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Candido n5 Imprensa

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N.

º 5

candido
dezembro
2011

jornal da biblioteca pública do paraná


Ilustração: Pedro Franz

O riso do
absurdo
Com humor e
experimentação
linguística, Manoel
Carlos Karam
construiu uma
obra transgressora
e singular

• Princesa | Livia Garcia-Roza • Dois Poemas | Josely Vianna Baptista • Digital Reverb Delay | Marcio Renato dos Santos
2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

editorial

A
experimentação linguística sem­­ tiras expediente

pre foi um traço marcante da li­


fabiano vianna
teratura paranaense, em espe­
cial a feita em Curitiba. Assim
como Wilson Bueno e Jamil Snege, Governador do Estado do Paraná: Beto Richa
Manoel Carlos Karam pautou sua Secretário de Estado da Cultura: Paulino Viapiana
obra pela busca de uma linguagem Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira
que fugisse dos padrões estéticos mais Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Gerson Gross
convencionais da literatura brasileira.
O gosto por uma narrativa Coordenação Editorial: Rogério Pereira e Luiz Rebinski
anarquicamente calculada e o uso da Junior. Redação: Fernanda Rodrigues, Felipe Kryminice e
anáfora como recurso linguístico re­ Guilherme Sobota Fotografia: Kraw Penas. Projeto gráfico
e diagramação: Versão Design. Colaboradores desta
corrente fizeram de Karam um dos edição: Fabiano Vianna, Francisco Gusso, Guilherme Caldas,
autores mais singulares da nossa lite­ José Roberto Torero, Livia Garcia-Roza, Luiz Andrioli, Marcio
ratura nos últimos 20 anos. Esses ele­ Norberto, Marcio Renato dos Santos, Marcelo Cipis, Nelson de
mentos da narrativa única de Karam Oliveira, Osvalter Urbinati, Pedro Franz e Rafael Antón.

estão presentes nos dois contos inédi­ Redação: imprensa@bpp.pr.gov.br - (41) 3221-4974
tos que o Cândido publica nesta edi­
ção em homenagem ao autor, morto Biblioteca Pública do Paraná
em dezembro de 2007. “Schoenberg, Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 – Curitiba - PR.
Berg e Webern” e “Ilha de Nossa Sen­ Horário de funcionamento: segunda a sexta: 8h30 às 20h.
hora Fulana de Tal e outros nomes” Sábado: 8h30 às 13h
fazem parte de Um milhão de velas
apagadas, livro ainda inédito do autor.
“Karam sempre insistiu no en­ cartas Critérios para publicação de originais
Todos os originais enviados ao Cândido, serão analisados pelo
redo labiríntico, nos protagonistas es­ seu Conselho Editorial, que avalia a partir dos seguintes critérios:
piralados, na topografia onírica. Para Foi com alegria e grata surpresa que tomei contato com o Cândido.
• Contribuição relevante ao jornal;
ele, a literatura era farra e fanfarra, era Desde a escolha do nome até a linha gráfico-editorial, só percebo • Adequação às propostas do Cândido, que privilegia obras
a desforra do instinto contra a razão acertos. Parece-me que o jornal supre, ao menos em parte, a inéditas que tenham relevância para a cultura.
burocrática”, escreve Nelson de Oli­ lacuna deixada pelo histórico Nicolau. Parabéns.
Para obter a aprovação para publicação, as obras devem
veira, em texto sobre a obra do autor Amarildo Anzolin — via e-mail.
preencher os seguintes requisitos:
de Cebola. Já o escritor Luiz Andrioli, • De estilo: correção, clareza, coerência, rigor, coesão
que trabalhou com Karam no jorna­ Acabo de receber e ler os números dois e três do Cândido. O depoimento do Antônio Torres e propriedade.
• De conteúdo: nível apropriado de aprofundamento dos temas,
lismo curitibano, relembra episódios está muito bom, também estão ótimos os textos de Joca Reiners Terron e José Castello evidência de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação
de sua convivência com o autor. sobre Wilson Bueno. Um grande abraço e obrigado. e elaboração; originalidade da abordagem.
Na seção de inéditos, além dos Carlos Herculano Lopes — Belo Horizonte/MG.
O Conselho Editorial não analisa:
contos de Karam, a edição traz po­ • Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos
emas de Josely Vianna Baptista, que A edição do Cândido de novembro está maravilhosa. Parabéns! à correção do autor.
As obras devem estar corretamente padronizadas e revisadas,
em janeiro lança, pela Cosac Naify, Lidia Piski — Curitiba/PR.
de modo a permitir a leitura crítica e a análise final da obra.
seu livro Roça barroca, com traduções
para a língua portuguesa dos cantos Por sorte, ou talvez um presente do destino, em minhas mãos veio parar a edição de número Serão imediatamente desconsiderados os originais que atentem
contra as declarações de direitos humanos e congêneres, as leis
mitológicos dos Mbyá-Guarani do três do Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná. Diferentemente do que ocorre aqui e os dispositivos morais e éticos, nomeadamente os casos de:
Guairá. Contos do curitibano Mar­ na cidade de São Carlos (SP), cujo governo municipal nada realiza em prol da literatura, o • Violação dos direitos políticos, sociais, econômicos, culturais
cio Renato dos Santos e da carioca governo do Paraná e esta Biblioteca estão de parabéns por tão magnifico trabalho cultural. e ambientais;
• Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência e
Livia Garcia-Roza, além de crôni­ Além do Cândido, tenho recebido o jornal Rascunho, também editado neste Estado, periódico desrespeito a crianças, idosos, bem como os preconceitos
ca de José Roberto Torero sobre o dedicado à literatura. Acredito que este jornal, mais o Rascunho são os mais importantes de raça, religião, gênero etc.
mundo onírico das bibliotecas, com­ jornais dedicados ao mundo literário, sem parentesco com outro qualquer. Parabéns.
pletam a edição. Isaac Soares de Souza — São Carlos/SP. Todos os textos são de responsabilidade exclusiva
do autor e não expressam a opinião do jornal.
Boa leitura a todos.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 3

biblioteca afetiva curtas da bpp


Samuel Leon
Uma descoberta que me fascinou tremendamente, a ponto de Um Escritor na Biblioteca
buscar tudo o que havia sido publicado desta autora, foi Cristina
Adriana Vichi
Campo, uma poeta italiana cujo verdadeiro nome era Vittoria O amazonense Milton Hatoum
Guerrini, que, por se dizer portadora de Cristo nos campos do é o décimo convidado do projeto “Um
III Reich, assumiu na literatura este outro nome. Cristina Campo Escritor na Biblioteca” de 2011. O en­
tem apenas um livro de poesia, chamado O passo do adeus, e contro acontece no dia 6 de dezem­
dois outros livros de ensaio, todos editados em Portugal. O que bro, terça-feira, às 19h. Esta é a última
me deslumbrou nessa escritora foi o seu fervoroso amor à beleza, edição do projeto neste ano, que con­
justamente numa época que repudiou o belo, inclusive dentro da poesia. tou com a participação de vários es­
Há uma frase dela que marca minha vida: “a natureza não é senão metáfora critores do primeiro escalão da litera­
do sobrenatural”. tura nacional, como Cristovão Tezza,
Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. Poeta, mestre em Elvira Vigna, Luiz Ruffato, Antô­
Literatura e Crítica Literária, é autora dos livros Trajetória de antes (1999), Almádena
(2007) e Treva Alvorada (2010), entre outros, todos pela editora Iluminuras. Em 2011 nio Torres, Marçal Aquino, Reinaldo
obteve menção honrosa da Casa das Américas (Cuba) pelo livro Treva Alvorada. Moraes, Sérgio Sant’Anna e Luiz Al­
Vive em São Paulo (SP). Div ulgação fredo Garcia-Roza. O projeto é uma
releitura de uma iniciativa homônima
Não me lembro quando li, mas com certeza era ainda adolescente. realizada pela BPP nos anos 1980,
Foi Rayuela (que é o famoso Jogo da amarelinha, do Julio Cortázar, que promoveu conversas com auto­
mas digo em espanhol porque foi nessa língua que li) e me marcou res como Fernando Sabino e Antô­
de diversas maneiras. Primeiro por ser o primeiro livro de um nio Callado. O encontro deste mês
autor argentino e me apresentar o boom literário latino-americano. tem a mediação de Flávio Stein. En­
Depois, porque o livro transgredia tantas “normas” que eu achava trada franca.
que existiam na literatura que meu pensamento durante todo o
livro foi: “e um escritor pode fazer isso?” Reli na outra ordem proposta pelo autor
e fiquei ainda mais maravilhado. É um livro central na minha vida. Exposição Mães pela Igualdade
Marcelo Barbão é escritor e tradutor. Publicou Acaricia meu sonho (2007) e A mulher
sem palavras (2010). Vive, como não podia deixar de ser, em Buenos Aires (AR).
Em dezembro a Biblioteca Pública do Paraná dá início à exposição Mães pela Igualdade,
mostra fotográfica que reúne retratos e relatos de mães e filhos do grupo LGBT (Lésbicas, Gays,
O arco-íris da gravidade, de Thomas Pynchon, me abriu muitas André Hilgert Bissexuais, Transexuais e Travestis). Grande parte das obras expostas na BPP é fruto de um tra­
portas e janelas quando li o romance pela primeira vez, aos balho especialmente desenvolvido por artistas regionais, entre eles Rodrigo Wypych, Alexandra
dezoito anos. É um livro de excessos: personagens demais, Martins, Élvio Luiz dos Santos, Poliane Gomes e Alícia Peres. A inspiração para a mostra vem
palavras demais, páginas demais. Em resumo: um desvario do Projeto “Inside Out”, do fotógrafo francês JR, vencedor do prêmio TED de Direitos Huma­
multifacetado, que mescla diversas linguagens, que é erudito ao nos 2011, que conta com peças de street art espalhadas em todo o mundo. O objetivo da mostra
mesmo tempo em que está mergulhado na cultura de massa. é promover nova visão sobre os conceitos familiares vigentes na sociedade. A exposição acontece
Sendo assim, retrata, como poucos outros livros, o que é viver nos entre os dias 6 de dezembro e 5 de janeiro, no segundo andar da BPP. Entrada franca.
dias de hoje. Foi através de Pynchon que descobri o poder
da literatura contemporânea.
Antônio Xerxenesky é autor dos livros Areia nos dentes
(2010) e A página assombrada por fantasmas (2011). Vive em Porto Alegre (RS).
Concurso de Redação Infantil
Kraw Penas Em novembro, a seção Infantil da BPP promoveu o XVII Concurso Infantil de Reda­
Em O nome da rosa, de Umberto Eco, revivi as lembranças do ção. Setenta crianças de até 12 anos mandaram textos sobre “Ler é viajar o mundo todo sem
tempo acadêmico. Época em que tive o primeiro contato com pagar passagem”. Dividido em três categorias (7/8, 9/10 e 11/12 anos), o concurso estimula a
a história das bibliotecas medievais. Nessa trama, o leitor se leitura e o contato com os livros. Todos os participantes receberam um certificado de partici­
depara com uma biblioteca ideologicamente característica pação e um livro. Os três primeiros colocados em cada categoria também levaram para casa
da época, quando a informação era extremamente restrita e um troféu. São eles: 7/8: Haila Angela Mendes, Vitor Stolf Packer e Winicius Rafael Mendes;
representava a dominação e o poder da igreja, além de um 9/10: Silas Melo dos Santos, Leticia Maria Tchmola Alves e Weslwy Riska de França; Menção
misto de paixão, punição, crime e intriga. honrosa: Aline Aparecida Firmino da Silva e Bianca Kimberly Proença; 11/12: Natália Soligo
Sizuko Takemiya é bibliotecária e chefe da Divisão Pizetta, Gabrieli do Amaral Oroski e Hamad Raslan; Menção honrosa: Isabelle Pereira Couto.
de Obras Gerais da Biblioteca Pública do Paraná.
Vive em Curitiba (PR). As redações estão disponíveis para consulta na seção Infantil, andar térreo da BPP.
4 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Fotos: Kraw Penas

Reinaldo
Moraes
Sétimo convidado do projeto
“Um Escritor na Biblioteca”,
o autor do clássico Tanto faz
fala sobre o hiato de duas
décadas longe da literatura
e de como concebeu
Pornopopéia, romance de
2009 que já foi alçado
à condição de clássico
contemporâneo
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 5

R
Primeira vez na Biblioteca Civilização Brasileira em parceria com o
einaldo Moraes nasceu em São Paulo, em 1950. É
Eu lembro bem porque, no primá­ Ministério da Cultura. Mas em 1967 eu
escritor, roteirista e tradutor. Estreou na literatura rio, estudava numa escola pública em São tava louco para ler Oswald de Andrade e
em 1981 com o romance Tanto faz, livro que Paulo que ficava na Praça da República. não tinha nada dele para vender na livra­
O prédio existe até hoje e, dois quartei­ ria. Na biblioteca, o livro não poderia ser
se tornaria cultuado por diversas gerações de rões para cima, pela Avenida São Luiz, emprestado, ficava confinado no depar­
leitores. Em 1985 lançou Abacaxi, continuação fica a Biblioteca Municipal de São Paulo, tamento de obras raras. A mulher trazia
que foi recentemente restaurada. Chama­ o livro e ficava te olhando. Eu li Serafim
de seu livro de estreia. Ambos os romances foram -se Biblioteca Mário de Andrade, porque Ponte Grande e Memórias sentimentais de
reeditados recentemente em um único volume pelo selo foi ele quem a fundou, quando trabalhava João Miramar ali, com uma pessoa me ob­
num órgão que viria a ser a Secretaria da servando. Então, biblioteca foi uma coisa
Má Companhia, da Companhia das Letras. Depois dos Cultura de São Paulo. Era uma bibliote­ que me acompanhou.
primeiros romances, o autor fez uma pausa na literatura, ca bem bacana, bem gerida, depois passou
muitos anos em uma decadência tremen­ Estímulo para ler
ficando duas décadas sem publicar ficção. Voltou às
da, praticamente fechada, e recentemente, Quem primeiro me incentivou
prateleiras com a narrativa infantojuvenil A órbita dos caracóis há uns dois anos, foi reaberta, toda refor­ foram os professores mesmo. Na minha
(2003), seguido pelo volume de contos Umidade (2005). mada. Lembro que todos os semestres os casa, minha mãe lia alguma coisa, mais
professores levavam aquela molecadinha revistas como Cláudia, Seleções, etc. En­
Em 2009 Moraes lançou Pornopopéia, considerado pela de sete, oito, nove anos, de uniforminho tão eu não tinha grande estímulo para ler
crítica seu melhor livro. O romance de quase quinhentas azul, em fila indiana, à biblioteca. Quem em casa. Mas a gente sempre tem, em al­
ainda não tinha ficha, fazia. guma fase da vida, uma espécie de guia
páginas é uma viagem alucinada pelo underground literário — em muitas fases, aliás. Eu ti­
paulistano, protagonizado por um cineasta fracassado que faz Descobrindo o conhecimento nha uma tia, irmã da minha mãe, que era
Adorava a ideia de ser admitido professora, ela adorava ler os brasileiros.
vídeos institucionais para sobreviver e que, segundo Moraes, Lia todo Machado de Assis, todo José de
em um lugar onde, segundo a professo­
é “um personagem sem superego”. “Queria escrever sobre ra, estava todo o conhecimento humano. Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, os
um cara que fizesse o que passasse pela cabeça, tivesse uma Quer dizer, era como se você entrasse na poetas românticos, etc. Essa tia tinha
caverna do Ali Babá, onde todas as rique­ uma biblioteca em casa. Era uma coisa
existência puramente instintual, totalmente dessublimado, zas se encontravam, onde todas as coisas que eu achava de um supremo chique,
um cara que vai cumprindo uns papéis sociais, mas de uma que realmente importavam, coisas da cul­ supremo privilégio. Era simplesmente
tura, residiam. Também tinha o grande uma estante grande, com uma porta de
forma totalmente delinquente, totalmente anárquica, que vai prazer de você se sentir parte de um órgão vidro de correr, com livros de coleções
derretendo todos os vínculos com a sociedade, com a mulher, importante, como uma biblioteca muni­ diversas que ela e o meu tio compravam
cipal. Eu tinha carteirinha, devolvia os li­ dos vendedores ambulantes da cidade.
com os amigos, com a família, com o filho”, diz o escritor, vros religiosamente na data, nunca atra­ Aí fui crescendo e ficando cada vez mais
que conversou com a jornalista Mariana Sanchez na sétima sava. Aí, entrei no ginásio, fui estudar em tarado por livro, ia fuçando essas coisas
outro lugar, mas sempre voltava àquela bi­ mais bacanas, mais difíceis. Eu passava
edição do projeto “Um Escritor na Biblioteca”.
blioteca. Podia ficar zanzando pelas revis­ férias lá e me esbaldava.
Durante o bate-papo, Moraes ainda contou histórias tas, podia pegar qualquer livro. Isso foi até
irresistíveis, como seu encontro com Julio Cortázar em Paris, meus 19 anos, quando li pela primeira vez Diversão e transformação
Oswald de Andrade e Mário de Andrade. As duas coisas sempre vêm juntas.
falou sobre suas influências literárias, sobre os primeiros Em 1967, quando tinha 17 anos, o Teatro Lembro quando li Grande sertão: veredas,
escritores que leu e de sua rotina de trabalho. “Passei muito Oficina encenou O rei da vela, do Oswald. com 18 anos, quando já era um leitor —
Aí, os jornais começaram a dar muita ma­ com essa idade, já tinha lido muito mais
tempo em que, quando tinha uma ideia, saía correndo para téria sobre ele, e foi aí que passei a saber do que a média dos garotos da época. Ti­
os bares comemorar. Hoje, quando tenho uma ideia, corro quem ele era, o que era o Modernismo nha lido Padre Vieira, Machado, García
brasileiro. Mas não havia livros, os livros Márquez. Mas aí me meti a ler o tão fa­
para o computador e escrevo.” Confira os melhores trechos começaram a ser reeditados em 1969, lado e reverenciado Grande sertão: veredas,
do papo com o escritor. 1970, em edições, acho eu, da [editora] que é um livro difícil de ler. Eu já tinha
6 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná


um ânimo de enfrentar as dificuldades
do livro e ver onde ia dar. Grande sertão
Não tem jeito, as ideias
te ensina a lê-lo, você só tem que ter pa­ vão atrás de você. Às vezes
ciência, perceber como se arma a sintaxe
daquele cara. O Riobaldo fala um tipo de você vai fazer cocô, vem a
português que ninguém fala em São Pau­ ideia e senta ali do seu lado.
lo. Algumas coisas da fala dele parecem
com a fala dos caipiras que conheci no in­ Você está dormindo, olha para
terior, mas aí você lê o Camões e vê que
aquilo é parecido com Camões, aí percebe
o lado, a ideia está lá. Às
que o cara está fazendo uma fusão de um vezes você está transando,
português quinhentista, camoniano, com
aquele português sertanejo — e contando
vem a ideia, você broxa. Você
uma história que é uma aventura fantásti­ fica meio escravo.”
ca. Aquilo ali exige esforço. Mas acho que
quem gosta de ler, vai querer decifrar es­
critores que tenham uma prosa um pouco Guimarães Rosa e caí de boca naquilo. Aí,
mais intrincada, menos óbvia do que a li­ descobri Cortázar, primeiro grande escri­
teratura de entretenimento. tor estrangeiro, li tudo dele.

Literatura nas escolas Leituras hoje


Já vi muita gente questionando a Na juventude, caía de boca na obra
forma como a literatura é introduzida nas dos autores. Bukowski, quando conheci, li
escolas. É um jeito meio forçado, porque tudo. Até traduzi um livro [Mulheres, re­
aquilo faz parte da história oficial da lite­ editado pela L&PM em 2011]. Hoje em
ratura. Você tem que ler o Machado [de dia, estou um leitor preguiçoso, mais frag­
Assis], que é maravilhoso. Mas, de re­ mentado. Fico tentando ler Em busca do
pente, não está a fim de, com 14 anos, ler tempo perdido. Como aprendi um fran­
Dom Casmurro, mas pode estar a fim de cês razoável, pois morei na França, leio
ler outro livro. Mais engraçado, mais pro­ em francês. Aliás, o Mario Sérgio Con­
vocativo, mais irreverente. E isso a esco­ ti está fazendo uma tradução que, pare­
la não oferece. Se você não tiver um pai, ce, vai ter um português mais palatável.
uma mãe, um círculo de amigos bibliófi­ Apesar de o Proust ter sido traduzido por
los, tarados por literatura, não vai ter con­ grandes caras, como Mario Quintana,
tato com coisas que poderia ler e gostar. A Carlos Drummond de Andrade e Lúcia
coisa tem que te interessar de algum jeito. Miguel Pereira, nunca consegui passar
do primeiro livro, No caminho de Swann.
Disciplina de leitor Agora reli o primeiro e comecei o segun­
Já fui mais disciplinado. Antiga­ do. Quer dizer, estou com 61 anos, faz
mente fazia uma coisa que eu achava le­ 40 anos que quero ler Proust. Enfim, fi­
gal: ler o livro de um cara, achar bacana quei dispersivo. Boa parte da culpa pode
e sair lendo tudo que encontrava desse ser atribuído a um processo discreto de
autor. Começou assim com Machado de esclerose progressiva, assim como à in­
Assis. Fazia amizades com caras que gos­ ternet, essa grande fábrica de mentes es­
tavam de Machado. É como fazer ami­ tilhaçadas, que reduziu a atenção das pes­
zade por causa do Corinthians, do fute­ soas em cerca de 89,3%. Antigamente, as
bol. Era tipo um clube. Então, trocávamos pessoas tinham saco de pegar um livro
cartas em estilo machadiano. Aí, lia tudo: e passar duas horas lendo. Hoje em dia,
crônicas, romances, contos. Descobri procuramos o mouse do livro.
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 7

Busca pela liberdade


Escrevi Tanto faz entre 1979 e 1980,
o livro saiu em 1981, ainda dentro do perí­
odo ditatorial. Mas a verdade é que depois
de 1979, começou haver liberdade de im­
prensa, acabou a censura muito estrita aos
produtos de cultura de modo geral. Era um
momento em que a cultura brasileira ainda
era hegemonicamente de esquerda. Então,
todo mundo que estava escrevendo, fazen­
do filme, etc., 99,9% dessas pessoas eram,
de alguma forma, de esquerda. Então,
quando comecei a escrever, existiam dois
superegos: o superego ditatorial, que tam­
bém no meu caso combinava com a minha
casa, pai e mãe que adoraram os militares
no poder; e o superego da esquerda. Eu
era um tipo muito encontradiço na época,
aquele hippie marxista, calça boca de sino,
fitinha na cabeça, barba do Che Guevara,
lia um Marx ali e fazia umas maluquices
aqui. Então, também tinha esse superego
do comunismo pétreo, radical, ideológico e
cagador de regra. E, por outro lado, a coisa
da direita, da censura, da repressão. Saí en­
tão para uma terceira via, criando esse per­ A jornalista Mariana Sanchez conversa com Reinaldo Moraes no auditório Paul Garfunkel.
sonagem picaresco [Ricardo, protagonista
de Tanto faz], que dá uma banana para a


direita e cospe o chicle na cara da esquerda. Alienação de Tanto faz ricana, por exemplo, que nunca foi mui­
Mistura rock com samba e bossa nova. Não
Escrevo muito de manhã. Eu achava essa abordagem um to marxista, estava muito perto da vida,
era uma coisa que inventei, era uma coisa De manhã, reescrevo muito, na erro. Porque o livro era político. Era um Bukowski, John Fante, Henry Miller. São
que se via, a moçada ali num choque, numa livro que debatia essa questão, porque caras que estão falando do corpo, do de­
pororoca ideológica. verdade. À tarde, cochilo e leio. botava a consciência do personagem no sejo. Coisas da vida que não estavam ne­
Às vezes mais cochilo do que meio da rua. No Tanto faz, o personagem cessariamente ligadas à luta de classes. O
Sucesso de Tanto faz e Pornopopéia narrador fica debochando da esquerda, da foco não era esse. As pessoas estavam ten­
Foi um sucesso totalmente ines­ leio. E à noite escrevo, depois de esquerda normativa, ideológica, dizen­ do outras experiências, com drogas, com
perado. Eu não esperava nem que fosse do “pô, esses caras querem controlar mi­ formas diferentes de relacionamento. En­
editado, quanto mais publicado por uma
uma cervejinha, um vinhozinho, nha libido, eles que vão às favas, já che­ tão, era uma moçada com um programa
grande editora [Brasiliense]. De repen­ é gostoso para ter ideias.” ga os milicos tentando controlar minha de vida que não cabia mais naquele molde
te abri a Veja e vi o cara falando de mim. vida por 20 anos, agora que estou aden­ da esquerda clássica, em que “tomar cons­
Trinta anos depois, isso aconteceu com trando a vida adulta não quero ninguém ciência significa se engajar num processo
Pornopopéia, que escrevi achando que nin­ esse tanto de maluquice, com uma lingua­ me controlando”. Isso não era uma ide­ de superação histórica da burguesia”, etc.
guém ia ler. Inclusive era uma coisa pela gem totalmente desabrida, com palavrão ologia minha, eu não era aquele carnei­ Esse personagem de Tanto faz questiona­
qual eu me desculpabilizava, porque pen­ misturado com linguagem culta, persona­ ro, aquela ovelha negra. Era um monte de va e era questionado dentro do livro. Para
sava assim: “estou botando tanta maluqui­ gem totalmente amoral, irreverente e cí­ gente que estava entrando na soleira da mim, era um livro muito político, mas não
ce nesse livro, que ninguém vai editar”. O nico, ninguém vai ler”. Isso me deu uma vida adulta, num mundo totalmente pop, exatamente do jeito que a esquerda espe­
livro não parava de crescer, chegou a ter grande liberdade, como se tivesse escre­ com o rock explodindo, como opção musi­ rava. O livrou tirou três edições: uma de­
mil páginas. Então, fiquei pensando: “um vendo em finlandês. Porque ninguém vai cal e também comportamental, tinha um las vendeu em semanas, porque saiu na
livro desse tamanho, com o cara fazendo ler um livro no Brasil escrito em finlandês. monte de coisa para ler, literatura ame­ Veja, foi um auê.
8 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Encontro com Cortázar caras da TV esperando. Até que o Cor­ A origem de Pornopopéia
Nos anos 1970, fiquei amigo do tázar disse: “tenho que ir com eles agora, Era um conto que eu já tinha escri­
Davi Arrigucci Jr., professor de literatu­ mas liga pra mim, meu telefone mudou, to há um tempo e que entraria no Umi-
ra da USP, grande ensaísta, que sabe tudo vou viajar, mas daqui um mês você pode dade, que lancei em 2005. O editor Luiz
de Cortázar. Em 1979 ganhei uma bol­ ligar”. Fiquei um ano tentando ligar, mas Schwarz, da Companhia das Letras, às
sa para estudar em Paris. Então o Davi nunca mais o vi. Esse foi o dia em que co­ vezes edita, ele mesmo, os seus autores.
falou: “já que você gosta tanto do Cor­ nheci Cortázar. Como foi ele quem editou o Tanto faz,
tázar, leva esse disco para ele”. Era um vi­ pela Brasiliense, quando fui fazer esse li­
nil de O bicho, do Caetano Veloso. Porque Rotina de escrita vro de contos, ele pegou os textos e edi­
o Cortázar tinha vindo para o Brasil em Escrevo em qualquer lugar. Na tou. Imagina, o cara deve ser ocupadíssi­
1972 e visto um show da Bethânia e do verdade, não tenho disciplina. O único mo, para mim foi uma grande honra ter o
Caetano — inclusive ele achou que a Be­ hábito que tenho é ler jornal. Toda ma­ dono da editora fazendo a edição do meu
thânia era o Caetano na versão feminina, nhã leio a Folha de S. Paulo, o jornal físico livro, lendo os contos, comentando. Esse
estilo Shiva e Parvati, o deus feminino e mesmo. Com uma caneca de café e pão conto era um deles, era sobre uma gran­
masculino dos hindus. Davi fez uma de­ com manteiga do lado. Mas eu deveria de suruba, uma orgia que se passa num
dicatória e disse para eu levar para o Cor­ ter mais disciplina. O único jeito de en­ centro de estudos neo-brâmanes, que o
tázar em Paris, deu o endereço e tal. Pen­ carar uma leitura mais complexa, como cara chama de surubrâmane. Um conto
sei: “porra, maravilha”. Cheguei lá, nem Em busca do tempo perdido, seria ter um em que um cara chega para assistir a um
tomei banho, peguei o telefone e liguei. horário destinado a isso. Mas eu vou len­ recital de cítara de um amigo e, quando


Ninguém atendeu. Tinha um amigo lá, o do por compulsão, quando tenho tempo, ele percebe, está pelado e todo mundo tre­
Giba Vasconcellos, que me acalmou e tal,
Eu não esperava nem que vou e leio. Com a escrita é a mesma coi­ pando. O recital de cítara vai dar nisso. Aí,
falou que ele poderia não estar na cidade. fosse editado, quanto mais sa. Escrever não é uma coisa em que se o Luiz Schwartz perguntou: “quem é esse
Eu ligava quase todo dia. Chegou o outo­ sai do zero. Sempre há uma ideia antes. cara, ele é só amigo do tocador de cítara?
no e nada. Aí o Giba falou: “vamos lá na publicado por uma grande Agora, estou na metade de um roman­ Isso aí não vai funcionar como conto, não
casa dele”. Pegamos o endereço e fomos. editora [Brasiliense]. De repente ce. Então, estou já empurrando aquele tem começo e não tem fim”. Concordei
Ele morava numa rua no centro, num bonde todo, cheio de personagens e tal. e o conto não entrou no Umidade. Mas
bairro que tem um comércio muito chi­ abri a Veja e vi o cara falando O barato é escrever todo dia, não deixar aí fiquei com aquilo na cabeça, então es­
que, mas na época tinha uns prédios resi­ de escrever nenhum dia, nem que você crevi o começo e o fim. Fui trabalhando
denciais bem de classe média. O endereço
de mim. Trinta anos depois, isso mude apenas um verbo. Eu faço isso às para trás e para frente, controlando isso e
era assim: “Rua tal, número 68”. Chega­ aconteceu com Pornopopéia, vezes até como um ritual, da mais baixa inventando, então, quem era aquele cara.
mos lá e vimos as caixas de correio, típicas superstição. Mesmo que eu esteja bêba­
dos prédios de Paris. Em nenhuma delas
que escrevi achando que do, de saco cheio, deprimido, sem tem­ Personagem sem superego
estava escrito “Cortázar”. Aí, ficamos ali ninguém ia ler.” po, cansado, com sarna, dor de dente, não Enquanto fiquei cogitando essa
pensando, decidindo entre ir embora ou importa, tenho que ligar o computador, questão da trama, de dar uma lógica, uma
não, quando demos dois passos para fora, nem que seja para alterar uma vírgula. substância para o personagem, fazer o cara
vimos que existia o número 68 bis. Ten­ Isso religa. Religa o cérebro. ficar mais de carne e osso, pensei em um
tamos naquele, e numa das caixas de cor­ da — só saía um bon jour, mas não sabia projeto que já vinha fermentando em mi­
reio estava escrito monsieur Cortázar. Mas exatamente em que hora falar isso —, en­ Horários nha cabeça há um tempo: fazer um per­
aí não sabíamos o número do apartamen­ tão misturei um francês com português, Escrevo muito de manhã. De ma­ sonagem sem superego. Um cara que fi­
to, porque só tinha o nome. Enquanto a coisa horrível. E ele respondeu: “ah, o dis­ nhã, reescrevo muito, na verdade. À tar­ zesse o que passasse pela cabeça, tivesse
gente estava nessa discussão, ouvimos um co do Caetano Veloso, que bom, você é de, cochilo e leio. Às vezes mais cochilo uma existência puramente instintual, to­
barulho nas escadas, por onde descia uma amigo do Davi, então?” Mandou um por­ do que leio. E à noite escrevo, depois de talmente dessublimado, um cara que vai
equipe de TV, com todos os equipamen­ tuguês ali, bicho, tranquilo, quase melhor uma cervejinha, um vinhozinho, é gostoso cumprindo uns papéis sociais, mas de uma
tos, todos loirinhos, e atrás deles o Cor­ que o meu. E aí ficamos conversando, ele para ter ideias. Escrevo sem muito com­ forma totalmente delinquente, totalmen­
tázar. Ele olhou para a gente. Eu e meu um sujeito simpático, um pouco mais alto promisso, se não ficar bom, dane-se. Aí, te anárquica, que vai derretendo todos os
amigo éramos duas figuras estranhas, do que eu, tinha uns 75 anos, mas sem um de manhã seleciono, edito, etc. Não tem vínculos com a sociedade, com a mulher,
barbudões, cabeludões. Cortázar deve ter fio de cabelo branco, uns olhos azuis, um mistério, o dia tem vinte e quatro horas só, com os amigos, com a família, com o filho.
pensado: “tô encrencado”. Olhei para ele, cara bonito para chuchu. Ficamos baten­ não tem como inventar muito. Você tam­ Quer dizer, um personagem que reivindi­
não sabia falar quase nada em francês ain­ do um papinho, por uns 20 minutos, e os bém tem que comer, dormir, namorar, etc. ca uma liberdade para além de qualquer
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 9

“ Antigamente, as pessoas
tinham saco de pegar um livro
e passar duas horas lendo.
Hoje em dia, procuramos o
mouse do livro.”

muito física, muito ligada à vida concre­


ta. Você precisa de coisas mínimas: soli­
dão, silêncio. Você não pode ter o cora­
ção aos pulos porque os credores estão
dando picaretadas nas paredes ou por­
que sua mulher está dando para o vi­
zinho. A realidade não pode estar que­
rendo morder sua canela o tempo todo.
Você tem que botá-la ali num cantinho.
código moral, ético, mas que estivesse in­ Autores contemporâneos Mas sempre parto de alguma coisa que já Tem que ter uma torre de marfim. Es­
serido em um contexto realista. Que não Tenho muitos amigos escritores. está feita. Quer dizer, eu fiz alguma coi­ critores descobrem a torre de marfim em
fosse um monstro. Não era esse tipo de Gosto muito do Antonio Prata, cronista sa antes, e depois utilizo. Gosto muito de vários lugares. Cervantes, por exemplo,
ausência de superego que me interessa­ maravilhoso, que conheço desde quan­ mexer, fuçar. Você fica trabalhando todo na prisão de Madri, que não devia ser
va, era um cara que poderia ser qualquer do ele tinha três anos, filho do Mário dia numa coisa, as ideias vêm. Não tem exatamente o Hilton Bangkok, Balzac
um de nós, que está no trabalho, nas ruas, Prata. É um Rubem Braga repaginado, jeito, as ideias vão atrás de você. Às ve­ vivia perseguido pelos credores, sempre
nos bares, um cara comum. Aí eu pensei: modernizado. Como ficcionista, tem o zes você vai fazer cocô, vem a ideia e senta se escondendo em Paris. Baudelaire vivia
“puta, o cara que eu estou querendo fazer Milton Hatoum. Conheci o Milton em ali do seu lado. Você está dormindo, olha perseguido por si mesmo, pela sua lou­
é esse fulano que está nessa surubrâmane”. 1979, quando eu estava escrevendo o para o lado, a ideia está lá. Às vezes você cura total, ou por uma mulher que queria
Tanto faz e ele esquematizando o Re- está transando, vem a ideia, você broxa. esfaqueá-lo. Escrever é naquela hora em
Mirisola trato de um certo oriente, primeiro livro Você fica meio escravo. que não tem uma mulher enfiando a faca
Um dos caras mais interessantes dele, que é fantástico. Mas não tão fan­ em você. Você precisa ter esse momento.
que li nos últimos anos é o Marcelo Miri­ tástico quanto seu segundo romance, Hiato na literatura Precisa ter tempo, dinheiro. Tem que tra­
sola. Ele escreveu Notas da Arrebentação, O Dois irmãos, que está no nível de Ma­ Eu não escrevia literatura porque balhar, precisa ter um break. Outra coisa
herói devolvido, Fátima fez os pés para dan- chado de Assis, maravilhoso, uma pro­ não parava de escrever. Não escrevia li­ que é bom para escrever é estar vivo, tem
çar na chopperia, entre outros. Foi o primei­ sa mais tradicional, mais discursiva, que teratura porque estava escrevendo nove­ que contar com isso. A hora que não ti­
ro autor no Brasil, depois do Guimarães não traz muita atenção para sua fatura, la, roteiro institucional, traduções, sem­ ver mais fica difícil, quer dizer, depende
Rosa, que criou uma língua para escrever. sua linguagem. É a estratégia contrária, pre com a bunda diante do computador, de uma psicógrafa. g
Ele não escreve na minha língua, nem na fazer uma prosa que flua porque o inte­ escrevendo para viver. Aí, virou o ganha­
sua. Ele tem uma sintaxe própria, reorga­ resse está em outro lugar. Ao contrário -pão em várias modalidades. Virei aque­
nizou o léxico para dar outros sentidos a do Mirisola. le escritor de hobby. Passei muito tem­
adjetivos e palavras. E tem uma visão total­ po em que, quando tinha uma ideia saia Próximo convidado do projeto
mente anárquica e suicidária, impossível de Processo criativo correndo para os bares comemorar que “Um Escritor na Biblioteca”:
se domesticar. Meio difícil de ler também. Nunca fico escrevendo qualquer tinha tido a ideia. Hoje, quando tenho
Ele foi aplainando essa sintaxe, bota aforis­ coisa para ver onde vai dar. Quero contar uma ideia, corro para o computador e es­
mos, cusparadas, tem umas abjeções sexu­ uma história, sempre tenho um núcleo. crevo. Acho que é uma questão hormo­
• milton hatoum 6/12
ais, o avô que transa com o neto, pedófilos, Aquilo pode virar qualquer coisa, pode vi­ nal, têm menos hormônios me incomo­
Às 19 horas. Entrada franca.
mas aquilo também vai sendo diluído por rar um início de romance abortado, que dando, me chamando para o crime. É só
uma levada quase filosófica na prosa dele. depois vai virar um conto, ou o contrário. isso, na verdade. Escrever é uma coisa
10 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

crônica

Modesto informe
sobre as bibliotecas
do oriente e d’além
(Documento encontrado na
bi­­­blio­­­­teca de Tinos, supostamen­­­te
o povo da cidade não sabe ler. Porém,
como a gente de Khubeis ouviu dizer
pergaminho escrito por deuses. Outros,
que é um livro de piadas.
No deserto de Taklamakan há
uma carroça puxada por dois camelos que,
escrito por Maffeo Polo) que folhear livros é algo que traz res­ Qazan é a capital da Tartária, na verdade, é uma biblioteca. Seu único
Trazi­­­­do à luz por José Roberto Torero peito e nobreza, a cidade construiu uma país dominado há muito tempo pelo rei funcionário passa o tempo atravessando o
biblioteca, que está sempre lotada por mongol Kublai Khan, neto do poderoso deserto de um lado para o outro, empres­

P
elos vinte e quatro anos que viajei seus vaidosos analfabetos. Gengis Khan. Kublai não aprecia mui­ tando e recolhendo livros. A carroça só
com meu sobrinho Marco Polo, Em Arzinga, perto do Monte to as pessoas que têm ideias diferentes possui obras sobre viagens, mas nenhum
vi coisas que meus olhos mal pu­ Ararat, há uma biblioteca que possui pe­ das dele, e tanto é assim que, na enor­ deles é sobre o deserto de Taklamakan, de
deram acreditar, ouvi histórias sados livros sobre matemática, grandes me biblioteca de Qazan, todos os seus modo que os leitores que pegam os livros
que minhas orelhas quase não creram e arrazoados teológicos e longos discursos exemplares são de apenas um livro: As desta biblioteca ambulante sempre fazem
senti cheiros que meu nariz por pouco de reis, ou seja, leituras que dão muito memórias e as ideias de Kublai Khan, duas viagens ao mesmo tempo, uma com
não conseguiu suportar. tédio. Por isso a biblioteca, muito sensa­ soberano das terras e almas da Tartária. os pés e outra com a cabeça.
Mas, de tudo o que vi, ouvi e res­ tamente, em vez de cadeiras, usa redes, A Biblioteca de Qazan está sempre va­ Triste fim teve a biblioteca de
pirei, o que mais me impressionou foram de forma que os leitores podem ceder ao zia, sendo frequentada apenas de quan­ Kashgar, que só possuía livros de histó­
as bibliotecas. Talvez por gostar delas as­ inevitável sono e dormir à vontade. do em quando por funcionários públi­ rias de dragões. Para causar ainda mais
sim como outros homens amam bode­ A biblioteca de Balkh fica numa cos que querem subir de posto. medo aos leitores, a biblioteca de Kash­
gas, bancos e bordéis, foram as bibliote­ grande e estreita torre, que tem em seu Em Kan-Cheu há uma curiosa gar só funcionava à noite, sendo ilumi­
cas que mais me chamaram a atenção. interior uma escada em espiral. Seus li­ biblioteca feita para guerreiros que per­ nada por velas. Porém, um dia, um leitor
Eu, que pensava que elas eram vros ficam numa longa prateleira que deram os braços. Os livros são colocados mais impressionável assustou-se de tal
sempre iguais, um lugar cheio de livros segue a escada do começo ao fim, com abertos sobre suportes, de forma que os maneira que derrubou sua chama numa
para serem consultados, encontrei no exatamente um livro por degrau. O leitores podem virar as páginas apenas das cortinas, incendiando a biblioteca,
oriente bibliotecas de tantos modos e for­ curioso é que a regra da biblioteca diz com a língua. Para estimular a leitura, os que naquela noite cuspiu fogo de suas
mas que só o descrevê-las já encheria uma que os leitores têm que ler primeiro o livros de Kan-Cheu são impressos em janelas como se tivesse se transformado
outra biblioteca. Por isso, serei modesto e primeiro livro, depois o segundo, só en­ papéis de variados sabores, desde a for­ num de seus personagens.
apenas direi como eram algumas delas. tão o terceiro e assim por diante. Até te carne de bode até o delicado pêssego. Outra famosa biblioteca que fe­
Em Khubeis, além do deserto de hoje ninguém chegou ao topo da tor­ Assim, muitas vezes os leitores acabam chou suas portas foi a de Si-ning, pelo
Lut, há uma curiosa biblioteca forma­ re, onde está o livro derradeiro, o da sa­ escolhendo livros não por seu gosto lite­ motivo de ser perfeita demais. Ela con­
da apenas com livros em branco, pois bedoria suprema. Uns dizem que é um rário, mas pelo gastronômico. tinha tão somente livros eróticos, mui­
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 11

tos trazidos da Índia, com ilustrações


fantásticas, de rara beleza e raríssimo
realismo. A biblioteca era decorada com
tapetes em vez de cadeiras, de modo
José Roberto Torero que os amantes podiam ler deitados um
Ilustração: Guilherme Caldas ao lado do outro. Com isso, em poucos
anos cresceu tanto a população de Si­
-ning que as autoridades tomaram por
bem acabar com a biblioteca.
Em Trebizonda, a cidade das
amazonas, os livros não são escritos
em papéis, mas tatuados no corpo de
belos homens, que vivem na biblio­
teca esperando para serem lidos pe­
las guerreiras. Elas tocam-lhes os cor­
pos de todos os jeitos, apalpando uma
parte, esgarçando outra, levantando
aqueloutra, como se virassem páginas.
O triste é que, quando os homens en­
velhecem e suas peles ficam murchas,
embaralhando as letras, são eles quei­
mados, assim como se faz com alguns
livros roídos pelas traças.
Atravessando o rio Tigre chega­
-se à cidade de Bandahar, onde há uma
singular biblioteca em que os livros são
escritos pelos usuários. Ou seja, cada
vez que alguém lê um livro, acrescenta­
-lhe uma frase, um parágrafo ou mes­
mo uma página, de modo que, assim
como a história do mundo, as histórias
dos livros jamais têm um fim e são es­
critas por todos.
E em Tinos achei a curiosa biblio­
teca das mentiras, que não aceita para suas
prateleiras nenhum escrito que tenha um
pingo de verdade, só aceitando livros, car­
tas e folhas com coisas inventadas, por­
que dizem os bibliotecários de Tinos que
as verdades mudam com o tempo, mas as
mentiras são sempre mentiras, sendo por
isto muito mais honestas e confiáveis.

Maffeo Polo, 12 de dezembro de 1296. g

José Roberto Torero é paulista, autor do best-


seller O Chalaça (prêmio Jabuti em 1995) e de
Xadrez, truco e outra guerras, entre outros. Seu
mais recente livro é O Evangelho de Barrabás,
escrito com Marcus Aurelius Pimenta.
Vive em São Paulo (SP).
12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

entrevista | michel laub

“Não há como melhorar a


escrita sem ser um bom leitor” Renato Parada
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 13

Um dos autores mais edições na Espanha e na Alemanha.


Na entrevista a seguir, Laub fala sobre
Em termos de influência, nenhuma. Mas
eu gostava muito de algumas coisas que
locais onde não há nada disso.

talentosos de sua geração, como o jornalismo pode ajudar um es­


critor a tirar “as impurezas não propo­
ele escreveu, em especial os contos que
tratam de crianças perversas e de A ma-
Você foi editor-chefe da revista Bravo!.
Como essa experiência de editar uma
Michel Laub também tem sitais” do texto literário e sobre os prin­ jestade do Xingu, para mim o melhor ro­ revista de cultura, que fala sobre diver-
cipais desafios de um escritor iniciante. mance dele (embora não o mais típico). sas manifestações artísticas, te influen-
se destacado comandando Pessoalmente, o Scliar foi um cara muito ciou como escritor? Ou isso não foi
disputadas oficinas de É possível notar na sua obra uma ca-
racterística marcante de estilo: a fra-
querido por todos e sempre que pôde me
ajudou (a mim e a muitos outros autores
importante para o seu trabalho como
ficcionista?
criação literária se longa, sintaticamente trabalha- que estavam começando). O trabalho de editor, como falei, me in­
da, que adia por alguns momentos o fluenciou na hora de ajeitar um texto,
clímax do enunciado. Essa é uma ca- Em Diário da queda você faz diversas ver o que funciona ou não nele em ter­
felipe kryminice racterística que foge do texto jorna- referências ao livro É isto um homem?, mos de ritmo, vocabulário, ideias. Isso
lístico convencional, marcado pela de Primo Levi. Utilizar a literatura pode ser muito útil na literatura, mas

D
esde 1808, ano que marca o nas­ pretensa objetividade e pelas frases como temática pode se tornar algo re- pode atrapalhar também, tirar dela cer­
cimento da imprensa brasileira, curtas. É possível afirmar que sua corrente demais para o escritor, a ponto ta espontaneidade.
nossa literatura tem mantido uma profissão tem pouca — ou nenhuma de se tornar um lugar-comum?
relação epidérmica com o jornalis­ — relação com a sua literatura? Como tudo em literatura, depende da Você é formado em Direito, mas sem-
mo. Um produtivo diálogo entre a vida O jornalismo é o contrário da literatu­ forma como se usa. No caso citado, o livro pre trabalhou com jornalismo. Como
nas redações de jornais e a atividade so­ ra no método, nos meios, nos objetivos. tem uma função muito específica dentro você foi parar nas redações? Você tam-
litária da literatura legou às letras brasi­ Agora, algo da experiência de editar um da história que me propus a contar, e seria bém foi editor da Bravo! bastante jo-
leiras o surgimento de nomes como Ma­ texto eu acabo usando na hora de escrever, impossível contá-la sem citá-lo. vem, como isso aconteceu?
chado de Assis, Lima Barreto, Nelson ou ao menos num segundo momento da Por uma série de circunstâncias. Um aci­
Rodrigues e Caio Fernando Abreu. escrita, digamos — quando eu pego um O jornalista Paulo Werneck, numa re- dente grave de carro me fez decidir tran­
Embora afirme que “o jornalis­ rascunho e dou ordem a ele, tiro as impu­ senha de Diário da queda na Folha de S. car a faculdade de Direito e passar um
mo é o contrário da literatura no méto­ rezas não propositais e tal. Também algo Paulo, disse que “a literatura gaúcha, tempo viajando. Escrevi um diário du­
do, nos meios e nos objetivos”, o escritor da experiência de ser jornalista, que obri­ neste início de século, já sem tintas re- rante essa viagem. Um jornalista ami­
Michel Laub trilhou um longo e impor­ ga você a treinar seu senso de observa­ gionalistas, se firma como principal ce- go da família leu esse diário e me cha­
tante caminho no jornalismo até chegar ção e ficar mais cético em relação às coi­ leiro de escritores brasileiros”. Qual é a mou para fazer matérias na revista onde
ao primeiro time da literatura nacional. sas, o que pode ser bom para a literatura. sua impressão sobre a literatura gaúcha ele trabalhava (a Carta Capital). Um co­
Editor da revista Bravo! por oito contemporânea? É possível identificar lega dele leu essas matérias e mais tarde
anos, Laub é formado em Direito, profis­ Seus livros, em sua maioria, são marca- uma “marca” da literatura gaúcha, pa- me chamou para fazer parte da equipe da
são que chegou a exercer por poucos me­ dos por narrativas não lineares. Quais ranaense ou paulista? revista que iria fundar (a Bravo!), e por
ses em Porto Alegre. Também não con­ foram as leituras que moldaram essa Hoje em dia é muito complicado falar aí vai. Em toda trajetória profissional há
cluiu a faculdade de jornalismo, profissão preferência? em afinidades estéticas regionais. As pes­ um misto de vocação e sorte (ou azar).
em que se consolidou no meio cultural. Não sei se as leituras moldaram isso. E soas da mesma idade têm acesso a infor­
“Em toda trajetória profissional há um nem se são narrativas não lineares. Só se mação do mundo todo via internet, este­ Numa entrevista recente, você dis-
misto de vocação e sorte (ou azar)”, diz for no sentido tradicional de início, meio jam elas morando em Porto Alegre, em se o seguinte: “O importante mesmo
o autor sobre o início de sua carreira no e fim, em ordem cronológica, o que, de Curitiba ou em Manaus. Então não há são as ideias. O estilo vai se adequar a
jornalismo. fato, os meus livros não têm. Mas as his­ por que eu ter mais afinidade com meu isso, de uma forma ou de outra, quase
Laub estreou na ficção em 1998, tórias que eles contam, que se juntam em vizinho de quem não sei o nome do que como se fosse um mero instrumento.
com o livro de contos Não depois do que fragmentos e recursos do gênero, até que com alguém que mora em outro Esta­ É um exagero, claro, mas tem um fun-
aconteceu. Mas foram romances como são bem tradicionais. do, mas conversa comigo via redes sociais do de verdade, que sinto cada vez mais
Longe da água (2004), O segundo tem- todos os dias. O que há em Porto Ale­ no que escrevo: a irrelevância, por ve-
po (2006) e O gato diz adeus (2009) Diário da queda se passa em Porto Ale- gre são as oficinas literárias, um circui­ zes, de ficar ajeitando muito, fazendo
que lhe garantiram lugar de destaque gre e lida com temas do judaísmo. O to regular de feiras do livro, índices bons muito rococó”. Em outras palavras, o
no cenário literário brasileiro. Diário livro saiu no ano da morte de Moacyr de leitura entre a população, esse tipo de que interessa mesmo é saber contar
da queda (2011), seu mais recente li­ Scliar, escritor gaúcho e judeu. Qual coisa, então é claro que há mais estímulo uma boa história?
vro, foi vendido para o cinema e terá era a sua relação com a obra dele? para que surjam escritores lá do que em Não. Tudo interessa: ideias, linguagem,
14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

entrevista | michel laub


Renato Parada

ritmo narrativo, história (ou falta de his­ sas situações em boa literatura, e um
tória). Cada escritor opera de um jei­ sem talento, não. Quanto à capacida­
to. Tenho a sensação de que meu últi­ de de observação, há alguma margem
mo livro, Diário da queda, vale mais pelas para melhora aqui e ali, mas pouca
ideias e a história do que pela linguagem — no fundo, você nasce com isso ou
em si. Mas ele não deixa de ter um tra­ não. Em literatura, a única coisa que
balho até que bastante elaborado de lin­ dá para “cultivar com afinco”, no sen­
guagem (custou meses e meses de cha­ tido de treiná-la e desenvolvê-la, é
teação, posso garantir). Como disse na a técnica. Por meio dela até dá para
entrevista, claro que a frase é um exagero. driblar a falta de um dos itens do tal
Sem linguagem, seja ela opaca ou trans­ tripé. Mas driblar dois ou os três ao
parente, sofisticada ou simples, não se vai mesmo tempo fica difícil.
a lugar nenhum.
Depois que começou a publicar e
Você participou da oficina de criação se tornou um escritor reconheci-
literária do Assis Brasil e hoje minis- do no cenário nacional, o que mu-
tra suas próprias oficinas. Desde que dou em sua rotina de leitura? Lê
surgiram, as oficinas de criação lite- menos ou mais? Como diz Radu-
rária despertaram debates acalorados an Nassar, consegue afiar a lâmina
sobre sua eficiência. Como são suas com as leituras?
oficinas e qual o beneficio que elas É a mesma coisa. Se algo mudou
trazem a quem quer iniciar uma car- nesse tempo, foi a internet, que me
reira literária? faz ler menos livros longos e mais
São oficinas relativamente curtas, que textos curtos e bobagens variadas.
trabalham com o gênero conto e a par­ Mas são fases. Agora, por exemplo,
tir de exemplos concretos, de textos pro­ ando sem paciência para ficar tantas
duzidos pelos alunos. Procuro fazer com horas na frente do computador e vol­
que o cara saia lendo melhor do que lia tei a ler bastante ficção, o que andei
quando entrou. Já é um passo importan­ uma época sem fazer.
te, maior do que muita gente pensa. Não
há como melhorar a escrita sem ser um Em uma entrevista você dizia que,
bom leitor — dos textos alheios e dos quando começou a escrever, tenta-
seus próprios. va imitar os contos do Rubem Fon-
seca e que isso fazia mal ao que es-
William Faulkner dizia que a literatu- crevia. De que maneira o escritor
ra é baseada num tripé: observação, ex- deve filtrar sua influência? Como
periência e imaginação. Para você, qual faz para que os autores que aprecia
dessas qualidades um escritor deve cul- não contaminem sua literatura?
tivar com mais afinco? No início é inevitável que você imi­
Imaginação não dá para cultivar. Ou se te algum outro autor, voluntária ou
tem, ou não se tem. Os outros itens tam­ involuntariamente. Com a técnica e
bém dependem pouco de vontade: ex­ os anos, seu repertório aumenta e se
periência você pode buscar ter, mas só o torna mais fácil evitar isso. Não só
tempo traz algo significativo nessa área. porque você passa a ter mais a di­
Até porque isso pode significar passar os zer, mas porque a experiência ensina
anos viajando, vivendo perigosamente, a perceber, quase instintivamente,
bebendo, trabalhando num escritório ou quando algo que você está fazendo é
dormindo no seu quarto — um escritor de segunda mão, não tem uma ver­
de talento vai transformar qualquer des­ dade sua ali. g
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 15

cândido, 133

Memória
Kraw Penas

coletiva
Com um acervo de mais nal paranaense, fundado em 1854, mesmo
ano da emancipação política do Estado,
100 mil itens, a Divisão de por Cândido Lopes, que hoje dá nome à
rua em que a BPP está sediada.
Documentação Paranaense da A diversidade do acervo atrai um
Biblioteca Pública do Paraná grande número de usuários, constituí­
do em sua maioria por estudantes e pes­ Acervo da Divisão de Documentação Paranaense.
preserva a memória do Estado quisadores em busca de informações para
trabalhos acadêmicos. Alunos do ensino
fundamental e profissionais da imprensa ra-se conscientizar o pesquisador, mos­
Felipe Kryminice
tam­­­­bém costumam pesquisar o acervo. trando a importância e o significado do Direitos

C
om um dos acervos mais completos “Aqui na Divisão há um grande e trabalho de preservação do patrimônio
do Paraná, a Divisão de Documen­ intenso fluxo de estudantes que estão re­ intelectual do Estado do Paraná. autorais
tação Paranaense da Biblioteca Pú­ alizando pesquisas para trabalhos acadê­
blica do Paraná se tornou, ao longo micos. Mas também há pessoas que vêm Microfilme A Divisão de Docu­
das décadas, uma espécie de farol a quem por pura curiosidade, que pedem para ver Com a intenção de preservar a qua­ mentação Paranaense também
quer conhecer mais sobre a rica história o jornal do dia em que nasceram ou de al­ lidade dos periódicos originais, e diminuir é responsável pelo Escritório
do Estado. Materiais com informações guma outra data especial e marcante. De o volume dos arquivos, parte do acervo é de Direitos Autorais — Re­
sobre fatos políticos — como a Guerra um modo geral, há grande interesse por disponibilizada por meio de um processo presentação Regional do Pa­
do Contestado — e culturais — como o parte dos usuários em materiais e docu­ denominado microfilmagem, que consis­ raná. O escritório é resultado
surgimento da revista Joaquim — atraem, mentos antigos. O que, para nós, só au­ te em um sistema de captação das imagens de de uma parceria técnica entre
diariamente, centenas de leitores. menta a importância do trabalho de pre­ documentos por processo fotográfico. No to­ a Fundação Biblioteca Nacio­
A Paranaense, como a Divisão servação da memória de nosso Estado”, tal, são mais de cinco mil e quinhentos ro­ nal, no Rio de Janeiro, e a Se­
é conhecida pelos usuários, tem uma co­ diz Josefina. Segundo ela, a Divisão tam­ los de microfilmes disponíveis. “A fim de cretaria de Estado da Cultura
leção diversificada, composta por vários bém é depositária da memória biográfi­ evitar o desgaste natural dos originais, os do Paraná e tem a finalidade de
tipos de suportes de informação, como ca paranaense, conforme decreto estadual periódicos retrospectivos (referentes a jor­ conscientizar os autores para­
livros, periódicos, obras raras, mapas, fo­ do ano de 1964, que regulamenta o envio nais que já não circulam mais) e correntes naenses da importância do re­
tografias, cartões postais, partituras musi­ à Biblioteca Pública de obras originárias (ainda em atividade) são encadernados e gistro de suas obras, buscando
cais e microfilmes. “O setor é responsável do Poder Executivo do Estado do Paraná. microfilmados”, diz a chefe da Paranaense. uma valorização artística e in­
por resgatar, selecionar, guardar, preser­ Os itens excedentes do acervo da A ação de microfilmagem teve iní­ telectual, protegendo, assim, a
var e disponibilizar à comunidade docu­ Divisão são distribuídos nas demais se­ cio nos anos 1980, por meio de um con­ produção cultural do Estado e
mentos e informações históricas e cultu­ ções da BPP, para que o usuário possa ter vênio com a Fundação Biblioteca Nacio­ proporcionando condições de
rais do Paraná.”, explica Josefina Palazzo acesso ao material. Já os materiais não in­ nal, que realiza esse trabalho em âmbito divulgação.
Ayres, chefe da Divisão. corporados ao acervo, são encaminhados nacional. Na BPP, essa atividade é desen­ A Seção de Depósito Le­
O acervo de mais de três mil peri­ para bibliotecas públicas municipais, por volvida com o apoio da Divisão de Pre­ gal e Direitos Autorais, oferece a
ódicos — entre jornais e revistas — está meio da Divisão de Extensão. servação. Os primeiros trabalhos de mi­ oportunidade do registro de Di­
entre os mais procurados. A Divisão guar­ Paralelamente ao trabalho de pre­ crofilmagem foram os de revistas e jornais reitos Autorais sobre os mais di­
da preciosidades como a primeira edição servação e conservação do acervo local, no retrospectivos paranaenses. Depois, se es­ versos tipos de documentos.
do Dezenove de Dezembro, o primeiro jor­ contato e convívio com o usuário, procu­ tendeu aos demais periódicos. g
16 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 17

princesa Livia Garcia-Roza


Ilustração: Francisco Gusso

P
ode se chegar, gente boa, relax, não plicação. Cusparada é coisa de macho, o Quantos anos têm a jovem? 22? Mas este que é tua!, Amadeu... Até agora não me
é assalto, é ensinamento dos brother. sujeito tá sempre mandando o que che­ é um sábado lotérico! Façamo então um apresentei: Amadeu Serafim, às suas or­
Vem, vem se chegando. E aí, meu ga pelas borda do corpo até sair por al­ pouso instantâneo. Qual é mesmo sua gra­ dens, princesa Ôra, Ôra, Ôra...
chapa, se liga em cuspe a distância? gum dos orifício. Sempre assim, in puto ça? Lenora? Leonora? Oh, claro, Heitora! Mas tu é uma fragrante delícia,
Não é assim que fala, meu irmão? Vai pa­ e fora do puto. Tão entendendo a evolu­ Filha legitimada de Heitor, ora ora... Pre­ uma musse, manja? Conheces essa igua­
gar nada. Nossa parte é essa. Tamo aqui na ção? Acompanhando a ejaculação? Nin­ fere ser chamada de Ôra, oh, claro, Ôra, ria da nossa famosa baixada fluminense?
diversão. Pelo jeito tu também. Pra andar guém aqui é precisado de aula. É ques­ com mucho gusto. E o suco, minha flor, Que som perfurador foi este? Ah, o celu­
com esse passo mole, tu não é daqui, cer­ tão de pontaria, já disse. A primeira vez também tá a su gusto? Quanto esplendor lar. Como não, a senhora sua mãe, a dis­
to? Atenção, malandro, que tu dança. Tá mandei legal, puta tiro, tão escutando? oferece essa orla coalhada de despelada tinta pré-genitora. Os seios protuberantes
falando fofo assim porque tomou umas, Virei macho com agá. E de lá pra cara é que mal chega a seu calcanhar, não é mes­ possuem algum ingrediente, minha flor?
né? Se aproxima, princesa, vem arejar sua enxurrada à toda hora. Tão a fim da exi­ mo, gente esbelta?... E se não for inconve­ Ah, são natureba... Não, não se aborre­
formosura. Tava faltando dama no peda­ bição? E o dinheiro, tá na mão? Então niência intrépida, gostaria que a princesa, ça, mãe são muita transtornação... Relax,
ço, né, pessoal? Mas e aí, galera? Mando dão um tempo no lance, que vou dar um com sua altíssima presença, conhecesse os princesinha. Elas existem em bando. Não
uma placa mortal, tão sabendo? Aditiva­ recado ali naquela formosura. Preparando meus aposento. E já que tropecei no as­ sei se tiveste visto as mãe da praça de tou­
da. Seguinte, meu irmão: atenção que não a artilharia pessoal! sunto, quantos metro a princesa disporá? ro. Um porrilhão, não leva a mal a devida
vou explicar duas vez, isso tem que ser pe­ Vamos lá, princesa, o ambiente Um e oitenta... Mas é uma manekan! São expressão. Temo mais mãe que filho em
gado no jato. Na areação. De primeiro o aqui num tá prepúcio pra senhorita, que só poucos concretos à frente, alteza, não se tudo que é parte da atmosfera terrestre,
cara tem que desligar, de repente a cara logo se vê que é dama de altas mansão distraia no calçamento pra cabrito, sem­ certo? A galera num guenta o repuxo do
dele para, os olhos também dão aquela e fidalguia distinta. Posso seguir-vos al­ pre traiçoeiro com a fineza dos sapatos das cuidado. Mas é tanta curva no aldelgaça­
freada, tão acompanhando, pessoal? Aí, guns passos? Não sei se atinaste que o es­ dama, de todas as maneira, aqui estou pra do do teu corpo que me brotou uma leve
nessa hora, o peito estufa, ele funga, cava petáculo era tão somenos pra chamar a amparar queda súbitas, saca? tonteireza. Um repente, por sinal. Por que
lá no fundo da boca oval, e daí ele mira atenção de vossa persona. Grata, sei que Caminhemos pois, princesa mi­ gritaste? Ah, com a tua mãe. Deixa os ar­
e lança com força e o cuspe sai tinindo estás, vê-se o polimento do berço esplên­ nha, com todos os passo que enlevam rulho pra lá, princesa... Ai... ai... que pe­
em linha reta. Míssil da paz, mano, vin­ dido. Peço perdão pelas palavras de calão aos meu domínio, e ao abraço que certa­ netração! Num chora, caralho... Perdão,
do do interior mais subalterno do indiví­ baixo, porque só assim captam o profe­ mente posso me permitir, correto? Que minha princesinha... Mas que orifícius,
duo. Voo bonito pra caralho, e o cara sen­ rido. Quando no outro sim divisei vossa delícia o por arejamento da sua pele em preciosa! Tava morto de fome... Num gri­
te aquela satisfação; e se a carga encontrou visão, meus olhos faiscaram obnubilado, e contato com a epiderme do meu tórax... ta, coração, calma com a mamãe, vai, re­
o anonimato, sem problema, ele mandou assim estão até o momento desse passeio Posso, por ventura, enlaçar vossa cintu­ melexa, assim, estás puta, claro, então dês
bem. Valeu. Rindo, princesa?... Se amar­ pela orla marítima e terrestre, e quem ra, minha dama da orla, e de outras afins, uma reboladinha, vai, entrementes acelero
rou no voo do caralho, né? Tô sabendo... sabe — quem de nós saberão? — exor­ que de momento escapam num sem fim pra atingir o climatério desse mundaréu,
Mas agora eu requero a vossa atenção, aí, bital. Pensemo positivo que alcançare­ de pensamento de través. Pronto, ei-nus! vai, vai... Vamo que vamo, né, realeza?...
gente boa, só macho domina essa moda­ mo estrela, qualquer Ursa tá valendo, cer­ Não repare na modéstia, princesa. Tudo Hein? Ela quer falar comigo? Agora?
lidade de esporte!, desde a remoção da in­ to? Atenção, princesa, pedregulho à vista; aqui tá arrodeado de objeto de difícil Mamãe!! Uiiffff... Quanto prazer!! A se­
fância. A mulherada tá fora dessa jogada, não tropeçais, pelo amor deste servo en­ captura. Estás um pouco cansada de­ nhora nem imagiiina... g
me perdoe as dama, mas pontaria é fun­ cantado com vossa formosura totalitária. veras? Podereis repousar no pufe ou no
damental, e é do que elas carece. É arre­ Não são todas que desfilam com garbo e sofá. Ou quem sabe no leito. Gostarias Livia Garcia-Roza nasceu no Rio de Janeiro e é
psicanalista. Estreou na literatura de ficção em 1995,
messo complicado porque num tem esco­ cortesia, repareis? deste último reconduto? Antes precisas com o romance Quarto de menina. Depois vieram
la. Já escutei que até agora não cuspi porra Tarde amena e gentil, né? Talvez... ir à latrina? Peço então que se dispa de Meus queridos estranhos, Cartão-postal, Cine
nenhuma, guenta aí, ô meu... tá com pres­ Vejo um cúmulo à vista fina. Gostarias tudo, dos preconceito e das intimidade, e Odeon, Solo feminino, A palavra que veio do Sul,
Faces, entre outros. É organizadora da antologia de
sa, mané? Vê se se liga que aqui num tem de uma estancadinha a fim de saborear seja feita a vossa vontade e a minha, que contos Ficções fraternas (2003).
nego correndo, num é assalto, já dei ex­ um suco refrigerado? Concordais então? sempre bradei ao céus! E ele disse: Vai Vive no Rio de Janeiro (RJ).
18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | manoel carlos karam


Fotos: Glória Flügel

Nas máscaras
do descarado
as mil caras do
mascarado
Nelson de Oliveira
escreve sobre a obra
literária de Manoel
Carlos Karam
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 19


murmurantes (publicado originalmente Com eles, veio a terceira impressão: aí
Nelson de Oliveira
em 1985), O impostor no baile de másca- está um sujeito atencioso, gentil. Já a
Comendo bolacha maria

M
anoel Carlos Karam? Conheci ras (1992) e Cebola (1997), que formam quarta e mais forte impressão veio com é uma coleção excêntrica de
o bucaneiro com olhos de pan­ a Trilogia de Alhures do Sul. o tempo: aí está um homem generoso.
da em 1999, em Sampa, no lan­ No universo dos livros, o combus­ Karam sempre foi um ótimo interlocu­ aforismos, anedotas, jogos
çamento de seu quarto livro, Co- tível da extinção é sempre a inércia. Os tor, principalmente quando em contato verbais, petiscos e safadezas.
mendo bolacha maria no dia de são nunca. livros do Karam continuam aí, saudáveis, com os escritores mais jovens.
Tenho certeza da data porque guardei o ainda disponíveis nas livrarias, porque De todos os livros que publicou,
convite dentro do livro (sim, meus jovens, dois leitores-escritores-editores malucos o meu predileto é Encrenca (2002). Este
no século passado os convites eram im­
pressos). O lançamento aconteceu na ex­
tinta livraria Futuro Infinito, no dia 30 de
— heróis da resistência — decidiram ser
parte da solução, não do problema. Ka­
ram vive! Oxalá Jamil Snege e Valên­
romance é sobre moedas e acasos, sobre
cidades chamadas Relva, Branco e Bai­
res, sobre ruas chamadas Nova Heureca e
“ Karam sempre insistiu
no enredo labiríntico, nos
setembro de 1999. Mal terminei de escre­ cio Xavier, atualmente na UTI, tenham Dezembro, sobre bares chamados About
ver a oração anterior e já senti um arrepio. a mesma sorte. Maura, Uilcon e Holde­ e Bispo Kg, sobre uma praça chamada protagonistas espiralados,
Brrr. Paro de escrever. Sensação ruim. Um mar não tiveram. Ontem, um café chamado Café Café e na topografia onírica
estremecimento provocado pela proximi­ Comendo bolacha maria é uma co­ uma lanchonete chamada XY&Z. Sobre
dade entre duas palavras: extinção e futuro. leção excêntrica de aforismos, anedotas, automóveis — ah, a cidade em alta ve­
Não gosto de ver o tempo devoran­ jogos verbais, petiscos e safadezas. Pra­ locidade! — do tipo Clap, do tipo Stella
do seus melhores filhos. Isso tem aconte­ ticamente todos os gêneros de prosa, do e do tipo Mail, sobre aspirinas da mar­
cido muito na literatura brasileira. Ficcio­ microconto ao monólogo teatral, dão as ca Shift, sobre bebidas chamadas Bambu
nistas competentíssimos, como Maura caras nesse divertido livrinho. Os perso­ e Gerard, sobre músicas chamadas “La
Lopes Cançado, Uilcon Pereira e Holde­ nagens estão em perpétua perplexidade. cumparsita” e “Guarda-chuva”.
mar Menezes, faz anos que desaparece­ A maioria não tem nome nem qualquer Encrenca? Essa história é sobre la­
ram das livrarias. Seus livros não conse­ característica fundamental, nada que dife­ drões de diálogos, sobre transmissores de
guiram chegar ao século XXI. Fascinantes rencie um do outro. São figuras sem iden­ pranto, sobre Belbeltrana, moça muito in­
livros. Eu convivia com eles na juventu­ tidade própria, sem gênero ou idade bem teressante, seu gato Fitg e sua tartaruga
de. Muito me ensinaram sobre o delírio e definidos, que tagarelam sobre banalida­ Ftig. Essa história é sobre Invetral 2.500,
a loucura. De repente, desapareceram do des e epifanias. São acima de tudo figu­ medicamento capaz de alterar as proprie­
grande circuito das letras. Viraram rarida­ ras muito engraçadas: tipos paranoicos, dades do tempo e da memória. Ficção
de, coisa de colecionador. Hoje estão res­ esquizofrênicos, obsessivos, zombeteiros. científica? Não: delírio em gotas, feito o
tritos a pequenos guetos: sebos, bibliote­ Nessa multidão anônima, uns pou­ colírio alucinógeno do Macaco Simão.
cas, coleções particulares. Amanhã, quem cos protagonistas ganham rosto e certos O fato indiscutível é que, não im­
sabe: apenas poeira? Com a obra de Ka­ atributos socioculturais: há, por exemplo, porta o livro, os personagens de Karam —
ram tenho medo que aconteça o mesmo. o sequestrado e os sequestradores, o do­ os com cara e os sem cara bem definidas
Que o futuro signifique a extinção. ente dos nervos, o burro diletante, o de­ — são todos muito parecidos. Na verda­
Sorte nossa que leitores-escrito­ legado e o detetive particular, o taxista e o de, são idênticos. A mesma voz, a mesma
res-editores como Joca Reiners Terron colecionador de nuvens. verve, a mesma visão amarga de mundo.
e Paulo Sandrini, apaixonados pela obra Manoel Carlos Karam? Um dos Valêncio Xavier acertou na mosca quan­
de Karam e de outros transgressores, nomes mais admiráveis da geração 80 de do avisou que Karam estava escrevendo
gostem de remar contra a maré, contra ficcionistas brasileiros. Aí está um sujei­ o mesmo livro indefinidamente. Não só
a indolência do mercado editorial. Na to perspicaz e bem-humorado. Essa foi todos os personagens formam uma enti­
virada do século a intrépida Ciência do a primeira impressão que eu tive ao co­ dade única, uma superconsciência, como
Acidente, do Joca, publicou Comendo bo- nhecer o autor, na finita Futuro Infinito. o mesmo jogo-brincadeira (expressão de
lacha maria no dia de São Nunca e Pescoço Mais tarde, durante a leitura de Comen- Valêncio) vai sendo disputado livro após
ladeado por parafusos (2001). Mais recen­ do bolacha maria, veio a segunda impres­ livro, com pequenos intervalos de uma
temente, a não menos destemida Kafka são: aí está um ficcionista competente. encadernação para outra.
Edições, do Paulo, publicou Jornal da Tempos depois, Karam me enviou pelo Esse sistema narrativo por si só já
guerra contra os taedos (2008) e relançou correio seus primeiros títulos, que hoje foge do convencional, porém o jogo con­
os três primeiros títulos do autor: Fontes formam a Trilogia de Alhures do Sul. tinua também no palco. Antes de se tor­
20 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | manoel carlos karam

nar ficcionista, Karam foi um dramaturgo mas não tem nenhum em casa (“Quem cho-de-sete-cabeças-borbulhantes. e Michelle Pucci —, e três peças inédi­
prolífero, que escreveu e dirigiu vinte pe­ gosta de elefantes também não”). Maria Nunca conversei sobre isso com tas, entre elas Ovos não têm janela (adoro
ças de teatro na década de 1970. Basta dar gosta de ir à estação assistir à chegada dos o bucaneiro mais célebre de Alhures do esse título). De quebra, a editora lançará
uma espiada em peças como Bicho-de-se- trens (“A paixão exige paciência”). Marta Sul, porém, considerando as cores absur­ também um volume inédito de ficções:
te-cabeças (1975) e Doce primavera (1976) Júnior é a atriz de cenas sublimes (na pri­ das desse Impostor e de seus outros livros, Um milhão de velas apagadas.
para perceber que ele escrevia para o pal­ meira página de seu diário-coletivo ela es­ acredito que Ionesco e Beckett, meus pre­ Karam sempre insistiu no enre­
co da mesma maneira que escrevia para o creveu: “Nós somos os caçadores da figuri­ diletos no teatro, também deviam ser au­ do labiríntico, nos protagonistas espi­
papel impresso e encadernado. nha difícil”). Oliveira gosta de se disfarçar, tores caros a Karam. Os três têm em co­ ralados, na topografia onírica. Para ele,
Muitos de seus personagens literá­ nas histórias que ele mesmo conta (será ele mum o humor demoníaco que demole as a literatura era farra e fanfarra, era a
rios, aliás, têm um forte vínculo com o te­ o impostor no” baile de máscaras?). Sera­ instituições e a estupidez reinante. desforra do instinto contra a razão bu­
atro. Por exemplo, os amigos Benjamim, fim acha muito complicado viver em fi­ A boa notícia é que uma par­ rocrática. Enquanto os heróis da resis­
Hopalongue, Maria, Marta Júnior, Oli­ nais de século (“Polaca não é nome nem te importante do teatro de Karam será tência continuarem cavando trinchei­
veira, Serafim e Silvestre, de O impostor no apelido, polaca é marca de fantasia”). Sil­ em breve reunida em livro pela arroja­ ras e erguendo barricadas, seus livros
baile de máscaras. Eles protagonizam capí­ vestre costuma andar por aí falando sozi­ da Kafka Edições. Além de uma alen­ não desaparecerão. g
tulos-esquetes e se expressam por monó­ nho (“Vou acender o cigarro de todos os tada iconografia, a antologia trará dois
logos ou por longos diálogos, prato cheio habitantes da cidade”). São sete anti-he­ resgates (as peças citadas acima), duas
para qualquer adaptação para o palco. róis que vivem situações verdadeiramente adaptações da obra literária (Encrenca, Nelson de Oliveira nasceu em Guaíra (SP), em
1966. É romancista, contista, cronista, ensaísta
Benjamim é apaixonado por músi­ falsas, falsamente verdadeiras. Sete contra­ de 2007, e Picando uma cebola em chamas, e organizador de antologias. Em 2011, ganhou o
ca (“Chega um ponto em que você ouve ventores que, só de farra, gostam de fechar de 2008) feitas por leitores-atores-dra­ prêmio Casa de las Américas, pelo livro Poeira:
música mesmo quando não há música to­ ruas e avenidas com tabuletas em que se maturgos malucos — heróis da resistên­ demônios e maldições. Organizou diversas
antologias, como Geração 90: manuscritos de
cando”). Hopalongue gosta de cavalos, lê: “Trânsito impedido”. Juntos, são um bi­ cia: Nadja Naira, Luiz Felipe Leprevost computador ((2001) e Geração Zero Zero (2011).
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 21

conto

Ilha de Nossa Senhora


Fulana de Tal e outros nomes
Manoel Carlos Karam

A
Ilha António chamava-se assim chamou-se Ilha dos Guarda-Chuvas suposição a partir da escolha do local do Mas a possibilidade do buraco ter sido
em homenagem ao seu desco­ Fechados, mas não em todos os docu­ convento, bem no caminho dos furacões. feito por traças é muito grande.
bridor, mas mudou para Ilha da mentos, numa parte deles continuou Ilha das Metáforas foi o nome
Sereia porque uma lenda ganhou Ilha de Nossa Senhora Fulana de Tal que menos tempo vigorou. Não durou Outras informações:
mais força que o descobridor. por intransigência religiosa. uma semana. Piada de mau gosto, dis­ Moradores da ilha reclamavam da
O nome seguinte foi Ilha dos Pa­ Alguém teve o cuidado de elimi­ seram uns. Piada infame, disseram ou­ troca frequente de nome. Diziam que pre­
pagaios Vadios, dado por um governador nar as referências ao nome Ilha do De tros. Nem como piada, disseram ainda judicaria a população assim que a ilha ti­
que, segundo os cronistas, gostava de gra­ Vez Em Quando, mas não conseguiu outros. Mas não foi isto que liquidou o vesse um serviço de correios. A história
cejos, pois a ilha não tinha papagaios. apagar todas, algumas escaparam, como nome em tão pouco tempo. Houve uma memorizou apenas os muitos nomes da
A Ilha dos Papagaios Vadios vi­ aconteceu com os registros da Funerá­ emergência que obrigou a escolher um ilha, nenhum nome de governador da ilha.
rou Ilha das Bateiras (na voz do povo, ria Sempre, documentos disputadíssi­ nome estratégico. Os arqueólogos não encontraram
Ilha das Bateras), homenagem às em­ mos em leilões. Na tentativa de invasão da ilha qualquer indício de que a definição de
barcações dos pescadores que viviam A guerra civil foi pródiga em mu­ pelos taedos, foi chamada de Ilha dos ilha (uma porção de terra cercada de água
nos rios de pouca água e não se sabe danças de nome. Quando os do Norte Jacarés. Dizia-se que os taedos tinham por todos os lados) fosse conhecida.
se de muito ou pouco peixe, mas pes­ estavam ganhando, mudou para Ilha do medo de jacarés. Como se sabe, não ti­ Um cronista da época sugeriu que
cadores que provavelmente tinham as Norte Glorioso. Quando os do Sul esta­ nham, e a tentativa de invasão passou em vez de nome a ilha tivesse números.
simpatias do governador da época — a vam à frente, Ilha do Sul Vitorioso. Quan­ para a fase seguinte. Em algarismos romanos. Daí alguma con­
história de que um dos pescadores de do terminou a guerra civil, ela recebeu o A reconstrução da ilha, após o de­ fusão histórica com o último nome da ilha.
bateira chegou a governador é chama­ nome Ilha da Grande Merda, mas nem sinteresse e a retirada dos taedos, durou A frequente troca de nome cau­
da de lenda pela maioria dos cronistas. todos os historiadores confirmam, alguns quatro anos. Nos dois primeiros, conti­ sava atritos. Em qualquer encontro de
O nome passou, por influência usam o nome sem a palavra Grande. nuou sendo Ilha dos Jacarés. Mudou para meia dúzia de pessoas havia divergên­
religiosa, para Ilha de Nossa Senho­ Quando os dez mandamentos Ilha do Baile de Máscaras, nome que per­ cia sobre qual era o nome atual da ilha.
ra das Fontes Murmurantes ou Ilha de viraram lei civil, com punições milita­ maneceu até faltar um mês para terminar A guerra civil começou numa reunião
Nossa Senhora dos Ventos Uivantes — res, a Ilha do Olho Que Tudo Vê teve a reconstrução. Foi aí que ela passou a se familiar para comemorar um batizado.
os cronistas divergiam, dois deles che­ grandes progressos econômicos, mas os chamar Ilha X, como é citada pelo mági­ Nunca houve repetição de nome.
garam a se bater em duelo, que termi­ pecadores ficaram de fora. co na sequência da chuva no filme Slo­ Pelo menos ninguém reparou.
nou empatado, dois mortos. Ilha dos Furacões Bonzinhos não throp, de Percival Bartlebooth. O título deste relato optou por um
Outro empate quando os defen­ foi um nome muito correto, por isto tro­ Quando a ilha deixou de ser en­ dos nomes da ilha. Poderia ter sido ou­
sores do nome Ilha de Nossa Senhora cado rapidamente para Ilha dos Furacões contrada pelos navegadores, chamava-se tro. É que alguns ficavam muito longos,
das Fontes Murmurantes e Ilha de Nos­ de Verdade, que também não agradou e Ilha X. Permaneceu assim nos mapas até outros muito curtos. Este ficou de bom
sa Senhora dos Ventos Uivantes chega­ acabou em Ilha da História Mal Contada. que deixou de ser encontrada também tamanho. g
ram a um acordo, e o novo nome foi Ilha Uma das fases religiosas resultou pelos geógrafos. O buraco no meio do
de Nossa Senhora Fulana de Tal. na Ilha do Convento das Emmas Des­ oceano, visto até hoje no mapa exposto Manoel Carlos Karam nasceu em Rio do Sul
(SC), em 1947. Viveu em Curitiba de 1966 até
Durante a Grande Estiagem, calças, tendo sido para isto construído no Museu de Todas as Ilhas, em Alhu­ 2007, ano de sua morte. “Ilha de Nossa Senhora
também chamada de Big Estio, al­ um convento. Desde o início, a intenção res do Sul, está realmente no ponto exato Fulana de Tal e outros nomes” faz parte do livro
gumas vezes grafada como Big Stio, era de um nome que não durasse muito, onde a Ilha X existiu para alguns mapas. inédito de contos Um milhão de velas apagadas.
22 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | manoel carlos karam

Jornal da guerra
contra a gente mesmo
Luiz Andrioli

T
e conheci pela fresta da porta. Foi
no meio da fuzarca de uma produ­
tora de vídeo que fazia a campa­
nha política de um candidato. Es­
távamos na Curitiba da década de 1990.
Eu devia pegar uma fita em uma das
ilhas de edição. Meu cicerone, depois de
me apresentar algumas figuras do local,
apontou de longe: e ali está o Karam.
Um porto no meio da histeria com o
objetivo de fazer o próximo prefeito da
capital ecológica. Soube então que era
você quem escrevia o plano de governo.
Aquilo ficou me incomodando por um
bom tempo. Eu, ainda um estudante de
jornalismo, via na literatura um escape,
uma fonte de digressão, rebeldia e tudo
mais que não poderia caber nas pesqui­
sas que definem uma vitória política.
O que fazia um escritor do seu
estilo no meio de tantos interesses?
Junto com a pergunta, fiquei com
a imagem daquele jeitão taciturno por
trás da barba branca entre os gritos dos
marqueteiros do comitê. Existia, sem dú­
vida, um jeito Karam inabalável dentro
daquilo tudo que ainda não me descia.
Sim. “Ainda não me descia”. Já te
falo por quê.
Meio que sem querer, virei repór­
ter de TV uns anos depois. E totalmen­
te de paraquedas caí em uma redação
chefiada por você. Daria para preencher
algumas páginas com passagens cheias
daquele seu humor fino que deixava a por vias previsíveis) poderiam ser sole­ nes e outra já tendo rodado os quilôme­ lho, brincar, inovar, propor um jeitão de
gente em suspenso uns dois ou três se­ nemente ignoradas em nosso jornal. O tros das redações tradicionais e cansada abordar a notícia fora do esperado.
gundos. Todas as seguranças dos manu­ laboratório estava formado. Uma turma de fazer o que sempre foi feito. Tínha­ E fizemos um bom trabalho. Só
ais de redação (que ensinam a escrever ainda aprendendo a empunhar microfo­ mos tudo para realizar um bom traba­ que ninguém percebeu. Estávamos em
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 23

uma emissora pública de pouca audiên­ qual era o seu papel. Lembrei de Pablo
depoimentos
cia. Traço, pra falar a verdade, na maio­ Neruda, que também transitou na po­
ria das vezes. lítica levando consigo a pena do escri­
Ei, Karam, lembrei das verdi­
nhas! Sim, as Heineken’s... Lembra da­
tor. “Muitas vezes os governantes têm
comunicações públicas com seus povos. “ A literatura do Karam me seduziu desde sua
primeira obra, Fontes murmurantes, pelo seu grau
quele calendário que a gente mantinha A poesia tem uma comunicação secreta
na redação com a foto de um garrafão com os sofrimentos do homem. Há que de radicalidade, sua inteligência sofisticada e seu
de água cheio de cerveja? Que sobrie­ ouvir os poetas”, dizia o chileno. Quan­
dade pretendíamos imprimir para o do o laptop do jornalista abriu espaço humor absolutamente livre. Tive o privilégio de tê-
ambiente de trabalho, não? Aliás, acho para alguns devaneios do escritor, a pos­
que te levei a sério no começo. Durou tura serena do Karam frente aos inte­
lo como amigo e de escrever mais de uma vez
mais ou menos uns dez minutos esta resses de um comitê eleitoral fez senti­ sobre seus livros.” Marçal Aquino, jornalista e escritor.
sensação. Gente de barba branca sem­ do na minha cabeça.
pre me fez pensar em sobriedade. Sonhei sonhos possíveis, imagi­
Escrevia minhas matérias naque­
la época, quando era seu repórter, com
nados, criados, calculados, negociados,
alimentados, pesquisados... Não por “poucosInfelizmente só me tornei próximo dele
meses antes de sua partida. O tempo que
a sensação de que você me espiava por acaso, nos intervalos daquele trabalho,
trás do ombro. Aliás, tive a mesma im­ nos meses em que fiquei confinado no privei de sua companhia foi de alegria intensa.
pressão agora, já quase finalizando este comitê, ainda sobrou fôlego para dar
texto... Queria (e quero!) uma aprova­ um trato final em um livro de contos O livro do Karam que mais gosto é o Encrenca.
ção. Na minha época de reportagem, e revisar outro de poemas. A energia
sabia da inglória tarefa de comparar a que movia as tarefas era a mesma: a
Mas em cada linha de todas as suas obras nos
escrita para a TV com o que você fa­ de quem cria tendo como fonte justa­ deparamos com uma inquietante inventividade,
zia nos livros. Eram outros critérios os mente o ambiente, as histerias e his­
seus de escritor, é claro. Mas a sua li­ tórias cruzadas; cacos de dramas pe­
vivenciamos o espanto. Seu humor filosófico
berdade nas páginas me indicou outros gos pela rabeira, com toda a fartura de nos retorce o cérebro. A veia poética é certeira
tantos caminhos, seja nas histórias ima­ passionalidades.
ginadas, presenciadas e criadas — cada Você, de certa forma, criava seu e luminosa. Manoel Carlos Karam é um desses
qual contaminando as outras em medi­ porto seguro nas redações em que traba­ gênios que fez o impossível com a linguagem.
das não quantificáveis. lhava, mas tinha ouvidos afinados à comu­
Ok. Admito que dei minhas espia­ nicação secreta com os dramas da alma. E foi um homem generoso, abriu casa e
das na tela do seu computador também. Cheguei a fazer uma reportagem
Há algum tempo sentei naquela falando sobre a inauguração da Casa
coração para os escritores mais jovens. Espero
mesma cadeira em que você escrevia os da Leitura Manoel Carlos Karam, que que um dia minha barba fique branca e vasta
sonhos de uma nova cidade. Nessa coi­ guarda o acervo que foi seu. Fica aqui
sa de caminhar pelas trilhas de quem a pertinho do meu apartamento, aque­
como a dele.” Luiz Felipe Leprevost, escritor.
gente segue, fui escrever o plano de go­ le cujas prestações paguei com a ajuda


verno de um candidato com a mesma dos bicos que você me arrumou em uma
turma que já estava se acostumando a produtora de vídeo. Sabe que eu passo Sinto falta do Karam. Ele já não me
não te ter por perto. Em alguns meses, lá para pegar livros que às vezes nem escreve nem me telefona. Lanço um livro e ele
pensei projetos de educação, saúde, se­ leio? É tipo uma lembrança que levo
gurança pública e outros temas que po­ pra casa e devolvo no prazo. Parece que não aparece. Vou a uma livraria e não o vejo
deriam deixar o mundo de um jeitão estou emprestando da sua estante, como
melhor. Tentei chegar como um técni­ poderia estar fazendo hoje, se você não
bisbilhotando as prateleiras. Faz tempo que não
co, reunindo informações, fontes, pro­ tivesse esta mania chatinha de deixar a me indica nenhum livro. Não consigo saber o que
curando mazelas levantadas em alguns gente tão cedo. g
anos de reportagem. Em pouco tempo,
anda escrevendo. Gostaria de ouvir a última ironia
no meio de toda aquela histeria da qual
Luiz Andrioli é escritor e jornalista.
Autor de O circo e a cidade. Mantém o site do Karam. A última ironia. Sinto falta do Karam.”
você se preservava tão bem, entendi www.luizandrioli.com Roberto Gomes, escritor.
24 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

capa | manoel carlos karam

As marcas
de Karam
Dono de uma prosa Em entrevista à Gazeta do Povo, em
outubro de 2004, o autor explicava a veia
experimental, marcada humorística de sua obra. “O humor faz
pelo humor e situações parte da minha fala, do idioma que escre­
vo e me escreve. Um personagem não tem
absurdas, Manoel Carlos necessariamente humor. A língua usada
para falar dele, sim — essa pode estar car­
Karam também deixou regada dessa qualidade.”
Depois da militância no teatro e
marcas no teatro e na as “duas dezenas de peças”, o autor deci­
imprensa paranaense diu se dedicar a outras paixões: o jornalis­
mo e a literatura. Karam trabalhou muitos
anos como jornalista, especialmente em
Guilherme Sobota TV. Em uma entrevista à Folha de Londri-
na, em agosto de 1985, o escritor explicava

U
m dos traços marcantes da obra de a mudança do teatro para a literatura. “Foi
Manoel Carlos Karam é o humor. então que, depois de 12 anos resolvi parar
Conforme escreve Marçal Aquino com o teatro e me propus a escrever sério.
na orelha de um dos livros do au­ No início foi difícil, porque, devido ao meu
tor, “um humor original, diferente, desses trabalho, sobrava pouco tempo, não dava
que a gente ri e logo depois para, pensa para manter nem uma certa disciplina que
direito e fica preocupado”. E foi com esse eu acho muito necessária.”
humor pitoresco que Karam, uma figura Fontes murmurantes é o primei­
fácil da dramaturgia curitibana, se des­ ro ato de um projeto literário que Karam
pede dos palcos para entrar na literatura, anunciava desde o início da sua carreira
no meio dos anos 1980, com a edição de como escritor: traçar painéis, divididos
Fontes murmurantes. “Manoel Carlos Ka­ em quatro partes: o primeiro de um país,
ram nasceu (1947) em Rio do Sul, Vale o segundo de uma cidade, o terceiro de tuado prêmio Cruz e Sousa de Literatura, tores da literatura brasileira contempo­
do Itajaí (uma enchente por ano), San­ uma casa e o quarto de uma pessoa. Dito em 1995, cedido pelo governo do Estado rânea, entre eles o próprio Joca Terron,
ta Catarina, mas hoje é curitibano (uma e feito. Em 2001, com a publicação de de Santa Catarina. Marçal Aquino e Nelson de Oliveira,
neve de vez em quando). Jornalista (um Pescoço ladeado por parafusos, que saiu pela Karam também publicou a cole­ autores que assinam textos nas recentes
salário por mês). Escreveu e dirigiu duas Ciência do Acidente, editora do escritor tânea de contos Comendo bolacha Ma- edições dos livros de Karam, publicadas
dezenas de peças de teatro (com títulos Joca Reiners Terron, a quem Karam se ria no dia de São Nunca (1999), os ro­ em 2010 pela Kafka Edições.
do tipo O avião parte às 5, Doce primavera, referia como seu “anjo da guarda em São mances Encrenca (2002) e Sujeito oculto Manoel Carlos Karam faleceu no
Urubu, Esquina do 7 de Setembro com 31 de Paulo”, o autor concluiu sua proposta ini­ (2004). Ainda voltou ao texto teatral dia 1º de dezembro de 2007, aos 60 anos,
Março), mas cortou o palco para ter tem­ cial. Os outros dois livros que compõem pouco antes de morrer, com Duas cria- em decorrência de um câncer de pulmão,
po de pensar num cavalo sentado, na flor o projeto são, respectivamente, O impos- turas gritando no palco (2003). Dono de na cidade em que escolheu viver e de onde
de samambaia”, escreve na primeira edi­ tor no baile de máscaras (1992) e Cebola uma prosa experimental, Karam culti­ tirou a matéria-prima fundamental de sua
ção de seu romance de estreia. (1997). Este último foi vencedor do cul­ vou admiradores entre os jovens escri­ literatura. g
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 25

conto

Schoenberg,
Berg e Webern
Manoel Carlos Karam

N
ós nos mudamos para Alhures estivesse num palco, a cortina da boca fosse assim. Queríamos saber como de música sem parar. Um piano era algo
do Sul no verão de 77, vivemos do palco com uma pequena abertura. O era. Foi de madrugada que descobri­ tão distante de nós que tivemos medo
lá até o outono de 83. Foi de­ pianista dando as costas ao público, não mos a mulher tocando piano. Perce­ dele. Eu via no rosto do meu pai e da
pois de Relva e antes de Tartii­ por desaforo, mas pelo hábito de quem bemos nas visitas seguintes que o casal minha mãe que havia alguma forma de
ba. Meu pai, minha mãe, minhas duas já foi maestro, explicou a minha mãe. se revezava para manter o piano inin­ susto, um receio que talvez tenha sido
irmãs. Meu pai trabalhava numa em­ Ela explicou quando viu por uma fres­ terruptamente em concerto, como dis­ a causa de nunca fazer amizade com os
presa instalando filiais. Filial instalada, ta da cortina do quarto da nossa casa eu se um dia o filho do contador. Meu pai vizinhos. O que vinha a calhar, sempre
mudança de cidade. Alhures do Sul de­ e as minhas irmãs pulando a cerca de disse que o filho do contador da filial preferimos não nos envolver com a vizi­
pois de Relva e antes de Tartiiba. Não volta após um concerto na casa do vizi­ estudava música, tocava piano e, mes­ nhança porque logo estaríamos de mu­
tenho recordações de Relva e Tartiiba. nho. Ela por primeiro brigou conosco, mo muito jovem, já tinha dado concer­ dança. Quando viajamos para Tartii­
Tenho de Alhures do Sul. Com tantas por segundo perguntou o que nós vimos to. Ele era dois anos mais velho que eu, ba, no dia em que desocupamos a casa,
mudanças, nós costumávamos desco­ e por terceiro explicou do maestro que mas naquele momento não me passou o piano continuava tocando. A minha
brir que uma ou outra questão, quando fica de costas para a platéia. Por último pela cabeça que meu pai estivesse suge­ irmã mais nova aprendeu com o filho
contada, estava trocada de cidade. Por a minha irmã mais nova disse que que­ rindo que eu deveria fazer alguma coi­ do contador a identificar a música. Na­
isso não tenho completa certeza da fal­ ria ser pianista. Ela sempre dizia que ia sa que ele pudesse contar, como o con­ quele nosso último momento em Alhu­
ta de recordações de Relva e Tartiiba. crescer e ser da padaria. Acho que foi tador da filial contava. Convidamos o res do Sul, o piano na casa vizinha, nas
Mas não tenho dúvida sobre a música ainda antes de Relva quando ela disse filho do contador para ouvir o piano mãos do vizinho ou da vizinha, não sa­
do piano em Alhures do Sul. Ouvíamos ser da padaria. Meu pai achou engra­ do vizinho. Um conhecedor de músi­ bíamos, o piano fechava o concerto para
a música do piano do vizinho, demora­ çado quando a minha irmã disse ser da ca esclareceria o que estava acontecen­ nós com Schoenberg, seis pequenas pe­
mos até perceber o que estava aconte­ padaria. Minha irmã mais nova cho­ do. Schoenberg, Berg e Webern. Foi o ças para piano (opus 19). O nosso últi­
cendo. O piano do vizinho tocava mui­ rou. Ninguém riu quando ela disse que que ele disse que estava acontecendo. O mo dia nos fez recordar o primeiro do
tas horas por dia, foi o que pensamos. queria ser pianista porque o meu pai, o piano do vizinho repetia peças, expli­ vizinho. Nós nos lembrávamos clara­
Erramos, o piano tocava ininterrupta­ que mais ria lá em casa, estava no tra­ cou. A Suíte de Schoenberg (opus 25) mente de quando chegou a mudança do
mente. Fizemos um revezamento para balho, instalando a filial de Alhures do ele tocou três vezes. O músico retornou vizinho. Ninguém deixa de olhar para a
conferir, o piano do vizinho tocava vin­ Sul. Minha mãe ouvia o piano o dia in­ nos dias seguintes, o piano do vizinho mudança que tem um piano. Mas só o
te e quatro horas todos os dias. Uns dois teiro, eu e minhas irmãs só de tarde, tí­ continuava tocando Schoenberg, Berg e piano estava na nossa lembrança. Não
ou três segundos de silêncio entre uma nhamos escola de manhã, meu pai na Webern. De manhã, de tarde, de noi­ tinha jeito de recordar como era a cara
peça e outra. Sabíamos que era pia­ hora do almoço e de noite, e nós todos te, a Sonata de Berg (opus 1). O filho do vizinho e da vizinha, muito menos se
no e não disco porque eu e minhas ir­ a madrugada inteira. Às vezes eu me vi­ do contador dormiu lá em casa algumas havia alguma criança. g
mãs espiamos pela janela do vizinho. A rava na cama, ouvia um pedacinho de noites. Acordava de madrugada para
cerca que separava os quintais era bai­ música e dormia novamente. Espiamos ouvir o piano, muito repetidas também
xa. A janela da casa dele tinha cortina, uma vez pela janela de madrugada, meu as Variações de Webern (opus 27). Foi Manoel Carlos Karam nasceu em Rio do Sul
(SC), em 1947. Viveu em Curitiba de 1966 até
mas sempre ficava uma fresta. Ele toca­ pai autorizou, queríamos saber se o vi­ em Alhures do Sul, depois de Relva e 2007, ano de sua morte. “Schoenberg, Berg e
va sentado de costas para a janela, podí­ zinho tocava piano dia e noite sem pa­ antes de Tartiiba. Perdemos a conta do Webern” faz parte do livro inédito de contos
amos espiar o pianista. Era como se ele rar como parecia, mas impossível que piano do vizinho, daqueles muitos dias Um milhão de velas apagadas.
26 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

Perfil do Leitor | fernando severo

Café, pão e poesia


Micheline Garcia
Influenciado pelas leituras
da mãe, o cineasta
paranaense Fernando Severo
ainda conserva um hábito
dos tempos de infância:
misturar café e poesia

Márcio Norberto

C
rescer em uma pequena cidade
do interior tem lá suas vantagens.
Longe da correria dos grandes
centros, o tempo parece passar
mais devagar. Foi em um ambiente as­
sim, propício à leitura, que o cineasta
Fernando Severo cresceu.
Do interior de Santa Catarina
(Caçador, de onde saiu com dois anos),
para o interior do Paraná (Clevelân­
dia, onde ficou até os 11 anos, voltando
a Caçador), o cenário pacato pouco foi
alterado, o que deu a Severo as condi­
ções ideais para se tornar um leitor in­
veterado. A rotina calma da infância só
ganhava novas cores com as fantásticas
histórias que dona Diva, matriarca dos
Severo, lia para o filho todos os dias. Se­
vero lembra que só ia pra cama cedo ou Irmãos Grimm e de Hans Christian vro. Hábito que o cineasta ainda cultiva, argentino Jorge Luis Borges e os brasi­
tomava remédio se a mãe cumprisse o Andersen. Severo também foi coopta­ hoje quase sempre na companhia de um leiros Mário Faustino e Roberto Piva.”
ritual. Era um toma lá dá cá. do pelo universo irresistível de Montei­ livro de poesia. Já no caminho para a adolescência,
Dona Diva, hoje com 87 anos, foi ro Lobato, cujo Reinações de Narizinho Os poetas simbolistas são os pre­ aos 11 anos, Severo se deparou com um
a primeira grande influência na sua vida tinha lugar de destaque na prateleira. feridos de Severo, especialmente o fran­ livro que marcaria profundamente sua re­
de leitor. “Minha mãe sempre gostou de Durante a infância, os livros fo­ cês Baudelaire. “Hoje em dia, a poesia lação com a literatura. “Na casa de uma
biografias, romances históricos, escrito­ ram os melhores companheiros do pe­ está mais presente na minha vida do que tia, por acaso, me deparei com uma edição
res russos e literatura policial, gosto li­ queno Fernando, sempre ao alcance das a ficção. Estou lendo a obra de T. S. Eliot, de Cemitério de elefantes, do Dalton Tre­
terário que herdei”, explica. As primei­ mãos. No café da manhã, entre um pão­ poeta que nasceu nos Estados Unidos, visan. Li e fiquei fascinado. Causou-me
ras leituras eram bem ecléticas, iam das zinho francês com manteiga e um ca­ mas que escolheu ser cidadão inglês. certa perturbação. Fiquei intrigado. O li­
fábulas de La Fontaine aos contos dos fezinho, havia a companhia de um li­ Também entre os meus favoritos estão o vro me trouxe uma visão mais complexa
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 27

Tiomkim
à sua futura profissão.

“ Na casa de uma tia, por


acaso, me deparei com o livro
Já na faculdade, em 1979, Seve­
ro participou de um concurso de poesia
organizado pela Universidade Federal
Cemitério de Elefantes, do do Paraná e saiu vencedor, deixando em
segundo lugar a curitibana Josely Vian­
Dalton Trevisan, li e na Baptista, que anos depois se tornaria
fiquei fascinado”. “uma grande poeta brasileira”, confor­
me diz o cineasta. No mesmo ano, Se­
vero filma seus primeiros curtas expe­
e sombria do mundo”, conta o cineasta, rimentais, todos em formato Super 8:
que considera o segundo livro de Trevi­ HU, Aluminosa espera do apocalipse e Es-
san uma de suas leituras mais marcantes. cura maravilha.
Aos 15 anos, na escola, descobriu Depois das primeiras experiên­
os romancistas americanos nas aulas de cias, Severo não parou mais de produzir,
inglês da professora Alba Dourado, de tornando-se um dos grandes realiza­
quem lembra com muita saudade. “Pos­ dores de cinema do Paraná. Entre seus
so dizer que a Alba foi outra influência principais filmes, destacam-se O mundo
fundamental na minha formação como perdido de Kozák (1988), que recebeu o
leitor. Ela me levou a autores como He­ Kikito de melhor roteiro e outros de­
mingway e Faulkner”, diz o cineasta. zesseis prêmios nacionais, e Paisagem
“Lembro-me também de ler A montanha de meninos (2003), que também recebeu
mágica, do Thomas Mann. Além des­ os Kikitos de melhor média-metragem,
ses autores, a Alba despertou ainda meu melhor roteiro, melhor ator e Prêmio
gosto pela literatura latino-americana, Especial do Júri (direção de arte).
que vivia um boom na época.” Outra experiência importante
para o cineasta foi a convivência com o
Literatura e cinema escritor Valêncio Xavier, autor do clás­
Desde sempre o cinema se bene­ sico O mez da Grippe (1981) e fundador
ficiou da frutífera relação que manteve da Cinemateca de Curitiba. “O Valên­
com a literatura — e Severo também. cio era uma figura fascinante, que tinha
Como não poderia deixar de ser, o ci­ uma cabeça multicultural, era um cara
neasta levou para o set sua experiência que transitava com desenvoltura do po­
como leitor e suas preferências literá­ pular ao erudito. Foi uma grande refe­
rias, que influenciaram suas escolhas ao rência para mim.”
longo da carreira. Em 2008, o cineas­ Hoje, além dos projetos cine­
ta filmou O hóspede secreto, curta-metra­ matográficos, Severo comanda o Museu
gem adaptado do conto homônimo de da Imagem e do Som (MIS) do Para­
Miguel Sanches Neto. ná, instituição onde iniciou a carreira no
Segundo Severo, o flerte com começo dos anos 1980. “No MIS, fazia
o cinema começou pela via da leitura. registro de peças teatrais, balés, shows e
Ainda em Clevelândia, o cineasta co­ manifestações culturais, tudo era feito
meçou a frequentar as matinês de do­ em Super 8. Realizei essa atividade até
mingo. O compromisso era sempre pre­ o Museu ser praticamente extinto, em
cedido de um ritual: Severo e outras 1981. Meu retorno completa um ciclo
crianças tinham o hábito de trocar gi­ de vida e acontece num momento-cha­
bis antes da sessão. A paixão pelas his­ ve, onde existe vontade política de atri­
tórias em quadrinhos o levaria não só buir ao Museu um merecido papel de
aos clássicos da literatura, mas também protagonista em nossa cena cultural.” g
28 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto

Digital
reverb delay Marcio Renato dos Santos
Ilustração: Marcelo Cipes

E
u não deveria ter permanecido em não fiz. E, penso agora, se eu tivesse ten­ te para o mar, instalado em um aparta­ XXXX
silêncio. Fui quase um mudo, ape­ tado me defender, talvez tivesse evitado mento de cobertura. Comia quando ti­
sar de a vida não ter me negado a algumas situações que aconteceram em nha fome, bebia quase o tempo todo e Tenho uma inflamação na gar­
capacidade de ouvir e de reprodu­ minha trajetória. Passei sete anos den­ olhava o mar. Sol e brisa. E, pelo que ganta que dói em noites como esta, de
zir sons. Sou, aparentemente, um sujei­ tro de uma prisão. O motivo? Não vem lembro, não falei com ninguém durante chuva e temperatura de menos de dez
to normal. Cumprimento conhecidos e ao caso, mas foi por um crime que não aquele intervalo. Só balbuciava algo ao graus. Durante uma das primeiras cri­
até desconhecidos com oi, alô, olá, bom cometi. Confessei o que não havia feito pedir um prato em um restaurante ou ses, fui até uma farmácia e sem consul­
dia, como vai? Mas nunca fui muito de e, a partir da confissão, segui para o con­ um drinque na beira do mar. Fora isso, tar médico comprei analgésico e outro
falar e acredito que foi esse hábito, qua­ finamento. Apanhei pouco, só no início. apenas silêncio. E, sem exagero, analiso remédio recomendado por uma bal­
se um voto de silêncio, que acabou por E, se dependesse de mim, até hoje esta­ que aquele talvez tenha sido um dos pe­ conista. A dor passou após os primei­
escrever o meu destino. ria lá. Mas fui expulso. Cumpri a pena e ríodos mais felizes que conheci. ros comprimidos. A inflamação dimi­
As pessoas costumam pedir pra esqueci que estava livre. Confesso, mas nuiu na manhã seguinte. Mas nunca
eu falar mais alto, com mais volume. Não que isso não se torne público, que pe­ XXX me curei completamente e basta chover
sei ao certo, mas talvez esse jeito seja uma guei gosto. Sim. Passei a ter tempo li­ e a temperatura exigir casacos durante
estratégia. Pra eu não ser ouvido. Pra eu vre. E muita oportunidade pra perma­ Estão gritando em algum aparta­ o dia e cobertores durante a noite para
passar quase sem ser notado. E pra evi­ necer quieto. Também adquiri hábitos, mento próximo daqui, de onde escrevo que o problema retorne. Já me disse­
tar confronto. Acabei envolvido em pro­ que outros poderiam chamar de vícios. este texto. Pode ser uma festa. Os gri­ ram que não é nada, apenas algo somá­
blemas por aceitar palavras e muito mais Passei a fumar, o que pode vir a ser um tos continuam, não escuto com clare­ tico. Quem fala isso diz que a garganta
sem questionamento. Sim. Recebo e problema a médio e longo prazo. Mas za, a janela está fechada, não vou abrir. é o canal por onde se faz o som da fala
cumpro ordens. Deve ser uma progra­ perdi peso e, mais importante, comecei É noite de jogo de futebol? Os gritos humana e, como sou quase não falante,
mação mental ou herança cármica. Mas a aprender a controlar a respiração. seguem. Seriam jovens a compartilhar essa inflamação seria uma maneira que
não sou vítima, nada disso. Como já falei, novidades? Ou adolescentes tentando eu teria inventado para evitar que o meu
pode ser, no fundo, uma estratégia. Afi­ XX aproximação? Talvez, meninos e meni­ som se materializasse.
nal, já recebi crédito pelo que não mere­ nas a brincar de algum jogo ou apenas a Falar, como já disse, eu nunca
cia e também não reclamei. Um dia, recebi dinheiros ines­ correr no pátio do prédio onde vivo faz quis muito. Mas pensei em ser cantor, e
Mas, fazendo as contas, devo di­ perados e assim surgiu uma tempora­ tanto tempo que nem lembro quanto, e cantar eu jamais consegui. Nem fechado
zer, sem que isso soe como queixa, que da de descanso, dez dias, dez noites, e me dou conta de que estou me esque­ dentro do banheiro. Nem em uma praia
fui acusado de ações transgressoras que pela primeira vez na vida fiquei de fren­ cendo de quase tudo. deserta. Nem nos sonhos. Talvez, anali­
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 29
30 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

conto

so somente agora, pelo mesmo motivo barracão. Lá, tinha de controlar o que nela da sala, que estava com a lâmpada a dona da loja de perfumes, o chefe da
que tenha me impedido de querer falar. entrava e o que saía. Eu era o inspetor. apagada, e vi a briga. Dois grupos rivais, polícia, a mulher mais linda da cidade.
Medo? Vergonha? Timidez? No fundo, E por mais de dois anos exerci a fun­ duas torcidas de times de futebol adver­ Eu sabia quem eram, onde moravam e o
um pouco de medo, de vergonha e de ção com alguma margem de acerto. Até sários, trocavam socos, alguns batiam que faziam nos dias de folga. Esse som,
timidez. Mas, tenho de admitir, o que que um dia, uma manhã, fui chamado e outros apanhavam. Todos gritavam. está ouvindo?, esse som, acho que é de
sempre me deixou calado foi a sensação até a sala do chefe e recebi a notícia de Olhei e não fiz nada, permaneci cala­ oboé, escutou?
de que eu nunca tive nem tenho nada a que havia desfalque no estoque. Eu ti­ do, como daquela vez em que pela mes­ Parece a trilha sonora do meu fim.
dizer, nem como dizer e, por isso, não nha duas alternativas. Primeiro, contar ma janela presenciei um assalto e segui
precisava e não devo falar. Afinal, a gen­ quem era o responsável pelo esquema. A mudo ao invés de gritar. XXXXXXXXXXX
te abre a boca pra dizer as coisas, não segunda opção seria confessar o crime. Já faz tempo, tentei torcer por um
é isso? Como nunca tive nada a dizer, Como permaneci calado, surpreso com time de futebol e comecei a frequentar Onde vocês foram? Por que não
minha opção sempre foi pelo silêncio. a acusação, e não reagi, o chefe enten­ estádios todos os domingos. Conheci me escutam? Vocês. Todos. Sim. Cadê
Mas como explicar que desde pequeno deu que eu era responsável ou cúmplice algumas pessoas que também frequen­ todo mundo? Oi. Tudo bom? O quê?
eu poderia pensar nesse assunto, nesses e, devido a essa conclusão, fui mandado tavam as arquibancadas, não eram ami­ Não me conhece? Como não? E você?
detalhes? Não sei, estou confuso, con­ embora, sem direito a nenhum dinheiro gos, mas gente com quem eu conversa­ Ah, também não. Sim, posso dar li­
fesso e apesar da confusão me dou con­ e ainda com a condenação de trabalhar va. Eles torciam, gritavam, xingavam, e cença. Você, ei, menino, não tem nada
ta de que ao escutar os outros eu des­ em um outro barracão por mais alguns eu queria fazer o mesmo. Mas nem com na minha carteira. Pode levar. E você,
confiava que todos tinham o direito de meses, e sem receber salário. esforço, nem tentando imitar consegui garota. Calma, calma. Tudo bem, des­
falar e eu deveria apenas ouvir. E assim repetir aquele comportamento. Queria culpe. Eu me confundi. Me desculpe.
a minha vida foi acontecendo, ouvindo, XXXXXXX gritar, mas não saía som da minha gar­ Sim, isso não vai acontecer novamen­
escutando, calando. ganta. Queria gesticular, mas nenhum te. Mas, o que aconteceu? Onde esta­
Dias, meses, anos, décadas de­ gesto se esboçava a partir de meus bra­ rão todos? Agora eu tenho o que dizer.
XXXXX pois do incidente do barracão, muito se ços. Eu continuava imóvel e em silên­ Sei como contar.
passou, mas não vou contar nada, ape­ cio, como costuma ser o meu estar no Tem alguém aí?
Lembro de ter ido a muitas fes­ nas que adquiri, ou melhor, construí um mundo desde que me lembro das coisas.
tas sem receber convite, e achava gra­ discurso. Finalmente eu tinha o que di­ XXXXXXXXXXXX
ça. Mais do que rir, fazia questão de ser zer. Também sabia como dizer. Mas, XXXXXXXXX
visto, odiado até pelos donos das casas. então, chegava, sem que eu me desse Tenho gravado a minha voz. Sim,
Mas também fui convidado a outras conta, a lei do silêncio. Após tanto tem­ Os anos passaram e, confesso, te­ em casa, aqui, no quarto que dá vista pra
tantas. E em ambas as situações pouco po lamentando não ter o que nem como nho saudade dos dias ruins, das noites rua, eu fecho as cortinas e a porta, ligo
falava. Permanecia com a boca ocupada, dizer, quando conquistei a possibilidade de insônia, dos conflitos que me tiravam o aparelho de som. Começo e falo por
com bebida ou comida. Eu não teria o de me expressar, não era mais permitido o sossego. A lei do silêncio acabou, mas horas, às vezes adormeço de tanto fa­
que dizer, e ainda tinha vergonha de es­ dizer nada. Tentei me comunicar, mas agora nem sei se sinto vontade de dizer lar. Depois ligo a gravação pra escutar a
tar onde estava, mas desejava frequentar percebi rapidamente que não seria con­ algo. Hoje sou um velho, nem sei quan­ minha voz. Conto pra mim coisas que
os eventos. fortável, pra mim, nem pra ninguém, to tempo me resta e parece que tudo vai não posso deixar de lembrar, soar, voar,
abrir a boca. E por isso continuei em si­ acabar daqui a pouco. por exemplo, como cheguei onde estou,
XXXXXX lêncio. Permaneci por dias, meses, anos qual foi a sorte de não ter despenca­
e décadas calando. Ou dizendo apenas XXXXXXXXXX do no precipício. Ninguém vai escutar,
O tempo passou, nem percebi e oi, olá, como vai?, tudo bem? Eu sorria saber, crer, mas preciso contar, e tenho
então eu precisava de um emprego, qual­ de boca fechada. Se caminho pela rua principal é quase certeza de que só existi, existo
quer um. Procurei. Bati em uma, duas, por não ter opção. Quero passear, mas porque falo, digo e escrevo este texto. g
três, quatro, cinco, seis, sete portas e nada. XXXXXXXX cada passo me custa e nem tenho cer­
Um dia fui nomeado para uma função e teza de que estou vendo o que está ao
aceitei, sem dizer sim, apenas com um Há pouco eu reclamava de uns meu redor. Essa cidade, aqui mesmo, Marcio Renato dos Santos escreve ficção
há 20 anos. Estreou na literatura com o livro de
sorriso, que foi bem recebido e interpre­ gritos e dizia que poderiam ser adoles­ onde nasci e sempre morei, mais pare­ contos Minda-Au (2010). Mestre em Estudos
tado como aceito, sim, muito obrigado. centes brincando ou envolvidos em ri­ ce um país para o qual me foi negado Literários pela Universidade Federal do Paraná
Passei a permanecer por pelo tuais de aproximação, mas como tive de o passaporte. Já não conheço ninguém. (UFPR), Marcio é jornalista e atua na Assessoria
de Comunicação do Museu Oscar Niemeyer
menos dez horas todo dia dentro de um ir até o banheiro, na volta olhei pela ja­ Como pode? O comerciante de roupas, (MON). Vive em Curitiba (PR).
jornal da biblioteca pública do paraná | Cândido 31

retrato de um artista

Lima barreto
Por Osvalter Urbinati

Afonso Henriques de Lima Barreto


nasceu no Rio de Janeiro, no dia
13 de maio de 1881, mesmo dia
em que, sete anos depois, em
1888, foi assinada a Lei Áurea.
Porém, os resultados sociais da
escravidão foram amplamente
abordados em sua obra. Entre
seus principais livros, destacam-se
Recordações do escrivão Isaías
Caminha (1909), Triste fim de
Policarpo Quaresma (1911) e Vida
e morte de M. J. Gonzaga de Sá
(1919). Lima Barreto trabalhou
em diversas redações, sendo
considerado um dos inauguradores
do jornalismo literário no país.
Teve sérios problemas com
o alcoolismo, que o levou ao
sanatório por mais de um período.
Morreu no dia primeiro de
novembro de 1922, aos 41 anos.

Osvalter Urbinati é
designer gráfico por
formação e ilustrador por
insistência. Formou-se pela
UTFPR, em 2006, e desde
então ilustra, diagrama e
projeta jornais de Curitiba.
Também trabalha como
freelancer para as revistas
Mundo Estranho e Alfa.
32 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná

poesia
Josely Vianna Baptista Ilustração: Rafael Antón

Cortejo noturno

trouxe na lua crescente


uma canastra de peixes
(as guelras membranas baças
de romãs despedaçadas)
nos lampejos da minguante
um puçá de caranguejos:
tanino do mangue-bravo
fez o azul das carapaças
das fasquias de taquara
fisgou argolas de palha;
as plumas de maguari
transbordando das cabaças
no cesto da lua nova 29 dias
frutos roxos de figueira,
gavelas, paveias, feixes
para o leito sobre a areia restos de flores de goivo,
gomos e lábios vermelhos
– o lento engenho do jogo
no começo dos afagos
(sobre o leito frondoso
o alvorecer poento
encontre os noivos reclusos
dentro do próprio desejo)
dedos trêmulos e beijos
sobre seus cabelos negros
– lampejo sombrio do gozo
no fôlego dos abraços
(junto aos latejos do fogo
o poente poeirento
encontre os noivos desnudos
no assombro do silêncio)
restos de flores de goivo
sobre seus cabelos negros

Josely Vianna Baptista nasceu em


Curitiba (PR), em 1957. É poeta, tradutora
e escritora. Entre seus livros, estão Ar (1991),
Corpografia (1992) e A concha das mil
coisas maravilhosas do velho caramujo
(2001). Em 1996, criou a coleção Cadernos
da Ameríndia, dedicada a temas do repertório
cultural e textual de etnias indígenas sul-
americanas. Os dois poemas publicados aqui
fazem parte do livro inédito Roça barroca, que
a editora Cosac Naify lança em janeiro.

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