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Novas Praticas de Maternagem e Feminismo LIDO

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2

Luana Borges Lemes

Novas práticas de maternagem e feminismo das mulheres


da plataforma Cientista Que Virou Mãe

Dissertação apresentada para obtenção do título de


Mestre em História, ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal
de Santa Catarina, UFSC.

Orientadora: Profª. Drª. Joana Maria Pedro

Florianópolis/SC
2018
3
4

AGRADECIMENTOS

Agradeço às mulheres que constam neste trabalho, entre tantas outras que me inspiram
todos os dias como feminista. Agradeço à oportunidade de realizar e concluir o mestrado no
curso de História na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis/SC, com bolsa
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Essa nova
trajetória acadêmica foi repleta de conquistas e de pessoas que somaram para as minhas relações
profissionais e pessoais. Nessas circunstâncias, agradeço às pessoas que me ofereceram
palavras e gestos de positividade no caminho desafiador de pesquisa, de escrita e de docência,
especialmente, agradeço à minha mãe Maria Cleusa Borges e à minha irmã Mariana Borges
Lemes. O apoio de vocês foi fundamental na minha fase como mestranda pois, apesar da
distância entre Florianópolis/SC e Santa Maria/RS que havia entre nós na maior parte do tempo,
compartilhei com vocês meus saberes, minhas indagações, meus descontentamentos e meus
entusiasmos durante esse período. Tenho sorte por ter vocês como companheiras de vida e
amigas. Amo vocês.
Agradeço às colegas de curso com as quais mantive conversas e vivências importantes
para o suporte emocional que esta experiência exigiu de muitas de nós. Além de pontes de
saberes, criamos pontes de amizades e de fortalecimento. Também agradeço ao Laboratório de
Estudos de Gênero e História (LEGH) da UFSC, do qual participei por alguns meses e às
professoras e professores: Profª Drª Cristina Scheibe Wolff, Profª Drª Janine Gomes da Silva,
Prof. Dr. Marcos Fábio Freire Montysuma, Profª Drª Joana Maria Pedro, Profª Drª Soraia
Carolina de Mello, Profª Drª Maria Collier de Mendonça e Prof. Dr. Paulo Rogério Melo de
Oliveira. Agradeço, especialmente, à professora Joana Maria Pedro por ter sido minha
orientadora na dissertação e no estágio de docência do mestrado. Admiro a sua exímia
dedicação, ética profissional e sensibilidade no tratamento com as pessoas, que conheci ao
participar de palestras, de aulas e de orientações ministradas por ela. Sinto-me grata a essas
pessoas, pois integraram os meus dias de satisfação e de desafios no mestrado.
Agradeço por descobrir mais esse universo de possibilidades (e de limitações), que o
mestrado me ofereceu. Foram muitas oportunidades de aprender e de valorizar ainda mais as
ideias, os questionamentos, a palavra escrita, os métodos e até os egocentrismos, além dos
pormenores cotidianos que me constituem na soma dessas vivências compartilhando afetos e
conhecimentos.

RESUMO
5

A maternagem foi um tema pouco desenvolvido no feminismo de segunda onda,


apesar de tratar sobre maternidade. No século XXI ambos os temas passaram a ser discutidos
com maior regularidade e profundidade, sobretudo por grupos ativistas e autoras feministas.
Esta pesquisa investiga como as mulheres atuantes na plataforma digital brasileira Cientista
Que Virou Mãe contribuem para este debate. Para tanto, evidencia novas práticas de
maternagem através do trabalho destas mulheres na plataforma e da história oral relatada por
cinco delas durante entrevistas, que constituem as fontes desta pesquisa. O primeiro capítulo
narra o desenvolvimento da plataforma Cientista Que Virou Mãe no contexto da Primavera das
Mulheres no Brasil, enfocando a presença política das mulheres mães. A Primavera das
Mulheres ocorre desde 2015 no país, envolvendo protestos na Internet e em ambientes públicos.
O segundo capítulo analisa as entrevistas e observa como as mulheres da Cientista Que Virou
Mãe narram suas relações familiares junto às questões de gênero, o trabalho doméstico e as
referências de mulheres de suas famílias. O terceiro capítulo destaca o feminismo matricêntrico
e as contranarrativas de maternagem das entrevistadas, para mostrar como elas atribuem suas
práticas de maternagem as suas militâncias feministas. Por fim, destacam-se os potenciais de
transformação social das mulheres mães com posicionamentos feministas.

Palavras-chave: gênero; mulheres; maternagem; história oral.


6

ABSTRACT

Mothering were themes few developed in second wave feminism, despite treating about
maternity. In the XXI century, these themes have been discussed more frequently and deeply,
especially by feminist activist groups and feminist authors. This research investigates how the
women from the platform Cientista Que Virou Mãe (A Scientist Who Became A Mother)
contribute to this debate. To do so, highlighting new practices of mothering through their work
on the platform and their oral history reported by five of them during fieldwork interviews as
sources of this research. The first chapter describes the development of the platform Cientista
Que Virou Mãe in the context of the Spring Women's in Brazil, focusing on the political
presence of mothers. The Women's Spring has been taking since 2015 in the country, through
protests on the Internet and in public environments. The second chapter analyzes interviews
and observes how women of the Cientista Que Virou Mãe talk about family relations and gender
issues, addressing household chores and references of women among their families. The third
chapter highlights the Matricentric Feminism and interviewees' counter-narratives of
mothering, to show how they attribute mothering practices to their feminist militants. Finally,
the potential for social transformation of women mothers with feminist positions is highlighted.

Keywords: gender; women; mothering; oral history.


7

LISTA DE FIGURAS

CAPÍTULO 1

Figura 1.1 - banner digital do evento “Mulheres, passado e futuro” promovido pela Cientista
Que Virou Mãe, em 2017......................................................................................................... 50

Figura 1.2 - banner digital da campanha Existir é Resistir promovida pela Cientista Que Virou
Mãe, em 2017.........................…................................................................................... 51

Figura 1.3 - layout da plataforma Cientista Que Virou Mãe, em


2018.......................................................................................................................................... 51

Figura 1.4 - banner digital da campanha Vai Ter Teta Sim, promovida pela Cientista Que Virou,
em 2017.............……………………………………………………………............... 59

Figura 1.5 - banner digital da campanha Mude e Ajude a Mudar promovida pela Cientista Que
Virou Mãe, em 2017......................................................................................................... 78
8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9
CAMINHO TEÓRICO 13
METODOLOGIA E FONTES DE PESQUISA 37

CAPÍTULO 1. CIENTISTA QUE VIROU MÃE NA PRIMAVERA DAS MULHERES 45


1.1 A PRESENÇA POLÍTICA DAS MÃES NA PRIMAVERA DAS MULHERES 50
1.2 A INTERNET COMO CATALISADORA DA PRIMAVERA DAS MULHERES 60

CAPÍTULO 2. AS MULHERES DAS FAMÍLIAS 78


2.1 RELAÇÕES DE GÊNERO NAS FAMÍLIAS E TRABALHO DOMÉSTICO 78
2.2 REFERÊNCIAS DAS MULHERES NAS FAMÍLIAS 90

CAPÍTULO 3. AS MÃES FEMINISTAS DAS FAMÍLIAS 104


3.1 FEMINISMO MATRICÊNTRICO: CONTRANARRATIVAS DE MATERNAGEM 104
3.2 MÃES FEMINISTAS: SUJEITOS POTENCIAIS DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL 115

CONSIDERAÇÕES FINAIS 130

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 137

LISTA DE FONTES 142

LISTA DE REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS 143

APÊNDICE - ROTEIRO DE ENTREVISTA 152

ANEXO - AUTORIZAÇÕES DE ENTREVISTA 153


9

INTRODUÇÃO

O fenômeno brasileiro chamado Primavera das Mulheres consiste no conglomerado


de movimentos sociais que “floresce” em resistência, desde 2015, nas mídias sociais 1 da
Internet e nos ambientes públicos. A Primavera das Mulheres é considerada uma renovação dos
feminismos contemporâneos no país e mostra-se em curso, pois conta com diversas mulheres
organizadas em combate às desigualdades de gênero. Nessas reivindicações por autonomia e
direitos às mulheres e às demais minorias sociais, a militância gera uma reação de ataques
conservadores. Debora Martini descreveu esse período como “um fenômeno novo, onde
feministas brasileiras aproveitam o potencial da Internet e das mídias sociais para denunciar o
machismo e exigir respeito”2. O cenário de embates feministas é composto por muitas mulheres
mães que expandem o conhecimento sobre desigualdades de gênero através de suas práticas de
maternagem e de como essas afetam suas relações familiares e profissionais. Exemplo desse
trabalho é realizado pelas cinco mulheres entrevistadas nesta pesquisa, as quais atuam na
plataforma digital brasileira Cientista Que Virou Mãe 3, que aborda feminismos, maternidade,
maternagem, direitos humanos, infância, entre outros tópicos de fortalecimento entre mulheres.
A partir disso, este estudo justifica-se centralizado na maternagem como um tema
pendente no feminismo e no ambiente acadêmico, por isso, busca retratar a importância de
visibilizar esse debate. Ligia Moreiras Sena, fundadora da Cientista Que Virou Mãe, destaca
um dos pontos dessa valorização: “uma das principais barreiras que as mulheres cientistas
enfrentam é, reconhecidamente, conciliar carreira e maternidade”4. Esse fato associa-se de
muitas formas com a questão da pendência dos estudos maternos no ambiente acadêmico, que
é evidenciada por Andrea O’Reilly5, professora titular na York University, cuja obra contribui

1
Neste trabalho são abordadas como mídias digitais os seguintes canais da Internet: Facebook, uma rede social
para conectar amigos, fins empresariais, divulgar ideias e criar eventos e grupos de conversa. Twitter é uma rede
social para postagem de micromensagens com até 280 caracteres, que são chamadas de tweet. Youtube é uma
plataforma para publicação de vídeos, próprios ou não, que sigam regras de direitos autorais. Instagram é uma rede
social de compartilhamento de fotos e vídeos entre seus usuários para fins pessoais e profissionais, que permite
aplicação de filtros digitais e compartilhamento em outras redes sociais, como Facebook, Twitter, Tumblr e Flickr.
2
MARTINI, Debora. Brazilian Feminism on the Rise: A case study on Brazilian feminist cyberactivism.
Linköping University, Department of Thematic Studies, The Department of Gender Studies, 2016. p. 03
3
CIENTISTA QUE VIROU MÃE. Disponível em: <http://cientistaqueviroumae.com.br/>. Acesso em: 04 jan
2018.
4
SENA, Ligia Moreiras. Mães de academia: unir maternidade e pós-graduação é possível. (2013) Disponível em:
<http://www.cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/maes-de-academia-unir-maternidade-e-pos-graduacao-e-
possivel>. Acesso em: 04 jan 2018.
5
Professora titular na Escola de gênero, sexualidade e estudos das mulheres da York University em Toronto no
Canadá e fundadora do campo dos estudos maternos/ motherhood studies (tradução de Maria Collier de Mendonça
2014) no país. O’Reilly também é diretora da MIRCI (Motherhood Initiative for Research and Community
Involvement), organização que atua mundialmente para reunir pessoas da área acadêmica, ativistas e demais
interessadas em promover debates sobre maternidade, maternagem e feminismo.
10

significativamente para as reflexões nesta pesquisa.


A partir da plataforma Cientista Que Virou Mãe como objeto e as entrevistas como
fonte desta pesquisa, surge a problematização: quais as novas práticas discursivas de
maternagem das mulheres feministas contemporâneas da plataforma Cientista Que Virou Mãe?
Como elas estão promovendo novas formas de maternagem através dos valores feministas em
suas famílias e na plataforma Cientista Que Virou Mãe? Para responder a isso, esta pesquisa
busca discutir as contranarrativas de maternagem através da plataforma Cientista Que Virou
Mãe e dos relatos de entrevistas das mulheres que atuam nesse meio. As práticas de maternagem
são ditas “novas” por serem consideradas feministas, ou seja, a noção de práticas de
maternagem narradas por mulheres mães feministas. Para tal entendimento, objetiva-se
especificamente narrar o desenvolvimento da plataforma Cientista Que Virou Mãe no contexto
da Primavera das Mulheres; perceber como as mulheres da Cientista Que Virou Mãe narram a
história de suas relações familiares junto às questões de gênero; observar como as mulheres da
Cientista Que Virou Mãe relatam novas práticas de maternagem na relação com seus filhos; e
analisar como estas mulheres se identificam com a militância feminista e como atribuem suas
práticas de maternagem aos seus posicionamentos políticos.
Trata-se da discussão sobre maternidade na militância feminista e nos debates
acadêmicos feministas como uma questão central para as mudanças sociais que defendem os
movimentos de mulheres. Para tanto, Andrea O’Reilly (2016) afirma que é necessário distinguir
maternidade e maternagem de modo a desfazer a confusão conceitual dentre estes temas. Tais
conceitos foram inicialmente traduzidos do inglês ao português por Maria Collier de Mendonça:

(...) motherhood cunhada por Adrienne Rich6 (vinculadada ao poder biológico e aos
significados institucionais e simbólicos e culturais) (...) mothering, o qual resulta da
fusão do verbo to mother em inglês com o sufixo ing, o que indica ação e processo
contínuo (...) o sufixo agem, de origem latina, que expressa a ideia de ação ou
resultado de ação em português.7

O termo maternagem, como destaca Mendonça (ibid.), já vem sendo utilizado por áreas
da psicologia e do serviço social para designar tarefas de cuidado com bebês e crianças
realizadas por mães e pais biológicos ou adotivos, professores(as), babás e demais cuidadores.
Ao ampliar esse entendimento dos termos, Andrea O’Reilly argumenta que ao abordar
vivências reprodutivas muitas mulheres eram cunhadas de essencialistas, então, as conversas

6
Adrienne Rich é a autora do livro “Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution” (1976), que
influenciou a maneira como toda uma geração de estudiosos pensa sobre a maternidade, segundo O’Reilly (2016).
7
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 26.
11

necessárias sobre maternagem desapareceram do feminismo acadêmico no século XXI, bem


como os demais assuntos que envolvem a maternidade (menstruação, gravidez, parto,
amamentação). Para valorizar novos debates, a autora ressalta:

(...) a distinção, cunhada por Rich, entre maternagem e maternidade foi o que permitiu
que as feministas reconhecessem que a maternidade não é naturalmente,
necessariamente ou inevitavelmente opressiva. Em vez disso, a maternagem libertada
da maternidade, poderia ser experimentada como um lugar de capacitação e de
mudança social se, recorrendo às palavras de Rich, as mulheres “desobedecessem às
leis da instituição da maternidade”. No entanto, na maioria dos debates do feminismo
acadêmico, essa crucial diferença entre a instituição e a experiência ainda não é
reconhecida, nem compreendida. Como resultado, confunde-se maternagem e
maternidade, de modo que a condição materna é considerada unicamente e
exclusivamente como uma entidade patriarcal. 8

Andrea O’Reilly e colaboradoras têm pesquisado as questões maternas sem reduzir as


mulheres mães à maternidade, “nem dizem que isso é o que a torna uma mulher ou que a
maternidade é mais importante do que outras variáveis que constituem o eu. Eles dizem apenas
que a maternidade importa e que é central e integral para entender a vida das mulheres como
mães”9. Por essa razão, Andrea O’Reilly defende que as mulheres mães precisam de um
feminismo próprio teórico e prático, que represente suas identidades e vivências como mães e
potencialize, sobretudo, uma transformação social a partir das práticas de maternagem.
Nesse sentido, o feminismo matricêntrico pode atuar politicamente para que as mulheres
mães ressignifiquem suas vivências e reivindiquem seus direitos. Segundo Andrea O’Reilly
(ibid.), na última década, o feminismo reivindicado pelas mães gerou interpretações
equivocadas por parte de estudiosos(as) que entenderam que as mães não tinham questões
distintas de suas identidades como mulheres:

Incomoda-me profundamente que as feministas sejam capazes de compreender a


interseção da opressão de gênero quando se trata de raça, classe, sexualidade e
localização geográfica, mas não quando se trata da maternidade. (...) A categoria mãe
é distinta da categoria mulher: muitos dos problemas enfrentados pelas mães - sociais,
econômicas, políticas, culturais e psicológicas - são específicos de seu trabalho e de
sua identidade como mães. (...) por esse motivo, as mães precisam de um feminismo
próprio - que posicione as preocupações das mães como o ponto de partida para uma

8
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. p. 92 - Trecho original: “It has long been recognized among scholars of motherhood that
Rich’s distinction between mothering and motherhood was what enabled feminists to recognize that motherhood
is not naturally, necessarily, or inevitably oppressive. Rather, mothering, freed from motherhood, could be
experienced as a site of empowerment and a location of social change if, to use Rich’s words, women became
“outlaws from the institution of motherhood.” However, in much of academic feminism, this crucial difference
between the institution and the experience is not recognized or understood. As a result, mothering becomes
confused with motherhood, and maternity is regarded solely and exclusively as a patriarchal entity” (tradução
nossa).
9
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. p. 141
12

teoria e uma política de empoderamento.10

As bases teóricas do feminismo matricêntrico dialogam com esta pesquisa, que


também busca pensar a transformação de costumes e de políticas públicas para valorizar as
mulheres mães a partir da perspectiva delas, como trabalham as mulheres da plataforma
Cientista Que Virou Mãe. Nessa abordagem, Andrea O’Reilly argumenta que gênero é
construído, mas que o tema da maternidade deve integrar as discussões do feminismo
acadêmico:

Concordo que o gênero é construído – o sexo não é igual ao gênero ou como disse
Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher – portanto, as pessoas não podem se
definir ou limitar suas vidas àquilo que é socialmente construído por gênero. Mas,
também acredito que as feministas não devem desprezar a maternidade para facilitar
a desestabilização do gênero. Eu acredito que é possível argumentar simultaneamente
que gênero é construído, que a maternidade importa e integra a subjetividade das mães
e suas experiências no mundo. Na minha opinião, a apreensão sobre a diferença de
gênero é o elefante na sala do feminismo acadêmico.11

As questões estruturantes desta pesquisa são desenvolvidas no capítulo de introdução


na apresentação do caminho teórico para historicizar as principais categorias, como “gênero”,
“mulheres”, “maternagem” e “história oral”, a fim de fundamentar as análises das fontes desta
pesquisa que são as entrevistas. Considera-se que maternagem foi tema pouco desenvolvido no
feminismo de segunda onda, apesar de tratar sobre maternidade, e no século XXI ambos os
temas passaram a ser discutidos com maior regularidade e profundidade, sobretudo, por grupos
ativistas e autoras feministas. A análise histórica das categorias, portanto, fundamenta a
pesquisa sobre a plataforma Cientista Que Virou Mãe e as entrevistadas para entender como
contribuem para este debate ao evidenciar novas práticas de maternagem. Na organização do
aporte teórico deste estudo, o primeiro capítulo narra o desenvolvimento da plataforma

10
Ibidem p. 971 Trecho original: “However, as mothers began to call for feminism for and about mothers over the
last decade or so—what I have defined as matricentric feminism—and to ask for its inclusion in academic
feminism, their calls were not met with the same respect or recognition. (…) It troubles me deeply that feminists
are able to understand the intersectionality of gendered oppression when it comes to race, class, sexuality, and
geographical location but not so for maternity. (…) The category of mother is distinct from the category of woman:
many of the problems mothers face—social, economic, political, cultural, and psychological—are specific to their
work and identity as mothers. Indeed, mothers, arguably more so than women in general, remain disempowered
despite forty years of feminism. (…) Thus, mothers need a feminism of their own—one that positions mothers’
concerns as the starting point for a theory and politic of empowerment” (tradução nossa).
11
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. p. 204 - Trecho original: “I agree that gender is constructed—sex does not equal gender or
as Simore de Beauvoir said ‘one is not born a woman but made one’—and thus people cannot define themselves
or limit their lives to that which is socially constructed by gender. However, I likewise believe that feminists should
not disavow motherhood to facilitate this destabilizing of gender. I believe it is possible to simultaneously argue
that gender is constructed and that motherhood matters and that maternity is integral to a mother’s sense of self
and her experience of the world. In my view, the apprehension over gender difference is the elephant in the room
of academic feminism” (tradução nossa).
13

Cientista Que Virou Mãe no contexto do movimento Primavera das Mulheres no Brasil, que
ocorre desde 2015 por meio de protestos na Internet e nos ambientes públicos. Nessa parte,
destaca-se a presença política das mulheres mães nesse movimento. O segundo capítulo
apresenta a análise das entrevistas a fim de observar como as mulheres da Cientista Que Virou
Mãe narram suas relações familiares junto às questões de gênero. O terceiro capítulo destaca o
feminismo matricêntrico e as contranarrativas de maternagem das entrevistadas sobre a relação
com seus filhos, bem como os potenciais de transformação social ao analisar como elas se
identificam como militantes feministas e como atribuem esses posicionamentos as suas práticas
de maternagem.

CAMINHO TEÓRICO

Ao identificar historicamente o processo de compreensão das categorias desta pesquisa,


Joana Maria Pedro apresenta um caminho entrecruzado das teorias feministas e da história das
mulheres sob a perspectiva de gênero: “a função dos estudos de gênero que vem ―incluindo
as categorias ‘mulher’, ‘mulheres’, ‘feminismo’, ‘feminilidades’, ‘masculinidades’ e ‘relações
de gênero’, têm buscado se colocar no centro do debate historiográfico” 12. Apesar dessa
importância, conforme a autora, o campo historiográfico é um dos mais resistentes a reconhecer
a categoria gênero assim como as categorias “classe”, “raça/etnia”, “geração”, pois é acusada
de ser uma “história militante” devido sua origem de movimentos sociais, o que a
descredibiliza. Entretanto, Joana Maria Pedro afirma que gênero tem uma história com origem
em reivindicações sociais, tal como as outras categorias, o que não as convertem neutras, pois
envolvem uma conjuntura histórica e por isso não devem ter tal desqualificação.
Nessa continuidade, Soraia Carolina de Mello aponta a historiografia das questões de
gênero, que na maioria dos trabalhos se trata também de uma história das mulheres, porém
ressalta que leituras sobre a história das mulheres e das relações de gênero, apesar de se
interligarem, muitas vezes, se opõem. Na leitura da autora, isso ocorre porque deve-se
considerar a noção de gênero, a “divisão do trabalho por gênero, não substituindo ‘sexo’ por
‘gênero’ com o intuito de propor a atualidade da questão, mas considerando as propostas
construcionistas, desconstrucionistas, relacionais e em muitos sentidos contingentes da
categoria de análise gênero”13. Nessa visão relacional, Soraia de Mello aponta que a história do

12
PEDRO, Joana Maria. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea.
Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 277
13
MELLO, Soraia Carolina de. Discussões feministas na imprensa para mulheres: revista Claudia e o trabalho
doméstico (1970-1989). Tese de Doutorado em História na UFSC. Florianópolis, 2016. p. 44
14

trabalho doméstico não se torna apenas história das mulheres, e sim da humanidade, de homens
e de mulheres. A autora problematiza, portanto, a dicotomia que ainda persiste nos estudos
históricos feministas da atualidade, desde a primeira geração de feministas “que contribuíram
para firmar esse campo de estudos, não parece fazer sentido separá-las de sua própria história.
(...) a tendência é indicar que elas se deslocaram da história das mulheres para ‘outro lugar’ (os
estudos de gênero, o pós-estruturalismo)”14. Nesse comprometimento as mulheres mostram a
história em contraponto ao sujeito histórico masculino universal, em trabalhos preocupados
com as construções culturais de masculinidade e de feminilidade a partir das relações de gênero,
e não da divisão polarizada por sexo.
As abordagens de gênero utilizadas pela maioria dos(as) historiadores(as) dividem-se
entre a categoria descritiva, que expõe realidades sem interpretar nem explicar os motivos e a
categoria de ordem causal centrada em teorias sobre a natureza de tais fatos. Segundo Joan
Scott, “gênero inclui as mulheres sem as nomear, e parece assim não se constituir em uma
ameaça crítica. Este uso do ‘gênero’ é um aspecto que a gente poderia chamar de procura de
uma legitimidade acadêmica pelos estudos feministas nos anos 1980” 15. O uso do termo
“gênero” obteve conotação de erudição e de seriedade por ser considerado mais objetivo e
menos político do que a categoria “mulheres” por ser mais associada ao feminismo.
A história das mulheres que vem sendo escrita com maior consistência desde as décadas
de 1970-80 insere os estudos de gênero em questões que dividiam militantes e pesquisadoras,
e obtiveram relevância à medida que pesquisas sobre a situação das mulheres no país passaram
a ser preeminente com os movimentos de mulheres. Esses resgataram o conceito de
“emancipacionismo” que, para Maria Amélia Teles, antes era considerado historicamente
apenas como um poder masculino e através do feminismo reformulou-se para o “conceito de
libertação que prescinde da ‘igualdade’ – para afirmar a diferença – compreendida não como
desigualdade ou complementaridade, mas como ascensão histórica da própria identidade
feminina”16. A autora considera: “é de tal forma importante esse movimento e suas pretensões
que atualmente algumas(alguns) pesquisadoras(es) têm feito esforços para conhecer a história
da mulher no Brasil, contribuindo efetivamente para recuperar a identidade da mulher
brasileira”17. Segundo a autora, essa reconstituição histórica sofreu limitações elitistas que não
permitiam muitas protagonistas de movimentos sociais de narrar a própria história, como as

14
Ibidem p. 34
15
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Christine Rufino Dabat; Maria
Betânia Ávila. New York, Columbia University Press. 1989. p. 06
16
TELES, Maria Amélia de A. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 10
17
Ibidem p. 12
15

trabalhadoras rurais e domésticas.


A relação entre feminismo e gênero nesse período entre 1970-1990 é pontuada por
Mariza Corrêa sobre a divisão entre militantes e pesquisadoras em torno da participação delas
em movimentos de mulheres e o que repercutia a partir disso na produção de pesquisas. Para a
autora é importante contextualizar o movimento feminista e as questões de gênero no Brasil,
enfatizando os fatos políticos e culturais da época: “há uma clara articulação entre o feminismo
dos anos setenta e a emergência dos estudos de gênero nos anos noventa, assim como acredito
que houve uma estreita vinculação entre as chamadas militantes e as pesquisadoras, naquela
época”18. De acordo com Mariza Corrêa, isso não implica em negar a existência de
pesquisadores não militantes, mas em destacar a dimensão política dos estudos de gênero em
sua correspondente fase histórica. Interessa situar também a contribuição do feminismo junto à
história das mulheres através de categorias de análise devido às narrativas formadas por ondas
de militância social, discutidas por Clare Hemmings 19 e citadas por Joana Maria Pedro:

(...) nos anos 1970, a categoria seria a de “mulher”, como a que identificaria a unidade,
a irmandade, ligada ao feminismo radical. Os anos 1980 seriam aqueles identificados
com a emergência da categoria “mulheres”, resultado da crítica das feministas negras
e do Terceiro Mundo. O feminismo dos 1990 seria o da categoria “relações de
gênero”, resultado da virada linguística e, portanto, ligada ao pós-estruturalismo e,
por fim, à própria crítica a essa categoria, encabeçada por Judith Butler 20.

Entretanto, teóricas feministas criticam tais periodizações que generalizam a história das
mulheres ao desconsiderar enquadramentos políticos e teóricos do movimento fora de tais
décadas delimitadas nas “ondas”. Conforme Joana Maria Pedro, devem ser consideradas
narrativas não lineares para desmistificar a noção de progresso ou “narrativa em
desenvolvimento”, pois também ocorre por ter sido uma periodização centrada na teoria
feminista anglo-americana. Essa foi denominada por Clare Hemmings de “estória”, para
relativizar a historiografia como hegemonicamente definida a partir do hemisfério norte, que
converge com o argumento de Gloria Anzaldúa: “ela questiona as feministas brancas por se
considerarem as ‘inventoras’ do questionamento da opressão sexista”21.
Clare Hemmings critica essa narrativa encadeada que pressupõe o progresso feminista
através da noção de “estória” feminista, que através de binarismos adicionais busca superar a

18
CORRÊA, Mariza. Do feminismo aos estudos de gênero no Brasil: um exemplo pessoal. cadernos pagu (16),
Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2001. p. 24
19
HEMMINGS, Clare. Contando estórias feministas. In Revista Estudos Feministas, vol. 17. n. 1, 2009.
20
PEDRO, Joana Maria. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea.
Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011. p. 271
21
Ibidem p. 275
16

semelhança em defesa da diferença: “em posições opostas de forma valorativa, mas são também
conectadas sequencialmente, partindo da semelhança (excludente) para a diferença (inclusiva).
Acredito ser útil designar isso como semelhança-diferença, onde o travessão que uso aqui indica
uma separação tanto temporal quanto hierárquica”22. A autora aponta os estudos empíricos de
diferentes perspectivas teóricas que evidenciam a experiência das mulheres como
conhecimento que baseou uma ciência social alternativa no passado e, atualmente, apresenta o
empirismo-desconstrução em relação a “mulheres” como categoria de análise histórica. Essa
visão alterou profundamente as teorizações feministas contemporâneas, também aplicada em
estudos filosóficos, políticos e culturais que tratam do essencialismo sobre as mulheres como o
novo objeto a ser discutido, em trabalhos feministas e não feministas. Sobre questões entre o
feminismo essencialista dos anos 1970 e as teorias pós-estruturalistas dos anos 1990, Clare
Hemmings sintetiza:

(...) o feminismo dos anos 70 é, na melhor das hipóteses, ignorante ou inocente em


relação à diversidade racial e sexual; ou então é, de fato, efetivamente excludente
através de sua branquidade e heterosexismo. Os anos 90 pós-estruturalistas emergem
no outro lado dos anos 80 como paladinos da multiplicidade e da diferença – diferença
em geral. A teleologia não poderia ser mais solidamente colocada do que “[n]os anos
80, mudanças que estavam ocorrendo firmaram as bases para a terceira fase da crítica
feminista, a que chamo de engendramento de diferenças 23.

Nessa crítica, Clare Hemmings trata da divulgação ampliada da categoria “gênero” na


terceira onda feminista dos anos 1990 que se deve também ao trabalho da historiadora Joan
Scott, que representa um marco nessa discussão, como cita Joana Maria Pedro, principalmente,
através do artigo intitulado “Gênero, uma categoria útil de análise histórica”. Esse foi citado
diversas vezes no Brasil e no mundo com mais frequência sobre o trecho: “gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos
e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de poder”24. O artigo salienta que
a disciplina História, segundo Joana Maria Pedro, “não era apenas o registro, e sim a forma
como os sexos se organizavam e dividiam tarefas e funções através do tempo. A história era,
ela mesma, responsável pela ‘produção da diferença sexual’, pois uma narrativa histórica nunca
é neutra”25. A autora ressalta que ao relatar somente, ou principalmente, fatos sobre homens, a
história constrói o gênero.

22
HEMMINGS, Clare. Contando estórias feministas. Revista Estudos Feministas, v. 17. n. 1, 2009. p. 223
23
Ibidem p. 229
24
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Christine Rufino Dabat; Maria
Betânia Ávila. New York, Columbia University Press, 1989. p. 21
25
PEDRO, Joana Maria. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea.
Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011. p. 273
17

Considera-se, desse modo, que as categorias de análise “mulheres” e “gênero”


coexistem, mas que tratar de gênero a partir da terceira onda crítica feminista de 1990, não
significa necessariamente focalizar as “mulheres” e sim abordar relações entre homens e
mulheres, entre mulheres e entre homens. Nessas relações o gênero se constituiria, como destca
Joana Maria Pedro. Apesar do artigo de Joan Scott ser muito citado e o termo “gênero” constar
em obras sobre “mulheres”, “gênero” não se torna sinônimo de “estudo das mulheres”.

(...) observa-se tal questionamento da categoria “gênero” em diversos espaços


acadêmicos, e não somente na tensão entre academia e militância. Para autoras como
Teresa Aguilar García, depois da “Segunda Onda” do feminismo, estaríamos vivendo
a terceira onda: a da pós-modernidade. Momento em que se debatem o feminismo
cultural e o ecofeminismo com o feminismo de quarta onda, que incluiria o feminismo
queer de Judith Butler e o cyberfeminismo de Donna Haraway 26.

Pensando nisso, os feminismos pós-estruturalistas das décadas de 1990 marcam uma


amplitude teórica para desconstruir os discursos sobre o sujeito masculino hegemônico. Isso
advém, em grande parte, como aponta María Luisa Femenías na leitura de Gleidiane Ferreira
da possibilidade de “pensar que a diferença como um discurso contra-hegemônico da identidade
e a igualdade como um projeto de emancipação feminista interseccional podem ser uma das
chaves centrais para a luta feminista contemporânea e para a produção de teoria feminista” 27.
Esse trabalho, como aponta a autora, suscita o diálogo entre cânones da teoria feminista, de
Beauvoir a Butler, ressaltando a análise menos dicotômica dessas teóricas que, para os
feminismos da diferença pós-modernos, agregam ao debate contemporâneo a premissa de que
não há igualdade sem diferença, nem diferença sem igualdade. Para Gleidiane Ferreira,
Beauvoir representa uma teorização feminista que rompe com determinismos do sujeito
universal masculino mas, a autora entendia a ideia de “mulher” como essencialista
de dimorfismo sexual, típicos da racionalidade considerada patriarcal28.
A história do pensamento feminista estabelece um rompimento com esse determinismo
pois, segundo Joan Scott, “é uma história de recusa da construção hierárquica da relação entre
masculino e feminino; nos seus contextos específicos é uma tentativa de reverter ou deslocar
seus funcionamentos”29. Os(as) historiadores(as) feministas teorizavam o gênero como uma

26
Ibidem p. 274
27
FERREIRA, Gleidiane de Sousa. Não há igualdade sem diferença, nem diferença sem igualdade. Resenha
FEMENÍAS, María Luisa, Sobre sujeto y género: re-lecturas feministas desde Beauvoir a Butler. 2. ed., Rosario:
Prohistoria Ediciones, 2012. Rev. In Estud. Fem. vol.23 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2015
28
Patriarcado não é uma categoria de análise desta pesquisa, mas é um conceito abordado pelas fontes e por
referências bibliográficas aqui citadas, por isso, está sendo discutida na introdução para explicar porque não torna-
se útil neste estudo, que pretende utilizar a categoria gênero.
29
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Christine Rufino Dabat; Maria
Betânia Ávila. New York, Columbia University Press, 1989. p. 19
18

categoria de análise e perceberam que abordar as mulheres na história envolve


“necessariamente a redefinição e o alargamento das noções tradicionais do que é historicamente
importante, para incluir tanto a experiência pessoal e subjetiva quanto as atividades públicas e
políticas (...) implica não só em uma nova história das mulheres, mas em uma nova história”30.
Diante desse desafio, comprovar que as mulheres tiveram uma história e participaram das
principais mudanças políticas da civilização ocidental não foi o suficiente, de acordo com Joan
Scott, pois a reação da maioria dos(as) historiadores(as) não feministas foi tratar da história das
mulheres separada da dos homens como algo reservado a história do sexo e da família e por
isso, deveria ser feita à parte da história política e econômica.
Portanto, foi delegado às feministas o fazer da história das mulheres, empasse teórico
que, para Joan Scott, “exige a análise não só da relação entre experiências masculinas e
femininas no passado, mas também a ligação entre a história do passado e as práticas históricas
atuais”31. A autora definiu a importância de questionar como o gênero influencia nas relações
sociais humanas e como a categoria de análise de gênero confere sentido à organização do
conhecimento histórico. Nessa crescente presença das mulheres nas universidades criando seus
núcleos de pesquisa a partir dos anos 1970, Joan Scott afirma que muitas feministas, declaradas
ou não, incluíram novos temas que tratavam de suas histórias e de antepassadas, que permitiam
entender as origens de muitas crenças, valores e práticas sociais frequentemente opressivas às
mesmas. Essa interrogação devido às novas problematizações e categorias interpretativas fora
da matriz de gênero dominante produziu matrizes alternativas para mulheres e para homens.
Nalu Faria destaca as dificuldades teóricas sobre a origem da opressão das mulheres nas
relações sociais e a relação do capitalismo, que prevalece:

(...) a divisão sexual do trabalho, que, em nossa sociedade, se articula com a idéia de
que existe uma esfera pública e uma privada. A esfera pública considerada como dos
homens, do trabalho produtivo, dos direitos, da igualdade. A esfera privada
considerada como o lugar da domesticidade, do afeto, da intimidade. Na prática,
sabemos que não existe essa dicotomia, mas que homens e mulheres estão nas duas
esferas, só que a partir do que é considerado seu lugar (...) a presença das mulheres
neste mercado está nos chamados guetos femininos desvalorizados32.

A autora define as relações de gênero como transversais, pois estruturam o conjunto de


todas as relações sociais, bem como no mercado de trabalho. Para a autora, se uma relação é

30
Ibidem p. 03-04
31
Ibidem p. 05
32
FARIA, Nalu. Gênero e Políticas Públicas: uma breve abordagem das relações de gênero (p. 31-38). In: NOBRE,
Miriam; FARIA, Nalu; SILVEIRA, Maria Lúcia. Feminismo e Luta das Mulheres: análise e debates.
Sempreviva Organização Feminista: São Paulo, 2005. p. 32
19

construída também pode ser modificada e se há uma relação de poder no trabalho, o que implica
em conflito, não necessariamente deve significar confronto. Justifica-se, assim, uma
intervenção política por entender que “esta relação é injusta e significa uma inserção das
mulheres sem direito pleno à cidadania”33. Para a autora, quando não há ações do Estado
visando desfazer as desigualdades nas relações de gênero, acabam por favorecer os homens. Na
perspectiva de gênero o Estado demonstra não ser neutro e, como aponta Nalu Faria, “significa
que, se não houver uma intencionalidade de reequilibrar essas relações, as políticas do Estado
acabam reforçando as atuais relações e sua naturalização”34.
Um aspecto que configura essa estrutura, como aponta Nalu Faria, é que os serviços
“voltados para as mulheres se concentram no seu papel de mãe. Políticas de saúde para as
mulheres, até hoje, em vários lugares, estão classificadas como materno-infantis, priorizam o
cuidado com a criança. Não vêem a mulher como sujeito de direitos” 35. A disparidade nisso,
segundo a autora, está nas políticas de saúde para os homens que, tradicionalmente, preocupam-
se mais com a garantia de emprego. Por outro lado, a autora afirma que os serviços sociais de
educação e saúde, em geral, comunicam-se mais com as mulheres do que com os homens, pois
são suas principais usuárias por serem as pessoas das famílias que, na maioria das vezes, são
encarregadas de cuidar dos filhos. Porém, Nalu Faria acrescenta que o Brasil vive um processo
intenso de urbanização, que é um dos fatores de transformações na vida familiar, com a inserção
das mulheres em outros espaços.
Mesmo que o modelo de mãe e dona de casa não represente muitas mulheres, por que
ainda persiste a ideia de que mulheres devem seguir tal modelo e que trabalhar fora de casa é
mais adequado aos homens? Para Nalu Faria, a persistência dessas ideias tradicionais costuma
basear-se em papéis de gênero, que são mantidos principalmente pelo mecanismo de
naturalização. Tais disposições sociais, para Joan Scott, exigem que os pais trabalhem fora de
casa e as mães cuidem da maioria das tarefas domésticas, inclusive da criação dos filhos.
Contudo, não está clara a origem dessa organização familiar e o porquê estrutura-se com a
divisão sexual do trabalho. Na leitura de Joan Scott:

Como podemos explicar no seio dessa teoria a associação persistente da


masculinidade com o poder e o fato de que os valores mais altos estão investidos na
virilidade do que na feminilidade? Como podemos explicar o fato de que as crianças
aprendem essas associações e avaliações mesmo quando elas vivem fora de lares
nucleares ou dentro de lares onde o marido e a mulher dividem as tarefas parentais?
Eu acho que não podemos fazer isso sem dar certa atenção aos sistemas de
significados, isto é, às maneiras como as sociedades representam o gênero, o utilizam

33
Ibidem p. 33
34
Ibidem p. 34
35
Ibidem p. 34
20

para articular regras de relações sociais ou para construir o sentido da experiência 36.

Para Joan Scott, a experiência só existe com determinado sentido, que advém de um
processo de significação. Por essa razão, a autora evidencia a linguagem como a chave de
acesso da criança à tal ordem simbólica, que constrói a identidade de gênero.
A questão da produção de sentidos é interpretada, conforme Joan Scott 37 (1991 apud
MARGARETH RAGO, 1998): “o ‘problema’ da trabalhadora, a divisão sexual do trabalho, a
oposição entre o lar e o trabalho, inverte radicalmente o caminho tradicional da interpretação
histórica, enfatizando a importância do discurso na constituição de uma questão
socioeconômica”38. A divisão sexual do trabalho é percebida como efeito do discurso, que seria
mais profícuo para Joan Scott do que buscar causas técnicas e estruturais. Na leitura de
Margareth Rago, a autora trata a diferença sexual das práticas sociais como construção dos
discursos que a legitima e não como reflexo das relações econômicas e, por isso, Scott
desconsidera a tese da industrialização ter provocado a separação entre o trabalho e o lar,
limitando as mulheres a decidir entre o trabalho doméstico e o assalariado. Porque foi o discurso
dos homens, socialmente aceito, que estabeleceu a inferioridade física e simbólica das
mulheres, segundo Joan Scott (1991 apud MARGARETH RAGO, 1998) “reunindo as mulheres
em certos empregos, substituindo-as sempre por baixo de uma hierarquia profissional, e
estabelecendo seus salários em níveis insuficientes para sua subsistência”.39
Na construção subjetiva de gênero baseiam-se as relações sociais e constitui-se o
imaginário social. Margareth Rago afirma que a epistemologia feminista dialoga com essa
construção, que pontua “os perigos da reafirmação do sujeito ‘mulher’ (...) afinal, a questão das
relações sexuais e da mulher nasce a partir das lutas pela emancipação deste sujeito antes
definido como ‘sexo frágil’. E na luta pela visibilidade da ‘questão feminina’, pela conquista
dos seus direitos”40. Para a autora, na busca por fortalecer a identidade das mulheres surge um
contradiscurso que constrói o campo feminista do conhecimento e uma linguagem feminista.
Nas marcações de gênero, a dicotomia de exclusão é refletida por Miriam Grossi:

(...) o binômio dominação masculina/submissão feminina tem sofrido uma série de


questionamentos quando se estudam relações de gênero. Muitos homens, quando
questionados a respeito da dominação masculina, costumam dizer que não têm poder

36
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Christine Rufino Dabat; Maria
Betânia Ávila. New York, Columbia University Press, 1989. p. 15
37
SCOTT, Joan W. “La Travailleuse”, in G. Duby e M.Perrot (orgs.)- Histoire Des Femmes,vol.4. Paris:Plon,
1991, p. 428
38
RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: Pedro, Joana; Grossi, Miriam (orgs.)-
Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998. p. 07
39
Ibidem p. 07
40
Ibidem p. 08
21

nenhum em casa – o que não deixa de ser verdade quando pensamos nas culturas
marcadas por uma forte dicotomia entre casa e rua, privado e público. Como
explicaríamos o fato de que em nossa cultura brasileira são as mães que mandam em
casa? (...) Este é um dos elementos estruturais de nossa cultura, o fato de que há uma
divisão de poderes sociais, cabendo aos homens o poder sobre a instância pública e às
mulheres o privado41.

Pensar essa dicotomia com intuito de desfazer a limitação de atuação imposta aos
homens e às mulheres pode conduzir à ponderação que “a mente não tem sexo, a não ser aquele
que o hábito e a educação nos oferecem”42. A tradição familiar pode ser repensada, então, além
da prescrição patriarcal, como citam Martha Narvaz e Sílvia Koller: “o papel das mulheres no
sustento econômico é invisibilizado e desqualificado, legitimando a crença de que o homem é
o legítimo provedor da família”43. As autoras lembram que apesar dessa crença cultural, os fatos
revelam que, muitas vezes, as trabalhadoras são as provedoras do sustento familiar.
O trabalho na base social da família representa um importante difusor dos estudos de
gênero e das críticas feministas à sociedade de mercado, como afirma Nalu Faria, “a fim de
fortalecer a convicção de que é preciso mudar o mundo para mudar a vida das mulheres e de
que uma transformação radical da realidade mundial só é possível com o fim da opressão sobre
as mulheres”44. Na busca por ações estatais afirmativas, Nalu Faria demonstra estratégias que
evidenciam o fortalecimento das mulheres e a sensibilização dos homens em uma perspectiva
que visa dessexualizar e romper com a naturalização de atribuições de homens e de mulheres.
Repensar as relações hierárquicas e de poder é possível, segundo a Nalu Faria, a partir de

(...) atividades que contribuam para que as mulheres conquistem novas habilidades e
repensem sua identidade construída voltada para o outro e para a subordinação. Por
isso, o trabalho de fortalecimento das mulheres parte da idéia de que elas são sujeitos
de direitos e que podem ter seus próprios projetos de vida. Isso é fundamental para
aumentar sua auto-estima. Em relação aos homens, são necessárias atividades que os
aproximem do universo doméstico e do cuidado dos filhos, com ações voltadas para
iniciar o diálogo, trabalhando a partir de suas necessidades concretas e habilidades. 45

Tais medidas contribuem para desfazer a omissão dos homens no trabalho doméstico e
reestruturar o compartilhamento familiar de tarefas do lar e de cuidados. Desconstroem-se
resquícios de um legado histórico cultural, no qual as mulheres assumem a maioria dessas

41
GROSSI, Miriam Pillar. Masculinidades: Uma Revisão Teórica. Coleção Antropologia em Primeira Mão.
PPGAS/UFSC, 2004. p. 16
42
Frances Wright, feminista inglesa, em (1822 apud MARGARETH RAGO, 2001, p. 02).
43
NARVAZ, Martha Giudice; KOLLER, Sílvia Helena. Famílias e patriarcado: da prescrição normativa à
subversão criativa. Psicologia & Sociedade; 18 (1): 49-55; jan/abr. 2006. p. 52
44
FARIA, Nalu. Trabalho, corpo e vida das mulheres: crítica à sociedade de mercado In: SILVEIRA, Maria Lúcia;
FREITAS, Taís Viudes de. SOF Sempreviva Organização Feminista. São Paulo: SOF, 2007. p. 08
45
FARIA, Nalu. Para a erradicação da violência doméstica e sexual (p. 23-30). In: NOBRE, Miriam; FARIA,
Nalu; SILVEIRA, Maria Lúcia. Feminismo e Luta das Mulheres: análise e debates. Sempreviva Organização
Feminista: São Paulo, 2005. p. 37
22

funções, como no modelo de “boa mãe” elaborado por Rousseau, entre outros intelectuais às
mães francesas desde o século XVIII. Esse fato foi apontado por Elisabeth Badinter como “o
mito do amor materno” e incentivou práticas de maternagem padronizando a cultura de
cuidados, que na época visavam diminuir a mortalidade das crianças que eram amamentadas
fora de casa pelas amas de leite nos primeiros anos de vida. Comportamentos que definiram o
aleitamento feito pela própria mãe, a alimentação mais saudável aos bebês, a higiene ao lhes
dar banho diariamente e as suas faixas substituídas por roupas largas, entre outros deveres que
começavam desde que as mulheres engravidavam.
Cultivaram-se relações afetivas mais estreitas entre as mães e seus filhos, com um amor
conquistado através de cuidados específicos à saúde das crianças, conforme Elisabeth Badinter:
“os carinhos maternos, a liberdade do corpo e as roupas bem adequadas testemunham um novo
amor pelo bebê. Para fazer tudo isso, a mãe deve dedicar a vida ao filho. A mulher se apaga em
favor da boa mãe que, doravante, terá suas responsabilidades cada vez mais ampliadas”46. Esse
discurso converge com o mito do amor materno, que determina exclusivamente às mães a
dedicação aos filhos, como algo gratificante a todas as mães apesar de qualquer sacrifício, fato
histórico apresentado e desconstruído por Elisabeth Badinter:

(...) o amor materno existe desde a origem dos tempos, mas não penso que exista
necessariamente em todas as mulheres, nem mesmo que a espécie só sobreviva graças
a ele. Primeiro, qualquer pessoa que não a mãe (o pai, a ama, etc.) pode “maternar”
uma criança. Segundo, não é só o amor que leva a mulher a cumprir seus “deveres
maternais”. A moral, os valores sociais, ou religiosos, podem ser incitadores tão
poderosos quanto o desejo da mãe. É certo que a antiga divisão sexual do trabalho
pesou muito na atribuição das funções da “maternagem” à mulher, e que, até ontem,
esta se figurava o mais puro produto da natureza.47

Segundo Maria Rita Kehl (2008, p. 44, apud Mendonça, 2014, p. 53) “ao longo dos
séculos XVIII e XIX, a família nuclear e o lar burguês promoveram ‘o casamento não entre a
mulher e o homem, mas entre a mulher e o lar’” 48. Por terem assumido os trabalhos domésticos
e a educação dos filhos, as mulheres francesas obtiveram uma espécie de promoção social,
associada ao papel de mães sagradas e rainhas do lar (BADINTER, 1985, apud MENDONÇA,
2014, p. 70-71)”49. Desta maneira, as relações de gênero na família reforçaram os ideais da
domesticidade na cultura europeia, de formas divergentes dos ideais de liberdade neste período:

(...) destinar a vida ao casamento e à maternidade contrastava-se com a ideia, de que

46
BADINTER, Elisabeth. Um Amor conquistado: o mito do amor materno; tradução de Waltensir Dutra. — Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 206
47
Ibidem p. 17
48
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 53
49
Ibidem p. 71
23

cada sujeito tinha o direito de traçar o seu próprio destino, conforme bem entendesse
(KEHL, 2008, p. 44). Se por um lado, as mulheres garantiam seu reinado na esfera
familiar, por outro lado, tornavam-se escravas de seus próprios reinos (Ibid, p. 175)”.50

Mesmo após três séculos de história, tal visão permanece presente na sociedade
contemporânea e contribui para a fundamentação da maternagem intensiva. Conforme
argumentou Sharon Hays (1996, p. 08, apud MENDONCA, p. 55) a criação socialmente
adequada dos filhos tem sido guiada por especialistas e baseada em métodos centrados nas
crianças, intensamente trabalhosos e emocionalmente desgastantes para as mães, além de
financeiramente onerosos.

(...) a ideologia de intensive mothering/maternagem intensiva contribui para a


manutenção da hierarquia de gênero, gera poucas compensações financeiras e sociais
para as mães que a seguem e ainda mantém o capitalismo neoliberal. Ao situar a
criação de filhos como um trabalho privado a ser desempenhado no território
doméstico, esta ideologia desobriga os homens de colaborarem, assim como desobriga
os políticos e o Estado de prestarem a devida assistência para estas atribuições. E, para
finalizar, constrói relações familiares romantizadas, mascarando eventuais conflitos
ou mesmo atos violentos que possam ocorrer no ambiente familiar e reforçando,
consequentemente, a subordinação das mulheres (HAYS, 1996, p. 178, apud
MENDONÇA, 2014, p. 59).

Na leitura de Hays (1996), o contexto social norte-americano estimula a participação


feminina no mercado de trabalho remunerado, ao mesmo tempo em que exige a dedicação
exclusiva das mães aos filhos: “entre as exigências da vida profissional e as demandas de vida
familiar, entre as imagens historicamente construídas de acolhimento (calor) nutridas por mães
de um lado e de mulheres em carreiras frias e competitivas do outro” 51. Desta maneira, cria-se
um grande conflito entre a lógica competitiva e individualista do trabalho remunerado e a lógica
altruísta da maternidade. Mas esse conflito não é um problema individual, pois reflete uma
contradição cultural muito maior. Sharon Hays (1996, apud MARIA MENDONÇA, 2014)
explica a contradição:

Numa sociedade em que mais da metade das mães de crianças pequenas trabalham
fora de casa, pode-se questionar por que as mulheres são pressionadas a dedicar tanto
de si mesmas na criação dos filhos. (...) onde a lógica de ganhos individualistas parece
guiar o comportamento social em muitas dimensões da vida, também se pode
questionar por que uma lógica altruísta orienta o comportamento das mães. Esses dois
enigmáticos e conflitantes fenômenos compõem o que denomino as contradições
culturais da maternidade contemporânea. 52

50
Ibidem p. 73
51
Ibidem p. 16 - Trecho original: “Between the demands of work life and the demands of family life, between the
historically constructed images of warm, nurturing mothers on the one side and cold, competitive career women
on the other” (tradução nossa).
52
Ibidem p. 56
24

A análise de gênero também suscita debates feministas sobre maternagem e trabalho


doméstico. Nesse aspecto, Margareth Rago afirma que “feminizar é preciso”53 para conquistar
uma cultura filógina, que valorize e tenha apreço por mulheres, o que implica em enxergá-las
como sujeitos sociais, portanto, como seres humanos dignos de direitos iguais de gênero na
sociedade. Valorizam-se os modos de fazer femininos e questionam-se os padrões impostos às
mulheres que, segundo Margareth Rago, é fundamental para

(...) reforçar o questionamento do padrão de maternidade que havia vigorado


inquestionável até os anos 60 e reforçar a luta feminista pela conquista de novos
direitos (...) A história do corpo feminino trouxe à luz inúmeras construções
estigmatizadoras e misóginas do poder médico, para o qual a constituição física da
mulher inviabilizaria sua entrada no mundo dos negócios e da política. O
questionamento das mitologias científicas sobre sua suposta natureza, sobre a questão
da maternidade, do corpo e da sexualidade foi fundamental em termos da legitimação
das transformações libertadoras em curso.54

Segundo Andrea O’Reilly, o processo de libertação envolve a desconstrução da


“maternidade patriarcal”, que se baseia em dez pressupostos ideológicos São eles:
essencialização, privatização, individualização, naturalização, normalização, idealização,
biologização, especialização, intensificação e despolitização da maternidade (O’REILLY,
2013, apud MENDONÇA, 2014, p. 27-28)55. Para Andrea O’Reilly esses pressupostos
compõem as normas do que seria socialmente considerada a experiência materna normal e
natural: “a mãe de outra forma é anormal ou não natural. As mães que, por escolha ou
circunstância, não cumprem o perfil da boa mãe, são muito jovens ou muito velhas, ou não
seguem o roteiro de boa maternidade”56. Andrea O’Reilly (2016), Maria Collier de Mendonça
(2014) e Sharon Hays (1996) concordam que os meios de comunicação retratam a maternidade
de maneira generalizada e romantizada, o que reforça esse roteiro com modelos maternos
exigentes e inalcançáveis, tornando as práticas de maternagem exaustivas para as mães.
Para dissociar as mulheres mães da maternagem intensiva de Sharon Hays, da
maternidade patriarcal de Andrea O’Reilly e do mito do amor materno de Elisabeth Badinter
são referenciados os estudos de Lisa Baraitser sobre os encontros maternos. Baraitser buscou
“articular o potencial dentro da maternidade para novas experiências, sensações, sensibilidades,

53
RAGO, Margareth. Feminizar é preciso: por uma cultura filógina. São Paulo em Perspectiva. vol.15 nº3. São
Paulo Julh/Set. 2001.
54
RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: Pedro, Joana; Grossi, Miriam (orgs.)-
Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Ed.Mulheres, 1998. p. 13-14
55
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 27-28.
56
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. p. 371
25

intensidades, intensidades, movimentos, emoções, pensamentos, percepções” 57. A investigação


de Lisa Baraitser apoiou-se na psicanálise e na filosofia, explorando novos modos
corporificados e relacionais que as experiências maternas poderiam produzir, considerando-as
novas “matérias-primas” para as mães experimentar a si e aos seus mundos. Assim, Baraitser
(ibid.) buscou mapear novas “constelações maternas”, capazes de compor novos modelos de
subjetividades para configurar o sujeito maternal.
A importância da maternidade também pode ser entendida como teoria interseccional
no feminismo. Para Andrea O’Reilly, a opressão e a resistência das mulheres mães na sociedade
são moldadas por suas identidades maternas, assim como a das mulheres negras moldam-se por
suas identidades racializadas. A autora afirma que a maternidade deve ser entendida como uma
posição de sujeito e teorizada em termos de interseccionalidade de opressão de gênero, para
desconstruir a compreensão distorcida sobre isso: “o feminismo acadêmico confunde
maternagem com maternidade e confunde o essencialismo de gênero com o feminismo
matricêntrico”58.
A distinção conceitual entre os termos maternidade e maternagem possibilita a
valorização da maternagem como reconhecimento das vivências maternas e a maternidade
como parte constitutiva de suas identidades e subjetividades. Segundo Maria Collier de
Mendonça,

(...) as ideias de Rich inspiraram a constituição dos estudos maternos como um campo
autônomo no Canadá. Segundo O’Reilly (2010, p.2), a partir dos anos de 1980,
pesquisadores norte-americanos da área de estudos maternos passaram a investigar
três temas interconectados. São eles: motherhood/maternidade como instituição em
consonância com os valores patriarcais; mothering como experiência e motherhood
como identidade e subjetividade. Em seguida, o termo mothering/ maternagem foi
adotado para o estudo das experiências vividas pelas mães em suas atividades de
cuidado com os filhos. 59

As novas práticas discursivas de maternagem são trabalhadas nesta pesquisa como o


cerne da transformação política e social pretendida para as mães feministas. Nessa direção, as
mulheres mães são entendidas de forma multidimensional considerando a diversidade de
mulheres e suas vivências. A perspectiva de gênero sobre a desnaturalização das construções
sociais serviu para pensar outras dimensões das mulheres, como na maternidade em que
Elisabeth Badinter aponta o sentido habitual da palavra “mãe” como mulher casada com filhos

57
BARAITSER, Lisa. Maternal Encounters: The Ethics of Interruption. Routledge, London and New York,
2009. p. 03
58
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. p. 971
59
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 26
26

legítimos, uma personagem relativa e tridimensional: “relativa porque ela só se concebe em


relação ao pai e ao filho. Tridimensional porque, a mãe é também uma mulher, isto é, um ser
específico dotado de aspirações próprias que freqüentemente nada têm a ver com as do esposo
ou com os desejos do filho”. Para a autora, as pesquisas sobre comportamentos maternos devem
considerar diferentes variáveis. Evidencia-se nesse pensamento plural, a relevância de
estabelecer contranarrarivas de maternagem como pretende esta pesquisa.
As novas práticas discursivas de maternagem relatadas pelas entrevistadas desta
pesquisa são consideradas maneiras de ressignificar a cultura através da premissa que discursos
são práticas. Esse embasamento teórico é ratificado por Michel Foucault ao tratar o potencial
das práticas discursivas em interpretar e constituir a história cultural. A metodologia
foucaultiana, segundo Margareth Rago, busca o entendimento entrecruzado da filosofia e da
história, para realizar análise histórica.

Foucault não se pretendeu historiador, embora poucos tenham demonstrado um


sentido histórico tão forte quanto ele (...) o filósofo insistia na ideia nietzschiana de
que “tudo é histórico”, e, portanto de que nada do que é humano deve escapar ao
campo de visão e de expressão do historiador 60.

Nessa perspectiva, a narrativa de um acontecimento ou de um tempo deve considerar


as condições históricas para eleger um material discursivo para narrar uma história e práticas
discursivas que demonstrem não apenas uma verdade, mas sim a perspectiva de que tudo tem
uma história. Para Michel Foucault “a análise do discurso, assim entendida, não desvenda a
universalidade de um sentido; ela mostra à luz do dia o jogo de rarefação imposta, com um
poder fundamental de afirmação (...) e não monarquia do significante” 61. Como se refere o
autor, a positividade dos discursos nessas condições sobre a formação do enunciado define um
campo das práticas discursivas, assim, “a positividade desempenha o papel do que se poderia
chamar um a priori histórico (...) que não seria condição de validade para juízos, mas condição
de realidade para enunciados”62.
Na leitura de Michel Foucault, isso explica porque as palavras e os fatos relacionam-
se historicamente, que implica em construções de sentidos e de relações de poder revelando as
relações históricas e as práticas sociais presentes nos discursos, haja vista, que palavras também
são construções da linguagem que constituem as práticas. A linguagem e o discurso são

60
RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Tempo Social; Rev. Sociologia. USP, São
Paulo, 7(1-2): 67-82, outubro de 1995. p. 70
61
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 70
62
Ibidem p. 144
27

considerados por Foucault lugares de disputas constantes, pois há um conjunto de regras


próprias da prática discursiva, as quais definem o regime dos objetos, mas não deve ser pensado
como um restrito vocábulo a partir do “conjunto de signos (elementos significantes que
remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente
os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais
que utilizar esses signos para designar coisas” 63. Para o autor, o que vai além dos signos torna
o discurso irredutível à linguagem e, por isso, necessita ser analisado por práticas discursivas e
não discursivas com intuito de manter a possibilidade da dúvida sobre os aspectos estudados.
Michel Foucault adotou o termo “práticas discursivas” para expressar as condições da
produção e da utilização dos discursos, que são sempre perpassadas por relações de poder, as
quais possibilitam a urgência de um discurso e sua sustentação. Michel Foucault define práticas
discursivas:

Não podemos confundi-la com a operação expressiva pela qual um indivíduo formula
uma idéia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser
acionada em um sistema de inferência; nem com a “competência” de um sujeito
falante, quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras anônimas,
históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada
época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as
condições de exercício da função enunciativa. 64

A análise discursiva não pode ser reduzida à linguagem, pois é importante perceber
quem discursa, com que parâmetros de verdade e de quais lugares, a fim de compreender as
relações de poder que perpassam os discursos e suas condições de produção. Na perspectiva
foucaultiana, a metodologia abrange essa atenção à linguagem como produtora inseparável de
práticas institucionais, em que o discurso produz os objetos sociais que cita. Os efeitos das
práticas discursivas podem encontrar-se tanto na linguagem, no discurso e no enunciado quanto
nas práticas institucionais como costumes, rituais, lugares, posições e a definição dos sujeitos.
As práticas não atuam isoladamente e por isso, para Michel Foucault, surge a questão de
“perceber de que maneira as práticas discursivas e as não-discursivas, as redes de poder
constituem determinadas configurações culturais e históricas que resultam na produção de
determinados objetos e de determinadas figuras sociais”65.
A partir disso, os acontecimentos discursivos estabelecem os regimes de verdade, que
Michel Foucault articula para refletir como a verdade e o poder estão interligados por uma

63
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 7 ed.Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2008. p. 55
64
Ibidem p. 133
65
RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira.Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo,
7(1-2): 67-82, outubro de 1995. p. 75
28

produção discursiva selecionada, organizada e distribuída. Para o autor, essa análise sobre os
discursos compreende métodos como o princípio de descontinuidade, que permite reconhecer
nos discursos a rarefação ou a ausência de uma verdade evolutiva contínua: “não se deve
imaginar, percorrendo o mundo em todas as suas formas e acontecimentos, um não-dito ou um
impensado que se deveria, enfim, articular ou pensar. Os discursos devem ser tratados como
práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem” 66. O
princípio de especificidade contribui para aproximar a ideia de discurso como práticas na
medida que “se deve conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como
uma prática que lhes impomos em todo o caso; e é nesta prática que os acontecimentos do
discurso encontram o princípio de sua regularidade”67.
As regularidades do discurso fazem parte da análise de fatos recorrentes nas entrevistas
desta pesquisa e possibilita pensar a delimitação de acontecimentos para interpretações, que
Foucault ressalta. Nesse entendimento, a produção do conhecimento de modo crítico infere o
discurso como uma “prática discursiva”, como propõe Foucault. Esta pesquisa baseia-se na
história do tempo presente e dos feminismos, a partir da análise sobre novas práticas discursivas
de maternagem e de posicionamentos feministas narrados pelas mulheres mães entrevistadas.
Identificam-se as relações com suas famílias e seus entornos sociais, que acompanha a noção
plural de família, como na concepção de Maria Rita Kehl:

A família tentacular contemporânea, menos endogâmica e mais arejada que a família


estável no padrão oitocentista, traz em seu desenho irregular as marcas de sonhos
frustrados, projetos abandonados e retomados, esperanças de felicidade das quais os
filhos, se tiverem sorte, continuam a ser portadores. Pois cada filho de um casal
separado é a memória viva do momento em que aquele amor fazia sentido, em que
aquele par apostou, na falta de um padrão que corresponda às novas composições
familiares, na construção de um futuro o mais parecido possível com os ideais da
família do passado. (...) Ideal que, se não for superado, pode funcionar como
impedimento à legitimação da experiência viva dessas famílias misturadas,
improvisadas e mantidas com afeto, esperança e desilusão, na medida do possível. 68

Maria Rita Kehl afirma que a história sobre os conceitos e práticas que criam resistência
à mudança do modelo familiar nuclear padronizado do século XIX advém de um “discurso
institucional que responsabiliza a dissolução da família pelo quadro de degradação social em
que vivemos. (...) os enunciadores desses discursos podem ser juristas, pedagogos, religiosos,
psicólogos”. Assim, educar os filhos desconstruindo estereótipos de gênero é caminhar contra

66
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1999. P. 52
67
Ibidem p. 53
68
KEHL, Maria Rita. Em defesa da família tentacular (2013). Disponível em:
<https://www.fronteiras.com/artigos/maria-rita-kehl-em-defesa-da-familia-tentacular>. Acesso em: 12 jan 2018.
29

muitas instituições sociais. A mudança social em relação aos modelos familiares está
ocorrendo, como afirma Maria Rita Kehl, apesar de ainda muitas pessoas seguirem valores
tradicionais, “como se acreditassem que a família é o núcleo de transmissão de poder que pode
e deve arcar, sozinha, com todo o edifício da moralidade e da ordem nacionais” 69. Essa crença
reforça o modelo excludente normatizado de família nuclear, monogâmica, heterossexual,
patriarcal e endogâmica e a ideia equivocada que as questões sociais não afetam as
transformações políticas nacionais e as relações familiares.
A superação do modelo de família nuclear é promovido por diversos meios sociais que
contribuem para formar tratamentos com desigualdade de gênero. Daniela Ramos cita que,
“notadamente a escola, o mercado de trabalho e o campo político, que também utilizam e
recriam representações de gênero, originadas da divisão sexual do trabalho no âmbito
domiciliar, para alocar homens e mulheres seletivamente e destinar-lhes montantes desiguais
de recursos de poder”70. Iniciar a transformação necessária nessa conjuntura através da relação
familiar é relevante visto que, muitas vezes, “o sexismo na infância é o ponto de partida para a
aceitação e naturalização da violência contra as mulheres na idade adulta” 71, conforme Ligia
Sena, entre outras afetações às mulheres e aos homens.
Em busca de narrativas para construir novas relações de gênero trabalham as mulheres
entrevistadas nesta pesquisa destacam uma relevante perspectiva feminista ainda pouco
explorada cientificamente junto aos temas gênero e maternagem. A pesquisa envolve a
propriedade de fala e a subjetividade dos relatos das mulheres mães sobre as rupturas de laços
ancestrais, a fim de promover novas práticas e, com isso, reeducar a si, aos seus(suas) filhos(as)
e demais pessoas que convivam com elas. Ao pesquisar como e por quais motivações essas
mães buscam uma nova história para suas famílias é ponderado que uma mãe feminista não
necessariamente terá um(a) filho(a) feminista. Assim, considera-se que apesar do engajamento
político e sensível de uma mãe feminista, a pessoa educada por ela pode não se reconhecer
feminista e não se preocupar com desigualdades de gênero, principalmente porque não é apenas
a mãe que educa e sim um conjunto de interferências da sociedade.
Ao analisar gênero do ângulo individual, Heleieth Saffioti afirma que “casais são
capazes de construir uma relação par, igualitária, sem hierarquia. Isto ocorre raramente, uma

69
Ibidem
70
RAMOS, Daniela Peixoto. A família e a maternidade como referências para pensar a política. Revista
Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015. p. 90
71
SENA, Ligia M. "Mulheres que merecem ser estupradas". "Homem cabeça do lar". "Toda mulher sonha
se casar". Qual a parte que te cabe nesse latifúndio? (2014). Disponível em:
<http://cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/mulheres-que-merecem-ser-estupradas-homem-cabeca-do-lar-
toda-mulher-sonha-se-casar-qual-a-parte-que-te-cabe-nesse-latifundio>. Acesso em: 12 de nov de 2017.
30

vez que esta convivência democrática entre homens e mulheres contraria todo o contexto social
no qual acontece”72 e além de casais, outras relações. Por isso, o padrão familiar a ser superado
também existe em famílias com pai e mãe que compartilham tarefas de cuidado com igualdade.
Para Heleieth Saffioti, “haverá sempre aqueles que colocam em dúvida a masculinidade do
homem ou que o consideram fraco, dominado por sua mulher. Na educação dos filhos fora do
esquema de gênero dominante passa-se o mesmo”73. A autora conclui que não se pode educar
a geração imatura para desconstruir o gênero, a rigor, o que se pode fazer é educar os mais
jovens em uma matriz alternativa de gênero, não sexista como na matriz cultural hegemônica.
A nova matriz generificada na família demonstra a necessidade de abordar os impactos
da globalização sobre as mulheres que, segundo Maria Lúcia Silveira, “é desenvolvido por
Hochschild (2000), em seu estudo sobre as redes globais de serviços de cuidados (global care
chains). Trata-se de cadeias que ligam pessoas – quase sempre mulheres – através do globo por
meio de serviços de cuidados, remunerados ou não”74. As redes globais de cuidados se
multiplicam em vários níveis, para a autora, e impactam a função de maternagem. Esse fator
cultural implica na construção familiar como um lugar de naturalização de tais obrigações às
mulheres, onde a maternagem tem sido limitante em termos de autonomia para as mulheres,
mesmo que, em maioria, elas decidam sobre a educação dos filhos.
Esse modelo familiar tem origem em alguns preconceitos culturais. Elena Belotti afirma
que “os preconceitos têm raízes profundas no costume: desafiam o tempo, as retificações, os
desmentidos, por apresentarem uma utilidade social. A insegurança humana tem necessidade
de certezas, e eles as fornecem”75. Os preconceitos vestem-se de tradição e perpetuam a cultura
que inferioriza o feminino e secundariza o trabalho das mulheres, através de valores sexistas.
A autora aponta a hostilidade que há na criação familiar geradora de estereótipos de gênero,
que surgem com projeções sentimentais e por vezes inconscientes sobre outrém com
prejulgamentos: “a verdade é que a fêmea é menos desejada que o macho, ou mesmo em muitos
casos nem é desejada absolutamente, o seu valor social é considerado inferior ao do homem”76.
Essa obra de Belotti, segundo Soraia de Mello, foi considerada uma “Bíblia feminista

72
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos pagu
(16) 2001. p. 123
73
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos pagu
(16) 2001. p. 123
74
SILVEIRA, Maria Lúcia. A mercantilização do corpo e da vida das mulheres alinhavando reflexões. In:
SOF Sempreviva Organização Feminista. Trabalho, corpo e vida das mulheres: crítica à sociedade de mercado/
Maria Lúcia Silveira e Taís Viudes de Freitas. São Paulo: SOF, 2007. p. 81
75
BELOTTI, Elena Gianini. Educação para a submissão: o descondicionamento da mulher. Tradução: Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis, Vozes, 1985. p. 15
76
Ibidem p. 19
31

para culpar mãe”77 no artigo de Rosa Escarlate, a qual criticou “angustiada ao livro Educar para
a Submissão, da italiana Elena Belotti, que se tornou um best-seller da produção feminista. A
obra, que procura mostrar a participação das mães, como educadoras, na reprodução de valores
tradicionais sexistas e excludentes”78. Na concepção de Soraia de Mello, Escarlate como uma
mãe feminista percebeu que a educação de sua filha e de seu filho não são processos
absolutamente controláveis por ela, e por isso são necessárias transformações gerais na
sociedade para efetivar a mudança em busca de uma educação não sexista.
A alteração estrutural na educação requer reflexão sobre a idealização do feminino que
mantém as mulheres na dimensão reprodutiva e na esfera doméstica, que ao ampliar as
perspectivas de atuação das mulheres enfrenta um medo da “feminização cultural” 79, como
aponta Margareth Rago. Desse modo, a autora explica o senso comum que surge sobre o
feminismo como luta das mulheres pela liberdade ao “destronar” os homens, em vez de
entender a feminização como um refinamento da cultura, que aproxima a forma de vida dos
homens da forma de vida das mulheres. Esse rompimento com o padrão cultural permite
repensar a dependência feminina do poder masculino e das tarefas do lar, que implica pensar
multidimensionalmente as mulheres, visão corroborada pelos estudos de gênero e pelas teorias
feministas na história.
A partir disso, acreditando no potencial de mudança por meio das novas práticas de
maternagem nas relações familiares direcionadas por valores feministas, as fontes desta
pesquisa demonstram histórias que destacam a liderança das mulheres, os desafios e os
benefícios de educar valores feministas e como isso está transformando tradições. Bell Hooks
evidencia tal importância ao apontar que “o movimento feminista do futuro tem que pensar que
a educação feminista é significativa na vida do mundo inteiro. Apesar dos avanços econômicos
de algumas mulheres feministas (...) não criamos nenhuma escola baseada em princípios
feministas”80. A autora afirma que sem referências educacionais feministas para meninos e
meninas, homens e mulheres e com uma mídia massiva considerada patriarcal, o mundo

77
ESCARLATE, Rosa. Bíblia feminista para culpar mãe. Mulherio. São Paulo, Ano 5, nº 23,
outubro/novembro/dezembro de 1985. Pg. 04-05.
78
MELLO, Soraia Carolina de. Discussões feministas na imprensa para mulheres: revista Claudia e o trabalho
doméstico (1970-1989). Tese de Doutorado em História na UFSC. Florianópolis, 2016. p. 258
79
RAGO, Margareth. Feminizar é preciso: por uma cultura filógina. São Paulo em Perspectiva. vol.15 nº3. São
Paulo Julh/Set. 2001.
80
HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz Esteban Agustí, Lina Tatiana Lozano
Ruiz, Mayra Sofía Moreno, Maira Puertas Romo, Sara Vega González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p.
45 - Trecho original: “El movimiento feminista del futuro tiene que pensar en la educación feminista como algo
significativo en la vida de todo el mundo. A pesar de los avances económicos de algunas mujeres feministas, que
han llegado a ser ricas o han aceptado contribuciones de varones pudientes y que son nuestras aliadas en la lucha,
no hemos creado ninguna escuela que se fundamente en los principios feministas para niñas y niños, para mujeres
y hombres” (tradução nossa).
32

aprende popularmente uma imagem degradada do feminismo.


Esse modelo midiático dominante é referido pelas mulheres da plataforma Cientista
Que Virou Mãe, como as mídias tradicionais vinculadas às grandes marcas e corporações que
detêm o poder econômico de segmentos de mercado, como os voltados à maternidade, que as
desvalorizam e generalizam como mulheres e como mães. Referem-se a elas como “tolas”,
como as mesmas definem na plataforma. O modelo econômico dominante foi abordado por
Nalu Faria e Renata Moreno, ao citarem o feminismo dos anos 1960, quando o mercado
começou a atuar em função das grandes empresas transnacionais e promoveu um retrocesso
ideológico em relação à autonomia das mulheres sobre seus corpos:

Nesse aspecto, tal como na visão acerca do trabalho doméstico, é visível a imbricação
de capitalismo e machismo, uma vez que o corpo das mulheres constitui um campo
em que se expressa a relação de dominação dos homens (...) O ponto de partida
consistiu em olhar para a imposição, no neoliberalismo, do modelo de feminilidade
baseado em modelo de beleza estrito, para cuja obtenção as mulheres devem recorrer
a todas as soluções de mercado colocadas à venda 81.

Na relação de dominação sobre a feminilidade envolvem-se as práticas de maternagem


tradicionalmente atribuídas às mulheres. Para Nalu Faria, o “incremento da feminilidade cada
vez mais coloca as mulheres como seres não pensantes, como se observa nas propagandas, em
que o tempo todo estão nuas ou rebolando. Essa mercantilização se expressa segundo a situação
de raça, classe, etnia ou religião”82. Transforma-se em mercadoria o imaginário da feminilidade
imposto às mulheres culturalmente, que também converge a forma presumida com que os
anúncios publicitários e a cultura ocidental referem-se às mulheres grávidas e no puerpério,
como frágeis e emocionalmente instáveis. Como aponta Maria Collier de Mendonça, há “uma
intenção de acolher e mimar as gestantes. No entanto, esta intenção não é ingênua, pois objetiva
seduzi-las para que comprem mais, ao longo desta etapa de intensas transformações corporais,
ambivalências sentimentais e expectativas futuras. 83
A plataforma Cientista Que Virou Mãe, conforme suas fundadoras, define-se como
uma mídia de valores alternativos das mídias tradicionais massivas que retratam essa imagem
sobre mulheres grávidas e mães, buscando empreender uma libertação do modelo midiático
considerado hegemônico. A fim de produzir conteúdos ao público materno que não mais remeta

81
FARIA, Nalu; MORENO, Renata. A trajetória das mulheres na luta contra o livre-comércio e pela construção
de alternativas. In: SILVEIRA, Maria Lucia da; TITO, Neuza (Orgs). Trabalho Doméstico e de Cuidados: por
outro paradigma de sustentabilidade da vida humana. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2008. p. 22
82
FARIA, Nalu. Para a erradicação da violência doméstica e sexual (p. 23-30). In: NOBRE, Miriam; FARIA,
Nalu; SILVEIRA, Maria Lúcia. Feminismo e Luta das Mulheres: análise e debates. Sempreviva Organização
Feminista: São Paulo, 2005. p. 26
83
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 139
33

a um feminino essencializado e a uma maternagem romantizada, a Cientista Que Virou Mãe


considera-se uma mídia alternativa e “não hegemônica”, este último um termo êmico,
referenciado pelas fontes desta pesquisa. Patrícia Barros pontua sobre a história que originou a
definição para mídia alternativa no Brasil, a partir da ditadura militar que após 1968 foi
“caracterizado pela intensificação da repressão militar devido às manifestações ocorridas,
como: movimento estudantil, passeatas, oposição armada e rebeldia generalizada no mundo
com a proliferação das idéias contraculturais” 84. Segundo a autora, em busca de meios para a
expressão livre das ideias surgiu a chamada imprensa alternativa, entre outros vocábulos para
representar a produção literária independente.

A palavra “alternativa” vem de alter, que sugere alterações, mudanças. No dicionário


Aurélio (cf. HOLANDA, 1986) significa algo que se contrapõe a interesses ou
tendências dominantes. Corresponde também a algo que não está ligado a política
dominante, a uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes. 85

A plataforma Cientista Que Virou Mãe produz conteúdos para todas as pessoas,
especialmente às mulheres mães, ao público materno e demais cuidadores da infância. Seus
objetivos são apoiar as mães e produzir informações além da mídia tradicional hegemônica, que
as mesmas classificam como machista. Segundo elas descrevem na plataforma, também buscam
valorizar o trabalho de mães que produzem informação na mídia não hegemônica, pois essas
geralmente não recebem remuneração e por isso, com o tempo deixam de escrever para gerar
renda e novamente têm a mídia tradicional como única opção.
Apesar desses modelos de maternidade e de mídias, ambas citadas como patriarcais
neste trabalho pelas fontes e por referências bibliográficas, destaca-se que a noção de
patriarcado e de gênero discutem perspectivas diferentes e por vezes conflituosas para
conceituar historicamente. Gayle Rubin afirma que existem sistemas sociais estratificados por
gênero que são descritos como patriarcal de forma equivocada e cita o exemplo de muitas
sociedades da Nova Guiné opressivas para mulheres. Nesse caso, o poder dos homens em um
determinado grupo cultural não é fundado a partir de seus papéis como pais ou patriarcas, mas
de valores sobre masculinidade que são incorporados coletivamente em conhecimentos, rituais
e educação social:

Patriarcado é uma forma específica de dominação masculina, e o uso do termo deveria


ser confinado aos grupos pastorais e nômades como os do Velho Testamento, de onde
o termo provém, ou a grupos similares. Abraão foi um Patriarca - um homem velho,
cujo poder absoluto sobre esposas, crianças, rebanhos e dependentes era um dos

84
BARROS, Patrícia Marcondes de. A imprensa alternativa brasileira nos “Anos de Chumbo”. Revista
Akrópolis, Umuarama, v.11, n.2, abr./jun., 2003. p. 63
85
Ibidem p. 63
34

aspectos da instituição da paternidade, tal como definida pelo grupo no qual ele
vivia.86

Por essa razão utilizar o patriarcado para analisar relações de gênero em grupos culturais
e familiares distintos, como nesta pesquisa, tornar-se descontextualizado. Gayle Rubin afirma
que é impossível relegar as multifacetas de reprodução social ao sistema sexista e para isso
aborda diferentes perspectivas do termo “reprodução” no contexto social ou biológico: “um
sistema sexo / gênero não é simplesmente o momento reprodutivo de um ‘modo de produção’.
A formação da identidade de gênero é um exemplo de produção no domínio do sistema
sexual”87. A autora aponta o patriarcado como uma organização social através das convenções
socialmente ensinadas sobre o sistema sexo / gênero, que se refere ao domínio como produto
das relações sociais específicas que o forma, não como algo inevitável. Para Gayle Rubin, o
importante é adequar conceitos e categorias para descrever a organização social e considera que
“a vida humana será sempre sujeita à convenção e à intervenção humana. Ela nunca será
completamente ‘natural’, nem que seja pelo fato de que nossa espécie é social, cultural e
articulada.”88.
Portanto, a utilização da categoria gênero nesta pesquisa, visto que gênero é construído
pelas relações sociais, é mais adequado como categoria de análise histórica que busca explicar
desigualdades persistentes entre mulheres e homens. Ratificando isso, Joan Scott aponta: “o
gênero é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído
igualmente na economia, na organização política e, pelo menos na nossa sociedade, opera
atualmente de forma amplamente independente do parentesco”89.
A construção de gênero, para Nalu Faria, também ocorre em todas as esferas sociais,
o que implica em diversos elementos materiais e simbólicos sobre a construção social do ser
homem e ser mulher. Para a autora isso “tem como objetivo diferenciar sexo - ser macho ou
fêmea como dado da natureza - da construção social da masculinidade e feminilidade. A
definição de masculino e feminino está associada ao que cada sociedade, em cada momento
histórico, espera como próprio de homens e mulheres”90. Por isso há ressalvas, como explicam
Martha Narvaz e Sílvia Koller, sobre o sistema patriarcal que “atribuiu um maior valor às

86
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo. Tradução: Christine Rufino
Dabat; Edileusa Oliveira da Rocha; Sonia Corrêa. Recife: Editora SOS Corpo, 1993. p. 06
87
Ibidem p. 06
88
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo. Tradução: Christine Rufino
Dabat; Edileusa Oliveira da Rocha; Sonia Corrêa. Recife: Editora SOS Corpo, 1993. p. 20
89
Ibidem p. 22
90
FARIA, Nalu. Gênero e Políticas Públicas: uma breve abordagem das relações de gênero (p. 31-38). In: NOBRE,
Miriam; FARIA, Nalu; SILVEIRA, Maria Lúcia. Feminismo e Luta das Mulheres: análise e debates.
Sempreviva Organização Feminista: São Paulo, 2005. p. 31
35

atividades masculinas em detrimento das atividades femininas; legitimou o controle da


sexualidade, dos corpos e da autonomia feminina; e, estabeleceu papéis sexuais e sociais nos
quais o masculino tem vantagens e prerrogativas (Millet, 1970; Scott, 1995)” 91. Para as autoras,
o patriarcado designa o poder do pai, dos homens e do masculino como categoria social e como
“uma forma de organização social”, a qual enquanto teoria universal é um tema controverso
nos estudos feministas, como elas destacam:

Lobo (1992) e Rowbotham (1984) criticam o uso do termo ‘patriarcado’ em função


do caráter a-histórico, fixo (...) Castro e Lavinas (1992) ressaltam que o conceito de
patriarcado, tomado de Weber, tem delimitações históricas claras, utilizado para
descrever um tipo de dominação assegurada pela tradição (...) na medida em que a
família e as relações entre os sexos mudaram, a idéia de patriarcado cristaliza a
dominação masculina, pois impossibilita pensar a mudança.

A dissociação de patriarcado e gênero nesta pesquisa é importante porque, para Joan


Scott, “famílias, lares e sexualidade, são produtos da mudança dos modos de produção. É assim
que Engels concluía as suas explorações na Origem da Família, é sobre a análise da economista
Heidi Hartmann (...) de considerar o patriarcado e o capitalismo como dois sistemas separados,
mas em interação”92. A autora frisa a causalidade econômica prioritária que transforma os
efeitos do patriarcado em função das relações de produção em constante mudança devido à
cultura e por isso mantêm as relações de poder desiguais entre homens e mulheres. Na
perspectiva de Martha Narvaz e Sílvia Koller, tais papéis sociais relacionam-se com os moldes
da família patriarcal burguesa, que direciona os homens ao sustento econômico e as mulheres
ao trabalho de cuidadoras do marido, do lar e dos filhos. Essa divisão sexual do trabalho é
tratada nesta pesquisa pela visão historiográfica e, portanto, analisa as relações de gênero.
Em razão disso, a fim de evidenciar as novas práticas de maternagem através das
relações de gênero no contexto feminista esta pesquisa trabalha sobre uma perspectiva histórica
de vivências familiares das mulheres mães entrevistadas e de seus posicionamentos na
militância feminista. Há análise do espaço de experiência do passado para investigar as
alternativas que cabem no horizonte de expectativas 93 e possibilidades do tempo presente de
suas histórias. Nesse cenário de pesquisa os afetos pessoais sobre as memórias de família delas
revelam subjetividades e novas práticas de maternagem que se aproximam apesar dos diferentes

91
NARVAZ, Martha Giudice; KOLLER, Sílvia Helena. Famílias e patriarcado: da prescrição normativa à
subversão criativa. Psicologia & Sociedade; 18 (1): 49-55; jan/abr. 2006. p. 50
92
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Christine Rufino Dabat; Maria
Betânia Ávila. New York, Columbia University Press. 1989. p. 11
93
KOSELLECK, Rcinhart, 1923-2006 Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos I Reinhart
Kosellcck; tradução do original alemão: Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira; revisão da tradução César
Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
36

contextos sociais e conjunturas familiares, em que as mães mostram-se dispostas a promover


uma educação com equidade de gênero. Esses relatos orais, muitas vezes, tornam-se histórias
feministas, pois segundo Silvia Salvatici, “desde seus primórdios, a história oral e a história de
mulheres têm mostrado significativas similitudes em propósitos e objetivos, bem como em
campos de interesse”94. Ao explorar tais espaços da memória, a autora observa que a pessoa
entrevistada denota uma prática de reencontro consigo a partir da linguagem.
Margareth Rago entende que a linguagem e o discurso são instrumentos fundamentais
para formular uma epistemologia feminista: “para além do marxismo e da fenomenologia, como
uma forma específica de produção do conhecimento que traz a marca feminina,
tendencialmente libertária, emancipadora. Há uma construção cultural da identidade feminina,
da subjetividade feminina”95. A subjetividade considerada um atributo da história das mulheres,
como observa a autora, agrega à “cultura feminina”, já que é evidenciada com as mulheres
adentrando em massa o mercado e ocupando profissões consideradas masculinas, em que a
linguagem cultural se feminiza com novos questionamentos e transformações radicais com “um
aporte feminino/ista específico, diferenciador, energizante, libertário, que rompe com um
enquadramento conceitual normativo” (p. 10). Aproxima-se desse pensamento a noção de
“espaço autobiográfico” oferecido pela história oral realizada por entrevistas, que potencializa
as narrativas desta pesquisa.
Essa metodologia é interpretada por Verena Alberti no que diz respeito especificamente
à História, como uma mudança da própria disciplina, que desde a perspectiva positivista
predominante no século XIX, preconizou a análise quantitativa, o escrito em detrimento do oral
e o passado remoto em detrimento de temas contemporâneos. Essas convicções modificaram-
se a partir da década de 1980, segundo Verena Alberti, enfatizando o papel do indivíduo na
História, pois “considerava-se que os relatos pessoais e as biografias não contribuíram para o
conhecimento do passado, pois são subjetivos, muitas vezes distorcem os fatos e dificilmente
seriam representativos de uma época ou de um grupo”96. Entretanto, as proposições
contemporâneas estabeleceram um novo campo de pesquisa incorporado à História, chamado
História do tempo presente que, na leitura da autora, começou a valorizar a análise qualitativa,
e os relatos pessoais
(...) tornando-se capaz de transmitir uma experiência coletiva, uma visão de mundo

94
SALVATICI, Silvia. Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres. História Oral, v. 8, n.
1, p. 29-42, jan.-jun. 2005. p. 29
95
RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: Pedro, Joana; Grossi, Miriam (orgs.)-
Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Ed.Mulheres, 1998. p. 10
96
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: Fontes históricas / Carla Bassanezi Pinsky, (org). 2.ed.
São Paulo: Contexto, 2008. p. 163
37

tornada possível em determinada configuração histórica e social. Hoje já é


generalizada a concepção de que fontes escritas também podem ser subjetivas e de
que a própria subjetividade pode se constituir em objeto do pensamento científico.
Surgiram novos objetos, e os historiadores passaram a se interessar também pela vida
cotidiana, pela família, pelos gestos do trabalho, pelos rituais, pelas festas e pelas
formas de sociabilidade - temas que, quando investigados no "tempo presente", podem
ser abordados por meio de entrevistas de História oral. 97

A fim de estudar adequadamente os acontecimentos sociais considera-se esta pesquisa


qualitativa, na qual a metodologia deve ser plural conforme a necessidade das fontes através
das entrevistas, em que a investigação empírica, segundo Martin Bauer e George Gaskell, exige
“a observação sistemática dos acontecimentos; técnicas de entrevista; a interpretação dos
vestígios materiais que foram deixados pelos autores e espectadores; uma análise
sistemática”98. Os autores informam que o modelo de pesquisa qualitativa mais conhecido é a
entrevista em profundidade, como é realizada nesta pesquisa. A partir disso, Bauer e Gaskell,
também apontam o interesse da pesquisa qualitativa em identificar a diversidade e a tipificação
das pessoas em seus meios sociais, “como as pessoas se relacionam com os objetos no seu
mundo vivencial, sua relação sujeito-objeto, é observada através de conceitos tais como
opiniões, atitudes, sentimentos, explicações, estereótipos, crenças, identidades, ideologias,
discurso, hábitos e práticas”99. Semelhante a esse propósito, esta pesquisa busca analisar
diferentes ambientes sociais e as práticas realizadas por seus sujeitos, como as mulheres mães
feministas entrevistadas.

METODOLOGIA E FONTES DE PESQUISA

Para explicitar o motivo da escolha do objeto desta pesquisa, a plataforma Cientista Que
Virou Mãe, e como cheguei até a mesma, preciso recordar fatos desde minha identificação como
feminista em decorrência da Primavera das Mulheres. Aproximadamente a partir de 2015
comecei a acompanhar grupos e páginas de discussões feministas na Internet. Então,
conhecendo a história do feminismo, comecei a fundamentar as diferenças de gênero que
vivencio. Nessas circunstâncias, fui me construindo feminista ao pesquisar sobre as questões
de gênero, ao criar o website Benditas Mulheres 100 e escrever sobre isso junto à colaboração
de outras mulheres e ao conversar com as pessoas próximas, o que modificou minha forma de

97
Ibidem p. 163
98
BAUER, Martin W.; GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático.
Tradução: Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis/RJ: Vozes, 2002. p. 18-19
99
Ibidem p. 57
100
BENDITAS MULHERES. Disponível em: <http://benditasmulheres.com.br>. Acesso em: 12 de nov de 2017.
38

enxergar e de vivenciar as relações sociais. Por isso, também, percebi nas mulheres da minha
família entre outras, relações de gênero desiguais e como eu ainda era uma das poucas a pensar
sobre o feminismo entre elas. Algumas delas tinham posturas independentes como as feministas
representam, mas desconheciam ou não se identificavam com o feminismo.
Ao pensar nas permanências de comportamentos que atravessam gerações, bem como o
contraste de mudanças, em geral, devido à insurgência das mulheres aos padrões sexistas,
percebi que algumas continuam vivendo opressões de gênero, mas não têm consciência disso
ou não acreditam que possam mudar suas realidades. Muitas mulheres quando identificam-se
como feministas começam a perceber discriminações de gênero que limitam suas vontades e
capacidades e buscar autonomia. Outras também percebem essas questões, buscam direitos
iguais, mas não se declaram feministas ou tampouco sabem o que significa. Desse modo,
reagiram minhas bisavós paternas. Uma delas se negou a realizar o próprio casamento arranjado
e fugiu do Uruguai para o Brasil para refazer a vida e casar com alguém por escolha, história
que gerou o nascimento da minha avó paterna. A outra bisavó não aceitou o relacionamento
abusivo com seu marido, decidiu se separar e casar novamente com um homem amoroso, que
foi o pai do meu avô paterno.
Minha mãe, nascida em 1954, natural de Santa Maria/RS, também insurgiu-se contra os
padrões de sua época e priorizou tornar-se independente financeiramente, em vez de priorizar
o casamento e a maternidade, aspectos culturalmente mais valorizado para mulheres. Ela cursou
o ensino superior e conquistou autonomia e estabilidade financeira na profissão, casou-se aos
32 anos quando se apaixonou por meu pai, que era oito anos mais novo que ela. No ano seguinte
do casamento minha irmã nasceu, dois anos depois eu nasci. Também, minha mãe sempre
sustentou a principal renda da casa.
Acredito que minha mãe superou algumas barreiras de gênero que prescreviam uma
determinada conduta, em uma época que o costume da maioria das mulheres conhecidas por
ela, era de casar e ter filhos entre 15 e 30 anos, com homens mais velhos. Ela não cumpriu esse
papel tradicional esperado e, além disso, um mês após descobrir sua primeira gravidez, minha
mãe foi chamada para assumir um cargo através de um concurso público. Mesmo sendo alertada
por muitas pessoas para não contar sobre a gravidez devido à tradicional recusa das empresas
ao contratar mulheres grávidas, ela contou o fato na entrevista de emprego, realizou os exames
necessários e foi admitida para o cargo. Maria Amélia Teles trata sobre as políticas trabalhistas
para mulheres em 1955: “É comum os patrões não contratarem mulheres casadas (...) Em muitas
fábricas têxteis, onde são aceitas mulheres casadas, despedem-se operárias por se acharem
39

grávidas. Os patrões burlam, assim, as leis de proteção à maternidade” 101. No trabalho havia a
presença majoritariamente de colegas homens, o que também gerou questões de gênero a serem
superadas na convivência com eles e nos julgamentos do entorno social. Ela atingiu metas
pessoais que pareciam seguir um contrafluxo dos padrões culturais sexistas devido a sua
personalidade construída sem a preocupação primordial com casar-se e tornar-se mãe.
A partir dessas referências de mulheres da minha família, percebo que algumas
destacam-se por desconstruir paradigmas de gênero e fomentar a liberdade de escolha, que é
um ideal feminista. Entretanto, muitas mulheres continuam dedicando-se, sobretudo, ao
casamento e à maternagem que, muitas vezes, atrapalha o sucesso profissional almejado por
muitas delas, devido às demandas domésticas em sobrecarga. Minha avó paterna é um exemplo
desse perfil, pois sempre fala sobre sua vontade de trabalhar em fábricas como costureira, mas
tais questões familiares a limitaram nos avanços dos estudos e da profissionalização para
conseguir tal emprego. Assim como ela, muitas mulheres dependem financeiramente dos
maridos o que, muitas vezes, contribui para que elas sofram violências morais e patrimoniais
provocadas por eles. Essa realidade é relatada nas entrevistas fontes desta pesquisa e também é
problematizada em textos102 pelas escritoras do Cientista Que Virou Mãe.
Esse processo de entendimento pessoal resultou no interesse desta pesquisa sobre
mulheres organizadas através do feminismo, em que inicialmente a escolha seria por jovens
universitárias e não mães do Coletivo Jornalismo Sem Machismo da UFSC. Nesse percurso
acadêmico, todavia, o objeto de estudo mudou para a plataforma Cientista Que Virou Mãe
quando as encontrei na Internet, pois considerei que tratar sobre mães feministas poderia
ampliar o potencial de pesquisa, em virtude da importância social das novas práticas discursivas
de maternagem que muitas feministas têm demonstrado.
Portanto, as fontes deste estudo são viabilizadas por meio de entrevistas concedidas por
cinco mulheres da plataforma Cientista Que Virou Mãe, realizadas com o auxílio de um roteiro
de entrevista103 previamente planejado com vinte questões. As entrevistas foram individuais e
apenas a primeira foi pessoalmente, com Laura em Florianópolis/SC. As demais entrevistas
foram realizadas por meio do Skype em vídeo chamada na Internet. Os relatos foram gravados

101

TELES, Maria Amélia de A. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 55
102
KEUNECKE, Ana Lucia. Alienação parental: o que é? quais as implicações? o que representa? (2017)
Disponível em: <http://cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/alienao-parental-o-que--quais-as-implicaes-o-
que-representa>. Acesso em: 21 nov 2017. “O Brasil é o quinto país no mundo em violência contra a mulher.
Vivemos numa sociedade em que mulheres são violentadas a todo tempo, onde a desigualdade perpassa a esfera
sexual, moral, patrimonial, midiática, profissional”
103
Apêndice
40

com câmera fotográfica, aplicativo de gravação no celular e áudios do aplicativo Whatsapp.


Após a gravação, os áudios das entrevistas foram transcritos por mim, que tiveram duração
entre 45 minutos e 1h30min. Concluídas as transcrições, enviei por e-mail às entrevistadas junto
aos termos de autorização104 para publicação, que recebi de volta com todas as assinaturas.
Dentre essas mulheres, quatro são paulistas e uma gaúcha, todas na faixa etária de 30 a
40 anos, de classe média, uma é negra, as outras são brancas e suas histórias têm distintos
arranjos familiares e estilos de vida, o que as aproximam permeia o ideal feminista, a
maternagem e a formação acadêmica. A escolha dessas mulheres dentre as demais escritoras da
plataforma Cientista Que Virou Mãe ocorreu em consonância com a disponibilidade delas. Para
situar quem são as mulheres entrevistadas nesta pesquisa, apresento um breve perfil biográfico
de cada uma, com suas identidades preservadas em pseudônimos:

● Laura, nascida em 1978, branca, natural de São Paulo, mãe de uma menina. Bióloga que
escreve na plataforma sobre infância, feminismo, educação sem violência,
empoderamento materno, direitos reprodutivos e o combate à violência contra a mulher
e à criança.
● Antônia, nascida em 1982, branca, natural de São Paulo, mãe de um menino pré-
adolescente. Jornalista que escreve na plataforma sobre ensinar feminismo para as
crianças e mães em situação de vulnerabilidade.
● Renata, nascida em 1977, branca, natural de São Paulo, mãe de dois meninos. Sanitarista,
que escreve na plataforma sobre educar crianças, participação política e saúde coletiva.
● Daiana, nascida em 1986, negra, natural de São Paulo, mãe de uma menina e de dois
meninos. Psicóloga que escreve na plataforma sobre vida acadêmica e maternagem,
questões de raça e de gênero para mulheres mães.
● Luiza, nascida em 1977, branca, natural do Rio Grande do Sul, mãe de duas meninas.
Jornalista que escreve na plataforma sobre emancipação social e empoderamento
feminino.

Ainda, o método para estudar a história delas no que concerne à maternagem e ao


feminismo poderia ter sido através de seus textos na plataforma Cientista Que Virou Mãe, que
auxiliam esta pesquisa, porém optei por conhecer seus relatos de memórias e trabalhar com a
história oral com entrevistas. Segui as indicações de Alessandro Portelli, pois este autor informa

104
Anexo
41

que o “procedimento do discurso oral se apresenta mais como um processo do que como um
texto acabado. Estes procedimentos da oralidade põem em evidência o trabalho da palavra, da
memória, da consciência”105.
A escolha metodológica, acredito, permite uma proposta mais original e sensível a esta
pesquisa, pois a subjetividade envolvida nos relatos das entrevistas sobre vivências de famílias,
questões de gênero e feminismo, somado a minha interpretação sobre tais fatos, oferece o
desafio próprio da história oral. Essas características além de formarem um método, segundo
Verena Alberti, “permite o registro de testemunhos e o acesso a ‘histórias dentro da história’ e,
dessa forma, amplia as possibilidades de interpretação do passado” 106.
Por eu não ser mãe, as questões das mulheres mães me pareceram mais próxima após
este estudo, o que corresponde justamente ao que o tema maternagem pretende aqui, abordar as
tarefas de cuidado como atividades democráticas que não apenas as mulheres mães podem
conhecer e exercer. Amplia-se a ideia de Marcelo Camurça107 que “precisamos nos transformar
naquilo que estudamos (...) transcender nossa personalidade para aderir à alma que está ligada
ao fato a ser estudado (BASTIDE, 1983, p. 84, apud SILVA, 2000, p. 96)” quando o “tornar-
se nativo” significa predispor-se a experimentar “desde dentro” a lógica deste outro. Assim,
como lembra o autor, percebi que nem sempre há necessidade de “tornar-se nativo” ou de
distanciar-se do objeto de pesquisa como forma de produzir conhecimento sobre tal.
O mais importante nesse caso são as condições de produção, o lugar de quem pesquisa
e o processo disso que, para Marcelo Camurça, demonstra-se na interlocução entre o campo
pesquisado e a pessoa pesquisadora, “onde ambos deixam-se afetar-se mutuamente. Por essa
via, também podemos enfrentar o impasse epistemológico contemporâneo de que a ciência ao
cercar o ‘objeto’ de inteligibilidade termina por subtraí-lo do seu élan e vitalidade”108. Em
conformidade com o autor, ao reconhecer tais afetos ocorre a troca de aprendizado e o
autoconhecimento de ambas as partes. Nessa dimensão central de pesquisa, Jeanne Saada
ressalta que “aceitar ‘participar’ e ser afetado não tem nada a ver com uma operação de
conhecimento por empatia, qualquer que seja o sentido em que se entende esse termo” 109. As

105

PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes
orais. Artigo publicado na revista espanhola Fundamentos. Tempo: Rio de Janeiro, 1996. p. 07
106
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: Fontes históricas / Carla Bassanezi Pinsky, (org). 2.ed.
São Paulo: Contexto, 2008. p. 155
107
CAMURÇA, Marcelo Ayres. Etnografia em grupos religiosos: relativizar o absoluto. TOMO. São Cristóvão-
SE nº 14, jan./jun. 2009. p. 55
108
Ibidem p. 59
109
FAVRET-SAADA, Jeanne. 1990. “Ser afetado”. Tradução: Paula Siqueira; Revisão: Tânia Stolze Lima.
Cadernos de Campo nº 13, 2005. p. 158
42

operações de conhecimento nesse processo de pesquisa encontram-se estendidas no tempo e


separadas do objeto pesquisado e, segundo Jeanne Saada, quando o pesquisador

(...) aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista nativo, nem
aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser
afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se
desfazer. (...) no momento em que somos mais afetados, não podemos narrar a
experiência; no momento em que a narramos não podemos compreendê-la. O tempo
da análise virá mais tarde. Os materiais recolhidos são de uma densidade particular, e
sua análise conduz inevitavelmente a fazer com que as certezas científicas mais bem
estabelecidas sejam quebradas110.

Reconheci os afetos desta pesquisa, ao longo de um tempo que possibilitou discernir


criticamente sobre os relatos das mães entrevistadas para analisar sem adjetivar e pretender
solucionar problemas das fontes quando tratava questões de gênero nas famílias. A partir de
dos afetos e da relação com a fonte de pesquisa, segundo Alessandro Portelli “se formos
capazes, a subjetividade se revelará mais do que uma interferência; será a maior riqueza, a maior
contribuição cognitiva que chega a nós das memórias e das fontes orais” 111. Enquanto
pesquisadora eu valorizo e evidencio as subjetividades e os afetos em torno desta pesquisa por
pensar que, muitas vezes, torna-se inevitável concordar tacitamente com objeto de pesquisa em
virtude da admiração pelo mesmo. Entretanto, busco narrar os fatos com acuidade e senso
crítico, interpretando uma perspectiva parcial, própria de produções acadêmicas.
Assim, a produção de subjetividades através da história oral relatada pelas mães neste
estudo possibilita criar sentidos e representações de verdades pois, como cita Alessandro
Portelli, “recordar e contar já é interpretar. A subjetividade, o trabalho através do qual as
pessoas constroem e atribuem o significado à própria experiência e à própria identidade,
constitui por si mesmo o argumento, o fim mesmo do discurso” 112. Dessa forma, entendem-se
as vidas reais e imaginárias relatadas pelas mulheres entrevistadas nesta pesquisa, para analisar
suas memórias de famílias, seus contextos feministas e suas novas práticas de maternagem.
Toda produção científica pode ser produtora de subjetividades, que denota o problema da
história oral em perceber a subjetividade como algo fantasioso e interferente na objetividade
factual dos testemunhos, como refere Alessandro Portelli:

(...) diz-se que a subjetividade é um elemento incontrolável, irreconhecível,


idiossincrático, no qual não se pode basear seriamente uma análise (...) nossa tarefa
não é, pois, a de exorcizá-la, mas (sobretudo quando constitui o argumento e a própria
substância de nossas fontes) a de distingüir as regras e os procedimentos que nos

110
Ibidem p. 160
111
PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os Fatos. Narração, interpretação e significado nas memórias e nas
fontes orais. Artigo publicado na revista espanhola Fundamentos. Tempo: Rio de Janeiro, 1996. p. 04
112
Ibidem p. 02
43

permitam em alguma medida compreendê-la e utilizá-la. 113

Entende-se que a dimensão subjetiva é indissociável das fontes orais e das memórias e
produz uma especial argumentação, até mesmo inovadora pela visão interdisciplinar da pessoa
que narra a história oral. A subjetividade constitui uma característica indelével do fazer
humano, o que se torna fundamental de ser considerada na pesquisa, como afirma Alessandro
Portelli, pois envolve reconhecer o processo da produção de conhecimento, que traz a maneira
de ver, de sentir e de reagir, própria de cada pessoa. Por isso, exige um olhar crítico das
produções de significados visto que, para o autor, a subjetividade pode ser uma forma intimista
de novos raciocínios e argumentações, mas deve mensurar o efeito disso na pesquisa para ser
intencional e produtiva.
Também, de acordo com Marcos Montysuma, essa ideia implica que “reconheçamos a
existência de uma relação de poder entre os sujeitos, entre entrevistador e entrevistado, mas
jamais a supressão da palavra, da voz do outro”114. Em termos de entrevista como nesta
pesquisa, esse fator une-se à subjetividade e pode conferir uma importante capacidade a quem
pesquisa, segundo Marcos Montysuma, de que a

(...) percepção de significados que se encontram presentes no silêncio, nas repetições,


nas reticências, nas entonações da fala, que remetem a entendimentos através das
inflexões das frases, nos prolongamentos das palavras, no prolongamento ou
acentuação à sua maneira de certas sílabas na palavra pronunciada, quando a pessoa
que fala se resguarda, evitando que determinado conteúdo seja publicizado, ou quando
se emociona e sofre por algo rememorado naquelas circunstâncias. 115

O reconhecimento da subjetividade na relação dos sujeitos da história oral reitera o


aprendizado pelas emoções e vivências coexistindo no conhecimento científico ao interpretar o
processo histórico na esfera subjetiva humana e nas dimensões temporais. Discutir tal
singularidade do trabalho de campo, como aponta Marcos Montysuma, apresenta “uma práxis
que nos remete a questões situadas em posturas éticas, uma vez que lidamos com interpretações
de relatos significados na memória, contidas nas falas das pessoas” 116. A lição disso é pensar
os fatos históricos como a construção do sentido na objetividade, em que os mesmos enunciam
uma linguagem da análise com um exame crítico sobre o não-dito e a argumentação escolhida,
como uma narrativa derivada da subjetividade.

113
Ibidem p. 03
114

MONTYSUMA, Marcos Fábio Freire. Um encontro com as fontes em História Oral. Estudos Ibero-
Americanos. PUCRS, v. XXXII, n. 1, p. 117-125, junho 2006. p. 120
115

Ibidem p. 124
116

Ibidem p. 118
44

Após a apresentação dos aportes teóricos, seguem as divisões de conteúdo, como o


primeiro capítulo deste estudo, que apresenta o advento da Primavera das Mulheres a partir de
2015 e os acontecimentos que resultam nessa articulação do movimento feminista no Brasil.
Neste cenário, descreve-se a constituição da plataforma Cientista Que Virou Mãe na Primavera
das Mulheres e a presença política das mães na militância feminista ao reivindicar seus direitos.
O segundo capítulo analisa os relatos das entrevistadas a fim de conhecer as questões de gênero
no contexto de suas relações familiares, retratando a construção social de feminino e de
masculino por meio de referências aprendidas na família. Evidenciam-se estereótipos de
gênero, bem como a liderança das mulheres na transformação de tais ideias sobre os costumes
com base na perspectiva feminista.
O terceiro capítulo analisa as novas práticas discursivas de maternagem das mulheres
mães entrevistadas nesta pesquisa e de que modo elas atribuem suas práticas com as suas
militâncias feministas. Para tanto, busca-se identificar as contranarrativas de maternagem
baseadas no conceito de “feminismo matricêntrico” de Andrea O’Reilly e analisar como elas
relatam praticar a maternagem em consonância aos seus valores feministas. Neste caminho,
trata-se da ampliação de sentidos da presença política das mulheres mães na sociedade e o
potencial transformador das suas novas práticas de maternagem através do feminismo.
45

CAPÍTULO 1. CIENTISTA QUE VIROU MÃE NA PRIMAVERA DAS MULHERES

Através do posicionamento de muitas mulheres em defesa da igualdade de gênero, a


perspectiva das mães é fundamental para entender de forma interseccional o fenômeno do
feminismo brasileiro chamado Primavera das Mulheres, desde 2015. Esse conglomerado de
movimentos de mulheres, muitos desses feministas, consiste em uma maneira de promover
protestos e campanhas na Internet, além de fomentar encontros públicos a partir disso, que
formam movimentos de aproximação entre mulheres. Debora Martini cita dados compilados
pela ONG Think Olga 117, em 2015, sobre a crescente reflexão feminista na Internet:

Em 2015, começou a revolução no feminismo brasileiro. O assunto ocupava as ruas,


a conversa de bar, a Internet e foi o tema de parte do exame nacional para entrada na
universidade. A Primavera das Mulheres foi até a capa da Revista Época, a segunda
maior semanal. (...) a Internet provou ser um elemento-chave para a discussão,
organização e divulgação do movimento feminista. As mídias sociais ajudaram as
pessoas a falar sobre isso, organizam eventos e interagem com eles, criam grupos para
segurança e assistência. Com a ajuda do Facebook, Twitter e YouTube, 2015 foi um
ano de batalha para feministas brasileiras. (...) havia mais de meio milhões de
interações de mídia social sobre tópicos e eventos feministas ao longo do ano de 2015.
Entre janeiro de 2014 e outubro de 2015, as buscam no Google, em português, por
‘feminismo’ e ‘empoderamento feminino’ cresceram 86,7% e 354,5%,
respectivamente. 118

Esse momento histórico foi considerado uma renovação do feminismo, com “uma nova
geração de ativistas toma as ruas e as redes sociais – e cria o movimento político mais
importante do Brasil na atualidade”119. Desde então, o movimento de mulheres organizadas no
Brasil perdura devido aos acontecimentos descritos ao longo deste capítulo, como campanhas
na Internet e reivindicações públicas em curso ainda em 2018. Prenuncia-se esse cenário social
como uma “primavera sem fim”: “com mulheres cada vez mais conscientes de seus direitos e

117
THINK OLGA. Disponível em: <http://thinkolga.com/>. Acesso em: 14 nov 2017.
A Think Olga é uma ONG feminista brasileira, que objetiva refletir a complexidade das mulheres, com a missão
de fortalecer mulheres por meio da informação e retratar as ações delas.
118
MARTINI, Debora. Brazilian Feminism on the Rise: A case study on Brazilian feminist cyberactivism.
Linköping University, Department of Thematic Studies, The Department of Gender Studies. 2016. p. 08 - Trecho
original: “In 2015, a revolution began in Brazilian feminism. The subject occupied the streets, pub talks, the
Internet and it was the theme for the essay portion of the national university entrance examination. The Women’s
Spring was even the cover story of Revista Época, the second largest weekly magazine (…) The Internet proved
to be a key element for the discussion, organization and spreading of the feminist movement. Social media helped
people talk about it, organize events and interact with them, create groups for safety and assistance. With the help
of Facebook, Twitter and YouTube, 2015 was a year of battle for Brazilian feminists. According to data by Think
Olga (2015c), a feminist think tank, there were over half a million social media interactions about feminist topics
and events over the year of 2015. Between January 2014 and October 2015, Google searches, in Portuguese, for
“feminism” and “female empowerment” grew by 86.7% and 354.5%, respectively.” (tradução nossa).
119
REVISTA ÉPOCA. A primavera das mulheres: as mulheres tomam as ruas e as redes sociais e criam um
movimento que agita o país. Edição 09 - 09 de novembro de 2015, 76-77. Disponível em:
<http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/primavera-das-mulheres.html>. Acesso em: 14 nov 2017.
46

apegadas à sua liberdade, temos certeza de que o ano que vem não será diferente, pois essa tal
primavera faz florescer nas mulheres uma garra e uma coragem que não murcham jamais” 120.
O novo momento político converge com o panorama social descrito por Martha Narvaz
e Sílvia Koller, em que “a proposição de políticas públicas transversais, afirmativas e sensíveis
às desigualdades de gênero pode contribuir à garantia de direitos e ao empoderamento das
mulheres. Para tanto, há que se dar visibilidade aos mecanismos produtores de
desigualdades”121. Os mecanismos de opressões de gênero devem ser reconhecidos para, então,
ser combatidos, pois Bell Hooks entende que “as mulheres são socializadas igual aos homens
para acreditar no pensamento e nos valores sexistas. A única diferença é que os homens se
beneficiam mais do sexismo do que as mulheres e, como conseqüência, são menos propensos
a renunciar ao privilégio patriarcal”122. Tais propósitos estão em consonância com o movimento
social Primavera das Mulheres, para expor e discutir desigualdades de gênero.
Esse movimento implica em reconhecer e contestar as desigualdades nas relações de
gênero, assim como no trabalho das mulheres entrevistadas nesta pesquisa da Cientista Que
Virou Mãe, fundada em 2009, por Ligia Moreiras Sena em parceria com Nani Feuser,
considerada a primeira plataforma digital no Brasil a oferecer informação produzida
exclusivamente por mulheres mães. Essas produtoras de conteúdo consideram o
empreendimento independente por trabalhar sem o patrocínio de grandes corporações, baseado
no financiamento coletivo dos textos, em um sistema inclusivo com opção de escolha do
conteúdo ao público leitor e sem exposição à publicidade.
As escritoras da Cientista Que Virou Mãe buscam desconstruir paradigmas de mídias e
de conteúdo sobre maternidade, maternagem, infância, feminismos, direitos humanos, entre
outros, a partir de textos, materiais gráficos e encontros pessoais. Ligia Sena descreve na
plataforma que esse propósito iniciou na época da fundação do blog, que se transformou em
plataforma de informação devido ao caráter de financiamento colaborativo, mudança
viabilizada pela premiação delas ao vencer concurso Social Good Brasil 123. No início, Ligia
Sena era uma estudante de doutorado que se tornou mãe e por isso se motivou a questionar
sobre maternidade e a buscar conteúdos na literatura acadêmica e na Internet sobre o que ela

120
THINK OLGA. Uma primavera sem fim. (2015) Disponível em: <https://thinkolga.com/2015/12/18/uma-
primavera-sem-fim/>. Acesso em: 29 jan 2018.
121
NARVAZ, Martha Giudice; KOLLER, Sílvia Helena. Famílias e patriarcado: da prescrição normativa à
subversão criativa. Psicologia & Sociedade; 18 (1): 49-55; jan/abr. 2006. p. 53
122
HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz Esteban Agustí, Lina Tatiana Lozano
Ruiz, Mayra Sofía Moreno, Maira Puertas Romo, Sara Vega González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p.
29
123
SOCIAL GOOD BRASIL. Disponível em: <http://socialgoodbrasil.org.br/festival>. Acesso em: 14 jan 2018.
47

vivenciava. Mas, insatisfeita com os conteúdos maternos científicos ou patrocinados por


grandes marcas, Ligia resolveu criar a Cientista Que Virou Mãe, como um espaço de discussões
entre mulheres mães. Essa fase é retratada por Fernanda Café: “a aplicação de conhecimentos
empíricos e acadêmicos no exercício da maternidade pode ser um divisor de águas, inclusive
na carreira das pessoas responsáveis por bebês e crianças” 124. A presença das mães no ambiente
acadêmico, por exemplo, mostra o potencial de trabalhos com envolvimento militante aliado ao
conhecimento científico, como nos textos da plataforma Cientista Que Virou Mãe. As escritoras
mães e feministas pesquisam temas relacionados as suas vivências e suas áreas profissionais e
acadêmicas produzindo conteúdos que rompem com o padrão de credibilidade absoluta do
saber científico, conceito disruptivo que é sugerido pela plataforma.
As indagações da plataforma envolvem a forma de fazer ciência no mundo atualmente
e a situação das mulheres nesse certame. Embora a participação delas na ciência tenha
aumentado anualmente no Brasil nos últimos 10 anos, Ligia Sena informa que a proporção de
pesquisadoras cadastradas na base Lattes está em torno de 40%, com maior representatividade
nas áreas da Saúde e Biológicas, em que “os homens ficam com quase 70%, hoje, das bolsas
de produtividade em pesquisa (...) conforme aumenta o nível hierárquico, maior é a iniquidade
no acesso a essas fontes de financiamento” 125. As razões disso não se sustentam na diferença
de produtividade, como acontece em outros países, segundo a autora, pois as brasileiras
publicam tanto quanto os homens. Junto a tais anseios e reflexões de uma mãe acadêmica
reuniram-se outras mulheres com o mesmo perfil que se identificaram com os propósitos para
compor a Cientista Que Virou Mãe.
Juntas elas lançaram livros baseados em textos da plataforma, como o livro Educar
Sem Violência - Criando Filhos Sem Palmadas (2014) e o livro Mulheres Que Viram Mães
(2016). Além disso, promoveram o Curso para Meninas Livres 126, em fevereiro de 2017,
realizado por um coletivo independente de mulheres de Florianópolis/SC, com o apoio da
plataforma Cientista Que Virou Mãe e do Espaço Cultural Armazém - Coletivo Elza. O curso
ofereceu às meninas de 6 a 14 anos diversas conversas e oficinas em busca do rompimento da
cultura sexista limitante às meninas que as padronizam como princesas, como é descrito na

124
CAFÉ, Fernanda. Mães que viraram cientistas - minha formação? a vida. (2017) Disponível em:
<http://www.cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/MAES-QUE-VIRARAM-CIENTISTAS-MINHA-
FORMACAO-A-VIDA>. Acesso em: 15 nov 2017.
125
SENA, Ligia Moreiras. Mulheres cientistas no Brasil - entrevista para o jornal Correio Braziliense. (2012)
Disponível em: <http://www.cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/mulheres-cientistas-no-brasil-entrevista-
para-o-jornal-correio-braziliense>. Acesso em: 15 nov 2017.
126
FACEBOOK. Curso para meninas livres. Disponível em:
<https://www.facebook.com/cursoparameninaslivres/>. Acesso em: 15 nov 2017.
48

página do Facebook do curso. Em abril de 2017 elas promoveram o evento chamado Mulheres,
Passado, Presente, Futuro127, mediante inscrição, que ocorreu em um sítio da serra catarinense
durante três dias, pensado pelas organizadoras como: “uma vivência em busca de quem fomos,
quem somos e quem podemos vir a ser”. Segundo descrição da plataforma no Facebook o
encontro foi promovido para elas refletirem sobre planos de vida, a partir do autoconhecimento
e do compartilhamento de vivências.

Figura 1.1: banner digital do evento “Mulheres, passado e futuro” promovido pela Cientista Que
Virou Mãe, em 2017.

Fonte: página da Cientista Que Virou Mãe no Facebook.

Em 2017 as mulheres da Cientista Que Virou Mãe criaram um grupo fechado no


Facebook chamado Conversa entre Mulheres de Florianópolis - Existir é resistir128, que surgiu
após um evento com este mesmo nome realizado em setembro do mesmo ano. O grupo é
destinado exclusivamente às mulheres da cidade e tem como objetivo “trocar ideias, apresentar
iniciativas, ampliar contatos, fazer conexões e se fortalecer”, como descrito no Facebook. O
nome do grupo expressa o propósito da plataforma, que se tornou uma campanha publicada
pela Cientista Que Virou Mãe nas mídias sociais, com a imagem abaixo.

Figura 1.2: campanha digital da campanha Existir é Resistir promovida pela Cientista Que Virou Mãe,
em 2017.

127
FACEBOOK. Cientista Que Virou Mãe. Disponível em:
<https://www.facebook.com/cientistaqueviroumae/photos/>. Acesso em: 15 nov 2017.
128
FACEBOOK. Conversa entre mulheres Floripa. Disponível em:
<https://www.facebook.com/groups/conversaentremulheresfloripa/>. Acesso em: 15 nov 2017.
49

Fonte: página da Cientista Que Virou Mãe no Facebook.

A imagem refere-se à campanha de assinantes em setembro de 2017 “Primavera na


caixa – existir é resistir!”. Nesse mês, a pessoa assinante da plataforma receberia em casa uma
caixa com itens produzidos pela plataforma Cientista Que Virou Mãe, como adesivos e outras
artes que constam em sua loja virtual129. Na loja há também uma biblioteca virtual com títulos
adultos e infantis sobre os temas que tratam a plataforma, além das edições de suas revistas
digitais. Assim, mensalmente a plataforma lança campanhas para promover prévias dos textos
escritos pelas mulheres mães, que são publicados na íntegra se receberem 100% do
financiamento coletivo através da plataforma, em um processo que é exposto ao público leitor
no site, como na imagem abaixo.
Figura 1.3: layout da plataforma Cientista Que Virou Mãe, em 2018.

Fonte: plataforma Cientista Que Virou Mãe.

O trabalho da Cientista Que Virou Mãe encontra espaço na Primavera das Mulheres e
se constrói ao posicionar a maternagem como função política, como descreve a plataforma em

129
CIENTISTA QUE VIROU MÃE. Disponível em: <http://www.lojacientistaqueviroumae.com.br/>. Acesso
em: 15 nov 2017.
50

sua página do Facebook: “nosso foco é a maternidade como ferramenta de empoderamento


feminino, autonomia e participação política. Não há ato político maior que criar filhos para um
novo mundo, baseado no amor e no respeito a todos os seres”. Diante desse ideal político, as
questões de gênero, muitas vezes opressivas às mulheres mães na sociedade, são grande parte
da militância feminista delas como sujeitos motivados pelo poder da vulnerabilidade 130.
Conforme Ligia Sena: “só quando expomos as fragilidades e vulnerabilidades que temos
condições de protegê-las (...) Que estejamos juntas na transformação das nossas
vulnerabilidades individuais em força coletiva”. Essa capacidade também é tratada por Brené
Brown através de estudos sobre conexão humana e afirma que vulnerabilidade não significa
vitória ou derrota, é compreender a necessidade de ambas, por isso reconhecer a própria
vulnerabilidade não é fraqueza, pelo contrário, significa coragem. Gayatri Spivak aborda o tema
como poder de agência131, próprio das mulheres como minorias sociais, as quais o exercem ao
reivindicarem seus direitos.

1.1 A PRESENÇA POLÍTICA DAS MÃES NA PRIMAVERA DAS MULHERES

Dentre os eventos marcantes da Primavera das Mulheres, o Dia Internacional das


Mulheres em 8 de março, desde 2015 tornou-se cada vez mais visibilizado como um dia de
militância feminista, assim como a chamada Greve Internacional de Mulheres (8M) 132 em 8 de
março de 2017, que contou com o inédito “Mãenifesto 8M”133, um documento formulado e
aprovado coletivamente por mulheres mães. Elas reuniram-se para a organização do 8M em
Florianópolis/SC, o qual reivindica políticas públicas e direitos que atendam as múltiplas
necessidades das mães: “exigimos que toda mulher tenha a maternidade como escolha livre e
informada. Que a maternidade seja exercida com corresponsabilidades com os homens e o
Estado. Lutamos por uma maternidade plural!”134. As representantes do Coletivo
Mãenifestantes desse movimento ocuparam a tribuna da Assembleia Legislativa de Santa
Catarina para divulgar o manifesto. A busca por valorizar as condições das mulheres mães

130
SENA, Ligia Moreiras. Em 2017, estejamos vulneráveis. Mas juntas (2016). Disponível em:
<https://www.cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/em-2017-estejamos-vulneraveis-mas-juntas>. Acesso
em: 21 nov 2017.
131
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
132
8M BRASIL. Disponível em: <https://www.8mbrasil.com/>. Acesso 21 nov 2017
133
SENA, Ligia Moreiras. Mães têm voz e precisam ser ouvidas - Mãenifesto 8M Santa Catarina. Disponível
em: <http://cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/mes-tm-voz-e-precisam-ser-ouvidas-menifesto-8m-santa-
catarina>. Acesso 21 nov 2017.
134
ASSOCIAÇÃO CATARINENSE DE RÁDIOS COMUNITÁRIAS. Manifesto 8M Santa Catarina (2017).
Disponível em: <http://abracosc.com.br/wp-content/uploads/2017/05/MA%CC%83ENIFESTO-8M-SANTA-
CATARINA.pdf>. Acesso em 07 jan 2018.
51

através do feminismo é afirmada por Joanna Burigo:

Maternidade é pauta fundamental a todos os feminismos porque desde a concepção


própria, passando por todos os outros acontecimentos que a precedem e sucedem, os
debates sobre o assunto revelam como gênero afeta e é afetado por questões culturais,
tecnologias médicas, mercado de trabalho, direitos e tantos outros eixos ao redor dos
quais a sociedade é estruturada. Debater maternidade não é apenas relevante; é
determinante para as vidas das mulheres.135

O encontro de feminismos plurais fundamenta a Primavera das Mulheres como um


fenômeno de posicionamento político das mães. Também, envolve a “primavera feminista” das
mulheres na política como Jandira Feghali, Maria do Rosário, Eleonora Menicucci, Manuela
D’Ávila, Luciana Genro, entre outras que defendem os direitos das mulheres em suas medidas
governamentais e estendem isso em seus perfis das mídias digitais sociais na Internet.
Representando essa política brasileira, Djamila Ribeiro136 tornou-se conhecida por seu ativismo
feminista na Internet e por escrever nos websites das revistas Carta Capital e Trip sobre questões
de gênero e de raça. Ela é uma das vozes que integram o documentário Primavera das Mulheres,
cuja produção é da roteirista Antonia Pellegrino e da diretora Isabel Nascimento Silva, onde
Djamila Ribeiro pronuncia-se:

O Estado deveria garantir que de fato a gente tivesse direito à cidade, porque quando
a gente não tem onde deixar nossos filhos, quando não tem vagas suficientes nas
creches, isso significa que a mulher tem seu direito à cidade impedido, porque como
ela vai sair para trabalhar, para estudar se ela não tem com quem deixar os filhos?
Então, esse formato que a gente entende por família que significa essa expressão
hierárquica sempre no casamento, a mulher sempre tendo que se submeter, a mulher
sempre tendo que abrir mão. Por isso, é muito fácil depois naturalizar esse lugar do
cuidado “ah, mas a mulher está em casa cuidando dos filhos”, essa leitura simplista.
Mas ela está por quê? Porque ela não teve escolha para não estar nesse lugar. É
importante que as mulheres tivessem (escolha), que as feministas não são contra as
mulheres que querem ser mães, ficar em casa e cuidar dos filhos. 137

As mulheres feministas questionam as tarefas de cuidado, a maternagem e suas relações


de poder diante da família e do Estado. A Primavera das Mulheres abordou a maternagem na
Internet, como referencia Ana Rossato, escritora da Cientista Que Virou Mãe: “o resumo de ser
mãe na sociedade atual: somos condicionadas à maternidade. Temos nossa individualidade
negada. E quando atingimos um grau de esgotamento onde queremos simplesmente fugir,

135
BURIGO, Joanna. Maternidade é pauta central do feminismo. Disponível em:
<https://www.cartacapital.com.br/sociedade/maternidade-e-pauta-central-do-feminismo>. Acesso em: 09 jan
2018.
136
Pesquisadora e mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ex secretária-
adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo.
137
RIBEIRO, Djamila. Primavera das mulheres. 05 out 2017. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=PXM_Qw4pPOw>. Acesso em: 21 nov 2017.
52

somos lidas como monstros comedores de criancinhas”138. A autora explica a dificuldade que
sente por ser mãe:

(...) não gosto de que, por ter filhos, eu precise ter meu acesso à educação
comprometido por conta de instituições que não pensam em um espaço que acolha
mulheres e crianças. Amo meus filhos. Mas não gosto de ser barrada em entrevistas
de emprego na hora em que respondo se tenho ou pretendo ter crianças (...) detesto
esse olhar crítico que recebo quando estou em um restaurante, ou em uma loja, ou
mesmo em uma exposição de arte, afinal eu deveria estar em casa, porque criança
pequena “atrapalha”.

Questionar esse condicionamento materno às mulheres na sociedade, ainda, foi um tema


tratado por Julia Harger: “a sociedade coloca a maternidade romântica, tipo aquela idéia de que
mães são seres perfeitos, sempre sorrindo, angelicais, santas que jamais erram é uma das
ferramentas de opressão para nos vender a vontade de ser mãe”. A autora apresenta motivos
para “desromantizar” a maternagem a fim de fortalecer as mães politicamente: “mãe tem pouco
tempo: o tempo que tem é precioso e normalmente é usado para coisas urgentes. Ativismo fica
por último. Uma mãe é uma mulher com muito menos tempo de incomodar e de reivindicar
seus direitos na sociedade. (...) Essa romantização é uma mentira”. 139
A questão da maternidade é discutida internacionalmente e tem sido uma métrica
mundial para mensurar o desenvolvimento dos países, como no Programa de Desenvolvimento
da Organização das Nações Unidas (ONU)140, que analisou dados de 195 países. Para isso, a
ONU considerou cinco fatores: a taxa de mortalidade materna, o número de mulheres com
cadeiras nos congressos e câmaras de cada país, a participação das mulheres na força de
trabalho, o número de mulheres com, no mínimo, o diploma secundário e o número de casos de
gravidez na adolescência”141. A pesquisa revelou a Holanda como o país com mais igualdade
de gênero no mundo, com quase 40% de parlamentares mulheres, já no Brasil, “segundo dados
compilados pela Inter-Parliamentary Union – associação dos legislativos nacionais de todo o
mundo – no Brasil, pouco mais de 10% dos deputados federais são mulheres”142.
Visto isso, “segundo a ONU, uma das principais razões da pequena participação das

138
ROSSATO, Ana. Amo meus filhos. Mas odeio ser mãe (2016). Disponível em:
<https://cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/amo-meus-filhos-mas-odeio-ser-mae>. Acesso em: 20 nov
2017.
139
HARGER, Julia. Desconstruir a maternidade romântica é nosso papel (2015). Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/desconstruir-a-maternidade-romantica-e-nosso-papel/>. Acesso em: 20 nov 2017.
140
NAÇÕES UNIDAS. Disponível em: https://nacoesunidas.org/agencia/pnud/. Acesso em: 20 nov 2017.
141
DEARO, Guilherme. Os 20 países com mais igualdade de gênero no mundo.
<https://exame.abril.com.br/mundo/os-20-paises-com-mais-igualdade-de-genero-no-mundo/>. Acesso em: 22
nov 2017.
142
SANTOS, Bruno Carazza dos. 5 dados sobre a participação das mulheres na política brasileira. (2017)
Disponível em: <http://www.politize.com.br/participacao-das-mulheres-na-politica-brasileira/>. Acesso em: 12
nov 2017.
53

mulheres na política que reforça sua desvantagem socioeconômica é a divisão desigual das
tarefas domésticas e nos cuidados de crianças, enfermos e idosos”, 143 informação que se ratifica
em indicadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2013, sobre a
diferença de horas semanais gastas com trabalho doméstico. Em todas as regiões do Brasil, as
mulheres ainda trabalham no mínimo 10 horas a mais por semana do que os homens em casa.
A relevância disso se reflete na participação das mulheres na política brasileira. Demonstra-se
a importância de considerar a igualdade de gênero para avaliar o crescimento de nações, como
o exemplo da Agenda 2030 criada para o Desenvolvimento Sustentável em 2015 pelos Estados-
Membros da ONU, composta por 17 metas em que a ONU Mulheres desenvolve a iniciativa
“Por um planeta 50-50 em 2030: um passo decisivo pela igualdade de gênero – voltada a líderes
mundiais, governos, empresas, universidades, sociedade civil e mídia, para a celeridade de
medidas concretas em favor dos direitos de mulheres e meninas” 144. Compromisso esse que
também deve ser priorizado em políticas públicas no Brasil, segundo Tatau Godinho:

(...) é preciso levar em consideração o Estado em sua dimensão educativa. Sua atuação
incide sobre valores, comportamentos, relações. Portanto as ações do governo não
podem ser vistas como atos isolados, mas, sim, devem estar coerentes com um projeto
geral de mudança, onde a perspectiva de superação das desigualdades de gênero seja
um dos seus componentes indispensáveis. 145

Um retrato da sub-representação das mulheres no poder público foi realizado em 2016


com base na primeira pesquisa nacional realizada pelo DataSenado sobre a participação das
mulheres na política brasileira146, com intuito de avaliar dificuldades e encontrar caminhos para
ampliar essa participação. A pesquisa revela que 14 das 27 unidades federativas brasileiras não
têm representação de mulheres no Senado Federal e na Câmara dos Deputados, cinco estados
não têm mulheres entre seus representantes. Diante da baixa representatividade das mulheres
nas instâncias de poder foi realizado um mapeamento sobre a participação política das mulheres
no país, que busca equidade de gênero e mostra, conforme a Senadora Vanessa Grazziotin, uma
marcha histórica das mulheres,

143
GONTIJO, Barbara. Mais tempo gasto com trabalho doméstico leva mulher a menor atuação na sociedade.
Disponível em: <http://brasildebate.com.br/mais-tempo-gasto-com-o-trabalho-domestico-reduz-participacao-da-
mulher-em-outras-esferas-da-sociedade/>. Acesso em: 12 nov 2017.
144
ONU MULHERES. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/onu-mulheres/documentos-de-
referencia/>. Acesso em: 09 jan 2018.
145
GODINHO, Tatau. Construir a igualdade combatendo a discriminação. In: GODINHO, Tatau; SILVEIRA,
Maria Lúcia da. Políticas públicas e igualdade de gênero. São Paulo: Prefeitura de São Paulo – Coordenadoria
Especial da Mulher, 2004. p. 56
146
SENADO. Equidade de gênero na política. – Brasília: Senado Federal, Procuradoria Especial da Mulher,
2016. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/pesquisa-
equidade-de-genero-na-politica-2016>. Acesso em: 09 jan 2018
54

(...) que registra importantes avanços, como a conquista de cotas de candidaturas; a


previsão da destinação de recursos partidários mínimos para a formação e divulgação
da participação política das mulheres; e, até mesmo, uma campanha de incentivo à
filiação partidária de mulheres, veiculada pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral. No
entanto, o ritmo dos avanços vem sendo lento demais, e não chega a alcançar as
barreiras mais fortes enfrentadas pela maior parte das mulheres na sua busca por
inserção política, com base na análise de gênero de estatísticas das eleições de 2014 e
de 2016.147

Ratificando o engajamento político das mulheres evidencia-se a Primavera Feminista


que chega às câmaras municipais148 de diversas capitais no Brasil em 2016, a partir de
vereadoras em prol dos direitos das mulheres, as quais alavancaram os votos nas eleições, que
é uma motivação devido à realidade atual em que “existem 7.782 mulheres vereadoras em todo
o Brasil, contra 49.825 homens. Os dados são da Secretaria de Política para Mulheres, que
perdeu o status de ministério no governo Michel Temer e foi absorvida pelo Ministério da
Justiça”. Coaduna-se a essa situação o que mencionou Áurea Carolina, vereadora de Belo
Horizonte eleita em 2016: “os partidos são instituições machistas e racistas há muito anos. E
esse poder não vai ser desmontado pela intenção dos homens, são as mulheres ocupando que
vão mudar o jogo”.
A política feminista também representa as mulheres mães do país, como defendia
Marielle Franco, a vereadora carioca mais votada em 2016, com 46 mil eleitores. Ela priorizou
em seu mandato combater o deficit de creches na cidade: “‘é uma pauta que atinge mulheres
negras e da favela’. A vereadora eleita fala com experiência própria. Mãe aos 17 anos, só
conseguiu trabalhar e concluir os estudos porque conseguiu inscrever a filha em uma creche
com ensino integral, mantida pela prefeitura à época”. Marielle Franco, 38 anos, mulher, negra,
mãe, lésbica, feminista, nascida na favela da Maré no Rio de Janeiro, socióloga, mestre em
Administração Pública e ex-coordenadora da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro. Essa é a representatividade da vereadora Marielle Franco, uma
mulher na política, composta por sobreposições sociais que construíam seus discursos e suas
lutas interseccionadas, pelos direitos das mulheres, das mães, do povo negro, dos moradores da
favela, da diversidade LGBT 149.
Marielle Franco e seu motorista Anderson Pedro Gomes foram assassinados à tiros após

147
Mulheres na política: retrato da sub-representação feminina no poder. – Brasília: Senado Federal, Procuradoria
Especial da Mulher, 2016. p. 10 Nesse estudo consta uma medida estatística chamada “razão de chances”, que
“permite comparar as possibilidades de eleição das mulheres em relação aos homens, nacionalmente e em cada
estado. (...) em todas as eleições os homens tiveram mais probabilidades de se elegerem do que as mulheres. De
1998 para 2002, a razão de chances de eleição de mulheres em relação aos homens aumentou. Mas, desde então,
vem apresentando queda significativa.”.
148
OLIVEIRA, Tory. A primavera feminista chega às Câmaras. (2016)
<https://www.cartacapital.com.br/politica/a-primavera-feminista-chega-a-camara>. Acesso em: 14 dez 2017.
149
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais e Transgêneros.
55

saírem do encontro feminista chamado Mulheres Negras Movendo Estruturas na noite de 14 de


março de 2018, no Rio de Janeiro. O trabalho que a vereadora exercia em seu cargo de poder
público de fato buscava “mover as estruturas” de poder em defesa das minorias sociais, das
quais ela integrava, que contribuiu para reconhecer a importância de combater desigualdades
econômicas, raciais e de gênero. A investigação sobre as mortes de Marielle e Anderson indica
um crime por motivação política e não apontou responsáveis até a data de realização desta
pesquisa.
O trabalho que Marielle Franco realizada, bem como a sua morte podem ser
considerados mais um marco da Primavera das Mulheres, pois provocou comoção e indignação
popular que multiplicou protestos e homenagens na Internet e a tornou mundialmente conhecida
por seu trabalho em defesa dos direitos humanos e das minorias sociais. Os protestos exigiam
justiça para o caso, já as homenagens destacavam suas atitudes e seus valores. Ela abordava a
importância da presença das mulheres em espaços de decisão, como o espaço que ela ocupava,
que estava promovendo transformações sociais com denúncias, projetos de lei e ações
comunitárias de fortalecimento de mulheres e do povo negro.
Marielle Franco está entre as organizadoras do livro Tem Saída? - Ensaios críticos sobre
o Brasil, lançado em dezembro de 2017 com a parceria entre Editora Zouk e Casa da Mãe
Joanna150. O livro aborda temas como impeachment, democracia e neoliberalismo, para discutir
sobre a necessidade de encontrar caminhos plurais para solucionar as crises do país: “quando
debates que enfatizam a urgência da autocrítica são engendrados – e eles o são,
majoritariamente por vozes masculinas e brancas – reproduz-se não apenas a gênese da crise da
esquerda, mas também a gênese da crise mais ampla, nacional”.151 Esse é o primeiro compêndio
sobre política escrito exclusivamente por mulheres brasileiras, com cientistas políticas,
professoras, ativistas e pesquisadoras, que representa mais uma produção do fenômeno
considerado a Primavera das Mulheres.
A representatividade militante das mulheres na política também surgiu no caso da
deputada gaúcha Manuela D’Ávila, a qual revelou alguns preconceitos que as mães enfrentam
no ambiente político após divulgar uma foto amamentando seu bebê em uma mídia social. O
fato gerou críticas, como a de um deputado, referido por Ana Prestes da Cientista Que Virou
Mãe: “ ‘exposição desnecessária da mama de uma deputada, ela deveria apenas falar o que faz

150
CASA DA MÃE JOANNA. Disponível em: <http://casadamaejoanna.com/>. Acesso em: 14 jan 2018. Portal
sobre gênero e feminismo fundado por Joanna Burigo.
151
CARTA CAPITAL. Mulheres debatem alternativas para a crise política no livro "Tem Saída?" (2017)
Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/mulheres-debatem-alternativas-para-a-crise-politica-
no-livro-tem-saida>. Acesso em: 14 jan 2018.
56

sem mostrar, depois reclamam de assédio e falta de respeito’. O incômodo causado por uma
mulher que ousa ser atuante na política é ainda maior quando ela é mãe e deixa explícito” 152.
Nessa época, a autora relata que houve uma polêmica semelhante na imprensa europeia sobre
a deputada espanhola Carolina Becansa ter amamentado seu bebê em uma sessão do
parlamento, imagem criticada como incomum pelos jornais. Questionada, Carolina reagiu: ”se
uma mãe tem que cuidar do seu filho, ela tem que cuidar do seu filho em qualquer lugar”. O
posicionamento delas representa o que muitas mães têm exposto na Primavera das Mulheres,
que a maternagem não ficará apenas no ambiente “reservado” do lar, será uma pauta pública
em vários sentidos.
A “escandalização” por causa da atitude comum de mulheres mães em público exibi o
preconceito citado pelo projeto de Lei Hora do Mamaço153 de autoria da vereadora Rose Costa,
que foi aprovado em 2016 pela Câmara Municipal de Rio Branco. Após essa iniciativa, foram
mobilizadas campanhas nacionais de conscientização sobre o tema, além de outras leis locais
no Brasil, as quais “indicam uma tendência jurídica a respeito do assunto (...) há leis em São
Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina – e todas punem quem gera algum constrangimento para
a mãe lactante”154. A Cientista Que Virou Mãe lançou a campanha sobre amamentação
#VaiTerTetaSim, na Internet, para promover a temática de assinantes da plataforma em agosto
de 2017, pois nesse mês também é celebrada a Semana Mundial de Aleitamento Materno. A
campanha tratou sobre um dos “Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável: fortalecer todos
os âmbitos e parcerias visando a promoção do bem comum – para nós, o aleitamento e o apoio
às mulheres”, como mostram as mídias sociais da campanha.

Figura 1.4: banner digital da campanha Vai Ter Teta Sim promovida pela Cientista Que Virou Mãe, em
2017.

152
PRESTES, Ana. Maternidade e política: mais um impeditivo para a ascensão da mulher? (2016) Disponível
em: <http://cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/maternidade-e-politica-mais-um-impeditivo-para-a-
ascensao-da-mulher>. Acesso em: 14 jan 2018.
153
MELO, Quésia. Lei para combater preconceito contra amamentação em público é aprovada. (2016)
<http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2016/12/lei-para-combater-preconceito-contra-amamentacao-em-publico-e-
aprovada.html> Acesso em: 27 jan 2018
154
DIREITOS BRASIL. Amamentar em público. Disponível em: <http://direitosbrasil.com/amamentar-em-
publico/#forward>. Acesso em: 27 jan 2018
57

Fonte: página da Cientista Que Virou Mãe no Facebook

As mulheres da plataforma ocupam um posicionamento político sobre espaços de direito


das mães na sociedade, que possibilita pensar os processos de socialização de gênero e de
política que configuram espaços sociais desiguais entre homens e mulheres, com menos espaço
para elas, principalmente para as mulheres mães. Portanto, a maternagem combativa na busca
por equidade de gênero pode criar condições para legitimar o discurso político, como cita
Cristina Wolff, sobre a história das mães que auxiliaram na defesa de militantes de esquerda
perseguidos pela ditadura militar no Brasil, os quais ganharam reputação de terroristas e
assassinos na imagem construída socialmente por governos militares junto à imprensa. Os
mecanismos para desfazer essa imagem negativa

(...) convergiram para uma humanização dos militantes. Para isso, foram muito
importantes as emoções evocadas por sentimentos como a maternidade, a família (...)
As primeiras a aparecerem nesse cenário como sujeitos foram as mães. Como me
disse, em conversa informal uma ex-presa política brasileira, o pesadelo de qualquer
delegado de polícia era uma mãe. Quem poderia questionar o direito de uma mãe de
saber sobre o destino de seu filho ou filha? Um sentimento construído tão fortemente
em nossa cultura ocidental, como explicou Elisabeth Badinter, a ponto de ser
considerado um “instinto”, o instinto materno, algo que seria do campo da natureza.155

As mães foram as primeiras porta vozes que adquiriram um discurso de legitimidade


inquestionável e sensibilizaram a opinião pública, como narra Cristina Wolff. A autora
considera que ao ver “agência política no uso que se fez do gênero e de sentimentos ligados à
maternidade e à família, não vejo esse uso, de maneira nenhuma, como oportunismo ou
manipulação. Vejo como uma estratégia política totalmente legítima e bastante bem-sucedida
de ação”156. As mães têm demonstrado na Primavera das Mulheres a maternagem como
resistência política, que deve ser uma referência fundamental para pensar a política no Brasil,
desconstruindo a ideia que a política realizada por mulheres diferencia-se da realizada por
homens que, para Daniela Ramos,

155
WOLFF, Cristina Scheibe. Pedaços de alma: emoções e gênero nos discursos da resistência. Estudos
Feministas, Florianópolis, 23(3): 406, setembro-dezembro/2015. P. 979 - 980
156
Ibidem p. 985
58

(...) não necessita, porém, representar uma adesão ao chamado “pensamento maternal”
ou à “ética do cuidado”, que compreendem a contribuição política das mulheres como
advinda de uma sensibilidade política peculiar para questões relacionadas ao cuidado.
Em lugar disso, a razão pela qual se supõe aqui que mulheres atuem em uma esfera
política distinta da tradicional deve-se ao fato de ser, para elas, mais difícil adentrar e
ocupar posições no campo político convencional, restando-lhes ocupar outros
domínios políticos que as comportem.157

A autora explica que as mulheres tenderiam a se envolver mais em políticas relacionadas


à comunidade e à “política do cotidiano”, que é considerada uma micropolítica em oposição à
política institucional de contextos mais formais como parlamentos e eleições. Para ela, a
diferença de comportamento deve-se à divisão sexual do trabalho e “à consequente
internalização, por parte das mulheres, da ideia socialmente prevalente de que a política
institucional não é um terreno feminino ou que elas não têm as características requeridas para
participar desse mundo masculinizado”158. As mulheres também agem na política menor porque
não têm acesso à política considerada “maior”, por isso as formas de ação política
tradicionalmente praticadas por mulheres são consideradas marginalizadas no campo político.
Entretanto, esse caráter social de inserção das mulheres na política não se traduz em um
apoliticismo do gênero feminino, segundo Daniela Ramos, mas em uma

(...) inserção política alternativa (e subordinada), marcada pelo aproveitamento dos


nichos de (menor) poder que estariam disponíveis às mulheres num campo político
hostil. Para explicar como a participação política das mulheres latino-americanas é
moldada, Craske (1999) argumenta que elas compartilham, independentemente de
classe, raça/etnia e nacionalidade, uma identidade comum de mães que tem sido
acionada politicamente.159

Daniela Ramos afirma que a identidade materna tem legitimidade social por sua
dimensão política pela qual as mulheres levantam bandeiras e manifestam demandas ao Estado,
como um lado fortalecedor da maternagem para conquistar espaço e voz ativa. Parte dessa
identidade é construída, por exemplo, no discurso religioso sobre marianismo, termo da Igreja
Católica sobre o culto à Virgem Maria que, para a autora, foi apropriado pela literatura sobre
gênero na América Latina como uma feminilidade híbrida idealizada sobre a superioridade
moral e espiritual das mulheres mães. Essas crenças, de acordo com Daniela Ramos, associam
a maternidade como uma aproximação de Deus, o que também exalta a domesticidade do
espaço familiar como suas missões primárias no mundo. Tal idealização remete ao perfil de

157
RAMOS, Daniela Peixoto. A família e a maternidade como referências para pensar a política. Revista
Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015. p. 90
158
Ibidem p. 91
159
Ibidem p. 91
59

“boa mãe”160 apontado por Andrea O’Reilly, característica que socialmente limita o papel das
mulheres na esfera pública em comparação aos homens, porque induz a uma sobrecarga de
responsabilidades domésticas a elas, o que reduz suas chances de produtividade profissional.
A construção desse papel social às mulheres pode ser percebido no perfil de “bela
recatada e do lar” descrito em 2015 na reportagem da revista Veja sobre Marcela Temer, esposa
de Michel Temer, fato que demonstrou uma parte “invisível” do país como declara Mary Del
Priore161, devido ao ideal de mulheres considerado conservador e ratificado por muitos(as)
brasileiros(as). O fato repercutiu com milhares de protestos de brasileiras na Internet em
publicações que ironizavam esse perfil e contribuíram para somar a Primavera da Mulheres e
foi discutido por Janaína Zdebskyi, Eduardo Maranhão e Joana Maria Pedro: “Marcela seria a
costela de Temer (e talvez a costela da nação), enquanto este seria o cabeça de Marcela e do
país” 162, que demonstra uma das questões de gênero que dificulta a ocupação de mulheres em
espaços de poder na política brasileira. A questão se deve a um determinado consenso cultural
sobre o perfil de “bela, recatada e do lar” considerado apropriado para mulheres dedicando-se
à família e ao cargo de primeira-dama que, segundo os autores, torna-se incompatível aos perfis
de mulheres em cargos de poder público, como presidenta da República.
Esse olhar sobre as mulheres é análogo às teorias deterministas biológicas e religiosas,
conforme Simone de Beauvoir, quando Sto. Tomás decreta as mulheres como “homens
incompletos”, que simboliza a história do Gênese e a definição das mulheres relativas aos
homens. Nessa ideia as mulheres seriam pensadas sem autonomia: “o homem é a cabeça da
mulher, assim como Cristo é a cabeça do homem”163. Apesar dessa crença remeter à história do
século XX, ainda aparece no contexto do século XXI citado por Janaína Zdebskyi, Eduardo
Maranhão e Joana Maria Pedro, que demonstra a misoginia percebida no processo de
impeachment da Presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Convém lembrar que Michel Temer,
que se tornou presidente interino, compôs um ministério apenas com homens.
Além desse fato, a misoginia é percebida no âmbito da linguagem com ataques à figura
de Dilma em razão da posição que ela representava, “uma mulher em um espaço de poder

160
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. Ver página 22 desta pesquisa
161
PEREIRA, Néli. Crítica a 'bela, recatada e do lar' é intolerante com Brasil 'invisível', diz historiadora.
(2016) Disponível em:
<http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160418_marydelpriore_entrevista_marcella_temer_np>.
Acesso em: 26 nov 2017.
162
ZDEBSKYI, Janaína de Fátima; MARANHÃO, Eduardo M. A.; PEDRO, Joana Maria. A histérica e as belas,
recatadas e do lar: misoginia à dilma rousseff na concepção das mulheres como costelas e dos homens como
cabeça da política brasileira. Artigo para revista Espaço e Cultura, UERJ. Rio de Janeiro, nº 38, 2015. p. 243
163
Ibidem p. 119
60

público. Isso se expressa pelas últimas notícias a respeito das ações do governo interino de
Michel Temer em vetar o uso da palavra ‘presidenta’ em publicações da Empresa Brasileira de
Comunicação (EBC)”164. Todavia, para Zdebskyi, Maranhão e Pedro, se essa questão não
demonstra necessariamente misoginia, as críticas feitas à Dilma sobre sua administração
governamental mostram-se mais sintomáticas: “muitas pessoas, ao se referirem a ela, utilizam
interpelações como puta, vadia, feia e bruxa. Ora, algum político brasileiro, desses ‘com o saco
roxo’, e também alvo de controvérsias e/ou de críticas políticas acaso seria chamado de puto,
vadio, bruxo ou feio ao sofrerem críticas?”165.
Além das reportagens misóginas publicadas para contestar a governabilidade de Dilma
Rousseff e a retratar como desequilibrada e instável, os autores citam que houve a campanha
contra o aumento do combustível no primeiro semestre de 2015, com a imagem de Dilma de
pernas abertas impressa em adesivos que foram colados na abertura dos tanques de automóveis
onde a mangueira de combustível fazia analogia à prática do estupro. A situação política de
Dilma revelou a visão social misógina: “no lugar de uma ‘feia, puta e histérica’, uma ‘bela,
recatada e do lar’: o ideal reacionário da mulher na política como costela e não como cabeça” 166.
O combate à misoginia no tratamento cultural sobre as mulheres é uma abordagem de diversos
movimentos feministas na Primavera das Mulheres.

1.2 A INTERNET COMO CATALISADORA DA PRIMAVERA DAS MULHERES

O cerne dos protestos na Primavera das Mulheres brasileira em 2015, segundo Maurício
Silva, Giovani Pires e Rogério Pereira, ocorreu contra o conservadorismo do Congresso
Nacional, que recai sobre os direitos das mulheres nas políticas públicas de saúde limitando
suas autonomias. Para os autores, tal cenário provoca uma nova forma de resistência: “a luta
das mulheres nas ruas e nas redes sociais é, antes de tudo, uma luta política feminista contra a
dominação masculina, que se estabeleceu historicamente” 167. As campanhas das mulheres na
Internet a partir de 2015 no Brasil, muitas vezes, tornaram-se manifestações nas ruas por meio
de mulheres organizadas contra essa “onda conservadora” que, para os autores, representa

164
ZDEBSKYI, Janaína de Fátima; MARANHÃO, Eduardo M. A.; PEDRO, Joana Maria. A histérica e as belas,
recatadas e do lar: misoginia à dilma rousseff na concepção das mulheres como costelas e dos homens como
cabeça da política brasileira. Artigo para revista Espaço e Cultura, UERJ. Rio de Janeiro, nº 38, 2015. p. 229
165
Ibidem p. 230
166
Ibidem p. 241
167
SILVA, Maurício R.; PIRES, Giovani de L.; PEREIRA, Rogério S. O Congresso Nacional, a mídia e as
questões de gênero no limiar da “Primavera das Mulheres”. Periódico UFSC. Motrivivência v. 27, n. 46, p. 6-
14. Florianópolis, dezembro/2015. Sobre dominação masculina, ver Gayle Rubin (1993) e Martha Narvaz e Sílvia
Koller (2006) na página 37 desta pesquisa.
61

(...) um retrocesso e ameaça à democracia conquistada a duras penas (...) que se


amalgama a cada dia no ponto de vista do chamado “ódio de classe”, de raça/etnia
(críticas duras às cotas de negros nas universidades), aliado a questões de gênero,
como, por exemplo, a homofobia e o Projeto 5.069/13 (...) Trata-se de uma ideologia
que se manifesta nas famílias, nos espaços escolares, nas igrejas, nos órgãos
governamentais, enfim, nas instituições de modo geral, pregando em nome de um
neopentecostalismo a “defesa da família, da moral e dos bons costumes”. Esses
valores são veiculados, principalmente, por lideranças religiosas e pelas redes sociais,
expressando muitas vezes um tratamento agressivo, intolerante e violento; além de, é
claro, fomentar estigmas e preconceito, sobretudo de gênero.168

A mobilização na Internet em combate as ações conservadoras relaciona-se às


campanhas feministas que propagam ideais de equidade de gênero com divulgação catalisada
pela Internet. Em contraponto, muitos movimentos antifeministas, masculinistas, entre outros
de cunho conservador também são disseminados com grande amplitude na Internet. Ao
considerar a proporção midiática direcionada a distintas perspectivas publicadas e patrocinadas
nesse meio, como ressaltam Francisco Silva e Lívia Carlos, o “ciberespaço faz circular
inúmeros discursos na sociedade, assim o espaço da Web é especializado em produzir efeitos
de sentidos sobre os sujeitos sociais”169. Pondera-se a Internet não apenas como um dado na
Primavera das Mulheres, mas como um problema, pois é um espaço em que discursos
constroem um campo político de disputa de poder. Explorar essa ambivalência nas redes sociais
é relevante diante de uma realidade brasileira que demonstra discursos de ódio, notícias falsas
e militância de combate ao feminismo, que buscam deslegitimar esse e outros movimentos
sociais que defendem igualdade de direitos.
Segundo Francisco Silva e Lívia Carlos, na contemporaneidade são propagados
discursos contrários ao feminismo, que “desqualificam as mulheres desse movimento,
reduzindo o teor político do feminismo. Esses discursos antifeministas disseminam-se
especialmente nas redes sociais e em blogs”170. Assim, a Internet mostra-se um campo
discursivo de resistências políticas que estimulam a polarização de valores morais e de
comportamentos. Para os autores, os discursos de desqualificação dos movimentos feministas
fundamentam-se em vontades de verdade com bases na religião, no machismo e na política,
com enunciados que geram discursos antagônicos ao feminismo.
Nessa discursividade do meio digital, Francisco Silva e Lívia Carlos afirmam que na

168
Ibidem p. 7-8
169
SILVA, Francisco Vieira da; CARLOS, Lívia Alves Monteiro. A irrupção de discursos antifeministas no
Facebook: uma análise da página Mulheres contra o feminismo (p. 68-90). In: Discursividades. Revista do Depto
de Letras e Artes da UEPB. N. 1. - Campina Grande, PB: Marca de Fantasia, outubro de 2017.
170
SILVA, Francisco Vieira da; CARLOS, Lívia Alves Monteiro. A irrupção de discursos antifeministas no
Facebook: uma análise da página Mulheres contra o feminismo. In: Discursividades. Revista do Depto de Letras
e Artes da UEPB. N. 1. - Campina Grande, PB: Marca de Fantasia, outubro de 2017. p. 70
62

sociedade toda enunciação é controlada, ao embasarem-se nas teorias de Michel Foucault.


Portanto, pronunciar-se na Internet implica em um jogo semântico e moral de discursos em que
“falar é um ato perigoso, pois supõe lutas, dominação, poder e resistência e nesse jogo dos
discursos, estes irrompem como acontecimentos na sociedade”171. Considerando os efeitos de
sentidos produzidos pelos discursos conforme os acontecimentos sociais, percebe-se também
um lado conservador potencializado pela Internet, que resulta como resistência política
contrária aos movimentos da Primavera das Mulheres.
Nesse campo político digital, as campanhas feministas e suas hashtags fomentam
discussões sobre gênero a um público ampliado, pois antes se restringiam ao ambiente
acadêmico ou aos grupos feministas, como se refere Ellen Paes: “as hashtags publicizam
histórias que as mulheres passam, chamando atenção para violações cotidianas e estruturais” 172.
Os aforismos feministas na Internet demarcaram o momento histórico da Primavera das
Mulheres que, para Cristina Duarte e Lafayette Melo, a escrita da hashtag ou cerquilha (#) junto
às palavras ou frases curtas potencializou a divulgação de campanhas e de protestos nas mídias
sociais. Os autores ressaltam que o uso social de frases curtas não é recente, “provérbios,
slogans, frases de protesto, entre outros, sempre foram muito utilizados. No entanto, em razão
da mídia eletrônica, a circulação, bem como o emprego de frases fora do seu contexto original
ocorrem bem mais e com maior rapidez na internet”173. Em consonância com Cristina Duarte e
Lafayette Melo, “devido à facilidade criada pela hashtag, essas frases circularam nas redes
sociais intensamente, alcançando revistas eletrônicas, bem como a mídia impressa.” 174. Juliana
da Silveira aborda a origem desse recurso:

(...) a hashtag é criada quando o símbolo # (hash, em inglês) é associado a uma


palavra, formando uma tag (etiqueta). Desse modo, uma hashtag é uma palavra-chave,
que no Twitter ganha algumas funções extras, tornando-se mais dinâmica que uma
palavra-chave tradicional. (...) a hashtag não é um mecanismo pensado pelos criadores
do Twitter e não fazia parte de sua interface inicial. É uma apropriação que os próprios
usuários acrescentaram ao sistema para melhorar as possibilidades de criar grupos de
pessoas em torno de um tema ou assunto determinado175

Desde a primeira vez que o Twitter utilizou esse recurso em 2007, Juliana da Silveira
observa que as hashtag transformaram-se em hiperlinks, como filtros de assuntos relacionados.

171
Ibidem p. 73
172
PAES, Ellen. #agoraéquesãoelas – Um documentário sobre a gente. (2016) Disponível em:
<http://www.cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/agoraequesaoelas-um-documentario-sobre-a-gente>.
Acesso em: 26 nov 2017.
173
DUARTE, Cristina Rothier; MELO, Lafayette Batista. Aforizações e feminismo na internet: estudo de frases
curtas empregadas no movimento primavera das mulheres. Revista do Gel, v. 14, n. 1, p. 269-287, 2017. p. 272
174
Ibidem p. 280
175
SILVEIRA, Juliana da. Análise discursiva da hashtag# Onagagné: entre a estrutura e o acontecimento. VI
Seminário de Estudos em Análise do Discurso, UFRGS, 2013.
63

Semelhante a esse direcionamento de interesse das pessoas às páginas da Internet com o


conteúdo das hashtags, também ocorre o compartilhamento de temas referentes aos protestos
feministas na Primavera das Mulheres. Essa característica é abordada por Josemira Silva Reis :

No caso específico do ativismo de mulheres via internet, as hashtags tem operado


algumas das experiências mais bem-sucedidas de mobilização no campo. Assumindo
sentidos diversos, elas ora contribuem para fazer pressão junto ao poder público nos
processos de tomada de decisões; ora servem para dar visibilidade às causas da
militância; ora se traduzem em campanhas de conscientização no campo das relações
de gênero; ora ajudam a sistematizar dados que referendem políticas públicas; e, não
menos importante, servem para promover encontros, partilhas de experiências e
facilitar a solidariedade. 176

Dentre os protestos da Primavera das Mulheres, destacou-se a Primavera Secundarista


que, desde novembro de 2015, reuniu mais de mil escolas mobilizadas no Brasil contra à
Medida Provisória 746 de reforma do Ensino Médio177 e contra o projeto de reorganização
escolar imposto pelo governador de São Paulo, que previa o fechamento de quase cem escolas.
Então, “ocupando escolas, chamando atenção da opinião pública e enfrentando as medidas
autoritárias do governo (...) um novo capítulo de luta e resistência da juventude contra os
ataques à democracia e à educação brasileira.178 Os jovens protestaram contra a Proposta de
Emenda Constitucional 241179, que implica no congelamento das despesas do Governo Federal,
corrigidas pela inflação, por até 20 anos, em áreas como educação e saúde. Manifestaram-se,
ainda, contra a Lei da Mordaça do Movimento Escola Sem Partido 180, que propõe projetos de
um ensino mecanicista para formar trabalhadores e minimizar a capacidade de reflexão crítica

176
REIS, Josemira Silva. Feminismo por hashtags: as potencialidades e riscos tecidos pela rede. Seminário
Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress, Florianópolis, 2017. p. 03-04 Disponível
em:
<http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1503731675_ARQUIVO_josemirareis_fazendogen
erov2.pdf>. Acesso em: 26 nov 2017.
177
UBES. 5 motivos por que a UBES é contra a MP de reforma do ensino médio (2016). Disponível em:
<http://ubes.org.br/2016/5-motivos-por-que-a-ubes-e-contra-a-reforma-do-ensino-medio/>. Acesso em: 19 nov
2017. “(...) uma autoritária reforma do ensino médio, que pretende fixar como disciplinas obrigatórias, apenas
português, matemática e a língua inglesa. Matérias de extrema importância para formação do pensamento crítico,
como filosofia, sociologia e artes deixam de ser obrigatórias segundo a medida provisória da reforma (...) A
reforma de Temer impõe uma carga-horária de 1400 horas aos colégios, mas não busca responder aos atuais
problemas enfrentados pelo ensino público brasileiro, como a péssima estrutura das escolas, a desvalorização dos
professores e a falta de gestões democráticas”.
178
UBES. Retrospectiva: relembre as grandes vitórias da Primavera Secundarista. (2016) Disponível em:
<http://ubes.org.br/2016/retrospectiva-relembre-as-grandes-vitorias-da-primavera-secundarista/>.
179
BENITES, Afonso. Temer intensifica ofensiva para aprovar PEC 241, que cria teto de gastos.
<https://brasil.elpais.com/brasil/2016/10/07/politica/1475799055_443075.html>. Acesso em: 19 nov 2017.
180
DURVAL, Ângelo. Escola Sem Partido: a lei da mordaça. (2016) Disponível em:
<https://www.brasil247.com/pt/colunistas/durvalangelo/247057/Escola-Sem-Partido-a-lei-da
morda%C3%A7a.htm>. Acesso em: 22 nov 2017. Conforme Durval Ângelo, o Movimento Escola Sem Partido
foi criado para combater a “doutrinação ideológica”: “o próprio nome deste movimento é enganador, pois nos
coloca uma dicotomia entre uma escola sem partido ou uma escola com partido (...) defende que professores não
são educadores e que ‘formar o cidadão crítico’ é sinônimo de ‘fazer a cabeça dos alunos’”.
64

e política dos jovens.


A Primavera Secundarista foi considerada também um movimento feminista por ter
muitas meninas a frente da militância estudantil, conforme Marcielly Moresco: “em quase todas
as ocupações, as meninas assumem a função de ‘líderes’ ou ‘organizadoras’, falam com a mídia
e com a comunidade escolar”181. Em 2016 foi lançado o documentário Lute Como Uma
Menina182 narrado pelas meninas que participaram do movimento secundarista com a ocupação
das escolas e as manifestações nas ruas. As estudantes contam suas histórias de como se
organizaram e enfrentaram autoridades, em defesa da autogestão das escolas e contra a
violência deliberada da policia militar. Registrou-se importantes reflexões feministas, sobre
modelo educacional brasileiro e o poder de organização popular. O documentário tem direção
de Flávio Colombini e Beatriz Alonso, sendo viabilizado pela colaboração do cinegrafista Caio
Castor, dos Jornalistas Livres e de outros cinegrafistas e fotógrafos que documentaram a luta
secundarista e cederam suas imagens.
Ademais, a pluralidade feminista da Primavera das Mulheres mostra a Marcha das
Margaridas em 2015, que reuniu 70 mil pessoas em Brasília/DF para expressar “as
reivindicações das mulheres do campo, das águas e das florestas, tais como a reforma agrária,
a defesa das terras indígenas, quilombolas e das comunidades tradicionais, a luta por soberania
alimentar, pelo fim da violência contra as mulheres e por autonomia econômica” 183. Em
novembro de 2015, houve a Marcha das Mulheres Negras em combate ao racismo, mobilizada
através do Dia da Mulher Afrolatinoamericana e Afrocaribenha em 25 de julho. Também,
referenciando o dia 20 de novembro – Dia da Consciência Negra, que simboliza a resistência
da população negra em combate às opressões raciais, foram divulgados na Internet através da
hashtag #NovembroNegro desde 2015 diversas campanhas sobre o assunto. Uma dessas foi a
#PareceElogioMaséRacismo promovida por mulheres negras na Internet em novembro de 2017
expondo comentários racistas que costumam ouvir.
Convergindo com esse fenômeno de mobilização chamado Primavera das Mulheres
surgiu a questão sobre igualdade de gênero na área de ciências humanas do Exame Nacional
Ensino Médio (ENEM), em 2015, com a citação de Simone de Beauvoir184. Ainda, a prova de

181
MORESCO, Marcielly. A primavera secundarista será toda feminista! (2016) Disponível em:
<http://blogueirasfeministas.com/2016/10/a-primavera-secundarista-sera-toda-feminista/>. Acesso em: 22 nov
2017.
182
YOUTUBE. Lute Como Uma Menina (2016). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=8OCUMGHm2oA>. Acesso em: 12 maio 2018.
183
SOF. Marcha das Margaridas se encerra com novas conquistas e mostra a força das mulheres
organizadas (2015). Disponível em: <http://www.sof.org.br/2015/08/15/marcha-das-margaridas-se-encerra-com-
novas-conquistas-e-mostra-a-forca-das-mulheres-organizadas/>. Acesso em: 20 nov 2017
184
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Volume II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1971. (1º ed. 1949)
65

redação do ENEM abordou o tema “A persistência da violência contra a mulher na sociedade


brasileira” e foi realizada por mais de 7 milhões de inscritos. A declaração dos estudantes sobre
as referências para elaborar a redação mostrou que “textos de coletivos feministas como do
Think Olga e do Lugar de Mulher ajudaram na hora de elaborar os argumentos” 185. O ENEM
2015 foi considerado o mais feminista de todos186. As abordagens de gênero continuaram a
compor a prova do ENEM em 2016187 sobre estereótipos de gênero e construção de
feminilidades em espaços predominantemente masculinos e a prova do ENEM em 2017 188
apresentou questões sobre violência doméstica e representação das mulheres na política.
A abordagem sobre relacionamentos abusivos como violência às mulheres no vídeo Não
Tira o Batom Vermelho189 do canal Jout Jout Prazer do Youtube, realizado pela jornalista Julia
Tolezano, tornou-se um marco dos feminismos na Internet em 2015. As questões feministas se
mostraram frequentes nos conteúdos midiáticos, bem como o programa Profissão Repórter
sobre as ativistas feministas em 2015190, o Portal Catarinas191 criado em 2016, que trabalha o
jornalismo voltado às questões de gênero, entre outras mídias da Internet que tratam de
feminismos e diversidade de gênero e de raça como: Revista Azmina, Blogueiras Negras,
Blogueiras Feministas, Imprensa Feminista, Geledes Instituto da Mulher Negra, Mídia Ninja,
Problematizadores, Quebrando o Tabu, Filhas de Frida, Não Me Kahlo, Casa da Mãe Joanna,
entre outras.
Outros acontecimentos contribuíram para popularizar os feminismos no Brasil, como o
lançamento da música 100% Feminista das cantoras Karol Conká e MC Carol 192, em 2016, e
as batalhas musicais Slam Resistência com mulheres rappers feministas em diversas regiões do

185
LIMA, Thaís. Enem 2015: questão sobre feminismo é comentada nas redes sociais. (2015) Disponível em:
<http://g1.globo.com/educacao/enem/2015/noticia/2015/10/questao-sobre-feminismo-no-enem-2015-e-
lembrada-nas-redes-sociais.html>. Acesso em: 20 nov 2017
186
MARTINELLI, Andréa. 6 provas de que o Enem 2015 foi o mais libertário e feminista de todos. Disponível
em: <http://www.huffpostbrasil.com/2015/10/26/6-provas-de-que-o-enem-2015-foi-o-mais-libertario-e-
feminista-de_a_21694389/> Acesso em: 20 nov 2017
187
ROSA, Cristiano. Questões de gênero no ENEM. (2016) Disponível em:
http://www.jornalnh.com.br/_conteudo/2016/11/blogs/cotidiano/questao_de_genero/2023487-questoes-de-
genero-no-enem.html Acesso em: 20 nov 2017
188
GONÇALVES, Gabriela; SOARES, Will. Enem 2017 tem iluminismo, futurismo, Belo Monte, Aristóteles
e participação da mulher na política. (2017) Disponível em:
<https://g1.globo.com/educacao/enem/2017/noticia/enem-2017-tem-iluminismo-futurismo-aristoteles-e-
participacao-da-mulher-na-politica.ghtml>. Acesso em: 20 nov 2017.
189
TOLEZANO, Julia. Não Tira o Batom Vermelho. Produção: Jout Jout Prazer. Fev de 2015. 8’33’’ Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=I-3ocjJTPHg Acesso em: 22 novembro de 2017
190
Profissão Repórter. Ativistas Feministas. 15 de dezembro de 2015. 34’42’’ Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=J0Htj1X30_U Acesso em: novembro de 2017.
191
PORTAL CATARINAS. Disponível em: <http://catarinas.info/>. Acesso em: 22 novembro de 2017.
192
YOUTUBE. Música 100% Feminista. Produção: Karol Conka, Leo Justi & Tropkillaz, Mc Carol. 7 de outubro
de 2016. 3’19’’ Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=W05v0B59K5s>. Acesso em: 22 novembro
de 2017.
66

país. O programa de televisão Amor & Sexo193 da Rede Globo, em 2017, abordou feminismos
de forma didática à população e recebeu convidadas, como a mestra em filosofia política
Djamila Ribeiro, a psicanalista Regina Lins, a roteirista Antônia Pellegrino, as cantoras Karol
Conká, Elza Soares e Gaby Amarantos e a ativista Thayz Athayde da Marcha das Vadias.
Similarmente, o programa de televisão Saia Justa do canal por assinatura GNT existe há 15
anos e desde 2015 aborda feminismos e desigualdades de gênero, com as apresentadoras que
se consideram feministas, como a jornalista Astrid Fontenelle, a atriz Mônica Martelli e suas
convidadas das temporadas anuais.
As “Youtubers” também contribuem para democratizar temas feministas na Internet,
compartilhando vídeos informativos e de cunho testemunhal sobre vivências, que geram
milhares de seguidores aos seus canais. Entre as feministas no Youtube estão Luiza Junqueira
do canal Tá Querida, que criou a campanha #TourPeloMeuCorpo para promover autoaceitação
e amor próprio entre as mulheres, que foi replicada por outros canais. Gabi Oliveira trata das
opressões de gênero sobre as mulheres negras, Helen Ramos do canal Hel Mother trata das
questões maternas e Alexandra Gurgel do canal Alexandrismos é militante contra a gordofobia
e já criou as campanhas #MaratonadoAmorPróprio e #MaratonaBodyPositive com diversos
vídeos sobre a temática, entre outras.
Na conjuntura da Primavera das Mulheres, para ratificar 2015 como “o ano das hashtags
feministas”194 e dos protestos nas ruas a partir disso, torna-se importante destacar os principais
acontecimentos brasileiros que tiveram grande visibilidade na Internet. A escritora, cordelista
e poeta brasileira, Jarid Arraes, escreveu em janeiro de 2015 sobre a campanha
#EscrevaLolaEscreva, em apoio à Lola Aronovitch195, responsável pelo blogue feminista com
maior visibilidade no Brasil, o “Escreva Lola Escreva”. A pedagoga e professora universitária
Lola é precursora no ativismo feminista da Internet no país e foi perseguida196 por grupos
organizados antifeministas, recebendo mensagens de ódio e de difamação na Internet, ameaças
de morte e invasão de seu blog. Outra campanha no Twitter com a hashtag #PorqueNaoMeCalo
teve a participação de internautas feministas e leitores de Lola.

193
GLOBOPLAY. Programa Amor e Sexo. Disponível em <https://globoplay.globo.com/v/5605576/>. Acesso
em: 22 novembro de 2017.
194
RODRIGUES, Marjorie. 2015: o ano das hashtags feministas (2015). Disponível em:
<http://azmina.com.br/2015/12/2015-o-ano-das-hashtags-feministas/>. Acesso em: 22 nov 2017
195
ESCREVA LOLA ESCREVA. Disponível em: <http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/>. Acesso em: 22
de novembro de 2017. Nascida na Argentina e naturalizada brasileira, Lola é blogueira e professora na
Universidade Federal do Ceará, onde pesquisa sobre literatura inglesa, cinema e questões de gênero.
196
ARRAES, Jarid. Lola Aronovich: “Calar não é uma opção”. (2015) Disponível em:
<https://www.revistaforum.com.br/2015/01/10/lola-aronovich-calar-nao-e-uma-opcao/>. Acesso em: 12 nov
2017.
67

Em novembro de 2015, a campanha #AgoraÉQueSãoElas foi proposta por Manoela


Miklos para que homens escritores em jornais, revistas, blogs e afins cedam seus espaços
midiáticos para ampliar o espaço de fala das mulheres, durante uma semana, em que diversas
convidadas escreveram sobre direitos das mulheres. Rosane Borges participou da campanha e
a descreveu como “um lugar político capaz de perturbar o lugar hegemônico dos homens,
preferencialmente os brancos, autênticos habitantes do espaço público, responsáveis, numa
sociedade marcada pelo racismo e sexismo, por definir a dinâmica do reconhecimento daquelas
e daqueles que podem falar”197. A autora distingue a campanha de outros engajamentos
feministas nas mídias sociais, em virtude da capacidade de perturbar o espaço de poder
hegemônico e oportunizar novas relações de poder.
Em 2015 houve a repercussão da hashtag #partidA na Internet que apresentava o novo
partido político feminista criado pela filósofa Marcia Tiburi, a fim de promover a participação
das mulheres na política. Segundo Carol Teixeira, a filósofa sintetiza o propósito do Partida: “a
ideia é ainda que não existam líderes em sentido personalista, mas que as pessoas do #partida
empoderem umas às outras. Imagine poder criado a partir de diálogo em que todo mundo se
autorepresenta numa metodologia dialógica. (...) É a Revolução” 198. Em 2018 o Partida
promoveu a campanha #MeuVotoéFeminista na Internet com intuito de estimular o voto em
candidatas para deputada estadual e federal, governadora, senadora e presidente do país, que
apresentem propostas eleitorais em defesa das mulheres e das minorias sociais.
Ademais, o meio artístico brasileiro destacou-se com a campanha
#MexeuComUmaMexeuComTodas lançada em 2017 na Internet para fortalecer a união das
mulheres contra o assédio junto ao protesto #ChegadeAssédio, ambos promovidos por atrizes,
jornalistas, diretoras e demais funcionárias da Rede Globo após o ator José Mayer ter sido
acusado de assédio sexual no ambiente de trabalho. Sobre esse episódio, Margareth Rago falou
ao website Época: “É positivo essa moça poder falar dessa maneira e causar tanta repercussão.
Isso intimida os homens e os leva a tomar mais cuidado (...) Mulheres de outras gerações
pegaram tratores, derrubaram as árvores e fizeram estradas que agora essas jovens estão
pavimentando” 199. A historiadora feminista aponta a grande mudança que houve em poucos

197
BORGES, Rosane. Agora é que são elas: pode a subalterna falar-escrever? (2015) Disponível em:
<https://www.revistaforum.com.br/abeiradapalavra/2015/11/07/agora-e-que-sao-elas-pode-subalterna-falar-
escrever/>. Acesso em: 12 nov 2017.
198
TEIXEIRA, Carol. O partido feminista de Marcia Tiburi (2015). Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/o-partido-feminista-de-marcia-tiburi/>. Acesso em: 12 nov 2017.
199
LIMA, Samantha; GARCIA, Sérgio. Mexeu Com Uma Mexeu Com Todas (2017). Disponível em:
<http://epoca.globo.com/sociedade/noticia/2017/04/mexeu-com-uma-mexeu-com-todas.html>. Acesso em: 12
nov 2017.
68

anos, culminando na Primavera das Mulheres, pois representa um desfecho de 50 anos de


feminismo em que mulheres criaram espaço para que a geração contemporânea consiga
expressar suas reivindicações e formar uma rede de apoio. Tal ação fortalece a mobilização
internacional de mulheres na Internet contra o assédio, como a campanha #AskHerMore
(“pergunte mais a ela”) promovida por atrizes de cinema de Hollywood nos Estados Unidos em
2015, a campanha #MeToo (“eu também”) para denunciar assédios sexuais em 2016 e a
campanha #TimesUp (“acabou o tempo”) lançada por atrizes norte-americanas em 2018 na
premiação Globo de Ouro, para abordar o assédio sexual na indústria do cinema e em outras
áreas profissionais.
A organização Think Olga lançou em 2015 três campanhas em momentos diferentes,
descritas a seguir. A campanha #ChegadeFiuFiu 200 em combate ao assédio sexual às mulheres
em lugares públicos criou um aplicativo de mapeamento sobre denúncias desses casos em todo
Brasil. #MeuPrimeiroAssédio foi uma campanha iniciada em razão dos comentários pedófilos
nas mídias digitais sociais a respeito de Valentina, de 12 anos, participante do programa de
televisão Master Chef Júnior Brasil, em 2015. Nessa iniciativa, o combate ao assédio sexual
ocorreu através de relatos de mulheres sobre casos que foram assediadas, para estimular outras
a denunciarem quando viverem situações de assédio, realidade digital que resultou no aumento
real de 40% de queixas201 de violência contra a mulher no disque denúncia à polícia. Por fim, a
campanha #MeuAmigoSecreto202 propos às mulheres fazerem publicações apontando
comportamentos machistas no formato do discurso de amigo secreto em festas de final de ano.
Já a campanha #VamosJuntas203 criada pela jornalista Babi Souza, em 2015, propagou a ideia
de união e proteção entre mulheres contra o assédio sexual, para que convidem mulheres que
estejam próximas a seguirem juntas quando estiverem em situação de insegurança nos
ambientes públicos.
Em 2014 já se notavam campanhas de engajamento em defesa da equidade de gênero
que culminaram no momento considerado Primavera das Mulheres, como a #HeForShe ou
#ElesPorElas204 no Brasil, foi criada pela ONU Mulheres, a Entidade das Nações Unidas para

200
CHEGA DE FIUFIU. Disponível em: <http://chegadefiufiu.com.br/>. Acesso em: 22 nov 2017.
201
REVISTA FÓRUM. Campanhas feministas na internet aumentam número de denúncias no 180 (2015)
Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/2015/11/30/campanhas-feministas-na-internet-aumentam-
numero-de-denuncias-no-180/>. Acesso em: 22 nov 2017.
202
MOREIRA, Isabela. 20 relatos da hashtag #meuamigosecreto que precisam ser lidos (2015). Disponível
em: <http://revistagalileu.globo.com/blogs/buzz/noticia/2015/11/20-relatos-da-hashtag-meuamigosecreto-que-
precisam-ser-lidos.html>. Acesso em: 22 nov 2017.
203
MOVIMENTO VAMOS JUNTAS. Disponível em: <http://www.movimentovamosjuntas.com.br/>. Acesso
em: 22 nov 2017.
204
ONU MULHERES Movimento ElesPorElas (HeForShe) de Solidariedade da ONU Mulheres pela
Igualdade de Gênero. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/elesporelas/>. Acesso em: 09 jan 2018.
69

a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, como um esforço global para


envolver homens e meninos no combate às opressões culturais de gênero às mulheres, com uma
abordagem inclusiva pela igualdade de gênero. Em 2014 houve, ainda, a campanha
#NãoMereçoSerEstuprada205 criada por Nana Queiroz e apoiada por celebridades, pela
Presidente Dilma Rousseff e por diversas pessoas na Internet em protesto ao resultado revelado
pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – no qual 65% das pessoas entrevistadas
afirmavam que “mulheres com roupas curtas merecem ser estupradas” 206. O Instituto divulgou
dias depois que houve um erro, pois na verdade eram 26% das pessoas que concordavam com
a afirmação e 70% discordavam total ou parcialmente. Esse fato preparou o país para o tema
sobre assédio quando o deputado Jair Bolsonaro declarou207 publicamente, em 2016, que a
deputada Maria do Rosário “não merecia ser estuprada” e por isso foi condenado por danos
morais na justiça, pois relativizou o estupro como uma questão de merecimento.
Em combate ao assédio às mulheres foi criado o movimento Não é Não em 2018 voltado
para o carnaval, mas também para grifar a mensagem de respeito às mulheres em todas as
épocas do ano e em todos os ambientes sociais. A iniciativa transformou-se na campanha da
Internet #NãoéNão e na rua durante o carnaval com a produção e distribuição de adesivos
corporais para as mulheres, como tatuagens temporárias, com os dizeres Não é Não. Um
coletivo de mulheres indignadas com o assédio no carnaval criou essa campanha piloto em
2017, no Rio de Janeiro, que foi bem-sucedida e no carnaval 2018 buscou ampliar para outros
Estados brasileiros.
O problema do assédio às mulheres motivaram as campanhas #DeixaElaTrabalhar de
jornalistas organizadas de todos país, as quais lançaram um manifesto, em março de 2018, como
um movimento de mulheres que trabalham na mídia esportiva e não suportam mais o assédio
moral e sexual sofrido por elas na profissão em locais como estádios, ruas e redações de jornais.
A campanha surgiu após um caso de assédio com a repórter do Esporte Interativo, Bruna
Dealtry, a qual foi beijada repentinamente por um homem, enquanto ela trabalhava em uma
reportagem transmitida simultaneamente. Assim como ela diversas colegas de profissão,
inclusive na Copa do Mundo de futebol masculino na Rússia em 2018, já foram vítimas de

205
POLO, Rafaela. “Não Mereço Ser Estuprada”: Campanha ganha força entre homens e mulheres (2016)
Disponível em: <https://cosmopolitan.abril.com.br/amor-e-sexo/nao-mereco-ser-estuprada-campanha-ganha-
forca-entre-homens-e-mulheres/>. Acesso em: 08 jan 2018.
206
IPEA. Errata da pesquisa “Tolerância social à violência contra as mulheres” (2014). Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=21971>. Acesso em: 08 jan
2018.
207
RAMALHO, Renan. Bolsonaro vira réu por falar que Maria do Rosário não merece ser estuprada (2016).
Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/06/bolsonaro-vira-reu-por-falar-que-maria-do-rosario-
nao-merece-ser-estuprada.html>. Acesso em: 24 nov 2017.
70

assédio, ofensas e agressões por homens enquanto elas trabalhavam. Também, manifestaram-
se contra o desrespeito às mulheres nos meios de comunicação as jornalistas do coletivo
feminista Jornalismo Sem Machismo da Universidade Federal de Santa Catarina, em março de
2018. Em combate ao machismo na mídia catarinense, o coletivo lançou a campanha
#ChegaDeMachismoCacau denunciando a irresponsabilidade social e midiática de Cacau
Menezes, colunista semanal do programa de televisão Jornal do Almoço em Santa Catarina.
O tema do assédio às mulheres é prevalecente nas campanhas feministas
contemporâneas na Primavera das Mulheres, com publicações na Internet que reivindicam
autonomia e respeito às mulheres como #MeuCorpoMinhasRegras, que pode remeter a uma
continuidade do feminismo de segunda onda208, quando havia as palavras de ordem “nossos
corpos nos pertencem”. Nalu Faria afirma que “o assédio sexual é um componente das relações
de trabalho para manter as mulheres com medo e divididas. Há 25 anos, era muito discutido o
assédio nas fábricas, nos bancos (...) Hoje, sabemos que mulheres que ocupam postos
considerados altos também sofrem o assédio”209. O Mapa da Violência sobre homicídios de
mulheres no Brasil, lançado em 2015, aponta: “a violência contra a mulher não é um fato novo.
Pelo contrário, é tão antigo quanto a humanidade. O que é novo, e muito recente, é a
preocupação com a superação dessa violência como condição necessária para a construção de
nossa humanidade”210.
Pensando na persistência desse problema, acompanhando a Primavera das Mulheres
surgiu a campanha UNA-SE pelo fim da violência contra as mulheres, lançada em 2015 pelo
secretário-geral das Nações Unidas, que criou o Dia Laranja para o dia 25 de cada mês em que
agências das Nações Unidas e sociedade civil promovem atividades com foco na igualdade de
gênero e na prevenção e a eliminação da violência contra meninas e mulheres. Além disso, foi
criada a rede de apoio às mulheres que sofrem violência doméstica, Mete a Colher 211, que a
partir de suas mídias na Internet e do seu aplicativo para celular buscam incentivar as vítimas a
denunciar seus casos e contar suas histórias com privacidade, para receberem ajuda através de
conversas e indicação de medidas legais.

208
Sobre narrativas fundadoras do feminismo de “Segunda Onda”, que surgiu após a Segunda Guerra Mundial no
Brasil, ver: PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (19701978). Revista
Brasileira de História. São Paulo: ANPUH, vol. 26, nº 52, jul/dez 2006.
209
FARIA, Nalu. Para a erradicação da violência doméstica e sexual (p. 23-30). In: NOBRE, Miriam; FARIA,
Nalu; SILVEIRA, Maria Lúcia. Feminismo e Luta das Mulheres: análise e debates. Sempreviva Organização
Feminista: São Paulo, 2005. p. 26
210
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015 - homicídio de mulheres no brasil. Disponível em:
<http://www.compromissoeatitude.org.br/wpcontent/uploads/2015/11/MapaViolencia_2015_homicidiodemulher
es.pdf>. Acesso em: 22 nov 2017
211
METE A COLHER. Disponível em: <https://www.meteacolher.org/>. Acesso em: 22 nov 2017.
71

Essa questão ainda não foi superada, pois as mulheres ainda tem de combater a violência
sexual, como aborda Andrea Dip: “a violência sexual é a mais cruel forma de violência depois
do homicídio, porque é a apropriação do corpo da mulher – isto é, alguém está se apropriando
e violentando o que de mais íntimo lhe pertence” 212. O combate à violência sexual contra
mulheres também destaca a a cultura do estupro213, conforme Suzy Santos, ambas são escritoras
da Cientista Que Virou Mãe. A cultura do estupro foi evidenciada no caso de Eleonora
Menicucci, ex-ministra chefe da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do governo
Dilma Rousseff de 2012 a 2015. Em 2017 ela foi absolvida do julgamento em segunda instância
de condenação a pagar indenização por danos morais ao ator pornô Alexandre Frota, em razão
das críticas dela sobre ele fazer apologia ao estupro em relatos públicos214, que gerou a
campanha #SomosTodasEleonora. Pensando nas pessoas que apoiaram ele, como cita Carla
Rodrigues: “presente desde a segunda onda feminista, quanto mais é denunciada, mais a
violência contra a mulher mostra sua face cruel. A cada geração de feministas é de novo
necessário lutar contra essa expressão perversa do machismo” 215
. A autora cita estatísticas
mundiais de 83 países, em que o Brasil é o 5º com mais homicídios de mulheres e um terço
desses foi cometido pelo atual ou pelo ex-namorado e ex-marido.
Outra ação contra o assédio às mulheres foi a campanha lançada pelo Coletivo AzMina
em parceria com o clube de futebol Cruzeiro, utilizaram os números nas camisetas dos
jogadores para divulgar dados como “3 em cada 10 mulheres já foram beijadas a força” 216. A
campanha foi premiada no maior evento publicitário do mundo, o Festival de Cannes. A
campanha #MaisQue70 também do Coletivo AzMina foi igualmente premiada no evento e a
iniciativa questionava a desigualdade salarial de gênero, com o apoio das cantoras brasileiras

212
DIP, Andrea. Violência sexual no casamento: precisamos falar sobre isso (2017). Disponível em:
<http://cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/violencia-sexual-no-casamento-precisamos-falar-sobre-isso>.
Acesso em: 22 nov 2017. “A violência sexual é a mais cruel forma de violência depois do homicídio, porque é a
apropriação do corpo da mulher – isto é, alguém está se apropriando e violentando o que de mais íntimo lhe
pertence”
213
SANTOS, Suzy. "A recém-nascida já nasce mulher" - Cultura do Estupro, Cultura da Pedofilia e a ausência
de responsabilidade social da mídia brasileira. (2016) Disponível em:
<http://cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/a-recem-nascida-ja-nasce-mulher-cultura-do-estupro-cultura-da-
pedofilia-e-a-ausencia-de-responsabilidade-social-da-midia-brasileira>. Acesso em: 22 nov 2017.
214
G1 SP. Ex-ministra de Dilma é absolvida em segunda instância em processo por danos morais movido
por Alexandre Frota. Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/ex-ministra-de-dilma-e-
absolvida-em-segunda-instancia-em-processo-por-danos-morais-movido-por-alexandre-frota.ghtml>. Acesso em:
22 nov 2017.
215
RODRIGUES, Carla. Corpo: artigo indefinido. Artigo Cadernos Globo nº 12. Junh/2016. p. 46-48. Disponível
em: <http://app.cadernosglobo.com.br/>. Acesso em: 23 nov 2017.
216
ALBERTI, Gabriela. Campanhas feministas do coletivo AzMina são premiadas em Cannes, o maior
festival de criatividade do mundo. Disponível em: <http://www.hypeness.com.br/2017/06/campanhas-
feministas-do-coletivo-azmina-sao-premiadas-em-cannes-o-maior-festival-de-criatividade-do-mundo/>. Acesso
em: 20 nov 2017.
72

Tiê, Valesca Popozuda e Daniela Mercury. Elas cederam 30% do tempo de suas músicas para
alertar sobre as mulheres receberem, em média, 30% a menos do salário dos homens pelo
mesmo trabalho no país. A questão “salários iguais para trabalho igual” pautada pelo feminismo
de segunda onda de 1970 também continua devido às desigualdades de gênero, assim como a
questão dessa mesma época sobre “o privado é público”, pois ainda são altos os índices de
violência doméstica e de sobrecarga de tarefas de cuidados entre mulheres brasileiras.
Essas questões devem ser consideradas públicas, pois perpassam a vida das mulheres,
como alertam a Lei Maria da Penha217 e a Lei do Feminicídio218 como uma “violência de
gênero”, que ocorre majoritariamente de homens para mulheres, segundo a Declaração para a
Eliminação da Violência Contra Mulheres formulada pela Organização das Nações Unidas. Por
isso, na declaração o termo “violência de gênero” define-se como “qualquer ato violento
baseado no gênero que resulte em, ou é passível de resultar em, dano ou sofrimento físico,
sexual ou psicológico” 219
. Na Primavera das Mulheres, considerando o combate dessas
questões de gênero historicamente persistentes, foi criada a Lei do Feminicídio sancionada pela
presidente Dilma Rousseff em 2015, que incluiu a classificação dos assassinatos de mulheres
como crime hediondo e que se juntou à Lei Maria da Penha como políticas para “prevenir e
punir agressões em uma demonstração do empoderamento das mulheres”220.
Além dos protestos sobre assédio sexual às mulheres, na Primavera das Mulheres
também se destacou o tema do aborto nas campanhas. Diante da tentativa de controle das
liberdades de escolhas das mulheres sobre seus corpos, surgiu o Projeto de Lei (PL) 5.069/13,
proposto pelo deputado Eduardo Cunha, que visava modificar a Lei de Atendimento às Vítimas
de Violência Sexual (12.845/13) 221 dificultando o acesso das mulheres ao aborto em casos já
previsto na constituição brasileira. O projeto foi barrado pela resistência popular das mulheres,

217
Lei Maria da Penha – nº 11340/06 - Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher;
218
Lei do Feminicídio - nº13.104 – homicídio contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: I -
violência doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
219
Organização das Nações Unidas. Strategies for confronting domestic violence: a resource manual. Nova
York, 1993. Disponível em:
<http://www.unodc.org/pdf/youthnet/tools_strategy_english_domestic_violence.pdf>. Acesso em: 28 ago de
2017.
220
BRASIL. Lei do Feminicídio completa um ano com condenações ao assassinato de mulheres. Disponível
em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2016/03/lei-do-feminicidio-completa-um-ano-com-
condenacoes-ao-assassinato-de-mulheres>. Acesso em: 21 nov 2017.
221
LARCHER, Marcello. CCJ aprova mudança no atendimento a vítimas de violência sexual. (2015)
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/direito-e-justica/498538-ccj-aprova-
mudanca-no-atendimento-a-vitimas-de-violencia-sexual.html>. Acesso em: 15 nov 2017.
73

que gerou protestos nas ruas de todo o país222 e foi denunciado na Internet com as hashtags
#ForaCunha e #Contrapel5069. Segundo a psicóloga Daniela Pedroso do núcleo de
abortamento legal do Hospital Pérola Byington 223 em São Paulo, o projeto de lei prejudica o
acolhimento às vítimas ao exigir boletim de ocorrência policial e exame de corpo de delito para
realizar o aborto legal, o que significa uma segunda violência às mulheres estupradas.
Para Marcia Tiburi, a intenção do projeto associa-se à postura fascista do contexto
político brasileiro em que ela aborda a hipocrisia sobre estupro, aborto, entre outros casos. A
autora ressalta a importância em desfazer a hegemonia masculina nas relações de gênero, visto
que as relações recíprocas entre homens considera o outro224, o semelhante, sempre sendo um
indivíduo do sexo masculino, o indivíduo mulher como sujeito social não é valorizado. Essa
visibilização do “outro” torna-se uma questão central de empatia sobre as minorias sociais,
segundo Marcia Tiburi, assim como no sistema legislativo brasileiro quando decide sobre
questões das mulheres:

A ignorância prepotente e truculenta não se cansa de falar sobre o aborto (...) problema
é que aqueles que falam contra a legalização do aborto não ouvem o que dizem
aqueles que a defendem. Não ouvem as próprias mulheres enquanto legislam sobre
elas. O desafio de falar com um fascista tem relação direta com o pseudodebate
travado por homens em torno de uma questão que é de mulheres. Consideram-se a si
mesmos, como personalidade autoritária, donos do outro a quem tomam por
“ninguém”. 225

Nesses discursos, como afirma a autora, os políticos propõem projetos que representam
um retrocesso por atacar os direitos das mulheres. Similarmente houve a Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) 181/2011, do senador Aécio Neves, que inicialmente tratava da
ampliação de direitos trabalhistas como o aumento do tempo da licença-maternidade para
mulheres com filhos que nascem prematuros. Porém, em 2017 surgiu como um projeto que
proíbe o aborto em todos os casos, inclusive os já previstos pela legislação brasileira como nos
casos de estupro, de fetos anencéfalos e de risco de morte para a mãe. Há nessa proposta uma
filosofia que define o início da vida a partir da fecundação entre um óvulo e um espermatozoide,

222
G1 SP. Mulheres voltam a protestar contra projeto de lei de Eduardo Cunha. (2015) Disponível em:
<http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/10/mulheres-voltam-protestar-contra-projeto-de-lei-de-eduardo-
cunha.html>. Acesso em: 15 nov 2017.
223
OLIVEIRA, Monique. “Não podemos violentar mulheres estupradas uma segunda vez”, diz psicóloga do
Hospital Pérola Byington. (2015) Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/nao-podemos-
violentar-mulheres-estupradas-uma-segunda-vez-diz-psicologa-do-hospital-perola-byington-brasileiros-
19112015/>. Acesso em: 10 jan 2018.
224
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Vol. II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1971. p. 10 (1º ed. 1949)
“O homem é pensável sem a mulher. Ela não, sem o homem (...) a fêmea é o inessencial perante o essencial. O
homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro”.
225
TIBURI, Marcia. Como conversar com um fascista. 1. ed. Rio de Janeiro: Record, 2015. p. 113
74

devido à visão religiosa da maioria dos deputados envolvidos na comissão da proposta,


conforme Débora Diniz: “o texto legal em discussão não menciona aborto, mas o mistério do
início da vida. Os deputados querem mudar a Constituição Federal de 1988: para eles, é preciso
que todos concordem com um mesmo marco filosófico de início da vida”226 como cita a
antropóloga e pesquisadora da Anis Instituto de Bioética.
Mulheres que protestaram pela legalização do aborto há quase 40 anos voltam às ruas
em 2017227, o que evidencia um retrocesso histórico contestado na militância da rua e da
Internet através das campanhas como #ContraPEC181 #TodasContra18 para midiatizar a
resistência de todas as mulheres contra os 18 deputados que aprovaram a PEC181, do total de
19, pois apenas a única mulher da Comissão foi contrária à decisão, Erika Kokay. Além disso,
o movimento internacional #GritoGlobal228 pelo aborto legal em 2017, formou uma campanha
de vários países que foram às ruas protestar contra a criminalização do aborto, para tratar do
assunto como uma questão de saúde pública sobre direitos das mulheres.
Ratificando os interesses da Primavera das Mulheres na Internet as mulheres
organizaram, também, a passeata do Dia Internacional das Mulheres no dia 8 de março de 2017
em diversas capitais do mundo, que obtiveram grande visibilidade de suas reivindicações nas
mídias de massa e também através na Internet com a marcação #MarchaMundialdasMulheres
e #WomensMarch. No Brasil, o evento ganhou consistência como a chamada Greve
Internacional de Mulheres (8M), que questionou os modos de produção social que desvalorizam
as mulheres. Segundo Noelia Ramírez: “Ni Una Menos na América Latina ou o Marcha das
Mulheres dos EUA lideram uma nova era no protesto feminista” 229
. Para evidenciar esse
período de manifestações feministas no Brasil foi criado o documentário Primavera das
Mulheres230, lançado em 2017 no canal de televisão GNT e produzido pela roteirista Antonia
Pellegrino e pela diretora Isabel Nascimento Silva. A produção propõe, de forma didática,
informar e conscientizar um público abrangente sobre os novos feminismos e as manifestações

226
DINIZ, Débora. PEC 181, a lei que proíbe o aborto legal: um cavalo de Troia com dois monstros (2017).
Disponível em: <http://revistamarieclaire.globo.com/Mulheres-do-Mundo/noticia/2017/11/pec-181-lei-que-
proibe-o-aborto-legal-um-cavalo-de-troia-com-dois-monstros.html>. Acesso em: 10 jan 2018.
227
FEREIRA, Paula. Mulheres que protestaram pela legalizacao do aborto há quase 40 anos voltam as ruas.
Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/mulheres-que-protestaram-pela-legalizacao-do-aborto-ha-
quase-40-anos-voltam-as-ruas-22066319>. Acesso em: 10 jan 2018.
228
ARONOVICH, Lola. Grito global pelo aborto legal (2017).
<http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2017/09/grito-global-pelo-aborto-legal.html>. Acesso em: 10 jan
2018.
229
RAMÍREZ, Noelia. ‘Dia sem mulher’: o mundo se prepara para uma greve internacional feminina. (2017)
Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/02/10/estilo/1486744741_095547.html>. Acesso 21 nov
2017.
230
GLOBOSATPLAY. Documentário Primavera das Mulheres (2017). Disponível em:
<https://globosatplay.globo.com/gnt/v/6229352/>. Acesso em: 04 nov 2017.
75

de mulheres organizadas nos últimos dois anos no Brasil.


Em agosto de 2017, a Primavera das Mulheres se mostrou presente no 13º Congresso
Mundos de Mulheres231, considerado o maior evento feminista do mundo, realizado pela
primeira vez na América Latina e no Brasil, com sede na Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), na cidade de Florianópolis, junto ao Seminário Internacional Fazendo Gênero
11 da instituição. O evento reuniu instituições acadêmicas e movimentos sociais, com mais de
8 mil pessoas inscritas, a fim de fomentar diálogos entre “mundos” sociais distantes e fortalecer
a diversidade política e cultural de gênero, de etnia, de classe, de credos e de conhecimentos,
em defesa dos direitos das minorias sociais (mulheres, negras/os, indígenas, pessoas
LGBTTTQI232, trabalhadoras/es). Nessa leitura social, conforme Gayle Rubin, “uma revolução
feminista completa libertaria mais do que as mulheres. Liberaria formas de expressão sexual, e
libertaria a personalidade humana da camisa de força do gênero” 233. Vislumbra-se uma
disposição para (r)evolução social que também inspira a plataforma Cientista Que Virou Mãe
em 2018, como mostra a imagem abaixo.

Figura 1.5: banner digital da campanha Mude e Ajude a Mudar promovida pela Cientista Que Virou
Mãe, em 2017.

Fonte: página da Cientista Que Virou Mãe no Facebook

Na Primavera das Mulheres evidenciam-se também embates sobre diversidade de


gênero ao demonstrar diferentes configurações de mulheres e de homens como uma construção
social, que os feminismos buscam dialogar. Esse olhar plural é negado por alguns grupos
políticos e religiosos, que em seus discursos transformam as mulheres feministas e as pessoas
LGBT em inimigos ao combater a “ideologia de gênero” nos planos de educação do país.
Segundo Gebara (2008, p. 57 apud TONI REIS E EDLA EGGERT, 2017) : “o inimigo é

231
WOMEN WORLDS CONGRESS 2017. Disponível em: <http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/>.
Acesso em: 04 nov 2017.
232
Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros, Transexuais, Queer, Interssex.
233
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo. Tradução: Christine Rufino
Dabat; Edileusa Oliveira da Rocha; Sonia Corrêa. Recife: Editora SOS Corpo, 1993. p. 21
76

também uma criação nossa. O inimigo, dependendo da perspectiva, é o diferente, é aquele que
me ameaça, que exige a partilha de lugares, de poderes e de haveres. O inimigo é o diferente,
transformado em inimigo”234. O que as pessoas conservadoras consideram “ideologia de
gênero” refere-se a políticas públicas voltadas à educação e à diversidade, que vem ganhando
força legislativa desde a constituição brasileira de 1988 e também em políticas neoliberais como
nos Parâmetros Curriculares Nacionais235 (PCN’s) publicadas em 1997 e 1998 no Brasil, com
objetivo de assegurar a autonomia das escolas e dos professores, para o ensino fundamental
com a formação para uma cidadania democrática.
Apesar do conservadorismo, a Primavera das Mulheres demonstra uma crescente
abordagem pública sobre transgeneridade e transsexualidade. Legitima-se, com isso, o histórico
de análises transversais entre as categorias gênero e mulheres na história, como afirma Joana
Maria Pedro: “o feminismo, o movimento de mulheres e o de gays e lésbicas têm contribuído
para que as reflexões sobre gênero sejam implementadas de forma interdisciplinar” 236. Essa
união de movimentos pode ser percebida na Primavera das Mulheres com a grande visibilidade
na Internet de personalidades artísticas que desconstroem o gênero como Pabllo Vittar, Linn da
Quebrada, Liniker, Triz, entre outros artistas. Na sequência da representação de gênero, surgiu
a personagem travesti Elis Miranda, interpretada pelo ator Silvero Pereira237 e a personagem
transgênero Ivan, interpretada pela atriz Carol Duarte, que foi inspirada em pessoas
transgêneros da realidade238, ambas criadas por Glória Perez para a novela A Força do Querer,
de 2017 na Rede Globo. Agregou ao tema o documentário Divinas Divas239 lançado em 2017
com direção de Leandra Leal, que conta a história da primeira geração de artistas travestis no
Brasil dos anos 1960. Nesse mesmo ano foi lançada no canal de televisão GNT, a série

234
REIS, Toni; EGGERT, Edla. Ideologia de gênero: uma falácia construída sobre os planos de educação
brasileiros. Educ. Soc., Campinas, v. 38, nº. 138, p.9-26, jan.-mar., 2017.
235
TEIXEIRA, Beatriz de Basto. Parâmetros Curriculares Nacionais, plano nacional de educação e a autonomia
da escola. Disponível em: <http://www.anped.org.br/sites/default/files/gt_05_02.pdf>. Acesso em: 27 jan 2018.
“(...) elegeram ‘a cidadania como eixo vertebrador da educação escolar’ e admitem que isso implica tratar de
valores (PCN1, v. 8: 25). Afirmam que a escola não muda a sociedade, mas pode, partilhando esse projeto com
segmentos sociais que assumem os princípios democráticos, articulando-se a eles, constituir-se não apenas como
espaço de reprodução mas também como espaço de transformação”.
236
PEDRO, Joana Maria. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea.
Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011. p. 270
237
PEREIRA, Márcia. Ator diz que travesti de novela tem missão de reduzir a matança de transexuais. (2017)
Disponível em: <http://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/novelas/ator-diz-que-travesti-de-novela-tem-missao-de-
reduzir-matanca-de-transexuais--15275>. Acesso em: 21 nov 2017.
238
TVEFAMOSOS. Ivana vira Ivan: Os 4 personagens da vida real que inspiraram Gloria Perez. Disponível em:
<https://tvefamosos.uol.com.br/listas/ivana-vira-ivan-os-4-personagens-da-vida-real-que-inspiram-gloria-
perez.htm>. Acesso em: 21 nov 2017.
239
CANAL BRASIL. Divinas Divas, coprodução do Canal Brasil, já está disponível no NOW. Disponível em:
<http://canalbrasil.globo.com/especiais/coproducoes/materias/divinas-divas-coproducao-do-canal-brasil-ja-esta-
disponivel-no-now.htm>. Acesso em: 21 nov 2017.
77

Liberdade de Gênero, do cineasta João Jardim que narra 14 histórias sobre transgêneros e
transsexuais em diversas regiões brasileiras.
Diante dessa discussão na Primavera das Mulheres demonstra o contexto brasileiro de
mobilização em defesa dos direitos das mulheres e das demais minorias sociais como a
comunidade LGBT. O propósito desses acontecimentos políticos vai ao encontro dos ideais
defendidos na plataforma Cientista Que Virou Mãe, que contribui para visibilizar a diversidade
e os direitos das minorias ao tratar sobre maternagem, mães, crianças, feminismo, entre outros
temas de fortalecimento entre mulheres. Elas promovem a valorização destes assuntos a partir
de eventos presenciais, dos textos financiados coletivamente na plataforma, da loja virtual e das
mídias sociais da Cientista Que Virou Mãe. Encontra-se no interior da Primavera das Mulheres,
portanto, o espaço midiático para elas desenvolverem seus trabalhos em prol dos direitos das
mulheres, assim como muitos websites e plataformas responsáveis por manifestações da
Primavera das Mulheres citadas aqui, que têm encontrado recursos para se manter na
contribuição financeira e midiática solidária.
78

CAPÍTULO 2. AS MULHERES DAS FAMÍLIAS

Esse capítulo trata das famílias como estruturas que compõem tradições expressas em
comportamentos, valores morais e (pre)conceitos sociais. As referências maternas e paternas
são consideradas pontos centrais no desenvolvimento da maioria das famílias. As relações de
gênero advindas do legado histórico de costumes, muitas vezes, desvalorizam a atuação social
das mulheres e configuram desigualdades de gênero. Nesse contexto, percebe-se que há uma
mudança em curso, que vem sendo promovida pelas mães feministas contemporâneas em
defesa da equidade de gênero, como demonstram as entrevistadas desta pesquisa por meio de
novas práticas discursivas de maternagem.
A liderança dessas mulheres no processo de mudança é observada através do
reconhecimento das memórias familiares e da interpretação, seguida pela superação da própria
tradição familiar ou transmissão de valores. Este capítulo analisa recorrências e a dissonâncias
entre as histórias das entrevistadas, as referências das mulheres de suas famílias e as relações
de gênero no trabalho doméstico. Para tanto, busca-se conhecer os perfis familiares e como elas
interpretam as próprias trajetórias familiares e as relações de gênero nesse meio, antes e após
elas tornarem-se mães e identificarem-se como feministas.

2.1 RELAÇÕES DE GÊNERO NAS FAMÍLIAS E TRABALHO DOMÉSTICO

O diagrama de poder construído nas relações de gênero é estabelecido culturalmente,


em grande parte, por meio das referências familiares, que converge com a sociologia das
transmissões intergeracionais, segundo Jean Pierre Terrail, “pelas transferências simbólicas de
disposições e valores inerentes à socialização das mulheres e dos homens das gerações” 240. O
autor afirma que o conhecimento genealógico e a memória da linhagem estão imbricadas na
transmissão de valores e histórias familiares, “cuja transmissão é um elemento essencial na
formação da identidade individual”241. Nessa construção identitária a partir do legado familiar,
para o autor, a herança aprendida sobre valores e costumes torna-se imprevisível porque se
desenvolve ao longo da história. Esse processo acompanha as subjetividades e as identificações
da pessoa herdeira, “porque herdar é um processo sem fim marcado pela ambivalência e a

240
TERRAIL, Jean Pierre. Transmissões intergeracionais. In: HIRATA, Helena (Orgs.). Dicionário Crítico do
Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 262
241
Ibidem p. 263
79

pluralidade das disposições adquiridas, que encontrarão ou não como se realizar na


confrontação do herdeiro com as condições sempre renovadas de sua ação biográfica” 242.
A assimilação da herança familiar ocorre nas conexões memória humana que, para
Maurice Halbwachs, mesmo sendo eminentemente individual, não é restrita a pessoa, e sim,
está imbricada em grupos sociais que se relaciona. Para o autor, “cidade, amigos e família
constituem como sociedades complexas. Então nascem as lembranças, compreendidas em dois
quadros de pensamentos comuns aos membros dos dois grupos” 243. Nesse raciocínio, esta
pesquisa busca conhecer os relatos das entrevistadas sobre o perfil de suas famílias e o que elas
valorizam como transmissão de valores através de suas famílias.
A entrevistada Antônia relata que seu pai biológico abandonou a família e sua mãe
casou-se novamente com o homem que ela considera seu pai verdadeiro, quem a criou com
laços de afeto. A história remete ao conceito de família tentacular proposto por Maria Rita
Kehl244 e embasado nos afetos. O pai de Antônia é arquiteto, segundo ela, sempre mostrou-se
“inteligente e politizado, muito bondoso, preocupado com os outros e sempre muito ético na
profissão (...) Ele foi bem importante na minha formação tanto política, quanto musical”.
Quanto a sua mãe, Antônia relata que é uma fonoaudióloga dedicada às crianças com
necessidades especiais, que já fez faculdade de medicina chinesa e acupuntura, pois “ela gosta
de cuidar dos outros, é muito intuitiva e sensível”. Sobre seus pais, ela resume: “eles não nos
ensinaram a ganhar dinheiro, mas ensinaram a ter caráter e sinceridade”.
A entrevistada Luiza destaca a alta escolarização de sua mãe enfermeira e de seu pai
médico, ambos com doutorado: “sempre incentivaram e valorizaram muito a escola, a
universidade”. Luiza também conquistou o título de doutora em sua área profissional. A
entrevistada Daiana relata que sua mãe sempre trabalhou como babá e diarista, mas já trabalhou
com organização de festas, já seu pai trabalhou com máquinas de construção e atualmente é
funcionário público aposentado. Segundo a entrevistada, sua relação familiar sempre foi muito
boa: “meu pai e minha mãe também sempre deixavam as coisas livres para a gente tomar nossas
decisões. Eles trabalhavam muito, a gente ficava muito sozinha em casa, mas eu e minha irmã
do meio fazíamos tudo juntas”. A avaliação do que seria uma relação boa para ela abrange a
construção de liberdade de escolha, característica também citada pela entrevistada Antônia:
“meus pais sempre tentaram manter um diálogo e, com certeza, eu não tive uma educação

242
Ibidem p. 265
243
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução: Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990.
p. 46
244
KEHL, Maria Rita. Em defesa da família tentacular (2013). Disponível em:
<https://www.fronteiras.com/artigos/maria-rita-kehl-em-defesa-da-familia-tentacular>. Acesso em: 12 jan 2018.
80

rígida, principalmente liberdade para criatividade”.


A entrevistada Renata conta que sua mãe teve três filhas e casou logo após sua primeira
gravidez, quando parou de trabalhar profissionalmente e dedicou-se aos cuidados com suas
filhas em casa, até seu falecimento quando Renata tinha 19 anos. A entrevistada Laura narra ter
crescido com seu pai, falecido há três anos, e sua mãe, a qual mora em São Paulo e não tem
uma boa relação. Assim, comenta sobre valores aprendidos em família:

Fui criada com uma sensação de justiça e pertencimento grande, mas não sei dizer
quanto isso era da minha família e quanto era meu. (...) Meu pai tinha uma noção de
solidariedade, gentileza e amorosidade muito grande, era bem pacífico, ele me
inspirava nesse sentido. A minha mãe era muito determinada e muito rígida em
algumas coisas, ela sempre falou: “vocês têm que ser independentes”, ela fazia
questão que a gente fosse para a faculdade (...) os pais dela eram imigrantes, na família
fui a primeira pessoa a se graduar e a única a ter Doutorado (...) minha mãe ficou no
plano das ideias e a gente realmente fez, hoje todas são independentes (...) quando ela
se casou virou dona de casa, casou muito nova com 17 anos.

A partir das duas últimas narrativas percebe-se que em comum as mães das famílias não
exerceram carreiras profissionais e tornaram-se “donas de casa”, além disso, ambas tiveram
maridos que não se responsabilizavam pelas tarefas domésticas, nem pelos cuidados com os
filhos. Esse conjunto de fatores, de acordo com as entrevistadas, resultou em sobrecarga de
trabalho doméstico para suas mães e dependência financeira delas em relação aos maridos, os
quais trabalhavam fora de casa. As mães das entrevistadas reagiram a tal realidade de maneiras
diferentes, a mãe de Renata se submetia às vontades do marido e mantinha uma postura
carinhosa com os filhos, já a mãe de Laura afrontava o marido e, muitas vezes, mantinha uma
postura violenta. Conforme a entrevistada Renata, sua mãe foi a “empregada doméstica” de sua
família e sofreu violência patrimonial, física e moral devido à relação desigual:

(...) eu via ela muito subjugada pelo meu pai. Minha mãe morreu em decorrência de
uma gripe que virou pneumonia e depois septicemia, que não teria progredido de
maneira tão absurda se ela não tivesse imuno deprimida que, na minha leitura, tem
toda conexão com “que bosta de vida que eu me meti”, me dediquei à família, as filhas
cresceram, não tenho carreira. Era um relacionamento violento, até os sete anos meu
pai batia na minha mãe, depois sobraram as violências morais. Mas, por mais que eles
se ofendessem, meu pai era quem estava pagando e poderia ir embora, minha mãe era
muito refém daquela situação (...) na hora de tomar as grandes decisões quem decide
é ele, porque ele trabalhou e o dinheiro é dele.

Renata afirma que a violência patrimonial sofrida por sua mãe devia-se ao fato dela não
trabalhar e sentir-se sem poder de escolha, motivo pelo qual Renata disse a sua mãe que nunca
queria ser como ela. Mas, atualmente analisa a sua referência materna de outra forma: “entre
erros e acertos eu gostaria de ser muito parecida com ela, como mãe. Teve uma questão de
dependência, mas ela foi uma vítima do momento histórico, assim como meu pai foi (...) somos
81

produtos do meio, ele cresceu convicto que tinha o ‘direito ao trono’”. Nessa ponderação,
Renata conta ser difícil falar assim de um agressor, principalmente por ela ser mulher e
feminista, mas ela acredita que há comportamentos que não podem ser individualizados, pois
dependem do contexto histórico.
O modelo de masculinidade produzido pela cultura é pensado nesse relato, pois ao ser
assimilado por costumes familiares, muitas vezes, essencializa linguagens que podem tanto
manter poderes hegemônicos, quanto transformar eles. Segundo Miriam Grossi, “a linguagem
atua num plano inconsciente. Os mitos têm o poder de reatualizar valores da cultura que são
ensinados em diferentes momentos de nossa vida” 245. A linguagem ensinada na história da
humanidade é associada, para a autora, à manutenção do imaginário social de “dominação
masculina”, que é uma das principais questões teóricas feministas sobre o gênero. Miriam
Grossi afirma que “no final da década de 1970, havia a opinião geral de que a dominação
masculina era universal, em todas as culturas do mundo, os homens dominavam as mulheres
simbolicamente, politicamente e economicamente”246. Nessa percepção sobre a desigualdade
nas relações de poder de gênero há, muitas vezes, relações baseadas na obediência irrestrita aos
homens e no afastamento deles, conforme Renata:

(...) quando minha mãe morreu meu pai ficou meio perdido, todo mundo ficou meio
solto (...) Ela era um eixo afetivo, era o pilar da casa, sem dúvida. Tanto que até hoje
minha relação com meu pai é de gratidão e consideração, mas não é uma relação de
bem-querer. (...) com o meu pai acho que nunca existiu essa intimidade porque ele
assumiu um papel de pai tradicional, que saía cedo para trabalhar e quando volta para
casa, sentava no sofá para assistir o Jornal Nacional e queria silêncio. Quando ele
falava com a gente era sempre para ensinar, não havia uma troca, nem ele queria nos
ouvir genuinamente.

Além disso, Renata comenta sobre as punições e a relação de intimidade (ou falta de)
em sua família: “minha mãe batia tapa na bunda e com mais frequência (...) meu pai quando
chegava para bater era bastante violento (...) ele chegava e a casa mudava, a casa era nossa
quando ele não estava (...) era mais um incômodo, ele não era dali, ele não estava integrado
sabe?!”. A falta de integração entre homens e mulheres na família, que pode ser associado às
masculinidades hegemônicas apontadas por Robert Connell e James Messerschmidt, em que:

Relações com os pais são mais comumente focos de tensão, dada a divisão sexual do
trabalho no cuidado das crianças, a “cultura das longas horas” em profissões e
gerenciamentos, e a preocupação dos pais ricos no manejo de sua riqueza. A
ambivalência em direção aos projetos de mudança por parte das mulheres é
comumente outro foco de tensão, levando a oscilações da aceitação e rejeição da
igualdade de gênero por esses homens. Qualquer estratégia de manutenção do poder

245
GROSSI, Miriam Pillar. Masculinidades: Uma Revisão Teórica. Coleção Antropologia em Primeira Mão.
PPGAS/UFSC, 2004. p. 15
246
Ibidem p. 15
82

é mais comumente envolvida na desumanização de outros grupos e num


correspondente definhamento da empatia e do envolvimento emocional subjetivo. 247

A entrevistada Renata destaca o ressentimento de seu pai por não representar a


autoridade que gostaria perante as mulheres de sua família, principalmente com as irmãs dele:
“ele dizia: ‘elas são uma máfia, decidem tudo entre elas e não me falam nada’ esperando uma
consideração”. Conforme Renata, ele esperava ser comunicado e consultado sobre tudo, mas
parte desse afastamento dele pelas tias de Renata deve-se por ele nunca integrar-se às irmãs
com igualdade nas conversas: “ele sempre tem um tom de querer dar uma lição de moral, elas
ignoram completamente. Em parte, eu acho que elas têm razão. Isso com certeza atrapalhou
uma relação de amizade entre eles”. Sobre a expectativa de seu pai por ser homem:

(...) ele até que está resignado agora, mas vejo nele uma dor de uma expectativa do
que é ser macho, dos privilégios do macho que ele não obteve (...) minha irmã mais
nova até ela sair da casa do meu pai ele lavava as roupas dela, ele ficava bravo: ‘eu
que sou o cara e tenho que ficar lavando tudo para ela. Por que ela não faz? Tinha uma
expectativa que as filhas fossem cuidar, as irmãs fossem reverenciar e no final das
contas sobrou pra ele ser mais um reles mortal.

Robert Connell e James Messerschmidt entendem que “masculinidades hegemônicas


tendem a envolver padrões específicos de divisão interna e conflito emocional, precisamente
por sua associação com o poder generificado”248. Estes autores tratam o gênero dirigido ao
corpo e à tensão nas relações parentais associando a divisão sexual do trabalho e o cuidado com
as crianças, o que reforça o modelo familiar sexista.
A outra “dona de casa” que não exercia uma carreira profissional é a mãe da entrevistada
Laura, que viveu uma situação de dependência financeira do marido e de sobrecarga de trabalho
doméstico. De acordo com Laura:

(...) minha mãe me educou e meu pai me mimou, meu pai não participou da minha
educação, se eu dissesse “pai vou lá na China” ele dizia “tá bom, vai lá confio em
você”, isso me desesperava. Isso é uma omissão, deixar para a mãe todas as decisões
importantes de três crianças. (...) carinho e cuidado, são coisas bem diferentes, para
ele era muito diferente, hoje a gente já tem outra consciência de que as coisas têm que
caminhar juntas. (...) minha mãe fazia tudo isso. Meu pai era aquele pai anos 1980 que
saía de manhã para o trabalho e voltava à noite e a gente só convivia no final de
semana (...) ele não sabia nem fritar um ovo.

A ideia de “pai tradicional” remete à omissão com as tarefas domésticas, sendo citada
pelas entrevistadas Laura e Renata para definir os próprios pais. Esse perfil converge com a
descrição do pai da entrevistada Daiana, a qual apontou os serviços domésticos realizados

247
CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT James W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito.
Revista Estudos Feministas, Florianópolis. 2013. p. 271
248
Ibidem p. 271
83

exclusivamente por sua mãe na própria casa, além da profissão como faxineira, o que gerava
uma rotina de sobrecarga, pois “ela chegava e tinha que fazer um monte de coisas, ver os nossos
cadernos, limpar a casa. E meu pai ficava assistindo televisão, relaxando”. Daiana comenta
como era a divisão das tarefas domésticas entre seus pais: “o que ele fazia que minha mãe fala
com orgulho ainda, é que ele sempre lavou a roupa íntima dele. Mas, o resto sempre ela que fez
e sempre nessa ideia de ‘homem não sabe fazer as coisas, faz tudo errado’ e ele se colocava
confortavelmente nesse lugar também”. Essa convicção dos homens não pertencerem ao
trabalho doméstico e poderem se eximir dessa responsabilidade deriva do lugar confortável em
que os mesmos se posicionam. Esse costume, segundo Soraia Carolina de Mello, destaca que a
“divisão de tarefas em casa é disfarçada pela colaboração, a famosa ‘ajudinha’ dos homens nas
responsabilidades domésticas, que continuam sendo aceitas como femininas”249.
Diante dessa questão, Connell e Messerschmidt ressaltam a relevância de pensar “na
compreensão das masculinidades como projetos e a identidade masculina como tendo sempre
sido uma realização provisional no período de uma vida” 250. Os autores argumentam contra a
ideia do conceito de masculinidade hegemônica reduzir-se no determinismo estrutural e apagar
o sujeito, porque a masculinidade para eles define-se como “uma configuração de práticas
organizadas em relação à estrutura das relações de gênero. A prática social humana cria relações
de gênero na história. O conceito de masculinidade hegemônica embute uma visão histórica
dinâmica do gênero na qual é impossível apagar o sujeito”. Masculinidade para eles é como um
“projeto” social pensado para os homens, que ganha sentido em um contexto, bem como a
feminilidade para as mulheres, ambas não são características naturais e imutáveis.
Tal dinâmica de gênero implica na referência das mulheres das famílias que, em maioria,
assumem uma sobrecarga de trabalho doméstico não remunerado no Brasil. Esse trabalho
equivale a 11% do PIB do país, segundo os cálculos da pesquisadora Hildete Pereira de Melo 251,
em que “chamada ‘economia do cuidado’ é o conjunto de atividades não remuneradas,
geralmente exercidas por mulheres, como a limpeza da casa, preparação de alimentos e o
cuidado com crianças, idosos e doentes da família” 252.

249
MELLO, Soraia Carolina de. Discussões feministas na imprensa para mulheres: revista Claudia e o trabalho
doméstico (1970-1989). Tese de Doutorado em História na UFSC. Florianópolis, 2016. p. 18
250
CONNELL, Robert W.; MESSERSCHMIDT James W. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito.
Revista Estudos Feministas, Florianópolis. 2013. p. 259
251
Professora de economia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e vice-presidente da Associação Brasileira
de Estudos do Trabalho (Abet)
252
NUNES, Dimalice. Trabalho doméstico não remunerado vale 11% do PIB no Brasil (2017). Disponível
em: <https://www.cartacapital.com.br/economia/trabalho-domestico-nao-remunerado-vale-11-do-pib-no-brasil>.
Acesso em: 22 nov 2017. “A proposta de reforma da Previdência estabelece 62 anos como idade mínima para que
mulheres possam se aposentar e 65 anos para os homens. Apesar da diferença, especialistas em gênero e
participação da mulher no mundo do trabalho afirmam que o cálculo exclui as horas diárias que mulheres trabalham
84

A noção cultural de gênero sobre tais competências serem “naturalmente” do feminino


associado às mulheres remete à noção de flexibilidade e qualidades de minúcia, paciência e
empatia, segundo Molinier e Daniel Lang, que mostra “a positividade da relação entre
feminilidade e trabalho, numa relação oposta à da virilidade” 253. Entende-se que tais limitações
permeiam as relações familiares de modo amplo e as noções sobre virilidade associadas aos
homens nas relações de gênero, para Pascale Molinier e Daniel Lang, revestem-se de atributos
sociais como “a força, a coragem, a capacidade de combater, o ‘direito’ à violência e aos
privilégios associados à dominação daquelas e daqueles que não são – e não podem ser – viris:
mulheres, crianças, etc”254. Os autores afirmam que a masculinidade e a feminilidade definem-
se em sua relação e por meio dela, possibilitando fortalecer ou desconstruir tais papéis
familiares que, frequentemente, exploram o trabalho doméstico das mulheres.
A entrevistada Laura trata sobre a desconstrução familiar que busca em relação a sua
mãe: “tudo que eu faço hoje tem base na educação violenta que eu tive, quando eu descobri que
estava grávida se tinha uma certeza é que minha filha não seria vítima de violência como eu
fui. Minha mãe era uma pessoa muito violenta, é ainda até hoje”. Ela afirma que assumiu um
posicionamento contra isso: “se eu escolho não conviver com pessoas violentas, não faz sentido
fazer vista grossa apenas porque é minha mãe”. Quanto a reação de seu pai diante da postura
de sua mãe, ela cita: “(...) ele não concordava, eu lembro de eles terem discussões a respeito
disso, mas ele também tinha medo dela, não tinha um ser humano que não tinha medo dela e
ela achava isso bom, uma espécie da manutenção do poder”. Há considerações neste contexto
de trabalho doméstico exacerbado para uma mãe, conforme Ligia Sena, da Cientista Que Virou
Mãe, observa sobre a relação de pais e filhos: “é fácil ser amado por uma filha quando a ele só
coube nos levar para passear, enquanto a ela coube tudo de complexo que é necessário para
criar as crianças, de maneira compulsória e impedindo que ela seguisse em frente com seus
anseios pessoais” 255. As tarefas que couberam ao pai e à mãe são referidas pela autora como
um lugar de atuação que foi apropriado ou conformado.
Nesse modelo familiar em que as mães são consideradas mais “rígidas” ao criar os filhos
e os pais mais afetuosos, há o problema da omissão deles no trabalho doméstico. A história da
entrevistada Daiana exemplifica isso: “meu pai era bastante afetuoso e minha mãe era mais

a mais que os homens e colabora para invisibilizar ainda mais o trabalho doméstico não remunerado”
253
MOLINIER, Pascale; LANG, Daniel. Feminilidade, Masculinidade, Virilidade. In: HIRATA, Helena
(Orgs.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 104
254
Ibidem p. 101
255
SENA, Ligia Moreiras. Dia dos pais - desculpem a falta de abraços, mas o “nem todo homem” não nos
serve. (2017) Disponível em: <http://cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/dia-dos-pais-desculpem-a-falta-de-
abraos-mas-o-nem-todo-homem-no-nos-serve>. Acesso em: 20 nov 2017.
85

enérgica, na verdade não é isso, ela sempre cuidava, dava o que a gente pedia, conversava
muito, mas não era do toque e do carinho. Meu pai já era mais próximo”. Daiana relata uma
possível explicação sobre a diferença de seu pai ser mais afetuoso com as filhas e sua mãe ser
mais rigorosa e menos afetuosa com as filhas: “ela era mais brava, por isso eu sempre achei o
meu pai mais carinhoso porque ele cedia mais. Mas, ela aguentava a gente o dia inteiro e ele só
chegava à noite e ficava brincando, então era mais fácil, não é?!”. O termo aguentar parece
associar-se com a disciplina que sua mãe precisava manter para administrar o tempo entre o seu
emprego, as tarefas da casa e o cuidado com as filhas.
As posturas consideradas pouco afetuosas das mães de Daiana e de Laura podem ser
entendidas como resultado da rotina de sobrecarga com as tarefas domésticas e o cuidado com
os filhos, por não contar com seus maridos para compartilhar essas responsabilidades. O
comportamento de pais omissos nas tarefas domésticas é fato frequente nas histórias de quatro
das cinco entrevistadas nesta pesquisa, que se repete na história de Antônia:

(...) minha mãe sempre foi a que fez tudo, mesmo estudando e trabalhando sempre
cuidava da gente, que fazia comida, que limpava a casa. Ela sempre tomou muito isso
pra ela, ela nunca cobrou da gente e do meu pai, vejo isso muito forte até hoje com
meu pai doente, ela só falta por comida na boca dele, já é difícil cuidar de uma pessoa
nessa situação e ela faz o dobro, o triplo do que ela precisaria de fato fazer.

Nessa perspectiva do trabalho doméstico como relação de “servidão voluntária”, Helena


Hirata aborda que as mulheres incorporam uma disponibilidade permanente aos outros. Essa
afetividade do trabalho que se confunde com amor é questionada por estudos feministas, pois
se trata de um fator que comumente justifica a manutenção de tais encargos apenas às mulheres
e gera invisibilidade do trabalho delas na esfera doméstica. Helena Hirata ao citar os conceitos
de Louise Vandelac et al. sobre a relação indissociável entre amor e trabalho na ordem
doméstica, afirma que

(...) a palavra ‘amor’, conceito que é um saco-de-gatos onde tudo cabe, conjuga-se
também no masculino e no feminino (p. 368): essa constatação responde de antemão
àqueles (àquelas) que se interrogam sobre o (ou sobre a ausência de) amor de seus
cônjuges e amantes que se esquivam à divisão das tarefas domésticas e à relação de
serviço com suas esposas e filhos.256

Percebe-se a construção de estereótipos de gênero proveniente, em grande parte, da


memória familiar que contém a afetividade como aparente álibi das relações sexistas no
trabalho doméstico, entre outras. Visto isso, segundo Daniela Ramos,

256
HIRATA, Helena. Trabalho doméstico: uma servidão “voluntária”? In: GODINHO, Tatau; SILVEIRA, Maria
Lúcia da. Políticas públicas e igualdade de gênero. São Paulo: Prefeitura de São Paulo – Coordenadoria Especial
da Mulher, 2005. p. 50
86

(...) as desigualdades na família estão alinhadas com desigualdades na economia e


política, num círculo vicioso. (...) A origem na família seria determinante de sua
configuração social também em outros âmbitos. A desigualdade de gênero, ao
contrário de outras, como as de classe e raça, se constrói de forma irrefletida entre
pessoas que convivem intimamente e que possuem laços fortes, assentados em valores
de honra e afetividade, relacionados a cuidar dos filhos e de outros familiares. Trata-
se de uma desigualdade sub-reptícia, mascarada e duradoura porque encoberta por
relações de amor entabuladas por familiares e amigos num contexto supostamente
marcado pelo consenso e altruísmo e desprovido de assimetrias de poder.257

A reformulação de tais valores desiguais requer o entendimento sobre o sujeito


individual, a organização social e a natureza das suas inter-relações pois, segundo Joan Scott,
todos têm importância crucial para compreender as relações e suas mudanças. Para a autora,
precisa-se “substituir a noção de que o poder social é unificado, coerente e centralizado por
alguma coisa que esteja próxima do conceito foucaultiano de poder258, entendido como
constelações dispersas de relações desiguais constituídas pelo discurso nos ‘campos de
forças’”259. Nesse processo estrutural há o enfoque de Joan Scott para a “realização humana
como um esforço de construir uma identidade, uma vida, um conjunto de relações, uma
sociedade dentro de certos limites e com a linguagem – conceitual – que ao mesmo tempo
contenha a possibilidade de negação, de resistência e de reinterpretação” 260.
A capacidade de resistir a tais padrões sexistas e reconstruir relações de gênero mais
igualitárias na família exige a reinterpretação do trabalho doméstico. Em conformidade com a
entrevistada Renata na casa do pai de seus filhos, onde as crianças moram a maior parte dos
dias e têm empregada doméstica diariamente, “não precisam se preocupar com nada”. Por isso,
ela educa diferente quando seus filhos estão em sua casa: “eu tiro a roupa do varal eles têm que
dobrar e guardar, vez em quando eles ajudam a limpar o banheiro, cada um lava pelo menos o
seu prato. (...) É para ter uma noção que não é mágico, se ninguém fizer não vai estar feito”.
Renata também discute as questões de divisões do trabalho doméstico com os filhos: “por que
só as mulheres limpam? Por que na casa do teu pai é uma mulher que limpa, ainda que pague?
Se as mulheres estão limpando, o que elas estão deixando de fazer? O que os homens estão
fazendo enquanto as mulheres limpam?”. A reflexão mostra-se produtiva na educação de seus
filhos, pois trata de uma realidade que afeta a vida de muitas mulheres, como explana Bila Sorj:

257
RAMOS, Daniela Peixoto. A família e a maternidade como referências para pensar a política. Revista
Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015. p. 89
258
FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. 25a. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012. Nas relações de poder
disciplinares na sociedade “que surge uma das teses fundamentais da genealogia: o poder é produtivo de
individualidade. O indivíduo é uma produção do poder e do saber”. p. 19
259
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Tradução: Christine Rufino Dabat; Maria
Betânia Ávila. New York, Columbia University Press. 1989. p. 20
260
Ibidem p. 21
87

A questão do trabalho doméstico e dos cuidados com a família vem ocupando um


lugar cada vez mais importante na agenda social e política de muitos países
desenvolvidos, sobretudo como um meio para combater as desigualdades de gênero
no mercado de trabalho e nas relações familiares. (...) A norma predominante de que
os cuidados são proporcionados informalmente pelas famílias, em especial pelas
mulheres, tem importantes implicações para a construção de uma sociedade baseada
na autonomia e na independência das mulheres. Há muito tempo as feministas
argumentam que a persistência das desigualdades de gênero no mercado de trabalho
é ao mesmo tempo causa e conseqüência do volume desproporcional de trabalho não
pago que realizam em casa.261

Enquanto as mulheres despendem mais tempo “limpando e cuidando”, segundo a autora,


os homens conseguem se integrar ao mercado de trabalho e atingir, de maneira mais plena, a
vida política e econômica do que as mulheres que dedicam parte substancial do tempo aos
cuidados da família. Nesse contexto, “hoje no Brasil as mulheres representam 43% da força de
trabalho formal. Seu ingresso no mercado de trabalho remunerado aumenta ano a ano. Quase
não muda, no entanto, na divisão do trabalho doméstico em família: elas continuam trabalhando
muito mais em casa do que os homens”262.
As mulheres confirmam essa realidade, muitas vezes, por sentirem que são as principais
“donas da casa” e que precisam cuidar de tudo sozinhas, mesmo conciliando carreira
profissional, porém, muitas vezes essa não parece uma escolha. A questão é problematizada por
Maria Angeles Duran263 (1983 apud SORAIA DE MELLO, 2016): “as trabalhadoras
domésticas não escolheram livremente o seu trabalho, porque não se pode chamar opção livre
àquela que apresenta como alternativa aparente a renúncia ao amor, aos filhos e ao lar”264. As
relações familiares de gênero e a problemática da dominação e do consentimento das mulheres
é crucial para discutir a servidão doméstica, como refere Helena Hirata:

O lugar do ‘modo de produção doméstico’ (Delphy, 1998), fundado sobre a opressão


das mulheres, parece central nessa reiteração da dominação, nessa permanência da
divisão sexual do trabalho no espaço e no tempo. (...) A realização desse trabalho

261
SORJ, Bila. O trabalho domético e de cuidados: novos desafios para a igualdade de gênero no Brasil In:
SILVEIRA, Maria Lucia da; TITO, Neuza (Orgs). Trabalho Doméstico e de Cuidados: por outro paradigma de
sustentabilidade da vida humana. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2008. p. 77
262
DIAS, Tatiana. 5 fatos sobre a divisão do trabalho doméstico no Brasil. (2016) Disponível em:
<https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/12/06/5-fatos-sobre-a-divis%C3%A3o-do-trabalho-
dom%C3%A9stico-no-Brasil>. Acesso em: 30 nov 2017.
“Os homens vêm assumindo um papel mais ativo no âmbito doméstico, principalmente em relação aos filhos, mas
a principal responsabilidade ainda é das mulheres na maior parte das famílias (...) A situação brasileira não é
diferente do resto do mundo. O trabalho doméstico não remunerado - ou seja, aquele feito na própria casa - ainda
é visto como um ‘problema de mulheres’. Mas delegar essas tarefas exclusivamente ao sexo feminino, diz o
relatório, afeta não apenas as mulheres e a conquista da igualdade de gênero, como também as crianças, os homens
e a economia dos países”.
263
DURAN, Maria Angeles. A dona de casa: crítica política da economia doméstica. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1983.
264
MELLO, Soraia Carolina de. Discussões feministas na imprensa para mulheres: revista Claudia e o trabalho
doméstico (1970-1989). Tese de Doutorado em História na UFSC. Florianópolis, 2016. p. 33
88

gratuito fora do contexto coercitivo (escravidão, servidão etc.), coloca um problema


ao sociólogo, notadamente quando: 1) admite-se que se trata efetivamente de trabalho
(pois pode-se dizer que não se trata de trabalho, mas de serviços prestados em troca
de compensações afetivas, materiais, simbólicas; ou que se trata do resultado de
negociações no interior do casal, o que pressupõe necessariamente interação e
reciprocidade etc.); 2) postula-se que se trata de amor (pois pode-se dizer que não se
trata de sentimento amoroso mas de uma lógica interiorizada, de normas e papéis
socialmente impostos, de alienação etc.; ou, do ponto de vista do sujeito, de escolhas
estratégicas etc.). 265

As respostas possíveis para essa questão, segundo Helena Hirata, abordam a


psicodinâmica na relação entre trabalho, subjetividade e afetividade, em que afetos e trabalho
parecem indissociáveis. A valorização do trabalho doméstico, no contexto das dimensões
subjetivas, envolve a sustentabilidade da vida humana definida pelo termo trabalho. Segundo
Cristina Carrasco, isto supõe uma relação harmônica entre humanidade e natureza e, portanto,
deve acompanhar a noção de equidade: “centrar o objetivo na vida humana significa dar
visibilidade, valor e reconhecimento ao trabalho de cuidados; recuperar uma experiência
feminina sem a qual não seriam possíveis nem a vida nem o mercado” 266. A autora questiona a
autonomia dos processos mercantis defendida pela economia dominante:

(...) em um processo mercantil, de onde vem a força de trabalho? Os salários são


suficientes para assegurar a reprodução humana? O mercado pode substituir as
relações, os afetos, as subjetividades e paixões que se dão no espaço não mercantil e
são parte essencial do ser humano? (...) explicitar, nos esquemas econômicos, o
trabalho familiar doméstico como trabalho necessário é uma questão de justiça, mas
também de sensatez e rigor, caso se pretenda analisar e interpretar a realidade. 267

Para Cristina Carrasco, o trabalho mercantil desvalorizou a atividade tradicionalmente


realizada no lar “ao eliminar a relação humana a ela incorporada, transformando-a em um
trabalho alienado que só se pode valorizar de maneira abstrata, isto é, ao lhe conferir um valor
monetário”268. Nessa perspectiva, cabem discussões sobre o lar como um espaço de
transformação das relações de gênero na atualidade, como aborda a entrevistada Laura sobre o
trabalho doméstico: “uma mulher que escolhe ser dependente financeiramente do marido para
cuidar da casa e das crianças precisa ser encarada como profissional (...) ela teria inclusive
direito trabalhista pago pela família, para quando ela chegar na idade de se aposentar, também
ter direito”. Percebe-se a desvalorização do trabalho doméstico não remunerado em relação às

265
HIRATA, Helena. Trabalho doméstico: uma servidão “voluntária”? In: GODINHO, Tatau; SILVEIRA,
Maria Lúcia da. Políticas públicas e igualdade de gênero. São Paulo: Prefeitura de São Paulo – Coordenadoria
Especial da Mulher, 2005. p. 44
266
CARRASCO, Cristina. Por uma economia não androcêntrica: debates e propostas a partir da economia
feminista. In: SILVEIRA, Maria Lucia da; TITO, Neuza (Orgs). Trabalho Doméstico e de Cuidados: por outro
paradigma de sustentabilidade da vida humana. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2008. p. 96
267
Ibidem p. 96
268
Ibidem p. 97
89

outras áreas profissionais e a possibilidade de profissionalização das donas de casa. Segundo


Cristina Carrasco (2008 apud SORAIA DE MELLO, 2016) isto recai nas

(...) fronteiras da economia (neoclássica e outras) – que considera apenas a economia


de mercado – é estreita e excludente e não permite a análise do trabalho não
remunerado, atividade básica para a sustentabilidade da vida humana e para a
reprodução da força de trabalho necessária para o trabalho de mercado (...)
pressupostos da teoria neoclássica estereotipam a natureza da vida das mulheres: elas
são tratadas essencialmente como esposas e mães e, portanto, como trabalhadoras
menos produtivas que os homens no trabalho de mercado. (...) A cegueira analítica
decorrente desse enfoque não deixa que os homo economicus sejam vistos como seres
completamente dependentes das mulheres em tudo o que se refere às atividades de
cuidados, sem as quais eles nem sequer existiriam. 269

Cristina Carrasco afirma que a economia feminista mostra que a economia monetária
depende da economia não monetária. A autora aborda a questão do trabalho doméstico a partir
de indicadores não androcêntricos para questionar as problemáticas suscitadas pela economia
feminista. A teoria feminista fundamenta tal economia e pretende uma mudança profunda para
construir uma economia que integre e analise a realidade de mulheres e homens, sobre o
princípio básico de satisfação das necessidades humanas. Conforme Cristina Carrasco, isso
fundamenta-se na teoria política “do ‘direito a ter direitos’. Insiste-se na discriminação e na
desigualdade das mulheres em relação aos homens (...) esta perspectiva propõe que a situação
seja compreendida a partir das próprias mulheres, de suas potencialidades, e não daquilo que
lhes falta para se igualarem aos homens”270. Assim, questiona-se o modelo vigente que, para a
autora, significa pensar um mundo para mulheres e para homens muito além do discurso
dominante, como contextualiza Soraia Carolina de Mello:

Essa observação de Cristina Carrasco é recente, mas dialoga diretamente com Maria
Angeles Duran, que 25 anos antes escreve que “Muitos homens passam a vida inteira
sem perceber que a base econômica de sua família seja mais sua esposa do que eles
mesmos.” Esse tipo de constatação pode nos levar a pensar que o debate, de alguma
forma, se estagnou nesses últimos anos, ou talvez seja um debate que não se difundiu
o suficiente para se desenvolver por outros caminhos. (...) até porque as
transformações nunca são lineares e homogêneas, e o que pode ser considerado novo
e tradicional convive e interage o tempo inteiro na história. 271

A valorização cultural distorcida dos tipos de trabalhos podem ser percebida no relato

269
MELLO, Soraia Carolina de. Discussões feministas na imprensa para mulheres: revista Claudia e o trabalho
doméstico (1970-1989). Tese de Doutorado em História na UFSC. Florianópolis, 2016. p. 99
270
CARRASCO, Cristina. Por uma economia não androcêntrica: debates e propostas a partir da economia
feminista. In: SILVEIRA, Maria Lucia da; TITO, Neuza (Orgs). Trabalho Doméstico e de Cuidados: por outro
paradigma de sustentabilidade da vida humana. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2008. p. 94
271
MELLO, Soraia Carolina de. Discussões feministas na imprensa para mulheres: revista Claudia e o trabalho
doméstico (1970-1989). Tese de Doutorado em História na UFSC. Florianópolis, 2016. p. 100
90

da entrevistada Daiana sobre seu pai: “ele fazia o trabalho pesado, sabe?! Carregava areia,
porque ele trabalhava em construção, trabalho pesado entre aspas”. A comparação criou a ideia
de que trabalho doméstico não é pesado o suficiente para precisar ser compartilhado, em prol
da cooperação em família, visto que a mãe de Daiana enfrentava uma dupla jornada de trabalho
com a profissão e as tarefas de casa. Helena Hirata estuda os estereótipos sexuados no trabalho
segundo o par masculinidade/virilidade e feminilidade/delicadeza e afirma: “a virilidade é
associada ao trabalho pesado, penoso, sujo, insalubre, algumas vezes perigoso, trabalho que
requer coragem e determinação, enquanto que a feminilidade é associada ao trabalho leve, fácil,
limpo, que exige paciência e minúcia”272. Bila Sorj interpreta as relações desiguais de trabalho:

(...) distribuição mais igualitária do tempo total de trabalho entre os sexos requer
profundas mudanças em pelo menos outras duas esferas (...) o crescente aumento da
participação das mães no mercado de trabalho exige que se reconsidere a organização
do trabalho para homens e mulheres, de modo que a conciliação entre trabalho e
família possa ser efetivamente realizada, sem prejuízo da qualidade de vida das
mulheres e das crianças. A segunda esfera é relativa à divisão das tarefas domésticas
entre homens e mulheres, de forma que ambos, participem plenamente da esfera do
trabalho remunerado e dos cuidados familiares. 273

O ideal de relações familiares mais igualitárias em torno das tarefas domésticas foi
percebido nos relatos da entrevistada Luiza, que cita a cooperação entre seus pais após as suas
aposentadoria da carreira profissional. Antes disso, eles contavam com empregada doméstica
para fazer a maior parte das tarefas do lar, quando Luiza era criança e adolescente: “na fase
adulta que eu vejo uma divisão das tarefas domésticas entre eles, minha mãe cozinha, meu pai
lava a louça, quando eu fico na casa dos meus pais cada um arruma sua cama, mas eu cresci
num contexto assim de não fazer nada, mimadinha mesmo”. Apesar de ter crescido distante dos
afazeres domésticos, ela considera primordial ensinar para suas filhas que as responsabilidades
domésticas devem ser democráticas e reproduzir o modelo familiar cooperativo que seus pais
demonstram atualmente.

2.2 REFERÊNCIAS DAS MULHERES NAS FAMÍLIAS

(..) se a gente defender a paz para todos, a não violência, os direitos para todos, isso
não é um valor feminino, é um direito humano. (...) quando eu digo ‘vocês precisam
valorizar o feminino’ não estou falando de um feminino como instituição holística,
estou falando de presença, de sujeito. A representação disso não como valores

272
HIRATA, Helena. Divisão – relações sociais de sexo e do trabalho: contribuição à discussão sobre o conceito
de trabalho. Brasília, MEC/Inpe, v.1, n.65, p.39-49, jan./mar. 1995. p. 42
273
SORJ, Bila. O trabalho domético e de cuidados: novos desafios para a igualdade de gênero no Brasil. In:
SILVEIRA, Maria Lucia da; TITO, Neuza (Orgs). Trabalho Doméstico e de Cuidados: por outro paradigma de
sustentabilidade da vida humana. São Paulo: Sempreviva Organização Feminista, 2008. p. 88
91

intrínsecos, porque foi isso que nos acorrentou por muito tempo.

Com este posicionamento, a entrevistada Laura baseia suas novas práticas de


maternagem voltadas à equidade de gênero, que direciona a educação de sua filha e também a
defesa dos direitos das mulheres na militância feminista. Nessa proposta de igualdade, amplia-
se o sentido cultural de valores que comumente formam estereótipos de gênero, entre feminino
e masculino excludente, como no sexismo combatido pela entrevistada Laura: “hoje estou
exatamente no momento da desconstrução. (...) acho um erro dizer que determinadas coisas são
valores femininos, porque senão significa que devemos aceitar que certas coisas são valores
masculinos”. Decidir praticar essa proposta de igualdade requer, portanto, uma desconstrução
de gênero, que enfrenta desafios culturais como as desigualdades de uma matriz de gênero
dominante, como explica Heleieth Saffioti:

(...) pode-se aproveitar da concepção de Butler para pensar múltiplas matrizes de


gênero: uma dominante e as demais competindo pela hegemonia. Desta sorte, não se
trata de pensar uma nova educação fora do gênero, mas fora da matriz dominante,
adotando-se uma matriz alternativa ou fundindo-se para efeito de observância,
algumas matrizes subversivas, sem jamais considerá-las como desordem (...) a própria
Butler oferece, por meio do uso do conceito de performance, um caminho importante
para se sair do impasse. (...) esta mobilidade pelas distintas matrizes de gênero permite
a ressignificação das relações de poder, o que constitui o objetivo prioritário das
diferentes vertentes do feminismo.274

A precedência do gênero na constituição da identidade e das subjetividades humanas é


destacado por Heleieth Saffioti, por definir a performance que resulta em expressões de gênero.
A educação feminista, questiona as relações de poder por meio dessas expressões culturais
baseadas nas feminilidades e nas masculinidades. Essa dicotomia, muitas vezes, prejudica a
autonomia das mulheres no âmbito das relações de gênero no trabalho doméstico por ser
considerado um trabalho exclusivamente de mulheres, entre outros costumes.
Nessa matriz de gênero alternativa da dominante em que transitam homens e mulheres,
o ideal feminista tem tornado o mundo mais “feminino”, segundo Margareth Rago 275, mas não
do ponto de vista essencializado e sim ratificando a valorização das mulheres como Laura
sugere acima, ao reconhecer um “saber-fazer” específico das mulheres, determinado pela
cultura e não por diferenças biológicas. As feministas buscam ressignificar a imagem social das
mulheres por meio dos direitos humanos, o que implica reconhecer os privilégios destoantes

274
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos pagu
(16) 2001: pp.115-136. p. 124
275
RAGO, Margareth. Feminizar é preciso: por uma cultura filógina. São Paulo em Perspectiva. vol.15 nº3. São
Paulo Julh/Set. 2001.
92

nas relações de gênero. Logo, tornar-se feminista significa destacar o problema de gênero, que
Guacira Louro identifica em um novo fazer intelectual desde 1970 “como docentes,
pesquisadoras — com a paixão política. Surgem os estudos da mulher. Tornar visível aquela
que fora ocultada foi o grande objetivo das estudiosas feministas desses primeiros tempos. A
segregação social e política a que as mulheres foram historicamente conduzidas” 276.
A consequência dessa ampla invisibilidade como sujeito, inclusive como sujeito da
Ciência, segundo a autora, foi produzida a partir de discursos sobre a esfera do privado, o
mundo doméstico considerado o “verdadeiro” universo da mulher, apesar de há muito tempo
as mulheres camponesas, negras, entre outras da classe trabalhadora já exercerem atividades
fora do lar. Por isso, a ideia do privado ser naturalmente um espaço de atuação das mulheres é
gradativamente desconstruída por muitas delas, assim como as mães feministas desta pesquisa
que seguem matrizes de gênero alternativas ao promoverem novas práticas de maternagem na
liderança familiar voltada ao fortalecimento das mulheres.
Essas características mostram-se presentes nas histórias familiares das entrevistadas, o
que gera identificação para muitas delas, como na história de Luiza: “minha mãe cresceu em
uma casa só com homens. Ela teve que batalhar para ter o espaço dela, sempre foi uma mulher
para frente, viajava sozinha e nunca deixou de fazer as coisas dela porque o marido dizia não.
Eu me identifico muito com o fato dela ser independente”. A entrevistada Daiana espelhou-se
nos conselhos e atitudes de suas tias e de sua irmã mais velha: “as minhas tias não aceitavam
ficar casadas com homens que atrapalhavam as vidas delas, nem com homens violentos. Acho
que sou parecida com elas na independência. Também, minha irmã mais velha ensinou a não
depender de homem”. Ainda, a entrevistada Antônia relata como são as mulheres de sua família
e de que forma ela se inspira nessas referências:

Eu acho que sou um pouco parecida com uma tia que se separou quando a filha era
pequena, que sempre viajou e fez as coisas dela e cuidava da filha. Depois de alguns
anos de análise percebo que sou um pouco parecida com a minha mãe no sentido de
querer dar conta de tudo e achar que vou conseguir fazer tudo ao mesmo tempo e que
eu tenho que ser excelente em tudo, o que é um horror. E não conseguir, esse é o
grande aprendizado.

Percebe-se nesse relato a referência da mãe como um espelho, mesmo que não em uma
descoberta imediata, em razão da maternagem intensiva277 que sua mãe exercia e ela reproduz.

276
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista Petrópolis. RJ:
Vozes, 1997. p. 16-17
277
HAYS, Sharon. 1996. The Cultural Contradictions of Motherhood. New Haven: Yale University Press. Ver
página 20 da introdução deste trabalho. Ver página 20 da introdução desta pesquisa.
93

A entrevistada Laura também cita sua referência materna, que era um motivo de orgulho e
identificação, até que ela se tornou feminista, o que causou um afastamento de valores entre as
duas: “talvez hoje eu me assemelhe mais ao meu pai, ele era mais ponderado. (...) venho de
uma linhagem de mulheres com a personalidade muito forte, daí também vem a minha, mas
todas dependentes de um homem. Para mim ser dependente de um homem é uma afronta”. A
entrevistada Renata destaca as mulheres de sua família: “meu avô trabalhou na marinha
mercante, passou muito tempo fora de casa e minha avó se tornou a espinha da família. (...) Eu
procuro ser amorosa como minha mãe e ter um pouco da coragem da minha avó”.
Nessas histórias a independência das mulheres é destacada como decisiva nas suas
autonomias, o que se associa à liderança delas sobre as próprias escolhas e sobre a criação
familiar, mas também à independência financeira e profissional. Parte desse cenário é retratado
em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE278 através da Síntese de
Indicadores Sociais279 na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD entre 2004 e
2014, que demonstrou ter triplicado o número de lares chefiados por mulheres, destacando “os
diferenciais por sexo da pessoa de referência, especialmente no arranjo formado por pessoa de
referência sem cônjuge e com filhos, em que houve maior representação quando a mulher era
pessoa de referência (29,1%) em comparação ao homem como pessoa de referência
(17,2%)”280. Ainda, sobre esta pesquisa:

(...) ‘o aumento das mulheres enquanto pessoa de referência nos domicílios está
relacionada ao maior acesso delas ao mercado de trabalho’, disse a técnica Cíntia
Simões, pesquisadora do IBGE. A população feminina ocupada cresceu 21,9% na
última década e atingiu 42,4 milhões em 2014 -homens empregados eram 55,7
milhões. Houve também ganhos de formalização, com a entrada de nove milhões de
mulheres em postos com carteira assinada entre 2004 e 2014 (...) alta de 60% em
relação ao verificado dez anos antes.281

Considera-se uma nova posição das mulheres na sociedade que se deve, em grande
parte, ao maior número de mulheres no mercado de trabalho, com maior poder aquisitivo e de

278
IBGE. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv66777.pdf>. Acesso em: 19 jan
2018.
279
IBGE. Síntese de Indicadores Sociais é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD.
Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/trabalho/9221-sintese-de-indicadores-
sociais>. Acesso em: 19 jan 2018. “A PNAD 2015 é realizada pelo IBGE, complementada com outras estatísticas
do Instituto provenientes do Censo Demográfico 2010, Projeção da População do Brasil por Sexo e Idade, Pesquisa
Nacional de Saúde - PNS, Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar - PeNSE e Contas Nacionais Trimestrais”.
280
. IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de
Janeiro: IBGE, 2015. p. 40 Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv95011.pdf>.
Acesso em: 19 jan 2018.
281
FOLHAPRESS. Cresce número de mulheres chefes de família. (2015) Disponível em:
<https://www.correiodoestado.com.br/brasilmundo/cresce-numero-de-mulheres-chefes-de-familia/264740/>.
Acesso em: 19 jan 2018.
94

decisão nas famílias. Mas, isso não necessariamente significa autonomia para elas, pois muitas
dessas chefes de família assumem sozinhas o cuidado com os filhos e as tarefas domésticas
devido aos respectivos maridos e pais de seus filhos se mostrarem omissos nessas questões,
mesmo presentes no lar ou quando abandonam a família.
Destacam-se duas premissas da liderança das mulheres nas famílias. A primeira é que
muitas mulheres apesar de serem líderes de decisões em seus lares, não têm consciência
feminista. Ou seja, quando elas não percebem suas condições de gênero e tampouco exercem
práticas de maternagem voltadas à igualdade de gênero com seus filhos, como observa Bell
Hooks: “uma das principais dificuldades que as pensadoras feministas encontraram ao lidar
com o sexismo dentro das famílias era que, na maioria das vezes, eram as próprias mães que
transmitiam esse pensamento sexista. Mesmo em casas onde não havia pai” 282. A segunda
premissa é sobre os estereótipos de gênero que, muitas vezes, baseiam a capacidade de liderança
das mulheres em valores intrínsecos ao sexo, conforme as psicólogas Linda Carli e Alice Eagly:

(...) a mulher é associada a qualidades comunais, que sugerem preocupação com o


tratamento humano do próximo. Isso inclui ser particularmente afetuosa, útil,
simpática, bondosa, afável — e exibir, ainda, sensibilidade em relações interpessoais,
delicadeza, moderação na fala. Já o homem é associado a qualidades agentes, que
sugerem firmeza e controle. Isso significa ser especialmente agressivo, ambicioso,
dominante, autoconfiante e enérgico, além de individualista e autônomo. A lista de
atributos agentes também é associada, na mente da maioria das pessoas, com uma
liderança eficaz” 283

As autoras atribuem a estreita associação entre imagem de líder e imagem de homens à


longa história de predomínio masculino em papéis de liderança, um processo de construção
simbólica e comportamental. Em razão disso, buscam romper os limites do “teto de vidro”,
expressão que começou a ser utilizada há duas décadas para designar a barreira encontrada por
mulheres que almejam postos de liderança. Mas, Linda Carli e Alice Eagly argumentam que,

(...) a metáfora deixou de ser útil e que pode, inclusive, levar gestores a menosprezar
medidas que combateriam o mal pela raiz, onde quer que se manifeste. (...) surge uma
nova explicação para a escassez de mulheres no comando de empresas. Não é o teto
de vidro que impede a ascensão, mas vários obstáculos ao longo do caminho. Um
labirinto se torna infinitamente mais decifrável se visto do alto. Quando é possível
visualizar o quebra-cabeça em sua totalidade — o ponto de partida, a meta, o
emaranhado em si —, começam a surgir soluções.

Cria-se uma analogia das vivências familiares com as de uma empresa que necessita de

282
HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz Esteban Agustí, Lina Tatiana Lozano
Ruiz, Mayra Sofía Moreno, Maira P. Romo, Sara Vega González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p. 99
283
EAGLY Aice H.; CARLI. Linda L. A mulher e o labirinto da liderança (2007). Disponível em:
<http://hbrbr.uol.com.br/a-mulher-e-o-labirinto-da-lideranca/>. Acesso em: 11 dez 2017.
95

comunicabilidade e gestão eficiente para obter sucesso. Objetiva-se a partir disso, que as
mulheres percebam os mecanismos sociais causadores da desigualdade de gênero em relação à
noção de liderança, para que vejam o “mapa dos obstáculos” e encontrem os caminhos para
tomar decisões com mais segurança e possibilidade de promover equidade de gênero. Por isso,
valoriza-se a “feminização da cultura”284 argumentada por Margareth Rago, como um valor
humano e um poder de construir igualdade de gênero na sociedade.
Ratifica-se a importância de considerar as habilidades de liderar como práticas de
prerrogativas interpessoais e não de gênero pois, segundo James Hunter: “o bom líder faz com
que as pessoas o sigam e contribuam com alegria, sejam criativas, tornando-se melhores que
são capazes de ser, ou seja, liderança é a habilidade de influenciar pessoas para trabalharem
visando objetivos comuns, inspirando confiança por meio da força do caráter” 285. Essa noção
ampliada sobre liderança pode ser aplicada às relações familiares e permite repensar o senso
comum sexista, com aspectos políticos afirmados por Daniela Ramos:

(...) noções de feminilidade e masculinidade se imbricam com representações sobre


política, em especial na medida em que papéis familiares femininos e masculinos são
usados como referência para pensar a inserção de mulheres e homens na política (...)
se entende que o papel familiar do homem o impulsiona em direção à política, o da
mulher é visto como limitador de seu engajamento político. 286

As referências familiares de feminino e de masculino também fomentam o lar como


espaço de discussão política, o que pode favorecer as mulheres no engajamento contra as
violências domésticas. Associam-se as histórias conjugais, em que as mulheres dependentes
financeiramente dos maridos, muitas vezes, enfrentam violências morais e patrimoniais por
parte deles. A Lei Maria da Penha prevê especificamente esse crime para proteger as mulheres
de diversas violências domésticas e familiares, incluindo a patrimonial, que criminaliza
“qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos,
instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer as suas necessidades”287.
A entrevistada Laura relata: “eu já tive que depender da renda do pai da minha filha e

284
RAGO, Margareth. Feminizar é preciso: por uma cultura filógina. São Paulo em Perspectiva. vol.15 nº3. São
Paulo Julh/Set. 2001.
285
HUNTER, James. C. Como se tornar um líder servidor: os princípios de liderança de o monge e o executivo.
Rio de Janeiro: Sextante, 2006. p. 18
286
RAMOS, Daniela Peixoto. A família e a maternidade como referências para pensar a política. Revista
Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015. p. 102
287
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Formas de violência contra a mulher. Disponível em:
<http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/lei-maria-da-penha/formas-de-violencia>. Acesso em: 19 jan 2018. Há
também medidas protetivas contra esse crime específico e o processo criminal, onde o agressor responde
judicialmente pelos crimes cometidos contra o patrimônio da mulher.
96

ele usou isso contra mim, usou isso para me manter de maneira bastante sórdida e velada, que
é a violência subjetiva mais forte”. Laura pondera, ainda, sobre as trabalhadoras domésticas que
dependem financeiramente do marido:

(...) são outras mulheres, é preciso ter empatia, mas eu vejo como problemática a
dependência financeira das mulheres feministas. Não é um julgamento, porque cada
um sabe de si, sabemos como é importante a criação das crianças e que os homens
não se dedicam e aí nós vamos abandonar também?! É complicado, não dá para fazer
um julgamento, mas isso não nega que é problemático.

Nessa preocupação com os problemas de gênero que afetam diversas mulheres nota-se
a sororidade ou Sisterhood is powerful / la sororidad es poderosa citada por Bell Hooks: “a
união das mulheres não era possível no patriarcado, era um ato de traição, mas o movimento
feminista criou o contexto para que essa união fosse possível. Nós não nos unimos contra os
homens, nos unimos para proteger nossos interesses como mulheres”288. Na rede de apoio entre
mulheres há o reconhecimento das violências patrimoniais familiares sofridas e o
questionamento sobre poderes desiguais. Assim, observa-se que depender financeiramente de
alguém não deveria implicar em ser subjugado e violentado por quem produz a fonte de renda.
Entretanto, por razões culturais essa dependência é sobreposta às desigualdades de gênero e,
muitas vezes, provoca violências majoritariamente de homens contra as mulheres e torna isso
problemático, como afirma a entrevistada Laura e corrobora a Lei Maria da Penha. A
entrevistada Renata também cita a violência patrimonial que viveu:

(...) eu era sócia do meu ex-marido, de uma empresa de tecnologia juntos (...) eu
sempre tive uma remuneração bem menor do que teria no mercado, mas aquele salário
me supria. Morávamos no apartamento que o meu ex-marido já tinha comprado (...) e
quando as crianças nasceram o custo de vida aumentou, ele resolveu que a gente tinha
que comprar um apartamento novo, aí entrou um financiamento na vida, fralda, leite,
escola e eu fiquei estrangulada, aquela grana para mim não dava mais e ele exigia que
pagasse metade de tudo no centavo mesmo eu ganhando eventualmente menos. Ele
se colocava dono da empresa e tirava quanto queria para ele, mas pra mim não tinha
(...) depois de três anos eu quis me separar, ele pegou todos nossos bens, empresa e
disse “vai atrás dos seus direitos”, eu fiquei sem trabalho com um menino de três e
outro de quatro anos, sem grana, a poupança que tinha gastei para dar de entrada no
apartamento. Fiquei sem o meu patrimônio.

Tal contexto familiar remete aos conflitos de dominação das mulheres pelos homens
versus a resistência delas. A motivação de não aceitar injustiças e opressões, como no exemplo
da entrevistada Renata que reagiu ao seu relacionamento, ressalta o ímpeto de independência
admirado pelas entrevistadas desta pesquisa nas mulheres de suas famílias. A formação de

288
HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz Esteban Agustí, Lina Tatiana Lozano
Ruiz, Mayra Sofía Moreno, Maira Puertas Romo, Sara Vega González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p.
37
97

valores que prezam pela autonomia das mulheres também é percebida na criação familiar que
a entrevistada Antônia recebeu na infância:

(...) sempre fui muito independente desde criança sempre gostei de fazer as minhas
descobertas, eu nunca fui muito medrosa ou muito de ficar na barra da saia da mãe ou
a garotinha do papai. Meu pai me tratava bem como menino também (risos), como
menino não, né?! Mas para a época nos anos 1980 isso era tratar como menino, jogar
bola, em vez de me dar bonecas ele me dava umas espadas (...) sempre fui muito
incentivada em tudo que eu queria fazer, andar de skate, andar de patins, pintar o
cabelo de colorido. Eu gostava de ler então meu pai me dava todos os livros.

A possibilidade de promover uma formação familiar com diversas atividades para as


crianças potencializa a autonomia às meninas, pois desconstrói estereótipos de gênero com
referências limitadas consideradas femininas nas educações tradicionais. A desconstrução
distancia-se da educação sexista conforme Elena Belotti:

(...) a sensibilidade e a independência, como afirma Torrance, são indispensáveis para


a manifestação e realização da criatividade, para a maioria das meninas resulta
impossível conservá-la, justamente porque o seu espontâneo impulso de
independência, como o dos meninos, é barrado no nascedouro por um tipo de
educação que tem como objetivo principal a dependência. Acrescente-se a isto o
constante estímulo a desviarem a própria atenção dos problemas políticos,
intelectuais, sociais, artísticos, etc., para se ocuparem em pequenos e mesquinhos
problemas, que automaticamente restringe o horizonte cultural das meninas. 289

As brincadeiras sexistas e demais estímulos oferecidos desde a infância, em geral, não


desenvolvem as potencialidades das meninas para serem independentes e destemidas. Por essa
razão, torna-se importante pensar na integração de valores em uma formação não sexista que
fortaleça igualmente a independência e a sensibilidade de meninas e de meninos considerando,
como cita Guacira Louro, que gênero “passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando
que os projetos e as representações sobre mulheres e homens são diversos” 290.
As brincadeiras limitadas às meninas são tratadas pela entrevistada Daiana: “meus pais
são católicos né, então era só boneca, bem menininha mesmo. Minha mãe nos ensinou como
ela aprendia com as patroas que a gente tinha que tomar cuidado com as roupas, a gente fazia
ballet, tudo muito menininha”. Daiana destaca nesse trecho sua vontade de explorar diferentes
brincadeiras na infância, as quais não foram oferecidas a ela e que geralmente os meninos
brincavam: “eu era a mais desleixada, quando pedia brinquedo queria máquina de datilografia,

289

BELOTTI, Elena Gianini. Educação para a submissão: o descondicionamento da mulher. Tradução: Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis, Vozes, 1985. p. 152-153
290
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista Petrópolis. RJ:
Vozes, 1997. p. 23
98

teclado, máquina de fazer sorvete. Chegou uma idade que eu não queria mais boneca. Diferente
disso, a gente tinha uns carrinhos, mas só depois que a gente começou a escolher”. A conotação
dos termos “menininha” e “desleixada” podem ser contraditória, pois o primeiro remete à ideia
de organizada e obediente, já o segundo se opõe a esse comportamento, porém, no contexto
remetia à curiosidade e insurgência aos padrões, considerada uma postura incomum às meninas
na educação tradicional. Os comportamentos passivos podem ser pensados como estigmas de
feminilidades291que, na análise social de Fernanda Café, podem ser interpretados como
misoginia e homofobia:

Nem as mulheres querem ser femininas (...) as personagens femininas vistas como
fortes e empoderadas personificam muitos dos traços considerados masculinos,
mantendo uma divisão patriarcal dos papéis de gênero (...) A ideia de ser percebido
como fraco, como uma mulher, começa cedo na infância e nos persegue por toda a
vida (...) De que adianta dizer às meninas para lutar como uma garota se os homens,
detentores dos poderes simbólicos dentro do sistema social que é o patriarcado, se
recusam a aceitar qualquer coisa associada ao feminino como positiva e não querem
ser vistos como mulheres? Nessa lógica, ninguém quer reproduzir padrões de
comportamento femininos. Se associar a esses valores diminui o sujeito e o coloca à
mercê de violência”.

Há atributos socialmente aprendidos como femininos que Claude Zaidman questiona:


“por que negar o que a especificidade feminina – mesmo tendo nascido da opressão – poderia
nos dar?”292. Nessa capacidade de repensar o sentido do que é considerado feminino como algo
passível de valorização, atenta-se à possibilidade de modificar a educação tradicional
comumente sexista que, para Claude Zaidman “enfatiza o aspecto coercivo e repressivo da
transmissão de modelos”293 da aprendizagem intelectual à submissão para as meninas. Essa
ideia vai ao encontro da relevância da linguagem ao construir uma educação feminista, como
aponta Chimamanda Adichie: “a linguagem é o repositório de nossos preconceitos, de nossas
crenças, de nossos pressupostos. Mas, para lhe ensinar isso, você terá que questionar sua própria
linguagem”294.
A desconstrução dos discursos educacionais enfrenta a resistência do meio social e, por
isso, exige principalmente a reformulação linguística da pessoa que educa a criança. Essa
relevância é percebida no relato da entrevistada Luiza sobre sua filha: “ela adora o rosa (...) é

291
CAFÉ, Fernanda. A masculinidade tóxica e a rejeicão do que é considerado coisa de menina. (2017)
Disponível em: <http://www.cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/a-masculinidade-toxica-e-a-rejeicao-do-
que-e-considerado-coisa-de-menina>. Acesso em: 12 nov 2017.
292
ZAIDMAN, Claude. Educação e Socialização. In: HIRATA, Helena (Orgs.). Dicionário Crítico do
Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 83
293
Ibidem p. 82
294
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. Tradução Denise Bottmann.
1º ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 35
99

bem menininha, gosta das coisas boazinhas, de flor, de saia, mas por exemplo, ela adora a
princesa Valente aventureira que não queria casar”. Luiza conta que sua filha, apesar de ter
aprendido que cores e brinquedos não definem limites sobre o que ela pode ser ou fazer, as
preferências estéticas de sua filha são consideradas mais delicadas e remetem ao “boazinha” e
“menininha”, perfis que contrastam com o da personagem do filme Valente, que representa uma
princesa corajosa e independente.
Nesses relatos há uma linguagem direcionada às meninas, como aponta Chimamanda
Adichie sobre a noção de ser “boazinha” analisada por ela em um ambiente de recreação
infantil: “as mães das meninas eram muito controladoras, sempre ‘não pegue isso’ ou ‘pare e
seja boazinha’, e os meninos eram incentivados a explorar mais, não eram tão reprimidos e as
mães quase nunca diziam ‘seja bonzinho’” 295. A autora alerta para a reprodução de uma
educação que, consciente ou não, ensina que as meninas têm mais regras e menos espaço do
que os meninos. Há um reforço dos estereótipos de gênero às meninas nesse caso, como aponta
Elena Belotti, sobre uma conversa entre mãe e filha “num tom ronronante, piegas, como o que
quase todo mundo emprega ao tratar com crianças, um artificial sorriso constante, uma mímica
‘feminina’ por definição”296. Elena Belotti aborda as diferenças de tratamentos em que
“genitores têm fixo na mente um modelo bem determinado ao qual os filhos devem conformar-
se de acordo com o sexo”297. Para a autora, há diversos preceitos verbalizados que perpetuam
uma educação familiar limitante às meninas e aos meninos.
A promoção de autonomia às mulheres, nesse modelo de educação sexista, ainda está
vinculada ao estímulo cultural de formar uma família por meio do matrimônio e da maternidade,
como uma forma padronizada de alcançar felicidade. Muitas mulheres contestam esse padrão,
ao tomarem consciência de si assumem um comportamento que desestrutura o mito da
feminilidade imposta às mulheres, que converge com a atenção de Betty Friedan ao tema: “na
luta pelo direito de participar de tarefas importantes e tomar decisões na sociedade ao mesmo
nível que seu companheiro, elas negavam a sua realização através da passividade sexual, da
aceitação do domínio masculino e da maternidade”298. Esse pensamento impulsionou uma nova
história das mulheres, as quais passam a fortalecer suas potencialidades e desfazer a
naturalização e a obrigação social da maternidade e do casamento às mulheres. Tais questões
contêm estereótipos restritivos a conquista das mulheres por independência em muitos aspectos,

295
Ibidem p. 27
296
BELOTTI, Elena Gianini. Educação para a submissão: o descondicionamento da mulher. Tradução: Ephraim
Ferreira Alves. Petrópolis, Vozes, 1985. p. 64
297
Ibidem p. 66
298
FRIEDAN, Betty. Mística Feminina. Petrópolis: Vozes, 1971. p. 71 (1º ed. 1963)
100

como é percebido no relato da entrevistada Daiana:

(...) lembro que eu falava quando era pequena que teria um marido, mas sexta-feira
não iria querer saber dele, com oito anos eu falava ‘porque senão vou enjoar dele’. Eu
sempre pensei em ter filho, mas pensava em ter filho sozinha porque minha mãe já
falava que homem atrapalha, que tinha que ficar lavando roupa e cuidando de homem
e eu sempre quis viajar, estudar.

Angela afirma que foi criada com princípios para não ser dependente de homens e não
permitir que relacionamentos amorosos limitassem suas escolhas. Apesar disso, o senso comum
familiar sobre a valorização da instituição do casamento surge em sua história e também nos
relatos da entrevistada Luiza:

Fomos criados em uma família bem tradicional, tinha aquela expectativa de que eu
encontrasse um marido, casasse preferencialmente com alguém com estudo, com
profissão, mas nunca me foi imposto isso, digamos que eu cresci com essa expectativa
e ela fez parte do que eu esperava de mim por muito tempo (...) mas sempre tive muita
liberdade pra fazer minhas escolhas.

Mudanças estruturais nos valores da formação familiar também são necessárias para
possibilitar desconstruir, como cita Badinter “o modelo da complementaridade dos sexos que
comanda a estrita separação dos universos masculino e feminino e a ausência de uma política
familiar decididamente cooperante para as mulheres”299. A constatação da autora ocorreu ao
analisar diferentes países sobre nascimentos e constituições familiares em que a maternidade
começava a ser adiada por tais razões.
A criação de meninas voltadas à imposição cultural de casar e ser mãe, bem mais do que
aos meninos, compõe a história da entrevistada Antônia: “enquanto criança é isso eu sempre
fui muito moleca, nunca fui uma menininha princesa, nunca tive o sonho de ser princesa, nunca
tive o sonho de casar, também pela criação dos meus pais que nunca fizeram diferença entre
mim e meu irmão”. Essa sensação de ser libertada dos padrões sociais como feminino e
masculino na criação familiar é descrita pela entrevistada Renata, entretanto, ela cita quando as
diferenças de gênero surgiam de modo opressivo:

(...) sempre foi muito dito que meu pai queria um filho (...) cada uma de nós atendeu
a uma certa projeção desse menino do meu pai, minha irmã do meio era mais maria
moleca, para mim ele me dava kits de eletrônica para aprender e coisas assim. Então,
a gente não teve uma criação muito de ‘menina’ num certo sentido, ele sempre teve
um discurso que a gente tinha que trabalhar, mas ao mesmo tempo quando apertava o
calo esses papéis de gênero surgiam ‘essa casa está muito suja com tantas meninas,
vocês são mulheres por que vocês são assim?’. Mas, a nossa criação não foi voltada
para a maternidade e o casamento.

299
BADINTER, Elisabeth. Um Amor conquistado: o mito do amor materno; tradução de Waltensir Dutra. —
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 164
101

O modelo familiar centrado na maternidade e no casamento sustenta-se na história


secular de parentesco por agnação300, que exalta os sobrenomes dos homens como continuidade
familiar. Principalmente na sociedade ocidental, os sobrenomes das famílias acompanham esse
prestígio social e as relações de gênero com poderes desiguais. Para Chimamanda Adichie:
“nosso mundo ainda dá ao papel conjugal e maternal da mulher um valor muito maior do que a
qualquer outra coisa”301 e acrescenta que o matrimônio transfere o sobrenome do homem para
a mulher gerando um intercâmbio de identidade e de linhagem familiar implícito, como posse
do marido sobre ela. O título supervalorizado de Sra. “significa que o casamento muda a posição
social da mulher, mas não a do homem”302 e a mudança de documentação, como observa a
autora, não teria tanta importância se os homens igualmente precisassem passar por esse
processo.
As discriminações de gênero na família demonstram a dificuldade de construir valores
baseados nas capacidades múltiplas e não sexistas. Conforme Miriam Grossi, “o gênero se
constitui em cada ato da nossa vida, seja no plano das idéias, seja no plano das ações. O tempo
inteiro a gente está constituindo o gênero no nosso próprio cotidiano”303. A valorização desigual
sobre o masculino e feminino, ainda baseia outra história com a frustração do filho menino que
não nasceu na família, principalmente, pela expectativa do pai, como expressa Daiana:

(...) quando eu nasci minha mãe acreditou que eu era menino, fez aquelas simpatias
para descobrir e deu que era menino e eu nasci, ela ficou em choque (...) e eu era a
última filha, porque fizeram esterilização na minha mãe sem ela autorizar. (...) Meu
pai falou para ela “ah, agora você vai ter sempre gente para te ajudar” do tipo “e eu
não vou ter ninguém, sem nenhum homem”. Ela fez todo enxoval em cores verde
água, cores masculinas e aí nasceu eu.

Percebe-se a violência obstétrica sofrida pela mãe de Daiana com a esterilização na


cesariana e se não fosse isso ela engravidaria novamente pois queria muito um menino. A
vontade e a frustração de seus pais são sustentadas pela ideia sexista de que o parceiro do pai
para o futebol seria apenas um menino, assim como o auxílio para ajudar nas tarefas de casa
junto à mãe seria apenas incumbência de uma menina. A discriminação de gênero também
desponta nas cores do enxoval e na ideia de companheirismo que limita muitas relações entre

300
Agnação é o vínculo entre as pessoas da mesma família por parentesco civil estabelecido pela Lei. Cognação é
a união por proximidade cosanguínea, transmitido tanto pelo homem como pela mulher.
301
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para educar crianças feministas: um manifesto. Tradução Denise Bottmann.
1º ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 41
302
Ibidem p. 45
303
GROSSI, Miriam Pillar. Masculinidades: Uma Revisão Teórica. Coleção Antropologia em Primeira Mão.
PPGAS/UFSC, 2004. p. 09
102

pais e filhos, o que aconteceu na história de Daiana:

Quando a gente era pequena meu pai era mais próximo, sabe? Ele é muito diferente
de nós, ele não se manifesta sobre abslutamente nada, nunca vi meu pai bravo (...) do
jeitinho dele, mas ele participa. É assim com todas as minhas irmãs. Tem essa relação
de proximidade, mas quando chegou na adolescência mais ou menos uns doze anos
ele pensou ‘ah, não posso mais me envolver porque são mulheres’.

O pai de Daiana acreditava que não poderia aconselhar e conversar sobre sexualidade,
relações afetivas e outras questões da adolescência, enquanto a sua mãe conversava sobre tudo
com suas filhas. Isso causou um distanciamento entre pai e filhas, que talvez para ele parecia o
curso natural da relação familiar, porém, essas questões de gênero geralmente reprimem as
trocas afetivas e de diálogos íntimos entre relações parentais de sexos opostos. Exemplo de que
essas relações podem ser diferentes é o relato da entrevistada Luiza: “Meu pai sempre foi cabeça
bem aberta, acho que por ele ser ginecologista e obstetra e lidar com muita mulher (...) na
primeira vez que fui transar com um namorado e minha mãe falava para eu me preservar e ele
já dizia que sexo é bom, é para ser feito, só tem que aprender se cuidar”. Na intimidade familiar,
como na criação de diálogos e na transmissão de valores a partir disso, Flávia Biroli evidencia
que deve ser considerada uma geração ou reprodução não individual e espontânea e sim uma
construção social:

A família e as formas assumidas pela vida afetiva e pela intimidade são produtos
sociais não apenas porque variam no tempo, de acordo com valores, práticas culturais
e formas de organização da vida material, são também institucionalmente moldadas.
Em sua suposta neutralidade, que na verdade toma como dadas algumas formas da
vida familiar, ou pelo estímulo direto a determinados arranjos, o Estado e as normas
vigentes estimulam alguns modos de vida e desestimulam outros. (...) O cotidiano das
relações familiares afetivas e íntimas é bem mais matizado e plural, muitas vezes, do
que são as normas. Mas a vida dos indivíduos é afetada continuamente por essas
mesmas normas, e por isso sua privação ou simplificação é um problema. Tomar parte
em um ou outro arranjo significa vantagens, ou desvantagens, de acordo com os
valores sociais hegemônicos, mas, sobretudo, de acordo com as normas vigentes em
um dado contexto social. 304

A autora contribui para observar a interferência social presente na formação de relações


familiares, que ao se basearem por afetos podem reformular suas intimidades para além das
normas sociais impostas pela cultura como, por exemplo, as relações sexistas muitas vezes não
questionadas através das gerações. Desse modo, destaca-se a importância da mudança de
tradições ou normas sociais a partir da premissa não sexista de relações de gênero na família,
priorizando diálogos horizontais entre mulheres e homens da família em torno do cuidado
mútuo, que desassocie o companheirismo e o estreitamento de intimidade apenas entre pessoas

304
BIROLI, Flávia. Família: novos conceitos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014. p. 43
103

do mesmo sexo.
As relações de gênero abordadas neste capítulo, portanto, permitem pensar sobre como
as estruturas familiares compõem tradições expressas em comportamentos e valores morais que
podem ser transmitidos ou desconstruídos pelas novas gerações. Essas permanências e
transformações foram percebidas nas histórias das entrevistadas, bem como a importância das
referências maternas e paternas, destacando as mulheres nas famílias como referências de
identificação ou de superação. Os relatos demonstraram, também, questões de gênero
recorrentes associadas ao trabalho doméstico que, muitas vezes, abordam a sobrecarga das
mulheres junto às tarefas de maternagem e a falta de participação dos homens no cotidiano
doméstico. O próximo capítulo apresenta a observação de como ocorrem mudanças nas relações
familiares com as novas práticas de maternagem voltadas à equidade de gênero, como narram
as mães feministas da Cientista Que Virou Mãe. Nas entrevistas elas demonstram como
atribuem as práticas de maternagem aos seus ideais feministas e como percebem as suas
militâncias políticas.
104

CAPÍTULO 3. AS MÃES FEMINISTAS DAS FAMÍLIAS

A partir do posicionamento feminista, muitas mulheres contemporâneas estão


promovendo novas reflexões e práticas em defesa da igualdade de gênero, como as mães
feministas que praticam a maternagem e as relações familiares junto à militância feminista.
Essa mediação do mundo com interferências baseadas na transmissão de valores das famílias,
possibilita pensar na proposta de transformação social por meio de novas relações de gênero e
novos modelos familiares. A formação que as mães feministas proporcionam aos seus filhos
pode ser diferente de suas gerações anteriores, devido à iniciativa de romper laços ancestrais,
como das tradições sexistas. Necessita-se diferenciar a maternidade como instituição cultural e
biológica, tradicionalmente opressiva às mães, e a maternagem como vivências das mulheres
mães, para abordar o fundamento do feminismo matricêntrico. Essa conceituação contribui para
observar como surge o vínculo entre a maternagem na identificação feminista e as
contranarrativas de maternagem, conforme as entrevistadas da Cientista Que Virou Mãe narram
nesta pesquisa.

3.1 FEMINISMO MATRICÊNTRICO: CONTRANARRATIVAS DE MATERNAGEM

(...) eu acredito que as crianças aprendem com modelos de vida, com formas de viver
e a minha forma de viver é feminista, então minha filha vive isso também. Os
momentos que eu preciso ativamente defender os valores feministas, nesse momento
que ela está com seis anos é a luta contra o sexismo na infância, é o brinquedo de
menina, o brinquedo de menino (...) eu não deixo passar nada! Cada coisinha que
falam eu: “não, mas por quê?” e faço ela pensar também. Não doutrino: “não e fim”.
Faço ela pensar também “filha, mas o que tem ali que você não pode brincar?”. Então,
ela acaba construindo isso junto.

Nesse relato da entrevistada Laura, observa-se a narrativa de suas novas práticas de


maternagem na relação com seus filhos e filhas. As contranarrativas de maternagem visam
articular diferentes relações de poder de gênero sobre as tarefas de cuidado assimiladas
culturalmente de forma opressiva às mulheres mães. Por isso, a construção de novas práticas
discursivas de maternagem questionam e desconstroem a narrativa mais conhecida sobre
maternidade, como as noções institucionais e essencialistas abordadas por Andrea O’Reilly, a
qual desde 1980 tem sido precursora nos estudos maternos. Assim, o conceito de maternagem
destaca as vivências das mães no feminismo matricêntrico que, segundo Andrea O’Reilly,
retrata a maternidade como posição social e política das mulheres para abordar suas questões
como mães e reivindicar seus direitos:

(...) o feminismo matricêntrico entende que a maternidade deve ser construída social
105

e historicamente e posiciona a maternagem mais como uma prática do que como uma
identidade. Central para o feminismo matricêntrico é uma crítica da posição
maternalista que posiciona a maternidade como fundamento basilar da identidade
feminina; desafia a suposição de que a maternidade é natural para as mulheres - todas
as mulheres, naturalmente, sabem como ser mãe - e que o trabalho de maternagem é
impulsionado pelo instinto ao invés de inteligência e desenvolvido pelo hábito e não
pela habilidade. 305

A distinção entre os conceitos possibilita entender a desconstrução da “maternidade”


essencialista e a importância das práticas discursivas da “maternagem” que fundamentam o
feminismo matricêntrico e estruturam os estudos maternos. A “prática discursiva” expressa as
condições da produção e da utilização dos enunciados nos discursos, que perpassadas por
relações de poder definem a urgência e a manutenção de um discurso, conforme Michel
Foucault306. As práticas discursivas não podem ser reduzidas aos aspectos formais da linguagem
porque dependem do contexto histórico, de quem discursa e de sua intenção na formação do
enunciado. Desse modo, entende-se a capacidade das práticas discursivas para desenvolver
identidades, continuidades e transações de conceitos, mas não como validade de juízos e sim
como condição de realidade dos enunciados que, para Michel Foucault,

(...) o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história, e uma
história específica que não o reconduz às leis de um devir estranho. (...) não escapa à
historicidade: não constitui, acima dos acontecimentos, e em um universo inalterável,
uma estrutura intemporal; define-se como o conjunto das regras que caracterizam uma
prática discursiva. 307

O autor explica porque as palavras e os fatos relacionam-se historicamente, o que


implica em construções de sentidos e de relações de poder, que revelam as práticas sociais
presentes nos discursos, já que palavras são construções da linguagem que constituem o
discurso como forma de ação no mundo, ou seja, como práticas discursivas. A conceituação
dos termos maternidade e maternagem importam para destacar a relevância de suas práticas
discursivas na sociedade e pensar as contranarrativas de maternagem a partir dessas noções.
Relembrando às traduções conceituais, descritas por Maria Collier de Mendonça:

1. Maternidade / motherhood, associada ao poder biológico e aos significados


institucionais, simbólicos e culturais do termo. 2. Maternagem / mothering, indicando

305
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. p. 281
Trecho original: “(…) matricentric feminism understands motherhood to be socially and historically constructed
and positions mothering more as a practice than an identity. Central to matricentric feminism is a critique of the
maternalist stance that positions maternity as basic to and the basis of female identity; it challenges the assumption
that maternity is natural to women—all women naturally know how to mother—and that the work of mothering is
driven by instinct rather than intelligence and developed by habit rather than skill” (tradução nossa).
306
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. 7ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2008. p. 133
307
Ibidem p. 144
106

ações e processos contínuos, ou seja, as práticas de maternagem. Segundo O’Reilly


(2013, p. 188), podemos desconstruir a narrativa patriarcal da maternidade, se
desestabilizarmos o seu discurso e a sua consequente interferência nas práticas de
maternagem. Neste sentido, através da articulação de contranarrativas que evidenciem
a existência de diferentes práticas de maternagem, podemos promover novos
questionamentos e, assim estimular a desconstrução ou aceitação silenciosa da cultura
da maternidade.308

A ressignificação da maternidade e da maternagem é proposta por Andrea O’Reilly,


por meio do feminismo matricêntrico. Esta autora defende a desconstrução de diferenças de
gênero que, muitas vezes, oprimem as mulheres mães e aborda as relações entre feminismo
matricêntrico e diferenças de gênero:

Embora o feminismo matricêntrico tenha uma perspectiva matrifocal e insista que a


maternagem importa, não promove um argumento ou agenda maternalista. No
entanto, o feminismo matricêntrico enfoca a experiência generificada da maternagem
(e aquelas relacionadas com gravidez, parto e amamentação) e nos obriga a abordar a
espinhosa questão da diferença de gênero. A teoria feminista, com a notável exceção
da diferença cultural do feminismo, posiciona a diferença de gênero como central, se
não a causa da opressão das mulheres ”309

Para Andrea O’Reilly, as feministas pós-estruturalistas procuram destacar as diferenças


de gênero para combaterem as discriminações formadas nas sociedades a partir dessas
diferenças. Essa abordagem possibilita analisar como as mulheres mães se identificam e
atribuem suas novas práticas de maternagem ao feminismo. As mães entrevistadas nesta
pesquisa relatam o processo de reconhecimento das desigualdades de gênero através da
identificação com o feminismo, a começar pelo exemplo de Renata:

O feminismo veio com a maternidade, porque tem coisa que a gente não consegue
delegar para ninguém mesmo e porque a gente começa a ficar em desvantagem nesse
processo, que é mais pesado para as mulheres. A vida fica toda relativa àquela criança
e ela dá muito trabalho, por causa disso você começa a engolir sapos no trabalho ou
no relacionamento, porque vai ser pior sem aquilo. Foram cair as fichas a partir daí e
comecei a reparar que eu achava que era muito livre, mas analisando com outros olhos
vi que não. Eu fiz escolhas dentro das que me eram possíveis e várias coisas jamais
estiveram ao meu alcance.

Para Renata, o trabalho intensivo da maternagem e a falta de liberdade de escolhas por

308
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 296 – 297
309
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. p. 320 - Trecho original: “Although matricentric feminism does hold a matrifocal perspective
and insists that mothering does matter, it does not advance a maternalist argument or agenda. However,
matricentric feminism, in its focus on a gendered experience that of mothering (and the related ones of pregnancy,
childbirth and breastfeeding), does force us to address the thorny issue of gender difference. Feminist theory, with
the notable exception of difference-cultural feminism, positions gender difference as central to, if not the cause of,
women’s oppression” (tradução nossa).
107

conta das questões de gênero percebidas, podem estar relacionadas à demanda por uma
constante flexibilidade às mães e à consequente exaustão no universo materno. Maria Collier
de Mendonça trata sobre isso:

(...) é enquanto a elasticidade “é uma demanda que sintetiza a busca do ideal da


perfeição multitarefas, a exaustão é o seu outro lado da moeda. Afinal, elásticos
podem romper-se. E a ruptura dessa elasticidade vem se manifestando por meio de
psicopatologias que estão afetando as mães contemporâneas: estresse, burn out310,
depressão pós-parto, síndrome do pânico, dentre outras.311

Muitos desses problemas advêm da interferência das atividades multitarefas, que


integram demandas profissionais nas práticas de maternagem ao cotidiano de muitas mulheres.
Por consequência, a conciliação do tempo materno com o tempo profissional tornar-se
paradoxal, além de exaustiva às mães devido às atribuições exigidas pelo mercado de trabalho.
Conforme Lisa Baraitser (2009 apud MARIA COLLIER DE MENDONÇA, 2014) “a
maternagem é uma das práticas contemporâneas que não podem ser aceleradas nem
transformadas em mais produtivas. A prática da maternagem exige-nos persistência, resistência
e espera porque é composta de interrupções e intervalos frequentes”312. Os cuidados maternos
são trabalhosos, pois envolvem processos contínuos, muitas vezes repetitivos e prolongados a
partir do tempo de desenvolvimento da criança. Na pesquisa de Maria Collier de Mendonça, “a
questão do tempo de qualidade gerou um debate interessante entre as mães de criança e, ainda,
evidenciou outro conflito que se refere à dificuldade de estabelecer fronteiras entre o tempo do
trabalho profissional e do tempo dos filhos” 313.
Nas relações familiares, Flávia Biroli argumenta que as condições materiais e
simbólicas da pessoa que cuida são frágeis, além da posição de quem é cuidado, que se torna
vulnerável, quando segue a lógica de mercado. Neste sentido, contratar serviços de qualidade é
algo restrito a poucas pessoas devido aos altos custos financeiros:

As mulheres que cuidam de familiares veem comprometida sua possibilidade de


exercer trabalho remunerado, tornando-se socialmente mais vulneráveis e
dependentes dos seus companheiros, de outros familiares e/ou do Estado. Os
julgamentos morais que são feitos a partir da expectativa de que todos sejam
igualmente capazes de dar conta de si e dos seus familiares impõem sanções e
prejuízos a quem não corresponde a esse ideal. Ao mesmo tempo, esse é um ideal que
não atende à democracia, ou ao cuidado com as pessoas como um valor, mas, ao
contrário, colabora para que as desigualdades sejam justificadas e naturalizadas. É um

310
Síndrome do esgotamento ou síndrome de Burnout é um distúrbio psíquico de caráter depressivo, precedido de
esgotamento físico e mental intenso, definido por Herbert J. Freudenberger.
311
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 41
312
Ibidem p. 203
313
Ibidem p. 204
108

ideal orientado pelo mérito e pela competição, negando ou simplesmente deixando de


discutir o fato de que as condições em que os indivíduos disputam uma posição ao sol
são completamente distintas. 314

Flávia Biroli aborda a dificuldade de valorizar as trabalhadoras de cuidados, como nas


práticas de maternagem intensiva tratadas nesta pesquisa, por não serem reconhecidas as
desigualdades de direitos e oportunidades que cercam as questões de gênero, principalmente às
mulheres. Muitas trabalhadoras de cuidados domésticos não recebem remuneração e têm
chances reduzidas de ascender na carreira profissional ou mesmo de começar uma quando
almejam, devido às demandas de cuidados prolongados com seus familiares. O reconhecimento
das desigualdades de gênero, para a entrevistada Daiana, surgiu apenas através da sua terceira
gestação, da primeira filha:

(...) a partir dos 15 anos comecei a participar dos movimentos sociais e conheci essa
questão de “mulher tem que ter direito”, mas eu não gostava muito de participar de
grupos de mulheres, eu gostava mais da questão racial e anticapitalista. Mesmo eu
tendo o discurso na prática, não gostava de discutir teoria feminista (...) comecei a
participar das discussões de gênero na UFSC, mas era mais na questão LGBT. Quando
fiquei grávida de uma menina eu falei: “agora eu tenho que mergulhar no feminismo,
tenho que saber isso porque vou ter uma menina”.

O desinteresse inicial por questões de gênero pode ser considerado, em grande parte,
porque ela abordava com mais frequência as questões antirracistas, em razão de Daiana ser
negra. Ao pensar as desigualdades de gênero sobre mulheres negras, necessita-se destacar
sobreposições de lutas sociais por direitos iguais, como aborda Bell Hooks: “as mulheres negras
(e seus aliados revolucionários na luta) tinham claro que nunca conseguiriam a igualdade dentro
do patriarcado capitalista supremacista branco existente”315. A autora expressa a origem do
movimento feminista realizado por mulheres brancas e também o racismo estrutural que, muitas
vezes, se faz presente no feminismo. Mulheres negras nos movimentos feministas são
revolucionárias, para Bell Hooks, pois expõem a dificuldade delas ao enfrentar preconceitos
machistas e racistas, ao mesmo tempo.
Daiana atribui sua identificação com o feminismo à vivência de tornar-se mãe de uma
menina, o que pode ser interpretado pelo fato dela também ser mulher e, por isso, se preocupar
em combater as opressões de gênero, por saber o que sua filha provavelmente poderá enfrentar.
Essa perspectiva possibilita pensar a relação feminista não apenas com enfoque nas meninas,

314
BIROLI, Flávia. Família: novos conceitos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014. p. 70-71
315
HOOKS, Bell. HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz Agustí, Lina Tatiana
Ruiz, Mayra Moreno, Maira Romo, Sara González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p. 24. Trecho original:
“las mujeres negras (y sus aliados revolucionarios en la lucha) tenían claro que nunca iban a conseguir la igualdad
dentro del patriarcado capitalista supremacista blanco existente”
109

mantendo diálogos sobre questões de gênero também com os meninos. Essa relevância é
relatada pelas mães entrevistadas devido à necessidade de novas práticas de maternagem aos
meninos para minimizar comportamentos machistas neles. A entrevistada Daiana conta que seu
filho adolescente reconhece o machismo em muitas situações e busca desconstruir porém,
segundo ela, ele tem momentos de “machistinha e começa a falar alto. A madrasta dele fala:
‘comigo ele altera o tom de voz, com o pai dele ele não altera’ mas nós já vamos cortando
dizendo que é machismo, que não pode se comportar assim”. Diante disso, há uma percepção
sobre a construção da igualdade de gênero que passa pelo reconhecimento das desigualdades e
da revisão dos próprios valores, conforme Renata também trata na relação com seus filhos:

(...) o machismo não está só na questão da mulher, está na própria questão do que é
ser homem, discutir masculinidade é muito importante, problematizar cada coisa, sem
também ser muito agressiva, que nem quando eles falam ‘ah, mãe faz isso, não faz
aquilo’ e eu digo ‘já sei, sai filho, não vai ter macho nenhum pra mandar em mim’ e
eu acho que fui muito rude nesse momento, porque não era o homem ali era o filho.
É meio complexo esse processo, a gente vai tentando fazer, sem dúvida me influencia
e eu os influencio pelo exemplo.

A entrevistada Antônia cita a relação de parceria com seu filho adolescente para
desconstruir as questões de masculinidade: “ele sabe das matérias que eu faço desde pequeno,
a gente conversa sobre violência contra a mulher, é um assunto recorrente aqui em casa. Ele
sempre estudou em escolas democráticas que também me ajudam nessa função”. Ela afirma
que seu filho começa a questionar o entorno social e o que observa na mídia: “ele falou, ‘nossa
mãe, você viu que nas propagandas de brinquedo sempre os meninos ganham os jogos?! Isso é
machismo, não é?!’. Respondi: ‘sim filho, isso é machismo’. Os assuntos surgem naturalmente
e quando ele reproduz coisas machistas eu converso com ele”. Essas maneiras de ensinar
valores de equidade de gênero narram novas práticas de maternagem como contranarrativas das
formas tradicionais, na qual as mães atuam em combate ao sexismo. As práticas buscam uma
nova lógica de aprendizado e de diálogo sobre as relações de gênero, que podem ser entendidas
como uma pedagogia feminista por meio de “dualismos ‘clássicos’ apontados por Guacira
Louro: competição / cooperação; objetividade / subjetividade; ensino / aprendizagem;
hierarquia/igualdade — em que o primeiro termo representa o modelo androcêntrico de
educação e o segundo termo aponta para a concepção feminista”316.
Dessa maneira, as práticas de maternagem em combate ao sexismo, como cita a
entrevistada Laura, refletem no comportamento de sua filha de seis anos: “ela estava com um
amigo dela lá em casa e ele falou ‘eu também tenho boneca’ e ela respondeu ‘isso aí, mas por

316
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista Petrópolis. RJ:
Vozes, 1997. p. 113
110

que você não teria? Por que você está falando isso? Porque algumas pessoas não entendem’. A
gente entende, é a desnaturalização do sexismo”. A entrevistada Laura reconhece que convive
em uma “bolha” com pessoas que compartilham dos mesmos valores feministas, onde o
combate ao seximo torna-se um critério de convivência. A bolha pode ser associada à Primavera
das Mulheres no Brasil, que convive em meio ao conservadorismo com discursos catalisados
pela Internet, como é tratado no primeiro capítulo desta pesquisa. Fora da redoma feminista, a
convivência social é mais desafiadora, porém Laura afirma posicionar-se de forma combativa
contra o sexismo em qualquer ambiente, mesmo que cause desconforto. A reação de
desconforto no entorno social quando uma feminista pratica valores não sexistas pode ser
compreendida pela ignorância sobre o problema do sexismo, conforme Bell Hooks:

(...) o feminismo é um movimento para acabar com o sexismo, a exploração sexual e


a opressão (...) Para efeitos práticos, é uma definição que implica que o problema é o
conjunto do pensamento e a ação sexista, independentemente de quem o perpetuem
mulheres ou homens, crianças ou adultos. É suficientemente amplo para compreender
o sexismo sistémico institucionalizado. Para entender o feminismo é necessário
entender o sexismo. Como bem sabem todas as pessoas que defendem a política
feminista, a maioria das pessoas não sabem o que é o sexismo, se sabem, acreditam
que não é um problema. 317

Nas novas práticas de maternagem com os filhos, as mães entrevistadas citam a escolha
da escola como decisiva para tornar o ensino escolar coerente aos valores feministas de
equidade de gênero oferecidos nas famílias. A entrevistada Laura relata como foi sua busca por
uma escola para a iniciação de sua filha de seis anos: “a primeira pergunta que eu fiz à diretora
da escola foi ‘tem banheiro de menino e banheiro de menina?’ Ela falou não. Então agora nós
vamos conversar eu disse. Por isso que é uma escola legal, se eu perceber um indício de sexismo
lá eu não estarei, é muito claro isso”. De forma semelhante, a entrevistada Daiana relata a
dificuldade na relação com a escola na formação de seus filhos: “é uma luta diária, tendo que
desconstruir e ensinar, porque a escola é um fator muito forte, lá reforçam essa coisa de ‘sou
homem, sou macho’ e temos que ficar sempre monitorando para dizer que não é assim, fazemos
esse discurso com os meninos”. Guacira Louro considera que devemos questionar a
naturalização de comportamentos sexistas instituídos em escolas e métodos educacionais:

317
HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz Agustí, Lina Tatiana Ruiz, Mayra
Moreno, Maira Romo, Sara González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p. 21 - Trecho original: “(...) el
feminismo es un movimiento para acabar con el sexismo, la explotación sexista y la opresión. (...) A efectos
prácticos, es una definición que implica que el problema es el conjunto del pensamiento y la acción sexista,
independientemente de que lo perpetúen mujeres u hombres, niños o adultos. Es lo suficientemente amplia como
para comprender el sexismo sistémico institucionalizado. Para entender el feminismo es necesario entender el
sexismo. Como bien saben todas las personas que defienden la política feminista, la mayoría de la gente no sabe
lo que es el sexismo o, si lo sabe, cree que no es un problema” (tradução nossa).
111

(...) é “natural” que meninos e meninas se separem na escola, para os trabalhos de


grupos e para as filas? É preciso aceitar que “naturalmente” a escolha dos brinquedos
seja diferenciada segundo o sexo? Como explicar, então, que muitas vezes eles e elas
se misturem para brincar ou trabalhar? É de esperar que os desempenhos nas
diferentes disciplinas revelem as diferenças de interesse e aptidão "características" de
cada gênero? (...) Currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem,
materiais didáticos, processos de avaliação são, seguramente, loci das diferenças de
gênero, sexualidade, etnia, classe — são constituídos por essas distinções e, ao mesmo
tempo, seus produtores. (...) É indispensável questionar não apenas o que ensinamos,
mas o modo como ensinamos e que sentidos nossos/as alunos/as dão ao que aprendem.
Temos de estar atentas/os, sobretudo, para nossa linguagem, procurando perceber o
sexismo, o racismo e o etnocentrismo que ela freqüentemente carrega e institui. 318

Guacira Louro afirma que os questionamentos no campo escolar precisam ultrapassar a


ideia do binarismo rígido das relações de gênero. Desse modo, as práticas educativas
classificadas como uma “pedagogia feminista” formam um modelo alternativo que desconstrói
a dualidade sexista, no qual as feministas estabelecem uma aprendizagem com enfoque na
emancipação das meninas. A autora esclarece o método feminista: “para subverter a posição
desigual e subordinada das mulheres no espaço escolar, a pedagogia feminista vai propor um
conjunto de estratégias, procedimentos e disposições que devem romper com as relações
hierárquicas presentes nas salas de aula tradicionais”319. Segundo Louro, a autoridade exclusiva
de conhecimento legítimo da (o) professora (o) é substituída por diálogo com as (os) estudantes
promovendo igualdade de fala e de escuta.
Há uma democratização dos saberes com os diálogos construídos nas relações familiares
que, para Maria Collier de Mendonça, deve-se “à mudança nos modelos de educação, uma vez
que as crianças conquistaram o direito de serem ouvidas pelos adultos. Isso lhes têm concedido
mais liberdade e autonomia em comparação com o passado” 320. A autora critica práticas
contemporâneas, nas quais os pais não decidem mais sozinhos o que compram e passam a
“negociar” com as crianças. Afinal, a intenção de criar filhos com mais diálogo ou sem
autoritarismo, parece incorporar as propostas sedutoras do marketing e da publicidade, bem
como a ideologia da maternagem intensiva tratada nesta pesquisa.
Por outro lado, os valores que podem de fato uma libertar as novas práticas de
maternagem, conforme as entrevistadas desta pesquisa, aproximam-se da pedagogia
considerada feminista. Nesses aspectos há a manutenção do diálogo e da liberdade de escolha
para estimular o discernimento das crianças e a emancipação das meninas, como narra a
entrevistada Laura sobre sua filha de seis anos: “ela convive com muitas crianças, ela é

318
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista Petrópolis. RJ:
Vozes, 1997. p. 63-64
319
Ibidem p. 113
320
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 178
112

combativa e diz ‘você não manda em mim, não, mas por que eu não posso brincar? Eu também
posso brincar!’ ela não aceita as limitações”. Afrontar as limitações impostas por questões
sexistas demonstra uma disposição para questionar a própria liberdade, que pode ser associada
às pedagogias feministas pois, para Guacira Louro, “pretendem a ‘conscientização’, a
‘libertação’ ou a ‘transformação’ dos sujeitos e da sociedade. (...) lembram as propostas de
Paulo Freire (...) sua proposta de uma ‘educação libertadora’ são conhecidas internacionalmente
e referências destacadas nas pedagogias feministas”321.
O propósito feminista de haver liberdade de escolha para as mulheres confere alguns
desafios à formação das filhas. Muitos símbolos culturais carregados com estigmas de
feminilidade são comumente oferecidos com exclusividade às meninas, como a simbologia das
princesas. Maria Collier de Mendonça identificou em sua pesquisa que as mulheres mães
criticaram os anúncios de Barbie Escola de Princesas e do Walmart com roupas de princesas da
Disney, “por reforçarem códigos tradicionais de feminilidade, ao promoverem que as meninas
devem usar cor-de-rosa, logo, devem ser tão delicadas como as princesas” 322. Na crítica às
publicidades direcionadas ao público infantil, destacam-se os estereótipos sexistas e os padrões
de beleza norte-americanos nos brinquedos para meninas.
A entrevistada Laura argumenta essas referências do meio social: “tenho um problema
sério com princesas, mas a minha filha se veste de princesa quantas vezes ela quiser, porque eu
respeito a escolha dela. Mas, ela também se veste de ninja, de guerreira, de tudo. Ela tem
liberdade para ser o que ela quiser, é uma coisa que eu pratico ativamente”. Ainda, a
entrevistada Luiza aborda esse tema nas práticas de maternagem:

(...) faço algumas conversas com ela, eu digo ‘filha, mulher pode fazer o que quiser,
pode ser bombeira, piloto de avião’ e também sobre expressões que elas trazem muito
da escola. Por mais que eu escolha escolas não muito tradicionais: ‘ah, porque o rosa
é de menina’. Eu digo ‘qualquer um pode gostar do rosa e do azul’ assim como
brincadeiras, eu nunca faço essa distinção. A minha filha mais velha adora o rosa, mas
eu não digo ‘não pode, tem que escolher outra cor’, eu dou total liberdade para ela.

As novas práticas de maternagem das entrevistadas com suas filhas podem ser
associadas à tendência emancipatória da epistemologia feminista tratada por Margareth Rago:
“há um aporte feminino/ista específico, diferenciador, energizante, libertário, que rompe com
um enquadramento conceitual normativo” 323. Na construção de novos significados para a

321
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista Petrópolis. RJ:
Vozes, 1997. p. 115
322
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 229
323
RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: Pedro, Joana; Grossi, Miriam (orgs.)-
Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998. p. 10-11
113

interpretação do mundo, segundo a autora, o pensamento feminista trouxe a subjetividade como


forma de conhecimento propondo uma nova relação entre teorias e práticas, em contraponto às
verdades científicas universais.
Diante disso, considera-se que construir práticas de maternagem na formação dos
próprios filhos torna-se um desafio de mediação do mundo e transmissão de valores. Sobre tal
desafio, a entrevistada Renata conta sobre a relação com seus filhos: “eu converso com eles
sobre o que acontece versus o que eu entendo que é certo. Tento não dizer ‘essa é a verdade
com V maiúsculo’. Mas temos um tripé de valores, o respeito, a responsabilidade, a liberdade
e eu falo para eles que a única coisa que eu não negocio é o respeito”. Com essas premissas e
verdades ponderadas, ela relata que releva muitas falhas, mas não admite desrespeito às pessoas
com deficiência, às pessoas negras, às mulheres, aos idosos, em qualquer contexto, inclusive
com amigos iguais ao seu filho.
Renata também cita que atenta ao que seus filhos pré-adolescentes assistem nas mídias
digitais, mas que é difícil selecionar os assuntos: “o mais novo que tem nove anos veio me falar
‘mãe, é verdade que as pessoas bebem para ficar juntas, que tem que beber para namorar e
beijar alguém?’. Então, conversei com ele sobre noção de consentimento, que beijar alguém
que não esteja completamente lúcido e ciente é estupro”. Mensurar esse poder midiático e
cultural da exposição de seus filhos aos assuntos dos quais eles não conheçam, torna ainda mais
importante construir valores de igualdade e de respeito com diálogo e honestidade na relação
com os filhos. Da forma semelhante, a entrevistada Antônia cita a dificuldade de intermediar a
relação de seu filho com o que assiste na mídia:

(...) é difícil manter a calma quando, por exemplo, meu filho está assistindo um
Youtuber e ele fala um absurdo. Dá vontade de desligar o vídeo, mas não posso fazer
isso como forma de opressão. Independente do meu cansaço, do meu humor, da minha
indignação eu tento sempre explicar, ser paciente e nunca reagir de forma violenta, eu
tento sempre explicar por que aquilo é um absurdo, é difícil porque o mundo está
jogando contra a gente o tempo inteiro.

A paciência ao desenvolver as práticas de maternagem nos diálogos sobre questões


sociais com os filhos, representa uma forma não violenta de expor um entendimento
democrático sobre as verdades e os fatos, com a defesa da diversidade a partir do respeito. Esse
posicionamento político das mães feministas pode ser percebido, também, nas conversas sobre
questões feministas com outras pessoas de suas convivências, como narra Antônia: “meu pai às
vezes diz que eu estou radical demais com as coisas, eu tenho que ir com toda paciência do
mundo tentar fazer ele entender o que estou dizendo, eu tento ser bem didática”.
A entrevistada Daiana descreve como aprendeu a tratar o sexismo na relação com
114

adultos que não têm os mesmos valores feministas que ela busca construir com seus filhos:
“hoje eu tento fazer de uma forma mais tranquila. Quando tem festa de família, tem muito ‘vai
lá que isso é brinquedo de menina ou de menino’. Então, sem dizer que é machismo eu explico
‘não, deixa a criança ir lá, pode brincar de tudo’, mais pedagógica do que violenta”. Ela afirma
que prefere conversar e defender seu posicionamento feminista contra o sexismo de maneira
menos combativa e mais educativa, pois acredita ser mais útil para gerar reflexões, em vez de
ser enfática que, muitas vezes, provoca uma resistência à mudança do comportamento sexista.
As mães entrevistadas demonstram uma tentativa de transformar a relação familiar em
um meio de pensar política em termos de convivência social, conforme Daniela Ramos: “a
política, por constituir um campo alheio à realidade cotidiana, requer a analogia com outras
práticas sociais para que se possa atribuir-lhe sentido. Como argumenta Sarti (2009, p. 39), a
família constitui uma ‘referência simbólica’ para pensar a política” 324. Daniela Ramos cita que
as pessoas entrevistadas em sua pesquisa propõem que essa política relaciona-se aos princípios
morais aprendidos nas referências familiares, como honestidade, disciplina e hierarquia, o que
pode remeter às noções de respeito. O debate sobre transmissão de valores nas famílias através
do valor do cuidado é citado por Flávia Biroli:

A construção de uma sociedade justa envolve a promoção de valores e objetivos que


podem ter relação direta com uma série de aspectos da vida familiar. Entre eles estão
a privacidade, a intimidade, o cuidado com indivíduos com os quais temos laços
especiais, o tempo do lazer, a atenção amorosa, o apoio para o desenvolvimento
emocional, intelectual e moral das crianças (Young, 1997, p. 129) (...) para buscar
esses valores e objetivos, em um modelo de sociedade que assegure a liberdade
individual e a igualdade entre os indivíduos, não é necessário pressupor ou impor um
modelo de família. (...) É preciso avançar em políticas que garantam a privacidade, a
integridade individual e possibilitem as relações de cuidado e atenção sem que elas
signifiquem um obstáculo à igualdade. 325

Nas considerações de Flávia Biroli, uma sociedade justa é aquela que valoriza o cuidado
e a democracia plural e igualitária por meio de normas e práticas sociais vigentes que
resguardem a liberdade individual e a igualdade de direitos no contexto das diferenças sociais.
Conforme a autora, essa valorização é possível com respeito às identidades plurais e combate à
violência desde a esfera doméstica até as ações estatais, além da ampliação da responsabilidade
social pelo cuidado para que se torne uma questão pública e não apenas do âmbito individual e
doméstico. Dessa forma, as práticas de maternagem das mulheres da Cientista Que Virou Mãe
podem ser relacionadas com o propósito de valorização das tarefas de cuidado e de

324
RAMOS, Daniela Peixoto. A família e a maternidade como referências para pensar a política. Revista
Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015. p. 100
325
BIROLI, Flávia. Família: novos conceitos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014. p. 62
115

democratização das relações sociais através do respeito ao espaço individual e à diversidade,


que potencializam uma transformação social.

3.2 MÃES FEMINISTAS: SUJEITOS POTENCIAIS DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

A partir das novas práticas de maternagem das mulheres da Cientista Que Virou Mãe
percebe-se uma nova forma de construir a criação dos filhos e filhas, com valores feministas,
buscando desconstruir o sexismo e defender a equidade de gênero, a valorização das crianças e
das mulheres. Torna-se relevante analisar como estas mulheres se identificam com o feminismo
e como praticam suas militâncias feministas narradas como construtoras das novas práticas de
maternagem. Pensando nessa mudança de comportamento, há uma geração que pode se tornar
feminista ou até mesmo “nascer” feminista? As mães entrevistadas nesta pesquisa responderam
se acreditam nessa possibilidade. Laura respondeu: “eu acreditava, mas eu estou chocada com
o retrocesso das coisas, com o avanço da onda fascista. A gente vive em uma bolha, não sei se
isso que nos cerca representa a realidade e se a geração é feminista ou não.”. Ela exclama que
pretendia que fosse uma geração feminista e que apesar de ainda não ser é possível vir a ser ou
“nascer” feminista:

Acredito que estamos vivendo um momento do grito, conseguindo nos fazer ouvir (...)
os crimes de feminicídios são extremamente violentos, a raiva com que alguns homens
respondem nas redes e ao vivo. Mas a gente tem uma mudança de atitude em alguns
pontos talvez por conscientização (...) estamos sendo combativas, está mais feio ser
machista. Acho que a geração de adolescentes está mais atenta às questões de gênero,
é muito bonito de ver. Eu espero que sim, mas sempre tenho muito medo por estarmos
nos baseando pela nossa bolha.

A perspectiva ponderada sobre as vozes feministas que ecoam e dialogam em uma


“bolha social” confortável pode formar uma unidade de luta pela igualdade de direitos de
gênero. Renata relata a sensação de viver em uma bolha e analisa a proporção disso com uma
ideia pessimista quanto a possibilidade de existir uma geração feminista: “eu saio da minha
bolha e vejo que ela é ínfima, é muito pequena. Então vejo que não temos massa crítica nesse
sentido ainda. Pode ser que o jogo mude. (...) Estou há 17 anos nessa indústria vital e só vi o
movimento crescer, então, alguma coisa certa estamos fazendo”. Renata duvida que seja
suficiente o trabalho, mesmo diante de um feminismo que ela enxerga novamente exuberante
no século XXI, como já foi na década de 1970: “tem muitas explicações que não
necessariamente estão no feminismo, mas que afetam o feminismo e os direitos das mulheres,
o recrudescimento da vida no trabalho, trabalhar mais horas por menos dinheiro, isso nos deixa
pouco livres para a vida política e para o coletivismo”.
116

O modelo de vida na sociedade que, muitas vezes, exige-nos uma individualidade


exacerbada para sobreviver, como destaca Renata. Tal sentimento pode ser associado ao tempo
capitalista neoliberal referido por Lisa Baraitser (apud MARIA MENDONÇA, 2014) como um
tempo baseado em eficiência, rapidez e produtividade econômica. Em contraposição, o tempo
materno segundo Baraitser (ibid.) é “o tempo do cuidado prolongado e dedicado ao outro.
Interrompido por intervalos frequentes, o tempo materno pode ser interpretado como
ineficiente, lento e improdutivo, caso seja enquadrado nos parâmetros capitalistas” 326.
Esse contexto revela alguns motivos que dificultam o engajamento político nas questões
coletivas, assim como a militância feminista em ambientes públicos que pode se tornar difícil
de conciliar para as mulheres mães tendo em vista suas práticas de maternagem, as tarefas
domésticas e, muitas vezes, a carreira profissional. Apesar disso, o feminismo surge em
minúcias do cotidiano e podem fazer do ambiente familiar um espaço para discussão política,
como as mães entrevistadas da Cientista Que Virou Mãe. Elas demonstram nas práticas de
maternagem com seus filhos diálogos sobre estereótipos de gênero que não devem ser
reforçados e a diversidade social que deve ser respeitada.
O engajamento político das mães corrobora com a visão de Daniela Ramos, a qual
contribui para pensar como as “noções de feminilidade e masculinidade se imbricam com
representações sobre política, em especial na medida em que papéis familiares femininos e
masculinos são usados como referência para pensar a inserção de mulheres e homens na
política”327. Nas relações de gênero em famílias, segundo a autora, isso ocorre principalmente
quando é construído o aprendizado de papéis excludentes, como o homem na política e a mulher
distante do engajamento político.
Assim, entende-se que um feminismo com visão de futuro, como afirma Bell Hooks,
exige um esforço coletivo de ir “difundindo a mensagem do feminismo para que se renove o
movimento e para que seja reiniciado com a premissa básica de que a política feminista é
necessariamente radical. E como o radical se invisibiliza em nosso entorno, devemos expor o
feminismo e torná-lo conhecido”328. A autora expressa como radical o movimento que pretende

326
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 204
327
RAMOS, Daniela Peixoto. A família e a maternidade como referências para pensar a política. Revista
Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015. p. 101
328

HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz E. Agustí, Lina Tatiana L. Ruiz, Mayra
S. Moreno, Maira P. Romo, Sara V. González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p. 144 - Trecho original: “Se
requiere el esfuerzo colectivo de ir puerta a puerta difundiendo el mensaje del feminismo para que se renueve el
movimiento y para que se vuelva a empezar con la premisa básica de que la política feminista es necesariamente
radical. Y como lo radical se invisibiliza en nuestro entorno, debemos hacer todo lo posible para sacar a la luz al
feminismo y darlo a conocer. Dado que el feminismo es un movimiento que pretende acabar con el sexismo, la
117

acabar com opressões sexistas e se esforça para eliminar desigualdades de gênero, portanto,
essa proposta por si é radical. Pensando na proporção do enfrentamento à cultura sexista, muitas
mulheres feministas criam redes de fortalecimento também na Internet, como apresenta a
Primavera das Mulheres tratada nesta pesquisa. As redes motivam a entrevistada Daiana a
pensar de forma otimista na possibilidade de haver uma geração que já pode “nascer” feminista:
“tem uma abertura de espaço com perspectivas diferentes (...) mais lenta do que necessitamos,
porque nunca tivemos tanta violência. O que ficava no privado agora é público e tem chance de
ser superado. Então, acredito que as novas gerações virão diferentes”. Ela se refere aos
movimentos feministas que formam vozes plurais de combate às violências contra as mulheres
e representam um fortalecimento do feminismo contemporâneo. A entrevistada Luiza também
considera a existência de uma nova geração feminista:

(...) acho fundamental as redes sociais como têm sido usadas para que as minorias em
geral passem a ter voz. Está sendo desnaturalizada a violência contra a mulher, assim
como a violência obstétrica era tida como normal chegar no hospital e passar por
intervenções. A violência matrimonial que a mulher tinha que atender ao marido e ao
assédio sexual. Eu sou otimista, então, acredito não sei se em uma geração mais
feminista, mas em uma geração que vai desfrutar de um contexto em que as violências
não vão ser mais enxergadas como naturais. (...) é o primeiro passo para que tenha
essa virada, para que as mulheres sejam de fato respeitadas e as relações sejam mais
igualitárias.

Na construção de uma geração que conquiste relações de gênero com direitos iguais,
percebe-se a importância de acreditar nos princípios feministas, construindo valores de
igualdade e respeito à diversidade desde a criação nas famílias, apesar das interferências do
meio social. O potencial coletivo em disseminar ideais feministas em rede, como argumenta
Ana Maria Veiga em sua pesquisa com brasileiras e argentinas, associa-se à conexão entre
mulheres que formam movimentos para constituir uma rede feminista, não como consolidação
efetiva, mas como relações entre feministas. A autora percebe “estratégias políticas que se
estenderam em direção a um desejo de solidariedade e apoio entre as mulheres,
independentemente da situação geopolítica de cada uma, e ainda de que maneira buscaram fazer
este movimento”329. Ana Maria Veiga destaca as diversas definições para o termo “rede”,
perpassando a noção de assistencialismo e de união para atingir objetivos políticos comuns, o
que condizem com o propósito do feminismo em rede.
A rede feminista pode se mostrar presente nas novas práticas de maternagem que

dominación y la opresión sexista, una lucha que se esfuerza por acabar con la discriminación de género y crear
igualdad, es de por sí un movimiento radical” (tradução nossa).
329
VEIGA, Ana Maria. Feminismos em rede? Uma história da circulação de discursos e informações entre São
Paulo e Buenos Aires (1970 – 1985). Dissertação de Mestrado em História na UFSC. Florianópolis/SC, 2009. p.
67
118

buscam estabelecer relações de gênero mais igualitárias para os filhos e as filhas. As motivações
para construir uma sociedade baseada nesses princípios encontram-se no entendimento das
mulheres mães sobre suas militâncias feministas. As práticas de maternagem formam um novo
sentido de poder social transformador, em virtude da motivação sobre a militância feminista,
como afirma Antônia:

(...) a gente é militante desde a hora que acorda até quando vai dormir, quando anda
na rua e um cara mexe com a gente na rua e a gente responde ou quando ajuda outra
mulher quando está numa situação difícil.(...) a militância está na nossa vida porque
somos mulheres. Você precisa fechar muito os olhos para o mundo para não ser
feminista e você precisa cruzar os braços para não ser militante.

A posição política da entrevistada ao enfrentar desigualdades de gênero e sobre a


atenção constante do estilo de vida, também exibe as prerrogativas do feminismo na prática. A
entrevistada Laura ratifica esse pensamento sobre o que é o feminismo conforme suas
vivências: “é descoberta, posicionamento e segurança, porque não adianta você descobrir e não
se posicionar. (...) você acordou, as situações começam a aparecer e o feminismo te mostra ‘isso
não pode acontecer, isso tudo bem, isso eu preciso melhorar’. É uma postura de vida, é full
time!”. Luiza também confere sentido a sua militância feminista:

(...) enquanto pesquisadora e cientista social todas as minhas pesquisas estão de


alguma forma ligadas ao feminismo, sempre ligadas aos direitos das mulheres,
relações mais igualitárias, de relação afetiva e questão do parto. Quando fiz a minha
tese a militância estava bem mais aparente e hoje ela já está um pouco mais seletiva,
eu não saio em todas rodas de amigas “tu tens que ter um parto natural” (...) Minha
militância não aparece em todas as relações, de falar sobre feminismo. Mas quem é
próximo a mim sabe que trabalho em prol das mulheres, que eu quero que minhas
filhas sejam mulheres autônomas.

Observam-se diferentes posicionamentos de militâncias feministas de acordo com as


vivências das mães entrevistadas, em que há uma consonância de reivindicações e de posturas
cotidianas em torno dos ideais feministas, mesmo em diferentes campos de atuação profissional
e de condição pessoal. A conciliação entre militância e questões cotidianas correspondem a
uma estrutura de rede feminista diversa, que pode ser coesa em muitos pontos, como aborda
Ana Maria Veiga:

(...) a grande maioria fica de fora, atuando muitas vezes individualmente, onde seu
campo de ação profissional permitir chegar. As redes feministas de relações não
podem ser observadas como presenciais, elas são redes que arrisco chamar de
pertencimento e atuação, amalgamadas pelo desejo de solidariedade e visibilidade.
Do recorte temporal deste trabalho podemos perceber sincronia nas reivindicações, na
formação de grupos de reflexão ou de discussão, no próprio feminismo como
movimento e sobretudo nos resultados futuros que hoje aparecem nas sociedades e
nas vidas de grande parte das mulheres da América Latina e do mundo, mesmo que
não se dêem conta que as possibilidades do cotidiano dessas mulheres têm muito a
119

ver com a luta das feministas que fizeram história naqueles pioneiros anos 1970. 330

As descontinuidades temporais e os amplos contextos culturais, como retrata Ana Maria


Veiga, reúnem-se em pontos da rede feminista, como no combate às desigualdades de gênero,
entre outras ações em defesa dos direitos das mulheres, que podem afetar muito mais do que o
próprio campo de atuação de um tempo e um lugar. A autora menciona as opressões de gênero
que persistiram após os regimes militares nos anos 1980 e por isso, “o movimento feminista
passou a ser um esforço cotidiano, onde cada mulher tenta ampliar seus espaços de atuação e
reconhecimento, dentro de uma sociedade que ainda precisa de ‘identidades’, com raras noções
daquilo que constitui de fato igualdade”331. Ratificando a importância das ações cotidianas em
muitas dimensões da militância feminista, Bell Hooks cita:

Toda vez que qualquer mulher ou qualquer homem de qualquer idade trabalha para
acabar com o sexismo, o movimento feminista avança. Isso não exige que nos unamos
às organizações necessariamente; Podemos trabalhar em nome do feminismo de onde
estamos. Podemos começar de nossa casa, de onde vivemos, nos treinando ou a nós
mesmos e aos nossos entes queridos.332

Desde os pormenores das relações interpessoais, mas não menos fundamentais, até os
ambientes públicos de coletivos feministas e os momentos em que o próprio pensamento
feminista é repensado, pode representar a identificação com o feminismo. A conjuntura
contínua e complexa permite que as mulheres criem redes feministas de apoio em torno do ideal
político por equidade de gênero. Esse posicionamento pode se tornar uma identidade feminista
a partir de valores de igualdade considerados irrevogáveis para uma transformação cultural, que
exige esforço contínuo e pode ser aprendido e praticado em qualquer dimensão social. Parte
dessa visão simplificadora do feminismo tem origem no motivo da identificação com o
feminismo, assim como o fortalecimento entre mulheres citado pelas entrevistadas.
A entrevistada Luiza relata que ao se tornar mãe ela começou a se identificar com o
feminismo. Ela conta que percebia o parto natural como um potencial fortalecedor para as
mulheres, assim como ela realizou. Porém, no parto de sua primeira filha ocorreram diversas
intervenções inesperadas por ela, como a episiotomia e a manobra de Kristeller para empurrar

330
VEIGA, Ana Maria. Feminismos em rede? Uma história da circulação de discursos e informações entre São
Paulo e Buenos Aires (1970 – 1985). Dissertação de Mestrado em História na UFSC. Florianópolis/SC, 2009. p.
160-161
331
Ibidem p. 161
332
HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz E. Agustí, Lina Tatiana L. Ruiz, Mayra
S. Moreno, Maira P. Romo, Sara V. González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p. 147 - Trecho original:
“Cada vez que cualquier mujer o cualquier hombre de cualquier edad trabaja para acabar con el sexismo el
movimiento feminista avanza. Esto no requiere que nos unamos a organizaciones necesariamente; podemos
trabajar en nombre del feminismo desde donde estamos. Podemos empezar desde nuestro hogar, desde donde
vivimos, formándonos a nosotras o nosotros mismos y a nuestros seres queridos” (tradução nossa).
120

a barriga da gestante e forçar a saída do bebê. Segundo Luiza, em poucos minutos roubaram o
seu protagonismo no parto:

Eu já estava no doutorado na época, roubaram o meu parto nos “45 do segundo


tempo”, então, eu comecei na militância pela humanização do parto. Foi uma coisa
que despertou muito forte, ao longo da minha vida tive uma autonomia, mas foi nesse
momento que eu me dei conta de repensar relações, porque eu quero que a minha filha
tenha direito de escolha (...) Numa perspectiva feminista comecei a questionar a
violência doméstica, matrimonial e obstétrica. No próprio doutorado eu sofri uma
violência porque cogitaram que eu não tirasse licença maternidade, embora fosse um
direito meu, porque poderia prejudicar o programa. Eu comecei a brigar na associação
nacional de pós-graduandos para dizer que eu estava sofrendo isso. No mundo do
trabalho comecei a despertar e construir aos poucos essa emancipação, que é muito
mais presente na minha vida sobre os direitos das mulheres depois que eu me tornei
mãe e mãe de meninas.

O lugar social das mães acadêmicas provoca questionamentos sobre desigualdades de


gênero e ratifica a importância do feminismo matricêntrico liderado por Andrea O’Reilly, que
destaca, ironicamente, a existência de demandas ilimitadas e incompatíveis, de parte da
academia e da ideologia da maternagem intensiva. Segundo Andrea O’Reilly, as mães
acadêmicas são pressionadas por duas demandas contraditórias, por isso, impossíveis de serem
atendidas: “a maternagem sugere que as mães boas atuem como se estivessem livres das
exigências do trabalho, mesmo quando são ocupadas pela vida profissional, enquanto a
academia sugere que bons acadêmicos atuem como se estivessem livres do trabalho
materno”333.
Andrea O’Reilly relata dificuldades enfrentadas durante sua trajetória de pós-graduação,
tais como momentos de estresse, sentimentos de culpa e de ansiedade, em virtude da
discriminação que sofreu como mãe acadêmica. Apesar das dificuldades, conseguiu concluir
seu doutorado. Essa conquista foi possível em função da bolsa de estudos, que quase foi cortada
quando descobriram sua gravidez e do acesso à creche disponível para os filhos dos estudantes
na sua universidade. A autora destaca que para as mães acadêmicas obterem sucesso,
necessitam saber como reivindicar seus direitos e conseguir a cooperação de seus professores.
Atualmente, Andrea O’Reilly é professora titular e procura possibilitar a inclusão das
estudantes de pós-graduação e das professoras, que são mães, na comunidade acadêmica.
Atualmente, Andrea O’Reilly enquanto professora universitária titular, cita que tenta fazer a
mesma inclusão de estudantes de pós-graduação e de professores. No entanto, ela pontua que

333
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. p. 220 - Trecho original: “mothering suggests that good mothers act as if they are
unencumbered by work demands, even when they are encumbered by professional life, whereas academe suggests
good academics act as if they are unencumbered by motherwork, even when they are encumbered by those
demands” (tradução nossa).
121

devemos continuar lutando por mudanças institucionais: “acredito que devemos orientar e
defender as mães acadêmicas (...) ajudá-las a chegarem a um lugar mais justo e equitativo. Ao
fazermos isso, os estudos de maternidade podem ser assegurados no campo do feminismo
acadêmico pode ser assegurado”.334
O posicionamento político capaz de promover transformações, principalmente devido
às situações de vulnerabilidade na maternidade, segundo Andrea O’Reilly, encontra-se na
capacidade de questionar as opressões às mães. Similarmente, a entrevistada Laura narra a
própria vivência que gerou questionamentos e conduziu à identificação com o feminismo:

Quando você passa por uma situação de vulnerabilidade muito explícita, você começa
a se questionar sobre as coisas ‘por que que é assim? Mas tem que ser assim? Eu não
aceito que seja assim, então como que eu posso mudar?’ Tinham algumas coisas que
me incomodavam, mas eu não sabia como tornar isso uma ferramenta de
problematização. Quando a minha filha nasceu, comecei a ler mais sobre o assunto.
Decidi fazer outro doutorado, fui para a Ciência Sociais e Saúde, aí comecei a me
identificar.

Além disso, o maior desafio relatado por Laura é o confronto diário às imposições
culturais que oferecem respostas prontas ou condicionam a comportamentos padrões e exige,
segundo ela, uma postura sempre alerta, o que a levou a questionar assuntos sobre maternagem,
entre outras questões de gênero. Ela relata alguns de seus questionamentos: “Mas por que vai
dormir em berço? Mas por que vai ter o parto no hospital? Mas por que mamadeira? Mas por
que chupeta? Mas por que sexismo? É um processo contínuo, como vai questionar uma coisa e
não outra?!”. A capacidade de questionar as práticas de maternagem junto ao feminismo como
ferramenta de problematização das práticas tradicionais, como na narrativa de Laura, inclui
questionamentos ao mercado e à publicidade para o público materno.
A análise comparativa entre anúncios publicitários de São Paulo e Toronto voltados às
mulheres mães, realizada por Maria Collier de Mendonça, cita as estratégias dos anúncios
publicitários que formulam mensagens sobre as dificuldades das mães para, em seguida,
oferecer os produtos e serviços anunciados como soluções às mães. Embora a estratégia
problema-solução seja usual na retórica publicitária, segundo a autora, há anúncios que
questionam “a autoconfiança e o saber materno. Seus títulos provocam desconfortos nas mães,
que se sentem desinformadas, culpadas ou até inseguras. As campanhas publicitárias
desabilitam os saberes e práticas maternos, desqualificando-os como inadequados ou

334
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. p. 222 - Trecho original: “I believe that we must mentor and advocate for academic mothers.
I do believe that in this instance, the master’s tools refashioned as maternal mentoring and advocacy may indeed
bring down the master’s house or, at the very least, help to make academe a more just and equitable place for
mothers” (tradução nossa).
122

insuficientes”335. Diante dessas provocações, os questionamentos das mães sobre o mercado


são importantes, para avaliar práticas de maternagem baseadas em produtos de consumo e
soluções padronizadas, tais como as imposições culturais indagadas por Laura.
Pensando nas descobertas feministas relatadas pelas entrevistadas, as suas motivações
comuns destacam vivências que acionaram observações e questionamentos sobre o entorno
social, bem como o exercício da dúvida para elaborar soluções melhores, para uma formação
cultural não sexista e não violenta às mulheres. A entrevistada Luiza considera essa
transformação: “questionar o que é entregue como óbvio, a gente cresceu num contexto que
supervaloriza o casamento para a vida toda, então, quando eu virei mãe comecei a questionar
se não reproduzo essa expectativa social nas minhas filhas, então, fica muito mais consciente”.
A postura questionadora pode ser relacionada ao contexto que Guacira Louro aborda
sobre a disciplina teorizada por Foucault em Vigiar e Punir, que faz analogia a uma “fábrica”
de indivíduos, como uma forma específica de poder que os manipula em um processo sutil e
continuo, atrás de leis e instituições. Por isso, a autora destaca a atenção a essa “fábrica social”
das relações de poder para desconstruir o sexismo cultural, que deve constar nas “práticas
rotineiras e comuns, os gestos e as palavras banalizados que precisam se tornar alvos de atenção
renovada, de questionamento e, em especial, de desconfiança. A tarefa mais urgente talvez seja
exatamente essa: desconfiar do que é tomado como ‘natural’” 336. Luiza relata essa tomada de
consciência que produz indagações junto às questões de gênero, com reflexão sobre a própria
inserção cultural que reproduz o machismo e confere um desafio contínuo de autotransformação
para revisar os próprios preconceitos e buscar a coerência com seus valores feminista. Os
questionamentos conformam um desenvolvimento do posicionamento político feminista, que
convergem do que cita Guacira Louro:

(...) esse ‘afinamento’ da sensibilidade (para observar e questionar) talvez seja a


conquista fundamental para a qual cada um/uma e todos/as precisaríamos nos voltar.
Sensibilidade que supõe informação, conhecimento e também desejo e disposição
política. As desigualdades só poderão ser percebidas — e desestabilizadas e
subvertidas — na medida em que estivermos atentas/os para suas formas de produção
e reprodução.337

Esse patamar reflexivo de questionamentos é evidenciado nos relatos das mães


entrevistadas por meio das novas práticas de maternagem que, muitas vezes, resultam em

335
MENDONÇA, Maria Collier de. A Maternidade na Publicidade: uma análise qualitativa e semiótica em São
Paulo e Toronto. Tese de Doutorado em Comunicação e Semiótica - PUC/SP, 2014. p. 285
336
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista Petrópolis. RJ:
Vozes, 1997. p. 63
337
Ibidem p. 121
123

desconforto e exaustão por causa da militância feminista cotidiana. Porque, geralmente, as


feministas seguem um contrafluxo cultural conservador em razão da busca por igualdade de
gênero e liberdade de escolha. Entretanto, elas relatam que há um retorno gratificante do
entorno social e das mulheres para o trabalho da Cientista Que Virou Mãe. Elas narram os
desafios e os benefícios de assumir valores feministas em seus contextos de vivências, conforme
Laura cita sobre o que as mulheres costumam falar a ela: “ ‘você me fez pensar sobre coisas
que eu não pensava sobre mim’. Isso vale a minha vida. Todo mundo tem que ter um motivo, é
o que me mantém. Aquelas que ainda não pensam por esse lado me detestam e me difamam.
Com os homens então é um caos”. Ela acrescenta o seu lugar de fala, o feminismo como
motivação para continuar quando desanima:

Eu posso parar, mas eu alcancei uma coisa que as pessoas em geral não têm, que é
voz. É um privilégio e quando eu falo privilégio, eu falo de coisas ruins, não uso
privilégio como sinônimo bom. Eu tenho voz, se eu quiser falar eu sou ouvida (...) É
um privilégio que eu tenho e preciso usar para defender alguém. Feminismo é isso, é
senso de responsabilidade, não é só defesa pessoal dos meus direitos. (...) Ser
feminista tem muito de não aceitar algumas coisas seja para mim ou para qualquer
outra mulher. (...) eu enxergo machismo em tudo, porque o machismo está em tudo,
então, o fato de você não ver não significa que ele não está em tudo, significa que
você ainda não viu.

Nessa narrativa de solidariedade que visa o coletivismo, o compartilhamento da voz


alcançada por sua militância feminista retrata um poder de defender outras mulheres que pode
ser pensado a partir da tomada de consciência feminista. Esta atitude, para Bell Hooks, torna-
se essencial para essa integração das mulheres na política feminista:

Através da conscientização, as mulheres ganharam força para desafiar as forças


patriarcais no emprego e em casa. (...) as mulheres examinaram o pensamento sexista
e criaram estratégias com as quais mudar nossas atitudes e crenças através do
pensamento feminista e do compromisso com a política feminista.
Fundamentalmente, o grupo de consciência era um espaço de transformação. 338

Para Bell Hooks, as mulheres organizavam em grupos de conscientização para construir


esse movimento feminista em massa, assim como ocorre na Cientista Que Virou Mãe, entre
outras ações de especialistas e de ativistas que formam redes de conhecimento e de diálogos
feministas. Na política que busca desfazer postos de hierarquia, como se refere a autora, as

338
HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz E. Agustí, Lina Tatiana L. Ruiz, Mayra
S. Moreno, Maira P. Romo, Sara V. González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p. 30
Techo original: “Através de la toma de conciencia las mujeres obtuvieron la fuerza para desafiar a las fuerzas
patriarcales en el empleo y en el hogar. Sin embargo, de forma importante, la base de este trabajo empezó cuando
las mujeres examinaron el pensamiento sexista y crearon estrategias con las que cambiar nuestras actitudes y
creencias a través del pensamiento feminista y del compromiso con la política feminista. Fundamentalmente, el
grupo de conciencia era un espacio para la transformación”.
124

mulheres feministas atentam para tornar democráticos os espaços de voz, como aborda a
entrevistada Laura: “muita gente critica isso porque quando você dá voz a alguém você cala
outra pessoa. Mas acho que calar alguém não seja sempre ruim, por exemplo, se tiver um cara
racista eu vou calar ele sim, assim como se eu falar bobagem em um movimento de mulheres
negras, eu vou me calar”. A sensibilidade questionadora, portanto, desenvolve uma percepção
da diversidade social, em que há privilégios que podem ser utilizados para o fortalecimento de
questões coletivas de minorias sociais, assim como realizam os movimentos feministas.
A perspectiva do feminismo interseccional abrange a diversidade social, como analisa
a entrevistada Antônia: “existe um abismo entre as discussões feministas no Facebook e o que
acontece na rua. Por isso acho que eu não teria como não ser interseccional. Uma mulher que
mora na periferia que é pobre sofre níveis de opressão diferentes que eu”. Os aspectos coletivos
encontram-se na noção plural sobre feminismo citada por Bell Hooks: “não existe um caminho
único para o feminismo. As pessoas de distintas origens necessitam teorias feministas que se
refiram diretamente a suas vidas”.339 Em vista da representatividade social no feminismo são
reconhecidas e expostas as diferenças que, para Guacira Louro, foi uma iniciativa das mulheres
negras e das mulheres lésbicas a partir do feminismo de terceira onda iniciado em 1980.
Segundo Guacira Louro esse contexto desencadeou debates complexos e rupturas no
movimento feminista, “acentuando a diversidade de histórias, de experiências e de
reivindicações das muitas (e diferentes) mulheres. Mas o que estava centralmente implicado em
todas essas discussões eram as relações de poder que ali se construíam e se pretendiam fixar” 340.
Como considera a autora, ao movimento feminista importa saber a origem das desigualdades e
para isso necessita saber quem ou quais mecanismos de poder definem quem é considerado
diferente e o que significa ser diferente.
Há uma profícua diferenciação realizada por Maria Amélia Teles sobre “movimento de
mulheres” que denota ações organizadas a fim de reivindicar direitos ou melhores condições de
vida e de trabalho e “movimento feminista”, que se refere “às ações de mulheres dispostas a
combater a discriminação e a subalternidade das mulheres e que buscam criar meios para que
as próprias mulheres sejam protagonistas de sua vida e história”341. Exercer a atitude combativa
de reconhecer as desigualdades para demarcar as diferenças em busca de igualdade, mostra que

339
HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz E. Agustí, Lina Tatiana L. Ruiz, Mayra
S. Moreno, Maira P. Romo, Sara V. González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p. 147
Trecho original: “No existe un camino único hacia el feminismo. Las personas de distintos orígenes necesitan
teorías feministas que se refieran directamente a sus vidas”.
340
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista Petrópolis. RJ:
Vozes, 1997. p. 45
341
TELES, Maria Amélia de A. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 12
125

aderir ao movimento feminista torna-se assumir uma postura “incômoda” no Brasil, como cita
Maria Amélia Teles,

(...) falar da mulher, em termos de aspiração e projeto, rebeldia e constante busca de


transformação, falar de tudo o que envolva a condição feminina, não é só uma vontade
de ver essa mulher reabilitada nos planos econômico, social e cultural. É mais do que
isso. É assumir a postura incômoda de se indignar com o fenômeno histórico em que
metade da humanidade se viu milenarmente excluída nas diferentes sociedades no
decorrer dos tempos.342

O feminismo ganha sentido ao pensar, de acordo com Maria Amélia Teles, que “a
mulher não é apenas metade da população e mãe de toda a humanidade. É um ser social, criativo
e inovador”343. Parte dessa construção de sentido do movimento feminista que também
participam as mulheres da Cientista Que Virou Mãe, também surge o incômodo ou o custo por
tais militâncias, que é citado por elas. Laura relata que ser feminista traz sofrimento a ela,
porque sua militância de reconhecer injustiças e violências a torna malquista por muitas
pessoas. A reação combativa dos outros com ela demonstra relacionamentos em que seus ideais
feministas não são compreendidos, como cita Laura: “isso é problemático, em muitos
momentos me vejo sozinha, aí tenho que fazer uma escolha ou vou amenizar o tom para ter a
companhia ou vou continuar a minha filosofia e coerência, embora corra o risco das pessoas se
afastarem. Bom, eu já fiz a minha escolha”.
Semelhante a essa história, a entrevistada Antônia expressa a exaustão que seu
posicionamento feminista gera. Quanto mais ela estuda e conversa sobre isso, mais percebe a
estrutura dominante opressiva às mulheres: “é como tirar um véu da frente dos olhos, não é
bonito o que a gente vê, quanto mais trabalho com isso mais casos horrendos chegam, mais
denúncias horrendas, mais gente pedindo ajuda, então é pesado, não é tranquilo, não é lindo”.
Apesar disso, há contrapesos de gratificações que motivam para que o feminismo continue
conduzindo suas filosofias de vida: “por outro lado é lindo ver a rede de força e de amizade
entre nós mulheres, saber que se eu tropeço eu tenho muitas mãos para me ajudar a levantar,
isso é o alento que temos no feminismo. É a força e a união que a gente sabe que tem e podemos
contar”. Daiana cita que vivenciou a sororidade feminista na prática:

O feminismo me manteve na universidade, o discurso antimachista e a rede de


mulheres. (...) No final de 2015 eu tive vários problemas e dividi com as meninas,
recebi muito apoio psicológico e financeiro, elas se juntaram e pagaram fraldas para
minha filha e o meu aluguel. Eu estava chateada porque não poderia ver meu filho que
estava em São Paulo e elas pagaram minha passagem também. E tudo isso foi
espontâneo depois do meu relato desabafando no grupo Mulheril do Facebook, sobre

342
Ibidem p. 09
343
Ibidem p. 10
126

o problema do machismo com meu marido e da minha conta bloqueada. (...) a medida
que eu vejo a relação na prática, quando cria uma rede tão forte de mulheres, então,
agradeço e crio mais energia para trabalhar pelo empoderamento de todas as mulheres

As ações individuais e coletivas a partir dessa união conferem sentido ao feminismo


como “movimento” e se aproxima da identificação criada por meio de redes de apoio entre
mulheres. De acordo com Ana Maria Veiga, a organização de ações conjuntas da prática
feminista demonstram um potencial de transformação social: “o trabalho em grupo e o
individual, a horizontalidade e as hierarquias, tudo isso deve ser levado em conta quando
buscamos compreender as estratégias dessas atrizes (ou ‘atoras’) sociais e o posicionamento
que encontramos em seus discursos”344. Discursos que, muitas vezes, tornam-se práticas e
reconhecem uma identidade perdida ou afirmam um posicionamento político. Nesse sentido,
encontra-se a vida como uma categoria política para além de biológica pois, conforme Marcia
Tiburi, “como categoria política, a vida implica a nossa potência para a relação simbólica com
o outro que é sempre uma relação de reconhecimento. Aquele que não reconhece a alteridade
está morto. Está politicamente morto. Ora, quem está politicamente morto está morto”.
Na metáfora filosófica, a autora confirma algumas nuances políticos que podem
associar-se com a identificação das mulheres com o feminismo e a renovação de suas vidas a
partir do movimento, como é relatado pelas entrevistadas da Cientista Que Virou Mãe. Exemplo
disso encontra-se nas vivências de Renata, após o processo litigioso de divórcio, a violência
patrimonial e a entrega da guarda de seus filhos ao pai deles devido à posição econômica dele
ser mais privilegiada do que a dela:

Fui para o apartamento novo sem os meninos e fiquei muito deprimida, eu não queria
mais viver (...) Eu via muito pouco os meninos. Então, ficou muito vazia a minha vida
do dia para a noite. Mas uma amiga me convidou para abrir uma ONG. (...) Fundamos
em outubro de 2013 a Associação Artemis, que talvez seja onde definitivamente eu
me afirme como feminista, porque eu passo a ser presidente de uma organização sem
fins lucrativos em defesa dos direitos das mulheres, da erradicação da violência e
promoção da autonomia. Aí fecha realmente o ciclo de violências todas que minha
mãe sofreu, que eu sofri, que outras mulheres sofreram também. Foi um jeito de curar
a minha dor, porque eu comecei a tirar o foco de mim e passei a perceber que o meu
caso não é isolado, é um jeito sistêmico de violentar mulheres. As violências
psicológicas e patrimoniais que eu sofri e todo esse encaminhamento na justiça são
muito comuns. (...) eu me fortaleci e fui tentar um outro jeito de viver.

No reconhecimento do próprio potencial de transformação através do auxílio a outras


mulheres, o feminismo se mostra como uma renovação política que fortalece muitas mulheres.
A união entre mulheres é destacada por Bell Hooks sobre a revolução dos direitos civis junto

344
VEIGA, Ana Maria. Feminismos em rede? Uma história da circulação de discursos e informações entre São
Paulo e Buenos Aires (1970 – 1985). Dissertação de Mestrado em História na UFSC. Florianópolis/SC, 2009. p.
40
127

ao movimento feminista das décadas 1970 e 1980, que tornou possível mudanças em defesa do
bem-estar de todas as mulheres, pois entenderam que “a solidariedade política entre mulheres,
expressada na sororidade, vai além do reconhecimento positivo das experiências das mulheres
e da afinidade por sofrimentos comuns. A sororidade feminista está enraizada no compromisso
compartilhado de lutar contra a injustiça” 345. Segundo a autora, o combate ao sexismo e às
violências de gênero através da sororidade é possível por meio da prática de reconhecer, na
alteridade social, as diferenças de raça e de classe, segundo a autora, que permitiu muitas
feministas se disporem a utilizar os próprios privilégios para auxiliar grupos subordinados de
mulheres. Há um fortalecimento de mulheres feministas que também é percebido entre as mães
entrevistadas da plataforma Cientista Que Virou Mãe. A entrevistada Laura responde como a
plataforma contribuiu nesse aspecto:

Não contribuiu, ela construiu. Ela não contribuiu para eu ser mais feminista, a
plataforma construiu em mim uma mulher feminista, como mãe talvez menos do que
como feminista, porque eu já tinha em mim esses valores fortes como não violência,
problematização, respeito, cuidar da criança com amor. Mas como feminista ele me
construiu e não foi a base da lapidação, foi a base da detonação, na interação com os
leitores e leitoras. Não existe pedagogia melhor do que a troca. A plataforma me
tornou cientista das ciências sociais. (...) Esse “Cientista” é uma cilada, é uma
armadilha. As pessoas procurando evidências científicas chegam lá e mostro que é
legal ter evidências científicas para orientar suas ações, mas o seu empoderamento é
mais importante do que a evidência científica.

O poder das vivências, conforme Laura, supera o do conhecimento científico sobre as


questões de gênero que ela questiona e expõe na plataforma junto às outras mulheres,
potencializando uma rede de fortalecimento em torno das vivências, muitas dessas referentes
às novas práticas de maternagem que elas narram. A entrevistada Daiana corrobora o poder de
redes feministas entre mães: “além de ser mulher, ser mãe traz muitas limitações estruturais e
sociais. Por isso, quando encontrei as mães da plataforma e o coletivo de pais e mães da UFSC,
foi fundamental para poder construir essa autonomia e rede de mães, são muitas mães feministas
que estão aí atuando”. Reconhecendo as barreiras de gênero enfrentadas por mulheres mães
acadêmicas, houve união e fortalecimento entre elas a partir do coletivo na universidade onde
Daiana estudava e dos seus textos na plataforma Cientista Que Virou Mãe. Nessa realidade,

345
HOOKS, Bell. El feminismo es para todo el mundo. Tradução: Beatriz Esteban Agustí, Lina Tatiana Lozano
Ruiz, Mayra Sofía Moreno, Maira Puertas Romo, Sara Vega González. Madrid: Traficantes de sueños, 2017. p.
37 - Trecho original: “Siguiendo los pasos de la revolución por los derechos civiles, el movimiento feminista de
las décadas de los años setenta y ochenta cambió el panorama nacional. Las activistas feministas que hicieron
posibles estos cambios se preocuparon por el bienestar de todas las mujeres. Nosotras entendíamos que la
solidaridad política entre mujeres expresada en la sororidad va más allá del reconocimiento positivo de las
experiencias de las mujeres e incluso de la afinidad por los sufrimientos comunes. La sororidad feminista está
enraizada en el compromiso compartido de luchar contra la injusticia patriarcal, sin importar la forma que tome
esa injusticia” (tradução nossa).
128

Andrea O’Reilly contribui para pensar que apesar do desaparecimento do tema maternidade no
feminismo acadêmico do século XXI, há uma teoria feminista e um movimento próprio em
formação, como o feminismo matricêntrico:

O feminismo matricêntrico deve ser reconhecido como uma escola legítima, viável e
independente do pensamento feminista; logo, deve ser integrado ao feminismo
acadêmico dominante. Mas como podemos realizar isso? Precisamos de mais
mulheres realizando estudos maternos e de mais professoras que sejam mães na
academia. Exigimos que o feminismo matricêntrico tenha um capítulo próprio, como
ocorreu com outras escolas da teoria do feminismo - queer, global, terceira onda - em
nossas leituras sobre teorias feministas e nos textos introdutórios dos cursos e livros
didáticos sobre estudos de mulheres. Exigimos, ainda, mais trabalhos e seções sobre
maternidade e maternagem em periódicos e conferências sobre mulheres, e também
que mais livros sobre maternidade sejam resenhados. Devemos desconstruir
continuamente a confusão entre maternidade e maternidade no feminismo acadêmico,
bem como temos de dissociar o feminismo matricêntrico do essencialismo de gênero.
E, de forma decisiva e urgente, devemos contestar e interromper a narrativa do
feminismo acadêmico que normaliza o sujeito autônomo e sem gênero; para
consolidarmos a centralidade das identidades e vidas reprodutivas das mulheres, como
também a grande importância do cuidado em nossa cultura (...) Finalmente, o que é
ainda mais importante, devemos exigir que as feministas matricêntricas sejam
reconhecidas e respeitadas como feministas que são e que o feminismo matricêntrico
tenha seu próprio espaço no grande território do feminismo acadêmico. 346

Andrea O’Reilly defende que para conquistar direitos iguais entre homens e mulheres
deve haver uma nova lógica social, que valorize o trabalho de cuidados tanto quanto o trabalho
remunerado. Em outras palavras, a valorização das práticas de maternagem das mulheres mães
e do feminismo matricêntrico contribui para conquistar equidade de gênero. Nessa direção
trabalham as mulheres da Cientista Que Virou Mãe ao produzirem conhecimentos que buscam
fomentar uma reorganização das relações de poderes com os movimentos feministas
protagonizados por mulheres mães. Apresentam-se novos sujeitos de transformação social por
meio das mães as quais, muitas vezes, demonstram poder de agência política desenvolvido no
vínculo entre a militância feminista e as vivências na maternagem.

346
O'REILLY, Andrea. Matricentric Feminism: Theory, Activism, and Practice. Paperback, Bradford, ON:
Demeter Press, 2016. p. 987 - Trecho original: “Matricentric feminism must be more than acknowledged as a
legitimate, viable, independent school of feminist thought; it must be integrated into mainstream academic
feminism. But how do we accomplish this? We need more women doing motherhood scholarship and more mother
professors in academe. We demand that matricentric feminism have a chapter of it is own as do other schools of
feminism theory—queer, global, womanist, third wave—in our feminist theory readers, that introduction to
women’s studies courses and textbooks include sections on motherhood, that women’s journals and conferences
include more papers on motherhood, and that more books on motherhood are reviewed. We must continuously
challenge the conflation of mothering with motherhood within academic feminism as well as counter the
association of matericentic feminism with gender essentialism. And decisively and urgently, we must interrupt the
received narrative of academic feminism, in particular its normalization of the genderless and autonomous subject,
in order to foreground the centrality of women’s reproductive identities and lives and the importance of care in
our larger culture. (…) Finally and most importantly, we must demand that matricentric feminists be recognized
and respected as the feminists that they are and that their feminism, that of matricentric feminism, have room of
its own in the larger home of academic feminism” (tradução nossa).
129
130

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho aborda o tema da maternidade e da maternagem como pendentes no


ambiente acadêmico e no feminismo, devido às concepções essencialistas e despolitizadas
sobre as questões maternas. Novos debates sobre esses temas potencializam o fortalecimento
entre mulheres mães como um grupo social com direitos próprios a serem a valorizados. O
aporte teórico conduz importantes assimilações sobre maternidade a partir do feminismo
matricêntrico, termo cunhado por Andrea O’Reilly para definir o feminismo próprio para a
reivindicação das mulheres mães. Há a distinção das etimologias entre maternidade e
maternagem que revelam diferentes concepções culturais, a primeira vinculada à noção
institucional e de sentidos biológicos advindos de valores culturais, muitas vezes, opressivos às
mulheres, a segunda remete à ideia de ação, de continuidade e de resultado no processo de
cuidar, tarefa realizada em geral por mães, mas que deve ser democratizada.
Analisa-se o desenvolvimento das questões sobre maternagem, que foram pouco
abordadas no feminismo de segunda onda, apesar de ter tratado de maternidade, e demonstra
um aprofundamento no século XXI com discussões que permeiam o conceito de feminismo
matricêntrico em um reconhecimento da diversidade de mulheres na militância feminista,
especialmente das mulheres mães. Para contribuir a tais temas, esta pesquisa destaca a
contribuição das mulheres que atuam na plataforma Cientista Que Virou Mãe, a fim de
evidenciar novas práticas discursivas de maternagem que essas mães feministas narram a partir
dos seus relatos de entrevista como fonte desta pesquisa e do trabalho delas na plataforma. Para
viabilizar a fundamentação teórica deste estudo o caminho teórico percorreu algumas categorias
principais como gênero, mulheres, maternagem e história oral. Na sequência disso, também
foram conceituados feminilidade, masculinidade, práticas discursivas e subjetividades como
fundamentos secundários de pesquisa, além de contar com a definição sobre patriarcado para
pontuar o motivo de esta não ser uma categoria útil para este trabalho, apesar de ser um termo
citado aqui pelas fontes e por autores(as).
Nessa base sobre estudos de gênero e da história das mulheres pontua caminhos
importantes para suscitar os debates feministas sobre maternagem que implicam no feminismo
matricêntrico que aborda a relevância de visibilizar e valorizar o feminismo das mulheres mães,
a fim de demarcá-las na história como uma categoria social que exige reconhecimento de suas
diferenças para que sejam integradas e fortalecidas no feminismo. Ampliam-se as questões
segmentadas no feminismo das diferenças de classe, de raça e de gênero, junto às questões das
mulheres que tornam-se mães. Isso contribui para expandir os estudos maternos que desde os
131

anos de 1980 pensam sobre as questões vivenciadas pelas mães como questões de gênero que,
muitas vezes, são desconsideradas pelo feminismo acadêmico. Esse aprofundamento teórico
ratifica a necessidade de promover estudos também sobre a maternagem e as reivindicações
legítimas de direitos das mães através disso no feminismo matricêntrico. Nessa intenção de
esclarecer confusões teóricas sobre maternidade e maternagem, busca-se intensificar a
problematização social da desigualdade de oportunidades e de qualidade de vida reduzidas para
muitas mães devido às questões de gênero.
As questões de gênero são pensadas nesta pesquisa no contexto da Primavera das
Mulheres, movimento brasileiro que desde 2015 vem sendo considerado uma renovação do
feminismo no século XXI devido às diversas manifestações e protestos na Internet e nas ruas
em defesa dos direitos das mulheres. Diante dessa realidade, este trabalho apresenta os
principais acontecimentos da Primavera das Mulheres no Brasil sobre tal movimentação
feminista que denunciam questões de gênero que persistem historicamente, como o assédio
sexual, a violência doméstica, entre outras violências que ocorrem majoritariamente de homens
para mulheres, além da criminalização do aborto, as quais formaram as manifestações centrais
de 2015 a 2017 no país. Essas e outras ações realizadas por grupos organizados de mulheres
nesse período remetem a um cenário social que visa transformações em termos de igualdade de
gênero, conforme Nalu Faria:

Gerações e gerações viveram uma realidade em que as mulheres eram consideradas


inferiores aos homens. Como isso era encarado como parte do destino das mulheres,
tudo parecia normal e a autoridade masculina sobre as mulheres não era questionada.
Foi só a partir da luta das mulheres e sua organização em movimentos próprios, ou
seja, movimentos de mulheres, que essa situação foi denunciada como uma construção
social injusta. Muitos estudos demonstraram que considerar a desigualdade entre
homens e mulheres como uma diferença natural era um dos principais mecanismos
para manter as mulheres em uma posição subordinada. 347

Na história de movimentos de mulheres por condições sociais mais igualitárias, a


Primavera das Mulheres destaca novamente a exuberância feminista através da união entre
mulheres por causas comuns de combate às violências sobre seus direitos e seus corpos. Nessa
reivindicação por equidade de gênero, a Internet demonstra um potencial catalisador como
ferramenta de encontro entre mulheres que amplifica suas vozes e converge com protestos
feministas internacionais. No ambiente digital há mulheres na política brasileira que defendem

347
FARIA, Nalu. Mulheres e Exclusão na América Latina (p. 15-22). In: NOBRE, Miriam; FARIA, Nalu;
SILVEIRA, Maria Lúcia. Feminismo e Luta das Mulheres: análise e debates. Sempreviva Organização
Feminista: São Paulo, 2005. p. 15-16
132

pautas feministas em seus mandatos governamentais, atendendo questões das mães como uma
transformação fundamental para fomentar a igualdade de gênero na cultura do país. Assim, as
diferenças de gênero que baseiam muitas desigualdades de direitos são expostas na busca por
reconhecê-las como algo construído culturalmente, não como uma produção natural,
destacando os feminismos pós-modernos da diferença. Gleidiane Ferreira associa esse tema ao
pensamento de María Luisa Femenías ao conceituar a emancipação das mulheres:

A diferença não poderia significar uma contraposição à igualdade. A diferença é uma


contraposição à identidade, aos preceitos estabilizantes do sujeito, enquanto a
igualdade é uma contraposição às relações que sustentam as desigualdades.
Construindo o argumento central da autora, essa polarização é uma falsa antítese, uma
falsa questão que deve ser superada na construção das teorias feministas. Para retomar
essa questão, Femenías se apropria de algumas problematizações colocadas pelos
feminismos pós-coloniais sobre a importância de se conceituar o sujeito político do
feminismo dentro de uma contingência histórica, conceitual e geográfica, sem perder
de vista as intersecções que fortalecem as lutas internacionais. 348

O termo emancipação é destacado como forma de lembrar a relevância de um


feminismo que considere a pluralidade identitária e, portanto, a intersecção de lutas que
articulem novas demandas constituintes sobre uma defesa descentrada dos direitos das
mulheres. Nessa perspectiva, há o reconhecimento das diferenças para combater as
desigualdades de gênero, que conduz à necessidade de mudança e tem originado o potencial
político da militância de mães feministas como é apresentado pelas integrantes da plataforma
Cientista Que Virou Mãe. Elas atuam com a produção de textos e de eventos para tratar de
maternidade como meio de fortalecimento, de autonomia e de participação política ao
produzirem conteúdos sobre questões das mães e da infância junto às relações de gênero
problematizadas pelo feminismo.
Visto isso, a Primavera das Mulheres surge como um espaço de militância no tempo e
no espaço, em que se posiciona o trabalho das mulheres da Cientista Que Virou Mãe. Nessa
abordagem, referencia-se a vulnerabilidade que motiva muitas mulheres mães para a iniciativa
política de reivindicar seus direitos e questionar as imposições culturais sobre suas atuações na
sociedade. As fragilidades vivenciadas pelas mães são expressas para que haja identificação e
união entre minorias sociais, como são as mulheres e mais ainda, as mulheres mães, as quais
através desse poder, muitas vezes, demonstram a força coletiva motivada pela transformação
das vulnerabilidades individuais. A concepção de pensar mulheres mães na sociedade como

348
FERREIRA, Gleidiane de Sousa. Não há igualdade sem diferença, nem diferença sem igualdade. Resenha
FEMENÍAS, María Luisa, Sobre sujeto y género: re-lecturas feministas desde Beauvoir a Butler. 2. ed., Rosario:
Prohistoria Ediciones, 2012. Rev. In Estud. Fem. vol.23 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2015
133

sujeitos políticos por meio da resistência feminista promove um campo de fortalecimento entre
elas, percebido ao tratar das vivências sobre ser mulher e ser mãe que, muitas vezes, são
associadas culturalmente à fragilidade para ganharem o sentido contrário de coragem.
Exemplos dessa subversão de valores são apresentados na Primavera das Mulheres ao pontuar
a presença política das mães nos movimentos feministas por equidade de gênero e por
democratização das tarefas de cuidado.
Nesse aspecto, Flávia Biroli trata do valor da privacidade e do cuidado para construir
uma democracia plural e igualitária. A autora aborda as injustiças como composições
dinâmicas, em que as desigualdades estão conectadas à marginalidade política de determinados
grupos de indivíduos, que caracterizam impedimentos estruturais ao acesso material e
simbólico que garantem aos indivíduos a integridade corporal e psíquica, bem como a afirmação
da identidade e da realização de projetos pessoais. A marginalidade política, assim, pode ser
entendida como uma vulnerabilidade social, a qual corresponde à exclusão seletiva de algumas
oportunidades e com isso, também de produção política de interesses e capacidades dos
indivíduos marginalizados. Essa questão é pensada, sobretudo, na expressão dos direitos por
espaços de poder em políticas públicas que, de acordo com Flávia Biroli abrange:

(...) em que medida os indivíduos têm capacidade de influenciar as normas e políticas


que os afetam. Ou, do avesso, de que modo a posição socioeconômica, o sexo, a raça
e a sexualidade dos indivíduos determinam padrões distintos no acesso à influência
política. Há, nas democracias contemporâneas, um círculo vicioso em que a menor
capacidade de influência política leva à ausência de políticas que permitiriam romper
com as dinâmicas que produzem a vulnerabilidade e a marginalização de
determinados indivíduos, o que, por sua vez, os mantêm afastados dos recursos que
permitem que sua experiência e suas carências ganhem relevância pública e prioridade
na agenda política, reduzindo as chances de que seus interesses sejam politicamente
codificados e expressos.349

As mulheres como minorias sociais, muitas vezes, encontram seus direitos nas margens
dos poderes públicos, por isso é destacado neste trabalho como as feministas expõem suas
vulnerabilidades e reivindicações na Primavera das Mulheres. Assim, a discussão sobre a
Primavera das Mulheres demonstrou o contexto brasileiro de mobilização em defesa dos
direitos das mulheres e das demais minorias sociais, que converge com o propósito político pelo
que trabalham as mulheres da plataforma Cientista Que Virou Mãe. Por isso, elas formam um
grupo de mulheres pertinente ao serem escolhidas como fontes desta pesquisa através de
entrevistas que teve como objetivo conhecer suas novas práticas discursivas de maternagem em
relação aos valores feministas que permeiam suas narrativas e fortalece o sentido político da

349
BIROLI, Flávia. Família: novos conceitos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014. p. 63-64
134

Primavera das Mulheres.


Essa investigação considerou seus trabalhos das mulheres na plataforma Cientista Que
Virou Mãe, mas enfatizou a observação e análise das entrevistas concedidas por elas, pois
acreditou-se ser um método que ofereceria amplitude de interpretação e detalhamento através
da subjetividade própria da história oral. Desse modo, houve possibilidades de perceber a
narrativa sobre algumas regularidades tal como as referências sobre autonomia nas mulheres
das famílias e as questões de gênero que elas narram ter vivenciado em suas relações familiares
que afetaram tais autonomias. Alguma dessas conexões são permeadas pela desigualdade de
gênero na execução das tarefas domésticas e do cuidado com os filhos, que configura o caminho
teórico sobre trabalho compulsório das mulheres na história do trabalho doméstico. Conforme
os relatos sobre os conjuntos familiares no quais as entrevistadas cresceram mostraram a
recorrência das mulheres exercendo tais tarefas na maioria das vezes e com a consequente
omissão dos homens. Atrelado a esse fato, observaram-se as rotinas das trabalhadoras no lar
somada às atribuições de suas carreiras profissionais como um fator decisivo na sobrecarga de
trabalho.
Tratou-se das mulheres mães que de alguma forma tiveram suas autonomias diminuídas
por não trabalhar fora de casa e depender financeiramente dos seus maridos e ainda sofrerem
violência moral e patrimonial por parte deles. O conceito de trabalho foi ampliado sobre o
prestígio social e a remuneração que lhe é atribuído conforme a função, destacando o tabu
cultural sobre o trabalho doméstico realizado na própria casa, geralmente, dissociado dos
direitos trabalhistas, que evidenciou a limitação de autonomia das mulheres para trabalhar fora
de casa. Nessa abordagem, considerou-se que há uma desvalorização cultural do trabalho
doméstico e das tarefas de cuidado, entre outros que, historicamente, têm sidos realizados em
maior escala por mulheres.
Considerando as referências familiares para a constituição de sujeitos sociais, este
trabalho questionou, nas entrevistadas, as relações de gênero nas famílias onde foram criadas
as mulheres da Cientista Que Virou Mãe, em termos de regras e promoção de valores. No
decorrer dos seus relatos de entrevista observou-se como formam-se narrativas que, na maioria
das vezes, definem as relações de gênero de modo sexista, que permitiu comparar as narrativas
sobre permanências e mudanças que as mesmas narram em suas famílias antes e após de
tornarem-se mães. Esses fatores assinalam algumas práticas que podem perpetuar
desigualdades nas relações de gênero desde o ambiente familiar, que segue a perspectiva de ser
uma das principais referências sociais para desconstruir comportamentos sexistas. Pensando na
persistência de tais práticas cultivadas em tradições familiares, entre outros meios sociais, esta
135

pesquisa considera a distribuição desigual do trabalho doméstico e das tarefas de cuidados como
um problema de gênero e observa como as mulheres da Cientista Que Virou Mãe narram suas
novas práticas de maternagem voltadas à equidade de gênero e como elas atribuem a
maternagem a suas militâncias feministas.
O conhecimento dessas questões nos relatos das entrevistadas permite esta pesquisa
abordar como as mesmas definem suas militâncias feministas e conectam o fato de tornarem-
se mães à identificação com o feminismo. Percebe-se um entrelaçamento de suas vivências
entre memórias familiares, construções sobre ser mãe e redes feministas nas atuações do
entorno social. As práticas de maternagem dessas mulheres demonstram uma investida de
findar o sexismo das relações de gênero em muitas dimensões familiares e sociais a partir dos
valores feministas de equidade de gênero. A vontade de transformação de normas culturais
narradas por elas apresenta as dificuldades e os benefícios do posicionamento feminista,
resultando em perspectivas comuns em busca da igualdade de gênero para construir uma nova
geração por meio de suas novas práticas de maternagem feministas. Assim, elas demonstram
como entendem a importância de promover uma formação aos filhos e às filhas que preconize
o combate à violência contra as mulheres, o empoderamento de mulheres, o respeito à
diversidade social e os diálogos sobre gênero.
Esta pesquisa também apresenta as maneiras encontradas pelas entrevistadas para
fortalecer o movimento feminista e agregar redes de apoio às mulheres em torno de seus
alcances pessoais e profissionais. A presença política delas como mães e feministas na
sociedade mostra uma sensibilidade desenvolvida sobre a capacidade de observação arguta de
questionar normas culturais, a fim de suscitar formas mais igualitárias e solidárias nas relações
de gênero. Não se trata de uma visão horizontal ou global de mostrar trajetórias bem-sucedidas
para produzir uma “geração feminista”, mas sim de uma possibilidade de acessar diferentes
narrativas feministas de mulheres que buscam praticar novas formas de maternagem. Distante
de fórmulas exatas para educar de forma não sexista, trata-se de maneiras diversas e engajadas
politicamente de adequar suas realidades aos ideais feministas, prezando ativamente pela
desconstrução das desigualdades de gênero. Nas militâncias feministas das mães há medidas
em comuns que, segundo Guacira Louro, podem se relacionar com a pedagogia feminista:

(...) a atitude de observação e de questionamento — tanto para com os indícios das


desigualdades como para com as desestabilizações que eventualmente estão
ocorrendo (...) Isso implica operar com base nas próprias experiências pessoais e
coletivas (...) Tal posição pretende, deliberadamente, incitar o desasossego, a auto-
crítica e a busca de ações mais efetivas. Persiste, assim, a pergunta: que fazer para
mudar? (...) Ainda que movimentos coletivos mais amplos sejam certamente
importantes, no sentido de interferir na formulação de políticas públicas — em
136

particular políticas educacionais — dirigidas contra a instituição das diferenças e a


perpetuação das desigualdades sociais, também parece urgente exercitar a
transformação a partir das práticas cotidianas mais imediatas e banais, nas quais
estamos todas/os irremediavelmente envolvidas/os.

Guacira Louro afirma que há um novo modo de exercer tal transformação, na medida
que são reconhecidos o cotidiano e o imediato como políticos, “o aqui e o agora” como espaços
possíveis para realizar transformações. Não é preciso esperar, necessariamente, por ações
institucionais entre outras consideradas agentes de transformações sociais para agir em prol da
igualdade e da solidariedade. Comportamento esse demonstrado em muitos aspectos pelas
entrevistadas desta pesquisa ao destacarem a consciência feminista de sororidade acionada
sobre a responsabilidade de união entre mulheres para combater questões de gênero desiguais
que se tornam comuns às mesmas. Em razão disso, as entrevistadas da Cientista Que Virou Mãe
narram que apesar de suas ações feministas receberem críticas do entorno social que divergem
dos ideais de igualdade de gênero, há resultados gratificantes quando recebem o retorno positivo
de outras mulheres que reconhecem a necessidade de trabalhar em defesa dos direitos das
mulheres. A demonstração de admiração e de gratidão por tais esforços feministas fortalece o
trabalho das escritoras da plataforma.
Os relatos sobre as militâncias feministas das mulheres da Cientista Que Virou Mãe,
evidenciam iniciativas de transformação desde os raios de ação familiares e pessoais, até
alcances maiores de coletivos de mulheres que propõem reivindicações públicas em defesa da
equidade de gênero. As políticas feministas incluem as suas novas práticas de maternagem
narradas nas entrevistas, que corroboram uma simplificação da militância feminista. Entende-
se que os ideais feministas são acessíveis a quem estiver disposto(a) a dialogar sobre igualdade
de gênero e podem ser realizados desde os pormenores do cotidiano, em um processo contínuo
de revisão dos próprios preconceitos e práticas que defendam a igualdade de direitos.
Diante do posicionamento das mães feministas de promover ações individuais pensando
em transformações gerais na sociedade, este trabalho enfatiza a reflexão constante sobre a luta
contra a exclusão das mulheres, que implica em necessidade de mudanças nas famílias, nos
movimentos sociais, nas esferas públicas de poder e nas relações interpessoais. Considera-se
que o fato de reconhecer as relações de poder que produzem a exclusão econômica e política
das mulheres em âmbitos sociais, muitas vezes, torna-se menos complexo do que perceber as
desigualdades de gênero que permeiam as relações cotidianas.
137

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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152

APÊNDICE - ROTEIRO DE ENTREVISTA

Sobre relações familiares

1. Como é sua família? (quantos integrantes, personalidade, estudo, profissão)


2. Como foi sua educação na infância e adolescência? (regras, tradições e liberdades,
brincadeiras)
3. Como era a relação de confiança e cumplicidade com quem criou e educou você?
(conversas, motivações ou frustrações)
4. Quem mais educou (conversou sobre limites) e quem mais mimou (deu afeto) você?
5. Como era a divisão de tarefas domésticas, trabalho fora e cuidado com as crianças?

6. Atualmente, o que mudou na sua relação familiar? (conflitos, afinidades)


7. Como são as mulheres da sua família? (atitude, autonomia e personalidade)
8. Você se identifica com alguém da sua família? Se sim, em que sentido?

Sobre identificar-se como feminista

9. Quando você descobriu o feminismo e como foi/está sendo o processo?


10. De que forma sua tradição familiar motivou sua luta feminista? (fortalecendo ou afrontando
a educação que recebeu)
11. Você se considera uma feminista militante? Por quê? (vertentes, ideais, comportamentos)
12. Quais mudanças o feminismo promoveu em sua vida? (família e outros âmbitos sociais)
13. Você costuma educar as pessoas a sua volta sobre o feminismo? Como?
14. Você consegue conversar com sua família sobre feminismo? Qual o entendimento que
recebe de volta?

Sobre educação feminista

15. Como o feminismo conduz você a educar diferente seu(sua) filho(a)?


16. Você acredita em uma educação não sexista? Quais são os desafios e benefícios de ter essa
postura como mãe?
17. Como você trabalha a educação não sexista e o empoderamento feminino para as meninas/
mulheres e para meninos /homens?
18. Como a plataforma Cientista Que Virou Mãe contribui para sua autonomia feminista e
materna? (desafios de ser mulher, mãe e trabalhadora, cientista)
19. Como o feminismo motiva você enquanto mulher, mãe e cientista?
20. Você acredita em uma geração feminista que está em curso?
153

ANEXO - AUTORIZAÇÕES DE ENTREVISTA


154
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156
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