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Historia de Etica

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Artigo

A palavra ética, origina-se do radical grego ethos que indicaria o costume


habitual em determinada classe. Nesse sentido, e a apontar na mesma
direção temos a palavra moral, que originada do anterior latino mores,
também desemboca na ideia de costume. Essa distinção, entre moral e ética
e o construto histórico em relação à maneira como a ética foi percebida desde
os gregos até os dilemas atuais nos ajudarão a perceber como o humano foi
se criando e circundando o mundo com sua lavra espiritual. Pensar a ética é
entender, ou buscar entender, uma dimensão que ocupa desde sempre o
homem, pois é nessa interação que faz brotar sua existência mesma, posto
que coloca-se como um ser relacional necessariamente.

O objeto do saber ético procura discernir, dentre as relações no seio de uma


comunidade, qual a melhor forma, as melhores direções, ou, em melhores
palavras, qual a maneira mais amena para que o encontro e a
intersubjetividade que nos forma e nos conforma se realizem sem maiores
problemas para os consortes envolvidos nessa comunidade.

Importante relembrar os dizeres heideggerianos acerca do dasein: Esse ente


que cada um de nós mesmos sempre somos e que, entre outras coisas,
possui em seu ser a possibilidade de questionar. Nesse sentido, o ser
humano além de procurar uma vivência harmoniosa, diríamos moral, também
questiona, reflete acerca desse modus vivendi. Isso faz com que entremos
para o campo da ética, propriamente. Assim, percebemos que a ética seria
então o momento de reflexão acerca da vivência moral. Também nesses
mesmos termos nos ensina Sánchez Vásquez:

Os homens não só agem moralmente (isto é, enfrentam determinados


problemas nas suas relações mútuas, tomam decisões e realizam certos atos
para resolvê-los e, ao mesmo tempo, julgam ou avaliam, de uma ou de outra
maneira, estas decisões e estes atos), mas também refletem sobre esse
comportamento prático e o tomam como objeto da sua reflexão e de seu
pensamento. Dá-se assim a passagem do plano da prática moral para o da
teoria moral; ou, em outras palavras, da moral efetiva, vivida, para a moral
reflexa. Quando se verifica esta passagem, que coincide com o início do
pensamento filosófico, já estamos propriamente nas esferas dos problemas
teórico-morais ou éticos. (VASQUEZ, 2010, p. 17)
(...)
Sócrates

Aqui o norte a ser seguido é o diálogo platônico Apologia de Sócrates, em que é


narrado o julgamento socrático. Deste escrito, pretendemos retirar os principais
conceitos da ética socrática. É de sabedoria comum que em Sócrates não podemos
distinguir seus ensinamentos éticos de sua forma de vida. O que por si só seria uma
excentricidade, dada a necessidade imposta pelo filósofo do conhecimento da
virtude para o alcance da via ética e, por isto mesmo, para ser ético, importa
conhecer o que é ético.

Conhecimento e prática são inseparáveis. Um não existe sem o outro. Daí que, para o
nosso filósofo, o conhecimento e a virtude são idênticos. Por isso, não existe o mal
voluntariamente desejado; se alguém pratica o mal, é por erro, por ignorância.
Entretanto, para que conhecimento e virtude se deem reciprocamente, é necessário
que se ame o bem. Somente o amor pelo bem é que possibilita não só seu
conhecimento, mas o agir de acordo com ele. A isso se convencionou chamar de
intelectualismo ético de Sócrates. (BORGES,1999, p. 45)

De acordo com o ensinamento socrático, aquele que comete o mal, o faz com o juízo
de que estaria a realizar algo para o alcance de sua felicidade. É ignorante em relação
ao bem por ter seu juízo «falseado» por aparências externas, meras impressões.
Cabe, portanto, ao homem, exercer sua função racional para alcançar o
conhecimento do bem e, uma vez alcançado, praticá-lo. Dessas considerações
podemos entender que Sócrates considera possível o agir ético a partir do seu
conhecimento.

O mandamento do oráculo "conhece-te a ti mesmo" explica o significado da Ética


Socrática. O homem é nutrido por uma natureza empírica, de sensações, e outra
natureza racional. Nesse sentido, é imprescindível ao homem o conhecimento
racional de si mesmo para que possa conhecer o mundo, e distinguir entre o que é
fortuito, acidental, e o que é, de fato, racional e duradouro, verdadeiro diríamos.

Sócrates mostrou que é preciso distinguir a impressão dos sentidos, em que


predomina a variedade e o arbítrio individual, a instabilidade e a acidentabilidade
subjetiva, e aquilo que é produto da razão, onde encontramos conhecimentos
necessariamente iguais para todos os homens. Portanto, é preciso erguer-se dos
sentidos à unidade conceitual, racional. Sócrates ensinava a procurar o princípio da
verdade. Saber e operar, para ele, são como ciência e virtude, uma só coisa, pois esta
não é mais do que uma aplicação daquela. (VECCHIO, 1972, p. 43)
Platão

A justiça em Platão se realiza sempre na Polis, ou seja, a harmonia desta seria


encontrada quando a cada um estivesse destinado aquilo que sua alma aspirasse.
Nesses termos, Platão diz que há uma possível correlação entre a organização do
Estado e as partes do corpo humano.

Para Platão, o Estado é o homem grande, ou seja: um organismo completo, em que


se encontra reproduzida a mais perfeita unidade. Constituído por indivíduos,
solidamente estruturado, semelha um corpo formado por vários órgãos, cujo
conjunto lhe torna possível a vida. No indivíduo, como no Estado, deve reinar aquela
harmonia que se obtém pela virtude. (VECCHIO, 1972, p. 46)

Descreveremos essa relação, com a distinção que Platão faz acerca da alma humana.
Para o discípulo de Sócrates, a alma estaria dividida em três partes, sendo que a
parte racional deveria estar em primazia diante das outras. Essa ideia significa que a
virtude maior da harmonia seria alcançada quando a racionalidade contida na parte
superior da alma dominasse os instintos irascíveis, e estes por sua vez dominassem
os apetites baixos do corpo.

O que há é que a prudência (phronesis) socrática se converte em vida teórica (bios


theorético). Esta, declarada como a melhor das formas de vida, dentre as possíveis e
desejáveis formas de vida humanas (filósofo, cavalheiro, artesão), passou a servir de
modelo de felicidade humana. Tudo isso com base na tripartição da alma da seguinte
forma: alma logística, correspondendo à parte superior do corpo humano (cabeça), à
qual se liga o filósofo; alma irascível, correspondente à parte mediana do corpo
humano (peito), caracterizada pela coragem como virtude cavalheiresca; alma
apetitiva, correspondente à parte inferior do corpo humano (baixo ventre), a qual se
ligam os artesãos, os comerciantes e o povo. (BITTAR, 2010, p. 203)

É hora de percebermos a atuação do pensamento ético platônico em que o


virtuosismo racional de Sócrates ainda encontra eco. Ora, o encontro com a ética se
dá exatamente quando o homem consegue controlar seus impulsos, sentimentos e
fúrias. A ética que deflui da alma racional é exatamente a de estabelecer esse
controle e equilíbrio entre as partes da alma, de modo que se administre por força
racional e não epitimética ou irascível.

Aristóteles

O ideário aristotélico tem como fundamento a ideia de que todas as coisas tendem a
um fim, e este fim, por sua vez, seria o bem a ser realizado por aquela coisa. Aliás é
com esse pensamento que inicia sua Ética a Nicômaco. Toda arte e toda investigação,
bem como toda ação e toda escolha, visam a um bem qualquer; e por isso foi dito,
não sem razão, que o bem é aquilo a que as coisas tendem.
Nesse sentido e reconhecendo a inarredável característica de ser relacional, que é
constituinte do homem, necessitamos perscrutar dentro do pensamento aristotélico
qual seria o fim a que o homem aspira em sua vivência com o outro. Toda atividade
humana tem como finalidade um bem. No caso da ética, este bem se manifesta no
indivíduo que se prepara para viver com os outros na pólis, pois, conforme ensina
Aristóteles, o bem propriamente humano é o fim da política:

Mesmo que haja identidade entre o bem do indivíduo e o da cidade, é


manifestamente uma tarefa mais importante e perfeita apreender e preservar o bem
da cidade, pois o bem é, certamente, amável mesmo para o indivíduo isolado, mas é
mais belo e divino aplicado a uma estirpe e a uma cidade. (ARISTÓTELES, 2004, p.
10).

A ética, para Aristóteles, é uma investigação que constitui uma forma de política, em
outras palavras, o indivíduo de quem ela trata é o homem vivendo na pólis, onde o
bem a que todo homem aspira é a felicidade. A felicidade é o conteúdo do bem
ético, da ação moral.

Para Aristóteles um bem pode ser maior que o outro, e tal grandeza se mede pelo
grau de autossuficiência alcançado por este bem, isto é, aquilo que é parte de todo o
resto, torna a vida desejável e não carece de nenhum outro, o bem maior é a
felicidade, que se enquadra em todos os requisitos.

O bem é sempre uma excelência, e o bem ético consiste numa atividade da alma de
acordo com a virtude, isto é, numa vida virtuosa realizada plenamente, desse modo,
a felicidade não pode ser obra de um só dia, nem de pouco tempo, ao contrário, a
felicidade é obra de uma vida inteira. O bem ético, ou seja, a felicidade, é, portanto
obra de toda uma vida, não sendo alcançada imediatamente e tampouco de forma
definitiva, sendo, portanto um exercício cotidiano que a alma realiza durante todo
tempo de seu existir.

Esse raciocínio nos direciona ao entendimento de que esse bem aspirado pelo
homem, indivíduo ou comunidade -, seria a felicidade e, que ao agir bem e viver
bem, o homem seria feliz. No entanto, esse não seria o ponto mais complicado da
questão. O problema que envolve a questão é mesmo de ordem filosófica e requer
um tanto mais de apuro: concordar acerca de que a felicidade é o fim último a que
aspira o homem, não nos parece tarefa difícil. A dificuldade está em saber o que
significa isso a que buscamos, a felicidade.
O filósofo de Estagira liga de forma intrínseca o bem à ética, considerando-o como
um fim perfeito, que basta por si só, tornando a vida desejável, e para ele uma vida
desejável é sem dúvidas uma vida feliz. Desse modo, a felicidade é um conjunto de
bens, sendo, portanto, a finalidade das ações humanas. Para Aristóteles, a felicidade
estava afastada dos prazeres, tidos para ele como uma baixeza escrava, tanto da
plebe como da nobreza. A felicidade não é sinônimo de riqueza, pois esta era
somente motivo de canseira humana, sendo um meio, e não um fim da atividade
humana.

Para Aristóteles, o objetivo da ética era alcançar a felicidade. A felicidade, para ele,
era a vida boa compreendida como a vida digna. Para tal objetivo, a ética deve estar
subordinada à política, pois somente esta seria capaz de proporcionar vida digna e
feliz a seus cidadãos. Em sua obra Ética a Nicômaco, mais precisamente no Livro II,
Aristóteles expressa de maneira clara o intuito, o propósito, o objeto e o sujeito do
estudo da ética:

Estou falando da excelência moral, pois é esta que se relaciona com as emoções e
ações, e nestas há excesso, falta e meio termo. Por exemplo, pode-se sentir medo,
confiança, desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento,
demais ou muito pouco, e, em ambos os casos, isto não é bom: mas experimentar
estes sentimentos no momento certo, em relação aos objetos certos e às pessoas
certas, e de maneira certa, é o meio termo e o melhor, e isso é característico da
excelência.

Há também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em relação às ações. Ora,
a excelência moral se relaciona com as emoções e ações, nas quais o excesso é uma
forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um
acerto; ser louvado e estar certo são características da excelência moral. A excelência
moral, portanto, é algo como equidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o meio
termo. Ademais é possível errar de várias maneiras, ao passo que só é possível
acertar de uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil acertar; fácil
errar o alvo, e difícil acertá-lo); também é por isso que o excesso e a falta são
características da deficiência moral, e o meio termo é uma característica da
excelência moral, pois a bondade é uma só, mas a maldade é múltipla (ARISTÓTELES,
2004, p.42).

Por virtude, Aristóteles compreende uma prática, os homens não nascem virtuosos,
as virtudes são adquiridas ao longo da existência, assim como os vícios. Para
Marilena Chauí, a virtude, na visão de Aristóteles, seria:
O que é a virtude? A medida entre os extremos, a moderação entre os dois
extremos, o justo meio, nem excesso nem falta. Moderar, em grego, se diz medo,
ação que impõe o médio/medida, méson. É uma ação-decisão de impor limites ao
que, por si mesmo, não conhece limites. Moderar (medo) é pensar, ponderar,
equilibrar e deliberar. A ética é a ciência da moderação ou, como diz Aristóteles, da
prudência (phrónesis). A virtude é virtude de caráter ou de força de caráter educado
pela moderação para o mesotes, o justo meio ou a justa medida. (CHAUÍ, 1994, p.
312).

Kant

A ética kantiana é chamada de Ética Deontológica, ou Ética do dever. Seu


pensamento foi erguido na tentativa de encontrar um fundamento ético
transcendental e, a priori, para explicar o agir ético do homem.

Para encontrar o fundamento último do agir ético, Kant questiona acerca da


existência de uma ação desinteressada, e que apenas se fundamenta em si mesma.
Nesse ponto, ao perquirir acerca de algo que é bom independentemente de sua
finalidade ou das consequências de seu existir, conclui-se pela boa vontade, como
única forma de entender algo como bom, sem restrições.

Como exemplo, o autor nos ensina a respeito dessa isenção que só a uma boa
vontade é possível: o sangue frio de um celerado não só o torna muito mais
perigoso, como também, a nossos olhos, muito mais detestável do o que teríamos
julgado sem ele.
O que Kant quer nos ensinar com o exemplo trazido é que existem coisas boas, tais
como o equilíbrio, a harmonia, a coragem, mas que estes valores não têm uma
bondade intrínseca a si, ora, podem a qualquer momento servir a fins que não os
mais interessantes para o homem, haja vista o exemplo acima.

O fundamento ético então torna-se, nos dizeres de alguns autores, uma virtude
formal. Por essa via, direcionamos o pensamento para a cristalização do pensamento
da ética kantiana, qual seja, o imperativo categórico, que será alvo de discussão
adiante.
Por ora, importa mencionar a natureza formal dessa categoria ética da boa vontade.
A boa vontade assim o é então, por qual motivo?

a) o êxito/fim alcançado com a ação?


b) a própria natureza do querer?
O solitário filósofo de Konigsberg, nos ensinará que um ato é considerado bom e,
portanto, ético, se houver se erigido meramente da natureza do querer. Isso já nos
indica um "distanciamente kantiano" em relação às demais teorizações éticas que
têm algo como fim a ser alcançado, ou mesmo que possui uma tábua de valores a ser
seguido. Kant, ao contrário, estabelece um rígido formalismo em que, o agir ético é
agir conforme a natureza do querer, que, para este pensador se equivale a agir
conforme o dever.

Levinas

A rota de fuga dessa violência simbólica fica apontada com a ideia levinasiana de
responsabilidade. Ao referirmos a essa ideia, precisamos estabelecer, aliás, como já
anunciado, que a existência do eu não se funda propriamente na percepção dada
pelo cogito. O outro me antecede na relação com o mundo. Nesse sentido, a
existência do humano é não apenas mediada pelo outro, mas, em verdade, temos
nele a condição primeva de minha colocação no mundo. Estabeleço-me no mundo a
partir e através do outro. No encontro com a face do outro me responsabilizo por ele
e por todos os outros que vierem, ora, o mundo constitui-se desta e por essa
possibilidade. Assim, a existência do humano restaria dada a partir do encontro com
o outro. O outro que me permite habitar o mundo enquanto me dou a ele em
condição de refém, mesmo sem querer, mesmo sem que tenha anuído por essa
responsabilidade de maneira antecipada.

De certa forma, o pensamento contemporâneo parece não estar muito bem


resolvido em face dessa perspectiva, uma vez que a já proclamada violência
simbólica, foi ela mesma condição para que erguêssemos o mundo tal qual é
conhecido. O mundo é ocidental, diriam os mais desavisados, e contra esse
pensamento racionalizante e instaurador de opressões e diferenciações das mais
diversificadas montas, é que o messianismo de Lévinas aparece como nova
possibilidade ao humano. Um encontro de rostos que não se identificam. Um
encontro em que os convivas não se apresentam, dado que a violência se apresenta
na relação, desde já, quando nos assumimos como habitantes de uma determinada
nacionalidade ou etnia. Daí em diante, as mais terríveis atrocidades, no sentido da
violência simbólica, são realizadas sob a benção da linguagem. Essa linguagem
ocidentalizada e fundada no logos seria ela assim mesmo, com todas as suas
heranças, a própria violência simbólica em ação. No limite, não haveria forma outra
de relação que não fosse já uma relação violenta. Escutar o outro, talvez seja esse o
apelo para a saída dessa encruzilhada. Pois, se ficou estabelecido que o homem é
esse ser de linguagem, se sua condição mesma de habitar o mundo com o outro
resta estabelecida a partir daquilo que a linguagem nos oferece, em certo sentido,
poderíamos afirmar que o logos não daria conta da indicação para a saída deste
problema. Advertimos aqui para uma necessária audição do pensamento de Lévinas
para que a santidade do homem - sua busca torne-se o existencial privilegiado, para
que este problema transcenda o patamar do logos.
Rosto

O rosto pelo qual sempre já me encontro responsável é ele mesmo coinstaurador do


meu existir. Simbolizar esse rosto, apanhá-lo em entendimento e absorvê-lo, é assim
mesmo uma impossibilidade e, por isso mesmo, entendemos que a categoria de
rosto é um sinal que não pode jamais ser identificado a partir de nossa ingerência
conceitual e de senhorio. Não há um pastor que indica o modus ou o lócus a ser
privilegiado nesse encontro. É o rosto, ele mesmo, em todas as suas
impossibilidades, o artífice primeiro do mundo. Mundo, que por não ser passivo de
apreensão - dada sua infinidade de possibilidades no experienciar mesmo - torna
essa face oculta, o grande segredo a nunca ser desvendado. Encontrá-lo em sua
aparição seria a negação dele mesmo enquanto impossível, enquanto infinito e
enquanto santidade. E é exatamente sob o mistério do rosto do outro que Lévinas
indica o caminho. Um caminho sem luz, sem placas e sem rota pré-estabelecida,
pois, o único conhecimento que possuo nesta relação é de que não há possibilidade
para esse conhecimento.

Seguimos por um via inversa daquilo que o pensamento ilustrado nos quis ensinar.
Não uma anunciação do que está por vir, a experiência com o rosto nos dá apenas a
sensação daquilo que escapa, nesse momento, estamos em vias de afirmar a
santidade, aquilo que não é palatável aos olhos, ao nariz e à boca do humano, aquilo
que o torna humano: sua inapreensão, seu ocultamento, sua surpresa e sua
transcensão.

Captar o outro a partir de uma descrição do rosto é não perceber o vulto que é o
rosto. Categoria por si só arredia aos conceitos que trazemos a ele, que impomos a
ele, se quisermos ainda nos manter no terreno da violência simbólica que agora quer
categorizar sua procedência, sua ascendência. Pensar o rosto a partir de categorias
que o expliquem, que o estabeleçam, seria negá-lo na infinitude que é, na obra
inacabada que é o humano, se quisermos nos referir a Nietzsche. O humano quando
se coloca ainda nessa condição de mistério contra o qual nada posso. É isso mesmo o
que vimos a anunciar como hipótese para um desvencilhar da teia conceitual que o
logos ocidental concebeu para fazer nascer a categoria de homem.

A alteridade absoluta e a heteronomia impostas ao eu são necessidades para a


concepção de humano que pretendemos talhar. Aliás, uma advertência resta por ser
feita. Não há condições aparentemente razoáveis para explicitar essa relação. Afinal
de contas, quando nos dispomos de nossa relação de igualdade proposta pelo
pensamento logo-ocidental, encontramo-nos em um terreno ermo em que não mais
temos primazia sobre ele. Nessa inversão de papeis em que o «outro me passa à
frente», o eu resta perdido em sua tentativa de entendimento, não há aqui a mera
hipótese de uma relação justa senão, aquela que autoriza o outro a me passar
adiante e que por assim o ser, obriga-me a não percebê-lo, a não enxergá-lo e a não
entendê-lo. O postulado da responsabilidade incondicional é que direciona essa
relação não conceitual e não explicável de uma alteridade absoluta.
O outro me toma como refém quando apenas a partir dele tenho permissão de
morada no mundo. A heteronomia a reger as relações torna o outro uma
responsabilidade minha, mas não uma face de mim que ser quer realizar, não. Há
aqui um despojamento do eu que é anterior a quaisquer intenções. Diante do outro
que já me antecipou posso ser apenas doação, entrega e habitação para sua
santidade. Diante da santidade me prostro, sem indagações e sem limites: ele só é
outro enquanto me supera e o eu só existe quando se dá nessa relação não simétrica
de responsabilidade infinita.

Nesse sentido, se mais uma vez quisermos falar sobre a violência simbólica, uma
relação de igualdade estribada nos moldes logocêntricos, é, em verdade, uma
igualdade falaciosa, ora, para que haja, de fato, uma possibilidade não violenta e,
portanto, de justiça, a tentativa de alocar o outro dentro de qualquer molde de
igualdade seria mais uma vez uma violência. Por isso, reiteramos, a igualdade se dá
mesmo na precedência do outro sobre mim, pois, uma vez que nos entendemos em
uma relação de simetria, de alguma forma, alguém deixou de ser alguém e já ser
tornou parte distinguida naquela relação. Distinguir aqui, seria uma forma violenta
de conhecimento, e, por tudo que vimos a dizer, conhecer é, neste sentido, uma
forma de violência simbólica na raiz.
O dizer o infinito é aqui um corolário das perspectivas que anunciamos. Quando a
relação com o humano resta perpassada por essa via, um sinal de luz nos abre o
olhar. Mirar o horizonte é um bom exercício para essa concepção. O mesmo
horizonte é um infinito de possibilidades que soçobra as nossas condições discursivo-
intelectuais. Não há apreensão possível que não seja aniquiladora, redutora e
violenta dessa mirada. As condições que a experiência com o horizonte nos
permitem são elas, assim como o outro, o rosto do outro, questões que transbordam
a cada piscar de olhos. O infinito com que o outro me interpela em um primeiro
momento me permite mesmo estar no eu e de outro lado, e por isso mesmo, me
responsabiliza por ele de maneira perpétua, como condição minha mesma. Não há
reflexão bastante para essa absorção. Assim, não há mais que se considerar que uma
vida sem exame não valha a pena ser vivida. Na senda que estamos a trilhar, a
constituição de autenticidade não é uma criação e/ou uma possibilidade de
construção. De fato, o próprio infinito que é o outro enquanto categoria que me
coloca no mundo, é ele em verdade que não pode ser esquecido pelo humano. Ou,
dito de outro modo, esse infinito é um imperativo sem categorias a que me devo
submeter pela minha condição mesma. Pela minha condição limitada enquanto ser
de logos que se entrega ao outro em uma realização que transcende o discurso e se
realiza agora em vias de devoção. A fé no outro é que permite o entendimento do
infinito. Nem ela, nem a santidade do outro têm limites, assim, a heteronomia com
que o outro me impõe se dá mesmo pela ideia de que o seu infinito é impossível a
mim, que sua condição de santidade é inquestionável pelo eu. Um eu que agora é
vassalo e servo, refém do infinito que o transcende, que o supera e que por isso
mesmo é um impossível. Aporia, utopia.

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