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Livro Tramações A Memória e o Têxtil

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TRAMAÇÕES: A MEMÓRIA E O TÊXTIL

Luciana Borre
Luana Andrade
(Orgs.)

Recife, 2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

REITOR
Alfredo Macedo Gomes

VICE-REITOR
Moacyr Cunha De Araújo Filho

PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO E CULTURA

PRÓ-REITOR
Oussama Naouar

DIRETORIA DE CULTURA

DIRETOR
Hélio Márcio Pajeú

COORDENAÇÃO DE GESTÃO EDITORIAL E IMPACTO SOCIAL

COORDENADOR
Adriano Dias De Andrade

ASSISTENTE
Artur Villaça Franco

Catalogação na fonte:
Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408

T771 Tramações [recurso eletrônico] : a memória e o têxtil / organizadoras :


Luciana Borre, Luana Andrade. – Recife : Pró-Reitoria de Extensão e
Cultura da UFPE ; Ed. UFPE, 2021.

"Tramações (3ª edição), foi um projeto de ensino, pesquisa e extensão,


realizado em 2020, no Departamento de Artes da Universidade Federal
de Pernambuco”.

Vários autores.
ISBN 978-65-5962-046-3 (online)

1. Arte – Estudo e ensino – Brasil. 2. Arte – Exposições. 3. Comunicação


visual. 4. Tecelagem. 5. Arte nas universidades e faculdades – Brasil. 6.
Arte moderna – Séc. XXI. I. Nunes, Luciana Borre (Org.). II. Andrade,
Luana (Org.)

700.7 CDD (23.ed.) UFPE (BC2021-048)

Essa obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Interncional

Av. Prof. Moraes Rego, 1235 - Cidade Universitária 


Recife, Pernambuco, CEP: 50670-901
Fone: +55 (81) 2126.8130 | E-mail: proexc@ufpe.br
Tramações (3ª edição): a memória e o têxtil foi um projeto de ensino, pesquisa
e extensão, realizado em 2020, no Departamento de Artes da Universidade Federal de
Pernambuco, sendo fomentado pelos Editais: Apoio à Pesquisa em Criação Artística
(Proexc/UFPE), Iniciação Científica (Pibic/Propesqi/UFPE) e Incentivo à Produção
e Publicação de Livros Digitais (Prograd/UFPE). Também é resultado da pesquisa
“Narrativas Têxteis e Docência Artista” desenvolvida no Programa Associado de Pós-
Graduação em Artes Visuais da UFPE/UFPB. Contou com o apoio da Secretaria de
Ciência e Produção da Faculdade de Artes da Universidade Nacional de Córdoba/
Argentina.
FICHA TÉCNICA TRAMAÇÕES (3ª EDIÇÃO)

Capa: Luana Andrade


Projeto gráfico e diagramação: Luana Andrade
Proponente do Projeto: Luciana Borre
Revisão: Laise Emilia de Matos Barbosa e Pedro Henrique Carvalho de Arruda
Artistas e Obras
Alanys Maria Araújo de Paula (Lembre de nós)
Ana Lisboa (Tempo de Espera) - Artista Convidada
Ana Paula Lopes Monteiro (Diário Lunar)
Angélica Carvalho Lemos (Identidade Artesã I e Identidade Artesã II)
Brenda Bazante (Sutiã-Seio Mamulengo-Esteriométrico)
Bruna Belo (Ponto a ponto, tecendo lembranças e reinventando memórias)
Camila Barbosa de Amorim (Dispositivo Anti-máscara)
Camila Cantil (“Por um fio")
Carol Mota (Elo)
Cecilia Conforti (Tejiendo Memoria “Ternura”, “ Tejiendo Memoria “Sobre”)
Clara Nogueira (Cômodo)
Clarissa Machado (Árvore)
Coletivo Aguinaldo (Vis-a-vis)
Coletivo Andarilhas entre tramas docentes (DES[a]fiar)
Coletivo Ariadne - Luma Torres e Nina Xará (Ariadne)
Coletivo Paisagens Móveis - Barbara Lissa y Maria Vaz (Rios Tecidos)
Elyenai Gileno Onias Fernandes (Vestido de Mim)
Emiliano Freitas (Arqueologias da intimidade)
Erinaldo Cirino (Sem título)
Flávia Fiorini Romero (Alfinetadas)
Gabriella Magno (Fragmentos)
Geysa Moura (Angústia)
Graciela Ferreira (Desvencilhar)
Graciela Rocha (Infinito)
Haidee Lima (Frente verso)
Heitor Moreira de Melo Correa do Nascimento (O tempo solidifica)
Heloísa Marques (Florescer)
Ingrid Borba (Avesso)
Isabel Duarte (Urdimbre)
Ivana Bahls (Carrego)
Janice Kirner (Herança)
João Paulo Baliscei (Quem tornou masculino o corpo infantil do menino)
Josefina Eyheremendy (En deconstruccion)
Jorge Elias CHaij (Obra 273)
Juliane Xavier (Mapeamento de Pequenas Narrativas quase invisíveis)
Kaisa Lorena (Abismo)
Kariana Maddonni (La hostilidad) - Artista Convidada
Kathy Carvalho (Linearidade híbrida)
Laura Melo (Esqueço)
Larissa Rachel Gomes (Boneca de Trapo I)
Leticia de Melo Andrade (Não sei o nome ainda)
Liliana Monetta (Quanto tempo evitando colisões?)
Liz Santos (Fitando Lugares)
Louise Gusmão (No quarto de dormir)
Luana Andrade (Correntes de ar)
Luciana Borre (Alinhavadas)
Lucrecia Romero Victorica (Preservada)
Lucyana Xavier de Azevedo (Espelhamento da Falha)
Ludmila Mueller Leal (Moon River)
Mainá Araújo de Paiva e Souza (Cartografias Viscerais)
María Castillo y/o María Eugenia Castillo (Las Marías)
Maria Clara Torres (Corpo Novelo)
Maria Duda (Para que tu vivas)
Maria Luiza Teixeira Batista (Areia)
Mariana Gualberto (A musa)
Mariana del Val (Olvido)
Marina Prado (Cabeça coração e mãos)
Marina Soares (Correnteza)
Mônica Lóss (Nômade por dentro)
Nara Coló Rosetto (Sismograma da dor)
Natália Rezende (O contorno do meu coração repete seu desenho, América)
Rayana Rayo (Um jeito de dar uma volta)
Rayellen Alves (Entre Nós)
Sandro Drumond (ErêMitar - Vestindo as memórias das águas pesadas)
Sumaya Nascimento (Ensaio sobre a permanência e o tempo)
Thaysa Aussuba (Arrudeio)
Vanessa Freitag (Flor de Dora)
Victoria Muniagurria (Enrollo y me Desenrosco)
Walter Vera (Ixchel)
Wilma Farias (uiu) (A ponte)
SUMÁRIO
POR QUE A MEMÓRIA E O TÊXTIL? 9
Luciana Borre e Luana Andrade

TRAMAÇÕES EM CONTEXTO

IMPRESCINDIBILIDADES TÊXTEIS:
ENTREVISTA COM KARINA MADDONNI 13
Luciana Borre
CURADORIA EXPERIMENTAL:
UMA PERSPECTIVA ARTÍSTICO- INVESTIGATIVA 20
Lizandra Santos
PRÁTICAS E NARRATIVAS TÊXTEIS CONTEMPORÂNEAS
Luciana Borre 25

A MEMÓRIA E O FEMININO

ÁRVORE 35
Clarissa Machado Belarmino
[CÔMODO]: CONSIDERAÇÕES SOBRE
O FEMINISMO, O TÊXTIL E A MATERNIDADE 41
Clara Nogueira
CABELO-ONDA-CORRENTEZA: POÉTICAS EM CIANOTIPIA 51
Marina Soares
ENTRE NÓS 57
Rayellen Alves

A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

TEJIENDO MEMORIA: EL TEJIDO EN LA OBRA GRÁFICA 63


Cecilia N. Conforti
IDENTIDADE ARTESÃ:
A PARTILHA DE TRAPILHAR MEMÓRIAS 70
Angélica Carvalho Lemos
AFETOS ENTRELAÇADOS NAS VOLTINHAS DO CROCHÊ 76
Vanessa Freitag
TEMPO DE ESPERA 80
Ana Lisboa
NÃO SEI O NOME AINDA 84
Letícia de Melo Andrade
OLVIDO 91
Mariana del Val
LEMBRE DE NÓS 97
Alanys M. Araújo
ELO: UM RECORDAR DO TEMPO 103
Carolina Alexandre da Mota
AVESSO: OBJETO AUTOBIOGRÁFICO TÊXTIL 107
Ingrid Borba

A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

UM CORPO DE FALTAS E DE SOBRAS:


“QUEM TORNOU MASCULINO O CORPO INFANTIL DO MENINO” 115
João Paulo Baliscei
BONECAS DE TRAPO: UMA METÁFORA SOBRE O CORPO 123
Larissa Rachel Gomes da Silva
CONTORNAR O CORPO, CONTORNAR A AMÉRICA: ASPECTOS ARTÍSTICOS E
NARRATIVOS DO BORDADO EM UMA FOTOPERFORMANCE 128
Natália Rezende
ARRUDEIO É INDICAÇÃO DE CAMINHO 137
Thaysa Aussuba
ESCREVIVÊNCIAS E AXÓ SUTIÃ-SEIOS: NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS
“AJEUNZANDO” MEU PROCESSO CRIATIVO 143
Brenda Gomes Bazante
A MUSA:
BORDADO CONTRASSEXUAL E BRONZEADOR SOLAR FATOR 5 152
Mariana de Albuquerque Penha

A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

ALFINETADAS: REFLEXÕES QUE ATRAVESSAM AS VIVÊNCIAS


DE UMA MULHER ARTESÃ 160
Flávia Fiorini Romero
POR UM FIO... 166
Camila de Lima Cantil
NÔMAD[A]S: O DESAFIO DE VAGAR POR MEMÓRIAS 171
Mônica Lóss
UM JEITO DE DAR UMA VOLTA:
A ARTISTA-MÃE PANDÊMICA ALCANÇANDO VÔO LIVRE 178
Rayana Bacelar Viana
NO QUARTO DE DORMIR 183
Louise Gusmão
A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

OBRA 273: UN PROCESO CREATIVO A TRAVÉS DEL TIEMPO 191


Jorge Elías CHAIJ
DES[A]FIAR: IDENTIDADES DOCENTES COSTURADA
ÀS VIVÊNCIAS DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM ARTES VISUAIS 195
Flávia Fiorini Romero; Jéssica Fiorini Romero; João Paulo Baliscei;
Regina Ridão Ribeiro de Paula; Thalia Mendes Rocha
LINEARIDADE HÍBRIDA 203
Kathy Carvalho

ESCRITAS CURATORIAIS

COSTURANDO MEMÓRIAS: CARTOGRAFANDO NARRATIVAS 212


Maria Betânia e Silva
SUBVERSÕES POÉTICAS ENTRE A MEMÓRIA E O TÊXTIL 222
Ingrid Borba
UM FIO NUM TEAR FEITO DE HISTÓRIAS 231
Letícia de Melo Andrade
ARTE TEXTIL/MEMORIA/GRÁFICA:
PROCESO Y PRODUCCIÓN DE NUEVE ARTISTAS 243
Cecilia N. Conforti
PROJEÇÕES EM PASSEIO: ENQUANTO PÚBLICO, PENSAR CURADORIA 255
Guilherme Moraes
POR QUE A MEMÓRIA E O TÊXTIL?

Não pense que gastei


as horas que levei
a costurar o vento…

Canção Necessária, José Miguel Wisnik

Talvez a nossa maior urgência seja a de aprender desde as mais distintas pers-
pectivas. Observar o funcionamento dos objetos, das relações e coexistências, o que
outrora já nos passou despercebido ou dotado de certa inutilidade, mas o que viste
inútil foi o que viram os teus olhos, humanos, esquecidos, enganados1... Quaisquer
perspectivas que sejam distintas de nós mesmos: o modo de vida dos bichos, a co-
municação química e silenciosa entre as plantas, as estratégias de sobrevivência dos
microorganismos, como os vírus e bactérias, as reações no encontro de duas ou mais
substâncias, enfim, aprender com o comportamento das diversas materialidades que
nos cercam e nos envolvem. É justamente numa circunstância de virulência, esse in-
contestável pano de fundo do nosso cotidiano mais atual, que atentamos — não pela
primeira vez, mas agora de modo imprescindível — para a esfera micro das coisas.
Nesse sentido, há aprendizagens que permeiam a materialidade têxtil e por
elas buscamos nesta terceira edição do projeto Tramações. Tais aprendizagens,
quando não as perseguimos propositalmente, as vimos surgir em consequência das
poéticas que compõem esse conjunto de artigos. A qualidade desses textos, que fa-
lam de tramas, não reside exclusivamente na capacidade de dialogar com as teorias,
justificar relevâncias e apresentar resultados, mas em resgatar um contato com a
experiência artística e com os processos de criação poética que são, por natureza,
questionadores de uma dada realidade. Reside justamente nas horas que passamos
a costurar o vento, articulando memórias e construindo saberes, ao investir na dúvi-
da, na pergunta e na errância.
Um processo ancestral de criação com linhas, agulhas e tecidos sobrevive ao
tempo? Que memórias podem evocar um processo de criação têxtil? Quais visuali-
dades ecoam nas materialidades do campo da arte têxtil? Quais possíveis fraturas
podem se consolidar no campo da arte têxtil? Como memórias individuais — reais
e/ou ficcionais — podem transbordar na/em relação com o outro? Como memórias
autobiográficas ganham força nos campos das micro e macropolíticas em tempos de
isolamento social? Quais as dimensões relacionais e educacionais do trabalho têxtil?
Como fomentar processos poéticos e educacionais por meio das práticas contempo-
râneas em arte têxtil? Como o campo acadêmico instiga pesquisas e investigações

1 Do poema Tu tens um medo, de Cecília Meireles.


10

poéticas costuradas às aprendizagens ancestrais de determinados grupos étnicos?


Como as aprendizagens do bordado, da tapeçaria, do crochet, entre várias outras
técnicas, estão ligadas a conhecimentos do cotidiano e como isso afeta o campo
acadêmico e o sistema das artes? Como as práticas têxteis estão sendo trabalhadas
— invadidas — pelas novas tecnologias da informação e comunicação? Como a ma-
terialidade têxtil pode ser ressignificada nos processos de criação em artes visuais?
Quem narra as práticas têxteis de comunidades originárias e quilombolas? Como o
sistema das artes se relaciona com as narrativas têxteis de grupos ditos minoritários?
Como editais de fomento à arte e cultura, convocatórias de bienais, mostras e salões
de arte, chamadas para residências artísticas, entre outros mecanismos de legitima-
ção cultural, estão pensando o campo das práticas têxteis?
Tramações é um projeto artístico-pedagógico mergulhado em perguntas,
que adora problematizar, e que foi concebido por meio de ações compartilhadas
de curadoria, expografia, processos de criação em artes visuais e mediação cultural,
apresentando como culminância uma exposição coletiva. São ações desenvolvidas
por professoras/es, estudantes e colaboradoras/es do Departamento de Artes da
Universidade Federal de Pernambuco e do Programa Associado de Pós-graduação
em Artes Visuais (UFPE/UFPB), buscando vivências poéticas que mesclam trajetórias
de vida e arte, imersões em leituras sobre cultura visual, gênero e sexualidades, pro-
tagonismo na produção de imagens e discussões sobre a construção social da expe-
riência visual e seus impactos econômico, político, cultural, tecnológico e emocional.
A primeira edição aconteceu em 20162 e a segunda em 20183, ambas sob abordagem
específica das questões de Gênero e Sexualidades.
Em 2020, a terceira edição de Tramações foi desenvolvida virtualmente sob a temática
A memória e o Têxtil, de modo adaptado ao contexto pandêmico da Covid-19 e suas medidas
de biossegurança. Contou com três ações: 1) formação artística e pedagógica de um grupo
de dezoito estudantes no campo das artes têxteis; 2) oferecimento de um minicurso sobre
a mesma temática para a comunidade acadêmica e membros externos à universidade e; 3)
exposição virtual coletiva com a participação de 77 artistas oriundos de diversas regiões do
país e do exterior, selecionados por meio de uma convocatória aberta ao público.
A exposição coletiva, ponto culminante das ações do projeto, ocorreu entre
os dias 17/11/2020 e 17/12/2020, no Instagram das seguintes instituições: Galeria
Capibaribe (Recife/Brasil), o Instituto de Arte Contemporânea (Recife /Brasil), Galpón
Gráfico (Córdoba/Argentina) e o Projeto Tramações. Perfis: @iacbenfica @galeriaca-
pibaribe @tramacoes @galpon.grafico.
O livro Tramações: a memória e o têxtil apresenta os percursos e processos de
criação no campo das artes têxteis, poéticas que produzem conexões entre diversos
lugares da experiência humana ao passo que refletem sobre a potência dos discursos
autobiográficos em contextos artístico-pedagógicos, colocando em pauta, ainda, as

2 Registros da primeira edição em: https://drive.google.com/file/d/18EG_eUZDNe5FFvad-


J8OfdtAuee4B2D_/view?usp=sharing
3 Registros da segunda edição em: https://drive.google.com/file/d/16-DdxKT9PLivwIRon_
tnNYshRIGC2Mqg/view?usp=sharing
11

questões relacionadas aos limites e expansões do que vem se configurando como


arte têxtil no cenário da contemporaneidade. É um registro histórico das ações de-
senvolvidas, bem como um material que instiga ainda mais perguntas, que incentiva
novas produções e investigações sobre as práticas contemporâneas em artes visuais
e que apresenta todas as poéticas participantes da exposição coletiva, funcionando
como uma outra maneira de levar a público as obras expostas.
No processo de organização deste livro, pensamos em alguns eixos temáticos
que contribuirão com uma leitura mais fluida, possibilitando visualizar as consonân-
cias de cada poética. No primeiro eixo, Tramações em Contexto, temos dois artigos
que apresentam o nosso caminho teórico no campo das artes têxteis e os investi-
mentos nos processos de curadoria compartilhada. Em A Memória e o Feminino, con-
centramos os processos de criação de quatro artistas que disparam questões sobre
a construção social da mulher e as feituras com linhas, agulhas, tecidos e bastidores.
Depois, temos nove narrativas de artistas que apresentam relação com A Memória
e a Ancestralidade, abarcando aspectos afetivos e as relações familiares com avós,
mães, lembranças da infância e a saudade. Em A memória e as dissidências, temos
seis artistas que pensam a relação entre a materialidade têxtil e o corpo, construindo
narrativas que divergem de normatividades de gênero e de sexualidades. Seguimos
com o agrupamento das poéticas de cinco artistas no eixo A Memória e as Urgências,
trazendo aquilo que chamamos de gritos, o que precisa ser dito em alto e bom som,
o que precisa ser escutado e compartilhado para, quem sabe assim, gerar cura.
Também temos três artigos que focam na discussão A Memória e a Materialidade,
mostrando processos que potencializam o têxtil na relação com outras linguagens
e tecnologias. Por fim, temos cinco textos curatoriais que foram construídos por in-
tegrantes do projeto, bem como por colaboradores externos que nos ajudaram a
repensar nossas ações por meio de suas apreciações.
Boa leitura!

Luciana Borre é artista visual, professora e pesquisadora interessada nas Práticas Têxteis Contemporâneas,
na Formação Docente, na Educação da Cultura Visual e nas questões de Gênero e Sexualidades. É
proponente do Projeto Tramações desde 2016. Atua como professora e coordenadora dos cursos de
Graduação em Artes Visuais, da Universidade Federal de Pernambuco e integra o Programa Associado
de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFPE/UFPB. Doutora em Arte e Cultura Visual (UFG), Mestre
em Educação (PUCRS), especialista em Gestão Educacional (PUCRS) e Pedagoga (UFRGS). Atuou como
professora na Educação Básica.

Luana Andrade é artista visual, professora e investigadora. Mestre em Artes Visuais (UFPB/UFPE) e
Licenciada em Artes Visuais (UFPE). Investiga aspectos relacionais nas artes visuais e as aproximações
entre arte e educação através de processos de criação. Integra o Projeto Tramações desde 2016. Tem
experiência docente em espaços formais (Educação Básica) e não formais de ensino, bem como em
ações de curadoria, expografia e mediação em mostras coletivas e individuais.
12

TRAMAÇÕES EM CONTEXTO
IMPRESCINDIBILIDADES TÊXTEIS:
ENTREVISTA COM KARINA MADDONNI
Luciana Borre

La Hostilidad, Instalação, Karina Maddonni, 2017-19


14 TRAMAÇÕES EM CONTEXTO

Em dezembro de 2020 dialogamos, por meio de uma entrevista virtual, com a


artista, professora e investigadora argentina Karina Maddonni. Ela tem sido uma das
referências contemporâneas para pensar o campo das artes têxteis por sua atuação
como curadora de diversas exposições, como artista envolvida com as materialida-
des têxteis, como professora que instiga olhares sobre a história da arte e como in-
vestigadora que está trabalhando pelo fortalecimento do campo das artes têxteis no
âmbito acadêmico. Karina Maddonni nos presenteou com uma conversa tratada a
partir das seguintes perguntas:
Tramações: Karina, depois de apresentar brevemente seu histórico no campo
das artes têxteis e antes de iniciar as perguntas, você quer fazer algum comentário
sobre sua participação no projeto Tramações: a memória e o têxtil?
Karina Maddonni: Sim. Primeiro muito obrigada pelo convite para fazer parte
da exposição, que ficou tão linda, e também por entenderem e levarem para a prá-
tica algo do que tenho falado tantas vezes nas aulas, pois uma coisa é ver o tema e
pensá-lo, e outra coisa é levar a cabo o entendimento de que hoje fazer arte é sinô-
nimo de fazer gestão e educação, de estender redes e de escrever. Hoje já não basta
nos fecharmos em ateliês, pois caminhar no campo das artes implica muitas coisas
e, se somos mulheres, temos “un par de cositas más”. É um privilégio estar aqui com
vocês. Eu admiro o Brasil e sua maneira de ter vivido e construído sua identidade
desde a arte pós colonial.
Tramações: Conhecemos o contexto de produção e exibição da sua obra La
hostilidad em outras mostras e exibições, mas como você percebe a presença desta
obra em relação às demais poéticas da exposição Tramações: a memória e o têxtil?
Quais lembranças surgem? Quais outros possíveis significados podemos agregar a La
hostilidad em Tramações?
Karina Maddonni: La hostilidad é uma instalação que foi exibida várias vezes
e, a cada mostra, agregou-se algum sentido, justamente por seus distintos contextos
de exibição. Uma das versões foi acompanhada de uma performance, sendo que a
obra é também uma instalação que se pode percorrer. La hostilidad foi convocada
para uma mostra sobre questões de violência de gênero e esta não foi sua proposta
original. No entanto, para esta mostra específica agreguei uma deriva distinta para
tratar o assunto, com acessórios e uma carga erótica que faziam alusão ao tema. Em
Tramações é a primeira vez que se mostrou La hostilidad de maneira virtual, sendo
um formato muito difícil de mostrar em fotos e por isso me pareceu que eu deveria
encontrar registros que representavam apenas partes da obra. Não me interessava
contar a totalidade. A obra tem relação com a memória da dor, da dor corporal e
não dor metafórica, e especificamente com a dor corporal infligida pela medicina.
Na Argentina, penso que no Brasil há outras dores também, muitas dores corporais
estão associadas com a tortura do processo de ditadura militar. Tenho me aproxi-
mado deste tema e de histórias de pessoas próximas sobre a dor causada ao corpo
das mulheres no âmbito dos hospitais, local onde se salvam vidas, mas aqui penso
também como local de medo. A obra é forte em sua história, é potente, problematiza
um tema tão precioso e tem me envolvido com o campo têxtil de maneira singular.
Em Tramações percebi que há diversas dores sendo expostas de maneira artística.
IMPRESCINDIBILIDADES TÊXTEIS 15

Tramações: “La hostilidad” da linguagem, do ambiente sanitário… é também


a hostilidade das instituições? Do próprio museu?
Karina Maddonni. Sim. Diria aos gritos que sim. Sem dúvidas! É também a hos-
tilidade institucional em termos gerais. A hostilidade sanitária trata direto do corpo,
mas sem dúvida para os artistas e para os gestores culturais, estes lugares tão queri-
dos – e às vezes tão sofridos – do museu, da universidade ou de um departamento de
arte, têm seu formato hostil, suas rigidezes e maneiras de estabelecer o poder. São
símbolos de poder. Uma bienal, por exemplo, é uma instituição que pode ser muito
hostil, pois é um lugar que “te deixa fora” ou que “te deixa dentro”. Estando dentro,
se pode fazer determinadas coisas. Sem dúvida a violência institucional é conhecida
por todos em instituições públicas ou privadas.
Tramações: Quais as relações, partindo de seus trabalhos como artista, profes-
sora e curadora, entre o têxtil e a memória?
Karina Maddonni: Eu entendo que o têxtil é um suporte privilegiado para
a memória. Um lugar que já tem uma estrutura real e conceitual preparada para
abarcar memórias. Sempre tive essa sensação. Penso que muitos artistas, que não
são artistas têxteis, recorreram ao têxtil como material quando necessitam falar de
questões de memórias sociais e afetivas. Há fotógrafos, por exemplo, que têm recor-
rido ao suporte têxtil para impressão em tecido, “perdendo qualidades técnicas” e
ganhando sentidos com a possível “fragilidade do material” e com o contato próximo
com o outro. Creio que o têxtil é um grande suporte quando se vai abordar ques-
tões da memória, não somente do corpo individual, mas do corpo social. O tecido
tem grande quantidade de sentidos prévios inscritos sobre ele: abrigar, cobrir, sanar,
que pode machucar, que pode ser suave… Enfim, tem uma dimensão plena porque
estamos sempre muito próximos desta materialidade. O cheiro de um lenço pode
proporcionar muito mais proximidade a uma pessoa do que uma foto. Tudo isso tem
relação com o conceito de Cultura Visual que abrange todas as percepções sensíveis
que temos. O tecido reúne uma quantidade considerável disso: o olfativo, o tátil, o
visual e, às vezes, o auditivo. Há maneiras de potencializar a questão das memórias
com estes materiais têxteis e de animar as pessoas para que entendam que não é
artista somente quem sabe tear ou bordar, mas é artista têxtil quando há comoção
com este material, quando se convoca este material para o pensar artístico, mesmo
sem saber o que fazer e sem nem saber costurar. É quando não posso prescindir
deste material, sabendo que outro material não poderá fornecer o que preciso.
Tramações: A memória e o compartilhamento de memórias nunca é somente
sobre questões individuais, pois sempre transborda para o outro, tornando-se um
campo político….
Karina Maddonni: Sim. Ainda fico surpresa com o medo que a palavra “polí-
tica” tem gerado. Escolher o material têxtil também é uma decisão ideológica, polí-
tica e não somente estética. A arte têxtil está totalmente atravessada pelo político
porque as formas artísticas e os corpos estão politizados. A arte conceitual latino
americana é política, tais como Cildo Meirelles (Brasil) e León Ferrari (Argentina) que
abordam os acontecimentos do processo militar… São artistas profundamente con-
ceituais e políticos.
16 TRAMAÇÕES EM CONTEXTO

Tramações: Karina, em uma de suas palestras, você se refere ao desenvolvi-


mento do artista por meio da teoria dos afetos. Inclusive mencionando Sontag (1996)
e sua posição contra a interpretação somente conceitual, pois há mais coisas que são
possíveis de entender com uma sensibilidade aumentada, que poderíamos chamar
de sinestesia. Qual seu ponto de vista sobre as publicações acadêmicas no campo da
arte têxtil que seguem uma narrativa subjetiva? Como os artigos podem apresentar
resultados interessantes para as/os leitoras/es, aproximando-se delas/es?
Karina Maddonni: Falta muita teoria no campo da arte têxtil. Falta desenvol-
ver isso, pois necessitamos escrever mais e ter um pouco mais de rigor nas investi-
gações em processo. Penso que tudo está começando, principalmente nas investi-
gações locais e regionais. Vejo muitas investigações norte-americanas e europeias
e há de se ter um pouco de cuidado com esses textos que não refletem a nossa
realidade. Necessitamos produzir investigações e eventos em nossos países, a partir
de nossas heranças e identidades, colocando-nos a escrever de maneira sensível.
Há de se encontrar uma maneira de escrever imprimindo uma subjetividade, mas
uma subjetividade com “substância”, “profundidade”. O pior que pode passar a arte
têxtil são textos que falam de afeto sem profundidade reflexiva, sem certo rigor in-
telectual e que atribuem uma visão romantizada ao campo, sem conteúdo, sem di-
zer muita coisa. Podemos nos apoiar em autores excelentes sem necessitar atender
a uma exigência racionalista. Também devemos ter cuidado para não entrar num
conformismo de um modelo de escrita europeu, recuperando o que é de nossa ter-
ra, principalmente aquilo que está relacionado ao ancestral, ao mítico, ao sagrado.
Lendo a Sontag (1996), entendo a grande desconfiança sobre o sentido de uma obra
ou da pergunta: “o que quer dizer uma obra?”. Não dá pra perguntar o que uma obra
quer dizer mas, junto a Deleuze, é possível perguntar: como funciona uma obra? O
que ela quer de mim? Sontag (1996) diz que, ao invés de uma hermenêutica da arte,
podemos pensar uma erótica da arte, ou seja, o que nos atrai, o que nos desperta
paixão, partindo de um lugar irracional.
Tramações: Qual a diferença entre a relacionalidade de um intelectualismo
francês, representado por Bourriaud (2009) e a relacionalidade da teoria dos afetos
em Spinoza (2009)?
Karina Maddonni: As palavras são iguais, mas significam coisas totalmente
distintas. Quando Bourriaud começa com esse tema dos artistas relacionais, ele,
digamos, tipifica uma maneira de fazer arte que se afasta da questão meramente
estética para conectar-se a uma rede de intercâmbios sociais, de alguma maneira
prescindindo de uma aproximação vinculada à beleza. Então ele fala, por exemplo,
de Rirkrit Tiravanija, e de diversos outros artistas que estão ali dispostos como artis-
tas relacionais. Me parece que se revela nisso um enorme vazio europeu, um vazio
que não temos, porque muitas vezes assumimos problemas que são da Europa para
parecermos atualizados. Não vou me cansar de dizer, é lindo ler Bourriaud, mas esse
é um problema francês, não é um problema da America Latina. Na América Latina
não precisamos fazer uma teoria intelectual das relações porque temos artistas
como Lygia Clark, que teorias ela necessita? Ela entende, diretamente, o vínculo com
o outro como algo essencial para a obra. Quando pensamos em artistas relacionais é
IMPRESCINDIBILIDADES TÊXTEIS 17

através de uma perspectiva europeia que responde a um problema próprio. Acredito


que nossos problemas são outros, em relação à obra de arte. E quando apelamos à
teoria dos afetos, sem dúvida, tem a ver com essa relação, esse afeto que produz a
presença do outro. Há uma relação direta e corporal, aí está o corpo presente e não
há teoria de Bourriaud que possa explicar o que se passa com o corpo. Alguns nomes
de artistas ajudam a pensar isso e temos artistas tremendos que não se propõem a
se relacionar com o outro, mesmo assim não entendem outra maneira de fazer arte
se não for pela relação com o outro.
Tramações: Você acredita que a arte têxtil faz parte do que se tem chamado de
“campo ampliado” desde a escultura moderna? O que passa na contemporaneidade
inaugura um novo campo ampliado desde o têxtil?
Karina Maddoni: Por um lado é como um movimento que não termina nunca.
Demorou muito para a arte têxtil entrar no mundo da arte. Por outro lado, ao entrar
neste mundo, acabou por ampliá-lo. Mas outras considerações acabam aparecendo
porque na contemporaneidade não se distingue essas classificações. Minha sensa-
ção é que a arte têxtil colocou uma tensão a mais na arte contemporânea porque
trata de um lugar com viés popular. Muitos artistas têxteis buscam um afastamento
do popular para se consolidarem como “artistas”. A arte têxtil vem deste lugar co-
munitário, do compartilhado, do coletivo, do fácil de aprender, e não de uma peça
bordada divinamente. Acredito que a arte têxtil trouxe grandes problemas à “grande
arte”, porque o popular incomoda. Exemplo acontece ao citar os altares de santos
aqui na Argentina, que estão cheios de tecidos e trabalhos têxteis que devem ser vis-
tos desde um lugar de pura autenticidade. Posso dizer que hoje estas tensões estão
mais assentadas no sistema de arte, faltando o aceite do viés acadêmico.
Tramações: É possível delimitar, distinguir ou nomear o campo das artes têx-
teis na atualidade? O poderoso aspecto relacional deste campo seria seu principal
legado?
Karina Maddonni: Sim. Creio que o mais importante da arte têxtil é como en-
volver o outro e como esse envolvimento se dá em vários níveis. Um novelo da linha
não é suficiente para desenvolver uma peça, sendo necessário o entrecruzamento
de linhas que geram outras coisas. O têxtil está vinculado à necessidade do outro.
É raro que gere distância. Mesmo para aqueles que não sabem nada de arte, há o
sentimento de estarem familiarizados com o material e com a técnica, que é próximo
de suas experiências. O outro é necessário e é isso que mais me comove quando
trabalhamos com o têxtil.
Tramações: Qual a sua opinião sobre o modelo de exposições artísticas vir-
tuais? Quais vantagens ou desvantagens há neste novo formato de exposição?
Você acredita que as exposições virtuais terão lugar no sistema da arte depois da
pandemia?
Karina Maddonni: As exposições virtuais foram uma ferramenta necessária
neste contexto atual, mas eu não me senti muito vinculada a isso. Penso que ainda
há uma má interpretação do que seria transformar uma exposição presencial numa
exposição virtual. Entendo que é o que podemos fazer hoje, mas me parece que a
virtualidade precisa de um tempo de maturação que não tivemos. Considerando que
18 TRAMAÇÕES EM CONTEXTO

tudo pode ser exposto virtualmente, há sentido em um concurso artístico? Quando


tudo isso passar, poderemos usar o virtual para o que realmente pode servir. Ainda
falta aprender sobre isso e o mundo da arte não estava preparado. O campo edu-
cacional me parece muito mais preparado porque já trabalhava com isso. Há de se
pensar outra maneira de convocar e seguir trabalhando com a circulação de obras de
arte e que tenha sentido no formato virtual. O virtual nos tira essa experiência diante
da arte, retira a relação do corpo diante da obra que foi feita para a presença. O for-
mato virtual não favorece obras que necessitam do corpo dos espectadores. As inau-
gurações virtuais de exposições são muito engraçadas porque ainda repetem modos
presenciais que não cabem ao virtual. Também penso que depois da pandemia, levar
um palestrante de um lugar do globo para falar por uma hora em um congresso
passará a ser uma prática obsoleta diante da possibilidade de uma teleconferência.
Tramações: O virtual segue uma outra lógica que não é acobertada pela sim-
ples adequação da exposição presencial ao campo virtual. Há processos de criação,
de curadoria, de exposição e de mediação cultural que precisam ser revistos, acredi-
tando que ainda criaremos estudos e contribuições próprias a esta realidade.
Karina Maddonni: A obra gera impulsos, comove ou incomoda e tenho dúvi-
das se a mostra virtual pode dar conta disso. Um projeto como Tramações: a memó-
ria e o têxtil vai além do que está sendo exibido, porque envolve outros processos
compartilhados. São coisas novas para pensar e outras maneiras de produzir a obra.
Tramações: Quais os enfrentamentos e disputas contemporâneas no campo
das artes têxteis?
Karina Maddonni: Não sei se são enfrentamentos, mas há maneiras de fazer
arte têxtil. A grande pergunta – e não tenho essa questão tão clara e não quero
mal entendidos – é que, como a arte têxtil tem essa coisa doméstica por natureza,
sente-se que tudo e todos podem ser artistas têxteis. Não quero falar de um lugar
privilegiado, mas na arte têxtil se produz um fenômeno onde as pessoas pagam para
ser artistas. Pagam para mandar a obra para uma mostra. Pagam para estar no local
expositivo e pagam inscrições. Há um circuito de arte têxtil que está totalmente vi-
ciado e que ainda crê que é uma transação econômica se tornar artista. Quando fui
convidada para uma bienal eu acabei também pagando para estar presente, sendo
cúmplice desse sistema. Não vejo mais esse fenômeno tão presente em outras áreas
e acredito mais em projetos que operam de outra maneira.
Tramações: Fale um pouco sobre a “ética artística” como uma prática de pro-
dução que esteve presente na poética La Hostilidad. O artista, envolvido em proces-
sos éticos e estéticos, pode reinscrever outras subjetividades através do processo de
criação?
Karina Maddonni: A questão ética pode ser um problema em arte, sendo en-
tendida como um lugar restritivo, que impõe limites. Na teoria dos afetos uma das
preocupações mais importantes que se tem é: qual efeito produzo no outro com o
que faço? Quando estamos produzindo uma obra eu tenho que ser responsável como
artista com o que pode passar com o outro, que pode receber a obra e pode sofrer
de uma maneira que não gostaria. A dimensão ética da arte é aquela que tem em
conta os afetos dos outros. Tenho um exemplo de uma obra que me parece antiética,
IMPRESCINDIBILIDADES TÊXTEIS 19

mas belíssima. Nicola Constantino fez uma lipoaspiração e com sua graxa produziu
sabões. O processo estético é impecável, mas eticamente não levou em conta os
sobreviventes do holocauto, não levou em consideração as pessoas que repugnam a
sensação de pensar a matéria corporal como matéria prima para produzir industrial-
mente um produto, como se fez em Auschwitz. É aí que vejo uma relação entre arte e
ética, quando o artista não se acha responsável pelos efeitos que a obra pode exercer
sobre o outro. Com a obra La Hostilidad, exposta na cidade de Rio Cuarto, enfrentei
uma situação interessante. A diretora da mostra perguntou se poderíamos organizar
uma conversa com a comunidade, pois as pessoas estavam chorando muito. Aceitei e
tive uma das conversas mais intensas onde entendi o efeito de uma obra sobre outra
pessoa. O artista deve se responsabilizar por estar ali, deve dar explicações e revisar
as coisas. Penso que nisso consiste a dimensão ética.
Tramações: Karina, agradecemos sua participação e as significativas contribui-
ções que tu apresentaste aqui. Nosso projeto está instaurado em relações como esta:
relações que fortalecem nossos estudos, investigações, processos de criação e de
mediação.

REFERÊNCIAS:

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

SONTAG, Susan. Contra a interpretação: e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,
1966.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica,
2009.

Karina Maddonni es artista visual, curadora independiente, profesora y investigadora en Artes. Es


Magister en Lenguajes Artísticos Combinados (UNA, 2016) y Licenciada en Artes Visuales con orientación
en Pintura (UNA, 2004).
CURADORIA EXPERIMENTAL:
UMA PERSPECTIVA ARTÍSTICO-INVESTIGATIVA

Lizandra Santos1

Este é um relato sobre curadoria, vivenciado no projeto Tramações: a memória


e o têxtil em sua terceira edição, em 2020. No plano de investigação de um/a artista,
quantas possibilidades podem ser criadas? Esta é uma pergunta que frequentemente
me faço, enquanto artista visual e pesquisadora das minhas próprias práticas e pro-
cessos. A pergunta é quase retórica e a resposta que me ocorre é, frequentemente,
a mesma: “infinitas”. A ideia de traçar caminhos que me levam a novas perspectivas,
tem sido um ponto muito importante e minha intenção é de experimentar e observar
até onde posso caminhar enquanto uma artista-etc2.
E foi nesse panorama que tive a oportunidade de fazer parte da 3ª edição do
projeto Tramações, uma ação artística que envolve aspectos de curadoria, processos
de criação, mediação cultural e expografia, todos atrelados numa proposta de mui-
tos meses de trabalho que tem a culminância em uma exposição.
Embora esta última edição não tenha sido a minha estreia no projeto, do qual
tive a alegria de participar na edição anterior, em 2018, este foi um marco interessan-
te, pois desta vez pude ter um contato um pouco mais específico com os processos
curatoriais.
Todos/as nós, artistas, que fizemos parte do grupo proponente, nos dividimos
em algumas funções a fim de viabilizar o processo de montagem virtual, curadoria e
mediação da exposição que fez parte das realizações do projeto. Como dito anterior-
mente, estive no apoio à curadoria e é sobre essa vivência que discorro.
Entendi a curadoria, nesse contexto, como uma possível extensão do meu
trabalho, entremeando-me em processos e narrativas outras que podem ou não es-
tarem atreladas às minhas práticas. Uma maneira de fortalecer e descobrir novas
ideias e formas de organização do pensamento e das poéticas, como uma ação cole-
tiva e compartilhada.

CURADORIA - EXPERIMENTO ENQUANTO PONTO DE PARTIDA


Para além dos espaços culturais de ações, projetos, galerias, acredito que
a curadoria pode ser vista enquanto um espaço de ativação do pensamento.
Observando Tramações como uma verdadeira trama de ideias e de coletividade
artística, já a princípio entendi que seria necessário sair do meu corpo-espaço de

1 É artista visual, arte-educadora e graduanda do curso de licenciatura em Artes Visuais pela Universidade
Federal de Pernambuco.
2 “Artista-etc” é um conceito proposto por Ricardo Basbaum (2013), e se refere ao artista que, para além
de sua função artística, perpassa e caminha por outras instâncias dentro da sua área, questionando-se
sobre a natureza de seu próprio papel e função no sistema das artes.
CURADORIA EXPERIMENTAL 21

“artista artista” e considerar outros aspectos que estariam para além dos meus pró-
3

prios processos de pesquisa e de técnicas. Essa necessidade se fez presente a fim de


estabelecer conexões com outras poéticas - a dos artistas participantes do projeto.
Tais conexões, entretanto, dispunham de um tempo relativamente mínimo para se-
rem criadas, sendo assim, me vi em uma situação de dúvidas e pressa. E agora, como
proceder enquanto curadora?
Para início de conversa, procurei entender o que seria, objetivamente, uma
curadoria, para, a partir de então, alçar possibilidades e, por que não, pensar minhas
próprias teorias. Sobre o papel da curadoria ao longo da história, Alena Marmo e
Nadja Lamas (2013) nos falam do surgimento dessa atividade:

A atividade de curadoria tem origem institucional, tendo surgido no


século XIX da necessidade de se pensar um acervo a partir de suas es-
pecificidades. A princípio, cabia ao curador estudar, preencher lacunas
e pensar formas diferentes de mostrar determinada coleção, o que aca-
bava resultando em exposições de longa duração, montadas depois de
um grande período de estudo e pesquisa (MARMO; LAMAS, 2013, p.11).

As autoras falam, ainda, sobre mudanças de perspectivas na profissão do cura-


dor com a modernização dos tempos, dos processos e das relações artísticas, pois
“muito se fala hoje a respeito da ação curatorial, que, em muitos casos, vem ocupan-
do o lugar que antes era do artista e, não poucas vezes, se sobressai à atuação deste”
(MARMO; LAMAS, 2013, p.11).
facilitador das exibições de coleção. Um trabalho minucioso, mas que o leva-
va a um contato mais específico com as obras. Contudo, a arte e seus cenários são
dinâmicos e estão sempre no movimento de ressignificação e novas visões. Assim
também a atuação do curador seguiu suas transformações, o que o possibilitou mais
autonomia e ações junto aos próprios artistas, protagonizando propostas, sugestões,
favorecendo um trabalho mais próximo e interativo.
Partindo dessas investigações introdutórias, iniciei um processo de conversa
e troca de sugestões com os/as outros/as artistas do projeto, objetivando fazermos
uma curadoria conjunta que nos pudesse facilitar um compartilhamento de aprendi-
zados e leituras de obras, ao mesmo tempo em que selecionávamos as poéticas para
serem expostas. Essa ideia teria sido de todo bem sucedida, não fosse a urgência
para a realização dessa demanda. A nossa exposição contou, além das obras dos
artistas proponentes, com outros trabalhos de artistas fora da organização do pro-
jeto, que foram selecionados por meio de um edital proposto por nós, sobre o tema
“a memória e o têxtil”. Quando começamos, de fato, as etapas mais avançadas de
montagem da exposição, entendemos a grandiosidade - no sentido de importância e
também de alta demanda - desse processo.
Enquanto relato pessoal, o que, substancialmente, vivenciei? O que aconte-
ceu, de fato, foi uma assessoria para a organização das obras a serem expostas, que

3 “Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de ‘artista-artista’” (BASBAUM,


2013, p. 167).
22 TRAMAÇÕES EM CONTEXTO

foram dispostas na nossa plataforma virtual — o Instagram — em blocos. Cada bloco


correspondia a um dia de postagem e representava uma espécie de planejamento
interno onde, para nós proponentes, havia grupos de trabalhos com poéticas ou te-
máticas afins, sendo dispostos em sequências, para fins de organização interna. Essa
compreensão das afinidades das poéticas foi fundamental para o processo curatorial
e também um desafio. Afinal, o que aproxima os processos de diferentes artistas?

CURADORIA ENQUANTO PRÁTICA E PROCESSO DE ESPAÇO-PENSAMENTO


Para que houvesse a organização dos blocos de artistas na nossa exposição,
separamos cada dia de postagem das poéticas, de modo que ficaram dois dias por
semana, terça e quinta, e em cada um deles, um bloco de entre seis a doze artistas.
Cada bloco trazia um viés dentro da temática macro que era “a memória”.
Então havia os blocos “memória e ancestralidade”, “memória e a palavra”, “memória
e cartografia”, “memória e afeto ou infância”, “memória e processo” e “memória e
corpo”.
Precisamos, então, fazer a curadoria das imagens que foram enviadas por cada
um dos participantes, mas não apenas isso. Era importante encontrar um meio de
conexão entre os artistas e o público que acessaria as obras. Para que essas ações
fossem melhor desenvolvidas, adotamos algumas estratégias, como a de nomear um
ou dois artistas proponentes como representantes de cada bloco, que estudariam
as propostas escritas, junto com as imagens. Toda semana havia duas reuniões com
cada grupo/bloco de artistas, uma para a curadoria das imagens e outra para discu-
tirmos aspectos de mediação.
Durante a reunião de curadoria de imagens, a ideia era de entendermos aspec-
tos visuais relacionados às subjetividades textuais e conceituais das obras. Ou seja,
na exposição, para além de exibirmos as imagens, traríamos trechos dos memoriais
descritivos das poéticas — enviados juntos com as obras para a seleção do edital —
para estreitar o contato entre os artistas e o público.
Em cada reunião do processo curatorial, fazíamos uma leitura dos memoriais
e destacávamos trechos que sintetizavam a proposta das obras correspondentes, ao
passo que, selecionávamos as que se encaixavam no perfil temático do bloco. Essa
foi uma das atividades mais complexas. A questão da logística pesou e tivemos algu-
mas dificuldades para resumir a proposta descritiva das obras em uma legenda de
Instagram. Mas como resumir uma proposta escrita pelo artista? Até que ponto a
intervenção da curadoria se faz necessária, e até que ponto passa a ser um contato
de intrusão?
À primeira vista, a impressão que se tem é que, desde o final da década
de 1960, o curador está progressivamente invadindo o espaço do artista
e usurpando suas prerrogativas autorais. Nesse sentido, o problema em
legitimar a capacidade de invenção do curador estaria ligado à violência
que isso representaria contra a autonomia de produção da própria arte
(GONRING, 2015, p. 279).

As liberdades e maneiras de se exercer um contato mais próximo com o públi-


co através de uma exposição virtual, são consideráveis. Ao mesmo tempo, é preciso
CURADORIA EXPERIMENTAL 23

que haja uma filtragem de informação a ser oferecida quando estamos em um con-
texto coletivo de exibição, onde todas as obras precisam ter visibilidade e também
espaço de fala, de apresentação, de comunicação. A reflexão a respeito de até onde
intervir nessa comunicação artista-público foi o que mais nos norteou e intrigou.
Essa experiência simbolizou a complexidade da leitura de processos artísticos
e da experiência estética. O olhar de um artista sobre o trabalho de outros artistas
tem sempre um fundamento válido? Estamos aptos a estabelecer sínteses dessas po-
éticas? Bom, aptidão talvez não seja o termo que melhor se encaixe. Possivelmente
sensibilidade e disponibilidade de pensamentos sejam boas sugestões. Falo, aqui, da
sensibilidade enquanto cautela e tato quando se tenta ler os processos. A disponibi-
lidade seria estar a postos para aprender com o que se lê, inclusive que nem sempre
é possível o aprendizado — ao menos não o imediato. Embora a leitura de obras
não seja o assunto central deste relato, ela tangencia todo o processo de escolha dos
trechos de descrição dos trabalhos que precisaram ser selecionados para estarem na
legenda das postagens.
Diante dessa responsabilidade de resumir, de algum modo, a proposta escrita
pelos artistas, optamos por uma padronização no quesito quantidade de linhas es-
critas e/ou parágrafos, o que tornaria a leitura da legenda fácil e convidativa. Desse
modo, as pessoas que acessassem a exposição virtual poderiam entender um pouco
do processo de cada artista ao ler a legenda, e, talvez, sentirem-se imersos no univer-
so dessas poéticas. Foi uma estratégia interessante. E podemos afirmar que funcio-
nou. No entanto, foi um dos pontos em que mais tivemos dificuldades de execução
e de consenso.
Cientes dessa problemática de intervir em um processo de criação que não
é nosso, seguimos na tentativa de sintetizar os memoriais descritivos referentes às
obras presentes na exposição. Essa atividade, apesar de difícil, contou com auxílio
fundamental da mediação e das estratégias pensadas para uma prática virtual de
educativo.

MEDIAÇÃO E CURADORIA DE MÃOS DADAS


Quando nos vimos na situação de planejar uma exposição no ambiente virtual,
nos veio a preocupação de “como fazer?”
Durante as reuniões e trocas de impressões e sugestões do grupo proponen-
te, fomos criando um acervo de possibilidades que, mais tarde, foram se estabele-
cendo como formas de estratégias para que pudéssemos desenvolver, por exemplo,
ações educativas de mediação. E de que maneira organizamos essas estratégias?
Trouxemos algumas delas para o grande grupo, que envolvia desde os artistas pro-
ponentes até os participantes selecionados pelo edital. Durante nossos encontros
debatemos possíveis ações interativas mais específicas na página da exposição no
Instagram. Dentre essas ações estava a sugestão de intervirmos entre os trabalhos
de nossos colegas, com perguntas propositivas, a fim de instigar o público a fazerem
seus próprios comentários e, também, ampliar o espaço para os/as artistas falarem
e discutirem sobre suas poéticas. Essa foi uma a solução que encontramos e que
contribuiu tanto para estratégias de mediação como para a de curadoria, uma vez
24 TRAMAÇÕES EM CONTEXTO

que o processo curatorial e as possibilidades de mediação estavam sendo discuti-


das simultaneamente. A ideia de um projeto coletivo e híbrido enquanto criação e
produção artística é o que faz de Tramações um espaço para aprendizados diversos.
Essa diversidade também facilitou a interação no modo como nos relacionamos en-
quanto artistas e colegas de área. Uma das sugestões trazidas pelo grupo foi a de
conhecermos melhor os trabalhos uns dos outros, trocando contatos do Instagram,
o que convergiu, também, para a ideia de conhecer melhor o artista e seus processos
— que era a grande preocupação da curadoria. Dessa maneira, conseguimos viven-
ciar caminhos de trocas e de compartilhamento entre nós, tendo a expectativa de
reverberar isso para o público.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Meu trajeto de novas descobertas e experimentações foi se moldando aos
poucos, a cada dúvida, cuidado e, sobretudo, respeito pelos processos e caminhos
dos artistas com os quais tive a oportunidade de trabalhar neste projeto. Entre todas
as reflexões as quais me permiti enquanto investigadora e interessada no desdobra-
mento para além do “artista artista”, a de não me exigir limites nem pontos de amar-
ras foi a principal delas. E é o que que contemplo nas palavras de Ricardo Basbaum:
Percebe-se logo que ser (ou não) um artista não é algo de que se possa
exigir limites rígidos ou absolutos, revelando-se mais como um trânsito,
um certo deslocamento através das coisas combinado com a produção
de um espaço particular de problemas [...] (BASBAUM, 2013, p. 67)

Compreendendo todas essas fases de organização da nossa exposição e das


dificuldades e acessibilidades de se assessorar e acompanhar essas atividades, con-
sigo vislumbrar o caminho que pode ser trilhado a partir da ação. Não apenas a ação
pelo alcance de um objetivo, mas como uma via de transição entre vários espaços do
pensamento, da arte e dos questionamentos. Nem sempre se chega a algum lugar,
mas há sempre a chance de se mover de onde quer que seja.
Com essas vivências, fui compreendendo minha postura enquanto curadora/
assessora curatorial. Envolvi essa experiência na minha investigação enquanto artista
etc, num espaço em que questiono minhas ações já “consolidadas” na minha traje-
tória e me permito pensar e adaptar essas práticas para situações outras e práticas
outras, entendendo dinâmicas de pensamentos e funções artísticas que vão para
além do “ser artista”.

REFERÊNCIAS:

BASBAUM, Ricardo Roclaw. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.

GONRING, G. M. (O que) pode a curadoria inventar? Revista Galaxia. São Paulo, n.29, p. 276-
288, jun. 2015.

MARMO, A. R.; LAMAS, N. C. O curador e a curadoria. Revista Científica Ciência em Curso.


Palhoça, SC, v. 2, n. 1, p. 11-19, jan./jun. 2013.
PRÁTICAS E NARRATIVAS
TÊXTEIS CONTEMPORÂNEAS

Luciana Borre

O que entendo por campo das artes têxteis ou práticas e narrativas têxteis
contemporâneas? Como estão circulando as discussões e os processos de criação
neste campo a nível regional, nacional e internacional? Por onde escolherei andar?
Como mapear práticas têxteis contemporâneas em um contexto histórico cultural
que impossibilita demarcações metodológicas e construção de novos muros epis-
temológicos? Neste capítulo, construo algumas pistas para ampliar o entendimento
das práticas artísticas e narrativas têxteis contemporâneas e mostro os caminhos
seguidos durante o Projeto Tramações: a memória e o têxtil.
Vivências como docente, artista, pesquisadora e proponente de ações culturais
têm possibilitado trânsito por instituições, exposições, galerias, cursos e eventos em
torno das artes têxteis. Também tenho orientado pesquisas nesta área e conhecido
artistas com diferentes compreensões acerca deste campo. Geralmente, presencio
os conflitos da conhecida dicotomia entre arte têxtil e artesanias e/ou manualidades,
escutando a voraz defesa pela valorização do artesanato enquanto arte e a crítica à
circulação em locais sem prestígio. Também já ouvi o rechaço de alguns artistas ao
termo “têxtil”, como se isso diminuísse o status de suas produções. Em sala de aula,
percebo o interesse das/os estudantes nas várias horas despendidas com processos
manuais de criação com linhas, agulhas e tecidos. Muitas/os relatam a necessidade
de um “tempo de ócio” entre as inúmeras atribuições do dia a dia e de investimen-
to em si próprio. Além disso, elas/es relatam uma imediata rememoração afetiva a
outros tempos, lugares e pessoas enquanto tecem, bordam, tricotam ou costuram.
Nesse vasto cenário, posso somente afirmar que as práticas artísticas têxteis
têm se tornado um campo de inúmeras possibilidades, agregando cada vez mais in-
teressadas/os com formações profissionais distintas e constituindo uma comunidade
investigativa e artística que se reúne com a preocupação de registrar a construção
destes saberes específicos na história.
Há uma pluralidade de vivências que impossibilitam demarcações. No entan-
to, o exercício reflexivo que proponho nessa escrita busca ensaiar sobre questões
complexas a respeito do fazer têxtil na contemporaneidade, condensando um es-
tudo mais amplo que venho registrando ao ser atravessada por essas experiências
artísticas e docentes. Trago aqui, portanto, oito percepções situadas no contexto das
práticas e entendimentos têxteis que têm aparecido com maior frequência em meu
caminho, apresentando ainda certa preferência pelas possíveis fraturas metodológi-
cas e pelas brechas conceituais. Podemos tratar dessas provocações enquanto pistas
para entender as ideias, narrativas e práticas circulantes no campo das artes têxteis.
Gosto de chamar de práticas e narrativas têxteis contemporâneas as inúmeras
ações poéticas que utilizam distintas materialidades e/ou concepções têxteis, desde
o bordado, o crochê, o tricô, a tapeçaria (...) até a pesquisa de fibras e tramas digitais,
26 TRAMAÇÕES EM CONTEXTO

praticadas por artistas, artesãs/ãos, estudantes, desejantes e curiosas/os para visi-


bilizar narrativas pessoais e/ou de grupos e comunidades. É quando o têxtil em sua
materialidade ou conceituação - ou mirabolações - se torna imprescindível aos pro-
cessos de criação (não somente de artistas).

ENFRENTAMENTOS ENTRE ARTE TÊXTIL, ARTESANATO OU PRÁTICAS MANUAIS


Certa vez, perguntaram-me se deveria ser apresentada como artista têxtil ou
artesã. Imediatamente respondi que não era artesã. A resposta rápida veio da lem-
brança e admiração por Dona Leda, que já tinha a visão comprometida pela idade e
muitas dores nos braços em virtude das horas de dedicação à feitura do crochê. Ela
criou dois filhos com a venda de suas peças e, mesmo na melhor idade, não parava
de receber encomendas de trilhos de mesa, guardanapos e bolsinhas. Dona Leda é
uma de minhas referências pessoais, uma artesã dedicada que investiu no rigor dos
pontos e na precisão técnica. Por isso, afirmar que sou artesã soava desrespeito-
so e injusto. Minha resposta partiu do reconhecimento da trajetória de Dona Leda
e do artesanato como demarcador de identidades culturais a serem legitimadas.
Brevemente confusa com a imersão nessas lembranças, logo entendi que a pergunta
era uma armadilha.
O relato mostra um jogo de narrativas que determina possíveis espaços
de circulação e relações de pertencimento, evidenciando que o artesanato está
ligado a como se aprende (geralmente com familiares, para o trabalho, em comu-
nidade) e uma arte têxtil estaria ligada a onde se transita enquanto indivíduo.
Bienais, concursos artísticos, exposições, mostras no campo das artes têxteis (na-
cional e internacional), bem como editais públicos de fomento à arte e a cultura,
inclusive instituições de formação acadêmica em artes visuais, são exemplos de
espaços que continuam marcando a dicotomização entre arte e artesanato. Já vi
artistas sentindo-se ofendidos com a “confusão de títulos” ou quando da mínima
relação de suas obras com o mundo do artesanato. Também escutei que as práti-
cas manuais são desprovidas de um pensar artístico, estando atreladas somente
à manufatura de artefatos comercializados em espaços populares ou “de boca
em boca”.
A revista Gearte (v. 7 n. 3, 2020) abordou essa questão com profundidade
no dossiê “Ensino de Artes Visuais e Artesania: experiências e confluências meto-
dológicas”, apresentando o percurso histórico que sedimentou algumas dualida-
des dominantes nas artes, dicotomizando “artes maiores e menores, alta e baixa
cultura, educação artística e artesania, faculdades de belas artes e escolas de
artes e ofícios, cultura popular e cultura artística, etc” (PEIXE at al., 2020, p. 01).
Os organizadores do referido dossiê afirmam que há registros históricos de mo-
vimentos que buscaram gerar lacunas e/ou brechas no sistema das artes, como
o ideal da Bauhaus, por exemplo, mas estes não foram suficientemente grandes
para romper com tais dicotomizações. Estas tentativas de entrecruzar as artes
e os ofícios “têm sido obscurecidas (desfocadas ou diluídas) desde a segunda
metade do século passado, pela própria configuração do sistema de arte” (PEIXE
et al., 2020, p.02).
PRÁTICAS E NARRATIVAS TÊXTEIS CONTEMPORÂNEAS 27

Penso que as duas últimas décadas têm movimentado tais discussões, entre
tantos motivos, pelo crescente interesse e investimento nas narrativas das diferenças
ou “pequenas narrativas”. Canclini (2012) e Goodson (2017) afirmam que o colapso
das metanarrativas - visões totalizantes da história - do século XX produziu interes-
se por múltiplas, dispersas e fragmentadas narrativas para tentar explicar o nosso
contexto histórico-cultural, como uma compulsoriedade narrativa característica de
nossos tempos. Mais do que buscar narrativas e experiências de grupos ditos mino-
ritários, temos vivenciado a busca para que os próprios integrantes destes grupos
possam narrar suas histórias.
Especificamente no campo das práticas artísticas têxteis, surge um cer-
to incômodo relacionado aos discursos que “captam vozes marginalizadas”,
cedendo e garantindo a elas espaços no sistema da arte. Há investigações
acadêmicas e artistas que perpetuam um olhar colonialista em que a/o pes-
quisadora/or etnógrafa/o convive com grupos étnicos afastados dos grandes
centros, aprendem técnicas têxteis, registram suas histórias conforme seu
olhar e voltam para expor e receber créditos com os conhecimentos ou peças
produzidas. Há de se considerar o contexto histórico que ainda favorece este
tipo de abordagem e a urgência de reconfiguração. Por outro lado, também há
investigações que priorizam e fomentam as narrativas destes grupos étnicos,
que trabalham em conjunto para o bem comum e que desenvolvem projetos e
estudos compartilhados.
Enfim, a problemática é extensa, mas vale perguntar: e quando as narrativas
entre arte e artesanato se confundem? É possível caminhar fora dos termos “artesa-
nato”, “práticas manuais” e “artes têxteis” ou utilizá-los em uma relação não hierar-
quizada? Como brincar, debochar, se apropriar destas dualidades nos processos de
criação têxtil?

VALORIZAÇÃO DAS TÉCNICAS TÊXTEIS


Certo dia coloquei-me numa situação embaraçosa. Estava frio e decidi mostrar
orgulhosamente o cachecol de tricô que tinha feito para um grupo de artesãos que
acabara de conhecer. Eles criavam mantos em tapeçaria, bordavam túnicas, costu-
ravam peças grandiosas com uma técnica impecável. Um deles ficou curioso com
minha presença e, imaginando que eu também produzia artefatos similares, pergun-
tou: “o que você tece?”. Foi aí que mostrei meu cachecol de tricô feito em apenas
duas horas com um único ponto largo. A risada tomou conta do espaço quebrando o
gelo e deixando evidente que minha técnica não alcançava a destreza desenvolvida
por aquele grupo.
Deixando de lado minhas ambições com o tricô, essa situação engraçada me
faz pensar o quanto as habilidades técnicas, precisão, destreza, agilidade e perfeição
são aspectos importantes para grupos étnicos específicos, pois as peças produzidas
representam suas identidades culturais, sendo reconhecidas por determinados tra-
ços, desenhos e pontos. Nesses casos, o aperfeiçoamento das técnicas é um saber
desejado e que valoriza a comunidade. Foi interessante pensar o quão improvável se-
ria o aparecimento de pontos “mal feitos” e de peças com acabamentos desviantes,
28 TRAMAÇÕES EM CONTEXTO

pois há um compromisso de fazer bem, um compromisso com a técnica extrema-


mente valorizada em comunidades e cooperativas que são reconhecidas visualmen-
te por suas produções têxteis.
Em outros casos, a valorização das técnicas têxteis pode ser discutida.
Podemos problematizar, por exemplo, os debates ocorridos na Pré-Bienal de Arte
Têxtil Contemporânea da World Textile Art (WTA), que aconteceu em 2020 em ca-
ráter 100% online em virtude das ações de enfrentamento à pandemia COVID 19.
Sendo um dos maiores eventos do campo, apresenta repercussões significativas
na produção de referenciais artísticos e teóricos. Devido ao contexto, uma per-
gunta permeou quase todas as entrevistas e mesas de debate: como o campo das
artes têxteis pode ser entendido na atualidade? Entre respostas que destacaram
as necessidades de cooperação em redes e a adaptação às questões comunicacio-
nais (virtualidades), visualizei a ênfase de diversos profissionais que defendiam o
aprimoramento técnico como condição de inserção e aceitação no campo. Ou seja,
várias/os artistas convidadas/os foram convictas/os ao dizer que o aprimoramento
constante das técnicas, busca da perfeição dos pontos, uma feitura bem elabora-
da, repetição e anos de treinamento são valores primordiais a serem seguidos nas
artes têxteis. A ideia de trabalho árduo - muito tempo e uso de muitos materiais
- circula como narrativa dominante entre aquelas/es que já alcançaram certo pres-
tígio artístico.
Mais do que técnicas, materiais específicos e modos de execução, as práticas
e narrativas em arte têxtil se acercam dos sentidos que produzem, das relações que
são capazes de criar e dos conhecimentos que podem gerar por meio das materia-
lidades e/ou concepções têxteis. Concordando com Karina Maddonni (entrevistada
deste livro), gosto de pensar como as ações poéticas apresentam a imprescindibili-
dade da materialidade têxtil e/ou do pensar têxtil, sendo vivenciadas ou não com
agulhas, tecidos, lãs e linhas.

HERANÇAS ANCESTRAIS COMO FONTE DOS PROCESSOS DE CRIAÇÃO


Processos ancestrais de criação com linhas, agulhas e tecidos sobrevivem
ao tempo, evocam memórias, ecoam visualidades e transbordam para o outro.
Novamente caminho com Karina Maddonni que afirma: “o têxtil é um suporte privi-
legiado para a memória. Um lugar que já tem uma estrutura real e conceitual prepa-
rada para abarcar memórias”. Tal evidência se concretiza nas ações poéticas têxteis
em comunidade, nas quais as rememorações das relações familiares e os resgates
de lembranças da infância acontecem constantemente. Nestes casos, percebi que a
ressignificação de memórias autobiográficas ancestrais e a perpetuação de técnicas
e ensinamentos dos mais velhos, foram a fonte primária de inúmeros processos de
criação.
Neste contexto, torna-se importante perguntar: como o campo acadêmico
instiga pesquisas e investigações poéticas costuradas às aprendizagens ancestrais?
Como a afetividade e os relatos autobiográficos são vistos por quem produz conhe-
cimentos ditos “legítimos”?
PRÁTICAS E NARRATIVAS TÊXTEIS CONTEMPORÂNEAS 29

QUESTÕES DE GÊNERO E A INVISIBILIZAÇÃO DA MULHER


E DO TÊXTIL NA HISTÓRIA DA ARTE
Ministro o componente curricular eletivo Arte Têxtil nos cursos de gradu-
ação em Artes Visuais e, possivelmente, o reconhecimento de uma identidade
profissional ligada às manualidades fez com que, durante uma reunião, um cole-
ga pedisse que eu costurasse um botão caído de sua camisa. Já costurei muitos
botões, arrumei bainhas desfeitas, consertei tiras rompidas de sandálias e fiz mi-
nhas próprias roupas. No entanto, aquele pedido continha sentidos sorrateiros,
era um jogo de palavras malicioso, que demonstra uma ordem estabelecida de
relações de gênero.
Inúmeras/os pesquisadoras/es da história da arte registram e discutem o fato
de que a materialidade das chamadas artes têxteis foram “tradicionalmente me-
nos valorizadas por serem associadas às faturas e meios ‘naturalmente’ femininos”
(SIMIONI, 2007, p. 87). A aproximação dos fazeres com agulhas, linhas e tecidos ao
mundo feminino se deu, entre outras razões, pela atribuição histórico cultural que
restringia mulheres ao âmbito doméstico e pelo seu distanciamento do controle eco-
nômico, principalmente aquele fruto de seu trabalho.
A valorização das linguagens artísticas tradicionais hierarquizadas pela acade-
mia, a dificuldade de acesso das mulheres aos espaços artísticos como produtoras de
arte no século XX, a feminilização das práticas manuais/artesanais ligadas ao âmbito
privado (casa/lar/família), o apagamento das obras de mulheres artistas na história
da arte, a crença na ausência de qualidades intelectuais ou artísticas entre as mu-
lheres e a exclusão institucionalizada das mulheres do campo artístico são alguns
dos fatores que explicam a pouca valorização das artes têxteis no círculo artístico.
Tapetes, almofadas, bordados, vestimentas, entre outros, “foram artefatos que rara-
mente passaram por aquela ‘alquimia’, tão central ao campo artístico, por meio da
qual alguns objetos distinguem-se dos demais, a eles sendo agregada uma carga de
valores e prestígios que possibilita descrevê-los, nomeá-los e defini-los como ‘artísti-
cos’” (SIMIONI, 2007, p. 89).
É verdade que usufruímos das conquistas dos movimentos feministas, transi-
tando com maior leveza por lugares até então impensáveis em outros tempos, e que
aquelas/es que vivem as masculinidades também se aventuram nas artes têxteis. No
entanto, ao escutar que “homens também bordam, costuram ou tricotam” suspeito
que as atribuições de gênero ainda imperam com roupagens demarcadas, parecendo
difícil “ultrapassar a fortíssima menorização social a que têm sido submetidos os
trabalhos de agulha" (DURAND, 2006, p. 03).
As/os organizadoras/es da revista Gearte (v. 7 n. 3, 2020) ajudam a pensar al-
gumas hipóteses que articulam o movimento contemporâneo do artesanal como ar-
tístico, sendo este marcado pela presença significativa de mulheres, supondo que “o
resgate do ofício artesanal como prática artística deve ser visto como uma resposta,
ao mesmo tempo que irônica, militante e reivindicativa diante dessa longa tradição
de excluir as mulheres da centralidade do sistema artístico, confinando-as à esfera
doméstica (PEIXE et al., 2020, p. 03).
30 TRAMAÇÕES EM CONTEXTO

TÊXTIL-TERAPIA OU TERAPIA OCUPACIONAL COM PRÁTICAS TÊXTEIS


Aspectos curativos e de ressignificação emocional circundam o campo das prá-
ticas têxteis com frequência. Por um lado, a utilização de materiais baratos (ou rea-
proveitados) e o fácil acesso ao conhecimento de pontos e técnicas (posso aprender
com minha própria família, com pessoas próximas ou na internet) são fatores que
favorecem a relação entre arte e terapia ocupacional.
Por outro lado, ações têxteis em grupos oportunizam a exposição pessoal de
angústias, medos, inquietações e reivindicações. Há algo de intimidade com as linhas
e técnicas com agulhas, muito ligado à ancestralidade, à espiritualidade e à supera-
ção de momentos ruins. Geralmente, o resgate de memórias das infâncias são utili-
zados para ressignificar algo do presente. Muitas vezes o bordado, o tricô, o crochê
recuperam a palavra, tornando-se envolventes e afetivos. Fica evidente um tipo de
conhecimento de outra ordem, um conhecimento sobre si em relação ao outro, que
liga o afetivo às memórias do corpo. A repetição e o tempo empreendido na feitura
de uma peça junto à confiança empreendida no processo de compartilhamento de
relatos no grupo compõem um ritual repleto de valores simbólicos e curativos.

AÇÕES COLETIVAS E ATIVISMOS POLÍTICOS


Muitas práticas e narrativas têxteis apresentam a dimensão política do coleti-
vo como característica primordial, reunindo forças por interesses comuns, ecoando
vozes que impõem o tom da fala, acolhendo problemas sociais difíceis de resolver,
dando sentido a um vazio e/ou problematizando assuntos delicados. O Guerrilha
Crochet (Yarn Bombing), movimento que gera reflexões acerca da ocupação dos es-
paços urbanos com intervenções em crochê e o que se costuma chamar de Craftivism
(movimento que evidencia uma determinada causa, tornando-a evidente, adequa-
da ao momento e que intersecciona o artivismo com práticas texteis e artesanias,
transformando bordados, crochês e tricôs em armas de protesto compartilhadas)
são exemplos da dimensão macrossocial da política no campo têxtil. Mais uma vez,
o feminino e as questões de gênero se destacam neste viés, tanto pela familiaridade
e a forte ligação afetiva com a materialidade das técnicas têxteis de quem produz
e de quem interage com as intervenções, quanto pelo envolvimento coletivo para
assuntos que desafiam os nossos tempos.

VESTIR COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL


O campo de estudos da moda tem preocupações, dinâmicas próprias e sin-
gularidades que não permitem sua associação exclusiva ao uso social das roupas.
No entanto, é possível dizer que a constituição de hábitos de consumo e as relações
sociais do corpo estudadas por pesquisadoras/es da moda tem proporcionado inves-
tigações pioneiras sobre as reverberações sócio-culturais das vestimentas, perceben-
do-as como mecanismos de poder. Discute, por exemplo, os padrões de beleza que
constituem visualidades e as questões ambientais, tais como o tingimento tóxico dos
tecidos, uso do sintético e do natural na indústria têxtil, o tempo de decomposição
das fibras e uma certa retomada ao consumo consciente das roupas. É no campo da
moda que encontramos grande parte do arcabouço teórico para o fortalecimento da
PRÁTICAS E NARRATIVAS TÊXTEIS CONTEMPORÂNEAS 31

comunidade investigativa em artes têxteis, pois seus as/os profissionais circulam no


campo acadêmico há mais tempo, com maior dinamicidade e sem as heranças de
uma concepção "clássica" da arte.

EXPANSÃO DAS MATERIALIDADES TÊXTEIS


Podemos considerar como poética têxtil uma obra ou processo que não utiliza
agulhas, tecidos, linhas, lãs, bastidores...? Como nos posicionamos diante de uma fo-
toperformance têxtil? De uma colagem digital têxtil ou de roupas virtuais? E quando
a materialidade têxtil não está presente em uma obra ou em um processo de criação
que se autodenomina têxtil?
Fico diante destas questões quando participo de curadorias e exposições
coletivas ou quando proponho processos de criação compartilhados. Está imbuída
em nossas vivências histórico-culturais a necessidade de demarcar lugares, separar
sujeitos, instituir paredes e delimitações epistemológicas. No entanto, apoiada em
Karina Maddonni (2020), defendo que não faz sentido distinguir ou delimitar o que
seria a materialidade têxtil. Entendo - talvez provisoriamente - que a imprescindibili-
dade do têxtil ou do pensamento da trama são os pontos centrais para a construção
de uma poética e/ou narrativa neste campo.

DIANTE DESSE CAMPO SEM FRONTEIRAS, POR ONDE ESCOLHO ANDAR?


Assumo com as/os estudantes que há uma comunidade artística e investiga-
tiva interessada no registro de práticas, relatos, histórias e pesquisas sobre as nar-
rativas têxteis, entendendo-as como um campo de conhecimento. Na verdade, há
comunidades investigativas que se formam em diversas regiões do globo defenden-
do que tais práticas e narrativas não refletem somente uma expansão das linguagens
e tendências da arte contemporânea ou da moda. Estão trabalhando na construção
epistemológica deste campo, afirmando que, mesmo diante de inúmeras possibili-
dades de atuação, de uso de suportes e técnicas, de vertentes teóricas e históricas,
há particularidades para serem pensadas. Entre estas peculiaridades estão: como
se aprende (geralmente por vínculos familiares, ancestrais e/ou afetivos); por onde
transitam as/os artistas e/ou produtoras de narrativas têxteis; a imprescindibilidade
das características têxteis nos processos de criação; a atuação por meio de práticas
colaborativas; a relação interdisciplinar e; a ligação à memória corporal.
Essas coerências e ações enunciativas estão sendo criadas em torno do campo
das artes têxteis, oportunizando o fortalecimento de determinadas metanarrativas e
advertindo que este jogo de quem pode narrar também oferece armadilhas. Nesse
sentido, compreendo que a arte têxtil pode ser entendida como um campo vasto
onde se colocam em relação uma série de elementos e uma certa regularidade dis-
cursiva, onde alguns objetos e vocabulários estão se tornando próprios do mundo
têxtil, tais como: “memória e têxtil”, “bordado e o feminino”, “Guerrilha Crochet”...
Neste cenário, o primeiro caminho por onde escolho andar está na compreen-
são das relações de poder proposta pela Educação da Cultura Visual, com a qual in-
vestigo a rede enunciativa em torno das práticas têxteis contemporâneas que geram
" grandes verdades". Por meio da repetição, algumas frases e pensamentos passam
32 TRAMAÇÕES EM CONTEXTO

a circular sem contestações. Por isso, fico inquieta com afirmações que naturalizam
as práticas têxteis ao mundo das mulheres ou quando grupos étnicos culturais espe-
cíficos são impelidos, desrespeitosamente, a narrar seus costumes.
Também escolho andar pelo entendimento de que o campo das artes têxteis
que está se organizando e configurando na contemporaneidade é reflexo de uma
virada narrativa tratada tão bem por Godson (2017) e Canclini (2021). Virada que
dificulta a representatividade em meio a tantas identidades e singularidades que têm
conquistado visibilidade social e espaços até então não acessados. Defendo que a
ascensão destas “pequenas narrativas” provocou a produção de novos sentidos nos
processos de criação em artes têxteis, tendo nas práticas do bordado, do crochê, da
estamparia, da cestaria e da tecelagem uma oportunidade de resgate de histórias de
vida que, ressignificadas, qualificam as relações interpessoais.
Junto a isso, escolho a autobiografia como fonte primordial nos processos de
criação em artes têxteis, não somente por causa da abundância de narrativas pesso-
ais que circulam na arte contemporânea, mas porque creio que o investimento nos
processos subjetivos proporciona melhores relações a nível macropolítico. Narrar-se,
compartilhar relatos de vida, falar de si, não está desvinculado da necessidade de
percepção das condições sociais e históricas em que se está inserido, pois estas, em
geral, criam as possibilidades de construção de tais relatos.
A narrativa autobiográfica pressupõe atender às interpelações do outro, es-
colher fatos para serem contados tomando a si mesmos como objeto de reflexão,
assumindo-se como parte responsável pelas situações contadas. Nem tudo o que
relatamos é fruto de um conhecimento consciente, “momentos de desconheci-
mento sobre si mesmo tendem a surgir no contexto das relações com os outros”
(BUTLER, 2019, p. 32). Por isso, a relacionalidade assume um ponto chave para
pensar as práticas e narrativas contemporâneas em artes têxteis, pois compartilhar
histórias, ressignificar memórias, tecer em conjunto, contaminar-se pelo outro, pe-
las versões de realidade do outro, gera processos de criação e de aprendizagens
significativas.
Inserida neste conjunto de ideias, assumo este quatro pontos em todos os pro-
jetos artísticos e educativos que desenvolvo: a necessária discussão sobre as relações
de poder que engendram as memórias corporais; o foco na perspectiva da autobio-
grafia como recurso indispensável para processos de criação e educativos; o enten-
dimento da virada narrativa como reflexão crítica à ascensão das narratividades de
comunidades ditas minoritárias e; a imprescindibilidade dos aspectos relacionais nos
processos de criação têxtil.

REFERÊNCIAS:

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2019.

CANCLINI, Nestor Garcia. A sociedade sem relato: Antropologia e Estética da Iminência. São
Paulo: EDUSP, 2012.
PRÁTICAS E NARRATIVAS TÊXTEIS CONTEMPORÂNEAS 33

DURAND, Jean-Yves. Bordar: masculino, feminino. In: Aliança Artesanal (Org.). Reactivar sa-
beres, reforçar equilíbrios locais. Vila Verde: Aliança Artesanal, 2006.

GOODSON, Ivor. A ascensão da narrativa de vida. In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene;
SOUZA, Elizeu Clementino (Orgs.). Pesquisa Narrativa: interfaces entre histórias de vida, arte
e educação. Santa Maria: Editora UFSM, 2017, p. 25- 47.

MADDONNI, Karina. Las prácticas artísticas textiles contemporáneas abordadas a través de


la lente del afecto. Revista Papeles de Cultura Contemporánea: procesos de artificación del
arte textil, n. 23, 2020, p. 193 - 217.

PEIXE, Rita Inês Petrykowski; HERNÁNDEZ-HERNÁNDEZ, Fernando; PRIETO VILLANUEVA,


Jesús-Ángel; CANÔNICA, Rosangela. Ensino de artes visuais e artesania: experiências, con-
fluências e derivas. Revista GEARTE, Porto Alegre, v. 7, n. 3, p. 428-443, set./dez. 2020.
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/gearte. Acesso em: 30 ago. 2021.

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Regina Gomide Graz: modernismo, arte têxtil e relações de
gênero no Brasil. Revista do IEB, n. 45, 2007, p. 87-106.
34 A MEMÓRIA E O FEMININO

A MEMÓRIA E O FEMININO
ÁRVORE

Clarissa Machado Belarmino1

Árvore, tapeçaria, 90cmx50cm, Clarissa Machado, 2020

1 Clarissa Machado é mãe e artista têxtil. Possui mestrado e graduação em Artes Visuais pela UFPE;
Atualmente, tem como foco em seus trabalhos visuais, o têxtil como suporte e poética, e busca a
experimentação têxtil, utilizando diversas técnicas e materiais com foco na abstração visual.
36 A MEMÓRIA E O FEMININO

Eu era árvore.
Sou árvore.
Serei árvore.

Árvore surge da minha urgência em ser. Foi realmente um desafio. O desa-


fio consistiu em tecer uma peça em uma dimensão maior. Acostumada a tecer em
um tear pequeno, me vi confrontada pelo desejo de expandir, de crescer. Preparei
uma antiga armação, limpei, lixei, coloquei os pregos, posicionei o urdume. Estava de
frente para o desafio, e o que fazer agora? Foi então, que cercada por elas2, resolvi
tecer uma árvore. O Livro dos Símbolos: reflexões sobre imagens arquetípicas apre-
senta uma imagem comparativa da árvore com o ser humano ao dizer que

parecemo-nos às árvores, direitos no tronco, de braços compridos, de-


dos delgados, os dedos dos pés em contato com o chão. Às vezes, na
mitologia os seres humanos são transformados em árvores e os suspiros
destas e as suas lágrimas de resina são ao mesmo tempo característicos
de árvore e de pessoa, aludindo à resistência, ao enredamento e à fixa-
ção (MARTIN, 2012, p. 128).

Ao trazer essa imagem comparativa, apresento a tapeçaria intitulada Árvore,


que compõe a 3º edição da exposição Tramações: a memória e o têxtil. A tapeçaria
foi produzida durante sete meses e tem como principal ideia a materialização das mi-
nhas experiências e vivências em ser mulher/mãe/artista em formato de uma árvore,
pois entendo que, para além dessa existência física, de matéria recheada de medos
e segredos, sou uma mulher/mãe/artista que desvela o potencial dessa relação. Aqui
me apresento como árvore tecida pelas minhas próprias mãos. Apresento-me em
forma de árvore por entender a analogia que Martin (2012) nos mostra, assim como
Bachelard (2003, p. 204) argumenta que “os poetas nos ajudarão a descobrir em nós
uma alegria tão expansiva de contemplar que às vezes, diante de um objeto próxi-
mo, viveremos o engrandecimento de nosso espaço íntimo”. É, portanto, nessa con-
templação que me integro ao prazer de ser árvore3. Tal analogia se apresenta como
uma reflexão existencial da minha condição de mãe/mulher/artista, em que me vejo
integrada no caminhar tortuoso com que teço minhas relações com o espaço íntimo
e externo a mim: “dar seu espaço poético a um objeto é dar-lhe mais espaço do que
aquele que ele tem objetivamente, ou melhor dizendo, é seguir a expansão de seu
espaço íntimo” (Bachelard, 2003, p. 206). Relatar o meu espaço íntimo, é trazer para
a superfície externa da árvore, desvelando sua casca, galhos, folhas, flores e frutos,
assim como Martin (2012, p. 128) afirma que “a árvore mostra-nos como, a partir
de uma mera e minúscula semente, o self se pode manifestar na existência, centrado

2 elas: filhas, árvores e linhas.


3 O espaço Fora de nós, ganha e traduz as coisas: se quiseres conquistar a existência de uma árvore,
reveste-a de espaço interno, esse espaço que tem seu ser em ti. Cerca-a de coações. Ela não tem limite,
e só se torna realmente uma árvore quando se ordena no seio de sua renúncia (poema de junho de
1924, traduzido para o francês por Claude Vigée, publicado na revista Les lettres, 4º ano, nº 14,15, 16,
p. 13).
ÁRVORE 37

e contido, à volta do qual ocorrem incessantes processos de metabolismo, multi-


plicação apodrecimento e auto-renovação”. Apresento-me então neste formato de
árvore com a finalidade de autocompreensão na relação entre ser mulher, ser mãe
e ser artista têxtil.

Foi um desafio, um fio que atravessou meu pensamento.


Um medo. Uma noite, um dia, uma vida inteira.

Nesse processo em que o descobrir-se acontece praticamente no mesmo ins-


tante da ação,notei-me emaranhada no fazer, no cuidar, no amamentar, em um ca-
minhar, em que a vida acontece em seu pleno exercício de existência. Ao passo que
muitas transformações aconteciam, as tessituras da vida me revelam uma potência
no ser físico em que me transforma, em que me identifico enquanto mulher enrai-
zada numa domesticidade consumidora de vida pulsante. A árvore não simboliza a
sutileza desse ser, mas sim a firmeza de uma escolha, de um encontro entre o seu
fazer manual com a plenitude de existir.
Quando iniciei a tecelagem da árvore estava diante de um momento íntimo,
reforçado por um isolamento social em que o mundo parava para uma possível refle-
xão sobre a vida humana. Iniciei nos possíveis momentos de imersão, a refletir sobre
a minha condição humana, sobre as incongruências e devaneios que o momento
pedia. Tendo o privilégio de morar em um lugar cercado por vários tipos de árvores,
me vi em meio a essa natureza pulsante numa potência de criação. Embora essa
potência ainda permanecesse no íntimo, no privado, no doméstico. A partir do mo-
mento em que iniciamos os encontros para a preparação de Tramações: a memória e
o têxtil, percebi que, aos poucos, ao estabelecer o contato com as outras proponen-
tes, e ao dividir com o grupo o meu processo poético, deparei-me com a sensação
de estar em comum(unidade). No livro A vida secreta das árvores, Wohlleben (2017)
questiona:
Por que as árvores são seres tão sociais? Por que compartilham seus nu-
trientes com outras da mesma espécie e, com isso, ajudam suas concor-
rentes? Os motivos são os mesmos que movem as sociedades humanas:
trabalhando juntas elas são mais fortes. Uma única árvore não forma
uma floresta, não produz um microclima equilibrado; fica exposta, des-
protegida contra o vento e as intempéries (WOHLLEBEN, 2017, p.8).

Dessa maneira, ao me ver tecendo uma única árvore percebo o quanto ela/
eu aparentemente estava sozinha. Digo aparentemente por compreender a ideia
apresentada por Wohlleben (2017) quando ele afirma que “trabalhando juntas elas
são mais fortes”. Essa frase, para mim, ganha sentido quando, ao participar dos en-
contros online do grupo de proponentes da exposição Tramações, fez-se presente
essa socialização em que “muitas árvores juntas criam um ecossistema que atenua
o excesso de calor e de frio, armazena um grande volume de água e aumenta a umi-
dade atmosférica – ambiente no qual as árvores conseguem viver protegidas e durar
bastante tempo” (WOHLLEBEN, 2017, p. 9). Cabe ressaltar que essa metáfora se apli-
ca a este tecer, pois ao fazer parte do “ecossistema” de Tramações: a memória e o
38 A MEMÓRIA E O FEMININO

têxtil, percebi-me emaranhada no fazer manual, ao passo que dividia com as outras
integrantes do grupo uma espécie de compartilhamento da vida e saberes que tor-
naram possível a existência da árvore tecida.
Durante a partilha dos primeiros encontros de Tramações, compreendi o signi-
ficado das autobiografias. O convite para trazer nossas histórias de vida se mostrou
atraente pois “quando partilhamos histórias de vida, narrando situações familiares
ou de outros tempos – revendo fotografias antigas – uma sensação de fortalecimento
é gerada. A força de se ver no outro, de se enxergar em outras vivências, provoca e in-
centiva ações de transformação” (BORRE, 2020, p.42). Durante os encontros tivemos
três momentos teóricos conduzidos por Luciana Borre, em que ela nos apresentou
a emergência de trazer para o cenário da arte têxtil as pequenas narrativas, tendo
como base referencial os estudos de Goodson (2013) e Canclini (2012), no qual nos
deparamos com uma virada cultural e com a ideia de múltiplas subjetividades, em
que as autobiografias, o cotidiano e as micronarrativas questionam a visão hegemô-
nica imposta por um sistema opressor e patriarcal, criando uma “multiplicidade de
subjetividades”, onde também os relatos são plurais e diversos. Ou seja, já não cabe
apenas uma verdade absoluta, e sim a produção de verdades plurais e dinâmicas.
Borre (2020) afirma que

expor narrativas pessoais parte do desejo de problematizar vivências


subjetivas na relação com o outro, explorando a construção do eu na
experiência compartilhada, buscando “linhas retas bem próximas umas
das outras”. Como mulher, filha, mãe, professora, pesquisadora e artis-
ta, invisto no que Goodson (2017) chama de “pequenas narrativas”, para
cativar estudantes em processos de formação docente, sugerindo “um
traçado desordeiro e intuitivo” e trilhando caminhos de um autoconhe-
cimento que transforma e cria protagonismos (BORRE, 2020, p. 71).

A partir desta compreensão, apresento a minha “pequena narrativa” para a


Árvore. Encontrei nesse processo poético, em que relaciono a construção do meu
ser mulher/mãe/artista e o fazer manual, uma possibilidade para conectar as minhas
subjetividades com os dilemas que se apresentam em ser mulher e seus diversos
papéis, sejam eles sociais, políticos, afetivos ou existenciais. Dessa maneira, trazer as
nossas pequenas narrativas aproxima

o confronto direto às nossas próprias fragilidades e imperfeições, reco-


nhecendo também, que os mecanismos dominantes não estão somente
retratados em figuras externas, líderes e grandes corporações, mas so-
mos nós mesmos que detemos em nosso âmago atitudes de coloniza-
ção. Alinhando nossos fios vermelhos ao aprofundamento histórico cul-
tural das questões de gênero e sexualidades, buscamos compreensões
subjetivas de nossas próprias versões de realidade, compartilhamentos
de relatos de experiência vivida e seus transbordamentos em processos
de criação artística (BOREE, 2010, p.10).

Ao trazer para a trama dessa tecelagem fragmentos da relação mulher/mãe/


artista, proponho trazer como ponto de interseção, assim como entre as linhas
tramadas (o urdume e a trama), minhas vivências diante da maternidade e dos
ÁRVORE 39

desdobramentos em ser mulher/artista. Um dos pontos chaves nessa relação é sobre


o tempo e o espaço que você tem para si. Quantas vezes você é interrompida, você é
solicitada, acionada durante um espaço de tempo em que você pretende se dedicar
a algo profissionalmente? O tempo é partido, repartido, recuperado e perdido num
turbilhão de tentativas esmagadoras em ser, existir e resistir a uma pressão constan-
te. Martin (2012, p. 458) ao relacionar o tempo como o fio da vida nos apresenta a
seguinte imagem: “o fio, como o tempo, <estende-se> – o significado original de fiar
até um determinado comprimento ou duração; tudo que é governado pelo tempo
está sujeito à mudança, e assim ao destino”. O tecer é transformado aqui como um
tempo de encontro, como uma pausa momentânea no tempo inventado, imagina-
do, tecido e por vezes compartilhado por choros, brigas e risadas, por intervalos de
serviços domésticos, pedidos de desculpas, ou pelo simples fato de não ter o tempo
devido ou esperado. Às vezes, enquanto tramo uma linha, ou até mesmo escrevo
esse texto, eles são produzidos em meio a inúmeras pausas em que o fio da meada
vai e vem, se perde e se transforma.

Virei, árvore.
Firmei meus pés no chão.
Levantei asas para conectar com o ancestral de dentro de mim.
Não foi só um desafio, um fio que permaneceu enrolado dentro de mim.
Esqueci (muitas vezes) de ser quem eu sou.

O ato de tecer é tão antigo que, segundo Martin (2012, p.456), “em todos
os mitos, a arte da tecelagem teve origem no mundo divino e é por isso que algum
pequeno erro tem de ser tecido no padrão para nos recordar a imperfeição em toda
a vida criada”. A árvore que sou apresenta tais imperfeições. Ela espelha um eu ema-
ranhado na vida que teço, na realidade de uma mulher que, se vendo mãe, nutre,
acolhe e se entrelaça com suas filhas, que cria dúvidas, que é pressionadas a ser
onipresente, que se sente sugada, cheia de medos e segredos. Qual mãe não sentiu
isso? Qual mãe não se viu atordoada em uma rotina exaustiva? Por isso que trouxe
para a proposta de Tramações: a memória e o têxtil essa Árvore tecida que se funde
com a mulher/mãe/artista, ao compreender que

retirando as fibras emaranhadas de plantas ou animais e enrolado-as,


emerge um fio contínuo. O cruzamento de dois conjuntos de fios entre-
laçados – chamado urdidura e trama – é o princípio subjacente de toda
a tecelagem. Através destas técnicas simples o tecido é produzido com
tal complexidade que a tecelagem se transforma numa imagem para o
mistério da existência (MARTIN, 2012, p 456).

Na tecelagem, o mistério se dá neste entrecruzamento de fios, na junção do


que se é visível e do que não é visível, assim como a relação entre ser mulher/mãe/
artista se funde entre a intimidade do ser e no que aparentemente aparece aos olhos
dos outros. Existe um claro conflito de posições, de pontos de interseções em que
a trama visual esteja disposta para a fruição. Narrar a si nos coloca em contextos
diversos e expõe trajetórias pessoais, relatos de vida. Nessa constante relação, ser
40 A MEMÓRIA E O FEMININO

artista/mãe/mulher me faz encarar a realidade externa e entender que a “tecelagem


significa assim criar, fazer algo a partir da substância da pessoa” (MARTIN, 2012, p.
456). Ao afirmar que sou uma árvore, apresento ao longo deste texto o poema que
acompanhou a imagem na exposição virtual de Tramações (3º edição): A memória
e o têxtil, pois segundo Martin (2012, p.456) “o tecido assemelha-se à linguagem de
muitas maneiras. As palavras formam sintaxe de modo semelhante à maneira como
os fios produzem tecido. <<Texto>> e <<têxtil>> partilham uma origem comum, sig-
nificando <tecer> (OED)”. A escrita é algo que faz parte do meu processo criativo,
mesmo que não apareça visualmente a palavra, a escrita se faz presente enquanto
caminho investigativo e de aproximação com a minha poética.

Sou árvore.
Árvore fincada no chão.
Brotei e dei frutos.
Os frutos crescem, parecem não querer cair.
Protejo-os, alimentos-os, para que amadureçam.
Virei, árvore.

REFERÊNCIAS

BACHELAR, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

BORRE, Luciana. Bordando afetos na formação docente. Conceição da feira: Andarilha edi-
ções, 2020.

CANCLINI, Nestor Garcia. A sociedade sem relato: Antropologia e Estética da Iminência. São
Paulo: EDUSP, 2012.

GOODSON, Ivor. Historiando o eu: a política-vida e o estudo da vida e do trabalho do profes-


sor. In: MARTINS, Raimundo; TOURINHO, Irene (Orgs.). Processos e práticas de pesquisa em
cultura visual e educação. Santa Maria: Editora da UFSM, 2013.

MARTIN, Kathleen. O Livro dos Símbolos: reflexões sobre imagens arquetípicas. Alemanha:
Ed. Taschen, 2012.
[CÔMODO]: CONSIDERAÇÕES SOBRE
O FEMINISMO, O TÊXTIL E A MATERNIDADE 4

Clara Nogueira5

[Cômodo], Bordado e colagem s/ tecido, 50cmx28cm, Clara Nogueira, 2020

A partir da segunda onda feminista, iniciada nos anos 1960, houve uma am-
pliação dos temas de luta das mulheres ― ainda se alimentando das crescentes
movimentações da primeira onda feminista ― que propiciou a abertura dos espa-
ços de luta por direitos sociais, como o voto e o debate sobre igualdade de direitos
legais. Os temas dessas movimentações começaram a abranger também a questão
das mulheres no âmbito da casa, do particular, da sexualidade, da violência domés-
tica, dando espaço para que houvesse uma crítica severa sobre o papel socialmente

4 Artigo traz partes da Dissertação da autora “Por um fio: a resistência e os devires nos trabalhos de
Cristina Carvalho”, defendida em 2019 no Programa Associado de Pós-graduação em Artes Visuais –
PPGAV UFPB/UFPE.
5 Idealizadora, Coordenadora, Pesquisadora da pesquisa Cultural “Mulheres que Tecem Pernambuco”,
Clara é mãe de José e Pilar. Arquiteta e urbanista; bordadeira; tecelã e crocheteira nos desvios; mestra
em Artes Visuais pela UFPE/UFPB. É doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Urbano UFPE. Desenvolve estudos e pesquisas que tratam de questões de gênero x têxtil, gênero x têxtil
x território, intervenções urbanas e instalações efêmeras.
42 A MEMÓRIA E O FEMININO

inferior ao homem, na sua vida cotidiana e íntima, a que a mulher estava condicio-
nada. Analisando que o espaço de debates, formado em sua maioria por mulheres
brancas, foi repensado para abranger essas questões comuns relacionadas à condi-
ção das feministas, vítimas, também no foro privado, das imposições da sociedade
patriarcal, em 1969 Carol Hanisch escreveu um artigo legitimando o espaço dessas
discussões “pessoais” dentro do movimento feminista (que só deveria ser acessado
por mulheres). Em seu artigo “O pessoal é político”, Carol Hanisch promoveu pro-
fundas reflexões acerca do lugar das mulheres na sociedade, mas sobretudo sobre a
relevância das questões da mulher no foro privado:
Deste modo, o motivo para eu participar dessas reuniões não é para
resolver qualquer problema pessoal. Uma das primeiras coisas que des-
cobrimos nesses grupos é que problemas pessoais são problemas polí-
ticos. Não há soluções pessoais desta vez. Só há ação coletiva para uma
solução coletiva. Eu fui, e continuo indo a essas reuniões porque adquiri
uma compreensão política que toda a minha leitura, todas as minhas
‘discussões políticas’, toda a minha ‘ação política’, todos os meus quatro
anos e pouco no movimento nunca me deram (HANISCH, 1969, p. 2).

Indo de encontro ao que se esperava dessas mulheres dominadas, começaram


a ser criadas vertentes de negação a esse lugar também dentro do espaço da casa,
o que gerou desconforto de algumas integrantes dentro e fora do movimento. Na
época, deu-se um grande levante antifeminista; começaram a aparecer contestações
ao feminismo como se esse fosse uma terapia coletiva, e a acirrar-se as críticas às
mulheres que lutavam nesse campo (se concentravam nos corpos e seres feminis-
tas). Assim, dentro do próprio movimento houve fissuras, pois, enquanto algumas
queriam refutar o papel da maternidade, por exemplo, outras queriam que o espaço
da mulher-mãe fosse admitido como bandeira de luta.

Quando nosso grupo começou passando pela opinião da maioria, nós


teríamos ido às ruas nos manifestar contra o casamento, contra ter fi-
lhos, pelo amor livre, contra mulheres usarem maquiagem, contra se-
rem donas-de-casa, pela igualdade sem o reconhecimento de diferenças
biológicas, e sabe deus o que mais. Agora nós vemos todas essas coisas
como o que chamamos de soluções pessoais. Muitas das ações tomadas
pelos grupos de “ação” têm sido ao longo destas linhas. As mulheres
que fizeram aquela coisa antimulher no concurso Miss América foram
aquelas que gritaram por ação sem teoria. As integrantes de um grupo
querem estabelecer uma creche privada sem qualquer análise real do
que poderia ser feito para melhorar a situação para as garotinhas, e mui-
to menos qualquer análise de como essa creche aceleraria a revolução
(HANISCH, 1969, p. 2-3).

O que se caracterizava como habilidade feminina, por exemplo, foi, por isso,
rechaçado por parte das mulheres, que viam naqueles atos uma forma de submissão
ao sistema patriarcal; outras, viam-no como um ambiente de fuga, no qual era possí-
vel subverter o lugar de opressão e torná-lo um lugar de força criativa.
[CÔMODO] 43

Em relação ao bordado, as feministas da época foram descritas como


rejeitando e desprezando artesanato e habilidades tradicionais das
mulheres. A ambivalência que experimentamos em relação ao borda-
do ― nossa compreensão do meio como instrumento de opressão e
importante fonte de satisfação criativa ― foi repetidamente deturpada
como uma condenação geral. Aparentemente, demos as habilidades de
arte doméstica as mulheres. A feminista foi representada como odiosa,
triste, feia e desprovida de humor (PARKER, 2010, p. XII).

Nesse momento, também a arte, em seus aspectos sociais, políticos e formais,


foi amplamente discutida e contestada: “Em 1971, Linda Nochlin publicou um artigo
que se converteu em uma chave para o feminismo em arte: Why have there been
no great women artists?” (HOLLANDA, 2006, p. 150). Para Nochlin, essa revisão da
história tem significativos aspectos positivos: resgatar a figura de mulheres artistas
era um esforço válido, mas não respondia diretamente à questão de não haver mu-
lheres artistas. Essa leitura do lugar social da mulher, se estudado fosse, responderia
à questão das mulheres artistas e ampliaria o diálogo em novos rumos para o femi-
nismo nas artes. No artigo de Linda Nochlin, o que nos parece mais latente, mesmo
entendendo o ambiente histórico em que foi escrito, é esta passagem: “A linguagem
da arte, materialmente incorporada em tinta, linha sobre tela ou papel, na pedra, ou
barro, plástico ou metal nunca é uma história dramática ou um sussurro confiden-
cial” (NOCHLIN, 1971, p. 7). Ela se referia à leitura de algumas feministas que ligavam
erroneamente uma suposta feminilidade nos trabalhos das artistas, defendendo que
a arte feita por essas mulheres não obrigatoriamente trazia o feminino. O que vemos
é que Nochlin estava certa em partes, por tentar não generalizar as criações de mu-
lheres, mas o que nos toca é a afirmação de que a matéria nunca teria uma ligação
dramática e confidencial com as intenções da artista, o que na arte contemporânea
passou a ser mais identificável do que nas obras que Nochlin citou em seu importan-
te artigo.
Miriam Schapiro, uma das pioneiras na arte feminista, trouxe, através do seu
trabalho, essas indagações e teve, por isso, um papel importantíssimo no questio-
namento do espaço feminino nas artes, sobretudo trazendo à disputa discursiva o
imaginário do universo tido como de elementos exclusivamente femininos, como o
espaço da casa e o uso de materiais têxteis. Criou, junto com Judy Chicago, o Feminist
Art Program, na Califórnia dos anos 1970, exercendo papel decisivo na difusão dos
princípios da teoria feminista, dado que “tal programa de estudos permitiu a inser-
ção e o desenvolvimento do pensamento feminista dentro da academia americana e
oficializou o pensamento de teóricas feministas com a produção artística” (TRIZOLI,
2008, p. 5).
Retrocedendo na análise, é necessário observar o surgimento e a consolidação
dessa mais que contestável noção de que haveria elementos de identificação intrin-
secamente estabelecidos entre a matéria, a técnica e o feminino. No Renascimento,
o lugar social da mulher era inferiorizado, invisibilizado diante da hierarquização
comum à época, e seu trabalho não era reconhecido como profissão, não sendo,
por isso, remunerado. As “habilidades” conferidas às mulheres, como o bordado,
a tapeçaria e a tecelagem, eram realizadas sem o status de “arte” ou de criação.
44 A MEMÓRIA E O FEMININO

Tornavam-se mulheres “ideais”, “habilidosas”, “prendadas”, aquelas que dominavam


as práticas têxteis, e esperava-se que a função de seus produtos fosse voltada exclu-
sivamente ao espaço da casa, para servir à família. Ensinadas em conventos, ou por
damas, as práticas têxteis, em geral, eram usadas como forma de doutrinar e “mora-
lizar” as mulheres, aquietando-as em seu papel arcaico e exemplar na formação de
uma família idealmente harmoniosa.
Dominando e ofuscando outras modalidades artísticas, toda essa classificação
histórica começa a ser questionada somente através dos esforços das vanguardas
modernas. Segundo Michel Archer (2001, p. 1), “As colagens cubistas e outras, a
performance futurista e os eventos dadaístas já haviam começado a desafiar esse
singelo ‘duopólio’ [...] da pintura/escultura”. Assim, por conta do caráter contestador
e ideologizado dos debates acontecidos anos 1960, período convencionado como
de início da arte contemporânea, toda uma estrutura da concepção de arte num
conceito moderno foi posta à prova, bem como a classificação de Vasari1 entre as
“grandes artes” e “as artes menores”, tornando essa classificação obsoleta. Mas só
com as indagações do Movimento Feminista de 1970 essa hierarquia é propriamente
contextualizada e é atribuído um locus de maior relevância ao lugar social da mu-
lher nas artes. A arte é concebida como produto social, daí a importância da sua
contextualização no quadro complexo das produções da vontade humana. Por isso,
podemos depreender uma série de conclusões acerca dos interstícios que produzem
valor cultural de longo prazo, como é manifestamente o caso do lugar das mulheres
na história da arte. No século XX, contudo, “os grupos exigiam, entre outras coisas,
a alteração dos modos de organização daquelas sociedades [pós Segunda Guerra
Mundial], para que passem a ocupar lugares privilegiados” (HALL apud MATTOS,
2014, p. 71).
Miriam Schapiro trouxe ao seu trabalho artístico os primeiros movimentos de
legitimação das produções têxteis feitas por mulheres como objetos artísticos. Sobre
isso, comenta Ana Paula Simioni:

Em “Anonymous Was a Woman”, Schapiro escolheu uma série de mo-


dalidades tradicionalmente consideradas inferiores, por serem suposta-
mente “femininas” e “domésticas”, tais como as toalhas de mesa, guar-
danapos e pequenos tecidos bordados, retirou-as de seus contextos
apartados e inferiorizados, e exibiu-as como objetos artísticos (SIMIONI,
2010, p. 10).

Rozsika Parker (2010), falando das diferenças entre as duas edições do


seu livro The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine, diz
que quando ele foi escrito, em 1984, as questões feministas da Segunda Onda

1 Em nossos dias, percebem-se resquícios da categorização das artes empreendida ainda no


Renascimento por Giorgio Vasari (1511-1574), tanto na dificuldade de legitimação de manifestações
artísticas que utilizam a materialidade têxtil, quanto na forma de produzir e repassar o conhecimento.
Foi Vasari que fez a hierarquização entre “artes maiores” (pintura, escultura, arquitetura), e “artes
menores” - a arte têxtil foi relegada a um papel menor. As artes têxteis foram, então, mantidas como
“habilidade”, “ofício”. Nessa época surgiu também a persona do artista, dito “genial”.
[CÔMODO] 45

estavam em pleno vigor. A partir disso, o conteúdo ganhou bem mais significa-
ção, pois:

Ao endireitar a negligência das mulheres artistas e questionar a destrui-


ção das formas de arte associadas às mulheres ― como o bordado ― os
historiadores feministas da arte e do artesanato revisaram muitas das
premissas subjacentes à redação da História da Arte. A teoria e a histó-
ria ganharam vida para nós e reuniram novos significados. A paixão e a
vibração caracterizaram o trabalho de artistas e acadêmicos (PARKER,
2010, p. XI).

Em acordo com essa nova configuração pretendida pelo questionamento críti-


co moderno do panorama da arte, as linguagens visuais das artistas contemporâneas
que manipulam ou trazem os têxteis às suas obras ampliam substancialmente as
possibilidades desses materiais e técnicas.
O uso do têxtil na arte é defendido aqui como tecido dessa resistência, já que
a sua própria história carrega o estigma de um lugar menor; é, portanto, uma prática
subversiva, pois os materiais, como vimos, sofreram e ainda sofrem com o signifi-
cado pejorativo que o trabalho manual em geral carrega (neste caso, usando fios e
tecidos), além de serem utilizados por mulheres que historicamente não detinham
o reconhecimento artístico/criativo dessas práticas. Mesmo que as artistas supra-
citadas não indiquem terem pautado suas produções por questões feministas, elas
subvertem a linguagem têxtil, ao usá-las como meio de expressão. Pois “da mesma
forma, as práticas masculinas são mais valorizadas e hierarquizadas em relação às fe-
mininas, o mundo privado sendo considerado de menor importância frente à esfera
pública, no imaginário ocidental” (RAGO, 1998, p. 4).
Antes dos anos 1980, algumas artistas contemporâneas traziam em sua poé-
tica questões femininas de forma mais contundente, como reação aos condiciona-
mentos da época. Observa Heloísa Buarque de Hollanda que:

No início dos anos 1960, 1970 e, de certa forma, na década de 1980,


muitas artistas mulheres batiam de frente, trabalhando diretamente
com “ícones femininos”: sensualidade, corpo, maternidade, mutilações,
traços geracionais. Hoje, com as demandas feministas já relativamente
mais absorvidas pelo imaginário social, abre-se, enfim, enorme espaço
para as artistas mulheres interpretarem seu entorno à luz da apropria-
ção crítica do que seria a sensibilidade feminina (HOLLANDA, 2006, p.
20).

Assim, as questões de gênero se fazem cada vez mais presentes na vida e na


arte. Como aludido por Heloísa Buarque de Hollanda, “na década de 90, a abor-
dagem do que era, anteriormente, considerado como essencialmente feminino: o
questionamento do corpo, do desejo e da sexualidade da mulher, tornou-se mais
intenso” (ZACCARA, 2012, p.32). Podemos acrescentar aqui, portanto, a questão do
uso de materiais têxteis, como no caso de Miriam Schapiro, a esses usos intencionais
que remetem ao “fazer feminino”, como mote para enfrentar essa hegemonia hie-
rárquica e classificatória — e, mais recentemente, o enfrentamento da violência de
46 A MEMÓRIA E O FEMININO

gênero, como em Rosana Palazyan (1963), por exemplo, artista que traz denúncias
em seus trabalhos usando a técnica do bordado: “São cicatrizes de várias gerações de
mulheres imprimindo sua história em lenços, camisolas, roupinhas de criança, fitas
de cetim, rendas, sedas” (HOLLANDA, 2006, p. 153); ou mesmo em Rosana Paulino,
que, em sua série “Bastidores”, lida com o racismo e o machismo estrutural brasi-
leiro, onde a costura da boca, testa, garganta e olhos das mulheres faz relação com
o processo confuso, violento, de silenciamento e discriminatório que essas mulhe-
res sofrem e remetem aos castigos e torturas que as mulheres negras escravizadas
sofreram.
O uso dessas linguagens, vale acrescentar, com o estouro das indagações da
arte contemporânea, foi amplamente pluralizado. Nos trabalhos da artista paraiba-
na Cristina Carvalho (1978), também, o uso de materiais têxteis foi incorporado a
linguagens como a instalação, a performance e o desenho. Cristina Carvalho, com o
seu trabalho artístico, amplia o universo de possibilidades e reinvenções de usos do
bordado e dos materiais têxteis em geral.
É necessário fazer esse breve caminho histórico-teórico para que fique claro
que o fato de eu trazer o uso do têxtil, mais precisamente o bordado, nas minhas pro-
duções, é parte associada destes acontecimentos, ou melhor, é o resultado desses
esforços anteriores, tanto das conquistas sociais das mulheres quanto do reconheci-
mento das práticas têxteis feitas por mulheres dentro do campo da arte. Sobre essa
mudança de concepções e da reverberação disto na arte contemporânea, Silvana
Barbosa Macêdo2 afirma que:

Ao longo das décadas, nossa concepção de família e maternidade mu-


dou, hoje estamos mais conscientes como sociedade de que o núcleo
familiar se compõe de uma diversidade de formas familiares. Portanto,
nas discussões feministas atuais sobre maternidade ou maternalismo,
a agenda se ampliou para considerar a intersecção entre maternidade
e questões de raça, sexualidade, gênero, classe entre outros aspectos
identitários da mãe, considerando também como as mulheres vivem
globalmente, adquirindo, portanto, um caráter politicamente mais in-
clusivo (2017, p. 8).

Complementa ainda a autora:


Artistas, entre outras profissionais pesquisando a questão da maternida-
de, têm explorado a experiência materna com maior profundidade que a
rasa imagem da mãe contemporânea veiculada pela mídia, abrangendo
tanto suas dores como seus prazeres, e contribuindo para a construção
de novas concepções de maternidade. Percebo que no campo das artes
visuais podemos encontrar uma área crescente de investigação crítica
sobre as complexidades que envolvem o papel parental, especialmente
o lugar da mãe (2017, p. 2).

2 A Expressão do Poder Materno Na Arte Contemporânea de Silvana Barbosa Macêdo. Seminário


Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,
2017, ISSN 2179-510X.
[CÔMODO] 47

A maternidade, como vimos, tema das “novas” formas de luta contra o pa-
triarcado, está, de forma subjacente, historicamente inserida nas artes. Mas só aos
poucos essas representações estão sendo feitas por mulheres/mães/artistas. Há ain-
da no ambiente artístico aquelas que observam a maternidade sob essa anacrônica
lente negativa. Artistas contemporâneas que adotam posicionamento semelhante
ao de Marina Abramòvic3:
Tinha a certeza de que [ter filhos] seria um desastre para o meu traba-
lho. Temos uma energia limitada no nosso corpo e teria que a dividir
[...]. Na minha opinião, essa é a razão por que as mulheres não têm
tanto sucesso como os homens no mundo da arte. Há muitas mulheres
talentosas. Por que é que os homens é que ocupam os lugares impor-
tantes? É simples. Amor, família e crianças — uma mulher não quer sa-
crificar tudo isso.

Houve e há repercussões sobre essa fala de 2016 de Marina ao jornal


Tagesspiegel. Esse posicionamento tornou-se tema de discussão entre mães ar-
tistas nas rodas de diálogo sobre o assunto. São muitas as interseccionalidades
possíveis de serem levantadas, e aqui discorro justamente sobre mulheres artistas
que trazem no seu discurso poético e nos seus trabalhos esse tema com a vivência
da maternidade.
Na história da arte hegemônica estamos acostumadas a perceber nessas re-
presentações a figura da mãe-mulher como passiva, idealizada. Quando representa-
da por homens, em sua maioria, estão envoltas numa sacralidade: as mães aparecem
como cuidadoras, pacientes, tranquilas em exercer esse papel. A representação da
mulher-mãe faz muitas vezes essas associações por um caminho do pensamento
masculino sobre a maternidade. Mas algumas pinturas antigas já não respondiam a
esse padrão, como é o caso da pintura de Artemisia Gentileschi4, em “Madonna and
Child”, de 1613, em que percebemos essa relação sendo quebrada por uma ação,
uma reação daquela mulher representada, muitas vezes em conflito consigo mesma,
com seu corpo ou com seu estado, ou mesmo vivendo o enlace entre “mãe e filho”,
mas de uma maneira não sacramentada. Como nos diz Iasmine Souza5:
O fascínio pela representação da mulher mãe atravessou séculos na ico-
nografia ocidental e imortalizou cenas de colos amorosos e acolhedores.
É certo que, da Pietà de Michelangelo aos arquétipos da mulher do ma-
ternalismo contemporâneo, as simbologias associadas à figura materna
mudaram radicalmente, mas um elemento comum permaneceu presen-
te nessas imagens: a beleza do vínculo entre mãe e filho, principalmente

3 Tradução-texto retirado do texto de Gianni Paula de Melo “Maternidade e Criatividade”, para a


Revista Continente. Disponível em: https://www.revistacontinente.com.br/edicoes/233/maternidade-
e-criatividade. Acesso em 23/02/2021
4 Primeira mulher aceita na Academia de Belas Artes de Florença, na Itália, e considerada a única pintora
do período barroco que obteve reconhecimento histórico.
5 Mães na arte: Uma homenagem ao olhar feminino da Madona à mulher moderna. Disponível em:
https://estadodaarte.estadao.com.br/maes-na-arte-olhar-feminino/ Acesso em 23/02/2021
48 A MEMÓRIA E O FEMININO

quando as mulheres passam de objeto de contemplação a criadoras de


sua própria imagem (2020, s/p).

Depois de toda discussão feminista e de suas reverberações na arte, este tema


está sendo revisitado, vivido, mas agora com a representação de artistas mães como
criadoras de sua própria imagem. É a partir desse lugar que falo na obra [Cômodo],
exposta na Exposição Coletiva Tramações em 2020, com o tema “Memória e Têxtil”,
em que essas costuras da vida foram sendo feitas a partir da experiência com as
tramas da maternidade, do feminismo e dos têxteis.

[CÔMODO]?
Tentei por muitas vezes sentar para escrever sobre o que eu queria fazer
nessa exposição. Foram muitas tentativas, muitas pausas e interrup-
ções. Não consigo conduzir o pensamento, não consigo escrever, parar,
respirar, pensar. Tenho que acudir, lavar, varrer, alimentar, pesquisar, ler,
assistir. Tantas ações, tramações.

Tenho dois filhes, cinco anos os separam. Na pandemia os dentes dos


meus filhes nasceram, caíram... Aprenderam a andar com os pés, com
as rodas. Aprenderam a escrever e a ler, a falar. Voltei a escrever aqui
agora, antes estava evitando conflitos entre eles, conflitos meus. Eu aqui
sozinha, exausta, com sono, escrevo. Tento me concentrar. Preciso parar
para escrever sobre o Tramações (a autora, 2020).

A maternidade me trouxe muito, e me tirou muito também. Sinto um fluxo


solitário de perdas e ganhos, mas sei que não é um movimento vivido só por mim.
Apesar de parecer um acontecimento que traz suas questões individuais à tona, per-
cebo que há uma semelhança com outras mães por condições de vivência no mesmo
“espaço-tempo”. Desde que engravidei do meu primeiro filho, em 2013, fui utilizan-
do da ferramenta que tinha em mãos para divagar sobre meus colapsos e revoluções
internas. As linhas e o bordado foram minha fuga para dentro. Fui bordando despre-
tensiosamente alguns sentimentos e estranhamentos por estar gerando um ser. Em
2015, nasceu então o “Linhas de Fuga”, que é um projeto pessoal onde trago todos
esses trabalhos de: linhas escritas, bordadas, ou fios tramados sobre minha vivência
como mulher, mãe, mulher-mãe.
Durante a pandemia do Covid-19 um sentimento de atenção às mulheres
mães que me circundam tomou conta de mim. Não é a primeira vez que olho ou-
tras mulheres para pensar na minha própria condição. Vivi uma coisa semelhante
no puerpério do meu primeiro filho, quando amamentar para mim se tornou um
desafio, e viver socialmente como uma mulher-mãe lactante me transformou com-
pletamente. Essa atenção/curiosidade/admiração veio se tornar a série “Mama”, em
2016 (essa série são releituras de fotografias que pedi a algumas mães, próximas a
mim, amamentando seus filhos).
Agora, com o isolamento social, eu com outra filha pequena, comecei de
novo um movimento de reconhecimentos dos dramas e das invisibilidades que so-
frem as mulheres dentro de sua casa, criando seus filhos sem o contato direto com
outras pessoas, para compartilhar ou dividir suas angústias, inércias, revoluções e
[CÔMODO] 49

aprendizados. Antes, o que me mantinha isolada era um bebê recém-nascido, agora


um isolamento social global, em que todos começam a repensar suas formas de vida.
Para as mães, tentando sobreviver e criar ao mesmo tempo.
A cada relato/ foto de mães que eu via nas redes sociais me dava uma certa
(in)tranquilidade de ser entendida, sem que eu precisasse conversar/conhecer es-
sas mulheres, pois eu conhecia alguns de seus sentimentos, eu os sentia também.
Comecei a divagar sobre o que nos unia. O que une mães com realidades tão diferen-
tes? Qual fio semelhante que toca e conduz essas vidas?
Pensando nisso, e prestando mais atenção na inexistência de definições que
identificassem o que é universal entre mulheres mães, confeccionei um questionário
simples e pedi que mães o respondessem via redes sociais. Tentei mandá-lo para o
maior número possível de mães que conheço, variando idade, quantidade de filhos,
classe social, com uma única condição: a de, para respondê-lo, ser mãe. Como o
grande drama no nosso presente é a vida na pandemia, pedi que fosse dita uma pa-
lavra para definir/explicar: um sentimento, um som, um cheiro, um sabor, em relação
à maternidade durante a pandemia.
Com isso, 80 mães responderam. Trabalhei com essas palavras unindo-as como
se fossem uma linha de um poema: o verso. O verso é a “linha” de um poema. Reuni
os (uni)versos dessas mulheres num só poema, divididos por estrofes. Uma das tra-
duções possíveis para a palavra estrofe é stanza (tanto no inglês quanto no italiano),
que, em latim (língua mater do português), significa quarto/cômodo interno. E é nas
estrofes que ficam os versos. Então, imaginei que seria dentro dessa parte interna
da casa que morariam as palavras que formam a linha de um poema. Além disso, tirei
proveito da minha formação como arquiteta para imaginar esse universo de sensa-
ções emoldurado pela linguagem arquitetônica, na sua expressão mais pragmática:
a planta baixa, onde são expostas as costuras visíveis do espaço enquanto forma de
imaginação.
O trabalho foi feito em bordado sob tecido, num processo criativo cheio de
pausas, como uma presa da rotina e suas tramas diárias. Em contraponto a cor bran-
ca dos papéis que receberiam normalmente um desenho técnico escolhi o tecido
vermelho.
Bordei o poema em um tecido branco com linha de algodão preta. Como hou-
ve uma série de mudanças na vida, houve também mudanças na forma de apre-
sentação deste trabalho. Bordaria anteriormente todas as palavras-respostas do
questionário. Mas usei somente as 40 palavras (quantidade para fazer referência à
quarentena) que as mães utilizaram para definir, explicar o sentimento de estar vi-
vendo na pandemia.
Após essas palavras formarem um poema, recortei-as uma a uma e construí
a planta baixa de minha casa, e os cômodos foram sendo formados por esses senti-
mentos. A técnica foi uma mistura entre bordado e colagem sob tecido, nas dimen-
sões 52x28cm.
[Cômodo] trouxe o uso de palavras para gerar essa dramaticidade, essa plás-
tica, esse acúmulo, essa comunicação entre pares. Por isso, em sua linha curatorial
ficou exposta ao lado de trabalhos que trouxessem a conexão com palavras. Nesse
50 A MEMÓRIA E O FEMININO

trabalho há muitas palavras repetidas como “cansaço” e “exaustão”, fazendo-as cru-


zarem com o momento vivido por mulheres que não responderam, mas que, pela
quantidade de repetições, representaria esse grupo social que cuida não só de crian-
ças, mas de idosos, doentes, etc; que acumulam múltiplas funções dentro desses
cômodos pandêmicos.

REFERÊNCIAS:

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2001.

HANISCH, Carol. The personal is political. 1969. Disponível em: https://crabgrass.riseup.net/


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HOLLANDA, Heloísa Buarque de; HERKENHOFF, Paulo. Manobras Radicais. São Paulo:
ARTVIVA Editora, 2006.

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Carlos, SP, 2014, p. 71-85.

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São Paulo: Studio, 2016. Título original: Why Have There Been No Great Women Artists?
Disponível em: http://www.edicoesaurora.com/ensaios/Ensaio6.pdf. Acesso em: 30 ago.
2021.

PARKER, Rozsika. The Subversive Stitch: Embroidery and the Making of the Feminine. Londres:
I. B. Tauris & Company, 2010.

SIMIONI, Ana Paula. Bordado e transgressão: questões de gênero na arte de Rosana Paulino e
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SOUZA, Iasmine. Mães na arte: Uma homenagem ao olhar feminino da Madona à mulher
moderna. Estadão. São Paulo, 2020. Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/
maes-na-arte-olhar-feminino/ Acesso em: 30 ago. 2021.

TRIZOLI, Talita. O Feminismo e a Arte Contemporânea: Considerações. In: ENCONTRO


NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS. Anais [...], Florianópolis, ago. 2008. p.
1495-1505

ZACCARA, Madalena. Mergulho no universo do feminino: a poética intimista de


Cristina Carvalho. In: CARVALHO, Cristina. Verso Reverso. João Pessoa: FMC, 2012.
CABELO-ONDA-CORRENTEZA:
POÉTICAS EM CIANOTIPIA 1

Marina Soares da Silva2

Correnteza, Cianotipia sobre tecido, 21x21cm, Marina Soares, 2020.


Para ver a vídeo-demonstração deste trabalho, acesse: https://www.marina-soares.com/correnteza

INTRODUÇÃO
Tudo deve flutuar no ser humano para que ele próprio
flutue sobre as águas.
(BACHELARD, 1998, p. 87)

Neste artigo apresento o livro de artista Correnteza (2020) produzido por meio
do processo histórico e alternativo de impressão fotográfica denominado Cianotipia,

1 Este artigo integra dissertação em desenvolvimento pelo Programa Associado de Pós-Graduação em


Artes Visuais UFPE/UFPB.
2 Graduada em Design (2019) pela Universidade Federal de Pernambuco e mestranda do Programa
Associado de Pós-Graduação em Arte Visuais da UFPE/UFPB. Utiliza a fotografia e o vídeo como
linguagens artísticas. Sua poética tem se estruturado a partir de pesquisas sobre o Imaginário, bem
como em narrativas míticas e questões sobre identidade e memória afetiva.
52 A MEMÓRIA E O FEMININO

descoberto por Sir John Herschel (1792-1871) em 1842, que resulta em uma imagem
monocromática em tons de azul. A pesquisa segue com a apresentação da obra em
imagens (frames) e, após isso, estendo-me sobre a poética do trabalho, que parte
da análise simbólica do cabelo, da água e do feminino e da analogia cabelo-onda-
-correnteza. O referencial teórico parte da Teoria do Imaginário e do pensamento de
Gaston Bachelard em A Água e os Sonhos - Ensaio Sobre a Imaginação da Matéria
(1942), no qual sugere-se o devaneio tendo a água como o elemento basilar, bus-
cando considerações sobre o processo de construção das imagens mentais que se
materializam em minha obra, identificando os símbolos e mitos que a permeiam.
Ao mergulhar no universo da água e seus mistérios, Bachelard nos oferece me-
táforas que nos direcionam psiquicamente para as fronteiras de nossa imaginação.
Segundo ele, “a água é a senhora da linguagem fluida, da linguagem sem brusquidão,
da linguagem contínua, continuada, da linguagem que abranda o ritmo, que propor-
ciona uma matéria uniforme a ritmos diferentes” (BACHELARD, 1998, p. 193).
A partir desta linguagem fluida que abranda o ritmo, a analogia cabelo-on-
da-correnteza se funda, pois “[...] não é a forma da cabeleira que suscita a imagem
da água corrente, mas sim o seu movimento. Ao ondular, a cabeleira traz a imagem
aquática, e vice-versa” (DURAND, 2012, p. 99).
Inspirado na obra de Bachelard, Gilbert Durand (2002) em As Estruturas
Antropológicas do Imaginário, dedica uma passagem ao cabelo como parte do
Regime Diurno da Imagem, por considerá-lo um símbolo Nictomórfico3. Ele diz que
a imagem da cabeleira vai permear a constelação da água negra e, “[...] vai imper-
ceptivelmente fazer deslizar os símbolos negativos que estudamos para uma femini-
zação larvar, feminização que será definitivamente reforçada por essa água feminina
e nefasta por excelência: o sangue menstrual” (DURAND, 2012, p. 99).
Ademais, na simbologia da água e do cabelo, emerge a imagem do espelho,
em sua dualidade de ver e revelar, presente nos mitos de Ofélia e Narciso, desper-
tando neste artigo uma pequena conexão entre o autorretrato e o espelho d’água.

O AUTORRETRATO E O ESPELHO D’ÁGUA

Não se sonha profundamente com objetos. Para sonhar profundamen-


te, cumpre sonhar com matérias. Um poeta que começa pelo espelho deve che-
gar à água da fonte se quiser transmitir sua experiência poética completa.
(BACHELARD, 1998, p. 24)

3 Os símbolos nictomórficos são, portanto, animados em profundidade pelo esquema heraclitiano da


água que corre ou de cuja profundidade, pelo seu negrume, nos escapa, e pelo reflexo que redobra
a imagem como a sombra redobra o corpo. Esta água negra é sempre, no fim de contas, o sangue, o
mistério do sangue que corre nas veias ou se escapa com a vida pela ferida, cujo aspecto menstrual
vem ainda sobredeterminar a valorização temporal. O sangue é temível porque é senhor da vida e da
morte e porque na sua feminilidade é o primeiro relógio humano, o primeiro sinal humano correlativo
do drama lunar. Vamos agora assistir a uma nova sobredeterminação da temporalidade sangrenta e
noturna pelo grande esquema da queda que transformará o sangue feminino e ginecológico em sangue
sexual ou, mais precisamente, em carne, com as suas duas valorizações negativas possíveis: sexual e
digestiva (DURAND, 2012, p. 111).
CABELO-ONDA-CORRENTEZA 53

O livro de artista Correnteza (2020), surgiu a partir da analogia entre os ca-


belos femininos e as ondas do mar, bem como da análise mito-simbólica do cabelo
feminino, inspirações advindas da leitura do livro A Água e os Sonhos - Ensaio Sobre
a Imaginação da Matéria (1942) de Gaston Bachelard, no qual sugere-se o devaneio
através da imaginação, tendo a água como o elemento basilar.
As obras são compostas por fotografias de autorretrato que suscitam a relação
cabelo-onda-água, impressas por meio do processo histórico e alternativo denomi-
nado Cianotipia1, descoberto por Sir John Herschel (1792-1871) em 1842 e ampla-
mente utilizado pela botânica e fotógrafa inglesa Anna Atkins (1799-1871). A técnica
de impressão foi escolhida para este trabalho por proporcionar impressões mono-
cromáticas em tons de azul e, por se fazer necessário o uso do elemento água em
seu processo de revelação fotográfica, o que evoca a poética intrínseca ao trabalho.
Entende-se autorretrato como sendo “[...] o único retrato que reflete um cria-
dor no próprio momento do ato de criação” (TOURNIER, 1979, p. 99 apud DUBOIS,
1994, p. 156, nota 10). Assim, podemos considerar o autorretrato um espelho do
artista, onde é refletida a sua imagem, congelada por meio da captura fotográfica.
Assim, os cabelos impressos espelhados sobre os tecidos em Correnteza (2020), po-
dem ser considerados autorretratos pois, segundo Dubois, “Qualquer fotografia é
sempre um autorretrato, sem metáfora: imagem do que ela toma, daquele que a
toma, e do que ela é, tudo isso ao mesmo tempo, num mesmo e só lapso de tempo,
numa espécie de convulsão da representação e por ela” (1994, p. 343). Ademais, o
espelho em si, é um símbolo que se correlaciona a simbologia do cabelo/cabeleira e
a filosofia do autorretrato.
Ora, a cabeleira está ligada ao espelho em toda a iconografia das toilet-
tes de deusas ou de simples mortais. O espelho, em numerosos pintores,
é elemento líquido e inquietante. Daí a freqüência no Ocidente do tema
de Susana e os velhos, no qual a cabeleira desfeita se junta ao reflexo
glauco da água, como em Rembrandt, que, por quatro vezes, retoma
este motivo, ou em Tintoretto, onde se aliam o ornamento feminino, a
carne, a cabeleira preciosa, o espelho e a onda (DURAND, 2012, p. 101).

O espelho é espaço aberto para reflexão de si e do que lhe faz ser. Gaston
Bachelard em A Água e os Sonhos, no capítulo As águas claras, as águas primaveris
e as águas correntes. As condições objetivas do narcisismo. As águas amorosas ao
falar sobre espelho d’água e narcisismo, particularmente em sua dualidade de ver e
revelar, questiona: “Ao ser diante do espelho pode-se sempre fazer a dupla pergunta:
para quem estás te mirando? Contra quem estás te mirando? Tomas consciência de
tua beleza ou de tua força?” (BACHELARD, 1998, p. 23).  No autorretrato, ao “mirar”

1 Processo de baixo custo utilizado para copiar imagens nos séculos XIX e XX, principalmente para
reproduzir fotografias, utilizando dois compostos químicos: Citrato Férrico Amoniacal (verde ou
marrom) e Ferricianeto de Potássio, misturados em duas partes iguais. O suporte usado geralmente é
o papel, mas é possível usar outros materiais, tais como tecidos, madeira, vidro etc. O azul profundo
da Cianotipia depende da exposição à luz ultravioleta, que provoca mudanças na cor dos compostos.
54 A MEMÓRIA E O FEMININO

a câmera para o próprio eu, as mesmas questões surgem, a busca pelo autoconhe-
cimento suscita, sendo “[...] preciso compreender a utilidade psicológica do espelho
das águas: a água serve para naturalizar a nossa imagem, para devolver um pouco de
inocência e de naturalidade ao orgulho da nossa contemplação íntima” (BACHELARD,
1998, p. 23).
A superfície da água que Narciso contempla é como uma pintura/fotografia,
correspondente à representação de sua própria imagem, apesar das distorções que
as superfícies refletoras podem promover através dos jogos ópticos. No livro O Corpo
como Objeto de Arte, no capítulo A Tirania do Espelho, Henri-Pierre Jeudy (1998)
diz que: “As superfícies refletoras podem ser infinitas e impor todas as deformações
possíveis do corpo pelos jogos óticos”. Entende-se que a água é espelho infinito, por
vezes, obscuro e deformador, capaz de refletir tudo que se sobrepõe a ela, mas nada
do que vive em suas profundezas. Em oposição, o espelho objeto, correspondente à
câmera fotográfica, pode ser profundo e deformador, mas enquadra o reflexo através
de suas margens, na finitude de suas de suas bordas.

Louis Lavelle observou a natural profundidade do reflexo aquático, o in-


finito do sonho que esse reflexo sugere: “Se imaginarmos Narciso diante
do espelho, a resistência do vidro e do metal opõe uma barreira aos
seus desígnios. Contra ela, choca a fronte e os punhos; e nada encontra
se lhe der a volta. O espelho aprisiona em si um segundo mundo que
lhe escapa, no qual ele se vê sem poder se tocar e que está separado
dele por uma falsa distância, que pode diminuir mas não transpor. A
fonte, ao contrário, é para ele um caminho aberto...” O espelho da fonte
é, pois, motivo para uma imaginação aberta. O reflexo um tanto vago,
um tanto pálido, sugere uma idealização. Diante da água que lhe refle-
te a imagem, Narciso sente que sua beleza continua, que ela não está
concluída, que é preciso concluí-la. Os espelhos de vidro, na viva luz do
quarto, dão uma imagem por demais estável (BACHELARD, 1998, p. 24).

No que diz a respeito do ato fotográfico, a imagem resultante é consequên-


cia do aprisionamento através dos jogos de espelhos, pois “[...] o narcisismo indi-
ciário do auto-retrato só pode se realizar teoricamente na petrificação fotográfica”
(DUBOIS, 1994, p.128).

O CABELO E A ÁGUA

Densos, longos e cheios, meus cabelos escorrem como água sobre o corpo, adentram
partes; criam seus próprios caminhos. É um mar de ondas esvoaçantes que se formam na direção
do vento; vive as fases da lua. Conto o tempo a partir dele, faço amarras e armaduras. Quando
úmidos e soltos, me fazem ouvir o mar, como quem coloca uma grande concha sobre o ouvido.
Dá-me forças ao mesmo tempo em que as suga. É parte da minha identidade; preso a mim.
(2020, registro da autora).

Em A Água e os Sonhos, o cabelo é mencionado em algumas passagens —


principalmente no capítulo Complexo de Caronte e Complexo de Ofélia — sempre em
contato com a água e o corpo, como quando se refere à Ofélia flutuando no riacho
florido com seu cabelo espalhado sobre as águas; às Damas das Fontes que penteiam
CABELO-ONDA-CORRENTEZA 55

interruptamente seus longos e finos cabelos dourados com um pente de ouro e, às


Ondinas2 que, por vezes, fazem dos cabelos instrumento de seus malefícios.
No conto da Baixa-Lusácia de Bérenger-Féraud (1832-1900), a Ondina sobre o
parapeito de uma ponte estava “[...] ocupada em pentear seus magníficos cabelos.
Ai do imprudente que chegasse muito perto dela! Seria envolvido em seus cabelos e
lançado na água” (BÉRENGER-FÉRAUD, 1896, p. 29 apud BACHELARD, 1998, p. 86).
Como instrumento e adorno sedutor, o cabelo é arma e armadilha, tão forte
quanto as grandes ondas, capaz de envolver e lançar seres humanos no mar. Em
determinados mitos, as sereias cantam ao mesmo tempo em que penteiam seus lon-
gos cabelos, muitas vezes com o objetivo de atrair marinheiros para o fundo do mar,
onde a água é escura e fria. Mas, não é preciso que se mergulhe até o fundo para que
se perca na escuridão. A superfície, em sua natureza, pode ser escura assim como os
cabelos. Segundo Danielle Rocha Pitta em Iniciação à Teoria do Imaginário de Gilbert
Durand (2017) a cabeleira como símbolo Nictofórmico – que se refere à escuridão:

[...] vai insensivelmente inclinar os símbolos negativos... para uma femi-


nização...” (pelo menos no Ocidente onde é a mulher que tem – ou ti-
nha – cabelos longos) por suas ondulações, réplica da água corrente que
implica a feminização da água, mas num feminino noturno de mulher
fatal que por sua vez estabelece a relação água/lua (marés), lua (mês)/
menstruação, lua (tempo/morte, o que traz a imagem da mãe terrível,
devoradora, e a “vamp”, o que leva a uma feminilidade animalizada que
leva à aranha, à mulher aranha, que leva ao liame (instrumento que liga:
linhas cordões, etc.) que sufoca, e por aí vai (PITTA, 2017, p. 28).

No conto Les Ondins de Marie-Anne de Roumier-Robert (1705-1771), a perso-


nagem Tramarina “[...] presa de preocupações e desgostos, precipita-se no mar, as
ondinas vêm buscá-la imediatamente e a vestem “com um vestido de gaze, de um
verde mar repassado de prata”, e soltam-lhe a cabeleira, que deve “cair em ondas
sobre o seu seio” (BACHELARD, 1998, p. 86). O cabelo flui sobre as águas bem como
sobre os seios da ondina. Em As Estruturas Antropológicas do Imaginário, Durand
diz que “[...] não é a forma da cabeleira que suscita a imagem da água corrente, mas
sim o seu movimento. Ao ondular, a cabeleira traz a imagem aquática, e vice-versa”
(DURAND, 2012, p. 99).
Nesse sentido, a mitologia grega menciona os longos cabelos da deusa Vênus
como elemento sinuoso envolvido ao corpo, véu da nudez, sendo a relação cabelo-
-água neste mito ainda maior, pois a mesma surgiu por meio da castração de Cronos
pelo seu filho Zeus, cujo o esperma em contato com água deu origem a deusa. Faz-se
a ligação de seus longos cabelos à agitação do movimento das correntezas marítimas.

2 As Ondinas, também conhecidas como Undins ou Undinas, são espíritos das águas que geralmente
aparecem como belas mulheres. Seu nome deriva da palavra latina “unda” (onda), e foi usado para
nomear uma categoria de seres femininos sobrenaturais associados ao elemento água, incluindo
sereias, ninfas, limnads, nereidas e náiades. A palavra Ondina foi mencionada pela primeira vez nos
escritos do médico suíço Paracelso (1943-1541), onde apresenta a teoria de que existem espíritos
chamados “ondinas” que habitam o elemento água.
56 A MEMÓRIA E O FEMININO

Como sempre acontece no reino da imaginação, a inversão da imagem


prova a importância da imagem; prova seu caráter completo e natural.
Ora, basta que uma cabeleira desatada caia — escorra — sobre ombros
nus para que se reanime todo o símbolo das águas (BACHELARD, 1998,
p. 87).

Por fim — como um breve fechamento —, a partir da obra Correnteza e tais


analogias aqui explanadas, percebeu-se que toda imaginação pede sua matéria, visto
que é através da força dos elementos primordiais (Água, Terra, Fogo e Ar) que as
imagens se propagam e se congregam (BACHELARD, p. 88). Em Correnteza a imagem
aquática surge ao ondular a cabeleira e vice-versa (DURAND, 2012, p. 99), estando
ela em sua forma solta ou trançada, as ondas surgem concomitantemente.

REFERÊNCIAS:

BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos: Ensaio Sobre a Imaginação da Matéria. Tradução:


Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Título original: Water and Dreams.

DUBOIS, Philippe. O Ato Fotográfico e Outros Ensaios. Campinas: Papirus, 1994.

DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário: Introdução à Arquetipologia


Geral. Tradução de Hélder Godinho. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. Título original:
The Anthropological Structures of the Imaginary.

PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à Teoria do Imaginário de Gilbert Durand. 2. Ed.
Curitiba: CRV, 2017.
ENTRE NÓS
Rayellen Alves3

Entre Nós, Costura de uma rede de pesca, 1,20 x 1,00m, Rayellen Alves, 2020.

Na obra em processo Entre Nós (2020), meu pai me ensina a produzir uma
rede de pesca. Este trabalho surge em um gesto de resgatar saberes que não foram
ensinados a muitas mulheres de comunidades pesqueiras (principalmente a minha)
e as que existem neste ambiente de domínio masculino são invisibilizadas. A partir
da minha poética, trago memórias que questionam por que somente os homens da
minha comunidade são responsáveis por pescarem e costurarem suas redes.
Sou água corrente de rio, cria de uma comunidade pesqueira localizada em
Nova Cruz II, Igarassu (Pernambuco, Brasil), e desde criança via meu pai costurando
suas tarrafas4, sendo este um ofício tradicionalmente masculino. Na infância, apren-
di como se pegava mariscos e siris com minha mãe, fazíamos destas atividades uma
brincadeira. Via os homens saindo para a maré cada um com seu carro de mão ou
remendando suas redes nas casas dos pescadores, mas nunca via uma mulher que

3 Estudante do curso de Licenciatura em Artes Visuais - UFPE, reside na comunidade pesqueira de Nova
Cruz II, Igarassu/PE. Bolsista PIBIC/Cnpq (2019/2020) sob orientação da profª Dra Maria Betânia e Silva.
Pesquisa sobre memórias e narrativas de si.
4 Uma rede de pesca circular com pequenos pesos distribuídos em torno de toda a circunferência da
malha.
58 A MEMÓRIA E O FEMININO

pescasse peixes. Um dia pedi ao meu pai Antônio que me ensinasse a costurar uma
rede de pesca. Ele riu, desacreditou e ficou curioso com o pedido. Disse, num primei-
ro momento, que seria difícil me ensinar porque só sabia produzir com a mão direita
e eu sou canhota. Na vida adulta, e diante dessa costura de mãos invertidas, aprendi
com destreza a tecer a rede, sendo que as articulações e as pernas começaram a
doer.

ENTRE NÓS EXISTEM LINHAS


Entre Nós (2020) é um trabalho em processo, no qual produzo uma rede de
pesca. Na busca para compreender quem veio antes de mim, materializo os meus
aprendimentos a partir de tramas que foram enraizadas como ofício masculino, per-
mitindo-me fazer uma trajetória para além do gênero, o que me faz enxergar que “a
necessidade de memória, é a necessidade de história” (NORA, 1993, p. 15).
Pensar em narrativas autobiográficas ao utilizar o têxtil parecia-me distante,
sabia o básico com bordados em ponto cruz, pontos retos e umas experimentações
na tapeçaria quando criança. Arrisquei-me em um novo saber, mas que fazia parte
do meu convívio desde que eu me entendo por gente. Meu pai sempre costurou suas
tarrafas, aprendeu ainda menino com um pescador, minha irmã e eu brincávamos
com as tramas como se fôssemos peixinhos presos na rede.
A feitura da malha requer atenção, o uso do fio torcido de nylon faz os dedos
doerem bastante, utilizando da força para que a linha não afrouxe. Um nó dentro, dois
nós por entre as linhas. A cabeça tenta não esquecer as instruções, pois qualquer des-
cuido pode prejudicar toda a trama. Se vocês notarem, a agulha parece um peixe e
se engana que no mar é só calmaria. Dedos calejados e as pernas latejando. O fazer é
terapêutico, mas o remendo me estressa. Peço forças para a laçada não correr.
Nesta poética onde os nós se encontram e se desfazem “a busca pelo autoco-
nhecimento favorece as relações de ensino-aprendizagem, oportunizando processos
narrativos que transbordam/afetam o outro” (BORRE, 2020, p. 194). Painho iniciou
as primeiras tramas, sendo o porto para que eu continuasse. Chorei por ter errado al-
gumas malhas, tive que recortar e refazer, mas enquanto eu produzia percebi a reco-
nexão com o meu eu. Há um vínculo no qual rede é sinônimo de alimento, encontro,
força e ancestralidade. Duarte (2018, p.14) ressalta que “descobrir as trajetórias e as
formas com que o ser humano manuseia a rede de pesca é redescobrir processos e
relações culturais que estão intrínsecos nas práticas dos mesmos, refletindo como
nossos ancestrais influenciaram novos hábitos”.
Em minha produção artística busco questionar por que somente homens da
minha comunidade são responsáveis por pescarem peixes e costurarem suas redes.
Por quais motivos as mulheres daqui foram excluídas desta atividade? Ressalto que
elas fazem parte da colônia de pescadores z-20, pescando siris e catando mariscos,
assim como alguns homens que também estão inseridos nessa prática. Proponho
uma reflexão sobre essas invisibilidades e questões de gênero acerca do tema.
Ferreira (2017) fala da idealização de que “as atividades de pesca são geralmente
caracterizadas por demonstrações de força física, resistência, heroísmo e coragem,
que seriam traços típicos das masculinidades.”
ENTRE NÓS 59

As mulheres que tiram da maré a sua fonte de renda precisam se desdobrar


entre: os afazeres domésticos, cuidar dos filhos, pegar lenha, ter tempo para cozi-
nhar, debulhar os mariscos e catar os siris. Cavalcanti (2008) levanta um assunto que
penso ser bastante pertinente a esta discussão:

Às mulheres fica reservado o espaço da coleta de mariscos, moluscos,


algas, camarão e coisas que se pode pegar na beira de praias, lagos e
rios, ou seja, o extrativismo em geral. Até porque esses são conside-
rados não-peixes na definição de Mariza Peirano (1975). Ora, se são
não-peixes, então, o que as mulheres fazem pode ser chamado de uma
não-pesca, no máximo uma complementação do trabalho masculino ou
reforço alimentar para a família (CAVALCANTI, 2008, p. 3).

Através das referências abordadas tento trazer respostas às perguntas que


ando fazendo nesta poética. São atravessamentos necessários para compreender mi-
nhas memórias, o meu local e por onde devo remar. Costurando na praia para fazer
as fotografias da obra, percebi que minha rede pequenina precisava de um batismo
e nas águas do rio Timbó fui segurando-a enquanto as ondas batiam. Neste vai e vem
alguns pontos foram se desfazendo.
Aprendi que o erro faz parte do processo e que refazer ou remendar são fun-
damentais para meu aprendizado. Refletindo sobre essa feitura contínua, Behling
(2011) retrata que:
Na construção de um objeto em um gesto contínuo, repetitivo, do pon-
to sobre ponto, o esforço muscular e a vontade, vontade essa que se
perpetua num ato articulado, no gesto artesanal. Este último tensiona o
fio sobre si mesmo, é como tensionar também um tempo vivido e que
não é percebido, mas que se incorpora no objeto produzido (BEHLING,
2011, p. 6).

Os esforços na produção de uma rede de pesca a fazem ser um objeto de arte,


um saber que passa por gerações. Os homens que tramam investem um longo tem-
po em sua feitura, atentando-se às minúcias da costura. Ao fazê-la, a primeira coisa
que precisam pensar são os tipos de peixes que querem capturar, isto interfere no
tamanho das malhas e em seu comprimento. A sabedoria ancestral se faz presente
em cada ação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mas nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembran-


ças pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estive-
mos envolvidos, e com objetos que só nós vimos (HALBWACHS, 1990, p. 26)

Através de lembranças afetivas, afirmo a importância de criar memórias, tra-


zendo para a formação acadêmica temáticas do cotidiano, respeitando o lugar de
onde vim e valorizando essas manualidades. Ressignificando o têxtil em minha poé-
tica, a rede de pesca que sempre esteve presente para mim, agora se transforma em
objeto artístico, no qual não sinto necessidade de finalização, já que as repetições na
60 A MEMÓRIA E O FEMININO

costura se transformam em um ato performativo. Behling (2011) ao falar sobre o tra-


balho da artista Edith Derdyk, afirma que ela “ressalta esse aspecto de seu processo,
dizendo que a repetição, própria do ato da costura, reafirma o caráter performático
de sua obra e a importância visual da mesma”.
Coser minha rede de pesca possibilitou errar, voltar aos pontos, descobrir no-
vos percursos e com a prática compreendi as linhas e tive destreza mesmo sendo
canhota. Há tantos gestos nesse trabalho e com eles me afirmo, tento representar
quem sou e de onde venho, para que eu me alimente desses saberes.
Fui criando esse vínculo com painho e construindo vivências para essa história,
percebo que tenho dificuldades em manusear os fios que me ultrapassam. O que me
faz lembrar Queiroz (2011) expondo seus pensamentos:

Esse tecido do cotidiano é formado pelos fios da história, pelo trabalho


e pela necessidade humana de criar e de se expressar, não mais exclu-
sivamente por meio do tecido físico, mas também pelo simbólico que
o subjaz e necessariamente pelo trabalho coletivo que o sustenta. O
trabalho como ação sobre a realidade é o cerne da existência humana e
de suas necessidades (QUEIROZ, 2011, p.3).

Aprendi a pausar, tecer, desfazer o embaraço e remendar nós desta obra em


construção, despertou-se em mim um estado de MAR (memórias afetivas resgata-
das), me vi estuário. Resisto às fortes ondas de fazer arte, assim como muitas mulhe-
res que me antecederam, artistas, pescadoras, que lutaram para serem ouvidas em
ambientes majoritariamente masculinos.

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BORRE, Luciana. Bordando afetos na formação docente. Conceição da Feira: Andarilha


Edições, 2020.

DUARTE, Natália Seeger. Redes, malhas e mãos: o processo artesanal da rede de pesca do
mar ao ateliê. Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal de Santa Catarina:
Florianópolis, 2018.

FERREIRA, Maria Aparecida. “Eles num vê uma mulhé na água/ (...) eles vê como se fosse
um homem”: cronótopos e performances de gênero na pesca em arraial do cabo. Caderno
Espaço Feminino, Uberlândia, v. 30, n. 1, 2017.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais
ENTRE NÓS 61

LTDA, 1990.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: Revista
do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, v. 10, 1993.

QUEIROZ, Karine Gomes. O Tecido Encantado: o quotidiano, o trabalho e a materialidade no


bordado. Revista Cabo dos Trabalhos, Coimbra, v. 5, p. 1-25, 2011.
62 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE
TEJIENDO MEMORIA: EL TEJIDO
EN LA OBRA GRÁFICA
Cecilia N. Conforti1

Tejiendo Memoria Sobre, fotografía digital, 50x70 cm, Cecilia Conforti, 2020.

Tejiendo memoria es una serie de cuatro obras que forman parte de un proce-
so creativo autobiográfico, a partir de los intercambios realizados con las integrantes
del proyecto Tramações: a memória e o têxtil. La poética combina una investigación
cualitativa como artista mujer, docente e investigadora en concordancia con la me-
moria y el arte textil. Se trata de un relato que se corresponde con el concepto am-
pliado de obra gráfica basada en las investigaciones en producción artística realizada

1 Licenciada en Grabado, Profesora Superior de educación en Artes Plásticas -Grabado, Especialista


en Procesos y Prácticas de Producción Artística contemporánea, Universidad Nacional de Córdoba.
(UNC). Cursa el Doctorado en Artes, FA. UNC. Se desempeña como Profesora Adjunta cátedra Grabado
2 UNC. Es investigadora, años 2014/15; 2016/17, como co- directora SECyT UNC (Secretaría de Ciencia y
Tecnología) Proyecto B con subsidio. En el 2018/19 y 2020/21 directora de Proyecto Formar SECyT UNC
con subsidio. Es también Investigadora de proyecto Consolidar UNC. Es co fundadora de Galpón Gráfico
Quintana Conforti donde forma y desarrolla su producción artística.
64 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

en la Universidad Nacional de Córdoba, Facultad de Artes, SECyT2. Su recorrido se


desarrolló desde la metodología a/r/tográfica. Rita Irwin (2019, p. 881) dice:

El trabajo de los a/r/tógrafos es reflexivo, recursivo, introspectivo y re-


ceptivo. Reflexivo, dado que repiensan y revisan lo que ha pasado antes
y lo que puede llegar suceder; recursivo, ya que les permiten a sus prác-
ticas un movimiento en espiral para desarrollar sus ideas; introspectivo,
en tanto interrogan sus propios prejuicios, suposiciones y creencias, y
receptivo en la medida en la que asumen la responsabilidad de actuar
éticamente con sus participantes y colegas.

En abril de 2020, a partir de una imagen afectiva, una fotografía que elijo me
movilizó hacia una narrativa escrita sobre una situación que me hace vibrar y pensar.
La fotografía es la imagen simbólica de un corazón grabado al aguafuerte en el año
2008, y que desde entonces estará presente en casi todas mis producciones. Esta
imagen fue mutando en varios soportes y técnicas y refiere al amor, a la palabra
ágape3 pero también refiere a la sanación de las heridas relacionadas a mis recuer-
dos de niñez, recuerdos difusos y ocultos que se revelan a partir de fragmentos. Me
pregunto si este mensaje se convierte en un principio, un medio o un fin. ¿Por qué
me dispara integrar esa experiencia a mi narración y cómo compartirla? Me pro-
pongo finalmente reflexionar si esta preocupación que se dirige a la producción de
significados personales es el camino para reinventar o interpretar de manera cre-
ativa mi propia biografía y las de los demás, en definitiva, cómo me imagino, cuál
es mi historia y cómo se construye mi identidad. Así surgieron series de obras que
incluyeron acciones realizadas con diversas técnicas como fotografías, video montaje
y estampación digital.
Con estas ideas en mente, desarrollé mis propias formas de recopilar informa-
ción, analizar ideas y crear nuevos modos de conocimiento. El propósito fue en sí una
actividad relacional abriendo camino hacia una estética relacional. La estética rela-
cional (BOURRIAUD, 2002) se ocupa de la relación entre el artista, la forma de arte,
las ideas, las interpretaciones y la relación entre artefactos y espectadores. Estos
entrelazamientos que se produjeron por la contigüidad4, combinan producciones y
texto, práctica artística y experimentación en el taller. También estuvieron presentes
las interpretaciones de la autora Simone de Beauvoir y a partir de ella, de las artistas
Louise Bourgeois y Rossana Paulino. Cada una respectivamente me movilizó hacia un

2 Proyecto Formar Grabado no tóxico. Derivaciones gráficas en el arte contemporáneo. 2018-2019


SECYT-UNC. Proyecto Formar Grabado no tóxico. Derivaciones gráficas en el arte contemporáneo. 2020-
2021 SECYT-UNC.
3 “Ágape” es el término griego para describir un tipo de amor incondicional y reflexivo, en el que el
amante tiene en cuenta sólo el bien del ser amado. Algunos filósofos griegos del tiempo de Platón
emplearon el término para designar, por contraposición al amor personal, el amor universal, entendido
como amor a la verdad o a la humanidad. Aunque el término no tiene necesariamente una connotación
religiosa, este ha sido usado por una variedad de fuentes antiguas y contemporáneas incluidas la Biblia.
4Irwin define la contigüidad como la relación entre las identidades — y con ellas: arte y grafía, teoría y
práctica.
TEJIENDO MEMORIA 65

análisis de los conceptos que subyacen en mi propia poética: la memoria, que hace
énfasis en el recuerdo.
En este desarrollo autorreferencial, inevitablemente surgieron algunas pre-
guntas: ¿Creo en mí misma? ¿Me construyo? ¿Qué he creado de mí? Al igual que
Simone de Beauvoir cuando se cuestiona sobre ¿Qué es una mujer? ¿Qué significa
ser mujer? A lo que ella misma responde: “No se nace mujer, se llega a serlo”. Con
esta afirmación, anunció un concepto de género controvertido. Sin hablar de este
término, Simone de Beauvoir sí lo hace sobre lo que realmente significa: que ser
mujer o lo femenino nada tiene que ver con la biología, sino con una construcción
cultural. Desde la indagación construyo el relato a través de la escritura, sobre las
experiencias que se iban sucediendo. Éste es uno de los factores más importantes
que entran en juego en mi investigación.
Cuando exploro mi propia experiencia, en el diálogo personal prevalecen la
complejidad y la contradicción. Se presenta como una discusión interna de cómo y
por qué interpreto de una determinada manera. Luego se produce una deconstruc-
ción personal. Lo antiguo da paso a lo nuevo y al mismo tiempo, lo nuevo, modificó
lo anterior, funcionó como una pérdida y metafóricamente como una estructura ri-
zomática (DELEUZE; GUATTARI, 2002).

DESARROLLO
En esta experimentación abierta, conectable en todas sus dimensiones, alte-
rable y susceptible de ser alterada, construyo un mapa que actúa sobre lo real, en
acción. Los hallazgos hacen visibles las aperturas para nuevos comienzos, cambios y
significados. La palabra y el texto traspasan una multiplicidad de técnicas y discipli-
nas: arte textil, estampación, arte relacional, gráfica tradicional y digital, fotografía,
etc., generando esta serie de obras que tiene una importante carga interdisciplinar,
pero que, al mismo tiempo, forma parte de un proceso de creación transdisciplinar.
El tejido con su connotación de pasado hereditario femenino, pasa a ser resig-
nificado como una hibridación. Este enfoque y sus condiciones de producción para el
trabajo artístico, conducen a una pérdida de especificidad y a la disolución de fronte-
ras, es decir, que va más allá de lo visual y abre la puerta a todo ese mundo contenido
en la obra: los recuerdos, la infancia, la vida, los materiales y los artefactos entre
otras cosas. Al hacerlas aparecer nuevamente bajo otros contextos y adjudicándoles
otros usos y significados, generan también vivencias por medio de su propia existen-
cia. Tal como sucede con el grabado actual, se produce una hibridación de disciplinas
en la gráfica, pues “el grabado es ahora un territorio en el que la integración de todas
las artes permite cruzar sus fronteras con fluidez” (BERNAL PÉREZ, 2016, p. 71).
Bernal explica que existe una búsqueda que se centra en los diferentes niveles
de lectura del proceso. La conexión experimental con otras áreas/disciplinas, con-
vierte en difusos los límites del grabado tradicional y los límites de la obra interdisci-
plinaria. Esto cambia el concepto del artista, la relación entre el público y el autor, el
espacio de acción, el proceso creativo, la creación de un nuevo lenguaje estético y la
temporalidad de la obra.
66 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

La interdisciplinariedad, como intercambio de métodos de una a otra


disciplina, tiene en el mundo del arte situaciones diversas, por lo tanto,
la idea de interdisciplinariedad es mestiza entre lo artístico, sus lengua-
jes y prácticas y su relación con el espectador depende también de los
medios técnicos que los hacen posibles (DALMAU; GÓRRIZ, 2013, p. 53).

Lo transdisciplinario se sale de los límites de lo interdisciplinario. Tiene como


intención superar la fragmentación del conocimiento, más allá del enriquecimiento
de las disciplinas con diferentes saberes (multidisciplinar), del intercambio episte-
mológico y de los métodos científicos de los saberes (interdisciplinar). Desde este
enfoque, las técnicas y el proceso gráfico fueron utilizados como medio y la obra fue
mutando.

EL TEJIDO SUBLIMADO COMO DERIVA GRÁFICA


La estampación por sublimación promovió una relación entre el tejido y la
obra gráfica, un doble juego en el que lo textil se convirtió en obra gráfica, es decir,
el tinte penetra en el tejido utilizado como soporte, luego ese fragmento que sig-
nifica, se resignifica al reunirse con otros fragmentos por medio de la fotografía. Al
ser nuevamente sublimada, esta tela se transforma en la estampa y hace de soporte
a la obra de arte. Así como se producía una mayor comprensión del proceso, todo
se relacionaba con recuerdos del pasado. Es como hacer una copia de una copia de
una copia, que al final tendrá un leve referente al original, pero habrá adquirido un
carácter propio.
Develo una capa transformándola para ofrecer al espectador la posibilidad de
un acercamiento a mi obra en un instante íntimo y simbolizar así otros sentidos, con-
tando historias por medio de una técnica también tradicional que ahora dice mucho
más. De esta manera se visualiza ese mundo que abre la obra de arte y que nunca
había estado allí de esa manera particular. La a/r/tografía entiende lo anterior como
el exceso de ese espacio que creamos para examinar nuestros miedos y deseos y en
el que se producen las transformaciones. En este sentido, puedo decir que el exceso
está en las interpretaciones y en la traducción que realizo de las obras a través de su
contexto, escritura y forma. Interpretaciones que no solo se encuentran en la memo-
ria de la obra sino en relación a género y sexualidad.

TEJIENDO MEMORIA
Rosana Paulino en una entrevista responde que a la hora de abordar su pro-
ceso: “siempre empiezo por mis preocupaciones, por lo que me mueve”5. Esto lo
relaciono en mi búsqueda propia. Al comenzar un proceso de producción personal
parto de lo que me moviliza en relación a las memorias y luego abordo la técnica que
se adecua mejor. Elijo un elemento que me resulte significativo y desde él, rememo-
ro y a través de ellos me auto-observo. Pretendo construir mis propios relatos y al
igual que Paulino cuando dice: “me guían mis preocupaciones”, pero no soy ajena en

5 CARVALHO, NOEL & TVARDOVSKAS, LUANA & FUREGATTI, SYLVIA. Entrevista com Rosana Paulino.
Rescate: Revista Interdisciplinar de Cultura. 2018, p. 149-160.
TEJIENDO MEMORIA 67

relación al contexto que vivo, porque seguramente ellas estarán presentes y veladas
en el proceso.
Lo que tejo es un pequeño rectángulo (30 x 40 cm) y aquí es donde la obra ad-
quiere materialidad, de ahí nace para luego transformarse en una forma reconocible
que sugiere una narrativa. No son objetos, pero cuando los doblo toman la forma, la
apariencia de un objeto. El tiempo desaparece cuando trabajo porque en la acción
encuentro recuerdos de mi vida, una metáfora de lo que se esconde, una acción para
revelar el recuerdo. Explorar recuerdos, temas o ideas que inspiran curiosidad y sen-
sibilidad estética, me permite establecer un significado personal y colectivo. Tejiendo
memoria “Sobre” hace referencia a recuerdos guardados.
Aquí se produce una nueva apertura que desemboca en interrogantes como:
¿Qué memorias guardo? ¿Qué tengo de ternura? ¿Cuáles fueron mis deseos? ¿Qué
recuerdo tengo de estas nuevas consultas? ¿Qué obtengo de la ternura? ¿Cuáles
eran mis deseos? ¿Cuántas creencias sociales y culturales limitantes han afectado mi
construcción de mujer? ¿Cuáles son las que he modificado? y ¿Dónde las ubico? ¿En
mi mente, en mis emociones, en mi cuerpo?
El Concepto de metáfora y metonimia, está implícito en el grabado y en el teji-
do. Hay un paralelismo con relación a vivencias que se grabaron en la memoria. Estas
conexiones temporales entre pasado, presente y futuro, permiten ser reinterpreta-
das, recreadas y reconstruidas a través de poéticas imaginadas. Tejiendo memoria
“Deseos” representa la intención de curar las heridas. Son mis deseos y los de otros
que emanan de la vela y Tejiendo memoria “Muñecas” es una metáfora que alude a
lo impuesto. Está asociado a los apodos impuestos socialmente. Blanco y negro hace
referencia al agrado/desagrado. Positivo/negativo.

INTERACCIONES
Aunque originalmente no fue parte de mi práctica artística ni de mi investigaci-
ón de estudio, proporcionó una base fértil para la exploración. En cierta contingencia
relacionada con las derivaciones gráficas contemporáneas, me inspiró a interactuar
con el público a través de la plataforma virtual Instagram. En el mes de octubre
publiqué cuatro videos, en cada uno pregunté y revelé parte del proceso que estaba
realizando.
Esta interacción con el público se concretó por medio de frases y una invi-
tación a interactuar con la obra. Las expresiones de las encuestas se imprimieron
con la técnica de estampación, sublimación en el tejido. El registro en las diferentes
obras es el deseo de revelar de una manera sutil y persistente en la repetición. Al
mismo tiempo que detengo mi mirada en las frases elegidas, tomo las palabras de
otros - esos secretos que no me pertenecen - y los abrazo como si fueran míos. Este
proceso de impregnación e integración del secreto está también en el centro de
la serie de acciones. El tiempo dedicado a tejer y contemplar frases extraídas me
permitió apropiarme de ellas. Me cuestiono en cada momento acerca del proceso
mostrando una estructura viva que sugiere nuevas preguntas para generar nuevas
conclusiones.
68 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

TEJIENDO MEMORIA “TERNURA”


La obra, por su parte, carece de esencia, no es un objeto, sino más bien una
“duración”, el tiempo en que se produce el encuentro. Aquí me referencio con la
artista Louise Bourgeois (2000, p. 171), cuando expresa: “mi objetivo es re-vivir una
emoción pasada”. Bourgeois en sus creaciones regresa al pasado para revivir sus
traumas y sobrevivir al dolor, reparando los daños que sufrió en su infancia, plante-
ándose la actividad artística de manera terapéutica. Todo esto influye en mi obra en
el sentido en que vuelvo al pasado para reconstruir tanto el dolor como el recuerdo
que se olvida con el tiempo. Tejiendo memoria “Ternura” está ligada a las memorias
afectivas de amor y dulzura.
Para Hans Gadamer (1991), el significado de la obra de arte no está inmediata-
mente en la visión comprensible como tal. El símbolo hace aparecer como presente
algo que siempre está de fondo. Por esta razón, en lugar de referirse a una cosa o con-
cepto en particular, el símbolo representa e incluso sustituye. Para Bourgeois (2000)
es sinónimo de perdón, donde estaba roto, desunido, ella lo vuelve a unir. El tejido es
algo que protege, envuelve, es suave, es algo que le recuerda a su casa en un sentido
positivo pero que también refleja los sentimientos contradictorios que tiene sobre
esa época de su vida. Para mí es un ritual que me permite concentrarme y establecer
conexiones con estados más profundos. Al hacer estos tejidos, como persona y como
mujer, logro un vínculo conmigo misma, con mi sangre. En lo que a mí respecta, tiene
sentido realizar actividades dentro de un marco en el que las acciones secuenciales
se asocian con significados específicos. Gracias a la flexibilidad y suavidad del hilo y
la forma en que se ensambla, siento como si estuviera parada frente a algo sagrado.
El tacto es una forma muy importante de intimidad. La lana, es protectora y cálida, se
asemeja a la ternura, a una sensación de cercanía y proximidad.
A esto lo relaciono en mi acción de tejer, que adquiere un significado profundo
capaz de ir más allá de la acción en sí, aspectos que, como la repetición y el paso
del tiempo son parte importante de un ritual y adquieren un valor simbólico que
trasciende su aspecto mecánico o práctico, porque el crear el tejido es para mí como
rezar. Con esta incorporación, apelo a una subjetividad compartida con el público. El
recuerdo que estoy narrando, en cierta medida, me permitía tejer la historia que se
veía ante mis ojos al tejer. Los hilos son similares a la memoria, son en sí mismos una
forma de tramar relaciones. Creo que el tejido es un espejo de la emoción. A través
del tejido, se refleja la reverberación de la estructura de la vida, la red de la memoria.
El texto se devela y se manifiesta en el exterior.

A MODO DE CIERRE
Todo el proceso transcurrido se integra junto a lo real-imaginado como prin-
cipales elementos y conceptos del desarrollo. En el proceso de traer al presente
algo del pasado, la imaginación llena el olvido con el recuerdo para que se pueda
completar la imagen que se quiere evocar. Aquí planteo una representación de lo
real por un lado y de apariencia ilusoria por otro. A esto lo vinculo estrechamente
con la poética a través de los elementos que aparecen en la obra. Se produce un
desplazamiento del proceso-obra, un doble significado que genera interconexiones
TEJIENDO MEMORIA 69

a través de la producción y el texto. De este modo a las indagaciones las planteo


como un cambio en las constantes entre espacio y tiempo para poder ver las cosas
que antes no se podían analizar porque se mostraban opacas a la mirada. Si bien
en un comienzo formó parte de una exploración hacia la técnica, luego, esta inves-
tigación tuvo como objetivo visibilizar una narrativa bajo una lente que la entrelaza
con lenguajes expresivos y un simbolismo específico. El tejer me hizo retroceder en
el tiempo y a través del hilo fui recuperando historias que se iban transmitiendo a
través de la imagen. Luego los recursos de la fotografía y la gráfica se articularon a
través de la sublimación para abrir nuevos caminos, tanto plásticos como estéticos,
discursivos y simbólicos. Como artista e investigadora creo que en este recorrido y a
lo largo de este proceso creativo autobiográfico, alcancé a unir, a revisar, a reinventar,
a reinterpretar mis propias vivencias. El arte y este lenguaje en particular me permi-
tieron “desandar” caminos pasados para comenzar a “andar” por otros nuevos en un
espacio - tiempo íntimo y sagrado.

REFERENCIAS:

BEAUVOIR, Simone. El segundo sexo: Los hechos y los mitos. Buenos Aires: Sudamericana,
1998.

BERNAL PÉREZ, ͘M. Los nuevos territorios de la gráfica: imagen, proceso y distribución.͘ Revista
Arte, Individio y Sociedad, Universidad Complutense de Madrid: Edicione Complutense,
Madrid, v. 28, 2016.

BOURGEOIS, Louise. Construcción del padre / Destrucción del padre. Londres: Ediciones
Violette, 2000.

BOURRIAUD, N. Estética Relacional. Buenos Aires: Editora S.A, 2008.

DALMAU, Jorge; GÓRRIZ, Lídia. La Problemática Interdisciplinar en Las Artes: ¿Son discipli-
nas los distintos modos de hacer? Revista On the w@terfront, Universidade de Barcelona,
Barcelona, n. 27, 2013.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 2, Tradução: Ana
Lucia de Oliveira e Aurélio Guerra Neto. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2002.

GADAMER, Hans-Georg. La actualidad de lo bello. Tradução:  Antonio Gómez Ramos.


Barcelona: Ediciones Paidós, 1991.

IRWIN, Rita. La práctica de la a/r/tografía. Traducido del inglés por Diego García Sierra, Revista
Educación y Pedagogía, Medellín: Universidad de Antioquia, Facultad de Educación, v. 25, n.
65, enero-abril, 2013, p. 106-113.
IDENTIDADE ARTESÃ:
A PARTILHA DE TRAPILHAR MEMÓRIAS

Angélica Carvalho Lemos1

Identidade Artesã I, fotografias, 3,0 x 4,0 cm, Angélica Carvalho Lemos, 2020.

Costurar, alinhavar, tramar e tecer. Sou herdeira dos gestos geracionais que
guiam o trajeto do fio biográfico, que tento ancorar por meio dos versos em bordaria
manual. Aqui, busco escrever “pequenas narrativas” em harmonia com a compreen-
são de Borre (2019):

É também no campo das Artes Visuais que vivenciamos o interesse de


artistas, de produtores culturais e de instituições de fomento à cultura,
nas pequenas narrativas, muitas vezes autobiográficas ou que demons-
tram experiências de grupos invisibilizados. Por um lado, tal interesse
traz à tona e registra historicamente os relatos daquelas/es que não de-
tém certa credibilidade discursiva ou atributo de verdade. Pessoas co-
muns e/ou à margem não encontravam espaço para tornarem públicas
suas histórias [...] (BORRE, 2019, p. 74).

1 Artesã, bordadeira, terapeuta ocupacional, mestrado em Reabilitação e Desempenho Funcional.


Atuação com enfoque no bordado de resistência e idealizadora do Coletivo “Mulheres de Herança
Artesã”.
IDENTIDADE ARTESÃ 71

Pois ouso aqui, eu, uma mulher artesã e bordadeira encasulada pelo habitat
hostil e que insiste em tentar subordinar os sonhos e capturar a autonomia de nós
mulheres latino-americanas brasileiras e periféricas. E antes de bordar letras, esta
bordaria manual dos versos poéticos, entendi que não saber escrever com o lápis
pode ferir mais do que a ponta da agulha que espeta o dedo, quando se erra o ponto
no tecido. Digo porque sou neta de analfabetas e analfabetos. Talvez por isso, vovó
me ensinou a bordar sem dedal ou bastidor.
Venho, para além de bordar, escrever e compor minhas pequenas narrativas.
Quero ocupar e reocupar o tecido social na trama têxtil, e consagrar o tecer dialógico
com o tecer para desatar os nós que costuramos na garganta a cada grito que me foi
e nos é silenciado, guardado e oprimido.
Paulo Freire (1983), uma das fontes que inspira a dialogicidade e a humani-
zação, e sobretudo inspira a todos nós na trilha do cotidiano, afirma neste pequeno
trecho da obra Pedagogia do Oprimido:

O eu antidialógico, dominador, transforma o tu dominado, conquistado


num mero “isto”. O eu dialógico, pelo contrário, sabe que exatamente
o tu que o constitui. Sabe, também, que, constituído por um tu – um
não-eu – esse tu que o constitui se constitui, por sua vez, como eu, ao
ter no seu eu um tu. Desta forma, o eu e o tu passam a ser, na dialéti-
ca destas relações constitutivas, dois tu que se fazem dois eu (FREIRE,
1983, p. 196).

Dessa forma, anseio que os versos em bordaria tornem-se obras de convite ao


diálogo, como se ao visitar a obra da narrativa têxtil ecoasse uma visita ao outro ou
despertasse o momento do nó(s) (o eu e o outro), para que juntos também possamos
esperançar à liberdade.
Fico provocada pelo seguinte verso freireano: “na verdade, não me é possí-
vel separar o que há em mim de profissional do que venho sendo como homem”
(FREIRE, p. 94, 2014), ao passo que este verso ressoa em mim como a busca pela sin-
tonia. A utópica sintonia de não haver atitudes dicotômicas nos ambientes e papéis:
lar, trabalho, instituições, e nos espaços comunitários. E também enquanto sujeito
fazedor da sua história na sua multiplicidade de papéis, mulher, mãe, filha, compa-
nheira, educadora...
Estranhamente essa utopia me recorda um leque, leque feito de dobradura
de papel, onde cada margem da dobra cria linhas de separação, mas que juntas se
harmonizam para fazer ventar. Onde dobrado é um só, que, ao se abrir, abriga tantos
papéis.
Eu escrevo quando trans-bordo, mas transbordo não pelo excesso ou por estar
cheia, mas pela falta. Falta de lugar de voz como mulher, artesã, bordadeira e tera-
peuta, onde as palavras podem encher, preencher, recolher e doar. Além disso, é um
transbordar que não me esvazia. Ao bordar palavras como poéticas do cotidiano, o
que faço não é apenas bordar uma escrita, é bordar afetos... Assim, é fora do word
que a escrita flui. As palavras proclamam a contação de histórias do tempo, e operam
como linguagem para transcrição do que estava guardado nos relicários da memória
72 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

para o papel. E abre-se como um leque as matrizes das vivências, contato e recontato
com o fazer artesanal, o artesanato e a(s) artesã(s).
Um alento seguido de um suspiro, instante de rememorar a infância e ou-
tros tantos instantes do nosso ciclo vital, é o momento de consagrar a ancestrali-
dade. Retomo a obra Identidade Artesã I e Identidade Artesã II, ambas em dimen-
sões de foto 3x4. No memorial descritivo da obra apresentado à exposição coletiva
Tramações: a memória e o têxtil, contemplo:

A foto 3x4 tão típica dos documentos de identidade, carteira de traba-


lho, carteira do artesão, do registro. Na presente obra, a artesã-artista
anseia retratar sua “identidade artesã”. Na cabeça carrega uma trouxa
com emaranhado de fios oriundos do novelo biográfico, bisneta, neta
e filha de mulheres artesãs (Identidade artesã I). Herdeira dos gestos.
E no intento de rememorar os gestos de casear das mãos maternas e
fraternas, restaura e resgata abrir casas, casear e não para botões, mas
para aí abrigar memórias. Gestos geracionais, matriz da troca-interge-
racional (Identidade artesã II).

Na obra Identidade Artesã I e II tento expressar afeto e como sou afetada pelo
bordado. Pois carrego a crença de que bordar é coreografar com as mãos: o tecido
é a base, o solo que ergue e sustenta cada ponto, a agulha guiada pela intenção do
que está por trás de cada ponto. É manipular sutilezas para além da simples repeti-
ção dos movimentos finos, precisos ou imprecisos. O trajeto da linha pode ou não
seguir traços, riscos, moldes ou somente o tecido. Tecido este que ocupa o solo, a
base estável e maleável, o bordar e o bordado se moldam e acomodam ao meu colo.
E assim o carrego, tecido-fonte, numa espécie de trouxa inacabada, em seu interior
meadas de linhas, lãs, miudezas, agulhas, tesouras, tecidos, retalhos, relicários, e até
as incertezas e certezas. A trouxa me acompanha pelos cômodos do lar, captadas
pelo ato de bordar, tece-se e se constrói no trajeto: fazer-se, desfazer-se e refazer-
-se. Ao tecer, encontro com a finitude de laços, ora fortes como um nó, ora soltos e
afrouxados. Ainda confesso, que há momentos em que me permito reconhecer que
perdi o fio da meada.
Na obra, a trouxa ancorada sob a cabeça da mulher onde, não à toa mas pro-
positalmente, está costurado, quase como sutura, um parafuso, uma simbologia a
saúde mental, como escancarado no dito popular ter um parafuso a menos na cabe-
ça. Ora, clamo com esse gesto de bordar o parafuso um olhar holístico, integrado e
inclusivo para a saúde mental de nós mulheres.
Conviver com essa vulnerabilidade, fruto das desigualdades e injustiças so-
ciais, e o impacto disso na saúde mental, é algo que me atinge e aflige, minha avó é
essa mulher classificada como pertencente ao grupo de vulnerabilidade social, pois
mulher, de baixa renda e baixa escolaridade (analfabeta). Vovó foi artesã e lavadei-
ra, carregava a trouxa de roupas sob a cabeça, longas caminhadas que lhe exigiam
equilíbrio para a trouxa não cair até a beira do rio, lembranças que ela partilhava nas
tardes em que eu, ainda criança, sentava ao seu lado para aprender a trapilhar.
Trapilho são tiras de tecido oriundas da reutilização de trapos de tecido, os
retalhos que são descartados das confecções têxteis. Porém cada trapo, retalho
IDENTIDADE ARTESÃ 73

sozinho não serve para fazer muito, mas quando são unidos, os trapos juntos podem
virar outra coisa. Um tapete, uma colcha e até um estandarte. E, um a um, vovó cor-
tava os pedaços de trapo em tiras, para depois cuidadosamente alinhavar, unindo-as.
Ou seja, a ponta final de uma tira unia-se à ponta final de outra tira, até que juntas
formassem um novelo. O novelo não é composto por um fio contínuo, mas pela jun-
ção de vários pedaços de fios. E não havia régua, fita métrica e mesa por ali. Vovó
gostava mesmo era de fazer sob o seu colo, o colo a base para acolher sua matéria
prima, curvava as costas para poder, de forma primorosa, tentar criar simetrias entre
as dimensões das tiras, o seu fazer artesanal era no olhômetro.
Esse novelo que não é formado por um fio contínuo, mas sim através da união
costurada de um pedaço a outro, hoje me faz relembrar e compreendê-lo como um
encontro coletivo de mulheres. É a história de uma mulher que se une a de uma ou-
tra mulher e, assim, temos nossas histórias unidas e costuradas, alinhavando nossa
comunhão de forças em prol da liberdade e do empoderamento. Talvez, ao sermos
tecelãs das nossas vivências, estamos a trapilhar pela vida, a cada ponto de encontro
nos unimos a outras histórias e formamos nossos novelos.
Trapilhar almeja uma forma de cuidado comunitário. É o ato de mulheres que,
juntas, compõem um coletivo. E este coletivo promove o encontro do que eu bati-
zaria de mulheres trapilheiras. É carregar no ombro o esperançar do fortalecimento
das redes de apoio entre e inter-grupos-coletivos de mulheres em prol de instaurar
o cuidado comunitário.
Criar “redes de cumplicidades”, como traz Macedo (2017):

E acho que a questão do doméstico é aquilo que nos aproxima mais hoje
e sempre; a luta contra a opressão na esfera do doméstico e do privado
e o desejo das mulheres de vários países e culturas distintas de ter uma
visibilidade social e política, de expressar a sua voz própria e a sua vi-
são do mundo. Acho que isso está para além das fronteiras geográficas,
de língua, é algo que une as mulheres. Há diferenças, sim, de raça, de
classe, mas é necessário criar cumplicidades, criar redes. Por isso, uso
muito a metáfora da teia de aranha. Acredito que as mulheres constro-
em teias, teias de cumplicidades, de resistência. E acho que a história é
um fio tecido e o contar histórias é, afinal, uma maneira de transmitir
cultura e narrativas alternativas, tecendo coletivamente essas teias de
solidariedade e empatia (MACEDO, 2017 apud BITTELBRUN, 2020, p.3).

O bordado ocupa e provoca o desatar do nó preso na garganta, fruto do si-


lenciamento causado pela opressão, por meio de linhas e agulhas, além de evocar
uma forte identificação cultural. Por exemplo, no Brasil, em especial na regional onde
resido (Triângulo Mineiro, Minas Gerais), convivo com artesãs, sendo bisneta e neta
de artesãs que resistem com a tradição do bordado manual, mesmo frente a indus-
trialização da cadeia têxtil. O ato e o gesto de bordar a própria peça de roupa ou um
utilitário para o lar está impregnado no cotidiano, ao passo que a costura manual é
quase tão natural quanto o ato de cozinhar, sobretudo por terem, em suas trajetó-
rias, a vida no campo.
A fonte da minha aprendizagem do bordado manual tem na sua essência
a troca intergeracional, portanto é um conhecimento que não habita os espaços
74 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

institucionais de educação formal. A técnica artesanal raramente habita ou será en-


contrada nas escolas (BORGES, 2011). Nesse sentido, o bordado se assume como
uma das expressões da cultura popular ancorado pela história oral e vivências parti-
lhadas das técnicas dos pontos.
Portanto, creio que a aprendizagem do artesanato é uma aprendizagem arte-
sanal, por que só se aprende a bordar bordando. O aprendiz põe a mão na massa,
como expressa este dito popular, logo no primeiro contato, é o toque das mãos nas
agulhas e linhas como gestos esmiuçadores. Em consonância a autora Aranda (2009)
nos presenteia ao considerar que a especificidade pedagógica do artesanato, “el
aprender haciendo” (ARANDA, 2009, p.10).
Na costura manual e no bordado também podemos extrapolar. Para quê bor-
dar somente os pontos tradicionais (a exemplo do ponto-haste, ponto-atrás, ponto-
-corrente) se podemos criar nossos próprios pontos? Nesse cenário eu quero criar o
ponto-andarilho, para assim andarilhar e trapilhar pelo caminho, tecer vivências aco-
lhedoras e carregar meu estandarte e minha bandeira, participando de marchas...
Por fim, retomo a Paulo Freire1:
Eu morreria feliz se eu visse o Brasil cheio em seu tempo histórico de
marchas, marcha dos que não tem escola, marcha dos reprovados,
marcha dos que querem amar e não podem, marcha dos que se recu-
sam a uma obediência servil, marcha dos que se rebelam, marcha dos
que querem ser e estão proibidos de ser, eu acho que afinal de contas,
as marchas são andarilhagens históricas pelo mundo (Paulo Freire, TV
PUC).

REFERÊNCIAS:

ARANTES, G. Antes da chuva chegar. In: Guilherme Arantes. São Paulo: Som Livre, 1976, faixa
9.

ARANDA, S. B. La artesania latinoamericana como factor de desarrollo económico, social y cul-


tural: a la luz de los nuervos conceptos de cultura y desarrollo. Revista Cultura y Desarrollo,
[s.l.], n.6, p.3-19, 2009. Disponível em: http://www.lacult.unesco.org/docc/CyD_6.pdf.
Acesso em: 30 ago. 2021.

BITTELBRUN, G.V. Corpografias do feminino e formas de resistência na literatura e na


arte: entrevista com Ana Gabriela Macedo.  Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 28, n.
1, e57099,    2020.   Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104-026X2020000100401&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 5 jan. 2021.

BORRE, Luciana. Bordando afetos na formação docente. Conceição da Feira: Andarilha


Edições, 2020.

1 Para maiores informações este trecho pertence à entrevista de Paulo Freire, transcrito no texto de
Angélica Ramacciotti. Disponível em: https://www.pucsp.br/paulofreire/memoria-homenagens.php
Acesso em: 5 jan. 2021.
IDENTIDADE ARTESÃ 75

BORGES, Adélia. Design e artesanato. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2011.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
AFETOS ENTRELAÇADOS NAS
VOLTINHAS DO CROCHÊ
Vanessa Freitag1

Flor de Dora, crochê com fio de tecido; 50x54x38cm, Vanessa Freitag, 2020.

1 É graduada em Desenho e Plástica pela Universidade Federal de Santa Maria. Especialização em Arte e
Visualidade e Mestrado em Educação pela mesma instituição. Doutorado em Ciências Sociais no Centro
de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (Guadalajara-México).
AFETOS ENTRELAÇADOS NAS VOLTINHAS DO CROCHÊ 77

Como acontecem os encontros com os materiais que dão forma ao nosso


processo criativo com a arte? Por que decidimos por um tipo de materialidade em
detrimento de outra? Como algumas formas de trabalhar ativam memórias e afetos
no fazer artístico? De vez em quando, me deparo tecendo essas e outras perguntas
enquanto começo um novo crochê. Sempre que sinto saudades da minha avó mater-
na, revisito os crochês que ela fez para mim. Penso no tempo que ela investiu para
criar cada um deles e quantos pensamentos ela crochetou nesse envolver-se com as
linhas e as agulhas.
Tempo, paciência e imersão.
Seriam essas algumas das qualidades que podemos encontrar no fazer artís-
tico/artesanal com o crochê? Talvez sim. Ou pelo menos, são algumas que consigo
identificar quando estou crochetando. À medida que dou voltas e mais voltas com
a agulha nos fios variados com os quais experimento, os pensamentos também vão
dando voltas: conecto as experiências vividas na infância com as do meu presente.
Imagino formas que pensam o futuro. Parece que o fio vai entrelaçando as conversas
que tive com as mulheres da minha família, e as histórias que elas me contaram
sobre os primeiros crochezinhos que fizeram.
Existe uma conexão emocional com esse tipo de fazer: para mim, trabalhar
com o crochê é uma forma de tornar presente a imagem da minha avó materna e o
nosso tempo de convívio. Quando eu vejo o crochê no meu trabalho, seja em deta-
lhes de peças, ou estruturando o corpo todo da mesma, sei que a vó está ali comigo.
Forma parte desse trabalho. Lembra-me que não estou sozinha. É uma ideia/sen-
sação que sempre aparece quando vejo as formas do crochê nessas peças que crio.
Essa vinculação emocional com o material e o fazer, me leva a gerar um sen-
timento de apego e a pôr atenção nas peças que vão surgindo: se num princípio,
eu trabalhava de forma intuitiva e me deixava levar pelos caminhos que o próprio
livre-crochetar me guiava, com o tempo, senti a necessidade de perceber o que essas
formas significavam para mim. Ou seja: não me preocupa tanto o que elas são, ou o
que elas parecem ser, mas o próprio processo do fazer, de crochetar em si e na forma
como me sinto corporalmente entrelaçada pelas voltinhas do crochê.

SOBRE O CROCHÊ
Por ter sido uma prática desenvolvida preponderantemente por mulheres no
contexto doméstico, visto como uma “manualidade” ou uma “arte menor”, são es-
cassos os textos que se interessaram em documentar e entender as origens, usos e
significados da prática do crochê.
Entre esses textos e materiais encontrados, se sabe que “crochê” provém de
“croc” ou “croche”, uma palavra do francês medieval, significando literalmente “um
pequeno gancho”. Sendo assim caracterizados os tecidos feitos a partir do entrelaça-
mento de um único e contínuo fio, com o apoio de uma agulha em forma de gancho
numa das extremidades (HARRIS, 2010).
Através do entrelaçamento de fios, das voltas e nós que se dá com a agulha,
o tecido é formado e os pontos e linhas utilizados vão dando identidade ao crochê.
Outra característica — que pode parecer uma obviedade — é que, até hoje, o crochê
78 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

se faz com as mãos, sem o apoio de máquinas especializadas. Comparada com outras
técnicas têxteis (como o tecido feito em tear, o bordado, as rendas, a costura), o cro-
chê foi um dos mais negligenciados. Algumas das razões que poderiam pontuar este
fato é que o processo de aprendizado e os recursos utilizados eram acessíveis para a
maioria da população, cujos processos se aprendiam com certa rapidez. Comparado
com as rendas e o bordado, o crochê requer menos tempo e complexidade no fazer
(HARRIS,2010).
Alguns dos trabalhos pioneiros sobre o tema, pelo menos para o contexto eu-
ropeu, é o de Lis Paludan que em 1824 escreveu sobre a prática do crochê para uma
revista feminina danesa. Já em 1844, na Suíça, se publicou o primeiro livro conhecido
sobre modelos e pontos do crochê (PALMSKOD, 2016).
Sobre as possíveis origens do crochê, cogita-se a hipótese de que surgiu entre
os séculos XV e XVI, especialmente em países europeus: Itália, França e Bélgica. A alta
burguesia europeia se deslumbrava com as delicadas, complexas e onerosas rendas
que adornavam seus vestuários. Por outro lado, as pessoas menos favorecidas não
podiam vestir-se com esse prestigioso acessório. Uma possível solução encontrada
foi emular as complexas rendas mediante um procedimento técnico e material mais
acessível: o crochê (PALMSKOD, 2016).
Sobre a prática do crochê, sabe-se que essa foi desempenhada em países
como a China, Índia, Filipinas e, no caso da América do Sul, a partir dos processos
de colonização/imigração (HARRIS, 2010). Na Inglaterra, o crochê se tornou popular
e extensamente utilizado no final do século XVIII, quando uma variedade de pontos
foram criados durante a era Vitoriana.
Seu uso foi empregado em diversos tipos de suportes, adornos, bases ou ne-
cessidades dentro e fora do âmbito doméstico. O crochê não só foi utilizado como
adorno de roupas femininas e masculinas, mas também para criar almofadas, col-
chas, tapetes, cortinas e uma infinidade de artigos para as residências modernas
(GORDON, 2011).
Ainda para Palmskod (2016, p.18, tradução livre da autora): “O crochê se tor-
nou moda nos primeiros países industrializados do mundo ocidental a princípios do
século XIX, ao mesmo tempo em que se expandia a produção de algodão na mesma
medida e contexto de expansão do colonialismo e da escravidão”. Com o passar do
tempo, o crochê se expandiu e se popularizou.
Tal processo foi favorecido, em parte, pela publicação e circulação extensiva
de revistas femininas onde se publicaram as guias e modelos de crochês para serem
replicados entre as mulheres. De acordo com Palmskod (2016, p.19), “elaborados
modelos foram desenvolvidos para decoração doméstica e para uso pessoal. A po-
pularidade do crochê continuou e entre 1900-30 foi uma prática artesanal muito
comum”.
No entanto, sabemos que muito desse conhecimento se transmite de uma
geração à outra, de forma empírica, sem o uso de revistas ou modelos prévios. As
mulheres geralmente se comprometiam a ensinar os caminhos do crochê às novas
gerações de suas famílias. Entre elas mesmas se compartilhavam desenhos e mode-
los que criavam para a atualização de novas formas de crochetar.
AFETOS ENTRELAÇADOS NAS VOLTINHAS DO CROCHÊ 79

Como podemos observar, por ter sido um conhecimento aprendido mediante


a prática e a observação no contexto doméstico, desempenhado por mãos femininas,
praticamente não foi considerado como “digno” de ser documentado e estudado por
especialistas.

OS ARREMATES
A “Flor de Dora” que apresentei para o projeto Tramações: a memória e o têx-
til era para ter sido uma flor gigante, quase da minha altura. Eu queria ser abraçada
pela flor, aninhada por ela. No entanto, no processo do fazer, me deixei levar pelas
cores e as curvas do crochê, e foi quando decidi manter a forma que têm agora: é de
uma escala que cabe em qualquer lugar. E essa ideia também me agradou.
Ela também me lembra as flores que formam os desenhos dos crochês que
eu via nos guardanapos e toalhas que tinha na minha casa, aludem diretamente o
interesse que tenho pela botânica e a minha relação com a terra. Como filha de pe-
quenos agricultores do interior do sul do Brasil, cresci rodeada de plantas e animais.
Depois de trabalhar no campo, de cuidar da horta e do jardim, às vezes mi-
nha vó e minha mãe ainda encontravam tempo para trabalhar nos seus crochês. Era
como um ritual, uma parte do trabalho cotidiano consistia em fazer guardanapos,
tapetes, colchas, toalhas de mesa para a casa. Não era nunca com a intenção de
vender, pois lembro que todas as vizinhas e amigas da época também crochetavam e
se reuniam para intercambiar novos pontos e desenhos.
Foi nesse convívio cotidiano com a prática do crochê ainda na infância que
minha avó me ensinou a fazer as “correntinhas” que são os pontos que dão início a
um trabalho, e se assemelham a uma trança de cabelo. Além disso, ela conhecia a lin-
guagem do crochê, os nomes dos pontos e os nomes das flores e folhas crochetadas.
Isto eu achava muito interessante.
A minha “Flor para Dora” é uma forma carinhosa de reconhecer as práticas e
saberes artesanais que são desempenhados maioritariamente (embora não exclu-
sivamente) pelas mulheres. Esse trabalho evoca a presença de um ser querido, de
uma paisagem da qual sinto nostalgia, dos crochês bem feitos que a vó fazia. Destaco
aqui, a atenção posta no detalhe, a cadência dos pontos usados, e as cores suaves e
delicadas que transformavam qualquer pedaço de pano em um trabalho finamente
elaborado.

REFERÊNCIAS:

GORDON, B. Textiles: The Whole Story. New York: Thames & Hudson, 2011.

HARRIS, J. 5000 Years of Textiles. Great Britain: The Trustees of the British Museum, 2010.

PALMSKOD, A; ROSENQUIST, J.; ALMEVIK, G. Crafting Cultural Heritage. Sweden: University


of Gothenburg, 2016.
TEMPO DE ESPERA
Ana Lisboa2

Tempo de espera, Bordado sobre tecido, 1,00 x 0,90m, Ana Lisboa, 2020.

///
“Tempo de espera” foi o tempo vivido e sentido a partir do momento em que
nos foi anunciado que seríamos avós. Era dezembro de 2019 quando Álvaro e eu re-
cebemos a notícia, em Granada/Espanha, em seguida no Recife/Brasil. Foram muitas
emoções, pois iniciamos sendo avós duplamente, quase no mesmo mês, diferença
de 23 dias de um neto para o outro. No dia 24 de julho nasceu Guilherme e, em 17
de agosto, Vinícius! Nascia, diante de tempos divididos e de partilhamento intenso,
mais uma história de amor.
Sentir as emoções e as expectativas das duas filhas, Danielle Maria e Renata
Maria, fez-nos reviver o tempo de gravidez, em que tudo se transforma no corpo e na

2 Professora Adjunta do Departamento de Artes da Universidade Federal de Pernambuco. Doutora


em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco e Mestre em Ciências da Religião
pela Universidade Católica de Pernambuco. Graduada em Licenciatura em Educação Artística pela
Universidade Federal de Pernambuco e em Engenharia Civil pela Universidade de Pernambuco. Como
artista e pesquisadora dedica-se às linguagens artísticas (gravura, pintura, desenho e objetos) e ao
processo de criação.
TEMPO DE ESPERA 81

mente. Cada mudança evocava uma lembrança dos meus 21 e 30 anos, 38 e 29 anos
atrás, respectivamente, quando estive grávida de Danielle e de Renata. Uma emoção
que não sei como explicar, senti todas as transformações das filhas, uma emoção
dupla. Cada dia uma mudança, um encontro, uma preparação para a chegada dos
presentes do céu: Guilherme e Vinícius.
Nove meses de acolhimento, de cuidado, de paciência, uma preparação nos
ninhos familiares, o corpo e a casa em mudança. As filhas que se preparavam para
ser mães, juntamente com os maridos, pais, familiares e amigos; todos sentíamos a
presença de Deus: algo maior... duas vidas chegando...
Esse tempo de espera me pareceu, paradoxalmente, longo e rápido. Como
pode? Foram momentos transbordantes de emoções, que jamais serão esquecidos,
potencializados por uma tragédia mundial que vivíamos em paralelo: uma pandemia
ceifando milhares de vidas preciosas e ainda sem perspectivas seguras de quando
iria terminar. Anseio e esperança de que tudo passasse e nossas criaturinhas do céu
nascessem quando tudo já estivesse pacificado, o que infelizmente não aconteceu.
Como vovó em perspectiva, enquanto vivia um tempo ansioso de acompa-
nhamento da gestação e do nascimento, encontrei um derivativo no trabalho com
as mãos e a mente, com muito amor, fazendo e refazendo os fios do coração, muitas
vezes partidos pelos desejos frustrados de abraçar, colocar no colo, cheirar, me fazer
mais presente. Foi um tempo de sublimação, de potencializar a vida, dando sentido
aos dias através de bordados que aprendi com a minha tia/madrasta de meu pai, tia/
madrinha. Os “bordados afetos” foram um instrumento ao meu alcance para ter e
dar felicidade! Assim me sentia quando estava vivenciando este “tempo de espera”,
bordando lençóis para esquentar, cobrir e acarinhar os amados netos tão esperados!

///
Quando criança, via os bordados de minhas tias Iracema e Elizabete, por mim
tão admirados, pelo carinho e pela beleza angelical: pontos delicados, pacientemen-
te realizados em tecidos finos e quase transparentes. Cada ponto tinha uma carac-
terística e uma forma, aplicados em lençóis, fronhas, vestidos, blusas, camisolas,
toalhas... Mas, em sua maioria, em conjuntos para bebês. Uma tia comercializava,
era famosa, a outra fazia para os familiares, seus filhos e netos.
Achava lindo! E o que mais me encantava era a dedicação que elas tinham,
era o tempo que pacientemente dedicavam àqueles tecidos tão delicados e que
simbolizavam muito para meu olhar de criança. Fui presenteada com muitos desses
trabalhos (camisolas para mim e lençóis para as nossas filhas). Esses momentos de
trocas afetivas, de renúncia por tantos afazeres, além da dedicação neste fazer tão
simbólico, despertaram em mim um desejo de continuidade quando os netos foram
anunciados. Um resgate da emoção de outrora, de me sentir como minhas queridas
tias, de doação de um tempo na espera longa, ainda mais no sofrido período que
estamos vivendo. Sem dúvida, um resgate longo e apreensivo.
Multiplicar o afeto que sempre recebi de tias tão queridas me veio à lembran-
ça como algo muito especial e cheio de significados. Pessoas que eu amava, admira-
va e admiro pela habilidade e capacidade de doação. Cada desenho, bordado, cor,
82 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

pontos... uma lembrança, uma felicidade.


O desejo de deixar para os netos alguns paninhos cuidadosamente bordados,
especialmente com o significado de terem sido bordados para eles, foi a motivação
para aprender e fazer, mesmo sem ter experiência: quis passar para eles a força do
querer através do aprender. Tia Elizabete, irmã de minha mãe, me ensinou, pela in-
ternet, alguns pontos e, com muita vontade, concretizei o desejo e materializei o que
aprendera através dos bordados — linha branca sobre tecido branco, imaculados.

///
Os lençóis foram feitos em um tecido chamado cambraia, bem fininho e de-
licado, adquirido há mais de dez anos, guardado para ser bordado para os netinhos
quando fossem anunciados.
Os bordados foram pensados a partir de uma blusa confeccionada pela tia
Elizabete, esse foi o ponto de partida. Há anos guardo esta blusa, nunca usada, como
se fosse uma relíquia e não feita para uso, mas para ser admirada pelos descenden-
tes, memória de infância, de juventude, de afeto, de amor recebido... de um tempo.
Iniciei cortando os lençóis, desenhando e, finalmente, bordando. Fazer com
linha branca sobre o tecido branco foi um desafio, mas, para mim, era a única cor
que representava meus desejos estéticos. Escrever o nome de cada neto levou muito
tempo: cada vez que estava terminando, mais bordado queria fazer. Não há, nos
lençóis, nenhuma costura que não tenha sido feita a mão, um resgate à paciência, ao
tempo dos afazeres com as mãos.
Fazer estes lençóis foi algo que me deu muita satisfação, o tempo passava e
eu nem sentia, a higiene mental era concreta, a imaginação voava e o corpo sen-
tia a leveza. Aprender foi fácil, pois a motivação era muito grande e representava a
paciência da espera, o quanto podemos nos preencher com os desafios dos novos
aprendizados das coisas simples, sem ter a pretensão, em momento algum, de reali-
zar um bordado perfeito. Apenas a vontade de registrar o afeto, a passagem de um
tempo de espera pela chegada dos presentes mais belos que podemos receber para
cuidar: vidas!
As linhas, os pontos, os desenhos são autênticos de quem é aprendiz e quis
registrar essa gênese do ofício. Para mim, belos são os bordados que seguem a dire-
ção das mãos, diferente das máquinas, que trazem uma “perfeição” e beleza própria
da máquina.
A partir desses lençóis surgiram outras ideias, mais bordados e outros dese-
nhos... muitos conjuntos foram feitos, com o mesmo desejo de bordar afetos, memó-
ria de um tempo de espera cheio de emoção.

///
O que propusera foi alcançado. No início eram dois lençóis, um para cada neti-
nho, mas as mãos e a mente foram encontrando outros caminhos e devaneios e surgi-
ram mais e mais bordados. Os lençóis brancos imaculados “Tempo de espera” foram
usados por Guilherme e Vinícius assim que chegaram ao mundo. Simbolicamente
estávamos lá, abraçando, esquentando, acariciando as criaturas recém-nascidas.
TEMPO DE ESPERA 83

Quanta alegria e encantamento!


Quando penso nos resultados desse trabalho/afeto, sinto que foi uma obra
realizada com um propósito, intencional, para comemorar a chegada de criaturas
tão almejadas. Algo que desafiou as técnicas que costumo usar em meus trabalhos
com arte, mas que, em sua origem, fala de meus desejos pessoais, como em outros
trabalhos que faço. A mitologia pessoal e a memória caminham juntas em vários
momentos na arte que realizo.

///
Penso que, ao bordar, encontrei o que queria para aquele momento de espera.
Fiz, refiz e continuo tecendo. É preciso, em momentos ambíguos como estes que o
destino nos reservou, dar lugar à imaginação, se deslocar para o desconhecido, acre-
ditar que é possível, ter esperança, tecer, alinhavar, somar pontos, desfazer e refazer,
um exercício de resiliência e de coragem. Sem desistir do desejo e com paciência,
seguir acreditando que é possível, que é na simplicidade que encontramos brechas
para remar e ser feliz.
Viver é se ressignificar. Nesses trabalhos há mais do que pontos cerzidos com
linhas, há o desejo de aquecer, há esperança, alegria, afeto, paz. Uma oportunidade
única de exercitar as formas que nos tornam pessoas melhores. O cuidado com o
outro se destaca... E é cultivando afetos que transformaremos a nós e os nossos
semelhantes. Para vocês, Guilherme e Vinícius, “Tempo de espera”, com muito amor.
NÃO SEI O NOME AINDA

Letícia de Melo Andrade1

Não sei o nome ainda, livro têxtil, 28x20 cm, Letícia de Melo Andrade, 2020.

Tô com saudade, Letícia/Eu tenho saudade do contato, do abraço aper-


tado, do aperto de mão. Eu tenho uma saudade danada de quem nunca
mais eu vi/ Eu tenho saudade de não ficar pensando demais nas coisas/
Eu sinto saudades de ir pra faculdade no final da tarde, sabe? De tá lá no
ônibus, no geladinho, tá? De tá lá no ônibus e aí... como é geladinho, tá
tudo fechado e não tem aquela gritaria, um silêncio. Aí você consegue
ver as cores da cidade. Aff, eu tô com saudade de tudo isso/ Tô com
saudade dessas pessoas que moram no meu coração, que estudaram
comigo no terceiro ano, e que infelizmente eu só vejo uma vez por ano/
Eu sinto saudade da minha ingenuidade/ Tô com saudades da sensa-
ção de proteção, do açaí compartilhado e do cinema São Luiz/ Eu tenho
saudade de pegar o Rui Barbosa-Príncipe sentido Centro e dormir na
maior parte do trajeto/ Só tem que ser uma coisa só? Porque eu tenho
saudade de muita coisa… Uma coisa que eu sinto muita saudade é da
minha família reunida todo natal. É uma saudade. Do meu avô… que
ele faleceu, né? Então, assim, eu tenho muita saudade disso. Daquela
baguncinha em família/ Eu acho que uma das maiores saudades que eu

1 Graduanda em Licenciatura em Artes Visuais pela UFPE e bolsista do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação da Profª Drª Luciana Borre.
NÃO SEI AINDA O NOME 85

tenho é de tipo… é não fazer nada na Federal com a galera. Sentar na


frente do CAC e ficar de boa, conversando. Sabe quando dá a hora do
almoço? Dá a hora do almoço e aí a gente sai pra comprar comida e cada
um vai num canto e tal… aí senta todo mundo ali na frente. Só conver-
sando com a galera, botando o papo pra fora. Acho que isso é a maior
saudade que eu tenho, de tá perto. Mesmo que não falando nada, mas
de ver todo mundo e sem precisar ser através da tela/ Menina, eu tô
morrendo de saudade de vocês! Só dos meus amigos, é isso/ Véi, eu
tenho saudade de fazer o mesmo caminho que eu fazia todos os dias.
Mas tentar, sabe, ver... ter aquela sensação de como se eu tivesse vendo
aquilo tudo pela primeira vez/ Eu sinto falta de tempos mais simples/
Eu tenho saudade de não sentir saudade. De tá num lugar onde eu não
sinto saudade.

Quando tive a ideia de fazer um livro de tecido sobre saudades, sentimento


que aflorou em mim com enorme intensidade por conta da pandemia de COVID-19
e, consequentemente, o isolamento social, me pareceu claro que sua criação não
poderia ser algo individual, logo, senti a necessidade de integrar outras narrativas
para além da minha. Desta forma, pedi que alguns amigos me mandassem uma men-
sagem de áudio dizendo do que eles sentiam saudades, além de pedir-lhes fotos para
que pudesse pôr seus rostos numa das páginas do livro. Gosto de pensar que essas
pessoas, e tantas outras, são parte integrante de quem sou hoje. Tê-las ali representa
uma maneira de falar de nós, um conjunto de pessoas tão distintas, falando de mim
simultaneamente, uma colcha de retalhos.
Cada vez que recebia uma resposta, deliciava-me em ouvir as vozes de
todos eles, se abrindo para mim. Interessante pensar que posso ler esse texto
e ouvir suas vozes ecoarem em minha cabeça. Conhecendo o tom de cada pa-
lavra, a entonação usada quando se expressam, a calma e o vigor que cada um
dispõe quando falam de suas saudades. Mesmo tendo transcorrido para texto
exatamente como o ouvi, apenas eu sinto e reconheço cada voz que ouço como
música.
Rapidamente me ocorreu que não se tratavam de simples mensagens, mas
realmente de uma música, uma verdadeira trilha sonora que pode ser apreciada
sozinha, mas que acompanha a primeira página do livro com o rosto de cada um
juntamente com as suas saudades bordadas. Quem pode negar que a voz de quem
amamos não se trata da mais pura música? Uma música escrita em conjunto, unin-
do experiências que partilhamos, também as que experienciamos sozinhos, mas
que simbolizam um sentimento coletivo. Pude perceber que sentíamos falta de
coisas tão parecidas, das mais concretas às mais abstratas, sentíamos saudades
uns dos outros.
Alguns me contaram sobre suas saudades mais detalhadamente, outros foram
sucintos, mas todos nos vimos envoltos nesse sentimento sufocante que é a sauda-
de. Um sentimento tão difícil de explicar, de pôr em palavras, mas que não deixa de
ser sentido de uma maneira tão forte e poderosa. Todos esses relatos se fundem
ao meu, nossas narrativas se encontram e se unem em uma rede sensível de vivên-
cias. Italo Calvino (1990) descreve essa trama de narrativas ao contar a história de
Eufêmia, uma de suas Cidades Invisíveis.
86 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas tam-
bém porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado,
sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes,
para cada palavra que se diz – como ‘lobo’, ‘irmã’, ‘tesouro escondido’,
‘batalha’, ’sarna’, ‘amantes’ – os outros contam histórias de lobos, de
irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que
na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados
bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias
recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa
irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a
cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios
(CALVINO, 1990, p. 38-39).

Foi justamente na semana que aconteceu o equinócio de outono (20 de mar-


ço) de 2020 que tudo começou a mudar, comecei a sofrer de uma saudade crônica.
A pandemia de COVID-19 começava a dar sinais de escalada no país e entramos num
estado de alerta conjunto. Os estabelecimentos começaram a fechar, as aulas foram
suspensas, fomos recomendados a ficar em casa. Apesar de tudo parecer fora da
realidade, muitas vezes me vejo ainda hoje pensando se tudo não passa de um so-
nho, os equinócios e solstícios não cessaram. Minhas saudades também não, apenas
aumentavam de tamanho, com raízes cada vez mais fortes.
Enquanto esse sentimento permeava meus dias, lembrei-me da minha infân-
cia. Eu devia ter uns 8 anos, mas recordo-me perfeitamente desse episódio. Nessa
época, ia a uma psicóloga, a doutora Celina, uma mulher muito carinhosa de quem
gostava muito. Logo o dia de sessão, a quarta-feira, se tornou meu dia preferido. Até
hoje lembro-me dela sempre que vejo uma latinha de pastilhas Valda ou ameixas in
natura, que ela sempre me oferecia generosamente, e eu sempre aceitava a pastilha
e recusava a fruta. Um dia, ela me disse que a palavra saudade existia apenas na lín-
gua portuguesa. Fiquei tão encantada com essa informação, me senti privilegiada de
poder expressar de forma única um sentimento que, mesmo ainda criança, julgava
ser tão bonito.
Lembro-me muito bem de guardar aquela informação, para mim valiosíssima,
ávida para compartilhá-la com minha mãe. Então, logo que saí da sessão comentei:
“Mãe, sabia que a palavra saudade só existe no nosso idioma?”. Minha mãe, já ciente
deste fato, também pareceu feliz em poder falar de saudades, esse sentimento que
achamos, eu e ela, tão próprio de nós brasileiros. Senti que estava conectada a todas
essas pessoas falantes do português, estávamos envoltos em um sentimento que
supostamente era só nosso, somente nós poderíamos dizer exatamente o que era
aquela falta, aquela angústia que sentíamos.
Porém, é difícil acreditar que outras pessoas que não falam português não
tenham como expressar saudade, um sentimento tão forte e universal. Hoje essa
afirmação é refutada por muitos linguistas, pois alegar que uma palavra não existe
em outros idiomas é declarar que seu significado é restrito aos falantes de uma de-
terminada língua (PAYNO, 2020).
Mas o que significa ter saudade? Não me propus a dar significado a esse sen-
timento, acho que trata-se de uma tarefa quase impossível, por isso não sei o nome
NÃO SEI AINDA O NOME 87

ainda. Às vezes “palavras são dispositivos fúteis” (STEVENS, 2010). Saudade é tão
visceral, às vezes parece ser até palpável, acho que em alguns casos ela realmente se
materializa, em forma de objetos, de gente. Fiz este livro têxtil com o intuito de ex-
purgar essas saudades todas. Eu tenho saudade dos meus amigos; de andar pela ci-
dade; sinto saudade do vento e do mar. Morro de saudade do mar. Eu sinto saudade
de ir na casa da minha avó, de comemorar aniversários com minha família. Saudade
do toque, saudade dos cheiros. Sinto saudade de ouvir as conversas das pessoas na
rua; das risadas; dos sorrisos com os dentes todos para fora, pra todo mundo ver; das
vozes. Saudade do passado, do presente e do futuro, em todos os sentidos possíveis.
Logo percebi o mal que me acomete. Além de estar em um estado crônico de
saudades, tinha fome. Fome de pele. Pesquisando um pouco mais sobre saudades,
deparei-me com este termo, tão bonito que chega a ser poético, da neurociência. Ao
mesmo tempo que, devido a pandemia, precisamos nos distanciar uns dos outros,
paradoxalmente nosso cérebro precisa do contato. Temos neurônios-espelhos que
nos ajudam a estimular sentimentos como a empatia, precisamos estar juntos para
nos desenvolvermos tanto de maneira emocional e cognitiva, quanto social e fisiolo-
gicamente. Esta fome não está apenas ligada ao tato. Todos os cinco sentidos estão
envolvidos quando falamos de saudades, todos eles estimulam regiões do cérebro
responsáveis pelo processamento de emoções e tomadas de decisões, por exemplo
(RIVAS, 2020).
O toque é tão importante quanto a falta que sentimos de ver pessoas e luga-
res. Sentir alguns cheiros específicos, impossíveis de serem recriados em casa, seja
de alguma comida especial, até o perfume de alguém querido que está longe. Ouvir
as vozes de pessoas que amamos, das pessoas nos ônibus, dos vendedores ambulan-
tes no centro do Recife. Existem frases que só ouvimos nesses lugares, na rua: “Olha
a pipoca, R$1,00! É o passatempo da viagem!”, “Valeu, motô!” ou “Chip da Oi a
primeira recarga é grátis, ativo na hora! Ligações ilimitadas pra qualquer operadora”.
Tem algumas comidas que sentimos falta e que nem eram assim tão gostosas, mas o
contexto do lugar e a reunião de pessoas são suficientes para fazer com que a dor da
saudade se manifeste dentro de nós.
Acredito que iniciei esse livro mesmo antes de percebê-lo de maneira cons-
ciente, pensando em todos esses elementos da vida que antes eu vivia de maneira
rotineira, estando aberta a esses sentimentos que me invadem ainda hoje e dando
de maneira muito natural uma ordem nisso tudo.
O processo de criação deste trabalho se deu principalmente na observação
de mim mesma e do que acontecia ao meu redor, de um jeito muito intuitivo. Penso
que se deu uma nova maneira de perceber, ordenar e selecionar. Fui movida pela
intuição, aprendendo a olhar mais atentamente os caminhos do fazer a cada etapa
dessa jornada. É o que Fayga Ostrower discorre e defende em seu livro “Criatividade
e Processos de Criação” (2001), e o que pude experienciar de maneira mais atenta
no desenvolver deste trabalho. Aqui destaco o que a autora traz quando discute so-
bre intuição e insights, dois componentes essenciais nos processos de criação.
Surgindo de modo espontâneo das profundezas do ser, não é possível
explicar o como e porquê do caminho. Trata-se, contudo, de processos
88 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

dos mais complexos estruturados dentro do ser humano, pois no insight


estruturam-se todas as possibilidades que um indivíduo tenha de pen-
sar e sentir, integrando-se noções atuais com anteriores e projetando-se
em conhecimentos novos, imbuída a experiência de toda carga afetiva
possível à personalidade do indivíduo. E não há como não ver o caráter
dinâmico e criativo do insight; o conhecimento é novo, a maneira de
conhecer renovando-se dentro do próprio ato de conhecer, também
renovado (OSTROWER, 2001,p. 67).

O que Ostrower defende, de maneira brilhante, em sua obra é exatamente


como a criatividade é uma característica inerente ao ser humano, e não um privilégio
de artistas. A partir de minhas memórias, pude criar uma poética material sobre o
que sentia (e sinto) de maneira tão intensa. Contudo, como já expressei anterior-
mente, acredito que minhas vivências interligam-se às de outras várias pessoas que
fazem parte de minha vida, ou até pessoas que eu não tive nenhuma conversa, que
não conheço, mas que sinto falta de estar perto novamente, pela fome de pele.
Portanto, acredito que a criatividade que me permeia no momento de criação
deste objeto têxtil, também se deve a como essas pessoas são criativas em seu coti-
diano, seja na maneira de me contar suas saudades ou até mesmo no jeito que vivem
suas vidas; contam histórias; desempenham seu trabalho. E, assim como Ostrower
demonstra em seu livro, é preciso estar aberta, ser um ser sensível para assim ser
capaz de perceber todas essas narrativas que acontecem ao nosso redor, bem como
ordenar e interpretar nossas próprias experiências. E é isso que busquei e busco
diariamente em meu fazer poético e nas práticas do dia a dia.
Além disso, concordo quando Ostrower atesta que a memória tem papel im-
portante nos processos de criação, no que toca à expansão de possibilidades narrati-
vas que o indivíduo dispõe, bem como uma distância necessária para avaliar práticas
já realizadas, além de possibilitar a criação (ou reprodução) de espaços.
Por vezes a memória é reavivada por acontecimentos presentes, por meio de
associações de dados já interligados, ordenando vivências do passado. A memória
configura-se com um processo seletivo e também renovável de acordo com novas
associações. Fayga esclarece que:

O espaço vivencial da memória representa, portanto, uma ampliação


extraordinária, multidirecional, do espaço físico natural. Agregando
áreas psíquicas de reminiscências e intenções, forma-se uma geografia
ambiental, geografia unicamente humana. Outros territórios hão de se
lhe incorporar ainda. Imensos e ilimitáveis. Acompanhamos a intenção
da memória no poder imaginativo do homem e, simultaneamente, em
linguagens simbólicas. A consciência se amplia para as mais complexas
formas de inteligência associativa, empreendendo seus voos através de
espaços em crescente desdobramento, pelos múltiplos e concomitantes
passados-presentes-futuros que se mobilizam em cada uma de nossas
vivências (OSTROWER, 2001, p.19).

Acho interessante o modo com que Ostrower apresenta a memória como um


espaço que podemos sempre revisitar, coletar o que achamos necessário e, ao trazer
essas lembranças para hoje, ressignificá-las, mantendo-as vivas, ativas. A memória é
NÃO SEI AINDA O NOME 89

também um lugar móvel já que, por vezes, se modifica com o passar do tempo. Além
disso, as experiências passadas vão moldando nossas ações de hoje, como Fayga diz,
trata-se de um “passado-presente-futuro”.
Somos construídos dessas memórias, por vezes divididas com outros, modifi-
cadas por terceiros. Quantas vezes contamos uma história e outra pessoa que estava
presente nela nos contesta, dizendo que tudo se deu de maneira diferente? Essa
narrativa se torna múltipla, assim como acredito que seja esse trabalho, tanto pela
sua temática quanto pelas pessoas envolvidas nele. Foram diversas mãos, vozes, his-
tórias e fragmentos de experiências partilhadas que construíram o que se tornou
esse livro têxtil. Uma memória coletiva de muitas saudades.
Talvez saudades seja algo que eu nunca saiba como explicar, talvez eu nunca
saiba o nome. Mas sei o que sinto e sei que somos muitos. Acho que deparei-me
neste trabalho com algumas problemáticas ligadas à linguagem: questionei-me se
é apenas no português em que podemos recorrer a essa palavra tão bonita e com
o significado tão imenso (descobri que, além de essa afirmação não ser correta, ela
advém de um nacionalismo português); ou se é correto falarmos sobre saudades,
assim no plural (descobri que podemos); perguntei-me até onde as palavras podem
ser úteis para a formulação de qualquer que seja a explicação que queremos dar
sobre o que seja um sentimento. Descobri então que há certas coisas que transpõem
a necessidade que tenho de esclarecer, foi preciso apenas sentir. Talvez, como disse
já há muito tempo Luiz Gonzaga (1950): “saudade o meu remédio é cantar”. Decerto,
Luiz entende de saudades, sabe que o remédio é mesmo vivê-las, em seu estado
mais puro até nosso âmago.
Não importa se for “añoranza”; “inanguôró”; “hanîn”; “söknudur” ou “nat-
sukashii”, estamos todos afogados na ausência, na nostalgia, no querer que o passa-
do torne-se presente e futuro. O tempo/espaço também torna-se confuso, fica longe
no calendário e perto da gente, na memória, nas saudades.
Sei que quando tudo voltar ao normal, quando pudermos ter a calma que nem
sabíamos que existia no dia a dia sem Covid, matarei todas essas saudades, apenas
para criar outras no lugar. As saudades se renovam, ao longo das nossas vivências
criam-se mais e mais saudades, num ciclo indelével.

REFERÊNCIAS:

CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

GONZAGA, Luiz; TEIXEIRA, Humberto. Qui Nem Jiló. Rio de Janeiro: RCA: 1950.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora


Vozes, 15ª edição, 2001.

PAYNO, Mariana. A saudade não é exclusividade do português. Revista Gama, [s.l.], n.4,
jun. 2020. Disponível em: https://gamarevista.com.br/semana/deu-saudade/como-se
-diz-saudade-alem-do-portugues/. Acesso em: 9 fev. 2021.
90 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

RIVAS, Sílvia Lopes. Neurociência explica por que temos “fome de pele” e precisamos de abra-
ços. El País Brasil, maio 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/smoda/2020-05-16/
neurociencia-explica-por-que-temos-fome-de-pele-e-precisamos-de-abracos.html?utm_
source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=OQEL. Acesso em: 14 fev. 2021.

STEVENS, Sufjan. Futile Devices. In: The Age of Adz. Nova York: Asthmatic Kitty: 2010.
OLVIDO
Mariana del Val1

Olvido, perlas bordadas sobre carpetita de 1955, 10 x 10 cm, Mariana del Val, 2020.

1 Directora del museo de arte Evita-Palacio Ferreyra, en la ciudad de Córdoba Argentina. Desde allí
promueve prácticas artísticas contemporáneas. Es profesora titular en tres cátedras de la Facultad de
Artes de la Universidad Nacional de Córdoba. Su formación académica fue en esa misma universidad, en
la que se graduó como profesora superior en educación artística y Licenciada en Pintura, recientemente
obtuvo el título de Especialista en Arte Contemporáneo. Como artista obtuvo premios en pintura y
participó en numerosas exposiciones.
92 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

No está en el tiempo sucesivo


sino en los reinos espectrales de la memoria.
Como en los sueños
detrás de las altas puertas no hay nada,
ni siquiera el vacío.
Como en los sueños,
detrás del rostro que nos mira no hay nadie.
Anverso sin reverso,
moneda de una sola cara, las cosas.
Esas miserias son los bienes
que el precipitado tiempo nos deja.
Somos nuestra memoria,
somos ese quimérico museo de formas inconstantes,
ese montón de espejos rotos.

Jorge Luis Borges

Olvido se fue gestando en tres dimensiones, para su producción y análisis. La


dimensión técnica del bordado como categoría textil en el marco del arte contem-
poráneo, las tramas de encuentro y relaciones interpersonales que se generan en
comunidades ficcionales de producción artística, y las tramas de la memoria que
evocan y enlazan de manera evanescente imágenes, sentidos, emociones y saberes,
así como rostros, miradas y aromas que recrean el mundo y sostienen las identidades
subjetivas.
La convocatoria Tramações: a memória e o têxtil, me permite articular estas
dimensiones, encontrar retazos de historia, mi historia, en una pieza textil producida
por las manos de mi madre y en ella, conjurar el olvido con las huellas que deja el
bordado. De alguna manera analizar esta obra requiere recuperar el proceso autore-
ferencial que atravesó su construcción simbólica.

EL BORDADO UNA EXPERIENCIA ARTÍSTICA Y COMUNITARIA


No puedo evocar ningún momento en mi vida sin la presencia de la creación
artística. Mis recuerdos de infancia más remota recuperan mis acciones de dibujo
sobre cartón de personajes que luego usaría para jugar mientras mi padre estudiaba
medicina. Por otra parte, algunos bordados pequeños en los que mi madre me fue
enseñando técnicas de hilos entrecruzados. El dibujo y la pintura acompañaron toda
mi infancia y adolescencia, como un modo particular de habitar el mundo.
Mi formación académica en la Facultad de Artes fue con orientación en pin-
tura. Sin embargo, por mis participaciones en proyectos de construcción comunita-
ria, aparece el bordado en mi producción artística. Desde el año 2016 formo parte
de un colectivo de mujeres que se reúne a bordar todos los sábados en el museo
Evita- Palacio Ferreyra. Esta producción está pensada a partir de desplazamientos
a prácticas territoriales y comunitarias, que ya son una variable importante en el
arte contemporáneo. Este colectivo piensa el bordado como una actividad artísti-
ca que nos permite crear, reflexionar y construir sentido dentro del museo. Cada
año debatimos un tema de interés para el grupo y vamos reflexionando, leyendo y
compartiendo hasta que cada una concibe su propia pieza bordada. Constituimos
OLVIDO 93

una trama de mujeres que va tejiendo imágenes, sentimientos, ideas. Una urdimbre
en la que nos inscribimos desplegando la subjetividad, promoviendo intercambios y
reconociéndonos mutuamente.
Pensar este tipo de producciones, nos remite a desplazamientos y ciertos
cambios de paradigma, como el cambio de concepción de roles de artista y especta-
dor, tal como lo definían los procesos artísticos de la modernidad. El artista aquí se
transforma en mediador de una comunidad, un programador, puede funcionar como
facilitador de procesos creativos, en las que un grupo de personas trabajará formas
no siempre identificables como sonidos, encuentros, emociones, palabras, o simple-
mente en experiencias esporádicas irrepetibles, o en la concreción de encuentros
con otras agrupaciones y comunidades. El espectador se transforma en un sujeto
activo que forma parte de la comunidad productiva: su participación es central, no
periférica. Para Ranciere no se trata de emancipar al espectador, sino de reconocer
su actividad de interpretación activa, y por qué no, participativa. Reconocer para
conceder importancia al proceso y no sólo al resultado, abandonar concepciones
de autoría y su desplazamiento hacia nociones múltiples y diversas que circulan en
espacios y con métodos alternativos define estas estéticas comunitarias.
Estas pequeñas comunidades ficcionales (LADDAGA, 2006) se planifican res-
petando ciertos principios y activando dinámicas (de encuentro, convivencia y tras-
lado), pero de ningún modo pueden mantener estructuras fijas. Por tratarse de pro-
cesos experimentales, abiertos, y cooperativos que van capitalizando singularidades
sin anular las distancias, mantienen procesos fluctuantes y diversos. Se parte de una
idea, se la va consensuando, el orden está sujeto al bien común, pero manteniendo
y respetando los intereses individuales. Estar abierto a lo que acontece, capitalizar lo
que pueda ir sumando al proyecto en el proceso es parte constitutiva de las lógicas
de producción. Estar atentos a, al igual que en la vida misma, estar abierto a la diver-
gencia, sumar capas de sentido (campo ampliado).
El bordado como experiencia colectiva habilita la palabra, el diálogo, la refle-
xión, la búsqueda del apoyo fraterno. Dentro de las búsquedas hicimos un releva-
miento de cómo el bordado fue un punto de resistencia en distintos momentos de
la historia de las luchas femeninas, se bordaron pañuelos pidiendo por la aparición
con vida (madres y abuelas de Plaza de Mayo), se bordaron pañuelos denunciando
femicidios (Bordamos por la Paz), se bordaron pancartas con reclamos de derechos
(Sufragistas), en todas estas experiencias la palabra se volvió testimonio, memoria y
denuncia. La palabra bordada tiene relieve y a su vez laborioso tiempo invertido con
aguja e hilo lacerando la tela para no borrarse nunca más.
Entendimos que la palabra bordada no es la única en esa experiencia de bor-
dado, emerge también la palabra que se intercambia en esos diálogos en los que el
colectivo se reúne. Cada bordado es el fruto de un diseño gráfico después de varios
momentos de reflexión para transmitir alguna idea. Esa es la dinámica de Bordadoras
en el Museo. Nuestros bordados son modos de pensar el mundo. En cada proceso de
producción hay una historia que se cuenta y que fue concebida para ese fin. Bordar
es incidir con aguja, anudar y dibujar con hilos, imaginar resultados, sentir con otras,
compartir.
94 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

Bordar en un proyecto colectivo es una experiencia rizomática: sin duda, surge


en cualquier momento y cualquier lugar, con consecuencias inesperadas, con apertu-
ra de vínculos que, por arbitrarios que parezcan, se vuelven importantes. Cada cone-
xión que establece el colectivo abre a una nueva posibilidad, da lugar a lo inesperado,
a lo múltiple a lo diverso, al vínculo infinito con otros, entre nosotras, imposible de
medir y de transmitir. La experiencia es intransferible, se puede contar, se puede
describir, pero nunca sustituye ese momento preciso en el que ocurre.
El bordado en sí se transporta fácilmente y se puede retomar sin dificultad en
cualquier momento del día. La transmisión de conocimiento se hace de unas a otras.
No distingue ni edades ni formación académica. Nos iguala en ese ritual de reunirnos
para bordar.

SOMOS NUESTRA MEMORIA


La convocatoria Tramações: a memória e o têxtil despertó en mí una búsque-
da. Comencé a pensar una producción como dispositivo de reflexión visual a cerca de
la memoria. Emprendí un recorrido sobre la trama de la memoria en sus implicancias
para la vida cotidiana, en la trascendencia de lo que se transmite como un saber, y
por último el vestigio de lo material como indicio de un instante.
Nunca antes había relacionado el bordado con aquellas primeras experiencias
compartidas con mi madre cuando yo era una niña. Sus relatos sobre mi bis abuela,
una mujer muy poderosa, que bordaba como los dioses. Todas las piezas bordadas
por ella quedaron en mi poder porque mi madre consideró que yo era la única capaz
de valorarlas. El bordado es un claro ejemplo de una práctica que se trasmite de un
modo no formal e intergeneracional.
Antes de bordar recuperé todas las piezas heredadas, las inspeccioné una a
una. Traté de pensar sus diseños y sus lógicas. Sus colores, sus texturas, sus aromas
me remiten a un pasado en el que las mujeres de mi familia se juntaban a bordar.
Esta práctica ocupaba un doble rol en las señoritas de sociedad, la producción de
piezas para el ajuar y llenar un tiempo de esparcimiento dentro del hogar. Traté de
imaginar esas rondas de mujeres que alguna vez describió mi madre. Otra vez la tra-
ma de relaciones, de vínculos, de encuentros que producen sentidos, que transmiten
saberes. Otra vez el bordado es testigo, testimonio, huella de una comunidad que se
construye y manifiesta.
Como en la poesía de Borges, los recuerdos no son sucesos lineales, sino que
aparecen de modo espectral en la memoria, se mezclan, se unen, cambian con el
tiempo. Los objetos son despojos que el mismísimo tiempo nos deja. Nada tiene el
mismo significado para mí desde que mi madre no me recuerda. Hace algunos años
ella transita una enfermedad que va degradando su memoria. He pensado mucho
sobre la importancia que tiene la memoria y cómo su ausencia se vuelve un lugar
oscuro y difícil de asimilar.
Leí un reportaje a Galia González Rosas en el que ella decía que “aprendemos
a bordar cerquita de las mujeres, las observamos, nuestros cuerpos reconocen los
saberes de sus cuerpos, tratamos de imitarlas. Y aprendemos a través de los afec-
tos y del cuerpo, no de la palabra o de aquello que han nombrado «razón»”. Esa
OLVIDO 95

afirmación define de algún modo la acción de transmisión corporal y afectiva que nos
atraviesa en el bordado. Desde ese mismo lugar pensé el proceso de rescate emotivo
para construcción de esta pieza bordada, atesorando cada recuerdo de esos mo-
mentos compartidos con mi madre. Cada vez que trataba de imitarla, la admiración
que sentía por la prolijidad de sus puntadas, su amorosa voz tratando de enseñarme
cómo resolver una forma en la tela, nuestras conversaciones en torno a la técnica y
cómo ella misma aprendió con su abuela.
Elijo bordar sobre una pequeña pieza textil que alguna vez hiciera mi madre,
allí inscribo la palabra olvido. Aunque ella pierde cada día la capacidad de recordar,
nuestro afecto sigue intacto. Algunos días sus ojitos vidriosos no me conocen, hasta
que la nombro, me nombro, ese simple acto ilumina su cara con una sonrisa. En
algún lugar queda el registro de nuestros abrazos.
La decisión de incorporar palabras en el bordado recupera también su profe-
sión: maestra, lectora ferviente y escritora. Incorporar palabras se vuelve un impe-
rativo. Por la escala del soporte, todo debe resumirse en una sola palabra. La bús-
queda tiene que ver con lo que necesariamente pretendo evocar. Hago listas, busco
significados.
Releo a Borges y repito en voz alta: somos nuestra memoria. Todo cobra otro
significado, habla de fragmento de espejo roto, de formas inconstantes. ¿Será posi-
ble pensar que no queda nada ante el olvido?. Quizás el olvido se impone como una
cuchilla que fragmenta cada vez más esa quimera de la que habla Borges. Cuando
afirma que no está en los tiempos sucesivos sino en los reinos espectrales de la me-
moria confirma la posibilidad de que, en cada pieza bordada, en cada recuerdo, en la
ficción entremezclada del recuerdo se tramen nuevos significados para que el olvido
no pueda ganar esa batalla.
Si el significado de olvido pone en presente no recordar, esa acción involun-
taria que elimina recuerdos de nuestra memoria, es la palabra ideal para encarnar
lo que quiero simbolizar en esta obra. Ojalá se pueda detener el olvido y celebrar la
memoria.
Olvido cuenta un vínculo con mi madre y a su vez lo renueva. Ese pequeño
género sobre el que bordé con hilos y perlas me transporta a su juventud. Bordar
con perlas es un homenaje a lo que ella misma elegía como adorno. Me impongo un
cuidado extremadamente minucioso para no deteriorar esa frágil tela. Todo el pro-
ceso de bordado se vuelve una delicada acción en la que nada pasa a mi alrededor.
Esa pieza en mis manos me hace pensar en las suyas, en una operación similar.
Unir. Bordar. Cada puntada cuenta. No importa el resultado. Importa esa acción que
une dos tiempos.
El bordado es un medio de representación gráfica y el rescate simbólico de un
vínculo que creció compartiendo saberes (bordar, cocinar, amar).
Olvido busca atesorar cada instante como si fuera el último.
Detener el tiempo en cada puntada.
96 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

REFERÊNCIAS:

BORGES, Jorge Luis. Elogio de la sombra. Cambridge: Ediciones Neperus, 1969.

GONZALEZ Rosas, Galia. Bordar es resistir: Reflexiones feministas entre la aguja y el hilo.
Hysteria Revista, [s.l.], fev. 2020. Disponible en: https://hysteria.mx/bordar-es-resistir-refle-
xiones-feministas-entre-la-aguja-y-el-hilo/?fbclid=IwAR1mFp4a2NSYNngp-0zj07ZPv2Q0Nqq-
j4hYDlOd1OSU1gb_tWfkETL_Cxg8. Acesso: 30 ago. 2021.

LADDAGA, Reinaldo. Estética de la Emergencia. Buenos Aires: Ed. Adriana Hidalgo, 2006.
LEMBRE DE NÓS
Alanys M. Araújo1

Lembre de nós, tinta a óleo sobre tela, 20x30cm, Alanys Araújo, 2020.

“sei que alguém no futuro também lembrará de nós”2


Safo de Lesbos

Uma vez conversei com um bom amigo sobre a falta que sinto de arte com nar-
rativas LGBTQ+, e que exploram mais do que o sofrimento histórico-cultural. Parece-
me que só somos interessantes para o público cisgênero e heterossexual quando nos
tornamos tragédias, quase como uma fetichização de nossa dor. Foi nessa conversa
que eu afirmei que iria produzir o conteúdo LGBTQ+ que eu gostaria de ver; não para
o olhar cis-hetero, mas para outras pessoas que, assim como eu, se encontram no
trânsito de sexualidades e gêneros que fogem do normativo. Eu iria produzir arte
queer e eu iria produzir arte sobre amor.
A palavra queer passou por diversas mudanças de significados ao longo dos
anos. Mesmo agora, os significados são múltiplos e dependem do contexto do tex-
to que o cita. Por causa disso, resolvi deixar explícito o significado ao qual estou
me referindo: aquele da Teoria Queer, de Teresa de Laurentis (2015), “diferente”,

1 Alanys M. Araújo é graduanda em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de


Pernambuco (UFPE), tem experiência na área de arte/educação em espaços não-formais e atua como
artista visual.
2 A tradução vem a partir do grego e foi cunhada por Guilherme Gontijo Flores que escreveu sobre
Safo de Lesbos no artigo “Entre metro e mantra: a poesia grega arcaica em tradução e performance
brasileiras” (FLORES, 2018).
98 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

“dissidente”, aquele que difere da heterossexualidade compulsória e da cisgeneri-


dade padrão. A associação da palavra queer com pessoas LGBTQ+ é relativamente
recente:

No último século, depois do notório julgamento e prisão de Oscar Wilde,


a palavra queer foi particularmente associada com a homossexualidade,
como estigma. Foi somente com o movimento de liberação gay dos anos
1970 que a palavra se tornou motivo de orgulho e uma marca da resis-
tência política. Da mesma maneira que as palavras gay e lésbica, queer
era uma contestação social, antes de ser identidade (LAURETIS, 2019, p.
397-398).

Quando li a chamada para a 3ª edição da exposição coletiva Tramações: a me-


mória e o têxtil, solidifiquei algumas certezas, sendo essas: que meu trabalho iria ser
íntimo, que seria sobre algo que me move, e que iria dialogar com qualquer pessoa
que ama alguém como eu amo. Se vivemos em um mundo “onde as imagens se
transformaram no produto mais essencial de nossa informação e conhecimento”
(DIAS, 2010, p. 282), então é importante que as imagens reflitam a diversidade das
pessoas e a realidade para além da cisheteronormatividade. Pessoas LGBTQ+ devem
produzir imagens e essas imagens devem estar disponíveis para serem vistas por
todos. Dias (2010, p. 282-283) fala que “a sexualidade é excluída na maioria das vezes
das discussões de diversidade na Arte/Educação; não há nenhum estudo em profun-
didade que trate da representação queer nos programas de arte visual”.
Foi abraçando meu processo de investigação na cultura visual, através da lei-
tura e produção de obras que abordam o amor LGBTQ+, que eu comecei a entender
a importância de uma representação sensível desse amor queer. É a a/r/tografia que
me apresenta as ferramentas necessárias para começar essa pesquisa, pois pode
ser uma abordagem de investigação que conecta as práticas do artista/pesquisador/
educador através da pesquisa-ação, onde a minha prática artística e minha pesquisa
são emaranhadas com minha vida e minhas experiências (DIAS; IRWIN, 2013).
Nas minhas investigações me deparei com Safo de Lesbos, poetisa grega que
viveu por volta de 600 A.C. Foi por conta dos rumores de seu envolvimento românti-
co e sexual com outras mulheres de seu círculo e dos fragmentos de poemas român-
ticos nos quais o eu-lírico deseja e encanta-se por mulheres que o termo “lésbica”
(mulheres que nasceram na ilha de Lesbos) tornou-se sinônimo para uma mulher
que se relaciona com mulheres (LEITE, 2017). Pouco de sua poesia sobrevive até
hoje, mas li livros que traduziam os fragmentos encontrados, e nenhum desses frag-
mentos capturou tanto minha atenção quanto o fragmento 147: “sei que alguém no
futuro também lembrará de nós”. É sobre isso que é arte, não é mesmo? Algo que irá
durar mais do que você. Uma memória sólida, palpável e permanente; que prova que
você existiu aqui, nessa terra. Passei muito tempo pensando quem era o “nós” desse
fragmento de Safo; pensei, se fosse eu… como eu seria lembrada? Com quem? Como
eternizamos nossos jovens LGBTQ+?
Quando se trata de memória, sempre me apego àquelas que me trazem se-
gurança, ternura e conforto. Decidi trabalhar com as tenras lembranças que me mo-
vem. Na obra Lembre de nós eu resolvi pintar uma manhã, minha imagem dormindo
LEMBRE DE NÓS 99

ao lado da mulher que eu amo, a luz do sol vinda da janela entrecortada pelas corti-
nas, a sensação da minha camisa de algodão mais confortável. É onde me sinto mais
segura, e é onde eu entendi plenamente do que Safo estava falando no fragmento
147: sim, alguém vai lembrar de nós no futuro (FLORES, 2018). Mesmo que não seja
de nossos rostos, lembrarão do nosso amor, e eu digo isso porque eu penso em todas
as mulheres que já amaram outras mulheres durante a história do mundo, e percebo
que, por mais que eu não me recorde delas em si, eu sinto o amor delas entrelaçados
com o meu amor pela pessoa dormindo ao meu lado. Até mesmo quando coloco
minha mão sobre a dela, eu sinto a familiaridade de vidas que eu não vivi.
Na obra, há duas pinturas conectadas por uma linha vermelha. São duas pin-
turas sobre duas telas separadas porque eu almejei uma representação tangente da
individualidade das pessoas retratadas ali. Eu e ela somos duas mulheres diferentes,
com vidas diferentes, mas que não deixam de estar conectadas o tempo inteiro (o
que eu ilustrei com a linha vermelha). Bordei essa linha vermelha diretamente na
tela, circulando nossos dedos mindinhos e nos conectando através da distância entre
as pinturas. Enquanto bordava, despejei todo meu afeto e carinho no ato, com o
mesmo cuidado com que toco nela. Contornei com linha o mindinho que geralmente
toco com meus dedos. O significado da linha vermelha varia de cultura para cultura,
mas o que eu invoco é uma lenda de origem chinesa:

[...] o akai ito ou “fio vermelho do destino” que diz que os deuses, no
momento do nascimento de uma criança, amarram em seu tornozelo
um fio vermelho, invisível para os humanos, que a ligará à pessoa que
está predestinada a ser sua alma gêmea [...]. Na lenda, este fio tem um
vínculo muito forte na ligação amorosa entre duas pessoas, até mesmo
porque o deus responsável por esta tarefa é conhecido como um an-
tigo deus lunar casamenteiro chamado YUÈ XIÀ LÄO RÉN ou YUÊ LAO
(NÚÑEZ, 2020, p. 56-57).

A conexão entre amor, memória e bordado me parecia óbvia. Tal como Eros1,
teci com esse fio vermelho nossa história, nosso desejo, nossas dores e acima de
tudo, nosso amor. Para que essa linha nos guiasse uma para a outra e que guiasse
outras como nós. Que essa linha estique e enrosque, mas nunca se parta. Quero que
quando eu me encontrar longe demais da mulher que eu amo, eu sinta o puxão des-
se cordão, e quero sempre saber o caminho de volta para ela. Que esse bordado faça
com que, mesmo depois que nossas mãos já não se encontrarem mais, depois que
nossos pés não trilharem o mesmo caminho, depois que as flores fizerem moradia
no meu corpo enterrado, alguém lembre de nós no futuro. Donna Tartt coloca esse
sentimento em palavras, escrevendo que “o que quer que nos ensine a falar com nós
mesmos é importante — o que quer que nos ensine a sair do desespero ao chamado
de um canto. Mas a pintura também me ensinou que podemos falar uns com os
outros através do tempo” (TARTT, 2014, p. 719).
Essa obra é como eu gostaria de conhecer arte queer nos museus, galerias e

1 Eros, filho de Afrodite, era o deus do amor erótico.


100 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

cinemas do futuro: uma coletânea de memórias de pessoas comuns, que sensibiliza


o olhar do espectador não pela tragédia de uma vida nas margens do heteronorma-
tivo, mas pelo atestado do multiculturalismo da humanidade. Provas de que pessoas
LGBTQ+ viveram e amaram.
Com essa investigação e criação eu esperava ter chegado a uma conclusão
mais sólida para quem era o “nós” do fragmento 147 de Safo (FLORES, 2018). Talvez
eu esperasse encontrar algum livro obscuro que contivesse uma tradução nunca an-
tes vista que complementasse esse fragmento; talvez eu estivesse esperando um
arqueólogo encontrar o resto de um manuscrito completo. De qualquer forma, não
encontrei as respostas objetivas. Em vez disso, ao pesquisar em diversas produções
artísticas sobre memória e pessoas LGBTQ+, apenas tive a certeza de que o que eu
sinto agora, esse amor maior-que-o-mundo-inteiro e essa vontade de criar — ao con-
trário do que parece às vezes — não é único. E é reconfortante saber disso. Saber
que pessoas se sentiram assim durante toda a história da humanidade e que se eu
souber onde procurar, posso encontrar as memórias de mulheres iguais a mim, e
posso dialogar com elas.
Pintando essa obra eu pude dialogar com mulheres que, como Safo, vieram
antes de mim e pediram para serem lembradas. O “nós” do fragmento 147 não pre-
cisa de esclarecimento, porque eu sinto em mim a resposta para o enigma desse
pronome. Quando escreveu isso, Safo estava se referindo a ela mesma, às outras
poetisas e artistas gregas, às mulheres de seu círculo as quais ela amava de todas as
formas em que se pode amar alguém e às mulheres que sonhavam em segurar as
mãos de outras mulheres.

REFERÊNCIAS:

DIAS, Belidson. Entre Arte/Educação multicultural, cultura visual e teoria queer. In: BARBOSA,
Ana Mae (org). Arte/Educação Contemporânea: consonâncias internacionais. 3. ed. São
Paulo: Cortez, 2010, p. 277-291.

DIAS, Belidson; IRWIN, Rita L (orgs). Pesquisa Educacional Baseada em Arte: A/R/Tografia. 1.
ed. Santa Maria: UFSM, 2013.

FLORES, Guilherme Gontijo. Entre metro e mantra: a poesia grega arcaica em tradução e
performance brasileiras. In: BROSE, Robert de (Org). Pervivência Clássica. Belo Horizonte:
Moinhos, 2018, p. 101-117.

LAURETIS, Teresa de. Teoria queer, 20 anos depois: identidade, sexualidade e política. In:
HOLLANDA, Heloísa Buarque de (org). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. 1.
ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 397-409.

LEITE, Letticia Batista Rodrigues. Safo de Lesbos: Ícone Lésbico?. In: SEMINÁRIO
INTERNACIONAL FAZENDO GÊNERO & WOMEN’S WORLD CONGRESSS,
n. 11 & 13, 2017, Florianópolis. Anais [...]. Disponível em: http://www.
en.w wc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1503336042_ARQUIVO_
LEMBRE DE NÓS 101

Texto_completo_MM_FG_letticiabrl.pdf. Acesso em: 20 fev. 2021. p. 01-08.

NÚÑEZ, Rodrigo. Meus Pequenos Fantasmas como Documentos de Trabalho. Revista-Valise,


Porto Alegre, v. 9, n. 16, p. 55-74, dezembro de 2020.

TARTT, Donna. O Pintassilgo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
ELO: UM RECORDAR DO TEMPO
Carolina Alexandre da Mota2

Elo, técnica mista sobre algodão cru, 28 x 39 cm, Carol Mota, 2020.

2 Graduanda de Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco. Fotógrafa


e Artista Visual. Bolsista pelo Programa Institucional de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação da
profª Drª Maria Betânia e Silva.
ELO 103

A vida seguia mansa, era mais um final de semana quente. A fim de


quebrar a monotonia dos dias úteis, tivemos a oportunidade de experi-
mentar e viver nossa inventividade. O tempo, esse corria a nosso favor,
cheio de brechas livres que aos poucos fomos preenchendo com tentati-
vas, recortes, cola, barbantes, linhas e nós. Ela tirou uma ideia de dentro
de uma de minhas gavetas e me instigou o pensar, me fez recordar que
a muito tempo esse objeto de formato de coração estava parado, a po-
eira parecia ser sua companhia de muitas horas e isso me inquietou.
Precisava fazer esse coração de matéria mista voltar a “bater”. E assim
fomos juntas criando uma teia onde ele iria ficar pendurado, a fim de se
movimentar e sempre que eu perdesse meu olhar, lembrar o que simbo-
licamente representava, camadas de memória que fomos construindo
juntas. Aos poucos o pulsar voltou, a cor voltou, a vida em movimento
surgiu. Eram quatro mãos, duas muito mais maduras e vividas, o outro
par cheio de vontade e euforia. E juntas demos um novo sentido para
aquele coração empoeirado e fomos atravessadas por uma memória de
uma vida inteira que no exato momento que terminamos foi o insight
para a construção de Elo.
É sobre o afeto que nos circunda, sobre essa relação de cri(ação)
que está presente conosco, além é claro do fortalecimento de nossa
trajetória e amor as nossas vivências, Elo é a materialização de forma
simbólica sobre a relação de mãe e filha.

Há algum tempo que venho pesquisando sobre a história de minha família


materna. O recorte temático era a relação de minha mãe e tias com a minha avó
Luiza, que infelizmente não conheci em vida. Busquei encontrar as pistas sobre
como isso reverberou na minha criação e consequentemente na trajetória que op-
tei por seguir através/com artes visuais. Foi através dessa investigação que pude
alinhavar minhas ideias e materializar vontades. Dentre as pistas que encontrei
estão o contato com a costura, o bordado, o crochê como algo presente na infância
de minha mãe e tias.
Ainda durante a idealização, fiz o convite formal para que minha mãe viesse
construir uma costura à quatro mãos. Contei a ela o percurso do meu insight e juntas
concordamos em fazer algo que ainda habitava no plano das ideias. E a partir desses
fios de passado/presente/futuro fui puxando e modelando a proposta artística.

PONTOS DE PARTIDA, MEIO E FIM... TODOS SÃO CAMINHOS


Estive diante do imprevisível, e apesar da certeza do recorte que queria apre-
sentar, ainda não era nítido como materializar. O processo de construção da obra
era uma incógnita em meio a imensidão de caminhos e possibilidades e “além dos
impulsos do inconsciente, entra nos processos criativos tudo o que o homem sabe,
os conhecimentos, as conjecturas, as propostas, as dúvidas, tudo o que ele pensa e
imagina” (OSTROWER, 2016, p. 55).
Através dos diálogos, entre o presente e o passado, fui conectando pontos
que tínhamos em comum. A relação com o tecido era um elemento que lembrava a
relação de minha mãe com minha avó. O tecido nos atravessa de formas distintas,
porém era presente em nossas relações com nosso fazer artístico. Sobre essas cone-
xões que aos poucos iam sendo construídas e dando corpo a obra, Ostrower (2016,
104 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

p.20) comenta sobre as associações, as conexões que vamos fazendo entre os pontos
durante o processo criativo que “apesar de espontâneas, há mais do que certa coin-
cidência no associar, há coerência”.
Optei pela utilização do tecido de algodão cru para a base, seria a folha em branco
onde iríamos colorir com nossas ideias. Uma outra característica, que quis trazer para a
obra foi a técnica do bordado. Pedi para minha mãe compartilhar comigo, ensinando-me,
pois queria que fosse uma característica presente, a ideia de continuidade e de herança.
A memória era uma base “sólida” que alicerçava todas as outras camadas que
aos poucos iam sendo integradas e assim construindo a obra. No movimento da agu-
lha, por exemplo, a depender do tipo de ponto que será aplicado, ela pode sair em
distintas direções. Às vezes retorna ao ponto de partida, se distancia, move-se de for-
ma circular. Mas apesar de seguir diferentes caminhos ela ainda está na construção
de uma única obra. No final, ao encarar o bordado, percebemos a multiplicidade de
caminhos percorridos. Todo esse movimento demarcado através da linha, associo ao
próprio movimento que a mente faz para resgatar as memórias e lembranças. Sobre
isso, é relevante apresentar Candau:

As relações de si para si mesmo, o trabalho de si sobre si mesmo, a


preocupação, a formação e expressão de si, supõem um trabalho da
memória que se realiza em três direções diferentes: uma memória do
passado, aquela dos balanços, das avaliações, dos lamentos, das funda-
ções e das recordações; uma memória da ação, absorvida num presente
sempre evanescente; e uma memória de espera, aquela dos projetos,
das resoluções, das promessas, das esperanças e dos engajamentos em
direção ao futuro. [...] a relação que temos com o tempo é tridirecional
(CANDAU, 2019, p. 60).

Desejava ver essa materialidade pronta, na certeza de que sempre que a gente
parasse para contemplá-la, pudéssemos voltar ao instante em que a idealizamos,
pois “através da memória o indivíduo capta e compreende continuamente o mundo,
manifesta suas intenções a esse respeito, estrutura-o e coloca-o em ordem (tanto no
tempo como no espaço) conferindo-lhe sentido” (CANDAU, 2019, p. 61).
Os diálogos eram disparadores de memórias. Durante o bordar junto, compar-
tilhamos lembranças. Na companhia uma da outra, surgiam os símbolos, estes iam
sendo incorporados a nossa produção.

Como o próprio viver, o criar é um processo existencial. Não abrange


apenas pensamentos nem apenas emoções. Nossa experiência e nossa
capacidade de configurar formas e de discernir símbolos e significados
se originam nas regiões mais fundas de nosso mundo interior do sensó-
rio e da afetividade, onde a emoção permeia os pensamentos ao mesmo
tempo que o intelecto estrutura as emoções (OSTROWER, 2016, p. 56).

Percebi o quanto nós tínhamos uma relação estreita com a experimentação a


partir de outras produções artísticas que fazíamos em paralelo. O desvio do comum
é algo que estávamos habituadas a realizar e que deveria estar presente neste pro-
cesso, era nossa identidade.
ELO 105

Ainda nas etapas iniciais, tinha pensado fazer alguns registros fotográficos.
Para no futuro acessar de forma mais aprofundada e completa todo nosso processo.
Na verdade, não só nós, mas toda a família. Nosso objeto biográfico1 representava
nossa experiência vivida (BOSI, 2003).

A FOTOGRAFIA: UM ATO POÉTICO DO OLHAR2


Mãos em movimento e em sintonia com o olhar. Atento, borda e segue o ca-
minho do desenho no tecido, vai preenchendo e dando volume aos poucos. A visão
fotográfica, de forma simultânea, também acompanhava o processo. Focar, recortar
e paralisar o instante, continuar e recortar mais um tempo. Existiam ali muitos olha-
res, da fotógrafa, da filha, do equipamento, da mãe e de todas as que nos guiaram
até aquele instante. Sobre a construção da imagem é importante citar Flusser:
O caráter mágico das imagens é essencial para a compreensão das suas
mensagens. Imagens são códigos que traduzem eventos em situações,
processos em cenas. [...] elas substituem eventos por cenas. E tal poder
mágico, inerente à estruturação plana da imagem, domina a dialética
interna da imagem, própria a toda mediação, e nela se manifesta de
forma incomparável (FLUSSER, 1985, p. 7).

Ter esse processo documentado em imagens servia para apresentar de forma


mais completa esse recorte da nossa história. Eram nessas etapas de elaboração, de
diálogos, de ensinar e aprender que continha o verdadeiro significado de Elo. O pen-
samento que me atravessa durante a elaboração da obra era que seu real significado
estava no processo, não buscava chegar ao fim. Eu queria viver o momento, viver o
sentimento de fazer algo juntas, esse era o objetivo principal.
Através das fotografias pude notar a semelhança de nossas mãos e lembro
da frase dita por minha mãe: “o punho fechado é a medida do coração da gente”.
Estávamos literalmente colocando nosso coração na obra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eram muitas incertezas sobre como materializar o processo. Os diálogos, aos
poucos, foram dando pistas do caminho a ser construído e tudo ia se encaixando e
criando harmonia. Dúvidas faziam parte e sempre apareciam, mas estávamos sujei-
tas a isto quando nos propomos a vivenciar a experimentação.
Um ponto que se aprende, uma cor, uma direção marcada à lápis no tecido.
Formas, volumes e significados. O tempo na maioria das vezes corria sem perceber,
mas os olhos denunciam o cansaço. Enquadrar e tentar guardar o instante para um
futuro reviver. O momento. A história. E o que tudo representa/ou.
Mãos em poesia bordando sentimentos.

1 O termo “objeto biográfico” refere-se a objetos que envelhecem com o possuidor e se incorporam à
sua vida: o relógio da família, o álbum de fotografias, as medalhas do esportista, a máscara do etnólogo,
o mapa-múndi do viajante (BOSI, 2003, p. 26).
2 Referência a frase escrita no poema de Manoel de Barros, do livro Menino do Mato.
106 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

REFERÊNCIAS:

BOSÍ, Ecléia. O Tempo Vivo da Memória: Ensaios Sobre a Psicologia Social. São Paulo: Ed.
Ateliê editorial, 2003.

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. São Paulo: Ed. Contexto, 2019.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processo de Criação. Petrópolis: Ed. Vozes, 2016.

FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. Ed. Hucitec: São Paulo. 1985.
AVESSO: OBJETO AUTOBIOGRÁFICO TÊXTIL
Ingrid Borba3

Avesso, Videoperformance, Ingrid Borba, 2020.


https://www.instagram.com/p/CIlC0wjluKz/

A MEMÓRIA COMO FIO CONDUTOR DA FORMA


Construir formas para memórias autobiográficas da infância, sob o suporte
material e simbólico das linhas, agulhas e tecidos, foram os pontos instigadores para
a produção da poética chamada “Avesso”. Esta produção esteve imersa conceitual-
mente no campo das práticas contemporâneas em arte têxtil e nos estudos de Fayga
Ostrower (2014) sobre processos de criação e criatividade. Utilizando os conceitos
delineados pela autora como: percepção, forma, memória e sensibilidade, pude
constituir um referencial teórico reflexivo sobre o percurso estético escolhido de ma-
neira sensível-consciente (OSTROWER, 2014).
Avesso é uma videoperformance, com 10 minutos de duração, onde interve-
nho com linhas vermelhas o avesso do meu primeiro vestido de festa. Após esse
processo, desmancho, com uma tesoura, todo o bordado que cuidadosamente havia
feito. Intencionando, assim, ressignificar o vestuário considerado adequado para o
gênero feminino através da prática do bordado como um suporte subversivo.
A partir dessa prática artística percebi que estava criando formas e imagens
poéticas que partilham e produzem sentidos. Estes transitam em contextos culturais

3 Artista, professora de artes visuais e mestranda do programa associado de pós-graduação em Artes


Visuais UFPE/UFPB, onde desenvolve a pesquisa "Alinhavar: Poéticas Têxteis e Narrativas Docentes
sobre Gênero e Sexualidades". Esse artigo é parte integrante da investigação em andamento.
108 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

e subjetivos, nos quais faço parte, proporcionando outras formas de experienciar


o estético, o poético e o criativo. As poéticas criativas representam nossas estru-
turas, percepções e condições que são refletidas por formas ao criarmos. Segundo
Ostrower, o ato criador

é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qual-


quer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse “novo”, de novas co-
erências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacio-
nados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador
abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez,
a de relacionar, ordenar, configurar, significar (OSTROWER, 2014, p.9).

Durante o processo de criação, rememorei experiências e objetos autobiográ-


ficos a partir de memórias e vivências que despertaram outros meios de interpretar
conhecimentos, fenômenos, expectativas, medos e desejos. Essas lembranças foram
registradas, inicialmente, em uma série de pequenas anotações que se desdobraram
na videoperformance Avesso. Com essa poética, costurei maneiras de narrar.
Fayga Ostrower (2014) aponta que, durante o processo de criação, as orde-
nações perceptivas das formas possuem características tanto conscientes quanto
intuitivas. Seria pela intuição que inicialmente delimitamos as nossas escolhas nas
diversas possibilidades de criação e, após esse processo, as nossas decisões, dentro
do trabalho criativo, se tornariam conscientes. Essas mesmas decisões estabelecem
uma relação conosco de maneira lógica, cujo ponto de ligação, segundo a autora,
seria a percepção de nós mesmos.
A percepção de si atua como potencial criador transformando o mundo físico,
os contextos e as condições culturais às quais pertencemos. Para Ostrower, somente
quando há a integração intencional dos processos intuitivos, conscientes e da sensi-
bilidade, como um meio de “elaboração mental das sensações’’ (OSTROWER, 2014,
p. 12), é que podemos falar de criação. Deste modo, a criatividade estaria presente
em qualquer atividade que seja significativa e produza sentidos para o indivíduo.
A partir dessas premissas conceituais, percebi que um outro ponto relevante
para a produção criativa seria a memória. A partir dela podemos investigar o que já
se passou e reinterpretar nossas experiências para aquilo que intencionamos fazer
no presente. Nas nossas memórias, podem residir intuições criativas que agem de
maneira simbólica e que ampliam nossa consciência “para as mais complexas formas
de inteligência associativa, empreendendo seus voos através de espaços em cres-
cente desdobramento, pelos múltiplos e concomitantes passados-presentes-futuros
que se mobilizam em cada uma de nossas vivências” (OSTROWER, 2014, p. 19). Foi
na percepção de si e no fluxo entre os passados-presentes-futuros, que decidi criar a
partir das minhas memórias e narrativas da infância. Busquei produzir sentidos sobre
a formação das subjetividades do gênero feminino com a minha narrativa.
O meu aniversário de 1 ano de idade foi um dia muito importante para minha
família, 10 de maio de 1994, pois sou a primeira neta dos meus avós e filha única.
Minha mãe sempre me relata como organizou todo o evento comprando os doci-
nhos, arrumando as lembrancinhas, planejando a mesa do bolo e a caixa onde foram
AVESSO 109

depositados os presentes que ganhei. Nesses relatos há sempre um destaque princi-


pal para a escolha do meu vestido de festa. Foi encomendado em uma loja de roupas
infantis e chegou dentro de uma caixa muito bonita embalada com papel vegetal.
Todo o meu vestuário da infância foi doado para outras crianças, mas o vestido do
meu aniversário ficou guardado durante 27 anos. Possuo as fotografias, as memórias
da minha família e o vestido como registros físicos do evento. Ao revirar essas lem-
branças, consigo sentir toda a energia do afeto envolvida nos relatos familiares ao
me presentearem e me vestirem.
No percurso criativo, relacionei essa narrativa com o conceito de memória
descrito por Ecléa Bosi (1994). A autora fala sobre como funcionam as nossas lem-
branças. Muitas não são originais ou puras, mas sim permeadas pelo passado de
outros sujeitos nos espaços coletivos com os quais convivemos: a escola, a família, a
cidade, a casa, o quintal da avó…. Estes constituem nossos aspectos autobiográficos
e subjetivos. Dentro desses espaços, geralmente vividos na infância, encontramos
os “Objetos Biográficos”, aqueles que perdem seu caráter de mercadoria do capital
e passam a representar experiências vividas, incorporando-se simbolicamente à vida
do seu dono. Despertando assim, relações que ultrapassam as formas estéticas e
utilitárias tornando-se relíquias que compartilham nossas vivências e identidades.
Segundo Ecléa, esses artefatos apresentam a seguinte distinção:
Há objetos como os talismãs, cobertas de pele e cobres blasonados, te-
cidos armoriais que se transmitem solenemente como as mulheres no
casamento, os privilégios, os nomes às crianças. Essas propriedades são
sagradas, não se vendem, nem são cedidas, e a família jamais se desfaria
delas a não ser com grande desgosto. O conjunto dessas coisas em todas
as tribos é sempre de natureza espiritual (BOSI, p. 442, 1994).

Em diálogo com Bosi (1994), percebo que meu vestido de 1 ano é um objeto
biográfico têxtil, que carrega relatos e aspectos da minha autobiografia feminina. Os
tecidos e linhas que formam nossos vestuários têm tanto a função de nos proteger,
como também de nos demarcarem socialmente dentro do gênero. Deste modo, com
essa poética, quis problematizar as variedades de modelos definidos, pela cultura
e indústria, como adequadas para delimitar o feminino: saias, calcinhas, sutiãs e
vestidos.
O vestido escolhido para mim na infância possui todas essas características ma-
teriais e conceituais explicitadas, além de carregar grande valor afetivo e simbólico.
Porém, ao revisitar aspectos da minha subjetividade feminina, relembrei momentos
em que me senti desconfortável ao usar vestidos. Na fase adulta, em várias ocasiões
não me senti segura ao usar saias e acabei escolhendo usar calças. Com essa percep-
ção, resolvi reconciliar meu desconforto com a materialidade e funcionalidade das
roupas consideradas femininas e ressignificar esse objeto autobiográfico têxtil.
A lembrança e escrita desses relatos mais a sua contextualização teórica repre-
sentou a primeira parte da criação poética. A outra etapa esteve ligada ao estudo das
práticas contemporâneas em arte têxtil. Sobre esse aspecto, estudei modos e alter-
nativas para contar a narrativa em imagens, optando por uma videoperformance do
processo de bordado e depois seu desmanche.
110 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

O POTENCIAL EXPANDIDO DAS FORMAS TÊXTEIS


Ao investigar referenciais contemporâneos sobre a arte têxtil, me deparei com
o investimento desta prática no campo expandido da arte a partir da adaptabilidade
e versatilidade material que os tecidos e as linhas carregam, desdobrando-se assim
em muitas possibilidades criativas.
Na contemporaneidade, muitos coletivos, grupos e artistas têm investido nas
categorias simbólicas, históricas, essenciais e moldáveis que as linhas e os tecidos
possuem para a arte. O tecer, por exemplo, é uma atividade artística conhecida por
sua ancestralidade histórica e manual. Encontra-se muito presente no cotidiano as-
sociando-se, muitas vezes, aos ambientes domésticos. O estudo do campo do têxtil,
no entanto, se estende desde de práticas artesanais, estudo de fibras, feituras indí-
genas, história da moda e do design, até as práticas de ativismo político feminista.
Essa tendência artística possui uma vinculação próxima ao gênero feminino,
pois constitui uma prática que, em um determinado momento histórico, foi desti-
nada à educação das mulheres. Na atualidade, trabalhar com tecidos e linhas ainda
carrega concepções binárias de gênero, juízos de valor estético, entre artesania e
obra de arte, como também concepções de processos desprovidos de reflexão criati-
va e de gosto inapropriado. Assim, a atividade têxtil caminha por espaços de conflito
e dissensos entre as relações de gênero e os valores estéticos e culturais. Sobre essa
questão Luana Saturnino Tvardovskas (2015) afirma que:

A tapeçaria, arte têxtil de grande complexidade, longe de se constituir


um campo menor, foi considerada por diferentes culturas e épocas como
uma elaborada expressão do pensamento e desejos humanos – sendo
até mesmo produzida por homens, por exemplo na França no perío-
do gótico. Para as mulheres na contemporaneidade, essa prática têxtil
conjuga experiências pessoais e familiares a significados simbólicos e
míticos, com os quais artistas moldam aspectos subjetivos. Desta forma,
não se trata de afirmar uma visão essencialista (mulheres expressam-se
por meio de tecidos, por sua delicadeza e destreza, imitando a nature-
za), mas de observar como essas poéticas investem na transformação e
elaboração dos enunciados sociais (TVARDOVSKAS, 2015, p. 185).

O objetivo desses investimentos poéticos não seria então reafirmar o papel


das mulheres junto a essa produção relegada a este gênero, mas problematizar por
meio do têxtil os enunciados relativos ao feminino. Assim, a arte têxtil contempo-
rânea se torna subversiva, pois cria de espaços de resistência micropolítica do devir
que aspira uma transformação de enunciados estéticos, políticos e sociais para o
gênero feminino.
Nesse contexto, a ascensão das práticas têxteis negociam por espaços nos sis-
temas das artes, intencionando dar visibilidade a autobiografias como outros modos
de produzir enunciados culturais através das estéticas das existências. Essas práticas,
partem de uma compreensão do corpo como um local conjugado às subjetividades
de gênero e identidades. Desse modo, conferem outras interpretações de represen-
tação da feminilidade em negociação com modelos que associam o feminino aos
espaços privados, domésticos e comedidos.
Este processo pode ser assimilado como uma percepção de si que busca expor
AVESSO 111

aspectos suprimidos nas esferas públicas do saber e do poder, dentro de uma ex-
periência de criação artística. Anteriormente comentado, é com a percepção de si,
que nos processos de criação podemos atuar modificando os contextos culturais e
normativos aos quais pertencemos:

Ao se tornar consciente de sua existência individual, o homem não dei-


xa de conscientizar-se também de sua existência social, ainda que esse
processo não seja vivido de forma intelectual. O modo de sentir e de
pensar fenômenos, o próprio modo de sentir-se e pensar-se, de viven-
ciar as aspirações, os possíveis êxitos e eventuais insucessos, tudo se
molda segundo ideias e hábitos particulares ao contexto social em que
se desenvolve o indivíduo. Os valores culturais vigentes constituem o
clima mental de seu agir. Criam as referências, discriminam as propos-
tas, pois, conquanto os objetivos possam ser de caráter estritamente
pessoal, neles se elaboram possibilidades culturais. Representando a
individualidade subjetiva de cada um, a consciência representa a sua
cultura (OSTROWER, 2014, p. 16).

Tal direcionamento de criação estética, também pode ser situado como es-
tratégia política contra o apagamento feminino na história da arte. Esse posicio-
namento foi adotado por estudiosas e artistas da segunda onda dos movimentos
feministas.
É importante salientar que, durante o século XIX as perspectivas naturalistas
classificavam que existiam duas espécies de seres humanos baseadas em habilidades
diferentes. Os homens representariam a razão e a inteligência, já as mulheres repre-
sentariam a emoção e a fragilidade. As sociedades modernas foram construídas sob
as bases dessas dicotomias entre sexos: razão/ emoção, público/privado, masculino/
feminino entre outros. Segundo a pesquisadora Tânia Navarro- Swain, é a partir do
conceito de diferença que “o indivíduo não é mais mestre do seu processo de subje-
tivação, pois seu ser já é determinado pela essência que se lhe constrói. É assim que
os corpos se tornam a marca exterior da identidade social para exprimir a diferença”
(NAVARRO, 2013, p 52).
A naturalização das diferenças de gênero, pautada num contexto de inferiori-
dade/superioridade, produz verdades que caracterizam sentidos de dominação, de
ordem biopolítica e de controle dos corpos. A naturalização da diferença entre os
sexos tenta esconder as diversidades e dobras das relações humanas e dos papéis
históricos.
Anteriormente pontuado, é na segunda onda do movimento feminista, em
meados do século XX, que a teoria crítica feminista irá permear as discussões entre
os artistas e o seu papel político na sociedade. Historiadoras, artistas e pesquisado-
ras mulheres trouxeram à tona as narrativas históricas e as distribuições de poder
nos sistemas das artes, a vasta maioria dos atores, nestas relações, eram homens.
Os discursos produzidos na arte e na história da arte são referentes a um “nós” do
gênero masculino. A esse “nós” foi atribuído um status de sujeito político, histórico
com lugar de fala e autoridade. Desta forma, instituem-se narrativas contornadas por
binarismos estruturais de superioridade/inferioridade entre sexos que justificaram
as práticas de exclusão feminina.
112 A MEMÓRIA E A ANCESTRALIDADE

A presença feminina na história da arte ainda é uma questão de invisibilidade


discursiva e imagética. E para alcançar esse objetivo pesquisadoras, artistas, ativistas
e estudiosas feministas passaram a romper com as convicções em relação à neu-
tralidade, objetividade e racionalidade na produção de verdades científicas. Sendo
necessária a construção de uma nova memória social que também estivesse ligada a
narrativas de vida onde fosse ultrapassada a compreensão do mundo por binarismos
sexuais.
Sob esse referencial teórico e com essa intenção poética, pesquisei e tive como
referências artísticas mulheres que trabalhassem questionando e transformando os
enunciados estéticos, políticos e sociais para o gênero feminino com a arte têxtil de
maneira subversiva. Nessas linhas de criação, meus referenciais imagéticos foram:
Suzanna Scott e Louise Bourgeois.
Suzanna Scott é uma artista americana que trabalha com temas ligados ao
feminismo, ao corpo, suas representações nos espaços e esferas do poder. A artis-
ta possui uma série chamada Coin Cunts (2015-2018) que retrata a apropriação e
acumulação de bolsinhas de tecido utilizadas para guardar moedas. Ela as recostura
pelo avesso e as transforma em vaginas. O trabalho reflete o corpo a partir de um
objeto corriqueiro invertendo seu interior e demonstrando assim relações de poder
econômico em relação aos corpos femininos em contraste com suas singularidades
narrativas.
Louise Bourgeois foi uma artista que trabalhou com a desnaturalização dos
discursos históricos de silenciamento do feminino a partir das relações entre a sexu-
alidade e a memória. A obra “Pink Days and Blue Days” (1997) remete a um armário
onde estão penduradas roupas de crianças nas cores rosa e azul, como também rou-
pas íntimas de adultos confeccionadas com rendas e tecidos que remetem a sensua-
lidade. O trabalho fala das suas próprias memórias conturbadas da infância, além de
procurar desconstruir imagens estabelecidas para a feminilidade.
Ambos os trabalhos representaram diálogos imagéticos e referenciais para
produção poética porque problematizam os discursos metanarrativos do gênero
feminino e expõem aspectos subjetivos e autobiográficos como potencial de cria-
ção que carregam outras possibilidades de constituição histórica e cultural. Como
também, em sua elaboração material, ampliam a percepção de como trabalhar os
objetos têxteis os introduzindo para o campo expandido da arte, representando,
dessa forma, esse contexto de relações onde são rompidos os limites da experiência
estética e da classificação do objeto artístico.
Assinalo então, a poética Avesso, diante dessas condições teóricas e práticas,
decidindo registrá-la em uma videoperformance como ritual simbólico de cuidado
do vestido, costura e corte. Nesse processo trago memórias que ordenam percep-
ções sensíveis se entrelaçando nos demarcadores de gênero feminino, na identidade
e na autobiografia.
A videoperformance como forma de registro artístico, aliada às costuras das nar-
rativas têxteis, apresenta-se como um processo criativo onde “a arte funciona como
término provisório de uma rede de elementos interconectados, como uma narrativa
que prolonga e reinterpreta as narrativas anteriores” (BOURRIAUD, 2009, p 16).
AVESSO 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao dar forma à poética Avesso e percorrer suas etapas criativas, acredito que
estive produzindo cartografias do saber artístico que transitam nas práticas têxteis
e suas relações com a memória. A partir de duas artistas que trabalham com o têxtil
e de marcos conceituais dos estudos de arte, gênero e feminismo, intencionei criar
uma poética que a reelaborasse um devir feminino que se reconcilia com demarca-
dores do gênero feminino.
O processo mostrou-me que ao seguir por esse caminho criativo me situo na
percepção de si como potencial transformador de contextos culturais, ao relembrar
os fluxos dos passados-presentes-futuros. Trata-se de uma possibilidade artística que
se imbrica com formas de vida, onde posso produzir singularidades a partir de obje-
tos que fazem parte do meu cotidiano, das minhas lembranças e narrativas. Constitui
assim um processo que não se fecha com essa poética, mas se abre para outros
potenciais criadores.

REFERÊNCIAS:

BOSI, Ecléia. Memória e Sociedade: lembrança dos velhos. 3.ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo.


Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BOURGEOIS, Louise. Pink Days and Blue Days. 1997. Escultura. Disponível em: https://whit-
ney.org/collection/works/11513. Acesso em: 25 fev. 2021.

NAVARRO, Tânia S. A história é sexuada. In: RAGO, M.; MURGEL, Ana Carolina A. T. Paisagens
e Tramas: o gênero entre a história e a arte. São Paulo: Intermeios, 2013.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. 30. ed. Petrópolis: Editora Vozes,
2014.

SCOTT, Suzanna. Coin Cunts. 2018. Instalação na parede de bolsas de moedas costuradas ao
avesso. Disponível em: https://suzannascott.com/projects/coin-cunts. Acesso em: 25 fev.
2021.

TVARDOVSKAS, L. S. Dramatização dos corpos:  Arte contemporânea e crítica feminista no


Brasil e na Argentina. São Paulo: Intermeios, 2015.
A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES
UM CORPO DE FALTAS E DE SOBRAS:
“QUEM TORNOU MASCULINO O
CORPO INFANTIL DO MENINO”
João Paulo Baliscei1

Quem tornou masculino o corpo infantil do menino?, bordado sobre fotos, 1,10cm x 0,60cm,
João Paulo Baliscei, 2019.

1 Doutor em Educação (2018) pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Maringá


com estudos na Facultad de Bellas Artes/ Universitat de Barcelona, Espanha. É professor no curso de
Artes Visuais na Universidade Estadual de Maringá e coordenador do Grupo de Pesquisa em Arte,
Educação e Imagens - ARTEI. Desenvolve pesquisas sobre Educação, Arte/ Ensino de Arte; Estudos
Culturais; Estudos da Cultura Visual; Visualidades; Gênero e Masculinidades. É artista visual e produz a
partir de temas como Infância, Gênero e Masculinidades.
116 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

“O CALIFA TÁ DE OLHO NO DECOTE DELA”: QUEM OLHA E QUEM É OLHADO


Há, dentre tantas fotos da minha infância, uma que aciona em mim signifi-
cados especiais sobre a criança que eu fui e o adulto que me tornei; e ela guarda
relação com o trecho da música que eu trago para compor os títulos dos tópicos
deste artigo. A foto em questão, feita em 1998 numa cidade pequena do Paraná,
registra o momento em que eu, na época com aproximadamente nove anos, pulei
carnaval fantasiado de Jacaré2, o dançarino do grupo de É o Tchan!. Esse grupo de
axé baiano fez sucesso no Brasil, sobretudo na década de 1990, quando fora lançado
à população pela mídia televisiva com canções de teor erótico e de “duplo sentido”,
e com coreografias executadas por um trio constituído por duas dançarinas e um
dançarino. A fantasia da foto em questão imitava o figurino utilizado por Jacaré em
sua performance da música Ralando o Tchan (Dança do Ventre)3, a qual estabelecia
aproximações entre o Brasil e o Egito.
Ainda que o corpo dançante, adulto, negro e masculino de Jacaré possa ter
proporcionado às pessoas, naquela época, certo estranhamento, pois os movimen-
tos e a exposição sensual característicos do axé costumavam ser estritamente asso-
ciados à objetificação do corpo da mulher, considero que sua performance contribuiu
para provocar leves deslocamentos sobre a masculinidade hegemônica vigente na-
quele contexto.
Isso não significa que as músicas e coreografias de É o Tchan! transferissem
a objetificação do corpo da mulher para o do homem. A música Ralando o Tchan
(Dança do Ventre), por exemplo, indica o gênero do sujeito que olha e o gênero do
sujeito que é olhado. Trechos da música em questão, que anunciam que o “olhar do
califa” —um homem — volta-se para o “decote dela” (para o “biquinho do peitinho
dela” e para a “marquinha da calcinha dela”) — uma mulher — , insistem em loca-
lizar o homem como sujeito voyeur que satisfaz seus desejos na e pela exposição da
mulher. Correspondem, portanto, à análise do espanhol Paul Preciado4 (2020) que
destaca o prazer masculino de olhar sem ser visto.
Essa mesma direção unilateral anunciada pela música mencionada, na qual o
prazer sexual masculino se satisfaz a partir do olhar voyeurista, se repete em outras
produções de É o Tchan!, que mantêm uma hierarquia de dominação do homem em
relação à mulher, como nos trechos: “o samurai quer ver bumbum mexer”, “havaia-
na sobe [...] sacudindo as mamonas” e “joga ela no meio; mete em cima; mete em-
baixo”5. A rigidez das atribuições dadas para cada um dos gêneros também estava

2 O nome de registro de Jacaré é Edson Gomes Cardoso Santos (1972--).


3 Pelas relações que essa música guarda com as memórias que me impulsionaram ao processo de
criação tanto na Arte quanto na pesquisa, utilizei de sua letra para compor os títulos dos tópicos que
subdividem este texto.
4 Para dar visibilidade ao gênero e à origem dos/as autores/as, neste artigo, na primeira menção de
cada autor/a indico sua nacionalidade e seu nome completo.
5 Aqui, com essas expressões, me refiro, especificamente, às músicas Ariga Tchan, É o Tchan no Havaí
e Segure o Tchan cujas letras e clipes podem ser acessados nos links <https://www.letras.mus.br/e-
UM CORPO DE FALTAS E DE SOBRAS 117

explícita nas roupas dos e das integrantes do grupo e nas funções que desempenha-
vam em sua estrutura inicial: elas dançavam; eles cantavam; elas eram convocadas
pelos seus atributos físicos; eles faziam a convocação. E mesmo entre o trio dançante
— inicialmente integrado por Jacaré, Carla Perez (1977--) e Débora Brasil (1970--) e,
depois, em outras configurações, por Scheila Carvalho (1973--), Sheila Mello (1978--)
e outras dançarinas — os espaços e as performances desempenhadas por ele e por
elas eram sempre assimétricas e generificadas.
Se as letras das músicas pouco ou nada mencionavam acerca de Jacaré, não
economizavam em detalhes nas descrições estratégicas dos corpos femininos das
“loiras” e “morenas” “do Tchan!”, como, por exemplo, nos versos: “tem 60 de cintu-
ra (que gostosura), 105 de bundinha (que bonitinha)”6. Por vezes, inclusive, as mu-
lheres eram convocadas a performar de maneiras dirigidas e individuais, através de
frases imperativas, como “pegue no bumbum, pegue no compasso” e “alô loirinha,
ô loirinha, você sabe mexer; moreninha, moreninha, você sabe descer”7.
Reconheço ainda que os espaços que o grupo É o Tchan! ofereceu para Jacaré
podem reforçar estereótipos sobre o homem negro – denunciados, por exemplo,
pela australiana Raewyn Connell8 (1997), pelo britânico-jamaicano Stuart Hall (2016)
e pelo congolês JJ Bola (2020). Os pensamentos da autora e dos autores possibilitam
ler a representação e a performance de Jacaré — um homem negro, forte, com
corpo atlético e que dança seminu — como produto e produtor do estereótipo que
associa o homem negro ao fetiche sexual. Ainda que eu reconheça a legitimidade e
a potencialidade dessa leitura, optei, neste texto, por seguir com uma outra aborda-
gem — também possível. Intento, pois, chamar atenção para as maneiras pelas quais
Jacaré proporcionou fissuras, ainda que sutis, aos ideais de masculinidade vigentes
àquela época. Desempenhando uma função junto às mulheres; movimentando-se
como elas; e usando roupas justas e/ou mínimas semelhantes às delas, Jacaré aca-
bou proporcionando identificação para homens e meninos da década de 1990 que,
assim como eu, gostavam de dançar e que percebiam as faltas e sobras que constitu-
íam seus corpos masculinos.
A desestabilização que a performance de Jacaré proporcionou às referências
sobre masculinidade que eu tinha na infância e os fundamentos teóricos que, agora,
enquanto professor-pesquisador-artista-gay, me auxiliam a ler o mundo e a perce-
ber os deslocamentos identitários, permitiram-me enxergar as masculinidades como

o-tchan/98765/>, <https://www.letras.mus.br/e-o-tchan/98523/> e <https://www.letras.mus.br/e-o-


tchan/452879/>, respectivamente. Acessos em 02 de abr. de 2020.
6 Trecho da música A nova Loira do Tchan, cuja letra e clipe podem ser acessados no link <https://www.
letras.mus.br/e-o-tchan/98525/>. Acesso em 03 de abr. de 2020.
7 Trechos das músicas Pega no Bumbum e Dança do Põe Põe, cujas letras e clipes podem ser acessados
nos links <https://www.letras.mus.br/e-o-tchan/101388/> e <https://www.letras.mus.br/e-o-
tchan/162869/>. Acessos em 03 de abr. de 2020.
8 Ainda que na autoria de alguns artigos e livros a identificação de Connell seja indicada pelo nome
atribuído a ela em seu nascimento, em respeito à sua identidade de gênero, neste artigo utilizei
pronomes e substantivos femininos para me referir à autora, uma mulher transgênero.
118 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

identidades de projeto, isto é, que são (trans)formadas mediante à identificação, à


contestação e à negociação de significados. E também permitiram que eu me perce-
besse como sujeito ativo dessa significação. Dessa forma, reconhecendo o potencial
da Arte na reconstrução do sujeito e na transformação da memória, aqui adoto o
seguinte objetivo: apresentar reflexões sobre o meu processo de criação artística
operante na (trans)formação de significados afetos às masculinidades.
Para desempenhar esse objetivo, desenvolvi uma Pesquisa em Arte, metodo-
logia a qual, conforme explica a brasileira Sandra Rey (1997), atribui protagonismo
ao/à artista-pesquisador/a ao organizar a sua pesquisa a partir dos aspectos plásticos
e poéticos do seu próprio processo de criação artística. Teoricamente, essa Pesquisa
em Arte buscou aporte nos Estudos Culturais e nos Estudos da Cultura Visual que se
dedicam a investigar as práticas de “olhar” como constituidoras e transformadoras
das identidades culturais.
No que tange à estrutura, apresento esse texto em dois tópicos, sendo eles a
introdução e o desenvolvimento, onde me dedico à discussão acerca das memórias
sobre a infância a partir de um ponto específico: a foto de 1998, em que pulo car-
naval fantasiado de Jacaré. Nele também descrevi as etapas do processo de criação
artística da produção Quem tornou masculino o corpo infantil do menino (2019), que
integra o projeto Tramações: a memória e o têxtil (2021), e, ainda, estabeleci diálo-
gos com os Estudos das Masculinidades.

“MEXE A BARRIGUINHA, SEM VERGONHA E ENTRE”:


A FOTO EM QUE ESTOU DE JACARÉ
A foto sobre a qual me referi na introdução deste texto e que atuou como
estopim para o meu processo de criação artística foi capturada por minha mãe, a
partir de uma câmera analógica. A tecnologia daquela câmera, diferente a das atuais,
não possibilitava apagar, editar e recortar a foto antes de sua revelação e tampouco
dispunha das facilidades, hoje acessíveis, para controlar o enquadramento, o foco e
a recepção da luz. Mesmo assim, minha mãe conseguiu apanhar um instante exato
enquanto eu dançava no meio de um círculo formado por outras pessoas, as quais
também participaram da festa de carnaval. Em seus detalhes de composição, a foto
parece ter sido ainda mais precisa e pensada em sua captura: nela, encontro-me exa-
tamente ao centro, com os dois braços simetricamente abertos, e equilibrando-me
sobre um dos pés. A fantasia que uso na foto — colete, calça, sapatos e acessórios
na cintura e cabeça — imita àquela usada por Jacaré em suas apresentações que
eu assistia na televisão. Ao fundo, as dezenas de pessoas têm seus olhos voltados
para mim, a criança que dança de costas para elas. O brilho cintilante de meu corpo
claro e dos paetês dourados da fantasia confere contraste com os tons mais escuros
e opacos das pessoas, assim como o vazio que eu ocupo destoa do aglomerado de
corpos ao fundo.
Apesar da suposta precisão compositiva dessa foto — a qual atribuo mais ao
acaso do que à intenção de minha mãe — recordo-me que nos anos seguintes, du-
rante minha adolescência, não fui capaz de enxergar essas qualidades estéticas e, ao
contrário, tive vergonha desse retrato e da história que ele contava. Tive vergonha
UM CORPO DE FALTAS E DE SOBRAS 119

da masculinidade-feminina que a imagem evidenciava naquele corpo que, mesmo


sendo infantil, deveria ser estritamente másculo, conforme as diretrizes heteronor-
mativas da sociedade em que vivia à época – as quais, suponho, não são tão distintas
das da sociedade contemporânea.
A heteronormatividade, conforme explica a brasileira Ruth Sabat (2003, p.68),
se expressa no conjunto de “[...] normas, regras, procedimentos que regula e nor-
maliza não apenas as identidades sexuais como também as identidades de gênero,
estabelecendo maneiras usuais de ser, modos de comportamento, procedimentos
determinados, atitudes específicas”. A conceituação que a autora atribui à hetero-
normatividade supõe, então, a existência de um mecanismo social que não apenas
atua para que uma criança, menino ou menina, venha a se tornar um/a adulto/a
heterossexual, mas também para coagir a menina a ser estritamente feminina, e o
menino, masculino. Hoje, percebo que aquele “eu” da foto de 1998, que mesmo
criança já flertava com o feminino, passou por aquilo que em outra pesquisa deno-
mino como projeto de masculinização dos meninos (BALISCEI, 2020). Projeto que
intenta eliminar deles — de suas vozes, de seus corpos, de seus gostos e de suas
habilidades — qualquer traço que possa sinalizar feminilidade.
Quem, pois, tornou masculino o corpo infantil do menino? A partir dessa per-
gunta, em março de 2019, em comemoração do meu 30º aniversário, decidi-me por
ressignificar artisticamente as memórias que eu guardava em relação a essa foto, a
fim de transformá-las. Para isso, primeiro tive que encontrá-la — o que acarretou
visitas à casa de meu pai e mãe; buscas em caixas e álbuns de fotos; encontros de
recordações de outros momentos; e diálogos sobre temas até então inéditos à minha
família.
Tendo finalmente localizado a referida foto, realizei 30 cópias coloridas - uma
em comemoração por cada ano vivido - e, com estilete, extrai delas a figura do “eu-
-protagonista”. Nesse processo de criação artística, não me interessava, na foto, a
criança propriamente dita, mas justamente aquilo que não era ela: o contexto. Para
intervir nas cópias daquela foto com os 30 “eu-protagonista” recortados, busquei
por uma técnica que, longe de me distanciar do feminino, me aproximaria dele: o
bordado - prática essa que, na época, era uma novidade para mim, afinal, nunca a
havia realizado antes.
Com agulha e linha azul realizei intervenções diferentes em cada uma das 30
imagens de modo experimental, porém, não aleatório. Durante o bordado, intentei
criar referências visuais e simbólicas às histórias e instituições que — tais como a
família, a escola, a igreja, a mídia e a universidade — atravessaram meu corpo, cap-
turando-o e intitulando-o como masculino. Com exceção da primeira cópia, todas
as outras apresentam símbolos que reclamam pela adequação do corpo e da mente
conforme um ideal específico de masculinidade, ao qual Connell (1997) se refere
como Masculinidade Hegemônica.
Em meu processo de criação artística, há referência às tentativas acessadas
pela sociedade (e por mim mesmo) para que eu aprendesse a desempenhar aqui-
lo que a masculinidade hegemônica prescrevia ao longo dos anos. A linha azul,
neste caso, deu formas intencionais às cópias ordenadas, chamando atenção para
120 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

anos específicos da minha vida. Em algumas fotos, por exemplo, a linha azul de-
senhou um cadarço, ou uma camiseta, em analogia ao uso generificado da roupa
como estratégia (naturalizada) de garantir que meninos permaneçam masculinos.
Em outras, a linha estruturou corda e pompons (representando o uso generificado
dos brinquedos); chifres de veado, como marco da (provável) primeira vez que
ouvi alguém me chamar de “viado”, sem saber o que o termo significava; e assim
sucessivamente...
Há, nas imagens que correspondem ao período da adolescência, intervenções
que demarcam a região dos braços, dos olhos, da boca e da genitália. Elas indicam
que me foi ensinado que, para se mostrarem homens, os meninos precisariam acio-
nar métodos específicos para gesticular as suas mãos e para entonar a sua voz, assim
como precisariam olhar e desejar corpos específicos. Há também intervenções que
remetem aos anos em que recorri à religiosidade católica justamente para buscar
respostas à diferença que minha masculinidade desempenhava em relação às dos
demais meninos e homens que eu tinha como referência. Por último, as interven-
ções se referem aos anos que tenho vivido próximo à universidade, à pesquisa e aos
conhecimentos advindos dos Estudos Culturais que me incentivam a (trans)formar
significados afetos às identidades masculinas. Essa trajetória, a partir da qual recorro
a várias instituições para pontuar as maneiras como tenho aprendido a ser homem,
vai ao encontro da abordagem da francesa Elisabeth Badinter (1993), para quem
a masculinidade é caracterizada por uma espécie de “não ser”, a qual a autora se
refere por uma tríplice negação: o homem não é mulher; o homem não é bebê; e o
homem não é homossexual.
A tríplice negação apresentada pela autora, sobretudo aquela que se refere
à negação da feminilidade, pode ser confrontada com a premissa defendida pelo
espanhol José Miguel Cortés (2004, p.41, tradução minha), quando afirma que “[...]
o feminino não é algo exclusivo das mulheres, nem o masculino dos homens [...]”. E
essa defesa se relaciona diretamente com a segunda etapa de meu processo de cria-
ção artística. Nela reuni as 30 figuras recortadas das cópias - as imagens do “eu-pro-
tagonista” - e somei a elas a seguinte pergunta: “Quem tornou masculino o corpo
infantil do menino?”. Já que me interessava mais pelos contextos e instituições que
intentaram assegurar a minha “não feminilidade” e menos pela manifestação ou não
dela, decidi-me por inserir as 30 figuras, individualmente, em livros que, a partir de
várias áreas do conhecimento, conferiam ideias acerca da infância.
Para isso, recorri à ferramenta de busca online da Biblioteca Central da
Universidade Estadual de Maringá, em Maringá, Paraná. A partir dessa ferramen-
ta de busca, procurei por livros que tivessem a palavra “infância” em seus títulos,
e encontrei materiais de diferentes campos da ciência, como Medicina, Direito,
Psicologia, Educação e Arte, assim como textos de Literatura — áreas que, de manei-
ras assimétricas, contribuem para a caracterização da infância e, consequentemente,
das masculinidades e feminilidades.
Tendo encontrado os 30 primeiros livros em suas versões físicas, deixei no
meio de cada um deles a figura do eu-protagonista, do menino-feminino que dança
vestido de Jacaré, acompanhado da pergunta que atuou como disparador para essa
UM CORPO DE FALTAS E DE SOBRAS 121

produção. Para essas inserções, escolhi, estrategicamente, a página 24 de cada livro


— número que, no Brasil, tem sido culturalmente utilizado para ridicularizar homens
e meninos que se mostram femininos, independentemente de suas sexualidades1.
Ao final dessa intervenção, os livros foram devolvidos às suas estantes de origem à
espera de alguém a quem, talvez, a imagem e a pergunta pudessem ser endereçadas.
Na versão final desta obra, os caracteres posicionados estrategicamente abaixo de
cada uma das 30 cópias são referentes aos códigos que, na biblioteca em questão,
identificam os livros onde, em 30 diferentes páginas 24, eu permaneço dançando
como Jacaré.
Em 2019, quando decidi presentear-me com essa intervenção, já haviam passa-
do quase duas décadas do carnaval de 1998. Com a foto em mãos, percebi que o meu
olhar já não era mais o mesmo sobre a masculinidade, e tampouco sobre aquele sujei-
to que dançava vestido de Jacaré. Senti orgulho das fissuras que aquela criança tão pe-
quena fora capaz de proporcionar no seu círculo familiar mais imediato e na rotina de
sua escola quando manifestou interesses e curiosidades pelo que era rotulado como
feminino; do jovem que informou sua homossexualidade às/os colegas religiosos/as
com quem dividiu a adolescência; e do professor-pesquisador-artista que se sentiu
incentivado a tematizar a construção visual das masculinidades em suas produções.
A maneira como essa foto e as memórias que ela me acarreta potencializaram meu
processo de criação artística e de pesquisa demonstram que, “[...] se há um vínculo
vigoroso entre sujeitos-objetos, abrem-se possibilidades investigativas de caráter ino-
vador”, como propõe a brasileira Susana Rangel Vieira da Cunha (2013, p. 208).

TEM QUE TER CHARME PRA DANÇAR BONITO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES


No que tange ao objetivo de apresentar reflexões sobre o meu processo de
criação artística operante na (trans)formação de significados afetos às masculinida-
des, considero que elaborar este texto e retomar a produção Quem tornou masculino
o corpo infantil do menino (2019), em certa medida, me posicionou de frente para
mim mesmo. Encarei memórias, pensamentos, medos e dores a fim de ressignificá-
-los. E, nesse sentido, o processo de criação artística tem sido eficaz em sua função
de significar e transformar a vida. Comentar sobre tal processo exige que eu comente
sobre mim mesmo, e que perceba as semelhanças e diferenças que apresento em
relação à pessoa que já não sou mais. Hoje, a fotografia original de 1998 permanece
emoldurada na parede de minha casa, acima de outras tantas que registram momen-
tos igualmente importantes em minha vida. Os questionamentos que ela suscitou
em mim, porém, já não cabem numa só parede, e se multiplicam por espaços outros,
como por exemplo, agora, nas páginas deste texto e nas ações que envolveram o
projeto Tramações (2020).

1 No Brasil, culturalmente, é feita a associação entre o número 24 e a homossexualidade masculina,


de modo pejorativo. Tal associação guarda relação com o Jogo do Bicho (uma prática de apostas que,
apesar de ilegal, é bastante popular no Brasil) no qual o veado é identificado pelo número 24. Há, ainda,
explicações que atribuam essa associação a sonoridade do número 24 que se assemelha à expressão
“vim de quatro”.
122 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

REFERÊNCIAS:

BADINTER, Elisabeth. XY, la identidad masculina. Madrid: Alianza Editorial, 1993.

BALISCEI, João Paulo. Provoque: Cultura Visual, Masculinidades e ensino de Artes Visuais. Rio
de Janeiro, Metanoia, 2020.

BOLA, JJ. Seja Homem: a masculinidade desmascarada. Porto Alegre: Dublinense, 2020.

CONNELL, Robert. La organización social de la masculinidade. In: VALDÉS, Teresa; OLAVARRÍA,


José (orgs.). Masculinidad/es, Santiago: Ediciones de las Mujeres, 1997, p.31-48.

CORTÉS, José Miguel G. Hombres de mármol: códigos de representación y estrategias de


poder de la masculinidad. Barcelona: EGALES, 2004.

CUNHA, Susana Rangel Vieira da. Experimentos e experiências na pesquisa. In: TOURINHO,
Irene; MARTINS, Raimundo (orgs.). Processos e práticas de pesquisa em Cultura Visual e
Educação. Santa Maria: Ed. Da UFSM, 2013, p.201-224.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2016.

PRECIADO, Paul B. Pornotopia: Playboy e a invenção da sexualidade multimídia. São Paulo:


N-1 Edições, 2020.

REY, Sandra. Da Prática à Teoria: Três instâncias metodológicas da pesquisa em poéticas vi-
suais. Revista Porto Arte, Porto Alegre, v. 9, n.13, 1997. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/
PortoArte/article/view/27713. Acesso em: 5 mar. 2020.

SABAT, Ruth. Filmes infantis e a produção performativa da heterossexualidade. Tese (douto-


rado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre, 2003.
BONECAS DE TRAPO: UMA
METÁFORA SOBRE O CORPO
Larissa Rachel Gomes Silva2

Boneca de Trapo I, Escultura Têxtil, 15 x 7 cm, Larissa Rachel Gomes, 2020.

2 Artista visual, mestra em Artes Visuais pela Universidade Federal da Paraíba (2018) e graduada em
Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Regional do Cariri (2015), realizou intercâmbio na
Università di Bologna (2012-2013).
124 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

OS PRIMEIROS PONTOS
Meus processos criativos sempre costumam ser provocados por lembranças,
que vão sendo despertadas por alguma leitura, objeto, artista. Esse processo criativo
em específico foi iniciado ainda na graduação, no curso de Licenciatura em Artes
Visuais, pela Universidade Regional do Cariri, de forma tímida, e ainda muito expe-
rimental, e foi amadurecendo durante o mestrado em Artes Visuais, que realizei em
2017 no Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais UFPB/UFPE.
A ideia inicial do projeto tinha como objetivo trabalhar com as mulheres que
produziam arte na região do Cariri Cearense, mas me deparei com a Associação das
Bonequeiras no Pé de Manga, um grupo de mulheres que desde de 2002 trabalha
com a confecção de bonecas de pano na cidade do Crato. Desta forma, resolvi voltar
para esse grupo e tentar conhecer mais sobre suas histórias e processos criativos,
quando participei de uma oficina sobre o processo de confecção das bonecas.
Depois que participei da oficina e consegui criar a minha primeira boneca,
tive a oportunidade de conhecer as mulheres que fazem parte da Associação e suas
histórias. Fiquei motivada a experimentar novas possibilidades para a ampliação
do meu processo de criação, pois há algum tempo venho desenvolvendo trabalhos
utilizando a boneca e o tecido. Comprei alguns metros de algodão cru e um quilo de
enchimento para tentar colocar em prática o que havia aprendido.
Quando comecei a cortar o tecido descobri que a tesoura estava cega e isso
dificultou fazer o corte dentro do molde, e como não tenho máquina de costura, tive
que fazer esse processo manualmente, notando que havia feito um desenho muito
pequeno e dificultando o processo de preenchimento com a espuma. Nessa primeira
tentativa, onde tentei reproduzir o que aprendi sozinha, ela descosturou em algumas
partes, acabou perdendo a cabeça, partes dos braços e das pernas. Todas essas difi-
culdades quase me fizeram desistir, mas consegui visualizar uma nova possibilidade
quando finalizei a primeira boneca.
Ao invés de apenas reproduzir o que havia aprendido, eu tinha a possibilidade
de experimentar as formas que poderiam surgir com um desenho diferente, um cor-
te ou uma costura que poderiam resultar em uma nova forma.
O resultado do primeiro experimento ganhou linhas vermelhas, mas perdeu
o que deveria dar a ideia de cabeça, cabendo na palma da minha mão. Eu estava
brincando com as formas, quebrando os padrões que me foram ensinados, tentando
deixar a minha marca e reforçando a minha ligação com o objeto.
O que fez a primeira tentativa ser marcante no meu processo de criação foi
que ela quase me fez desistir por parecer difícil demais. Por um momento pensei
que seria fácil, mas a realidade me mostrou o oposto. Prossegui e finalizei o objeto,
e confesso que ela não chegou nem perto do que eu esperava. Se olhar bem, nem
parece uma boneca, mas se tornou uma.
Apesar do resultado ter ficado completamente diferente do que aprendi e do
que fiz na oficina, gostei da minha boneca, e consegui sentir e entender um pouco
mais sobre as bonequeiras com quem conversei durante a oficina, principalmente
quando elas falavam da satisfação e felicidade em relação aos resultados.
BONECAS DE TRAPO 125

A COSTURA
Quebrar padrões vêm sendo um processo que acontece não só dentro dos
meus trabalhos artísticos, mas também da minha construção como mulher, aceitan-
do quem sou, meu corpo, minha força e minhas limitações. Ao longo da minha vida
notei que não me encaixava dentro de padrões de corpo e beleza veiculados pela
mídia, mas hoje vejo o quanto conseguimos avançar em termos de padrões femini-
nos. Hoje podemos ver campanhas de aceitação na mídia, partindo, por exemplo, de
digital influencers ou influenciadores digitais, que vêm trabalhando a auto aceitação
e ganham repercussão em diversas redes sociais. Para Guinta (2018, p.29) “o corpo
escondido e fixo, acometido por estereótipos, ou até mesmo por tabus ligados a
estrutura patriarcais do modernismo heterossexual e normativo, passou a ser ques-
tionado e investigado de modo intenso”.
Usar calças de tamanho 42 ou 44, vestir tamanho G, ter espinhas, usar apare-
lho ortodôntico e óculos eram o pesadelo de qualquer adolescente. Tenho diversas
lembranças de momentos constrangedores, pois o que deveria ser visto como uma
fase, de mudanças no corpo, foi um momento de julgamentos por meio de modelos,
tal como explica Wolf (2018):

No entanto, a gordura na mulher é alvo de paixão pública, e as mulheres


sentem culpa com relação à gordura, porque reconhecemos implicita-
mente que, sob domínio do mito, nosso corpo não pertence a nós, mas
à sociedade, que a magreza não é uma questão de estética pessoal e
que a fome é uma concessão social exigida pela comunidade. Uma fi-
xação cultural na magreza feminina não é uma obsessão com a beleza
feminina, mas uma obsessão com a obediência feminina (WOLF, 2018,
p. 272).

Quem é diferente destes padrões se sente deslocado e eu me sentia dessa


forma, mas aprendi a aceitar e valorizar quem sou. Passei a levar essas questões para
o meu processo criativo, pois não é apenas uma questão estética, mas política, como
destaca ainda a autora:
A ideologia da inanição acaba com o feminismo. O que acontece com
o nosso corpo afeta nossa mente. Se os corpos femininos são e sempre
foram errados enquanto os masculinos são certos, então as mulheres
são erradas e os homens, certos. Enquanto o feminismo nos ensinava a
atribuir um alto valor a nós mesmas, a fome nos ensina a corroer nossa
autoestima (ibidem, p. 286).

Escolhi trabalhar com a boneca por causa da carga de significados que ela
pode ter para as mulheres. As bonecas são consideradas brinquedos exclusivos das
meninas, porém segundo Ariés (1986), por muito tempo ela servia tanto a meninas
quantos aos meninos. Tentei desconstruir esses padrões usando a boneca de forma
simbólica, como representação de uma aparência feminina adequada à sociedade.
Segundo Michelle Perrot (2008):
A mulher é antes de tudo uma imagem. Um rosto, um corpo, vestido
ou nu. A mulher é feita de aparências. E isso se acentua mais porque,
126 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

na cultura judaico-cristã, ela é constrangida ao silêncio em público. Ela


deve ora se ocultar, ora se mostrar. Códigos bastante precisos regem
suas aparições assim como as de tal ou qual parte de seu corpo. Os ca-
belos, por exemplo, condensam sua sedução (PERROT, 2008, p. 49-50).

Utilizar brinquedos ou objetos que remetem à infância e adolescência foi a


forma que encontrei para tratar das relações com os padrões de beleza femininos.
Simone de Beauvoir (2009) expõe que “ao passo que o menino procura a si próprio
no pênis enquanto sujeito autônomo, a menina embala sua boneca e enfeite-a como
aspirar a ser enfeitada e embalada; inversamente, ela pensa a si mesma como uma
maravilhosa boneca” (BEAUVOIR, 2009, p. 374).
Em 1971 Linda Nochlin deu início ao reconhecimento feminino na arte, quan-
do se perguntou “Por que não existiram grandes mulheres artistas?”, mas não foi
apenas o reconhecimento e a visibilidade dessas mulheres na arte que iniciou nesse
período, mas a primeira onda do feminismo, onde as artistas da época começaram a
se apropriar de questões feministas em suas produções:

No que passou a ser conhecido como First Wave Feminism (A primeira


onda do feminismo), artistas mulheres imergiram na experiência femi-
nino – deleitando –se no até então no proibido território representa-
do pelas imagens da vagina e sangue menstrual, posando nuas como
figuras de deusas, restabelecendo, de maneira desafiadora, as formas
“inferiores” da arte, como o bordado e a cerâmica, que haviam sido
tradicionalmente desprezadas como “trabalho de mulher” (HEARTNEY,
2002, p. 53).

Arte “inferior” e “trabalho de mulher” são concepções exploradas pelas mu-


lheres na arte há algum tempo, encontrando possibilidades para ressignificar objetos
e situações. O início dos anos 70 foi um momento do renascimento do feminismo,
com as mulheres nas ruas lutando pelos seus direitos sociais. Naomi Wolf (2018) traz
questões sobre a mulher na sociedade e foca no “Mito da Beleza” ao dizer que:
Nas duas décadas de atividades radicais que se seguiram ao renasci-
mento do feminismo no início dos anos 1970, as mulheres ocidentais
conquistaram direitos legais e reprodutivos, alcançaram a educação
superior, entraram para o mundo dos negócios e das profissões liberais
e derrubaram crenças antigas e respeitadas quando a seu papel social
(WOLF, 2018, p.25).

Podemos encontrar essas ideias nos processos criativos de mulheres/artistas


brasileiras, como a artista carioca Márcia X, que também subverte o sentido das
bonecas em seus trabalhos, a paulistana Rosana Paulino, que se utiliza de diversos
materiais e de técnicas de bordado para explorar a sua condição como mulher negra
e suas memórias e a pessoense Cristina Carvalho, que também trabalha com as pos-
sibilidades do bordado e explora a linha vermelha e suas próprias memórias afetivas.
Cada uma destas artistas se apropriou de objetos e trabalhos relacionados ao univer-
so feminino para gerar discussões sobre memória, afeto e feminismo.
BONECAS DE TRAPO 127

ARREMATE
Esse processo de criação está carregado de memórias, principalmente da in-
fância. A boneca surge dessas lembranças que estavam me doutrinando para ser
mulher. O resultado inicial me motivou a continuar tentando, e fui fazendo bonecas
até criar calos nas mãos de tanto costurar. Atualmente, tenho mais de 100 bonecas
e com elas participei de exposições coletivas e individuais.
Trabalhar nesse processo foi significativo, pois consegui modelar e dar forma
a um objeto, elaborar todo o processo criativo e quebrar padrões de corpo e beleza
impostos pela sociedade ocidental. Dessa forma, passei a construir um conceito par-
tindo da minha própria condição como mulher, motivada pela falta de visibilidade
das mulheres artistas na história da arte.

REFERÊNCIAS:

ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução: Dora Flaksman. Rio de
Janeiro: Guanabara, 1986.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. (Volume único). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

HEATNEY, Eleanor. Pós-Modernismo. Tradução: Ana Luiza Dantas Borges. São Paulo: Cosac &
Naify, 2002.

GUINTA, Andrea. A virada iconográfica: a desnormalização dos corpos e sensibilidades na


obra de artistas latino-americanas. In: Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985.
São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2018.

PERROT, Michelle. Minha História das Mulheres. Tradução Angela M.S. Corrêa. São Paulo:
Contexto, 2008.

WOLF, Naomi. O mito da beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres.
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
CONTORNAR O CORPO, CONTORNAR A
AMÉRICA: ASPECTOS ARTÍSTICOS E NARRATIVOS
DO BORDADO EM UMA FOTOPERFORMANCE
Natália Rezende1

O contorno do meu coração repete seu desenho, América, bordado e fotografia digital, dimensões
variáveis, Natália Rezende, 2020.

Não conheço suas margens


já de mim, só vejo o que está por fora
seus limites são mistérios
demarcações conflituosas
meus contornos são evidentes
pele a se esgarçar com o tempo
ambos fictícios,
nos redesenhamos sobre este contorno
inventado para nós.

1 Natália Rezende é artista visual e pesquisadora, doutoranda em Artes pelo PPGArtes da EBA/UFMG,
bolsista CAPES/PROEX. Desenvolve pesquisa sobre os aspectos das artes têxteis que a tornam uma
linguagem capaz de narrar memórias, especialmente no contexto cultural e artístico contemporâneo da
América Latina. Contato: natalia.rzd@gmail.com.
CONTORNAR O CORPO, CONTORNAR A AMÉRICA 129

COMEÇAR UM DESENHO
Na palma de minha mão esquerda, desenho o contorno cartográfico da
América Latina tal como aparece definido nos mapas contemporâneos. O desenho,
porém, é feito com pouca acuidade — interessa-me apenas o contorno simbólico,
um desenho que torne reconhecível a alusão de minhas tortas linhas às porções sul
e central do continente americano. Depois de traçado, cubro a mão com um tecido
escuro e transparente para reproduzir esse mesmo desenho através de uma linha de
bordado. Entre o erro e o acerto do contorno, há a ilegibilidade turva do tecido e o
descompassado manuseio da agulha, na falha tentativa de bordar com apenas uma
mão. A forma retangular do tecido torna-se descontínua enquanto o traçado branco
da linha demarca, com dificuldade, a incisiva trajetória do gesto.
O contorno do meu coração repete seu desenho, América (2020) é uma série
de fotoperformance que registra a ação descrita acima. A semelhança entre o dese-
nho cartográfico da América Latina e o formato anatômico do órgão vital explicitado
no título da obra, aponta de antemão que há uma subjetividade ou construção de
identidade posta em jogo, em tensão. Evocar o coração é evocar a dimensão afetiva
do corpo e de sua identidade política. Nessa imagem que também se torna outra,
há um interesse pela dimensão ambígua das questões que atravessam a construção
das identidades singulares e de um território, enfatizada pelas ambiguidades encon-
tradas na própria técnica do bordado: forma e contra forma, continente e conteúdo,
visível e invisível, perfuração e alinhavo, memória e imaginação, corpo e território,
indivíduo e coletivo, simultaneamente. A ação fisiológica dos batimentos cardíacos
reproduz, ainda, o movimento duplo, alternado e repetitivo, característico da trama
têxtil com suas linhas opostas, perpendiculares e entrecruzadas, alinhavando a so-
breposição de matéria e metáfora explorada na obra.
Tensionando tais contradições, o gesto do bordado representa, nessa perfor-
mance, tanto a noção de escrita afetiva — como observado pela professora e escri-
tora Vera Casa Nova — , quanto de sutura histórica — propriedade trabalhada pela
artista e professora Rosana Paulino — , uma vez que a perfuração da agulha marca
a superfície com uma certa violência, fazendo ecoar a conflituosa demarcação do
território latino-americano. O bordado, a costura, a sutura, o desenho e a escrita
serão entendidos aqui enquanto operações que modificam superfícies, sejam elas
materiais ou não. São também maneiras de atravessar a matéria espessa do tempo,
como afirma a artista Edith Derdyk, e reconfigurar a trama de nossas narrativas iden-
titárias. Nesse texto, apresentam-se portanto, alguns dos pensamentos que orbitam
o processo de criação da obra bem como reflexões acerca dos procedimentos téc-
nicos, poéticos e categóricos que delineiam o contorno da própria criação artística,
sem contudo, limitar seus significados, que só encontram sentido na costura final
tramada com a observadora.

CONTORNAR O GESTO
Começo pelo gesto de escrever. Apesar de a escrita não ser um elemento vi-
sualmente presente em O contorno de meu coração repete seu desenho, América,
o ato de desenhar, como gesto semelhante a uma escritura, torna-se entendido em
130 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

seus sentidos ampliados de registro simbólico — ou signo — que tenta expressar,


traduzir e transmitir algum significado. Por isso, é a partir desse entrelace da escrita,
do desenho, do bordado e da costura, que desejo discorrer sobre as principais ideias
costuradas no processo de realização da performance. Importante ressaltar, tam-
bém, que o entrelace dos conceitos aqui colocados já foi amplamente trabalhado
por diversas artistas e pesquisadoras, algumas das quais tomarei de empréstimo as
palavras para conduzir meu entendimento sobre a própria produção de imagens e
pensar, em conjunto, as possibilidades de analisar a materialidade e técnica têxteis
no contexto da criação artística contemporânea.
Vera Casa Nova, trabalhando com uma associação de bordadeiras na periferia
da cidade de Belo Horizonte/MG, equipara o gesto de bordar ao gesto da escritura:
“Gesto manual, registro de marcas, prática em que cada bordadeira faz triunfar o
tempo, o esquecimento, a vida. Daí esse bordar se assemelhar ao gesto escritural,
resposta ao gesto leitural, a leitura que se faz do mundo (...)” (CASA NOVA, 2002, p.
90). Casa Nova também afirma, em seu livro “Fricções” (2008), que a escrita reali-
zada através do bordado constrói nosso léxico íntimo, nosso dicionário e arquivo de
experiências capazes de transformar a própria concepção de linguagem, uma vez
que convoca o corpo a participar diretamente do processo de escrita em diversos
sentidos (REZENDE, 2018, p.36): “[Bordar] É uma prática que envolve os corpos – dos
textos, das bordadeiras e dos seus bordados. Textos/bordados a partir de um alfa-
beto de gestos das mãos. Corpo que traduz códigos de outros corpos e que inaugura
a diferença” (CASA NOVA, 2008, p.111). Borda-se um contorno para reconhecer ou
para, de fato, criar. Dessa maneira, assim como o bordado e a escrita se confundem,
contornar a América torna-se também contornar a si, tatear ambas as superfícies
como se o mesmo corpo fosse tocado, como se ambos os corpos — o corpo de carne
e o corpo da terra — partilhassem de limites, fronteiras e nos demandassem trans-
gressões em comum.
“O bordado é uma outra língua” (2002, p.12), afirma Casa Nova, ainda. Em
sua constatação, ela nos recorda que, se por um lado, escrita e bordado são seme-
lhantes, é preciso lembrar, também, dos aspectos nos quais ambos se diferem. Essas
diferenças entre linguagens precisam ser consideradas, uma vez que os significados
das mensagens registradas ali variam conforme a língua ou a materialidade que se
escolhe (ou que se é permitido) usar. E o suporte, que é o tecido, mas também é
o corpo, mescla-se a essa língua e à linha. O têxtil, com sua propriedade narrativa,
comunicativa, possui textura, tridimensionalidade — exige das escritoras e de suas
leitoras o envolvimento de outros sentidos que não apenas o da visão. Manifesta no
corpo seus efeitos, nos fazendo recordar de sensações táteis que podem despertar,
também, memórias afetivas. O bordado é comumente associado a uma dimensão
intimista, assim como o próprio desenho, que, ao pensarmos nas categorias histó-
ricas da arte do Ocidente no século XVI, constitui-se como a base criativa presente
em qualquer outra linguagem. O bordado, embora não seja uma base para outras
técnicas atreladas à matéria do têxtil, parece carregar em sua gestualidade algo
primordial, assim como pede uma aproximação cautelosa do corpo. A imagem de
uma criança que aprende a escrever talvez se assemelhe à imagem de alguém que,
CONTORNAR O CORPO, CONTORNAR A AMÉRICA 131

através do bordado, aprende a manejar a fluidez da linha acompanhada do rígido e


perigoso instrumento da agulha. A cautela diz, portanto, de um risco de ferir-se, além
do risco de que o movimento premeditado não atenda à expectativa do desenho.
A expressão, o movimento de escrita com a agulha, torna-se um processo de
modelagem material da palavra: esculpe-se sua forma com a matéria da linha. É pre-
ciso ressaltar, também, que no caso da obra aqui apresentada, borda-se sobre um
tecido, que por si só já é uma trama complexa. A trama têxtil pressupõe uma estrutu-
ra de textualidade em si, seja em sua etimologia, que aproxima “tecer” e “texto” por
meio da raiz latina em comum (texere), ou em sua história, se pensarmos nos mui-
tos grupos sociais que utilizavam das práticas têxteis para expressar suas narrativas,
sua organização social, registrar/rememorar suas epistemologias (SÁNCHEZ-PARGA,
1995). Mas levando em conta a textura, como recordado por Casa Nova, observamos
que há certas particularidades que fazem a textualidade da trama transbordar seus
próprios contornos. A narrativa produzida pela linha não se trata inteiramente de um
texto e nem de uma imagem, mas de algo que oscila entre ambas as possibilidades
formais e, nesse movimento duplo, cria sua própria forma de comunicação: “Um
bordado que faz florescer uma linguagem que fratura o texto, o engole e o refaz, o
recria através de signos que indica caminhos da linha, do consciente, do inconscien-
te” (CASA NOVA, 2002, p.114).
Na experiência de dilatação do tempo comumente proporcionada pelos tra-
balhos com a linha, percebe-se uma suspensão dos tempos passado e futuro, conec-
tando-nos de maneira contundente e inescapável com o momento presente. Esse
efeito sobre o corpo que desenha/escreve/borda pode ser entendido, então, como
uma espécie de rompimento de outras fronteiras. Quem borda expressa a si próprio
mesmo quando escreve ou desenha sobre algo que não necessariamente diz de si,
pois tal ação expressa os mínimos movimentos do corpo, se constrói também na
busca pela destreza ou pela radicalidade da técnica - uma vez que se trata de uma
operação de furo, de atravessamento.
Em certa altura de seu texto, Vera Casa Nova nos diz do trabalho dentro do
plano do bordado — os limites de um bastidor, por exemplo — e da extrapolação da
linguagem àquele limite material: “Fios sobre o tecido, largura e altura, formando no
limite do quadrado do pano, com rendas e pontos, um esgarçamento, como que um
esquecimento do limite” (2002, p.120). A incorporação do gesto, da técnica, se dá de
maneira tão intensa pelo corpo que borda, que as fronteiras físicas do tecido não se
constituem como uma limitação ao campo a ser trabalhado ou nomeado de imagem:
não há onde comece ou termine a ação do bordado, do contornar, pois trata-se de
uma continuidade em si. Rompe-se com as bordas do tempo assim como se rompe
com a distância/espacialidade. Podemos pensar na ambiguidade que nomeia a pró-
pria técnica: bordar como um verbo para a “borda”, expressando a ação de delimitar
que se faz por furos, por um gesto que rompe uma superfície e deixa suas marcas na
frente e no verso.
Casa Nova (2002), por fim, nos recorda que a finalidade de um registro, ou
pelo menos, seu principal efeito, é o da rememoração. Através dos registros, so-
mos capazes do exercício de lembrar, de fazer com que algo permaneça através dos
132 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

tempos, mesmo que as lembranças, no interior de nossos corpos, sejam modifica-


das: “Escrever, desenhar, bordar, talvez seja mesmo rememorar” (ibid., p.118). A
esse propósito, podemos pensar que a rememoração do bordado cria um signo, um
ponto zero ao qual podemos voltar a cada vez que nos deparamos com a imponência
fisiológica do esquecimento, ou quando a imaginação narrativa de nossas memórias
perde o contorno referencial da própria lembrança.
O traçado desenhado da cartografia é, portanto, um gesto de “escrita” que
rememora um território, ao mesmo tempo em que o comunica. Mas é também a
tentativa de criar uma narrativa que denota não apenas uma demarcação de limites
físicos e externos ao corpo, mas também uma construção de identidade que aconte-
ce simultaneamente ao ato de bordar/escrever. Enquanto seu contorno é bordado,
a própria porção de terra é também reinventada pelo gesto rítmico e ritual, lento e
atravessador, infinito e circular, característico da costura. E a técnica, ao realizar a
coreografia da forma matricial, também se atualiza, sintonizando-se ao movimento
do corpo que a executa, tal como afirma Luana Sofiati (2020) ao escrever sobre o
livro Linha de Costura (2010) da artista brasileira Edith Derdyk:

A costura se revela matéria de escrita, impulso de reflexão e caminho


de aprendizado: “Costuro para ser. Não costuro para conquistar as for-
mas. Já que a costura costura para nada, só para ela mesma, que me
sirva pelo menos para aprender a viver” (DERDYK, 2010, n. p.). Estamos
diante de um gesto de busca contínua e sem fim, no sentido de não ter
destino. Não interessa concluir a feitura de uma peça, como a princípio
pensamos o ato de costurar. Ao corpo que costura e escreve, interessa a
contínua exposição aos movimentos, o contraste entre materialidade do
fio e alguma porosidade da trama (SOFIATI, 2020, s/p).

A performance de bordar um contorno é, portanto, uma tentativa de desco-


brir este mesmo contorno, ainda que haja uma contradição nos termos aqui usa-
dos: descobrir o desenho que está por baixo de uma mão coberta, bordar sem um
aprendizado técnico anterior, como se o corpo descobrisse também o gesto, em si
próprio. Descobrir o rito da demarcação como aquilo que limita, que restringe, mas
que também constitui identidade, garante direitos, reconhece corpos comuns dentro
do sistema geopolítico em que vivemos. É nesta base contraditória, muito recorrente
nas metáforas das práticas têxteis, que seguimos na escrita de quem somos, dentro
desta terra igualmente marcada por inúmeras contradições.

CONTORNAR O CORPO-TERRITÓRIO
Olhando para o contorno da América, faço o exercício de recordar os vários
nomes que definem tal porção continental de terra, nomes que a dividem em inter-
mináveis classificações políticas, históricas, afetivas: América do Sul, América Central
e América Anglo-Saxônica. Primeiro mundo, terceiro mundo, subcontinentes, imigra-
ções, barreiras. Abya Yala, Pindorama. Zonas temperadas e intertropicais. Ilhas a se
contornarem pela água. Logo, entre os nomes, se desenham linhas que conectam
esta terra aos outros continentes, mergulhadas nos oceanos. As linhas da invasão. Os
invisíveis trajetos de navios negreiros que costuram as Américas às costas africanas
CONTORNAR O CORPO, CONTORNAR A AMÉRICA 133

— ainda se pode sentir o violento furo das agulhas. Quais, então, são de fato as
bordas da América?
Sobrepondo o tecido à mão, torna-se difícil para o olho enxergar o desenho
inicial, o desenho que supostamente guiará o processo de bordadura. A mão precisa
improvisar os movimentos, precisa recordar. Recordando, inscreve outra forma. Não
há como escapar: estamos sempre a delinear novos contornos, sempre condena-
dos a repetir o novo com os olhos voltados para o passado, como nos disse Walter
Benjamin, mas também muitas das tradições de distintas partes do mundo, sobre-
viventes ao genocídio contínuo do imperialismo e colonização. O tecido do espaço-
-tempo parece ser um imenso retalho esburacado, do qual só nos é permitido tatear
pequenas porções a cada vez.
No livro On Earth We’re Briefly Gorgeous, o poeta vietnamita-americano
Ocean Vuong (2019) descreve a complexa relação entre a construção dos afetos,
a imigração e as consequências psicológicas da guerra do Vietnã através de cartas
de um filho destinadas à mãe analfabeta. Em alguns momentos de sua escrita, a
questão das bordas ou fronteiras aparece como elemento que delineia a percepção
afetiva familiar, mostrando como as condições históricas e geográficas atravessam as
identidades singulares de forma contundente, inescapável. “What is a country but a
borderless sentence, a life?” (2019, p.8), Vuong pergunta, aludindo à dissolução de
uma borda que constringe a expressão da vida, ao referir-se a um país. Adiante, com
o exímio trabalho do poeta de perscrutar a própria linguagem, que também marca
uma outra fronteira identitária, reformula a questão a partir do duplo significado da
palavra “sentence” que, tanto no inglês quanto no português, pode se referir à estru-
tura de uma frase ou a uma decisão judicial: “What is a country but a life sentence?”
(2019, p.9).
O que é um país, senão uma sentença de vida? Como observar nossa identi-
dade sem considerar que estruturamos nossa realidade a partir de nossa língua, que
nosso corpo poderá ser moldado a partir das características do lugar onde nascemos
e crescemos, que nossa perspectiva e compreensão do mundo será sempre balizada
pela estrutura sociopolítica deste lugar natal? E, diante disso, quais estratégias usa-
mos para redesenhar esses contornos, de que maneira fazê-lo sem apagar ou inva-
lidar outras perspectivas que também se cultivam num território tão amplo quanto,
por exemplo, o Brasil? Quais as suturas históricas são necessárias e quais mãos têm
o poder de realizá-las? A quem estas suturas redesenham?
A sutura, operação médica que consiste em coser uma ferida profunda, é
utilizada enquanto metáfora de reparo histórico em muitas obras da artista, pes-
quisadora e professora brasileira Rosana Paulino. Nas séries “Assentamento” (2013)
e “Bastidores” (1997), o bordado executado pela artista ativa gestos de recompo-
sição do corpo a partir de diferentes contextos e finalidades. Na primeira, Paulino
sutura a imagem de um corpo negro apropriada dos arquivos da Expedição Thayer,
capitaneada pelo cientista Louis Agassiz entre 1865 e 1866 no Brasil, exposto e des-
membrado pela ciência (que mantinha e justificava a estrutura racista no período
colonial), enquanto na segunda obra, retratos de mulheres da família de Paulino têm
partes apagadas pela sobreposição excessiva de linhas pretas, fazendo referência
134 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

ao silenciamento, a impossibilidade de expressão e de construção de sua própria


identidade. A autonomia ou apropriação da identidade, aliás, está posta em jogo em
ambas as obras e o bordado ou costura desempenham duas funções contrárias: a da
sutura que repara e a da costura que violenta.
Em seu livro Borderlands/La Frontera: la nueva mestiza ([1987] 2016), a escri-
tora Gloria Anzaldúa redesenha, a partir de alguns relatos autobiográficos, a identi-
dade latina/chicana através das questões de gênero, sexualidade, raça e classe. No
subcapítulo-poema “El otro México”, Anzaldúa escreve sobre as bordas da terra no
encontro com o oceano, sobre a impossibilidade de traçar fronteiras nas águas ma-
rinhas e, ainda, sobre como o corpo confunde-se à matéria da terra e da água, figu-
rando sua inserção nos conflitos de identidade/território em seu sentido mais amplo:

El viento me tira de la manga,


mis pies se hunden en la arena
estoy en el borde donde la tierra toca oceáno
donde los dos se solapan
en un dulce encuentro
en otros lugares y momentos un choque violento.
[...]
Una herida abierta de 2.500 kilómetros
divide un pueblo, una cultura
recorre la longitud de mi cuerpo.
me clava estacas de valla en la carne,
me parte me parte
me raja me raja

Este es mi hogar
este fino borde de
alambre de púas,

Pero la piel de la tierra no tiene costuras.

Al mar no se le pueden poner vallas,


el mar no se detiene en las fronteras.
(ANZALDÚA; VALLE, 2016, pp.39-41)

Segurando o contorno bordado nas mãos, penso numa linha deste poema: a
pele da terra não tem costuras. Suspendendo as grafias tracejadas pelos mapas, con-
tornos delineados pela mão humana, nossa orientação seria configurada de forma
mais harmônica com o ambiente, como alguns sistemas andinos e indígenas, não
ocidentais, nos mostram. Nessas perspectivas, nossos contornos talvez pudessem
ser medidos a partir de nossos próprios corpos, diluindo as fronteiras entre exterior
e interior sem apagá-las completamente, mas ressignificando o sentido de suas li-
mitações. O todo poderia ser compreendido como um efeito do equilíbrio entre as
partes, enquanto a singularidade seria entendida como parte do todo, como escreve
a poeta Rupi Kaur: “você é uma só pessoa/mas quando você avança/uma comunida-
de inteira/anda por meio de você/ — ninguém anda sozinho” (KAUR; GUADALUPE,
2020, p. 162). As barreiras que nos são colocadas, hoje, fazem o movimento contrá-
rio de diluição: ao passo que os limites são enfatizados, o senso de ligação se perde.
CONTORNAR O CORPO, CONTORNAR A AMÉRICA 135

Ligação com a história, com as pessoas, com a própria sensação de pertencimento.


Existimos como fios soltos e o estado de deriva, aqui, não é sinônimo de liberdade,
mas de uma desconexão que fundamenta e mantém a hierarquização da relação
centro e margem.

CHEGAR AO FIM PARA CONHECER O INÍCIO


É preciso, então, (re)bordar para religar e conhecer. Por isso, usando a estra-
tégia da sequência fotográfica, a performance de escritura/bordadura de uma iden-
tidade corpo/territorial se mantém em permanência. Uma permanência mutável,
já que a continuidade implica na mudança da forma. Mas é uma costura/bordado
que, como pontuado por Sofiati anteriormente, não busca um fim, senão o exercício
de aprendizagem em si mesmo. Uma das definições de narrativa, segundo sua eti-
mologia, é dar a conhecer. Pela continuidade de uma escrita/bordado, um corpo se
conhece e dá a ver a comunidade que traz consigo, bem como suas lacunas e suas
urgências, sua incompletude e sua força. O improviso do gesto aceita o erro, contor-
na-o, se apropria do desvio como parte do processo. Assim, o desenho que se faz da
América só é conhecido enquanto se materializa através da linha, da mesma maneira
que o contorno da identidade também se faz na experiência da própria vida.
Por fim, estamos a modelar, constantemente, diversos contornos além do nos-
so. Em alguns momentos os conteúdos não são capazes de se manter na contenção
de um limite. Em outros, é o próprio conteúdo que contorna a si (é dentro e fora ao
mesmo tempo), exigindo de nós uma flexibilização da própria ideia de contorno —
uma desestabilização das hierarquias. A dualidade é contraditória porque é mutável
— aqui inclui-se todas as categorias binárias que atravessam o pensamento ociden-
tal. Precisamos vê-la com um olhar que se atenta ao movimento produzido em seu
intervalo ao invés de engessar ou fixar pontos em suas extremidades. Entre o dentro
e o fora de um contorno, entre o sim e o não, não há palavra que possa mediar o
conflito dos extremos — há apenas a matéria da imaginação, das possibilidades de
um provável “talvez”, de uma linha sobre a qual podemos caminhar como na corda
bamba das incertezas. Entre o sim e o não, portanto, há tudo. Há, principalmente,
um corpo que se margeia pela terra e uma terra a se margear pelo corpo. Ambos se
tocam — pois o limite é também o lugar do contato — e aprendem/criam quem são,
quem podem ser.

REFERÊNCIAS:

ANZALDÚA, Gloria; VALLE, Carmen. Borderlands/La Frontera: la nueva mestiza. Madrid:


Capitán Swing, 2016.

CASA NOVA, Vera. Fricções: traço, olho e letra. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

CASA NOVA, Vera. Texturas: ensaios. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Letras, Programa
de Pós-Graduação em Letras, Estudos Literários, 2002.

DERDYK, Edith. Linha de costura. 2.ed. rev. e ampl. São Paulo: C/Arte, 2010.
136 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

KAUR, Rupi; GUADALUPE, Ana. Meu corpo minha casa [livro eletrônico]. São Paulo: Planeta,
2020.

PAULINO, Rosana. Assentamento. Material educativo. Museu de Arte Contemporânea de


Americana, 07/07 a 07/12 de 2013. Disponível em: http://www.rosanapaulino. com.br/blog/
pdf-educativo-assentamento/. Acesso em: mar. 2018.

REZENDE, Natália. Linhas vitais: narrativas femininas na América Latina. 2018. 204 f.
Dissertação (Mestrado) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2018.

SÁNCHEZ-PARGA, José. Textos Textiles en la tradición cultural andina. Equador: IADAP, 1995.

SOFIATI, Luana. Entre gestos de costura e escrita. Revista CUPIM, 2020 . Disponível em:
https://www.revistacupim.com.br/post/entre-gestos-de-costura-e-escrita. Acesso em: fev.
2021.

VUONG, Ocean. On Earth We’re Briefly Gorgeous [livro eletrônico]. London: Penguin Press,
2019.
ARRUDEIO É INDICAÇÃO DE CAMINHO
Thaysa Aussuba1

Arrudeio, Performance fotografada, 301x339mm e 301x508mm, Thaysa Aussuba, 2020.

O TEMPO EM REVIRO

É importante viver a experiência da nossa própria circulação pelo mun-


do, não como uma metáfora, mas como fricção, poder contar uns com
os outros […] Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é
só empurrá-lo e respirar (KRENAK, 2019, p. 27-28).

Respirar para criar. A casa, como espaço de intimidade, também pode estar
bagunçada em seus respiros. Refundar a casa para que nas divergências da rotina
nem as histórias da casa-grande sejam íntimas, nem o barraco assentado na encosta
da barreira seja a única habitação possível. Não silenciar, eis a função principal do
respiro. Não parar o coração, não deixar de pulsar, de jorrar, de empurrar o céu ao
sinal de asfixia.

1 Graduanda em Artes Visuais pela UFPE, é indígena/cabocla em contexto urbano periférico. Bolsista
pelo Programa de Iniciação Científica PIBIC-CNPQ (2020-2021), sob orientação da profª Drª Maria
das Vitórias Negreiros do Amaral. Tem atuado com pintura, performance e poesia na revir-ação de
memórias.
138 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

Revirar para criar. Fazer girar, tornar a virar aquilo que a poeira dos dias, das
gavetas, do tempo insensível nos fez esquecer. Buscar a liberdade no tempo exusiá-
tico2, não-linear, acessando, pela temporalidade, outras geografias possíveis. Outros
tempos sensíveis. Criar atmosferas possíveis dentro da casa, dentro dos pulmões ou
onde se possa morar.
Erguer a criação artística como moradia, casa, território, é não esquecer sua
fundação. E de todos os sinônimos que encontro para moradia, o que quero me
aproximar aqui é o da gíria, onde morar significa entender. Isto é, conhecer e ouvir
os limites entre a carne e o concreto, entre a colonialidade do tempo linear e o no-
madismo do tempo exusiástico.
Rever a fundação dos corpos subalternizados é rever sua criação e criativida-
de. É considerar a relevância da intuição de seres silenciados mas nunca silenciosos.
Fayga Ostrower (2008, p.56) nos lembra que “a intuição está na base dos processos
de criação” e mais do que instintivo, o intuitivo é relacional na polissemia de suas
experiências. Intuição é praticar a própria voz em segredo.

Imerso no visível por seu corpo, ele próprio visível, o vidente não se
apropria do que vê; apenas se aproxima dele pelo olhar, se abre ao
mundo. E esse mundo, do qual ele faz parte, não é, por seu lado, em si
ou matéria. Meu movimento não é uma decisão do espírito, um fazer
absoluto, que decretaria, do fundo do retiro subjetivo, uma mudança de
lugar milagrosamente executada na extensão. Ele é a sequência natural
e o amadurecimento de uma visão. Digo de uma coisa que ela é movida,
mas, meu corpo, ele próprio se move, meu movimento se desenvolve.
Ele não está na ignorância de si, não é cego para si, ele irradia de um si
(MERLEAU-PONTY, 2014, p.16).

Sonhar para criar. Aos que não sonham mas criam, deixo aqui outra disposição
ao sonho: “O olho vê, a lembrança revê e a imaginação transvê. É preciso transver
o mundo“, lembrando Manoel de Barros3 para não esquecer de reconfigurar as pa-
lavras, de fundar o conhecimento pela imaginação. Criação como sonho é criar sem
adormecer, sem anestesiar, sem enganar-se. É dar outras oxidações ao tempo, é não
transferir voz ao desconhecido, é firmar em si a referência. O sonho é também en-
cantamento, conhecimento e visualidade, fundando estrutura óssea para narrativas
marginalizadas. Se pelo sonho me sinto livre, então posso tomar impulso para criar
além dos meus medos:

E não há sofrimentos novos. Nós já os sentimos todos. Nós escondemos tal


fato no mesmo lugar em que nós escondemos nosso poder. Eles emergem
em nossos sonhos, e são nossos sonhos que apontam o caminho para li-
berdade. Aqueles sonhos se tornam realizáveis por nossos poemas que nos
dão a força e coragem para ver, sentir, falar, e ousar (LORDE, 2019, p.49).

2 Termo pesquisado por Castiel Vitorino Brasileiro (2020, p. 01), no qual o tempo é “uma ferramenta e
um movimento que nos faz acessar, de modo perecível e efêmero, essa liberdade, que é Exú”.
3 Manoel de Barros (1916-2014), poeta mato-grossense, praticava uma escrita para expandir os limites
da língua, reunindo sentidos que extrapolam a gramática padrão.
ARRUDEIO É INDICAÇÃO DE CAMINHO 139

O sonho como encantamento é um recurso criativo pesquisado por mim4,


para provocar a transfiguração dos adormecimentos da escuta de si, movendo subje-
tividades em apagamento. Como nos diz Audre Lorde no trecho acima, em seu texto
Poesia não é luxo, é necessário criar, não para fugir do sofrimento somente, mas para
tomar outros destinos possíveis além da dor.

POESIA É VOAR FORA DA ASA5


Este texto foi escrito durante o isolamento social da pandemia do Covid-19,
enquanto reaprendo a voar. Enquanto minha noção de pertencimento identitário foi
abalada na restrição dos movimentos, no abafado da casa. Estar sozinha, isolada, e
ainda assim criar para existir. Não ter certezas e, ainda assim, uma esperança ativa
de quem não espera por outro tempo, mas vive este, aqui e agora, ampliando os
movimentos de dentro, as fundações, os aprofundamentos.
Estou, portanto, produzindo criativamente em isolamento como quem voa
fora da asa. Cuidando e alimentando a subjetividade com outras presenças, ainda
que redigindo experiências em arquivo de texto no computador. Mas a criação artís-
tica é minha tecnologia de alterar o tempo, antes que a subjetividade enferruje pelo
ruído da comunicação eletrônica, nos dispositivos de interação social.

A liberdade de uma vida racializada depende do seu desejo de lembrar


daquilo que se esqueceu. Pois a racialização age na estruturação - ou
subjetivação -, logo, um limite mas também uma condução impositiva
de ritmo, direção e intensidade vital dessas existências/espécies ani-
mais transformadas - pela modernidade colonial - em “sujeito negra/o”
(BRASILEIRO, 2020, p.1).

Para voar “fora da asa”, como nos sugere Manoel de Barros, me lanço como
artesã das linguagens e do imaginário. Recorto, colo, costuro, insisto na imagem, não
tento voar no primeiro impulso, fico íntima do céu primeiro.

ARRUDEIO PARA RETOMAR O FUTURO

[...] um conhecimento que se associa, transita, atravessa, opera den-


tro, fora, um conhecimento advindo das experiências dissidentes, da
capacidade de elaborar a existência e torná-la hábil a elaborar cálculos,
medidas e técnicas que conduzam a sobrevivência, a isso eu chamo de
tecnologias subalternas (CARVALHO, 2017, p.38).

A performance Arrudeio (2020) faz parte do meu processo criativo como respiro
no isolamento social da pandemia do Covid19. Utiliza a gravura de Jean-Baptiste Debret,
Soldados índios da província de Curitiba escoltando selvagens (1834), para friccionar re-
presentações que acabaram por definir o imaginário do que é ser indígena no Brasil.

4 Pesquisa PIBIC incentivada por bolsa CNPq (2020-2021), de título “Escrevivências do autocuidado pela
arte/educação em tempos de isolamento social e Covid19“, orientada pela profa. Vitória Amaral.
5 Referência a Manoel de Barros no livro das Ignorãças, p.23.
140 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

Fotografada na sala e quarto da minha casa, a mesma casa em que também


moraram minha mãe e avós, local de intimidade modelado pela ação do tempo e da
moradia. A ação performática de Arrudeio consiste em atravessar a imagem gravada
por Debret com a mesma lã que costumo trançar meus cabelos, re-formatando, to-
cando e intervindo na gravura. Re-gravando-a.
Registrada em foto sequência, Arrudeio percebe o depósito do tempo em ca-
madas transparentes, do fazer cíclico, do atar e desatar. Na gravura vemos divisões
políticas atribuídas pelo colonizador aos povos originários, na figura dos prisioneiros
e soldados, instalando a violência no povo contra si mesmo.
Eu, enquanto cabocla6, recuso a imagem do bom selvagem que é comumente
associada aos povos originários e tramo caminhos que fortalecem a resistência no
existir com nossas medicinas, polissemias e segredos, ainda que em processo histó-
rico de sufocamento de nossos povos, culturas e territórios. Utilizo estas palavras no
plural pois somos plurais, aldeados e não-aldeados.
Arrudeio performa outras fissuras na palavra, inclusive etimológicas, e reclama
o sonho como fortalecimento, como recurso de voz criativa. A palavra sonho, além
da origem grega hypnos (adormecer), tem raízes originárias como, por exemplo, a
Guarani Mbyá na qual ropehýi (sonhar) é palavra próxima de ropurahéi (cantar). Com
isso percebo que sonhar para ter voz pode começar na palavra em apagamento,
substituída por outra julgada mais culta, mais científica, mais coerente e de menor
arrudeio.
A palavra arrudeio é saber ensinado pela minha mãe, palavra antiga, que
chegou a ela pelos mais velhos da família. Arrudiar é ação comum nas terras da-
qui, Pernambuco, é verbo afetivo, tem significado único daquilo que dá a volta em
torno de algo. Como a roda de conversa na porta de casa, como o toré, o tempo, o
encontro, o nó. Arrudeio também é o que dizemos para alguém que bate na porta
errada de nossa casa, respondemos arrudeia!, como orientação do caminho de
entrada.
Nas pesquisas poéticas relacionadas ao tempo e memória, faço o mapeamen-
to de minha narrativa familiar que desenhou êxodos do agreste pernambucano à
capital em busca de melhores condições de vida nos anos 60. Mapeando corpos que
irradiam-se no tempo a partir da presença do meu, que desenha sua trajetória por
saber-se vivo, percebendo a afetividade como novelo da memória.

SEGREDO
Durante a performance Arrudeio, havia um espelho pendurado atrás de mim
que, inexplicavelmente, caiu da parede e despedaçou-se. Seria a performatividade
da casa-corpo, e seus pregos, me lembrando do deslocamento do ver? Seria um aler-
ta ao iminente acidente pelo corte dos cacos do que me olha? Ou seria o potencial
criativo decidindo o que colocar em ato?

6 Para saber mais sobre o termo Cabocla, ler "A complexidade do 'pardo' e o não-lugar indígena", no
Blog de Jamille Anahata. Disponível em: https://medium.com/@desabafos/a-complexidade-do-pardo-
e-o-n%C3%A3o-lugar-ind%C3%ADgena-a8a1e172e2b0 Acesso em: mar. 2021.
ARRUDEIO É INDICAÇÃO DE CAMINHO 141

Recolhi os cacos e continuei ativando os cliques da câmera para fotografar a


ação iniciada anteriormente, desta vez com os cacos ao fundo figurando em segredo
sua queda. Nas fotografias passaram a figurar o segredo da queda, enviando mensa-
gem aos desavisados: esta imagem possui navalhas.
A criação artística é um processo de resistência, não somente significan-
do uma força contrária a outras, mas configurando a insistência e a perma-
nência do fazer, do respirar. É o movimento constante de conduzir as percep-
ções, nem sempre as estruturando em produto, mas sempre em potenciais de
assimilação. Entre o perceber e o agir criativamente existe a fina película do
segredo, daquilo que existe em sua opacidade e nem por isso é invisível ou
desimportante.
A prática do segredo é ancestral e conserva fundamentos de luta e espiritu-
alidade. É a escolha do que apresentar na narrativa, a depender de para quem se
narra. Para Agamben (2018, p. 61-62) é o elemento genuinamente filosófico de uma
obra que seria “sua capacidade de ser desenvolvida, algo que ficou sem ser dito, ou
foi intencionalmente assim deixado” pois “quem possui - ou tem o hábito de - uma
potência pode colocá-la em ato ou não”.
Os recursos reveladores da potência do segredo na criação são diversos. Assim
como Carvalho (2017, p.34), eu acredito na influência de ser invisível e na “invisibili-
dade enquanto uma estratégia possível em determinados contextos. Tenho pavor à
visibilidade compulsória”. O segredo atua na criatividade como autocuidado também
no sujeito social, configurando estratégia de sobrevivência, pois “a lacuna, o contro-
verso, o dito pelo não dito, são componentes da narrativa e merecem ser levados em
conta” (Ibidem, p. 34).
A ficcionalização de narrativas por pessoas em identidades subalternizadas são
práticas do segredo, assim como a escrevivência7, metodologia que venho utilizando
em pesquisas acadêmicas e abordagens arte/educativas. Ao utilizar do diálogo em
escuta e experiência, reforço a fricção possível entre memória e palavra, sem tornar
dicotômica a relação ficção-realidade.
A ficção na escrevivência atua como dispositivo do imaginário para tecer histó-
rias do presente, do real. Soares (2017) cita os autores Melo e Godoy para reafirmar
a importância da ficção na elaboração de potencialidades da existência:

reconhece a ficção como um modo de resistência presente na escre-


vivência evaristiana, ao passo que, na escrita, pessoas submetidas a
situações de crise, podem encontrar modos de transpor os revezes e
seguir existindo. Acrescenta: “o que veremos é que resistir por meio da
literatura é também reexistir, e para um povo cuja voz foi e é constante-
mente sufocada, a escrevivência se torna um recurso de emancipação
(SOARES, 2017, p. 206 apud MELO; GODOY, 2016, p. 30-31).

7 O termo “escrevivência” foi criado por Conceição Evaristo, escritora mineira, e refere-se à escrita que
nasce do cotidiano, das lembranças e da experiência de vida real enquanto mulher negra na sociedade
brasileira. O termo foi instituído por ela em sua dissertação de mestrado, em 1995. Ensaio com reflexões
de sua dissertação disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4365.
Acesso em: 12 mar. 2021.
142 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

Para dar voz à polifonia criativa, a escrevivência, ao contrário do que se pos-


sa imaginar, não é centrada em uma única vivência, mas é uma brecha para a cura
coletiva pela ficcionalização. Não trata somente de quem a escreve, pois a estrutura
colonial e política é refletida em outros sujeitos racializados, de modo que “o sujeito
da literatura negra tem a sua existência marcada por sua relação e por sua cumplici-
dade com outros sujeitos. Temos um sujeito que, ao falar de si, fala dos outros e, ao
falar dos outros, fala de si” (SOARES, 2017, p. 206).
Falar de escrevivências enquanto falamos de segredo é lembrar que as ima-
gens da intimidade são semelhantes às gavetas e esconderijos, e para ficcionalizar
outros futuros possíveis temos que ser conhecedores das fechaduras que queremos
abrir/fechar/fundir.

REFERÊNCIAS:

MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. Editora Cosac Naify, 2014.

CARVALHO, Laura Lorena de Souza. Tecnologias subalternas: um exercício de imagina-


ção política e reinvenção de alteridades. 2017. Monografia (Bacharelado em Ciências
Sociais) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017. Disponível em: https://bdm.unb.br/hand-
le/10483/17951. Acesso em: 30 ago. 2021.

BRASILEIRO, Castiel Vitorino. Exú Tranca Rua das Almas. 2020. Disponível em: https://
static1.squarespace.com/static/5ea302c8362c6d101944b61e/t/5f31ca0614c78e23a-
2313a6f/1597098508596/ExuTrancaRuadasAlmas_Castiel.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.

AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. Boitempo
Editorial, 2018.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Autêntica Editora, 2019.

SOARES, Lissandra Vieira; MACHADO, Paula Sandrine. “Escrevivências” como ferramenta me-
todológica na produção de conhecimento em Psicologia Social. Revista Psicologia Política,
São Paulo, v. 17, n. 39, p. 203-219, 2017.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2008.


ESCREVIVÊNCIAS E AXÓ 1 SUTIÃ-
SEIOS: NARRATIVAS AUTOBIOGRÁFICAS
“AJEUNZANDO” 2 MEU PROCESSO CRIATIVO
Brenda Gomes Bazante3

Sutiã-Seio Mamulengo-Esteriométrico, Escultura Cinética Corporal, Brenda Bazante, 2020.

1 Palavra usada na Língua Iorubá para roupas.


2 Neologismo que se origina no gerúndio da palavra “ajeum”, que na Língua Iorubá significa comida ou
alimento. Se trocar o substantivo pelo verbo, teremos, ao invés de “ajeum”, ajeunzar, que na visão aqui
empregada, afasta-se do sentido de “comer”, aproximando-se de “alimentar”. Logo, “ajeunzando” que
dizer alimentando.
3 Mestranda pelo Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais pela UFPE/UFPB, sob
orientação de Luciana Borre. Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Norte do Paraná (2018) e
Especialista em Metodologia do Ensino de Artes pela Faculdade de Educação São Luis (2019). Diretora
do Ateliê de Artes Visuais Flor de Antúrio. Pesquisa dissidências de gênero e Arte Cinética.
144 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

“MULHER, TU PRECISA BOTAR ESSES BABADOS4 PRA FORA”!


Desde o título, este artigo apresenta palavras da Pajubá e da Iorubá, lingua-
gem das trans/travestis e língua do povo preto, respectivamente. A comunidade
LGBTIAP+ utiliza palavras destas linguagens como forma de possuir um “dialeto”
próprio. Assim, podemos nos comunicar sem que os outros saibam do que falamos,
o que nos dá uma certa “sensação de segurança”. Todavia, com o aumento da vi-
sibilidade, ou do interesse das mídias pelo nosso “universo”, a Pajubá e a Iorubá
ganharam até dicionários on line5. Somado a esse cenário, uma questão do ENEM
2018 direcionou, definitivamente, os holofotes para essas palavras, até então consi-
deradas, pelos héteros, gírias do mundo gay.
Houve um tempo em que algumas travestis achavam errado revelar o signifi-
cado da Pajubá para as pessoas cis e héteros. Até concordo com elas, afinal, ao reve-
lar este ‘segredo” linguístico estaríamos perdendo a “segurança” que tínhamos com
o desconhecimento de palavras como “picumã6”, “acque7”, “bofe8”, etc. Porém,
com a quantidade de dicionários disponíveis e com a popularidade desse “dialeto”,
me sinto mais à vontade para utilizá-las na escrita acadêmica. Entendo, inclusive, que
ao escrever usando essas palavras, demarco um dos objetivos que tenho percorrido
ultimamente: estimular a representatividade e o protagonismo das vivências expe-
rimentadas por aquelas/es que divergem dos padrões de gênero estabelecidos. Ao
usar este vocabulário, acredito que posso aproximar a escrita acadêmica de pessoas
trans que não vivenciam as rigorosas regras de escrita, haja vista a ausência dessa
população nas instituições de ensino superior. Sinto-me no dever, enquanto mulher
trans realizando um mestrado, de incluir a Pajubá no conhecimento que produzo,
pois com ela posso tornar a leitura um pouco mais convidativa a esta população tão
distante das universidades.
Sendo assim, “axó”, “ajeum”, “babado”, etc serão palavras usadas na narra-
tiva que proponho executar. Histórias de vida que servem de “ajeum” para meu
processo criativo. Episódios vividos pelo pequeno Júnior, pelo Marinheiro/Cabo
Bazante e depois pela mulher que deixei “saltar para fora do armário do quartel”,
alimentaram a criação de um objeto cinético vestível9 que invoca essas memó-

4 No Pajubá, a linguagem das travestis, “babado” quer dizer assunto.


5 Sites de revistas como Super Interessante e Trip possuem matérias falando sobre esses dicionários
e a popularidade dessas linguagens na atualidade. Ver https://super.abril.com.br/cultura/o-que-e-o-
pajuba-a-linguagem-criada-pela-comunidade-lgbt/ e https://revistatrip.uol.com.br/trip/conheca-as-
raizes-historicas-e-de-resistencia-do-pajuba-o-dialeto-lgbt.
6 Palavra usada para os cabelos.
7 Acque quer dizer dinheiro.
8 No Pajubá, os homens são chamados de “bofes”.
9 Uma das inspirações para essa prática artística foi um desfile da grife de luxo francesa Iris Van Herpen.
No fashion show criado para o inverno de 2019, a Maison criou o “Infinity Dress”, um lindo vestido
que possuía partes móveis. Para ver acessar o seguinte site: https://www.youtube.com/watch?v=Sk-
hfOv_hOs.
ESCREVIVÊNCIAS E AXÓ SUTIÃ-SEIOS 145

rias. Trata-se de um sutiã-seios, que é assim chamado porque pode ser vestido.
Além de questões ligadas à prática artística, apresento partes de minha biogra-
fia, episódios dela. Nessa ação, não ajo performaticamente na escrita, nem tampou-
co escrevo de forma automática, como fez, maravilhosamente, Camargo (2018) em
sua auto caligrafia. No entanto, assim como ela, acredito no potencial da “escrevi-
vência, a vivência escrita na palavra” (CAMARGO, 2018, p. 3682). A autora baseia seu
texto neste termo criado por Conceição Evaristo, importante romancista brasileira,
para quem “a nossa ‘escrevivência’, não pode ser lida como histórias para ‘ninar os
da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (EVARISTO, 2007,
p. 21 apud CAMARGO, 2018, p. 3683).
No meu caso, “os da casa grande” são aqueles que, nas relações sociais, nas
instituições ou até mesmo no ambiente familiar, insistem na negação da equidade de
direitos pertencentes e adquiridos por pessoas transgêneras. Não me enxergo numa
batalha sangrenta contra as pessoas cisgêneras, como os povos pretos tiveram que
fazer — afinal, minha família tem pessoas cis, minha mãe e meu pai são cis e héteros.
A emergência aqui colocada, diz respeito entre outras coisas, à luta pela represen-
tatividade, que, de certa forma, também está relacionada à luta pela vida. Sendo
assim, baseando-me na definição que Rancière (2012) dá para a política, a minha voz
e escrita incomodam o sono “dos da casa grande”, como sugere Evaristo (2007), mas
também chacoalham as normas de gênero socialmente estabelecidas por toda uma
sociedade que considera as existências transgêneras inferiores e, historicamente,
tentou invisibilizá-las.
Santos (2019), falando sobre Artes Visuais, oferece uma reflexão acerca do
apagamento gerado por essas relações de poder no contexto histórico brasileiro.
Segundo a autora, “a violência da escravidão se transmuta em violência da subcida-
dania, que, por sua vez, se converte em sub-representação” (SANTOS, 2019, p. 343).
Assim como os povos pretos escravizados no Brasil, a população trans sofre violên-
cias de subcidadania e, consequentemente, não alcança a representação a que tem
direito. Na contramão desse cenário, posso dizer que minha escrevivência contribui
para promover o rompimento dessas amarras e causa incômodo naqueles que dese-
jam manter a cisheteronormatividade em voga. Desagrada aqueles que insistem em
silenciar toda e qualquer boca que brade palavras que ataquem essa pseudo verdade
sobre os comportamentos sexuais e de gênero.
Nesse sentido, ao longo dos últimos anos, diversas narrativas e histórias de
vida de pessoas trans e travestis foram contadas através da escrita de pessoas cis-
gêneras. Em importantes livros biográficos, as vivências de um pequeno número de
mulheres, como eu, começaram a ganhar protagonismo, entretanto sempre senti
falta de conhecer as histórias de outras existências transgêneras através de textos
escritos por nós mesmas. Então, em 2017, Amara Moira, juntamente com João Nery,
Marcia Rocha e Tarso Brant, organizou o livro Vidas Trans. Trata-se de um marco na
história do movimento LGBTIAP+ brasileiro, pois, desde o prefácio, ele foi inteira-
mente escrito por homens e mulheres trans.
Ao ler Evaristo (2007), me deparo com uma importante questão levantada pela
autora, que mais a frente aproximarei da discussão oferecida pelo grupo organizado
146 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

por Moira (2017). Após narrar os percalços enfrentados durante uma infância pobre
e repleta de violências dos mais variados tipos, ela pergunta-se “o que levaria deter-
minadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e quando muito,
semi-analfabetas, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimen-
to da escrita?” (EVARISTO, 2007, s. p). Na tentativa de responder, a escritora destaca
que

Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler
oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de
uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do
sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior
do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres ne-
gras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados
dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sen-
tido de insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar, muitas
vezes, desde uma escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso
exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da
matéria narrada. (EVARISTO, 2007, s.p.).

Num contexto de ausência de escrevivências de mulheres trans, a desobedi-


ência acima descrita, no nosso caso iniciada por Moira (2017) e outras escritoras,
desencadeou em mim um sentimento de urgência na contação da minha trajetó-
ria. Lembro-me de ler as memórias de Rocha (2017) e enxergar nelas o receio que
eu tinha de abandonar o trabalho na Marinha. Vibrei com a felicidade presente na
narrativa de suas cirurgias e na confiança que ela ganhou ao sentir-se orgulhosa e,
finalmente, poder usar o nome Marcia Rocha. Só quem foi dita homem, como desta-
ca Moira (2017), sabe o quanto é bom ter o nome social respeitado, ou poder exibir
com segurança o documento de identificação já retificado.
A presença de histórias como essas na literatura, na escrita acadêmica ou no
campo das artes visuais, alimenta o reconhecimento e o fortalecimento de outras
meninas e meninos trans que se sentem sozinhas num “mar” cissexista10 que tenta
“afogar” as identidades trans que lutam para emergir à superfície.
Dessa forma, com minhas práticas artísticas, decidi contribuir para o arsenal
de dispositivos disparadores de autorreconhecimento. Passei a conduzir meu fazer
artístico num trajeto artivista, levando em consideração a concepção de Trói (2018),
que prefere grafar o termo a(r)tivismo, ao invés de artivismo. O autor entende que

A lógica não é dizer qual produção é ou não a(r)tivismo, mas refletir so-
bre a emergência dessas produções nos permite notar como isso afeta
todo o contexto das artes e seu mercado, perceber que a todo momen-
to, artistas, ativistas, coletivos e o próprio mercado serão questionados

10 Ideologia, resultante do binarismo ou dimorfismo sexual, que se fundamenta na crença estereotipada


de que características biológicas relacionadas a sexo são correspondentes a características psicossociais
relacionadas a gênero. O cissexismo, ao nível institucional, redunda em prejuízos ao direito à auto-
expressão de gênero das pessoas, criando mecanismos legais e culturais de subordinação das pessoas
cisgênero e transgênero ao gênero que lhes foi atribuído ao nascimento. Para as pessoas trans em
particular, o cissexismo invisibiliza e estigmatiza suas práticas sociais (JESUS, 2012, p. 28).
ESCREVIVÊNCIAS E AXÓ SUTIÃ-SEIOS 147

quanto a validade, a legitimidade e os agenciamentos que essas pro-


duções suscitam. Para além das ‘intenções’ dos artistas e ativistas, são
os enunciados e seus impactos que nos darão ferramentas para anali-
sar essa emergência. Penso, por exemplo, ser mais lógico chamar essa
produção de a(r)tivismo do que considerar ou chamar aqueles que
executam as obras de ‘artivistas’. Mesquita (2008) usa os termos ‘artis-
ta ativista’, ‘ativista cultural’ ou simplesmente ‘artista’ ou ‘ativista’. Se
o sufixo ‘ismo’ procura dar a ideia de algo instituído, de movimento,
aqui é preciso um esforço permanente para fugir da ideia de movimento
unificado e pensar na emergência de determinada produção como um
acontecimento (TROI, 2018, p. 76 apud COLLING, 2019, p. 15).

Sobre essa emergência, Colling (2019) aponta uma ligação, na atualidade, com
coletivos e artistas que “trabalham dentro de uma perspectiva das dissidências sexu-
ais e de gênero e que, ao mesmo tempo, explicitam suas intenções políticas, ou me-
lhor, que criam e entendem as suas manifestações artísticas como formas distintas
de fazer política” (COLLING, 2019, p. 21). Ainda segundo o autor, algumas condições
favoreceram o aumento da produção de discursos provocadores. Entre elas destaco:
as ações de grupos conservadores que decidiram atacar abertamente a população
LGBTIAP+, consequentemente originando o desejo de construir estratégias para
romper essa repressão; a divergência de parte da nossa comunidade no que se refere
à conduta tomada por aqueles que tentam aderir a um paradigma heteronormativo,
buscando entre outras coisas o casamento institucionalizado, a concepção da sexu-
alidade a partir do binário homem-mulher, etc; o aumento do acesso à tecnologia e
às redes sociais; e por fim, o crescimento dos estudos ligados à sexualidade e gênero
em nosso país, principalmente durante o governo do ex-presidente Lula (COLLING,
2019).
Inspirada por essas condições, as memórias aqui descritas “ajeunzaram” a
criação do objeto cinético “Axó Sutiã-Seios”, peça móbile vestível que foi confeccio-
nada para o projeto Tramações em sua terceira edição. Para apresentar como ocor-
reu a minha participação nesse projeto, descrevo brevemente a seguir dois episódios
vividos tanto pelo pequeno Júnior, quanto pelo Marinheiro/Cabo Bazante. Ancestrais
da mulher que hoje demonstro existir e que dia após dia começa a entender a di-
versidade existente no devir mulher. Em seguida relato a minha relação com a arte
cinética e com a modelagem até chegar aos caminhos e práticas que exercitei para a
confecção do objeto cinético.

PÍLULAS NARRATIVAS DE UM ÊRE11 MAGRICELO QUE MEXIA COM AGULHAS E


DE UM MARINHEIRO QUE “ESCAPOU” DE DENTRO DO ARMÁRIO DO NAVIO
As memórias aqui descritas me chegam como fatias ou pedaços desgarrados
de uma massa maior. Elas lembram-me pílulas, como aquelas que tomei durante
grande parte da transição do gênero masculino para o feminino. Todo esse processo
é extremamente natural, pois, de acordo com Franz e Landeira-Fernandez (2006), a
evocação de acontecimentos passados obedece a um sistema que privilegia aqueles

11 Palavra usada na Língua Iorubá para criança.


148 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

considerados relevantes, em detrimento dos irrelevantes. Desta forma, lacunas e


lapsos de memória são comuns na rememoração.
Tendo conhecimento dessas questões, inicio uma breve jornada que parte das
brincadeiras do pequeno Júnior em direção às descobertas de um jovem Cabo que
abandona a Marinha do Brasil após descobrir, no convívio com outras subjetividades
e mulheridades trans, a sua identidade dissidente de gênero.
Essa história começa na minha infância, época em que gostava de mexer com
materiais de costura. Lembro-me de minhas tias reclamarem quando mexia na caixa
de aviamentos ou na velha máquina que ficava num pesado carrinho de metal preto.
Eu gostava de sentar e ficar pisando no pedal, imaginando a costura surgindo num
tecido imaginário que se transformaria num longo vestido de poá branco e preto.
Quando me recordo destes momentos percebo que as ligações com o universo “fe-
minino12” já estavam presentes desde a infância e que, indiretamente, eu flertava
com esse que seria, anos à frente, o meu modo de vida.
Essas memórias fazem parte de um passado no qual o pequeno Júnior, apeli-
do de infância, não entendia porque pensava num vestido de bolinhas, ao invés de
brincar com carros de corrida. Mas, uma coisa ele tinha certeza: tinha que manter
esse desejo bem guardado, escondido entre as linhas e agulhas. Nesse cenário,
aquele menino magricelo foi crescendo e pouco a pouco seus dedos deixaram
de doer devido aos furos que as agulhas faziam, afinal ele parou de brincar com
a caixa de aviamentos das tias e fora trabalhar como marinheiro – carreira que
lhe garantiu certa estabilidade financeira, mas trancafiou sua transmulheridade.
Consequentemente, com esse gesto, ele pode performar a figura do macho que o
serviço militar necessitava.
Neste novo cenário, a costura que tecia em sua mente passou a ser outra.
Dentro dos quartéis, o agora Marinheiro Bazante, tinha que manter os uniformes
alinhados e ziguezaguear seus modos de ser para encenar o papel de militar bem
comportado, mesmo tendo consciência da mulher de 1,83 m que sabia existir no
seu íntimo. Existência feminina presente por detrás da masculinidade compulsó-
ria que lhe fora atribuída no nascimento (BUTLER, 2020; PRECIADO, 2017), mas
que precisava continuamente esconder. Naquela época, e creio que ainda hoje,
comportamentos que divergem dos padrões esperados para homens e mulheres,
tomando como referência o sexo biológico e a identidade cisgênera, são conside-
rados inadmissíveis no ambiente militar. Vide o caso da Sargenta Bruna Benevides,
minha amiga de transição que, mesmo tendo ganhado na justiça o direito de voltar
ao serviço, após ter sido considerada inapta por ser trans, permanece afastada
de seu trabalho. Diferente dela, que seguiu firme e exigiu da Marinha a aceitação
de sua transgeneridade, o Marinheiro Bazante, que ganhou mais uma insígnia no
uniforme e passou a ser Cabo, via sua situação caminhar-se para uma espécie de
prisão.
Alguns anos mais tarde, a garota esguia que adorava moda finalmente rompeu

12 Considero esse universo a partir de nossa cultura que determina um certo tipo de vestuário e
comportamentos para as mulheres, ou seja, o uso de vestidos, cabelos longos, etc.
ESCREVIVÊNCIAS E AXÓ SUTIÃ-SEIOS 149

a grossa camada de tecido mescla que a prendia dentro da disciplina exigida do


13

Marinheiro Bazante. Para usar uma expressão popular, diria que ela conseguiu “abrir
a porta do armário”. “Nascia” então a Brenda Bazante, nome que adotei por sugestão
de Bruna. Uma vez livre para performar minha “mulheridade”, voltei ao Recife e fui
trabalhar com cabelos, seguindo os conselhos do querido Maninho, um dos maiores
cabeleireiros que essa cidade conhecera. Sabia que no trabalho com vestuários, que
era a minha antiga paixão profissional, o dinheiro demoraria muito a chegar, como
disse esse amigo cabeleireiro. Era uma época de luta pela sobrevivência, então fiz a
escolha mais fácil, trabalhar no ramo da beleza.
Hoje, com certo reconhecimento enquanto cabeleireira, profissão que me dá
suporte e paga as contas, pude voltar às salas de aula e cursar o ensino superior.

SUTIÃ QUE VEM COM SEIOS MÓVEIS E A COSTURA


DE UM OBJETO CINÉTICO VESTÍVEL
Desde a graduação trabalho com móbiles e Arte Cinética criando, ora peças
decorativas, ora peças que despertam algum tipo de reflexão crítica. Ao ser convi-
dada para participar desta edição do projeto Tramações: a memória e o têxtil, final-
mente vi a oportunidade de relembrar o tempo de criança. Brincar novamente com
a caixa de costura – mas desta vez procurando entender como aliar a arte têxtil às
minhas práticas com esculturas cinéticas e a representação do corpo trans, tendo
minhas memórias autobiográficas como fonte de inspiração.
Como dito anteriormente, sempre gostei de trabalhar com linhas, agulhas,
tecidos e aviamentos, mas não incorporava estes materiais em minhas produções.
Ao iniciar a pesquisa no mestrado, expandi minha imaginação e comecei a cobrir os
corpos de minhas bonecas de arame com linha de crochê, percebendo o potencial
deste material no campo tridimensional.
Ao mesmo tempo as linhas passaram a fazer parte de minhas esculturas como
suporte para o movimento das partes móveis dos móbiles. Suas cores e força são
muito úteis às minhas produções, mas será essa a sua única finalidade? Como posso
utilizar este material e as técnicas de arte têxtil na pesquisa? Como posso usar as
linhas de crochê para além da textura e do suporte das peças móveis?
Na relação com as técnicas, entendo que no momento o meu trabalho talvez
não se relacione com as conhecidas técnicas próprias da arte têxtil, pois ao revestir
as bonecas com a linha, não estaria costurando nem tecendo. Ou será que estou?
Até onde o ato de costurar está diretamente ligado ao uso de uma agulha? Pretendo
aprofundar estas reflexões lendo mais sobre Arte Têxtil e me apropriando de suas téc-
nicas e transgressões para ampliar o meu fazer artístico. Por hora, não uso qualquer
técnica de crochê ou tricô. Estou apenas enrolando as linhas ao redor dos gravetos.
Ao observarmos a imagem, podemos perceber que o material empregado ganha um
destaque interessante nestas produções, pois não me preocupo em camuflá-lo ou

13 O tecido mescla azul era usado na fabricação dos uniformes de Cabos e Marinheiros. É um tecido
mesclado feito de poliéster microfilamentado ou de nylon (poliamida). É muito resistente e esquenta
com muita facilidade.
150 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

fazê-lo parecer outra coisa, ou seja, mantenho-o rústico. A partir dessas reflexões,
pretendo ampliar o emprego destes materiais em outras criações que desenvolvo,
estimulando a imaginação criativa a partir deste grupo de pesquisa.
São estas questões que moveram minha investigação em Tramações. Dispus-
me a atuar no campo tridimensional, mas também senti que no caminhar desta
pesquisa pude descobrir outros caminhos para minha prática com arte têxtil tran-
salinhavando minhas memórias e narrativas autobiográficas por meio dos materiais
presentes na tão querida caixa de aviamentos. Logo, desse processo surgiu a peça
apresentada. Um móbile sob base estável vestível, por assim dizer. Um tipo de sutiã
base que dá suporte aos seios móveis inspirados numa peça protótipo que era com-
posta apenas pelos móbiles que compõem os seios.
A ideia foi construir uma peça de vestuário que contivesse algum elemento
móvel. Nesse sentido, as memórias da máquina de costura e da caixa de aviamentos
serviram como ponto de partida para a elaboração desta escultura corporal. Comecei
a esboçar uma peça que representasse tanto a ligação com a vontade de costurar,
oriunda lá na infância, como as práticas artísticas que venho atualmente pesquisan-
do em torno das transmulheridades. Desta forma cheguei ao “Axó” Sutiã-Seios. Mas
por que eu decidi vestir a peça? Por que fazer um móbile a partir do formato dos
seios? São questões que emergem já que durante muito tempo a minha relação com
a Arte Cinética manteve-se ligada à abstração ou, no máximo, à presença de alguns
origamis de animais.
Além disso, essa peça exemplifica o Conceito de Transcorpocinetismo, teoria
que está sendo gestada na pesquisa sobre as Travas Transcorpocinéticas. Esse con-
ceito, baseado em teorias e práticas artísticas exploradas no desenvolvimento da
investigação, faz-se presente em minha poética associado às intervenções corporais
nas esferas endocrinológicas, cirúrgicas e estéticas realizadas por mulheres transgê-
neras após suas transições.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Participar de Tramações: A memória e o têxtil foi uma experiência enriquece-
dora para minha caminhada acadêmica. Meu entendimento sobre arte têxtil mudou
consideravelmente após esse projeto de extensão. Entre outras coisas, gostaria de
destacar a coragem que tive, a partir da narração de minhas vivências, em modelar
para as fotos com a peça móvel.
Na modelagem da foto para o projeto eu precisaria usar a peça enquanto a
movimentava. Quando penso nisso, percebo que podem estar aí os meus receios
quanto à aparição na exposição virtual. Creio que quando comecei a trabalhar com
Arte Cinética, passei a ocupar os bastidores. Deixei os móbiles brilharem sobre os
spots das galerias e me pus na retaguarda.
No entanto, os estudos de gênero, de política e as histórias de vida que li,
despertaram o desejo de atuar de forma mais presente nas exposições. Literalmente
“botar a cara no sol”. E foi isso que fiz em Tramações.
É nesse caminho que pretendo seguir: saindo de trás das cortinas e dos textos
– como sai do armário do quartel a anos atrás – para junto com eles, os escritos, e
ESCREVIVÊNCIAS E AXÓ SUTIÃ-SEIOS 151

com práticas a(r)tivistas, contar minhas memórias e, quem sabe, jogar o picumã pro
alto da próxima vez.

REFERÊNCIAS:

BARRET, Cyril. Arte Cinética. In: STANGOS, Nikos. Conceitos de Arte Moderna: com 123 ilus-
trações. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor Ltda, 1991.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 19. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.

CAMARGO, Denise Conceição Ferras de. Caligrafar-me: apontamentos para uma conversa em
torno de um gesto e de um texto inacabados. In: ENCONTRO Da ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS. 27. 2018. Anais [...], São Paulo: Universidade Estadual
Paulista (UNESP), Instituto de Artes, 2018, p. 3681-3691.

COLLING, Leandro (Org.). Artivismos das dissidências sexuais e de gênero. Salvador: EDUFBA,
2019.

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de


minha escrita. Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces.
Belo Horizonte: Mazza Edições, p. 16-21, 2007.

FRANK, Jean; LANDEIRA-FERNADEZ, J. Rememoração, subjetividade e as bases neurais da me-


mória autobiográfica. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 18, n-1, p. 35-47, 2006.

JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. 2.
ed. Brasília, 2012.

MOIRA. Amara. et al. Vidas Trans. Bauru: Astral Cultural, 2017.

ROCHA. Marcia. A luta pela aceitação. In: MOIRA. Amara. et al. Vidas Trans. Bauru: Astral
Cultural, 2017.

PRECIADO. Paul Beatriz. Manifesto contrassexual: práticas subversivas da identidade sexual.


São Paulo: N-1 edições, 2017.

RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2012.
A MUSA: BORDADO CONTRASSEXUAL
E BRONZEADOR SOLAR FATOR 5
Mariana de Albuquerque Penha1

A Musa, bordado e colagem, 110x110 cm, Mariana Gualberto, 2020.

TECNOLOGIAS DO CORPO E A CONTRASSEXUALIDADE


A produção cultural na qual estamos inseridos desde o nascimento envolve
ensinamentos sobre como devemos agir, nos manifestar, interagir e relacionar com o
mundo e consigo. Isso acontece a partir das vivências de cada região, das tempora-
lidades, dos aspectos culturais e das relações interpessoais que vão guiando formas
de interagir, criando tecnologias do corpo padronizado e entendendo que “a sexuali-
dade envolve rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções...
Processos profundamente culturais e plurais” (LOURO, 2000, p. 6).
O discurso científico, por exemplo, ao longo dos séculos, catalogou, fragmen-
tou e definiu as funções para cada parte do corpo. Alicerçados pelos ideais iluminis-
tas, os discursos científicos colocaram como ação natural e de natureza essencial
humana determinadas práticas de como cada parte do corpo age, funciona e reage,

1 É graduanda em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pernambuco e participa do Programa de


Iniciação Científica (PIBIC/UFPE) sob orientação de Luciana Borre.
A MUSA 153

influenciando e justificando como natural algumas manifestações corporais, padro-


nizando funcionalidades e formas (PRECIADO, 2014).
Quando cada corpo tem suas partes fragmentadas em funções específicas,
tende-se a ignorar e repudiar práticas distintas às suas funcionalidades “biológicas”.
Podemos dizer que esse corpo está inserido no que Preciado (2014) denominou
“tecnologias do corpo”. Entendo a problematização do termo tecnologia no sentido
da criação do corpo como ferramenta e prática social, onde cada parte tem sua ca-
racterística com uma função específica de ação, criando “utilidades”. Por exemplo,
aprendemos que as mãos são a única parte que tem a função de segurar objetos.
Aqui, estamos falando sobre a criação da tecnologia de função de um membro des-
tinada a uma ação, ignorando que é possível segurar objetos com outros membros,
tais como: cotovelos, braços, pernas e até com a boca.
Quando falamos sobre os órgãos sexuais, reconhecemos que circula a ideia de
finalidade dessas partes como destinadas à função sexual, historicamente categori-
zadas em gênero masculino e feminino e desconsiderando sujeitos intersexuais (pes-
soas que nascem com ambas as manifestações sexuais ou genes mais acentuados
em determinado sexo). É importante que seja levada em consideração as manifes-
tações biológicas desviantes da binaridade, pois como aponta Anne Fausto Sterling
(1993, p. 02): “biologicamente falando, existem muitos graus entre fêmea e macho;
e, dependendo de como determinamos as coisas, poderíamos argumentar que nesse
espectro existem ao menos cinco sexos. E talvez até mais”.
Além disso, os órgãos sexuais foram localizados na mesma região corpórea
que, ligados à sexualidade heternormativa, desenvolvem funções reprodutivas, onde
o órgão sexual masculino (pênis) penetra o órgão sexual feminino (vagina) para o
processo reprodutivo. O sistema sexo-gênero, reforçado pelo discurso científico oci-
dental, designou as funções sociais entre sujeitos a partir do órgão sexual de nasci-
mento, onde separa-se em masculino (sujeitos que nascem com pênis) e feminino
(sujeitos que nascem com vagina). O sujeito cuja genitália é considerada masculina,
automaticamente, associa-se como um sujeito cuja função social deva ser da cate-
goria “homem”. Assim como o sujeito cuja genitália é considerada feminino, auto-
maticamente, associa-se como um sujeito cuja função social deva ser da categoria
“mulher”. Preciado (2014) aborda tais relações ao dizer que:

O sistema sexo/gênero é um sistema de escritura. O corpo é um texto


socialmente construído, um arquivo orgânico da história da humanida-
de como história da produção-reprodução sexual, na qual certos códi-
gos se naturalizam, outros ficam elípticos e outros são sistematicamente
eliminadas ou riscadas. A (hetero)ssexualidade, longe de surgir espon-
taneamente de cada corpo recém-,nascido, deve se reinscrever ou se
reinstruir através de operações constantes de repetição e de recitação
dos códigos (masculino e feminino) socialmente investidos como natu-
rais (PRECIADO, 2014, p. 26).

Não há a possibilidade da denominação de um terceiro gênero dentro do sis-


tema sexo-gênero heternormativo. A força deste sistema, nasce a partir de crenças li-
mitantes sobre o corpo, impossibilitando a pluralidade e a liberdade de existências e
154 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

modos de ser. Ainda nesta perspectiva, até os prazeres são conformados por práticas
onde a genitália masculina, tida como ativa, penetra sobre a feminina, reverberando
em estruturas maiores de dominação entre os corpos. Preciado (2014) contribui com
estas reflexões ao dizer que:

Os papéis e as práticas sexuais, que naturalmente se atribuem aos gê-


neros masculino e feminino, são um conjunto arbitrário de regulaçôes
inscritas nos corpos que asseguram a exploração material de um sexo
sobre o outro. [...] Os homens e as mulheres são construçôes metoními-
cas do sistema heterossexual de produção e de reprodução que autoriza
a sujeição das mulheres como força de trabalho sexual e como meio de
reprodução. Essa exploração é estrutural, e os beneficias sexuais que
os homens e as mulheres heterossexuais extraem dela, obrigam a re-
duzir a superfície erótica aos órgãos sexuais reprodutivos e a privilegiar
o pênis como o único centro mecânico de produção de impulso sexual
(PRECIADO, 2014 p. 26).

CORPOS DA HETEROSSEXUALIDADE E (CIS)TEMA


Percebo por meio de discursos imagéticos que há uma forte defesa das práti-
cas sexuais heteronormativas onde o sexo apenas é considerado “legítimo” quando
a prática sexual se refere entre os sujeitos cisgêneros de sexo-gênero distintos, onde
há a penetração da genitária masculina (homem) com o sexo de genitária feminina
(mulher), reproduzindo o (cis)tema sexual conservador.
O termo cisgênero é designado a sujeitos que se identificam socialmente com
o sexo de nascimento, assim, homens cisgêneros são sujeitos de genitália masculina
que se identificam como homens e mulheres cisgêneras são sujeitos de genitália
feminina que se identificam socialmente como mulheres. A partir disso, entendo
por (cis)tema como a sistematização que correlaciona de maneira indissociável as
relações entre identidades de gênero e sexo biológico dentro do discurso científico
e social.
Esse (cis)tema muitas vezes é reforçado pelo discurso de reprodução da vida
humana, mas algumas brechas são criadas para romper com tais metanarrativas.
Preciado (2010) fala de uma destas “fraturas discursivas” ao abordar a revolução
fármaco das pílulas anticoncepcionais que geraram mudanças sociais significativas
na sexualidade dos corpos cisgêneros femininos. A autora ainda exemplifica que até
a pílula anticoncepcional se tornou objeto de consumo dos sujeitos de identidades
distintas que, por vezes, consomem a pílula que contém o hormônio tido como femi-
nino, gerando mudanças físicas nos corpos que não são biologicamente categoriza-
dos como femininos de nascença. Com função química desviada, variantes do sexo-
-consumidor de tais comprimidos e injetáveis, agora permitem novas possibilidades
que o corpo hormonado pode manifestar.
Os exemplos citados buscam evidenciar que o (cis)tema sexo-gênero não con-
templa as diversas formas das relações possíveis entre sujeitos com seus corpos.
Durante séculos, a produção científica, os discursos políticos, religiosos e educa-
cionais associaram a natureza (biologia) da essência humana com funções que de-
veriam exercer socialmente a partir da genitália de nascimento. O que percebo na
A MUSA 155

contemporaneidade são dois movimentos: um de solidificação destas atribuições e


outro de esfarelamento com as quebras feitas por sujeitos cujas identidades não
correspondem mais às expectativas sociais e biológicas.
Um destes possíveis esfarelamentos está relacionado às práticas sexuais que
desviam o foco do prazer das genitálias e que permitem uma nova visualidade des-
viante de funções corporais pré estabelecidas, destinando, por exemplo, prazer a
outras partes do corpo, tais como dedos, pulso, pés e braços, ânus e afins para as
práticas sexuais entre pessoas de corpos distintos e/ou sobre o mesmo corpo, como
nas práticas individuais.
Para se ter ideia, “apenas no século XVIII que a masturbação será construída
médica e institucionalmente como uma ‘doença’” (PRECIADO, 2014, p. 100). Criou-
se patologias a partir das diferenciações do prazer, assim como a norma do que é
considerado ação e desejo seguro e correto, saudável e natural. As práticas que se-
guissem a normativa seriam exaltadas como comuns, enquanto as desviantes deve-
riam ser tratadas medicamentosamente. Com isso, foram fabricadas as catalogações
dos “ismos” – homossexualismo, por exemplo – que acentuaram diferenças entre os
sujeitos.
As relações sexuais heternormativas são manifestações do (cis)tema que nor-
maliza cientificamente algumas formas de sentir prazer, possibilitando a manutenção
de poder de quem segue à risca essas práticas, enquanto considera anormal práticas
desviantes desse referencial, colocando-as dentro dos estudos da perversão. O sexo
entre pessoas da mesma genitália, ou das que sentiam prazer a partir de estímulos
distintos aos esperados das relações heternormativas (como por exemplo, o prazer a
partir do ânus, a masturbação solo, os fetiches e afins) fazia com que fossem consi-
deradas anormais e/ou doentes.
Entendo que a contrassexualidade abordada por Preciado (2014) me in-
fluenciou a pensar sobre desvios das funções corporais e os estímulos espera-
dos para cada um deles, permitindo novas formas de observar, viver e refletir
sobre as práticas do prazer sexual a partir da criação de “novos órgãos sexuais”.
Quando se ressignifica as manifestações do corpo, passando a observá-lo como
uma matéria total sexual, desvia-se das expectativas e catalogações criadas no
(cis)tema sexo-gênero. Peito, olho, dedo, pé, orelha, vagina, pênis, barriga, anûs,
cotovelo se tornam potenciais ativos de prazer e/ou desprazer. Uma totalidade
integradora que pode compor práticas sexuais condizentes com a potencialidade
humana.

“A MUSA” - O BRONZEADOR SOLAR FATOR 5


Os objetos que utilizamos no dia a dia também são comumente destinados à
funções determinadas, trazendo possível estranheza com desvios do seu uso. Os des-
locamentos das tecnologias do corpo e a maneira que se relacionam com os objetos
no dia a dia podem passar despercebidos. Geralmente não prestamos atenção quan-
do alguém segura objetos com a boca quando as mãos estão ocupadas, ao colocar
o pé para amortecer a queda de algum objeto, ou pendurando toalhas de louça no
ombro durante o preparo de alguma comida.
156 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

Sugiro pensarmos como seria utilizar objetos e membros do corpo em diferen-


tes contextos e práticas: utilizar uma cenoura como objeto de prazer; acariciar a re-
gião anal com o mesmo zig-zag que se faz ao escovar os dentes; aproveitar a textura
do travesseiro em contato com a pele no ínício de uma ação sexual...
O sexo é apenas uma das várias manifestações de ação do corpo como qual-
quer outra prática cotidiana comum. A visualidade que sugiro sobre ações sexuais
não visa a persistência em práticas diversas ou impor que sejam diárias, mas sim
como a possibilidade de execução em novas sexualidades do corpo, a ponto de se
tornarem comuns. O que sugeri, durante o processo de criação da bordado “A Musa”,
foi o deslocamento do uso de objetos cotidianos para novas formas de segurar, mo-
vimentar-se e interagir, com o cunho sexual coletivo e/ou solo. É uma prática comu-
mente vivenciada, mas pouco comentada. Os objetos sexuais, conhecidos como “sex
toys”, tendem a ser destinados exclusivamente às ações sexuais, assim como outros
objetos cotidianos que têm suas funções delimitadas. Em A Musa utilizei um objeto
comum, bronzeador solar fator 5, para outras práticas diárias que não eram destina-
das à sua funcionalidade inicial.

DADAÍSMO SEXUAL DO PRAZER


Assim como o dadaísmo deslocou o sentido de objetos industriais para a res-
significação do status de arte, problematizando a “neutralidade” do cubo branco dos
museus com o objetivo de deslocar objetos cotidianos de seu uso de origem para
uma nova função com o corpo como um objeto de prazer, criei o conceito chamado
dadaísmo-sexual.
O corpo dadaísta-sexual configura-se como o cubo branco dos museus, possi-
bilitando novos discursos do objeto adentrados ou externados em seus corpos para
outras formas de funcionalidade, tornando-os objetos sem valoração moral ou so-
cial. Assim como os objetos dadaístas foram ressignificados de suas funcionalidades
na arte, o objeto no corpo dadaísta-sexual desloca-se sob seus membros, ressigni-
ficando suas funcionalidades de origem para o prazer sexual. No deslocamento da-
daísta-sexual, a utilização de objetos cotidianos para fins sexuais mudam apenas na
funcionalidade inicial. O vibrador é objeto. Escova de dente é objeto. Embalagem de
bronzeador é objeto. Pente de cabelo é objeto. Chuveirinho é objeto. Sexualmente
ou não, todos os objetos existem e podem ser utilizados de maneiras distintas. A par-
tir disso, a obra “A Musa” vem acompanhada por meu “Manifesto dadaísta-sexual”:

Sou pente riscos, interação entre deslocamento membro


Dadaísmo-sexual industrial neutraliza, prepara-se
Considerar cabelo onde corpo nós
Como sexualmente pernas, pescoço pré-fabricado, escova-de-dente

Origem como sentido


Mãos adentrando estimular cada um objeto
Prazer mudam moral status matéria
Existem origem cotidiano destinar deve

Todos para função


A MUSA 157

A partir das leituras do “Manifesto Contrassexual” de Paul Preciado (2014),


tenho registrado experimentações que considero “ações contrassexuais”, abordando
a interpretação que tenho do que seria o prazer a partir do estímulo do próprio corpo
com objetos cotidianos. Foram vivências que ultrapassaram a penetração sistêmi-
ca pênis-vagina, atravessaram outras partes catalogadas do corpo, outros objetos,
outras maneiras de se pensar o prazer e o estímulo próprio. Para conhecer outras
vivências e curiosa com o que poderia aprender, lancei um questionário público com
as perguntas: Você já utilizou algum objeto doméstico para se estimular? Se sim, qual
ou quais? Em quais partes do corpo já se estimulou na prática descrita? Descobri o
que é pouco falado fora das quatro paredes dos quartos: há muitos objetos fora de
suas funcionalidades comuns.

O BORDADO E A PARTILHA
Com base em minhas narrativas autobiográficas e nas respostas da enquete
feita através do formulário online, utilizei técnicas de bordado para registrar visual-
mente as aprendizagens que tenho construído. A Musa evidencia uma prática sexual
ao traçar as linhas do meu corpo. Aqui, o bordado fugiu da temática das flores e ador-
nos “tradicionais” com os quais tive contato em minha trajetória pessoal. Durante o
processo de criação tive a cumplicidade de uma amiga que, depois de muitas con-
versas e brincadeiras sobre esse tema, apelidamos carinhosamente a embalagem de
bronzeador solar fator 5 de A Musa.
Deslocando a visualidade artística do que seria considerada a “musa” retra-
tada nas obras de arte que historicamente são baseadas na figura grega da mulher
branca cisgênera. A musa inspiradora torna-se a retratação de um objeto cotidiano
que se erotiza durante uma prática de prazer sexual cotidiano. O objeto inanimado
torna-se agora a fonte de beleza e inspiração ao fazer artístico e é retratado com a
temática da musa. A Musa – Bronzeador Solar fator 5 – se torna um objeto que é sen-
sibilizado ao olhar diário como fonte artística inspiradora, não apenas no momento
da observação para a obra ou para o ato sexual, mas também sobre a influência de
objetos comuns ao redor como musas e musos em potenciais retratações artísticas
para a obra de arte e/ou como objeto de prazer.
Com isso, bordei uma embalagem de bronzeador sendo introduzida nas linhas
que traçam a região das genitálias, onde há o registro de deslocamento do objeto
cotidiano de seu uso comum para a interação com outra região corpórea, adentran-
do partes distintas às da tecnologia esperada de como o corpo deve interagir com o
recipiente do Bronzeador Solar fator 5.
Vicenciei situações ao bordar a obra que evidenciaram diversos tabus e limita-
ções que tenho na vida particular em relação ao assunto sexo e contrassexualidade,
que escancararam, para mim, a necessidade das temáticas que abordo enquanto
pesquisadora e artista. Eu, enquanto sujeito que produz arte sendo o mesmo sujeito
que participa das esferas sociais, como familiar e amiga, percebi fricções constantes
na maneira em que me relaciono com a mesma temática em ambientes distintos.
Tenho limitações sociais que a liberdade artística e filosófica me permitem permear
e tirar as próprias amarras (dos nós) que atei.
158 A MEMÓRIA E OS CORPOS DISSIDENTES

A intenção com a pesquisa é falar sobre o desvio de dois mundos opostos de


existência, quando na verdade, há um universo infinito de possibilidades sobre o cor-
po. Tão infinito que pode não ser capturável, apesar da (cis)tematização do mesmo,
a ponto de tornar-se apenas um corpo exercendo uma das infinitas possibilidades de
práticas sobre/para si.

REFERÊNCIAS:

LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Tradução: Silva, Tomaz
Tadeu da. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

PRECIADO, Paul. B. Manifesto Contrassexual. São Paulo: N-1 edições, 2014.

PRECIADO, Paul. B. Transfeminismo no regime farmacopornográfico. Tradução: Coacci, Thiago.


2010. Disponível em https://www.academia.edu/9723865/Preciado_- _Transfeminismo_no_
Regime_Farmaco-pornográfico. Acesso em: 16 jan. 2021

STERLING, Anne Fausto. Os cinco sexos: porque macho e fêmea não são o bastante. Tradução:
Alice Gabriel. The Sciences, mar./abr., 1993, p. 20-24.
POR UM FIO... 159

A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS
ALFINETADAS: REFLEXÕES QUE ATRAVESSAM
AS VIVÊNCIAS DE UMA MULHER ARTESÃ
Flávia Fiorini Romero1

Alfinetadas, Bordado, 1,02 x 0,62m, Flávia Fiorini Romero, 2020.

Elaborado e produzido com materiais têxteis bordados, costurados, recorta-


dos, pintados e entrelaçados, o trabalho Alfinetadas, traz vivências ao longo da minha
vida e minhas escolhas enquanto mulher, artesã, mãe e esposa. O título “alfinetadas”
se deu a partir das problematizações sobre comentários que escutei na trajetória de
minha vida profissional e pessoal. Esses comentários permitiram que eu (re)criasse,
de modo poético e artístico, minha revolta e aborrecimento perante às limitações de
feminilidades que se faz presente na vida de muitas mulheres.
A escolha de minhas vivências para a elaboração do Alfinetadas se aproxima
com as falas de Luciana Borre (2020, p.79), onde afirma que “ao trazermos à tona re-
latos do cotidiano, principalmente aqueles que conflitam com outros corpos, temos
a oportunidade de acessar pontos ainda ‘invisíveis’, porém presentes, do nosso eu”.
Diante do proposto, busquei ressignificar minhas vivências através da arte, do arte-
sanato e do bordado que, aliás, me acompanharam em minha trajetória e construção

1 Nascida e residente na cidade de Maringá/PR. Acadêmica do Curso de Artes Visuais (Licenciatura)


pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Participa do Grupo de Pesquisas em Artes, Educação e
Imagem - ARTEI. Desenvolve pesquisa em Arte, Artesanato, Mulheres e Gênero. Trabalha com arte e
artesanato em diferentes técnicas.
ALFINETADAS 161

da mulher que sou hoje. Nesse processo, utilizei retalhos de diversos tecidos costu-
rados entre bastidores de MDF. Nos bastidores, sobre o tecido cru, bordei imagens
e escritas que se entrelaçam às minhas inquietações. O trabalho foi tramado a partir
de quatro memórias pessoais. Essas memórias envolvem escolhas sobre meu corpo,
sobre meus estudos e sobre meu trabalho: “São tão pequenos, não vai ter leite”;
“Parto normal? Vai afrouxar”; “Você trabalha ou só faz artesanato?”; e, por último,
“Estudar pra quê?”. Nos próximos tópicos, entrelaço meu trabalho com essas vivên-
cias, e também, entrelaço-as à estética textil.

“SÃO TÃO PEQUENOS, NÃO VAI TER LEITE”


Em minha primeira gestação, escutei, em diversos momentos, comentários so-
bre meus seios. Como esse, por exemplo: “são tão pequenos, não vai ter leite”. Essa
frase, vinda de mulheres, me afetou. No entanto, após três anos, tive uma segunda
gestação. Amamentei minhas duas filhas por mais de um ano e (ainda) fui capaz de
doar leite materno ao Banco de Leite Humano da cidade onde moro.
Penso que independente de como somos formadas/os esteticamente, não há
interferências sobre o funcionamento do nosso organismo. Culturalmente somos
ensinadas/os a odiar e ter vergonha de nossos próprios corpos. Por anos senti a ne-
cessidade de usar sutiãs que destacassem os volumes de meus seios, volumes falsos,
volumes que não me pertenciam. Volumes que só me eram possíveis com uso de
bojos dentro dos sutiãs. Muitos comentários desrespeitosos, sobre a “relação” da
“estética do corpo” versus “funcionalidade”, que interferem no modo de viver de
uma pessoa e suas escolhas durante a vida. Ações que, ao meu ver, não somam em
nada. Com isto, decidi bordar os seios junto a frase que escutei desde quando me
tornei jovem até minhas gestações.

“PARTO NORMAL? VAI AFROUXAR”


Para além dos seios pequenos, pessoas com aparente falta de informação
sobre questões ginecológicas me atormentavam sobre a estética de minha vulva
pós-parto normal. A frase era “Parto normal? Vai afrouxar”. Esses comentários, car-
regados de pensamentos tradicionais e contrários às orientações médicas, tentavam
me convencer a não me submeter a um parto normal/ vaginal, pois “minha vagina
poderia ficar larga, afrouxada e meu marido não iria gostar”.
É muito comum uma gestante ser questionada sobre a escolha de qual parto
irá se submeter: parto cesariano ou parto normal. Por mais que essa escolha depen-
da, também, do posicionamento do bebê na barriga e da saúde da mãe, muitas/os
sentem a necessidade de palpitar sobre ela. Esses palpites ou conselhos acompanha-
vam narrativas dos processos pessoais dessas pessoas que já passaram por tais situa-
ções. Pensava que, com essas insistências, essas pessoas estavam mais preocupadas
com a estética do meu corpo pós-parto normal do que com a saúde de minhas filhas.
Decidi, então, bordar uma vulva. Essa escolha, inicialmente, foi um tanto di-
fícil, pois falar sobre a intimidade feminina é ainda um tabu, ou mesmo motivo de
vergonha. Se mesmo nos dias atuais, mulheres amamentando são policiadas por
seus seios estarem expostos, com a vulva exposta ou representada, a situação se
162 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

torna mais delicada. Fiquei com receio de expressar essa angústia representando
uma vulva exposta para meus familiares e amigas/os que conheceram esse trabalho
a partir da divulgação das redes sociais. Por mais que para mim tenha sido um desa-
fio, senti-me livre.

“VOCÊ TRABALHA OU SÓ FAZ ARTESANATO?”


Através de conversas e experiências, percebo que o artesanato não é conside-
rado como um trabalho digno e não é reconhecido nem mesmo como profissão. Se
no passado, conforme indicam as discussões de Rozsika Parker (1984), as ocupações
manuais e artesanais atuavam de forma a privar as mulheres em seus lares — silen-
ciando-as, transformando-as em mulheres servis, submissas, cuidadoras do lar e das
crianças, dispostas a satisfazerem os desejos sexuais de seus maridos, além de terem
o propósito catequizador e preparatório para a vida familiar e matrimonial — hoje,
além de termos resquícios dessa cultura, percebemos certa desvalorização quando
há tentativas de expressão artística por meio de seus trabalhos.
“Você trabalha ou só faz artesanato?” é uma pergunta que escuto até hoje e acre-
dito que ouvirei por toda minha trajetória como artesã. Penso que trabalho muito, embo-
ra muitas vezes tenha o receio de parecer grosseira ao responder dessa forma. Trabalho
com artesanato, cuido de minha família, realizo os serviços domésticos, e ainda estudo.
Por muito tempo escutei e ainda escuto de colegas e familiares comentários que desme-
recem tanto o trabalho artesanal e principalmente o trabalho doméstico e familiar.
Chimamanda Ngozi Adichie (2017, p.17) argumenta que “nossa cultura enalte-
ce a ideia das mulheres capazes de ‘dar conta de tudo’, mas não questiona a premissa
desse enaltecimento”. Para ser uma “boa esposa” era necessário saber realizar todos
os deveres e cuidados domésticos, dividindo assim os serviços “femininos” e “mas-
culinos”. Mesmo que as mulheres tenham conquistado seus espaços no ambiente
de trabalho, e puderam sair do ambiente interno que sempre lhes fora reservado, o
serviço doméstico e cuidado dos/as filhos/as ainda continua sendo (particularmente)
delas, gerando uma grande sobrecarga de trabalho. Essa sobrecarga é, muitas ve-
zes, enaltecida e admirada em perguntas, tais como essa que escuto diversas vezes:
“como você consegue dar conta de tudo?”. Não damos conta de tudo. Mas nos per-
guntamos: porque a cobrança recai (somente) às mulheres?
A classificação que posiciona a mulher no interior da casa, com cuidados do-
mésticos e cuidados das/os filhas/os, e o homem no exterior da casa, gerando renda
financeira, acarreta em uma crença de que as mulheres, por estarem em casa, não
trabalham. Sendo, desse modo, o trabalho doméstico um “não-trabalho”, ou seja,
apenas uma obrigação rotineira. E no meu caso de artesã, que trabalha em casa, o
artesanato se torna um hobby para muitas/os. Mesmo eu afirmando que trabalho
com artesanato, há também quem questione minha situação financeira, desmere-
cendo o que faço. O artesanato faz parte de mim desde os doze anos de idade, eu
escolhi ser artesã e é o trabalho que me faz feliz, sinto-me livre e faço o que me dá
prazer e me faz bem, falo que é minha profissão ser uma artesã, e digo com orgulho.
Para mim, é um presente. Gostaria que toda mulher pudesse escolher trabalhar com
algo que a faça feliz.
ALFINETADAS 163

“ESTUDAR PRA QUÊ?”


Em 2017, ingressei no curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de
Maringá (UEM), e me tornei estudante universitária aos 44 anos. Embora tenha sido
estranho estudar com uma turma de idade próxima a das minhas filhas, de aproxima-
damente dezoito e vinte anos, não me julgaram, como eu esperava, dentro do espa-
ço acadêmico. Porém, da comunidade externa à universidade, do meu meio social,
desde parentes e até conhecidos/as, escuto o questionamento: “estudar pra quê?”.
Essa pergunta me fez querer desistir em diversos momentos da graduação, trancar
o curso, abandonar meus sonhos e questionar do porquê estava ali e se aquele era
realmente meu lugar.
Decidi bordar meu rosto, pois sei que se não fosse a graduação, não teria per-
cebido de forma crítica todas essas inquietações no meu ser mulher e poder trans-
formá-las em expressão artística. O Grupo de Pesquisa em Arte, Educação e Imagens
– o ARTEI, do qual participo, contribuiu e permitiu-me refletir sobre meu “eu”. Junto
às discussões do grupo, pude voltar ao tempo e rememorar minhas escolhas e expor,
em meio a tramas e memórias, as angústias que ainda perpassam minha existência.
Através dos textos lidos e discussões sobre as visualidades e discursos que permeiam
o ser mulher, passei a problematizar as vivências que atravessam minha vida enquan-
to mulher, artesã e estudante.

TRAMAS E MEMÓRIAS QUE ATRAVESSAM O FEMININO


Quanto à estética do meu trabalho, fiz uso do bordado, do crochê e do tecido
por estarem culturalmente associados ao feminino. Entrelaçado aos pontos do bor-
dado há um modelo específico de feminilidade. Borre (2020), em uma pesquisa que
investiga o processo de docentes mulheres em formação, reúne, a partir do bordado
e de demais técnicas têxteis, produções de dez acadêmicas que criam e investigam
a partir de suas vivências na graduação e em espaços escolares. Quando a autora
comenta sobre suas memórias acerca do bordado e das maneiras como tal técnica
atravessaram sua feminilidade, conta que,

[...] enredei fios de linha e aprendi novos pontos de crochê a cada en-
contro familiar. Foram momentos em que minha mãe e eu, tias, primas e
vizinhas ficávamos imersas nas aprendizagens manuais. Essas habilida-
des eram valorizadas no âmbito familiar, mas, não tramávamos somente
fios, agulhas e tecidos. [...] Eram rodas de conversa que consolidavam a
felicidade feminina atrelada à vida em família e ao casamento. Foram
narrativas que se tornaram naturalizadas e que consolidaram versões de
realidade nas quais acreditei que “toda mulher tem o sonho de casar”,
que “todas nascem com instinto materno” e que o casamento, muitas
vezes, é sinônimo de “viveram felizes para sempre” (BORRE, 2020, p.
77).

Assim como percebemos com o relato da autora, as linhas e costuras têm,


da mesma forma, atravessado minhas vivências de mulher desde muito cedo.
Como mulher, eu costurava e tricotava roupas para a família e bordava peças
para o enxoval. As tramas estavam intrinsecamente ligadas à vida e ações de uma
mulher.
164 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

Com quatorze anos, era comum, meninas de minha idade realizarem cursos
de corte e costura como uma aprendizagem fundamental às habilidades da mulher.
Com essa idade, era comum que já dominassem as habilidades de corte e costura,
confeccionassem vestimentas para toda a família e que auxiliassem as professo-
ras nas aulas desses cursos. Com quinze anos de idade, aprendi bordado em pon-
to cruz. Esses bordados, longe de se apresentarem como atividades, passatempos
ou mesmo como lazer, caracterizavam-se por atividades destinadas à produção de
enxovais. Mesmo que não tivéssemos nos relacionando com nenhum pretendente,
ainda assim éramos educadas a já prepararmos nossos enxovais, isso desde cedo.
Aos dezessete anos, quando iniciei meu trabalho no comércio me preparando para
o meu casamento, já reservava parte do meu salário para o enxoval. A partir dessas
minhas experiências pessoais, em diálogo com os estudos de Borre (2020), podemos
estabelecer uma relação entre “fazeres manuais” e “atividades que são relacionadas
à mulher”, como a maternidade, o matrimônio, o serviço doméstico, a preocupação
com a casa e com a família. Em minha experiência, sentia que vivia para doar meu
tempo a minha família e não reservava um tempo para mim.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se no passado, o bordado era sinônimo de mulheres submissas e do lar, hoje,
o bordado é ressignificado como expressão artística e espaço de fala às diversas fe-
minilidades que compõem as vivências de muitas mulheres. Historicamente, o bor-
dado têm construído um ideal restrito de feminilidade e, quanto a isso, Parker (1984,
p.103) reitera que

No entanto, seria um erro subestimar a importância do papel do borda-


do na manutenção e criação do ideal feminino. No século 17, essa arte
foi usada para impingir feminilidade desde bem cedo. De modo que o
comportamento subsequente da menina pareça inato a ela. No século
18, o bordado começou a ser sinônimo de uma vida aristocrática, de
lazer - não trabalhar estava se tornando a marca da feminilidade. O bor-
dado e suas associações reais e nobres eram um perfeito atestado de
fidalguia, dando provas de que um homem era capaz de sustentar uma
mulher que se dedicava ao lazer. Além disso, porque o bordado deveria
ser sinônimo de feminilidade - docilidade, obediência, amor pelo lar e
uma vida sem trabalhar -, ele mostrava que a mulher que bordava era
uma esposa e mãe digna, merecedora. Por isso a arte tinha um papel
crucial na manutenção da casa, exibindo o valor da esposa e a situação
econômica. Por fim, no século 19 fundiram-se definitivamente o bor-
dado e a feminilidade, e a relação entre eles foi considerada natural.
As mulheres bordavam porque elas eram femininas por natureza, e as
mulheres eram femininas porque elas por natureza bordavam.

Desse modo, Alfinetadas contribuiu para que eu (re)pensasse em minha tra-


jetória e pudesse expressar singularmente e artisticamente a relação da mulher que
fui, e que sou hoje. Alfinetadas irão me acompanhar e continuarão a fazer parte da
minha vida. Porém, hoje, tendo conhecimento de todos os diálogos do bordado com
a feminilidade como apresentei com a fala de Parker (1984), sei que posso ressigni-
ficar todas essas histórias de modo liberto e crítico, sem me preocupar em querer
ALFINETADAS 165

agradar. Estamos em constante aprendizado e as escolhas que fazemos para nossa


vida pessoal ou profissional são contaminadas por opiniões alheias e cabe a mim
fazer essas escolhas. Mesmo com seios pequenos, tive leite de sobra. Se eu escolhi
parto normal, eu ainda sinto-me bem com meu corpo. Se eu faço artesanato, minha
profissão é artesã. Eu escolhi estudar, e aprendi com meus estudos a me valorizar
enquanto mulher.

REFERÊNCIAS:

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: Um manifesto. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.

BORRE, Luciana. Bordando afetos na formação docente. Conceição da Feira: Andarilha


Edições, 2020.

PARKER, Rozsika. A criação da feminilidade, 1984. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda;
MESQUITA, André (org.). Histórias das mulheres, histórias feministas. São Paulo: MASP, 2019.
POR UM FIO...
Camila de Lima Cantil1

Por um fio, Cianotipia e bordado, 20 x 29,7 cm, Camila Cantil, 2020.

1 Fotógrafa, artista visual, graduanda em Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal de
Pernambuco, pesquisadora bolsista pelo CNPq (PIBIC), sob orientação de Maria Betânia e Silva.
POR UM FIO... 167

Por várias noites sem dormir, por inúmeras lágrimas derramadas, pelo vazio,
por um medo que me rodeava a todo instante, por todas as vezes em que senti faltar
o ar, por toda a angústia entalada na garganta, por uma pandemia e por tantos ou-
tros motivos que 2020 fez com que eu me sentisse “por um fio”. Na verdade, Por um
fio é um estado de espírito.
Tudo começou no mês de janeiro, no hospital com meus batimentos a 200
por minuto, “taquicardia supraventricular”, acusou o exame. Descobri ter um tipo
de arritmia, que na verdade sempre tive, mas que não havia sido diagnosticado cor-
retamente até então. Desde então, fiz pequenas mudanças para me ajustar a um
maior cuidado com meu coração. Fiz vários eletrocardiogramas e permanecerei em
tratamento com betabloqueadores. Eu, que nunca gostei de depender de remédio,
hoje sou obrigada a viver com eles para evitar novas crises.
Somado a essa mudança de rotina veio o Coronavírus, nos obrigando a ficar em
isolamento social, mais uma mudança drástica. Meus dias em quarentena foram um
misto de ansiedade e preocupação com vários fatores: minha saúde e do meu com-
panheiro, o futuro do mundo em geral, ninguém estava preparado para esse caos.
E minha família estava a quilômetros de distância. Tanta coisa acontecendo. Como
é desesperador, que angústia sentir que não pode fazer absolutamente nada pelas
pessoas que ama. Notícias na tv, na internet, casos explodindo, ansiedade também.
Minha ansiedade não começou ali, na verdade a quarentena amplificou sen-
sações que eu já vinha sentindo nos últimos dois anos. Antes eu achava que era fres-
cura essa coisa de ansiedade, até eu começar a ter crises e perder seguidas noites de
sono. Também antes dela tinha enxaqueca mas, na amplitude da quarentena, foram
e ainda são inúmeros os comprimidos para dor de cabeça. Diante da maior curva de
contágio do Coronavírus eu me sentia numa prisão, por dentro e por fora, não me su-
portava mais, me sentia depressiva. Lembro de me identificar muito ouvindo Lovely
de Billie Eilish2, a canção fala de depressão, eu sentia um vazio infindável.
Foi nesse cenário que eu imaginei um autorretrato em um devaneio, algo que
me remete Bachelard (1988) sobre essa ideia do imaginar como um sonhar acor-
dado. No devaneio eu sabia que era um autorretrato, representava meu “eu” ali de
alguma forma, não sei bem explicar, mas eu estava sentada numa cadeira, segurando
uma gaiola com um coração dentro dele, um fio ligava o coração ao meu peito, esse
fio era bordado por cima da imagem.
À princípio imaginei essa cena como uma pintura, mas depois pensei: e se isso
fosse uma fotografia? Daí comecei alguns esboços para chegar na ideia de uma foto,
mas até então não passava de esboço, como um desabafo. Até que um professor nos
fez um desafio: fazer um autorretrato com objetos que nos representassem.
Depois de ter ficado inicialmente “travada” na tarefa, pensei que o objeto que
me representasse não necessariamente precisaria ser algo que eu tenho na minha
casa, poderia ser algo construído como simbólico, lembrei do coração naquele de-
vaneio e decidi experimentar. Não sabia se seria uma única foto ou uma série, mas
acabou se encaminhando para uma série que trouxe outros desdobramentos.

2 Cantora e compositora estadunidense.


168 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

Há artistas que pensam o conceito de um trabalho primeiro. Eu não tinha um


conceito quando pensei nessa imagem, tudo partiu de um devaneio. Uma das re-
flexões que não saiu da minha mente foi de relacionar aquele devaneio aos estados
físicos da água. Assim como a água possui o estado líquido, gasoso e sólido, eu me
perguntava, quais ou como seriam os estados físicos do meu coração durante estes
tempos intensos?
Essa primeira série e seus desdobramentos acredito que se encaixam num es-
tado físico gasoso, representado pela nuvem, pela neblina, um estado de “ser/estar”
de névoa, uma metáfora que fala de um estado de confusão, de medo, de incerteza,
de estar aprisionada em quarentena, representada pelo coração na gaiola. Na série
Por um fio, a imagem representa a pressão e tensão que por vezes me deixavam
paranóica, sem saber o que pensar, o que fazer, querendo fugir sem ter para onde
correr.
As imagens selecionadas para o projeto Tramações: a memória e o têxtil falam
da minha reabertura ao mundo com a retomada do “novo normal”, após o ápice da
quarentena. Meu coração, que antes sentia-se aprisionado, por fora e por dentro,
mesmo com essa meia sensação de liberdade, ainda sangra. Algumas palavras es-
critas por mim e para mim mesma, transcritas do meu caderno, mostram o que me
representava ali: você se sente incapaz de sequer reagir a isso, tudo o que pode ou
que consegue fazer é contemplar a si própria numa gaiola, ligada a você por um fio...
O coração na verdade é você!

O PROJETO
Me interessei pela temática do projeto Tramações já pensando em construir
algo que fosse autobiográfico, porque acredito ser muito potente trazer nossas me-
mórias para o processo criativo, sejam estas antigas ou recentes, ainda são memórias
carregadas de sentimentos que podem inspirar/ressoar material criativo, ressignifi-
car essas memórias e gerar identificação com as de outras pessoas.
A relação com minhas memórias está muito presente no meu imaginário, ma-
terializado em desenhos e outras produções artísticas. Mesmo uma frase, um texto
que escrevi, um rascunho que fiz no caderno, até aqueles feitos de forma despre-
tensiosa, mostram a influência da memória em minhas produções. No autorretrato
também não é diferente, vejo inclusive uma construção recorrente de autorretratos
não realistas, subjetivos, nos quais muitas vezes eu estava construindo uma narrativa
das minhas memórias sem saber que era narrativa, pois os símbolos vinham a minha
mente, mas eu não sabia quantas histórias estavam contidas nestes símbolos.
Como processo de construção criativa gosto de pensar na relação de hibri-
dismo, pois algo híbrido acompanha essa mutabilidade do meu “eu”. Parafraseando
Raul Seixas3, eu costumo dizer que sou uma metamorfose ambulante, e com meus
processos também não é diferente. Ora me identifico mais com o desenho, ora com
a fotografia, ora penso em misturar ambos, experimentar linhas e agulhas no plano
bidimensional, experimentar o colar, o rasgar, o poetizar. Penso que meu próprio

3 Cantor, compositor, produtor e multi-instrumentista brasileiro.


POR UM FIO... 169

criar também seja essa “metamorfose ambulante”, eu nunca sei o que vai surgir, eu
posso imaginar, devanear, mas num instante repensar e fazer tudo diferente de como
imaginei.
Para o projeto Tramações: a memória e o têxtil resolvi mostrar um recorte da
série Por um fio, que até o momento tem, ao todo, cinco fotos, entre outras produ-
ções que se desdobraram, todas feitas utilizando a técnica da Cianotipia, que será
abordada adiante.
A proposta faz parte de minhas experiências como integrante do Symbolismum,
grupo de extensão em fotografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
tendo o Imaginário como campo de estudo e a Identidade como temática para nos-
sas produções artísticas, em que utilizamos como técnica o processo fotográfico al-
ternativo e histórico da Cianotipia.
A proposta também se conecta à minha pesquisa de iniciação científica (PIBIC)
sobre a influência da memória e do imaginário na produção do autorretrato, com
bolsa do CNPq, sob orientação de Maria Betânia e Silva, que busca investigar as con-
tribuições da memória e do imaginário dentro do meu processo criativo autoral e
tem como um de seus objetivos específicos produzir autorretratos, podendo versar
sobre diferentes técnicas.
Nesta série optei por mesclar a cianotipia ao bordado, e o curioso é que eu
nunca tinha bordado antes. Eu só sabia fazer um único ponto de costura que aprendi
com minha mãe para costurar roupas e sempre detestei, mas tinha uma vontade de
experimentar essa mescla de materiais que a arte contemporânea nos permite em
seu caráter híbrido (COCCHIARALE, 2006).
Para minha surpresa, foi algo muito diferente e que me fez sentir um pouco
mais próxima da minha mãe. Ela também nunca bordou, mas ama fazer crochê e de
alguma forma, pelo manuseio com a linha no tecido, pude me sentir fazendo algo em
comum ao que ela faz, inclusive acabei utilizando aquele mesmo único ponto que
conhecia e que antes desprezava. Bem que dizem que o mundo dá voltas. E o meu
deu não só uma, mas várias voltas e nós. Emaranhadas, minhas memórias foram
tramadas em fios vermelhos e tecidos azuis.

A TÉCNICA CIANOTIPIA
A cianotipia é um processo fotográfico histórico que utiliza a luz UV para pro-
duzir imagens por contato. Foi inventado em 1842 por Sir John Herschel, tendo como
base o descobrimento de que sais de ferro (ferricianeto de potássio e citrato férrico
amoniacal) são sensíveis à luz (CAMPOS, 2007). Esses sais, ao serem diluídos, mistu-
rados entre si e expostos à luz U.V. (seja do sol ou artificial), produzem o pigmento
azul da prússia, que é a principal característica das imagens feitas com esta técnica:
a cor azul.
O cianótipo é a superfície emulsionada pela mistura dos químicos que, ao ser
exposta à luz ultravioleta, gera imagens através desse foto-contato. Para a realização
desse processo, utilizo uma imagem em negativo que é prensada entre a superfície
emulsionada e uma chapa de vidro. Ao entrar em contato com a luz do sol por alguns
minutos, ocorre uma reação química que consegue imprimir a imagem na superfície
170 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

emulsionada. Para revelar e fixar a imagem nesta superfície, depois da revelação


no sol, a mesma recebe alguns banhos com água, para que os compostos que não
foram “queimados” se desprendam da superfície e aos poucos vá se formando uma
imagem positiva em azul.
Para obtenção de uma imagem positiva, os negativos podem ser feitos com
material de transparência, ou também é possível fazer fotogramas, técnica que re-
gistra a silhueta de objetos sobre a superfície emulsionada, através do contato com a
luz ultravioleta, o que resulta numa figura negativa do objeto (FOTOLAB, 2016).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cianotipia foi a técnica que me permitiu ver beleza em momentos de dor,
antes que eu mergulhasse os tecidos na água, sem perceber eu mergulhava dentro
de mim. O azul deixou as lembranças menos amargas, cada encontro remoto do
grupo de extensão foi um respiro em meio ao caos. Cada linha bordada e tramada foi
um acalento durante o “estado de névoa”, que não é eterno, que não está fixado em
mim, oras preciso passar pelo tempo do resfriamento, oras pelo da liquidez e oras
o de névoa. Hoje percebo que cada um traz consigo sua importância, o tempo do
silêncio é tão importante quanto o do tempo do alarido e é nesse lugar do silêncio,
de quietude, que muitas vezes brotam os autorretratos mais sinceros. Através de
poéticas em azul, fui capaz de me reconectar comigo mesma, tendo consciência que
aquelas representações são apenas uma parte de mim, em um determinado mo-
mento, porque sou afluente como rio que está sempre a correr. Neste sentido, tomo
as palavras de Kalinka Serafim: “Encarar a própria imagem na busca de si é compre-
ender que a cada vislumbre essa imagem já se torna diferente, pois mudamos a cada
instante” (SERAFIM, 2019, p.1).

REFERÊNCIAS:

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução: Antônio de Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1988.

CAMPOS, João Carlos Baptista. et al. Cianotipia em grande formato: processo alternativo de
reprodução de imagem em câmara clara: uma abordagem das dimensões da linguagem, cor
e espaço. Dissertação (Mestrado em Artes) - Instituto de Artes da Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2007.

COCCHIARALE, Fernando. Quem tem medo da arte contemporânea. Fundação Joaquim


Nabuco. Recife: Editora Massangana, 2006.

FOTOLAB. Processos históricos & alternativos em fotografia (Apostila). Laboratório de


Fotografia Campus Agreste - Universidade Federal de Pernambuco, Caruaru, 2016.

SERAFIM, Kalinka. Autorretrato e autorepresentação: variações sobre um tema. Dissertação


(Mestrado em Desenho) - Universidade de Lisboa Faculdade de Belas Artes. Lisboa, 2019.
Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/41596. Acesso em: 10 mar. 2021.
NÔMAD[A]S: O DESAFIO DE
VAGAR POR MEMÓRIAS
Mônica Lóss1

Nômade por dentro, tecelagem e crochê, 300 x 28 x 25 cm, Mônica Lóss, 2020.

1 Doutora em Artes pela Universidade de Barcelona, Espanha, Mestre em Educação e pós-graduada


em Design para Estamparia pela Universidade Federal de Santa Maria, RS – Brasil, possui pela mesma
instituição bacharelado e licenciatura em Artes Visuais. Atualmente mora nos Estados Unidos, onde
trabalha como designer e artista visual participando de exposições em diferentes cidades no Brasil,
México, Estados Unidos e Europa.
172 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

Minha prática artística vem se desenvolvendo em torno do têxtil e tudo o que,


de certo modo, gravita em sua órbita. Exploro desde a materialidade das coisas, até
a possibilidade de pensar técnicas e modos de fazer a partir da ótica de um processo
expandido e em constante transformação. Não estar presa a “um modo de fazer”
determinado implica em não buscar alcançar nenhuma excelência na execução, uma
“desobediência” ao não seguir receitas, experimentando rotas alternativas e percur-
sos que não reproduzem mas, sim, que vão surgindo espontaneamente através do
fazer.
De um modo muito significativo, o trabalho sobre o qual estabelecerei algumas
considerações, a obra Nômade por dentro (2020) que compõem a mostra Tramações
(3ª edição): A memória e o têxtil e que pertence à Série Nomad[a]s, pesquisa iniciada
em 2018 e que segue em desenvolvimento até o presente momento, é um elo im-
portante na construção de minha poética. Algo importante que, de antemão pode
ser dito, é que tratar da questão da memória e do têxtil dialoga de modo profundo
com a retomada de minha caminhada como artista e com minha poética onde as
memórias, o tempo e os fazeres manuais se entrelaçam e passam a constituir uma
história compartilhada.

A MEMÓRIA COMO UM CAMINHO DO MEIO


Minha caminhada na arte possui um antes e um depois. Um espaço do meio
onde fui alimentando lembranças, guardando desejos e projetando um fim para o
hiato de quase 8 anos que se instalou em virtude de outras urgências da vida, entre
deslocamentos geográficos, mudanças e andanças.
Foi após uma destas mudanças, em 2016, quando junto à família viemos mo-
rar em Michigan nos Estados Unidos, que entre as caixas da mudança, encontrei uma
que ficou esquecida, perdida entre coisas que perderam importância, simplesmente
por que não lembrava mais delas. Ali iniciou-se o meu depois.
Para esta mudança, resolvi agrupar coisas que estavam guardadas em um
depósito na casa de minha família, materiais e trabalhos realizados durante o meu
período de formação na Universidade Federal de Santa Maria (Rio Grande do Sul) e
dentro de uma destas caixas estavam pequenas tecelagens, “padrões têxteis” (em
torno de 80 tecelagens com dimensões que variavam entre 15 cm x 35 cm), que eu
havia produzido em 2005 em função de uma pesquisa que realizei ao me pós-gradu-
ar em Design para Superfícies. A sensação era de abrir minha própria maleta, “male-
ta mexicana”2, que guardava uma memória material, uma história e um tempo que
antecedia aquele momento.
A pausa de quase 8 anos parecia chegar ao fim ao deparar-me com aquele ma-
terial. Senti urgência e necessidade de pensar outro destino para tudo aquilo, uma

2 A “Maleta Mexicana” se refere a história dos 4.500 negativos de fotografias tiradas durante a Guerra
Civil Espanhola pelos fotógrafos Robert Capa, Gerda Taro y David “Chim” Seymour. Estes negativos se
perderam durante a guerra e reapareceram em 2007 na Ciudad de México. Tenho um apego afetivo a
essa história além de trazer de um modo singular a questão da memória como um elemento que pode
ser revisitado e que tem a capacidade de desvelar camadas não conhecidas.
NÔMAD[A]S 173

segunda chance para eles e também para mim: por um lado, os guardados, como
aspectos relativos à memória/esquecimento; por outra parte, o novo que precisava
surgir como desdobramento para criar outra narrativa, desvelando as bagagens da
memória.
Com isso, as tecelagens passaram a ser agrupadas usando critérios como cores
e materiais, sendo trabalhadas de forma individual com crochê e posteriormente,
unidas, criando um novo tecido feito de partes extraviadas que, agora, constituíam
um todo com novas formas, volumes e reentrâncias: um esconderijo ou refúgio para
abrigar tempos de solidão, para gestar formas de contar as histórias sobre os des-
locamentos e desafios, sobre os abandonos que são memórias de um tempo, mas,
também que podem servir de caminhos para recriar o presente.
Logo que passei a trabalhar nas peças, chamei-as de nômades pelo fato de
levá-las comigo para todos os lados, trabalhando de forma simultânea em várias pe-
ças, em diferentes etapas do processo. Deste modo, elas iam fazendo-me companhia
durante os deslocamentos em viagens e nas horas de espera do cotidiano. O fazer
ininterrupto e a necessidade de “não parar” funcionava naquele momento como
um tipo de estratégia intuitiva e, talvez, uma forma de assegurar-me que ao retomar
minha pesquisa poética, após tantos anos de distanciamento, ela não seria nova-
mente interrompida. Neste percurso, memórias foram sendo reviradas. A memória
neste ponto “não constrói o tempo, não o anula, tampouco. Ao fazer cair a barreira
que separa o presente do passado, lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do
além, ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol; realiza uma evocação” (BOSI,
1994, p. 59).
Esta ideia de memória como uma ponte entre o passado e presente é o que
considero o caminho do meio na construção desta pesquisa, um ponto onde diferen-
tes elementos se encontram e passam a elaborar um novo caminho, outra oportuni-
dade para encontros e recomeços.
Com o aprofundamento da pesquisa dei-me conta de que a grafia da palavra
“Nômade” não dava conta de todo o processo que eu estava passando e que deste
modo, poderia adotar uma variação para a escrita e assim, “Nomad[a]s”, com o “a”
entre colchetes, foi como passei a referir-me a elas. Entendi que adotar essa pala-
vra seria uma forma mais próxima às minhas experiências como mulher, maneira
de propor outro olhar para esta questão a fim de criar uma narrativa referente ao
nomadismo e ao feminino nestes processos repletos de camadas, feitos de lacunas,
ausências e vazios. Por isso, a “necessidade de colocar no feminino tudo o que há de
envolvente e de suave para além dos termos simplesmente masculinos que desig-
nam nossos estados de alma” (BACHELARD, 1988, p.29), para problematizar sobre
deslocamentos de todas as ordens.
Pareceu-me curioso observar que a origem da palavra “memória” constitui-se
a partir de uma figura mitológica que liga a memória-lembrança e a capacidade de
criação e imaginação dos artistas, pois “a palavra memória tem a sua origem etimoló-
gica no latim e no grego mnemosyne. Essa era a deusa identificada como a ‘mãe das
musas’, divindades responsáveis pela memória-lembrança e inspiradoras da imagina-
ção criativa dos artistas e poetas” (TEDESCO, 2002, p.23).
174 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

Embora a questão da memória enquanto campo de estudo e conhecimento


seja complexa e possa ser aprofundada em diferentes caminhos, pretendo somente
lançar luz a pontos que submergem a partir deste reencontro (poética e com o eu
artista) relacionados à Série Nomad[a]s

OS DESLOCAMENTOS COMO UM PRISMA


O processo de nominar os trabalhos e pesquisas tem se mostrado um exercício
peculiar, que também faz parte do desenvolvimento e da tríade que identifico em
minha prática artística: fazer-pensar-fazer ou pensar-fazer-pensar. Há trabalhos que
já nascem com nome, há outros, que o nome demora até ser encontrado. Sempre
depende do lugar onde eles são gestados ou nascem, se do pensar ou do fazer. Em
algumas situações, utilizo como recurso dar nome às “coisas” como um modo de
propor um diálogo entre quem olha e quem é olhado. Como uma tentativa de criar
uma ponte que liga ou situa o ponto de partida tomado por mim para conectar-me
de alguma forma com quem irá olhar o trabalho. Como eu disse, não é uma natureza
exata.
No contexto desta pesquisa, parti do entendimento de que ser nômade refe-
re-se a quem não tem residência fixa, vaga pelo mundo, movendo-se de um lugar a
outro. Isto pode-se dar por diferentes razões, seja pela necessidade ou por escolha,
impulsionados pela busca de novos começos e melhores condições de vida, algo que
pode ser considerado intrínseco à condição humana.
Tomei como ponto de partida o deslocamento geográfico que tanto eu, quanto
o material em si fizemos para, finalmente, nos reencontramos. No entanto, o que não
imaginava é que o sentido de deslocamento poderia adquirir outras conotações tal
qual um prisma, que emana luz para diferentes direções. Entendo por deslocamento:
esta condição que ao mesmo tempo em que movimenta, seja capaz de
varrer, remexer, levando consigo algumas partes de por onde se passa
e, claro, acionando perdas, deixando espalhados por estes caminhos
partes de si, que podem se perder e se encontrar com outras tantas, já
espraiadas (ROSA, 2015, p. 103).

Neste sentido, a tecelagem e o crochê, utilizados para construir as peças foram


uma forma de experimentar os deslocamentos sob outro viés, onde as fibras têxteis,
além de serem o elemento primordial na construção das peças, estabeleceram uma
analogia com o conceito desta obra, que é a relação da memória e a composição de
novas narrativas
Além disso, o deslocamento pode ser entendido sob o ponto de vista do fazer
manual, que normalmente está associado ao trabalho feminino, a uma herança afe-
tiva e simbólica de papéis que nós mulheres recebemos e que até há pouco tempo
atrás, ainda pertencia aos espaços privados da casa. Um “trabalho” de menor valor,
principalmente se tensionado dentro do campo da arte.

Há uma crescente atenção dada a mulheres artistas por parte do mer-


cado de arte e de grandes exposições com viés internacional. Mais que
isso, é inegável que nos últimos anos se observa um reconhecimento
NÔMAD[A]S 175

dado especificamente a mulheres artistas que lidam com a materialida-


de têxtil (CARNEIRO & FONSECA, 2018, p.41).

O têxtil, dentro da arte contemporânea, vem se constituindo como um campo


de interesse, adquirindo importância nas discussões, principalmente por trazer para
o debate estes limites existentes entre a arte, o artesanato e o fazer manual, tensio-
nando a relação existente na ideia de fronteira e desterritorialização1 dos modos de
produção de arte na contemporaneidade.
Olhando por esse ângulo, passei a considerar que dentro da minha pesquisa
estes elementos se faziam presentes onde o deslocamento, que também me inte-
ressava tratar, não estava atrelado somente à questão do espaço geográfico, sofrido
pelo material e por mim e sim, pertencente a outras ordens, adicionando ainda mais
complexidade para esta tessitura. Um fenômeno que não reside somente em um
“espaço irreal” e sim, que é ativado a partir de fragmentos materiais. E ainda, o des-
locamento como modo de perceber marcos de início e de reconstrução/retomada
de caminhos, tanto em relação à própria poética como também de narrativa pessoal,
de reinvenção de si e de reescrita de processos que partem de um contexto e se
reconstroem em outro.

NÔMADE POR DENTRO


Também persigo um tema que é atravessado de muitas formas: a noção de re-
fúgio. Os refúgios, mesmo não sendo tratados de forma explícita e visível nos traba-
lhos, funcionam como a coluna vertebral de minha prática, um fio condutor que faz
a costura entre um universo interior, de intimidade e acolhimento e o cotidiano, das
coisas que me cercam. Esses refúgios são explorados tanto como elementos formais
observados na natureza do lugar onde vivo atualmente, em Michigan, ou de meu
contexto de origem como: casulos de insetos, ninhos de pássaros, tocas e refúgios
de animais; ou ainda, relativo aos corpos - humano/animal, enquanto estruturas de
proteção. Também, os refúgios são tratados a partir de aspectos simbólicos e abstra-
tos extraídos dos espaços de minhas memórias de infância e da cultura popular que
me conecta ao lugar de onde venho.
Há sobretudo, o interesse em olhar para a relação existente entre o “dentro/
fora” nas construções têxteis que refletem sobre a simbiose pulsante que existe en-
tre as coisas que não podem ser exatamente definidas e, por isso, podem ser muitas
coisas.
“Nômade por dentro” é uma das peças que marca uma transição no corpo de
trabalho que compõe a Série Nomad[a]s e é a partir dela que abordarei a maneira
sobre como venho construindo meu percurso dentro do têxtil, que considero ser

1 O conceito de desterritorialização aqui mencionado parte da noção criada e aprofundada por Deleuze
e Guattari, nos volumes 3 e 4 de Mil Platôs (1996 e 1997, respectivamente). Esta noção é abordada pelos
autores a partir de 8 teoremas de desterritorialização e vai de encontro as considerações apontadas
por Nunes da Rosa (2015, p.106) ao afirmar que “o movimento de se desterritorializar só acontece
mediante a saída de um território, num esforço de se reterritorializar em outras partes.”
176 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

“desobediente” por não ter a preocupação em empregar a técnica a fim de obter um


preciosismo na execução, que não é linear e tampouco obedece a receitas ou mol-
des. Minha pesquisa poética é onde tenho exercitado minha liberdade no sentido
mais profundo da palavra, através de um fazer ávido por encontrar rotas de fuga e
até modos de não fazer como caminho de experimentação.
Trabalho com uma variedade de materiais como linhas, lãs, cordas, fibras e
resíduos têxteis, tecidos e roupas que transformo em fios e que estruturam formas
imaginadas que me conectam com elementos da natureza e com o meu país de ori-
gem, Brasil. A tecelagem, a costura, o crochê, o bordado, o tingimento artesanal, a
estamparia, são alguns dos caminhos que exploro na construção de múltiplas peças
pertencentes aos diferentes projetos e séries que desenvolvo de maneira simultânea.
“Nômade por dentro” parte do mesmo princípio construtivo das demais
peças nesta série, em que escolhi e agrupei seis tecelagens de tamanhos e mate-
riais variados feitas em um tear de pente-liço que eu considerei “combinar” entre
si. Posteriormente, passei a interferir em cada uma com o crochê, trabalhando as
bordas como uma estratégia de aumentar as dimensões de cada uma das partes.
O seguinte passo, foi o processo de união destes seis pedaços, criando um tecido
único e irregular. Neste processo é comum interromper e começar o trabalho em
outra ponta, já que não há uma sequência ou ordem a ser seguida. A partir do tecido
construindo, fui fechando algumas partes, onde novos nichos com aberturas, reen-
trâncias e passagens foram se estruturando, e onde a relação do dentro/fora foi se
constituindo.
Ao ir concluindo a peça, dei-me conta que ainda precisava ir além, que ela
precisava possuir elementos enfáticos — ao menos para mim — quanto a relação
abstrata indicada em seu nome.
Mas o que seria um “Nômade por dentro”? Um incômodo instalou-se em fun-
ção deste não saber, uma lacuna que não conectava a ideia ao trabalho. Custei um
pouco a entender que a contradição entre ser nômade e estar contido dentro de
“algo” era o ponto de tensão entre estes dois pontos. Assim, percebi que o caminho
do meio era o transbordamento, deixando vazar pelos poros e escapar pelos orifí-
cios, as entranhas que precisam ser vistas.
Lendo o livro sobre a obra de Sônia Gomes, artista brasileira, mineira, que
vem tendo seu trabalho reconhecido nacional e internacionalmente, e que é uma de
minhas referências, encontrei a seguinte fala da artista:

Entranhas. Você chegou aonde ninguém chegou antes, você chegou a


essas entranhas, essa parte interior, que é também de memórias, é um
limite do invisível, dessa relação de existir sem ser visto, como as par-
tes de dentro do nosso corpo, como as nossas memórias (CARNEIRO &
FONSECA, 2018, p.30).

Essas palavras tiveram um impacto forte, levando-me a compreender que


o trabalho precisava ganhar novas camadas. Assim como a questão em torno do
“dentro/fora” precisava incorporar outro entendimento, o meu trabalho até então
solitário para a construção da peça parecia já não ser o bastante. A peça precisava de
entranhas e eu, de ajuda.
NÔMAD[A]S 177

Assim, uma “tripa” de 12 metros de comprimento e 18 cm de diâmetro passou


a ser construída por minha mãe e uma amiga que trabalharam por meses usando
diferentes materiais e explorando espessuras de fios, combinação de cores e tonali-
dades. Estabelecemos um diálogo que foi acontecendo à medida que a peça extra, a
“tripa”, foi sendo executada. Com isso, uma rede de afetos e cooperação atribuíram
ainda mais sentido à pesquisa. Para ser concluída a peça foi enviada desde o Rio
Grande do Sul, Brasil, para encontrar-me em Michigan/EUA e assim, compor este
todo, feito de partes, de retalhos, de memórias e agora de afetos.
Ao receber a “tripa”, retomei a etapa de trabalho, e agora testava possibilida-
des e soluções para incorporá-la à peça. Duas partes distintas, feitas em lugares di-
ferentes — corpo e entranhas foram ganhando unidade ao serem unidas, utilizando
novamente o crochê.
Nunca pensei que o vazio pudesse ser preenchido por fora, nem que as entra-
nhas, ou melhor dito, “tripas”, preencheriam meus incômodos ao estarem expostas
em um processo criativo alimentado e reconstruído pela ação do tecer e do croche-
tar — ato que se originou no resgate da memória individual passando a construir
memórias coletivas.
Neste processo, o impacto gerado para o desdobramento da pesquisa foi sig-
nificativo e importante, uma vez que abriu brechas para considerar que, além de
usar materiais têxteis produzidos por mim (novos ou antigos), eu poderia incluir na
construção das peças, elementos confeccionados por outros. Ou até mesmo apro-
priar-me de tecelagens e elementos têxteis variados e a partir deles, estruturar as
peças. Revisitar as memórias foi um modo de adentrar em um universo infinito de
possibilidades, desencadeando um processo único e singular na elaboração da poé-
tica artística.

REFERÊNCIAS:

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.

CARNEIRO, Amanda; FONSECA, Raphael (Orgs). Sonia Gomes: a vida renasce/ ainda me le-
vanto. Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC) e no Museu de Arte de São Paulo
Assis Chateaubriand (MASP). São Paulo, MAC: Niterói: MASP, 2018.

ROSA, Aline Nunes da. Sobre mudar de paisagens, sobre mirar com outros olhos - [manuscri-
to]: Narrativas a partir de deslocamentos territoriais. Tese (Doutorado) - Universidade Federal
de Goiás, Faculdade de Artes Visuais (FAV), Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura
Visual, Goiânia, 2015.

TEDESCO, João Carlos. Usos de memórias. Passo Fundo: UPF, 2002.


UM JEITO DE DAR UMA VOLTA: A ARTISTA-
MÃE PANDÊMICA ALCANÇANDO VÔO LIVRE
Rayana Bacelar Viana2

Um jeito de dar uma volta, tecelagem em algodão, 73 x 28 cm, Rayana Rayo, 2020.

2 Artista visual pernambucana autodidata Rayana Rayo iniciou sua produção artística em 2015,
paralelamente ao seu ofício como advogada, num processo constante de experiências e descobertas
junto ao grupo de estudo de modelo vivo Risco! A partir de 2016, começou a se dedicar integralmente
às artes, montando seu atelier no Ed. Pernambuco.
UM JEITO DE DAR UMA VOLTA 179

A ARTISTA-MÃE
O pensamento decolonial, por sua abordagem conceitual de pluralidade de
perspectivas, possibilita enxergarmos a arte de forma mais sensível. O filósofo his-
toriador Theóphile Obenga (2004) ensina que, para a filosofia africana tradicional,
o conceito de “arte” era visto de maneira ampla, para além do objeto material, cujo
fazer artístico em esculpir uma estátua, por exemplo, “é tornar a vida (ankh) em si
mesma como uma coisa real. Uma estátua vem a ser um poder; é a existência locali-
zada do poder (ka) de alguém” (OBENGA, 2004, p. 12).
Ser artista é uma experiência complexa. Para mim, apenas excelência de traços
e controle de ação, do fazer e do sentir não conseguem resumir o ofício. Primeiro e
especialmente, ser artista é a permissão que alguém se dá para abrir os portais de
dentro e descobrir-se nas suas raízes, na originalidade e espontaneidade do ser. Ao
criar, apresenta-se algo sobre a potência do sensível. O processo é uma conversa
perigosa e honesta consigo e com o meio, cuja entrega nos torna vulneráveis pela
constante imprevisibilidade, nos fazendo sentir a força que as imagens carregam
através dos signos mentais que se materializam.
Para a pesquisadora Cecília Salles, “a criação realiza-se na tensão entre limite
e liberdade: liberdade significa possibilidade infinita e limite está associado a enfren-
tamento de leis” (SALLES, 2008, p. 63). Como artista, essa tensão criativa é experien-
ciada como uma autoanálise durante as possibilidades que são, intencionalmente ou
não, inventadas durante o fazer artístico. Porém, o processo também é influenciado
por fatores externos.
Exponho aqui a existência de dois fatores que atravessaram o processo da obra
de tecelagem Um jeito de dar uma volta: a pandemia do Covid 19 e a maternidade.
As ações criativas são direta e indiretamente ligadas ao momento histórico,
em seus aspectos social, artístico e científico em que o artista vive. É um momento
em que o diálogo com a tradição torna-se mais explícito, cujas opções do processo,
aparentemente individuais, estão inseridas na coletividade dos precursores e con-
temporâneos (SALLES, 2008). A condição de uma artista-mãe é extremamente frágil.
Estando isolada por mais de um ano dentro de casa, a carga mental torna-se pesada
pelo futuro incerto da humanidade, enquanto tem que se desdobrar entre as tarefas
domésticas, os cuidados afetivos, alimentícios e higiênicos do filho, além dos seus
próprios cuidados pessoais e seu trabalho e processo criativo.
Nesse contexto, o fazer artístico da peça de tecelagem Um jeito de dar uma
volta, produzido em tear manual de pregos num chassi antigo, aconteceu na sala
de estar, dentro de casa, entre mamadas e cochilos do filho, durante a pandemia.
Cícero, de 2 anos, participa do meu processo criativo, involuntariamente, se expon-
do durante o fazer, gerando em mim perspectivas pluriversais desse processo, que
nem sempre são prazerosas, mas que sempre despertam reflexão sobre a precária
condição da artista-mãe.
Criar uma pessoa e um tecido são experiências profundamente afetivas, e es-
sas criações nos transformam em seres plurais. Todas as experiências que envolvem
o processo são manifestadas de forma atravessada e conjunta pelos fatores externos
da pandemia e da maternidade, mas as intenções se conectam para um mesmo fim,
180 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

o desenvolvimento pessoal na jornada da artista-mãe.


A necessidade de expressar-se se desdobra na de representar e autorrepre-
sentar-se, através de um processo criativo artístico-identitário, no constante desejo
urgente de (me) visualizar, (des)construir e transformar a realidade, de apropriar-se
de uma condição, de assumir-se no que vemos e sentimos e que existe no mesmo
espaço/tempo. Nesse sentido, em seu artigo sobre a importância social da imagem,
a pesquisadora Danielle Parfentieff de Noronha (2019) afirma que a imagem é um
instrumento de produção artística e midiática, mas também é mecanismo político e
simbólico que permite a construção de representações “desde dentro”, que dialo-
gam “sobre quem são as pessoas, através da construção de significados com base na
demarcação das diferenças sociais” (DE NORONHA, 2019, p. 274). Ela continua:
A autorrepresentação, ou as representações e análises imagéticas ou-
tras, é a construção de narrativas por pessoas e grupos sobre si mesmos,
que sugerem novos questionamentos e compreensões, novas subjetivi-
dades, novos processos identitários e novas formulações sobre o indiví-
duo e o coletivo, que podem ser estabelecidas de diferentes maneiras
(DE NORONHA, 2019, p. 274).

Se, por um lado, as imagens são uma ferramenta para manutenção de relações
de poder e (re)produção de estereótipos, mitos, tradições e representações, por ou-
tro, também servem como instrumentos para construção de discursos contra-hege-
mônicos e outras formas de (auto)representação (DE NORONHA, 2019). Assim, tudo
que é construído de forma consciente dentro do meu processo criativo, apesar dos
atravessamentos incômodos, é intencionalmente carregado de um poder particular,
capaz de representar-me no todo, materializando o grito preso, fazendo existir outro
tipo de eu, algo completamente livre imageticamente, apesar de sempre preso ao
urdume.
A tecelagem, experiência singular de conexão entre duas partes, urdume e
trama, revela no tecido a importância do signo (matéria) como portador de ideias
(espírito). O processo de tecer se desdobra em uma espécie de autoanálise, que gera
possíveis entendimentos e ressignificações das origens das coisas e dos sentimentos.
Tramar o urdume envolve explorar o olhar sobre questões particulares surgidas atra-
vés das próprias experiências de criação, enriquecendo o fazer de significados origi-
nais do indivíduo, que, por sua vez, se inter relacionam pluriversalmente com o meio.
Para tensionar um urdume, são necessárias duas mãos; para amamentar, é
necessário o corpo todo, incluindo o olhar. Para criar uma obra na pandemia foi ne-
cessário solidão, corpo, foco, espaço, tempo e entrega. Para criar um filho na pan-
demia foi necessário presença, corpo, foco, espaço, tempo e entrega. A decisão de
criar, entender e aceitar as transformações do processo criativo através das inúmeras
intervenções e remendos que a maternidade proporciona são práticas que se asse-
melham ao equilibrista de pratos.

UM JEITO DE DAR UMA VOLTA


A artista-mãe pandêmica quase não se sente como uma verdade para o mun-
do lá fora. A verdade é que faz tempo que o lá fora tornou-se distante, quase como
UM JEITO DE DAR UMA VOLTA 181

um sonho. A artista-mãe cria em casa enquanto o tempo passa, enquanto doa-se o


corpo e o juízo às criações.
O direito ao sonho se manifesta na certeza do que não é possível explicar, mas
que existe e resiste, por mais que a realidade ofusque. Durante o fazer artístico, ca-
madas de descobertas identitárias se sobrepõem conforme se desenvolvem os pon-
tos. Por detrás das camadas de representação, identidade e história de quem tece,
estão as do inconsciente, do sonho e do espírito. É no desvendar, tanto das camadas
superficiais quanto, principalmente, dessas camadas mais profundas e ofuscadas
que o processo criativo entra como ferramenta para auxiliar no despertar interior.
Desperta, sobretudo, a originalidade do indivíduo, tudo o que nele é único, suas his-
tórias contadas em primeira pessoa.
Trazendo uma perspectiva mais acadêmica à temática, aprofundar conteúdos
particulares de forma criativa requer da pessoa criativa certa coerência da realidade
que a cerca. A artista plástica Fayga Ostrower desvenda caminhos possíveis para a
fluidez do processo criativo:

Ao indivíduo criativo, torna-se possível dar forma aos fenômenos, por-


que ele parte de uma coerência interior que absorve os múltiplos as-
pectos da realidade externa e interna, os contém e os “compreende”
coerentemente, e os ordena em novas realidades significativas para o
indivíduo. Como ser coerente, ele estará mais aberto ao novo porque
mais seguro dentro de si. Sua flexibilidade de questionamento, ou me-
lhor, a ausência de rigidez defensiva ante o mundo, permite-lhe configu-
rar espontaneamente tudo que toca (OSTROWER, 2013, p. 132).

Na arte têxtil, o ato de tecer é também o ato de criar, e criar é dar vida às
próprias imagens e pensamentos, que por sua vez são carregados de força e poder
particulares. O resultado da criação concretiza uma extensão do real, porque os seus
caminhos, por mais que sejam formulados utópicos, partem do real (OSTROWER,
2013).
Quando se arma o urdume, é necessário concentração no caminho da linha,
tensionada pelas mãos que, de tão firmes e delicadas, conseguem estruturar no
espaço um caminho seguro para a trama. É nela, no momento da trama, então, que
manifesto o poder da criação. Através de um isolamento que limita meu corpo e o
chão; a casa que moro e minha rua; os cuidados com meu filho e meu descanso;
os desejos e a louça suja. Através dos limites invisíveis que me impedem de dar
uma volta pelo meu quarteirão, em qualquer horário e sentido, eu trancei um tipo
de pássaro capaz de se perder da minha vista, de tão distante que ele passeou. Só
ele sabe o que viu e sentiu nesse passeio fora das linhas. Eu só consigo entender o
seu retorno porque suas penas têm o mesmo desenho do pássaro que foi passear,
escapulido de minhas mãos.
Um jeito de dar uma volta conta a história da artista-mãe que insiste em
sonhar alto. O pássaro no tecido materializa o poder de encontrarmos outras for-
mas de sairmos por aí. Seja mergulhando em linhas, seja rodando em círculos,
seja fechando os olhos. Talvez tenha sido um momento em que a artista-mãe cha-
mou o arquétipo da mulher para expressar seus desejos de rua, de espaço, de
182 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

singularidade, particularidade. Ao sair, voltar-se para si e entender-se como una,


uma, só.
Tecer um pássaro de voo longo é a fuga sem sair de casa, sem sair da mater-
nidade, presa com as chaves da cela, de máscara. Traçar um plano de fuga através
das linhas manifestadas na trama. A peça tecelagem final é díptica, unida com uma
costura na posição central. Na tecelagem de cima, aparece o bico, cabeça e ombros,
um pássaro de voo alto e livre, como num passeio por uma paisagem verde e monta-
nhosa. Na peça de baixo, as asas, na mesma cor do pássaro de cima. Então a estória
está pronta: o pássaro está dividido ao meio porque fora retratado em momentos
diferentes, indo, vindo. Deu uma volta que só ele sabe, das montanhas, paisagens,
aventuras, solitude, liberdade, vento na cara. É o sonho do dia em que existirá voo
livre novamente.
O desejo de dar uma volta, quando reprimido, se volta para si. Então, a pessoa
começa a dar uma volta sobre si mesma, tonteando o juízo, já que não pode sair
pelas ruas de maneira despretensiosa, sem hora para chegar — coisas de uma ma-
ternidade pandêmica. A artista-mãe está numa caixa dentro de uma outra caixa: a
maternidade e a pandemia privam espaço e tempo. Sua interação é apenas consigo e
suas crias. A única volta que se pode dar é a da linha durante a tramação das asas do
pássaro que foi passear, e, então, inventar as memórias das ruas enfileiradas trans-
versalmente e tudo o que foi vivido do lado de fora e de dentro.

REFERÊNCIAS:

DE NORONHA, Danielle Parfentieff. A importância social da imagem: Reflexões sobre diferen-


ça, representação e poder em diálogo com um pensamento decolonial. Revista Iluminuras,
Porto Alegre, v. 20, n. 50, 2019.

OBENGA, Théophile. Egypt: Ancient History of African Philosophy. In: KWASI, Wiredu (ed.).
Tradução Vinícius da Silva. A Companion to African Philosophy. Massachusetts: Blackwell
Publishing, 2004.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 2001.

SALLES, Cecília. Gestos Inacabados: Processo de Criação Artística. São Paulo: Fapesp. Editora:
Annablume, 2008.
NO QUARTO DE DORMIR 1
Louise Gusmão2

No quarto de dormir, Bordado com cabelo humano e linha sbre tecido e tule, 16 cm x 13 cm,
Louise Gusmão, 2020.

1 No quarto de dormir é um desdobramento do Trabalho de Conclusão de Curso em Licenciatura em


Artes Visuais, “Um Lugar de Memória: A subjetividade do bordado na instalação artística”, UFRN/2017.
2 Louise Gusmão, nascida em Salvador, artista visual, pesquisadora e artesã. Licenciada em Artes
Visuais pela UFRN e mestranda no Programa Associado de Pós-Graduação de Artes Visuais UFPB/UFPE.
Pesquiso as questões de feminilidade, feminismo e hierarquização de gênero através da Arte Têxtil
Contemporânea.
184 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

Quando eu estava crescendo, todas as mulheres em minha casa usavam agulhas.


Sempre tive fascínio pela agulha, o poder mágico da agulha. A agulha é usada para con-
sertar danos. É um pedido de perdão. Nunca é agressiva, não é uma ponta perfurante.
Louise de Bourgeois

Inserir o bordado como proposição na produção de arte contemporânea, en-


trelaçado às questões de gênero e à hierarquia de gênero, como proposta de pes-
quisa em arte, é um projeto que vem sendo embasado em um processo contínuo de
amadurecimento que se fez durante os quatro anos de graduação em Licenciatura
em Artes Visuais, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Desde
então, venho pesquisando e tentando analisar, através dos estudos acadêmicos, as
influências das minhas memórias afetivas nos meus trabalhos artísticos e do uso
recorrente da produção têxtil artesanal. Em diversas disciplinas pude experimentar
linguagens diferentes e o fazer artístico como um processo, que tem início de forma
intuitiva e busca a expressão autobiográfica, pela utilização das linhas, do tecido, do
bordado e da costura. Essas práticas encontram reverberação na arte contemporâ-
nea, fazendo a ligação com as origens culturais, tradicionais e simbólicas do fazer
manual nordestino, onde o objeto utilitário e artesanal de uso cotidiano tem sua
função transformada em função estética.
Dentro do meu processo de imersão na pesquisa em artes, passei a conhecer
artistas contemporâneas que entrelaçavam as suas narrativas com o tema da minha
investigação artística. Procurei trazer, como referencial visual, artistas que evocam,
no processo de instauração de suas produções, os cruzamentos que fazem relação
com a mestiçagem de materiais e técnicas, com “a mistura de elementos distintos
que não perdem suas especificidades” (CATTANI, 2007, p. 11), como Edith Derdyk, e
principalmente, as que estão ligadas às vivências empíricas, derivadas de suas me-
mórias afetivas e das experiências que lhes afetam, como as minhas, a mim. Artistas
como Louise de Bourgeois, Rosana Paulino, Elida Tessler, Adriana Eu, Judy Chicago,
Miriam Shapiro, Ghama Amer, entre outras. Artistas artivistas, que fazem da arte
um convite à participação, como forma de amplificar, sensibilizar e problematizar
sua própria realidade junto à sociedade em que vivem. Que usam as tradições fe-
mininas, como os têxteis, para subverter os ideais de “feminilidade”, “docilidade” e
“domesticidade”.
Os processos de criações em arte têxtil tem sido “ritos” de amadurecimento
dentro de um caminho de transições, escolhas, anseios, necessidades, dores, de-
sistências, subtrações, deslocamentos e adições que ao longo da minha formação
acadêmica foram tomando corpo gradualmente e continuam reverberando. Foi um
mergulho profundo em mim mesma, no meu processo de criação artística, onde aos
poucos fui tomando consciência do papel da arte em minha vida, do meu papel de
mulher nas Artes Visuais e ao mesmo tempo, de como a potência das minhas vivên-
cias podem, através da linha, ultrapassar o patamar de experiências íntimas de vida.
A linha e a agulha transpassam a minha vida e ao mesmo tempo que vão perfurando,
“ferindo” o tecido, procurando um novo rumo, vão costurando e tecendo, cicatrizan-
do, as minhas dores e as ressignificando na Arte.
NO QUARTO DE DORMIR 185

OS LIAMES DA MEMÓRIA
A sociedade em que vivemos é, por sua natureza, diversa e variável. É forma-
da por indivíduos, comunidades e grupos que pensam e se relacionam de maneiras
diferentes, e que muitas vezes têm necessidades completamente opostas e incom-
patíveis em princípios e ideais. Desses grupos, surgem movimentos como forma de
organização coletiva com o intuito de obter transformações e conquistas sociais ba-
seados em seus valores e ideologias. Dentre esses movimentos sociais, o feminismo
vem se evidenciando ao longo da história. Desde o seu início nas primeiras décadas
do século XIX, o movimento feminista passou por grandes processos e mudanças se
adequando a cada momento histórico e conjuntura da época. Suas causas e lutas fo-
ram, e são, responsáveis por grandes mudanças nas relações entre os sexos feminino
e masculino e que têm como bandeira principal, uma sociedade livre da hierarquia
de gênero.
Mas, ainda hoje, paira sobre as mulheres feministas — que há séculos lutam
por mudanças sociais, equidade e igualdade, que propõem uma nova maneira de
pensar o mundo, o lugar feminino na sociedade e as políticas de direito ao próprio
corpo — a espada do estigma e do estereótipo de mulheres infelizes, histéricas,
feias, mal amadas, “não femininas”, repelidas pelos homens, com o propósito claro
de continuidade de um pensamento misógino e patriarcal do cerceamento ao direito
da construção da identidade feminina sob novos conceitos e parâmetros. A histo-
riadora feminista Margareth Rago (2001), em seu artigo, “Feminizar é preciso: por
uma cultura filógina”, faz uma reflexão sobre o lugar do feminino em nossa cultura
e as reações de misoginia que as lutas feministas e de emancipação da mulher têm
provocado e como as mulheres continuam a ser desqualificadas por esses rótulos,
dificultando, ainda nos dias de hoje, sua atuação política, social e econômica. Ela
também propõe a construção de uma cultura filógina, ou seja, a aceitação das práti-
cas e lutas feministas na constituição desta sociedade.

O feminismo veio questionar essa leitura hierarquizadora e excludente


da política, informada pelo discurso médico masculino, que justificava
com base em argumentos científicos a incapacidade física e moral das
mulheres para a condução dos negócios da cidade. Mostrou como se
opera a exclusão social das mulheres do mundo público, assim como
o silenciamento e a desqualificação de seus temas e questões. Lutou e
luta para que as mulheres se reconheçam como sujeitos políticos, cida-
dãs com deveres e direitos a serem reconhecidos e criados. Tem amplia-
do, portanto, o conceito de cidadania, propondo uma nova concepção
da prática política, que se manifesta não apenas nos espaços permitidos
e institucionalizados da política, mas na própria vida cotidiana (RAGO,
2001, p.65).

Esse debate sobre as questões de gênero também perpassa a história da arte,


em especial, no que diz respeito à prática têxtil, que através da hierarquia histórica
das divisões das categorias de artes, marginalizam e subjugam as artes têxteis como
“artes aplicadas”, “artes femininas”, “artes decorativas”, tidas como inferiores e que
não dependem de grandes dotes intelectuais para serem produzidas. Eram, e são,
“associadas a um trabalho mais comercial e menos puro, espiritual ou artístico [...].
186 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

Tratava-se de labor e não de arte” (SIMIONI, 2007, p. 97). Provocando, desta manei-
ra, o apagamento feminino e excluindo assim, as mulheres do sistema da arte, sendo
que “desde os anos 1970, a história da arte feminista aponta que a inexistência de
nomes femininos canônicos deve-se não a ausências naturais de qualidades intelec-
tuais ou artísticas, mas sim a uma prática sucessiva, mais ou menos institucionaliza-
da, de exclusão das mulheres do campo artístico” (SIMIONI, 2007, p. 91).
Essa estigmatização no campo têxtil está arraigada ainda aos fatores familia-
res patriarcais, que atrelavam essas práticas apenas com afazeres domésticos que
eram passados durante gerações, de mães para filhas. Essas convenções criaram um
estereótipo de prática amadora, voltada unicamente para os espaços íntimos do lar,
relacionados ao recato e exclusão, confinando a mulher aos domínios domésticos,
privando-a do convívio social. Associados às atividades menos intelectualizadas, li-
gando o conceito das artes têxteis ao conceito de “feminilidade”.
O conceito de pureza, delicadeza e recato associados à feminilidade criou ou-
tro obstáculo para as mulheres: o seu afastamento e exclusão da academia. Em seu
ensaio de 1971, “Por que não houve grandes mulheres artistas?”, Linda Nochlin narra
que, o que levou de fato, a essa invisibilidade, foi a circunstância de mulheres que
queriam seguir a carreira artística serem impedidas de frequentarem as aulas de mo-
delo vivo, nas academias. Como consequência, as artistas mulheres nunca poderiam
ter alcançado o status que obtinham os artistas homens por não poderem frequentar
as aulas de modelo vivo.
O mito do “grande artista”, ligado à genialidade masculina, foi proposto por
Vasari, no Renascimento, em que se reforçava a Aura mágica oriunda das artes repre-
sentacionais baseadas no desenho. Artes designadas a quem era dotado de superior
capacidade intelectual, proveniente de um padrão de habilidade técnica, que era
adquirido durante as aulas de pintura, escultura e desenho, através da prática da
observação de modelos vivos, nus. Com isso, as outras categorias de arte foram con-
sideradas como inferiores, relacionadas ao artesanato e às mulheres, como gêneros
menores. Ou seja, “as mulheres, seres intelectualmente inferiores, eram vistas como
capazes de realizar apenas uma arte feminina, ou seja, obras menos significativas do
que aquelas feitas pelos homens geniais: as grandes telas e esculturas históricas”
(SIMIONI, 2007, p. 94).
A filósofa e ativista feminista Silvia Federici (2017), narra em seu livro Calibã e a
bruxa, que esse processo de desvalorização da mão de obra feminina se arrasta desde
a Idade Média. Que até o final do século XVII as mulheres foram subjugadas a “não
trabalhadoras” porque os homens se negavam a dividir o campo de trabalho com elas,
sobrando assim, apenas os postos de status mais baixo, como os de tecelãs, fiandeiras,
bordadeiras, vendedoras ambulantes e amas de leite. E assim, surgiu a ideia de que
as mulheres não precisavam sair de casa para trabalhar, mas apenas ajudar na produ-
ção do marido. Tratava-se de um trabalho feito dentro de casa que não possuía valor
comercial, sendo rotulado como “não trabalho”. Federici (2017, p. 182) aponta que
“se uma mulher costurava algumas roupas, tratava-se de “trabalho doméstico” ou de
“tarefas de dona de casa”, mesmo que as roupas não fossem para a família, enquanto,
quando um homem fazia o mesmo trabalho, se considerava como “produtivo”.
NO QUARTO DE DORMIR 187

Esse “modelo exemplar de mulher”, “dona de casa”, foi amplamente difundi-


do e, infelizmente, ainda persiste. Até poucos anos atrás, na década de 1950, exis-
tia uma massiva onda de propagandas de eletrodomésticos e produtos domésticos
“ensinando” como uma “mulher do lar” deveria agir. O que ressoava também nas
escolas, onde era comum, disciplinas só para meninas, como “Economia do Lar” e
“Prendas Domésticas”.

Coser estava mais intimamente identificado com gênero do que com


classe, e como tal proporcionava um modo de representar o trabalho
das mulheres que evitava questões controversas sobre diferenças sociais
ou econômicas e sobre o trabalho industrial, desviando a atenção para
um modelo consensual de feminilidade. (...) A publicidade às máquinas
de costura baseava-se na identificação da costura com a feminilidade e
prometia um melhor desempenho das tarefas tradicionais. Um anúncio
da Singer de 1896, por exemplo, chamava ao seu produto a ‘máquina da
mãe’ e ‘o mais desejado presente de casamento’ que ‘ajuda substancial-
mente a felicidade doméstica’, enquanto um enorme S se enrolava em
volta da silhueta roliça de uma matrona confiante (GODINEAU, apud,
BAMONTE, 2004, p.111).

Muito embora nas casas das famílias mais abastadas, como nas grandes fa-
mílias tradicionais brasileiras, essa fosse a regra, nas capitais progressistas já havia
mulheres de famílias pobres que trabalhavam na agricultura, na indústria e nos lares
das mais ricas. No século XX, as mulheres passaram de dona de casa ao papel de es-
teio da família, com a industrialização, saíram de dentro de seus lares para trabalhar
fora, muitas delas têm agora o papel de chefes de família.
Atualmente, essas práticas vêm sendo renovadas, o que era tido apenas como
prendas domésticas, passou a ser chamado de artesanato e milhares de mulheres
fazem disso a sua principal atividade financeira. Muitas vezes, toda a família trabalha
em torno de uma tipologia de artesanato. Desta maneira, as tradições e manifesta-
ções de costumes culturais estão ressurgindo, resgatando identidades de povos que
já estavam quase extintas.

NO QUARTO DE DORMIR
A oportunidade de participar de Tramações: a memória e o têxtil ocorreu em
um momento em que eu estava refletindo muito (e ainda estou) sobre a condição
da mulher vítima de violência familiar, presa e isolada com seu agressor, durante a
pandemia. Foi quando eu vi correr nas redes sociais a seguinte corrente: “Se você é
mulher e já sofreu algum tipo de violência, ou assédio de um homem, comente com
um ponto (.)”. E logo me perguntei: “Qual mulher nunca sofreu isso?”. Este trabalho
surgiu como um grito de socorro.
Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a cada 8 minu-
tos, acontece um estupro no Brasil. São 180 estupros por dia. 63% dos casos cometi-
dos são contra vulneráveis. Mais da metade das vítimas de estupro, têm até 13 anos.
Mais de 20 mil meninas de até 15 anos ficam grávidas por ano. 75% das vítimas de
estupro conhecem seus agressores. 27% das mulheres com 16 anos ou mais sofre-
ram algum tipo de violência nos últimos 12 meses. Em brigas de casais (com indícios
188 A MEMÓRIA E AS URGÊNCIAS

de violência doméstica), registrou-se um aumento de 431%, entre fevereiro e abril


de 2020. Estima-se que cinco mulheres são espancadas a cada 2 minutos por seus
parceiros ou ex-parceiros. A cada hora, uma mulher é vítima de feminicídio no Brasil.
São 24 mulheres mortas por dia.
Vivemos em uma sociedade colonizada pelos signos do patriarcado, machismo
e misoginia, onde o lugar da mulher sempre foi subjugado às obrigações domés-
ticas como, submissão, sexualidade, fertilidade, maternidade e lealdade. Onde os
papéis associados ao gênero feminino e o lugar privilegiado do gênero masculino nas
relações geram vulnerabilidades para as mulheres, que acabam sendo mais expos-
tas socialmente à violência e violações de direitos. Esses papéis geram estereótipos
discriminatórios que historicamente, vem causando desigualdade e cerceando da
mulher o direito equitativo de acesso ao poder econômico, político e social. É nesse
contexto de poder e hierarquia de gênero que a violência doméstica se institui e é
legitimada pelo machismo, fazendo com que o abuso físico e psicológico seja usado
para manter aquilo que acham que é “correto”, para manter o que julgam ser o “lugar
da mulher”, promovendo assim, o seu silenciamento.
No quarto de dormir denuncia a violência doméstica e o poder constituído
a partir de uma identidade social masculina, que exalta o triunfo do domínio, da
conquista e do controle. O “Lar doce lar“ inviolável, não raro, é o lugar onde mora
junto conosco, nosso algoz. As teias que ali são tecidas, são tramadas de maneira
a nos prenderem da mesma forma como as aranhas fazem com suas presas, nos
imobilizando inteiramente. O medo de não continuar viva, a dependência moral e
emocional, sugam a nossa essência.
No quarto de dormir as quatro paredes deste sacrossanto recinto são as tes-
temunhas mudas de outras punições corporais e psicológicas que nos arrastam para
o limbo da escuridão. O lençol do leito matrimonial, que por vezes guarda a memó-
ria de uma herança bordada à mão em monogramas, contém a mancha, impossível
de ser alvejada, da usurpação (não consentida) do nosso corpo e da nossa alma.
Isoladas dentro de casa, somos sentenciadas a conviver com nosso agressor e por
medo, encarceramos-nos numa solidão dolorida e secreta que nos silencia, nos apa-
ga e arranca de nós a “liberdade”, o “desejo”, os “sonhos” e a “felicidade”, destruindo
a nossa “resistência” e muitas vezes a nossa “vida”. E eu replico a pergunta: “Qual
mulher nunca sofreu isso?” Eu sofri. Possivelmente, também você. Até quando?
As reflexões que fiz estão longe de ser um processo simples, exigindo esfor-
ço, perseverança e muita paciência. É um trabalho que muitas vezes te desloca do
mundo que você conhece, daquilo que te limita, para o “limbo” da dúvida da incons-
tância, da tolerância/intolerância e até, da dor, não só física, do cansaço, mas aquela
que vai lá dentro e que mexe com as suas inquietações, que te perturba e te instiga
a querer ir mais fundo.
É do cruzamento de conhecimento, de influências e experimentações que
conseguimos fruir a arte e fazer pesquisa em arte. Os caminhos que nos conduzem
neste processo são diversos. Há alguns anos estou nesse processo e só há muito
pouco tempo foi que me dei conta que este caminho é o começo do resultado de um
percurso que começa a florescer. Digo começo, pois sei que esta pesquisa ainda não
NO QUARTO DE DORMIR 189

está acabada, que dela, muitos desdobramentos virão, como bem disse meu querido
orientador, Prof. Me. Artur Souza, “o processo, para artistas como nós, é a vida. Só
termina quando morremos”.
Acho que essa fala resume bem o que é ser um artista-pesquisador, uma ar-
tista-pesquisadora, mas há de se atentar, que o/a artista-pesquisador/a, não fique
preso/a aos muros acadêmicos. Temos que levar a pesquisa para fora dos muros da
Universidade, para os bancos das escolas, para o meio da sociedade que vivemos.
Precisamos efetivamente estabelecer as relações entre os conceitos que produzimos
e as questões que nos cercam no mundo, promovendo assim, um debate mais amplo
e fundamentado a respeito da arte e as questões de gênero. O mundo precisa da
arte, o mundo precisa pensar a arte e o que ela significa na vida das pessoas.

REFERÊNCIAS:

BAMONTE, Joedy Luciana B.M. Legado- gestações da arte contemporânea: leituras de ima-
gens e contextualizações do feminino na cultura e na criação plástica. São Paulo: Universidade
de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, 2004.

CATTANI, Icleia Borsa. Mestiçagens na arte contemporânea. Porto Alegre: UFRGS, 2007.

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Elefante, 2017.

NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Aurora, 2016.

RAGO, Margareth. São Paulo em Perspectiva. Fundação SEADE, v. 15, n. 3, p. 53- 66, 2001.

SIMIONI, Ana Paula Cavalcante. Regina Gomide Graz: modernismo, arte têxtil e relações de
gênero no Brasil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, v. 45, p. 87- 106,
2007.
190 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES
OBRA 273: UN PROCESO CREATIVO
A TRAVÉS DEL TIEMPO
Jorge Elías Chaij1

Obra 273, Acrílico y materiales reciclados, 45 x 42,5 cm, Jorge Elías Chaij, 2019.

Influenciado por la meticulosidad y la experimentación en la combinación de


técnicas que presume una formación académica ligada al Grabado, es que nace ésta
y toda mi obra. Soy un artista visual comprometido en resaltar la belleza urbana,
tratando de encontrar un punto favorable en la intervención de la mano del hombre
sobre lo natural, evolucionar hacia una estética que valore elementos poéticos de
una realidad matérica en la que no reparamos, la que me rodea y con la que convivo,

1 Jorge Chaij nace en Córdoba, Argentina en 1975. En 2001, con formación académica ligada al
Grabado egresa de la Escuela de Artes de la Universidad Nacional de Córdoba. Manifiesta interés por
la abstracción, lo urbano, la geometría y la tridimensión. Realiza murales de gran formato en mosaico,
estudió el profesorado y ejerce la docencia, experiencias y elementos con los que refuerza su obra
desde el conocimiento y la manipulación de ciertos materiales.
192 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

donde juegan un rol esencial el volumen y la textura, donde todo lo demás está
subordinado a ellas.
Mi obra es abstracta, tridimensional, uso texturas visuales y táctiles, para mos-
trar las marcas que dejan el paso del tiempo, los accidentes que ocurren a su paso.
La intención es que ningún elemento corra mejor suerte que otro; una mancha, una
incisión, una huella, un descuido, y el azar voluntario poseen una carga significativa
y equivalente.
Me preocupa la injerencia humana en el medio ambiente, pero a la vez hay pe-
dazos de realidad que me deslumbran y los quiero mostrar, óxidos, golpes, rayones,
el tiempo que moldea a su antojo todo lo que toca y nos rodea, y a nosotros también,
por dentro, por fuera, cambiamos, mutamos, nos oxidamos. Lo urbano desplaza lo
natural, destruye el medio que invade y consume todo a su paso, consumo sin mayor
necesidad que la de consumir, por lo que trato de combinar, reciclar y reutilizar la
mayor cantidad posible de materiales, desde allí, telas, hilos, arena, alambre, papel,
cartón, y cualquier material no degradable pueden ser parte. Busco dejar la menor
huella posible en este mundo, huellas que muestro en mi trabajo; contradicción,
dualidad, presente en la mayoría de mis obras, traducidas en ciertos esquemas de
figura y fondo. Tratando siempre de que cada una de ellas se integren con el fondo
y así lograr interés en el conjunto total de la composición. Obras sin nombre para no
identificar ni ubicar en contexto al espectador, que cada quien complete a su antojo
el recorrido visual sin orientaciones, guías ni límites, sólo numeradas como en una
tirada de Grabado, cronología para saber dónde empezó y hasta donde llegará mi
obra.
En esta etapa del proceso creativo, y desde hace varios años, incursiono en
el círculo, siempre salir del formato tradicional o comercial del cuadrado o del rec-
tángulo fue la premisa. Usando distintos formatos no tradicionales llego a utilizar
el circulo como base, soporte y contenedor de mi obra, buscando la simplicidad o
abstracción en relación directa con la expresión más mínima del lenguaje, la mínima
unidad, el punto.
Apartando así también la idea de obras donde el marco sirve de separador,
más que contenedor entre la obra y el medio, lugar que en mi trabajo no existe,
o más bien la función de este supuesto marco o soporte es el de reforzar una idea
por medio de materiales más concisos que el blanco del papel o el lienzo, dejando
de lado las funciones de separación para así unificar la obra con el medio en el cual
deben coexistir.
Esta obra, en la que incursiono en el bordado, lleva a flor de piel la dualidad
con la que me enfrento en muchas de mis obras, no solo en lo formal y lo visual, sino,
además, esta vez, en temperatura.
Al tocarla, el lado izquierdo, es sólido, esta frio, es frio. Se superpone por en-
cima del resto de la obra, la invade, avanza. Representa desde lo formal y emulando
el cemento de la ciudad, toda estructura social o urbana que contiene al hombre y
lo separa de la naturaleza, lo salvaje, el entorno. Utilizo tonos verdes remembrando
naturalezas perdidas, colores mezclados, velados, un color que construye por medio
de armonías y contrastes de tonos significativos, inseparables de la sugestión de la
OBRA 273 193

materia o la imagen evocada, un color capaz de expresar valores esenciales, relativos


al carácter dramático, profundo y destructivo de la erosión y el paso del tiempo, ac-
tuando sobre objetos comunes, cotidianos, en los que ya no reparamos por simples
o efímeros.
Gracias al Lenguaje Plástico Geométrico, comencé a interiorizarme sobre lo
que significa un módulo y las posibilidades de su uso en mi obra. Siendo además fácil-
mente adaptables al interés por la repetición y combinación. Estos espacios creados
a partir de figuras geométricas simples, cuadrados, rectángulos y triángulos dan a la
figura un soporte lineal bien definido reforzando la tridimensión de la pieza. Simpleza
en un sinnúmero de pequeños detalles que se funden y logran un todo, veladuras
geométricas que decoran texturas tanto visuales como volúmenes reales emulando
cemento, asfalto o concreto, heredadas de murales de gran formato realizados en
mosaico.
En contrapunto la suavidad de la textura bordada no solo se diferencia por
material y color, la arpillera hace las veces de lienzo, donde descansa el hilo de algo-
dón, teñido de un tinte rojo, en este caso la textura no es visual, sino táctil, imitando
incisiones donde destaca más la trama a rayas que las formas geométricas que la
componen, en cuanto a la aceptación del collage no como originalmente fue utiliza-
do, no para la sustitución de una parte del objeto mismo para no realizar una copia
exacta de éste, sino para acentuar el aspecto material y de infraestructura de la obra.
Subrayo la significación alcanzada por el material en cuanto sustancia, mante-
niéndose como tal, en su aspecto visual y cualidades sensibles. La arpillera bordada
con hilos de algodón, tras ser elegida, importa tanto en su propio valor matérico
como al de la obra. El material real cambia de sentido no subordinándose a la com-
posición, sino gracias a su agrupación. Pues “el arte objetual alcanza su plenitud en
sus posibilidades imaginativas y asociativas, libres de imposiciones, en el preciso
momento en que el fragmento objeto u objetos desencadenan toda una gama de
procesos de nuevos significados y sentidos en el marco de su banalidad aparente”
(SIMÓN, 2012, p. 254). Enfatizo el carácter objetual de la obra y su semejanza con el
Assemblage por estar compuesto de materiales diferentes desprovistos de su deter-
minación utilitaria y la liberación del marco.
Objetual en su identificación de los niveles de representación y lo representa-
do, buscando las diferencias establecidas en los principios tradicionales ilusionistas
de la representación. La reflexión se desplaza así, hacia las relaciones asociativas de
los objetos entre sí y respecto a su contexto interno y externo, donde no interesa el
material aislado sino en sus transformaciones, en este caso estéticas. Por medio del
cual, el fragmento de la realidad pierde su sentido unívoco con el fin de explorar la
riqueza significativa. Profundizando la aproximación del arte a la realidad matérica
representada sin residuos imitativos, sometida a una descontextualización semán-
tica que provoca toda una cadena de significaciones y asociaciones derivada de la
desfuncionalización de la materia. Elevando y declarando por medio de la elección y
transformación estética, un objeto común a la categoría de obra de arte.
El arte objetual reconoce la realidad sociológica concreta de los objetos, sobre
un hecho de la civilización consumista “el carácter fetichístico de la mercancía” según
194 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

Marx (1985). Que niega por medio de la descontextualización, desfuncionalización y


frente a la variedad uniforme, seriada, de objetos, se proclame una reconquista de lo
individual mediante la exageración de las propiedades físicas del material, captadas
como ingredientes estéticos y transformadas artísticamente como modos de apa-
riencia de lo táctil y cromático.
La premisa es utilizar la naturaleza urbana, sus productos y deshechos como
campo de acción y convertirla en material y concepto artístico, tomándola como me-
dio y lugar de experimentación, reformulando elementos cotidianos para que for-
men parte de obras en las que la influencia del tiempo es protagonista fundamental
del proceso artístico.
En consecuencia, la intensidad objetual y cosal provoca un efecto conceptual
en cuanto remite más allá de sí mismo e instrumenta una ampliación y extensión de
la conciencia, al tocar la obra, y en comparación con su contraparte verde, los hilos
de algodón bordados no poseen la misma temperatura, y debido a su composición
la materia prima textil, conserva cierto nivel calórico, como si estuviera viva, como
si fuera el interior de la obra, el algodón nos invita a quedarnos acariciando su lado
más amable, más humano y familiar, de una cierta calidez, hasta parece un abrazo
sincero, esos que la memoria decora con un aura de sensaciones indescriptibles, un
suave y lindo recuerdo…

REFERÊNCIAS:

MARX, K. O Capital: Livro I, Volume II. São Paulo, Nova Cultural, 1985.

SIMÓN, Marchan Fiz. Del Arte Objetual al arte de Concepto. Madrid: Editorial Akal, 2012.
DES[A]FIAR: IDENTIDADES DOCENTES
COSTURADA ÀS VIVÊNCIAS DO ESTÁGIO
SUPERVISIONADO EM ARTES VISUAIS
João Paulo Baliscei1
Jéssica Fiorini Romero
Flávia Fiorini Romero
Regina Ridão Ribeiro de Paula
Thalia Mendes Rocha

DES[a]fiar, colagem e bordado, Coletivo Andarilhas entre tramas docentes, 2019.

1 "Andarilhas entre tramas docentes" é um coletivo formado por Flávia Fiorini Romero, Jéssica Fiorini
Romero, Regina Ridão Ribeiro de Paula e Thalia Mendes Rocha, graduadas em Artes Visuais pela
Universidade Estadual de Maringá (UFM), e pelo Prof. Dr. João Paulo Baliscei (UFM).
196 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

DES[a]fiar (2019) é uma obra coletiva decorrente da experiência realizada em


2019, com discentes de um terceiro ano do Curso de Licenciatura em Artes Visuais,
da Universidade Estadual de Maringá - UEM, em Maringá, localizada no norte do
Paraná. Desdobrou-se de uma proposta feita pelo professor João Paulo Baliscei, no
primeiro dia de aula da disciplina de Estágio Supervisionado em Artes Visuais I, que
promove experiências com a Educação Infantil.
O processo de criação do DES[a]fiar (2019) envolveu dois momentos: um efe-
tivado na primeira aula da disciplina de Estágio Supervisionado em Artes Visuais I;
e outro, realizado nos demais encontros. Nesse texto — escrito a dez mãos e com
muitas trocas de e-mails, em um momento histórico de pandemia, quando evitamos
encontros pessoais e físicos – retomamos essa vivência que completou um ano e a
relacionamos com textos, experiências e leituras que, à época, não nos eram tão
acessíveis. Portanto, de certa forma, trata-se de uma atualização dessa experiência.
No que diz respeito à estrutura, organizamos nossa reflexão em três tópicos, dois
deles referentes aos dois momentos de construção da obra que nomeamos como
DES[a]fiar (2019), e um último destinado às considerações finais.

NÓS, LINHAS E AGULHAS: NOSSO PRIMEIRO CONTATO


COM O ESTÁGIO SUPERVISIONADO
No primeiro dia de aula da referida disciplina, o professor nos apresentou um
tecido branco, de algodão cru, e oferecendo-nos uma caixa com linhas coloridas,
miçangas pérolas, fitas, tesouras, agulhas e demais pedrarias, pediu para que procu-
rássemos uma memória acerca de nossa passagem pela escola e Educação Básica e
que, em seguida, intervíssemos no tecido a fim de contá-la, artisticamente. Diante
dessa orientação, todos/as nós, que acabávamos de nos tornar estagiários/as, sen-
tamo-nos ao redor de uma grande mesa formada pelas carteiras da sala, sobre a
qual o tecido fora colocado, e começamos a revisitar nossas memórias, explorar os
materiais disponíveis, e assim, interferir no tecido. Ao entrarmos em contato com o
têxtil e com suas memórias quanto à infância e à adolescência, nós compartilhamos
um intenso momento de trocas — relatando histórias, dificuldades e êxitos e as apro-
ximamos umas das outras, a fim de encontrar pontos de convergência e divergência.
Paralelamente a isso, fomos trocando também nossas experiências e habilidades
com o bordado: uns/umas se desafiavam em como colocar a linha na agulha, en-
quanto outros/as já estavam familiarizados/as com essas materialidades.
Compor um grupo, acessar memórias tão bem guardadas, refletir sobre meios
para tramá-las num suporte coletivo e socializá-las verbalmente nos impulsionou ao
resultado dessa intervenção da primeira aula como DES[a]fiar (2019). O nome foi
escolhido a partir dos primeiros levantamentos de palavras que fizemos, no qual in-
vocamos o “desfiar/fiar”, termos característicos do têxtil e que se remetem ao movi-
mento de ir e vir; somando-o do verbo “desafiar”, que guarda relações com desafios
que teríamos pela frente. Quando todos/as terminaram de tecer as suas memórias
individualmente, compartilhamos com o grupo, relatando-as e mostrando como ha-
viam sido materializadas no tecido. O professor participou de todo processo ouvindo
e conversando com o grupo.
DES[A]FIAR 197

De modo geral, compartilhamos junto às nossas memórias, as expectativas e


angústias que manifestávamos frente à docência e ao estágio. Muitos/as estavam
animados/as em voltar para a escola e conviver com as crianças, desta vez como
professores/as. Outros/as estavam apreensivos/as e inseguros/as pois não sabiam
como agir e principalmente como seriam as reações das crianças. Na época, con-
cordamos que aquele seria um primeiro contato com um dos possíveis campos de
trabalho para o qual nós havíamos nos preparado desde o primeiro ano do curso de
licenciatura. Entendemos que o estágio seria, portanto, fundamental na construção
de nossa identidade docente e, como explica Jociele Lampert (2005), autora cuja
pesquisa conhecemos e estudamos em aulas posteriores, andarilhar no caminho da
docência em Arte faz com que essa experiência em forma de lembranças constitua
uma outra metade do/a docente. Em suas palavras:

O estágio é a nossa primeira experiência concreta, quando acontecemos


como professores, nascemos literalmente, fizemos escolhas que consis-
tem em nossas mudanças, mudanças que são marcadas para vida toda
em forma de lembranças, lembranças queridas que devem ser amadas
como trajetórias. Essas são as nossas metades, o que fomos, o que so-
mos e o que seremos (LAMPERT, 2005, p. 156).

Assim, sobre um tecido branco, tecemos memórias individuais e coletivas com


diferentes materiais, em um hibridismo de subjetividades. Nele, encontram-se tra-
mas que dialogam com diferentes espaços e lugares temporais e hoje, recordando
sobre isso, relacionamos essa atividade aos estudos de Luciana Borre (2020, p.39)
para quem “[...] ao trazermos nossas memórias, estamos selecionando o que gosta-
ríamos de contar, fabricando dados de investigação e construindo um pano de fundo
para possíveis processos reflexivos e interpretativos”.
Quando nos voltamos para a docência em Artes Visuais, tomamos como base
as escritas de Lampert (2005), que conceitua o Estágio Supervisionado como início
de uma trajetória e identidade profissional de professores/as que, no nosso caso,
atuarão com e sobre o conhecimento em Artes Visuais. Essa percepção, de certa
forma, gerou desconfortos em parte do grupo pois, alguns/algumas acadêmicos/as
já haviam manifestado que o seu interesse por se matricular e por permanecer no
curso de Artes Visuais estava mais relacionado à aquisição e ao desenvolvimento
de técnicas (tais como o desenho e a fotografia) e menos com o tornar-se docente.
Houve quem, inclusive, afirmou seu não interesse por ser professor/a.
Aproximamos os fatos dos estudos de Lampert (2005), que mostram ser co-
mum que os/as acadêmicos/as de Artes Visuais se interessem mais pelo bacharelado
do que pela docência, mesmo em cursos de licenciatura. Contudo, alerta que o “fa-
zer” docente também envolve a inventividade e o prazer característicos do processo
criativo. Sublinha ser necessário entrelaçar as práticas docentes e pedagógicas com
o fazer artístico. Sendo essencial articular os saberes de “produtor/a de arte” com
os de “professor/a de arte” com a intenção de valorizar o processo de aprendiza-
gem e não (apenas) o produto final da aprendizagem. Argumenta que no estágio
supervisionado não podíamos “[...] compreender somente experiências e vivências
198 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

voltadas para o fazer artístico mais atrelá-las a propostas pedagógicas” (LAMPERT,


2005, p.150). Inspirados/as nisso, optamos por nos enxergarmos como artistas-pro-
fessores/as, e a este respeito Lampert (2005, p. 152) destaca que:
[...] andarilhamos em um caminho, no qual o professor torna-se pesqui-
sador e mediador no conteúdo do ensino da arte, mobilizando visibilida-
des específicas, verificando a busca e atribuições de sentido a tudo, ou
seja, procuramos respostas para formas e questionamentos simbólicos
que se configuram com a multiculturalidade humana, visando a constru-
ção de um modo poético pessoal e singular de se tornar visível o olhar
sobre o mundo.

Nesse primeiro momento o DES[a]fiar (2019) inaugurou vivências enriquece-


doras e oportunizou uma ação coletiva que contemplou inicialmente experiências
discentes individuais, as quais, posteriormente, transformaram-se em tramas coleti-
vas, embaraçadas, cheias de nós e rizomáticas. Assim como nós, no que diz respeito
à identidade docente, não nos sentíamos “prontos/as”, o DES[a]fiar (2019) também
não o estava. Essa produção caminhava para um emaranhado de experiências pesso-
ais e coletivas, que seriam construídas, acrescentadas, destruídas e bagunçadas com
o passar do tempo, conforme as próximas aulas, as leituras dos textos de referência,
as conversas do dia a dia, e nossa frequência em um Centro Municipal de Educação
Infantil - CMEI. Sobre isso escrevemos a seguir.

DESAFIANDO-NOS EM NOSSAS EXPERIÊNCIAS COM


AS OBSERVAÇÕES E INTERVENÇÕES
Em um segundo momento, realizado nas demais aulas que compuseram a dis-
ciplina, o DES[a]fiar (2019) manteve um foco mais individual. A cada semana, a obra
(ainda não finalizada) era levada por um/a de nós, estagiários/as-artistas, para sua
casa, responsabilizando-nos por dar continuidade a essa criação, e intervir no tecido,
poeticamente, conforme as novas vivências que o estágio nos oportunizasse. Esse
convite partiu do professor, que foi o primeiro a levar para a sua casa o tecido branco
com as intervenções que tínhamos feito no primeiro encontro. Imaginamos na oca-
sião, que a proposta já tinha sido encerrada, contudo, na aula seguinte, o DES[a]fiar
(2019) nos foi apresentado com uma outra intervenção, realizada pelo professor, em
sua casa, durante a semana.
Ele havia costurado ao tecido que servira de suporte para o DES[a]fiar (2019)
um pano de prato ganhado de uma aluna em seus primeiros anos como professor
da Educação Básica. Sob o pano de prato, acrescentou pinturas, bordados e costu-
ras que diziam respeito às suas expectativas e memórias particulares, ao longo dos
anos na profissão. Essa configuração guarda relação com o que expõe Mirian Celeste
Martins (2006, p.12) ao apontar, a partir do que nomeia como curadoria educativa,
que o ensino de Artes Visuais pode acarretar em um território “[...] composto de
riscos, estados de loucura, de paixão e de criação artística, é um meio de estar entre,
entre tantos conhecimentos dos quais o professor provoca e é provocado, alimenta
e é alimentado”.
Tendo apresentado sua intervenção, o professor lançou o convite para que
DES[A]FIAR 199

uma próxima pessoa pudesse levar o DES[a]fiar (2019) para sua cara e, assim, conti-
nuasse esse exercício. Semelhante a Borre (2020, p. 42) que, em atividade com suas
alunas, manifestou o desejo de “que minhas narrativas criassem, instigassem, provo-
cassem, rasgassem, rompessem e/ou fraturassem outras histórias”, o professor, ao
iniciar esse projeto convidou-nos a estar com ele.
A partir desta primeira intervenção individual, o DES[a]fiar (2019) seguiu,
semana após semana, sendo trabalhado, retalhado, interposto, mediado, bordado,
acrescido de outros tecidos, outras vezes rasgado. Entre as tramas que nos cons-
tituíram como estagiários/as, em meio às observações e intervenções no Centro
Municipal de Educação Infantil, nossas criações, em casa, constituíram o DES[a]fiar
(2019) como obra. Engraçado recordar que, por vezes, essa obra chegava à universi-
dade de carro, e voltava a pé, ou de bicicleta e que suas tramas dialogaram com os
diferentes espaços habitados por cada estagiário/a daquela turma.
Conforme avançavam-se as observações, anotações, planejamentos de aula,
elaboração de recursos didáticos, intervenções e os vínculos com as crianças do
CMEI — todos materializados em nossas intervenções no DES[a]fiar (2019) — aos
poucos, o tecido branco já não era mais tão branco assim, sendo transformado por
bordados, costuras e recortes. Esse retalho uniu-se a outros retalhos, com inserções
de diversas formas, tamanhos, cores e texturas, dobras, sobreposições, acréscimos
e avessos que guardam lembranças e (res)significações de cada aluno/a e também
do professor.
A experiência de materializar artisticamente o DES[a]fiar (2019) colaborou na
construção da identidade docente dos/as envolvidos/as, permitindo reflexões sobre
as experiências individuais e coletivas, de forma a expressar suas subjetividades,
artisticamente. Outra configuração que transpassou os processos de criação dessa
obra foram os momentos em sala de aula, quando cada artista discente comparti-
lhou com os/as colegas e professor da turma as suas ideias, reflexões e impressões
com relação às suas intervenções no DES[a]fiar (2019). Como o tempo foi limitado
dentro da disciplina de Estágio Supervisionado em Artes Visuais I, por conta das de-
mais atividades que realizávamos (como as observações e intervenções no CMEI),
as conversas em torno do DES[a]fiar (2019) acabaram também por possibilitar uma
maior aproximação entre o/a “outro/a” e o “eu”, entre os sujeitos que mesmo en-
volvidos/as em processo próximos de criação e de docência, não necessariamente
enxergavam essa proximidade.
É importante destacar que os processos criativos que envolveram a produção
do DES[a]fiar (2019) foram conduzidos a partir dos temas: Formação docente;
Educação Infantil; Escola; Práticas de estágio e Docência em Artes Visuais, que atua-
ram como espécies de eixos para nossos pensamentos e ações.
Enquanto estagiários/as de Artes Visuais, com essa prática reflexiva e
criativa colada ao Estágio Supervisionado, foi-nos possível ser mais reflexivos e
críticos/as quanto às nossas ações como professores/as. Como afirma Lampert
(2005, p. 153), precisamos, sob essas condições, “questionar constantemente
nossa prática educativa para tentar ver onde poderíamos fazer melhor da pró-
xima vez”.
200 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

O DES[a]fiar (2019) ainda foi parte constitutiva da avaliação da disciplina de


Estágio Supervisionado em Artes Visuais I. Sendo assim, marcou poeticamente o pro-
cesso de formação da turma, com uma materialidade que foi além das práticas edu-
cativas de avaliação convencionais. Essa configuração avaliativa se aproxima daquela
descrita por Fernando Hernández (2007, p. 96), uma avaliação que “[...] não busca
que o aluno repita o que aprendeu a partir do questionamento, mas que enfrente
novos desafios em termos de dar conta de sua trajetória e de momentos-chaves de
sua aprendizagem”. Considerou-se na avaliação, o desafio que foi para os/as discen-
tes artistas materializarem suas subjetividades, tendo sido o DES[a]fiar (2019) de
fato um desafio, o qual se qualificou também como um marco no ensino-aprendi-
zagem e na trajetória docente dos sujeitos envolvidos. Hoje, avaliamos que em sua
materialidade têxtil essa obra marcou o início da constituição de uma identidade
de professores/as artistas, mediadores/as e pesquisadores/as que, conforme explica
Lampert (2005, p.152), visam a “[...] construção de um modo poético pessoal e sin-
gular de tornar visível o olhar sobre o mundo”.

OLHANDO PARA O DES[A]FIAR HOJE


Linhas soltas, linhas fragmentadas, linhas torcidas e linhas entrelaçadas...
Linhas que formam bordados desenhados ou linhas que simplesmente atravessam
o tecido que antes fora cru. Tecido que se emenda com seus semelhantes, de outras
cores, texturas, cheiros e origens. Tecido rasgado, pintado, desenhado. Tecido costu-
rado e tecido desfiado. Tecido que antes fora apenas tecido, sem ressignificações e
muito menos intervenções. Tecido que guarda registros, que guarda memórias, que
guarda confortos, que guarda angústias e que guarda saudades.
As visualidades do DES[a]fiar (2019) guardam nossas memórias. Não há uma
linearidade de pensamento ou muito menos uma organização entre as diversas
expressões e intervenções no tecido. Se no início essa peça compunha apenas in-
tervenções tímidas, posteriormente nós, alunos/as, quando chegamos ao final da
disciplina e tendo vivenciado experiências ricas com o Estágio Supervisionado, sen-
timos que não tínhamos mais tantas amarras que nos limitassem a expressar nossos
confortos e angústias diante da experiência de sermos professoras e professores de
Artes Visuais. Desse modo, concordamos com Lampert (2005, p. 151), mais uma vez,
quando afirma que “é no estágio que nos damos conta de que as coisas nem sempre
são o que parecem ser, questionamos nossa formação, testamos literalmente nosso
conhecimento, deparamo-nos com situações que não conseguimos controlar e co-
metemos erros”.
Em intervenções ora afetuosas e ora violentas sob o tecido, percebemos o
quanto a experiência da formação docente afetou particularmente e singularmen-
te cada um/a. Essa ressignificação se aproxima com o pensamento de Jean-Claude
Bernardet (2003), a partir da ideia de que, ao apresentarmos elementos heterogêne-
os, justapostos, sem estabelecermos relações fixas e precisas, estamos construindo
um caminho para que quem observa trilhe suas próprias conexões de sentidos e diá-
logos da obra. Percebe-se então, potencialidade entre cada elemento constitutivo. A
potencialidade tratada pelo autor, pode ser significada no DES[a]fiar (2019) a partir
DES[A]FIAR 201

de cada intervenção feita por nós. As intervenções do DES[a]fiar (2019) nos acom-
panharam nesse processo de formação docente, e mesmo marcado como trabalho
finalizado, a cada passo que o observamos, o ressignificamos de maneiras diferentes
daquelas de nossos primeiros dias de observação e intervenção. De modo semelhan-
te, Borre (2020, p. 44), que se preocupa com o processo de externalizar e projetar
as vivências da formação docente, argumenta que se espera que as/os estudantes

valorizem e projetem tais processos autorreflexivos em suas futuras prá-


ticas enquanto professoras/es. Nesse caminho, o resgate reflexivo tende
a circundar temáticas sobre as relações afetivas em âmbitos familiares
e escolares, sonhos, fantasmas e medos projetados nas relações sociais
e que representam manifestações – as quais, uma vez recuperadas e
ressignificadas, facilitam a construção da identidade docente.

Concordamos com a autora, sobretudo quando reitera que projetar as vi-


vências de estágio possibilita a ressignificação tanto de experiências que nos foram
positivas e esperadas, como também das experiências que nos foram imprevistas
e que, nesse sentido, não caminharam como o esperado. Repensar no nosso cami-
nho de estagiários/as contribui para elaborarmos práticas educativas que incluam as
diversidades de cada criança nos espaços escolares, contemplando suas diferenças
e peculiaridades. Ademais, identificamos contribuições dessa vivência também nas
atividades de pesquisa que temos realizado em Trabalhos de Conclusão de Curso
– TCCs, Projeto de Iniciação Científica – PIC, e Programa Institucional de Bolsa de
Iniciação – PIBIC, e nos estudos que temos publicado, frutos dessas investigações. A
exemplo disso, mencionamos Jéssica Fiorini Romero, que investiga como as visuali-
dades de personagens femininas oferecem modelos de identificação restritos às me-
ninas (ROMERO e BALISCEI, 2020); Regina Ridão Ribeiro de Paula, quem pensa sobre
o desenvolvimento de recursos didáticos-brinquedos, articulados e criados especial-
mente para o trabalho de Artes Visuais com bebês e crianças pequenas (BALISCEI e
PAULA, 2019; 2020; PAULA e BALISCEI, 2020); e Thalia Mendes Rocha, cujos estudos
sublinham os potenciais da Arte Contemporânea para as intervenções realizadas na
Educação Infantil (ROCHA e BALISCEI, 2020; ROCHA, PAULA e BALISCEI, 2020).
Tendo se passado um ano dessa vivência, agora, prestes a nos formarmos
como licenciados/as em Artes Visuais, percebemos que a construção do DES[a]fiar
(2019) dialogou diretamente com a nossa formação e que essa obra carrega as iden-
tidades do que nós, estudantes, fomos, somos e seremos.

REFERÊNCIAS:

BALISCEI, João Paulo; PAULA, Regina Ridão Ribeiro de. Bebês também aprendem (com) as
Artes Visuais: Criação de recursos didáticos a partir dos Peixes de Aldemir Martins. Revista
Educação e Linguagens, Campo Mourão, v. 9, p. 416-434, 2019. Disponível em: http://www.
fecilcam.br/revista/index.php/educacaoelinguagens/article/view/2133. Acesso em 11 de
mar. 2020.

BALISCEI, João Paulo. Arte na Educação Infantil: Bebês brincando e aprendendo com
202 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

Recursos Didáticos-Brinquedos. In: Ivanio Dickmann. (Org.). Educar é um Ato de Amor. 1. ed.
Veranópolis: Diálogo Freiriano, 2020, v. 2, p. 187-204.

BERNARDET, Jean-Claude. O processo como obra. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 10-11,
13 jul. 2003. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1307200307.htm.
Acesso em: 31 jan. 2021.

BORRE, Luciana. Bordando afetos na formação docente. Conceição da Feira: Andarilha


Edições, 2020.

HERNÁNDEZ, Fernando. Catadores da cultura visual: transformando fragmentos em nova


narrativa educacional. Porto Alegre: Mediação, 2007.

LAMPERT, Jociele. Estágio supervisionado: andarilhando no caminho das Artes Visuais. In:
OLIVEIRA, Marilda Oliveira de; HERNÁNDEZ, Fernando (orgs.). A formação do Professor e o
ensino das Artes Visuais. Santa Maria, Ed. UFSM, 2005, p. 149-157.

MARTINS, Mirian Celeste. Curadoria educativa: inventando conversas. Reflexão e Ação –


Revista do Departamento de Educação/UNISC, Universidade de Santa Cruz do Sul, v. 14, n.1,
jan/jun 2006, p.9-27. Disponível em: http://fvcb.com.br/site/wp-content/uploads/2012/05/
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PAULA, Regina Ridão Ribeiro de; BALISCEI, João Paulo. Processos de criação de arte educado-
res/as: a elaboração de recursos didáticos-brinquedos para que bebês aprendam (com) arte.
Revista Apotheke, Florianópolis, v. 6, p. 73-85, 2020. Disponível em https://revistas.udesc.br/
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PAULA, Regina Ridão Ribeiro; ROCHA, Thalia Mendes; BALISCEI, João Paulo. Arte
Contemporânea e o uso de Recursos Didáticos-Brinquedos: Uma vivência com os (In)
Utensílios de Hélio Leites no Ensino de Artes Visuais. O mosaico Revista de Pesquisa em
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ROCHA, Thalia Mendes; BALISCEI, João Paulo. Convite à Arte Contemporânea: Repensando
as referências de Arte na Educação infantil. In: DICKMANN, Ivanio (Org.). Educar é um Ato De
Coragem, Veranópolis-RS: Diálogo Freiriano. Volume VI. 2020, p. 283-304.

ROMERO, Jéssica Fiorini; BALISCEI, João Paulo. “Deixar o mundo ser salvo pelos homens?
Claro que não!” Estudo sobre protagonismo feminino em filmes de animação. In: DICKMANN,
Ivanio (Org.). Educar é um Ato De Coragem, Veranópolis-RS: Diálogo Freiriano. Volume III.
2020, p. 43-64.
LINEARIDADE HÍBRIDA
Kathy Carvalho1

Linearidade híbrida, Patchwork de bioplástico caseiro, Kathy Carvalho, 2020. Vídeo Suplemento
Narrativo disponível em: https://vimeo.com/479638367

EXPERIMENTAÇÕES POÉTICAS E INVESTIGATIVAS COM O BIOPLÁSTICO


Particularmente o que me cativa no cotidiano é a materialidade em si. Ao
mesmo tempo, há um intermediário dos sentidos e, assim, me deparo com a dico-
tomia de que o imaterial se manifesta no material. Atravessada por uma visão mais
holística, chego a curiosa elucidação de que a pele do rosto é fina com grandes
poros, enquanto a pele das costas é espessa com poros pequenos e ainda assim
continuam sendo a mesma pele, concluindo que na natureza as coisas não são
uniformes. Esse exercício de observação toca outro grau de interação quando, após
comer um abacate, germino seu caroço em água e acompanho seu desenvolvi-
mento a olhos nus, o que me faz esquecer momentaneamente os limites entre a
vida e a morte. Isso me leva a crer que existem coisas que podem ser explicadas
e outras que extrapolam qualquer explicação. Minha relação com o bioplástico se
trata disso.

1 Licencianda em química pela Unicap/PE. Dedica-se à arte-ciência e sua pesquisa dialoga com biologia,
engenharia e moda.
204 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

Tentarei conduzir o percurso analítico que se manifestou de modo intuitivo na


criação do bioplástico de tapioca, no entanto, justamente por estas ideias estarem
profundamente associadas a questões existenciais, a minha percepção da realidade
metafísica será um grande desafio. Conforme Bergson (1988, p.69) nos diz já na pri-
meira frase do Ensaio Sobre Dados Imediatos da Consciência:

Se agora procurássemos caracterizar este acto, veríamos que consiste


essencialmente na intuição ou, antes, na concepção de um meio vazio
homogêneo. Pois não há outra definição possível do espaço: é o que nos
permite distinguir entre si várias sensações idênticas e simultâneas; é,
pois um princípio de diferenciação, distinto do da diferenciação qualita-
tiva e, por conseguinte, uma realidade sem qualidade.

O disparador da pesquisa são os biomateriais a partir do composto de tapioca


que desenvolvi com os recursos que possuía em casa durante o período de isolamen-
to social na pandemia do Covid-19. Ao me dar conta que materiais biodegradáveis
são compostos orgânicos, me senti desafiada a trazer à tona um material 100% natu-
ral, logo, iniciei um processo combinatório de ingredientes. Pela limitação da própria
circunstância, precisei improvisar, optando assim por traçar o caminho inverso de
uma pesquisa de laboratório.
A análise dedutiva partiu de anotações de pH dos ingredientes, da adição de
catalisadores biológicos, do balanceamento de uma estrutura molecular de amido
em fusão com os monômeros de glicose e como as trocas térmicas influenciam na
materialidade dos polímeros. Dessa maneira, o aspecto físico é o condutor, apontan-
do na rede de amostras determinados comportamentos. Sou capaz de avaliar carac-
terísticas como a flexibilidade, elasticidade e resistência para alternar a receita de
acordo com a reação esperada.
O objetivo desse processo foi valorizar práticas emergentes que utilizam fer-
ramentas de código aberto (ou open source)2, viabilizar a execução do bioplástico de
maneira caseira e aproximar a relação sujeito-objeto através da ressignificação do
alimento. Meu interesse por este objeto específico de estudo parte de uma experi-
ência de pesquisa no México, em 2018. Nesta oportunidade, dividi meu tempo entre
as cidades de Oaxaca e Guadalajara. Em um pólo tive contato com técnicas ances-
trais tradicionalmente difundidas e também aprendizados rudimentares, enquanto
que no outro pólo vivenciei o cotidiano do centro comercial de desenvolvimento
sustentável. Também colaborei com a Recio Diseño, no litoral de Guadalajara, em-
presa de moda que tem expressiva preocupação ecológica, cujo objetivo é utilizar
retalhos, resíduos plásticos e doações na criação de roupas e acessórios. Minha par-
ticipação foi na aplicação de testes físico-químicos desses plásticos, experimentando

2 Ecossistema virtual colaborativo que trata de aperfeiçoar conhecimentos. É um movimento software


livre solidificado no final da década de 1960 e início de 1970, que ganhou notoriedade com o Clube
de Ferreomodelismo The Model Railroad (TRMC/MIT). Levy (1984), em sua obra sobre as cyber-
comunidades, ao descrever a “ética hacker”, inclui que a ferramenta de código aberto ou acesso a
informação são precedentes morais, dado que o conhecimento permite fazer descobertas inimagináveis,
e por isso em absoluto não deveria ter limites.
LINEARIDADE HÍBRIDA 205

possibilidades de design, fazendo protótipos de pochete, ecobag e carteiras. Por


conta disso, me aproximei do espaço Maker Hacker Garage, em Guadalajara, e lá
não só tive familiaridade com uma impressora 3D como também fui apresentada ao
projeto ‘Precious Plastic’, que disponibiliza informações e ferramentas a qualquer
pessoa que esteja interessada na reciclagem de plástico. Durante estas experiências,
usufruí de uma ferramenta open source (https://materiom.org/), na qual o compar-
tilhamento de receitas possibilita conhecer o procedimento prévio de determinados
compostos, possibilitando o entendimento de suas interações, o que consequente-
mente facilitou a análise do comportamento do material e a compreensão da parti-
cularidade de cada reação.
Estas experiências, junto às notícias desastrosas com as quais convivemos
em relação ao uso indiscriminado dos plásticos, incentivaram minha busca por ex-
perimentações para a criação de um bioplástico. Um estudo inédito realizado pela
organização sem fins lucrativos alemã Fundação Heinrich Böll mostra que o Brasil é
um dos maiores poluidores do oceano com, sendo 70 mil a 190 mil toneladas de lixo
despejadas por ano no mar brasileiro. Em nosso país apenas 2% do lixo é reciclado,
mostrando a necessidade de mudança de hábito cotidiano.
Criar uma metodologia para a confecção de bioplástico em casa, me parece ser
uma alternativa para o consumo de plástico, podendo inclusive reduzir esses índices.
Exemplificando, depois de produzir o bioplástico 30 x 30 cm, modelei máscaras, luvas
e até mesmo sacolas bioplásticas, o que me fez perceber que essa verticalização da
cadeia produtiva pode atuar enquanto um fomento à autonomia frente ao consumo.
Durante a revisão bibliográfica não foram encontradas documentações es-
pecíficas do surgimento do bioplástico, com destaque para as pesquisas dos países
emergentes, como Índia, Malásia e Indonésia, que possuem dezenas de anos dedica-
dos aos estudos sobre o tema. Quanto aos conteúdos de altíssima relevância, quero
reluzir a investigação de Halimatul et al. (2019) da Universidade Putra Malásia em
‘Propriedades de absorção de água e solubilidade em água de filmes compostos de
biopolímero de amido de sagu preenchidos com partículas de palmeira de açúcar’ e
o estudo da ‘Produção de polihidroxibutirato (PHB) por Halomonas elongata BK-AG
18 indígena da cratera de lama salgada no centro de Java na Indonésia’, onde Hertadi
et al. (2017) explora o potencial isolado de uma bactéria halofílica indígena na pro-
dução de bioplástico, esse caso é análogo ao revolucionário couro de kombucha que
está em voga.
A escolha da farinha de mandioca veio pela estreita relação que criei com esse
patrimônio imaterial, tão presente no cotidiano pernambucano. Notei que, quan-
do induzida às reações físico-químicas utilizadas para tratamento capilar e skincare,
possuía uma textura com grande potencial. A princípio foi um estudo de caso, uma
pesquisa de exploração bibliográfica impulsionada pelo pensamento de Rwawiire e
Tomkova (2013), que com o biocomposto de casca de Ficus natalensis, a partir da ár-
vore Mutuba (proclamado em 2005 pela UNESCO como “Obra-prima do Patrimônio
Oral e Imaterial da Humanidade”) em Uganda, na aldeia de Nsangwa, vê a possibi-
lidade de um tecido natural e busca estabelecer uma base para aplicação da forma,
como por exemplo os painéis automotivos.
206 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

Ao iniciar os experimentos com tapioca, me impressionou a variedade dos


grupos de mandioca dentro da mesma região que, por obedecer uma lógica de agri-
cultura familiar, faz com que as trocas de maniva costumem ser caracterizada pelas
relações de cada comunidade, cuja pluralidade transpassam os limites da marcação
geográfica. Da mesma maneira, a abundância de materiais apresentados a partir do
mesmo ingrediente de origem permite amostras de bioplástico, bioresina, bioespu-
ma, biovidro entre outros. É preciso comentar também que a taxonomia científica
da mandioca acaba sendo deixada de lado pela vitalidade da taxonomia popular. Em
outras palavras, a Manihot esculenta é nomeada de acordo com seu regionalismo, e
destacam-se como os maiores produtores a região Norte e Nordeste do Brasil, nor-
malmente separando-as em mandiocas mansas (chamadas de aipins ou de macaxei-
ras conforme a região, que na linguagem científica são as de baixo teor de ácido cia-
nídrico) e em mandiocas bravas (chamadas de mandioca por oposição a macaxeira e
aipim, que na linguagem científica são as de alto teor de ácido cianídrico).
Assim, pode-se considerar que, a mudança de perfil dos seus derivados afeta
a qualidade de uma goma, farinha ou polvilho. Mas o que ainda me chama mais a
atenção é o fato de que não é possível localizar com exatidão a sua origem, mesmo
construindo um mosaico documental da sua ‘domesticação’ no país.

PATCHWORK DA INTERCULTURALIDADE
Considero as produções artísticas uma colcha de retalhos, onde a prática do
fazer é o dispositivo científico-metodológico, atravessado pela reflexão sistêmica en-
quanto sujeito político. Logo, optar por um material natural ou artificial gera efeitos
de causalidade que, embora pareça algo isolado, um compromisso unilateral, resulta
que essas escolhas têm papel preponderante em escala planetária. Isto é similar ao
abismo entre o perceptível e o intangível que tivemos contato no período pandê-
mico, onde as limitações humanas são a própria capacidade em crer, dado que as
experiências pessoais não abarcam esse contexto histórico que estamos vivendo, ou
seja, não temos um manual de como lidar com esse vírus especificamente.
Esmiuçar o cenário político e econômico ocasiona perceber que não há coin-
cidência na ordem dos acontecimentos com a ordem contada pela história, do qual
o consumo consciente não passa de um paradoxismo. E independente do posicio-
namento ideológico, sendo todo posicionamento uma atitude política, quando esse
aspecto é ignorado, beiramos o risco do esvaziamento de sentido, podendo às vezes
criar uma mera representação manipuladora. Essa problemática é salientada por
Adorno (2009, p.97) ao dizer que “a escolha de um ponto de vista subtraído da órbita
da ideologia é tão fictícia quanto somente o foi a elaboração de utopias abstratas”.
Atrelado a isso, a construção de sentido só é possível através de afeto, como se fizes-
se uma síntese do momento em que forma, estética e afeto são gatilhos de significa-
do. Retifico que toda escolha está parcialmente embrulhada de ideologias e, mesmo
que isso não seja posicionado abertamente, a estética está ligada com a questão
social a contrastar com quem as define (como a cultura periférica por tanto tempo
desprezada e definida por outras vozes). Isto posto, ao assumir estratégias de sobre-
vivência marginalizadas enquanto modo de inventividade, as enxergamos como um
LINEARIDADE HÍBRIDA 207

rico recurso de metalinguagem. Deste modo, o termo gambiarra compõe de maneira


epidérmica esse remendo no tecido social, quase como uma ferramenta de vanguar-
da ou deslocamento de um fungo que, diante da carência de meios, se instala feito
uma mola propulsora do obstáculo castrativo e fomenta um espaço de relação onde
a originalidade tem significado de liberdade (uma vez que na sociedade burguesa
esse conceito tem sua própria dialética materialista). Se hipoteticamente a imagem
proporciona conteúdo sobre ela mesma, a ética existente no uso de materiais des-
cartáveis ou vulgarmente rotineiros tem a estética atrelada a questões centrais in-
volucradas na própria cultura material. Assim, ao criar um método empiricamente
adequado e sem fórmulas, considerando apenas a imprevisibilidade circunstancial
no quesito matérias-primas de sentido, revela-se um campo vasto de sondagem.
Vale a pena explicitar os estudos detalhados a respeito da esfera dos bens
de consumo capturados das investigações de Lipovetsky (1999), onde encontramos
algumas definições dos objetos e suas supostas necessidades. São conduzidos, por-
tanto, à economia do gadget e ao frenesi tecnológico, nomeado como a “patologia
do funcional” ou “inutilidade funcional”, em razão do surgimento de utensílios como
a faca elétrica para ostras, lava-vidros elétricos, tostador de pão elétrico com nove
posições; ou ainda os itens descartáveis disfarçados de intrinsecamente essenciais, o
que desembocará no deslumbramento ao domínio de subsídios técnicos e a relação
lúdica concebida com o meio material que vivenciamos no século XXI. Em contra-
partida, Miller (2013) ao analisar a cultura material em Trecos, Troços e Coisas, usa
a título de exemplo a fábula “A roupa nova do Imperador”, em que em sua ausência
de roupa não mostra seu interior, mas é o indicativo de sua vaidade. Em relação às
tecnologias, argumenta que são gêneros culturais pelo fato da internet não ser um
objeto e não ter uma forma clara, ela se manifesta através de outros dispositivos
como celular e notebook. Miller, ao remeter essa reflexão, flerta com o insight de
que “as coisas fazem as pessoas tanto quanto as pessoas fazem as coisas” (2013, p.
200) e, de um jeito peculiar, faz com que os termos ‘superficialidade’ e ‘profundida-
de’ se revelem enquanto metáforas banalizadas pela sociedade de consumo.
Embora as investigações de Lipovetsky estejam na direção do senso comum
e Miller no sentido “extremista” (como ele se auto nomeia), é no ensaio Brutalisme
de Achille Mbembe (2020) que podemos encontrar o sutil caminho do meio. O au-
tor recapitula a expressão “antropoceno”, formulada por Paul Crutzen, ganhador do
Prêmio Nobel de Química de 1995, em que o prefixo grego “antropo” significa hu-
mano, e o sufixo “ceno” denota as eras geológicas. Diferente do antropocentrismo,
esta vertente dialoga com a crise ambiental tangenciada pelo discurso neoliberal.
A abordagem de Mbembe provoca epifanias diante da analogia ao conceito arqui-
tetônico do brutalismo e nosso atual estilo de vida antropocenista, conjugado pelo
capitalismo que instala o contato por engenhocas digitais, criando a objetificação
das relações enquanto somos inseridos nesse laboratório de resiliência diante do
colapso natural do planeta.
Diante da construção dessa realidade ficcional que habitamos, entreposta a
uma velocidade MB de dados em um confinamento atemporal, ao retomar a etimo-
logia da palavra ‘tecnologia’ (referência do grego téchnē, idéia de arte e habilidade,
208 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

lógos,caráter de ciência ou estudo) percebemos que trata-se da passagem de conhe-


cimento em que as ferramentas se divergem para criar algo útil ou funcional. Com
base nesse argumento, consideramos que “las tecnologías de las comunicaciones y
las biotecnologías son las herramientas decisivas para reconstruir nuestros cuerpos”
(HARAWAY, 1991, p. 198). Esse principio de “una búsqueda de un lenguaje común
en el que toda resistência à un control instrumental desaparece y toda heterogenei-
dad puede ser desmontada, montada de nuevo, invertida o intercambiada” (ibidem,
p.198), nos conduz ao desdobramento de que, por via de regra, os problemas estão
nos códigos e linguagens estabelecidos pela nossa rígida construção social.
Diante das interpretações semiológicas de Eco (1991), a especificidade de um
estereótipo da linguagem de usos retóricos do cotidiano constroem mensagens a vá-
rios níveis semânticos, como acontecem com sistemas cromáticos, indumentárias e
costumes. Assim, ao analisar a complexa gênese cultural no que não tem fundamen-
to lógico se trata, sobretudo, considerar o ruído como canal ativo de interferência e
puro veículo de sinal. Simplificando e trazendo ao nosso contexto, diria que o incons-
ciente coletivo dorme nas ‘crenças limitantes’ e essas são artefatos de controle.
Rosi Braidotti (2000) em Sujetos Nómades, de maneira esplêndida elucida que
na nossa sociedade se celebra e recompensa a uniformidade, onde essas identida-
des hierárquicas são definidas por realizações cumulativas, essas respostas imediatas
se relacionam com a ideia do eu estar posicionado profundamente dentro de nós.
Porém, se o eu não está situado de maneira fixa, a coragem de permitir múltiplos re-
conhecimentos se restringe a cutucar as vísceras do Id e abalar a cartografia de rela-
ções anexadas ao Ego, afinal, mesmo sendo elas posições respectivas ou divergentes,
ainda sim, se trata de estar numa zona cômoda. Romper com isso é, portanto, um
divisor de águas tanto no estilo intelectual quanto no discursivo.

LINEARIDADE HÍBRIDA
A proposição para terceira edição de Tramações: a memória e o têxtil foi a
poética Linearidade híbrida, constituída pela intersecção de bioplásticos de tapioca
no formato de dois círculos de aproximadamente 30 x 30 cm, em pigmento afro-in-
digena (índigo marroquino e cochonilha mexicana) e um pompom emergido em um
retângulo de 16 x 12 cm pigmentado com violeta genciana. O formato de dois círcu-
los se encaixa dentro da codificação de formas de maneira não dogmática, conhecida
como geometria não-euclidiana. Esse pensamento matemático é utilizado tanto para
desenhar um ponto de fuga, a chamada projetiva, quanto na teoria da relatividade,
calculando movimento/velocidade, permitindo que a tal variável de uma função ten-
der ao infinito faça sentido na prática. Sua premissa está em usar uma métrica de
medida diferente para uma superfície curva-côncava, revelando que a noção do que
vemos está limitado para o tamanho do espaço ao nosso redor. Também apresentei,
em Tramações, o vídeo Suplemento Narrativo, sobre as ramificações sinestésicas do
processo criativo, utilizando o neologismo do pensamento e a expressão da matéria
conceitual a partir do método de comunicação não-convencional.
Há também uma observação sobre a forma dos círculos, onde os paradoxos
apresentam a concepção dos “sólidos impossíveis”, as distâncias entre os elementos,
LINEARIDADE HÍBRIDA 209

a partir do estudo das regras de condições colocadas nos objetos e na interação em


conjunto, ponderando-se um objeto impossível como um componente com falsa
conexão, mas que individualmente faz sentido. E este argumento complementa o
entendimento de que “a cultura material, um conjunto de formas estilísticas começa
a fazer sentido quando pode ser visto em coerência com os outros” (MILLER, 2013,
p.155).
Concluindo, as coisas se relacionam e se interpõem, logo, não seria possível
compartilhar meu fazimento criativo sem revelar a cadeia de significados que está
impulsionando essa experimentação. Não poderia dizer que ser miscigenada, crespa
4B, me torna mais pertencente a algum lugar. Os meios que encontro para a racio-
nalização dos meus sentimentos é o cruzamento da minha ideologia, da problema-
tização da objetificação na dialética da opinião pública e do simbolismo imagético-
-teórico. Minha obsessão pela goma de tapioca transcende o simplismo da comida,
mas a potência que ela é na sua transitoriedade, me identifico com seu não-lugar de
origem e em como suas células reagem produzindo inúmeros desdobramentos. Por
fim, a ressignificação do alimento naturalmente brota da decolonização do cardápio
conforme estamos acostumados, esse processo trata de esmiuçar em dimensão na-
nométrica os detalhes etnográficos e questionar incansavelmente as probabilidades,
porque se relaciona com o ângulo do intérprete e recortes sociais são complexos
para serem tratados como determinantes rasos.

RECEITA DO BIOPLÁSTICO DE TAPIOCA 6X4 CM

50 g de massa de tapioca
60 ml de água
30 ml de vinagre
5 ml de glicerina

Pegue uma panela (de preferência um recipiente de aço). Adicione a farinha


de tapioca e água e mexa bem até que o amido esteja completamente dissolvido.
Adicione glicerina e vinagre à solução e misture bem. Cozinhe a solução em fogo
baixo por cinco minutos, mexendo a solução até que fique uma pasta grossa e trans-
lúcida. Transfira o composto da panela e espalhe-o sobre uma superfície plana (pode
ser em vidro, silicone, plástico com as bordas delimitando a forma desejada) untada
com óleo de amêndoas ou qualquer outro que tenha em casa à disposição . Deixe
secar ao ar livre por 7 dias (virando o composto para que tome sol de maneira uni-
forme) .
Obs.: Por se tratar de uma receita “faça-você-mesmo” o resultado terá a pe-
culiaridade correspondente a influência de climas e qualidade de ingredientes uti-
lizados.Para colorir adicionar o pigmento antes de transferir para a superfície de-
sejada, se for em pó (tais como curcuma, paprica,colorau ), será necessário que a
temperatura esteja alta, recomendo que faça ainda com o fogo ligado e no caso do
pigmento líquido (violeta genciana que pode ser encontrado em farmácia) adicionar
em temperatura baixa.
210 A MEMÓRIA E AS MATERIALIDADES

REFERÊNCIAS:

ADORNO,Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2009.

BOURMEAU, Sylvain; HARCHI, Kaoutar; MBEMBE, Achille. Entrevista com Achille Mbembe.
2020. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2020/08/17/brutalismo-do-antropo-
ceno-entrevista-co m-achille-mbembe/. Acesso em: 23 fev. 2021.

BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos Nómades: Corporización y diferencia sexual en la teoría feminista


contemporánea. Buenos Aires: Ediciones Paidós Ibérica S.A., 2000.

BERGSON, Henri. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência. Lisboa: Edições 70, 1988.

ECO, Umberto. A estrutura ausente: Introdução à pesquisa semiológica. São Paulo: Editora
Perspectiva S.A., 1991.

HARAWAY, Donna. Ciencia, cyborgs y mujeres: La reinvención de la naturaleza. Madrid:


Ediciones Cátedra, 1991.

HALIMATUL, M. J. ; SAPUAN, S. M.; JAWAID, M.; ISHAK, M. R.; IlYAS, R. A. Water absorption
and water solubility properties of sago starch biopolymer composite films filled with sugar
palm particles. Czasopismo Polimery (Revista Polímeros). n. 19, v.64, 2019, p. 595-603.

LEVY, Steven. Hackers: Heroes of the computer revolution. New York: Anchor Press, 1984.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: A moda e seu destino nas sociedades modernas.
São Paulo: Editora Schwarcz LTDA,1999.

MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio
de Janeiro: Zahar, 2013.

RWAWIIRE, Samson; TOMKOVA, Blanka. Morphology, thermal and mechanicalcharacteriza-


tion of bark cloth from ficus natalensis. International Scholarly Research Notices, 2013.
COSTURANDO MEMÓRIAS 211

ESCRITAS CURATORIAIS
COSTURANDO MEMÓRIAS:
CARTOGRAFANDO NARRATIVAS
Maria Betânia e Silva3

Alinhavadas, vivência performática, Luciana Borre, 2020

Corpo-novelo, vídeo, Maria Clara Tôrres, 2020

3 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (2010). Mestra em Educação
pela Universidade Federal de Pernambuco (2004). Graduada em Educação Artística/Artes Plásticas -
Licenciatura pela Universidade Federal de Pernambuco (1992). Graduanda em Filosofia pela Universidade
Federal de Pernambuco (2020). Professora da Graduação e do Programa Associado de Pós-Graduação
em Artes Visuais UFPE/UFPB. Atua no Ensino das Artes Visuais com ênfase nas temáticas: memórias,
história do ensino de arte, formação docente em arte, práticas pedagógicas em arte.
COSTURANDO MEMÓRIAS 213

https://www.instagram.com/p/CHyFKhvl9pz/

Diário Lunar, Ana Paula Lopes Monteiro, bordado, 2020.

Fitando Lugares, desenho e linha sobre tecido voil, 15x9 cm, Liz Santos, 2020
https://www.instagram.com/p/CHxtnWXF-N9/
214 ESCRITAS CURATORIAIS

Sismograma da dor, crochê em fio de lã merino, 100x 30cm, Nara Coló Rosetto, 2020.
COSTURANDO MEMÓRIAS 215

Mapeamento de Pequenas Narrativas Quase Invisíveis, Bordado, 42cmx47cm, Juliane Xavier, 2020.
216 ESCRITAS CURATORIAIS

Frente e Verso, bordado, 42 x 29,7 cm, Haidée Lima, 2020.

EreMita – Vestindo as memórias das águas pesadas, Fotoperformance,


Sandro Drumond, fotografia: @walton.ribeiro, 2020.
COSTURANDO MEMÓRIAS 217

Esqueço, crochê, 130 x 71 cm, Laura Melo, 2020.

Podemos estabelecer muitos adjetivos para as memórias. Tentar descrevê-las.


Identificar onde elas se localizam. Buscar explicações do porquê as temos e porque
tantas delas insistem em atravessar o tempo de nossa existência e outras desapare-
cem. Para além de compreender o que elas são, de fato, arriscamos dizer que somen-
te no exercício do narrar é que materializamos nossas memórias, compreensões,
experiências marcadoras de processos de reflexão, aprendizagem e criação.
Mas, a materialização das memórias também se efetiva em (des)alinhavar difi-
culdades enfrentadas, (des)entender-se como corpos novelos. Descrever (per)cursos
em diários lunares, fitando lugares e registrando por meio de sismogramas, os me-
dos, as dores, as superações, as conquistas. As memórias também envolvem mapea-
mentos do que, aparentemente, parece invisível. Elas se valem do esquecimento da
frente ou do verso e na ação de eremitar provoca reflexões sobre a condição nômade
do próprio ser humano.
Arriscamos afirmar, ainda, que se trata de um processo ancestral de cria-
ção que sobrevive ao tempo porque, por natureza, o ser humano é dotado de
memória. Já dizia Aristóteles (2002) que é da memória que a experiência surge,
pois as diversas recordações de um mesmo fato perfazem a capacidade de uma
experiência.
Partindo deste preâmbulo, neste texto, escolhi algumas linhas para a tes-
situra de pontos de encontro de diferentes histórias, olhares e produções ar-
tísticas. A direção aponta para 10 artistas que se utilizaram da arte têxtil para
218 ESCRITAS CURATORIAIS

cartografar suas memórias materializando-as em produtos artísticos contempo-


râneos no contexto pandêmico em que vivemos no planeta terra.
Vários elementos são comuns nas diferentes obras, por exemplo: a materia-
lidade que envolve o tecido, a linha, a cor, a textura, o volume; as histórias vividas/
refletidas como disparadores ativos de memórias; as relações intrínsecas (explícitas
ou implícitas) com o/s outro/s presentes nas narrativas visuais; as inquietações hu-
manas externalizadas através da Arte.
Todas fizeram parte da 3ª edição da exposição coletiva Tramações que teve
como temática central A memória e o Têxtil e foi lançada em novembro de 2020. Essa
iniciativa construiu uma grande rede de partilha tão necessária em um mundo cada
vez mais individualista.
A utilização do têxtil como matéria prima e suporte para dar existência real,
concreta às memórias, nos leva a costurar múltiplos elementos a elas vinculados, ou
seja, identidades, representações, tempos, espaços, dispositivos e disparadores que
possibilitam sua ativação. Assim, cartografar as memórias pressupõe um ato contí-
nuo de criação.
Sensações de ansiedade, alegria, diversão, frustração e intencionalidade fo-
ram despertadas em Luciana Borre ao investigar os sentidos de produção em relação
ao uso de saias e vestidos como um demarcador de gênero comum ao feminino.
Ao ampliar sua percepção sobre o objeto têxtil, a artista passa a perceber
que também as roupas carregam em si memórias, são heranças, códigos de outras
presenças histórico-culturais. Seu fazer artístico explora outras possibilidades que
rompem com as técnicas consolidadas e utilizadas em larga escala nas indústrias de
confecção. Quebra o padrão, se (des)prende do tempo, questiona relações econô-
micas e demarcadores de papéis sociais. Volta ao mais simples, como num retorno
às origens das funcionalidades de cada etapa da produção, buscando ressignificá-las
para além da ausência e da morte, dando-lhe novo sopro de vida.
No processo de alinhavar e costurar as memórias, é que os caminhos se cru-
zam entre lembrar e esquecer. A experiência de rever, rememorar, relembrar, narrar
é bastante singular em um processo de pesquisa em Arte cujo objeto é você mesmo
e sua trajetória de vida e formação, assim nos dizem Bernardes; Velloso (2015).
Considerando-se como uma artista do fazer, Maria Clara explora o tato através
das mais variadas matérias. Nessa experiência, deixa por meio da transparência que
as camadas da veladura permitam a sutileza do indizível, memórias guardadas que
encontram caminhos, que escorrem nas superfícies, que atravessam fronteiras.
No trabalho Corpo Novelo, a artista parece penetrar profundamente em seu
próprio íntimo, e dentro dele puxa linhas, tece pensamentos, prende e se liberta de
sentimentos acionados nas memórias, com a leveza da dança que o próprio pincel
ensaia.
Nesse sentido, a memória ou a percepção do mundo não são reflexos ou có-
pias do mundo, mas é atividade, é trabalho ininterrupto de redefinição, é transfor-
mação do presente (MONTENEGRO, 2010).
O período de isolamento social, provocado pela pandemia do Covid-19, trou-
xe muitos desafios à humanidade, sobretudo, nas relações pessoais e interpessoais.
COSTURANDO MEMÓRIAS 219

Ana Paula aproveitou esse desafio buscando mergulhar para dentro de si e observar
os ciclos de seu próprio corpo, suas emoções e pensamentos. Estabeleceu relação
direta com a lua, representação do feminino, vivenciando rituais ancestrais que atra-
vessam o tempo tentando encontrar pontos de equilíbrio com a terra, o ar e o espaço
num movimento cíclico de retroalimentação.
Na escuta interna profunda, a artista aborda relatos de experiências vividas
durante três meses de quarentena e suas histórias se conectam a muitas outras his-
tórias de mulheres pelo mundo afora, abrindo novos caminhos cartográficos que
rompem fronteiras socioculturais, econômicas e étnicas.
Esse processo dialógico de internalização/externalização se vincula ao que
Candau (2012) afirma sobre as falhas de memória, os esquecimentos e as lembran-
ças carregadas de emoção, pois o autor sustenta o entendimento de que elas estão
sempre entrelaçadas a uma consciência que age no presente. Porque a memória
organiza os traços do passado em função dos engajamentos do presente e logo por
demandas do futuro. A lembrança não contém a consciência, mas a evidencia e ma-
nifesta, é a consciência mesma que experimenta no presente a dimensão de seu
passado.
Na produção de um vídeo, Liz Santos, reflete sobre a fugacidade dos encontros
no intenso e dinâmico cotidiano das cidades. O aparentemente, comum e trivial se
torna matéria prima para sua produção artística que atravessa questões existenciais
profundas.
Valendo-se da lenda chinesa Akai ito que apresenta a existência de um fio ver-
melho que une as pessoas, a artista materializa a ideia de uní-las com este fio verme-
lho, emaranhar, esticar e adaptar às múltiplas formas de adversidades atravessadas
em algum momento da vida, rompendo os limites do tempo e do espaço.
Nesse sentido, as reflexões costuradas se unem à definição de memória apre-
sentada por Candau (2012), entendendo-a como uma reconstrução continuamente
atualizada do passado.
A memória está relacionada diretamente com o tempo e o espaço. No tempo
e no espaço, experimentamos sensações, sentimentos diversos, descobertas, viven-
ciamos emoções que vão de um extremo ao outro. Muitas entendemos, mas várias
delas ficam no território do desconhecido. Assim, Nara se debruça sobre o esmiuçar
do tempo em dias e horas. O tempo que não cessa. O tempo que passa a ser repre-
sentado pela matéria têxtil, pela linha, em seus múltiplos movimentos e direções,
pela cor, pela dinamicidade do movimento sismográfico, como um terremoto que
adquire um novo corpo após sua ação.
Desse modo, as lembranças e esquecimentos são elementos que vão fazendo
parte do jogo da memória e é nesse jogo cartográfico que fazemos as escolhas me-
moriais para registrar o que fica daquilo que vivemos.
Juliane Xavier mapeia violências que seu corpo carrega cotidianamente e que,
muitas vezes, são invisibilizadas por serem banalizadas socialmente. Mas, potencial-
mente, a artista borda e expõe essas narrativas como atitude política e de cura das
feridas provocadas por outros.  
Como um exercício de interiorização, transgressão e libertação, a ação do
220 ESCRITAS CURATORIAIS

bordar passa a ser incorporada como um disparador de memórias e ajuda ao estar e


não estar no lugar e no tempo, ligando as linhas a muitas outras histórias de mulhe-
res que enfrentam as mesmas problemáticas cotidianas.
Seu trabalho denuncia preconceitos, invasões, injustiças, agressões, imposi-
ções postas às mulheres e escancara um grito de basta às violências humanas!
Essas narrativas estabelecem pontos de encontro ao que Canton (2009a) diz
ao tratar das narrativas enviesadas contemporâneas que também contam histórias
de modo não linear. A autora afirma que elas se compõem a partir de tempos frag-
mentados, sobreposições, repetições, deslocamentos narrando, mas não necessaria-
mente resolvendo as próprias tramas.
Haidee Lima desenvolve um trabalho artístico que se utiliza de objetos mar-
cadores de memórias. As fotografias das mulheres da família, em especial, da avó
e da mãe, são dispositivos que trazem consigo as relações com o feminino, com a
ancestralidade, com os fios que tecem a história de cada uma.
O campo têxtil se torna território demarcador de presença e, ao mesmo tem-
po, das sensações de ausência física que são impossíveis de serem materializadas
porque estão imbricadas em lugares muito profundos dentro de si mesmo.
No bordado, a artista, segue o ponto a ponto, como se desbravasse cartogra-
fias de encontros, de ser e estar, mas, simultaneamente, percorre e descobre que a
frente e o verso sempre narram uma história diferente.
Como afirma Ricoeur (2007) a representação do passado, aparenta ser mesmo
a de uma imagem porque a memória é passado. E nada melhor que a memória para
significar que algo aconteceu.
As memórias pessoais de Sandro Drumond foram acionadas ao se deparar
com sentimentos de frustração e das experiências de morte vivenciadas em seus
percursos cartográficos da vida. Enfrentar a depressão, as incertezas profissionais,
amorosas e familiares serviram de combustível para o processo criador. Combustível
que proporcionou a transformação da matéria, seja ela entendida no sentido con-
creto, palpável, físico, seja ela entendida de forma abstrata no sentido de sensações,
emoções, deslocamentos de presença e ausência.
Em sua ação de eremitar, seleciona também as cores dos têxteis, o rosa, o ver-
melho, o marrom, estabelecendo uma relação direta com o orixá Oyá que comanda
os ventos e as águas, além de ser guia dos mortos no plano metafísico.
Em praias do Recife, com índices de mortes de banhistas por ataque de tuba-
rões, o artista realiza performance explorando os diferentes sentidos, quase como
uma busca de unicidade com a natureza. Vestindo roupas que se conectam às me-
mórias de sua avó, busca estabelecer outros sentidos às peças têxteis, ampliando o
fio que liga, une as histórias pessoais de geração em geração.
Candau (2012) diz que o trabalho da memória atua na construção da identi-
dade do sujeito e que é o trabalho de reapropriação e negociação que cada um deve
fazer em relação a seu passado para chegar a sua própria individualidade. Por isso, as
lembranças que guardamos de cada época de nossa vida, se reproduzem sem cessar
e permitem que o sentimento de nossa identidade se perpetue.
No processo de tessitura minuciosa do ponto a ponto, do vai e vem das linhas,
COSTURANDO MEMÓRIAS 221

dos arremates, laços e nós, Laura Melo, em sua produção artística, trança histórias
afetivas com a matéria têxtil, as linhas e as agulhas. Desembaraçar, desatar, guiar,
dançar com as linhas foram exercícios aprendidos desde a mais tenra infância.
Processos de ensino e aprendizagem que atravessaram as gerações de mulheres
de sua família e estabelecem um diálogo com muitas outras mulheres para além de
possíveis fronteiras culturais pelo mundo afora.
O tecido se expande por laços de sangue e por manualidades, se valendo de ins-
pirações na experiência criadora. Sua avó, assim como em outras narrativas presentes
nesse texto, ocupa um lugar especial em seu interior, em sua trajetória, em sua história.
As memórias são ativadas ao relembrar que entre os cuidados com os filhos,
costurou roupas por encomenda e bordou para a família. E os sentimentos de dor e
de perda se materializam na obra Esqueço, em sua homenagem. A memória se esvai,
falha, esquece, apaga, assim como a vida que surge, se desenvolve e desaparece.
Seguir os caminhos das linhas é uma forma de mantê-la viva, é seguir lem-
brando, enquanto ela foi esquecendo, quase como um desejo de imortalizar o que
perece, o que não temos controle enquanto seres finitos nessa dimensão.
A artista reforça em sua narrativa visual o processo do esquecimento de sua
avó, ação constituinte da memória: lembrar e esquecer. Imersa no território, acom-
panha os percursos, cartografa os afetos, as falas, os silêncios, os processos de pro-
dução construindo conexões de redes, como traçados do plano da experiência.
Por fim, Alinhavadas as produções artísticas, aqui apresentadas, compreende-
mos que o Corpo Novelo está cheio de histórias escritas no Diário Lunar onde, Fitando
Lugares, encontramos Sismogramas da dor também através do Mapeamento de
Pequenas Narrativas Quase Invisíveis presentes na Frente e no Verso das histórias
de cada ser humano que na ação de ErêMitar identifica que todos somos nômades
por dentro e que em muitos momentos de nossa existência afirmamos: Esqueço.

REFERÊNCIAS:

ARISTÓTELES. Metafísica Livros I, II, III. Campinas: UNICAMP/IFCH, 2002.

BERNARDES, Rosvita Kolb; VELLOSO, Luciana Mendes. Experiências biográficas: reconhecer-


-se incompleto. In: (Auto)Biografias e documentação narrativa: redes de pesquisa e forma-
ção. Salvador: EDUFBA, 2015, p.243-257.

CANDAU, Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

CANTON, Katia. Narrativas Enviesadas. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009a.

CANTON, Katia. Tempo e Memória. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009b.

MONTENEGRO, Antonio Torres. História, Metodologia, Memória. São Paulo: Contexto, 2010.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP,


2007.
SUBVERSÕES POÉTICAS ENTRE
A MEMÓRIA E O TÊXTIL
Ingrid Borba1

Cabeça coração e mãos, tela em tecido, 84x34cm, Marina Prado, 2020.

1 Mestranda pelo Programa Associado de Pós-Graduação em Artes Visuais (UFPE/UFPB) e Licenciada


em Artes Visuais (UFPE).
SUBVERSÕES POÉTICAS ENTRE A MEMÓRIA E O TÊXTIL 223

Correntes de ar, work in progress, cápsulas e linha, Luana Andrade, 2020

Dispositivo Anti-máscara, Bordado sobre organza, 30x60cm, Camila Barbosa de Amorim, 2020.
224 ESCRITAS CURATORIAIS

Cartografias Viscerais, Crochê, 35 x 26cm; 44 x 25cm, Mainá Araújo de Paiva e Souza, 2020.
SUBVERSÕES POÉTICAS ENTRE A MEMÓRIA E O TÊXTIL 225

O tempo solidifica, Livro de artista, 17x9 cm, Heitor Moreira, 2020.

Vis-a-vis, Libro de derecho reciclado y calado, corazones bordados con hilo de seda sobre textiles de
sábanas y vestido de novia, heredados, Cerrado: 14,5 x 22 x 4 cm, Abierto: 12 x 25 cm,
Aguinaldo, 2020.
226 ESCRITAS CURATORIAIS

Arqueologias da intimidade, Plumas e alfinetes sobre tela, 40x40cm, Emilliano Freitas, 2020.

“É pelo avesso que se conhece a boa bordadeira!”. Tal afirmação representou


a condição estética nas quais as/os artistas e as práticas têxteis estiveram imersas.
Estas são feituras manuais de diversas categorias distintas, mas que partilham um
ponto comum de legitimação: a execução perfeita das tramas pelas mãos de quem as
criou. Essa posição não revelaria apenas a qualidade da peça têxtil, mas a validação
simbólica e identitária da/do artista. Deste modo, o avesso, caracteriza parte funda-
mental dos objetos têxteis, pois são os reflexos de tudo aquilo que se queira repre-
sentar. Nele ficam registrados os caminhos das linhas, as escolhas das casas, os tipos
de furos e o arremate dos nós que criaram não apenas a materialidade existencial da
peça, mas toda uma cartografia sensível dos processos de criação com tecidos.
O tecer é uma atividade que sempre esteve envolvida com a capacidade hu-
mana de expressar seus desejos. Esteve assim vinculado a espaços de intimidade,
percepção de si, sensibilidade e intuição. É durante o período do Renascimento que
se associa às práticas têxteis o gênero feminino, perpetuando as concepções entre
arte e artesanato que caracterizaram o campo têxtil como de menor valor nos siste-
mas das artes. Na contemporaneidade, grupos e artistas que trabalham com o têxtil
buscam subverter as conjunturas estéticas, históricas e de gênero que circundam o
imaginário do trabalho com linhas, criando assim fluxos entre a aparente inocência
SUBVERSÕES POÉTICAS ENTRE A MEMÓRIA E O TÊXTIL 227

das agulhas e tecidos com a complexidade discursiva desta prática. Esse escrito, tra-
ta-se, então, da exposição e reflexão sobre a poética de 12 artistas que participaram
da exposição coletiva Tramações: a memória e o têxtil.
As 12 poéticas foram entrelaçadas pela seguinte pergunta curatorial: quais
tramas ao avesso estes processos de criação têxtil podem desvelar? Elas constituem
criações que subvertem as linhas para dar vazão aos desejos, as memórias, as nar-
rativas, as recriações de si, as problematizações de gênero e do corpo com a cria-
tividade engajada em dar formas as memórias. Segundo Fayga Ostrower (2014), a
memória é um trânsito entre os passados-presentes-futuros de quem cria, podendo
assim “compreender o instante atual como extensão mais recente de um passado,
que ao tocar no futuro novamente recua e já se torna passado. Dessa sequência
viva ele pode reter certas passagens e pode guardá-lo” (OSTROWER, 2014, p. 18). As
poéticas comentadas aqui, vão além do resultado plástico, elas cartografam, sob o
suporte têxtil, autobiografias que possuem relações da memória com a palavra e o
afeto; e a memória do corpo e os seus processos.

A MEMÓRIA, A PALAVRA E O AFETO


Qual é o fio que nos conduz e que também nos une? Essa pergunta é parte do
que norteia o processo de criação de Cômodo (2020), da artista Clara Nogueira. A po-
ética é um bordado sobre tecido, nas dimensões 50 x 28cm, cujas linhas desenham a
planta baixa dos cômodos internos da casa de Clara. Esses cômodos são delineados
pelo bordado de 40 palavras repetidas por mães em contexto de isolamento social
causado pela pandemia covid-19.
Exaustão, desalento, cansaço, medo e incerteza são palavras representadas
em linhas que unem e costuram, segundo a artista, poemas cujos os versos regis-
tram o seu cotidiano. A poética pode ser observada para além do contexto causado
pela pandemia. Refletindo assim, sobre as invisibilidades sofridas por mães e mulhe-
res, em diversos contextos, dentro de seus lares, criando seus filhos e cuidando do
trabalho.
As cores utilizadas no bordado, vermelho e branco, apontam para uma certa
relação de ambivalência entre a urgência de poder partilhar sentimentos e a busca
pelo acalento das angústias, dos aprendizados e das resoluções dentro e fora do
ambiente privado. É ambivalente também porque ao mesmo tempo em que nos pro-
tege e abriga também nos isola.
Os cômodos da casa são testemunhas de nossas memórias e corpos, abrigan-
do nossas intimidades, relatos e afetos. Ecléa Bosi (1994) nos aponta sobre a presença
constante da casa na narrativa autobiográfica. Para ela cabe aos artistas rememorar esse
espaço nas diversas possibilidades criativas (BOSI, 1994). Deste modo, quais seriam os
relatos testemunhados pelos cômodos em uma narrativa autobiográfica feminina?
A poética No quarto de dormir (2020), problematiza o lugar da mulher e suas
obrigações domésticas e simbólicas dentro de uma casa. Utilizando cabelos, linhas
vermelhas e lençóis, Louise Gusmão questiona as posições colocadas para o gênero
feminino como o casamento, a maternidade, a submissão e a lealdade. Perguntando
assim: qual mulher nunca sofreu essas imposições?
228 ESCRITAS CURATORIAIS

Os fios de cabelo tornam-se registros dos desejos que pulsam pelas linhas
bordando as palavras liberdade, resistência, sonho e vida. O lençol serve tanto de
suporte, como de uma lembrança que remete à aspectos íntimos e à solidão que
muitas vezes são condicionadas as narrativas femininas.
Essas duas poéticas investem no campo da memória e das narrativas no femi-
nino para problematizar condições sócio-culturais. Sobre esse ponto, nos processos
contemporâneos de criação, a autora Luana Saturnino Tvardovskas nos aponta que
“na medida em que as memórias femininas são fortemente ligadas à experiência
da privacidade, a arte contemporânea discute essas relações de definição sub-
jetiva imprimindo sensações mais críticas e libertadoras a tais marcas culturais”
(TVARDOVSKAS, 2015, p.164).
Seguindo a linha de criação pela memória e problematização das marcas cultu-
rais, o Coletivo Aguinaldo, expõe a poética Vis-à-Vis (2020). Ela consiste em um livro,
do campo do Direito, que passou pela intervenção de colagem e costura. Tal proce-
dimento intenta questionar a certeza dos postulados e seus sentidos reconstruindo
um arquivo coletivo com tecidos e memórias afetivas. Segundo o coletivo de artis-
tas, essa poética trata de impressões de traços do passado, histórias já vividas que
podem ser arquivadas e assim estabelecer uma relação entre a memória individual
e a memória coletiva. A partir desse vínculo, as duas memórias criariam a seguinte
descrição:
Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva.
Nossos deslocamentos alteram esse ponto de vista: pertencer a novos
grupos nos faz evocar lembranças significativas para este presente e sob
a luz explicativa que convém à ação atual. O que nos parece unidade é
múltiplo. Para localizar uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é
preciso desenrolar fios de meadas diversas, pois ela é um ponto de en-
contro de vários caminhos, é um ponto complexo de convergência dos
muitos planos do nosso passado (BOSI, 1994, p. 413).

Procurando revisitar os planos do seu passado e reestruturar o afeto, Cecília


Conforti, desenvolveu a poética Tejiendo Memoria (2020). Com esse trabalho, a artis-
ta cria memórias que possibilitam a prática do cuidado de si. Aponta também sobre as
características simbólicas e materiais da atividade têxtil. Para ela, os fios são como a me-
mória, e o ato de tecer, um ritual que desperta desejo e cuidado. Ela também se pergunta
como está se construindo e o que fez a si mesma ao costurar duas peças de crochê. As
peças remetem a roupinhas de bebê, onde podemos observar algumas palavras escritas
que se fundem a linhas do tecido formando uma memória de proteção e ternura.
O trabalho de Cecília pode ser confrontado com o que nos aponta Saturnino
sobre as poéticas visuais que investem em cuidado de si “enquanto propostas alter-
nativas de constituição dos indivíduos em práticas mais livres e imaginativas: a arte
deve servir à vida, à ativação de nossos corpos, a intensificação das experiências”
(TVARDOVSKAS, 2015, p.164).
Na linha curatorial da memória e do afeto podemos observar também as
poéticas de Heitor Moreira de Melo e Emiliano Freitas: O tempo solidifica (2020) e
Arqueologias da intimidade (2020). Ambas falam sobre a fixação e lugar das memó-
rias produzidas no cotidiano e nos afetos familiares. Elas também trazem à tona a
SUBVERSÕES POÉTICAS ENTRE A MEMÓRIA E O TÊXTIL 229

condição de desgaste natural dos tecidos cujo aspecto remete à maleabilidade do


têxtil. Nessa relação, podemos questionar: quais afetos e memórias podem se soli-
dificar com o tempo?
Nesse processo de recordação e fixação de uma lembrança, Alanys Maria, de-
senvolveu a poética Lembre de Nós (2020). Trata-se de duas telas pintadas a óleo,
onde podemos visualizar o autorretrato da artista e sua companheira ligadas por
uma linha vermelha. Fazendo referência ao passado da poetisa grega Safo de Lesbos,
Alanys quer deixar solidificados os desejos, as dores e o amor entre duas mulheres
que, como proferiu Safos, serão lembradas no futuro.
As três últimas poéticas apontam para o próximo caminho curatorial deste
escrito. Ao misturar técnicas de acumulação, pintura a óleo, barro, livro de artista e
tecido, as artistas citadas nos chamam a atenção para os processos nos quais podem
estar envolvidas as práticas têxteis. Neles, poderemos verificar a possibilidade de se
trabalhar memória, corpo e processos.

A MEMÓRIA O CORPO E SEUS PROCESSOS


Cartografias Viscerais (2020), de Mainá Araújo, são órgãos do corpo feminino
feitos em crochê. A poética é uma proposta de busca por narrativas que impregnam
nossos corpos, observando este como um local conjugado a sua subjetividade. Essa
intenção artística se aproxima também da poética de Marina Prado, Cabeça, coração
e mãos (2020), que são moldes do corpo da artista feitos também em crochê. Ambas
as artistas procuram representar a memória do corpo através de uma anatomia das
texturas que aludem ao afeto, a ressignificação dos órgãos e nosso vínculo com eles.
A utilização de técnicas como o crochê para redesenhar órgãos também nos
aponta para a fragilidade e vulnerabilidade que os corpos apresentam. Deste modo,
projetando criar um corpo feminino têxtil, Flávia Romero problematiza questões
que circundam tanto o corpo feminino quanto a arte têxtil. Alfinetadas (2020) é um
bordado que carrega em sua composição indagações que a artista já sofreu em sua
trajetória como mãe, artesã, mulher, esposa e estudante.
Anteriormente pontuado, é durante o período do Renascimento histórico que
se concebem as divisões entre arte e artesanato. A atividade têxtil além de ser con-
siderada uma atividade artesanal, e desta forma desprovida de reflexão intelectual,
será associada ao ambiente feminino doméstico associando-a a saberes e narrativas
que foram menosprezadas dos circuitos das belas artes.
A poética de Flávia encontra-se nessa linha crítica das narrativas criadas em tor-
no das capacidades dos corpos femininos como: amamentar, parir, estudar e trabalhar.
Traz também a subversão das práticas têxteis como uma potência discursiva para as
invisibilidades das relações de gênero e do artesanato têxtil como uma atividade infe-
rior. Ao criar imagens de suas narrativas, a artista traz essas questões que “tornam o
trabalho persistente da memória, das teias, das redes, imprescindível politicamente.
Narrar é uma resistência, mesmo que não plenamente consciente,faz persistir na cul-
tura o incômodo contra a opressão e a violência” (TVARDOVSKAS, 2015, p. 298).
Nos processos entre a memória e o corpo são criadas imagens que habitam tan-
to nossas subjetividades, quanto nossos corpos físicos. Ecléa Bosi irá nos dizer que:
230 ESCRITAS CURATORIAIS

Percebo, em todos os casos, que cada imagem formada em mim está


mediada pela imagem, sempre presente, do meu corpo. O sentimen-
to difuso da própria corporeidade é constante e convive, no interior da
vida psicológica, com a percepção do meio físico ou social que circunda
o sujeito (BOSI, 1994, p.44).

Os processos imagéticos que circundam o corpo e as memórias da artista


Luana Andrade, tem ligação com o exagero acumulativo do que ela chamou de: pró-
teses diárias. Correntes de Ar (2020) é um trabalho em processo de acumulação e
costura de cápsulas de Fumarato de Formoterol, Di- hidrato e Budesonida.
A poética de Luana traz memórias do corpo como o local que pode ser aprisio-
nado e imobilizado contrastando, assim, com processos de criação que aspiram flu-
xos em correntes. Estes, apresentados como um colar na garganta da artista, querem
respirar livremente e experienciar o descanso das fragilidades dos corpos.
O processo de criação de Luana também pode ser reconhecido como uma costura
de si e cria ligações com o Dispositivo Anti-Máscara (2020), de Camila Barbosa de Amorim.
Nesse poética, ainda estamos indagando sobre a instabilidade corporal perante a vida.
Com um bastidor, tecido de voal preto e linhas coloridas, Camila borda pontos
aglomerados que cercam e delimitam os orifícios. Podemos aqui pensar na relação
de proteção que os têxteis estabelecem para os nossos corpos. Representados por
essas duas últimas poéticas, eles querem encontrar relacionamentos de cuidado e
cura com sua prática artística.

A COSTURA DE TODAS AS MEMÓRIAS


As 12 poéticas e artistas trazidas aqui geraram reflexões em torno das artes
têxteis contemporâneas e suas conexões criativas com a memória. Numa aproxima-
ção teórica com Fayga Ostrower, Ecléa Bosi e Luana Saturnino Tvardovskas, essas
produções artísticas desvelam narrativas pelo avesso de suas feituras. Trazem à tona
problematizações sobre as relações da atividade têxtil entre a arte e o artesanato,
as invisibilidades e violências de gênero, a experimentação dos tecidos com outras
práticas artísticas. Criaram também processos de reconstrução dos corpos e possibi-
litaram dar espaço para memórias de cura. Investiram assim em uma produção po-
ética que subverte a lógica da execução perfeita das tramas para oferecer e inventar
modos de compreensão artística pelas narrativas de vida.

REFERÊNCIAS:

BOSI, Ecléia. Memória e Sociedade: lembrança dos velhos. 3.ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. 30. ed. Petrópolis: Editora Vozes,
2014.

TVARDOVSKAS, L. S.  Dramatização dos corpos:  Arte contemporânea e crítica feminista no


Brasil e na Argentina. São Paulo: Intermeios, 2015.
UM FIO NUM TEAR FEITO DE HISTÓRIAS
Letícia de Melo Andrade2

Enrollo y me Desenrosco, Victoria Muniagurria, 2020.

2 Graduanda em Licenciatura em Artes Visuais pela UFPE e bolsista do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação da Profª Drª Luciana Borre.
232 ESCRITAS CURATORIAIS

Ensaio sobre a permanência e o tempo, Vídeo-instalação/Vídeo-arte, Sumaya Nascimento, 2020.


https://youtu.be/byqI2O8VVXk

Areia, Bordado e aquarela, 28 x 26 cm, Maria Luiza Teixeira Batista, 2020.


UM FIO NUM TEAR FEITO DE HISTÓRIAS 233

Abismo, Técnica mista: fotografia e bordado em algodão cru, 35cmx45cmx20cm, Kaísa, 2020.
234 ESCRITAS CURATORIAIS

Fragmentos, vestido de noiva e voil de cortina, 21x25cm, Gabriella Magno, 2020.

Herança, Costura, bordado e colagem sobre tecido, 26,5 x 23 cm, Janice Kirner, 2020.
UM FIO NUM TEAR FEITO DE HISTÓRIAS 235

Quanto tempo evitando colisões?, bordado, 20x20 cm, Liliana Monetta, 2019.

Tudo vive em mim. Tudo se entranha


Na minha tumultuada vida. E por isso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite que só a mim me veja […].
(HILST, 2018, p.112)

Tudo vive em mim. Tudo. Família e amigos; quem só de ouvir o nome me


alegra imensamente e quem eu só observo de longe, sem denominação nenhu-
ma; quem eu amo e quem não faço questão de encontrar. Tem risadas, algumas
gargalhadas e tem choro. Aquele final de semana em Porto de Galinhas antes de
tudo virar de cabeça pra baixo e aquele churrasco de queijo coalho na tua casa;
aquela véspera de Natal e aquele almoço de domingo na frente da TV; aquele açaí
e aquele sorvete. Aquela viagem de um mês pra bem longe, tão longe que até te
vi de novo, assim como vi pela primeira vez as ruas branquinhas de neve e meus
sapatos ensopados.
Aquele dia que fomos no cinema também está marcado em mim, assim como
o filme que a gente viu e outros infinitos filmes mais; aqui dentro também tem aquele
show que a gente esperou tanto, até que finalmente a gente viu e ouviu Weird Fishes.
Também encontrei algumas cartas, umas receitas, tudo em gavetas que pertencem a
vários móveis de várias casas. Vive o divino e o terreno, o natural e o artificial. Essas
obras aqui representadas agora também tem a mim como morada.
236 ESCRITAS CURATORIAIS

Penso que fazer um texto curatorial é achar um fio condutor. Seja esse um fio
de cabelo, que pode aqui representar a história contada por cada uma, suas expe-
riências de vida, únicas. Ou um fio de fibra de algodão – que são as narrativas que
permeiam nossas vidas – de mulheres produtoras de poéticas têxteis. No texto cura-
torial, é preciso criar uma teia, tecer com o maior dos cuidados um enorme carinho e
uma atenta minúcia, é preciso unir mas deixar evidente as singularidades.
Tudo nos constrói, nos forma, nos configura de presenças e ausências. Somos
o que eu somos e o que eu ainda seremos, numa dança que mistura passado, pre-
sente e futuro. Penso que essas artistas, Gabriella Magno, Kaísa, Janice Kirner, Liliana
Monetta, Maria Luiza Teixeira Batista, Sumaya Nascimento e Victoria Muniagurria,
trouxeram para mim essa vontade de divagar sobre o que e quem habita em nós, e
como essas pessoas, objetos, momentos e tantos outros elementos das nossas vidas
cotidianas nos constróem. Esse é o fio que me guia, as relações que construímos com
aqueles ao nosso redor, uma vida decomposta sobre o que/quem nos atravessa e
como isso transpassa para nossos tecidos. Assim como Gabriella Magno, questiono-
-me: “Como me tornei quem sou?”.
Percebo que assim como as plantas e outros animais, podemos construir algu-
mas relações harmônicas e outras nem tanto, mas ambas existem e nos compõem.
Deste modo, pode ser que criemos um existir em conjunto, numa união muito de-
licada de mutualismo, uma colônia. Esse contato também pode se dar por outros
processos um pouco mais perigosos e desvantajosos como o parasitismo e a compe-
tição. Nessas obras, vemos relações harmônicas e desarmônicas, algumas nutrem e
fazem crescer, outras devem ser quebradas por possuir uma forte potência de dete-
rioração. Ambas, contudo, são usadas para criar, construir, reinventar a vida e nossa
própria história.
O vínculo que crio com essas narrativas é muito forte. É fascinante compre-
ender que da mesma maneira que essas artistas alimentam-se do contato tramado
com o outro, elas alimentam também a nós, como público, criando uma troca muito
sincera de vivências. Assim, ao relacionar-me visual e emocionalmente com estes
projetos e ao escrever sobre eles, os transmuto, os leio com a visão que construí até
este momento pelo conjunto de outras pessoas, experiências e outros elementos
de minha vida que me permeiam. A maneira que interpreto o que vivo no momento
presente está agora embebido de tudo o que me foi despertado em consequência do
meu contato com essas poéticas.
Para que essa troca ocorra, é preciso que o público esteja aberto na mesma
medida em que as artistas se doam àquela produção, da mesma maneira que estas
artistas se abriram para a vida. Penso que a natureza tem muito a nos ensinar em
termos de receptividade, o que me faz recordar o trabalho Areia, de Maria Luiza
Teixeira Batista, e as trocas entre mar e areia, areia e rochas. A artista busca suas
raízes têxteis e encontra a figura de sua mãe, a rocha-mãe, o som do mar e também
de sua velha máquina de costura.
O mar vem e vai, em conexão com a Lua muda sua maré. Tem um momento
do dia que está mais recolhido, em outro se doa por inteiro em devoção completa.
A areia é testemunha desse processo diário, dança embaixo dos nossos pés, quando
UM FIO NUM TEAR FEITO DE HISTÓRIAS 237

bate o vento ou com o ir e vir das águas. Para além de todos esses vínculos, penso
que o movimento mais gracioso e que se assemelha à minha leitura da obra de Maria
Luiza é a da formação e “morte” da areia da praia.
Assim como a areia, Maria Luiza passa por diversos processos e elabora laços
com diversos indivíduos até chegar à praia, até tornar-se quem já se é: vários ele-
mentos naturais lixam a rocha-mãe, formando pequenas partículas que continuam
perto dessa rocha originária, formando um tipo de solo. Outros agentes naturais,
como o vento, encaminham o que agora é sedimento para os rios, que fazem o pa-
pel de peneirar esse sedimento até que sobre apenas a areia. Esta pode passar por
um processo de amadurecimento dos grãos até ser carregada até a praia (ARAÚJO,
2018).
Como já mencionei anteriormente, essas artistas se alimentam de relações
construídas com terceiros e nos alimentam no processo. Essas poéticas são gera-
das pelo contato, pelo toque e, como consequência, são catalisadoras de encontros.
Numa forma circular começam e terminam, apenas para recomeçar no mesmo pon-
to. Esse mesmo processo também ocorre com a areia da praia, quando ela “morre”:

[...] depois de figurar na paisagem praiana por milhões de anos, os grãos


de areia também morrem. Tudo acontece ali na praia mesmo: empilha-
do pelo peso enorme das novas camadas de areia que continuamente
chegam à costa, o grão desce a centenas de metros de profundidade e
volta a ser pedra, formando o assoalho oceânico (ARAÚJO, 2018, s/p).

Volta a ser pedra. Como é bonito esse ciclo de transformação, transmutação.


Este é outro aspecto que permeia alguns desses trabalhos, elas mostram a rocha-
-mãe de onde partiram, compartilhando todos esses processos que ainda não cessa-
ram, aceitando que o lapidamento é um movimento infindável e constante.
A partir deste momento, no qual reflito sobre as miudezas, sobre a narrativa
poética de um grão de areia que tem um trajeto tão parecido com o nosso, logo
associo essa pequena investigação a um texto encantador de Ana Maria Machado
(2003) chamado O Tao da teia: sobre textos e têxteis.
No começo de seu artigo, a autora descreve a experiência que compartilhou
com sua filha ao assistir a uma aranha confeccionando sua teia, uma ação tão ro-
tineira, às vezes invisível ao desatento. Machado descreve o momento como “um
contato com algo vago e indefinível, irredutível a palavras. Algo simples e raro: a
vivência de uma sensação de pertencer a uma totalidade, uma percepção próxima
daquilo que os orientais chamam de Tao” (MACHADO, 2003, p. 174).
Acredito que o têxtil tem esse poder de promover esses encontros de infinitas
trocas. Às vezes realmente sinto que talvez o texto não alcance esse sentimento pro-
vocado pelo têxtil, vai além de qualquer tentativa de tradução. Lembro, por exemplo,
do dia que minha mãe ensinou a mim e a minha irmã a bordar. Não era a primeira
vez que tentava adentrar nas práticas têxteis, minha mãe já havia tentado me ensinar
o ponto-cruz quando eu ainda era criança, me faltou a concentração e a paciência.
Lembro com ternura do sentimento de me aproximar mais ainda de minha mãe e
irmã.
238 ESCRITAS CURATORIAIS

O ato de repassar um conhecimento é tão singular, principalmente quando se


trata do conhecimento têxtil por, na maioria das vezes, ser um aprendizado que se
dá no ambiente familiar, sendo possível reforçar ou ainda criar vínculos. Penso que
do mesmo jeito que naquela hora me senti conectada às mulheres que tecem em
minha família, essas artistas também sentem-se, de alguma forma, conectadas com
essa rede de saberes sempre que pegam em suas agulhas.
A máquina de costura que Janice Kirner nos apresenta é muito mais do que a
representação de um objeto tão utilizado no desenvolvimento de projetos têxteis.
Essa ferramenta de trabalho costura não apenas tecidos, mas faz reparos, desde bai-
nhas a alguns remendos, também ajuda a criar roupas do zero, e sobretudo entrelaça
narrativas. A máquina de costura da bisavó de Janice não apenas conta histórias, mas
canta e, enquanto ela canta, as mulheres dançam com as mãos em cima do tecido,
realizando coreografias extraordinárias. Alguns passos Janice aprendeu mesmo com
sua comunidade têxtil, mas a artista também cria seu próprio “dois pra lá, dois pra
cá”.
“A maquininha”, como Kirner a chama, é formada não apenas por fragmentos
da memória da artista, mas tecidos que já formaram outras peças, que já tiveram ou-
tras vivências. Janice ressignifica esses retalhos, juntando não apenas peças têxteis,
mas também textuais de sua história, de sua infância. Trata-se de uma investigação
da memória, percebendo partes do passado que fazem talvez ainda mais sentido
hoje. Essa herança não se limita à ideia de lembrança. Janice acolhe os ensinamentos
têxteis que lhe foram passados, abraçando-os, entendendo que se criou ali uma rede
de afeto materializada nesta máquina de costura, ferramenta que agora está mais
próxima de máquina do tempo, que viaja para passado e futuro, mas que Janice
decide sabiamente explorar no presente.
É impossível falar de memória sem falar de tempo. Nós, produtoras de textos
e têxteis, parecemos manipulá-lo em nossas próprias mãos, nos entregando à prática
têxtil horas a fio, criando obras que sobrevivem e resistem a ele. Essas preciosas
heranças têm o costume de atravessar gerações, ligando as mulheres da família,
eternizando-as. Mostrando, ainda, que a relação das mulheres com o têxtil é uma
temática que permeia estes trabalhos. Por que essa materialidade é tão associada a
uma prática feminina?
Liliana Monetta também recorda de sua infância, dos artefatos têxteis inter-
ligados a sua história. A artista lembra dos lenços de linho que sua avó paterna a
presenteava em seus aniversários, de seus vestidos cor de rosa, narra como tudo isso
comunica um estereótipo do que supostamente seria o feminino, o ser mulher. Ela
transforma o linho com a linha, relê a própria história. A artista renova-se, constrói
algo novo olhando para suas recordações. É como se trocasse de pele, como tantos
outros animais ou como se estivesse muito queimada de sol, descascando. Sai tudo
para criar outra, renovar por inteiro. A pele que cai não é descartada, é usada como
material totalmente vivo para refletir sobre o porquê dessa regeneração.
Creio que Liliana Monetta hoje aceita as colisões de bom grado, perceben-
do que isso pode, de vez em quando, significar destruição de laços, mas também o
melhor entendimento das relações que tramamos com as pessoas ao nosso redor. É
UM FIO NUM TEAR FEITO DE HISTÓRIAS 239

preciso entender que, sem esses embates, não existe movimento, e que o trabalho
têxtil é tudo, menos estático. Nossos movimentos estão ali em cada ponto.
Retomo mais uma vez ao texto de Ana Maria Machado (2003), no qual a auto-
ra também discute amplamente a relação das mulheres e o têxtil por meio da força
de trabalho majoritariamente feminina e como as mulheres construíram a partir daí
uma comunidade. Assim como aborda Simioni (2010), a autora reforça a ideia de
como o têxtil permitiu a domesticação feminina na qual

a fiação e a tecelagem se faziam lá dentro, longe das vistas, permitindo


que os homens que comercializavam ocultassem essa evidência e pu-
dessem negar sua dependência da produtividade feminina. Por outro
lado, esse processo reforçou também as comunidades femininas, de
mulheres que passavam o dia reunidas, tecendo juntas, separadas dos
homens, contando histórias, propondo adivinhas, brincando com a lin-
guagem, narrando e explorando palavras, com poder sobre sua própria
produtividade e autonomia de criação (MACHADO, 2003, p. 181).

Hoje, percebo que a relação entre mulheres e o têxtil foi reinventada. Por meio
do desenvolvimento de práticas têxteis, mulheres se ajudam, realizam um movimen-
to de cura. Criamos uma comunidade arachnida de mulheres tecelãs, bordadeiras,
fiandeiras, tricoteiras, demonstrando que a relação que as mulheres desenvolveram
com o têxtil se dá de maneira afetiva, ultrapassando convenções ou tratados feitos
em nosso nome.
Victoria Muniagurria procura encontrar a tensão exata em sua obra, o movi-
mento certo para enrolar tecidos, relembrando as mulheres que trabalhavam fazen-
do cigarros, enrolando folhas de tabaco. A artista também recorda seu trabalho na
loja de sua família, a manipulação dos tecidos neste espaço. Esta tensão exata faz
parte da relação que mantemos com a materialidade têxtil: a tensão exata do tecido
no bastidor; de puxar a agulha no bordado; de dar o ponto de crochê; de pisar no
pedal da máquina de costura. A corporalidade está sempre presente nesses movi-
mentos, nossos movimentos precisam ter minúcia, atenção.
O que cabe na caixa de madeira que Victoria nos apresenta? Cabem tecidos,
cabem histórias (e, por que não, estórias); cabem lembranças de mulheres traba-
lhando com o corpo, com o enrolar de folhas de tabaco nas coxas. O trabalho têxtil
também é um trabalho corporal. Pergunto-me o que acontece quando não tencio-
namos esses tecidos de maneira a fazê-los tão enrolados, quando afrouxamos esses
nós. O que acontece quando Enrollo y me Desenrosco?
Há vezes que o corpo, mente e têxtil trabalham em tamanha sintonia que é
difícil acreditar que não se trata de uma extensão de nós mesmas. A nossa pele é um
tecido de derme, epiderme e hipoderme. Um tecido que envolve a todos nós, pelo
corpo todo. Esse tecido conta histórias por si só, sem precisar da palavra, dá pra sen-
tir pelo tato, dá pra ver, testemunhar narrativas em silêncio. Esse tecido é vivo, ele
sente dor e prazer; ele queima, molha, é cortado; tem outra textura quando arrepia.
Comunica-se com o ambiente de forma única, às vezes parece ter vontade própria,
seguindo seus próprios desejos. Tem quem goste de fazer desenhos que duram pra
sempre nesse tecido, tem outras que preferem perfurá-lo e depois deixar a pele se
240 ESCRITAS CURATORIAIS

regenerar, quase voltar a ser o que era antes, cicatrizar. Mas tudo isso fica marcado,
tudo isso a gente transpira.
A pele também morre, definha, desfia, se esgarça formando marcas que nós,
querendo ou não, carregamos conosco expondo nossas experiências de maneira iti-
nerante. Até que a pele se desfaz, fica na lembrança em outros tecidos, faz parte
agora de outros bordados, um fio num tear feito de histórias.
Já os tecidos, feitos de fibras naturais ou sintéticas, também têm várias pro-
priedades como a pele: ele pode ser rasgado, molhado, perfurado, costurado, ele
esgarça, queima, protege. Nós também temos a capacidade de modificá-lo, contar
histórias que também ficam vivas e visíveis para além da nossa fala. Por mais que
tenhamos o controle sobre o que podemos fazer com ele, às vezes também parece
seguir suas próprias regras, independente de nós.
Essas poéticas expõem justamente isso, as narrativas que transpiram fazendo
com que troquem de lugar a pele e o tecido, escrevendo em um o que há mui-
to tempo já está escrito no outro. Acredito que compartilho essas impressões com
Kaísa, que nos mostra em sua poética “a ideia de pele enquanto lugar da experiência
no mundo, o primeiro interface entre o Ser e o Outro, onde são gravadas os traços
particulares do tempo vivencial” (PEREIRA, 2018, p. 103).
Kaísa atesta que o tecido também é uma pele, que seu corpo é uma casa, que
ela deseja transpirar, transbordar o que se é para além de espaços determinados. Em
Abismo, a artista deseja discutir como se dá a existência dos nossos corpos, transpas-
sados por diversas questões como as de gênero e sexualidades no espaço que não
nos acolhe. Como existir além? Além do que é visível, além do que se é suposto ou
determinado.
O tempo vai deixando a pele marcada com rugas e estrias que aparecem
quando a gente cresce. Algumas vezes, essas marcas parecem surgir em lugares
específicos do corpo, como se fossem de família, sinais e pintas herdadas. Sumaya
Nascimento vai tricotando um grande cobertor, um manto feito por mulheres de sua
família e que cresce com fios feitos de memórias. O coração de Sumaya se derrete
em saudade, numa fusão do sólido para o líquido. O que não quer dizer que o sen-
timento se esvai, mas fica num estado mais maleável, possibilitando que a artista o
veja de outra forma. Uma saudade que não acaba mas mancha a memória, mancha
que nem nódoa de caju na roupa.
Acho que a saudade nunca morre, mas se renova. A artista utiliza seu pano
de batismo e um crochê realizado pela sua tia-mãe como base para sua produção,
unindo-as no bordado, um encontro no tempo-espaço. O têxtil tem a potência de
carregar um pedaço de quem o faz, por meio de uma dedicação disposta na feitura
dessas poéticas, o entrar e sair da agulha no tecido, um perfurar que não fere, mas
proporciona processos de cura.
Lembro-me de uma canção da cantora Björk (1997) onde ela demonstra esse
ritual de abertura e cuidado pelas linhas, linhas que brilham no escuro e emara-
nham-se em cada uma de nós, oferecendo um espaço de acolhimento:
UM FIO NUM TEAR FEITO DE HISTÓRIAS 241

Eu teço para você


a maravilhosa teia
fios que brilham no escuro, tudo como neon.
O casulo te cerca
envolve tudo
para que você possa dormir
como um feto. [...]
Não se irrite consigo mesmo
não, não se irrite consigo mesmo
eu te curarei.
Com uma navalha eu corto uma fenda e o raio luminoso te alimenta,
querido, te cura. [...]

(GUÐMUNDSDÓTTIR, 1997)

Retomo aos Fragmentos de Gabriella Magno, na qual a artista também faz


uso de tecidos que já tiveram outras vidas e que passa por uma ressignificação em
suas mãos. Tudo atrela-se a seu questionamento: Como me tornei quem sou? Não
busquei diretamente responder a essa pergunta, pois acredito que ela seja de natu-
reza retórica, acredito que seja uma pergunta motivadora que deva encontrar em
nós uma morada. Contudo, empenhei-me a demonstrar alguns fatores e aspectos
de nossa vida cotidiana que perpassam a nossa formação como artistas mulheres
criadoras de poéticas têxteis.
As possíveis leituras a serem feitas sobre esses trabalhos vão muito além do
que apresento aqui, cada pessoa que deparar-se com essas obras pode percebê-las
de maneira distinta. A narrativa de cada um terá um papel no momento dessa leitura,
pois talvez

As imagens que formam nosso mundo são símbolos, sinais, mensagens


e alegorias. Ou talvez sejam apenas presenças vazias que completamos
com nosso desejo, experiência, questionamento e remorso. Qualquer
que seja o caso, as imagens, assim como as palavras, são a matéria de
que somos feitos (MANGUEL, 2001, p. 21).

Somos feitos de pessoas; de histórias e estórias; experiências; objetos; lugares


e tantos outros elementos que nos rodeiam e nos fazem criar, nos fazem reinventar
a própria vida. A memória é um espaço sem limites assim como nossa capacidade de
desenvolver poéticas a partir dela. Minha narrativa liga-se a de todas essas artistas,
absorvi suas memórias e elas agora fazem parte não apenas de meu repertório visu-
al, mas também de mim, é a matéria de que sou feita.

REFERÊNCIAS:

ARAÚJO, Tarso. Como se forma a areia da praia?. SuperInteressante, out. 2018.


Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-se-formou-a-areia-
da-praia/. Acesso em: 12 mar. 2021.

GUÐMUNDSDÓTTIR, Björk. All neon like. In: Homogenic. Reykjavik: One Little Independent
Records: 1997.
242 ESCRITAS CURATORIAIS

HILST, Hilda. Júbilo, memória, noviciado da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1. ed.,
2018.

MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.

MACHADO, Ana Maria. O Tao e a teia: sobre textos e têxteis. Estudos Avançados,
São Paulo, n. 17, v.49, p. 173-196, 2003. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
eav/article/view/9951. Acesso em: 25 fev. 2021.

SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Bordado e transgressão, questões de gênero na arte de


Rosana Paulino e Rosana Palayzan. Revista Proa, Campinas, n. 2, v.1, p. 1-20, 2010. Disponível
em: https://repositorio.usp.br/item/002184146. Acesso em: 10 mar. 2021.

PEREIRA, Teresa Matos. A pele bordada, o corpo presente e o tempo tangível na


obra de Ana Teresa Barboza. Revista Estúdio: artistas sobre outras obras, Lisboa,
n. 9, v.22, p. 100-112, 2018. Disponível em: http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?
script=sci_abstract&pid=S1647-61582018000200010&lng=pt&nrm=iso&tlng=e. Acesso em:
10 mar. 2021.
ARTE TEXTIL/MEMORIA/GRÁFICA:
PROCESO Y PRODUCCIÓN DE NUEVE ARTISTAS
Cecilia N. Conforti1

Para que tu vivas, Bordado sobre fotografia, Maria Duda, 2019.

1 Licenciada en Grabado, Profesora Superior de educación en Artes Plásticas -Grabado, Especialista


en Procesos y Prácticas de Producción Artística contemporánea, Universidad Nacional de Córdoba.
(UNC). Cursa el Doctorado en Artes, FA. UNC. Se desempeña como Profesora Adjunta cátedra Grabado
2 UNC. Es investigadora, años 2014/15; 2016/17, como co- directora SECyT UNC (Secretaría de Ciencia y
Tecnología) Proyecto B con subsidio. En el 2018/19 y 2020/21 directora de Proyecto Formar SECyT UNC
con subsidio. Es también Investigadora de proyecto Consolidar UNC. Es co fundadora de Galpón Gráfico
Quintana Conforti donde forma y desarrolla su producción artística.
244 ESCRITAS CURATORIAIS

Florescer, Colagem e bordado, 36,5 x 27,5 cm, Heloísa Marques, 2020.

Urdimbre, libro de artista, 22x15 cm, Isabel Duarte, 2020.


https://www.instagram.com/p/CIQuiFcLUxE/
ARTE TEXTIL/MEMORIA/GRÁFICA 245

Ponto a ponto, tecendo lembranças e reinventando memórias, Bordado e Crochê em Fotografias,


150cm x 90cm, Bruna Belo, 2020.
246 ESCRITAS CURATORIAIS

Espelhamento da Falha, Tingimento Têxtil Natural e Impressão Botânica, 1.0x0.5m,


Lucyana Xavier de Azevedo, 2020.
ARTE TEXTIL/MEMORIA/GRÁFICA 247

Infinito, bordado y grabado, 33 x 30 cm, Graciela Rocha, 2020.

El artículo incluye un recorrido por la exposición virtual organizada por


“Tramações”, convocatoria que, en esta oportunidad, fue presentada en formato
digital a través de la red social Instagram. Esta modalidad conecta con la situación
actual donde operan nuevos circuitos experimentales de difusión creados por los
artistas “[…] algunos en vías de consagración (barrios, galerías emergentes), y otros
[…] resultado de las nuevas tecnologías como Internet” (ALONSO, 2003, s/p). Esta
proliferación y fortalecimiento evidencia una descentralización del campo del arte
y cuestiona su homogeneidad. Desde esta mirada, Tramações: a memória e o têxtil
apuntó a una propuesta experimental, vinculada con las prácticas en red, intención
que en sí misma fue una actividad relacional, que luego dio paso a una estética rela-
cional (BOURRIAUD, 2002).
En este contexto se seleccionaron las obras de nueve participantes, obras que
giran en torno a la memoria, al arte textil y también, en algunos de ellos, al uso de
técnicas y recursos expresivos, provenientes de la gráfica. Se trata de un relato que
se corresponde en concordancia con el concepto de expansión1, desplazamiento o

1 El concepto de expansión tiene una presencia creciente en el sistema artístico. Con esto queremos
definir aquellas propuestas que, en cada una de las diversas disciplinas y medios artísticos, intentan
superar las convenciones históricas y las dimensiones físicas de aplicación, intervención y presentación,
así como su adaptación al contexto en que se manifiesta (MARTINEZ MORO, 2017).
248 ESCRITAS CURATORIAIS

derivación de la obra en la actualidad y está basado en las investigaciones en pro-


ducción artística realizada en la Universidad Nacional de Córdoba, Facultad de Artes,
SECyT2.
Estos artistas, en sus modos de hacer de la obra, incluyeron historias par-
ticulares referidas a la memoria, la identidad, la mujer, la familia y la herencia,
entre otros. Una combinación que se articula físicamente con: el hilo, la aguja,
la tela, papel, crochet. Por otro lado, se evidencia un elemento de gran impor-
tancia: el tiempo en que se desarrolló el proceso de hacer. Un momento íntimo
que se percibe como algo que trasciende lo visual y abre la puerta a todo el
mundo contenido en el trabajo. Los diferentes soportes y formatos, el espacio
expositivo, la edición y las herramientas conceptuales, permiten entrever una
conexión entre lenguajes tradicionales (collage, fotografía, cianotipo, gofrado,
xilografía, libro de artista), que cruzan historias y biografías, como soporte,
material, discurso y herramienta representativa o como lenguaje alternativo
para los textiles.

DESARROLLO
El artista João Paulo Baliscei en su obra ¿Quem tornou masculino o corpo in-
fantil do menino? (2019), apela a la memoria a través de una fotografía de la infancia
que lo lleva a contemplar todas las construcciones sociales, historias, instituciones
que han atravesado su cuerpo como escuelas, iglesias y medios de comunicación
con lo masculino/masculinidad. Su propuesta autobiográfica, se caracteriza por la
presencia constante de la silueta del artista, así como de símbolos personales. En su
relato cuenta el proceso paulatino de cómo se fue desarrollando la obra. En una pri-
mera instancia reproduce treinta veces la fotografía que rescató de su memoria para
convertirla en plano de composición. Con estos nuevos soportes, en una segunda
instancia, la fragmenta dejando un contorno vacío de silueta. Luego con el hilo azul
el proceso de bordado toma relevancia, no como una unión y remiendo, sino como
marcas que tratan de hacer visibles recuerdos mediante el símbolo. Las intervencio-
nes se presentan yuxtapuestas en una especie de damero, como una manera de ir
mostrando todos y cada uno de los “años” del desarrollo, o sea, sus vivencias hasta
cumplir treinta años.

A linha azul dá formas, por exemplo, aos chifres de veado (em alusão à
primeira vez que ouvi a palavra “viado” sendo dirigida a mim); à corda
e aos pompons (ilustrando brinquedos tidos como femininos e com os
quais eu não podia brincar); e ainda à cruz, ao enquadramento e ao apri-
sionamento (remetendo-se às consequências que a aproximação com
o catolicismo conferiu à minha homossexualidade, na adolescência).
(notas de João Paulo Baliscei)

2 Proyecto Formar Grabado no tóxico. Derivaciones gráficas en el arte contemporáneo. 2018-2019


SECYT-UNC. Proyecto Formar Grabado no tóxico. Derivaciones gráficas en el arte contemporáneo. 2020-
2021 SECYT-UNC
ARTE TEXTIL/MEMORIA/GRÁFICA 249

En el proceso de visualizar las huellas surge una nueva indagación: “¿Quién


hizo masculino el cuerpo infantil del niño?”. Todos los fragmentos extraídos de las
fotografías vuelven a ser utilizados, no como soporte sino como parte de una acción
performática. El artista buscó en la Biblioteca Central de la Universidad Estadual de
Maringá, treinta libros que tuvieran la palabra “infancia” y colocó en cada uno de
ellos la imagen extraída de cada copia que había realizado. Luego fotografió esta
acción.
Este proceso creativo se va prolongando en el tiempo y tiene la posibilidad de
una nueva interpretación, de una nueva intromisión del factor temporal, a partir de
nuevas visualidades y aperturas. Desde esta mirada, el proceso por el que atraviesa
la fotografía convertida en impresión gráfica seriada, está emparentado con aquellas
tendencias del arte contemporáneo que se interesan precisamente por el proceso,
como ocurre con el concepto de work in progress, que aquí se podría traducir como
“expansión temporal” (MARTÍNEZ MORO, 2017).
Maria Duda, en su obra Para que tu vivas (bordado s/ fotografía), utiliza la me-
táfora para transformar el pasado, como una forma de auto comprensión y aprendi-
zaje. La artista borda la fotografía como símbolo de reconciliación. En las ligaduras se
percibe una poética de renovación y búsqueda plástica donde la costura representa
una fractura en el pasado que, al ser restaurada con hilo rojo, se recupera a través de
la añoranza, el hilo la cubre, dejando visibles las imperfecciones. Esto recuerda a la
artista Louise Bourgeois (2000, p. 171) cuando expresa: “mi objetivo es re-vivir una
emoción pasada”. La obra de Duda, además significa reconstrucción y renacimiento
de su madre en ella, recuperar y honrar los lazos entre ellas. Así lo expresa:

Esta fotografia, agora bordada e com suas partes reunidas, é um símbolo


dessa conciliação com minha mãe, do renascimento da minha mãe em
mim. A sutura foi a única forma possível de reunir partes que estavam
profundamente feridas, a cicatriz é uma forma de não esquecer a nossa
história e honrá-la. Hoje, essa imagem é mais do que um mero registro,
é um amuleto. É a consagração dos três corações que batem em meu
peito (notas de Maria Duda).

De este modo la producción representa lo que vemos, pero también implica


una forma distinta de concebirla y crearla, que va más allá del sentido visual. Es una
imagen autorreferencial con valor y significación, es decir, que “narra” una historia
(propia en cuanto a objeto y discursiva en cuanto cruce de “existencias” significativas
que hacen al mismo un objeto valioso), las suturas son la única forma posible de
conectar las partes rotas, y las cicatrices son una forma de no olvidar la historia y
valorarla.
Heloísa Marques, en su Colage manual y bordado (en pedraria y conchas),
dice:
As meninas e as conchas são o ponto central da obra, circundadas
pelo jardim que delas cresce e vive. [...] Falo através das linhas sobre
o tempo. Sobre florescer em tempos difíceis e não perder a doçura. É
fundamental saber respeitar os próprios ritmos, principalmente os cria-
tivos. Através de minhas mãos resgato memórias que não são minhas,
mas das gentes que vieram antes, cujo o sangue ainda corre aqui, em
250 ESCRITAS CURATORIAIS

veias: honro as mulheres que foram para que eu agora seja, através des-
sa memória “têxtil-tátil” em conexões impalpáveis que atravessam os
séculos” (notas de Heloísa Marques).

La artista toma el papel como soporte, interviene con bordado imágenes im-
presas en blanco y negro e incorpora pedrería y conchas de mar. Heloísa utiliza cuali-
dades sensibles y expresivas, como una forma de dibujar con hilos. Éstas, se perciben
en la manera de ejecutar el bordado, en la elección del grosor del hilo, en la precisión
de la puntada, en la limpieza de hebras sin sobrantes, en la elección del soporte, en
el tono elegido tanto del soporte como del hilo, en el largo de la puntada… es decir,
posibilidades gráficas que apelan a la memoria.

Através de minhas mãos resgato memórias que não são minhas, mas
das gentes que vieram antes, cujo o sangue ainda corre aqui, em veias:
honro as mulheres que foram para que eu agora seja, através dessa me-
mória “têxtil-tátil” em conexões impalpáveis que atravessam os séculos
(notas de Heloísa Marques).

Con su relato, Heloísa expresa nostalgia sobre esa vivencia. La imagen impre-
sa, como herramienta que media, para luego, en una instancia de bordado volver a
ser utilizada como recurso en la acción de bordar, es un acto reformativo, porque
vuelve a pasar el cuerpo por el mismo lugar, a repetir sistemáticamente las mismas
puntadas, a recorrer los mismos caminos. Tanto en la fotografía como en el bordado
se pueden identificar la memoria y la imaginación como constitutivas de una imagen
fotográfica, de este modo ambas por sus orígenes comparten e involucran arte, iden-
tidad, historia cotidiana y emoción. La aguja en relación con el hilo como material,
atraviesa lo que la imagen impresa encierra: la historia, la técnica, la luz y el material,
conjuntamente con la práctica del bordado que trasciende siglos de sistemas, para
convertirse en un lenguaje del arte contemporáneo (CERRUTI, 2020).
Bruna Belo en su obra Ponto a ponto, tecendo lembranças e reinventando me-
morias, realizada con fotografías y la técnica de tejido al crochet, construye la memo-
ria. Los hilos entretejidos son los que unen las fotografías y recuerdos de su pasado.
Desde el centro hacia los bordes y a través de relatos de memoria, narra en la medida
que se recopilan historias que se hacen visibles a los ojos de otro y lo sensibilizan a
medida que se encuentra el medio adecuado para relatarla.

Esta colcha de retalhos é construída, então, com base em lembranças


materiais – fotografias, bordados, documentos e cartas – e imateriais –
histórias contadas oralmente, o cheiro das plantas, o gosto da comida.
É construída a partir da mina memória afetiva e familiar. Porém a me-
mória sempre tem falhas. Falhas estas que precisavam estar represen-
tadas na obra. A forma que encontrei para representá-las foi através de
lacunas fotográficas, preenchendo espaços apenas com crochê e linhas
coloridas (notas de Bruna Belo).

A los recuerdos los extrae a partir de las historias de vida y los lleva al soporte
artístico que obra como un archivo de recuerdos donde se almacenan historias o
ARTE TEXTIL/MEMORIA/GRÁFICA 251

hechos afectivos que sirven para encontrar el origen, cómo decía Louise Bourgeois
(2000, p. 125): “Necesito de mis recuerdos, son mis documentos. Estoy pendiente de
ellos. Son mi intimidad y los protejo celosamente”.
Ricoeur (2000), en su libro La memoria, la historia, el olvido, explica que para
los griegos existían dos palabras referentes a la memoria, la primera es mnéme que
significa el recuerdo o algo que aparece (en la memoria), la segunda es anamnésis
que significa el recuerdo como una búsqueda, es decir la rememoración o recolec-
ción y búsqueda de recuerdos (RICOEUR, 2000). Es así que esta recopilación de re-
cuerdos dentro del hilo de la vida, es lo que permite la creación de la memoria o la
rememoración, es decir, el envolver y anudar el hilo en sí mismo cuantas veces sea
necesario con el fin de recordar algo que ya se vivió y desea traerse al presente. Pero
la artista expresa también que la memoria siempre tiene “fallas”, fallas que necesita-
ban estar representados en el trabajo. La forma que encuentra para representarlas
es la ausencia de fotografías en algunos lugares, llenando de este modo esos espa-
cios solo con crochet.
Leticia de Melo Andrade, en su poética descriptiva Livro Têxtil: Não sei o nome
ainda, dice:
Este livro foi feito com o intuito de tentar materializar as saudades. “As
saudades” mesmo, porque são várias, infinitas. São individuais mas co-
letivas, assim como esse livro, que foi feito por várias mãos, vozes, pre-
senças e ausências. Tenho saudades dos amigos, da cidade, do mar, da
minha família, do passado, do presente e do futuro, saudades de tudo.
Mesmo depois desse processo de realização têxtil não consigo definir
saudades. Não sei o nome ainda (notas de Letícia de Melo Andrade).

En este tipo de libro es posible jugar con el tiempo. Leticia invita a recorrer
su obra a partir del video. Cuando se reproduce, da la sensación de que es ella
misma la que pasa sus páginas una a una con ritmo pausado haciendo énfasis a
“As saudades”, un libro que tiene un discurso plástico en secuencias. La artista
utiliza como soporte la tela y nace así la necesidad de reconstruir su historia en un
reencuentro con el hacer, así como también del anhelo de hallar y comprender el
concepto de nostalgia.
Estas expresiones aluden ​ a un sentimiento de tristeza mezclado con placer
y afecto cuando piensa en tiempos felices en el pasado​, también descriptas como
un sentimiento de anhelo de un momento, lugar, situación o acontecimiento. Fotos,
textos, imágenes se ven en el recuerdo con nostalgia, y la artista lo reafirma a través
del bordado, las distintas materialidades y sus desplazamientos gráficos. Estas com-
binaciones, proporcionan que en la transdisciplinariedad las disciplinas se fusionen
penetrando unas en el ámbito de las otras. Este concepto de unidad, constituye una
de las características formales más evidentes de este libro textil.
El libro “Correnteza” impresso em Cianotipia, tecido como suporte, es la obra
que presenta Marina Soares:

Meu cabelo é um mar de ondas esvoaçantes. Escorre em meu peito, se


forma na direção do vento e vive as fases da lua. Conto o tempo a par-
tir dele, faço amarras e armaduras. Quando úmidos e soltos, me fazem
252 ESCRITAS CURATORIAIS

ouvir o mar, como quem coloca uma grande concha sobre o ouvido.
Dá-me forças ao mesmo tempo em que as suga. É parte da minha iden-
tidade; preso a mim (notas de Marina Soares).

La artista, en una acción intimista, registra en la tela, estados momentáneos de


su cabello, el soporte textil funciona como contenedor de la imagen y todos los regis-
tros conforman el relato del libro. La técnica que Marina utiliza le permite exponer
su cabellera a la luz, traspasando en sus intersticios o bloqueándose según la densi-
dad de su cabello. Estas acciones repetidas de manera secuencial y en movimiento,
al ser aleatorias, refuerzan la idea de no control, de un trabajo en estado de incerti-
dumbre, que se vincula naturalmente con la técnica elegida (el cianotipo3) en la que
la artista, a pesar de tener un dominio de la técnica, desconoce lo que aparecerá en
el soporte final (MARTÍNEZ MORO, 2017), actitud que refuerza la idea de no control
que expresa Marina cuando dice: “se forma na direção do vento”, metáforas ligadas
también al pelo como elemento natural propio de los seres vivos.
En el caso de Isabel Duarte y su libro de artista Urdimbre, utiliza el textil (pun-
tilla) y en su memoria descriptiva comienza diciendo,

ensueño, descubro en la textura de esa puntilla la referencia de lo intan-


gible, lo etéreo, retazos de memoria (…) Trasladar con gofrados la huella
del textil, calar, dejando paso al entramado de capas, que se superpo-
nen yuxtaponen, descubriendo esta maraña de contrapuestos, vacíos,
llenos, ausencias, repeticiones, espacios que dejan lugar a interrogan-
tes”. ¿Qué repetimos casi sin darnos cuenta? (notas de Isabel Duarte).

En este proceso el soporte toma relevancia y funciona como estampa del textil,
una huella de apariencia frágil y delicada donde al realizar una impresión, tanto en
la manipulación como en la conservación del mismo, el mismo soporte opera como
metáfora de su poética. El posterior calado y corporización de la estampa, funciona
hacia una apertura, proyectándose como una obra expandida al espacio. A través de
la fotografía y el video, el concepto de urdimbre queda potenciado cuando Duarte
presenta la obra, evidenciando esas capas a partir de la edición de las imágenes, por
superposición que establecen las aplicaciones informáticas y que no es otra cosa que
lo que vienen haciendo históricamente los grabadores y estampadores a la hora de
plantear por superposición y/o yuxtaposición. De este modo la artista presenta la
obra textil como medio y la gráfica virtual como obra para ser “materializada óptica-
mente” de forma exclusiva en pantalla (lo que sería el arte en Red y otros productos
interactivos) (MARTÍNEZ MORO, 2017).
Graciela Rocha, con el título Infinito, bordado y grabado:

La costura de sashiko nace antiguamente en Japón como la opción de las


clases trabajadoras para remendar la ropa con puntadas cortas y repe-
titivas, reciclando telas desgastadas. Las mujeres eran quienes la practi-
caban solían hacerlo en invierno cuando las fuertes nevadas obligaban

3 Cianotipia (procedimiento fotográfico monocromo, del cual se puede obtener una copia negativa del
original en un color azul de Prusia).
ARTE TEXTIL/MEMORIA/GRÁFICA 253

a quedarse en sus casas. Se usaba hilo sin teñir sobre tela de color azul
índigo. Se creía que el tinte del índigo repelía insectos y serpientes, por
lo que lo preferían las mujeres que trabajaban en el campo. El sashiko
era usado también como amuleto. Para esta obra tomé la estampa de
un colibrí sobre un retazo de jeans uniéndolo a una tela de camisa gas-
tada con hilos de colores. Como parangón con la historia del Japón fue
hecho con puntadas repetitivas sobre una tela azul, en época de frío y
a raíz del encierro que trajo la pandemia. La simbología de un ave en
comunión con las flores sobre un cielo azul funciona como una especie
de protección, ante las preocupaciones, miedos tristeza que traen el
mundo de hoy. El colibrí como símbolo de felicidad como guardián del
tiempo, en aleteo infinito constante recuerda el disfrutar de estar vivos,
de seguir afrontando los inconvenientes como lo hicieron las costureras
del pasado (notas de Graciela Rocha).

En la obra de Rocha hay una superposición de soportes y acciones como metá-


foras que aluden a capas de memorias, donde el tiempo también queda superpuesto
en una continua apertura a seguir y modificar sin límites.
El paso del tiempo en la manera de ejecutar sus producciones, la vincula con
aquellas tendencias del arte contemporáneo interesadas en la exploración procesual,
o work in progress (MARTÍNEZ MORO, 2017). La costura interviene en la obra gráfica
uniendo las diferentes capas de tela contenedoras primero del bordado sashiko en
tela de jean (memoria ancestral) segundo con la impresión de la estampa en tela de
camisa gastada y luego el bordado en colores que unifica todas las capas, hacia una
continua actitud reiterada en estrecha relación al título de la obra “infinito”.
Lucyana Xavier de Azevedo dijo:
Espelhamento da Falha é um registro do processo de coleta de matéria
prima vegetal para experimentos têxteis com tingimento natural, rea-
lizado na Serra Velha, região Agreste da Paraíba, em outubro de 2020.
Após testes com esse material, as sobras permitiam aplicações livres em
qualquer superfície, porém limitadas a pedaços de tecidos já disponíveis
no ateliê. A obra surgiu de maneira orgânica, experimentando aplicar
o eucalipto por cima da seda anteriormente tingida com angico, utili-
zando como proteção o tecido de algodão. Seu resultado proporcionou
um espelhamento com uma falha na impressão e algumas manchas e,
por essa razão, seria descartada pela mina auto-crítica, com a qual eu
batalho há anos para reconhecer beleza na imperfeição. Mas, também,
propunha transparência, fluidez e leveza. Chamá-la de “obra artística”
é uma batalha vencida ao reconhecer que o registro do momento da
coleta e as sobras do trabalho mecânico podem resultar em um espelho
que me desafia a expor essas falhas e manchas naturais que são parte
de mim (notas de Lucyana Xavier).

Lucyana revela el registro de la huella en su obra. El hecho de dejar una huella


en el soporte textil en un momento determinado sitúa este trabajo en el límite entre
las disciplinas (arte textil y estampación). La tela es soporte de la huella gráfica y es
en el proceso donde radica toda su importancia. El uso de materiales orgánicos o de
bajo impacto ambiental está relacionado con la elección de su valor simbólico y sus
propiedades estéticas. Esta acción, de visibilizar una huella, muestra una práctica
artística compatible con los equilibrios naturales y genera una mirada contemplativa
254 ESCRITAS CURATORIAIS

de Lucyana, que, menciona, le funcionó como un espejo. La imagen que se hace visi-
ble muestra lo opaco y le provoca una nueva mirada a la impresión. Lo que aparece
como un error, se transforma, es decir, es una interrupción en el proceso que vuelve
a reiniciarse cuando presenta como obra esas manchas.

A MODO DE CIERRE
El aporte mostrado por cada artista es el resultado de la mixtura y devela la
memoria como huella y recuerdo en sus modos de hacer. Sus trayectorias técnicas
y el proceso en relación a la gráfica, entre otros, se utilizaron como medio y como
herramienta, que, junto con los textiles, se convierten en un ejemplo de esta di-
versidad. En este sentido, las derivas incurren, en nuevos desafíos en el campo del
arte. Martínez Moro (2017) considera que la idea de ampliación “extensiva” de los
procesos mentales y de los procesos de comunicación, resulta equiparable a las ma-
nifestaciones “expandidas” del arte contemporáneo, en la medida en que el hecho
artístico (es decir el producto cultural humano por excelencia) no se conforma con
frontera alguna, sino que forma parte de una experiencia fluida y diluida en términos
de espacio y tiempo. En esta manera de narrar, la obra, desvela vivencias personales
que inicialmente son vistas como propias y a través del arte se vuelven públicas. Esto
permite, tanto al artista como al espectador, una amplia libertad de pensar, sentir y
comprender a la hora de interpretar dicha obra.

REFERENCIAS:

ALONSO, Rodrigo. Reactivando la esfera pública. Revista Lucera, São Paulo, n. 3, Rosario,
2013.

BOURGEOIS, Louise. Construcción del padre / Destrucción del padre. Londres: Ediciones
Violette, 2000.

BOURRIAUD, N. Estética Relacional. Argentina: Adriana Hidalgo editora S.A, 2008.

CERRUTI, Marina. Abordar la imagen: el fotobordado. Revista-Red de Antropología del Arte,


Campinas, n. 3, 2020.

DALMAU, Jorge; GÓRRIZ, Lídia. La Problemática Interdisciplinar en Las Artes: ¿Son disciplinas
los distintos modos de hacer? Revista On the Waterfront, Barcelona, n. 27, 2013.

MARTINEZ, Moro. Grabado en expansión Medios históricos y nuevas perspectivas.


Universidad de Cantabria, 2017. Recuperado de https://www.academia.edu/35460012/
Grabado_en_expansi%C3%B3n_2017_. Acesso em: set. 2021.

RICOEUR, Paul. La memoria, la historia, el olvido. Madrid: editorial Trotta, 2000.


PROJEÇÕES EM PASSEIO: ENQUANTO
PÚBLICO, PENSAR CURADORIA
Guilherme Moraes4

Ixchel, fieltro-bordado, 20x20x30cm, Walter Vera, 2020.

4 Guilherme Moraes é de Recife (PE). Licenciado em Artes Visuais na Universidade Federal de


Pernambuco (UFPE), é editor e curador-educador da revista-espaço autônomo Propágulo, a partir da
qual desenvolve pesquisas que atravessam a curadoria enquanto prática educativa e mediação cultural
como espaço de reflexão crítica e poética.
256 ESCRITAS CURATORIAIS

Moon River, Bordado e aplique de moedas sobre jeans e seda, 59 x 38 cm, Ludmila Mueller Leal, 2018.

Ariadne, Bordados sobre algodão (13x13cm cada), fotografias digitais e textos escritos,
Coletivo Ariadne, Luma Torres e Nina Xará, 2020.
PROJEÇÕES EM PASSEIO 257

En Deconstruccion, Textil reciclado y desgarrado, 220 x 160 x 112 cm, Josefina Eyheremendy, 2020.

Angústia, linha sobre tecido de algodão, 77 x 87cm, Geysa Moura, 2020.


258 ESCRITAS CURATORIAIS

Carrego, Ponto Cruz em tecido etamine, 22,5 x 16,5 cm, Ivana Bahls, 2020.
PROJEÇÕES EM PASSEIO 259

Preservada, 33 x16 cm, Lucrecia Romero Victorica, 2020.


260 ESCRITAS CURATORIAIS

Desvencilhar, vídeo performance 05:52min. Bordado sobre tecido 1,43x 1,02 cm,
Graciela Ferreira, 2020. https://www.instagram.com/p/CIBMAVGF48G/
PROJEÇÕES EM PASSEIO 261

Vestido de mim, fotografia digital, Elyenai Fernandes, 2020.


262 ESCRITAS CURATORIAIS

A ponte, bordado sobre tecido, 21x 18 cm, Wilma Farias (uiu), 2020.

Rios Tecidos, Bárbara Lissa y Maria Vaz (Paisagens Móveis), 2020.


PROJEÇÕES EM PASSEIO 263

Las Marías, imagineria textil tradicional, tecnica personal, 0,77 x 0,20 cm, María Castillo, 2020.

PRIMEIRA PARTE
É inegável perceber como o digital se tornou um meio quase que absolu-
to entre as ações culturais que se dão ao longo dos anos de 2020 e 2021 no Brasil.
Categoricamente ruas, galerias, salas de aula e museus se tornaram ambientes segun-
dos, esvaziados de seus públicos presenciais que, independe da maneira como são
entendidos — seja enquanto extensão de desejos paternalistas5 de quem educa, seja
como possibilidade de aprendizado6 e reflexão a partir do encontro —, fazem falta.
De que maneira cada presença é afetada com essa migração forçada? Será
que nossas coreografias mediadoras, afiadas para contextos presenciais, caducam7

5 Para Honorato (2011), a mediação cultural muitas vezes se encontra entrelaçada a um paternalismo
motivado por algum déficit que atribui ao público. Nessa lógica, ela acaba por se tornar uma atividade
que constantemente imagina, “de um lado, que a arte seja um valor cultural pré-estabelecido,
indiscutível portanto enquanto valor, como se ela fosse um ‘reino dos céus’ a ser alcançado, e de outro,
que haveria no público um déficit de arte a ser reparado, como um tipo de ‘pecado’ a ser expiado.”
(HONORATO, 2011, p. 344).
6 Mörsch (2009), como posto por Moraes (2014), estabelece que o discurso transformativo, atrelado
à mediação cultural, busca criar uma inversão na ideia tão difundida de que exposições e museus
transformam os públicos em termos de sensibilidade e conhecimento. Pelo contrário, busca a mediação
transformativa modificar a si mesma (e assim a própria ação cultural que a desempenha ao longo de
seu ciclo de vida).
7 Através de minha graduação em Licenciatura em Artes Visuais na Universidade Federal de Pernambuco,
aprendi a atentar para o fato de que nós, educadores, ao adentrarmos em contextos de desafio ou
instabilidade, acabamos por performar, inconscientemente, práticas de professores que fizeram parte de
264 ESCRITAS CURATORIAIS

nessas conjunturas? Como exercitamos a escuta8 dentro de plataformas criadas para


o contato corriqueiro? Torna-se árduo e urgente exercitar uma mediação cultural
que busque transformar a si mesma a partir do outro, mas as arquiteturas virtuais
assentadas em algoritmos que nos fazem dizer mais que ouvir estão tendo, nesta
pandemia do covid-19, como vantagem avassaladora o fato de serem muitas vezes
os únicos meios possíveis e cabíveis para a interação.
O like, o salvamento, o encaminhamento, a visualização, o comentário, o can-
celamento, o follow e o unfollow são transposições equivalentes do que nós, media-
dores culturais, presenciamos em exposições? Como ficam os silêncios, os suspiros
e as hesitações? E os dissensos9, como entram nessa história? De que maneira, ao
termos em vista uma perspectiva transformativa de mediação, conseguimos esticar
nossos olhos, ouvidos e pele em busca de atenção pelo outro?
Encontro-me em uma situação interessante ao escrever esse texto. É que
acompanho Tramações enquanto público desde sua primeira edição. Como interac-
tante10, presenciei suas três exposições, derivadas de curadorias compartilhadas que
acrescentaram pontos importantes nas vivências das pessoas artistas e educadoras
envolvidas por se apropriarem também da prática curatorial contemporânea.
Mais que isso, acolher assuntos tão sensíveis enquanto premissas investigati-
vas e sustentar esses canais de comunicação diante de estratégias que buscam minar
os territórios acadêmicos enquanto espaços para livre trânsito de ideias faz da ação

nosso processo formativo. Consequentemente, acabamos por nos apoiar muitas vezes em posturas que
não necessariamente acreditamos ideologicamente. Ainda enquanto mediador cultural que busca se
afastar de uma didática expositiva, tradicionalista ou bancária, diante das ações culturais que participei
durante a pandemia do novo coronavírus, acabo também identificando impulsos por fornecer, mastigar
e traduzir, anulando minha subjetividade e a subjetividade dos que comigo se encontram, em função
do conteúdo informativo.
8 Talvez estejamos presenciando uma importante virada tecnológica ancorada justamente em
concepções anacrônicas de educação. Por qual motivo é tão desafiador imaginar redes sociais que
do espectador não queiram mais do que interações corriqueiras? Para além da acessibilização de
conteúdos que traz consigo, acredito ser importante problematizarmos os motivos pelos quais palestras,
seminários e ações expositivas são tão possíveis em redes sociais, no lugar em que exercícios ativos de
escuta são tão escassos.
9 Hoff (2018) propõe que a sociedade brasileira está ganhando gosto pelo conflito posto em prática
enquanto disputa e não como possibilidade de debate. Contudo, uma concepção de conflito banalizado,
para a autora, é insuficiente, visto que estar de acordo com ela “significa considerar que as contendas,
manifestações e divergências não estão gerando debate em nenhum nível e que, portanto, não está
havendo nenhum tipo de aprendizado” (HOFF, 2018, p. 167). Pensar a mediação cultural como dissenso,
para a autora, não se trata da disputa, mas de admitir a sua presença como ponto fundamental para a
construção do debate (e, consequentemente, do aprendizado de quem media).
10 Barbosa (2015) prefere “tentativamente” chamar os públicos a partir desse termo, ainda que
reconheça que o vocábulo “não vai pegar, [porque] é muito pedante” (BARBOSA, 2015, p. 41). A autora
emprega esse termo no texto que escreve para o livro contidonãocontido como forma de demonstrar
que há uma necessidade por uma novo jeito de nomear o que atualmente pode ser chamado de “o
público, o apreciador, o espectador, o consumidor de arte, o receptor, a plateia, o sujeito observante ou
os observadores” que seja menos prepotente e hierarquizado por parte dos museus.
PROJEÇÕES EM PASSEIO 265

um exemplo de resistência. Apropriar-se da curadoria enquanto dispositivo, aven-


turar-se em seus paradigmas, como evocados por During (2011), de conversação,
teatralidade, de jogo ou de arquivo, ou entender seus atravessamentos hierárquicos,
burocráticos, éticos e até suas autorias e autoridades é importante não só para ler,
a partir dessas lentes, ações culturais que enquanto público são presenciadas, mas
também para, enquanto pessoa artista e/ou educadora, compreender como essas
práticas se entrelaçam às suas redes de atuação. Como posto por Gonzalez-Foerster
(2011) no mesmo livro, em relação ao seu processo, é “importante estudar essas
problemáticas e considerar que a exposição também é um meio tanto para o curador
quanto para o artista” (p.15, tradução minha11).
Enquanto curador-educador e mediador cultural que enxerga oportunidade
de descoberta do infinito tamanho das propostas de arte a partir de quem entra em
contato com elas, como falar sobre alguns trabalhos desta edição de Tramações se
não estive presente em sua concepção? Agora, parece lógico, mas quase me pus a
informar quem possa ler este texto sobre algo que não necessariamente sei deixan-
do minha experiência, enquanto público, que eu acabei de ter — e que ainda estou
tendo — de lado. Agora, parece lógico: enquanto público, também posso, chegando
agora, transformar Tramações por dentro.

SEGUNDA PARTE
Como seria realizar um experimento curatorial com os trabalhos que neste
texto tenho que encontrar? Existe algo que me puxa diretamente para “Rios Tecidos”,
do duo Paisagens Móveis, composto em 2020 por Bárbara Lissa e Maria Vaz. Li que a
investigação das artistas cruza com a memória dos rios urbanos em Belo Horizonte,
capital de Minas Gerais. O trabalho conta com a participação de Ediléia Barbosa, mu-
lher de 70 anos que vive desde criança nas margens do Rio Arrudas, e Virgílio Muniz,
que saúda, bordando com sua mãe e sua tia, o Rio Sumidouro. Eles interviram em um
manto negro em homenagem a esse corpo-rio coletivo. O tecido, que parece fumaça
estancada, forma uma presença que repousa/padece em uma cama.
Em “A desumanização”, Valter Hugo Mãe (p. 61, 2017), através das palavras
de Halla, protagonista do livro, conta que na Islândia “As montanhas eram corpos
deitados. Não tombaram. Eram assim. Deitavam-se por maturidade. Sem palavra.
Como um poema calado.” Penso se a maturidade dos rios pode ser equiparada à
das montanhas, tão absolutas. Talvez, por serem de água, os rios sejam tão densos
quanto frágeis, diferentemente das montanhas e suas formas resistentes de solidez.
Na crônica “chamava-se Amarelo”, Rubem Braga (p. 83, 1913-1990) realiza um “tes-
temunho, perante a História, a Geografia e a Nação, de uma agonia humilde: um
córrego está morrendo. E ele foi o mais querido, o mais alegre, o mais terno amigo
de minha infância.” Diferentemente das montanhas, que julgo não se importarem
quando erodidas, pois viram outro tipo de chão, colina, planalto... a morte dos rios é
atestado da vulnerabilidade que têm esses sábios corpos em movimento.

11 “Pour moi, cela a été important d’étudier ces proximités et de considérer que l’exposition était un
médium à la fois pour le curator et pour l’artiste”.
266 ESCRITAS CURATORIAIS

Não sei se ladearia o trabalho supracitado com “En Deconstruccion”, de 2020,


proposto por Josefina Eyheremendy, realizado a partir de um alvo tecido reciclado e
desgarrado. É que, para mim, um trabalho poderia estar na antípoda do outro e, só
de habitarem uma mesma sala, eles já conversariam diretamente. Digno de ter sido
sonhado, há neste uma solenidade leve.
Uma terceira peça entraria no tabuleiro: “Preservada”, feito em 2020 por
Lucrecia Romero Victorica. A flor negra em redoma parece ter brotado enquanto
triste triunfo em ambiente pantanoso, no mesmo país em que desaguam os “Rios
Tecidos”. Uma flor negra e, como posto por Thiago de Melo em algum de seus poe-
mas, grávida de nadas.
A dramática série fotográfica de Elyenai Onias Fernandes está ancorada, nas
palavras do artista, no que lhe foi negado pelo conceito hegemônico do que é ser
e trajar-se como homem. “Vestido de Mim”, de 2020, seria exposta através de dois
autorretratos em que o fotógrafo se encontra com a boca carmim, rosto empoado,
olhos marcados e bigode pronunciado. Em uma, Elyenai se encontra de vestido escu-
ro, cigarro aceso na mão e defronte para o observador. Na outra, quase que de perfil,
coloca-se em evidência a meia-calça que veste suas pernas e seus braços enluvados.
Alguns passos depois poderia estar “Angústia”, proposto em 2020 por Geysa
Moura. Neste, um sem-fim de linhas pretas escorrem, criando singelas pontes entre
o pequeno abismo que irrompe das duas faixas quadradas de tecido de algodão das
quais brotam.
Aí viria “Desvencilhar”, de Graciela Ferreira, videoperformance em que a ar-
tista propõe um desfazimento da costura que une dois pedaços de pano branco de
tamanho próximo ao seu. Mais uma vez no percurso, estaria encontrando um duplo
entremeado, um rio e uma porção de reflexões acerca do que pode um corpo, neste
caso de uma mulher. A artista sobrepõe ao som do registro depoimentos seus e de
outras mulheres a partir de entendimentos de fé e a religião cristã que as atravessam.
“Las Marías”, da ceramista, fotógrafa e educadora María Castillo, entraria em
cena. A homenagem às mulheres roncalesas que desenvolveram, em anonimato, o
trabalho têxtil, me faz lembrar as figuras da artista Lizandra Santos, que, através da
modelagem e de resgates afetivos e documentais, propõe acúmulos de pessoas e
objetos em uma obra de crescimento gradual e ininterrupto. Uma outra figura femi-
nina, dessa vez proposta pelo artista têxtil Walter Vera, traz “Ixchel” representada em
feltro-bordado. Deusa da mitologia maia, a quem é atribuída a lua, veste um arco-íris
de texturas que brotam da brancura de seu torso.
Um sem-fim de cores e texturas também está presente em “Moon River”, bor-
dado de aplique de moedas utilizando linha acrílica e algodão sobre jeans e seda, de
2018, da artista Ludmila Mueller Leal. Em uma cacofonia de memórias que lhes são
caras, Mueller condensa a calça jeans de seu ex-marido, a saia de uma das suas me-
lhores amigas e velhas moedas de um tio já falecido a escritos e desenhos bordados
a partir dessas variadas materialidades.
Por serem mantos estendidos, quem sabe “Moon River” poderia estar perto
da proposta de Luma Torres e Nina Xará, do Coletivo Ariadne, em que as artistas
apresentam uma obra homônima de 2020 composta de bordados sobre algodão
PROJEÇÕES EM PASSEIO 267

fotografados. O conjunto de imagens, realizado com consistente periodicidade ao


longo da feitura da obra, resume um período de um mês de isolamento em que as
artistas passaram traçando palavras-atravessamentos. Os retalhos, prometem elas,
serão costurados enquanto trama em um texto — em vários dos sentidos que possui
a palavra — que condensará esse tecido diário.
“Carrego”, de Ivana Bahls, realizada em 2020 em ponto cruz apresenta uma
mão bordada com temas gráficos que, segundo a artista, evocam a cultura ucraniana,
parte da ancestralidade que carrega. Como uma mão que no que toca imprime um
índice de sua origem, Bahls representa a força que entende ter, enquanto mulher, em
detrimento das tantas violências machistas e patriarcais que tentam suprimi-la. Ao
seu lado a ponte mais uma vez reincide no trabalho de Wilma Farias (uiu), de 2020.
Bordando a sua cidade enquanto exercício de pertencimento, a artista resgata em
sua costura a Ponte dos Ingleses, passagem criada em 1920 em Fortaleza, capital do
Ceará. Hoje, em ruínas, para ela o lugar se encontra vitimado pelo descuido do poder
público. Penso em uma frase de Júlio Cortázar (1973), de acordo com Villa (2018), em
que o escritor diz que “uma ponte, apesar de que se tenha o desejo de estendê-la,
[...] não é verdadeiramente uma ponte enquanto os homens não a atravessarem”.

TERCEIRA PARTE
De que forma é possível abrir “caminhos de exploração e dar a palavra aos vi-
sitantes para descobrir as diversas camadas de sentido das obras [e estabelecer] um
intercâmbio que ative a polissemia da arte” (VILLA, 2018, p. 117)? Talvez essa pos-
tura que, segundo a autora, pode acontecer para todo tipo de público, especializado
ou não, ofereça ainda uma outra pergunta: de que forma podemos abrir, em nós,
artistas, curadores, mediadores culturais, um consistente espaço de escuta? Como
crescem as nossas ações culturais a partir dos acrescentamentos, discordâncias e
encontros que, uma vez estando nós dispostos, nos atravessam a todo momento?
De que maneiras podemos entrelaçar às nossas pesquisas, do ponto de vista de re-
alizadores, as andanças daqueles que já objetivamos — seja enquanto extensão de
desejos paternalistas de quem educa, seja como possibilidade de aprendizado e re-
flexão a partir do encontro —, estarem conosco?

REFERÊNCIAS:

BARBOSA, Ana Mae. Participação em museus. In: DINIZ,Clarissa (org). contidonaocontido.


Recife: Ideário, 2015.

BRAGA, Rubem. O lavrador de Ipanema. Rio de Janeiro: Record, 2013.

DURING, Elle. et al. Quest-ce que le curating?. Paris: Manuella Éditions, 2011.

HOFF, Mônica, HONORATO, Cayo. Mediação não é representação: uma conversa. In:
CERVETTO, Renata, LÓPEZ, Miguel A. Agite antes de usar. São Paulo: Sesc, 2018. p. 165-181.

HONORATO, Cayo. Arte para o público: comédia ou tragédia da mediação?. Rio de Janeiro:
268 ESCRITAS CURATORIAIS

ANPAP, 2011, p. 338-351.

HUGO MÃE, Valter. A desumanização. São Paulo: Cosac Naify, 2014.

MORAES, Diogo de. Mediações em zigue-zague: Ocorrências institucionais e extrainstitucio-


nais nas interações com públicos. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 2, n. 25, dez. 2014. p. 1-28.

VILLA, María. Uma ponte não é uma ponte até que alguém a atravesse. Reflexões sobre a arte
contemporânea e diálogos educativos. In: CERVETTO, Renata, LÓPEZ, Miguel A. Agite antes
de usar. São Paulo: Sesc, 2018. p. 110-122.

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