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Personagens, Auto Da Barca

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O Auto da Barca do Inferno contém 12 cenas.

A primeira
cena é aquela em que o Diabo e o companheiro preparam
a Barca para receber as personagens que chegam ao cais
para serem levadas para o inferno.
No cais de embarque para a outra vida, o Diabo e o
Anjo aguardam a chegada de passageiros que serão
levados por um ou por outro, de acordo com a vida
que levaram. O Diabo e o Anjo representam,
respetivamente, o Mal e o Bem.
Chegam sucessivamente ao cais 11 personagens,
representantes de diversas classes e grupos
(personagens tipo), que são julgadas, se defendem
quase todas, e são também quase todas
condenadas à Barca do Diabo, com exceção do
Parvo, pobre de espírito e os quatro cavaleiros que
morreram na luta contra os Mouros, enquanto
defendiam a fé cristã.

Personagens de cada cena


Cena I – Anjo, Diabo, Companheiro
Cena II – Os mesmos, Fidalgo, Pajem
Cena III – Os mesmos (exceto o Pajem), Onzeneiro
Cena IV – Os mesmos, Joane (Parvo)
Cena V - Os mesmos, Sapateiro
Cena VI - Os mesmos, Frade, Moça
Cena VII - Os mesmos, Alcoviteira, Moças
Cena VIII - Os mesmos, Judeu
Cena IX - Os mesmos, Corregedor, Procurador
Cena X - Os mesmos, Enforcado
Cena XI - Os mesmos, quatro cavaleiros

Os tipos
O teatro gil-vicentino é, essencialmente, um teatro para tipos. O
tipo não é uma personagem individual e bem caracterizada, mas
uma figura coletiva que sintetiza as qualidades e os defeitos da
classe, da profissão ou até do estrato social a que pertence. Para
que o espectador o pudesse identificar facilmente, apresentava-se
no estrato com elementos distintos, que tanto podiam ser um
objeto, um animal como até uma ou mais pessoas. Vejamos, então,
quais são os símbolos cénicos das personagens tipo do alto da barca
do inferno:
 O Fidalgo vem seguido de um criado que lhe segura a cauda
do mando lhe transporta uma cadeira;
 O Onzeneiro traz pendente da sinta uma enorme bolsa, que
ocupa quase tudo na vida;
 o sapateiro aparece-nos de avental e carregada de formas;
 o Frade surge-nos como uma moça pela mão, cantarolando
e bailando, envergando, sobre o hábito, a armadura de
esgrimista;
 a alcoviteira vem carregada de objetos que usava no seu
negócio e é seguida de um grupo de moças que ela explorou,
entregando as à prostituição;
 o judeu sobrevém com um bode às costas, animal ligado aos
sacrifícios da religião judaica;
 o corregedor, apoiada a uma vara, transporta uma resma de
processos;
 O procurador não abandona os seus livros jurídicos;
 o enforcado pisa os trato com um Bart osso ao pescoço;
 os cavaleiros da ordem de Cristo trazem o hábito que
distintamente os identifica
O Parvo (Joane)
Joane, o Parvo é a todos os níveis, uma personagem de
exceção no Auto da Barca do Inferno. Apresenta-se em
cena sem nada trazer consigo e, com toda a simplicidade
ingenuidade e graça, autocaracteriza-se perante o Diabo
como “tolo”. Queixa-se por ter morrido, mas há
descontração nas suas atitudes e apenas se irrita quando
percebe que o Diabo o quer levar para o Inferno. Os
insultos que lança ao Diabo revelam o seu caráter
descomedido e sem autocensura, próprio de um pobre de
espírito.
Ao apresentar-se diante do Anjo, sintetiza toda a sua
simplicidade ao afirmar que é “talvez alguém”, ou seja,
quase ninguém. Salva-se precisamente porque, não há
maldade nos seus atos, é como se fosse uma criança a
quem não se pode atribuir responsabilidade. Este Joane
(assim se chamavam normalmente os Parvos,
personagem tipo comum no teatro medieval) é a
concretização do preceito cristão, segundo o qual, são
“bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o
reino dos céus”.
O Sapateiro (João Antão)
O sapateiro usa como argumentos para ser salvo o facto
de se ter confessado, comungado, ter ouvido muitas
missas e ter dado ofertas à igreja. Perante estes
argumentos, o Diabo contrapõe, como motivo de
condenação, os roubos que o sapateiro praticou.
Tal como o Sapateiro, o Fidalgo confiava que as rezas se
poderiam sobrepor aos pecados, afirmando em sua
defesa, que deixava na vida quem rezasse por ele.
A condenação das personagens que pecaram, apesar das
rezas que fizeram ou mandaram fazer, encerra uma
crítica à forma superficial como muitos católicos
praticavam a religião, pensando que as rezas, as missas,
as comunhões tinham mais valor do que a prática do
bem.
O Anjo recusa a entrada do Sapateiro porque este pecou
ao roubar os clientes.
Os símbolos cénicos do sapateiro são o avental e as
formas que representam exatamente a sua profissão.
Uma vez que o sapateiro é condenado por ter roubado os
clientes, há uma relação direta entre os símbolos e os
pecados que lhe são imputados.
O Corregedor e o Procurador
O Corregedor, juiz “amador de perdiz” é o mesmo que
dizer corrupto.
A altivez do corregedor aproxima-o do Fidalgo. Ele usa
repetidamente o latim porque é a língua usada nas leis.
O Diabo, ao responder-lhe em latim macarrónico, está a
ridicularizar a linguagem jurídica, dando a entender que
as leis são só conversa e a sua aplicação é adulterada.
Quando o juiz pergunta se há algum meirinho do mar
revela que ele está habituado a mandar, a ter subalternos
que fazem o trabalho por ele.
Face à insistência do Diabo que manda entrar o réu na
sua barca, o Corregedor pergunta espantado se o poder
do barqueiro é maior do que o do próprio rei porque ele
não admite que ninguém mande nele.
O Diabo acusa-o de ter recebido subornos, mesmo das
mãos dos judeus. Ele defende-se, desculpando-se com a
mulher, responsabilizando-a pela aceitação das ofertas.
O Diabo diz que: “Irês ao lago dos cães/ e verês os
escrivães/ como estão tão prosperados” para alargar a
crítica ao grupo social na medida em que mostra que o
Inferno está cheio de homens da lei.
O Procurador é um funcionário que trata dos negócios do
rei e de entidades privadas e é colocado aqui por Gil
Vicente, em simultâneo com o Corregedor para mostrar a
cumplicidade existente entre a justiça e os negócios dos
poderosos.
Os dois réus dialogam sobre a confissão e revelam que
não a levaram a sério, pois o Corregedor não contava a
verdade e o Procurador só se confessava em momentos
de aperto.
À aproximação destas duas personagens, o Anjo reage
com desprezo e irritação, de tal forma que até lhes roga
uma praga, o que será uma atitude pouco própria de
Anjo. Depois, muito sumariamente condena-os em nome
da justiça divina que, desta forma, se sobrepõe à
humana.
O Parvo corrobora a condenação, acusando-os de terem
roubado, ou seja, de se terem apropriado indevidamente
de coelhos e perdizes. No fundo acusa os de corrupção.
Também lhes dirige uma acusação semelhante à que
dirigiu ao Judeu, de terem profanado as igrejas talvez
para enfatizar a ligação entre a corrupção entre eles e os
judeus porque estes tinham dinheiro.
Ao entrar na Barca do Inferno, o corregedor dialoga com
Brízida Vaz, mostrando, assim, que se conheciam em vida.
O Fidalgo (D. Anrique)
Os elementos cénicos são: o pajem, cadeira de espaldar
(costas altas) e manto. Todos estes elementos cénicos
representam o estatuto social do Fidalgo, sendo o mando
a representação da sua vaidade pela condição social que
tem, o pajem representando todos aqueles que o servem
e sobre os quais ele exerce a sua tirania; a cadeira,
finalmente, representa, por um lado, os bens materiais e,
por outro lado, o poder.
Esta personagem começa por parar junto à barca do
Diabo, depois dirige-se à barca do Anjo e, por fim,
regressa à barca do Diabo.
O estado de espírito do Fidalgo altera-se à medida que a
cena se desenrola. No início, está muito descontraído e
seguro de si, mas quando se afasta da barca do Diabo,
começa a revelar preocupação e, ao mesmo tempo,
irritação, pois chama e ninguém lhe responde. Quando
começa a falar com o Anjo, tenta recuperar a sua
segurança, no entanto, quando percebe que não lhe é
permitido entrar, mostra-se desanimado e um pouco
arrependido de ter confiado no seu “estado”, isto é, na
sua condição de Fidalgo. Perto do final desta cena, chega
a mostrar-se humilde perante o Diabo, implora-lhe que o
deixe regressar à vida e, finalmente, mostra-se resignado
com o seu destino fatal.
Falando com o Diabo, o argumento que o Fidalgo usa em
sua defesa é o facto de ter deixado na terra quem reze
por ele; com o Anjo usa o argumento de ser “fidalgo de
solar”.
Estes argumentos dizem muito sobre esta personagem.
De facto, defendendo-se com as rezas que alguém ficou a
fazer por ele, mostra que viveu tão confiante na sua
condição social e tão habituado a que os outros fizessem
tudo por ele que nem lhe ocorre que as orações não
seriam suficientes para o salvar. Por outro lado, o
argumento que apresenta ao Anjo mostra toda a sua
arrogância e vaidade.
Através destas palavras do Anjo, Gil Vicente (também
através das falas do Diabo) pretende criticar a prática
errada da religião levada a cabo por aqueles que
acreditavam que as orações, as missas e outras práticas
superficiais eram mais importantes do que a fé e as obras.
Ao referir que o pai do Fidalgo também foi condenado ao
Inferno, Gil Vicente pretende alargar a crítica à classe
social a que pertence o Fidalgo – a nobreza, na medida
em que dá a entender que os nobres são condenados,
geração após geração. Esta informação dada pelo Diabo
sublinha o caráter de personagem tipo do Fidalgo.
Quando o Fidalgo quer ir à terra ver a “sua dama” o
Diabo, rindo, chama-lhe tolo e mostra-lhe como está
completamente enganado em relação ao desgosto que a
amante e a esposa sentem. Uma e outra estão contentes
com a sua morte e só fingiam sofrimento. Nesta
passagem as mulheres também são representadas
negativamente, atribuindo-lhes falsidade, hipocrisia e
infidelidade. Alarga-se a crítica às mulheres, mostrando o
seu fingimento que é transmissível de mães para filhas.
O Fidalgo é acusado de ter vivido a seu praze, de ser
presunçoso e vaidoso e, ainda, de ter sido tirano para o
povo
Dom Anrique é caracterizado com “fidalgo de solar”,
vaidoso e presunçoso da sua condição social. A forma
como se apresenta em cena, com o seu longo manto e o
paje que carrega a cadeira revela bem essa vaidade e
ostentação e a forma como reage inicialmente ao Diabo e
depois ao Anjo revela a sua arrogância de quem sempre
esteve habituado a que obedecessem às suas ordens. É,
no entanto, no estatuto de nobre que ele confia como
razão para ser salvo, tal como sempre confiou ao longo da
vida. É por isso que, quando o Anjo o interpela, e
apresenta como único argumento de salvação o facto de
seu “fidalgo de solar” é também por isso que desdenha a
barca do Diabo a que chama cortiço “e exige que o
tratem por vossa senhoria”. Da vida sentimental ficamos
a saber, através da conversa com o Diabo, que além da
esposa tinha uma amante, mas, afinal, mesmo sendo
poderoso era engando por ambas. O Fidalgo é uma
personagem tipo, na medida em que representa a
nobreza e os seus vícios de tirania, presunção, arrogância
ostentação. É exatamente por isso que, tal como
aconteceu a seu pai, ele é condenado ao Inferno.

O Enforcado (cena X)
O Enforcado é um criminoso pertencente à classe
popular; e condenado pela sua ignorância e,
indiretamente, pelos seus crimes, uma vez que foi
convencido de que lhe seriam perdoados os pecados caso
se enforcasse.
Enganado em vida por Garcia Moniz que o levou a
acreditar que a sua alma seria salva através da
condenação terrena, o enforcado acaba por não reagir
negativamente ao convite do diabo por entrar na barca
do inferno. As duas atitudes do condenado (acreditar em
Muniz e seguir o diabo) revelam uma certa ingenuidade
do enforcado que acredita em tudo o que lhe dizem ou
mandam fazer.
Através desta cena, relativa a um condenado pela justiça
e que se enforca porque acredita santificar-se assim, Gil
Vicente critica mais o absurdo desta crença do que o
próprio Enforcado.

Os Quatros Cavaleiros
Os quatro cavaleiros por exemplo então todos os que
lutaram para propagar a fé cristã, entrando, por isso, na
barca da glória.
Quando entram vêm a cantar uma cantiga que lembra
aos mortais que a vida é passageira e a necessidade de
ter sempre presente a inevitabilidade de comparecer
naqueles locais e ser julgado. O destinatário desta
mensagem são os homens, seres mortais e pecadores.
Podemos dizer que na cantiga dos quatro cavaleiros está
contida a moralidade da peça, na medida em que
equaciona a questão de a vida ser transitória e do destino
fatal que está de acordo com a forma como se viveu a
vida terrena.
Os Cavaleiros nem sequer foram acusados pelo Diabo e
merecem entrar na barca do anjo por que morreram a
combater a fé de Cristo contra os infiéis, o que os livrou,
automaticamente, de todos os pecados. Esta cena é
reveladora de uma certa mentalidade ainda muito
medieval, que incita o espírito de cruzada.
O Frade (Fr. Babriel)
A apresentação do Frade revela imediatamente que se
trata de um Frade mundano, frequentador da corte e dos
seus prazeres.
O Frade traz como elementos cénicos o seu próprio
hábito de Frade, o equipamento de esgrima- capacete,
escudo e a sua espada- e uma rapariga (Florença). O
equipamento de esgrima representa o lado mundano do
Frade que se dedicou, em vida, a atividades muito pouco
próprias de um Frade. A rapariga representa a quebra dos
votos de castidade a que os membros do clero eram
obrigados.
Critica se no Frade, precisamente, o desajuste que existe
entre a sua condição eclesiástica e a vida que leva. Por
isso, os símbolos que traz e que representam os aspetos
em que essa vida mais se afasta dos seus deveres estão
diretamente relacionados com a intenção crítica a todo o
clero que se comporta desta maneira.
O Frade deveria ser, por definição uma pessoa dedicada à
alma, ao espírito, acima das coisas do mundo, mas este é
mundanal e, logo, encerra uma contradição.
O Frade é uma personagem tipo, através da qual Gil
Vicente pretende criticar toda uma classe social- o clero-
acusando os seus membros de viverem em
desconformidade com as suas obrigações.
O Frade não esconde o seu passado e até o assume, pois
estava convencido que, por ser Frade, podia fazer tudo o
que quisesse e que não seria condenado. A sua condição
de Frade é o argumento que ele usa para se defender.
Isto mostra que, no século XVI, se consideravam muito
importantes e com direito a fazerem tudo o que lhes
apetecesse. Tal crítica revela um mal-estar na sociedade
pelo facto de os frades e os padres serem cada vez em
maior número, mais ricos e mais poderosos.
Apesar de o Frade ter uma das personagens mais
duramente atacadas, o Frade é uma das mais divertidas.
Desde a sua chegada ao cais, a dançar e a cantar, até ao
final da cena virgula mostra-se alegre e divertido. Parece
ter-se limitado a fazer o que os outros clérigos faziam,
com a arrogância de quem pensava que podia fazer tudo
o que quisesse. Pode aplicar-se aqui o provérbio “como
frei Tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz”.
A recusa do anjo em falar com o Frade mostra a
gravidade dos seus atos como se, assim, considerasse
mais repugnante o que fez o Frade do que qualquer outra
personagem. Ele, como elemento da igreja dar o
exemplo.
A Alcoviteira (Brízida Vaz)
O Diabo fica contente quando esta personagem chega ao
cais porque tem a certeza de que Brízida Vaz é mais uma
passageira para a sua barca.
Alcoviteira traz um enorme carregamento: virgos
postiços, argas de feitiços, armários de mentir, cofres de
enleios, furtos alheios, joias de vestir, guarda-roupa de
encobrir, moças que vendia. Todo este carregamento
simboliza a sua atividade de alcoviteira, ligada à
prostituição.
Esta personagem caracteriza-se, entre outras coisas, por
ser uma hipócrita que tenta fazer-se vítima inofensiva
para convencer os outros daquilo que lhe interessa. É, de
facto, uma hábil mentirosa.
Quando o diabo a convida a entrar, Brízida Vaz diz com
arrogância que não quer entrar. Para abordar o anjo de,
começa por tentar a tática da sedução, depois faz-se de
vítima implora humildemente.
Ela tenta uma linguagem que lhe parece semelhante à
das pessoas boas virgula para parecer boa, aos olhos do
anjo.
Falando com o diabo, Brízida Vaz apresenta como
argumento para salvar, o facto de já ter sido
suficientemente castigada com açoites pela justiça na
Terra. Para o anjo, ela argumenta que serviu o clero,
entregando raparigas para os cónegos da Sé e que salvou
muitas raparigas, arranjando-lhes “donos”.
Brízida Vaz, a Alcoviteira, é uma personagem totalmente
caracterizada por si própria, já que nem o Diabo nem o
Anjo fazem qualquer afirmação sobre ela. De facto, ela
fala tanto sobre a sua atividade que não é necessário
lembrar-lhe os pecados que cometeu. Ao Diabo ela
descreve o que traz consigo e, na enumeração dos
símbolos cénicos, ela revela claramente que se dedicava a
prostituição, a angariação de raparigas e até a prática de
feitiçaria relacionada com os amores.
Ao anjo ela revela que os membros do clero eram seus
clientes. Para além desta caracterização direta, é fácil
analisar o comportamento e as palavras de Brízida em
cena e fazer a sua caracterização indireta. Assim, quando
descreve os objetos que quer embarcar utiliza tantas
palavras relacionadas com “mentira” que nos informa
imediatamente como é falsa e hipócrita.
Através desta cena Gil Vicente criticava a atividade da
alcoviteira, mas também os seus clientes, sobretudo os
membros do clero que recorriam aos favores destas
Mulheres para arranjarem raparigas.

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