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A Educação Na Ética Kantiana
A Educação Na Ética Kantiana
A Educação Na Ética Kantiana
Resumo
Palavras-chave:
Correspondência:
Mário Nogueira de Oliveira
Rua Maestro Francisco Braga, 76
apto. 202
22041-070 – Rio de Janeiro – RJ
e-mail: mario.nog@uol.com.br
Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 447-460, set./dez. 2004 447
Education in Kantian ethics
Abstract
Keywords
Contact:
Mário Nogueira de Oliveira
Rua Maestro Francisco Braga, 76
apto. 202
22041-070 – Rio de Janeiro – RJ
e-mail: mario.nog@uol.com.br
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Durante anos, lemos e discutimos sobre O argumento de que os últimos escri-
as dificuldades de teorias éticas serem aplica- tos de Kant são frutos de um período de seni-
das em um contexto como o nosso, de grande lidade e mais a grande repercussão que as obras
desigualdade social e econômica. Nosso con- anteriores à década de 1780 tiveram, e têm até
trato social instituiu-se diferentemente daque- hoje, quase que nos limitaram a uma interpre-
les de países que possuem uma grande classe tação majoritária do pensamento ético de Kant
média e um grau de exclusão social muito mais segundo a qual sua grande característica seria
reduzido. Fomos cidadãos desiguais desde a uma ética purificada de tudo que pudesse advir
primeira hora. dos estudos sobre antropologia, psicologia,
A maior parte dessas teorias não trata biologia, história, ou qualquer estudo de cunho
daquilo que poderia ser elucidativo para tornar empírico. Entretanto, como um representante
nosso contexto apto a suas aplicações uma vez do Iluminismo, Kant nunca buscou negar o
que elas já pressupõem sociedades com orga- lugar essencial, na ética, de um estudo empírico
nização diferente da nossa. Isso nos leva a do homem. Ele criticou prontamente outros
buscar fontes de estudo que respondam pela moralistas que ignoraram a natureza humana,
preparação de um “terreno” tão desigual, para como outros assim também o criticaram. Na
que se instaure aqui uma vida com ética. passagem 244 de Eine Vorlesung über Ethik (AK
Neste estudo, dividido em seis itens, XXVII), podemos ler:
pudemos consignar que Kant, o filósofo que
provavelmente mais deixou herdeiros no cam- Alguém pode, realmente, considerar a filo-
po do pensamento ético, possui uma obra de sofia prática mesmo sem a antropologia, ou
valor inestimável sobre a formação e a educa- sem o conhecimento sobre o agente, mas
ção dos homens para que se tornem capazes de isto é meramente especulativo, ou uma
desejar e buscar dignidade e respeito igual para idéia. Assim, o ser humano deve pelo me-
todos. Trata-se, notadamente, de uma parte nos ser estudado apropriadamente. De ou-
fundamental para nós que tem sido muitas tro modo, a filosofia moral torna-se repeti-
vezes negligenciada, felizmente com algumas ções de regras que todos já conhecem,
exceções. 1 Dentre estas, Zingano mostra que a além de tornar-se excessivamente tediosa e
porção relegada ao esquecimento da obra as pregações nos púlpitos tornam-se vazias
kantiana deve ser meritória de muita atenção: em seu conteúdo, se o pregador não ob-
serva simultaneamente a humanidade. 2
A obra dos anos [17]90, por sua vez, é de-
saprovada em nome de uma hipótese de
A antropologia moral na ética
enfraquecimento mental que ela somente
kantiana
deveria provar. Nossa tese aponta uma in-
terpretação em que A religião dentro dos li-
A porção “esquecida” da sua ética abor-
mites da simples razão (1793), a Metafísica
da exatamente estudos acerca da natureza
dos costumes (1797) e o Conflito das fa-
humana e da história naquilo que importa para
culdades (de 1798, ainda que escrito ante-
sua aplicabilidade e, portanto, traz para o de-
riormente, e com partes bastante desiguais)
bate da moral os dados empíricos que muitos
desenvolvem temas do sistema crítico com
pertinência e profundidade, que, aliás, sig-
1. Podemos mencionar aqui dois importantes estudos: a quarta parte do
nificam a retomada, na perspectiva de uma segundo capítulo de História e esperança em Kant, de Menezes (2000) e
natureza humana, da própria formulação o artigo de La Taille, A educação moral: Kant e Piaget (1996).
2. Não possuímos ainda uma edição em português deste texto (Preleção
deste sistema crítico durante os anos sobre Ética), por isto mantivemos a paginação oficial da Academia de Ciên-
[17]80. (1989, p. 15-16) cias Göttingen. Tradução do autor do artigo.
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dos seus seguidores excluíam, ao mesmo tem- tuem sua teoria, ensinando-nos sobre a antro-
po em que muitos críticos lhe censuravam a pologia moral e uma sua parte, a saber, a edu-
ausência. cação como condição de possibilidade para
Em anos muito recentes pudemos con- uma vida ética. Entretanto, mesmo antes de nos
tar com alguns trabalhos extensos, que come- determos em tais obras, encontramos nos seus
çam a ser debatidos entre os interessados na trabalhos mais estudados apontamentos sobre
ética de Kant, e que apontam equívocos na o que mais tarde ele complementaria nos tex-
visão majoritária e propiciam interpretações tos considerados “menores”, mesmo para a
mais condizentes com o conjunto inteiro da questão da moral.
obra do grande filósofo (Cf. Munzel, 1999; Na Crítica da razão pura, obra seminal
Louden, 2000, Banham, 2003). Wood, por da filosofia crítica de Kant, já é possível consta-
exemplo, ao tratar inicialmente a crítica de tar sua preocupação com as questões referentes
Hegel a Kant, descreve com maestria a questão: à educação. Questões que vão ser imensamente
caras a ele e que serão retomadas muitas vezes
Reconheci, desde o começo, que as críticas em sua obra, especialmente nos escritos sobre
de Hegel ao princípio da moralidade de esse tema, como veremos adiante. Nela lemos
Kant não alcançavam êxito totalmente por- sobre os efeitos nocivos e a desordem que uma
que, como a maior parte dos leitores de má educação ou que a falta de cultivo em um
Kant, Hegel fixava sua atenção exclusiva- homem são capazes de introduzir na sociedade.
mente na Fórmula da Lei Universal, igno- Em uma passagem, Kant nos ensina o que é
rando outras formulações que são elabora- filosofar, aprender e pensar com autonomia:
ções mais apropriadas do princípio. Tam-
bém comecei a perceber que nas questões Aquele que aprendeu especialmente um sis-
mais profundas que separavam os dois filó- tema de filosofia, por exemplo, o de Wolff,
sofos, a posição de Kant está baseada em mesmo que tivesse na cabeça todos os
uma teoria da natureza humana e da histó- princípios, explicações e demonstrações,
ria mais particular, cuja importância para a assim como a divisão de toda a doutrina e
ética de Kant raramente foi apreciada. Em pudesse, de certa maneira, contar todas as
alguns aspectos esta teoria antecipava a partes desse sistema pelos dedos, não tem
própria filosofia da história de Hegel, mas senão um conhecimento histórico completo
ela também fornece uma instigante explica- da filosofia wolffiana. Sabe e ajuíza apenas
ção para a notória visão de Kant de que as segundo o que lhe foi dado. Contestai-lhe
inclinações naturais são um “contrapeso” à uma definição, e ele não saberá onde bus-
razão moral (Kant, 1988) ao invés de ser car outra. Formou-se segundo uma razão
(como pensava Hegel) uma expressão da alheia, mas a faculdade de imitar não é a
razão. (...) Reconheci que junto com a ên- faculdade de invenção, isto é, o conheci-
fase exagerada na Formula da Lei Universal, mento não resultou nele da razão e embora
a negligência acerca da teoria empírica da seja, sem dúvida, objetivamente racional, é,
natureza humana e da história são respon- contudo, subjetivamente, apenas histórico.
sáveis pelos maiores equívocos sobre o Compreendeu bem e reteve bem, isto é,
pensamento ético de Kant que permanecem aprendeu bem e é assim a máscara de um
tanto com seus seguidores quanto com homem vivo. Os conhecimentos da razão,
seus críticos (1999, p XIII). 3 que o são objetivamente (isto é, que origi-
nariamente podem apenas resultar da pró-
Nos seus escritos de ética, Kant vai
mostrar claramente as duas partes que consti- 3. Tradução do autor.
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da razão aquele pelo qual se admite algo, vando-as exclusivamente de princípios a
ou também a regra que se segue do que se priori denomina-se filosofia pura. Essa,
admite? Qualquer um pode realizar consigo quando é simplesmente formal, chama-se
mesmo semelhante exame e bem depressa Lógica; porém se se limita a determinados
verá, neste escrutínio, desaparecerem a su- objetos do entendimento, recebe então o
perstição e o devaneio, mesmo se está mui- nome de Metafísica.
to longe de possuir os conhecimentos para Dessa forma, surge a idéia de uma dupla
a ambos refutar com razões objetivas. Com Metafísica, uma metafísica da Natureza e uma
efeito, serve-se apenas da máxima da auto- Metafísica dos Costumes. A Física terá, pois,
conservação da razão. É, pois, fácil instituir sua parte empírica, mas também uma parte
a ilustração em sujeitos individuais por racional; da mesma forma a Ética, se bem que
meio da educação; importa apenas come- nesta a parte empírica se poderia chamar es-
çar cedo e habituar os jovens espíritos a pecialmente antropologia prática, enquanto a
esta reflexão. Mas esclarecer uma época é parte racional seria a Moral propriamente
muito enfadonho, pois depara-se com mui- dita. (Kant, 1988, p. 13 [BA III – IV])
tos obstáculos exteriores que, em parte,
proíbem e, em parte, dificultam aquele tipo Ele vai adiante ressaltando o caráter
de educação. (Kant, 1995, p. 55 [A 330]) imprescindível da antropologia prática para nos
tornar aptos para aplicar a moral propriamen-
Buscamos encontrar, nesses textos, te dita através da nossa faculdade de julgar,
apontamentos sobre a educação porque, como que, por sua vez, é aprimorada pela experiên-
já afirmamos, ela é parte crucial da sua ética. cia. Precisarmos da antropologia prática para
Esta se divide entre a ética propriamente dita e que sejamos capazes de acolher em nossa von-
a antropologia prática ou moral. Nosso objeti- tade, pela via da educação e do exercício, as
vo é nos fixarmos na segunda, uma vez que ela leis morais em seus princípios e também asse-
institui-se pelo direito e pela educação. Aqui, gurarmos sua eficácia, seja pelo aprendizado
privilegiamos a educação. pela via da didática ética, seja pela força exter-
É necessário entendermos a primeira na do direito. Uma vez que Kant assegura que,
divisão. Kant assim escreveu no Prefácio da
Fundamentação da metafísica dos costumes: o homem, afetado por tantas inclinações, é
na verdade capaz de conceber a idéia de
Tanto a filosofia natural quanto a filosofia uma razão pura prática, mas não é tão fa-
moral podem cada qual ter a sua parte cilmente dotado da força necessária para a
empírica, pois aquela tem de determinar as tornar eficaz in concreto no seu comporta-
leis da natureza como objeto da experiên- mento. (1988, p. 27-8 [BA IX, X 389])
cia, e esta, as da vontade do homem en-
quanto é afetada pela natureza; as primei- Devemos, então, como homens que
ras, considerando-as como leis segundo as tantas vezes somos vencidos pelas inclinações
quais tudo acontece, a segunda, como leis que menos almejamos, fortalecer nossas máxi-
segundo as quais tudo deve acontecer, mas de comportamento, nossa subjetividade,
mas ponderando também as condições pe- pelo cultivo do nosso espírito e com tudo o que
las quais com freqüência não acontece o faz parte da educação .
que devia acontecer. Na Introdução à Metafísica dos costu-
Pode-se chamar empírica toda a filosofia mes, Kant volta a esclarecer sobre a função e
que se baseia em princípios da experiência; especificidade da antropologia prática, agora
mas a que apresenta as suas teorias deri- chamada de antropologia moral. Kant lhe cha-
A educação na antropologia
4. O Instituto Philantropinum, em Dessau, foi fundado em 1770 por Johann
moral kantiana Bernhard Basedow, dois anos após ele ter publicado uma monografia muito
aclamada advogando a idéia de uma reforma educacional e convidando a
todos para lhe ajudarem na criação de uma escola experimental para treinar
O maior trabalho de Kant sobre a educa- professores em seus métodos. O desempenho dos seus primeiros alunos
ção é um conjunto de preleções intitulado Sobre impressionou profundamente os observadores, inclusive Kant e Goethe.
a pedagogia (Über Pädagogik), escrito sobre a Problemas pessoais com o próprio Basedow afastaram os seus melhores
professores e em 1784 ele próprio afastou-se da escola. As visões de Basedow
inspiração de Rousseau. Entretanto, como já eram baseadas em escritos de pensadores como Comenius, Locke e
mencionamos aqui, há outras boas fontes sobre Rousseau. Seus métodos de ensino prático eram mais extensos em suas
implicações para a educação que todos aqueles dos seus antecessores ime-
o tema. Uma das que complementam de modo diatos, e no início do século XIX seus métodos tornaram-se uma força fun-
substantivo sua teoria educacional pode ser en- damental no sistema das escolas públicas da Alemanha.
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com a educação presente, o homem não mações cognitivamente significantes deve-riam
atinge plenamente a finalidade da sua exis- ser encontradas exclusivamente nas ciências fí-
tência. (...) Podemos trabalhar num esboço sicas e, assim, relegavam as demandas morais
de educação mais conveniente e deixar in- (além das estéticas e religiosas) ao status infe-
dicações aos pósteros, os quais poderão rior das expressões emocionais. Kant visou de-
pô-las em prática pouco a pouco. (1999, fender a moralidade contra esses céticos, mos-
p. 17-8 [445]) trando que as demandas morais não apenas de-
tinham seu próprio status cognitivo, como tam-
Kant reconhece ter aprendido muito bém gozavam de primazia sobre o conhecimento
com Rousseau. Ele próprio relata o impacto da científico. 2) Um segundo grupo era formado
obra de Rousseau em seu espírito impregnado por outros filósofos. A maior parte desses pen-
pelas Luzes: sadores era encontrada nas classes educadas
que tinham bastante tempo ocioso e entre os
colocava no conhecimento a honra da hu- clérigos. De acordo com Kant, eles e seus pre-
manidade e menosprezava a plebe ignoran- decessores haviam analisado a natureza da
te. Rousseau me abriu os olhos. Aquela su- moralidade humana incorretamente ao tentarem
perioridade que me cegava se esvaeceu; baseá-la exclusivamente na experiência, ao invés
aprendo a honrar aos homens; e me consi- de considerar tanto esta quanto os dados da
deraria mais inútil que o mais comum dos razão pura. Eles, assim, não somente jogaram
trabalhadores se não acreditasse que estas conforme os céticos, mas também tenderam a
reflexões possam ter um valor para os de- subverter as convicções morais das pessoas
mais, estabelecendo um direito para a hu- comuns. Para neutralizar aquilo que via como
manidade” (1999 p. 17 [445]). uma influência perniciosa, Kant se pôs a expli-
car como e por que tais análises eram seriamente
A este respeito Sullivan diz que, em um errôneas. 3) Finalmente, o mais importante gru-
fragmento escrito por volta de 1765, Kant atri- po a quem Kant se dirigia era o formado por
bui a Rousseau a redescoberta da sua convic- pessoas comuns relativamente não educadas.
ção sobre a dignidade moral de todos os ho- Kant teve um grande respeito pelas convicções
mens: morais pré-filosóficas das pessoas comuns, e ele
de fato baseou sua análise inteira da moralidade
Houve um tempo em que eu desprezei as naquilo a que se refere como a “consciência
massas. Rousseau me pôs no caminho cer- moral comum”. Ele acreditava que as pessoas re-
to. Eu aprendi a honrar o homem. O pensa- almente possuíssem um apanhado do que seja a
mento da desigualdade torna o homem moralidade fundamentalmente confiável, quan-
desigual. Apenas Rousseau pode tornar, do não a possuíssem de modo claro. Para Kant,
mesmo o mais ensinado filósofo, um ho- o principal problema que as pessoas comuns en-
mem honesto e, sem auxílio da religião, frentavam consistia na dificuldade em persisti-
pode fazê-lo não considerar a si melhor rem nos seus ideais morais. Com o propósito de
que o homem comum. (1989, p. 298) as ajudar, ele buscou formular a norma moral
definitiva de modo tão claro e preciso quanto lhe
Kant possuía um genuíno interesse pela fosse possível (ética pura). Além disso, ele visou
educação dos homens do seu tempo. E isso se oferecer alguns conselhos sobre o que é políti-
atesta pelos três tipos de público a quem se di- ca e moralmente certo ou errado e oferecer um
rigia: 1) Um grupo era formado por pessoas esclarecimento a toda uma geração (“ética im-
educadas e impressionadas com a ciência pura”, segundo a noção ini-cialmente estudada
newtoniana. Esse público acreditava que as afir- por Louden, 2000).
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34 [455]). Uma vez que Kant abre Sobre a Crítica do juízo, “a produção em um ser racio-
pedagogia anunciando que o ser humano “é a nal de uma aptidão para quaisquer fins em geral
única criatura que precisa ser educada” (1999, de sua própria escolha (conseqüentemente de
p. 11 [441]), existe realmente um sentido no sua liberdade) é cultura”.
qual o cuidado também se coloca fora dos Kant freqüentemente faz uma distinção
parâmetros da educação tal como o próprio adicional entre a cultura geral e “um certo tipo de
Kant, de início, a constrói. cultura, que é chamada de civilização”. A civiliza-
O segundo estágio da educação é a ção objetiva não apenas a habilitação, mas tam-
disciplina ou o treinamento. Como o cuidado, bém a prudência e, assim, representa um estágio
a disciplina também é entendida como um es- mais alto. “Toda a prudência pressupõe habilida-
tágio preliminar da própria educação. Segundo de. A prudência é a faculdade de alguém usar
Kant, “a disciplina transforma a animalidade em suas habilidades de um modo socialmente efeti-
humanidade” (1999, p. 12 [441]). Mas sabemos vo para alcançar seus objetivos” (1999, p. 26
que “transformar” não significa “erradicar”. Na [450]). Kant ressalta que embora a pessoa hábil
realidade, disciplinar “significa procurar evitar seja eficaz no alcance de seus objetivos, ela não
que a animalidade cause danos à humanidade. possui os tipos especiais de “habilidades de
(...) A disciplina é, portanto, meramente domar interação” que tipifica a pessoa prudente.
a selvageria” (1999, p. 25 [449]). Em um sen- Uma das três tarefas da educação prá-
tido mais amplo, essa tarefa é compartilhada tica, Kant nos informa em Sobre a pedagogia,
com o que Kant em outro lugar chama de “cul- é a “formação pragmática relativa à prudência”.
tura negativa” ou “libertar a vontade do despo- Também no final da Antropologia em sentido
tismo dos desejos” (1995, p. 295 [433]). pragmático, Kant afirma que um fato que dis-
Os dois termos gerais Bildung e Kultur tingue o ser humano dos outros habitantes da
são usados como sinônimos por Kant, e inclu- terra é a sua capacidade “de ser pragmático, de
em dentro deles uma variedade de processos usar as habilidades de outros seres humanos
mais específicos tais como a instrução para seu próprio fim”. A pessoa prudente, e,
(Unterweisung), o ensino (Belehrung) e a orien- portanto, civilizada, possui certos refinamentos
tação (Anführung). É também importante lem- sociais que a pessoa meramente hábil não
brar que “cultura”, como os outros estágios da possui. Os pré-requisitos de uma pessoa civili-
educação, é freqüentemente utilizada por Kant zada são “boas maneiras, bom comportamento,
num duplo sentido: às vezes esse termo se re- e uma certa prudência pela qual alguém é ca-
fere à formação geral da humanidade para além paz de usar todos os seres humanos para o
da animalidade na raça humana. Em outros próprio propósito final de alguém”.
momentos, refere-se a processos educacionais Kant freqüentemente usa “civilização”
mais específicos dirigidos a grupos particulares como parte de um trio de estágios necessários
assim como a indivíduos. Segundo o texto de para o desenvolvimento humano (às vezes,
Kant, cultura é também “a obtenção de habili- como parte de um quarteto, quando a disciplina
dades (Geschicklichkeit)” e estas são considera- é acrescentada). Também ao final do seu traba-
das obtidas quando as pessoas alcançam com lho sobre Antropologia5 ele afirma:
sucesso todos os seus fins escolhidos. Podemos
dizer, portanto, que as pessoas possuem habi- O resumo da antropologia pragmática com
lidades quando são eficientes em raciocínios referência ao destino do ser humano e as
instrumentais. A habilitação “é a possessão de características da sua educação é o seguin-
uma faculdade que é suficiente para o fim que
seja. Assim, a habilidade não determina, de 5. Tradução do autor do artigo. Esta obra ainda não possui edição em
modo algum, os fins”. Ou, como escreve Kant na língua portuguesa.
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Sobre a pedagogia. Assim, esse emprego do con- determinação da vontade para aceitar máxi-
ceito de “formação moral” não é “metafórico” mas que ele subseqüentemente vai elaborar
mas é direto e claro: Kant acredita que há um para si próprio. Finalmente, o estudante pre-
tipo de educação que pode ultrapassar as cau- cisa deixar-se levar por esta linha condutora.
sas naturais e as circunstâncias temporais e (2002, p. 137 [152]; Cf. 1999, p. 45 [461])
chegar ao modo do agente pensar e ao seu
caráter moral. A educação moral é bem-sucedi- O objetivo final é que o estudante com-
da à medida que alcança esse objetivo. Kant preenda que “a norma e a instrução repousam
apresenta as questões de método para este fim. somente na sua razão. Com o processo educativo,
sua própria razão vai ensinar-lhe aquilo que você
Método tem que fazer e diretamente lhe comanda a fazer”
(2003, p. 321-2 [481]). Por isso, para os jovens a
Kant busca um método educativo que quem isso ainda não é possível, a educação é
pudesse atingir esses objetivos. O que é necessá- imprescindível para sua liberdade.
rio é um método de educação prática que produ- As subdivisões dos métodos que Kant
za um “genuíno efeito moral no coração” (2002, apresenta para ensinar ética não são inteiramen-
p.142 [157]). Nos dois pequenos ensaios sobre o te originais. Ele parece recomendar o mesmo
Instituto Philanthropinum, Kant apresenta seu aval Lehrart (método de ensino) tanto para a ética
a uma experiência audaciosa em educação na quanto para a lógica. Segundo ele, se a doutri-
qual, acredita ele, “estabelece-se de um modo na da virtude deve ser apresentada como uma
radicalmente novo de acordo com o método ge- “ciência”, ela deve também ser sistemática e
nuíno”. Um tal método não deve (como Kant acre- possuir sua “didática ética”, que é o termo am-
dita ser o caso com todos os demais institutos plo que Kant usa para os métodos de ensino:
educacionais) “trabalhar contra a natureza”. Ao
invés disso, o método deve ser “sabiamente retira- a apresentação pode tanto ser tanto acroa-
do da própria natureza e não copiado sem origi- mática (do grego akroamai , ouvir) em que
nalidade de um velho hábito e de épocas quando todos, exceto o professor, são meros ouvin-
não houve experimentos”. Então, “o bem ao qual tes, ou erotemática (do grego eromai , per-
a natureza propiciou a predisposição pode ser guntar) em que o professor pergunta a
extraída dos seres humanos”, e “nós, criaturas seus alunos aquilo que lhes quer ensinar.
animais, seremos tornados seres humanos” através (2003, p. 320 [478])
da educação apropriada (1999, p. 15 [443]). Se
esse método educacional revolucionário fosse ado- O método erotemático é, por sua vez, sub-
tado “num período curto nós veríamos seres hu- dividido no “modo dialógico” e no “modo cate-
manos muito diferentes ao nosso redor”. quético” de ensino. No modo dialógico, o profes-
O ser humano ainda não formado ou sor questiona a razão do estudante; e no modo
educado também necessita de uma manifestação catequético, o professor meramente questiona a
física da virtude com a qual ele possa identificar- memória do estudante. O método catequético
se e com ela aprender, tal como já mencionamos. envolve mero “trabalho de memória”, no qual o
Na Metafísica dos costumes, ele anota que: estudante recita pensamentos que não são ainda
os seus próprios, mas com o método dialógico ou
Os meios experimentais (técnicos) para a o modo socrático de ensinar o professor e o estu-
formação da virtude é o bom exemplo do dante alternam perguntas e respostas entre si. De
próprio professor e o exemplo preventivo de um modo alternativo, com o método socrático “o
outras pessoas, porque a imitação, para o estudante questiona o professor (que de fato ain-
ser humano ainda não formado, é a primeira da é estudante)”. Na Lógica Kant afirma:
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Recebido em 22.01.04
Modificado em 01.09.04
Aprovado em 21.10.04
Mário Nogueira é doutor em Filosofia pela UFRJ, mestre em Filosofia pela UFRGS e especialista em Educação também
pela UFRJ.