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Entre A Liberdade e A Dependência - MINAYO E COIMBRA

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Introdução

Entre a liberdade e a dependência: reflexões sobre o fenômeno social do envelhecimento

Maria Cecília de Souza Minayo


Carlos E. A. Coimbra Jr.
(orgs.)

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

MINAYO, MCS., and COIMBRA JUNIOR, CEA., orgs. Introdução: Entre a liberdade e a
dependência: reflexões sobre o fenômeno social do envelhecimento. In: Antropologia, saúde e
envelhecimento [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2002. Antropologia & Saúde collection,
pp. 11-24. ISBN: 978-85-7541-304-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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INTRODUÇÃO

Introdução
Entre a Liberdade e a Dependência: reflexões
sobre o fenômeno social do envelhecimento
Maria Cecília de Souza Minayo & Carlos E. A. Coimbra Jr.

Reinauguração
Nossa idade – velho ou moço – pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos e alvoroçados
mais uma vez, e revestidos de beleza, a exata
beleza que vem dos gestos espontâneos e do
profundo instinto de subsistir enquanto as coisas
em redor se derretem e somem como nuvens
errantes no universo estável.
Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos
gulosos a um sol diferente que nos acorda para
os descobrimentos.
Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular que se exprime no
cálido abraço e no beijo comungante, no
acreditar na vida e na doação de vivê-la em
perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.
Carlos Drummond de Andrade
Somos sempre o jovem ou o velho em relação a alguém.
Pierre Bourdieu

Existe uma praxe na antropologia segundo a qual o pesquisador deve explicitar


as razões, as condições e o processo de suas investigações. Esse relato das condições
de seu trabalho permite ao leitor relativizar seus achados e localizar sua perspectiva –
por conseguinte, também se posicionar. Por isso, consideramos de bom tom apresentar os
motivos que nos levaram a organizar um livro sobre o ‘envelhecimento’ que cruzasse
os olhares da antropologia e das ciências da saúde.
Pelas regras de classificação dos ciclos da vida que vigoram em nossa socieda-
de, o Brasil precocemente entrou na rota do envelhecimento populacional. Nessa estra-
da que acolhe os caminhantes grisalhos e sulcados pela vida, o trânsito vai aos poucos
ficando congestionado, a ponto de já serem mais de 31 mil os brasileiros remanescentes
do século XIX. É cada vez maior a população que, parafraseando o poeta, vai

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ANTROPOLOGIA, SAÚDE E ENVELHECIMENTO

reinaugurando, ano a ano, seu frágil projeto de felicidade após os 60, “entre o gasto
dezembro e o florido janeiro, entre a desmistificação e a expectativa, tornando a acredi-
tar, a ser bons meninos e, como bons meninos, reclamando a graça dos presentes
coloridos” (Andrade, 1966:56).
O Brasil dobrou o nível de esperança de vida ao nascer em relativamente poucas
décadas, numa velocidade muito maior que os países europeus, os quais levaram cerca
de 140 anos para envelhecer. Para se ter idéia do que isso significa, a esperança de vida
ao nascer dos brasileiros era de 33,7 anos em 1900; 43, em 1950; 65, em 1990; chega
quase a 70 anos na entrada do novo século; e prevê-se que ultrapasse os 75 anos em
2025. De 1950 a 2025 terá crescido 15 vezes, quando o restante da população terá
conseguido um incremento de 5 vezes. Apesar de todo esse incremento, a maioria das
pessoas nessa faixa etária está entre os 60 e os 69 anos, constituindo ainda menos de
10% da população total (Veras, 1995), quando na Europa, por exemplo, são as faixas
acima de 70 anos as que mais crescem. No entanto, um país já é considerado ‘velho’
quando 7% de sua população são constituídos por idosos.
A previsão dos demógrafos é de que no ano 2020 existam cerca de 1,2 bilhão
de idosos no mundo, dentre os quais 34 milhões de brasileiros acima de 60 anos, que,
nesse caso, corresponderão à sexta população mais velha do planeta, ficando atrás
apenas de alguns países europeus, do Japão e da América do Norte. Por tudo isso, é
muito importante ouvir a “lógica interna desse grupo socioetário” e contar com ele
para a realização de seus anseios e para a construção de um padrão de vida que lhes
seja adequado.
O que nos chamou a atenção, ao programarmos o trabalho aqui apresentado, é
que, até o momento, quase sempre outros atores têm falado pelos idosos. Se a focalizá-
los existem vários tipos de lentes, as fotografias das câmeras curiosas costumam não ir
além de luzes, sombras e cores que as aparências revelam. E como os que observam são
parte da perspectiva que adotam, o que fica das imagens são a contundência dos sinais
de desgaste dos corpos, os vincos nas faces, a voz mais cadenciada, o andar mais
vagaroso ou trôpego, a queda inexorável dos músculos e a fragilidade dos movimentos.
Esse retrato, que é feio em relação aos padrões de beleza que adotam o jovem como
símbolo, costuma receber um veredicto de quem o produz e de quem o contempla. É o
veredicto que assinala a velhice como problema e como doença.
Nosso interesse foi tentar ir além; fazer novas perguntas, olho no olho dos que estão
em plena estrada, ‘na chuva para se molhar’, e que por isso resistem ao rótulo que a socie-
dade quer lhes impor. Mais que isso, entender também os véus que cobrem a destinação
antecipada ao lugar social estereotipado que o aparente cuidado social lhes reservou: o
‘recolhimento interior’ (eufemismo para o afastamento do trabalho); a ‘inatividade’ (rotulação
dos aposentados e aposentadas); a ‘prevenção das possíveis doenças’ (medicalização da
idade) ou as ‘festinhas da terceira idade’ (infantilização dessa etapa da vida).
Foi dessa vontade de encontrar um espaço alternativo de reflexão, em que várias
possibilidades pudessem emergir – produzindo uma compreensão mais real das vivências,
dos desejos e da avaliação de sua situação que essa vasta camada da população
brasileira faz de si própria –, que surgiu a idéia de organizar este livro. Não optamos pela
realização de uma pesquisa original de cunho etnográfico, mas sim por reunir em uma

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INTRODUÇÃO

oficina de trabalho um pequeno grupo de pesquisadores estudiosos do assunto.


Essa oficina foi realizada no Rio de Janeiro, em agosto de 2000, e contou com a partici-
pação de todos os que integram esta coletânea.
No colóquio, estabelecemos os rumos da presente publicação, que, em seu con-
junto, amadureceu com base em críticas, comentários e sugestões formuladas pelos par-
ticipantes. A partir daí, muitas perguntas puderam ser feitas, num processo de
aprofundamento sucessivo que começou de forma intuitiva: será que estamos errados na
resistência aos rótulos dominantes? Será que, por influência da época, estaremos sendo
vítimas da ideologia-mito da eterna juventude, esse vírus que corrói a humanização do
envelhecimento e da morte? Ou será, ao contrário, que os próprios limites do ciclo e
do curso da vida estão se desfazendo, por causa do fenômeno irrefutável do aumento da
esperança de vida a partir da segunda metade do século XX, aqui e em todo o mundo?
A medida da curiosidade deu lugar à idéia de transformar tais perguntas em
questões teóricas sobre as descobertas que o ‘envelhecimento à brasileira’ estão sus-
citando. Com certeza, as constatações poderão servir de baliza para essa grande faixa
da população que hoje marcha não numa estrada sem fim e sem sentido, mas para a larga
porteira aberta de uma fazenda de colheitas. Nesse espaço de movimento e construção,
continuam a existir não apenas os frutos, mas a semente, o plantar, a alegria dos brotos
e todos os prazeres, dores e sofrimentos do ceifar, como em qualquer etapa da vida.
Mas com enormes diferenças: é simultaneamente o tempo do orgasmo da vida e
da liberdade e o tempo da medida do possível e da dependência. Tudo concomitante
e tudo diferenciado pela trajetória individual. É isso que Ana Bassit, Alda Motta e Rita
Heck & Esther Jean Langdon mostram em seus respectivos capítulos. Também é isso
que já haviam evidenciado Lins de Barros (2000), Debert (2000), Peixoto (2000) e Motta
(2000), dentre outros, em estudos sobre essa questão social no Brasil.
Esses autores vêm nos ensinar que, como muitas outras questões na sociedade
ocidental, o assunto da velhice foi ‘estatizado’ e ‘medicalizado’, transformando-se ora em
problema político, ora em ‘problema de saúde’, seja para ser regulado por normas, seja
para ser pensado de forma preventiva, seja para ser assumido nos seus aspectos de
disfunções e distúrbios que, se todos padecem, são muito mais acentuados com a idade.
No que concerne à saúde, em torno da geriatria se estabeleceu um grande mercado
consumidor, refinando os instrumentos e as medidas que rotulam o cotidiano da existên-
cia dos idosos. A seu lado desenvolveram-se normas preventivas fundadas no uso nem
sempre crítico da ‘teoria do risco’, tão problemática quando tenta, por meio de médias,
justificar propostas preventivistas. Dessa forma, desconhece-se a complexidade dos su-
jeitos, criando-se uma estética da vida referenciada em proibições e regras gerais. A
pergunta necessária é a seguinte: será que não existe possibilidade de introduzir, na
receita do que é saudável, o ingrediente ‘prazer de viver’ como mote central dessa última
e decisiva etapa da existência? Dizemos isso porque talvez seja esta a maior e mais con-
tundente descoberta que este livro poderá trazer como contribuição da antropologia.
É complexo o tema do envelhecimento, pois complexos são todos os processos
vitais experimentados desde o nascimento, a infância e a adolescência até a vida adulta.
Recusamo-nos não a reconhecer a complexidade, mas sim a colocar como farinha do
mesmo saco envelhecimento, doença, privação, dependência, tristeza e frustração.

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ANTROPOLOGIA, SAÚDE E ENVELHECIMENTO

Aqui se trabalha para executar um movimento que positive o envelhecimento


como um tempo produtivo específico da vida, emocional, intelectual e social, superan-
do assim os estigmas da discriminação. Pois é essa discriminação internalizada que
freqüentemente leva os idosos a uma atitude de negação, buscando parecerem mais
jovens para serem aceitos e acolhidos, obscurecendo suas características, seus atribu-
tos e sua identidade (Lins de Barros, 2000). A positivação da identidade do idoso
significa, por um lado, reconhecer o que há de importante e específico nessa etapa da
vida para desfrutá-lo; por outro, compreender, do ponto de vista desse grupo social, os
sofrimentos, as doenças e as limitações com toda a carga pessoal e familiar que tais
situações acarretam, embora nunca tratando tais acontecimentos dolorosos e tristes
como sinônimos de velhice.
O envelhecimento não é um processo homogêneo. Cada pessoa vivencia essa
fase da vida de uma forma, considerando sua história particular e todos os aspectos
estruturais (classe, gênero e etnia) a eles relacionados, como saúde, educação e condi-
ções econômicas. Os capítulos que integram este livro demonstrarão que os fatores
que contribuem mais e melhor para diferenciar a vivência do envelhecimento são as
redes de apoio social e comunicação, com ênfase na solidariedade familiar.
O que torna a velhice sinônimo de sofrimento é mais o abandono que a doença; a
solidão que a dependência. Assim, nesta introdução, quatro aspectos centrais serão
enfatizados, pois traduzem a síntese do pensamento dos autores: o envelhecimento como
híbrido biológico-social; o envelhecimento como problema; o envelhecimento como ques-
tão pública; o velho como ator social.

O E NVELHECIMENTO COMO H ÍBRIDO B IOLÓGICO - SOCIAL


“O que é envelhecimento?”, pergunta Veras (1995:25) em seu livro País Jovem
com Cabelos Brancos, para em seguida responder: “Velhice é um termo impreciso. (...)
nada flutua mais do que os limites da velhice em termos de complexidade fisiológica,
psicológica e social”. O mesmo autor diz, numa tentativa de conceituação, que “do
ponto de vista cultural, a velhice deve ser percebida diferentemente em um país com
uma expectativa de 37 anos de vida, como Serra Leoa, e outro de 78 anos de vida, como
é o caso do Japão” (1995:26).
Assim como Veras, os estudiosos que têm seus textos aqui publicados apresen-
tam, como uma das primeiras questões a serem consideradas, a necessidade de
desnaturalizar o fenômeno da velhice e considerá-la como uma categoria social e cultu-
ralmente construída.
Se, por um lado, o ciclo biológico próprio do ser humano assemelha-se ao dos
demais seres vivos – todos nascem, crescem e morrem –, por outro, as várias etapas da
vida são social e culturalmente construídas. Isto é, as diversas sociedades constroem
diferentes práticas e representações sobre a velhice, a posição social dos velhos na
comunidade e nas famílias e o tratamento que lhes deve ser dispensado pelos mais
jovens. É isso que Parry Scott analisa em seu capítulo, numa instigante abordagem

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INTRODUÇÃO

comparativa sobre o processo de envelhecimento no Japão e no Brasil. O autor reafirma


a idéia de que, para se entender o lugar social dos idosos, é preciso compreender a
forma como a sociedade organiza a estrutura, as funções e os papéis de cada grupo
etário específico.
Os estudos antropológicos demonstram que a infância, a adolescência, a vida
adulta e a velhice não constituem propriedades substanciais que os indivíduos adqui-
rem com o avanço da idade cronológica. Pelo contrário: o processo biológico, que é real
e pode ser reconhecido por sinais externos do corpo, é apropriado e elaborado simbo-
licamente por meio de rituais que definem, nas fronteiras etárias, um sentido político e
organizador do sistema social. Como lembram Ariès (1981) e Elias (1990), essas frontei-
ras e suas apropriações simbólicas não são iguais em todas as sociedades nem na
mesma sociedade, em momentos históricos diferenciados – nem num mesmo tempo,
para todas as classes, todos os segmentos e gêneros.
No interior das diferenciações, no entanto, os estudos antropológicos revelam
aspectos estruturais fundamentais, de tal forma que é possível transcender
particularismos culturais e encontrar alguns traços comuns do fenômeno que poderiam
ser considerados universais.
O antropólogo Leo Simmons (1945), por exemplo, analisou a situação dos ve-
lhos em 71 sociedades indígenas, tomando por base os seguintes parâmetros: formas
de subsistência; direitos de propriedade; atividades econômicas; vida doméstica; or-
ganização política; conhecimento das tradições; valores e crenças e integração na
família e no sistema de parentesco. Embora seu estudo possa fazer jus a críticas de que
seja demasiadamente generalista, ele aponta questões interessantes para o que seriam
“os desejos universais dos velhos nessas sociedades”. Considerando o conjunto dos
grupos estudados, segundo Simmons, todos os velhos desejam viver o máximo possí-
vel; terminar a vida de forma digna e sem sofrimento; encontrar ajuda e proteção para a
progressiva diminuição das capacidades; continuar a participar das decisões que en-
volvem a comunidade; prolongar, ao máximo, conquistas e prerrogativas sociais como
propriedade, autoridade e respeito.
A manipulação de categorias etárias, no entanto, é outro fenômeno comumente
observado, geralmente exigindo um investimento político de definição de poderes para
cada ciclo da vida, no estabelecimento de direitos, deveres e privilégios (Bourdieu,
1983). Sobre esse tema, Debert diz que “categorias e grupos de idade implicam a impo-
sição de uma visão de mundo social que contribui para manter ou transformar as posi-
ções de cada um em espaços sociais específicos” (Debert, 2000:53).
No mesmo sentido, apesar de os desejos ‘universais’ dos idosos citados por
Simmons (1945) estarem todos voltados para sua inclusão afetiva nos contextos sociais,
Riffiotis (2000), também estudando o lugar do velho entre diferentes etnias africanas,
assinala que em todas elas existe a idéia de que os jovens querem que os anciãos
morram. Mais que isso, existem rituais por meio dos quais a sociedade adulta os separa
radicalmente da convivência nas aldeias, quase sempre abandonando-os em cavernas
ou outros lugares distantes do convívio de seu povo. Essas mesmas sociedades que os
segregam, porém, igualmente colocam à prova os jovens adultos que os substituirão no
governo da comunidade, para que fiquem evidentes as dificuldades que sentirão sem o

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ANTROPOLOGIA, SAÚDE E ENVELHECIMENTO

apoio da experiência dos velhos. Os mitos demonstram que, em face dos dilemas de
difícil solução, os novos dirigentes sucumbirão se não trouxerem, em seu socorro,
algum daqueles anciãos abandonados em cavernas para morrer. Assim, o saber ances-
tral dessas sociedades evidencia a importância da conciliação e do reconhecimento
intergeracional na obtenção do equilíbrio necessário à organização social.

O E NVELHECIMENTO COMO P ROBLEMA


No imaginário social a velhice sempre foi pensada como uma carga econômica
– seja para a família, seja para a sociedade – e como uma ameaça às mudanças. Essa
noção tem levado as sociedades a subtraírem dos velhos seu papel de pensar seu
próprio destino. No entanto, nunca faltaram exceções a tais práticas, o que pode ser
exemplificado com o reconhecimento pelas sociedades indígenas da figura do pajé ou
xamã ancião ou, nas sociedades ocidentais, dos poderosos, ricos e famosos quando
gozam de saúde física, mental e econômica. As exceções, porém, não podem esconder
as grandes dificuldades socioeconômicas que os idosos, particularmente os pobres,
sofrem nos mais diferentes contextos de vida. Por isso mesmo, a velhice é por eles
auto-assumida como ‘problema’, na mesma medida em que sofrem por causa dela e o
imaginário social assim a define.
A forma mais comum de discriminação cultural tem sido o estigma de ‘descartável’,
‘passado’ ou ‘peso social’. Como muito bem aponta Guimarães, “nos dicionários emo-
cionais da população, velhice é sinônimo de decadência, de decrepitude e de perda de
dignidade” (Guimarães, 1997:7).
O trabalho de Uchôa e colaboradores que integra este volume evidencia,
empiricamente, a forma negativa de concepção do envelhecimento por parte dos mora-
dores de uma cidade do interior mineiro, em contraposição às visões muito mais gene-
rosas que os idosos têm de si próprios. Os pesquisadores demonstram a distância entre
a observação externa e o conceito formulado por eles, mesmo em situação de enfermida-
de e de dependência física. A visão depreciativa dos mais velhos tem sido, através dos
tempos modernos, alimentada profundamente pela ideologia ‘produtivista’ que susten-
tou a sociedade capitalista industrial, para a qual, se uma pessoa não é capaz de traba-
lhar e de ter renda própria, de pouco ou nada serve para sua comunidade ou seu país.
No Brasil, o fenômeno do envelhecimento até pouco tempo atrás vinha sendo
tratado como questão da vida privada, por representar ônus para a família, como assun-
to de caridade pública, no caso dos pobres e indigentes, e, de forma bastante reducionista,
como questão médica. É claro que essa visão continua confirmada pelas práticas sociais
de cuidado com os idosos. Mas o rápido crescimento dessa faixa da população passou
a preocupar também muitas outras instituições sociais.
No caso da família, por exemplo, nos últimos cinqüenta anos, houve profundas
transformações no seu desenho demográfico, nos seus ambientes, na sua composição
e no seu tamanho, pari passu com a acelerada urbanização. Na medida em que diminuem
os espaços residenciais e o número dos membros que entram no mercado de trabalho,

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INTRODUÇÃO

comparativamente aumentam os que se retiram. Criam-se novas demandas de cuidados,


necessidades de adaptação da arquitetura das casas, isolamento dos parentes em asi-
los, ou maior exigência de dedicação dos mais novos para proporcionar melhor qualida-
de de vida aos que se tornam dependentes. Sem falar no fato de que não são poucas as
dificuldades de convivência entre as várias gerações que cada vez se distanciam mais
culturalmente, numa sociedade em que os padrões de comportamento também têm
mudado aceleradamente, como mostra o trabalho de Cornelia Eckert.
Também para a medicina e para a saúde pública, o envelhecimento tem se
apresentado como problema. As mudanças na pirâmide populacional, que vai alar-
gando seu ápice numa média de 2,5% de crescimento anual, geram preocupações para
o sistema de saúde, porque mesmo sem ter solucionado os problemas sanitários
relativos à infância, à adolescência e aos trabalhadores, ambos terão de se equipar
para dar respostas eficientes relativas à prevenção de enfermidades e à atenção aos
enfermos idosos.
Por isso, em geral, os formuladores de políticas no Brasil referem-se ao ‘custo
social da população idosa’, calculado como três vezes mais alto que o da população
em geral (Veras, 1995). Demonstram também que esse custo mais elevado onera,
sobretudo, o sistema de saúde, pois o crescimento da esperança de vida, historica-
mente, vem acompanhado, no mundo inteiro, de um aumento das doenças crônicas
não infecciosas, como diabetes melito, distúrbios cardiovasculares, articulares, res-
piratórios e de movimento; doenças incapacitantes, como demência senil, doença de
Alzheimer, doença de Parkinson; além do incremento das ocorrências de depressões
e de falhas cognitivas.
Os capítulos escritos por Célia Caldas e Paulo César Alves exemplificam a di-
mensão dos sofrimentos de grupos específicos de idosos e de seus ‘cuidadores’, qua-
se sempre familiares, que os acompanham até o final da vida. Esses sofrimentos costu-
mam ser muito mais dramáticos para a população pobre, que acaba lotando os asilos
públicos e conveniados, quase todos em situação de flagrante abandono ou padecen-
do, cronicamente, da falta de equipamentos e de pessoal especializado.
No Rio de Janeiro (capital com a maior proporção de idosos no país), Veras
(1995) observou que 17% da sua amostra consideravam sua saúde ruim ou muito ruim,
e os casos de distúrbio mental eram mais freqüentes nesse grupo. Embora 82,5% das
pessoas entrevistadas se dissessem saudáveis ao responderem a questões auto-referi-
das, os problemas de saúde foram mencionados como prejudicais à qualidade de sua
vida cotidiana. Cerca de 64,4% delas apresentavam morbidades múltiplas. Ora, esses
dados podem ser lidos sob duas faces: de um lado, para esse grupo etário, os transtor-
nos da velhice não são considerados ‘doenças’; de outro, servem para dimensionar o
tamanho dos problemas a serem enfrentados pelo sistema de saúde na esfera da pre-
venção e do tratamento.
O estudo de Veras chama a atenção, igualmente, para o peso das condições
socioeconômicas adversas, da pouca instrução e da escassez de atendimento no recru-
descimento dos problemas físicos e mentais na velhice. O fato de 60% da população idosa
hoje serem compostos por mulheres indica também a necessidade de um atendimento
diferenciado por gênero. No conjunto, Veras (1995) assinala nesse grupo etário do Rio de

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ANTROPOLOGIA, SAÚDE E ENVELHECIMENTO

Janeiro elevada prevalência de distúrbios cardiovasculares e articulares; deficiências


visuais e auditivas e distúrbios mentais, como depressão e problemas cognitivos.
No caso brasileiro, a idéia de que os velhos constituem um problema social vem
sendo construída sobremodo pelo Estado. Na sociedade ocidental contemporânea, o
Estado é o grande regulador do curso da vida, do nascimento à morte, passando pelas
fases de escolarização, de atividade no mercado de trabalho e de aposentadoria. Por
causa disso, a idade cronológica é um princípio cultural de extrema relevância no mo-
derno aparato jurídico-político, que concentra no indivíduo a atribuição de direitos e
deveres; e no mercado de trabalho, a base da economia. Essa forma de organização
difere, por exemplo, das comunidades indígenas e camponesas fundadas economica-
mente na unidade familiar.
A idéia do ‘envelhecimento como problema’ se expressa na constante divulga-
ção dos déficits nos cálculos da previdência social, uma vez que o direito à aposentado-
ria (um direito dos idosos) se universalizou. O discurso sobre o ‘peso social que hoje os
velhos constituem’ tem nessa instância pública um lugar entronizado. É reforçado pela
idéia de que a situação do aumento dessa população é insustentável com a manutenção
do direito universal da aposentadoria. Portanto, o aparato do Estado tende a ver de
forma catastrófica as próprias instituições político-sociais que criou para atender os
idosos. Veras (1995:23) aponta assim a dimensão do problema:
Uma vez que mais da metade da população idosa do Brasil terá entre 60 e 69
anos, as decisões relativas à idade de aposentadoria, disponibilidade e direito à
pensão, assim como outras questões relacionadas à força de trabalho, afetarão
significativamente a economia brasileira no próximo século.
Talvez o dilema dos formuladores de política seja exatamente a impregnação, em
seu horizonte mental, da idéia de envelhecimento como problema, sobretudo no senti-
do econômico de apropriação de bens e serviços por um número cada vez maior de
pessoas mais velhas. Ora, essa idéia de falência da previdência social, da qual usufruem
os idosos, como a grande vilã da política social no país deve ser relativizada. Pelo
menos é o que mostra estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea) sobre a universalização de direitos sociais no Brasil. Os pesquisadores constata-
ram que mais da metade das aposentadorias e pensões da Previdência Social, na zona
rural das regiões Sul e Nordeste, é dirigida a mulheres viúvas, solteiras ou separadas.
Vivendo sem companheiros, elas são responsáveis pelo sustento da casa e dos depen-
dentes, contando apenas, para a sobrevivência sua e do grupo, com esse benefício.
No Nordeste, 58,6% das mulheres aposentadas e pensionistas são chefes de
família. No Sul, 49,4% delas o são. Embora a quantia recebida do INSS seja mínima, pelo
fato de essas idosas rurais terem acumulado, ao longo de suas vidas, uma série de
desvantagens como a dupla jornada e o trabalho sem remuneração, a extensão da
aposentadoria rural a essas mulheres, depois da Constituição de 1988, mudou sua
trajetória, ao reconhecer seu direito de cidadania e sua autonomia financeira.
O estudo do Ipea conclui que a aposentadoria rural hoje é um fator essencial de
redução da pobreza no campo. Isso também mostra o trabalho de Rita Heck, que integra
esta coletânea, no caso do interior do Rio Grande do Sul. Mas essa autora evidencia

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INTRODUÇÃO

que, além do significado econômico de subsistência, a liberação financeira (ainda que


muito modesta) vem acompanhada de um sentido cultural de independência da tutela
familiar, sobretudo para as mulheres, trazendo-lhes uma qualidade e uma alegria de vida
como nunca tiveram em outras etapas da existência. Os exemplos acima referem-se, de
forma muito particular, ao envelhecimento em situações de pobreza e privação, mas,
mesmo assim, aqui se expressa um significado positivo dessa etapa da vida, apontando
para uma visão diferenciada em relação aos estereótipos sociais.

O E NVELHECIMENTO COMO Q UESTÃO P ÚBLICA


Na sociedade ocidental, não somente o ciclo da vida é socialmente padronizado
como também seu curso passa, cada vez mais, a ser regulado pelo Estado, a despeito
das potencialidades e dos problemas de cada um. A infância, a adolescência e a juven-
tude são tempo de escolarização; a idade adulta é o tempo associado à procriação e à
participação no mercado de trabalho; a velhice, o tempo da aposentadoria. Essa
institucionalização crescente das fases da vida envolve todas as dimensões do mundo
doméstico, do trabalho e, também, do consumo.
Para Wright Mills (1974), um dos mais importantes problemas para a sociologia
é a compreensão do movimento de transformação de um fato particular em questão
pública. No caso do envelhecimento, isso supõe enfatizar o sentido das mudanças que
esse grupo social, crescente em número, em vigor e em organização, provoca na reorga-
nização do poder, do trabalho, da economia e da cultura, atribuindo novo significado ao
seu espaço tradicionalmente percebido como o da decadência física e da inatividade.
Como questão pública, o fenômeno do envelhecimento deve ser focalizado positiva-
mente para o desenvolvimento humano. Portanto, pensar a velhice como questão pú-
blica é bem diferente de tratá-la como problema social.
Seguindo o pensamento de Mills (1974), é importante descobrir quais seriam os
formuladores de um novo sentido do envelhecimento e que interesses têm nessa
destinação, uma vez que quem o formula publicamente ocupa, geralmente, posição
privilegiada para fazê-lo e para representar os interesses dos outros. Há que descartar
os agentes tradicionais ou é preciso compreender sua mudança de enfoque? No caso
dos idosos, os porta-vozes mais legitimados têm sido os especialistas da geriatria, seja
pela apropriação do avanço da ciência, seja pelo próprio reconhecimento social da sua
prática médica. Mas também no interior desse grupo, as certezas são poucas, como
ressalta Guimarães (1997:7):
todos sabem que a gerontologia e seus diversos ramos têm sido até então uma
ciência tímida, adolescente; um barco carente de bons timoneiros e do sopro dos
melhores ventos. Ainda assim, o conhecimento científico tem possibilitado avan-
ços consideráveis que tornam factível um envelhecimento saudável a ponto de
podermos antever o próximo século como o século dos velhos. Nossa responsa-
bilidade tende a aumentar na mesma proporção da importância atual e futura de
nossa atuação.

19
ANTROPOLOGIA, SAÚDE E ENVELHECIMENTO

Ora, se não é apenas a geriatria (que tende a focalizar as doenças consideradas


próprias da idade) a grande líder da transformação do idoso em ator político, seu papel
não pode deixar de ser reconhecido, juntamente com a combinação de vários outros
atores da história social no pós-Segunda Guerra Mundial. A expressão mais cabal
desse seu papel na redefinição de espaços é a idéia contemporânea de terceira idade,
uma nova construção social acrescentada às etapas da vida, referida entre a vida adulta
e a velhice propriamente dita. Nomeando a população entre 60 e 75 anos na Europa,
onde a esperança de vida vem alcançando 80 e 90 anos, essa ‘invenção’ se socializou
no mundo. Veio a reboque de grandes avanços científicos na área de prevenção e
tratamento de doenças crônicas, estabelecendo parâmetros cada vez mais definidos do
desenvolvimento humano e conquistando descobertas que se concretizam em
tecnologias de tratamento reconhecidamente eficazes e precisas.
É interessante notar que a maioria dos medicamentos mais modernos, por meio
dos quais a indústria farmacêutica mais lucra, estão voltados para o ‘envelhecimento com
qualidade de vida’ ou para manter o mito da imortalidade ou da eterna juventude,
com base em pesquisas farmacológicas e genéticas de ponta.
Seria uma simplificação e um reducionismo dizer que o grande propulsor das
transformações do papel atual do idoso na sociedade seja o mercado, mas não convém
desconhecer seu lugar. É preciso lembrar que a ‘terceira idade’ é uma nova categoria
social que designa o envelhecimento ativo e independente. Geralmente, essa etapa da
vida se compõe de uma população disposta – quando tem condições econômicas
mínimas para fazê-lo – à “ociosidade criativa” (De Masi, 2000) e à prática de múltiplas
atividades físicas e culturais. Assim, torna-se impossível desconhecer o seu papel
como ‘consumidora’, pois crescem pari passu a constatação desse fenômeno
demográfico, o turismo, a moda, a cosmética, a medicina de reabilitação e a fisioterapia,
a indústria de alimentação específica, novos padrões de construção, uma literatura
específica, além de todas as práticas, instituições e agentes voltados para esse público
cativo e em expansão.
A chamada ‘terceira idade’ se diferenciaria da quarta, de 75 a 85; ou da quinta,
compreendendo os velhos acima desse patamar (Peixoto, 2000), como os países euro-
peus já vêm classificando – sobretudo porque os sintomas e expressões de dependên-
cia física e mental vão se acentuando e são muito mais freqüentes nas últimas duas
faixas, em que os serviços se concentram no desenvolvimento de medicamentos, resi-
dências, equipamentos e pessoal especializado para atendimento médico e social.
Na verdade, a situação da ‘terceira idade’ e do acelerado envelhecimento
populacional, no Brasil e no mundo, inclui-se nos temas a gosto da globalização e da
cultura que é produzida neste novo momento histórico, sobretudo pelas mudanças que
provoca e pelas potencialidades que encerra. Como um fenômeno sobre o qual ainda há
pouca reflexão, necessita, para sua compreensão, de uma perspectiva construtivista,
em que as teorias e as propostas englobem os próprios atores delas destinatários. Mas,
tomada como questão pública, ela é uma espécie de ‘ícone’ dos avanços que a socieda-
de alcançou, mesmo tendo em conta todas as diferenças entre países desenvolvidos e
subdesenvolvidos, entre classes, gêneros e etnias.

20
INTRODUÇÃO

No caso nacional, a terceira idade revela os seguintes avanços positivos: o con-


trole de muitas doenças infecto-contagiosas e potencialmente fatais; a diminuição das
taxas de fecundidade; a queda da mortalidade infantil, graças à ampliação das redes de
abastecimento de água e esgoto; o aumento da cobertura vacinal e da atenção básica à
saúde; a acelerada urbanização; a universalização da previdência social e as profundas
transformações nos processos produtivos e de organização do trabalho e da vida.
Todas essas mudanças, na realidade, induzem a que se coloque em pauta uma
nova datação e um novo imaginário sobre as etapas da vida até então vigentes e
utilizadas para marcar os rituais de passagem, assim como os direitos e deveres públi-
cos e privados. O envelhecimento como questão pública retira esse tema do domínio
individual e privado sem negá-lo, colocando-o num âmbito muito mais abrangente: na
esfera da grande política e das políticas sociais. É preciso que, daqui para a frente, não
nos esqueçamos de que, no Brasil, esse grupo etário reúne e reunirá uma população
maior que qualquer sindicato de categoria e até mesmo que qualquer central sindical.

O I DOSO COMO A TOR S OCIAL


Por mais incrível que possa parecer, há duas categorias sociais opostas e em
construção olhando para o futuro do país. A primeira é a ‘juventude’, essa etapa entre
a adolescência e o mundo adulto que, exatamente pela força de expansão da expectativa
de vida e das exigências escolares, cada vez tende a ampliar seu tempo e a criar uma
identificação específica. A segunda é a velhice, que não pode ser nominada nem tratada
como há 50 anos, quando a expectativa de vida era apenas de 43 anos. Portanto, este
último e mais novo ator individual e coletivo está redefinindo as relações familiares;
construindo a medida de sua participação social; influenciando os rumos da política e,
em conseqüência, criando, a partir de si, uma nova imagem e delineando uma preciosa
etapa da vida, portadora de uma ética e de uma estética próprias.
Num estudo recente, Simões (2000) reconstruiu a história da constituição do
movimento dos aposentados brasileiros. Com os termos ‘luta’, ‘mobilização’ e ‘nova
categoria’ estruturando seu discurso ordenador desde o início dos anos 80 e culminando
na segunda metade dos anos 90, os idosos se reuniram e foram para as ruas reivindicar
reconhecimento de seus direitos previdenciários, aumento das aposentadorias e parti-
cipação na gestão de seus interesses, com assento nos conselhos nacionais de Saúde
e de Seguridade Social.
Na liderança da ‘maior categoria do país’, encontravam-se antigos líderes sindicais
e de movimentos sociais. Nesse embate, os idosos brasileiros, nas duas últimas décadas,
inauguraram um espaço próprio de ação, de cidadania e de inclusão. Modificaram o cenário
da organização social e se estabeleceram como um grupo de interlocução política – os
velhos elegem, destituem, dialogam, denunciam, recorrem à Justiça, incomodam e se fazem
ouvir. Transformaram-se, como obra própria, em atores sociais e em atores políticos.
O estudo de Simões (2000) faz uma distinção interessante. Ao mesmo tempo que
cresce e se estrutura o movimento dos aposentados, também se incrementam e se

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ANTROPOLOGIA, SAÚDE E ENVELHECIMENTO

multiplicam os grupos e os movimentos da chamada ‘terceira idade’. Os líderes dos


aposentados não gostam muito dessas outras formas de expressão. Costumam dizer
que as iniciativas da dita ‘terceira idade’ não são dirigidas a interesses da coletividade
e atendem apenas a anseios individuais, oferecendo atividades culturais como as ‘uni-
versidades abertas’, os grupos de encontro, de lazer, de solidariedade, de atividades
físicas e de excursões, entre outros.
Ora, olhando a efervescência dos dois movimentos, constata-se que não há con-
tradição entre eles, mesmo porque os grupos de atividades culturais devem congregar
pessoas que participam do movimento de aposentados e vice-versa. Mas há diferenças
de ênfase: os movimentos socioculturais costumam reunir muito mais mulheres que
homens, e os dos aposentados, mais homens que mulheres. Ambos, porém, revelam a
busca do ‘protagonismo’ de ‘uma nova categoria’ – como revelam Ana Bassit, Rita Heck
& Jean Langdon, Alda Motta e Elizabeth Uchôa e colaboradores – que acotovela os
jovens adultos, exigindo a abertura de espaço e novos arranjos nas estruturas de poder.
É preciso reconhecer que, do ponto de vista econômico, os idosos e, de forma
destacada, ‘a terceira idade’ se configuram hoje como um mercado crescente e cada vez
mais promissor no mundo dos bens de consumo, da cultura, do lazer, da estética, dos
serviços de prevenção, atenção e reabilitação da saúde. Do ponto de vista sociológico,
constituem um emergente ator social, com poder de influir nos seus destinos, pela sua
significância numérica e qualitativa, por meio da construção de leis de proteção, de
conquista de benefícios e pela presença no cenário político, no qual valem seu voto e
sua representação. Como um novo construtor de cultura, o idoso tem papel insubstituível
porque, radicalizando as novas situações, nada poderá ser como antes, sob pena de
sua exclusão moral e social do projeto para o futuro do país.
Os chamados ‘tempos pós-modernos’ trouxeram à pauta algumas questões cul-
turais que favorecem um novo pensamento sobre a ‘terceira, quarta ou quinta idade’. A
primeira é a relativização da centralidade da categoria ‘trabalho’ tal como foi pensada no
mundo ocidental e na sociedade industrial – em que, como assinala Weber (1985), foi
considerado ‘vocação’ e, como lembra Marx (1978), acabou sendo um fator de aliena-
ção e despersonalização. Hoje a sociedade está mais aberta para outras formas de
identificação e madura para a crítica do ‘homem unidimensional’ que fez do trabalho
para sobreviver seu único objetivo possível de vida. Cada vez mais se admitem outras
formas de pertencimento social e tempo para o ócio criativo, possibilidade que vem
junto com a perspectiva de diminuição da jornada de trabalho, como previu Marx (1984)
em A Ideologia Alemã. A noção de ‘consumidor cidadão’ e a expansão das redes de
comunicação, lazer e cultura estão contribuindo para dar força à produção e ao reco-
nhecimento de outras possibilidades de identificação.
Em segundo lugar, e em conseqüência de uma abertura propiciada, sobretudo,
pelas tecnologias de comunicação e informacionais, vem se ampliando o respeito ao
pluralismo de comportamentos e de atividades, o que, em conseqüência, acaba por
romper estereótipos ideológicos e comportamentais. Por fim, do ponto de vista cultural,
observa-se uma valorização da subjetividade em todos os níveis do mundo da vida, da
ciência e da política.

22
INTRODUÇÃO

Ao questionar a idéia do trabalho remunerado como a única forma de realização


social e ao colocar em foco outras formas de estar no mundo e na sociedade, os tempos
atuais permitem aos idosos, como nunca antes, construírem sua nova identidade sob
uma ótica de trabalho não obrigatório, mas de utilidade e de sentido. Isso propicia
outros espaços de expressão a serem inventados e desfrutados, contrapondo-se à
pecha de ‘descartáveis’ ou à própria referência a si mesmos como ‘inúteis’.
A maior abertura para o pluralismo de idéias, comportamentos e atitudes confi-
gura, para esses homens e essas mulheres, o espaço menos preconceituoso para seus
desejos e possibilidades de realizações, retirando de suas testas a tarja repressora, na
qual está escrito que ser velho é colocar o pijama de avô ou o chinelinho de avó, contar
histórias do passado, parar de ousar e preparar-se para a morte.
Na verdade, não sem dor e conflitos, os papéis sociais estão mudando e podem
mudar mais, à medida que os idosos se coloquem como atores das transformações com
que sonham. Quase tudo está por fazer. As vivências, em maior profundidade, da pró-
pria subjetividade permitirão aos velhos afrontarem as repressões provocadas tanto
pelas próprias necessidades do trabalho quanto pelos constrangimentos familiares,
sendo mais autênticos e mais felizes.
Por fim, as novas possibilidades de comunicação, de viagens, de participação
grupal, de ampliação da cultura, do cultivo de diferentes formas de lazer permitem
também uma existência mais saudável. Mesmo nos bairros e nas condições em que
vivem os mais pobres, é possível dar um novo sentido e articular atividades de encon-
tro, comunicação e afeto. Para tudo isso, é importante mudar a idéia de que velhice é
doença, substituindo-a por uma nova visão de um tempo no qual se pode optar com
menos constrangimentos pelo rumo que se quer dar a esta última etapa da vida, produ-
zindo dela uma síntese criadora. Essa autoria, para a qual não estão definidos os cami-
nhos a priori, cabe ser inventada, tal qual tem sido feito pelos movimentos citados
aqui. Dessa forma, a contribuição específica dos idosos será um bem para a sociedade
e estabelecerá os contornos de seus próprios interesses, num mundo cheio de outros
poderosos interesses.

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