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TCC - No Palco Da Vida, o Teatro Da Mulher Dramista
TCC - No Palco Da Vida, o Teatro Da Mulher Dramista
TCC - No Palco Da Vida, o Teatro Da Mulher Dramista
Fortaleza
2019
BRUNO DA SILVA MONTEIRO
FORTALEZA-CE
2019
Dados Internacionais de Catalogação Publicação
Instituto Federal do Ceará - IFCE
Sistema de Bibliotecas SIBI
Ficha catalográfica elaborada pelo SIBI/IFCE, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________________
Profa. Dra. Maria de Lourdes Macena de Souza (Orientadora)
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará
______________________________________________________________
Profa. Dra. Francimara Nogueira Teixeira
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará
______________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco José Costa Holanda
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará
Este trabalho é dedicado às Dramistas de
Guanacés, que me deram inspiração para a
realização desta pesquisa, e que me acolheram
tão bem em suas vidas. É com este trabalho
que reitero meus votos de estima a essas
mulheres que cantam com a alma e o coração
as memórias e as belezas do vivido.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, por toda força e coragem que ele sempre me deu
para enfrentar as dificuldades e lutar pelos meus objetivos, e por ter me protegido e guiado
durante esta caminhada.
À minha família por sempre estar ao meu lado em minhas batalhas. Agradeço à minha
mãe– Maria José dos Santos Almeida – que nunca mediu esforços para que eu tivesse uma
boa educação, e que sempre me ensinou a buscar o caminho do bem.
Ao meu amigo/irmão Eleonardo Silva de Souza por me estender a mão sempre que
preciso, por vivenciar comigo momentos de festa, de arte e de busca pelo saber, por permitir
minha presença em sua vida e por tanto me inspirar nessa jornada.
A Saulo Soares pelas palavras de apoio, incentivo e carinho durante esse processo.
À Ieda Silva, Marlene Lima, Maria Paulino, Maria de Fátima, Maria Nilce e Maria
Zumira que sempre me acolherem tão bem em Guanacés, permitindo que eu realizasse esse
trabalho.
Ao Grupo Base de Teatro por me proporcionar tantas alegrias junto ao fazer teatral,
revigorando-me enquanto artista e pessoa. Além disso, gratidão ao grupo por ter impulsionado
minha entrada no curso de Licenciatura em Teatro.
À Secretaria de Assistência Social de Cascavel, em especial à Adriana Lobo, que
sempre incentivou o trabalho com as dramistas por meio do CRAS Guanacés, proporcionando
assim o acontecimento dessa pesquisa.
À Lourdes Macena, minha Orientadora, pela paciência durante todo o processo de
produção deste trabalho, pelos ensinamentos e por me inspirar quando vejo seu amor pela
cultura de nosso povo.
Por fim, agradeço ao Instituto Federal do Ceará por tanto ter contribuído com meu
crescimento pessoal e profissional ao longo desses anos.
“Aqui estamos, flores mimosas
E formosas filhas de Guanacés
Quando bailamos todo mundo gosta
Moços e velhos vêm render-se aos
nossos pés.’”
(Dramistas de Guanacés)
INTRODUÇÃO 13
CONSIDERAÇÕES FINAIS 67
REFERÊNCIAS 69
13
INTRODUÇÃO
Os Dramas Populares intensificam uma cultura que se manifesta por meio de toda a
bravura e ternura de mulheres que mergulham no ato criador para dar corpo e voz a diferentes
personagens. As dramistas fundem com maestria os mais variados elementos cênicos para
transformarem-se em Ciganas, Baianas, Índias, Elementos da natureza, Corpos celestes,
Cores, dentre outras coisas, criando as mais diversas situações no palco1. Essa manifestação
tão rica de significados e beleza encontra-se espalhada por todo o estado do Ceará e tem se
mantido viva há anos sendo passada de uma geração a outra por meio principalmente da
oralidade.
Os dramas caracterizam-se por sua grande multiplicidade de elementos artísticos e
expressivos, trazendo recorrentemente a presença da mulher que por sua vez se coloca
enquanto protagonista, entregando-se à liberdade criadora e dando vida aos mais diversos
personagens.
É importante salientar que os dramas populares não se configuram como uma
experiência somente feminina. Em algumas regiões do Ceará, existem grupos de dramas
composto por homens, no entanto, este trabalho foca a discussão em torno desse fazer
artístico no universo feminino, destacando a mulher que é dramista e considerando que o
universo dos dramas “é um dos poucos espaços públicos de afirmação da mulher numa
sociedade acentuadamente machista.” (BARROSO, 2015, p. 21)
E é essa mulher dramista, atriz por essência, que este trabalho busca trazer para o
centro de sua discussão. Essa mulher que de modo espontâneo dá vida a outros seres em cena,
que canta a natureza, os astros, os sentidos da vida e que por meio da magia do drama
transforma a própria realidade. Além disso, no distrito de Guanacés em Cascavel – Ceará,
local onde principalmente se centra essa pesquisa, apenas mulheres resistem e mantém viva
essa cultura.
As dramistas de Guanacés representam uma importante parte do que se configura
como patrimônio cultural imaterial do município de Cascavel, pois estas trazem consigo uma
forte ligação com sua ancestralidade e vêm mantendo viva a cultura dos dramas na
comunidade onde vivem. Por meio delas é possível compreender que ser dramista é bem mais
do que apenas cantar e representar personagens, é também ser símbolo de resistência e de luta,
para que diante de todas as dificuldades, se mantenha viva a tradição de um povo.
____________________________
1
Espaço elegido pelas dramistas como espaço cênico/musical de execução/apresentação dos dramas.
14
Eles nos ensinam como alguns bons professores, que ainda existem, incendiando as
almas nascentes em seus alunos, sem deixar que a rotina pedagógica destrua a
sensibilidade da criança ou do adulto com o mais corrosivo dos venenos: o tédio, a
preguiça de aprender, a extinção da curiosidade criadora e da utopia transformadora.
Sem teorizar sobre isso, os Mestres da Cultura Popular educam pelo exemplo, pelo
amor ao que fazem, pela alegria com o que fazem, pela persistência em fazer e
compartilhar o que fazem com os seus que se deixam cativar e assim, aprendem.
Muitos deles e delas foram excluídos da possibilidade de frequentar escolas, no
entanto, creio que são estímulo para quem deseha ser um verdadeiro professor. Um
Mestre. (TEODORO apud CARVALHO, 2006, p. 09)
____________________________
2
Centro de Referência da Assistência Social. (Equipamento pertencente à Secretaria de Assistência Social que
atende às famílias do território em que este se situa.)
16
Vale ressaltar que, ao se fazer uso da História Oral na realização de uma pesquisa, é
necessário que o pesquisador se atente para a gama de fatores que circundam o depoente em
seu relato, não observando somente ao que é dito, mas também às sutilezas das ações e dos
silêncios ocorrentes durante a entrevista. Isso se torna relevante uma vez que a subjetividade
inerente ao ser humano se faz presente no decorrer do processo, podendo muitas vezes haver a
omissão de fatos ou mesmo a invenção de uma coisa ou outra durante a narrativa. Levando
em consideração essa discussão sobre a História Oral, é possível perceber um elemento
fundamental para a sua existência: a memória. Nas palavras de Delgado:
Com inúmeras concepções em torno de si, a Memória, defendida por Delgado (2006,
p. 38) como sendo “base construtora de identidades e solidificadora de consciências
individuais e coletivas” é um território fértil de informações, por meio dela o ser humano
revive momentos, guarda conhecimentos e se depara com sentimentos. Partindo disso, é
inegável que a memória seja peça fundamental na construção do conhecimento histórico de
expressões da tradição popular, uma vez que tais expressões estão ligadas diretamente a
determinados grupos de pessoas e suas histórias de vida. Além disso, a memória, sobretudo a
coletiva configura-se como parte importante no processo de construção da identidade de um
povo, seja por lembranças de momentos saudosos marcados por alegria e prazer ou memórias
carregadas de dor e sofrimento. Sobre memórias qualificadas como dolorosas por um grupo,
Candau diz que estas:
19
Além do que foi exposto, quando a memória é atrelada à tradição oral, ela pode ser
compreendida como uma exímia ferramenta para a transmissão de saberes da tradição
popular, ao criar um espaço de troca de experiências, onde indivíduos passam adiante
informações de experiências vividas em tempos de outrora, perpetuando assim lembranças
identitárias. Para Jan Vansina:
Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação
diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais,
venerada no que poderíamos chamar elocuções- chave, isto é, a tradição oral. A
tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de
uma geração para outra. (VANSINA, 2010, p. 139)
de diferentes formas, estando entre estas os Romances que de uma maneira ou outra possuem
traços que podem ser comparados aos dramas cantados.
Trazido da Europa para o Brasil, o Romance – compreendido aqui como uma forma
narrativa de caráter poético-musical pertencente à literatura oral – se manifesta por todo o país
e é um objeto de estudo bastante investigado por diversos estudiosos da cultura popular
tradicional. Em um trabalho sobre o romanceiro3 tradicional popular no Nordeste brasileiro,
Batista discorre as seguintes informações pertinentes aos romances:
Quando falamos em romances, não estamos nos referindo às narrativas em prosa que
conhecemos comumente, mas às narrativas poético-musicais, caracterizadas,
sobretudo, pelo conteúdo épico ou épico-lírico, pela forma dialogada ou
dramatizada, pela linguagem e pela riqueza de variações, no conteúdo e na forma,
advinda de sua natureza oral. [...] Apresentam extensão variável, mas não muito
longos, exatamente por se tratar de peças que exploram a memória do usuário.
(BATISTA, 2002, p. 94)
____________________________
3
De acordo com Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista “O Romanceiro compreende um conjunto de
romances populares que compõe a tradição oral de um povo, ou de uma região.” (BATISTA, 2002, p. 94)
22
Como se pode notar, os romances ibéricos carregam uma gama de fatores históricos e
estruturais que, ao serem analisados, mostram a relevância de se conhecer um pouco sobre
eles mesmos para uma melhor construção da reflexão em torno do objeto desta pesquisa.
Diante de tantas informações já explanadas, pode-se fazer uma ligação estreita destes com os
dramas cantados, pois ambos trazem características que se assemelham, podendo ser citada a
característica principal, que é a união de versos e música que se entrelaçam e contam causos
de amor, tragédia, heroísmo e comédia. Por meio das palavras de LIMA (1971, p.1), que diz
que “Desde os primeiros tempos até o áureo, o romance foi sempre forma de poesia cantada,
com acompanhamento instrumental”, é possível notar a relação análoga existente entre os
Romances e os Dramas Populares.
Francisco José Costa Holanda que escreveu sua tese de doutorado a partir de estudos
sobre os dramas cantados em Guaramiranga - CE, ao estudar alguns romanceiros ibéricos a
fim de entender a relação destes com os dramas cantados, afirma o seguinte:
Oswald Barroso em uma analise dos dramas populares como rito de passagem para a
vida adulta, indica que
Durante pelo menos meio século, entre 1930 e 1980, aproximadamente, os dramas
populares serviram de rito de passagem às adolescentes de grande parte do Ceará.
Especialmente no Litoral Leste do Estado, para as jovens entre 12 e 16 anos, ser
dramista era vivenciar um processo de preparação da mulher para a vida adulta. [...]
ao interpretar diferentes papéis nas comédias, a adolescente experimentava viver,
por momentos, outras identidades sociais, ou seja, colocar-se no lugar de outras
pessoas, de uma mãe, por exemplo, de um pai, de um velho, de uma velha, de um
bêbado, de uma solteirona, de uma mulher submissa, de uma mulher dominadora ou
de outro personagem qualquer de seu meio social. Isso lhe permitia melhor avaliar
as circunstâncias, pois as colocava sob a ótica do outro, ajudando a enriquecer sua
vivência e ampliando seu olhar sobre o mundo. (BARROSO, 2015, p. 19-20)
Com o propósito de sinalizar mais ainda as parecenças dos dramas com o romanceiro
ibérico, a afirmação de Barroso surge nessa discussão para se fazer um contraponto com o
pensamento de Ildette Santos que ao falar sobre o romanceiro na Bahia evidencia que:
23
Até aqui, muito já foi falado sobre os Dramas Populares, sobre a intrínseca conexão
destes com a oralidade e a memória, e as possíveis relações com os romances ibéricos. No
entanto, faz-se necessário uma explanação mais focalizada a respeito dessa manifestação, no
que diz respeito ao seu conceito. O espaço a seguir destina-se à uma reflexão em torno do
objeto principal desta pesquisa, o Drama Popular.
Conceituar essa manifestação não é uma tarefa fácil, pois há um balaio de elementos,
significados, sutilezas e complexidades que a circundam. Na busca por informações sobre tal
expressão, foi possível encontrar alguns autores que dialogam com este objeto de estudo,
levando a reconhecer alguns conceitos atribuídos por estes pesquisadores em seus trabalhos.
No livro Mestres da Cultura Tradicional Popular do Ceará, Gilmar de Carvalho apresenta os
dramas como:
Márcio Araújo Pontes que tem uma importante pesquisa sobre a manifestação dos
Dramas em Tianguá - CE, mas precisamente nas comunidades de Tucuns, Pindoguaba e Poço
de Areias, expõe o drama popular como
[...] uma mistura de música – cantada pelas ‘dramistas’ acompanhadas por tocadores
que geralmente ficam atrás da empanada – e de danças. O resultado de tudo isso é
24
Costa Holanda, mesmo afirmando que considera uma empreitada difícil atribuir
conceito a essa manifestação, faz isso da seguinte maneira:
Além dos autores mencionados anteriormente, no processo de busca por vozes que
fortalecessem este trabalho de pesquisa, foi possível conhecer o trabalho de Maria da Glória
Feitosa Freitas, que realizou sua pesquisa na comunidade do Assentamento Rural de Guriú,
localizado no Litoral Oeste cearense, registrando a história dos dramas nessa localidade,
resultando em sua tese de doutorado.
Investigar os dramas cantados em qualquer lugar que seja, buscando compreender
elementos que compõem essa manifestação requer um aprofundamento não somente nos
processos criativos do grupo de dramistas da comunidade, mas também um conhecimento do
contexto social em que estas senhoras se encontram, conhecer a comunidade e o que perpassa
no cotidiano dessas mulheres e dos demais que as rodeiam é de fundamental importância para
uma melhor apreensão do que se busca responder neste percurso. Em “O Drama em si”,
Pontes diz que:
25
O drama está ligado diretamente com experiências desses sujeitos, trazendo em sua
literatura um entrelaçado mundo de ideias que nos permitem analisar a forma como
se relacionam passado/presente. As dramistas estão sempre assumindo um papel
complexo na forma de (re)criar, socializar práticas e sempre tomam como referência
o mundo que lhes cerca para representar uma determinada realidade. (PONTES,
2011, p. 37)
Nos encontros que este pesquisador realizou com as dramistas de Guanacés foi
possível perceber, a partir dos relatos destas, o quanto o desejo de representar é forte em cada
uma desde a juventude. As dramistas quando entram em cena ou mesmo quando se conectam
com seu interior criativo, transgridem as convenções sociais, burlam padrões instaurados e
funções pré-determinadas.
O figurino é um elemento de grande importância em uma peça teatral. Para a criação
da indumentária há um estudo por parte de quem a produz de acordo com a ideia de cada
trabalho. Para a realização dos dramas o figurino também possui bastante relevância, pois ele
identifica e ajuda na composição dos personagens interpretados pelas dramistas.
O vestuário faz com que o público passe a identificar os personagens: aquela que é a
cigana, aquele que é o soldado, aquela que é a índia, e assim por diante. Além do
mais, cada traje carrega em si uma reflexão dependente da experiência de vida de
cada um. Diante da indumentária, cada pessoa reage de forma diferente: umas
admiram, outras ridicularizam, algumas acham graça e assim constroem
interpretações. (PONTES, 2011, p. 73.)
Maria da Glória Freitas, em sua tese de doutorado, fala um pouco da relação dos
dramas em Guriú com os circos que passaram pela localidade e que influenciaram inclusive
para a presença da baiana nos dramas, apresentando ainda um fato um tanto curioso:
Esses circos que passaram por Guriú trouxeram a imortalização da baianinha e sua
ginga, seu gingado. Ser baianinha em Guriú era um raro privilégio de muito poucas
meninas. [...]só ganhava o título de baianinha aquelas meninas que demonstravam
27
Como bem exposto nesta citação, as dramistas quando estão em cena se tornam donas
de si, exprimem seu interior por meio da expressão artística. Desse modo, pode-se enxergar a
expressividade das dramistas como uma forma de externar como percebem o mundo. Na cena
as dramistas fazem usos de seus aparatos próprios para suas performances, a espontaneidade
de cada uma se aflora na construção das personagens bem como nas emoções solicitadas pela
cena. Ao falar sobre o ator espontâneo, Paulo Ess denota que:
O ator espontâneo está sempre atento a suas ações físicas. Ele não se apoia em
técnicas fabricadas por teóricos repassadas ao longo dos tempos, como se fossem
fórmulas de construção de personagem. A concepção desse ator não se concentra na
formação acadêmica com ensinamentos elementares para alcançar a emoção do
personagem. Ele trabalha com elementos físicos que estão próximos a sua
inspiração. (ESS, 2014, p. 210)
mais variados espaços, porém em algumas localidades, as dramistas criam uma espécie de
palco italiano improvisado, que recebe o nome de empanada, mas as apresentações não se
limitam somente a este tipo de espaço cênico. Costa Holanda exemplifica bem isso:
Em Guriú, por exemplo, de acordo com Freitas (2006), muitas vezes as dramistas
chegavam a levar a empanada de suas apresentações e suas roupas no lombo de um jumento
para outros locais quando convidadas.
Enquanto no teatro “convencional” existem métodos e estudos aprofundados que
ajudam o ator em suas construções e em seu aprendizado pessoal, na manifestação dos dramas
populares a lógica é outra. Nesse caso, o aprendizado encontra-se principalmente no sensorial,
na vivência, sendo transmitido por meio do contato direto, tendo a oralidade como uma peça
fundamental do tabuleiro. Os dramas têm sua força registrada principalmente na memória das
dramistas. Levando isso em consideração, é importante citar o pensamento de Márcio Araújo
Pontes ao falar sobre essa relação de ensino/aprendizagem na comunidade de Tucuns em
Tianguá-Ce:
Como já falado anteriormente, ser dramista é muito mais do que apenas subir no palco
e se expressar artisticamente, é também resistir e lutar para manter viva e pulsante uma
29
cultura tão rica, mesmo diante de todas as dificuldades enfrentadas. Ao tratar dessa resistência
dos dramas, Holanda faz comparativo entre Guaramiranga e alguns outros municípios:
Realmente, as dramistas devem ser vistas como mulheres que trazem consigo toda a
força e resistência necessária ao artista em tempos como os de hoje4, uma vez que estas
resistem bravamente às intempéries da vida, sendo verdadeiras guardiãs dos tesouros
ancestrais que carregam, e que movidas pelo desejo de contribuir com o mundo e com a vida
estão sempre dispostas a transmitirem seus saberes.
A música é umas das mais ancestrais expressões artísticas do mundo, ela sempre
esteve presente na vida do homem por meio de seus rituais desde os tempos mais longínquos.
No teatro, a música é considerada como um elemento de extremo poder na criação e
estabelecimento de uma determinada atmosfera na cena e no ocidente sua relação com o
teatro vem desde os primórdios da Grécia antiga, quando hinos em louvor ao deus Dionisio
eram entoados em celebrações e rituais.
____________________________
4
Semestre I de 2019.
30
De fato, nas apresentações dos dramas acontece mais ou menos dessa forma a relação
das personagens com a música, geralmente em primeira pessoa, as personagens chegam, se
apresentam, cumprimentam a plateia, se despedem. Figuras tipicamente recorrentes dos
dramas populares tem suas características destrinchadas diante do público, como é o caso da
31
índia encantada que surge e desaparece em meio a floresta, da baiana que chega pedindo
licença pra sambar, ou mesmo da cigana que vende chitas ao invés de brilhantes, drama este
que é interpretado com entusiasmo por Dona Maria Paulino:
É de grande relevância salientar que a música, inerente ao drama popular como falado
anteriormente, possui bem mais do que apenas a função de apresentar as personagens das
partes5 apresentadas, é ela quem sustenta todo o desenrolar dessas partes e mesmo quando
existem quadros apresentados pelas dramistas onde a predominância está no texto falado, a
música pode ser percebida como um elemento fundamental na dramatização realizada por
elas, pois por meio da música se reafirma que a essência dos dramas está nessa inegável
ligação. É o que ocorre em Renato e Judite, pequena comédia interpretada pela dramistas de
Guanacés.
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5
Nome dado pelas dramistas aos quadros apresentados por elas, podem ser comparados ao que em uma peça
convencional seria chamado de cena.
33
Figura 4 - Dramistas Marlene Lima e Ieda Silva interpretando respectivamente Renato e Judite.
Nessa comédia um mal entendido cria toda uma confusão entre um casal e uma
empregada, mas no final a solução é encontrada e é por meio da música que os personagens
Renato e Judite contornam a situação e se despedem da plateia.
Em uma peça de teatro a música pode estar presente de diferentes formas, podendo
ocorrer por meio de um som mecânico que reproduz uma musicalidade previamente gravada,
ou mesmo executada ao vivo. Há também espetáculos em que a música surge apenas de forma
instrumental, ou seja, sem a presença de letras cantadas, no caso dos dramas, a música
transpassa diretamente por um canal imprescindível: a voz das dramistas. Com a música, as
dramistas desenham com suas vozes imagens das histórias que contam e emanam os tesouros
poéticos que carregam em suas mentes e corações.
[...] o teatro popular é nossa fonte maior de inspiração. Atores, diretores, pessoas de
teatro que somos e buscamos uma nova proposta, uma nova linguagem. É no teatro
tradicional, com seus paus de fitas, com suas cores, suas emboladas, suas cantorias e
seu gestual marcado e decisivo que Antônio Nóbrega foi criar a cara do Brasil que o
brasileiro não conhece ou teima em não conhecer. Grupos como Piollin da Paraíba, e
Boca Rica do Ceará mergulham suas pesquisas num fazer teatral genuinamente
brasileiro. Buscam seu herói na beira da estrada e o carregam para o teatro. (ESS,
2004, p.39)
Essa vertente do teatro brasileiro, com características muito próprias, com fala e
gestos muito específicos, com uma ótica particular capaz de trabalhar a
contemporaneidade cênica sem perder suas raízes, é um teatro que vem se afirmando
como um dos mais autênticos/expressivos segmentos do teatro nacional. Esse teatro
que traz por trás de si o universos da poesia popular dos folhetos, as brincadeiras do
Boi-de-Reis e dos Pastoris, e o teatro de bonecos [...] (SANTOS, 2014)
O espetáculo Interior traz como protagonistas duas personagens idosas que conversam
sobre suas vidas, trazendo para a cena elementos que criam uma interação direta e afetiva com
o público. Em Interior, é possível perceber a presença de algumas partes dos dramas cantados
de Beberibe, município pertencente ao litoral leste cearense, inseridas na dramaturgia do
trabalho que já percorreu várias cidades do país.
Mais a frente será discorrido um pouco sobre o processo criativo do segundo trabalho
citado, o espetáculo Entre a Taipa e a Catingueira, do Grupo Base de Teatro, uma vez que
este teve uma ligação forte de seu processo com as dramistas de Guanacés, apresentando as
influências estéticas e as inspirações poéticas, bem como os caminhos enveredados durante a
criação.
36
A cidade de Cascavel pulsa nas manhãs de sábado dia da feira, quando em suas
artérias jorram transportes conduzindo mercadorias e pessoas vindas de várias
partes, certamente em busca de realizar negócios, não importa a monta, mas o
significado dessas transações comerciais ou afetivas para cada indivíduo, num
contexto coletivo no que diz respeito a satisfação de suas necessidades imediatas
(SILVA, 2008, pag.16)
cidade, diziam que se a santa fosse retirada do local a cobra com sua ira destruiria toda a
cidade. Outro detalhe em torno dessa lenda é a crendice de que sempre que a palavra cascavel
é pronunciada a cobra cresce um metro.
São muitas as coisas a se falar sobre a cidade, seja de suas paisagens e sua história,
como também de toda a parte mítica. No entanto, diante das poucas informações expostas, é
possível perceber a potência cultural da cidade que se reverbera por todo o território
cascavelense, contemplando assim o distrito de Guanacés, que é o local onde se encontra a luz
inspiradora desta pesquisa.
O distrito Guanacés, com seus 120 anos de fundação, aproximadamente, revela por
meio do que contam os mais velhos, um passado repleto de histórias. Entretanto, não existem
muitos registros sobre a história do distrito, fazendo-nos recorrer, dessa forma, aos moradores
mais antigos que ali ainda residem. Um fato que se sabe sobre o distrito de Guanacés é que o
seu nome nem sempre foi esse, pois, antigamente, a localidade era apenas conhecida como
Bananeira.
Em tempos passados, na região de Guanacés, além de algumas famílias que viviam em
sítios, havia também a presença de uma tribo indígena, povoada pelos índios Guanacés. Com
o passar do tempo, foram chegando pessoas à região e modificando a realidade local,
erguendo construções, abrindo estradas e criando sítios novos. Enquanto isso, os índios aos
poucos iam perdendo espaço devido ao desmatamento da região. E foi a partir dessa realidade
que o distrito passou a ser conhecido como Guanacés, em alusão aos índios que foram os
primeiros habitantes do território.
Guanacés, por mais que seja apenas um distrito, tem ares de uma pequena cidade.
Houve inclusive um período de sua história em que os líderes comunitários tentaram
emancipá-lo de Cascavel. No entanto, por questões burocráticas isto não foi possível.
A dramista Ieda Silva, nascida e criada em Guanacés, expressa seu amor por sua terra
nos versos da seguinte canção:
38
Após essa declaração de amor, será realizado aqui uma breve explanação biográfica
sobre as dramistas de Guanacés, as Seis Marias que ainda refulgem com fulgor o esplendor de
ser dramista, de estar no palco, a começar por Ieda Silva.
39
Cantar, desde criança, eu era pequena, eu tinha assim uns sete anos, oito anos. Aqui
em Guanacés tinha chegado a primeira radiadora, aqui em Guanacés, aí no salão na
casa do padre dia de domingo o rapaz botava a radiadora pra tocar e convidava as
criança para cantar. E todos domingo eu ia cantar, me arruma pra ir cantar, porque
quando era dia de domingo eu cantava e ganhava um presente, um sabonete , o
prêmio era um sabonete óia, eu não deixava de ir não, e hoje eu continuo cantando,
canto salmo na igreja, né, e quando chega assim em algum canto que dá pra eu
cantar uma música, numa seresta, num canto, me convidam e eu canto. (Informação
verbal)7
O dom para a arte está no sangue de Dona Ieda. Segundo ela, há outras pessoas na sua
família que têm uma relação estreita com a música, como é o caso de sua irmã, Dona
Marlene, que também é dramista.
____________________________
6
Espécie de rádio comunitária muito comum em décadas passadas, sobretudo em pequenas cidades.
7
Entrevista 1 - Entrevista realizada com a dramista Ieda Silva, no CRAS Guanacés, em 06 de setembro de 2018.
40
Maria Marlene Lima da Silva, de 70 anos, é irmã de Ieda Silva, no entanto sua relação
inicial com os dramas populares de Guanacés se deu de forma diferente da irmã. Dona
Marlene, nascida aos 12 de Março de 1949, conta que passou boa parte de sua infância na
localidade de Lagoa de Souza, zona rural de Guanacés, e que por isso não teve um contato
forte com essa manifestação quando criança, mas afirma que tinha uma tia que era dramista,
reafirmando a história de Dona Ieda, e frisou também que só passou a se apresentar como
dramista quando se tornou adulta, mesmo tendo aprendido muitas coisas a respeito do oficio
de dramista com os mais velhos da família durante a infância e juventude.
Mesmo com os relatos das dramistas Ieda e Marlene relacionados à iniciação nos
dramas somente na vida adulta, é importante salientar que no grupo existem histórias
diferentes como é o caso de Maria Paulino da Silva Barroso, que foi a mais precoce na arte
dos dramas populares.
participar de apresentações de dramas aos 07 anos de idade, quando uma senhora chamada
Mariínha pedia a sua mãe que deixasse que a pequena Maria integrasse as apresentações.
Tudo isso foi apenas o inicio para Dona Maria Paulino, que conforme foi crescendo foi
desenvolvendo esse dom e guardando em cadernos e na memória tudo do universo dos
dramas que chegava ao seu conhecimento.
Uma surpresa que surgiu durante esse período de pesquisa e vivência com as dramistas
de Guanacés, foi a chegada de mais uma Maria disposta a fazer parte do grupo. Maria Zumira
que há anos não brincava em dramas, viu no grupo uma oportunidade de voltar a fazer algo
que havia feito na época em que era criança e que tanto lhe fazia bem.
Maria de Fátima Alves de Souza, 66 anos de idade, é a mais jovem dramista do grupo,
nasceu em Guanacés em 02 de Fevereiro de 1953, e revela que morou na cidade de Fortaleza
por curto tempo da adolescência, quando tinha entre 12 e 14 anos de idade, período emque
ocorreram suas primeiras experiências como dramista. Uma curiosidade salientada por Dona
Fátima sobre essa época é que ela sempre interpretava a parte da baiana nas apresentações,
frisando que sempre gostou muito de dançar, gosto esse que se reverbera até hoje, pois nas
suas atuais apresentações, pode-se perceber isso enquanto ela canta e interpreta a personagem
da baiana. Dona Mocinha, como é conhecida por muitos, entrega o corpo ao jogo brincante da
cena e sempre arranca aplausos calorosos da plateia com sua performance.
Após falar um pouco sobre a mais jovem do grupo, finaliza-se as apresentações
biográficas com a apresentação da mais experiente do grupo no que diz respeito à vida e ao
tempo, a sexta estrela da constelação, a dramista Maria Nilce, de 78 anos.
Maria Nilce Dantas de Souza, veio ao mundo no dia 11 de Junho de 1940 e teve sua
primeira aproximação com os dramas aos 8 anos de idade. Segundo ela, o aprendizado das
letras e melodias dos dramas se deu por meio da observação que fazia quando menina dos
43
ensaios e apresentações de um grupo de dramistas que sua irmã mais velha, de nome Maria
José, participava. Aos 78 anos, Dona Maria Nilce, ao ser questionada sobre qual a
importância dos dramas em sua vida, responde que o fato de estar próxima às pessoas de que
gosta é que mais lhe deixa feliz quando está nos momentos de ensaio ou apresentação. Tal
resposta, me faz refletir a respeitos dos dramas populares, percebo que estes não ocupam
somente espaço na vida de suas participantes como uma forma de expressão artística ou
mesmo diversão, mas também ocupam um espaço significativo no que diz respeito às relações
afetivas com os seus.
Figura 14 - Dramistas de Guanacés na II Conferência Municipal do Idoso– Da esquerda para direita: Maria
Paulino, Maria Ieda, Maria Nilce, Maria Marlene, Maria de Fátima, Maria Zumira.
É valido ressaltar que as dramistas citadas acima não são as únicas do distrito
Guanacés, pois são muitas as mulheres que já participaram da brincadeira e muitas que
guardam os tesouros da memória local, no entanto, até o momento desta pesquisa, apenas
estas se mantém ensaiando e apresentando os dramas, mesmo diante das dificuldades
inerentes ao cotidiano. Mas cabe aqui salientar o respeito e admiração por todas aquelas que
no passado cantaram e encantaram pelas ruas, quintais, palcos e praças de Guanacés.
O ser humano é por natureza um ser que necessita de comunicação. Desde os tempos
mais remotos, o homem cria e recria formas de se conectar ao outro, expressando desejos e
ideias, e a arte sempre esteve presente nesse processo, de forma consciente ou não. Por meio
da arte, o ser humano aproxima-se do mundo das emoções, alcança campos que estão para
além da percepção cognitiva simplista e convencional do cotidiano.
44
Fazendo uso da famosa frase do poeta Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida
não basta” (GULLAR, 2010), é possível fazer uma reflexão em torno do fazer artístico das
dramistas, mulheres que veem a vida sob uma ótica poeticamente sensível e singela. Para
estas, tudo é motivo para cantar, sejam tristezas ou alegrias. A natureza é inspiração para
compor letras e melodias que falam de flores, animais e rios. A cultura do outro é admirada e
levada ao palco, como é o caso dos dramas que trazem as figuras das ciganas e das baianas,
dentre outras. E assim essas mulheres vão encontrando formas de homenagear tudo aquilo que
o universo dá de presente ao mundo.
Dispostas a vivenciarem sua arte independente dos embaraços da vida, as dramistas de
Guanacés revelam-se mulheres fortes, mulheres estas que deixam seus corações serem
guiados pelo desejo de se expressar artisticamente, sendo este desejo superior às amarras da
vida cotidiana simplista e à censura intra ou extrapessoal. As dramistas quando entram em
cena ou mesmo quando se conectam com seu interior criativo, transgridem as convenções
sociais, burlam padrões instaurados e funções pré-determinadas. São atrizes que estão para
além do simples fato de representar personagens, pois por intermédio desse teatro
expressivamente popular, elas se encantam e transitam entre o real e o imaginário, livres de
técnicas e métodos ligados à teóricos teatrais, além de criarem um espaço onde a presença
feminina é soberana. Como frisa Barroso:
No reino dos dramas populares, as mulheres são rainhas e reis, produtoras, autoras,
encenadoras e atrizes. Nele se reúne a mãe, a avó, a tia, a madrinha, a filha, a
sobrinha, a afilhada, junta-se a família clãnica, o coletivo comunitário,
estabelecendo-se a intimidade do feminino, seu aconchego, ambiente propício para
que a mulher, com liberdade a iniciativa, conquiste a independência e desenvolva a
criatividade. Nele, florescem não só as vocações artísticas, como as aptidões para o
empreendedorismo das mais diferentes naturezas, como a produção de eventos, a
organização de pequenas economias e a propaganda. (BARROSO, 2015, p. 21)
É uma sensação maravilhosa. Me sinto mais nova, mais jovem, quando tô ali me
apresentando. E tenho muito orgulho, de dançar, em minha vida. Acho que
deveríamos fazer mais. [...] Quando eu estou atuando, no teatro, até mesmo nos
ensaio, eu tô, renovei anos e anos [...] Porque todo mundo, a gente tem preocupação
né? Mas naquela hora tudo sai, né. E é muito bom. [Informação verbal]8 (SIC)
Durante o período que esta pesquisa vinha sendo desenvolvida foi possível notar
semelhanças da manifestação dos dramas em Guanacés com a de outros locais do estado,
semelhanças estas que se revelam de várias maneiras, seja pela forma como eram ou são
realizadas, pelos desafios enfrentados, pela confecção de indumentárias e os materiais usados
em tempos de outrora, ou mesmo pelas letras e melodias que repetem elementos aqui e acolá.
No que diz respeito às parecenças nas músicas dos dramas, pode-se dar alguns exemplos aqui
de dramas de Guanacés que apresentam semelhanças com de outras regiões, como é o caso do
drama chamado Madalena, no qual uma mulher (Madalena) briga com o marido porque
deseja ganhar um vestido, ou do drama Lindalva que mostra um amor não correspondido de
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8
Entrevista 2 – Entrevista realizada com a dramista Marlene Lima, no CRAS Guanacés, em 06 de Setembro de
2018.
46
um homem por uma mulher. Tais dramas podem ser encontrados em outras regiões cearenses
com apenas algumas mudanças nas letras.
Refletindo sobre essas coincidências, uma hipótese que pode ser levantada é que muito
possivelmente os dramas populares não se limitam somente à sua localidade, estes percorrem
distâncias por meio da oralidade, como é o caso já citado, por exemplo, de Dona Zumira que
aprendeu alguns dramas por meio de mulheres vindas de outra cidade. Além disso, pode-se
dizer que hoje existe um fator a mais além da oralidade, a tecnologia. Com os adventos
tecnológicos, cada vez mais as comunidades se aproximam umas das outras, dando aos seus
integrantes mais possibilidades de conhecer traços da cultura do outro. Seguindo nessa linha
de raciocínio, é relevante citar algo que sucedeu por meio dos encontros com as dramistas de
Guanacés, onde este pesquisador juntamente com o também pesquisador Eleonardo Silva
estavam mostrando alguns dramas de outros grupos de dramistas do Ceará, bem como
algumas músicas da tradição popular, cantadas por mulheres, e pelo meio destas estava a
música Oh que noite tão bonita, que faz parte do universo de cantigas de rodas do estado de
Minas Gerais, em uma versão do grupo Meninas de Sinhá. Ao ouvirem essa música as
dramistas de Guanacés logo se apaixonaram e começaram a cantá-la, parecia até que já a
conheciam, e o interessante foi ver que a medida que iam cantando sutilmente incluindo
traços particulares de suas vozes à canção, fazendo também adaptações para melhor o grupo
poder interpretá-la, dividindo as estrofes nas vozes individuais e o estribilho ficando para o
coro. A partir dessa informação pode-se observar mais ainda o que foi falado anteriormente
sobre como formas de se fazer algo em regiões tão distintas muitas vezes se conectam e têm
características que se repetem.
Entretanto, é importante frisar que essa mesma tecnologia que tudo leva de um lugar
para outro com certa facilidade, impõe a necessidade de firmar identidades de cada local, ou
seja, mesmo que Oh que noite tão bonita passe a integrar o repertório das dramistas de
Guanacés, continuará esta sendo uma canção do povo mineiro.
Alguns dos dramas cantados pelas dramistas de Guanacés revelam também elementos
que estão diretamente relacionados a elementos e questões presentes na experiência de vida
das artistas, sobretudo por esses dramas na grande maioria virem de épocas passadas, quando
o desenvolvimento urbano ainda não tinha chegado de forma tão abrangente à comunidade.
Isso se desvela em alguns dramas pertencentes ao acervo das dramistas, como é o caso de As
matutinhas, drama em que elas se colocam como moças simples do sertão que se
impressionam com as novidades que encontram ao chegarem na cidade grande. Além de As
matutinhas, há o drama João e Mariana que inclusive é um dos preferidos de Dona Ieda.
47
Segundo ela, por este em especial expressar a realidade da vida das pessoas simples do sertão,
que em tempos passados não tinham tanto contato com as coisas existentes nas cidades
contagiadas pelo desenvolvimento. Geralmente interpretado por Marlene e Ieda que
respectivamente se revestem de João e Mariana, o drama supracitado traz os seguintes versos:
Diante de tantas características já faladas aqui sobre os dramas, é necessário falar que
as apresentações destes não se mantém congeladas às formas originais de cada um.
Improvisos são muito comuns e adaptações são feitas muitas vezes em algumas letras de
acordo com o local em que se está apresentando. No drama exposto acima, geralmente se
acrescenta mais uma estrofe que fica geralmente depois da primeira, nessa estrofe, as
dramistas falam o local em que se apresentam e dizem o nome da pessoa que as convidou.
Figura 16 - Dramistas Marlene e Ieda apresentando João e Mariana na praça da Paróquia de Guanacés em
Novembro de 2018.
A cultura popular tradicional, com seu universo de manifestações, pode ser notada
como um espaço onde homens e mulheres liberam seus instintos criativos e brincantes,
expressando sentimentos e emoções por meio de seus folguedos, seja em terreiros, praças e
ruas, grupos de pessoas se organizam e criam momentos de lazer pra si e para os outros por
meio da música, da representação teatral, da dança, etc. Diante do exposto, pode-se trazer os
dramas populares para o centro dessa discussão, pois é nesse meio de divertimento, fruição e
criação artística, que o encontramos. E é neste teatro repleto de expressividade artística
popular que as dramistas libertam seus impulsos criativos e se realizam enquanto artistas,
sendo esse espaço o local onde elas imperam e se entregam à arte. A dramista Ieda Silva fala
um pouco sobre esse prazer de estar em cena e se assumir enquanto artista:
Eu me sinto muito bem, porque é muito bom você apresentar uma coisa e depois
daquilo, quando você se curva pra agradecer, você vê aquela multidão batendo
palmas. É muito gratificante. As pessoas que num participam num sabe o que tão
perdendo, por que é muito bom. Me sinto muito bem. Quem é que não gosta de ser
aplaudido né? [...] Me expressando eu me sinto bem, me sinto realizada porque é
muito bom, porque você tem alguma coisa dento de si que pulsa e você pode botar
pra fora. Porque em nem toda oportunidade você tem esse direito, e num drama e
uma apresentação de teatro você mostra isso. (SIC) [Informação verbal]9
Pelo que foi possível perceber durante esta pesquisa, é plausível afirmar que as
dramistas ao entrarem em cena, manifestam em seus corpos o prazer de estar em cena, o
entusiasmo fica evidente por meio da gestualidade firme e presente no palco onde partituras
corporais transitam entre um drama e outro que ali são apresentados. Quando interpretam o
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9
Entrevista 1 - Entrevista realizada com a dramista Ieda Silva, no CRAS Guanacés, em 06 de setembro de 2018.
50
Bailado das flores mimosas, drama que normalmente é o responsável pela entrada das
apresentações, as dramistas de Guanacés exibem uma coreografia simples, mas condizente
com a letra e melodia do drama, e procuram expressar na face e no corpo a satisfação de estar
diante daquele público, apresentando a singela riqueza do trabalho cênico/musical preparado
por elas e revelando consequentemente uma expressão teatral que se interessa mais pela
experiência do encontro do que pelas técnicas pré-fabricadas por estudiosos e teóricos da área.
Diante dessa reflexão, pode-se fazer aqui, o uso das palavras de Paulo Ess, que ao falar sobre
o ator espontâneo diz que “A esse ator não lhe preocupa as interpretações grandiloquentes,
pois, ao assumir a cena, o compromisso maior está com a plateia e a renovação da arte. É esse
compromisso politico que une o ator à plateia, deixando-a completa.” (ESS, 2014, p.20)
Sabendo que os corpos das dramistas pulsam com vigor na construção da
expressividade delas na cena, é importante afirmar que mesmo levados pela emoção das
personas e personagens encarnados por elas durante as apresentações e ensaios, esses corpos
não perdem suas características e aspectos do vivido, pois mesmo no êxtase da cena traços da
vida dessas mulheres estão ali, expostos em seus físicos. No caso das dramistas de Guanacés,
atrizes espontâneas por natureza, consegue-se perceber essa fusão entre personagem e
individuo. Como expressa Ess, ainda na discussão em torno do ator espontâneo:
O ator não expõe somente sua mascara facial, mas também sua máscara interna, e as
duas se misturam em uma só fisionomia que é a sua verdade e vontade. O corpo se
manifesta como deseja e se expressa com singeleza rotineira. Espontaneamente, esse
corpo é capaz de reproduzir e conceber as energias férteis, que lhe dão luz própria.
Notamos, no corpo do ator espontâneo, uma concepção dessa gestualidade que está
referendada pelo seu dia a dia, assim as imagem e figuras que surgem, gravam-se
como uma lenda. (ESS, 2014, p. 22)
As dramistas vão ao palco para divertir a plateia e o fazem muito bem. [...] no palco,
mostram principalmente a si mesmas, seu poder de encanto. Nem mesmo é o bailado
ou a comédia que está em foco durante suas apresentações, mas o corpo e a alma das
51
dramistas em cena, a ânima que flui de suas figuras e seduz a plateia. (BARROSO,
2015, p. 21)
Refletindo sobre essa questão do corpo que dá vida aos personagens que aparecem nos
dramas de Guanacés e indagando as dramistas sobre como ocorre isso, foi possível observar
que a relação criador e criatura ocorre de maneira muito espontânea e natural, para elas subir
no palco e interpretar outros está mais ligado à emoção do que à técnicas. É como se naquele
momento elas passassem por uma espécie de transformação de corpo e alma, ao mesmo
tempo em que aqueles personagens já são figuras intimas à vida destas mulheres, podendo
assim ativá-los ou desativá-los em seus corpos com uma certa tranquilidade. Dona Ieda depõe
um pouco sobre sua relação com algumas das personagens que interpreta:
É como eu fosse a Judite mermo. Mermo que você não queira ser aquela
personagem, mas naquela hora você é aquela personagem nem que você não queira.
A gente se sente desse jeito, a gente se sente realizada. Naquela hora eu sou uma
Judite. Aquela outra que a gente se apresenta... João e Mariana! João e Mariana, a
gente canta aquilo realizada, é como a gente seja a personagem. É por isso que dá
certo! Porque se a gente não se transformasse naquilo que a gente tá fazendo num
dava certo não. (SIC) [Informação verbal]10
E assim essas personagens vão ganhando vida por meio das dramistas, sendo por meio
dessas personagens que a história e a mensagem de cada drama cantado chegam até a plateia,
e assim como foi dito que a dramista é o principal elo entre o público e as personagens
apresentadas, nesse sentido, pode se dizer que as personagens se configuram como o principal
canal pelo qual se desenvolve a ação dramática. Em reflexão sobre personagem, Ess expõe
que:
Nessa discussão sobre personagem, é cabível trazer aqui mais um fato que reafirma
mais ainda a soberania da presença da mulher no drama. Assim como figuras femininas como
as das ciganas e baianas, existem também muitos dramas que contam a presença de
personagens masculinos, e que mesmo diante das diferenças anatômicas são interpretados
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10
Entrevista 3 – Entrevista realizada com a dramista Ieda Silva, na Escola de Música Maria Marlene, em
Guanacés-CE no dia 02 de Abril de 2019.
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pelas dramistas, para que estes personagens ganhem vida no palco, estas atrizes, imbuídas
pelo desejo de representar trazem para seus corpos os trejeitos e características dessas figuras
masculinas. Em Guanacés, os personagens masculinos na grande maioria das vezes são
apresentados pela dramista Marlene que sempre ganha o público com sua jocosidade em cena.
Segundo Dona Marlene, o fator que a leva a um bom desempenho quando interpreta seus
personagens está ligado à forças que estão para além do tangível e do terreno, e, além disso, a
mesma revela que contentar o público nas apresentações é o seu principal estímulo em cena,
em suas palavras:
Só Deus que dá força, e a sabedoria né, pra eu fazer aquele papel. [...] Apesar de eu
ser mulher, mas eu faço papel do homem, porque as vezes minhas amigas num
querem, mas eu faço com muito gosto, e faço tudo pra agradar ali a platéia né, quem
tá ali nos assistindo e o que for pra fazer eu faço. [Informação verbal]11
Dona Marlene, ainda sobre a construção dos personagens masculinos que interpreta,
relatou que para vesti-los, conta com a parceria de seu filho mais velho que empresta algumas
de suas roupas para que a mãe possa usar como figurino enquanto se apresenta. Diante desta
declaração, é possível destacar a importância da família dos brincantes nas mais diversas
manifestações populares, pois muitas vezes alguns familiares contribuem de forma direta ou
direta com essas práticas. Nas danças dramáticas, por exemplo, isso pode ser facilmente
percebido como expõe Souza ao dizer que:
É preciso destacar a presença dos familiares e amigos que não fazem personagens,
pois sem eles esse teatro/dança brincante não ocorreria, já que atuam na confecção
de trajes, costuram, pintam, bordam, organizam lanches nos ensaios, colaborando
sempre aqui e ali. (SOUZA, 2014, p. 113)
Além dos familiares, pode-se também citar o apoio que as mesmas recebem da
comunidade, afinal de contas, elas são as estrelas do lugar, não importa se faça sol ou chuva,
aquele público cativo sempre estará ali para prestigiar suas artistas.
Assim, as dramistas vão fortalecendo cada vez mais o dom que a vida lhes deu, como
rendeiras que traçam tramas com as linhas que formarão desenhos, elas criam possibilidades e
brincam com os aparatos que possuem em sua arte, unindo ritmos, gestos, emoções e
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11
Entrevista 4 – Entrevista realizada com a dramista Marlene Lima, na Escola de Música Maria Marlene, em
Guanacés-CE no dia 12 de Março de 2019.
53
memórias em excelente harmonia na cena, sempre sensíveis ao que há de novo, sem perder a
essência do que é antigo.
E é nessa perspectiva dos dramas conectados ao que é novo, que podemos falar um
pouco sobre a tecnologia como auxiliar no repasse do saber, pois o que antes era guardado
somente na memória e repassado pela oralidade, hoje se conecta às possibilidades do mundo
digital. Na sessão a seguir será discutido um pouco sobre essas relações entre o saber popular
e a tecnologia, além de falar sobre a criação cênica a partir da matriz estética dos dramas
cantados e da inserção destes no âmbito escolar por meio da prática docente.
54
Essas músicas trazem histórias, essas músicas trazem poesia, essas músicas trazem a
vida como ela era na época dessas senhoras né, na época de juventude, enfim. São
músicas que falam de amor, de medos, de mitos, enfim. E é dentro desse universo
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12
Sinopse feita pelo autor deste trabalho. (2017)
56
Foi durante o período de criação deste trabalho que os integrantes Bruno Monteiro e
Eleonardo Silva iniciaram o trabalho já explanado acima com as dramistas de Guanacés.
Desse modo, os dois perceberam que com este contato direto com essas mulheres que em seu
espírito traduzem muito do que a peça fala, seria possível não só aprender dramas ou outras
canções e histórias que poderiam ser inseridas no espetáculo, como também observar e
vivenciar momentos com elas que fariam toda diferença na hora de levar para a cena o corpo,
a voz e a gestualidade das personagens do espetáculo. Para Eleonardo Silva, esse contato
direto com as dramistas de Guanacés foi de extrema importância durante o processo de
construção de sua personagem, segundo ele:
Esse período pra mim enquanto ator foi de extrema importância, estar com elas, não
só com elas, mas também com minha vó, ao mesmo tempo em que eu criava a
personagem pra esse trabalho, ampliou a minha compreensão pra o que estávamos
fazendo nos ensaios, posso dizer que foi como estar diante de um conhecimento que
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13
Entrevista 5 – Entrevista realizada com o ator Eleonardo Silva, na casa do depoente, em Cascavel-CE no dia
02 de Abril de 2019.
57
tá pra além do que a gente busca nos livros né. Outra coisa que pude observar e foi
importante pra mim, foi ver a naturalidade com elas entram em cena quando vão
cantar seus dramas pra uma platéia, uma vez que talvez a nossa maior dificuldade,
do ator em si, é ser natural em cena, e isso elas são assim essencialmente, elas são
naturais em cena por essência, tudo o que elas mostram no palco é o dia a dia delas,
é o meio em que elas vivem né, são falas próprias também, por mais que tenha
criações poéticas, mas é ali o dia a dia delas, o universo em que elas foram inseridas,
criadas, construídas, enfim, então o que a gente tira disso é como ser natural em
cena. (Informação verbal)14
De fato, como bem frisado pelo entrevistado Eleonardo, a naturalidade das dramistas
em cena é perceptível. As mesmas transitam entre seus personagens com certa facilidade, pra
cada drama uma emoção, uma gestualidade, não importa o que o drama solicite, seja um olhar
de tristeza ou um corpo jocoso, as dramistas estão sempre para o que der e vier, sempre
conectadas ao que estão a fazer no palco e ao público que as admira.
Um momento marcante na trajetória do espetáculo foi uma apresentação realizada no
dia 30 de Setembro de 2018, em Cascavel. Na ocasião o grupo teve a oportunidade de estar
diante de um púbico mais que especial, pois cerca de 40 idosas do Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculos do CRAS Guanacés foram especialmente convidadas para assistir
a peça, estando entre estas senhoras as dramistas do distrito, tanto aquelas que estão na ativa
como algumas que no passado participaram das brincadeiras de drama. Apresentar o
espetáculo para essas senhoras foi como sentir um pouco de cada uma delas, passear por suas
emoções e memórias, era possível perceber em seus olhares as conexões que faziam do que
estava sedo apresentado às suas lembranças do vivido. Representação e realidade estavam ali
cara a cara no encontro desse duplo.
Ao final da apresentação do espetáculo, o grupo fez seus agradecimentos e
homenageou algumas das pessoas que foram e são importantes o coletivo, e dentre essas
pessoas homenageadas estavam as Dramistas de Guanacés por inspirarem o grupo neste
processo e por persistirem em sua arte no município. Na ocasião, a dramista Ieda Silva
recebeu uma comenda em nome do grupo de dramistas. Emocionadas, as demais dramistas
que ali estavam subiram ao palco e cantaram um drama para o público presente.
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14
Entrevista 5 – Entrevista realizada com o ator Eleonardo Silva, na casa do depoente, em Cascavel-CE no dia
02 de Abril de 2019.
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Para que este objetivo seja alcançado no âmbito escolar, mesmo em meio as
dificuldades e complexidades latentes à área da educação, se faz necessário enxergar a escola
como um local que está para além do ensinar e aprender, é preciso visualizá-la de uma forma
mais agregadora às questões sociais que a circundam. Macena diz:
Levando em consideração essas reflexões acerca do âmbito escolar, não fica difícil
enxergar o valor da presença dos dramas populares inseridos na educação, sobretudo em aulas
de teatro para crianças jovens, principalmente nas escolas locais.
Os dramas populares trazem uma essência de simplicidade e delicadeza que facilmente
pode ser apreendida em exercícios e criações de um processo pedagógico teatral, no qual o
educador pode fazer uso da musicalidade, da repetição de versos, da gestualidade das
dramistas, além de outros elementos comuns aos dramas, e levar os alunos a um jogo
prazeroso na criação da cena, estimulando percepções e sentidos em torno de um fazer teatral
brincante e popular.
60
Além disso, dependendo da forma como essa matriz estética seja utilizada em sala de
aula, pode-se estimular e propiciar o uso de um recurso importante no ensino teatral que é a
improvisação, pois a partir das melodias e letras dos dramas é possível propor para as crianças
a criação de novas estrofes e versos, impulsionando assim o ato criativo nos educandos. Foi o
que fez uma das entrevistadas para este trabalho, a pedagoga Elisângela Castro que
atualmente dá aulas na educação infantil na rede municipal de ensino de Beberibe, Ceará.
Segundo a docente, que além de Pedagoga em exercício é aluna do curso de Licenciatura em
Teatro do Instituto Federal do Ceará, – IFCE – o interesse em realizar um trabalho com suas
alunas se utilizando da matriz estética dos dramas ocorreu após ela ter tido a oportunidade de
conhecer Dona Zilda e Dona Augusta, dramistas de Guaramiranga, em uma viagem feita à
cidade em 2017. Na ocasião, Dona Zilda a ensinou o drama “As mentirinhas”, autorizando-a
a utilizá-lo em uma apresentação com um grupo de alunas. A depoente frisa também que o
seu interesse em conhecer mais sobre os dramas populares e possivelmente aplicar na sua
prática docente, surgiu durante a disciplina de Teatro e Cultura Popular do curso de
Licenciatura em Teatro no IFCE. Ao falar um pouco sobre a realização desta atividade dentro
da escola, a mesma conta que:
Uma das coisas que mais me motivou a realizar esse trabalho com as minhas alunas
foi o fato de poder de alguma forma valorizar essa manifestação tão bonita e tão
forte no nosso estado, principalmente porque eu trabalhei essa atividade na cidade
de Beberibe, que é uma cidade que tem muitas dramistas, e eu percebi que as
crianças não conheciam essa manifestação popular, e também não sabiam que na
cidade delas existem pessoas que fazem esse lindo trabalho... E durante esse
processo eu me preocupei muito em explicar pra elas um pouco sobre os dramas.
Primeiro eu dei uma introdução pra depois partir pra prática, até mesmo pra elas
entenderem o que elas estavam fazendo e ao fim de tudo foi muito bacana ver as
crianças reconhecendo essa cultura como algo importante e que merece ser
valorizado. [Informação Verbal]15
É no espaço de fruição criativa do ambiente escolar que os dramas cantados podem ser
inseridos por professores de teatro, a fim de enriquecer a relação ensino/aprendizagem.
Fazendo uso das muitas possibilidades cênicas que os dramas propõem, torna-se possível criar
um espaço de aprendizagem e brincadeira, como fazem as dramistas quando dividem seus
conhecimentos e experiências umas com as outras em seus momentos de criação. É a
educação que ocorre no corpo a corpo, na vivência, no ato de sentir e de compartilhar. Tal
processo de aprendizagem não se restringe somente aos dramas, esta experiência é comum às
mais diversas brincadeiras e manifestações da cultura popular tradicional. A respeito disso,
Vieira, em um estudo sobre os pastoris potiguares, esclarece que:
Por mais que essa reflexão a cerca da aprendizagem por meio do corpo exposto refira-
se aos pastoris, não significa que ela se apoie apenas nessa dança dramática, pois isso se
repete em outros folguedos, e nos dramas essa relação entre aprendizagem e corpo é algo
estreito. Durante as observações feitas dos processos criativos e dos ensaios das dramistas de
Guanacés, pude notar que a melhor forma de aprender a ser dramista é sendo dramista, ou
seja, não existe fórmula ou método, é com a prática e principalmente com o desejo de se
expressar que essas mulheres aprendem o oficio do drama.
Expressa a ideia de que os dramas populares podem ser fortes aliados à docência em
teatro, seja no espaço de ensino formal ou não, é de grande relevância salientar aqui a
importância da presença das mulheres na escola e em espaços que de alguma forma também
tenham a contribuir com a valoração e o fomento dessa cultura, afinal, mais do que falar sobre
ou mesmo utilizar desta matriz em atividades com os alunos, faz-se necessário evidenciar
quem tanto tem a contribuir para com a sociedade no que diz respeito a uma construção mais
sensível e agregadora do saber, possibilitando também o encontro e o reconhecimento desses
educandos para com aquilo que é seu, que é próximo à sua realidade, que faz parte da sua
identidade cultural.
No que diz respeito à presença dos mestres desses saberes no âmbito escolar, cabe
acentuar que as Dramistas de Guanacés aqui e acolá são convidadas para se apresentarem nas
63
escolas do distrito, onde todas vão felizes para apresentarem sua arte para uma plateia jovem
e pulsante, renovando nelas a esperança de perpetuação dessa expressão.
Em novembro de 2018, em uma ação itinerante do evento Mestres do Mundo, que
ocorreu na cidade de Aquiraz, uma das escolas de Guanacés foi contemplada com uma tarde
de troca de experiência entre Mestres e os alunos da escola. A ação se desenvolveu na Escola
de Ensino Médio Integral Custódio da Silva Lemos, que é voltada para adolescentes, e que
recebeu em sua quadra o Boi Coração da cidade de Ocara, as dramistas do distrito e o senhor
Dida que foi brincante Boi do Miguel que fez parte da história cascavelense e que hoje existe
somente na memória.
Figura 20 - Dramistas de Guanacés se apresentando na ação itinerante do XII Encontro Mestre do Mundo, em
Guanacés-CE.
Realmente, evidenciar esses saberes junto à comunidade escolar é zelar pelo futuro das
novas gerações que cada vez mais encaram vida conforme a rapidez do mundo tecnológico.
E por fim, não poderia deixar de falar aqui também da importância que a disciplina de
Teatro e Cultura Popular tem no curso de Licenciatura em Teatro do IFCE, pois por meio
dela, os alunos têm a oportunidade de conhecer e voltar sua atenção para um fazer artístico
que é essencialmente popular, que possui técnicas próprias, distintas do saber eurocêntrico,
revelando também, as possibilidades que a cultura popular tradicional tem a oferecer na
construção de repertório para estes indivíduos que estão se formando enquanto artistas
docentes.
Para a produção desta mídia, inicialmente foi necessário refletir sobre este trabalho
poderia ser realizado, uma vez que não havia recurso financeiro para a produção, sobretudo
para levar as dramistas a um estúdio profissional. Foi então que percebemos que o mais
importante naquele momento seria fazer o registro dessas músicas, de inseri-las no mundo
digital para que não se perdessem ao longo do tempo, uma vez que muitas outras musicas
desse cancioneiro de Guanacés não são mais lembradas por suas dramistas, então, seguindo
essa premissa, decidimos que o CD seria produzido, de forma bem amadora e artesanal, mas
com todo cuidado e primor.
Diante dessa reflexão a cerca da relevância de iniciar o trabalho e produzir esse cd,
começamos o processo de produção. Inicialmente, foi explicado para as dramistas o quanto
aquilo seria bom para elas e muitas pessoas, e o quão relevante seria aquilo para auxiliar de
alguma forma no repasse do saber. As dramistas ficaram logo empolgadas e automaticamente
já foram cantando os dramas que seriam bons para constituir a playlist do CD.
Como a falta de recursos financeiros não possibilitava a gravação dos dramas em um
estúdio profissional, percebeu-se que a melhor forma de gravá-los seria com o auxilio de um
aparelho celular mesmo, tendo o cuidado para que isso fosse feito em locais que não tivessem
tantas interferências sonoras. E assim foi feito, para gravar as 38 faixas necessitamos apenas
de três coisas: um celular, um local silencioso e a voz das dramistas.
Foram muitas manhãs prazerosas de conversas e trabalho até se chegar ao produto
final, o que deixou as dramistas extremamente felizes e orgulhosas ao receberem suas cópias.
Infelizmente, após o trabalho de gravação, edição de áudios e edição gráfica, não foi possível
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fazer uma remessa dos CD’s em grande quantidade, uma vez que tudo foi realizado a partir de
recursos próprios dos idealizadores do trabalho, produzindo produzidas apenas um total de
dez cópias, ficando assim, o desafio de se buscar recursos e parcerias para uma maior
produção de cópias posteriormente.
Outro trabalho de mídia realizada durante esse período foi um pequeno documentário
sobre a trajetória das dramistas de Guanacés. Gravado e editado em período anterior ao CD o
documentário que possui pouco mais de 11 minutos, também foi produzido de forma amadora
pelos mesmo idealizadores do CD.
Com o título Dramistas de Guanacés: Salvaguardando afetos e memórias do vivido, o
documentário pode ser encontrado no site do YouTube, dentre suas cenas estão momentos de
ensaios, apresentações e entrevistas com as dramistas. Além deste site de compartilhamento
de vídeos, o documentário foi postado também em redes sociais, afim de que o máximo de
pessoas pudessem visualizar.
Diante do exposto, é válido ressaltar que tudo foi gravado e divulgado com
consentimento e recebeu a devida autorização por parte das dramistas, e que tais trabalhos,
mesmo que realizadas de forma simples e amadora, possuem uma grande relevância no
processo de valorização, fomento e divulgação desse patrimônio imaterial de Guanacés.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
É pertinente dizer que este trabalho mais do que apresentar resultados concretos ou
mesmo provar algo, se propôs a levantar discussões e provocar reflexões em torno da
importância do reconhecimento, da valorização e do fomento da manifestação dos dramas
cantados, focalizando nessa expressão popular no distrito de Guanacés, em Cascavel – Ceará.
E assim foi feito, foi posto em evidência neste trabalho toda a gama de particularidades,
características e distinções do fazer artístico das dramistas de Guanacés, buscando refletir em
torno do oficio de dramistas a partir de um olhar voltado para os elementos teatrais inerentes a
essa expressão popular tradicional.
Ao longo das reflexões aferidas nesse estudo, pudemos compreender os dramas
populares como um todo, percebendo que estes possuem características e complexidades que
fazem com que não seja uma tarefa tão simples conceituar com exatidão essa manifestação.
Desse modo, foram analisadas diferentes concepções, sob a ótica de vários teóricos, de modo
que essas concepções se somassem e ao fim nos levassem a um entendimento da manifestação
como todo.
Foi notório que este trabalho teve como foco nas discussões levantadas no decorrer do
processo, a presença da figura feminina nos dramas, a presença dessa mulher que brinca, que
aprende e que ensina o que é ser dramista. A importância de se reafirmar neste trabalho a
importância da presença das mulheres nos dramas reside também no fato de que hoje em
Guanacés, são elas que mantêm viva essa tradição no distrito, tornando-as verdadeiras
guardiãs desse saber e principais fontes para o repasse e manutenção dessa cultura.
No percurso desta pesquisa, evidenciamos que a memória possui uma importância
incomensurável no processo de repasse, no registro e sobretudo na resistência de saberes e
costumes ligados à tradição popular. Pudemos notar que é por meio da memória individual e
coletiva que os indivíduos de uma sociedade guardam e acumulam traços de sua identidade
social, sendo por meio da vívida relação entre as memórias do que se viveu no passado e as
experiências do que se vive agora, que se faz movimentar as engrenagens que mantêm vivos
os saberes e os costumes de um povo, tendo a oralidade como a principal ferramenta desse
processo de troca de experiências e saberes.
Por falar em oralidade, foi possível notar que esta pesquisa se deu em grande parte
pelo contato direto com o objeto aqui estudado, assim a Historial Oral se fez fundamental para
a melhor compreensão do que se buscou até aqui, pois por meio dos relatos de cada depoente
foi possível trançar conhecimentos e refletir sobre eles. Desse modo, cabe a nós reafirmar que
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REFERÊNCIAS
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Entrevista 1 – SILVA, Maria Ieda da. [06 de Setembro de 2018]. Entrevistador: Bruno
Monteiro. CRAS Guanacés, Guanacés, Cascavel- Ceará. 2018. Arquivo MP3 –12min:53seg.
Entrevista 2 – SILVA, Maria Marlene Lima da. [06 de Setembro de 2018]. Entrevistador:
Bruno Monteiro. CRAS Guanacés, Guanacés, Cascavel- Ceará. 2018. Arquivo MP3 –
07min:11seg.
Entrevista 3 - SILVA, Maria Ieda da. [02 de Abril de 2019]. Entrevistador: Bruno Monteiro.
Escola de Música Maria Marlene, Guanacés, Cascavel- Ceará. 2019. Arquivo: MP3 –
05min:21seg.
Entrevista 4 - SILVA, Maria Marlene Lima. [12 de Março de 2019]. Entrevistador: Bruno
Monteiro. Escola de Música Maria Marlene, Guanacés, Cascavel- Ceará. 2019. Arquivo: MP3
– 03min:34seg.
Entrevista 5 - SOUZA, Eleonardo Silva de. [02 de Abril de 2019]. Entrevistador: Bruno
Monteiro. Casa do depoente, Cascavel- Ceará. 2019. Arquivo: MP3 – 11min:19seg.