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TCC - No Palco Da Vida, o Teatro Da Mulher Dramista

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INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO CEARÁ

IFCE CAMPUS FORTALEZA - DEPARTAMENTO DE ARTES


LICENCIATURA EM TEATRO

BRUNO DA SILVA MONTEIRO

NO PALCO DA VIDA, O TEATRO DA MULHER DRAMISTA:


UM ESTUDO SOBRE OS DRAMAS CANTADOS DE GUANACÉS - CEARÁ.

Fortaleza
2019
BRUNO DA SILVA MONTEIRO

NO PALCO DA VIDA, O TEATRO DA MULHER DRAMISTA:


UM ESTUDO SOBRE OS DRAMAS CANTADOS DE GUANACÉS – CEARÁ.

Trabalho de Conclusão de Curso – TCC,


apresentado ao curso de Licenciatura em
Teatro do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE –
Campus Fortaleza, como requisito parcial para
obtenção do Título de Licenciado em Teatro.

Orientador (a): Profa. Dra. Maria de Lourdes


Macena de Souza.

FORTALEZA-CE
2019
Dados Internacionais de Catalogação Publicação
Instituto Federal do Ceará - IFCE
Sistema de Bibliotecas SIBI
Ficha catalográfica elaborada pelo SIBI/IFCE, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

M772p Monteiro, Bruno da Silva.


No palco da vida, o teatro da mulher dramista : um estudo sobre os dramas cantados de
Guanacés - Ceará. / Bruno da Silva Monteiro. - 2019.
71 f. : il. color.

Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) - Instituto Federal do Ceará, Licenciatura em


Teatro, Campus Fortaleza, 2019.
Orientação: Prof. Dr. Maria de Lourdes Macena de Souza.

1. Dramas cantados. 2. Criação cênica. 3. Música e cena. 4. Dramista. I. Titulo.


CDD 792
BRUNO DA SILVA MONTEIRO

NO PALCO DA VIDA, O TEATRO DA MULHER DRAMISTA:


UM ESTUDO SOBRE OS DRAMAS CANTADOS DE GUANACÉS – CEARÁ.

Trabalho de Conclusão de Curso – TCC,


apresentado ao curso de Licenciatura em
Teatro do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE –
Campus Fortaleza, como requisito parcial para
obtenção do Título de Licenciado em Teatro.

Aprovado em ___ / ____ / ________

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________________________
Profa. Dra. Maria de Lourdes Macena de Souza (Orientadora)
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará

______________________________________________________________
Profa. Dra. Francimara Nogueira Teixeira
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará

______________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco José Costa Holanda
Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Ceará
Este trabalho é dedicado às Dramistas de
Guanacés, que me deram inspiração para a
realização desta pesquisa, e que me acolheram
tão bem em suas vidas. É com este trabalho
que reitero meus votos de estima a essas
mulheres que cantam com a alma e o coração
as memórias e as belezas do vivido.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus, por toda força e coragem que ele sempre me deu
para enfrentar as dificuldades e lutar pelos meus objetivos, e por ter me protegido e guiado
durante esta caminhada.
À minha família por sempre estar ao meu lado em minhas batalhas. Agradeço à minha
mãe– Maria José dos Santos Almeida – que nunca mediu esforços para que eu tivesse uma
boa educação, e que sempre me ensinou a buscar o caminho do bem.
Ao meu amigo/irmão Eleonardo Silva de Souza por me estender a mão sempre que
preciso, por vivenciar comigo momentos de festa, de arte e de busca pelo saber, por permitir
minha presença em sua vida e por tanto me inspirar nessa jornada.
A Saulo Soares pelas palavras de apoio, incentivo e carinho durante esse processo.
À Ieda Silva, Marlene Lima, Maria Paulino, Maria de Fátima, Maria Nilce e Maria
Zumira que sempre me acolherem tão bem em Guanacés, permitindo que eu realizasse esse
trabalho.
Ao Grupo Base de Teatro por me proporcionar tantas alegrias junto ao fazer teatral,
revigorando-me enquanto artista e pessoa. Além disso, gratidão ao grupo por ter impulsionado
minha entrada no curso de Licenciatura em Teatro.
À Secretaria de Assistência Social de Cascavel, em especial à Adriana Lobo, que
sempre incentivou o trabalho com as dramistas por meio do CRAS Guanacés, proporcionando
assim o acontecimento dessa pesquisa.
À Lourdes Macena, minha Orientadora, pela paciência durante todo o processo de
produção deste trabalho, pelos ensinamentos e por me inspirar quando vejo seu amor pela
cultura de nosso povo.
Por fim, agradeço ao Instituto Federal do Ceará por tanto ter contribuído com meu
crescimento pessoal e profissional ao longo desses anos.
“Aqui estamos, flores mimosas
E formosas filhas de Guanacés
Quando bailamos todo mundo gosta
Moços e velhos vêm render-se aos
nossos pés.’”
(Dramistas de Guanacés)

Figura 1 - Transcrição do drama Bailado das Flores

Fonte: Transcrição e editoração de Wilker Silva (2019)


RESUMO

A manifestação dos Dramas Populares ou Dramas Cantados, caracterizada principalmente por


sua multiplicidade de elementos cênicos e musicais, fortalece uma cultura que se reverbera
por várias regiões cearenses. Diante desta premissa, este trabalho investigou os Dramas
Cantados do distrito de Guanacés, localizado na cidade de Cascavel – Ceará, sob um olhar
voltado para os elementos teatrais inerentes a essa manifestação tradicional popular, propondo
uma reflexão a respeito de uma outra lógica de criação de personagens e de interação com a
cena. No percurso metodológico, encontramos estudos bibliográficos sobre cultura popular
tradicional, dramas cantados, a música na cena teatral, e o ator espontâneo, em autores como
Francisco Costa Holanda, Marcio Araújo Pontes, Maria da Glória Freitas, Oswald Barroso,
Paulo Ess, dentre outros, além do registro da observação em campo, entrevistas semiestruturas
e registros imagéticos. Esta pesquisa justifica-se pela pertinência de se falar sobre os saberes
populares que resistem na contemporaneidade e que tanto tem a contribuir com o âmbito
teatral e acadêmico. Ao fim pode-se perceber que a pertinência deste trabalho encontra-se
principalmente nas reflexões geradas a partir das discussões levantadas no decorrer da
investigação.

Palavras-Chave: Criação cênica. Dramas cantados. Dramista. Música e cena.


RÉSUMÉ

La manifestation des « Drames Populaires » ou « Drames Chantés » caractérisé


principalement par sa multiplicité des élements scéniques et musicaux, renforce une culture
qui se confirme en plusieurs régions du Ceará. Ainsi, cette recherche veut enquêter les «
Drames » du quartier Guanacés, en Cascavel, Ceará, sous un regard des éléments de théâtre
propres de cette manifestation avec l´intention de réfléchir une autre logique de création de
personnage et d'interaction sur la scène. Au cours de la recherche , on a trouvé des études
bibliographiques sur la culture populaire traditionnelle, « drames chantés », la musique sur la
scène et l´acteur spontané en des auteurs comme Francisco Costa Holanda, Márcio Araújo
Pontes, Maria da Glória Freitas, Oswald Barroso, Paulo Ess, parmi d´autres. Cette recherche
se justifie pour l´insistence de parler des savoirs populairesle qui résistent actuellement et qui
peut contribuer avec le domaine théâtral et académique. À la fin, on a observé que la
pertinence de ce travail se trouve principalement dans réflexions générées pendant la propre
recherche.

Mots-clés : « Drames chantés ».Création scénique. Musique et scène


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Transcrição do drama Bailado das Flores 8


Figura 2 - Transcrição do drama Baianinha afamada. 26
Figura 3 - Transcrição do drama Sou uma Cigana. 31
Figura 4 - Dramistas Marlene Lima e Ieda Silva interpretando Renato e Judite. 33
Figura 5 - Espetáculo Interior – Grupo Bagaceira 35
Figura 6 - Espetáculo Entre a Taipa e a Catingueira – Grupo Base de Teatro 35
Figura 7 - Transcrição da canção Guanacés, cidade brinquedo. 38
Figura 8 - Dramista Ieda Silva. 39
Figura 9 - Dramista Maria Marlene. 40
Figura 10 - Dramista Maria Paulino. 40
Figura 11 - Dramista Maria Zumira. 41
Figura 12 - Dramista Maria de Fátima. 42
Figura 13 - Dramista Maria Nilce. 42
Figura 14 - Dramistas de Guanacés na II Conferência Municipal do Idoso 43
Figura 15 - Transcrição do drama João e Mariana. 47
Figura 16 - Dramistas Marlene e Ieda apresentando João e Mariana 48
Figura 17 - Cena das dramistas no espetáculo Entre a Taipa e a Catingueira, 56
Figura 18 – Dramistas de Guanacés recebendo homenagem do Grupo Base de Teatro. 58
Figura 19 - Alunas da Escola Municipal São Vicente apresentando o drama As Mentirinhas.61
Figura 20 - Dramistas de Guanacés na ação itinerante do XII Encontro Mestre do Mundo 63
Figura 21 - Capa do CD Memorial do Cancioneiro Feminino de Guanacés. (2019) 65
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

2. CAMINHOS ENVEREDADOS NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO 17


2.1. Os dramas e as teceduras entre História oral e Memória. 17
2.2. O Romanceiro popular e suas relações com os Dramas Cantados. 20
2.3 Os Dramas Populares: Conceitos e reflexões 23
2.4 A música e a cena: a essência dos dramas. 29
2.5 A criação cênica a partir de matrizes estéticas da tradição. 33

3. AS DRAMISTAS DE GUANACÉS E A MAGIA DE ESTAR CENA 36


3.1. Guanacés e a constelação das Seis Marias. 36
3.2. Atrizes de um palco chamado Vida. 43
3.3. Corporeidade, construção de personagens e expressividade. 49

4. AS RELAÇÕES PERTINENTES DOS DRAMAS POPULARES COM A CRIAÇÃO


CÊNICA E COM A DOCÊNCIA. 54
4.1. A presença dos dramas nos processos de criação do espetáculo Entre a Taipa e a
Catingueira. 54
4.2. Valorização e fomento dos dramas no âmbito escolar: possibilidades para a prática
docente. 58
4.3. A tecnologia como aliada no repasse do saber. 64

CONSIDERAÇÕES FINAIS 67
REFERÊNCIAS 69
13

INTRODUÇÃO

Os Dramas Populares intensificam uma cultura que se manifesta por meio de toda a
bravura e ternura de mulheres que mergulham no ato criador para dar corpo e voz a diferentes
personagens. As dramistas fundem com maestria os mais variados elementos cênicos para
transformarem-se em Ciganas, Baianas, Índias, Elementos da natureza, Corpos celestes,
Cores, dentre outras coisas, criando as mais diversas situações no palco1. Essa manifestação
tão rica de significados e beleza encontra-se espalhada por todo o estado do Ceará e tem se
mantido viva há anos sendo passada de uma geração a outra por meio principalmente da
oralidade.
Os dramas caracterizam-se por sua grande multiplicidade de elementos artísticos e
expressivos, trazendo recorrentemente a presença da mulher que por sua vez se coloca
enquanto protagonista, entregando-se à liberdade criadora e dando vida aos mais diversos
personagens.
É importante salientar que os dramas populares não se configuram como uma
experiência somente feminina. Em algumas regiões do Ceará, existem grupos de dramas
composto por homens, no entanto, este trabalho foca a discussão em torno desse fazer
artístico no universo feminino, destacando a mulher que é dramista e considerando que o
universo dos dramas “é um dos poucos espaços públicos de afirmação da mulher numa
sociedade acentuadamente machista.” (BARROSO, 2015, p. 21)
E é essa mulher dramista, atriz por essência, que este trabalho busca trazer para o
centro de sua discussão. Essa mulher que de modo espontâneo dá vida a outros seres em cena,
que canta a natureza, os astros, os sentidos da vida e que por meio da magia do drama
transforma a própria realidade. Além disso, no distrito de Guanacés em Cascavel – Ceará,
local onde principalmente se centra essa pesquisa, apenas mulheres resistem e mantém viva
essa cultura.
As dramistas de Guanacés representam uma importante parte do que se configura
como patrimônio cultural imaterial do município de Cascavel, pois estas trazem consigo uma
forte ligação com sua ancestralidade e vêm mantendo viva a cultura dos dramas na
comunidade onde vivem. Por meio delas é possível compreender que ser dramista é bem mais
do que apenas cantar e representar personagens, é também ser símbolo de resistência e de luta,
para que diante de todas as dificuldades, se mantenha viva a tradição de um povo.
____________________________
1
Espaço elegido pelas dramistas como espaço cênico/musical de execução/apresentação dos dramas.
14

Ao interpretarem os dramas e se entregarem a fruição da criação artística essas


mulheres também estão dizendo qual o seu lugar no mundo, se colocando enquanto
protagonistas, suas histórias, memórias e saberes perpassam gerações, mostrando sutilmente
importância de ainda se falar em flores, estrelas, animais e sentimentos, em meio a tudo o que
tem rodeado a juventude na contemporaneidade.
Este trabalho justifica-se pela necessidade de compreender a prática das Dramistas de
Guanacés e refletir sobre os dramas cantados com um olhar voltado para os elementos teatrais
inerentes a essa manifestação da tradição popular. Outrossim, contribuir com o meio
acadêmico, sobretudo no que diz respeito aos estudos das artes cênicas, pois esta pesquisa
propõe uma reflexão a respeito de uma outra lógica de criação de personagens e de interação
dos indivíduos com a cena.
Além de refletir sobre essas questões, será discutido também sobre o potencial das
matrizes estéticas da tradição para a criação de espetáculos teatrais, uma vez que a cultura
popular tradicional nos revela um universo de elementos poéticos e artísticos por meio dos
saberes e costumes dos indivíduos em suas comunidades.
Inicialmente, esta pesquisa partiu de alguns questionamentos levantados pelo
pesquisador, sendo esses: Como se dá a construção das personagens interpretadas pelas
dramistas? Como a expressividade das dramistas e a música interagem na composição da
cena? Quais elementos dessa manifestação popular podem ser apropriados para a criação
cênica? No entanto, no decorrer do processo, percebeu-se que mais questões poderiam ser
refletidas em torno do assunto desta pesquisa, pois conforme o tempo passava, o leque de
percepções em torno do objeto principal – o drama popular – mais se abria e me mostrava
possibilidades a serem investigadas. Além de tudo, esta investigação possibilitou refletir sobre
a importância social que desempenha a manifestação do drama para os indivíduos de
determinada comunidade.
Dialogaremos também neste trabalho, sobre a relevância de se enxergar a escola como
uma ferramenta de incentivo à valorização do drama popular, ressaltando o quão pertinente
pode ser a presença deste em aulas de teatro, a fim de despertar o interesse nos educandos
pela prática e pela vivência de costumes que fazem parte da identidade cultural de cada um,
promovendo assim, o afeto, o reconhecimento e o respeito para com os saberes ancestrais.
Saberes estes que se revelam pelos mestres e mestras da cultura popular tradicional.
Este trabalho, além de ter como foco a figura da Dramista, visa também salientar a
importância de se valorizar os saberes populares como um todo, ressaltando a relevância da
presença destes no espaço educacional formal, visto que os mestres da cultura popular
15

tradicional são exímios professores da vida, especialistas por essência da relação


ensino/aprendizagem. Luíza de Teodoro, no prologo do livro Mestre da Cultura Tradicional
Popular do Ceará, de Gilmar de Carvalho nos fala que:

Eles nos ensinam como alguns bons professores, que ainda existem, incendiando as
almas nascentes em seus alunos, sem deixar que a rotina pedagógica destrua a
sensibilidade da criança ou do adulto com o mais corrosivo dos venenos: o tédio, a
preguiça de aprender, a extinção da curiosidade criadora e da utopia transformadora.
Sem teorizar sobre isso, os Mestres da Cultura Popular educam pelo exemplo, pelo
amor ao que fazem, pela alegria com o que fazem, pela persistência em fazer e
compartilhar o que fazem com os seus que se deixam cativar e assim, aprendem.
Muitos deles e delas foram excluídos da possibilidade de frequentar escolas, no
entanto, creio que são estímulo para quem deseha ser um verdadeiro professor. Um
Mestre. (TEODORO apud CARVALHO, 2006, p. 09)

O percurso metodológico desta pesquisa teve inicio com o levantamento teórico de


obras que contribuíssem para a construção da discussão aqui proposta, sendo feita uma
triagem em busca das que demonstrassem uma maior pertinência para com o projeto. No
levantando bibliográfico, foram escolhidas obras que tivessem com tema central assuntos
como a cultura popular tradicional, os dramas cantados, a música na cena teatral, o ator
espontâneo, dentre outros. Autores como Francisco Costa Holanda, Marcio Araújo Pontes,
Maria da Glória Freitas, Oswald Barroso, Paulo Ess, entre outros, contribuíram
demasiadamente com a fundamentação teórica deste trabalho, sendo estes recorrentemente
visitados durante a construção desse trabalho.
Ainda no percurso metodológico deste trabalho, houve o momento que eu diria que foi
o mais importante para a construção desse trabalho. Tal momento foi quando me embrenhei
no campo em busca de um contato mais direto com o objeto da pesquisa. Desde janeiro de
2018, este pesquisador têm tido a oportunidade de observar e vivenciar momentos de criação
com as Dramistas de Guanacés por meio da Secretaria de Assistência Social de Cascavel,
onde o mesmo atua como Orientador Social. Juntamente ao também Orientador Social
Eleonardo Silva, tem sido possível atuar nesse projeto que visa fomentar e valorizar essa
manifestação que até então encontrava-se quase adormecida no distrito, incentivando as
dramistas, que também fazem parte do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos
do CRAS2 Guanacés, à retornarem à suas práticas artísticas. E foi a partir dessa experiência
que se pôde colocar em prática ações e recursos metodológicos que serviram de base durante

____________________________
2
Centro de Referência da Assistência Social. (Equipamento pertencente à Secretaria de Assistência Social que
atende às famílias do território em que este se situa.)
16

o trabalho, como a realização de entrevistas semiestruturadas com as dramistas de Guanacés e


o registro imagético das experiências vividas. Também foram realizadas entrevistas com
Eleonardo Silva, que falou sobre o processo de criação do espetáculo Entre a taipa e a
catingueira, no qual teve entre suas inspirações no processo criativo a matriz estética dos
dramas e com a professora de teatro Elisângela Castro, que relatou um pouco sobre sua
experiência com o uso dos dramas cantados em sala de aula com seus alunos.
A divisão desta pesquisa se dá em três sessões: a primeira dialoga sobre o drama
popular e seus conceitos, refletindo também sobre elementos inerentes ao tema, como a
oralidade e memória, a questões envolventes entre música e cena, e as possíveis relações entre
os dramas e o romanceiro popular. Ainda nesta sessão, reflete-se sobre o a criação teatral a
partir de elementos da cultura popular tradicional; na segunda sessão, a discussão volta-se
para o que foi encontrado em campo, dialogando sobre as informações obtidas por meio da
vivência com as dramistas e das entrevistas realizadas com estas a partir dos questionamentos
iniciais desta pesquisa e os que surgiram durante o processo; na ultima sessão deste trabalho,
faz-se uma reflexão em torno da criação cênica a partir de matrizes estéticas da tradição
popular por meio do espetáculo Entre a taipa e a catingueira, apresentando o processo de
criação da peça e evidenciando os elementos dos dramas que foram inspiradores para o
processo de composição do espetáculo, além de dialogar também sobre a necessidade de se
enxergar o espaço escolar como um local para a promoção do reconhecimento e do fomento
das praticas da tradição popular, com foco nos dramas. Finalizando a sessão fazendo um
breve relato sobre a produção de um CD com os dramas de Guanacés que sucedeu durante o
processo desta pesquisa. Por fim, revisito panoramicamente as tramas tecidas durante o
percurso, apresentando os resultados encontrados e compartilhando as percepções que pude
apreender por meio desta pesquisa.
17

2. CAMINHOS ENVEREDADOS NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO


2.1. Os dramas e as teceduras entre História oral e Memória.

Realizar uma pesquisa e levantar reflexões sobre determinada manifestação se torna


um desafio quando são poucos os registros escritos e imagéticos sobre o tema, sobretudo
quando esses registros não são existentes, surgindo, desse modo, a necessidade de recorrer à
memória dos indivíduos que têm ou tiveram contato com a manifestação em questão. Diante
desta premissa, surgiu a necessidade de buscar sustentação para esta pesquisa no contato
direto com as dramistas de Guanacés, a partir da vivência e troca de informações e afetos com
estas mulheres foi possível compreender demandas deste trabalho e refletir sobre um fazer
teatral genuinamente popular.
Sabe-se que o uso de livros, artigos e outros materiais publicados por outros estudiosos
são imprescindíveis para a boa realização de um trabalho acadêmico, no entanto, em
determinados trabalhos, como é o caso deste, existe um saber que se torna tão importante
quanto, sendo inclusive este o cerne que apoia todos os galhos da pesquisa. O saber em
questão é aquele que não está nos livros, mas sim no vivido, no contato humano, nos gestos e
palavras que permeiam as experiências do pesquisador com seu objeto.
A cada encontro com as dramistas é possível perceber a potência que tem o contato
direto com um objeto de pesquisa, pois no convívio com estas artistas, tanto respostas foram
encontradas como também surgiram novos questionamentos. O conhecimento que essas
mulheres possuem está para além do que dizem os livros, estas trazem em sua bagagem o que
a vida ensinou, trazem a herança de um povo que se perpetua por meio da sua nobre arte. E
foi a partir desse conhecimento que esta pesquisa encontrou sua força motriz, a comunhão de
momentos com estas mulheres tornou possível a chegada de um entendimento de fatos
ocorridos no passado por meio das narrativas do presente, onde a história passou a ser vista
além do olhar documental, sendo encarada principalmente a partir do ponto de vista das
pessoas que a vivem.
Por meio da oralidade, saberes populares são transmitidos e se conectam através de
várias gerações, e é no vasto campo da memória humana, seja individual ou coletiva, que esse
saber se sustenta e se perpetua. Levando isso em consideração, foi possível perceber, com o
passar do tempo em que a pesquisa veio sendo desenvolvida, que fazer uso da História Oral a
fim de trazer à tona os tesouros das memórias das mulheres dramistas de Guanacés foi uma
das escolhas mais certeiras deste trabalho, pois por meio de relatos e diálogos, foram se
18

construindo conhecimentos e reflexões a respeito do objeto estudado. Como bem explicita


Delgado:

[...] a história oral é um procedimento, um meio, um caminho para a produção do


conhecimento histórico. Traz em si um duplo ensinamento: sobre a época enfocada
pelo depoimento – o tempo passado, e sobre a época na qual o depoimento foi
produzido – o tempo presente. Trata-se, portanto, de uma produção especializada de
documentos e fontes, realizada com interferência do historiador e na qual se cruzam
subjetividades. (DELGADO, 2006, p. 16)

Vale ressaltar que, ao se fazer uso da História Oral na realização de uma pesquisa, é
necessário que o pesquisador se atente para a gama de fatores que circundam o depoente em
seu relato, não observando somente ao que é dito, mas também às sutilezas das ações e dos
silêncios ocorrentes durante a entrevista. Isso se torna relevante uma vez que a subjetividade
inerente ao ser humano se faz presente no decorrer do processo, podendo muitas vezes haver a
omissão de fatos ou mesmo a invenção de uma coisa ou outra durante a narrativa. Levando
em consideração essa discussão sobre a História Oral, é possível perceber um elemento
fundamental para a sua existência: a memória. Nas palavras de Delgado:

A memória, principal fonte de depoimentos orais, é um cabedal infinito, onde


múltiplas variáveis – temporais, topográficas, individuais, coletivas – dialogam entre
si, muitas vezes revelando lembranças, algumas vezes, de forma explicita, outras
vezes de forma velada, chegando em alguns casos a ocultá-las pela camada protetora
que o próprio ser humano cria ao supor, inconscientemente, que assim está se
protegendo das dores, dos traumas e das emoções que marcaram sua vida.
(DELGADO, 2006, p. 16)

Com inúmeras concepções em torno de si, a Memória, defendida por Delgado (2006,
p. 38) como sendo “base construtora de identidades e solidificadora de consciências
individuais e coletivas” é um território fértil de informações, por meio dela o ser humano
revive momentos, guarda conhecimentos e se depara com sentimentos. Partindo disso, é
inegável que a memória seja peça fundamental na construção do conhecimento histórico de
expressões da tradição popular, uma vez que tais expressões estão ligadas diretamente a
determinados grupos de pessoas e suas histórias de vida. Além disso, a memória, sobretudo a
coletiva configura-se como parte importante no processo de construção da identidade de um
povo, seja por lembranças de momentos saudosos marcados por alegria e prazer ou memórias
carregadas de dor e sofrimento. Sobre memórias qualificadas como dolorosas por um grupo,
Candau diz que estas:
19

[...] integram acontecimentos trágicos que, colocados em relevo, eventualmente


patrimonializados em museus, lugares ou monumentos, vão confortar o sentimento
de pertencimento, manipulando, por vezes com a memória histórica desses
acontecimentos quando as circunstancias se impõem. Uma memória de tragédias
contribui assim, de maneira diferenciada mas sempre muito predominante, à
construção do patrimônio de um grupo e, por consequência, de sua identidade, que
pode ser uma identidade realmente sofredora ou um simples mise en scène,
encenação do sofrimento. (CANDAU, 2010, p. 44)

História e memória se relacionam fortemente no processo de solidificação de uma


cultura, ambas se entrelaçam e criam teceduras que dão suporte a identidade de uma
sociedade. Nas palavras de Delgado:

Considerando-se a evocação do passado como substrato da memória, pode-se


deduzir que, em sua relação com a História, a memória constitui-se como forma de
retenção do tempo, salvando-o do esquecimento e da perda. Portanto, História e
memória, através de uma inter-relação dinâmica, são suportes de identidades
individuais e coletivas, que se formam no processar diacrônico e sincrônico da vida
em sociedade. (DELGADO, 2006, p. 45)

Sabendo que a memória possui infindas possibilidades de interpretação de seus


conceitos e que ela se mantem em um campo híbrido de possibilidades e complexidades,
torna-se significativo trazer o pensamento de Margarida Neves, vista por Delgado, que expõe
a sua conceituação para a memoria, revelando a amplitude inerente à mesma:

O conceito de memória é crucial porque na memória se cruzam passado, presente e


futuro; temporalidades e espacialidades; monumentalização e documentação;
dimensões materiais e simbólicas; identidades e projetos. É crucial porque na
memória se entrecruzam a lembrança e o esquecimento; o pessoal e o coletivo; o
indivíduo e a sociedade; o público e o privado; o sagrado e o profano. Crucial
porque na memória se entrelaçam registro e invenção; fidelidade e mobilidade; dado
e construção; história e ficção; revelação e ocultação.” (NEVES apud DELGADO,
2006, p. 40)

Ao falar um pouco sobre memória, é importante ressalvar que a mesma se relaciona


fortemente com a construção da identidade de um individuo ou comunidade, pois é por meio
dela que o passado pode ser destrinchado e reconstruído, e é graças a ela que o ser humano
arquiva e dissemina informações sobre si, sobre o outro e sobre acontecimentos ligados à sua
existência no mundo. Para Michael Pollak (1992, P.204) além de ser um elemento que
constitui o sentimento de identidade, seja ela individual ou coletiva, a memória pode ser
compreendida também como um fator de extrema relevância na composição do sentimento de
continuidade e de coerência de um indivíduo ou um coletivo em sua reconstrução de si.
20

A importância da memória no processo identitário individual ou social é também


debatida por Morigi, Rocha e Semensatto, que dizem o seguinte:

É importante salientar a importância das lembranças para o processo de identidade


individual e social. O sentido da identidade consiste nos arranjos e rearranjos
constantes dos vestígios, dos fragmentos de acontecimentos passados. A memória é,
por natureza, fragmentada. A recriação de um mundo anterior é importante para o
fortalecimento das relações sociais, para a constituição de um nós, de um sentimento
de pertencimento comum, onde o passado deveria ser visto como algo acabado,
porém como um tempo possível de ser ressignificado, a partir do presente em
direção ao futuro. (MORIGI, ROCHA E SEMENSATTO, 2012, p. 189)

Além do que foi exposto, quando a memória é atrelada à tradição oral, ela pode ser
compreendida como uma exímia ferramenta para a transmissão de saberes da tradição
popular, ao criar um espaço de troca de experiências, onde indivíduos passam adiante
informações de experiências vividas em tempos de outrora, perpetuando assim lembranças
identitárias. Para Jan Vansina:

Uma sociedade oral reconhece a fala não apenas como um meio de comunicação
diária, mas também como um meio de preservação da sabedoria dos ancestrais,
venerada no que poderíamos chamar elocuções- chave, isto é, a tradição oral. A
tradição pode ser definida, de fato, como um testemunho transmitido verbalmente de
uma geração para outra. (VANSINA, 2010, p. 139)

Assim ocorre com as Dramistas de Guanacés, a fala comunicacional delas sobre os


dramas populares fortalece a sabedoria que guarda e utiliza estes aspectos ancestrais, sendo
essas mulheres, testemunhas vivas desses saberes.
Após tudo o que foi explicitado em torno da discussão oralidade/memória, é
concebível reafirmar a importância dessa no processo de compreensão de manifestações
ligadas à tradição popular, afinal, é na demasiada relação do vivido com os guardados da
memória que se permite a circulação dos saberes e a perpetuação destes.

2.2. O Romanceiro popular e suas relações com os Dramas Cantados.

A tradição oral é uma fonte inesgotável de conhecimentos e preciosidades inerentes à


ancestralidade humana, por meio dela perpetuam-se elementos residentes na identidade
cultural de diferentes povos. Dentre todas as coisas relacionadas à tradição oral, é pertinente
para esta pesquisa destacar a Literatura Oral, que pode ser compreendida como um
agrupamento de textos transmitidos por meio da oralidade, na qual esses textos se apresentam
21

de diferentes formas, estando entre estas os Romances que de uma maneira ou outra possuem
traços que podem ser comparados aos dramas cantados.
Trazido da Europa para o Brasil, o Romance – compreendido aqui como uma forma
narrativa de caráter poético-musical pertencente à literatura oral – se manifesta por todo o país
e é um objeto de estudo bastante investigado por diversos estudiosos da cultura popular
tradicional. Em um trabalho sobre o romanceiro3 tradicional popular no Nordeste brasileiro,
Batista discorre as seguintes informações pertinentes aos romances:

Quando falamos em romances, não estamos nos referindo às narrativas em prosa que
conhecemos comumente, mas às narrativas poético-musicais, caracterizadas,
sobretudo, pelo conteúdo épico ou épico-lírico, pela forma dialogada ou
dramatizada, pela linguagem e pela riqueza de variações, no conteúdo e na forma,
advinda de sua natureza oral. [...] Apresentam extensão variável, mas não muito
longos, exatamente por se tratar de peças que exploram a memória do usuário.
(BATISTA, 2002, p. 94)

De acordo com Alvanita Almeida Santos o Romance “Alastrou-se praticamente por


todos os continentes onde houve a colonização Ibérica.” (SANTOS, 2005, p. 20),
contemplando assim o nosso país. Segundo Medeiros e Alves, os romances medievais
ibéricos, compreendidos pelas autoras como “canções da poesia provençal do século XII,
cantados por menestréis e trovadores na Península Ibérica” chegaram no Brasil por intermédio
do colonizador português por volta de 1500. (MEDEIROS e ALVES, 2014 p.1). Quanto à
estrutura dos romances, Medeiros e Alves explicitam que:

Os romances medievais são constituídos de dois aspectos, um textual e outro


musical. Sobre o aspecto textual, são divididos em quadras e diálogos seguindo uma
mesma métrica para facilitar de compreensão do público da corte e das cidades; com
temática de aventuras, conquistas, fugas e tragédias. [...]Os aspectos textuais
incluem a canção, que consiste no texto musicado que muitas vezes recorria a temas
diversos para sua composição. [...] Em relação aos aspectos musicais, esses não são
tão claros como os textuais, porque os trovadores não conheciam a notação musical,
apenas memorizavam as melodias dos romances, cantando e tocando de ouvido, isto
é, intuitivamente. O que se tem conhecimento são registros da tradição instrumental
dessa época que se assemelha às melodias retiradas dos cantos litúrgicos baseados
nos modos gregos, e esses modos se referem à sucessão ordenada de notas
destinadas a cada função que a música deveria ter, seja para a poesia, para a guerra
ou para o drama. (MEDEIROS e ALVES, 2014 p.2-3)

____________________________
3
De acordo com Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista “O Romanceiro compreende um conjunto de
romances populares que compõe a tradição oral de um povo, ou de uma região.” (BATISTA, 2002, p. 94)
22

Como se pode notar, os romances ibéricos carregam uma gama de fatores históricos e
estruturais que, ao serem analisados, mostram a relevância de se conhecer um pouco sobre
eles mesmos para uma melhor construção da reflexão em torno do objeto desta pesquisa.
Diante de tantas informações já explanadas, pode-se fazer uma ligação estreita destes com os
dramas cantados, pois ambos trazem características que se assemelham, podendo ser citada a
característica principal, que é a união de versos e música que se entrelaçam e contam causos
de amor, tragédia, heroísmo e comédia. Por meio das palavras de LIMA (1971, p.1), que diz
que “Desde os primeiros tempos até o áureo, o romance foi sempre forma de poesia cantada,
com acompanhamento instrumental”, é possível notar a relação análoga existente entre os
Romances e os Dramas Populares.
Francisco José Costa Holanda que escreveu sua tese de doutorado a partir de estudos
sobre os dramas cantados em Guaramiranga - CE, ao estudar alguns romanceiros ibéricos a
fim de entender a relação destes com os dramas cantados, afirma o seguinte:

Estudando alguns Romances tradicionais dos Romanceiros Ibéricos, encontrei


coincidências que me pareceram interessantes. No tocante à versificação, alguns
nem sempre, apresentarem formato fixo. Outros deles, sim. [...] Nos Dramas
Cantados de Guaramiranga tanto pode acontecer liberdade de rimas e número de
sílabas ou versos, quanto uma relativa rigidez no trato desses elementos.
(HOLANDA, 2014, p. 113)

Oswald Barroso em uma analise dos dramas populares como rito de passagem para a
vida adulta, indica que

Durante pelo menos meio século, entre 1930 e 1980, aproximadamente, os dramas
populares serviram de rito de passagem às adolescentes de grande parte do Ceará.
Especialmente no Litoral Leste do Estado, para as jovens entre 12 e 16 anos, ser
dramista era vivenciar um processo de preparação da mulher para a vida adulta. [...]
ao interpretar diferentes papéis nas comédias, a adolescente experimentava viver,
por momentos, outras identidades sociais, ou seja, colocar-se no lugar de outras
pessoas, de uma mãe, por exemplo, de um pai, de um velho, de uma velha, de um
bêbado, de uma solteirona, de uma mulher submissa, de uma mulher dominadora ou
de outro personagem qualquer de seu meio social. Isso lhe permitia melhor avaliar
as circunstâncias, pois as colocava sob a ótica do outro, ajudando a enriquecer sua
vivência e ampliando seu olhar sobre o mundo. (BARROSO, 2015, p. 19-20)

Com o propósito de sinalizar mais ainda as parecenças dos dramas com o romanceiro
ibérico, a afirmação de Barroso surge nessa discussão para se fazer um contraponto com o
pensamento de Ildette Santos que ao falar sobre o romanceiro na Bahia evidencia que:
23

Se em terras Ibéricas, o romanceiro vive entre homens e mulheres e se, no passado,


existiu certa especialização dos repertórios, hoje, no Brasil, e a Bahia confirma essa
evolução, o romanceiro é „coisa de mulher‟: histórias de mulheres seduzidas,
abandonadas, vingadoras, traidoras, fiéis, mães, sogras, amantes, esposas, filhas,
todos os papéis estão aí representados para despertar admiração ou horror, propor
modelo de conduta ou lição de moral... os romances foram uma forma de iniciação
ao “ser mulher.” (SANTOS apud ALCOFORADO e ALBÁN, 1996, p. 12)

Ao analisar as palavras de Oswald Barroso, bem como as de Ildette Santos, é possível


notar uma certa semelhança nos discursos, ainda que tratem de assuntos diferentes. Nas duas
falas, pode-se enxergar a importância social que essas manifestações populares desempenham
em seu meio.

2.3 Os Dramas Populares: Conceitos e reflexões

Até aqui, muito já foi falado sobre os Dramas Populares, sobre a intrínseca conexão
destes com a oralidade e a memória, e as possíveis relações com os romances ibéricos. No
entanto, faz-se necessário uma explanação mais focalizada a respeito dessa manifestação, no
que diz respeito ao seu conceito. O espaço a seguir destina-se à uma reflexão em torno do
objeto principal desta pesquisa, o Drama Popular.
Conceituar essa manifestação não é uma tarefa fácil, pois há um balaio de elementos,
significados, sutilezas e complexidades que a circundam. Na busca por informações sobre tal
expressão, foi possível encontrar alguns autores que dialogam com este objeto de estudo,
levando a reconhecer alguns conceitos atribuídos por estes pesquisadores em seus trabalhos.
No livro Mestres da Cultura Tradicional Popular do Ceará, Gilmar de Carvalho apresenta os
dramas como:

Pequenos quadros, sem estrutura fixa, envolvendo comédias, paródias e histórias de


amor. Um pastoril profano ou uma apropriação popular de burletas, diluição de um
teatro de costumes que fazia a diversão de muitos sertanejos e pracianos, durate
algumas décadas (até os anos 50.). (CARVALHO, 2006, p. 150)

Márcio Araújo Pontes que tem uma importante pesquisa sobre a manifestação dos
Dramas em Tianguá - CE, mas precisamente nas comunidades de Tucuns, Pindoguaba e Poço
de Areias, expõe o drama popular como

[...] uma mistura de música – cantada pelas ‘dramistas’ acompanhadas por tocadores
que geralmente ficam atrás da empanada – e de danças. O resultado de tudo isso é
24

um conjunto de práticas que combinam representação dramática, indumentária e


expressão corporal. (PONTES, 2011, p. 17).

Costa Holanda, mesmo afirmando que considera uma empreitada difícil atribuir
conceito a essa manifestação, faz isso da seguinte maneira:

A priori, os dramas cantados, dramas populares comédias de dramas ou


simplesmente pecinhas são pequenos esquetes nos quais os diálogos acontecem em
forma de poesia cantada e às vezes dançada (bailados) pelas próprias atrizes,
conhecidas por dramistas, que se caracterizam de acordo com o tema apresentado.
[...] Às vezes, os textos são desenvolvidos em forma de monólogos ou de conversas
entre duas ou mais pessoas. Nessas situações, a música normalmente está presente
nos dramas, vez por outra é substituída por conversação oral. Mas, em algum
momento volta a predominar. (HOLANDA, 2014, p. 60)

Os trabalhos citados acima falam dos Dramas em regiões cearenses que


geograficamente situam-se consideravelmente distantes da localização de Guanacés, no
entanto, há estudos e pesquisas sobre essa manifestação aqui no Litoral Leste, podendo ser
destacado aqui o livro Memórias de Bailados e Comédias, de Oswald Barroso, onde o autor
conceitua o os Dramas Populares como sendo:

[...] espetáculos cênicos/musicais de palco, constituídos por uma sequência de


pequenos números, denominados partes, que se dividem entre bailados e comédias,
iniciada por uma Abertura e finalizada por uma Despedida. Os bailados são números
cantados e dançados em coletivo ou em solo. Já as comédias são partes em que
entram diálogos contracenados, cantados ou cantados e falados, com a participação
de duas ou mais personagens. (BARROSO, 2015, p. 19)

Além dos autores mencionados anteriormente, no processo de busca por vozes que
fortalecessem este trabalho de pesquisa, foi possível conhecer o trabalho de Maria da Glória
Feitosa Freitas, que realizou sua pesquisa na comunidade do Assentamento Rural de Guriú,
localizado no Litoral Oeste cearense, registrando a história dos dramas nessa localidade,
resultando em sua tese de doutorado.
Investigar os dramas cantados em qualquer lugar que seja, buscando compreender
elementos que compõem essa manifestação requer um aprofundamento não somente nos
processos criativos do grupo de dramistas da comunidade, mas também um conhecimento do
contexto social em que estas senhoras se encontram, conhecer a comunidade e o que perpassa
no cotidiano dessas mulheres e dos demais que as rodeiam é de fundamental importância para
uma melhor apreensão do que se busca responder neste percurso. Em “O Drama em si”,
Pontes diz que:
25

O drama está ligado diretamente com experiências desses sujeitos, trazendo em sua
literatura um entrelaçado mundo de ideias que nos permitem analisar a forma como
se relacionam passado/presente. As dramistas estão sempre assumindo um papel
complexo na forma de (re)criar, socializar práticas e sempre tomam como referência
o mundo que lhes cerca para representar uma determinada realidade. (PONTES,
2011, p. 37)

Nos encontros que este pesquisador realizou com as dramistas de Guanacés foi
possível perceber, a partir dos relatos destas, o quanto o desejo de representar é forte em cada
uma desde a juventude. As dramistas quando entram em cena ou mesmo quando se conectam
com seu interior criativo, transgridem as convenções sociais, burlam padrões instaurados e
funções pré-determinadas.
O figurino é um elemento de grande importância em uma peça teatral. Para a criação
da indumentária há um estudo por parte de quem a produz de acordo com a ideia de cada
trabalho. Para a realização dos dramas o figurino também possui bastante relevância, pois ele
identifica e ajuda na composição dos personagens interpretados pelas dramistas.

O vestuário faz com que o público passe a identificar os personagens: aquela que é a
cigana, aquele que é o soldado, aquela que é a índia, e assim por diante. Além do
mais, cada traje carrega em si uma reflexão dependente da experiência de vida de
cada um. Diante da indumentária, cada pessoa reage de forma diferente: umas
admiram, outras ridicularizam, algumas acham graça e assim constroem
interpretações. (PONTES, 2011, p. 73.)

Em Guanacés, ao se falar sobre como eram feitos os figurinos, as dramistas relatam


como era recorrente o uso do papel crepom nas mais variadas cores. Ao ler os trechos dos
principais trabalhos utilizados como referenciais para esta pesquisa, foi possível notar essa
semelhança entre os grupos. Além desta similitude, há também a recorrente presença de
algumas figuras nos dramas cantados de diferentes localidades, como por exemplo, as baianas
e as ciganas. Dona Maria Nilce, em um dos encontros, fazendo um pouco de esforço, puxou
da memória um dos dramas que traz a presença da figura da Baiana:
26

Figura 2 - Transcrição do drama Baianinha afamada.

Fonte: Transcrição e editoração de Wilker Silva (2019).

Da Bahia cheguei ontem


Pra essa festa convidada
De baiana tenho a fama
Sou baianinha afamada

Tralalalá tralalalá lalalalá lalalalá lalalalá

Sou baiana de verdade


Com esta “nêga” ninguém brinca
Eu só danço toda bamba
Eu só ando assim na trinca

Tralalalá tralalalá lalalalá lalalalá lalalalá

Boa noite meus senhores


Que eu já vou me “arretirando”
Lá pra dentro ouvi um grito
Mamãe está me chamando.

Tralalalá tralalalá lalalalá lalalalá lalalalá

Maria da Glória Freitas, em sua tese de doutorado, fala um pouco da relação dos
dramas em Guriú com os circos que passaram pela localidade e que influenciaram inclusive
para a presença da baiana nos dramas, apresentando ainda um fato um tanto curioso:

Esses circos que passaram por Guriú trouxeram a imortalização da baianinha e sua
ginga, seu gingado. Ser baianinha em Guriú era um raro privilégio de muito poucas
meninas. [...]só ganhava o título de baianinha aquelas meninas que demonstravam
27

habilidade suficiente de elasticidade para suportar a performance encantadora da


baiana. (FREITAS, 2006, p. 66-67)

Ao observar as dramistas de Guanacés em cena, bem como de outras regiões do estado


por meio de vídeos, foi possível notar que há uma forte relação da palavra com o gesto, bem
como a construção de partituras corporais correspondentes a cada drama cantado, fazendo
com que mesmo em meio à espontaneidade da cena, algumas ações firmem-se e sirvam
inclusive como referência na construção dos personagens.
Na manifestação dos dramas é notório que o mais importante é a presença da dramista,
a presença desta mulher que dá corpo e voz a outros seres, regidas por seus impulsos criativos
e sua espontaneidade, elas brincam e se entregam a cena. Como perfumistas que combinam
essências e ingredientes na criação de fragrâncias, as dramistas combinam com sutileza e
certa facilidade os mais diversos elementos artísticos, além de suas impressões pessoais e a
forma como enxergam o mundo. Quando estão no espaço cênico, se tornam protagonistas de
suas histórias, donas de si, rainhas de seus universos. Nas palavras de Pontes:

Quando estão no palco, as dramistas carregam junto de si um emaranhado de ações


que nos remetem à música, ao teatro, à dança, às diversas formas literárias, aos
trabalhos, às crenças, ao convívio social, e imprimem uma linguagem que carrega
em si suas perspectivas, seus medos, seus sentimentos e expõem as formas de
organização da vida social. (PONTES, 2014, p.135)

Como bem exposto nesta citação, as dramistas quando estão em cena se tornam donas
de si, exprimem seu interior por meio da expressão artística. Desse modo, pode-se enxergar a
expressividade das dramistas como uma forma de externar como percebem o mundo. Na cena
as dramistas fazem usos de seus aparatos próprios para suas performances, a espontaneidade
de cada uma se aflora na construção das personagens bem como nas emoções solicitadas pela
cena. Ao falar sobre o ator espontâneo, Paulo Ess denota que:

O ator espontâneo está sempre atento a suas ações físicas. Ele não se apoia em
técnicas fabricadas por teóricos repassadas ao longo dos tempos, como se fossem
fórmulas de construção de personagem. A concepção desse ator não se concentra na
formação acadêmica com ensinamentos elementares para alcançar a emoção do
personagem. Ele trabalha com elementos físicos que estão próximos a sua
inspiração. (ESS, 2014, p. 210)

É tão forte o fato de que a presença da dramista é o mais importante nessa


manifestação que é cabível ressaltar que as apresentações dos dramas podem acontecer nos
28

mais variados espaços, porém em algumas localidades, as dramistas criam uma espécie de
palco italiano improvisado, que recebe o nome de empanada, mas as apresentações não se
limitam somente a este tipo de espaço cênico. Costa Holanda exemplifica bem isso:

[...] a existência do palco convencional não é condição imperativa para a encenação


dos Dramas Populares. Eles são apresentados tanto em teatros quanto em outros
ambientes como palanques públicos, auditórios, quadras de colégios e até mesmo
em tablados apoiados em caixotes, quintais e terreiros. Contudo, no drama popular
ou drama cantado não importa palco, cenário ou figurino, pois a dramista é o
elemento imprescindível. (HOLANDA, 2014, p. 64)

Em Guriú, por exemplo, de acordo com Freitas (2006), muitas vezes as dramistas
chegavam a levar a empanada de suas apresentações e suas roupas no lombo de um jumento
para outros locais quando convidadas.
Enquanto no teatro “convencional” existem métodos e estudos aprofundados que
ajudam o ator em suas construções e em seu aprendizado pessoal, na manifestação dos dramas
populares a lógica é outra. Nesse caso, o aprendizado encontra-se principalmente no sensorial,
na vivência, sendo transmitido por meio do contato direto, tendo a oralidade como uma peça
fundamental do tabuleiro. Os dramas têm sua força registrada principalmente na memória das
dramistas. Levando isso em consideração, é importante citar o pensamento de Márcio Araújo
Pontes ao falar sobre essa relação de ensino/aprendizagem na comunidade de Tucuns em
Tianguá-Ce:

Em relação ao processo de ensino e aprendizagem é importante registrarmos que


esse se dava em ambiente doméstico, onde as dramistas se utilizavam do sentido da
audição para memorizar as letras musicadas e encenadas por suas mães, tias, avós,
entre outras que participavam. Esse aprendizado estimulava a vontade em ser
dramista e subir ao palco como aquelas que sempre admiravam vendo em ação.
(PONTES, 135, p. 135)

Freitas também fala sobre essa relação ensino/aprendizagem em Guriú:

As mestras e as dramistas de Guriú inventavam seus jeitinhos de ensinar e de


aprender a fazer ou tornar um corpo adolescente transmutado em corpo de atriz, de
dramista. A lição essencial era aprender a representar, a arte intermediava a
possibilidade de mulheres adultas poderem ensinar as mais jovens uma forma de
resistir contra o estabelecido[..] (FREITAS, 2006, p. 15)

Como já falado anteriormente, ser dramista é muito mais do que apenas subir no palco
e se expressar artisticamente, é também resistir e lutar para manter viva e pulsante uma
29

cultura tão rica, mesmo diante de todas as dificuldades enfrentadas. Ao tratar dessa resistência
dos dramas, Holanda faz comparativo entre Guaramiranga e alguns outros municípios:

Se em Guaramiranga os dramas permaneceram longevos pelo apoio dos


proprietários de sítios e fazendas ou pelo apoio institucional, outros municípios não
tiveram a mesma sorte. Fortaleza, por exemplo, até meados dos anos 1950 e início
de 1960 possuía um forte movimento dramista que abastecia de pecinhas os demais
municípios cearenses. [...]Hoje, lamentavelmente, a manifestação parece ter
sucumbido às intempéries e avanços da tecnologia. Somente as senhoras com idade
superior a setenta anos têm conhecimento desta história que é lembrada com
saudade nas rodas familiares. Em Fortaleza e em alguns municípios, ou caíram no
esquecimento ou sobrevivem dramaticamente pelo denodo de velhas senhoras que
financiando de seus parcos recursos indumentárias e adereços e resgatam de velhos
cadernos ou da própria memória antigos dramas que fizeram a alegria de suas
comunidades em épocas perdidas no tempo. (HOLANDA, 2014, p. 179-180)

Marcio Pontes fala da importância de notar as dramistas

[...] como mulheres resistentes ao sistema capitalista, a globalização e ao


descompromisso público para a criação de espaços de lazer comunitário. Daí, os
dramas para suprir estas demandas e forjar outras formas de construir uma sociedade
justa, igualitária e democrática. (PONTES, 2011, p.142).

Realmente, as dramistas devem ser vistas como mulheres que trazem consigo toda a
força e resistência necessária ao artista em tempos como os de hoje4, uma vez que estas
resistem bravamente às intempéries da vida, sendo verdadeiras guardiãs dos tesouros
ancestrais que carregam, e que movidas pelo desejo de contribuir com o mundo e com a vida
estão sempre dispostas a transmitirem seus saberes.

2.4 A música e a cena: a essência dos dramas.

A música é umas das mais ancestrais expressões artísticas do mundo, ela sempre
esteve presente na vida do homem por meio de seus rituais desde os tempos mais longínquos.
No teatro, a música é considerada como um elemento de extremo poder na criação e
estabelecimento de uma determinada atmosfera na cena e no ocidente sua relação com o
teatro vem desde os primórdios da Grécia antiga, quando hinos em louvor ao deus Dionisio
eram entoados em celebrações e rituais.
____________________________
4
Semestre I de 2019.
30

É aceitável a afirmação de que em um espetáculo teatral a música atinge as emoções


do espectador de uma forma mais radiosa e eficaz. Ela possui uma energia que o leva a
compreensões e percepções singulares, percepções essas que independem do entendimento de
um texto, que por sua vez necessita de uma atenção mais focada por parte da plateia pra sua
compreensão. Isso pode ser explicado talvez pelo fato da música ser uma linguagem
universal, capaz de atravessar os sentidos e emoções das pessoas, evocando múltiplas
sensações em quem ouve. Como frisa Pavis:

A música é assemântica, ou pelo menos não figurativa: não representa o mundo,


diferentemente da palavra. Assim, aninhada ao espetáculo, ela irradia, sem que se
saiba muito bem o quê. Influencia nossa percepção global, mas não saberíamos dizer
que sentido ela suscita ao certo. Ela cria uma atmosfera que nos torna
particularmente receptivos à representação. É como uma luz da alma que desperta
em nós. (PAVIS, 1947, p. 130)

Ao se reportar aos dramas populares, pode-se dizer que a música é um componente


indissociável dessa prática. Se no teatro a música desempenha funções diversas, no Drama ela
se une ao texto, e, atrelada à expressividade corporal das dramistas, desencadeia toda ou boa
parte da ação dramática: conta histórias, apresenta personagens, abre e encerra quadros. Para
Pontes (PONTES, 2011, p. 83) “No drama, a música é a linguagem que liga as ações da figura
dramática ao público, fazendo uso da fala enquanto meio de comunicação.”.
Diante do exposto, é valido ressaltar que não só nos dramas, mas também em outros
folguedos, a música se apresenta como uma peça de exímia importância em suas estruturas,
como é o caso dos Bois e Reisados que podem ser comparados aos dramas populares nesse
aspecto musical, pois em ambas as manifestações, a música desempenha funções semelhantes,
sendo cabível aqui traçar esse paralelo entre essas expressões teatrais populares. Oswald
Barroso, ao falar sobre a presença da música nos bois e reisados cearenses explicita que:

Compondo também o corpo do espetáculo, aparecem as peças de entremeio,


canções, interpretadas pelo coro de figuras, que anunciam os personagens que
entram em quadros específicos da função, bem como as ações que sofrem e
desenvolvem. São canções narrativas. Começam por descrever características
principais do personagem e anunciar ao que ele veio. (BARROSO, 2013, p. 322)

De fato, nas apresentações dos dramas acontece mais ou menos dessa forma a relação
das personagens com a música, geralmente em primeira pessoa, as personagens chegam, se
apresentam, cumprimentam a plateia, se despedem. Figuras tipicamente recorrentes dos
dramas populares tem suas características destrinchadas diante do público, como é o caso da
31

índia encantada que surge e desaparece em meio a floresta, da baiana que chega pedindo
licença pra sambar, ou mesmo da cigana que vende chitas ao invés de brilhantes, drama este
que é interpretado com entusiasmo por Dona Maria Paulino:

Figura 3 - Transcrição do drama Sou uma Cigana.

Fonte: Transcrição e editoração de Wilker Silva (2019).

Sou uma cigana que desta lida


Eu levo a vida pelas aldeias
Uso babados bem recortados
Saias compridas e bonitas meias

Não vendo ouro nem diamantes


32

Claros brilhantes não vendo não


Eu vendo chitas das mais bonitas
Belas mandadas lá do Japão

Adeus senhores que eu vou embora


Até paro o ano se viva eu for
Eu voltarei aqui neste palco
Batendo palma e cantando louvor

Como pode-se observar neste drama, a música se apresenta como a ferramenta


principal para a transmissão da mensagem que a dramista deseja passar naquele momento, por
meio dos versos e melodias do drama, o público recebe as informações do quadro que ali é
apresentado. Como bem explicita Lourdes Macena em uma reportagem produzida por
Cristina Pioner para o Diário do Nordeste:

A música é a dramaturgia do drama. É através da música que ela estabelece o que


faz cada personagem, como é a cena, o que é da vez. Eu sempre digo que a música
na tradição popular é a cama onde tudo se deita, [..] essas senhoras são excelentes
cantadeiras, uma boa parte delas, e com elas a gente vai sempre aprendendo, tanto
esse universo de delicadeza ligado à forma como elas veem a natureza e a vida,
como também vamos aprendendo os seus cantos [...] (MACENA apud PIONER,
2018)

É de grande relevância salientar que a música, inerente ao drama popular como falado
anteriormente, possui bem mais do que apenas a função de apresentar as personagens das
partes5 apresentadas, é ela quem sustenta todo o desenrolar dessas partes e mesmo quando
existem quadros apresentados pelas dramistas onde a predominância está no texto falado, a
música pode ser percebida como um elemento fundamental na dramatização realizada por
elas, pois por meio da música se reafirma que a essência dos dramas está nessa inegável
ligação. É o que ocorre em Renato e Judite, pequena comédia interpretada pela dramistas de
Guanacés.

____________________________
5
Nome dado pelas dramistas aos quadros apresentados por elas, podem ser comparados ao que em uma peça
convencional seria chamado de cena.
33

Figura 4 - Dramistas Marlene Lima e Ieda Silva interpretando respectivamente Renato e Judite.

Foto: Bruno Monteiro


Fonte: Acervo pessoal do autor

Nessa comédia um mal entendido cria toda uma confusão entre um casal e uma
empregada, mas no final a solução é encontrada e é por meio da música que os personagens
Renato e Judite contornam a situação e se despedem da plateia.
Em uma peça de teatro a música pode estar presente de diferentes formas, podendo
ocorrer por meio de um som mecânico que reproduz uma musicalidade previamente gravada,
ou mesmo executada ao vivo. Há também espetáculos em que a música surge apenas de forma
instrumental, ou seja, sem a presença de letras cantadas, no caso dos dramas, a música
transpassa diretamente por um canal imprescindível: a voz das dramistas. Com a música, as
dramistas desenham com suas vozes imagens das histórias que contam e emanam os tesouros
poéticos que carregam em suas mentes e corações.

2.5 A criação cênica a partir de matrizes estéticas da tradição.

Durante o processo de criação de uma obra cênica existem diversificados caminhos a


serem seguidos para o andamento do processo criativo, e uma série de fatores são
fundamentais para a escolha desses caminhos.
Independente da estética ou poética escolhida por um coletivo para a criação de um
trabalho, o fato é que, todo processo que emerge em uma pesquisa voltada para os interesses
da empreitada criativa, certamente possuirá um alicerce forte no resultado final. São muitas as
formas como os processos criativos de espetáculos são regidos mundo a fora, bem como são
infindas as temáticas abordadas por estes. Desse modo, abre-se aqui um espaço para a
reflexão de uma matriz demasiadamente potente para a criação cênica, uma matriz que revela
signos, simbologias e traços inspiradores à alma dos artistas: a cultura popular tradicional.
34

Não há dúvidas que os saberes tradicionais possuem riquezas poéticas, entranhadas


nos costumes, nas festas, nos ritos e nos fazeres. Por meio destes, as alegrias e tristezas de um
povo se entrelaçam e se perpetuam ao longo do tempo, percorrendo os caminhos da
ancestralidade do vivido.
Além de possuir sua beleza própria e essencial, a cultura popular tradicional, como
falado anteriormente, é também fonte inspiradora para composição de obras artísticas nas
mais diversificadas linguagens, seja nas artes visuais, nas artes cênicas ou mesmo na música.
O fato é que a sabedoria popular é rica em significações potentes que podem compor o
conjunto de referências na criação de uma determinada obra. Como bem diz Paulo Ess:

[...] o teatro popular é nossa fonte maior de inspiração. Atores, diretores, pessoas de
teatro que somos e buscamos uma nova proposta, uma nova linguagem. É no teatro
tradicional, com seus paus de fitas, com suas cores, suas emboladas, suas cantorias e
seu gestual marcado e decisivo que Antônio Nóbrega foi criar a cara do Brasil que o
brasileiro não conhece ou teima em não conhecer. Grupos como Piollin da Paraíba, e
Boca Rica do Ceará mergulham suas pesquisas num fazer teatral genuinamente
brasileiro. Buscam seu herói na beira da estrada e o carregam para o teatro. (ESS,
2004, p.39)

Ao falar sobre as poéticas da tradição popular que são inseridas na criação


dramatúrgica, Racine Santos fala que:

Essa vertente do teatro brasileiro, com características muito próprias, com fala e
gestos muito específicos, com uma ótica particular capaz de trabalhar a
contemporaneidade cênica sem perder suas raízes, é um teatro que vem se afirmando
como um dos mais autênticos/expressivos segmentos do teatro nacional. Esse teatro
que traz por trás de si o universos da poesia popular dos folhetos, as brincadeiras do
Boi-de-Reis e dos Pastoris, e o teatro de bonecos [...] (SANTOS, 2014)

Os dramas populares, se tratando de uma manifestação que carrega uma série de


elementos cênicos e musicais, podem servir de matriz estética para a criação de espetáculos
que tenham o interesse de fincar o processo criativo da composição cênica na tradição
popular.
Cabe citar aqui dois trabalhos teatrais de grupos cearenses que em seus processos
criativos pesquisaram os dramas populares de determinadas regiões, sendo estes trabalhos:
Interior do Grupo Bagaceira, da cidade de Fortaleza, e Entre a Taipa e a Catingueira do
Grupo Base de Teatro, de Cascavel.
35

Figura 5 - Espetáculo Interior – Grupo Bagaceira

Imagem de Caique Cunha


Fonte: Papo Cult (2018)
Disponível em > www.papocult.com.br

O espetáculo Interior traz como protagonistas duas personagens idosas que conversam
sobre suas vidas, trazendo para a cena elementos que criam uma interação direta e afetiva com
o público. Em Interior, é possível perceber a presença de algumas partes dos dramas cantados
de Beberibe, município pertencente ao litoral leste cearense, inseridas na dramaturgia do
trabalho que já percorreu várias cidades do país.

Figura 6 - Espetáculo Entre a Taipa e a Catingueira – Grupo Base de Teatro

Imagem de Francisco Costa


Fonte: Acervo de Francisco Costa

Mais a frente será discorrido um pouco sobre o processo criativo do segundo trabalho
citado, o espetáculo Entre a Taipa e a Catingueira, do Grupo Base de Teatro, uma vez que
este teve uma ligação forte de seu processo com as dramistas de Guanacés, apresentando as
influências estéticas e as inspirações poéticas, bem como os caminhos enveredados durante a
criação.
36

3. AS DRAMISTAS DE GUANACÉS E A MAGIA DE ESTAR EM CENA


3.1. Guanacés e a constelação das Seis Marias.

O estado do Ceará é um território vasto e diverso. Em suas praias, sertões e serras


existem riquezas infindas que se revelam principalmente por meio de seu povo e seus
costumes. Além disso, a natureza foi generosa com esse lugar de gente guerreira e alegre,
além das belezas naturais, a mãe natureza presenteia seus filhos com matéria prima que se
reverbera em alimento e artesanato, movimentando a economia e promovendo o sustento de
muitas famílias. Todas as características supracitadas perpassam por todas as regiões
cearenses, inclusive o Litoral Leste, onde se localiza a cidade de Cascavel, que abriga o
distrito de Guanacés, principal campo de pesquisa deste trabalho.
Antes de falar de Guanacés, é necessário falar sobre município de Cascavel, terra
abençoada pelo divino com uma natureza de beleza exuberante que se destaca principalmente
em suas praias, além de ser um celeiro de artistas das mais diversas linguagens.
O município de Cascavel faz parte do conjunto de cidades que integram a região
metropolitana de Fortaleza, ficando a aproximadamente sessenta e dois quilômetros da
Capital. Por ser uma região litorânea, atrai turistas de diversos lugares que vêm desfrutar dos
prazeres de suas cinco praias: Caponga, Barra Nova, Balbino, Barra Velha e Águas Belas.
Além desse atrativo, Cascavel também comporta a Feira de São Bento, conhecida como a
maior feira a céu aberto do estado do Ceará e a segunda maior do Nordeste. Na Feira de São
Bento, que acontece aos sábados, é possível encontrar de tudo no que diz respeito ao comércio
popular: artesanato, mantimentos alimentícios, roupas, animais, etc. Sobre a importância da
Feira de São Bento para a cidade de Cascavel, Silva evidencia que

A cidade de Cascavel pulsa nas manhãs de sábado dia da feira, quando em suas
artérias jorram transportes conduzindo mercadorias e pessoas vindas de várias
partes, certamente em busca de realizar negócios, não importa a monta, mas o
significado dessas transações comerciais ou afetivas para cada indivíduo, num
contexto coletivo no que diz respeito a satisfação de suas necessidades imediatas
(SILVA, 2008, pag.16)

Um fato curioso e interessante de se ressaltar é uma lenda da cidade que percorre o


tempo, lenda esta que conta sobre o motivo da cidade ter este nome. Segundo a estória
contada por muitos, a cidade de Cascavel havia sido criada em cima do ninho de uma cobra
cascavel gigante, e no mesmo local onde se diz haver este ninho, foi construído uma espécie
de torre com a imagem de Nossa Senhora do Ó, na esperança de que a santa protegesse toda a
37

cidade, diziam que se a santa fosse retirada do local a cobra com sua ira destruiria toda a
cidade. Outro detalhe em torno dessa lenda é a crendice de que sempre que a palavra cascavel
é pronunciada a cobra cresce um metro.
São muitas as coisas a se falar sobre a cidade, seja de suas paisagens e sua história,
como também de toda a parte mítica. No entanto, diante das poucas informações expostas, é
possível perceber a potência cultural da cidade que se reverbera por todo o território
cascavelense, contemplando assim o distrito de Guanacés, que é o local onde se encontra a luz
inspiradora desta pesquisa.
O distrito Guanacés, com seus 120 anos de fundação, aproximadamente, revela por
meio do que contam os mais velhos, um passado repleto de histórias. Entretanto, não existem
muitos registros sobre a história do distrito, fazendo-nos recorrer, dessa forma, aos moradores
mais antigos que ali ainda residem. Um fato que se sabe sobre o distrito de Guanacés é que o
seu nome nem sempre foi esse, pois, antigamente, a localidade era apenas conhecida como
Bananeira.
Em tempos passados, na região de Guanacés, além de algumas famílias que viviam em
sítios, havia também a presença de uma tribo indígena, povoada pelos índios Guanacés. Com
o passar do tempo, foram chegando pessoas à região e modificando a realidade local,
erguendo construções, abrindo estradas e criando sítios novos. Enquanto isso, os índios aos
poucos iam perdendo espaço devido ao desmatamento da região. E foi a partir dessa realidade
que o distrito passou a ser conhecido como Guanacés, em alusão aos índios que foram os
primeiros habitantes do território.
Guanacés, por mais que seja apenas um distrito, tem ares de uma pequena cidade.
Houve inclusive um período de sua história em que os líderes comunitários tentaram
emancipá-lo de Cascavel. No entanto, por questões burocráticas isto não foi possível.
A dramista Ieda Silva, nascida e criada em Guanacés, expressa seu amor por sua terra
nos versos da seguinte canção:
38

Figura 7 - Transcrição da canção Guanacés, cidade brinquedo.

Fonte: Transcrição e editoração de Wilker Silva (2019).

Guanacés, cidade brinquedo, pequena que és


Guanacés, grande pelo teu povo que te quer tanto bem
Terra de mil amores onde mora meu bem
Guanacés sou feliz por ser tua filha também
Quem te dirige tem alma de um bom brasileiro
Teu povo forte e gentil bom e hospitaleiro
Tens o teu céu estrelado da cor de anil
Guanacés és um belo recanto do Brasil.

Após essa declaração de amor, será realizado aqui uma breve explanação biográfica
sobre as dramistas de Guanacés, as Seis Marias que ainda refulgem com fulgor o esplendor de
ser dramista, de estar no palco, a começar por Ieda Silva.
39

Figura 8 - Dramista Ieda Silva.

Foto: Bruno Monteiro


Fonte: Acervo pessoal do autor

Maria Ieda da Silva, 77 anos, nasceu em 18 de Novembro de 1941. Em seu relato


sobre seu primeiro contato com os dramas, conta que começou quando ainda era muito jovem,
graças a uma tia chamada Carmosa que realizava apresentações de dramas com outras amigas,
na época. Dona Ieda ainda criança gostava de acompanhar os ensaios e apresentações que
eram realizadas no quintal da casa de sua tia, mas conta que só passou a se apresentar como
dramista quando chegou à fase adulta de sua vida. No entanto, durante a entrevista, ela
revelou que desde cedo sempre nutriu o desejo de se expressar artisticamente por meio da
música e que entre os sete e os oito anos adorava cantar na radiadora6 local da época, algo que
por um tempo foi rotineiro de seus domingos, como ela mesma expõe:

Cantar, desde criança, eu era pequena, eu tinha assim uns sete anos, oito anos. Aqui
em Guanacés tinha chegado a primeira radiadora, aqui em Guanacés, aí no salão na
casa do padre dia de domingo o rapaz botava a radiadora pra tocar e convidava as
criança para cantar. E todos domingo eu ia cantar, me arruma pra ir cantar, porque
quando era dia de domingo eu cantava e ganhava um presente, um sabonete , o
prêmio era um sabonete óia, eu não deixava de ir não, e hoje eu continuo cantando,
canto salmo na igreja, né, e quando chega assim em algum canto que dá pra eu
cantar uma música, numa seresta, num canto, me convidam e eu canto. (Informação
verbal)7

O dom para a arte está no sangue de Dona Ieda. Segundo ela, há outras pessoas na sua
família que têm uma relação estreita com a música, como é o caso de sua irmã, Dona
Marlene, que também é dramista.

____________________________
6
Espécie de rádio comunitária muito comum em décadas passadas, sobretudo em pequenas cidades.
7
Entrevista 1 - Entrevista realizada com a dramista Ieda Silva, no CRAS Guanacés, em 06 de setembro de 2018.
40

Figura 9 - Dramista Maria Marlene.

Foto: Bruno Monteiro (2019)


Fonte: Acervo pessoal do autor

Maria Marlene Lima da Silva, de 70 anos, é irmã de Ieda Silva, no entanto sua relação
inicial com os dramas populares de Guanacés se deu de forma diferente da irmã. Dona
Marlene, nascida aos 12 de Março de 1949, conta que passou boa parte de sua infância na
localidade de Lagoa de Souza, zona rural de Guanacés, e que por isso não teve um contato
forte com essa manifestação quando criança, mas afirma que tinha uma tia que era dramista,
reafirmando a história de Dona Ieda, e frisou também que só passou a se apresentar como
dramista quando se tornou adulta, mesmo tendo aprendido muitas coisas a respeito do oficio
de dramista com os mais velhos da família durante a infância e juventude.
Mesmo com os relatos das dramistas Ieda e Marlene relacionados à iniciação nos
dramas somente na vida adulta, é importante salientar que no grupo existem histórias
diferentes como é o caso de Maria Paulino da Silva Barroso, que foi a mais precoce na arte
dos dramas populares.

Figura 10 - Dramista Maria Paulino.

Foto: Bruno Monteiro (2019)


Fonte: Acervo pessoal do autor

Filha de Esmeraldina Barbosa e Pedro Paulino, veio ao mundo no dia 19 de Outubro


de 1943, e hoje aos 75 anos, relata que começou a aprender o oficio de ser dramista e a
41

participar de apresentações de dramas aos 07 anos de idade, quando uma senhora chamada
Mariínha pedia a sua mãe que deixasse que a pequena Maria integrasse as apresentações.
Tudo isso foi apenas o inicio para Dona Maria Paulino, que conforme foi crescendo foi
desenvolvendo esse dom e guardando em cadernos e na memória tudo do universo dos
dramas que chegava ao seu conhecimento.
Uma surpresa que surgiu durante esse período de pesquisa e vivência com as dramistas
de Guanacés, foi a chegada de mais uma Maria disposta a fazer parte do grupo. Maria Zumira
que há anos não brincava em dramas, viu no grupo uma oportunidade de voltar a fazer algo
que havia feito na época em que era criança e que tanto lhe fazia bem.

Figura 11 - Dramista Maria Zumira.

Foto: Bruno Monteiro (2019)


Fonte: Acervo pessoal do autor

Maria Zumira de Lima, de 77 anos de idade, nasceu no Choró Angico, comunidade


localizada na região rural de Cascavel, no dia 05 de Março de 1942. Dona Zumira revela que
na idade de 10 anos teve seu primeiro contato com a brincadeira dos dramas, segundo ela, por
meio de duas mulheres de Fortaleza que passaram um tempo na localidade de Serra Redonda,
local onde a depoente morou boa parte de sua vida. Infelizmente, sua experiência e vivência
com a brincadeira durou pouco tempo, pois as mulheres foram embora, assim as meninas da
localidade deixaram de realizar a brincadeira com a justificativa de que não era fácil continuar
com a ausência de alguém que ensinasse. Zumirinha, como é chamada carinhosamente por
algumas colegas, se mudou para Guanacés já adulta, logo após ter se casado, no entanto, veio
participar da manifestação recentemente, há pouco menos de um ano.
Assim como Dona Zumira que teve sua primeira experiência como dramista fora do
distrito de Guanacés, nos deparamos também com a dramista Maria de Fátima que entrou em
contato com essa manifestação artística em um município distante de Guanacés.
42

Figura 12 - Dramista Maria de Fátima.

Foto: Bruno Monteiro (2019)


Fonte: Acervo pessoal do autor

Maria de Fátima Alves de Souza, 66 anos de idade, é a mais jovem dramista do grupo,
nasceu em Guanacés em 02 de Fevereiro de 1953, e revela que morou na cidade de Fortaleza
por curto tempo da adolescência, quando tinha entre 12 e 14 anos de idade, período emque
ocorreram suas primeiras experiências como dramista. Uma curiosidade salientada por Dona
Fátima sobre essa época é que ela sempre interpretava a parte da baiana nas apresentações,
frisando que sempre gostou muito de dançar, gosto esse que se reverbera até hoje, pois nas
suas atuais apresentações, pode-se perceber isso enquanto ela canta e interpreta a personagem
da baiana. Dona Mocinha, como é conhecida por muitos, entrega o corpo ao jogo brincante da
cena e sempre arranca aplausos calorosos da plateia com sua performance.
Após falar um pouco sobre a mais jovem do grupo, finaliza-se as apresentações
biográficas com a apresentação da mais experiente do grupo no que diz respeito à vida e ao
tempo, a sexta estrela da constelação, a dramista Maria Nilce, de 78 anos.

Figura 13 - Dramista Maria Nilce.

Foto: Bruno Monteiro (2019)


Fonte: acervo pessoal do autor

Maria Nilce Dantas de Souza, veio ao mundo no dia 11 de Junho de 1940 e teve sua
primeira aproximação com os dramas aos 8 anos de idade. Segundo ela, o aprendizado das
letras e melodias dos dramas se deu por meio da observação que fazia quando menina dos
43

ensaios e apresentações de um grupo de dramistas que sua irmã mais velha, de nome Maria
José, participava. Aos 78 anos, Dona Maria Nilce, ao ser questionada sobre qual a
importância dos dramas em sua vida, responde que o fato de estar próxima às pessoas de que
gosta é que mais lhe deixa feliz quando está nos momentos de ensaio ou apresentação. Tal
resposta, me faz refletir a respeitos dos dramas populares, percebo que estes não ocupam
somente espaço na vida de suas participantes como uma forma de expressão artística ou
mesmo diversão, mas também ocupam um espaço significativo no que diz respeito às relações
afetivas com os seus.

Figura 14 - Dramistas de Guanacés na II Conferência Municipal do Idoso– Da esquerda para direita: Maria
Paulino, Maria Ieda, Maria Nilce, Maria Marlene, Maria de Fátima, Maria Zumira.

Foto: Bruno Monteiro (2019)


Fonte: Acervo pessoal do autor

É valido ressaltar que as dramistas citadas acima não são as únicas do distrito
Guanacés, pois são muitas as mulheres que já participaram da brincadeira e muitas que
guardam os tesouros da memória local, no entanto, até o momento desta pesquisa, apenas
estas se mantém ensaiando e apresentando os dramas, mesmo diante das dificuldades
inerentes ao cotidiano. Mas cabe aqui salientar o respeito e admiração por todas aquelas que
no passado cantaram e encantaram pelas ruas, quintais, palcos e praças de Guanacés.

3.2. Atrizes de um palco chamado Vida.

O ser humano é por natureza um ser que necessita de comunicação. Desde os tempos
mais remotos, o homem cria e recria formas de se conectar ao outro, expressando desejos e
ideias, e a arte sempre esteve presente nesse processo, de forma consciente ou não. Por meio
da arte, o ser humano aproxima-se do mundo das emoções, alcança campos que estão para
além da percepção cognitiva simplista e convencional do cotidiano.
44

Fazendo uso da famosa frase do poeta Ferreira Gullar: “A arte existe porque a vida
não basta” (GULLAR, 2010), é possível fazer uma reflexão em torno do fazer artístico das
dramistas, mulheres que veem a vida sob uma ótica poeticamente sensível e singela. Para
estas, tudo é motivo para cantar, sejam tristezas ou alegrias. A natureza é inspiração para
compor letras e melodias que falam de flores, animais e rios. A cultura do outro é admirada e
levada ao palco, como é o caso dos dramas que trazem as figuras das ciganas e das baianas,
dentre outras. E assim essas mulheres vão encontrando formas de homenagear tudo aquilo que
o universo dá de presente ao mundo.
Dispostas a vivenciarem sua arte independente dos embaraços da vida, as dramistas de
Guanacés revelam-se mulheres fortes, mulheres estas que deixam seus corações serem
guiados pelo desejo de se expressar artisticamente, sendo este desejo superior às amarras da
vida cotidiana simplista e à censura intra ou extrapessoal. As dramistas quando entram em
cena ou mesmo quando se conectam com seu interior criativo, transgridem as convenções
sociais, burlam padrões instaurados e funções pré-determinadas. São atrizes que estão para
além do simples fato de representar personagens, pois por intermédio desse teatro
expressivamente popular, elas se encantam e transitam entre o real e o imaginário, livres de
técnicas e métodos ligados à teóricos teatrais, além de criarem um espaço onde a presença
feminina é soberana. Como frisa Barroso:

No reino dos dramas populares, as mulheres são rainhas e reis, produtoras, autoras,
encenadoras e atrizes. Nele se reúne a mãe, a avó, a tia, a madrinha, a filha, a
sobrinha, a afilhada, junta-se a família clãnica, o coletivo comunitário,
estabelecendo-se a intimidade do feminino, seu aconchego, ambiente propício para
que a mulher, com liberdade a iniciativa, conquiste a independência e desenvolva a
criatividade. Nele, florescem não só as vocações artísticas, como as aptidões para o
empreendedorismo das mais diferentes naturezas, como a produção de eventos, a
organização de pequenas economias e a propaganda. (BARROSO, 2015, p. 21)

É uma feliz afirmação a de que os dramas populares desempenham um papel bem


maior do que somente o da diversão na vida dessas mulheres. É o que se observa na fala das
dramistas de Guanacés, pois percebe-se o quanto esse espaço de criação, convívio e expressão
faz bem ao interior de cada uma delas. Sobre a magia de estar em cena movida pela paixão
pelo drama, deixando de lado por alguns instantes as incumbências da labuta diária, Dona
Marlene revela um pouco das sensações que lhe percorrem quando está diante da plateia se
apresentando:
45

É uma sensação maravilhosa. Me sinto mais nova, mais jovem, quando tô ali me
apresentando. E tenho muito orgulho, de dançar, em minha vida. Acho que
deveríamos fazer mais. [...] Quando eu estou atuando, no teatro, até mesmo nos
ensaio, eu tô, renovei anos e anos [...] Porque todo mundo, a gente tem preocupação
né? Mas naquela hora tudo sai, né. E é muito bom. [Informação verbal]8 (SIC)

O drama possibilita que essas mulheres transformem a própria realidade e ultrapassem


os ofícios comuns à vida delas, em outras palavras, é plausível dizer que os dramas populares
são como pontes que conectam essas senhoras ao oásis de liberdade criativa. Assim como
atores e atrizes costumam dizer que o seus ofícios os permitem experimentar a pele de
inúmeros personagens e personas, com as dramistas pode-se perceber isso, uma vez que, por
meio deste oficio, mulheres que são simples donas de casa, costureiras, rendeiras,
agricultoras, dentre outras coisas, ao subirem no palco, se transformam em rainhas, flores,
pescadores, sereias, ciganas e tudo mais que a mente e o coração possam imaginar e sentir.
A importância dos dramas na vida dessas mulheres em suas comunidades está também
ligada à valoração dessas figuras femininas que tornam-se estrelas do local, proporcionando-
lhes momentos de prestigio e notoriedade diante dos outros. Sobre esta relação dos dramistas
com a comunidade, Pontes observa que:

Estar no palco não é simplesmente representar personagens, é viver momentos de


“glória”, onde o espaço torna possível o acesso à “fama”, para o reconhecimento e o
respeito diante dos outros membros da comunidade. Isso instiga cada pessoa a
buscar, dentro do seu papel, a melhor performance daqueles ensaios regidos pelo
conhecimento popular. (PONTES, 2011, p. 39)

Durante o período que esta pesquisa vinha sendo desenvolvida foi possível notar
semelhanças da manifestação dos dramas em Guanacés com a de outros locais do estado,
semelhanças estas que se revelam de várias maneiras, seja pela forma como eram ou são
realizadas, pelos desafios enfrentados, pela confecção de indumentárias e os materiais usados
em tempos de outrora, ou mesmo pelas letras e melodias que repetem elementos aqui e acolá.
No que diz respeito às parecenças nas músicas dos dramas, pode-se dar alguns exemplos aqui
de dramas de Guanacés que apresentam semelhanças com de outras regiões, como é o caso do
drama chamado Madalena, no qual uma mulher (Madalena) briga com o marido porque
deseja ganhar um vestido, ou do drama Lindalva que mostra um amor não correspondido de

____________________________
8
Entrevista 2 – Entrevista realizada com a dramista Marlene Lima, no CRAS Guanacés, em 06 de Setembro de
2018.
46

um homem por uma mulher. Tais dramas podem ser encontrados em outras regiões cearenses
com apenas algumas mudanças nas letras.
Refletindo sobre essas coincidências, uma hipótese que pode ser levantada é que muito
possivelmente os dramas populares não se limitam somente à sua localidade, estes percorrem
distâncias por meio da oralidade, como é o caso já citado, por exemplo, de Dona Zumira que
aprendeu alguns dramas por meio de mulheres vindas de outra cidade. Além disso, pode-se
dizer que hoje existe um fator a mais além da oralidade, a tecnologia. Com os adventos
tecnológicos, cada vez mais as comunidades se aproximam umas das outras, dando aos seus
integrantes mais possibilidades de conhecer traços da cultura do outro. Seguindo nessa linha
de raciocínio, é relevante citar algo que sucedeu por meio dos encontros com as dramistas de
Guanacés, onde este pesquisador juntamente com o também pesquisador Eleonardo Silva
estavam mostrando alguns dramas de outros grupos de dramistas do Ceará, bem como
algumas músicas da tradição popular, cantadas por mulheres, e pelo meio destas estava a
música Oh que noite tão bonita, que faz parte do universo de cantigas de rodas do estado de
Minas Gerais, em uma versão do grupo Meninas de Sinhá. Ao ouvirem essa música as
dramistas de Guanacés logo se apaixonaram e começaram a cantá-la, parecia até que já a
conheciam, e o interessante foi ver que a medida que iam cantando sutilmente incluindo
traços particulares de suas vozes à canção, fazendo também adaptações para melhor o grupo
poder interpretá-la, dividindo as estrofes nas vozes individuais e o estribilho ficando para o
coro. A partir dessa informação pode-se observar mais ainda o que foi falado anteriormente
sobre como formas de se fazer algo em regiões tão distintas muitas vezes se conectam e têm
características que se repetem.
Entretanto, é importante frisar que essa mesma tecnologia que tudo leva de um lugar
para outro com certa facilidade, impõe a necessidade de firmar identidades de cada local, ou
seja, mesmo que Oh que noite tão bonita passe a integrar o repertório das dramistas de
Guanacés, continuará esta sendo uma canção do povo mineiro.
Alguns dos dramas cantados pelas dramistas de Guanacés revelam também elementos
que estão diretamente relacionados a elementos e questões presentes na experiência de vida
das artistas, sobretudo por esses dramas na grande maioria virem de épocas passadas, quando
o desenvolvimento urbano ainda não tinha chegado de forma tão abrangente à comunidade.
Isso se desvela em alguns dramas pertencentes ao acervo das dramistas, como é o caso de As
matutinhas, drama em que elas se colocam como moças simples do sertão que se
impressionam com as novidades que encontram ao chegarem na cidade grande. Além de As
matutinhas, há o drama João e Mariana que inclusive é um dos preferidos de Dona Ieda.
47

Segundo ela, por este em especial expressar a realidade da vida das pessoas simples do sertão,
que em tempos passados não tinham tanto contato com as coisas existentes nas cidades
contagiadas pelo desenvolvimento. Geralmente interpretado por Marlene e Ieda que
respectivamente se revestem de João e Mariana, o drama supracitado traz os seguintes versos:

Figura 15 - Transcrição do drama João e Mariana.

Fonte: Transcrição e editoração de Wilker Silva (2019).

João mais Mariana minha gente


Vinhero aqui passar (bis)
Achamo aqui muito bom seu cumpade
Mas já queremos voltar (bis)

Cumpade aqui na cidade


Tem coisa de se encantar (bis)
É um bicho dos zóio aceso e pé redondo
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Correndo pra lá e pra cá (bis)

É um tal de ostromóvi seu cumpade


Eu já vi que terém bom (bis)
Carrega gente dentro, seu cumpade
Fazendo fonfon fonfon (bis)

Diante de tantas características já faladas aqui sobre os dramas, é necessário falar que
as apresentações destes não se mantém congeladas às formas originais de cada um.
Improvisos são muito comuns e adaptações são feitas muitas vezes em algumas letras de
acordo com o local em que se está apresentando. No drama exposto acima, geralmente se
acrescenta mais uma estrofe que fica geralmente depois da primeira, nessa estrofe, as
dramistas falam o local em que se apresentam e dizem o nome da pessoa que as convidou.

Figura 16 - Dramistas Marlene e Ieda apresentando João e Mariana na praça da Paróquia de Guanacés em
Novembro de 2018.

Foto: Bruno Monteiro


Fonte: Acervo pessoal do autor

E entre uma adaptação e outra conforme a ocasião, as dramistas vão se divertindo,


inserindo pessoas e lugares que naquele momento integram parte do espetáculo
cênico/musical apresentado por elas. A foto acima, por exemplo, é registro de uma das
apresentações em que houve esse tipo de adaptação. Neste dia, elas estavam se apresentando
em um evento da Paróquia de Guanacés a convite do Padre, dessa forma elas os
homenagearam em alguns dos versos de João e Mariana.
Tais momentos de introdução de novos elementos às apresentações dos dramas, sejam
improvisados ou combinados com um pouco de antecedência, são justificáveis pela forma
como as dramistas interagem com o público. Naquele momento elas não consideram somente
o que fazem no palco, nada de se vestir de personagem e fazer de conta que não tem
espectadores, para elas a plateia se torna uma fonte de viva e imediata de inspiração.
49

3.3. Corporeidade, construção de personagens e expressividade.

A cultura popular tradicional, com seu universo de manifestações, pode ser notada
como um espaço onde homens e mulheres liberam seus instintos criativos e brincantes,
expressando sentimentos e emoções por meio de seus folguedos, seja em terreiros, praças e
ruas, grupos de pessoas se organizam e criam momentos de lazer pra si e para os outros por
meio da música, da representação teatral, da dança, etc. Diante do exposto, pode-se trazer os
dramas populares para o centro dessa discussão, pois é nesse meio de divertimento, fruição e
criação artística, que o encontramos. E é neste teatro repleto de expressividade artística
popular que as dramistas libertam seus impulsos criativos e se realizam enquanto artistas,
sendo esse espaço o local onde elas imperam e se entregam à arte. A dramista Ieda Silva fala
um pouco sobre esse prazer de estar em cena e se assumir enquanto artista:

Eu me sinto muito bem, porque é muito bom você apresentar uma coisa e depois
daquilo, quando você se curva pra agradecer, você vê aquela multidão batendo
palmas. É muito gratificante. As pessoas que num participam num sabe o que tão
perdendo, por que é muito bom. Me sinto muito bem. Quem é que não gosta de ser
aplaudido né? [...] Me expressando eu me sinto bem, me sinto realizada porque é
muito bom, porque você tem alguma coisa dento de si que pulsa e você pode botar
pra fora. Porque em nem toda oportunidade você tem esse direito, e num drama e
uma apresentação de teatro você mostra isso. (SIC) [Informação verbal]9

O corpo é uma ferramenta de fundamental força no que diz respeito à expressividade


das mulheres dramistas, pois é por meio dele que estas expressam o que cada parte do drama
pede, interagem com o publico e se conectam com a memória da ancestralidade corpórea que
as auxilia na composição das partituras ideais para a cena. Como evidencia Pontes:

O drama utiliza-se do movimento para estabelecer a relação comunicativa entre


aquele que produz os ritmos e aqueles que assistem ao drama, o público. Essa
afinidade vai além da melodia e da dança, e cria possibilidades de reflexão em torno
de assuntos pertinentes à própria comunidade que utiliza o corpo para se expressar.
(PONTES, 2011, p. 107)

Pelo que foi possível perceber durante esta pesquisa, é plausível afirmar que as
dramistas ao entrarem em cena, manifestam em seus corpos o prazer de estar em cena, o
entusiasmo fica evidente por meio da gestualidade firme e presente no palco onde partituras
corporais transitam entre um drama e outro que ali são apresentados. Quando interpretam o

____________________________
9
Entrevista 1 - Entrevista realizada com a dramista Ieda Silva, no CRAS Guanacés, em 06 de setembro de 2018.
50

Bailado das flores mimosas, drama que normalmente é o responsável pela entrada das
apresentações, as dramistas de Guanacés exibem uma coreografia simples, mas condizente
com a letra e melodia do drama, e procuram expressar na face e no corpo a satisfação de estar
diante daquele público, apresentando a singela riqueza do trabalho cênico/musical preparado
por elas e revelando consequentemente uma expressão teatral que se interessa mais pela
experiência do encontro do que pelas técnicas pré-fabricadas por estudiosos e teóricos da área.
Diante dessa reflexão, pode-se fazer aqui, o uso das palavras de Paulo Ess, que ao falar sobre
o ator espontâneo diz que “A esse ator não lhe preocupa as interpretações grandiloquentes,
pois, ao assumir a cena, o compromisso maior está com a plateia e a renovação da arte. É esse
compromisso politico que une o ator à plateia, deixando-a completa.” (ESS, 2014, p.20)
Sabendo que os corpos das dramistas pulsam com vigor na construção da
expressividade delas na cena, é importante afirmar que mesmo levados pela emoção das
personas e personagens encarnados por elas durante as apresentações e ensaios, esses corpos
não perdem suas características e aspectos do vivido, pois mesmo no êxtase da cena traços da
vida dessas mulheres estão ali, expostos em seus físicos. No caso das dramistas de Guanacés,
atrizes espontâneas por natureza, consegue-se perceber essa fusão entre personagem e
individuo. Como expressa Ess, ainda na discussão em torno do ator espontâneo:

O ator não expõe somente sua mascara facial, mas também sua máscara interna, e as
duas se misturam em uma só fisionomia que é a sua verdade e vontade. O corpo se
manifesta como deseja e se expressa com singeleza rotineira. Espontaneamente, esse
corpo é capaz de reproduzir e conceber as energias férteis, que lhe dão luz própria.
Notamos, no corpo do ator espontâneo, uma concepção dessa gestualidade que está
referendada pelo seu dia a dia, assim as imagem e figuras que surgem, gravam-se
como uma lenda. (ESS, 2014, p. 22)

E desse modo ocorre com as dramistas de Guanacés, ao interpretarem flores, baianas,


índias ou ciganas, estas artistas expressam a energia e magia da transformação, dando lugar
em seus corpos à outros seres, e colocando nessas personagens o que suas carcaças têm a
oferecer, não anulando assim o que cada uma carrega em sua individualidade corpórea. Diante
disso, o que pode notar-se é que na cena, as dramistas são como mediadoras das personagens
e as histórias apresentadas na relação com o público, reafirmando assim que a presença da
física da dramista é o mais importante nas apresentações dos dramas, como destaca Barroso:

As dramistas vão ao palco para divertir a plateia e o fazem muito bem. [...] no palco,
mostram principalmente a si mesmas, seu poder de encanto. Nem mesmo é o bailado
ou a comédia que está em foco durante suas apresentações, mas o corpo e a alma das
51

dramistas em cena, a ânima que flui de suas figuras e seduz a plateia. (BARROSO,
2015, p. 21)

Refletindo sobre essa questão do corpo que dá vida aos personagens que aparecem nos
dramas de Guanacés e indagando as dramistas sobre como ocorre isso, foi possível observar
que a relação criador e criatura ocorre de maneira muito espontânea e natural, para elas subir
no palco e interpretar outros está mais ligado à emoção do que à técnicas. É como se naquele
momento elas passassem por uma espécie de transformação de corpo e alma, ao mesmo
tempo em que aqueles personagens já são figuras intimas à vida destas mulheres, podendo
assim ativá-los ou desativá-los em seus corpos com uma certa tranquilidade. Dona Ieda depõe
um pouco sobre sua relação com algumas das personagens que interpreta:

É como eu fosse a Judite mermo. Mermo que você não queira ser aquela
personagem, mas naquela hora você é aquela personagem nem que você não queira.
A gente se sente desse jeito, a gente se sente realizada. Naquela hora eu sou uma
Judite. Aquela outra que a gente se apresenta... João e Mariana! João e Mariana, a
gente canta aquilo realizada, é como a gente seja a personagem. É por isso que dá
certo! Porque se a gente não se transformasse naquilo que a gente tá fazendo num
dava certo não. (SIC) [Informação verbal]10

E assim essas personagens vão ganhando vida por meio das dramistas, sendo por meio
dessas personagens que a história e a mensagem de cada drama cantado chegam até a plateia,
e assim como foi dito que a dramista é o principal elo entre o público e as personagens
apresentadas, nesse sentido, pode se dizer que as personagens se configuram como o principal
canal pelo qual se desenvolve a ação dramática. Em reflexão sobre personagem, Ess expõe
que:

No gênero dramático, o narrador passa para primeiro plano e transforma-se em


personagem. Os acontecimentos vão surgindo sem necessariamente serem narrados.
É através dos personagens que a estória chegará ao público, tudo será visto através
do personagem. (ESS, 2004, p.24)

Nessa discussão sobre personagem, é cabível trazer aqui mais um fato que reafirma
mais ainda a soberania da presença da mulher no drama. Assim como figuras femininas como
as das ciganas e baianas, existem também muitos dramas que contam a presença de
personagens masculinos, e que mesmo diante das diferenças anatômicas são interpretados
____________________________
10
Entrevista 3 – Entrevista realizada com a dramista Ieda Silva, na Escola de Música Maria Marlene, em
Guanacés-CE no dia 02 de Abril de 2019.
52

pelas dramistas, para que estes personagens ganhem vida no palco, estas atrizes, imbuídas
pelo desejo de representar trazem para seus corpos os trejeitos e características dessas figuras
masculinas. Em Guanacés, os personagens masculinos na grande maioria das vezes são
apresentados pela dramista Marlene que sempre ganha o público com sua jocosidade em cena.
Segundo Dona Marlene, o fator que a leva a um bom desempenho quando interpreta seus
personagens está ligado à forças que estão para além do tangível e do terreno, e, além disso, a
mesma revela que contentar o público nas apresentações é o seu principal estímulo em cena,
em suas palavras:

Só Deus que dá força, e a sabedoria né, pra eu fazer aquele papel. [...] Apesar de eu
ser mulher, mas eu faço papel do homem, porque as vezes minhas amigas num
querem, mas eu faço com muito gosto, e faço tudo pra agradar ali a platéia né, quem
tá ali nos assistindo e o que for pra fazer eu faço. [Informação verbal]11

Dona Marlene, ainda sobre a construção dos personagens masculinos que interpreta,
relatou que para vesti-los, conta com a parceria de seu filho mais velho que empresta algumas
de suas roupas para que a mãe possa usar como figurino enquanto se apresenta. Diante desta
declaração, é possível destacar a importância da família dos brincantes nas mais diversas
manifestações populares, pois muitas vezes alguns familiares contribuem de forma direta ou
direta com essas práticas. Nas danças dramáticas, por exemplo, isso pode ser facilmente
percebido como expõe Souza ao dizer que:

É preciso destacar a presença dos familiares e amigos que não fazem personagens,
pois sem eles esse teatro/dança brincante não ocorreria, já que atuam na confecção
de trajes, costuram, pintam, bordam, organizam lanches nos ensaios, colaborando
sempre aqui e ali. (SOUZA, 2014, p. 113)

Além dos familiares, pode-se também citar o apoio que as mesmas recebem da
comunidade, afinal de contas, elas são as estrelas do lugar, não importa se faça sol ou chuva,
aquele público cativo sempre estará ali para prestigiar suas artistas.
Assim, as dramistas vão fortalecendo cada vez mais o dom que a vida lhes deu, como
rendeiras que traçam tramas com as linhas que formarão desenhos, elas criam possibilidades e
brincam com os aparatos que possuem em sua arte, unindo ritmos, gestos, emoções e

____________________________
11
Entrevista 4 – Entrevista realizada com a dramista Marlene Lima, na Escola de Música Maria Marlene, em
Guanacés-CE no dia 12 de Março de 2019.
53

memórias em excelente harmonia na cena, sempre sensíveis ao que há de novo, sem perder a
essência do que é antigo.
E é nessa perspectiva dos dramas conectados ao que é novo, que podemos falar um
pouco sobre a tecnologia como auxiliar no repasse do saber, pois o que antes era guardado
somente na memória e repassado pela oralidade, hoje se conecta às possibilidades do mundo
digital. Na sessão a seguir será discutido um pouco sobre essas relações entre o saber popular
e a tecnologia, além de falar sobre a criação cênica a partir da matriz estética dos dramas
cantados e da inserção destes no âmbito escolar por meio da prática docente.
54

4. AS RELAÇÕES PERTINENTES DOS DRAMAS POPULARES COM A


CRIAÇÃO CÊNICA E COM A DOCÊNCIA.
4.1. A presença dos dramas nos processos de criação do espetáculo Entre a Taipa
e a Catingueira.

Sabendo que a cultura popular tradicional configura-se como um espaço repleto de


inspirações para criação cênica, como frisado no referencial teórico deste trabalho, no qual
também foram citados trabalhos que de alguma forma se utilizaram da matriz dos dramas
populares em suas dramaturgias, reserva-se aqui um espaço para falar sobre o processo de
criação de um destes trabalhos, bem como sobre as ligações deste com o objeto de estudo
desta pesquisa. O trabalho em questão é o espetáculo Entre a Taipa e a Catingueira, do
Grupo Base de Teatro, da cidade de Cascavel. Vale ressaltar que este pesquisador faz parte do
grupo citado, além de integrar o elenco do espetáculo a ser analisado.
Antes de dar início à discussão em torno do espetáculo cênico é necessário falar um
pouco sobre o grupo que o geriu, para que a compreensão e as conexões com as informações
sejam mais eficazes.
Situado na cidade de Cascavel-CE, o Grupo Base de Teatro, criado em 13 de Abril de
2014, vem ao longo de sua trajetória escrevendo uma nova página no que diz respeito ao fazer
teatral de sua cidade. Ao longo de 5 anos, o grupo tem realizado diversas produções artísticas
e participou de vários festivais, tanto a nível local como também nacional. Apoiando sua
pesquisa na matriz estética da tradição popular cearense, o grupo procura incorporar em suas
montagens elementos da cultura popular tradicional com ênfase em sua região geográfica,
seguindo a premissa de que o encontro do teatro com o mundo dos ritos, das brincadeiras, dos
costumes e crenças de seu povo gera um espaço de extrema importância para ambas as partes,
pois, se de um lado um contribui com símbolos, músicas, imagens e inspirações para
determinadas criações, do outro lado se firma a relevância de se falar, evidenciar e valorizar
os saberes e costumes deste mundo encantado, revelando também as belezas deste a diversos
públicos.
Sobre os integrantes do grupo, é válido salientar que a maiorias deles são alunos e ex-
alunos do curso de Licenciatura em Teatro do Instituto Federal do Ceará, e que tal detalhe foi
de fundamental importância na criação do espetáculo teatral a ser explanado a seguir, pois por
meio de algumas das disciplinas do curso, sendo estas as disciplinas de Teatro e Cultura
Popular, Técnicas da Encenação, e Voz Falada II, foi possível criar e experimentar pequenas
células que se conectaram ao longo do processo de composição do espetáculo.
55

Estreado em Outubro de 2017, o espetáculo Entre a Taipa e a Catingueira faz uma


homenagem à mulher sertaneja levando para cena a poética existente na força feminina dos
sertões nordestinos e os encantos e mistérios que as circundam. Nesse entremeio, se insere a
figura da dramista, que por meio da singeleza artística que carrega em si, canta e reverbera
para o mundo os tesouros da memória, fazendo de um bem que a vida concedeu – o dom de
cantar e se encantar – o dom de ser dramista. Para uma melhor compreensão da ideia da peça
segue a sinopse:

Entre a Taipa e a Catingueira é uma singela homenagem à mulher sertaneja, que é


mãe, lavradora, parteira, carpideira, rendeira, rezadeira, dramista e que possui dentre
estes, muitos outros dons. Mulheres que lutam diariamente debaixo do sol que não
dá descanso, que vivem cercadas por mistérios e encantos, e que trazem consigo
marcas de bravura. São personagens que mantém uma relação intrínseca com o
sagrado, com as forças sobrenaturais e com sua ancestralidade, fazendo com que
estas jamais percam sua fé, mesmo diante da seca que põe medo e machuca. 12

O desejo do grupo em criar o espetáculo surgiu após um dos integrantes, Eleonardo


Souza, ter compartilhado algumas das histórias contadas por sua avó, Dona Maria Nogueira
de 73 anos, que mora no Choró Cajazeiras, localidade rural de Cascavel. Dentre essas
histórias, Dona Maria também cantou algumas canções que lembrava, como incelenças,
cantigas e dramas, algumas ela lembrava na íntegra, outras apenas algum trecho curto, no
entanto, tudo era gravado e transcrito pelo grupo.
Como já era do interesse da trupe criar um espetáculo que levasse para a cena
elementos da tradição popular, a partir dessas histórias e canções, o grupo foi experimentando
e criando coletivamente células que poderiam compor um produto cênico, durando este
processo cerca de um ano aproximadamente.
Na dramaturgia do espetáculo Entre a Taipa e a Catingueira há elementos e figuras
femininas ligadas aos sertões nordestinos. O cerne do trabalho se encontra na imagem da
mulher sertaneja que se revela na cena a partir dos seus mais diversos ofícios, e é por meio
principalmente das músicas utilizadas no espetáculo que essas personagens desenvolvem suas
performances. Sobre essa musicalidade presente no espetáculo, o ator Eleonardo Silva
observa que:

Essas músicas trazem histórias, essas músicas trazem poesia, essas músicas trazem a
vida como ela era na época dessas senhoras né, na época de juventude, enfim. São
músicas que falam de amor, de medos, de mitos, enfim. E é dentro desse universo
____________________________
12
Sinopse feita pelo autor deste trabalho. (2017)
56

que o grupo tá investigando né, injetando isso na composição desse espetáculo, na


peça essas músicas têm essa função muito importante, pois se inserem como
dramaturgia mesmo, é através da música que a história é contada também.
[Informação Verbal]13

E foi levando em consideração esse universo do cancioneiro feminino que o grupo


decidiu inserir no trabalho dramas populares, como forma de evidenciar essa manifestação tão
comum a muitos grupos de mulheres pelo estado. Em uma das cenas do espetáculo, caixotes
em que as personagens se sentam transformam-se em cestas de flores, flores de papel crepom
que são entregues à plateia ao som de um drama de florista.

Figura 17 - Cena das dramistas no espetáculo Entre a Taipa e a Catingueira,

Foto: Francisco da Costa


Fonte: Acervo de Francisco da Costa

Foi durante o período de criação deste trabalho que os integrantes Bruno Monteiro e
Eleonardo Silva iniciaram o trabalho já explanado acima com as dramistas de Guanacés.
Desse modo, os dois perceberam que com este contato direto com essas mulheres que em seu
espírito traduzem muito do que a peça fala, seria possível não só aprender dramas ou outras
canções e histórias que poderiam ser inseridas no espetáculo, como também observar e
vivenciar momentos com elas que fariam toda diferença na hora de levar para a cena o corpo,
a voz e a gestualidade das personagens do espetáculo. Para Eleonardo Silva, esse contato
direto com as dramistas de Guanacés foi de extrema importância durante o processo de
construção de sua personagem, segundo ele:

Esse período pra mim enquanto ator foi de extrema importância, estar com elas, não
só com elas, mas também com minha vó, ao mesmo tempo em que eu criava a
personagem pra esse trabalho, ampliou a minha compreensão pra o que estávamos
fazendo nos ensaios, posso dizer que foi como estar diante de um conhecimento que

____________________________
13
Entrevista 5 – Entrevista realizada com o ator Eleonardo Silva, na casa do depoente, em Cascavel-CE no dia
02 de Abril de 2019.
57

tá pra além do que a gente busca nos livros né. Outra coisa que pude observar e foi
importante pra mim, foi ver a naturalidade com elas entram em cena quando vão
cantar seus dramas pra uma platéia, uma vez que talvez a nossa maior dificuldade,
do ator em si, é ser natural em cena, e isso elas são assim essencialmente, elas são
naturais em cena por essência, tudo o que elas mostram no palco é o dia a dia delas,
é o meio em que elas vivem né, são falas próprias também, por mais que tenha
criações poéticas, mas é ali o dia a dia delas, o universo em que elas foram inseridas,
criadas, construídas, enfim, então o que a gente tira disso é como ser natural em
cena. (Informação verbal)14

De fato, como bem frisado pelo entrevistado Eleonardo, a naturalidade das dramistas
em cena é perceptível. As mesmas transitam entre seus personagens com certa facilidade, pra
cada drama uma emoção, uma gestualidade, não importa o que o drama solicite, seja um olhar
de tristeza ou um corpo jocoso, as dramistas estão sempre para o que der e vier, sempre
conectadas ao que estão a fazer no palco e ao público que as admira.
Um momento marcante na trajetória do espetáculo foi uma apresentação realizada no
dia 30 de Setembro de 2018, em Cascavel. Na ocasião o grupo teve a oportunidade de estar
diante de um púbico mais que especial, pois cerca de 40 idosas do Serviço de Convivência e
Fortalecimento de Vínculos do CRAS Guanacés foram especialmente convidadas para assistir
a peça, estando entre estas senhoras as dramistas do distrito, tanto aquelas que estão na ativa
como algumas que no passado participaram das brincadeiras de drama. Apresentar o
espetáculo para essas senhoras foi como sentir um pouco de cada uma delas, passear por suas
emoções e memórias, era possível perceber em seus olhares as conexões que faziam do que
estava sedo apresentado às suas lembranças do vivido. Representação e realidade estavam ali
cara a cara no encontro desse duplo.
Ao final da apresentação do espetáculo, o grupo fez seus agradecimentos e
homenageou algumas das pessoas que foram e são importantes o coletivo, e dentre essas
pessoas homenageadas estavam as Dramistas de Guanacés por inspirarem o grupo neste
processo e por persistirem em sua arte no município. Na ocasião, a dramista Ieda Silva
recebeu uma comenda em nome do grupo de dramistas. Emocionadas, as demais dramistas
que ali estavam subiram ao palco e cantaram um drama para o público presente.

____________________________
14
Entrevista 5 – Entrevista realizada com o ator Eleonardo Silva, na casa do depoente, em Cascavel-CE no dia
02 de Abril de 2019.
58

Figura 18 – Dramistas de Guanacés recebendo homenagem do Grupo Base de Teatro.

Foto: Mateus Meschik


Fonte: Blog Grupo se de Teatro (2018)
Disponível em > www.grupobasedeteatro.blogspot.com

A partir do encontro relatado, pode-se perceber o quanto é importante e relevante


reconhecer e levar para a cena esse potencial que a tradição popular oferece, elementos que
muitas vezes estão tão próximas a grupos teatrais e muitos desses não percebem. O teatro que
é político por natureza, ao evidenciar esses saberes populares em suas criações, enaltecem
belezas que muitas vezes se encontram empoeiradas às vistas de uma parcela da população, e
de certo modo somam força à resistência de mestres e grupos tradicionais que lutam diante
das intempéries alavancadas pelo sistema capitalista. Cabe aqui salientar, que esta reflexão
não quer colocar como algo primordial a criação de trabalhos a partir de matrizes estéticas da
tradição popular, mas sim dizer que existe um saber que está ali próximo, um saber que é
essencialmente do povo, e que merece atenção assim como os grandes teatrólogos, seus
métodos e as mais diversas poéticas existentes no campo teatral.

4.2. Valorização e fomento dos dramas no âmbito escolar: possibilidades para a


prática docente.

É inegável que no âmbito das manifestações populares, mestres e brincantes resistem e


perpetuam seus tesouros por meio da oralidade e vivência, mesmo diante do capitalismo e
seus mecanismos que cada vez mais penetram nas culturas e de uma forma ou de outra
interferem nos processos de repasse dos costumes para as gerações mais novas. No entanto,
nesse mundo onde o tempo passa cada vez mais rápido, trazendo com rapidez novas
tecnologias e transformações de costumes, o reconhecimento e fomento das tradições
populares tem se tornado algo necessário e urgente, uma vez que a globalização vem
invadindo vidas e costumes sem pedir licença e muitas vezes sem a preocupação de se manter
traços culturais essenciais dos indivíduos de uma determinada comunidade. Desse modo,
trago a reflexão do espaço escolar com um lugar de extremo poder e relevância no processo
59

de valorização e resistência da cultura de um povo, frisando a pertinência dos dramas


populares no ensino de teatro.
Na escola é onde se cruzam diferentes realidades, vivências e experiências de vida,
desse modo, o ambiente escolar se configura como um espaço de troca e construção de
conhecimentos, possuindo grande importância na vida de seus alunos e sua comunidade, uma
vez que esta, quando permeada por profissionais comprometidos com uma educação de
qualidade, desempenha um papel transgressor e transformador. Como salienta Souza:

A escola, espaço formal da educação (embora não seja o único), é um ambiente de


diálogo que promove a interação de saberes relativos ao mundo, sobre os sujeitos
envolvidos e suas dificuldades. Assim, educar é promover interação e conhecimento,
estabelecendo oportunidades de convivência com a pluralidade, reconhecendo as
diferenças e promovendo o desenvolvimento e a criação cultural. (SOUZA, 2014, p.
72)

Para que este objetivo seja alcançado no âmbito escolar, mesmo em meio as
dificuldades e complexidades latentes à área da educação, se faz necessário enxergar a escola
como um local que está para além do ensinar e aprender, é preciso visualizá-la de uma forma
mais agregadora às questões sociais que a circundam. Macena diz:

Percebo na escola e na educação popular o espaço mais adequado para a


valorização, reconhecimento e registro da cultura folclórica, dos saberes e fazeres do
povo e de cada comunidade. No entanto, este espaço não é percebido por diversos
profissionais da educação, pois o planejamento das atividades desenvolvidas na
grande maioria das nossas escolas, fala sobre diversidade cultural enfatizando
costumes de vários lugares menos da comunidade especifica onde esta está inserida.
Desta forma os jovens cearenses aprendem a valorizar a acultura do outro, do
exótico, em detrimento do que está no seu entorno. (MACENA, 2006, p. 47)

Levando em consideração essas reflexões acerca do âmbito escolar, não fica difícil
enxergar o valor da presença dos dramas populares inseridos na educação, sobretudo em aulas
de teatro para crianças jovens, principalmente nas escolas locais.
Os dramas populares trazem uma essência de simplicidade e delicadeza que facilmente
pode ser apreendida em exercícios e criações de um processo pedagógico teatral, no qual o
educador pode fazer uso da musicalidade, da repetição de versos, da gestualidade das
dramistas, além de outros elementos comuns aos dramas, e levar os alunos a um jogo
prazeroso na criação da cena, estimulando percepções e sentidos em torno de um fazer teatral
brincante e popular.
60

Além disso, dependendo da forma como essa matriz estética seja utilizada em sala de
aula, pode-se estimular e propiciar o uso de um recurso importante no ensino teatral que é a
improvisação, pois a partir das melodias e letras dos dramas é possível propor para as crianças
a criação de novas estrofes e versos, impulsionando assim o ato criativo nos educandos. Foi o
que fez uma das entrevistadas para este trabalho, a pedagoga Elisângela Castro que
atualmente dá aulas na educação infantil na rede municipal de ensino de Beberibe, Ceará.
Segundo a docente, que além de Pedagoga em exercício é aluna do curso de Licenciatura em
Teatro do Instituto Federal do Ceará, – IFCE – o interesse em realizar um trabalho com suas
alunas se utilizando da matriz estética dos dramas ocorreu após ela ter tido a oportunidade de
conhecer Dona Zilda e Dona Augusta, dramistas de Guaramiranga, em uma viagem feita à
cidade em 2017. Na ocasião, Dona Zilda a ensinou o drama “As mentirinhas”, autorizando-a
a utilizá-lo em uma apresentação com um grupo de alunas. A depoente frisa também que o
seu interesse em conhecer mais sobre os dramas populares e possivelmente aplicar na sua
prática docente, surgiu durante a disciplina de Teatro e Cultura Popular do curso de
Licenciatura em Teatro no IFCE. Ao falar um pouco sobre a realização desta atividade dentro
da escola, a mesma conta que:

Uma das coisas que mais me motivou a realizar esse trabalho com as minhas alunas
foi o fato de poder de alguma forma valorizar essa manifestação tão bonita e tão
forte no nosso estado, principalmente porque eu trabalhei essa atividade na cidade
de Beberibe, que é uma cidade que tem muitas dramistas, e eu percebi que as
crianças não conheciam essa manifestação popular, e também não sabiam que na
cidade delas existem pessoas que fazem esse lindo trabalho... E durante esse
processo eu me preocupei muito em explicar pra elas um pouco sobre os dramas.
Primeiro eu dei uma introdução pra depois partir pra prática, até mesmo pra elas
entenderem o que elas estavam fazendo e ao fim de tudo foi muito bacana ver as
crianças reconhecendo essa cultura como algo importante e que merece ser
valorizado. [Informação Verbal]15

A prática docente em questão foi realizada na Escola Municipal de Ensino


Fundamental São Vicente, com crianças do ensino fundamental I, com faixa etária entre 7 e 8
anos de idade. Vale frisar que a professora Elisângela tem uma longa trajetória como
professora de teatro, principalmente com uma prática voltada para crianças, no entanto, esta
foi a primeira vez que ela fez essa trama entre o ensino de teatro e cultura popular tradicional,
levando-a a notar a pertinência da realização de mais trabalhos como estes nas escolas como
forma de valoração desses saberes.
____________________________
15
Entrevista 6 – Entrevista realizada com o Atriz/Docente Elisângela Castro, na sede do Grupo Base de Teatro,
em Cascavel-CE, no dia 13 de Abril de 2019.
61

Figura 19 - Alunas da Escola Municipal São Vicente apresentando o drama As Mentirinhas.

Foto: Elisângela Castro (2017)


Fonte: Acervo pessoal de Elisângela Castro

Olhando para essa imagem, é possível perceber o sentido de importância que um


trabalho como este tem para os alunos que são oportunizados a esta experiência. Ver essas
alunas em cena dando vez aos saberes ancestrais traz à tona a ideia da função social que é
inerente ao fazer teatral, pois nota-se, na figura do docente, não somente o interesse de se
ensaiar e apresentar uma história, mas também de somar com a resistência dos saberes e
costumes da tradição popular.
Como afirma Duarte Júnior (2012, p. 79): “Historicamente sempre tivemos aqui a
educação do colonizador, isto é, aquela que despreza as condições especificas da terra e
procura impor a visão de mundo que interessa às classes dominantes.” Desse modo, percebe-
se o ensino de teatro, bem como o ensino de arte como um todo, como uma correnteza que
busca romper com esses estigmas educacionais, pois a partir do momento que se leva para os
educandos em teatro possibilidades de criação a partir do que é essencialmente próprio a seu
meio e a cultura de seu povo, é como se abrisse um caminho para o reconhecimento de sua
identidade cultural. Posto isso, é indubitável afirmar que essa forma de ensino que instiga a
construção do aprendizado de maneira mais libertadora e sensível, automaticamente burla o
sistema dominante tão comum à realidade do sistema educacional brasileiro como um todo.
Além do rompimento dessas barreiras impostas, o ensino de teatro, esteja ele
mergulhado nas possibilidades oferecidas pelo uso da cultura popular ou não, permite uma
compreensão e o uso do corpo como ferramenta pedagógica, uma vez que a grade de
disciplinas de modo geral se preocupa somente com os conteúdos pragmáticos, focalizando
principalmente na mente em detrimento do corpo que muitas vezes é anulado no processo
educacional dos indivíduos.
62

É no espaço de fruição criativa do ambiente escolar que os dramas cantados podem ser
inseridos por professores de teatro, a fim de enriquecer a relação ensino/aprendizagem.
Fazendo uso das muitas possibilidades cênicas que os dramas propõem, torna-se possível criar
um espaço de aprendizagem e brincadeira, como fazem as dramistas quando dividem seus
conhecimentos e experiências umas com as outras em seus momentos de criação. É a
educação que ocorre no corpo a corpo, na vivência, no ato de sentir e de compartilhar. Tal
processo de aprendizagem não se restringe somente aos dramas, esta experiência é comum às
mais diversas brincadeiras e manifestações da cultura popular tradicional. A respeito disso,
Vieira, em um estudo sobre os pastoris potiguares, esclarece que:

No Pastoril, assim como em outros folguedos da cultura popular brasileira, a


aprendizagem se dá no corpo do brincante; o corpo é o seu meio de expressão e
comunicação. É através dele que os participantes vivem suas experiências estéticas,
transcrevem as marcas da cultura, afirmam sua existência, cantam, dançam,
simbolizam, encontram respostas para suas inquietações, projetam valores,
concebem e representam experiências, sentidos e significados. (VIEIRA, 2012, p.
159)

Por mais que essa reflexão a cerca da aprendizagem por meio do corpo exposto refira-
se aos pastoris, não significa que ela se apoie apenas nessa dança dramática, pois isso se
repete em outros folguedos, e nos dramas essa relação entre aprendizagem e corpo é algo
estreito. Durante as observações feitas dos processos criativos e dos ensaios das dramistas de
Guanacés, pude notar que a melhor forma de aprender a ser dramista é sendo dramista, ou
seja, não existe fórmula ou método, é com a prática e principalmente com o desejo de se
expressar que essas mulheres aprendem o oficio do drama.
Expressa a ideia de que os dramas populares podem ser fortes aliados à docência em
teatro, seja no espaço de ensino formal ou não, é de grande relevância salientar aqui a
importância da presença das mulheres na escola e em espaços que de alguma forma também
tenham a contribuir com a valoração e o fomento dessa cultura, afinal, mais do que falar sobre
ou mesmo utilizar desta matriz em atividades com os alunos, faz-se necessário evidenciar
quem tanto tem a contribuir para com a sociedade no que diz respeito a uma construção mais
sensível e agregadora do saber, possibilitando também o encontro e o reconhecimento desses
educandos para com aquilo que é seu, que é próximo à sua realidade, que faz parte da sua
identidade cultural.
No que diz respeito à presença dos mestres desses saberes no âmbito escolar, cabe
acentuar que as Dramistas de Guanacés aqui e acolá são convidadas para se apresentarem nas
63

escolas do distrito, onde todas vão felizes para apresentarem sua arte para uma plateia jovem
e pulsante, renovando nelas a esperança de perpetuação dessa expressão.
Em novembro de 2018, em uma ação itinerante do evento Mestres do Mundo, que
ocorreu na cidade de Aquiraz, uma das escolas de Guanacés foi contemplada com uma tarde
de troca de experiência entre Mestres e os alunos da escola. A ação se desenvolveu na Escola
de Ensino Médio Integral Custódio da Silva Lemos, que é voltada para adolescentes, e que
recebeu em sua quadra o Boi Coração da cidade de Ocara, as dramistas do distrito e o senhor
Dida que foi brincante Boi do Miguel que fez parte da história cascavelense e que hoje existe
somente na memória.

Figura 20 - Dramistas de Guanacés se apresentando na ação itinerante do XII Encontro Mestre do Mundo, em
Guanacés-CE.

Foto: Bruno Monteiro


Fonte: Acervo pessoal do autor

No momento desse registro fotográfico, as dramistas estavam a cantar o drama Flores


mimosas. Ao final da apresentação agradeceram pela oportunidade e falaram para os alunos
sobre a importância dos dramas na vida delas e em Guanacés. Enquanto isso, pude perceber
um olhar de encantamento e respeito por parte da grande maioria dos alunos diante das
estrelas locais. Tal momento de troca, só reafirma a ideia de que a escola deve agregar mais e
mais essas pessoas à sua dinâmica de ensino. À respeito disso, Macena reflete que:

Mestres e fazeres populares precisam estar presentes principalmente na escola onde


seus filhos, netos, parentes estudam, pois o reconhecimento que mais nos encanta é
o daqueles que estão mais próximos a nós. [...] É preciso deixa-lo (patrimônio
imaterial do povo cearense) bem perto, da primeira infância até a universidade,
assim, o nosso patrimônio imaterial estará consolidado, registrado e certificado na
formação intrínseca do nosso povo, sendo estes os principais artífices na missão de
preservar e salvaguardar. (MACENA, 2006, p. 47)
64

Realmente, evidenciar esses saberes junto à comunidade escolar é zelar pelo futuro das
novas gerações que cada vez mais encaram vida conforme a rapidez do mundo tecnológico.
E por fim, não poderia deixar de falar aqui também da importância que a disciplina de
Teatro e Cultura Popular tem no curso de Licenciatura em Teatro do IFCE, pois por meio
dela, os alunos têm a oportunidade de conhecer e voltar sua atenção para um fazer artístico
que é essencialmente popular, que possui técnicas próprias, distintas do saber eurocêntrico,
revelando também, as possibilidades que a cultura popular tradicional tem a oferecer na
construção de repertório para estes indivíduos que estão se formando enquanto artistas
docentes.

4.3. A tecnologia como aliada no repasse do saber.

Após essa discussão em torno da importância dos dramas populares na escola,


sobretudo nas aulas de teatro, faz-se necessário salientar aqui um produto que se originou em
meio ao percurso desta pesquisa: o cd Memorial do Cancioneiro Feminino de Guanacés, que
conta com um apanhado de músicas cantadas pelas dramistas de Guanacés, sendo composto
não somente por dramas, mas também por incelenças, cantigas e outros gêneros.
Como exposto anteriormente, essa pesquisa desenvolveu-se em meio um trabalho
realizado junto ao também aluno do IFCE, Eleonardo Silva. Então, durante esse período,
surgiu a ideia de criar algo que de alguma forma guardasse e divulgasse ainda mais a arte
dessas mulheres dramistas de Guanacés, nos levando então a pensar na possibilidade de junto
às artistas criar um cd com boa parte das coisas que elas cantavam a cada encontro, de modo
que este trabalho fosse repassado para escolas e equipamentos culturais do município, vindo
não só a valorizar esse saber, mas também proporcionar aos alunos e aos profissionais da
educação e da arte, uma aproximação do trabalho das dramistas e o reconhecimento de sua
importância para a cultura de Cascavel e do Estado do Ceará como um todo.
65

Figura 21 - Capa do CD Memorial do Cancioneiro Feminino de Guanacés. (2019)

Foto: Prefeitura Municipal de Cascavel


Arte Gráfica: Bruno Monteiro e Eleonardo Silva
Fonte: Acervo pessoal do autor

Para a produção desta mídia, inicialmente foi necessário refletir sobre este trabalho
poderia ser realizado, uma vez que não havia recurso financeiro para a produção, sobretudo
para levar as dramistas a um estúdio profissional. Foi então que percebemos que o mais
importante naquele momento seria fazer o registro dessas músicas, de inseri-las no mundo
digital para que não se perdessem ao longo do tempo, uma vez que muitas outras musicas
desse cancioneiro de Guanacés não são mais lembradas por suas dramistas, então, seguindo
essa premissa, decidimos que o CD seria produzido, de forma bem amadora e artesanal, mas
com todo cuidado e primor.
Diante dessa reflexão a cerca da relevância de iniciar o trabalho e produzir esse cd,
começamos o processo de produção. Inicialmente, foi explicado para as dramistas o quanto
aquilo seria bom para elas e muitas pessoas, e o quão relevante seria aquilo para auxiliar de
alguma forma no repasse do saber. As dramistas ficaram logo empolgadas e automaticamente
já foram cantando os dramas que seriam bons para constituir a playlist do CD.
Como a falta de recursos financeiros não possibilitava a gravação dos dramas em um
estúdio profissional, percebeu-se que a melhor forma de gravá-los seria com o auxilio de um
aparelho celular mesmo, tendo o cuidado para que isso fosse feito em locais que não tivessem
tantas interferências sonoras. E assim foi feito, para gravar as 38 faixas necessitamos apenas
de três coisas: um celular, um local silencioso e a voz das dramistas.
Foram muitas manhãs prazerosas de conversas e trabalho até se chegar ao produto
final, o que deixou as dramistas extremamente felizes e orgulhosas ao receberem suas cópias.
Infelizmente, após o trabalho de gravação, edição de áudios e edição gráfica, não foi possível
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fazer uma remessa dos CD’s em grande quantidade, uma vez que tudo foi realizado a partir de
recursos próprios dos idealizadores do trabalho, produzindo produzidas apenas um total de
dez cópias, ficando assim, o desafio de se buscar recursos e parcerias para uma maior
produção de cópias posteriormente.
Outro trabalho de mídia realizada durante esse período foi um pequeno documentário
sobre a trajetória das dramistas de Guanacés. Gravado e editado em período anterior ao CD o
documentário que possui pouco mais de 11 minutos, também foi produzido de forma amadora
pelos mesmo idealizadores do CD.
Com o título Dramistas de Guanacés: Salvaguardando afetos e memórias do vivido, o
documentário pode ser encontrado no site do YouTube, dentre suas cenas estão momentos de
ensaios, apresentações e entrevistas com as dramistas. Além deste site de compartilhamento
de vídeos, o documentário foi postado também em redes sociais, afim de que o máximo de
pessoas pudessem visualizar.
Diante do exposto, é válido ressaltar que tudo foi gravado e divulgado com
consentimento e recebeu a devida autorização por parte das dramistas, e que tais trabalhos,
mesmo que realizadas de forma simples e amadora, possuem uma grande relevância no
processo de valorização, fomento e divulgação desse patrimônio imaterial de Guanacés.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É pertinente dizer que este trabalho mais do que apresentar resultados concretos ou
mesmo provar algo, se propôs a levantar discussões e provocar reflexões em torno da
importância do reconhecimento, da valorização e do fomento da manifestação dos dramas
cantados, focalizando nessa expressão popular no distrito de Guanacés, em Cascavel – Ceará.
E assim foi feito, foi posto em evidência neste trabalho toda a gama de particularidades,
características e distinções do fazer artístico das dramistas de Guanacés, buscando refletir em
torno do oficio de dramistas a partir de um olhar voltado para os elementos teatrais inerentes a
essa expressão popular tradicional.
Ao longo das reflexões aferidas nesse estudo, pudemos compreender os dramas
populares como um todo, percebendo que estes possuem características e complexidades que
fazem com que não seja uma tarefa tão simples conceituar com exatidão essa manifestação.
Desse modo, foram analisadas diferentes concepções, sob a ótica de vários teóricos, de modo
que essas concepções se somassem e ao fim nos levassem a um entendimento da manifestação
como todo.
Foi notório que este trabalho teve como foco nas discussões levantadas no decorrer do
processo, a presença da figura feminina nos dramas, a presença dessa mulher que brinca, que
aprende e que ensina o que é ser dramista. A importância de se reafirmar neste trabalho a
importância da presença das mulheres nos dramas reside também no fato de que hoje em
Guanacés, são elas que mantêm viva essa tradição no distrito, tornando-as verdadeiras
guardiãs desse saber e principais fontes para o repasse e manutenção dessa cultura.
No percurso desta pesquisa, evidenciamos que a memória possui uma importância
incomensurável no processo de repasse, no registro e sobretudo na resistência de saberes e
costumes ligados à tradição popular. Pudemos notar que é por meio da memória individual e
coletiva que os indivíduos de uma sociedade guardam e acumulam traços de sua identidade
social, sendo por meio da vívida relação entre as memórias do que se viveu no passado e as
experiências do que se vive agora, que se faz movimentar as engrenagens que mantêm vivos
os saberes e os costumes de um povo, tendo a oralidade como a principal ferramenta desse
processo de troca de experiências e saberes.
Por falar em oralidade, foi possível notar que esta pesquisa se deu em grande parte
pelo contato direto com o objeto aqui estudado, assim a Historial Oral se fez fundamental para
a melhor compreensão do que se buscou até aqui, pois por meio dos relatos de cada depoente
foi possível trançar conhecimentos e refletir sobre eles. Desse modo, cabe a nós reafirmar que
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a História Oral enquanto metodologia se faz extremamente necessária, quando se propõe a


adentrar no universo da tradição popular a fim de desenvolver qualquer estudo que seja para o
meio acadêmico.
Vimos aqui que a manifestação dos dramas cantados possui uma relevância que está
para além do espaço de entretenimento a quem participa. Observou-se que os dramas
representam parte significativa da resistência de seu povo, resistência essa que se faz cada vez
mais necessária em meio a tudo o que a globalização e o capitalismo vem impondo à cultura
de muitas comunidades, como forma de manter viva a sabedoria popular e fazer com que as
futuras gerações possam conhecer e vivenciar momentos prazerosos a partir dos ensinamentos
dos mais velhos.
Além disso, tecemos aqui tramas entre essa manifestação popular e a criação cênica no
teatro, revelando que o uso dos dramas populares como matriz estética inspiradora na criação
teatral pode oferecer ao processo criativo diversas possibilidades cênicas.
Inicialmente, este trabalho buscava apenas chegar à compreensão da lógica de criação
e da organicidade das dramistas para com a cena, além de investigar as possibilidades
estéticas e poéticas da presença dos dramas cantados enquanto matriz estética da tradição na
criação de trabalhos teatrais. Entretanto, como se sabe, uma pesquisa pode ser mutável
conforme o tempo vá passando e o pesquisador se depare com novas possibilidades,
principalmente quando se trabalha com um tema ou objeto que envolve as subjetividades
humanas, como é o caso deste trabalho. E assim ocorreu, após discussões e reflexões,
percebeu-se que seria de grande valia falar um pouco sobre a importância dos dramas em
aulas de teatro, seja no ensino formal ou não, e sobre o quão engrandecedor à construção do
conhecimento a presença das figuras das dramistas nas escolas de Guanacés, afim de
promover o reconhecimento e o respeito para com uma cultura que possui imensa relevância
na identidade cultural do distrito.
Este trabalho pode ser visto com um agente, ainda que pequeno, para a valorização e
fomento do conhecimento sobre os dramas cantados de Guanacés e suas dramistas que lutam
para manter acesa a chama que aquece esse fazer teatral, que é genuinamente popular, e que
constitui parte valorosa do patrimônio cultural imaterial da cidade de Cascavel.
Por fim, concluo este trabalho construído a base de muito suor, alegrias e afetos e que
me deixa com a sensação de dever cumprido, dever este que é apenas um inicio do muito que
ainda há de se trilhar pelos caminhos da arte. Evoé!
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REFERÊNCIAS

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VIEIRA, Marcílio de Souza. Pastoril: Uma Educação Celebrada no Corpo e no Riso. Jundiaí.
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Entrevistas por ordem de entrada no texto.

Entrevista 1 – SILVA, Maria Ieda da. [06 de Setembro de 2018]. Entrevistador: Bruno
Monteiro. CRAS Guanacés, Guanacés, Cascavel- Ceará. 2018. Arquivo MP3 –12min:53seg.

Entrevista 2 – SILVA, Maria Marlene Lima da. [06 de Setembro de 2018]. Entrevistador:
Bruno Monteiro. CRAS Guanacés, Guanacés, Cascavel- Ceará. 2018. Arquivo MP3 –
07min:11seg.

Entrevista 3 - SILVA, Maria Ieda da. [02 de Abril de 2019]. Entrevistador: Bruno Monteiro.
Escola de Música Maria Marlene, Guanacés, Cascavel- Ceará. 2019. Arquivo: MP3 –
05min:21seg.

Entrevista 4 - SILVA, Maria Marlene Lima. [12 de Março de 2019]. Entrevistador: Bruno
Monteiro. Escola de Música Maria Marlene, Guanacés, Cascavel- Ceará. 2019. Arquivo: MP3
– 03min:34seg.

Entrevista 5 - SOUZA, Eleonardo Silva de. [02 de Abril de 2019]. Entrevistador: Bruno
Monteiro. Casa do depoente, Cascavel- Ceará. 2019. Arquivo: MP3 – 11min:19seg.

Entrevista 6 – SABOIA, Elisâgela de Castro. [13 de Abril de 2019]. Entrevistador: Bruno


Monteiro. Sede do Grupo Base de Teatro, Cascavel- Ceará. 2019. Arquivo: MP3 –
07min:06seg.

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