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Livro Tramações A Memória e o Têxtil
Livro Tramações A Memória e o Têxtil
Livro Tramações A Memória e o Têxtil
Luciana Borre
Luana Andrade
(Orgs.)
Recife, 2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
REITOR
Alfredo Macedo Gomes
VICE-REITOR
Moacyr Cunha De Araújo Filho
PRÓ-REITOR
Oussama Naouar
DIRETORIA DE CULTURA
DIRETOR
Hélio Márcio Pajeú
COORDENADOR
Adriano Dias De Andrade
ASSISTENTE
Artur Villaça Franco
Catalogação na fonte:
Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408
Vários autores.
ISBN 978-65-5962-046-3 (online)
Essa obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Interncional
TRAMAÇÕES EM CONTEXTO
IMPRESCINDIBILIDADES TÊXTEIS:
ENTREVISTA COM KARINA MADDONNI 13
Luciana Borre
CURADORIA EXPERIMENTAL:
UMA PERSPECTIVA ARTÍSTICO- INVESTIGATIVA 20
Lizandra Santos
PRÁTICAS E NARRATIVAS TÊXTEIS CONTEMPORÂNEAS
Luciana Borre 25
A MEMÓRIA E O FEMININO
ÁRVORE 35
Clarissa Machado Belarmino
[CÔMODO]: CONSIDERAÇÕES SOBRE
O FEMINISMO, O TÊXTIL E A MATERNIDADE 41
Clara Nogueira
CABELO-ONDA-CORRENTEZA: POÉTICAS EM CIANOTIPIA 51
Marina Soares
ENTRE NÓS 57
Rayellen Alves
A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS
ESCRITAS CURATORIAIS
Talvez a nossa maior urgência seja a de aprender desde as mais distintas pers-
pectivas. Observar o funcionamento dos objetos, das relações e coexistências, o que
outrora já nos passou despercebido ou dotado de certa inutilidade, mas o que viste
inútil foi o que viram os teus olhos, humanos, esquecidos, enganados1... Quaisquer
perspectivas que sejam distintas de nós mesmos: o modo de vida dos bichos, a co-
municação química e silenciosa entre as plantas, as estratégias de sobrevivência dos
microorganismos, como os vírus e bactérias, as reações no encontro de duas ou mais
substâncias, enfim, aprender com o comportamento das diversas materialidades que
nos cercam e nos envolvem. É justamente numa circunstância de virulência, esse in-
contestável pano de fundo do nosso cotidiano mais atual, que atentamos — não pela
primeira vez, mas agora de modo imprescindível — para a esfera micro das coisas.
Nesse sentido, há aprendizagens que permeiam a materialidade têxtil e por
elas buscamos nesta terceira edição do projeto Tramações. Tais aprendizagens,
quando não as perseguimos propositalmente, as vimos surgir em consequência das
poéticas que compõem esse conjunto de artigos. A qualidade desses textos, que fa-
lam de tramas, não reside exclusivamente na capacidade de dialogar com as teorias,
justificar relevâncias e apresentar resultados, mas em resgatar um contato com a
experiência artística e com os processos de criação poética que são, por natureza,
questionadores de uma dada realidade. Reside justamente nas horas que passamos
a costurar o vento, articulando memórias e construindo saberes, ao investir na dúvi-
da, na pergunta e na errância.
Um processo ancestral de criação com linhas, agulhas e tecidos sobrevive ao
tempo? Que memórias podem evocar um processo de criação têxtil? Quais visuali-
dades ecoam nas materialidades do campo da arte têxtil? Quais possíveis fraturas
podem se consolidar no campo da arte têxtil? Como memórias individuais — reais
e/ou ficcionais — podem transbordar na/em relação com o outro? Como memórias
autobiográficas ganham força nos campos das micro e macropolíticas em tempos de
isolamento social? Quais as dimensões relacionais e educacionais do trabalho têxtil?
Como fomentar processos poéticos e educacionais por meio das práticas contempo-
râneas em arte têxtil? Como o campo acadêmico instiga pesquisas e investigações
Luciana Borre é artista visual, professora e pesquisadora interessada nas Práticas Têxteis Contemporâneas,
na Formação Docente, na Educação da Cultura Visual e nas questões de Gênero e Sexualidades. É
proponente do Projeto Tramações desde 2016. Atua como professora e coordenadora dos cursos de
Graduação em Artes Visuais, da Universidade Federal de Pernambuco e integra o Programa Associado
de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFPE/UFPB. Doutora em Arte e Cultura Visual (UFG), Mestre
em Educação (PUCRS), especialista em Gestão Educacional (PUCRS) e Pedagoga (UFRGS). Atuou como
professora na Educação Básica.
Luana Andrade é artista visual, professora e investigadora. Mestre em Artes Visuais (UFPB/UFPE) e
Licenciada em Artes Visuais (UFPE). Investiga aspectos relacionais nas artes visuais e as aproximações
entre arte e educação através de processos de criação. Integra o Projeto Tramações desde 2016. Tem
experiência docente em espaços formais (Educação Básica) e não formais de ensino, bem como em
ações de curadoria, expografia e mediação em mostras coletivas e individuais.
12
TRAMAÇÕES EM CONTEXTO
IMPRESCINDIBILIDADES TÊXTEIS:
ENTREVISTA COM KARINA MADDONNI
Luciana Borre
mas belíssima. Nicola Constantino fez uma lipoaspiração e com sua graxa produziu
sabões. O processo estético é impecável, mas eticamente não levou em conta os
sobreviventes do holocauto, não levou em consideração as pessoas que repugnam a
sensação de pensar a matéria corporal como matéria prima para produzir industrial-
mente um produto, como se fez em Auschwitz. É aí que vejo uma relação entre arte e
ética, quando o artista não se acha responsável pelos efeitos que a obra pode exercer
sobre o outro. Com a obra La Hostilidad, exposta na cidade de Rio Cuarto, enfrentei
uma situação interessante. A diretora da mostra perguntou se poderíamos organizar
uma conversa com a comunidade, pois as pessoas estavam chorando muito. Aceitei e
tive uma das conversas mais intensas onde entendi o efeito de uma obra sobre outra
pessoa. O artista deve se responsabilizar por estar ali, deve dar explicações e revisar
as coisas. Penso que nisso consiste a dimensão ética.
Tramações: Karina, agradecemos sua participação e as significativas contribui-
ções que tu apresentaste aqui. Nosso projeto está instaurado em relações como esta:
relações que fortalecem nossos estudos, investigações, processos de criação e de
mediação.
REFERÊNCIAS:
SONTAG, Susan. Contra a interpretação: e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
1966.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica,
2009.
Lizandra Santos1
1 É artista visual, arte-educadora e graduanda do curso de licenciatura em Artes Visuais pela Universidade
Federal de Pernambuco.
2 “Artista-etc” é um conceito proposto por Ricardo Basbaum (2013), e se refere ao artista que, para além
de sua função artística, perpassa e caminha por outras instâncias dentro da sua área, questionando-se
sobre a natureza de seu próprio papel e função no sistema das artes.
CURADORIA EXPERIMENTAL 21
“artista artista” e considerar outros aspectos que estariam para além dos meus pró-
3
que haja uma filtragem de informação a ser oferecida quando estamos em um con-
texto coletivo de exibição, onde todas as obras precisam ter visibilidade e também
espaço de fala, de apresentação, de comunicação. A reflexão a respeito de até onde
intervir nessa comunicação artista-público foi o que mais nos norteou e intrigou.
Essa experiência simbolizou a complexidade da leitura de processos artísticos
e da experiência estética. O olhar de um artista sobre o trabalho de outros artistas
tem sempre um fundamento válido? Estamos aptos a estabelecer sínteses dessas po-
éticas? Bom, aptidão talvez não seja o termo que melhor se encaixe. Possivelmente
sensibilidade e disponibilidade de pensamentos sejam boas sugestões. Falo, aqui, da
sensibilidade enquanto cautela e tato quando se tenta ler os processos. A disponibi-
lidade seria estar a postos para aprender com o que se lê, inclusive que nem sempre
é possível o aprendizado — ao menos não o imediato. Embora a leitura de obras
não seja o assunto central deste relato, ela tangencia todo o processo de escolha dos
trechos de descrição dos trabalhos que precisaram ser selecionados para estarem na
legenda das postagens.
Diante dessa responsabilidade de resumir, de algum modo, a proposta escrita
pelos artistas, optamos por uma padronização no quesito quantidade de linhas es-
critas e/ou parágrafos, o que tornaria a leitura da legenda fácil e convidativa. Desse
modo, as pessoas que acessassem a exposição virtual poderiam entender um pouco
do processo de cada artista ao ler a legenda, e, talvez, sentirem-se imersos no univer-
so dessas poéticas. Foi uma estratégia interessante. E podemos afirmar que funcio-
nou. No entanto, foi um dos pontos em que mais tivemos dificuldades de execução
e de consenso.
Cientes dessa problemática de intervir em um processo de criação que não
é nosso, seguimos na tentativa de sintetizar os memoriais descritivos referentes às
obras presentes na exposição. Essa atividade, apesar de difícil, contou com auxílio
fundamental da mediação e das estratégias pensadas para uma prática virtual de
educativo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Meu trajeto de novas descobertas e experimentações foi se moldando aos
poucos, a cada dúvida, cuidado e, sobretudo, respeito pelos processos e caminhos
dos artistas com os quais tive a oportunidade de trabalhar neste projeto. Entre todas
as reflexões as quais me permiti enquanto investigadora e interessada no desdobra-
mento para além do “artista artista”, a de não me exigir limites nem pontos de amar-
ras foi a principal delas. E é o que que contemplo nas palavras de Ricardo Basbaum:
Percebe-se logo que ser (ou não) um artista não é algo de que se possa
exigir limites rígidos ou absolutos, revelando-se mais como um trânsito,
um certo deslocamento através das coisas combinado com a produção
de um espaço particular de problemas [...] (BASBAUM, 2013, p. 67)
REFERÊNCIAS:
BASBAUM, Ricardo Roclaw. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.
GONRING, G. M. (O que) pode a curadoria inventar? Revista Galaxia. São Paulo, n.29, p. 276-
288, jun. 2015.
Luciana Borre
O que entendo por campo das artes têxteis ou práticas e narrativas têxteis
contemporâneas? Como estão circulando as discussões e os processos de criação
neste campo a nível regional, nacional e internacional? Por onde escolherei andar?
Como mapear práticas têxteis contemporâneas em um contexto histórico cultural
que impossibilita demarcações metodológicas e construção de novos muros epis-
temológicos? Neste capítulo, construo algumas pistas para ampliar o entendimento
das práticas artísticas e narrativas têxteis contemporâneas e mostro os caminhos
seguidos durante o Projeto Tramações: a memória e o têxtil.
Vivências como docente, artista, pesquisadora e proponente de ações culturais
têm possibilitado trânsito por instituições, exposições, galerias, cursos e eventos em
torno das artes têxteis. Também tenho orientado pesquisas nesta área e conhecido
artistas com diferentes compreensões acerca deste campo. Geralmente, presencio
os conflitos da conhecida dicotomia entre arte têxtil e artesanias e/ou manualidades,
escutando a voraz defesa pela valorização do artesanato enquanto arte e a crítica à
circulação em locais sem prestígio. Também já ouvi o rechaço de alguns artistas ao
termo “têxtil”, como se isso diminuísse o status de suas produções. Em sala de aula,
percebo o interesse das/os estudantes nas várias horas despendidas com processos
manuais de criação com linhas, agulhas e tecidos. Muitas/os relatam a necessidade
de um “tempo de ócio” entre as inúmeras atribuições do dia a dia e de investimen-
to em si próprio. Além disso, elas/es relatam uma imediata rememoração afetiva a
outros tempos, lugares e pessoas enquanto tecem, bordam, tricotam ou costuram.
Nesse vasto cenário, posso somente afirmar que as práticas artísticas têxteis
têm se tornado um campo de inúmeras possibilidades, agregando cada vez mais in-
teressadas/os com formações profissionais distintas e constituindo uma comunidade
investigativa e artística que se reúne com a preocupação de registrar a construção
destes saberes específicos na história.
Há uma pluralidade de vivências que impossibilitam demarcações. No entan-
to, o exercício reflexivo que proponho nessa escrita busca ensaiar sobre questões
complexas a respeito do fazer têxtil na contemporaneidade, condensando um es-
tudo mais amplo que venho registrando ao ser atravessada por essas experiências
artísticas e docentes. Trago aqui, portanto, oito percepções situadas no contexto das
práticas e entendimentos têxteis que têm aparecido com maior frequência em meu
caminho, apresentando ainda certa preferência pelas possíveis fraturas metodológi-
cas e pelas brechas conceituais. Podemos tratar dessas provocações enquanto pistas
para entender as ideias, narrativas e práticas circulantes no campo das artes têxteis.
Gosto de chamar de práticas e narrativas têxteis contemporâneas as inúmeras
ações poéticas que utilizam distintas materialidades e/ou concepções têxteis, desde
o bordado, o crochê, o tricô, a tapeçaria (...) até a pesquisa de fibras e tramas digitais,
26 TRAMAÇÕES EM CONTEXTO
Penso que as duas últimas décadas têm movimentado tais discussões, entre
tantos motivos, pelo crescente interesse e investimento nas narrativas das diferenças
ou “pequenas narrativas”. Canclini (2012) e Goodson (2017) afirmam que o colapso
das metanarrativas - visões totalizantes da história - do século XX produziu interes-
se por múltiplas, dispersas e fragmentadas narrativas para tentar explicar o nosso
contexto histórico-cultural, como uma compulsoriedade narrativa característica de
nossos tempos. Mais do que buscar narrativas e experiências de grupos ditos mino-
ritários, temos vivenciado a busca para que os próprios integrantes destes grupos
possam narrar suas histórias.
Especificamente no campo das práticas artísticas têxteis, surge um cer-
to incômodo relacionado aos discursos que “captam vozes marginalizadas”,
cedendo e garantindo a elas espaços no sistema da arte. Há investigações
acadêmicas e artistas que perpetuam um olhar colonialista em que a/o pes-
quisadora/or etnógrafa/o convive com grupos étnicos afastados dos grandes
centros, aprendem técnicas têxteis, registram suas histórias conforme seu
olhar e voltam para expor e receber créditos com os conhecimentos ou peças
produzidas. Há de se considerar o contexto histórico que ainda favorece este
tipo de abordagem e a urgência de reconfiguração. Por outro lado, também há
investigações que priorizam e fomentam as narrativas destes grupos étnicos,
que trabalham em conjunto para o bem comum e que desenvolvem projetos e
estudos compartilhados.
Enfim, a problemática é extensa, mas vale perguntar: e quando as narrativas
entre arte e artesanato se confundem? É possível caminhar fora dos termos “artesa-
nato”, “práticas manuais” e “artes têxteis” ou utilizá-los em uma relação não hierar-
quizada? Como brincar, debochar, se apropriar destas dualidades nos processos de
criação têxtil?
a circular sem contestações. Por isso, fico inquieta com afirmações que naturalizam
as práticas têxteis ao mundo das mulheres ou quando grupos étnicos culturais espe-
cíficos são impelidos, desrespeitosamente, a narrar seus costumes.
Também escolho andar pelo entendimento de que o campo das artes têxteis
que está se organizando e configurando na contemporaneidade é reflexo de uma
virada narrativa tratada tão bem por Godson (2017) e Canclini (2021). Virada que
dificulta a representatividade em meio a tantas identidades e singularidades que têm
conquistado visibilidade social e espaços até então não acessados. Defendo que a
ascensão destas “pequenas narrativas” provocou a produção de novos sentidos nos
processos de criação em artes têxteis, tendo nas práticas do bordado, do crochê, da
estamparia, da cestaria e da tecelagem uma oportunidade de resgate de histórias de
vida que, ressignificadas, qualificam as relações interpessoais.
Junto a isso, escolho a autobiografia como fonte primordial nos processos de
criação em artes têxteis, não somente por causa da abundância de narrativas pesso-
ais que circulam na arte contemporânea, mas porque creio que o investimento nos
processos subjetivos proporciona melhores relações a nível macropolítico. Narrar-se,
compartilhar relatos de vida, falar de si, não está desvinculado da necessidade de
percepção das condições sociais e históricas em que se está inserido, pois estas, em
geral, criam as possibilidades de construção de tais relatos.
A narrativa autobiográfica pressupõe atender às interpelações do outro, es-
colher fatos para serem contados tomando a si mesmos como objeto de reflexão,
assumindo-se como parte responsável pelas situações contadas. Nem tudo o que
relatamos é fruto de um conhecimento consciente, “momentos de desconheci-
mento sobre si mesmo tendem a surgir no contexto das relações com os outros”
(BUTLER, 2019, p. 32). Por isso, a relacionalidade assume um ponto chave para
pensar as práticas e narrativas contemporâneas em artes têxteis, pois compartilhar
histórias, ressignificar memórias, tecer em conjunto, contaminar-se pelo outro, pe-
las versões de realidade do outro, gera processos de criação e de aprendizagens
significativas.
Inserida neste conjunto de ideias, assumo este quatro pontos em todos os pro-
jetos artísticos e educativos que desenvolvo: a necessária discussão sobre as relações
de poder que engendram as memórias corporais; o foco na perspectiva da autobio-
grafia como recurso indispensável para processos de criação e educativos; o enten-
dimento da virada narrativa como reflexão crítica à ascensão das narratividades de
comunidades ditas minoritárias e; a imprescindibilidade dos aspectos relacionais nos
processos de criação têxtil.
REFERÊNCIAS:
BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2019.
CANCLINI, Nestor Garcia. A sociedade sem relato: Antropologia e Estética da Iminência. São
Paulo: EDUSP, 2012.
PRÁTICAS E NARRATIVAS TÊXTEIS CONTEMPORÂNEAS 33
DURAND, Jean-Yves. Bordar: masculino, feminino. In: Aliança Artesanal (Org.). Reactivar sa-
beres, reforçar equilíbrios locais. Vila Verde: Aliança Artesanal, 2006.
GOODSON, Ivor. A ascensão da narrativa de vida. In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene;
SOUZA, Elizeu Clementino (Orgs.). Pesquisa Narrativa: interfaces entre histórias de vida, arte
e educação. Santa Maria: Editora UFSM, 2017, p. 25- 47.
SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Regina Gomide Graz: modernismo, arte têxtil e relações de
gênero no Brasil. Revista do IEB, n. 45, 2007, p. 87-106.
34 A MEMÓRIA E O FEMININO
A MEMÓRIA E O FEMININO
ÁRVORE
1 Clarissa Machado é mãe e artista têxtil. Possui mestrado e graduação em Artes Visuais pela UFPE;
Atualmente, tem como foco em seus trabalhos visuais, o têxtil como suporte e poética, e busca a
experimentação têxtil, utilizando diversas técnicas e materiais com foco na abstração visual.
36 A MEMÓRIA E O FEMININO
Eu era árvore.
Sou árvore.
Serei árvore.
Dessa maneira, ao me ver tecendo uma única árvore percebo o quanto ela/
eu aparentemente estava sozinha. Digo aparentemente por compreender a ideia
apresentada por Wohlleben (2017) quando ele afirma que “trabalhando juntas elas
são mais fortes”. Essa frase, para mim, ganha sentido quando, ao participar dos en-
contros online do grupo de proponentes da exposição Tramações, fez-se presente
essa socialização em que “muitas árvores juntas criam um ecossistema que atenua
o excesso de calor e de frio, armazena um grande volume de água e aumenta a umi-
dade atmosférica – ambiente no qual as árvores conseguem viver protegidas e durar
bastante tempo” (WOHLLEBEN, 2017, p. 9). Cabe ressaltar que essa metáfora se apli-
ca a este tecer, pois ao fazer parte do “ecossistema” de Tramações: a memória e o
38 A MEMÓRIA E O FEMININO
têxtil, percebi-me emaranhada no fazer manual, ao passo que dividia com as outras
integrantes do grupo uma espécie de compartilhamento da vida e saberes que tor-
naram possível a existência da árvore tecida.
Durante a partilha dos primeiros encontros de Tramações, compreendi o signi-
ficado das autobiografias. O convite para trazer nossas histórias de vida se mostrou
atraente pois “quando partilhamos histórias de vida, narrando situações familiares
ou de outros tempos – revendo fotografias antigas – uma sensação de fortalecimento
é gerada. A força de se ver no outro, de se enxergar em outras vivências, provoca e in-
centiva ações de transformação” (BORRE, 2020, p.42). Durante os encontros tivemos
três momentos teóricos conduzidos por Luciana Borre, em que ela nos apresentou
a emergência de trazer para o cenário da arte têxtil as pequenas narrativas, tendo
como base referencial os estudos de Goodson (2013) e Canclini (2012), no qual nos
deparamos com uma virada cultural e com a ideia de múltiplas subjetividades, em
que as autobiografias, o cotidiano e as micronarrativas questionam a visão hegemô-
nica imposta por um sistema opressor e patriarcal, criando uma “multiplicidade de
subjetividades”, onde também os relatos são plurais e diversos. Ou seja, já não cabe
apenas uma verdade absoluta, e sim a produção de verdades plurais e dinâmicas.
Borre (2020) afirma que
Virei, árvore.
Firmei meus pés no chão.
Levantei asas para conectar com o ancestral de dentro de mim.
Não foi só um desafio, um fio que permaneceu enrolado dentro de mim.
Esqueci (muitas vezes) de ser quem eu sou.
O ato de tecer é tão antigo que, segundo Martin (2012, p.456), “em todos
os mitos, a arte da tecelagem teve origem no mundo divino e é por isso que algum
pequeno erro tem de ser tecido no padrão para nos recordar a imperfeição em toda
a vida criada”. A árvore que sou apresenta tais imperfeições. Ela espelha um eu ema-
ranhado na vida que teço, na realidade de uma mulher que, se vendo mãe, nutre,
acolhe e se entrelaça com suas filhas, que cria dúvidas, que é pressionadas a ser
onipresente, que se sente sugada, cheia de medos e segredos. Qual mãe não sentiu
isso? Qual mãe não se viu atordoada em uma rotina exaustiva? Por isso que trouxe
para a proposta de Tramações: a memória e o têxtil essa Árvore tecida que se funde
com a mulher/mãe/artista, ao compreender que
Sou árvore.
Árvore fincada no chão.
Brotei e dei frutos.
Os frutos crescem, parecem não querer cair.
Protejo-os, alimentos-os, para que amadureçam.
Virei, árvore.
REFERÊNCIAS
BORRE, Luciana. Bordando afetos na formação docente. Conceição da feira: Andarilha edi-
ções, 2020.
CANCLINI, Nestor Garcia. A sociedade sem relato: Antropologia e Estética da Iminência. São
Paulo: EDUSP, 2012.
MARTIN, Kathleen. O Livro dos Símbolos: reflexões sobre imagens arquetípicas. Alemanha:
Ed. Taschen, 2012.
[CÔMODO]: CONSIDERAÇÕES SOBRE
O FEMINISMO, O TÊXTIL E A MATERNIDADE 4
Clara Nogueira5
A partir da segunda onda feminista, iniciada nos anos 1960, houve uma am-
pliação dos temas de luta das mulheres ― ainda se alimentando das crescentes
movimentações da primeira onda feminista ― que propiciou a abertura dos espa-
ços de luta por direitos sociais, como o voto e o debate sobre igualdade de direitos
legais. Os temas dessas movimentações começaram a abranger também a questão
das mulheres no âmbito da casa, do particular, da sexualidade, da violência domés-
tica, dando espaço para que houvesse uma crítica severa sobre o papel socialmente
4 Artigo traz partes da Dissertação da autora “Por um fio: a resistência e os devires nos trabalhos de
Cristina Carvalho”, defendida em 2019 no Programa Associado de Pós-graduação em Artes Visuais –
PPGAV UFPB/UFPE.
5 Idealizadora, Coordenadora, Pesquisadora da pesquisa Cultural “Mulheres que Tecem Pernambuco”,
Clara é mãe de José e Pilar. Arquiteta e urbanista; bordadeira; tecelã e crocheteira nos desvios; mestra
em Artes Visuais pela UFPE/UFPB. É doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Urbano UFPE. Desenvolve estudos e pesquisas que tratam de questões de gênero x têxtil, gênero x têxtil
x território, intervenções urbanas e instalações efêmeras.
42 A MEMÓRIA E O FEMININO
inferior ao homem, na sua vida cotidiana e íntima, a que a mulher estava condicio-
nada. Analisando que o espaço de debates, formado em sua maioria por mulheres
brancas, foi repensado para abranger essas questões comuns relacionadas à condi-
ção das feministas, vítimas, também no foro privado, das imposições da sociedade
patriarcal, em 1969 Carol Hanisch escreveu um artigo legitimando o espaço dessas
discussões “pessoais” dentro do movimento feminista (que só deveria ser acessado
por mulheres). Em seu artigo “O pessoal é político”, Carol Hanisch promoveu pro-
fundas reflexões acerca do lugar das mulheres na sociedade, mas sobretudo sobre a
relevância das questões da mulher no foro privado:
Deste modo, o motivo para eu participar dessas reuniões não é para
resolver qualquer problema pessoal. Uma das primeiras coisas que des-
cobrimos nesses grupos é que problemas pessoais são problemas polí-
ticos. Não há soluções pessoais desta vez. Só há ação coletiva para uma
solução coletiva. Eu fui, e continuo indo a essas reuniões porque adquiri
uma compreensão política que toda a minha leitura, todas as minhas
‘discussões políticas’, toda a minha ‘ação política’, todos os meus quatro
anos e pouco no movimento nunca me deram (HANISCH, 1969, p. 2).
O que se caracterizava como habilidade feminina, por exemplo, foi, por isso,
rechaçado por parte das mulheres, que viam naqueles atos uma forma de submissão
ao sistema patriarcal; outras, viam-no como um ambiente de fuga, no qual era possí-
vel subverter o lugar de opressão e torná-lo um lugar de força criativa.
[CÔMODO] 43
estavam em pleno vigor. A partir disso, o conteúdo ganhou bem mais significa-
ção, pois:
gênero, como em Rosana Palazyan (1963), por exemplo, artista que traz denúncias
em seus trabalhos usando a técnica do bordado: “São cicatrizes de várias gerações de
mulheres imprimindo sua história em lenços, camisolas, roupinhas de criança, fitas
de cetim, rendas, sedas” (HOLLANDA, 2006, p. 153); ou mesmo em Rosana Paulino,
que, em sua série “Bastidores”, lida com o racismo e o machismo estrutural brasi-
leiro, onde a costura da boca, testa, garganta e olhos das mulheres faz relação com
o processo confuso, violento, de silenciamento e discriminatório que essas mulhe-
res sofrem e remetem aos castigos e torturas que as mulheres negras escravizadas
sofreram.
O uso dessas linguagens, vale acrescentar, com o estouro das indagações da
arte contemporânea, foi amplamente pluralizado. Nos trabalhos da artista paraiba-
na Cristina Carvalho (1978), também, o uso de materiais têxteis foi incorporado a
linguagens como a instalação, a performance e o desenho. Cristina Carvalho, com o
seu trabalho artístico, amplia o universo de possibilidades e reinvenções de usos do
bordado e dos materiais têxteis em geral.
É necessário fazer esse breve caminho histórico-teórico para que fique claro
que o fato de eu trazer o uso do têxtil, mais precisamente o bordado, nas minhas pro-
duções, é parte associada destes acontecimentos, ou melhor, é o resultado desses
esforços anteriores, tanto das conquistas sociais das mulheres quanto do reconheci-
mento das práticas têxteis feitas por mulheres dentro do campo da arte. Sobre essa
mudança de concepções e da reverberação disto na arte contemporânea, Silvana
Barbosa Macêdo2 afirma que:
A maternidade, como vimos, tema das “novas” formas de luta contra o pa-
triarcado, está, de forma subjacente, historicamente inserida nas artes. Mas só aos
poucos essas representações estão sendo feitas por mulheres/mães/artistas. Há ain-
da no ambiente artístico aquelas que observam a maternidade sob essa anacrônica
lente negativa. Artistas contemporâneas que adotam posicionamento semelhante
ao de Marina Abramòvic3:
Tinha a certeza de que [ter filhos] seria um desastre para o meu traba-
lho. Temos uma energia limitada no nosso corpo e teria que a dividir
[...]. Na minha opinião, essa é a razão por que as mulheres não têm
tanto sucesso como os homens no mundo da arte. Há muitas mulheres
talentosas. Por que é que os homens é que ocupam os lugares impor-
tantes? É simples. Amor, família e crianças — uma mulher não quer sa-
crificar tudo isso.
[CÔMODO]?
Tentei por muitas vezes sentar para escrever sobre o que eu queria fazer
nessa exposição. Foram muitas tentativas, muitas pausas e interrup-
ções. Não consigo conduzir o pensamento, não consigo escrever, parar,
respirar, pensar. Tenho que acudir, lavar, varrer, alimentar, pesquisar, ler,
assistir. Tantas ações, tramações.
REFERÊNCIAS:
ARCHER, Michel. Arte Contemporânea: Uma História Concisa. São Paulo: Ed. Martins Fontes,
2001.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de; HERKENHOFF, Paulo. Manobras Radicais. São Paulo:
ARTVIVA Editora, 2006.
MATTOS, Nelma Cristina Silva Barbosa de. Arte Contemporânea e Globalização: entre práti-
cas, imagens e diferenças. In: SEMANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UFSCAR, 2014. Anais [...]. São
Carlos, SP, 2014, p. 71-85.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? Tradução: Juliana Vacaro.
São Paulo: Studio, 2016. Título original: Why Have There Been No Great Women Artists?
Disponível em: http://www.edicoesaurora.com/ensaios/Ensaio6.pdf. Acesso em: 30 ago.
2021.
PARKER, Rozsika. The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine. Londres:
I. B. Tauris & Company, 2010.
SIMIONI, Ana Paula. Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e
Rosana Palazyan. Revista Proa, Campinas, n. 2, v. 1, 2010. https://www.ifch.unicamp.br/ojs/
index.php/proa/article/viewFile/2375/1777 Acesso em: 30 ago. 2021.
SOUZA, Iasmine. Mães na arte: Uma homenagem ao olhar feminino da Madona à mulher
moderna. Estadão. São Paulo, 2020. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/
maes-na-arte-olhar-feminino/ Acesso em: 30 ago. 2021.
INTRODUÇÃO
Tudo deve flutuar no ser humano para que ele próprio
flutue sobre as águas.
(BACHELARD, 1998, p. 87)
Neste artigo apresento o livro de artista Correnteza (2020) produzido por meio
do processo histórico e alternativo de impressão fotográfica denominado Cianotipia,
descoberto por Sir John Herschel (1792-1871) em 1842, que resulta em uma imagem
monocromática em tons de azul. A pesquisa segue com a apresentação da obra em
imagens (frames) e, após isso, estendo-me sobre a poética do trabalho, que parte
da análise simbólica do cabelo, da água e do feminino e da analogia cabelo-onda-
-correnteza. O referencial teórico parte da Teoria do Imaginário e do pensamento de
Gaston Bachelard em A Água e os Sonhos - Ensaio Sobre a Imaginação da Matéria
(1942), no qual sugere-se o devaneio tendo a água como o elemento basilar, bus-
cando considerações sobre o processo de construção das imagens mentais que se
materializam em minha obra, identificando os símbolos e mitos que a permeiam.
Ao mergulhar no universo da água e seus mistérios, Bachelard nos oferece me-
táforas que nos direcionam psiquicamente para as fronteiras de nossa imaginação.
Segundo ele, “a água é a senhora da linguagem fluida, da linguagem sem brusquidão,
da linguagem contínua, continuada, da linguagem que abranda o ritmo, que propor-
ciona uma matéria uniforme a ritmos diferentes” (BACHELARD, 1998, p. 193).
A partir desta linguagem fluida que abranda o ritmo, a analogia cabelo-on-
da-correnteza se funda, pois “[...] não é a forma da cabeleira que suscita a imagem
da água corrente, mas sim o seu movimento. Ao ondular, a cabeleira traz a imagem
aquática, e vice-versa” (DURAND, 2012, p. 99).
Inspirado na obra de Bachelard, Gilbert Durand (2002) em As Estruturas
Antropológicas do Imaginário, dedica uma passagem ao cabelo como parte do
Regime Diurno da Imagem, por considerá-lo um símbolo Nictomórfico3. Ele diz que
a imagem da cabeleira vai permear a constelação da água negra e, “[...] vai imper-
ceptivelmente fazer deslizar os símbolos negativos que estudamos para uma femini-
zação larvar, feminização que será definitivamente reforçada por essa água feminina
e nefasta por excelência: o sangue menstrual” (DURAND, 2012, p. 99).
Ademais, na simbologia da água e do cabelo, emerge a imagem do espelho,
em sua dualidade de ver e revelar, presente nos mitos de Ofélia e Narciso, desper-
tando neste artigo uma pequena conexão entre o autorretrato e o espelho d’água.
O espelho é espaço aberto para reflexão de si e do que lhe faz ser. Gaston
Bachelard em A Água e os Sonhos, no capítulo As águas claras, as águas primaveris
e as águas correntes. As condições objetivas do narcisismo. As águas amorosas ao
falar sobre espelho d’água e narcisismo, particularmente em sua dualidade de ver e
revelar, questiona: “Ao ser diante do espelho pode-se sempre fazer a dupla pergunta:
para quem estás te mirando? Contra quem estás te mirando? Tomas consciência de
tua beleza ou de tua força?” (BACHELARD, 1998, p. 23). No autorretrato, ao “mirar”
1 Processo de baixo custo utilizado para copiar imagens nos séculos XIX e XX, principalmente para
reproduzir fotografias, utilizando dois compostos químicos: Citrato Férrico Amoniacal (verde ou
marrom) e Ferricianeto de Potássio, misturados em duas partes iguais. O suporte usado geralmente é
o papel, mas é possível usar outros materiais, tais como tecidos, madeira, vidro etc. O azul profundo
da Cianotipia depende da exposição à luz ultravioleta, que provoca mudanças na cor dos compostos.
54 A MEMÓRIA E O FEMININO
a câmera para o próprio eu, as mesmas questões surgem, a busca pelo autoconhe-
cimento suscita, sendo “[...] preciso compreender a utilidade psicológica do espelho
das águas: a água serve para naturalizar a nossa imagem, para devolver um pouco de
inocência e de naturalidade ao orgulho da nossa contemplação íntima” (BACHELARD,
1998, p. 23).
A superfície da água que Narciso contempla é como uma pintura/fotografia,
correspondente à representação de sua própria imagem, apesar das distorções que
as superfícies refletoras podem promover através dos jogos ópticos. No livro O Corpo
como Objeto de Arte, no capítulo A Tirania do Espelho, Henri-Pierre Jeudy (1998)
diz que: “As superfícies refletoras podem ser infinitas e impor todas as deformações
possíveis do corpo pelos jogos óticos”. Entende-se que a água é espelho infinito, por
vezes, obscuro e deformador, capaz de refletir tudo que se sobrepõe a ela, mas nada
do que vive em suas profundezas. Em oposição, o espelho objeto, correspondente à
câmera fotográfica, pode ser profundo e deformador, mas enquadra o reflexo através
de suas margens, na finitude de suas de suas bordas.
O CABELO E A ÁGUA
Densos, longos e cheios, meus cabelos escorrem como água sobre o corpo, adentram
partes; criam seus próprios caminhos. É um mar de ondas esvoaçantes que se formam na direção
do vento; vive as fases da lua. Conto o tempo a partir dele, faço amarras e armaduras. Quando
úmidos e soltos, me fazem ouvir o mar, como quem coloca uma grande concha sobre o ouvido.
Dá-me forças ao mesmo tempo em que as suga. É parte da minha identidade; preso a mim.
(2020, registro da autora).
2 As Ondinas, também conhecidas como Undins ou Undinas, são espíritos das águas que geralmente
aparecem como belas mulheres. Seu nome deriva da palavra latina “unda” (onda), e foi usado para
nomear uma categoria de seres femininos sobrenaturais associados ao elemento água, incluindo
sereias, ninfas, limnads, nereidas e náiades. A palavra Ondina foi mencionada pela primeira vez nos
escritos do médico suíço Paracelso (1943-1541), onde apresenta a teoria de que existem espíritos
chamados “ondinas” que habitam o elemento água.
56 A MEMÓRIA E O FEMININO
REFERÊNCIAS:
PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à Teoria do Imaginário de Gilbert Durand. 2. Ed.
Curitiba: CRV, 2017.
ENTRE NÓS
Rayellen Alves3
Entre Nós, Costura de uma rede de pesca, 1,20 x 1,00m, Rayellen Alves, 2020.
Na obra em processo Entre Nós (2020), meu pai me ensina a produzir uma
rede de pesca. Este trabalho surge em um gesto de resgatar saberes que não foram
ensinados a muitas mulheres de comunidades pesqueiras (principalmente a minha)
e as que existem neste ambiente de domínio masculino são invisibilizadas. A partir
da minha poética, trago memórias que questionam por que somente os homens da
minha comunidade são responsáveis por pescarem e costurarem suas redes.
Sou água corrente de rio, cria de uma comunidade pesqueira localizada em
Nova Cruz II, Igarassu (Pernambuco, Brasil), e desde criança via meu pai costurando
suas tarrafas4, sendo este um ofício tradicionalmente masculino. Na infância, apren-
di como se pegava mariscos e siris com minha mãe, fazíamos destas atividades uma
brincadeira. Via os homens saindo para a maré cada um com seu carro de mão ou
remendando suas redes nas casas dos pescadores, mas nunca via uma mulher que
3 Estudante do curso de Licenciatura em Artes Visuais - UFPE, reside na comunidade pesqueira de Nova
Cruz II, Igarassu/PE. Bolsista PIBIC/Cnpq (2019/2020) sob orientação da profª Dra Maria Betânia e Silva.
Pesquisa sobre memórias e narrativas de si.
4 Uma rede de pesca circular com pequenos pesos distribuídos em torno de toda a circunferência da
malha.
58 A MEMÓRIA E O FEMININO
pescasse peixes. Um dia pedi ao meu pai Antônio que me ensinasse a costurar uma
rede de pesca. Ele riu, desacreditou e ficou curioso com o pedido. Disse, num primei-
ro momento, que seria difícil me ensinar porque só sabia produzir com a mão direita
e eu sou canhota. Na vida adulta, e diante dessa costura de mãos invertidas, aprendi
com destreza a tecer a rede, sendo que as articulações e as pernas começaram a
doer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS:
CAVALCANTI, Diego Rocha Medeiros. Entre a casa e a pesca: discutindo gênero e pesca femi-
nina no litoral Paraibano. In: Fazendo gênero 8: corpo, violência e poder. Florianópolis, 2008.
Disponível em: http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/fg8/sts/ST64/Diego_Rocha_
Medeiros_Cavalcanti_64.pdf. Acesso em: 30 ago. 2021.
BEHLING, Edi; HERNANDEZ, Adriane. Arte e artesanato: uma poética da trama. In: SEMINÁRIO
DE HISTÓRIA DA ARTE-CENTRO DE ARTES-UFPEL, 2011. Anais [...], Pelotas, 2012.
DUARTE, Natália Seeger. Redes, malhas e mãos: o processo artesanal da rede de pesca do
mar ao ateliê. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal de Santa Catarina:
Florianópolis, 2018.
FERREIRA, Maria Aparecida. “Eles num vê uma mulhé na água/ (...) eles vê como se fosse
um homem”: cronótopos e performances de gênero na pesca em arraial do cabo. Caderno
Espaço Feminino, Uberlândia, v. 30, n. 1, 2017.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais
ENTRE NÓS 61
LTDA, 1990.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: Revista
do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, v. 10, 1993.
A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
TEJIENDO MEMORIA: EL TEJIDO
EN LA OBRA GRÁFICA
Cecilia N. Conforti1
Tejiendo Memoria Sobre, fotografía digital, 50x70 cm, Cecilia Conforti, 2020.
Tejiendo memoria es una serie de cuatro obras que forman parte de un proce-
so creativo autobiográfico, a partir de los intercambios realizados con las integrantes
del proyecto Tramações: a memória e o têxtil. La poética combina una investigación
cualitativa como artista mujer, docente e investigadora en concordancia con la me-
moria y el arte textil. Se trata de un relato que se corresponde con el concepto am-
pliado de obra gráfica basada en las investigaciones en producción artística realizada
En abril de 2020, a partir de una imagen afectiva, una fotografía que elijo me
movilizó hacia una narrativa escrita sobre una situación que me hace vibrar y pensar.
La fotografía es la imagen simbólica de un corazón grabado al aguafuerte en el año
2008, y que desde entonces estará presente en casi todas mis producciones. Esta
imagen fue mutando en varios soportes y técnicas y refiere al amor, a la palabra
ágape3 pero también refiere a la sanación de las heridas relacionadas a mis recuer-
dos de niñez, recuerdos difusos y ocultos que se revelan a partir de fragmentos. Me
pregunto si este mensaje se convierte en un principio, un medio o un fin. ¿Por qué
me dispara integrar esa experiencia a mi narración y cómo compartirla? Me pro-
pongo finalmente reflexionar si esta preocupación que se dirige a la producción de
significados personales es el camino para reinventar o interpretar de manera cre-
ativa mi propia biografía y las de los demás, en definitiva, cómo me imagino, cuál
es mi historia y cómo se construye mi identidad. Así surgieron series de obras que
incluyeron acciones realizadas con diversas técnicas como fotografías, video montaje
y estampación digital.
Con estas ideas en mente, desarrollé mis propias formas de recopilar informa-
ción, analizar ideas y crear nuevos modos de conocimiento. El propósito fue en sí una
actividad relacional abriendo camino hacia una estética relacional. La estética rela-
cional (BOURRIAUD, 2002) se ocupa de la relación entre el artista, la forma de arte,
las ideas, las interpretaciones y la relación entre artefactos y espectadores. Estos
entrelazamientos que se produjeron por la contigüidad4, combinan producciones y
texto, práctica artística y experimentación en el taller. También estuvieron presentes
las interpretaciones de la autora Simone de Beauvoir y a partir de ella, de las artistas
Louise Bourgeois y Rossana Paulino. Cada una respectivamente me movilizó hacia un
análisis de los conceptos que subyacen en mi propia poética: la memoria, que hace
énfasis en el recuerdo.
En este desarrollo autorreferencial, inevitablemente surgieron algunas pre-
guntas: ¿Creo en mí misma? ¿Me construyo? ¿Qué he creado de mí? Al igual que
Simone de Beauvoir cuando se cuestiona sobre ¿Qué es una mujer? ¿Qué significa
ser mujer? A lo que ella misma responde: “No se nace mujer, se llega a serlo”. Con
esta afirmación, anunció un concepto de género controvertido. Sin hablar de este
término, Simone de Beauvoir sí lo hace sobre lo que realmente significa: que ser
mujer o lo femenino nada tiene que ver con la biología, sino con una construcción
cultural. Desde la indagación construyo el relato a través de la escritura, sobre las
experiencias que se iban sucediendo. Éste es uno de los factores más importantes
que entran en juego en mi investigación.
Cuando exploro mi propia experiencia, en el diálogo personal prevalecen la
complejidad y la contradicción. Se presenta como una discusión interna de cómo y
por qué interpreto de una determinada manera. Luego se produce una deconstruc-
ción personal. Lo antiguo da paso a lo nuevo y al mismo tiempo, lo nuevo, modificó
lo anterior, funcionó como una pérdida y metafóricamente como una estructura ri-
zomática (DELEUZE; GUATTARI, 2002).
DESARROLLO
En esta experimentación abierta, conectable en todas sus dimensiones, alte-
rable y susceptible de ser alterada, construyo un mapa que actúa sobre lo real, en
acción. Los hallazgos hacen visibles las aperturas para nuevos comienzos, cambios y
significados. La palabra y el texto traspasan una multiplicidad de técnicas y discipli-
nas: arte textil, estampación, arte relacional, gráfica tradicional y digital, fotografía,
etc., generando esta serie de obras que tiene una importante carga interdisciplinar,
pero que, al mismo tiempo, forma parte de un proceso de creación transdisciplinar.
El tejido con su connotación de pasado hereditario femenino, pasa a ser resig-
nificado como una hibridación. Este enfoque y sus condiciones de producción para el
trabajo artístico, conducen a una pérdida de especificidad y a la disolución de fronte-
ras, es decir, que va más allá de lo visual y abre la puerta a todo ese mundo contenido
en la obra: los recuerdos, la infancia, la vida, los materiales y los artefactos entre
otras cosas. Al hacerlas aparecer nuevamente bajo otros contextos y adjudicándoles
otros usos y significados, generan también vivencias por medio de su propia existen-
cia. Tal como sucede con el grabado actual, se produce una hibridación de disciplinas
en la gráfica, pues “el grabado es ahora un territorio en el que la integración de todas
las artes permite cruzar sus fronteras con fluidez” (BERNAL PÉREZ, 2016, p. 71).
Bernal explica que existe una búsqueda que se centra en los diferentes niveles
de lectura del proceso. La conexión experimental con otras áreas/disciplinas, con-
vierte en difusos los límites del grabado tradicional y los límites de la obra interdisci-
plinaria. Esto cambia el concepto del artista, la relación entre el público y el autor, el
espacio de acción, el proceso creativo, la creación de un nuevo lenguaje estético y la
temporalidad de la obra.
66 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
TEJIENDO MEMORIA
Rosana Paulino en una entrevista responde que a la hora de abordar su pro-
ceso: “siempre empiezo por mis preocupaciones, por lo que me mueve”5. Esto lo
relaciono en mi búsqueda propia. Al comenzar un proceso de producción personal
parto de lo que me moviliza en relación a las memorias y luego abordo la técnica que
se adecua mejor. Elijo un elemento que me resulte significativo y desde él, rememo-
ro y a través de ellos me auto-observo. Pretendo construir mis propios relatos y al
igual que Paulino cuando dice: “me guían mis preocupaciones”, pero no soy ajena en
5 CARVALHO, NOEL & TVARDOVSKAS, LUANA & FUREGATTI, SYLVIA. Entrevista com Rosana Paulino.
Rescate: Revista Interdisciplinar de Cultura. 2018, p. 149-160.
TEJIENDO MEMORIA 67
relación al contexto que vivo, porque seguramente ellas estarán presentes y veladas
en el proceso.
Lo que tejo es un pequeño rectángulo (30 x 40 cm) y aquí es donde la obra ad-
quiere materialidad, de ahí nace para luego transformarse en una forma reconocible
que sugiere una narrativa. No son objetos, pero cuando los doblo toman la forma, la
apariencia de un objeto. El tiempo desaparece cuando trabajo porque en la acción
encuentro recuerdos de mi vida, una metáfora de lo que se esconde, una acción para
revelar el recuerdo. Explorar recuerdos, temas o ideas que inspiran curiosidad y sen-
sibilidad estética, me permite establecer un significado personal y colectivo. Tejiendo
memoria “Sobre” hace referencia a recuerdos guardados.
Aquí se produce una nueva apertura que desemboca en interrogantes como:
¿Qué memorias guardo? ¿Qué tengo de ternura? ¿Cuáles fueron mis deseos? ¿Qué
recuerdo tengo de estas nuevas consultas? ¿Qué obtengo de la ternura? ¿Cuáles
eran mis deseos? ¿Cuántas creencias sociales y culturales limitantes han afectado mi
construcción de mujer? ¿Cuáles son las que he modificado? y ¿Dónde las ubico? ¿En
mi mente, en mis emociones, en mi cuerpo?
El Concepto de metáfora y metonimia, está implícito en el grabado y en el teji-
do. Hay un paralelismo con relación a vivencias que se grabaron en la memoria. Estas
conexiones temporales entre pasado, presente y futuro, permiten ser reinterpreta-
das, recreadas y reconstruidas a través de poéticas imaginadas. Tejiendo memoria
“Deseos” representa la intención de curar las heridas. Son mis deseos y los de otros
que emanan de la vela y Tejiendo memoria “Muñecas” es una metáfora que alude a
lo impuesto. Está asociado a los apodos impuestos socialmente. Blanco y negro hace
referencia al agrado/desagrado. Positivo/negativo.
INTERACCIONES
Aunque originalmente no fue parte de mi práctica artística ni de mi investigaci-
ón de estudio, proporcionó una base fértil para la exploración. En cierta contingencia
relacionada con las derivaciones gráficas contemporáneas, me inspiró a interactuar
con el público a través de la plataforma virtual Instagram. En el mes de octubre
publiqué cuatro videos, en cada uno pregunté y revelé parte del proceso que estaba
realizando.
Esta interacción con el público se concretó por medio de frases y una invi-
tación a interactuar con la obra. Las expresiones de las encuestas se imprimieron
con la técnica de estampación, sublimación en el tejido. El registro en las diferentes
obras es el deseo de revelar de una manera sutil y persistente en la repetición. Al
mismo tiempo que detengo mi mirada en las frases elegidas, tomo las palabras de
otros - esos secretos que no me pertenecen - y los abrazo como si fueran míos. Este
proceso de impregnación e integración del secreto está también en el centro de
la serie de acciones. El tiempo dedicado a tejer y contemplar frases extraídas me
permitió apropiarme de ellas. Me cuestiono en cada momento acerca del proceso
mostrando una estructura viva que sugiere nuevas preguntas para generar nuevas
conclusiones.
68 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
A MODO DE CIERRE
Todo el proceso transcurrido se integra junto a lo real-imaginado como prin-
cipales elementos y conceptos del desarrollo. En el proceso de traer al presente
algo del pasado, la imaginación llena el olvido con el recuerdo para que se pueda
completar la imagen que se quiere evocar. Aquí planteo una representación de lo
real por un lado y de apariencia ilusoria por otro. A esto lo vinculo estrechamente
con la poética a través de los elementos que aparecen en la obra. Se produce un
desplazamiento del proceso-obra, un doble significado que genera interconexiones
TEJIENDO MEMORIA 69
REFERENCIAS:
BEAUVOIR, Simone. El segundo sexo: Los hechos y los mitos. Buenos Aires: Sudamericana,
1998.
BERNAL PÉREZ, ͘M. Los nuevos territorios de la gráfica: imagen, proceso y distribución.͘ Revista
Arte, Individio y Sociedad, Universidad Complutense de Madrid: Edicione Complutense,
Madrid, v. 28, 2016.
BOURGEOIS, Louise. Construcción del padre / Destrucción del padre. Londres: Ediciones
Violette, 2000.
DALMAU, Jorge; GÓRRIZ, Lídia. La Problemática Interdisciplinar en Las Artes: ¿Son discipli-
nas los distintos modos de hacer? Revista On the w@terfront, Universidade de Barcelona,
Barcelona, n. 27, 2013.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 2, Tradução: Ana
Lucia de Oliveira e Aurélio Guerra Neto. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2002.
IRWIN, Rita. La práctica de la a/r/tografía. Traducido del inglés por Diego García Sierra, Revista
Educación y Pedagogía, Medellín: Universidad de Antioquia, Facultad de Educación, v. 25, n.
65, enero-abril, 2013, p. 106-113.
IDENTIDADE ARTESÃ:
A PARTILHA DE TRAPILHAR MEMÓRIAS
Identidade Artesã I, fotografias, 3,0 x 4,0 cm, Angélica Carvalho Lemos, 2020.
Costurar, alinhavar, tramar e tecer. Sou herdeira dos gestos geracionais que
guiam o trajeto do fio biográfico, que tento ancorar por meio dos versos em bordaria
manual. Aqui, busco escrever “pequenas narrativas” em harmonia com a compreen-
são de Borre (2019):
Pois ouso aqui, eu, uma mulher artesã e bordadeira encasulada pelo habitat
hostil e que insiste em tentar subordinar os sonhos e capturar a autonomia de nós
mulheres latino-americanas brasileiras e periféricas. E antes de bordar letras, esta
bordaria manual dos versos poéticos, entendi que não saber escrever com o lápis
pode ferir mais do que a ponta da agulha que espeta o dedo, quando se erra o ponto
no tecido. Digo porque sou neta de analfabetas e analfabetos. Talvez por isso, vovó
me ensinou a bordar sem dedal ou bastidor.
Venho, para além de bordar, escrever e compor minhas pequenas narrativas.
Quero ocupar e reocupar o tecido social na trama têxtil, e consagrar o tecer dialógico
com o tecer para desatar os nós que costuramos na garganta a cada grito que me foi
e nos é silenciado, guardado e oprimido.
Paulo Freire (1983), uma das fontes que inspira a dialogicidade e a humani-
zação, e sobretudo inspira a todos nós na trilha do cotidiano, afirma neste pequeno
trecho da obra Pedagogia do Oprimido:
para o papel. E abre-se como um leque as matrizes das vivências, contato e recontato
com o fazer artesanal, o artesanato e a(s) artesã(s).
Um alento seguido de um suspiro, instante de rememorar a infância e ou-
tros tantos instantes do nosso ciclo vital, é o momento de consagrar a ancestrali-
dade. Retomo a obra Identidade Artesã I e Identidade Artesã II, ambas em dimen-
sões de foto 3x4. No memorial descritivo da obra apresentado à exposição coletiva
Tramações: a memória e o têxtil, contemplo:
Na obra Identidade Artesã I e II tento expressar afeto e como sou afetada pelo
bordado. Pois carrego a crença de que bordar é coreografar com as mãos: o tecido
é a base, o solo que ergue e sustenta cada ponto, a agulha guiada pela intenção do
que está por trás de cada ponto. É manipular sutilezas para além da simples repeti-
ção dos movimentos finos, precisos ou imprecisos. O trajeto da linha pode ou não
seguir traços, riscos, moldes ou somente o tecido. Tecido este que ocupa o solo, a
base estável e maleável, o bordar e o bordado se moldam e acomodam ao meu colo.
E assim o carrego, tecido-fonte, numa espécie de trouxa inacabada, em seu interior
meadas de linhas, lãs, miudezas, agulhas, tesouras, tecidos, retalhos, relicários, e até
as incertezas e certezas. A trouxa me acompanha pelos cômodos do lar, captadas
pelo ato de bordar, tece-se e se constrói no trajeto: fazer-se, desfazer-se e refazer-
-se. Ao tecer, encontro com a finitude de laços, ora fortes como um nó, ora soltos e
afrouxados. Ainda confesso, que há momentos em que me permito reconhecer que
perdi o fio da meada.
Na obra, a trouxa ancorada sob a cabeça da mulher onde, não à toa mas pro-
positalmente, está costurado, quase como sutura, um parafuso, uma simbologia a
saúde mental, como escancarado no dito popular ter um parafuso a menos na cabe-
ça. Ora, clamo com esse gesto de bordar o parafuso um olhar holístico, integrado e
inclusivo para a saúde mental de nós mulheres.
Conviver com essa vulnerabilidade, fruto das desigualdades e injustiças so-
ciais, e o impacto disso na saúde mental, é algo que me atinge e aflige, minha avó é
essa mulher classificada como pertencente ao grupo de vulnerabilidade social, pois
mulher, de baixa renda e baixa escolaridade (analfabeta). Vovó foi artesã e lavadei-
ra, carregava a trouxa de roupas sob a cabeça, longas caminhadas que lhe exigiam
equilíbrio para a trouxa não cair até a beira do rio, lembranças que ela partilhava nas
tardes em que eu, ainda criança, sentava ao seu lado para aprender a trapilhar.
Trapilho são tiras de tecido oriundas da reutilização de trapos de tecido, os
retalhos que são descartados das confecções têxteis. Porém cada trapo, retalho
IDENTIDADE ARTESÃ 73
sozinho não serve para fazer muito, mas quando são unidos, os trapos juntos podem
virar outra coisa. Um tapete, uma colcha e até um estandarte. E, um a um, vovó cor-
tava os pedaços de trapo em tiras, para depois cuidadosamente alinhavar, unindo-as.
Ou seja, a ponta final de uma tira unia-se à ponta final de outra tira, até que juntas
formassem um novelo. O novelo não é composto por um fio contínuo, mas pela jun-
ção de vários pedaços de fios. E não havia régua, fita métrica e mesa por ali. Vovó
gostava mesmo era de fazer sob o seu colo, o colo a base para acolher sua matéria
prima, curvava as costas para poder, de forma primorosa, tentar criar simetrias entre
as dimensões das tiras, o seu fazer artesanal era no olhômetro.
Esse novelo que não é formado por um fio contínuo, mas sim através da união
costurada de um pedaço a outro, hoje me faz relembrar e compreendê-lo como um
encontro coletivo de mulheres. É a história de uma mulher que se une a de uma ou-
tra mulher e, assim, temos nossas histórias unidas e costuradas, alinhavando nossa
comunhão de forças em prol da liberdade e do empoderamento. Talvez, ao sermos
tecelãs das nossas vivências, estamos a trapilhar pela vida, a cada ponto de encontro
nos unimos a outras histórias e formamos nossos novelos.
Trapilhar almeja uma forma de cuidado comunitário. É o ato de mulheres que,
juntas, compõem um coletivo. E este coletivo promove o encontro do que eu bati-
zaria de mulheres trapilheiras. É carregar no ombro o esperançar do fortalecimento
das redes de apoio entre e inter-grupos-coletivos de mulheres em prol de instaurar
o cuidado comunitário.
Criar “redes de cumplicidades”, como traz Macedo (2017):
E acho que a questão do doméstico é aquilo que nos aproxima mais hoje
e sempre; a luta contra a opressão na esfera do doméstico e do privado
e o desejo das mulheres de vários países e culturas distintas de ter uma
visibilidade social e política, de expressar a sua voz própria e a sua vi-
são do mundo. Acho que isso está para além das fronteiras geográficas,
de língua, é algo que une as mulheres. Há diferenças, sim, de raça, de
classe, mas é necessário criar cumplicidades, criar redes. Por isso, uso
muito a metáfora da teia de aranha. Acredito que as mulheres constro-
em teias, teias de cumplicidades, de resistência. E acho que a história é
um fio tecido e o contar histórias é, afinal, uma maneira de transmitir
cultura e narrativas alternativas, tecendo coletivamente essas teias de
solidariedade e empatia (MACEDO, 2017 apud BITTELBRUN, 2020, p.3).
REFERÊNCIAS:
ARANTES, G. Antes da chuva chegar. In: Guilherme Arantes. São Paulo: Som Livre, 1976, faixa
9.
1 Para maiores informações este trecho pertence à entrevista de Paulo Freire, transcrito no texto de
Angélica Ramacciotti. Disponível em: https://www.pucsp.br/paulofreire/memoria-homenagens.php
Acesso em: 5 jan. 2021.
IDENTIDADE ARTESÃ 75
BORGES, Adélia. Design e artesanato. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
AFETOS ENTRELAÇADOS NAS
VOLTINHAS DO CROCHÊ
Vanessa Freitag1
Flor de Dora, crochê com fio de tecido; 50x54x38cm, Vanessa Freitag, 2020.
1 É graduada em Desenho e Plástica pela Universidade Federal de Santa Maria. Especialização em Arte e
Visualidade e Mestrado em Educação pela mesma instituição. Doutorado em Ciências Sociais no Centro
de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (Guadalajara-México).
AFETOS ENTRELAÇADOS NAS VOLTINHAS DO CROCHÊ 77
SOBRE O CROCHÊ
Por ter sido uma prática desenvolvida preponderantemente por mulheres no
contexto doméstico, visto como uma “manualidade” ou uma “arte menor”, são es-
cassos os textos que se interessaram em documentar e entender as origens, usos e
significados da prática do crochê.
Entre esses textos e materiais encontrados, se sabe que “crochê” provém de
“croc” ou “croche”, uma palavra do francês medieval, significando literalmente “um
pequeno gancho”. Sendo assim caracterizados os tecidos feitos a partir do entrelaça-
mento de um único e contínuo fio, com o apoio de uma agulha em forma de gancho
numa das extremidades (HARRIS, 2010).
Através do entrelaçamento de fios, das voltas e nós que se dá com a agulha,
o tecido é formado e os pontos e linhas utilizados vão dando identidade ao crochê.
Outra característica — que pode parecer uma obviedade — é que, até hoje, o crochê
78 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
se faz com as mãos, sem o apoio de máquinas especializadas. Comparada com outras
técnicas têxteis (como o tecido feito em tear, o bordado, as rendas, a costura), o cro-
chê foi um dos mais negligenciados. Algumas das razões que poderiam pontuar este
fato é que o processo de aprendizado e os recursos utilizados eram acessíveis para a
maioria da população, cujos processos se aprendiam com certa rapidez. Comparado
com as rendas e o bordado, o crochê requer menos tempo e complexidade no fazer
(HARRIS,2010).
Alguns dos trabalhos pioneiros sobre o tema, pelo menos para o contexto eu-
ropeu, é o de Lis Paludan que em 1824 escreveu sobre a prática do crochê para uma
revista feminina danesa. Já em 1844, na Suíça, se publicou o primeiro livro conhecido
sobre modelos e pontos do crochê (PALMSKOD, 2016).
Sobre as possíveis origens do crochê, cogita-se a hipótese de que surgiu entre
os séculos XV e XVI, especialmente em países europeus: Itália, França e Bélgica. A alta
burguesia europeia se deslumbrava com as delicadas, complexas e onerosas rendas
que adornavam seus vestuários. Por outro lado, as pessoas menos favorecidas não
podiam vestir-se com esse prestigioso acessório. Uma possível solução encontrada
foi emular as complexas rendas mediante um procedimento técnico e material mais
acessível: o crochê (PALMSKOD, 2016).
Sobre a prática do crochê, sabe-se que essa foi desempenhada em países
como a China, Índia, Filipinas e, no caso da América do Sul, a partir dos processos
de colonização/imigração (HARRIS, 2010). Na Inglaterra, o crochê se tornou popular
e extensamente utilizado no final do século XVIII, quando uma variedade de pontos
foram criados durante a era Vitoriana.
Seu uso foi empregado em diversos tipos de suportes, adornos, bases ou ne-
cessidades dentro e fora do âmbito doméstico. O crochê não só foi utilizado como
adorno de roupas femininas e masculinas, mas também para criar almofadas, col-
chas, tapetes, cortinas e uma infinidade de artigos para as residências modernas
(GORDON, 2011).
Ainda para Palmskod (2016, p.18, tradução livre da autora): “O crochê se tor-
nou moda nos primeiros países industrializados do mundo ocidental a princípios do
século XIX, ao mesmo tempo em que se expandia a produção de algodão na mesma
medida e contexto de expansão do colonialismo e da escravidão”. Com o passar do
tempo, o crochê se expandiu e se popularizou.
Tal processo foi favorecido, em parte, pela publicação e circulação extensiva
de revistas femininas onde se publicaram as guias e modelos de crochês para serem
replicados entre as mulheres. De acordo com Palmskod (2016, p.19), “elaborados
modelos foram desenvolvidos para decoração doméstica e para uso pessoal. A po-
pularidade do crochê continuou e entre 1900-30 foi uma prática artesanal muito
comum”.
No entanto, sabemos que muito desse conhecimento se transmite de uma
geração à outra, de forma empírica, sem o uso de revistas ou modelos prévios. As
mulheres geralmente se comprometiam a ensinar os caminhos do crochê às novas
gerações de suas famílias. Entre elas mesmas se compartilhavam desenhos e mode-
los que criavam para a atualização de novas formas de crochetar.
AFETOS ENTRELAÇADOS NAS VOLTINHAS DO CROCHÊ 79
OS ARREMATES
A “Flor de Dora” que apresentei para o projeto Tramações: a memória e o têx-
til era para ter sido uma flor gigante, quase da minha altura. Eu queria ser abraçada
pela flor, aninhada por ela. No entanto, no processo do fazer, me deixei levar pelas
cores e as curvas do crochê, e foi quando decidi manter a forma que têm agora: é de
uma escala que cabe em qualquer lugar. E essa ideia também me agradou.
Ela também me lembra as flores que formam os desenhos dos crochês que
eu via nos guardanapos e toalhas que tinha na minha casa, aludem diretamente o
interesse que tenho pela botânica e a minha relação com a terra. Como filha de pe-
quenos agricultores do interior do sul do Brasil, cresci rodeada de plantas e animais.
Depois de trabalhar no campo, de cuidar da horta e do jardim, às vezes mi-
nha vó e minha mãe ainda encontravam tempo para trabalhar nos seus crochês. Era
como um ritual, uma parte do trabalho cotidiano consistia em fazer guardanapos,
tapetes, colchas, toalhas de mesa para a casa. Não era nunca com a intenção de
vender, pois lembro que todas as vizinhas e amigas da época também crochetavam e
se reuniam para intercambiar novos pontos e desenhos.
Foi nesse convívio cotidiano com a prática do crochê ainda na infância que
minha avó me ensinou a fazer as “correntinhas” que são os pontos que dão início a
um trabalho, e se assemelham a uma trança de cabelo. Além disso, ela conhecia a lin-
guagem do crochê, os nomes dos pontos e os nomes das flores e folhas crochetadas.
Isto eu achava muito interessante.
A minha “Flor para Dora” é uma forma carinhosa de reconhecer as práticas e
saberes artesanais que são desempenhados maioritariamente (embora não exclu-
sivamente) pelas mulheres. Esse trabalho evoca a presença de um ser querido, de
uma paisagem da qual sinto nostalgia, dos crochês bem feitos que a vó fazia. Destaco
aqui, a atenção posta no detalhe, a cadência dos pontos usados, e as cores suaves e
delicadas que transformavam qualquer pedaço de pano em um trabalho finamente
elaborado.
REFERÊNCIAS:
GORDON, B. Textiles: The Whole Story. New York: Thames & Hudson, 2011.
HARRIS, J. 5000 Years of Textiles. Great Britain: The Trustees of the British Museum, 2010.
Tempo de espera, Bordado sobre tecido, 1,00 x 0,90m, Ana Lisboa, 2020.
///
“Tempo de espera” foi o tempo vivido e sentido a partir do momento em que
nos foi anunciado que seríamos avós. Era dezembro de 2019 quando Álvaro e eu re-
cebemos a notícia, em Granada/Espanha, em seguida no Recife/Brasil. Foram muitas
emoções, pois iniciamos sendo avós duplamente, quase no mesmo mês, diferença
de 23 dias de um neto para o outro. No dia 24 de julho nasceu Guilherme e, em 17
de agosto, Vinícius! Nascia, diante de tempos divididos e de partilhamento intenso,
mais uma história de amor.
Sentir as emoções e as expectativas das duas filhas, Danielle Maria e Renata
Maria, fez-nos reviver o tempo de gravidez, em que tudo se transforma no corpo e na
mente. Cada mudança evocava uma lembrança dos meus 21 e 30 anos, 38 e 29 anos
atrás, respectivamente, quando estive grávida de Danielle e de Renata. Uma emoção
que não sei como explicar, senti todas as transformações das filhas, uma emoção
dupla. Cada dia uma mudança, um encontro, uma preparação para a chegada dos
presentes do céu: Guilherme e Vinícius.
Nove meses de acolhimento, de cuidado, de paciência, uma preparação nos
ninhos familiares, o corpo e a casa em mudança. As filhas que se preparavam para
ser mães, juntamente com os maridos, pais, familiares e amigos; todos sentíamos a
presença de Deus: algo maior... duas vidas chegando...
Esse tempo de espera me pareceu, paradoxalmente, longo e rápido. Como
pode? Foram momentos transbordantes de emoções, que jamais serão esquecidos,
potencializados por uma tragédia mundial que vivíamos em paralelo: uma pandemia
ceifando milhares de vidas preciosas e ainda sem perspectivas seguras de quando
iria terminar. Anseio e esperança de que tudo passasse e nossas criaturinhas do céu
nascessem quando tudo já estivesse pacificado, o que infelizmente não aconteceu.
Como vovó em perspectiva, enquanto vivia um tempo ansioso de acompa-
nhamento da gestação e do nascimento, encontrei um derivativo no trabalho com
as mãos e a mente, com muito amor, fazendo e refazendo os fios do coração, muitas
vezes partidos pelos desejos frustrados de abraçar, colocar no colo, cheirar, me fazer
mais presente. Foi um tempo de sublimação, de potencializar a vida, dando sentido
aos dias através de bordados que aprendi com a minha tia/madrasta de meu pai, tia/
madrinha. Os “bordados afetos” foram um instrumento ao meu alcance para ter e
dar felicidade! Assim me sentia quando estava vivenciando este “tempo de espera”,
bordando lençóis para esquentar, cobrir e acarinhar os amados netos tão esperados!
///
Quando criança, via os bordados de minhas tias Iracema e Elizabete, por mim
tão admirados, pelo carinho e pela beleza angelical: pontos delicados, pacientemen-
te realizados em tecidos finos e quase transparentes. Cada ponto tinha uma carac-
terística e uma forma, aplicados em lençóis, fronhas, vestidos, blusas, camisolas,
toalhas... Mas, em sua maioria, em conjuntos para bebês. Uma tia comercializava,
era famosa, a outra fazia para os familiares, seus filhos e netos.
Achava lindo! E o que mais me encantava era a dedicação que elas tinham,
era o tempo que pacientemente dedicavam àqueles tecidos tão delicados e que
simbolizavam muito para meu olhar de criança. Fui presenteada com muitos desses
trabalhos (camisolas para mim e lençóis para as nossas filhas). Esses momentos de
trocas afetivas, de renúncia por tantos afazeres, além da dedicação neste fazer tão
simbólico, despertaram em mim um desejo de continuidade quando os netos foram
anunciados. Um resgate da emoção de outrora, de me sentir como minhas queridas
tias, de doação de um tempo na espera longa, ainda mais no sofrido período que
estamos vivendo. Sem dúvida, um resgate longo e apreensivo.
Multiplicar o afeto que sempre recebi de tias tão queridas me veio à lembran-
ça como algo muito especial e cheio de significados. Pessoas que eu amava, admira-
va e admiro pela habilidade e capacidade de doação. Cada desenho, bordado, cor,
82 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
///
Os lençóis foram feitos em um tecido chamado cambraia, bem fininho e de-
licado, adquirido há mais de dez anos, guardado para ser bordado para os netinhos
quando fossem anunciados.
Os bordados foram pensados a partir de uma blusa confeccionada pela tia
Elizabete, esse foi o ponto de partida. Há anos guardo esta blusa, nunca usada, como
se fosse uma relíquia e não feita para uso, mas para ser admirada pelos descenden-
tes, memória de infância, de juventude, de afeto, de amor recebido... de um tempo.
Iniciei cortando os lençóis, desenhando e, finalmente, bordando. Fazer com
linha branca sobre o tecido branco foi um desafio, mas, para mim, era a única cor
que representava meus desejos estéticos. Escrever o nome de cada neto levou muito
tempo: cada vez que estava terminando, mais bordado queria fazer. Não há, nos
lençóis, nenhuma costura que não tenha sido feita a mão, um resgate à paciência, ao
tempo dos afazeres com as mãos.
Fazer estes lençóis foi algo que me deu muita satisfação, o tempo passava e
eu nem sentia, a higiene mental era concreta, a imaginação voava e o corpo sen-
tia a leveza. Aprender foi fácil, pois a motivação era muito grande e representava a
paciência da espera, o quanto podemos nos preencher com os desafios dos novos
aprendizados das coisas simples, sem ter a pretensão, em momento algum, de reali-
zar um bordado perfeito. Apenas a vontade de registrar o afeto, a passagem de um
tempo de espera pela chegada dos presentes mais belos que podemos receber para
cuidar: vidas!
As linhas, os pontos, os desenhos são autênticos de quem é aprendiz e quis
registrar essa gênese do ofício. Para mim, belos são os bordados que seguem a dire-
ção das mãos, diferente das máquinas, que trazem uma “perfeição” e beleza própria
da máquina.
A partir desses lençóis surgiram outras ideias, mais bordados e outros dese-
nhos... muitos conjuntos foram feitos, com o mesmo desejo de bordar afetos, memó-
ria de um tempo de espera cheio de emoção.
///
O que propusera foi alcançado. No início eram dois lençóis, um para cada neti-
nho, mas as mãos e a mente foram encontrando outros caminhos e devaneios e surgi-
ram mais e mais bordados. Os lençóis brancos imaculados “Tempo de espera” foram
usados por Guilherme e Vinícius assim que chegaram ao mundo. Simbolicamente
estávamos lá, abraçando, esquentando, acariciando as criaturas recém-nascidas.
TEMPO DE ESPERA 83
///
Penso que, ao bordar, encontrei o que queria para aquele momento de espera.
Fiz, refiz e continuo tecendo. É preciso, em momentos ambíguos como estes que o
destino nos reservou, dar lugar à imaginação, se deslocar para o desconhecido, acre-
ditar que é possível, ter esperança, tecer, alinhavar, somar pontos, desfazer e refazer,
um exercício de resiliência e de coragem. Sem desistir do desejo e com paciência,
seguir acreditando que é possível, que é na simplicidade que encontramos brechas
para remar e ser feliz.
Viver é se ressignificar. Nesses trabalhos há mais do que pontos cerzidos com
linhas, há o desejo de aquecer, há esperança, alegria, afeto, paz. Uma oportunidade
única de exercitar as formas que nos tornam pessoas melhores. O cuidado com o
outro se destaca... E é cultivando afetos que transformaremos a nós e os nossos
semelhantes. Para vocês, Guilherme e Vinícius, “Tempo de espera”, com muito amor.
NÃO SEI O NOME AINDA
Não sei o nome ainda, livro têxtil, 28x20 cm, Letícia de Melo Andrade, 2020.
1 Graduanda em Licenciatura em Artes Visuais pela UFPE e bolsista do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação da Profª Drª Luciana Borre.
NÃO SEI AINDA O NOME 85
Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas tam-
bém porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado,
sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes,
para cada palavra que se diz – como ‘lobo’, ‘irmã’, ‘tesouro escondido’,
‘batalha’, ’sarna’, ‘amantes’ – os outros contam histórias de lobos, de
irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que
na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados
bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias
recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa
irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a
cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios
(CALVINO, 1990, p. 38-39).
ainda. Às vezes “palavras são dispositivos fúteis” (STEVENS, 2010). Saudade é tão
visceral, às vezes parece ser até palpável, acho que em alguns casos ela realmente se
materializa, em forma de objetos, de gente. Fiz este livro têxtil com o intuito de ex-
purgar essas saudades todas. Eu tenho saudade dos meus amigos; de andar pela ci-
dade; sinto saudade do vento e do mar. Morro de saudade do mar. Eu sinto saudade
de ir na casa da minha avó, de comemorar aniversários com minha família. Saudade
do toque, saudade dos cheiros. Sinto saudade de ouvir as conversas das pessoas na
rua; das risadas; dos sorrisos com os dentes todos para fora, pra todo mundo ver; das
vozes. Saudade do passado, do presente e do futuro, em todos os sentidos possíveis.
Logo percebi o mal que me acomete. Além de estar em um estado crônico de
saudades, tinha fome. Fome de pele. Pesquisando um pouco mais sobre saudades,
deparei-me com este termo, tão bonito que chega a ser poético, da neurociência. Ao
mesmo tempo que, devido a pandemia, precisamos nos distanciar uns dos outros,
paradoxalmente nosso cérebro precisa do contato. Temos neurônios-espelhos que
nos ajudam a estimular sentimentos como a empatia, precisamos estar juntos para
nos desenvolvermos tanto de maneira emocional e cognitiva, quanto social e fisiolo-
gicamente. Esta fome não está apenas ligada ao tato. Todos os cinco sentidos estão
envolvidos quando falamos de saudades, todos eles estimulam regiões do cérebro
responsáveis pelo processamento de emoções e tomadas de decisões, por exemplo
(RIVAS, 2020).
O toque é tão importante quanto a falta que sentimos de ver pessoas e luga-
res. Sentir alguns cheiros específicos, impossíveis de serem recriados em casa, seja
de alguma comida especial, até o perfume de alguém querido que está longe. Ouvir
as vozes de pessoas que amamos, das pessoas nos ônibus, dos vendedores ambulan-
tes no centro do Recife. Existem frases que só ouvimos nesses lugares, na rua: “Olha
a pipoca, R$1,00! É o passatempo da viagem!”, “Valeu, motô!” ou “Chip da Oi a
primeira recarga é grátis, ativo na hora! Ligações ilimitadas pra qualquer operadora”.
Tem algumas comidas que sentimos falta e que nem eram assim tão gostosas, mas o
contexto do lugar e a reunião de pessoas são suficientes para fazer com que a dor da
saudade se manifeste dentro de nós.
Acredito que iniciei esse livro mesmo antes de percebê-lo de maneira cons-
ciente, pensando em todos esses elementos da vida que antes eu vivia de maneira
rotineira, estando aberta a esses sentimentos que me invadem ainda hoje e dando
de maneira muito natural uma ordem nisso tudo.
O processo de criação deste trabalho se deu principalmente na observação
de mim mesma e do que acontecia ao meu redor, de um jeito muito intuitivo. Penso
que se deu uma nova maneira de perceber, ordenar e selecionar. Fui movida pela
intuição, aprendendo a olhar mais atentamente os caminhos do fazer a cada etapa
dessa jornada. É o que Fayga Ostrower discorre e defende em seu livro “Criatividade
e Processos de Criação” (2001), e o que pude experienciar de maneira mais atenta
no desenvolver deste trabalho. Aqui destaco o que a autora traz quando discute so-
bre intuição e insights, dois componentes essenciais nos processos de criação.
Surgindo de modo espontâneo das profundezas do ser, não é possível
explicar o como e porquê do caminho. Trata-se, contudo, de processos
88 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
também um lugar móvel já que, por vezes, se modifica com o passar do tempo. Além
disso, as experiências passadas vão moldando nossas ações de hoje, como Fayga diz,
trata-se de um “passado-presente-futuro”.
Somos construídos dessas memórias, por vezes divididas com outros, modifi-
cadas por terceiros. Quantas vezes contamos uma história e outra pessoa que estava
presente nela nos contesta, dizendo que tudo se deu de maneira diferente? Essa
narrativa se torna múltipla, assim como acredito que seja esse trabalho, tanto pela
sua temática quanto pelas pessoas envolvidas nele. Foram diversas mãos, vozes, his-
tórias e fragmentos de experiências partilhadas que construíram o que se tornou
esse livro têxtil. Uma memória coletiva de muitas saudades.
Talvez saudades seja algo que eu nunca saiba como explicar, talvez eu nunca
saiba o nome. Mas sei o que sinto e sei que somos muitos. Acho que deparei-me
neste trabalho com algumas problemáticas ligadas à linguagem: questionei-me se
é apenas no português em que podemos recorrer a essa palavra tão bonita e com
o significado tão imenso (descobri que, além de essa afirmação não ser correta, ela
advém de um nacionalismo português); ou se é correto falarmos sobre saudades,
assim no plural (descobri que podemos); perguntei-me até onde as palavras podem
ser úteis para a formulação de qualquer que seja a explicação que queremos dar
sobre o que seja um sentimento. Descobri então que há certas coisas que transpõem
a necessidade que tenho de esclarecer, foi preciso apenas sentir. Talvez, como disse
já há muito tempo Luiz Gonzaga (1950): “saudade o meu remédio é cantar”. Decerto,
Luiz entende de saudades, sabe que o remédio é mesmo vivê-las, em seu estado
mais puro até nosso âmago.
Não importa se for “añoranza”; “inanguôró”; “hanîn”; “söknudur” ou “nat-
sukashii”, estamos todos afogados na ausência, na nostalgia, no querer que o passa-
do torne-se presente e futuro. O tempo/espaço também torna-se confuso, fica longe
no calendário e perto da gente, na memória, nas saudades.
Sei que quando tudo voltar ao normal, quando pudermos ter a calma que nem
sabíamos que existia no dia a dia sem Covid, matarei todas essas saudades, apenas
para criar outras no lugar. As saudades se renovam, ao longo das nossas vivências
criam-se mais e mais saudades, num ciclo indelével.
REFERÊNCIAS:
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
GONZAGA, Luiz; TEIXEIRA, Humberto. Qui Nem Jiló. Rio de Janeiro: RCA: 1950.
PAYNO, Mariana. A saudade não é exclusividade do português. Revista Gama, [s.l.], n.4,
jun. 2020. Disponível em: https://gamarevista.com.br/semana/deu-saudade/como-se
-diz-saudade-alem-do-portugues/. Acesso em: 9 fev. 2021.
90 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
RIVAS, Sílvia Lopes. Neurociência explica por que temos “fome de pele” e precisamos de abra-
ços. El País Brasil, maio 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/smoda/2020-05-16/
neurociencia-explica-por-que-temos-fome-de-pele-e-precisamos-de-abracos.html?utm_
source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=OQEL. Acesso em: 14 fev. 2021.
STEVENS, Sufjan. Futile Devices. In: The Age of Adz. Nova York: Asthmatic Kitty: 2010.
OLVIDO
Mariana del Val1
Olvido, perlas bordadas sobre carpetita de 1955, 10 x 10 cm, Mariana del Val, 2020.
1 Directora del museo de arte Evita-Palacio Ferreyra, en la ciudad de Córdoba Argentina. Desde allí
promueve prácticas artísticas contemporáneas. Es profesora titular en tres cátedras de la Facultad de
Artes de la Universidad Nacional de Córdoba. Su formación académica fue en esa misma universidad, en
la que se graduó como profesora superior en educación artística y Licenciada en Pintura, recientemente
obtuvo el título de Especialista en Arte Contemporáneo. Como artista obtuvo premios en pintura y
participó en numerosas exposiciones.
92 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
una trama de mujeres que va tejiendo imágenes, sentimientos, ideas. Una urdimbre
en la que nos inscribimos desplegando la subjetividad, promoviendo intercambios y
reconociéndonos mutuamente.
Pensar este tipo de producciones, nos remite a desplazamientos y ciertos
cambios de paradigma, como el cambio de concepción de roles de artista y especta-
dor, tal como lo definían los procesos artísticos de la modernidad. El artista aquí se
transforma en mediador de una comunidad, un programador, puede funcionar como
facilitador de procesos creativos, en las que un grupo de personas trabajará formas
no siempre identificables como sonidos, encuentros, emociones, palabras, o simple-
mente en experiencias esporádicas irrepetibles, o en la concreción de encuentros
con otras agrupaciones y comunidades. El espectador se transforma en un sujeto
activo que forma parte de la comunidad productiva: su participación es central, no
periférica. Para Ranciere no se trata de emancipar al espectador, sino de reconocer
su actividad de interpretación activa, y por qué no, participativa. Reconocer para
conceder importancia al proceso y no sólo al resultado, abandonar concepciones
de autoría y su desplazamiento hacia nociones múltiples y diversas que circulan en
espacios y con métodos alternativos define estas estéticas comunitarias.
Estas pequeñas comunidades ficcionales (LADDAGA, 2006) se planifican res-
petando ciertos principios y activando dinámicas (de encuentro, convivencia y tras-
lado), pero de ningún modo pueden mantener estructuras fijas. Por tratarse de pro-
cesos experimentales, abiertos, y cooperativos que van capitalizando singularidades
sin anular las distancias, mantienen procesos fluctuantes y diversos. Se parte de una
idea, se la va consensuando, el orden está sujeto al bien común, pero manteniendo
y respetando los intereses individuales. Estar abierto a lo que acontece, capitalizar lo
que pueda ir sumando al proyecto en el proceso es parte constitutiva de las lógicas
de producción. Estar atentos a, al igual que en la vida misma, estar abierto a la diver-
gencia, sumar capas de sentido (campo ampliado).
El bordado como experiencia colectiva habilita la palabra, el diálogo, la refle-
xión, la búsqueda del apoyo fraterno. Dentro de las búsquedas hicimos un releva-
miento de cómo el bordado fue un punto de resistencia en distintos momentos de
la historia de las luchas femeninas, se bordaron pañuelos pidiendo por la aparición
con vida (madres y abuelas de Plaza de Mayo), se bordaron pañuelos denunciando
femicidios (Bordamos por la Paz), se bordaron pancartas con reclamos de derechos
(Sufragistas), en todas estas experiencias la palabra se volvió testimonio, memoria y
denuncia. La palabra bordada tiene relieve y a su vez laborioso tiempo invertido con
aguja e hilo lacerando la tela para no borrarse nunca más.
Entendimos que la palabra bordada no es la única en esa experiencia de bor-
dado, emerge también la palabra que se intercambia en esos diálogos en los que el
colectivo se reúne. Cada bordado es el fruto de un diseño gráfico después de varios
momentos de reflexión para transmitir alguna idea. Esa es la dinámica de Bordadoras
en el Museo. Nuestros bordados son modos de pensar el mundo. En cada proceso de
producción hay una historia que se cuenta y que fue concebida para ese fin. Bordar
es incidir con aguja, anudar y dibujar con hilos, imaginar resultados, sentir con otras,
compartir.
94 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
afirmación define de algún modo la acción de transmisión corporal y afectiva que nos
atraviesa en el bordado. Desde ese mismo lugar pensé el proceso de rescate emotivo
para construcción de esta pieza bordada, atesorando cada recuerdo de esos mo-
mentos compartidos con mi madre. Cada vez que trataba de imitarla, la admiración
que sentía por la prolijidad de sus puntadas, su amorosa voz tratando de enseñarme
cómo resolver una forma en la tela, nuestras conversaciones en torno a la técnica y
cómo ella misma aprendió con su abuela.
Elijo bordar sobre una pequeña pieza textil que alguna vez hiciera mi madre,
allí inscribo la palabra olvido. Aunque ella pierde cada día la capacidad de recordar,
nuestro afecto sigue intacto. Algunos días sus ojitos vidriosos no me conocen, hasta
que la nombro, me nombro, ese simple acto ilumina su cara con una sonrisa. En
algún lugar queda el registro de nuestros abrazos.
La decisión de incorporar palabras en el bordado recupera también su profe-
sión: maestra, lectora ferviente y escritora. Incorporar palabras se vuelve un impe-
rativo. Por la escala del soporte, todo debe resumirse en una sola palabra. La bús-
queda tiene que ver con lo que necesariamente pretendo evocar. Hago listas, busco
significados.
Releo a Borges y repito en voz alta: somos nuestra memoria. Todo cobra otro
significado, habla de fragmento de espejo roto, de formas inconstantes. ¿Será posi-
ble pensar que no queda nada ante el olvido?. Quizás el olvido se impone como una
cuchilla que fragmenta cada vez más esa quimera de la que habla Borges. Cuando
afirma que no está en los tiempos sucesivos sino en los reinos espectrales de la me-
moria confirma la posibilidad de que, en cada pieza bordada, en cada recuerdo, en la
ficción entremezclada del recuerdo se tramen nuevos significados para que el olvido
no pueda ganar esa batalla.
Si el significado de olvido pone en presente no recordar, esa acción involun-
taria que elimina recuerdos de nuestra memoria, es la palabra ideal para encarnar
lo que quiero simbolizar en esta obra. Ojalá se pueda detener el olvido y celebrar la
memoria.
Olvido cuenta un vínculo con mi madre y a su vez lo renueva. Ese pequeño
género sobre el que bordé con hilos y perlas me transporta a su juventud. Bordar
con perlas es un homenaje a lo que ella misma elegía como adorno. Me impongo un
cuidado extremadamente minucioso para no deteriorar esa frágil tela. Todo el pro-
ceso de bordado se vuelve una delicada acción en la que nada pasa a mi alrededor.
Esa pieza en mis manos me hace pensar en las suyas, en una operación similar.
Unir. Bordar. Cada puntada cuenta. No importa el resultado. Importa esa acción que
une dos tiempos.
El bordado es un medio de representación gráfica y el rescate simbólico de un
vínculo que creció compartiendo saberes (bordar, cocinar, amar).
Olvido busca atesorar cada instante como si fuera el último.
Detener el tiempo en cada puntada.
96 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
REFERÊNCIAS:
GONZALEZ Rosas, Galia. Bordar es resistir: Reflexiones feministas entre la aguja y el hilo.
Hysteria Revista, [s.l.], fev. 2020. Disponible en: https://hysteria.mx/bordar-es-resistir-refle-
xiones-feministas-entre-la-aguja-y-el-hilo/?fbclid=IwAR1mFp4a2NSYNngp-0zj07ZPv2Q0Nqq-
j4hYDlOd1OSU1gb_tWfkETL_Cxg8. Acesso: 30 ago. 2021.
LADDAGA, Reinaldo. Estética de la Emergencia. Buenos Aires: Ed. Adriana Hidalgo, 2006.
LEMBRE DE NÓS
Alanys M. Araújo1
Lembre de nós, tinta a óleo sobre tela, 20x30cm, Alanys Araújo, 2020.
Uma vez conversei com um bom amigo sobre a falta que sinto de arte com nar-
rativas LGBTQ+, e que exploram mais do que o sofrimento histórico-cultural. Parece-
me que só somos interessantes para o público cisgênero e heterossexual quando nos
tornamos tragédias, quase como uma fetichização de nossa dor. Foi nessa conversa
que eu afirmei que iria produzir o conteúdo LGBTQ+ que eu gostaria de ver; não para
o olhar cis-hetero, mas para outras pessoas que, assim como eu, se encontram no
trânsito de sexualidades e gêneros que fogem do normativo. Eu iria produzir arte
queer e eu iria produzir arte sobre amor.
A palavra queer passou por diversas mudanças de significados ao longo dos
anos. Mesmo agora, os significados são múltiplos e dependem do contexto do tex-
to que o cita. Por causa disso, resolvi deixar explícito o significado ao qual estou
me referindo: aquele da Teoria Queer, de Teresa de Laurentis (2015), “diferente”,
ao lado da mulher que eu amo, a luz do sol vinda da janela entrecortada pelas corti-
nas, a sensação da minha camisa de algodão mais confortável. É onde me sinto mais
segura, e é onde eu entendi plenamente do que Safo estava falando no fragmento
147: sim, alguém vai lembrar de nós no futuro (FLORES, 2018). Mesmo que não seja
de nossos rostos, lembrarão do nosso amor, e eu digo isso porque eu penso em todas
as mulheres que já amaram outras mulheres durante a história do mundo, e percebo
que, por mais que eu não me recorde delas em si, eu sinto o amor delas entrelaçados
com o meu amor pela pessoa dormindo ao meu lado. Até mesmo quando coloco
minha mão sobre a dela, eu sinto a familiaridade de vidas que eu não vivi.
Na obra, há duas pinturas conectadas por uma linha vermelha. São duas pin-
turas sobre duas telas separadas porque eu almejei uma representação tangente da
individualidade das pessoas retratadas ali. Eu e ela somos duas mulheres diferentes,
com vidas diferentes, mas que não deixam de estar conectadas o tempo inteiro (o
que eu ilustrei com a linha vermelha). Bordei essa linha vermelha diretamente na
tela, circulando nossos dedos mindinhos e nos conectando através da distância entre
as pinturas. Enquanto bordava, despejei todo meu afeto e carinho no ato, com o
mesmo cuidado com que toco nela. Contornei com linha o mindinho que geralmente
toco com meus dedos. O significado da linha vermelha varia de cultura para cultura,
mas o que eu invoco é uma lenda de origem chinesa:
[...] o akai ito ou “fio vermelho do destino” que diz que os deuses, no
momento do nascimento de uma criança, amarram em seu tornozelo
um fio vermelho, invisível para os humanos, que a ligará à pessoa que
está predestinada a ser sua alma gêmea [...]. Na lenda, este fio tem um
vínculo muito forte na ligação amorosa entre duas pessoas, até mesmo
porque o deus responsável por esta tarefa é conhecido como um an-
tigo deus lunar casamenteiro chamado YUÈ XIÀ LÄO RÉN ou YUÊ LAO
(NÚÑEZ, 2020, p. 56-57).
A conexão entre amor, memória e bordado me parecia óbvia. Tal como Eros1,
teci com esse fio vermelho nossa história, nosso desejo, nossas dores e acima de
tudo, nosso amor. Para que essa linha nos guiasse uma para a outra e que guiasse
outras como nós. Que essa linha estique e enrosque, mas nunca se parta. Quero que
quando eu me encontrar longe demais da mulher que eu amo, eu sinta o puxão des-
se cordão, e quero sempre saber o caminho de volta para ela. Que esse bordado faça
com que, mesmo depois que nossas mãos já não se encontrarem mais, depois que
nossos pés não trilharem o mesmo caminho, depois que as flores fizerem moradia
no meu corpo enterrado, alguém lembre de nós no futuro. Donna Tartt coloca esse
sentimento em palavras, escrevendo que “o que quer que nos ensine a falar com nós
mesmos é importante — o que quer que nos ensine a sair do desespero ao chamado
de um canto. Mas a pintura também me ensinou que podemos falar uns com os
outros através do tempo” (TARTT, 2014, p. 719).
Essa obra é como eu gostaria de conhecer arte queer nos museus, galerias e
REFERÊNCIAS:
DIAS, Belidson. Entre Arte/Educação multicultural, cultura visual e teoria queer. In: BARBOSA,
Ana Mae (org). Arte/Educação Contemporânea: consonâncias internacionais. 3. ed. São
Paulo: Cortez, 2010, p. 277-291.
DIAS, Belidson; IRWIN, Rita L (orgs). Pesquisa Educacional Baseada em Arte: A/R/Tografia. 1.
ed. Santa Maria: UFSM, 2013.
FLORES, Guilherme Gontijo. Entre metro e mantra: a poesia grega arcaica em tradução e
performance brasileiras. In: BROSE, Robert de (Org). Pervivência Clássica. Belo Horizonte:
Moinhos, 2018, p. 101-117.
LAURETIS, Teresa de. Teoria queer, 20 anos depois: identidade, sexualidade e política. In:
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. 1.
ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 397-409.
LEITE, Letticia Batista Rodrigues. Safo de Lesbos: Ícone Lésbico?. In: SEMINÁRIO
INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO & WOMEN’S WORLD CONGRESSS,
n. 11 & 13, 2017, Florianópolis. Anais [...]. Disponível em: http://www.
en.w wc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1503336042_ARQUIVO_
LEMBRE DE NÓS 101
TARTT, Donna. O Pintassilgo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
ELO: UM RECORDAR DO TEMPO
Carolina Alexandre da Mota2
Elo, técnica mista sobre algodão cru, 28 x 39 cm, Carol Mota, 2020.
p.20) comenta sobre as associações, as conexões que vamos fazendo entre os pontos
durante o processo criativo que “apesar de espontâneas, há mais do que certa coin-
cidência no associar, há coerência”.
Optei pela utilização do tecido de algodão cru para a base, seria a folha em branco
onde iríamos colorir com nossas ideias. Uma outra característica, que quis trazer para a
obra foi a técnica do bordado. Pedi para minha mãe compartilhar comigo, ensinando-me,
pois queria que fosse uma característica presente, a ideia de continuidade e de herança.
A memória era uma base “sólida” que alicerçava todas as outras camadas que
aos poucos iam sendo integradas e assim construindo a obra. No movimento da agu-
lha, por exemplo, a depender do tipo de ponto que será aplicado, ela pode sair em
distintas direções. Às vezes retorna ao ponto de partida, se distancia, move-se de for-
ma circular. Mas apesar de seguir diferentes caminhos ela ainda está na construção
de uma única obra. No final, ao encarar o bordado, percebemos a multiplicidade de
caminhos percorridos. Todo esse movimento demarcado através da linha, associo ao
próprio movimento que a mente faz para resgatar as memórias e lembranças. Sobre
isso, é relevante apresentar Candau:
Desejava ver essa materialidade pronta, na certeza de que sempre que a gente
parasse para contemplá-la, pudéssemos voltar ao instante em que a idealizamos,
pois “através da memória o indivíduo capta e compreende continuamente o mundo,
manifesta suas intenções a esse respeito, estrutura-o e coloca-o em ordem (tanto no
tempo como no espaço) conferindo-lhe sentido” (CANDAU, 2019, p. 61).
Os diálogos eram disparadores de memórias. Durante o bordar junto, compar-
tilhamos lembranças. Na companhia uma da outra, surgiam os símbolos, estes iam
sendo incorporados a nossa produção.
Ainda nas etapas iniciais, tinha pensado fazer alguns registros fotográficos.
Para no futuro acessar de forma mais aprofundada e completa todo nosso processo.
Na verdade, não só nós, mas toda a família. Nosso objeto biográfico1 representava
nossa experiência vivida (BOSI, 2003).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eram muitas incertezas sobre como materializar o processo. Os diálogos, aos
poucos, foram dando pistas do caminho a ser construído e tudo ia se encaixando e
criando harmonia. Dúvidas faziam parte e sempre apareciam, mas estávamos sujei-
tas a isto quando nos propomos a vivenciar a experimentação.
Um ponto que se aprende, uma cor, uma direção marcada à lápis no tecido.
Formas, volumes e significados. O tempo na maioria das vezes corria sem perceber,
mas os olhos denunciam o cansaço. Enquadrar e tentar guardar o instante para um
futuro reviver. O momento. A história. E o que tudo representa/ou.
Mãos em poesia bordando sentimentos.
1 O termo “objeto biográfico” refere-se a objetos que envelhecem com o possuidor e se incorporam à
sua vida: o relógio da família, o álbum de fotografias, as medalhas do esportista, a máscara do etnólogo,
o mapa-múndi do viajante (BOSI, 2003, p. 26).
2 Referência a frase escrita no poema de Manoel de Barros, do livro Menino do Mato.
106 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
REFERÊNCIAS:
BOSÍ, Ecléia. O Tempo Vivo da Memória: Ensaios Sobre a Psicologia Social. São Paulo: Ed.
Ateliê editorial, 2003.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ed. Hucitec: São Paulo. 1985.
AVESSO: OBJETO AUTOBIOGRÁFICO TÊXTIL
Ingrid Borba3
Em diálogo com Bosi (1994), percebo que meu vestido de 1 ano é um objeto
biográfico têxtil, que carrega relatos e aspectos da minha autobiografia feminina. Os
tecidos e linhas que formam nossos vestuários têm tanto a função de nos proteger,
como também de nos demarcarem socialmente dentro do gênero. Deste modo, com
essa poética, quis problematizar as variedades de modelos definidos, pela cultura
e indústria, como adequadas para delimitar o feminino: saias, calcinhas, sutiãs e
vestidos.
O vestido escolhido para mim na infância possui todas essas características ma-
teriais e conceituais explicitadas, além de carregar grande valor afetivo e simbólico.
Porém, ao revisitar aspectos da minha subjetividade feminina, relembrei momentos
em que me senti desconfortável ao usar vestidos. Na fase adulta, em várias ocasiões
não me senti segura ao usar saias e acabei escolhendo usar calças. Com essa percep-
ção, resolvi reconciliar meu desconforto com a materialidade e funcionalidade das
roupas consideradas femininas e ressignificar esse objeto autobiográfico têxtil.
A lembrança e escrita desses relatos mais a sua contextualização teórica repre-
sentou a primeira parte da criação poética. A outra etapa esteve ligada ao estudo das
práticas contemporâneas em arte têxtil. Sobre esse aspecto, estudei modos e alter-
nativas para contar a narrativa em imagens, optando por uma videoperformance do
processo de bordado e depois seu desmanche.
110 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
aspectos suprimidos nas esferas públicas do saber e do poder, dentro de uma ex-
periência de criação artística. Anteriormente comentado, é com a percepção de si,
que nos processos de criação podemos atuar modificando os contextos culturais e
normativos aos quais pertencemos:
Tal direcionamento de criação estética, também pode ser situado como es-
tratégia política contra o apagamento feminino na história da arte. Esse posicio-
namento foi adotado por estudiosas e artistas da segunda onda dos movimentos
feministas.
É importante salientar que, durante o século XIX as perspectivas naturalistas
classificavam que existiam duas espécies de seres humanos baseadas em habilidades
diferentes. Os homens representariam a razão e a inteligência, já as mulheres repre-
sentariam a emoção e a fragilidade. As sociedades modernas foram construídas sob
as bases dessas dicotomias entre sexos: razão/ emoção, público/privado, masculino/
feminino entre outros. Segundo a pesquisadora Tânia Navarro- Swain, é a partir do
conceito de diferença que “o indivíduo não é mais mestre do seu processo de subje-
tivação, pois seu ser já é determinado pela essência que se lhe constrói. É assim que
os corpos se tornam a marca exterior da identidade social para exprimir a diferença”
(NAVARRO, 2013, p 52).
A naturalização das diferenças de gênero, pautada num contexto de inferiori-
dade/superioridade, produz verdades que caracterizam sentidos de dominação, de
ordem biopolítica e de controle dos corpos. A naturalização da diferença entre os
sexos tenta esconder as diversidades e dobras das relações humanas e dos papéis
históricos.
Anteriormente pontuado, é na segunda onda do movimento feminista, em
meados do século XX, que a teoria crítica feminista irá permear as discussões entre
os artistas e o seu papel político na sociedade. Historiadoras, artistas e pesquisado-
ras mulheres trouxeram à tona as narrativas históricas e as distribuições de poder
nos sistemas das artes, a vasta maioria dos atores, nestas relações, eram homens.
Os discursos produzidos na arte e na história da arte são referentes a um “nós” do
gênero masculino. A esse “nós” foi atribuído um status de sujeito político, histórico
com lugar de fala e autoridade. Desta forma, instituem-se narrativas contornadas por
binarismos estruturais de superioridade/inferioridade entre sexos que justificaram
as práticas de exclusão feminina.
112 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao dar forma à poética Avesso e percorrer suas etapas criativas, acredito que
estive produzindo cartografias do saber artístico que transitam nas práticas têxteis
e suas relações com a memória. A partir de duas artistas que trabalham com o têxtil
e de marcos conceituais dos estudos de arte, gênero e feminismo, intencionei criar
uma poética que a reelaborasse um devir feminino que se reconcilia com demarca-
dores do gênero feminino.
O processo mostrou-me que ao seguir por esse caminho criativo me situo na
percepção de si como potencial transformador de contextos culturais, ao relembrar
os fluxos dos passados-presentes-futuros. Trata-se de uma possibilidade artística que
se imbrica com formas de vida, onde posso produzir singularidades a partir de obje-
tos que fazem parte do meu cotidiano, das minhas lembranças e narrativas. Constitui
assim um processo que não se fecha com essa poética, mas se abre para outros
potenciais criadores.
REFERÊNCIAS:
BOSI, Ecléia. Memória e Sociedade: lembrança dos velhos. 3.ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
BOURGEOIS, Louise. Pink Days and Blue Days. 1997. Escultura. Disponível em: https://whit-
ney.org/collection/works/11513. Acesso em: 25 fev. 2021.
NAVARRO, Tânia S. A história é sexuada. In: RAGO, M.; MURGEL, Ana Carolina A. T. Paisagens
e Tramas: o gênero entre a história e a arte. São Paulo: Intermeios, 2013.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. 30. ed. Petrópolis: Editora Vozes,
2014.
SCOTT, Suzanna. Coin Cunts. 2018. Instalação na parede de bolsas de moedas costuradas ao
avesso. Disponível em: https://suzannascott.com/projects/coin-cunts. Acesso em: 25 fev.
2021.
Quem tornou masculino o corpo infantil do menino?, bordado sobre fotos, 1,10cm x 0,60cm,
João Paulo Baliscei, 2019.
explícita nas roupas dos e das integrantes do grupo e nas funções que desempenha-
vam em sua estrutura inicial: elas dançavam; eles cantavam; elas eram convocadas
pelos seus atributos físicos; eles faziam a convocação. E mesmo entre o trio dançante
— inicialmente integrado por Jacaré, Carla Perez (1977--) e Débora Brasil (1970--) e,
depois, em outras configurações, por Scheila Carvalho (1973--), Sheila Mello (1978--)
e outras dançarinas — os espaços e as performances desempenhadas por ele e por
elas eram sempre assimétricas e generificadas.
Se as letras das músicas pouco ou nada mencionavam acerca de Jacaré, não
economizavam em detalhes nas descrições estratégicas dos corpos femininos das
“loiras” e “morenas” “do Tchan!”, como, por exemplo, nos versos: “tem 60 de cintu-
ra (que gostosura), 105 de bundinha (que bonitinha)”6. Por vezes, inclusive, as mu-
lheres eram convocadas a performar de maneiras dirigidas e individuais, através de
frases imperativas, como “pegue no bumbum, pegue no compasso” e “alô loirinha,
ô loirinha, você sabe mexer; moreninha, moreninha, você sabe descer”7.
Reconheço ainda que os espaços que o grupo É o Tchan! ofereceu para Jacaré
podem reforçar estereótipos sobre o homem negro – denunciados, por exemplo,
pela australiana Raewyn Connell8 (1997), pelo britânico-jamaicano Stuart Hall (2016)
e pelo congolês JJ Bola (2020). Os pensamentos da autora e dos autores possibilitam
ler a representação e a performance de Jacaré — um homem negro, forte, com
corpo atlético e que dança seminu — como produto e produtor do estereótipo que
associa o homem negro ao fetiche sexual. Ainda que eu reconheça a legitimidade e
a potencialidade dessa leitura, optei, neste texto, por seguir com uma outra aborda-
gem — também possível. Intento, pois, chamar atenção para as maneiras pelas quais
Jacaré proporcionou fissuras, ainda que sutis, aos ideais de masculinidade vigentes
àquela época. Desempenhando uma função junto às mulheres; movimentando-se
como elas; e usando roupas justas e/ou mínimas semelhantes às delas, Jacaré aca-
bou proporcionando identificação para homens e meninos da década de 1990 que,
assim como eu, gostavam de dançar e que percebiam as faltas e sobras que constitu-
íam seus corpos masculinos.
A desestabilização que a performance de Jacaré proporcionou às referências
sobre masculinidade que eu tinha na infância e os fundamentos teóricos que, agora,
enquanto professor-pesquisador-artista-gay, me auxiliam a ler o mundo e a perce-
ber os deslocamentos identitários, permitiram-me enxergar as masculinidades como
anos específicos da minha vida. Em algumas fotos, por exemplo, a linha azul de-
senhou um cadarço, ou uma camiseta, em analogia ao uso generificado da roupa
como estratégia (naturalizada) de garantir que meninos permaneçam masculinos.
Em outras, a linha estruturou corda e pompons (representando o uso generificado
dos brinquedos); chifres de veado, como marco da (provável) primeira vez que
ouvi alguém me chamar de “viado”, sem saber o que o termo significava; e assim
sucessivamente...
Há, nas imagens que correspondem ao período da adolescência, intervenções
que demarcam a região dos braços, dos olhos, da boca e da genitália. Elas indicam
que me foi ensinado que, para se mostrarem homens, os meninos precisariam acio-
nar métodos específicos para gesticular as suas mãos e para entonar a sua voz, assim
como precisariam olhar e desejar corpos específicos. Há também intervenções que
remetem aos anos em que recorri à religiosidade católica justamente para buscar
respostas à diferença que minha masculinidade desempenhava em relação às dos
demais meninos e homens que eu tinha como referência. Por último, as interven-
ções se referem aos anos que tenho vivido próximo à universidade, à pesquisa e aos
conhecimentos advindos dos Estudos Culturais que me incentivam a (trans)formar
significados afetos às identidades masculinas. Essa trajetória, a partir da qual recorro
a várias instituições para pontuar as maneiras como tenho aprendido a ser homem,
vai ao encontro da abordagem da francesa Elisabeth Badinter (1993), para quem
a masculinidade é caracterizada por uma espécie de “não ser”, a qual a autora se
refere por uma tríplice negação: o homem não é mulher; o homem não é bebê; e o
homem não é homossexual.
A tríplice negação apresentada pela autora, sobretudo aquela que se refere
à negação da feminilidade, pode ser confrontada com a premissa defendida pelo
espanhol José Miguel Cortés (2004, p.41, tradução minha), quando afirma que “[...]
o feminino não é algo exclusivo das mulheres, nem o masculino dos homens [...]”. E
essa defesa se relaciona diretamente com a segunda etapa de meu processo de cria-
ção artística. Nela reuni as 30 figuras recortadas das cópias - as imagens do “eu-pro-
tagonista” - e somei a elas a seguinte pergunta: “Quem tornou masculino o corpo
infantil do menino?”. Já que me interessava mais pelos contextos e instituições que
intentaram assegurar a minha “não feminilidade” e menos pela manifestação ou não
dela, decidi-me por inserir as 30 figuras, individualmente, em livros que, a partir de
várias áreas do conhecimento, conferiam ideias acerca da infância.
Para isso, recorri à ferramenta de busca online da Biblioteca Central da
Universidade Estadual de Maringá, em Maringá, Paraná. A partir dessa ferramen-
ta de busca, procurei por livros que tivessem a palavra “infância” em seus títulos,
e encontrei materiais de diferentes campos da ciência, como Medicina, Direito,
Psicologia, Educação e Arte, assim como textos de Literatura — áreas que, de manei-
ras assimétricas, contribuem para a caracterização da infância e, consequentemente,
das masculinidades e feminilidades.
Tendo encontrado os 30 primeiros livros em suas versões físicas, deixei no
meio de cada um deles a figura do eu-protagonista, do menino-feminino que dança
vestido de Jacaré, acompanhado da pergunta que atuou como disparador para essa
UM CORPO DE FALTAS E DE SOBRAS 121
REFERÊNCIAS:
BALISCEI, João Paulo. Provoque: Cultura Visual, Masculinidades e ensino de Artes Visuais. Rio
de Janeiro, Metanoia, 2020.
BOLA, JJ. Seja Homem: a masculinidade desmascarada. Porto Alegre: Dublinense, 2020.
CUNHA, Susana Rangel Vieira da. Experimentos e experiências na pesquisa. In: TOURINHO,
Irene; MARTINS, Raimundo (orgs.). Processos e práticas de pesquisa em Cultura Visual e
Educação. Santa Maria: Ed. Da UFSM, 2013, p.201-224.
REY, Sandra. Da Prática à Teoria: Três instâncias metodológicas da pesquisa em poéticas vi-
suais. Revista Porto Arte, Porto Alegre, v. 9, n.13, 1997. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/
PortoArte/article/view/27713. Acesso em: 5 mar. 2020.
2 Artista visual, mestra em Artes Visuais pela Universidade Federal da Paraíba (2018) e graduada em
Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Regional do Cariri (2015), realizou intercâmbio na
Università di Bologna (2012-2013).
124 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
OS PRIMEIROS PONTOS
Meus processos criativos sempre costumam ser provocados por lembranças,
que vão sendo despertadas por alguma leitura, objeto, artista. Esse processo criativo
em específico foi iniciado ainda na graduação, no curso de Licenciatura em Artes
Visuais, pela Universidade Regional do Cariri, de forma tímida, e ainda muito expe-
rimental, e foi amadurecendo durante o mestrado em Artes Visuais, que realizei em
2017 no Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPB/UFPE.
A ideia inicial do projeto tinha como objetivo trabalhar com as mulheres que
produziam arte na região do Cariri Cearense, mas me deparei com a Associação das
Bonequeiras no Pé de Manga, um grupo de mulheres que desde de 2002 trabalha
com a confecção de bonecas de pano na cidade do Crato. Desta forma, resolvi voltar
para esse grupo e tentar conhecer mais sobre suas histórias e processos criativos,
quando participei de uma oficina sobre o processo de confecção das bonecas.
Depois que participei da oficina e consegui criar a minha primeira boneca,
tive a oportunidade de conhecer as mulheres que fazem parte da Associação e suas
histórias. Fiquei motivada a experimentar novas possibilidades para a ampliação
do meu processo de criação, pois há algum tempo venho desenvolvendo trabalhos
utilizando a boneca e o tecido. Comprei alguns metros de algodão cru e um quilo de
enchimento para tentar colocar em prática o que havia aprendido.
Quando comecei a cortar o tecido descobri que a tesoura estava cega e isso
dificultou fazer o corte dentro do molde, e como não tenho máquina de costura, tive
que fazer esse processo manualmente, notando que havia feito um desenho muito
pequeno e dificultando o processo de preenchimento com a espuma. Nessa primeira
tentativa, onde tentei reproduzir o que aprendi sozinha, ela descosturou em algumas
partes, acabou perdendo a cabeça, partes dos braços e das pernas. Todas essas difi-
culdades quase me fizeram desistir, mas consegui visualizar uma nova possibilidade
quando finalizei a primeira boneca.
Ao invés de apenas reproduzir o que havia aprendido, eu tinha a possibilidade
de experimentar as formas que poderiam surgir com um desenho diferente, um cor-
te ou uma costura que poderiam resultar em uma nova forma.
O resultado do primeiro experimento ganhou linhas vermelhas, mas perdeu
o que deveria dar a ideia de cabeça, cabendo na palma da minha mão. Eu estava
brincando com as formas, quebrando os padrões que me foram ensinados, tentando
deixar a minha marca e reforçando a minha ligação com o objeto.
O que fez a primeira tentativa ser marcante no meu processo de criação foi
que ela quase me fez desistir por parecer difícil demais. Por um momento pensei
que seria fácil, mas a realidade me mostrou o oposto. Prossegui e finalizei o objeto,
e confesso que ela não chegou nem perto do que eu esperava. Se olhar bem, nem
parece uma boneca, mas se tornou uma.
Apesar do resultado ter ficado completamente diferente do que aprendi e do
que fiz na oficina, gostei da minha boneca, e consegui sentir e entender um pouco
mais sobre as bonequeiras com quem conversei durante a oficina, principalmente
quando elas falavam da satisfação e felicidade em relação aos resultados.
BONECAS DE TRAPO 125
A COSTURA
Quebrar padrões vêm sendo um processo que acontece não só dentro dos
meus trabalhos artísticos, mas também da minha construção como mulher, aceitan-
do quem sou, meu corpo, minha força e minhas limitações. Ao longo da minha vida
notei que não me encaixava dentro de padrões de corpo e beleza veiculados pela
mídia, mas hoje vejo o quanto conseguimos avançar em termos de padrões femini-
nos. Hoje podemos ver campanhas de aceitação na mídia, partindo, por exemplo, de
digital influencers ou influenciadores digitais, que vêm trabalhando a auto aceitação
e ganham repercussão em diversas redes sociais. Para Guinta (2018, p.29) “o corpo
escondido e fixo, acometido por estereótipos, ou até mesmo por tabus ligados a
estrutura patriarcais do modernismo heterossexual e normativo, passou a ser ques-
tionado e investigado de modo intenso”.
Usar calças de tamanho 42 ou 44, vestir tamanho G, ter espinhas, usar apare-
lho ortodôntico e óculos eram o pesadelo de qualquer adolescente. Tenho diversas
lembranças de momentos constrangedores, pois o que deveria ser visto como uma
fase, de mudanças no corpo, foi um momento de julgamentos por meio de modelos,
tal como explica Wolf (2018):
Escolhi trabalhar com a boneca por causa da carga de significados que ela
pode ter para as mulheres. As bonecas são consideradas brinquedos exclusivos das
meninas, porém segundo Ariés (1986), por muito tempo ela servia tanto a meninas
quantos aos meninos. Tentei desconstruir esses padrões usando a boneca de forma
simbólica, como representação de uma aparência feminina adequada à sociedade.
Segundo Michelle Perrot (2008):
A mulher é antes de tudo uma imagem. Um rosto, um corpo, vestido
ou nu. A mulher é feita de aparências. E isso se acentua mais porque,
126 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
ARREMATE
Esse processo de criação está carregado de memórias, principalmente da in-
fância. A boneca surge dessas lembranças que estavam me doutrinando para ser
mulher. O resultado inicial me motivou a continuar tentando, e fui fazendo bonecas
até criar calos nas mãos de tanto costurar. Atualmente, tenho mais de 100 bonecas
e com elas participei de exposições coletivas e individuais.
Trabalhar nesse processo foi significativo, pois consegui modelar e dar forma
a um objeto, elaborar todo o processo criativo e quebrar padrões de corpo e beleza
impostos pela sociedade ocidental. Dessa forma, passei a construir um conceito par-
tindo da minha própria condição como mulher, motivada pela falta de visibilidade
das mulheres artistas na história da arte.
REFERÊNCIAS:
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução: Dora Flaksman. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1986.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. (Volume único). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
HEATNEY, Eleanor. Pós-Modernismo. Tradução: Ana Luiza Dantas Borges. São Paulo: Cosac &
Naify, 2002.
PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Tradução Angela M.S. Corrêa. São Paulo:
Contexto, 2008.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres.
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
CONTORNAR O CORPO, CONTORNAR A
AMÉRICA: ASPECTOS ARTÍSTICOS E NARRATIVOS
DO BORDADO EM UMA FOTOPERFORMANCE
Natália Rezende1
O contorno do meu coração repete seu desenho, América, bordado e fotografia digital, dimensões
variáveis, Natália Rezende, 2020.
1 Natália Rezende é artista visual e pesquisadora, doutoranda em Artes pelo PPGArtes da EBA/UFMG,
bolsista CAPES/PROEX. Desenvolve pesquisa sobre os aspectos das artes têxteis que a tornam uma
linguagem capaz de narrar memórias, especialmente no contexto cultural e artístico contemporâneo da
América Latina. Contato: natalia.rzd@gmail.com.
CONTORNAR O CORPO, CONTORNAR A AMÉRICA 129
COMEÇAR UM DESENHO
Na palma de minha mão esquerda, desenho o contorno cartográfico da
América Latina tal como aparece definido nos mapas contemporâneos. O desenho,
porém, é feito com pouca acuidade — interessa-me apenas o contorno simbólico,
um desenho que torne reconhecível a alusão de minhas tortas linhas às porções sul
e central do continente americano. Depois de traçado, cubro a mão com um tecido
escuro e transparente para reproduzir esse mesmo desenho através de uma linha de
bordado. Entre o erro e o acerto do contorno, há a ilegibilidade turva do tecido e o
descompassado manuseio da agulha, na falha tentativa de bordar com apenas uma
mão. A forma retangular do tecido torna-se descontínua enquanto o traçado branco
da linha demarca, com dificuldade, a incisiva trajetória do gesto.
O contorno do meu coração repete seu desenho, América (2020) é uma série
de fotoperformance que registra a ação descrita acima. A semelhança entre o dese-
nho cartográfico da América Latina e o formato anatômico do órgão vital explicitado
no título da obra, aponta de antemão que há uma subjetividade ou construção de
identidade posta em jogo, em tensão. Evocar o coração é evocar a dimensão afetiva
do corpo e de sua identidade política. Nessa imagem que também se torna outra,
há um interesse pela dimensão ambígua das questões que atravessam a construção
das identidades singulares e de um território, enfatizada pelas ambiguidades encon-
tradas na própria técnica do bordado: forma e contra forma, continente e conteúdo,
visível e invisível, perfuração e alinhavo, memória e imaginação, corpo e território,
indivíduo e coletivo, simultaneamente. A ação fisiológica dos batimentos cardíacos
reproduz, ainda, o movimento duplo, alternado e repetitivo, característico da trama
têxtil com suas linhas opostas, perpendiculares e entrecruzadas, alinhavando a so-
breposição de matéria e metáfora explorada na obra.
Tensionando tais contradições, o gesto do bordado representa, nessa perfor-
mance, tanto a noção de escrita afetiva — como observado pela professora e escri-
tora Vera Casa Nova — , quanto de sutura histórica — propriedade trabalhada pela
artista e professora Rosana Paulino — , uma vez que a perfuração da agulha marca
a superfície com uma certa violência, fazendo ecoar a conflituosa demarcação do
território latino-americano. O bordado, a costura, a sutura, o desenho e a escrita
serão entendidos aqui enquanto operações que modificam superfícies, sejam elas
materiais ou não. São também maneiras de atravessar a matéria espessa do tempo,
como afirma a artista Edith Derdyk, e reconfigurar a trama de nossas narrativas iden-
titárias. Nesse texto, apresentam-se portanto, alguns dos pensamentos que orbitam
o processo de criação da obra bem como reflexões acerca dos procedimentos téc-
nicos, poéticos e categóricos que delineiam o contorno da própria criação artística,
sem contudo, limitar seus significados, que só encontram sentido na costura final
tramada com a observadora.
CONTORNAR O GESTO
Começo pelo gesto de escrever. Apesar de a escrita não ser um elemento vi-
sualmente presente em O contorno de meu coração repete seu desenho, América,
o ato de desenhar, como gesto semelhante a uma escritura, torna-se entendido em
130 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
CONTORNAR O CORPO-TERRITÓRIO
Olhando para o contorno da América, faço o exercício de recordar os vários
nomes que definem tal porção continental de terra, nomes que a dividem em inter-
mináveis classificações políticas, históricas, afetivas: América do Sul, América Central
e América Anglo-Saxônica. Primeiro mundo, terceiro mundo, subcontinentes, imigra-
ções, barreiras. Abya Yala, Pindorama. Zonas temperadas e intertropicais. Ilhas a se
contornarem pela água. Logo, entre os nomes, se desenham linhas que conectam
esta terra aos outros continentes, mergulhadas nos oceanos. As linhas da invasão. Os
invisíveis trajetos de navios negreiros que costuram as Américas às costas africanas
CONTORNAR O CORPO, CONTORNAR A AMÉRICA 133
— ainda se pode sentir o violento furo das agulhas. Quais, então, são de fato as
bordas da América?
Sobrepondo o tecido à mão, torna-se difícil para o olho enxergar o desenho
inicial, o desenho que supostamente guiará o processo de bordadura. A mão precisa
improvisar os movimentos, precisa recordar. Recordando, inscreve outra forma. Não
há como escapar: estamos sempre a delinear novos contornos, sempre condena-
dos a repetir o novo com os olhos voltados para o passado, como nos disse Walter
Benjamin, mas também muitas das tradições de distintas partes do mundo, sobre-
viventes ao genocídio contínuo do imperialismo e colonização. O tecido do espaço-
-tempo parece ser um imenso retalho esburacado, do qual só nos é permitido tatear
pequenas porções a cada vez.
No livro On Earth We’re Briefly Gorgeous, o poeta vietnamita-americano
Ocean Vuong (2019) descreve a complexa relação entre a construção dos afetos,
a imigração e as consequências psicológicas da guerra do Vietnã através de cartas
de um filho destinadas à mãe analfabeta. Em alguns momentos de sua escrita, a
questão das bordas ou fronteiras aparece como elemento que delineia a percepção
afetiva familiar, mostrando como as condições históricas e geográficas atravessam as
identidades singulares de forma contundente, inescapável. “What is a country but a
borderless sentence, a life?” (2019, p.8), Vuong pergunta, aludindo à dissolução de
uma borda que constringe a expressão da vida, ao referir-se a um país. Adiante, com
o exímio trabalho do poeta de perscrutar a própria linguagem, que também marca
uma outra fronteira identitária, reformula a questão a partir do duplo significado da
palavra “sentence” que, tanto no inglês quanto no português, pode se referir à estru-
tura de uma frase ou a uma decisão judicial: “What is a country but a life sentence?”
(2019, p.9).
O que é um país, senão uma sentença de vida? Como observar nossa identi-
dade sem considerar que estruturamos nossa realidade a partir de nossa língua, que
nosso corpo poderá ser moldado a partir das características do lugar onde nascemos
e crescemos, que nossa perspectiva e compreensão do mundo será sempre balizada
pela estrutura sociopolítica deste lugar natal? E, diante disso, quais estratégias usa-
mos para redesenhar esses contornos, de que maneira fazê-lo sem apagar ou inva-
lidar outras perspectivas que também se cultivam num território tão amplo quanto,
por exemplo, o Brasil? Quais as suturas históricas são necessárias e quais mãos têm
o poder de realizá-las? A quem estas suturas redesenham?
A sutura, operação médica que consiste em coser uma ferida profunda, é
utilizada enquanto metáfora de reparo histórico em muitas obras da artista, pes-
quisadora e professora brasileira Rosana Paulino. Nas séries “Assentamento” (2013)
e “Bastidores” (1997), o bordado executado pela artista ativa gestos de recompo-
sição do corpo a partir de diferentes contextos e finalidades. Na primeira, Paulino
sutura a imagem de um corpo negro apropriada dos arquivos da Expedição Thayer,
capitaneada pelo cientista Louis Agassiz entre 1865 e 1866 no Brasil, exposto e des-
membrado pela ciência (que mantinha e justificava a estrutura racista no período
colonial), enquanto na segunda obra, retratos de mulheres da família de Paulino têm
partes apagadas pela sobreposição excessiva de linhas pretas, fazendo referência
134 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
Este es mi hogar
este fino borde de
alambre de púas,
Segurando o contorno bordado nas mãos, penso numa linha deste poema: a
pele da terra não tem costuras. Suspendendo as grafias tracejadas pelos mapas, con-
tornos delineados pela mão humana, nossa orientação seria configurada de forma
mais harmônica com o ambiente, como alguns sistemas andinos e indígenas, não
ocidentais, nos mostram. Nessas perspectivas, nossos contornos talvez pudessem
ser medidos a partir de nossos próprios corpos, diluindo as fronteiras entre exterior
e interior sem apagá-las completamente, mas ressignificando o sentido de suas li-
mitações. O todo poderia ser compreendido como um efeito do equilíbrio entre as
partes, enquanto a singularidade seria entendida como parte do todo, como escreve
a poeta Rupi Kaur: “você é uma só pessoa/mas quando você avança/uma comunida-
de inteira/anda por meio de você/ — ninguém anda sozinho” (KAUR; GUADALUPE,
2020, p. 162). As barreiras que nos são colocadas, hoje, fazem o movimento contrá-
rio de diluição: ao passo que os limites são enfatizados, o senso de ligação se perde.
CONTORNAR O CORPO, CONTORNAR A AMÉRICA 135
REFERÊNCIAS:
CASA NOVA, Vera. Fricções: traço, olho e letra. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
CASA NOVA, Vera. Texturas: ensaios. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Letras, Programa
de Pós-Graduação em Letras, Estudos Literários, 2002.
DERDYK, Edith. Linha de costura. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo: C/Arte, 2010.
136 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
KAUR, Rupi; GUADALUPE, Ana. Meu corpo minha casa [livro eletrônico]. São Paulo: Planeta,
2020.
REZENDE, Natália. Linhas vitais: narrativas femininas na América Latina. 2018. 204 f.
Dissertação (Mestrado) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2018.
SÁNCHEZ-PARGA, José. Textos Textiles en la tradición cultural andina. Equador: IADAP, 1995.
SOFIATI, Luana. Entre gestos de costura e escrita. Revista CUPIM, 2020 . Disponível em:
https://www.revistacupim.com.br/post/entre-gestos-de-costura-e-escrita. Acesso em: fev.
2021.
VUONG, Ocean. On Earth We’re Briefly Gorgeous [livro eletrônico]. London: Penguin Press,
2019.
ARRUDEIO É INDICAÇÃO DE CAMINHO
Thaysa Aussuba1
O TEMPO EM REVIRO
Respirar para criar. A casa, como espaço de intimidade, também pode estar
bagunçada em seus respiros. Refundar a casa para que nas divergências da rotina
nem as histórias da casa-grande sejam íntimas, nem o barraco assentado na encosta
da barreira seja a única habitação possível. Não silenciar, eis a função principal do
respiro. Não parar o coração, não deixar de pulsar, de jorrar, de empurrar o céu ao
sinal de asfixia.
1 Graduanda em Artes Visuais pela UFPE, é indígena/cabocla em contexto urbano periférico. Bolsista
pelo Programa de Iniciação Científica PIBIC-CNPQ (2020-2021), sob orientação da profª Drª Maria
das Vitórias Negreiros do Amaral. Tem atuado com pintura, performance e poesia na revir-ação de
memórias.
138 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
Revirar para criar. Fazer girar, tornar a virar aquilo que a poeira dos dias, das
gavetas, do tempo insensível nos fez esquecer. Buscar a liberdade no tempo exusiá-
tico2, não-linear, acessando, pela temporalidade, outras geografias possíveis. Outros
tempos sensíveis. Criar atmosferas possíveis dentro da casa, dentro dos pulmões ou
onde se possa morar.
Erguer a criação artística como moradia, casa, território, é não esquecer sua
fundação. E de todos os sinônimos que encontro para moradia, o que quero me
aproximar aqui é o da gíria, onde morar significa entender. Isto é, conhecer e ouvir
os limites entre a carne e o concreto, entre a colonialidade do tempo linear e o no-
madismo do tempo exusiástico.
Rever a fundação dos corpos subalternizados é rever sua criação e criativida-
de. É considerar a relevância da intuição de seres silenciados mas nunca silenciosos.
Fayga Ostrower (2008, p.56) nos lembra que “a intuição está na base dos processos
de criação” e mais do que instintivo, o intuitivo é relacional na polissemia de suas
experiências. Intuição é praticar a própria voz em segredo.
Imerso no visível por seu corpo, ele próprio visível, o vidente não se
apropria do que vê; apenas se aproxima dele pelo olhar, se abre ao
mundo. E esse mundo, do qual ele faz parte, não é, por seu lado, em si
ou matéria. Meu movimento não é uma decisão do espírito, um fazer
absoluto, que decretaria, do fundo do retiro subjetivo, uma mudança de
lugar milagrosamente executada na extensão. Ele é a sequência natural
e o amadurecimento de uma visão. Digo de uma coisa que ela é movida,
mas, meu corpo, ele próprio se move, meu movimento se desenvolve.
Ele não está na ignorância de si, não é cego para si, ele irradia de um si
(MERLEAU-PONTY, 2014, p.16).
Sonhar para criar. Aos que não sonham mas criam, deixo aqui outra disposição
ao sonho: “O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê. É preciso transver
o mundo“, lembrando Manoel de Barros3 para não esquecer de reconfigurar as pa-
lavras, de fundar o conhecimento pela imaginação. Criação como sonho é criar sem
adormecer, sem anestesiar, sem enganar-se. É dar outras oxidações ao tempo, é não
transferir voz ao desconhecido, é firmar em si a referência. O sonho é também en-
cantamento, conhecimento e visualidade, fundando estrutura óssea para narrativas
marginalizadas. Se pelo sonho me sinto livre, então posso tomar impulso para criar
além dos meus medos:
2 Termo pesquisado por Castiel Vitorino Brasileiro (2020, p. 01), no qual o tempo é “uma ferramenta e
um movimento que nos faz acessar, de modo perecível e efêmero, essa liberdade, que é Exú”.
3 Manoel de Barros (1916-2014), poeta mato-grossense, praticava uma escrita para expandir os limites
da língua, reunindo sentidos que extrapolam a gramática padrão.
ARRUDEIO É INDICAÇÃO DE CAMINHO 139
Para voar “fora da asa”, como nos sugere Manoel de Barros, me lanço como
artesã das linguagens e do imaginário. Recorto, colo, costuro, insisto na imagem, não
tento voar no primeiro impulso, fico íntima do céu primeiro.
A performance Arrudeio (2020) faz parte do meu processo criativo como respiro
no isolamento social da pandemia do Covid19. Utiliza a gravura de Jean-Baptiste Debret,
Soldados índios da província de Curitiba escoltando selvagens (1834), para friccionar re-
presentações que acabaram por definir o imaginário do que é ser indígena no Brasil.
4 Pesquisa PIBIC incentivada por bolsa CNPq (2020-2021), de título “Escrevivências do autocuidado pela
arte/educação em tempos de isolamento social e Covid19“, orientada pela profa. Vitória Amaral.
5 Referência a Manoel de Barros no livro das Ignorãças, p.23.
140 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
SEGREDO
Durante a performance Arrudeio, havia um espelho pendurado atrás de mim
que, inexplicavelmente, caiu da parede e despedaçou-se. Seria a performatividade
da casa-corpo, e seus pregos, me lembrando do deslocamento do ver? Seria um aler-
ta ao iminente acidente pelo corte dos cacos do que me olha? Ou seria o potencial
criativo decidindo o que colocar em ato?
6 Para saber mais sobre o termo Cabocla, ler "A complexidade do 'pardo' e o não-lugar indígena", no
Blog de Jamille Anahata. Disponível em: https://medium.com/@desabafos/a-complexidade-do-pardo-
e-o-n%C3%A3o-lugar-ind%C3%ADgena-a8a1e172e2b0 Acesso em: mar. 2021.
ARRUDEIO É INDICAÇÃO DE CAMINHO 141
7 O termo “escrevivência” foi criado por Conceição Evaristo, escritora mineira, e refere-se à escrita que
nasce do cotidiano, das lembranças e da experiência de vida real enquanto mulher negra na sociedade
brasileira. O termo foi instituído por ela em sua dissertação de mestrado, em 1995. Ensaio com reflexões
de sua dissertação disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4365.
Acesso em: 12 mar. 2021.
142 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
REFERÊNCIAS:
BRASILEIRO, Castiel Vitorino. Exú Tranca Rua das Almas. 2020. Disponível em: https://
static1.squarespace.com/static/5ea302c8362c6d101944b61e/t/5f31ca0614c78e23a-
2313a6f/1597098508596/ExuTrancaRuadasAlmas_Castiel.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.
AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. Boitempo
Editorial, 2018.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SOARES, Lissandra Vieira; MACHADO, Paula Sandrine. “Escrevivências” como ferramenta me-
todológica na produção de conhecimento em Psicologia Social. Revista Psicologia Política,
São Paulo, v. 17, n. 39, p. 203-219, 2017.
rias. Trata-se de um sutiã-seios, que é assim chamado porque pode ser vestido.
Além de questões ligadas à prática artística, apresento partes de minha biogra-
fia, episódios dela. Nessa ação, não ajo performaticamente na escrita, nem tampou-
co escrevo de forma automática, como fez, maravilhosamente, Camargo (2018) em
sua auto caligrafia. No entanto, assim como ela, acredito no potencial da “escrevi-
vência, a vivência escrita na palavra” (CAMARGO, 2018, p. 3682). A autora baseia seu
texto neste termo criado por Conceição Evaristo, importante romancista brasileira,
para quem “a nossa ‘escrevivência’, não pode ser lida como histórias para ‘ninar os
da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (EVARISTO, 2007,
p. 21 apud CAMARGO, 2018, p. 3683).
No meu caso, “os da casa grande” são aqueles que, nas relações sociais, nas
instituições ou até mesmo no ambiente familiar, insistem na negação da equidade de
direitos pertencentes e adquiridos por pessoas transgêneras. Não me enxergo numa
batalha sangrenta contra as pessoas cisgêneras, como os povos pretos tiveram que
fazer — afinal, minha família tem pessoas cis, minha mãe e meu pai são cis e héteros.
A emergência aqui colocada, diz respeito entre outras coisas, à luta pela represen-
tatividade, que, de certa forma, também está relacionada à luta pela vida. Sendo
assim, baseando-me na definição que Rancière (2012) dá para a política, a minha voz
e escrita incomodam o sono “dos da casa grande”, como sugere Evaristo (2007), mas
também chacoalham as normas de gênero socialmente estabelecidas por toda uma
sociedade que considera as existências transgêneras inferiores e, historicamente,
tentou invisibilizá-las.
Santos (2019), falando sobre Artes Visuais, oferece uma reflexão acerca do
apagamento gerado por essas relações de poder no contexto histórico brasileiro.
Segundo a autora, “a violência da escravidão se transmuta em violência da subcida-
dania, que, por sua vez, se converte em sub-representação” (SANTOS, 2019, p. 343).
Assim como os povos pretos escravizados no Brasil, a população trans sofre violên-
cias de subcidadania e, consequentemente, não alcança a representação a que tem
direito. Na contramão desse cenário, posso dizer que minha escrevivência contribui
para promover o rompimento dessas amarras e causa incômodo naqueles que dese-
jam manter a cisheteronormatividade em voga. Desagrada aqueles que insistem em
silenciar toda e qualquer boca que brade palavras que ataquem essa pseudo verdade
sobre os comportamentos sexuais e de gênero.
Nesse sentido, ao longo dos últimos anos, diversas narrativas e histórias de
vida de pessoas trans e travestis foram contadas através da escrita de pessoas cis-
gêneras. Em importantes livros biográficos, as vivências de um pequeno número de
mulheres, como eu, começaram a ganhar protagonismo, entretanto sempre senti
falta de conhecer as histórias de outras existências transgêneras através de textos
escritos por nós mesmas. Então, em 2017, Amara Moira, juntamente com João Nery,
Marcia Rocha e Tarso Brant, organizou o livro Vidas Trans. Trata-se de um marco na
história do movimento LGBTIAP+ brasileiro, pois, desde o prefácio, ele foi inteira-
mente escrito por homens e mulheres trans.
Ao ler Evaristo (2007), me deparo com uma importante questão levantada pela
autora, que mais a frente aproximarei da discussão oferecida pelo grupo organizado
146 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
por Moira (2017). Após narrar os percalços enfrentados durante uma infância pobre
e repleta de violências dos mais variados tipos, ela pergunta-se “o que levaria deter-
minadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e quando muito,
semi-analfabetas, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimen-
to da escrita?” (EVARISTO, 2007, s. p). Na tentativa de responder, a escritora destaca
que
Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler
oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de
uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do
sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior
do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres ne-
gras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados
dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sen-
tido de insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar, muitas
vezes, desde uma escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso
exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da
matéria narrada. (EVARISTO, 2007, s.p.).
A lógica não é dizer qual produção é ou não a(r)tivismo, mas refletir so-
bre a emergência dessas produções nos permite notar como isso afeta
todo o contexto das artes e seu mercado, perceber que a todo momen-
to, artistas, ativistas, coletivos e o próprio mercado serão questionados
Sobre essa emergência, Colling (2019) aponta uma ligação, na atualidade, com
coletivos e artistas que “trabalham dentro de uma perspectiva das dissidências sexu-
ais e de gênero e que, ao mesmo tempo, explicitam suas intenções políticas, ou me-
lhor, que criam e entendem as suas manifestações artísticas como formas distintas
de fazer política” (COLLING, 2019, p. 21). Ainda segundo o autor, algumas condições
favoreceram o aumento da produção de discursos provocadores. Entre elas destaco:
as ações de grupos conservadores que decidiram atacar abertamente a população
LGBTIAP+, consequentemente originando o desejo de construir estratégias para
romper essa repressão; a divergência de parte da nossa comunidade no que se refere
à conduta tomada por aqueles que tentam aderir a um paradigma heteronormativo,
buscando entre outras coisas o casamento institucionalizado, a concepção da sexu-
alidade a partir do binário homem-mulher, etc; o aumento do acesso à tecnologia e
às redes sociais; e por fim, o crescimento dos estudos ligados à sexualidade e gênero
em nosso país, principalmente durante o governo do ex-presidente Lula (COLLING,
2019).
Inspirada por essas condições, as memórias aqui descritas “ajeunzaram” a
criação do objeto cinético “Axó Sutiã-Seios”, peça móbile vestível que foi confeccio-
nada para o projeto Tramações em sua terceira edição. Para apresentar como ocor-
reu a minha participação nesse projeto, descrevo brevemente a seguir dois episódios
vividos tanto pelo pequeno Júnior, quanto pelo Marinheiro/Cabo Bazante. Ancestrais
da mulher que hoje demonstro existir e que dia após dia começa a entender a di-
versidade existente no devir mulher. Em seguida relato a minha relação com a arte
cinética e com a modelagem até chegar aos caminhos e práticas que exercitei para a
confecção do objeto cinético.
12 Considero esse universo a partir de nossa cultura que determina um certo tipo de vestuário e
comportamentos para as mulheres, ou seja, o uso de vestidos, cabelos longos, etc.
ESCREVIVÊNCIAS E AXÓ SUTIÃ-SEIOS 149
Marinheiro Bazante. Para usar uma expressão popular, diria que ela conseguiu “abrir
a porta do armário”. “Nascia” então a Brenda Bazante, nome que adotei por sugestão
de Bruna. Uma vez livre para performar minha “mulheridade”, voltei ao Recife e fui
trabalhar com cabelos, seguindo os conselhos do querido Maninho, um dos maiores
cabeleireiros que essa cidade conhecera. Sabia que no trabalho com vestuários, que
era a minha antiga paixão profissional, o dinheiro demoraria muito a chegar, como
disse esse amigo cabeleireiro. Era uma época de luta pela sobrevivência, então fiz a
escolha mais fácil, trabalhar no ramo da beleza.
Hoje, com certo reconhecimento enquanto cabeleireira, profissão que me dá
suporte e paga as contas, pude voltar às salas de aula e cursar o ensino superior.
13 O tecido mescla azul era usado na fabricação dos uniformes de Cabos e Marinheiros. É um tecido
mesclado feito de poliéster microfilamentado ou de nylon (poliamida). É muito resistente e esquenta
com muita facilidade.
150 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
fazê-lo parecer outra coisa, ou seja, mantenho-o rústico. A partir dessas reflexões,
pretendo ampliar o emprego destes materiais em outras criações que desenvolvo,
estimulando a imaginação criativa a partir deste grupo de pesquisa.
São estas questões que moveram minha investigação em Tramações. Dispus-
me a atuar no campo tridimensional, mas também senti que no caminhar desta
pesquisa pude descobrir outros caminhos para minha prática com arte têxtil tran-
salinhavando minhas memórias e narrativas autobiográficas por meio dos materiais
presentes na tão querida caixa de aviamentos. Logo, desse processo surgiu a peça
apresentada. Um móbile sob base estável vestível, por assim dizer. Um tipo de sutiã
base que dá suporte aos seios móveis inspirados numa peça protótipo que era com-
posta apenas pelos móbiles que compõem os seios.
A ideia foi construir uma peça de vestuário que contivesse algum elemento
móvel. Nesse sentido, as memórias da máquina de costura e da caixa de aviamentos
serviram como ponto de partida para a elaboração desta escultura corporal. Comecei
a esboçar uma peça que representasse tanto a ligação com a vontade de costurar,
oriunda lá na infância, como as práticas artísticas que venho atualmente pesquisan-
do em torno das transmulheridades. Desta forma cheguei ao “Axó” Sutiã-Seios. Mas
por que eu decidi vestir a peça? Por que fazer um móbile a partir do formato dos
seios? São questões que emergem já que durante muito tempo a minha relação com
a Arte Cinética manteve-se ligada à abstração ou, no máximo, à presença de alguns
origamis de animais.
Além disso, essa peça exemplifica o Conceito de Transcorpocinetismo, teoria
que está sendo gestada na pesquisa sobre as Travas Transcorpocinéticas. Esse con-
ceito, baseado em teorias e práticas artísticas exploradas no desenvolvimento da
investigação, faz-se presente em minha poética associado às intervenções corporais
nas esferas endocrinológicas, cirúrgicas e estéticas realizadas por mulheres transgê-
neras após suas transições.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Participar de Tramações: A memória e o têxtil foi uma experiência enriquece-
dora para minha caminhada acadêmica. Meu entendimento sobre arte têxtil mudou
consideravelmente após esse projeto de extensão. Entre outras coisas, gostaria de
destacar a coragem que tive, a partir da narração de minhas vivências, em modelar
para as fotos com a peça móvel.
Na modelagem da foto para o projeto eu precisaria usar a peça enquanto a
movimentava. Quando penso nisso, percebo que podem estar aí os meus receios
quanto à aparição na exposição virtual. Creio que quando comecei a trabalhar com
Arte Cinética, passei a ocupar os bastidores. Deixei os móbiles brilharem sobre os
spots das galerias e me pus na retaguarda.
No entanto, os estudos de gênero, de política e as histórias de vida que li,
despertaram o desejo de atuar de forma mais presente nas exposições. Literalmente
“botar a cara no sol”. E foi isso que fiz em Tramações.
É nesse caminho que pretendo seguir: saindo de trás das cortinas e dos textos
– como sai do armário do quartel a anos atrás – para junto com eles, os escritos, e
ESCREVIVÊNCIAS E AXÓ SUTIÃ-SEIOS 151
com práticas a(r)tivistas, contar minhas memórias e, quem sabe, jogar o picumã pro
alto da próxima vez.
REFERÊNCIAS:
BARRET, Cyril. Arte Cinética. In: STANGOS, Nikos. Conceitos de Arte Moderna: com 123 ilus-
trações. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor Ltda, 1991.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 19. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
CAMARGO, Denise Conceição Ferras de. Caligrafar-me: apontamentos para uma conversa em
torno de um gesto e de um texto inacabados. In: ENCONTRO Da ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS. 27. 2018. Anais [...], São Paulo: Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018, p. 3681-3691.
COLLING, Leandro (Org.). Artivismos das dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA,
2019.
JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. 2.
ed. Brasília, 2012.
ROCHA. Marcia. A luta pela aceitação. In: MOIRA. Amara. et al. Vidas Trans. Bauru: Astral
Cultural, 2017.
RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2012.
A MUSA: BORDADO CONTRASSEXUAL
E BRONZEADOR SOLAR FATOR 5
Mariana de Albuquerque Penha1
modos de ser. Ainda nesta perspectiva, até os prazeres são conformados por práticas
onde a genitália masculina, tida como ativa, penetra sobre a feminina, reverberando
em estruturas maiores de dominação entre os corpos. Preciado (2014) contribui com
estas reflexões ao dizer que:
O BORDADO E A PARTILHA
Com base em minhas narrativas autobiográficas e nas respostas da enquete
feita através do formulário online, utilizei técnicas de bordado para registrar visual-
mente as aprendizagens que tenho construído. A Musa evidencia uma prática sexual
ao traçar as linhas do meu corpo. Aqui, o bordado fugiu da temática das flores e ador-
nos “tradicionais” com os quais tive contato em minha trajetória pessoal. Durante o
processo de criação tive a cumplicidade de uma amiga que, depois de muitas con-
versas e brincadeiras sobre esse tema, apelidamos carinhosamente a embalagem de
bronzeador solar fator 5 de A Musa.
Deslocando a visualidade artística do que seria considerada a “musa” retra-
tada nas obras de arte que historicamente são baseadas na figura grega da mulher
branca cisgênera. A musa inspiradora torna-se a retratação de um objeto cotidiano
que se erotiza durante uma prática de prazer sexual cotidiano. O objeto inanimado
torna-se agora a fonte de beleza e inspiração ao fazer artístico e é retratado com a
temática da musa. A Musa – Bronzeador Solar fator 5 – se torna um objeto que é sen-
sibilizado ao olhar diário como fonte artística inspiradora, não apenas no momento
da observação para a obra ou para o ato sexual, mas também sobre a influência de
objetos comuns ao redor como musas e musos em potenciais retratações artísticas
para a obra de arte e/ou como objeto de prazer.
Com isso, bordei uma embalagem de bronzeador sendo introduzida nas linhas
que traçam a região das genitálias, onde há o registro de deslocamento do objeto
cotidiano de seu uso comum para a interação com outra região corpórea, adentran-
do partes distintas às da tecnologia esperada de como o corpo deve interagir com o
recipiente do Bronzeador Solar fator 5.
Vicenciei situações ao bordar a obra que evidenciaram diversos tabus e limita-
ções que tenho na vida particular em relação ao assunto sexo e contrassexualidade,
que escancararam, para mim, a necessidade das temáticas que abordo enquanto
pesquisadora e artista. Eu, enquanto sujeito que produz arte sendo o mesmo sujeito
que participa das esferas sociais, como familiar e amiga, percebi fricções constantes
na maneira em que me relaciono com a mesma temática em ambientes distintos.
Tenho limitações sociais que a liberdade artística e filosófica me permitem permear
e tirar as próprias amarras (dos nós) que atei.
158 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
REFERÊNCIAS:
LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução: Silva, Tomaz
Tadeu da. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
STERLING, Anne Fausto. Os cinco sexos: porque macho e fêmea não são o bastante. Tradução:
Alice Gabriel. The Sciences, mar./abr., 1993, p. 20-24.
POR UM FIO... 159
A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS
ALFINETADAS: REFLEXÕES QUE ATRAVESSAM
AS VIVÊNCIAS DE UMA MULHER ARTESÃ
Flávia Fiorini Romero1
da mulher que sou hoje. Nesse processo, utilizei retalhos de diversos tecidos costu-
rados entre bastidores de MDF. Nos bastidores, sobre o tecido cru, bordei imagens
e escritas que se entrelaçam às minhas inquietações. O trabalho foi tramado a partir
de quatro memórias pessoais. Essas memórias envolvem escolhas sobre meu corpo,
sobre meus estudos e sobre meu trabalho: “São tão pequenos, não vai ter leite”;
“Parto normal? Vai afrouxar”; “Você trabalha ou só faz artesanato?”; e, por último,
“Estudar pra quê?”. Nos próximos tópicos, entrelaço meu trabalho com essas vivên-
cias, e também, entrelaço-as à estética textil.
torna mais delicada. Fiquei com receio de expressar essa angústia representando
uma vulva exposta para meus familiares e amigas/os que conheceram esse trabalho
a partir da divulgação das redes sociais. Por mais que para mim tenha sido um desa-
fio, senti-me livre.
[...] enredei fios de linha e aprendi novos pontos de crochê a cada en-
contro familiar. Foram momentos em que minha mãe e eu, tias, primas e
vizinhas ficávamos imersas nas aprendizagens manuais. Essas habilida-
des eram valorizadas no âmbito familiar, mas, não tramávamos somente
fios, agulhas e tecidos. [...] Eram rodas de conversa que consolidavam a
felicidade feminina atrelada à vida em família e ao casamento. Foram
narrativas que se tornaram naturalizadas e que consolidaram versões de
realidade nas quais acreditei que “toda mulher tem o sonho de casar”,
que “todas nascem com instinto materno” e que o casamento, muitas
vezes, é sinônimo de “viveram felizes para sempre” (BORRE, 2020, p.
77).
Com quatorze anos, era comum, meninas de minha idade realizarem cursos
de corte e costura como uma aprendizagem fundamental às habilidades da mulher.
Com essa idade, era comum que já dominassem as habilidades de corte e costura,
confeccionassem vestimentas para toda a família e que auxiliassem as professo-
ras nas aulas desses cursos. Com quinze anos de idade, aprendi bordado em pon-
to cruz. Esses bordados, longe de se apresentarem como atividades, passatempos
ou mesmo como lazer, caracterizavam-se por atividades destinadas à produção de
enxovais. Mesmo que não tivéssemos nos relacionando com nenhum pretendente,
ainda assim éramos educadas a já prepararmos nossos enxovais, isso desde cedo.
Aos dezessete anos, quando iniciei meu trabalho no comércio me preparando para
o meu casamento, já reservava parte do meu salário para o enxoval. A partir dessas
minhas experiências pessoais, em diálogo com os estudos de Borre (2020), podemos
estabelecer uma relação entre “fazeres manuais” e “atividades que são relacionadas
à mulher”, como a maternidade, o matrimônio, o serviço doméstico, a preocupação
com a casa e com a família. Em minha experiência, sentia que vivia para doar meu
tempo a minha família e não reservava um tempo para mim.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se no passado, o bordado era sinônimo de mulheres submissas e do lar, hoje,
o bordado é ressignificado como expressão artística e espaço de fala às diversas fe-
minilidades que compõem as vivências de muitas mulheres. Historicamente, o bor-
dado têm construído um ideal restrito de feminilidade e, quanto a isso, Parker (1984,
p.103) reitera que
REFERÊNCIAS:
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: Um manifesto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
PARKER, Rozsika. A criação da feminilidade, 1984. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda;
MESQUITA, André (org.). Histórias das mulheres, histórias feministas. São Paulo: MASP, 2019.
POR UM FIO...
Camila de Lima Cantil1
1 Fotógrafa, artista visual, graduanda em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de
Pernambuco, pesquisadora bolsista pelo CNPq (PIBIC), sob orientação de Maria Betânia e Silva.
POR UM FIO... 167
Por várias noites sem dormir, por inúmeras lágrimas derramadas, pelo vazio,
por um medo que me rodeava a todo instante, por todas as vezes em que senti faltar
o ar, por toda a angústia entalada na garganta, por uma pandemia e por tantos ou-
tros motivos que 2020 fez com que eu me sentisse “por um fio”. Na verdade, Por um
fio é um estado de espírito.
Tudo começou no mês de janeiro, no hospital com meus batimentos a 200
por minuto, “taquicardia supraventricular”, acusou o exame. Descobri ter um tipo
de arritmia, que na verdade sempre tive, mas que não havia sido diagnosticado cor-
retamente até então. Desde então, fiz pequenas mudanças para me ajustar a um
maior cuidado com meu coração. Fiz vários eletrocardiogramas e permanecerei em
tratamento com betabloqueadores. Eu, que nunca gostei de depender de remédio,
hoje sou obrigada a viver com eles para evitar novas crises.
Somado a essa mudança de rotina veio o Coronavírus, nos obrigando a ficar em
isolamento social, mais uma mudança drástica. Meus dias em quarentena foram um
misto de ansiedade e preocupação com vários fatores: minha saúde e do meu com-
panheiro, o futuro do mundo em geral, ninguém estava preparado para esse caos.
E minha família estava a quilômetros de distância. Tanta coisa acontecendo. Como
é desesperador, que angústia sentir que não pode fazer absolutamente nada pelas
pessoas que ama. Notícias na tv, na internet, casos explodindo, ansiedade também.
Minha ansiedade não começou ali, na verdade a quarentena amplificou sen-
sações que eu já vinha sentindo nos últimos dois anos. Antes eu achava que era fres-
cura essa coisa de ansiedade, até eu começar a ter crises e perder seguidas noites de
sono. Também antes dela tinha enxaqueca mas, na amplitude da quarentena, foram
e ainda são inúmeros os comprimidos para dor de cabeça. Diante da maior curva de
contágio do Coronavírus eu me sentia numa prisão, por dentro e por fora, não me su-
portava mais, me sentia depressiva. Lembro de me identificar muito ouvindo Lovely
de Billie Eilish2, a canção fala de depressão, eu sentia um vazio infindável.
Foi nesse cenário que eu imaginei um autorretrato em um devaneio, algo que
me remete Bachelard (1988) sobre essa ideia do imaginar como um sonhar acor-
dado. No devaneio eu sabia que era um autorretrato, representava meu “eu” ali de
alguma forma, não sei bem explicar, mas eu estava sentada numa cadeira, segurando
uma gaiola com um coração dentro dele, um fio ligava o coração ao meu peito, esse
fio era bordado por cima da imagem.
À princípio imaginei essa cena como uma pintura, mas depois pensei: e se isso
fosse uma fotografia? Daí comecei alguns esboços para chegar na ideia de uma foto,
mas até então não passava de esboço, como um desabafo. Até que um professor nos
fez um desafio: fazer um autorretrato com objetos que nos representassem.
Depois de ter ficado inicialmente “travada” na tarefa, pensei que o objeto que
me representasse não necessariamente precisaria ser algo que eu tenho na minha
casa, poderia ser algo construído como simbólico, lembrei do coração naquele de-
vaneio e decidi experimentar. Não sabia se seria uma única foto ou uma série, mas
acabou se encaminhando para uma série que trouxe outros desdobramentos.
O PROJETO
Me interessei pela temática do projeto Tramações já pensando em construir
algo que fosse autobiográfico, porque acredito ser muito potente trazer nossas me-
mórias para o processo criativo, sejam estas antigas ou recentes, ainda são memórias
carregadas de sentimentos que podem inspirar/ressoar material criativo, ressignifi-
car essas memórias e gerar identificação com as de outras pessoas.
A relação com minhas memórias está muito presente no meu imaginário, ma-
terializado em desenhos e outras produções artísticas. Mesmo uma frase, um texto
que escrevi, um rascunho que fiz no caderno, até aqueles feitos de forma despre-
tensiosa, mostram a influência da memória em minhas produções. No autorretrato
também não é diferente, vejo inclusive uma construção recorrente de autorretratos
não realistas, subjetivos, nos quais muitas vezes eu estava construindo uma narrativa
das minhas memórias sem saber que era narrativa, pois os símbolos vinham a minha
mente, mas eu não sabia quantas histórias estavam contidas nestes símbolos.
Como processo de construção criativa gosto de pensar na relação de hibri-
dismo, pois algo híbrido acompanha essa mutabilidade do meu “eu”. Parafraseando
Raul Seixas3, eu costumo dizer que sou uma metamorfose ambulante, e com meus
processos também não é diferente. Ora me identifico mais com o desenho, ora com
a fotografia, ora penso em misturar ambos, experimentar linhas e agulhas no plano
bidimensional, experimentar o colar, o rasgar, o poetizar. Penso que meu próprio
criar também seja essa “metamorfose ambulante”, eu nunca sei o que vai surgir, eu
posso imaginar, devanear, mas num instante repensar e fazer tudo diferente de como
imaginei.
Para o projeto Tramações: a memória e o têxtil resolvi mostrar um recorte da
série Por um fio, que até o momento tem, ao todo, cinco fotos, entre outras produ-
ções que se desdobraram, todas feitas utilizando a técnica da Cianotipia, que será
abordada adiante.
A proposta faz parte de minhas experiências como integrante do Symbolismum,
grupo de extensão em fotografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
tendo o Imaginário como campo de estudo e a Identidade como temática para nos-
sas produções artísticas, em que utilizamos como técnica o processo fotográfico al-
ternativo e histórico da Cianotipia.
A proposta também se conecta à minha pesquisa de iniciação científica (PIBIC)
sobre a influência da memória e do imaginário na produção do autorretrato, com
bolsa do CNPq, sob orientação de Maria Betânia e Silva, que busca investigar as con-
tribuições da memória e do imaginário dentro do meu processo criativo autoral e
tem como um de seus objetivos específicos produzir autorretratos, podendo versar
sobre diferentes técnicas.
Nesta série optei por mesclar a cianotipia ao bordado, e o curioso é que eu
nunca tinha bordado antes. Eu só sabia fazer um único ponto de costura que aprendi
com minha mãe para costurar roupas e sempre detestei, mas tinha uma vontade de
experimentar essa mescla de materiais que a arte contemporânea nos permite em
seu caráter híbrido (COCCHIARALE, 2006).
Para minha surpresa, foi algo muito diferente e que me fez sentir um pouco
mais próxima da minha mãe. Ela também nunca bordou, mas ama fazer crochê e de
alguma forma, pelo manuseio com a linha no tecido, pude me sentir fazendo algo em
comum ao que ela faz, inclusive acabei utilizando aquele mesmo único ponto que
conhecia e que antes desprezava. Bem que dizem que o mundo dá voltas. E o meu
deu não só uma, mas várias voltas e nós. Emaranhadas, minhas memórias foram
tramadas em fios vermelhos e tecidos azuis.
A TÉCNICA CIANOTIPIA
A cianotipia é um processo fotográfico histórico que utiliza a luz UV para pro-
duzir imagens por contato. Foi inventado em 1842 por Sir John Herschel, tendo como
base o descobrimento de que sais de ferro (ferricianeto de potássio e citrato férrico
amoniacal) são sensíveis à luz (CAMPOS, 2007). Esses sais, ao serem diluídos, mistu-
rados entre si e expostos à luz U.V. (seja do sol ou artificial), produzem o pigmento
azul da prússia, que é a principal característica das imagens feitas com esta técnica:
a cor azul.
O cianótipo é a superfície emulsionada pela mistura dos químicos que, ao ser
exposta à luz ultravioleta, gera imagens através desse foto-contato. Para a realização
desse processo, utilizo uma imagem em negativo que é prensada entre a superfície
emulsionada e uma chapa de vidro. Ao entrar em contato com a luz do sol por alguns
minutos, ocorre uma reação química que consegue imprimir a imagem na superfície
170 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cianotipia foi a técnica que me permitiu ver beleza em momentos de dor,
antes que eu mergulhasse os tecidos na água, sem perceber eu mergulhava dentro
de mim. O azul deixou as lembranças menos amargas, cada encontro remoto do
grupo de extensão foi um respiro em meio ao caos. Cada linha bordada e tramada foi
um acalento durante o “estado de névoa”, que não é eterno, que não está fixado em
mim, oras preciso passar pelo tempo do resfriamento, oras pelo da liquidez e oras
o de névoa. Hoje percebo que cada um traz consigo sua importância, o tempo do
silêncio é tão importante quanto o do tempo do alarido e é nesse lugar do silêncio,
de quietude, que muitas vezes brotam os autorretratos mais sinceros. Através de
poéticas em azul, fui capaz de me reconectar comigo mesma, tendo consciência que
aquelas representações são apenas uma parte de mim, em um determinado mo-
mento, porque sou afluente como rio que está sempre a correr. Neste sentido, tomo
as palavras de Kalinka Serafim: “Encarar a própria imagem na busca de si é compre-
ender que a cada vislumbre essa imagem já se torna diferente, pois mudamos a cada
instante” (SERAFIM, 2019, p.1).
REFERÊNCIAS:
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.
CAMPOS, João Carlos Baptista. et al. Cianotipia em grande formato: processo alternativo de
reprodução de imagem em câmara clara: uma abordagem das dimensões da linguagem, cor
e espaço. Dissertação (Mestrado em Artes) - Instituto de Artes da Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2007.
Nômade por dentro, tecelagem e crochê, 300 x 28 x 25 cm, Mônica Lóss, 2020.
2 A “Maleta Mexicana” se refere a história dos 4.500 negativos de fotografias tiradas durante a Guerra
Civil Espanhola pelos fotógrafos Robert Capa, Gerda Taro y David “Chim” Seymour. Estes negativos se
perderam durante a guerra e reapareceram em 2007 na Ciudad de México. Tenho um apego afetivo a
essa história além de trazer de um modo singular a questão da memória como um elemento que pode
ser revisitado e que tem a capacidade de desvelar camadas não conhecidas.
NÔMAD[A]S 173
segunda chance para eles e também para mim: por um lado, os guardados, como
aspectos relativos à memória/esquecimento; por outra parte, o novo que precisava
surgir como desdobramento para criar outra narrativa, desvelando as bagagens da
memória.
Com isso, as tecelagens passaram a ser agrupadas usando critérios como cores
e materiais, sendo trabalhadas de forma individual com crochê e posteriormente,
unidas, criando um novo tecido feito de partes extraviadas que, agora, constituíam
um todo com novas formas, volumes e reentrâncias: um esconderijo ou refúgio para
abrigar tempos de solidão, para gestar formas de contar as histórias sobre os des-
locamentos e desafios, sobre os abandonos que são memórias de um tempo, mas,
também que podem servir de caminhos para recriar o presente.
Logo que passei a trabalhar nas peças, chamei-as de nômades pelo fato de
levá-las comigo para todos os lados, trabalhando de forma simultânea em várias pe-
ças, em diferentes etapas do processo. Deste modo, elas iam fazendo-me companhia
durante os deslocamentos em viagens e nas horas de espera do cotidiano. O fazer
ininterrupto e a necessidade de “não parar” funcionava naquele momento como
um tipo de estratégia intuitiva e, talvez, uma forma de assegurar-me que ao retomar
minha pesquisa poética, após tantos anos de distanciamento, ela não seria nova-
mente interrompida. Neste percurso, memórias foram sendo reviradas. A memória
neste ponto “não constrói o tempo, não o anula, tampouco. Ao fazer cair a barreira
que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do
além, ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol; realiza uma evocação” (BOSI,
1994, p. 59).
Esta ideia de memória como uma ponte entre o passado e presente é o que
considero o caminho do meio na construção desta pesquisa, um ponto onde diferen-
tes elementos se encontram e passam a elaborar um novo caminho, outra oportuni-
dade para encontros e recomeços.
Com o aprofundamento da pesquisa dei-me conta de que a grafia da palavra
“Nômade” não dava conta de todo o processo que eu estava passando e que deste
modo, poderia adotar uma variação para a escrita e assim, “Nomad[a]s”, com o “a”
entre colchetes, foi como passei a referir-me a elas. Entendi que adotar essa pala-
vra seria uma forma mais próxima às minhas experiências como mulher, maneira
de propor outro olhar para esta questão a fim de criar uma narrativa referente ao
nomadismo e ao feminino nestes processos repletos de camadas, feitos de lacunas,
ausências e vazios. Por isso, a “necessidade de colocar no feminino tudo o que há de
envolvente e de suave para além dos termos simplesmente masculinos que desig-
nam nossos estados de alma” (BACHELARD, 1988, p.29), para problematizar sobre
deslocamentos de todas as ordens.
Pareceu-me curioso observar que a origem da palavra “memória” constitui-se
a partir de uma figura mitológica que liga a memória-lembrança e a capacidade de
criação e imaginação dos artistas, pois “a palavra memória tem a sua origem etimoló-
gica no latim e no grego mnemosyne. Essa era a deusa identificada como a ‘mãe das
musas’, divindades responsáveis pela memória-lembrança e inspiradoras da imagina-
ção criativa dos artistas e poetas” (TEDESCO, 2002, p.23).
174 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS
1 O conceito de desterritorialização aqui mencionado parte da noção criada e aprofundada por Deleuze
e Guattari, nos volumes 3 e 4 de Mil Platôs (1996 e 1997, respectivamente). Esta noção é abordada pelos
autores a partir de 8 teoremas de desterritorialização e vai de encontro as considerações apontadas
por Nunes da Rosa (2015, p.106) ao afirmar que “o movimento de se desterritorializar só acontece
mediante a saída de um território, num esforço de se reterritorializar em outras partes.”
176 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS
REFERÊNCIAS:
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
CARNEIRO, Amanda; FONSECA, Raphael (Orgs). Sonia Gomes: a vida renasce/ ainda me le-
vanto. Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC) e no Museu de Arte de São Paulo
Assis Chateaubriand (MASP). São Paulo, MAC: Niterói: MASP, 2018.
ROSA, Aline Nunes da. Sobre mudar de paisagens, sobre mirar com outros olhos - [manuscri-
to]: Narrativas a partir de deslocamentos territoriais. Tese (Doutorado) - Universidade Federal
de Goiás, Faculdade de Artes Visuais (FAV), Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura
Visual, Goiânia, 2015.
Um jeito de dar uma volta, tecelagem em algodão, 73 x 28 cm, Rayana Rayo, 2020.
2 Artista visual pernambucana autodidata Rayana Rayo iniciou sua produção artística em 2015,
paralelamente ao seu ofício como advogada, num processo constante de experiências e descobertas
junto ao grupo de estudo de modelo vivo Risco! A partir de 2016, começou a se dedicar integralmente
às artes, montando seu atelier no Ed. Pernambuco.
UM JEITO DE DAR UMA VOLTA 179
A ARTISTA-MÃE
O pensamento decolonial, por sua abordagem conceitual de pluralidade de
perspectivas, possibilita enxergarmos a arte de forma mais sensível. O filósofo his-
toriador Theóphile Obenga (2004) ensina que, para a filosofia africana tradicional,
o conceito de “arte” era visto de maneira ampla, para além do objeto material, cujo
fazer artístico em esculpir uma estátua, por exemplo, “é tornar a vida (ankh) em si
mesma como uma coisa real. Uma estátua vem a ser um poder; é a existência locali-
zada do poder (ka) de alguém” (OBENGA, 2004, p. 12).
Ser artista é uma experiência complexa. Para mim, apenas excelência de traços
e controle de ação, do fazer e do sentir não conseguem resumir o ofício. Primeiro e
especialmente, ser artista é a permissão que alguém se dá para abrir os portais de
dentro e descobrir-se nas suas raízes, na originalidade e espontaneidade do ser. Ao
criar, apresenta-se algo sobre a potência do sensível. O processo é uma conversa
perigosa e honesta consigo e com o meio, cuja entrega nos torna vulneráveis pela
constante imprevisibilidade, nos fazendo sentir a força que as imagens carregam
através dos signos mentais que se materializam.
Para a pesquisadora Cecília Salles, “a criação realiza-se na tensão entre limite
e liberdade: liberdade significa possibilidade infinita e limite está associado a enfren-
tamento de leis” (SALLES, 2008, p. 63). Como artista, essa tensão criativa é experien-
ciada como uma autoanálise durante as possibilidades que são, intencionalmente ou
não, inventadas durante o fazer artístico. Porém, o processo também é influenciado
por fatores externos.
Exponho aqui a existência de dois fatores que atravessaram o processo da obra
de tecelagem Um jeito de dar uma volta: a pandemia do Covid 19 e a maternidade.
As ações criativas são direta e indiretamente ligadas ao momento histórico,
em seus aspectos social, artístico e científico em que o artista vive. É um momento
em que o diálogo com a tradição torna-se mais explícito, cujas opções do processo,
aparentemente individuais, estão inseridas na coletividade dos precursores e con-
temporâneos (SALLES, 2008). A condição de uma artista-mãe é extremamente frágil.
Estando isolada por mais de um ano dentro de casa, a carga mental torna-se pesada
pelo futuro incerto da humanidade, enquanto tem que se desdobrar entre as tarefas
domésticas, os cuidados afetivos, alimentícios e higiênicos do filho, além dos seus
próprios cuidados pessoais e seu trabalho e processo criativo.
Nesse contexto, o fazer artístico da peça de tecelagem Um jeito de dar uma
volta, produzido em tear manual de pregos num chassi antigo, aconteceu na sala
de estar, dentro de casa, entre mamadas e cochilos do filho, durante a pandemia.
Cícero, de 2 anos, participa do meu processo criativo, involuntariamente, se expon-
do durante o fazer, gerando em mim perspectivas pluriversais desse processo, que
nem sempre são prazerosas, mas que sempre despertam reflexão sobre a precária
condição da artista-mãe.
Criar uma pessoa e um tecido são experiências profundamente afetivas, e es-
sas criações nos transformam em seres plurais. Todas as experiências que envolvem
o processo são manifestadas de forma atravessada e conjunta pelos fatores externos
da pandemia e da maternidade, mas as intenções se conectam para um mesmo fim,
180 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS
Se, por um lado, as imagens são uma ferramenta para manutenção de relações
de poder e (re)produção de estereótipos, mitos, tradições e representações, por ou-
tro, também servem como instrumentos para construção de discursos contra-hege-
mônicos e outras formas de (auto)representação (DE NORONHA, 2019). Assim, tudo
que é construído de forma consciente dentro do meu processo criativo, apesar dos
atravessamentos incômodos, é intencionalmente carregado de um poder particular,
capaz de representar-me no todo, materializando o grito preso, fazendo existir outro
tipo de eu, algo completamente livre imageticamente, apesar de sempre preso ao
urdume.
A tecelagem, experiência singular de conexão entre duas partes, urdume e
trama, revela no tecido a importância do signo (matéria) como portador de ideias
(espírito). O processo de tecer se desdobra em uma espécie de autoanálise, que gera
possíveis entendimentos e ressignificações das origens das coisas e dos sentimentos.
Tramar o urdume envolve explorar o olhar sobre questões particulares surgidas atra-
vés das próprias experiências de criação, enriquecendo o fazer de significados origi-
nais do indivíduo, que, por sua vez, se inter relacionam pluriversalmente com o meio.
Para tensionar um urdume, são necessárias duas mãos; para amamentar, é
necessário o corpo todo, incluindo o olhar. Para criar uma obra na pandemia foi ne-
cessário solidão, corpo, foco, espaço, tempo e entrega. Para criar um filho na pan-
demia foi necessário presença, corpo, foco, espaço, tempo e entrega. A decisão de
criar, entender e aceitar as transformações do processo criativo através das inúmeras
intervenções e remendos que a maternidade proporciona são práticas que se asse-
melham ao equilibrista de pratos.
Na arte têxtil, o ato de tecer é também o ato de criar, e criar é dar vida às
próprias imagens e pensamentos, que por sua vez são carregados de força e poder
particulares. O resultado da criação concretiza uma extensão do real, porque os seus
caminhos, por mais que sejam formulados utópicos, partem do real (OSTROWER,
2013).
Quando se arma o urdume, é necessário concentração no caminho da linha,
tensionada pelas mãos que, de tão firmes e delicadas, conseguem estruturar no
espaço um caminho seguro para a trama. É nela, no momento da trama, então, que
manifesto o poder da criação. Através de um isolamento que limita meu corpo e o
chão; a casa que moro e minha rua; os cuidados com meu filho e meu descanso;
os desejos e a louça suja. Através dos limites invisíveis que me impedem de dar
uma volta pelo meu quarteirão, em qualquer horário e sentido, eu trancei um tipo
de pássaro capaz de se perder da minha vista, de tão distante que ele passeou. Só
ele sabe o que viu e sentiu nesse passeio fora das linhas. Eu só consigo entender o
seu retorno porque suas penas têm o mesmo desenho do pássaro que foi passear,
escapulido de minhas mãos.
Um jeito de dar uma volta conta a história da artista-mãe que insiste em
sonhar alto. O pássaro no tecido materializa o poder de encontrarmos outras for-
mas de sairmos por aí. Seja mergulhando em linhas, seja rodando em círculos,
seja fechando os olhos. Talvez tenha sido um momento em que a artista-mãe cha-
mou o arquétipo da mulher para expressar seus desejos de rua, de espaço, de
182 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS
REFERÊNCIAS:
OBENGA, Théophile. Egypt: Ancient History of African Philosophy. In: KWASI, Wiredu (ed.).
Tradução Vinícius da Silva. A Companion to African Philosophy. Massachusetts: Blackwell
Publishing, 2004.
SALLES, Cecília. Gestos Inacabados: Processo de Criação Artística. São Paulo: Fapesp. Editora:
Annablume, 2008.
NO QUARTO DE DORMIR 1
Louise Gusmão2
No quarto de dormir, Bordado com cabelo humano e linha sbre tecido e tule, 16 cm x 13 cm,
Louise Gusmão, 2020.
OS LIAMES DA MEMÓRIA
A sociedade em que vivemos é, por sua natureza, diversa e variável. É forma-
da por indivíduos, comunidades e grupos que pensam e se relacionam de maneiras
diferentes, e que muitas vezes têm necessidades completamente opostas e incom-
patíveis em princípios e ideais. Desses grupos, surgem movimentos como forma de
organização coletiva com o intuito de obter transformações e conquistas sociais ba-
seados em seus valores e ideologias. Dentre esses movimentos sociais, o feminismo
vem se evidenciando ao longo da história. Desde o seu início nas primeiras décadas
do século XIX, o movimento feminista passou por grandes processos e mudanças se
adequando a cada momento histórico e conjuntura da época. Suas causas e lutas fo-
ram, e são, responsáveis por grandes mudanças nas relações entre os sexos feminino
e masculino e que têm como bandeira principal, uma sociedade livre da hierarquia
de gênero.
Mas, ainda hoje, paira sobre as mulheres feministas — que há séculos lutam
por mudanças sociais, equidade e igualdade, que propõem uma nova maneira de
pensar o mundo, o lugar feminino na sociedade e as políticas de direito ao próprio
corpo — a espada do estigma e do estereótipo de mulheres infelizes, histéricas,
feias, mal amadas, “não femininas”, repelidas pelos homens, com o propósito claro
de continuidade de um pensamento misógino e patriarcal do cerceamento ao direito
da construção da identidade feminina sob novos conceitos e parâmetros. A histo-
riadora feminista Margareth Rago (2001), em seu artigo, “Feminizar é preciso: por
uma cultura filógina”, faz uma reflexão sobre o lugar do feminino em nossa cultura
e as reações de misoginia que as lutas feministas e de emancipação da mulher têm
provocado e como as mulheres continuam a ser desqualificadas por esses rótulos,
dificultando, ainda nos dias de hoje, sua atuação política, social e econômica. Ela
também propõe a construção de uma cultura filógina, ou seja, a aceitação das práti-
cas e lutas feministas na constituição desta sociedade.
Tratava-se de labor e não de arte” (SIMIONI, 2007, p. 97). Provocando, desta manei-
ra, o apagamento feminino e excluindo assim, as mulheres do sistema da arte, sendo
que “desde os anos 1970, a história da arte feminista aponta que a inexistência de
nomes femininos canônicos deve-se não a ausências naturais de qualidades intelec-
tuais ou artísticas, mas sim a uma prática sucessiva, mais ou menos institucionaliza-
da, de exclusão das mulheres do campo artístico” (SIMIONI, 2007, p. 91).
Essa estigmatização no campo têxtil está arraigada ainda aos fatores familia-
res patriarcais, que atrelavam essas práticas apenas com afazeres domésticos que
eram passados durante gerações, de mães para filhas. Essas convenções criaram um
estereótipo de prática amadora, voltada unicamente para os espaços íntimos do lar,
relacionados ao recato e exclusão, confinando a mulher aos domínios domésticos,
privando-a do convívio social. Associados às atividades menos intelectualizadas, li-
gando o conceito das artes têxteis ao conceito de “feminilidade”.
O conceito de pureza, delicadeza e recato associados à feminilidade criou ou-
tro obstáculo para as mulheres: o seu afastamento e exclusão da academia. Em seu
ensaio de 1971, “Por que não houve grandes mulheres artistas?”, Linda Nochlin narra
que, o que levou de fato, a essa invisibilidade, foi a circunstância de mulheres que
queriam seguir a carreira artística serem impedidas de frequentarem as aulas de mo-
delo vivo, nas academias. Como consequência, as artistas mulheres nunca poderiam
ter alcançado o status que obtinham os artistas homens por não poderem frequentar
as aulas de modelo vivo.
O mito do “grande artista”, ligado à genialidade masculina, foi proposto por
Vasari, no Renascimento, em que se reforçava a Aura mágica oriunda das artes repre-
sentacionais baseadas no desenho. Artes designadas a quem era dotado de superior
capacidade intelectual, proveniente de um padrão de habilidade técnica, que era
adquirido durante as aulas de pintura, escultura e desenho, através da prática da
observação de modelos vivos, nus. Com isso, as outras categorias de arte foram con-
sideradas como inferiores, relacionadas ao artesanato e às mulheres, como gêneros
menores. Ou seja, “as mulheres, seres intelectualmente inferiores, eram vistas como
capazes de realizar apenas uma arte feminina, ou seja, obras menos significativas do
que aquelas feitas pelos homens geniais: as grandes telas e esculturas históricas”
(SIMIONI, 2007, p. 94).
A filósofa e ativista feminista Silvia Federici (2017), narra em seu livro Calibã e a
bruxa, que esse processo de desvalorização da mão de obra feminina se arrasta desde
a Idade Média. Que até o final do século XVII as mulheres foram subjugadas a “não
trabalhadoras” porque os homens se negavam a dividir o campo de trabalho com elas,
sobrando assim, apenas os postos de status mais baixo, como os de tecelãs, fiandeiras,
bordadeiras, vendedoras ambulantes e amas de leite. E assim, surgiu a ideia de que
as mulheres não precisavam sair de casa para trabalhar, mas apenas ajudar na produ-
ção do marido. Tratava-se de um trabalho feito dentro de casa que não possuía valor
comercial, sendo rotulado como “não trabalho”. Federici (2017, p. 182) aponta que
“se uma mulher costurava algumas roupas, tratava-se de “trabalho doméstico” ou de
“tarefas de dona de casa”, mesmo que as roupas não fossem para a família, enquanto,
quando um homem fazia o mesmo trabalho, se considerava como “produtivo”.
NO QUARTO DE DORMIR 187
Muito embora nas casas das famílias mais abastadas, como nas grandes fa-
mílias tradicionais brasileiras, essa fosse a regra, nas capitais progressistas já havia
mulheres de famílias pobres que trabalhavam na agricultura, na indústria e nos lares
das mais ricas. No século XX, as mulheres passaram de dona de casa ao papel de es-
teio da família, com a industrialização, saíram de dentro de seus lares para trabalhar
fora, muitas delas têm agora o papel de chefes de família.
Atualmente, essas práticas vêm sendo renovadas, o que era tido apenas como
prendas domésticas, passou a ser chamado de artesanato e milhares de mulheres
fazem disso a sua principal atividade financeira. Muitas vezes, toda a família trabalha
em torno de uma tipologia de artesanato. Desta maneira, as tradições e manifesta-
ções de costumes culturais estão ressurgindo, resgatando identidades de povos que
já estavam quase extintas.
NO QUARTO DE DORMIR
A oportunidade de participar de Tramações: a memória e o têxtil ocorreu em
um momento em que eu estava refletindo muito (e ainda estou) sobre a condição
da mulher vítima de violência familiar, presa e isolada com seu agressor, durante a
pandemia. Foi quando eu vi correr nas redes sociais a seguinte corrente: “Se você é
mulher e já sofreu algum tipo de violência, ou assédio de um homem, comente com
um ponto (.)”. E logo me perguntei: “Qual mulher nunca sofreu isso?”. Este trabalho
surgiu como um grito de socorro.
Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a cada 8 minu-
tos, acontece um estupro no Brasil. São 180 estupros por dia. 63% dos casos cometi-
dos são contra vulneráveis. Mais da metade das vítimas de estupro, têm até 13 anos.
Mais de 20 mil meninas de até 15 anos ficam grávidas por ano. 75% das vítimas de
estupro conhecem seus agressores. 27% das mulheres com 16 anos ou mais sofre-
ram algum tipo de violência nos últimos 12 meses. Em brigas de casais (com indícios
188 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS
está acabada, que dela, muitos desdobramentos virão, como bem disse meu querido
orientador, Prof. Me. Artur Souza, “o processo, para artistas como nós, é a vida. Só
termina quando morremos”.
Acho que essa fala resume bem o que é ser um artista-pesquisador, uma ar-
tista-pesquisadora, mas há de se atentar, que o/a artista-pesquisador/a, não fique
preso/a aos muros acadêmicos. Temos que levar a pesquisa para fora dos muros da
Universidade, para os bancos das escolas, para o meio da sociedade que vivemos.
Precisamos efetivamente estabelecer as relações entre os conceitos que produzimos
e as questões que nos cercam no mundo, promovendo assim, um debate mais amplo
e fundamentado a respeito da arte e as questões de gênero. O mundo precisa da
arte, o mundo precisa pensar a arte e o que ela significa na vida das pessoas.
REFERÊNCIAS:
BAMONTE, Joedy Luciana B.M. Legado- gestações da arte contemporânea: leituras de ima-
gens e contextualizações do feminino na cultura e na criação plástica. São Paulo: Universidade
de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, 2004.
CATTANI, Icleia Borsa. Mestiçagens na arte contemporânea. Porto Alegre: UFRGS, 2007.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Elefante, 2017.
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Aurora, 2016.
RAGO, Margareth. São Paulo em Perspectiva. Fundação SEADE, v. 15, n. 3, p. 53- 66, 2001.
SIMIONI, Ana Paula Cavalcante. Regina Gomide Graz: modernismo, arte têxtil e relações de
gênero no Brasil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, v. 45, p. 87- 106,
2007.
190 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES
A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES
OBRA 273: UN PROCESO CREATIVO
A TRAVÉS DEL TIEMPO
Jorge Elías Chaij1
Obra 273, Acrílico y materiales reciclados, 45 x 42,5 cm, Jorge Elías Chaij, 2019.
1 Jorge Chaij nace en Córdoba, Argentina en 1975. En 2001, con formación académica ligada al
Grabado egresa de la Escuela de Artes de la Universidad Nacional de Córdoba. Manifiesta interés por
la abstracción, lo urbano, la geometría y la tridimensión. Realiza murales de gran formato en mosaico,
estudió el profesorado y ejerce la docencia, experiencias y elementos con los que refuerza su obra
desde el conocimiento y la manipulación de ciertos materiales.
192 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES
donde juegan un rol esencial el volumen y la textura, donde todo lo demás está
subordinado a ellas.
Mi obra es abstracta, tridimensional, uso texturas visuales y táctiles, para mos-
trar las marcas que dejan el paso del tiempo, los accidentes que ocurren a su paso.
La intención es que ningún elemento corra mejor suerte que otro; una mancha, una
incisión, una huella, un descuido, y el azar voluntario poseen una carga significativa
y equivalente.
Me preocupa la injerencia humana en el medio ambiente, pero a la vez hay pe-
dazos de realidad que me deslumbran y los quiero mostrar, óxidos, golpes, rayones,
el tiempo que moldea a su antojo todo lo que toca y nos rodea, y a nosotros también,
por dentro, por fuera, cambiamos, mutamos, nos oxidamos. Lo urbano desplaza lo
natural, destruye el medio que invade y consume todo a su paso, consumo sin mayor
necesidad que la de consumir, por lo que trato de combinar, reciclar y reutilizar la
mayor cantidad posible de materiales, desde allí, telas, hilos, arena, alambre, papel,
cartón, y cualquier material no degradable pueden ser parte. Busco dejar la menor
huella posible en este mundo, huellas que muestro en mi trabajo; contradicción,
dualidad, presente en la mayoría de mis obras, traducidas en ciertos esquemas de
figura y fondo. Tratando siempre de que cada una de ellas se integren con el fondo
y así lograr interés en el conjunto total de la composición. Obras sin nombre para no
identificar ni ubicar en contexto al espectador, que cada quien complete a su antojo
el recorrido visual sin orientaciones, guías ni límites, sólo numeradas como en una
tirada de Grabado, cronología para saber dónde empezó y hasta donde llegará mi
obra.
En esta etapa del proceso creativo, y desde hace varios años, incursiono en
el círculo, siempre salir del formato tradicional o comercial del cuadrado o del rec-
tángulo fue la premisa. Usando distintos formatos no tradicionales llego a utilizar
el circulo como base, soporte y contenedor de mi obra, buscando la simplicidad o
abstracción en relación directa con la expresión más mínima del lenguaje, la mínima
unidad, el punto.
Apartando así también la idea de obras donde el marco sirve de separador,
más que contenedor entre la obra y el medio, lugar que en mi trabajo no existe,
o más bien la función de este supuesto marco o soporte es el de reforzar una idea
por medio de materiales más concisos que el blanco del papel o el lienzo, dejando
de lado las funciones de separación para así unificar la obra con el medio en el cual
deben coexistir.
Esta obra, en la que incursiono en el bordado, lleva a flor de piel la dualidad
con la que me enfrento en muchas de mis obras, no solo en lo formal y lo visual, sino,
además, esta vez, en temperatura.
Al tocarla, el lado izquierdo, es sólido, esta frio, es frio. Se superpone por en-
cima del resto de la obra, la invade, avanza. Representa desde lo formal y emulando
el cemento de la ciudad, toda estructura social o urbana que contiene al hombre y
lo separa de la naturaleza, lo salvaje, el entorno. Utilizo tonos verdes remembrando
naturalezas perdidas, colores mezclados, velados, un color que construye por medio
de armonías y contrastes de tonos significativos, inseparables de la sugestión de la
OBRA 273 193
REFERÊNCIAS:
MARX, K. O Capital: Livro I, Volume II. São Paulo, Nova Cultural, 1985.
SIMÓN, Marchan Fiz. Del Arte Objetual al arte de Concepto. Madrid: Editorial Akal, 2012.
DES[A]FIAR: IDENTIDADES DOCENTES
COSTURADA ÀS VIVÊNCIAS DO ESTÁGIO
SUPERVISIONADO EM ARTES VISUAIS
João Paulo Baliscei1
Jéssica Fiorini Romero
Flávia Fiorini Romero
Regina Ridão Ribeiro de Paula
Thalia Mendes Rocha
1 "Andarilhas entre tramas docentes" é um coletivo formado por Flávia Fiorini Romero, Jéssica Fiorini
Romero, Regina Ridão Ribeiro de Paula e Thalia Mendes Rocha, graduadas em Artes Visuais pela
Universidade Estadual de Maringá (UFM), e pelo Prof. Dr. João Paulo Baliscei (UFM).
196 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES
uma próxima pessoa pudesse levar o DES[a]fiar (2019) para sua cara e, assim, conti-
nuasse esse exercício. Semelhante a Borre (2020, p. 42) que, em atividade com suas
alunas, manifestou o desejo de “que minhas narrativas criassem, instigassem, provo-
cassem, rasgassem, rompessem e/ou fraturassem outras histórias”, o professor, ao
iniciar esse projeto convidou-nos a estar com ele.
A partir desta primeira intervenção individual, o DES[a]fiar (2019) seguiu,
semana após semana, sendo trabalhado, retalhado, interposto, mediado, bordado,
acrescido de outros tecidos, outras vezes rasgado. Entre as tramas que nos cons-
tituíram como estagiários/as, em meio às observações e intervenções no Centro
Municipal de Educação Infantil, nossas criações, em casa, constituíram o DES[a]fiar
(2019) como obra. Engraçado recordar que, por vezes, essa obra chegava à universi-
dade de carro, e voltava a pé, ou de bicicleta e que suas tramas dialogaram com os
diferentes espaços habitados por cada estagiário/a daquela turma.
Conforme avançavam-se as observações, anotações, planejamentos de aula,
elaboração de recursos didáticos, intervenções e os vínculos com as crianças do
CMEI — todos materializados em nossas intervenções no DES[a]fiar (2019) — aos
poucos, o tecido branco já não era mais tão branco assim, sendo transformado por
bordados, costuras e recortes. Esse retalho uniu-se a outros retalhos, com inserções
de diversas formas, tamanhos, cores e texturas, dobras, sobreposições, acréscimos
e avessos que guardam lembranças e (res)significações de cada aluno/a e também
do professor.
A experiência de materializar artisticamente o DES[a]fiar (2019) colaborou na
construção da identidade docente dos/as envolvidos/as, permitindo reflexões sobre
as experiências individuais e coletivas, de forma a expressar suas subjetividades,
artisticamente. Outra configuração que transpassou os processos de criação dessa
obra foram os momentos em sala de aula, quando cada artista discente comparti-
lhou com os/as colegas e professor da turma as suas ideias, reflexões e impressões
com relação às suas intervenções no DES[a]fiar (2019). Como o tempo foi limitado
dentro da disciplina de Estágio Supervisionado em Artes Visuais I, por conta das de-
mais atividades que realizávamos (como as observações e intervenções no CMEI),
as conversas em torno do DES[a]fiar (2019) acabaram também por possibilitar uma
maior aproximação entre o/a “outro/a” e o “eu”, entre os sujeitos que mesmo en-
volvidos/as em processo próximos de criação e de docência, não necessariamente
enxergavam essa proximidade.
É importante destacar que os processos criativos que envolveram a produção
do DES[a]fiar (2019) foram conduzidos a partir dos temas: Formação docente;
Educação Infantil; Escola; Práticas de estágio e Docência em Artes Visuais, que atua-
ram como espécies de eixos para nossos pensamentos e ações.
Enquanto estagiários/as de Artes Visuais, com essa prática reflexiva e
criativa colada ao Estágio Supervisionado, foi-nos possível ser mais reflexivos e
críticos/as quanto às nossas ações como professores/as. Como afirma Lampert
(2005, p. 153), precisamos, sob essas condições, “questionar constantemente
nossa prática educativa para tentar ver onde poderíamos fazer melhor da pró-
xima vez”.
200 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES
de cada intervenção feita por nós. As intervenções do DES[a]fiar (2019) nos acom-
panharam nesse processo de formação docente, e mesmo marcado como trabalho
finalizado, a cada passo que o observamos, o ressignificamos de maneiras diferentes
daquelas de nossos primeiros dias de observação e intervenção. De modo semelhan-
te, Borre (2020, p. 44), que se preocupa com o processo de externalizar e projetar
as vivências da formação docente, argumenta que se espera que as/os estudantes
REFERÊNCIAS:
BALISCEI, João Paulo; PAULA, Regina Ridão Ribeiro de. Bebês também aprendem (com) as
Artes Visuais: Criação de recursos didáticos a partir dos Peixes de Aldemir Martins. Revista
Educação e Linguagens, Campo Mourão, v. 9, p. 416-434, 2019. Disponível em: http://www.
fecilcam.br/revista/index.php/educacaoelinguagens/article/view/2133. Acesso em 11 de
mar. 2020.
BALISCEI, João Paulo. Arte na Educação Infantil: Bebês brincando e aprendendo com
202 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES
Recursos Didáticos-Brinquedos. In: Ivanio Dickmann. (Org.). Educar é um Ato de Amor. 1. ed.
Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020, v. 2, p. 187-204.
BERNARDET, Jean-Claude. O processo como obra. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 10-11,
13 jul. 2003. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1307200307.htm.
Acesso em: 31 jan. 2021.
LAMPERT, Jociele. Estágio supervisionado: andarilhando no caminho das Artes Visuais. In:
OLIVEIRA, Marilda Oliveira de; HERNÁNDEZ, Fernando (orgs.). A formação do Professor e o
ensino das Artes Visuais. Santa Maria, Ed. UFSM, 2005, p. 149-157.
PAULA, Regina Ridão Ribeiro de; BALISCEI, João Paulo. Processos de criação de arte educado-
res/as: a elaboração de recursos didáticos-brinquedos para que bebês aprendam (com) arte.
Revista Apotheke, Florianópolis, v. 6, p. 73-85, 2020. Disponível em https://revistas.udesc.br/
index.php/apotheke/article/view/17355/11897. Acesso em: 4 fev. 2021.
PAULA, Regina Ridão Ribeiro; ROCHA, Thalia Mendes; BALISCEI, João Paulo. Arte
Contemporânea e o uso de Recursos Didáticos-Brinquedos: Uma vivência com os (In)
Utensílios de Hélio Leites no Ensino de Artes Visuais. O mosaico Revista de Pesquisa em
Artes, Curitiba, n.19, p.163-186, 2020. Disponível em: <http://periodicos.unespar.edu.br/in-
dex.php/mosaico/article/view/3527/pdf_105>. Acesso em 04 de fev. 2021.
ROCHA, Thalia Mendes; BALISCEI, João Paulo. Convite à Arte Contemporânea: Repensando
as referências de Arte na Educação infantil. In: DICKMANN, Ivanio (Org.). Educar é um Ato De
Coragem, Veranópolis-RS: Diálogo Freiriano. Volume VI. 2020, p. 283-304.
ROMERO, Jéssica Fiorini; BALISCEI, João Paulo. “Deixar o mundo ser salvo pelos homens?
Claro que não!” Estudo sobre protagonismo feminino em filmes de animação. In: DICKMANN,
Ivanio (Org.). Educar é um Ato De Coragem, Veranópolis-RS: Diálogo Freiriano. Volume III.
2020, p. 43-64.
LINEARIDADE HÍBRIDA
Kathy Carvalho1
Linearidade híbrida, Patchwork de bioplástico caseiro, Kathy Carvalho, 2020. Vídeo Suplemento
Narrativo disponível em: https://vimeo.com/479638367
1 Licencianda em química pela Unicap/PE. Dedica-se à arte-ciência e sua pesquisa dialoga com biologia,
engenharia e moda.
204 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES
PATCHWORK DA INTERCULTURALIDADE
Considero as produções artísticas uma colcha de retalhos, onde a prática do
fazer é o dispositivo científico-metodológico, atravessado pela reflexão sistêmica en-
quanto sujeito político. Logo, optar por um material natural ou artificial gera efeitos
de causalidade que, embora pareça algo isolado, um compromisso unilateral, resulta
que essas escolhas têm papel preponderante em escala planetária. Isto é similar ao
abismo entre o perceptível e o intangível que tivemos contato no período pandê-
mico, onde as limitações humanas são a própria capacidade em crer, dado que as
experiências pessoais não abarcam esse contexto histórico que estamos vivendo, ou
seja, não temos um manual de como lidar com esse vírus especificamente.
Esmiuçar o cenário político e econômico ocasiona perceber que não há coin-
cidência na ordem dos acontecimentos com a ordem contada pela história, do qual
o consumo consciente não passa de um paradoxismo. E independente do posicio-
namento ideológico, sendo todo posicionamento uma atitude política, quando esse
aspecto é ignorado, beiramos o risco do esvaziamento de sentido, podendo às vezes
criar uma mera representação manipuladora. Essa problemática é salientada por
Adorno (2009, p.97) ao dizer que “a escolha de um ponto de vista subtraído da órbita
da ideologia é tão fictícia quanto somente o foi a elaboração de utopias abstratas”.
Atrelado a isso, a construção de sentido só é possível através de afeto, como se fizes-
se uma síntese do momento em que forma, estética e afeto são gatilhos de significa-
do. Retifico que toda escolha está parcialmente embrulhada de ideologias e, mesmo
que isso não seja posicionado abertamente, a estética está ligada com a questão
social a contrastar com quem as define (como a cultura periférica por tanto tempo
desprezada e definida por outras vozes). Isto posto, ao assumir estratégias de sobre-
vivência marginalizadas enquanto modo de inventividade, as enxergamos como um
LINEARIDADE HÍBRIDA 207
LINEARIDADE HÍBRIDA
A proposição para terceira edição de Tramações: a memória e o têxtil foi a
poética Linearidade híbrida, constituída pela intersecção de bioplásticos de tapioca
no formato de dois círculos de aproximadamente 30 x 30 cm, em pigmento afro-in-
digena (índigo marroquino e cochonilha mexicana) e um pompom emergido em um
retângulo de 16 x 12 cm pigmentado com violeta genciana. O formato de dois círcu-
los se encaixa dentro da codificação de formas de maneira não dogmática, conhecida
como geometria não-euclidiana. Esse pensamento matemático é utilizado tanto para
desenhar um ponto de fuga, a chamada projetiva, quanto na teoria da relatividade,
calculando movimento/velocidade, permitindo que a tal variável de uma função ten-
der ao infinito faça sentido na prática. Sua premissa está em usar uma métrica de
medida diferente para uma superfície curva-côncava, revelando que a noção do que
vemos está limitado para o tamanho do espaço ao nosso redor. Também apresentei,
em Tramações, o vídeo Suplemento Narrativo, sobre as ramificações sinestésicas do
processo criativo, utilizando o neologismo do pensamento e a expressão da matéria
conceitual a partir do método de comunicação não-convencional.
Há também uma observação sobre a forma dos círculos, onde os paradoxos
apresentam a concepção dos “sólidos impossíveis”, as distâncias entre os elementos,
LINEARIDADE HÍBRIDA 209
50 g de massa de tapioca
60 ml de água
30 ml de vinagre
5 ml de glicerina
REFERÊNCIAS:
ADORNO,Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2009.
BOURMEAU, Sylvain; HARCHI, Kaoutar; MBEMBE, Achille. Entrevista com Achille Mbembe.
2020. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2020/08/17/brutalismo-do-antropo-
ceno-entrevista-co m-achille-mbembe/. Acesso em: 23 fev. 2021.
BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1988.
ECO, Umberto. A estrutura ausente: Introdução à pesquisa semiológica. São Paulo: Editora
Perspectiva S.A., 1991.
HALIMATUL, M. J. ; SAPUAN, S. M.; JAWAID, M.; ISHAK, M. R.; IlYAS, R. A. Water absorption
and water solubility properties of sago starch biopolymer composite films filled with sugar
palm particles. Czasopismo Polimery (Revista Polímeros). n. 19, v.64, 2019, p. 595-603.
LEVY, Steven. Hackers: Heroes of the computer revolution. New York: Anchor Press, 1984.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: A moda e seu destino nas sociedades modernas.
São Paulo: Editora Schwarcz LTDA,1999.
MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio
de Janeiro: Zahar, 2013.
ESCRITAS CURATORIAIS
COSTURANDO MEMÓRIAS:
CARTOGRAFANDO NARRATIVAS
Maria Betânia e Silva3
3 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2010). Mestra em Educação
pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Graduada em Educação Artística/Artes Plásticas -
Licenciatura pela Universidade Federal de Pernambuco (1992). Graduanda em Filosofia pela Universidade
Federal de Pernambuco (2020). Professora da Graduação e do Programa Associado de Pós-Graduação
em Artes Visuais UFPE/UFPB. Atua no Ensino das Artes Visuais com ênfase nas temáticas: memórias,
história do ensino de arte, formação docente em arte, práticas pedagógicas em arte.
COSTURANDO MEMÓRIAS 213
https://www.instagram.com/p/CHyFKhvl9pz/
Fitando Lugares, desenho e linha sobre tecido voil, 15x9 cm, Liz Santos, 2020
https://www.instagram.com/p/CHxtnWXF-N9/
214 ESCRITAS CURATORIAIS
Sismograma da dor, crochê em fio de lã merino, 100x 30cm, Nara Coló Rosetto, 2020.
COSTURANDO MEMÓRIAS 215
Mapeamento de Pequenas Narrativas Quase Invisíveis, Bordado, 42cmx47cm, Juliane Xavier, 2020.
216 ESCRITAS CURATORIAIS
Ana Paula aproveitou esse desafio buscando mergulhar para dentro de si e observar
os ciclos de seu próprio corpo, suas emoções e pensamentos. Estabeleceu relação
direta com a lua, representação do feminino, vivenciando rituais ancestrais que atra-
vessam o tempo tentando encontrar pontos de equilíbrio com a terra, o ar e o espaço
num movimento cíclico de retroalimentação.
Na escuta interna profunda, a artista aborda relatos de experiências vividas
durante três meses de quarentena e suas histórias se conectam a muitas outras his-
tórias de mulheres pelo mundo afora, abrindo novos caminhos cartográficos que
rompem fronteiras socioculturais, econômicas e étnicas.
Esse processo dialógico de internalização/externalização se vincula ao que
Candau (2012) afirma sobre as falhas de memória, os esquecimentos e as lembran-
ças carregadas de emoção, pois o autor sustenta o entendimento de que elas estão
sempre entrelaçadas a uma consciência que age no presente. Porque a memória
organiza os traços do passado em função dos engajamentos do presente e logo por
demandas do futuro. A lembrança não contém a consciência, mas a evidencia e ma-
nifesta, é a consciência mesma que experimenta no presente a dimensão de seu
passado.
Na produção de um vídeo, Liz Santos, reflete sobre a fugacidade dos encontros
no intenso e dinâmico cotidiano das cidades. O aparentemente, comum e trivial se
torna matéria prima para sua produção artística que atravessa questões existenciais
profundas.
Valendo-se da lenda chinesa Akai ito que apresenta a existência de um fio ver-
melho que une as pessoas, a artista materializa a ideia de uní-las com este fio verme-
lho, emaranhar, esticar e adaptar às múltiplas formas de adversidades atravessadas
em algum momento da vida, rompendo os limites do tempo e do espaço.
Nesse sentido, as reflexões costuradas se unem à definição de memória apre-
sentada por Candau (2012), entendendo-a como uma reconstrução continuamente
atualizada do passado.
A memória está relacionada diretamente com o tempo e o espaço. No tempo
e no espaço, experimentamos sensações, sentimentos diversos, descobertas, viven-
ciamos emoções que vão de um extremo ao outro. Muitas entendemos, mas várias
delas ficam no território do desconhecido. Assim, Nara se debruça sobre o esmiuçar
do tempo em dias e horas. O tempo que não cessa. O tempo que passa a ser repre-
sentado pela matéria têxtil, pela linha, em seus múltiplos movimentos e direções,
pela cor, pela dinamicidade do movimento sismográfico, como um terremoto que
adquire um novo corpo após sua ação.
Desse modo, as lembranças e esquecimentos são elementos que vão fazendo
parte do jogo da memória e é nesse jogo cartográfico que fazemos as escolhas me-
moriais para registrar o que fica daquilo que vivemos.
Juliane Xavier mapeia violências que seu corpo carrega cotidianamente e que,
muitas vezes, são invisibilizadas por serem banalizadas socialmente. Mas, potencial-
mente, a artista borda e expõe essas narrativas como atitude política e de cura das
feridas provocadas por outros.
Como um exercício de interiorização, transgressão e libertação, a ação do
220 ESCRITAS CURATORIAIS
dos arremates, laços e nós, Laura Melo, em sua produção artística, trança histórias
afetivas com a matéria têxtil, as linhas e as agulhas. Desembaraçar, desatar, guiar,
dançar com as linhas foram exercícios aprendidos desde a mais tenra infância.
Processos de ensino e aprendizagem que atravessaram as gerações de mulheres
de sua família e estabelecem um diálogo com muitas outras mulheres para além de
possíveis fronteiras culturais pelo mundo afora.
O tecido se expande por laços de sangue e por manualidades, se valendo de ins-
pirações na experiência criadora. Sua avó, assim como em outras narrativas presentes
nesse texto, ocupa um lugar especial em seu interior, em sua trajetória, em sua história.
As memórias são ativadas ao relembrar que entre os cuidados com os filhos,
costurou roupas por encomenda e bordou para a família. E os sentimentos de dor e
de perda se materializam na obra Esqueço, em sua homenagem. A memória se esvai,
falha, esquece, apaga, assim como a vida que surge, se desenvolve e desaparece.
Seguir os caminhos das linhas é uma forma de mantê-la viva, é seguir lem-
brando, enquanto ela foi esquecendo, quase como um desejo de imortalizar o que
perece, o que não temos controle enquanto seres finitos nessa dimensão.
A artista reforça em sua narrativa visual o processo do esquecimento de sua
avó, ação constituinte da memória: lembrar e esquecer. Imersa no território, acom-
panha os percursos, cartografa os afetos, as falas, os silêncios, os processos de pro-
dução construindo conexões de redes, como traçados do plano da experiência.
Por fim, Alinhavadas as produções artísticas, aqui apresentadas, compreende-
mos que o Corpo Novelo está cheio de histórias escritas no Diário Lunar onde, Fitando
Lugares, encontramos Sismogramas da dor também através do Mapeamento de
Pequenas Narrativas Quase Invisíveis presentes na Frente e no Verso das histórias
de cada ser humano que na ação de ErêMitar identifica que todos somos nômades
por dentro e que em muitos momentos de nossa existência afirmamos: Esqueço.
REFERÊNCIAS:
CANTON, Katia. Narrativas Enviesadas. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009a.
CANTON, Katia. Tempo e Memória. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009b.
MONTENEGRO, Antonio Torres. História, Metodologia, Memória. São Paulo: Contexto, 2010.
Dispositivo Anti-máscara, Bordado sobre organza, 30x60cm, Camila Barbosa de Amorim, 2020.
224 ESCRITAS CURATORIAIS
Cartografias Viscerais, Crochê, 35 x 26cm; 44 x 25cm, Mainá Araújo de Paiva e Souza, 2020.
SUBVERSÕES POÉTICAS ENTRE A MEMÓRIA E O TÊXTIL 225
Vis-a-vis, Libro de derecho reciclado y calado, corazones bordados con hilo de seda sobre textiles de
sábanas y vestido de novia, heredados, Cerrado: 14,5 x 22 x 4 cm, Abierto: 12 x 25 cm,
Aguinaldo, 2020.
226 ESCRITAS CURATORIAIS
Arqueologias da intimidade, Plumas e alfinetes sobre tela, 40x40cm, Emilliano Freitas, 2020.
das agulhas e tecidos com a complexidade discursiva desta prática. Esse escrito, tra-
ta-se, então, da exposição e reflexão sobre a poética de 12 artistas que participaram
da exposição coletiva Tramações: a memória e o têxtil.
As 12 poéticas foram entrelaçadas pela seguinte pergunta curatorial: quais
tramas ao avesso estes processos de criação têxtil podem desvelar? Elas constituem
criações que subvertem as linhas para dar vazão aos desejos, as memórias, as nar-
rativas, as recriações de si, as problematizações de gênero e do corpo com a cria-
tividade engajada em dar formas as memórias. Segundo Fayga Ostrower (2014), a
memória é um trânsito entre os passados-presentes-futuros de quem cria, podendo
assim “compreender o instante atual como extensão mais recente de um passado,
que ao tocar no futuro novamente recua e já se torna passado. Dessa sequência
viva ele pode reter certas passagens e pode guardá-lo” (OSTROWER, 2014, p. 18). As
poéticas comentadas aqui, vão além do resultado plástico, elas cartografam, sob o
suporte têxtil, autobiografias que possuem relações da memória com a palavra e o
afeto; e a memória do corpo e os seus processos.
Os fios de cabelo tornam-se registros dos desejos que pulsam pelas linhas
bordando as palavras liberdade, resistência, sonho e vida. O lençol serve tanto de
suporte, como de uma lembrança que remete à aspectos íntimos e à solidão que
muitas vezes são condicionadas as narrativas femininas.
Essas duas poéticas investem no campo da memória e das narrativas no femi-
nino para problematizar condições sócio-culturais. Sobre esse ponto, nos processos
contemporâneos de criação, a autora Luana Saturnino Tvardovskas nos aponta que
“na medida em que as memórias femininas são fortemente ligadas à experiência
da privacidade, a arte contemporânea discute essas relações de definição sub-
jetiva imprimindo sensações mais críticas e libertadoras a tais marcas culturais”
(TVARDOVSKAS, 2015, p.164).
Seguindo a linha de criação pela memória e problematização das marcas cultu-
rais, o Coletivo Aguinaldo, expõe a poética Vis-à-Vis (2020). Ela consiste em um livro,
do campo do Direito, que passou pela intervenção de colagem e costura. Tal proce-
dimento intenta questionar a certeza dos postulados e seus sentidos reconstruindo
um arquivo coletivo com tecidos e memórias afetivas. Segundo o coletivo de artis-
tas, essa poética trata de impressões de traços do passado, histórias já vividas que
podem ser arquivadas e assim estabelecer uma relação entre a memória individual
e a memória coletiva. A partir desse vínculo, as duas memórias criariam a seguinte
descrição:
Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva.
Nossos deslocamentos alteram esse ponto de vista: pertencer a novos
grupos nos faz evocar lembranças significativas para este presente e sob
a luz explicativa que convém à ação atual. O que nos parece unidade é
múltiplo. Para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é
preciso desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto de en-
contro de vários caminhos, é um ponto complexo de convergência dos
muitos planos do nosso passado (BOSI, 1994, p. 413).
REFERÊNCIAS:
BOSI, Ecléia. Memória e Sociedade: lembrança dos velhos. 3.ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. 30. ed. Petrópolis: Editora Vozes,
2014.
2 Graduanda em Licenciatura em Artes Visuais pela UFPE e bolsista do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação da Profª Drª Luciana Borre.
232 ESCRITAS CURATORIAIS
Abismo, Técnica mista: fotografia e bordado em algodão cru, 35cmx45cmx20cm, Kaísa, 2020.
234 ESCRITAS CURATORIAIS
Herança, Costura, bordado e colagem sobre tecido, 26,5 x 23 cm, Janice Kirner, 2020.
UM FIO NUM TEAR FEITO DE HISTÓRIAS 235
Quanto tempo evitando colisões?, bordado, 20x20 cm, Liliana Monetta, 2019.
Penso que fazer um texto curatorial é achar um fio condutor. Seja esse um fio
de cabelo, que pode aqui representar a história contada por cada uma, suas expe-
riências de vida, únicas. Ou um fio de fibra de algodão – que são as narrativas que
permeiam nossas vidas – de mulheres produtoras de poéticas têxteis. No texto cura-
torial, é preciso criar uma teia, tecer com o maior dos cuidados um enorme carinho e
uma atenta minúcia, é preciso unir mas deixar evidente as singularidades.
Tudo nos constrói, nos forma, nos configura de presenças e ausências. Somos
o que eu somos e o que eu ainda seremos, numa dança que mistura passado, pre-
sente e futuro. Penso que essas artistas, Gabriella Magno, Kaísa, Janice Kirner, Liliana
Monetta, Maria Luiza Teixeira Batista, Sumaya Nascimento e Victoria Muniagurria,
trouxeram para mim essa vontade de divagar sobre o que e quem habita em nós, e
como essas pessoas, objetos, momentos e tantos outros elementos das nossas vidas
cotidianas nos constróem. Esse é o fio que me guia, as relações que construímos com
aqueles ao nosso redor, uma vida decomposta sobre o que/quem nos atravessa e
como isso transpassa para nossos tecidos. Assim como Gabriella Magno, questiono-
-me: “Como me tornei quem sou?”.
Percebo que assim como as plantas e outros animais, podemos construir algu-
mas relações harmônicas e outras nem tanto, mas ambas existem e nos compõem.
Deste modo, pode ser que criemos um existir em conjunto, numa união muito de-
licada de mutualismo, uma colônia. Esse contato também pode se dar por outros
processos um pouco mais perigosos e desvantajosos como o parasitismo e a compe-
tição. Nessas obras, vemos relações harmônicas e desarmônicas, algumas nutrem e
fazem crescer, outras devem ser quebradas por possuir uma forte potência de dete-
rioração. Ambas, contudo, são usadas para criar, construir, reinventar a vida e nossa
própria história.
O vínculo que crio com essas narrativas é muito forte. É fascinante compre-
ender que da mesma maneira que essas artistas alimentam-se do contato tramado
com o outro, elas alimentam também a nós, como público, criando uma troca muito
sincera de vivências. Assim, ao relacionar-me visual e emocionalmente com estes
projetos e ao escrever sobre eles, os transmuto, os leio com a visão que construí até
este momento pelo conjunto de outras pessoas, experiências e outros elementos
de minha vida que me permeiam. A maneira que interpreto o que vivo no momento
presente está agora embebido de tudo o que me foi despertado em consequência do
meu contato com essas poéticas.
Para que essa troca ocorra, é preciso que o público esteja aberto na mesma
medida em que as artistas se doam àquela produção, da mesma maneira que estas
artistas se abriram para a vida. Penso que a natureza tem muito a nos ensinar em
termos de receptividade, o que me faz recordar o trabalho Areia, de Maria Luiza
Teixeira Batista, e as trocas entre mar e areia, areia e rochas. A artista busca suas
raízes têxteis e encontra a figura de sua mãe, a rocha-mãe, o som do mar e também
de sua velha máquina de costura.
O mar vem e vai, em conexão com a Lua muda sua maré. Tem um momento
do dia que está mais recolhido, em outro se doa por inteiro em devoção completa.
A areia é testemunha desse processo diário, dança embaixo dos nossos pés, quando
UM FIO NUM TEAR FEITO DE HISTÓRIAS 237
bate o vento ou com o ir e vir das águas. Para além de todos esses vínculos, penso
que o movimento mais gracioso e que se assemelha à minha leitura da obra de Maria
Luiza é a da formação e “morte” da areia da praia.
Assim como a areia, Maria Luiza passa por diversos processos e elabora laços
com diversos indivíduos até chegar à praia, até tornar-se quem já se é: vários ele-
mentos naturais lixam a rocha-mãe, formando pequenas partículas que continuam
perto dessa rocha originária, formando um tipo de solo. Outros agentes naturais,
como o vento, encaminham o que agora é sedimento para os rios, que fazem o pa-
pel de peneirar esse sedimento até que sobre apenas a areia. Esta pode passar por
um processo de amadurecimento dos grãos até ser carregada até a praia (ARAÚJO,
2018).
Como já mencionei anteriormente, essas artistas se alimentam de relações
construídas com terceiros e nos alimentam no processo. Essas poéticas são gera-
das pelo contato, pelo toque e, como consequência, são catalisadoras de encontros.
Numa forma circular começam e terminam, apenas para recomeçar no mesmo pon-
to. Esse mesmo processo também ocorre com a areia da praia, quando ela “morre”:
preciso entender que, sem esses embates, não existe movimento, e que o trabalho
têxtil é tudo, menos estático. Nossos movimentos estão ali em cada ponto.
Retomo mais uma vez ao texto de Ana Maria Machado (2003), no qual a auto-
ra também discute amplamente a relação das mulheres e o têxtil por meio da força
de trabalho majoritariamente feminina e como as mulheres construíram a partir daí
uma comunidade. Assim como aborda Simioni (2010), a autora reforça a ideia de
como o têxtil permitiu a domesticação feminina na qual
Hoje, percebo que a relação entre mulheres e o têxtil foi reinventada. Por meio
do desenvolvimento de práticas têxteis, mulheres se ajudam, realizam um movimen-
to de cura. Criamos uma comunidade arachnida de mulheres tecelãs, bordadeiras,
fiandeiras, tricoteiras, demonstrando que a relação que as mulheres desenvolveram
com o têxtil se dá de maneira afetiva, ultrapassando convenções ou tratados feitos
em nosso nome.
Victoria Muniagurria procura encontrar a tensão exata em sua obra, o movi-
mento certo para enrolar tecidos, relembrando as mulheres que trabalhavam fazen-
do cigarros, enrolando folhas de tabaco. A artista também recorda seu trabalho na
loja de sua família, a manipulação dos tecidos neste espaço. Esta tensão exata faz
parte da relação que mantemos com a materialidade têxtil: a tensão exata do tecido
no bastidor; de puxar a agulha no bordado; de dar o ponto de crochê; de pisar no
pedal da máquina de costura. A corporalidade está sempre presente nesses movi-
mentos, nossos movimentos precisam ter minúcia, atenção.
O que cabe na caixa de madeira que Victoria nos apresenta? Cabem tecidos,
cabem histórias (e, por que não, estórias); cabem lembranças de mulheres traba-
lhando com o corpo, com o enrolar de folhas de tabaco nas coxas. O trabalho têxtil
também é um trabalho corporal. Pergunto-me o que acontece quando não tencio-
namos esses tecidos de maneira a fazê-los tão enrolados, quando afrouxamos esses
nós. O que acontece quando Enrollo y me Desenrosco?
Há vezes que o corpo, mente e têxtil trabalham em tamanha sintonia que é
difícil acreditar que não se trata de uma extensão de nós mesmas. A nossa pele é um
tecido de derme, epiderme e hipoderme. Um tecido que envolve a todos nós, pelo
corpo todo. Esse tecido conta histórias por si só, sem precisar da palavra, dá pra sen-
tir pelo tato, dá pra ver, testemunhar narrativas em silêncio. Esse tecido é vivo, ele
sente dor e prazer; ele queima, molha, é cortado; tem outra textura quando arrepia.
Comunica-se com o ambiente de forma única, às vezes parece ter vontade própria,
seguindo seus próprios desejos. Tem quem goste de fazer desenhos que duram pra
sempre nesse tecido, tem outras que preferem perfurá-lo e depois deixar a pele se
240 ESCRITAS CURATORIAIS
regenerar, quase voltar a ser o que era antes, cicatrizar. Mas tudo isso fica marcado,
tudo isso a gente transpira.
A pele também morre, definha, desfia, se esgarça formando marcas que nós,
querendo ou não, carregamos conosco expondo nossas experiências de maneira iti-
nerante. Até que a pele se desfaz, fica na lembrança em outros tecidos, faz parte
agora de outros bordados, um fio num tear feito de histórias.
Já os tecidos, feitos de fibras naturais ou sintéticas, também têm várias pro-
priedades como a pele: ele pode ser rasgado, molhado, perfurado, costurado, ele
esgarça, queima, protege. Nós também temos a capacidade de modificá-lo, contar
histórias que também ficam vivas e visíveis para além da nossa fala. Por mais que
tenhamos o controle sobre o que podemos fazer com ele, às vezes também parece
seguir suas próprias regras, independente de nós.
Essas poéticas expõem justamente isso, as narrativas que transpiram fazendo
com que troquem de lugar a pele e o tecido, escrevendo em um o que há mui-
to tempo já está escrito no outro. Acredito que compartilho essas impressões com
Kaísa, que nos mostra em sua poética “a ideia de pele enquanto lugar da experiência
no mundo, o primeiro interface entre o Ser e o Outro, onde são gravadas os traços
particulares do tempo vivencial” (PEREIRA, 2018, p. 103).
Kaísa atesta que o tecido também é uma pele, que seu corpo é uma casa, que
ela deseja transpirar, transbordar o que se é para além de espaços determinados. Em
Abismo, a artista deseja discutir como se dá a existência dos nossos corpos, transpas-
sados por diversas questões como as de gênero e sexualidades no espaço que não
nos acolhe. Como existir além? Além do que é visível, além do que se é suposto ou
determinado.
O tempo vai deixando a pele marcada com rugas e estrias que aparecem
quando a gente cresce. Algumas vezes, essas marcas parecem surgir em lugares
específicos do corpo, como se fossem de família, sinais e pintas herdadas. Sumaya
Nascimento vai tricotando um grande cobertor, um manto feito por mulheres de sua
família e que cresce com fios feitos de memórias. O coração de Sumaya se derrete
em saudade, numa fusão do sólido para o líquido. O que não quer dizer que o sen-
timento se esvai, mas fica num estado mais maleável, possibilitando que a artista o
veja de outra forma. Uma saudade que não acaba mas mancha a memória, mancha
que nem nódoa de caju na roupa.
Acho que a saudade nunca morre, mas se renova. A artista utiliza seu pano
de batismo e um crochê realizado pela sua tia-mãe como base para sua produção,
unindo-as no bordado, um encontro no tempo-espaço. O têxtil tem a potência de
carregar um pedaço de quem o faz, por meio de uma dedicação disposta na feitura
dessas poéticas, o entrar e sair da agulha no tecido, um perfurar que não fere, mas
proporciona processos de cura.
Lembro-me de uma canção da cantora Björk (1997) onde ela demonstra esse
ritual de abertura e cuidado pelas linhas, linhas que brilham no escuro e emara-
nham-se em cada uma de nós, oferecendo um espaço de acolhimento:
UM FIO NUM TEAR FEITO DE HISTÓRIAS 241
(GUÐMUNDSDÓTTIR, 1997)
REFERÊNCIAS:
GUÐMUNDSDÓTTIR, Björk. All neon like. In: Homogenic. Reykjavik: One Little Independent
Records: 1997.
242 ESCRITAS CURATORIAIS
HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1. ed.,
2018.
MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
MACHADO, Ana Maria. O Tao e a teia: sobre textos e têxteis. Estudos Avançados,
São Paulo, n. 17, v.49, p. 173-196, 2003. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
eav/article/view/9951. Acesso em: 25 fev. 2021.
1 El concepto de expansión tiene una presencia creciente en el sistema artístico. Con esto queremos
definir aquellas propuestas que, en cada una de las diversas disciplinas y medios artísticos, intentan
superar las convenciones históricas y las dimensiones físicas de aplicación, intervención y presentación,
así como su adaptación al contexto en que se manifiesta (MARTINEZ MORO, 2017).
248 ESCRITAS CURATORIAIS
DESARROLLO
El artista João Paulo Baliscei en su obra ¿Quem tornou masculino o corpo in-
fantil do menino? (2019), apela a la memoria a través de una fotografía de la infancia
que lo lleva a contemplar todas las construcciones sociales, historias, instituciones
que han atravesado su cuerpo como escuelas, iglesias y medios de comunicación
con lo masculino/masculinidad. Su propuesta autobiográfica, se caracteriza por la
presencia constante de la silueta del artista, así como de símbolos personales. En su
relato cuenta el proceso paulatino de cómo se fue desarrollando la obra. En una pri-
mera instancia reproduce treinta veces la fotografía que rescató de su memoria para
convertirla en plano de composición. Con estos nuevos soportes, en una segunda
instancia, la fragmenta dejando un contorno vacío de silueta. Luego con el hilo azul
el proceso de bordado toma relevancia, no como una unión y remiendo, sino como
marcas que tratan de hacer visibles recuerdos mediante el símbolo. Las intervencio-
nes se presentan yuxtapuestas en una especie de damero, como una manera de ir
mostrando todos y cada uno de los “años” del desarrollo, o sea, sus vivencias hasta
cumplir treinta años.
A linha azul dá formas, por exemplo, aos chifres de veado (em alusão à
primeira vez que ouvi a palavra “viado” sendo dirigida a mim); à corda
e aos pompons (ilustrando brinquedos tidos como femininos e com os
quais eu não podia brincar); e ainda à cruz, ao enquadramento e ao apri-
sionamento (remetendo-se às consequências que a aproximação com
o catolicismo conferiu à minha homossexualidade, na adolescência).
(notas de João Paulo Baliscei)
veias: honro as mulheres que foram para que eu agora seja, através des-
sa memória “têxtil-tátil” em conexões impalpáveis que atravessam os
séculos” (notas de Heloísa Marques).
La artista toma el papel como soporte, interviene con bordado imágenes im-
presas en blanco y negro e incorpora pedrería y conchas de mar. Heloísa utiliza cuali-
dades sensibles y expresivas, como una forma de dibujar con hilos. Éstas, se perciben
en la manera de ejecutar el bordado, en la elección del grosor del hilo, en la precisión
de la puntada, en la limpieza de hebras sin sobrantes, en la elección del soporte, en
el tono elegido tanto del soporte como del hilo, en el largo de la puntada… es decir,
posibilidades gráficas que apelan a la memoria.
Através de minhas mãos resgato memórias que não são minhas, mas
das gentes que vieram antes, cujo o sangue ainda corre aqui, em veias:
honro as mulheres que foram para que eu agora seja, através dessa me-
mória “têxtil-tátil” em conexões impalpáveis que atravessam os séculos
(notas de Heloísa Marques).
Con su relato, Heloísa expresa nostalgia sobre esa vivencia. La imagen impre-
sa, como herramienta que media, para luego, en una instancia de bordado volver a
ser utilizada como recurso en la acción de bordar, es un acto reformativo, porque
vuelve a pasar el cuerpo por el mismo lugar, a repetir sistemáticamente las mismas
puntadas, a recorrer los mismos caminos. Tanto en la fotografía como en el bordado
se pueden identificar la memoria y la imaginación como constitutivas de una imagen
fotográfica, de este modo ambas por sus orígenes comparten e involucran arte, iden-
tidad, historia cotidiana y emoción. La aguja en relación con el hilo como material,
atraviesa lo que la imagen impresa encierra: la historia, la técnica, la luz y el material,
conjuntamente con la práctica del bordado que trasciende siglos de sistemas, para
convertirse en un lenguaje del arte contemporáneo (CERRUTI, 2020).
Bruna Belo en su obra Ponto a ponto, tecendo lembranças e reinventando me-
morias, realizada con fotografías y la técnica de tejido al crochet, construye la memo-
ria. Los hilos entretejidos son los que unen las fotografías y recuerdos de su pasado.
Desde el centro hacia los bordes y a través de relatos de memoria, narra en la medida
que se recopilan historias que se hacen visibles a los ojos de otro y lo sensibilizan a
medida que se encuentra el medio adecuado para relatarla.
A los recuerdos los extrae a partir de las historias de vida y los lleva al soporte
artístico que obra como un archivo de recuerdos donde se almacenan historias o
ARTE TEXTIL/MEMORIA/GRÁFICA 251
hechos afectivos que sirven para encontrar el origen, cómo decía Louise Bourgeois
(2000, p. 125): “Necesito de mis recuerdos, son mis documentos. Estoy pendiente de
ellos. Son mi intimidad y los protejo celosamente”.
Ricoeur (2000), en su libro La memoria, la historia, el olvido, explica que para
los griegos existían dos palabras referentes a la memoria, la primera es mnéme que
significa el recuerdo o algo que aparece (en la memoria), la segunda es anamnésis
que significa el recuerdo como una búsqueda, es decir la rememoración o recolec-
ción y búsqueda de recuerdos (RICOEUR, 2000). Es así que esta recopilación de re-
cuerdos dentro del hilo de la vida, es lo que permite la creación de la memoria o la
rememoración, es decir, el envolver y anudar el hilo en sí mismo cuantas veces sea
necesario con el fin de recordar algo que ya se vivió y desea traerse al presente. Pero
la artista expresa también que la memoria siempre tiene “fallas”, fallas que necesita-
ban estar representados en el trabajo. La forma que encuentra para representarlas
es la ausencia de fotografías en algunos lugares, llenando de este modo esos espa-
cios solo con crochet.
Leticia de Melo Andrade, en su poética descriptiva Livro Têxtil: Não sei o nome
ainda, dice:
Este livro foi feito com o intuito de tentar materializar as saudades. “As
saudades” mesmo, porque são várias, infinitas. São individuais mas co-
letivas, assim como esse livro, que foi feito por várias mãos, vozes, pre-
senças e ausências. Tenho saudades dos amigos, da cidade, do mar, da
minha família, do passado, do presente e do futuro, saudades de tudo.
Mesmo depois desse processo de realização têxtil não consigo definir
saudades. Não sei o nome ainda (notas de Letícia de Melo Andrade).
En este tipo de libro es posible jugar con el tiempo. Leticia invita a recorrer
su obra a partir del video. Cuando se reproduce, da la sensación de que es ella
misma la que pasa sus páginas una a una con ritmo pausado haciendo énfasis a
“As saudades”, un libro que tiene un discurso plástico en secuencias. La artista
utiliza como soporte la tela y nace así la necesidad de reconstruir su historia en un
reencuentro con el hacer, así como también del anhelo de hallar y comprender el
concepto de nostalgia.
Estas expresiones aluden a un sentimiento de tristeza mezclado con placer
y afecto cuando piensa en tiempos felices en el pasado, también descriptas como
un sentimiento de anhelo de un momento, lugar, situación o acontecimiento. Fotos,
textos, imágenes se ven en el recuerdo con nostalgia, y la artista lo reafirma a través
del bordado, las distintas materialidades y sus desplazamientos gráficos. Estas com-
binaciones, proporcionan que en la transdisciplinariedad las disciplinas se fusionen
penetrando unas en el ámbito de las otras. Este concepto de unidad, constituye una
de las características formales más evidentes de este libro textil.
El libro “Correnteza” impresso em Cianotipia, tecido como suporte, es la obra
que presenta Marina Soares:
ouvir o mar, como quem coloca uma grande concha sobre o ouvido.
Dá-me forças ao mesmo tempo em que as suga. É parte da minha iden-
tidade; preso a mim (notas de Marina Soares).
En este proceso el soporte toma relevancia y funciona como estampa del textil,
una huella de apariencia frágil y delicada donde al realizar una impresión, tanto en
la manipulación como en la conservación del mismo, el mismo soporte opera como
metáfora de su poética. El posterior calado y corporización de la estampa, funciona
hacia una apertura, proyectándose como una obra expandida al espacio. A través de
la fotografía y el video, el concepto de urdimbre queda potenciado cuando Duarte
presenta la obra, evidenciando esas capas a partir de la edición de las imágenes, por
superposición que establecen las aplicaciones informáticas y que no es otra cosa que
lo que vienen haciendo históricamente los grabadores y estampadores a la hora de
plantear por superposición y/o yuxtaposición. De este modo la artista presenta la
obra textil como medio y la gráfica virtual como obra para ser “materializada óptica-
mente” de forma exclusiva en pantalla (lo que sería el arte en Red y otros productos
interactivos) (MARTÍNEZ MORO, 2017).
Graciela Rocha, con el título Infinito, bordado y grabado:
3 Cianotipia (procedimiento fotográfico monocromo, del cual se puede obtener una copia negativa del
original en un color azul de Prusia).
ARTE TEXTIL/MEMORIA/GRÁFICA 253
a quedarse en sus casas. Se usaba hilo sin teñir sobre tela de color azul
índigo. Se creía que el tinte del índigo repelía insectos y serpientes, por
lo que lo preferían las mujeres que trabajaban en el campo. El sashiko
era usado también como amuleto. Para esta obra tomé la estampa de
un colibrí sobre un retazo de jeans uniéndolo a una tela de camisa gas-
tada con hilos de colores. Como parangón con la historia del Japón fue
hecho con puntadas repetitivas sobre una tela azul, en época de frío y
a raíz del encierro que trajo la pandemia. La simbología de un ave en
comunión con las flores sobre un cielo azul funciona como una especie
de protección, ante las preocupaciones, miedos tristeza que traen el
mundo de hoy. El colibrí como símbolo de felicidad como guardián del
tiempo, en aleteo infinito constante recuerda el disfrutar de estar vivos,
de seguir afrontando los inconvenientes como lo hicieron las costureras
del pasado (notas de Graciela Rocha).
de Lucyana, que, menciona, le funcionó como un espejo. La imagen que se hace visi-
ble muestra lo opaco y le provoca una nueva mirada a la impresión. Lo que aparece
como un error, se transforma, es decir, es una interrupción en el proceso que vuelve
a reiniciarse cuando presenta como obra esas manchas.
A MODO DE CIERRE
El aporte mostrado por cada artista es el resultado de la mixtura y devela la
memoria como huella y recuerdo en sus modos de hacer. Sus trayectorias técnicas
y el proceso en relación a la gráfica, entre otros, se utilizaron como medio y como
herramienta, que, junto con los textiles, se convierten en un ejemplo de esta di-
versidad. En este sentido, las derivas incurren, en nuevos desafíos en el campo del
arte. Martínez Moro (2017) considera que la idea de ampliación “extensiva” de los
procesos mentales y de los procesos de comunicación, resulta equiparable a las ma-
nifestaciones “expandidas” del arte contemporáneo, en la medida en que el hecho
artístico (es decir el producto cultural humano por excelencia) no se conforma con
frontera alguna, sino que forma parte de una experiencia fluida y diluida en términos
de espacio y tiempo. En esta manera de narrar, la obra, desvela vivencias personales
que inicialmente son vistas como propias y a través del arte se vuelven públicas. Esto
permite, tanto al artista como al espectador, una amplia libertad de pensar, sentir y
comprender a la hora de interpretar dicha obra.
REFERENCIAS:
ALONSO, Rodrigo. Reactivando la esfera pública. Revista Lucera, São Paulo, n. 3, Rosario,
2013.
BOURGEOIS, Louise. Construcción del padre / Destrucción del padre. Londres: Ediciones
Violette, 2000.
DALMAU, Jorge; GÓRRIZ, Lídia. La Problemática Interdisciplinar en Las Artes: ¿Son disciplinas
los distintos modos de hacer? Revista On the Waterfront, Barcelona, n. 27, 2013.
Moon River, Bordado e aplique de moedas sobre jeans e seda, 59 x 38 cm, Ludmila Mueller Leal, 2018.
Ariadne, Bordados sobre algodão (13x13cm cada), fotografias digitais e textos escritos,
Coletivo Ariadne, Luma Torres e Nina Xará, 2020.
PROJEÇÕES EM PASSEIO 257
En Deconstruccion, Textil reciclado y desgarrado, 220 x 160 x 112 cm, Josefina Eyheremendy, 2020.
Carrego, Ponto Cruz em tecido etamine, 22,5 x 16,5 cm, Ivana Bahls, 2020.
PROJEÇÕES EM PASSEIO 259
Desvencilhar, vídeo performance 05:52min. Bordado sobre tecido 1,43x 1,02 cm,
Graciela Ferreira, 2020. https://www.instagram.com/p/CIBMAVGF48G/
PROJEÇÕES EM PASSEIO 261
A ponte, bordado sobre tecido, 21x 18 cm, Wilma Farias (uiu), 2020.
Las Marías, imagineria textil tradicional, tecnica personal, 0,77 x 0,20 cm, María Castillo, 2020.
PRIMEIRA PARTE
É inegável perceber como o digital se tornou um meio quase que absolu-
to entre as ações culturais que se dão ao longo dos anos de 2020 e 2021 no Brasil.
Categoricamente ruas, galerias, salas de aula e museus se tornaram ambientes segun-
dos, esvaziados de seus públicos presenciais que, independe da maneira como são
entendidos — seja enquanto extensão de desejos paternalistas5 de quem educa, seja
como possibilidade de aprendizado6 e reflexão a partir do encontro —, fazem falta.
De que maneira cada presença é afetada com essa migração forçada? Será
que nossas coreografias mediadoras, afiadas para contextos presenciais, caducam7
5 Para Honorato (2011), a mediação cultural muitas vezes se encontra entrelaçada a um paternalismo
motivado por algum déficit que atribui ao público. Nessa lógica, ela acaba por se tornar uma atividade
que constantemente imagina, “de um lado, que a arte seja um valor cultural pré-estabelecido,
indiscutível portanto enquanto valor, como se ela fosse um ‘reino dos céus’ a ser alcançado, e de outro,
que haveria no público um déficit de arte a ser reparado, como um tipo de ‘pecado’ a ser expiado.”
(HONORATO, 2011, p. 344).
6 Mörsch (2009), como posto por Moraes (2014), estabelece que o discurso transformativo, atrelado
à mediação cultural, busca criar uma inversão na ideia tão difundida de que exposições e museus
transformam os públicos em termos de sensibilidade e conhecimento. Pelo contrário, busca a mediação
transformativa modificar a si mesma (e assim a própria ação cultural que a desempenha ao longo de
seu ciclo de vida).
7 Através de minha graduação em Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco,
aprendi a atentar para o fato de que nós, educadores, ao adentrarmos em contextos de desafio ou
instabilidade, acabamos por performar, inconscientemente, práticas de professores que fizeram parte de
264 ESCRITAS CURATORIAIS
nosso processo formativo. Consequentemente, acabamos por nos apoiar muitas vezes em posturas que
não necessariamente acreditamos ideologicamente. Ainda enquanto mediador cultural que busca se
afastar de uma didática expositiva, tradicionalista ou bancária, diante das ações culturais que participei
durante a pandemia do novo coronavírus, acabo também identificando impulsos por fornecer, mastigar
e traduzir, anulando minha subjetividade e a subjetividade dos que comigo se encontram, em função
do conteúdo informativo.
8 Talvez estejamos presenciando uma importante virada tecnológica ancorada justamente em
concepções anacrônicas de educação. Por qual motivo é tão desafiador imaginar redes sociais que
do espectador não queiram mais do que interações corriqueiras? Para além da acessibilização de
conteúdos que traz consigo, acredito ser importante problematizarmos os motivos pelos quais palestras,
seminários e ações expositivas são tão possíveis em redes sociais, no lugar em que exercícios ativos de
escuta são tão escassos.
9 Hoff (2018) propõe que a sociedade brasileira está ganhando gosto pelo conflito posto em prática
enquanto disputa e não como possibilidade de debate. Contudo, uma concepção de conflito banalizado,
para a autora, é insuficiente, visto que estar de acordo com ela “significa considerar que as contendas,
manifestações e divergências não estão gerando debate em nenhum nível e que, portanto, não está
havendo nenhum tipo de aprendizado” (HOFF, 2018, p. 167). Pensar a mediação cultural como dissenso,
para a autora, não se trata da disputa, mas de admitir a sua presença como ponto fundamental para a
construção do debate (e, consequentemente, do aprendizado de quem media).
10 Barbosa (2015) prefere “tentativamente” chamar os públicos a partir desse termo, ainda que
reconheça que o vocábulo “não vai pegar, [porque] é muito pedante” (BARBOSA, 2015, p. 41). A autora
emprega esse termo no texto que escreve para o livro contidonãocontido como forma de demonstrar
que há uma necessidade por uma novo jeito de nomear o que atualmente pode ser chamado de “o
público, o apreciador, o espectador, o consumidor de arte, o receptor, a plateia, o sujeito observante ou
os observadores” que seja menos prepotente e hierarquizado por parte dos museus.
PROJEÇÕES EM PASSEIO 265
SEGUNDA PARTE
Como seria realizar um experimento curatorial com os trabalhos que neste
texto tenho que encontrar? Existe algo que me puxa diretamente para “Rios Tecidos”,
do duo Paisagens Móveis, composto em 2020 por Bárbara Lissa e Maria Vaz. Li que a
investigação das artistas cruza com a memória dos rios urbanos em Belo Horizonte,
capital de Minas Gerais. O trabalho conta com a participação de Ediléia Barbosa, mu-
lher de 70 anos que vive desde criança nas margens do Rio Arrudas, e Virgílio Muniz,
que saúda, bordando com sua mãe e sua tia, o Rio Sumidouro. Eles interviram em um
manto negro em homenagem a esse corpo-rio coletivo. O tecido, que parece fumaça
estancada, forma uma presença que repousa/padece em uma cama.
Em “A desumanização”, Valter Hugo Mãe (p. 61, 2017), através das palavras
de Halla, protagonista do livro, conta que na Islândia “As montanhas eram corpos
deitados. Não tombaram. Eram assim. Deitavam-se por maturidade. Sem palavra.
Como um poema calado.” Penso se a maturidade dos rios pode ser equiparada à
das montanhas, tão absolutas. Talvez, por serem de água, os rios sejam tão densos
quanto frágeis, diferentemente das montanhas e suas formas resistentes de solidez.
Na crônica “chamava-se Amarelo”, Rubem Braga (p. 83, 1913-1990) realiza um “tes-
temunho, perante a História, a Geografia e a Nação, de uma agonia humilde: um
córrego está morrendo. E ele foi o mais querido, o mais alegre, o mais terno amigo
de minha infância.” Diferentemente das montanhas, que julgo não se importarem
quando erodidas, pois viram outro tipo de chão, colina, planalto... a morte dos rios é
atestado da vulnerabilidade que têm esses sábios corpos em movimento.
11 “Pour moi, cela a été important d’étudier ces proximités et de considérer que l’exposition était un
médium à la fois pour le curator et pour l’artiste”.
266 ESCRITAS CURATORIAIS
TERCEIRA PARTE
De que forma é possível abrir “caminhos de exploração e dar a palavra aos vi-
sitantes para descobrir as diversas camadas de sentido das obras [e estabelecer] um
intercâmbio que ative a polissemia da arte” (VILLA, 2018, p. 117)? Talvez essa pos-
tura que, segundo a autora, pode acontecer para todo tipo de público, especializado
ou não, ofereça ainda uma outra pergunta: de que forma podemos abrir, em nós,
artistas, curadores, mediadores culturais, um consistente espaço de escuta? Como
crescem as nossas ações culturais a partir dos acrescentamentos, discordâncias e
encontros que, uma vez estando nós dispostos, nos atravessam a todo momento?
De que maneiras podemos entrelaçar às nossas pesquisas, do ponto de vista de re-
alizadores, as andanças daqueles que já objetivamos — seja enquanto extensão de
desejos paternalistas de quem educa, seja como possibilidade de aprendizado e re-
flexão a partir do encontro —, estarem conosco?
REFERÊNCIAS:
DURING, Elle. et al. Quest-ce que le curating?. Paris: Manuella Éditions, 2011.
HOFF, Mônica, HONORATO, Cayo. Mediação não é representação: uma conversa. In:
CERVETTO, Renata, LÓPEZ, Miguel A. Agite antes de usar. São Paulo: Sesc, 2018. p. 165-181.
HONORATO, Cayo. Arte para o público: comédia ou tragédia da mediação?. Rio de Janeiro:
268 ESCRITAS CURATORIAIS
VILLA, María. Uma ponte não é uma ponte até que alguém a atravesse. Reflexões sobre a arte
contemporânea e diálogos educativos. In: CERVETTO, Renata, LÓPEZ, Miguel A. Agite antes
de usar. São Paulo: Sesc, 2018. p. 110-122.