de
Hempel, ou de Quine, que priorizavam a linguagem da lógica, da
Ronei Clécio Mocellin | 45

matemática e da física em seus casos de estudo, mesmo que


considerassem a química como parte da ciência unificada. Assim,
pareceu-me que o descaso da parte dos químicos com as questões de
natureza filosófica não significava a inexistência das mesmas, mas que
talvez ele fosse mais o resultado de suas próprias formações acadêmicas.
Ainda na graduação, comecei a trabalhar como professor no ensino
médio. Esta atividade reforçava minha convicção de que o ensino de
química deveria ser acompanhado por uma apropriação cultural do
conhecimento químico. Sendo a ciência responsável pela produção e pelo
estudo de materiais e de sustâncias onipresentes na nossa vida cotidiana,
considerava que uma “compreensão química do mundo” era
fundamental para uma formação voltada à cidadania e à emancipação
social e cultural. Pois, muitos desses artefatos tinham implicações
societárias e ambientais tanto no presente quanto no futuro das
sociedades e ambientes naturais. Contudo, raramente isso se traduziu em
práticas pedagógicas conduzidas com método e propósitos precisos.
Várias foram as razões do insucesso, mas talvez a causa principal tenha
sido a própria organização do ensino médio brasileiro. Ao menos naquela
época, focava-se mais na memorização do que na compreensão de
conceitos e de ideias, além do que, infelizmente, o objetivo prioritário dos
colégios era o de oferecer uma “formação” que capacitasse os estudantes
a responder as provas dos vestibulares que davam acesso às
universidades.
Em paralelo ao trabalho no magistério secundário, prossegui minha
formação acadêmica iniciando um mestrado em filosofia na Universidade
Federal de Santa Catarina, sob a direção de Luiz Henrique de Araújo
Dutra. Estudar em Florianópolis também me ofereceu a possibilidade de
dialogar e aprender muito com o historiador da química Juergen
Heinrich Maar, sempre interessado em contribuir e em partilhar seu
imenso conhecimento histórico. O projeto de pesquisa propunha
investigar a análise feita por Thomas Kuhn da chamada “revolução
química” realizada por Antoine de Lavoisier (1743-1794) (KUHN, 1975).
46 | Filosofia da Química no Brasil

Ela exemplificava como ele pretendia todos os elementos que


compunham seu conceito de estrutura das revoluções científicas? O
objetivo, contudo, não era o de corroborar as conclusões de Kuhn, mas,
ao contrário, explicitar algumas razões para se investigar o trabalho de
Lavoisier a partir de suas próprias referências históricas e filosóficas, no
caso, aquelas dos químicos de sua época e a do filósofo Étienne Bonnot
de Condillac (1714-1780). Outro objetivo era o de descentralizar a origem
da química moderna, tanto da obra de Lavoisier quanto de seu período
histórico, uma vez que alguns comentadores consideravam que a
química somente tinha se tornado uma ciência dois séculos depois das
grandes Revoluções científicas da modernidade.
Apoiados nas obras de Allen Debus e de Paolo Rossi sobre a química
renascentista e a existência de uma filosofia química nela fundamentada,
e nos conceitos historiográficos adotados por Bernadette Bensaude-
Vincent e Isabelle Stengers em seu História da química, consideramos ser
mais adequado compreender a emergência da ciência química como um
processo histórico de longa duração, que se iniciava na Modernidade.
Apontamos também que a estrutura conceitual proposta por Kuhn para
explicar a chamada “revolução química” não se adequava aos textos
originais e que a história da química não deveria apenas fornecer
exemplos que corroborassem uma determinada teoria epistemológica.
Também detectamos certo anacronismo da parte de Kuhn ao atribuir o
mesmo significado da expressão “revolução científica” empregada por
Lavoisier ao conceito epistemológico de revolução científica tal como
descrito por ele próprio. Contudo, apesar de procurarmos nuançar certos
conceitos empregados por Kuhn em sua explicação da trajetória de
pesquisa de Lavoisier, concluímos que ainda era possível preservar um
aspecto fundamental do conceito kuhniano de revolução científica, qual
seja, o de que a química moderna se distinguia daquela praticada na
época por uma profunda ruptura linguística (MOCELLIN, 2003).
Em 2005, graças a uma bolsa obtida junto a CAPES, comecei meu
doutorado na Universidade de Paris X, sob a direção de Bernadette
Ronei Clécio Mocellin | 47

Bensaude-Vincent. O projeto original propunha uma investigação da


epistemologia condillaciana subjacente à nova teoria química de
Lavoisier e de seu novo método de nomenclatura química. Logo o projeto
mudou de objetivo, sobretudo pela abundância de trabalhos sobre
Lavoisier em francês e em inglês, passando a focar sobre a trajetória
intelectual de Louis-Bernard Guyton de Morveau (1737-1816). Químico,
professor, industrial e homem de Estado, Guyton era, no entanto,
considerado pela maioria dos historiadores como um ator secundário na
química francesa do período, mesmo figurando com Lavoisier entre os
autores do texto sobre a nova nomenclatura química, publicado em 1787.
Além de secundário, Guyton servia de exemplo a essas historiografias
acerca da resistência e mesmo da teimosia de químicos mais velhos na
defesa da teoria do flogístico face à “nova química” de Lavoisier. Ele
também seria um caso típico de uma “conversão paradigmática”, tal
como a expressão é entendida por Kuhn, ou seja, como uma mudança
gestáltica.
A partir de arquivos disponíveis nas bibliotecas de Paris e de Dijon,
cidade natal de Guyton, foi possível descrever sua trajetória como
químico e professor, bem como sua contribuição na divulgação da
química e no desenvolvimento da indústria francesa. Com isso,
propusemos outra imagem de Guyton, que julgamos mais próxima de
seus próprios escritos e atitudes. Porém, o objetivo não era fazer justiça
histórica à Guyton, mostrando as imprecisões e aproximações da parte
de seus comentadores, mas aproveitar sua trajetória intelectual, social e
política para compreender como se dava a capilarização da química e de
seus produtos na sociedade da época. Esta investigação nos conduziu ao
estudo da construção de uma imagem pública do conhecimento químico
no século das Luzes, da articulação e da participação de múltiplos atores
no crescente interesse social pela ciência química (MOCELLIN, 2011
[2009]).
Considerado por seus contemporâneos como “o primeiro químico”
da França, Guyton era o principal articulador de uma “república de
48 | Filosofia da Química no Brasil

químicos” europeus, que coletivamente consolidaram a existência social


desta ciência na segunda metade do século XVIII. O resultado foi uma
tentativa de mostrar que a chamada “revolução química” do final do
século não era obra exclusiva nem dos químicos franceses, tampouco
estava circunscrita às teorias do oxigênio e da composição de Lavoisier.
Quanto à relação entre Guyton e Lavoisier, os arquivos nos mostravam
que a melhor maneira de a descrever era como um processo de debates e
de convergência de ideias que culminava com a publicação do Método de
nomenclatura química, mas que isso não significava nem uma conversão
paradigmática de Guyton, nem a adoção das mesmas ideias filosóficas
sobre a linguagem científica. Não se tratava de desconstruir a imagem de
Lavoisier como fundador da química moderna, o que vários outros
historiadores já haviam feito, mas o de investigar a cultura química na
qual eles estavam inseridos. Esta cultura, originadas nos laboratórios
químicos, era constituída de atitudes práticas, de gestos, de teorias, de
instrumentos, de produtos, de nomes, de representações simbólicas, de
classificações, de manuais de ensino, de traduções, ou seja, de muitas
maneiras de se “comunicar quimicamente”.
Outro resultado foi uma melhor compreensão do processo de
construção de uma identidade ontológica, epistêmica, metodológica e
pedagógica para a química ao longo do século das Luzes. Neste processo
não apenas os químicos profissionais estavam envolvidos. Convém
lembrar que, no século XVIII, ainda não existiam as separações
disciplinares que organizarão a classificação das ciências no século
seguinte, de maneira que existiam frutíferos diálogos entre diferentes
saberes e práticas. O imenso projeto enciclopédico de Diderot e
d’Alembert, no qual participaram quase duzentos colaboradores, é um
excelente exemplo do ecletismo intelectual das Luzes. A maioria dos
verbetes sobre a química na Enciclopédia era de autoria do médico-
químico Gabriel-François Venel (1723-75). O verbete “Chymie”,
publicado no terceiro volume (1753), constituía um verdadeiro manifesto
pelo reconhecimento da originalidade cognitiva da ciência química face
Ronei Clécio Mocellin | 49

às tentativas de reduzi-la a um caso particular de teorias físicas gerais,


como aquelas de Descartes ou de Newton (LEHMAN, 2009). Este
“manifesto químico” constituiu uma fonte privilegiada para se
compreender as razões que tornavam a química um modelo para se
filosofar.

Filosofia, história e química

Essa imbricação entre conceitos químicos e filosóficos estava


associada à outra que dizia respeito à forma de pensar a relação entre uma
investigação histórica e uma reflexão filosofia sobre as ciências. Qual
deveria ser a relação entre a história e a filosofia das ciências? Para Kuhn,
por exemplo, ambas deveriam ser praticadas em momentos diferentes da
investigação e em departamentos universitários distintos, mesmo que
realizadas pelo mesmo pesquisador. Kuhn exerceu exemplarmente cada
uma dessas funções, ora como historiador ora como filósofo (KUHN,
1989). Contudo, ao empregar exemplos históricos para justificar suas
ideias filosóficas, parecia-me que Kuhn procedia de maneira ahistórica,
pois o objetivo era o de corroborarem uma estrutura, semelhante àquelas
empregadas na investigação antropológica por Claude Lévi-Strauss. Sem
dúvida, no cenário da filosofia da ciência realizada nos países de língua
inglesa, no qual a filosofia analítica originada do positivismo lógico era
predominante, o uso da história por Kuhn constituiu uma inflexão
importante, porém considerava que esse uso não constituía o que alguns
comentadores chamavam de “giro histórico” em filosofia da ciência.
Isso porque eu estava de acordo com uma abordagem que não
considerava narrativas históricas e filosóficas como necessariamente
distintas. Adotando uma expressão usada por Bensaude-Vincent,
considerava que investigar a cultura científica de um determinado período
histórico significava realizar uma “filosofia de terreno”, que constituía
numa descrição das relações entre conceitos (científicos, pedagógicos,
econômicos, historiográficos, filosóficos) que emergiam num determinado
50 | Filosofia da Química no Brasil

contexto histórico e social. Ou seja, interrogar os próprios atores e


promotores dessa cultura a fim de descrevê-la estabelecendo os nexos, as
convergências e as divergências que orientavam suas investigações. De
fato, não separar a história da ciência de sua filosofia constitui uma
característica marcante da chamada “epistemologia francesa”. A
Enciclopédia de Diderot e d’Alembert servia de modelo a essa tradição, que
ganhou contornos mais precisos no século seguinte com Auguste Comte e
que, embora com nuances e divergências, continuará sendo assimilada por
filósofos-historiadores (ou historiadores-filósofos) importantes do século
XX, como Alexandre Koyré, Hélène Metzger, Bachelard, Georges
Canguilhem, Gilbert Simondon, ou Michael Serres.
Concluída a tese, retornei ao Brasil no início de 2010. Naturalmente,
a primeira grande dificuldade após um doutorado com bolsa é a de
encontrar meios para sobreviver sem a bolsa. Embora em um período
em que havia vários concursos nas universidades públicas, fruto de um
processo de expansão do sistema universitário brasileiro, minha
formação um pouco heterodoxa e interdisciplinar colocava certas
dificuldades. Em qual departamento deveria prestar concursos? Nos de
química e dedicar-me ao emprego da filosofia no desenvolvimento de
práticas de ensino de química? Naqueles em que participei o júri, em
geral, considerou, e com razão, que eu não era um “químico de verdade”,
que eu seria incapaz, por exemplo, de lecionar uma disciplina como
“química geral” para engenheiros. Mesmo tendo ficado em segundo lugar
em um concurso promovido pelo departamento de química da UFSC,
fiquei muito contente na ocasião por ter conhecido ótimas pessoas,
sobretudo Roque Moraes e Maria do Carmo Galiazzi, professores da
Universidade Federal do Rio Grande e membros da banca examinadora.
Generosos e interessados no meu trabalho consolaram-me observando
que futuramente eu poderia tentar uma vaga em sua universidade, pois
havia a expectativa de abertura de concurso.
Nos de filosofia e ter que necessariamente expandir minha
formação filosófica para além dos interesses próprios da química? Neste
Ronei Clécio Mocellin | 51

caso, a dificuldade institucional consistia no fato de que alguns


departamentos de filosofia exigiam graduação em filosofia, o que eu não
tinha. Felizmente, nem todos procediam assim. Um destes era o
departamento de filosofia da UFPR, no qual fui admitido como professor
substituto, lecionando disciplinas em cursos externos, como os de
biologia e de história. Esta experiência acadêmica sacramentou minha
escolha institucional, meu interesse era o de atuar em um departamento
de filosofia e de me dedicar à história e à filosofia da química sem o télos
da aplicação pedagógica, embora continuasse considerando essa
aplicação fundamental para a melhoria do ensino de química.
Terminado o período de dois anos como professor substituto, eu
comecei a realizar um pós-doutorado no departamento de filosofia da
Universidade de São Paulo, agora com bolsa da FAPESP. Com a tutoria
de Maurício de Carvalho Ramos, o projeto tinha por objetivo apontar as
transgressões provocadas pela química entre o natural e o artificial, entre
a natureza e a cultura, separações que somente se consolidaram com a
emergência da filosofia moderna. Isto nos permitiu não apenas analisar
os processos operatórios envolvidos na produção de sais naturais nas
bancadas do laboratório químico do século XVIII, mas também olharmos
para outros níveis de absorção dos artefatos aí criados. A partir disto,
propusemos uma imagem da racionalidade das operações químicas, no
qual procuramos focalizar com mais precisão as manipulações realizadas
pelos químicos e a filosofia experimental a ela associada (RAMOS;
MOCELLIN, 2015).
Em 2014, fui aprovado em um concurso para a cadeira de “filosofia
da ciência” no departamento de filosofia da UFPR, onde atualmente
trabalho. Responsável pela formação de futuros professores de filosofia,
eu tenho organizado as disciplinas que leciono de modo que explicitem as
originalidades de uma abordagem filosófica que tem a ciência, as técnicas
e a tecnologia como centro de suas atenções. Além da aquisição de uma
formação acerca das “filosofias da ciência” propostas por diferentes
autores, outro objetivo almejado diz respeito ao papel que esses futuros
52 | Filosofia da Química no Brasil

professores poderiam exercer no diálogo interdisciplinar, o que faria da


filosofia no ensino médio não apenas uma disciplina sobre a “história da
filosofia”, mas um rico terreno de articulação conceitual de
conhecimentos aparentemente desconexos.
A estrutura curricular do Curso de filosofia da UFPR comporta cinco
disciplinas de “filosofia da ciência”, uma como obrigatória e as demais
como optativas, de modo que consideramos dedicar uma das optativas à
filosofia da química. Como nossas disciplinas podem ser frequentadas
por estudantes de outros cursos, o que vem ocorrendo, sobretudo, por
alguns de engenharia, de física e também de química, considero que seria
uma forma, ainda que modesta, de contribuir com a institucionalização
da filosofia da química no Brasil. Pois, até o momento, a única ocasião em
que pude oferecer um breve curso dedicado a questões filosóficas
originadas da química não foi no Brasil, mas no Uruguai. Ainda no pós-
doutorado, a convite de Lucía Lewowicz da Universidad de la República,
eu ministrei seminários sobre a história de longa duração da relação
entre a química, seus produtos, sua indústria e a opinião pública. A
proposta também era a de articular essa história a uma noção mais
ampla, àquela de progresso científico e social, presente nos discursos e
nas utopias estruturantes da modernidade ocidental em sua marcha
colonialista.
Além dessa atividade de ensino, eu dei prosseguimento a alguns
projetos de trabalho, notadamente os de produção de textos que
procuravam apresentar as implicações históricas e conceituais de se tomar
Guyton de Morveau como um “professor exemplar” para aprendermos a
“raciocinar com” os químicos das Luzes (MOCELLIN, 2011, 2012, 2016). O
convite de Carlos Alberto Filgueiras para participar do simpósio
comemorativo dos 250 anos de nascimento de Vicente Coelho de Seabra
(1764-1804), primeiro químico brasileiro moderno, organizado pelo
programa de pós-graduação em química da UFMG, possibilitou também
apresentar, através da descrição da tradução do artigo “Affinités” feita por
Thomé Rodrigues Sobral (1759-1829) em 1793, como se deu a acolhida das
Ronei Clécio Mocellin | 53

ideias químicas de Guyton entre os químicos luso-brasileiros (MOCELLIN,


2015). Também comecei uma tentativa de apresentar alguns pontos de vista
sobre certos eixos de pesquisa em filosofia da química que mais me
interessavam (MOCELLIN, 2013). Dez anos após a conclusão do mestrado,
durante as comemorações do cinquentenário da publicação do Estrutura
voltei a analisar o uso que Kuhn tinha feito da química em seu livro clássico
(MOCELLIN, 2013). Isto me levou a outro trabalho, agora sobre as relações
entre Metzger e Koyré e do lugar da química neste diálogo histórico-
epistemológico (MOCELLIN, 2015).
Mais recentemente, meu trabalho tem se concentrado na
investigação das bases conceituais e materiais que caracterizariam um
“estilo de raciocínio” propriamente químico, que seria capaz de abarcar
diferentes abordagens filosóficas e históricas a partir de um modo
específico de pensar e de agir. Considero que o emprego dessa
ferramenta conceitual, devida a autores como Alistair Crombie, Ian
Hacking e Bensaude-Vincent, nos permite estabelecer um território de
convergências de questões nas quais a química é importante, a fim de
acompanhar a capilarização social e material de seus conhecimentos e
produtos. O principal objetivo consiste em investigar a química desde a
modernidade, explicitando as relações entre químicos, filósofos e
historiadores a fim de promover uma cultura química, que consideramos
essencial tanto ao processo educativo quanto na formação de cidadãos
mais conscientes acerca do mundo material no qual vivemos. Ou seja, o
objetivo é o de tentar estabelecer um território de investigação no qual
possamos praticar uma “filosofia de terreno”, que permita uma
aproximação entre pesquisadores, de modo a se fazer filosofia com
química e de se praticar química com filosofia, cujos resultados podem
ser de grande utilidade na educação em química (Mocellin, 2015; 2018a).
Nesta perspectiva, tenho trabalhado em estreita parceria com a
professora Luciana Zaterka na tentativa de explicitar a existência de um
“programa baconiano” e uma filosofia experimental que permeia a
54 | Filosofia da Química no Brasil

história da química a partir da modernidade (ZATERKA; MOCELLIN,


2018a, 2018b; MOCELLIN, 2018c)

Existe um estilo químico de raciocinar?

Ao descrever a explicação dada por Crombie para a expressão “estilo


de pensamento científico”, Hacking salienta “que os estilos não
determinam um conteúdo, uma ciência específica” (HACKING, 2002a, p.
203). Não estaríamos, então, desvirtuando de antemão o emprego da
noção de estilo ao nos referir a uma “ciência específica”, a química?
Gostaríamos de argumentar em favor de uma resposta negativa,
procurando apontar a pertinência no esclarecimento do lugar
sociocultural da química, dos químicos e de seus produtos (conceituais e
materiais) se adicionarmos às listas de Crombie e de Hacking um “estilo
químico de raciocinar”. Consideramos ainda que esta adição é capaz de
satisfazer tanto uma noção ampla de estilo (Crombie/Hacking) quanto
uma noção mais restrita (BUENO, 2012), além de chamar a atenção para
alguns aspectos negligenciados por ambas.
Uma possível justificativa à interdição de se identificar um estilo a
uma “ciência específica” poderia atentar para o fato que se procura evitar
uma associação imediata de um estilo a uma das ciências da hierarquia
da classificação positiva de Comte. Um estilo de raciocínio não era uma
disciplina científica, não se reduzia a um conjunto de teorias, de leis e de
práticas. Embora esses elementos fizessem parte, um estilo se
apresentava como um padrão/modelo mais amplo de racionalidade.
Porém, esse argumento fica comprometido se lembrarmos de que
Hacking considera que cada “ramo do conhecimento” da ciência positiva
de Comte constituía “um estilo positivo de raciocínio associado a ele”.
Hacking chama a atenção para a ideia de Comte, partilhada por ele,
segundo a qual havia “uma evolução histórica de diferentes estilos de
raciocínio, cada um deles trazendo em sua esteira seu próprio corpo de
conhecimento positivo” (HACKING, 2002b, p. 185).
Ronei Clécio Mocellin | 55

Isso não significa que os estilos de Crombie e de Hacking


correspondam aos “ramos do conhecimento” de Comte. Se o método de
cada ciência positiva tem lugar nos estilos identificados por eles, ambos
guardavam distância de outras posições filosóficas de Comte, que foi
considerado por Canguilhem como o criador de um “estilo francês” de
filosofar sobre as ciências a partir de suas respectivas histórias
(CANGUILHEM, 1983, p. 63). Então, não seria paradoxal admitir-se que
a química fosse um dos ramos do conhecimento, com um “estilo
positivo” e, ao mesmo tempo, recusar-lhe possuir um estilo próprio com
o argumento de que ela era uma ciência específica? Ou seja, ao menos no
caso da química, como admitir que ela fosse um dos ramos de evolução
da ciência positiva e, ao mesmo tempo, não reconhecer nela um estilo
próprio de raciocinar?
Cabe lembrar a importância dada por Comte às particularidades
cognitivas, históricas e sociais da química e de sua indústria. Comte
dedicou cinco lições de seu Cours de philosophie positive às
especificidades filosóficas da química, às dificuldades de sua posição
hierárquica (entre a Física e a Biologia), aos seus usos públicos (ensino,
indústria), pois, para ele, esta ciência era a que melhor representava as
conquistas do progresso científico e técnico da sociedade (COMTE, 1838,
lições 35 à 39). No entanto, o projeto comtiano de submeter os ramos de
“positividade” a uma classificação geral das ciências limitava o próprio
escopo filosófico do conhecimento químico.
Além disso, a própria posição hierárquica da química não se dava
sem problemas. Na verdade, o estatuto da química restava indefinido
para Comte, pois, para ele, as teorias químicas ainda não eram
suficientemente abstratas, restavam fortemente empíricas. Suas práticas
experimentais incorporavam fenômenos de outros domínios (na época, a
eletrólise) e sua posição na hierarquia disciplinar nem sempre era
respeitada, notadamente em relação à biologia. Exemplo disso era o fato
de Comte considerar que a maior contribuição dada pela química tinha
sido sua nova nomenclatura que, no entanto, era inspirada na
56 | Filosofia da Química no Brasil

nomenclatura binomial de Lineu. Portanto, a classificação positiva da


química com disciplina não resolvia nem o problema da identidade
cognitiva, tampouco o da delimitação de suas fronteiras com ramos
vizinhos, de modo que o conhecimento químico não se adequava muito
bem à própria hierarquia das ciências positivas (BENSAUDE-VINCENT,
1994).
E o que dizem Crombie e Hacking a respeito da localização da
química em seus estilos de pensamento/raciocínio? A recusa de se
identificar um estilo a uma “ciência específica” significa uma interdição
de se atribuir ao conhecimento químico um estilo específico?
Aparentemente, ambos consideram que a resposta da primeira questão
era evidente, pois nenhum deles fez comentários específicos sobre a
química e o trabalho dos químicos. Assim, somos levados a supor que
para Crombie a química pertence, sobretudo, ao estilo experimental e de
mensuração de relações observáveis, mas também poderia ter partes em
outros, como naquele da construção hipotética de modelos. Todavia, ao
analisar a emergência do estilo experimental na modernidade, Crombie
deu pouca atenção à experimentação química e, assim como seu
professor Koyré, privilegiou os experimentos que materializavam
determinadas teorias físico-matemáticas e os instrumentos científicos
criados por “artistas racionais” (CROMBIE, 1994, v. 1, p. 425ss).
No caso de Hacking a resposta parece bastante evidente. A química
pertenceria a seu “estilo laboratório”. É curioso, mas Hacking postula a
existência de um novo estilo sem se interessar pela ciência que
efetivamente criou esses “espaços tecno-epistêmicos” (Smith, 2000).
Para ele, “o estilo laboratório começou por volta da época em que Boyle
fez seu compressor a fim de investigar a elasticidade do ar” (HACKING,
2002a, p. 206). Nem mesmo os trabalhos de experimentações químicas
realizadas por Boyle foram lembrados (CLERICUZIO, 2006; ZATERKA,
2004). Supomos então que, para Hacking, a química era uma dentre
outras ciências na qual predominava um estilo laboratório,
“caracterizado pela construção de aparelhos para produzir fenômenos
Ronei Clécio Mocellin | 57

para os quais a modelagem hipotética pode ser verdadeira ou falsa, mas


usando outra camada de modelagem, a saber, modelos de como os
próprios aparelhos e instrumentos funcionam” (HACKING, 2002a, p.
205).
Certamente, a química satisfaz as condições gerais tanto de Crombie
quanto de Hacking, pois realiza experimentos controlados, utiliza
modelagens analógicas e emprega aparelhos cujo funcionamento é bem
conhecido. Mas, podemos nos interrogar se essa generalidade e
dissolução do conhecimento químico nesses estilos ajudam a melhor
compreender o seu lugar, tanto entre as demais ciências quanto nas
sociedades nas quais o trabalho dos químicos e seus produtos se fazem
presentes. Melhor dizendo, se a adequação da química não era um
problema para Crombie e Hacking, a questão que nos interessa é se isso
é suficiente para deixarmos de explorarmos as especificidades de um
“ponto de vista químico” de conhecer, de manipular, de dominar e de
transformar o mundo natural.
Na época de Comte esse “ponto de vista químico” era considerado
conceitual e historicamente relevante na análise filosófica das ciências.
Esse interesse diminuiu bastante nas primeiras décadas do século XX,
particularmente entre filósofos da ciência de língua inglesa. As razões
desse desinteresse não é nosso tema, mas talvez o desaparecimento da
química das discussões filosóficas nos ambientes de formação intelectual
de Crombie e de Hacking possa ser a causa da pouca preocupação que
ambos tiveram com o conhecimento químico e sua história. Esta
hipótese, contudo, não pretende relativizar a contribuição historiográfica
de Crombie que, inspirada em Koyré e na École des annales, evidenciou a
existência de uma variedade de formas de pensar cientificamente
(mentalidades) que existiam e que deveriam ser estudadas como
processos históricos de longa duração. Tampouco diminuir a importância
filosófica da ruptura promovida por Hacking com a tradição acadêmica
que valorizava sobremaneira as teorias científicas, em detrimento de
análises mais finas sobre os experimentos e as práticas das ciências.
58 | Filosofia da Química no Brasil

Embora Crombie e Hacking não deem grande atenção à química,


por outro lado, eles não negaram a possibilidade de se ampliar suas listas
de estilos de pensamento/raciocínio. Nas últimas décadas do século
passado a química voltou a despertar o interesse de filósofos e
historiadores profissionais, de maneira que dispomos atualmente de
ampla literatura filosófica e historiográfica que têm a química como tema
central. Essas investigações oferecem análises detalhadas do
desenvolvimento dessa ciência e da capilarização de seus produtos nas
sociedades e no ambiente natural ao longo da história. A diversidade
dessas interpretações caracteriza na química outro aspecto fundamental
da noção de estilo, a de ser um território de racionalidades diversas, no
qual coabitam uma pluralidade de abordagens, e não um domínio em
que sucessivamente se alternam sistemas teóricos específicos,
paradigmas incomensuráveis, ou programas de investigação
competidores.
Para Hacking, o “estilo laboratório” era mais restritivo que o “estilo
experimental” de Crombie, pois nem toda ciência experimental era uma
ciência de laboratório. A diferença consistiria que no laboratório, com
seus instrumentos e materiais, criavam-se fenômenos passíveis de serem
controlados e reproduzidos. Por isso Hacking não considera que, por
exemplo, a botânica ou a paleontologia adotassem um estilo laboratório
de produzir seus conhecimentos. Hacking aponta também a longa
duração e a auto estabilidade desses espaços epistêmicos que produziam
conhecimento através da manipulação e da intervenção sobre os
materiais investigados. Ao contrário da abordagem etnológica e
externalista de Latour, Hacking está mais interessado na produção
material de fenômenos que, para ele, envolvia a
manipulação/intervenção de “ideias”, “coisas” e “sinais/símbolos”
(marks), que, por sua vez, eram inseparáveis e se hibridizavam no
trabalho operacional realizado nos laboratórios (HACKING, 1992;
LATOUR; WOOLGAR, 1997).
Ronei Clécio Mocellin | 59

Sem dúvida, a química é uma ciência de laboratório e corrobora os


critérios gerais apontados por Hacking. No entanto, isso é insuficiente
para compreender a construção histórica do conhecimento objetivo das
propriedades especificamente químicas dos materiais. Naturalmente, isso
corresponde à aceitação de que a química e sua história são dignas de
análises histórico-filosóficas originais, de reflexões que envolvem desde
debates sobre questões ontológicas e epistemológicas, até aqueles mais
próximos do interesse público, como a ética ambiental (BØRSEN;
SCHUMMER, 2016). Assim, assumimos aqui uma concepção pluralista do
conhecimento, que considera pertinente se conhecer objetivamente as
coisas a partir de vários “pontos de vista” (científicos e não científicos).
Nessa perspectiva, a noção de estilo de Crombie e de Hacking
pareceu à Bensaude-Vincent ideal na resolução de um problema
importante que ela e Stengers enfrentaram ao escreverem o livro
Historie de la chimie: qual era a identidade da química? Na época a
solução encontrada foi descrever os modos que, em diferentes períodos
históricos, os químicos defenderem a autonomia e a singularidade
ontológica e epistêmica de sua ciência (BENSAUDE-VINCENT;
STENGERS, 1993, p. 9-12). Mais recentemente, ela considerou pertinente
empregar a noção de estilo para indicar uma identidade cognitiva perene
ao trabalho realizado pelos químicos ao longo da história de sua ciência
(BENSAUDE-VINCENT, 2009).
Mas Bensaude-Vincent considera que embora Hacking tenha dado
mais atenção ao papel da manipulação e da intervenção experimental
operada em laboratório, ele não diferia de Crombie quanto à ideia de
experimentação como realização de um modelo mental, de um
pensamento que antecipava a experiência. Ambos teriam negligenciado a
emergência de uma prática alternativa de experimentação, que se
manifestava no desenvolvimento de um modo próprio de teorizar e de
uma visão específica sobre a matéria. Bensaude-Vincent considera que
essa singularidade deu origem a uma “concepção geral de natureza
subjacente às práticas químicas”, e que essa concepção, mutante ao longo
60 | Filosofia da Química no Brasil

da história da química, delimita, de modo amplo, as fronteiras de um


“estilo químico” de raciocinar. A noção poderia ser empregada a fim de
reunir diferentes identidades cognitivas construídas historicamente pelos
químicos. O “estilo laboratório” de Hacking não seria, então, mais do que
a extensão de um estilo originado no laboratório dos químicos
(BENSAUDE-VINCENT, 2009, p. 366).
Em seu sentido geral, a noção de estilo químico serve, portanto,
para delimitar um território de investigação autônomo, com métodos e
objetos (materiais e conceituais) próprios e que demandavam a seus
praticantes uma maneira específica de trabalhar. Um exemplo desta
especificidade já se dava no emprego do corpo do experimentador, pois
no laboratório todos os sentidos do químico eram requisitados na
explicação de um fenômeno. Os químicos foram os primeiros a se ocupar
da investigação objetiva das transformações da matéria, explicando
coisas visíveis e sensíveis através da postulação de coisas invisíveis e
insensíveis. E isso sempre a partir de seu lugar de trabalho, de seu
laboratório (LEFÈVRE, 2005).
Kovac analisou esse raciocínio prático dos químicos através de
exemplos corriqueiros de um laboratório, como a “solubilidade” e a
“reatividade”. Segundo ele, os químicos desenvolveram um “modo
prático” de raciocinar, que ao contrário de um “modo abstrato”, não
começa por regras ou axiomas gerais, mas a partir da descrição
detalhada de fatos de casos particulares submetidos a certas condições.
Esse “modo prático” não era desprovido de concepções teóricas, pois os
químicos sempre “pensaram com as mãos”, mas enquanto um “modo
abstrato” parte de premissas universais, um “modo prático” era
contingente a contextos particulares. Devido, justamente, a esse modo
concreto e contextual de existência dos produtos da química, Kovac fez
apelo à casuística como guia ético desse modo de raciocinar (KOVAC,
2002). A linguagem e a classificação química são dois outros exemplos
marcantes dessa imbricação, pois nomear e classificar as substâncias
químicas dependia tanto de uma concepção identitária, quanto do nível
Ronei Clécio Mocellin | 61

técnico-conceitual da investigação sobre as propriedades químicas.


Portanto, a realidade química é sempre provisória, dependendo tanto do
momento histórico quanto dos meios técnicos, conceituais e
representacionais (nomenclaturas, modelos, fórmulas) disponíveis aos
químicos (DAGOGNET, 2002; LASZLO, 1993; CERRUTI, 1998).
Pode parecer um truísmo dizer que o estilo químico consiste em um
modo de raciocinar e de agir específico originado de um laboratório
químico, além do fato de outras ciências também fazerem uso de
laboratórios. Não se trata aqui de reivindicar uma ancestralidade da
química para o estilo laboratório, nem de questionar o uso desses
espaços-epistêmicos por outras ciências. Trata-se, isto sim, de utilizar a
noção em proveito dos interesses da própria química, como elemento
aglutinador que oferece uma permanência e uma constância de
atividades experimentais nas quais diversos tipos de interesses estavam
envolvidos. Na verdade, o que mais interessa na adoção de estilo nesse
sentido generalizante e unificador é o potencial analítico oferecido pela
noção de Crombie e de Hacking.
Bensaude-Vincent aponta três razões para se adotar essa
ferramenta analítica. A primeira era o fato de Hacking considerar que
cada estilo criava seus próprios objetos, de modo que distintos estilos de
raciocínio científico geravam suas próprias ontologias, postulando a
existência de entidades que somente faziam sentido teórico ou
experimental no domínio do próprio estilo. A segunda razão era a de que
os estilos eram prescritivos, eles normatizavam não somente o que era
verdadeiro ou falso, mas também o que era ou não pensável. Ou seja, eles
estruturavam racionalidades científicas. Enfim, a terceira razão, era o
fato de que os estilos de raciocínio científico eram de “longa duração”, o
que era essencial no caso de uma ciência histórica como a química
(BENSAUDE-VINCENT, 2009, p. 368).
O estilo químico apresentaria, assim, três características gerais
marcantes: 1) tratava-se de um modo de se conhecer através do fazer; 2)
seu interesse principal estava na individualidade material e não no
62 | Filosofia da Química no Brasil

estudo da matéria em geral e 3) representava um compromisso


específico com a natureza. No seu laboratório, o químico construía seu
próprio objeto de conhecimento, sempre provisório, através de
instrumentos químicos, físicos e de papel (símbolos, tabelas, gráficos).
Tudo isso era empregado no processo de aprendizagem do químico.
Aliás, a pedagogia química evoluiu em função dessas características
gerais, adicionando outro elemento fundamental na constituição de um
estilo, uma literatura original, uma infinidade de manuais que
universalizavam os saberes químicos.
O objetivo principal desse estilo era o de produzir artefatos, objetos
artificiais que podiam, ou não, ter um exemplar na natureza. Muitas
vezes essa produção ganhava proporções comerciais, o que suscitava
novas questões acerca da sua indústria, da utilidade pública de seu
ensino, da sua importância estratégica para o Estado, mas também de
seus riscos. Cabe observar que desde o início da química industrial na
metade do século XVIII, o fascínio da opinião pública pelo progresso
científico, do qual a química era o modelo, não ofuscava uma
preocupação crescente com a poluição do ambiente próximo às
manufaturas. Portanto, outro aspecto pertinente no emprego de uma
noção de estilo químico é a possibilidade de se acompanhar problemas
éticos e ambientais especificamente ligados aos produtos da química e de
sua indústria ao longo do tempo (LÉVY-LEBOYER, 1996).
Todavia, além dessa delimitação ampla e historicista, seria possível
circunscrever mais estreitamente as características de um estilo químico?
Tentando delimitar aquilo que seria um “núcleo químico da química”,
Schummer propôs uma noção restrita, que perpassaria a historicidade
ontológica e epistemológica de suas definições, teorias ou discursos a fim
de estabelecer precisamente o que tornava a química um estilo
autônomo. Sua estratégia foi a de descrever passo a passo a construção
dessa autonomia a partir do comportamento das substâncias químicas
em contextos materiais precisos. Esse comportamento indicava uma
característica fundamental da química, seu interesse pelas substâncias e
Ronei Clécio Mocellin | 63

por suas transformações, provocadas por diferentes relações reativas.


Tanto a composição quanto a “reatividade” das substâncias químicas
resultavam, não de uma essencialidade substancial, mas de um jogo de
relações entre elas próprias. Essas substâncias não eram conhecidas a
priori, mas construídas através de processos de purificação ou de síntese
e deveriam ser compreendidas como os nós de uma rede de relações.
Segundo ele, isso revelava que a estrutura lógica de sistematização e de
classificação do conhecimento químico consistia em uma peculiar
organização em rede da dinâmica relacional das substâncias químicas
(SCHUMMER, 1998).
Essa noção mais restrita proposta por Schummer decorre das
características gerais do estilo químico que apontamos acima. Ela
também faz convergir duas definições comuns para a química, uma que
enfatizava que ela seria, sobretudo, uma ciência que se ocupava com as
“sustâncias químicas”, e outra que considerava que era os processos de
transformação composicional o que determinava a natureza do
conhecimento químico. Nessa acepção mais restrita, tanto as sustâncias
quanto suas relações devem ser tomadas conjuntamente no
estabelecimento de seu comportamento químico em um determinado
contexto material. Além disso, essa noção se adéqua a uma característica
importante apontada por Hacking, a de que um estilo se tornava
“independente de sua própria história” e passava a ser “um cânone um
tanto atemporal de objetividade, um padrão ou modelo do que é ser
razoável sobre esse ou aquele tipo de assunto” (HACKING, 2002a, p.
209). Na química, esse cânone era dado pela capacidade de se agir
quimicamente sobre os corpos materiais, de analisá-los e de sintetizá-los,
fossem eles derivados do meio natural ou produtos de sua própria
invenção.
A demasiada amplitude dos estilos de Crombie e de Hacking levou
Bueno a propor uma forma mais restrita de estilo de raciocínio, que ele
caracteriza em termos dos mecanismos de representação do que era
percebido como possibilidades de investigação em um determinado
64 | Filosofia da Química no Brasil

domínio, a partir de um quadro inferencial dessas possibilidades sobre o


domínio em questão (BUENO, 2012, p. 660). Os químicos certamente
fazem inferências de conteúdo informativo a partir de um quadro
representacional, e sua atividade de produzir inferências e
representações estão intimamente conectadas. Aliás, no caso das
representações, foram os químicos que inventaram uma atividade
operatória concreta às representações hipotéticas das estruturas
químicas, bem denominados por Klein de “instrumentos de papel”
(KLEIN, 2001).
Gostaríamos, no entanto, de insistir que a forma restrita de estilo
químico guarda uma particularidade, a de ser indissociável da
investigação da matéria, das substâncias e de suas transformações. A de
ser, sobretudo, um estilo materialista (mesmo altamente matematizado),
que se dedica à intervenção técnica dos corpos, a fim de descobrir sua
composição e suas propriedades reacionais. Justamente por ser a ciência
que mais se interessou pelo estudo dos materiais, a química serviu de
base na formulação de “filosofias materialistas”, tanto clássicas
(Gassendi, Diderot, d’Holbach), quanto contemporâneas (PÉPIN, 2012;
MOCELLIN, 2018b).
Por isso, consideramos pertinente enfatizar que a forma restrita de
estilo químico se origina da emergência das propriedades químicas da
matéria. Aqui, lembraremos apenas que na perspectiva emergentista as
propriedades de um determinado nível de materialidade, embora
derivado de um nível inferior, são exclusivas desse nível. Mesmo que as
propriedades químicas emergissem de um universo físico mais básico
(subatômico), isso não implicava que elas fossem redutíveis às
propriedades dessas entidades físicas, muito menos às proposições ainda
mais básicas, como as da matemática. Assim, um estilo químico origina-
se na emergência das propriedades eminentemente químicas da matéria.
De fato, os próprios teóricos da perspectiva emergentista têm na química
um território favorito de exemplos de emergência material, que
satisfazem inclusive a controversa noção de causalidade descendente
Ronei Clécio Mocellin | 65

(top-down) (LUISI, 2002; LLORED, 2012). Se em um sentido abrangente


o estilo químico serve para oferecer uma identidade histórica para a
química, em um sentido mais restrito ele precisa a contextualidade
material que interessa à suas investigações. A abrangência de um estilo
químico delimita um tipo de manipulação dos materiais (naturais ou
artificiais) e suas implicações cognitivas e societárias, sua restrição
aponta para os fundamentos operacionais e reacionais dessa
materialidade química do mundo.
Enfim, a partir das hipóteses acima, sugerimos ser pertinente
admitir a existência de um “ponto de vista químico” oferecido por um
estilo de raciocínio original. Em um sentido geral, parece-nos relevante a
caracterização de um estilo químico de raciocinar a fim de evitar a
dispersão da química em diversos estilos. Essa dispersão certamente não
contribui ao esclarecimento cultural da ciência química e de seus
artefatos, tampouco para reflexões filosóficas, históricas ou éticas
específicas a esta ciência e a sua indústria. A química cria seus objetos,
normatiza e prescreve/prediz suas propriedades reacionais, os emprega
em cadeias produtivas, que respondem a necessidades econômicas,
sociais e políticas, o que constitui inegavelmente um vasto terreno para
pesquisas filosóficas e históricas (MOCELLIN, 2018a).
É justamente a criação uma das principais características de um
estilo químico de raciocinar. Se as análises químicas realizadas nos
séculos XVII e XVIII já centralizavam o raciocínio químico nas
“individualidades materiais”, no final do século XIX as sínteses orgânicas
ofereceram um novo método de produzir e espalhar novos objetos nos
ambientes naturais e humanos. Um de seus promotores, Marcellin
Berthelot, apresentou ousados e utópicos programas de síntese partindo
unicamente de carbono e de hidrogênio. Essa característica de criar
coisas que não existiam na natureza, ou de reproduzir artificialmente em
seus laboratórios coisas naturais, acompanhou a química ao longo de sua
história e continua a ser seu elemento distintivo. O químico e filósofo
Roald Hoffmann, Nobel de química de 1981, salienta essa característica
66 | Filosofia da Química no Brasil

eminentemente criativa do estilo de raciocínio empregado pelos


químicos, pois “os químicos fazem moléculas”. Fazem outras coisas,
como estudar suas propriedades, formular teorias sobre sua estabilidade,
ou descrever os mecanismos de reação, mas, “no coração de sua ciência
está a molécula, que é feita, quer por um processo natural, quer por um
ser humano” (HOFFMANN, 2007, p. 132).
Bachelard foi um dos primeiros a apontar as consequências
filosóficas do fato de que “em química, o real era considerado como uma
realização [...], pois qualquer substância química só era verdadeiramente
definida no momento de sua reconstrução” (BACHELARD, 1984, p. 32).
Se na química orgânica essa criação era feita pelas sínteses, o mesmo
ocorria nas previsões de Mendeleev acerca da existência de novos
elementos em seu quadro periódico, ou nas etapas de purificação de uma
substância. Segundo ele, disso surgia uma substancialidade material
propriamente química, uma vez que “a química técnica pretendia
construir uma substância normatizada, uma substância sem acidentes”
(p. 35). O objetivo de Bachelard era o de propor uma metaquímica que
começaria pela “dialetização” do substancialismo da química clássica
(lavoiseriana), ou seja, partindo não dos corpos químicos já individuados,
mas da “trajetória química” de suas individuações. Lembramos aqui da
metaquímica bachelardiana não para colarmos uma filosofia particular
ao estilo químico, mas apenas para observar que Bachelard apontou
alguns dos desdobramentos filosóficos de se acompanhar o processo de
criação/purificação das substâncias químicas, ou seja, de se raciocinar
quimicamente (NORDMANN, 2006).
Seguir essas substâncias para além do laboratório, investigar como
elas se relacionam com os meios em que se fazem presentes não deve ser
tarefa apenas dos químicos profissionais, pois esse “povoamento
químico” do mundo diz respeito a todos, produtores e consumidores de
artefatos/objetos químicos. Temos condições de fazer esse
acompanhamento desde, ao menos, a modernidade europeia, momento a
partir do qual esse estilo químico foi incorporado institucionalmente
Ronei Clécio Mocellin | 67

pelos Estados e aplicado na expansão do capitalismo industrial. Por isso,


o estilo químico está intimamente associado a uma noção de aspiração
social mais ampla, a do progresso humano e científico.
Como apontou o historiador François Hartog, na modernidade a
“categoria de tempo” predominante era a do futuro, na qual o presente
era pensado a partir de uma perspectiva futura, daí o nascimento da
noção moderna de progresso (HARTOG, 2003). Os químicos sempre se
colocaram como trabalhadores ao serviço do progresso da sociedade,
melhorando sua saúde, sua alimentação, enfim, a química era a ciência
do futuro que melhorava as condições do presente. Ora, esse futurismo
apregoado pelos químicos modernos não difere substancialmente dos
desafios da química contemporânea, como promessas de uma “química
verde” que respeita a natureza, sem deixar de servir aos interesses
humanos.

Conclusões provisórias

Qual contribuição essa abordagem que proponho pode trazer ao


ensino de química? Não sei. Tampouco poderia emitir um julgamento sobre
as propostas de adaptação de sistemas filosóficos ao ensino de química.
Todavia, não me parece que a filosofia sirva a propósitos como o de
“humanizar” a química, ou de oferecer modelos filosófico-pedagógicos nos
quais se devem traduzir os conceitos químicos para depois ensiná-los. A
filosofia é uma atividade reflexiva, que não serve como porta voz de
humanismos fáceis. Creio também que se os educadores em química
tomarem as pesquisas históricas e filosóficas apenas como um instrumento,
isto não resultará numa melhor apropriação cognitiva e cultural dos
conceitos químicos ensinados, assim como o emprego de conceitos
pedagógicos não necessariamente melhoram o esclarecimento químico dos
estudantes. Talvez, uma contribuição seja a de oferecer a meus colegas
professores de química narrativas que buscam analisar a cultura química
produzida em torno da atividade dos químicos. Por isto, consideramos
68 | Filosofia da Química no Brasil

pertinente descrever, por exemplo, a pedagogia desenvolvida por um


químico do século das Luzes, pois julgamos ser uma forma de aproximar
seus desafios e dificuldades com os que atualmente enfrentamos.
Empregamos a noção de estilo com o propósito de federar
investigações em que a química seja o tema central. O propósito consiste em
tomar o trabalho dos químicos, dos historiadores e dos filósofos que
refletem a partir de seus resultados como constitutivos de um mesmo
processo de produção material e intelectual. Considero que se
estabelecermos canais de comunicação entre as atividades cotidianas dos
químicos e suas implicações históricas e filosóficas poderíamos contribuir
concretamente para a melhoria do ensino de química. É neste sentido que
penso ser absolutamente necessário que o professor de química seja capaz
de descrever adequadamente os conceitos que ensina a seus estudantes.
Acredito, enfim, que as narrativas produzidas por filósofos e historiadores
da química podem ser pertinentes na demonstração da amplitude e da
importância societária e cultural desta ciência.

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326-336, 2018b.
3

Investigações em Filosofia, Química e Currículo

Marcos Antonio Pinto Ribeiro 1

Nesse trabalho analiso a integração da Filosofia da Química no


currículo superior de química a partir de acontecimentos que fizeram e
fazem parte do meu percurso formativo como estudante, professor e
pesquisador em química, bem como a partir do contato com o campo
disciplinar da Filosofia da Quimica que culminou com minha tese de
doutorado defendida em 2014. Nesse período de mais de 20 anos, venho
identificando que parte dos problemas que se insurge no contexto
pedagógico da química origina-se da maneira como é pensada a relação
entre Filosofia, Química e Currículo. Portanto, nesse texto, na primeira
parte, descrevemos nosso percurso formativo e identificamos como o
contato com a filosofia da química se orginou. Na segunda parte
buscamos um texto mais analítico, baseado principalmente na nossa tese
de doutorado sobre o tema (RIBEIRO, 2014), contudo acrescido de
problematizações e investigações posteriores.
Defendemos que a Filosofia da Química tem um valor intrínseco
para a formação superior em Química. Formação superior em Química,
seja no bacharelado, licenciatura, implica necessariamente uma posição e
perspectivação totalizante e unificada da química, portanto filosófica.
Também defendemos que a Filosofia da Química tem um valor
instrumental, ou seja, é importante para definir e esclarecer ações,

1
Programa de Pós-graduação em Educação Científica e Formação de Professores - PPG.ECFP e Mestrado
Profissional em Química.
74 | Filosofia da Química no Brasil

objetivos e finalidades pedagógicas e científicas, portanto essencial para o


ensino e a pesquisa em Química.
Qualquer ciência, entretanto, constitui-se de racionalismos setoriais,
epistemologias regionais e por um pluralismo (RIBEIRO; COSTA
PEREIRA, 2012). Cada ciência possui sua organização cognitiva e
epistemológica. Logo, é necessário pensa-la em quadros analíticos
apropriados para melhor ensinar. A filosofia da química tem mostrado
que a química tem sido pensada como uma física aplicada, reduzida à
física. Isso tem gerado um fosso epistemológico entre a química que se
faz e a química que se ensina. Filósofos da química têm mostrado a
química como dinâmica, plural, heurística, interdisciplinar, criativa,
histórica. Em contrapartida, seu ensino é algorítmico, disciplinar e
dogmático. A química precisa render-se ao modo padrão de
entendimento da ciência para ser aceita. Algo se passa neste contexto que
precisa ser diagnosticado e propostos intervenções.
Há um longo trabalho a ser realizado no contexto do currículo de
formação de professores em química. Este trabalho, apenas no seu início,
deve ser um esforço conjunto entre filósofos químicos e educadores
químicos (VAN BERKEL, 2005; VAN AALSVOOR, 2004 ). Em função da
pouca distância temporal, do grande formalismo, da vastidão e
complexidade dos conteúdos, a integração do debate da filosofia da
química no contexto do ensino, ainda é muito pequena, tendo sido mais
estabelecida recentemente após uma chamada da revista Science &
Education (2010)i. Como consequência, existem ainda poucos guias
analíticos, o que dificulta a comparação e interlocução entre propostas.
Há uma necessidade inicial de identificar, cartografar, propor campos de
sentidos, estruturas subjacentes, de interesse curricular, presentes neste
debate, que possa estruturar, fundamentar e organizar os conteúdos do
ensino de química, os saberes docentes e a profissionalização dos
professores no sentido de propor ações pedagógicas e curriculares mais
fundamentadas e coerente com a especificidade epistemológica da
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 75

química e que conduza a maiores níveis de autonomia da aprendizagem


e humanização.
O objetivo principal deste trabalho é problematizar o recente debate
da filosofia da química no sentido de sua integração ao currículo de
formação inicial de professores de química. Fundamentado neste debate
iremos explicitar critérios de seleção e organização curricular;
Problematizar a integração e articulação curricular a partir de elementos
mínimos da praxis química; Explicitar princípios, orientações e exemplos
de inovações curriculares em unidades curriculares;

Encontrando indícios

As inquietações aqui explicitadas, originaram-se de justificativas


pessoais e sociais, vivenciadas desde o contexto formativo (1991-1996) 2 e
profissional (1996-) no campo da Química, onde alguns incidentes foram
propulsores para a organização de uma problemática tornada objeto de
pesquisa: relação entre Química, Filosofia e Currículo.
No curso técnico de nível médio de química discutia-se mais sobre
conhecimento, cientificidade e sobre a natureza da ciência do que na
Universidade. Essa percepção veio a se confirmar também em debates
sobre os problemas da docência universitária quando a competência
técnica e os domínios nos saberes disciplinares e subdisciplinares são
hegemônicos.
Durante a formação universitária na UFBA, o edifício do curso de
Química era vizinho ao curso de Física; intrigava-me como dois cursos
fisicamente tão próximos eram tão distintos 3. Em química não se discutia
temas de ordem filosófica, um hábito comum em física e mesmo em

2
Fiz a Graduação em Bacharelado em Química de 1991 a 1996. Ao longo dessa graduação, cursei disciplinas em
diferentes cursos, como artes, teatro, música, sociologia, direito, administração, filosofia, história. Cursei Ciências
Biológicas (incompleto), de 2000 a 2002; fiz mestrado em História, Filosofia e Ensino de Ciências, defendendo a
dissertação sobre um estudo do conceito de emergência na literatura atual. Todos esses estudos foram realizados
na UFBA (Universidade Federal da Bahia).
3
Essas inquietações são partilhadas nos mais diversos espaços, de forma completamente implícita e jamais
articulada e pensada.
76 | Filosofia da Química no Brasil

biologia 4. Uma intuição que já me inquietava (ano de 1997) era que o curso
de química tinha uma grande endogenia e grande dificuldade ou
desinteresse em discutir temas das ciências humanas. Qual a razão?
Epistemológica, política, sociológica?
Minha prática profissional como docente tem característica
transversal 5. Iniciei em 1996 como professor do ensino médio e, em 1999,
comecei a lecionar no ensino superior em cursos de formação de
professores de química. Tive oportunidade de lecionar todas as
disciplinas específicas (química orgânica, analítica, físico-química e
inorgânica) e, desde 2004, venho lecionando, na Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB), disciplinas pedagógicas, estágio
supervisionado e história da química.
Ao conviver com a comunidade de educadores em química,
identificava uma pedagogização excessiva dos discursos. Certo incidente
chamou a atenção. Uma pesquisadora, líder da comunidade epistêmica de
ensino de química no Brasil, apesar de grande conhecedora de temas
pedagógicos, cometeu um erro muito primário em conhecimentos
específicos de química. O desconhecimento e a falta dos domínios do
próprio conteúdo da química é uma queixa assumida, as vezes de forma
explícita, por grande parte dos profissionais que se dedicam ao ensino da
química. Outra inquietação era a falta de diálogo entre os dois campos
(disciplinas específicas e pedagógicas). De um lado, havia o contexto do
tecnicismo puro dos químicos com a integração de poucos debates
humanísticos e culturais; de outro, havia os educadores químicos que
pareciam usar conceitos e teorias muito frágeis e com pouco diálogo com a
especificidade química.
Também o currículo apresentava uma particularidade: selecionava
alunos mais pragmáticos, técnicos e pouco aptos ou desejosos de
inquirições intelectuais de maiores envergaduras. Isso parecia relacionar-

4
Nas aulas de Física III, por exemplo, parte da aula era sobre contextualização histórica.
5
No ensino superior lecionei todas as disciplinas do currículo e tive experiência de quatro anos em indústria
química.
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 77

se com subculturas do próprio currículo da química, que privilegia


procedimentos desprovidos de conteúdos com exigências e rigor
conceitual. Alunos bons e críticos tinham uma relação muito difícil com a
química. Não conseguiam identificar núcleos de interesse e desistiam. Uma
análise ainda parcial era que a química oferecia poucos instrumentos de
pensamento, próprios da química, para ler o mundo. Minha percepção
também é que se criava nos professores uma cultura endógena e com
algumas especificidades, principalmente no tocante à pessoalidade e
profissionalidade. Venho atribuindo esse problema à falta de esfera pública
na química, ou ao esvaziamento de sua dimensão cultural, humanística e
filosófica.
A partir de 2005, em meio as inquietações acima, reformulei a
disciplina Evolução da Química e inseri elementos do emergente campo
disciplinar da Filosofia da Química, e a denominei História e Filosofia da
Química 6. Orientei algumas monografias em nível de especialização com
o tema filosofia da química. Fui coordenador, no ano de 2005, do VII
EDUQUI 7, um encontro bianual sobre educação em química do Estado da
Bahia, Brasil. Esse evento, que teve como tema “Educação química: qual
a sua singularidade?”, tinha como objetivo discutir a singularidade da
educação química no contexto da educação científica e entender o papel
da filosofia da química nesse contexto. Foi a primeira manifestação em
prol da filosofia da química no âmbito do ensino de química no Brasil,
debate que só foi consolidado no ano de 2012 8.
Apesar do debate em filosofia da química já estar instalado e de o
evento ter tido a participação de importantes investigadores, constituidores
de uma comunidade epistêmica 9 sobre ensino de química no Brasil, a

6
Inserida na reforma curricular nos cursos de Bacharelado e Licenciatura da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia (UESB), essa disciplina foi a primeira a ser proposta no Brasil. Foi alterada posteriormente para História,
Filosofia e Prática de Ensino.
7
www.uesb.br/viieduqui, Acesso em: 25 jan. 2010
8
Este foi um dos resultados e implicação da tese ao propor, no ENEQ de 2012, juntamente com outros
investigadores essa temática na agenda do ensino de química no Brasil. Ver capítulo 4.
9
Comunidade epistêmica é um conceito desenvolvido por Ball (1994) e, segundo pesquisa de Abreu (2010), os
pesquisadores que participaram desse evento podem ser considerados formadores de uma comunidade epistêmica
no ensino de química no Brasil.
78 | Filosofia da Química no Brasil

discussão sobre filosofia da química não mostrou nenhum avanço. Esses


fatos são evidências de um incipiente debate sobre a inserção das
metaciências 10 na profissionalidade dos formadores de professores de
química, mais particularmente da epistemologia e, no âmbito desse debate,
de uma quase nula inserção da filosofia da química. No ano de 2013,
ocorreu outra edição desse evento do qual fui integrante para debater o
currículo. É perceptível que houve avanços, já há interlocutores, mas o
discurso hegemônico ainda não foca na especificidade da educação química.
As referências teóricas utilizadas no ensino de química, no Brasil,
eram, e ainda são, principalmente elementos da epistemologia geral, da
pedagogia e da sociologia, necessários, mas insuficientes. Como
relacionar o conhecimento da química, sua especificidade epistemológica
com outros instrumentos da filosofia, da psicologia e da educação? Essa
parecia ser a nossa intuição inicial e um campo de estudos ainda em
aberto.
Ao lecionar a disciplina História e Filosofia da Química, imerso nas
inquietações acima, tive inicialmente preocupações metodológicas.
Queria entender como essa disciplina poderia ser ensinada melhor, junto
com suas contribuições no campo de aquisição de habilidades de
pensamento de ordem superior (ZOAR, 2004), pensamento crítico
(JACOB, 2003), metacognição (ADÚRIZ-BRAVO, 2001; ZIMMERMAN,
1990; HARTMAN, 2001), aprendizagem significativa e integrada, via
conceitos estruturantes (GAGLIARDI, 1986; RIBEIRO, 2003), superação
de obstáculos conceituais e epistemológicos (LOPES, 1997),
melhoramento da argumentação e do pensar científico.
Percebi, no exercício letivo, a minha grande dificuldade de trabalhar
com essa disciplina, e também de meus pares 11. Aparentemente, as
dificuldades estavam relacionadas à falta de uma agenda de problemas,
organização dos conteúdos e compreensão do lugar desse debate no

10
Metaciências são metadiscursos sobre a ciência, são a história, a filosofia e a sociologia da ciência.
11
Na minha universidade, de um total de 30 professores, durante conversas informais e em reuniões
departamentais, os professores não mostravam nenhum interesse ou conhecimento sobre o assunto.
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 79

currículo e na formação do químico. Mas havia também questões maiores


como o lugar que a química ocupa no conjunto dos saberes, os diálogos e as
especificidades da química como ciência, bem como a resposta às principais
questões do currículo de química. Química: O quê? Onde? Para quê?
Uma intuição, presente ainda na maioria dos professores, é que entre
química e filosofia não havia nenhum diálogo possível. Essa inquietação foi
partilhada nos mais diversos contextos, inclusive no congresso da ISPC do
ano de 2012. De um modo geral, pensa-se que, mesmo que esse diálogo
fosse possível, seria desnecessário para o exercício profissional, seja
científico ou pedagógico. Portanto, são considerados dois campos
completamente imissíveis12. Conforme afirma uma professora13:“Trabalhar
com esta disciplina é muito difícil, foi a coisa mais difícil para mim, como
professora. Não temos base em filosofia e não sabemos que conteúdos
abordar. E os conteúdos são de difícil compreensão.”
Quando do meu afastamento para cursar doutorado, essa disciplina
foi transformada e integrada à prática de ensino, mas os temas de
filosofia da química foram retirados. A percepção é de que esses temas
apresentam ainda dificuldade de transposição para o contexto do ensino.
Mesmo em disciplinas como história da química, há muito presente no
currículo, são privilegiados os aspectos factuais, sem se recorrer a uma
história-problema, a uma história epistemológica. Outro professor 14, um
dos únicos no Brasil a trabalhar com essa temática, revela: “Me envolvi
com esta temática porque gostaria que os alunos sofressem menos com o
currículo de química”. O professor considera que o currículo de química
oferece muita dificuldade de inteligibilidade em seus principais
problemas e que o debate da filosofia da química propiciaria uma
economia didática.

12
Missibilidade ou imissibilidade é a propriedade de dois líquidos misturarem-se ou não.
13
Conversa informal com uma professora da UESB, da subárea de ensino de química, que me sucedeu na docência
da disciplina História e filosofia da Química. Foi solicitado um relato das dificuldades com essa disciplina.
14
Conversa informal com um professor da UFBa que pesquisa esta temática e integra temas da filosofia da química
no currículo.
80 | Filosofia da Química no Brasil

Estas questões acima agora podem ter respostas mais


esclarecedoras, a comunidade internacional de filosofia da química,
institucionaliza na década de 1990, já é um campo disciplinar próprio,
tendo um corpo de pesquisas e produções que o currículo de química não
pode ou não deve deixar de levar em consideração. Esse campo já é capaz
de subsidiar uma discussão no domínio do currículo de química. Seus
atores são também professores, investigadores, membros de
departamentos, logo também produtores do conhecimento escolar. Sua
influência, entretanto, ainda não se faz sentir com tanta força no
currículo escrito e na comunidade maior de químicos, professores de
química e educadores químicos e na investigação em educação química.
Isso é confirmado pela pouca citação 15, mesmo em nível de doutorado em
programas de educação (LOBO, 2006), ensino de ciências e química
(OKI, 2006) e também em revistas especializadas 16.
A necessidade da dimensão epistemológica e filosófica da ciência no
ensino já é reconhecida por lei (BRASIL, 2001). Surpreendentemente,
não existe 17 nenhuma pesquisa, nacional ou internacional, que aproxime
o debate atual da filosofia da química de problemas do ensino de
química. A caracterização da química, pelo menos no Brasil, tem sido
feita pela obra de Gaston Bachelard (LOPES, 1997; LOBO, 2006). Embora
Bachelard seja um filósofo extremamente importante, sua apropriação ao
contexto do ensino de ciências e química é efetuada com base nas
contribuições feitas à física e não à química. Bachelard é lido como um
filósofo da física e não um autêntico filósofo da química 18.

15
Em pesquisa cientométrica feita em nível de especialização foram encontradas poucas citações dos principais
artigos e dos periódicos na produção em educação química e ensino de ciências. Ver dados web of science,
periódicos da Capes, CNPq (grupos de pesquisa).
16
Science & Education (um número especial somente em 2012).
17
Nos programas de pós-graduação no Brasil não há nenhuma tese sobre o assunto, bem como na base de dados da
Capes e CNPQ. Na base de dados da Universidade de Lisboa também não há teses sobre o assunto. Na Universidade
Autônoma de Barcelona também não há. Existem apenas artigos que abordam esses campos. Somente no ano de
2012 começa a estabelecer-se um debate sobre filosofia da química e ensino de química. Antes havia apenas alguns
artigos dispersos.
18
Um dos interlocutores do EDUQUI do ano de 2013 investigou exatamente esse problema. O mesmo integra o grupo de
pesquisa “Investigações em currículo, filosofia e química”, coordenado por mim.
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 81

Apesar de muitas pesquisas e intervenções da comunidade de


educadores químicos, permanece, no currículo e na formação, o forte
domínio da concepção tecnicista, empírico-analítica (MORADILLO, 2010),
não se atingindo um nível de problematização na epistemologia dos
conteúdos da química. Lopes (1997, p.132) relata que,

no campo de pesquisa em ensino de química, especialmente, ainda há uma


dedicação quase exclusiva em problemas metodológicos, importantes para
um projeto mais amplo de melhoria da qualidade da educação no país, mas
insuficientes para compreensão dos espaços da sala de aula. A resolução
desses mesmos problemas metodológicos exige que não sejam
desconsiderados os aspectos epistemológicos, sociológicos e históricos que
permeiam o fenômeno educacional. Caso contrário, corre-se o risco de não se
compreender o porquê dos problemas enfrentados nas salas de aulas.

Dessa forma, podemos formular duas asserções centrais. A primeira é


que a difícil relação entre filosofia e química é responsável por parte dos
problemas do sistema pedagógico da química. Sendo assim, a filosofia da
química, ao explicitar campos de problemas característicos da
epistemologia, ontologia e axiologia da química, especificando os elementos
característicos de sua práxis, pode e deve servir como um dos elementos
fundantes das decisões curriculares e didáticas do ensino de química,
contribuindo, assim, com uma gramática forte para o seu aparelho
pedagógico, principalmente nos currículos de formação de professores. E a
segunda é que, em função da ausência desse debate, no contexto do
currículo e do ensino de química, os elementos da práxis química,
discutidos pela filosofia da química, são transmitidos tacitamente, o que
compromete todo o aparelho pedagógico da química. Ou seja, a química que
se ensina não corresponde à química que se pratica.
Logo, como a filosofia da química pode ser integrada no currículo? Essa
pergunta central direciona-se para outras perguntas: Quais as características
do campo disciplinar da filosofia da química? Como está estruturada a
dimensão crítica caracterizada pela relação entre filosofia, química e
currículo na formação inicial de professores? Quais os elementos
82 | Filosofia da Química no Brasil

característicos da práxis química que têm sido discutidos pelo campo da


filosofia da química? Como esses elementos podem orientar e fundamentar
uma práxis pedagógica e curricular nos cursos de formação inicial de
professores?
Durante os útlimos anos esses objetivos foram problematizados em
algumas ações com a comunidade internacional de Química (ISPC, ENEQ,
ENPEC, EDUQUI, IHPST, ECRICE). No ENEQ do ano de 2012, juntamente
com outros investigadores, inclusive participe desta coletânea, essa temática
foi institucionalmente inserida na agenda do ensino de química no Brasil.
Pesquisar a estrutura filosófica do ensino de química passou a ser um objeto
de pesquisa. De nossa tese de doutorado identificamos que, se quizermos
aproximar a Química que se faz da química que se ensina; se quizemos
construir um currículo crítico (HABERMAS, 1982; GRUNDY, 1987) em
química; se quizermos inserir uma formação liberal, como bildung em
Química (SJÖSTRÖM, 2007; ERIKSEN, 2002), temos antes que esclarecer a
natureza da praxis química (RIBEIRO, 2014).

Estilos cognitivos, didáticos e epistemológicos da práxis química

O pluralismo tem sido uma filosofia defendida pela generalidade dos


filósofos da química (RIBEIRO; COSTA PEREIRA, 2012), entretanto,
assumido tacitamente na prática química. Pensamos que esse seja o
problema fundamental no campo da química, principalmente no
discurso pedagógico, que funciona por princípios de seletividade e
organização. Por exemplo, os atores do campo disciplinar da química
(Professores, alunos e pesquisadores) reconhecem muitas características
da praxis química, em sua grande maioria de forma tácita (RIBEIRO,
2014). A linguagem estrutural e simbólica; a criação de novas
substâncias; razão prática; pragmatismo; a linguagem dos inobserváveis;
o uso de modelos; diferentes níveis de descrições e análise; entidades
inobserváveis; relacionalidade; relações ubíquas com técnicas e
instrumentos; esquemas de classificações; fortes interações entre
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 83

Indústria, mercado e Universidade. No contexto da descrição


epistemológica, o próprio Bachelard (2007, p.36), talvez o autor que mais
escreveu sobre filosofia da Química, defende que “o pensamento químico
oscila entre um pluralismo de um lado e a redução deste por outro”.
Qual a consequência de não assumir explicitamente o pluralismo
Químico? Daremos aqui apenas alguns exemplos. Entendemos que esse é
um projeto de pesquisa ainda em seu início no contexto da Química. Um
exemplo é o pluralismo de contextos científicos (Educação, Justificação,
Descoberta e Aplicação). Filósofos da Química consensuam que as
sínteses químicas, principal atividade realizada nos últimos 200 anos, é
essencialmente uma atividade criativa, orientado por valores estéticos,
éticos e pragmáticos. Isto é, imerso completamente nos contextos de
aplicação e descoberta. No currículo, entretanto, orientados pela Filosofia
da Ciência tradicional e o positivismo lógico, ainda se prioriza o contexto
da justificação. Também existe um pluralismo axiológico na química.
Orientado pela Filosofia tradicional, o currículo ainda foca em valores
cognitivos (verdade, simplicidade, coerência, universalidade) 19 não
suficientes para compreender a complexidade do empreendimento
tecnocientífico da Química que prioriza valores não epistêmicos,
pragmáticos e utilitaristas como 20: robustez, relevância social e
econômica, sensibilidade ambiental.
Na ausência de um trabalho sistemático já realizado sobre a
natureza da praxis química, propomos em nossa tese de doutorado o seu
mapeamento. O fizemos de forma qualitativa, pelo cruzamento da
literatura da Filosofia da Química com a literatura em educação Química
e educação em geral. Identificamos domínios, dimensões, campos de
problemas da práxis química, ou domínios transversais de especificidade
entre química, filosofia e currículo. Para um trabalho inicial
identificamos cinco domínios, as classificações, diagramaticidade,
fenomenotecnia, dimensão tática e processualidade. Pensamos que estes

19
Próprios da visão mertoniana
20
Próprios da visão tecnocientífica (ECHEVERRIA, 2003), Gibbons et al (1994)
84 | Filosofia da Química no Brasil

cinco domínios como elementos constitutivos e transversais a praxis


química e, portanto, podem ser fundamentos para o aparelho pedagógico
da química (RIBEIRO; COSTA PEREIRA, 2012). Instanciam diferentes
estilos cognitivos, didáticos e epistemológicos, diferentes formas,
portanto de perspectivar a química.
Alguns artigos de filósofos da química e de educadores químicos
explicitam, reiteradamente, alguns desses domínios na organização do
artigo ou na organização do livro: linguagem estrutural (SCHUMMER,
1998; KAYA; ERDURAN, 2012; BACHELARD, 1990, 2007); classificações
(SCHUMMER, 1998; KAYA; ERDURAN, 2012; ERDURAN, 2007;
LEFÉVRE, 2012; TALANQUER, 2011, 2012, BACHELARD, 1990, 2009);
instrumentação (BAIRD; SCERRI; MCINTYRE, 2006; BACHELARD, 1990,
2009; CHAMIZO, 2012).
O artigo de Lefévre (2012) traz explicitamente as classificações e o
de Chamizo (2012) traz a tecnoquímica como uma forma de
conhecimento químico. Isso indica que os filósofos da química têm
produzido subespecializações indicativas de campos de problemas
orientadores e característicos da práxis química. Por meio da análise dos
artigos podemos fazer outra organização e sistematizar o debate da
filosofia da química em algumas temáticas transversais. Pensamos nessas
dimensões como domínios da práxis ou, ainda, como domínios
transversais de especificidade, como campos que tenham um conjunto de
problemas caracterizados por suas relações e que expressem uma
relativa autonomia, definida por suas inter-relações.
É possível defender que cada um desses campos tem uma didática
específica e uma forma particular de articular funções micro e
macrocurriculares. Por serem estruturas inclusivas e transversais entre
currículo, filosofia e química podem servir como fundamentos, como
articuladoras e organizadoras do currículo. Em cada uma das dimensões
situamos um filósofo/químico, utilizado como referência pelo debate da
filosofia da química, que pode servir como ícone dessa dimensão, mas não
esgota, evidentemente, a problemática dessa dimensão. Por exemplo, na
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 85

dimensão classificatória situamos Pierre Duhem, que trabalhou com


termodinâmica ao propor as fundações da físico-química. Entretanto, esse
autor é conhecido na filosofia da ciência por ter proposto uma teoria física
como um sistema de classificação. Bachelard é outro autor que problematiza
muito o problema das classificações em química, porém, seu trabalho mais
reconhecido é sobre o racionalismo aplicado, o materialismo técnico racional
e o fenômeno como fenomenotecnia.
Portanto, ao situar um filósofo/químico, queremos ressaltar a
possibilidade de esse autor, pela interação com a problemática da
química, ter evidenciado um aspecto transversal de especificidade da
química: Duhem, as classificações; Peirce, a diagramaticidade, a
relacionalidade e o pragmatismo químico; Bachelard, a
fenomenotecnicidade da química, a interdependência entre instrumentos
e especiação química; Progogine, a processualidade e historicidade da
química; e Polanyi, a dimensão tácita e pessoal do conhecimento. Muitos
outros autores, entretanto, se debruçaram sobre esses campos de
problemas, bem como cada um dele estudou campos muito variados na
química.
Tabela 1 - Proposta dos domínios da práxis química
Dimensões Campos de Problema
Classificações Mereologia (HARRÉ; LLORED, 2010)
Sistema periódico: História, previsão, retrodição, (SCERRI, 2007)
Classificações (LEFREVE, 2011)
Essencialismo (HARRÉ, 2011; VIHALEMM, 2003a)
Pierre Duhem (NEEDHAM, 2002)
Ontologia para química macroscópica (NEEDHAM, 2005)

Processualidade Ciência das relações (SOUKUP, 2005; BERNAL & DAZA, 2010; EARLEY, 2004;
SCHUMMER, 1999a)
Realismo processual estrutural (EARLEY, 2008a)
Filosofia de processos (EARLEY, 1981, 2008a; STEIN, 2004)
Emergência, auto-organização, ontologia de níveis (LUISI, 2002)
Influência de Prigogine na química (LOMBARDI, 2012; EARLEY, 2004)
Moléculas como ecossistemas (REIN, 2004)
Razão histórica, ideográfica (LAMŻA, 2010)
86 | Filosofia da Química no Brasil

Diagramaticidade Semiótica, visualização e estética (SCHUMMER; SPECTOR, 2007)


Linguagem icônica, diagramática, explicação estrutural na orgânica (GOODWIN,
2008, 2008, 2009, 2009a)
Estrutura molecular como instrumentos de papel (KLEIN, 2001)
Paradigma estrutural em química (KLEIN, 2001; AKEROYD, 2000)
Influência da química em Peirce (SEIBERT, 2001)
Simetria e topologia como fundamentos matemáticos (EARLEY, 2000)
Fenomenotecnia Metaquímica (NORDMANN, 2006)
Revolução instrumental na química (SCHUMMER, 2006, 2002)
Dependência espécie x instrumento (ROTHBART, 1999)
Perspectivismo: Realismo prático e operativo (VIHALEMM, 2011; BENSAUDE-
VINCENT, 2009)
Influência da química em Bachelard (BENSAUDE-VINCENT, 2009)
Filosofia dos instrumentos (BAIRD, 1993, 1999, 2004; ROTHBART, 1999, 2007)
Tecnoquímica (CHAMIZO, 2012)
Tecnociência como identidade disciplinar da química (BENSAUDE-VINCENT, 2010)
Dimensão tácita Pensamento heurístico (NICOLE et al., 2009; TALANQUER; MAEYER, 2010)
Contexto da descoberta (SCHUMMER, 2006)
Razão prática (KOVAC, 2002)
Estética (SCHUMMER, 1999, 2003, 2006; LASZLO, 2003)
Polanyi e a química (NYE, 2002, 2011)

Fonte: elaboração própria.

A primeira dimensão é o próprio prolongamento da filosofia e da


história natural que a química herda como necessidade de classificação e
descrição das suas entidades naturais ou artificiais (VIHALEMM, 2007). É
característico da razão taxionômica (CROMBIE, 1994). Historicamente,
no século XVIII, essa dimensão ganha expressividade e alcança esplendor
com o sistema periódico de Mendeleev (SCERRI, 2007). Atualmente
busca-se sua axiomatização e fundamentação matemática, ainda sem
sucesso (RESTREPO; PACHÓN, 2007).
A segunda dimensão é a diagramática, explicitada principalmente
por Peirce, que se caracteriza pela criação de uma linguagem específica
para comunicar, mas que também serve como ferramenta heurística de
previsão e de explicação. Essa linguagem específica da química insere-se
em outro domínio filosófico, o da filosofia da imagem, do pensamento
diagramático, do signo e da linguagem, com outras contextualizações de
conceitos epistêmicos de lei, teoria, e de um conhecimento não produzido
nem transmitido unicamente pelo conceito, mas por diagramas, imagens.
Essa dimensão inscreve-se em uma semiótica própria da química.
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 87

Historicamente alcança esplendor no século XIX, principalmente a partir


de 1860, com a proposição das fórmulas estruturais de Berzelius.
Atualmente há uma busca de sistematização teórica e matemática via
topologia e simetrias (EARLEY, 2000).
Outra dimensão é a fenomenotécnica, uma dimensão própria da
filosofia experimental, da relação com o instrumento e com a técnica.
Tem sido a forma como tem sido entendida a racionalização da química e
a forma como tem sido influenciado seu ensino desde os anos 1950. Pode
ser exemplificada por muitas personalidades, mas tem, talvez, o seu
expoente mais alto em Bachelard (2009), químico, professor de físico-
química para quem um instrumento era uma teoria materializada.
Defendeu o racionalismo aplicado e o materialismo técnico. Para
Bachelard (2009, p. 104), “são os métodos que determinam a pureza… é,
portanto, tão vão como falso separar o critério de pureza dos
instrumentos que estudam”. O conhecimento químico é provocado.
Ainda outra dimensão é a dimensão tácita da qual a química
dificilmente pode escapar, pois é parte constitutiva do seu objeto, já que,
na relação dialética entre matéria e conceito, arte e ciência, a química não
consegue mover-se completamente no terreno explícito como o da
matemática, de uma linguagem universal, pois constrói linguagem ao
mesmo tempo que constrói o seu objeto, já que o seu objeto não está
pronto à sua espera. Como afirmam Bensaud-Vicent e Stengers, a
Química é ao mesmo tempo terreno e território, teoria e empiria,
conceito e imagem. Como consequência, não é possível falar em
conteúdos de pensamento puramente declarativos em química, em
conteúdos puramente proposicionais.
Essa dimensão é pré-linguística, é um contexto rico em heurísticas,
em conhecimentos não formalizáveis, não algorítmicos, em intuições,
quebras de protocolos, em um conhecimento dependente da pessoa. É
um saber transmitido na relação mestre/aprendiz e na caracterização da
química também como arte, em que os conhecimentos mobilizados não
são apenas conceitos, proposições e diagramas, mas também práticas,
88 | Filosofia da Química no Brasil

valores, heurísticas, códigos, inserindo-se, assim, em transferências de


conhecimentos imersos na cultura e em sistemas axiológicos. Nesse
sentido, há uma grande interação com aspectos sociológicos. Uma
sociologia da química passa a ter grande importância e centralidade
ainda não consideradas, mas evidenciadas, como visto no questionário,
pelos práticos do campo.
Nessa dimensão destacamos o trabalho de Polanyi, físico-químico
que trabalhou inicialmente como médico e que trouxe para a ciência a
importância do papel do conhecimento tácito e da tradição. Polanyi
evidenciava características da química como a inexatidão dos conceitos
que expressam tendências, disposições; as muitas variáveis de contorno e
as aproximações ao lidar com problemas de muitos corpos e situações
reais.
Uma quinta dimensão é a processual. Ela entra num outro registo
filosófico mais vinculado às problematizações do tempo, da dinâmica, da
evolução, criação, irreversibilidade e à história. Entra em uma
caracterização sistêmica 21 da química.
Enquanto na dimensão classificatória atenta-se principalmente para
a organização da diversidade estonteante dos objetos químicos, na
dimensão processual atenta-se para organização e sentido da
complexidade crescente das moléculas, biomoléculas e sistemas naturais,
para o sentido histórico e criativo da matéria. Nesse sentido, os
estudiosos abordam o contexto da problematização do tempo e da
irreversibilidade dos sistemas e outras concepções ontológicas. Essa
dimensão tem sido discutida principalmente por Harré e Earley, que têm
reiteradamente utilizado as referências a Whitehead e Leibiniz. Como
representante de filósofo/químico, evidenciamos o trabalho de Prigogine
sobre as estruturas dissipativas e os ritmos longe do equilíbrio. Ele
considera como essenciais não as substâncias, mas as suas

21
É difícil não deixar de fazer alusão às duas multiplicidades propostas por Bergson (1999). Ele coloca que existe
duas multiplicidades, uma quantitativa e outra qualitativa. A quantidade é reduzida ao número, a qualitativa é
heterogênea.
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 89

transformações, não o ser, mas o devir, Heráclito em lugar de


Parménides.
De posse desses domínios, podemos fazer muitas inter-relações. É
possível identificar registros filosóficos e, portanto, diferentes princípios
heurísticos, organizadores e integradores nos níveis epistemológicos,
sintáticos e pedagógicos. É possível identificar um estilo cognitivo e,
portanto, um tema ou conceito estruturante, uma atenção maior a
determinado esquema de realidade; um estilo de pensamento; um tipo
de conteúdo e, desta forma, um tipo de ensino e um estilo de
aprendizagem.
Portanto, esses registros filosóficos e as várias identidades
filosóficas da química produzem diferentes estilos cognitivos e didáticos.
São estruturas de especificidades transversais e inclusivas entre
currículo, filosofia e química que estabelecem campos de problemas com
relativa autonomia. Logo, essas dimensões devem servir como
ferramentas de avaliação, formação, planificação e desenho de
programas de disciplinas, projetos pedagógicos, currículos etc.
Ao identificar as cinco dimensões penetra-se mais facilmente na
natureza da química, na dimensão do pensamento e da ação química e
esse procedimento revela-se, assim, um recurso formativo. É um recurso
de análise e avaliação porque é possível identificar e antecipar problemas
epistemológicos da química como também naturalizar conceitos
primitivos, autonomizar práticas, naturalizar representação e naturalizar
o instrumento.

Buscando um currículo como práxis

O debate curricular elenca alguns objetivos a serem atingidos no


ensino de química: professor reflexivo, empoderamento dos professores,
intelectual crítico, superação da racionalidade técnica, humanização da
técnica, sustentatibilidade, contribuição da química para a humanidade.
A necessidade de um currículo crítico é reiterada. Em contrapartida,
90 | Filosofia da Química no Brasil

quando olhamos a literatura, documentos curriculares e falas de


professores, existe muita dificuldade de inserção da crítica no currículo
de química, entre as mais importantes podemos citar (RIBEIRO, 2014):
historiografia positivista; produtivismo da investigação; endogenia da
comunidade; filosofia tácita dos professores; currículo racionalista,
disciplinar e fragmentado; foco da dimensão econômica e pouco na
dimensão cognitiva; pouca relação da química com a filosofia; pluralismo
da pratica química. O currículo foca numa racionalidade operativa e
pouco em uma racionalidade reflexiva. Um currículo crítico, como práxis,
exige um forte empenho na competência reflexiva e papel acentuado as
ciências críticas como a filosofia. Há aqui um trabalho intenso e próprio
da filosofia da química, que apenas se inicia e este trabalho é parte desse
movimento.
Como consequência da pouca reflexividade da comunidade química
(VAN BRAKEL, 1999), o currículo não é orientado por uma estrutura
explícita e especifica no nível sintático (especificidade disciplinar),
filosófico (reflexão sobre esta especificidade) e pedagógico (transmissão
desta especificidade). Embora a história da química tenha conquistado o
interesse de químicos e educadores químicos, a filosofia da química ainda
não recebeu muita atenção (SCERRI, 2001). Desta forma, a química que é
ensinada em todo o mundo implica uma posição filosófica caracterizada
pelo positivismo filosófico e pedagógico (VAN BERKEL, 2000; ERDURAN,
2002; VAN AALSVOORT, 2004). Berkel (2005) caracteriza o currículo de
química como rígido internamente e isolado externamente. É um
currículo característico de uma ciência normal no sentido kuhniano:
transmite o produto de uma ciência acabada; transmite algoritmos de
forma dedutiva e problemas fechados. Contrariamente, filósofos da
química têm caracterizado a química como: a ciência mais produtiva,
pluralista e contextualista, complexa e real, criativa e imaginativa,
diagramática, relacional e histórica.
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 91

Proposições curriculares: modelo, estruturas, dinâmicas e


orientações

Fundamentado na construção teórica acima, é possível propor


alterações e inovações curriculares; explicitar formas de organização,
integração e articulações curriculares. Por exemplo, é possível propor
alterações em disciplinas de didática da química, estágio supervisionado,
história da química, bem como pensar em um currículo integrado e
articulado a partir da práxis química. Defendemos que em todos estes
níveis de recontextualizações, como já dito antes, deva ser levado em
conta a especificidade da química. Esta especificidade pode e deve ser
pensada nos níveis sintático, filosófico e pedagógico.

Modelo e características do currículo

Fundamentado da filosofia da química, é possível propor um


currículo com as seguintes características:

1. Currículo acadêmico e crítico: tem nas disciplinas sua fonte, contudo


trabalhado e articulado por filosofias específicas inscritas na química.
2. Transversalidade e interdisciplinaridade a partir dos conteúdos: tem nos
conteúdos sua centralidade, contudo estes conteúdos são organizados por
estruturas, dinâmicas e categorias específicas de sua filosofia.
3. Foco na competência reflexiva: o currículo mostra um equilíbrio entre
formação técnica e humanista e privilegia uma competência reflexiva capaz
de articular a competência técnica com a pedagógica.
4. Orientações, estruturas e dinâmicas curriculares: partir da problematização
da filosofia da química podemos propor dinâmicas, estruturas e orientações
curriculares transversais.
5. Orientações curriculares: dialética das tensões e antinomias; narrativa e
recursividade (LAMZA, 2010); contextualidade e níveis; diagramaticidade e
relacionalidade (SOUKUP, 2005; BERNAL & DAZA, 2010).
6. Dinâmicas e desenvolvimento curricular: estas categorias são geradas pelas
dinâmicas: Complexificação e Coordenação (BACHELARD, 2009);
Aproximações sucessivas às múltiplas contextualidades: Top/Down e
Buttom/up entre as tensões químicas (LASZLO, 2012), Recuo e aproximação
92 | Filosofia da Química no Brasil

entre conhecimento pessoal e algorítmico; Cruzamentos à múltiplos


contextos e conceitos.
7. Estruturas e organização curricular: classificações, diagramaticidade,
fenomenotecnia, processualidade e dimensão tática. Estas estruturas,
dispostas no diagrama atrás, devem orientar a práticas de formação, análise
e desenho de práticas curriculares e pedagógicas. Das cinco dimensões
identificadas explicitamos diferentes princípios de organização dos conteúdos
do ensino com diferentes estruturas didáticas e filosóficas.

Guias e orientações para a construção do currículo

A partir dos debates na filosofia da química, é possível propor guias


e orientações para a construção do currículo:

1. O currículo deve explicitar as tensões e antinomias da química e mostrar as


seleções curriculares nos níveis sintático, pedagógico e filosófico.
2. Explicitar a filosofia do fisicalismo ainda como uma filosofia implícita no
currículo de química.
3. O currículo deve explicitar os vários diálogos da química com os clássicos da
Filosofia (Kant, Polanyi, Peirce, Aristóteles, Bachelard, Duhem, Platão;
Leibniz, Hegel) e também diálogos interdisciplinares: História (característica
idiográfica da Química e a possibilidade da Química como ciência pan-
idiográfica), Física (principalmente o problema do reducionismo e do
fisicalismo), Biologia (ciência de serviço, ética, emergentismo e
superveniência), Linguística (paralelos entre a Linguística e a Química)
4. Organizar o currículo em atenção as categorias, dinâmicas e estruturas da
práxis química. Atentando-se a coerência do desenvolvimento cognitivo da
química;
5. Construir os programas de todas as disciplinas (especificas, pedagógicas,
humanistas e culturais) em atenção as categorias, estruturas e dinâmicas da
práxis química.

Integração, transversalidade, profundidade e crítica

Como vimos, o contexto pedagógico da química apresenta forte


resistência à integração de uma dimensão crítica (RIBEIRO, 2014).
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 93

Ribeiro (2014) defende a necessidade de buscar uma perspectivação 22


crítica para os conteúdos e currículo em química. Se existe a necessidade
de sua integração, percebemos na prática sua quase ausência. Contudo,
com a consolidação do campo disciplinar da filosofia da química,
pensamos ser possível avançar nessa fronteira. Fundamentado no debate
da filosofia da química e na nossa experiência letiva na frente da
disciplina História e Filosofia da Química, explicitamos aqui algumas
oficinas que podem ser aplicadas e transferidas para outros contextos
pedagógicos. Esperamos assim contribuir com uma área de pesquisa
ainda em expansão.

Oficina de argumentação e metacognição: Aplicar as dinâmicas no sentido de


fazer o aluno pensar na química em seus múltiplos contextos, em movimento de
Top Down e Button Up.
Trabalho com conceitos epistémicos: Verificar a conceituação precisa no
dicionário e problematizar como se relaciona com a química. Por exemplo, um
conceito de causalidade, problema, teoria, lei, modelo e problematizar na filosofia
da ciência e na química. Como estes conceitos são ressignificados na química?
Explicitar as tensões: Usar as tensões da química para permitir ao aluno fazer um
flash da química. Isso permite uma compreensão panorâmica e integrada da
química.
Diagrama fundamental: Utilizar o diagrama relacionando com o modelo
complexo de ciência e com os saberes docentes para permitir o aluno um
pensamento metacognitivo e integração com o conhecimento curricular em
química.
Complexificar conceitos estruturantes: Uma vez identificado os conceitos mais
importantes, estes seriam recursivamente complexificados em movimento de
espiral ascendente.
Trabalhar com controvérsias químicas: Trabalhar com as controvérsias químicas
cruzando com as dimensões da praxis, as dinâmicas, as categorias e as tensões
químicas
Explorar os argumentos decisivos na história da química: Explorar estes
argumentos relacionando com as categorias, dinâmicas e tensões da química.

22
Na nossa tese de doutorado defendemos o perspectivismo química como uma abordagem curricular. Ou seja, não
se trata de encontrar abordagens teóricas exógenas ao interesse Químico, mas trabalhar a química e encontrar
perspectiva a partir de sua especificidade. Nesse sentido encontramos muitas correntes filosóficas que precisam ser
explicitadas como: filosofia da classificação, dos instrumentos, semiótica, filosofia de processos, etc.
94 | Filosofia da Química no Brasil

Estrutura conceitual de cada disciplina: Relacionar a estrutura conceitual de cada


disciplina com as categorias, dinâmicas e tensões da química.
Descrição dos níveis do discurso químico: Simbólico, descritivo, explicativo e
heurístico.
Linha do tempo: Construir linha do tempo para o laboratório, representações,
sistema de classificações, instrumentos e técnicas, conceitos centrais e as diversas
tensões da química.

Conclusão

Mostramos neste trabalho que o debate da filosofia da química pode


e deve iluminar questões curriculares em química. Propomos a
organização deste debate e defendemos que esta organização pode servir
de guia heurístico para o planejamento, formação, avaliação de práticas
curriculares e didáticas.
A química é uma ciência fortemente inscrita em esquemas
classificatórios; pensamento diagramático, simbólico, relacional,
processual e heurístico; pela razão prática, influenciada por valores
estéticos, criação e inovação; e dependente dos instrumentos e técnicas.
Influenciado pela física, o contexto epistemológico da química e o seu
aparelho pedagógico, tem escolhido um dos lados das antinomias
químicas: substância/processos; axiomatização à classificação e ao
diagramático; o nomotético ao ideográfico; o essencialismo ao relacional
e processual. O currículo, orientado pela filosofia da química, parece
exigir um maior diálogo entre as antinomias e inerentes tensões da
química.
Pensamos que o currículo e a didática da química devam identificar-
se com as estruturas do pensamento e da práxis química, da forma
química de interagir com o mundo. Uma compreensão mais detalhada
destas dimensões oferece ferramentas suficientes para uma compreensão
profunda e uma coerência entre pensar, intervir e comunicar. Assim,
partindo da problematização do próprio conteúdo da química, iluminado
pela filosofia da química, o currículo poderá integrar práticas inter e
transdisciplinares. Desta maneira o debate da filosofia da química pode
Marcos Antonio Pinto Ribeiro | 95

ter uma função instrumental no sentido de iluminar a práxis química e a


praxis pedagógica no sentido de uma pedagogia emancipatória e crítica.
Pensamos também que a compreensão destas dimensões possibilite
a integração da dimensão gnoseológica, axiológica, praxiológica e retórica
dos conceitos químicos e dos conteúdos escolares em química levando
necessariamente a que a educação química contribua com a uma literacia
ou uma alfabetização científica humanista alargada

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4

Ernst Cassirer:
da Filosofia da Química à Semiótica

Waldmir Nascimento de Araujo Neto 1

O objetivo do presente texto é oferecer ao leitor uma trajetória


pessoal. Recortes, escolhas de caminhos, uma história que tem início na
atração pela Filosofia, pela Filosofia da Química, e que desdobra-se por
uma paixão pela Semiótica. O caminho que ofereço não é trivial. Queria
estudar a Representação e acabei por encantar-me pela Cultura. Claro
que não larguei a Representação, mais do que um objeto de pesquisa,
transformei-a em campo ideológico, um espaço de luta contra qualquer
posição dogmática ou asséptica de modelização ou mentalização. Nas
linhas que seguem vou falar daquele que me trouxe ate aqui: Ernst
Cassirer (1874-1945). Por elas mostrarei algumas formas do
conhecimento proposto por Cassirer, como ele me influenciou, certo de
que nisso reside a centralidade de minha relação original com a Filosofia
da Química, e a janela para perceber a importância da Semiótica. Não há
aqui, nem poderia haver em verdade, qualquer pretensão de esgotar a
Filosofia da Cassirer, mas se puder provocar você um pouco, se puder
chamar sua atenção para o potencial transformador da filosofia de
Cassirer, esse texto terá cumprido muito bem a sua intenção.
Ernst Cassirer tem um papel central tanto no meu encontro com a
Filosofia da Química, quanto na escolha da Semiótica como campo de
trabalho, pesquisa, e forma de ver o mundo. Eu encontrei Cassirer pelas

1
Leseq - Laboratório de Estudos em Semiótica e Educação Química - Instituto de Química – UFRJ.
104 | Filosofia da Química no Brasil

mãos do querido mestre Michel Paty em uma disciplina do doutorado na


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo (FFLCH-USP). Eu era então aluno da Faculdade de Educação,
mas a USP tinha aquilo de especial, conferir liberdade e autonomia, e sob
a tutela do meu orientador, Marcelo Giordan, e indicação de Maurício
Pietrocola, meu co-orientador, estava matriculado na disciplina “Filosofia
da Ciência: a criação científica” (FLF-5043). O interessante é que
Cassirer, ou a sua filosofia, não estava no plano da disciplina, mas Paty
tinha o hábito de conversar conosco, em particular, ao fim das aulas, e na
minha conversa, após dizer da minha pretensão de entender os processos
de representação na química, Paty me perguntou: você já leu a “Filosofia
das Formas Simbólicas”? Minha negativa envergonhada trouxe um
sorriso ao mestre, e assim que retornei ao Rio fui correndo até a Livraria
Leonardo Da Vinci e consegui um exemplar do terceiro volume, em
espanhol, pela Fondo de Cultura do México. Começou exatamente assim,
e foi criando corpo pelas conversas, no grupo de Marcelo, com Jackson
Góis, Silvia Dotta, Adriana Posso, Luciana Caixeta, sobre representação,
filosofia, linguagem entre outros temas próximos e de interesse ao nosso
trabalho. As questões acerca da linguagem eram de caráter crucial nos
encontros do grupo de pesquisa de Marcelo, e Cassirer começava a
oferecer uma aproximação entre linguagem, química e filosofia.

A química não se converteu em ciência exata somente através do


refinamento constante de seus métodos de medida, mas fundamentalmente
por meio do aperfeiçoamento de seus instrumentos intelectuais, isto é,
através do caminho que teve de percorrer desde a simples fórmula química
até a fórmula estrutural. Em termos muito gerais o valor científico de uma
fórmula não só consiste em resumir situações empíricas dadas, mas em
provocar de certo modo novas situações. A fórmula estabelece problemas de
relações, conexões e séries que precedem a observação direta. É dessa forma
que uma fórmula chega a ser um dos maios mais importantes meios, ao qual
Leibniz chamou de “lógica do descobrimento”, a logica inventionis.
(CASSIRER, 1998, p. 511).
Waldmir Nascimento de Araujo Neto | 105

A partir desse encontro fui mergulhando na literatura, e percebi que


outros autores reconheciam o lugar de Cassirer no estudo das
representações em química (SCHUMMER, 1998). À época eu ainda
procurava na ontologia um caminho para o esclarecimento das formas de
uso das representações estruturais na sala de aula. Eu queria entender a
natureza do ser representação, e confrontar essa resposta com o ser do
ente químico ao qual àquela representação correspondia. Por isso,
sempre tinha por perto um conjunto de referências com as quais
procurava estruturar meus textos, trabalhos e caminhos a percorrer:
Joachim Schummer, Olimpia Lombardi, Ursula Klein, Johanna Seibt. A
influência desse trabalho repercutiu no agir, na forma de praticar o
ensino de química, eu esperava, a partir da própria prática, construir
novos sentidos sobre a representação na química. Mas era necessário
também ir ao encontro desse grupo, e a partir dos contatos na reunião
anual da Sociedade Internacional de Filosofia da Química (ISPC),
convidei Joachim e Olimpia para virem ao Rio de Janeiro no primeiro
evento de Filosofia da Química no Brasil (PhilChem One), realizado na
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como apoio do Instituto de
Química da UFRJ e da FAPERJ. O PhilChem One aconteceu no dia 30 de
Novembro de 2011, como um dos eventos do Ano Internacional da
Química do IQ-UFRJ. Além de Joachim Schummer e Olimpia Lombardi, o
evento contou com a presença de Nelson Bejarano do IQ-UFBA. Após
esse dia de palestras, Joachim ministrou um curso em quatro sessões
durante dois dias debatendo algumas questões da pesquisa em filosofia
da química.
À medida que mergulhava nos textos e nos espaços desse campo eu
conseguia perceber melhor tanto as regiões quanto seus contornos e
fronteiras. Participar dos eventos da ISPC permitiu aproximações ainda
maiores, mas também trouxe o entendimento de que eu desejava estudar
um tema que tinha pouca interlocução na área. Já havia sido assim pela
mão do próprio Cassirer. A escolha da Filosofia das Formas Simbólicas
como um caminho de referência para meus estudos em ensino de
106 | Filosofia da Química no Brasil

química implicava em desafios, que mais à frente me levariam a novos


caminhos. Cassirer discutia as fórmulas químicas como argumento,
como elemento de registro e de criação, uma ferramenta simbólica que
tinha seu lugar no desenvolvimento próprio da disciplina.

Já a simples fórmula química na qual se expressa meramente o tipo dos


átomos contidos em uma certa molécula, assim como seu número, está cheia
de indicações sistemáticas frutíferas. Assim, por exemplo, quando essa
linguagem de fórmulas expressaram certos compostos de cloro, hidrogênio e
oxigênio como ClOH, ClO3H, ClO4H, já nesta lista se propôs a pergunta pelo
“membro faltante” dessa série, por um composto ClO2H, que pode ser
descoberto uma vez que, por assim dizer, se havia determinado previamente
seu lugar. Aqui se ressalta o valor cognoscitivo inerente a toda linguagem
científica metodicamente construída. Essa linguagem nunca é uma mera
denominação para algo dado e existente, mas um sinal que aponta para um
terreno novo e todavia inexplorado, conduzindo a um processo de
interpolação e extrapolação. (...) Essa característica ressalta com maior
claridade se considerarmos o estado de evolução que se encontra na fórmula
química quando se converte propriamente em uma “fórmula constitutiva”.
Uma fórmula constitutiva, como aquela proporcionada por Baeyer para o
índigo, coloca uma estrutura autenticamente genética no lugar de uma
descrição empírica, convertendo-se em um enunciado não somente sobre o
“que”, mas também sobre o “como”. (CASSIRER, 1998, p. 511).

Cassirer dedicou a primeira década da sua carreira à epistemologia,


e agregou à esse momento os trabalhos de Descartes e Leibniz. Todavia,
sua grande realização foi em uma reflexão sobre a cultura. Cassirer havia
sido um estudante da literatura alemã antes de se voltar para filosofia.
Segundo estudiosos em Cassirer (SKIDELSKY, 2008), ele acumulava
vários escritos em estética, e mesmo os seus escritos em matemática e
ciência foram feitos através de uma “distinta sensibilidade estética” (ibid.
p. 71). Cassirer era considerado estético entre os racionalistas e
racionalista entre os estéticos. Particularmente influente em Cassirer foi
o grupo de escritores e pensadores ao redor do poeta Johann Wolfgang
von Goethe (1749-1832), tais como: Johann Gottfried Herder (1744-
1803), Friedrich Schiller (1759-1805), Friedrich Wilheim Joseph Schelling
Waldmir Nascimento de Araujo Neto | 107

(1775-1854), Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), e Alexander


von Humboldt (1769-1859). O que atraiu Cassirer para esse grupo
diverso foi sobretudo sua oposição ao racionalismo, rejeitavam a
identificação da razão como marca distinta da humanidade, e a
correspondente exaltação da matemática e da ciência natural como
conquistas humanas. Esse grupo acusava o racionalismo de ser o motor
de uma degradação sensorial e emocional da vida humana,
condicionando esses atributos a um resíduo biológico, algo que deveria
ser superado. A humanidade, o agir e o estar no mundo como ser
humano não poderiam ser reduzidos à racionalidade, a espécie humana
não poderia ser tomada como um ser = (animal + razão).

Assim, isso que chamamos a “natureza”, a existência das coisas, nos é


apresentada sempre como uma mera “rapsódia de percepções”. (...) Toda
percepção, enquanto tal, só está dada diretamente a um observador nas
condições espaço-temporais às quais ele se encontre. (CASSIRER, 1998, p.
473).

Ao conferir à percepção o papel de agente central da lida com a


natureza, Cassirer humaniza a razão, e permite que se tenha
instabilidade ao lidar com os dados que apreendemos das vivências, e das
atividades empíricas. Ele destrói qualquer rigidez e instala sentido
dialético nesse processo de voltar-se para o mundo natural.

Não é de forma alguma óbvio, aliás, é até inicialmente incompreensível como


a percepção pode sair desse isolamento, como ela consegue se “conectar” a
outras percepções. Afinal, justamente essa conexão parece exigir uma
reunião de elementos que não apenas têm de ser pensados como acidentais,
como também devem ser pensados fundamentalmente como não similares.
Sem a heterogeneidade que lhe é própria, a percepção não parece poder ser
percepção, pois sem ela a percepção está ameaçada de perder essa
particularidade qualitativa, que pertence à sua essência. (...) Nessa antinomia
reside o começo, a semente dialética de toda conceituação científico-natural.
(CASSIRER, 1998, p. 474).
108 | Filosofia da Química no Brasil

A percepção joga um papel central no fazer, no criar as coisas do


mundo. O sujeito que percebe opera o mundo com sua linguagem, e a
linguagem não entra como uma instância produtora de rótulo de coisas
acabadas, uma produtora de nomes puros, signos exclusivamente
arbitrários. A linguagem é em si o espaço para a produção do significado
desses objetos, o mais importante e o mais perfeito instrumento para a
construção desse mundo de objetos.
O enfrentamento que Cassirer empenhou contra o racionalismo me
acolhia teórica e afetivamente. Penso que, de certa forma, somos afetos
de nossos teóricos de referência, somos apadrinhados, acalentados, e
claro, também brigamos, rompemos, distanciamos, e voltamos
transformados. Me parece importante ter uma relação, stricto sensu,
com esses sujeitos, com suas histórias, caminhos e ideias. A filosofia de
Cassirer sempre me pareceu promissora por sua conexão estrita com a
antropologia, com a psicologia e com a cultura. Eu vi nesses aspectos um
tipo de solo fértil para plantar algumas árvores no terreno da educação.
As questões trazidas por Cassirer implicavam uma nova teoria da
cultura, e principalmente pela sua convicção de que aquilo que distinguia
a humanidade dos outros animais não era a posse de uma faculdade
nobre, mas a capacidade especial, diversificada e ainda não plenamente
compreendida de expressão pessoal. Ou seja, Cassirer me oferecia uma
oportunidade de deslocar a produção de sentido de um lócus interno
para o meio externo. Tirar as razões do ser do domínio do mental e
entregá-los de volta para o agir, para o fazer, para o estar no mundo.
Com Cassirer veio a possibilidade de corporificar o conhecimento,
perceber que o sujeito do conhecimento é uma necessidade dialética, um
polo. Essa influência em Cassirer é tomada da sua influência Hegeliana.

(..) está bem claro que, para Hegel, esse aparecer não tem nada a ver com
percepção consciente: não importa com o que a mente dos indivíduos se
preocupa enquanto eles participam de uma cerimônia, pois a verdade está na
própria cerimônia. (VERENE, 1969, p. 41).
Waldmir Nascimento de Araujo Neto | 109

As formas de expressão humana são a linguagem, a arte e o mito.


Como contribuições para o conhecimento elas podem ser julgadas
pequenas, mas como funções do ser humano no mundo, são
indispensáveis. Com Cassirer o foco racionalista teve uma nova
interpretação da ciência, e abriu caminho para um novo interesse na
cultura humana. Todas as criações humanas são manifestações da
humanidade, e são os caminhos pelos quais nos colocamos no mundo.
Essa interpretação romântica abraçou o conceito kantiano de
determinação pessoal (selbstbestimmung) procurando expandi-lo além
das fronteiras da razão pura. Nossa vida emocional não é simplesmente
patológica, como pretendia Kant. A interpretação romântica concordava
com Kant no abandono de qualquer tipo de reducionismo natural, não
poderia haver uma natureza humana meramente biológica, a vida
humana tinha de ser uma vida completa, e para isso ela tinha de ser
moldada na cultura.
Por isso, e com relação à Cassirer, o romantismo alemão é melhor
compreendido não como uma rejeição da herança kantiana, mas como
uma transformação. A Filosofia das Formas Simbólicas tentou estender a
espontaneidade produtiva da razão para toda a vida humana. O mundo
permanece como uma esfera de mediação, mas esse processo medial é
transferido da ciência para a cultura. Nossa relação com a realidade não é
mais uma prioridade do conhecimento, mas uma função de categorias
inclusivas de sentido. Damos forma ao mundo muito antes de um senso
estrito de conhecimento, e a ciência é apenas um caso da atividade geral
de formação simbólica. Isso permitiu a Cassirer retomar a dignidade da
linguagem, da arte e do mito. Enquanto se mantivesse a relação com o
mundo meramente em termos de conhecimento, essas formas seriam
vistas como expressões subjetivas da emoção, como meros erros
primeiros. Por outro lado, se tomarmos a produção de sentido como o
elemento básico da atividade humana no mundo, podemos reconhece-las
como atividades autônomas, modos irredutíveis de construir o mundo.
110 | Filosofia da Química no Brasil

Entretanto, a filosofia das formas simbólicas não é uma ressureição


da filosofia romântica alemã, pois aqueles românticos originais
rejeitavam ou ignoravam, por exemplo, a ciência Newtoniana. Por isso,
Cassirer manteve-se suficientemente Kantiano para não seguir nesse
caminho. Ao invés de rejeitar o protocolo da ciência, Cassirer
categorizou-a como “a maior e a mais característica realização da cultura
humana” (CASSIRER, 1944). A filosofia de Cassirer mantinha-se próxima
ao projeto da Escola de Marburgo de humanizar a ciência, de integrá-la
em um contexto normativo mais amplo. O projeto particular de Cassirer
foi de apresentar a ciência como uma expressão, de capacidade simbólica
semelhante à arte, à linguagem e ao mito, absolvendo-a da inumanidade.
Para isso Cassirer posicionou-se entre duas grandes influências: Goethe e
Aby Warburg (1866-1929).
Como pontuei anteriormente, diferentes autores da corrente
romântica influenciaram Cassirer, mas nenhum deles foi tão marcante
quanto Goethe. Ele permitiu que Cassirer se desatasse das amarras neo-
kantianas, ao tomar a crença na objetividade da imaginação artística
como o sumário de partida para a criação das formas simbólicas. Goethe
considerava a arte como um retiro para a fantasia e o desejo que
permitia uma demonstração da imaginação para a compreensão da
realidade. A beleza não é uma impressão subjetiva, mas a produção de
sentidos a partir de formas reais, um exercício de ordenação do real. A
objetividade não necessita estar limitada às ciências matemáticas ou
naturais, ela deve compor também outras formas não científicas. Não
somente a ciência, mas também a arte deveria ser um elemento de
constituição do mundo. A arte não se posiciona como um elemento
pictórico, mas definidor da construção da vida humana.
Segundo John Michael Krois, a filosofia de Cassirer deve tanto ou
mais a Goethe quanto deve a Kant, apesar de insistirmos em rotulá-lo
como um filósofo neo-kantiano (KROIS et. al, 2007). Goethe creditou à
Cassirer uma inovação filosófica de fundamental importância: a criação
de uma nova concepção de "forma". Para Goethe, a forma não era
Waldmir Nascimento de Araujo Neto | 111

estática, mas sim passava por transformações permanentes, tal e qual em


um sentido de desenvolvimento. Para expressar essa ideia, Goethe
cunhou a palavra "Morphologie" (KESTLER, 2006). Hoje, esse conceito é
encontrado em inúmeras ciências além da biologia, mas desde o início
dos seus escritos sobre representação e seu lugar na criação do
conhecimento humano, Cassirer adotou a concepção morfológica de
forma de Goethe. Quando ele falou sobre a "Filosofia das Formas
Simbólicas", a noção de "forma" nessa frase veio de Goethe, e não de
Kant ou Platão. Basicamente, a concepção morfológica da forma
implicava tratar a organização estática como uma questão de
transformação contínua. Por esse caminho, Cassirer atreveu-se a
defender que um dos conceitos mais atemporais na filosofia, o de forma,
fosse tratado como um processo. Do ponto de vista morfológico, mesmo
as formas invariantes não são estáticas, pois a invariância ocorre ao
longo do tempo. Essa trans-formação permanente decorria
implicitamente de uma visão Goethiana de condicionamento fático à
teoria.

Então se comprova a verdade e a profundidade da frase de Goethe: o melhor


seria reconhecer que todo o fático já é teoria. Não há facticidade alguma
como dado absoluto, definitivo e imutável. O que chamamos de fato tem que
estar orientado teoricamente de algum modo, tem que ser visto em função
de certo sistema conceitual e tem que estar implicitamente determinado por
ele. Os meios teóricos de determinação não se agregam posteriormente ao
meramente fático. (CASSIRER, 1998, p. 475)

Outra influência foi Aby Warburg, e Cassirer chegou até ele por ter
assumido uma posição na Universidade de Hamburgo. A
“Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg” continha material sobre
arte, mito e linguagem que seriam indispensáveis para a pesquisa de
Cassirer. Lá ele entrou pela primeira vez em 1920, e teve Fritz Saxl
(1890-1948) como apresentador e posteriormente como companheiro
nas pesquisas. Aby Warburg havia sido acometido por um colapso
mental em 1918, e internado em um sanatório na cidade de Kreuzlingen.
112 | Filosofia da Química no Brasil

A biblioteca incorporava a visão múltipla de cultura e produção de


sentido que estava sendo desenvolvida filosoficamente por Cassirer, e seu
acervo dava atenção especial ao estudo da representação, da expressão
emocional em gestos, rituais e pintura (WARBURG, 2013). Cassirer
alinhou suas posições filosóficas com a visão de Warburg sobre a cultura,
e enfatizou o primado da ação ritual no surgimento dela ao longo da
história da humanidade. Com acesso ao material da biblioteca, Cassirer
pode construir argumentos críveis sobre o papel do agir, da
corporificação dos objetos da cultura na construção do conhecimento. Ele
considerava que não são as meras observações, mas as ações que
configuram-se como meio que organiza a produção intelectual da
humanidade. Cassirer concordava com Aby Warburg sobre a ação
ritualizada ser mais elementar do que a linguagem, ou seja, criava um
lugar no conhecimento humano para as narrativas que chamamos de
"mitos", ou explicações sobre o que as pessoas fazem. Os humanos
primeiro se envolvem em ações rituais e depois interpretam-nas
verbalmente. Essa posição está alinhada com o que Cassirer tomava de
Wilhelm von Humboldt (1767-1835) sobre o idioma como uma energia,
como uma questão de fazer, e só depois sendo estabelecido como
sistema.
Diante da necessidade de compreender amplamente os desafios da
linguagem, e tendo como núcleo o ambiente intelectual da Universidade
de Hamburgo, Cassirer mergulhou no estudo de certas patologias, e o
estudo da afasia mostrou a Cassirer duas coisas. Primeiro, demonstrou
que a linguagem foi integrada na ação humana e, em segundo lugar, a
perda de linguagem por distúrbios neurológicos não era a mesma coisa
que a perda de capacidades simbólicas, mas apenas sua limitação.
Cassirer visitou a enfermaria neurológica em Barmbeck sob a orientação
do neurologista Heinrich Emden (1871-1941), e fez frequentes visitas em
Frankfurt à clínica de Kurt Goldstein (1878-1965), que tratou soldados
que sofreram danos cerebrais na Primeira Guerra Mundial. Ele observou
pacientes, às vezes entrevistando-os, incluindo o famoso paciente de
Waldmir Nascimento de Araujo Neto | 113

Goldstein, Schneider (STAHNISCH; HOFFMAN, 2010). A partir dessas


observações, Cassirer determinou que as alterações nas capacidades
simbólicas de uma pessoa não apenas influenciavam seu pensamento,
mas implicavam mudanças também nas percepções do paciente, nas
capacidades de ação e até na personalidade, em suas atitudes em relação
aos outros e sua própria relação pessoal.
Em uma carta a Goldstein em 1925, Cassirer escreveu que ficou
particularmente atordoado pela semelhança entre a orientação espacial
que Schneider exibiu e o relato de Hans Volkelt (1886-1964) de uma
relação da aranha com sua própria rede (KROIS et. Al., 2010). Uma
mudança de detalhe desorientava a aranha, de modo que não poderia
mais reconhecer presas quando fossem colocadas diretamente na sua
rede. Um procedimento ritual de ação da aranha era necessário para
perceber que algo era presa. Sem as atividades ritualizadas adequadas, a
aranha não conseguiu reconhecer a presa pelo que era. Da mesma forma,
Schneider só podia entender os detalhes ao incluí-los em ações inteiras
próprias. Ele foi capaz de bater em uma porta para ver se alguém estava
dentro, mas era impossível para ele executar o movimento de bater
quando o médico disse-lhe para fazê-lo. Assim também, Schneider
poderia usar o idioma apenas de forma ritualizada, para obter certos fins
imediatos. Ele havia perdido a capacidade de representar o meramente
possível.
Nesse período, por meio dos estudos na Biblioteca, Cassirer pode
colaborar e influenciar, por exemplo, Erwin Panofsky (1892-1968). Além
disso, o período em Hamburgo foi pleno de contatos e de influências
colaborativas com os trabalhos de Kurt Lewin (1890-1947), Wolfgang
Köhler (1887-1967), Carl Meinhof (1857-1944), e um dos pioneiros da
Biossemiótica Johan Jakob von Uexküll (1864-1944). A colaboração com
esses estudiosos foi um marco interdisciplinar no trabalho de Cassirer,
que insistia na necessária confluência e sinergia entre as esferas
científica, histórica, psicológica, linguística e filosófica. Aqui na Biblioteca
de Aby Warburg é que Cassirer concebe a natureza simbólica da
114 | Filosofia da Química no Brasil

existência humana, o fato de que a nossa vida intelectual e emocional é


formada e configurada originalmente através da força expressiva da
palavra e da imagem. Ou seja, é no interior dos sistemas culturais
simbólicos que a vida se realiza, mantém sua forma, sua visibilidade, se
modifica, e se torna real. É através do sistema de formas simbólicas que o
pensar e o ser, dicotômicos e ainda em conflito, realizam um debate
(Auseinandersetzung) que mostra a relação do ser com o outro, do eu
com o você. A alteridade é exercida pela mediação da palavra e da
imagem, por signos, linguísticos, culturais, formas de co-responder ao
outro, encontra-lo, dizê-lo. O animal simbólico é produto e o criador dos
sistemas simbólicos.
A função do símbolo em Cassirer trouxe para a minha pesquisa a
questão da representação. Ela era uma pesquisa situada na filosofia da
química e para tanto eu estudei as representações espaciais e suas formas
de uso na sala de aula da química orgânica no ensino superior. Desde ali
a palavra representação adquiriu um sentido robusto e abrangente. E foi
também com Cassirer que me movimentei na direção da Semiótica. O
Cassirer semiótico tem origem em uma profunda relação com a
Biossemiótica, uma marca dos trabalhos com Uexkull. Em sua
antropologia filosófica, Cassirer generalizou a teoria estritamente
biológica de Uexküll, enfatizando o fator decisivo do simbolismo como
aquele que coloca os seres humanos a parte dos animais. Enquanto os
seres humanos podem ser considerados da mesma forma que os animais
na biologia teórica de Uexküll, eles também devem ser considerados
exclusivos em termos de seus sistemas e mundos simbólicos. Esses
sistemas tornam possível a cultura e servem para separar seres humanos
e animais. Cassirer incorporou a perspectiva biológica de Uexküll em sua
teoria simbólica e Uexküll explicou sua teoria biológica com uma ênfase
crescente na semiótica, que viria a influenciar novamente Cassirer.
Juntos, Uexküll e Cassirer desenvolveram uma teoria comparativa dos
sistemas vivos. Os animais vivem em um mundo de hábitos sígnicos, um
conjunto de processos e produtos que marcam e demarcam ações no
Waldmir Nascimento de Araujo Neto | 115

interior de um grupo social e biológico. Mas além dos sistemas


receptores exclusivos, os seres humanos possuem sistemas simbólicos
que lhes dão acesso a mundos simbolizados. Na visão de Cassirer, em
algum momento da evolução, os hábitos sígnicos tornaram-se rituais, ou
seja, sinais naturais se tornaram símbolos culturais. Para Cassirer, a
linha de demarcação entre humanos e animais não foi definida pela
razão, como os filósofos sempre reivindicaram, mas pelo pensamento
mítico. Os seres humanos são espécies simbólicas, o animal symbolicum.
Eu estava interessado em estabelecer um projeto de representação
para a química. As minhas intenções com o estudo da representação
eram de percorrer um cenário social. Ampliar o papel da representação
do plano da comunicação para o plano da criação. Essa também era uma
pretensão de relação com a educação. Como um sistema medial, eu
pretendia desenvolver aspectos da representação no ensino de química
não limitado ao pressuposto tradicional de instância passiva,
normalmente conferido ao processo de mediação. A representação no
ensino de química deveria ser pensada como um dispositivo de criação.
Ao iniciar meus estudos com as formas de uso eu pretendi entender
como professores lançam mão das representações, do universo
simbólico-material da química, com dinâmicas, atividades, avaliações,
formas lúdicas, aportes à tecnologia digital, diferentes modos, meios e
mediações. Foi Cassirer quem trouxe para a minha pesquisa a condição
crucial do estar no mundo: a mediação. E assim, as representações
estruturais, as ferramentas materiais, desenhos no quadro de giz,
diagramas, densidades, escritos, falados, desenhados, gesticulados,
assumiram seu verdadeiro papel de ferramentas mediais simbólicas. Não
alcanço a química diretamente, nada faço, não sou, e em nenhum lugar
estou, se não for pela mediação.
Eu já havia participado de dois encontros da ISPC (Colômbia 2011 e
Uruguai 2013), e estava a caminho da terceira participação (em Londres
2014), na qual confirmaria a realização do ISPC 2015 no Rio de Janeiro,
na UFRJ. Após o evento, na London School of Economics, planejei uma
116 | Filosofia da Química no Brasil

semana de estudos na Universidade de Londres, no Warburg Institute,


que abrigava a Biblioteca Warburg desde sua retirada da Alemanha na
segunda guerra. Uma semana de trabalhos na biblioteca foi pouco tempo,
mas o suficiente para torcer ainda mais minhas pretensões sociais sobre
a noção de representação. Eu percebi a necessidade de estudar e de
entender melhor o próprio conceito de cultura ao percorrer as estantes.
Arte, arquitetura, ciência, linguagem, povos esquecidos, alquimia,
bruxaria, os temas e contornos pareciam inesgotáveis. Além da certeza
do meu vazio interior sobre cultura, percebi que poderia ser produtivo
situar o conceito de representação em um lugar daquela biblioteca, em
alguma daquelas estantes deveria haver uma âncora contextual para me
ajudar a refletir sobre a representação na química. Faltou dinheiro para
pagar os créditos de cópias que eu ia tirando em cada dia de trabalho,
mas sempre contava com a atenção dos funcionários. Havia numa das
estantes uma coleção de plantas de prédios de Veneza, do período do
renascimento, com detalhes, perspectivas e projeções. Nesse momento
comecei a me inclinar pelo espaço em si, suas representações, como isso
foi acontecendo, aonde primeiro, na cultura, outros povos, se não
desenhavam como falavam do espaço.
Cassirer me mostrou que uma função abstrata, como a
espacialidade, poderia possuir um conteúdo emocional inerente quando
se enquadra em termos de concepções míticas. Para os seres humanos, o
espaço pode ser mais que a ordem geométrica que Kant chamou de
"justaposição" (Nebeneinander). No ensaio de Cassirer "Mythic, aesthetic
and theoretical space" (1969), ele considerou o espaço de forma
morfológica, mostrando que poderia assumir não apenas diferentes
configurações geométricas, mas também assumir uma ordem pessoal,
carregada emocionalmente, tendo o corpo como foco. Isso ocorre quando
os rituais dividem o mundo dramaticamente, ocorrendo em um
determinado local. Para um grupo de aborígenes australianos (falantes
do dialeto Wotjobaluk), em vez de utilizar as quatro direções cardinais da
nossa bússola, as direções são identificadas com tribos diferentes. Essas
Waldmir Nascimento de Araujo Neto | 117

instruções indicam as maneiras pelas quais os mortos deveriam ser


enterrados, de acordo com a adesão do grupo totem. Ao em vez de medir
e referenciar o espaço por meio de uma escala objetiva, o que se
considera são as tradições ritualísticas de se despedir dos mortos. As
direções a serem seguidas, as informações passadas sobre referências
espaciais, consideram lugares com referências totêmicas próprias
(CASSIRER, 2013). Exemplos como este levaram Cassirer a concluir que,
no pensamento mítico, o corpo humano oferecia, como ele disse, o
"sistema preferido de relações", em torno do qual todo o resto era
organizado. Embora a nossa organização do espaço não tenha mais
associação com tais concepções, elas sobreviveram nos nomes dos pontos
cardinais da nossa bússola, afinal, os anões da mitologia nórdica que
sustentavam o céu chamavam-se: Nordri, Sudri, Astri, e Westri.
Com todas essas representações emblemáticas o espaço se tornou
um campo de pesquisa para mim, a representação das coisas da química
no espaço, a representação espacial, a estereoquímica. Nas leituras que
decorriam dali eu percebi que havia uma lacuna ao tratar-se das
influências e relações entre o domínio social e o processo de
desenvolvimento do conhecimento químico. Esse percurso antropológico
do espaço também estava colocado nos escritos de Cassirer, ele havia
realizado pesquisas em relação à isso, mas pareceu que tive que pisar na
biblioteca de Warburg para me dar conta. Meu campo de trabalho
passava a ser o do signo de representação da química, como construção
histórica e cultural, voltando-me prioritariamente para o agir desses
signos, seus usos, seus sentidos genéticos. Eu pretendia perseguir uma
transformação simbólica ou semiótica da filosofia, que ia exigir que eu
pudesse explicar a percepção e a nossa compreensão das coisas, como
uma relação com a educação, em termos de processos simbólicos.
A estada na Universidade de Londres, por conta do ISPC 2014 e do
período de estudos na biblioteca de Warburg me trouxeram
definitivamente próximos da Semiótica. Eu pude inclusive, ter acesso a
outros textos de John Michael Krois, um dos maiores estudiosos de
118 | Filosofia da Química no Brasil

Cassirer, e entender esse processo de aproximação como uma tendência


legítima. Cassirer chamou o fenômeno do significado simbólico "a priori"
de uma espécie de "primeiro" (CASSIRER 1998, p. 203), nomeando o
fenômeno de produção de sentido como "Pregnância Simbólica". Ele
seria a priori no sentido em que não derivava da convenção, e que não
estava no sujeito. A Pregnância Simbólica de Cassirer estava perto da
concepção pragmática de Peirce que se denominava semeiotica. Assim
como Peirce viu a existência de significados indiciais na natureza - como
a fumaça sendo um sinal de fogo, também Cassirer viu a Pregnância
Simbólica em fenômenos não intencionais. Para tocar algo "áspero",
ressalta Cassirer, exige-se mover seu dedo sobre sua textura (CASSIRER
1998, p. 178). A sensação de áspero depende desse movimento. A
sensação resultante está simbolicamente grávida com a sensação de
aspereza, que emerge neste movimento, quer tenhamos intenção ou não.
Apesar dessas relações intrínsecas, Cassirer nunca citou o trabalho de
Peirce, e Peirce ao falecer em 1914 não percebeu os impactos da Filosofia
das Formas Simbólicas. Mas outros autores iriam falar de Cassirer a
partir das fileiras da Semiótica, como por exemplo Roman Jakobson
(1896-1982), ao referir-se à afirmação de Cassirer que “a Linguística é
parte da Semiótica e não da Física” (CHANG, 2013, p. 7).
Por esse caminho eu cheguei à preparação do ISPC 2015 na UFRJ
com uma agenda ampla de trabalho no campo da Semiótica. A Filosofia
da Química que eu realizava já estava ancorada no simbolismo, no estudo
dos signos, no entendimento de como emergem no campo disciplinar da
química. Tinha conseguido implementar, desde 2014, tanto a disciplina
de Filosofia da Química quanto a de Semiótica no Programa de Pós-
Graduação em Ensino de Química do Instituto de Química da UFRJ. Com
o mergulho nas relações com a licenciatura, apareciam cada vez mais
estudantes interessados em formas de usar esses signos em situações e
atividades didáticas. Ainda assim, Cassirer mantinha-se uma fonte
importante de conhecimento para organizar tais produções. Foi, por
exemplo, tendo como pressuposto teórico a tensão dialética entre
Waldmir Nascimento de Araujo Neto | 119

imitação e representação, que usei com meus alunos o conceito de


mimese para a criação de um conjunto de animações com técnica de
“stopmotion” e estética a partir dos blocos de montar LEGO® 2. Esse
quadro teórico é considerado durante as atividades de formação que são
planejadas com os professores das escolas nas quais se realizam
atividades com essas animações.
Essa tentativa de aproximar a filosofia da formação, inicial e
continuada, de professores, tem sido, tanto estimulante quanto uma
caminhada difícil. As dificuldades residem, principalmente, na distância
entre o currículo, em sentido lato, ou seja, para além das matérias que
são dadas na graduação, e a linguagem desses estudantes, o dizer e o
fazer deles. De forma geral há uma dificuldade muito grande em dizer, o
que sente sobre, o que pensa sobre, o que sabe sobre. Algo em torno do
“eu não consegui colocar no papel”. Eu aprendi com Cassirer que foi
porque conseguimos colocar no papel, foi porque conseguimos pintar,
dançar, dizer, que chegamos até aqui como espécie em sentido evolutivo.
Então para mim, ao menos pragmaticamente, colocar no papel parece
ser um ato incondicionalmente importante para a formação do professor.
A distância faz com que a caminhada seja mais longa e exija força e
determinação do caminhante. Como as questões de matriz filosófica não
estão no caminho crítico do professor em formação ele prefere ir ao
encontro de discursos mais expressivos e próximos de sua vivência
formativa. Encontrar a alternativa correta, o valor da resposta,
objetividade levada às últimas consequências.
Isso me fez torcer a vara para o lado social, ou sócio-cultural, ainda
mais. Uma busca filosófica nos termos do projeto de trabalho de Cassirer,
em boa medida. Partindo do conceito de cultura e procurando encontrar
sentidos culturais para a Química, como disciplina e como objeto de
transposição para o ensino de química, eu comecei a deixar emergir as
influências vividas no Instituto Warburg, e encontrei na relação entre
Filosofia e Semiótica, novamente um sentido derivado da trajetória de

2
Veja no canal do Youtube: https://www.youtube.com/user/lifeufrj
120 | Filosofia da Química no Brasil

Cassirer, um quadro teórico-metodológico de referência para dar


consequência aos trabalhos na UFRJ. Em um plano acadêmico, minhas
pesquisas conectam-se sempre com o conceito de representação. Em
sentido específico estou sempre interessado em produzir pesquisas que
revelem o caminho do espaço, como um elemento da representação na
química. Essa aproximação Histórico-Filosófica do espaço na química
possui implicações estritas com uma dificuldade permanente ao lidar
com as coisas da química: habilidade espacial. Humanizar o espaço ao
invés de abstraí-lo, perseguir sua historicidade, recente em grande
medida, tem demonstrado ser um caminho profícuo para mostrar aos
professorem em formação que o território da representação sempre foi
um lugar de disputas, conflitos, pessoais e intelectuais, e que não há
motivo para isolar aqueles que não conseguem apreender conformações
e configurações.
Em sentido profissional, o binômio Cassirer-Warburg expressa-se
intensamente. Os dois compartilhavam uma visão distinta do simbolismo
que me influencia de forma permanente, uma visão que Warburg
mostrou à Cassirer com a filosofia de Friedrich Theodor Vischer (1807-
1887), também influenciado por Hegel. No seu ensaio Das Symbol
(VISCHER, 2016) Theodor Vischer mostra sua influência sobre a Filosofia
das Formas Simbólicas e sobre o meu trabalho por decorrência. Ele
localiza todos os símbolos em um espectro entre dois polos. Em um
extremo situa-se o símbolo mágico e religioso, no qual a imagem e o
sentido estão indissociavelmente fundidos. No outro, o tônus daquilo que
se toma insipidamente como modelo na contemporaneidade. O símbolo
abstrato que é e não é, a essência da abstração: a = b. Persigo essa tensão
entre mythos e logos, entre a carne e o espírito.
A inserção do mito foi para Cassirer uma tentativa de enfrentar a
agenda política da Alemanha naqueles tempos de emergência do
nazismo. Por aqui sigo inserindo a arte em meus projetos de pesquisa e
ação, junto ao curso de licenciatura em química da UFRJ. Um
enfrentamento da postura racionalista stricto sensu, uma forma de
Waldmir Nascimento de Araujo Neto | 121

voltar-se para o humano no professor, além do conteúdo, além dos itens


de resposta. A “minha luta” envolve amolecer, suavizar e relativizar.
Trouxe o cinema e a produção fílmica como ferramentas para a
formação. Produzir narrativas, entender as formas de representar, suas
limitações, e perceber que não há modo exclusivo que consiga mostrar
tudo. Incompletude, intencionalidade e identidade na formação. Criar
novos meios híbridos, cinema, complexos intermediais nos quais o
professor é agente da ativa, tecnologia e presença, corporificação,
presentificação do virtual, professor e professora como personagem
central da representação, controla, direciona e produzem sentidos a
partir daquilo que escolhem como importante para aquela atividade.
Construir autonomia a partir desse caráter indissociável entre mythos e
logos. A razão pura e exacerbada serve aos interesses de uma ideologia
do mérito para o exame. Uma vontade de estratificar o sujeito na
atividade docente. Enfrento isso como posso, mas tive como ponto de
partida a Filosofia da Química, um Filósofo da Cultura veio me mostrar
como a Química deve ser diferente para os professores em formação.
Sigo com Cassirer e com a Filosofia da Química, aprendendo de uma
maneira peculiar, provocando e tentando superar os desafios que nos
impomos e também aqueles a que somos impostos.

Referências

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Haven: Yale University Press, 1944.

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económica, 1998.

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technology. London: Yale University Press, 2013.
122 | Filosofia da Química no Brasil

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communication. Sign Systems Studies v. 41, n. 1, p. 7-20, 2013.

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História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 13, suplemento, p. 39-54, 2006.

KROIS, J. M.; ROSENGREN, M.; STEIDELE, A.; WESTERKAMP, D. Embodiment in


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during the Interwar Years. IN: HOFFSTADT, C.; PESCHKE, F. SCHULZ-BUCHTA,
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WARBURG, A. A renovação da antiguidade pagã. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.


5

Uma aproximação pouco usual:


a epistemologia de Jean Piaget e a Filosofia da Química

Marcelo Leandro Eichler 1

O caminho que me trouxe aqui, como são os de muitos colegas, foi


sinuoso, tortuoso, acidentado, moroso e ainda está em construção, como
não poderia deixar de ser. O objetivo deste texto não é mostrar meu
caminho de águas, de ares, de fogo e de pedras. Não penso em convidar o
leitor a seguir o caminho que foi por mim trilhado, penso apenas em
indicar um e outro ponto de referência, fazendo isso ainda de forma
convencional. Quero apontar algumas balizas, alguns textos que
marcaram as bifurcações e as escolhas entre as rotas alternativas.
Eu, como muitos de nós, fui um aluno de química curioso que não
cabia em um laboratório, em sua rotina experimental, de análise, de
métrica, de repetição. A fortuna me fez trilhar as sendas da licenciatura e
logo no início da graduação em Química comecei a trabalhar na Área de
Educação Química, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Durante toda a minha graduação trabalhei com a produção de
material didático de química, concebendo esse exercício com uma
estratégia de formação inicial e continuada de professores de química
(EICHLER; DEL PINO, 2010). Além do trabalho com a produção de
material didático impresso, também participei de um projeto de inovação
educacional que teve por objetivo a produção de conteúdos digitais para
o ensino de química (EICHLER; DEL PINO, 2006). Os conteúdos digitais

1
Professor de graduação no Instituto de Química (UFRGS) e de pós-graduação no PPG Educação (UFRGS).
124 | Filosofia da Química no Brasil

produzidos neste projeto de inovação educacional tiveram como tema os


impactos ambientais e sociais decorrentes dos meios convencionais de
produção de energia elétrica.
Particularmente, um desses conteúdos digitais, Carbópolis (que
abordava o tema chuva ácida, associada à energia termoelétrica a partir
da queima de carvão) foi o assunto que escolhi aprofundar nos estudos
em nível de mestrado (EICHLER; FAGUNDES, 2004).
O meu mestrado foi realizado em uma área pouco usual aos
educadores em química. Fui estudar em um Programa de Pós-Graduação
em Psicologia, pois, na ocasião, tinha interesse de entender melhor a
aprendizagem de ciências com o uso de recursos digitais. E naquele
programa havia uma professora, Léa Fagundes, sempre muito acessível
às interlocuções interdisciplinares.
Foi nessa ocasião que comecei a ampliar minhas leituras em
Filosofia das Ciências. Naquele momento meu interesse em compreender
as etapas da análise ambiental me levou a investigar a atribuição de
causas, ou a reconstrução do nexo causal de problemas ambientais
(TAUK-TORNISIELO, GOBBI; FOWLER, 1995). Desse interesse
pragmático para a leitura mais encorpada e aprofundada sobre o
causalidade (BUNGE, 1959/1997) foi um salto, uma decolagem, um vôo.
Durante minha formação em nível de pós-graduação, meus estudos
em Psicologia do Desenvolvimento e minha leitura sobre as explicações
causais (PIAGET; GARCIA, 1971) me levaram a aderir ao programa de
pesquisa da Epistemologia Genética. Por isso, hoje minha principal linha
de pesquisa tem a ver com a tematização e a atualização da obra de Jean
Piaget.
O tema da causalidade foi o assunto que uniu meu mestrado e meu
doutorado e que me faz ficar atento e curioso com a produção na área da
Filosofia da Química. No meu doutorado, ao propor que as
transformações químicas poderiam ser um novo tema para ser estudado
no âmbito da Epistemologia Genética, busquei mostrar como Piaget
Marcelo Leandro Eichler | 125

abordou às questões sobre a circularidade das ciências e tangenciou o


problema dos reducionismos.
Em boa parte, o texto a seguir, é uma reescrita acerca de um dos
problemas fundacionais da Filosofia da Química, a crítica ao
reducionismo fisicalista e a declaração ontológica de independência da
Química em relação aos domínios Física. A minha reescrita é feita com o
retrato de ocasião, com os artigos da época da virada do milênio, do
momento juvenil de emancipação da Filosofia da Química.

A interrelação dos conhecimentos, segundo Piaget

Uma característica bastante forte e profícua na obra de Jean Piaget é


a busca de inter-relações de conhecimentos, viés em que é possível
destacar o seu interesse pelo sistema das ciências. No volume que
organizou para a Enciclopédia da Pléiade, Lógica e Conhecimento
Científico, Piaget (1967b) aborda a questão do sistema e da classificação
das ciências, um assunto que interessou a muitos pensadores, como
Aristóteles, Bacon, Ampère e Comte, apenas para citar alguns pensadores
sobre os quais ele discorre.
Nessa oportunidade, Piaget retomou idéias que ele propusera
anteriormente e reiterou que o sistema das ciências apresenta uma
estrutura de ordem necessariamente cíclica, irredutível a qualquer forma
linear. Nesse sistema, ele distinguiu quatro conjuntos de ciências,
amplos:

I) as ciências lógico-matemáticas;
II) as ciências físicas;
III) as ciências biológicas; e
IV) as ciências psico-sociológicas (compreendendo a lingüística, a economia,
etc.).
126 | Filosofia da Química no Brasil

Entre esses conjuntos haveria uma ordem de implicação, que


poderia ser descrito pela circularidade: I → II → III → IV → I. Haveria,
ainda, a possibilidade de interações internas (IV ↔ II e I ↔ III).
Deve-se ressaltar que, para Piaget, essa circularidade não seria
fechada, mas uniria os movimentos espiral e helicoidal, em um vórtice:
“tal círculo não tem nada de vicioso pois ele não se fecha jamais, ele
percorre aumentando a cada volta o nível de conhecimentos: o processo
efetivo é, então, aquele de uma subida em espiral ou, se se prefere, de
uma marcha dialética” (PIAGET, 1967b, p. 1224).
Em sua sistematização, a natureza das relações entre um conjunto
de ciências e outro poderia ser evidenciada através dos graus de filiação e
de dependência que existiriam entre elas. As relações de dependência
seriam as mesmas de conjunto para conjunto de ciência, de ciência para
ciência dentro de um mesmo conjunto e, finalmente, de um capítulo
particular para outro em uma mesma ciência. Dessa forma, supondo a
hipótese de uma ordem no círculo das ciências, Piaget distinguiu seis
tipos de relações de dependência entre disciplinas científicas:

1. Redução unilateral de uma ciência ou teoria causal a uma outra.


2. Redução por interdependência de ciências ou teorias causais.
3. Colocação em correspondência de um sistema causal com um sistema
implicativo até à assimilação do primeiro ao segundo.
4. Colocação em correspondência de um sistema causal com um sistema
implicativo até uma pesquisa de “isomorfismo”.
5. Interdependência entre dois sistemas implicativos por abstração
reflexionante.
6. Redução entre dois sistemas implicativos por axiomatização.

Conforme entendeu Piaget, esses critérios permitiriam interpretar


as ciências em relação as suas dependências dinâmicas, isso que dizer,
“olhando a ciência que se faz e se transforma e não somente a ciência já
constituída e codificada. Não considerando apenas aquelas dependências,
(...), que se marcam ao grau de generalidade: as matemáticas se aplicam
a todas as ciências ulteriores em escala linear; a física se aplica à química
Marcelo Leandro Eichler | 127

e à biologia mas não às matemáticas; à química se aplica à biologia, etc.,


mas nem à física, nem à matemática, etc.” (p. 1185).
O esquema de circularidade entre as ciências e os diferentes tipos de
relação de dependência foi aplicado, por exemplo, para prognosticar o
futuro da psicologia (PIAGET, 1966). Nesse sentido, Piaget discorre sobre
as relações entre:

a) a lógica e as ciências psico-sociológicas;


b) as ciências matemáticas e as psico-sociológicas;
c) as ciências lógico-matemáticas e as ciências físicas;
d) as ciências físicas e as ciências biológicas; e
e) as ciências psico-sociológicas e as ciências biológicas.

Durante meu doutoramento esse assunto não foi colocado diretamente


em pauta. Ele foi mais bem utilizado para mostrar um pouco do
estranhamento que um químico pode ter ao se deparar com a obra
piagetiana, que apesar da amplitude, vastidão e profundidade, muito pouco
contemplou as questões relacionadas ao fenômeno químico. Alguns,
pouquíssimos, exemplos podem ser citados.
Nesse artigo sobre o futuro da psicologia, ao mostrar um pouco das
possíveis relações da química com a psicologia, Piaget (1966) fez o que
hoje parece um exercício da obviedade: “no que se relaciona às ciências
físicas, elas já deram à psicologia muito mais do que geralmente se
lembra. Há, é claro, o aspecto menor, tais como a contribuição da
química ao estudo das reações mentais modificadas pelas ‘drogas’” (p. 3;
grifos do autor).
Em outro lugar, quando comentou sobre a natureza da
epistemologia e de seus métodos (PIAGET, 1967a), exemplificando o
método histórico-crítico pelos trabalhos de Emile Meyerson sobre o
alcance epistemológico dos princípios de conservação, ele sugeriu:

“o recurso à história é um complemento indispensável da análise


formalizante: a ver, por exemplo, de que forma Lavoisier (que se sabe o
quanto sua obra renovadora coloca acento sobre a experiência) postulou a
128 | Filosofia da Química no Brasil

conservação do peso [na verdade, massa] nas transformações químicas antes


de fazê-lo objeto de uma verificação direta e independente, pode-se somente
dar razão à E. Meyerson em suas teses essenciais: a dedução estrutura o real
sobre o qual se dá a experiência, em lugar de apenas descrever fora do tempo
os resultados dessa, à maneira de uma simples linguagem, e por
conseqüência a dedução joga um papel essencialmente explicativo que
ultrapassa a pura legalidade ou constatação generalizada” (p. 110).

Finalmente, voltando ao capítulo em que abordou a circularidade


das ciências, Piaget (1967b) fez uma rápida alusão entre as relações
dentro de um mesmo conjunto de ciências e sugeriu: “é interessante
saber como as leis físicas se “aplicam” à química, pois essa
“generalidade” relativa se transformou em uma “redução por
interdependência” (nosso segundo processo), enquanto que a aplicação
das matemáticas à física parece ser de uma outra natureza” (grifos do
autor; p. 1186).
Segundo o que tenho me proposto estudar desde a tese de meu
doutoramento (EICHLER, 2004), os conhecimentos em química ou os
entendimentos sobre o fenômeno químico podem trazer novas questões
à obra piagetiana, fazendo necessárias novas reelaborações. Foi por esse
viés que comecei a estudar a Filosofia da Química, inicialmente buscando
compreender o reducionismo fisicalista, ou a “redução por
interdependência”, na expressão piagetiana.

A centralidade da ciência Química

Entre nós, químicos, é corriqueiro considerar a Química uma


ciência central (ATKINS, 1999; GOOD, 2001). A Química não é útil
apenas para ela mesma, é também fundamental para outras disciplinas
científicas. Por exemplo, a Biologia tem sido revolucionada pela aplicação
dos princípios químicos. A Psicologia, também, tem sido profundamente
influenciada pela Química, podendo ainda ser mais radicalmente alterada
à medida que se revele a química do sistema nervoso. No entanto, a
importância e a centralidade que a Química tem em relação a outras
Marcelo Leandro Eichler | 129

disciplinas ou áreas de pesquisa não parecem ter muitos reflexos na


Filosofia.
A definição da centralidade da Química tem, é claro, o seu contexto
de propaganda, de proselitismo, de auto-afirmação. Mais do que um
chamamento para o reconhecimento de uma ciência que parece tão mal
recebida pela população, parece mesmo uma postulação que sugere uma
marcação de existência, de independência e de influência.
Olhe lá, a Química, ou melhor, nós químicos, somos centrais por que
somos independentes. Nós não estamos de reboque, nós não somos
apêndice, não somos um tipo diferente de Física. A matéria nos é própria.
A Matéria é nossa matéria.
É claro que essas definições podem expressar a jovialidade de uma
ciência que reflete sobre si há pouco tempo. A busca pela independência,
pela autonomia, sempre foi um motor juvenil. E frente à anciã Física, a
emancipação é moto adolescente da Química. O pensar sobre a Química é
novo. Um dos primeiros resultados desse pensar é a afirmação da
identidade na negação da redução.
Conforme Eric Scerri e Lee McIntyre (1997), a literatura filosófica
em qualquer aspecto da química é extremamente esparsa, especialmente
quando se considera que a Física, a Química e a Biologia são o triunvirato
dominante nas Ciências Naturais. Esses autores chegaram inclusive a
postular que o conjunto de questões que poderiam ser naturalmente
associados à “Filosofia da Química” teria sido radicalmente ignorado.
Nikolaos Psarros (1998) tentou elucidar o motivo do isolamento da
Filosofia da Química em relação à Filosofia da Ciência. Uma das razões
seria o fato da maioria dos químicos sustentar alguma forma de um
realismo científico ingênuo, que imputa aos objetos das teorias químicas
- como moléculas, átomos e estruturas - a condição de “partes
constituintes do mundo”.
De outra parte, embora dois dos mais influentes filósofos da ciência
- Emile Meyerson e Gaston Bachelard - fossem treinados em química,
percebe-se que nos círculos filosóficos a visão predominante é que a
130 | Filosofia da Química no Brasil

Química não provê o campo para o florescimento de típicas discussões


filosóficas. Portanto, a maioria dos filósofos da ciência acredita que a
Química poderia ser perfeitamente reduzida à Física. Assim se costuma
pensar que a Filosofia da Química poderia ser, também, perfeitamente
reduzida à Filosofia da Física (SCERRI; MCINTYRE, 1997).
A orientação do senso comum filosófico é sugerida por Scerri
(2000b) da seguinte forma: a Química não traria nenhum interesse
fundamental para a Filosofia porque não teria “grandes idéias”,
comparáveis à mecânica quântica e a relatividade, em física, ou a teoria
de Darwin, na biologia. Além disso, dada à relativa falta de interesse
pelos experimentos, como opostos à teoria, não é surpreendente que os
filósofos tenham tendido a ignorar essa ciência muito experimental, a
Química.

A crítica ao reducionismo fisicalista

A redução é um movimento de conhecimento, de argumentação e


de explicação. É a busca pela intimidade, pela diferença, pela afirmação,
pela essência. A redução da Química à Física indicaria que a Química é
uma comunidade de práticos e que as explicações menos superficiais,
menos primárias dos fenômenos químicos seriam mais bem encontradas
nos nexos da Física, em suas explicações mais aprofundadas, batígenas.
Nesse sentido, o tema da redução – da Química à Física – é
entendido um assunto fundador do campo do pensamento filosófico
associado à Química. Quando a Filosofia da Química começou a
experimentar um avivamento no começo da década de 1990, muitos dos
trabalhos publicados estavam preocupados com a interface entre a
Química e a Física, por exemplo, com a questão da redução da química à
mecânica quântica. Esse debate ganhou contornos mais amplos que
trouxeram à tona o debate acerca das diferenças entre as compreensões
epistemológicas e ontológicas associadas à Química e a Física. Tais
diferenças auxiliam a subscrever o debate acerca da redução, da
Marcelo Leandro Eichler | 131

emergência ou da superveniência entre as ciências (BEJARANO;


EICHLER, 2016).
Porém, a crítica à redução necessita a reflexão sobre a própria idéia
de redução. Conforme postula Valeria Mosini (1994), a redução de uma
dada disciplina para a Física, requeria que:

a) as leis da disciplina reduzida fossem derivadas desde as leis da Física;


b) os termos descritivos da disciplina reduzida estivessem conectados aos termos
da Física.

Essas condições mostram que a redução contém tanto um aspecto


epistemológico, quanto um ontológico. Assim, uma vez que o
reducionismo ontológico não acarretaria o necessário reducionismo
epistemológico, a autora entendeu que a importância da discussão do
reducionismo em química não deveria ser subestimada.
Nesse sentido, particularmente, o aparente sucesso da mecânica
quântica em prever parâmetros atômicos e moleculares de relevância
química - como os potenciais de ionização, as energias de ligação e os
momentos de dipolo - teria disseminado a visão que a Química seria
totalmente reduzida à Física (MOSINI, 1994).
No seio da prática científica, Mario Bunge (1982) ponderou que as
opiniões sobre a redutibilidade da Química à Física estariam dividas. Ele
exemplificou. Se a redução fosse perguntada a um químico experimental,
ou a um químico teórico clássico, ele provavelmente responderia
negativamente. Argumentando pela autonomia da química, ele pontuaria
que sua ciência tem conceitos peculiares, como ligação química e reação
química. Também enfatizaria suas demonstrações legais particulares,
como as equações das reações, além de suas próprias técnicas
experimentais, como a titulação e a cromatografia.
Em contrapartida, se a mesma questão fosse feita a um químico
teórico quântico, ele possivelmente responderia afirmativamente.
Defendendo a redução da química à física, seja atual ou possível, ele
poderia expor que a teoria das moléculas é uma aplicação da mecânica
132 | Filosofia da Química no Brasil

quântica para sistemas compostos de núcleo e elétrons (ou de átomos, se


adota outra abordagem). Através dessa compreensão, a teoria das
reações químicas seria uma aplicação da teoria em mecânica quântica
para a dispersão e para a colisão de átomos e de moléculas. Então,
quando perguntado o motivo da química quântica ter se desenvolvido tão
vagarosamente na última metade do século passado, ele provavelmente
responderia que isso é apenas uma questão de disponibilidade
computacional - tempo de processamento e custo da tecnologia - , pois
“em princípio”, matematicamente, o problema já teria sido solucionado.
Nessa última posição se alinha Mosini (1994), citando a
eletronegatividade como um exemplo da redução eliminativa de um
conceito químico. A autora pondera que, ainda hoje, as reações químicas
são preditas e explicadas baseadas em considerações da química clássica
apenas devido às dificuldades computacionais.
Ainda quando a Filosofia da Química era embrionária, Bunge (1982)
argumentou que há um pouco de verdade em cada uma das posições.
Isso porque, como ele defendeu em seu artigo, os químicos lidam com
coisas chamadas sistemas químicos, que os físicos normalmente não
estão ainda interessados (e é possível frisar o advérbio ‘ainda’, dada a
voracidade da Física para estender sua área de influência acadêmica). É
evidente que os químicos fazem isso com a ajuda da Física, mas a
Química é independente dessa ciência. Finalmente, a Física não é o
suficiente para a Química. Para solver qualquer problema químico é
necessário enriquecer a Física de conceitos e hipóteses que são peculiares
à Química.
Não é à toa, portanto, que a crítica aos reducionismos foi um
consenso entre os filósofos da química no período de surgimento dessa
área da Filosofia das Ciências (LABARCA, BEJARANO; EICHLER, 2013).
Embora se chegasse a supor alguma relação ontológica entre a Química e
a Física (MOSINI, 1994), costumava-se rejeitar a redução epistemológica
da Química à Física e suas conseqüências explicativas (SCERRI;
MCINTYRE, 1997).
Marcelo Leandro Eichler | 133

Desde esse período foi possível distinguir a “redução quantitativa”


da química e aquilo que se poderia chamar de “redução conceitual”. Por
redução conceitual se entende reduzir conceitos químicos tais como
composição, ligação e estrutura molecular. Porém, essa forma de redução
não é mesmo possível em princípio para a maioria dos conceitos por eles
mesmos. Os conceitos de composição, ligação e estrutura molecular não
podem ser expressos exceto em nível químico e não podem ser reduzidas
inclusive as mais atuais e fundamentais descrições da Física como, por
exemplo, a mecânica quântica.
Alguns desses conceitos, entre outros, foram analisadas por Jaap
van Brackel (1997) quando ele centrou foco sobre a ciência macroscópica
das substâncias e de suas transformações. Em sua análise avaliou que
noções macroscópicas como substância química, equilíbrio e temperatura
não podem ser reduzidos à microfísica, cuja definição inclui a física
estatística, atômica e de partículas, além da mecânica quântica. No
entanto, ressalva que seu argumento contra a redução da química e da
termodinâmica à microfísica não pretende enfraquecer a realidade de
quaisquer entidades microfísicas.
Conforme Giuseppe Del Re (1998), a física teórica tende a ignorar os
níveis intermediários e tenta representar todos os sistemas como
consistindo de partículas elementares, ou de quase-partículas. Ele trouxe
dois argumentos em relação ao nível da complexidade. No primeiro,
supõe que a coleção de todos os níveis situados abaixo do qual dada coisa
aparece como uma unidade é essencial para uma completa descrição de
sua realidade. No segundo, entende que, a cada nível diminuído, a
informação atual em dado objeto é parcialmente latente e indeterminada.
Portanto, ele argumentou contra o reducionismo ao compreender que a
realidade dos níveis superiores não pode ser completamente predita, a
menos que sejam conhecidos os processos pelos quais as suas partículas
elementares são postas juntas e a natureza das propriedades emergentes.
Na química, o autor contextualiza esses argumentos criticando o
134 | Filosofia da Química no Brasil

reducionismo para os modelos orbitais das propriedades dos materiais,


da estrutura das substâncias químicas e de suas transformações.
Porém, não se quer dizer que não haja compreensões reducionistas
em química ou que elas sejam impróprias ou excêntricas. De acordo com
Joachim Schummer (1997), os programas fisicalistas procuram reduzir o
comportamento do objeto e os fatores contextuais para as chamadas
interações fundamentais: força eletromagnética, gravitacional e nuclear
forte e fraca. Além do mais, esses programas, ou projetos de pesquisa,
buscam uma teoria da interação unificada. Assim, as intenções fisicalistas
seriam pragmaticamente desinteressantes para os químicos. Entretanto,
convenientemente alguns programas reducionistas particulares seriam
mais ou menos bem sucedidos entre os químicos, por exemplo:

1) a redução das propriedades ecológicas e biológicas para as propriedades


químicas dos elementos de sistemas ecológicos e biológicos;
2) a redução das propriedades químicas para propriedades eletromagnéticas de
certas entidades teóricas;
3) a redução das propriedades mecânicas, termodinâmicas e eletromagnéticas
em termos das propriedades eletromagnéticas de certas entidades teóricas.

Além disso, van Brackel, (1997) aponta que a questão ampla “pode a
química ser reduzida à física?” é muito mais um slogan que uma
expressão significativa. Não seriam muito claras as maneiras de delinear
e separar a Química da Física. Exemplos dessa dificuldade podem ser
encontrados em questões sobre a Físico-Química ou sobre os métodos de
separação mecânica e física em Química ou em Engenharia Química. As
chamadas “operações unitárias” em Engenharia Química
tradicionalmente são separadas em: operações mecânicas (como a
trituração do carvão), operações físicas (como a secagem de grânulos de
polímeros) e operações químicas (envolvendo reações químicas).
Entretanto, qualquer reação química é dependente do fenômeno de
transporte físico de massa, de calor e de momento.
Marcelo Leandro Eichler | 135

É a escala que faz o fenômeno

A escala em que o fenômeno ocorre deve ser levada em


consideração. Há muito tempo Bachelard (1938/1996) já advertia que o
apego à experiência comum, tomada em nossa ordem de grandeza,
entrava o pensamento científico contemporâneo. Ele compreendia que os
cientistas não deveriam impor em toda parte a legalidade da ordem de
grandeza costumeira, fazendo os mesmos juízos experimentais do
pequeno para o grande, e do grande para o pequeno. Ele indicava a
necessidade de se refazer as construções científicas quando se
abordassem novos domínios.
Del Re (2000) aprofundou e explicitou a questão ontológica
associada à noção de escala. Conforme ponderou, um mundo físico
consiste de objetos (sistemas físicos) mais ou menos independentes, mas
claramente distinguíveis uns dos outros. Ele citou exemplos concretos
desses objetos, postos em ordem decrescentes de escala: uma nuvem
intergaláctica; o planeta Marte; o Oceano Pacífico; o ecossistema da
Floresta Negra; uma coruja, o ser humano, o coração de um leão, uma
abelha; um ácaro microscópico; uma molécula de DNA; um fóton. Esses
objetos pertencem a diferentes campos de investigação e eles são
estudados por diferentes disciplinas. Em itálico estão exemplos que
pertencem ao nível da realidade de acesso direto. Nesse nível, o ser
humano pode ver, tocar, cheirar, ouvir e, algumas vezes, saborear, ou
fazer isso tudo em conjunto. Dessa maneira, a desunião ontológica
estaria relacionada às diferentes escalas em que se dão os fenômenos que
são estudados cientificamente.
Schummer (1999) sugere que, do ponto de vista da filosofia da
ciência, é difícil de entender do que a Química trata. Isso seria, em parte,
devido aos conceitos unilaterais dos filósofos da ciência que têm sido
propagados durante os séculos passados. Eles simplesmente
confundiram uma pequena área da Física com o todo da ciência ou, para
ser mais correto, com a profusão de disciplinas científicas. Ele pondera
136 | Filosofia da Química no Brasil

que compreender o mundo em termos de teorias universais é certamente


um objetivo nobre. Entretanto, esse não é o único objetivo para as
ciências e, talvez, para a maioria dos campos isso não é mesmo possível.
A Química, por exemplo, é entendida como uma ciência de
classificação dos materiais que trabalha com métodos experimentais,
possuindo algumas singularidades ontológicas, epistemológicas e
metodológicas quando comparada com outras ciências (SCHUMMER,
1997).
De acordo com Schummer (1998a), a Química é a mais geral das
Ciências dos Materiais, no sentido que ela provê o mais geral dos
sistemas conceituais. Diferente da Mineralogia, da Metalurgia ou da
Farmácia – bem como da profusão de subdisciplinas aplicadas da
química (como a Química de Polímeros, por exemplo) - os conceitos
fundamentais de química são aplicáveis a todos os objetos empíricos.
Nesse sentido, existem duas notáveis características das
propriedades materiais que ampliam um pouco os problemas
epistemológicos: a dependência do contexto e a mudança (SCHUMMER,
1998b). A mudança é de central importância especialmente em química,
porque determinar uma reação química particular significa identificar a
mudança da identidade química dos objetos.

A Química é ciência do contexto, da mudança e de seus modelos

A importância do contexto é algo intrínseco à química, pois o


comportamento das espécies químicas é sempre relativo à outra espécie
com que a interação é estabelecida. Bachelard (1940/1991) entendia que a
própria definição de uma substância é, em determinados aspectos,
função de uma vizinhança substancial. Dessa forma, em química,
nenhum resultado experimental deveria ser enunciado de um modo
absoluto, separando-o das diversas experiências que permitiram obtê-lo.
O contexto é, também, o aspecto central pelo qual as propriedades
materiais são distintas. Cada tipo sendo caracterizado por focar certo
Marcelo Leandro Eichler | 137

fator contextual: forças mecânicas (propriedades mecânicas, como


elasticidade e viscosidade), condições termodinâmicas (propriedades
termodinâmicas, como capacidade calorífica específica e ponto de fusão),
campos eletromagnéticos (propriedades eletromagnéticas, como
suscetibilidade magnética específica e coeficiente de absorção ótica),
outras substâncias químicas (propriedades química, como capacidade de
oxidação e solubilidade em um certo líquido), organismos biológicos
(propriedades biológica e bioquímica, como DL50 e efeito anestésico) e
sistemas ecológicos (propriedades ecológicas, como o potencial de
diminuição de ozônio e o fator do efeito estufa) (SCHUMMER, 1998a).
As mudanças podem ser classificadas em relação (1) ao objeto que
muda, (2) ao tipo ou dimensão da mudança e (3) a reversibilidade ou
reprodutibilidade da mudança (SCHUMMER, 1997). O conhecimento das
propriedades dos materiais é feito através de alíquotas, por indução
experimental. O químico explora as propriedades químicas (afinidade,
reatividade, etc.) de uma substância levando determinada quantidade
dela a reagir com outra (PSARROS, 2001). Secundariamente, o não
comportamento em certos contextos, isso é, a não-reatividade com certos
reagentes, por exemplo, são propriedades materiais também importantes
(SCHUMMER, 1998b).
A interpretação teórica e a elaboração de modelos explicativos
também sugerem outras reflexões em relação à química. Pierre Laszlo
(1995) sugeriu que a narração das transformações das substâncias é
dupla. Em um nível primário e fenomenológico haveria uma descrição
macroscópica, em que se abordam as súbitas ebulições ou erupções, as
precipitações ou o aparecimento de turvações numa solução límpida. Em
um segundo nível, mais abstrato, as modificações observadas pelos
nossos órgãos sensoriais, e pelos instrumentos que os ampliam, seriam
projetadas à escala submicroscópica. A interpretação dos sinais de uma
alteração submicroscópica passaria a ser metafórica. Os fenômenos
químicos seriam, então, explicados com base em modelos corpusculares
138 | Filosofia da Química no Brasil

(atômicos, iônicos e moleculares), envolvendo movimento e interação


entre as partículas.
Átomos e moléculas pertencem a uma escala de realidade cujos
objetos não podem ser percebidos pelos sentidos humanos. A escala
produz dificuldades de acesso, de percepção, de conhecimento e, por isso,
de reconhecimento. Dessa forma, como aponta Del Re (2000), nesse
nível abstrato, nessa escala submicroscópica, os objetos conhecidos ao
nível do acesso direto, vivencial, suportam analogias para objetos não
diretamente acessíveis aos nossos sentidos. Assim a analogia, com as
dificuldades de realismo que ela carrega, aparece como ferramenta
essencial do próprio pensamento científico.

Implicações para o ensino de química

Já que falei em todo o texto sobre a redução, não custa lembrar que
a Filosofia, como uma das principais expressões da Academia, da
Universidade, não gosta de ver reduzido o seu potencial e ser
reconhecida em sua manifestação utilitarista. É por isso interessante
notar que muitos filósofos da química não dão atenção ao ensino de
química, aos seus problemas e as possíveis soluções que eles poderiam
ajudar a apontar e desenvolver.
No Brasil, talvez, essa relação entre a Filosofia da Química e a
Educação Química seja mais sinergética, justamente por que entre nós a
Filosofia da Química seja um interesse de muitos educadores químicos.
Por isso, ao final deste texto, creio que é adequado trazer uma reflexão e
um convite à ação.
Pensando sobre um programa para a Filosofia da Química, Laszlo
(2001) sugere que devemos considerar os aspectos de comunicação na
produção e redação de nossos artigos e livros. Em sua opinião, os
professores de química seriam a audiência natural da Filosofia da
Química. Note-se que essa sua sugestão estende uma visão restrita e uma
atitude autodepreciativa e autorreferente de que a Filosofia da Química
Marcelo Leandro Eichler | 139

seria um “empreendimento menor” de interesse restrito somente a “uma


pequena fraternidade de filósofos da química”.
A indicação de Laszlo se deve ao fato de que os professores de
química necessitam explicar conceitos difíceis e intricados, então eles
necessitam de toda a ajuda que possa ser dada. Segundo esse autor, ao
fazê-los parte da audiência da Filosofia da Química, seria necessário
seguir um imperativo: tornar os textos legíveis, ou seja, evitar neles o uso
excessivo de jargão técnico ou filosófico e fazer um balanço cuidadoso
entre narrativa e didática.
Que essa sugestão floresça em nós e que possamos escrever mais e
melhores textos para professores de química sobre as formas de pensar
com a Química e, inclusive, de pensar a própria Química!

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6

Minha pequena história com


a Filosofia da Química no Brasil

Nelson Rui Ribas Bejarano 1

Apesar de ser professor do corpo permanente do PPGEFHC


UFBA/UEFS – Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e
História das Ciências da Universidade Federal da Bahia e da Universidade
Estadual de Feira de Santana por 15 anos (completados em 2017), sentia
que minha “formação epistemológica” estava precisando de um plus,
especialmente quando orientava os trabalhos de dissertações e teses do
programa e observava a dificuldade de articular, de forma satisfatória, o
ensino de ciências com a História e a Filosofia da Ciência. Da mesma
forma, sentia que precisava estudar o estatuto epistemológico de minha
própria Ciência de referência: a Química. Tudo isso também para ser um
professor melhor, um formador de professores de química melhor e mais
bem preparado também para atuar na graduação na área de formação
inicial de professores de química. Já o PPGEFHC foi o primeiro programa
de pós-graduação na área de Ensino de Ciências no Brasil a articular esse
ensino com a História e a Filosofia acolhendo a direção proposta por
Mathews (1995). Interessante que nesse artigo de Mathews, publicado no
Brasil pelo saudoso Caderno Catarinense de Ensino de Física, era uma
tradução de um artigo original (e ampliado) publicado no periódico
Studies in Philosophy and Education, em 1990 (MATTHEWS, 1990). Se
pudéssemos resumir em poucas palavras as ideias de Michael Matthews

1
Professor no programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências da UFBA/UEFS.
144 | Filosofia da Química no Brasil

diríamos que sua defesa pela contextualização do ensino de ciências


(incluindo aí os ensinos de física, de biologia e de química,
principalmente), partia do pressuposto de que se podia aprender mais
conteúdos de Ciência quando se abordava esses conteúdos informados
pela História e pela Filosofia da Ciência. Mathews se juntava a um grande
esforço pela alfabetização científica dos cidadãos em geral (além dos
escolares) a partir do grande projeto 2061. Este projeto, como é de
conhecimento de todos, alude a próxima volta do cometa Halley em
órbita mais próxima da Terra. Em sua última passagem, muitos projetos
se apoiaram nesse evento celeste para incrementar esforços para a
melhoria do ensino de ciências, entre os quais o mais famoso é o Projeto
2061, da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência). Os
esforços dessa linha representada por Mathews, conhecida
internacionalmente como HPS – História e Filosofia da Ciências em
inglês – que é representado pelo International History, Philosophy, and
Science Teaching Group, entidade ligada a promoção de pesquisas de
ensino de ciências apoiadas pela História, Filosofia e Sociologia da
Ciência com o claro propósito de melhorar o ensino e o currículo de
ciências. A entidade é também responsável pela publicação do periódico
Sciencie & Education (informações retiradas do próprio site da entidade -
http://ihpst.net).

Aproximação com perspectivas pluralistas

No ano acadêmico de 2008, tive a oportunidade de passar um ano


inteiro estudando filosofia. Num pós-doutorado, que inicialmente se
previa ser para a Espanha, na última hora se transformou num pós-
doutorado no Brasil, junto ao grupo do professor Osvaldo Frota Pessoa Jr
na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Osvaldo é
professor e pesquisador do Departamento de Filosofia da Faculdade e
também foi um dos fundadores do PPGEFHC, quando era professor do
Instituto de Física da UFBA. Escrevi um projeto que apontava para a
Nelson Rui Ribas Bejarano | 145

discussão do chamado “programa de redução nas ciências” que buscava


naquele momento entender o estado da arte da discussão acerca da
redução nos níveis, ontológico, epistemológico e metodológico da
Química a Mecânica Quântica. Osvaldo montou um grupo de
pesquisadores que estavam fazendo pós-doutorado e alguns terminando
seu doutoramento em filosofia da ciência e que gostariam de discutir
temas como o do reducionismo, tiquismo, determinismo, holismo,
emergentismo e outros “ismos” filosóficos: o grupo Redux.
De minha parte, iniciei fazendo uma revisão bibliográfica sobre o
tema “reducionismo” e encontrei prontamente o trabalho seminal de
Ernst Nagel (1961) The Logic of Reduction in the Sciences. Em resumo, se
a teoria “x” é reduzida pela teoria “y”, implica que “x” não é nada mais
que “y”. Há outras implicações também, como o fato de que “y” é
anterior (no sentido de ser mais importante) que “x”. Também, se essa
relação for verdadeira, então “x” depende totalmente e é constituída por
“y” (definição extraída e traduzida livremente da introdução da Stanford
Encyclopedia of Philosophy no verbete Scientific Reduction). Troquemos
“x” pela ciência Química e “y” pela Mecânica Quântica e temos o
problema que enfrentei em meu primeiro pós-doutoramento. Já nos
trabalhos de Nagel, entram a ideia de assimilação – “um conjunto
distinto de traços de uma teoria é assimilada por uma outra teoria que é
manifestamente diferente (NAGEL, 1961). Vale a pena mencionar
também o clássico tratamento formal da redução de teorias apresentado
por Nagel (1961, pp. 336-97). Para ele, a redução é concebida como uma
relação lógica entre teorias: a teoria reduzida é uma consequência lógica
da teoria redutora, desde que se apresentem definições que liguem os
termos da teoria reduzida aos da teoria redutora. Um exemplo
tradicional é o caso de redução interteórica entre a termodinâmica e a
mecânica estatística. Assim, o termo “temperatura” da termodinâmica
poderia ser reduzido para termos da mecânica estatística, como o valor
médio da energia cinética de um gás.
146 | Filosofia da Química no Brasil

O projeto poderia se abrir para vários pontos, mas


fundamentalmente, estava interessado em estudar o estado do
conhecimento acerca do tema da “redução entre teorias” que iria
possibilitar entender se de fato há uma “relação hierárquica” entre a
Química e a Mecânica Quântica. Para efeito de formação de professores
de química esse conhecimento seria essencial, ou seja, se a Química não
fosse uma ciência autônoma, então muitas consequências para o ensino
teriam que ser levadas em conta.
Estudamos inicialmente um filósofo – Hilary Putnam (1916-2016) –
que em seus trabalhos mais atuais (PUTNAM, 1981, por exemplo) tinha
abandonado o chamado realismo metafísico e apontava para uma
perspectiva mais pluralista que denominou de “realismo internalista”. As
posições de Putnam que apoiariam argumentos contra a ideia da redução
da Química a Mecânica Quântica, podem ser resumidas assim: como não
temos o “olho de Deus”, só podemos falar daquilo que descrevemos. Ou
seja, Putnam se coloca como um antirrealista: não concorda com a tese
central do realismo, de que há pelo menos uma parte da realidade que é
independente de nossa mente. De maneira que o homem da ciência vai
construindo o conhecimento apoiado nos homens da ciência do passado,
são os próprios homens que constroem sua ciência, através de um
acúmulo, que não nega as contribuições de homens da ciência de tempos
anteriores.
Se pensarmos nas teorias como “cópias da realidade” – o que seria
um realismo forte -, teríamos que pensar na existência de um mundo
independente de nossa mente, o que Putnam rejeita. De maneira que
para ele não é relevante saber se parte do mundo existe independente de
nossa mente ou de nossas teorias. Putnam aceita que existem várias
teorias ou descrições do mundo “verdadeiras” (segundo seu critério
pragmático), o que equivale a um pluralismo ontológico. Todas as
ontologias minimamente plausíveis têm o mesmo status metafísico
porque todas são igualmente constituídas por descrições “objetivas”.
Assim, duas teorias distintas (T1 e T2, por exemplo) poderiam explicar um
Nelson Rui Ribas Bejarano | 147

conjunto de fenômenos naturais partindo de corpos teóricos diferentes,


num mesmo contexto histórico, porém de forma autônoma, e igualmente
corretas, sem que devamos considerar T1 ou T2 como uma teoria de
hierarquia mais ou menos elevada. De maneira que o chamado
pluralismo epistemológico aceita que a Química explica um conjunto de
fenômenos de uma certa maneira e que a Mecânica Quântica explica os
mesmos fenômenos de outra maneira e não há incompatibilidade nisso.
Putnam rejeita, assim, a concepção de verdade como correspondência
entre teoria e realidade externa. Ele propõe que a verdade deve ser
entendida como “aceitabilidade racional”, um elemento provindo do
pragmatismo, que envolve além de critérios puramente racionais
também critérios do campo da moral, da ideologia e da ética (ver
NIINILUOTO, 1999, cap. 7). As posições de Putnam foram importantes
para nossa defesa da autonomia da Química num primeiro momento.
Naquele instante nos apoiamos também nos argumentos de Olímpia e
Labarca (2005) que também tinham em Putnam seu alicerce filosófico, o
que demonstrava uma adesão a ideias kantianas, na medida em que o
ponto fundamental é a tese de que os objetos não existem
independentemente de esquemas conceituais, posição essa que é próxima
à visão de Kant.
Concordamos em linhas gerais com essas ideias, especialmente
quanto à autonomia ontológica da Química. Acreditávamos, porém, que
era também possível argumentar que esta autonomia fosse consistente
também com uma postura mais realista externalista. Ou seja, não é
preciso adotar a filosofia de Putnam, nem tese central de Kant, para
chegar à mesma conclusão de Lombardi & Labarca com relação à
autonomia da Química, como será argumentado a seguir.
Com o desenrolar do estudo pudemos avançar um pouco mais e
propor inclusive que algumas formas mais brandas de realismos seriam
compatíveis com a ideia de pluralidade epistemológica, e até ontológica,
com a autonomia da Química frente a Mecânica Quântica. Sair dos
argumentos de Putnam e dos filósofos argentinos (Olímpia Lombardi e
148 | Filosofia da Química no Brasil

Martín Labarca), representou um avanço que precisa ainda ser retomado


com mais cuidado. De toda forma, significou um passo importante em
minha trajetória dentro da Filosofia da Química. Vou tentar resumi-lo e
explicar algumas questões que esse estudo trouxe em relação a defesa da
autonomia da Química frente a Mecânica Quântica. O trabalho que
apresentamos na VII Reunião da Associação de Filosofia e História da
Ciência do Cone Sul (AFHIC), tentava caminhar por formas “mais
brandas” de realismo – o Realismo de Entidades e o Realismo Estrutural
– para verificar se encontramos argumentos que sustentam a autonomia
da Química frente a outras ciências da natureza. Partimos do pressuposto
que há uma falha na tentativa de levar a cabo uma redução
epistemológica de forma cabal (demonstrada por Lombardi & Labarca,
2005, p. 133, por exemplo). O argumento reducionista aponta para uma
reação química como sendo um conjunto enorme de moléculas
interagindo entre si. De maneira que se a Mecânica Quântica pode
entender o comportamento de cada átomo dessas moléculas, a soma
desse “entendimento” estendido ao conjunto de moléculas da reação
poderia levar ao uma redução do comportamento macroscópico desse
sistema para o sistema sub-microscópico. Para os reducionistas, então,
uma reação química não seria nada mais que um grande sistema de
átomos interagindo segundo as leis da física quântica. Este seria um
exemplo de redução do tipo “ontológica” (BEJARANO, 2012).
Mesmo um dos maiores defensores da redução da Química, como
de parte da própria Física, o físico Paul Dirac, já dizia em 1929: “As leis
físicas básicas necessárias para a teoria matemática de uma larga parte
da física e da totalidade da Química são completamente conhecidas [pela
mecânica quântica], e a dificuldade é apenas que a aplicação exata dessas
leis levam a equações complicadas demais para de serem solúveis”.
Muitos reducionistas já admitem que para uma reação química
envolvendo macromoléculas como as proteínas, torna-se impossível uma
reconstrução do tipo ab initio para o comportamento macroscópico
dessas reações. Se essa redução a partir da explicação química fosse
Nelson Rui Ribas Bejarano | 149

possível, estaríamos diante de uma redução do tipo “epistemológica”.


Essa falha da redução epistemológica, vista através das palavras de Dirac,
mostra que os reducionistas avisam que se resolverem os problemas das
“equações complicadas demais”, reduzirão no futuro a explicação para os
sistemas das reações químicas, mesmo as mais complexas envolvendo as
biomoléculas. A mesma impossibilidade de redução epistemológica ab
initio ocorre com a tabela periódica. Utilizando-se de um programa
computacional conhecido como Hartree-Fock os físicos quânticos
explicam o preenchimento eletrônico de vários elementos da tabela
periódica, porém esbarram em muitos outros. Nesses casos, tendo que
recorrer a dados experimentais químicos. Falamos aqui, especialmente,
dos elementos 19, 20 e 21. Nesses casos, há uma inversão da ordem de
preenchimento a partir da ideia de preenchimento dos orbitais de menor
energia para em seguida passar o preenchimento dos orbitais de maior
energia. No caso do elemento 19 (Potássio), se esperava 3p6 3d1, porém
ocorre a configuração 3p64s1. Essa violação da ordem de preenchimento
obriga o cálculo do método Hartree-Fock a fazer ajustes pos hoc, ou seja,
a partir de dados experimentais químicos (SCERRI, 2004, p. 109).
Esses são alguns exemplos da falha da redução epistemológica, há
inúmeros outros como: ligação química, quiralidade, estrutura molecular
e orbital, entre outros, que não são tratáveis de forma rigorosa pela
mecânica quântica (OLÍMPIA; LABARCA, 2005). Em termos da redução
ontológica, a ontologia da Química não depende de uma ontologia
fundamental, mas somente da estrutura conceitual que a constitui. O fato
de que o mundo químico não se reduz ao mundo físico não significa que
ambas as ontologias são completamente isoladas uma da outra; ao
contrário, elas são interconectadas por conexões nomológicas não-
reducionistas, que permitem a existência de uma relação objetiva entre
os mundos, mas preserva a autonomia ontológica de cada uma das
ciências (PUTNAM, 1981, p. 138).
150 | Filosofia da Química no Brasil

O Pluralismo e o Realismo de Entidades

A partir da década de 1950, com o declínio do positivismo lógico,


começam a se destacar diversas concepções realistas a respeito das
teorias científicas, como as visões de Popper, Feigl, Sellars, Smart, Bunge,
Maxwell e Putnam (antes de 1976), entre outros. Uma forma
particularmente forte de realismo na ciência é chamado por Niiniluoto
(1999, p.10) de realismo científico crítico, que englobaria as concepções
de Popper, Sellars, Bunge, Boyd, Nowak e do próprio Niiniluoto. Este
último destaca diferentes teses relativas ao realismo, sendo que o
conjunto dessas teses constituiria o realismo científico crítico.
R1) Realismo ontológico: Pelo menos parte da realidade é
ontologicamente independente de mentes humanas. R2) Realismo
semântico: A verdade é uma relação semântica entre linguagem e
realidade, no sentido de uma teoria da verdade por correspondência. O
melhor indicador de verdade é dado pelos métodos sistemáticos da
ciência. R3) Realismo teórico: Os conceitos de verdade e falsidade são
aplicáveis a todos os produtos linguísticos da investigação científica,
incluindo relatos de observação, leis e teorias. Afirmações sobre a
existência de entidades teóricas possuem valor de verdade. R4) Realismo
axiológico: A verdade é uma das metas essenciais da ciência. R5)
Realismo crítico: Não é fácil ter acesso à verdade, e mesmo nossas
melhores teorias podem não ser verdadeiras. Mesmo assim, é possível se
aproximar da verdade, e fazer avaliações racionais sobre tal processo
cognitivo. R6) Inferência para a melhor explicação: A melhor explicação
para o sucesso prático da ciência é a suposição de que teorias científicas
são de fato aproximadamente verdadeiras ou suficientemente próximas à
verdade.
Nesta concepção realista, não parece haver lugar para um
pluralismo teórico. Na comparação entre a concepção da Química e da
Física Quântica a respeito de uma reação química, haveria uma teoria
que se aproximaria melhor da verdade, então não haveria como
Nelson Rui Ribas Bejarano | 151

sustentar que as ontologias de ambas as teorias são equivalentes. Uma


seria mais fundamental, e a outra seria em princípio redutível a esta.
No entanto, há algumas propostas na literatura que buscam uma
forma mais branda de realismo, que aceitariam por exemplo as teses R1,
R2 e R3, mas não as teses R5 e R6. Essas formas brandas incluiriam o
realismo de entidades e o realismo estrutural.
O realismo de entidades defende que podemos defender a realidade
de entidades que correspondem a termos teóricos, como elétrons,
mesmo que não tenhamos certeza sobre suas propriedades reais (se é
onda, ou partícula, ou os dois, etc.). Esta visão é defendida por Ian
Hacking, que salienta o papel da manipulação ou intervenção prática
(como num microscópio) na determinação da existência de uma
entidade. Esta forma de realismo engloba também a crítica que Nancy
Cartwright faz à veracidade das leis, que seriam meras aproximações. Ela
aceita a existência de entidades teóricas que apareçam em explicações
causais, mas declara que as leis fundamentais da física não são
verdadeiras (NIINILUOTO, 1999, p. 139). Outros autores classificados
como realistas de entidade são Giere e Harré.
No caso de uma reação química, podemos afirmar com segurança
que ela é real, mas as descrições quânticas e químicas estão em pé de
igualdade, pois ambas envolvem pré-suposições teóricas que são
passíveis de revisão. O realista de entidades aceita a existência de
entidades cuja realidade é bem confirmada pela ciência, mas não se
compromete com a veracidade das leis teóricas que descrevem essas
entidades. Ou seja, ele não se compromete com a veracidade da equação
de Schrödinger da mecânica quântica, e se no futuro ela for modificada
(por exemplo, por pequenos termos não-lineares), isso não trará
embaraços para o realista de entidades.
Em suma, por não se comprometer com a veracidade das teorias, o
realismo de entidades sustenta bem a tese da pluralidade teórica, sem
traçar uma hierarquia reducionista entre a teoria química e a quântica
(BEJARANO, 2012).
152 | Filosofia da Química no Brasil

O Pluralismo e o Realismo Estrutural

O realismo estrutural, ao contrário do realismo de entidades,


defende que a ciência só tem acesso às estruturas ou relações da
realidade, e não à coisa em si. Desta perspectiva, as leis científicas
tornam-se os únicos elementos das teorias que podem ser interpretados
realistamente (NIINILUOTO, 1999, p. 133). Esta visão é defendida
modernamente por John Worrall, mas há vários precursores
(influenciados por Kant) como Poincaré, Russell, Schlick, e também o
filósofo escocês William Hamilton, que tanto influenciou a epistemologia
baseada em analogias de James Clerk Maxwell. Além desta variante
“epistemológica”, há também um realismo estrutural ontológico, como
em James Ladyman, que se baseia na tese de que estruturas matemáticas
conjuntistas existem na realidade, e que a ciência tem acesso a essas
estruturas.
O realismo estrutural afirma que as relações ou estruturas da
natureza preexistem ao conhecimento humano, e podem ser descobertas
pela ciência. O realismo estrutural pode atribuir uma realidade
independente também para as coisas em si, mas considera que a
natureza desta coisa em si é inacessível para o homem. O que é acessível
são as relações matemáticas, as formas geométricas, etc. Por exemplo,
não sabemos se o elétron existe, ou qual é sua natureza, mas sabemos
que há experimentos que exibem regularidades (por exemplo, padrões de
interferência), e que essas são explicadas por leis. Para o realista
estrutural, essas leis são objetivas e são uma propriedade da realidade
física.
Será o pluralismo teórico consistente com o realismo estrutural? À
primeira vista, não. Por exemplo, a teoria da relatividade descobriu um
novo conjunto de leis que se aplicam não só para objetos cotidianos ou
planetas, como fazia a mecânica newtoniana, mas também para objetos
se movendo a velocidades próximas às da luz. Para o realista estrutural, a
Nelson Rui Ribas Bejarano | 153

descrição relativista é superior à newtoniana, e as leis da física clássica


podem ser obtidas como aproximações, a baixas velocidades, das leis da
teoria da relatividade.
No entanto, o caso da Química, e sua suposta redutibilidade à
Mecânica Quântica, apresenta um aspecto adicional. Trata-se das
flutuações térmicas provindas do ambiente em torno da molécula, que
faz com que muitas propriedades quânticas sejam apagadas. Por
exemplo, quanticamente uma molécula de sacarose pode se encontrar
em uma superposição entre seus estados dextrogiro e levogiro, mas os
efeitos do ambiente provocam um colapso desta estrutura superposta a
uma única estrutura. Anderson (1972) chama esta transição de “quebra
de simetria”. Ao se levarem em conta esses efeitos ambientais, as leis e
estruturas derivadas da teoria quântica acabem sendo isomórficas às
estruturas obtidas da Química, e estas são consideradas reais.
Tomemos outro exemplo, considerando a descrição fornecida pela
Química para uma reação envolvendo proteínas. O químico falará de
ligação covalente, equilíbrio de reação, etc., e obterá as leis de reação
adequadas ao sistema macroscópico sendo estudado. Consideremos
agora a descrição da teoria quântica. As moléculas envolvidas podem ser
tratadas através da equação de Schrödinger, mas a complexidade do
sistema só permite soluções muito aproximadas. Há, porém, um ponto
adicional. Para se chegar a um tratamento macroscópico, deve-se
considerar o processo de “descoerência” que embaralha as correlações
quânticas e transforma o sistema quântico em um sistema clássico
(PRIMAS, 1990). Ao se aplicar o formalismo para descrever tal processo,
o resultado final obtido, no caso de uma reação química, será idêntico à
lei macroscópica prevista pela química. Ou seja, as leis macroscópicas
previstas pela cinética química clássica e pela química quântica serão
idênticas. Para o realista estrutural, ambas as descrições são
equivalentes, e pode-se falar em um pluralismo ontológico na descrição
de reações macroscópicas.
154 | Filosofia da Química no Brasil

Naturalmente, a química clássica não consegue descrever os


detalhes da interação entre moléculas individuais, e neste domínio a
mecânica quântica é superior. Mas há uma diferença entre este caso e o
exemplo da teoria da relatividade. No exemplo precedente, a mecânica
relativística prevê uma correção minúscula para a mecânica newtoniana,
mesmo para objetos com velocidades baixas. O mesmo não acontece no
caso quântico, pois as correções quânticas são apagadas na passagem
para o nível macroscópico, pelo processo de descoerência.
Um realista científico crítico, como Niiniluoto, poderia ainda
argumentar que a descrição em termos de moléculas é ontologicamente
mais fundamental do que a descrição cinética química. Mas o realista
estrutural só pode julgar a partir das equações que descrevem o
fenômeno, e neste caso as equações previstas são idênticas. Havendo
subdeterminação das leis pelas duas teorias, ambas são ontologicamente
equivalentes, para o realista estrutural (BEJARANO, 2012).
Há também a necessidade de algumas considerações sobre a
chamada redução “metodológica”. Para tanto, vamos recorrer a um
breve trecho do livro “História da Química” de Bernadette Bensaud-
Vincent e Isabelle Stengers (1992). Estamos aqui preocupados em falar
“como” os químicos produzem conhecimento químico, ou seja,
desejamos especular sobre uma possível metodologia do “fazer químico”.
Uma tarefa impossível sem que se leve em consideração duas questões
em que o químico deve estar atento todo o tempo enquanto está imerso
em sua práxis química: as decisões que precisa tomar no âmbito da
experimentação em curso e sobre o papel que essa experimentação tem
com as teorias químicas daquele contexto reacional. Enfim, a chamada
relação entre a teoria e a empiria. Para essas autoras, há uma
singularidade nessa relação. Diferentemente dos físicos, ou de outras
ciências da natureza, a Química joga um jogo em que suas teorias pairam
sobre a experimentação, não reprime, restringe ou cerceia o
desenvolvimento da experimentação. Vamos à citação das autoras, que
fala por si própria:
Nelson Rui Ribas Bejarano | 155

A característica principal do jogo a que o químico se entrega é que ele deve


operar na matéria por delegação, por moléculas interpostas, que trabalham
num balão. Deve controlar a sua ação, dirigi-la sobre um local específico da
estrutura molecular: romper uma ligação aqui, formar outra acolá, o que
exige experimentação e astúcia, pois cada vez que intervém um ator, um
reagente, tem tendência a operar indiscriminadamente por todo o lado. Por
exemplo, se um reagente tiver de juntar um átomo de cloro ou de bromo, ou
quebrar uma dupla ligação por oxidação, fá-lo em todos os locais em que esta
operação for possível. É, pois, necessário delinear métodos para limitar sua
ação, traçar um caminho e conduzir a reação em função dos reagentes
disponíveis. É também preciso estabelecer a ordem de aparição dos diversos
reagentes-atores, gerir etapas, criar intermediários com grupos protetores,
espécie de alicerces construídos para manter intactas certas partes da
estrutura enquanto se trabalha sobre as outras. É toda uma arte, em que se
conjugam delegação – deixar-se agir um reagente – e manipulação –
consegue-se que ele atue onde se quer e como se quer. Mais ainda, para
controlar o que se passa na síntese é preciso jogar com as condições de
reação: modificar a temperatura, o pH, o tempo da mistura.... Também aqui
se procede passo por passo. Sem esquecer, em cada etapa, testar os produtos
intermediários obtidos para assegurar a sua composição: dissolver,
cristalizar, traçar espectros, em resumo, mobilizar toda a artilharia analítica
para assegurar o controle de cada fase. Ou seja, cada etapa intermediária
deve ser cuidadosamente preparada, premeditada, antes da realização do
conjunto de todo o processo. O fato de hoje em dia estas estratégias
passarem por simulação em computador, não altera essencialmente a
natureza do jogo. O químico avança os seus peões no tabuleiro e procura
obter o resultado previsto: xeque-mate. (BENSAUD-VINCENT; STENGERS,
1992, p. 223).

Primorosa essa descrição dessas autoras. A experimentação química


possui sua própria narrativa criada pelo químico que manipula essa
porção da matéria. Tem alguma coisa de “astúcia”, deve ele procurar ter
o controle dos fenômenos que estão ocorrendo, que de outra forma
podem fugir do controle e ir para outras rotas. A teoria está presente ao
informar que o ataque a uma dupla ligação deve ocorrer por uma reação
de oxidação, por exemplo, para que então se possa adicionar uma
partícula como o bromo ou cloro, mas essa teoria não pode impor um
156 | Filosofia da Química no Brasil

caminho, ela apenas indica o que pode acontecer. Existe uma tensão
entre a teoria e a manipulação da matéria que deve ser controlada.
Diferentemente de outras ciências da natureza, como a Física, por
exemplo, que tem outra relação com a teoria, mais rígida talvez do que
faz a Química. Assim, pensamos que também do ponto de vista
“metodológico” não há como deixar de reivindicar a autonomia da
Química frente as outras ciências da natureza. Ninguém é capaz de fazer
o trabalho do químico, a não ser ele próprio!

Outros trabalhos dentro da Filosofia da Química

No período entre os meios dos semestres 2015 e 2016, fui aceito pelo
professor Agustín Adúriz-Bravo, líder do grupo Grupo de Epistemología,
Historia y Didáctica de las Ciencias Naturales que faz parte do CeFIEC - –
Instituto de Investigaciones em Didáctica de las Ciencias Naturales y la
Matemática - que estão institucionalmente ligados a Universidade de
Buenos Aires, para um segundo estágio pós-doutoral. O desafio, nesse
caso, era avançar em relação ao primeiro pós-doutorado. Para nós já
estava bem estabelecida a importância da filosofia para o ensino de
ciências (e do ensino de química em particular). Restava uma questão de
difícil resposta, mas que teria que ser enfrentada: Como escolher os
conteúdos da filosofia da ciência que seriam relevantes para a formação
do professor de química.
Inicialmente, já tínhamos consciência de que o forte do grupo de
Agustín era a discussão acerca da HPS. Tendo me aproximado desse
grupo, inclusive participando de uma de sua conferência internacional, o
13o. International Conference Biennial of History, Philosophy and
Sociology and Science Teaching, realizada na cidade do Rio de Janeiro em
2015. Há filósofos da química no grupo de HPS, ali estão, por exemplo,
Rosária Justi – pesquisadora brasileira que trabalha com modelos - e
principalmente Sibel Erduran entre outros e outras pesquisadores e
pesquisadoras importantes. Ocorre que o foco – não o trabalho dessas
Nelson Rui Ribas Bejarano | 157

duas filósofas anteriormente citadas - das discussões da HPS está ligado a


questões de filosofia da ciência em geral, não estando ligado a filosofia de
uma ciência particular. De forma que as discussões se remetem, por
exemplo, a “características da ciência”, sem especificar a qual ciência se
referem essas características. Sim, há características das ciências da
natureza que são compartilhadas, como vemos na lista de questões – ou
cânones - que propõe Matthews (2011), a partir de uma crítica que faz a
uma outra lista proposta por Lederman e outros(2002):
Em que sentido é o conhecimento científico é provisório? E em que
sentido é duradouro? Em que sentido o conhecimento científico é
empiricamente baseado (baseado ou derivado de observações do mundo
natural)? E em que sentido ele não é frequentemente empiricamente
baseado? Qual a extensão da subjetividade dos cientistas e do
conhecimento científico? E qual a extensão de quanto esse conhecimento
pode ser objetivo? Em que sentido o conhecimento científico é produto
de inferências humanas, imaginação e criatividade? E em que sentido
isso não é o caso? Em que sentido o conhecimento científico é social e
culturalmente influenciado? E em que sentido ele transcende a sociedade
e a cultura? Em que sentido o conhecimento científico é inventado? E em
que sentido ele é descoberto? Quanto a noção de método científico
distorce o que a ciência atualmente faz? Quanto é um retrato fiel de
como a ciência funciona? Em que sentido leis e teorias são tipos
diferentes de conhecimento? E em que sentido elas estão relacionadas?
Como observações e inferências são diferentes? E em que sentido elas
não são diferenciáveis? Como a ciência privada difere da ciência pública?
Em que sentido elas são similares? (MATHEWS, 2011).
Tomemos apenas uma dessas duplas questões, “Qual a extensão da
subjetividade dos cientistas e do conhecimento científico? E qual a
extensão de quanto esse conhecimento pode ser objetivo?”. Ora, já
tivemos a oportunidade de discutir através da citação de um trecho do
livro de Bensaud-Vincent e Stengers (1992), que há tomadas de decisões
que os químicos devem fazer durante todo o tempo em que estão fazendo
158 | Filosofia da Química no Brasil

experimentação e produzindo conhecimento químico genuíno. Podemos


chamar esse comportamento de subjetivo? O fato de nosso químico
hipotético, trabalhar de uma forma em que a teoria fica menos diretiva
na ação, pode nos levar a pensar que o conhecimento químico é menos
objetivo? Ou seja, o conjunto de discussões que são travadas no âmbito
da HPS, precisam ser examinadas a luz de uma “natureza da ciência
química” e não de uma NOS – Natureza da Ciência –, vista de uma
maneira geral como faz a comunidade HPS. A importância do trabalho
do International History, Philosophy, and Science Teaching Group é
extraordinário. Mas para falar de características das ciências temos que
falar das características de uma ciência X, determinada. Propor
conteúdos de filosofia para a formação de professores de química,
implica em falar das singularidades da Química, através da filosofia da
própria Química.
Temos que admitir que essa discussão ainda precisa ser feita com
mais cuidado. Enquanto há uma comunidade específica de filósofos da
química – ISPC – há uma comunidade internacional de HPS, onde há
filósofos da química, mas que de certa maneira possuem uma agenda de
discussões que são diferentes.
Nossa opção é pela agenda de discussão que está sendo trazida aos
eventos promovidos pela ISPC e pelos dois periódicos mais importantes
da área de Filosofia da Química: as revistas Hyle - International Journal
for Philosophy of Chemistry e a Foundations of Chemistry. Pelo simples
motivo de que há muitas singularidades na ciência Química que escapa
das “características gerais” da Ciência (também vista de forma mais
geral). Apenas para citar algumas dessas singularidades, diríamos que: A
relação da teoria com o experimento; A explicação química; O fato da
Química ser uma ciência que se apoia sobremaneira em modelos,
diagramas e representações pictóricas; O papel crucial que a história da
Química joga na definição do que é essa própria ciência; A tabela
periódica é para a Química nosso “santo Graal”, assim como a teoria da
evolução o é para a Biologia e a Mecânica Quântica o é para a Física?
Nelson Rui Ribas Bejarano | 159

Podemos considerá-la em vias de ser totalmente axiomatizada? Ou, nada


disso, pelo contrário? Embora já tenhamos elencado o tópico “modelos”,
um destaque a mais para o “problema dos orbitais” atômicos e
moleculares. Nos referimos a “problema dos orbitais” pois temos que
lembrar – a todo momento – que orbitais “não existem”, e isso todo
químico sabe, mas para produzir conhecimento químico genuíno, falar
de modelos como entidades “reais”, nos é caro. Como contornar esse
problema? Sim, logicamente, o problema da “redução” do ponto de vista
do realismo (mais forte, mais brandos...), do ponto de vista do
antirrealismo; O problema da ética na Química, a questão dos valores;
Uma pincelada de sociologia da química para estudarmos o que pensa a
sociedade sobre a ciência Química; O papel da matemática na ciência
Química...
Tudo isso é muito, mas sei que será muito mais bem tratado nesse
livro por Marcos Pinto, a partir de trabalho como (2011, por exemplo)
que tem uma discussão muito mais acurada sobre os “campos
estruturantes” da Filosofia da Química. Assim, consideramos que
estamos no caminho para apontar os conteúdos necessários e urgentes
que precisam ser discutidos no âmbito da formação de professores de
química.
Em um trabalho que apresentamos no VIII Encontro da AFHIC, em
Santiago do Chile, (BEJARANO; EICHLER, 2012), revisamos todos os
artigos publicados pela revista Foundations of Chemistry e também pela
Hyle. Encontramos, por exemplo, as palavras-chave mais utilizadas pela
revista Foundations, até então: Tabela Periódica, Redução, Mecânica
Quântica, Emergência, Mendeleyev, Química Quântica, Ligação Química,
Elemento e Explicação. Não por acaso – para começar - um bom
programa de estudo de Filosofia da Química para professores de química
em formação inicial. Já nos números especiais da Hyle, encontramos os
temas que a revista destaca e apresenta em “números especiais”.
Vamos tomar os temas trazidos nesses números especiais como
“termômetro” do que a revista julga importante: Modelos na Química. A
160 | Filosofia da Química no Brasil

esse tema, nada menos que três números são dedicados a discussão
sobre modelos em seus aspectos epistemológicos, ontológicos e relação
modelo/realidade (1999, 2000, 2000b). Ou seja, temos uma ideia do
valor que a revista dá para a discussão sobre “modelos na Química”. Em
2001, a revista de origem alemã, publica outro número especial, dessa
vez sobre o tema “Ética na Química” (HYLE, 2001). A perspectiva que a
revista assume para a definição de ética é que assim como a Química é
um ramo da ciência, a ética da Química é um ramo autêntico da filosofia
dessa ciência. Nesse número um artigo de Joachim Schummer nos
chamou atenção. “Ethics of Chemical Synthesis”. Schummer afirma que a
síntese química não pode ser um lugar ‘onde vale tudo’. Os químicos
sintéticos devem fazer um severo julgamento sobre as moléculas que
estão sintetizando. Ou seja, refletir sobre possíveis usos no sentido não
previsto dos produtos sintetizados, como os que podem causar danos à
humanidade, por exemplo. Existem cerca de 10 milhões de novas
moléculas criadas (HOFFMAN, 2007) que não existiam na natureza. Os
químicos, especialmente os sintéticos, precisam responder à sociedade
uma questão crucial: o mundo ficou melhor ou pior com essas novas
milhões de moléculas? (SCHUMMER, 2001; HOFFMANN, 2007).
Há também um outro artigo interessante nesse caderno temático
sobre “ética”, “Handling Proliferation” de Pierre Laszlo que traz uma
reflexão interessante: “A degradação epistêmica produz indiferença
moral”. O artigo trata do excesso de manipulação na produção de novas
substâncias, poderia estar deixando os químicos “insensíveis”
moralmente dizendo? O artigo traz um dado preocupante, informa que
dos 40.000 produtos químicos mais usados no mundo atualmente,
apenas 150 (cento e cinquenta) foram completamente examinados pelos
órgãos responsáveis. Enfim, há mais de 39.000 produtos químicos sendo
fartamente usados, sem que se tenha um conhecimento completo sobre
seus efeitos (segundo relatório da OCDE de 2000). Em 2002, é publicado
outro número dentro da temática de “Ética na Química”.
Nelson Rui Ribas Bejarano | 161

O último artigo é de Educação Química “The Future of Tertiary


Chemical Education – A Bildung Focus”? de autoria de K.K. Eriksen
(Univ. de Copenhagen). O foco do artigo é a formação do aluno de
química na universidade e acredita na ideia que a formação reflexiva
desse aluno pode levá-lo a ter uma atitude reflexiva e assim caminhar
guiado por padrões éticos mais rígidos. Essa hipótese é a que
comungamos e esperamos que nos cursos de química no Brasil se possa
rapidamente incluir reflexões filosóficas como essas propostas pela
revista Hyle.
Houve também a publicação de dois números especiais sobre
Estética e Visualização em Química (Aesthetics and Visualization in
Chemistry). Hyle (2003 e 2003b). E também dois números dedicados
especialmente ao tema Química e Matemática (Chemistry and
Mathematics) (2012 e 2013). Um número especial dedicado a própria
Filosofia da Química (Lições Gerais da Filosofia da Química) no 20º
aniversário da revista no volume 20, no. 1 de 2014. Finalmente, um
número especial de “Estudos de casos Éticos da Química” no volume 22,
no. 1 de 2016. Não vamos comentar qualquer desses outros números
especiais por absoluta falta de espaço.
Apenas para resumir: Três números sobre “modelos na Química”;
Dois números sobre “Ética na Química” (incluindo o número sobre
“Estudos de casos Éticos da Química”); dois números sobre “Estética e
Visualização na Química”; Um número sobre “Química e Matemática”;
Um número sobre a própria “Filosofia da Química”.
Todos esses números especiais da revista Hyle poderiam ser um
rico material (inicial) para a conformação de uma componente curricular
de formação de professores de química (inicial e continuada, porque
não?) e também para os bacharéis em química que também precisam se
beneficiar dessas reflexões. Afinal, a Filosofia da Química deve se remeter
e interessar toda a comunidade de químicos, sejam químicos educadores
ou bacharéis, sejam – especialmente - os professores formadores de
162 | Filosofia da Química no Brasil

professores de química da área da educação, sejam os professores


formadores da área conhecida como da “área dura”.
Essas posições filosóficas, a nosso juízo, não devem ser descartadas
dos cursos de formação de professores de Química. A perspectiva de
discussão de uma filosofia da ciência mais geral, ou numa primeira
aproximação às discussões filosóficas, nos parece que tem certa utilidade. O
problema reside em considerar que a formação filosófica do professor de
Química seria contemplada apenas com essas discussões. Nossa defesa é de
que a Química como ciência impõe uma agenda de discussão que é própria
da Filosofia da Química. Os problemas que nossa ciência suscita só podem
ser abordados dentro de uma filosofia específica, que a nosso ver é a
Filosofia da Química, que tem acumulado nesses últimos 25/30 anos uma
reflexão bastante ampla e profunda sobre essas questões que estamos
chamando de singulares da Ciência Química.

Agradecimentos

Agradeço a Osvaldo Pessoa Jr., pela revisão das partes referentes à


mecânica quântica. Muitas ideias aqui apresentadas se originaram das
discussões do Grupo Redux.

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Visualization in Chemistry (1). 2003, Vol. 9, no. 1.

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and Visualization in Chemistry (2). 2003b, Volume 9, Number 2, October.

Hyle - International Journal for Philosophy of Chemistry - Special Issue: Chemistry


and Mathematics, Part 1. 2012. -Vol. 18, no. 1

Hyle - International Journal for Philosophy of Chemistry - Special Issue: Chemistry


and Mathematics, Part 2. 2013. – vol. 19, no. 1.

Hyle - International Journal for Philosophy of Chemistry - Special Issue on the


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Philosophy of Chemistry - General Lessons from Philosophy of Chemistry.
2014. Volume 20, Number 1, December.
164 | Filosofia da Química no Brasil

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7

Aproximando filosofia da química,


história da ciência e ensino de química:
trajetória e perspectivas

Paulo Alves Porto 1

Da química à história da ciência: um caminho rumo à filosofia da


química

O que é a química? Consultando definições de dicionários ou


enciclopédias, ou mesmo se questionarmos um profissional de química ou
professor, podemos obter respostas aparentemente simples, que deixarão
satisfeitos a maioria dos curiosos. Entretanto, se nós, profissionais e
educadores em química, refletirmos de maneira mais profunda, veremos
que essas definições são insuficientes: a resposta a “o que é a química?” é
muito mais complexa do que qualquer definição pode abranger. Envolvido
com a química desde as primeiras noções vistas no ensino fundamental, e
depois em um curso técnico em química no ensino médio, minha trajetória
pessoal e profissional me levou a fazer esse tipo de questionamento ao
longo de uma caminhada longa e não linear, e essa busca me aproximou da
filosofia da química.
Satisfeito com as perspectivas profissionais e com os horizontes
intelectuais que uma carreira em química parecia oferecer, ingressei no
curso de graduação do Instituto de Química da Universidade de São Paulo
(IQ-USP) na metade da década de 1980. O curso no IQ-USP me pareceu

1
Professor de graduação no Instituto de Química (USP) e de pós-graduação no Programa de Pós-Graduação
Interunidades em Ensino de Ciências (USP).
168 | Filosofia da Química no Brasil

muito eficiente naquilo que se propôs a fazer: formar cientistas, capazes de


se dedicar à pesquisa ou de enfrentar sistematicamente os problemas que se
apresentam no cotidiano das variadas empresas relacionadas ao setor
químico. Uma expressão corrente no IQ-USP, herança de seu fundador
Heinrich Rheinboldt (1891-1955), era que o objetivo do curso era fazer com
que os alunos aprendessem a “pensar quimicamente” (ARAÚJO, 2016, p.
34-36). Embora o significado dessa expressão nunca tenha sido discutido ou
problematizado, era um ideal aceito e compartilhado tacitamente pela
comunidade do IQ-USP – e os resultados do processo formativo
confirmavam que esse ideal era alcançado. Nos anos finais do curso de
graduação, cursei as disciplinas da Licenciatura, e esse encontro com a área
de humanidades me levou a reflexões que eu ainda não havia feito a
respeito do curso. Na época, ao escrever um relato sobre minha trajetória
na graduação, escrevi que o curso de química estava formando bons
químicos, mas estava falhando em formar cidadãos. Faltavam, por exemplo,
reflexões explícitas sobre a atividade química, que fossem além de destacar
sua importância para a sociedade. A preocupação com a imagem negativa
da química junto à sociedade nos levava a buscar seus aspectos positivos, a
buscar formas de apresentá-la ao público em geral como ciência útil e
“benfeitora da humanidade” 2, e divulgar como seu conhecimento e
aplicação seriam imprescindíveis. Faltava uma perspectiva mais crítica,
capaz de equilibrar os dois aspectos contraditórios, mas essencialmente
característicos da química, que a fazem ser associada, pelo público em geral,
com tudo o que é poluente, nocivo e prejudicial, ao mesmo tempo em que é
associada, pelos químicos, com as soluções para os problemas ambientais e
com a melhoria da qualidade de vida de forma ampla.
A Licenciatura me levou a conhecer o Grupo de Pesquisa em Educação
Química (GEPEQ-IQUSP), liderado pelo saudoso Prof. Luiz Roberto de
Moraes Pitombo (PORTO; MARCONDES, 2006) e pela Profa. Maria Eunice
Ribeiro Marcondes. Na ocasião, o GEPEQ estava trabalhando na elaboração
de material didático para o ensino médio, tendo como fundamentos a

2
Imagem que os químicos costumam atribuir a suas atividades, conforme observou Laszlo (2006).
Paulo Alves Porto | 169

experimentação, o cotidiano e a história da ciência. Ciente da necessidade de


contar com a colaboração de especialistas em história da ciência, o Prof.
Pitombo sugeriu que eu buscasse a orientação da Profa. Ana Maria Alfonso-
Goldfarb, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Não
abandonei meu interesse pelo ensino de química, e continuei colaborando
com o GEPEQ por alguns anos – mas iniciei ali uma nova trajetória, em
uma nova área de pesquisa: a história da química.
Como ainda não havia, naquela ocasião, um programa de pós-
graduação em história da ciência na PUC-SP, a Profa. Alfonso-Goldfarb
orientava seus alunos no Programa de Estudos Pós-Graduados em
Comunicação e Semiótica. Assim, ao cursar mestrado e doutorado nesse
Programa, tive a oportunidade de ampliar meus horizontes em relação às
humanidades. Pude conhecer as ideias do filósofo estadunidense Charles
Sanders Peirce (1839-1914), nas quais não pude me aprofundar naquele
momento, mas cujas possibilidades me pareceram fascinantes. Haveria
de retomar esse interesse pela semiótica peirceana anos depois, ao
orientar uma de minhas primeiras alunas de doutorado.
Minha pesquisa na pós-graduação esteve voltada para a química do
século XVII. A investigação desse período muito complexo da história da
ciência me revelou uma química muito diferente da atual, fundada sobre
bases bastante distintas das que nos são contemporâneas. Compreender a
própria maneira de se conceber e abordar a matéria naquela época requer
um distanciamento em relação às concepções às quais nos habituamos, e
nos exige a imersão em uma química mais qualitativa, na qual a exigência
da matematização, por exemplo, ainda não se impusera – mas que abrangia
explicações e previsões muito complexas e elaboradas.3 Essa jornada pela
história da ciência fez com que minha inquietação fosse se desenvolvendo
no rumo da seguinte questão: por que a química tomou o caminho que
conhecemos, e não seguiu por alguma das outras possíveis rotas que se
apresentavam, por exemplo, no século XVII?

3
Alguns trabalhos que desenvolvi no mestrado e no doutorado, e que podem oferecer uma ideia da riqueza da
química do século XVII: Porto, 1995; Porto, 2002.
170 | Filosofia da Química no Brasil

Circunstâncias profissionais me fizeram retornar ao ensino de


química, e então minhas pesquisas se voltaram para promover a
aproximação entre a história e o ensino de química. Na minha concepção, o
processo de concretizar essa aproximação envolve refletir sobre o que
ensinar, e por que ensinar. Nesse processo, a história da ciência pode
fornecer casos históricos que contribuam para a construção ou
reconstrução de conceitos químicos, ou que auxiliem no entendimento do
papel da química na sociedade, ou como o conhecimento científico foi sendo
construído e aplicado. A seleção de abordagens e materiais para concretizar
os objetivos de ensino, em busca dos quais se recorre à história, precisa
passar, de alguma forma e em algum momento, por reflexões sobre a
questão: “o que é essa química que queremos (e achamos que devemos)
ensinar?”. Nesse contexto, me aproximei da filosofia da química por
entender que as discussões desenvolvidas em seu âmbito podem contribuir
muito para os educadores em química, e também por entender que os
estudos históricos podem fornecer elementos fundamentais para essas
discussões. Assim, ao me estabelecer como pesquisador no IQ-USP, comecei
a desenvolver trabalhos nos quais a filosofia da química foi se mostrando
um referencial muito rico, promissor e complementar às inquietações que
me foram sendo despertadas ao longo de minha trajetória acadêmica.

A filosofia da química em nossas linhas de pesquisa

Elementos de história e filosofia da ciência têm sido recomendados,


há tempos, como importantes para fornecer aos estudantes do ensino
médio uma visão mais abrangente a respeito do empreendimento
científico (PORTO, 2010). Na 2ª versão da Proposta Preliminar da Base
Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2016), por exemplo, ao tratar do
ensino de química, era possível observar a necessidade de introduzir
discussões acerca da natureza do conhecimento químico. Nesse sentido,
os autores da Base consideravam ser importante que a formação no
ensino médio
Paulo Alves Porto | 171

possibilite conhecer como a Química foi se consolidando como ciência, com


seus métodos, modelos e teorias. Isso permite a compreensão da dinâmica da
geração do conhecimento, com seus avanços, disputas e erros, e a influência
de contextos sociais nesse processo de construção humana. É necessário
garantir espaço e tempo escolares para que sejam abordados esses temas, de
forma que o conhecimento faça sentido para a vida dos/as estudantes. (...) A
Química constitui-se também de práticas de investigação, em que as teorias
e os modelos são submetidos a provas empíricas, em um processo constante
de formulação de novas teorias, reformulação das já existentes e abandono
de outras teorias e modelos. Tais práticas ocorrem por métodos diversos,
cada qual com um propósito de uso (BRASIL, 2016, p. 147-148, grifo no
original).

Infelizmente, na BNCC homologada pelo Ministério da Educação em


2018 não consta nenhuma recomendação voltada a aspectos específicos da
química (Brasil, 2018). Em nosso grupo de pesquisa, entendemos que, para
tornar possível o processo de inserção das necessárias reflexões de natureza
metaquímica na sala de aula do ensino médio, é fundamental que os
professores sejam adequadamente instrumentalizados para isso. Assim,
definimos como prioridade que nossas linhas de investigação se voltem
para questões relativas à formação do professor, e ao ensino superior de
química de forma mais ampla.
Uma de nossas linhas de pesquisa consiste em estudos de caso em
história da química, buscando caracterizar o que eles nos revelam sobre a
natureza da química, sobre sua divulgação e impacto na sociedade ao longo
do tempo. Em outra vertente, temos buscado investigar as concepções de
professores, estudantes e pesquisadores em química a respeito de aspectos
relacionados à filosofia da química, tais como o reducionismo, o realismo, a
experimentação, a natureza das explicações em química, as aplicações
práticas e as implicações éticas da atividade química. Uma terceira linha de
pesquisa que tem se mostrado frutífera se refere a livros didáticos de
química geral para o ensino superior publicados ao longo do século XX.
Lançando sobre eles um olhar simultaneamente histórico e epistemológico,
buscamos compreender a construção do conhecimento químico, o
172 | Filosofia da Química no Brasil

desenvolvimento curricular e das estratégias de comunicação e ensino nesse


período. Os livros didáticos podem fornecer importantes indícios acerca do
pensamento químico de uma determinada época, por sumarizarem aquilo
que os químicos consideravam mais relevante e fundamental, bem como
revelando aspectos de como os autores entendiam as relações entre a
química e a sociedade. Ainda nessa linha de investigação, a análise de
estratégias didáticas utilizadas nos livros, tendo como referencial a
semiótica peirceana, tem mostrado potencial para oferecer relevantes
contribuições à interface entre filosofia da química e ensino de química.
A seguir, apresentamos alguns trabalhos que vêm sendo
desenvolvidos nos últimos anos no âmbito de nosso Grupo de Pesquisa
em História da Ciência e Ensino de Química (GHQ), e que ilustram
algumas das possibilidades oferecidas pela filosofia da química para a
área de ensino de química.

Aproximando a filosofia da química, a história da ciência e o ensino


de química

Integrando as áreas da química

Como docente do IQ-USP, minha aproximação da filosofia da


química se deu de maneira gradual, por frentes distintas. Em uma
sequência preliminar de trabalhos (MAXIMIANO et al., 2009; CORIO et
al., 2012), de caráter mais exploratório, em colaboração com outros
docentes do Instituto, procuramos investigar como alunos de graduação
compreendem a relação entre as diferentes áreas, sub-áreas e
especialidades que constituem a química, e às quais eles são
gradativamente apresentados em diferentes componentes curriculares de
seus cursos. Nessas pesquisas, alunos do sexto semestre do curso de
graduação em química da USP elaboraram representações gráficas,
inspiradas nos mapas conceituais, para representar como entendiam as
relações entre as áreas, sub-áreas e especialidades da química. Como
Paulo Alves Porto | 173

referencial para análise, utilizamos as chamadas três áreas contextuais


que, segundo Goedhart (2007), descrevem as principais atividades dos
químicos e são úteis para planejar novos currículos para o ensino
superior de química: análise, síntese e desenvolvimento de teorias. Os
resultados mostraram como a divisão nas cinco áreas tradicionais da
química (inorgânica, orgânica, analítica, físico-química e bioquímica),
ainda muito presente na organização curricular e em livros didáticos,
tem grande influência no modo como os estudantes relacionam as
especialidades da química. Muitos alunos tiveram dificuldades em
estabelecer relações entre assuntos tradicionalmente abordados em áreas
diferentes. Por outro lado, o referencial de Goedhart (2007) permitiu
identificar que, na maioria das vezes, as conexões entre áreas diferentes
foram estabelecidas no âmbito do desenvolvimento de teorias, o que
sugere que os estudantes reconheceram estruturas teóricas subjacentes
que perpassam as diversas áreas da química.
Investigando a formação de químicos e pesquisadores

A necessidade de apropriação de referenciais na área de filosofia da


química nos conduziu à realização de um levantamento bibliográfico a
respeito das temáticas mais discutidas no âmbito da contemporânea
filosofia da química e suas possíveis implicações para a área de ensino
(LEMES; PORTO, 2013a). Tal levantamento se apresentou como uma
necessidade para a execução de uma de nossas investigações subsequentes,
voltada para as concepções de doutorandos em química a respeito de como
esses pesquisadores em formação caracterizam a química e suas
peculiaridades em relação a outras áreas da ciência. Para isso, foram
realizadas entrevistas semiestruturadas com dez doutorandos em química
do IQ-USP, que foram analisadas a partir de referenciais da filosofia da
química e também do ensino de química. De forma resumida, a análise dos
dados mostrou que as características mais presentes nos discursos dos
doutorandos a respeito da atividade química foram sua presença
profissional no setor produtivo, a possibilidade de aplicações práticas, a
174 | Filosofia da Química no Brasil

existência de múltiplas interfaces com outras ciências e o desenvolvimento


de novas formas de explicação para os fenômenos. Em relação às
características do pensamento químico, os doutorandos manifestaram
concepções realistas, valorização das evidências experimentais, e apontaram
para o caráter qualitativo e relacional entre as entidades químicas, bem
como para a utilização de múltiplos modelos. As entrevistas mostraram que
o realismo químico, associado às entidades submicroscópicas, tem papel
operacional para os químicos em suas práticas experimentais em
laboratório. Esse realismo, que parece ser generalizado entre os químicos, é
reforçado pelo sucesso nas sínteses de substâncias e materiais, pela
consistência dos dados obtidos por meio de equipamentos de caracterização
estrutural, e vem contribuindo para o desenvolvimento da área. Entretanto,
é preciso considerar que perspectivas realistas ingênuas, no contexto do
ensino de química, podem resultar em concepções alternativas a respeito
das entidades químicas, ou mesmo no desinteresse por essa ciência, em
virtude da incompreensão a respeito do processo que conduziu à aceitação
consensual da existência dessas entidades. Nesse sentido, entendemos estar
diante de uma distinção entre o contexto de produção do conhecimento em
química e o contexto de seu ensino, a qual requer a explicitação e a
problematização de questões filosóficas a fim de enriquecer a formação dos
professores de química (LEMES; PORTO, 2013b, 2013c; LEMES, 2013).
Tendo em vista as questões que se apresentaram como
possibilidades de desdobramentos desse trabalho, decidimos focalizar a
temática da experimentação no processo de construção do realismo entre
os químicos. Tomamos como estudo de caso duas componentes
curriculares de Química Geral oferecidas aos alunos ingressantes nos
cursos de graduação em Química do IQ-USP. A investigação fez uso de
questionários, gravações em vídeo e transcrições de aulas, textos
produzidos por alunos e professores, e entrevistas com professores
dessas componentes curriculares (LEMES; PORTO, 2015a). A pesquisa
procurou então caracterizar os tipos de teorias e evidências utilizadas por
professores e alunos em suas explicações para os fenômenos
Paulo Alves Porto | 175

experimentais. Foram tomadas como referencial as ideias de Nagel


(1982) sobre os tipos de teorias (designadas como teorias hipotéticas e
teorias fenomenológicas), que dialogam com os conceitos de explicações
de Hempel (1966), além de elementos de filosofia da química.
Observamos que os professores têm preferência pelas teorias
hipotéticas e recorrem especialmente a evidências experimentais mediadas
por instrumentos analíticos (como os espectrofotômetros) na construção de
suas explicações. Por outro lado, os estudantes mostraram dificuldades em
lidar com esses tipos de teorias e evidências nesse momento inicial de sua
formação universitária, recorrendo principalmente a teorias
fenomenológicas e a evidências não mediadas por instrumentação (por
exemplo, mudanças de cor observáveis a olho nu). Além disso, se constatou
o que podemos caracterizar como uma tensão subjacente entre dois
aspectos da química: o submicroscópico e o macroscópico.
As relações entre esses dois níveis ontológicos encontram-se
internalizadas, ainda que de maneira tácita, pelos docentes, que são
químicos experientes. Para eles, faz parte do cotidiano profissional
utilizar instrumentos para separação e caracterização de substâncias, e
recorrer a teorias hipotéticas que descrevem entidades submicroscópicas
– poderíamos dizer, a química das moléculas. Para os estudantes, porém,
as relações entre os dois referidos níveis ontológicos ainda estão em
construção. Observar uma evidência experimental, relacioná-la com uma
teoria que envolve entidades submicroscópicas e elaborar uma explicação
é um processo ainda complexo para esses químicos em formação inicial –
processo que se torna mais complexo se a evidência a ser utilizada for
mediada por um instrumento, apresentando-se na forma de um espectro
de absorção, por exemplo.
Assim, os estudantes mostram preferência por evidências mais
diretas, macroscópicas, e pelas teorias fenomenológicas – referindo-se,
por assim dizer, à química das substâncias. Ou seja, ensinar química em
uma disciplina introdutória envolve escolher conteúdos e abordagens que
auxiliem os estudantes a entender a relação entre o nível fenomenológico
176 | Filosofia da Química no Brasil

macroscópico e os modelos explicativos submicroscópicos, sendo que,


nesse processo, a diferença entre os tipos de evidências experimentais
(mediadas e não mediadas por instrumentos) precisa ser explicitada e
não suposta, pelos docentes, como notória para os estudantes (LEMES;
PORTO, 2015b; LEMES, 2016).

Implicações éticas da atividade química

Um estudo de caso histórico, desenvolvido em nosso grupo de


pesquisa, exemplifica como a discussão de aspectos éticos relacionados à
atividade química, entre outros relacionados à filosofia da química, pode
ser inserida no ensino (VIANA; PORTO, 2012; 2013). O caso se refere à
produção de novas substâncias na primeira metade do século XX, no
contexto de uma crescente indústria química e de demanda por
inovações tecnológicas. A liberação no ambiente de novas substâncias,
produzidas em larga escala, acabou por provocar consequências
indesejáveis.
Nosso estudo de caso focalizou a trajetória do engenheiro mecânico
Thomas Midgley, Jr. (1889-1944), que se tornou uma das mais
destacadas figuras do meio químico estadunidense de meados do século
passado, tendo recebido as mais importantes comendas oferecidas aos
químicos dos EUA e ocupado a presidência da American Chemical
Society. Sua fama se baseou, fundamentalmente, na resolução de dois
grandes problemas tecnológicos da época. O primeiro foi a melhoria da
qualidade da gasolina usada em automóveis, aumentando sua
octanagem, pela adição de um aditivo desenvolvido por Midgley: o
tetraetilchumbo. Embora a toxicidade dos compostos de chumbo fosse
bem conhecida havia séculos, o uso de tetraetilchumbo na gasolina foi
liberado nos EUA após estudos realizados por cientistas – financiados
pelos próprios fabricantes desse aditivo – concluírem não haver, na
ocasião, evidências suficientes de que a emissão do chumbo na atmosfera
provocaria danos à saúde pública.
Paulo Alves Porto | 177

O segundo grande sucesso de Midgley foi o desenvolvimento dos


clorofluorocarbonetos (CFCs) como fluidos para refrigeradores. O estudo de
caso mostra como Midgley foi modificando suas estratégias de pesquisa, da
tentativa e erro, utilizados no início, para o uso da tabela periódica dos
elementos como referência para suas investigações. Além disso, o caso
sugere reflexões acerca das diferentes dimensões de risco intrínsecas às
atividades químicas. Ao acompanhar a história das aplicações das
substâncias desenvolvidas por Midgley, três diferentes dimensões de risco
químico podem ser caracterizadas. Na produção de tetraetilchumbo, os
trabalhadores que estavam expostos de maneira mais ou menos direta a
essa substância estavam sujeitos a intoxicação, tendo sido registrados
dezenas de casos nas indústrias, incluindo a ocorrência de diversos óbitos.
Temos, aqui, a dimensão de risco individual.
Considerando as regiões onde o tráfego de veículos proporcionava a
dispersão de compostos de chumbo, ocorreu o acúmulo desse elemento
no ambiente e no organismo das pessoas expostas aos poluentes.
Caracteriza-se, então, a dimensão de risco ambiental local. No que se
refere aos CFCs, essas duas dimensões de risco pareciam ser bem
conhecidas e estar sob controle: afinal, os CFCs não são tóxicos e, uma
vez liberados na baixa atmosfera, aparentemente não sofriam
transformações. Após décadas de produção e liberação de CFCs no
ambiente, os cientistas obtiveram evidências de que os CFCs, difundindo-
se pela atmosfera, após muito tempo alcançavam a estratosfera - e lá
finalmente eram transformados, em um processo que provoca a
destruição da camada de ozônio. Caso nenhuma medida fosse tomada
para diminuir a emissão de CFCs para a atmosfera, o processo de
destruição do ozônio estratosférico colocaria em perigo todas as formas
de vida no planeta. Caracteriza-se, assim, algo desconhecido até então: a
dimensão de risco ambiental global.
Promover reflexões sobre os diferentes aspectos do trabalho de
Midgley, e seu impacto sobre a sociedade, pode ser muito relevante na
formação de profissionais de química mais críticos e cientes de suas
178 | Filosofia da Química no Brasil

responsabilidades sociais. Em artigo em que discutem e defendem a


inclusão de aspectos humanos no conteúdo de química a ser ensinado,
Sjöström e Talanquer (2014) estabelecem diferentes níveis de abordagem
para as questões humanas no ensino de química. O nível de maior
complexidade, chamado de “química crítico-reflexiva”, é caracterizado pelos
autores como aquele em que “o conhecimento e as práticas químicas não
são aplicadas somente para tomar decisões e resolver problemas em
contextos relevantes. A natureza e a cultura desse conhecimento, e das
práticas de produção de conhecimento, também são criticamente
analisadas” (SJÖSTRÖM; TALANQUER, 2014, p. 1128). Ao selecionar
exemplos de artigos em que o ensino de química é abordado sob essa
perspectiva, Sjöström e Talanquer (2014) apontam o trabalho produzido
em nosso grupo sobre o caso de Midgley (VIANA; PORTO, 2013).

Abordagem semiótica para a construção da química e seu ensino

Outra contribuição de nosso grupo para o debate contemporâneo da


área de ensino de química se voltou para o chamado “triângulo de
Johnstone”, ou “triplete da química” (TALANQUER, 2011) – o qual se
tornou um referencial muito utilizado por educadores em química,
embora já tenha sido apontada sua falta de sustentação filosófica
(GALAGOVSKY et al., 2003; LABARCA, 2010). Em um trabalho
desenvolvido no GHQ, a teoria geral dos signos de Peirce foi tomada
como referencial para fazer uma análise crítica do triângulo de
Johnstone, e para propor uma abordagem alternativa voltada à
compreensão dos vários aspectos do conhecimento químico e de sua
difusão e divulgação. Procuramos discutir as relações entre a realidade,
as interações dos químicos com ela, e as interpretações e representações
resultantes do conhecimento científico construído.
Partimos do princípio de que o acesso do químico à realidade material
é um processo necessariamente mediado, e se dá por meio de alguma
forma de interação com a matéria. Tais interações, sejam por métodos
Paulo Alves Porto | 179

clássicos ou instrumentais, geram evidências percebidas pelos sentidos, as


quais atuam como signos, referentes a aspectos específicos e parciais
(qualidades) dos objetos estudados (realidade). As interações, entendidas
aqui como quaisquer formas de aproximação com os fenômenos, sempre
irão desencadear diversas possibilidades de semioses. Esse processo gera
nos intérpretes – neste caso, nos químicos – o que Peirce denomina
interpretantes, os quais podem assumir a forma de construtos teóricos ou
linguísticos que representam, de alguma maneira, os objetos investigados.
Os interpretantes demandam esforços de descrição e categorização que
podem levar, finalmente, a hábitos de ação, sempre passíveis de serem
revistos e modificados (Figura 1).

Figura 1 – Abordagem fenomenológica e semiótica para a produção de construtos científicos.


(Fonte: Souza e Porto, 2014.)

Em nossa proposta, os modelos de partículas (identificados, no


triângulo de Johnstone, com o “nível submicroscópico”) e os símbolos,
fórmulas e equações químicas (o “nível representacional”, no referido
triângulo) constituem-se, de fato, em um conjunto de construtos
científicos, podendo ser considerados, tanto uns quanto outros,
interpretantes dos signos gerados pelas interações dos químicos com a
realidade material. Ainda de acordo com o referencial semiótico de
Peirce, sendo os próprios interpretantes também de natureza sígnica,
podemos identificar que em alguns desses construtos predomina o
caráter icônico (por exemplo, nas estruturas moleculares), enquanto em
outros predomina o caráter simbólico (por exemplo, nas equações
químicas).
180 | Filosofia da Química no Brasil

O referencial peirceano pode orientar, também, a análise do


processo de comunicação do conhecimento químico e, em particular, do
ensino escolar e universitário de química. Entendido também como
semiose, o processo de ensino tem, como objeto, tanto os construtos
teóricos e linguísticos da química quanto a própria forma de criação
desses construtos. O acesso a esse objeto se dá, nas salas de aula, pela
intermediação de signos como a fala e os gestos dos professores, textos,
imagens, gráficos, diagramas, espectros, modelos moleculares, etc., os
quais geram interpretantes nas mentes dos alunos (Figura 2). Nem
sempre, porém, esses interpretantes correspondem aos aspectos do
objeto desejados pelo professor – constituindo-se, então, em concepções
alternativas.

Figura 2 – Abordagem semiótica para o ensino de química. (Fonte: Souza e Porto, 2014.)

Considerando seu potencial interesse para a educação química, a


proposta aqui delineada foi utilizada para analisar as estratégias de
comunicação no ensino de conteúdos como pressão de vapor e estrutura
de sólidos, focalizando casos presentes em livros didáticos para o ensino
superior de química geral, publicados no século XX (SOUZA; PORTO,
2010, 2012, 2014; SOUZA, 2012).
Outro ponto relevante para o ensino de química – o realismo
associado aos conceitos químicos, como, por exemplo, o conceito de
Paulo Alves Porto | 181

orbital – tem sido bastante discutido no campo da filosofia da química. A


questão do estatuto ontológico dos orbitais recebeu especial atenção a
partir de 1999, quando Zuo e colaboradores, corroborados em editorial
da revista Nature, afirmaram haver observado orbitais diretamente (ZUO
et al., 1999; HUMPHREYS, 1999). A discussão inclui aspectos ontológicos
e epistemológicos, como o que é o orbital e a possibilidade de observá-lo,
gerando implicações para a química e para o ensino de química. Assim,
outro trabalho desenvolvido em nosso grupo de pesquisa investigou de
que forma o conceito de orbital foi apresentado em livros didáticos de
química geral dirigidos ao ensino superior e publicados no Brasil ao
longo do século XX. Observamos que esse conceito começou a ser
inserido nos livros de química geral em meados do século passado.
Utilizando como referenciais a semiótica peirceana e a filosofia da
química, foram propostas três categorias de análise: base conceitual do
orbital; representação icônica do orbital; e representação simbólica do
orbital. No que tange à primeira categoria, observamos que a definição
mais comum de orbital é em termos de densidade de probabilidade,
como a região na qual é mais provável a localização do elétron. Essa
interpretação, segundo alguns filósofos da química, revela uma peculiar
apropriação da mecânica ondulatória por parte dos químicos (LABARCA;
LOMBARDI, 2010; JENKINS, 2003).
Na segunda categoria foram analisadas as representações icônicas de
orbitais, isto é, aquelas que buscam representar qualidades – tais como as
formas dos orbitais. Neste caso, as imagens em geral apresentam
superfícies contínuas e uniformes, identificadas nos livros como as regiões
de densidade de probabilidade elevadas. A terceira categoria abrangeu as
representações predominantemente simbólicas dos orbitais, as quais
necessitam ter seu significado previamente convencionado de maneira
explícita. É o caso das imagens em que os orbitais são representados por
linhas horizontais ou “caixas”, contendo ou não setas que representam os
elétrons. Esse tipo de representação sugere que orbitais e elétrons são
entidades distintas, com existência independente.
182 | Filosofia da Química no Brasil

Como consequência, surge a noção de que orbitais preenchidos e


orbitais vazios possuem igualdade ontológica. Nosso estudo revelou que o
conceito de orbital tem sido introduzido, ao longo de décadas, por meio dos
livros de química geral, de maneira não problematizada no que se refere à
sua conceituação, aos significados e aos sentidos das diversas
representações utilizadas no ensino desse conceito, podendo resultar em
concepções alternativas por parte dos estudantes (ROZENTALSKI; PORTO,
2015; ROZENTALSKI, 2013).

Perspectivas para o ensino superior: a disciplina Química e


Sociedade

No projeto pedagógico do curso de Licenciatura oferecido pelo IQ-


USP, consideramos relevante inserir aspectos relacionados a reflexões
sobre a natureza do conhecimento químico. Nesse contexto, foi criada a
componente curricular Química e Sociedade, em cujo âmbito tivemos a
oportunidade de promover discussões a partir de subsídios provenientes
da filosofia da química. A seguir, delineamos algumas características
dessa componente curricular, de modo a exemplificar como a filosofia da
química pode contribuir para a formação de profissionais de química.
No início do semestre, apresentamos alguns dados coletados pela
pesquisa de percepção pública da ciência, realizada periodicamente pelo
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (BRASIL, 2015). Esses
levantamentos mostram a existência de um relativo interesse da
população brasileira por ciência e tecnologia, bem como confiança nos
produtos da ciência e no trabalho dos cientistas. Por outro lado, é senso
comum que a imagem da química geralmente é associada a aspectos
negativos, como poluição, causas de doenças, problemas ambientais, etc.
Isso mostra que há muito a ser feito em termos de divulgação e ensino
formal de química, resultando em ações que podem tirar proveito do
interesse que o público em geral tem por ciência e tecnologia. A
construção de uma imagem mais elaborada da química passaria por
Paulo Alves Porto | 183

desfazer, entre os próprios estudantes de química, a confusão entre a


ciência e os frutos da ciência. Isto é, deixar claro que, por exemplo, nem a
produção de medicamentos, nem a destruição da camada de ozônio pelos
CFC são a química - a qual é uma atividade humana muito mais
complexa do que isso. Assim, em nossa disciplina sobre Química e
Sociedade, procuramos fazer com que os futuros químicos e professores
de química reflitam sobre o fato de que não basta tentar convencer o
público em geral de que a química está em toda parte, pois as pessoas
não conseguem enxergá-la. E não conseguem porque a química, de fato,
está em um só lugar: na mente dos químicos, que por isso conseguem
enxergá-la em toda parte, pois suas ideias condicionam seu olhar.
Para fornecer elementos que sustentem esse ponto de vista, a
disciplina inclui a discussão de abordagens tradicionais para a filosofia da
ciência (tais como as ideias de Bacon e Mill, Popper, Kuhn, Lakatos,
Feyerabend, Ziman) – em geral originadas de reflexões sobre a física ou
biologia – e sua comparação com ideias da contemporânea filosofia da
química. Além disso, são discutidos alguns episódios históricos polêmicos
(como aqueles apresentados no livro de Collins e Pinch [2003], ou o caso
de Midgley, citado acima), com o objetivo de mostrar a complexidade da
ciência em geral e da química em particular.
Um exemplo abordado em Química e Sociedade são as ideias
expressas por John Horgan em seu livro O fim da ciência, que se propõe a
discutir os limites da ciência contemporânea (HORGAN, 1998). Nesse
livro, a química é citada apenas de passagem, pois na opinião do autor,
fundamentada em ponderações de cientistas e filósofos da ciência, a
química já alcançou o seu final:

[O biólogo Gunther] Stent argumentou que certos campos da ciência são


limitados simplesmente pela própria natureza de seus objetos de estudo.
Ninguém consideraria a anatomia humana ou a geografia, por exemplo,
como empreendimentos infinitos. A química também é limitada. (...)
“Embora o número total de substâncias químicas possíveis seja muito
grande, e a variedade de reações em que elas possam se envolver seja vasta,
o objetivo da química de compreender os princípios que governam o
184 | Filosofia da Química no Brasil

comportamento de tais moléculas é – tal como o objetivo da geografia –


claramente limitado.” Pode-se argumentar que esse objetivo foi alcançado na
década de 1930, quando o químico Linus Pauling mostrou como todas as
interações químicas podem ser compreendidas em termos da mecânica
quântica (HORGAN, 1998, p. 10).

A essa perspectiva, contrapomos os dados cientométricos coletados


por Schummer (2004), que mostram como a produção científica em
química (abrangendo artigos, livros e patentes) era, na ocasião do
levantamento, quase tão grande quanto a de todas as outras áreas da
ciência somadas. Ou seja, propomos aos estudantes que reflitam sobre a
questão: “Se a química está terminada, o que todos esses químicos estão
fazendo? Por que tanta produção científica em uma área ‘limitada’,
segundo a perspectiva de Horgan (1998)?” Possíveis respostas são
buscadas na filosofia da química, como na perspectiva proposta por
Schummer (2010):

Se uma nova substância resulta de uma transformação, ela pode ser


submetida a novas investigações, estudando-se sua reatividade com todas as
substâncias conhecidas – o que, por sua vez, pode resultar em muitas outras
substâncias para se estudar, e assim por diante. Esse procedimento resulta
no crescimento exponencial das substâncias... e não há limite fundamental
para sua proliferação sem fim no futuro. Como cada substância aumenta o
alcance dos conhecimentos químicos possíveis, o conhecimento químico
nunca poderá estar completo (SCHUMMER, 2010, p. 176-177).

Dessa maneira, procuramos mostrar que as abordagens tradicionais


para a filosofia da ciência podem não ser as mais adequadas para se lidar
com características específicas da química. Assim, a contemporânea
filosofia da química pode oferecer enfoques alternativos, enriquecedores
e contribuir para que os estudantes construam uma imagem mais
complexa do empreendimento químico. A parte final da componente
curricular Química e Sociedade focaliza a química escolar, procurando
problematizar como ela tem sido ensinada e o que tem sido sugerido
pelas pesquisas em ensino de ciências e pelas propostas curriculares
Paulo Alves Porto | 185

oficiais. Nesse contexto, a filosofia da química também se coloca como


um referencial para a compreensão das dificuldades de aprendizagem
dos alunos do ensino médio, para a elaboração de currículos e atividades
de ensino, e também para o desenvolvimento de estratégias de
divulgação da química para o público em geral.

Agradecimentos

O autor agradece a todos os colegas que participaram do GHQ desde


2004, e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) pelo auxílio à pesquisa (426519/2016-7) e pela
concessão de bolsa de produtividade em pesquisa (304450/2014-6;
307652/2017-3).

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8

Uma trajetória na Representação Química e Significação

Jackson Gois 1

Da Química para a Filosofia da Química

Meu interesse pelas representações químicas começou no Ensino


Básico em uma Olimpíada de Ciências que ocorreu na escola onde cursei
o ensino médio na década de 1980. Sempre tive interesse em ciências da
natureza e me destaquei pontualmente nessas áreas em minha trajetória
escolar. Neste evento, entrei em contato pela primeira vez com fórmulas
estruturais e nomenclatura de compostos da Química Orgânica. Recordo-
me de como ficava intrigado com esses nomes e fórmulas químicas, com
pouco ou nenhum significado para mim, tanto durante a prova quanto
em conversas esporádicas com colegas do terceiro ano que estavam
estudando o assunto.
Decidi cursar o ensino superior em Química porque percebi que
havia desenvolvido gosto por essa área durante o ensino médio e o curso
pré-vestibular. Durante o curso de bacharelado em Química na USP em
São Paulo realizei atividades de iniciação científica, onde a utilização das
representações químicas era parte importante das atividades de pesquisa.
Ao me formar, após breve experiência na indústria química, tive
oportunidade de experimentar a docência no ensino básico. Naquele
momento, as reflexões acerca das representações químicas surgiram de
forma mais contundente, pois havia e ainda há desafios para o Ensino de

1
Professor do Departamento de Educação do IBILCE/UNESP, onde ministra aulas na graduação em Química e na Pós-
graduação Interunidades em Ensino e Processos Formativos.
192 | Filosofia da Química no Brasil

Química relacionados com a aprendizagem dessas ferramentas químicas


de pensamento. Voltei à universidade para cursar a licenciatura e,
concomitantemente, cursei o mestrado em Bioquímica (GOIS, 2004), na
esperança de me aperfeiçoar, como professor, no uso de ferramentas
computacionais de representação química.
Enquanto fazia as disciplinas da Licenciatura em Química, conheci o
grupo de pesquisa liderado por Marcelo Giordan da Faculdade de
Educação da USP. Com um mestrado já finalizado em modelagem
molecular em Bioquímica, foi nesse grupo que percebi que poderia me
aprofundar na pesquisa sobre o ensino com o uso de representações
químicas. De fato, fiz um segundo mestrado, em Ensino de Ciências
(GOIS, 2007), onde desenvolvi um ambiente virtual de aprendizagem
para o ensino de representações químicas que possibilitava a construção
e manipulação de objetos moleculares tridimensionais virtuais, e utilizei
esse ambiente virtual com meus alunos de ensino básico. Durante este
segundo mestrado me aprofundei nos conhecimentos sobre a semiótica
de Charles Sanders Peirce (2005).
Em princípio, as categorias peirceanas de significado pareciam
resolver definitivamente, pelo menos para alguém que não tinha
formação filosófica alguma como eu, as questões acerca do significado
das representações químicas. A partir desse momento, os fundamentos
da elaboração de significados começaram a se tornar tão relevantes
quanto as próprias representações químicas. Isso porque a semiótica
peirceana não se restringe a qualquer área de conhecimento e acaba por
alargar nossos horizontes conceituais. Após a defesa do segundo
mestrado senti necessidade de ampliação de foco de pesquisa, pois
surgiu, do meu ponto de vista, uma dificuldade entre as categorias
peirceanas e o planejamento das atividades em sala de aula. É importante
observar que não há nenhuma limitação didática com a semiótica
peirceana, uma vez que não é objetivo de Peirce fazer prescrições sobre
metodologias de ensino. Percebi que necessitava ampliar minha
compreensão sobre processos de elaboração de significados.
Jackson Gois | 193

Foi com diversas interrogações sobre a relação entre representações


químicas e elaboração de significados que iniciei o doutorado em
Educação (GOIS, 2012). Direcionamos nosso referencial teórico para o
filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, uma vez que um de seus temas é
justamente a relação entre representação e significado. O mote inicial da
minha tese nos pareceu perfeito: Wittgenstein traz uma filosofia
relevante sobre a relação entre representação e significado, e eu estava
interessado em entender a relação entre as representações químicas e a
elaboração de significados. O aprofundamento na filosofia de
Wittgenstein nos trouxe muito mais do que o esperado (GOIS, 2017),
conforme discutimos mais adiante.
No aprofundamento da compreensão sobre as possíveis relações
entre representações químicas e elaboração de significados durante o
meu doutorado, finalmente entrei em contato com a Filosofia da
Química. Naquele momento, minha revisão bibliográfica sobre
representações químicas incluiu trabalhos sobre a Filosofia da Química,
inclusive de autores de capítulos desta mesma coletânea. A partir desse
momento, percebi que a Filosofia da Química tinha muita relação com
meus interesses de pesquisa. As reflexões oferecidas por essa área de
conhecimento possibilitaram circunscrever de maneira apropriada meu
objeto de estudo. Percebi também o quão importantes são as
representações químicas para a constituição do pensamento químico
(GOIS, 2017), e como essas ferramentas de pensamento ainda são pouco
exploradas em termos filosóficos e de ensino. Meu doutorado prosseguiu
com as reflexões acerca das concepções de significação e representação
na área de Ensino, bem como uma análise dessas concepções do ponto de
vista da filosofia de Wittgenstein.
Hoje tenho como principal foco de pesquisa a investigação sobre
processos de elaboração de significados na área de Ensino (GPESig –
Grupo de Pesquisa em Ensino e Significação). Os autores mais utilizados
como ponto de partida teórico em nossos trabalhos são as contribuições
socioculturais de James Wertsch (1998), a semiótica de Charles Sanders
194 | Filosofia da Química no Brasil

Peirce (2005) e também a concepção não-representacional de significado


de Ludwig Wittgenstein (2008). Atualmente mantenho o interesse na
Filosofia da Química como fonte de reflexão e pesquisa, e ministro
conteúdos sobre esse tema nas disciplinas de graduação em Química.

Entre a Filosofia da Química e o Ensino de Química

A compreensão sobre o papel das representações químicas em


processos de ensino e aprendizagem em salas de aula de química, como
artefatos culturais produzidos pela comunidade de químicos com o
objetivo de resolver problemas acerca das transformações, estrutura e
propriedades da matéria, envolve a reflexão sobre aspectos
metodológicos e filosóficos. Nesse sentido, entendo que este tema é um
importante ponto de encontro de interesses de pesquisa entre a Filosofia
da Química e a Educação em Química.
Para descrever as possíveis relações entre meus objetivos de
pesquisa e as áreas da Filosofia da Química e da Educação em Química, é
importante delimitar uma possível concepção sobre representação e
significado, destacando os fundamentos filosóficos do significado.
Descrevo brevemente, a seguir, um importante aspecto sobre as
concepções de significação e representação presentes na Filosofia da
Química, bem como os potenciais entraves que essas concepções
apresentam para uma compreensão de processos de ensino e
aprendizagem, conforme reflexão detalhada em outros trabalhos (GOIS,
2017, 2012).
Hoffman e Laszlo (1991) apresentam a importância das
representações químicas como fundamento do trabalho dos químicos na
indústria e na pesquisa científica. Este é um caso onde pesquisadores
com formação e atuação na Química passaram a colaborar também com
reflexões na Filosofia da Química. A concepção de relação entre
representação química e significação, na Química, está fortemente ligada
à grande produção de conhecimento desta área (SCHUMMER, 2006).
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Esse fato nos convida a entender o que possibilita as condições de


produção do conhecimento químico. As ferramentas de pensamento
possibilitadas e relacionadas com as representações químicas são o
grande diferencial que viabilizam em grande parte a produção do
conhecimento químico (GOIS, 2012). Mas isso traz um aspecto
importante para a compreensão dos químicos sobre as possíveis relações
entre representação química e elaboração de significados. Para o
profissional da química que trabalha na indústria e/ou na pesquisa em
Química, as representações químicas significam porque representam o
empírico ou a matéria, como uma espécie de ‘palavra das coisas’
(LASZLO, 1995).
A compreensão do significado desta maneira por parte dos
químicos, apesar de ter possibilitado um avanço sensível na produção do
conhecimento químico, ajuda em muito pouco, e às vezes em nada, na
compreensão sobre os processos de elaboração de significados com
representações químicas em sala de aula. Nesse sentido, a declaração de
infalibilidade das representações químicas quanto à estrutura,
transformações e propriedades das substâncias não lança luz sobre os
processos de ensino e aprendizagem. De forma contraditória, a
concepção de significado por representação dos químicos não lança luz
sobre os processos de ensino e aprendizagem para não-químicos.
Infelizmente, isso apenas reforça nossa proverbial dificuldade de
comunicação com a sociedade não-química que nos cerca e nos olha com
curiosidade.
Não que seja impossível investigar as possíveis relações entre
significado empírico e aprendizagem. Em uma reflexão sobre as possíveis
relações entre Representações Químicas e processos de significação,
exploramos um pouco mais os aspectos empíricos das representações
químicas e propomos quatro possibilidades de processos de significação
(GOIS, 2017). Fazemos isso a partir das noções de ‘proposição gramatical’
e ‘proposição empírica’ de Wittgenstein (2000), onde observamos que as
representações químicas apresentam aspectos de ambos os tipos de
196 | Filosofia da Química no Brasil

proposições. Entendemos que o tema das possíveis relações entre as


representações químicas e seus aspectos empíricos e convencionais
merecem investigação de fundo filosófico, com possíveis resultados
interessantes para a Filosofia da Química e para o Ensino de Química.
A Filosofia da Química apresentou grande crescimento, apesar da
relativamente pequena produção de material publicado (SCHUMMER,
2006). O início dessa área está relacionado com uma reação, por parte
dos químicos, de que a Filosofia da Ciência deveria se centrar na Física.
Scerri (2000) descreve o desenvolvimento da Filosofia da Química,
especialmente na identidade da própria Filosofia da Química, como uma
ruptura com a tentativa reducionista de compreender os fundamentos da
química a partir da física.
O tema da representação científica continua relevante para a
Filosofia da Química (GONZÁLES; FORTIN; LOMBARDI, 2018; OCHIAI,
2017) e para a Filosofia da Ciência (GHINS, 2010) na atualidade. Do
ponto de vista do cientista, a relação binária signo/objeto pode ser
suficiente para entender como o cientista lida com os significados já
conhecidos por sua comunidade. Nesse sentido, bastaria saber a qual
objeto de significado determinado signo se refere, e teríamos o processo
de elaboração de significados descrito. Para os filósofos da Química, uma
descrição binária (signo/objeto) ou ternária (signo/objeto/interpretante)
pode resolver a compreensão sobre o significado das representações
químicas. Com isso, os profissionais da Filosofia da Química
aparentemente não necessitam revisitar o tema da representação
química a partir de outros pontos de vista, para além do ponto de vista
de como o cientista lida com essas representações.
Com isso, na Filosofia da Química, o fundamento da elaboração de
significados está, também, na relação de representação. O significado
ocorreria, na concepção dos praticantes dessa área, por uma relação
lógica entre signo e objeto. As representações químicas significam porque
representam, racionalmente, uma concepção química. Em princípio, esta
concepção é suficiente entre os filósofos da química, dado que o
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conhecimento químico do ponto de vista da comunidade científica é o seu


centro de interesse. E as reflexões trazidas pela Filosofia da Química têm
o potencial de fortalecer a Química como área tanto na pesquisa quanto
no ensino.
Nesse sentido, a Filosofia da Química se ocupa em refletir sobre a
natureza do conhecimento químico. Comparado à Educação em Química,
que tem como objetivo promover a melhoria do ensino da química para
todos os indivíduos, há uma importante relação entre público alvo e
conhecimento químico, uma vez que temos, no primeiro caso, uma
comunidade de pessoas com alto grau de motivação intrínseca com os
temas da química, mas não necessariamente no segundo caso.
É possível entender que o cientista, ao produzir conhecimento
científico, lida com representações químicas em algum ponto entre dois
polos. Em um primeiro polo, o cientista pode estar utilizando
representações com significado sedimentado em seu campo de pesquisa.
Nesse sentido, se ainda não conhece o significado, basta que lhe
indiquem o objeto de significação para aquele signo. Em um segundo
polo, o cientista se vê diante de novo aspecto relevante do conhecimento
químico e propõe novo signo para aquele novo objeto de conhecimento.
Seria o estabelecimento de novo significado, construído socialmente no
sentido da necessidade de validação dos pares. Pode haver alguma
disputa na comunidade de cientistas, mas em algum momento será
resolvido o signo e seu objeto de significação, sendo a partir daí utilizado
ou não pela comunidade. Em termos de elaboração de significados, o
cientista vive entre os polos de ‘aprendizagem do que já existe’ e
‘proposição de signos e/ou significados inéditos’.
Os cientistas se aproximariam mais do segundo polo, e, por esse
motivo, os métodos e ferramentas de pensamentos utilizadas por eles
nos momentos históricos de suas áreas de conhecimento para proposição
e/ou delimitação de conhecimento novo são, muitas vezes, alvo de
escrutínio dos Filósofos da Química do ponto de vista das Representações
Químicas (KLEIN, 2001). Na Filosofia da Química não se dá importância
198 | Filosofia da Química no Brasil

para o primeiro polo pelo fato de a motivação intrínseca do cientista


tornar a aprendizagem do que já existe, na comunidade de químicos, algo
com pouco desafio intelectual para o cientista, comparado à proposição
de novos conhecimentos.
Não é esse o caso da sala de aula de Química do ponto de vista da
população em geral. Para que um profissional de pesquisa em Química
ou da Filosofia da Química tenha chegado a esse ponto em sua carreira
profissional, foi necessário primeiro entrar em contato com a Química
em seu Ensino Básico. Nesse momento anterior, houve um profissional
de Ensino de Química que elaborou e realizou atividades de ensino com o
grupo de alunos, que o futuro pesquisador da Química ou da Filosofia da
Química participou como aluno. Nesse sentido, a pesquisa em Ensino de
Química se preocupa e se ocupa com o primeiro polo, ou seja, a
aprendizagem de concepções por parte de iniciantes, apesar de já
sedimentadas entre os praticantes de uma área de conhecimento.
Na sala de aula, mesmo no ensino superior em Química, temos
interesses e motivações diversos nos processos de ensino e
aprendizagem. Nesse sentido, o desafio de aprendizagem dos
conhecimentos que já estão sedimentados na Química se torna real.
Entender esses processos de ensino e aprendizagem, tanto do ponto de
vista do aluno que tem facilidade quanto do que tem dificuldade de
aprendizagem, possibilita mais alunos se interessarem pelo ensino
superior em Química, e menos desistirem do ensino superior em
Química ao já estarem no curso.
Com isso, conhecer relações entre os processos de
ensino/aprendizagem e as características filosóficas fundamentais das
representações químicas oferece um espaço de reflexão e pesquisa que
possibilita compreender melhor a própria dinâmica entre os universos
dos iniciantes e dos profissionais da Química, o que interessa a
pesquisadores de ambas as comunidades. Apesar de o Ensino de Química
se ocupar dos iniciantes em Química e da Filosofia da Química se ocupar
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dos profissionais da Química, as reflexões acerca do aprendizado das


Representações Químicas interessam a ambas.
Para a Química e a Filosofia da Química, significa porque
representa. O que muda de uma área para outra é o que está sendo
representado pelas representações químicas: a matéria (na Química) ou
as concepções científicas (na Filosofia da Química). Nesse sentido, o
fundamento do significado é, atualmente, representacional para diversas
áreas (GOIS, 2017).
Do ponto de vista de se trabalhar com a Filosofia da Química, essa
constatação pode não apresentar qualquer entrave relevante. No entanto,
do ponto de vista do Ensino de Química, a visão representacionista de
significado auxilia em muito pouco a compreensão sobre os processos de
ensino e aprendizagem que ocorrem em sala de aula com iniciantes. No
caso das tríades de Peirce, observar aspectos de similaridade,
regularidade e indicialidade podem ajudar nossa compreensão desses
processos, mas com limitações (GOIS, 2007).
Pensar em representação como fundamento filosófico dificulta
nossa compreensão dos processos de ensino e aprendizagem porque se
trata de uma ilustração filosófica pouco social e cultural do ponto de vista
de muitos autores, especialmente das áreas aqui apresentadas, apesar de
haver possibilidade de compreender essa ilustração de um ponto de vista
social e cultural (ARAÚJO-NETO, 2009). É possível relacionar a palavra
representação a outros significados, mais sociais e culturais, e utilizar
esta ilustração filosófica de forma paralela com outras ilustrações,
mantendo o sentido original da palavra ‘representação’ nos campos
destacados nesse capítulo. É isso o que fazemos na Química: ora
atribuímos outros sentidos a palavras já conhecidas do cotidiano (por
exemplo: compostos não-inocentes na química inorgânica), ora
inventamos novas palavras para novas concepções (por exemplo:
molaridade).
Nossa opção epistemológica é multiplicar as ilustrações acerca da
elaboração de significados e essa opção tem total relação com o
200 | Filosofia da Química no Brasil

referencial teórico que adotamos, no caso, a filosofia de Wittgenstein. É


comum na química termos várias ilustrações acerca de concepções
centrais (por exemplo: modelos atômicos, ácidos etc.). Em termos
filosóficos, essa opção pretende contribuir com a aproximação entre o
Ensino de Química e a Filosofia da Química. A contribuição, nesse caso,
estará na proposta filosófica de olhar o significado não de um ponto de
vista estrutural, representacional, lógico ou mental, mas sim com base
nos usos que fazemos da linguagem. As contribuições dessas concepções
filosóficas podem nos auxiliar a compreender a natureza dos processos
de ensino na sala de aula.
Nas Investigações Filosóficas (WITTGENSTEIN, 2008) é colocado
em pauta o postulado filosófico de que o significado dependeria
exclusivamente de uma relação de representação, descrito como
concepção agostiniana de significado. É importante destacar que se trata
de uma ilustração. Wittgenstein questiona a exclusividade da ilustração
da representação como fundamento do significado, sem contudo negar a
possibilidade de ocorrência de significado por representação.
Em especial, Wittgenstein procura revisitar a concepção que ele
mesmo elaborou no Tractatus Logico-Philosophicus (WITTGENSTEIN,
2010), conhecida como figuração. Nessa concepção, a relação entre
linguagem e mundo ocorreria porque as proposições da linguagem
figuram o mundo, no sentido de serem uma figura, uma foto ou quadro.
Essa figuração entre a linguagem e o mundo poderia ser descrita em
termos da lógica clássica, consistindo no fundamento do significado. O
que haveria de comum entre uma figura e o que ela representa seria a
sua forma lógica (KENNY, 2008).
A partir da compreensão de que os significados não precisam
depender de uma representação, os processos de significação resultantes
da fala e atividades a ela ligadas não precisam, necessariamente, incluir
uma relação de representação. As contribuições das concepções de
Wittgenstein para o Ensino de Química estão na compreensão de que o
significado está nos usos que fazemos da linguagem. Com isso, não há
Jackson Gois | 201

dependência de qualquer relação de representação, lógica ou psicológica,


para compreender os processos de elaboração de significados.
Na Filosofia da Química a visão clássica representacional de
significado pode ser suficiente em função dos objetivos de investigação
filosófica das pesquisas em química. No Ensino de química, no entanto,
essa visão filosófica pode limitar a compreensão de aspectos processuais
filosóficos e metodológicos. Uma vez que as investigações na área de
Ensino estão focalizadas em aspectos materiais, como atividades de
ensino em sala de aula, currículos, coleta de dados, formação de
professores, divulgação científica, dentre outros, é importante incluir
pressupostos que viabilizem a compreensão dos fundamentos do
significado em uma direção processual.
E as representações químicas podem ser um ponto de interesse
comum que possibilite investigações de natureza filosófica com
consequências para as atividades de ensino. A partir da compreensão de
que há aspectos comuns que interessam para a Filosofia da Química e
para a Educação em Química, destaco que já há diversas filosofias
presentes na área de Ensino, de várias áreas de conhecimento, bem como
aproximações iniciais da Filosofia da Ciência em direção à filosofia de
Wittgenstein, o que possibilitaria uma filosofia do ensino de química
(GOIS, 2019).

Conclusão

Finalizo este texto defendendo a presença da Filosofia da Química


em cursos superiores de Química, tanto de Licenciatura quanto de
Bacharelado. De alguma forma, cursos de Licenciatura oferecem
possibilidades de reflexão com as ferramentas de pensamento próprias
das ciências humanas, o que também contribui fortemente para a
construção da cidadania dos alunos de graduação. Esses profissionais da
química desempenharão diversas atividades nos mais variados setores da
sociedade (indústria, comércio, pesquisa científica e ensino) e em todos
202 | Filosofia da Química no Brasil

os casos, conhecer as bases da elaboração do pensamento químico com


ferramentas filosóficas auxiliará na sua formação humana.
Uma reflexão com as ferramentas de pensamento das ciências
humanas pode incentivar o interesse do estudante pelos fundamentos da
Química, e mesmo pela Filosofia da Química, como foi o nosso caso. Ter
contato com os fundamentos filosóficos de sua área de conhecimento
deveria ser um fato em toda grade curricular, não apenas da Química.
Em especial, isso instrumentará os profissionais bacharéis e
licenciados quanto à posição que a Química deve ter na sociedade, e os
auxiliará a se posicionarem criticamente nos diversos espaços que devem
ocupar. É bem conhecida a defesa, na Filosofia da Química, que a
Química tem seus próprios fundamentos, não sendo subárea que
qualquer outra área de conhecimento. A nosso ver, a Filosofia da
Química auxiliará os profissionais a entenderem a singularidade de sua
área e a disseminarem essa concepção na sociedade.

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2010.
Índice Remissivo

classificação das ciências · 125


A
Claude Lévi-Strauss · 49
afinidade · 137
clorofluorocarbonetos · 177
Allen Debus · 46
Complexificação · 91
alquimia · 30
Comte · 54
antinomias químicas · 94
comunidade epistêmica · 77
antropologia · 108
concepções alternativas · 174
Aristóteles · 30
Condillac · 46
Auguste Comte · 50
cultura · 108
B
D
Bachelard · 80
d’Alembert · 48
Bernadette Bensaude-Vincent · 46
densidade de probabilidade · 181
Boyle · 30
descoerência · 153
C determinação pessoal · 109

Cassirer · 110 determinismo · 145

Categoria substantiva · 10 devir · 89

causalidade · 124 diagramaticidade · 83

causalidade descendente · 64 Diderot · 48


dimensão tática · 83
Ch
chimica · 31
E
Chymie · 48 Emergência · 159
emergentismo · 145
C
epistemologia · 78
Ciências dos Materiais · 136
Epistemologia Genética · 124
circularidade · 125
Ernst Cassirer · 103
Círculo de Viena · Consulte
206 | Filosofia da Química no Brasil

Estrutura filosófica · 11 Humboldt · 107


Estrutura pedagógica · 11
I
estudos de caso · 171
Inferência para a melhor explicação ·
Ética · 160
150
evolução química · 34
instrumentos de papel · 64
F interpretantes · 179
fenomenotecnia · 83 irreversibilidade · 88
filosofia · 35 Isabelle Stengers · 46
filosofia da ciência · 157 ISPC · 32
filosofias da matéria · 31
J
flogístico · 47
Jakobson · 118
Foro Internacional · 12
John Michael Krois · 110
Foundations of Chemistry · 34
Juergen Heinrich Maar · 45
François Hartog · 67
K
G
Kuhn · 12, 14, 45
Gabriel-François Venel · 48
gasolina · 176 L
Gaston Bachelard · 43 Laszlo · 137
geometrias não euclidianas · 43 Lavoisier · 45
Goedhart · 173 Leibniz · 104
Goethe · 106, 110 Ligação Química · 159
gramática · 81 linguagem · 104
Guyton de Morveau · 47 linguagem da química · 34

H livros didáticos · 171


lógica do descobrimento · 104
Hegel · 107
Hempel · 44, 175 M
Hilary Putnam · 146 Marcellin Berthelot · 65
história da química · 79 Mendeleev · 66
holismo · 145 metaciências · 78
Índice Remissivo | 207

metaquímica · 66, 171 praxis química · 75


Michel Paty · 104 práxis química · 81
modelos corpusculares · 137 problema da demarcação · 36
Modelos na Química · 159 processualidade · 83
modelos químicos · 34 proposição empírica · 195
Modernidade · 46 proposição gramatical · 195
Morphologie · 111 psicologia · 108

N Q
Nagel · 175 química crítico-reflexiva · 178
natureza das explicações · 171 química de síntese · 43
NOS · 158 química medieval · 34
Quine · 44
O
octanagem · 176 R
ontologia · 105 racionalismo · 107
orbitais preenchidos · 182 realismo · 146, 171, 180
orbital · 181 Realismo axiológico · 150
Realismo crítico · 150
P
realismo de entidades · 151
Paolo Rossi · 46
realismo estrutural · 152
paradigma · 35
realismo internalista · 146
Paradigmas · 29
Realismo ontológico · 150
Paul Dirac · 148
Realismo semântico · 150
Peirce · 118, 178, 192
Realismo teórico · 150
pensar quimicamente · 168
reatividade · 137
percepção · 108
redução · 145
pluralismo · 82, 83
redução epistemológica · 148
pluralismo ontológico · 146
redução por interdependência · 128
Popper · 44
reducionismo · 125, 171
positivismo filosófico e pedagógico · 90
reducionismo epistemológico · 131
positivismo lógico · 49
208 | Filosofia da Química no Brasil

reducionismo ontológico · 131 SUMMER SYMPOSIUM · 32


redutibilidade · 37
T
representações · 64
Tabela Periódica · 159
representações estruturais · 105
teoria corpuscular · 14
Representações Químicas · 195
teorias da matéria · 31
revolução científica · 46
tetraetilchumbo · 176
revolução química · 45
triângulo de Johnstone · 178
Roald Hoffmann · 65
romantismo alemão · 109 U
S Uexküll · 113

século das Luzes · 47 V


semioses · 179 verdade · 147
Semiótica · 103 Vicente Coelho de Seabra · 52
setor produtivo · 173 Visualização · 161
síntese química · 160
W
submicroscópico · 175
Wittgenstein · 193
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