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Educacao Intercultural Letramentos de Resistencia e Formacao Docente

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Rodriana Dias Coelho Costa

Edinei Carvalho dos Santos


Kleber Aparecido da Silva
(Orgs.)

Educação intercultural,
letramentos de resistência
e formação docente
Rodriana Dias Coelho Costa
Edinei Carvalho dos Santos
Kleber Aparecido da Silva
(Orgs.)

Educação intercultural,
letramentos de resistência
e formação docente

Campinas, SP
2021
Palavra dos editores

Esta publicação, digital e gratuita, compõe o catálogo de livros


digitais da Editora da ABRALIN, uma editora open access, criada
em 2020, que busca oferecer mecanismos efetivos de publicação
e circulação de obras de Linguística no país. A ideia que norteia
seu funcionamento encontra melhor expressão nas palavras de seu
idealizador, Prof. Dr. Miguel Oliveira Jr., presidente da ABRALIN:
“acreditamos que dar acesso livre à produção intelectual de exce-
lência, que é fruto – na maioria das vezes – de investimento públi-
co, é o caminho mais democrático no contexto socioeconômico em
que vivemos”. Sem dúvida, essas palavras foram definitivas para o
nosso engajamento na criação da Editora da ABRALIN. Queremos
contribuir para fazer da Editora da ABRALIN um canal permanente
de apoio à divulgação da sólida pesquisa feita nas muitas áreas da
Linguística no Brasil.
Como todos sabemos, a ABRALIN desempenha papel funda-
mental na consolidação dos estudos linguísticos no Brasil, contri-
buindo de maneira crucial para a criação e a preservação de espaços
de acolhimento da diversidade de ideias linguísticas, algo que tem
urgência ética e é – no nosso entendimento – atitude necessária
para manter o indispensável diálogo entre a sociedade e a comuni-
dade científica. A Editora da ABRALIN nasce dentro desse contexto
e com esse desígnio maior.
A excelência do trabalho da Editora e das obras por ela publica-
das será garantida – disso temos certeza – pela esperada contribui-
ção dos associados da ABRALIN. Tal contribuição constantemente
vem em atendimento aos editais e aos critérios tornados públicos
periodicamente, na forma de propostas de publicação, na cola-
boração junto ao Conselho Editorial e com as demais atividades
envolvidas no funcionamento da Editora.
Nossa expectativa é que a Editora da ABRALIN possa fornecer
obras de qualidade, acessíveis gratuitamente ao público-leitor in-
teressado, fomentando, assim, a pesquisa em Linguística, contri-
buindo com o diálogo constante entre pesquisadores e sociedade.

Valdir do Nascimento Flores


Gabriel de Ávila Othero
EDITORES
Prefácio

O fomento do pensamento crítico


para a formação de cidadãos
responsáveis: um desafio e tanto

KANAVILLIL RAJAGOPALAN
UNICAMP, UESB, UFT E CNPQ

Cidadão responsável é cidadão consciente. Consciente de seu lugar


na sociedade. Consciente dos seus direitos como também das suas
obrigações. Consciente, ademais, do seu dever e obrigação de estar
sempre vigilante em relação às forças ocultas, que frequentemente
se escondem nos porões do poder, e que têm como objetivo roubar
sua liberdade, seu modo livre de pensar e agir. Para os governan-
tes autoritários, que só se servem da sociedade ao invés de servir
a ela, quanto mais dócil, apático e alienado for o cidadão, melhor!
Para esses governantes, interessa mais controlar a mente do alu-
no desde sua infância, domar sua forma de pensar, estabelencendo
balizas que cerceiam o livre pensar, e dessa forma, robotizando os
alunos e controlando-os por controle remoto. Pouco lhes importa
se, em consequência de suas intervenções sucessivas, a educação
das crianças se tranforma em um plano maquiavélico de adestra-
mento, digno do mundo distópico do tipo Admirável Mundo Novo,
de Aldous Huxley.
Tudo isso é óbvio ululante! Mesmo assim, não custa reiterá-lo
de vez em quando. No mínimo, o lembrete diário serve de antídoto
ao perigo de ele se transformar em platitude e de ser tomado como
garantido. A nação, como sabiamente disse o historiador francês
Ernest Renan, há mais de um século, é “um plebiscito diário”. Plebis-
citos e referendos têm pleno êxito na medida em que quem exerce
seu direito de opinar sobre o tema o faz com clara consciência do
que está em pauta e o faz sem a interferência alheia. É preciso re-
sistir a qualquer tentativa, por parte de agentes mal-intencionados,
de nos enganar e surrupiar a nossa capacidade de bom senso e dis-
cernimento—afinal de contas, a coisa mais preciosa que temos para
nos defender dos esquemas ainda mais macabros!
Em nossos tempos, marcados pela confecção e propagação de-
senfreadas de fake news, criminosamente conduzidas em escala ex-
ponencial com intenção explícita de desviar atenção do público in-
cauto e incapacitá-lo para enxergar a verdade das coisas, incumbe
ao cidadão bem-intencionado recorrer a uma consciência crítica
do que está acontecendo ao seu redor. A consciência crítica à qual
estamos nos referindo não é algo que precisa ser inventado. Nem
se trata de algo da qual sempre estivemos totalmente ignorantes.
Por incrível que pareça, a consciência crítica é algo que se des-
taca em qualquer criança. A criança inocente e desobrigada pelas
etiquetas e por outros entraves de comportamento que inibem os
adultos de pensar no óbvio é um excelente exemplo do que estamos
falando. Só uma criança, com a qualidade que acabamos de descre-
ver, pode exclamar em voz alta “O Rei está nu”, enquanto que todos os
adultos da comitiva ou não enxergaram a nudeza real ou se conven-
ceram de que a impressão que tiveram não passava de ilusão ótica.
O que se pode depreender do conto de fadas chamado A roupa
nova do Rei de Hans Christian Andersen? Qual é a lição que ele deixa
para nós adultos? São várias as lições e seus desdobramentos. Em
primeiro lugar, para se chegar a uma leitura mais proveitosa daquilo
que se apresenta diante de nossos olhos é preciso pensar fora da
caixa, para utilizar uma expressão em voga. Isso implica desafiar e
recusar os padrões de enxergar as coisas que nos oprimem, abafam
a criatividade e canalizam o nosso pensamento numa determinada
direção, impedindo-nos de experimentar caminhos alternativos e
inovadores. A criança — protagonista do nosso conto — acertou em
sua descrição do que viu, porque desconhecia as normas ou, talvez,
mesmo que as conhecesse, pouco se importava com as mesmas.
Há também outra lição importante que o conto de Andersen
nos ensina. E ela diz respeito à própria atividade de ensino! Afinal,
as normas das quais estamos falando aqui foram quase todas elas
‘impostas’ sobre as crianças, ou pelos pais como parte da educa-
ção informal em casa ou como parte da instrução formal na escola
(lembrem-se, “aparelhos ideológicos” na visão de Althusser!). Aqui,
talvez haja uma importante luz de alerta para todos nós envolvi-
dos, de uma forma ou de outra, no empreendimento de ensino. Sem
que saibamos ou estarmos conscientes disso, incorremos em uma
atividade nefasta de doutrinar os nossos alunos ao invés de ensi-
ná-los numa acepção mais nobre dessa palavra. Isso ocorre, sobre-
tudo quando, em nosso afã de repassar-lhes a arte de raciocinar
e formar opiniões próprias, apresentando as diversas formas de
abordar um assunto, arregimentando argumentos a favor e contra
cada uma delas, acabamos por brindar-lhes uma única visão sobre
o tema em discussão. Devemos, contudo, ter bastante cuidado para
prestar atenção para a linha divisória bastante tênue que separa,
por um lado, a atitude, sem sombra de dúvida saudável e recomen-
dável enquanto estratégia de ensino, de defender as nossas convic-
ções com unhas e dentes (é claro sem partir para taques às opiniões
contrárias às nossas) e, por outro lado, a postura nada sensata e
condizente com a isenção e bom senso que se espera de um do-
cente comprometido com sua missão de impor as nossas opiniões
e crenças sobre os nossos alunos, ignorando as legitimas opiniões
em contrário e atropelando-as sem cerimônia.
Voltando à criança que denunciou a nudez do Rei, ela só conse-
guiu alcançar tal proeza graças ao fato de não ter sofrido a doutri-
nação disfarçada como educação (vale repetir, transformando-a, no
caso, numa farsa total!). O conceito de ‘pensamento lateral’ (lateral
thinking), tal qual foi desenvolvido nos anos de 1960 em diante por
Edward de Bueno, pode abrir um caminho para explicar o que de
fato acontece em casos como esse. Para começar, o pensamento la-
teral se distingue do pensamento ‘vertical’— termo este que se usa
para descrever o procedimento rigoroso, ‘lógico’, que a tradição nos
recomenda. Em contraste, o pensamento lateral começa desafiando
o procedimento já consagrado e opta por contemplar o problema a
ser desvendado sob holofotes diferentes.
Enquanto a grande maioria das pessoas, fieis ao ensinamento a
que foram submetidas, analisam a questão dentro do quadro em que
ela foi apresentada, quem segue o caminho de pensamento lateral
parte, antes de qualquer outra coisa, para enquadrá-la dentro de
novos moldes. E, ao fazer isso, descobre novas formas de solucionar
o problema, muitas vezes de uma forma admiravelmente singela.
Diga-se de passagem, que o conceito de pensamento lateral tem
sido objeto de duras críticas por estar em dissonância com o pen-
samento tradicionalmente prestigiado e taxado de ‘pseudociência’,
mas isso por si só não basta para ofuscar seus méritos. Imagine, por
exemplo, se Einstein, num Gedankenexperiment, pudesse passar
um tempo como uma criança aprendiz na Inglaterra na época em
que Issac Newton elaborava suas teorias sobre o universo e as leis
da gravidade etc. Ele, o pai da teoria da relatividade, talvez fosse re-
provado como aluno ou, quem sabe, fortemente recomendado para
passar por um teste psicológico por ‘distúrbios mentais’!
Brincadeira a parte, os avanços no campo de conhecimento
sempre se dão quando as questões forem abordadas com uma pitada
de ceticismo, quando elas forem abordadas de forma inédita, de ân-
gulos por onde ninguém antes teve a ousadia de olhar. O pensamento
crítico tem um pouco de tudo isso. Ele parte, não de convicções já
formadas e, menos ainda, ideologias já assumidas e abraçadas, mas
de uma posição de que as coisas sempre merecem ser revisitadas
com novos olhares. Os fenômenos, há muito tempo identificados e
rotulados, podem e merecem ser enquadrados de novas maneiras,
trazendo novas perspectivas que isso inevitavelmente exige de nós.
O pensamento contido no parágrafo acima pode ser conside-
rado um pequeno resumo do que trata o ‘letramento de resistência’,
termo que figura com destaque no título desta coletânea de textos
que fazem parte dos resultados das pesquisas sendo conduzidas
pelos colegas no Brasil. Pela ‘resistência’ se entende a recusa de
aceitar passivamente a leitura dominante ofertada por quem quer
que esteja no mando que não só disponibiliza os textos para serem
consumidos, mas também a leitura, a interpretação, dos mesmos —
como se fossem as únicas possíveis e autorizadas. O letramento de
resistência promove e encoraja a detecção de fendas e fissuras nas
leituras que são impostas sobre nós como as únicas legítimas, fen-
das e fissuras essas que, quando devidamente exploradas, revelam
planos secretos engenhosamente elaborados que apenas servem
interesses inconfessáveis de determinados grupos em detrimentos
dos interesses da grande maioria. Não é de estranhar que falar em
‘letramento de resistência’ provoca desconfiança e, com frequência,
até arrepio no meio daqueles que se encontram com a faca e o quei-
jo na mão dentro da ordem social!
Pensamento crítico é algo absolutamente vital para a forma-
ção de um cidadão na plenitude de suas potencialidades. A esco-
la tem um papel fundamental nessa tarefa. Pois, é na escola que a
criança pode ser encorajada para pensar livremente, para aprender
a voar com asas próprias. Porém, a escola também pode vir a ser o
lugar onde mais se abafa a curiosidade natural da criança, amorda-
çando-a e esmagando qualquer esperança de que ela se transforme
um dia numa cidadã que pensa e que é capaz de participar efetiva-
mente na formulação de políticas de governança, de vigiar, moni-
torar e avaliar decisões tomadas em nome dela por aqueles que se
encontram encarregados de fazê-lo. Ou seja, a esperança mora lado
a lado com o perigo de descuido e suas consequências.
Daí a necessidade premente de trazer essas questões à tona e
abri-las para ampla discussão, como fazem os autores dos 13 capítu-
los que compõem o conteúdo desta coletânea tão oportuna e valiosa.
Sumário

19 A P R E S E N TA Ç Ã O
Rodriana Dias Coelho Costa
Edinei Carvalho dos Santos
Kleber Aparecido da Silva

27 C A P Í T U LO 1
O C U R R Í C U L O E N Q U A N T O E S PA Ç O D E
C O N S T R U Ç Ã O D A I D E N T I D A D E E D I Á LO G O
DE SABERES INDÍGENAS
Rosilene Cruz de Araujo

51 C A P Í T U LO 2
C O R R I D A D E T O R A S : J O G O D I D Á T I C O PA R A
U M E N S I N O I N T E R C U LT U R A L
Elisa Augusta Lopes Costa

81 C A P Í T U LO 3
E D U C A Ç Ã O I N T E R C U LT U R A L E C U R R Í C U L O :
N O P R O J E T O P O L Í T I C O - P E D A G Ó G I C O, O
REENCONTRO COM A ANCESTRALIDADE, A
I D E N T I D A D E E O “ S E R I N D Í G E N A”
Ema Marta Dunck Cintra
105 C A P Í T U L O 4
I N T E R C U LT U R A L I D A D E E E D U C A Ç Ã O
ESCOLAR INDÍGENA EM NÍVEL SUPERIOR
Maria Gorete Neto

129 C A P Í T U L O 5
O L U G A R D E P E RT E N C I M E N T O É T N I C O N A
UNB: UM OLHAR DISCURSIVO CRÍTICO DA
DIVERSIDADE
Núbia Batista da Silva- Nubiã Tupinambá

155 C A P Í T U L O 6
I N T E R C U LT U R A L I D A D E E E D U C A Ç Ã O
INDÍGENA NO CONTEXTO BRASILEIRO:
ALGUMAS REFLEXÕES
Rodriana Dias Coelho Costa
Kleber Aparecido da Silva

191 C A P Í T U L O 7
“TEM MOMENTOS QUE A GENTE TEM QUE
S E C O M P O RTA R C O M O TA L” : P R Á T I C A S
DE LETRAMENTOS COM UMA ACADÊMICA
INDÍGENA AKWẼ XERENTE
Suety Líbia Alves Borges

221 C A P Í T U L O 8
EDUCAÇÃO INDÍGENA E OS DESAFIOS NA
FORMAÇÃO LINGUÍSTICA DOS PROFESSORES
– R E L AT O D E E X P E R I Ê N C I A S
Áurea Cavalcante Santana
237 C A P Í T U L O 9
L E T R A M E N T O S : A E S C R I TA N O C Á R C E R E
Maria Aparecida de Sousa

265 C A P Í T U L O 10
A E S C R I TA D E P E S S O A S P R I VA D A S D E
LIBERDADE: O LETRAMENTO COMO
REEXISTÊNCIA
Amanda Moreira Tavares
Tânia Ferreira Rezende

301 C A P Í T U L O 11
LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA EM
C O N T E X T O D E L U TA P O R T E R R A E
T E R R I T Ó R I O N A C H A PA D A D O A P O D I
N O RT E - R I O - G R A N D E N S E
Glícia Azevedo Tinoco
Adriana Vieira das Graças

337 C A P Í T U L O 12
L E T R A M E N T O S E VA R I A Ç Ã O L I N G U Í S T I C A
EM CONTEXTO CIGANO
Maria Marlene Rodrigues da Silva
Rosineide Magalhães de Sousa

367 C A P Í T U L O 13
PRÁTICAS E EVENTOS DE LETRAMENTOS
E M C O N T E X T O S D E L U TA E R E S I S T Ê N C I A :
UMA EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA NO
Q U I L O M B O M E S Q U I TA - G O I Á S ( G O )
Edinei Carvalho dos Santos
Kleber Aparecido da Silva
411 P O S F Á C I O
LENDO CRÍTICOS, CRITICAMENTE
Wilmar da Rocha D’Angelis

417 S O B R E O S / A S O R G A N I Z A D O R E S / A S

419 S O B R E O S P R O F E S S O R E S C O L A B O R A D O R E S
Apresentação

RODRIANA DIAS COELHO COSTA (UNB)


EDINEI CARVALHO DOS SANTOS (UNB)
KLEBER APARECIDO DA SILVA (UNB)

A presente coletânea é constituída por treze artigos de professo-


res-pesquisadores que atuam no contexto de sala de aula, articu-
lados na discussão sobre educação intercultural, letramento e ex-
periência em formação docente. Esta obra oferece ao leitor, a cada
conclusão dos artigos, reflexões e questionamentos sobre as temá-
ticas abordadas, o que viabiliza didaticamente uma discussão peda-
gógica profícua. Os contextos apresentados transitam em diversos
âmbitos de ensino-aprendizagem no ensino básico e superior e em
distintos contextos interculturais.
A coletânea está organizada em duas partes principais: educação
intercultural e letramentos. Na primeira parte, os autores discutem
sobre educação intercultural e formação docente para a diversidade,
tendo em vista alguns entreves encontrados por alunos e alunas indí-
genas em diferentes âmbitos de ensinos constituídos sob uma ótica
hegemônica e ocidental. Na segunda parte, os autores discutem so-
bre as experiências de letramento voltadas para o contexto de ensino
intercultural, bem como as práticas de letramento de resistência em
um conjunto de contextos minoritarizados (assentamentos rurais,
cárcere, comunidades ciganas e quilombolas).

19
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

A seguir apresentaremos um breve resumo dos artigos que


compõem este trabalho, a fim de apresentar um panorama geral em
que as interlocuções são situadas.
O capítulo um, intitulado “O currículo enquanto espaço de
construção da identidade e diálogo de saberes indígenas”, da pro-
fessora-autora Rosilene Cruz de Araujo, traz sua experiência vivi-
da enquanto professora e gestora indígena na busca de compre-
ender e encontrar soluções para os dilemas enfrentados pelos
professores indígenas do Estado da Bahia. Tais dilemas centram-
-se na consolidação de uma Educação Escolar Específica e In-
tercultural amparada nos princípios dos documentos e leis que
parametrizam a educação escolar indígena. Segundo a autora,
“o currículo é uma construção histórica e, quando o assunto é
currículo nas escolas indígenas, essa concepção fica ainda mais
clara quanto à necessidade de se construir um currículo espe-
cífico” (p. 28). Diante dessa discussão, a autora expõe o desafio
que perpassa a luta pela elaboração de um currículo que atenda
as demandas da sociedade indígena do estado da Bahia como um
caminho reflexivo e de resistência.
O capítulo dois intitulado “Corrida de toras: jogo didático para
um ensino intercultural” da professora-autora Elisa Augusta Lopes
Costa traz uma discussão reflexiva sobre a educação indígena no
Brasil interligada à perspectiva intercultural, tendo em vista as cul-
turas indígenas e a cultura de entorno. O estudo foi realizado na
Educação Escolar Indígena Krahô, mais especificamente na Escola
Indígena 19 de Abril, localizada na aldeia Manoel Alves Pequeno, ao
norte do estado do Tocantins. Desse modo, a professora-autora do
referido capítulo expõe algumas estratégias de ensino de portu-
guês como segunda língua, considerando o contexto sociolinguís-
tico complexo. A partir da ludicidade, que segundo a autora: “surge
neste contexto um elemento integrador, pois as atividades lúdicas

20
Apresentação

propiciam uma forma prazerosa de estabelecer diálogo entre di-


ferentes visões de mundo, facilitando a negociação de soluções
para os conflitos que podem surgir na relação intercultural” (p. 52).
A prática pedagógica, a partir de oficinas, descrita nesse capítu-
lo, caracteriza a possibilidade da criação de jogos didáticos para o
ensino-aprendizagem de português como segunda língua em um
contexto sociolinguístico complexo.
O capítulo três denominado “Educação intercultural e currí-
culo: no projeto político-pedagógico o reencontro com a ancestra-
lidade, a identidade e o 'ser indígena'” da professora-autora Ema
Marta Dunck Cintra apresenta o contexto sócio-histórico do povo
indígena Chiquitano das comunidades de Acorizal e Fazendinha,
no Mato Grosso. O referido artigo busca discutir a educação in-
dígena intercultural a partir do fortalecimento da língua materna,
tendo em vista a atitude desse povo na construção do seu Projeto
Político-Pedagógico. Desse modo, o artigo discorre sobre a elabo-
ração de um projeto político-pedagógico como um caminho para
reafirmar e vivenciar a ancestralidade e identidade Chiquitano, a
fim de trazer as vozes antes silenciadas.
No capítulo quatro, “Interculturalidade e educação escolar
indígena em nível superior”, produzido pela professora-autora
Maria Gorete Neto, é discutido o conceito de interculturalida-
de a partir de uma experiência no curso de formação de pro-
fessores indígenas em nível superior no curso de licenciatura
em Formação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O referido arti-
go trata da educação intercultural indígena e das implicações da
visão de mundo que intercruzam com a academia como espaço
burocrático e saberes cristalizados regidos por uma perspecti-
va ocidental-capitalista. Desse modo, a professora-autora lança
mão de uma reflexão sobre como o “ambiente universitário tem

21
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

sido instigado a lidar com distintas culturas, línguas, saberes e


cosmovisões” (p. 117).
No capítulo cinco, intitulado “O lugar do pertencimento étnico
na UnB: um olhar discursivo crítico da diversidade”, a professora
e autora indígena Núbia Batista da Silva – Nubiã Tupinambá abre
esta coletânea com uma importante reflexão sobre as narrativas do
lugar de pertencimento étnico na UnB visando a diversidade. Nesse
contexto, o artigo lança luz sobre os diferentes saberes ancestrais
e conhecimentos acadêmicos no âmbito da academia, onde a pró-
pria autora do artigo ocupa o lugar de acadêmica e pesquisadora. A
autora traz para o diálogo as vozes de acadêmicos e acadêmicas in-
dígenas da Universidade de Brasília para uma reflexão sobre a dis-
criminação e adaptação cultural, com o intuito de rever as políticas
de inclusão no âmbito universitário.
No capítulo seis intitulado “Interculturalidade e educação indí-
gena no contexto brasileiro: algumas reflexões” os professores-au-
tores Rodriana Dias Coelho Costa e Kleber Silva discorrem sobre
uma experiência em sala de aula com alunos indígenas, pertencen-
tes a várias etnias, no curso de Educação Intercultural Indígena na
Universidade Federal de Goiás. A prática docente consiste em uma
oficina de produção textual, em que é abordada o tipo dissertativo-
-argumentativo produzido a partir do gênero carta argumentativa,
inserida numa prática de letramento intercultural e transdiscipli-
nar. O artigo traz à luz algumas reflexões relevantes para o ensino
de português como segunda língua, mais precisamente, na produ-
ção escrita, tendo em vista a realidade dos alunos e alunas indíge-
nas que transitam em contextos socioculturais distintos.
No capítulo sete, “Educação indígena Akwẽ: entraves e pers-
pectivas discutidas durante as aulas no comitê”, Suety Líbia Bor-
ges apresenta as experiências de letramentos de Eneida Brupahi
Xerente, indígena da Aldeia Funil, comunidade localizada a 12

22
Apresentação

quilômetros do munícipio de Tocantínia, no Estado do Tocantins.


Assumindo uma postura intercultural da linguagem, a autora co-
loca em diálogo os conhecimentos produzidos entre dois mun-
dos: português e Akwẽ, resumido na relação de uma professora
pesquisadora não indígena a falar sobre práticas de letramento
de e com uma aluna-orientanda indígena. Como mostra a autora,
as vivências de Eneida em Terra Indígena Xerente acontecem na
oralidade, na mais rica e bela manifestação de si e de sua re-
lação com o mundo. Como mostra o capítulo, distante de um
olhar grafocêntrico, as práticas letradas vivenciadas por Eneida
ampliam o tradicional conceito de letramento para além da es-
crita, abrindo espaço para pensarmos em outras epistemologias
e formas de conhecimento.
No capítulo oito, “Educação indígena e os desafios na forma-
ção linguística dos professores – relato de experiências”, Áurea
Cavalcante Santana traz algumas reflexões advindas da convivên-
cia durante os cursos de formação de professores no Projeto Hayô
(Polos: Alto Xingu, Campinápolis e Juína) e durante as pesquisas e
estudos linguísticos realizados nas comunidades indígenas: Chi-
quitano (Vila Nova Barbecho, Acorizal, e Fazendinha - município
de Porto Esperidião, MT); Wakalitesu/Nambikwara (Três Jacus –
município de Sapezal, MT); Manoki/Irantxe (Caititu - município
de Sapezal, MT). Entre as principais atividades desenvolvidas em
campo durante o processo de formação, autora apresenta os Se-
minários de Formação Linguística e as Oficinas Pedagógicas das
quais fazem parte professores, alunos e demais membros da co-
munidade. As experiências relatadas pela autora demonstram que
as oficinas e os seminários de estudos linguísticos realizados nas
comunidades constituem espaços positivos de formação de pro-
fessores e pesquisadores, contribuindo para a formação linguísti-
ca dos professores indígenas.

23
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

No capítulo nove, “Letramentos: a escrita no cárcere”, Ma-


ria Aparecida de Sousa, analisa as funções dos letramentos na
Penitenciária Feminina do Distrito Federal. Na prisão, conforme
mostra a autora, os letramentos de resistência se multiplicam
em eventos e práticas discursivas nas quais diferentes identida-
des pessoais e sociais são forjadas. Focalizando principalmente
a análise discursiva do gênero BO (textos anônimos produzidos
por mulheres privadas de liberdade), a autora mostra como as
condições de produção dos discursos instanciados nesses gêne-
ros permitem que as mulheres em situação de cárcere se posi-
cionem sobre temas relevantes para si, revelando representações
que se relacionam com modos de identificação e de ação/relação.
Dentro do cárcere, como revela a autora ao longo do capítulo, os
letramentos evidenciados na escrita dos BOs desempenham um
importante papel nos processos de resistência, mas também nos
processos de reexistência, já que, por meio da escrita e de outras
semioses, as mulheres encarceradas conseguem projetar novos
projetos de vida e resgatar dimensões de sua existência silencia-
das durante a experiência de confinamento.
No capítulo dez, “A escrita de pessoas privadas de liber-
dade: o letramento como reexistência”, Amanda Moreira Tavares e
Tânia Ferreira Rezende analisam como os processos de letramen-
to de reexistência, construídos e vividos por pessoas privadas de
liberdade na Unidade Prisional de São Luís de Montes Belos, em
Goiás, estão a serviço da sobrevivência e da busca de restituição
de liberdade. Ao mostrar o desencarceramento das vozes silen-
ciadas pela escrita (através da possibilidade que os presos têm de
escrever ao juiz da comarca), as autoras buscam evidenciar uma
rasura no sistema de poder sociolinguístico, ou seja, brechas e
fissuras no sistema conservador da norma culta única da língua
portuguesa e no sistema judiciário. Com os achados da pesquisa,

24
Apresentação

as autoras salientam a importância de ensinar bem a tecnologia


da escrita como instrumento de luta, principalmente nos anos ini-
ciais de escolarização, para que as pessoas das minorias subalter-
nizadas tenham, de fato, condições de desobedecer às estruturas
de opressão.
No capítulo onze, “Letramentos de resistência em contex-
to de luta por terra e território na Chapada do Apodi norte-rio-
-grandense”, Glícia Azevedo Tinoco e Adriana Vieira das Graças
analisam o letramento de resistência desenvolvido por mulheres
no processo de luta por terra e território na Chapada do Apodi.
A análise das pesquisadoras aponta que as práticas de letramen-
to de resistência, mobilizadas em âmbito local e aliadas a outras
práticas de letramento e mobilização popular, fortaleceram a or-
ganização e o empoderamento das trabalhadoras rurais da Cha-
pada do Apodi, contribuindo para transformar um problema local
em uma luta coletiva internacional. Como mostra o capítulo, ao
participarem de diferentes eventos de letramento, as mulheres da
Chapada do Apodi atuaram como importantes agentes de letra-
mento em defesa e proteção de si mesmas, da terra e do territó-
rio, lutando pela própria vida e pela vida da coletividade: resistin-
do e, ao mesmo tempo, reexistindo.
No capítulo doze, “Letramentos e variação linguística em
contexto cigano”, Maria Marlene Rodrigues da Silva e Rosineide
Magalhães de Sousa apresentam o resultado de uma etnografia
realizada durante cinco anos em duas comunidades ciganas loca-
lizadas no Distrito Federal, nos acampamentos Calon do Córrego
do Arrozal, em Planaltina e na Rota do Cavalo, em Sobradinho.
O capítulo traz os letramentos de resistência das comunidades
ciganas em relação aos letramentos oficiais, que compreendem a
participação em importantes eventos de letramento para o exer-
cício da cidadania como, por exemplo, saber escrever um ofício

25
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

para acessar determinadas políticas públicas. Os autores defen-


dem a tese de que nessas comunidades é necessário um trabalho
de interface entre os letramentos e a variação linguística, sendo
isso percebido como um letramento de resistência.
O capítulo treze, “Práticas e eventos de letramentos em con-
textos de luta e resistência: uma experiência etnográfica no Qui-
lombo Mesquita - Goiás (GO)”, escrito por Edinei Carvalho e Kle-
ber Silva, apresenta um recorte de uma etnografia sobre eventos
e práticas de letramentos no Quilombo Mesquita, uma comuni-
dade negra rural localizada no município de Cidade Ocidental,
estado de Goiás. Partindo do conceito de letramento como um
conjunto de práticas sociais que varia no tempo e espaço, os au-
tores mostram como atores sociais da comunidade desenvolvem
vários modos de engajamento com a leitura e escrita e atribuem
diferentes significados ao ato de ler e escrever em diferentes
contextos e esferas de atividade. Com esse objetivo, a pesquisa
procura contribuir não só com o reconhecimento da diversidade
de letramentos no Quilombo Mesquita, mas também com as di-
ferentes identidades e vozes sociais que emergem em contextos
de luta e resistência.
A presente coletânea pretende contribuir com o ensino-
-aprendizagem e, consequentemente, como os Estudos Linguísti-
cos, por meio de propostas interculturais e críticas para a promo-
ção de uma formação humanizadora em respeito às diversidades.

26
CAPÍTULO 1

O currículo enquanto espaço de


construção da identidade e diálogo
de saberes indígenas

ROSILENE CRUZ DE ARAUJO


UNIFAP

Para a compreensão dos processos históricos da Educação Escolar


Indígena, faz-se necessário um diálogo sobre o currículo enquanto
espaço de construção da identidade e do diálogo de saberes indí-
genas, a partir da base teórica e da prática interdisciplinar, visando
à discussão de aspectos curriculares e pedagógicos relacionados à
educação intercultural. Sendo assim, apresento uma discussão da
questão para fins de análise histórica e cultural da área1, a partir
de experiências vividas pelas Escolas Indígenas Capitão Francisco
Rodelas e Pataxó Coroa Vermelha.

1  Este artigo foi elaborado a partir da experiência vivida enquanto professora e


gestora indígena que buscou compreender e encontrar soluções para os dilemas
enfrentados pelos professores indígenas do Estado da Bahia para a consolidação de
uma Educação Escolar Específica e Intercultural amparada nos princípios, valores e
anseios das comunidades indígenas, bem como na legislação da Educação Escolar
Indígena, aprofundado com a pesquisa do mestrado, o que compõe a primeira parte
do terceiro capítulo de minha dissertação (Araújo, 2013) e, assim, conta com vários
acréscimos e supressões que não estão no primeiro texto.

27
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Tratar do tema currículo é tocar em três perguntas centrais


e inseparáveis da educação: i) o que aprender? ii) para que servirá
esse conhecimento? iii) o que a escola deve ensinar? Essa última
indagação aparenta uma simplicidade fácil de resolver, mas ca-
mufla um debate de visões de mundo, de ideologias, de valores e
de poder. O currículo é uma construção histórica, e quando o as-
sunto é currículo nas escolas indígenas, essa concepção fica ain-
da mais nítida. Para Cecília apud Carmargo (2014) “Um currículo
muda ou porque ele é empurrado pelas transformações, ou para
impor certos valores estranhos aos indivíduos”. Para Coll (1997),
“O currículo é um elo entre a declaração de princípios gerais e
sua tradução operacional, entre a teoria educacional e a prática
pedagógica, entre o planejamento e a ação, entre o que é prescrito
e o que realmente sucede nas salas de aulas”. (COLL, 1997, p. 34).
A LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação, com relação
à elaboração do currículo, enfatiza, no Artigo 26, a importância da
construção das “características regionais e locais da sociedade, da
cultura, da economia e da clientela” de cada escola, para que sejam
alcançados os objetivos do ensino fundamental. No caso das esco-
las indígenas, para que seja garantida uma educação diferenciada,
não é suficiente que os conteúdos sejam ensinados através do uso
das línguas maternas. É necessário incluir conteúdos curriculares e
metodologia propriamente indígena e acolher modos próprios de
transmissão dos saberes. Mais do que isso, é imprescindível que a
elaboração dos currículos, entendida como processo sempre em
construção, se faça em estreita sintonia com a escola e a comuni-
dade indígena a que serve, e sob a orientação dessa última.
Esse contexto nem sempre acontece assim, pois, muitas
vezes, o currículo desenvolvido nas escolas indígenas é sempre uma
adaptação dos currículos das escolas não indígenas. A partir dos
anos de 1940, já era comum, entre os povos indígenas e algumas re-

28
Capítulo 1

presentações governamentais, a compreensão de que a escola para


aluno indígena não podia ser igual à escola para aluno não indíge-
na. Somente a partir dos anos de 1980 é que o currículo nas esco-
las indígenas passa a ser “flexível”. Trinta e nove anos depois ainda
encontramos grandes resistências para que essa flexibilização do
currículo se torne efetivamente uma prática, e isso fica claro na fala
da Professora Genicélia Tuxá.

Espero que essa educação escolar indígena realmente possa de


fato ser colocada em prática, digo: desburocratizada. Pois, so-
mente dessa maneira, poderemos assegurar a continuidade da
cultura do nosso povo. Percebo que a escola desenvolve ações
em seu projeto político pedagógico que privilegiam os saberes
da nossa comunidade, mas ainda falta construir paradigmas que
orientem os profissionais a fazer um trabalho coerente e dentro
dos padrões estabelecidos pelo RCNEI2.

Como reflexão acerca do tema Currículo e da prática peda-


gógica nas escolas indígenas, é importante discutir e aprofundar o
que vem a ser de fato currículo, para que possamos compreender
como o mesmo acontece na prática, seus conceitos e análises.
Voltando às perguntas centrais no início do texto, trazemos
alguns resultados da pesquisa feita com os alunos, professores e
lideranças Pataxó e Tuxá das Escolas Indígenas Pataxó Coroa Ver-
melha e Capitão Francisco Rodelas, das comunidades indígenas de
Coroa Vermelha e Rodelas, sobre o papel de cada um e o que se
espera dessa educação.

2  As falas de lideranças, professores e estudantes que aparecem no texto foram


resultado de entrevistas realizadas durante a pesquisa de campo do mestrado.

29
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

A escola deve ensinar os jovens indígenas a serem líderes, críti-


cos, políticos, profissionais, solidários, fortes na sua identidade
cultural, éticos em relação aos seus parentes, às outras socieda-
des indígenas e ao mundo envolvente, aprimorando os conheci-
mentos tradicionais da etnia e os conhecimentos técnicos e cien-
tíficos da atualidade global (Professora Tuxá).

Preparar os jovens na questão política, para que saibam dialogar


bem com todos que nos rodeiam, defender os direitos do nosso
povo e os seus direitos como membro Tuxá e como bom cidadão
brasileiro (Cacique Bidu Tuxá).

Aprender a produzir os conhecimentos do nosso povo como: arte,


dança, cultura, ervas medicinais, agricultura, alimentação e própria
(Alunos Tuxá: Wynamã, Bianca, Rafaela, Mateus, Ana Clara e Cris).

Preparar os jovens para serem bons articuladores dos nossos conhe-


cimentos nas nossas aldeias e no mundo afora (Cacique Aruã Pataxó).

Desenvolver e praticar a arte indígena, fortalecer na nossa iden-


tidade cultural, conhecer e adquirir os conhecimentos tecno-
lógicos de fora, compreendendo, utilizando adequadamente e
interagindo com os conhecimentos indígenas de interesses co-
munitários, nos preparando para transmitir a outros membros
da comunidade os conhecimentos aprendidos e desenvolver o
respeito e cuidado com o território onde vivemos (Professores e
gestores Pataxó: Vilma, Uelson, Ademário e Jeane).

A escola é uma instituição responsável por sistematizar o conhe-


cimento necessário para a formação do indivíduo, preparando-o
para o convívio da comunidade e para o mundo globalizado. A escola
deve partir da realidade do aluno, considerando nossos costumes e
cultura, privilegiando os saberes da nossa comunidade. O papel da
escola deve contemplar a valorização e a identidade étnico-cultural
do nosso povo, relacionando os nossos saberes com os conhecimen-
tos que sustentam os pilares da educação contemporânea e assim
construir o nosso modelo de educação e que essa seja intercultural,
específica e de qualidade (Genicélia Tuxá).

30
Capítulo 1

Assim, todo esse conhecimento servirá de base para a


formação consciente dos sujeitos envolvidos e do seu papel en-
quanto membros da comunidade indígena, contribuindo para sua
autossustentação famíliar, da comunidade e do território do qual
fazem parte.
Sabemos, no entanto, que os objetivos elencados pelos
professores, alunos e lideranças Pataxó e Tuxá nem sempre são
contemplados no currículo escolar. Essa proposta está atrelada e
depende não somente da organização desses povos e de suas co-
munidades, mas também das questões políticas do estado e muni-
cípios que, por sua vez, perpassam por uma série de entendimen-
tos ou falta de entendimentos sobre o processo de construção do
diferencial da educação escolar indígena no currículo da educação
básica. Isso está ligado a três questões fundamentais dentro do sis-
tema. Primeiro, não dá para pensar uma política que não é a de in-
clusão e sim de reconhecimento, sem conhecer o sujeito e, aqui, eu
me refiro não somente ao aluno, mas também ao professor, pais de
alunos, lideranças e demais membros da comunidade; segundo, o
poder público deve estar aberto para compreender e dialogar com
esse conjunto de sujeitos para uma construção coletiva de novos
saberes e dos saberes intrínsecos de cada povo e, ou comunidade;
e, por último, é preciso construir uma diretriz específica, em espe-
cial, uma matriz curricular aberta para esse diálogo, a qual, por sua
vez, significa o início do caminho a ser trilhado na prática e organi-
zação pedagógica do professor indígena.

31
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

O CURRÍCULO E O EXERCÍCIO DO DOCENTE INDÍGENA FACE AOS


DESAFIOS SOCIAIS NA CONSTRUÇÃO DE UM NOVO MODELO DE
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL

Muito há por se fazer para que as escolas indígenas conquis-


tem a autonomia curricular, autonomia esta pautada na constru-
ção e organização próprias. Esta organização autônoma deve ser
construída com a participação da comunidade indígena, levando
em consideração as estruturas sociais, práticas socioculturais e re-
ligiosas, atividades econômicas, formas de produção de conheci-
mentos, processos próprios e métodos de ensino-aprendizagem. As
normas adotadas pelo sistema de ensino do estado e de municípios
contradizem os princípios da educação diferenciada quando tomam
como referência, para a criação das escolas, sua organização, seus
regimentos, projetos político pedagógicos, matriz curricular, con-
tratação de profissionais da educação, atendimento ao transporte e
merenda escolar, critérios que não se adaptam à realidade indígena.
Trazemos, aqui, alguns exemplos do que dificulta a organiza-
ção e funcionamento das escolas indígenas. Primeiro, quando as es-
colas indígenas são identificadas na categoria “escolas rurais”, com
calendários escolares e planos de cursos pensados para esse tipo
de escola; segundo, considerar algumas das escolas indígenas como
escolas nucleadas3, ou salas vinculadas a uma escola para não índio,
sob o argumento de que as escolas indígenas não atendem aos re-
quisitos mínimos exigidos para atender a clientela do ensino médio
e que não podem ter um funcionamento administrativo e currículo

3  Escolas nucleadas acontecem quando várias escolas são vinculadas a um único


endereço e, portanto, aparecem como sendo uma única escola. É o caso, para citar
um exemplo, da Bahia, que nucleou num estabelecimento (Escola Indígena Tupinam-
bá de Olivença), um total de 20 escolas. Esse processo acontece na sua maioria hora
pelo difícil acesso à escola (terras muito extensas), hora pelo processo de retomada
de demarcação de território que é o caso do povo Tupinambá.

32
Capítulo 1

autônomo; e, por último, a direção das escolas indígenas fica nas


mãos de professores não indígenas, com a argumentação de que
o professor, para ser diretor de escola, tem que ter vínculo efetivo
com a Rede, seja ela estadual ou municipal.
Sabemos que até o ano de 2010, pela inexistência da Carreira
do Professor Indígena no quadro do magistério do estado e mu-
nicípios, não se podia aplicar concurso público específico para as
escolas indígenas e, como consequência, a falta de professores in-
dígenas concursados para atuar em suas escolas como dirigentes,
contradizendo o que determina a legislação da educação escolar
indígena, especificamente a resolução 03 da CEB/CNE, que diz que,
para atuar nas escolas indígenas, o profissional deverá ser priorita-
riamente indígena.
Apesar do respaldo legal, a educação escolar indígena na Bahia
apresenta inúmeros problemas. É débil, ainda, o apoio institucional
para a pesquisa e o desenvolvimento de experiências que fortale-
çam o processo de constituição da escola indígena específica inter-
cultural e diferenciada. Por outro lado, é impossível elaborar uma
proposta de educação indígena sem levar em conta a questão da
territorialidade. Os povos indígenas, expulsos dos seus territórios
originários, passam por um processo de reconquista, retomando
seus territórios tradicionais, reafirmando sua identidade étnica e
buscando diuturnamente construir uma educação escolar nas al-
deias, com as devidas especificidades. São esses os motivos, dentre
outros, que, enquanto lideranças e professores indígenas, refleti-
mos constantemente, ao avaliarmos os efeitos da educação escolar
formal em nossas aldeias, empenhados em redesenhá-los a partir
de experiências pedagógicas inovadoras.
A educação escolar para o povo Tuxá, organizada a partir de
uma proposta participativa e comunitária, afirma como seus fun-
damentos: o reconhecimento e a valorização das diferenças e suas

33
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

formas de expressão através da presença, no currículo, da cultura,


da arte e dos conhecimentos tradicionais do povo Tuxá, destacando
a interculturalidade como eixo curricular, e tendo no tratamento
diferenciado do ensino destinado ao aluno Tuxá o caminho para
promover a igualdade, fazendo da educação um instrumento de re-
conhecimento da identidade própria e do outro. Desse modo, adota
os princípios pedagógicos da identidade, diversidade e autonomia,
da interdisciplinaridade e da contextualização, compreendendo
a importância de se trabalhar uma educação diferenciada. Assim,
com essa organização escolar, o currículo vai tomando forma em
um processo contínuo de construção, na medida em que cabe aos
estudantes, seus pais e lideranças acompanharem, avaliarem e par-
ticiparem da reformulação do projeto de escola de acordo com suas
próprias orientações. Embora pudesse parecer mais fácil supor um
currículo feito por técnicos especializados, definido em todos seus
detalhes, sabemos que isso se configura num profundo desrespeito
à identidade, à autonomia e à cultura indígena.
Os professores da Escola Estadual Indígena Capitão Francisco
Rodelas têm se mostrado competentes e cientes do papel da escola
e do trabalho coletivo. Esse reflexo é bem visto nos resultados dos
alunos que, por sua vez, se destacam na sociedade do seu entorno.
No entanto, embora a referida escola se destaque entre as demais
escolas indígenas e, também, entre as demais escolas do município
do qual faz parte, na realização de um bom trabalho interdisciplinar
e contextualizado, o currículo intercultural ainda está distante de
ser um referencial.
Conforme as teorias mais recentes de currículo, este não pode
ser visto como mero rol de conteúdo, mas sim um instrumento de
poder na mão de quem o elabora e define quais aspectos da cultura
são incluídos e quais ficam de fora, ou seja, quais conhecimentos
serão considerados “legítimos” e privilegiados e quais serão des-

34
Capítulo 1

valorizados e, principalmente, qual a metodologia de trabalho a ser


adotada. Em se tratando da educação escolar indígena, essa ques-
tão é crucial. Sabemos que o currículo mais do que propiciar co-
nhecimentos com esse ou aquele viés ideológico, implica na forma-
ção de subjetividades, dos valores que norteiam a ação do jovem em
formação por toda sua vida. Por essas razões é que propomos um
currículo aberto, que seja continuamente desenhado e redesenha-
do pelo próprio povo, de modo autônomo. Enquanto professores e
gestores Tuxá, nos colocamos a serviço de propostas de ação junto
à comunidade, oferecendo-lhes subsídios, mas garantindo a parti-
cipação da comunidade na definição do rumo da escola, atualizan-
do suas funções e reinterpretando os conhecimentos aí propostos.
A ideia de um currículo aberto está respaldada pelas Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação Básica, e toda a legislação de
educação escolar indígena baseia-se no princípio de autodetermi-
nação, da ampla participação das comunidades na definição do pro-
jeto pedagógico, do sistema de avaliação, da seleção dos professo-
res etc. Porém, mesmo com todo o aparato legal em nível nacional e
estadual, as escolas indígenas passam por muitos entraves burocrá-
ticos e dificuldades na implementação desse modelo de educação
específica. Lidar com o aparato jurídico administrativo do estado e
municípios, que ainda nega, em determinadas situações, os direitos
dos povos indígenas a uma educação específica, tem sido um dos
grandes desafios para professores e lideranças indígenas, que estão
diretamente envolvidos com a organização da escola.
Assegurar, direta ou indiretamente, que a escola indígena cons-
trua sua própria concepção de ensino e de aprendizagem não tem
sido tarefa fácil para os professores e lideranças indígenas, con-
sequência da não existência de um sistema próprio de Educação
Escolar Indígena e da indefinição de políticas públicas educacionais
por parte do estado e municípios, que contribuam para o fortaleci-

35
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

mento da Educação Escolar Indígena. Enquanto isso não acontece,


as eficiências dos processos educacionais na escola indígena ficam
à mercê das questões impeditivas de bons resultados, a exemplo da
burocracia que envolve o sistema educacional seja do estado, seja
dos municípios, tendo que a Educação Escolar Indígena se adequar
à mesma, que, por sua vez, não se adéqua à realidade da escola in-
dígena, ficando esta no prejuízo de suas ações pedagógicas.
No aspecto administrativo, ressai a necessidade de que nor-
mas, regulamentações, exigências e requisitos das secretarias de
educação sejam revistos a partir dos princípios da organização das
escolas indígenas. São prioridades decorrentes da especificidade
dessas escolas a construção de currículos diferenciados, projetos
político-pedagógicos condizentes com cada realidade, definição de
calendários escolares contextualizados à realidade sociocultural de
cada comunidade indígena, produção de material pedagógico, ado-
ção de metodologias e sistemas de avaliação que apoiem e reforcem
novas pedagogias indígenas.
Partindo desta realidade, a educação escolar para o povo Pa-
taxó da Aldeia Coroa Vermelha destaca competências de caráter
específico, dentre as quais a capacidade de aprender e comparti-
lhar com a comunidade é decisiva. O aprimoramento do educando
como pessoa humana implica a ética, a autonomia intelectual, co-
munitária e o pensamento crítico. O desenvolvimento dessas com-
petências está baseado na sólida integração da teoria com a prática,
no desenvolvimento de projetos de estudo a partir dos contextos
sociais, para eles retornando como contribuições para sua melhor
compreensão e encaminhamento de intervenções locais.
Deriva desse profundo vínculo com a vida comunitária o ca-
ráter interdisciplinar que orienta a proposta curricular da Escola
Pataxó Coroa Vermelha, reafirmando as orientações previstas nas
Diretrizes Curriculares da Educação Básica. O trabalho dos profes-

36
Capítulo 1

sores Pataxó com a interdisciplinaridade acaba por ser um objeto


do conhecimento, um projeto de investigação, um plano de inter-
venção, partindo da necessidade sentida pela comunidade, profes-
sores e alunos de explicar, compreender, intervir e mudar algo que
pode ser melhor para todos. Essas orientações são preciosas em se
tratando da educação escolar indígena, pois, nesta, mais do que em
qualquer outra, há uma enorme necessidade de atender ao modo
de pensar indígena. As disciplinas fragmentadas são uma imposição
do modo de pensar ocidental, adotadas pelo estado e que só podem
ser úteis à educação escolar indígena na medida em que favoreçam
a compreensão e intervenção em seu contexto de realidade. A or-
ganização curricular dividida em base comum e base diversificada,
por disciplina, não atende à estrutura organizacional da educação
escolar indígena. A organização da matriz curricular por área do
conhecimento, envolvendo todos os componentes curriculares, é
o modelo almejado pelos professores indígenas que, por sua vez,
esperam por essa implementação.
Por todas as razões elencadas, os princípios da interdisciplina-
ridade e da contextualização previstos nas diretrizes atuais estão
contemplados na proposta de educação escolar ofertada pela Es-
cola Indígena Pataxó Coroa Vermelha, uma vez que prevê que todo
estudo parta e retorne a situações reais e significativas para os edu-
candos e suas comunidades. Desse modo, as práticas sociais, polí-
ticas e as práticas culturais e de comunicação são parte integran-
te do exercício cidadão, assim como a vida pessoal, o cotidiano, a
convivência e as questões ligadas ao meio ambiente, corpo e saúde.
O que se defende é uma educação na qual os questionamentos par-
tam da vida e cujos conhecimentos construídos estejam em função
da vida coletiva.
Entende-se aqui como princípios o desenvolvimento de com-
petências básicas, a contextualização, a interdisciplinaridade, de

37
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

modo que as experiências cotidianas, assim como os conhecimen-


tos sistematizados, possam ser ressignificados do ponto de vista do
povo Pataxó, construindo visões de si e do mundo nas quais valores
e afetos possam ser defendidos, questionados e negociados. Consi-
deramos que esses princípios são solidários aos previstos nas Dire-
trizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena quanto
ao desenvolvimento de currículos que incluam conteúdos especi-
ficamente indígenas, assim como os conteúdos de outras culturas,
marcando a interculturalidade e respeitando os processos próprios
de aprendizagem.
Para Meliá (1999), os povos indígenas mantêm sua alteridade
graças as estratégias próprias de vivência sociocultural, sendo a ação
pedagógica uma delas. A educação desenvolvida pelos povos indíge-
nas lhes permite que continuem sendo eles mesmos e mantenham
a transmissão de suas culturas por gerações. Ainda segundo Meliá,
no processo de educação escolar indígena, “a perda da alteridade e a
dissolução das diferenças são sentidas como ameaças reais, premen-
tes e iniludíveis”. Essa perda e essa dissolução, para alguns, relacio-
nam-se, até de forma direta e quase exclusiva, com a escola. “A es-
cola seria um dos fatores decisivos de generalização e uniformidade”,
afirma Meliá (1999, p. 21). O Brasil conta com uma variedade de povos
indígenas, alguns praticando o uso de suas línguas maternas fluen-
temente e suas culturas; outros, apenas com suas culturas, como é
o caso dos Tuxá, do qual faço parte. Sustentamos nossa alteridade
graças às estratégias próprias, das quais uma foi precisamente a ação
pedagógica. Melhor dizendo, vivemos uma educação específica que
perpassa pela cultura, pelas tradições e o modo de ser, permitindo a
sua valorização, manutenção e reprodução.
Em seus relatos, os professores Tuxá, especificamente da Es-
cola Indígena Capitão Francisco Rodelas, ressaltam a importância
de a escola estar articulada às necessidades da comunidade, com

38
Capítulo 1

grande ênfase nos conhecimentos próprios do que costumam cha-


mar de “sua cultura e sua tradição, mas sem negar a importância do
acesso a outros conhecimentos, inclusive vendo nessa articulação o
grande propósito da existência da escola nas aldeias”.4
Dessa forma, propiciam uma reflexão sobre as ideias e prá-
ticas que têm norteado a proposta de uma escola indígena es-
pecífica, contribuindo para a construção dessa escola, conside-
rando o dinamismo da cultura. É certo que a disseminação dessa
proposta pode contribuir para uma mudança de visão e de pos-
tura a respeito do lugar dos povos indígenas no Brasil e no mun-
do contemporâneo; esses povos veem na escola o caminho para
a mudança na forma de ver e interpretar suas sociedades, bem
como de pensar que tipo de papel eles poderiam desempenhar
na sociedade brasileira, predominando a visão de que, enquanto
coletividades diferenciadas, podem garantir a sua sobrevivência
com o respeito às suas especificidades e seus direitos garanti-
dos como cidadãos brasileiros e indígenas.
A concretização desta concepção de currículo enfatiza a
importância das vivências dos alunos e dos problemas reais que
ocorrem nas comunidades indígenas em que se desenvolve o
currículo, na crença de que essa prática estimula os alunos a
refletir sobre o seu próprio mundo e o mundo que os rodeia, a
estabelecerem relações entre o saber tradicional, o saber esco-
lar e as intervenções de mundo.

Os objetivos são assim, como guias de orientação que o professor


mesmo elabora para desenvolver sua prática, fazer suas escolhas
curriculares, pensando as diversas aprendizagens que quer con-
seguir, definir que caminhos seguir sabendo que cada aluno vai

4  RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília: MEC


/SEF, p. 58, 1998.

39
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

aprender de forma e ritmo bastante diferenciado. Neste senti-


do os objetivos vão levar em conta não só a diversidade cultural,
base da noção de interculturalidade assumida nos fundamentos
gerais, mas também a diversidade individual dentro de uma mes-
ma escola, mesmo que sejam todos professores e alunos, mem-
bros de uma mesma comunidade educativa (RNCEI, 1998, p. 60).

Corresponde, pois, a uma opção pedagógica e curricular que,


em vez de impor a cultura do silêncio, tem como grande intenção
conduzir a uma discussão participativa, coletiva e de valorização
dos princípios culturais dos povos indígenas.
O caráter coletivo da construção do conhecimento e das prá-
ticas sociais na escola indígena é diferente das escolas onde há um
caráter individualizante, baseadas numa concepção de sujeito indi-
vidual de direito, e não na concepção de sujeito coletivo de direi-
to. Assim, os professores, tanto Tuxá quanto Pataxó, se mostram
preocupados com a organização de um trabalho coletivo no que se
refere a todas as esferas de planejamento pedagógico, desde a ela-
boração do currículo até as atividades desenvolvidas na escola com
os alunos, buscando alternativas no modelo de educação intercul-
tural como um processo tipicamente humano e intencional coeren-
te com a pluralidade, dirigido à otimização do desenvolvimento de
habilidades e competências referentes à diferença, à peculiaridade,
à diversidade dos povos indígenas, e à própria identidade cultural
dos demais e de suas comunidades.
É verdade que esse protagonismo indígena deve ser entendido
dentro de um processo histórico que a grande maioria dos povos
indígenas busca, através do processo de escolarização formal, pen-
sado e organizado por eles nos dias atuais, tendo a escola como um
dos principais instrumentos para promover a mudança de engrenar
o eixo de seu crescimento demográfico e reelaborar seus modos
particulares de estar no mundo.

40
Capítulo 1

O currículo é, portanto, projetado na linha das concepções de


educação de Paulo Freire, ou seja, não como um mero ato de narrar,
depositar ou transferir conhecimentos, como acontece no que ele
designa por “educação bancária”, mas sim como um ato de “cons-
cientização”, de problematização de situações.
Baniwa (2006) define educação como o conjunto de processos
envolvidos na socialização dos indivíduos, correspondendo, por-
tanto, a uma parte constitutiva de qualquer sistema cultural de um
povo, englobando mecanismos que visam à sua reprodução, perpe-
tuação e/ou mudança. Ao articular instituições, valores e práticas,
em integração dinâmica com outros sistemas sociais, como a eco-
nomia, a política, a religião, a moral, os sistemas educacionais têm
como referência básica os projetos sociais (ideias, valores, senti-
mentos, hábitos etc.) que lhes cabem realizar em espaços e tempos
sociais específicos.
De acordo com Assmann (1998), a discussão sobre o conheci-
mento abarca hoje todos os processos naturais e sociais onde se
geram, e a partir daí são levadas em conta formas de aprendizagem.
Tudo aquilo que se é capaz de aprender cumpre processos cogni-
tivos. Para Freire (1996), o sujeito que se abre ao mundo e aos ou-
tros inaugura com seu gesto a relação dialógica em que se confirma
como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente
movimento na História.
Assim, no bojo da contemporaneidade, identificamos a emer-
gência de respostas criativas formuladas pelos professores indíge-
nas no sentido da alternativa de uma educação sustentável. Uma
sustentabilidade com autonomia pautada pelo diálogo com o que
define a convivência social, a posse coletiva da terra, valores e me-
mórias compartilhados.
O currículo contextualizado em face da reconstrução das
diretrizes da educação escolar indígena. O discurso das diferen-

41
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

ças, amparado na obrigatoriedade,5 vem sendo uma das principais


marcas das tensões do currículo da escola não indígena nos últi-
mos tempos. Isso traz um grande risco. O fato é que a obrigação,
às vezes, velada em incorporar as diferenças acaba também por ser
um fator de restrição da plena expressão da escola, que passa a
tratar tudo como dever burocrático, sem uma reflexão real sobre
seus significados, trazendo grandes transtornos para aqueles que
se “enquadram” nos temas de inclusão no currículo da educação.
Digo isso amparada na experiência como gestora à frente de
uma coordenação de currículo que vivencia o dilema da inexperi-
ência e ansiedade de gestores que buscam implementar o discurso
das diferenças no currículo de suas escolas. A dificuldade gover-
namental em dar atendimento à diferença seja para o indígena, o
negro, o deficiente ou qualquer outro que faça parte do conceito da
diversidade ou, melhor dizendo, do diferente, é muito visível.
Essas são apenas algumas inquietações mais próximas entre as
várias que tenho sobre os problemas que afligem mais de perto o

5  A LEI 11.645/2008, altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela


Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temá-
tica “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.Art. 1º O art. 26-A da Lei no 9.394, de
20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: “Nos estabelecimentos
de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o
estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena”.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da
história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir
desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a
luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e
o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições
nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ “2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas
brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas
áreas de educação artística e de literatura e história brasileira.” Art. 2º Esta Lei entra em
vigor na data de sua publicação. Brasília, 10 de março de 2008; 187º da Independência e
120º da República. LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA.

42
Capítulo 1

cotidiano da educação na Bahia, os quais interferem diretamente


na vida de milhares de estudantes, a quem estão negando as possi-
bilidades de uma educação de qualidade em seu sentido mais real.
Faço esse preâmbulo para situar em que contexto os atuais
debates em torno da educação indígena ou da educação escolar
indígena se situam. Falar de currículo na escola indígena é tam-
bém tratar do conjunto de experiências educativas vivenciadas
pelos alunos indígenas não somente na escola, mas, principal-
mente no meio comunitário em que vivem.
Uma experiência muito praticada e vivenciada pelos alunos
Pataxó e Tuxá é o ensino e a prática da pesquisa adotada pela
escola indígena, considerados, pelos professores indígenas, o
método mais adequado para um aprendizado dinâmico dos co-
nhecimentos tradicionais e científicos. A pesquisa possibilita a
constituição de um elo entre os mais velhos, detentores privi-
legiados dos saberes tradicionais orais, e os alunos. A partir de
conversas com pais, mães, velhos e velhas, e participação ativa
no cotidiano da comunidade, os alunos registram e vivenciam
estes conhecimentos. Esta metodologia também incentiva o
aluno a investigar em livros e através de conversas, tópicos dos
conhecimentos ocidentais importantes para sua sobrevivência e
sua relação com a sociedade que vive no entorno e fora das ter-
ras indígenas. Assim, devemos repensar as diretrizes que devem
presidir o ensino.
Construir participativamente um processo educativo para a
elaboração de referenciais curriculares para a Educação Escolar
Indígena, tendo como meta garantir o envolvimento e a partici-
pação de professores e lideranças indígenas como produtores e
construtores do documento, é um dos objetivos da equipe da Co-
ordenação de Educação Escolar Indígena vinculada à Secretaria
de Educação do Estado da Bahia. O segundo, diz respeito à atua-

43
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

lização e ou reformulação dos currículos de maneira a contemplar


as especificidades da Educação Escolar Indígena.
Trazemos como exemplo o modelo de educação comunitária de
valorização cultural atrelado aos novos conhecimentos adquiridos e
que, portanto, também é essencial à formação humana dos alunos
indígenas. O terceiro desafio diz respeito às competências e habili-
dades que a escola deve desenvolver em seus alunos. A escola repre-
senta apenas uma das inúmeras possibilidades de acesso à informa-
ção na sociedade atual e, portanto, na escola indígena, esse acesso
ainda é restrito. Partindo desse pressuposto, a educação deverá estar
centrada não somente no desenvolvimento das competências e ha-
bilidades necessárias ao bom desempenho do aluno no seu processo
de ensino aprendizagem, mas também na oferta de informação que
busque compreender, organizar criticamente e reconstruir as infor-
mações dentro de contextos que mudam continuamente.
Assim, embora seja preciso haver mudanças no currículo e,
consequentemente, no programa escolar, não se pode esquecer
que muitas coisas permanecem. A sociedade muda, o conhecimen-
to muda, a escola tem que estar atualizada, a exemplo da neces-
sidade de subsistência, de apropriação de novos conhecimentos e
de valorização das diferenças dos povos indígenas. Mas tudo isso
precisa passar pelo crivo reflexivo, definidor de relevâncias, que é
o trabalho da escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para os povos Pataxó e Tuxá, sujeitos desta pesquisa, são relevan-


tes a construção de novas visões propiciatórias da compreensão da
diferença como valor e o convívio da diferença, assim como a valo-
rização dos seus objetivos de vida. Dessa forma, a escola indígena,

44
Capítulo 1

em uma perspectiva intercultural e sustentável, faz parte das estra-


tégias de vida desses povos, que buscam uma educação escolar que
prepare os jovens para serem grandes líderes para lutar pelos direi-
tos e interesses coletivos; para que possam garantir uma afirmação
identitária; dar continuidade aos conhecimentos dos mais velhos,
defendendo e conquistando direitos específicos e adquirindo co-
nhecimentos globais para o “bem viver” das suas comunidades.
Sabemos, portanto, que atribuir essa responsabilidade à es-
cola, constitui-se em grandes desafios, porém, são desafios ne-
cessários, pois podem significar o modelo de projetos sustentáveis
e de gestão territorial coletivos e comunitários que favoreçam as
particularidades desses povos, através da prática do diálogo inter-
cultural, que se torna estratégico e necessário para assegurar as
propostas, interesses e necessidades destas comunidades. Con-
siderando o que foi apontado, faz-se necessário, na construção
do currículo, levar em consideração os fatos relacionados à terra,
cultura, língua, educação, saúde, sustentabilidade e intercultura-
lidade, temas esses que estão em intenso debate em diferentes
realidades entre os povos indígenas.
O currículo organizado por área de conhecimento possibilita
um permanente diálogo entre os diversos componentes curricula-
res, conforme suas afinidades e os desafios da realidade que se quer
que os alunos compreendam e interpretem, para propor soluções.
Dessa maneira, os espaços de discussão se abrem para novos olha-
res e novos conceitos; proporciona um maior diálogo intercultural
com os conhecimentos tradicionais e ocidentais.
Não se tem, ainda, um instrumento metodológico formado
para trabalhar a interculturalidade nessas escolas indígenas. Esse é
outro grande desafio. Os professores usam muito os termos: edu-
cação “diferenciada”, “específica”, “intercultural” e dizem trabalhar
esses princípios, porém, na prática, as experiências apresentadas

45
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

pelas escolas, objeto desta pesquisa e por outras, fruto da minha ca-
minhada frente à educação escolar indígena, ainda são muito fragi-
lizadas, fragmentadas, pontuais. Reconhecemos e defendemos que
estão no caminho certo e costumo dizer que esse instrumento, esse
modelo tão desejado pelos povos indígenas, ainda está em cons-
trução e, para firmar essa construção, consideramos importante a
pedagogia de projetos e da pesquisa, na reformulação do currículo
por área do conhecimento, na promoção da interdisciplinaridade,
através de um projeto de estudo ou um projeto de trabalho, que
ajude a minimizar os problemas da educação escolar, favorecendo
uma educação de qualidade.
Propor mudanças para um modelo de educação enraizada-
mente tradicionalista, difundido, construído por séculos de domi-
nação e dele apropriar-se, tem sido muito difícil para o povo Pataxó
e Tuxá, mesmo não estando sós, mesmo apoiados na legislação in-
dígena e no movimento social organizado dos povos indígenas do
estado da Bahia e do Brasil.
A formação crítica com vistas para uma intervenção social di-
nâmica na reorientação das práticas educacionais escolares e na
reformulação do currículo da escola indígena é urgente, pois não
queremos aqui destruir a base do modelo que se inspira nas práti-
cas tradicionais de ensino, mas mostrar, e provar, que o modelo de
educação que perdura na sociedade baiana e brasileira é pouco ou
menos útil para esses povos, que buscam um contexto específico e
diferente do modelo vigente. Sabemos e reconhecemos que houve
conquistas importantes, as quais não se podem negligenciar. Sa-
bemos também que não se destrói um modelo de estrutura social
importante sem outro para substituí-lo, simplesmente por discor-
dância em relação a alguns aspectos e parte de seu funcionamento.
Enquanto professores e professoras indígenas pesquisadores
e pesquisadoras, que vivenciamos o processo da busca de novos

46
Capítulo 1

paradigmas para a educação escolar indígena, somos sabedores


também da inexistência de um caminho pronto, embora já saiba-
mos o que queremos enquanto novo modelo de educação escolar
indígena: é preciso incluir, em nossas escolas, elementos de nos-
sas e de outras culturas e concretizar aspectos que colaborem para
a melhoria da qualidade de vida, das relações sociais e políticas e
da sustentabilidade do povo e do território, sinal evidente de ama-
durecimento intelectual, com mudanças significativas no modo de
pensar a escola e o trabalho docente nas escolas indígenas que bus-
cam alcançar esse objetivo.
Enfim, as mudanças devem se constituir em um processo de
planejamento, ação dos indígenas e poder público, uma ação inte-
gradora entre o locus de aprendizagem e o contexto social, efetiva-
do de forma crítica e transformadora.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Rosilene cruz de. “Educação Escolar Indígena Intercultural e a


Sustentabilidade Territorial: uma abordagem histórica sobre as Escolas Indígenas
Capitão Francisco Rodelas e Pataxó Coroa Vermelha, Dissertação (Mestrado) –
Universidade do Estado da Bahia (UNEB) Faculdade de Educação, Programa de Pós-
Graduação em Educação e Contemporaneidade, Orientador: Prof. Dr. Eduardo José
Fernandes Nunes, 140 f.: il, Salvador. 2013.

______. Gerenciamento da educação escolar indígena, poder público e a relação


com o movimento indígena: experiência e reflexão. Educação e Contemporaneidade:
Revista da FAEEBA, Salvador, v. 19, n. 33, p.51- 60, jan./jun. 2010.

47
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

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Conclusão de Curso. (Especialização em História do Brasil) – Depto. de História,
Centro de Ensino Superior do Vale do São Francisco – CESVASF. Belém do São
Francisco. 2006.

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Vozes, 1998. 251 p.

BRASIL. Ministério da Educação. Câmara de Educação Básica. Resolução nº 3, de


1999. In: GRUPIONI. Luís Donisete Benzi. (Org.) As leis e a educação escolar indígena:
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______. (Org.) As Leis e a Educação Escolar Indígena. Brasília: MEC/SEF, 69 p.


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Executivo, Brasília.

CAMARGO, P. A (in)definição do currículo. Resultado de disputas sociais que


traduzem diferentes visões e concepções de mundo, a definição dos conteúdos a
serem ensinados na escola passa por um momento de grande indefinição e apostas
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com.br/formacao-docente/164/artigo234885-1.asp

COLL, C. Psicologia e currículo: uma aproximação psicopedagógica à elaboração do


currículo escolar. São Paulo: Ática, 1997.

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FRANÇA, Cecília de Campos. O eu e o outro na escola: contribuições para incluir


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PASSOS, Luiz Augusto. Educação e interculturalidade: a escola e os povos indígenas do
Mato Grosso do Sul. Cuiabá: EDUFMT, p. 41- 52. 2010. 168 p. Il.

48
Capítulo 1

LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre
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de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. LACED/Museu Nacional, p.
128-171, 2006.

MELIÁ, B. Educação indígena na escola. Cadernos CEDES, v. 19, n. 49. p. 14, 1999.

ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 01

1. Discorra sobre os principais desafios na educação escolar indí-


gena discutidos no texto pela autora deste capítulo.
2. Com base no contexto indígena de ensino, apresentado neste
capítulo, como os professores têm trabalhado numa perspec-
tiva interdisciplinar?

49
CAPÍTULO 2

Corrida de toras: jogo didático para


um ensino intercultural

ELISA AUGUSTA LOPES COSTA


UFPA

INTRODUÇÃO

Uma das principais características das escolas indígenas no Brasil


é a necessidade de lidar com, no mínimo, duas línguas e duas cul-
turas diferentes. Essa situação requer um ensino essencialmente
intercultural, dadas as relações entre as culturas dos indígenas e
da sociedade envolvente, tornando a escola indígena um lugar de
negociação entre identidades e interesses diferentes, que preci-
sam chegar a um consenso, sem desmerecer nenhuma das culturas
envolvidas. Tal condição se verifica nas escolas existentes na terra
indígena do povo Krahô, alvo desta pesquisa, a qual se concretizou
na Escola Indígena 19 de Abril, localizada na Aldeia Manoel Alves
Pequeno, contando com a participação de todos os professores da
escola, sendo oito indígenas e dois não indígenas, os quais minis-
tram aulas para o Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação
de Jovens e Adultos – EJA.

51
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

A pesquisa, realizada entre 2015 e 2016, consistiu na apresen-


tação de uma proposta de ensino baseada na educação lúdica como
uma alternativa para estabelecer, de forma prazerosa, um diálogo
entre diferentes visões de mundo, facilitando a negociação de so-
luções para os conflitos que podem surgir na relação intercultural.
A metodologia, de perspectiva sociointeracionista, compõe-
-se de oficinas de confecção e manipulação de materiais alterna-
tivos que incluem jogos didáticos como elemento potencializador
da aprendizagem da língua portuguesa como segunda língua. Este
artigo concentra-se na apresentação do jogo Corrida de Toras, que
foi desenvolvido no decorrer das oficinas e mescla elementos da
cultura não indígena e da cultura Krahô, o que o torna uma de-
monstração de boas relações interculturais.
O texto está desenvolvido a partir da apresentação dos aspec-
tos históricos do povo Krahô, abordando também a educação tra-
dicional e a presença da ludicidade na cultura deste povo. A seguir,
são tecidas considerações sobre ensino intercultural, educação lú-
dica e o desenvolvimento dos jogos didáticos sugeridos para o en-
sino intercultural na Escola 19 de Abril, finalizando com a exposição
sobre o jogo Corrida de Toras.

O POVO KRAHÔ: ASPECTOS HISTÓRICOS

O povo Krahô é identificado como pertencente ao grupo Timbira,


da família linguística Jê, por compartilhar com estes povos caracte-
rísticas linguísticas e culturais. O nome Krahô, segundo Albuquer-
que (2013), significa “pelo de paca”: Hô = pelo e cra = paca, conforme
explicação que estes indígenas teriam dado a Curt Nimuendajú em
1930. Entretanto, ainda de acordo com Albuquerque, trinta anos

52
Capítulo 2

depois, indígenas da mesma etnia discordavam desta versão, ale-


gando ser o nome Krahô uma invenção dos “civilizados”.
A história deste povo começa a ser conhecida a partir do mo-
mento em que se efetiva o contato com a sociedade não-indígena.
De acordo com Júlio Cézar Melatti (2009), os primeiros registros
da existência do povo Krahô datam do início do século XIX, quando
estes índios habitavam uma área no sul do Maranhão, delimitada
pelos rios Tocantins, Farinha, Itapecuru, Parnaíba, Perdida e Sono.
Segundo Ribeiro (1841) e Nimuendajú (1946), eles eram conhecidos
inicialmente por Macamekrans.
Segundo Melatti (2009), o contato se deu em virtude da con-
vergência de duas frentes colonizadoras (agrícola e pastoril), que
avançavam do litoral para o interior do país. Devido aos numero-
sos conflitos entre índios e colonizadores, o povo Krahô foi pau-
latinamente sendo expulso de seu antigo território, sendo forçado
a avançar em direção ao rio Tocantins. Entretanto, os indígenas
não se davam por vencidos e atacavam as fazendas de gado que
vinham sendo formadas pelos invasores. Por outro lado, os fazen-
deiros reagiam em represália, aumentando as hostilidades entre
ambos os lados.
Na tentativa de minimizar os conflitos, em 1848 os Krahô fo-
ram transferidos para um aldeamento localizado em Pedro Afonso
(TO) e estabelecido por Frei Rafael de Taggia (missionário capu-
chinho vindo da Itália). Com isso, satisfazia-se, ao mesmo tempo,
o desejo de trazer os índios para a religião católica e os interesses
dos fazendeiros, que queriam vê-los distantes da zona pastoril.
Entretanto, segundo informa Melatti, os Krahô não ficaram muito
tempo em Pedro Afonso, mas foram se deslocando para o nor-
te, até ocupar o território onde vivem atualmente, localizado em
Goiatins e Itacajá, ao nordeste do estado do Tocantins. Essa área,
que passou a ser denominada Kraholândia, foi demarcada pelo de-

53
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

creto presidencial nº 102, (BRASIL, 1944), mas só foi homologada


pelo Decreto-Lei nº 99.062 (BRASIL, 1990).
Naquele local havia, em 1930, três aldeias, conforme informação
de Curt Nimuendaju (1946, p. 26). Em 1967, segundo Melatti (2012), já
havia ali cinco aldeias. Atualmente, de acordo com Macedo (2015),
são vinte e nove aldeias. Melatti informa que a população Krahô
contava entre três a quatro mil pessoas em 1809, tendo sido reduzi-
da a 620 indivíduos na metade do século XIX, chegando a existirem
apenas 519 indígenas vivendo na Kraholândia em 1963 (MELATTI,
2012, p. 22). A partir daí houve um aumento da população. Segun-
do Araújo (2015), em 2010, o número de indígenas passava de 2400,
chegando a 3264 em 2015.
A partir destes dados verifica-se que esse povo, assim como
outros povos indígenas do Brasil, depois de quase ter sido destru-
ído, apresenta franca recuperação populacional. Além disso, tam-
bém é notória a preocupação com a preservação de sua cultura.
Entre os costumes culturais preservados pelos Krahô destacam-se
a construção das aldeias em formato circular e a Corrida de Toras.
As casas dos Krahô são construídas ao redor de um grande círculo
formado por uma rua de terra batida, que Nimuendajú chama de
rua circular (1944, p. 76). No centro da aldeia fica o pátio, ligado à
rua circular por caminhos radiais, também de terra batida.
As corridas de toras são realizadas sempre em associação com
algum rito, segundo o qual variam os grupos participantes, a forma
das toras e o percurso da corrida. As toras são feitas, na maioria das
vezes, do tronco do buriti. Entretanto, há uma variedade de forma-
tos de tora, feitas com materiais e tamanhos diferentes. A corrida se
inicia geralmente fora da aldeia, podendo o ponto de partida variar
de algumas centenas de metros até alguns quilômetros de distância
da aldeia, dependendo do rito que esteja sendo realizado. Ao entrar
na aldeia, a corrida prossegue no caminho circular, sempre na dire-

54
Capítulo 2

ção anti-horária. O ponto de encerramento da corrida é o pátio ou


uma das casas de wỳhtỳ (local onde são recebidos os visitantes de
outras aldeias e também os não indígenas, conforme Araújo, 2015).
Podem ser feitas também corridas apenas dentro da aldeia, mas
nunca se faz uma corrida de dentro para fora dela.
A corrida se inicia quando um dos membros do grupo, ajuda-
do pelos companheiros, coloca a tora aos ombros e sai correndo,
seguido pelos demais. Assim que este se mostra cansado, um dos
companheiros o substitui. Desta forma, a tora vai sendo passada de
um ombro a outro até o final da corrida. As corridas ocorrem dia-
riamente, podendo acontecer pela manhã e à tarde.
As mulheres e as crianças também participam de corridas de
toras, semelhantemente à corrida masculina, embora este fato
ocorra bem mais raramente. No caso da corrida de crianças, o dife-
rencial é que correm meninos contra meninas. As toras destinadas
às corridas de mulheres são mais leves que as dos homens, assim
como também para as corridas infantis são confeccionadas toras
compatíveis com a capacidade física das crianças.
O fato de homens e mulheres participarem de corridas distin-
tas está relacionado à forma de organização social dos Krahô, que
se caracteriza por diversos grupos binários, chamados de metades,
destacando-se o par de metades que representa o inverno e o ve-
rão, respectivamente Wakmẽjê e Katamjê. Os índios Krahô costu-
mam ornamentar-se com pinturas corporais, as quais são feitas de
acordo com as características destas metades principais, sendo que
os indivíduos pertencentes ao grupo Wakmẽjê usam pinturas hori-
zontais, enquanto os pertencentes ao grupo Katamjê usam pinturas
verticais. As toras também são pintadas de acordo com as pinturas
de cada grupo.

55
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

EDUCAÇÃO TRADICIONAL KRAHÔ E LUDICIDADE

Apesar de um intenso contato com agentes externos, o povo Krahô


vem conseguindo manter sua identidade cultural fortalecida, o que
se deve à ênfase na preservação de seus princípios próprios de
educação, conforme constata Abreu (2012). Segundo esta autora, os
Krahô mantêm uma política interna de fortalecimento da sua língua
e cultura e, por isso, fazem questão que os saberes tradicionais se-
jam transmitidos às crianças somente em língua materna.
Nesta perspectiva, as crianças aprendem por meio de obser-
vação e imitação, a partir da convivência diária com os adultos,
na interação com outras crianças da aldeia, e também durante os
eventos no pátio central, onde são realizadas muitas das ativida-
des importantes para a cultura Krahô, como a divisão do trabalho,
a prática dos rituais e a tomada de decisões. Além de tudo isso, há
também momentos específicos de ensino e aprendizado, os quais
são conduzidos por alguém designado para este fim.

Na educação tradicional Krahô, existe a figura do Mē hahkrecatê


ou Ihkrãri catê (instrutor ou professor na língua Krahô), respon-
sável pelo ensino dos saberes indígenas para as crianças. Os alu-
nos acompanham o seu instrutor pela aldeia e pela mata, apren-
dendo conteúdos básicos sobre seu território, sua cultura e para
sua sobrevivência. O processo educacional acontece de forma
peculiar, o ensino é livre de qualquer determinação burocrática
e a aprendizagem é coletiva e colaborativa. (LEITE, 2017, p. 50).

Percebe-se que a ludicidade está presente neste modelo de


educação, que se caracteriza pela aprendizagem em movimento,
permeada pela liberdade e espontaneidade. As crianças Krahô são
preparadas para a vida adulta, aprendendo na prática, auxiliando
os adultos em suas atividades, entretanto, conforme indica Melatti

56
Capítulo 2

(2012), não se exige das crianças trabalhos cansativos, indicando-


-lhes tarefas que se aproximam de divertimentos, como, por exem-
plo, ajudar os mais velhos a espantar periquitos na roça, no tempo
do amadurecimento do arroz.
Deste modo, a transmissão de conhecimentos da cultura Krahô
ocorre de forma espontânea, tranquila e lúdica, em consonância
com a colocação de Melià (1979), o qual lembra que a criança in-
dígena, como qualquer outra, aprende brincando, sendo diferente
apenas no fato de que o brinquedo geralmente consiste em exem-
plares menores dos instrumentos de trabalho do pai ou da mãe.
As brincadeiras das crianças Krahô estão geralmente interligadas à
vida social, refletindo situações do cotidiano.

As meninas brincam com cuia. Colocam arroz, batata, grolado e


brincam muito debaixo das árvores na aldeia. Levam seus cofi-
nhos e colocam massa de mandioca e outras comidas para brin-
carem em outros lugares com as amigas. Lá amarram seus panos
em galhos e fazem uma casinha, pegam pedras, fazem o fogão,
acendem o fogo e ali fazem suas comidas como veem fazer em
suas casas, elas gostam muito de fazer esse tipo de brincadeira.
Os meninos levam badoque, arco e flecha para matarem passari-
nhos e levam para as meninas para fazerem moquém. Os meninos
cortam buriti para correrem juntos com as meninas até chegarem
à aldeia. Depois descansam um pouco e todos vão tomar banho
no rio. Os meninos também gostam de brincar de jogar flechas
para ver quem joga mais longe. Gostam de brincar de correr no
pátio durante a noite, as crianças brincam muito, gostam de subir
nas árvores e ficar balançando. (CY KRAHÔ, in ALBUQUERQUE,
2014, p. 46).

A ludicidade também está presente na cultura Krahô na forma


de jogos e brincadeiras que ocorrem não apenas entre as crianças,
mas também com a participação dos adultos. Há uma série de jo-

57
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

gos que retratam situações vivenciadas pela comunidade, seja em


relação às plantações (brincadeira da melancia ou macaco rouban-
do milho), como referindo-se a situações de caça, sobrevivência no
cerrado ou defesa de território (brincadeira do tamanduá-bandei-
ra, gavião e galinha, brincadeira de luta). De acordo com Meliá, nas
culturas indígenas, os jogos apresentam uma dimensão educativa,
à medida que se constituem como espaços privilegiados de apren-
dizagens sociais, de resistência e afirmação de identidades. Tendo
em vista o potencial educativo dos jogos, os professores Krahô in-
cluem a ludicidade na educação escolar, por meio de brincadeiras
tanto nas aulas como nos períodos de recreação, tendo o cuidado
de mostrar aos alunos quais são as brincadeiras da cultura indígena
e quais as oriundas da sociedade envolvente.

EDUCAÇÃO BILÍNGUE E INTERCULTURAL

A Escola Indígena 19 de Abril, localizada na aldeia Krahô Manoel Al-


ves Pequeno, destaca-se pelo esforço para levar a efeito uma edu-
cação bilíngue e intercultural, pautada pela legislação brasileira que
lhe garante este direito, destacando-se, entre outros documentos:
o Estatuto do Índio (BRASIL, 1973, Lei 6001, art. 49); a Constituição
Federal do Brasil (BRASIL, 1988, Arts. 210, 215, 231); Lei de Diretri-
zes e Bases da Educação Nacional - LDBEN 9394, (BRASIL, 1996,
arts. 78 e 79); Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indí-
genas – RCNEI (BRASIL, 1998); Plano Nacional de Educação - PNE
10.172/2001 (BRASIL, 2001).
Estes são os principais documentos que garantem aos povos
indígenas o direito à preservação de suas organizações sociais,
línguas, crenças e costumes próprios, possibilitando, por meio da
instituição escolar, a recuperação de suas memórias históricas, a

58
Capítulo 2

reafirmação de suas identidades étnicas e a valorização de suas lín-


guas e ciências, além de lhes garantir o acesso às informações, co-
nhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais
sociedades indígenas e não-indígenas.
Com base nesta legislação, que prevê novas organizações cur-
riculares baseadas nas noções de pluralismo cultural e de diversi-
dade étnica, preconizando que a Educação Escolar Indígena deve
ser comunitária, intercultural, bilíngue/multilíngue, específica e
diferenciada, a Escola 19 de Abril empenhou-se na construção de
um Projeto Político Pedagógico próprio, voltado para os anseios da
comunidade local.
Nesta perspectiva, e apoiado na Proposta Pedagógica da Edu-
cação Escolar Indígena do Estado do Tocantins - PPEEI/TO (TO-
CANTINS, 2013), foi elaborado um projeto que se desenvolve em
dois eixos, distribuindo o tempo escolar em tema e disciplina, abor-
dados em semanas alternadas. Em uma semana trabalham-se as
disciplinas relacionadas aos saberes escolares. Na semana seguinte,
abordam-se os saberes indígenas.
A equipe dos professores da Escola 19 de abril é formada, em
sua maioria, por professores indígenas que dominam tanto a língua
materna quanto a língua portuguesa, o que auxilia na transposição
dos aspectos orais para a escrita da língua Krahô, e também confere
mais eficiência na alfabetização em ambas as línguas, bem como
na ministração de outras disciplinas, pois o intercâmbio entre as
línguas ajuda quando há necessidade de esclarecimento acerca de
conceitos, particularmente da educação escolar.
O conceito de educação bilíngue e intercultural para as es-
colas indígenas começa a ser delineado na legislação brasileira a
partir da Constituição de 1988, mas assume contornos mais ní-
tidos com a legislação subsequente, acima mencionada. Tais leis
destacam positivamente as especificidades culturais dos povos

59
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

indígenas e ressaltam a existência dos seus processos tradicio-


nais de transmissão do conhecimento.

(...) as sociedades indígenas são portadoras de tradições cultu-


rais específicas e vivenciaram processos históricos distintos.
Cada um desses povos é único, tem uma identidade própria, fun-
dada na própria língua, no território habitado e explorado, nas
crenças, costumes, história, organização social. Por outro lado,
as sociedades indígenas compartilham um conjunto de elemen-
tos básicos que são comuns a todas elas e que as diferenciam da
sociedade não-indígena. Assim, os povos indígenas têm formas
próprias de ocupação de suas terras e de exploração dos recursos
que nelas se encontram; têm formas próprias de vida comunitá-
ria; têm formas próprias de ensino e aprendizagem, baseadas na
transmissão oral do saber coletivo e dos saberes de cada indiví-
duo. (BRASIL, 1994, p. 10).

Este documento define interculturalidade como “o intercâmbio


positivo e mutuamente enriquecedor entre as culturas das diversas
sociedades” afirmando a necessidade de que esta seja uma carac-
terística básica das escolas indígenas (idem, p. 11). A intercultura-
lidade ocorre por meio de um diálogo constante entre as culturas
envolvidas, tendo em conta que o intercâmbio e as contribuições
entre línguas são processos que ocorrem em todas as sociedades
ao longo de sua história.
De acordo com Guimarães (2006), a interculturalidade leva em
conta a diversidade cultural no processo de ensino e aprendizagem.
Em outras palavras, a escola deve dar tratamento didático aos va-
lores, saberes e conhecimentos tradicionais bem como às práticas
sociais de cada cultura, sem deixar de garantir o acesso aos conhe-
cimentos e tecnologias que sejam relevantes para o processo de
interação e participação cidadã na sociedade nacional.

60
Capítulo 2

Com isso, as atividades curriculares devem ser significativas e


contextualizadas às experiências dos educandos e educandas e
de suas comunidades. A nova escola indígena propõe ser espaço
intercultural, onde se debatem e se constroem conhecimentos e
estratégias sociais sobre a situação de contato interétnico. Po-
dem ser conceituadas como escolas de fronteira, ou seja, espaços
públicos em que situações de ensino e aprendizagem estão rela-
cionadas às políticas identitárias e culturais de cada povo indíge-
na. (GUIMARÃES, 2006, p. 20).

Nesta perspectiva, o Referencial Curricular Nacional para as


Escolas Indígenas (RCNEI) considera que a Educação Escolar Indí-
gena, para ser intercultural, deve

Reconhecer e manter a diversidade cultural e linguística; promo-


ver uma situação de comunicação entre experiências sociocultu-
rais, linguísticas e históricas diferentes, não considerando uma
cultura superior à outra; estimular o entendimento e o respeito
entre seres humanos de identidades étnicas diferentes, ainda que
se reconheça que tais relações vêm ocorrendo historicamente em
contextos de desigualdade social e política. (BRASIL, 1998, p. 24).

Cada povo indígena vive uma situação sui generis em sua


relação com a sociedade envolvente, particularmente no que se re-
fere à situação linguística, havendo diferenciados graus de bilin-
guismo e também de multilinguismo. É isso que caracteriza a escola
indígena como específica e diferenciada, porque há a necessidade
de se adaptar conteúdos e currículos à realidade de cada povo e sua
escola, a partir do “diálogo, do envolvimento e do compromisso dos
respectivos grupos indígenas, como agentes e co-autores de todo
o processo” (BRASIL, 1994, p. 11). As escolas indígenas não diferem
somente das escolas urbanas, mas também umas das outras, uma
vez que se trata de línguas e culturas diferentes, que serão os ele-
mentos constituintes de cada escola.

61
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

De acordo com Maher (2007), para as populações indígenas do


Brasil, o bilinguismo é uma condição compulsória, pois, devido às
necessidades de convivência com a sociedade nacional, é impera-
tivo aprender o português. Em relação à educação escolar bilíngue,
Maher (2006) afirma que esta se insere em dois paradigmas dis-
tintos: o assimilacionista e o emancipatório. O primeiro, instaura-
do com o ensino jesuítico, empenha-se em levar o indígena a abrir
mão de sua identidade: “o objetivo do trabalho pedagógico é fazê-lo
abdicar de sua língua, de suas crenças e de seus padrões culturais
e incorporar, assimilar os valores e comportamentos, inclusive lin-
guísticos, da sociedade nacional” (MAHER, 2006, p. 20).
Sob os princípios do segundo paradigma, o Emancipatório,
surge o Modelo de Enriquecimento Cultural e Linguístico, que pro-
cura promover um bilinguismo aditivo. Conforme Maher,

pretende-se que o aluno indígena adicione a língua portuguesa


ao seu repertório linguístico, mas pretende-se também que ele se
torne cada vez mais proficiente na língua de seus ancestrais. Para
tanto, insiste-se na importância de que a língua de instrução seja
a língua indígena ao longo de todo o processo de escolarização
e não apenas nas séries iniciais. Além disso, esse modelo busca
promover o respeito às crenças, aos saberes e às práticas cultu-
rais indígenas. (MAHER, 2006, p. 22).

Convém destacar que a implantação deste novo paradigma


ocorreu em decorrência do movimento político das associações in-
dígenas que começaram a se mobilizar no final da década de 1970
e dos consequentes avanços na legislação nacional voltada para
os povos indígenas, iniciados com a Constituição Federal de 1988.
De acordo com Mori (2001), a educação bilíngue e intercultural se
constitui, para os povos indígenas, em uma estratégia política de

62
Capítulo 2

manutenção da sua língua e cultura, além do esforço por uma par-


ticipação ativa na vida econômica, social, política e cultural da so-
ciedade nacional. Segundo o autor,

A educação bilíngue não deve ser apenas uma ponte para che-
gar à sociedade nacional. A educação bilíngue deve considerar as
culturas dos povos indígenas para, posteriormente, gerar um di-
álogo crítico e criativo com outras culturas. Nesse aspecto, uma
educação bilíngue bem entendida deve estar orientada para uma
interculturalização regional, nacional e internacional. (MORI,
2001, p. 167).

Mori acrescenta que a educação bilíngue e intercultural deve


possibilitar o bilinguismo individual e social, estabelecendo redes e
instâncias de intercâmbio cultural e linguístico. Para alcançar este
objetivo, há três aspectos relevantes: a formação de professores in-
dígenas, a elaboração de materiais didáticos e o desenvolvimento
de um currículo diversificado que leve em conta a realidade socio-
cultural de cada povo indígena e que também contenha matérias
relacionadas com a problemática regional, nacional e internacional.
Esta colocação está em consonância com o artigo 79 da LDB 9.394
(BRASIL, 1996), que destaca a responsabilidade do governo federal,
em conjunto com os demais sistemas de ensino, no desenvolvimen-
to de programas integrados de ensino e pesquisa.
Diante de todas estas considerações, verifica-se que a educa-
ção bilíngue e intercultural se refere a uma prática de educação
escolar que lida com os dois universos que fazem parte da existên-
cia indígena, possibilitando tanto o domínio dos códigos e conhe-
cimentos utilizados pela sociedade nacional quanto a valorização e
divulgação da língua, cultura e identidade indígenas.

63
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

EDUCAÇÃO LÚDICA E INTERCULTURALIDADE


NA ESCOLA 19 DE ABRIL

A expressão educação lúdica vem sendo utilizada para definir uma


metodologia que busca alcançar melhores resultados por meio de
estratégias de ensino que estimulem o aluno à curiosidade, à des-
coberta, ao desejo de aprender. A educação lúdica está alicerça-
da em autores de épocas diversas, desde os filósofos gregos até os
pensadores atuais. Platão (2000) preconizava que a educação das
crianças deveria começar pelas fábulas, e que os ensinamentos de-
veriam ser transmitidos a partir dos jogos por serem estes ineren-
tes à natureza das crianças.
O termo ludicidade tem origem na palavra latina ludus, que sig-
nifica jogo, divertimento, passatempo, jogos públicos, representações
teatrais, escola, aula. Convém lembrar que a palavra escola também
tem, no latim, um sentido de diversão ou recreação. Schola, o termo
latino, origina-se do grego skholê, que, além de significar escola ou
local de estudo, também significa descanso, repouso, lazer, tempo
livre; ocupação de um homem com ócio, livre do trabalho servil, que
exerce profissão liberal, ou seja, ocupação voluntária de quem, por
ser livre, não é obrigado a nada (FARIA, 1962). Estas acepções nos
permitem fazer uma associação entre estudo e ludicidade.
De acordo com Cipriano Luckesi, a educação lúdica está fun-
damentada na concepção de que “o ser humano é um ser em movi-
mento, permanentemente construtivo de si mesmo” e que, “através
de sua atividade e consequente compreensão da mesma, constrói-
-se a cada momento, na perspectiva de tornar-se mais senhor de si
mesmo, de forma flexível e saudável” (2000, p. 14). Luckesi destaca
ainda que o ser humano modifica a si mesmo enquanto age modi-
ficando o mundo, o que acontece de maneira salutar quando feito
por meio de atividades lúdicas. (LUCKESI, 2000, p. 17).

64
Capítulo 2

Freinet, em A pedagogia do bom senso (2004), afirma que o es-


tudante aprende melhor quando se sente motivado. Segundo Co-
menius (2001), a motivação para o estudo pode ser alcançada por
meio da introdução de um elemento lúdico, que dê leveza ao ensi-
no. Esta leveza pode ser alcançada pela inserção de jogos didáticos
ou de outros fatores que tornem as aulas mais agradáveis, como,
por exemplo, a utilização de recursos didáticos diferenciados para
exposição de conteúdos (quadro de pregas, álbum seriado etc),
conforme a tese de Comenius que recomenda a utilização de “figu-
ras, instrumentos de ótica, de geometria, esferas armilares e outros
objetos semelhantes que despertam a admiração das crianças e as
atraem” (2001, p. 85). Segundo o pai da didática moderna, todos os
sentidos devem ser mobilizados para estimular o aprendizado, com
particular destaque para a associação entre visão e audição.
A motivação pela ludicidade pode ser particularmente útil no
caso das escolas indígenas, quando os alunos têm a necessidade
de conviver com conteúdos de uma cultura diferente da sua, com
possíveis dificuldades no aprendizado. Alguns problemas foram ve-
rificados na Escola Indígena 19 de Abril, onde a alfabetização ocorre
primeiro na língua Krahô, única língua utilizada até o quinto ano es-
colar, continuando como língua de instrução nas séries seguintes,
em todas as disciplinas.
Levando em conta que os estudantes Krahô só começam a es-
tudar a língua portuguesa no sexto ano, verifica-se que, ao chega-
rem ao Ensino Médio, eles têm pouco conhecimento deste idioma,
o que acarreta dificuldades para a compreensão de conteúdos mais
técnicos. Conforme relato dos professores locais, ocorre a falta de
palavras na língua indígena para exprimir determinados conceitos
de algumas disciplinas que constam do currículo. Outro problema
detectado é a dificuldade de interpretação de textos em língua por-
tuguesa. Tendo em vista a necessidade de dominar diversos assun-

65
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

tos e compreender textos mais complexos para poder se conduzir


satisfatoriamente na sociedade fora da aldeia, é importante que
os estudantes indígenas sejam conduzidos a um aprendizado mais
efetivo no tocante ao trato com a língua portuguesa, de modo a
compreender melhor a cultura envolvente e facilitar seu ingresso e
permanência no ensino superior. Nesta perspectiva, considera-se
que a educação lúdica, como instrumento para ilustrar e esclarecer
os conteúdos, pode ser de grande valia para minimizar as lacunas
no aprendizado dos estudantes Krahô.
Conforme visto anteriormente, os professores da Escola 19 de
Abril já utilizavam a ludicidade, embora restrita a brincadeiras di-
rigidas às series iniciais, não contemplando os alunos da segunda
fase do Ensino Fundamental nem os do Ensino Médio. Convém des-
tacar que a ludicidade é aplicável a todos os níveis de ensino, con-
forme se percebe na abordagem de Almeida (2013), cujo conceito
de educação lúdica parte dos fundamentos sobre o desenvolvimen-
to físico, psicológico, linguístico, cognitivo e ético abordados por
pesquisadores contemporâneos, que colocam o lúdico como fator
determinante na formação do ser humano e, portanto, essencial ao
processo de ensino e aprendizagem. Deste modo, segundo Almeida,

A educação lúdica traz em seu significado um valor de seriedade,


inerente ao ser humano em todas as idades, fundamental para
o desenvolvimento das múltiplas capacidades e para o processo
de construção de conhecimento e, sobretudo, para a formação
integral do ser humano, em especial do caráter e da cidadania.
(Almeida, 2013, p. 10).

Com base nestes pressupostos, foi elaborada uma proposta de


ensino lúdico mediado por recursos visuais alternativos, cujo obje-
tivo era estender o uso da ludicidade a todas as séries, atingindo a
todos os estudantes. O público alvo, a princípio, consistia apenas

66
Capítulo 2

em professores de língua portuguesa, mas como na escola havia


apenas um professor desta disciplina, estendeu-se o convite aos
demais professores (oito indígenas e dois não-indígenas), que ade-
riram de bom grado. A proposta baseava-se na oferta de um mini-
curso composto por oficinas teóricas e práticas, além da aplicação
do aprendizado em sala de aula, com posterior comunicação dos
resultados obtidos.
No decorrer das oficinas, os professores receberam informa-
ções teóricas sobre ludicidade, jogos didáticos e recursos visuais.
Na parte prática das oficinas, foram confeccionados diversos ma-
teriais visuais que favorecem a instauração de um ambiente mais
agradável e interativo para o ensino. Estes materiais incluem diver-
sos tipos de materiais didáticos para ilustração das aulas, tais como
flanelógrafo, quadro de pregas e álbum seriado, bem como vários
outros específicos para realização de jogos didáticos. Para a segun-
da fase da pesquisa, os professores deveriam colocar em prática o
aprendizado, utilizando os materiais confeccionados em situações
concretas de ensino. Posteriormente, por meio de entrevistas, rela-
tariam os resultados da experiência.

CORRIDA DE TORAS: UM JOGO DIDÁTICO INTERCULTURAL

A escolha de um jogo didático para apresentar como componen-


te de um ensino intercultural deve-se ao fato de que os jogos, em
suas mais variadas formas, estão presentes em todas as culturas, e
têm a propriedade de aproximar pessoas e minimizar diferenças,
configurando-se como um valioso recurso didático, porque absorve
totalmente os participantes em virtude da existência de dois ele-
mentos: o prazer e o esforço espontâneo (HAYDT, 2011). Segundo
Haydt, devido ao envolvimento emocional, o jogo é uma atividade

67
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

com grande capacidade motivacional, capaz de gerar um estado de


vibração e euforia. A pesquisadora acrescenta ainda que o jogo mo-
biliza os esquemas mentais, ativando as funções psiconeurológicas
e estimulando o pensamento. Deste modo, “o ser que brinca e joga
é também o ser que age, sente, pensa, aprende, se desenvolve. Por-
tanto, o jogo, assim como a atividade artística, é um elo integrador
entre os aspectos motores, cognitivos, afetivos e sociais” (HAYDT,
2011, p. 130).
Dentre todos os materiais confeccionados nas oficinas, o jogo
Corrida de Toras destacou-se pelo seu caráter de interculturalida-
de e pela forma como surgiu, pois foi desenvolvido a partir de um
outro, apresentado pela pesquisadora, denominado Corrida Malu-
ca, o qual se insere na classificação de jogos de percurso. Este tipo
de jogo caracteriza-se por formar um caminho, dividido em espa-
ços numerados (normalmente chamados de “casas”), o qual deve
ser percorrido pelos jogadores tendo em vista alcançar um objetivo
que se encontra no final do percurso. Estes jogos normalmente são
direcionados para poucos jogadores (2 a 4, no máximo) e devem ser
jogados sobre uma mesa, motivo pelo qual são também chamados
Jogos de Tabuleiro.
O jogo Corrida Maluca (figura 1) é uma adaptação feita para tra-
balhar simultaneamente com todos os alunos de uma turma, o que
tornou necessário um recurso que pudesse ser apresentado na for-
ma vertical para permitir a visibilidade a todos os participantes ao
mesmo tempo. Deste modo, o material foi confeccionado em uma
superfície de papelão de 50x60cm, revestida com papel colorido.
Para justificar o título do jogo, foram sugeridas figuras de universos
diferentes como forma de representar os grupos participantes, tais
como um macaco e um elefante ou um carro e um barco. Depen-
dendo da idade dos estudantes e do contexto de ensino, podem ser
escolhidos outros símbolos ou objetos relacionados ao tema em es-

68
Capítulo 2

tudo. Como se trata de uma corrida, o objetivo do jogo é cruzar a li-


nha de chegada em primeiro lugar, deixando para trás o adversário.
Este jogo atraiu a atenção dos professores indígenas por se
tratar de uma corrida entre dois grupos, fazendo-os lembrar das
corridas de toras que são praticadas diariamente na aldeia, e que
se constituem em um dos elementos mais marcantes da cultura
Krahô. O momento mostrou-se propício para inserir uma discussão
a respeito da possibilidade de mesclar elementos da cultura exter-
na e da cultura Krahô, com base na colocação de Candau:

A Educação Intercultural parte da afirmação da diferença como


riqueza. Promove processos sistemáticos de diálogo entre di-
versos sujeitos – individuais e coletivos –, saberes e práticas na
perspectiva da afirmação da justiça – social, econômica, cognitiva
e cultural –, assim como da construção de relações igualitárias
entre grupos socioculturais e da democratização da sociedade,
através de políticas que articulam direitos da igualdade e da dife-
rença. (CANDAU, 2013, p. 01).

Desta forma, assumindo a possibilidade de enriquecimento


por meio das diferenças, foi sugerida a criação de um novo jogo que
atendesse às preferências dos professores, com o propósito de fa-
zer com que as oficinas fossem uma verdadeira troca intercultural,
com crescimento para ambas as partes envolvidas.
Os professores, sentindo-se estimulados, sugeriram a mu-
dança do nome Corrida Maluca para Corrida de Toras, sendo que
os grupos seriam representados por desenhos de corredores indí-
genas, caracterizados como pertencentes às metades mais carate-
rísticas da cultura, os grupos Wakmẽjê x Katamjê (figura 2). Todos
concordaram que, desta forma, fariam um jogo que se aproximava
muito mais da sua realidade, o qual, por este motivo, certamente
seria muito bem aceito por todos os alunos. Assim, foram desenha-

69
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

dos dois corredores indígenas, sendo que a figura que representava o


grupo Wakmẽjê foi ornamentada com pinturas horizontais e a do gru-
po Katamjê, com pinturas verticais, de acordo com a tradição Krahô.

Figura 1 – Jogo original


Fonte: Acervo próprio

Figura 2 – Jogo produzido pelos professores


Fonte: Acervo próprio

70
Capítulo 2

A base foi preparada como no jogo original, com papelão re-


vestido. Para fixação das figuras, foram preparadas duas tiras do
mesmo papel utilizado para revestir a base. Estas tiras, medindo
60x5cm, foram coladas pelas extremidades no sentido horizon-
tal, formando uma espécie de trilho por onde pudessem deslizar
as figuras. Em cada um dos trilhos foi feita uma numeração de 1
a 15, sendo os números intercalados por pontos, correspondendo
às casas do jogo de percurso. No verso de cada uma das figuras foi
colado um pedaço de papel cartão (5X2cm), no sentido vertical, dei-
xando a parte de baixo livre para encaixar no trilho.
Após o preparo do material, os professores foram orientados
quanto ao funcionamento do jogo, tanto no que se refere ao desli-
zamento dos corredores pelos trilhos, como em relação às regras,
para que se lembrassem de explicá-las previamente a seus alunos a
fim de evitar contratempos.
Não houve dificuldades por parte dos professores, seja na con-
fecção do material, seja no entendimento das regras, descritas a
seguir. Com relação à definição dos grupos, no jogo Corrida Maluca,
costuma-se utilizar estratégias variadas, como, por exemplo, distri-
buição de números, separando-se os pares e ímpares. No caso do
Corrida de Toras, os professores esclareceram que não haveria ne-
cessidade de estratégia para divisão, uma vez que todos os alunos já
estão incluídos em um dos grupos Wakmẽjê e Katamjê. Desta forma,
sempre que fossem realizar o jogo na classe, a divisão dos grupos
ocorreria de forma automática.

Nos jogos de percurso tradicionais, o avanço dos jogadores


é feito com base nos números estabelecidos em jogadas com dados.
Neste caso, por se tratar de um jogo didático, cada grupo avança
uma casa após ter respondido corretamente uma pergunta feita
pelo professor. Caso a pergunta não seja respondida a contento, o
grupo permanece na mesma casa. A pergunta deve ser passada para

71
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

o grupo seguinte, que avançará caso acerte a resposta. Em seguida,


o mesmo grupo responderá outra pergunta, que lhe cabe pela sequ-
ência do jogo, o qual será vencido pelo grupo que chegar primeiro
à casa de número 15.
Para cada sessão de jogos, o professor deve preparar, de
antemão, 30 perguntas, de acordo com o conteúdo que estiver sen-
do estudado. Percebe-se, portanto, que é um jogo versátil, que pode
ser utilizado em qualquer disciplina, com qualquer tipo de conte-
údo.

Após a realização das oficinas, os professores tiveram um


período de tempo para aplicarem os materiais em suas aulas, sendo
orientados a anotar os resultados e as reações dos alunos. Depois
deste tempo, houve uma reunião entre professores e pesquisadora
para avaliação dos resultados do trabalho com os novos materiais.
Neste encontro, foi realizada uma entrevista com os professores
para identificar quais foram os materiais utilizados e se os objetivos
foram alcançados. Os professores relataram como foram suas au-
las com as novas dinâmicas, falando como utilizaram os materiais
e qual a reação dos alunos. Em relação ao jogo Corrida de Toras, os
professores1 comentaram que utilizaram em diversas disciplinas e
séries variadas, inclusive no Ensino Médio.

No tema ... a gente pesquisa da cultura ... então brinquei com


eles os nomes das frutas ... assim ... dividi os partidos Catàmjê e
Wacmẽjê, ((corrida de toras)), fiz tipo um ditado ... se o Wacmẽjê
acertava o nome que eu falei, a torinha deles andava ... no 6º ano,
dentro da disciplina cultura e diversidade, brinquei também ...
era também um ditado, com o nome das festas, eu falava o nome
da festa, se eles conseguiam escrever no quadro direitinho, a to-

1  Tendo em vista a preservação da identidade dos docentes, foram utilizadas letras


em lugar dos nomes.

72
Capítulo 2

rinha do partido deles andava. (Prof. E).

[...] Trabalhei também com eles a corrida de tora. Perguntava al-


gumas coisas, e o partido que acertava, ia pra frente. Perguntei,
de matemática ... 3x3, 4x5 ... O partido respondia, o corredor an-
dava. (Prof. H).

... usei também a corrida de toras. Então eu pegava uma pergunta


... os alunos que estavam presentes ... por que tem dois partidos,
Wacmẽjê e Catàmjê, verão e inverno ... se o partido do verão res-
pondia a pergunta, da história que ele contou, se acertava, então
o corredor do partido deles andava. Foi assim que eu trabalhei
((Ensino Médio)). (Prof. J).

No tocante às dificuldades dos alunos e o papel do jogo em mi-


nimizá-las, todos os relatos foram muito positivos. Dois professores
comentaram que os alunos, de modo geral, eram bastante tímidos,
mas o recurso visual foi um incentivo para que eles perdessem a
vergonha e começassem a participar mais, seja com perguntas, no
decorrer da aula, ou com interesse em dar respostas corretas no
momento dos jogos.

Assim ... a gente escreve o nome ... por exemplo, das frutas. Para
falar, eles aprendem mais rápido ...mas na leitura ... eles tem di-
ficuldade de relacionar o que está escrito com o que foi falado ...
e eles precisam então treinar mais. E eles gostaram, também, da
brincadeira ... então ... ((o material)) ajudou sim, porque antes, na
hora das perguntas, eles ficavam com medo, mas agora, com a
corrida, eles já ficam mais animados, porque pensam: se eu acer-
tar, a torinha vai andar, já vai chegar primeiro no final. (Prof. E).

Sim ... no primeiro dia, ... eles ... como eles são tímidos, eles têm,
assim, vergonha ... mas aos poucos foram se adaptando. Agora, eles
gostam, porque também é uma aula dinâmica e eles aprendem. [...]
Eles participam, participam agora ... Perderam a vergonha ... agora,
eles participam bastante. Foi muito bom para eles. (Prof. I).

73
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Ajudou ... eles gostaram ... perguntaram é só isso que pode brin-
car? Não, eu falei, pode brincar também na matemática ... outras
coisas também ... eu falei assim pra eles, e eles gostaram ... quero
usar de novo ... eu usei também aquele da torinha ... eu pergun-
tava algumas coisas ... perguntei assim 3x3, 4x5 ... e cada partido,
quando acertava, a torinha andava... com isso, eles animaram, foi
bom. (Prof. H).

Todas as respostas apontaram para a interação que a atividade


promoveu entre os alunos, confirmando a versatilidade do jogo, e o
quanto um elemento vindo da cultura externa pode ser transforma-
do de forma a se tornar algo útil para o fortalecimento da cultura
indígena. A experiência demonstrou que o encontro entre culturas
pode ser produtivo, confirmando a afirmação de Geertz (1989) de
que nas relações entre culturas diferentes pode ser desenvolvido
o conhecimento do ser humano, tornando-se mais compreensíveis
os sentidos que as ações de cada um assumem nos seus respectivos
contextos culturais. Fleuri corrobora esta posição, demonstrando
a importância, no processo educativo, da relação entre culturas de
uma forma igualitária:

Recuperar o papel das culturas no processo educacional, tanto


em nível pessoal como coletivo, implica reconhecer a intera-
ção entre diferentes modos de ser humano, que se desenvolvem
como forças em tensão. Tais campos de força, intensamente con-
flitantes, podem estabelecer formas criativas de interação entre
culturas diversas, possibilitando a reinvenção da existência hu-
mana. (FLEURI, 2003, p. 70).

Confirmando a colocação de Fleuri, a criação e utilização do jogo


Corrida de Toras foi uma espécie de reinvenção de relações cultu-
rais, mesclando elementos da cultura envolvente com outros da cul-
tura indígena, com saldo positivo para todos os envolvidos, levando

74
Capítulo 2

à conclusão de que os conflitos oriundos da relação entre culturas


podem ser tratados de maneira criativa e enriquecedora, valorizando
os relacionamentos humanos e as particularidades de cada cultura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo do pressuposto de que a ludicidade tem o potencial para


promover aprendizagens significativas e duradouras, foi elaborada
uma proposta de intervenção para a Escola Indígena 19 de Abril,
tendo como objetivo capacitar os professores desta escola para a
utilização de recursos visuais alternativos. Foram realizadas ofici-
nas nas quais os professores aprenderam sobre recursos visuais e
educação lúdica, tanto na teoria como na prática.
Este artigo concentrou-se na descrição de uma parte da pesqui-
sa, a criação do jogo didático Corrida de Toras, caracterizado como
integrador, por entrelaçar elementos das duas culturas envolvidas.
Houve intensa participação dos professores, que perceberam a vali-
dade de utilizar a interculturalidade em um jogo didático a fim de oti-
mizar sua prática docente. Após a conclusão da fase de aplicação dos
materiais confeccionados nas oficinas, os professores mostraram-se
animados com os resultados e interessados em continuar a utilizar os
novos recursos de maneira mais consistente em suas aulas.
Os relatos apontaram para um resultado extremamente posi-
tivo no uso do jogo Corrida de Toras, o que contribuiu para que
fosse possível atender à recomendação do Referencial Curricular
Nacional para as Escolas Indígenas no sentido de promover o en-
tendimento e o respeito entre culturas diferentes, mesclando expe-
riências socioculturais e linguísticas diferentes sem considerar uma
cultura superior à outra (BRASIL, 1998, p. 24), fatos que caracteri-
zam um ensino verdadeiramente intercultural.

75
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

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76
Capítulo 2

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EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

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TO, 2013.

ATIVIDADES SOBRE O CAPÍTULO 02


1. O texto traz uma discussão sobre interculturalidade e o lúdico
no ensino-aprendizagem na comunidade Krahô. Discorra so-
bre a Corrida de Tora e sua importância para essa comunidade
indígena e a Corrida de Tora construída como jogo lúdico.
2. Estabeleça uma relação entre a concepção de interculturalida-
de adotada pela autora e o sistema de ensino da escola Krahô.

79
CAPÍTULO 3

Educação intercultural e currículo:


no projeto político-pedagógico, o
reencontro com a ancestralidade, a
identidade e o “ser indígena”1

EMA MARTA DUNCK CINTRA


IFG

INTRODUÇÃO

Da mesma forma como ocorreu com as populações indígenas, o


povo Chiquitano também teve sua vida usurpada pelos coloniza-
dores. Seu território foi conquistado e tomado, sua língua materna
proibida de ser falada,2 seu modo de ver o mundo gradativamente
substituído por imposição eurocêntrica, não só pelos colonizado-
res, mas também pelos jesuítas que impuseram o catolicismo, fato

1  * Este texto traz parte da tese acadêmica (não publicada) intitulada Do silêncio à
vitalidade sociocultural dos Chiquitano do Portal do Encantado, Mato Grosso, Brasil
(DUNCK-CINTRA, 2016).

2  Nas comunidades pesquisadas, somente cinco anciãos se lembravam da língua,


mas não a utilizavam mais em nenhum momento, estava adormecida.

81
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

que ocorreu tanto na Bolívia3 como em território brasileiro. Enfim,


esse povo foi escravizado, retirado do seu espaço, subjugado e teve
de se silenciar para ser “aceito” pela sociedade majoritária (DUN-
CK-CINTRA, 2005). Em 2002, aos Chiquitano do Brasil das comuni-
dades de Acorizal e Fazendinha, Mato Grosso, só restava seu espaço
de sobrevivência.
Mas também o espaço estava para lhe ser retirado e, então,
começa uma busca desenfreada pela garantia do seu território,
porque os fazendeiros da região, o comando do destacamento da
fronteira e os políticos tinham interesse pelo espaço e encon-
travam-se na busca de mecanismos para a expulsão dos índios
Chiquitano. Afirmavam que estes não eram índios, e sim boli-
vianos, com intenções bem claras para descaracterizá-los como
indígenas brasileiros (SILVA, 2001-2002). Naquele momento, eles
encontram na língua materna um símbolo que poderia marcar
sua identidade indígena diante do outro e isso poderia garantir
o seu território. Dunck-Cintra (2005) apontou o quanto foi im-
portante o fato de os poucos anciãos que ainda se lembravam da
língua materna, com a ajuda da Isabel Rupe,4 poderem ensiná-la
numa escola improvisada. Essa ação possibilitou que os Chiqui-
tano buscassem os conhecimentos ancestrais e colaborassem
para o início da vitalidade sociocultural5 e de posicionamento
identitário diante do outro.

3  O povo vivia num único território, porém as coroas de Portugal e Espanhol di-
vidiram o espaço e, consequentemente, uma parcela menor ficou no lado brasileiro.

4  Isabel não era professora, mas tinha formação em nível fundamental.

5  Ver essa discussão na tese: Do silêncio à vitalidade sociocultural dos Chiquitano do


Portal do Encantado, Mato Grosso, Brasil (DUNCK-CINTRA, 2016).

82
Capítulo 3

Daí em diante, coletivamente, começaram a agir as diferentes ge-


rações do povo (DUNCK-CINTRA; SANTANA, 2009). Reencontrando-
-se e refletindo, demandaram uma escola própria, criando uma peda-
gogia autoral e de enfrentamento. Produziram conhecimento, criaram
possibilidades de lutas diante do poder dominante, valorizaram seu
saber e consequentemente o seu ser (DUNCK-CINTRA, 2016).
Nesse sentido, Freire (1979, p. 7) argumenta que a “primeira
condição para que um ser possa assumir um ato comprometido
está em ser capaz de agir e refletir”. É “preciso que (o sujeito) seja
capaz de, estando no mundo, saber-se nele. Saber que, se a forma
pela qual está no mundo condiciona sua consciência deste estar, é
capaz, sem dúvida, de ter consciência desta consciência condicio-
nada”. Para o autor, “é exatamente esta capacidade de atuar, operar,
de transformar a realidade de acordo com finalidades propostas
pelo homem, à qual está associada sua capacidade de refletir, que o
faz um ser da práxis” (FREIRE, 1979, p. 8).
E isso foi constatado quando analisamos o que ocorreu com
o povo Chiquitano das comunidades de Acorizal e Fazendinha, no
Mato Grosso. Utilizando uma abordagem qualitativa (MARTINS,
2004), recorremos à pesquisa bibliográfica exploratória e docu-
mental para demonstrar parte desse processo de decolonização,
mediante análise de conteúdo (BARDIN, 1977) e análise documental
(LÜDKE; ANDRÉ, 2018).
Para tanto, apoiamo-nos em Albó (2005), Candau (2008) e Wal-
sh (2009) para tratar acerca de interculturalidade e valemo-nos dos
estudos de Santomé (1998), Arroyo (2007), Gomes (2007) e Sacristán
(2017) para versar sobre currículo. Ao ser contemplado o patrimônio
epistêmico, entre eles a língua materna que estava adormecida na
memória, entendemos que o currículo pode colaborar para a gra-
dativa decoloniedade de um povo (MIGNOLO, 2003; FREIRE, 2014,
2015; PIMENTEL DA SILVA, 2015).

83
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Em nossa discussão, assinalamos a importância do agir das


pessoas, a busca incessante pela língua materna e a atitude do povo
na construção do seu Projeto Político-Pedagógico coletivamente.
Vale dizer, currículo esse em que se buscou, no bilinguismo de me-
mória,6 o conteúdo cultural que comporia o currículo a ser viven-
ciado nas práticas escolares e como por intermédio dele iniciou-se
a concretização de uma proposta intercultural de ensino.

EDUCAÇÃO INTERCULTURAL E CURRÍCULO

Os currículos, tanto das escolas indígenas quanto das não indíge-


nas, foram e são construídos por intermédio de uma visão da classe
dominadora em favor da integração e homogeinização quer seja na
época da colonização, quer seja na atualidade (LUCIANO, 2006). A
busca é de uma universalidade pautada na concepção de mundo
daqueles que consideram a sua cultura superior às dos outros.
Nesse sentido, o que a escola fez/faz é priorizar conteúdos e
propostas em que se prega uma visão homogeneizadora de mundo,
desconsiderando a pluralidade de vozes e de culturas que há em
um país. A esse respeito refere Candau (2008, p. 7): “Sempre que
a humanidade pretendeu promover a pureza cultural e étnica, as
consequências foram trágicas: genocídio, holocausto, eliminação e
negação do outro”.

6  O “bilinguismo de memória [é] um processo interativo de resistência, posicio-


namento cultural e político de afirmação da identidade, que encontra na memória
dos lembradores (anciãos) um ponto unitário (pertencimento) de representação e
de impulsão para a vivência dos saberes tradicionais. Esses saberes são herdados de
um passado comum e provocam/articulam/acionam uma luta perante a hegemonia
imposta pelo colonizador e suas formas de homogeneização do conhecimento, da
cultura e da vida” (DUNCK-CINTRA, 2005, p. 104).

84
Capítulo 3

É o que se pode observar no tratamento dado aos povos indíge-


nas. Afinal, foi justamente ignorando e menosprezando a diversida-
de brasileira que, conforme Rodrigues (2005), houve uma redução
drástica de 1.200 para 180 línguas indígenas nos últimos quinhentos
anos. De acordo com o autor, “o efeito de um processo colonizador
extremamente violento e continuado, o qual ainda perdura”, não
acabou nem quando houve a independência, nem com a república,
nem com a Constituição de 1988. Apesar de esta reconhecer direi-
tos fundamentais dos povos indígenas, entre eles a língua materna,
“as relações entre a sociedade majoritária e as minorias indígenas
pouco mudaram” (RODRIGUES, 2005, p. 2).
Candau (2008, p. 6), ao discutir a questão que envolve a igual-
dade e os direitos humanos, no contexto atual, caracterizado “pela
globalização neoliberal excludente”, que se pauta numa “mun-
dialização com pretensões monoculturais”, se reporta a McLaren
(1997), para afirmar que “um pré-requisito para juntar-se à turma é
desnudar-se, desracializar-se, e despir-se de sua própria cultura”
(CANDAU, 2008, p. 6). Afinal, para sobreviver nesse mundo cruel,
muitos foram obrigados a desconsiderar seu modo de viver, foram
obrigados a se invisibilizar7 para que fossem “aceitos” pela socie-
dade dominante. Nessa direção, é possível pensar o que esse fator
implicou nas escolas e em seus diversos contextos de atuação, pois
se nas escolas dos não índios a homogeneização já é um grande
problema, imaginemos quando se trata das escolas indígenas, em
que se desconsideram a visão de mundo e a língua materna do povo
(GRUPIONI, 2004; LUCIANO, 2006; PIMENTEL DA SILVA, 2015).
A Constituição de 1988 possibilitou a reflexão sobre currículos
no sentido de abarcar o contexto cultural e a visão de mundo de

7  Na dissertação Vozes silenciadas: situação sociolinguítica dos Chiquitano do Brasil


(DUNCK-CINTRA, 2005) discutimos essa temática.

85
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

um povo. Enfim, trata-se de contemplar aquilo que historicamente


lhe foi negado, ou seja, o contexto local, diverso e plural, a língua,
os saberes tradicionais, a visão de mundo. Esse movimento pós-
-Constituição abre possibilidades de uma educação voltada para a
valorização dos conhecimentos do povo, do seu modo particular
de ver e agir no mundo, em que se preconiza a interculturalidade.
A proposta de uma educação intercultural foi formulada pela
Unesco em 1978, em busca do fortalecimento de uma “educação
para a paz” e “prevenção ao racismo”, entendidas estas como a
condição estrutural para a convivência democrática em socieda-
des multiculturais.
Nas últimas três décadas, outros conceitos foram sendo es-
tabelecidos para a obtenção de uma proposta que melhorasse a
educação intercultural e foi introduzido o respeito à língua e ao
patrimônio epistêmico de um povo, o que garantiu a análise e histo-
ricização das consequências da colonialidade, além de como pode
ser feito o giro decolonial (MIGNOLO, 2003).
Com os estudos sobre a intercultura, é possível promover o
debate acerca do significado das culturas em contato ou em con-
flito e o diálogo intercultural, bem como sobre o sentido da lín-
gua para a comunidade e suas atitudes em face da língua étnica
(PIMENTEL DA SILVA, 2009). Isso sem contar a valorização do seu
patrimônio epistêmico e a importância de que este seja valorizado
na busca por justiça social (PIMENTEL DA SILVA, 2015).
Enfim, por meio de uma educação intercultural, fortalecem-se
a identidade e a autoestima de um povo, “desconstruindo-se en-
quanto estereótipo e enquanto subalternização e reconstruindo-se
como possibilidade de ressignificação da história, do cotidiano, das
relações, das subjetividades” (AZIBEIRO, 2003, p. 4).
Portanto, tendo como foco a educação intercultural, é possível
que os indígenas encontrem sua ancestralidade, reconheçam-se a

86
Capítulo 3

si mesmos e como pertencentes a um grupo no qual compartilham


visão de mundo, abrindo-se para o outro, estabelecendo novos vín-
culos (PIMENTEL DA SILVA, 2009). A educação intercultural per-
mite a emancipação de homens e mulheres, realizando “a grande
tarefa humanística e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos
opressores” (FREIRE, 2014, p. 41).
Nessa busca da libertação, Freire (2014) diz que, para poder-
mos pensar na implementação de uma educação intercultural críti-
ca que promova a decolonialidade, temos de partir do homem que
foi oprimido historicamente, pois, segundo ele, são os oprimidos os
mais bem preparados para compreender o significado terrível de
uma sociedade opressora. É o oprimido que melhor sente o efeito
da opressão e, ao mesmo tempo, compreende a necessidade de li-
bertação. “Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela prá-
xis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento de lutar por
ela”, diz Freire (2014, p. 43). Reconhecimento esse que passa pela
reflexão de sua condição como ser humano na história, pela valori-
zação de sua episteme e pelo empoderamento identitário.
Se há um local em que se pode valorizar a episteme do povo,
este lugar é a escola. Quando nesse espaço se propõe um currículo
que envolva o contexto social, é trazido para dentro dele a vida que
pulsa na comunidade e buscados também os apagamentos que his-
toricamente foram impostos aos povos indígenas, para que possam
ser discutidos e enfrentados. Enfim, quando se valorizam o conhe-
cimento global e o local, tem-se uma proposta de educação inter-
cultural e pode-se sonhar com a decolonidade, a libertação do ser
menos (FREIRE, 2014, 2015).

87
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

AFINAL, O QUE É O CURRÍCULO?

Um dos temas primordiais na discussão do projeto político-peda-


gógico é o que se refere ao currículo. Logo, as discussões que o
envolvem objetivando pensar nas possibilidades que contemplem a
comunidade escolar possibilitam o desenvolvimento de uma práti-
ca que foque em sujeitos de direito, para que tenham uma educação
que lhes sirva e que nela se reconheçam.
Arroyo (2007, p. 41), por exemplo, destaca que, quando se con-
segue enxergar os estudantes como sujeitos de direitos, provoca-se
um repensar na formação dos educadores e nos currículos que his-
toricamente estiveram subjugados ao tecnicismo, ao positivismo,
ao modelo europeizado. O objetivo é a busca de uma formação ple-
na, na perspectiva de ver os estudantes “em sua totalidade huma-
na, como sujeitos cognitivos, éticos, estéticos, corpóreos, sociais,
políticos, culturais, de memória, sentimento, emoção, identidade,
diversos” (ARROYO, 2007, p. 41). Ao reconhecer todos esses aspec-
tos, podemos pensar numa escola que em qualquer contexto esteja
apta a atender ao seu público.
De sua parte, Gomes (2007) reafirma que é necessário ter cla-
reza sobre a concepção de educação que embasa o trabalho do-
cente, pois, para a autora, existe uma relação muito próxima entre
o que constitui a pessoa como educadora e o trabalho pedagógico
para a diversidade. Afinal, é “a concepção de educação que informa
as práticas educativas” (GOMES, 2007, p. 18).
Por isso, refletir sobre currículo exige considerar que se trata
de um ato político e histórico. Abarca, portanto, relações sociais e
não se refere a uma simples transmissão de conhecimentos e con-
teúdos. Desse modo, o currículo pode ser visto em dois sentidos:
“em suas ações (aquilo que fazemos) e em seus efeitos (o que ele nos
faz)” (GOMES, 2007, p. 23-24).

88
Capítulo 3

Nessa mesma linha de pensamento, Sacristán (2017) pontua que


ao se definir um currículo, está-se descrevendo a escola e todas as
funções a ela inerentes e que essas estão situadas num determina-
do contexto sócio-histórico e ideológico e com determinado públi-
co a ser atendido. Por isso, é de extrema importância que o coletivo
da escola discuta todas as representações que aquele currículo traz
e o que ele pode negar daquilo que seria essencial naquele contexto
e para aquela população, e assim discutir a melhor proposta para a
comunidade escolar.
Sendo assim, para Sacristán (2017, p. 14) o currículo “é uma prática
que se expressa em comportamentos práticos diversos”. E enfatiza que
“a necessidade do currículo nos estudos pedagógicos, na discussão
sobre educação e no debate sobre qualidade do ensino, é pois recu-
perar a consciência do valor cultural da escola como instituição facilita-
dora de cultura” (grifo nosso). E, talvez, nesse aspecto resida a questão
principal quando se refere a um currículo para escolas indígenas, visto
que, historicamente, o currículo passou “a ser considerado como uma
invenção social que reflete escolhas sociais conscientes e inconscien-
tes, que concordam com os valores e crenças dos grupos dominantes”
(WHITTY, 1985 apud SACRISTÁN, 2017, p. 19).
Para tanto, basta observar como foram criadas as escolas indí-
genas e o tipo de ensino nelas realizado. Vale dizer, um ensino que
colocava os nativos à mercê do colonizador. Da escola criada pelos
jesuítas até os dias atuais, sempre houve uma extrema interferência
da Igreja e da sociedade dominante sobre o que ensinar. E disso
resultou a imposição de um currículo europeizado, branqueado e
hegemônico que ficou impregnado no ser e no fazer das pessoas,
com reflexo nas sociedades atuais.
A par disso, segundo Santomé (1998, p. 96), as pessoas não são
capazes de imaginar “outras possibilidades de seleção e de organi-
zação dos conteúdos escolares diferentes dos modelos tradicionais

89
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

que experimentaram pessoalmente”. Na realidade, o que preponde-


ra é uma escola preocupada com um ensino tecnicista, simplifica-
do, e que deve atender à classe dominante, ignorando a diversidade
de povos e culturas existentes no país.
Ainda conforme Sacristán (2017, p. 22), em virtude de uma visão
tecnicista ou simplificada do currículo, não se consegue esclarecer
“a realidade dos fenômenos curriculares e dificilmente [o currículo]
pode contribuir para mudá-los, porque ignora que o seu valor”. Essa
também é a opinião de Apple (1989), que aponta a existência de um
currículo oculto que ignora as relações de poder permeadas pelas
escolhas curriculares, no que diz respeito à questão quer de conte-
údo quer da metodologia a ser utilizada.
Priorizar um ensino tecnicista significa deixar de lado a criti-
cidade e ignorar as ideologias que são e estão representadas nas
escolhas. O ato de ensinar torna-se algo à parte do que ocorre nas
disputas de poder. Sacristán (2017), no entanto, aponta uma solu-
ção: se o currículo é construído e nele são indicados os conteúdos
a serem ensinados, esse currículo não pode desconsiderar os con-
textos micro e macro nos quais se conformam.
Vejamos, portanto, qual é a definição de Sacristán (2017, p. 34)
para currículo: “[...] projeto seletivo de cultura, cultural, social,
política e administrativamente condicionada, que preenche a ati-
vidade cultural e que se torna realidade dentro das condições tal
como se acha configurada”.
Tanto o pensamento de Sacristán (2017) quanto de Freire
(2014) respaldam-se em Santomé (1998, p. 95), que diz o seguinte:
[...] o currículo pode ser descrito como um projeto educacional
planejado e desenvolvido a partir de uma seleção da cultura e das
experiências das quais deseja-se que as novas gerações partici-
pem, a fim de socializá-las para serem cidadãos e cidadãs solidá-
rios, responsáveis e democráticos.

90
Capítulo 3

Sacristán (2017, p. 34) enfatiza que o currículo deve ser o ponto


de referência na busca da “melhoria da qualidade do ensino, na mu-
dança das condições da prática, no aperfeiçoamento dos professo-
res, na renovação da instituição escolar em geral e nos projetos de
inovação dos centros escolares”.
Se o currículo possui todas essas funções, há de se observar
sua importância em uma escola indígena. Por conseguinte, a pro-
posta de um currículo que contemple social e culturalmente o con-
texto no qual está inserido deve contemplar o povo indígena e tudo
que o cerca.
Portanto, o que deve ser trabalhado na escola, seja indígena ou
não, são os conteúdos que considerem e valorizem o conhecimento
de um povo. É preciso dizer o que é interessante para ser estudado,
de modo a despertar um sentimento de pertencimento. Um currí-
culo que perceba a diversidade de saberes e povos e que valorize
sua cultura, seu contexto.
Nesse sentido, Freire (2014, p. 43) aponta: “Somente na medida
em que se descubram ‘hospedeiros’ do opressor poderão contribuir
para o partejamento de sua pedagogia libertadora” E ainda: “Quanto
mais as massas populares desvelam a realidade objetiva e desafia-
dora sobre a qual elas devem incidir sua ação transformadora, tanto
mais se ‘inserem’ nela criticamente” (FREIRE, 2014, p. 54).
A construção de um Projeto Político-Pedagógico organizado
de acordo com os interesses da comunidade escolar local é a espe-
rança para essa ação transformadora ocorrida com o povo Chiqui-
tano, como passamos a descrever.

91
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO (PPP)


DA ESCOLA INDÍGENA CHIQUITANO

Nos anos de 2005 e 2006 os Chiquitano viveram um forte momen-


to de mobilização8 e conscientização em relação a sua identidade
étnica e aos seus direitos. Em 2005, finalmente, é criada a escola
indígena básica Chiquitano9 (ato de criação nº 6.014, publicado
no Diário Oficial de Mato Grosso em 24 de junho de 2005). Escola
essa que foi fruto de um processo decolonial em construção, de-
mandada pelo povo e para o povo e com a intenção de nela impri-
mir sua identidade, seus saberes tradicionais, sua sabedoria de
vida, sua luta. É o que se pode observar quando se analisa o PPP
construído em 2007, de modo colaborativo, com a participação
da comunidade local.10
De imediato, o que se percebe é que o currículo que estava
sendo pensado trazia em seu bojo os princípios de democracia e
dialogicidade de que trata Freire (2014, 2015). Após entrevistas com
os anciãos, o ponto de partida para definição do currículo foram as
situações reais em que viviam, as quais, ao serem problematizadas,
acabaram compondo os conteúdos a serem estudados na escola.

8  A Terra Indígena Portal do Encantado foi identificada e homologada por meio do


Despacho Presidencial nº 73, publicado no Diário Oficial da União em 2 de setembro
de 2005. Sua área total é de 43.057 hectares de extensão e envolve os municípios de
Porto Esperidião, Pontes e Lacerda e Vila Bela da Santíssima Trindade.

9  Anteriormente os Chiquitano estudavam numa escola do quartel ou num vilarejo


distante em que o currículo aplicado ignorava qualquer aspecto identitário com o povo.

10  Erozina Divina Pimenta Ando, técnica da Educação Escolar Indígena, mediadora
do processo da construção do PPP na comunidade, relatou que após a abertura dos
trabalhos, em uma reunião ampliada, quando questionados se os pais e os anciãos de-
veriam permanecer no evento, eles afirmaram: “Precisam ficar, sim. Vocês vão ajudar
a pensar o que é melhor para nossa comunidade”.

92
Capítulo 3

Gradativamente o povo começa a ter consciência de sua situa-


ção e vai assumindo uma postura decolonial. O seu currículo mos-
tra o desejo de luta contra o poder autoritário que os constituiu.
Numa relação dialética, o currículo passou a ser construído com
fundamento em seu contexto histórico, social, político e cultural,
tendo consciência de história, o que os constituiu como seres que
eram menos, mas com uma leitura da realidade atual. Freire (2014,
2015) assinala que, com essa possibilidade educativa sendo pensa-
da e planejada coletivamente, é possível sonhar, tornar a educa-
ção uma prática da liberdade, pois que pautada na teoria da ação
dialógica. Dessa forma, substitui-se o autoritarismo histórico pelo
diálogo democrático nos diferentes contextos de vida.
No novo currículo de sua escola, os Chiquitano são reconhe-
cidos como sujeitos que pensam, que querem conhecer sua histó-
ria, suas práticas sociais, epistêmicas e suas lutas políticas. E assim,
paulatinamente, vão compondo outros modos de viver, de poder
e de saber, utilizando-se da educação, que pode ser uma forte es-
tratégia para essa libertação das amarras da colonialidade, ainda
mais quando trabalhada na perspectiva da interculturalidade crítica
(WALSH, 2009).
Quando começam a discutir e perceber as causas da assimetria
social e cultural, os Chiquitano reconhecem-se como sujeitos que
podem escrever nova história. Walsh (2009, p. 2) explica: “[...] a edu-
cação intercultural só terá significado, impacto e valor se for assu-
mida de maneira crítica, como ato pedagógico-político que procura
intervir na refundação da sociedade”, ou seja, como diz Paulo Freire
(2014), na refundação de suas estruturas que racionalizam, inferio-
rizam e desumanizam.
Importante destacar que, na contextualização do PPP, os pro-
fessores se pautaram em livros e textos escritos por pesquisado-
res do povo Chiquitano do Brasil. Nessa contextualização relatam

93
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

a influência dos jesuítas sobre o ser Chiquitano, sobre a política de


povoamento da fronteira ao longo da capitania de Mato Grosso, e
como, nesse processo, os indígenas se viram explorados trabalhan-
do como escravos em grandes fazendas e sob a responsabilidade de
guardas do Exército para não fugirem. Além disso, descrevem a dé-
cada de 1970, quando os índios tiveram seus territórios invadidos e
repartidos em pequenos lotes, a maioria deles ocupada por grandes
latifundiários. Também narram como a maior parte da comunidade
Chiquitano foi excluída de seu território inicial e aludem ao uso de
adjetivos pejorativos usados (como bugres), o que resultou no ocul-
tamento de sua identidade indígena. Relatam informações sobre a
territorialidade indígena e descrevem como foi se constituindo o
povo Chiquitano, graças ao amálgama de inúmeros outros povos
indígenas. Lembram-se de como os Chiquitano foram praticamente
arrasados pela presença dos colonizadores portugueses, espanhóis
e, mais recentemente, brasileiros. Escrevem acerca da língua ma-
terna, do risco eminente de seu desaparecimento.
Essa contextualização naquele momento foi de extrema im-
portância, pois tiveram de se “molhar” na sua história, na sua vida
roubada, na sua colonialidade imposta e refletir sobre ela, para
apropriar-se dessa história e reescrevê-la. Desse modo, percebe-se
que o PPP dos Chiquitano estabelece um caráter político importan-
te da necessidade de reconhecimento e discussão de sua história
de conflitos e negações. E isso permite refletir sobre o que na his-
tória contribuiu para que o povo Chiquitano se encontrasse em tais
condições, tanto em relação à sua identidade quanto nas questões
sociais e de território.
Dussel (2000, p. 437) afirma que é necessário olhar a realida-
de de modo crítico, apropriar-se dela: “[...] a realidade se dá agora
como um objeto cognoscível em que o homem assume uma posição
[...]”. E o autor diz como isso deve ocorrer: “[pelo] descobrimento

94
Capítulo 3

feito pelas próprias vítimas, primeiramente, da opressão e exclusão


que pesa sobre sua cultura; [pela] tomada de consciência crítica e
autorreflexão sobre o valor do que lhe é próprio” (DUSSEL, 2000,
p. 420). Freire (2014, p. 72) diz que o ser humano precisa descobrir
quem é o seu opressor, engajar-se na luta organizada, acreditando
em si mesmo e refletindo sobre sua prática para que seja práxis.
Quando refletem sobre sua história, são levados a acreditar
que é possível reconstruir a sua vida por intermédio da revitaliza-
ção do ser Chiquitano, pois a filosofia escolar perpassa pela revita-
lização da origem chiquitana, alicerçada na consciência coletiva do
“SER”, passada pelos ancestrais, evidenciando os valores morais e
éticos desse povo, assegurados pela Constituição brasileira, direi-
tos universais, respeitando e aceitando as diferenças para efetivar a
inclusão na sociedade.

A base filosófica do povo Chiquitano é a de revitalizar o “SER CHI-


QUITANO”, para mostrar, aos alunos e sociedades índias e não ín-
dias, suas conquistas, costumes, cultura, visando à formação hu-
mana e escolar para que possam, juntos, viver no contexto social,
contribuindo na formação de valores sociais que respeitem as di-
ferenças, assegurando seus direitos, garantidos na constituição
brasileira e universal. (MATO GROSSO, 2007, p. 14-15).11

A base filosófica resume toda a luta de buscar valorizar o ser


chiquitano, na busca da humanização e valorização dos conheci-
mentos ancestrais, tendo seus direitos constitucionais garantidos.
Para conseguir cumprir o que propõem, traçam como objetivos:
“Revitalizar o ‘ser’ Chiquitano, conhecer o eu revitalizado (as con-
quistas)”; “inserir o Chiquitano no contexto social como cidadão
brasileiro”; promover “a consciência coletiva, assegurar a esse povo

11  Textos elaborados pelos professores e Conselho Deliberativo da Comunidade Es-


colar (CDCE) da Escola Estadual Indígena Chiquitano Portal do Encantado.

95
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

os valores e direitos pelas leis constitucionais e humanitárias, in-


clusão nas diferenças” (MATO GROSSO, 2007, p. 15).
Aquilo pelo qual o povo estava passando é materializado nos
objetivos descritos no PPP, que é demarcar sua identidade in-
dígena para a garantia, por meio da lei, de seus direitos como
cidadãos brasileiros.
Além disso, quando se olham outros aspectos do PPP, perce-
be-se que há o desejo de que a escola tenha outras funções sociais,
pois ela deverá ser “comunitária”, conduzida pela comunidade in-
dígena, com seus projetos, sua concepção e seus princípios. Nessa
direção, para eles, é imperativo que haja a liberdade de decisão na
elaboração do calendário escolar, da pedagogia, dos objetivos, dos
espaços e momentos utilizados para educação escolarizada. Tudo
isso de modo a contrapor a escola que a eles foi ofertada, pois ela
foi um dos instrumentos para integração e assimilação que fizeram
com que o povo Chiquitano se silenciasse, inclusive deixando de
falar sua língua materna, visto que o ensino se dava somente na
língua portuguesa.12

12  No PPP aparece a voz que nos remete à política educacional vigente no país em
relação aos povos indígenas. Nos relatos das entrevistas com os anciãos, estão claras a
proibição da língua materna na escola e a imposição da língua portuguesa: “Aí quando
comecei na escola, já aprendi a falar o português. Proibiram. Não, não vai falar na lín-
gua. Aí foi largando, largando. Professor proibiu. Apanhava com um negócio que tinha
um buraquinho, batia na mão, na cabeça” (L. R. R., 70 anos); “A escola que teve aqui é
em português, escola dos brancos. Caso que a gente já foi na escola dos brancos, e
aprendeu a falar português. Até o idioma da gente ficou de lado” (M. A., S. 32 anos). O
objetivo maior da política educacional para os povos indígenas era a integração deles
à comunhão nacional.

96
Capítulo 3

A LÍNGUA MATERNA NO CURRÍCULO: POSSIBILIDADE


DE DECOLONIZAÇÃO

Se ao povo não foi dada outra possibilidade, a não ser silenciar sua
língua materna, com o PPP reitera-se a importância de se estudar a
língua ancestral como um símbolo poderoso de identidade:

Mesmo os povos indígenas que são hoje monolíngües em língua


portuguesa continuam a usar a língua de seus ancestrais como
um símbolo poderoso por onde confunde muito dos seus traços
de identificação, construindo assim um quadro de bilinguismo
simbólico importante. (MATO GROSSO, 2007, p. 16).

Esta citação destacada pelo PPP (MATO GROSSO, 2007, p. 25)


pauta-se no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas:

Porque as tradições culturais, os conhecimentos acumulados, a


educação das gerações mais novas, as crenças, o pensamento e
a prática religiosos, as representações simbólicas, a organização
política, os projetos de futuro, enfim, a reprodução sociocultural
das sociedades indígenas são, na maioria dos casos, manifestados
através do uso de mais de uma língua. Mesmo os povos indíge-
nas que são hoje monolíngues em língua portuguesa continuam
a usar a língua de seus ancestrais como um símbolo poderoso
para onde confluem muitos de seus traços identificatórios, cons-
tituindo, assim, um quadro de bilingüismo simbólico importante.

O que os olhos são para quem ama – aqueles olhos comuns e


particulares com que ele, ou ela, nasceu – a língua – qualquer que
seja a que lhe coube historicamente como língua materna [...].
Por meio dessa língua, que se conhece no colo da mãe e que só se
perde no túmulo, restauram-se passados, imaginam-se compa-
nheirismos, sonham-se futuros.

Pra mim foi bom, porque é uma escola que é nossa, onde nós
aprendemos a nossa cultura e que também outras pessoas assim

97
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

não fica tentando é tirar a cultura nossa. Porque nós mesmos, as


nossas aulas são diferenciadas. Então pra mim foi muito bom ter a
escola aqui, aí principalmente me ajudou muito no meu curso onde
estou fazendo, porque eu sei muita coisa que eu não sabia do meu
povo, hoje eu sei (R. C. C. R).
É o que Freire aponta, pois, para ele, a decolonização se con-
cretiza no momento em que os indígenas se tornam sujeitos de seus
atos, de sua vida, de sua história. Isso é uma educação libertadora
(FREIRE, 2014, 2015), cujo objetivo, essencialmente, é promover a
conscientização crítica capaz de perceber a rede que tece a rea-
lidade social e superar a ideologia da opressão. Enfim, quando o
ser humano é sujeito social e produtor do seu saber, ocorre seu
deslocamento da periferia, da margem, para uma posição central na
história. E isso pudemos verificar no desejo da comunidade escolar
da Escola Indígena Chiquitano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Assim afirma Freire (2014, p. 57):

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e liberta-


dora, terá dois momentos distintos. O primeiro, em que os opri-
midos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometen-
do-se, na práxis, com a sua transformação; o segundo, em que,
transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa de ser
do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo
de permanente libertação.

Esse fenômeno pôde ser observado, gradativamente, nos últi-


mos anos no PPP e no currículo expresso da escola chiquitana. Ao
buscar contemplar o conhecimento local e a busca pela identidade

98
Capítulo 3

chiquitana, o indígena passou a ser reconhecido como sujeito de


direito, diante do desejo expresso de ter um currículo mais próximo
de sua realidade e de acordo com as novas demandas de seu povo,
contrapondo-se ao modelo que sempre lhes foi imposto.
A esse respeito, Paulo Freire (2014, 2015) nos ensina que os
sujeitos, por si próprios, podem exercer papéis protagônicos na
construção de suas próprias realidades sociais e educativas. O que
se viu, por meio da descrição de posicionamentos, é um processo
gradativo de libertação do “ser oprimido” pelo poder que pode afe-
tar positivamente na construção do “ser mais” e suas consequentes
implicações.
Gomes (2000, p. 4) diz que a “originalidade de cada cultura re-
side na maneira particular como os grupos sociais resolvem os seus
problemas ao mesmo tempo em que se aproximam de valores que
são comuns a todos os homens e a todas as mulheres”.
A luta por uma educação intercultural, revendo os currículos
e colocando-os a serviço da comunidade escolar, permitiu dar voz
aos povos indígenas que historicamente foram silenciados e exclu-
ídos da sociedade, como no caso aqui apresentado dos Chiquitano
no Brasil.

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102
Capítulo 3

ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 03

1. Tendo em vista a citação “a concepção de educação que infor-


ma as práticas educativas” (GOMES, 2007, p. 18), discorra sobre
o currículo e as práticas pedagógicas.
2. A autora deste capítulo discute sobre um currículo emancipa-
tório e diferenciado. Em que consiste essa proposta curricular
considerando a postura decolonial do povo Chiquitano?

103
CAPÍTULO 4

Interculturalidade e educação
escolar indígena em nível superior
MARIA GORETE NETO
UFMG

INTRODUÇÃO
Este trabalho faz uma reflexão sobre o conceito interculturalidade
partindo de algumas experiências no curso de licenciatura em For-
mação Intercultural para Educadores Indígenas (FIEI) da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Assumo de antemão que
compreendo o conceito interculturalidade, a partir de Walsh (2006,
2012), como algo a ser sempre construído, um desafio que implica
diálogo e negociação constantes e predisposição à desconstrução
de certezas teórico-medotodológicas e epistêmicas, com o intuito
de desestabilizar estruturas que sustentam a desigualdade social.
O debate sobre interculturalidade vem sendo realizado há al-
gumas décadas na América Latina (WALSH, 2006, 2012; CANDAU,
2009, CANDAU; RUSSO, 2010, dentre outros). Candau (2009) afir-
ma que a primeira definição deste termo é atribuída a dois linguis-
tas-antropólogos venezuelanos: Mosonyi e Gonzales (cf. CANDAU,
2009, p. 1) que buscavam descrever suas experiências junto a povos
indígenas do Rio Negro, na Venezuela, no contexto da educação es-
colar indígena, na década de 70.

105
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Para entender a gestação do conceito interculturalidade no


contexto da educação escolar indígena, cumpre fazer um apanhado
dos objetivos dessas experiências que, ainda que muito distintas na
América Latina, apresentam aspectos semelhantes. Em um primei-
ro momento, por exemplo, a tônica era assimilar o indígena, através
de políticas monolíngues e monoculturais. Posteriormente, face à
luta empreendida pelos povos indígenas, objetivou-se fortalecer as
políticas de promoção e valorização das culturas e línguas indígenas.
No Brasil, o paradigma Assimilacionista predominou até a dé-
cada de 70, com o intuito de assimilar o indígena à sociedade na-
cional. Dentro desse paradigma, o modelo Assimilacionista de Sub-
mersão (MAHER, 2007; FERREIRA, 2000) praticado pelos jesuítas
até 1758 e calcado no tripé aldeamento, catequização e escolariza-
ção, tinha como objetivo apagar as culturas e línguas indígenas, do-
mesticar para o trabalho e converter os povos indígenas. O ensino
era obrigatório em português. Esse modelo silenciou inúmeras lín-
guas indígenas e, em muitos casos, facilitou a eliminação de povos
indígenas inteiros.
Face ao fracasso dessa proposta, o modelo Assimilacionista de
Transição foi idealizado. A escola foi para as aldeias e a língua in-
dígena passa a ser utilizada na alfabetização, mas, aos poucos ia
desaparecendo da sala de aula, para dar lugar somente à língua por-
tuguesa. Com o extermínio crescente dos povos indígenas, o esta-
do se viu obrigado a reformular sua política indigenista e, em 1910,
foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) que, pelo menos no
papel, determinou que as escolas indígenas deveriam respeitar a
diversidade cultural e linguística indígena.
Essa mudança de diretrizes não foi suficiente para deter o
desinteresse indígena pela escola. Apenas na década de 70, com a
pressão dos movimentos indígena e indigenista, é que propostas al-
ternativas de educação, comprometidas com a luta pela terra, pela

106
Capítulo 4

saúde e autodeterminação dos povos indígenas, começam a ser im-


plementadas e a dar novos contornos à educação escolar indígena.
Nesse momento, denominado Paradigma Emancipatório, pode ser
observado o modelo de Enriquecimento Cultural e Linguístico que
visava promover línguas e culturas indígenas. A expectativa era que
tanto as línguas indígenas quanto a língua portuguesa fossem ensi-
nadas nas escolas indígenas.
Essas diferentes línguas e culturas, em conflito, vão possibi-
litando pensar a noção de interculturalidade, conforme Candau
(2009). No entanto, a autora esclarece que também outros grupos
têm contribuído na ampliação do debate sobre o conceito intercul-
turalidade, como, por exemplo, os movimentos negros com:

A denúncia das diferentes manifestações da discriminação racial


presentes nas sociedades latino-americanas, assim como o com-
bate à ideologia da mestiçagem e da “democracia racial”, que confi-
guraram um imaginário sobre as relações sociais e raciais mantidas
entre os diferentes grupos presentes nas sociedades latino-ameri-
canas caracterizado pela cordialidade (CANDAU, 2009, p. 2).

A luta pela reparação aos danos causados pela escravização e


pela ideologia do branqueamento, pelo reconhecimento da con-
tribuição dos povos negros na História, Filosofia, dentre outras
Ciências, além de políticas de ações afirmativas, questionam dis-
cursos e práticas eurocêntricas homogeneizantes que enfatizam
uma só cultura.
Também as experiências de educação popular, assentadas na
proposta de Paulo Freire, possibilitaram ampliar o debate sobre
interculturalidade dada a “intrínseca articulação entre processos
educativos e os contextos sócio-culturais em que estes se situam,
colocando assim os universos culturais dos atores implicados no
centro das ações pedagógicas” (CANDAU, 2009, p. 3). Ainda segundo

107
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

essa autora, há um alargamento do debate em torno da intercultu-


ralidade quando, a partir de 80, várias constituições latino-ame-
ricanas, dentre elas a brasileira, reconhecem a multiculturalidade,
multietnicidade e o plurilinguismo como constitutivas de suas so-
ciedades. Esse reconhecimento é ambíguo, no entanto, pois esses
governos estão comprometidos com uma agenda neoliberal. A in-
corporação do discurso da interculturalidade pelo estado não ques-
tiona a adesão a esta agenda, ao contrário, visa eliminar tensões e
conflitos, transformando-se em estratégia para assimilação à cultura
hegemônica, sem afetar as estruturas de poder, as desigualdades e
diferenças entre os grupos sócio-culturais (CANDAU, 2009).
Walsh (2012) explica que o conceito interculturalidade tem sido
muito utilizado na atualidade em uma enorme variedade de contex-
tos e com sentidos políticos até opostos, permitindo compreendê-
-lo de três formas distintas, pelo menos. Sob a perspectiva relacio-
nal, interculturalidade seria o contato e intercâmbio entre culturas,
que poderia se dar em condições de igualdade ou desigualdade. Ao
enfocar os sincretismos, as mestiçagens, as transculturações, essa
perspectiva nega o racismo e as práticas de racialização coloniais.
Ela oculta ou minimiza os conflitos e as relações de poder e domi-
nação entranhadas nesse processo. Limita ainda a interculturalida-
de a relações interpessoais, apagando as estruturas sociais, econô-
micas, políticas e epistêmicas “que posicionam a diferença cultural
em termos de superioridade e inferioridade” (WALSH, 2012, p. 63).
Em segundo lugar, a perspectiva funcional de interculturalida-
de reconhece a diversidade e a diferença cultural, a pretexto de in-
clusão, promoção do diálogo, da convivência e tolerância, mas não
questiona as causas da desigualdade social e cultural e, por isso,
satisfaz aos projetos neoliberais. Não se trata de construir socie-
dades igualitárias, mas de uma estratégia de dominação que visa
controlar o conflito étnico e estabilizar a sociedade, com o intuito

108
Capítulo 4

de fomentar o modelo capitalista neoliberal, trazendo esses gru-


pos para dentro dele. Essa é a noção de interculturalidade que tem
orientado boa parte da política na América Latina, e, segundo a au-
tora, não é só funcional ao sistema, mas favorece o individualismo,
e cria uma ilusão de sentimento de pertencimento a um projeto
comum, entrelaçado com modernização, globalização e competi-
tividade, características de uma cultura ocidental, que termina por
ser assumida como latino-americana.
Por fim, a interculturalidade crítica focaliza a estrutura colonial
racial e sua ligação com o capitalismo de mercado, ao invés de par-
tir da diversidade e diferença ou tolerância e inclusão, para ques-
tionar a lógica capitalista. Trata-se de um projeto, um processo de
construção de uma sociedade diferente, com outro ordenamento
social. A interculturalidade crítica busca compreender e transfor-
mar os dispositivos do poder estrutural/institucional que mantém
a discriminação e a desigualdade. Para Walsh (2012, p. 66), a inter-
culturalidade crítica é ainda algo a se construir, é uma proposta:

[...] construção e posicionamento como projeto político, social,


ético e também epistêmico – de saberes e conhecimentos -, pro-
jeto que fortalece a transformação das estruturas, condições e
dispositivos de poder que mantêm a desigualdade, racialização,
subalternização e inferiorização de seres, saberes e modos, lógi-
cas e racionalidades de vida (WALSH, 2012, p. 66).1

A interculturalidade crítica pretende, assim, intervir e atuar


na colonialidade, entendida como padrão de poder que emerge no
contexto da colonização europeia nas Américas, ligado ao capitalis-
mo mundial e ao controle, dominação, subordinação da população

1  Tradução livre.

109
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

através da ideia de raça, ou seja, de uma pretensa superioridade


dos brancos face aos não brancos. A colonialidade opera em quatro
eixos: 1. do poder: sistema de classificação baseado na racialização
que justifica a exploração, dominação de uma parcela da popula-
ção; 2. do saber: o eurocentrismo como lugar do conhecimento, da
razão e do pensamento; 3. do ser: inferiorização, subalternização e
desumanização daquele que não é europeu; 4. da cosmogonia/na-
tureza: impõe relação binária natureza/sociedade, desconhecendo
os conhecimentos milenares que relacionam mundos biofísicos,
humanos e espirituais que compreendem a vida, os conhecimentos
e a humanidade de maneira integrada.
Candau (2009), sobre interculturalidade crítica, afirma:

Trata-se de questionar as diferenças e desigualdades construídas


ao longo da história entre diferentes grupos sócio-culturais, ét-
nico-raciais, de gênero, orientação sexual, entre outros. Parte-se
da afirmação de que a interculturalidade aponta à construção de
sociedades que assumam as diferenças como constitutivas da de-
mocracia e sejam capazes de construir relações novas, verdadei-
ramente igualitárias entre os diferentes grupos sócio-culturais, o
que supõe empoderar aqueles que foram historicamente inferio-
rizados (CANDAU, 2009, p. 4).

Feito esse apanhado, não exaustivo, sobre o conceito intercul-


turalidade, abaixo será apresentado como ele aparece em alguns
documentos concernentes à educação escolar indígena no Brasil.
Em seguida, será discutido como a noção está sendo mobilizada
dentro do curso de licenciatura Formação Intercultural para Edu-
cadores Indígenas.

110
Capítulo 4

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E INTERCULTURALIDADE: O QUE


DIZEM ALGUNS DOCUMENTOS OFICIAIS

Primeiramente, é preciso ressalvar que a incorporação do concei-


to interculturalidade na legislação brasileira, independentemente
de quais significados estejam embutidos no termo, já é um grande
avanço, fruto das lutas empreendidas pelo movimento indígena e
indigenista, no caso da educação escolar indígena, com a contri-
buição de outros movimentos sociais. Dito isso, passo a examinar
e problematizar como essa noção aparece nas leis brasileiras refe-
rentes à educação escolar indígena. Na esteira da promulgação da
Constituição Federal de 1988, que reconhece os direitos dos povos
indígenas, dentre eles, suas línguas e culturas, em 1993, as Diretri-
zes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena define:

A interculturalidade, isto é, o intercâmbio positivo e mutuamente


enriquecedor entre as culturas das diversas sociedades, deve ser
característica básica da escola indígena. Isso significa passar da
visão estática da educação para uma concepção dinâmica. Não
se pode ficar satisfeito só em “valorizar”, ou mesmo ressusci-
tar “conteúdos” de culturas antigas. Deve-se, pelo contrário, ter
em vista o diálogo constante entre culturas, que possa desven-
dar seus mecanismos, suas funções, sua dinâmica. Esse diálogo
pressupõe que a inter-relação entre as culturas, o intercâmbio
entre as mesmas e as contribuições recíprocas são processos aos
quais todas as sociedades são e foram submetidas ao longo de sua
história (BRASIL, DIRETRIZES PARA A POLÍTICA NACIONAL DE
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA, 1993).

Na definição acima, é possível interpretar a ideia de intercul-


turalidade conforme explicitado por Walsh (2012, citada anterior-
mente), como intercâmbio entre culturas, sem um questionamento
das relações desiguais que se estabelecem entre distintas culturas,
negando e/ou invisibilizando conflitos. Como referido, trata-se de

111
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

um ganho, por um lado, reconhecer a interculturalidade, mas, por


outro, há ainda uma lacuna no que diz respeito a considerar as re-
lações de tensão e conflito intensos entre as culturas indígenas e
não indígena.
Por sua vez, em 1996, a LDB (Lei de Diretrizes e Bases), em seu
artigo 78, afirma que:

O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências


federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desen-
volverá programas integrados de ensino e pesquisas, para oferta
de Educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas,
com os seguintes objetivos: I - proporcionar aos índios, suas co-
munidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas;
a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas
línguas e ciências; II - garantir aos índios, suas comunidades e
povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e cien-
tíficos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e
não índias (BRASIL, LDB, 1996).

Observe-se que a menção a esse conceito não explicita o que se


entende por interculturalidade nem como isso ocorrerá em termos
mais práticos. Esse pode ser considerado um exemplo do que dizia
Walsh (2012, citada anteriormente) ao constatar a incorporação pelo
estado dessa nomenclatura, nas décadas de 80 e 90, em uma pers-
pectiva funcional, ou seja, que visa ao diálogo, tolerância, inclusão,
sem alterações substanciais na estrutura que causa a desigualdade.
Um documento posterior, o Referencial Curricular Nacional
para as Escolas Indígenas (RCNEI, BRASIL, 1998), afirma que a esco-
la indígena deverá ser comunitária, intercultural, bilíngue, especí-
fica e diferenciada e, no que se refere à interculturalidade, define:

Intercultural: Porque deve reconhecer e manter a diversidade


cultural e linguística; promover uma situação de comunicação
entre experiências socioculturais, linguísticas e históricas dife-

112
Capítulo 4

rentes, não considerando uma cultura superior à outra; estimular


o entendimento e o respeito entre seres humanos de identidades
étnicas diferentes, ainda que se reconheça que tais relações vêm
ocorrendo historicamente em contextos de desigualdade social e
política (BRASIL, RCNEI, 1998, p. 24-25).

O RCNEI (1998) explicita o entendimento do conceito aborda-


do, com ênfase no reconhecimento da diversidade cultural e lin-
guística, na promoção da convivência, do diálogo e tolerância. Há,
no entanto, um pequeno avanço em relação à legislação anterior,
apontando os contextos de desigualdade social que moldam as
relações: “...ainda que se reconheça que tais relações vêm ocorren-
do historicamente em contextos de desigualdade social e política.”. É
uma importante sinalização de que a interculturalidade não pode
ser tomada ingenuamente.
Outros documentos que norteiam a educação escolar indígena
mencionam interculturalidade também associando-a com a valo-
rização das culturas e línguas indígenas, caso das duas resoluções
citadas abaixo. A Resolução CNE/CEB nº 3/99, em seu art. 1°:

estabelece no âmbito da Educação Básica, a estrutura e o funcio-


namento das escolas indígenas, reconhecendo-lhes a condição
de escolas com normas e ordenamento jurídico próprios, e fixan-
do as diretrizes curriculares do ensino intercultural e bilíngue,
visando à valorização plena das culturas dos povos indígenas e à
afirmação e manutenção de sua diversidade étnica (BRASIL, Re-
solução CNE/CEB nº 3/99).

Por sua vez, a Resolução nº 5, de 22 de junho de 2012, que de-


fine as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Indígena na Educação Básica (DCNEI) afirma:

Art. 1º Esta Resolução define as Diretrizes Curriculares Nacionais


para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, oferecida

113
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

em instituições próprias. Parágrafo único. Estas Diretrizes Cur-


riculares Nacionais estão pautadas pelos princípios da igualdade
social, da diferença, da especificidade, do bilinguismo e da inter-
culturalidade, fundamentos da Educação Escolar Indígena (BRA-
SIL, DCNEI, 2012).

A palavra interculturalidade (ou intercultural, interculturais)


aparece pelo menos nove vezes no documento, a exemplo do tre-
cho anterior, como parte dos elementos fundantes da educação es-
colar indígena. Como referido, por certo que essas leis se configuram
em um grande avanço para os povos indígenas e que, em alguns ca-
sos, pode ser argumentado que em gêneros textuais legislativos não
caberia a definição de conceitos em seu escopo, em virtude de seu
formato. No entanto, a ausência da definição pode facultar entendi-
mentos não esperados, ou ainda uma naturalização de uma noção
limitada de interculturalidade que apaga conflitos e contribui pouco
para mudanças efetivas nas estruturas da desigualdade social.
No que se refere à formação de professores indígenas, a Resolu-
ção Nº 1, de 7 de janeiro de 2015, que “institui Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Formação de Professores Indígenas em cursos de
Educação Superior e de Ensino Médio e dá outras providências” ex-
plicita no Art. 12 os princípios que deverão compor currículos de
formação de professores indígenas:

Art. 12. Parágrafo único. Na construção e organização dos currí-


culos que objetivam a formação inicial e continuada dos profes-
sores indígenas, deve-se considerar: I - a territorialidade como
categoria central a ser tratada em todas as dimensões dos com-
ponentes curriculares; II - o conhecimento indígena e seus mo-
dos de produção e expressão; III - a presença constante e ativa
de sábios indígenas; IV - a consonância do currículo da escola
indígena com o currículo da formação do professor indígena,
numa perspectiva reflexiva e transformadora; V - a intercultu-
ralidade, o bilinguismo ou multilinguismo, bem como as especi-

114
Capítulo 4

ficidades dos contextos socioculturais expressas nas demandas


educacionais e na participação comunitária; VI - a pesquisa como
fundamento articulador permanente entre teoria e prática ligado
ao saber historicamente produzido e, intrinsecamente, aos inte-
resses e às necessidades educativas, sociolinguísticas, políticas e
culturais dos povos indígenas; VII - os conteúdos relativos às po-
líticas socioeducacionais e aos direitos indígenas, tendo em vista
a complexidade e a especificidade do funcionamento, da gestão
pedagógica e financeira, bem como do controle social da Educa-
ção Escolar Indígena; VIII - a perspectiva do exercício integrado
da docência e da gestão de processos educativos escolares e não
escolares; e IX - a participação indígena na gestão e na avaliação
dos programas e cursos de formação de professores indígenas.
(BRASIL, Resolução Nº 1, de 7 de janeiro de 2015)

Da mesma forma que outras leis que regem a educação escolar


indígena, no trecho destacado acima, a interculturalidade compõe,
junto com a centralidade do território, a presença dos saberes e sá-
bios indígenas, dentre outros elementos, o eixo formativo dos pro-
fessores indígenas. Também não há uma explicitação do que seja
o conceito. Em artigo posterior, do mesmo documento, o diálogo
intercultural é apontado como um instrumento de construção de
relações menos assimétricas.

Art. 18. Com o objetivo de assegurar a qualidade e o respeito às


especificidades desta formação, a participação dos indígenas nos
quadros de formadores e da gestão desses cursos é primordial
para a colaboração institucional, a promoção do diálogo inter-
cultural e o efetivo estabelecimento de relações sociopolíticas,
culturais e pedagógicas mais simétricas (BRASIL, Resolução Nº 1,
de 7 de janeiro de 2015).

Os trechos dos documentos destacados parecem indicar um


pressuposto bastante claro de que a interculturalidade é ineren-
te ao contexto da educação escolar indígena, ou seja, não se pode

115
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

falar de educação escolar indígena sem falar de interculturalidade.


No entanto, em boa parte da legislação, o conceito aparece sem
uma definição, ficando a cargo do leitor inferir pela leitura dos do-
cumentos que, além de ser um eixo fundante das escolas indíge-
nas, a noção, ou o desejo de concretização desta noção, está in-
trinsecamente associada aos outros elementos, quais sejam, multi/
bilinguismo, específica, diferenciada, comunitária, sem os quais
eventualmente não teria razão de existência. Pode ser dito que o
pressuposto de interculturalidade entrevistos nos trechos da legis-
lação apontada não permitem explicitar o conflito entre culturas e
a necessidade constante de negociação entre elas.

O EXERCÍCIO DA INTERCULTURALIDADE NA FORMAÇÃO


INTERCULTURAL PARA EDUCADORES INDÍGENAS (FIEI)

O curso de licenciatura em Formação Intercultural para Educadores


Indígenas da UFMG foi tornado regular em 2009 e, atualmente, fun-
ciona com quatro habilitações: Ciências Sociais e Humanidades, Ma-
temática, Ciências da Vida e da Natureza, Línguas, Artes e Literatura.
A entrada é anual, para uma habilitação, e se dá por processo seleti-
vo específico, para trinta e cinco vagas. O curso funciona em etapas
intensivas na universidade e etapas intermediárias nos territórios
indígenas. Atualmente, dois povos indígenas conformam a maior
parte dos estudantes do curso: Xakriabá, de Minas Gerais, e Pataxó,
de Minas Gerais e da Bahia. Há ainda estudantes de outros povos:
Maxakali, de Minas Gerais, Pataxó Hã Hã Hãe, da Bahia. A realidade
sociolinguística do curso é complexa: o povo Maxakali é falante de
sua língua originária, e falante de português como segunda língua. Os
demais povos são falantes de português como primeira língua e estão
envolvidos em projetos de reavivamento de suas línguas ancestrais.

116
Capítulo 4

Em consonância com a legislação atinente, o projeto político


pedagógico do curso também tem como elementos norteadores o
bilinguismo, a interculturalidade, o específico e o diferenciado. Na
seção ‘Princípios norteadores’, do referido projeto político, consta:
O DIÁLOGO INTERCULTURAL, partindo do reconhecimento e da
valorização dos conhecimentos tradicionais dos diversos povos in-
dígenas em diálogo com o conhecimento acadêmico historicamen-
te acumulado e representado pelas grandes áreas de conhecimento
(FIEI, 2009, p. 17).
No excerto em destaque, a interculturalidade é entendida
como diálogo entre conhecimentos tradicionais indígenas e conhe-
cimento acadêmico. Conforme problematizado, a ideia de diálogo
invisibiliza conflitos e negociações entre as distintas culturas em
contato no curso. A realidade cotidiana do curso, mostra, no en-
tanto, relações interculturais conflituosas, intensas e tensamente
negociadas. Na sequência, apresento dois exemplos.
O primeiro exemplo refere-se à inserção do povo Maxakali no
FIEI. O processo seletivo FIEI, embora específico para povos indíge-
nas, e ainda que buscasse tematizar assuntos da realidade indígena,
apresentava lacunas no que se referia a inserção de povos bilíngues.
Em 2011, os povos Guarani e Maxakali solicitaram ao colegiado FIEI
sua inserção no curso e, desta forma, houve modificação nas provas
com o intuito de facilitar a participação desses povos. Nessa pri-
meira mudança, os candidatos bilíngues Maxakali e Guarani escre-
veram a redação na sua língua de origem. Até então toda a prova era
realizada em língua portuguesa. Houve nessa ocasião a aprovação
de três candidatos Guarani, mas nenhum aprovado Maxakali.
No processo seletivo seguinte, em 2013, após nova consulta aos
povos interessados, a comissão de elaboração da prova traduziu os
enunciados para a língua Maxakali, esperando facilitar a realização
do teste. Novamente os candidatos Maxakali não obtiveram êxito,

117
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

o que fez a equipe FIEI, juntamente com lideranças Maxakali, em


consenso, de que a prova não estava adequada à realidade desse
povo. Desta forma, em 2014, mais alterações foram realizadas,
quais sejam: o número de questões passou de dez para três, as
instruções da prova continuaram sendo traduzidas para a língua
indígena e, obrigatoriamente, apenas uma questão deveria ser
respondida em português. Com estas mudanças, seis candidatos
Guarani foram aprovados, mas, apenas um Maxakali conseguiu
romper a barreira da prova.
Nos anos seguintes, 2015 e 2016, não houve candidatos Guara-
ni. No entanto, novas mudanças foram implementadas para que a
aprovação Maxakali fosse ampliada, dentre elas, a garantia de sala
específica para candidatos Maxakali e de um intérprete Maxaka-
li. Ainda assim, o instrumento continuou se mostrando ineficiente
para os Maxakali, gerando um intenso debate no FIEI, com profes-
sores e lideranças indígenas, sobre a necessidade de se reavaliar o
instrumento do processo seletivo e propor outro.
A partir da avaliação de que o processo seletivo FIEI se con-
vertia em impedimento aos Maxakali para adentrar ao curso, o
Conselho Consultivo Indígena2 do FIEI e o Colegiado FIEI apro-
varam, em 2016, a criação de instrumento de seleção específico
para o povo Maxakali. Com base em uma experiência pregres-
sa exitosa de certificação para o Ensino Médio para o povo Ma-
xakali, coordenada pelos professores Vanessa Sena Tomaz e Jo-
siley Francisco de Souza, também parte do corpo docente FIEI,
foi construída uma prova multimodal, monolíngue em Maxakali,
com conteúdos mais próximos da realidade desse povo, em que
os candidatos puderam se utilizar da escrita, da oralidade, de

2  O Conselho Consultivo Indígena do FIEI é formado por nove lideranças indígenas


dos povos que participam do curso. Já o Colegiado é formado por dez docentes e
quatro estudantes indígenas do curso.

118
Capítulo 4

vídeos e imagens em suas respostas. Esta mudança facultou a


aprovação de quinze candidatos desta etnia.
Nos vários momentos do relato acima, a equipe FIEI se viu pro-
vocada a deslocar-se da sua concepção de prova centrada na escrita e
isso causava, e causa, desconforto. Isso ocasionou o passo a passo des-
crito: primeiro, prova de redação na sua língua, depois tradução das
instruções e, por fim, prova multimodal monolíngue em língua indí-
gena. Esse processo também foi necessário para que outras resistên-
cias, fora do FIEI, ao modelo último desenhado fossem minimizadas.
Provavelmente se a equipe FIEI tivesse proposto desde o início a pro-
va multimodal, esse modelo talvez não tivesse sido aceito por órgãos
superiores da universidade. É ainda um desafio bastante grande para
a universidade questionar seu grafocentrismo e seu modus operandi,
nesse caso no que se refere a modelos de processo seletivo.
Outro aspecto ainda a ser observado é que embora o FIEI tenha
sempre buscado aproximar-se ao máximo do contexto indígena, há
conteúdos criados dentro da visão de mundo ocidental-capitalista
muito distantes da realidade de povos como os Maxakali3. Isso in-
dicou que traduzir conteúdos para a língua Maxakali não seria su-
ficiente para uma inserção efetiva, o que é comprovado pelos “não
êxitos” nas provas.
Tem-se aqui um exemplo de que a construção da intercultu-
ralidade é penosa para ambas as culturas. Ela envolve negociar in-
cessantemente e, no caso da academia, rever suas certezas epis-
temológicas. Há ainda muito o que avançar nesse sentido, pois o
exemplo destacado mostra que o reconhecimento das necessida-
des Maxakali existiu, mas só foi atendido depois de passar por todas
as etapas consideradas adequadas pela academia. Conforme nos

3  As provas do processo seletivo FIEI estão disponíveis no site da COPEVE UFMG:


https://www.ufmg.br/copeve/site_novo/?pagina=8

119
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

explica Walsh, permanece ainda nas entrelinhas uma ideia de supe-


rioridade da cultura não indígena, acadêmica, à cultura indígena e
isso precisa ser problematizado entre os interessados.
Uma outra experiência envolve a reflexão por parte de estu-
dantes indígenas da habilitação ‘Línguas, Artes e Literatura’ a res-
peito do conceito língua e, para essa reflexão, trago trechos de um
percurso acadêmico4 que abordam essa temática. Inicialmente, é
importante ressaltar que compreendo língua como um construto
cujas características são a fluidez e a historicidade. A interação en-
tre os falantes é que constrói e molda a língua. Enquanto discurso, a
língua representa, cria e constrói continuamente identidades. Tra-
ta-se de um termo impreciso do ponto de vista científico, polissê-
mico e pautado pelo eurocentrismo (CAVALCANTI; MAHER, 2018;
CÉSAR; CAVALCANTI, 2007).
Dito isso, apresento algumas definições que foram discutidas
com os estudantes no FIEI e que atestam a imprecisão do concei-
to afirmada acima. Um destas noções é a de Saussure (1970) que
definiu língua como um sistema estruturado de signos (SAUSSU-
RE, 1970). Ao distinguir ‘língua’ e ‘fala’, o autor afirma que a primeira
é um sistema formal, abstrato, de valores imutáveis, homogêneos,
depositado como produto social na mente dos indivíduos, passível
de ser objeto de análise pela Linguística. ‘Fala’, por sua vez, seria um
ato individual, dependente de fatores externos, variável e, portanto,
inadequada à ciência Linguística:

Nossa definição de língua supõe que eliminemos dela tudo o que


lhe seja estranho ao organismo, ao seu sistema, numa palavra:
tudo quanto se designa pelo termo “Linguística externa”. [...] No
que concerne à Linguística interna, as coisas se passam de modo

4  O percurso acadêmico é um trabalho de pesquisa desenvolvido pelo graduando


ao longo do curso, orientado por um docente da universidade, cuja apresentação é
condição para colar grau.

120
Capítulo 4

diferente: ela não admite uma disposição qualquer; a língua é um


sistema que conhece somente sua ordem própria. (SAUSSURE,
1970, p. 29; 31)

Em segundo lugar, a definição gerativista de Chomsky (1978;


1998) indica que língua é um sistema de princípios radicados na
mente humana. De acordo com o autor, todas as línguas têm um
sistema comum, ou Gramática Universal, do qual a Linguística
deve se ocupar. A exemplo de Saussure que distinguiu língua/fala,
Chomsky definiu os termos competência/performance, sendo o
primeiro o conhecimento tácito do sistema da língua e, o segundo,
o uso do idioma em situações concretas. As definições dos autores
citados têm em comum a supressão do contexto de uso no enten-
dimento do conceito língua.
Por fim, Bakhtin (1997; 1979) critica as acepções acima, ressal-
tando a heterogeneidade do conceito língua e sua intrínseca re-
lação com o externo. A língua é tomada como discurso, é histori-
camente situada na concretude da comunicação e não no sistema
abstrato das formas da língua. O autor questiona a suposta neutra-
lidade da língua e afirma que ela é dialógica, associada a relações
de poder, emerge da interação entre os falantes e está atrelada a
outros discursos.
Para complementar o estudo sobre a noção de língua com os
estudantes indígenas, foi também apresentado o trabalho de Cé-
sar e Cavalcanti (2007) que problematizam as noções apresentadas,
afirmando que concepções enrijecidas deste conceito vêm prejudi-
cando trabalho com os povos indígenas e outras minorias linguís-
ticas, por desconsiderarem o uso da língua nesses contextos e en-
fatizarem o formal e o abstrato. As autoras citam o caso de alguns
povos indígenas nordestinos que, segundo estudos linguísticos e
antropológicos sustentados em aportes estruturalistas, não fala-
riam mais sua língua. Esse ponto de vista desagrada a esses povos,

121
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

pois desconsideram o uso que eles fazem de suas línguas ancestrais


e seus esforços em reavivá-las. O trabalho de pesquisa a partir de
concepções essencialistas de língua traz graves implicações para os
povos indígenas. Afirmar que um povo indígena não fala mais sua
língua ou dizer que o que se tem não é língua tem implicações tanto
para a autoestima do povo quanto para a garantia de seus direitos
(GORETE NETO, 2018).
Com o intuito de minimizar os efeitos das noções acima, César
e Cavalcanti (2007) propõem que língua seja compreendida como
um caleidoscópio:

O caleidoscópio, sendo feito por diversos pedaços, cores, formas


e combinações, é um jogo de (im)possibilidades fortuitas e, ao
mesmo tempo, acondicionadas pelo contexto e pelos elementos,
um jogo que se explica sempre fugazmente no exato momento
em que o objeto é colocado na mira do olho e a mão o movimen-
ta; depois, um instante depois, já é outra coisa. No caleidoscó-
pio formam-se desenhos complexos a partir de movimentos, de
combinações. Parece uma imagem feliz para descolar as concep-
ções de língua das concepções de nação e território estabilizadas
politicamente e de níveis hierárquicos, num caso e num outro,
totalidades que se mantêm como “grande narrativa”, justamente
por conta de um arcabouço teórico anacrônico (CÉSAR; CAVAL-
CANTI, 2007, p. 61).

Os desenhos formados pelo manuseio do caleidoscópio nunca


são os mesmos e as possibilidades de combinações de cores e for-
matos que se apresentam nele são infinitas. Essa metáfora, segundo
as autoras, aplica-se ao conceito língua que varia conforme os in-
teragentes e o contexto socio-histórico, possibilitando assim uma
melhor compreensão do uso que se faz da língua.
A partir dessas leituras e reflexões realizadas no FIEI, o pesqui-
sador e professor Pataxó, Uilding Braz, estudante à época, afirma:

122
Capítulo 4

[...] na visão de muitos linguistas a língua Pataxó não seria con-


siderada como língua Pataxó uma vez que usa elementos mor-
fossintáticos da língua portuguesa. Felizmente, nós, apesar de
sermos alvos de críticas e de contradições por muitos dos/das
linguistas, insistimos em querer algo nosso não apenas por causa
do outro como dizem, mas por motivo de termos o compromisso
e respeito com nós mesmos, com nossos ancestrais, anciãos e
com nosso povo, não é o caso de pensar em uma língua “pura” vis-
to que a língua está em constante relação com outras ocorrendo
assim o empréstimo linguístico e com relação à língua Pataxó o
empréstimo é valorizado (BRAZ, 2016, p. 37).

Braz (2016) explicita a enorme violência pela qual passam os


povos indígenas e que é constantemente produzida e reproduzida
pela academia. Por isso, critica linguistas e suas concepções que
desconsideram essa realidade. Assim como os Pataxó, muitos ou-
tros povos indígenas tiveram suas línguas silenciadas pela violência
do contato. No entanto, nas aldeias está a memória desse repertó-
rio linguístico. Ao dizer que esse repertório não é suficiente para
se chamar de língua, a academia reitera e impõe o silenciamento a
essas línguas, renovando, assim, a violência colonial impetrada.
Em função disso, Braz (2016) propõe uma nova definição de
língua, enfatizando que o termo deva ser entendido de maneira si-
tuada. Nesta noção, o autor utiliza a metáfora de uma árvore que
foi podada e rebrota, mas guardando suas raízes ancestrais para
definir ‘língua’:

Desta forma, assim como nossos avós têm experiência multiplicada,


a árvore nova poderia até estar fina, mas ela teria sua base forte, e é
dessa forma que imaginamos a nossa língua. Uma língua que não é
isolada, uma língua cortada, onde fomos obrigados a não falar e por
consequência disso até fomos chamados de povo sem língua. Mas,
hoje podemos dizer que nossa língua está emergindo dos nossos an-
ciãos. E como a árvore nova não é a mesma árvore velha, a nossa
língua também não é e nem seria (BRAZ, 2016, p. 38).

123
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

A proposta de redefinição do conceito língua acima, enfatiza


que esse fenômeno não pode ser compreendido se não se conside-
rar o contexto histórico e social. Braz (2016) reforça a capacidade
criativa de resistência e resiliência dos povos indígenas, informan-
do que a língua está nas raízes da árvore que rebrota, depois de ter
sido violentamente podada.
A iniciativa do estudante indígena também pode ser inter-
pretada como uma subversão ao saber constituído pela academia,
representado por conceitos rígidos, excludentes, conforme pro-
blematizado. É a episteme – saberes e conhecimentos – que está
sendo questionada com a proposição do novo conceito língua. Esse
é um exercício de interculturalidade que, conforme explicita Walsh
(2012, p. 3):

Não é simplesmente reconhecer, tolerar ou incorporar o diferen-


te dentro da matriz e estruturas estabelecidas. Pelo contrário, é
implodir – a partir da diferença - as estruturas coloniais do poder
como desafio, proposta, processo e projeto; é re-conceitualizar
e re-fundar estruturas sociais, epistêmicas e de existências que
põem em cena e em relação equitativa lógicas, práticas e modos
culturais diversos de pensar, atuar e viver (WALSH, 2012, p. 3).

Considero que não é pouca coisa a proposta de um novo con-


ceito língua por um estudante indígena, sabidamente um conceito
caro à universidade, como são tantos outros. São iniciativas como
esta que vão, associadas a outras, construir outras estruturas, no
caso, outra estrutura acadêmica no intuito de se chegar a socieda-
des menos desiguais.

124
Capítulo 4

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo procurei refletir sobre interculturalidade e interpretar


algumas experiências no âmbito do curso FIEI a partir desse con-
ceito. A interculturalidade como está posta nos documentos orien-
tadores da educação escolar indígena parece estar associada a uma
compreensão de interculturalidade enquanto diálogo, tolerância e
convivência harmônica. Conforme problematizado, essa interpre-
tação sugere igualdade entre as culturas, o que não é comprovado
na prática, uma vez que as relações estão pautadas pelo poder e
pelo racismo que alçam como superior a cultura europeia branca.
O conceito interculturalidade para ser mais produtivo às lutas de
povos historicamente subalternizados deve explicitar o conflito, a
tensão e a negociação entre culturas distintas.
No que se refere aos povos indígenas na universidade, em es-
pecial no curso FIEI em destaque, os três elementos citados: con-
flito, tensão e negociação têm sido parte das ações no cotidiano e
puderam ser observados tanto no processo de inserção Maxakali
quanto no questionamento ao termo ‘língua’ pelo pesquisador in-
dígena Pataxó. A presença desses povos na universidade é que in-
terpela, pressiona e provoca a deslocamentos teóricos, epistêmicos
e metodológicos. O esforço, no entanto, para mudar as estruturas
da universidade, deve ser conjunto. Trata-se de um trabalho a ser
construído, nesse caso, com os povos indígenas.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal / Mikhail Bakhtin [tradução feita a partir


do francês por Maria Emsantina Galvão G. Pereira revisão da tradução Marina
Appenzellerl. — 2’ cd. —São Paulo Martins Fontes — (Coleção Ensino Superior), 1997.

125
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

______Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec, 1979.

BRASIL Resolução Nº 1, de 7 de Janeiro de 2015. Diretrizes Curriculares Nacionais


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Indígena, Brasília: MEC/SECADI, 2012. Disponível em http://portal.mec.gov.
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______ RCNEI - Referencial curricular nacional para as escolas indígenas. Brasília:


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______ LDB - Lei de Diretrizes e Bases - Lei 9394/96 | Lei nº 9.394, de 20 de


dezembro de 1996, Brasília: MEC, 1996. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/
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______ Resolução CEB Nº 3, De 10 De Novembro De 1999, Fixa Diretrizes Nacionais


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127
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

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Walter Mignolo – 1ª ed. Buenos Aires: Del Signo. 2006, p. 21-70.

ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 04

1. De acordo com a leitura deste capítulo, discorra sobre as con-


cepções de interculturalidades apresentadas como funcional e
crítica e destaque quais delas tem relevância para um ensino
emancipatório.
2. Considerando a concepção de língua apresentada por Braz
Pataxó (2016), estabeleça uma discussão em interface com as
demais concepções de língua (Saussure, Chomsky e Bakhtin).

128
CAPÍTULO 5

O lugar de pertencimento étnico


na UNB: um olhar discursivo
crítico da diversidade

NÚBIA BATISTA DA SILVA- NUBIÃ TUPINAMBÁ


UNB

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como intenção trazer uma reflexão sobre as narra-
tivas do lugar de pertencimento étnico na UnB: um olhar discursivo
da diversidade. Tendo como objetivo mostrar como os estudantes
indígenas afirmam o seu pertencimento étnico frente ao não reco-
nhecimento por parte da instituição sobre a diversidade étnica pre-
sente em seu câmpus. O contexto de pesquisa deste trabalho está
relacionado ao resultado da minha pesquisa de mestrado defendida
em 2017, que tem como título: Identidades, vozes e presenças indíge-
nas na UnB: sob a ótica da Análise de Discurso Crítica.
A referida pesquisa mostrou que na Universidade de Brasília há
a reprodução de diversos tipos de discriminação (olhares surpresos
no sentindo negativo, a negação do lugar de origem, a negação da
presença do outro, a invisibilidade da diversidade, a manutenção da

129
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

supra hegemonia racial, a burocracia administrativa que não reco-


nhece a diversidade étnica, etc.). E foi muito bem constatado, pro-
vado pela minha pesquisa que, apesar de a UnB ter aberto suas por-
tas para que adentrassem estudantes indígenas para cursar alguns
cursos de graduação, por meio de vestibular específico (2004), e da
pós-graduação por seleção específicas, não a faz uma Universidade
inclusiva de fato, que combate às desigualdades construídas histo-
ricamente desde a invasão do Brasil.
Segundo Boaventura Santos (2010, p. 295), “no Brasil, país colo-
nizado pelos europeus, o sentimento de pertença se dá pela exclu-
são e pelo sentimento e constatação de desigualdade. Ou seja, do
ponto de vista histórico, os colonizados não recebiam os benefícios
dos seus colonizadores”. Eram excluídos dos processos de desen-
volvimento necessários para uma nação que estava por vir, além de
“vivenciarem a usurpação de suas riquezas” e a imposição do traba-
lho forçado, o que reforçava as desigualdades e as injustiças social,
moral, espiritual, de classe, de gênero. As populações aqui encon-
tradas (nós, Povos Originários e as trazidas à força como os Povos
Africanos) enquadram-se no grupo de ‘minorias’, ou nos termos de
Giroux, (1997, p. 39) “maiorias excluídas”. Nesse sentido, o país cons-
tituído, o Brasil, é terra de grandes conflitos e contradições. Esses
conflitos são alimentados no campo das instituições constituídas,
nas produções materiais e imateriais, nas relações sociais e no
campo das ideias, na ideologia da supervalorização de uma cultura
em detrimento da outra, característica própria da colonização bra-
sileira. A universidade como instituição de poder colonizador man-
tém esse status de supremacia europeia, branca, numa pedagogia
de “educação bancária”, parafraseando Paulo Freire (1987, p32), em
que uns são os detentores do saber e outros são os receptores des-
ses saberes, ou seja, uns são destinados ao saber, e outros aceitam a
condição de subjugado, colocado na invisibilidade e negação do ser.

130
Capítulo 5

Por esse motivo, as vozes que faço ecoar aqui, unidas a minha
voz, estão a perseguir os valores descritos pela própria Instituição
em sua Missão Institucional1

Ser uma instituição inovadora, comprometida com a excelência aca-


dêmica, científica e tecnológica formando cidadãos conscientes do
seu papel transformador na sociedade, respeitadas a ética e a valori-
zação de identidades e culturas com responsabilidade social.

Este estudo foi baseado na Análise de Discurso Crítica (FAIR-


CLOUGH, 2001, 2003; CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999) com os
diálogos da América do Sul propostos recentemente (DIAS, 2011, no
prelo; MAGALHÃES, 2017; RAMALHO; RESENDE, 2011; FREIRE, 1985).
Nessa rica jornada de pesquisa, tive a oportunidade de viven-
ciar junto com meus parentes2 essa condição de estudante indí-
gena. Trago algumas reflexões como conhecimento ancestral e
conhecimento acadêmico, diversidade étnica, adaptação: exclusão
x inclusão. Além de trazer a questão de identidade, hegemonia x
poder, autonomia e cosmovisão.

CONHECIMENTO ANCESTRAL X CONHECIMENTO ACADÊMICO

O conhecimento ancestral é o termo que trago para dialogar com


o conceito de identidade, segundo Hall (2015, p. 108), que é “estra-
tégia e posicional”, construída com o tempo e com as experiências
que a vida traz. No caso da minha pesquisa, a construção do “eu

1  (UnB/Missão/2016): Disponível em:< https://unb.br/a-unb/missao> Acesso: em


17 de mai. de 2016.

2  O termo parente siginifa sentir que somos pertencentes a única família. A dos Po-
vos originários. E que pode ser expandido para todos que somos filhos de uma única
mãe. A nossa Mãe Terra.

131
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

coletivo” passa pelo “nós estudantes indígenas”, de modo que traze-


mos fortemente a nossa “história” e nossa “ancestralidade”, as quais
corroboram diretamente com o sentido de pertencimento cultural.
Essa afirmação do “eu coletivo”, estudantes indígenas da UnB, passa
pela afirmação dos iguais, mesmo diante de nossa diversidade, pois
temos culturas diferentes. Nesse caso, nós estudantes indígenas
assumimo-nos como um grupo que possui estratégias e posições
que nos levam à diferenciação uns dos outros, mas ao mesmo tem-
po, nos unem como um todo coletivizado que traz em seu percurso
a força da ancestralidade. Neste último aspecto, se assenta o con-
ceito do “ponto de vista do encontro” e “da sutura”.

Utilizo o termo ‘identidade’ para significar o ponto de encontro,


o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas
que tentam nos ‘interpelar’, nos falar ou nos convocar para que
assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discursos
particulares e, por outro lado, os processos que produzem sub-
jetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode
falar. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às
posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem para
nós (HALL, 2015, p. 34).

Nesse sentido, posso dizer que as práticas discursivas e sociais


que nos constroem estão relacionadas a nossa própria inserção na
UnB. Nesse espaço público, nós nos afirmamos como estudantes
indígenas pertencentes ao Povo Tupinambá, Kamaiwrá, Baniwa,
Tuxá, Pataxó, Potiguara, Pankararu, Puyanawa, Karajá, Tupiniquim,
Fulniô, Kariri-Xocó, dentre outros povos indígenas que compõem
o coletivo de estudantes na UnB. Somos uma pequena parcela dos
Povos indígenas do Brasil. É na afirmação da nossa identidade cole-
tiva que se dá a articulação das práticas e dos discursos em âmbito
social mais amplo. A identidade de brasileiro é o que nos une e for-
ma o nosso eu coletivo maior; contudo, o fato de sermos de várias

132
Capítulo 5

etnias é algo fundamental para a afirmação de nossas diferenças,


de nossas múltiplas identidades indígenas. Somos compostos por
diferentes etnias. Estamos incluídos na população brasileira, mas
como Silva (2000, p. 75) afirma “a identidade brasileira exige que
nos afirmemos na nossa diferença, dentro e fora do Brasil”.

“A minha chegada aqui na universidade. E a minha chegada aqui,


veio motivada pessoalmente por um grande desafio, né? Eu quan-
do cheguei aqui na universidade, eu tive esse, esse forte desafio,
mas por conta da minha ancestralidade lá atrás, né? Sobre o meu
povo” (Cf. SILVA, 2017, p. 99).

Aqui mais uma vez, a perspectiva encontra-se na avalia-


ção positiva dessa nova realidade que se apresenta; o vestibular,
por meio da ligação afetiva com suas raízes em: “mas por conta da
minha ancestralidade lá atrás”. O sentimento que o compõe como
parte de um povo é realçado por meio do uso do pronome posses-
sivo de primeira pessoa: “sobre meu Povo”. Silva (2017, p99) afirma
“Eu cheguei aqui em 2012 (...) a minha chegada aqui veio motivada
pessoalmente por um grande desafio né? Eu quando cheguei aqui na
universidade, eu tive esse, esse forte desafio, mas por conta da minha
ancestralidade lá atrás”.
A consciência ancestral nos move como estudantes e nos
conduz para a universidade. E está ligada diretamente a um “eu co-
letivo”, diverso, e a um “eu” individual. O desafio ligado ao momento
do choque cultural, da necessidade de adaptação em um ambiente
totalmente desconhecido, que perpassa pelo reconhecimento da
diversidade étnica e dos conhecimentos ancestrais de cada povo.
Esse conhecimento existe antes da entrada na universidade, ele
está atrás, no sentido primeiro de existir e que por algum momento
na academia, em caso da negação, poderá ser esquecido. Esse sen-
timento e preocupação é bem relatado, na narrativa abaixo:

133
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

“Hoje eu me orgulho muito de, por quê porquê, você sabe mui-
to bem, que, mesmo com toda essa ancestralidade, mesmo que
essa ancestralidade que nós carregamos, dentro de nós, nós so-
mos seres humanos, somos seres humanos, e que nós estamos aí,
abertos também a contaminação a não a abertos a contaminação,
poluição mundana” (Cf. SILVA, 2017, p. 122).

“EU NÃO ME SINTO ACEITA. A UNB não se preparou pra re-


ceber a gente. Tipo, ela abriu a porta, mas, não se preparou...
Essa aceitabilidade da UnB... “Porque ainda tratam a gente como,
como coisas do folclore. Coisas ainda. “Não se fosse por vcs”. Não
era pra estar na universidade. É que índio na visão dos brancos
é aquele que vive pelado, que caça e pesca. Só isso. Aí não tem
direito a ir pra Universidade. Fazer um curso superior” (Cf. SILVA,
2017, p. 100).

Na universidade, a superação das ideologias que controlam


ideias, práticas e discursos incorporados e validados na sociedade
como se houvesse um único meio de se produzir conhecimentos
é o grande desafio a se perseguir, especialmente no que se refere
ao sistema de cotas, adotados pelas universidades. Isso porque a
universidade é o espaço em que se privilegia a produção não só do
conhecimento, pois é em suas redes e tramas de relações huma-
nas em que é possível promover novas consciências e questionar
antigos padrões colonialistas de vida. As universidades não podem
atuar em função só de formar os grandes quadros de profissionais
que atenderão toda a sociedade.
É em meio as atividades voltadas para produção e reprodu-
ção de conhecimentos que se percebe o grande conflito cultural,
político e ideológico que atua nas práticas discursivas e sociais da
lida universitária. Conflito cultural por ter que mediar as relações
sociais e inter-étnicas, procurando respeitar as formas de vida de
cada ser humano e concepção de mundo pelos Povos, no entrelu-
gar, ainda em formação, entre a visão colonial e a visão decolonial.

134
Capítulo 5

Conflito político por ter que construir e reconstruir políticas que


deem conta da ‘igualdade’, no seio das diferenças, nas relações es-
tabelecidas entre as pessoas. O conflito ideológico por evidenciar
os conflitos existentes de discriminação, preconceito e legitimação
do poder hegemônico, a fim de trabalhar para reconstituição e mu-
dança social.
Neste sentido, a Universidade de Brasília, abrindo as portas
para a diversidade dos povos indígenas, tende a seguir um per-
curso de ressignificar as formas de relações sociais estabelecidas
para além do respeito entre as pessoas e suas culturas, mas deve
atuar no sentido de desconstruir políticas que têm como função
apenas amenizar as desigualdades sociais. Para a realização dessa
proposta ‘desconstrutora’ e ousada será necessária uma mudança
epistemológica que promova uma revisão sobre as maneiras como
os conhecimentos ‘científicos’ são construídos, o que permitirá um
passo para uma nova rede de práticas sociais e discursivas no bojo
da educação crítica que reconhece as diferenças, as incluem e as
fortalecem. Em outras palavras, a questão indígena requer uma es-
pecificidade de ações engajadas no sistema universitário, para que
seja possível a construção de novos instrumentos pedagógicos, po-
líticos, cosmológicos e a articulação social para a inclusão dessas
populações historicamente excluídas.
Para nós, Povos originários, a educação superior, como todas as
outras conquistas, são consequências de muita luta. E foi a luta dos
estudantes concluintes do nível médio que almejando a continua-
ção dos estudos numa pós-graduação, iniciada em 2001 pela Uni-
versidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), que impulsionou
a conquista em outras universidades, inclusive a UnB. Com tantas
dificuldades, os estudantes promovem eventos de resistências e
reivindicações com o foco no respeito à diversidade dos Povos In-
dígenas. Uma materialização desse movimento dos estudantes in-

135
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

dígenas na UnB foi a implementação da Associação dos Acadêmicos


Indígenas da UnB - (AAIUNB), que reúne as reivindicações e situa-
ções diferenciadas vividas pelos estudantes no espaço universitá-
rio. Nesse processo de resistência e de luta, os indígenas conquis-
taram a construção do espaço de convivência e apoio, denominado
Maloca, solicitado em 2011 e concluído em janeiro de 2016. Em que
prima pelo diálogo com a Instituição, de forma reflexiva, proposi-
tiva e transformadora, com o objetivo de fazer valer esse espaço
de acesso ao ensino superior, na forma do vestibular, e seleção de
mestrado e doutorado específico na UnB. É uma luta dos diferentes
em busca de direitos humanos ao seu reconhecimento como dife-
rente. Esse diálogo exige transformação e mudança. Podemos dizer
que é uma inserção de valores até então negligenciados, esqueci-
dos, distorcidos. Como bem diz o “educador da esperança”

diálogo é uma exigência existencial. E, se é um encontro que se


solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mun-
do a ser transformado e humanizado, não pode se reduzir-se a
um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tão pou-
co tornar-se simples troca, das ideias a serem consumidas pelos
permutantes (FREIRE, 1987, p. 45).

A UnB tem efetivado hoje mais 70 estudantes indígenas ma-


triculados, sendo mais 50 estudantes na graduação e mais de 20
estudantes na pós-graduação, pertencentes a mais de 30 Povos
distintos, admitidos, em sua maioria, pelo vestibular específico di-
ferenciado, realizados nos anos de 2004; 2009; 2013; 2017; 2018. To-
davia, a presença indígena torna-se quase imperceptível para esse
espaço acadêmico, por diversos motivos, alguns discutidos neste
artigo. Vale lembrar as palavras do educador crítico Giroux (1997,
p. 39), para refletirmos sobre os nossos saberes indígenas: “o co-
nhecimento crítico ajudaria a elucidar como tais grupos puderam

136
Capítulo 5

desenvolver uma linguagem e um discurso oriundo de sua própria


herança cultural parcialmente distorcida. O que essa sociedade fez
de mim que eu não quero mais ser?” “A educação não é a única por-
ta para o desenvolvimento de um país. Mas, sem ela as outras portas
não se abrirão e, se abrirem não cumprirão o seu papel plenamen-
te, pois existirá uma grande lacuna deixada para trás inicialmente”
(SILVA, 20017, P. 48).
Ao elaborar uma ação e levarmos em conta, além do prazer, o sig-
nificado de aprender algo novo, ou, simplesmente aprender mais sobre
o que se sabe, nós trilhamos o caminho dos iguais; iguais como seres
humanos capazes de construir, inventar e reinventar a roda da vida.
Quando partimos para a ação, em particular, de aprender e por
consequência de ensinar, nos reconhecemos como multiétnicos,
plurais e diversos, aprendemos a ser pessoas melhores e ajudamos
pessoas a serem ‘pessoas’, com os atributos integrais do ser, como
dignidade, senso crítico, ética, entre outros. O bom senso e a ética
nos fazem planejar ações (aulas-práticas pedagógicas) que tenham
real significado para quem a ação for dirigida. Então, planejar, levando
em conta a riqueza da nação brasileira, requer, de fato, um exercício
que paute na democracia e na verdade, ou, nas verdades sobre essa
nação. Olhando a história da sociedade brasileira, veremos que são
várias as realidades de práticas pedagógicas. A forma de elaboração e
conquista dos artigos 231 e 322 da CF. e do art.78 da LDB que trata dos
Povos Indígenas, traz em seu percurso princípios norteadores que
são frutos de uma prática pedagógica, considerando a diversidade
pluriétnica. Traz o princípio da prática de reunir, unir, agir e refletir,
para reagir, recriar e reafirmar. É a partir dessa compreensão que a
educação diferenciada indígena leva a novos conhecimentos; e nosso
papel de educadores/as e profissionais da educação é fazer a relação
direta com os conhecimentos de cada povo.

137
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

a luta pelos direitos humanos, e, em geral pela defesa e promoção


da dignidade humana não é um mero exercício intelectual, é uma
prática que resulta de uma entrega moral, afectiva e emocional
ancorada na incondicionalidade do inconformismo e da exigência
de acção. Tal entrega só é possível a partir de uma identificação
profunda com postulados culturais inscritos na personalidade e
nas formas básicas de socialização (SANTOS, 2010, p. 447).

No contexto brasileiro, os resultados e as marcas da coloniza-


ção demonstram a representação do “outro”, simbolicamente, con-
cebido como alguém desprovido de legitimidade, à margem do di-
reito aos bens materiais e simbólicos de mais prestígio social. Nós,
povos indígenas, somos pouquíssimos os que acessam o ensino su-
perior, de acordo com os dados recentes do Instituto de Pesquisa
Econômica e Aplicada – IPEA (2014). Neste sentido, é importante
entender o papel do discurso como estruturador das relações dos
atores sociais neste contexto. É relevante nos concentrarmos em
estudar como os discursos podem colaborar na construção e na
revisão de identidades, sejam elas ligadas a formas de poder como
dominação, ou ligadas a modos de reconstrução, de acordo com o
respeito e o direito à diferença. Segundo SILVA (2000, p. 76),

Além de serem interdependentes, identidade e diferença parti-


lham uma importante característica: elas são o resultado de atos
da criação linguística. Dizer que são o resultado de atos de cria-
ção significa dizer que não são essências, que não são coisas que
estejam simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou desco-
bertas, respeitadas ou toleradas. A identidade e a diferença têm
que ser ativamente produzidas. Elas não são criaturas do mundo
natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural
e social. Somos nós que a fabricamos no contexto de relações
culturais e sociais.

138
Capítulo 5

ADAPTAÇÃO: EXCLUSÃO X INCLUSÃO. UMA NECESSIDADE DE


POLÍTICA ESPECÍFICA

“Por essa questão, eu sempre falo que, o estudante indígena da


graduação. Pós, é mais tranquilo, mas da graduação, é ele tem
três desafios. O primeiro é adaptação, o segundo é o choque cul-
tural, ou vir as vezes muito novo. Nunca ter saído da aldeia, às ve-
zes. Ou da comunidade. E, de repente, você vai morar na cidade,
aí toma uma porrada, tuf. Você, tem que, reinventar, reaprender.
Enfim, fazer o possível pra sobreviver. Esse é o primeiro desafio”
(Cf. SILVA, 2017, p.125).

A narrativa de meu Parente, acima, traz a reflexão da neces-


sidade de pensar esse processo de adaptação como um direito e
um dever. Um direito para nós estudantes indígenas da UnB e um
dever da Instituição em promover esse momento que no meu en-
tendimento tem vários lugares, que ora são físicos, ora psíquicos,
ora espirituais. O não olhar esse estudante, sabendo e respeitando
sua origem, mesmo depois de ter aberto portas específicas para sua
entrada, é tão desrespeitador e excludente, quanto se não tivesse
aberto essas portas específicas. Mas o que merece reflexão é que
esse é o mais sutil processo de avaliação para menos das capacida-
des dos estudantes indígenas até então excluídos dos processos de
ingresso ao ensino superior de forma diferenciada, pela sua traje-
tória escolar oferecida pelo órgão público. Porque a essa situação
se soma o projeto de avaliar as pessoas pelas competências e ha-
bilidades individuais. O resultado positivo e/ou negativo estará na
responsabilidade do indivíduo, do estudante.
Como já citado, a Universidade admite em sua missão valores
de respeito e valorização das identidades culturais”, no entanto não
investiu recursos humanos e materiais na construção de instru-

139
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

mentos legais e ações práticas para atender a realidade que dê con-


ta da permanência a fim de garantir um processo sólido de inclusão.
Veja o que diz meu Parente sobre isso em sua narrativa:

“a inclusão de indígena enquanto grupo sócio econômico, vulnerá-


vel, que antes não era. Antes você tinha na universidade os vulne-
ráveis, os semivulneráveis e os não vulneráveis. E, tinham os índios
que não se enquadravam em nenhum dos três, né? E quando você
até, quando ia solicitar moradia. Eles falavam: Não, você é, é indí-
gena. Não pode. Então o fator, de ser indígena, te limitava acessar
as políticas, socioeconômicas da universidade. Mesmo sendo vul-
nerável. Então incluir os indígenas, nos incluir na categoria vulne-
rável, foi um avanço, né? Muito significativo, em relação a perma-
nência, né? E, e, assim. Tem dado certo. Mas, o que falta de fato é
uma política que não seja, só assistência, né? Que se trabalhe, no,
fator, é, é educativo como um todo, social, psíquico, a assistência
também, mas, que trabalhe o geral” (Cf. SILVA, 2017, p. 71).

Por exemplo, a UnB faz um vestibular específico para nosso


ingresso, Povos originários, e não inclui em seus conteúdos forma-
tivos o estudo de fato de quem somos, de onde viemos, o que es-
peramos, o que sabemos. Entramos no espaço como “estrangeiro” e
saímos às vezes notados como os diferentes. Não há, na instituição,
sequer um preparo dos cursos que abrem vagas para indígenas. En-
tão, refletindo sobre a abertura do acesso de indígenas à formação
superior na UnB, mesmo sendo uma ação de abertura para a diver-
sidade cultural, esta não é uma construção pautada no princípio
da inclusão e da valorização do respeito às identidades culturais
de fato. Digo isso porque o acesso ao ensino superior é fruto da
luta por direitos coletivos e individuais pela educação superior tra-
vadas pelos Povos Originários. Pouco se sabe sobre nós, que en-
tramos pelo vestibular e seleção de pós-graduação específica, e
menos ainda dos Povos que ainda não chegaram à Universidade. E
estamos sempre afirmando nossa identidade étnica. Às vezes, essa

140
Capítulo 5

afirmação é recebida de forma acomodada, outras vezes, de forma


contestada. Nenhuma das duas afirmações, o momento em que po-
deria haver um diálogo de encontros e conhecimentos mútuos, não
são construtivas, nem transformadoras. Na forma acomodada, que
é uma aceitação pela ideia preestabelecida do estereótipo, de como
se concebe como são os Povos indígenas. Na contestação, onde
ocorre a de não aceitação, está na confirmação do primeiro. Ora,
se a minha ideia de como são os Povos indígenas não é identificada,
logo eu rejeito, essa pessoa. Eu não a reconheço como indígena.
Essa é uma realidade da UnB, legalmente instituída em seus cursos
e mais ainda no curso de pós-graduação em Linguística que coloca
como um dos critérios ser falante da língua materna. Essa é uma
forma de discriminação, exclusão, racismo, e a manutenção do ser
estereotipado e estigmatizado.

A afirmação da identidade e da diferença expressa muito bem “o


desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados,
de garantir acesso aos bens sociais (...). O poder de definir a iden-
tidade e marcar a diferença não pode ser separado das relações
mais amplas de poder (SILVA, 2000, p. 81).

Na perspectiva da afirmação de nossas identidades étnicas,


muitas vezes, somos desrespeitados na nossa cultura, nos nossos
tempos, ritos, cosmovisão, enfim, as nossas epistemologias não
têm lugar ainda na universidade. Chegamos ao ambiente acadê-
mico com lacunas de conhecimentos tradicionais3 básicos, como
a Língua Portuguesa (oral e escrita) e os requisitos matemáticos
mínimos para que a os/as estudantes indígenas que escolhem os
cursos na área das exatas consigam ser aprovados em disciplinas

3  Entendo aqui ‘conhecimentos tradicionais’ de modo crítico como aqueles conhe-


cimentos que são parte do viés do colonizador.

141
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

básicas da UnB, como a famosa “Cálculo 1”, disciplina citada pelos


meus Parentes em reuniões. Aqui, reside uma das questões ligadas
à necessidade de adaptação. Que, na verdade, não é uma adaptação,
mas uma necessidade de aprimoramento dos conteúdos básicos
para fazer o curso de graduação.
Para isso, sendo porta voz dos meus Parentes sobre esse gran-
de desafio ao entrar na Universidade que é a questão da adaptação,
deixei como proposta:

1-. A criação de dados cadastrais (ficha específica, programa de


dados) que especifique os/as estudantes Indígenas para o acesso
à política de Assistência Estudantil da UnB, como direito diferen-
ciado, no combate a qualquer regime racista, como cita a “Decla-
ração dos Direitos dos Povos” de Angel, de 1976, especificamente
o artigo 6º que diz que “Todos os Povos têm direito de libertar-se
de toda e qualquer dominação colonial ou estrangeira (externa),
seja direta ou indireta, e de qualquer regime racista” (Cf. SILVA,
2017, p.127).

2- A criação, em cada curso, de uma disciplina introdutória, como


a base de todo curso, algo como “introdução a, (I e II)”, no primei-
ro e segundo semestre para todos os estudantes como crédito da
base curricular. Em horário oposto, deveria haver uma disciplina
de nivelamento, com monitoria especializada para auxiliar nos
conhecimentos necessários para o aprendizado em cada curso,
um para língua portuguesa e outro para matemática (Cf. SILVA,
2017, p. 128).

3 - A criação de uma disciplina sobre a história e a cosmovisão de


cada povo, com o nome, por exemplo, de Multiculturalidade na
(Linguística, Antropologia, Ciências Sociais, Sociologia, Nutrição,
Enfermagem, Medicina, Engenharia Florestal, Pedagogia, Direito,
Artes, Administração, Ciências Políticas, Ciências Naturais, Co-
municação Organizacional, Fisioterapia, Gestão Ambiental, Ges-
tão do Agronegócio, Jornalismo, Psicologia e Saúde Coletiva etc.):
diálogos decoloniais (Cf. SILVA, 2017, p.128-129).

142
Capítulo 5

O CHOQUE CULTURAL X PERÍODO DE ADAPTAÇÃO

A questão da adaptação carrega dentro de cada estudante indíge-


na, meus parentes, uma realidade dicotômica. Ela é resistência e ao
mesmo tempo superação. É forma decolonial de nos descolonizar.
Porque resistência aqui é entendida como teimosia em permanecer,
assume uma característica de permanência e conclusão dos cursos,
por nós escolhidos. Também traz a afirmação da identidade étnica,
não porque está em crise, mas porque nela reside o nosso lugar de
pertença, é o nosso chão, o nosso porto seguro, nossa singularidade
na diversidade. É porque sou Tupinambá que fez encontrar com o
meus Parentes e os demais Povos. É no encontro com o diferente
que afirmo quem sou.
O estudante tem que resistir a todo processo de descaracte-
rização da sua cultura, dos seus conhecimentos ancestrais, de sua
identidade. Resistir para continuar estudando. E a superação das
dificuldades acadêmicas as quais todos nós enfrentamos. Por isso,
ao longo do texto, trago algumas sugestões de propostas na contra-
posição à negação da nossa existência.

“Ser um estudante na universidade. É, é, é vivenciar coisas novas,


é uma batalha de cada dia. Porque, é difícil, você tem que dar conta
de todo uma carga horária, de todo o conteúdo que ele é apresenta-
do pra você num tempo curto, e você aí chegada a competir. Quer
queira, que não aqui na academia, o que eu percebo que é uma, uma
competição. Você é estingada a competir, não tanto, é, você para
com você, pra você se tornar melhor para ter mais aprendizado.
Mas você às vezes você para com o outro colega. É saber, quem tem
mais. Que que acho que deviria ser ao contrário. Devia ser uma
somação. Que devia somar e não existir essa competição. E acaba,
que. Eu me sinto muito julgada, meu conhecimento está sendo jul-
gado, o tempo todo. Se você, eu, tem dificuldade de aprendizagem
tal coisa” (Cf. SILVA, 2017, p. 91).

143
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Este é o momento tão esperado pelos parentes indígenas


quando se encorajam a entrar na universidade, o tão falado “choque
cultural”. Considero que essa situação seria amenizada se as outras
duas que antecederam também fossem uma realidade. É como se
fosse um ciclo de aprendizagem no caminho da “decolonialidade”:
experienciar a diversidade com foco na inclusão e igualdade, res-
peitando as diferenças.

“ser um estudante na universidade. É, é, é vivenciar coisas novas,


é uma batalha de cada dia. Porque, é difícil, você tem que dar
conta de todo uma carga horária, de todo o conteúdo que ele
é apresentado pra você num tempo curto, e você aí chegada a
competir. Quer queira, que não aqui na academia, o que eu per-
cebo que é uma, uma competição. Você é estingada a competir,
não tanto, é, você para com você, pra você se tornar melhor para
ter mais aprendizado. Mas você às vezes você para com o outro
colega. É saber, quem tem mais.  Que que acho que deviria ser ao
contrário. Devia ser uma somação. Que devia somar e não existir
essa competição. E acaba, que. Eu me sinto muito julgada, meu
conhecimento está sendo julgado, o tempo todo. Se você, eu, tem
dificuldade de aprendizagem tal coisa” (Cf. SILVA, 2017, p. 91).

Neste relato, a minha parente ressalta algumas questões for-
tes, que estão presentes em toda a dissertação. Ela diz que ser es-
tudante universitária é viver e lutar. Ela utiliza a metáfora bélica
“batalha de cada dia” para falar da nossa luta. Em seu discurso, ela
traça o que pode ser chamado de ‘choque cultural’, como em: “carga
horária”, “tempo curto”, “competir”, “julgada no meu conhecimento”. 
A referência ao ‘choque cultural’ como um desafio muito pesado
é uma temática muito comum em muitas conversas entre os pa-
rentes, pois, em suas palavras: “Chega aqui encontra um monte de
pauladas”. Destacam que a falta de “apoio não só financeiro (bolsa
permanência, a assistência estudantil), mas também de apoio psi-
cológico”, “para lidar com os problemas”, longe e fora da aldeia.

144
Capítulo 5

Nesse sentido, o choque cultural altera o ritmo da vida dos es-


tudantes, interfere nos seus comportamentos, mexe com o seu psi-
cológico e os coloca ‘em teste’ o tempo todo, especialmente no que
se refere aos seus conhecimentos transcendentais, como pode ser
visto no trecho em foco: “aqui na universidade é tudo diferente do eu
vivo e aprendi lá na aldeia”.
Para cada acesso ao vestibular específico diferenciado, os estu-
dantes indígenas trazem suas marcas identitárias étnicas, que estão
em movimento para além da sala de aula dos cursos que estão estu-
dando; essas marcas são materializadas cotidianamente no espaço
denominado MALOCA. Nesse espaço, a presença indígena é marca-
da etnicamente. Cada estudante é levado a dizer a qual povo étnico
pertence. Do ponto de vista material, o espaço Maloca é considerado
como um espaço de múltiplos e diversos etnoconhecimentos. Ele é
uma adaptação da arquitetura utilizada pelos Povos indígenas, cons-
truído em formato de círculo, ao centro existe uma abertura no teto
para entrada da luz do Sol e para a caída da chuva, em formato de
arena. Ao redor, na parte térrea, tem sala de reunião, banheiros, uma
secretaria. Na parte superior, há salas de estudos e de informática e
banheiros. O espaço possui um elevador. A cobertura é feita de borra
de piaçava e madeira. Nas laterais, há painéis com fotografias e his-
tórias dos Povos de quase todos os estudantes indígenas que fizeram
parte da construção da Maloca. Outros painéis foram solicitados por
povos que ainda faltam. Segundo Silva (2000, p. 18), essas represen-
tações fazem parte do processo pelo qual nos identificamos com os
outros, pela ausência de uma consciência da diferença”.
Nesse contexto, retomando o parágrafo anterior a esse, vejo
não apenas a falta de espaço para nossos saberes, como também
um tratamento que nos coloca como estudantes ‘de trajetórias co-
muns, ou iguais’ que deveríamos dar conta como qualquer outro
aluno/a da UnB. Ora, olhar criticamente para esta questão é consi-

145
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

derar a compreensão do “direito a ser igual sempre que a diferença


nos inferioriza” e do direito de ser “diferente sempre que igualdade
nos descaracteriza” (SANTOS 2010, p. 313-314). Em outras palavras,
podemos falar, por um lado, em políticas administrativas de uni-
versidade em termos de permanência dessas minorias no sentido
de oferecer diferentes maneiras de apoio pedagógico, programas
de assistência estudantil, de modo que a política específica de in-
gresso contemple, de fato, a inclusão e a permanência desses/as
alunos/as nos cursos oferecidos. Por outro lado, devemos refletir
criticamente em termos de saberes decoloniais no sentido de ana-
lisar o quanto as políticas de permanência podem ser limitadas por
estarem ligadas apenas às condições de adaptação dos estudantes
às práticas sociais e discursivas da universidade, sem considerar
as novas epistemologias, em uma abordagem integrativa onde há
troca e não adaptação. De acordo com Dias (no prelo), olhar a edu-
cação sob um viés discursivo, crítico e decolonial implica:

REFLETINDO

Continuo refletindo. Aproveito a epígrafe do meu Parente, porque


é também a minha e considero que seja dos demais, sobre o lugar
de pertencimento étnico na UnB: um olhar discursivo crítico da di-
versidade. Tenho consciência de que nesta reflexão não foi possí-
vel trazer todas as questões que dialogam com direto desse nosso
lugar, étnico e diferenciado. Quis trazer uma pequena questão do
quanto é fundamental e importante dizer sobre nossa presença e
nosso lugar de fala, de pertencimento, que perpassa as nossas he-
ranças e forças ancestrais.
Não tenho dados das mais de 178 vozes de estudantes indígenas
da graduação e pós-graduação na UnB atualmente matriculados,

146
Capítulo 5

vindos das diversas regiões do país, em que representamos mais de


33 povos indígenas. Reflito: como o vestibular indígena, específico,
uma seleção de mestrado e doutorado específicos assumidos pela
UnB, não estão na estrutura radicalmente na inclusão, no respeito
a diferenças culturais? Existe um problema de formação da cons-
ciência humana e de estruturação da sociedade. Até essa compre-
ensão é plausível. Mas, como uma estrutura capaz de criar, recriar,
transformar, inovar, como a universidade, não a faz de forma a con-
templar toda a diversidade?
E, faço coro nesta luta, junto com meus parentes, estudantes
indígenas, pois estamos comprometidos com essa conquista di-
ferenciada. Por solidariedade, a causa maior da minha pesquisa,
esses parentes emprestaram as suas vozes, presenças e discursos
para que eu pudesse apresentar suas narrativas neste trabalho em
prol de uma defesa que é nossa. Parto da compreensão de que a
luta por direitos humanos, nesse caso a nossa, povos originários
do Brasil, faz parte de um caminho “decolonial”, que traz em sua
base a visão contra hegemônica, na perspectiva de encontrar um
novo jeito não usual de garantir a “dignidade humana”. Nesse sen-
tido, concordo com o pensamento de tantos autores críticos, com
que pude dialogar neste trabalho, ao lado das vozes também de
resistência dos meus parentes, ao buscar a compreensão de um
novo meta-direito intercultural que é o direito a ser igual sem-
pre que a diferença nos inferioriza, ao mesmo tempo, o direito de
ser diferente sempre que igualdade nos descaracteriza. (SANTOS
2010, p. 313/314).
A luta pelo “princípio da igualdade” deve ser conduzida de par
com a luta pelo princípio do “reconhecimento da diferença”. Cabe à
Universidade ouvir os Povos indígenas presentes nos seus cursos,
de fato, de forma democrática, respeitando a diversidade, as epis-
temologias e cada especificidade desses povos.

147
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

É necessário, pois, colocar um “imperativo intercultural” de su-


peração diante de “múltiplos e difíceis obstáculos”, que ao meu ver,
está na revisitação coerente do papel da Universidade, para que ela,
de fato, faz por meio da pesquisa, ensino e ciência e tecnologia,
contemplar toda a diversidade, a ponto de o sentimento de perten-
cimento trazer a essência de cada ser, cada descoberta numa visão
cósmica. Acredito que a revisão do papel da Universidade trará be-
nefício de força ancestral. O que será um ganho para cada ser vivo,
pois somos nesta terra composição cósmica estrelar que compõem
o universo astral. Imaginemos uma universidade que se derrame,
debruce em seus estudos, pesquisa a nossa composição primeira,
que nos formou?
Finalizo este artigo com a afirmação do meu Povo Tupinambá
de que somos oriundos do cosmo e para lá retornaremos e, nessa
visão, a nossa formação primeira. E essa afirmação os Povos Origi-
nários do mundo estão dizendo. Basta nos escutar em nosso lugar
de pertencimento ancestral.

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152
Capítulo 5

ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 05

1. Discorra sobre os conflitos gerados da relação entre o conhe-


cimento ancestral e o conhecimento acadêmico, tendo em vis-
ta, a seguinte narrativa da indígena:

“Ser um estudante na universidade. É, é, é vivenciar coisas no-


vas, é uma batalha de cada dia. Porque, é difícil, você tem que dar
conta de todo uma carga horária, de todo o conteúdo que ele é apre-
sentado pra você num tempo curto, e você aí chegada a competir.
Quer queira, que não aqui na academia, o que eu percebo que é uma,
uma competição. Você é estingada a competir, não tanto, é, você para
com você, pra você se tornar melhor para ter mais aprendizado. Mas
você às vezes você para com o outro colega. É saber, quem tem mais.
Que que acho que deviria ser ao contrário. Devia ser uma somação.
Que devia somar e não existir essa competição. E acaba, que. Eu me
sinto muito julgada, meu conhecimento está sendo julgado, o tempo
todo. Se você, eu, tem dificuldade de aprendizagem tal coisa. (SILVA:
2016, p.81) “aqui na universidade é tudo diferente do eu vivo e aprendi
lá na aldeia”.

2. Considerando a afirmação: “construir e reconstruir políticas


que deem conta da ‘igualdade’, no seio das diferenças” em re-
ferência a Santos (2010, p. 313- 314) “direito a ser igual sempre
que a diferença nos inferioriza” e do direito de ser “diferente
sempre que igualdade nos descaracteriza”, comente sobre a
igualdade e a diversidade brasileira.

153
CAPÍTULO 6

Interculturalidade e educação
indígena no contexto brasileiro:
algumas reflexões

RODRIANA DIAS COELHO COSTA


UNB

KLEBER APARECIDO DA SILVA


UNB

“Os seres da natureza e a Grande Mãe temem e sopram aos nossos


ouvidos uma urgência. A tradição milenar que compôs meu espí-
rito tem mantido a minha sobrevivência e a do meu povo. Agora,
porém, não é a de minha vida nem a de meu povo que está em jogo.
É a de todos [...] por isso eu passo a ser também voz que partilha
um aprendizado [...] ofereço a sabedoria milenar da tribo, embora
ela não esteja toda aqui, como em troca de conhecimento que de
vós recebi”.

(JECUPÉ, 2002)

INTRODUÇÃO
A realidade educacional indígena brasileira revela momentos de
incertezas. As políticas indigenistas, que propagam discussões e
tensões decorrentes de movimentos sociais, reivindicam o direito à

155
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

diversidade, ao reconhecimento e ao respeito aos saberes tradicio-


nais1 na educação indígena, tendo em vista a equidade, num cenário
político de extrema direita.
Nesse contexto, as políticas linguísticas e educacionais são o
cerne das reivindicações e discussões que envolvem as ações de
ensino-aprendizagem de línguas, mais especificamente, o ensino
de português como segunda língua/adicional, em situações in-
terculturais. Tratar do ensino-aprendizagem de língua em meio
à diversidade cultural e à linguística, em um mesmo espaço geo-
gráfico nacional, requer rupturas e continuidades teórica e epis-
temológica.
A concepção de conhecimento numa perspectiva colonialista
se restringe ao formalismo e à invisibilidade da complexidade do
sujeito como autor na produção epistemológica, social e cultural.
A perspectiva intercultural proporciona meios para discutirmos
maneiras de se opor a um sistema que engessa o conhecimento e,
ainda, propicia modos de pensar diferentes possibilidades demo-
cráticas e libertadoras para a produção de conhecimentos.
A ruptura de paradigma está relacionada à mudança de pa-
drões sistemáticos impostos por um sistema colonial que perma-
nece cristalizado na memória coletiva dos sujeitos e das socieda-
des, que replicam e compartilham tais padrões, inconscientemente,
através de atitudes cotidianas, resultantes em comportamentos de
discriminação e segregação.
Segundo Santos Bautista (2012), se o conhecimento deve aten-
der ao processo de problematização do sujeito, o trabalho pedagó-
gico deve organizar-se como problemática emergente do contexto
comunicativo, para que a relação sujeito-contexto seja o ponto de

1  Saberes tradicionais se referem aos diversos saberes culturais que cada sujeito
constrói a partir de seu conhecimento de mundo e suas experiências.

156
Capítulo 6

encontro do diálogo entre pensamento local e pensamento hege-


mônico, em uma relação de equidade e alteridade.
Em um diálogo epistêmico, seria possível (re)pensar novas
maneiras de organizar os conhecimentos nas instituições educa-
cionais, a partir das diferenças, com o intuito de transitar de uma
sociedade hegemônica para uma sociedade intercultural em res-
peito às diferenças, a fim de não estabelecer uma hierarquização
verticalizada do saber (SANTOS BAUTISTA, 2012).
Assim, na abordagem da Linguística Aplicada, mais precisa-
mente, em um viés crítico, o conhecimento é concebido para além
do conteúdo, mantendo-se o compromisso com a interdisciplina-
ridade, em que vários saberes podem ser acionados. Moita Lopes
(1996, 2006) assevera que a Linguística Aplicada (doravante - LA) é
uma disciplina interdisciplinar e mediadora entre as diversas áre-
as do conhecimento. Logo, a criticidade da LA se interessa pelas
demandas sociais, políticas, históricas e culturais que apresentam
problemas relacionados ao uso da linguagem, tendo em vista uma
efetiva transformação social.
O sistema educacional brasileiro parte de uma perspectiva he-
gemônica que desconsidera, efetivamente, as diversidades culturais
e sociais em suas manifestações e participações efetivas. A exemplo
disso, tem-se a concepção monolíngue do Português no Brasil.
Nesse sentido, o diálogo interepistêmico é um caminho para
romper com paradigmas e construir outras maneiras de pensar
e construir conhecimentos, a fim de debatermos criticamente os
“modelos de ensino” e os espaços para a produção de saberes (Cf.
PIMENTEL DA SILVA, 2016), bem como o ensino de português como
segunda língua.
Todas essas questões passam por uma reconstrução da con-
cepção de espaços e ensino, crucial para a construção de uma edu-
cação diferenciada.

157
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

A América Latina, de modo geral, enfrentou fortes resistências


à educação intercultural2, mas houve avanços nas discussões e en-
frentamentos para a consolidação do reconhecimento dos movi-
mentos sociais, a partir dos estudos pós-coloniais (BHABHA, 2013)
que discutem, criticamente, a educação homogênea e suas meto-
dologias pedagógicas impostas, para além de questões relacionadas
ao gênero, ao corpo, à raça, às identidades e às justiças sociais.
Entretanto, a diversidade brasileira ainda é inviabilizada
por um sistema que não contempla diferentes sujeitos atuantes
e seus saberes tradicionais como possibilidade para outros cami-
nhos pedagógicos.
No Brasil, essa discussão é relativamente nova e enfrenta desa-
fios para romper com uma educação alienada (alheamento) que não
se concentra no processo de produção do aluno, mas na forma como
uma maneira de formalizar e uniformizar toda educação, contem-
plando uma única maneira de ensinar e aprender (FREIRE, 1979).
Nesse sentido, na educação direcionada às comunidades indí-
genas, em suas escolas nas aldeias, há vários desafios até atingir a
realidade de uma educação intercultural e diferenciada como pre-
vista pela Constituição de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação de 1996, em defesa dos direitos dos povos indígenas e sua
visibilidade sociocultural no âmbito educacional.
Na LDB leem-se;

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de en-


sino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da
história e cultura afro-brasileira e indígena.

2  “El concepto de Interculturalidad tiene una significación en América Latina, y par-


ticularmente en Ecuador, ligada a geopolíticas de lugar y espacio, desde la histórica
y actual resistencia de los indígenas y de los negros, hasta sus construcciones de un
proyecto social, cultural, político, ético y epistémico orientado a la descolonización y
a la transformación” (Walsh, 2007, p. 47).

158
Capítulo 6

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo inclui-


rá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam
a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos
étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos,
a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra
e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade
nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, eco-
nômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira


e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito
de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação
artística e de literatura e histórias brasileiras.

A LDB reconhece e reafirma o parágrafo da Constituição Fe-


deral Brasileira de 1988 sobre o direito do indígena a uma educação
diferenciada, onde se lê:

§  3º O ensino fundamental regular será ministrado em língua


portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização
de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

Os documentos citados acima são importantes para pensar-


mos numa mudança de parâmetros relacionada à educação indí-
gena, uma vez que pautadas nessas leis, podem-se criar propostas
pedagógicas que abrem o caminho para a efetivação de uma educa-
ção intercultural, bilíngue e diferenciada, segundo as necessidades
e demandadas dos povos envolvidos.
A discussão em torno da educação intercultural indígena está
intrinsecamente relacionada aos aspectos de transformações edu-
cacionais, epistemológicas, políticas e culturais, que vão além da
mera funcionalidade.

159
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

CENÁRIO DE PESQUISA: EDUCAÇÃO INTERCULTURAL NA


UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS (UFG)

A implantação do curso de Educação Intercultural da UFG deu-se


através de um projeto formulado a partir de demanda dos povos in-
dígenas. O Projeto Político Pedagógico teve a participação de pro-
fessores e professoras indígenas e não indígenas e de lideranças in-
dígenas dos Estados de Goiás, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão.
O curso possui como eixos pedagógicos os princípios da inter-
culturalidade e da transdisciplinaridade, considerando a realidade
de cada povo indígena e o seu reconhecimento étnico e cultural.
Tais eixos são entendidos de forma dialógica, tanto na diferença
cultural quanto na interação entre as diversas áreas dos saberes
(PIMENTEL DA SILVA; ROCHA MENDES, 2006).
Em 2020, o curso de Educação Intercultural de Formação Su-
perior de Professores Indígenas da UFG completou 13 anos de exis-
tência. O curso defende como proposta básica a integração entre
o processo cultural local e o saber pretensamente universal, ten-
do como eixos principais a Diversidade e a Sustentabilidade, a fim
de valorizar as práticas sociais dos povos indígenas integrantes do
programa, numa perspectiva intercultural e transdisciplinar. Para a
concretização dessa proposta, o curso tem como pensamento cen-
tral a interculturalidade. Segundo Walsh (2005, p. 25),

o conceito de interculturalidade é central à (re)construção de um


pensamento crítico- outro - um pensamento crítico de/desde
outro modo-, precisamente por três razões principais: primeiro
porque é vivido e pensado desde a experiência da colonialidade
[...]; segundo, porque reflete um pensamento não baseado nos le-
gados eurocêntricos ou da modernidade e, em terceiro, porque
tem sua origem no sul, dando assim uma volta à geopolítica domi-
nante do conhecimento que tem tido seu centro no norte global.

160
Capítulo 6

O currículo do curso é constituído por uma matriz básica com


duração de dois anos e uma matriz de formação específica inseridas
nas áreas das Ciências da Natureza, Ciências da Cultura e Ciência da
Linguagem, com duração de três anos, totalizando cinco anos. Se-
gundo Pimentel da Silva e Mendes (2006), as matrizes curriculares
fundamentam-se em uma política de valorização cultural, na busca
pela articulação entre teoria e prática, numa visão transdisciplinar na
busca pela integração de saberes, em diferentes espaços e projetos,
de atividade de ensino, pesquisa e extensão, tendo em vista a arti-
culação dos chamados conteúdo específico e conteúdo pedagógico.
Os conhecimentos são construídos através de Temas Contex-
tuais, que segundo Pimentel da Silva (2016, p.178) “ajuda o aprendiz
a coletar conhecimento, relacioná-los, organizá-los, manipulá-los
e debatê-los até chegar a produção de um conhecimento que seja
significativo para ele”.
Desse modo, uma das iniciativas dos discentes do curso de
Educação Intercultural (UFG) é a elaboração do Projeto Político Pe-
dagógico de suas escolas indígenas, junto à sua comunidade, discu-
tido no curso de formação de professores e professoras desenvol-
vido na especialização. As escolas nas aldeias precisam atender as
especificidades reais dos povos indígenas, bem como dar liberdade
aos prefessores e professoras para atuarem como transformadores
da educação indígena. Pimentel da Silva (2016, p.183) argumenta:

As iniciativas indígenas de fundamentar o PPP em suas episte-


mologias não é para discipliná-las, ou para legalizá-las no dis-
curso da verdade da ciência ocidental, mas para uma nova no-
ção de escola, para exigir dessas ações, políticas de valorização
dos conhecimentos das matrizes culturais, da ordem sagrada,
dos segredos, das famílias, do parentesco, da organização social,
aproveitando, assim, a filosofia e a pedagogia próprias, estabele-
cendo, desse modo, o paradigma da complementariedade, o qual
difere totalmente do pensamento da colonialidade.

161
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Durante o Curso de Educação Intercultural, na UFG, onde


atuei como professora de português como segunda língua/língua
adicional, trabalhamos o Tema Contextual “Modalidade de Ensino
Bilíngue”, propus uma questão importante sobre ensino, melhor,
uma problemática: a escola que nós queremos. Obtivemos as se-
guintes reflexões:

»» “Queremos aplicar o nosso espírito, a nossa realidade e o


conhecimento do nosso povo” (Povo Waurá).
»» “Escola + Comunidade = fontes de conhecimento importantes
para a construção de uma educação mais humanizada.
Reconhecimento do ensino/saber tradicional nos espaços:
escola, pátio, Dasῖpê, pescaria, caça, etc. retomar e valorizar
os conhecimentos dos sábios/anciões,” (Povo Xerente).
»» “O ensino que respeita e fortalece aspecto cultural do
povo, por exemplo: cantos, histórias e outros saberes.
Não queremos o projeto do governo que vem rompendo
o conhecimento tradicional do povo, queremos o projeto
escolar construída dentro da nossa realidade junto com a
comunidade, como projeto político pedagógico, calendário
específico. Então, é isso que queremos, ensino ligado da
nossa realidade” (Povo Kamaiurá).

Nesse sentido, a autonomia dos povos na luta por uma educa-


ção intercultural diferenciada e bilíngue é uma pilastra que susten-
ta uma proposta de (re)formulação das matrizes curriculares das
escolas indígenas. Visto que através dos cursos de Educação Inter-
cultural para a formação superior de professores e professoras in-
dígenas, os acadêmicos e as acadêmicas indígenas, pertencentes a
diversas etnias, têm autonomia para construir os Projetos Políticos
Pedagógicos (PPP), de suas escolas, onde atuam ou atuarão como

162
Capítulo 6

professores e professoras. Nesse sentido, parte-se do princípio de


construir bases culturais para concretizar uma educação diferen-
ciada. Logo, é preciso ir contra a disciplinarização dos conhecimen-
tos indígenas como uma maneira de adaptação ou ajuste dos sabe-
res tradicionais ao sistema educacional imposto. Bem como afirma
Pimentel da Silva (2016, p.183),

A natureza complexa da educação intercultural [...] pede o conhe-


cimento constituído em outras lógicas de produção e registros
de conhecimentos, que, no caso, nunca podem ser disciplinados,
muitos desses saberes perdem substância quando transferidos
para a escrita. Revelam uma conexão de saberes produzidos e
nascidos em matrizes culturais governadas por outras lógicas,
para outras racionalidades e finalidades.

Segundo Freire (2005), em uma educação “bancária”3, os ho-


mens são tidos como seres de adaptação que não serão capazes de
desenvolverem em si a consciência crítica que resultaria em sua
inserção no mundo, do qual seria agentes de transformação. Tal pa-
drão de ensino colonial é o que rege as escolas brasileiras, tanto na
educação escolar indígena quanto na não indígena.
Nessa perspectiva, a interculturalidade é pensada a partir das
“rupturas de paradigma”, uma vez que é concebida como estratégia
política, cultural e epistêmica para construção de novas metodolo-
gias para efetivação de um ensino decolonial e libertador. Pensar o
ensino por meio das bases da transdiciplinaridade é trabalhar numa
perspectiva intercultural, em que a liberdade no ensino-aprendiza-

3  Educação bancária é uma concepção formulada por Freire, em que “o saber é uma
doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber [...] na concepção bancária
que estamos criticando, para a qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de
transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta supe-
ração” (FREIRE, 2005, p.67).

163
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

gem se estabelece através dos Temas Contextuais e de vários co-


nhecimentos adquiridos pelos integrantes das comunidades (crian-
ças, adultos, anciães, jovens e sábios).
Desse modo, partimos da concepção de língua como lugar de
interação que concebe a noção de sujeito como entidade psicos-
social, com caráter ativo na produção social e da interação. Defen-
demos a posição de que os sujeitos (re)produzem o social à medida
que participam ativamente na situação na qual se acham engaja-
dos e são atores na atualização das representações, sem as quais
a comunicação não poderia existir (KOCH, 2003). Mas, sobretudo,
concebemos a língua como instrumento de relações de poder e re-
sistência a serviço das reivindicações sociais, políticas e culturais.
No contexto bilíngue, a língua portuguesa foi um instrumento
de subordinação e apagamento de outras línguas. Contudo, exis-
tem aproximadamente 180 línguas indígenas remanescentes de
uma história brutal e opressora (RODRIGUES, 1986). As resistências
linguísticas e políticas indígenas são elementos que compõem uma
conjuntura que alcançou outro status na contemporaneidade. Uma
vez que, antes a língua do colonizador que servia como instrumento
de opressão e repressão foi apropriada pelos povos indígenas como
um instrumento de poder e reivindicação de seus direitos. Portan-
to, aprender a falar e escrever a língua portuguesa na norma dita
padrão se tornou uma demanda urgente dos povos indígenas.
Nas aulas de português Intercultural, no curso de Educação
Intercultural para indígenas na UFG, o objetivo geral é alçar o co-
nhecimento da língua para reivindicar seus direitos, a fim de erradi-
car os preconceitos étnicos e linguísticos, muitas vezes, praticados
pelos não indígenas.
É nesse contexto que o presente estudo foi realizado e é nessa
perspectiva que os cursos de formação superior para professores
e professoras indígenas trabalham, a fim de promover a autonomia

164
Capítulo 6

e autoria indígena e o conhecimento necessário, com o intuito de


elaborar currículo para atender as demandas das escolas de suas
comunidades, em uma perspectiva intercultural, diferenciada e
bilíngue (NASCIMENTO, 2012).
Em busca de metodologias libertadoras e emancipatórias, o
ensino do português intercultural merece maior reflexão e criti-
cidade, uma vez que foi um instrumento de apagamento étnico,
linguístico e cultural. O ensino-aprendizagem para os povos indí-
genas, atualmente, se configura como um caminho de estabeleci-
mento de poder e de luta, por isso, recomenda-se a abordagem a
partir de Temas Contextuais, tendo em vista a sua dimensão social,
histórica e política, sem desconsiderar a cosmologia e a epistemo-
logia de cada povo.

OBJETIVOS E PERGUNTAS DE PESQUISA

Com já mencionado, este estudo busca suscitar uma discussão


reflexiva sobre o ensino de português como segunda língua para
alunos e alunas indígenas, no contexto acadêmico, visando o ensi-
no-aprendizagem em uma perspectiva intercultural. Sendo assim,
os objetivos centram-se em: 1) discutir o contexto educacional in-
dígenas no âmbito acadêmico; 2) abordar o ensino de português
no contexto intercultural no contexto indígena, no ensino superior.
Para alcançar os objetivos pretendidos, o estudo será guiado
pelos seguintes questionamentos:

»» Como o português pode ser ensinado sem ser um instrumento


de colonização e imposição?
»» Quais são as contribuições do ensino de português numa
perspectiva intercultural?

165
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

APORTE TEÓRICO: ALGUMAS LEITURAS

O ensino de português vem conquistando espaço em muitas mo-


dalidades de ensino, no âmbito nacional e internacional, seja como
língua estrangeira (MENDES, 2004), língua de herança (FARNEDA;
FERREIRA, 2016), segunda língua, língua de interação/relações in-
tercultural para indígenas (NASCIMENTO, 2012), dentre outras.
O português como segunda língua, neste estudo, é direciona-
do aos acadêmicos e acadêmicas indígenas que são ou que serão
professores e professoras em suas aldeias. O ensino de português
parte de uma perspectiva intercultural, em que a relação de cultu-
ras imbricadas no processo de ensino-aprendizagem contribui para
as apropriações linguística e cultural.
Para a realização deste estudo, lançamos mão da concepção
da Interculturalidade Crítico que, segundo Walsh (2005), não con-
siste na relação entre as culturas apenas como mero contato, mas,
muito além disso, tem como intuito provocar mudança e transfor-
mação social.
Assim, embasamo-nos na Lei de Diretrizes e Bases (1996) e na
Constituição Federal (1988) como principais aportes para a legiti-
mação de uma educação indígena diferenciada que respeita a au-
tonomia dos povos indígenas, visando a elaboração de propostas
pedagógicas, segundo as demandas culturais e sociais dos povos
envolvidos nesse processo educacional.
Para a discussão sobre o ensino de português numa perspecti-
va intercultural e crítica, apoiamo-nos nas postulações da Linguís-
tica Aplicada sob o viés crítico (MOITA LOPES, 2006, PENNYCOOK,
2001), com o intuito de discutir os usos da língua considerando o
ensino-aprendizagem numa perspectiva social, cultural, política
dentre outras questões envolvidas. Assim, buscamos elencar essas
contribuições e pensamentos teóricos às inquietações de Freire

166
Capítulo 6

(1979) em busca de uma educação emancipatória para a promoção


da liberdade aos sujeitos envolvidos nesse processo, como afirmam
Pimentel da Silva e Mendes (2006).
Para melhor compreensão da situação das comunidades envol-
vidas nesse processo de ensino-aprendizagem, faz-se relevante uma
apresentação sucinta do panorama cultural dos povos indígenas.
O Brasil é composto por uma população superior a 207,7 milhões
de pessoas, segundo o IBGE de 20174, integrada por povos brasileiros
indígenas e não indígenas que ocupam todo o território brasileiro.
A língua portuguesa é a língua oficial, juntamente, com três línguas
indígenas co-oficiais5, Nheegantu, Tukano e Baniwa, situadas no mu-
nicípio de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas. Tal fato
se consolidou devido às demandas e às exigências políticas e cultu-
rais de uma região do Brasil compostas por muitos indígenas que não
possuem a língua portuguesa como língua materna.
Demandas como essas impulsionaram leis que “amparam” a
manifestação da diversidade linguística e cultural, como a Consti-
tuição Federativa de 1988 que reconheceu, pela primeira vez, o Bra-
sil como um país de diversidade étnica e linguística, o que impulsio-
nou certa visibilidade às políticas educacionais. Nesse contexto de
diversidade linguística e cultural, podemos citar como exemplo os
documentos municipais de co-oficialização das línguas Nheegantu,
Tukano e Baniwa, no município de São Gabriel da Cachoeira-AM,
que regem:
Art. 2. O estatuto de língua co-oficial concedido por esse obje-
to, obriga o município:

4  Disponível em: https://ww2.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/.

5  A co-oficialização municipais dessas línguas estão amparadas pela lei 145 de 11 de


dezembro de 2002.

167
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

§3º A incentivar, a apoiar o aprendizado e o uso das línguas


co-oficiais nas escolas e nos meios de comunicação.
Várias manifestações culturais, linguísticas e sociais fazem do
Brasil um lugar de muitas culturas, cores, crenças, etnias e belezas
peculiares. Entretanto, vivemos num contexto de promoção e valo-
rização de uma cultura monolíngue e num contexto monocultural,
congruente com certa supremacia da língua portuguesa.
A diversidade e o ensino da língua estão condicionados ao co-
nhecimento hegemônico imposto por um processo histórico e geo-
político de assimilação, a fim de construir estados nacionais homo-
gêneos, que tentaram, durante séculos, não visibilizar as culturas e
as vozes de povos indígenas.
A relação entre colonizador e colonizado está arraigada no
continente latino americano de maneira histórica e sociocultural,
sob uma hierarquização dos conhecimentos, convergente a um sis-
tema que define a valorização do saber formal/universal em detri-
mento do saber local/tradicional.
Na esteira dessas considerações, para buscar mudança e trans-
formação é preciso reconhecer que ainda estamos sob o jugo da
colonialidade que, segundo Quijano (2007, p. 93),

é um dos elementos constitutivos e específicos de um padrão


mundial de poder capitalista, que se funda na imposição de uma
classificação racial/étnica da população do mundo como uma
pedra angular daquele padrão de poder e opera em cada um dos
planos, âmbitos e dimensões, materiais e subjetivas, da existência
cotidiana e da escala social.

Essa subalternização pode ser analisada a partir do princípio


do punto cero citado por Castro-Gomes (2007), em que o observa-
dor observa, mas não admite ser observado, ou seja, o conhecimen-
to ocidental julga ser superior para analisar e julgar os demais co-

168
Capítulo 6

nhecimentos, sem ser passível de análise ou julgamento. Assim, se


instaura a sobreposição de saberes, um saber “superior” ao outro,
estabelecendo a hierarquização verticalizada dos conhecimentos.
Através da educação indígena, podemos entender o processo
histórico de assimilação e integracionista que os povos originários
sofreram. Nesse contexto, o uso da língua portuguesa foi, inicial-
mente, um elemento muito importante para a catequização e, con-
sequentemente, para subalternização dos povos indígenas brasilei-
ros. Todo o contexto sócio histórico brasileiro violento explica a
segregação e a discriminação dos indígenas no decorrer da história,
persistindo nos dias atuais.
O ensino da língua portuguesa foi um dos instrumentos que
contribuiu para a imposição e discriminação dos povos originários,
tendo em vista que o português era falado como língua majoritária
em detrimento das línguas indígenas maternas, num processo de
eliminação e apagamento étnico, linguístico e cultural.
Tendo esse panorama como linha de raciocínio, partiremos da
concepção de interculturalidade concebida através da criticidade,
a fim de promover reflexões que gerem transformações efetivas,
como aponta Walsh (2009, p. 21-22):

A interculturalidade crítica parte do problema do poder, seu pa-


drão de racialização e da diferença (colonial, não simplesmente
cultural) que foi construída em função disso. O interculturalismo
funcional responde e é parte dos interesses e necessidades das
instituições sociais; a interculturalidade crítica, pelo contrário,
é uma construção de e a partir das pessoas que sofreram uma
histórica submissão e subalternização.

A proposta de um ensino diferenciado, intercultural e bilíngue


está pautada na concepção de interculturalidade crítica, uma vez
que é preciso direcionar o conhecimento a partir das necessidades

169
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

de cada povo, respeitando seus pensamentos, epistemologias, cul-


turas e costumes. O principal objetivo de se ensinar e aprender uma
segunda língua deveria servir ao propósito da interculturalidade crí-
tica, a fim de alcançar uma dimensão social de povos que possuem
uma história de submissão e subalternização.
A política assimilacionista, na tentativa de integrar os indígenas
aos modos e costumes dos não indígenas, deixou resquícios, mas não
conseguiu apagar o desejo de preservar a cultura e os saberes desses
povos, que resistem e assumem espaços antes ocupados somente
pelos não indígenas. Esse contexto foi possível através de ações que
visam a revitalização e o fortalecimento das culturas e das línguas
indígenas brasileiras. Logo, pensar educação indígena, quilombola,
rural e educação popular é salientar as diferentes realidades sociais e
culturais do Brasil. Portanto, não justifica a existência de ações pau-
tadas em uma visão homogênea num contexto de tanta diversidade.
A abordagem decolonial6 postula discussões contra a visão de
imposição e supervalorização das ideias ocidentais em detrimento
do conhecimento local/tradicional e saberes não ocidentais. Nesse
sentido, partimos da abordagem decolonial que visa debater e defen-
der a valorização dos saberes locais/tradicionais dos povos indíge-
nas, numa perspectiva intercultural, em que o mundo e o conheci-
mento são vistos e compreendidos pelo “outro”, numa relação de não
hierarquização dos diferentes saberes. Logo, a junção dos saberes
ocidental/global/moderno e não-ocidental/local/tradicional, sem
estabelecer uma dicotomia, constituem o saber intercultural a partir
da relação de diferentes povos.
Segundo Pennycook (2001, p. 66), o pós-colonialismo se carac-
teriza como “um movimento político e cultural que procura desa-

6  A postura decolonial busca construir um novo paradigma epistemológico, ético e


político, num caráter interdisciplinar e heterogêneo. Trata-se de um construto alter-
nativo à modernidade eurocêntrica.

170
Capítulo 6

fiar as histórias e as ideologias coloniais, abrindo espaço para insur-


gência de outros tipos de conhecimentos”.
Na educação, a interculturalidade fomenta a abordagem deco-
lonial que se estende a criticidade, tendo em vista as problemáticas
que os povos de diversidade étnica vivenciam no Brasil, tendo como
objetivo uma transformação, seja ela política, educacional, epistê-
mica ou cultural. Nesse mesmo viés, a Linguística Aplicada preocu-
pada com o ensino de língua e com as conjunturas das questões de
usos que acionam fatores externos ao sistema linguístico, contribui
para a criticidade no ensino-aprendizagem do português.
Numa perspectiva crítica, é preciso haver comprometimen-
to dos sujeitos, uma vez que a neutralidade política é o não com-
prometimento com a educação. A educação está diretamente re-
lacionada com ações afirmativas que são políticas e precedentes
de teorias que propõem rupturas dos padrões pré-estabelecidos e
sustentados pela classe dominante.
Segundo Freire (1979), comprometer-se como profissional da
educação é comprometer-se com a humanização da sociedade, de
maneira solidária, que vai além da mediação do conteúdo pedagógi-
co estabelecido entre o professor e o aluno, considerando, assim, o
contexto cultural e social em que o sujeito está inserido. Todo esse
contexto implica em manifestações sociais que buscam, através do
direito e afirmação à diferença, o fim das injustiças e discriminação
das diferenças, como discutem Candau e Russo (2010, p. 153-154).

A afirmação das diferenças – étnicas, de gênero, orientação sexu-


al, religiosas, entre outras – se manifesta em todas as suas cores,
sons, ritos, saberes, crenças e diversas linguagens. As problemá-
ticas são múltiplas, visibilizadas pelos movimentos sociais, que
denunciam injustiças, desigualdades e discriminações, reivindi-
cando igualdade de acesso a bens e serviços e reconhecimento
político e cultural. Esses movimentos nos colocam diante da re-
alidade histórica do continente, marcada pela negação dos “ou-

171
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

tros”, física ou simbólica, ainda presente nas sociedades latino-a-


mericanas (CANDAU; RUSSO, 2010, p. 153-154).

Os autores discutem sobre a interculturalidade e a negação do


“outro” na América Latina em suas múltiplas diversidades. O Brasil
se insere nesse contexto, ainda que a realidade intercultural nos
outros países sulamericanos esteja mais avançada nessa discussão.
A educação intercultural aborda a importância dos saberes
culturais e locais de uma comunidade juntamente com os saberes
“científicos” ocidentais ou universais, sem a imposição ou sobre-
posição hierárquica de conhecimentos, a fim de proporcionar um
contexto interacional de produção de ideias e saberes em respeito
às diferenças.
O termo interculturalidade foi cunhado na América Latina em
referência ao campo educacional, mais precisamente, direcionado
à educação indígena. Como sintetiza Lopez-Hurtado Quiroz (2007,
p. 21-22), citado por Candau (2012, p. 242), sobre o processo de in-
corporação da perspectiva intercultural no continente:

[...] nestes trinta anos, desde que o termo foi acunhado na região,
a aceitação da noção transcendeu o âmbito dos programas e pro-
jetos referidos aos indígenas e hoje um número importante de
países, do México à Terra do Fogo, veem nela uma possibilidade
de transformar tanto a sociedade em seu conjunto como também
os sistemas educativos nacionais, no sentido de uma articulação
mais democrática das diferentes sociedades e povos que inte-
gram um determinado país. Desde este ponto de vista, a intercul-
turalidade supõe agora também abertura diante das diferenças
étnicas, culturais e linguísticas, aceitação positiva da diversidade,
respeito mútuo, busca de consenso e, ao mesmo tempo, reco-
nhecimento e aceitação do dissenso, e na atualidade, construção
de novos modos de relação social e maior democracia.

172
Capítulo 6

A Interculturalidade crítica é uma vertente da concepção in-


tercultural que agrega importantes contribuições ao contexto de
discussão política e educacional.
Os cursos de Educação Interculturais Indígenas, no Brasil,
precisamente, nas regiões centro-oeste e norte, vêm estabelecen-
do uma discussão da problemática da educação escolar indígena
nas aldeias e no meio acadêmico, para a promoção da autonomia
de professores e professoras indígenas como sujeitos atuantes e
transformadores educacionais.
Nesse sentido, as licenciaturas indígenas, de modo geral, têm
apoiado as reivindicações indígenas, ajudando na formação de pro-
fessores e professoras indígenas para a construção de projetos que
visam a (re)formulação do Projeto Político Pedagógico (PPP) das
escolas indígenas, assim como reivindicação por concurso para
docentes indígenas, produção de material didático, reconhecimen-
to do saber tradicional, construção de um calendário escolar que
contempla as especificidades das comunidades indígenas, dentre
outras questões que precisam ser (re)formuladas, executadas e res-
peitadas nas comunidades dos povos indígenas no Brasil.
A Constituição Brasileira de 1988 foi um marco importante para
o reconhecimento das especificidades culturais e educacionais dos
povos indígenas e quilombolas existentes no Brasil, como já dito.
As Leis de Diretrizes e Bases (LDB) afirmam que:

Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das


agências federais de fomento à cultura e de assistência aos ín-
dios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa,
para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos po-
vos indígenas, com os seguintes objetivos:

I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recupe-


ração de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identi-
dades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;

173
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

II - garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às


informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade
nacional e demais sociedades indígenas e não-índias.

O pluralismo sociocultural do Brasil impõe alguns desafios para


o Estado frente suas obrigações constitucionais de propor, formu-
lar e executar políticas públicas para todos os segmentos étnico,
social e cultural existentes no país.
Nesse contexto, para se alcançar direitos previstos por lei,
criam-se centros, organizações, conselhos e associações indigenis-
tas7 que se fortalecem com a luta dos professores e das professoras
indígenas inseridos no movimento de professores indígenas no Bra-
sil. Como assevera Maher (2010, p. 35), “uma condição fundamental
para que isso ocorra, em primeiro lugar, é que a orquestração de
projetos de fortalecimento linguístico seja feita por organizações,
instituições e ativistas das próprias comunidades de fala envolvidas,
como insistentemente nos dizem vários especialistas”.
Em 1980, surgem as primeiras articulações pela educação indí-
gena na região da Amazônia organizado pelo Conselho de profes-
sores indígenas da Amazônia e Roraima (Copiar), que influenciou
positivamente outros povos e se estendeu para outras regiões do
Brasil (Cf. CIMI, 2002). Entretanto, os cursos de licenciatura para
a formação superior intercultural para indígenas surgem em 2001.
A luta pela educação indígena no Brasil vem se fortalecendo
por meio de várias reivindicações de professores e professoras in-

7  Operação Anchieta (Opan), Comissão Pró-índio de São Paulo (CPI-S P), Comis-
são Pró-índio do Acre (CPI-Acre), Centro Ecumênico de Documentação e Informação
(Cedi), que se desvinculou do Centro e criou o Núcleo de Direitos Indígenas (NDI),
que posteriormente, tornou-se Instituto Socioambiental (ISA), Associação Nacional
de Apoio ao Índio (ANAI), Centro de trabalho Indigenista (CTI), Conselho Indigenista
Missionário (CIMI), Organização de Professores Indígenas do Pernambuco (Copipe),
Organização dos professores Indígenas de Rondônia (Opiron), dentre outros (Conse-
lho indigenista Missionário-CIMI, 2002).

174
Capítulo 6

dígenas, o que impulsionou as iniciativas nas instituições públicas


de ensino a oferecerem cursos de Educação Intercultural para for-
mação superior de professores indígenas, como: a Licenciatura In-
tercultural Teko Arandu, iniciada em 2006, na Universidade Federal
de Grande Dourado (UFGD), Licenciatura Intercultural na Universi-
dade Federal de Pernambuco (UFPE), Licenciatura Intercultural na
Universidade Federal de Goiás (UFG), em 2007, dentre outras.
De modo geral, as escolas indígenas são coordenadas pelas Se-
cretarias de Educação, Cultura e Esporte (SEDUCE), de cada es-
tado, num sistema disciplinar e monocultural, num sistema ditado
pelo discurso de hegemonia.
Segundo Freire (2005, p.33) “os opressores, falsamente gene-
rosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade” continue
tendo oportunidade de realizar-se da permanência da injustiça”.
Nesse contexto, as matrizes curriculares das escolas indígenas
no Brasil se caracterizam como uma falsa generosidade oferecida
por um sistema opressor, uma vez que, todo o sistema educacional
indígena está sob imposições e organizações que são regidos, em
sua grande maioria, por não indígenas.
Na busca pela decolonização da educação escolar indígena, sa-
lientar a importância de relacionar os saberes dos alunos e alunas
indígenas aos diversos conhecimentos torna-se uma necessidade
epistêmica, política, educacional e cultural para o reconhecimento
da luta dos povos.
Na educação escolar indígena, os saberes dos alunos e alunas
vêm arraigados na cultura e na história do povo e devem ser consi-
derados e apreciados dentro da escola. O conhecimento na escola
tem de fazer sentido em toda sua dimensão para comunidade, não
pode continuar sendo uma imposição de poder, a fim de continuar
o processo de “catequização”, tornando os saberes em disciplinas
fragmentadas. Conforme afirma Mignolo (2008, p. 287),

175
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Toda mudança de descolonização política [...] deve suscitar uma


desobediência política e epistêmica. A desobediência civil prega-
da por Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr. foram de fato
grandes mudanças, porém, a desobediência civil sem desobedi-
ência epistêmica permanecerá presa em jogos controlados pela
teoria política e pela economia política eurocêntricas.

Nesse contexto, nossa discussão e avaliação sobre a educa-


ção escolar indígena partem de uma posição radical que, segun-
do Freire (2005), consiste em não se conformar com a posição do
opressor8. Em prol do reconhecimento das diferenças, procuramos
salientar as vozes dos oprimidos, processo importante para gerar
uma revolução e alcançar a autonomia de um povo. A desobediên-
cia epistêmica se caracteriza, aqui, como um caminho para efetiva-
ção de mudanças de um sistema colonial de ensino para um ensino
emancipatória, diferenciado e intercultural.
Todo cenário apresentado até aqui envolve diretamente ações
políticas, conforme postulado por Pennycook (2001), que propõem
questões conceituais da LA com ênfase em cinco tipos de políticas:
política do conhecimento, política da língua, política do texto, polí-
tica da pedagogia e política da diferença.
Na política do conhecimento, o autor aborda uma postura que
caracteriza a relação entre política, língua e conhecimento a par-
tir dos estudos sobre: ostracismo liberal, autonomia anarquista, o
modernismo emancipatório e a prática emancipadora. O primeiro
estudo centra-se nas ações de políticas liberais ou conservadoras
que creem na autonomia do conhecimento em relação as políti-

8  Na “Pedagogia do Oprimido” obra de Paulo Freire, a palavra opressor possui um


significado simbólico e, ao mesmo tempo literal, uma vez que as sociedades coloniza-
das ainda vivem, ainda que de maneira inconsciente, sob o julgo da opressão – relação
opressor e oprimido. Os opressores pretendem “transformar a mentalidade dos opri-
midos e não a situação que os oprime” (BEAUVOIR, 1963, p. 34).

176
Capítulo 6

cas mais abrangentes. Já a autonomia anarquista, mesmo adotando


uma concepção ideológica de esquerda, não relaciona as questões
linguísticas às políticas. E o modernismo emancipatório, embora
relacione a língua às questões políticas de esquerda, acredita que
a consciência pode desencadear a emancipação. A Linguística Apli-
cada sob a perspectiva crítica (LAC) é concebida pelo autor como
prática problematizadora, uma vez que a língua é inerente à políti-
ca e ao poder estando sempre relacionadas às questões de classe,
raça, gênero, etnia, sexualidade etc (PENNYCOOK, 2001, p. 44).
As concepções da Linguística Aplicada Crítica (LAC) coaduna
o contexto de ensino de português para acadêmicos e acadêmi-
cas indígenas, no quesito em que o conhecimento está relacio-
nado às questões políticas que interferem nas ações desenvol-
vidas nas comunidades indígenas. Logo, não há uma separação
das questões escolares ou educacionais da comunidade (escola-
-comunidade), visto que comunidade e escola estão imbricadas,
determinadas por ações políticas e sociais. Segundo Pennycook
(2001, p. 73) “a linguística aplicada crítica posicionada, que abra
espaços para interação mais direta entre a língua e as relações
sociais, considere a potencialidade do nosso trabalho pra promo-
ver mudanças”.
Pennycook (2006, p. 67) afirma que a LAC é “uma abordagem
mutável e dinâmica para as questões da linguagem em contextos
múltiplos”. Para além da crítica, o autor parte de uma concepção
transgressiva que coloca em questão o uso interdisciplinar defen-
dido como princípio da LA, compreendida como “uma forma de
antidisciplina ou conhecimento transgressivo como um modo de
pensar e fazer problematizador”. Logo, as relações disciplinares são
limitadas pela conjuntura da disciplina como estática, enquanto
que, contrariamente, a “interdisciplinaridade tem a ver com movi-
mento, fluidez e mudança” (PENNYCOOK, 2006, p. 73).

177
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Segundo Rajagopalan (2004), há a necessidade de compreen-


der a LA como um campo de investigação transdisciplinar. Parte-se
do princípio de construir bases culturais para concretizar uma edu-
cação diferenciada, visto que é preciso ir contra a disciplinarização
dos conhecimentos indígenas como uma maneira de adaptação ou
de ajuste ao sistema educacional imposto. Como afirma Pimentel da
Silva (2016, p.183),

a natureza complexa da educação intercultural [...] pede o conhe-


cimento constituído em outras lógicas de produção e registros
de conhecimentos, que, no caso, nunca podem ser disciplinados,
muitos desses saberes perdem substância quando transferidos
para a escrita. Revelam uma conexão de saberes produzidos e
nascidos em matrizes culturais governadas por outras lógicas,
para outras racionalidades e finalidades.

O ensino de português para acadêmicos e acadêmicas indí-


genas parte da perspectiva interdisciplinar e/ou transdisciplinar e
intercultural, em que os conhecimentos são abordados sem frag-
mentação, em prol de uma construção de saberes que alcance uma
transformação social.
Assim, a proposta deste estudo enfatiza as possibilidades de
olhar o ensino a partir dos múltiplos pensamentos, em que é neces-
sário lançar mão de planejamentos e de ações políticas que rompam
com o ensino homogêneo e eurocêntrico, através das relações de
interculturalidade crítica.
Numa linha intercultural, o conhecimento parte dos sabe-
res inerentes ao mundo dos estudantes. Tais argumentos vai ao
encontro da analogia das palavras geradoras de Freire (1979), na
qual podemos verificar a importância das situações existenciais
da realidade do estudante para convergir para o espaço inter-
cultural, e que a partir do cotidiano do estudante possa emergir

178
Capítulo 6

os conhecimentos locais ou tradicionais, a fim de gerar conheci-


mentos globais.

METODOLOGIA DE PESQUISA

Este estudo teve como cenário de pesquisa as aulas de português


como segunda língua para alunos e alunas indígenas, no Curso Su-
perior de Licenciatura Intercultural da UFG, em 2017.
Essa pesquisa centra-se no paradigma qualitativo, que se ca-
racteriza como “um conjunto de práticas interpretativas de pesqui-
sa, mas também um espaço de discussão, ou discurso metateórico”.
Como assegura Sandín Esteban (2010, p. 127), “O paradigma qualita-
tivo, mais particularmente quando de natureza interpretativa, nos
remete ao campo da hermenêutica, no qual a questão da intersub-
jetividade é bastante forte” (CELANI, 2004, p.106).
Por ser uma pesquisa que se concentra no uso da língua em
um ambiente natural de interação, a sala de aula, fez-se necessário
aderir à metodologia de observação participante que consiste numa
técnica que possibilita ao pesquisador participar do mundo social
dos participantes do estudo (MOREIRA; CALEFFE, 2008), numa re-
lação aluno-professor, aluno-aluno.
Considerando os pensamentos intercultural e transdisciplinar,
a metodologia centrou-se nos Temas Contextuais que lançam mão
dos gêneros textuais para o estudo da língua. Segundo Pimentel da
Silva (2016, p. 178-179), os Temas Contextuais não admitem disci-
plinarização dos conhecimentos e ainda “busca, sempre, o alarga-
mento dos conhecimentos, sejam em bases epistêmicas intracul-
turais, ou em outras fontes, as ditas científicas, dissolvendo, assim,
as hierarquias e as dicotomias, uma vacina importante contra a
colonialidade do saber”. Já os gêneros textuais são formas de dis-

179
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

cursos materializados que circulam socialmente. Logo, novas situ-


ações de comunicação proporcionam a criação de novos gêneros
(SCHNEUWLY, 1998).
Assim, foi trabalhado, nessa perspectiva, temas relacionados
às culturas indígenas e ocidentais a partir de uma proposta crí-
tica e reflexiva.
O objeto desta pesquisa consiste na análise do ensino-apren-
dizagem do português como segunda língua/língua adicional, di-
recionado aos acadêmicos e às acadêmicas indígenas embasados
na interculturalidade crítica, com o intuito de apresentar as as-
simetrias envolvidas no processo de ensino-aprendizagem como
um instrumento de resistência e pensamento crítico-reflexivo.
Durante as aulas, tivemos como colaboradores dessa ativi-
dade, os acadêmicos e acadêmicas indígenas das etnias Karajá,
Krinkati, Krahô, Guajajara, Kamaiurá9. Foram aplicadas atividades
propostas por mim, na condição de professora temporária, a par-
tir do Tema Contextual: “Ensino de práticas argumentativas orais
e escritas em língua portuguesa para defesa de direitos indíge-
nas”, tendo em vista os mecanismos para a construção do texto
argumentativo, os recursos linguísticos e de textualidades que
envolvem os discursos em defesa dos direitos indígenas.
Para a elaboração da atividade, organizamos uma oficina de
leitura e escrita utilizando recursos argumentativos para a ela-
boração do gênero carta argumentativa. Num primeiro momen-
to, realizamos leituras de gêneros argumentativos, oral e escrito.
Depois trabalhamos a argumentação a partir de um vídeo de uma
jornalista, apresentadora de um jornal direcionado ao agronegó-
cio. No vídeo, a apresentadora defende o produtor rural e ataca,

9  Os alunos indígenas pertencem à diferentes etnias com línguas e culturas dis-


tintas. No contexto de sala de aula, a diversidade é inerente à proposta de ensino de
português como segunda língua.

180
Capítulo 6

com uma postura discriminatória e preconceituosa, os povos in-


dígenas, homenageados no samba-enredo (campeão em 2017) da
escola de samba Imperatriz Leopoldinense. O vídeo da apresen-
tadora foi levado para sala de aula e também veiculado nas redes
sociais, com o intuito de trabalhar o discurso oral, juntamente,
com a letra do samba-enredo da escola carnavalesca.
Os alunos e alunas mostraram-se indignados ao perceber
que a referida apresentadora atacava ferozmente a letra do sam-
ba-enredo (em homenagem aos povos indígenas do Brasil), dando
ênfase às argumentações preconceituosas da jornalista.
Todo esse contexto discurso, ideologicamente construído
de maneira segregada, foi utilizado para a construção de argu-
mentos em defesa dos povos indígenas pelos próprios alunos e
alunas indígenas.
Os gêneros textuais fomentaram o Tema Contextual, consi-
derando a questão da argumentação em defesa dos direitos indí-
genas e as argumentações da apresentadora em defesa dos gran-
des produtores rurais (privilegiados socialmente) em detrimento
dos povos indígenas (estigmatizados socialmente). Nesse sentido,
os alunos e alunas identificaram os argumentos e os contra argu-
mentos, para a construção do gênero carta argumentativa.
Iniciou-se uma oficina de produção escrita para confec-
ções de cartazes somente com os contra-argumentos ao discur-
so apresentado no vídeo. Esses cartazes fizeram parte de uma
exposição para os colegas de sala, os quais foram submetidos à
revisão linguística, gramatical e discursiva pelos próprios alunos
e alunas indígenas.
Posteriormente, os estudantes, com a mediação docente,
criaram uma carta argumentativa, coletivamente, utilizando al-
guns dos argumentos expostos nos cartazes. Essa carta passou
por um processo de escrita, revisão e reescrita, a fim de construir

181
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

um texto claro e coerente com as reivindicações dos discentes


indígenas. A carta foi impressa e assinada pelos acadêmicos e
acadêmicas indígenas e enviada à emissora responsável pelo pro-
grama de televisão, mas, infelizmente, não obtivemos resposta.
O silêncio da emissora foi um objeto de reflexão e discussão que
não silenciou as vozes dos povos indígenas frente ao aconteci-
mento social.
Nesse cenário, o presente estudo buscou associar os conhe-
cimentos das modalidades orais e escritas para transgredir o es-
paço formal de ensino-aprendizagem, com o intuito de conseguir
alcançar uma dimensão social de transformação e resistência.
Desse modo, os passos metodológicos que orientaram a pro-
dução desse estudo são compatíveis com os pressupostos teóri-
cos da Linguística Aplicada Crítica ou Transgressiva e as perspec-
tivas interculturais que visam o ensino-aprendizagem para além
dos conteúdos e em favor das relações sociocultural, identitária,
política, étnica, etc. inerentes ao sujeito e sua visão de mundo.

ALGUMAS REFLEXÕES

Numa perspectiva qualitativa de natureza interpretativa, as práticas


de ensino-aprendizagem e suas metodologias adotadas neste estu-
do, sustentadas pela abordagem intercultural e pelas postulações
da Linguística Aplicada Crítica fomentaram o ensino com o intuito
de alçar uma postura crítica-reflexiva.
Os resultados da oficina de textos argumentativos represen-
tam a importância de partir da realidade discursiva, social e política
dos aprendizes para o ensino formal, uma vez que, num contexto
real de discussão os argumentos são facilmente construídos pela
necessidade de resposta ao seu interlocutor.

182
Capítulo 6

O processo discursivo real concretizado por meio da carta ar-


gumentativa, em resposta ao vídeo da apresentadora, foi impulsio-
nado pela necessidade de exposição de pontos de vistas e defesa de
direitos, inicialmente alimentada por uma carga emocional acentu-
ada e refinados através das ponderações e adequações discursivas,
característica da escrita formal.
A interdisciplinaridade foi expressa pelo acesso às várias áreas
do conhecimento, uma vez que, durante a construção dos argu-
mentos, foram acionados diversos saberes cruciais para a elabora-
ção de argumentos relacionados às questões territoriais, geográficas,
econômicas, culturais, históricas, bem como de saúde e de política.
Desse modo, o contexto transdiciplinar não necessita de clas-
sificação dos diversos saberes a partir de sua fragmentação em
áreas, uma lógica instituída pela tradição ocidental. Nesse sen-
tido, as ações interdisciplinares e transdisciplinares são aciona-
das, uma vez que todo processo de construção do conhecimento
se faz pertinente ao ensino-aprendizagem que vai de encontro a
uma proposta disciplinar.
Com o intuito de responder a questão de como o português
poderia ser ensinado sem ser um instrumento de colonização e
imposição, o presente estudo nos apontou que a linguagem está
a serviço dos acontecimentos sociais e pode ser abordada como
instrumento emancipatório e de resistência em prol dos direitos de
uma comunidade, a fim de alcançar transformações sociais.
Quanto à questão que nos fez pensar nas contribuições do en-
sino de português numa perspectiva intercultural, neste estudo,
ficou evidente a necessidade de trabalhar com a diversidade, uma
vez que, mesmo que tenha havido uma seleção de argumentos para
elaboração da carta argumentativa, podemos perceber as diferen-
tes visões de mundo que permearam os argumentos.

183
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interculturalidade é um dos eixos que sustenta as teorias de-


coloniais tendo em vista uma nova proposta de transformação na
concepção política e educacional. Tal perspectiva estabelece uma
crítica sob o viés da perspectiva decolonial, em que não há hierar-
quização dos saberes, ou seja, nenhum conhecimento é superior a
outro conhecimento.
A educação indígena durante séculos sofreu um processo de
hierarquização do saber, tornando questões étnica e linguística
invisíveis. Entretanto, na contemporaneidade, vemos algumas mu-
danças e conquistas na educação indígena no Brasil, devido à disse-
minação de reivindicações de vários movimentos organizados pe-
los povos indígenas e apoiadores indigenistas envolvidos em ações
afirmativas e políticas propositivas para a revitalização e valoriza-
ção desses povos.
A luta pela decolonização da escola parte do princípio de en-
tender a educação e o conhecimento como processos de produção
e reformulação de postulados epistêmicos, culturais, sociais e po-
líticas, numa perspectiva intercultural, em que vários conhecimen-
tos podem ser acionados sem hierarquias, em prol de evidenciar
outros saberes.
As práticas de ensino-aprendizado evidenciam, neste estudo, a
importância dos Temas Contextuais relacionados ao contexto real
da visão de mundo dos discentes, bem como, a transdisciplinar e
interdisciplinar, acionados à necessidade discursiva e pedagógica
para a construção argumentativa para produção textual em con-
texto acadêmico.
É nessa perspectiva que a Linguística Aplicada tende a contri-
buir para o surgimento de abordagens de ensino-aprendizagem do

184
Capítulo 6

português como segunda língua/língua adicional para a formação


de professores e professoras indígenas sob o viés crítico-reflexivo.
Tendo em visa o ensino da língua portuguesa, partimos dos
fatores externos ao sistema linguístico para o manuseio linguísti-
co, gramatical e discursivo, para fins reais de uso no cotidiano dos
aprendizes.
Num contexto pedagógico, pretende-se contribuir para uma
nova visão de mundo na formação de professores e professoras da
educação indígena no Brasil, a fim de disponibilizar espaços para
que esses/essas docentes indígenas se tornem protagonistas de
suas próprias histórias e transformem suas realidades escolares
através de novas práticas pedagógicas, formuladas por eles pró-
prios de acordo com suas necessidades e visão de mundo.

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Capítulo 6

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ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 6

1. Para a implementação do ensino de português como segunda


língua, no texto, a autora traz um conjunto de conceitos, entre
eles, o de interculturalidade crítica. Com base no texto, des-
creva os princípios que norteiam a interculturalidade crítica e
cite exemplos.
2. No texto, a autora aborda um conjunto de teorias críticas que
auxiliam o professor no processo de ensino de línguas em sala
de aula, entre elas, a Linguística Aplica. Qual a contribuição da
Linguística Aplicada para o ensino-aprendizagem do portu-
guês como segunda língua para a formação de professores e
professoras indígenas?

189
CAPÍTULO 7

“Tem momentos que a gente


tem que se comportar como tal”:
práticas de letramentos com uma
acadêmica indígena akwẽ xerente1

SUETY LÍBIA ALVES BORGES


UFG

Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e


levado bem além de todo começo possível [...]. Não haveria, por-
tanto, começo, e em vez de ser aquele de quem parte o discurso,
eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna,
o ponto de seu desaparecimento possível.

Michel Foucault (2014, p.5-6).

1  * Este trabalho constitui parte de uma pesquisa mais ampla sobre o tema, compon-
do assim, minha tese de doutorado. Agradeço as contribuições da leitura crítica feita
pelo professor e orientador Dr. André Marques do Nascimento, grande referência na
área dos estudos da linguagem, e eu acrescentaria vida, linguagem e vida em suas
nuances sociais mais sensíveis.

191
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

INTRODUÇÃO

Inspirada por esta epígrafe que tem Foucault como autor, há que
se prevenir que, neste artigo, sou envolvida e levada pelas palavras,
antes mesmo de qualquer possível ambição e ou preocupação desta
escrita ser ou não considerada como ciência, a fim de não incorrer
no risco alertado por Ailton Krenak (2019, p. 63), um dos maiores
líderes do movimento indígena, no Brasil: “Na verdade, a ciência in-
teira vive subjugada por essa coisa que é a técnica. Há muito tempo
não existe alguém que pense com a liberdade do que aprendemos a
chamar de cientista”. Portanto, é reivindicando essa liberdade que
este texto se faz. Esse mesmo autor critica, ainda, que, é sob a égide
do que se (auto)denomina humanidade, que se pratica uma infinida-
de de atos desumanos, violentos. Krenak (2019, p. 10-11) pergunta:
“como é que, ao longo dos últimos 2 mil ou 3 mil anos, nós construí-
mos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muitas
escolhas erradas que fizemos, justificando o uso da violência?”.
Logo após a leitura do livro Ideias para adiar o fim do mundo, de
Ailton Krenak (2019), embriagada com tanta beleza e sabedoria do
autor, li parte do Dossiê O pós-humano é agora: pós-humanismo,
ação e significação do periódico “Trabalhos em Linguística Apli-
cada”2 e a palavra que ficou impregnada em mim foi esperança,
em especial, ao ler Ribas (2019, p. 615) afirmar: “temos estudiosos
que acreditam que já estamos vivendo uma época pós-humana, no
sentido de que não nos conformamos mais ao modelo humanista
de humano”.
“Espiando”, brevemente, alguns dos artigos, comecei a pensar
se os letramentos que pretendo abordar podem ser considerados

2  Periódico do IEL – Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, v. 58, n. 2,


mai./ago. 2019.

192
Capítulo 7

pós-humanistas, grosso modo, eu arriscaria dizer que sim, se pen-


sarmos da perspectiva do emaranhamento entre humanos e não
humanos, ou seja, textos, palavras, não existem separadamente,
ao contrário, existem de forma emaranhada que, neste caso, não
quer dizer apenas entrelaçada, é mais do que isso: “o emaranha-
mento, nesse caso, significa que a existência não é individualizada,
mas uma condição que emerge da relação com os outros elemen-
tos” (RIBAS, 2019, p. 623). Em nosso caso, as práticas de letramentos
emergem, inclusive, da relação das protagonistas principais deste
artigo, entre si (Eneida e eu), e entre os diferentes mecanismos lin-
guísticos e semióticos, situados no tempo e no espaço.
Dessa maneira, sem a intenção de aprofundar nas perspectivas
pós-humanistas de letramentos, entretanto, certa de que é um po-
tencial tema a se aprofundar em outro artigo, o que espero, aqui, é
colocar em diálogo os conhecimentos trazidos por estes dois mun-
dos, assumindo com isso, uma postura intercultural da linguagem
e, assim, deste fazer pedagógico: uma professora pesquisadora não
indígena a falar sobre práticas de letramento3 de e com uma aluna-
-orientanda indígena.
Prosseguindo, eu assevero: acredito, de corpo, mente e alma,
que o fazer acadêmico – ora como professora, ora como aluna –
deve estar a serviço da vida. E, assim, ser feliz. Para mim é preciso
estar feliz fazendo. É preciso estar amando. É assim que se contex-
tualiza a história da professora, recém-chegada no Curso em Edu-
cação Intercultural (EI) do Núcleo Takinahakỹ de Formação Supe-
rior Indígena (NTFSI) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Um

3  Adoto a definição trazida por Street (2012, p. 76), para quem “o conceito de prá-
ticas de letramento é realmente uma tentativa de lidar com os eventos e com os pa-
drões de atividades de letramento, mas para ligá-los a alguma coisa mais ampla de
natureza cultural e social. E parte dessa ampliação envolve atentar para o fato de que
trazemos para um evento de letramento conceitos, modelos sociais relativos à natu-
reza da prática e que o fazem funcionar, dando-lhe significado”.

193
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

curso de licenciatura – habilitação em Ciências da Linguagem, da


Cultura ou da Natureza – específico para a formação de professores
e professoras indígenas, com duração de cinco anos, sendo as eta-
pas de estudos realizadas na UFG e, também, em Terras Indígenas:
o que faz o Curso ainda mais belo, profundo, produtivo e significa-
tivo, para nós.
As etapas, em Terras Indígenas, acontecem organizadas por
Comitê, orientado, geralmente, por uma dupla de professores/as
que ficam responsáveis por um determinado povo/etnia. Entretan-
to, o Curso cresceu e a quantidade de povos aumentou para, apro-
ximadamente, 27 (vinte e sete), porém o quadro de professores/as
não acompanhou esse crescimento. Com isso, alguns Comitês tra-
balham com mais de um povo. Entre os anos de 2015 e 2017 estive
responsável pelo Comitê Xerente.
O povo Xerente, nomeado assim pelos não indígenas, se auto-
denominam Akwẽ que significa, nas palavras dos/as próprios aca-
dêmicos/as, “o que é humano, gente”. Neste artigo, usados como
termos intercambiáveis. Localizado no Estado do Tocantins, o povo
Xerente, depois de sangrentas lutas – narradas pelos anciãos e pe-
las anciãs –, teve suas terras demarcadas: Terras Xerente e Funil. É
nesta última, localizada a 12 quilômetros do munícipio de Tocantí-
nia, onde fica a Aldeia, de mesmo nome (Funil), de Eneida Brupahi
Xerente, com quem se passam as experiências de letramentos a se-
rem discutidas e aqui citadas, transcritas em itálico.
Informo que parte destas citações feitas são frutos de publi-
cações de Eneida, dessa maneira, ela, aqui, é também autora, uma
pensadora Akwẽ, respeitável referência, para mim, a teorizar de
maneira inédita sobre letramento. As demais citações são resul-
tantes de diferentes encontros, entre nós, sendo parte deles os de
orientação do seu Extraescolar, um trabalho desenvolvido pelos/
as acadêmicos/as, como requisito parcial e obrigatório para a con-

194
Capítulo 7

clusão do Curso. Entretanto, possui seu diferencial, à medida que


deve ser realizado junto à comunidade indígena, atendendo, assim,
a uma demanda local, “se afasta, portanto, em perspectiva, em me-
todologia e em suporte de registro dos Trabalhos de Conclusão de
Curso (TCCs), atividades acadêmicas convencionais em outros cur-
sos superiores” (Documento de Orientação para os Projetos Extra-
escolares, 2019).
Estar nesta Licenciatura, como professora de indígenas, me fez
retomar os Estudos do Letramento, iniciados e desenvolvidos no
Mestrado, quando trabalhei com mulheres negras, lideranças po-
pulares, investigando o porquê de essas mulheres negras falarem
em público, mas não escreverem publicamente (BORGES, 2020).
Nesta época, aprendi com a participante interlocutora da pesqui-
sa, que letramento tem gênero, tem cor, tem “classe” social, tem
idade, enfim, tem identidades. Então, foi com Sonia Cleide que me
construí como estudiosa do letramento e buscadora de práticas de
letramento negro, em que as narrativas e as histórias de vida são as
molas propulsoras para o movimento dessas práticas. Letramento
que foi se fazendo sensível, descobrindo-se coletivo, descobrindo-
-se parte uma da outra: Sonia e eu.
Via-me encantada, ao levar, para as oficinas de letramento, a
ideia instigante de que para ser letrada/o não era preciso ser al-
fabetizada/o, nem tampouco ter (alto) nível de escolarização. De
acordo com Tfouni, “podemos passar a considerar que há letra-
mento(s), sem alfabetização, de natureza variada” (TFOUNI, 2001, p.
80). A autora continua: letramento “independente de ‘variáveis’ tais
como alfabetização, grau de escolaridade e tempo de escolarização”
(p. 81). Foi baseando-me nos estudos do letramento, àquela época,
que foram reestabelecidas a autoconfiança e a crença, nessas mu-
lheres negras, de que eram sim, letradas, em diferentes graus:

195
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

O termo “iletrado” não pode ser usado como antítese de “letrado”.


Isto é, não existe, nas sociedades modernas, o letramento “grau
zero”, que equivaleria ao “iletramento”. Do ponto de vista do pro-
cesso sócio-histórico, o que existe de fato nas sociedades indus-
triais modernas são “graus de letramento”, sem que com isso se
pressuponha sua inexistência (TFOUNI, 1995, p. 23).

As oficinas de letramento colocaram a escrita dessas mulheres


em movimento. Elas conseguiram recuperar a vontade de escrever,
perdida ao longo da vida, em experiências de vida e escolares vio-
lentas e traumáticas. Mais do que isso, elas passaram a se realizar
assim: escreveram, literalmente, até para o Papa, entre elas tinham
lideranças católicas.
Foi libertador sair da ignorância de que letradas eram somente
as pessoas escolarizadas. Indescritível ver crescer dentro de mim
um respeito enorme aos tantos Joãos e Marias, pelo Brasil afora,
detentores/as do letramento de mundo, bem maior e mais signifi-
cativo que o escolar, muitas vezes. Gente Letrada em seus conheci-
mentos de mundo e de vida. Ah! A vida!!! Essa mesma. Aí vem a vida
e me traz a Eneida.

DOS LETRAMENTOS VIVIDOS

Por mais que você olhe ao seu redor,


você não consegue ver o fim do letramento.

Eneida Brupahi Xerente

No Mestrado, ficou evidente, para mim, que o processo de en-


sino-aprendizagem não passa apenas por conteúdo. Envolve, antes

196
Capítulo 7

de tudo, a construção e o fortalecimento das relações entre pro-


fessora(s)-aluna(o/s). Para Eneida não desistir no final do Curso e
escrever o seu Extraescolar, o que mais contou foram confiança,
afetividade e autoestima construídas:

A senhora me deixa livre, me ouve, aceita a diferença do fazer


do letramento, me sinto a vontade de escrever, de colocar minha
ideia, de expor o meu mundo, minha realidade pra senhora... E a
senhora aceita. Eu me sinto bem. Autônoma. Eu coloco minhas
ideias, meus pensamentos fluem mais, inexplicável, sem tradu-
ção. Mais é tão bom que faz fluir tanta coisa! Parece uma árvore,
as raízes, o caule, o tronco, quando pensa que não, já está dando
frutos, como eu, manifestando com meu conhecimento do meu
mundo [Eneida respira fundo].

Guardamos vivências inesquecíveis, entre elas, os banhos de


rio marcados no corpo e, por isso, na memória. Virou regra, duran-
te as etapas de estudos em Terra Indígena Xerente, os banhos de
letramentos femininos. Juntávamos, professora e alunas, e íamos
tomar banho no rio, nos intervalos das aulas – horário de almoço,
fim de tarde – e, assim, letramentos se preenchiam de sentido e se
materializavam nas longas conversas, enquanto Eneida, por exem-
plo, enxaguava meus cabelos. Cabelos da professora que não fazia
ideia em como conseguir tirar o xampu, sem se afogar...Eneida, si-
lenciosamente, segue enxaguando os cabelos cacheados que, com o
tempo, ela adquiriu coragem para perguntar: “professora, a senhora
acha seu cabelo bonito?”. Eu que, há tempos já esperava por essa
pergunta, respondi positivamente, em meio a boas risadas. Não é
porque é índia que não faz julgamento também. Eu, negra, julgada
por olhos culturais que tem no cabelo longo e liso, muito saudável,
por sinal, a referência de beleza. Eneida etnocêntrica, “que tal”?
Eneida tem um “que tal?” que me encanta.
“Que tal?” para dizer: “estou surpresa, não esperava isso”.

197
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

“Que tal?” para dizer: “estou esperando sua opinião”.


“Que tal?” para dizer: “arrasei, né, professora?”. Aqui, minha
escrita chega a ser sonora – Souza (2001) diria sinestésica, como
veremos adiante –, pois enquanto escrevo, o som da voz de Eneida,
a pronunciar isso, ecoa em minha mente, em meio à imagem de seu
sorriso esperto e faceiro, a me olhar...
Nosso olhar, de Eneida e meu, precisava ser, no mínimo, bilíngue
(Akwẽ e português), e jamais grafocêntrico, uma vez que, como indí-
gena, Eneida vem de uma tradição oral e, apesar de viver a transição
para um mundo também de escrita, ela é predominante e afetivamen-
te oral. Eneida acontece na oralidade, na mais rica e bela manifestação
de si e de sua relação com o mundo. Dado isso, ela se movimenta para
a escrita, impulsionada pela emoção e afetividade de sua apreensão
das coisas, do mundo. E não é qualquer escrita, e de qualquer coisa,
qualquer modo e maneira. É à sua maneira: em seu celular, naquele
bloquinho de notas, escreve tudo ali, e depois me envia pelo whatsApp
ou messenger. E ainda acrescenta que se eu quiser, ela pode me ensi-
nar: “muito bom professora, é muito prático, se a senhora quiser eu te
ensino”. Interrompo a narrativa, nesse momento, a fim de submeter
minhas próprias práticas ao escrutínio crítico, porque afinal:

Acreditar numa linguística crítica é acreditar que podemos fazer


diferença. Acreditar que o conhecimento sobre a linguagem pode
e deve ser posto a serviço do bem-estar geral, da melhoria das
nossas condições do dia a dia. É também acreditar que o verda-
deiro espírito crítico tem de estar voltado, vez por outra, para si
próprio. É preciso, em outras palavras, submeter as nossas pró-
prias práticas ao escrutínio crítico (RAJAGOPALAN, 2003, p. 12).

Repetidas vezes referi-me aos povos indígenas como sendo


de tradição oral. Volto, então, meu espírito crítico, às minhas pró-
prias práticas, situadas academicamente em um discurso simplis-

198
Capítulo 7

ta e reducionista a respeito das sociedades indígenas. Será mesmo


“tradição oral”? A partir de qual ponto de vista?
No afã de a tudo querer nomear, chegamos à estupidez de no-
mear o mundo do/a Outro/a a partir do nosso olhar cultural. Em
outras palavras, sob a ótica do nosso mundinho nomeamos o mundo
dos outros, neste caso, outros/as indígenas. Dizer que uma socie-
dade é de tradição oral implica reconhecer que é a nossa sociedade,
de escrita, que está sendo tomada como referência, só é possível
esse reducionismo grosseiro, à oralidade, porque o que está sendo
levado em conta é a escrita: oral em contraposição à escrita. A esse
respeito, Souza (2001, p. 170) reitera: “o que é importante frisar é
que essa suposta ‘oralidade’, mais do que uma característica de um
determinado tipo de cultura, é um produto e uma percepção grafo-
cêntrica, vendo nas culturas ágrafas apenas aquilo que as lentes de
uma cultura letrada permitiam ver”.
No entanto, ao refletir sobre as práticas de letramento de Enei-
da, tomando por base, tão somente o seu mundo, a sua visão de
mundo, a sua forma de conceber o mundo, não dá jamais para con-
tinuar dizendo que Eneida Brupahi é predominantemente oral, por-
que uma infinidade de possibilidades é deixada de fora, se assim o
fizermos. Por essa razão, também deixa de fazer sentido, conceber
letramento como sendo os usos e práticas sociais da escrita, quan-
do o universo é o indígena:

O pensamento de Eneida Brupahi faz surgir a inquietação de se


usar o termo letramento em interações e debates que fomentam
a construção de uma base epistêmica indígena, nos termos oci-
dentais em que este foi construído – como práticas sociais da
escrita – uma vez que, em sala de aula, podemos ver e ouvir estu-
dantes indígenas usarem esse construto para descreverem suas
experiências, suas vivências, seus cotidianos, suas vidas, seus
mundos, seus universos que, geralmente, nada tinham a ver com
a escrita (BRUPAHI, SAWREPTE e BORGES, 2018, p. 58).

199
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Considerando a tradicional concepção de letramento, diria


que Eneida ampliou o conceito para além das práticas de escri-
ta. Contudo, sob a concepção indígena de letramento não se trata
de ampliar, pois “o letramento no Akwẽ sempre existiu” (BRUPAHI
XERENTE, 2019, p. 5) e, de acordo com Brupahi Xerente, jamais se
restringiu à escrita, afinal, em suas próprias palavras, “letramento é
aquele que me ensina alguma coisa que não é necessariamente só do
escrever em um papel, numa placa, na tela de uma tecnologia, vendo
através de imagens. Na minha concepção é tudo que sempre ajudou
meu povo a se comunicar, a nortear, ensinar” (BRUPAHI XERENTE,
2019, p. 5). Não lhe falta exemplo, quando interpelada para explicar
mais sobre o que seria isso:

Letramento do fazer é, por exemplo, descascar uma parte da ár-


vore para dizer a referência de qual lugar umas lenhas foram dei-
xadas [...]. Ou seja, a referência é totalmente diferente da cidade,
que são as que estão escritas. Pois para o Akwẽ são coisas da na-
tureza, como rios, córregos, árvores, montanhas, serras, trilhas,
estradas. Não só isso, mas também tem a fase lunar que serve
para orientar a plantação da roça, a construção de casa, e por aí
vai (BRUPAHI XERENTE, 2019, p. 6).

Conforme comenta Ribas (2019), Pennycook vai também nesta


mesma direção, ao explanar sobre cognição:

cognição estendida aponta para a forma como outros sistemas


nos auxiliam a pensar; já a cognição distribuída diz respeito a
como o pensamento é resultado do envolvimento da cognição do
sujeito e dos demais elementos com os quais ele se relaciona.
Tais elementos não se restringem aos aparatos como caneta e
papel, sistemas de armazenamento de dados, telefones celulares
e computadores. Podem ser animais – que identificam elementos
no ambiente e os informam – ou plantas – que indicam a direção

200
Capítulo 7

do sol, a natureza do solo e assim por diante –, por exemplo (RI-


BAS, 2019, p. 621).

Voltando à Eneida, a autora inova ao falar em letramento do


fazer. Fazer este também mencionado por Paulo Freire, ao dis-
correr sobre como aprendeu as tonalidades diferentes das cores
dos frutos:

o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada in-


chada; o amarelo-esverdeado da mesma manga amadurecendo,
as pintas negras da manga mais além de madura. A relação entre
estas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa
manipulação e o seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que
eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação de amo-
legar (FREIRE, 2011, p. 22).

Esta é, também, uma forma de aprender dos povos indígenas


em geral, qual seja: aprender na observação do fazer. Então, quando
colocados juntos, por meio da possibilidade ofertada pelo tempo-
-espaço deste artigo, as narrativas de Eneida e Paulo Freire têm, na
natureza, seus pontos de confluências. Freire (2011) usa as palavras
“textos”, “palavras”, “letras” como metáfora para a leitura de mundo
que se fazia sob seus olhos, daí a expressão “palavramundo”:

Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarna-


vam no canto dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-cami-
nho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas
das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tem-
pestades, trovões, relâmpagos; as águas da chuva brincando de
geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os “textos”, as
“palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também
no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus
movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro
das flores – das rosas, dos jasmins –, no corpo das árvores, na
casca dos frutos (FREIRE, 2011, p. 21).

201
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Nesse diálogo inebriante e encantador, Eneida acrescenta:

Portanto, o ser humano pode ser letrado com o que está a sua
volta: o som ou até o silêncio do lugar. Perto do rio, ar puro e
fresco, o contato com a natureza onde há a renovação da espe-
rança. Tem, também, a comunicação do luar: quando um casal
está longe, com a única lua alumiando os dois, ao mesmo tempo,
é quando acontece o espírito do encontro (BRUPAHI, SAWREPTE
e BORGES, 2018, p. 71).

Ribas (2019, p. 616), baseando-se em More (2013), menciona


que a condição pós-humana está relacionada “ao entendimento de
que humanos e não-humanos são parte de um continuum nature-
za-cultura, ou seja, de que não é possível afirmar se determinado
comportamento humano é natural ou cultural”. Na concepção indí-
gena – não somente em relação ao comportamento – o continuum
se faz entre o humano e todo o universo. Razão pela qual adoto a
postura e tenho a compreensão de que os letramentos indígenas se
estabelecem nesse mesmo continuum, haja vista que, para eles/as,
não há separatividade:

Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que


somos a humanidade. Enquanto isso – enquanto seu lobo não
vem –, fomos nos alienando desse organismo de que somos
parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós,
outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem algu-
ma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é
natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza (KRENAK,
2019, p. 16-17).

Desse modo, considero e valorizo todas as formas de produção


de conhecimento legitimadas pelos/as meus/minhas interlocuto-
res/as, sendo a escrita, apenas uma, dentre tantas outras práticas,

202
Capítulo 7

vivências, de letramentos existentes. Letramentos plurais e, em


nosso contexto, interculturais.
Além do letramento do fazer, a pensadora Akwẽ discute sobre
os letramentos do ver, do ouvir, do sentir, do compreender a natu-
reza (BRUPAHI XERENTE, 2017), coadunando-se ao que já preconi-
zava Paulo Freire (2011), na defesa da importância do ato de ler que
não se restringe somente à escrita, pelo contrário, o autor sustenta
que é preciso

uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na de-


codificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas
que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura
do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura
desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele
(FREIRE, 2011, p. 19-20).

Daí a pertinência da crítica feita por Souza (2001) a despeito


da redução das culturas indígenas a uma suposta cultura dita “oral”.
Fundamentado em Finnegan (1970), o autor assevera:

Esse fato levou à não percepção de aspectos complexos dessas


práticas culturais ditas ‘orais’ que, além de inexistir nas culturas
letradas dos observadores, não são representáveis na escrita: os
gestos, os ritos, as emoções, e o uso dos sentidos como o tato,
o olfato e a visão; ou seja, não se percebia a sinestesia complexa
presente nas práticas culturais das culturas ágrafas, daí reduzi-
das a uma pretensa oralidade (SOUZA, 2001, p. 169).

Para Eneida, ver, ouvir, sentir também é carregado de sentido


durante o processo de construção de um texto. E é essa a resposta
dada quando pergunto o porquê de ela não ter dado continuidade
na escrita do Extraescolar, depois que a deixei na aldeia e regressei
a Goiânia. Ela responde: “professora, não é a mesma coisa eu escrever
sozinha, porque quando estou com a senhora eu me expresso também

203
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

com o corpo, tem o gestual, os olhos nos olhos, até a respiração da


gente muda”. Souza (2001) mostra

como uma visão grafocêntrica de uma cultura indígena no Bra-


sil leva a uma visão deficiente e deficitária dessa cultura; defici-
tária porque vê essa cultura como um exemplo clássico de uma
“oralidade” sem escrita; deficiente porque essa visão é incapaz
de perceber a complexidade de práticas culturais dessa cultura,
marcadas por uma sinestesia que vai muito além da dicotomia
oralidade/escrita, e incapaz de ser explicada à luz dessa dicoto-
mia (SOUZA, 2001, p. 172).

Eneida é clara ao enfatizar que precisa de todos esses recursos


corporais para elaborar seu texto que acontece oralmente e, eu,
como a escriba, esforço-me para levá-lo para a escrita. Sabemos
que a riqueza de detalhe e profundidade desse contexto de pro-
dução do qual Eneida se refere, jamais serei capaz de “traduzir” /
“reproduzir” na e para a escrita, até porque, como a própria autora
diz, tem coisas que não são possíveis traduzir, são apenas para sen-
tir (BRUPAHI, SAWREPTE; BORGES, 2018).
Porém, quero também chamar a atenção de como o entendi-
mento, valorização e respeito à cosmologia Akwẽ que Eneida traz,
coloca suas práticas de letramentos em movimento. É assim que
Eneida manifesta sua intelectualidade Akwẽ Xerente, desenvolve e
aprimora as competências de leitura e escrita, alcançando a escrita
pública, como veremos a seguir.

AS PRIMEIRAS PUBLICAÇÕES

A primeira publicação de Eneida aconteceu coletivamente, com


todos/as os/as estudantes do Comitê do qual Eneida faz parte –
Xerente –, sob minha orientação e coautoria. O texto foi fruto de

204
Capítulo 7

debates intensos em uma semana de atividades, quando discutimos


exaustivamente sobre Educação Indígena Akwẽ, interculturalidade
e seus desafios. Foi aí que descobri o potencial gigantesco de Enei-
da, de letramentos variados, e sem fronteiras. Ficávamos noites a
fio, depois dos debates durante o dia, organizando o texto, digitado
por mim, das falas de todos/as os/as participantes. Uma intelec-
tual nata, naturalmente crítica, fazendo uso da língua portuguesa
consciente e politicamente, ou seja, sabendo que, na escolha das
palavras, há sim, interesses políticos, jogos de poder que, de acordo
com Foucault (2007, p. 4) são “efeitos de poder próprios do jogo
enunciativo”... e, “então, professora, acho que essa palavra não fica
bem aí não, troca por essa... que tal?”.
Assim, Eneida e eu, íamos alinhavando as ideias, transfor-
mando aquele “amontoado” de frases soltas em um texto, pre-
enchido de sentidos e significados interculturais, em um pro-
tagonismo indígena Akwẽ. Nós duas, sentadas lado a lado, e eu
conduzindo aquele evento de letramento4 que se dava da seguin-
te forma: eu lia as frases ditas pelos/as colegas, durante os de-
bates; reescrevia concatenando uma a outra; e, em voz alta, lia,
enquanto Eneida, com os olhos fixos no computador, ia fazendo,
oralmente, suas inserções/intervenções que eram agregadas ao
texto, por mim. Importante dizer que o texto pronto foi subme-
tido ao grupo para os ajustes finais e aprovação para, finalmente,
ser submetido à publicação5.

4  Assim como Street (2012, p. 75), “penso que ‘eventos de letramento’ é um conceito
útil porque capacita pesquisadores, e também praticantes, a focalizar uma situação
particular onde as coisas estão acontecendo e pode-se vê-las enquanto acontecem”.

5  XERENTE, Adalto Pereira; et. al. O fazer pedagógico de acadêmicos/as Akwẽ.


In: HERBETTA, ALEXANDRE (Org.). Novas práticas pedagógicas: considerações sobre
transformações escolares a partir da atuação de docentes indígenas do Núcleo Taki-
nahakỹ. Goiânia: Gráfica UFG, 2018.

205
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

No mesmo ano, outro capítulo foi publicado no livro “Diálogos


interculturais: reflexões docentes” em coautoria: Eneida; Leonardo,
seu colega de turma; e eu6. Dentro do capítulo há uma seção escrita
exclusivamente por Eneida que teoriza sobre letramento, em uma
apropriação autoral deste termo, admirável. Nessa experiência,
nem Eneida, nem eu, saímos sendo as mesmas pessoas. Não menos
importante foi sua participação no “III Congresso Internacional de
Formação em Educação Intercultural”, onde apresentou a pesquisa
realizada em um dos estágios feitos no Curso, intitulada “O Letra-
mento do Fazer”, citada, aqui, por mim.

O EXTRAESCOLAR

Em meio a tudo isso, parodiando Carlos Drummond, tinha um Ex-


traescolar no meio do caminho. O Extraescolar é um trabalho que
deve ser escrito na língua do/a aluno/a, justamente pelo papel do
Curso em contribuir para o fortalecimento e valorização das línguas
indígenas e, com isso, romper com o modelo ocidental de educação
que, historicamente, invisibilizou as línguas minorizadas e seus res-
pectivos povos e culturas. Os dados, da língua Akwẽ, foram gerados
por Eneida, a partir de seu próprio conhecimento linguístico como
falante da língua e, também, de sua observação cotidiana em sua co-
munidade, além de, durante as aulas, observar as falas dos colegas de
sala. Entretanto, ao realizar a descrição dos aspectos morfológicos
propostos – marcação de gênero, número, intensidade e, além disso,
fala feminina e fala masculina – Eneida usou o português, ou seja,
para explicar como se dão, como funcionam as marcações dos refe-
ridos aspectos morfológicos, a língua usada foi a portuguesa.

6  Texto que é aqui citado e constante da lista de referências, ao final do artigo.

206
Capítulo 7

Inicialmente, pensei que as dificuldades de Eneida para cons-


truir o trabalho fossem pelo fato de estar sendo escrito em por-
tuguês e, como é sabido e comum, natural para qualquer um/a, o
nível de dificuldade aumenta quando a escrita não é em nossa lín-
gua de origem, como aponta Maher (2007, p. 70) “quanto maior o
investimento pedagógico na língua materna, mais facilidade terá o
aluno de se desenvolver em sua segunda língua”. Então, depois de
vários encontros de orientação, fiquei intrigada e perguntei o por-
quê do português. Essa foi a resposta: “Escrever em Akwẽ demora
mais, fico travada, a explicação é mais simples, mas demora mais
pela dificuldade de escrever na língua [materna]. Em português, a
explicação é complexa, mas é mais rápido pra escrever, seguir”. So-
bre as afirmações de Eneida que irei debruçar-me a seguir, porém,
antes, uma breve contextualização se faz necessária.

PROFESSORA, A ESCRIBA: LETRAMENTOS AMALGAMADOS

Cheguei ao Curso em outubro de 20157, quando Eneida, junto à Léia


Silva que, na época, era a coordenadora do Comitê, já havia definido
o tema da pesquisa: “Aspectos Morfológicos da Língua Akwẽ”. Profes-
sora Léia marcou significativamente essa fase acadêmica de cons-
trução do projeto de pesquisa, de forma que Eneida seguiu em frente
bastante saudosa dos ensinamentos dessa professora. Ao longo dos
anos, Eneida, muito timidamente, foi avançando em sua pesquisa.
Em encontros de orientação passados, percebi que o maior
rendimento de Eneida, no tocante à escrita de seu Extraescolar, foi

7  Tempos depois, assumi as atividades em razão da licença maternidade da Profes-


sora Léia, a quem agradeço pela oportunidade. Iniciar no universo indígena, com Léia,
foi muito especial. Amor, respeito, alegria, em trabalhar com povos indígenas sempre
transbordantes. E foi assim que continuei a caminhada. Gratidão por tudo, Léia.

207
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

em uma etapa de estudos em Terra Indígena, Aldeia Salto, quan-


do, na ânsia de vê-la terminar logo o seu trabalho, tornei-me sua
escriba, para analisar os dados que já haviam sido gerados por ela.
Porém, nesta oportunidade, o que pensei é que seria apenas aque-
le “empurrão” inicial que todos/as nós sabemos precisar, às vezes.
Minha expectativa era a de que, dali em diante, o trabalho iria fluir...
Para minha surpresa, Eneida voltou, ao seu Extraescolar, so-
mente quando chegou à próxima etapa de estudos. Imagino que a
essa altura, você, leitor e leitora, deve estar se perguntando o que
os seus colegas de Comitê também perguntaram: “Por que você não
escreve sobre letramento no Extraescolar? Você tem muito mais
facilidade”. Irredutivelmente Eneida responde que sentiu a neces-
sidade de ajudar a comunidade, a escola, contribuindo com a cons-
trução de uma gramática que seja Akwẽ.
Os anos foram passando... Etapas de estudos iam e vinham e
Eneida não mais avançava. Até chegar a hora “h”: ou termina, ou não
se forma. Meados de 2018, já no primeiro ano do tempo de prorro-
gação para a conclusão do curso, concluo que era preciso voltar ao
lugar de escriba para que o trabalho fosse finalizado. Intensificamos,
rigorosamente, a quantidade de horários de orientação e, para nos-
sa alegria, uma nova professora chega ao Comitê – Aline da Cruz, a
quem somos gratas pelas grandes contribuições –, e com o conheci-
mento específico que Eneida precisava, em descrição linguística. Po-
rém, eu, não! Para mim, os horários de orientação eram ora em meio
ao cansaço extremo, ora em meio a risos gargalhados: eu, achando
uma aberração Eneida dizer, no Extraescolar, “cavalo macho”.
- [professora]: Eneida, mulhé, desnecessário falar que é macho
uai, não entendi!
Eneida, muito séria e espantada, responde:
- Uai professora, e a senhora diz como então?
- [professora]: Cavalo só, uai.

208
Capítulo 7

- [Eneida]: Mas e a fêmea, diz como?


- [professora]: Éeeeegua uai!!!
- [Eneida]: ai ai... eu nem lembrei da égua.

O ambiente, então, se preenche rapidamente com as sonoras e


largas gargalhadas das duas que, a essa altura, espanta para longe o
cansaço e cria fôlego para continuar mais umas horinhas de trabalho
de descrição linguística que, para mim, era um enorme esforço, visto
que minha área é a dos estudos do letramento. Assim foi... Um trabalho
de língua Akwẽ, sendo descrito por Eneida e, eu, a escriba, tentando
passar para a escrita, a explicação que ela ia fazendo oralmente. Enei-
da parece, nessa hora, se fazer índia, em português. Quero deixar claro
que esta parceria emergiu, especificamente, neste contexto, apenas
um dos muitos em que Eneida se engaja e é protagonista autônoma.

“ESCREVER EM AKWẼ DEMORA MAIS, FICO TRAVADA”

Essa fala de Eneida deixou-me intrigada – “Escrever em Akwẽ de-


mora mais, fico travada”. A fim de entender o que a deixava travada,
peço que explique melhor:

A escrita em Akwẽ é recente, tem pouca coisa escrita em Akwẽ,


já em português tem muito: televisão, a gente lê livros, no celu-
lar você tem mais é português, isso faz com que a gente escreva
mais em português porque a gente vê tanto português. Akwẽ não
tem tanta referência da escrita padrão em Akwẽ. Não tem muitas
referências pra ler, na língua Akwẽ, ao escrever certo. No por-
tuguês tem várias ferramentas pra gente tentar escrever certo,
padrão. Não tem tanto material pra gente se nortear. A gente tem
medo de colocar errado, porque, por exemplo, um acento que
falta pode tornar outra palavra. Às vezes é muito complexo de a
gente escrever por não saber o padrão direito.

209
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Pra escrever em Akwẽ tem muita deficiência ainda, hoje o terri-


tório é dividido em regiões e tem hora que uma região acha que
tá certo e a outra não. Na apresentação dos seminários, no sá-
bado, rola muita conversa, até desagrada alguma pessoa, porque
um fala que não é desse jeito, que tá faltando alguma coisa, e a
outra acha ruim.

Eneida está se referindo aos seminários que acontecem duran-


te as etapas na UFG, aos sábados. Momento em que os/as estu-
dantes têm a oportunidade de apresentarem seus trabalhos, sejam
eles as pesquisas de Extraescolares, bem como as dos Estágios. Os
seminários são divididos por áreas: Ciências da Linguagem, da Cul-
tura e da Natureza. O/a acadêmico/a apresenta para um público
diverso, diferentes povos/etnias que compõem aquela área da ci-
ência. Logo, acontece de apresentarem para seus próprios colegas
de Comitê, neste caso, o Comitê Xerente, o que gera insegurança,
na argumentação de Eneida, em razão de não terem um padrão es-
crito, da língua Akwẽ, bem definido, provocando assim, a “trava” a
que ela se refere. Nossa interlocutora adverte, ainda, que, por ser
recente, a escrita Akwẽ, são pouquíssimos os materiais escritos
existentes que poderiam servir de suporte para consulta, de refe-
rência para as práticas de escrita que ainda são incipientes. Dessa
maneira, o Extraescolar assim se manifesta: os dados gerados na
língua Akwẽ e, a descrição linguística, em língua portuguesa.

“EM PORTUGUÊS, A EXPLICAÇÃO É COMPLEXA, MAS É MAIS


RÁPIDO PRA ESCREVER, SEGUIR”

Aqui, então, parece se concentrar, talvez, o maior dos paradoxos


que permeiam a relação professora-aluna, neste processo de orien-
tação do Extraescolar, a saber: Eneida escreve oralmente. Se, nesse

210
Capítulo 7

processo de construção do seu Extraescolar, sou eu a escriba, como


analisar a fala de Eneida, segura e assertiva, afirmando que, ape-
sar de ser complexa a explicação em português, é mais rápido para
escrever, seguir? O verbo “seguir”, aqui, dá, inclusive, uma ideia de
que “sua escrita” flui. E o curioso é que Eneida tem razão. A escrita
dela(nossa) flui mesmo, em contraposição ao tempo que o seu Ex-
traescolar fica parado, não segui, quando está sozinha.
Sobre a complexidade, Eneida explica: “A explicação é comple-
xa em português por causa das palavras muito técnicas [...]. A gente
escreve o português, mas de acordo com a realidade do nosso dia a
dia. Não temos esse entendimento das palavras científicas”. Outro
enunciado subjaz a esse de Eneida: “é muito técnica a explicação
que a professora escreve, a respeito dos dados que vou analisando”.
E, mesmo assim, ela considera mais rápido para escrever, seguir.
Só posso concluir que, paradoxalmente, a escrita de Eneida, no Ex-
traescolar, é oral. Estendendo a discussão para outro campo, seria
possível afirmar que a autoria do conteúdo é de Eneida e a autoria
da escrita – enquanto codificação do texto oral de Eneida – é da
professora? Pergunto isso, porque houve quem dissesse que, não
fosse a professora, o Extraescolar não teria ficado pronto. Eu res-
pondo: Eneida, sem mim, poderia ter buscado outras possibilidades
de registro. Eu, sem Eneida, jamais conseguiria escrever uma linha
sequer, daquele Extraescolar. De nada valeria o meu domínio dessa
tecnologia, que é a escrita. Portanto, é inquestionável a plenitude
da autoria de Eneida, neste trabalho.

211
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

“TEM MOMENTOS QUE A GENTE TEM QUE SE COMPORTAR


COMO TAL”

Avançamos, historicamente, ao separar os estudos de alfabetização


dos estudos de letramento que, por sua vez, com Tfouni (2001), ga-
nhou uma nova abordagem, ao concebê-lo como um continuum, ou
seja, não há que se ter ruptura no processo de aquisição da escri-
ta, pelo contrário, oralidade e escrita devem estar em um processo
ininterrupto para a aquisição e desenvolvimento de suas habilida-
des, sendo a oralidade, a experiência, base que sustenta e, coloca
em movimento, a escrita do sujeito.
Mas parece não conseguirmos sair do velho pensamento da
grande divisa, como já nos alertava Tfouni, nas décadas de 1990
e, também, 2000, “nos estudos sobre letramento, ainda se veri-
fica que em muitos casos são apenas produções escritas que são
examinadas, o que significa uma retomada disfarçada da postula-
ção dicotômica da teoria da grande divisa” (TFOUNI, 2001, p. 80).
Num desses encontros, perguntei como Eneida queria a estrutura
do Extraescolar, uma vez que ela já havia decidido que a forma de
registro seria a escrita8. A pergunta era: dentro dos padrões acadê-
micos preconizados, respeitando as normas reguladoras de estru-
turação e padronização; ou se gostaria de fazer diferente, haja vista
que incentivamos que o trabalho tenha a identidade do/a aluno/a,
em uma estrutura/formato intercultural indígena que faça sentido
para ele/a e para a sua comunidade.
Em uma postura crítica e política, Eneida responde, sem pesta-
nejar, à minha pergunta: “Tem momentos que a gente tem que se com-
portar como tal”. César e Cavalcanti (2007) são certeiras ao afirmar:

8  No Curso, os/as estudantes decidem sobre a forma de registro que melhor atende
à pesquisa deles/as e, também, à sua comunidade. Não é obrigatório que seja escrito,
podendo ser no formato audiovisual, por exemplo.

212
Capítulo 7

“é nesse sentido também que a língua portuguesa, nas suas formas


prestigiadas, aparece como um ideal de língua a dominar, diante da
crença de que seja possível estabelecer o contato mais simétrico
com o outro que se coloca nesses espaços de poder da cultura he-
gemônica” (CÉSAR; CAVALCANTI, 2007, p. 58). Obviamente, assim
como também defende as autoras desse texto, isso se estende para
as outras formas de controle que não só a língua portuguesa como
sistema, mas o gênero textual “TCC” que é o que estava em questão,
se seguiria às normas acadêmicas e de ABNT.
Quando Eneida diz que tem momentos que é preciso se com-
portar como tal, o que ela reivindica é sim, o contato mais simétrico
com essa cultura acadêmica que, historicamente, insiste em desle-
gitimar as diversidades minorizadas e subalternizadas. No enten-
der de Eneida, comportar como tal é usar da ferramenta do inimigo
contra ele mesmo, fazendo a academia “engolir” a sua descrição lin-
guística Akwẽ, dentro do formato de texto do “branco”.
E, então, me pergunto: como será que, os/as inúmeros/as ou-
tros/as alunos/as que formamos e outros/as que ainda hão de se
formar, estão saindo do Curso? Importante nos perguntarmos sobre
a concepção de letramento dos/as professores e professoras que
estamos formando. São perguntas que devem se fazer constantes,
entre nós, se estamos formando professores/as a reproduzir a vi-
são grafocêntrica com seus/suas alunos/as ou se estão despertan-
do-os/as para um letramento amplo e crítico, como este de Eneida.
Não se trata, aqui, de negar o valor e o direito de desenvolverem
e ou aprimorarem as práticas letradas de leitura e de escrita, até
porque os/as próprios/as acadêmicos/as indígenas deixam claro
que querem ter o domínio dessas práticas. Apenas busco deixar evi-
dente a minha concordância com Souza (2001, p. 172) ao sustentar
que “a mudança do habitus grafocêntrico se faz necessária numa
tentativa de entender as práticas culturais de culturas indígenas no

213
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Brasil; práticas essas, heterogêneas e sinestésicas em suas intera-


ções com a escrita”.

PALAVRAS FINAIS: O DEVIR

Eneida concluiu, brilhantemente, o Curso. É licenciada em Ciências da


Linguagem e foi aprovada pelo Programa de Pós-graduação em Letras
e Linguística, da Faculdade de Letras da UFG, para o curso de Mestra-
do (ingresso em 2020). O processo de escrita do Projeto, em portu-
guês, obviamente, foi diferente. Eneida escreveu tudo, no costumeiro
bloco de notas, no celular, e enviou-me pelo whatsApp. Aquilo que eu
acreditava ser necessário explicar melhor, eu ia perguntando a ela... À
medida que ia respondendo, eu incorporava no texto, apenas retextu-
alizando algumas partes e, por fim, a revisão final.
Antes mesmo de as aulas começarem, Eneida já registra sua
preocupação e decisão para continuar resistindo: “Vai entrar em
choque, conhecimento do Akwẽ com o ocidental. Se resistimos até ago-
ra, vamos resistir sempre”. Eneida completa: “vou ter de vir armada
para fazer o Mestrado, criar uma armadura”. Para Foucault, o poder
circula e é exercido em diferentes direções, não sendo praticado
somente de cima para baixo, “onde há poder, ele se exerce. Nin-
guém é, propriamente falando, seu titular” (2007, p.75). Nesse sen-
tido, esperamos que, assim como a “manga mais além de madura”,
de Paulo Freire, o espaço acadêmico possa também se “amolegar”,
visto que “essa perspectiva hegemônica carece ser problematizada
se desejarmos romper com paradigmas que corroboram formas es-
treitas, bipolarizadas e monolíticas de enxergar a sociedade e sua
interface com a linguagem, com a educação e com o poder” (RO-
CHA; MACIEL, 2015, p. 15).

214
Capítulo 7

Enfim, que as práticas de letramento acadêmico, de Eneida, ao


longo do mestrado, possam ser como o “letramento na mata: como
a gente se interage, torna uma coisa só, nós e a natureza. À noite, com
a lua, a gente fica junto, se envolve, a ligação é espiritual”. Comple-
mentar a essa ideia, está a referência que Ailton Krenak (2019, p. 52)
faz ao sonho, segundo este pensador, “podemos encontrar quem
não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos
quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração”. Portanto, que
haja interação, que haja o respeito pela cosmovisão e cosmologia
indígena que tem

a instituição do sonho não como uma experiência onírica, mas


como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à
tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de
aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação
desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as ou-
tras pessoas (KRENAK, 2019, p. 52-53).

O sonho, por conseguinte, é, para os/as indígenas, uma agên-


cia de letramento. Porém, tomando a perspectiva pós-humanista,
qualquer tentativa de se definir agência parece recair em um re-
ducionismo e ou empobrecimento da potencialidade e dimensões
que o sentido e a materialidade deste termo podem tomar. Por essa
razão, trago um exemplo discutido por Ribas (2019), que é bastante
significativo do que pode ser ou vir a ser agência – novas tecnolo-
gias e elementos da “natureza” são tipos de agência citados pelo au-
tor –, especialmente, por referir-se também ao universo indígena:

letramentos escolares, enquanto práticas materiais-discursivas,


se efetivam em espaços urbanizados com acesso a novas tecnolo-
gias, mas com ausência de elementos da “natureza” em contraste
com espaços rurais, com pouco ou sem acesso a novas tecnolo-
gias, mas com maior possibilidade de contato com agências di-
tas “naturais”, ou, ainda, em espaços de comunidades indígenas

215
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

próximas a centros urbanos, em que os sujeitos transitam entre


os dois emaranhados discursivo-materiais (RIBAS, 2019, p. 631).

Para finalizar, destaco a importância de se deslocar, desestabi-


lizar o conceito “letramento” (consequentemente, nossas posturas
docentes) que, insistentemente, tem sido colocado de forma dico-
tômica, isto é, em contraposição a oralidade. Para tanto, é preciso
ser e estar sensível às diferentes epistemologias e formas de produ-
ção de conhecimentos. Quanto a isso, há que se ser justa: são mui-
tas as práticas docentes, na referida Faculdade, avançadas e nessa
direção, para citar apenas uma delas, nada melhor que as palavras
do pretenso orientador de Eneida Brupahi Xerente, indicado por
ela mesma:

Busco apontar alternativas viáveis para a descolonização destas prá-


ticas, como a abertura da academia para novas possibilidades epis-
temológicas e, consequentemente, para novas formas de produção
e expressão de conhecimentos, especialmente em contextos que se
propõem interculturais (NASCIMENTO, 2014, p. 270).

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216
Capítulo 7

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EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

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TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1995. (Coleção


questões da nossa época; v. 47).

218
Capítulo 7

ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 7

Para a indígena Eneida Brupahi Xerente:

A) “letramento é aquele que me ensina alguma coisa que não é neces-


sariamente só do escrever em um papel, numa placa, na tela de uma
tecnologia, vendo através de imagens. Na minha concepção é tudo
que sempre ajudou meu povo a se comunicar, a nortear, ensinar”.

B) “Portanto, o ser humano pode ser letrado com o que está a sua
volta: o som ou até o silêncio do lugar. Perto do rio, ar puro e fresco,
o contato com a natureza onde há a renovação da esperança. Tem,
também, a comunicação do luar: quando um casal está longe, com a
única lua alumiando os dois, ao mesmo tempo, é quando acontece o
espírito do encontro” (BRUPAHI, SAWREPTE e BORGES, 2018, p. 71).

Com base nessas narrativas interculturais:

1. Em que medida os letramentos vivenciados por Eneida Brupahi


Xerente ressignifica o tradicional conceito de letramento?
2. Levando em conta a leitura de mundo e as experiências de le-
tramentos narradas por Eneida, o que significa ser uma pessoa
letrada dentro da cultura Xerente?

219
CAPÍTULO 8

Educação indígena e os
desafios na formação
linguística dos professores
– relato de experiências

ÁUREA CAVALCANTE SANTANA


UFMT

INTRODUÇÃO

Os comentários que apresentamos a seguir são resultados de re-


flexões advindas da convivência durante os cursos de formação
de professores no Projeto Hayô1 (Polos: Alto Xingu, Campinápolis
e Juína) e, também, durante as pesquisas e estudos linguísticos re-
alizados nas comunidades indígenas: Chiquitano (Vila Nova Barbe-
cho, Acorizal, e Fazendinha - município de Porto Esperidião, MT);

1  O Projeto Hayô – Magistério Intercultural foi um projeto de parceria da Secretaria


de Estado de Educação de Mato Grosso (SEDUC, MT) com Funai, Municípios e Funasa.
Teve início em 2005, com proposta de duração de cinco anos, acontecendo em 10 eta-
pas presenciais e intermediárias. O Projeto ofereceu um curso de formação em nível
médio a 264 professores indígenas de Mato Grosso e atendeu a professores das redes
estadual e municipal, atuantes no Ensino Fundamental.

221
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Wakalitesu (Três Jacus – município de Sapezal, MT); Manoki (Cai-


titu - município de Sapezal, MT). Nestes contextos de convivên-
cias, temos acompanhado processos de escolarização e formação
dos professores indígenas e observado que, apesar das realidades
distintas vivenciadas, todos têm em comum o desejo de conheci-
mento linguístico/sistêmico, fortalecimento, manutenção, resgate
e inserção das línguas étnicas na escola.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA


Com a promulgação da Constituição Federal em 1988, o Brasil passa
a reconhecer, oficialmente, em seu território, a presença de grupos
étnicos diversificados e, também, o direito dos povos indígenas às
terras que tradicionalmente ocupam para garantirem sua reprodu-
ção e perpetuação física e cultural. Em relação à educação esco-
lar Indígena, a partir da consagração desse direito de manutenção
das identidades diferenciadas, da preservação das línguas, culturas,
tradições, modos de ser e de pensar, importantes e significativas
mudanças têm ocorrido tanto na legislação quanto nas políticas de
educação voltadas para os povos indígenas.
Assim, a escola em meio indígena que, antes, serviu de instru-
mento de imposição de valores alheios e de negação de identidades
diferenciadas (por diferentes processos como a catequização e a in-
tegração forçada dos índios à comunhão nacional), em anos recen-
tes, ganhou um novo sentido para os povos indígenas, tornando-se
um meio de acesso a conhecimentos universais e de valorização,
sistematização de saberes e conhecimentos tradicionais.
Nas duas últimas décadas, vem sendo desenvolvidos em vá-
rias regiões do país, projetos educacionais específicos à realidade
sociocultural e histórica dos povos indígenas, pautados no novo
paradigma educacional de respeito à interculturalidade, ao mul-

222
Capítulo 8

tilinguismo e à etnicidade. Então, de instrumento de imposição


de valores alheios e de negação de identidades diferenciadas, a
educação escolar em terras indígenas passa a ser uma demanda
com um novo sentido para os povos indígenas; uma escola com
acesso a saberes universais, mas que sirva de ponto de referên-
cia para processos de valorização e resgate cultural (GRUPIONI,
2006; MAHER, 2006).
Nesta perspectiva, a Educação Escolar Indígena, na atualidade,
está voltada para a discussão de temáticas relevantes e atuais para
a consolidação do direito dos povos indígenas no Brasil a uma edu-
cação diferenciada e de qualidade, pautada pela interculturalidade
e pelas vivências inter e intralinguísticas. Temas como a formação
dos próprios índios como professores e autores dos seus materiais
didáticos, bem como a inserção das línguas indígenas na escola, seja
como língua materna, seja como segunda língua, são prementes de
debates e problematização nos cursos de formação e também junto
às instituições públicas de ensino.
Hoje, a demanda por escola está presente em quase todas as
comunidades indígenas que mantêm relacionamentos com seg-
mentos da sociedade brasileira. E essa demanda não é por qualquer
tipo de escola, mas por “uma escola inserida em um novo paradig-
ma emancipatório, construído sob princípios de um modelo de en-
riquecimento cultural e linguístico”, no qual os processos escolares
devem ser conduzidos pelos próprios índios (MAHER, 2006, p. 22).
Segundo Soares e Meirelles:

O Brasil conta com 2.817 escolas indígenas de Ensino Fundamen-


tal, em que estudam 175.098 alunos e nas quais lecionam 14.715
docentes. São instituições espalhadas pelas diferentes terras in-
dígenas existentes (veja o mapa na página seguinte) e que aten-
dem crianças, adolescentes e adultos pertencentes a 305 etnias,
com 274 línguas (SOARES; MEIRELLES, 2013, p. 01).

223
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Nesse contexto de números/quantidades e características


específicas consideráveis, surge uma demanda bastante complexa
por formação de professores indígenas para atuarem nas escolas
de suas comunidades. Buscando atender a essa necessidade, dife-
rentes programas de formação foram iniciados, pioneiramente, por
organizações da sociedade civil de apoio aos índios e assumidos,
hoje, por Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e por Ins-
tituições de Ensino Superior, apoiadas, principalmente, pelo MEC
– Ministério da Educação e Cultura.
Muitas dessas experiências de formação de professores indíge-
nas têm se destacado e são referências de atitudes afirmativas em
prol da educação intercultural, a exemplo das Licenciaturas Inter-
culturais oferecidas pelas IES (Instituições de Ensino Superior) em
diferentes regiões do Brasil como: UFAM – Amazonas; UFC - Ceará;
UFGD - Dourados; UFG - Goiás; UNEMAT – Mato Grosso; UFMG –
Minas Gerais; UNIR – Rondônia, dentre outras. Segundo informações
do MEC, são mais de 20 IES com formação específica para popula-
ções indígenas. Há, ainda, a Ação Saberes Indígenas na Escola, um
programa de formação de professores para o ensino básico, voltado
para o letramento e numeramento, promovido pelo MEC-SECADI.
Outra vertente sobre a qual se conta com uma boa experiência
acumulada e com resultados extremamente positivos é a da pro-
dução de materiais didáticos, elaborados em contexto de formação
dos professores indígenas para serem utilizados com seus alunos,
em sala de aula. Cartilhas, livros em diferentes áreas do conheci-
mento, coletâneas de mitos e de histórias, dicionários, mapas e
atlas, cartazes, jogos estão sendo produzidos a partir de processos
de pesquisa (na língua portuguesa e em línguas indígenas), basea-
dos em diferentes concepções pedagógicas.
Partindo dessas mudanças e experiências, talvez a ideia mais
forte que está sendo firmado ao longo desse período seja a de que a

224
Capítulo 8

escola pode ser apropriada pelos povos indígenas e que eles podem
dar a ela um novo significado e um novo sentido, transformando
essa instituição tipicamente ocidental em um instrumento a seu
favor. Se historicamente a escola foi utilizada para promover a inte-
gração dos índios à comunhão nacional, por meio do aprendizado
do idioma português e pelo progressivo abandono de suas línguas
nativas e práticas culturais, hoje esse aprendizado ocorre parale-
lamente a processos de sistematização, registro e valorização de
saberes e conhecimentos tradicionais.
É verdade que já se avançou muito, e que muitas são as ex-
periências em curso, tanto de formação de professores, quanto no
funcionamento das escolas em terras indígenas. Também é fato que
muitas são as dúvidas, as questões não resolvidas, os impasses para
que estes consensos se generalizem, gerando novas e produtivas
práticas e projetos escolares.

OS DESAFIOS NA FORMAÇÃO LINGUÍSTICA DOS PROFESSORES

A formação dos próprios índios como professores e autores dos


seus materiais didáticos, bem como o uso das línguas indígenas na
escola, são tarefas complexas e que, devido à heterogeneidade e di-
versidade de situações sociolinguísticas, culturais e históricas dos
grupos indígenas, constituem sérios desafios para os programas de
formação de professores. Para Grupione:

A formação de índios como professores e gestores das escolas lo-


calizadas em terras indígenas é, hoje, um dos principais desafios
e prioridades para a consolidação de uma Educação Escolar In-
dígena pautada pelos princípios da diferença, da especificidade,
do bilingüismo e da interculturalidade (GRUPIONE, 2006, p. 50).

225
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Considerando as experiências e as reflexões de educado-


res formadores como Grupione (2006), Franchetto (2004), Maher
(2006), Maia (2006), Montserrat (2006), Pimentel da Silva (2006,
2013) entre outros, parece haver um consenso de que não há um
único modelo a ser adotado e nem há uma maneira adequada de
formar professores indígenas. Franchetto (2004, p. 01) afirma que
“a formação de um professor indígena é muito mais sofisticada e
complexa do que a formação de professores que não são indígenas,
já que tal formação deve permitir que os conhecimentos culturais
possam se articular de uma maneira criativa aos conhecimentos es-
colares gerais”.
E Maher acrescenta:

[...] é importante atentar para o fato de que, enquanto cabe ao


professor não-índio formar seus alunos como cidadãos brasileiros
plenos, é responsabilidade do professor indígena não apenas pre-
parar as crianças, os jovens e os adultos, sob sua responsabilidade,
para conhecerem e exercitarem seus direitos e deveres no interior
da sociedade brasileira, mas também garantir que seus alunos con-
tinuem exercendo amplamente sua cidadania no interior da socie-
dade indígena ao qual pertencem (MAHER, 2006, p. 24).

Quanto ao uso da língua étnica na escola é outro ponto sobre o


qual muito se avançou em termos de reflexão e práticas nas salas de
aula nos últimos anos, em todo o Brasil. E, nesse sentido, também
parece haver um consenso entre os formadores/educadores sobre
a necessidade de uma formação linguística mais específica para os
professores. Corroborando com essa proposta, Marcus Maia afirma:

A experiência ao longo de vários anos em programas de educação


indígena tem me convencido não só da importância pedagógica,
mas também da urgência política de se proceder ao redimensio-
namento de conceitos fundamentais que restabeleçam um subs-
trato teórico adequado para se pensar, com clareza, questões

226
Capítulo 8

linguísticas, de modo a contribuir não só com a descrição e aná-


lise das línguas indígenas, mas também com a sua preservação e
revitalização (MAIA, 2006, p.70).

Olhando em particular para as questões relativas ao estudo ou


ao ensino das línguas étnicas – mediante um recorte que a faz com-
ponente curricular “língua materna” – deparamos com a necessi-
dade em refletir sobre algumas situações que não parecem muito
claras para os professores indígenas.
Uma delas é uma ideia generalizada de que ensino de língua
materna é ensino de língua indígena. Os povos indígenas vivem di-
ferentes situações sociolinguísticas; há povos que são monolíngues
em sua língua étnica, outros que convivem com duas ou mais lín-
guas em suas comunidades e, há ainda aqueles que têm o português
como sua língua materna. Portanto, rotular “língua materna”, como
sendo somente a língua étnica, neste contexto, é renegar a situa-
ção sociolinguística de muitas comunidades que já não têm a língua
indígena em situação de uso cotidiano (ALBÓ, 2005; PIMENTEL DA
SILVA, 2006).
Para Pimentel da Silva (2006, p. 385), é importante que esta
concepção sociológica da linguagem esteja bem entendida pelos
professores indígenas, pois vai “favorecer a construção de uma me-
todologia que permitirá, desde a alfabetização, trabalhar com pro-
jeto de pesquisa com seus alunos, para que eles possam constituir-
-se criticamente, percebendo a realidade em que estão inseridos,
mudando-a, caso isso seja importante”.
Outra situação é acreditar que, ao reivindicarem a educação
escolar, as comunidades indígenas, juntamente com os professo-
res irão saber implantar em seus espaços de educação formal, uma
política de educação escolar indígena, qualificada como “bilíngue,
intercultural, específica e diferenciada”. Segundo Montserrat (2006,
p. 138), “essa adjetivação provoca muitas dúvidas e desalento em

227
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

grande parte dos envolvidos, especialmente os índios, por não se


entender bem o que querem dizer, na prática, os adjetivos ‘bilín-
gue’, ‘intercultural’, ‘específico’ e, principalmente, ‘diferenciado’”.
Ferreira (2007, p. 04), também apontando para este “falso” entendi-
mento de que os professores indígenas “compreendem totalmente
estas questões conceituais”, declara que “existe uma concepção de
que professores nativos que falam a língua indígena possuem, au-
tomaticamente, mesmo que sem instrução, a capacidade de ler e
escrever em seu idioma, uma vez que já sabem ler e escrever em
português”. Segundo ele, um conhecimento consciente sobre as di-
ferenças fonológicas e gramaticais só é adquirido através de estudo
mais específico das estruturas linguísticas.
É inerente que os cursos de formação de professores devem
ter em seus programas curriculares mais espaço para a forma-
ção linguística. Segundo Franchetto (2004, p.1), a Linguística como
disciplina nos cursos de formação de professores é importante
“porque no momento em que eles começam realmente a ter ins-
trumentos de conhecimento, de análise das suas próprias línguas,
há um salto qualitativo, em termos de conscientização, do valor,
da beleza, da riqueza dessas línguas, e isso tem efeitos de grande
alcance, e políticos”.
Para Marcus Maia (2006), é importante que se desenvolva nos
programas de formação de professores indígenas, além do estudo
sincrônico das línguas, o conhecimento das classificações genéti-
cas e tipológicas, pois tais estudos são fundamentais para o ensino
e aprendizagem das línguas.
Pimentel da Silva vai além quando afirma que a formação lin-
guística:

[...] deve estar pautada nos paradigmas da diversidade e da in-


terculturalidade, fundamentos básicos da construção de meto-
dologias de ensino de línguas indígenas. Interculturalidade, en-

228
Capítulo 8

tendida aqui não apenas como um meio que reconhece o valor


intrínseco de cada cultura e defende o respeito recíproco entre
elas, mas que propõe também enfrentar os conflitos oriundos
desse relacionamento, como também as suas riquezas (PIMEN-
TEL DA SILVA, 2006, p. 383-384)

Nesta perspectiva, entendemos que a formação dos profes-


sores indígenas deve primar por uma formação linguística que
lhes dê um conhecimento tipológico e sistêmico de suas línguas
étnicas; que favoreça a construção de metodologias que lhes per-
mitam a elaboração de projetos políticos pedagógicos e o estabe-
lecimento de objetivos educacionais para suas escolas (SANTANA,
2017). A formação linguística deverá estar pautada na interconexão
de relações socioculturais vinculadas pela língua, desta maneira,
os professores indígenas poderão se sentir mais seguros ao esta-
belecer políticas educacionais e linguísticas para os seus espaços
formais de escolarização.
Para além da formação acadêmica, acredito que professores
formadores e pesquisadores devem propor ações para as línguas
que estudam, buscando aliar a pesquisa com atividades de forma-
ção voltadas para a comunidade com as quais estão desenvolvendo
pesquisas. Inserida neste desafio, relato, a seguir, experiências vi-
venciadas em comunidades indígenas onde pesquisas linguísticas
foram (e ainda são) desenvolvidas paralelamente à formação lin-
guística de professores e demais pessoas da comunidade.

VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS COM A FORMAÇÃO


DE PROFESSORES INDÍGENAS

Durante a minha convivência nos cursos de formação e em ativi-


dades de pesquisa de campo, em especial com os Chiquitano, os

229
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Xavante, os Wakalitesu e os Manoki, percebi que os professores in-


dígenas e as comunidades, de maneira geral, compartilham angús-
tias e insegurança com o chamado “ensino da língua na escola”. Têm
como interesses e expectativas mais comuns: conhecer e entender
melhor a estrutura de suas línguas étnicas, saber o que é e como
funciona a linguística, entender os mecanismos da língua falada e
escrita, a preocupação com a escrita e ortografia das línguas indí-
genas, necessidade de conteúdos para trabalhar na língua indígena,
dificuldades na alfabetização e a necessidade de aprender o por-
tuguês. Tais interesses são fundamentais, pois de nada adianta dar
uma formação/licenciatura acadêmica para o indígena, promover
sua língua, descrevê-la, dá-lhe uma escrita alfabética, se os profes-
sores não conseguem, de fato, implementar ações e atividades com
suas línguas étnicas/ancestrais na educação escolar.
O fato de os indígenas mencionarem que desejam: “avançar
o estudo da língua para melhorar o conhecimento”, “estudar o som
da língua”, “significado das palavras, saber sobre fonemas e letras”
demonstra a ansiedade com o compromisso da sala de aula e a in-
segurança com a prática do chamado “ensino bilíngue, intercultu-
ral e diferenciado” (SANTANA, 2010). Esta situação vivenciada dos
professores indígenas corrobora com as questões apontadas ante-
riormente sobre a necessidade de uma formação linguística mais
específica para as comunidades indígenas. Alguns programas de li-
cenciatura têm trilhado com sucesso esse caminho, outros progra-
mas ainda caminham mais lentamente, amarrados, principalmente
pela multiplicidade e diversidade linguística de sua clientela.
Considerando essas inerentes dificuldades de formação lin-
guística dos professores indígenas que já atuam em suas comuni-
dades, acreditamos que uma das maneiras de minimizar os entraves
e contribuir para sua formação é a proposição, por parte de pes-
quisadores, de ações para as línguas indígenas que estudam. Neste

230
Capítulo 8

contexto, temos tido avanços na integração das pesquisas linguís-


ticas desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Estudos de
Linguagem PPGEL – UFMT com a formação em linguística para as
comunidades onde as pesquisas de campo são realizadas2.
Com o intuito de contribuir para esta formação linguística para
os professores indígenas, nossos objetivos partem da proposição
em compartilhar os conhecimentos da língua que estamos inves-
tigando com as necessidades e anseios das comunidades, o quais,
geralmente, estão voltados para a manutenção, fortalecimento e
inserção da língua étnica na escola. Dentre as principais atividades
desenvolvidas em campo estão a realização de Seminários de For-
mação Linguística e as Oficinas Pedagógicas das quais fazem parte
professores, alunos e demais membros da comunidade.

OS SEMINÁRIOS DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS

Denominamos de Seminários de Estudos Linguísticos os momentos


da pesquisa de campo em que procuramos envolver a toda a comu-
nidade, principalmente professores e alunos, garantindo os espaços
de discussão, valorizando as experiências vividas e a transmissão
do saber entre os pesquisadores e os envolvidos. Nestes momentos,
as discussões são voltadas para abordagens gerais sobre estrutu-
ras, sistemas e tipologias linguísticas, socialização das informações

2  Atualmente eu, Áurea C. Santana, coordeno o Projeto “Estudos de Línguas Nam-


bikwara: múltiplas convivências na aldeia Três Jacus – Sapezal MT” em atividades de
pesquisa com os Wakalitesu – Aldeia Três Jacus (desde 2016) e com os Manoki – Al-
deia Caititu (2019). Fazem parte deste projeto, três mestrandos e um doutorando do
PPGEL-UFMT e dois graduandos de Projeto VIC (Voluntário de Iniciação Científica),
ambos participantes do GEDDELI (Grupo de Estudos, Descrição e Documentação em
Línguas Indígenas.

231
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

e dados sobre as línguas que estão sendo pesquisadas, discussões


sobre ortografia e alfabetos, reflexões sobre manutenção, fortaleci-
mento e uso da língua étnica/materna/ancestral na escola, dentre
outras questões de interesse da comunidade.
Um dos pontos positivos desses Seminários, realizados nas co-
munidades indígenas, se refere à participação de lideranças, pais,
professores e alunos. Todos da comunidade são convidados a par-
ticipar das atividades propostas. Assim, quanto mais participação
dos envolvidos, mais interessantes e ricas têm sido as discussões.
Ao se propor ações para valorização de línguas minorizadas, é
importante subsidiar e fomentar a relação dialógica entre a história
da língua e os novos conhecimentos sobre ela. A vitalidade de uma
língua depende, sobretudo, do envolvimento e da vontade de seus
falantes. Por isso, o envolvimento das comunidades como um todo
foram e são tão essenciais nos processos de fortalecimento e ma-
nutenção das línguas étnicas/ancestrais.

AS OFICINAS PEDAGÓGICAS

As oficinas pedagógicas consistem em propostas de atividades prá-


ticas, voltadas para a definição de alfabetos, produção de glossá-
rios, jogos e materiais didáticos para trabalhar com o ensino de
língua. Estas atividades sempre são acompanhadas com muito
interesse e entusiasmos pelos professores e demais pessoas da
comunidade, dada a carência de material didático para o ensino
das línguas. Por serem práticos e lúdicos, os jogos didáticos fa-
zem sucesso com todos, alunos, pais e professores. Tais atividades
também tem permitido o uso e, até mesmo, a retomada de mate-
riais didáticos disponíveis nas comunidades e que os professores
não sabiam como utilizá-los.

232
Capítulo 8

No primeiro semestre de 2019, inserimos na programação do


III Seminário de Estudos Linguísticos, realizado nas aldeias Três Ja-
cus e Caititu – Terra Indígena Tirecatinga, a organização de um Li-
vro de Leitura como parte das atividades da Ação Saberes Indígenas
na Escola – Rede UFMT. Foi uma atividade bastante produtiva, pois
professores e alunos trabalharam juntos, fazendo e organizando as
palavras em um glossário semântico para ser usados na sequência
das histórias dos Livros: Alfabetizando com as Histórias dos An-
cestrais Nambikwara (VALENTIM, KAZAIZOKAIRO, SOUZA, 2019) e
Alfabetizando com as Histórias dos Ancestrais Manoki/Irantxe (VA-
LENTIM, KAZAIZOKAIRO, SOUZA, 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com as discussões acompanhadas de reflexões linguísticas e os de-


bates sustentados pelas situações na própria comunidade, os indí-
genas começam a compreender as situações de conflito e a forta-
lecer seu lugar de pertencimento. Começam a entender, também,
como as pesquisas linguísticas podem contribuir para o conheci-
mento da língua.
Para os Chiquitano, Wakalitesu e Manoki, a forma escrita
da língua tem sido uma maneira imediata de pôr as pessoas em
contato com a língua materna ancestral, reforçando as políticas
de resistência e de existência. No entanto, sabe-se que a vitali-
dade das línguas não pode ser programada tecnicamente, já que
elas são produtos da história e da prática dos falantes, podendo
evoluir e/ou retroceder sob pressão ou fatos históricos e sociais
(CALVET, 2007). Sabe-se que manutenção e vitalidade de uma
língua dependem, sobretudo, do envolvimento e da vontade de
seus falantes.

233
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

As experiências aqui relatadas demonstram que as oficinas e os


seminários de estudos linguísticos realizados nas comunidades in-
dígenas, durante as pesquisas de campo, constituíram em espaços
positivos de formação de professores e pesquisadores. Por isso, fi-
nalizo os comentários e reflexões dos temas aqui tratados afirman-
do que a formação linguística para os professores indígenas pode se
estender para além da formação nos cursos de licenciatura e deve
envolver todos da comunidade; professores, pais e alunos.

REFERÊNCIAS

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2007.

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234
Capítulo 8

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(ORG). Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada,
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MAIA, M. A revitalização de línguas indígenas e seu desafio para a educação inter-


cultural bilíngue. In: Revista Tellus. Campo Grande, MS, Ano 6, nº. 11, p. 61-76, out.
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do Brasil hoje: o espaço e o futuro das línguas indígenas. In: Formação de Professores
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VALENTIM, Mª Margarete Noronha, KAZAIZOKAIRO, Miriam e SOUZA, Hellen


Cristina de (ORGs). Alfabetizando com as Histórias dos Ancestrais Manoki / Irantxe.
Coleção Saberes Indígenas na Escola – vol 3. Cuiabá-MT: EdUFMT, 2019. ISBN: 978-
85-327-0938-7.

VALENTIM, Mª Margarete Noronha, KAZAIZOKAIRO, Miriam e SOUZA, Hellen


Cristina de (ORGs). Alfabetizando com as Histórias dos Ancestrais Nambikwara.
Coleção Saberes Indígenas na Escola – vol 4. Cuiabá-MT: EdUFMT, 2019. ISBN: 978-
85-327-0939-4.

ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 8

1. Tomando como referência o pensamento apresentado pela au-


tora, elabore uma breve síntese dos principais desafios do pro-
cesso de formação linguística para os professores indígenas.
2. Com base nas diferentes questões abordados no texto, descre-
va as principais características da Educação Escolar Indígena.

236
CAPÍTULO 9

Letramentos: a escrita no cárcere


MARIA APARECIDA DE SOUSA
SEDF

Se é sabido que a palavra empenhada é muito forte num presídio,


é bom saber que a palavra escrita também o é. Cartas, diários, po-
emas... Embora “aqui fora” raramente nos interessemos por essas
manifestações, elas representam, se não o único, o principal meio
de reflexão e expressão do mundo afetivo e espiritual de milhares
de brasileiros postos para mofar nas nossas cadeias.

(BONASSI apud MENDES, 2009, p. 3)

Neste capítulo, analiso alguns conceitos-chave dos Novos Estudos


do Letramento, em busca de compreender as funções que a es-
crita produzida por mulheres privadas de liberdade desempenha
na PFDF. Utilizo como aporte teórico as contribuições de Street
(1993, 2003a, 2003b, 2014), Barton (1994, 2010), Barton e Hamil-
ton (1998); Magalhães (2004, 2008); Rios (2009). Divido o capítulo
em três seções: Notas sobre os Novos Estudos do letramento (NEL);
Práticas e eventos de letramento; Letramentos do mundo da vida e
de sistema. Nessas seções, introduzo análise acerca das funções
que os letramentos desempenham na Penitenciária Feminina do
Distrito Federal.

237
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

NOTAS SOBRE OS NOVOS ESTUDOS DO LETRAMENTO

Ao longo do tempo, a escrita tem se constituído como objeto de


interesse de diferentes áreas do conhecimento, como a história
da cultura, a educação, a literatura, a antropologia, cada uma das
quais, com seus conceitos e métodos próprios, tem procurado ana-
lisar, entre outros aspectos, os usos, as funções e as consequên-
cias da escrita para indivíduos e grupos sociais (STREET, 1984; 1993;
SOUZA, 2009; RIOS, 2009). Mais recentemente, com a compreen-
são do papel da linguagem na reprodução e na transformação de
processos e estruturas sociais, bem como com o desenvolvimento
de novas tecnologias, a escrita tem se tornado objeto de investiga-
ções que buscam compreendê-la como prática social atravessada
por relações de poder.
O uso social da escrita reflete e refrata relações de poder
presentes em uma dada sociedade, historicamente situada. Desse
modo, alguns indivíduos e instituições são autorizados a participar
de eventos que envolvem usos prestigiados a escrita e outros não o
são – os Novos Estudos do Letramento dedicam-se a compreender
esses usos e funções.
A expressão Novos Estudos do Letramento (NEL) foi cunhada
por Gee em 1991 (STREET, 2003a) para designar um conjunto de
estudos sobre práticas que envolvem a escrita. Esses pesqui-
sadores questionam o letramento como um conjunto de habi-
lidades localizadas na mente das pessoas, propondo a mudança
do enfoque cognitivo para o enfoque social; com isso, buscam
reforçar a dimensão política do letramento e sua vinculação a
diferentes ideologias e valores sociais e morais (GEE, 1990, cita-
do por RIOS, 2010b).
No bojo dessa mudança paradigmática, que ficou conhecida
como virada social, o letramento passa a ser concebido como práti-

238
Capítulo 9

ca social situada no tempo, no espaço e perpassada por relações de


poder. O que interessa, nesta nova perspectiva, são os letramentos
presentes em uma dada comunidade (STREET, 2003a). Para os/as
autores/as dos NEL, a compreensão das práticas que envolvem a
leitura e escrita deve considerar os eixos de classe, gênero e etnia,
pois grupos sociais diferentes participam de modo diferente das
práticas de letramento.
As práticas de letramento podem ser compreendidas como
um tipo específico de prática social; sendo esta constituída por:
mundo material, relações sociais, ação e interação e pessoas, com
suas crenças, seus valores e desejos (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH,
1999, p. 21). Para Barton (1994, p. 3), a compreensão da prática social
da escrita envolve três áreas - a social, a psicológica e a histórica – o
que faz do letramento uma atividade social e um sistema simbólico.
Como atividade social, ele está situado no espaço e no tempo e se
concretiza por meio de eventos de letramento dos quais as pessoas
participam, orientadas pelas práticas sociais de letramento. Como
sistema simbólico, por sua vez, é um meio de representação do
mundo para nós mesmos e para os outros, articulando-se com ou-
tros sistemas de comunicação. Existem, portanto, inúmeros tipos
de letramento, motivo por que o termo é mais bem compreendido
no plural, como letramentos.
A abordagem situada do letramento começou a ser desenvolvi-
da por Street em sua pesquisa etnográfica em comunidades rurais
do Irã no final da década de 1970 (STREET, 2014). Antes dos estudos
de natureza antropológica que esse autor empreendeu, a leitura e a
escrita eram objeto de investigação com seu enfoque nos aspectos
cognitivos e instrucionais do letramento. É a partir dos Novos Estu-
dos do Letramento que se passou a dar ênfase ao papel das práticas
sociais na compreensão da escrita, vinculando-a à produção e à re-
produção de relações de poder.

239
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

As pesquisas empreendidas pelos NEL (STREET, 1984, 1993;


BARTON; HAMILTON, 1998; RIOS, 2009) discutem a supervalori-
zação do letramento escolar como parte da construção ideológi-
ca sobre benefícios individuais e sociais alcançados pelo acesso à
leitura e à escrita. Enquanto os/as defensores/as da supremacia
do letramento escolar, entre os/as quais, membros de equipes de
governo, cientistas sociais, professores/as, jornalistas, reproduzem
o discurso da universalidade do letramento, os/as que se dedicam
a compreender os letramentos não escolares consideram a diversi-
dade dos usos situados da escrita como parte das relações de poder
presentes em uma dada cultura.
Na perspectiva dos NEL, os letramentos variam de acordo com os
propósitos e os indivíduos a quem servem, assim, é a cultura de uma
época que vai torná-los disponíveis, definindo quem escreve, o que
escreve; quem lê e o que lê. Por tudo isso, pode-se afirmar que os le-
tramentos existem dentro de um contexto, constituem práticas sociais
dinâmicas e é possível conhecê-los examinando valores, ideologias e
papéis sociais assumidos pelas pessoas nas práticas de leitura e escrita.
O desenvolvimento do campo de estudos que considera o le-
tramento como prática social deve-se, sobretudo, ao emprego de
metodologia etnográfica. A abordagem busca compreender os sig-
nificados que emanam dos participantes, presentes em uma dada
situação, dando atenção às inter-relações dos diferentes elementos
que constituem a realidade. Além disso, a etnografia favorece a aná-
lise da relação entre discurso e outros elementos da prática social
(RIOS, 2006), partindo de situações concretas, não idealizadas e
nem previstas a priori. Dentre outras características, a abordagem
etnográfica se distingue pela: a) adoção do diálogo como gênero
central; b) compreensão do estranhamento como princípio de in-
terpretação; c) contextualização dos dados como base para histori-
cização da pesquisa (RIOS, 2006).

240
Capítulo 9

Os estudos no campo do letramento ganham novos contornos


em razão dos vínculos estabelecidos com outras abordagens teó-
ricas, como a Análise de Discurso Crítica (ADC). Da interface entre
os NEL e a ADC, podemos citar a compreensão de que o letramento
“pode ser traduzido para o interior do referencial de prática social
de Chouliaraki e Fairclough, em termos da atividade particular (es-
crita, leitura e fala ao redor de/sobre texto escrito)” (RIOS, 2010a,
p. 171). O autor também propõe o conceito de discursos-de-letra-
mento, tomando a investigação da escrita como meio e como fim,

como fim, busca-se conhecer a natureza sociocultural da escri-


ta por meio da pesquisa sobre seus usos situados e sobre suas
representações discursivas. Como meio, busca-se conhecer os
processos pelos quais a escrita contribui para a constituição da
prática social, bem como com a construção discursiva de aspec-
tos e objetos da realidade, sistemas de conhecimento e crença,
valores e ideologias (RIOS, 2010a, p. 155).

Nesta pesquisa, abordo as duas perspectivas. Em relação à


natureza sociocultural da escrita, analiso letramentos situados na
PFDF, nos quais as mulheres privadas de liberdade escrevem e são
interlocutoras de textos autogerados. Em relação à escrita como
modo de construir aspectos da realidade, analiso o modo como as
identificações de si e do outro são construídas discursivamente.

EVENTOS E PRÁTICAS DE LETRAMENTO

Dois conceitos centrais desenvolvidos por pesquisadores/as dos


NEL são o de prática e de evento de letramento. Embora sejam
apresentados separadamente, eles se referem a processos inter-
dependentes. Para Barton (1994, p. 3), “os eventos de letramento

241
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

são as atividades particulares nas quais o letramento desempenha


um papel; podem ser atividades regulares repetidas. As práticas de
letramento são as formas culturais gerais de utilização do letra-
mento, com as quais as pessoas se conduzem em um evento de
letramento”. Os eventos são concretos e observáveis, respondem
a necessidades socialmente construídas e apresentam padrões re-
petidos no processo de interação, são exemplos de evento a ela-
boração de um requerimento, a leitura de um poema, a produção
de uma ata de reunião; as práticas, por sua vez, são padrões co-
muns em uma dada cultura.
Eventos de letramento envolvem a escrita, ainda que a pre-
sença desta no processo de interação ocorra apenas como tema
da interação oral. É nos eventos de letramento que se percebe a
abrangência dos usos e significados sociais do letramento na nossa
cultura, quer em interações face a face, quer em interações distan-
ciadas no tempo e no espaço. Os eventos são, portanto, um modelo
analítico que permite ao pesquisador e à pesquisadora descreverem
quando, onde e como as pessoas interagem por meio da escrita.
Para Barton e Hamilton (1998), representantes da chamada se-
gunda geração dos NEL, grande parte das interações sociais são
práticas de letramento, cuja compreensão seria acessível por meio
do estudo de eventos particulares. O conceito de evento permitiria,
nessa perspectiva, observar uma interação mediada pela escrita en-
quanto ela acontece. Essa noção, contudo, precisa ser relativizada,
já que a contemporaneidade vem reorganizando o sentido de inte-
ração face a face como experiência espaço-temporal de simultanei-
dade. É nesse sentido que a perspectiva situada deve ser analisada
tendo em conta o atravessamento de outros espaços-tempos, mas
mantendo o/a pesquisador/a perto do mundo da vida. Partindo,
portanto, da necessidade de se considerar o local em uma rede glo-
bal (BARTON; HAMILTON, 1998), a pesquisa acerca dos letramentos

242
Capítulo 9

em contextos sociais, culturais e políticos específicos deve também


considerar aspectos remotos do uso da leitura e da escrita.
Conceber o local como translocal, isto é, considerar que a di-
mensão local e a dimensão social mais ampla estão dialeticamente
integradas, não significa abrir mão da análise situada, social e cul-
turalmente sensível às práticas comunitárias; diferentemente, aco-
lher o conceito de translocal – e mesmo o de transnacional – como
constitutivos dos eventos de letramento é um modo de reiterar a
natureza interdiscursiva do próprio letramento. Como argumentam
Brandt e Clinton “se a leitura e a escrita são meios pelos quais as
pessoas atingem outros contextos e são atingidas por estes, então,
está acontecendo mais localmente do que a prática local”, por isso é
preciso superar a noção de aqui e agora (BRANDT; CLINTON, 2002,
p. 338, apud BAYNHAM; PRINSLOO, 2009, p. 4).1
Outro aspecto a ser problematizado é a noção de evento de
letramento como “conjunto estruturado de atividades distintas,
que podem ser facilmente identificáveis, tendo uma estrutura es-
quemática” (BAYNHAM; PRINSLOO, 2009, p. 11). Há que se ter em
conta, neste caso, que a noção de natureza prototípica do evento
pode levar o/a pesquisador/a a considerar relativamente fácil e se-
gura a tarefa de identificar eventos de letramento. Por outro lado,
perseguir aspectos prototípicos de um evento pode deixar escapar
práticas incidentais de escrita, que têm sua importância contextual,
comprometendo a riqueza da pesquisa.
Os eventos de letramento são afetados pelas práticas de letra-
mento, que lhes conferem sentido e fazem com que eles funcionem.
As práticas de letramento, por sua vez, correspondem ao conjunto

1  Tradução nossa. Texto original: if ‘reading and writing are means by which people
reach – and are reached by – other contexts, then more is going on locally than just
local practice’.

243
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

de eventos e são abstrações destes. Para Barton e Hamilton (1998),


as práticas não podem ser tomadas como unidades de comporta-
mento passíveis de observação, uma vez que elas

implicam uma série de valores, atitudes, sentimentos e relações


sociais. Isso inclui certo grau de consciência que as pessoas têm
em relação ao letramento e os discursos de letramento, bem
como a maneira como as pessoas falam dele e lhe conferem sen-
tido [...] as práticas são, ao mesmo tempo, os processos sociais
que conectam as pessoas entre si e que incluem conhecimentos
compartilhados representados em ideologias e identidades so-
ciais (BARTON; HAMILTON, 1998, p. 112).

Práticas de letramento são práticas sociais em que o uso da


escrita é transferível de uma situação para outra semelhante; es-
tão associadas a culturas particulares e reproduzem as relações
de poder que nelas estão presentes, mas também as contestam
e ressignificam. Como parte integrante da cultura, portanto, elas
se associam às instituições, às tecnologias e constroem identi-
dades individuais e coletivas. Vamos tomar um exemplo de um
evento de letramento.2

[3.1] Eai Ana veai com a Divina se ela vendeu meus bagui se ven-
deu ve ai com ela pra ela manda 250 R$ pra mim compra uma
jega pra minha mãe não fica durmindo no chão e quando vcs for
compra roupas vcs traz azul E traz o balde Pede pro advogado
vim aqui pra nos mudar de bloco quero ir pro bloco 3 pra minha
mãe remi pq eu jatou na remição só que minha mãe ainda não ta e
la no bloco 3 é mais fácil remição. Bjss! Saudades. Manda as fotos
já estou no bloco 7 e traz os meninos quando vc vim. [...].3

2  Mantenho a escrita original de todos os textos produzidos pelas mulheres priva-


das de liberdade

3  A palavra jega faz referência à cama e a palavra azul, à pílula para ansiedade. Repro-
duzi os textos das mulheres em situação de cárcere como foram escritos.

244
Capítulo 9

Esse BO foi escrito por uma detenta da PFDF que cumpre


pena em regime fechado e seria encaminhado a uma detenta que
cumpre pena em regime semiaberto ou a uma pessoa presente
no dia da visita. O texto seria repassado a uma terceira pessoa,
a destinatária de fato. Neste evento de letramento, a escrita de-
sempenha a função de intermediar uma relação comercial entre
uma pessoa encarcerada e uma pessoa livre; nos termos das in-
ternas, entre alguém que está “puxando cadeia” e alguém que está
no “mundão”. Se tomarmos o BO como gênero situado, temos que
ele realiza trocas de conhecimento e de atividades – algumas delas
proibidas, o que faz do BO uma prova de ilícito a ser investigado.
Com a interceptação do texto, instauram-se outros eventos de le-
tramento, nos quais agentes institucionais promovem retextualiza-
ções sucessivas do texto original.
As detentas da Penitenciária Feminina do Distrito Federal, bem
como a população carcerária de outras unidades prisionais, convi-
vem em ambiente letrado, tendo contato com discursos, gêneros
e estilos constitutivos das ordens de discurso jurídica, comercial,
educacional, médica, religiosa e pessoal, como no exemplo 3.1. As
pessoas em privação de liberdade participam, regularmente, de
eventos de letramento institucionais como leitoras (ou ouvintes) de
textos que tipificam crimes, estabelecem penas, concedem indul-
tos, autorizam ou proíbem visita íntima, interferem sobre a guarda
dos filhos, concedem liberdade provisória ou permanente e assim
por diante.
No caso dos letramentos presentes na PFDF, quero destacar
a atuação das mulheres privadas de liberdade como escritoras, o
que se comprova tanto pela quantidade de textos a que tive acesso
durante o trabalho de campo como pelas respostas dos/as entre-
vistados/as sobre o tema. A seguir, apresento um conjunto de tex-
tos que exemplificam a diversidade de gêneros discursivos escritos

245
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

na prisão e as diferentes funções que o letramento autogerado de


mulheres privadas de liberdade assume.

Quadro 1 - Gêneros situados constitutivos de eventos de letramento no presídio

[3.2] [3.3] [3.4]


À Senhora Juíza da Vara Sr. D. Carla, venho nesse É dona Amelia, não é
de Execuções Penais, requerimento lhes pe- facil ser acordado todo
Leila Cury dir que tenha a gentileza dia pela policia para res-
Venho respeitosamente de dar uma olhadinha no ponder o nome completo
por meio desta carta re- meu processo [...]. Por [...] esse monte de mu-
querer Prisão Domiciliar gentileza, D. Carla, me lher iginorante que não
Humanitária com base faça esse favor pois não tem respectiva de vida,
nos seguintes requisitos sei direito quanto tempo vai embora e voltar no
[...]. e esse mandato [...]. Esti- dia seguinte, eu não te-
Encarecidamente, peço ve aqui em 2014. Também nho essa oportunidade
que avalie meu pedido com mandato de 171 e vcs de sair fora, quantas eu já
com compaixão. me assistiram muito bem. vi ir e vir? Muitas. Quan-
Desde já agradeço sua D. Carla não me deixou tas aqui queriam só uma
atenção. em nenhum momento chance enquanto é tem-
Deus a abençoe. sem resposta. Fiquei mui- po, porque com o passar
Atenciosamente, to satisfeita com o atendi- dos anos acaba a força
Leila Dias Aguiar4 mento da Senhora... peço de vontade de mudar,
que me ajudem, pois não acabam se contaminan-
tenho visitas. do com a maudade que
*Requerimento externo. aprendem mesmo sem
*Requerimento interno. querer [...].
*Carta externa.

4  Os nomes que uso neste artigo para identificar as mulheres em privação de liber-
dade são fictícios.

246
Capítulo 9

[3.5] [3.6] [3.7]

[...] ainda vamos ser mui- Eu devo: 10/10/2017


tas amigas lá fora. Essa é Emília: 25 Clara!
só uma faze ruim que in- Taís: 100 Nesta mesma data há
feliz mente tivemos que Luana: 15 muitos anos atrás, Deus
passar, mas por outro Tayene: 7 deu a vida a uma pessoa
lado foi bom te te conhe- que é (+) especial.
cido. [...] Olha amiga que Me devem: Você! Queria hoje nesta
Deus te acompanhe e que Tatiara: 250 data dizer para você que
te de sabedoria amanhã Tiago: 15 Deus te abençoe. Te tire
vai na fê que vai da tudu Ana: 85 desta Selva de Pedras e
certo Pé quente viu De- temos que tirar o melhor
sejo toda a felicidade du de tudo isto aki.
mundo e quando você es- Sei que este lugar não
tive lá fora fica de boa da ajuda
valor na liberdade!! viu e *Anotações de comércio Mas de coração
me espere . * Registro de comércio Feliz Aniversário!
[...] Não desista dos seus
sonhos [...]
Sua camarada
*Cartão de aniversário
Leila
*BO * Cartão de aniversário.
*BO.

Fonte: elaboração da autora.

As instâncias discursivas apresentadas são constitutivas de le-


tramentos autogerados presentes na prisão, variando em termos de
forma, função e uso (BAYNHAM e PRINSLOO, 2009). Na base dessa
asserção está o princípio, já consolidado na literatura, de que os le-
tramentos são múltiplos e articulam-se nos diferentes domínios de
que fazem parte. Isso não quer dizer que haja um único letramento
associado a cada cultura particular. Segundo Street (2014), podem
existir múltiplos letramentos dentro de uma mesma cultura, que

247
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

não é uma construção estática, um inventário de características,


mas um processo contestado. Ao destacar esse caráter heterogê-
neo, o autor questiona a relação direta entre cultura (no singular) e
letramento (no singular).

LETRAMENTOS DO MUNDO DA VIDA E LETRAMENTOS DE SISTEMA

As relações que os letramentos estabelecem com as instituições de


prestígio social estão na origem do poder que as caracterizam, de
modo que certos modelos são considerados mais importantes que
outros. Pesquisas produzidas no campo dos Novos Estudos do Le-
tramento (BAYNHAM, 1995; BARTON e HAMILTON, 1998; ROGERS,
2002 apud RIOS, 2013, p. 329) apresentam uma variedade de no-
menclaturas para identificar os letramentos dominantes e os letra-
mentos locais (ou vernaculares, informais, comunitários).
Para Barton e Papen (2010), os estudos antropológicos do le-
tramento interessam-se por todos os tipos de escrita presentes
nas práticas sociais e institucionais, sobretudo a escrita incipiente,
comum, pouco conhecida, ignorada, negligenciada, a chamada es-
crita vernacular. O termo vernacular é compreendido pelo autor no
sentido de comum (mundano, rotineiro) ou incidental (em relação
à valoração feita pelas instituições dominantes). Em função disso, o
letramento vernacular (ou modelo popular de letramento, segundo
Street) está associado à natureza da interação social.
As práticas vernaculares de letramento são autogeradas, isso
significa que as pessoas usam os textos com base em suas próprias
necessidades e interesses. Essas práticas são marcadas pela subje-
tividade, pela liberdade e pela autonomia, é nesse sentido que os
letramentos vernaculares são fonte de criatividade, invenção e ori-
ginalidade (BARTON, 2010).

248
Capítulo 9

Os conceitos de letramento vernacular e letramento dominan-


te, propostos por Barton e Hamilton (1998), foram ressignificados
por Rios (2013) à luz dos conceitos de mundo da vida e de sistemas
(HABERMAS, 1999). Considerando usos, valores e representações
acerca da leitura e escrita, aspectos já desenvolvidos pelos Novos
Estudos do Letramento, Rios propõe a relação entre letramento
vernacular e letramento do mundo da vida e entre letramento domi-
nante e letramento de sistemas. A proposta de Rios nasce da neces-
sidade de se considerar a co-ocorrência e/ou entrelaçamento de
letramentos dominantes e locais.
Na teoria habermasiana, o mundo da vida e os sistemas são
conceitos interdependentes; o primeiro está relacionado às expe-
riências cotidianas reguladas pelo consenso; e o segundo, aos pro-
cessos de racionalização, abstração e regulação pública. Nesse sen-
tido, os sistemas nascem do mundo da vida e passam a regulá-lo,
modificá-lo, colonizá-lo. O mundo da vida, por sua vez, interage
com o sistema, o que pode promover novas racionalidades, novos
sistemas, ainda que o próprio Habermas aponte para o desequi-
líbrio entre esses fluxos, com predomínio histórico dos sistemas
sobre o mundo da vida.
Rios (2013) considera que os conceitos habermasianos de ação
comunicativa (e seus processos de linguistificação/delinguistifica-
ção) e de desacoplamento de sistemas a partir do mundo da vida
são produtivos para compreender as práticas de letramento. O
processo de linguistificação/delinguistificação, que diz respeito à
presença da linguagem nas práticas sociais, pressupõe a existência
de gêneros discursivos constitutivos do mundo da vida. Por outro
lado, o desacoplamento de sistemas a partir do mundo da vida leva
à transformação dos gêneros discursivos do mundo da vida, “que
passam a se configurar como letramentos de sistema”, um exemplo
desse processo é a existência de letramentos públicos e institucio-

249
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

nalizados (RIOS, 2013, p. 332). Os letramentos de sistema são “letra-


mentos públicos institucionalmente controlados, compreendidos
como letramentos de sistema” (RIOS, 2013, 333).
Além de surgirem desse desacoplamento, os letramentos de
sistema também podem ser constituídos por meio do processo de
recontextualização, segundo o qual os sistemas se apropriam dos
gêneros discursivos do mundo da vida, tornando-os gêneros espe-
cializados. Isso não quer dizer, contudo, que a especialização seja
uma marca de poder dos letramentos de sistema, pois o poder não é
um atributo de um determinado letramento, nem dos gêneros que
o constituem, mas é próprio das práticas sociais em que estão mais
enraizados.
De forma sintética, os letramentos de sistema são conside-
rados letramentos dominantes ou discursos dominantes de letra-
mento, ao passo que os letramentos do mundo da vida são conside-
rados não dominantes. Ressalta-se que essa distinção é formulada
considerando como critério os eventos e as práticas sociais e não
os textos ou os gêneros discursivos em si mesmos.
Nesse sentido, podemos afirmar que as mulheres em situação
de cárcere estão envolvidas, prioritariamente, com os letramentos
do mundo da vida. Por outro lado, elas também eventos de letra-
mentos de sistema, uma vez usam a escrita com a finalidade de es-
tabelecer relações com gerentes de núcleos da penitenciária, juí-
zes, promotoria, entre outros.

LETRAMENTOS DE REEXISTÊNCIA

O conceito de letramentos de reexistência foi proposto por Ana


Lúcia Silva Souza (SOUZA, 2009) para caracterizar as práticas co-
tidianas de uso da linguagem que atuam para desestabilizar dis-

250
Capítulo 9

cursos nos quais apenas os usos da língua aprendidos e ensinados


na escola formal são valorizados. Para a autora, os letramentos de
reexistência são apontados como

uma reinvenção de práticas que os ativistas realizam, reportan-


do-se às matrizes e aos rastros de uma história ainda pouco con-
tada, nos quais os usos da linguagem comportam uma história
de disputa pela educação escolarizada ou não. Para os rappers,
a educação e a posse da palavra é marcada pelo esforço de re-
conhecimento de si, desafiando, de diferentes maneiras e em di-
ferentes formatos, a sujeição oficialmente imposta, ainda mate-
rializada no racismo, nos preconceitos e discriminações (SOUZA,
2009, p. 26).

A sujeição de que fala a autora está relacionada a certos eixos


de diferenciação e exclusão social, como raça/etnia e tipos de le-
tramento que as pessoas dominam, de modo que os letramentos de
reexistência desempenham funções voltadas à desestabilização do
poder como dominação e à construção de identificações subalter-
nizadas. Em sua tese, Souza (2009, p. 26) coloca em questão o pri-
vilégio da escola como agência letradora, destacando a importância
dos letramentos não dominantes em práticas sociais que produzem
identificações positivas.
Nos letramentos dominantes, que são produzidos e reprodu-
zidos pela educação formal, a leitura e a escrita estão voltadas ao
desenvolvimento prioritário de habilidades individuais. Parte-se
do princípio de que o domínio do letramento (autônomo) está na
base do progresso individual e social e por isso deve ser ensinado
e avaliado. Essa perspectiva tem sido contestada pelos/as pesqui-
sadores/as dos NEL, que colocam em questão sentidos ideológicos
que estão na base das representações hegemônicas do letramento.
Outras representações dominantes do letramento foram proble-
matizadas por Rios:

251
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

a) Conhecimento transmitido através do letramento, prevenindo


e solucionando problemas: letramento impresso que é produzido
para intervir nos modos culturais de fazer e pensar, e, portanto,
ligado a uma função racional e moral na sociedade; b) Vínculo
entre a educação cultural de elite e o letramento: concepções
dominantes do letramento que criam um vínculo artificial, isto
é, naturalizado, entre “letrado”, “escolarizado” e “instruído”; e c)
Modo escrito superior aos outros modos comunicativos: o privi-
legiamento da escrita em detrimento de outros modos comuni-
cativos (RIOS, 2003, p. 4).

Essas representações discursivas têm contribuído para que os


letramentos do mundo da vida sejam desvalorizados, acarretando
a desvalorização daqueles que os produzem, de suas identidades
pessoais e sociais e dos locais em que vivem. A despeito disso, dife-
rentes letramentos emergem de práticas sociais complexas, muitas
vezes ligadas a processos históricos de contestação e de reexistên-
cia. Esse é o caso da escrita de jovens ligados ao hip hop, de que
fala Souza, mas também da escrita de mulheres privadas de liberda-
de. Na busca pela apropriação “da palavra e de seus sentidos”, estão
em questão a luta pela afirmação de identidades sociais; no caso das
detentas da PFDF, de identidades que as individualizem no meio da
massa, restituindo subjetividades apagadas ou subsumidas nos pa-
péis que elas precisam desempenhar dentro da prisão. Sobre os letra-
mentos no cárcere, o ex-detento Jocenir afirma:

Eu procurava vencer o tempo. Na cadeia, o tempo anda em câ-


mera lenta. Fazia versos para os presos presentearem suas famí-
lias, também lia e respondia cartas. Com isto, ia pouco a pouco
ganhando a simpatia de todos, até dos mais perigosos. Por ler e
escrever com facilidade, o que é raro na cadeia, tomei contato
com muitas almas infelizes. Isso era bom, ganhava respeito, mas
virei espectador de muitas tragédias (JOCENIR, 2001).
Esse trecho de Diário de um detento indica a construção de uma
identidade socialmente valorizada, a de escritor, que Jocenir reivin-

252
Capítulo 9

dica para si em função da especialidade que tem ao manejar a língua


escrita. Este é um exemplo de que o “letramento é legitimado como
um campo de poder, associado com a variedade padrão do portu-
guês”, um dos achados da pesquisa sobre diferenças linguísticas e
produção de desigualdades, desenvolvida por Magalhães (2004, p.
111). A identidade que diferencia o autor, no entanto, é ressignificada
no contexto prisional quando ele se dispõe a ser o escriba dos com-
panheiros apenados; esse é um exemplo de que o letramento é uma
prática social e não um conjunto de habilidades pessoais.
Na PFDF, a identidade de escriba é muito valorizada – é tam-
bém remunerada – como afirma Débora Diniz. Em um dos textos
que constituem o resultado de pesquisa na PFDF, a autora afirma:
“escrever é muita vantagem, pensar com a lógica do poder, só para
as sabidas. Como poucas dominam a letra, há as escribas de cata-
taus, que vendem o texto por três reais. Algumas são preferidas de
uma ala, pois a arte redonda faz diferença” (DINIZ, 2015, p. 26).
Na prisão, os letramentos de resistência se multiplicam em
eventos e práticas discursivas nas quais diferentes identidades pes-
soais e sociais são forjadas. Os catataus, por exemplo, reúnem um
conjunto de textos que se aproximam do gênero requerimento e
que visam não só a solicitar um serviço como o de dentista ou psi-
quiatra, mas convencer o/a seu/sua interlocutor/a de que seu pe-
dido é importante, necessário e urgente, como de fato costumam
ser todas as solicitações em uma unidade prisional.

Catatau é papel escrito na cela, circulando pelo pátio, que atra-


vessa a segurança e alcança o jaleco branco. O colete preto das
celas recebe o bololô semanal, perde até a conta. Outro alguém
debulha prioridades, os critérios são de precisão ou de disciplina
[...]. Catatau é bilhete em forma de telegrama. História de vida e
pedido de socorro são narrados com economia de palavras (DI-
NIZ, 2015, p. 26).

253
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Nos diferentes letramentos produzidos na prisão, são produ-


zidos gêneros discursivos diversos. Neste artigo, no entanto, se-
lecionei o gênero situado BO para a análise textualmente orienta-
da; considerei três motivos para essa escolha. Em primeiro lugar,
porque as relações sociais que esses textos5 estabelecem são ge-
ralmente marcadas pela confiança mútua e pela espontaneidade,
aspectos comuns em eventos de letramento do mundo da vida, nos
quais atores sociais costumam se expressar de modo mais livre. Es-
sas relações ensejariam identidades e identificações mais comple-
xas e multifacetadas. Em segundo lugar, porque as condições de
produção dos textos/discursos instanciados nos BOs permitem
que as mulheres em situação de cárcere se posicionem sobre temas
relevantes para si, revelando, com isso, representações que se rela-
cionam com modos de identificação e de ação/relação. Em terceiro
lugar, porque a análise de textos que constituem uma prática social
que é, ela mesma, um ato de resistência, torna possível explorar
a agência das mulheres em situação de cárcere na construção de
suas identidades individuais e sociais.

EVENTOS E PRÁTICAS DE LETRAMENTO NO CONTEXTO PRISIONAL:


CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS DE ANITA WILSON

Anita Wilson (2000) investiga os letramentos em ambiente prisio-


nal. O resultado de sua pesquisa aponta para a ideia de que a leitura
e a escrita no cárcere não acontecem apenas em ambientes auto-

5  Todos os textos são multimodais (KRESS; van LEEUWEN, 2006), mesmo que sejam
compostos apenas por meio do sistema da escrita. Nos gêneros situados investigados
na prisão, a presença de desenhos como flores, arma, sol, estrela e diversas repro-
duções de emojis evidenciam o quanto as produtoras investiram na acentuação de
alguns sentidos. Pelas limitações desta pesquisa, esses aspectos semióticos não foram
explorados.

254
Capítulo 9

rizados e sob o comando de agentes externos como professores/


as. Diferentemente, seu trabalho etnográfico identifica muito mais
letramentos nas prisões do que as avaliações externas de leitura e
escrita são capazes de capturar com seus métodos e instrumentos.
Uma importante contribuição dessa pesquisa é a recontextu-
alização do conceito de terceiro espaço6, que passa a ser tomado
como metáfora para compreender o modo como as pessoas em si-
tuação de cárcere constroem a si mesmas, contestando identifica-
ções atribuídas pelo outro e criando um espaço híbrido, que nem
pode ser identificado como o espaço prisional nem como espaço
não prisional. Nessa fusão, que não corresponde à soma de duas
culturas diferentes, mas à criação de algo inédito e irreconhecível,
o/a detento/a vivencia sua experiência de autonomia. Nessa pers-
pectiva criativa, homens e mulheres privadas de liberdade podem
forjar-se como escritores/as e estudantes, ultrapassando o lugar
socialmente reservado a eles e elas, que é o de detento/a, mas tam-
bém de criminoso/a e de ser abjeto.
Pessoas privadas de liberdade têm, na prisão, um terceiro espa-
ço porque não podem acessar seus vários mundos sociais e também
não querem ser arrastadas para o aprisionamento. Nesse sentido,
o terceiro espaço passa a colonizar os espaços prisionais, trazendo
para essas instituições elementos que identificam as relações man-
tidas pelos/as detentos/as em ambiente prisional. O terceiro espa-

6  Wilson constroi suas reflexões sobre a escrita em um presídio tomando como


ponto de partida o conceito de terceiro espaço proposto por Bhabha. Em sua análise, o
autor concebe o terceiro espaço em termos de hibridização: resultado da articulação
entre culturas, que nunca estão completas ou plenas. O terceiro espaço identifica,
portanto, o confronto de dois ou mais sistemas culturais, produzindo não uma tercei-
ra cultura, mas algo inédito, deslizante, diferente, irreconhecível, capaz de deslocar
“as histórias que o constituem e gerar novas estruturas de autoridade, novas inicia-
tivas políticas, que são inadequadamente compreendidas através do saber recebido”
(BHABHA, 1996, p. 37).

255
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

ço ocupa a mente dessas pessoas com atividades não institucionais,


como escrita de bilhetes, poemas, músicas. Dessa forma, torna-se
um modo de sobreviver à prisão, nesse sentido, o espaço físico e
metafórico é transformado em domínios sociais não institucionais,
em espaços criativos que produzem um tempo criativo e ajudam a
resistir ao encarceramento.
A presença do terceiro espaço indica que, na prisão, os letra-
mentos são múltiplos e não podem ser investigados de modo se-
parado das circunstâncias sociais e dos discursos de que fazem
parte. É importante ressaltar que a leitura na prisão é uma expe-
riência pessoal particular e não relacionada a qualquer prestação
formal. As atividades autogeradas de leitura e de escrita trans-
formam os espaços físicos de uma cela e os constrangimentos
metafóricos de tempo de prisão em espaço/tempo de autonomia
e criatividade. Nesse sentido, o institucional torna-se criativo e
a monotonia e o tédio da vida na prisão são transformados pelas
práticas autogeradas.
Na Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF), a escrita
também desempenha a função de transformar a experiência prisio-
nal, no sentido de construir espaços-tempos subjetividade de au-
tonomia, como tenho defendido ao longo deste trabalho. Para além
dessa função mais genérica, os discursos veiculados nos eventos de
letramento do mundo da vida da PFDF permitem identificar outras
funções, ligadas aos processos de resistência e reexistência. A se-
guir, apresento exemplos de instâncias discursivas que instanciam
tais funções.

256
Capítulo 9

Quadro 2 - Funções do Letramento do mundo da vida na PFDF7

1. Reexistir diante de processos de desempoderamento


2. Dar conselhos e orientações de caráter moral.
3. Oferecer e receber conforto emocional e espiritual.
4. Estabelecer e manter vínculos de amizade e de namoro.
5. Manter contato com o ambiente externo à prisão sem o moni-
toramento institucional.
6. Preservar identidades construídas antes do encarceramento.
7. Falar sobre questões que envolvem o cotidiano da prisão.
8. Desabafar, trocar segredos e fazer confissões.
9. Motivar outras internas, criando um ambiente de esperança.
Fonte: elaboração da autora.

Os textos que apresento a seguir instanciam discursos que re-


metem às funções desempenhadas pela escrita na PFDF.
Motivar outras internas, criando um ambiente de esperança

[3.8] Nunca se intristessa se seus sacrifícios não forem notados


com diferença, e quando vc acordar, olhe pro céu e veja que o sol
da um espetáculo todos os dias, enquanto a maioria da platéia
continua dormindo. E mais uma vez eu te falo, apezar das cir-
cunstâncias em que nós nos encontramos nessa babilônia, não (?)
jamais na nossa conivência, pois você é uma mulher companheira
pra todas as horas, e pra qualquer situação [...].

[3.9] Meu amor, quando tudo parece está perdido, Deus está sem-
pre do nosso lado para demonstrar que podemos nos reerguer.
7  As funções do letramento coincidem, em alguns casos, com o propósito do gê-
nero e/ou as atividades com as
[3.10] Agora quais
vou ele está
ficando por envolvido. Os conceitos
aqui torcendo e vibrandonão sãosua
pela inter-
vi-
cambiáveis, mas estão
tória, em diálogo,apois
e pedindo Deussepela
ancoram no conceito
sua liberdade de linguagem
e quando eu sair como
tam-
elemento da prática social.

257
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

bém desse cativeiro, iremos comemorar nossa vitória.

Trocar informações sobre questões que envolvem o cotidiano


da prisão

[3.11] Amiga quinta feira fiquei muito feliz quando minha mãe fa-
lou que seus filhos e sua irmã estavam lá fora. Graças a deus eles
vinheram para acalmar seu coração. Estou morrendo de sauda-
des, faz o corre daí para vim pra cá, aqui tem uma cela de provi-
sória que só tem 4 [...] Estou louca pra você vim pra cá cumadre
estou fazendo o corre também manda um requerimento pra che-
fe de Pátio da mole não, que aqui e noiscabulozo sempre.

[3.12] [...] eu estou só amando casada com a Kely ela ta mandando


um salve você conhece ela me manda um BO me falando como
esta esse lado daí. Um grande abraço fica com Deus... Anita Taguá

Estabelecer e manter vínculos de amizade e de namoro.

[3.13] Escolhi vc pra ser minha mulher, porque o nosso santo ba-
teu. Saiba que vc ganhou acima de tudo uma amiga e no que pre-
cisar eu estarei ao seu lado, vamos dominar o mundo!

[3.14] Palavras não bastam para descrever a pessoa especial que


você tem sido e é... Eu crêio que está chegando o grande dia de
sair dessa cadeia, estou para ir embora, mas eu creio também que
Deus! Vai te honrar com sua saída mais uma vez desse lugar. E eu
vou estar lá fora torcendo e te esperando este dia chegar. Quero
poder ter a honra de poder te dar aquele abraço e juntas com a
permição do Senhor! Vamos poder explorar e apreçiar o momen-
to e a beleza por este mundo à fora [...]
Desabafar, trocar segredos e confissões

[3.15] Só eu e Deus sabemos como me sinto agora. Por fora tento


não demostrar, mas por dentro... tudo parece desmoronar. Más
se estas são as tamanhas aprovações e tribulações, estou pronta

258
Capítulo 9

para desafiá-las, pois não tenho medo de lutar pelo que eu quero.
Ainda mais sabendo que não estou só. É nois aqui dentro, e lá fora
e vc não vai se arrepender. pelo contrário vai é se surpreender.

[3.16] [...] essa foi minha primeira cadeia e eu creio que vai ser
última, pois não pretendo voltar para esse inferno. De tudo que
já vivi em minha vida, eu jamais poderia imaginar que vinha parar
nesse lugar de tanto sofrimento.

Dar conselhos e orientações de caráter moral.

[3.17] Amiga pesso pra Deus que em nome do filho dele, ele ti der
(+) essa chance de ir embora, na moral quero que vc vai logo logo
embora, (+) não vou menti vou fica muito triste longe de vc! Ami-
ga sinto um grande carinho por vc, amiga te pesso que em nome
de Jesus de (+) valor nu mundão da (+) valor na sua família essa ñ
e a nossa vida sabe qual e a nossa vida e ser feliz então te pesso ñ
voute (+) pelo amor de Deus.

Oferecer e receber conforto emocional e espiritual

[3.18] Vou falar pra minha mãe levar seu nome pra igreja e fazer
uma campanha por você. Confie em Deus, tudo vai dar certo.

[3.19] Tchau viu Jesus te Ama e eu também. Antes de você ir pra


audiência ora o Saumo 91 viu to orando por você e vai na fé que
vai da tudo certo

Nos eventos de letramento analisados, os valores de soli-


dariedade, afetividade, lealdade estão na base da organização de
pequenos grupos ou pares que interagem por meio da escrita. Os
letramentos, nesse sentido, desempenham um importante papel
nos processos de resistência aos constrangimentos de uma insti-
tuição total, mas também nos processos de reexistência, já que, por
meio da escrita (em conjunto com outras semioses), as mulheres

259
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

encarceradas conseguem elaborar novos projetos de vida e resgatar


dimensões silenciadas de sua existência. Finalizo este artigo afir-
mando que os letramentos e os discursos produzidos por mulheres
reclusas na Penitenciária Feminina do Distrito Federal revelam uma
face muito mais complexa e humana do que uma sociedade puniti-
vista gostaria de reconhecer.

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Capítulo 9

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ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 9

262
Capítulo 9

1) No texto, a autora traz diferentes conceitos de letramento para


explicar a “escrita no cárcere”. Com base nessa realidade, defina:
a) Letramento de sistema:
b) Letramento do mundo da vida:

2) Ao investigar a “escrita no cárcere”, a autora traz dois concei-


tos fundamentais oriundos do campo dos Novos Estudos do
Letramento/NEL: práticas e eventos de letramento. Defina e
exemplifique esses conceitos.

263
CAPÍTULO 10

A escrita de pessoas privadas


de liberdade: o letramento
como reexistência
AMANDA MOREIRA TAVARES
UFG

TÂNIA FERREIRA REZENDE


UFG

INTRODUÇÃO

No contexto do colonialismo, o Brasil foi o último dos países es-


cravizadores a abolir a escravatura, depois de mais de três sécu-
los de exploração do africano, sem planejamento socioeconômico
para a integração da população liberta. A política governamental
de higienização étnica, por meio da imigração europeia (BRASIL,
1911), visando à substituição do trabalho escravizado pelo trabalho
estrangeiro branco, diminuiu as chances dos negros libertos de
conseguirem ocupação remunerada. A política do Estado brasileiro
de embranquecimento da nação foi, portanto, uma política também
de negação de direitos ao povo negro.

265
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Embora o ensino público tenha sido implementado no Brasil


com a reforma pombalina, nos anos 1770, e, mais tarde, a Constitui-
ção imperial tenha garantido a instrução pública a todos, o estabe-
lecimento de uma renda mínima manteve a exclusão e, até o final do
período escravista, os “cativos” eram proibidos de frequentar as es-
colas (BRASIL, 1854). Depois de 1888, os negros livres e libertos po-
deriam frequentar a escola, desde que custeassem as despesas com
uniformes e materiais. Somava-se às impossibilidades financeiras
o fato de que as crianças, os jovens e os adultos negros precisavam
trabalhar para sobreviver, não lhes sobrando tempo para estudar.
Além do mais, em muitas escolas, as pessoas brancas não aceitavam
as pessoas negras ao seu lado. Foi reafirmada, dessa maneira, nessa
época, a negação de direitos à população negra.
A Lei 4.024 (BRASIL, 1961), primeira Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, prevista na Constituição de 1934 e aprova-
da em 1961, garantiu à população negra, independente de renda, o
direito de estudar na escola pública. Dado que o Estado não previu
orçamento para as despesas com materiais e uniformes, o acesso
à escola continuou inacessível à população brasileira despossuída
financeiramente. Continuou, nesse momento, a negação de direi-
tos à população negra, uma negação que reverbera nos dias atuais,
apesar das conquistas.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Con-
tínua (PNAD Contínua), a taxa de analfabetismo estimada em 2019,
entre as pessoas de 15 anos e acima, foi de 6,6%, correspondente a
11 milhões de analfabetos, uma queda de 0,2 percentuais em relação
a 2018. Na mesma faixa etária, para os homens, essa taxa é 6,9% e
para as mulheres é 6,3%. Para as pessoas pretas ou pardas é 8,9%,
mais do dobro da taxa para as pessoas brancas, que é 3,6%. A média
de anos de estudos da população brasileira com 25 anos de idade e
mais, em 2019, é de 9,4 anos. Entre as mulheres essa média é de 9,6

266
Capítulo 10

anos e entre os homens é de 9,2 anos. “Com relação à cor ou raça,


mais uma vez, a diferença foi considerável, registrando-se 10,4 anos
de estudo para as pessoas de cor branca e 8,6 anos para as de cor
preta ou parda” (PNAD, 2019, p. 4), uma diferença que se mantém
desde 2016. A população brasileira negra (preta ou parda) é a de me-
nor poder aquisitivo, logo, a relação entre classe socioeconômica e
anos de estudos se estabelece e é considerada (MEC, 2017).
Soma-se ao exposto anteriormente o fato de o Código Penal
brasileiro de 1890, logo após a abolição da escravatura, criminalizar
as práticas sagradas do povo negro recém-liberto, substituindo, de-
pois de 1888, o pelourinho e a forca pelas prisões, transformando,
gradativamente, a população carcerária brasileira, desde então, na
terceira maior do mundo, depois dos EUA e da China, segundo dados
da ONU. Destacamos também que a população carcerária, no Brasil,
é maximamente negra e pobre, que as taxas de homicídio apontam a
maioria de vítimas negras, e, dentre as vítimas do gênero feminino,
as mulheres negras são as maiores taxas (IPEA, 2018). Esse é o legado,
para o povo negro, dos mais de três séculos de escravização no Brasil.
Mais de um século depois da abolição da escravatura, a falta de
planejamento, no século XIX, e a posterior falta de políticas públicas
eficazes para a educação demonstram como o Estado sustenta a
injustiça social dessa camada da população brasileira. A maior taxa
de analfabetismo, o menor tempo de estudo e a criminalização su-
mária das pessoas negras (pretas e pardas) correspondem à menor
chance de inserção dessas pessoas no mercado de trabalho e a me-
nor chance de ocupação de vagas com melhores salários, impedin-
do uma melhor qualidade de vida para os descendentes dos africa-
nos escravizados no Brasil. Avançamos nas conquistas, sem dúvida,
mas da perspectiva racial, os brasileiros ainda caminham juntos.
Espoliadas de seus conhecimentos, de suas línguas e de suas
espiritualidades, sem acesso aos saberes escolares coloniais, in-

267
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

cluindo a língua de prestígio da sociedade hegemônica, sem trabalho


remunerado e sem condições de sobrevivência, tendo criminalizadas
suas práticas socioculturais e sagradas, as pessoas negras, no Brasil, as
descendentes dos africanos sequestrados, traficados e escravizados,
passaram por diversos processos de violências e saques/pilhagens: de
memória (memoricídio), de corpo-alma-espiritualidade e saberes (on-
toepistemicídio), de linguagens (linguicídio), além de outros.
Algumas dessas pessoas, apesar de tudo, aprenderam em casa
ou em irmandades a tecnologia da leitura e da escrita eurocêntri-
cas, e desenvolveram práticas de letramento em português, que
lhes serviram em suas ações políticas e sociais específicas, as quais
lhes garantiram uma suficiente apropriação da língua para a par-
ticipação política pela liberdade. Houve, por parte do povo negro,
mesmo no cativeiro, muitas ações de sobrevivência, de resistência,
de resiliência e de existência, que entendemos como quilombismo,
“uma ideia-força que movimenta para agir, para enfrentar e garantir
a vida”, nos termos de Abdias do Nascimento (1980).
Da mesma forma que, por um lado, a negação de direitos, do
acesso a bens e serviços, e a criminalização do corpo negro cons-
truíram uma representação social ruim do negro, por outro lado,
o quilombismo conferiu ao negro coragem e confiança para lutar e
garantir a continuidade da vida e da sobrevivência. Nos dias atuais,
a sociedade e o Estado continuam a negar à população negra, ape-
sar das leis, o acesso ao conhecimento escolar, como mostram os
dados do IBGE. A sociedade e o Estado continuam a lhes tirar a li-
berdade e a lhes negar o direito epistêmico, desqualificando e des-
legitimando seu conhecimento e sua espiritualidade. Mesmo assim,
esse povo fura os cercos, se liberta e promove justiça epistêmica. É
isso que entendemos por letramento de reexistência. O letramento
que nasce da necessidade e da força pela sobrevivência, por meio
da desobediência epistêmica (escolar, institucional).

268
Capítulo 10

Neste artigo, discutimos sobre as estratégias emancipadoras


de letramento de pessoas/grupos subalternizadas/os, em situação
de violência física, simbólica e moral, na qual é produzida sua não-
-existência (SANTOS, 2006). As situações de tensão entre não-exis-
tir-resistir-reexistir (WALSH, 2009), em espaços sociais e culturais
de travessia, prenhes de atravessamentos, de conflitos e de con-
frontos, dadas as relações assimétricas de poder, geradoras de re-
sistências e enfrentamentos, que os envolvem: o exercício do direito
da pessoa privada de liberdade de escrever ao magistrado.
O direito da pessoa privada de liberdade de escrever ao ma-
gistrado é garantido pela Constituição Federativa do Brasil, no Art.
5º, Inciso XXXIV, Alínea “A”. Considerando que a grande maioria das
pessoas presas no Brasil, já o dissemos, frequentou pouco a escola,
garantir-lhe o direito de escrever ao magistrado poderia significar a
continuidade de seu silenciamento. Nem sempre isso é o que acon-
tece. O que constatamos com a pesquisa é o potencial aquilombador
desse grupo, a ideia-força que os leva a promover seu letramento e,
por meio da escrita, a lutar por sua liberdade. No Brasil, devido às
codificações dos corpos que são privados de liberdade e devido às
razões sociais e históricas que motivam o encarceramento desses
corpos, a prisão, contrariamente ao que se espera, favorece o qui-
lombismo e o aquilombamento.
O objetivo desta discussão é mostrar que os processos de le-
tramento de reexistência, construídos e vividos por pessoas priva-
das de liberdade na Unidade Prisional de São Luís de Montes Be-
los, em Goiás, estão a serviço de sua sobrevivência e da busca de
restituição de sua liberdade. Muitas dessas pessoas, redatoras de
petições, se consideram analfabetas ou pouco competentes para
escrever, devido a sua pouca frequência à escola ou a seu pouco
aproveitamento dos conteúdos escolares. Contudo, escrevem ao
juiz, se e quando precisam, evidenciando a importância da educa-

269
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

ção básica da escola pública para essas pessoas, por mínima que
seja sua vivência na escola.
A evidenciação empírica desta discussão são as petições es-
critas por pessoas privadas de liberdade, dirigidas ao magistrado,
solicitando benefícios para o próprio emissor. Na leitura e interpre-
tação das petições, levamos em consideração a situação de enun-
ciação, as condições de produção dos textos, o gênero discursivo ‘pe-
tição’ e sua função comunicativa, de acordo com Bakhtin (2016). O
Paradigma Indiciário Semiótico, de Carlo Ginzburg (2016), é adotado
para a leitura e interpretação das petições.

COMPARTILHAMENTO DE SABERES:
POSTURAS POLÍTICO-TEÓRICAS

Este trabalho se insere ao campo da Sociolinguística, cujo princípio


básico é o indissociável vínculo entre entre linguagem e sociedade.
Uma opção política que fazemos frente às pesquisas e aos estudos
sociolinguísticos que realizamos, inspiradas na socióloga e advo-
gada Margaret Abraham1, é pelo ativismo acadêmico. Portanto, não
desvinculamos a militância social e política do trabalho científico.
Nossos estudos acadêmicos são assumidamente políticos, pois vi-
sam à defesa dos grupos subalternizados e à transformação da re-
alidade social.
Neste tipo de estudo, primamos pelo diálogo e pelo compar-
tilhamento entre os diferentes saberes, e articulamos diferentes
procedimentos na busca e na construção dos saberes. Evitamos os
modelos apriorísticos e recusamos a visão universalista que prioriza

1  Para informações sobre M. Abraham: <http://www.margaretabrahamonline.com/


grtyb1w22admzvioxovxwrhv9dwj2t>.

270
Capítulo 10

a totalização de uma das partes como um todo. Cada estudo, em


particular, exige seus próprios caminhos de construção, pois cada
um deles informa suas demandas. Em suma, a Sociolinguística é
transdisciplinar, dialoga com as diferentes áreas do conhecimen-
to, dentro do grande campo da Linguística e nos outros campos
das ciências humanas e das ciências naturais. O que em muitas
áreas é considerada mistura teórica, nesta área, é bem-vindo e
contribui para o entendimento da complexa perspectiva de abor-
dagem à linguagem.
Essa vertente da Sociolinguística é decolonial, outra postura
político-acadêmica que adotamos na construção de conhecimento.
A decolonialidade é o enfrentamento do padrão de poder constru-
ído e mantido pelo colonialismo. Para Restrepo e Rojas (2010, p. 15),
“o colonialismo diz respeito ao processo e aos aparatos de domí-
nio político e militar implementados para garantir a exploração do
trabalho e as riquezas das colônias em benefício do colonizador”
. Assim, nesse “processo” e com esse “aparato”, o colonialismo criou
um padrão de distinção, a “diferença colonial” (KILOMBA, 2019),
estabelecendo que o dominador, a quem tudo passa a pertencer,
por direito natural, era/é superior ao povo dominado, que por ser
inferior deve servir e obedecer ao seu superior. A colonialidade é a
manutenção dessa matriz de poder.
Há estratégias, por um lado, de manutenção e de sustentação,
e, por outro lado, de resistência e de enfrentamento, à colonialida-
de. A decolonialidade é, antes de tudo, uma postura diante do mun-
do, dentro da academia e frente à construção do conhecimento.
Com essa postura política, a decolonialidade fundamenta os pro-
jetos político-epistêmico-acadêmicos, expressando uma manifes-
tação concreta no meio acadêmico das construções sociais, dos
projetos políticos dos movimentos sociais marginalizados. Não há
decolonialidade sem uma atuação política concreta de transforma-

271
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

ção social. Uma pesquisa acadêmica que se proponha a ser decolo-


nial é uma pesquisa de impacto sócio-político e ontoepistêmico. É
importante esclarecer que a transformação social que se pretende
tem por meta as demandas dos grupos sociais e não os modelos
euroeuacentrados secularizados, herdados ao colonialismo.

METODOLOGIAS

Em Ginzburg (2016, p. 150), encontramos esse verso de Virgílio:


Flectere si ne queo Superor, Acheronta movebo (“Se não posso do-
brar os poderes superiores, moverei o Aqueronte”). A interpreta-
ção que E. Simon faz do verso, citado por Ginzburg, é que “a parte
oculta, invisível da realidade não é menos importante do que a
visível”. Entendemos, que todos os detalhes da vida e do real são
igualmente importantes. Logo, todos os grupos sociais são igual-
mente importantes. Assim, a estratificação de valores que orienta
nossa visão social e nossa visão sobre as pessoas é uma herança
colonial agravada pela estrutura de competição do capitalismo
contemporâneo neoliberal.
Para a realização da pesquisa na qual se apoia esta discussão,
foi convidado a participar um grupo subalternizado pela “diferen-
ça colonial” (KILOMBA, 2019), considerado não condizente com os
valores do sistema social e econômico contemporâneo: pessoas
encarceradas na Unidade Prisional de São Luís dos Montes Belos,
um sistema prisional municipal do interior de Goiás, um estado pe-
riférico do Brasil. Concebe-se esse lugar como lócus de construção
de conhecimento por um corpo-geo-político marcado pela ferida
colonial escravagista (MIGNOLO, 2009). Uma das feridas coloniais
escravagistas que faz sangrar os corpos subalternizados pela dife-
rença colonial é a língua. É disso que tratamos.

272
Capítulo 10

A pesquisa foi realizada durante o mestrado em Estudos Lin-


guísticos da estudante Amanda Moreira Tavares, sob orientação
da professora Tânia Ferreira Rezende, no Programa de Pós-Gra-
duação em Letras e Linguística da Faculdade de Letras da Univer-
sidade Federal de Goiás. Desse lado, o conhecimento é marcado
corpo-geo-politicamente pelo feminino, branca, a primeira, afro-
-indígena-descendente, a segunda, situadas ambas num lugar de
prestígio e poder, a universidade. Para todas essas pessoas, de di-
ferentes maneiras e por diferentes razões, a língua é uma questão
a ser tratada.
Adotamos como procedimentos metodológicos, neste estudo,
para a abordagem e interação com o grupo, a Etnografia Multissi-
tuada (REZENDE; SILVA JR., 2018). Considerando que a decolonia-
lidade não é a negação nem o esquecimento do colonialismo, ao
contrário, é o reconhecimento da força da existência ainda vigente
do padrão colonial de poder, entendido como colonialidade (RES-
TREPO; ROJAS, 2010), essa proposta representa, para além da nega-
ção dos conflitos, um enfrentamento metodológico e epistêmico ao
pensamento e ao conhecimento hegemônicos.
Na América Latina, afirma Mignolo (2003), independentemen-
te da quantidade de anos de frequência à escola e da apropriação
dos conhecimentos escolares, fomos formados pelo pensamento
hegemônico, de base cristã eurocêntrica, que permanece susten-
tando a colonialidade. Por isso, afirmamos, é importante a “opção
decolonial” (MIGNOLO, 2009) nos estudos sociolinguísticos, frente
à impossibilidade da negação da colonialidade.
Em resumo, de modo a não negarmos o conhecimento acumu-
lado pela Humanidade, seja de onde for, nem os que vieram antes de
nós, a nossa ancestralidade, e de modo a estabelecermos diálogos,
ainda que conflituosos, entre o conhecimento euroeuacentrado e
os conhecimentos não-hegemônicos, adotamos a etnografia mul-

273
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

tissituada, uma metodologia hegemônica, com o compromisso de


lhe darmos um tratamento contra-hegemônico, decolonial.
É importante atentar para o fato que as pesquisadoras nunca
estiveram presas e que sua permanência no espaço da pesquisa não
foi prolongada, isto é, foram realizados 7 (sete) encontros, combi-
nados entre as pesquisadoras e os responsáveis pela Unidade Pri-
sional. Cada encontro durou em torno de duas horas, tempo sufi-
ciente para possibilitar interações para a construção da situação de
comunicação da pesquisa. Os encontros realizados ocorreram em
celas com trancas, sem janela; são celas adaptadas para parecerem
com uma sala de aula. Dentro dessa cela ficaram apenas os copar-
ticipantes da pesquisa (os presos e a estudante pesquisadora), sem
a presença de agentes prisionais para não haver intimidações que
pudessem inviabilizar as discussões.
O espaço da pesquisa, como um todo, para além da cela, era
o que consideramos espaço multissituado por ser constituído por
pessoas (os coparticipantes da pesquisa), com seus corpos, suas
percepções do mundo, suas memórias e suas trajetórias de vida. Os
espaços “são construídos, desconstruídos e reconstruídos na apro-
ximação e no distanciamento dos corpos” (TAVARES, 2019). Nesse
tipo de espaço, cada pessoa, com seu corpo e sua alma, traz sua
espacialidade/trajetória e espiritualidade, e se encontra na cela, um
espaço físico, com suas diferenças/multissitualidades com os ou-
tros. A cela se constitui de distintos espaços dentro de um espaço,
entendendo-se que as pessoas, com suas memórias e trajetórias,
dores e alegrias, se movem e se aquietam, silenciam... e seu silêncio
grita. As pessoas fazem os lugares e vice-versa.
O tratamento contra-hegemônico, que se dá à abordagem et-
nográfica multissituada, nesta pesquisa, é a consideração da plu-
ralidade e da mobilidade que envolvem os corpos geo-politicamente
marcados pelo espaço histórico marcado, porque o corpo marca/

274
Capítulo 10

faz o espaço e o espaço marca/faz o corpo (MIGNOLO, 2003). A


multissitualidade, diferentemente da etnografia multissituada con-
vencional, está nas espacialidades distintas e móveis, que os corpos
constituem na construção do conhecimento, nas interações, a par-
tir das quais é construído o espaço da pesquisa.
Para a interpretação e discussão das petições, adotamos o
Paradigma Indiciário Semiótico, conforme Carlo Ginzburg (2016),
com base no método morelliano, de Giovanni Morelli, que prioriza
os detalhes ao conjunto da obra. Ginzburg estabelece uma com-
paração entre o método morelliano, baseado na anatomia médica,
ao método dos detetives e dos investigadores criminais, como, por
exemplo, Sherlock Holmes, personagem criada pelo médico Arthur
Conan Doyle, e de Freud, médico, psicanalista, também apreciador
do método morelliano. Ginzburg relaciona os métodos de trabalho
do historiador de artes, do detetive e do psicanalista para forma-
lizar seu raciocínio. O Paradigma Indiciário, assim, é “um método
interpretativo centrado sobre resíduos, sobre os dados marginais,
considerados reveladores” (GINZBURG, 2016, p. 149).
No modelo epistemológico “indiciário”, de Ginzburg, há um
modelo “anatômico” e há um modelo “semiótico”. Nos estudos sobre
a linguagem, com textos e discursos, prevalece o Paradigma Indici-
ário Semiótico, que é a busca perspicaz pelos signos involuntários
que escaparam ao policiamento do rigor e da norma; é a busca pelo
dizer, através dos “resíduos deixados pelo descuido do cochilo e do
cansaço, dos detalhes esquecidos ou escapados pelas sutilezas da
fina ironia e das metáforas”. A conclusão que se pode tirar, com base
em Ginzburg, é que importantes evidências se encontram em pe-
quenos detalhes e que para encontrar essas evidências, percebendo
os pequenos detalhes, deve-se contar com a “alta intuição”.
Neste trabalho, os textos e os discursos são lidos/interpre-
tados, em detalhes, seguindo as pistas contextuais e as informa-

275
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

ções fornecidas pelos autores, entendendo o que seriam resíduos


de “descuidos ou de cochilos” como estilos de suas construções,
traços de resistência e de existência, que marcam e caracterizam
suas autorias.

LETRAMENTO

Na perspectiva desta discussão, as práticas de letramento são con-


cebidas como um dos importantes lóci políticos de enfrentamento
da colonialidade. Para isso, é necessário descolonizar a noção de
letramento, desvinculando-a do escolarismo, do grafologocentrismo
e da noção de norma culta única de escrita na língua portuguesa e
no português brasileiro hegemônico, que são estratégias de manu-
tenção e de sustentação da colonialidade do poder pela linguagem.
A apropriação da escrita alfanumérica e da língua hegemônica
escrita, em conformidade com o padrão culto, formam um capital
cultural reservado a uma selecionada parcela da sociedade, e so-
mente é possível por meio da escolarização, em “escolas de exce-
lência”. Os critérios de seleção para o acesso à escola, à língua e aos
conhecimentos hegemônicos são históricos e são os mesmos que
estruturaram, de forma binária e hierarquizada, a sociedade colo-
nial: raça/cor/etnia, sexo/gênero/sexualidade e classe (KILOMBA,
2019). Mesmo com a democratização da educação escolar, a per-
manência na escola não é facilitada e o acesso ao espaço escolar
não significa acesso aos conhecimentos hegemônicos, porque as
práticas de ensino são modos de produção de ausências (SANTOS,
2006), de exclusão e de inexistências.
A escola é uma importante agência de letramento, mas não
é a única (KLEIMAN, 1995) nem a mais importante, embora tenha
sido bem-sucedida em seus objetivos básicos. Por ser o lugar pri-

276
Capítulo 10

vilegiado do início e, para muitos grupos, o fundamento básico


único do letramento, a escola monopoliza e segrega a promoção
do letramento, decidindo quem é/pode ser e quem não é/não
pode ser letrado.
A língua hegemônica é a principal barreira à promoção e de-
mocratização às/das práticas de letramento. Concordamos que a
tecnologia da escrita é importante e deve ser aprendida e domi-
nada, entretanto, considerando que letramento não se restringe
às habilidades de ler e escrever, e que leitura é muito mais que
de(s)codificação de letras e consumo de informações, há muitas
formas de promoção do letramento, e é possível “ensinar a ler com
sabedoria na arte de aprender a ler” (LARIWANA-KARAJÁ, 2015, p.
317), para além e apesar da escola, apesar e além do que se con-
sidera “norma culta” do português hegemônico e além da escrita
alfanumérica (FREITAS, 2016; SOUZA, 2011). Reconhecendo-se e
considerando-se os demais sistemas de escrita, uma pessoa letra-
da não é apenas a que lê as letras do alfabeto e não é não-letrada a
que não frequentou a escola e não lê as letras do alfabeto.
Na trilha do “quilombismo”, seguindo Abdias do Nascimento (1980,
pp. 5 e 6), já mencionado, para quem os quilombos sempre foram

genuínos focos de resistência física e cultural. [...] Porém tanto


os [quilombos] permitidos quanto os “ilegais” foram uma unida-
de, uma única afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo
integrando uma prática de libertação e assumindo o comando da
própria história. A este complexo de significações, a esta prá-
xis afro-brasileira, eu denomino de quilombismo. [...] O modelo
quilombista vem atuando como ideia-força, energia que inspira
modelos de organização dinâmica desde o século XV. [...] Cumpre
aos negros atuais manter e ampliar a cultura afro-brasileira de
resistência ao genocídio e de afirmação da sua verdade.

277
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Nesse sentido, entendemos as práticas de letramentos dos gru-


pos subalternizados como práticas de resistência pela linguagem,
na articulação entre oralidade e escrita, concebendo a escrita como
grafias plurais, que transcendem a escrita alfabética, tendo o corpo
como inscrição, leitura e força-ação. “Quilombismo” é um “complexo
de significações”, representa a “práxis afro-brasileira” e, como “ideia-
-força” e “energia”, significa resistência e ação que move para conti-
nuar existindo. Assim, ao empregarmos letramento de resistência,
estamos remetendo ao sentido de prática coletiva de letramento, a
uma ideia-força, uma energia, com atuação política, que é resistên-
cia, ação e enfrentamento para seguir adiante na existência.
Afirma ainda Nascimento (1980, p. 6) que “durante séculos te-
mos carregado o peso dos crimes e dos erros do eurocentrismo
‘científico’, os seus dogmas impostos em nossa carne como mar-
cas ígneas da verdade definitiva.” A verdade universal do euro-
centrismo, instaurada pelo “penso, logo existo” (cogito, ergo sum),
de Descartes, impõe, em contrapartida, que os demais, o outro
, o diferente colonial (KILOMBA, 2019), não pensa, logo, não existe.
Se o ser não pensante é o não ser, a declaração de Descartes é uma
declaração de não existência do outro, convertendo-se, portanto,
em um ato de ontoepistemicídio, que perdura para os povos subal-
ternizados pela diferença colonial até a atualidade.
Boaventura de Sousa Santos, em Sociologia das ausências, cri-
tica a “razão metonímica”, que é a obsessão pela “totalidade sob a
forma de ordem”, a imposição de uma das partes como todo. Para o
autor, “a forma mais acabada de totalidade para a razão metonímica
é a dicotomia, porque combina, do modo mais elegante, simetria
com hierarquia. A simetria entre as partes é sempre uma relação
horizontal que oculta uma relação vertical” (SANTOS, 2006, p. 91).
Ou seja, todas as dicotomias que estruturam o sistema-mundo
(WALLERSTEIN, 1974), apesar de serem horizontais, são hierarqui-

278
Capítulo 10

zadas, e têm uma parte que se impõe como todo, isto é, como su-
perior a outra, e, assim, invisibiliza a outra parte, que é sua contra-
-parte inferior: Europa/América, branco/negro, homem/mulher,
conhecimento científico/conhecimento tradicional etc.
De acordo com a Sociologia das ausências, o que não existe é,
na realidade, invisibilizado, por ser, cuidadosamente, produzido
como inexistente. Se assim é, pode-se transformar o que é impos-
sível em possível, o que é ausente em presente e o que é inexistente
em existente. Não é simples nem fácil, pois

Não há uma maneira única ou unívoca de não existir, porque são


vários as lógicas e os processos através dos quais a razão metoní-
mica produz a não-existência do que não cabe na sua totalidade
e no seu tempo linear. Há produção de não existência sempre
que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, inin-
teligível ou descartável de um modo irreversível. O que une as
diferentes lógicas de produção de não-existência é serem todas
elas manifestações da mesma monocultura racional (SANTOS,
2006, p. 95)

Diante da complexidade dessa problemática, Santos (2006,


95ss.) propõe cinco modos de produção da não-existência, que
adaptamos para a realidade em estudo: (1) Monocultura do saber: (a)
Centro do saber: somente a escola, com primazia da universidade,
produz/constrói conhecimento; e (b) Rigor do saber: as disciplinas
e as normas escolares (normas de produção linguística, norma cul-
ta, ABNT etc.) e a metodologia do trabalho científico são os úni-
cos caminhos e as únicas formas válidas e legítimas de produção/
construção do conhecimento (mecanismo de controle da produção
e da distribuição do conhecimento); esse é o modo de produção
de não-existência mais poderoso; consiste na transformação da ci-
ência moderna e da alta cultura em critérios únicos de verdade e
de qualidade estética, respectivamente; tanto a verdade (critério de

279
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

validade científica) quanto a estética (critério de validade artística)


somente podem ser expressas por uma língua de cultura legítima,
em sua norma culta escrita, produzindo, assim, os cânones de (a)
produção do conhecimento científico e (b) da criação artística; o
que o cânone não legitima nem reconhece é declarado inexistente
(ou inferior); a “não-existência assume aqui a forma de ignorância
ou de incultura”; quem não se apropria dos cânones torna-se ine-
xistente; (2) Monocultura do tempo linear: a história tem sentido
e direção únicos: progresso, revolução, modernização, desenvolvi-
mento, crescimento, globalização. O tempo é linear, à frente estão
os países e os povos mais desenvolvidos e, atrás, os povos e países
menos desenvolvidos, que dependem da tutela dos primeiros para se
desenvolver ou simplesmente subsistir; (3) Classificação social: natu-
ralização das diferenças, que consiste na distribuição das populações
por categorias que naturalizam hierarquias. A classificação racial e a
classificação sexual são as mais salientes manifestações desta lógica
de acordo com a qual a não-existência é produzida sob a forma de in-
ferioridade insuperável, por ser natural. Quem é inferior o é, porque
é insuperavelmente inferior, não pode ser uma alternativa credível a
quem é superior; (4) Escala dominante: universal – escala das enti-
dades ou realidades independentemente de contextos específicos. A
não-existência é produzida sob a forma do particular e do local; (5)
Produtivismo: está assentado na monocultura dos critérios da pro-
dutividade capitalista. A não-existência é produzida sob a forma do
improdutivo, que, aplicada à natureza, é esterilidade, e, aplicada ao
trabalho, é preguiça ou desqualificação profissional.
Se aplicados às pessoas privadas de liberdade os cinco modos
de produção da não-existência, da ausência chegam à inexistên-
cia, pois ao serem colocadas na prisão, são retiradas de circulação,
são colocadas na ausência até serem dadas, socialmente, como ine-
xistentes. Tudo o que lhes diz respeito é desqualificado até a mais

280
Capítulo 10

completa abjeção: são desprovidas de moral, de ética, de valores,


de conhecimento, de competência, de habilidades, de vida. Não são
humanas, não são seres.
O trabalho da Sociolinguística, ancorado na Sociologia das
ausências, acreditando no potencial herdado ao quilombismo das
pessoas privadas de liberdade, é tornar o impossível em possível,
trazer a ausência para a presença e potencializar a existência da
inexistência, pela apropriação da linguagem. Assim, o letramento
de resistência se apoia no potencial de quilombismo que as pessoas
têm e que só precisa ser visibilizado e estimulado; e, a partir da
resistência, o letramento de existência se constrói trazendo à visi-
bilidade e à presença os saberes e os potenciais que foram invisibi-
lizados pelo Estado brasileiro, desde sua fundação.

CORPOS E VOZES ENCARCERADOS: DA INEXISTÊNCIA À


EXISTÊNCIA PELA LINGUAGEM

Para dar início à pesquisa, o então coordenador do Programa de


Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de
Goiás, emitiu uma carta, apresentando a estudante pesquisadora e
solicitando ao diretor da Unidade Prisional (UP) e do Juiz de Direito
da Comarca de São Luís de Montes Belos, Goiás, autorização para
realização da pesquisa. A autorização incluiu o contato com os pre-
sidiários, a realização de rodas de conversas com eles no presídio
e a consulta a seus respectivos processos judiciais. Com as devidas
permissões, foi possível ter acesso e contato com as pessoas e com
seus processos judiciais para consultas e fotocópias.
De início, a proposta era contatar todos os presos em suas ce-
las, expor os objetivos e os procedimentos da pesquisa, e aguardar
o consentimento de participação dos interessados. Essa foi a soli-

281
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

citação feita ao diretor da UP. Entretanto, a autorização obtida foi


restritiva, devido à organização interna da UP. O diretor selecionou
quem deveria participar da pesquisa e decidiu que, após a seleção
dos participantes, o encontro entre a estudante e os presos ocorre-
ria em uma das celas adaptadas para salas de aula do presídio.
Apesar de a grande maioria da população carcerária do Brasil
ser negra (INFOPEN, 2018), a seleção feita pelo Diretor do presídio
resultou em um grupo de homens brancos, com apenas um negro
e nenhuma mulher, embora na UP haja mulheres e muitas pessoas
negras. A seleção feita pelo diretor da UP reflete sua preocupação
em editar os corpos visíveis para manter a “higienização” do pre-
sídio: as paredes são pintadas de branco ou de outras cores claras
e os presos selecionados para participar de projetos, que podem,
inclusive, favorecer a remissão de pena, são os de corpos tão “hi-
gienizados” quanto as paredes do local: no fim, a depender da par-
ticipação em projetos, “brancos saem, pretos ficam”.
A diretoria da UP não autorizou que fosse registrado nenhum
tipo de imagem ou som (fotos, gravações de áudio ou audiovisu-
al). A única possibilidade, de acordo com a permissão dada, foi a
cessão de textos escritos. Após autorização do diretor da UP e do
Juiz diretor do Foro da cidade e do consentimento de cada pessoa
em participar, iniciou-se a pesquisa, por meio de rodas de conversa
com os “selecionados”. Essa proposta metodológica situa os presos
como autores e protagonistas da pesquisa, de modo que suas vo-
zes, através da escrita, são conhecimentos que constituem o cerne
da discussão. Trata-se de um corpo que se inscreve na história em
um lócus de enunciação politicamente marcado (MIGNOLO, 2009).
“Nesse sentido, a voz não é física, é política!” (TAVARES, 2019).

282
Capítulo 10

LETRAMENTO DE EXISTÊNCIA PELA ESCRITA DE PETIÇÕES

Na área do Direito, petição é um documento, através do qual ad-


vogados ou partes interessadas no processo (as pessoas privadas
de liberdade, no caso em questão, nesta discussão), redigem pedi-
dos ao magistrado sobre uma situação processual. A estrutura de
uma petição, seguindo os padrões estabelecidos no âmbito jurídico,
deve apresentar os fatos, o direito e os pedidos, conforme modelo
apresentado no Quadro 1:

Quadro 1: Estrutura de petição simples

ENDEREÇAMENTO – em regra:
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA __ VARA CRIMINAL DA
COMARCA DE___

Identificação do processo (se for o caso)

Identificação da parte, qualificação completa/resumida, vem a Vossa Excelência, por


seu(s) advogado(s), com fulcro/base no(s) art(s). ......, do Código de Processo Penal (se
possível), propor/requerer/interpor/impetrar

IDENTIFICAÇÃO DA PEÇA (Se necessário)

Em razão dos fatos que passa a dispor (ou seguem/abaixo descritos/descritos a seguir).

FATOS
Fazer um resumo ou descrição – observando-se os critérios básicos de uma boa reda-
ção, respeitada a cronologia dos acontecimentos: princípio, meio e fim.

283
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

DIREITO
Apresentar todos os argumentos jurídicos possíveis – observando-se os critérios bá-
sicos de uma boa redação, e respeitando a ordem de relevância dos argumentos.

PEDIDO
Ordenar os pedidos a serem formulados, de forma clara e objetiva, porém minuciosa,
se necessário em tópicos.

Fechamento
Nestes termos
Espera deferimento

Local e data.
Advogado/OAB

Fonte: DUPRET; MENDONÇA (2018, p. 421 e 422)

Nesta discussão, petição é concebida e tratada como um gênero


do discurso. Nos termos de Bakhtin (2016), é um gênero secundário
e um tipo especializado de gênero discursivo. Há uma situação de
comunicação – a vida cotidiana de pessoas privadas de liberdade,
sua situação prisional, processual e sua condição socioeconômica
– que, muitas vezes, impede que elas contratem um advogado, e a
espera pela defensoria pública pode fazer com que alguns detentos
permaneçam presos mais que o necessário.
A Constituição brasileira garante o direito de o próprio inte-
ressado escrever ao magistrado ou o de proceder à sua defesa oral
perante o juiz. Na UP de São Luís de Montes Belos, em Goiás, as
pessoas privadas de liberdade estão usando do direito de escrever
ao magistrado. Essa decisão é um ato político de emancipação, de

284
Capítulo 10

resistência e de enfrentamento. Ao todo, na pesquisa, foram estu-


dadas 15 peças. Nesta discussão, dada a exiguidade do espaço, in-
terpretamos e discutimos 6 peças.

Figura 1: Pedido de Livramento Condicional

Continua...

285
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Fonte: TAVARES (2019, p. 81-82)

A primeira petição (Fig. 1) é assinada por Marcelo Barros da Sil-


va, mas quem a redigiu foi André, o Escrevente da cela. Nos lugares,
onde a escolarização é pouca e, mesmo quando há escolarização
suficiente, mas há “inseguraça, por autodesvalia sociolinguística”

286
Capítulo 10

(REZENDE, 2015), é costume eleger-se um Escrevente, como no fil-


me Central do Brasil, de Walter Salles, em que Dora, personagem
vivida por Fernanda Montenegro, na Estação Central do Brasil, no
Rio de Janeiro, escrevia cartas pelas pessoas que não podiam fazê-
-lo. O mesmo ocorre na UP de São Luís.
A frequência de André à escola foi pouca, segundo ele mes-
mo, mas seu nível de letramento é alto e sua apropriação do letra-
mento jurídico é suficiente para atender, satisfatoriamente, às suas
demandas e às do grupo à sua volta. André está se apropriando do
gênero e da linguagem da petição pelo convívio e pela prática, por
meio do “aprender fazendo” de Paulo Freire (1992). Tanto a estrutu-
ra quanto a linguagem empregadas no texto são muito próximas do
modelo canônico de petições. Há argumento sem preocupação com
estratégias de persuasão. A estratégia argumentativa mobilizada
pelo autor para convencer o magistrado é o discurso de autoridade,
representado pelo texto da lei, isto é, os artigos e os parágrafos da
Constituição federal brasileira. Ele se ampara no direito garantido
por lei.
Na sequência, as duas petições (Fig. 2 e Fig. 3) são assinadas por
José Carlos Alves dos Santos. Ele redigiu a primeira petição em um
formulário do Tribunal de Jusitça, em janeiro de 2018. Sua redação
demonstra consciência de seus direitos e sua escrita reflete esfor-
ço para apropriação do gênero e da linguagem de petição judicial.
Seu pedido foi indeferido. Ele insistiu e reapresentou o pedido em
outra petição em setembro do mesmo ano. Dessa vez, o requerente
pediu a um Escrevente, um colega de cela, para redigir a peça, por
acreditar que, talvez, tenha sido sua escrita que o desfavorecera no
primeiro pedido.

287
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Figura 2: Pedido de Progressão de Regime

Fonte: TAVARES (2019, p. 84)

288
Capítulo 10

Figura 3: Pedido de Livramento Condicional

Continua...

289
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Fonte: TAVARES (2019, pp. 85 e 86)

A segunda petição (Fig. 3) está estruturada de forma mais pró-


xima ao modelo canônico, com emprego de termos do meio judicial
e citação de artigos de lei. A estratégia de persuasão e o argumento
mobilizado para convencimento do magistrado são o discurso de
autoridade, com argumentos legais. O pedido foi novamente inde-
ferido, deixando explícito que as razões do impedimento eram ou-

290
Capítulo 10

tras. José não desistiu. Em 5 de outubro de 2018, voltou a escrever


ao juiz e, dessa vez, ele mesmo redigiu sua petição, novamente, no
formulário do Tribunal de Justiça (Fig. 4).

Figura 4: Pedido de Progressao de Regime

Fonte: TAVARES (2019, p. 87)

291
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Nesse pedido, o autor se vale da peça anterior, redigida pelo


colega, e emprega termos e expressões formulaicas, típicas dos
protocolos notariais, tais como: “Venho Respeitosamente”, “mé-
rito de ter objetivo e subjetivo”, os quais não foram utilizados em
sua primeira petição. Nesta peça, está refletido seu esforço pela
apropriação da escrita, com base na observação e na prática, no
“aprender a fazer, fazendo” (FREIRE, 1992). Em suas tentativas, José
se confunde e se equivoca, como ao usar “aguardo indeferimen-
to” por “aguardo deferimento”, mostrando que ainda está tateando
na estrutura e no funcionamento da língua. Da mesma forma que
os escreventes de cela, que têm experiência com a escrita e com o
gênero, se apropriaram com a prática, pelo sufoco, do letramento
jurídico, José já começa a caminhar na promoção de seu letramen-
to pela apropriação da estrutura e da linguagem do gênero petição
para sua sobrevivência, em busca da liberdade e da existência.
Os presos já perceberam que independetemente da norma e
do estilo em que está redigido o texto, o judiciário se movimenta
em torno de seus pedidos, tomando decisões e despachando. As
decisões do magistrado, que podem ou não agradar ao peticionário,
não são influenciadas pela norma da escrita e isso está explícito nos
pedidos deferidos e indeferidos. O que embasa a decisão do juiz são
outros critérios e estes constam do texto da lei, que está citado na
primeira petição (Fig. 1), mostrando que os presos o conhecem, pois
é um dos argumentos mais mobilizados para convencer o magistra-
do, conforme mostra a próxima petição (Fig. 5).
A petição (Fig. 5) está redigida no formulário do Tribunal de
Justiça, que, além de limitar o espaço do pedido, contém uma ob-
servação, orientando para “descrever resumidamente o requeri-
mento pretendido”. O autor ignora a observação e, como o espaço
é pequeno, ele acrescenta outro papel ao formulário e continua.
Além do argumento de autoridade, com termos legais e citações de

292
Capítulo 10

trechos da Constituição, para convencer o magistrado, essa petição


traz como estratégia de persuasão o discurso religioso: “Deus ama a
justiça, mais não desampara os seus filhos. Salmos 37 v 25”.

Figura 5: Pedido de Progressão de Regime

Continua...

293
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Fonte: TAVARES (2019, pp.91 e 92)


294
Capítulo 10

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com este estudo podemos constatar, por um lado, que a escola bási-
ca cumpre um papel fundamental para a aprendizagem da tecnologia
da escrita. Sem um mínimo de escolarização, é impossível caminhar
nas práticas sociais de letramento. Os anos iniciais de escola são de
suma importância na vida das pessoas, sobretudo das crianças das
minorias subalternizadas, que podem ter poucas chances de seguir
nos estudos. Com uma base sólida, bem feita, essas crianças, quan-
do adultas, qualquer que seja sua condição e situação, poderão fazer
dessa base um instrumento poderoso de luta social. Por isso, ensinar
bem a tecnologia da escrita, nos anos iniciais de escolarização, é uma
forma de luta e de resistência, num país em que as oportunidades são
poucas e para poucos; uma forma de rasurar o sistema é dar condi-
ções para as pessoas das minorias subalternizadas, no futuro, deso-
bedecerem às estruturas de opressão.
Por outro lado, foi possível perceber que a ideia-força que sus-
tenta as minorias subalternizadas, seu quilombismo histórico, ainda
que inconscientemente, as leva a mover e a construir estratégias de
letramento, como instrumento de luta. Ou seja, numa situação de
comunicação, em que o silêncio é a norma, e a escrita, uma habili-
dade distante da maioria, é a comunicação autorizada, as pessoas
entendem a oportunidade, desobedecem às regras e promovem seu
letramento, pela práxis, a prática que é ação (FREIRE, 1992), e fazem
valer o direito que a Lei Magna do país lhes garante. Além de letra-
mento de resistência, isso é letramento de e para a existência.
O magistrado, independentemente da forma, considera o con-
teúdo da escrita e respeita o direito à linguagem e o direito de es-
crever como um direito à cidadania, lendo e respondendo ao pedi-
do – deferindo ou não o requerimento feito. Dessa maneira, essas
pessoas, com seus corpos e suas vozes privadas de liberdade, com

295
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

suas mentes livres e ativas, estão provocando brechas e fissuras no


sistema conservador da norma culta única da língua portuguesa
e no sistema conservador judiciário. Essa é uma das importantes
constatações da pesquisa, da qual tratamos nesta discussão.
Se, por um lado, o domínio da escrita hegemônica da língua
portuguesa das pesquisadoras não foi necessário para que os pre-
sos escrevessem petições ao magistrado, pois quando as pesquisa-
doras chegaram ao presídio eles já tinham essa prática, por outro
lado, os conhecimentos dos presos sobre o funcionamento social
e pragmático no presídio, com suas práticas escritas, na produção
das petições, apresentaram às pesquisadoras outro entendimento
sobre as práticas sociais da escrita e sobre o que seja letramento.
Para os presos, participar de uma pesquisa da Universidade Federal
de Goiás foi motivo de orgulho e de prestígio. Houve trocas, com-
partilhamento de conhecimentos, de experiências e de vivências.
Todos nós ganhamos.
Nem todos escrevem sua própria petição. Na UP de São Luís
dos Montes Belos, há escreventes, aqueles que escrevem para si
e para os outros. É o espírito de irmandade do quilombismo: so-
lidariedade, compartilhamento de saberes e coletividade. Isso é
compartilhamento de saberes e de fazeres, é letramento de resis-
tência e de/para existência, porque “ninguém ensina a ninguém,
ninguém aprende com ninguém. As pessoas aprendem em comu-
nhão” (PAULO FREIRE).

296
Capítulo 10

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. (Org. Trad. Paulo Bezerra). Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora
34, 2016.

BRASIL. Resolução Imperial nº 382, de 1º de julho de 1854. Disponível em: <https://


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BRASIL. Decreto Nº 9.081, de 3 de novembro de 1911. Disponível em: <https://www2.


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299
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 10

1. Inspirado nas ideias apresentadas no texto, defina letramentos


de resistência/reexistência?
2. Em que medida as noções de decolonialidade e quilombismo
podem contribuir para a compreensão das práticas de letra-
mento de grupos historicamente subalternizados?

300
CAPÍTULO 11

Letramentos de resistência
em contexto de luta por terra e
território na chapada do apodi
norte-rio-grandense
GLÍCIA AZEVEDO TINOCO
UFRN

ADRIANA VIEIRA DAS GRAÇAS


CENTRO FEMINISTA 8 DE MARÇO

INTRODUÇÃO

Práticas de letramento de resistência desenvolvidas no processo


de luta por terra e território na Chapada do Apodi norte-rio-gran-
dense durante os meses de junho a dezembro de 2011 constituem
o objeto de estudo deste capítulo. Para efeito de recorte de da-
dos, focalizamos as práticas que foram experienciadas em quatro
eventos de letramento coordenados pela Comissão de Mulheres do
Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais (STTR) de
Apodi, no Rio Grande do Norte, em contraposição ao Decreto de 10
de junho de 20111.

1  O Decreto de 10 de junho de 2011 foi publicado no Diário Oficial da União de 13


de junho de 2011. De acordo com o Manual de redação da Presidência da República
(2002), decretos que contêm regras singulares (desapropriações, por exemplo) não
recebem número de identificação. Eles são identificados por tema e data de publica-
ção. Esse é o caso do decreto a que nos referimos.

301
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Esse documento decreta de utilidade pública, para fins de


desapropriação pelo Departamento Nacional de Obras Contra as
Secas (DNOCS), aproximadamente 13.855,13 hectares de terras da
agricultura familiar de 31 assentamentos da reforma agrária e co-
munidades rurais do município de Apodi em benefício da instalação
do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi. Na área dessas desa-
propriações, porém, há mais de 500 famílias, segundo o relatório
Conflitos no Campo Brasil (CPT, 2013).
Desse cenário em disputa, visando à compreensão do poten-
cial das práticas de letramento de resistência das trabalhadoras ru-
rais de Apodi, destacaremos, neste capítulo, os seguintes aspectos:
contextualização sócio-histórica da luta em defesa da Chapada do
Apodi; explicitação dos pressupostos teórico-metodológicos cen-
trais para este estudo; análise de um recorte de dados; exposição
das considerações finais.
Salientamos ainda que, embora possa parecer datada a luta
inicialmente travada em 2011, ela continua viva e precisa se forta-
lecer ainda mais. É nesse sentido que a análise dessas práticas de
letramento encontra relevância entre as investigações da área da
Linguística Aplicada, mas sobretudo recobre-se de um ato de soli-
dariedade para com a luta camponesa.

302
Capítulo 11

CONTEXTUALIZANDO A LUTA EM DEFESA DA CHAPADA DO APODI

A Chapada do Apodi abrange os Estados do Rio Grande do Norte (RN)


e do Ceará (CE). Essa área, desde os anos 1980, sofre com um pro-
cesso de desapropriação, expropriação e desterritorialização2 para
atender aos interesses do agro e hidronegócio nacional e internacio-
nal. Nosso estudo se restringe ao lado potiguar da Chapada do Apodi,
especificamente à área rural do município de Apodi, tendo em vista
que é dessa região que trata o Decreto de 10 de junho de 2011.
Com uma população de 34.763 habitantes, sendo que 17.232 re-
sidem na área rural (IBGE, 2010), Apodi é um dos poucos municípios
brasileiros em que cerca de metade da população continua a viver
na área rural. Esse contexto é resultado de um processo de luta, nas
décadas de 1980 e 1990, que garantiu uma reforma agrária nessa re-
gião de solos férteis e água abundante. Assim, a conquista da terra,
aliada à abundância de água e às condições de solo e clima favorá-
veis à agricultura, contribuiu para o desenvolvimento de um modelo
de agricultura familiar de base agroecológica na Chapada do Apodi
norte-rio-grandense, transformando-a em uma das maiores cadeias
agroecológicas do Brasil.
O município de Apodi se caracteriza ainda por ser o principal
produtor de caprinovinocultura do RN e o segundo maior produtor
de mel do país (Caderno de participantes da Caravana Agroecológica
e Cultural da Chapada do Apodi, 2013). Seu território também prota-
goniza reconhecidas experiências sustentáveis de convivência com o
semiárido, de economia feminista e solidária e de organização social.

2  Segundo o Dicionário da Educação do Campo (2012), “desapropriação” é a perda do


direito à posse da terra e suas benfeitorias mediante o pagamento de indenizações. Já
“expropriação” e “desterritorialização” são processos interligados e correspondem às
pressões que sofrem as(os) trabalhadoras(es) para abandonarem suas terras, plantações,
práticas culturais, território, sejam resultados das desapropriações em si ou da negação
tanto do direito ao trabalho autônomo quanto à prática da agricultura camponesa.

303
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

O potencial hídrico e de solos agricultáveis tem despertado o


interesse de multinacionais do agro e hidronegócio. Desde 2011, a
exploração realizada por essas empresas vem se intensificando por
meio da desapropriação de terras, coordenada pelo DNOCS, para a
instalação do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi. Mentor dos
perímetros irrigados no Nordeste, o DNOCS se utiliza de um dis-
curso de prosperidade econômica para o Nordeste, mas, por trás
desse discurso, há, na verdade, grande interesse do neoliberalismo
no campo, o que gera um processo de exclusão, desrespeito e vio-
lência. De fato, muitas famílias que resistiram às desapropriações
na Chapada do Apodi se sentiram coagidas pelo DNOCS, durante
visitas intimidatórias, para que aceitassem as indenizações pro-
postas. Além disso, houve casos em que representantes do DNO-
CS adentraram, com tratores e máquinas de escavação, em terras
cujas(os) proprietárias(os) não haviam assinado qualquer documen-
to de autorização para isso. Frente a isso, a reação da comunidade,
em diálogo com o STTR, foi formalizar denúncia por meio do regis-
tro de um boletim de ocorrência (BO) na delegacia local.
Nesse contexto, a luta por terra e território é uma constante,
e ela passa, necessariamente, pela leitura e pela escrita como prá-
ticas sociais que podem fazer grande diferença em uma sociedade
em que não vale a palavra dada (marca de oralidade que, há alguns
anos, bastava, especialmente em comunidades rurais), mas a força
documental da escrita. Nesse sentido, contrapor-se à instalação do
Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi é parte dessa luta; lidar
com textos escritos que (re)constroem essa luta a cada interação
entre os grupos interessados é a outra parte.
O que fundamenta a contraposição a algo que pode superfi-
cialmente parecer um universal positivo – irrigação no sertão nor-
destino – é a análise das consequências dos perímetros irrigados
no Nordeste, a exemplo do Jaguaribe-Apodi, na porção cearense da

304
Capítulo 11

Chapada do Apodi. Nessa área, comunidades que viviam da agricul-


tura familiar assinaram acordos de desapropriação de suas terras e,
por isso, sequer podem entrar mais nas terras em que, por gerações,
suas famílias viveram. Com o dinheiro dessas desapropriações, mui-
tas famílias não conseguem comprar outro imóvel no campo nem
mesmo nas áreas urbanas. Logo, além de “sem terra”, muitos pas-
sam a ser “sem teto”. Desterritorializados, são coagidos a produzir e
a consumir alimento contaminado com agrotóxico, trabalhando para
grandes empresas de agro e hidronegócio instaladas nessas terras.
Não basta, porém, ter conhecimento e saber falar sobre essa
situação sócio-histórica e econômica da Chapada do Apodi. É pre-
ciso agir coletiva e colaborativamente, sobretudo, por meio da es-
crita. Cientes disso, trabalhadoras e trabalhadores, associações co-
munitárias, grupos de mulheres, movimentos sociais, tais como a
Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e a Via campesina; pastorais
sociais, a exemplo da Comissão Pastoral da Terra (CPT); institui-
ções de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), sendo uma
delas o Centro Feminista 8 de Março (CF8); organizações de direi-
tos humanos, uma dessas de atuação nacional, a Rede Nacional de
Advogados Populares; grupos de universidades cearenses e poti-
guares (TRAMAS/UFC3, Ser-Tão/GEDIC/UFERSA/UERN4) e outras
organizações de âmbito nacional (ASA, CUT, CONTAG, FETRAF5),

3  O Núcleo “Trabalho, Meio Ambiente e Saúde” (TRAMAS) é um grupo de pesquisa


coordenado pela Profa Dra Raquel Rigotto, da Universidade Federal do Ceará.

4  “Ser-Tão” é um projeto de extensão de assessoria jurídica, vinculado ao Grupo de


Estudos em Direito Crítico, Marxismo e América Latina (GEDIC), coordenado pelo
Prof. Dr. Daniel Araújo Valença, da Universidade Federal Rural do Semiárido, no Rio
Grande do Norte.

5  Siglas relacionadas às organizações de âmbito nacional: “ASA” é Articulação Se-


miárido Brasileiro”; “CUT”, Central Única dos Trabalhadores; “CONTAG”, Confedera-
ção Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares; “FE-
TRAF”, Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar.

305
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

em aliança com o STTR de Apodi, construíram diversas estratégias


de resistência e frentes de luta em defesa da Chapada do Apodi.
Organizados, esses grupos realizaram diferentes ações: inter-
dição de estradas de acesso aos canteiros de obras, fechamento de
portões da entrada das propriedades familiares, formalização de
denúncia na delegacia de polícia de Apodi, produção do documen-
tário-denúncia “Reverso” sobre as desapropriações, elaboração e
entrega de um dossiê-denúncia ao Ministério da Integração Nacio-
nal, escrita e envio de cartas de reivindicação à então Presidenta da
República Dilma Rousseff, participação em audiências com órgãos
do poder público municipal, estadual e federal, mobilização local,
nacional e internacional de atos de apoio e solidariedade à Chapada
do Apodi, com manifestações de rua e também em redes sociais
(tuitaço, postagens em Facebook). Em significativa parte dessas
ações, a escrita exerce tanto papel documental quanto garante vi-
sibilidade às ações e favorece novas adesões à luta.
Desse conjunto de agentes políticos na Chapada, o STTR de
Apodi, fundado em 1963, é uma importante força local que vem se
consolidando politicamente desde o final da década de 1980, perío-
do em que protagonizou, juntamente com a CPT, a luta por reforma
agrária na região. Com as ameaças das desapropriações na Cha-
pada, o STTR assume o papel de protagonizar a luta em defesa das
trabalhadoras e dos trabalhadores e, com isso, ganha ainda mais re-
levância, transformando esse território em uma referência de luta
contra o agro e hidronegócio no Brasil.
Merece destaque também a instância de organização feminista
desse sindicato – a Comissão de Mulheres do STTR. Em razão de
ações coordenadas em defesa da Chapada do Apodi, essa Comissão
obteve repercussão internacional ao tornar “Somos Todas Apodi” o
lema do Brasil na ação de “24 horas de solidariedade feminista pelo
mundo”, da Marcha Mundial das Mulheres, em dezembro de 2012.

306
Capítulo 11

Figura 1 – 24 horas de solidariedade feminista pelo mundo (MMM/dezembro/2012)

Fonte: Blog da Marcha Mundial das Mulheres <https://marchamulheres.wordpress.com>


(fotos 1, 2 e 3) Portal do AD <portaldoad.blogspot.com> (foto 4)

Conforme destaca a figura 1, cada uma das ações em defesa


do território demandou diferentes práticas de letramento tanto
das e dos agentes em defesa da Chapada quanto das e dos repre-
sentantes do poder público. Foi em decorrência desse processo
de luta em defesa da Chapada e do poder de mobilização e inter-
locução política dos movimentos sociais e do STTR de Apodi que
o Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi não foi implementado6.

6  O Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi não foi implementado até a data desta
publicação (primeiro semestre de 2021). Porém, tendo em vista que o atual governo
federal se pauta por ideais neoliberalistas, a luta das famílias do campo tem sido ainda
mais desigual desde janeiro de 2019, e nossas forças precisam estar redobradas para
defender as terras norte-rio-grandenses da Chapada do Apodi da ganância do agro
e hidronegócio.

307
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Interessa-nos, pois, neste capítulo, suscitar a seguinte reflexão:


que práticas foram desenvolvidas, como se organizam em função
de um projeto coletivo de dizer e que potencial de resistência e de
luta social elas representam?
Para responder a essas três questões centrais, explicitare-
mos inicialmente alguns construtos que fundamentam a análise
aqui empreendida.

PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

As reflexões construídas ao longo deste capítulo estão amparadas


em três vértices centrais: (i) a concepção dialógica da língua(gem)
do círculo bakhtiniano (BAKHTIN/VOLOSHINOV [1929] 2009); (ii)
os estudos de letramento de vertente etnográfica (KLEIMAN, 1995;
2006; STREET, 1993; TINOCO, 2008); (iii) a metodologia da pesqui-
sa da Linguística Aplicada (MOITA-LOPES, 2006).
O primeiro vértice parte da compreensão da língua(gem) como
um processo de interação em que ações de leitura, escrita e oralida-
de são desenvolvidas porque respondem a outras ações de lingua-
gem e, assim, interferem nas vidas das pessoas. É essa compreensão
que nos faz entender o Decreto de 10 de junho de 2011, por exemplo,
como um documento legal que, aliado a um discurso de favoreci-
mento do agro e do hidronegócio, os quais, em tese, trariam mais
riquezas à região, pode, na verdade, “expulsar” camponeses da terra
em que sempre viveram, trabalharam e dela se beneficiam por gera-
ções. De fato, a experiência cearense evidencia que não há “distri-
buição”, mas “concentração” de riquezas nas mãos dos empresários
dos citados ramos. Consequentemente, o Decreto de 10 de junho
de 2011 não apenas institui a “força legal” da desapropriação, ele
também mobiliza “forças contrárias” nas famílias campesinas, que

308
Capítulo 11

demonstram diferentes reações: medo, indignação, resignação, re-


sistência e luta.
Esse processo mobiliza, portanto, forças opostas, o que Bakh-
tin ([1975] 2002, p. 82) caracteriza como forças centrípetas (unifica-
ção) e forças centrífugas (dispersão):

Cada enunciação concreta do sujeito do discurso constitui o pon-


to de aplicação seja das forças centrípetas como das centrífugas.
Os processos de centralização e descentralização, de unificação
e de desunificação cruzam-se nesta enunciação, e ela basta não
apenas à língua, como sua encarnação discursiva individualizada,
mas também ao plurilinguismo, tornando-se seu participante ati-
vo. […] Cada enunciação que participa de uma “língua única” (das
forças centrípetas e das tendências) pertence também, ao mesmo
tempo, ao plurilinguismo social e histórico (às forças centrífugas
e estratificadoras).

Tal conjunto de forças pode ser demonstrado no Decreto de 10


de junho de 2011, que, inicialmente, cumprindo função coercitiva,
enuncia a desapropriação de terras da Chapada do Apodi, mas gera,
do ponto de vista da recepção, como contrapalavra7 a carta reivin-
dicatória encaminhada à então Presidenta Dilma Rousseff. Logo,
contra a força de unificação do referido decreto, erguem-se outras
vozes que buscam se contrapor a esse discurso único, hegemônico
e homogeneizante. De um lado, há as forças centrípetas que com-
pelem para a homogeneização de um modelo de agricultura capita-

7  Estamos tomando “contrapalavra” na concepção do círculo bakhtiniano, segundo


o qual: “A cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender,
fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma réplica. Quanto
mais numerosas e substanciais forem, mais profunda e real é a nossa compreensão.
Assim, cada um dos elementos significativos isoláveis de uma enunciação e a enuncia-
ção toda são transferidos nas nossas mentes para um outro contexto, ativo e respon-
sivo. A compreensão é uma forma de diálogo; ela está) para a enunciação assim como
uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à palavra do locutor
uma contrapalavra” (BAKHTIN/VOLOSHINOV [1929] 2009, p. 137).

309
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

lista, tais como o DNOCS, empresas nacionais e multinacionais do


agro e hidronegócio, setores do poder executivo de Apodi, alguns
representantes do poder legislativo local; de outro, há as forças
centrífugas, tais como o STTR de Apodi, a MMM, a CPT, entre outras
forças contra-hegemônicas que resistem ao modelo de agricultura
capitalista e investem em uma dispersão desses discursos hegemô-
nicos em favor dos modelos de produção do campo.
Assim, há sempre uma relação dialógica entre a palavra enuncia-
da e a contrapalavra que ela gera. Com efeito, a linguagem provoca
tensões (a luta em si) e contradições: para o mencionado decreto, “de-
sapropriar” é ação necessária para que o desenvolvimento chegue à
Chapada do Apodi, mas, para a maioria das famílias campesinas dessa
mesma região, “desapropriar” significa expulsar o povo do campo, o
qual já desenvolve um modelo de agricultura exitoso. É, portanto, esse
confronto que gera as ações de resistência, corporificadas por dife-
rentes gêneros discursivos: a carta reivindicatória, o BO, o documen-
tário-denúncia “Reverso”, o tuitaço “Somos Todas Apodi”.
Disso decorre a compreensão de que, a cada reação, novas
ações de linguagem podem corresponder, e a rede de linguagens,
assim como a da vida, continua seu curso a depender das (re)ações
de cada lado. Com efeito, nas palavras de Bakhtin/Voloshinov
([1929] 2009, p. 117):

Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Atra-


vés da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última
análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de
ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim
numa extremidade, na outra, apoia-se sobre o meu interlocutor.

O vértice da concepção dialógica da língua(gem) nos oferece


dois aportes basilares. Em primeiro lugar, ele se contrapõe à ideia
da verdade absoluta e acabada, ou seja, aquela que poderia consi-

310
Capítulo 11

derar o Decreto de 10 de junho de 2011 uma ordem inabalável que


levaria a apenas uma reação possível: “cumpra-se”. Em segundo, ele
se coaduna bem com a perspectiva freireana de que “O mundo não
é. O mundo está sendo” (FREIRE, 2000, n.p.). Isso significa que, na
interação, as disputas entre o discurso da desapropriação de terras
da Chapada do Apodi e o consequente avanço do agro e do hidro-
negócio, de um lado, e o da luta por terra e território em favor da
agricultura familiar, por outro, embora tenham forças sociopolíti-
cas desiguais porque representam sujeitos de grupos diferentes,
podem alterar o curso do inicialmente planejado. Isso é possível
exatamente por causa da força das palavras lançadas entre esses
grupos, as quais vão construindo outras verdades e, ao mesmo tem-
po, o mundo.
Em consonância com esse primeiro vértice conceitual, o segundo
se faz na estreita relação entre as práticas dialógicas de linguagem, o
mundo social e a perspectiva etnográfica dos estudos de letramen-
to (STREET, 1993; KLEIMAN, 1995; 2006). Essa perspectiva considera
que os letramentos se configuram como práticas sociais situadas, que
respondem a contextos específicos para atender a objetivos também
específicos nos quais a linguagem tenha papel central.
Tal perspectiva é especialmente importante para este trabalho
porque ela alarga a esfera de ação dos estudos de letramento, con-
forme salienta Tinoco (2008, p. 106):

[...] ao focalizar as “práticas sociais” ou, em outras palavras, “o


processo de letramento”, alarga-se o raio de ação do letramento
em tempo e espaço. Passa-se a vislumbrá-lo como um fenômeno
que nos acompanha por toda a vida e nas mais diferentes esfe-
ras de atividade (não apenas na escola) com os mais diferentes
propósitos e formas de inserção e de participação em eventos de
todos os níveis sociais e/ou de escolaridade.

311
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Compreendemos, então, que admitir os letramentos como


uma ação plural implica assumir que a vida social é permeada por
múltiplas linguagens com diferentes funções sociais. Nesse sentido,
vemos que as ações de resistência e de luta na Chapada do Apodi se
concretizam pela combinação de várias linguagens (cinematográfi-
cas, cênicas, musicais, publicitárias) que entrelaçam leitura, escrita
e oralidade com vistas à transformação social. Essa transformação,
por sua vez, que teve início em uma pequena sala de sindicato de
área rural de um município do interior do semiárido nordestino
pode ter reverberação nacional e até internacional, conforme de-
monstram os dados deste capítulo. Tudo depende da rede de lin-
guagens a ser entrelaçada pelos sujeitos em interação.
Desse segundo vértice, três conceitos nos são especialmente
importantes: práticas, eventos e agentes de letramento. Segundo
Heath (1982, p. 50), eventos de letramento são “[...] ocasiões em que
a língua escrita é parte integrante da natureza das interações entre
os participantes e de suas estratégias e processos interpretativos”8.
Em cada evento (unidade concreta, que pode ser fotografada, gra-
vada em áudio e em vídeo), podemos observar diferentes práticas
de letramento, as quais estão relacionadas às estruturas culturais
e de poder de determinada sociedade (STREET, 1993). Isso significa
que as práticas de letramento são determinadas por aspectos cul-
turais, sociais e derivam também das relações de poder instauradas
nas diferentes situações de comunicação. Já agente de letramento,
conceito desenvolvido por Kleiman (2006, p. 84), refere-se a “[...]
um agente social e, como tal, é conhecedor dos meios, fraquezas e
forças dos membros do grupo e de suas práticas locais, mobilizador
de seus saberes e experiências”. Portanto, ser agente de letramento

8  “[...] literacy events: occasions in which written language is integral to the nature
of participants’ interactions and their interpretive processes and strategies.”

312
Capítulo 11

é agir no mundo, no processo vivenciado e contribuir para a cons-


trução e o engajamento de outros agentes. Podemos considerar
assim que não há “[...] como pensar na questão da resistência sem
pensar na posição do agente, na sua própria agência” (RAJAGOPA-
LAN, 2002, p. 204).
Seguindo essa mesma direção teórica, algumas pesquisas no
Brasil (SOUZA, 2009; SITO, 2010, por exemplo) tomam as práticas
de letramento de ativistas/lideranças de movimentos sociais como
objeto de estudo, e isso tem contribuído tanto para dar visibilidade
a letramentos que, em geral, não são reconhecidos pela escola/uni-
versidade quanto para a circulação de um conceito dessas pesquisas
derivado: letramento de resistência ou letramento de reexistência.
Contextualizada em ambiente urbano da capital paulista, a
pesquisa de Souza (2009) salienta que as práticas de letramen-
to desenvolvidas por ativistas do movimento hip hop conseguem
dialogar mais com a realidade sócio-histórica de suas comuni-
dades do que as práticas que, em geral, são desenvolvidas no
ambiente escolar. Os dados da citada pesquisadora demonstram
que, ao valorizar as experiências culturais do lugar, o movimen-
to hip hop contribui também para o reposicionamento de suas
identidades de negros, ativistas e educadores.
Já o estudo realizado por Sito (2010), na comunidade quilom-
bola de Casca, área rural do município de Mostardas, no Rio Grande
do Sul, trata de práticas de letramento desenvolvidas por lideranças
quilombolas durante o processo de titulação para reconhecimento
do território quilombola. A apropriação das práticas de letramen-
to por essa comunidade, requeridas na luta pela titulação da terra,
contribuiu para produzir condições para que os indivíduos da co-
munidade construíssem um processo de reposicionamento iden-
titário, ou seja, de “tornarem-se quilombolas”. Os letramentos de
resistência nessa comunidade foram capazes, pois, de construir a

313
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

reexistência de cada indivíduo e da coletividade. Mais uma vez, as


linguagens constroem e são construídas pelo mundo que não “é”,
porque está constantemente “sendo”, de acordo com Freire (2000).
Da leitura desses dois trabalhos acadêmicos, compreendemos
que os letramentos de resistência (ou de reexistência) estão ligados
a processos de disputa de poder. Assim sendo, também se trata de
um processo de invenção e de reinvenção de práticas e de agentes
– a depender de cada evento vivenciado. E isso não se aprende na
escola, importante agência de letramento, conforme salienta Klei-
man (1995), mas que, na maioria das vezes, focaliza a leitura e a es-
crita como processos cognitivos (não como práticas sociais) e busca
a homogeneização de saberes e fazeres como se não vivenciasse
lutas de diferentes naturezas.
Com efeito, uma das convergências entre os dados de Sousa
(2009) em comunidade urbana paulistana, os de Sito (2010) em área
rural do sul-rio-grandense e os de Graças (2019) na Chapada do
Apodi norte-rio-grandense é que os letramentos de resistência são
eminentemente vivenciais. Logo, reinventar práticas implica que os
indivíduos na e pela linguagem se reposicionam identitariamente e
se constituem em agentes de suas próprias vidas e das transforma-
ções sociais de suas comunidades. Com isso, constroem-se refe-
rências culturais e relações de poder contra-hegemônicas de modo
que diferentes práticas de leitura, escrita e oralidade possam ser
vivenciadas e reconhecidas.
Para chegarmos a essa compreensão, um terceiro vértice nos
oferece forte amparo: a Linguística Aplicada (LA). Pesquisar sobre
práticas de letramento de resistência é, metodologicamente, possí-
vel por nos afiliarmos à LA, área de conhecimento que é transdisci-
plinar, transgressora, intercultural e, especialmente quanto à ética na
pesquisa, segundo Moita Lopes (2006, p. 104), a LA se posiciona como
representante de:

314
Capítulo 11

[...] uma ordem mais sensível às realidades humanas, especial-


mente ao sofrimento humano do que aquela representada por
valores modernistas, ocidentalizados, liberais e universais, apoia-
dos por uma comunidade epistêmica universalista, alimentada
pelo mercado livre transnacional em um mundo novo globalizado
e liberal. É assim que entendo que a LA contemporânea pode co-
laborar na construção de “um novo paradigma social e político”
e “epistemológico”.

Essa preocupação da LA com a linguagem em uso e, mais, le-


vando em consideração o sofrimento humano permite que, na
condição de pesquisadoras(es), atuemos de maneira situada e nos
vinculemos aos interesses das(os) colaboradoras(es) que conosco
repensam o mundo social. Entendemos que essa é uma das grandes
contribuições que a LA oferece à consolidação dos paradigmas so-
cial, político e epistemológico de suas pesquisas. Em consonância
com essa área de conhecimento estão os estudos de letramento de
vertente etnográfica, cuja concepção de língua(gem) é do círculo
bakhtiniano. Em suma, são esses os vértices que ancoram o olhar
investigativo deste capítulo.

ANÁLISE DE PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA NA CHAPADA DO APODI



Resistir às desapropriações de terras na Chapada do Apodi norte-
-rio-grandense requereu das trabalhadoras rurais diversas práticas
de letramento no sindicato, nas ruas, nos canteiros de obras e nas
rodovias. Entre as práticas vivenciadas nesse processo, destaca-
mos as de quatro eventos9 específicos: (i) escrita da carta assinada

9  Para efeito de organização dos dados, estamos tomando quatro eventos distin-
tos. Salientamos, porém, que essa organização não corresponde, necessariamente, à
quantidade de dias de trabalho que cada evento exigiu.

315
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

pela Comissão de Mulheres do STTR de Apodi; (ii) escrita de cartas


assinadas individualmente por trabalhadoras de assentamentos e
comunidades de Apodi e envio dessas cartas à então Presidenta da
República; (iii) mobilização nas ruas de Apodi e de outros municí-
pios brasileiros bem como nas redes sociais; (iv) recepção e divul-
gação da carta-resposta da Secretaria da Presidência da República.
Desde o primeiro evento de letramento, cujo objetivo era rei-
vindicar, à então Presidenta da República Dilma Rousseff, a revoga-
ção do Decreto de 10 de junho de 2011, as trabalhadoras se envolve-
ram – sempre coletiva e colaborativamente – em diversas práticas
de letramento. Vejamos algumas delas.

Figura 2 – Práticas de letramento do evento 1

Fonte: acervo de Graças (2019)

316
Capítulo 11

No evento 1, leitura, escrita e oralidade se conjugam em favor


de uma meta coletiva: a produção de uma carta que reivindique a
revogação do Decreto de 10 de junho de 2011. Essa carta (ver anexo),
ancorada no ponto de vista da Comissão de Mulheres do STTR de
Apodi, trata das consequências desse decreto para as famílias que
podem ser expulsas da terra e para as experiências agroecológicas
que, em desenvolvimento há mais de 20 anos na região, são majo-
ritariamente construídas pelas mulheres em quintais produtivos10.
A exemplo do trabalho nos quintais produtivos, também a cons-
trução dessa carta seguiu a metodologia da ação coletiva, conforme
salienta o depoimento de Mastruz11, moradora de um assentamento da
reforma agrária na porção norte-rio-grandense da Chapada do Apodi:

Foi reunida uma turma... Vieram pra cá, pro sindicato... A gente
foi dizendo o que queria, o que não queria... A gente foi fazendo
a carta aqui, no sindicato [...] a gente conversou mais ou menos
o que queria – e todo mundo queria a mesma coisa, né, contra
esse projeto.

Nesse evento, a escrita é processual e se constrói como resul-


tado de interações. Não se trata de uma ação individual, pensada
hierarquicamente por alguém que ocupa uma posição de poder na
Comissão de Mulheres. Essa prática colaborativa de ler o decreto,
analisar as consequências dele para a vida das comunidades a se-

10  No semiárido nordestino, “quintal produtivo” é uma área ao redor da casa onde
há uma produção diversificada. Nela, há o cultivo de plantas fitoterápicas, frutíferas
e hortaliças, a criação de pequenos animais (aves, caprinos, ovinos, suínos) e o be-
neficiamento da produção, gerando renda para a família e fazendo girar a economia
local. É também um importante espaço de preservação de sementes crioulas, ou seja,
sementes adaptadas à região e conservadas pela família. Esse quintal é ainda utilizado
para momentos de organização de ações coletivas na comunidade.

11  Mastruz é o pseudônimo escolhido por essa trabalhadora que participou ativa-
mente das ações dos eventos 1 e 2. Ela nos concedeu entrevista em 30 de abril de 2018.

317
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

rem atingidas, propor a escrita de uma carta reivindicatória assi-


nada pela Comissão, ouvir cada uma das participantes e escrever,
naquele momento de efervescência de ideias, uma versão inicial da
carta que, depois de lida, foi reescrita algumas vezes para incorpo-
rar sugestões das participantes responde às demandas do grupo de
forma coletiva e solidária, maximizando o caráter social da lingua-
gem. Tal processo de compartilhamento de saberes e experiências
de vida favorece a produção do texto colaborativo e fortalece as
próprias mulheres que, independentemente da escolaridade, tor-
nam-se autoras de um dizer coletivo.
Conforme demonstra a figura 2, sete práticas são desenvol-
vidas por mulheres com diferentes escolaridades (algumas sabem
apenas escrever o próprio nome) que trabalham juntas, utilizando
a escrita como uma tecnologia a favor de uma demanda situada.
O produto dessas práticas – a carta de reivindicação – é de res-
ponsabilidade coletiva, e isso fortalece tanto o documento quan-
to o grupo.
Outro dado a se ressaltar é que a carta é manuscrita. Isso si-
naliza as condições de trabalho do grupo: não há computador nem
impressora, mas isso não as impede de agir. A tecnologia que in-
teressa é a própria escrita e ela é dominada por parte do grupo. A
outra parte contribui com o aprimoramento do dizer a partir de
seus saberes experienciais. Temos aqui letramentos de resistência
operacionalizados com as potencialidades e os recursos do grupo.
Cientes da disputa ideológica que essa reivindicação repre-
senta, as mulheres discutem o conteúdo da carta e o modo de dizer
pensando tanto na interlocutora direta (Dilma Rousseff) quanto na
audiência mais ampla – agentes interessados no agro e hidrone-
gócio. Afinal, contrapondo-se ao decreto, a carta reivindicatória
instaura enunciados que oferecem concretude a uma intensa dis-
puta de poder.

318
Capítulo 11

Para tanto, nessa carta, as escreventes constroem diferentes


movimentos. Um deles é de aproximação da Presidenta Dilma Rou-
sseff, conforme vemos no trecho12 a seguir:

Presidenta Dilma, é com enorme prazer e confiança que nós, re-


presentantes da Comissão de Mulheres do STTR de Apodi e mili-
tantes da Marcha Mundial das Mulheres, moradoras de diversas
comunidades de Apodi, escrevemos para pedir encarecidamente
que você RETIRE de nossa terra – que com feijão, arroz, pão e
esperança alimenta o nosso povo – o decreto DE No 0-001, DE 10
DE JUNHO DE 2011.

O parágrafo introdutório do corpo da carta apresenta escolhas


lexicais que cumprem o propósito de explicitar à interlocutora que,
embora a carta seja de reivindicação, ela é também revestida de
“enorme prazer e confiança”. Afinal, sendo as remetentes mulheres
trabalhadoras e militantes, a destinatária, também mulher e alçada
à posição máxima do poder executivo, inspira confiança, e não ape-
nas por uma questão de gênero, mas pela militância de sua história
política. Consequentemente, temos, nesse enunciado, uma tentati-
va de posicionar a interlocutora ao lado da luta camponesa.
Possivelmente devido a essa aproximação, as escreventes te-
nham se sentido à vontade para utilizar o pronome “você” (não o
pronome adequado ao cargo de Presidenta da República: Vossa Ex-
celência), seguido do verbo “RETIRE” que, em caixa alta, é como
se representasse a voz dessas mulheres a “gritar uma palavra de
ordem”. Porém, antes mesmo da inserção do objeto direto “o decre-
to”, elas caracterizaram a própria terra, utilizando, inicialmente, um
pronome na primeira pessoa do plural “nossa”, o que reforça tanto

12  Para melhor legibilidade, digitamos os trechos da carta reivindicatória que utili-
zamos neste capítulo. Salientamos, porém, que, no original, essa carta é manuscrita
(ver anexo), bem como as outras 1.999 enviadas à então Presidenta Dilma Rousseff.

319
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

a coletividade das escreventes quanto a aproximação entre as inter-


locutoras da carta; em seguida, há uma oração adjetiva que explicita
ser a terra daquela região produtora de alimentos e de “esperança”
para o “nosso” povo. Com essa estratégia, controlam a subjetividade,
posto que o uso de “nossa terra” e “nosso povo” inclui também a Pre-
sidenta como representante da Chapada do Apodi, e isso se reforça
ao colocar a “esperança” como item produzido nessa terra, a exem-
plo de “feijão”, “pão” e “arroz”. Essa escolha abre um estreito diálogo
com o discurso assumido pelo Partido dos Trabalhadores (PT), cujo
lema, especialmente no período histórico em que essa carta foi es-
crita, evocava a esperança de um Brasil mais justo e igualitário.
É interessante observar, ainda nesse primeiro parágrafo, que,
conquanto originalmente o documento que querem ver revogado
não tenha numeração, as escreventes alteram isso: “[...] o decreto
DE No 0-001, DE 10 DE JUNHO DE 2011”. Nas entrevistas realizadas,
não houve consenso acerca do motivo que as levou a inserir um
número a um decreto sobre o qual não tinham controle de registro.
Inferimos, porém, que a prática de lidar com documentos numera-
dos no STTR tenha sido o esteio para essa decisão.
No segundo parágrafo da carta, o movimento de aproximação
com a interlocutora continua a ser construído habilmente. Vejamos:

A região do Apodi é a mesma que LULA veio em 2005 e nos encheu


de esperança, assinou o primeiro contrato PRONAF MULHER do
país. Nela, há muitas experiências de organização de mulheres.
É também uma região com muitas experiências de convivência
com o semiárido, pois aqui criamos abelhas, galinhas, caprinos e
plantamos de forma agroecológica. Apodi é um dos poucos muni-
cípios que a população rural é maior que a urbana.

Compreendendo a conjuntura nacional, o alinhamento político


entre o governo anterior (“LULA”) e o governo da Presidenta Dilma,

320
Capítulo 11

as escreventes caracterizam como positivas as ações desenvolvidas,


desde os anos 1990, nessas terras de reforma agrária, salientando a as-
sinatura do “primeiro contrato PRONAF MULHER do país”, as “muitas
experiências de convivência com o semiárido” e o fato de a população
rural de Apodi ser maior que a urbana como causas plausíveis para de-
monstrar o segundo movimento, que é de dispersão do discurso con-
trário a partir da explicitação de uma contradição do referido decreto.
Sob o ponto de vista dessas escreventes, as desapropriações não tra-
riam desenvolvimento para a região, elas destruiriam um projeto que
vem sendo construído há décadas, com investimento de dinheiro pú-
blico e resultados positivos, para abrir espaço aos interesses de gran-
des empresas nacionais e internacionais do hidro e do agronegócio.
Nessa mesma carta, também há interlocução com agentes
contrários à resistência das escreventes (DNOCS e empresários),
conforme se pode inferir no trecho a seguir.

Nas nossas comunidades [...] plantamos feijão, arroz, batata, ma-


caxeira, frutas, verduras e criamos pequenos animais para a nos-
sa alimentação diária. A chegada desse decreto nos expulsará de
nossas terras, nos distanciará de nossos laços de amizade e, in-
clusive, de nossas famílias. Com esse decreto, nós deixaremos de
produzir para o próprio sustento e seremos obrigadas a vender
nosso trabalho para poluir nossas águas e nosso chão e colocar
em nossas mesas comida envenenada ao invés do arroz e do feijão
agroecológico que nós mesmas produzimos.

O “decreto” a que as escreventes se referem foi publicado


pela Presidência da República como resultado de uma demanda do
DNOCS, que desconsiderou todas as atividades de produção já de-
senvolvidas na região em favor de um outro projeto de economia:
o das grandes empresas interessadas nessas terras. Além disso, ao
mencionarem que a descontinuidade desse modelo de trabalho as
obrigaria a “vender nosso trabalho para poluir nossas águas e nosso

321
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

chão e colocar comida envenenada em nossas mesas ao invés do


arroz e do feijão agroecológico”, elas fazem referência às empresas
de agro e hidronegócio para as quais, por uma questão de sobrevi-
vência, teriam de trabalhar. No Brasil, essas empresas são respon-
sáveis pelo uso de diversos agrotóxicos, alguns deles proibidos há
anos em outros países. Assim, essas mulheres demonstram que não
querem apenas permanecer na terra. Querem também contribuir
para a não contaminação das terras da Chapada do Apodi e para o
incentivo ao trabalho livre e autônomo, com soberania alimentar.
Salientamos ainda, por relevante, o quarto parágrafo da carta.
Vejamos.

ESTE DECRETO No 0-001 DE 10 DE JUNHO DE 2011 AMEAÇA A


VIDA NO CAMPO, ENVENENA NOSSA TERRA E TRAZ AGRICUL-
TURA EMPRESARIAL IRRIGADA, SUBSTITUINDO A AGRICULTU-
RA FAMILIAR E CAMPONESA. ISSO NÃO NOS INTERESSA, NÃO
SERVE PARA NOSSAS VIDAS, NOSSAS FAMÍLIAS NEM PARA O
NOSSO FUTURO.

O uso de um recurso semiótico13 de destaque – a caixa alta –


para um parágrafo inteiro da carta parece atender a duas funções:
ratificar os argumentos já utilizados em parágrafos anteriores e fri-
sar o que mais interessa com vistas a, possivelmente, levar a Presi-
denta da República a uma reação: revogar o decreto. Em uma ana-
logia, podemos considerar que o quarto parágrafo se assemelha a
uma mobilização de rua em que, juntas, as mulheres gritam palavras
de ordem. Feito isso, nada mais resta a não ser despedirem-se (5o
parágrafo) e assinarem.

13  Outro recurso semiótico utilizado pela Comissão de Mulheres da STTR se refere
à escolha do envelope. Essa escolha foi feita no primeiro evento, mas nos ateremos
a ela no segundo porque é nele que a simbologia do envelopamento se faz junto às
mulheres das comunidades e dos assentamentos.

322
Capítulo 11

Em suma, os trechos analisados demonstram que letramentos


de resistência se vinculam a forças centrípetas e centrífugas que
exigem (re)ações de agentes que estão em diferentes lados. Cientes
disso, as trabalhadoras parecem ter percebido, no processo, que
escrever uma carta coletiva não era suficiente. Elas decidiram fazer
um mutirão de escrita de cartas individuais nas comunidades e nos
assentamentos de Apodi, conforme Mastruz relata:

[...] depois levamos ((refere-se à carta escrita pela Comissão de


Mulheres do STTR)) pros assentamentos, pra outras mulheres es-
creverem e umas assinarem [...] pras que não sabiam escrever, a
gente lia a carta, escrevia pra elas e elas assinavam.

Esse relato nos remete ao segundo evento de letramento, cujo


objetivo era replicar a carta de reivindicação nas comunidades e
nos assentamentos. Porém, essa prática não se configurava como
um simples exercício de cópia da carta da Comissão de Mulheres
do STTR. Em reunião com as representantes das comunidades e
dos assentamentos, houve discussões sobre a proposta do decreto,
as desapropriações, os riscos do agro e hidronegócio na região e a
importância de se dialogar com o governo federal, reivindicando
a revogação do referido decreto. Para subsidiar essas discussões,
novas práticas foram desenvolvidas. Vejamos.

323
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Figura 4 – Práticas de letramento do evento 2

Fonte: acervo de Graças (2019)

Diante da disputa instaurada, a Comissão de Mulheres do STTR


de Apodi pensou, estrategicamente, na escrita e no envio não de
apenas uma carta, mas de duas mil cartas assinadas individualmen-
te por trabalhadoras rurais da região. Essa estratégia recobria um
objetivo central: (im)pressionar a Presidenta da República e, com
isso, levá-la a revogar o Decreto de 10 de junho de 2011. Porém, ao
mesmo tempo, essa estratégia se recobre de simbologias especiais:
as trabalhadoras não desconsideravam a importância de uma carta

324
Capítulo 11

coletiva assinada pela Comissão, mas pensaram no impacto visual


de um grande número de cartas chegando todos os dias na Secre-
taria da Presidência da República, como se fosse uma mobilização
de rua com duas mil mulheres revozeando os dizeres da Comissão
de Mulheres do STTR. Além disso, por não chegarem todas as cartas
juntas, era como se, a cada dia, várias vozes chegassem à Secretaria
para lembrar e reforçar a reivindicação da Chapada do Apodi.
Para tornar essa simbologia ainda mais vigorosa, outra escolha
semiótica foi agregada à linguagem escrita: a cor roxa do envelope.
Essa cor representa o movimento feminista em diversos países do
mundo. Além disso, ela também geraria destaque às cartas das tra-
balhadoras de Apodi em meio às inúmeras correspondências que,
possivelmente, a Secretaria da Presidência da República recebe to-
dos os dias. Assim, foram distribuídos os dois mil envelopes roxos
para garantir que todas as cartas seriam enviadas com esse enve-
lope específico e, sistematicamente, as coordenadoras passaram a
visitar cada comunidade, a fim de explicar o decreto, as consequ-
ências das desapropriações e do agro e hidronegócio na Chapada e,
depois, subsidiar a escrita das cartas individuais.
O sucesso desse evento está atrelado à participação de agentes
de letramento que, a exemplo de Mastruz, (re)conhecem as forças
organizativas dos grupos de mulheres das diferentes comunidades
e assentamentos. Uma dessas forças é o potencial de mobilização
das trabalhadoras. Para o mutirão de escrita da carta, elas foram
chamadas via anúncio na rádio local, telefonemas e visitas casa a
casa. Esse chamamento foi necessário para que o número inicial-
mente planejado (2 mil cartas) fosse atingido. Nessa atividade de
mobilização, não era necessário que todas soubessem ler ou es-
crever. Imprescindível era compartilhar a compreensão das ame-
aças do decreto e, consequentemente, mobilizar outras mulheres
para fortalecer a luta. Assim, tanto as coordenadoras da Comissão

325
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

de Mulheres do STTR quanto as lideranças locais se constituíam


igualmente como agentes no processo de mobilização, mas cada
uma oferece sua contribuição de acordo com suas competências e
habilidades. É na coletividade que se tornam plenas.
Para apresentar o Decreto de 10 de junho de 2011 e coordenar
o debate das consequências dele na vida das comunidades e dos
assentamentos, as coordenadoras da Comissão de Mulheres assu-
miram a liderança, tendo em vista que são elas que participam de
espaços mais amplos para levar as pautas das(os) trabalhadoras(es)
para fora da comunidade e trazer informações para as comunida-
des, subsidiando as discussões locais.
Um instrumento utilizado para a análise das consequências do
decreto foi o documentário “O veneno está na mesa”, que mostra os
índices de contaminação dos alimentos no Brasil e as consequências
disso para a saúde. Após a exibição, todas debatiam o vídeo e estabe-
leciam relações entre ele, a vida de cada uma e de suas comunidades.
Feito isso, as coordenadoras da oficina socializam a proposta
da carta coletiva e do envio de 2000 cartas para pressionar a Presi-
denta Dilma a revogar o decreto de desapropriações. Nessa oficina,
havia a preocupação também com as mulheres que tinham pouca
ou nenhuma escolaridade. Para que todas pudessem participar, fo-
ram constituídas escribas que liam a carta da comissão, ouviam os
detalhamentos que cada mulher solicitava que fossem inseridos em
sua própria carta, registravam-nos e, depois, orientavam a escrita
da assinatura. Esse procedimento demonstra que a “replicação” da
carta acabou por se constituir como uma oportunidade de escrita
de cartas individuais, haja vista que, embora houvesse um projeto
coletivo de dizer, cada mulher exercia o direito de fazer inserções
em sua própria carta de modo a tornar singular o texto que, tratan-
do da vida de todas, trazia a coloração de cada uma. Nessa cons-
trução coletiva, as mulheres que sabiam ler e escrever ajudavam as

326
Capítulo 11

que não tiveram acesso à escolarização e todas, simbolicamente,


construíram uma forma de ter acesso à Presidenta da República.
A finalização desse processo – terceiro evento, em 18 de no-
vembro de 2011 – contou com uma comitiva de cinco mulheres que,
empunhando a bandeira da MMM e entoando palavras de ordem
com slogans da luta pela Chapada, foram postar a última remessa
de cartas na agência dos Correios de Apodi. Para viabilizar o envio
das duas mil cartas, as trabalhadoras rurais fizeram uso do serviço
de Carta Social14.
Em um projeto coletivo para rechaçar ameaças à vida no cam-
po em favor da manutenção do direito de escolher o que plantar e
o que comer, diversas ações de linguagem, em diferentes semio-
ses, foram desenvolvidas. Assim, todas foram se construindo como
agentes de letramento.
Um dos resultados dessas ações foi o envio da carta-resposta
da Secretaria da Presidência da República à Comissão de Mulheres
do STTR. Isso gerou o quarto evento de letramento cujas práticas
se vinculavam ao objetivo de refletir sobre a posição da então Pre-
sidenta: haveria disposição do governo federal para dispersar as
forças neoliberais do decreto e unificar-se aos interesses das tra-
balhadoras e trabalhadores da Chapada do Apodi?
A carta-resposta sinaliza uma possibilidade de flexibilizar o
discurso de desapropriação. Na breve carta encaminhada pela Se-
cretaria da Presidência da República, especificamente no segundo
parágrafo do corpo da carta, explicita-se uma abertura para o diá-
logo com o povo da Chapada, conforme podemos observar no tre-
cho reproduzido a seguir:

14  Segundo a Portaria no 245, de 09 de outubro de 1995, a carta social é remetida por
pessoa física, tendo limite máximo de peso igual a 10 gramas; endereçamento manus-
crito, com a indicação “carta social”; franqueamento por meio de selo postal adesivo.
No período, o valor da Carta Social custava dois centavos.

327
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Pela natureza do assunto, informo que cópia da correspondência


foi encaminhada ao Gabinete-Adjunto de Informações em Apoio
a Decisão da Presidência da República.

Com essa resposta, a luta das mulheres se renova. A posição da


Presidenta poderia, ao mesmo tempo, dispersar as forças do decre-
to e unificar-se às forças da Chapada. Diante disso, a coordenadora
da Comissão de Mulheres escaneou e divulgou uma cópia da carta
no website do STTR. Divulgou a notícia no programa de rádio se-
manal do STTR e a leitura da carta fez parte da pauta de reuniões
das comunidades e dos assentamentos que se mobilizaram ante-
riormente para a escrita das duas mil cartas. A intenção da Comis-
são de Mulheres era dizer às outras trabalhadoras que todo aquele
processo no qual se engajaram foi considerado porque a carta delas
havia se transformado em um dos documentos de apoio à posterior
decisão da Presidência da República. E essa decisão, por ora, pre-
serva pelo menos em parte a Chapada do Apodi dos interesses do
agro e hidronegócio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que significa, enfim, pesquisar sobre letramentos de resistência?


Para responder a essa pergunta, tentaremos responder, inicialmen-
te, a outra: o que é resistência, afinal? No Brasil, resistência não é
apenas uma palavra. É, sobretudo, uma prática. E bastante expe-
rienciada. Os povos indígenas resistem há mais de cinco séculos
contra a invasão e a expropriação de suas terras, o extermínio de
suas práticas culturais e lutam em defesa de suas próprias vidas. Os
povos negros resistiram à escravidão, à negação de suas culturas,
à perseguição das religiões de matriz africana e ainda resistem a
preconceitos e ao extermínio da juventude negra nas periferias do

328
Capítulo 11

país. Os povos do campo, a exemplo das comunidades e dos as-


sentamentos da Chapada do Apodi, resistem pela mãe terra, pela
reforma agrária, pela produção do alimento para subsistência, pela
prática da agroecologia, pela economia solidária.
De igual forma, tratar de resistência é também focalizar as mu-
lheres que resistem contra o patriarcado e o machismo, os quais em
pleno século XXI ainda tentam dominar social, cultural, econômica
e fisicamente as mulheres. Porém, a história do Brasil (e do mundo)
nos mostra que sejam índias, negras, camponesas, mulheres sem-
pre estiveram ombro a ombro com homens na resistência e na luta
pela vida e pela sobrevivência. A história do povo brasileiro é, em
suma, uma história de resistências.
Em uma sociedade grafocêntrica, na qual a escrita exerce im-
portância e poder, essa resistência, em especial no que tange às
mobilizações de luta por terra e território, requer mais do que ocu-
pações de terras, bloqueio de rodovias, fechamento de portões. É
necessário também a utilização da leitura e da escrita como estra-
tégias de diálogo com o poder público, na tentativa de se ter um
acordo, e com a sociedade, na perspectiva de receber o apoio ne-
cessário para a luta, que também pode, em solidariedade, atuar na
pressão do governo. Nesse processo, a escrita ultrapassa os meios
físicos de divulgação, tendo importância as mídias digitais e redes
sociais, que também passam a ser espaço de luta e resistência, con-
forme demonstram nossos dados.
Os dados trazidos à análise apontam que as práticas de letra-
mento de resistência em torno da carta para a Presidenta Dilma
Rousseff, mobilizados em âmbito local e aliados a outras práticas
de letramento e mobilização popular, fortaleceram a organização e
o empoderamento das trabalhadoras rurais da Chapada do Apodi.
Isso contribuiu para transformar um problema local em uma luta
coletiva internacional. Independentemente da escolaridade, as

329
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

trabalhadoras rurais da Comissão de Mulheres do STTR de Apodi


atuaram como importantes agentes de letramento.
Para responder à ação de linguagem do governo federal (o de-
creto) que decretava a desapropriação de terras pertencentes por
gerações a centenas de famílias na Chapada do Apodi, as trabalha-
doras rurais de Apodi mobilizavam práticas de letramento que, ao
mesmo tempo em que questionavam a postura do governo federal,
também reivindicavam a revogação do decreto de desapropriação.
De fato, as práticas desenvolvidas pelas trabalhadoras rurais na
Chapada do Apodi cumprem o propósito de informar ao governo
federal e às empresas do agro e hidronegócio que o povo apodiense
não está disposto a se entregar sem luta e, por isso, segue resistin-
do e lutando na e pela Chapada.
Nesse contexto, nossa contribuição foi a de dar visibilidade a
práticas de letramento de resistência desenvolvidas por mulheres
do STTR de Apodi em defesa e em proteção de si mesmas, da ter-
ra e do território. Assim, os usos da escrita em panfletos, faixas,
cartazes, bandeiras e na própria carta de reivindicação cumprem o
propósito de informar a decisão de não aceitarem sair do território,
abrir mão das suas culturas, produzir e nem consumir alimentos
envenenados. Em outras palavras, isso significa manter-se firme e
lutar pela própria vida e pela vida da coletividade: resistir e, ao mes-
mo tempo, reexistir.

REFERÊNCIAS
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fundamentais do método sociológico da linguagem. 6a ed. São Paulo: Hucitec. 2009.

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330
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EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

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Linguagem, Universidade Estadual de Campinas.

332
Capítulo 11

ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 11

Tendo como pando de fundo os letramentos no contexto de luta


por terra e território na Chapada do Apodi Norte-Rio-Granden-
se, reflita.

1. Que práticas de letramento as mulheres da Chapada do Apodi


mobilizaram nos diferentes eventos que desenvolveram em
defesa de suas terras e territórios?

2. Por que essas práticas mobilizadas pelas mulheres da Chapa-


da do Apodi podem ser consideradas letramentos de resis-
tência/reexistência?

3. Qual é o potencial desse trabalho com a língua(gem), a leitura


e a escrita para a mudança social?

333
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

ANEXO

334
Capítulo 11

335
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

336
CAPÍTULO 12

Letramentos e variação linguística


em contexto cigano

MARIA MARLENE RODRIGUES DA SILVA


UNB

ROSINEIDE MAGALHÃES DE SOUSA


UNB

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, apresentamos o resultado de uma pesquisa realiza-


da durante cinco anos em duas comunidades ciganas localizadas no
Distrito Federal, nos acampamentos CALON do Córrego do Arrozal,
em Planaltina e na Rota do Cavalo, em Sobradinho.
Neste capítulo, mostramos o letramento de resistência das co-
munidades ciganas e a rotina deles em relação aos letramentos ofi-
ciais, que compreendem a escrita dos papeis tão importantes para
o exercício da cidadania como, por exemplo, saber escrever um ofí-
cio para acessar determinadas políticas públicas. Percebemos que

337
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

nestas comunidades é necessário um trabalho de interface entre


os letramentos e a variação linguística. Isso é percebido como um
letramento de resistência.
Segundo o Artigo 205 da Constituição Federal de 1988, “a edu-
cação é direito de todos e dever do Estado e da família e será pro-
movida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho”, no entanto, esta é uma
realidade ainda bem distante em nosso país. É um verdadeiro des-
compasso entre o que recomenda a lei e a realidade que se apre-
senta diariamente.
No contexto da educação brasileira, há muitas lacunas que
precisam ser preenchidas: falta de professores, ensino precário,
escolas sem estrutura física para atender adequadamente os estu-
dantes. Este é um cenário bastante comum para os estudantes de
comunidades tradicionais e itinerantes como é o caso dos ciganos1.

LETRAMENTOS NO CONTEXTO DE UMA COMUNIDADE CIGANA

Nesta pesquisa, consideramos bastante relevantes os estudos que


enfocam os letramentos, pois é a partir deles que chegamos ao con-
ceito de letramento como resistência. De maneira geral, pode-se
afirmar que a preocupação fundamental dos estudos sobre o letra-
mento decorre das investigações sobre a escrita, seus usos, suas
funções e seus efeitos tanto para o indivíduo quanto para a socieda-
de. No entanto, conceituar letramento tem se mostrado uma tarefa
difícil no decorrer dos anos.

1  Optamos pela denominação ciganos, no sentido de pluralidade de identidades


étnicas não homogêneas.

338
Capítulo 12

Tal dificuldade se dá por diferentes posicionamentos teórico-


-metodológicos de pesquisadores e estudiosos que consideram o
letramento como uma questão social e política, e, portanto, ideoló-
gica. Adeptos desta posição estão Gee (2000), Kleiman, (1995), Rojo
(2009), Scribner & Cole (1981), Street (2003), Soares (2003) entre
outros. No entanto, outros, embora admitindo a existência de as-
pectos políticos, sociais e cognitivos no letramento, acreditam se
tratar de um fenômeno linguístico.
Essa controvérsia dicotômica considera, basicamente, o le-
tramento escolar e, assim, classifica os sujeitos como letrados e
não-letrados ou ainda como alfabetizados e não alfabetizados. De
acordo com Scribner & Cole (1981), o letramento não consiste uni-
camente em dominar as regras da leitura e da escrita, ou seja, em
saber ler e escrever, mas sobretudo, em fazer uso desse conheci-
mento para aplicá-lo em situações específicas.
A experiência de Brian Street, no trabalho etnográfico, reali-
zado em aldeias iranianas nos idos de 1970, apontou para um olhar
diferenciado sobre as práticas letradas locais, que eram descon-
sideradas e até depreciadas por muitos pesquisadores na época.
Street (2014) apoia-se, então, nos estudos de Richard Hoggart e
em sua obra The Uses of Literacy (1957), pois via em sua pesquisa
elementos importantes que se aproximavam em muitos pontos de
sua linha de pensamento.

Entretanto, uma literatura que parece oferecer um tratamento


mais culturalmente sensível e afinado de como as pessoas usavam
o letramento e o que ele significava para elas em suas vidas diárias
e relações sociais poderia ser encontrada na tradução dos “estu-
dos culturais”, ela mesma influenciada pela antropologia, minha
disciplina, mas também mais consciente das tradições textuais e
de seus encaixamentos sociais. O trabalho de Hoggart, Williams
e outros nesse campo, embora concentrado primordialmente na
vida operária britânica, sugeria insights e questões que podiam

339
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

ajudar a iluminar a rica experiência de práticas letradas que eu


estava encontrando nas aldeias iranianas. (STREET, 2014, p. 71)

No início da década de 1980, surgem Os Novos Estudos do Le-


tramento (The New Literacy Studies), movimento que marca uma
mudança no foco de estudos da língua escrita rompendo com a vi-
são tradicional de linguagem, centrada na escrita como prática in-
dividual para uma visão interativa, centrada na prática social. Nes-
sa nova perspectiva, Street elabora dois construtos importantes:
o conceito de práticas e eventos de letramento e a definição dos
modelos autônomo e ideológico de letramento.
O termo ‘evento de letramento’ foi cunhado por Heath (1992)
para designar momentos em que a leitura e a escrita são utilizadas
de maneira interativa pelos participantes. De acordo com o Glossá-
rio CEALE, evento de letramento, indica:

qualquer ocasião em que algo escrito é constitutivo da interação


e dos processos interpretativos dos participantes, ou seja, é o que
podemos observar que as pessoas estão fazendo quando estão
usando a escrita e a leitura. [...]. Os eventos de letramento ocor-
rem em diferentes espaços sociais, assumem diferentes formas
e têm funções variadas. [...] As pessoas também se envolvem em
vários eventos de letramento fora da escola quando, por exemplo,
participam de um ritual religioso, leem um livro para os filhos,
anotam compras em uma caderneta, leem e escrevem cartas e
e-mails ou leem pequenos anúncios em busca de emprego.

Soares (2003, p. 105) define ‘práticas de letramento’ como


“comportamentos exercidos pelos participantes em um evento de
letramento, em que as concepções sociais que o configuram de-
terminam sua interpretação e dão sentido aos usos da leitura e/ou
escrita naquela situação particular”.

340
Capítulo 12

Nesse sentido, as práticas de letramento compreendem os usos


que os sujeitos fazem da leitura e da escrita em diversos momentos
de seu viver. Assim, podemos afirmar que tais práticas implicam di-
retamente sobre os usos sociais que se faz da escrita. Isso significa
dizer que as práticas de letramento são situadas nas relações so-
ciais dos sujeitos em sua rotina diária.
De acordo com Street (2014), as práticas de letramento têm um
sentido mais amplo do que eventos de letramento. As práticas en-
globam os comportamentos exercidos pelos participantes do even-
to e também as suas concepções sociais e culturais.
Outro construto elaborado por Street foi o de modelos de le-
tramento: o autônomo e o ideológico. O modelo autônomo consi-
dera o letramento como o uso das habilidades de leitura e escrita
para atender às exigências sociais. De acordo com este modelo, o
indivíduo deve se adaptar à sociedade.
Por outro lado, o modelo ideológico de letramento concebe as
formas que as práticas de leitura e escritura assumem em deter-
minados contextos sociais, bem como formam estruturas de poder
em uma sociedade. Nesse modelo, o letramento aumenta a cons-
ciência dos sujeitos sobre as suas vidas e sua capacidade de lidar
racionalmente com decisões e, dessa forma, pode conscientizar-se
da sua realidade a até transformá-la.
No entanto, a realidade é bastante complexa. Conforme o de-
poimento da cigana DR, é muito complicado para os ciganos arran-
jar trabalho formal devido à imagem estereotipada que as pessoas,
em geral, têm acerca deles. Ela conta que foi procurar emprego e
realmente conseguiu, mas precisou omitir sua condição de ciga-
na, pois se falasse sobre sua origem, certamente não conseguiria
o trabalho, o que foi revelado tempos depois. Sua chefe e dona da
empresa, explicou que, se na época ela tivesse falado de sua etnia
cigana, muito provavelmente ela lhe teria negado a oportunidade.

341
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Sobre este problema, Street (2014, p. 34) apoiando-se em estudos


realizados por Graff (1979) e Levine (1986) explica que:

Estudos recentes têm mostrado que quando se trata de conseguir


emprego o nível de letramento é menos importante do que as-
pectos de classe social, gênero e etnia: o baixo letramento é mais
provavelmente um sintoma de pobreza e de privação do que de
uma causa (GRAFF, 1979). Pesquisadores (cf. Levine, 1986) também
apontam que os testes de letramento que as empresas desenvol-
vem para candidatos a empregos podem nada ter com as habili-
dades letradas exigidas no emprego: sua função é filtrar certos
grupos e tipos sociais e não determinar se o nível de letramento
é adequado às tarefas exigidas.

Este fato é tão evidente que já se tornou uma realidade para


os povos ciganos. No depoimento do cigano ES, pode-se perce-
ber isso.

Excerto 1

ES: Nós tamo lutando aí para sobreviver. Levando ao conhecimento


das autoridade, tentando levar, né? É uma luta, o cigano [...] não só
nós aqui de Brasília, mas todo cigano aqui no Brasil sofre precon-
ceito e tá uma luta pela sobrevivência no Brasil.

Esta é uma luta constante para que possam ser ouvidos. Na fala
de ES, ele diz “Levando ao conhecimento das autoridade, tentando
levar, né?”. Muitas vezes, os ciganos acham que devido ao baixo letra-
mento escrito, que no caso seria a escrita de ofícios ou relatórios, eles
dificilmente conseguem acesso às políticas públicas para o acampa-
mento. Em outros momentos, acreditam que não são atendidos por

342
Capítulo 12

não terem um letramento oral mais específico para lidar com as ins-
tituições. Vejamos o depoimento da cigana VM:

Excerto 2

VM: Professora, a gente vai lá no CRAS [(ela se refere ao Centro de


Referência em Assistência Social)] e eles não quer atender a gente.
A gente vai pedi o cartão da bolsa família, mas tá difícil. Eles olha
para nós e tem má vontade de ajudar nós. A gente não sabe falá
com eles.

O que, na verdade, a cigana VM se refere é a falta de um letra-


mento oral mais formal para entender o vocabulário bem específi-
co usados pelos funcionários do CRAS. Esta era uma preocupação
constante desta cigana. Notei em vários momentos de conversa,
informal inclusive, que ela já tinha sofrido preconceito linguístico
em várias ocasiões, por isso se sentia tão necessitada de “aprender
a falar como os não-ciganos”, conforme ela me relatou em variados
momentos. Street (2014, p. 37) explica que “os povos locais têm seus
próprios letramentos, suas próprias habilidades e convenções de
linguagem e suas próprias maneiras de aprender os novos letra-
mentos fornecidos pelas agências, pelos missionários e pelos go-
vernos nacionais”.
E esse problema tem sido sentido também nas escolas, onde os
estudantes, muitas vezes, apresentam sérias dificuldades em acom-
panhar as aulas ministradas por seus professores, pois não compre-
endem o que eles dizem. Observemos o depoimento da cigana DR:

343
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Excerto 3

DR: ... somos um povo muito inteligente, só que, muitas das


vezes, a gente se sente menos do que os outros que tá lá, tá tudo
entretido no professor, entendendo, e a gente fala “poxa, mas por
que eles tão entendendo?”, eles entende o palavreado do professor,
nós sempre viveu à margem da sociedade, tem palavra que os pro-
fessores de hoje ... muitas pessoas não ciganas gajon reclama que as
palavras são muito difíceis, eles faz questão de falar um palavre-
ado muito além que o português normal (grifo nosso), muita das
vezes usa até a nova ortografia brasileira, que é o novo português,
as palavras que mudou agora, se o próprio não cigano, às vezes, se
perde, imagina nós .

Em todos esses excertos, é possível observar que há uma liga-


ção bastante forte entre a fala dos ciganos com as dificuldades de
compreensão em ouvir, entender e se fazer entender. Nesse sen-
tido, cabe ao professor, como mediador, o papel de agente de le-
tramento dos seus alunos inserindo-os nas práticas de letramento
que caracterizam os saberes escolares, de modo que promova uma
hibridização entre as práticas de letramento dominantes e as prá-
ticas de letramento vernaculares (STREET, 2003). De igual modo,
Kleiman (2016, p. 83) expõe que “um agente social é um mobilizador
dos sistemas de conhecimento pertinentes, dos recursos, das capa-
cidades dos membros da comunidade: no caso da escola”.
Endossando as falas de Street e Kleiman, Bortoni-Ricardo
(2005) expõe que é imprescindível a utilização de uma pedagogia
culturalmente sensível de forma a dialogar com os alunos. Mas o
que vem a ser esta pedagogia?

344
Capítulo 12

É objetivo da pedagogia culturalmente sensível criar em sala de


aula ambientes de aprendizagem onde se desenvolvam padrões
de participação social, modos de falar e rotinas comunicativas
presentes na cultura dos alunos. Tal ajustamento nos processos
interacionais é facilitador da transmissão do conhecimento, na
medida em que ativam nos educandos processos cognitivos as-
sociados aos processos sociais que lhes são familiares (Bortoni-
-Ricardo, 2005, p. 120).

Nas comunidades ciganas, observamos que as habilidades


retóricas são bastante desenvolvidas, assim como o letramento
matemático. Não é raro ver um cigano deixando de utilizar uma
calculadora para fazer os cálculos da venda de seus produtos, para
“fazer as contas de cabeça”, como eles mesmos dizem. Street (2014)
nos explica que o letramento varia com o contexto social, pois em
algumas sociedades como na Inglaterra medieval, era considerado
letrado o sujeito que soubesse ler uma oração religiosa em latim;
em outras sociedades, até bem recentemente, considerava-se le-
trado aquele que conseguia assinar o próprio nome em uma cer-
tidão de casamento.
Para Street, existe uma grande variedade de letramentos quan-
do se trata das dificuldades que as pessoas sofrem com relação a
letramentos. Ele nos assegura que “todos na sociedade exibem
alguma dificuldade de letramento em alguns contextos” (STREET,
2014, p. 41). Pessoas da classe média brasileira, por exemplo, todos
os anos, sofrem com o preenchimento do formulário para o im-
posto de renda. De igual modo, muitos adultos têm dificuldades de
letramento digital, algo tão simples para algumas crianças.
Para Magda Soares, o letramento tem um enfoque de funciona-
lidade, que implica em adaptação dos indivíduos. “O letramento é,
assim, considerado como responsável por produzir resultados im-
portantes no desenvolvimento cognitivo e econômico, mobilidade
social, progresso profissional e cidadania”. (SOARES, 2003, p. 74).

345
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Esta autora aponta dois modelos de letramentos definidos a partir do


desenvolvimento de habilidades: a perspectiva liberal e perspectiva
revolucionária de letramento. A primeira é definida por meio das ha-
bilidades necessárias para que o indivíduo funcione adequadamente
em seu contexto social. Surge daí o termo letramento funcional, de-
finido como sendo os conhecimentos e habilidades de leitura e de
escrita que tornam uma pessoa capaz de desenvolver atividades nas
quais o letramento é normalmente exigido em seu contexto social.
Quanto à concepção liberal, o letramento é visto como “um con-
junto de práticas socialmente construídas que envolvem a leitura e a
escrita, geradas por processos sociais mais amplos, e responsáveis
por reforçar ou questionar valores, tradições e formas de distribui-
ção do poder presentes nos contextos sociais.” (SOARES, 2003, p. 75)
No Brasil, a palavra “letramento” surge pela primeira vez no li-
vro No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, de Mary
Kato, publicado no ano de 1986. Nesta obra, não há uma definição
sobre o termo. Depois, aparece no livro de Leda Verdiani Tfouni,
Adultos não-alfabetizados: o avesso do avesso (1988). Nesta obra, a
autora busca definir o termo letramento, assim como diferenciar
letramento de alfabetização.
Em 1995, o termo letramento, já bastante corrente, foi utilizado
nos livros de Ângela Kleiman: Os significados do letramento (1995) e
em Letramento e Alfabetização (2010), de Leda Verdiani Tfouni.
Ângela Kleiman, Leda Verdiani Tfouni, Roxane Rojo e Magda
Soares foram as primeiras pesquisadoras brasileiras a se interessa-
rem pelo estudo do letramento. Uma das preocupações das pesqui-
sadoras era descobrir o impacto da escrita em países nos quais um
grande segmento da sociedade não sabia ler nem escrever.
Kleiman (1995) chama a atenção para o conceito de esfera dis-
cursiva de Bakhtin (2003) e a teoria sociocultural dos estudos de
letramento. Considera-se esfera como um campo de atividade hu-

346
Capítulo 12

mana. Segundo Kleiman (2016), ao se adotar o conceito de esferas


discursivas, há de se considerar o tempo e o lugar histórico onde
são produzidos os enunciados, assim como os participantes e as
relações sociais que tais elementos mantêm entre si.
Segundo Rojo (2009), na vida cotidiana, circulamos pelas mais va-
riadas esferas de atividades, assim como adotamos diferentes posições
sociais. Para uma melhor compreensão sobre esta relação, podemos
tomar como exemplo a citação de Rojo (2009, p. 109) para demonstrar
a estreita relação que há entre as diversas esferas discursivas e as ati-
vidades que são desenvolvidas em cada uma dessas esferas.

O dia da professora D. Naná mostra bem isso: ele se inicia para ela,
como dona de casa, na esfera doméstica ou cotidiana, deixando
bilhete para sua diarista e telefonando à oficina autorizada; neste
meio tempo, ela liga a tv e toma contato com a esfera jornalística,
como consumidora de notícias, e com a publicitária, como consu-
midora de produtos; em seguida, como consumidora, se desloca
para a esfera burocrática do comércio, fazendo um depósito ban-
cário pelo computador e deslocando-se por meio de transporte
público, para adentrar, em seguida, como professora, a esfera es-
colar. Retornando a sua casa, embora cansada, ainda tem energia
para assumir o papel de expectadora de produtos da esfera do en-
tretenimento (midiático), vendo a novela televisiva, para, depois,
como namorada, dialogar com seu parceiro pelo MSN na esfera
íntima e, finalmente, voltar à esfera escolar, dessa vez como aluna,
para fazer atividades online de seu curso semi-presencial.

Kleiman, em sua obra Os significados do letramento (1995), já


chamava a atenção para o impacto da escrita em países nos quais
grande parte da população não podia ler ou escrever e apontava
três temas que muita relevância tiveram para os estudos sobre le-
tramento: a relação entre práticas de oralidade e de letramento; a
maneira como as pessoas não escolarizadas pudessem lidar com
as demandas da escrita em uma sociedade letrada e, ainda, a rela-

347
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

ção entre a escolarização, analfabetismo e letramento. Uma grande


preocupação estava relacionada com os índices de reprovação, que
eram bastante altos, assim também como eram altos os índices de
analfabetismo no Brasil.
Por se tratar de contextos em que as desigualdades são carac-
terísticas marcantes, foi criada a expressão Letramentos Múltiplos.
Essa abordagem fomenta que “os Estudos de Letramento se pau-
tam em uma abordagem socio-histórica e cultural que assume que
as práticas de escrita são constituídas de modo situado em insti-
tuições e práticas sociais” (KLEIMAN & ASSIS, 2016). Desse modo,
houve uma explosão de novos termos, que têm por núcleo o termo
letramento: letramentos dominantes, letramentos vernáculos, le-
tramento matemático, letramento acadêmico, letramento literário,
letramento multimodal, entre outros.
É importante citar ainda, outra nomenclatura: a de Multiletra-
mentos, conceituada por Rojo (2012, p. 13) como aquela que apre-
senta grande “diversidade cultural de produção e circulação de tex-
tos, além da diversidade de linguagens que eles constituem”.
Para finalizar, apresentamos aqui a Pedagogia dos Multiletra-
mentos, segundo a qual é preciso “pensar um pouco em como as
novas tecnologias da informação podem transformar nossos hábi-
tos institucionais de ensinar e aprender” (ROJO, 2012, p. 26)
De fato, não se pode negar que as novas maneiras de se co-
municar têm provocado grandes mudanças em toda a sociedade
afetando os hábitos e valores e apontando novos meios de intera-
ção. É neste contexto que se situa a teoria dos multiletramentos.
De acordo com Cope e Kalantzis (2000), os novos meios de comu-
nicação têm remodelado a forma como usamos a linguagem, que é
cada vez mais multimodal.
Rojo (2012) aponta dois sentidos para a palavra multiletramen-
tos: diversidade cultural de produção e circulação dos textos e

348
Capítulo 12

diversidade de linguagens que constituem os textos. Como carac-


terísticas dos multiletramento, os textos são interativos e colabo-
rativos, eles transgridem as relações de poder estabelecidas como
as relações de propriedade (das ideias, dos textos, das ferramentas),
além de constituírem textos híbridos seja de linguagens, modos,
mídias e culturas.
Com relação aos ciganos, foi observado em campo que, além
dos letramentos orais de uso mais formal para se comunicar com os
funcionários das instituições públicas, eles precisam desenvolver
os letramentos digitais, pois, como eles são exímios negociantes,
precisam atualizar suas práticas negociais com o uso de mídias di-
gitais. Esse fato é importante uma vez que, na atualidade, compra-
-se pela internet. Hoje, não é comum abrir portas para vendedores
como se fazia no século passado. Então, eles ficam restritos a abrir,
nas vias públicas, o porta-mala do carro e colocar tapetes, panos de
prato, roupas de cama e mesa à disposição dos clientes.
O comerciante cigano está consciente de que as transações
comerciais mudaram bastante. Sabe que é importante saber contas,
se informatizar, enfim, entrar nesse outro universo de um tipo de
letramento que não é só o que se ensina na escola. Tem que saber
sobre nota fiscal, REFIS, palavras do universo contábil.
Ao frequentar as aulas de alfabetização disponível no acam-
pamento do Córrego do Arrozal, os estudantes ciganos tinham em
mente conseguir melhores oportunidades de emprego, mobilidade
social, forma de vida melhor. Retomando o construto de modelos
de letramentos proposto por Street e as palavras dos ciganos parti-
cipantes desta pesquisa, é necessário ir além de um letramento de
adaptação aos usos de leitura e escrita para cumprir determinadas
exigências sociais. É preciso promover “o resgate da autoestima,
para a construção de identidades fortes, para a potencialização de
poderes dos agentes sociais, em sua cultura local, na cultura valo-

349
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

rizada, na contra hegemonia global” (ROJO, 2009, p. 100). E isso é o


que denominamos como os letramentos de resistência.
Nesse contexto, não podemos esquecer da questão da varia-
ção linguística, fenômeno muito relevante para os povos ciganos,
que buscam diariamente tornarem-se agentes em uma sociedade
que resiste em ouvi-los, muitas vezes, em razão de sua variedade
dialetal. Não foram raras as vezes em que os ciganos se sentiam
diminuídos socialmente por não falar a mesma “língua” dos gajons.
Embora a variação linguística constitua um fenômeno natural
em qualquer língua, a grande maioria da população brasileira acre-
dita ser a língua do Brasil homogênea e inflexível. Este fato muitas
vezes é reproduzido nas escolas, o que tem gerado muitas situações
confusas. No entanto, a linguagem é, por natureza, um objeto sujei-
to a alterações, por ser uma parte constitutiva do ser humano e da
cultura na qual este se insere. Ora, se a sociedade está sempre evo-
luindo, é natural que a linguagem também sofra o mesmo processo
de mudanças e variações linguísticas.
De acordo com Labov (2008), a variação linguística é natural, é
essencial à linguagem humana; desta forma, o que exigiria explica-
ção seria a ausência da variação na linguagem e não a sua presença.
Bortoni-Ricardo, no capítulo “Diversidade Linguística e Plura-
lidade Cultural no Brasil”, de seu livro Educação em Língua Materna
(2004), explica acerca dos ambientes sociais em que os seres huma-
nos desenvolvem seu processo de socialização. A autora utiliza uma
terminologia da tradição sociológica e substitui o termo “ambientes
sociais” por “domínio social”. Desse modo, os ambientes (ou domí-
nios sociais) entre os quais uma criança desenvolve sua sociabiliza-
ção estão a família, a escola e seu grupo de amigos.
Para Bortoni-Ricardo (2004),

350
Capítulo 12

Um domínio social é um espaço físico onde as pessoas interagem


assumindo certos papeis sociais. Os papéis sociais são um con-
junto de obrigações e de direitos definidos por normas sociocul-
turais. Os papéis sociais são construídos no próprio processo da
interação humana. Quando usamos a linguagem para nos comu-
nicar, também estamos construindo e reforçando papéis sociais
próprios de cada domínio.

Isso reforça a ideia de que, ao participar ora de um domínio so-


cial, ora de outro, estamos fazendo transições, como forma de ade-
quar a linguagem a este ou aquele contexto social. Na situação dos
ciganos do Córrego do Arrozal, eles passavam do domínio social da
barraca para o domínio da tenda-escola e, assim, passavam de uma
cultura essencialmente oral para uma cultura escrita, denominada
cultura de letramento, conforme Bortoni-Ricardo (2004).
É interessante notar como, ao passar de um domínio para ou-
tro, os estudantes ciganos, também mudavam de comportamento.
O momento anterior, que antes era de conversa e risadas, passa a
ser agora no interior da tenda-classe um ambiente mais sério, mais
formal, o lugar de aprendizado, o que, para eles, era muito impor-
tante. Aliás, todo o ambiente escolar, representava a oportunidade
de mudanças, de melhoria de vida.
Desse modo, os cadernos, as canetas e, sobretudo, a figura da
professora, tudo era amplamente respeitado. A professora também
assume um papel social mais formal e, desse modo, sua fala pas-
sa a ser mais monitorada. Para exemplificar este comportamento,
vejamos as anotações do Diário de campo de uma de nossas aulas,
ocorrida no dia 14/09/2015.

351
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Excerto 4

Diário de campo – 14/09/2015


Hoje, tarde do dia 14/09/2015, segunda-feira, chegamos ao acam-
pamento por volta de 14h15. Como sempre, entramos e estaciona-
mos o carro debaixo de uma árvore e nos dirigimos para a tenda
onde acontecia as aulas, observamos que o chão tinha sido lavado,
pois ainda estava um pouco úmido, mas não tinha nenhuma car-
teira, nem mesinha para colocarmos nosso material. Foi daí que
ouvimos o grito de uma das ciganas: “- As professoras chegaro”.
Não demorou muito para que fossem chegando um a um dos alunos
com as mesinhas e cadeiras que estavam dentro de suas barracas.
Em pouco tempo já havia estudantes, crianças e bebês, que vinham
acompanhando suas mães e até alguns cachorros aproveitavam a
sombra da barraca para tirar um cochilo. Depois de um pouco de
conversa, algumas risadas entre professora e estudantes, a aula
começou. Hoje estudamos a palavra geradora “Trabalho”. Os estu-
dantes explicaram o sentido do trabalho para eles. Falaram sobre
as atividades desenvolvidas. As mulheres vendem panos de prato,
enquanto os homens vendem tapetes, roupas de cama, negociam
carros usados. Depois fizeram uma atividade de escrita acompa-
nhados pela professora I.S. e por mim. Terminamos a atividade,
conversamos mais um pouco e fomos embora.

A VARIAÇÃO DIALETAL E A VARIAÇÃO DE REGISTROS

De acordo com Marinho e Costa Val (2006), a variação linguística


pode ser de dois tipos: a dialetal e a de registros. A primeira inclui as
variações decorrentes da região, dos grupos e da classe social dos
usuários da língua, assim como do sexo, do nível de escolaridade

352
Capítulo 12

e da função exercida pelo usuário na sociedade da qual participa.


As variedades geográficas dizem respeito às diversas comunida-
des linguísticas que fazem parte de uma comunidade mais extensa,
nesse caso, toda uma nação de falantes da língua. Assim, os falantes
de uma determinada região adotam comportamentos linguísticos
que podem ser bastante diferentes devido a questões culturais que
lhes são próprias.
As variedades sociais, por sua vez, dizem respeito a existência
de classes e grupos sociais distintos, nos quais há normas de con-
duta, padrões culturais e linguísticos próprios de uma comunidade
específica. Neste caso, podem ser citados como exemplos, os jar-
gões profissionais (a linguagem dos médicos, dos economistas, dos
juristas, dos professores etc), as gírias entre outros; as variedades
de faixa etária dizem respeito às diferenças nos falares de adultos,
jovens e crianças. Sobre este modo específico de fala, Marinho e
Costa Val (2006, p.33) explicam que:

Muitas vezes, os usos da língua feitos pelos adolescentes são


vistos como deturpações do idioma. Na verdade, o que ocorre é
o desejo que esses falantes têm de se afastar do dialeto padrão
como forma de buscar sua identidade pela linguagem. Ao final da
adolescência, observa-se que os jovens adultos tendem a adotar
outras formas de expressão, as que são vigentes no grupo ao qual
passam a pertencer.

O nível de escolaridade do falante é outro exemplo de variação


dialetal. Este consiste na experiência que o falante tem das normas
escritas e orais valorizadas pela sociedade. Tal nível de letramento
possibilita ao falante da língua expressar-se por meio de sentenças
mais longas, sintaxe elaborada, uso de termos e orações intercala-
dos, assim como o uso de inversões na ordem mais usual das pala-
vras na frase.

353
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

A variação de registro ocorre em função do uso que um mes-


mo falante faz da língua nas diversas situações sociais nas quais
produz uma atividade verbal. Este tipo de variação se dá em duas
modalidades, a formal e a informal e varia de acordo com as cir-
cunstâncias em que se dá a interação verbal. O registro formal
“caracteriza-se pela escolha de expressões e/ou construções pró-
ximas da variedade padrão escrita, de informações que resultam
de maior elaboração intelectual, de conteúdo considerado rico e
complexo” (MARINHO; COSTA VAL, 2006, P.38). Como exemplos
podem ser citadas as reuniões formais como é o caso das reuniões
de negócios, de celebrações especiais, de momentos formais em
sala de aula, entre outros.
Por outro lado, o registro informal caracteriza-se pela escolha
de formas de linguagem que atendam às necessidades comunicati-
vas cotidianas, sem necessariamente, estar atrelada à preocupação
com o refinamento ou a precisão na maneira de se expressar. Nesse
sentido, as expressões são simples e bastante próximas de situa-
ções interacionais bem coloquiais, sem muita cerimônia tal qual
ocorre nas conversas familiares ou em roda de amigos, ou ainda,
em momentos descontraídos em ambientes mais formais como é o
caso da sala de aula.
O português falado no Brasil é bastante variado. Bortoni-Ri-
cardo (2004) propõe a sistematização desta variação em três linhas,
denominadas contínuos: o contínuo da urbanização, o contínuo da
oralidade-letramento e o contínuo da monitoração estilística, os
quais serão explicados a partir de agora.

354
Capítulo 12

A VARIAÇÃO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO – A PROPOSTA DOS


CONTÍNUOS

A) O CONTÍNUO DA URBANIZAÇÃO

O contínuo da urbanização, segundo a autora, poderia ser exempli-


ficado por meio de uma linha reta na qual em uma das extremidades
situam-se os falares rurais mais isolados. Na outra extremidade,
encontram-se os falares urbanos, que sofreram influência dos pro-
cessos de padronização da língua, e entre esses dois polos, encon-
tra-se a zona rurbana, caracterizada pela presença de migrantes
que preservam repertório linguístico rural, trazendo-o para a zona
urbana onde passam a residir, e com isso, sofre forte influência de
culturas de letramento.

_____________________________________
variedades rurais área rurbana variedades urbanas
isoladas padronizadas

Figura 4: Representação do contínuo da urbanização


(adap. de Bortoni-Ricardo (2004, p. 52)

Bortoni-Ricardo (2004, p. 52) chama a atenção quando diz que


“No contínuo da urbanização, não existem fronteiras rígidas que
separam os falares rurais, rurbanos ou urbanos. As fronteiras são
fluidas e há muita sobreposição entre esses tipos de falares”. De
fato, conforme as observações realizadas nos dois campos de pes-
quisa, constatamos que os ciganos se concentram mais ou menos

355
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

na metade desta reta que representa o contínuo, uma vez que os


falares de seus membros não são totalmente uma variedade rural,
mas também não apresentam repertório linguístico da variedade
urbana padronizada. Isso fica bem claro em seus discursos ao fazer
referência à vontade de “aprender a língua portuguesa” para saber
se expressar com as autoridades governamentais. Vejamos o excer-
to a seguir:

Excerto 5

Pesquisadora: Senhor E., aqui nesta tenda já foi formada uma tur-
ma de alfabetização, mas sei que aqui tem alunos que já têm o ensi-
no médio, gostaria de saber do que vocês mais precisam ...aprender.
ES.: Formou aqui a primeira turma. Agora precisamo de ajuda para
escrever os documento para consegui as política pública aqui pro
acampamento.
Pesquisadora: O senhor quer dizer escrever ofícios para mandar
para os órgãos do governo?
ES.: É isso, professora. A sinhora pode ajudar? O meu filho pode
aprender...
Pesquisadora: Posso sim. Quando ele quiser começar, é só falá.

Os ciganos tinham muita vontade de aprender a escrever e ler


melhor para alcançar as políticas públicas, no entanto, não houve
muito tempo depois dessa conversa. Eles precisaram partir nova-
mente. De acordo com o excerto, os ciganos têm necessidade de
conhecer e aplicar uma variedade mais padronizada da língua por-
tuguesa, pois aprenderam que é assim que funciona no governo,
caso precisem ter acesso às políticas públicas.
Em outro momento, Dona E., desabafa:

356
Capítulo 12

Excerto 6

E.: “Professora, a gente vai lá no CRAS (Centro de Referência em


Assistência Social) e eles não quer atender a gente. A gente vai pedi
o cartâo da bolsa família, mas tá difícil. Eles olha para nois e tem
má vontade de ajudar. Nois precisamo saber falá com eles. Não en-
tendemos o que eles fala”.
[(em outro momento da conversa, a senhora E. continua sua fala)].
E.: ... “Professora ... eu não quero professora cigana aqui no acam-
pamento, porque ser cigana, eu já sei. Eu quero é aprender a falar
como vocês fala”. [(Aqui, a cigana Dona E. fala da necessidade de
saber se expressar bem em língua portuguesa mais formal, pois
assim ela entende que será ouvida)].

B) O CONTÍNUO DA ORALIDADE – LETRAMENTO

O contínuo de oralidade – letramento – pode ser exemplificado


também por meio de uma linha reta na qual em uma das extre-
midades situam-se as culturas de letramentos, enquanto no outro
extremo predomina a cultura da oralidade. No entanto, isso não in-
dica que ambos não possam aparecer juntos, uma vez que, tal qual
o contínuo da urbanização, não há fronteiras bem marcadas entre
oralidade e letramento, uma vez que há eventos de letramento em
que se possa se valer de eventos de oralidade e vice-versa. Borto-
ni-Ricardo (2004) cita o exemplo de um evento de aula (que é um
evento de letramento), que é permeado de minieventos de oralida-
de, quando os professores e alunos interagem. Do mesmo modo,
em uma conversa em uma mesa de bar com os amigos (que é um
evento de oralidade), se, de repente, alguém declama um poema

357
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

que ele conhece de suas leituras prévias, então este evento passa a
ter influências de letramento. Eis a representação do contínuo de
oralidade – letramento.

___________________________________
eventos de oralidade eventos de letramentos

Figura 5: Representação do contínuo de oralidade - letramento


(adap. de Bortoni-Ricardo (2004, p. 62)

C) O CONTÍNUO DA MONITORAÇÃO ESTILÍSTICA

O terceiro contínuo proposto por Bortoni-Ricardo (2004) é o de


monitoração estilística em que estão situadas as interações total-
mente espontâneas até as que são previamente planejadas e que
exigem mais atenção do falante. Nesse sentido, os falantes alternam
estilos mais monitorados, que exigem mais planejamento e estilo
menos monitorado. De maneira geral, os fatores que levam a moni-
torar o estilo são o ambiente, o interlocutor e o tópico da conversa.
O que determina se o estilo será mais ou menos monitorado é o
alinhamento que assumimos em relação ao tópico da conversa e ao
interlocutor. Um exemplo dessa mudança de monitoramento pode
ser também o da sala de aula. A professora está diante de um qua-
dro dando aulas para seus alunos em um estilo bastante monitorado
quando ela resolve dar um exemplo que suscitou uma brincadeira
na sala de aula e todos começaram a rir, saindo um pouco do en-
quadre do momento da aula para uma conversa mais descontraída,
até o momento em que a professora retoma a aula e monitora sua
fala para se adequar à seriedade que o momento exige.

358
Capítulo 12

Este exemplo pode servir para mostrar como a variação do


contínuo de monitoração estilística pode situar a interação dentro
de um enquadre, permitindo aos interagentes se situar no contexto e
adotar comportamentos (alinhamentos) diferenciados. A figura a se-
guir, mostra a representação do contínuo de monitoração estilística.

______________________________________
monitoração + monitoração

Figura 6: Representação do contínuo de monitoração estilística


(adap. de Bortoni-Ricardo (2004, p. 62)

Nas comunidades ciganas, podemos citar dois exemplos bem


específicos de contextos mais monitorado e menos monitorado. A
primeira situação ocorreu no acampamento do Córrego do Arrozal,
citado no Diário de Campo do dia 14/09/2015. As conversas dos
momentos anteriores às aulas eram bem descontraídas e o estilo
menos monitorado. Observamos que os estudantes riam muito alto
e algumas vezes surgia uma conversa mais acirrada. No momento
em que a professora chamava a atenção para o início da aula, os
estudantes cessavam a conversa e se realinhavam para participar
do ambiente de aula e, assim, o estilo passava do menos monitorado
para o mais monitorado, ou seja, ao mudar o enquadre, mudava-se
o estilo dos interagentes.
O outro exemplo, decorre de momentos de interação com os
ciganos do acampamento da Rota do Cavalo e a situação foi a de
uma entrevista. O Sr. WR. adota uma postura mais descontraída
antes de darmos início da entrevista, momento em que conversá-

359
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

vamos sobre as plantações dentro do acampamento. Quando eu


começo a gravar a entrevista, o sr. WR. arruma a postura e em tom
mais sério passa a responder as perguntas que faço monitorando
mais a sua fala. Ao terminar a entrevista, observo que o colaborador
passa a um estilo menos monitorado.

CIGANOS: A COMPETÊNCIA LINGUÍSTICA


E A COMPETÊNCIA COMUNICATIVA

A noção de competência comunicativa teve sua origem na dico-


tomia proposta de competência e desempenho de Chomsky. Para
ele, a competência linguística implica no conhecimento da língua
(de suas regras gramaticais) e no desempenho, no uso que o fa-
lante faz da língua. Desse modo, Chomsky não considera a função
social da língua.
Partindo desse autor, outros pesquisadores ampliaram o alcan-
ce do termo competência, propondo reformulações ao termo. Dell
Hymes, sociolinguista norte-americano, foi um deles. Para Dell Hy-
mes, o grande problema é que o conceito de competência linguísti-
ca não dá conta das questões relacionadas com a variação da língua.
Assim, este autor propôs o conceito de competência comunicativa.
A competência comunicativa considera, além das regras da for-
mação de sentenças, as normas sociais e culturais que se aplicam à
adequação da fala em contextos e com interlocutores diversos. De
acordo com Bortoni-Ricardo (2004, p. 73):

Quando faz uso da língua, o falante não só aplica as regras para


obter sentenças bem formadas, mas também faz uso de normas
de adequação definidas em sua cultura. São essas normas que
lhe dizem quando e como monitorar seu estilo. Em situações que
exijam mais formalidade, porque está diante de um interlocutor

360
Capítulo 12

desconhecido ou que mereça grande consideração, ou porque o


assunto exige um tratamento formal, o falante vai selecionar um
estilo mais monitorado; em situações de descontração, em que
seus interlocutores sejam pessoas que ele ama e em que confia,
o falante vai sentir-se desobrigado de proceder a uma vigilante
monitoração e pode usar estilos mais coloquiais.

Como a escola constitui o espaço no qual os estudantes bus-


cam adquirir os recursos comunicativos para desempenhar de
maneira competente determinadas práticas sociais especializa-
das, é fácil entender a força que emana da fala da cigana no ex-
certo a seguir:

Excerto 7

E.: ... “Professora ... eu não quero professora cigana aqui no acam-
pamento, porque ser cigana, eu já sei. Eu quero é aprender a falar
como vocês fala”. [(Aqui, a cigana Dona E. fala da necessidade de
saber se expressar bem em língua portuguesa mais formal, pois
assim ela entende que será ouvida)].

Os ciganos têm uma história repleta de discriminação de todas


as formas: do seu vestir, do seu falar, do seu viver e até em ser. Ao
conhecê-los mais de perto, compreende-se a fala de E. O que ela
procura, antes que se pense se tratar da negação de sua identida-
de, é uma afirmação por meio do acesso ao conhecimento dos usos
especializados da língua, no dizer de Bortoni-Ricardo, pois assim
ela pode ser ouvida. No pensar da cigana E., ao dominar as estraté-
gias de uma linguagem mais cuidada do ponto de vista formal mais
apropriadas ao contexto e aos seus interlocutores, ela será melhor
aceita por eles. Para desempenhar um papel social, os indivíduos
precisam dominar certos usos especializados da língua e isso, a seu
modo, a cigana E. já aprendeu.

361
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

REFLEXÕES FINAIS

Finalizando este capítulo, transcrevemos uma importante citação


de Bortoni-Ricardo (2004, p. 78):

A tarefa educativa da escola, em relação à língua materna, é justa-


mente criar condições para que o educando desenvolva sua com-
petência comunicativa e possa usar, com segurança, os recursos
comunicativos que forem necessários para desempenhar-se bem
nos contextos sociais em que interage.

Os ciganos sabem da importância de sua língua para a pre-


servação de sua identidade étnica. Trata-se de uma língua que se
encontra em avançado processo de deterioração, segundo as pa-
lavras do pesquisador Fábio Dantas Melo. Nas comunidades ciga-
nas onde foram realizadas as pesquisas, observamos que há uma
forte resistência dos ciganos mais velhos em deixar a língua mor-
rer completamente. Mesmo deteriorado, ela é falada e ensinada
para os mais jovens.
Sabemos que se uma língua morre, ela leva consigo aspectos
culturais importantes de uma dada comunidade. Assim, os ciganos
teimam em não deixar sua cultura morrer ao mesmo tempo que
buscam aprender a transitar nas especificidades da língua portu-
guesa padrão, que é uma alternativa para alcançar as políticas pú-
blicas de que tanto necessitam. E isso constitui uma luta constante.
Voltando ao que afirmamos no início deste capítulo, para que
haja o pleno desenvolvimento da pessoa e para o exercício da cida-
dania, se faz urgente ofertar letramentos sólidos em língua portu-
guesa “padrão”, respeitando, no entanto, a língua materna dos ciga-
nos, de modo a promover o empoderamento do grupo.
É imprescindível, contribuir para a diminuição da invisibilidade
e preconceitos por que passam os ciganos diariamente nas mais

362
Capítulo 12

diversas esferas sociais e também para contribuir para revelar um


pouco de suas vivências, sentimentos, sonhos e desejos no sentido de
lançar um olhar diferenciado sobre as especificidades desses grupos.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora Hucitec, 2003.

BORTONI-RICARDO. S. M. Educação em Língua materna. São Paulo: Contexto, 2004.

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Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010.

COPE, B.; KALANTZIS, M. (Eds), Multiliteracies: Literacy Learning and the Design of


Social Futures, Routledge, London, 2000.

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Disponível em http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/. Acesso
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1986.

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363
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

KLEIMAN, A. B.; ASSIS, J. A. (Orgs.). Significados e ressignificações do letramento:


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LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. Trad. Marcos Bagno, Maria Marta Pereira


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________. Letramento e alfabetização.9. ed., São Paulo: Cortez, 2010.

364
Capítulo 12

ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 12

ES.: Formou aqui a primeira turma. Agora precisamo de ajuda


para escrever os documento para consegui as política pública aqui
pro acampamento.

A fala do cigano ES acima é bastante ilustrativa da variedade


linguística do português falado no Brasil. Para explicar essa va-
riedade, Bortoni-Ricardo (2004) propõe a sistematização desta
variação em três linhas, denominadas contínuos. Explique, tra-
zendo exemplo do cotidiano, os três contínuos que ilustram a
variedade do português brasileiro.

1) Contínuo da urbanização;
2) Contínuo da oralidade-letramento;
2) Contínuo da monitoração estilística.

365
CAPÍTULO 13

Práticas e eventos de letramentos


em contextos de luta e resistência:
uma experiência etnográfica no
quilombomesquita-Goiás (GO)
EDINEI CARVALHO DOS SANTOS
UNB

KLEBER APARECIDO DA SILVA


UNB

“O letramento em si mesmo não promove o avanço cognitivo,


mobilidade social ou o progresso: práticas letradas são especí-
ficas ao contexto político e ideológico e suas consequências va-
riam conforme a situação”.
(STREET, 2014, p. 41).

INTRODUÇÃO

Ao longo dos últimos 30 anos, trabalhos vinculados a diferentes


áreas de conhecimento (antropologia, educação, psicologia, lin-
guística etc.) vêm repensando a forma de ver a leitura e escrita e
contribuindo para análises mais precisas das práticas de letramen-
to (Cf. BARTON; HAMILTON, 2004; SOARES, 2003a; STREET, 1984;
ROJO, 2009; KLEIMAN, 1995; ZAVALA, 2002; AMES, 2002). Os Es-

367
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

tudos do Letramento, por exemplo, representam uma tradição de


pesquisa alinhada com essa mudança e, desde o início da década de
1980, vêm desenvolvendo um conjunto de ferramentas conceitu-
ais e de princípios teóricos fundamentais para o estudo da cultura
escrita e das práticas letradas em contextos variados. Esses novos
estudos, de natureza interdisciplinar e de vertente sociocultural,
contestam a antiga ideia de letramento tradicionalmente concebi-
do como um simples processo de codificação e decodificação do
sistema linguístico-alfabético ou, ainda, como uma habilidade téc-
nica e neutra restrita à mente do indivíduo. Em contraposição a
essa definição, tais estudos procuram compreender as múltiplas
dimensões do letramento, “sua relação com a oralidade e outras
semioses; seus usos em diferentes contextos históricos e sociais;
suas funções e suas consequências para grupos ou indivíduos es-
pecíficos”. Esses estudos reconhecem ainda a natureza social, he-
terogênea e ideológica da leitura e da escrita e deixam claro que
essas atividades, historicamente situadas, variam de acordo com os
diferentes contextos de cultura e conforme os distintos modos de
comunicação humana.
Nessa perspectiva, a partir dessa “virada conceitual”, letra-
mento passa a ser compreendido como sendo parte constitutiva
de práticas sociais e culturais que se originam no seio de diferen-
tes instituições, nas quais modos específicos de conceber e usar
a leitura e escrita são visíveis. Dito de outro modo, como manei-
ras particulares de ler, escrever e usar textos, inscritas em práti-
cas culturais e institucionais permeadas por diferentes visões de
mundo, valores, crenças, expectativas e identidades. Isso implica
em ver a leitura e escrita não como um produto individual, técnico
e neutro, mas sim como construções socioculturais e práticas dis-
cursivas conectadas a relações ideológicas e estruturas de poder
(STREET, 1984).

368
Capítulo 13

Filiado a essa visão sociocultural, neste capítulo, apresento re-


corte de uma etnografia sobre eventos e práticas de letramentos
no Quilombo Mesquita, uma comunidade negra rural localizada no
município de Cidade Ocidental, estado de Goiás (Cf. CARVALHO
DOS SANTOS, 2020). Para alcançar esse objetivo, esta pesquisa tem
como eixo norteador o letramento como um conjunto de práticas
sociais que varia no tempo e espaço. Nesse sentido, ela se apoia nas
concepções teórico-metodológicas dos Novos Estudos do Letra-
mento/NEL. Ao adotar essa abordagem, parto do princípio de que
os usos, as funções e o impacto do(s) letramento(s) na sociedade
não são universais, e de que as práticas sociais letradas resultam de
diferentes contextos e de distintas situações sociocomunicativas,
além de considerar o letramento um fator fundamental na constru-
ção de identidades.

ABORDAGEM SOCIOCIOCULTURAL DA LEITURA E DA ESCRITA

Os estudos seminais de Scribner e Cole (1981), Heath (1983) e Street


(1984), publicados originalmente na década de 1980 – junto a uma
série de outros ensaios acadêmicos – inauguraram uma nova cor-
rente de pensamento em torno do campo de investigação da cultu-
ra escrita: os Novos Estudos do Letramento (NEL). Esse conjunto de
estudos, de orientação interdisciplinar, contrapõe-se firmemente
a ideia clássica de letramento de forte ênfase individual e técnica.
Ou seja, concebem o letramento não como um conjunto de habili-
dades cognitivas (restrita à mente do indivíduo), mas, sim, como um
conjunto de práticas sociais historicamente situadas e diretamente
associadas a relações ideológicas e de poder. Esses estudos tam-
bém sugerem, partindo de experiências empíricas em contextos
diversos, que as consequências cognitivas, sociais e históricas do

369
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

processo de aquisição do letramento não são universais; pelo con-


trário: para tais estudos, práticas letradas têm efeitos diferentes em
distintos contextos socioculturais, bem como variam conforme as
diferentes situações comunicativas.
Nesse contexto, além de uma virada conceitual no estudo da
cultura escrita, essa corrente de pesquisa contribuiu para a aber-
tura de novos caminhos teórico metodológicos rumo à compreen-
são da natureza social do letramento. Uma contribuição importante
dos Novos Estudos do Letramento (NEL), por exemplo, foi descolar
o foco das práticas dominantes (voltadas para o ensino de habi-
lidades, como aquelas que ocorrem no processo de alfabetização
nas escolas) para as práticas sociais relacionadas aos letramentos
ditos múltiplos, vernaculares, marginalizados (ou de resistência),
procurando examinar empiricamente os usos, as representações e
as relações sociais resultantes dessas práticas.

NOVOS ESTUDOS DO LETRAMENTO (NEL)

Os Novos Estudos do Letramento (NEL), como dito na introdução


deste capítulo, representam abordagens interdisciplinares de es-
tudo da cultura escrita que se consolidaram no campo das ciên-
cias sociais e humanas na década de 1980. Conforme observa Street
(2004) representam uma nova visão da natureza do letramento que
procura deslocar o foco dado à aquisição de habilidades, como é
feito pelas abordagens tradicionais (psicológica e histórica), para
se concentrar no letramento como uma prática social. As ideias em
torno dos NEL adquiriram notável projeção principalmente a par-
tir da publicação de três obras de destaques: Psychology of Literacy
(1981), de Silvia Scribner e Michael Cole, Ways with Words (1983)
de Shirley Brice Heath e Literacy in Theory and Practice (1984), de

370
Capítulo 13

Brian Street. Essas obras, embora produzidas no âmbito de diferen-


tes áreas do conhecimento (psicologia, sociolinguística/educação e
antropologia), compartilham uma série de pontos em comum. Entre
eles, podemos destacar o foco na abordagem sociocultural e etno-
gráfica do letramento.
Na abordagem sociocultural e etnográfica, diferentemente das
abordagens psicológica e histórica predominantes nos estudos an-
teriores, a leitura e escrita são vistas como elementos enraizados no
cultural e encaixados em relações políticas, ideológicas e de poder.
De modo mais específico, os autores dos NEL, ao se associarem a
essa perspectiva teórica, contestam fortemente a visão dominante
de letramento concebida como uma habilidade individual, técnica
e neutra. Eles defendem, em contrapartida, o letramento como um
conjunto de práticas sociais e a ideia de que a leitura e a escrita es-
tão sempre envolvidas “em relações de poder e incrustadas em sig-
nificados e práticas culturais específicos” (STREET, 2014, 17). Nessa
abordagem, portanto, o letramento tem um sentido mais amplo. Ou
seja, ele assume um significado social que abrange, além de ele-
mentos individuais e técnicos, um conjunto de práticas discursivas,
visões de mundo (crenças, valores) e identidades de determinados
grupos sociais e culturais (GEE, 2004).
Ames (2002, p. 82), mando como base os estudos de Gee (1986)
e Street (1995), destaca que estes estudos levantaram um conjunto
de pontos críticos para o estudo do letramento, a saber: a) preocu-
pação em relação à continuidade antes que a divisão entre orali-
dade e escrita; b) questiona a noção, ainda prevalecente, de que as
sociedades progridem ao longo de uma sequência universal que vai
da oralidade à escrita; c) enfatizam a existência de múltiplos letra-
mentos, antes que um só letramento, os quais estariam associados
com diferentes domínios; d) ênfase na necessidade de compreender
cada letramento em seu próprio contexto (social, cultural, histórico

371
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

e político). Assim, pode-se afirmar que os NEL se configuram como


um campo de estudos interdisciplinar que abrange temas diversos,
como sinaliza Kalman (1993, p. 1):

Esquema 1: Fonte: Os autores, com base em Kalman (1993).

Para exemplificar aspectos fundamentais dessa abordagem,


tomemos como exemplo o estudo pioneiro de Scribner e Col entre
o povo “vai”, uma sociedade tradicional situada na Libéria, na África
ocidental - experiência relatada em sua obra clássica Psychology of
Literacy (1981). Partindo de uma abordagem etnográfica dentro da
psicologia intercultural, Scribner e Cole estavam interessados em
examinar os efeitos cognitivos e sociais da aquisição da leitura e da
escrita para os indivíduos que viviam nesse ambiente cultural es-
pecífico, tomando como base a totalidade da prática social da qual
o povo “vai” fazia parte. Nessa experiência etnográfica, os pesqui-

372
Capítulo 13

sadores relatam que encontram dentro da cultura “vai” práticas de


letramento particulares associadas a três tipos de escrita presentes
na comunidade: 1) a escrita do inglês tradicional (realizada na esco-
la); 2) a escrita árabe (realizada na comunidade); 3) a escrita indíge-
na vai (realizada na comunidade, fora de um contexto institucional).
Na tradição letrada vai, o inglês é o alfabeto oficial das insti-
tuições políticas e econômicas que operam em âmbito nacional; a
escrita árabe, por sua vez, é das práticas de ensino religiosas; e,
finalmente, a escrita vai (indígena) serve a maior parte das necessi-
dades pessoais e públicas nas aldeias para conservar a informação
e comunicar-se entre indivíduos que vivem em diferentes localida-
des. Com base nessas evidências empíricas, eles concluíram que a
forma monolítica e individual como a escrita é tratada na tradição
de estudos psicológicos anteriores parece fracassar, uma vez que
ela não é capaz de fazer justiça completa à multiplicidade de valo-
res, usos e consequências que caracterizam a escrita como prática
social, como evidenciam as diferentes práticas letradas do tradicio-
nal povo vai (SCRIBNER E COLE, 2004, GEE, 2004).
Em síntese, os Novos Estudos do Letramento representam a
leitura e escrita como um conjunto de práticas sociais e culturais
que se devolvem em diferentes contextos. De fato, uma caracte-
rística fundamental dessa abordagem é o foco na natureza social
e cultural do letramento e no caráter múltiplo e diversificado das
práticas letradas. Sobre o assunto, Cassany (2009) discorre que uma
abordagem sociocultural se preocupa, ante de tudo, com a presen-
ça da leitura e da escrita em espaços urbanos e sociais e dão conta
dos usos e significados que essas práticas têm em nossas vidas e
entorno. Portanto, no âmbito de estudo do NEL, a leitura e escrita
abrange além de questões individuais (habilidades e competências)
questões sociais mais amplas, isto é, são interpretadas como “acon-
tecimentos comunicativos” que se alinham a papeis sociais, identi-

373
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

dades e valores de determinados grupos e comunidades.

MODELOS DE LETRAMENTO: AUTÔNOMO E IDEOLÓGICO

Na década de 1980, visando examinar e refutar os pressupostos te-


óricos da teoria da “grande divisão” e, ao mesmo tempo, oferecer
uma alternativa mais detalhada para a compreensão dos diferentes
usos e funções da escrita, e por extensão da leitura, em diferentes
contextos, Street (1984) propôs dois modelos conceituais de letra-
mento: autônomo e ideológico. O primeiro modelo, segundo o au-
tor, opera com base na suposição de que a escrita seria um produto
completo em si mesmo - restrito a um conjunto de habilidades in-
dividuais capaz de promover, de forma autônoma, o avanço cog-
nitivo dos indivíduos, bem como de levá-los, independente do seu
contexto histórico-cultural, a progressos sociais e a níveis univer-
sais de desenvolvimento. Já o segundo modelo, mais culturalmente
sensível, “afirma que as práticas de letramento, no plural, são social
e culturalmente determinadas, e, como tal, os significados espe-
cíficos que a escrita assume para um grupo social dependem dos
contextos e instituições em que ela foi adquirida” (KLEIMAN, 1995,
p. 21). Na sequência, veremos com mais detalhes a definição e como
se caracterizam cada um desses modelos.

374
Capítulo 13

MODELO AUTÔNOMO DE LETRAMENTO

Os principais expoentes do modelo autônomo, ente eles Walter


Ong (1998), Goody (1977) e Havelock (1998), sustentam que o letra-
mento corresponde a uma série de competências e de habilidades
individuais capazes de produzir efeitos cognitivos nos indivíduos
independentemente dos contextos sociais e dos usos da leitura e
da escrita materializados em uma determinada cultura. Em outras
palavras, o letramento aparece nesse modelo como um conjunto
de habilidades cognitivas abstraídas de seus contextos sociocultu-
rais e das instituições nas quais são originalmente geradas. Nessa
linha, os representantes do enfoque autônomo conceituam letra-
mento “[...] em termos técnicos, tratando-o como independente do
contexto social: uma variedade autônoma cujas consequências para
a sociedade e para a cognição derivam de seu caráter intrínseco”
(STREET, 2004, p. 96, tradução nossa).
Nessa perspectiva, percebe-se que a escrita é, por natureza,
vista como uma tecnologia boa e considerada uma força autônoma
fundamental para a formação do pensamento e da cultura e, em
consequência, para o progresso, a mobilidade social e o êxito dos
indivíduos na sociedade. Esse conjunto de consequências positivas
do letramento - consideradas de caráter universal dentro do mo-
delo autônomo - é denominado por Graff (1979) de “mitos de letra-
mentos”1, ou seja, um conjunto de “afirmações folclóricas” sobre
as consequências cognitivas e sociais do processo de aquisição da
leitura e da escrita, sem levar em conta (condicionantes) as variá-
veis políticas, sociais e culturais desse processo. Walter Ong (1998,

1  Kleiman, em seu livro Os significados do letramento, cita alguns desses mitos: ma-
nutenção das características da espécie, modernidade, ascensão e mobilidade social,
desenvolvimento econômico, distribuição de riqueza, aumento de produtividade,
emancipação da mulher, avanço espiritual (KLEIMAN, 1995, p.34-36).

375
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

p. 17), principal expoente do modelo autônomo de letramento, por


exemplo, defende que

Ao isolar o pensamento em uma superfície escrita, separando-a


de qualquer interlocutor, convertendo a expressão em algo au-
tônomo e indiferente ao ataque, a escrita apresenta a expressão
e o pensamento como algo sem relação com todos os demais,
independentes e completos de alguma maneira.

Essa citação, ao conferir à escrita uma autonomia, ilustra bem


os princípios do modelo autônomo. Nessa linha, nos estudos que
integram esse enfoque, a escrita é, de fato, representada em termos
de desenvolvimento e progressos sociais, assim como em termos
de processos cognitivos individuais, geralmente alcançados pelo
processo de escolarização. No modelo autônomo, portanto, o le-
tramento é abordado numa perspectiva mais restrita, geralmente,
visto sob um viés unicamente pedagógico e quantitativo, limitado
ao arcabouço da educação. Nesse viés, “de um ponto de vista peda-
gógico, o processo é visto como a aquisição de específicas habili-
dades técnicas e o aprendizado das convenções e suposições sobre
letramento sustentadas pelos professores” (STREET, 2007, p. 475).
Nesse sentido, apenas práticas de letramentos dominantes (como
aquelas que ocorrem no interior das escolas) são consideradas legí-
timas, enquanto outras práticas de letramento vernacualares (como
aquelas que ocorrem no contexto comunitário) são marginalizadas
e consideradas de menor status.
Cabe mencionar ainda que os estudos da tradição clássica ain-
da têm grande influência e dominam a abordagem do letramen-
to nos círculos acadêmicos, nas agências de desenvolvimento e
integra boa parte dos programas de escolarização e luta contra o
“analfabetismo” (STREET, 2014). No entanto, com o surgimento do
quadro epistemológico dos NEL, esse modelo tradicional de pensa-

376
Capítulo 13

mento vem sendo substituído, de modo alternativo, por uma pers-


pectiva mais social e contextualizada da leitura e da escrita, isto é,
pelo modelo ideológico de letramento.

MODELO IDEOLÓGICO DE LETRAMENTO

No início da década de 1980, o antropólogo e linguista Brian Stre-


et publica sua obraseminal Literacy in Theory and Practice (1984).
Nesse trabalho, o pesquisador questiona o modelo autônomo de
letramento e propõe um modelo alternativo de análise das práti-
cas letradas: o modelo ideológico. A proposta do modelo ideológico
se concentra no caráter social da leitura e da escrita e concebe o
letramento, como vimos anteriormente, como uma prática social
situada e incrustada em relação ideológica e de poder. O modelo
ideológico, nesse sentido, parte de premissas diferente do modelo
autônomo (de caráter individualista), uma vez que tem um caráter
social mais amplo e encara as práticas sociais sob um ponto de vista
mais sensível e crítico. Tal modelo, de acordo com Street, “reco-
nhece uma multiplicidade de letramentos; que o significado e os
usos das práticas de letramento estão relacionados com contextos
culturais específicos; e que essas práticas estão sempre associadas
com relações de poder e ideologia” (STREET, 2007, p. 466).
Ainda segundo Street, a perspectiva ideológica,

[...] postula que o letramento constitui uma prática social e não


uma habilidade técnica e neutra; além disso, sustenta que sempre
está imerso em princípios epistemológicos socialmente constru-
ídos. As formas em que as pessoas empreendem a leitura e a es-
critura estão enraizadas em concepções sobre o conhecimento, a
identidade e o ser (STREET, 1984, p. 44).

377
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Na visão ideológica, portanto, diferente do letramento visto


em uma perspectiva individual e de aprendizagem, o letramento é
visto como “essencialmente um conjunto de práticas socialmente
construídas que envolvem a leitura e escrita, geradas por proces-
sos mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores,
tradições e formas de distribuição de poder presentes nos contex-
tos sociais” (SOARES, 1998, p.74, grifos da autora). Seguindo essa
mesma linha de pensamento, Mortatti (2004) reforça que nas di-
ferentes formas de abordagem desse modelo, leitura e escrita são
consideradas atividades de natureza eminentemente social, isto é,
são produtos sócio-históricos, “que variam no tempo e no espaço e
dependem do tipo de sociedade, bem como dos projetos políticos,
sociais e culturais em disputa” (MOTATTI, 2004, p. 104-105).
Ao analisar as premissas de tal modelo, Kleiman chama a aten-
ção para o fato de que o modelo ideológico não nega os resultados
específicos dos estudos realizados no modelo autônomo do letra-
mento. Pelo contrário, de acordo com a autora, as consequências
cognitivas da aquisição da escrita na escola, por exemplo, devem
ser entendidas em relação às estruturas culturais e de poder que
o contexto de aquisição da escrita nesta instituição representa
(KLEIMAN, 1995, p. 39). Sob esse aspecto, Gee (2005) faz o seguinte
comentário: “o letramento, qualquer tipo que seja, só tem conse-
quências quando atua junto com grande número de fatores sociais,
entre os quais estão as condições políticas e econômicas, a estru-
tura social e as ideologias locais (GEE, 2005, p. 73).
Nesse sentido, subjacente a esse modelo teórico está a ideia de
que as práticas sociais concretas de letramento estão permeadas
de ideologia ou diferentes e diversificadas formas de conceber a
realidade e o mundo. Como revela Tfouni (2010, p.220), ao encarar o
letramento dentro dessa perspectiva, a questão não se restringe ao
domínio de técnicas, habilidades, nem capacidade de uso da leitura

378
Capítulo 13

e da escrita, como ocorre no modelo autônomo, ela é muito mais


abrangente, “pois nos lança o desafio de termos que descrever em
que consiste o letramento dentro de uma concepção de práticas
sociais que se interpenetram e se influenciam, sejam essas práticas
orais ou escritas, circulem dentro ou fora da escola”.
Outro aspecto importante de tal proposta é a visão integrada
entre oralidade e escrita ou a percepção dessas modalidades como
um continuum. Em estudo anterior, mencionei que na perspecti-
va ideológica não há uma polarização entre a oralidade e a escrita
como ocorre no modelo autônomo de letramento. Naquela pers-
pectiva, as práticas e eventos de letramento desenvolvem-se, antes
de tudo, por meio de um continuum, isto é, sem uma divisão rígida
ou dicotômica entre os usos da língua oral e da língua escrita, uma
vez que, nessas modalidades, esses usos se interpenetram e se so-
brepõem constantemente (SANTOS, 2014). Nesse sentido, como de-
fine Buzato (2007, p. 153), o letramento pode ser entendido como um
conjunto de “[...] práticas sociais, plurais e situadas, que combinam
oralidade e escrita de formas diferentes em eventos de natureza
diferente, e cujos efeitos ou consequências são condicionados pelo
tipo de prática e pelas finalidades específicas a que se destinam”.
Em síntese, este enfoque presta especial atenção ao que as pes-
soas fazem com as habilidades e conhecimentos da leitura e escrita no
entorno social, examinando os sentidos e as representações de suas
práticas de letramento. Nessa dimensão do letramento, contrastando
com modelo autônomo, mas não o negando, os usos e significados da
leitura e da escrita estão estritamente relacionadas ao contexto socio-
cultural no qual os sujeitos estão situados, às atribuições pessoais des-
ses sujeitos e aos múltiplos letramentos circunscritos aos diferentes
domínios sociais dos quais eles participam, cujas formas são moldadas
e reforçadas pelas instituições sociais ou esferas de atividades em que
essas práticas estão inseridas (SANTOS, 2014).

379
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

EVENTOS DE LETRAMENTO

Os teóricos que integram a corrente do NEL também utilizam outro


conceito-chave para estudar empiricamente a cultura escrita pro-
duzida por diferentes grupos culturais e comunidades: eventos de
letramento, expressão baseada na teoria sociolinguística dos even-
tos de fala ou etnografia da comunicação. A princípio, o termo foi
utilizado por Anderson, Teale e Estrada, sob um enfoque cognitivo,
para designar uma ocasião durante a qual uma pessoa “tenta com-
preender os signos gráficos”. Posteriormente (1983), Shirley Brice
Heath publica sua obra seminal Ways with words e traz uma nova
abordagem de natureza sócio-histórica para o conceito, definin-
do-o como toda e qualquer forma de interação social mediada pelo
texto escrito. Na definição avançada por Heath (2004, p.52), que se
tornou referência para pesquisas etnográficas posteriores, os even-
tos de letramento são compreendidos como “ocasiões em que a lín-
gua escrita se integra à natureza das interações dos participantes e
de seus processos e estratégias interpretativas”.
Um exemplo clássico de evento de letramento, citado nos es-
tudos etnográficos de Heath (1983) e retomado por Gee (2004), é
a leitura de contos infantis à hora dormir. Nesse tipo de evento,
é possível observar uma atividade mediada por um texto escrito
(leitura), geralmente executada por um membro mais experiente
(adulto), na qual ele estabelece com o par menos experiente (crian-
ça) um scaffolding2. Ou seja, nesse processo interativo mediado
pelo código escrito, o pai ou a mãe estabelecem um diálogo como
“andaimagem de apoio” com a criança e faz perguntas como O que

2  No âmbito do ensino, scaffolding ou andaimagem é um “termo metafórico usado


para denominar o processo interativo por meio do qual o professor, como um parcei-
ro mais competente, ajuda o aluno a construir o conhecimento” (BORTONI-RICARDO,
2005, p. 197-198).

380
Capítulo 13

é X?, oferecendo, em seguida, retroalimentação verbal e um nome


logo que a criança haja vocalizado ou proporcionado uma resposta
não verbal (GEE, 2004). Nesse tipo de evento, como podemos notar,
é nítida a presença da escrita, bem como a presença de estratégias
interpretativas mobilizadas durante o processo interacional, carac-
terizando um típico evento de letramento - como sinalizado ante-
riormente nos estudos de Heath.
Com base nessas observações, Gee (2004) e Heath (2004) en-
tendem que os eventos de letramento são aqueles eventos que
envolvem textos escritos e no qual há sempre uma negociação
de significados, isto é, ocasiões nas quais livros ou outros mate-
riais escritos são integrais para interpretação e interação entre os
participantes. Nos estudos de Heath (1983), por exemplo, a autora
revela que nas famílias de classe média da cidade de Rodaville os
eventos predominantes eram os contos infantis para dormir, a lei-
tura de textos de caixa de cereais, os sinais de trânsito e os anún-
cios de televisão, assim como a interpretação das instruções de
brinquedos e de jogos comerciais. Ou seja, modos particulares de
interagir socialmente por meio de textos escritos e de assimilar e
compartilhar conhecimentos oriundos de práticas sociais geradas
daquela comunidade.
Ampliando a discussão em torno do conceito, Barton e Hamil-
ton (2004) elencam cinco proposições que auxiliam pesquisadores
a compreender como se caracterizam os eventos de letramento.
Para esses autores, os eventos são: 1) atividades nas quais o letra-
mento cumpre um papel; 2) episódios observáveis que surgem das
práticas e são formados por estas; 3) na vida, muitos eventos são
atividades repetidas e regulares; 4) outros eventos se encadeiam
em sequencia de rotinas que podem ser parte dos procedimen-
tos e expectativas de instituições sociais, como, por exemplo, o
local de trabalho, as escolas, as agências de bem-estar social; 5)

381
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

certos eventos são estruturados graças às expectativas e pressões


mais informais, como aqueles que ocorrem no âmbito do lar e en-
tre grupo de amigos e colegas; 6) os textos são parte crucial dos
eventos de letramento, de tal forma que o estudo do letramento é
também um estudo de textos.
Nesses termos, a “noção de eventos de letramento oferece
ao pesquisador (ou ao professor que analisa o cotidiano de sala
de aula) o modelo analítico para descrever e caracterizar quando,
onde e como as pessoas leem ou escrevem sobre um texto ou in-
teragem por meio da escrita” (GLOSÁRIO CEALE, 2014, grifo nos-
so)3 Nesse sentido, descrever eventos implica observar como as
pessoas se envolvem cotidianamente com o material escrito, os
domínios ou âmbitos sociais por onde os textos circulam, bem
como localizar o letramento no tempo e no espaço. Numa pers-
pectiva etnográfica, como sugere Santos (2014), entender como
funcionam os eventos de letramento requer uma série de atitu-
des e ações a serem desenvolvidas em campo: observar atividades
mediadas pela escrita, conversar com pessoas, fazer perguntas,
participar ativamente das interações enquanto elas se desenrolam
e, ao mesmo tempo, compreender as regras, as convenções e os
pressupostos a elas subjacentes.
Em síntese, ao analisar eventos de letramento em um contexto
sócio-histórico particular, o(a) pesquisador(a) se ocupa em descre-
ver como as pessoas desse contexto se envolvem concretamen-
te em diferentes práticas sociais mediadas pela leitura e escrita e
também por outras formas de linguagem. O seja, ele(a) se propõe
a investigar e descrever como os sujeitos sociais usam de forma
situada os letramentos no desempenho de diferentes atividades em

3  Glosário Ceale. Disponível em <http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/


glossarioceale/verbetes/praticas-e-eventos-de-letramento>. Acesso em 10 julho de
2018.

382
Capítulo 13

diferentes instituições, contextos ou domínios. Conclui-se, nesse


sentido, que o conceito de evento de letramento surgiu - no âmbito
de investigação do NEL - como uma importante unidade de análise
no estudo das práticas letradas. Em outras palavras, uma ferramen-
ta conceitual utilizada para examinar empiricamente como deter-
minados grupos sociais ou comunidades mobilizam a linguagem,
escrita e falada, e fazem uso, participam de diferentes letramentos
(múltiplos letramentos).

PRÁTICAS DE LETRAMENTO

Como dito na seção anterior, as pessoas desempenham atividades


variadas com os textos, com diferentes propósitos sociais e em
contextos socioculturais diversificados. Nesse contexto, um mes-
mo evento de letramento pode ter diferentes objetivos. Por exem-
plo, a leitura de um jornal para um participante pode ser realizada
com a finalidade de buscar informações sobre os acontecimentos
globais ou locais. Já para outro participante, essa mesma atividade
pode ser realizada com o propósito de buscar oportunidade de em-
prego. Como se pode notar, nesse caso, o evento é o mesmo (leitura
de um jornal), porém os propósitos sociais são distintos. Portanto, é
importante examinar o que as pessoas fazem com os textos, procu-
rando abstrair de tal atividade os significados sociais aí inerentes. É
essa busca pelos significados dos eventos que nos leva às práticas
de letramento.
O conceito de práticas de letramento é central na teoria dos
NEL. Esse é um conceito tão seminal para o campo que levou Stre-
et a afirmar que “parece ser o mais vigoroso dos vários conceitos
que pesquisadores e pesquisadoras do letramento desenvolveram”
(STREET, 2012, p. 76). Para melhor esclarecer o significado de tal

383
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

conceito, devemos associá-lo ao conceito de eventos, uma vez que


esses constructos teóricos estão estreitamente relacionados. Assim,
enquanto os eventos referem-se a atividades materiais, concretas
e observáveis que envolvem textos, materiais escritos e outras se-
mioses, as práticas, por sua vez, referem-se a padrões culturais ou
maneiras específicas de pensar sobre os diferentes eventos de le-
tramento (concepção mais abstrata). Nos termos de Street (2012,
p.77), trata-se de uma “concepção cultural mais ampla de modos
particulares de pensar sobre a leitura e a escrita e de realizá-las em
contextos culturais”.
O conteúdo da citação acima permite afirmar que os eventos
são constituídos de elementos (abstratos) não observáveis, como,
por exemplo: valores, crenças, identidades, relações sociais, mo-
delos cognitivos etc. Ao analisar tais eventos (atividades concretas
de leitura e escrita), começamos a perceber como essas ativida-
des culturais são socialmente estruturadas. É essa organização que
fornece padrões de comportamento, pressupostos, convenções e
significados culturais subjacentes a tais atividades. Com efeito, as
práticas envolvem mais do que a mera descrição de eventos, isto
é, envolvem a análise e interpretação do que “acontece nos con-
textos sociais em relação aos significados e usos do letramento”
(STREET, 2012, p. 70). Assim, como dito anteriormente, as práticas
de letramento envolvem duas faces: de um lado, o evento (atividade
concreta observável), de outro as representações (valores, senti-
mentos, crenças em relação ao material escrito). A primeira face é
fornecida pela descrição das atividades mediadas pelo texto escrito
(como, o que, quem, ou seja, pelas interações). Já a segunda é obtida
pela análise interpretativa das representações materializadas nos
discursos. A esse respeito, Street (2004), fazendo referência a tra-
balho anterior (1987), se posiciona da seguinte forma:

384
Capítulo 13

Emprego práticas de letramento como um conceito mais amplo,


mais abstrato e referido tanto ao comportamento como às con-
cepções relacionadas com o uso da leitura e da escritura. Nesse
sentido, as práticas de letramento incorporam não só os eventos
de letramento como ocasiões empíricas das quais o letramento
é parte essencial, mas também aos modelos folclóricos desses
eventos e os preconceitos ideológicos em que se baseiam (STRE-
ET, 2004, p. 94)”.

Nesse contexto, portanto, as “práticas de letramento” incorpo-


ram não só “os eventos de letramento” – ocasiões observáveis ​​em
que o letramento desempenha um papel –, mas também as formas
de compreender, sentir e falar sobre esses eventos (Cf. Steet, 2014).
É essa descrição e análise interpretativa mais crítica que permite ao
pesquisador ter condições de devolver uma visão etnográfica mais
global do contexto: ambientes, participantes, e uma abordagem so-
ciocultural mais sensível sobre os diferentes usos dos letramentos.

ETNOGRAFIA E ESTUDOS DOS LETRAMENTOS

O presente estudo segue o paradigma qualitativo e se valeu de pro-


cedimentos e princípios da etnografia para a geração de registros
(Cf. BORTONI-RICARDO, 2008). Na tradição de estudos antropo-
lógicos, etnografia significa estudo descritivo (graphos) da cultura
(ethnos) de uma comunidade. Em outras palavras, uma maneira de
estudar a cultura de grupos sociais e culturais organizados e dura-
douros, ou seja, as chamadas comunidades e sociedades. Ao estu-
dar uma determinada cultura, o etnógrafo preocupa-se não pro-
priamente com os sentidos individuais, mas sim com os significados
gerados pela coletividade. De modo mais específico, no processo de
investigação cultural, ele se interessa, sobretudo, pela descrição de
comportamentos, costumes e crenças aprendidos e compartilha-

385
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

dos por determinados grupos humanos, enfocando a interpretação


dos significados sociais gerados por membros de culturas específi-
cas (ANGROSSINO, 2009).
Valendo-se das características e dos princípios da etnografia,
desde a virada social nos estudos da cultura escrita ocorrida na
década de 1980, pesquisadores interessados nos estudos do letra-
mento vêm defendendo o uso da perspectiva etnográfica como um
importante método de pesquisa para captar e desvelar os significa-
dos das atividades de letramento situadas em diferentes contextos
e diferentes culturas (Cf. STREET, 1984; RIOS, 2006/2007; AMES,
2002; HEART, 1983). Street, por exemplo, afirma que a investiga-
ção das práticas sociais letradas “exige necessariamente uma abor-
dagem etnográfica, que ofereça relatos minuciosamente detalha-
dos de todo o contexto social em que tais práticas fazem sentido”
(STREET, 2014, p. 44).
Foi com base nesses princípios que iniciei minha experiência et-
nográfica no Quilombo Mesquita (GO), a fim de compreender como
diferentes atores sociais dessa comunidade teciam diferentes signi-
ficados acerca dos letramentos. Para isso, parti de “[...]um ambiente
social real no qual todos os tipos de forças operam: cultura, lingua-
gem, estrutura social, história, relações políticas” (BLOMAERT, 2010,
p.19, tradução nossa) para, enfim, investigar de forma situada o que
os participantes deste contexto faziam concretamente com a leitura
e escrita e como eles atribuíam significados a essas práticas.
Pelo seu caráter situado, defino essa experiência etnográfica
não como um produto que prende ser replicado, mas como um pro-
cesso com nuances subjetivas, espaciais e temporais particulares.
Em outros termos, entendo que o objeto da investigação é parte de
“[...] uma realidade singularmente situada: um complexo de eventos
que ocorre em um contexto totalmente único” (idem, p.19), ou seja,
em um contexto de luta e resistência localizado historicamente no

386
Capítulo 13

tempo e no espaço. Partindo dessa visão sociocultural e etnográfi-


ca, nas próximas seções, apresento de forma breve o principal lócus
de estudo, os sujeitos participantes da pesquisa, bem como as fer-
ramentas etnográficas utilizadas na condução da pesquisa.

O CONTEXTO DA PESQUISA

O Quilombo Mesquita, situado a 60 km de Brasília, constitui o nú-


cleo de descendentes de escravos mais próximo da Capital Federal.
A comunidade está localizada na zona rural do município da Cida-
de Ocidental/GO, na mesorregião do leste goiano. Possui pouco
mais de 775 famílias e conta com uma população estimada em 3.000
habitantes; população em sua maioria da raça negra, descenden-
tes de ex-escravos de matriz africana, reconhecida pela Fundação
Cultural Palmares/FCP como remanescente de quilombolas em 19
de maio de 2006. Seus ancestrais são africanos da etnia Malês, pos-
sivelmente, islamizados, com origem do Sudão (SILVA, 2003), tra-
zidos para o antigo arraial de Santa Luzia (hoje Luziânia), na época
da escravidão, entre os anos de 1746 e 1775, para trabalhar na lavra
do ouro durante o ciclo da mineração; atividade iniciada por ser-
tanista, nas terras do Brasil Central, durante o século XVIII (SAN-
TOS, 2014). Como mencionado na seção anterior, esse é o contexto
sociocultural para onde direcionaremos nosso olhar etnográfico e
nossas ações de campo.

387
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

OS PARTICIPANTES DA PESQUISA

Este trabalho teve a participação de diferentes interlocutores4: ho-


mens, mulheres, jovens e adultos, alunos e professores do campo
da educação primária, lideranças locais e eventuais visitantes da
comunidade. Essa diversidade de participante/colaboradores visou
recobrir, a partir de um recorte etnográfico, o maior número de
eventos e de práticas de letramento subjacentes ao entorno comu-
nitário, familiar e escolar do Quilombo Mesquita.

AS FERRAMENTAS ETNOGRÁFICAS

A teoria da prática social dos letramentos, como mencionada ante-


riormente, assume uma perspectiva de investigação diferente dos
enfoques individuais de estudo da cultura escrita. Como diz Hamil-
ton (2010, p.11-12, tradução nossa), ela olha para eventos e práticas
de letramento, ou seja, para o contexto geral em que o(s) letramen-
to(s) estão sendo usado(s), e considera:

»» Participantes: quem está envolvido em uma interação


com um texto escrito;
»» Atividades: o que os participantes fazem com os textos
(e isso não envolve apenas leitura ou escrita;

4  Para promover esse processo de interlocução, levaremos em conta no processo


de escolha dos participantes/colaboradores a diversidade de papéis sociais, a dispo-
nibilidade e o interesse em participar da pesquisa. Além disso, visando estabelecer
uma relação de confiança com o grupo pesquisado, todos participantes receberão um
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) com as principais características
éticas da pesquisa.

388
Capítulo 13

»» Configurações: onde eles fazem isso fisicamente – na


cozinha, no ônibus;
»» Domínios: as diferentes áreas da vida social, como fa-
mília/comunidade /vida pública/cidadania;  ambiente
de trabalho; educação, comércio, lidando com serviços
públicos e burocracias;  saúde;  crianças; assuntos le-
gais. A noção de ‘domínio’ envolve valores e propósitos,
não apenas locais;
»» Recursos: podem ser habilidades cognitivas e conheci-
mento;  eles também podem ser um papel, uma pare-
de ou outra superfície para escrever, um computador,
uma impressora, um conjunto de canetas coloridas ou
uma lata de tinta spray, um martelo e um cinzel.

Para abranger essa teia de elementos e significados sociocul-


turais, a etnografia de letramentos em comunidade exige uma série
de instrumentos de geração dados de diversas naturezas: pesquisa
de campo, entrevistas, diários, grupo focal, etc. (Cf. AMES, 2002).
No campo de estudo do(s) letramento(s), essa confluência de fer-
ramentas etnográficas é utilizada para mapear o uso da leitura e
da escrita em diferentes espaços sociais, bem como auxiliar o pes-
quisador no processo de triangulação metodológica dos dados que
ele encontra em campo. À luz desse panorama investigativo, nosso
estudo sobre práticas comunicativas e de letramento no Quilombo
Mesquita envolveu um processo recursivo que abrangeu diferen-
tes tipos de instrumentos: (i) Observação participante, (ii) Diário
de campo (iii) Matriz de práticas (iv) Diário de participantes (v) En-
trevistas etnográficas e episódicas; e (vi) Registros fotográficos e
audiovisuais; e (vii) Coleta de documentos institucionais. Valendo-
-me do potencial dessas diferentes ferramentas etnográficas, nas
próximas seções, apresento um conjunto de registros de campo

389
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

que visam ilustrar diferentes eventos e práticas de letramento no


contexto da comunidade.

EVENTOS DE LETRAMENTO: USOS DIÁRIOS


EM DIFERENTES CONTEXTOS

Em Mesquita, boa parte dos moradores participam de uma diversi-


dade de eventos de letramentos em suas rotinas diárias e se envol-
vem com uma série de gêneros textuais e materiais escritos em di-
ferentes contextos. Para ilustrar essa relação cotidiana da população
local com a cultura escrita, trago a seguir partes dos diários de três
participante da pesquisa: Lisboa (estudante universitária), Braga (jo-
vem liderança quilombola) e Bomani (aluno da escola primária local).
Os eventos registrados nesses diários sinalizam tanto para os usos
socioculturais da leitura e da escrita no contexto comunidade como
para os distintos modos de ser letrado do povo mesquita.
O primeiro exemplo provém do diário de participante Lisboa,
moradora do quilombo e universitária do curso de Agronomia da
Universidade de Brasília (UnB). Por conta da sua rotina na universi-
dade, em seu diário, ela descreve um conjunto de atividades que ti-
nham como objetivo a elaboração do seu Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC), intitulado “Agricultura familiar no Povoado Mesqui-
ta: uma comunidade tradicional descendente de quilombolas”. Em
decorrência desse trabalho monográfico, Lisboa não só participava
de uma diversidade de eventos (aulas, saídas de campo, reuniões,
palestras), como também produzia diretamente uma variedade de
práticas de leitura e de escrita ligadas à esfera acadêmica (escrita
de e-mails, relatórios de pesquisa, anotações etc.). Além dessas ati-
vidades, ela interagia presencial e virtualmente com sua orientado-
ra, bem como mantinha contato com produtores rurais da região

390
Capítulo 13

do Quilombo Mesquita e do entorno do Distrito Federal (DF). Lisboa


também menciona em seu diário o uso de uma série de gêneros de
textos, como questionários, entrevistas e documentos.
Vejamos a rotina, os eventos e os gêneros textuais descritos
por Lisboa.

QUADRO 1: DIÁRIO DE PARTICIPANTE DE LISBOA

PERÍODO ATIVIDADES REGISTRADAS AO LONGO DE 15 DIAS

 Aula prática na Colônia Agrí-  Correções;


cola Taquari;  Aprendizagem de aula
MANHÃ  Saída de campo da disciplina prática;
de oleicultura para a fazenda  Anotações de aula e palestra.
Werman no PAD-DF;

 Envio do TCC por e-mail;  Uso de questionários e


 Entrevista com produtores perguntas sobre como era a
rurais. Análise de documen- agricultura na comunidade;
TARDE tos;  Anotações sobre como seria
 Reunião com orientadores os tópicos do TCC;
na UnB;
1. Uso do computador;
 Troca de e-mails com a  Finalização do TCC;
orientadora;  Descrição das repostas dos
NOITE  Relatório das entrevistas; questionários.
 Digitação do TCC em casa;  Descrição da agricultura na
comunidade;

Nesse exemplo particular, vemos que Lisboa, ao acessar a edu-


cação superior, teve que se apropriar da escrita institucional para
suprir as exigências de produção de textos da esfera acadêmica,
entre elas, a produção rotineira de gêneros formais. Porém, apesar
de participar de um letramento imposto, ou nos termos de Hamil-
ton (2002, p. 4) “dominante” ou “institucionalizado”, Lisboa se apro-
priou dos usos institucionais da leitura e da escrita não de forma
passiva, mas sim de forma protagonista na medida em que, fazendo

391
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

uso desse tipo de letramento, ela o transformou, bem como o reuti-


lizou a serviço do quilombo. Como discorre Kleiman e Sito (2016, p.
171), tal uso nos leva a pensar nas diferentes formas de apropriação
dos multiletramentos, entre elas “apropriação de gêneros tradicio-
nais – em geral pertencentes a esferas burocráticas, jornalística e
acadêmica – de instituições letradas poderosas (por que são so-
cialmente legitimadas) que são transformados e postos a serviço
dessas comunidades”.
O próximo exemplo é um recorte do diário de Bomani, aluno
do 7º ano do ensino fundamental da Escola Aleixo Pereira Braga I, a
única instituição de ensino público da comunidade. O diário 2 re-
sume as principais atividades realizada por Bomani fora e dentro
da escola.

QUADRO 2: DIÁRIO DE PARTICIPANTE DE BOMANI

PERÍODO ATIVIDADES REGISTRADAS AO LONGO DE 15 DIAS

 Tomei café da manhã;  Depois andei de bike;


 Na escola fiz uma atividade  Em casa eu estudo os deve-
de matemática; res de história, português,
MANHÃ
 Fiz uma prova de inglês; faço trabalhos.
 Fui para casa. Joguei Free
Fire;

 Joguei bola;  Joguei Free Fire no celular;


 Fui na casa da minha avó;  Fico jogando no game,
TARDE
 Depois fui para casa da tia; depois ando de bike.
1. Tomei banho;
 Eu tomo banho.  Jogo Free Fire.
NOITE
 Janto  E vou dormir.

Em seu diário, Bomani descreve a participação em um conjun-


to variado de atividades cotidianas, bem como o contato com uma
série de gêneros discursivos em dois domínios: a escola e a casa. Na
escola, os eventos mencionados por Bomani envolvem práticas de

392
Capítulo 13

leitura e de escrita de textos em gêneros escolares (deveres, pro-


vas e trabalhos). Tais atividades, como ilustra o diário 2, também se
estendem ao domínio familiar em forma de estudos para provas e
trabalhos escolares. No domínio do lar, a vida de Bomani é atraves-
sada por outras atividades rotineiras relacionadas ao âmbito do la-
zer, incluindo tarefas sem a presença da escrita (andar de bicicleta e
jogar bolar), bem como práticas letradas no ambiente digital (jogos
no vídeo game e no celular). Ele menciona também tarefas comuns
ao âmbito doméstico (tomar café da manhã, visitar a avó e a tia, ir
para casa, tomar banho, jantar e dormir). Todos os eventos, como
mostra a descrição feita por Bomani, são desenvolvidos em diferen-
tes esferas de atividades: escola, residência, rua, campo de futebol
e casa de familiares. O diário de Bomani é ilustrativo de como as
práticas de letramentos podem transitar entre diferentes contextos
ou esfera de atividades. Nesse caso específico, as práticas de leitura
e de escrita transitam principalmente entre o domínio escolar e o
contexto familiar.
Outro exemplo que demostra a diversidade letrada e a varieda-
de de contextos de usos da leitura e da escrita em Mesquita vem do
diário da liderança quilombola Braga. O diário 3, a seguir, descreve
as principais atividades vivenciadas por Braga:

393
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

QUADRO 3: DIÁRIO DE PARTICIPANTE DE BRAGA

PERÍODO ATIVIDADES REGISTRADAS AO LONGO DE 15 DIAS

 Em casa, conversa com fami-  WhatsApp, Fecebook, Insta-


liares; gram;
 Assistir série, desenho, Ne-  Mensagem, folhetos, placas;
tflix;  Televisão, Programas de TV;
MANHÃ  Andei de bicicleta, casa da vó,  Rótulos, GPS, documentos,
caminhada, descanso, missa; Youtube, Panfletos, Netflix.
 Levar aluno no IFB, arrumar a
casa, casa de amigos, andar a
cavalo.

 Na comunidade, familiares e  Passeio por Brasília, festa


amigos, estágio, evento cul- cultural na comunidade.
tural;  Dinheiro, Textos, Photoshop,
TARDE
 Andei pela comunidade, reu-  Livros; jornal, folhetos,
nião na comunidade;  WhatsApp, Fecebook, Insta-
gram, documentos

 Em casa, conversa com fami-  WhatsApp, Fecebook, Insta-


liares e amigos; gram;
 Netflix, descanso, evento cul-  Placas, noticiários, televisão;
NOITE tural;  Folhetos, orações, redes so-
 Festa com os amigos, festa ciais;
cultural na comunidade.  Livros, textos, desenhos;
 Cultos de umbanda.

Descrevendo sua rotina, Braga apresenta em seu diário dife-


rentes atividades e gêneros de textos. A vida de Braga gira em torno
de uma gama diversificada de eventos de oralidade e de letramento,
incluindo desde conversas privadas e interpessoais com grupo de
parentesco a práticas escritas e multimodais no mundo online. Em
seu diário, ele reportou a participação em uma variedade de even-
tos: missas, estágio, festas culturais, reuniões na comunidade, pas-
seios, etc. Tais eventos acontecem em diferentes espaços sociais
(comunidade, Brasília, casa de amigos, casa da avó e em casa). A vida
de Braga, como mostra o seu diário, é permeada de relações sociais

394
Capítulo 13

com pessoas de dentro e de fora da comunidade: avó, familiares,


amigos e alunos do Instinto Federal de Brasília (IFB).
Em seu diário, Braga relatou ainda a participação em tarefas re-
creativas e de lazer: andar de bicicleta, andar a cavalo, assistir séries
e desenhos. Também incluiu em sua descrição tarefas associadas
ao âmbito doméstico (arrumar a casa) e momentos de relaxamento
(descanso). Além dessas tarefas, ele mencionou o contato com diver-
sos gêneros de textos: mensagens, folhetos, placas, rótulos, docu-
mentos; dinheiro, orações, livros e textos. Outro conjunto de ativida-
des reportadas por Braga são aquelas ligadas ao acesso à informação
à esfera do entretenimento: assistir noticiários, programas de TV e
Netflix. Em seu diário de participante, ele também indicou uma va-
riedade de eventos relacionados ao mundo online, como interações
cotidianas nas redes sociais (WhatsApp, Fecebook, Instagram e You-
tube), bem como o manuseio de programas de edição (Photoshop)
e de plataformas multimídia (Global Positioning System - GPS). Por
fim, Braga descreveu em seu diário um evento associado ao âmbito
religioso: a participação em cultos de umbanda.
Barton e Hamilton (2000) e Gee (2005) defendem a tese de
que as pessoas se envolvem com diferentes práticas de letramento
que variam conforme os contextos de cultura. Os exemplos aqui
descritos nos levam a seguir essa linha e a pensar o letramento no
Quilombo Mesquita como algo plural, diversificado e situado e não
apenas como um elemento individualizado e que ocorre de maneira
igual para todos. O pressuposto principal dessa abordagem, segun-
do a análise avançada por Gee (2005), é o de que sociedades dife-
rentes e subgrupos sociais têm distintas formas de letramento, e os
letramentos têm distintos efeitos sociais e mentais em diferentes
contextos. Como vimos nos exemplos aqui descritos, as interações
ao redor dos textos, o acesso a diferentes práticas leitoras, o ma-
nuseio de recursos escritos e multimodais, bem como os usos da

395
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

leitura e da escrita em uma diversidade de cenários (universidade,


escola e outros âmbitos extraescolares) evidenciam como a popu-
lação do Mesquita participa cotidianamente de uma um conjunto
variado de práticas e eventos de letramento.

PRÁTICAS DE LETRAMENTO: CONCEPÇÕES E CRENÇAS SOBRE A


LEITURA E ESCRITA

O Quilombo Mesquita é um local para ler e escrever. Em outras pa-


lavras, é uma comunidade multiletrada onde os mesquitas viven-
ciam sua “leitura de mundo” (Cf. FREIRE, 1987). Na visão de muitos
moradores da comunidade, a leitura e escrita não se limitam às prá-
ticas desenvolvidas no ambiente escolar. Na percepção de muitos
mesquitenses, tais atividades se estendem ao entorno cultural onde
vivem e expressam suas identidades, crenças, valores e comporta-
mentos. Dentro dessa concepção, o letramento deixa de ser com-
preendido apenas como artefato de natureza linguística. Ou seja,
passa a ser representado pelos diferentes eventos socioculturais e
práticas vivenciados no território, nas residências, nos antigos ca-
sarões, na escola; enfim, nos diferentes ambientes sociais onde a
população local interage e desenvolvem sua vida cotidiana.

LEITURA E ESCRITA COMO JANELAS PARA O MUNDO

É que a leitura e escrita elas estão ao nosso redor sempre e, a


todo momento, você está lendo o mundo, está visualizando. E va-
mos lá para a prática ativa; não adianta também leitura sem ação.
Por que a leitura ativa, eu acredito que você tem que está ativo
a todo instante, lendo a todo instante o mundo, a vivência das
pessoas, vendo até mesmo a maneira que as pessoas se compor-

396
Capítulo 13

tam. Então, é uma maneira de você viver. Ler não só o livro, mas
você ler o que passa por perto de você. Então, a partir do mo-
mento da leitura, você tem como tá transmitindo isso como uma
dramatização. Não precisa você ler um livro. A pessoa transmite
uma leitura através de uma dramatização, de um jogral, de algo
(Professora quilombola Niara)

A professora Niara é uma líder comunitária engajada na dis-


seminação da cultua quilombola e uma agente de letramento
(KLEIMAN, 1995) comprometida com educação de muitas crianças
e jovens da comunidade. Em sua narrativa, ela expressa uma con-
cepção de leitura como uma forma de viver e encarar o mundo:
“É que a leitura e escrita elas estão ao nosso redor sempre e, a todo
momento, você está lendo o mundo, está visualizando”. A fala da pro-
fessora Niara dialoga com o pensamento Freiriano segundo o qual
“a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Ou seja, dentro
dessa concepção, como discorre Paulo Freire (FREIRE, 2005, p. 11),
“o ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita
ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência
do mundo”. Do mesmo modo, para Niara, o ato de ler não se reduz a
palavras postas no papel, mas se estende à leitura da sua realidade,
traduzida na “vivência das pessoas”, “nas maneiras que as pessoas
se comportam” ou mesmo na leitura das ações e experiências que
acontecem em entorno da sua comunidade: “Ler não só o livro, mas
você ler o que passa por perto de você”. Dentro dessa visão, como
destaca Perez, “aprender a ler, a escrever é, antes de mais nada,
aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, localizar-se
no espaço social mais amplo, a partir da relação linguagem-realida-
de” (PEREZ, 2004, p. 105).
Como parte dessa forma de atuação no mundo construída na
relação linguagem-realidade, Niara menciona seu projeto Leitura
Ativa desenvolvido com professores e alunos da escola local:

397
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

Eu tenho um projeto de leitura ativa. É um projeto dentro da es-


cola. No ano passado eu entreguei uma sacola de leitura pra oito
professores e começamos a fazer um trabalho de leitura dentro
da própria escola e cada semana uma professora aplicava através
de dramatização da oralidade e de outros. Alguns professores já
propuseram e já fizemos algumas apresentações. Principalmen-
te a dramatização para aquilo que a criança vivencia e estamos
tentando retornar aquilo que nós iniciamos no ano passado. Não
foi o quanto a gente queria esse ano, mas estamos tentando. E eu
tenho a intenção também de levar pra comunidade. Por exemplo,
deixar a sacola em algum lugar para as pessoas também come-
çarem a ler, porque eu acredito que a leitura é tudo, é base da
formação humana é a leitura. Se você não ler o mundo, você não
consegue sobreviver. Então, a leitura é a base de tudo.

Segundo Niara, o projeto tem como objetivo promover, de


modo contextualizado, o acesso à leitura e escrita às crianças da
região e, extensivamente, à população do Mesquita. Partindo da
realidade das comunidades das negras rurais (baseada no uso da
oralidade e do corpo), o trabalho traz modos particulares de pro-
duzir cultura, incluindo tanto a prática da leitura e da escrita al-
fabética, como também outras modalidades de comunicação hu-
mana: dramatização, entre outros. Com base nesse modo situado
de entender a cultura do Mesquita, Niara apresenta suas crenças
sobre o ato de ler: “a leitura é tudo”, “é a base da formação humana”,
“a leitura de mundo” “é um modo de sobrevivência”. Dentro desse
olhar, como se vê, o letramento não se reduz à apropriação de um
código linguístico. Pelo contrário, dentro dessa visão, letramento é
tudo o que se vive e se faz no território. Expandido essa concepção,
ela prossegue:

Então, eu acredito que algo assim no meio me fez falar que a lei-
tura ela é importante a todo instante, que ela não pode parar.
Então, cada lugar desse que eu passei, eu vivenciei, eu aprendi
um pouquinho da leitura. E as pessoas também me ensinaram a

398
Capítulo 13

vivenciar esses momentos de leitura. Então, eu tenho paixão pela


leitura. E eu acredito que essa leitura ela interage a todo instante
e aqui na comunidade o que a gente ver é essa leitura do meio
ambiente, a leitura do museu que temos dentro da comunidade,
a leitura das pessoas antigas que amo conversar com eles. Eles
transmitem aquela oralidade para a gente que é algo assim que
você quer ficar ali o tempo todo ouvindo. E eu vivi muito com
meu avô, Benedito Antônio. Então, ele me transmitia essa alegria
de leitura, ela me falava que a gente tinha que estudar. Ele não
estudou, mas ele tinha uma oralidade que era assim fantástica.
Ele queria estudar, ele queria que a gente formasse. Então, ele
era assim uma pessoa que queria que a pessoa fosse além daquilo
que ele era. Então, eu acredito que a leitura é tudo e sem ela nós
não somos nada.

Como destacamos, em uma perspectiva sociocultural e etno-


gráfica, o letramento jamais chega a um produto final, é sempre e
essencialmente um processo, não linear, contínuo e multimensio-
nal (SOARES, 2003b). De modo semelhante, para Niara, a leitura não
é um estado, mas sim um processo contínuo: “a leitura é impor-
tante a todo instante”, “não pode parar”. Dentro desse contexto, ela
entende a leitura como interação, como relações sociais vividas e
recriadas no território, como formas de viver a própria comunidade
em suas diferentes instanciais sociais (E eu acredito que essa leitura
ela interage a todo instante e aqui na comunidade o que a gente ver
é essa leitura do meio ambiente, a leitura do museu que temos den-
tro da comunidade, a leitura das pessoas antigas que amo conversar
com eles). Em sua fala, Niara também destaca o importante papel
da oralidade do processo de letramento. Para ela, a oralidade de
seus ancestrais e dos mais velhos, representada na figura do seu
avô Benedito Antônio, é vista como uma maneira legítima de trans-
mitir conhecimento cultural, o que a faz ver a leitura com alegria,
com paixão (Eles transmitem aquela oralidade para a gente que é algo
assim que você quer ficar ali o tempo todo ouvindo. E eu vivi muito

399
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

com meu avô, Benedito Antônio. Então, ele me transmitia essa alegria
de leitura, ela me falava que a gente tinha que estudar). Situando-se
dentro desse contexto, ela afirma: “acredito que a leitura é tudo e
sem ela nós não somos nada”. Dentro dessa concepção ideológica,
portanto, o letramento é visto de maneira mais ampla. Ou seja, está
associado à realidade social do povo quilombola, mesmo nas ações
executadas no contexto escolar.
A título de exemplo, apresento dois eventos de letramento ob-
servados na escola por conta do Dia da Consciência Negra. O pri-
meiro, diz respeito a um chá literário com o tema “A poesia é para
comer: iguarias para o corpo e o espírito”. Essa ação, promovida por
Niara e outras professoras quilombolas, resultou em uma série de
microeventos de letramentos produzidos no interior da escola: es-
crita e leitura de poemas e poesias; produção de acrósticos, elabo-
ração de receitas culinárias; produção de cartazes, degustação de
comidas, bebidas e iguarias locais. Todas essas atividades - media-
das por diferentes formas de linguagens - foram desenvolvidas de
forma associada e imbricada à temática quilombola e ao contexto
sociocultural das crianças negras do Mesquita.
Vejamos, na sequência, exemplo de atividades produzidas nes-
ses eventos:

400
Capítulo 13

Quadro 4: produtos escritos e multimodais do chá literário.

Poema que rima


Benedito Antônio, homem forte de vigor. Morava no Quilombo Mesquita, foi um grande
produtor. Lutava pelas conquistas desse povo sofredor. Que não tinha muita formação
e nem muito valor. Durante muitos anos, foi um líder vencedor. Juntou os seus amigos e
buscou uma educação de qualidade com muito amor.

Negra sim...
Sou negra, sou feliz
Não tenho medo de ser assim...
Porém, muitos tiveram um dia
Muitos já sofreram
Mas não sofrerão...
(Maria Eduarda, 2º ano B).

401
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE


Esperança Guerreiro
Irei falar do que é preciso no dia da Consciência Negra.
Aquele que fez uma boa e guerreira liderança, para fazer da vida dos escravos, a última
grande esperança.
Vida minha, que através de um líder da nossa raça fez criar dentro de nós força e cora-
gem, para enfrentar a diversidade.
Escravo do mundo “Negro”, fizeram da nossa vida uma escravidão.
Terra minha, esquecida e sofrida, ter por ela se afastado e caído nas mãos da “Amargura”
do estado nefasto...
Agora então, esconde-se e aparece em vão em alguma estação a verdadeira cara da
escravidão...
Vamos fazer disso uma lição, aprender o que sabemos então;
Fazer dessa judiação uma campanha de libertação;
“Fora Escravidão”.
(Katharine Lara, 8º ano).

Fonte: Carvalho dos Santos (2020).

402
Capítulo 13


Assim como na proposta de Freire e Macedo (2011) o letramen-
to aqui é visto com um processo social e político que tem como
base a leitura crítica do mundo. Dentro desta perspectiva, como
destaca Zavala (2002, p. 95), “a educação letrada eficaz é um ato
de libertação e empoderamento pelo qual a comunidade pode ex-
plorar e analisar suas condições de opressão” e, assim, buscar uma
sociedade mais igualitária. A concepção de leitura da professora
Niara – distante de uma visão autônoma de letramento, vai nessa
direção ao colocar em cena os socioletramentos locais, principal-
mente aqueles que tematizam a realidade quilombola e os proble-
mas sociais da comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, vimos como atores sociais da comunidade quilom-


bola de Mesquita, comunidade de matriz africana situada no estado
de Goiás, desenvolvem vários modos de engajamento com a leitura
e escrita e atribuem diferentes significados ao ato de ler e escrever
em diferentes contextos e esferas de atividade. Essa variedade de
eventos e de práticas abre espaço para pesarmos nos letramentos
em contexto minoritários – ou contexto de luta e de resistência,
não como simples processo de decodificação e codificação da pa-
lavra escrita, mas sim como um conjunto de práticas sociais (orais,
escritas e multimodais) forjadas no tecido social em estreita cone-
xão com questões ideológicas e estruturas de poder. Essas práticas,
por sua vez, são moldadas pelas instituições sociais e pelos modos
de conceber e representar a leitura e escrita em diferentes contex-
tos. São, portanto, imbuídas de um conjunto de valores, crenças,
comportamentos e modos de ser (identidades). Em sínte se, repre-

403
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

sentam o que as pessoas pensam e fazem com a leitura e a escrita,


ou seja, os modos sociais e culturais de atuar em eventos da vida
cotidiana mediados, sobretudo, pela palavra escrita.

REFERÊNCIAS

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Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2002.

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ZAVALA, V., NIÑO-MURCIA, M. y AMES, Patrícia. (eds.), Escritura y Sociedad. Nuevas
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Parábola, 2008.

BUZATO, M. K. Entre a fronteira e a periferia: linguagem e letramento na inclusão


digital. Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas: Unicamp, 2007 [Tese de
doutorado].

404
Capítulo 13

CARVALHO DOS SANTOS, Edinei. Navegando em águas ancestrais - letramentos


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409
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

ATIVIDADES REFLEXIVAS SOBRE O CAPÍTULO 13

1. O artigo afirma que Street (1984) propôs dois modelos con-


ceituais de letramento: autônomo e ideológico. Com base
na discussão apresentado pelo autor deste capítulo, dis-
corra sobre os dois modelos conceituais de letramento.

2. Comente sobre a concepção de leitura adotada pela pro-


fessora Niara:

[...]E eu acredito que essa leitura ela interage a todo instante


e aqui na comunidade o que a gente ver é essa leitura do meio
ambiente, a leitura do museu que temos dentro da comunidade,
a leitura das pessoas antigas que amo conversar com eles. Eles
transmitem aquela oralidade para a gente que é algo assim que
você quer ficar ali o tempo todo ouvindo. E eu vivi muito com
meu avô, Benedito Antônio. Então, ele me transmitia essa alegria
de leitura, ela me falava que a gente tinha que estudar. Ele não
estudou, mas ele tinha uma oralidade que era assim fantástica.
Ele queria estudar, ele queria que a gente formasse. Então, ele
era assim uma pessoa que queria que a pessoa fosse além daquilo
que ele era. Então, eu acredito que a leitura é tudo e sem ela nós
não somos nada.

410
POSFÁCIO

Lendo críticos, criticamente

WILMAR DA ROCHA D’ANGELIS


UNICAMP

a diversidade brasileira ainda é inviabilizada por um sistema que


não contempla diferentes sujeitos atuantes e seus saberes tra-
dicionais como possibilidade para outros caminhos pedagógicos

Rodriana D. C. Costa

O título deste livro sintetiza bem os três eixos em que circulam as


contribuições reunidas em seus 13 capítulos: Educação intercultu-
ral, letramentos de resistência e formação docente.
Cinco são os capítulos que refletem questões relacionadas à
formação de indígenas em ensino superior, sendo que dois deles tra-
tam diretamente de experiências de Licenciaturas Interculturais da
UFMG e da UFG (Cap. 4 e 6), um reflete sobre o caráter inclusivo
(ou não) de uma grande universidade que recebe alunos indígenas
em graduação e pós-graduação (Cap. 1), um capítulo discute aspec-
tos da formação linguística (Cap. 8) e, finalmente, um deles aborda
o caso particular de uma discente no processo de escrita de seu

411
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

trabalho final de curso, circunstância que funciona como gatilho


para reflexões acerca dos sentidos possíveis de “letramento” (Cap.
7). Três dos capítulos tratam de aspectos do funcionamento da es-
cola indígena, do Projeto Político Pedagógico (Cap. 3) a materiais
didáticos lúdicos (Cap. 2), passando pelo Currículo (Cap. 5). Final-
mente, cinco capítulos dedicam-se a estudos de caso de práticas de
letramento, seja de pessoas encarceradas (Cap. 9 e 10), seja de co-
munidades em luta (Cap. 11), seja com comunidades ciganas (Cap. 12)
ou quilombolas (Cap. 13).
Na ordem dos eixos anunciados no título da obra, distingui:
Educação intercultural, os capítulos 1, 2, 3, 5 e 7; Letramentos de
resistência, os capítulos 9 a 13; Formação docente, os capítulos 4, 6 e
8. Essa é, na verdade, uma classificação que busca um “eixo central”
em cada capítulo, mas as temáticas do letramento e da resistência
parecem dificilmente separáveis de qualquer dos capítulos, embora
em alguns elas sejam temáticas enfaticamente colocadas, e em ou-
tros possam receber menos destaque ou, mesmo, ser apenas subja-
centes ao enfoque em discussão.
O quarto eixo que estrutura o livro são as abordagens de Lin-
guística Aplicada Crítica, ou em franco diálogo com elas.
Como editor – que também sou, algumas vezes – eu o vejo
como um livro “de autores”. Significa que, embora tenha uma uni-
dade projetada por seus organizadores (a dos eixos acima mencio-
nados), cada capítulo é como uma grande tela em branco entregue
a cada autor/a, que a preencheu segundo os ditames do seu estilo,
dos seus focos de interesse e de seu maior ou menor domínio do
debate em que sua reflexão se insere. A experiência e o acúmulo
de reflexão de cada autor/a revela-se, na leitura, bastante variada;
uma afirmação que parece óbvia para qualquer obra coletiva, mas
que aqui pretende destacar disparidades que o leitor reconhece,
passando de um capítulo a outro. Justamente isso, porém, revela

412
Posfácio

um exercício acadêmico legítimo – embora, nem sempre valorizado


em nosso meio – e profundamente democrático, em que se articu-
lam e se colocam, lado a lado, como colegas e interlocutores, do-
centes experimentados e jovens pesquisadores há pouco formados,
ou ainda em formação.
Com décadas de convivência e trabalho com comunidades in-
dígenas – como indigenista, agente educador, linguista – observo,
em alguns textos, que a crítica ao pensamento hegemônico, o ques-
tionamento aos discursos da cultura dominante, a postura decolo-
nial frente ao que se entende por conhecimento, eventualmente
não exime o seu praticante de se manter fiel a concepções próprias
da ideologia a que busca contrapor-se. Refiro-me à dificuldade de
enxergar os contínuos, os tons de cinza, e com isso, escapar da dico-
tômica versão branco-e-preto do mundo, ainda que, sendo críticos,
atribuam valores invertidos para o branco e para o preto.
Negar o pensamento hegemônico e posicionar-se em campo
“contrário” é um primeiro passo importante, pelo qual têm que pas-
sar todos os que, um dia, chegam a compreender o funcionamento
básico de uma sociedade hierarquizada, na qual se podem reconhe-
cer opressores e oprimidos. Mas não basta trocar os sinais de lugar.
O que me lembra de um registro de Paulo Freire, sobre o processo
de discussão da reforma agrária no Chile, quando um sem-terra,
inquirido sobre o que ele esperava em um futuro no qual tivesse sua
própria terra, o homem descreveu um cenário no qual ele seria um
estancieiro, e teria peões empregados no trabalho de sua fazenda.
Vejo, pois, como indigenista, que ainda falta, a alguns críticos, uma
prudente postura também crítica com respeito ao próprio pensa-
mento indígena.
Vivemos um momento grave na sociedade brasileira e, nesse
contexto, o pensamento crítico é, ao mesmo tempo, o mais amea-
çado e o mais necessário. Por isso mesmo é preciso não esquecer

413
EDUCAÇÃO INTERCULTURAL, LETRAMENTOS DE RESISTÊNCIA E FORMAÇÃO DOCENTE

que o pensamento de direita ganhou a dimensão a que chegou, no


bojo de discursos superficialmente críticos que, aos poucos, cons-
truíram a legitimação da ideia de que a convicção pessoal é sufi-
ciente para afirmar uma “verdade”, e o que importa é o sentimento
pessoal acerca da realidade, não existindo algo que se possa provar
como “verdadeiro”. Nesse contexto, os realmente críticos têm duas
tarefas, pelo menos: (a) não serem críticos pela metade, mas serem
críticos também consigo mesmos e com aquelas posições que, a
uma primeira visada, se apresentam como decoloniais; (b) não pro-
duzir textos acadêmicos que se restrinjam a emitir julgamentos ou
o sentimento dos fatos, mas fundamentar sua crítica em elementos
de robusta objetividade (ou objetivação, para ser mais rigoroso). Em
outras palavras: é preciso enunciar nossas análises com tal clareza
que sequer os inimigos possam desdizê-la!
Esses são comentários que me ocorrem, como contribuição a
uma obra que se revela pensamento em processo, reflexão ao calor da
hora ou ao correr da ação, e compartilhamento corajoso e generoso:
algumas vezes, de primeiras impressões; outras vezes, de acúmulos
de leituras e alguma breve experiência; e outras, ainda, de ensina-
mentos fundados em profunda reflexão sobre muitos anos de prá-
ticas. Tudo isso é o livro que acabo de ler.
Meu sentimento final, “o gosto na boca” após a leitura desse
conjunto de textos, é bom. O livro mostra a vitalidade de algumas
abordagens críticas no campo da linguagem em nosso país; mostra
a vastidão de cenários em que se tem experimentado fazer e refletir
os processos de letramento; mostra a força multiplicadora de pen-
samento crítico de um bom número de universidade públicas bra-
sileiras; e mostra, por fim, e não menos importante, essa disposição
para expor e expor-se, que é condição do que fazer acadêmico.
Por fim, o livro é um libelo contra uma sociedade organizada
de um modo que perpetua a exclusão, a injustiça e a violência con-

414
Posfácio

tra os pobres e, particularmente, contra os negros. É, por fim, um


manifesto pela diferença, pelas minorias e pelas maiorias excluídas,
pelos povos e seus saberes ancestrais.

415
Sobre os/as organizadores/as

RODRIANA DIAS COELHO COSTA é doutora em Linguística


Aplicada Crítica, numa perspectiva Intercultural e (inter)cultural,
pela Universidade de Brasília (UnB), no ensino-aprendizagem
do português como língua adicional, sob orientação do Prof. Dr.
Kléber Aparecido da Silva. Foi bolsista de doutorado-sanduíche, na
UNIVERSITÀ DEGLI STUDI G. D’ ANNUNZIO-PESCARA, Itália, via
o Programa de Desenvolvimento Acadêmico Abdias Nascimento
- CAPES. É integrante do grupo de estudos e pesquisa GECAL
coordenado pelo Prof. Dr. Kléber Silva. É Mestre em Linguística e
Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Goiás. Participou
do grupo de estudos GEF, Grupo de Estudos Funcionalistas:
análise, descrição e ensino. É graduada em Letras (habilitação em
Português) pela Universidade Federal de Goiás, Câmpus Samambaia
- Goiânia. Atuou como professora no Curso de Educação Indígena
Intercultural, da Universidade Federal de Goiás, na área de
português como segunda língua/língua adicional. Atualmente,
é professora de Língua portuguesa na educação Básica e pós-
doutoranda na Universidade de Brasília (UnB).

EDINEI CARVALHO DOS SANTOS é doutor em Linguística


pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de pesquisa
Linguagem e Sociedade, no eixo Língua, Interação Sociocultural
e Letramento. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade de Brasília (UnB),
na linha de pesquisa Escola, Aprendizagem, Ação Pedagógica
e Subjetividade na Educação, no eixo Letramento e Formação
de Professores. Licenciado em Letras/Português e Respectiva
Literatura pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente exerce
o cargo de Técnico em Assuntos Educacionais na Fundação
Universidade de Brasília (FUB/UnB). Integra a área de Apoio
Pedagógico do Núcleo de Apoio Psicopedagógico e Bem-Estar
do Estudante de Medicina da Faculdade de Medicina (FM/UnB),
atuando principalmente no apoio pedagógico aos estudantes,
bem como no desenvolvimento de estratégias de aprendizagem.
Tem experiência em Língua Portuguesa e Educação e interesse
nos seguintes temas: língua(gem), educação, estratégias de
aprendizagem, sociolinguística e letramentos em comunidades
quilombolas e contextos minoritários.

KLEBER APARECIDO DA SILVA é professor associado 2 do


Departamento de Linguística, Português e Línguas e do Programa
de Programa de Pós-Graduação em Linguística da UnB, no
Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e
Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e no
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
de Tocantins. É licenciado em Língua Inglesa pela Universidade
Federal de Ouro Preto. É Mestre em Linguística Aplicada pela
UNICAMP. É Doutor em Estudos Linguísticos pela UNESP (São
José do Rio Preto). É Pós-Doutor em Linguística Aplicada pela
UNICAMP. É Pós-Doutor em Linguística Aplicada e Estudos da
Linguagem pela PUC-SP. É Pós-Doutor em Linguística pela UFSC.
Suas áreas de interesse em pesquisa incluem gênero, raça e
educação linguística; língua(gem), discurso e práticas identitárias;
(multi)letramentos e formação crítica de professores/as de
línguas; teorias e pedagogias críticas e práticas decoloniais na
produção de conhecimentos.
Sobre os professores colaboradores

ADRIANA VIEIRA DAS GRAÇAS é militante da Marcha Mundial


das Mulheres e compõe a equipe do Centro Feminista 8 de Março.
É graduada em Letras-Espanhol pela Universidade do Estado do
Rio Grande do Norte (UERN), mestra em Estudos da Linguagem
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e
membro do Grupo de Pesquisa Letramentos e Etnografia (UFRN/
CNPq). Seus interesses de pesquisa se vinculam aos estudos
de letramento de vertente etnográfica, ao feminismo e aos
movimentos sociais.

AMANDA MOREIRA TAVARES é doutoranda em Letras e


Linguística (PPGLL, UFG). Integra como estudante, o Obiah Grupo
Transdisciplinar de Estudos Interculturais da Linguagem (CNPq).
É mestre em Letras e Linguística (PPGLL, UFG. 2019). Foi bolsista,
durante o mestrado, do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Possui especialização em:
Letramento, produção de sentidos e escrita (UEG, 2017); Direito
Processual Civil e Processual Penal (FMB, 2016); e Docência
Universitária (FABEC, 2015). É bacharel em Direito (FMB, 2016), e
Licenciada em Letras Português/Inglês (UEG, 2015).

ÁUREA CAVALCANTE SANTANA possui graduação em Letras


pela Universidade Federal de Mato Grosso (1990), Mestrado
em Letras e Linguística pela Universidade Federal de Goiás
(2005) e Doutorado em Letras e Linguística pela Universidade
Federal de Goiás (2012). Foi professora da Fundação Nacional
do Índio - FUNAI - durante 27 anos. É Professora Aposentada
da Universidade Federal Mato Grosso e, atualmente, atua como
Pesquisadora Associada junto ao Programa de Pós-Graduação
em Estudos de Linguagens da UFMT nas áreas de Português e
Linguística. Coordena o Projeto de Pesquisa: Estudos, Descrição e
Documentação de Línguas Indígenas e participa também da Ação
Saberes Indígenas na Escola. Tem experiência estudos em línguas
indígenas e formação de professores indígenas. Tem se dedicado,
ao longo dos últimos 16 anos, ao estudo das línguas indígenas,
em especial das línguas Chiquitano, Wakalitesu/Nambikwara e
Manoki/Irantxe.

EDINEI CARVALHO DOS SANTOS é doutor em Linguística


pela Universidade de Brasília (UnB), na linha de pesquisa
Linguagem e Sociedade, no eixo Língua, Interação Sociocultural
e Letramento. Mestre em Educação pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade de Brasília (UnB),
na linha de pesquisa Escola, Aprendizagem, Ação Pedagógica
e Subjetividade na Educação, no eixo Letramento e Formação
de Professores. Licenciado em Letras/Português e Respectiva
Literatura pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente exerce
o cargo de Técnico em Assuntos Educacionais na Fundação
Universidade de Brasília (FUB/UnB). Integra a área de Apoio
Pedagógico do Núcleo de Apoio Psicopedagógico e Bem-Estar
do Estudante de Medicina da Faculdade de Medicina (FM/UnB),
atuando principalmente no apoio pedagógico aos estudantes,
bem como no desenvolvimento de estratégias de aprendizagem.
Tem experiência em Língua Portuguesa e Educação e interesse
nos seguintes temas: língua(gem), educação, estratégias de
aprendizagem, sociolinguística e letramentos em comunidades
quilombolas e contextos minoritários.
ELISA AUGUSTA LOPES COSTA é docente na Universidade
Federal do Pará - UFPA, campus Altamira. Graduou-se em
Letras/Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Mato
Grosso, onde também obteve os títulos de Especialista em Língua
Portuguesa e Mestre em Estudos Literários e Culturais. O título
de Doutora foi outorgado pelo Programa de Pós-graduação
em Ensino de Língua e Literatura da Universidade Federal
do Tocantins – UFT/Araguaína, pela defesa da tese intitulada
Ludicidade com recursos visuais: uma proposta para a educação
escolar indígena Krahô. Iniciou a carreira profissional atuando na
Educação Básica, mas depois passou a concentrar-se no Ensino
Superior, particularmente na área de Metodologia, Prática de
Ensino e Estágio Supervisionado. Linha de pesquisa: educação
lúdica e recursos visuais alternativos.
 
EMA MARTA DUNCK CINTRA é professora aposentada da rede
estadual de Mato Grosso onde atuou por 34 anos. Atualmente
é docente no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de
Mato Grosso – IFMT, em Cuiabá, MT. É licenciada em Letras
pela Universidade Federal de Mato Grosso (1987) e especialista
em Língua e Literatura Infanto-Juvenil (1992) e em Linguística
- Descrição do Português Brasileiro (2002) - ambas pela
Universidade Federal de Mato Grosso. Obteve seu título de
mestre (2005) e doutora (2016) em Linguística pela Universidade
Federal de Goiás. Sua experiência profissional abrange a área
de Ensino, atuando na Educação Básica, no Ensino Superior e
na Pós-graduação. Também possui experiência em gestão da
educação básica, pois já foi Coordenadora Estadual do Ensino
Médio, Superintendente de Formação e Secretária Adjunta de
Políticas Educacionais, todas no estado de Mato Grosso. No
ensino superior, lecionou Linguística, Diversidade Linguística,
Metodologia da língua portuguesa e Português Instrumental.

GLÍCIA AZEVEDO TINOCO é graduada em Letras (Línguas


Portuguesa e Inglesa) pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, especialista em leitura e produção de textos e mestre
em Letras também pela UFRN, doutora em Linguística Aplicada
pela Universidade Estadual de Campinas. De 2012 a 2015, foi Vice-
Diretora da Escola de Ciências e Tecnologia da UFRN. Atualmente,
é professora associada da UFRN, atuando, na graduação, no
Bacharelado em Ciências e Tecnologia (BCT), e em dois programas
de pós-graduação, a saber: Programa de Pós-graduação em
Estudos da Linguagem (PPgEL) e Mestrado Profissional em Letras
(ProfLetras) da UFRN. No ProfLetras, atualmente, exerce a função
de coordenadora da unidade de Natal/RN. Tem experiência na
área de Linguística Aplicada, pesquisando principalmente os
seguintes temas: letramento, letramento digital, formação de
professores, ensino-aprendizagem de língua materna, produção
de material didático impresso e digital, formação linguística na
área de Ciências e Tecnologia.

KANAVILLIL RAJAGOPALAN é Professor Titular (aposentado-


colaborador) na área de Semântica e Pragmática das Línguas
Naturais da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
e pesquisador 1-A do CNPq. Participa em programas de pós-
graduação na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
e da Universidade Federal de Tocantins (UFT - Campus de Porto
Nacional). Ele nasceu na Índia, onde obteve B.A. em Literatura
Inglesa (Universidade de Kerala), M.A. em Literatura Inglesa
(Universidade de Delhi) e M.A. em Linguística (Universidade de
Delhi). Fez Diploma em Linguística Aplicada na Universidade de
Edimburgo, Escócia. É Doutor em Linguística Aplicada (PUC-
SP) e Pós-Doutor em Filosofia da Linguagem (Universidade da
Califórnia, Berkeley, EUA). Desde 1996, atua como um dos editores
da revista DELTA. Em 2015, foi nomeado um dos editores da
revista WORD (Nova Iorque). Em dezembro de 2006, recebeu o
Prêmio de Reconhecimento Acadêmico «Zeferino Vaz.» 

KLEBER APARECIDO DA SILVA é professor associado 2


do Departamento de Linguística, Português e Línguas e do
Programa de Programa de Pós-Graduação em Linguística da UnB,
no Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e
Linguagens da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e no
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
de Tocantins. É licenciado em Língua Inglesa pela Universidade
Federal de Ouro Preto. É Mestre em Linguística Aplicada pela
UNICAMP. É Doutor em Estudos Linguísticos pela UNESP (São
José do Rio Preto). É Pós-Doutor em Linguística Aplicada pela
UNICAMP. É Pós-Doutor em Linguística Aplicada e Estudos
da Linguagem pela PUC-SP. É Pós-Doutor em Linguística
pela UFSC. Suas áreas de interesse em pesquisa incluem
gênero, raça e educação linguística; língua(gem), discurso e
práticas identitárias; (multi)letramentos e formação crítica
de professores/as de línguas; teorias e pedagogias críticas e
práticas decoloniais na produção de conhecimentos.

MARIA APARECIDA DE SOUSA é doutora em Linguística


pela Universidade de Brasília (2019). Mestre em Gestão e
Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (2002). Atuou
como docente do ensino superior por quinze anos, em cursos
de graduação e pós-graduação, nas modalidades presencial e
a distância. É professora da Secretaria de Educação do Distrito
Federal desde 1988 e, atualmente, ocupa a função de formadora de
professores/as na Escola de Aperfeiçoamento de Profissionais em
Educação (EAPE) da Secretaria de Estado de Educação do Distrito
Federal (SEDF). Atua na área de formação de docente há dez anos.
Suas áreas de interesse são: língua, discurso, letramento. 

MARIA GORETE NETO é professora associada no Departamento


de Métodos e Técnicas de Ensino na Faculdade de Educação
da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo
Horizonte, Minas Gerais. Bacharel em Linguística pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), obteve seus
títulos de mestre (2005) e de doutorado (2009) em Linguística
Aplicada pela UNICAMP. Sua experiência profissional abrange
o ensino de Língua Portuguesa como primeira língua, em
nível Fundamental, em escolas particulares, e o ensino de
Português para povos indígenas, no nível Fundamental, em
escolas indígenas e também em nível Superior. Atua na área de
Linguística Aplicada, com interesse em ensino de Português
para povos indígenas, Português como língua materna, políticas
linguísticas, educação escolar indígena.

MARIA MARLENE RODRIGUES DA SILVA é Doutora


em Linguística pela Universidade de Brasília, na área de
concentração Linguagem e Sociedade abordando as temáticas
Letramento e Linguística Textual. Possui Mestrado em Literatura
Brasileira pela Universidade de Brasília. Possui especialização
em Leitura e Produção de Textos pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais e também Especialização em Educação
Continuada e a Distância pela Universidade de Brasília. É
graduada em Letras - Língua Portuguesa e Inglesa e respectivas
literaturas pela Universidade Federal do Maranhão. 
NÚBIA BATISTA DA SILVA - NUBIÃ TUPINAMBÁ é mestra
em Linguística pela UnB. Atuou como Educadora Popular no
âmbito da Educação não Formal na Federação de órgãos para
Assistência Social e Educacional-FASE-Ba (Nos programas
sociais de Alfabetização de crianças, jovens e adultos no Coletivo
de Alfabetizadores Populares do Sul da Bahia - CAPOREC).
Atuou como professora primária, coordenadora estadual da
Educação Escolar Indígena, na Diretoria Regional-DIREC-7 como
Auxiliar pedagógica da Fundação de Administração e Pesquisa
Econômico-Social. Como monitora da Educação Integral na
Escola Classe Mestre D’Armas. Tem experiência na área de
Educação, com ênfase em Educação Escolar Indígena, Educação
Popular, Educação do Campo e Direitos Humanos. 

RODRIANA DIAS COELHO COSTA é doutora em Linguística


Aplicada Crítica, numa perspectiva Intercultural e (inter)
cultural, pela Universidade de Brasília (UnB), no ensino-
aprendizagem do português como língua adicional, sob
orientação do Prof. Dr. Kléber Aparecido da Silva. Foi bolsista
de doutorado-sanduíche, na UNIVERSITÀ DEGLI STUDI G. D’
ANNUNZIO-PESCARA, Itália, via o Programa de Desenvolvimento
Acadêmico Abdias Nascimento - CAPES. É integrante do
grupo de estudos e pesquisa GECAL coordenado pelo Prof. Dr.
Kléber Silva. É Mestre em Linguística e Língua Portuguesa pela
Universidade Federal de Goiás. Participou do grupo de estudos
GEF, Grupo de Estudos Funcionalistas: análise, descrição e
ensino. É graduada em Letras (habilitação em Português) pela
Universidade Federal de Goiás, Câmpus Samambaia - Goiânia.
Atuou como professora no Curso de Educação Indígena
Intercultural, da Universidade Federal de Goiás, na área de
português como segunda língua/língua adicional. Atualmente,
é professora de Língua portuguesa na educação Básica e pós-
doutoranda na Universidade de Brasília (UnB).

ROSILENE CRUZ DE ARAUJO é docente na Universidade


Federal do AmapáUNIFAP, em Oiapoque-AP. Licenciada em
História pela Universidade de Pernambuco-UPE, Licenciatura
Intercultural Indígena pela Universidade do Estado do Mato
Grosso-UNEMAT, Especialista em História do Brasil pelo Centro
de Ensino Superior do Vale do São Francisco- CESVASF, obteve
seu título de mestre em Educação e Contemporaneidade pela
Universidade do Estado da Bahia-UNEB e é doutoranda em
Antropologia Social pela Universidade de Brasília-UNB. Sua
experiência profissional abrange a educação básica pública
e superior privada e pública. Atua nas áreas de Educação e
Ciências Humanas e desenvolve Projetos de Pesquisa e Extensão
com populações indígenas.

ROSINEIDE MAGALHÃES DE SOUSA é Professora Associada da


Universidade de Brasília - UnB, lotada no campus de Planaltina -
DF, atuando no Curso: Licenciatura em Educação do Campo, na
área de Linguagem: Linguística. Está credenciada no Programa
de Pós-Graduação de Linguística - PPGL/UnB. É Pesquisadora
do Observatório da Educação do Campo. É líder do grupo de
pesquisa Sociolinguística, Letramentos Múltiplos e Educação
(SOLEDUC). É Licenciada em Letras pela Universidade Católica
de Brasília, mestre, doutora em Linguística (Sociolinguística)
pela Universidade de Brasília. Pós-doutora em Linguística
Aplicada pela Universidade de Campinas. Desde 2001, trabalha
com a formação inicial e continuada de professores da Educação
Básica. Os temas de estudo e pesquisa são: sociolinguística,
letramento como prática social, leitura e escrita, gêneros
discursivos, metodologia de ensino de Língua Portuguesa e
formação de professores, na perspectiva do método etnográfico.
Atualmente, coordena a Área de Educação e Linguagem da
Faculdade UnB Planaltina.

SUETY LÍBIA BORGES é doutoranda em Letras e Linguística


pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG),
em Goiânia, Goiás. Bacharel em Língua Portuguesa e Linguística
pela mesma universidade, onde, também, obteve seu título de
mestre em Letras e Linguística. Sua experiência profissional
abrange o ensino profissional e superior. O primeiro com a
capacitação profissional de jovens e adolescentes, atuando como
professora e especialista de conteúdos educacionais para a Rede
Nacional de Aprendizagem da Fundação Pró-Cerrado, Goiânia,
Goiás. O segundo abrange o ensino de língua portuguesa como
língua de relações interculturais para professores e professoras
indígenas, no Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior Indígena
(NTFSI), da UFG. Atua nas áreas de Língua Portuguesa e Estudos
do Letramento, desenvolvendo ações educativas e cursos de
letramento sistêmico, com diálogos transdisciplinares com a
Educação Sistêmica (Bert Hellinger e Marianne FrankeGricksch),
para instituições privadas e do terceiro setor.

TÂNIA FERREIRA REZENDE é Licenciatura em Letras: Português


e Inglês pelo Centro Universitário UniEvangélica, Mestrado
em Letras e Linguística, área de Estudos Linguísticos, pela
Universidade Federal de Goiás, Doutorado em Estudos Linguísticos,
pela Universidade Federal de Minas Gerais. Pós-Doutorado na
Universidade de São Paulo sob a supervisão do Prof. Dr. Lynn Mário
Trindade Menezes de Souza, com o projeto Práticas Interculturais
de Letramento no Pluralismo Sociolinguístico. Professora Associada
da Universidade Federal de Goiás, atua na graduação e na pós-
graduação, com ensino, pesquisa e extensão, na linha de pesquisa
Linguagem, Sociedade e Cultura, na área de Linguagem, com
ênfase em Sociolinguística, especificamente na Cosmolinguística,
priorizando temáticas relacionadas ao Letramento Intercultural,
com enfoque em língua portuguesa, Políticas Linguísticas
(diversidade e contato linguístico, cultural e epistêmico), Tradução
Transcultural, situada na intersecção Gênero, Identidade
Étnicorracial, Cultura, Linguagem e Educação Linguística de Grupos
Subalternizados. Líder do Obiah, Grupo de Estudos Interculturais
Decoloniais da Linguagem.

WILMAR DA ROCHA D’ANGELIS é graduado em Linguística


(Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Doutor em
Linguística e Livre-Docente pela UNICAMP. Professor no
Departamento de Linguística da UNICAMP. Atua na área de
Linguística, com ênfase em Línguas Indígenas e em Teoria
Fonológica, tematizando particularmente aspectos de línguas
Jê (em especial, Kaingang) e Macro-Jê, de nasalidade em línguas
indígenas e de seus sistemas fonológicos. Atua igualmente na
área de educação escolar, na formação de professores indígenas
e em programas de revitalização de línguas indígenas, com
publicações a respeito de currículo escolar, política linguística,
ensino bilíngue e demais questões relacionadas. Coordena ações
de revitalização linguística e tem publicado trabalhos sobre o
tema. Atuou exclusivamente como indigenista por 10 anos (1977-
1987) no Sul do Brasil e mantém-se ligado a práticas e à reflexão
sobre política indigenista. Dedica-se ainda à pesquisa sobre
história indígena do Sul do Brasil. Lidera o grupo de pesquisa
INDIOMAS. Criou e coordena o “Projeto Web Indígena”, voltado à
inclusão digital pró-ativa de línguas e comunidades indígenas.
EDITORES
Gabriel de Ávila Othero (UFRGS)
Valdir do Nascimento Flores (UFRGS)

CONSELHO EDITORIAL
Adeilson P. Sedrins (UFRPE/UAG) Juciane Cavalheiro (UEA)
Adelia Maria Evangelista Azevedo (UEMS) Leonel Figueiredo de Alencar
Ana Paula Scher (USP) (UFC)
Aniela Improta França (UFRJ) Luiz Francisco Dias (UFMG)
Atilio Butturri Junior (UFSC) Mailce Mota (UFSC)
Carlos Alberto Faraco (UFPR) Marcelo Ferreira (USP)
Carlos Piovezani (UFSCar) Marcos Lopes (USP)
Carmem Luci Costa e Silva (UFRGS) Marcus Lunguinho (UnB)
Cassiano R. Haag (MPSC) Maria Eugenia Duarte (UFRJ)
Cátia de Azevedo Fronza (Unisinos) Mariangela Rios de Oliveira (UFF)
Cláudia Regina Brescancini (PUCRS) Pablo Ribeiro (UFSM)
Claudia Toldo Oudeste (UPF) Plínio Barbosa (Unicamp)
Dermeval da Hora (UFPB) Rafael Minussi (Unifesp)
Eduardo Kenedy (UFF) Renato Basso (UFSCAR)
Edwiges Maria Morato (Unicamp) Ronice Muller de Quadros (UFSC)
Eliane Silveira (UFU) Ruth Lopes (Unicamp)
Elisa Battisti (UFRGS) Simone Guesser (UFRR)
Esmeralda Negrão (USP) Simone Sarmento (UFRGS)
Heloisa Monteiro Rosário (UFRGS) Sirio Possenti (Unicamp)
Heronides Moura (UFSC) Sonia Cyrino (Unicamp)
Ingrid Finger (UFRGS) Tânia Maris de Azevedo (UCS)
Jairo Nunes (USP) Ubiratã K. Alves (UFRGS)
Janaína Weissheimer (UFRN) Vitor Nóbrega (UFSC)
João Paulo Cyrino (UFBA) Viviane de Melo Resende (UnB)
ORGANIZAÇÃO
Rodriana Dias Coelho Costa
Edinei Carvalho dos Santos
Kleber Aparecido da Silva

REVISÃO
Oseas Bezerra Viana Júnior
Kleber Aparecido da Silva

CAPA E PROJETO GRÁFICO


Estúdio Guayabo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Educação intercultural, letramentos de resistência e formação docente


[livro eletrônico] / Rodriana Dias Coelho Costa, Edinei Carvalho dos
Santos, Kleber Aparecido da Silva (orgs.). -- Campinas, SP : Editora da
Abralin, 2021. -- (Altos estudos em linguística)
PDF

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-68990-10-0

1. Educação 2. Educação intercultural 3. Letramento 4. Letramento -


Estudo e ensino 5. Práticas educacionais 6. Professores - Formação
I. Costa, Rodriana Dias Coelho. II. Santos, Edinei Carvalho dos. III. Silva,
Kleber Aparecido da. IV. Série.

21-81233 CDD-370.733

Índices para catálogo sistemático:


1. Professores : Práticas docentes : Educação 370.733

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

DOI 10.25189/ 9788568990100


A presente coletânea pretende contribuir com
o ensino-aprendizagem e, consequentemente,
como os Estudos Linguísticos, por meio de
propostas interculturais e críticas para a
promoção de uma formação humanizadora em
respeito às diversidades.

RODRIANA DIAS COELHO COSTA


EDINEI CARVALHO DOS SANTOS
KLEBER APARECIDO DA SILVA

editora.abralin.org

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