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Rnd-Almeida, O Círculo de Giz Caucasiano

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O círculo de giz caucasiano:

Manuel Bandeira traduz Bertolt Brecht

The Caucasian chalk circle:


Manuel Bandeira translates Bertolt Brecht

Tassia Kleine1

Resumo

Em 1963, ano de grande polarização entre os setores conservadores, aliados às forças


militares, e os núcleos de resistência, com seu viés esquerdista e nacionalista, a peça Der
kaukasische Kreidekreis (O círculo de giz caucasiano), de Bertolt Brecht, é traduzida por
Manuel Bandeira e encenada no Teatro Nacional de Comédia. Analisamos aqui a figura do
autor alemão e sua obra para refletirmos acerca da recepção das encenações em âmbito
mundial e nacional, ponderando acerca do diálogo estabelecido entre O círculo de giz
caucasiano e a situação política brasileira às vésperas do Golpe de 64. Observaremos então
algumas escolhas de tradução de Bandeira ao lidar com a lírica e a prosa que se
entrecruzam na peça, verificando em que medida a versão em português se articula com
aspectos levantados pelos críticos Susan Bassnett e José Roberto O’Shea como relevantes à
adaptação de textos dramáticos para outras línguas e situações culturais.

Palavras-chave: Tradução de Textos Dramáticos. Bertolt Brecht. Manuel Bandeira.

Abstract

In 1963, a year of great polarization between the conservative sectors, associated with the
military, and the resistance groups, with a leftist-nationalist bias, the play Der kaukasische
Kreidekreis, by Bertolt Brecht, is translated by Manuel Bandeira and staged at Teatro
Nacional de Comédia. In this paper, we will review the figure of the German author in order
to promote a reflection upon the reception of his work. We will also ponder upon the
dialogue established between The Caucasian chalk circle and the political situation on the
eve of the 1964 Brazilian coup d’état. We will then analyze some of the choices made by
Bandeira when dealing with the play’s intertwined lyric and prose, assessing to what
extent the version in Portuguese articulates itself regarding aspects considered by the
critics Susan Bassnett and José Roberto O’Shea as relevant to the adaptation of dramatic
texts to other languages and cultural situations.

Keywords: Translating Dramatic Texts. Bertolt Brecht. Manuel Bandeira.

1
Bacharel em letras com habilitação em português e alemão e ênfase em estudos literários pela Universidade Federal
do Paraná e mestrado em estudos literários pela mesma instituição em parceria com a Ludwig-Maximilians-
Universität München, de Munique. E-mail: tassiak@gmail.com.

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Der Kaukasische Kreidedreis no interior da Phasentheorie Brechtiana

Diante da tentativa de sistematizar a produção de Brecht (1898 – 1956), os


estudiosos da obra do dramaturgo alemão tendem a se mostrar confortáveis com a
proposta de dividi-la em três fases. A apresentação desta teoria das fases permite, mesmo
que a custo de reduções inerentes a todos os movimentos de categorização, o esboço de
uma linha que comporta os aspectos mais relevantes do desenvolvimento político e
estético do autor.
A primeira fase da produção brechtiana, que tem seu início em 1913, à ocasião da
produção de sua primeira peça (Die Bibel. Drama in drei Szenen – A Bíblia – Drama em três
cenas), é caracterizada pelo niilismo anárquico e pelo cinismo identificáveis, também, nos
seus primeiros poemas e textos em prosa (MONTAGNARI, 2010, p. 9). Ainda na primeira
fase, em 1924 – momento de predominância do drama expressionista no círculo cultural
alemão –, inicia-se o processo pelo qual a perspectiva pessimista do jovem Brecht torna-se
mais organizada e aprofunda-se, com sua ida a Berlim e atuação no Deutsches Theater, onde
foi assistente de Erwin Piscator e Max Reinhardt.
A partir de 1926 pode-se falar em uma segunda fase da produção de Bertolt Brecht,
cujo marco seria sua aproximação não dogmática e nem partidária ao marxismo. Neste
período, que se estende até 1938, predominam suas peças de caráter didático, dentre as
quais se destacam a Ópera dos três vinténs, a Ascensão e a queda da cidade de Mahoganny e,
sobretudo, Santa Joana dos Matadouros. Brecht parecia interessado em renovar certos
pressupostos do Teatro Escolar Humanista e do Teatro Jesuíta da época renascentista e
barroca para dar os primeiros passos na elaboração do seu “efeito de distanciamento”
(ROSENFELD, 1968, p. 126).
Com A vida de Galileu, texto finalizado em 1938, estabelece-se a terceira fase. Neste
período, que se estenderá até o fim da sua vida, Brecht mostra-se apto a produzir peças em
que insere uma síntese das propostas que teriam conduzido suas reflexões acerca do teatro
até então. Ou seja, mantém-se o seu interesse em compor peças de cunho crítico nas quais
a empatia despertada pelas personagens não constitua o centro da representação,
questionamento das propostas aristotélicas que já se identificava na sua segunda fase; no
entanto, o elemento estético passa a vigorar com mais intensidade, combinação que suscita

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a criação de suas peças mais maduras.
A elaboração mais complexa acompanha, nas peças que se destacaram no período –
como Mãe coragem e seus filhos e A boa alma de Setsuan –, o emprego de parábolas no interior
das tramas, conforme ocorre n’O círculo de giz caucasiano. Estes apólogos passam por um
processo de reformulação antes de se articularem às peças: as verdades definitivas acerca
do espírito humano que permeiam as suas formas mais antigas são questionadas e
destituídas. A utilização de moldes parabolares constitui jogo que destaca o caráter
altamente histórico e referencial desta terceira fase, que se manifesta de maneira articulada
ao todo ficcional, sem quebras que comprometam o componente estético.
Considerando-se que Brecht afirma buscar nas técnicas da arte dramática chinesa as
bases para a estruturação teórica do efeito de distanciamento em solo europeu 2, é
interessante pensar que n’O círculo de giz caucasiano identificamos influência oriental não
apenas na estruturação da narrativa, mas também na temática. A respeito do tema,
interessa-nos pensar que este se elabora pela adaptação de uma lenda chinesa antiga a
assuntos de interesse político contemporâneo – ou seja, movimentos tradutórios são
centrais para a concepção da peça em si. Quanto à estrutura, a peça se desenvolve por
meio do encadeamento de duas narrativas, uma inserida na outra, recurso literário que
tem entre seus efeitos a característica de chamar a atenção ao caráter ficcional da
representação (MASON, 2007, p. 69).
A consciência de se estar diante de uma peça possibilitaria, na visão de Brecht, um
movimento crítico contínuo diante da experiência teatral. Se o acontecimento cênico não
tem como objetivo principal a obtenção da catarse dentre os espectadores, não ocorre,
também, no decorrer da encenação, mera “descrição do homem subordinada por completo
ao conceito do chamado ‘eterno humano’” (BRECHT, 1978, p. 63), e os acontecimentos não
têm apenas o “valor de tópicos, tópicos essenciais a que se segue a ‘eterna resposta’, a
resposta inevitável, corrente, natural, e, precisamente por isso, humana” (BRECHT, 1978,
p. 63). Ocorrerá, sim, a possibilidade de um olhar crítico-social.
Além de estarmos diante de peças sobrepostas n’O círculo de giz caucasiano – ou seja,
no interior da trama ficcional, as personagens se ocupam de uma montagem teatral
intitulada O círculo de giz, que ocupará a maior parte da encenação – há diálogo entre os

2
BRECHT, Bertolt. Efeitos de distanciamento na arte dramática chinesa. In: BRECHT, Bertolt. Estudos sobre
teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

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contextos dessas, em especial no que se refere ao problema que nos é apresentado à
abertura do texto. No prólogo, deparamo-nos com dois grupos que disputam um vale: um
possui o argumento da tradição, por ser o grupo que habitava o vale há mais tempo; o
outro se mostra apto a reconstruir o vale e torná-lo mais produtivo. Ao fim do prólogo já
sabemos que o grupo com o domínio técnico para reestruturar o vale terá a posse da
região.
Se o tempo para discussão é curto no decorrer da disputa pelo vale, aspecto
criticado por uma das personagens que viajou para expor sua opinião, a encenação d’ O
círculo de giz, que ocorrerá a convite do grupo que assumirá a responsabilidade pelo
território, constituirá o necessário aprofundamento da argumentação – por meio de uma
estrutura mise-en-abyme3, o recitante, os atores e os músicos, personagens que conduzem a
trama a partir do prólogo, construirão situação cênica com embate e núcleos de
argumentação similares aos verificados no decorrer do litígio. Que esta peça possua
estrutura fabular, forma geralmente empregada para que se apresentem características
humanas imutáveis, e que surja no interior d’O círculo de giz caucasiano justamente com o
intuito de questionar a verdade de grandes constantes, é aspecto que chama a atenção à
proposta historicizante que permeia a produção brechtiana.
Ora, se a estrutura requer do espectador esta participação consciente e se o enredo
tem em seu centro a concepção socialista de que “as coisas devem caber aos que as sabem
fazer melhor” (BRECHT, 2008, p. 109), pondo em cheque a relevância absoluta da tradição
e da constância de certos atributos humanos, podem-se perceber as dificuldades de ordem
política que circundam a recepção da peça desde a primeira montagem, que ocorre em
Santa Monica (EUA) em 1948. Assim, partiremos à apresentação de outro aspecto que se
mostra imprescindível à análise do objeto deste artigo: faremos, no próximo tópico,
algumas colocações mais gerais acerca da personagem histórica Bertolt Brecht, buscando
delinear a percepção popular de sua figura no cenário brasileiro às vésperas do golpe de
64.

3
Se considerarmos as três categorias de mise-en-abyme identificadas por Lucien Dallenbach e expostas por
Nara Maia Antunes em seu livro Jogo de espelhos (a saber, reduplicação simples, infinita e paradoxal),
poderemos verificar que no clássico de Brecht encontramos a reduplicação infinita, que é aquela na qual
“o fragmento mantém com a obra que o inclui uma relação de semelhança a tal ponto que ele também
inclui um fragmento que o reduplica, e assim sucessivamente” (ANTUNES, 1982, p. 61) – classificação
corroborada pelas apresentações musicais e teatrais que tomam lugar no interior d’O círculo de giz.

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Bertolt Brecht e a construção de uma Persona Política

Desde seus primeiros textos, o jovem Brecht dava indícios de que predominaria, ao
longo de toda a sua carreira artística, conteúdo de cunho social e político. Se ainda não
encontramos nas peças que marcam sua estreia como dramaturgo um proletariado que se
insurja contra a burguesia, tal projeto é levado a cabo pela voz do “vagabundo”,
personagem posicionada à margem da sociedade, tal qual ocorre em Baal (ROSENFELD,
1968, p. 124). Anatol Rosenfeld menciona que mesmo em Na selva das cidades, peça na qual
se nota a presença de características do expressionismo, o elemento histórico se sobrepõe
ao que caracterizaria o teatro de vanguarda – que seguiria moldes aristotélicos no que diz
respeito à representação abstrata e absoluta do humano (ROSENFELD, 1968, p. 125).
Brecht, visionário, foi um dos primeiros dentre os artistas e intelectuais alemães a
perceber o risco eminente e a se retirar de seu país após a nomeação de Hitler como
chanceler do Terceiro Reich. Além de suas críticas diretas ao projeto nazista, identificadas,
por exemplo, na “Balada do soldado morto”, o partido do Führer buscaria detê-lo devido
ao seu posicionamento político e à sua defesa do pacifismo – em suas peças e poemas, é
frequente a crítica e mesmo a caricatura do sentimento de heroísmo que caracterizaria os
ingênuos soldados impelidos pelos poderosos a lutar. Seu êxodo o levaria à peregrinação
por diversos países, num trajeto que se inicia na Tchecoslováquia e termina nos Estados
Unidos, onde viveu seis anos. Em 1947, é chamado a depor para o Comitê de Atividades
Antiamericanas devido à defesa do comunismo que perpassa sua obra. Embora não tenha
sofrido maiores consequências devido à entrevista, constata que é melhor retornar à
Europa e, em 1948, novamente em Berlim, retoma as atividades no Berliner Ensemble.
Em 1949, à ocasião da divisão da Alemanha em República Democrática Alemã e
República Federal da Alemanha, Brecht é convidado a permanecer na porção oriental de
Berlim. A proposta é acompanhada da oferta de lá permanecer com apoio estatal para o
seu teatro, além de receber privilégios não disponíveis aos seus colegas intelectuais: um
carro, duas casas e, o principal, a autorização para viajar ao exterior da RDA. Seu sucesso
junto ao público tornava-o um ótimo elemento de propaganda do regime em que vivia.
Embora não sofresse as mesmas restrições da maior parte da população, também não
usufruía de liberdade plena, dependendo do aval da elite para conseguir financiamentos

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às suas encenações, estrutura para distribuição de ingresso e autorização para a publicação
de resenhas nos jornais. Ainda, apenas em 1954 obteve sede fixa para a sua companhia de
teatro, o Theather am Schiffbauerdamm4. A carreira que desenvolve até sua morte, em 1956,
na Alemanha Oriental é ainda hoje motivo de controvérsia entre os estudiosos de sua vida
e obra.
Evidencia-se, assim, a importância da figura do escritor, o alcance de sua fama
durante seu período de vida e o conhecimento geral de sua vinculação a sistemas
comunistas. A simples menção ao nome de Bertolt Brecht já remetia, mesmo antes de seu
reestabelecimento na Alemanha, ao ativismo e ao didatismo político de viés esquerdista
que imperaram na parte mais significativa de sua produção artística. E é com esta
significância enquanto “vocábulo de realidade”5 que o nome do dramaturgo aterrissa em
terreno brasileiro, com consequências que alteraram concretamente os rumos da nossa
dramaturgia em tempos em que a voz da censura se fazia ouvir em alto e bom som.
Após essa breve apresentação da percepção da figura de Bertolt Brecht,
delinearemos o trajeto seguido pelas encenações de seus textos no Brasil. Para tanto,
iniciaremos com algumas considerações acerca do surgimento e desenvolvimento do
teatro moderno em solo nacional, mencionando entraves de ordem política que
constituíram dificuldade aos profissionais desta modalidade de teatro nos momentos
analisados. Serão citadas algumas das montagens brechtianas que sobreviveram à censura
e o modo pelo qual o fizeram, trabalhando-se muito brevemente algumas de suas
especificidades, para finalmente nos concentrarmos em questões que envolvem a recepção
d’O círculo de giz caucasiano do Teatro Nacional de Comédia.

4
Os dados expostos neste parágrafo foram retirados do artigo “Herói ou vilão? Bertolt Brecht e a crise de
junho de 1953”, de Mark W. Clark. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-
40142007000200016&script=sci_arttext>. Acesso em: 30 jul. 2018.
5
Tomo emprestado, aqui, o termo empregado por Paulo Astor Soethe em sua palestra Grandes escritores:
“vocábulos de realidade” na pesquisa internacional. A expressão indica o potencial representacional daquilo a
que se chama vocábulo de realidade que, mais do que mero segmento verbal, constitui fragmento de
experiência – exemplificando: a evocação do nome de Bertolt Brecht seria, também, evocação de
determinado conhecimento subjetivo de forças atuantes no plano artístico e histórico, relacionadas de
maneira massiva, mesmo que involuntariamente, ao escritor.

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O Teatro Moderno e o Teatro Brechtiano no Brasil: recepção

Assim como se convenciona definir 1943, ano da estreia da peça O vestido de noiva,
como marco do surgimento do teatro moderno no Brasil, há também consenso quanto à
importância do Teatro Brasileiro de Comédia, fundado em São Paulo em 1948, para o
estabelecimento e a difusão da modalidade. Ainda assim, conforme Iná Camargo Costa, as
primeiras encenações do gênero em território nacional se dão de maneira desvinculada
dos nossos pressupostos sociais, sendo assumidamente importadas de solo europeu em
um momento em que a sua prática regredia nos seus países de origem, por motivos de
ordem política (COSTA, 1998, p. 35). Ou seja, o teatro moderno era apenas incipiente
durante a década de 1950 e as encenações se limitavam, no Brasil, às apropriações de
superfície dos recursos vinculados ao teatro moderno, não sendo possível ignorar nem a
nossa falta de experiência com os movimentos sociais e nem o poder da censura. Antes
dos anos 1960 não se podia, aliás, perceber uma real politização em nosso teatro.
É interessante aludirmos, aqui, a título de exemplificação, à curta passagem de
Ruggero Jacobbi, de propósitos de cunho claramente críticos e realistas, pelo TBC:
conhecendo a impossibilidade de encenar a Ópera dos três vinténs de Brecht, cuja
montagem seria certamente interditada pela censura em 1950, o diretor opta por trabalhar
com A ronda dos malandros, adaptação d’A ópera dos mendigos, de John Gay – e mesmo com
uma adaptação de autor não contemporâneo e não vinculado aos movimentos “de
esquerda”, a peça é cancelada e Jacobbi é demitido quando a peça, de grande sucesso entre
o público, completa duas semanas em cartaz (COSTA, 1998, p. 39). Compondo a equipe de
profissionais italianos que teriam chegado ao Brasil com o propósito de “patrocinar” a
modernização do nosso teatro, Jacobbi – que havia sido militante antifascista na Itália –
vivenciou um dos muitos episódios que indicavam a falta de receptividade da cena
brasileira às propostas teatrais modernas.
Quanto à inserção da produção de Brecht no Brasil, não podemos deixar de
considerar que esta acontece com a dificuldade de se desenvolver sob o signo da
modernidade e da já mencionada vinculação a ideias políticas contrárias às dominantes.
Tal resulta em grande demora para a realização da tradução e da difusão de seu trabalho.
É apenas em 1942 que se traduz para o português um poema (“Informação”, escrito, aliás,

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sete anos antes, em 1935) deste “rejeitado mundial” 6, que já se encontrava então na fase
mais madura de sua produção. Sabemos que mesmo após essa data, já tardia, não houve
imediatamente maior flexibilização da censura quanto à divulgação do trabalho do poeta e
dramaturgo entre nós; ainda levaria nove anos7 para a primeira encenação no Brasil.
E o que teria possibilitado esta publicação, tão anterior à entrada massiva da
produção brechtiana em território nacional? Ora, a presença da tradução na Revista
Acadêmica foi, na verdade, bastante conveniente ao governo brasileiro, pois ocorreu
justamente no ano em que entramos na guerra como aliados dos Estados Unidos,
momento oportuno a toda e qualquer propaganda antinazista (ANTELO, 1987, p. 80). Um
indício de como os intelectuais brasileiros precisariam agir nos primeiros momentos do
teatro moderno: à procura de brechas, sem manifestar claramente qualquer postura
contrária aos intuitos governamentais e celebrando coincidências de interesses dos
intelectuais e dos líderes políticos “oficiais”.
Dentre as estratégias utilizadas para a difusão das peças brechtianas, Margot Petry
Malnic, focando-se nos anos em que a ditadura militar estava estabelecida, destaca o
emprego de estruturas tipicamente brasileiras no interior das encenações para, ao mesmo
tempo, quebrar com as expectativas do público e gerar o que a autora denomina de “efeito
de distanciamento à brasileira”, utilizado a fim de contornar a conjuntura burocrática que
se armaria com o intuito de tolher o espetáculo (MALNIC, 1995). Tal foi empregado com
sucesso na montagem de Galileu Galilei, dirigida por José Celso Martinez Corrêa e
apresentada ao público no mesmo dia da entrada em vigor do Ato Institucional n o 5, 13 de
dezembro de 1968. Com sua recriação em cima da obra brechtiana, o diretor garantiu à sua
peça uma temporada livre de intervenções da censura. Outras peças que vieram à tona por
meio da mesma estratégia de adaptação no período de censura são apresentadas pela
autora, a saber: O que mantém um homem vivo (1973), de Renato Borghi e Ester Gomes, e A
ópera do malandro (1978), de Chico Buarque.

6
Iná Camargo Costa usa o termo para se referir a Brecht em seu artigo “A produção tardia do teatro
moderno no Brasil” (1998, p. 30).
7
Embora na “Pequena bibliografia brasileira de Brecht” do livro Brecht no Brasil encontremos o ano de
1954 como o da primeira encenação da peça A exceção e a regra, realizada pela Escola de Arte Dramática
de São Paulo, pode-se verificar no site do Itaú Cultural que em 1951 a montagem já havia sido trazida a
Curitiba, sob a direção de Alfredo Mesquita. Disponível em:
<http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?
fuseaction=cias_biografia&cd_verbete=633&cd_item=26>. Acesso em: 05 jul. 2018.

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Sábato Magaldi, ao discorrer sobre a importância do dramaturgo, confere destaque
especial à consciência política que perpassa sua obra e que apontaria “para os nossos
homens de palco o caminho firme da oposição ao fascismo” (MAGALDI, 1987, p. 225). Se
frequentemente destacamos a importância desta percepção nas adaptações brechtianas
brasileiras realizadas durante os anos em que vigorou o AI-5, não podemos deixar de fazê-
lo em relação àquelas produções que, visionárias ao modo do nosso dramaturgo,
antecipam-se ao golpe de 64 e empregam a voz do autor alemão para pensar as
consequências da estruturação política brasileira, cujos rumos pareciam tornar-se sombrios
desde 1955, com as tentativas de impugnação dos resultados eleitorais empreendidas pela
União Democrática Nacional (UDN). É com o país presidido por Juscelino Kubitschek e
sob constante ameaça militar que o Brasil assiste à primeira montagem brechtiana
profissional: trata-se da peça A alma boa de Setsuan, encenada pela Companhia Maria Della
Costa em 1959. A partir desse momento, além do interesse pela mensagem política, parece
ter havido também maior assimilação das propostas estéticas de Bertolt Brecht – e
aumentou o número de companhias que trataram de inserir o autor alemão em seus
repertórios.
Diante de tal quadro não espanta que, em 1963, ao apresentar sua versão da peça O
círculo de giz caucasiano, dirigida por José Renato, o Teatro Nacional de Comédia não seja
particularmente aclamado por ousadia ou inovação. Conforme consta no link referente à
companhia no site do Itaú Cultural 8, o grupo ponderou acerca da montagem brechtiana
desde 1957, quando o dramaturgo ainda era inédito no Brasil (se considerarmos apenas o
âmbito das montagens profissionais), mas conseguiu levá-la a cabo apenas após a
apresentação de peças do autor por três outros grupos, entre amadores e profissionais. A
falta de atenção que se dispensa à montagem no site, que cita duas outras peças como as
únicas relevantes do TNC (Pedro Mico e Rasto atrás) e que, a respeito da encenação
brechtiana, menciona apenas que essa não teria atendido às expectativas, deve-se
provavelmente à falta de ineditismo da peça em sua estreia e a uma reação – nada
incomum – contrária a existência de uma companhia oficial, financiada pelo governo, no
Brasil. O maior distanciamento temporal, entretanto, permite-nos a visualização de outros
atributos, aos quais partiremos agora.

8
Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/index.cfm?
fuseaction=cias_biografia&cd_verbete=651>. Acesso em: 06 abr. 2018.

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O círculo de giz caucasiano, do Teatro Nacional de Comédia

Em 1963, a efervescência ocasionada pela polarização dos setores políticos


dominantes – de um lado, os detentores de poder econômico e militar; de outro, partidos
de resistência, de viés nitidamente contrário ao conservadorismo de seus adversários –
havia atingido seu ponto culminante. Em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros,
justificada pela pressão militar, seu vice, que estava em visita à China, deveria assumir a
presidência. João Goulart, cujos princípios eram vinculados ao nacionalismo e à esquerda,
encontrou forte resistência ao seu retorno, que só se concretizou mediante o apoio do
exército do Rio Grande do Sul (sua terra natal). Uma vez tomada a posse, um acordo foi
necessário para que se evitasse uma guerra civil: tratava-se da emenda constitucional n o 4,
por meio da qual se estabelecia que o Poder Executivo seria exercido pelo Presidente da
República, um primeiro-ministro e um conselho de ministros. A emenda previa também a
realização de um plebiscito, em 1965, no qual se optaria pela manutenção deste sistema
parlamentar ou pelo retorno ao sistema presidencialista. Devido à aprovação à política de
Jango e à intensidade da pressão popular, no entanto, o plebiscito foi adiantado para 6
janeiro de 1963 – e o sistema presidencialista ganhou, conforme era previsto, com a
maioria esmagadora dos votos.
É neste contexto, no qual era nítida a insatisfação geral de grupos vinculados ao
exército e com significativo poder econômico, que o Teatro Nacional de Comédia,
instituição patrocinada pelo Serviço Nacional de Teatro, órgão governamental, dá início às
atividades para a encenação da peça O círculo de giz caucasiano, traduzido do alemão por
Manuel Bandeira. A produção, conforme o diretor afirma em entrevista à Folha realizada
em 2002, ocorreu sem necessidade de economia no que diz respeito à escolha do elenco
(composto por 40 atores/atrizes, entre eles Beatriz Veiga, Margarida Rei e outras figuras
importantes do teatro no período, que se revezaram para interpretar as 56 personagens da
peça), do cenário (que ficou a cargo de Anísio Medeiros) e dos demais recursos, dentre os
quais se destaca a tradução do já então “monstro sagrado” 9 Bandeira, importante a ponto
de ter sido citada nos periódicos 10 de uma época em que pouco se creditava o trabalho

9
Alcunha empregada pelo diretor José Renato na entrevista citada. Disponível em:
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0707200208.htm>. Acesso em: 07 abr. 2018.
10
A realização da tradução por Bandeira é citada em muitos textos jornalísticos da época. Destacam-se,
entre eles, os localizados sob as referências a seguir: MICHALSKI, Yan. A estréia de hoje & outras. Jornal

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criativo de um tradutor. A grandiosidade da empreitada resultou na necessidade de longa
preparação antes da estreia: durante os mais de 3 meses de ensaio, a ansiedade pela
verificação do resultado se deixava estampar nas folhas de jornal 11. A companhia contava,
então, com o apoio do Ministro da Educação Darcy Ribeiro, ao qual estavam subordinados
o Serviço Nacional de Teatro e, consequentemente, o Teatro Nacional de Comédia.
Diante da sensação geral de que o resultado do plebiscito não bastaria para
convencer os conservadores de que a situação deveria permanecer conforme solicitava a
vontade popular, encenar O círculo de giz caucasiano, com seu eixo temático e sua defesa de
uma concepção socialista e não conservadora, constituía nítido convite à reflexão acerca da
conjuntura que rapidamente se delineava e que resultaria, enfim, no Golpe de 64. Visto
desta maneira, a realização dramática ocorreu em momento preciso, no qual o conteúdo
textual dialogava plenamente com nossa realidade política. Tal é apontado, aliás, pelo
diretor: adiantando-se às críticas referentes à demora do TNC em realizar uma montagem
brechtiana, José Renato menciona, em artigo escrito para o jornal Correio da Manhã e
publicado no dia 16 de junho de 1963, a chegada da ocasião precisa para encenar uma das
mais complexas peças do dramaturgo alemão – e dificilmente se pode imaginar, de fato,
momento em que a iniciativa fosse provida de mais sentido.
Entretanto, pode-se localizar no Jornal do Brasil de 19 de abril de 1963, em um breve
comentário de Bárbara Heliodora (Estréias & Outras, p. 2) acerca da gênese do espetáculo,
uma justificativa mais concreta para a relativa demora da apresentação da peça de Brecht
pelo TNC: Gianni Ratto, entre 1956 e 1958, enquanto atuava como diretor da companhia,
teria obtido a autorização para encenar O círculo de giz caucasiano desde que removesse, de
sua montagem, o prólogo – parte do texto em que o posicionamento político do autor é
apresentado de forma direta. A condição não foi aceita e Ratto abandonou o projeto. O
prólogo felizmente pôde ser mantido na versão de José Renato, desde que com um
trabalho nítido de suavização das manifestações críticas nas falas das personagens,
conforme veremos no próximo tópico.

do Brasil, Caderno B, 31 jul. de 1963. p. 2; O TEATRO CARIOCA define-se sobre a direção do SNT. O
Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 16, 2 jul. de 1963. Na edição do Correio da Manhã de 02 jul. de 1963 há
um cartaz de divulgação em que consta o nome do autor e do tradutor, suprimindo-se mesmo o nome do
diretor José Renato.
11
Em referência ao longo tempo de preparação do TNC: MICHALSKI, Yan. Teatro: notas e comentários.
Jornal do Brasil, Caderno B, 28 jun. de 1963. p. 2.

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A experiência prévia, mesmo que breve, dos espectadores com a estética brechtiana
e a constância do debate político no período, resultaram na criação de uma plateia apta a
absorver de maneira mais completa o conteúdo que se articula na trama. No caso
específico d’O círculo de giz caucasiano do TNC, basta mesmo que falemos em conteúdo:
mais preocupado com discussões de ordem política e com a acessibilidade de seu
espetáculo, José Renato menciona, em entrevista concedida a Yan Michalski 12, do Jornal do
Brasil, a opção de não aplicar, em sua versão do espetáculo, certas técnicas que Brecht
tratava de desenvolver em seu teatro épico – destacando-se, entre estas, o efeito de
distanciamento, mencionado no primeiro item deste trabalho. Se as convenções do teatro
moderno não eram, ainda, dominadas pelo grande público, a quem a peça se dirigia, José
Renato, ao abandonar alguns aspectos da estética brechtiana em sua peça, aproximou-se,
paradoxalmente, do dramaturgo alemão, a quem interessava sobretudo gerar
movimentação crítica entre os espectadores. Não se trata aqui de afirmar que o diretor
teria encenado Brecht com atuação stanislavskiana, mas apenas que fez opções mais
realistas que as pressupostas pelo teatro épico a fim de não atingir somente as elites –
consciente da inconsistência teórica de sua opção, que poderia “ser contestada
dialeticamente”, reitera que “um espetáculo teatral não se realiza com palavras, nem com
dialética” (PÉCORA, 1963, p. 2).
A peça, afinal, que é aberta com uma negociação entre grupos de posições distintas,
foi encenada no Brasil momentos antes das possibilidades de diálogo entre opostos serem
temporariamente encerradas: poucos meses depois da última encenação d’O círculo de giz
caucasiano, o TNC, companhia oficial do período, não obteria a permissão e o apoio para
montar Bertolt Brecht; alguns anos depois, a partir de 1968, o AI-5 viria a constituir
empecilho de maior alcance.
Foi provavelmente a visualização deste quadro que fez com que Manuel Bandeira,
que contava então 77 anos de idade, topasse a empreitada de traduzir a peça e se
mostrasse, aliás, bastante animado com a tarefa. Embora o engajamento político não seja
característica notável em sua produção (mesmo José Renato afirma, na já citada entrevista
“À meia distância” concedida à Folha, que as preocupações de Bandeira eram sempre
mais ligadas aos elementos literários do que aos políticos e teatrais), o momento se

12
PÉCORA, José Renato. José Renato fala sôbre Círculo de Giz. Jornal do Brasil, Caderno B, 7 ago. de 1963.
p. 2. Entrevista concedida a Yan Michalski.

Dramaturgia em foco, Petrolina-PE, v. 2, n. 2, p. 76-98, 2018.

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mostrava extremamente delicado e, diante das circunstâncias, não parecia possível não se
envolver com questões de ordem política. Conforme afirma Roberto Schwartz,
imediatamente antes do Golpe de 64 “o país vibrava e suas opções diante da história
mundial eram pão diário para o leitor dos principais jornais” (SCHWARTZ 13, 1978, p. 74
apud COSTA, 1998, p. 106).
Talvez seja postura um tanto quanto ingênua acreditar nas palavras do próprio
Bandeira quando este afirma, no texto de apresentação no programa de montagem do
TNC, que topou realizar a tarefa apenas para comprazer o amigo Edmundo Moniz. Seja
como for, é fato que se encantou “pela profundeza de pensamento, pela solidez da
estrutura, pela beleza formal, pela vida insuflada às personagens” que tornariam, a seu
ver, Brecht o único dramaturgo moderno comparável a Shakespeare. Diante do ânimo em
traduzir a peça e da sofisticação do resultado, reconhecida pelos que tiveram contato com
a montagem para o qual a tradução foi encomendada, é intrigante a longa espera que
antecedeu a sua publicação em livro – se nos anos que sucederam à encenação tal se
explica pela implementação do sistema ditatorial, o fato de apenas em 2002 termos a
primeira edição lançada revela um nocivo descaso aos textos dramáticos no Brasil. Num
pequeno passo rumo à reversão deste quadro, partiremos agora a uma análise desta
tradução, focando-nos nas escolhas de nosso poeta moderno para resolver os entraves de
ordem estética e política que perpassam o texto de Bertolt Brecht.

O círculo de giz caucasiano, de Manuel Bandeira

Embora a tradução de Bandeira seja a primeira da peça Der kaukasische Kreidekreis


para o português, ela não foi a primeira a ser publicada. A partir dos anos 1970, com a
estética brechtiana já assimilada pelas companhias brasileiras mais relevantes, as
publicações das traduções passaram a ocorrer de maneira massiva – Geir Campos, por
exemplo, ao ser convidado por Ênio Silveira, em torno de 1975, a supervisionar a
publicação do teatro completo de Brecht no Brasil, menciona que boa parte da tarefa
consistia em organizar textos já traduzidos por outros autores, incumbindo-se de traduzir
ou de selecionar tradutores para as poucas peças faltantes (CAMPOS, 1987, p. 218). O

13
SCHWARTZ, Roberto. Cultura e política, 1964—1969. In: ______. O pai de família e outros estudos. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

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círculo de giz caucasiano ficou a seu encargo. E o que justificaria a necessidade desta tarefa,
se a montagem do TNC com o texto de Bandeira não teria escapado ao conhecimento do
novo tradutor da peça brechtiana? Uma explicação provável é encontrada na resposta à
última pergunta da já mencionada entrevista “À meia distância”, com José Renato

Não sei, acho que é um problema de organização. Quando houve o


movimento militar de 64, todos esses bancos de memória do Ministério da
Educação, numa seção na rua São José, no Rio [no endereço onde
atualmente fica a Funarte], foram arrebentados. Sobrou bem pouca coisa.
Eu dei fotos, programas e recortes para esse arquivo, e isso tudo
desapareceu, ninguém sabe mais. (PÉCORA, 2002)

Interessante pensarmos que é precisamente no ano anterior a esta entrevista que


Pepê da Mata Machado localiza uma cópia da tradução de Bandeira no Museu Lasar
Segall, em São Paulo. A partir deste momento, uma pesquisa intensiva foi realizada para
levantamento de mais material relacionado ao texto e à montagem do TNC. O resultado é
o lançamento do texto pela Cosac Naify em 2002, em edição rica no que diz respeito à
qualidade gráfica e à presença de material suplementar – fotos do espetáculo do TNC,
apresentação de Manuel Bandeira que constava no programa da montagem (bem como
sua tradução do poema “An die Nachgeborene”) e texto acerca da peça escrito por Roland
Barthes.
Com a iniciativa da editora, que encerrou suas atividades em 2015, a tradução e a
montagem são colocadas mais uma vez em perspectiva. Mesmo a tradução de Geir
Campos, lançada anteriormente, ganha a possibilidade de ser lida sob uma nova ótica 14. É
notável, por exemplo, que ambos os tradutores se aproximam no que diz respeito à
proposta, tipicamente moderna, de garantir a acessibilidade do texto. Embora o
procedimento pareça o único adequado ao lidarmos com a obra de Brecht, tal não era, de
acordo com José Renato, o padrão adotado por tradutores menos envolvidos com estas
propostas, como os responsáveis pelas traduções inglesas e francesas, que adaptavam
Brecht a suas línguas de modo a enquadrá-lo em um registro mais erudito (PÉCORA,
2002).

14
Uma reflexão mais completa acerca das duas traduções brasileiras d’O círculo de giz caucasiano pode ser
encontrada no artigo “O hibridismo no olhar do tradutor: a arte e a comunicação em versões de O círculo
de giz caucasiano para o português”. Vide Lima e Souza (2017) nas Referências.

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No entanto, não se verifica em Campos, que, além de pioneiro nos lançamentos em
português dos textos de Brecht, atuava como militante comunista, a proposta de amenizar
o tom radical de trechos em que o teor político se manifesta de forma combativa. Bandeira,
ao contrário, realiza esforços conscientes nesse sentido. A sentença “Tod den Faschisten!”
(BRECHT, 1971, p. 8) é traduzida de forma literal por Geir Campos – “Morte aos
fascistas!” (BRECHT, GC15, 1992, p. 184) – e de modo mais ameno pelo poeta, que opta pela
construção “Ao diabo os fascistas!” (BRECHT, MB, 2010, p. 42), interpretada entre nós
como algo entre o “deixe pra lá” e o “danem-se os fascistas!”.
Pode-se observar mais um exemplo da proposta de Bandeira de amenizar o teor
crítico ao analisarmos o corte que este realiza ao traduzir o trecho transcrito abaixo,
também retirado do prólogo:

DER ALTE RECHTS unter Gelächter: Wie soll der als Beeinflussung gedacht
sein, Surab, du Talräuber! Man weiß, daß du den Käse nehmen wirst und
das Tal auch. Gelächter. Alles, was ich von dir verlange, ist eine ehrliche
Antwort. Schmeckt dir dieser Käse? (BRECHT, 1971, p. 8)

A primeira parte da fala do Velho à Direita, que, em uma tradução livre, significaria
algo como “Como isso pode ser interpretado como suborno, Surab, seu ladrão de vale! Já
se sabe que você vai ficar com o queijo e com o vale também”, é suprimida e ficamos
apenas com a pergunta final: “O VELHO à direita Tudo o que eu quero é uma resposta
franca: você acha bom o queijo?” (BRECHT, MB, 2010, p. 43). Sem o tom agressivo de
defesa do velho ao verificar que aos olhos do outro grupo ele seria suspeito de suborno,
amenizam-se as animosidades entre os concorrentes. Como efeito, o corte garante que
nenhum dos lados seja levado de maneira simplória ao ridículo – projeto que, em outros
trechos, parece ser também o de Brecht. Sua postura política é clara e se deixa transparecer
na narrativa, sobretudo no desfecho; ao conferir dignidade à voz das personagens cuja
ideologia difere da sua, torna-se menos distante dos que discordam de seu discurso.
Pode-se verificar este cuidado na produção textual do original ao observarmos, por
exemplo, as intervenções do Perito, nas quais, embora seja visível o tom favorável ao
grupo da esquerda, percebe-se a temperança daquele que exerce a função de mediador.

15
Para facilitar a leitura do texto, as siglas GC e MB significam, respectivamente, traduções de Geir Campos
e Manuel Bandeira.

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Na citação abaixo, seu posicionamento neutraliza o ridículo a que o grupo da esquerda
submete, com risadas, uma fala do Velho à direita:

O PERITO Não te zangues se eles riem, no fundo te compreendem muito


bem. Camaradas, por que se gosta da terra? A razão é esta: nela o pão tem
melhor sabor, o céu é mais alto, o ar mais vivo e perfumado, nela a voz soa
melhor, <o chão facilita a marcha>. (BRECHT, MB, 2010, p. 44)

Ou seja, é notável o cuidado em não invalidar o discurso do outro, apresentando-o


como plausível e provido de sentido mesmo àquele que toma outra atitude – que, mesmo
compartilhando os sentimentos, sobrepõe a estes a racionalidade, imprescindível ao
momento de reconstrução no qual se desenrola o enredo.
Nesse sentido, constata-se que as medidas tomadas por Manuel Bandeira ocorrem
tanto no sentido de adequar o texto à época e ao contexto cultural em que ocorreria a
encenação brasileira quanto no de aprofundar projeto brechtiano. Vale lembrar, também,
que justamente o prólogo teria impossibilitado a montagem cinco anos antes da iniciativa
de dirigi-lo ter sido tomada por José Renato: nesse sentido, a suavização do teor combativo
das manifestações ligadas à política parece se antecipar às escolhas pessoais do tradutor,
configurando-se como medida obrigatória para a realização da encenação do TNC.
Embora as opções de tradução de Manuel Bandeira relacionadas à política sejam as
primeiras a nos saltar aos olhos, as que dizem respeito aos trechos líricos não possuem
menor importância para a nossa análise. São os poemas presentes na peça, aliás, os trechos
que mais parecem justificar a escolha de um de nossos mais importantes poetas para
realizar a tradução.
A lírica, e não apenas a vinculação ao modernismo, aproxima as produções de
Brecht e de Bandeira. Se à primeira vista a imagem do dramaturgo alemão é relacionada a
uma linguagem em prosa, cuja elaboração é perpassada pela amplitude no trabalho com a
variante padrão da língua, não se pode esquecer do seu reconhecimento por elaborar as
letras de algumas das mais célebres canções do século XX.
Em O círculo de giz caucasiano, o modo de elaboração das vozes líricas sinaliza seu
modo de participação na peça. A estrutura dos versos surge-nos como componente dotado
de significação e rapidamente constata-se que é por meio destes que veremos duas
dimensões diametralmente opostas do acontecimento cênico.

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De um lado, nossa protagonista, com suas canções, irá expor sentimentos,
preocupações e ímpetos que a conduzirão trama afora. Suas manifestações dizem respeito
ao seu mundo interior e à sua atuação, justificada de si para si. Seus poemas expressam
uma visão menos global dos eventos que perpassam a peça, e a beleza desta lírica, ao
modo da produção bandeiriana, está na valorização atribuída ao “pequeno”, aos detalhes
e à humildade daquela que os entoa. Para a vinculação a estas características, os versos da
protagonista são curtos e ritmados, com alternância, conforme aponta Sylvia Tamie Anan,
de dois e três acentos (ANAN, 2010), opção que possui equivalência formal com a nossa
redondilha menor. Atento a essa característica, que faz com que os versos nos remetam a
canções de roda e a outras manifestações populares, Bandeira utiliza a redondilha em sua
tradução:

GRUSCHE GRUCHA (canta)

Weil ich dich zu lang geschleppt Porque, ao peito carregando-te,


Und mit wunden Füßen Dias e dias, nas pedras
Weil die Milch so teuer war Da estrada os pés me feri,
Wurdest du mir lieb. Porque o leite era tão caro,
(Wollt dir nicht mehr missen.) Fiquei gostando de ti,
Werf dein feines Hemdlein weg Não posso passar sem ti.
Wickle dich in Lumpen Tira a camisinha fina,
Wasche dich und taufe dich Veste este trapo, lavar
Mit dem Gletscherwasser. Te vou e te batizar
(Mußt es überstehen.) Na água gelada do rio,
(BRECHT, 1971, p. 50) Meu lindo! Tens que aguentar.
(BRECHT, MB, 2010, p. 98)

Observa-se, no trecho retirado do texto em alemão, precisamente a alternância do


número de tônicas por linha poética apontada por Anan. Quanto à tradução de Bandeira,
prevalece, na estrofe indicada, a redondilha maior, embora quatro versos não atendam a
este padrão – irregularidade que convém ao tom popular da voz em questão e à escola
moderna, na qual tanto a produção de Brecht quanto a de Bandeira se inserem. Nota-se,
ainda, no que diz respeito a opções de tradução, que Bandeira abandona por vezes o
projeto de ser semanticamente “fiel” ao original para obter, assim, maior proximidade
formal e estilística ao texto brechtiano. Não há, por exemplo, considerando apenas o
trecho citado, nenhuma correspondência semântica ao “Meu lindo!” na versão alemã da
canção: os adendos líricos de Bandeira seriam, inclusive, um dos problemas de sua

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tradução se considerarmos que, para o próprio Brecht, a Grucha deveria ser “mais
cabeçuda que rebelde, mais dócil que bondosa, mais resistente que incorrompível, e assim
por diante” (BRECHT, MB, 2010, p. 201).
A lírica dos músicos e do recitante, por sua vez, apontará ao leitor e ao espectador
mais aspectos do que aqueles que podem ser imediatamente vislumbrados por meio da
ação dramática. Ao prólogo, ouvimos, pela voz de uma personagem, que “Todas as
discussões devem ser racionadas, o fumo está racionado e a discussão também” (BRECHT,
MB, 2010, p. 42). Parece ser nesse sentido que a voz do recitante e dos músicos contribui
com a nossa compreensão do todo ficcional. As contextualizações necessárias ao início da
ação dramática, as motivações de algumas personagens, a apresentação breve dos eventos
abrigados pelos saltos temporais da peça e as circunstâncias históricas e sociais que se
desenrolam para além do olhar do espectador chegam até nós somente por meio destes
cantos, que podem fazê-lo de maneira mais breve do que as possibilitadas exclusivamente
por diálogos. Ou seja, trata-se de vozes que extrapolam os limites de uma individualidade;
nesse sentido, expressando a maior complexidade do discurso, os versos que compõem a
lírica do músico e dos recitantes são em geral mais longos, sendo também menos
constantes no que diz respeito à quantia de tônicas ou de sílabas poéticas – a extensão e a
formalidade dos termos são as peças fundamentais à obtenção de seus efeitos. Pode-se
verificar que Bandeira, em sua tradução, manteve essas diretrizes para a elaboração lírica
que parte da voz destas personagens:

DER SÄNGER RECITANTE

Die Stadt liegt stille, aber warum gibt es Toda a cidade está silenciosa, mas por que os
[Bewaffnete? [soldados armados?
Der Palast des Gouverneurs liegt friedlich No palácio do Governador, tudo está em paz,
Aber warum ist er eine Festung? Mas então por que trincheiras?
(BRECHT, 1971, p. 20) (BRECHT, MB, 2010, p. 58)

Os polos líricos opostos – as manifestações de Grucha, que se articulam a partir de


suas percepções, e as dos recitantes, que têm acesso tanto às percepções individuais de
outras personagens quanto à totalidade do quadro social e histórico – constituem
direcionamentos imprescindíveis ao leitor e ao espectador frente aos acontecimentos
dramáticos. É por meio da lírica, inclusive, que nos é posto, de maneira direta ao fim da

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peça, o ensinamento moral que a trama abriga – o de que as coisas devem caber aos que
sabem fazê-las melhor. Nesse sentido, a realização da tradução por um poeta parece ser
escolha muito acertada. Pesaram a favor desta opção a experiência de Bandeira como
tradutor de teatro, suas traduções da lírica em língua alemã 16 e o projeto nacional de
entregar os textos de dramaturgos estrangeiros de maior peso literário a escritores em
ascensão – uma reação à forma de lidar com a tradução de textos dramáticos no início do
século XX:

Às vésperas da Revolução Nacionalista de 1930, Joracy Camargo afirmava


que o escritor brasileiro vivia desanimado pelas dificuldades criadas com a
barreira das traduções e as ‘adaptaçõesʼ. Chamava-as de processo cômodo
de ganhar dinheiro que afasta dos cartazes os verdadeiros escritores,
substituídos por meia dúzia de rapazes que conhecem línguas estrangeiras
e nem sempre conhecem a nossa. (WYLER, 2003, p. 102)

Nos anos 1960, num processo que teria como objetivo a reversão deste quadro e a
valorização de peças traduzidas, as companhias passam a solicitar o trabalho de escritores
como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Onestaldo Pennafort e, claro,
Bandeira, para traduzirem textos de dramaturgos como Anouilh, Audiberti, Dumas,
Pirandello, Tennessee Williams e Brecht (WYLER, 2003, p. 103). A vinculação das
encenações a estas figuras relevantes da literatura nacional, além de constituir bom
método de divulgação das montagens, marca a consagração de um movimento perceptível
desde fins dos anos 30: o texto passa a ser encarado, em território nacional, como
fundamento da arte teatral, contrapondo-se ao teatro para atores que prevalecia até então
(WYLER, 2003, p. 103).
O texto como fundamento do acontecimento cênico: se essa compreensão já era
preconizada por Shakespeare em A tempestade, é apenas a partir dos anos 30 que se
instaura no teatro nacional, preparando terreno para o estabelecimento da modernidade
em nossos palcos. A palavra que funda a ação dramática, entretanto, se elabora com base
em pressupostos diversos daqueles do texto totalmente lírico ou prosaico – aspectos de
16
Quanto à tradução de textos dramáticos, além de tradução de Macbeth, de Shakespeare, publicada em
1961 pela Editora José Olympio, Bandeira também foi responsável por versões brasileiras da peça Maria
Stuart, de Schiller, publicada pela Editora Civilização Brasileira em 1955, e do Auto sacramental do divino
Narciso, de Sor Joana Inés de la Cruz, presente no segundo volume de sua coleção de Poesia & Prosa
publicada pela Aguilar, em 1958. No que se refere à tradução de lírica alemã, Rilke, Goethe e Hölderlin se
destacam entre os poetas traduzidos para o português por Bandeira em versões presentes no volume
Poemas traduzidos, publicado em 1945 pela R. A. Editora.

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composição que devem ser levados em consideração durante a tradução de peças teatrais.
O que caracterizaria esses processos? Em que medida Bandeira, que “tinha mais interesse
pela parte poética, literária”17, atende às solicitações desta modalidade de tradução?
Em primeiro lugar é preciso considerar a incompletude do texto dramático, cuja
realização é efetivada apenas por meio de uma performance. Susan Bassnett, em Translation
Studies, menciona a dificuldade em compreender esta característica que se verifica entre a
crítica especializada em tradução – dificuldade que justificaria a negligência a que são
submetidos textos dramáticos traduzidos, muitas vezes analisados com base nos mesmos
pressupostos que conduzem o estudo de outros gêneros textuais.
O sistema linguístico deve ser elaborado em consonância com a função que
admitirá – e sendo apenas um dos dispositivos acionados para o acontecimento cênico, o
texto dramático não deve ser encarado como uma unidade completa. Bassnett, retomando
Ubersfeld, menciona que texto e performance não devem ser pensados separadamente:
assim como em outros itens que compõem uma montagem, como atuação, criação de
cenário, iluminação, direção e sonorização, se atenderão certos requisitos impostos pelo
texto, também a elaboração textual deve atender a solicitações destes outros componentes.
Ao atender a certos princípios e vincular-se, assim, organicamente à encenação, sem ser
visto com supremacia em relação aos outros elementos, o texto atinge o estatuto que se
espera de um texto dramático.
Ou seja, não se podem perder de vista, diante da tradução teatral, a relação que se
estabelece entre as dimensões do texto e as da representação – entre as dos signos verbais e
as dos não verbais. José Roberto O’Shea, em acordo no que diz respeito à relativização da
autonomia do texto teatral, focaliza o papel do diálogo para pensar o entrecruzamento
entre elementos linguísticos e extralinguísticos que se verifica em uma encenação:

[...] excetuando-se as didascálias, trata-se de uma escritura destinada a ser


falada, gritada, sussurrada, salmodiada e ouvida, uma conversação estilizada
que se destina a ser representada, um discurso oral a ser enunciado pela
voz humana em interação. Ou seja, o modo de expressão do teatro,
conforme aponta Ryngaert, invocando Ezra Pound, ʻnão consiste em
palavras, mas em pessoas que se movem em cena empregando palavras ʼ.
(O’SHEA, 2009, p. 111)
17
PÉCORA, José Renato. À meia distância. Folha de São Paulo, São Paulo, 07 jul. 2002. Entrevista concedida a
Caio Caramico Soares. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0707200208.htm>.
Acesso em: 28 abr. 2018.

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Neste sentido, O’Shea destaca aquele que considera ser o elemento mais importante
para a prática da tradução de teatro: a atenção à relação entre os emissores e os
destinatários que compõem o grupo de personagens. Se, em cena, “falar, enunciar, ouvir e
retrucar é atuar; falar, dialogar, é fazer” (O’SHEA, 2009, p. 111); se a palavra que se situa
cenicamente é (inter)ação, “no teatro falado a questão do diálogo é exacerbada, precípua,
autônoma” (O’SHEA, 2009, p. 112) e, assim, interessa especialmente ao tradutor de teatro
observar, nos indivíduos que povoam o texto teatral, coordenadas sociais, históricas,
nacionais, subjetivas etc.
Bandeira ateve-se a essas questões. Ao longo da leitura de sua versão para O círculo
de giz caucasiano, a escolha das palavras é muito reveladora no que diz respeito às relações
entre as personagens. O clima de concorrência, e não de cooperação, entre os dois médicos
que atendem Miguel quando a criança ainda está sob os cuidados de sua família rica e não
de Grucha, por exemplo, é revelado de maneira que evidencia minúcias de uma relação
pautada pela hipocrisia – boa indicação do tom que pode ser adotado pelos atores:

MULHER DO GOVERNADOR Ele tossiu! Ouviste, Georgi? Agressiva, aos


dois médicos, dois homens muito dignos, em pé atrás do carrinho da criança. Ele
tossiu.
PRIMEIRO MÉDICO ao segundo Posso lembrar-lhe, Niko Mikadze, que eu
fui contra o banho morno? Um pequeno erro, Excelência, quando se dosou
a água do banho.
SEGUNDO MÉDICO igualmente muito cortês Não posso absolutamente
partilhar o seu ponto de vista, Mikha Loladze, a temperatura da água do
banho era a indicada pelo nosso caro, pelo nosso grande Michiko
Oboladze. Antes quero crer que foi alguma corrente de ar durante a noite,
Excelência. (BRECHT, MB, 2010, p. 54)

Além de se mostrar atento ao trabalho que se deve empreender para que os efeitos
obtidos pelo texto original ao momento de sua encenação se aproximem daqueles que se
possam obter ao vertê-lo para outra língua e cultura – o que prova ao traduzir a expressão
de desespero “Ogottogottogott” (uma repetição de “Oh Deus!”, se traduzido literalmente)
por “Virgemaria! Virgemaria!” – Manuel Bandeira é também elogiado por conseguir,
mesmo nos versos, fazer com que sua tradução seja facilmente comunicada à plateia pelos
atores e pelas atrizes (PÉCORA, 2002). Uma conquista facilitada pela proposta moderna,
da qual partilhava nosso poeta, de inserir, na literatura, registros mais coloquiais, que se
aproximem da fala.

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Se pensarmos, enfim, que a tradução adequada para o texto teatral é aquela que se
empreende de forma colaborativa, contendo em si indicações que auxiliem no
desenvolvimento de mais dimensões da totalidade cênica, O círculo de giz caucasiano de
Manuel Bandeira se mostra como um bom exemplo desta realização. Articulando, em sua
tradução, cuidados necessários para evitar a censura e outras complicações políticas, o
poeta conseguiu fazê-lo ao mesmo tempo em que compôs uma lírica que preserva traços
formais caros ao projeto modernista. Quanto ao contexto social e cultural do público-alvo,
a consideração do tradutor a este respeito superou o uso de palavras adequadas, lançando,
também, à companhia responsável pela montagem – o TNC – indícios fundamentais à
composição da tessitura dramática.

Referências

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COLÓQUIO INTERNACIONAL DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS, 1, 2010,
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Submetido em: 31 jul. 2018 – Aprovado em: 05 set. 2018

Dramaturgia em foco, Petrolina-PE, v. 2, n. 2, p. 76-98, 2018.

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