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Rnd-Almeida, O Círculo de Giz Caucasiano
Rnd-Almeida, O Círculo de Giz Caucasiano
Rnd-Almeida, O Círculo de Giz Caucasiano
Tassia Kleine1
Resumo
Abstract
In 1963, a year of great polarization between the conservative sectors, associated with the
military, and the resistance groups, with a leftist-nationalist bias, the play Der kaukasische
Kreidekreis, by Bertolt Brecht, is translated by Manuel Bandeira and staged at Teatro
Nacional de Comédia. In this paper, we will review the figure of the German author in order
to promote a reflection upon the reception of his work. We will also ponder upon the
dialogue established between The Caucasian chalk circle and the political situation on the
eve of the 1964 Brazilian coup d’état. We will then analyze some of the choices made by
Bandeira when dealing with the play’s intertwined lyric and prose, assessing to what
extent the version in Portuguese articulates itself regarding aspects considered by the
critics Susan Bassnett and José Roberto O’Shea as relevant to the adaptation of dramatic
texts to other languages and cultural situations.
1
Bacharel em letras com habilitação em português e alemão e ênfase em estudos literários pela Universidade Federal
do Paraná e mestrado em estudos literários pela mesma instituição em parceria com a Ludwig-Maximilians-
Universität München, de Munique. E-mail: tassiak@gmail.com.
76
Der Kaukasische Kreidedreis no interior da Phasentheorie Brechtiana
77
a criação de suas peças mais maduras.
A elaboração mais complexa acompanha, nas peças que se destacaram no período –
como Mãe coragem e seus filhos e A boa alma de Setsuan –, o emprego de parábolas no interior
das tramas, conforme ocorre n’O círculo de giz caucasiano. Estes apólogos passam por um
processo de reformulação antes de se articularem às peças: as verdades definitivas acerca
do espírito humano que permeiam as suas formas mais antigas são questionadas e
destituídas. A utilização de moldes parabolares constitui jogo que destaca o caráter
altamente histórico e referencial desta terceira fase, que se manifesta de maneira articulada
ao todo ficcional, sem quebras que comprometam o componente estético.
Considerando-se que Brecht afirma buscar nas técnicas da arte dramática chinesa as
bases para a estruturação teórica do efeito de distanciamento em solo europeu 2, é
interessante pensar que n’O círculo de giz caucasiano identificamos influência oriental não
apenas na estruturação da narrativa, mas também na temática. A respeito do tema,
interessa-nos pensar que este se elabora pela adaptação de uma lenda chinesa antiga a
assuntos de interesse político contemporâneo – ou seja, movimentos tradutórios são
centrais para a concepção da peça em si. Quanto à estrutura, a peça se desenvolve por
meio do encadeamento de duas narrativas, uma inserida na outra, recurso literário que
tem entre seus efeitos a característica de chamar a atenção ao caráter ficcional da
representação (MASON, 2007, p. 69).
A consciência de se estar diante de uma peça possibilitaria, na visão de Brecht, um
movimento crítico contínuo diante da experiência teatral. Se o acontecimento cênico não
tem como objetivo principal a obtenção da catarse dentre os espectadores, não ocorre,
também, no decorrer da encenação, mera “descrição do homem subordinada por completo
ao conceito do chamado ‘eterno humano’” (BRECHT, 1978, p. 63), e os acontecimentos não
têm apenas o “valor de tópicos, tópicos essenciais a que se segue a ‘eterna resposta’, a
resposta inevitável, corrente, natural, e, precisamente por isso, humana” (BRECHT, 1978,
p. 63). Ocorrerá, sim, a possibilidade de um olhar crítico-social.
Além de estarmos diante de peças sobrepostas n’O círculo de giz caucasiano – ou seja,
no interior da trama ficcional, as personagens se ocupam de uma montagem teatral
intitulada O círculo de giz, que ocupará a maior parte da encenação – há diálogo entre os
2
BRECHT, Bertolt. Efeitos de distanciamento na arte dramática chinesa. In: BRECHT, Bertolt. Estudos sobre
teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
78
contextos dessas, em especial no que se refere ao problema que nos é apresentado à
abertura do texto. No prólogo, deparamo-nos com dois grupos que disputam um vale: um
possui o argumento da tradição, por ser o grupo que habitava o vale há mais tempo; o
outro se mostra apto a reconstruir o vale e torná-lo mais produtivo. Ao fim do prólogo já
sabemos que o grupo com o domínio técnico para reestruturar o vale terá a posse da
região.
Se o tempo para discussão é curto no decorrer da disputa pelo vale, aspecto
criticado por uma das personagens que viajou para expor sua opinião, a encenação d’ O
círculo de giz, que ocorrerá a convite do grupo que assumirá a responsabilidade pelo
território, constituirá o necessário aprofundamento da argumentação – por meio de uma
estrutura mise-en-abyme3, o recitante, os atores e os músicos, personagens que conduzem a
trama a partir do prólogo, construirão situação cênica com embate e núcleos de
argumentação similares aos verificados no decorrer do litígio. Que esta peça possua
estrutura fabular, forma geralmente empregada para que se apresentem características
humanas imutáveis, e que surja no interior d’O círculo de giz caucasiano justamente com o
intuito de questionar a verdade de grandes constantes, é aspecto que chama a atenção à
proposta historicizante que permeia a produção brechtiana.
Ora, se a estrutura requer do espectador esta participação consciente e se o enredo
tem em seu centro a concepção socialista de que “as coisas devem caber aos que as sabem
fazer melhor” (BRECHT, 2008, p. 109), pondo em cheque a relevância absoluta da tradição
e da constância de certos atributos humanos, podem-se perceber as dificuldades de ordem
política que circundam a recepção da peça desde a primeira montagem, que ocorre em
Santa Monica (EUA) em 1948. Assim, partiremos à apresentação de outro aspecto que se
mostra imprescindível à análise do objeto deste artigo: faremos, no próximo tópico,
algumas colocações mais gerais acerca da personagem histórica Bertolt Brecht, buscando
delinear a percepção popular de sua figura no cenário brasileiro às vésperas do golpe de
64.
3
Se considerarmos as três categorias de mise-en-abyme identificadas por Lucien Dallenbach e expostas por
Nara Maia Antunes em seu livro Jogo de espelhos (a saber, reduplicação simples, infinita e paradoxal),
poderemos verificar que no clássico de Brecht encontramos a reduplicação infinita, que é aquela na qual
“o fragmento mantém com a obra que o inclui uma relação de semelhança a tal ponto que ele também
inclui um fragmento que o reduplica, e assim sucessivamente” (ANTUNES, 1982, p. 61) – classificação
corroborada pelas apresentações musicais e teatrais que tomam lugar no interior d’O círculo de giz.
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Bertolt Brecht e a construção de uma Persona Política
Desde seus primeiros textos, o jovem Brecht dava indícios de que predominaria, ao
longo de toda a sua carreira artística, conteúdo de cunho social e político. Se ainda não
encontramos nas peças que marcam sua estreia como dramaturgo um proletariado que se
insurja contra a burguesia, tal projeto é levado a cabo pela voz do “vagabundo”,
personagem posicionada à margem da sociedade, tal qual ocorre em Baal (ROSENFELD,
1968, p. 124). Anatol Rosenfeld menciona que mesmo em Na selva das cidades, peça na qual
se nota a presença de características do expressionismo, o elemento histórico se sobrepõe
ao que caracterizaria o teatro de vanguarda – que seguiria moldes aristotélicos no que diz
respeito à representação abstrata e absoluta do humano (ROSENFELD, 1968, p. 125).
Brecht, visionário, foi um dos primeiros dentre os artistas e intelectuais alemães a
perceber o risco eminente e a se retirar de seu país após a nomeação de Hitler como
chanceler do Terceiro Reich. Além de suas críticas diretas ao projeto nazista, identificadas,
por exemplo, na “Balada do soldado morto”, o partido do Führer buscaria detê-lo devido
ao seu posicionamento político e à sua defesa do pacifismo – em suas peças e poemas, é
frequente a crítica e mesmo a caricatura do sentimento de heroísmo que caracterizaria os
ingênuos soldados impelidos pelos poderosos a lutar. Seu êxodo o levaria à peregrinação
por diversos países, num trajeto que se inicia na Tchecoslováquia e termina nos Estados
Unidos, onde viveu seis anos. Em 1947, é chamado a depor para o Comitê de Atividades
Antiamericanas devido à defesa do comunismo que perpassa sua obra. Embora não tenha
sofrido maiores consequências devido à entrevista, constata que é melhor retornar à
Europa e, em 1948, novamente em Berlim, retoma as atividades no Berliner Ensemble.
Em 1949, à ocasião da divisão da Alemanha em República Democrática Alemã e
República Federal da Alemanha, Brecht é convidado a permanecer na porção oriental de
Berlim. A proposta é acompanhada da oferta de lá permanecer com apoio estatal para o
seu teatro, além de receber privilégios não disponíveis aos seus colegas intelectuais: um
carro, duas casas e, o principal, a autorização para viajar ao exterior da RDA. Seu sucesso
junto ao público tornava-o um ótimo elemento de propaganda do regime em que vivia.
Embora não sofresse as mesmas restrições da maior parte da população, também não
usufruía de liberdade plena, dependendo do aval da elite para conseguir financiamentos
80
às suas encenações, estrutura para distribuição de ingresso e autorização para a publicação
de resenhas nos jornais. Ainda, apenas em 1954 obteve sede fixa para a sua companhia de
teatro, o Theather am Schiffbauerdamm4. A carreira que desenvolve até sua morte, em 1956,
na Alemanha Oriental é ainda hoje motivo de controvérsia entre os estudiosos de sua vida
e obra.
Evidencia-se, assim, a importância da figura do escritor, o alcance de sua fama
durante seu período de vida e o conhecimento geral de sua vinculação a sistemas
comunistas. A simples menção ao nome de Bertolt Brecht já remetia, mesmo antes de seu
reestabelecimento na Alemanha, ao ativismo e ao didatismo político de viés esquerdista
que imperaram na parte mais significativa de sua produção artística. E é com esta
significância enquanto “vocábulo de realidade”5 que o nome do dramaturgo aterrissa em
terreno brasileiro, com consequências que alteraram concretamente os rumos da nossa
dramaturgia em tempos em que a voz da censura se fazia ouvir em alto e bom som.
Após essa breve apresentação da percepção da figura de Bertolt Brecht,
delinearemos o trajeto seguido pelas encenações de seus textos no Brasil. Para tanto,
iniciaremos com algumas considerações acerca do surgimento e desenvolvimento do
teatro moderno em solo nacional, mencionando entraves de ordem política que
constituíram dificuldade aos profissionais desta modalidade de teatro nos momentos
analisados. Serão citadas algumas das montagens brechtianas que sobreviveram à censura
e o modo pelo qual o fizeram, trabalhando-se muito brevemente algumas de suas
especificidades, para finalmente nos concentrarmos em questões que envolvem a recepção
d’O círculo de giz caucasiano do Teatro Nacional de Comédia.
4
Os dados expostos neste parágrafo foram retirados do artigo “Herói ou vilão? Bertolt Brecht e a crise de
junho de 1953”, de Mark W. Clark. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40142007000200016&script=sci_arttext>. Acesso em: 30 jul. 2018.
5
Tomo emprestado, aqui, o termo empregado por Paulo Astor Soethe em sua palestra Grandes escritores:
“vocábulos de realidade” na pesquisa internacional. A expressão indica o potencial representacional daquilo a
que se chama vocábulo de realidade que, mais do que mero segmento verbal, constitui fragmento de
experiência – exemplificando: a evocação do nome de Bertolt Brecht seria, também, evocação de
determinado conhecimento subjetivo de forças atuantes no plano artístico e histórico, relacionadas de
maneira massiva, mesmo que involuntariamente, ao escritor.
81
O Teatro Moderno e o Teatro Brechtiano no Brasil: recepção
Assim como se convenciona definir 1943, ano da estreia da peça O vestido de noiva,
como marco do surgimento do teatro moderno no Brasil, há também consenso quanto à
importância do Teatro Brasileiro de Comédia, fundado em São Paulo em 1948, para o
estabelecimento e a difusão da modalidade. Ainda assim, conforme Iná Camargo Costa, as
primeiras encenações do gênero em território nacional se dão de maneira desvinculada
dos nossos pressupostos sociais, sendo assumidamente importadas de solo europeu em
um momento em que a sua prática regredia nos seus países de origem, por motivos de
ordem política (COSTA, 1998, p. 35). Ou seja, o teatro moderno era apenas incipiente
durante a década de 1950 e as encenações se limitavam, no Brasil, às apropriações de
superfície dos recursos vinculados ao teatro moderno, não sendo possível ignorar nem a
nossa falta de experiência com os movimentos sociais e nem o poder da censura. Antes
dos anos 1960 não se podia, aliás, perceber uma real politização em nosso teatro.
É interessante aludirmos, aqui, a título de exemplificação, à curta passagem de
Ruggero Jacobbi, de propósitos de cunho claramente críticos e realistas, pelo TBC:
conhecendo a impossibilidade de encenar a Ópera dos três vinténs de Brecht, cuja
montagem seria certamente interditada pela censura em 1950, o diretor opta por trabalhar
com A ronda dos malandros, adaptação d’A ópera dos mendigos, de John Gay – e mesmo com
uma adaptação de autor não contemporâneo e não vinculado aos movimentos “de
esquerda”, a peça é cancelada e Jacobbi é demitido quando a peça, de grande sucesso entre
o público, completa duas semanas em cartaz (COSTA, 1998, p. 39). Compondo a equipe de
profissionais italianos que teriam chegado ao Brasil com o propósito de “patrocinar” a
modernização do nosso teatro, Jacobbi – que havia sido militante antifascista na Itália –
vivenciou um dos muitos episódios que indicavam a falta de receptividade da cena
brasileira às propostas teatrais modernas.
Quanto à inserção da produção de Brecht no Brasil, não podemos deixar de
considerar que esta acontece com a dificuldade de se desenvolver sob o signo da
modernidade e da já mencionada vinculação a ideias políticas contrárias às dominantes.
Tal resulta em grande demora para a realização da tradução e da difusão de seu trabalho.
É apenas em 1942 que se traduz para o português um poema (“Informação”, escrito, aliás,
82
sete anos antes, em 1935) deste “rejeitado mundial” 6, que já se encontrava então na fase
mais madura de sua produção. Sabemos que mesmo após essa data, já tardia, não houve
imediatamente maior flexibilização da censura quanto à divulgação do trabalho do poeta e
dramaturgo entre nós; ainda levaria nove anos7 para a primeira encenação no Brasil.
E o que teria possibilitado esta publicação, tão anterior à entrada massiva da
produção brechtiana em território nacional? Ora, a presença da tradução na Revista
Acadêmica foi, na verdade, bastante conveniente ao governo brasileiro, pois ocorreu
justamente no ano em que entramos na guerra como aliados dos Estados Unidos,
momento oportuno a toda e qualquer propaganda antinazista (ANTELO, 1987, p. 80). Um
indício de como os intelectuais brasileiros precisariam agir nos primeiros momentos do
teatro moderno: à procura de brechas, sem manifestar claramente qualquer postura
contrária aos intuitos governamentais e celebrando coincidências de interesses dos
intelectuais e dos líderes políticos “oficiais”.
Dentre as estratégias utilizadas para a difusão das peças brechtianas, Margot Petry
Malnic, focando-se nos anos em que a ditadura militar estava estabelecida, destaca o
emprego de estruturas tipicamente brasileiras no interior das encenações para, ao mesmo
tempo, quebrar com as expectativas do público e gerar o que a autora denomina de “efeito
de distanciamento à brasileira”, utilizado a fim de contornar a conjuntura burocrática que
se armaria com o intuito de tolher o espetáculo (MALNIC, 1995). Tal foi empregado com
sucesso na montagem de Galileu Galilei, dirigida por José Celso Martinez Corrêa e
apresentada ao público no mesmo dia da entrada em vigor do Ato Institucional n o 5, 13 de
dezembro de 1968. Com sua recriação em cima da obra brechtiana, o diretor garantiu à sua
peça uma temporada livre de intervenções da censura. Outras peças que vieram à tona por
meio da mesma estratégia de adaptação no período de censura são apresentadas pela
autora, a saber: O que mantém um homem vivo (1973), de Renato Borghi e Ester Gomes, e A
ópera do malandro (1978), de Chico Buarque.
6
Iná Camargo Costa usa o termo para se referir a Brecht em seu artigo “A produção tardia do teatro
moderno no Brasil” (1998, p. 30).
7
Embora na “Pequena bibliografia brasileira de Brecht” do livro Brecht no Brasil encontremos o ano de
1954 como o da primeira encenação da peça A exceção e a regra, realizada pela Escola de Arte Dramática
de São Paulo, pode-se verificar no site do Itaú Cultural que em 1951 a montagem já havia sido trazida a
Curitiba, sob a direção de Alfredo Mesquita. Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?
fuseaction=cias_biografia&cd_verbete=633&cd_item=26>. Acesso em: 05 jul. 2018.
83
Sábato Magaldi, ao discorrer sobre a importância do dramaturgo, confere destaque
especial à consciência política que perpassa sua obra e que apontaria “para os nossos
homens de palco o caminho firme da oposição ao fascismo” (MAGALDI, 1987, p. 225). Se
frequentemente destacamos a importância desta percepção nas adaptações brechtianas
brasileiras realizadas durante os anos em que vigorou o AI-5, não podemos deixar de fazê-
lo em relação àquelas produções que, visionárias ao modo do nosso dramaturgo,
antecipam-se ao golpe de 64 e empregam a voz do autor alemão para pensar as
consequências da estruturação política brasileira, cujos rumos pareciam tornar-se sombrios
desde 1955, com as tentativas de impugnação dos resultados eleitorais empreendidas pela
União Democrática Nacional (UDN). É com o país presidido por Juscelino Kubitschek e
sob constante ameaça militar que o Brasil assiste à primeira montagem brechtiana
profissional: trata-se da peça A alma boa de Setsuan, encenada pela Companhia Maria Della
Costa em 1959. A partir desse momento, além do interesse pela mensagem política, parece
ter havido também maior assimilação das propostas estéticas de Bertolt Brecht – e
aumentou o número de companhias que trataram de inserir o autor alemão em seus
repertórios.
Diante de tal quadro não espanta que, em 1963, ao apresentar sua versão da peça O
círculo de giz caucasiano, dirigida por José Renato, o Teatro Nacional de Comédia não seja
particularmente aclamado por ousadia ou inovação. Conforme consta no link referente à
companhia no site do Itaú Cultural 8, o grupo ponderou acerca da montagem brechtiana
desde 1957, quando o dramaturgo ainda era inédito no Brasil (se considerarmos apenas o
âmbito das montagens profissionais), mas conseguiu levá-la a cabo apenas após a
apresentação de peças do autor por três outros grupos, entre amadores e profissionais. A
falta de atenção que se dispensa à montagem no site, que cita duas outras peças como as
únicas relevantes do TNC (Pedro Mico e Rasto atrás) e que, a respeito da encenação
brechtiana, menciona apenas que essa não teria atendido às expectativas, deve-se
provavelmente à falta de ineditismo da peça em sua estreia e a uma reação – nada
incomum – contrária a existência de uma companhia oficial, financiada pelo governo, no
Brasil. O maior distanciamento temporal, entretanto, permite-nos a visualização de outros
atributos, aos quais partiremos agora.
8
Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?
fuseaction=cias_biografia&cd_verbete=651>. Acesso em: 06 abr. 2018.
84
O círculo de giz caucasiano, do Teatro Nacional de Comédia
9
Alcunha empregada pelo diretor José Renato na entrevista citada. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0707200208.htm>. Acesso em: 07 abr. 2018.
10
A realização da tradução por Bandeira é citada em muitos textos jornalísticos da época. Destacam-se,
entre eles, os localizados sob as referências a seguir: MICHALSKI, Yan. A estréia de hoje & outras. Jornal
85
criativo de um tradutor. A grandiosidade da empreitada resultou na necessidade de longa
preparação antes da estreia: durante os mais de 3 meses de ensaio, a ansiedade pela
verificação do resultado se deixava estampar nas folhas de jornal 11. A companhia contava,
então, com o apoio do Ministro da Educação Darcy Ribeiro, ao qual estavam subordinados
o Serviço Nacional de Teatro e, consequentemente, o Teatro Nacional de Comédia.
Diante da sensação geral de que o resultado do plebiscito não bastaria para
convencer os conservadores de que a situação deveria permanecer conforme solicitava a
vontade popular, encenar O círculo de giz caucasiano, com seu eixo temático e sua defesa de
uma concepção socialista e não conservadora, constituía nítido convite à reflexão acerca da
conjuntura que rapidamente se delineava e que resultaria, enfim, no Golpe de 64. Visto
desta maneira, a realização dramática ocorreu em momento preciso, no qual o conteúdo
textual dialogava plenamente com nossa realidade política. Tal é apontado, aliás, pelo
diretor: adiantando-se às críticas referentes à demora do TNC em realizar uma montagem
brechtiana, José Renato menciona, em artigo escrito para o jornal Correio da Manhã e
publicado no dia 16 de junho de 1963, a chegada da ocasião precisa para encenar uma das
mais complexas peças do dramaturgo alemão – e dificilmente se pode imaginar, de fato,
momento em que a iniciativa fosse provida de mais sentido.
Entretanto, pode-se localizar no Jornal do Brasil de 19 de abril de 1963, em um breve
comentário de Bárbara Heliodora (Estréias & Outras, p. 2) acerca da gênese do espetáculo,
uma justificativa mais concreta para a relativa demora da apresentação da peça de Brecht
pelo TNC: Gianni Ratto, entre 1956 e 1958, enquanto atuava como diretor da companhia,
teria obtido a autorização para encenar O círculo de giz caucasiano desde que removesse, de
sua montagem, o prólogo – parte do texto em que o posicionamento político do autor é
apresentado de forma direta. A condição não foi aceita e Ratto abandonou o projeto. O
prólogo felizmente pôde ser mantido na versão de José Renato, desde que com um
trabalho nítido de suavização das manifestações críticas nas falas das personagens,
conforme veremos no próximo tópico.
do Brasil, Caderno B, 31 jul. de 1963. p. 2; O TEATRO CARIOCA define-se sobre a direção do SNT. O
Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 16, 2 jul. de 1963. Na edição do Correio da Manhã de 02 jul. de 1963 há
um cartaz de divulgação em que consta o nome do autor e do tradutor, suprimindo-se mesmo o nome do
diretor José Renato.
11
Em referência ao longo tempo de preparação do TNC: MICHALSKI, Yan. Teatro: notas e comentários.
Jornal do Brasil, Caderno B, 28 jun. de 1963. p. 2.
86
A experiência prévia, mesmo que breve, dos espectadores com a estética brechtiana
e a constância do debate político no período, resultaram na criação de uma plateia apta a
absorver de maneira mais completa o conteúdo que se articula na trama. No caso
específico d’O círculo de giz caucasiano do TNC, basta mesmo que falemos em conteúdo:
mais preocupado com discussões de ordem política e com a acessibilidade de seu
espetáculo, José Renato menciona, em entrevista concedida a Yan Michalski 12, do Jornal do
Brasil, a opção de não aplicar, em sua versão do espetáculo, certas técnicas que Brecht
tratava de desenvolver em seu teatro épico – destacando-se, entre estas, o efeito de
distanciamento, mencionado no primeiro item deste trabalho. Se as convenções do teatro
moderno não eram, ainda, dominadas pelo grande público, a quem a peça se dirigia, José
Renato, ao abandonar alguns aspectos da estética brechtiana em sua peça, aproximou-se,
paradoxalmente, do dramaturgo alemão, a quem interessava sobretudo gerar
movimentação crítica entre os espectadores. Não se trata aqui de afirmar que o diretor
teria encenado Brecht com atuação stanislavskiana, mas apenas que fez opções mais
realistas que as pressupostas pelo teatro épico a fim de não atingir somente as elites –
consciente da inconsistência teórica de sua opção, que poderia “ser contestada
dialeticamente”, reitera que “um espetáculo teatral não se realiza com palavras, nem com
dialética” (PÉCORA, 1963, p. 2).
A peça, afinal, que é aberta com uma negociação entre grupos de posições distintas,
foi encenada no Brasil momentos antes das possibilidades de diálogo entre opostos serem
temporariamente encerradas: poucos meses depois da última encenação d’O círculo de giz
caucasiano, o TNC, companhia oficial do período, não obteria a permissão e o apoio para
montar Bertolt Brecht; alguns anos depois, a partir de 1968, o AI-5 viria a constituir
empecilho de maior alcance.
Foi provavelmente a visualização deste quadro que fez com que Manuel Bandeira,
que contava então 77 anos de idade, topasse a empreitada de traduzir a peça e se
mostrasse, aliás, bastante animado com a tarefa. Embora o engajamento político não seja
característica notável em sua produção (mesmo José Renato afirma, na já citada entrevista
“À meia distância” concedida à Folha, que as preocupações de Bandeira eram sempre
mais ligadas aos elementos literários do que aos políticos e teatrais), o momento se
12
PÉCORA, José Renato. José Renato fala sôbre Círculo de Giz. Jornal do Brasil, Caderno B, 7 ago. de 1963.
p. 2. Entrevista concedida a Yan Michalski.
87
mostrava extremamente delicado e, diante das circunstâncias, não parecia possível não se
envolver com questões de ordem política. Conforme afirma Roberto Schwartz,
imediatamente antes do Golpe de 64 “o país vibrava e suas opções diante da história
mundial eram pão diário para o leitor dos principais jornais” (SCHWARTZ 13, 1978, p. 74
apud COSTA, 1998, p. 106).
Talvez seja postura um tanto quanto ingênua acreditar nas palavras do próprio
Bandeira quando este afirma, no texto de apresentação no programa de montagem do
TNC, que topou realizar a tarefa apenas para comprazer o amigo Edmundo Moniz. Seja
como for, é fato que se encantou “pela profundeza de pensamento, pela solidez da
estrutura, pela beleza formal, pela vida insuflada às personagens” que tornariam, a seu
ver, Brecht o único dramaturgo moderno comparável a Shakespeare. Diante do ânimo em
traduzir a peça e da sofisticação do resultado, reconhecida pelos que tiveram contato com
a montagem para o qual a tradução foi encomendada, é intrigante a longa espera que
antecedeu a sua publicação em livro – se nos anos que sucederam à encenação tal se
explica pela implementação do sistema ditatorial, o fato de apenas em 2002 termos a
primeira edição lançada revela um nocivo descaso aos textos dramáticos no Brasil. Num
pequeno passo rumo à reversão deste quadro, partiremos agora a uma análise desta
tradução, focando-nos nas escolhas de nosso poeta moderno para resolver os entraves de
ordem estética e política que perpassam o texto de Bertolt Brecht.
13
SCHWARTZ, Roberto. Cultura e política, 1964—1969. In: ______. O pai de família e outros estudos. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
88
círculo de giz caucasiano ficou a seu encargo. E o que justificaria a necessidade desta tarefa,
se a montagem do TNC com o texto de Bandeira não teria escapado ao conhecimento do
novo tradutor da peça brechtiana? Uma explicação provável é encontrada na resposta à
última pergunta da já mencionada entrevista “À meia distância”, com José Renato
14
Uma reflexão mais completa acerca das duas traduções brasileiras d’O círculo de giz caucasiano pode ser
encontrada no artigo “O hibridismo no olhar do tradutor: a arte e a comunicação em versões de O círculo
de giz caucasiano para o português”. Vide Lima e Souza (2017) nas Referências.
89
No entanto, não se verifica em Campos, que, além de pioneiro nos lançamentos em
português dos textos de Brecht, atuava como militante comunista, a proposta de amenizar
o tom radical de trechos em que o teor político se manifesta de forma combativa. Bandeira,
ao contrário, realiza esforços conscientes nesse sentido. A sentença “Tod den Faschisten!”
(BRECHT, 1971, p. 8) é traduzida de forma literal por Geir Campos – “Morte aos
fascistas!” (BRECHT, GC15, 1992, p. 184) – e de modo mais ameno pelo poeta, que opta pela
construção “Ao diabo os fascistas!” (BRECHT, MB, 2010, p. 42), interpretada entre nós
como algo entre o “deixe pra lá” e o “danem-se os fascistas!”.
Pode-se observar mais um exemplo da proposta de Bandeira de amenizar o teor
crítico ao analisarmos o corte que este realiza ao traduzir o trecho transcrito abaixo,
também retirado do prólogo:
DER ALTE RECHTS unter Gelächter: Wie soll der als Beeinflussung gedacht
sein, Surab, du Talräuber! Man weiß, daß du den Käse nehmen wirst und
das Tal auch. Gelächter. Alles, was ich von dir verlange, ist eine ehrliche
Antwort. Schmeckt dir dieser Käse? (BRECHT, 1971, p. 8)
A primeira parte da fala do Velho à Direita, que, em uma tradução livre, significaria
algo como “Como isso pode ser interpretado como suborno, Surab, seu ladrão de vale! Já
se sabe que você vai ficar com o queijo e com o vale também”, é suprimida e ficamos
apenas com a pergunta final: “O VELHO à direita Tudo o que eu quero é uma resposta
franca: você acha bom o queijo?” (BRECHT, MB, 2010, p. 43). Sem o tom agressivo de
defesa do velho ao verificar que aos olhos do outro grupo ele seria suspeito de suborno,
amenizam-se as animosidades entre os concorrentes. Como efeito, o corte garante que
nenhum dos lados seja levado de maneira simplória ao ridículo – projeto que, em outros
trechos, parece ser também o de Brecht. Sua postura política é clara e se deixa transparecer
na narrativa, sobretudo no desfecho; ao conferir dignidade à voz das personagens cuja
ideologia difere da sua, torna-se menos distante dos que discordam de seu discurso.
Pode-se verificar este cuidado na produção textual do original ao observarmos, por
exemplo, as intervenções do Perito, nas quais, embora seja visível o tom favorável ao
grupo da esquerda, percebe-se a temperança daquele que exerce a função de mediador.
15
Para facilitar a leitura do texto, as siglas GC e MB significam, respectivamente, traduções de Geir Campos
e Manuel Bandeira.
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Na citação abaixo, seu posicionamento neutraliza o ridículo a que o grupo da esquerda
submete, com risadas, uma fala do Velho à direita:
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De um lado, nossa protagonista, com suas canções, irá expor sentimentos,
preocupações e ímpetos que a conduzirão trama afora. Suas manifestações dizem respeito
ao seu mundo interior e à sua atuação, justificada de si para si. Seus poemas expressam
uma visão menos global dos eventos que perpassam a peça, e a beleza desta lírica, ao
modo da produção bandeiriana, está na valorização atribuída ao “pequeno”, aos detalhes
e à humildade daquela que os entoa. Para a vinculação a estas características, os versos da
protagonista são curtos e ritmados, com alternância, conforme aponta Sylvia Tamie Anan,
de dois e três acentos (ANAN, 2010), opção que possui equivalência formal com a nossa
redondilha menor. Atento a essa característica, que faz com que os versos nos remetam a
canções de roda e a outras manifestações populares, Bandeira utiliza a redondilha em sua
tradução:
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tradução se considerarmos que, para o próprio Brecht, a Grucha deveria ser “mais
cabeçuda que rebelde, mais dócil que bondosa, mais resistente que incorrompível, e assim
por diante” (BRECHT, MB, 2010, p. 201).
A lírica dos músicos e do recitante, por sua vez, apontará ao leitor e ao espectador
mais aspectos do que aqueles que podem ser imediatamente vislumbrados por meio da
ação dramática. Ao prólogo, ouvimos, pela voz de uma personagem, que “Todas as
discussões devem ser racionadas, o fumo está racionado e a discussão também” (BRECHT,
MB, 2010, p. 42). Parece ser nesse sentido que a voz do recitante e dos músicos contribui
com a nossa compreensão do todo ficcional. As contextualizações necessárias ao início da
ação dramática, as motivações de algumas personagens, a apresentação breve dos eventos
abrigados pelos saltos temporais da peça e as circunstâncias históricas e sociais que se
desenrolam para além do olhar do espectador chegam até nós somente por meio destes
cantos, que podem fazê-lo de maneira mais breve do que as possibilitadas exclusivamente
por diálogos. Ou seja, trata-se de vozes que extrapolam os limites de uma individualidade;
nesse sentido, expressando a maior complexidade do discurso, os versos que compõem a
lírica do músico e dos recitantes são em geral mais longos, sendo também menos
constantes no que diz respeito à quantia de tônicas ou de sílabas poéticas – a extensão e a
formalidade dos termos são as peças fundamentais à obtenção de seus efeitos. Pode-se
verificar que Bandeira, em sua tradução, manteve essas diretrizes para a elaboração lírica
que parte da voz destas personagens:
Die Stadt liegt stille, aber warum gibt es Toda a cidade está silenciosa, mas por que os
[Bewaffnete? [soldados armados?
Der Palast des Gouverneurs liegt friedlich No palácio do Governador, tudo está em paz,
Aber warum ist er eine Festung? Mas então por que trincheiras?
(BRECHT, 1971, p. 20) (BRECHT, MB, 2010, p. 58)
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peça, o ensinamento moral que a trama abriga – o de que as coisas devem caber aos que
sabem fazê-las melhor. Nesse sentido, a realização da tradução por um poeta parece ser
escolha muito acertada. Pesaram a favor desta opção a experiência de Bandeira como
tradutor de teatro, suas traduções da lírica em língua alemã 16 e o projeto nacional de
entregar os textos de dramaturgos estrangeiros de maior peso literário a escritores em
ascensão – uma reação à forma de lidar com a tradução de textos dramáticos no início do
século XX:
Nos anos 1960, num processo que teria como objetivo a reversão deste quadro e a
valorização de peças traduzidas, as companhias passam a solicitar o trabalho de escritores
como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Onestaldo Pennafort e, claro,
Bandeira, para traduzirem textos de dramaturgos como Anouilh, Audiberti, Dumas,
Pirandello, Tennessee Williams e Brecht (WYLER, 2003, p. 103). A vinculação das
encenações a estas figuras relevantes da literatura nacional, além de constituir bom
método de divulgação das montagens, marca a consagração de um movimento perceptível
desde fins dos anos 30: o texto passa a ser encarado, em território nacional, como
fundamento da arte teatral, contrapondo-se ao teatro para atores que prevalecia até então
(WYLER, 2003, p. 103).
O texto como fundamento do acontecimento cênico: se essa compreensão já era
preconizada por Shakespeare em A tempestade, é apenas a partir dos anos 30 que se
instaura no teatro nacional, preparando terreno para o estabelecimento da modernidade
em nossos palcos. A palavra que funda a ação dramática, entretanto, se elabora com base
em pressupostos diversos daqueles do texto totalmente lírico ou prosaico – aspectos de
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Quanto à tradução de textos dramáticos, além de tradução de Macbeth, de Shakespeare, publicada em
1961 pela Editora José Olympio, Bandeira também foi responsável por versões brasileiras da peça Maria
Stuart, de Schiller, publicada pela Editora Civilização Brasileira em 1955, e do Auto sacramental do divino
Narciso, de Sor Joana Inés de la Cruz, presente no segundo volume de sua coleção de Poesia & Prosa
publicada pela Aguilar, em 1958. No que se refere à tradução de lírica alemã, Rilke, Goethe e Hölderlin se
destacam entre os poetas traduzidos para o português por Bandeira em versões presentes no volume
Poemas traduzidos, publicado em 1945 pela R. A. Editora.
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composição que devem ser levados em consideração durante a tradução de peças teatrais.
O que caracterizaria esses processos? Em que medida Bandeira, que “tinha mais interesse
pela parte poética, literária”17, atende às solicitações desta modalidade de tradução?
Em primeiro lugar é preciso considerar a incompletude do texto dramático, cuja
realização é efetivada apenas por meio de uma performance. Susan Bassnett, em Translation
Studies, menciona a dificuldade em compreender esta característica que se verifica entre a
crítica especializada em tradução – dificuldade que justificaria a negligência a que são
submetidos textos dramáticos traduzidos, muitas vezes analisados com base nos mesmos
pressupostos que conduzem o estudo de outros gêneros textuais.
O sistema linguístico deve ser elaborado em consonância com a função que
admitirá – e sendo apenas um dos dispositivos acionados para o acontecimento cênico, o
texto dramático não deve ser encarado como uma unidade completa. Bassnett, retomando
Ubersfeld, menciona que texto e performance não devem ser pensados separadamente:
assim como em outros itens que compõem uma montagem, como atuação, criação de
cenário, iluminação, direção e sonorização, se atenderão certos requisitos impostos pelo
texto, também a elaboração textual deve atender a solicitações destes outros componentes.
Ao atender a certos princípios e vincular-se, assim, organicamente à encenação, sem ser
visto com supremacia em relação aos outros elementos, o texto atinge o estatuto que se
espera de um texto dramático.
Ou seja, não se podem perder de vista, diante da tradução teatral, a relação que se
estabelece entre as dimensões do texto e as da representação – entre as dos signos verbais e
as dos não verbais. José Roberto O’Shea, em acordo no que diz respeito à relativização da
autonomia do texto teatral, focaliza o papel do diálogo para pensar o entrecruzamento
entre elementos linguísticos e extralinguísticos que se verifica em uma encenação:
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Neste sentido, O’Shea destaca aquele que considera ser o elemento mais importante
para a prática da tradução de teatro: a atenção à relação entre os emissores e os
destinatários que compõem o grupo de personagens. Se, em cena, “falar, enunciar, ouvir e
retrucar é atuar; falar, dialogar, é fazer” (O’SHEA, 2009, p. 111); se a palavra que se situa
cenicamente é (inter)ação, “no teatro falado a questão do diálogo é exacerbada, precípua,
autônoma” (O’SHEA, 2009, p. 112) e, assim, interessa especialmente ao tradutor de teatro
observar, nos indivíduos que povoam o texto teatral, coordenadas sociais, históricas,
nacionais, subjetivas etc.
Bandeira ateve-se a essas questões. Ao longo da leitura de sua versão para O círculo
de giz caucasiano, a escolha das palavras é muito reveladora no que diz respeito às relações
entre as personagens. O clima de concorrência, e não de cooperação, entre os dois médicos
que atendem Miguel quando a criança ainda está sob os cuidados de sua família rica e não
de Grucha, por exemplo, é revelado de maneira que evidencia minúcias de uma relação
pautada pela hipocrisia – boa indicação do tom que pode ser adotado pelos atores:
Além de se mostrar atento ao trabalho que se deve empreender para que os efeitos
obtidos pelo texto original ao momento de sua encenação se aproximem daqueles que se
possam obter ao vertê-lo para outra língua e cultura – o que prova ao traduzir a expressão
de desespero “Ogottogottogott” (uma repetição de “Oh Deus!”, se traduzido literalmente)
por “Virgemaria! Virgemaria!” – Manuel Bandeira é também elogiado por conseguir,
mesmo nos versos, fazer com que sua tradução seja facilmente comunicada à plateia pelos
atores e pelas atrizes (PÉCORA, 2002). Uma conquista facilitada pela proposta moderna,
da qual partilhava nosso poeta, de inserir, na literatura, registros mais coloquiais, que se
aproximem da fala.
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Se pensarmos, enfim, que a tradução adequada para o texto teatral é aquela que se
empreende de forma colaborativa, contendo em si indicações que auxiliem no
desenvolvimento de mais dimensões da totalidade cênica, O círculo de giz caucasiano de
Manuel Bandeira se mostra como um bom exemplo desta realização. Articulando, em sua
tradução, cuidados necessários para evitar a censura e outras complicações políticas, o
poeta conseguiu fazê-lo ao mesmo tempo em que compôs uma lírica que preserva traços
formais caros ao projeto modernista. Quanto ao contexto social e cultural do público-alvo,
a consideração do tradutor a este respeito superou o uso de palavras adequadas, lançando,
também, à companhia responsável pela montagem – o TNC – indícios fundamentais à
composição da tessitura dramática.
Referências
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COLÓQUIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS, 1, 2010,
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<http://www.data.ulis.vnu.edu.vn/jspui/bitstream/123456789/2911/1/Translation_Stu
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Fronteira, 1978.
BRECHT, Bertolt. O círculo de giz caucasiano. Trad. Manuel Bandeira. São Paulo: Cosac
Naify, 2010.
BRECHT, Bertolt. O círculo de giz caucasiano. Trad. Geir Campos. In: BRECHT, Bertolt.
Teatro completo. Volume 9. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
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LIMA, Marcelo Fernando de; SOUZA, Maurini de. O hibridismo no olhar do tradutor: a
arte e a comunicação em versões de O círculo de giz caucasiano para o português. Scripta
Uniandrade, v. 15, n. 3, Curitiba, 2017, p. 44-59. Disponível em:
<https://uniandrade.br/revistauniandrade/index.php/ScriptaUniandrade/article/view
/713/665>. Acesso em: 26 set. 2018.
O’SHEA, José Roberto. Inter(ação), performance e tradução de/para teatro: alguma teoria
e alguma prática. In: VERSIANI GALERY, Maria Clara; DIVINA PERPÉTUA, Elzira;
HIRSCH, Irene (Org.). Tradução, vanguarda e modernismos. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
PÉCORA, José Renato. À meia distância. Folha de São Paulo, São Paulo, 07 jul. 2002.
Entrevista concedida a Caio Caramico Soares. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0707200208.htm>. Acesso em: 28 jul. 2018.
PÉCORA, José Renato. José Renato fala sôbre Círculo de Giz. Jornal do Brasil, Caderno B,
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WÄCHTER, Lars. Die Entwicklung Bertolt Brechts zum Marxisten und der Einfluss des
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'Lehrstücke', insbesondere der 'Maßnahme'. Tese. 2003. 110 p. Universität Kassel. Kassel:
Grin, 2003.
WYLER, Lia. Línguas, poetas e bacharéis: uma crônica da tradução no Brasil. Rio de
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